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Ao ver a obra de Walmor Corrêa, o espectador é invadido tanto por uma sensação de
acolhimento, como de estranheza. O artista, com um espetacular domínio técnico, põe-
nos diante de seres que à primeira vista parecem próximos, mas que, ao aproximarmo-
nos, vão se descontruindo, deixando ver o extraordinário.
É com essa anormalidade comum e desconcertante que Walmor parece fazer sua
composição lúdica, como se de um jogo de escolhas se tratasse. O objetivo, como o de
todo artista, é atingir o público. Há aqueles que passam diante das paredes e vitrines que
exibem os desenhos e objetos criados por Walmor e acreditam ter visto o seu trabalho,
porém não descortinam a magia contida na obra; mas há os que se deixam seduzir, que
se aproximam e se deslumbram com o singular, contido no que lhe parecia tão usual.
Estes são os seus interlocutores.
É a esse limbo, onde sobrevivem as criaturas fantásticas, que a obra desse artista nos
transporta, reavivando a sua existência.
Não cabem dúvidas de que ele traz em seus genes algo desses personagens, mas antes
de tudo, Walmor Corrêa é um artista. E, como tal, busca – e consegue – criar uma
linguagem própria. Um artista que, de maneira intuitiva, traveste-se de viajante, de
biólogo, de médico, de cientista, como ele mesmo se conceitua, a fim de produzir seu
trabalho. É ao refazer esses percursos e estabelecer simbioses entre o comum e o
estranho, que este talentoso artista deixa surgir as criaturas desconcertantes da sua
fauna.
Mas qual seria a genealogia dos personagens criados por Walmor? Tzvetan Todorov
comenta que, na literatura fantástica, há pelo menos dois tipos de seres: os estranhos e
os maravilhosos. Esses – os maravilhosos – pertencem ao mundo dos milagres e, por
isso, conservam um resíduo sobrenatural. Já os estranhos podem ser identificados pela
reflexão; portanto, derivam da atividade humana. Levando-se essas observações à
linguagem visual, tem-se uma pista da natureza dos seres criados por Walmor, pois é
justamente à reflexão que a sua obra nos convida.
Walmor Corrêa é, pois, um artista que usa a linguagem visual para, através de suas
estranhas criaturas, expor outra natureza. É como se tomasse para si a linha poética de
Manoel de Barros, reafirmando: Tudo que não invento é falso. Sua obra apresenta,
portanto, uma verdade inventada.
Ao criá-la, o artista demonstra a intimidade ímpar que mantém com lápis e pincéis. É
com total domínio do seu ofício que Walmor dá substância a cada um dos seres que
inventou. Da escolha das cores à delicadeza dos traços, todo o conjunto é portador de
uma poética visual que seduz o olhar. Entretanto, o que se vê impacta. Ali não se mostra
apenas o aparente. Através de um corte preciso, que adentra a epiderme, exibe-se em
riqueza de pormenores cada um dos órgãos contidos no interior dos corpos híbridos dos
animais à mostra, tal um livro de anatomia. Se o superficial seduz pelo belo, o interior
provoca a razão. Esta recua, exige compreensão. Talvez isso também seja o perverso
evocado no título que o artista deu à exposição.
Seu modelo, não há dúvidas, está no desenho científico. Vale dizer, nos registros visuais
praticados por documentadores que faziam parte das viagens naturalistas, com o
objetivo de dar a conhecer espécies ou indivíduos da flora ou da fauna de uma
determinada região. Por isso a necessidade de descrevê-los não só com traços e cores,
mas também com palavras, como apregoavam os antigos manuais. As descrições
textuais visavam a completar as informações e dirimir dúvidas quanto ao desenho.
“Poucas pessoas – nos diz E. H. Gombrich – duvidariam de que a compreensão das
imagens, sejam elas fixas ou em movimento, se vê enormemente facilitada mediante a
adição de explicações verbais”.
Esses seres híbridos, com as suas anomalias, remetem, de maneira quase automática,
aos possíveis resultados de projetos como o Genoma, bem como às clonagens
biológicas contemporâneas, forçando o espectador à reflexão sobre o futuro imediato.
Mas as criaturas extraordinárias inventadas por Walmor mexem também com a nossa
ancestral memória humana, fazendo-nos recordar da incansável busca do homem por
mundos fantásticos e inatingíveis, onde habitavam – e esperamos que ainda habitem –
as estranhas criaturas. Afinal, a humanidade precisa de sonhos! O que constrói, como já
afirmou, “[…] é uma natureza fantástica que desconhece a própria impossibilidade”.
A VIAGEM DO ARTISTA
Por sua forma e linguagem, o trabalho de Walmor Corrêa costuma ser comparado aos
de artistas-viajantes, esses personagens próprios do século XIX, que seguindo os
princípios de arte e ciência apregoados por Alexander von Humboldt (1769–1859)
procuravam um equilíbrio entre o instrutivo e o harmonioso.
Herdeiro do ofício de documentador visual – vale dizer, dos desenhistas quase sempre
formados no risco cartográfico –, cuja função era levar ao papel, com precisão, a
fisionomia de plantas, animais, vistas de paisagens e tudo o mais que a narração não for
capaz de descrever perfeitamente, e com clareza , o artista-viajante, tal como o vemos
hoje, é uma figura que só surge na primeira metade do Oitocentos. Até aquela época,
costumava-se falar do ilustrador, do riscador, do documentador, quando se tratava dos
autores de registros visuais realizados por empresas naturalistas.
Mas, no início do século XIX, uma linha – em princípio tênue e logo robusta – demarca
uma fronteira, separando esses dois personagens. Para desgosto dos chefes das
expedições científicas, um novo elemento vai se agregar à representação. Influenciado
pelo Romantismo, o documentador passa a individualizar sua obra, incluindo o belo na
composição, de maneira consciente. Como resultado, encontramos figuras nas quais a
natureza, sem perder o verossímil, é mostrada de maneira mais possível que real.
Temos, então, o artista-viajante.
Cabe lembrar que, no trânsito entre o esboço e a gravura, os motivos sempre recebiam
modificações, seja para atender à demanda do público, para embelezar a cena ou,
simplesmente, por ignorância do gravador. Isso acontecia principalmente quando se
tratava de paisagens, cenas do cotidiano ou representações das sociedades indígenas, o
que, certamente, comprometia sobremaneira o princípio do plausível, perseguido por
seu autor, e o valor documental intrínseco no conteúdo. No caso específico das folhas
que apresentam espécies dos reinos animal e vegetal, próprias para estudo de
taxonomia, o trabalho gráfico quase sempre era acompanhado ou revisado por biólogos,
e as modificações eram menores. Entretanto, ainda assim, muitos animais e plantas
tiveram sua morfologia adulterada de tal maneira que hoje nos parecem aberrações,
figuras próximas às criaturas híbridas propostas nos trabalhos de Walmor Corrêa.
Ender, porém, ficou apenas dez meses e meio no Brasil. Por problemas de saúde,
regressou à Áustria em junho de 1818. Todavia, no pouco tempo em que aqui
permaneceu, esteve no Rio de Janeiro e seus arredores, e empreendeu, ainda na
companhia de Spix e Martius, uma visita a São Paulo, quando os dois naturalistas
bávaros iniciavam o grande trajeto que os levaria até a Amazônia. Ao retornar à capital
do antigo Império Austríaco, Ender levou consigo centenas de registros visuais, entre
desenhos e aquarelas, que hoje fazem parte do acervo do Gabinete de Gravuras da
Academia de Belas Artes de Viena.
Fato curioso é que, no trabalho de Thomas Ender, não se encontram estudos de botânica
ou zoologia, próprios da História Natural. Na sua obra brasileira, predominam as vistas
de paisagens rurais e urbanas, cenas costumbristas, principalmente da população negra e
mestiça, e objetos de uso doméstico. É certo, há registros individuais de árvores, como
palmeiras, bananeiras, inclusive com detalhes de folhas. Porém, esses não
correspondem a estudo botânico, e são raríssimos os registros de animais. Ender era um
pintor de paisagem e foi esse o papel que desempenhou na sua rápida estada no Brasil.
Esta obra, desde a elaboração até a maneira de expor, traz características bem distintas
dos trabalhos que o nosso artista vinha produzindo. Nessa incursão, distancia-se do
irreal e se exercita na verossimilhança. Trata-se de um passeio pelo belo tapete que
Flora estendeu sobre uma parte do Sudeste brasileiro, procurando ao mesmo tempo dar
informações sobre as possíveis mudanças ali ocorridas e instigar a reflexão sobre a
conservação.
Ao deslocar-se pelos caminhos que poderiam ter sido visitados por Ender e seus
companheiros, Walmor levava na prancheta várias folhas de papel, nas quais estavam
reproduzidas cópias de páginas de livro com figuras da obra do pintor austríaco:
representações da Cascatinha da Tijuca, de vistas de Ouro Preto e do Mosteiro de São
Bento, entre outros motivos. Essas folhas serviram-lhe como carnet de dessins. Era
nelas que Corrêa ia realizando as suas anotações gráficas. Na dedicada à “Serra dos
Órgãos (Orgelgebirge)”, por exemplo, desenhou o “fruto do guaraná” e o “jambu”,
sobre os quais anotou: “muitas árvores no local c/ frutos. *comemos frutos”. Fez
também o esboço de um pássaro e, sobre ele, escreveu: “o tangará dançarino. ave muito
colorida”. Fora isso, o artista ainda interveio diretamente sobre a reprodução da obra de
Ender: reavivou as folhas de algumas árvores, anotando que uma delas, a do canto
direito, estava “presente no lugar tbem”. E, à guisa de diário, registra:
“26/05/2004/11horas, chegada ao Centro de Visitantes Von Martius – Possui trabalhos
originais recuperados do botânico austríaco von Martius / Von M. veio na mesma
expedição de T. Ender – 1917 [1817]”.
Nesta, como nas demais folhas usadas por Walmor-Martius durante o seu deslocamento,
registra-se o contato e se descreve rapidamente a fisionomia do espaço, comparando a
paisagem do XIX à do XXI. Elas constituem a apreensão em primeira mão de uma obra
produzida, de fato, d‘après nature.
Para um artista-viajante do passado, essas folhas seriam apenas peças de bastidor, que
jamais deveriam chegar ao público. Walmor, entretanto, as expôs, deixando à vista a
tessitura, a morfologia da experiência, o instantâneo das suas impressões. Com isso,
estabelece um laço de intimidade, tornando o espectador cúmplice da obra. Inclusive
permite-se apresentar equívocos, como o de atribuir a Martius o gentilício de austríaco,
mesmo sabendo que o botânico era bávaro. Tudo faz parte do engenho que não se inibe
em deixar ver a engrenagem, ato que quase sempre desconcerta o público.
Estabelecidas as regras, nosso artista inicia um dos mais cativantes jogos que sua bela
obra propõe. É então que apresenta o objeto que dá nome à mostra, o Sementeiro. Trata-
se, como ele mesmo explicou, de:
Visto dessa maneira, o Sementeiro parece ser apenas um artifício que o artista utiliza
para expor as espécies registradas durante o seu deslocamento. Na parte da frente dos
saquinhos, as representações dos frutos estão desenhadas nas suas formas
convencionais: na embalagem do caju, por exemplo, reconhece-se a singular fisionomia
deste fruto; na do guaraná ocorre o mesmo, e igual verossimilhança aparece nas formas
atribuídas à maçaranduba, à pindaíba, à pitanga e a todas as demais plantas oferecidas
no mostruário. Nele não há espécies monstruosas nem sementes de árvores
ameaçadoras. De comum se reconhece ainda a grande destreza do artista: os traços e as
cores que dão forma ao conjunto florístico são da mesma mão segura que criou a fauna
híbrida.
Mas, não se engane. Se nessa aventura Corrêa não criou vegetais mutantes e plantas
estranhas, ele não deixou de convidar o visitante à reflexão. O desafio surge, uma vez
mais, quando o espectador se aproxima. É aí que a obra se descortina, deixando ver a
questão proposta. Se o visitante se permitir tocar nos saquinhos, logo se dará conta de
que há um engodo; as sementes no seu interior não são da fruta enunciada. Por
exemplo: no saco do caju, o tato não reconhece a forma e a consistência inconfundível
da castanha. Ali o artista colocou sementes, mas de outras plantas, como os comuns
grãos de arroz, feijão, ou milho. Porém, o mais desconcertante está no verso dos
comportados saquinhos, logo abaixo das informações sobre as características, justo
onde se indica: “Como plantar”. As instruções, tanto em português como em inglês, são
inusitadas. Para a Feijoa (Feijoeira, Goiabeira-do-mato, goiaba serrana), recomenda-se
que seja adubada com pequenas cuspidas, pois isto produzirá uma planta vistosa e
segura; já para o guaraná (Guaranazeiro), determina-se que seja regado apenas uma vez
por mês; para a grumixama (Grumixameira, grumixabá), a prescrição é que seja
plantada, nada menos do que com o auxílio de 1kg de arroz doce cozido!
Esses “Como plantar”, associados ao engano das sementes, configuram-se, pois, numa
das mais instigantes relações lúdicas que Walmor propõe ao público.
[…] numa brincadeira, como querendo “esconder” o segredo dessas espécies, subverti
as informações que aparecem nas embalagens. Ou seja: se alguém porventura pudesse
comprar esses sacos, levá-los para casa e plantar as suas sementes, e se esse “alguém”
seguisse à risca o passo-a-passo indicado no verso, ele não teria qualquer sucesso.
[1] A partir de entrevista com o artista, via e-mail, realizada pela autora.
[2] TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
[3] Disponível em: http://www.canalcontemporaneo.art.br/blog/archives/001608.html. Acesso em 4 de
out. 2012.
[4] E. H. GOMBRICH. The uses of images. Studies in the social function of art and visual
communication. London: Phaidon, 1999, p. 228.
[6] Breves instrucções aos correspondentes da Academia das Sciencias de Lisboa. Lisboa, 1781, p. 209-
210.
[7] Esta preferência se dava por ser a aquarela um meio de suprimir a distinção entre desenho e pintura, e
foi originalmente empregada no interesse da instantaneidade da representação. Sobre o assunto, ver:
ALPERS, Svetlana. A arte de descrever. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 301.
[8]Talvez seja oportuno acrescentar que a publicação continha o mais importante fruto da viagem
científica. A rota em si era um pretexto, um ponto de partida. Viajava-se pelo retorno. Só com a
publicação o périplo se completava, o ciclo se encerrava. Caso os resultados, por algum motivo, não
chegassem a público, a empresa científica perdia todo o sentido, e o seu acervo, mesmo o iconográfico,
era guardado nos depósitos das instituições das ciências, como aconteceu, por exemplo, com a obra de J.
J. Codina e J. J. Freire, os riscadores da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783–1792), ou de
Hercule Florence e Aime-Adrien Taunay, da expedição Langsdorff (1822–1829) – para lembrar
expedições que nos são próximas –, que esperaram mais de um século para chegar a público.
[9] Em Symbolic images, citando a D. E. Hirsch, Gombrich afirma: “A obra significa o que o seu autor
pretendeu que significasse, e é essa a intenção a que o intérprete deve fazer o possível de averiguar”.
London: Phaidon, 1972, p. 5.
[10] A partir de entrevista com o artista, via e-mail, realizada pela autora.
[11] Natterer realizou um percurso mais longo entre o Centro-Oeste e a Amazônia, tendo permanecido no
Brasil por mais de 18 anos; sua obra, apesar de vasta, ainda é pouco conhecida.
[12] Em uma curta autobiografia, Thomas Ender registrou que, em 1817, foi vencedor de um concurso de
pintura paisagística em Viena e logo depois se candidatou e conseguiu a vaga de pintor na expedição de
história natural que estava sendo preparada para visitar o Brasil. Conta também que esteve ”[…]quase um
ano nesse País, onde fiz várias viagens de um dia de distância da cidade, uma viagem para São Paulo e
outra de 150 horas para o norte. Disso resultou que, na minha volta a Viena, entreguei na corte 700
desenhos – de florestas, vales, animais, plantas e paisagens –, além de três panoramas, a maioria em
aquarela, feitos de imagem da natureza”. Ender, apud Robert WAGNER e Júlio BANDEIRA (Orgs.)
Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender 1817– 1818. Petrópolis: Kapa Editorial, 2000. Tomo 3,
p. 662 e 663.
[13] Esta citação e demais informações sobre a viagem foram retiradas do texto O Sementeiro, de
Walmor Corrêa, de autoria do próprio artista.
[14] A partir de entrevista com o artista, via e-mail, realizada pela autora.
[15] Ibidem.