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VIAGEM ÀS VERDADES INVENTADAS DE WALMOR CORRÊA

MARIA DE FÁTIMA COSTA

Ao ver a obra de Walmor Corrêa, o espectador é invadido tanto por uma sensação de
acolhimento, como de estranheza. O artista, com um espetacular domínio técnico, põe-
nos diante de seres que à primeira vista parecem próximos, mas que, ao aproximarmo-
nos, vão se descontruindo, deixando ver o extraordinário.

É com essa anormalidade comum e desconcertante que Walmor parece fazer sua
composição lúdica, como se de um jogo de escolhas se tratasse. O objetivo, como o de
todo artista, é atingir o público. Há aqueles que passam diante das paredes e vitrines que
exibem os desenhos e objetos criados por Walmor e acreditam ter visto o seu trabalho,
porém não descortinam a magia contida na obra; mas há os que se deixam seduzir, que
se aproximam e se deslumbram com o singular, contido no que lhe parecia tão usual.
Estes são os seus interlocutores.

Ao se descobrir o mistério, algo de maravilhoso – próprio das mirabilias – rompe a


barreira do tempo e se instaura. Há uma simbiose medieval-contemporânea. Finalmente,
uma prova, um documento visual a atestar existência dos seres tidos como estranhos,
híbridos e monstruosos, que a ciência quis e quer negar.

A primeira tendência é compará-los às antigas maravilhas, àqueles animais fabulosos


que conviveram e povoaram a mente do homem do Medievo, que marcaram presença
na cartografia moderna, como os cinocéfalos, acéfalos, esciápodes, grifos ou unicórnios.
Esses seres por muito tempo habitaram entre os homens, mas numa terra distante e
inalcançável, até que os sábios do Iluminismo os perseguiram implacavelmente. Mas,
todos sabem, alguns conseguiram burlar o algoz e escaparam, indo viver nas mais
diferentes partes do nosso mundo, do lago Ness, na Escócia, ao arquipélago chileno de
Chiloé, e em tantos outros recantos. Alguns até vieram às terras brasílicas e estão a
conviver com os ribeiros do Pantanal, os caboclos da Amazônia ou os pescadores
litorâneos, como é o caso da sereia, do curupira ou do minhocão.

É a esse limbo, onde sobrevivem as criaturas fantásticas, que a obra desse artista nos
transporta, reavivando a sua existência.

Seria Walmor um desses expedicionários que, em tempos passados, descortinou lugares


fabulosos, tal Marco Polo ou Baldolino? Seria ele um documentador científico, como
aqueles jovens precocemente envelhecidos, que entre os séculos XVIII e XIX
devassaram mundos, catalogando e desenhando exóticas espécies? Ou o Demiurgo de
que nos fala Platão, aquele artesão divino, organizador do universo, a modelar o
preexistente à imitação de modelos perfeitos?

Não cabem dúvidas de que ele traz em seus genes algo desses personagens, mas antes
de tudo, Walmor Corrêa é um artista. E, como tal, busca – e consegue – criar uma
linguagem própria. Um artista que, de maneira intuitiva, traveste-se de viajante, de
biólogo, de médico, de cientista, como ele mesmo se conceitua, a fim de produzir seu
trabalho. É ao refazer esses percursos e estabelecer simbioses entre o comum e o
estranho, que este talentoso artista deixa surgir as criaturas desconcertantes da sua
fauna.
Mas qual seria a genealogia dos personagens criados por Walmor? Tzvetan Todorov
comenta que, na literatura fantástica, há pelo menos dois tipos de seres: os estranhos e
os maravilhosos. Esses – os maravilhosos – pertencem ao mundo dos milagres e, por
isso, conservam um resíduo sobrenatural. Já os estranhos podem ser identificados pela
reflexão; portanto, derivam da atividade humana. Levando-se essas observações à
linguagem visual, tem-se uma pista da natureza dos seres criados por Walmor, pois é
justamente à reflexão que a sua obra nos convida.

Em entrevista concedida a Paula Ramos e veiculada pelo “Canal Contemporâneo” no


início de 2008 , Corrêa nos conta um pouco sobre o seu processo de criação e deixa ver
que a ilação aqui proposta não é fortuita. Observa que, desde a infância, foi movido por
curiosidade e imaginação, mas o seu estalo teria ocorrido durante uma viagem à
Amazônia, em 1999, quando percebeu a possibilidade, “como artista”, de criar seres
ainda mais surpreendentes que os encontrados na natureza. Isso ganhou forma ao visitar
a coleção de insetos do Museu de Ciências Naturais da Amazônia, onde ouviu de
visitantes as mais absurdas histórias sobre os hábitos que esses animais teriam;
constatou que as pessoas mentiam, inventando dados para demonstrar conhecimento. E
se perguntou: “Por que eu também não poderia inventar?”. Passou então a inventar seus
insetos, “que eram muito semelhantes àqueles do museu, mas não existiam”. Surgem,
assim, as Gavetas Entomológicas, com suas miríades de representações de bichos que
lembram libélulas, borboletas, besouros, formigas, pernilongos. Lembram, mas não são.

Walmor Corrêa é, pois, um artista que usa a linguagem visual para, através de suas
estranhas criaturas, expor outra natureza. É como se tomasse para si a linha poética de
Manoel de Barros, reafirmando: Tudo que não invento é falso. Sua obra apresenta,
portanto, uma verdade inventada.

E tendo inventado a inusual coleção de pequenos insetos, logo o olhar transformador do


artista foi direcionado para animais maiores. Já nos anos 2000, Walmor traz ao público
outro conjunto de criaturas: aves, peixes, roedores e mamíferos de corpos transmutados.
Ali estava o Pinguisch, uma mistura de pinguim e peixe; o Apterigiformes Aco II, com
as suas mil e uma utilidades; o Pelágius Sonhatorum Chim, originário da China; a
tartaruga roedora [Nageschildkröte], o macaco com bico [Schnabelaffe], o caramujo-
lagosta [Krebsschnecke], entre outros seres dessa fauna singular, cuja morfologia
contradiz a funcionalidade dos seus órgãos. Uma obra realmente surpreendente, que foi
exibida na mostra apropriadamente titulada de Natureza Perversa.

Ao criá-la, o artista demonstra a intimidade ímpar que mantém com lápis e pincéis. É
com total domínio do seu ofício que Walmor dá substância a cada um dos seres que
inventou. Da escolha das cores à delicadeza dos traços, todo o conjunto é portador de
uma poética visual que seduz o olhar. Entretanto, o que se vê impacta. Ali não se mostra
apenas o aparente. Através de um corte preciso, que adentra a epiderme, exibe-se em
riqueza de pormenores cada um dos órgãos contidos no interior dos corpos híbridos dos
animais à mostra, tal um livro de anatomia. Se o superficial seduz pelo belo, o interior
provoca a razão. Esta recua, exige compreensão. Talvez isso também seja o perverso
evocado no título que o artista deu à exposição.

Seu modelo, não há dúvidas, está no desenho científico. Vale dizer, nos registros visuais
praticados por documentadores que faziam parte das viagens naturalistas, com o
objetivo de dar a conhecer espécies ou indivíduos da flora ou da fauna de uma
determinada região. Por isso a necessidade de descrevê-los não só com traços e cores,
mas também com palavras, como apregoavam os antigos manuais. As descrições
textuais visavam a completar as informações e dirimir dúvidas quanto ao desenho.
“Poucas pessoas – nos diz E. H. Gombrich – duvidariam de que a compreensão das
imagens, sejam elas fixas ou em movimento, se vê enormemente facilitada mediante a
adição de explicações verbais”.

Fiel ao conceito que adota, o artista constrói as figuras, complementando-as com


palavras; textos e traços competem sobre o suporte. Isso faz com que o corpo do
estranho animal flutue em meio a um mar de linhas manuscritas. O Pinguisch, por
exemplo, é mostrado de perfil e com detalhes da sua estrutura, interna e externa; ele é
também acompanhado pela descrição explicativa: “Grande é a dificuldade de se
observar o Pinguisch – com sua enorme agilidade e velocidade (chega a atingir 150
km/h), ele pode ser visto apenas como uma luz deslizante sobre as águas. Durante a
decolagem, o corpo fica inclinado paralelamente à água, enquanto as patas agem como
propulsores. O estudo e a observação da espécie só é possível nos meses de outubro e
novembro, com o acasalamento. São habitantes da Patagônia.” Um texto que, em
princípio, parece trazer substanciosas explicações, apresenta, em verdade, notícias
pouco verossímeis, se tomarmos como referência o senso comum.

Esses seres híbridos, com as suas anomalias, remetem, de maneira quase automática,
aos possíveis resultados de projetos como o Genoma, bem como às clonagens
biológicas contemporâneas, forçando o espectador à reflexão sobre o futuro imediato.
Mas as criaturas extraordinárias inventadas por Walmor mexem também com a nossa
ancestral memória humana, fazendo-nos recordar da incansável busca do homem por
mundos fantásticos e inatingíveis, onde habitavam – e esperamos que ainda habitem –
as estranhas criaturas. Afinal, a humanidade precisa de sonhos! O que constrói, como já
afirmou, “[…] é uma natureza fantástica que desconhece a própria impossibilidade”.

É nesse laboratório de possibilidades que podemos adentrar no universo do artista que,


com refinadíssimo humor, rompe fronteiras lógicas, temporais, espaciais. Desequilibra o
convencional, institui o inesperado. Seus seres aparentemente monstruosos, exóticos e
extravagantes põem em xeque a normalidade, questionam o óbvio e canônico e forçam
a reflexão. Daí o incômodo que quase sempre se instala no espectador, ao tomar contato
com o trabalho de Corrêa. Sua obra não quer ser apenas contemplativa, explicativa; os
personagens extraordinários cobram compreensão.

A VIAGEM DO ARTISTA
Por sua forma e linguagem, o trabalho de Walmor Corrêa costuma ser comparado aos
de artistas-viajantes, esses personagens próprios do século XIX, que seguindo os
princípios de arte e ciência apregoados por Alexander von Humboldt (1769–1859)
procuravam um equilíbrio entre o instrutivo e o harmonioso.

A comparação é pertinente e, de fato, há muito em comum: a mesma fixação no


indivíduo do ramo natural, no caso da fauna e, mais raramente, da flora; o uso da
taxonomia classificatória como recurso identificador; a fixação nos detalhes,
explicitando as partes – indicação direta da funcionalidade; a apresentação de coleções;
o preciosismo na técnica, entre outras características. Contudo, há também significativas
diferenças, no que se refere ao processo de criação, recepção e conceito. O artista-
viajante, como membro de uma equipe científica, tem compromisso com o
verossimilhante. Já Walmor propõe o inusitado, o absurdo, o incorreto que poderia
haver na natureza; ou, talvez, o artista seja o erro da natureza, como refere a frase
poética de Manoel de Barros: O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro
perfeito.

Herdeiro do ofício de documentador visual – vale dizer, dos desenhistas quase sempre
formados no risco cartográfico –, cuja função era levar ao papel, com precisão, a
fisionomia de plantas, animais, vistas de paisagens e tudo o mais que a narração não for
capaz de descrever perfeitamente, e com clareza , o artista-viajante, tal como o vemos
hoje, é uma figura que só surge na primeira metade do Oitocentos. Até aquela época,
costumava-se falar do ilustrador, do riscador, do documentador, quando se tratava dos
autores de registros visuais realizados por empresas naturalistas.

De fato, existe muito em comum entre essas figuras. Documentadores e artistas-


viajantes – de maneira muito genérica – eram indivíduos que faziam as representações
visuais em viagem e, para tanto, deslocavam-se para as mais recônditas partes do
mundo, em busca do exótico e do desconhecido, para registrá-lo e criar a possibilidade
de explorá-lo. Os dois utilizavam-se das mesmas técnicas: diante do motivo elegido –
sempre de acordo com as indicações e exigências da equipe de naturalistas que
compunha a expedição –, esboçavam a figura em seu carnet de dessins, buscando fazê-
lo com total realismo. E, como o contato com o objeto retratado era rápido, pois
realizado em trânsito, possuíam um grande domínio técnico e o conhecimento das
normas próprias para a representação de fauna e flora, explicitadas nos manuais e
sempre utilizando lápis e, principalmente, aquarela.

Mas, no início do século XIX, uma linha – em princípio tênue e logo robusta – demarca
uma fronteira, separando esses dois personagens. Para desgosto dos chefes das
expedições científicas, um novo elemento vai se agregar à representação. Influenciado
pelo Romantismo, o documentador passa a individualizar sua obra, incluindo o belo na
composição, de maneira consciente. Como resultado, encontramos figuras nas quais a
natureza, sem perder o verossímil, é mostrada de maneira mais possível que real.
Temos, então, o artista-viajante.

Querendo-se estabelecer uma comparação entre Walmor e esses personagens do


passado, embora ele não se desloque aos recônditos do mundo para efetivar o seu
trabalho, entre os dois, o nosso artista está mais próximo do seu colega viajante, não só
pelo primor da técnica e o cuidado com a precisão científica, mais ainda pelo fato de
toda a sua obra estar impregnada do belo e ser portadora de uma poiética particular.
Além disso, mesmo que com outro conceito, e sem o compromisso com a
verossimilhança, a desconcertante fauna criada por Corrêa estabelece um jogo com a
natureza – entre o possível e o real –, ao evocar os atuais estudos genéticos ou ao
revolver o limbo da ancestral memória humana.

Entretanto, há ainda outras questões a se considerar nesse processo: Walmor quer


atingir o público de maneira frontal; para isso, expõe sua obra em museus, galerias e
outros espaços, mostrando-a sem qualquer filtro. Isso possibilita ao espectador um
contato de primeira mão (ou, versando de seres estranhos, um contato imediato de 4º
grau). Nesse aspecto, reside um dos afastamentos mais visíveis entre o trabalho de
Corrêa e dos viajantes.
Tratando-se de obras realizadas pelos expedicionários do Oitocentos, raras são as vezes
que o público pôde estabelecer uma relação direta com ela. Isso porque a viagem era um
laboratório. Em trânsito, o artista apenas esboçava as figuras que tinha de representar;
suas folhas eram sempre inacabadas e destinavam-se unicamente à ciência. Terminada a
jornada é que os esboços eram finalizados e adornados nos gabinetes de História
Natural, com ou sem a presença do autor. Uma vez concluída, a imagem era, então,
transpassada à gravura – por meio das mais distintas técnicas, mormente a litografia –, e
era esta, a gravura, que chegava ao grande público, no conjunto das publicações
editadas, como resultado da expedição científica.

Cabe lembrar que, no trânsito entre o esboço e a gravura, os motivos sempre recebiam
modificações, seja para atender à demanda do público, para embelezar a cena ou,
simplesmente, por ignorância do gravador. Isso acontecia principalmente quando se
tratava de paisagens, cenas do cotidiano ou representações das sociedades indígenas, o
que, certamente, comprometia sobremaneira o princípio do plausível, perseguido por
seu autor, e o valor documental intrínseco no conteúdo. No caso específico das folhas
que apresentam espécies dos reinos animal e vegetal, próprias para estudo de
taxonomia, o trabalho gráfico quase sempre era acompanhado ou revisado por biólogos,
e as modificações eram menores. Entretanto, ainda assim, muitos animais e plantas
tiveram sua morfologia adulterada de tal maneira que hoje nos parecem aberrações,
figuras próximas às criaturas híbridas propostas nos trabalhos de Walmor Corrêa.

Outra característica a se ter em conta, ao aproximar a obra de Walmor à arte de


viajantes, é que estes quase sempre eram membros de uma empresa científica e, como
tal, seus trabalhos respondiam a exigências externas. Os motivos lhes eram indicados
ora pelo botânico, ora pelo zoólogo ou pelo astrônomo e, na maioria das vezes, pelo
chefe da expedição. E, em qualquer dessas possibilidades, seus trabalhos deviam
responder aos objetivos gerais que norteavam a empresa científica. Cada folha criada
por um artista-viajante respondia a um projeto maior. Desse modo, a compreensão do
seu significado – no sentido proposto por E. H. Gombrich – só pode ser buscada no
conjunto da viagem e em relação às outras formas documentais do empreendimento,
como manuscritos, mapas, herbários e demais objetos coletados durante o trânsito; e
tendo em conta os objetivos da expedição. Sozinho, o registro tomado por viajantes
revela-se incompleto.

Já Walmor é um artista contemporâneo que realiza seu trabalho de forma individual e é


movido pelo livre arbítrio. Ninguém lhe diz como deve apresentar suas figuras. Se seus
animais são estranhos, híbridos e podem até parecer monstruosos, não é porque houve
mudanças ou erros à hora de realizá-los. E, sim, porque assim foram concebidos. As
extraordinárias criaturas são personagens de um mundo imaginário ao qual só o artista
tem acesso. São suas criações. Walmor Corrêa não é um ilustrador de História Natural,
não procura registrar realidades nem realizar falsificações; os animais que cria
pertencem ao jogo de acertos. Acertos da sua criação artística. Tanto é assim que, não
sem modéstia, questionado sobre como se sentia ao produzir suas figuras híbridas, se
como criador ou como documentador, explicitou que, no início, seu pensamento era de
um documentador. Entretanto, os resultados de alguns trabalhos – como a série de
híbridos, confeccionada a partir da prática da taxidermia, misturando roedores com
pássaros – não lhe satisfaziam: as obras perdiam a harmonia e a beleza nas proporções,
nas cores e nas junções. Então, deu-se conta de que a feitura se tornava “praticamente
impossível com os taxidermistas” e, em vista disso, teve “que colocar a mão e ajudá-
los”. Nesse momento, sentia-se como um criador.

UM PASSEIO AO TAPETE DE FLORA


No ano de 2004, a convite da Fundação Bienal de São Paulo (FBSP), Walmor teve a
oportunidade de participar de um projeto que o aproximaria ainda mais da arte de
viajantes. Em parceria com a Academia de Belas Artes de Viena, a FBSP reuniu um
grupo de artistas para refazer trechos da viagem que o pintor austríaco Thomas Ender
(1793–1875) empreendeu, quando esteve no Brasil, entre os anos de 1817–1818. Sob a
chefia de Robert Wagner, diretor da Biblioteca e do Gabinete de Gravuras da Academia
de Belas Artes de Viena, o projeto contemporâneo reuniu artistas alemães, austríacos,
estadunidenses e brasileiros. Durante duas semanas, o grupo realizou uma rota que
incluía trechos no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, com o objetivo de – com
base nos trabalhos realizados por Thomas Ender – perscrutar os lugares nos quais o
pintor austríaco poderia ter estado e, num exercício de busca, estabelecer comparações
entre o que foi retratado no início do século XIX e a paisagem atual.

Thomas Ender, o pintor da expedição naturalista que o governo austríaco enviou ao


Brasil no início do século XIX, fazia parte de uma bem montada equipe de cientistas,
estando entre eles figuras iminentes como os zoólogos J. Natterer (1787–1843) e J. B.
von Spix (1781–1826), o botânico C. F. Ph. von Martius (1794–1868) e o mineralogista
J. B. E Pohl (1782–1834). Em diferentes grupos e percursos, entre os anos de 1817–
1822, esses naturalistas adentraram o interior do Brasil e, no retorno, produziram um
conhecimento ímpar sobre o nosso país.

Ender, porém, ficou apenas dez meses e meio no Brasil. Por problemas de saúde,
regressou à Áustria em junho de 1818. Todavia, no pouco tempo em que aqui
permaneceu, esteve no Rio de Janeiro e seus arredores, e empreendeu, ainda na
companhia de Spix e Martius, uma visita a São Paulo, quando os dois naturalistas
bávaros iniciavam o grande trajeto que os levaria até a Amazônia. Ao retornar à capital
do antigo Império Austríaco, Ender levou consigo centenas de registros visuais, entre
desenhos e aquarelas, que hoje fazem parte do acervo do Gabinete de Gravuras da
Academia de Belas Artes de Viena.

Fato curioso é que, no trabalho de Thomas Ender, não se encontram estudos de botânica
ou zoologia, próprios da História Natural. Na sua obra brasileira, predominam as vistas
de paisagens rurais e urbanas, cenas costumbristas, principalmente da população negra e
mestiça, e objetos de uso doméstico. É certo, há registros individuais de árvores, como
palmeiras, bananeiras, inclusive com detalhes de folhas. Porém, esses não
correspondem a estudo botânico, e são raríssimos os registros de animais. Ender era um
pintor de paisagem e foi esse o papel que desempenhou na sua rápida estada no Brasil.

Na viagem de 2004, Walmor Corrêa e os demais artistas, seguindo as diretivas dos


líderes do projeto, deveriam assumir o papel de um dos personagens da caravana
oitocentista. Coube-lhe o de botânico, vale dizer, o de C. F. Ph. von Martius. Porém, ele
não herborizou. O seu trabalho de coleta de dados e espécies foi realizado por meio de
uma câmara fotográfica e de anotações gráficas em texto e imagens. Durante esse
processo, buscava “apontar as possíveis mudanças que haviam acontecido no lugar, e
também o que poderia estar ali exatamente, como na época de Thomas Ender”. Ao
término da viagem, já no ateliê, investigou em bibliotecas e na Internet, e assim
classificou as espécies florísticas retratadas em rota. Por fim, juntando as anotações de
campo às demais informações coletadas, produziu a obra que recebeu o título de
Sementeiro de Thomas Ender, exposta primeiramente numa Sala Especial na 24ª Bienal
Internacional de Artes Visuais de São Paulo e, na sequência, na Academia de Belas
Artes de Viena.

Esta obra, desde a elaboração até a maneira de expor, traz características bem distintas
dos trabalhos que o nosso artista vinha produzindo. Nessa incursão, distancia-se do
irreal e se exercita na verossimilhança. Trata-se de um passeio pelo belo tapete que
Flora estendeu sobre uma parte do Sudeste brasileiro, procurando ao mesmo tempo dar
informações sobre as possíveis mudanças ali ocorridas e instigar a reflexão sobre a
conservação.

Ao deslocar-se pelos caminhos que poderiam ter sido visitados por Ender e seus
companheiros, Walmor levava na prancheta várias folhas de papel, nas quais estavam
reproduzidas cópias de páginas de livro com figuras da obra do pintor austríaco:
representações da Cascatinha da Tijuca, de vistas de Ouro Preto e do Mosteiro de São
Bento, entre outros motivos. Essas folhas serviram-lhe como carnet de dessins. Era
nelas que Corrêa ia realizando as suas anotações gráficas. Na dedicada à “Serra dos
Órgãos (Orgelgebirge)”, por exemplo, desenhou o “fruto do guaraná” e o “jambu”,
sobre os quais anotou: “muitas árvores no local c/ frutos. *comemos frutos”. Fez
também o esboço de um pássaro e, sobre ele, escreveu: “o tangará dançarino. ave muito
colorida”. Fora isso, o artista ainda interveio diretamente sobre a reprodução da obra de
Ender: reavivou as folhas de algumas árvores, anotando que uma delas, a do canto
direito, estava “presente no lugar tbem”. E, à guisa de diário, registra:
“26/05/2004/11horas, chegada ao Centro de Visitantes Von Martius – Possui trabalhos
originais recuperados do botânico austríaco von Martius / Von M. veio na mesma
expedição de T. Ender – 1917 [1817]”.

Nesta, como nas demais folhas usadas por Walmor-Martius durante o seu deslocamento,
registra-se o contato e se descreve rapidamente a fisionomia do espaço, comparando a
paisagem do XIX à do XXI. Elas constituem a apreensão em primeira mão de uma obra
produzida, de fato, d‘après nature.

Para um artista-viajante do passado, essas folhas seriam apenas peças de bastidor, que
jamais deveriam chegar ao público. Walmor, entretanto, as expôs, deixando à vista a
tessitura, a morfologia da experiência, o instantâneo das suas impressões. Com isso,
estabelece um laço de intimidade, tornando o espectador cúmplice da obra. Inclusive
permite-se apresentar equívocos, como o de atribuir a Martius o gentilício de austríaco,
mesmo sabendo que o botânico era bávaro. Tudo faz parte do engenho que não se inibe
em deixar ver a engrenagem, ato que quase sempre desconcerta o público.

Estabelecidas as regras, nosso artista inicia um dos mais cativantes jogos que sua bela
obra propõe. É então que apresenta o objeto que dá nome à mostra, o Sementeiro. Trata-
se, como ele mesmo explicou, de:

[…] uma espécie de vitrine ou gôndola, como as encontradas em lojas de sementes e


adubos. Nessa “vitrine”, coloquei os sacos com as sementes das árvores da região
catalogada. Ao todo, são 10 diferentes sacos, sendo que, em cada nicho, estão 10 outros
sacos, totalizando 100 saquinhos de 10 espécies. Esses sacos seguem exatamente o
padrão das embalagens desse tipo de produto: na frente, a imagem da planta; no verso,
as características da mesma, bem como as indicações acerca de “como plantar”.

Visto dessa maneira, o Sementeiro parece ser apenas um artifício que o artista utiliza
para expor as espécies registradas durante o seu deslocamento. Na parte da frente dos
saquinhos, as representações dos frutos estão desenhadas nas suas formas
convencionais: na embalagem do caju, por exemplo, reconhece-se a singular fisionomia
deste fruto; na do guaraná ocorre o mesmo, e igual verossimilhança aparece nas formas
atribuídas à maçaranduba, à pindaíba, à pitanga e a todas as demais plantas oferecidas
no mostruário. Nele não há espécies monstruosas nem sementes de árvores
ameaçadoras. De comum se reconhece ainda a grande destreza do artista: os traços e as
cores que dão forma ao conjunto florístico são da mesma mão segura que criou a fauna
híbrida.

Mas, não se engane. Se nessa aventura Corrêa não criou vegetais mutantes e plantas
estranhas, ele não deixou de convidar o visitante à reflexão. O desafio surge, uma vez
mais, quando o espectador se aproxima. É aí que a obra se descortina, deixando ver a
questão proposta. Se o visitante se permitir tocar nos saquinhos, logo se dará conta de
que há um engodo; as sementes no seu interior não são da fruta enunciada. Por
exemplo: no saco do caju, o tato não reconhece a forma e a consistência inconfundível
da castanha. Ali o artista colocou sementes, mas de outras plantas, como os comuns
grãos de arroz, feijão, ou milho. Porém, o mais desconcertante está no verso dos
comportados saquinhos, logo abaixo das informações sobre as características, justo
onde se indica: “Como plantar”. As instruções, tanto em português como em inglês, são
inusitadas. Para a Feijoa (Feijoeira, Goiabeira-do-mato, goiaba serrana), recomenda-se
que seja adubada com pequenas cuspidas, pois isto produzirá uma planta vistosa e
segura; já para o guaraná (Guaranazeiro), determina-se que seja regado apenas uma vez
por mês; para a grumixama (Grumixameira, grumixabá), a prescrição é que seja
plantada, nada menos do que com o auxílio de 1kg de arroz doce cozido!

Esses “Como plantar”, associados ao engano das sementes, configuram-se, pois, numa
das mais instigantes relações lúdicas que Walmor propõe ao público.

[…] numa brincadeira, como querendo “esconder” o segredo dessas espécies, subverti
as informações que aparecem nas embalagens. Ou seja: se alguém porventura pudesse
comprar esses sacos, levá-los para casa e plantar as suas sementes, e se esse “alguém”
seguisse à risca o passo-a-passo indicado no verso, ele não teria qualquer sucesso.

Essas burlescas recomendações desestabilizam a razão e novamente interrogam.


Lembram que a obra de arte questiona, pergunta, instiga; cria verdades inventadas.
Sobre as suas verdades, Walmor Corrêa já comentou: “Não me proponho a explicar,
apenas apresento o meu olhar libertário de artista sobre uma ínfima parte da
complexidade do universo e sobre as questões fundamentais para a sobrevivência,
motivado pela consciência e também surpresa de ser livre. Só a arte pode transcender
conceitos e revisar códigos rígidos e, por fim, só ela pode gritar: Possível! Possível!”.

[1] A partir de entrevista com o artista, via e-mail, realizada pela autora.

[2] TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
[3] Disponível em: http://www.canalcontemporaneo.art.br/blog/archives/001608.html. Acesso em 4 de
out. 2012.

[4] E. H. GOMBRICH. The uses of images. Studies in the social function of art and visual
communication. London: Phaidon, 1999, p. 228.

[5]Entrevista a Susana Dias. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico,


http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=37&tipo=entrevista&print=true>.
Acesso em 4 de out. 2012.

[6] Breves instrucções aos correspondentes da Academia das Sciencias de Lisboa. Lisboa, 1781, p. 209-
210.

[7] Esta preferência se dava por ser a aquarela um meio de suprimir a distinção entre desenho e pintura, e
foi originalmente empregada no interesse da instantaneidade da representação. Sobre o assunto, ver:
ALPERS, Svetlana. A arte de descrever. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 301.

[8]Talvez seja oportuno acrescentar que a publicação continha o mais importante fruto da viagem
científica. A rota em si era um pretexto, um ponto de partida. Viajava-se pelo retorno. Só com a
publicação o périplo se completava, o ciclo se encerrava. Caso os resultados, por algum motivo, não
chegassem a público, a empresa científica perdia todo o sentido, e o seu acervo, mesmo o iconográfico,
era guardado nos depósitos das instituições das ciências, como aconteceu, por exemplo, com a obra de J.
J. Codina e J. J. Freire, os riscadores da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783–1792), ou de
Hercule Florence e Aime-Adrien Taunay, da expedição Langsdorff (1822–1829) – para lembrar
expedições que nos são próximas –, que esperaram mais de um século para chegar a público.

[9] Em Symbolic images, citando a D. E. Hirsch, Gombrich afirma: “A obra significa o que o seu autor
pretendeu que significasse, e é essa a intenção a que o intérprete deve fazer o possível de averiguar”.
London: Phaidon, 1972, p. 5.

[10] A partir de entrevista com o artista, via e-mail, realizada pela autora.

[11] Natterer realizou um percurso mais longo entre o Centro-Oeste e a Amazônia, tendo permanecido no
Brasil por mais de 18 anos; sua obra, apesar de vasta, ainda é pouco conhecida.

[12] Em uma curta autobiografia, Thomas Ender registrou que, em 1817, foi vencedor de um concurso de
pintura paisagística em Viena e logo depois se candidatou e conseguiu a vaga de pintor na expedição de
história natural que estava sendo preparada para visitar o Brasil. Conta também que esteve ”[…]quase um
ano nesse País, onde fiz várias viagens de um dia de distância da cidade, uma viagem para São Paulo e
outra de 150 horas para o norte. Disso resultou que, na minha volta a Viena, entreguei na corte 700
desenhos – de florestas, vales, animais, plantas e paisagens –, além de três panoramas, a maioria em
aquarela, feitos de imagem da natureza”. Ender, apud Robert WAGNER e Júlio BANDEIRA (Orgs.)
Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender 1817– 1818. Petrópolis: Kapa Editorial, 2000. Tomo 3,
p. 662 e 663.

[13] Esta citação e demais informações sobre a viagem foram retiradas do texto O Sementeiro, de
Walmor Corrêa, de autoria do próprio artista.

[14] A partir de entrevista com o artista, via e-mail, realizada pela autora.

[15] Ibidem.

[16] Em entrevista a Paula Ramos, publicada no Canal Contemporâneo. Disponível em:


<http://www.canalcontemporaneo.art.br/blog/archives/001608.html>. Acesso em 4 de out. 2012.

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