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MONIQUE AUGRAS
1. Introdução; 2. Os quir6pteros; 3. O
morcego.
1. Introdução
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morcegos, pode-se dizer que as demais espécies de quirópteros são animais extre-
mamente úteis ao homem. O falso vampiro, Vampyrum spectrum, extermina os
ratos. Os minúsculos morcegos mexicanos das flores, Leptonycteris sanborni, asse-
guram a polinização. A maioria das demais espécies extermina os insetos.
Resumindo, pode-se afirmar que os morcegos são animais extremamente inte-
ressantes, úteis, e certas espécies são bonitas e elegantes em seu vôo.
Por que, então, fama tão negra? Será que toda a ordem padece por culpa
exclusiva do Desmodus? Na Europa não há hematófagos, mas em compensação há
o mito dos vampiros. Será que outras culturas vêem o morcego do mesmo modo?
Após a informação das ciências naturais, é preciso investigar que valor é
atribuído ao morcego, nas ciências do espírito: o que a antropologia cultural, a
arte e os mitos nos contam a respeito.
3. O morcego
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Tal assocIaçao é portanto relativamente recente na arte ocidental. Se ela
pegou tão bem, a ponto de ser hoje considerada como evidente, é que se apóia sem
dúvida num longo exercício da suspeita em relação ao morcego.
A Idade Média européia ignora p nosso Desmodus. Mas quando se preocupa
em representar o demônio, atribui-lhe asas de morcego, que contrastam com as
asas resplandescentes dos anjos.
E verdade que o de~ônio não é monstruoso apenas pelas asas: todo o seu
corpo é formado por elementos disparatados. No entanto, mesmo quando a repre-
sentação se torna mais simples, tal como se encontra nas imagens populares, as
asas do morcego permanecem.
Por que foi o morcego investido da missão do vampiro? O que carrega de tão
sinistro que as imagens do diabo lhe pedem emprestadas as próprias asas?
É um animal noturno. Inclusive no rol daqueles que vivem na escuridão, nas
trevas, que se escondem do mundo diurno. Mora nas grutas de difícil acesso, ou
nas casas arruinadas. Como se isso não bastasse, passa o dia inteiro dependurado
de cabeça para baixo. :f: mamífero e contudo voa. Parece criatura de um modo que
funcionaria às avessas do nosso. Na civilização ocidental, a bruxaria nos ensinou
que o mundo às avessas é próprio do demônio, pois a sua existência denuncia a
perfeição deste mundo criado por Deus.
Se é possível estabelecer um mundo que seja construído ao contrário do
universo elaborado por Deus,. com leis opostas e valores inversos, então Deus não
existe.
Essa proposição é tão apavorante que os homens que faziam profissão de
representar, isto é, apresentar de novo o mundo de Deus, artistas plásticos e
comediantes, não raro enfrentavam a acusação de heresia. Mais ameaçadores não
seriam aqueles - alquimistas ou feiticeiros - que procurassem criar um mundo
novo, insinuando que este mundo não é perfeito, ou que outro mundo lhe pode
ser oposto?
O noSso humilde quiróptero, noturno, ambíguo, contrário ao senso comum, é
então investido de toda essa carga maléfica. Não contam os anciões que o morcego
é uma transformação dos ratos velhos? "A gente, quando morre, vira anjinho. O
rato, animal já bastante nojento por si só, vira passarinho do diabo" (5). .
Será tão terrível pertencer a dois reinos ao mesmo tempo, o terrestre e o
aéreo? É proibido ao mamífero fmgir-se de pássaro?
Todo monstro é proibido. Todo monstro ameaça a ordem, e como tal deve ser
destruído.
Mas será a duplicidade sempre monstruosa?
Na China, o caráter Fou, que designa o morcego, significa também felicidade.
As cinco felicidades - riqueza, longevidade, tranqüilidade, virtude e boa morte -
são freqüentemente representadas sob forma da revoada de cinco morcegos. Em
bordado do século XVIII, a Rainha-Mãe do Oeste aparece carregada de presentes,
acompanhada de um fênix, rodeada pelos Oito Imortais. Por cima de sua cabeça,
voam três morcegos azuis e cor-de-rosa, como símbolo de felicidade.
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As grutas onde vivem os morcegos servem de passagem para os imortais irem e
virem deste mundo para o além. Os morcegos participam desse tema de mudança e'
da transformação. Dormem de cabeça para baixo porque são tão sábios, tão
sábios, que suas cabeças se tornaram pesadas demais. Testemunhas concretas de
um mundo em transformação, os morcegos desempenham também certo papel nas
atividades procriativas. Seu sangue teria virtudes afrodisíacas.
Do vampiro ao morcego cor-de-rosa, vê-se o quanto o valor do quiróptero
muda de acordo com o contexto cultural. Num mundo criado de uma vez por
todas, a duplicidade é pecado; numa cultura que vê o mundo em constante trans-
formação, a duplicidade é a porta para a metamorfose.
No livro do Conselho dos Maias, o Papal Vuh, o deus-morcego desempenha
importante papel na lenda dos dois gêmeos que organizaram o mundo. A casa do
morcego é uma das regiões subterrâneas que é preciso atravessar para chegar ao
país da morte. Criatura das trevas, devoradora da luz, é ao mesmo tempo o senhor
do fogo. O fogo cria e destrói. Como nos chineses, o morcego é para os maias
um símbolo de transformação. Sua associação como o mito dos gêmeos ressalta
sua duplicidade característica.
Os indígenas da Austrália contam que o mundo foi organizado no meio de
muitos conflitos. De início, os animais tiveram de lutar contra um terrível dragão.
Depois, passaram a brigar entre si. Dividiam-se em dois grupos, os pássaros contra
os quadrúpedes. O morcego, por ser uma e outra coisa, fazia jogo duplo. Favorecia
alternativamente cada um dos combatentes, e, deste modo, a luta jamais poderia
terminar.
O morcego divertiu-se com isso, durante bastante tempo. Um dia porém,
cansou-se. Passou para as coisas sérias. Lançou o bumerangue para o norte, e ele
voltou pelo sul. Assim foram criados o dia e a noite. Lançou o bumerangue para o
oeste, e ele voltou ao leste, trazendo consigo o sol. Assim foi restabelecida a
ordem do mundo.
A lição do mito australiano parece a mais completa: a duplicidade tanto pode
ser síntese quanto conflito.
Será que agora não dá para entender por que o morcego é, por assim dizer, o
animal totêmico do Rorschach?
Conforme as culturas, o morcego foi apresentado sucessivamente como mons-
tro, sábio, mediador e transformador do mundo. Em todos os casos, foi afirmada a
sua duplicidade.
Até numa modalidade menor, o morcego é um ser duplo. A opereta de
Johann Strauss, La Chauve Souris (1874), leva esse título por causa de uma
personagem que vai assim disfarçada para um baile a fantasia. Já mostramos alhu-
res que a máscara, ~omo o espelho, pertence ao tema do homo duplex (2).
Falta em nossa galeria de personagens lendárias a gloriosa imagem de um
contemporâneo, o Batman.
Desmentindo a negra fama do morcego, Batman é bom, protege a sua cidade
contra os maus, os quais sempre derrota. Mas reafirma a ambigüidade, pois leva
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uma vida dupla. É um pacato cidadão, e ninguém desconfia do seu disfarce. Os
habitantes de Gotham City projetam no céu a imagem de um morcego, cada vez
que precisam de Batman. Este então acorre, sempre acompanhado por Robin. A
presença de Robin não se impõe pela lógica da história. A natureza dos laços que o
unem com Batman nunca foi devidamente esclarecida. Parece-nos que a perso-
nagem de Robin surge para cumprir mais uma vez a saga dos gêmeos heróicos, já
associados ao morcego no mito maia. As crianças percebem os dois como compo-
nentes de uma unidade.
De qualquer lado que dirijamos a nossa observação, chegamos a uma temática
constante; a duplicidade. O morcego impõe-se como símbolo representativo de
uma dupla natureza. Nesse sentido, justifica-se plenamente o seu constante apare-
cimento nos protocolos do teste de Rorschach. O que o psicodiagnóstico procura .
desvendar, senão a ambigüidade do sujeito?
Colocado frente a estímulos ambíguos, o examinando utiliza como recurso
mais banal o reconhecimento do percepto morcego. Como se dissesse: este mate-
rial para mim é estranho, tão estranho como sou. O morcego, animal estranho de
fato, vem testemunhar a nossa própria estranheza.
Como bem dizia o poeta:
"A consciência humana é este morcego!"
O famoso soneto de Augusto dos Anjos, como todos sabemos, é parte de um
livro intitulado Eu (1).
Résumé
Referências bibliográficas
1. Anjos, Augusto dos. Eu e outras poesias. Rio, Livraria São José, 1965. p. 59.
2. Augras, Monique. O Ser da compreensão. Petrópolis, Vozes, 1978.
Horário: janeiro e fevereiro. todos os dias úteis das 8 às 12 horas e das 13.30 às 17.30 horas;
março a dezembro. todos os dias úteis. das 8 às 20 horas e. aos sábados. das 8 6s 12 horas.
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