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USO IMPRÓPRIO: Seminários em Estudos Contemporâneos das Artes

PEQUENOS DESVIOS EM ARTES VISUAIS: SUBJETIVAÇÕES E INSURGÊNCIAS

Jacks Ricardo Selistre / UFSM


Letícia Honório / UFSM
Rosa María Blanca / UFSM
William Silva / UFSM

RESUMO
O presente artigo apresenta como objetivo uma abordagem acerca das questões de gênero e
sexualidades e sua problematização no campo e sistema das Artes Visuais. O proposto faz parte do
Projeto de Pesquisa Trânsitos (des)identitários: arte como processo de subjetivação (PIBIC-CNPq) do
Grupo de Pesquisa LASUB UFSM, onde atuam artistas, acadêmicos e arte educadores.
Sugere-se uma análise sobre determinadas visibilidades e suas manifestações no imbricamento da
produção artística e expressões sexuais dissidentes. Neste sentido são abordadas produções textuais e
plásticas, concretizando poéticas de insurgência que se encontram nos processos de subjetivação nos
modos de constituição de si referenciados por estudos queer e feministas como aporte para suas
reflexões acerca do corpo, das representações e visibilidades em arte contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE
Arte contemporânea, subjetivação, sexualidades, corpo.

ABSTRACT
This article presents as objective an approach about issues of gender and sexuality and their
questioning in the field and system of Visual Arts. The proposed part of Transits Research Project
(des) identity: art as a subjective process (PIBIC - CNPq) Research Group LASUB UFSM , influenced
by artists, scholars and art educators.
It is suggested that an analysis of certain visibilities and its manifestations in the interweaving of
artistic production and dissident sexual expressions. In this sense textual and visual productions are
addressed , implementing poetic insurgency are in subjective processes in the formation of modes of
self referenced by queer and feminist studies as a contribution to their reflections on the body of
representations and visibilities in contemporary art .

Keywords
Contemporary art, subjectivity, sexuality, body.

Introdução
O desacordo com algumas pautas e programações de um discurso legitimador das produções e
temáticas nas Artes Visuais, permeia esta proposta de escritos coletivos. As articulações e
pesquisas artísticas com o envolvimento de posicionamentos contrários aos estados de
conservadorismo propõem estéticas orientadas por marginalizações frente às fronteiras de
manifestações individuais e coletivas dos fazeres em arte.
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O intento de tornar visíveis os desejos de expressão, os anseios de sexualidades e as


manifestações vinculada a arte na escolha de seus motivos e desdobramentos, se apresenta
como constante.

Em um primeiro momento propõe-se uma abordagem sobre os sistemas da arte e os modos de


visibilidade e aceitação (ou recusa) admitidos por ela. Por conseguinte suas hierarquias e
formas de apresentações. A partir disto são apresentadas as investigações dos(as) artistas
Rafael Durante, William Silva e Letícia Honório do grupo de pesquisa LASUB Laboratório
de Arte e Subjetivações, seguidos de suas possíveis problemáticas sobre sexualidades e
gênero no desenvolvimento artístico atual. Utilizam-se estudos queer e feministas
referenciados por autorxs como Beatriz Preciado, Rosa Blanca, Juan Vicente Aliaga, Erika
Fischer, Michel Foucault, Judith Butler, Márcia Arán, entre outrxs, na compreensão de
dialogar com estéticas contemporâneas.

Propostas para Novas Visibilidades dos Corpos Artísticos

O sistema artístico ancorado nos ideais euroamericanocentristas destaca-se por possuir uma
postura de segregação, de não inclusão daquilo que o sistema acredita não lhe conferir. Esse
sistema artístico erigiu-se na Europa através dos grandes artistas e das grandes exposições,
como o Salon de Paris. Evento esse que reunia os membros da Académie de Beaux-Arts, que
expunham oficialmente suas obras, sendo essa uma maneira dos artistas ganharem prestígio e
clientes. O evento possuía forte influência da tradição artística acadêmica, o que resultava em
uma postura conservadora em relação às inovações e rupturas artísticas que não refletissem no
pensamento acadêmico da época. Assim como resposta ao academicismo do Salon de Paris,
que expunha unicamente os artistas que possuíssem o prestígio da academia, os artistas que
não eram aceitos no Salon oficial, fundaram o Salon de Réfuses que transgredia as regras
propostas pelo oficial Salon de Paris. Com uma postura quase que inversa às rígidas regras
acadêmicas, o Salon de Réfuses destacou-se por expor e incentivar os artistas que não
obtiveram espaço nas exposições oficiais.

O Salon de Réfuses concentrou grande número de artistas que possuíam uma produção que
destoava ao que a academia propunha para a época. As obras concentradas no Salon de
Réfuses possuíam um viés modernista e impressionista, tendo importantes exponentes como
Édouard Manet. No decorrer surgem outros salões paralelos aos espaços oficiais de
exposição, como o Salon des artistes independants, que não possuía júri e nem prêmio para os
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artistas. Sua importância era pela própria exposição das obras, que gerava a visibilidade de
artistas que antes não fariam parte de um salão de artes.

O surgimento desses novos espaços expositivos geram a possibilidade de comunicação e a


visibilidade dos artistas que não necessariamente seguem as normas e os padrões impostos
pela academia e pela sociedade artística. O que fora julgado como impróprio pelos salões
oficiais, passa a ser aceito pelos salões paralelos, que possuem um formato mais livre e menos
conservador. Assim contribuindo para o surgimento dos mais variados estilos e movimentos
artísticos que permearam o fim do século XIX e o século XX. Muitos dos artistas cujas obras
foram consideradas impróprias aos grandes salões se destacaram através da ruptura às ideias
conservadoras propostas pela academia.

Dessa maneira, questiona-se a imposição de regras conservadoras à arte, sendo ela um


dispositivo da criação que se manifesta livremente, que não se fundamenta em ideias
estruturadas e preconcebidas que lhe restrinjam a atuação. Porém, percebe-se que as restrições
no campo artístico seguem acompanhando-nos. É visível a diferença de visibilidade que
possui um artista europeu frente a um artista ativista vietnamita, por exemplo. Esses artistas
que andam às margens do seleto sistema das artes possuem essa condição devido a
diferenciação que o sistema lhes confere.

À medida que os artistas não pertencentes ao grupo euro-americano andam timidamente pelo
panorama artístico internacional, nota-se que nos últimos anos que está ocorrendo uma
abertura para eles. A exemplo, pode-se analisar a exposição Les magiciens de la terre (1989)
que ocorreu no Centre Georges Pompidou e foi marcada por um forte multiculturalismo,
trazendo artistas que não pertenciam ao eixo euro-americano, mas sofreu fortes críticas pois
foi considerado que os artistas africanos e asiáticos possuíam uma produção espiritual e
ingênua (ALIAGA, 2010, p.19). As questões relativas à origem dos artistas, embora sejam
polêmicas e afetem drasticamente o cenário de artistas que não pertencem ao eixo euro-
americano, está sendo suavemente combatida através de exposições interativas de grandes
museus, mas percebe-se que ainda há profissionais da área que não querem se relacionar com
artistas que não pertençam ao eixo euro-americano. Percebe-se essa postura, sobretudo nas
ocasiões em que o mercado artístico está envolvido, sendo esse um preconceito tanto do
profissional da arte, quanto do cliente. A rotulação dos artistas reforça os preconceitos sociais,
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o estereótipo latino-americano, por exemplo, muitas vezes acaba sendo mais forte do que a
própria obra em suas qualidades estético-conceituais, veja-se:

[...] quando um artista brasileiro conhecido em NY mostra documentação


sobre sua produção a um marchand, que reconhece o nível de qualidade de
seu trabalho, mas se esquiva de estabelecer com ele umvínculo a fim de não
ser identificado como interessado em arte 'latino- americana’ (I don’t want to
be labeled as a Latin American art dealer), condições aparentes, portanto de
observar o artista como uma individualidade, a situação parece atingir um
ponto crítico de discriminação. (AMARAL, 2006, p. 37)

Em período de globalização, as fronteiras encontram-se (ou deveriam se encontrar) mais


abertas a fim de fortalecer os intercâmbios necessários. Em contrapartida, observou-se que
ainda existem maneiras de impossibilitar o acesso de artistas a determinados eventos.
Questiona-se, onde se encontram os artistas ativistas que possuem uma temática relacionada à
sexualidade, por exemplo? Ou ainda, existem esses artistas? Quais seriam os motivos para
que eles não sejam amplamente abordados pelo sistema da arte?

Os curadores do mundo contemporâneo têm apresentado interesse em obras que reflitam as


minorias da sociedade, a parte marginalizada, que anda à deriva das ideias instituídas pelo
sistema euro-americano, branco e heteronormativo. Essas obras podem, muitas vezes, ser
consideradas impróprias a algum observador ou profissional da arte que tenha uma visão
conservadora. Pois eles continuam com sua visão alicerçada em valores tradicionais que
ficaram ancorados no tempo.

No final do século XX início do século XXI surge exposições que tratam sobre questões
relacionadas à sexualidade, ao gênero, à raça e às etnias. Essas exposições destacam-se pelo
seu viés inovador ao trabalhar com esses assuntos que geralmente não são discutidos, pois
geram polêmica na sociedade conservadora. Contudo essa temática mostra-se bastante
recorrente, visto que existem estudos específicos, em que as mais diversas áreas do
conhecimento estão interessadas. As compreensões e discussões sobre gênero e sexualidade
apresentam-se em alta, sendo discutida amplamente em eventos dirigidos a essa temática.

Estes estudos ganharam espaço no final do século XX. A discussão acerca disso rondava
pelas universidades Brasil a fora, e aos poucos traziam contribuições das áreas mais distintas
do conhecimento. Com isso, destaca-se a produção de artistas homossexuais, que muitas
vezes produziam arte baseada nos fatos de sua própria vida, ou baseada na realidade da
sociedade homossexual. A produção desses artistas possuía forte teor homoerotico, o que
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muitas vezes contrariava o sistema oficial da arte, heterossexual, branco e europeu. Contudo
com o aumento dos artistas que trabalhavam essa temática, aliado ao crescimento das estudos
de sexualidade e gênero, inúmeros profissionais da arte iniciam pesquisas neste tema a fim de
organizar exposições que tratem das dissidências sexuais que os artistas estavam
desenvolvendo. Assim aos poucos surgem exposições que se dedicam a essa vertente artística.

Em 1995 o Berkeley Art Museum localizado na Califórnia recebeu uma de suas mais
importantes exposições In a Different Light: Visual Culture, Sexual identity, Queer Practice
com curadoria de Lawrence Rinder e Nayland Blake. Essa exposição trouxe obras de jovens
artistas homossexuais estadunidenses, trazendo suas mais novas produções permeadas pelos
questionamentos de uma época instável, em que o vírus HIV espalhava-se rapidamente, bem
como se convivia de perto com infectados pelo vírus. A epidemia da Aids de certa forma
refletiu e influenciou no trabalho desses artistas, que através de suas obras mostravam sua
visão de mundo (BERKELEY ART MUSEUM, 1995). Em 1998 destaca-se a mostra
holandesa From the corner of The Eye, do Stedelijk Museum que abarcava obras
exclusivamente eurocêntricas; já em 2006, a mostra Das Achte Feld do Museu de Colonia, na
Alemanha, mostrou obras de caráter queer trazendo artistas das mais variadas regiões
geográficas (ALIAGA, 2010, p. 20).

Porém, em 1969 em Nova Iorque, o casal Charles Leslie e Fritz Lohman iniciam a organizar
exposições em seu apartamento destinadas a artistas gays. Durante o surto da Aids, inúmeros
artistas falecem, deixando importantes obras de arte que muitas vezes eram jogadas no lixo
pelos familiares desses artistas, pois não sabiam o que fazer com elas, ou pois tinham
vergonha dessas obras devido à sua temática explicitamente homossexual. Assim no ano de
1987 o casal decide formar a Leslie/Lohman Gay Art Foundation, Inc., uma organização sem
fins lucrativos que se preocupa em preservar as obras de artistas homossexuais que são
desprezadas. A partir do ano de 2015 decidiu-se que a fundação se tornaria o Leslie-Lohman
Museum of Gay and Lesbian Art, sendo assim o primeiro e único museu no mundo que
trabalha unicamente com obras de artistas homossexuais.

Diante dessa discussão, busca-se compreender de que maneira ocorre a produção, a exposição
das obras desses artistas que inúmeras vezes são considerados impróprios às exposições
heteronormativas. Questiona-se as imposições institucionais à produção artística que deve
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possuir autonomia para existir e, além disso, deve possuir espaço para expor. Não devendo
estar à margem de uma arte institucionalizada pelo caráter heteronormativo.

O Laboratório de Arte e Subjetividades pesquisa de que formas o(a) artista na


contemporaneidade constrói a sua identidade. Ao questionar o gênero e as sexualidades,
os(as) pesquisadores(as), como artistas, acreditam que através da arte é possível abrir o
paradigma identitário (des)configurando sensibilidades pictóricas. Para tanto, evidencia-se
propostas que se estabelecem por meio de ações artísticas que atravessam normativas de
discursos disciplinares dominantes nas relações entre imagem e cultura.

Por exemplo, Rafael Durante, artista do LASUB, trabalha com fotografia. Durante produz
autorretratos nus. O artista experimenta formas de visualizar seu corpo, gerando estéticas que
vão muito além do o masculino ou do feminino (Fig. 1).

Rafael Durante
Sem Título I, 2016.
Fotografia

Durante sobrepõe cores no seu corpo mostrando ritmos e modos de composição fotográfica. O
caráter lúdico e colorido desperta musicalidades, acordando a sinestesia do(a) espectador(a).
O seu corpo dialoga com as cores, acolhendo as vibrações e as tonalidades, que ele mesmo
parece descobrir no movimento plástico da fotografia.
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As transparências sugerem inocência. Eis a característica principal do Durante: a honestidade


da sua plástica. Essa experimentação lhe permite introduzir de forma livre elementos
pictóricos nas imagens tecnológicas. Na fotografia, Durante nos descobre a sua intimidade
corporal. A sintonia que se produz entre o(a) espectador(a) e o artista gera um ambiente de
diálogo e reciprocidade.

A suas imagens sugerem pintura, mas também, performance. Sabe-se, que essas fronteiras
entre as linguagens abriram o caminho para a inter e trandisciplinaridade da arte (BLANCA,
2011). Essa liberdade de trânsito entre distintas maneiras de produzir arte, levou a que os(as)
artistas recorressem a outras técnicas, como o vídeo, a fotografia e a performance. A
desmaterialização da arte também propiciou a experimentação. A libertação técnica trouxe a
produção de outros sentidos, de outras significações e, portanto, de outras inferências tanto na
idealização, quanto na realização, interpretação e ressignificação. As enunciações
desprendidas a partir dessas transformações técnicas, tecnológicas e visuais, traspassou a
nomenclatura das artes, dos corpos, dos saberes, das ciências e das áreas do
(des)conhecimento.

O gesto musical, em Durante, enuncia outras formas de ver o corpo e sua estética. A
experiência dessa visualidade corporal, através da fotografia ou da pintura, sugere uma
estética do performativo. Os entrecruzamentos das distintas tonalidades com a nudez
descerram o tabu do corpo masculino. Há um atrevimento, e ao mesmo tempo uma delicada
imagem de si. A sua contemporaneidade atiça o nosso olhar. A tênue intensificação do seu
(in)certo do gênero é um ato performativo (FICHER-LICHTE, 2011). Sob estes termos,
propõe-se a fotografia, como performance e pintura, como uma visualidade do performativo,
cujas enunciações produzem materializações nas múltiplas possibilidades corporais do(a)
espectador(a), e do artista como performer e(ou) propositor. As declarações performativas são
aquelas que produzem o que estão enunciando (AUSTIN, 1955). A estética de Durante
produz os corpos que indica performar. As sutilezas contingentes nas dimensões artísticas
confiam uma inusual experiência no acontecimento da pintura que atravessa a fotografia, e da
ambiguidade que se sobrepõe à corporalidade. Tanto a linguagem plástica, como a linguagem
biológica, dialoga abraçando-se e dissolvendo cânones do viril, do estável ou do hétero,
inquestionável. Mais que uma representação, em Durante, surge um acontecimento,
modificando a percepção escrita e científica de corpo, gênero ou identidade.
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Como pensar o identitário? Será que apenas o gênero é apenas uma grafia, uma biologia?
Quantas linguagens existem? Temos a certeza de que a arte seja uma linguagem? Existem
provas da linguagem como arte? (Fig. 2).

Rafael Durante
Sem Título II, 2016.
Fotografia

Os movimentos que puderam ser traduzidos como sonhos, metamorfoses, desejos,


(des)cabimentos e antologias de narrativas bucólicas no passado recente, acusam a
determinação de uma História da Arte truncada na sua fria oficialidade imagética. As
fotografias de Durante mostram que a descontinuidade do nu masculino como feminino ou do
nu não-feminino como não-masculino é possível na sua (im)própria gestualidade. As
performatividades ainda não terminam.

Parece como se essas ousadias contemporâneas se permitissem andar sem velocidade ou sem
sintonia com o protocolo da arte. A partir do trabalho de Durante, podem ser enunciadas
outras percepções, outras interpretações. Não há espaços dentro do sistema das artes
normativo para fotografias como estas. Sente-se, como se as monotonias dos museus
houvessem sido possíveis graças e unicamente as biografias dos corpos nus pouco infames e
pouco desejosos. A esculturalidade monumentalista renascentista, barroca, neoclássica,
academicista, moderna e binarista, há muito tempo ficou para trás. É possível. No entanto,
outras narrativas desclassificadas se fazem visíveis nos bastidores dos sistemas das artes, dos
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múltiplos sistemas das artes que ressurgem na pesquisa de artistas que transgridem as regras
do bom gosto e do politicamente e visualmente correto.

Sem lugar a dúvidas, o campo da pesquisa em artes visuais, é o espaço possível das
apresentações (im)próprias, na contemporaneidade. Esses interstícios constituem espaços de
exposição (im)pensáveis, operando o sistema das descontinuidades, pictóricas, estéticas e
mutáveis.

As atuais manifestações artísticas estabelecidas de maneira dinâmica, no entrelaçamento das


investigações interdisciplinares de áreas do conhecimento convergem em abordagens que
vislumbram pluralidades no modo de recepção e interlocução de assuntos pertinentes ao
desenvolvimento social e cultural. Esta maior abrangência, de saberes não isolado, ecoa
também na própria materialização das linguagens artísticas, enquanto setores que se
relacionam na construção de atividades voltadas para um ponto comum na exploração de
assuntos urgentes para políticas de acesso às liberdades individuais.

Estas produções em Artes Visuais se utilizam muitas vezes de assuntos disparadores de novas
percepções, potencializadas para modificações de categorias estanques, institucionalizadas
por aparências imutáveis ou enraizadas em preceitos tradicionais. Uma inclinação de saberes
artísticos voltados para momentos de subjetivações no campo das artes requer um
deslocamento dos modos de interação, identificação e afetos destas visualidades.

A propósito de uma abordagem acerca de figuras marginais nestas representações visuais,


propõe-se através da produção de uma série de estudos em pinturas, uma aproximação com as
reflexões e questionamentos próprios do personagem que insurge no âmbito das ações e
situações de sociedade e cultura atuais. Um desempenho artístico inclinado para contextos
que sugerem desvios, pode contribuir para revisões e flexibilizações de condutas e atos nas
transformações e desenvolvimento das relações interpessoais. No tocante dos
comportamentos coletivos, explicitados por meio da plataforma artística, apresenta-se
movimentações que pretendem dialogar (ou irromper) com espaços firmados por convenções,
que orientam trajetos de leituras conservadoras. Tenta-se promover a figura de outros
retratados, pelo viés da manifestação que anseia visibilizar aqueles que não habitam
comumente o local das “representações de tradição”, e se distanciam do panorama de
aceitação. Por este viés, a apresentação destes personagens, situados à margem do curso
hegemônico, se pretende uma insurgência em suas exposições. A temática dos retratos de
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sujeitos performers e transformistas assume aqui uma postura que tenta um desmantelamento
de um sistema de representação binário frente às arquiteturas e hierarquias de gênero. Propõe-
se, a partir disto, um olhar crítico sobre os corpos engendrados enquanto representações
sociais de feminilidades e masculinidades nos enfoques do aceitável. Através desta
apropriação, podem fortalecer as discussões no campo das sexualidades e trânsitos
estabelecidos entre linguagem e imagem, no entendimento de que o gênero se constitui como
aparato iconográfico (PRECIADO, 2004) de produção e reprodução de formatos de
representações pontuais sobre o feminino e masculino.

Tornar visível as reivindicações de grupos “minoritários” (intitulados por discursos


normatizadores) denota uma vontade de revisão, de determinados construtos perpetuados e
assimilados no corpo social, para dar espaço a personagens outros que não figuram em
destaque e se apresentam como desapropriado.

Esta produção pictórica, que apresenta como motivo artístico a imagem de transfosrmistas
que adotam a postura questionadora como personagens, tenta salientar a proposta do sujeito
que performa enquanto ato de desobediência. Ao atuar como uma figura que desestabiliza as
noções de divisões conceituais dicotômicas e explorando uma perspectiva que percorre locais
de espetáculo no entrelaçar de vida e obra, se aproximando de uma espécie de teatralização de
cotidianos de resistência.

William Silva
Performativo masculino 1, 2016.
Pintura
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William Silva
Estudo para um retrato: Lili, 2016.
Pintura

A encenação proposta pelas ações das culturas sexuais marginais e insurgentes expõe uma
abordagem desviante acerca das conceitualizações da produção de gênero em sociedade, que
são estimuladas através da “repetição ritualizada”, que constitui papéis determinados no
modelo dominante. Os aspectos formais de binarismos na constituição de mulheres e homens,
homossexualidades, heterossexualiades inquestionáveis, que fundamentam a normatização,
são ofuscados na tentativa de criar um novo posicionamento frente aos aparatos de
normalização impostos. A não disciplina em relação aos projetos reguladores oferece,
portanto, uma revisão de valores e instrumentos dos regimes de conduta que agem nos corpos
individuais. Neste sentido a apresentação artístico-performática desempenha um caráter de
leitura social para uma possível problematização do local, conforme Preciado:

As práticas artísticas e políticas performativas não encontram seu lugar


próprio no corpo individual, mas são sempre uma transformação dos limites
entre espaço privado e o espaço público. A performance é sempre e em todo
caso criação de um espaço político. (2004)

A ação performativa (de caráter artístico) satiriza os exercícios de produção de sexualidades e


gênero tendenciosos na materialização de identidades fixas. Assume-se uma visualidade dos
atos performativos enquanto manifestações corporais ancorados em referências de realidade,
que apresentam um propósito de transformação, tanto do artista quanto de seus espectadores,
quando se atinge um êxito de transmissão de signos acessíveis para as interpretações
decodificadas através de uma espécie de “leitura corporal” (FICHER-LICHTE, 2011). Para
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tanto, se aborda um processo ativo que situa o corpo enquanto potência semiótica que
atravessa a simples manifestação de enunciado de fala e se desenvolve pela atividade de
autorreferência “porque significam o que fazem e são constitutivos de realidade porque criam
a realidade social que expressam.” (Id, p.48). Neste fluxo, entende-se a manifestação
performática enquanto uma estética do acontecimento, através da ação que pretende uma
(re)formulação na produção de significados e modos de afeto plurais.

A pintura como espaço para visibilizar a imagem do transgressor, contribui para as


desconfigurações de fronteiras de sexualidades no tocante das relações da representação de
corpos e imagens. Esta elaboração pretende deslocar e compartilhar os desejos de oscilação
identitária a partir da imagem dos personagens não binários e marginalizados. Estes retratos,
portanto, se referem como recortes e documentos visuais que iluminam a presença de figuras
que podem transitar para além de identidades normativas das manifestações sexuais e de
comportamentos. Para o artista, o enfoque do gesto pictórico que alude à presença física
daquele que é retratado, invoca relações de cumplicidade e afeto entre pintor e modelo. A
execução desta obra se efetua através de situações em que ambos compactuam do mesmo
ideal para ressignificar contextos de maior liberdade nas expressões de sexualidades e suas
políticas de visibilidade. Para isso tornar-se desviante atenta para fortalecer movimentações
contrárias aos direcionamentos de retrocesso que operam em espaços de cultura e convívio
social. Portanto a arte, enquanto manifestante de sensações, se torna própria para dissidências
e pecados.

Nas relações intersociais é possível observar a utilização do corpo como uma manifestação da
linguagem e construção de significados. E, no momento em que é questionada a relação do
sujeito com o espaço e com os objetos, toma-se este corpo como um corpo expressivo frente
ao discurso que incide sobre corpos individuais. Além disso, apresenta uma relação de poder
perante os indivíduos, pois a sociedade impõe a padronização de um corpo ideal. Para
Foucault (1979) essas relações de poder adquirem nuances diferentes ao longo da História:

A consciência de seu próprio corpo só pôde ser adquirida pelo efeito do


investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o
desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo... tudo isto
conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente,
obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos
soldados, sobre o corpo sadio. (p. 82).

No campo das artes visuais o uso do corpo como manifestação de linguagem é algo muito
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usual. Desde a reprodução de imagens na arte pré-histórica até o surgimento de uma reflexão
sobre arte no renascismento, pode-se notar essa permuta entre o artista e o seu veículo
expressivo, o corpo. As representações deste organismo são reforçadas por relações de poder,
deixando evidente a aparição de dominado e de dominante. .

Pensando nas "minorias" sociais, mulheres, negrxs, comunidades sexuais dissidentes, tem
seus corpos condicionados por possíveis estéticas heteronormativa dominantes, geram - se os
seguintes questionamentos: O quanto o corpo impossibilita o ser? E o quanto ele é
impossibilitado por esse mesmo ser? A partir disto, ao utilizar o corpo, enquanto aparato de
discursos nas relações de identidade e sexualidade das "minorias" sociais, Letícia Honorio
pretende desconfigurar a representação do corpo nas artes visuais.

Letícia Honorio
Sem Título I, 2016.
Fotografia

A utilização da fotografia como suporte inicial pretende situar a figura do nu para questionar a
importância do corpo perante as identidades de gênero e sexualidade, na busca de naturalizar
e dar espaço, para os ainda hoje considerados "impróprios" no campo das artes.

Acreditava-se que o corpo estava diretamente relacionado com a sexualidade, mas as teorias
de identidade de gênero e teorias queer negam essa afirmação. Judith Butler com a teoria da
Performatividade de gênero questiona o que ela chama de Matriz de Inteligibilidade de
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Gênero (Butler, 2003), que "institui como natural, normal e inquestionável a ligação linear e
essencial entre sexo biológico, gênero, desejo sexual e subjetividade" (Arán, 2006). Na teoria
de Performatividade de Gênero, Butler considera que "o sujeito é um produto de suas ações e
que o corpo é um efeito discursivo" (2004 [1988]). Na problemática sugerida por estas
propostas artísticas de dimensões transdisciplinares, a importância de estabelecer um paralelo
entre corpo e atuação para experimentações visuais, potencializa uma (re)invenção dos
sentidos que balizam as enunciações de poéticas artísticas, de interpretações e percepções
contemporâneas. Portanto a desconfiguração dessas representações corpóreas, é possível que
haja uma abertura de espaço e suporte para as visibilidades das minorias, fazendo com que
cresça a inserção dessas nos meios interdisciplinares.

Referências

ALIAGA, Juan Vicente. Relatos desconformes: teoria queer, política e arte em um mundo pós-
colonial. Revista Poiésis, 2010.

AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio - vol. 2 Artigos e ensaios (1980-2005): Circuitos
de arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006.

ARÁN, Márcia. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Rio de Janeiro,


2006.

AUSTIN, J. L. Cómo hacer cosas con palabras. Argentina: Libros Tauro, 1955.

BLANCA, Rosa Maria. Arte a partir de uma perspectiva queer / Arte desde lo queer. Tese (Doutorado
Interdisciplinar em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.

BERKELEY ART MUSEUM http://archive.bampfa.berkeley.edu/exhibition/InaDifferentLight acesso


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BUTLER, Judith. Performative Acts and Gender Constitution. 1988.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora
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FICHER-LICHTE, Érika. Estética de lo performativo. Madrid: Abada Editores, 2011.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Biblioteca de filosofia e história da ciências, 1979.

PRECIADO, Beatriz. Género y performance. 3 episodios de um cybermanga feminista queer trans...


disponível em: http://www.hartza.com/performance.pdf acesso dia 22 de agosto de 2016.
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Jacks Ricardo Salistre.


Licenciado em Artes Visuais pela Universidade de Caxias do Sul (2016). Atualmente é mestrando em
pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
na Linha de Pesquisa de Arte e Cultura sob orientação da professora Dr.ª Rosa María Blanca Cedillo.

Letícia Alves Honorio


Acadêmica do curso de Artes Visuais- Bacharelado em Desenho e Plástica, na Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM).

Rosa Blanca
Doutora em Ciências Humanas (CAPES) / Universidade Federal de Santa Catarina (2011) Mestrado
em Artes Visuais (CAPES) / Universidade Federal de Rio Grande do Sul (1999), Brasil, e Graduação
em Ciencias de la Comunicación (SEP) / Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Occidente
(1989), México. É Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais, na Universidade Federal de
Santa Maria, atuando como Coordenadora do Curso de Artes Visuais.

William Silva
Bacharel em Artes Visuais - Desenho e Plástica pela Universidade Federal de Santa Maria (2015) com
ênfase em desenho e pintura.

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