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A Cúpula do Insano

Este livro é baseado em fatos de cerimónia e destina-se a

pessoas em recuperação do facto

de terem nascido
O HOMEM A NATUREZA … … … … … E O BOM NOME

É tudo uma questão de bom nome … que não pode ser posto em causa até prova em contrário.
Partindo da fragilidade de tal outorga, é verdade que todos os bons nomes podem ser questionados
e objeto de discussão em sede própria.
Sendo um direito básico, natural e constitucional, devido à sua erosão temporal ,é suposto todos nós
termos interesse , não em apregoá-lo pateticamente , mas se por caso de indelével reforço e
sustentabilidade do mesmo , deixá-lo ao escrutínio da boa fé e civilidade que tal unção requer.

Ao longo dos séculos este interesse dos humanos foi sendo alienado pelos chamados intrusos.
Estas respeitáveis criaturas da MÃE natureza foram-se tornando cada vez mais intervenientes na
vida do homem , convivendo com ele de forma direta ou indireta , mas sempre presente.

« A PARTIDA »

Quando saímos para estas aventuras, sabemos que vamos encontrar o que desejamos e o que à priori
rejeitaríamos...
Anima-nos a perspetiva de uma relação tão próxima com estes intrusos que têm o condão de abrir
horizontes, com a certeza de que existe sempre um novo despertar da mente.
Da minha parte e restante equipa, um motorista,um câmera e a namorada que faz de tudo um
pouco,não houve quaisquer tipo de hesitação que obstasse esta intenção de conhecer os bichos no
mais profundo do seu ser.
Qualquer local do planeta é provido de material de trabalho, apenas o facto da viatura que nos
transporta já não ser muito nova , faz com que o nosso périplo decorra mais na Europa.
Esperam-nos uma grande variedade de animais e as suas infinitas características,que desde que há
vida na terra, suscitam a maior curiosidade por parte dos humanos.

«DORÍFERO»

É o caso do dorífero ,erradamente chamado de escaravelho da batata,põe os ovos amarelados, ovais,


em aglomerados de 8 a 80 cm na face posterior da folha, sendo por isso de difícil deteção.
Roedores , outrora chamados «batedores de língua», são foliões,divertidos, até simpáticos. Nascem
da beterraba – arruaceira,sendo férteis no inverno, hibernando no verão.
Oriundos sabe-se lá de onde ,estes dóceis mamíferos são muitas vezes confundidos com a toupeira
de poupa(20cm de comprimento,37 de envergadura 55g).
Os detritos que a toupeira expele, acumulam-se em montículos à superfície,entrevendo-lhe a
presença. Os olhos são maus,servem apenas para distinguir a luz da escuridão.
Passam quase toda a vida debaixo da terra escavando túneis de pouca profundidade, as patas
dianteiras bastante desenvolvidas permitem-lhe aprofundar os túneis assim que notam qualquer
presença do homem, vindo à superfície para saudar a presença dos corvos de quem são bastante
amigos e com quem costumam passar o natal e às vezes a passagem de ano.

«A FORMIGA CARPINTEIRA»

Ao contrário do leão africano , a formiga – carpinteira é o único intruso que ganhou fama de
«comedor de homens», tendo nos últimos duzentos anos feito cerca de 4 milhões de vítimas.
A sua força pouco comum ultrapassa a do leão, mede cerca de 3 cm de comprimento e 2 mm de
altura, conseguindo rastejar despercebida entre os humanos.
Sendo o seu habitat natural as águas profundas dos oceanos,demandam às cidades e aldeias onde
sociabilizam com o porco – espinho e a mosca doméstica. É possível verem-se em praias desertas
para onde confluem a fim de desfrutarem de banhos de banhos de sol e conviverem entre si através
de sardinhadas, sessões de karaoke e passeios à beira-mar,isto tudo no meio de grande algazarra,
audível pelos humanos a mais de 100 km de distancia .

«BOI-ALMISCARADO»

O inverno é a estação ideal para observar este mamífero em vias de extinção.


Tem o abdómen bastante alongado e cabeça grande, com olhos facetados por cerca de 10000
elementos nas espécies maiores.
As pastagens dos planaltos são o domínio do boi-almiscarado (2,30m de comprimento,1,40m de
altura).O pelo deste parente pobre dos cabritos-montanheses muda de cor consoante a estação;
castanho claro no verão, quase branco sujo e menos espesso no inverno.
Os chifres são ocos como os do carneiro diferindo nisso dos cornos dos cabritos -montanheses.
Sobem até às árvores para se alimentar,lançando gritos agudos e no fim do inverno pousam numa
árvore morta ,fazendo um ruído matraque ante fruto da dor que o uso do fio dental lhe provoca
durante as subidas e descidas das árvores.

«MERGULHÃO DE CRISTA»

Quando a altitude é grande,esta volumosa ave vê a sua crista aumentar substancialmente.


Coabita lado a lado com o rouxinol dos caniços . Passam cerca de duas horas num estranho
exercício: Frente a frente sacodem a cabeça ao mesmo tempo que produzem geleia real, produto
segregado por glândulas da cabeça.
O mergulhão-de crista tem o seu habitat natural nas florestas de coníferas, migrando para zonas
costeiras na altura da apanha da azeitona, buscando aí a lascividade que origina a sua reprodução
O seu parceiro é habitualmente o moscardino(1,80 a 2,30m de altura) provocando ciúmes no
rouxinol-dos-caníços,dando origem a refregas intermináveis que levam à intervenção das
autoridades e mesmo dos mais conceituados espiões do mundo como por ex «o sargaço vesiculoso»
e quando necessário, o «tamanho de vénus» terminando todos em grandes orgias que dão origem a
espécies até agora nunca vistas.

«O PORCO»

O porco é um parente próximo do javali com o qual se pode cruzar. As crias (leites ou bácoros)
nascem em ninhadas de 4 a 10 depois de uma gestação de cerca de 250 dias.
O porco sente-se bem a chafurdar na lama onde rebola e refocila. Nas últimas décadas este suíno
de porte atlético e roliço, foi-se sociabilizando com outra bicharada, como por exemplo a enguia,
com quem costuma acasalar, o estorninho, a garupa, e o peixe – palhaço. São vistos em pequenas
tertúlias de café e esplanada,sussurrando entre si com a discrição que os óculos escuros permitem.

«O TIRANOSSAURO»

Dos vários tipo de dinossauros,o tiranossauro(lagarto tirano)(10 m de comprimento+45 ton)


é dos exemplares mais marcantes. Sendo um réptil ectotérmico,sobrevive com dez por cento do
alimento necessário para um mamífero do mesmo tamanho. Vivem e procriam nos locais áridos
adaptando-se porém às condições de vida em todo o mundo .Sociável e amistoso é muitas vezes
confundido com o gato doméstico, o que tem levado muitos humanos a adotá-lo como animal de
estimação, só se dando conta do erro quando lhe tentam dar banho e têm dificuldade em pô-lo na
banheira. Surgem até casos de famílias inteiras que, sentindo-se embaraçadas e tendo já ganho amor
ao bicho, abandonam as suas casas ficando o animal como senhor e dono da casa. Não se fazendo
rogado, assume as tarefas domésticas,tendo apenas dificuldade em assados no forno e no
manuseamento do aspirador.
Sociável, é assíduo frequentador das redes sociais, em particular das do metropolitano e do caminho
de ferro onde costuma deixar os seus dejetos.
No verão recebe a visita dos Pterossauros, seus compadres nómadas que deambulam pelo mundo
exercendo a sua profissão de apontadores,que adotaram devido ao facto de terem um dedo
especialmente alongado em cada pata dianteira.
O tiranossauro e o petrossauro(fêmea) envolvem-se amiúde em atividades sexuais, com a
permissividade do pterossauro(macho). É bizarra a sua forma de copular,escondem-se dentro de
armários de cozinha , roupeiros e até frigoríficos.
Durante vinte minutos não fazem barulho… lentamente as portas abrem-se , surgem as patas
traseiras que se movem a toda a velocidade em movimentos de tesoura durante aproximadamente
duas horas , libertando as patas dianteiras,originando então um frenético ritual sexual.
A casa quase que vem abaixo, contagiando o pterossauro(macho) que muitas vezes acompanha o
ato de forma também ela eletrizante, com a utilização de uma guitarra e por vezes do piano levando
o resto da família, imbuída de algum pudor, a abandonar a casa temporariamente.

«O RATO ALMISCARADO»

Originário da América do norte este mamífero aquático de aprox.20cm e 2,4kg,aparece na Europa


no inicio do séc.xx.
Animais aquáticos tornam-se semi-terrestres com o aparecimento da moto d,água. Dando prioridade
aos charcos e pântanos,devido a serem águas paradas condicionadas a movimentos externos como
os do vento, tornando a sua composição química importante na vida vegetal.
Proliferante nestas zonas, cuja vegetação promove a sua camuflagem, o que sustenta a sua
capacidade de se envolver de forma indireta com outras espécies.

«O VERME»

Uma das espécies dos «PLATELMINTAS» é o verme, um dos mais intrigantes seres vivos.
Sendo basicamente aquático, alguns conseguem viver em terra embora o seu resguardo prioritário
seja o lodo e a lama apesar desta não oferecer as condições ideais ao formato do seu corpo.
Com o desenrolar dos anos,o verme foi abrindo buracos na terra em busca de novas sensações,
aproveitando para petiscar aqui e acolá. Descendente de «LINGUELLA» consegue desenvolver
atributos que lhe permite inclusive interagir com o ser humano.
Optimo narrador e bastante persuasivo, fruto de uma metamorfose inexplicável pela ciência , o
verme apresenta-se por vezes com forma e identidade semelhante à do homem, identificando
os seus sinais através de órgãos sensoriais sofisticados.
Possui um cérebro considerável e reações muito rápidas, podendo ser optimo comunicador devido
à sua locução suave e melodiosa, tendo apenas de lidar com uma contrariedade de somenos
importância , que é o facto de sofrer de soltura (libertação de gases e fezes de forma inadvertida)
que o denuncia e dificulta a sua intrusão no nosso quotidiano.
«O CAVALO»

Domesticado há mais de 3000 anos, o cavalo tem tido ao longo dos tempos uma relação muito
próxima com o homem,já quase não existindo no seu estado selvagem.
Os de maior porte ultrapassam os dois metros de altura e atingem velocidades na ordem dos 70km
por hora .
Nasce de uma gestação de 11 meses ocorrida no organismo da sua fêmea ,a «égua».Devido aos
vários cruzamentos começaram a haver várias raças que fazendo parte da mesma espécie,
apresentam várias características de modo, relativamente diferentes.

CURIOSIDADES: corre que se farta.

«O TUBARÃO»

Na sequência de mutações e otimização de mecanismos de defesa ,o tubarão apresenta a maioria


dos ossos do esqueleto substituídos por cartilagem ,um material leve e macio, não deixando contudo
de ser um animal vertebrado.
Possuindo um potente par de barbatanas que se vão abrindo de forma horizontal,sendo um animal
de ataque, avança para a presa também com a ajuda da sua enorme cauda .
O tubarão respira absorvendo água pela boca que é expelida através de fendas bronquiais
situadas na cabeça.
Devido ao seu volume e força , aliada a alguma delimitação do território conquistado ao longo
dos tempos , o tubarão tem alguma facilidade em sobreviver. Resistente, tem como principal
obstáculo os múltiplos ataques de asma causados em parte pela sua elevada propensão para fumar.
Esse hábito tabagístico tira-lhe também algum discernimento no momento de ataque às vítimas
(presas) devido à dificuldade no manuseamento do cigarro que por várias vezes se esquece de tirar
da boca quando tenta “abocanhar” as refeições. Devido ao fumo, os seus enormes dentes ficam
amarelados tendo por isso de fazer várias limpezas e branqueamentos durante o ano.

«O TIGRE»

A humidade e o calor são factores climatéricos adequados à presença deste imponente felino,cujo
maior exemplar mede cerca de 3 metros de comprimento e pesa à volta de 360 kg.
O tigre captura todo o tipo de animais independentemente do tamanho e peso em causa. A sua
enorme amplitude de movimentos permite-lhe ter grande eficácia nas suas ações.
Devido à sua anatomia tem grande propensão para o ócio e contemplação, ritual só quebrado para
procurar alimento.Sendo um animal bonito ,acaba por ser bastante procurado pelas fêmeas da sua
espécie, o que leva a uma existência leviana e promiscua. São incontáveis as parceiras com que que
reparte o erotismo e a sensualidade,o que lhe trás alguns dissabores, nomeadamente a ingerência de
parasitas no seu corpo.
Aproveita os momentos de caça para aliviar esse incómodo,é habitual vermos o tigre rastejar
despercebido entre as ervas altas. É nesta altura que aproveita para roçar os testículos pelo solo a
fim de desparasitar a zona do corpo mais afetada. Por vezes em desespero recorre a refregas com o
porco-espinho,tentando aproveitar os filamentos aguçados que revestem o seu dorso,resultando
quase sempre infrutífera esta ação, que por vezes até lhe reserva um desfecho fatal

«O GATO»

Em termos globais, o gato a par do cão é dos animais com maior proximidade territorial do homem,
alardeando contudo bastante independência devido às suas natas características de sobrevivência.
São enumeras as chamadas “raças” deste pequeno mamífero da família dos felinos.
O Homem mantêm um desejo ardente de comunicar com este animal que adota amiúde , para
efeitos de companhia ,lazer, caça , e por vezes de estimação.
Apesar da sua socialização com os humanos, o gato manteve sempre intactas as suas performances
de predador ,fazendo jus à classe dos felídios. As garras são afiadas, sendo retrácteis
quando não estão em ação de ataque. Privilegia a caça a aves , ratos ,e obedece a táticas bastante
aperfeiçoadas. Um dos seus métodos de ataque é o disfarce confundindo-se com a luz e a sombra
onde estabelece o seu condado de procura de alimento.
As suas atividades de reprodução são mais habituais durante a noite onde busca a tranquilidade
e reserva que esta lhe proporciona . No final da gestação é costume acontecerem fenómenos
estranhos, de cariz ruidoso , suportados por um” miar” constante das fêmeas e dos machos , de
difícil interpretação pelos humanos , mas que têm explicação plausível .
Constatámos que nos dias e horas que antecedem os partos ,a fêmea que irá dar à luz, em conjunto
com os outros membros do clã ,protagonizam um sem número de “queixas” à mistura com azedume
e alguma irritação.Com a ajuda da nossa colega que arranha o “gatanhês”, vamos tentar reproduzir
os argumentos que os bichos trocam entre si, e que podemos configurar como uma reunião.
Colocamo-nos em situação privilegiada , atrás de uma figueira, e a colega ouve então:
-”quero parir”
-”isso é que era bom , não querias mais nada !”
-”há sempre lugar para mais um!”
“- ela tem direito à sua auto- determinação!”
-”só estamos aqui a gatear porque nascemos ,não sejam estúpidos, que direito temos nós de opinar
sobre a nascença e vinda ao mundo de terceiros, tenham vergonha …,tenham vergonha,miiiiaauu.
-”ai ai,é uma questão “ fraturante “
-”olha olha esta andou a estudar nas melhores escolas para gatos, tá -se mesmo a ver à pois tá”
-”calma!calma,vamos lá chegar a um acordo,um consenso,ela pode por ex:dar à luz quatro gatos,ou
seja metade do que se vê na eco, e aborta os outros quatro.”
-”boa ideia…!voto em ti nas próximas,miiiaauu”
-”vocês estão é malucos,mas com que critério é que decidimos quais nascem e não nascem,agora é
às metades?!mas que raio de gatocracia é esta!”
-”ai ai , é uma questão” fraturante”
-”lá está ela …,olha acrescenta também “transversal”,fica bonito...miiiaaauuu”
-”cá pra mim,só se a mãe correr perigo ,não se troca vida por vida”
-”não há comida para tanto gato,miau! Os pássaros voam alto , os ratos estão cada vez mais longe,
vivem em apartamentos de luxo, qualquer dia vamos ter de andar a miar às portas,em dois anos dei
à luz 36 gatinhos …. morreram quase todos ,só me apetece é chorar”
-”ai ai é uma questão fraturante”
-”estou confusa …,já não me apetece parir,não sei que fazer estou enjoada miiiiaaaauuu”
-”pois...pois, eu tenho o meu telhado de férias em frente ao dela ,… e bem via o corropio de gatões
a subir e a descer,uma vergonha ,!ai ai, bem sabe ela quem é o pai.”
-”e que culpa têm as crias!?”
-”agora mio eu que sou o presidente, vamos a votos ,quem for a favor do nascimento das
crias ,abana o rabo,quem for contra fica com o rabo quieto,miau,miau,miiiaaauu”
-”despachem -se que estou quase a parir,vou descer da árvore miau”
-”ora bem vou fazer a contagem, tu aí ó malhado, o que queres?ah tens o rabo cortado ,conta para o
não,28,29,contagem feita ,ganhou o não com 31 votos contra 29 do sim,miau.

-”miau miaumiaumiau”
-”miaumiaumiau”
-”miaumiaumiaumiau”
-”olhem!olhem! Começaram a nascer as crias…!e vêm todas com o rabo a abanar,conta ou não?”
-”não têm idade para votar,miau”
-”pois… pois , ali o jacó está surdo que nem uma porta, e votou “
-”coitadinho ,mas subiu à árvore!”
-”aquilo nem é uma árvore ,é um vaso abandonado ...e demorou uma semana,miau”
-”ai...ai ...é uma questão fraturante”
E esta temática continua na ordem da noite, não se perspetivando um consenso, apanágio de uma
gatocracia adulta.

«A lapa»

Uma das mais de 50.000 espécies de moluscos,a lapa é um dos representantes com conchas destes
minúsculos animais.
Não usa tentáculos para se alimentar,mas sim arádula que não passa de uma língua recoberta de
farpas com a qual sugam a carne da vítima .
Não se desfez da concha ao contrário de outros moluscos como a lesma-do mar que prefere uma
vida mais agitada.
Sendo o seu habitat natural as rochas ,ela aproveita a superfície pouco homogénea destas para se
resguardar e alimentar.

«0 MACACO»

Há cerca de 50 milhões de anos que estes sociáveis primatas se espalharam pela terra .É o animal
que nas componentes físico-psiquica mais se assemelha ao homem.
Os primatas ao longo da história da sua evolução foram aumentando de tamanho ,o que os levou a
dividir o seu habitat entre o solo e os ramos das árvores.
De todos os primatas,o macaco do género “aranha” é dos mais versáteis. Sustenta o nome pelo
facto de se sentir mais seguro e confortável em cima das árvores, utilizando várias partes do corpo
como sustentáculo e transporte. A cauda ,o dorso, e as mãos são exemplo disso. Quando descem
para o solo usam a versátil cauda para se equilibrar , raramente se servindo dos braços para apoio.
É porém em cima das árvores que passa a maior parte do tempo ,sendo essa rotina quebrada por
períodos mais dilatados, apenas aquando do casamento de algum dos membros do clã.
As cerimónias de casamento do macaco aranha são acontecimentos marcados na maior parte das
vezes pela presença de mais de trezentos macacos .O evento é único e obedece a todos os
protocolos, inclusive o mais tradicional ,”A união dos noivos “, consumada com as promessas de
fidelidade,auxílio mutuo ,e por fim a troca de presentes , sempre supervisionada pelo chefe do clã
que assegura o bom estado dos mesmos .Seguem-se grandes repastos com comida e bebida em
abundância . Prolonga-se por vários dias e noites, o que leva , devido à presença do álcool muitos
deles a ficarem ébrios e exaustos, descurando a segurança do local, originando a intrusão de
estranhos como por ex.do tigre e do Homem(este só por curiosidade).
Quando surge o sinal de alerta ,é vê-los em correrias desenfreadas com tachos e panelas nas mãos
tentando subir à árvore mais próxima .As mesas são transportadas pelos macacos mais corpulentos
que têm alguma dificuldade, por se encontrarem embriagados.Os gritos são ensurdecedores, as
garrafas são transportadas pelas fêmeas que aproveitam para as atirar aos intrusos ,criando assim
uma primeira barreira de segurança à subida desesperada da noiva , cujo vestido lhe cria maior
dificuldade.Saem quase sempre ilesos ,terminando a cerimónia em cima das árvores ,sob o olhar de
curiosos, como o tigre e o orangotango que é contra este tipo de eventos ,alegando o desperdício de
comida e bebida ,traz por isso sempre um enorme saco que leva carregado .

“A CEGONHA-EUROPEIA”

Pertencente a uma espécie migradoura de forma sazonal,em especial para África,voltando depois
para a Europa ,a cegonha europeia navega com extrema exatidão que lhe permite pousar e ocupar
espaços minúsculos,seja por questões alimentares ou de habitat.
Como todas as aves migratórias faz uso pleno das suas asas que têm funções complexas para além
de aumentarem o seu peso. Elas agem como motores ,impelindo-as através do ar. As suas penas
estão estrategicamente dispostas nas asas para que a sua articulação seja perfeita e a superfície se
mantenha contínua. É nesta conjuntura que as cegonhas-europeias também conhecidas por
“lavadeiras”fazem o seu trajeto sobrevoando os mares. A energia gasta por estas é grande, chegando
a fazer milhares de km por ano. O homem recentemente começou a utilizar a cegonha -europeia
como ajuda fundamental para atividades socialmente reprováveis, como por ex:A” lavagem de
dinheiro”.Periodicamente, as cegonhas,entretanto treinadas em laboratórios aquáticos transportam
grandes quantidades de dinheiro proveniente de atividades menos lícitas. O transporte é feito em
grandes malas e sacos que elas seguram no bico ou nas patas.
Empreendem grandes viagens sobre os mares em zonas previamente estabelecidas. Estas
“lavadeiras” alternam o voo com descidas rápidas e precisas para o mar . Levam sempre com elas
um pequeno saco com sabão azul , o chamado “sabão macaco”.
Suspendem-se após a descida , ficando a pairar entre 10 a 12 mn período durante o qual esfregam as
notas com o sabão e as passam por água.É uma tarefa efetuada de forma discreta, que pelo que
podemos observar, é interpretada pelos elementos dos navios- patrulha como manobras de procura
de alimento,fazendo o transporte da comida em sacos térmicos , conservando-a assim melhor.
É até louvada a sua abnegação em prol da família.
Há poucos relatos de cegonhas apanhadas em flagrante delito, sendo apenas conhecido um caso em
que a cegonha em causa ,já em pleno voo deixou cair um maço de notas já lavadas,desculpando-se
com a falta de detergente , o que não convenceu as autoridades que decidiram apreender-lhe o
saquito do sabão.

“O URSO”

Os ursos refletem a diversidade de locais de habitat,transversais à mesma família animal. Desde o


urso polar ao urso dos andes é o tipo de animal que carateriza as várias zonas do planeta.
Classificados como carnívoros ,alimentam-se muitas vezes de raízes e até de mel .Os que vivem em
climas frios habitam em tocas e cavernas .
De entre todas as diversidades de ursos, o “CULHAMBANA” é aquele de que se sabe menos ,
pensa-se que seja da família do “urso branco” do norte ,mas não há registos que o confirmem,
decidimos por isso seguir o rasto de um que avistámos no norte de ÁFRICA .
A uma distância de segurança, vamos observando os movimentos deste imponente mamífero cujos
parentes mais próximos são os canídios. Pretendemos desmitificar a sua denominação de
“culhambana”.Surpreendentemente foi um dos” mistérios” a ser desvendado em pouco tempo.
Na sequência de uma incursão por este bosque ,o urso vai selecionando pequenos frutos ,bagas ou
outro alimento de pequenas dimensões e quando as ingere inicia um ritual que faz lembrar certos
tipos de dança . Durante o ato de mastigar , a velocidade vertiginosa com que o faz , e em
movimentos laterais , torna difícil descortinar o rabo do animal, sugerindo uma ligação forte com o
“samba”,justificando assim o cognome de “culhambana”.
Por vezes o urso pára e projeta o olfato em várias direções como a procurar sinais da presença de
outros ursos,dando a ideia de se sentir só.
Á noite procura resguardo,vemo-lo a entrar numa casa abandonada e aí pernoitar. Para nosso
espanto durante a noite deparamo-nos com outro espécime ,aparentando também estar fora do seu
grupo. Trata-se de uma hiena que circunda a casa onde o urso pernoita ,tem a cauda apontada para a
cabeça ,curvada acima do dorso o que indica agitação social.
Parece ter-se apercebido da nossa presença ,o que a leva a retirar-se. É uma fêmea , o seu andar
desajeitado é peculiar. Passados minutos regressa ,emitindo uma daquelas gargalhadas apavorantes.
O urso acorda, debruça-se numa daquelas aberturas da casa abandonada e solta um grunhido pouco
amistoso,não parece ter conseguido contacto visual com a hiena, que entretanto adotou uma posição
inerte. A hiena não é um animal muito rápido por isso acautela-se, a noite começa a despedir-se.
Já de manhã continuamos a seguir a rota do urso que parece rumar à EUROPA. Percorremos
estradas,atravessámos florestas,seguindo-lhe sempre o rasto.
Já dentro da EUROPA,num local ermo ,o urso parece nervoso,até irritado. Ao longo do percurso
fomos pondo,habilmente,pedaços de carne tentando salvaguardar a sua condição física,agora não
entendemos a sua instabilidade emocional,eis quando avistamos a nossa amiga hiena que pelos
vistos nos seguiu durante milhares de km.Visivelmente cansada não parece assustada com a nossa
aproximação.
O urso, esse , encontrou mais um abrigo,outra casa abandonada ,esta aparentando alguma
preservação,certifica-se da ausência de alguma concorrência tentando agora uma entrada,testa o
portão da garagem…,desiste… volta à porta principal ,espera,olha para os lados observando toda a
frente da casa,espreita uma janela,volta a enquadrar-se com a porta principal e com um encontrão
derruba-a,esperamos por algum sinal de alarme,o que não acontece.
Passaram duas horas,gostávamos de saber o que se está a passar dentro da casa,tal não é possível,o
urso não parece ameaçador, mas nunca fiando.
De vez em quando vem à porta com bocados de comida na mão,a nossa amiga hiena está muito
próxima da casa como que a pedir hospitalidade,nem que seja para matar a fome .A hiena é um
animal que com ausência de comida se torna audaz e pouco seletiva na procura de alimento.
Passaram dois dias durante os quais fomos enviando algumas sobras de comida na direção da hiena
que a devora de forma assustadora .Entretanto o urso sai para fora da casa,parece incomodado com
alguma coisa ,olha na direção do telhado,um bando de aves está a irritá-lo,e o inesperado acontece.
Com a ajuda do parapeito da janela e de um suporte de antena ,consegue elevar-se até ao telhado
Não sabemos se vê nas aves alimento ou se pretende só afastá-las. A hiena parece agressiva ,como
que exigindo um passarinho,não acreditamos que o telhado ,apesar do seu aparente bom estado
aguente o peso do nosso urso, a altura para o interior é de 10 a 12 metros . O “culhambana” , com
dificuldade consegue mesmo subir ao telhado e o que não queremos, parece inevitável e óbvio.
Meio aterrorizados,afinal o urso já é um amigo,esperamos pela queda,a hiena parece esperar
também,mas pensamos,com outro fim,procura desesperadamente comida e o urso pode ser uma
boa refeição. E o desastre dá-se, o urso fura o telhado e cai dentro da casa. Após o estrondo não
ouvimos mais sinas de vida, só a hiena se aproxima da entrada.
Pensámos em ir tentar auxiliar o urso,teríamos de abater a hiena ,já que para se alimentar ela está
por tudo e não sabemos se o urso ainda se encontra com vida .
Ouvimos a hiena rosnar , ladrar, e depois aquela “gargalhada” orgiástica . A sua fixação numa
refeição frugal tem um epílogo.
Na nossa equipa algum elemento solta uma ou outra lágrima,havia um clima de afeto e
solidariedade para com aquele urso, o “CULHAMBANA”.
Foi um adeus pautado por um silêncio que teimava em ser quebrado. Anoitecera ,esperamos pela
manhã para abandonarmos o local,durante a noite o silêncio permanece, surdo e mudo,são 5,20 da
manhã,o sol espreita ,enrolamos a manta e no momento em que se preparamos para sair e
voltar costas a este sítio alguém da nossa equipa,num gesto de raiva atira uma lata vazia para
dentro da casa,adeus urso,adeus “CULHAMBANA”, adeus ou talvez não,porque já estávamos
acordados , não era um sonho aquilo que víamos… … .!
O urso aparece à porta coberto de ligaduras , coxeando, e com a hiena a ampará-lo dentro das suas
possibilidades.
Saltamos , abraçamo-nos, e em uníssono , rimos e choramos,não era um sonho , a hiena tinha
transformado um restaurante numa enfermaria.
Quase todas as nossas provisões alimentícias foram mandadas para perto da porta de entrada, a
hiena com uma calma decidida ia levando a comida para dentro da mesma.
Remontámos a tenda , esperamos para retomar a rota do urso, e agora da sua “companheira” hiena.
A nossa posição é também de certa forma ingrata,dado não sabermos quando regressam os donos da
casa,por isso no dia seguinte quando se apercebemos que o urso , ainda convalescente ,se meteu a
caminho na companhia da hiena ficámos aliviados.
De volta à estrada ,o cenário é invulgar quando eles atravessam povoações,as pessoas olham
espantadas para aquele curioso par que não denotando animosidade também não a despoletam nos
habitantes.
A cidade mais próxima fica a dois km, o urso já está com menos ligaduras , está melhor apesar de
ainda coxear.
Á medida que este singular cortejo vai avançando em direção à cidade,começamos a temer que
algum movimento de captura dos animais seja levantado.Iniciamos os contactos possíveis para que
isso não aconteça,queremos ver até onde eles nos levam.
Sempre que vamos conseguindo comida ,repartimos com eles ,sendo necessário ultrapassá-los e
deixar a comida no seu percurso.
Estamos a entrar na cidade,para nosso espanto os nossos amigos tentam andar junto às bermas,
utilizando mesmo os passeios,de qualquer maneira o clima é de alguma tensão,o urso,esse até
mostra alegria como ainda não lhe tínhamos visto,apesar das escoriações. A hiena segue-o e com os
dentes vai retocando uma ou outra ligadura que se solta.
Os comentários jocosos já começam a acompanhar o par enquanto vão entrando na cidade,outras
pessoas mostram preocupação.
Já bem dentro da cidade,param perto de um cine-teatro,será que vão ao cinema ...interrogamo-nos.
Por precaução tentamos e conseguimos contactar o responsável do cinema para que tivessem calma,
garantindo a tranquilidade do urso e da hiena. Por curiosidade ,reparamos que o filme em exibição é
“E TUDO O VENTO LEVOU”, mas em fotos(slides),o que torna a sua visualização bastante longa.
As nossas dúvidas desaparecem, eles vão mesmo ver o foto-filme.
Já avisado,o porteiro não obstou à sua entrada,sendo-lhes dado até dois sacos de pipocas,já que não
fomos a tempo de avisar que as pipocas sendo de pequena dimensão podiam levar o
“CULHAMBANA” a executar aquela dança louca.
Já sentado com a hiena a seu lado,o urso parece tranquilo,já com algumas pipocas comidas,talvez
o seu estado ainda debilitado refreie os seus ímpetos.
Qual quê!… … . Após ter ingerido algumas sem se movimentar, a dada altura levanta-se e inicia a
sua frenética dança de cada vez que mastiga um punhado de pipocas. Alguns presentes riem outros
protestam veementemente ,este par invulgar está no centro das atenções.
Foram dezoito horas seguidas, sem intervalo,estamos cansados de tanto rir, alguns espetadores ,
durante a sessão e contagiados pelo urso chegaram a erguer-se e a executar a dança,nós por
momentos também,confessamos. A hiena , essa, parece envergonhada da exibição do seu
companheiro. Terminada a sessão ,saímos rapidamente a fim de percebermos a dimensão deste
episódio e a sua repercussão.
O que temíamos está a acontecer , ou seja , movimentos que indiciam a ordem de captura dos
animais, o que nos perturba , mas que já não é da nossa conta.
Saíram do edifício ,a hiena à frente, o”CULHAMBANA” denota já algum cansaço… pudera.
Estamos já à saída da cidade o que nos dá alguma esperança ,mas rapidamente percebemos que os
querem capturar fora da cidade , talvez em campo aberto, querem levá-los para o zoo,é possível
verem-se as redes.
Passaram cerca de duas horas encontramo-nos já perto de uma zona florestal,longe da cidade ,o urso
e a hiena parecem já ter percebido o que se estava a passar e que em breve iriam ser separados.
Já dentro da floresta , como que conferenciam, a hiena nervosa ,o urso decidido … …. a qualquer
coisa , iria tentar voltar para a casa abandonada, … ...mas não,….o urso de repente flete as patas
traseiras e em posição sentada emite um som assustador simbiose de revolta e desespero, a hiena
circula à sua volta acabando por se chegar ao “CULHAMBANA”encostando o focinho ao seu
pescoço,aí se mantendo por minutos. Os responsáveis pela captura vão-se aproximando com as
redes. O urso levanta-se e com passada larga inicia um percurso que o leva a um conjunto de
árvores,a hiena segue-o e tenta demovê-lo de alguma coisa .
O nosso “CULHAMBANA” pára junto a uma dessas árvores cuja espécie desconhecemos ,e
começa a escolher bagas com alguma sofreguidão ,esperamos pelo ritual da dança,vemos apenas a
hiena também a começar a comer as bagas que o urso vai retirando da árvore.
Os indivíduos avançam, preparam as redes,falam uns com os outros ,até que lentamente o urso
começa a cair , a hiena em seu redor solta gritos “arrepiantes”à medida que o seu “companheiro”
tomba completamente, acabando ela por cair também com a cabeça em cima do seu dorso.
A nossa colega, mais sensível, está visivelmente transtornada,aproxima-se deles, estão mortos,as
bagas eram venenosas.
Retirámo-nos do local, agora é que é ….ADEUS “CULHAMBANA”, ADEUS HIENA,UM
ABRAÇO “CULHAMBANA “… …. nunca te esqueceremos.
“O CANGURU”

Este herbívoro Proliferante nas planícies australianas ,destaca-se em particular pelo modo como
percorre o espaço , saltando em vez de correr. Ainda hoje permanece o mistério sobre o porquê
desta utilização das patas . Pode-se conjeturar que facilita o transporte das crias,redobrando a
segurança com a posição ereta .
O poder das suas patas dianteiras é enorme ,aliado a uma musculosa cauda que lhe proporciona
um equilíbrio suplementar .
O canguru consegue atingir velocidades de 70 km hora e saltar até 3 metros de altura .
A forma de reprodução deste marsupial é através da fecundação de ovo. Este, ainda contido numa
casca vestigial possui uma pequena quantidade de gema que desce do ovário para o útero.
Normalmente nasce uma cria de cada vez . A viagem do neonato até à bolsa dura cerca de 3 mn,aí
agarra-se a uma das quatro tetas,ficando o ciclo sexual da mãe apto para o recomeço e outro ovo
virá a ser fecundado. O processo de reprodução dos marsupiais é dos mais desenvolvidos da história
dos mamíferos.
A sua grande dificuldade reside no precoce desgaste dos dentes,comum entre muitos
herbívoros ,neste caso as gramíneas que nascem na AUSTRÁLIA Central são rijas e ao mastigarem
para facilitar a digestão , a sua pouca maleabilidade dentária ,ligada ao facto das raízes dos dentes
não serem abertas leva a um desgaste rápido dos mesmos .
Para contrariar tal desiderato ,nos últimos anos os cangurus vêm recorrendo à chamada “fast-food”
em especial “hambúrguers” de que são especiais apreciadores.
A necessidade de troca deste produto por dinheiro leva os cangurus muitas vezes a praticarem
pequenos assaltos a transeuntes curiosos da vida animal. São normalmente bem sucedidos dada a
rapidez com que executam tal ação. Ao acercarem-se dos humanos , de passagem dão um salto ,e na
trajetória ascendente sacam a bolsa dos mesmos tirando o dinheiro ou outros valores,devolvendo a
bolsa no regresso ao solo. Esta manobra é vista pelos lesados como uma paródia ou brincadeira
raramente se dando conta da falta dos pertences.
Chegam a degustar 50 ou 60 hambúrguers por dia . Estes jovens adultos cangurus no entanto têm
vindo gradualmente a sofrer de obesidade mórbida ,resultante da ingestão de tanta gordura e
proteína .A amplitude dos seus saltos é cada vez menor ,muitos hoje em dia saltam o máximo 2 ou 3
cm e sempre com a ajuda de um médico , que durante o salto lhes vai facultando suplementos
vitaminicos, e por vezes substâncias dopantes para eles completarem o salto.
“O MORCEGO”

Se você ficar silencioso e imóvel,numa qualquer floresta corre o risco de ser visitado por um bizarro
animal que decerto já ouviu falar e que a zoologia catalogou de morcego, até sendo a sua
capacidade de voo conotada com a de um longínquo antepassado,o galeopiteco.
Os morcegos caracterizam-se por várias modificações a reduzir o peso existente nas aves,a fim de
facilitar o seu hábil voo.
Sendo animais exclusivamente noturnos, desenvolvem um sistema de navegação baseado em ultra-
sons,resultando uma forma bastante sofisticada de localização por meio de eco muito semelhante à
de um radar. As suas orelhas são bastante elaboradas para deteção de ecos provenientes de presas
dando suporte ao seu regime de cadeia alimentar.
Sobre o morcego recai um enigma ,uma incógnita até hoje longe de ser desvendada,resvalando para
um vai-vem , de facto e ilusão. Ele reivindica para si a primeira viagem à lua em meados do sec.xv.
Alega que à data,não havendo máquina fotográfica é impossível sustentar a coisa com imagens .
A única prova de que é detentor, são alguns pastéis de feijão e umas chouriças que assegura serem
daquela região.

“O PAPAGAIO”

A vegetação de montanhas europeias é bastante variável devido a múltiplos fatores .


Os motivos desta variação prendem-se sobretudo com a orientação das vertentes para sul. Sendo o
ar mais quente ,as árvores são mais altas devido à captação de mais energia.
É nesta tupografia vegetal que encontramos o papagaio europeu ,oriundo de zonas tropicais ,mas
aqui sediado em consequência de uma boleia que apanhou duma lufada de ar fresco.
A sua capacidade de reproduzir sons e falas dos humanos já é famosa . Alguns papagaios emitem
literalmente aquilo que ouvem,outros mais polidos ,possuem uma espécie de filtro que os leva a
alguma contenção na reprodução de falas.
É neste contexto que transcrevemos uma conversa entre dois papagaios que após longa temporada
a viver e a conviver com uma família de humanos, estão de volta à floresta. Este registo é possível
após termos colocado um gravador na árvore, que sabíamos, ser a habitada pelos bichos .
Cada papagaio reproduz à vez as falas dos humanos com quem eles conviveram:

P1-Já chegaste querido?! Olha que hoje temos de pôr a mesa , a criada está doente,ligou-me ainda
estava na praia … e tu, foste viajar?
P2-Estive a jogar golfe e...tenho novidades ,amor…! Já sei pegar no taco.
P1-Muito bem amor ...muito bem ,e só começaste há oito anos,olha os nossos filhos estão na
piscina,toca aí no botão e vamos pôr a mesa , eu ajudo-te.
P2-Vou só tomar o duche, a que horas chega a avioneta?
P1-Às onze, eu avisei que se chegassem atrasados outra vez mudávamos de restaurante.
P2-Lá está.
P1-Mamã ,mamã o Bernardo chamou-me gorda!
P2-Bernardo,Bernardo,vá sentem-se que o papá vem já.
P1-Sento-me onde mamã?
P2-No lugar do pai, e quando ele chegar, levantas-te e trocas com o Bernardo.
P1-Porquê mamã?
P2-Estás gorda.
P1-Lá está , o Bernardo tinha razão ,olha vem aí o pai.
P2- Está muito boa a comida,as bebidas chegaram ao meio-dia,o piloto era cá um….,pronto era
bonito,a vizinha aquela que é sagitário, vinha a chegar com o filho.
P1-É da minha idade, não é mãe?
P2-É filha,olha querido,tens de falar com o marido,sabes que quando está vento e estão ali naquilo,
ai …. naquilo...ai ,na equitação,é isso,vem um bocadinho de cheiro.
P1-Lá está.
P2-Lá está ,lá está,agora só sabem dizer isso,lá está o quê?
P1-Mas …,querida ,agora usa-se muito.
P2-Eu sei, também já ouvi,mas toda a gente diz e nós somos diferentes ,ou já te esqueceste quem
somos?!
P1-Pronto querida, já não está.
P2-Está está … o cheiro está.
P1-Mas querida , ainda é longe ,fica por detrás do campo de ténis deles.
P2-Não interessa, vem cheiro.
P1- Mamã ,mamã ,a piscina deles não é aquecida,… ouvi dizer.
P2-Ai minha rica filha...não me digas… para o ano tu e o filho deles vão para o mesmo colégio,não
te quero perto dele …,aquilo é que é miséria.
P1-Lá está , ai desculpa já não está ,olha como as aparências enganam, nunca pensei que não
tivessem aquecimento,gente desta,já viste … mas eu continuo a cumprimentar o doutor,temos de
saber perdoar e ser condescendentes … tás muito calado Bernardo , o que se passa?
P2-Nada papá, hoje estive na piscina de 50 metros a ver se a atravessava de um lado ao outro.
P1-E conseguiste filho?
P2-Quase, o pior foi quando deixei de ter pé , a mana teve de me atirar a boia.
P1-Não te rales Bernardo, ainda só tens 19 anos, tens muito tempo.
P2-Obrigado mamã.
P1-Olhem...sabem ,hoje meti os óculos escuros e dei uma volta no hipermercado, e sabem quem lá
vi?
P2-Não.
P1- Adivinhem...sabem, aquele casal que está desempregado,têm um filho,ali ao fundo,um portão
amarelo,têm lá sempre um cão,tão a ver não estão?Ela não me viu e ainda bem,então não é que
estava a comprar comida! E comprou carne e peixe. É preciso não terem vergonha , desempregados
e a comprar comida , que descaramento.
P2-Mas eles têm de comer não é mamã?.
P1-Minha rica filha ,as coisas não são assim,ainda és muito nova ,eles estão desempregados ,têm de
esperar pela nossas ações de caridade,é para isso que cá estamos , nós e as outras famílias
importantes,eu tenho impressão que ela até levava chicharro !!!,e fresco. Então quando vi uma
garoupa no saco, fiquei tão enervada que me vim logo embora.
P2-Parece o fim do mundo, não te rales querida , temos de estar preparados para estas afrontas.
P1-Mamã ,posso levantar-me ? Tenho de ir ao wc.
P2-Podes Bernardo, e hoje como estás cansado ,para não teres de subir as escadas,podes utilizar a
casa de banho do pai,e toma duche rápido , ainda estamos a meio do almoço.
P1-Obrigado mamã.
P2-Mamã !?
P1-Diz minha rica filha .
P2-A criada uma vez foi ao wc e não tomou duche .
P1-Pode ...sei lá ,ter ido lavar as mãos !
P2-Não,não , eu ouvi o autoclismo,eu ouvi.
P1-Que horror, não entra nesta casa nem mais um minuto,querido depois trata disso,que dia uf!
ainda dizem que os ricos não têm problemas.
P2-Estava a brincar mamã ela tomou duche.
P1-Ai que alívio ,não voltes a fazer isso rica filha.
P2-E eu gosto muito dela , nos meus anos ofereceu-me aquele casaco , o azul, aquele que tem oito
telemóveis , quatro em cada manga .
P1-Eu sei filha ,já aqui temos o Bernardo, e tu marido,estás muito pensativo,também apanhás-te um
susto por causa da empregada ?
P2-Não,nada disso estava a lembrar-me da ópera de ontem…, no final do primeiro ato já havia
pessoas a chorar,foi incrível ,qualquer dia vais comigo querida.
P1-Não sei,não sei,acaba sempre tão tarde ,e lembro-me sempre que na nossa lua de mel leváste-me
à ópera e aquela senhora tossiu pelo menos duas vezes , recordas-te que andei seis meses num
psicólogo.
P2-Sim sim querida, desculpa.
P1-Bem ,meus queridos ,vamos acabar de comer ,daqui a pouco são horas do café
P2-Mamã ,mamã , o Bernardo estava a comer com a mão.
P1-BERNARDO BARRACA ,já para o duche.
P2-Querida ,ele está muito cansado ,ia fazendo uma piscina , vai só lavar as mãos, tá amor.
P1-Tudo bem mas que não volte a acontecer,e vai rápido.
P2-Mamã ,porque é nós temos BARRACA no nome?
P1-Minha rica filha , BARRACA é dos apelidos mais ilustres ,nós os BARRACA descendemos das
famílias mais importantes da EUROPA.Havia uma rainha que tinha o nosso nome e até gente das
cantigas, da música , usa o nome em nossa homenagem, como por ex: «OS BARRACA SÃO
SISTEMA» que são muito conhecidos ,e na escola o teu irmão é visto como um “rei”, não é
verdade BERNARDO? . Senta-te e responde .
P2-É verdade mamã, brincam muito comigo, nas aulas estão sempre a dizer BERNARDO …
BARRACA.
P1-E tu filho ? Agradeces não é verdade?
P2-Sim sim, e vou para debaixo da secretária .
P1-Viste rica filha ?E depois fazem-te vénias não é BERNARDO?
P2-Isso não sei ,mas mandam-me sempre um osso.
P1-Não quero isso BERNARDO , não quero isso , e que não volte a acontecer senão tenho de ir lá
ao colégio, a partir de agora sempre que te atirarem um osso, pagas o osso,nós os BARRACA não
queremos nada grátis. E a professora o que é que diz ?
P2-Nada , vem ao pé de mim e faz-me uma festa .
P1-Viste rica filha ,como os “BARRACA” são estimados, bem, está na hora do café , o helicóptero
está a chegar ,querido desvia aí essa terrina para eles descerem o tabuleiro à vontade.

A gravação áudio desta conversa foi aqui interrompida, sendo apenas audível um barulho de fundo
que corta aqui o registo da mesma .
Tivemos alguma dificuldade em retirar o equipamento da árvore que serve novamente de habitat
aos papagaios.
É grande a azáfama , já que a árvore se encontra em obras de remodelação e restauro ,e os
papagaios com as mesadas recebidas durante a estada em casa dos “BARRACA”,compraram um
helicóptero abdicando completamente das asas para voar.
«O ELEFANTE»

Não sendo uma equipa de zoólogos , tentamos retratar com alguma minúcia as caraterísticas do
maior numero possível de espécies animal, tendo em conta também a sua evolução.
Longe de nos obstinar qualquer espécie em particular ,é nesse contexto que num período de algum
abrandamento nessa busca e em plena savana africana , nos deparamos com um imponente
elefante adulto,que numa passada larga , quase em corrida, se dirige não sabemos para onde.
Pouco se importando com a nossa presença,embrenha-se durante vários quilómetros por zonas que
se nos afiguram terem sido pouco exploradas pelo homem. Por enquanto seguimo-lo , a nossa
curiosidade aumenta com a perspetiva de mais uma odisseia no mundo animal.
O elefante não parece perdido, ao contrário da nossa equipa que perdeu o norte e apenas segue as
pisadas do animal. Numa das poucas paragens que faz vemo-lo ingerir grandes quantidades de
folhas , ramos fibrosos, e muito fruto silvestre o que apoia o facto da sua alimentação ser tão cheia
de matéria muito lenhosa que lhe dificulta o processo digestivo. Neste caso a sua previsível longa
viagem atenuará o dano.
Estamos à saída da zona arborizada e iniciamos um percurso onde a vegetação é cada vez mais
escassa.
O nosso amigo continua na sua passada larga e decidida que nos leva cada vez mais àquilo que
podemos começar a chamar “deserto”, a água que transportamos parece-nos suficiente, estamos
longe de tudo e perto do nada .
À medida que nos internamos neste lugar,cada vez mais o horizonte parece longínquo .Já
percorremos por mais que uma vez os maiores desertos do planeta , arriscamos a dizer que nós e o
elefante , podemos ser os primeiros animais terrestres a percorrerem este lugar. É puramente
árido,um cenário com que não tínhamos sonhado ainda.
A contagem da carrinha indica 430 km após entrarmos neste sítio desértico , o elefante não indicia
sinais de cansaço,alardeando até alguma faustosidade na sua passada.
Até onde nos levará este imponente mamífero?A presença de alguns abutres inquieta-nos ,estamos
sem rádio ,por isso este ruído de fundo não provém daí e começa a intrigar-nos. O elefante continua
e o barulho está cada vez mais próximo. O elefante sempre estugando o passo, eleva a sua longa
tromba e solta o seu som de trombeta rejubilando não sabemos com o quê.
Aquele som está cada vez mais presente quase como se um grande grupo de insetos se aproximasse.
Ao longe, ainda bem longe , avistamos algo que parece provar que há mais vida neste local.
Apetece-nos ultrapassar o elefante ,mas começamos isso sim a ter algumas cautelas, não sabemos
o que nos espera . Agora sim podemos ver aquilo a que podemos chamar um templo, um ultra
templo ou mega-estádio devido à sua grande dimensão.
Paramos por momentos , o elefante segue a sua viagem, saímos da carrinha e com a utilização da
objetiva binocular vamos observando em torno daquele lugar,milhares e milhares de animais em
movimento,alguns de espécies conhecidas , outros nem por isso.
Apróximamos-nos a pé e com redobradas cautelas...é mesmo um Estádio… enorme ,perfazendo
6 a 8 dos de maior dimensão .
Tentamos saber o que ali se passa,decerto já se aperceberam da nossa presença, mas por enquanto
não parecemos incomodar,ainda estamos longe e só entrando naquele Estádio saberemos o que está
a acontecer. Por sugestão de um dos elementos da equipa resolvemos adotar uma posição que se
assemelhe com algum animal e decidimos que a do cão seria a melhor, o animal que nos é mais
familiar.
É desta forma atípica que nos vamos aproximando do local, não vos vamos descrever tudo o que
vamos observando, o nosso foco é a entrada no Estádio.
Estamos já perto de nos rodearmos de milhares de animais de várias espécies , algumas ,pelo que
reparamos , já dadas como extintas.
Acercamo-nos das imediações do Estádio,perdemos qualquer rasto do elefante, dirigimo-nos a uma
das entradas, o movimento de alguns animais é também para lá, até agora não houve problema,
apenas dois cães se aproximam da única mulher da nossa equipa e farejam à volta dela , com maior
incidência no rabo. O nosso câmera, seu companheiro, emite um potente rosnar que até a mim me
assusta , os cães afastam-se.
As entradas são compostas por uma espécie de torniquetes ,estamos preocupados com a forma de
pagamento, rapidamente constatamos que há várias moedas a serem utilizadas entre as quais o
euro. O preço da entrada parece ser bastante flexível, já que à medida que entram, os animais
apenas largam das patas um monte de notas e moedas. Fazemos o mesmo acomodando nas mãos
uma boa quantidade e largamos à entrada para dentro de um enorme pote de pedra , e cá estamos
dentro do Estádio.
Teríamos muito para descrever, daria muitas páginas,inclusive as muitas sensações que nos invadem
porque isto é de facto inexplicável e indescritível , visto agora por dentro suplanta o expectável.
Estarão mais de 500.000 animais a tentarem acomodar-se da melhor maneira possível , nestas
bancadas feitas ,aliás como o próprio Estádio , de pedra e barro.
De forma nenhuma estamos a ser incomodados , os animais procuram de forma civilizada , apenas
um pouco ansiosa, e algo desenfreada, arranjar lugar.
Nós na nossa posição canídea ,procuramos o mesmo, tentando ao mesmo tempo perceber o que se
está a passar lá em baixo, sendo visível um grande espaço circundante a uma zona de relva , tal e
qual um Estádio desportivo, um enorme campo e uma colossal pista de atletismo.
Só com binóculos conseguimos ver o que se está a passar na zona oposta à nossa ,é quase surreal
o que estamos a testemunhar, a nossa posição , os animais à nossa volta com sacos às costas, e
nós ,claro que também trouxemos o nosso farnel.
Ficamos ladeados por uma família de babuínos e um casal de coalas que parece estar a dormir.
Apesar de tudo isto, é impossível dar uma ideia do ruído e entusiasmo presentes neste mega-estádio
Nalgumas estruturas,desenhos e no posicionamento de alguns dos animais,descreveríamos este
acontecimento como «OS JOGOS OLÍMPICOS DA ERA ANIMAL» e o que sugere alguma
movimentação, é que a prova de 10.000 metros está prestes a iniciar-se.
Com o recurso aos binóculos, tentamos concretizar essa ideia, vemos uma concentração de animais
a meio da pista, é difícil contabilizá-los talvez uns 400 ou 500,por aí. Neste momento somos
interpelados por um leão e um pelicano , trazem um cartão pendurado ao pescoço,devem ser da
organização. Educadamente o pelicano, com o bico aponta para os binóculos ,instintivamente a
nossa colega mete os binóculos na boca , dando a ideia de ser um osso, o leão e o pelicano parecem
satisfeitos e afastam-se com uma pequena vénia.
A prova de 10.000 metros está quase a iniciar-se ,calculamos que seja a mais importante deste
evento,por tudo o que a envolve.
Surpresa ou talvez não ,o nosso câmera, com o recurso ao seu olho de lince ,consegue descortinar o
elefante na zona de partida , entendemos agora aquela viagem.
Tentaremos fazer um retrato da corrida ,na zona de partida passa-se algo com uma galinha ,um
pequeno impasse com algum nervosismo à mistura .A galinha dá mostras de querer participar,apesar
de ser um animal com asas ,o que não deve ser permitido.
Dirigi-se a um grupo de corvos que representarão o júri , e atira com a camisola ao chão dando-lhe
bicadas ao mesmo tempo que executa pequenos voos e tenta demover os corvos.
Uma vaca aproxima-se com uma fita métrica e mede o espaço percorrido pela galinha no ar,parece
tudo bem ,ela vai para o local de partida.
O meu colega motorista faz-me sinal na direção de dezenas de macacos suspensos nuns cabos que
atravessam o estádio de um lado ao outro a mais de 50 metros do solo. Com a agilidade que os
carateriza vão percorrendo o perímetro da pista , o que lhes permite ter um controle mais eficaz da
corrida atuando como uma espécie de árbitros.
Os atletas estão quase a iniciar a corrida , alguns executam os últimos exercícios de aquecimento.
A nossa posição canídea é cada vez mais desconfortável,tentamos assistir a esta prova e iremos
embora, se entretanto não formos descobertos.
Podem ver-se lá em baixo o camelo, a toupeira, o coelho, a lesma , o búfalo -anão , a cobra, uma
cabra que tenta mudar de camisola, a preguiça, entre outros.
É com uma espécie de tambor que vai ser dado o sinal de partida , e aí está o som do mesmo, e
os atletas partem, o pó que largam não nos permite neste início uma boa visão,esta reta deve ter
perto de 400 metros até chegar à primeira curva, entretanto a nuvem de pó vai-se dissipando.
Aqui na bancada um outro cão vai-se aproximando da nossa colega de forma mais resoluta e
atrevida, ela dá-lhe os binóculos e o cão desaparece com eles não sabemos para que fim.
Lá em baixo são visíveis cerca de 50 atletas na frente da corrida ,quase em linha como que se
estudando uns aos outros , na cauda da corrida outro grupo se vai formando,sendo possível verem-
se , por exemplo a formiga ,surpreendentemente o antílope ,a alforreca parece desidratada e fora da
sua praia , uma aranha também se atrasa, lado a lado com um camaleão.
Na frente a zebra e o urso-branco-de lunetas destacam-se um pouco, aliás também se vislumbra o
pescoço de uma girafa mais adiantado,o tigre mais atrás no meio de uma centena de atletas parece
controlar a corrida .
Na retaguarda outros descolam,entre os quais o crocodilo cuja camisola já se encontra quase
desfeita .
Uma volta está quase a ser cumprida e a bicharada que na bancada assiste , está ao rubro, o barulho
é ensurdecedor .Rodeamos a nossa colega para ela esticar as pernas, os babuínos estão eufóricos,
não desviam o olhar da prova .
Começa a haver uma clara supremacia de 200 atletas na frente da corrida , registo o cuidado dos
atletas em guardar um espaço de segurança entre eles evitando contactos que podem favorecer mais
uns do que outros. A separar o grupo da frente dos que vão ficando para trás,talvez esteja formado
o maior contingente de atletas,sendo visíveis a vaca , um sapo,um escorpião gigante que parece
ferido numa pata, a raposa demasiado musculada para este tipo de prova ,a avestruz tenta manter-se
neste grupo , um babuíno tem uma queda e pelo nervosismo dos nossos vizinhos deverá ser familiar
deles ,levanta-se, volta a pôr o boné,será difícil recuperar.
Dependurados os macacos continuam o seu trabalho de supervisionar a corrida,tendo alguns deles a
missão de atirar água através de pinhas que seguram nas mãos,criando um género de chuveiro em
algumas zonas da pista.Muitos passam por esses chuveiros ,sobressaindo o porco que pára para se
refrescar dando a ideia de que vai desistir, abana o focinho,atira os óculos para a bancada mandando
beijinhos , caindo exausto já fora da pista. Muitas famílias de suínos , nas bancadas , parecem
desiludidas , supomos que havia grandes expetativas na performance do porco.
Estamos a meio da prova, um pouco mais até, já que estão quase a atingir os 6 km, estou farto de
escrever, ainda por cima nesta posição.
É mostrado um cartão amarelo a um gafanhoto,talvez tenha utilizado em excesso a sua capacidade
de salto. Os mostradores destes cartões atuam como colégio de juízes de pista,este colégio é
composto por cucos que vão recebendo informações dos macacos colocados no plano superior do
Estádio.
Voltando à corrida , a frente começa a definir-se, o urso- branco-de lunetas, a zebra , o elefante,sim,
esse, o nosso guia, e, imaginem , a fechar este quarteto mais adiantado, um rato,um ratinho dois
metros mais atrás, a camisola quase que o tapa na totalidade, só se vê a cabeça.
À medida que se aproxima o final da corrida o entusiasmo nas bancadas é demolidor para qualquer
tímpano e numa zona quase só de gatos é possível verem-se cartazes de apoio ao pequeno rato e
alguns têm escrito«Dá-me a tua ratinha», e o ratinho lá continua não descolando dos outros três
oponentes .
O nosso amigo elefante toma a dianteira da prova ,logo seguido da zebra e do urso-branco-de-
lunetas que encosta um pouco à direita para se refrescar no chuveirinho, o ratinho toma-lhe a
dianteira, a camisola não deve ser uma companhia agradável.
Reparámos à pouco na existência de um espaço reservado ao salto em comprimento e no topo do
estádio,dentro do relvado, o equipamento próprio para o salto em altura , local onde passam agora
os quatro da frente, com a zebra desta feita a comandar.
Com a emoção há animais a desmaiar a uma dezena de metros do local onde estamos, um cuco
levanta uma cana , sinal de que estamos a entrar na última volta .
Também entusiasmados , como é óbvio , torcemos pelo elefante, repartindo a simpatia por este
fabuloso ratinho, que começa a ter imensos apoiantes nas bancadas.
Os atletas que estão na iminência de serem dobrados, considerando 30 , 40 metros para que tal
aconteça, abandonam a pista , começando pelo rinoceronte , o canguru já muito cansado, o coiote,
o ganso e a galinha que mais uma vez protesta , não sabemos com o quê, despe a camisola , e
deixa-a dentro da pista sendo rapidamente retirada por um cuco.
Faltarão cerca de 1200 metros para o final, numa recuperação espantosa um antílope aproxima-se
do grupo da frente , embora nos pareça difícil encostar,mais atrás um leão tenta pelo menos chegar-
se ao antílope .
A nossa colega que ficou sem os binóculos tenta comunicar algo …,não consigo ouvir, o barulho
dos mais de 500 mil animais é permanente assim como o seu entusiasmo.
Os quatro da frente estão agora na curva que antecede a reta da meta acima da qual estamos
instalados, a zebra na frente , o ratinho fecha o grupo.
O urso-branco-de-lunetas olha amiúde para trás não sabemos se o número de medalhados é o
mesmo que existe nas competições dos humanos, no entanto o ratinho é dos que parece em maiores
dificuldades,descola por momentos, mas consegue voltar ao grupo, a zebra tenta destacar-se nesta
parte final, o nosso elefante tenta por dentro ultrapassar o urso-branco-de-lunetas, este não lhe dá a
corda,quase que houve contacto ,começam a medir-se,jogando tudo nas eventuais fraquezas dos
adversários. O ratinho não sai da ultima posição,mas aguenta-se,devem faltar pouco mais de
400m, o elefante arranca decidido, ultrapassa a zebra, o urso-branco – de – lunetas fica com o
ratinho mais para trás, a zebra não desiste e encosta ao elefante que parece agora quebrar um pouco,
sendo ultrapassado pelo urso-branco-de lunetas,dez metros mais atrás, o rato, como se ganhasse
nova vida, ultrapassa o elefante e tenta chegar ao duo da frente, o elefante em desespero ainda vai
tentar a aproximação,o ratinho já está nos calcanhares do urso-branco-de- lunetas e da zebra , porém
o nosso elefante num ultimo fôlego consegue uma aceleração e aproxima-se quase em forma de
galope, do trio da frente e parece no trilho da vitória , ganha posição entre o urso e o ratinho e vai
mesmo ultrapassar a zebra , quando algo acontece…!, a camisola branca do ratinho fica imóvel na
pista, há um “bruá”enorme no estádio apoiado em gritos alucinantes e arrepiantes. O ratinho foi
pisado por uma pata traseira do elefante, que surpreendentemente pára como que desistindo… …,
para surpresa geral, volta para trás e com a tromba remexe a camisola do ratinho.
Como que por milagre , o ratinho sai debaixo da camisola e com uma das patinhas dianteiras
completamente esmagada, reentra na corrida, fazendo-o de forma mais veloz do que nunca, e vai no
encalço da zebra e do urso-branco-de lunetas . Faltam 200 metros,separam-no da frente 30 metros,
acelera, é difícil, todo o Estádio incentiva , faltam 50 ou menos metros, a zebra está na frente, o urso
segue-a , o ratinho está próximo,mas não vai conseguir, vai,vai,vai,vai, gritámos nós como que
possuídos, e em cima da meta, por fora ,o ratinho ganha a corrida. Fantástico,fantástico , gritámos
os quatro como se também tivéssemos ganho, ao mesmo tempo que saltamos , esquecendo por
momentos a posição canídea .
Na pista, um curioso apontamento, o elefante aproxima-se do ratinho com a sua camisola pendurada
na tromba e eleva-o por momentos, o ratinho é também assediado e cumprimentado por outros
animais ,tornando este final épico.
Pensámos sair do Estádio logo após o final da prova , no entanto ficamos mais um tempinho para
ver e analisar este estado de graça do vencedor improvável.
Há um pódio já preparado para a entrega , supomos de alguma distinção, o ratinho , já com a pata
devidamente ligada,dirige-se para lá, podemos ver ali por perto uma rata loura ,elegantíssima , com
dois ratinhos pela pata, apostaríamos que é a esposa com os filhotes .
No pódio já se encontram, a zebra e o urso-branco-de-lunetas que dão uma ajuda ao rato, que tem
alguma dificuldade em subir. Aproxima-se um leão já de idade avançada que após os cumprimentos
da praxe , entrega a cada um as respetivas medalhas , ao ratinho entrega-lhe também, pendurando-o
ao pescoço, um queijo, que quase o faz cair do pódio.
Entoa-se agora o hino que por ser cantado por todos os animais , deduzimos ser o hino destes
“JOGOS OLÍMPICOS DA ERA ANIMAL”
E nós aproveitamos para ir saindo do Estádio com gratas e saudosas recordações desta inesquecível
experiência .

“O POMBO”

Duas semanas se passaram desde o inicio desta período de férias que levou cada elemento da nossa
equipa a reencontrar-se com a sua família , escoar emoções acumuladas e reabsorver energias.
Sendo nós já uma família , é com alegria que nos revemos , fazendo o ponto da situação e
perspetivando nova incursão no mundo animal com o profissionalismo que nos tem norteado.
Após o reencontro começamos a traçar objetivos , o primeiro dos quais , o local do planeta , a
espécie e o habitat que se poderão cruzar connosco .
Embrenhados nesta estratégia , por pouco não nos apercebíamos de um pombo que pousou no taipal
da nossa carrinha. Encostámos, esperando a atitude do pombo, a nossa colega estende-lhe a mão e o
pombo dá um pequeno voo pousando-lhe no ombro, para nossa surpresa não transporta anilha e
identificamos uma fêmea , parece abatida e triste.
O Homem ao longo dos séculos deixou que alguns animais se envolvessem no seu ambiente,fosse
por interesse(caça de parasitas),habituação, e, ou, o pacifismo que esses animais transportam.
É o caso do pombo, uma espécie semi-protegida pelo Homem, porém alinhado numa fronteira
sempre ténue entre o pombo bravo e o manso. Neste caso a questão não será essa , mas sim o
porquê da aproximação inusitada da pomba.
Apresenta-se cabisbaixa, revelando também algum incómodo , a nossa experiência com animais
contudo, não nos permite sequer palpitar sobre o porquê do seu estado, tentamos arranjar uma
solução, e a dica meio a sério meio a brincar dada pelo nosso motorista até faz algum sentido.
A linguagem da pomba só seria decifrada por alguém que falasse, ou pelo menos arranhasse o
idioma .Ele lembrou-se dos papagaios,os tais que estiveram em casa dos “BARRACA”.
Não pensámos duas vezes, o comportamento da pomba inquietava-nos,pusemo-nos ao
caminho,num cálculo estimado, 2.000km separavam-nos da floresta onde os papagaios se
radicaram, esperamos nós .
É algo remota a hipótese da pomba entretanto tomar algum rumo,já que cada vez mais se
familiariza connosco,embora sempre com um ar apreensivo,vamos repartindo a comida com ela ,e à
falta de milho, existe o pão. Durante a viagem tentaremos numa ou outra povoação, arranjar uma
boa porção de milho.
Começa a chover , puxamos a capota da carrinha e aproveitamos para descansar, amanhã teremos
de fazer um desvio e atender às necessidades de manutenção da mesma e aproveitamos para
comprar o milho para a pomba .
São 4.20 da manhã, o casal aproveitou para montar a tenda aqui ao lado, sempre se dorme melhor ,
o nosso homem- volante estica-se no banco da frente e eu no de trás , a pomba está por aqui.
Vou acordando lentamente o pessoal ao mesmo tempo que estendo uma toalha no chão meio-
molhado para comermos qualquer coisa , já que por agora parou de chover, a pomba executa um
pequeno voo ,ficamos expetantes , mas regressa rapidamente.
Fazemo-nos à estrada , o sol brilha ,esperamos que não chova tão depressa ,entramos numa
localidade, procuramos uma oficina vamos ter de esperar algum tempo.
De regresso à estrada , bastantes km nos separam da floresta dos papagaios , começo a pensar na
forma de lhes dizer quem somos e ao que viemos , temos de lhes contar das gravações na árvore e
esperar a sua reação, até lá a viagem vai decorrendo sem grandes sobressaltos.
O mapa não enganou,estamos a entrar nesta imensa floresta que já percorremos palmo a palmo. Á
medida que nos internamos saudamos com o olhar as várias colónias de animais aqui sediadas.
É visível ao longe a árvore dos papagaios , alguns troncos estão pintados , só agora nos é possível
vê-la depois das obras. A folhagem na árvore é escassa , soltamos um suspiro de alívio ao
visionarmos a cauda do helicóptero , não viemos em vão, a pomba mostra-se um pouco nervosa
com o aparato. Paramos a uns dez metros da árvore , para nosso espanto uma escada faz parte da
nova estrutura da árvore .Buzinamos , e logo várias aves por aqui dispersas dão sinal, buzinamos
mais uma vez ,e lá aparece naquele espécie de varandim um dos papagaios .
Está gordo ...muito gordo , não pesa menos de vinte quilos, dissemos quem éramos e ao que
vínhamos , queixa-se da vida , que mal consegue subir a escada, e que a inflação está alta .
Acenamos-lhe com um maço de notas, concordou então em termos uma conversa com a pomba ,
diz que vai chamar o outro papagaio que está a dormir, dado ter chegado de férias, e é ele que pilota
o helicóptero. Esperamos então até aparecer o outro papagaio, está igualmente gordíssimo, aparece
com uma toalha na cabeça e de óculos escuros defendendo-se da agressividade do sol.
Convidam-nos para subir, a pomba repousa no ombro amigo da colega , subimos , não vamos
descrever toda a opulência desta árvore , apenas realçar que há há vários lugares para
assento,devem ter muita visita de humanos , mas isso não nos interessa.
Fazemos o ponto da situação em relação à pomba ,queremos que eles estabeleçam o diálogo com
ela a fim de tentarmos perceber o porquê da sua tristeza.
Um dos papagaios faz as perguntas o outro faz a tradução em simultâneo :
PAP.- Vamos lá a ver o que tem a pombinha , estás triste porquê cachopa?
A pomba não esboça qualquer tipo de reação , os papagaios têm o dinheiro,querem desistir,
insistimos de forma rude ,mas assertiva .Ele continuou.
PAP-Vá lá não sejas parva ,estamos aqui para ajudar!
POM-O meu marido está preso,levaram-no,estou só .
PAP-Preso!? Mas preso porquê?
POM-Não sei, nem ele sabe … coitadinho.
A pomba desata num pranto.
Perante esta resposta , os papagaios deram o seu trabalho por terminado e querem que saiamos , não
querem sarilhos. A nossa equipa porém está determinada, prometemos aos papagaios mais uma boa
quantia de dinheiro ,que só será entregue no término da missão. Inicialmente relutantes,depois de
falarem entre eles ,acabaram por aceitar.
Tinham de começar por perguntar à pomba onde é que o “marido” está preso, ao fim de dez minutos
lá conseguimos saber o local e a prisão onde o “marido” estava detido.
Restava agora convencer os papagaios a utilizarem o helicóptero ficando a carrinha ali na garagem
deles. Concordaram na condição de ser um deles a comandar o aparelho. Conversámos entre nós,
chegando à conclusão de que se houvesse algum problema , pelo menos a pomba safava-se,esta iria
ser , talvez a nossa maior aventura desde que começámos este périplo pela vida animal.
Não conseguimos disfarçar alguns risos aquando da descida dos papagaios através da escada,ainda
não tinham desfeito as malas das férias , o que lhes facilitou a vida, o nosso câmera , ao descer com
as malas deles, solta uma gargalhada que quase o desequilibra , os papagaios estavam muito
gordos , num deles , quase que não era visível a cana das pernas , desejamos que a pomba perceba
que estamos a tentar fazer alguma coisa por ela.
Questionados os papagaios sobre se o nosso peso com o deles não seria carga a mais, responderam
que já tinham transportado um búfalo para um churrasco e não tinha havido problema .
Levantámos voo e a nossa colega de forma sarcástica pergunta se eles de vez em quando não davam
uso às asas ,soltaram uma gargalhada, o papagaio-piloto denota alguma perícia no manuseamento
dos instrumentos de voo,espera-nos uma viagem de cerca de duas horas até ao centro da Europa.
A nossa colega possui credenciais que nos possibilitam a entrada na prisão,sendo também
indispensável a presença dos nossos amigos papagaios para estabelecerem o contacto com o pombo
que se encontrava detido.
Sobrevoámos o atlântico , o tempo está optimo , a pomba adormeceu,deve estar ansiosa para rever
o seu pombo, o cansaço que acumulou, acabou por traí-la .
Estamos preocupados com o local de aterragem , um dos papagaios irrita-se ,diz que o problema é
nosso, temos os nossos contactos que utilizaremos quando estivermos mais perto, a pomba acorda
meio assustada ,é tranquilizada por nós .Sobre os “BARRACA”os papagaios não quiseram falar,
respeitámos, não insistimos.
Sobrevoamos já a cidade que alberga a prisão de alta segurança onde o pombo se encontra
detido,são feitos os primeiros contactos e estabelece-se que aterraremos dentro do perímetro da
cadeia .
Tomamos conhecimento de que o pombo se encontra detido numa cela individual,o papagaio inicia
a descida do helicóptero , a zona vê-se que está isolada e na área circundante nota-se a
movimentação de outros presos .
Como é natural somos revistados à entrada e começam a ouvir-se algumas gargalhadas provocadas
pela presença dos papagaios ,que vêm as suas malas serem alvo de revista, sendo-nos questionado
do porquê de tanta bagagem, respondemos que ficaríamos na cidade até vermos esclarecida toda
esta situação do pombo.
O nosso câmera ,entretanto dirige-se para fora da cadeia na companhia da rapariga do grupo e sua
companheira , no intuito de irem à delegacia ,obter cópia do acórdão ou outra informação e
documentação que nos permita saber da acusação que pende sobre o pombo.
Dirigimo-nos à cela e reparo que o colega motorista ,trazendo a pomba com ele ,refreia o passo para
que os papagaios nos possam acompanhar , o que não é fácil.
Já estamos na presença do pombo , pedimos a um dos papagaios para traduzir a conversa dos
pombos.
POMBO-Que fazes aqui querida ?
POMBA-Ó meu querido, estás mais magro …,tás pálido, e esse alto !?Bateram-te?
POMBO-Não te preocupes querida, isto resolve-se.
POMBA-Tens-te alimentado?
POMBO-Sim sim ,não vês ali aquela saca de milho!
POMBA-Ah ...sim, e a água ? Como metes o bico na garrafa?
POMBO-Mando-a para o chão e dou-lhe umas bicadas não te preocupes amor.
POMBA-Não sais da cela ?
POMBO-Claro que não, têm medo que dê às asas,aqueles dois são papagaios !? Parecem duas boias
com penas!
Um dos papagaios interrompe com alguma agressividade:
- Vê lá ,ó giraço se queres ficar aqui a falar sozinho.
Interrompemos nós também para amenizar a situação e pedimos ao papagaio sobre, como, e onde
foi detido.
PAP-Onde é que te caçaram ó jeitoso?
POMBO-Vê lá como falas ó pastilha galega, estava a dormitar ali numa zona tranquila, já longe da
cidade ,tava com a minha cachopa ,quando um tipo se aproximou de nós com uma espingarda ,
disse à cachopa para voar para um lado que eu voava para o outro, ela conseguiu escapar,eu fui
apanhado por uma rede que tinham colocado uns metros mais à frente , e aqui estou.
Decidimos ir até ao refeitório e deixar os pombinhos sozinhos ,entretanto os nossos colegas deviam
estar a chegar com informações sobre as alegações e indícios que levaram à detenção do pombo.
A nossa passagem pelo corredor que dá acesso ao refeitório é deveras hilariante, o que irrita os
papagaios ,que acredito, se já tivessem a massa, nos deixavam à nossa sorte.
O papagaio que nós distinguimos pela curva do bico não quer comer nada pede apenas um café,um
guarda informa-nos de que os nossos colegas já chegaram,pagamos a conta e dirigimo-nos para a
sala de espera onde nos vamos encontrar com eles antes de voltarmos à cela , o percurso tem de ser
feito devagar por causa dos papagaios .
A colega mal nos vê entrega-nos os papéis, onde estão descritos os motivos da detenção do pombo,
a colega está com um ar de alguma preocupação. A sua experiência como advogada tinha sido
interrompida há dois anos para integrar a nossa equipa, mas deve conhecer os meandros à volta dos
quais se baseia a suspeita.
E é realmente grave, objetivamente o pombo é suspeito de branqueamento de capitais e fuga ao
fisco. Em silêncio voltamos à cela para dar conhecimento do conteúdo das certidões , e depois
iremos para um hotel retemperar forças.
Pedimos a um dos papagaios que relatasse ao pombo as suspeitas que recaem sobre ele enquanto o
outro informa a pomba .Durante o relato, o pombo e a pomba encolheram várias vezes os ombros
como que dizendo”o que é isso”.
Os papagaios informam-nos que tanto o detido como como a sua companheira não sabem do que se
trata , que têm uma vida tranquila , que só querem milho e amor, a pomba é informada de que
terminou a visita ,tratamos dos papéis para deixarmos o helicóptero dentro do estabelecimento
prisional e após essa formalidade dirigimo-nos de táxi para o hotel,os papagaios vão noutro táxi à
nossa frente.
Ficamos todos no mesmo hotel,os papagaios numa suite de luxo ,nós num quarto normal juntamente
com a pomba . Para os animais ficarem no hotel tivemos de deixar uma caução que será renovada
a cada noite que aqui passarmos .Os próximos dias serão passados entre a delegacia ,
tribunal ,cadeia e hotel. Queremos chegar a uma conclusão sobre o porquê das suspeitas que recaem
sobre o pombo.
A pomba encosta-se à cabeceira da cama onde vão dormir o câmera e a namorada. Está mais
confusa do que nunca , espero que os papagaios na sua suite de luxo não façam disparates,
acreditamos que queiram descansar , tal como nós.
07,20 da manhã, o motorista ressona , o casal ainda dorme , a pomba nem por isso, olha-me
demoradamente , ela não está bem , vou ficar deitado mais um pouco a pensar em tudo isto, no que
nos metemos e o que virá ainda .
É tempo de levantar , aliás pelo que vejo já está tudo acordado ,vou ligar para a suite dos papagaios
como ficou combinado , deixo tocar duas vezes e desligo.
Estamos na sala do restaurante , são horas do pequeno almoço , dos papagaios nem sinal,aí vêm eles
o que é o piloto, à frente, o outro mais atrás resmunga como é habitual.
Abordámos o estado da pomba e concordámos em ir com ela a um psicólogo ,já que cada vez nos
parece mais sorumbática . Conseguimos convencer o taxista a irmos todos no mesmo carro, os
papagaios , apesar do seu volume não deixam de ser duas aves, pedimos ao motorista que nos leve
até a um centro de saúde mental, o conhecimento que temos da cidade não é muito.
Demorámos 50 mn, os papagaios preferem não entrar, o Doutor está a atender uma mosca , a dona
está aqui ao nosso lado,rói as unhas de nervosismo, perguntamos-lhe qual é o problema , diz-nos
que não pára quieta,que parece doida a andar de um lado para o outro,é chamada,levanta-se e vai lá
buscar a sua mosca , voltando a passar por nós com um ar algo preocupado.
Dirijo-me ao médico e explico resumidamente o que se passa com a pomba .Salta à vista a
juventude deste médico , não quer dizer nada ,mas não parece muito experiente ,um pouco
“folgazão” ,até displicente .A colega entra com a pomba e ouço o Doutor”Anda cá ó zarolha ,estás
doentinha da tola?” Não hesito e os meus colegas também não, pegamos na pomba , pagámos e
saímos dali. Realmente a pomba tem um pequeno problema na vista , que a faz semicerrar o olho,
um problema que por pudor ainda não tínhamos referido, o médico tinha sido muito deselegante.
Já na rua reparamos que os papagaios se vão entretendo a mandar bocas aos transeuntes , que não
podem deixar de rir a olhar para estas figuras Aproveitamos para beber um café aqui perto , e à
mesa com os papagaios , não deixamos de comentar a insólita situação da mosca aproveitando eles
para perguntar se os loucos eram eles por terem um helicóptero.
Decidimos ir à delegacia fazer uma investida , tentar saber a matriz das suspeitas em relação ao
pombo. O edifício não fica longe , seguimos a pé , os papagaios não concordam e vão de táxi,
dizemos ao motorista que os deixe junto à porta .A nossa colega interpela um funcionário, teremos
de esperar algum tempo para falar com o delegado.
Passou-se cerca de uma hora , alguém manda a colega entrar e não foi preciso esperar muito, uns
15mn, diz-nos que os indícios são fortes, mas que não lhe disseram devido ao segredo de justiça etc,
O câmera tem uma ideia , se a pomba nos levasse ao local onde normalmente ela e o pombo
pernoitam talvez descobríssemos o que estava a acontecer, falámos com os papagaios que lá
convenceram a pomba a indicar-nos o caminho, ainda é longe pelo que entendemos e o heli
está na cadeia .Alugámos um todo-terreno e pusemo-nos à estrada… ...passámos por várias
povoações ,estamos a entrar numa zona de mato , um dos papagaios diz”alto”. Paramos e seguimos
em fila indiana atrás da pomba que nos leva até uma pequena cabana com cerca de 1 metro.
Munidos de uma lanterna ,vasculhamos com o olhar o seu interior, montículos de palha , um
pequeno objeto de plástico, vemos que é uma embalagem vazia de gelado , e por fim alguns sacos
de milho, que o casal ,na versão da pomba, foi armazenando.
Não conseguimos com estas diligências encontrar algum motivo para a detenção do pombo, a
pomba parece um pouco relutante em seguir connosco,vamos dar uma volta por este local e já
regressamos,os papagaios reclamam, dizem que não é sítio de jeito para eles ,mas acabam por ficar
com a pomba junto á cabana . Pedimos-lhes para a convencerem de que estamos a fazer tudo ao
nosso alcance para os ajudar. Neste forçado passeio, entendemos o porquê desta escolha do casal
para habitar , a vegetação à volta é densa e há um pequeno riacho onde podem matar a sede,
ouvem-se alguns pássaros e pouco mais , voltamos ao ninho e vemos que a pomba está à entrada
junto dos dois artistas que aparentemente começam a mostrar alguma solidariedade para com
ela ,afinal têm coração. Para nossa alegria a pomba está mais animada , já dentro do jeep levanta
voo e deixa-nos apreensivos ,dirige-se para a zona do riacho e volta, foi beber água.
Regressamos ao estabelecimento prisional, esperando que nos concedam mais uma visita ao
pombo, passamos novamente pela cidade e na passagem por uma banca de jornais um dos
papagaios alerta-nos para qualquer coisa .Paramos e a colega vai comprar o jornal que na primeira
página traz a foto do pombo, e em letras gordas:”pombo preso” e mais em baixo”branqueamento de
capitais e fuga ao fisco” Pedimos aos papagaios para não se mnifestarem , por causa da pomba .A
prisão dista do centro da cidade à volta de 2 km, durante o trajeto um dos papagaios pede para
conduzir a viatura,a colega diz-lhe gracejando que só se ele levantar voo, o papagaio disse
qualquer coisa impercetível e calou-se.
Estamos junto à cadeia e algumas pessoas manifestam-se com alguns cartazes que têm escrito
“Pombo ladrão” “Pombo gatuno” e outros “Soltem o pombinho”, algumas dessas pessoas
perguntam se somos jornalistas e se queremos vender os papagaios ,respondemos que só se for ao
quilo e elas riem-se ,é uma paródia. Seguimos em direção ao portão de entrada ,é transmitido ao
nosso motorista que teremos de deixar a viatura fora do estabelecimento prisional. Após conversa
com a nossa colega lá nos deixaram entrar , alertando que aquilo não é nenhum parque de
estacionamento.
Esta visita ao pombo não vai adiantar muito, exceto para a pomba, que poderá rever o seu pombo.
Dirijo-me com a colega , um papagaio e a pomba, até à cela , a restante comitiva fica no átrio de
entrada que se encontra vazio. Quando se apercebe da nossa presença , o pombo voa até à rede das
grades da cela .É aberta a porta com cuidado, ao entrarmos o casal rejubila com o reencontro.
Esperamos cerca de 5mn até fazermos mais algumas perguntas ao pombo, questionamos o papagaio
se está pronto,avisamos de que agora terá de fazer a tradução pós pergunta e pós resposta , diz que
sim com a cabeça e iniciamos a conversa:
PAP-Alguma novidade?
POM-Não, não e ela como tem estado?
PAP-Aguenta-se mas está triste com a tua situação,não nos interpretes mal , mas há alguma coisa
relevante que nos tenhas escondido, omitido ou esquecido por não achares importante?
POM-O quê? O quê?, digam-me vocês, estou bem farto desta merda .
PAP-Por exemplo, familiares , amigos , algum pombo ou outro animal que tenhas conhecido.
POM-Vocês têm cada uma ,nós voamos quase por todo o lado e por vezes somos mais de 200
ou 300 pombos , pertencemos a uma comunidade , procuramos comida e voltamos para o mesmo
sítio .
PAP-Já conhecemos .
POM-O quê ! Já conhecem?
PAP-A tua pomba levou-nos lá .
POM-Ela é que sabe ...e então?
PAP-Nada de especial, aquela embalagem de gelado é para quê?
POM-Estava por aí , não me lembro exatamente onde , carregámos com ela para a cabana ,estava
vazia , estamos a pensar em ter filhotes e dá jeito, para ter sempre água, mas o que tem isso,tão
loucos ,tótós ,ou vêm muitos filmes.
PAP-Tem calma ,estamos a tentar ajudar, e é verdade que agora passam muitas séries na televisão e
fazem estas perguntas , tu alguma coisa fizeste , não terás tido por exemplo alguma escapadinha.
POM-Raspadinha , qual raspadinha , eu não jogo.
PAP-Escapadinha ,escapadinha .
POM-O que é isso?
PAP-Dares uma traulitada com outra pomba .
POM-Ah!… já percebi, uma queca fora do ninho, então vocês fazem uma pergunta dessas à frente
dela, o que é que isso tem a ver lá com o branqueamento ou lá o que é isso?
PAP-Ah já sabes!Branqueamento de capitais e fuga ao fisco, mas tens razão, não tem nada a ver,
temos de ir andando,despede-te da tua pomba ,vamos ver os fundamentos desta história .
Deixamos que o casal se despeça , registamos a ternura que os envolve , esta história não faz
sentido, olho para a nossa “advogada “ que solta um “vamos ver”.
Regressamos ao pátio da entrada onde nos espera o resto da equipa, o tempo está optimo,ainda não
é verão mas o calor já aperta, de regresso ao hotel ,o nosso motorista que é porventura o mais
reservado, aborda mais uma vez o bizarro de uma pessoa ir com uma mosca ao psicólogo,
temperamos o assunto dizendo que a mulher devia estar com a mosca , o que o fez rir.
É de madrugada , ficou decidido que iremos fazer um dia de praia à exceção da pomba que prefere
ficar no hotel, os papagaios ficaram eufóricos, e nós, curiosos de ver a relação deles com a praia .
Os meus colegas já acordaram, os papagaios já batem à porta , é melhor sairmos cedo por causa do
transito .
Tivemos sorte, só agora para estacionar é que há um pouco de confusão, o câmera e a namorada já
conhecem esta praia e dizem que a areia não é das mais finas. Como esperávamos a presença dos
papagaios suscita curiosidade em especial devido ao seu volume , por várias vezes ficam com as
patas enterradas na areia e precisam da nossa ajuda .
Em resposta a algumas provocações de curiosos ,proferem alguns impropérios que nos escusamos
de reproduzir , sendo alguns do âmbito do vernáculo mais malcriado , refreamos as gargalhadas
para não ajudarmos à festa .
Pousadas as toalhas, o motorista vai testar a temperatura da água enquanto os papagaios espalham
quantidades exorbitantes de protetor solar sobre as penas , a nossa colega questiona-os sobre tal,
não respondem e deitam-se de papo para o ar . Vou também tomar o pulso à agua ,muitos banhistas
já começam a andar por aqui às voltas a tirar fotos aos papagaios ,está montado o circo, uma criança
quer tirar uma selfie com eles e pergunta se picam. Até a cabeça têm cheia de creme, os meus
colegas acompanham-me até à agua . Durante estas horas de praia não tocamos no assunto do
pombo,talvez a nossa colega procure alguma coisa , já que não larga o portátil.
São duas horas da tarde ,há um restaurante aqui em cima e a fome aperta , os papagaios querem vir
também, mesmo todos besuntados , querem cerveja ,nós queremos acima de tudo comer.
O frango assado está optimo ,os papagaios já vão na quinta cerveja cada um,que absorvem através
de uma palhinha , o motorista diz ao empregado que não traga mais cerveja ,eles ameaçam ir
embora ,vão apanhar uma bebedeira ,é certo. O motorista ,pouco satisfeito exclama “tenho filhos
em casa” e acelera o final da refeição, os papagaios estão mesmo embriagados ,talvez até ao final da
tarde recuperem para que possamos regressar ao hotel,vão ao nosso colo até às toalhas e depois logo
se vê,até lá vão soltando risadas e gritam”quero a chucha , quero a chucha”,alguém do nosso grupo
se recusa a transportá-los e profere alguns impropérios .
Começa a arrefecer, são 18,30, os nossos amigos dormem, a nossa colega vai à agua , enche uma
garrafa e despeja-a para cima deles ,acordam e esboçam uma tentativa frustrada de voar, as asas
quase que nem se mexem , ainda por cima cheias de creme ,pelo menos não perderam o instinto
natural.
Devido ao ajuntamento de muitos populares somos abordados por um nadador-salvador,
tranquilizamo-lo, dizendo que vamos abandonar a praia .
Jantamos no hotel , antes, porém, vamos até à suite dos dois amigos , dar-lhe alguma ajuda
em especial no banho, já que tirar aquele creme das penas não deve ser fácil. Deixamos dois sacos
de pipocas ,calculamos que já não queiram sair .
Aproveitando esta noite convidativa ,decidimos sair e aterrar por aí num qualquer bar podemos
aproveitar para ,com calma ,abordarmos o tema do pombo detido,deixamos a janela aberta ,pode a
pomba querer ir dar um giro.
O relógio marca quatro da manhã, a hora do fecho do bar e do regresso ao hotel, o tempo foi
passando sempre que possível a refletirmos e a falar sobre a situação do pombo.
Já se encontramos no hotel,não é permitido barulho a esta hora , temos uma chave da
suite ,reparamos que os papagaios dormem e nós vamos fazê-lo também, amanhã pode ser um dia
crucial para o desenvolvimento do caso, a colega ainda fica agarrada ao computador.
Saiu cedo do hotel , nós no café, esperamos ansiosos que ela nos traga novidades, os papagaios
envergonhados , quiseram ficar no hotel, a ressaca assistia-os , a pomba está connosco, o café fica
ao lado do restaurante onde almoçámos , tudo junto ao hotel.
Passa das 16 horas, a colega demora-se, a pomba foi dar uma volta , temos sempre o cuidado de
estar no local de partida , não vá a pomba entrar em pânico se não nos vir.
A nossa colega advogada , enfim chega , parece apreensiva , apesar do sorriso nos lábios que lhe é
característico, dada a sua simpatia.
São muitas as páginas que desenrolam o processo, já de acusação contra o pombo . Como advogada
prefere não especular e põe-nos ao corrente da conversa que teve com o delegado e das provas ,
aparentemente irrefutáveis , contra o pombo. A pomba já está no ombro da colega , só mais tarde
através dos papagaios saberá a verdade dos factos.
As provas são baseadas numa sequência de fotos e como prova número 1, aquela em que o pombo
larga uma série de dejetos sobre uma praça da cidade onde nos encontramos . Sendo a capital do
país, e os dejetos do pombo esbranquiçados , é deduzida a acusação de “branqueamento de capitais”
As outras fotos levam-nos até ao local onde juntamente com a pomba , o pombo é abordado por um
indivíduo com a arma apontada aos dois (vê-se na foto) e sendo funcionário das finanças foi
deduzida a acusação de “fuga ao fisco”.
A colega insiste que apenas podemos trabalhar no sentido de uma pena leve ,visto o pombo não ter
antecedentes e dando como adquirida a assunção de culpa por parte do pombo quando confrontado
com as provas. Ela está convicta de que perante o que lhe foi transmitido na delegacia, o julgamento
será inevitável. Olhamos para a pomba e decidimos não comunicar aos papagaios o que temos em
mão. Regressamos ao hotel, os papagaios , no Hall de entrada, desbobinam as suas mirabolantes
histórias, perante as risadas do rececionista e de um casal de idade já avançada .
Pergunto-lhes se ficam ali ou se querem subir , adivinhando novidades, sobem connosco.
Jantamos no quarto e minuto após minuto, vamo-nos apoderando da noite, a colega prepara as
alegações de defesa , enquanto eu vejo e revejo as fotos na companhia do câmera. Paro na foto1e
centro o olhar e pensamento na mesma ,nem sei o que procuro, olho por olhar, estou para a largar
quando bruscamente apelo ao meu colega para se focar num ponto que assinalo com o dedo. Não
sou um observador nato, não possuo memória fotográfica de realce , mas aquilo das janelas
captou-me a atenção. Por detrás do repuxo de água ,aquele edifício tem realmente claras
similitudes com o existente na capital, mas aqueles rebordos nos ângulos superiores das janelas
são redondos , trata-se de uma residencial onde por mero acaso já passei uma noite numa altura de
festas na cidade. Na altura pus-me em cima de uma cadeira para ter uma visão mais ampla e bati
com a cabeça na parte superior da janela , tendo a pessoa que estava comigo alertado para a queda
de um pedaço de madeira, as janelas são antigas , na altura consegui recolocar o pedaço de madeira
e quase que garanto que os cantos das ombreira não eram redondos .Instigo o câmera a irmos até
lá , não dizemos nada à colega , o motorista já dorme .
Estamos mesmo em frente ao edifício e confirma-se , agora de forma mais clara que o local onde o
pombo largou os dejetos não é este, voltamos para o hotel e pedimos à colega que visione na
Internet o maior número de praças com as mesmas características , nas várias cidades do país.
Já passaram mais de duas horas , estamos centrados numa única praça de uma cidade mais a sul ,
comparamos mais uns pormenores e a colega , com um largo e franco sorriso dá-nos os parabéns.
É uma cidade mas não é a capital e dado não haver qualquer tipo de legislação em vigor sobre
“branqueamento de cidades”, desta acusação o pombo está safo. Esta descoberta como que
despoletou uma nova confiança e esperança na defesa do pombo.
Parecendo já os donos do hotel, pela postura apresentada, os papagaios visitam-nos , são 10 horas
da manhã, a advogada saiu sem dizer nada ,mas o ar decidido com que agarrou a mala fez com que
o câmera , seu companheiro, me piscasse o olho em sinal de que ela devia ter alguma ideia, ele
conhece-a melhor do que ninguém.
Resumidamente , informamos os papagaios das ultimas revelações, eles rapidamente transmitem à
pomba que fica em silêncio.
São 15 horas ainda não almoçamos ,esperamos na esplanada do hotel por novidades, que chegam
via telemóvel, o câmera , que atende, começa por franzir o sobrolho, vindo gradualmente a
transparecer alguma satisfação e alivio . Após desligar, dá uma palmada nas costas do motorista,
cumprimenta-me e afaga o dorso da pomba e dos papagaios.
Relata-nos então que o indivíduo que ajudou a capturar o pombo,era de facto funcionário das
finanças , mas estava de férias e de forma circunstancial foi requisitado por ser caçador e conhecer
muito bem aqueles terrenos, caia assim por terra a acusação de “fuga ao fisco”.
A colega ainda não regressou ,estando a diligenciar para que o pombo seja libertado ainda hoje.
Devolvemos o “todo terreno” viemos de táxi, estamos no estabelecimento prisional e já com tudo
tratado preparamos para levantar voo, os papagaios não param de cavaquear lembramos que o
piloto tem de se concentrar no voo.
Contra todas as normas abrimos uma garrafa de champanhe , tocamos já o espaço aéreo sobre a
cabana dos pombos é aqui que os deixamos, a pomba tem uma lágrima ao canto do olho, deixamos
cair a garrafa para o solo , o que faz com que os papagaios riam e abram o portilho do helicóptero,
ao mesmo tempo que os pombos dão um pequeno salto e iniciam o voo de volta a uma vida normal.
“O BURRO”

Ao contrário do que é habitual, resolvemos parar completamente , desligar computadores e ter


apenas um telemóvel ligado ,neste caso o do motorista que, à partida, terá menos trânsito falante .
Está a ser uma semana diferente , tentamos não utilizar a capacidade de pensar e apenas gozar o
local, uma pousada de frente para uma zona montanhosa , os maus acessos ensaiam um estado
quase perfeito de simbiose entre o homem e a natureza , a nítida rarefação do ar é insuficiente
para retirar os elogios que toda equipa faz do local.
Através destes estreitos e pedregosos caminhos é a segunda vez que subimos até quase ao topo
da montanha de onde desfrutamos desta paisagem singular. Lá em baixo a mais de 3km da pousada
esta estrutura é alterada por uma auto-estrada onde a velocidade dos carros contrasta com a
calmaria aqui existente .
Com o recurso aos binóculos conseguimos ter uma perspetiva mais abrangente de todo este lugar,
por mera curiosidade centramos mais uma vez a atenção numa quinta bem edificada e delimitada
por um muro composto por árvores que não conseguimos identificar , não são cedros , pinheiros
nem pensar, continuamos a fazer conjeturas , a presença de algumas viaturas e apetrechos de jardim
indica que é habitada.
Já tinha reparado que o motorista há já alguns minutos que apontava a objetiva para uma zona
específica , não me surpreendendo a sua exclamação”só nos faltava mais esta”.
Apontamos todos na mesma direção , com a colega a limpar as lentes do binóculo.
Num terreno agrícola que dista uns 200m da quinta , centro-me primeiro numa carrinha de caixa-
aberta estacionada à frente da propriedade, a minha colega agarra-me o braço chamando-me a
atenção enquanto ela própria se agarra à barriga de tanto rir,desvio o binóculo um pouco mais
para dentro e, junto a um poço, um homem circula à volta do mesmo , puxando o que , visto daqui
nos parece uma nora , coisa que já não se usa muito. Uns metros mais à frente acontece o mais
bizarro, um burro …, sim , é mesmo um burro, com um pau..,não,não é ...é sim uma mangueira
…(.é uma mangueira,) confirma a colega, que segura na pata direita , juntando tudo que vemos ,
o homem dá à nora e o burro rega a horta.
E o que temos nós a ver com isso,pergunto aos colegas ,ainda não nos refizemos de uma e já nos
estamos a meter noutra. O burro muda de pata , o homem continua a dar à nora para que não falte
água no tanque ao lado do poço.
Apesar de se desviar daquilo que nos faz correr mundo ,sentimo-nos impelidos a ir até lá , o
estranho é que quando menos esperamos ,estas situações , que podem ou não fazer reportagem e dar
história, vêm ter connosco , nós até nem queríamos , mas acabamos por lá ir.
Não vos tinha descrito o burro , sobre ele há muito dito e pouco a acrescentar ,é um animal há
muito, sociabilizando com o homem , que o domestica empurrando-o para uma clara
subalternização
Este mamífero caracteriza-se pela sua dócil e pachorrenta postura . Nos últimos a preservação desta
espécie tem sido descurada , já que com o avanço da tecnologia , a sua utilidade no parecer do
homem começou a ser diminuta .
O acenar do câmera não foi bem sucedido , assim como o “Então como é que vai isso” lançado pela
colega .À medida que nos vamos aproximando , e com o visionamento mais nítido do homem , mais
a situação se torna intrigante .É alto, tez bronzeada , espadaúdo , não levantou sequer a cabeça para
nos anfitriar. A forma como se veste deixa antever algum cuidado com a aparência , mesmo em
atividade agrícola. O burro baixou a pata e olha na nossa direção , o melhor é irmos andando isto
pode ser para os “apanhados”.
É nitidamente a vontade do grupo e quando já voltávamos as costas , ouve-se :Há algum problema?
E não era o burro , era mesmo o homem que nos questionava , estava lançado o mote para uma
possível conversa onde eu, como narrador , terei oportunidade de entrar, a colega quebra este
impasse ...-Nenhum, aliás pedimos desculpa pela intrusão. E explica ao homem até de forma
detalhada quem éramos , o que fazíamos , que não estávamos ali por algum motivo específico
e como tínhamos reparado nele e no burro, e que se quisesse nós íamos embora . O homem
largou a nora , sentou-se na borda do tanque , limpou o suor da testa , esboçou um sorriso e
quebrou qualquer hostilidade.
_Compreendo a vossa curiosidade, eu no vosso lugar , ficaria igualmente intrigado com esta
situação.
_Não tem que explicar nada ,apenas vimos um animal a ser bem tratado- saliento
_Nem sempre foi assim -murmurou.
Fez-se silêncio, que é quebrado pelo colega , motorista .
_Vamos embora ,foi um prazer conhecê-lo… e ao burro.
_ Moro aqui ao lado terei gosto em recebê-los …, como companheiros de viagem, Ok—Salientou.
Percebemos que queria discrição e pouca publicidade, um estalar de dedos fez com que o burro se
aproximasse , o homem levanta-se e ao passar por ele faz-lhe uma pequena festa indo de seguida
dar uma pequena vista de olhos à zona regada , ficando a agua a correr, e já de volta exclama :
_Por hoje chega !
_Nós estamos ali na pousada,vamos lá deixar a tralha e fazemos-lhe uma visita _Intervém a colega
_Nós vamos lá levá-los _Diz o homem sorrindo. E dirige-se à carrinha seguido do burro,enquanto
nós trocamos olhares e fomos com eles .
Sendo a carrinha para 2 ou 3 lugares na cabine , vamos ocupar a carroçaria ,a colega é a primeira
a saltar,é bem antiga, com duas velocidades ,calculo.
É óbvio que todos nós pensámos que a viagem apesar de curta no espaço iria ser longa no tempo, já
que o burro não devia ir a correr ,até porque já não era novo.
Após entrar na carrinha o homem dá uma pequena buzinadela ,esperamos curiosos pelo barulho do
motor desta relíquia bem estimada , em vez disso ,ouvimos sim o barulho das patas do burro
a rasparem numa chapa de ferro enterrada no solo, vemos também o homem a chegar-se para o lado
do pendura e o burro a sentar-se ao volante.
O câmera informa que já tinha reparado que o banco do condutor tinha uma estranha disposição,
e lá vamos nós ,o homem apenas se vira para trás e faz-nos com o polegar um sinal de ok.
Na viagem até à estalagem passamos por dois velhotes que acenam com naturalidade para a cabine,
deduzimos que a situação é normal e que na pousada os donos (pessoas simpáticas) também já
estejam habituados .Chegados à pousada , o homem que aparenta 45 a 50 anos sai da carrinha ,
despede-se com um”até logo” e começa a correr_Agora que já recuperei de andar à nora, vou a pé,
faço sempre isto a meio do caminho_Diz ,acenando, à medida que se afasta atrás da carrinha.
Pensamos em ir tomar banho,mudar de roupa e visitar aquela família ,apesar da estranha situação
o homem parece equilibrado , tranquilo, e nalguns pormenores revela boa formação, combinámos
que levaremos apenas um bloco de apontamentos esperando que ele não se oponha.
Não foi preciso sequer buzinar ou emitir qualquer sinal da nossa presença , o portão abre-se após,
presumimos , a nossa identificação via vídeo .
Até à principal casa de habitação são cerca de 200 metros , percorremos com o olhar alguns
pavilhões aqui existentes ,já lá do alto tínhamos reparado num número significativo de espaços
telhados. O homem espera-nos à entrada, saudamo-nos , o exterior e agora o interior , assim como a
mobília , denotam algum poder económico desta família, que por enquanto se resume ao homem e
ao burro, não vamos fazer perguntas nesse sentido. Somos postos à vontade , o burro só agora
aparece na sala , olha para nós como já nos conhecendo e dirige-se para o balcão da cozinha onde já
se encontra o homem.
_ A jantarada está quase pronta, é para ti também_Diz, enquanto vai abrindo um enorme forno
incrustado na parede.
_ Ele janta connosco- Adverte
_ Optimo, já estávamos à espera, temos todo o gosto-Responde a colega que vai fazendo de porta-
voz do grupo enquanto nós ainda vamos interiorizando esta nova experiência .
O homem já tinha a mesa posta , espaçosa, em forma retangular,5 cadeiras e um enorme cadeirão.
_Há mais alguém nesta casa -Pergunto de forma ,penso,correta e informal.
O homem sem se voltar responde-Há, mas não estão cá, não precisam de me questionar, faço
questão de vos relatar o que se está a passar , não é segredo nem tabu, podem sentar-se-Adianta.
A tranquilidade deste indivíduo faz-nos inveja , sentamo-nos, o câmera intervém pela primeira vez.
_Precisa de ajuda?
_Não, não,estou habituado,Obrigado-Responde,enquanto vai transportando nas duas mãos um
enorme tabuleiro com uma grande quantidade daquilo que me parece serem bolos.
_É pão de ló, é para o burro, nunca come menos de vinte.
No topo da mesa está colocada uma enorme travessa oval, no cadeirão já se encontra sentado o
burro que para beber tem à sua disposição, dentro de um recetáculo transparente, um liquido cuja
cor lembra o vinho.
O homem interrompe os nossos pensamentos e comenta
_É água com um decilitro de vinho, e nós se não se importam vamos acompanhar com vinho,
é só um pouco mais escuro_Brinca
- Optimo ,todos bebemos -Responde a colega.
Tentamos honrar o que combinámos e não olhar demasiadas vezes para o burro, particularmente
agora enquanto vai comendo, o que é tentador , mas não o fazemos, realço no entanto o pouco
barulho que faz e os gestos moderadamente pausados.
Estou mesmo ao lado , faço sinal ao homem ,que abana a cabeça afirmativamente ,levo a mão à
travessa e retiro um bocado de bolo, o burro olha-me como que dizendo”tira mais se quiseres”.
Nós iniciamos também o repasto,peixe assado com batatas no forno,passado algum tempo sem
dizermos nada de relevo, o homem fala sobre o local onde o conhecemos.
-Aquela horta foi a primeira propriedade do meu bisavô, nunca tivemos nem temos intenção de
mudar nada , só a nora vai levando algumas peças , a camioneta era também dele e o burro está
geracionalmente ligado a essa altura. Essa sucessão vai ser cortada, a fêmea que comprámos há
uns anos , morreu,não vamos insistir,ah,outra coisa ,aqui os burros sempre foram tratados como
animais de trabalho, aliás depois posso mostrar o estábulo-curral,mas podemos continuar mais tarde
e ficam a saber o que é que mudou, entretanto vou servir-vos o café,quem não quiser levante o
braço..Ninguém levantou, nem o burro , que não deve beber, o homem de caminho vai tirar os cafés
e a mesa ficou num silêncio quase sepulcral, interrompido por um estrondoso e quase flamejante
arroto do burro , que fez a nossa colega pôr a mão na boca para não soltar uma gargalhada.
--Peço perdão por ele ,é usual e é sinal de que quer ir à vida dele _ Interrompe o homem ao mesmo
tempo que com a sua força roda o cadeirão, e o burro se põe em posição de marcha, dirigindo-se
calmamente para fora de casa.
_ É só o burro ou tem mais animais-Pergunta o câmera com clara intenção de retomar o diálogo.
_ Temos um cão que não morre de amores pelo burro e que nesta altura está com a minha mulher
noutra casa a 20 km deste sítio, é do outro lado da localidade, até devem ter passado por lá.
_ Deixe estar, eu conserto a louça na máquina – Diz a colega, que se levanta da mesa – Agradeço -
Responde o homem ao mesmo tempo que se senta novamente ,trazendo consigo
uma garrafa de whisky
- É leve , optimo para a digestão-Comenta
Á medida que vai goteando os copos com o whisky, o homem interpela a colega_ Se não te
importas, o gelo está aí ao fundo,sim,nessa máquina.
O facto de ter tratado a nossa colega por tu e ter informalizado um pouca mais a nossa relação, é
visto por nós como uma forma de abrir um pouco mais “a porta da casa “,parece gostar de nós e isso
agrada-nos
_Foi difícil o burro aprender a conduzir?- Gracejo
_ Não…,nada mesmo_ Responde-Nos primeiros dias após o início desta nova fase, ia ao lado e
enquanto eu conduzia reparava que não tirava os olhos de todos os movimentos que eu fazia , houve
um dia que em vez de dar a volta ficou parado na porta do condutor,foi complicado nos primeiros
dias ,depois fiz aquela adaptação ao banco e é como viram.
_A reação das pessoas foi a esperada? _Pergunta a colega depois de ter dado uma arrumação na
cozinha.
_ Não há muita gente aqui e as pessoas têm algum respeito pela nossa família, assim como nós
temos por elas, e conhecem a história , não em pormenor , mas no essencial -Esclarece.
Não ousamos perguntar qual é a história e também não é preciso depois de ouvirmos o homem
comentar-O burro salvou-me a vida , literalmente , salvou-me a vida .
Faz esta alusão ,sem contudo mudar o tom de voz ou fazer algum tipo de chamamento emocional,
tranquilo, continua.
_Está a fazer um ano e dois meses, era dia de festa , o namorado da minha filha fazia
anos ,comemorou aqui, estavam os pais dele , a irmã , um casal de índios apache, a minha mulher, a
minha filha e eu.
O homem levanta-se, dirige-se à janela da cozinha-Não sai do pé da carrinha,diz, falando do burro.
Volta a sentar-se e continua-É um lugar comum nestas coisas ,mas não gosto do rapaz, contudo não
interfiro.
_Tudo tem a ver com o namorado da sua filha?-Pergunta o motorista ,mais solto de língua.
_Não,nada, aliás o culpado fui eu, a festa terminou, não quis ir com eles até à cidade, não sei se
conhecem aquele bar junto ao rio,está bem agradável, acolhedor, porém estava cansado,tinha estado
aqui na fábrica ,estes pavilhões são a nossa fábrica de calçado,exportamos para todo o mundo, nesse
dia o gerente tinha-me pedido para ajudar no inventário, nada de mais, toda a matéria-prima é
pedida em consonância com as encomendas,temos uma logística simplificada e o gerente é muito
competente, mas estava muito cansado.
_Há muita gente a trabalhar?- Pergunta a colega
-Doze pessoas, com o gerente treze,vocês daqui não vêm, mas do outro lado há um portão por onde
entram e saem, quando as encomendas o exigem, a fábrica funciona à noite, naquele dia de qualquer
forma estava fechada,era fim de semana-Responde o homem quase fazendo uma apresentação da
empresa.
A nossa colega levanta- se para ir à casa de banho, o homem espera que ela volte para continuar
tendo-nos questionado durante este período se queríamos petiscar algo já que o jantar tinha sido
peixe,respondemos que não e já com a colega na mesa continua- Eles saíram por volta das onze da
noite, voltaram a insistir para eu ir , o rapaz até me chamou “Sogrozinho”, não me passou pela
cabeça dar-lhe um soco, mas sim dois ou três, estou a brincar ,nada disso, quando saíram e como é
hábito, o portão depois de fechado desliga 70 por cento da iluminação , inclusive alguma ali no
alpendre, na altura um dos candeeiros que devia apagar não o fez e apesar de não ser grande
artista, peguei no escadote ,apenas para abanar o candeeiro no caso de haver mau contacto
-Apanhou algum choque? -Questiona o motorista
_Não foi bem isso-Responde o homem-Tinha bebido embora não estivesse bêbado ,palavra de
honra.-Logo após eles terem ido embora troquei de calçado,trazia uns chinelos de borracha , nem
sei se foi por isso, o que é facto, é que apesar de ser um escadote , o peso devia estar desequilibrado
e aquela merda tombou.
Pela primeira vez ao falar do escadote, pareceu ligeiramente irritado, hoje em dia não devem ser
amigos-O homem continua-Apenas me lembro de tentar saltar,não fui a tempo, aquele banco que
podem ver ali no alpendre foi a minha almofada.-Acordei, não via a perna direita que estava
dobrada debaixo do corpo e pelas dores, percebi que estava partida , mas o pior é que tinha a testa
aberta(Levantou um pouco o cabelo, podemos ver a cicatriz de um lado ao outro da testa)
- Estava a esvair-me em sangue – Prosseguiu- Gritei por socorro,gritei bastante, acreditem, a mão
quase que cabia na abertura da testa, percebi que ia morrer-Fez uma pausa e continuou-Da primeira
vez que gritei ouvi um estrondo que não relacionei com nada em especial,confesso que estava
apavorado e desmaiei mais uma vez.
- Encostou-se para trás na cadeira , e olhando para a janela , comenta – Acordei pendurado nos
dentes do burro já na parte descendente daquela montanha que vocês conhecem,tinha a cabeça
encostada ao seu pescoço que ia servindo de tampão e” penso”, ao mesmo tempo. Daqui até à
cidade, por estes caminhos são 42km.
O homem , apesar de tudo continuava tranquilo na sua narrativa, por várias vezes fixando a zona da
montanha- Subindo e descendo a montanha apanha- se uma estrada já desativada e até ao hospital
são cerca de 17 ou 18km, foi esta distância que o burro percorreu comigo nos dentes…e salvou -me
a vida.
A ultima frase foi proferida chegando novamente o corpo para a frente e pondo os braços em cima
da mesa, estive tentado a perguntar- lhe onde e quando a esposa e a filha ,ou até mesmo os outros
convidados, entravam na história , mas contive- me, isto apesar do homem continuar calmo, muito
calmo, sem dar sinais de qualquer tipo de azedume para com algo ou alguém,porém era evidente o
estado de gratidão para com o burro.
Como que adivinhando os meus pensamentos o câmera atira para o ar...-Mas e o burro como é
que…?…?
O homem não o deixou terminar -O burro estava ali no curral, o primeiro estrondo que ouvi deve ter
sido ele a tentar forçar a porta do curral, conseguiu apenas em parte , já que apenas uma dobradiça
estava partida ,deu para ele saltar, e o resto...já sabem.
-É caso para dizer, ganda burro – Remata a colega ao mesmo tempo que lhe aperta a
mão ,despedindo -se com um «Foi um prazer conhecê -lo»
-Obrigado e voltem sempre – Respondeu e quando ia começar a levantar -se, observa: - Se quiserem
posso contar -vos o resto.
-Sobre a sua mulher e a sua filha? - Indaga a colega
- Sim…,claro
-Queremos , não sabíamos era se tu querias – devolve a colega tratando -o desta vez também por tu.
Sentamos -nos novamente, agora mais curiosos que nunca e o homem continua.
-Na altura que o burro me terá deixado ao cuidado do pessoal do hospital,encontrava -me
desmaiado e apesar de me terem reconhecido não tiveram forma de contactar a minha esposa.
- Devia estar muito barulho lá no bar- Aventa o câmera
- Claro, e pensei nisso, quando acordei dei-lhes o número do meu cunhado,que foi lá ter, foram
cinco dias entre a vida e a morte, a minha esposa não saía de lá , a minha filha foi a que passou pior,
acabou por adiar exames na faculdade
- E o burro?- Perguntei, curioso
- O meu cunhado tranportou -o para o estábulo
- Antes do acidente a sua esposa estava aqui consigo? - A colega arriscou a pergunta
- Antes e depois, a minha filha por estar na faculdade só vinha aos fins de semana, mas isto tudo
começou após a minha recuperação
- Como assim?-Pergunto
- Acho que já comentei que o burro antes do acidente era tratado como todos os animais de
trabalho,lembro-me aliás que uns dias antes tinha- lhe mandado com o cabo da enxada,não dava à
nora,enervei- me, sabem como é que é…
- Inverteu o sentido da relação com ele ? - É natural -Comenta a colega
- Completamente!...A imagem do burro a partir a porta do curral não me saía da cabeça, tal como
a de levar- me pelos dentes através da montanha, gradualmente fui estando atento a todos os sinais,
o querer ficar fora do estábulo,querer conduzir, vê- lo várias vezes junto àquela porta, fez- me
decidir que o burro estaria onde quisesse, e faria o que lhe apetecesse, o resto já sabem
- Mas!...E...a sua esposa? -Insistimos
- Ah, sim pois claro,nós temos uma pequena residencial de que ela toma conta, e é também
presidente de uma associação de voluntariado para idosos , muitas vezes ela ficava na outra casa e
agora em conjunto com a minha filha decidiram não pôr aqui mais os pés, é um problema delas
- Já dizia a minha avó”Ciúmes e fraqueza, comem todos à mesma mesa”- Comenta o motorista ao
mesmo tempo que abre os braços em jeito de “Tá tudo dito”
- Não propriamente – Corrige o homem – Pelo contrário, desde o acidente todos se mostraram
bastante amistosos e carinhosos para com o burro, nunca ele tinha sido alvo de tanta atenção
- Então!?… -A nossa colega, pragmática e decidida ,queria encontrar o fio à meada
- O burro deixou de frequentar o curral, só lá vai de vez em quando esponjar-se na palha, e comer
alguma coisa- Continua o homem- Faz o que lhe apetece, e nunca fiz nada para o impedir, não
consigo, uma manhã que a minha mulher foi esperar a filha ao autocarro , chegaram as duas e o
burro ainda dormia.
-E então? – Pergunta a colega já com algum enfado
- Dormia…, mas no quarto, e na cama da minha filha- Responde o homem- Já era habitual, não
tinham dado por isso porque eu arrumava sempre o quarto
A colega não conseguiu disfarçar um sorriso e com algum espanto à mistura denuncia- Deves
entender, é normal, eu também não teria ficado contente, nem sequer puseste a hipótese de mudar
a situação?
- De forma nenhuma , foi a vontade do burro, não sei porque o faz, sempre houve grande empatia
entre eles, aliás a minha filha estava sempre a dizer que para ela o burro fazia parte da família
- O burro salvou- lhe a vida e complicou-lha…,complicou-lha também ...elas nunca mais voltaram
aqui? - Pergunta o câmera
- De vez em quando ligo para a faculdade, sei que está bem e as notas são boas…, A minha
mulher!?- Ligou- me uma vez, a porta está sempre aberta , elas são a razão da minha vida.
Pela primeira vez vimos este homem nobre e de carácter vincado, baixar a guarda, passar a mão
pelos olhos e prosseguir
- É uma situação pouco vulgar, reconheço, mas ela também podia ficar lá em cima, no quarto onde
dormia a burra que morreu, até tem melhor vista ...isso é que não entendo-Concluiu o homem
E nós também já não entendemos nada, o câmera, depois de pedir ,foi ao frigorífico para trazer
qualquer coisa, refresco de groselha, parece, faz -se tarde, esperamos o momento ideal para nos
despedirmos , e é já em jeito de despedida, que questiono
- As amizades, os conhecidos , tens mantido contacto?
- Nem por isso- Responde
-A propósito, o namorado da tua filha reagiu bem?
-Curiosamente, é o único que vai ligando de vez em quando, é através dele que vou sabendo mais
alguma coisa da minha filha
-E o casal de índios?
-Tiveram de regressar à terra deles com urgência -Responde
- Há sempre problemas – Comenta a colega
- Têm um peixe de aquário, que parece ter tido um acidente
- É grave?-Questiona o motorista grande apreciador de peixe grelhado
- Pelo que percebi, um outro peixe vinha do outro lado do aquário , não teve tempo de se desviar, e
embateram
- Esta malta de agora, altas horas, tudo maluco- Comenta o motorista dissertando
- Só sei que aquele peixe era tudo para eles, passavam todo o tempo a mostrarem fotos dele,imagino
o que devem estar a sofrer, coitados – Conclui o homem-
_ Compreendemos ,dissemos os quatro, ao mesmo tempo que nos dirigimos para a porta de saída,
não podíamos deixar que as emoções em catadupa nos toldassem a mente,ainda ouvimos um “até
sempre”, tendo nós devolvido com um “boa sorte”.
«A REFLEXÃO»

Resolvemos desta feita regressar à nossa base , à nossa sede , onde planificamos as nossas viagens e
reunimos para fazer balanços de vária ordem, logística , patrocínios etc. Foi uma decisão
consensual, fruto, agora sim de algum desgaste, emocional, e até físico, a colega adormece no
ombro do câmera.
É olhando para ela e para a paisagem, através da vidraça da janela do comboio,que em jeito de
retrospetiva , cada um de nós os três vai desenvolvendo , com alguma nostalgia à mistura, as
mensagens extraídas da tão próxima relação com os diferentes tipos de animais. A sua coragem ,o
sentido de união, o altruísmo, paradoxal à sua luta pela sobrevivência,empurram – nos para uma
duvida existencial :”Será que o homem moldou os animais de acordo com as suas necessidades”
ou “Foram os animais que moldaram o homem de acordo com as suas debilidades”
A natureza permanece de mão dada com os animais e cada vez mais divorciada da humanidade.
Este nosso estado de cruzamento da Antropologia com A filosofia transporta- nos para uma
situação, uma ideia , uma ficção , com base numa hipotética relação de um casal com um animal,
neste caso um pequeno leitão.
Ele:Um jovem agricultor, que toda a sua vida, por tradição familiar,conviveu normalmente com a
criação de animais para consumo próprio e venda.

Ela:Uma jovem ,saída da faculdade, que teve o seu crescimento , físico e mental, fora desta
realidade ,sendo sensível e com a ingenuidade própria de quem inicia um novo ciclo de vida.

Num período de lazer o casal dá inicio a um curioso diálogo:


Ele – Olha para o leitão, numa semana, o que cresceu.
Ela _ Tá tão bonito, parece um cãozinho a saltar, já viste, vem comer à minha mão.
Ele _ Sim sim.
Ela _Quando saímos podíamos leva -lo no carro, devia gostar,olha ...olha !como rebola a bola com
o focinho ,tá tão querido!
Ele _Hum, Hum
Ela _Cada vez aproxima -se mais de nós,está feliz sente que está a fazer parte das nossas vidas não
achas?
Ele _Sem dúvida , a que horas é que eles chegam?
Ela _ Ficou combinado às duas,ainda iam ao supermercado.
Esperavam um grupo de amigos, visitas já habituais.
ELE_ O calor que estava ontem, o vento e o frio que está, ao menos que chova, as batatas bem
precisam,raios partam.
ELA_ Arrefeceu muito, olha para ele ,tá todo arrepiado, coitadinho, em casa dos meus pais tenho
casaquinhos de lã de quando eu era pequena, são capazes de lhe servir, vou enrolhar -lhe aquela
toalha ao corpo, deve estar gelado.
ELE_ Não vale a pena, vou dar um passeio com ele ,já aquece.
ELA_ Ah… tá bem.
O rapaz agarrou o leitão e dirigiu- se a um pequeno pavilhão , onde normalmente matavam o porco.
Ela tinha casado e vindo viver para casa do marido, não tendo no entanto ainda assistido a nenhuma
matança. Alguns minutos depois começam a ouvir -se os chiares do leitão.
ELA _O Que estás a fazer?
ELE_ Estou a fazer -lhe cócegas e ele não para de rir.
ELA_ Vê lá não exageres, pode ter uma síncope.
ELE_ O que é isso?
ELA_ Esquece , trá -lo para aqui , tá mais quentinho.
ELE_ Deixa, que ele agora vai aquecer bem.
O rapaz dirige -se então com o leitão já morto, para o assador, onde as brasas já flamejam. A esposa
que entretanto se tinha dirigido ao interior da casa ao voltar vê o leitão a rodar no espeto.
ELA _ O que estás a fazer?
ELE_ Não vês, estou a aquecê- lo.
ELA_ Daqui dá a ideia de que está pendurado em qualquer coisa.
ELE_ É para não cair em cima das brasas, não vá o coitado queimar -se.
ELA_ Está a ficar corado, não será muito calor?
ELE_ Não , não, ele também estava muito branco.
ELA_ Mas não é melhor pôr- lhe um bocado de protetor?
ELE_ Eu tenho aqui, não te preocupes- E com um pincel vai barrando o leitão, com os ingredientes
próprios para o assado.
ELA_ Olha...olha , eles chegaram, o porquinho vai ficar contente de ver tanta gente.
ELE_ Eles também.
O grupo chega ,deram-se os cumprimentos habituais, e um dos elementos adverte
_ Nós trouxemos as bebidas, não estão muito frescas, ui que cheirinho.
Entretanto o casal vai ultimando o preparo para o repasto, com o marido a cortar o leitão aos
pedaços. A jovem ao vê- lo passar com uma travessa exclama:Mas… o que é isso?!
ELE_ Eles gostaram tanto dele que o querem por perto.
A jovem esposa, ingénua , mas não estúpida, alega uma má disposição e volta para o interior da
casa, dirigindo -se ao quarto cada vez mais confusa , e prevendo o pior.
O jovem esposo não tenta demovê -la e alegremente vai para junto dos amigos ao mesmo tempo
que comenta:Deixem…, muitos anos a estudar deram-lhe volta à cabeça, agora diz que está doente.
Terminado o banquete, e já depois do grupo se ter ido embora, o jovem agricultor constatou que a
esposa já não tinha saído do quarto, nem sequer tinha jantado. Já estava deitada e ele prepara-se
também para o fazer , já era tarde e no outro dia tinha muito trabalho , no entanto aborda o tema.
Ele_ Afinal ,o que tu tens, o que se passa?
ELA_ Isso pergunto eu_ Diz emocionada_Onde está o porquinho?
ELE_ Tem lá calma rapariga, não disse que eles também iam gostar de o ver?Gostaram tanto, que o
levaram a dar um passeio e cada um levou um bocado, já está pesado o sacana.
A jovem mostrou- se mais tranquila e aliviada, tendo adormecido agarrada ao seu esposo.
A meio da noite ele acorda e não a vê a seu lado , pensou que tivesse ido à casa de banho e voltou a
adormecer.
Estudante extremosa ,durante anos, a vertente de psicologia desde muito cedo que lhe despertou
interesse, estando a desenvolver a sua tese de mestrado depois de ter terminado a formatura em
psicologia aplicada.
A tese baseava-se naquele indivíduo , com quem tinha inclusive casado para esse fim.
Quatro dias antes tinha percorrido várias pecuárias na zona , adquirindo um leitão com as mesmas
características, até os pormenores, como dois sinais na orelha direita, uma pequena cicatriz na parte
superior do focinho , assim como o comprimento da parte enrolada do rabo.
Tinha deixado o animal num velho conhecido do seu avô que habitava a dois km dali,pedindo -lhe
segredo , alegando ser uma surpresa para o marido. Naquela noite levantou -se, dirigiu -se ao local e
trouxe o leitão, deixando -o no pequeno jardim onde o outro costumava brincar, e voltou para a
cama.
Foi a primeira a levantar -se e depois de vestir o roupão acorda o marido de forma suave.
ELA- Vou fazer o pequeno-almoço.
ELE- Que horas são?- Pergunta ainda meio ensonado.
ELA – Quase 07 horas, queres omelete de chouriço?
ELE- Sim...sim- Responde ,enquanto se espreguiça.
Ela dirige-se então à cozinha e regressa num curto espaço de tempo, abraçando-se ao marido.
ELA- Desculpa, cheguei a pensar coisas horríveis , já vi o porquinho, eles trouxeram-no cedo do
passeio e o protetor solar que lhe puseste é muito bom , ele continua branquinho.
As persianas do quarto já estavam abertas, a sua primeira reação foi olhar nessa direção, que fez
com que a esposa lhe fizesse o reparo.
ELA- Daqui não vês, está no jardim, como costume.
Ele, ainda em cuecas, encaminha-se para a cozinha, abre a porta da rua, enfia as botas nos pés ,e é
com elas meio calçadas, e por isso, arrastando os pés, que se dirige para o leitão, observa-o durante
algum tempo e regressa para dentro.
Estava pálido , desnorteado, tendo alguma dificuldade em tirar as botas.
A esposa, na cozinha, acabava de fazer a omelete e enquanto põe a mesa comenta:
ELA- Vou mesmo trazer os casaquinhos , as noites estão cada vez mais frias.
Ele não diz nada e dirige- se novamente para o quarto , deita-se e olha para o teto, iniciando uma
série de exercícios mentais , pensamentos , raciocínios que não o fazem chegar a conclusão
nenhuma.
Dez anos mais tarde, uma sala de espera, uma visitante especial. Lá dentro, um,agora menos jovem
esposo, cumpre o seu ritual diário , que é pincelar os braços com um preparado de molho para
grelhados , e olhar para eles à espera que mudem de cor.
A visita afaga-lhe o cabelo e diz, meio emocionada.
ELA- Desculpa, fui eu que lá pus outro leitão...desculpa… …, se pudesse voltar atrás!.
Era tarde , ele estava irremediavelmente mudado ,não podendo voltar atrás para fazer um simples
exercício matemático

1+1=2-CERTO 1+1=1-ERRADO

Durante o período em que fomos alinhavando esta história por entre alguns risos contidos, a colega
esteve sempre a dormir profundamente .O comboio, neste momento, talvez por motivos de trânsito
ferroviário, abranda bastante , desliza quase em velocidade de cruzeiro. A nossa colega ainda com a
cabeça no ombro do namorado abre os olhos, e com um ar embevecido observa...
_ Olhem … um porquinho tão giro!
Através da janela pudemos ver, já com o comboio lentamente a afastar-se , um porquinho,
branquinho ,ligeiramente afastado do resto do grupo , movimentando-se em ligeiro trote e com a
cabeça levantada na nossa direção ,como que a saudar-nos.
Olhámo-nos sorrindo, como que dizendo quão próximos estão por vezes , o sonho , a ficção e a
realidade.

«A TIOIA»

Por entre as várias expedições , por vezes aproveitávamos o tempo para refletir, dizer coisas por
dizer, palavras,frases que cada um de nós ia soltando.
Foi durante um desses períodos de defeso que se cruzámos com uma das espécies de mais difícil
identificação e alinhamento com as outras , inclusive a humana.
Referimo-nos à “TIOIA”, um tipo de aranha cuja teia raramente se percebe onde começa e acaba.
A”TIOIA” é um bichinho que, segundo estudos recentes tem a sua origem , tal como o seu habitat
natural, nos sítios onde os rios desaguam nos mares,adaptando-se a qualquer tipo de clima, o que a
faz espalhar-se pelos vários cantos do mundo .Estudos ainda mais recentes defendem que
a”TIOIA”, prima afastada dos licosídios , da parte da avó materna , é uma espécie vindoura dos
primeiros sinais de vida na terra, subsistindo a eterna dúvida , tal e qual da” galinha e ovo”, sobre
quem terá nascido primeiro , se o HOMEM se a “TIOIA”.
Peluda ou desnudada,a”TIOIA” é inatacável, saindo do meio para os cantos e dos cantos para o
meio , sem que nenhuma vassoura lhe acerte de permeio.
Com a passagem de milhões de anos, o homem, movido pela curiosidade , foi aperfeiçoando
técnicas de reconhecimento das espécies .Após a descoberta do ácido desoxirribonudeico(ADN)
só muito recentemente e após estudos criteriosos se concluiu que a”TIOIA”resultou
de um cruzamento casual de um porco com uma perna de avestruz , fraturando a teoria de que a
“TIOIA” podia anteceder o homem na terra. Quimicamente a “TIOIA”é um composto de
substâncias inócuas que lhe conferem em teoria uma coexistência pacífica com o homem.
O exosqueleto da”TIOIA”provou ser adaptável às exigências das várias ordens evolutivas.
A sua visão é sensível a zonas invisíveis para nós .O seu corpo apresenta-se sob uma quase infinita
variedade de formas, só no tamanho a limitação é evidente.
História ,lenda, ou facto, sustenta-se que a primeira vez que houve uma aproximação entre o
homem e a “TIOIA”remonta ao séc.XIV.
Reza a história de que um homem, na companhia da sua cadela,se apresentou a um distinto
cientista, conhecido pela sua educação e bonomia, para além de um altruísmo, por si só reveladores
da sua mestra inteligência.
Com eles levavam um saco de serapilheira, e lá dentro uma “TIOIA” que tinham apanhado a rondar
a sua casa .Inicialmente relutante , o Doutor lá abriu o saco e gritou! Mas… ...isto, é uma “TIOIA”
de merda.
Envergonhados, o homem e a cadela tomaram o caminho de saída desconsolados e bastante
sentidos , o que fez o bondoso e reputado Doutor estabelecer logo ali uma conexão entre aquela
“TIOIA” e a famosa obra “AS TRETAS BEM ESGALHADAS DA MARIA”.
Aquela conexão deu origem também ao famoso filme« Saque da mente» que proporcionou ao
afamado Doutor ser galardoado com prémios e discos de platina, da boa.
A partir daí e com a rejeição cientifica, a”TIOIA”, pelos seus próprios meios, começou
gradualmente a emergir por todos os sítios ,bastando-lhe a proximidade de agua e moscas.
Devido ao seu pendor socializante e aparentemente amistoso, o homem começou a adotar a”TIOIA”
como parte integrante do seu habitat, e entusiasmado, começou um ciclo de adoção de”TIOIAS” e
quando caso disso, das suas crias, as “TIOIAZINHAS”
Estudos recentissimos demonstram que atualmente , a média já é de duas “TIOIAS” e meia por
pessoa. Estudos já depois dos recentissimos, dizem que “TIOIAS” adotadas, são abandonadas à sua
sorte, optando o homem cada vez mais por “TIOIAS”novas em vez de ir ao médico com as velhas.
Foi por isso criada a Associação protetoras das “tioias”, com resultados surpreendentes.
Segundo estudos ainda em fase de estudo há uma tendência de inversão desse paradigma, com o
recurso a esses centros de recuperação de “TIOIAS”, onde lhes é dado banhinho e uma ligeira
aparadela no cabelo.
Temendo-se a falta de resposta por parte desses centros de recuperação, quando a afluência de
“TIOIAS” é maior, começaram já a ser criados centros de recuperação de centros de recuperação
de “TIOIAS”.
«O HOMEM»

Passaram-se quase dois anos desde a nossa ultima expedição, o trabalho em equipa não foi
totalmente findado , ou sequer interrompido, tendo-nos reunido algumas vezes para discutir e
analisar informação que nos vai chegando pelas mais diversa vias, a ultima das quais, a da quase
extinção de uma espécie de ave rara.
Todo o material recolhido, assim como as diligências a encetar por esta causa , que nos iriam
mobilizar de corpo e alma, tiveram de ser completamente anuladas.
Foi com enorme alegria que o casal nos comunicou da gravidez da nossa colega, durante estes
últimos meses, o câmera dividia a sua energia entre o seu trabalho de free lance numa empresa de
comunicação , as nossas pesquisas, e os preparativos para a receção de um novo ser. A colega
dizia-nos sempre meio a brincar, meio a sério, que o seu bebé ainda iria connosco numa expedição.
Agora , e depois do motorista me ter ligado bastante preocupado com algo que se estaria a passar,
vou a caminho do hospital, com a esperança de que o alarmismo do motorista fosse infundado, por
outro lado o seu pragmatismo não era compatível com falsos alarmes.
A inteligência , a capacidade de se redimensionar , foram atributos que lhe valeram para não ter
desistido de tudo o que a rodeava , não deixaram de ser semanas difíceis a vê-la sofrer,
conhecendo a sua afetuosidade para com tudo o que mexia, a cumplicidade com a vida, podemos
adivinhar as expetativas que tinha criado para o bebé, que não viria a nascer.
Várias vezes tínhamos, entre conversas chegado à conclusão de que poderíamos viver e percorrer
muitas etapas geracionais , que nunca chegaríamos à real profundeza do conhecimento.
Viajar sem destino ou, sendo ele apenas os confins do mundo, tinha sido a decisão consensual ,mas
sem dúvida que o drama do câmera e da colega , tinha sido o tiro de partida.
Trinta e sete horas de avião, 12 escalas, uma qualquer ilha do pacífico esperava-nos. Atraía-nos a
possibilidade do contraste entre a otimização dos recursos intelectuais ,naturais , e o que
esperávamos encontrar em bruto quer na forma , quer no conteúdo , que nos poderá aproximar dos
primórdios da humanidade.
A colega nem tentou demover o homem da sua decisão de não alugar , mas sim de vender o barco.
O placard dizia “aluga-se”, só que perante a falta de noção de tempo de utilização e destino, o
homem está determinado a vender e não alugar.
Uma ilha como esta, a norte da Oceânia já nos daria uma parcela do tal contraste que nós
procuramos, mas nós queríamos mais, não vamos contudo em busca do homo-sapiens , porque
comprámos um barco e não uma máquina do tempo.
O câmera faz frequente uso da máquina fotográfica , nós permanecemos apenas quietos neste barco,
em bom estado,mas que não sabemos que utilização dar depois desta aventura .
O mar é uma aventura ,já são quatro dias à deriva , já cansados , e por isso cada um de nós espera
que o outro grite<Terra à vista>, o espaço que separa a água desta floresta que salta à vista não é
grande, as marés aqui devem ser bastante homógénias.
Sendo de todo impossível atracar o barco, tentamos encalhá-lo o mais possível e com a única corda
disponível , vamos atá-lo a uma das muitas árvores que fazem parte desta, à primeira vista, imensa
ilha. Deixamos algumas coisas no barco, mesmo assim as mochilas não estão leves, abordámos
antecipadamente o peso dos enlatados, no entanto entendemos que era a melhor solução .Insistimos,
em particular o câmera, para que a colega carregasse o menos peso possível, dispensou a benesse .
A espessura desta vegetação, própria duma floresta tropical, não ajuda a nossa progressão, o parco
conhecimento que temos desta zona do globo, além da ausência de vestígios , traça-nos um cenário
onde a ausência do homem é por demais evidente, a primeira clareira que encontrar-mos servirá
para descansarmos as costas e decidirmos o que fazer. Não há sinais de vida humana e isso leva-nos
equacionar o regresso ao barco e a procura de outra zona.
A escassez de espaços rochosos não nos incentiva a procurar sinais de passagem de seres humanos
que há mais de 2000 anos escolheram muitos destes locais para iniciar um processo de
sedentariedade, embora com reduzida densidade demográfica.
O cansaço, que à partida nos induziria no sono , não chega para anular o estado de alerta que nos
assola durante a noite. O silêncio que nos envolve é intimidativo, não creio que alguns de nós já
tenha conseguido adormecer passadas 4 horas. As tendas formam uma espécie de triângulo de
modo, a que todo o perímetro possa ser visualmente contactável, pelo menos o motorista já
adormeceu, é audível o som quase ressonante vindo da sua tenda.
Deve por isso ter sido o mais assustado com o barulho que de repente começou a ouvir-se.
O som não vinha de muito perto, vinha da zona mais chegada ao mar, tínhamos percorrido cerca de
dois quilómetros na floresta será que fomos seguidos por outra embarcação, e temos companhia?.
O eco que nos chega é de um bater repetido, saímos os quatro para fora das tendas, as réplicas eram
cada vez mais espaçadas até ficar novamente silêncio, não perdemos tempo a tentar adivinhar o
porquê daquela calmaria, era certo não estarmos sozinhos.
Dos quatro, quem denota menos incómodo é a colega que vai fumando um cigarro, tinha deixado de
fumar durante a gravidez, é um problema dela.
Voltar a adormecer está fora de questão, apesar do motorista o ter conseguido por momentos, a noite
está clara , resolvemos bater a zona aqui em redor, escolher outro local para acamparmos não é
opção , até porque não estamos sós.
É quase de manhã, com todos os sentidos em alerta resolvemos ir à procura da origem daquele som
que irrompeu durante a noite, deixamos os pertences dentro da tenda , tendo a colega insistido nesse
sentido , não augurando problema.
A agua está à vista, até agora não encontrámos nada que justificasse aquele ruído,estamos perto da
zona onde deixámos o barco, vamos até lá, até porque nos esquecemos da caixa das pilhas para as
lanternas.
O câmera deu o alerta”O barco já era”- Diz , com voz carregada.
Estava feito em bocados, nada tinha sido pilhado , apanhámos a caixa das pilhas e encetámos o
caminho de volta às tendas , preocupados com o que lhes tivesse acontecido.
Só sossegámos quando ao longe avistamos as tendas. Já sentados junto à mesmas, o motorista
chama-nos a atenção para o que diz ter visto acima do local onde estava o barco, diz ter reparado
em bocados e tiras de borracha que já estaria ressequida. Isto elevou os nossos níveis de
alerta,porém acaba por nos incentivar a descobrir o que se passa aqui.
A colega desde a perda do bebé e como é natural, baixou o seu índice de alegria , entusiasmo e
empenhamento que a todos contagiava , nesta altura , após ter avistado o barco destruído , parece
que renasceu, o brilho do olhar já é o mesmo de outrora ao contrário do câmera que ainda não
parece restabelecido do choque.
A destruição do barco tirou-nos a possibilidade de qualquer tipo de contacto com o exterior da ilha,
não existem dúvidas de que foi obra do homem,isto apesar de não ter havido qualquer tipo de saque.
Através dos séculos o homem chamou a si a capacidade de construir , mas também de destruir,
neste caso as razões são de todo desconhecidas._Aquilo foi aviso!… raiva! _Desabafa o motorista
Os habitantes destas zonas, cuja natureza permanece inalterável,preservam estoicamente essa
condição. A sua esperança de vida é curta e a taxa de nascimento é um pouco desvirtuada com o
baixo índice de sobrevivência dos recém-nascidos, devido em parte à escassez de alimentos.
Qualquer grupo de humanos que possamos encontrar pode criar muitas resistências a qualquer tipo
de contacto com a nossa equipa.
Por enquanto temos comida, a falta de agua não nos preocupa dada a existência de eucaliptos, de
qualquer forma o nosso instinto de sobrevivência vai ser posto à prova como nunca, tal como
previsto à partida para esta experiência de comunicar com o homem em bruto e não com a
brutalidade do homem , embora muitas vezes estes conceitos se cruzem.
- Já pensaram que a qualquer momento podemos levar com uma flecha no rabo?- Diz a colega ao
mesmo tempo que solta uma gargalhada.
É uma existência difícil a nossa neste momento, onde estamos sujeitos à seleção impiedosa imposta
pelo meio-ambiente, se imprudentes ou vagarosos seremos provavelmente vítimas de predadores,se
enfraquecidos, morreremos de fome ou não sobreviveremos aos rigores da natureza.
Talvez seja a altura de vasculharmos as imediações do local onde acampámos. Á partida temos os
binóculos que nos permitem mais rapidamente observarmos do que sermos observados , a noção
das horas é nula, não acertámos fusos,utilizamos o relógio como cronómetro, sabemos que a noite
ainda vem longe.
Seguimos em fila indiana ,os obstáculos são inúmeros, o motorista vai à frente com uma espécie de
sabre e que ele considera uma relíquia , mas que vai ter de usar. Percorridos pouco mais de mil
metros, durante os quais as aves do paraíso com a sua colorida plumagem, são o principal sinal de
vida destas paragens,hum, não me parece que tenham sido elas a escavacar o barco, o motorista
manda-nos parar, ficamos em silêncio, não é nada, contudo dá-nos uma sugestão, _ E se subíssemos
a uma árvore...não é fácil olhem aquela ali_ Diz, apontando para o lado direito
_ Todos na mesma ?_ Pergunta a colega
_ Claro , o que é que combinámos?
Realmente tínhamos combinado não nos dispersarmos por todas as razões inerentes à situação.
Visto daqui de cima , estamos perante um enorme jardim arborizado não sendo fácil visualizar o
solo que é camuflado por uma enorme vegetação.
_ Olhem ratazanas!_ Exclama a colega
_ São cangurus- ratos_ Corrige o câmera mesmo ao lado, e se não lhe deres uma moeda sobem cá
acima_ Observa , brincando e metendo-se com ela .
_ Foram eles , foram eles que partiram o barquinho, vamos carrapá-los _ Devolve a
colega,entrando na paródia.
Toda a comunicação que temos uns com os outros é feita da forma o mais silenciosa possível , e é
dessa forma que fazemos um reconhecimento à distância de toda a área que nos envolve.
Duas horas passaram desde que a árvore é o nosso pouso, e sempre em tom de sussurro, dizemos
umas piadas, mudando de posição e já devorámos uma barra de chocolate.
O nosso foco é a deteção da presença de humanos, já denunciada com a destruição do barco, e
também elementos emergentes do solo , como por exemplo zonas rochosas de onde poderemos
fazer uma leitura do local.
O homem , desde os primórdios que deixa sempre vestígios nas rochas, por vezes objetos com os
quais podemos aprender muita coisa sobre o seu quotidiano, até agora foi-nos possível apenas
localizar algumas clareiras semelhantes àquela onde temos as nossas tendas.
De volta ao solo e não se perspetivando a chegada da noite, optamos por “sugar” mais um bocado
da floresta . Por enquanto os insetos têm-nos deixado em paz, talvez façam também eles primeiro
um reconhecimento dos visitantes.
A primeira clareira que agora inspecionamos , coincide com as primeiras zonas rochosas, prevemos
que não sejam as únicas. Um amontoado de rochas com algumas fendas, quase que formam
pequenas cavernas, alguns desenhos indecifráveis, não somos arqueólogos , a dimensão de algumas,
dariam para nos abrigarmos, caso chovesse , deve ser um local de excelência para caça.
O motorista que inspeciona uma das mini- cavernas, faz-nos sinal e diz-nos_ uma marca de sapato
ou ténis …, esperem, duas ou mais, e são diferentes , mas repetem-se, isto deve ser um 41 ou 42 e
esta um 33 ou 34. Ilações , poucas podemos tirar , os habitantes , nativos , indígenas usarem este
tipo de calçado, é possível , mas pouco provável.
A proximidade da noite é evidente , todavia o caminho de regresso às tendas não será difícil, as
noite são claras , como me parece claro que o câmera tem algum objetivo ao afastar-se de nós
_ Esta aqui parece-me boa -Diz , ao mesmo tempo que inicia a subida de uma árvore , alguma coisa
o intriga , já quase no topo pede ao motorista para subir com o sabre.
_ Querem ajuda? _ Pergunto
Não obtendo resposta , eu e a colega decidimos subir, enquanto lá em cima os dois usam o sabre ,
para, suponho, desobstruir o raio de visão, alguma folhagem e ramos partidos caem, passando perto
de nós_ Vejam- Exclama o câmera
Uma montanha que a densa floresta quase recobre está à vista a uma distância de cerca 3km
- Quando estávamos na outra árvore pareceu-me, agora não há dúvidas_ Esclarece o câmera
Não sei o que esta descoberta pode mudar a nossa estadia aqui, mas é mais um elemento a
considerar, tem sido através desta cooperação que os nossos empreendimentos têm chegado a bom
porto.
O homem tem sido dos animais da mesma espécie, aquele que de forma tácita e ao mesmo tempo
retrógrada , tem tido mais dificuldade a identificar-se entre si, criando assim barreiras que o leva
muitas vezes a auto-destruir-se. A nossa equipa ao longo destes anos de trabalho em conjunto, tem
construído pontes que alicerçam cada vez mais essa identificação.
_ A distância que nos separa ainda é grande, mas! - Exclama o motorista
_ Vamos – Reclama a colega de forma convicta
Ela, desde o início desta expedição que teve muito do seu dedo, tem sido o elemento mais
dominador em quase todos os pontos de decisão, como que instigada por qualquer coisa que
desconhecemos .
A única mochila que trouxemos, vai passando de mão em mão, sendo a colega poupada nesse
revezamento.
A montanha já é bem visível… e não é russa, senão ainda dávamos uma voltinha, esta nem sequer
nos parece escalável, o motorista tropeça num tronco e queixa-se de forma bem audível, não era o
que nós queríamos , mas acontece.
_ Esta doeu- Diz, desculpando-se
Tínhamos quebrado o silêncio ,redobramos a atenção, a noite já é visita, a colega afasta-se para
necessidades inadiáveis, o câmera acompanha-a .
_ Apesar das noites serem claras , voltar para trás é um risco- Diz, avisando, o motorista
_ Penso que sim- Digo, concordando- Tentamos chegar mais ao sopé da montanha
O sinal com o dedo indicador faz-nos parar, por algum motivo o motorista vai à frente, com o seu
ouvido ultra-sensível deve ter captado alguma coisa e manda-nos baixar, dirigindo-se ele próprio
para junto de um largo tronco de uma árvore, acenando no sentido de nos juntarmos a ele.
A vegetação dá-nos alguma cobertura , quatro indivíduos , cada um com um pau , estão a 50 metros
de nós , meia dúzia de aves levantam voo, um dos homens lança um daqueles paus ou lá o é aquilo,
os seus gestos indicam que estão tão assustados quanto nós.
Trocam alguns sons, mas os gestos prevalecem, esbracejam e apontam em várias direções , talvez
tentando descobrir de onde vem o grito.
Passaram quase 15 mn , os homens continuam no mesmo sítio , agachados , devem estar à espera
que o motorista grite outra vez. Um pau sai do solo noutra direção que não da nossa, de súbito os
quatro indivíduos dirigem-se rapidamente para o sítio onde caiu o pau, também não fazem muito
barulho, parece que estão em constante sobressalto.
Tem o tamanho de um javali, um dos homens já o transporta às costas , afastando-se o grupo na
direção oposta à nossa .
Esperamos na mesma posição mais ou menos 10 mn , levantamo-nos e fazemos o que combinámos
quando ainda deitados, vamos se possível, segui-los .
Apesar da luminosidade da noite , eu e o motorista vamos na dianteira , eles com o sabre , eu com
um ramo, limpo de folhagem, tentando desobstruir o caminho , agora mais que nunca as lanternas,
só em ultimo recurso serão usadas e com o mínimo de luz, tentarei ir reportando o que se está a
passar, mas não é fácil.
Os tipos que vimos , aparentam ser daqui e não parecem trabalhar num escritório, usam os adereços
típicos dos indígenas , tanga e uns colares ao pescoço, o cabelo ,esse , do sítio onde estamos não
parece ser muito grande, isto apesar da pouca luz.
O objetivo de estabelecer contacto com um grupo de humanos com estas características já esteve
mais longe, esperamos agora ser bem recebidos , viemos por bem, realço no entanto mais uma vez
que quando estávamos deitados no chão , a ideia de os seguirmos partiu mais uma vez da colega,
que agora de mão dada com o câmera parece mais empenhada neste intercâmbio civilizacional.
_É melhor terem as mãos livres – Adverte o motorista , têm muito tempo para namorar-Diz
Noite dentro os perigos aumentam , paramos por algum tempo, ao pousar a mochila que carregava ,
o ruído das latas de refrigerante acaba por provocar algumas reações no resto da equipa, já me
doíam as costas.
Até aqui, alguns pingos de sangue provenientes do animal que transportavam, tem-nos ajudado a
seguir-lhes o rasto.
O local escolhido para descansarmos tem a particularidade de averbar algumas rochas que servem
de apoio ao nosso repouso. Com a lanterna em baixa luz , vou reparando nalgumas marcas nas
rochas, feitas com qualquer objeto cortante. Ao longo dos séculos o homem distinguiu-se das outras
espécies através da sua capacidade de traçar imagens representativas da sua realidade , esta
faculdade contribuiu em muito para o desenvolvimento da humanidade, a conexão das experiências
e atos evolutivos não teriam sido possíveis sem estes sinais deixados de geração para geração.
São vários os motivos que levaram o homem a perpetuar a sua presença através de desenhos e
pinturas . Desde superstições , à caça , demarcação de território , até à veneração de quase tudo o
que lhe provocasse surpresa e temor. Se numa determinada região um período de seca fosse
interrompido, ao mesmo tempo que, por exemplo , tivessem observado uma serpente , daí em diante
passavam a venerar a serpente , tendo esses fenómenos naturais começado a ser utilizados pelo
homem, como sendo ele o interlocutor da relação desses “Estranhos” acontecimentos com os seus
“Deuses”e o homem começou então a venerar-se a si próprio. Hoje em dia ainda somos levados a
estranhar tudo o que sai da nossa órbita de conhecimento adquirido.
A reação deste povo ou grupo de humanos com que pretendemos encetar relações, está
condicionada a essas experiências, é por isso que não iremos apresentar-nos de mão estendida como
simples visitantes do seu mundo.
Por vontade da colega já teríamos retomado o caminho, é o câmera que a vai chamando à atenção
para o cuidado e descanso necessários. A quietude e o silêncio da noite são bons conselheiros, de
manhã continuaremos, não convém que o volume do ressonar do motorista aumente , é a minha vez
de ficar acordado.
Os raios de sol já penetram por de entre a vegetação, tá tudo acordado, reparamos agora que a
clareira onde dormitámos não foi a melhor escolha é grande e descoberta, felizmente não aconteceu
nada. A colega já está de pé, diz que agora é ela que carrega a mochila, nunca é demais salientar a
combinação de atributos que esta mulher “acolhe”, beleza , coragem, por vezes até abrutalhada, sem
deixar cair o esplendor da sua condição feminina.
Tinham-se conhecido num congresso onde ela tomou a palavra, gerando alguma contestação, tendo
o câmera intervindo em sua defesa. Ás vezes falam disso como a melhor coisa que lhes aconteceu,
agora o revés do bebé , talvez tenha sido a pior.
_ Estamos perto deles _ Adverte o motorista, apontando para o solo onde são visíveis um grande
número de folhas calcadas
De binóculos em riste,qual brigada do binóculo, a nossa equipa está a postos, é fácil a aproximação,
só a vegetação dificulta a visualização do sítio exato, pela primeira vez os insetos abordam-nos sem
pedir licença .
As representações de que temos memória fazem-nos esperar som de tambores e gritos de guerra,
mas isso é dos filmes, caminhamos com alguma margem de segurança utilizando os binóculos .
Só em cima de uma árvore _ Adverte o motorista mais uma vez -Cuidado ao pousares a mochila,diz
para a colega, enquanto descalça as botas -É melhor pendurarem as botas ao pescoço, há humidade,
os ramos estão manteiga , eu levo a mochila.
De facto até as folhas no chão estão escorregadias, os pés ficam mais vulneráveis , mas é mais
seguro.
Uns quinhentos metros separam-nos da tribo, entre eles e a montanha existem cerca de mil metros
de floresta, ao contrário do que prevíamos o habitat deste grupo de indivíduos é distribuído por
entre alguma vegetação e uma clareira (como estando de sobreaviso para alguma contingência)onde
se pode ver um numero de dez cabanas, cobertas com algo que não descortino
_ É musgo- Esclarece o motorista
_ Olhem! Alguém sai da palhota- Comenta a colega
_ É uma mulher, foi urinar, tá tudo a dormir, ou foram de férias- Brinca o câmera
_ Estão a dormir- Reforça o motorista
Vários objetos de barro encontram-se espalhados pelo recinto, uma elevação de terreno possui uma
pequena sementeira, ao que parece, feijão, não temos a certeza
Um outro elemento do grupo sai de uma das cabanas e despeja uma espécie de jarro com água pela
cabeça abaixo, começando em seguida a andar de um lado para o outro, voltando novamente para
dentro.
_ E se nos aproximássemos- Diz a colega
_ Com que fim?- Pergunta o motorista
_ Sei lá , já pensaram que podemos estar aqui duas horas em cima da árvore e eles a dormirem
Resolvemos descer da árvore e chegarmos um pouco mais perto, o motorista é o mais incomodado
com os mosquitos , e mostra-se relutante
_ Ainda levamos é uma carga de porrada, já pensaram que devem ter sido eles a darem cabo do
barco.
É raro ouvi- lo falar tanto, e temos em consideração a sua capacidade de análise e de síntese.
Do sítio onde estamos, é possível ter uma visão quase total desta aldeia tribal,pelo menos uns dez
indivíduos já se encontram fora das cubatas. O animal capturado está dependurado logo à entrada da
aldeia, do lado oposto é visível uma cerca que delimita o espaço da aldeia.
A entrada é uma espécie de funil que nos permite observar quase todo o local. É provável a
existência de armadilhas, salvaguardando a ingerência de predadores.
Dois homens estão munidos de uns tubos que vão apontando na direção das árvores que os
rodeiam , o seu comportamento, mesmo a esta distância, parece estranho., Outros indivíduos vão
saindo das palhotas, um deles avança em direção a um dos homens dos tubos e arranca- lho das
mãos, ao mesmo tempo que esbraceja como que o repreendendo.
Serão cerca de trinta indivíduos ao todo, a maioria homens, perfazendo 10 ou 11 o numero de
mulheres , pelo menos uma delas, à primeira vista está grávida.
Ao centro da clareira vão remexendo nalguns utensílios dispostos no centro da mesma , agitando
um ou outro .A maioria dos elementos senta- se em dois troncos situados na zona lateral, meio
encobertos por uma árvore que está no nosso raio de visão ,e onde estão dependurados alguns
enormes sacos de rede presos a uma liana entrelaçada a outras duas árvores.
Pelo menos dois desses sacos têm animais vivos, um deles é uma ave.
Um dos homens chama o resto do grupo para o centro , estão a deitar-se de barriga para cima,talvez
iniciando algum ritual, o câmera e o motorista vão fazendo alguns comentários, a colega parece
fixar- se nalguma coisa em particular.
O incómodo demonstrado pela colega da decisão de voltarmos para as tendas não é bem recebido
por nenhum de nós.
_ Por favor , entende tu e entendam vocês, é a ultima coisa que queremos é estar em desacordo
numa altura destas, voltamos para lá , depois regressamos aqui, foi para isso que viemos_ Diz o
câmera ao mesmo tempo que dá um abraço à sua companheira , cujo olhar mostra algum desespero
_ Desculpem- E mais não disse a colega, que antes de iniciarmos o regresso à base, ainda se virou e
centrou o binóculo, novamente na direção da aldeia.
Conhecemos de forma genérica a história de vida de cada um de nós , não encontro razão para esta
atitude demasiado persuasiva da colega, que pauta as suas ações pela liberdade de outrem, podemos
especular sobre tudo o que nos vier à cabeça, ascendência indígena qualquer notícia que tivesse
registado em particular , tudo é possível, inclusive a tentativa de se identificar com outra realidade,
diferente daquela a que está habituada e que considere já disfuncional, não sabemos. É uma pessoa
atualizada , citadina , de mão dada com a modernidade, sem, até agora, ter dado sinais de qualquer
desfasamento.
_ Podíamos mudar a tralha mais para o pé da montanha , ficaríamos mais perto- Sugere o câmera
_ Seria perigoso- Repara a colega_ Ficámos sem saber quase nada sobre eles, vamos mas é
descansar , eu preciso, e vocês também
E realmente o avistar das tendas é como se regressássemos a casa, tinha sido um longo caminho,
sempre feito sob tensão
_ Vejam as vossas mochilas – Pede o motorista
A única mochila que tínhamos levado foi a minha, onde tínhamos guardado o essencial para a
deslocação.
_ Nem é preciso!- Exclama a colega- O meu encosto de cabeça já foi
_ Faltam aqui conservas- Descreve o câmera
_ O meu estojo foi remexido, algum indígena gosta de pintar as unhas- Denuncia a colega, soltando
uma gargalhada
Tínhamos sido roubados de forma educada, as mochilas foram abertas e novamente fechadas, tá
quase tudo intacto , mas fomos roubados, ok… e agora o que vamos fazer?...estamos cansados,
afinal, nós é que tínhamos invadido o desconhecido.
A colega à frente das tendas passa os olhos pelas fotos tiradas à aldeia.
_ Era muito longe- Comenta
O motorista continua a conferir os pertences_ Podíamos ter ficado sem comida- Diz, apontando
para a colega , de forma amistosa
_ Eu sei- Devolve a colega- Foram ladrões compreensivos
_ Faz algum sentido- Pergunto-lhes
_ E faz algum sentido nós estarmos aqui- Interroga o motorista
_ Faz!- Exclama a colega, desta vez em tom sério- Quem fica de faxina primeiro- Continua , já no
seu tom cordial e leve
_ Fico eu- Respondo
Estava cansado, precisava de dormir, mas a tentação de refletir sobre os últimos acontecimentos era
maior .Esta de virem aqui sacarem meia dúzia de latas de conserva e de cerveja, um frasco de tinta
para as unhas , a tentativa do roubo passar meio despercebido eram sinais completamente opostos
àqueles verificados na destruição do barco...é estranho, como é estranho o efeito que aquela tribo
tem sobre a colega…, a atenção que fez aos movimentos de alguns indígenas, a preocupação sobre
que bebidas ou drogas teriam consumido para estarem naquele estado, ela que não consumindo,, é
liberal e nada castradora das liberdades individuais e diferentes estilos de vida.
_ Deixa isso- A voz do motorista é sinal de mudança de faxina
O facto de termos ido descansar ainda bem de dia, faz com que estejamos em pé aos primeiros
arrebites da claridade , durante a noite foram várias as vezes que o elemento de vigia fez uso da
lanterna ao mínimo barulho, e quem estava deitado não se coibiu de estar semi-alerta, entre o sono e
o despertar.
Agora sentados, enquanto a água para o café aquece, à vez, cada um de nós vai- se queixando das
pernas, fruto da longa caminhada de ontem
_ Que fumarada é aquela? Querem ver que há ali outra tribo- Observa o motorista enquanto se
levanta
Ainda é relativamente longe de nós, mas perfeitamente visível , não seria um fogueirão, contudo era
no mínimo um sinal de que havia gente por ali , estamos numa zona onde qualquer erupção
espontânea do solo era muito improvável.
Devíamos ter trazido bicicletas- Diz o câmera enquanto vai comendo um bocado de bolo seco
_ Há quem saiba que estamos exatamente aqui neste sítio – Adverte a colega- Ou é descuido por ser
tão cedo, ou estão a tentar dar sinais de vida
_ Já percebemos , tem calma , já vamos ver, comemos descansados – Diz o câmera , percebendo a
ansiedade da colega
O motorista, entretanto ia juntando toda a comida e bebida num saco, escondendo-a nas traseiras
das tendas, por entre alguma vegetação , tendo o cuidado no regresso, de disfarçar as pegadas.
Já estamos mais despertos devido ao café, mais uma vez caminhamos em fila indiana diretos ao
local do crime, neste caso do fumo, que agora por de entre as árvores é indetetável,temos a noção de
onde vinha , seguimos essa orientação.
O terreno vai sofrendo uma inclinação ascendente que dificulta a nossa movimentação, subitamente
inverte o sentido, estamos agora a descer, o câmera escorrega e cai, conseguindo conter a queixa, a
colega vai em seu auxílio , não é nada, foi mais o susto, de repente ouve- se uma voz que se
expressa num inglês acidentado
_ Aleijou- se?-Questiona uma mulher , saindo detrás de uma árvore
Terá os seus 25 , 30 anos e está acompanhada de um indivíduo um pouco mais velho
_Está tudo bem, quem são vocês?- questiono-os ao mesmo tempo que confirmo com o câmera os
estragos da queda, sem deixar de os observar
_ Tive sorte- Tranquiliza-nos o câmera
Durante alguns minutos ninguém disse nada, observámos- nos mutuamente, a rapariga traz um
vestido castanho- claro, bastante sujo, o seu companheiro veste também roupa pouco condizente
com as circunstancias , parece que vieram de uma gala e caíram num charco
_ Fomos nós que fomos às tendas- Diz ele num inglês um pouco mais aceitável
_ Querido , explica a dificuldade que temos tido em nos alimentarmos e que só por isso cometemos
tão odioso ato- Diz a rapariga com algum constrangimento
_ Querida, eles já devem ter percebido isso pela nossa cara – Tenta retorquir o homem
Já tínhamos reparado que não deviam ser aqui da zona- Digo eu- Já agora,... nós viemos parar aqui
porque quisemos … e vocês?
_ Explica tu querido- Pede ela
_ Sim...claro que sim …, tanto eu como ela fazíamos parte de um cruzeiro, a primeira vez para
mim, ela já tinha feito alguns com os pais
_ Querido , foram duas vezes ,não sou assim tão viajada
_ Sim, desculpa querida, como estava a dizer, estávamos num cruzeiro, o navio foi alvo de um
assalto, era de noite, eu estava sozinho , ela vinha a correr, bastante assustada, estava muita gente a
dormir, eu encontrava-me junto á proa , a coisa aconteceu do lado contrário
_ Foram abalroados- Pergunta o câmera
_ Só deu para ver uma série de indivíduos com fatos de mergulho a espalharem- se pelo
lugar ,devem ter escalado o navio, tinha a estar a observar um bote salva-vidas, consegui colocá-lo
na agua, ela hesitou ,mas desceu já eu estava no bote
_ Mas já se conheciam!- Sugere o câmera
_ Não não, ela viu a minha opção como a melhor para sair dali, e juntou-se a mim, já tinha reparado
nela, numa festa lá no barco, mas nunca tínhamos falado, foi o destino
_ Há cerca de oito meses, calculo- Interrompe a colega
_ Como é que sabe?!- Exclama a querida , ouviu alguma coisa, viu a notícia , o que aconteceu às
outras pessoas?
_ Desapareceram , houve a notícia , pouco se sabe mais- Responde a colega
_ Desta vez vinha sem os meus pais , é terrível , gente má aquela- Conclui a querida
_ Isso é o quê?… 34?- Questiona o motorista apontando para os ténis da querida
_ É, tinha acabado de trocar de calçado, para ir passear um pouco pelo navio, quando aconteceu
aquilo
_ Reparámos lá atrás numas marcas, junto a uma zona de rochas- Enuncia o motorista
_ Foi aí que os vimos!- Exclama com alguma angústia a querida, enquanto se abraça ao querido
_ A quem?- Pergunto
_ É notória a dificuldade que ela tem em falar sobre algo que se teria passado- Vocês deixaram o
bote logo uns metros acima da margem...certo?- Continuo
_ Deram cabo dele, mas isso foi o mal menor, nesse sítio de que vocês falam…, estávamos a
depenar um pássaro… …
_ Vi algumas penas no chão…, já secas- Comenta o motorista
_ Fala tu querido- Pede ela_ Ah..ok, eles apareceram sei lá de onde, com lanças e uns tubos,
pareciam doidos, a minha perna ficou a sangrar, aquilo parecia uma agulha, só acordei na rede
_ Ele desmaiou- Continua ela- Levaram-no às costas, eu fui atada a uma corda, que horror,
caía ,nem esperavam que me levantasse
_ Levaram-vos para o sítio deles?- Pergunta a colega
_ A querida não contém as lágrimas, esperamos , damos-lhe agua , a coisa não está fácil
_ Foram quatro dias dentro daquelas redes- Continua a querida- Vocês estão a ver aquelas redes
onde metem os caracóis ainda vivos, onde são alimentados,...pois ...nós éramos os caracóis,
davam-nos comida para engorda,intragável, feijão cru ,raízes, carne mal assada , ele esteve dois dias
a dormir, mesmo assim metiam-lhe comida na boca...animais
_Estava deveras perturbada e não era para menos, é doloroso olhar para eles , ela uma bela mulher,
beleza essa, ofuscada por uma camada de pelos que lhe cobrem as pernas , buço por fazer, olheiras e
a ausência de qualquer encontro com a limpeza , mas sem dúvida , seria um belo achado
arqueológico, não fosse já ter um querido, é a vida, o relato que nos faz é aterrador
_ Havia uma mulher grávida...certo- Questiona a colega
_ É possível , já foi a algum tempo, talvez
_ O querido aproxima-se de nós , apaziguador , em sinal de entendimento mútuo estende a mão, nós
sem hesitarmos estendemos as nossas – Foi terrível- Continua o querido- Na altura ainda mal nos
conhecíamos, somos de países vizinhos, mas a língua é diferente , é em inglês que vamos
comunicando, quando viu o bote desfeito ficou desolada, temos sobrevivido, e vocês o que os
trouxe aqui?
_ Quiseram mostrar onde viviam, pelo caminho fomos explicando o quase inexplicável que é o
facto de estarmos neste lugar. Já no local onde onde os queridos pernoitam, contivemos alguma
desolação pelo que nos é dado ver.
A descida de que vos falei, vai gradualmente dar a terreno plano, voltando novamente a fazer
subida. É logo no inicio numa pequena gruta rodeada de árvores onde os queridos vivem, em boa
verdade, do mal o menos , já que se podem abrigar da chuva e reduzir o efeito do calor.
Nota-se no comportamento deles a falta de contacto com o mundo exterior, ele mais tranquilo, ela
sempre à beira de um ataque de nervos, comportamento esse, estancado pelos sinais prevalecentes
da educação que adquirira, inconscientemente, adotam amiúde a posição sentada, consequência da
pouca altura da gruta, onde passarão a maior parte do tempo.
A colega, tal como a conhecemos , manifesta já a vontade de minimizar a situação degradante dos
nossos vizinhos.
_ Querem vir já connosco? Ficaremos mais seguros juntos.
Entreolham-se – Sentimo-nos seguros aqui , se vocês não se importassem de mudar...- Sugere o
querido
Tinham alguma razão, conheciam melhor o terreno concordámos em mudar nós para aqui.
_ Ainda não nos disseram como é que conseguiram safar-se lá da rede ou do saco- Observa o
motorista
_ Eu mal me conseguia mexer- Recomeça o querido , vocês não imaginam o que é estarem a verem
animais presos ao nosso lado...e… aquele monte de pedras, a lenha, o panelão de barro, de início
ainda pensei que era para nos assustar, eles são doidos, estão quase sempre alucinados, depois
dormem. Têm uma plantação daquilo por detrás das barracas, colhem as folhas ,batem-nas, fervem
e depois bebem, a seguir é vê-los todos doidinhos- Conclui o querido
_ No período em que estivemos a observá-los não vimos crianças – Comenta o câmera
_ Uma mulher andava com um bebé de um lado para o outro, não viram?
_ Não- Responde a colega com um ar grave – Uma mulher está grávida, só isso , outro bebé não
vimos- Termina , apavorada , como ainda não a tinha visto
_ De qualquer forma só por acaso podem ter filhos- Argumenta a querida- Eles naquele estado,
desculpem , aquilo é surreal, os homens apontam para os seios das mulheres e começam a rir, elas
fazem o mesmo em relação a eles, acho que não entendem as diferenças anatómicas e nem
percebem as diferentes etapas de gestação
_ Afinal como é que conseguiram fugir, peço desculpa- Pergunta a colega ao mesmo tempo que
acende um cigarro
_ Foi difícil , esclarece o querido- Na ultima noite estavam todos já drogados, eu permanecia há
quatro dias com a cara encostada à rede e quando me iam pôr aquelas raízes na boca , aproveitava e
mordia a rede, deu para enfiar a cabeça e os ombros que ficaram em ferida...(mostra-nos as
cicatrizes que começam nos ombros e terminam no meio dos braços)consegui fugir e com o bico de
uma lança, fiz um buraco na rede dela, ainda consegui libertar dois animais
_ Eles nunca acordaram?- Pergunto
_ Mesmo que acordassem… eles ficam desorientados, sem ação quando estão sob o efeito
daquilo- Prossegue a querida- Nos primeiros metros mal conseguia andar, as pernas estavam presas,
depois encontrámos o sitio onde estamos
_ Não voltaram a vê-los- Questiona a colega , que se apresenta outra vez nervosa , ansiosa ,
preocupada
_ É outra história- Responde o querido- Durante a nossa estada na rede deu para perceber que são
extremamente supersticiosos, no segundo dia o tempo estava péssimo, até foi bom já que acordei
com a chuva , a cada trovão, abraçavam- se e choravam , deve ser boa altura para procriar- Diz de
forma fria e mordaz- E houveram outras coisas – Termina o querido
_ Seguiram- se alguns dias, pensámos numa forma de os assustar, caso aparecessem, e resultou de
forma certeira- Observa a querida
_ A lama e o barro serviram de cola- Prossegue o querido- Dormimos assim umas noites, as folhas
caiam, voltávamos a colá-las, enfiámos uns ramos na gruta ,só um de nós dormia, houve uma
manhã em que estávamos os dois acordados, reparámos a tempo na presença deles , abraçámos os
ramos, parecíamos árvores em movimento, desataram aos gritos e fugiram, nunca mais os vimos.
Determinado que ficou sobre quem mudaria de casa, regressámos às tendas, neste caso já
conhecendo o caminho, o que facilita.
_ Coitados , o que passaram , uf…, a peluda estava branca a contar aquilo- Balbucia o câmera
_ Há indivíduos que têm mais pilosidade que outros , ela até é engraçada , vá lá não sejas
mauzinho – Corrige a colega enquanto lhe dá uma palmada
_ Tens razão, desculpem… … já pensaram como é que vamos sair daqui um dia!
Ficou tudo em silêncio.
O rumo dos acontecimentos leva- nos a questionar o prolongamento da nossa presença neste local, à
exceção da colega que fica em silêncio.
O testemunho destas criaturas é surpreendente, todavia não os sentimos relegados para uma
condição de revoltados, mas sim enredados num processo de desorientação e interrogação sobre a
natureza humana, o assalto às nossas tendas tinha sido um ato puro de defesa das contrariedades
impostas por terceiros , à sua , até à pouco tempo, normal convivência com outros humanos.
A reação da querida à queda do câmera tinha sido espontânea, parecendo advir de um sentimento de
culpa , resultante do roubo ás nossas tendas. Perante tal evidência , evitámos desde logo qualquer
sinal de reprovação para com o gesto, esse sentimento quando genuíno é facilmente captado.
O homem capta e envia sinais de hostilidade e recetividade que, por muita adaptação ao uso da
dissimulação como arma para conseguir os seus intentos, é insuficiente para contrariar instintos, por
si só inalteráveis, desde o movimento das sobrancelhas , ao dos lábios, vários sinais acompanham
esses sentimentos de forma evidente.
Desde cedo os queridos mostraram alegria por nos conhecerem, sem nos conhecerem, o que
entronca na eficácia desses sinais, que têm o condão de serem absolutamente fidedignos no nosso
estado de espírito.
Assim que vi que estavam todos levantados, fiz o mesmo ,apesar de me apetecer descansar mais
umas horas, começo a arrumar as minhas coisas, é hora de mudarmos de casa, teremos vizinhos
novos. Começa a chover , o que não ajuda muito , esperamos , veremos se há alguma aberta , o
motorista já estava de mochila às costas.
Eles tinham garrafas de agua dentro da gruta- Refere o câmera
_ A querida disse- me que agua não falta , junto à montanha- Esclareço
_ Que bom! Nós também vamos precisar – Relembra a colega
Choveu durante meia hora, seguimos agora a descida que antecede o local de pouso dos queridos, o
terreno está escorregadio, vamos com cuidados redobrados,pela primeira vez , desde que aqui
chegámos,faz um vento forte o que incomoda.
O câmera vai à frente , argumentando com os efeitos da vegetação molhada e estando ele já de
sobreaviso.
Temos de limpar o terreno à volta, aquilo é inclinado e rochoso , temos trabalho- Avisa o motorista
Estamos perto, os queridos fazem sinais com os braços, temem que nós não descortinemos o sítio.
_ Estávamos para acender o lume , quando começou a chover – Alerta o querido- Tivemos de comer
isto frio, tirámos das latas para as folhas , o resto é para vocês.
Tínhamos deixado alguma comida , neste caso uma lata de feijão com legumes.
_ Éramos para esperar , começou a chover, pedimos desculpa- Contemporiza a querida
_ Ora essa, fizeram bem , nós aliás já comemos alguma coisa , vamos pôr as tendas ao lado da vossa
casinha- Refere a colega enquanto passa a mão pelo cabelo da querida , num gesto de carinho
_ Estamos tão contentes por estarem connosco- Exalta a querida
_ Vocês para irem buscar agua , como é que fazem?- Pergunto
_ É sempre com o coração nas mãos , damos uma volta enorme , vamos dar a um estreito junto à
montanha onde corre agua doce
Durante a noite eles não saem de lá, para além de estarem zonzos têm medo dela- Acrescenta o
querido
A ideia de termos trazido 12 quilos de arroz divididos pelas quatro mochilas foi boa, é o que iremos
fazer para logo, se o vento deixar já que não podemos desperdiçar gás , só temos mais uma botija
A colega e a querida afastam-se uns metros , levando com elas um recipiente cheio de agua.
_ Estava junto aos sacos de rede, quando nos safámos trouxemo-lo connosco, primeiro agarrei-o
como arma de arremesso, depois acabei por trazê-lo ,não foi fácil- Enuncia o querido
_ Querido!...querido- A querida, chama em tom baixo, à semelhança do que nós fazemos
Ela pede para ele lhe despejar agua pelas pernas abaixo, enquanto a colega lhe faz a depilação
Colega essa que já tinha revelado a decisão de voltar ao contacto com os indígenas, nem sequer
tentámos demovê- la dessa ideia.- Ninguém tem o direito de dispor da vida de ninguém , aceito de
bom grado que não queiram ir, eu irei sozinha_ Diz , calma e segura.
Acredito que sinta o que diz , mas ao mesmo tempo , sei que ela sabe, que se for, iremos com ela.
Durante o resto da tarde e principio da noite, o contacto com os queridos , permitiu termos a noção
de que apesar de todos os infortúnios , para além de toda a vida que tinham deixado para trás,
exaltavam o facto de se terem conhecido nestas circunstâncias.
_ Vocês apareceram na altura certa, foi como uma luz- Diz ela a certa altura
A colega desdobra-se em atenções para com ela , vindo ao de cimo a sua grandeza como ser
humano.
De manhã cedo lançamos mão dos tarecos no sentido de termos a primeira refeição, os queridos
denotam alguma melhoria no seu estado físico e anímico.
_ Depois do que se passou com os queridos, acham provável, aquelas pessoas permitirem que se
aproximemos ?-Questiona a colega
O motorista nem deixou que os queridos, que não deixaram de ouvir a pergunta, se manifestassem
_ Eles vivem apavorados com a ideia de alguma aproximação com o exterior, não tenham ilusões,
a destruição do barco e do bote são prova disso mesmo
_ Concordo- Acrescenta o querido- Quando estavam lúcidos , olhavam para nós como extra-
terrestres, podemos não ter sido os primeiros a estar ali, pareceu-me ver uma máquina fotográfica
por ali e um deles trazia um relógio de pulso na canela.
_ Vocês falaram de um bebé!- Comenta a colega- Nós enquanto os observámos não demos conta de
nenhum bebé
_ Mas havia , podem estar certos, a mulher andava com ele de um lado para o outro, o resto do
grupo parecia apreciar o espetáculo
_ Uma mulher está grávida, isso vimos os quatro- Esclarece o câmera
_Camuflar-nos com ramos e folhagem- Sugere a colega
_ É arriscado, dentro do espaço deles devem ter outro tipo de reação- Contrapõe o motorista
Durante quinze dias limitámo-nos a dormir, conversar, fomos à montanha buscar agua e construir
uma cabana para os queridos com estacas , ramos, folhagem e barro que é mais lama, de qualquer
forma ficaram agora com duas casas.
Neste início de manhã a colega começa a juntar algumas coisas e a pô-las na mochila, enrolou
várias porções de arroz com feijão em bocados de prata, acomodou agua, a lanterna, e encostou a
mochila à tenda
_ Deixa-nos pensar na melhor maneira- Pede o câmera enquanto olha para nós com ar interrogativo
_Acham que não estou farta de pensar- Elucida a colega
_ E…?-Pergunto
_ É um risco que tenho de correr- Responde , de forma evasiva
_ Podemos saber o que te move?- Atira o câmera
_ Nunca iriam entender ou compreender- Responde, nervosa
Começava a intrigar-nos e a preocupar-nos o estado de espírito da colega, fazia contas num papel,
insistia com os queridos sobre a data em que tinham partido para o cruzeiro, é difícil entender o que
se passa na cabeça dela. Estavam decorridos à volta de dois meses que tinha abortado de forma
espontânea, pode estar numa fase de luto mais aguda, sei lá.
O motorista, após o que podemos chamar de almoço, acomoda alguns pertences na mochila da
colega, que fica em silêncio . Eu e o câmera fazemos o mesmo e quando os queridos faziam questão
de nos acompanhar, a colega intervém- Por favor…, obrigado, mas até podem ser mais úteis aqui
_ Já pensaram no que vão fazer, é uma decisão minha- Exclama abrindo os braços
Ninguém respondeu, a colega já punha a mochila às costas, sendo interrompida no gesto pelo
motorista que se encarrega de a transportar, os binóculos já estão ao pescoço de cada um.
_ E se tentássemos subir a montanha , e daí vermos como é que param as modas!- Sugiro
_ O que adianta?- Responde a colega
De facto nem eu, que pus a hipótese , sei o que o que adiantava, aquela de nos disfarçarmos de
árvores já tinha sido descartada
_ E se começássemos a ladrar?
A colega riu-se, nada disse, soltou qualquer coisa entre-dentes, nada usual nela.
A distância ainda é grande, já teremos percorrido cerca de metade, é altura de descansarmos as
pernas.
O silêncio impera, a ideia de que eles não saem à noite está bem presente, contudo a aproximação
só faz sentido se for de dia.
Reatamos a caminhada, aproximam-se emoções fortes, a adrenalina aumenta, o motorista nem
sequer trouxe o sabre, a pedido da colega , que continua a achar que nos vão receber, é quase de
noite, vamos utilizando os binóculos, enquanto não escurece, isto apesar de, como já vos descrevi,
as noites serem bastante claras.
Com maior ou menor dificuldade , dada a irregularidade do terreno, vamo-nos aproximando da
aldeia.
_ Lá estão eles- Observa o motorista
Rapidamente , com a utilização dos binóculos vasculhamos todo o perímetro que nos rodeia, não vá
haver surpresas.
Uns estão… … a reparar a cerca- Ilustro- Mas do que é que eles têm medo? Pergunto, curioso
_ Sei lá – Responde o câmera- Oh meu deus!-Exclama
_ O que é agora – Pergunta o motorista
_ Apontem para o lado direito -Pede o câmera
A colega é agarrada pelo motorista, que evita que ela se escape na direção da aldeia, mesmo assim
ela tenta tirar o braço
_ Acalma-te não façam barulho, fui o primeiro a ver, o que queres fazer?
Ela senta-se junto a uma árvore com as mãos na cabeça, o cenário é chocante, um bebé está dentro
de uma daquelas redes, tendo a seu lado, um outro saco que tem uma espécie de rato gigante, não
se percebe que bicho é.
_ Não pode ser o bebé de que os queridos falaram- Observa o câmera
_ Claro que não, este é recém-nascido- Diz a colega enquanto o seu olhar se dirige para o céu e as
lágrimas lhe correm pela face- O que é que lhes podemos oferecer? O que podemos dar em troca,
será que eles não sabem o que é dinheiro?Podemos mandar construir-lhes casas em condições , se
eles quiserem- Desabafa a colega
Não respondemos , é arrepiante ver o bebé ali, ela está deveras transtornada
_ Ficamos aqui durante a noite , logo se vê o que fazemos – Sugere o motorista
_ Não… não- Quase grita a colega , exasperada
Perante a nossa insistência lá concordou, passaremos aqui a noite e pela manhã decidiremos a
melhor forma de os chamar à razão.
A colega não quis comer, andamos por aqui a observar o lugar, é já de noite, consegue ouvir-se
um batucar descontinuado , vindo lá da aldeia.
_ Já estão malucos- Insinua o câmera depois de mais uma ingerência binocular
_ Se conseguíssemos sair daqui e explicar o que se passa- Disserta o câmera
_ Até lá…!- Exclama a colega em tom grave
Acabamos por nos encostar ao tronco de uma árvore, a mochila serve de almofada a nós os três, o
motorista continua a tentar descortinar alguma saída ,acaba por se encostar também. É impossível
pegar no sono , a colega entre mim e o câmera , treme e não é de frio. O câmera sopra-lhe palavras
bonitas ao ouvido, ela parece querer virar o mundo ao avesso, acabei por adormecer, acordo
assustado, o motorista é o primeiro a reagir, indo no seu encalço.
A colega tinha fugido em direção à aldeia, é de noite e qualquer barulho é perigoso, chegamos perto
do motorista.
_ Escapou- Adverte
A esperança de que a colega tenha o bom senso de não invadir de forma inusitada o território da
tribo, é alguma.
_ Cheguei a estar a uns 40 metros, tive de rodear um monte de arbustos...- Foi-se- Informa o
motorista, ofegante e desalentado
_ Ela corre mais do que nós- Comento, enquanto tento detetar algum movimento
O câmera mal nos ouve, continua a andar, já está uns vinte metros à frente.
_ Estás maluco?!- O motorista contém o vozeirão que o caracteriza, o câmera nem o ouviu ,decidiu
dar uma corrida.
Estou junto ao câmera que convenço a esperar pelo motorista, cuja corpulência não ajuda muito
nestas situações. É o que se chama um indivíduo de peso, sendo de nós quatro, o que menos
exercício faz, ao contrário da colega , que quando tem tempo faz corrida, é usual o câmera
acompanhá-la, o motorista já está junto de nós.
_ O que queres fazer!- Exclama , dirigindo-se ao câmera
_ Não a vou deixar sozinha – Avisa
_Ela não é maluca- Digo
_ Mas está!- Exclama
_ É pá , esperamos que o dia fique mais claro, até lá vamo-nos aproximando – Sugere o motorista
ainda mal refeito das corridas
Durante as cerca de duas horas que se seguiram , nada aconteceu de registo, estamos mais perto,
nem sinal da colega.
_ Ouçam, ouçam…!- Exclama o câmera
O choro do bebé era audível, parou, e voltou a ouvir-se.
_ A aldeia é nesta direção- Aponta o motorista- O terreno é mais alto na direção da montanha
É notório este desnivelamento , o desvio não é grande, vamos nesse sentido, já é bem de dia e o sol
espreita por entre as árvores, de vez em quando bate-nos na cara.
_ Aqui, e aquela árvore- Assinala o motorista
Subimos, o câmera é o primeiro a sinalizá-los – Lá estão eles , a ela não a vejo- Deve tentar, ou
melhor, tentou, foi caçada, arriscou ir por detrás das cabanas, já tinha previsto isso
O câmera já detetou a companheira, limita-se a observar, está calmo, por enquanto.
O motorista vai olhando em todas as direções, não sei o que procura.
_ Descemos, Apróximamos-nos e se for caso disso , lutamos, vejam se conseguem arranjar uns paus
que não estejam muito secos
_ Eles são mais de trinta- Observo
_ E então! Queres deixá-la sozinha?- Diz irado
Longe disso, o que eu acho é que estamos todos muito nervosos, por isso não respondi ao motorista,
penso que de pouco vale o nosso sacrifício voluntário, sem termos ideias práticas para resgatar a
colega, estas podem ser as ultimas horas das nossas vidas
_ Lançar fogo àquilo pelas traseiras, estão a ver onde está a plantação ?- Sugere o câmera
_ É uma hipótese , tem calma- Replica o motorista, enquanto vai afiando um pau, raspando-o
numa pedra
_ Ouvimos o bebé, não ouvimos qualquer grito ou lamento dela- Diz o câmera que não consegue
esconder o sofrimento por que passa
_ É normal nela- Esclareço. A colega tem um auto-domínio que faz inveja a qualquer um, só agora a
temos visto por vezes alterada. - Prosseguimos nesta direção , vamos dar às traseiras onde eles vão
menos vezes- Concluo
Seguimos até chegarmos a uns cem metros do local, ladeamos a aldeia como preconizou o
motorista, algumas vozes meio alteradas soam a desentendimento no seio dos indígenas.
_ Se soubéssemos o que se está a passar – Desespera o câmera ao mesmo tempo que se dirige a
uma árvore
_ Vai adiantar?- Questiona o motorista- Tá bem , sobe – Diz com algum enfado
Nós subimos também, a colega continua em pé, tem a blusa aberta ou rasgada, estes maluquinhos
acham mesmo estranho a diferença entre o homem e a mulher, uma indígena tenta puxar-lhe uma
teta, oh… a colega cospe-lhe, a mulher desata a correr indo lavar a cara, eles são doidos, o bebé
está na rede , tem sorte na posição, se estivesse de cabeça para baixo já tinha morrido, o ratazão, uns
metros ao lado não se percebe se está vivo ou morto.
_ De momento vão deixa-la ali presa à cerca, fazem a vida deles e…, esperem aqui- Ordena o
motorista.
Dois dos indígenas acabam de sair da aldeia com dois …, aquilo são os tais tubos , vêm na direção
onde nos encontramos
_ Começam a olhar para cima das árvores, vão à passarada …, olhem o que estes canalhas estão a
dar ao bebé!- Exclama o câmera
_ São minhocas- Diz o motorista
_ E… o que é aquilo preto?- Salienta o câmera
_ Térmitas… e vivas- Esclarece o motorista
Viro o binóculo para a colega, tem a cabeça baixa, levanta-a, parece que está a morder os lábios ,
estes gajos vão pô-la na engorda também, neste momento são menos dois, aquelas agulhas feitas de
osso têm veneno, olhamos para o local onde os dois indígenas caçam, já caíram dois pássaros,um
deles corre a apanhar um, que atira na direção do outro indivíduo , acho que é altura de descermos
e chegarmos o mais perto possível.
Ladeamos a aldeia pelo lado mais próximo da montanha, ainda a uma distância considerável, entre
árvores espiolhamos o recinto da aldeia, ouvem-se alguns tam-tam, o movimento é pouco.
O objetivo é colocármo-nos do outro lado, junto às traseiras da aldeia , que é onde está a tal encosta
e onde se encontra a pequena plantação. Queremos visionar até que ponto essa encosta nos permite
ter um acesso mais repentino ao recinto, se necessário, tudo está dependente do terreno que viermos
a encontrar.
O motorista vai à frente, aliás é quase sempre assim por ser o que acumula mais capacidades, à
exceção da corrida, como já foi descrito.
No sítio onde nos encontramos é impossível ver a aldeia, são uns duzentos metros, temos sorte,
alcançamos uma contra-encosta, vejo a ansiedade do câmera, que pode ser contra-producente e
inimiga da clarividência .
_ Se ele veio à frente até aqui, tem calma- Interpelo o câmera quando ele tenta tomar a dianteira no
início da subida
Alcançado o fim da subida...lá está a colega , exatamente onde tínhamos visto, atada à cerca.
Mesmo deitados, temos uma visão da aldeia quase total, é revoltante olhar para o bebé que
estranhamente, é raro chorar.
Os elementos da tribo estão na sua maioria entregues a várias tarefas que ainda não lhes tínhamos
visto executar, reparo que algumas mulheres lavam utensílios de barro, têm ao fundo do lado
esquerdo um grande recetáculo de onde tiram agua
_Aquilo é agua da chuva?- Questiono
_ É um poço, como o fizeram, não sei- Esclarece o motorista
Realmente aquele círculo de barro que emerge do solo indicia isso, a profundidade não fazemos
ideia.
_ Já está mais tapada- Observa o câmera
Já tinha reparado, deve ter conseguido puxar a blusa com os dentes, já que continua com as mãos
atadas, duas mulheres sobem uns metros da encosta, devem separar-nos pouco mais de cem metros.
_ É aquela a plantação de que falavam os queridos- Observa o câmera
A plantação a que se refere o câmera fica logo acima àquela a que já tínhamos feito alusão, e que
continua a parecer feijão.
_ Agora vão para a bebedeira, é alguma planta com propriedades alucinogénias- Comenta o
motorista
As duas mulheres levam um braçado daquilo, entregam-no nas mãos de dois homens que batem
com as folhas no chão e as colocam dentro de um pote de barro. Com um maço composto por um
pau com uma pedra numa das extremidades, batem aquilo, colocam mais plantas, outro indígena
chega ao pé deles… dá-lhes um empurrão, executando ele a tarefa.
_ Reparem, acendem o lume, sopram num tubo- Diz o câmera, agarrando-me o braço
_ Já está aceso, devem ter feito a combustão com alguma coisa- Acerta o motorista , com o suor a
correr-lhe pela face, fruto do sol que lhe bate na mesma
Gradualmente vão-se chegando mais indígenas, contei até agora vinte, estarão mais nas cubatas, vão
olhando para a colega, embora sem se chegarem perto, pegam nas folhas já batidas e atiram-nas
para outro pote que já está ao lume, tal e qual os queridos relataram, e já começam a consumir a
poção mágica.
Excluindo o facto de terem lá a colega atada e o bebé dentro da rede, o ritual que se deve seguir não
nos interessaria para nada, queremos libertá-la, não sabemos como, esperamos a ver o que acontece,
ela parece aguentar-se, já se ri, até.
_ Repararam?
_ Em quê?- Questiona o motorista sem se voltar
_ Está a sorrir!- Reforça o câmera – Sorri para o sítio onde se encontra o bebé
O bebé encontra-se do lado esquerdo ao da colega, os indígenas estão um pouco à direita da nossa
amiga, continuam a beber aquilo, alguns já começam a mostrar os dentes e a movimentar-se de
forma algo estranha. Um deles anda com um púcaro na mão, bastante perto da colega, dirige-se a
ela e encosta-lhe o púcaro à boca, ela fecha-a, abana a cabeça várias vezes de forma negativa, o tipo
dirige-se ao outro lado em direção ao bebé.
Pode ser fatal , o homem é doido, a colega agora sim, passa-se, começa a pontapear o chão, grita
para eles e por agora consegue os seus intentos, o homem deixa o bebé e junta-se ao resto do grupo.
_ Oh...oh, o bebé está a levantar a cabeça e a olhar na direção dela, parece que se está a rir-Diz o
câmera surpreso
_ Deve achar que é a única pessoa que não está doida- Sintetiza o motorista
A indefesa criatura de facto, tem a cabeça levantada, e está a sorrir para o outro lado, mostra
solidariedade para com a colega, ou então chegou a beber daquilo.
_ Estão a pôr mais lenha na fogueira, com este calor...uf- Alerta o câmera
O motorista olha para mim por cima do ombro do câmera, e liberta- Devem ir fazer o almoço
Durante breves minutos ficámos os três em silêncio, o câmera quase que enterra o binóculo nos
olhos.
_ Há ali um que está coxo, parece ser o menos alucinado- Observa o motorista
Centro-me no grupo de indivíduos mais afastado, um deles realmente evidencia algum desequilíbrio
na locomoção , tento atestar eventuais feridas, talvez na planta do pé.
_ Não apresenta sinais de dor , e a forma de mancar já está bem consolidada , parece ser coisa
antiga- Esclarece o motorista
_ Estão a arrastar aquele enorme panelão, um deles estava a dormir- Indica o câmera, levantando-se
como que picado por vespas
Colocam o panelão em cima da fogueira, o bebé está a vomitar, é horrível, pudera… com as merdas
que lhe dão, este será o cenário mais degradante com que nos deparámos nestes anos todos ,
carregados das mais variadas emoções, viro o binóculo para onde se encontra a colega, está
vermelha, nota-se, mesmo sendo morena, está a quebrar, não é bem percetível, mas parece chorar,
o câmera não larga o binóculo um segundo.
_ Reparem, estão a dar as mãos uns aos outros, agora estão a fazer a« hola » como nos campos da
bola , a agua já ferve, podiam era mandar-se para lá.
O topo da encosta, onde neste momento nos encontramos, é parco em vegetação, o que torna a
nossa posição mais vulnerável, sendo a tal plantação a dar-nos algum resguardo, este espaço que faz
traseiras com as cabanas tem formato piramidal , estando nós no topo.
Neste momento há lugar a uma dança com coreografia bastante rudimentar, onde cada elemento
segue os seus instintos dançarinos, o coxo está quase sempre fora dos rituais, já passou ao pé da
colega, inclinou a cabeça para baixo, e dirigiu-se a uma das palhotas
_O ratazão ainda está vivo, mexeu-se, deve estar cheio de comida- Diz o câmera fazendo o ponto da
situação
De vez em quando eu e o motorista trocamos alguns olhares de cumplicidade, no sentido de termos
atenção ao câmera, que começa a revelar algum desnorte com a situação, e o pode levar a alguma
atitude irrefletida.
_Olhem...estão a puxar qualquer coisa do poço...é um animal, se calhar ainda é aquele que vimos
caçar
_ Usam a frescura do poço para conservar, vão pô-lo a cozer, ou assam-no na parte de baixo -
Explico ao câmera , tentando aliviar a ansiedade e o desespero que o assola
_Fica quieto!- Com a mão e a voz firmes, o motorista segura o câmera pelo cinto, quando ele se
preparava para levantar e talvez acorrer à colega que estava a ser levada.
De início deu uma patada num deles, é agarrada como um animal, seguram-na pelos pés e cabeça,
que vira na nossa direção, fixando exatamente o sítio onde estamos, teve tempo para pensar em que
local poderíamos esboçar uma aproximação.
O motorista usa a sua força para segurar o câmera e tapar-lhe a boca, a coisa está feia, passam com
a colega junto ao panelão, estão a levá-la para junto dos sacos de rede, mesmo ao lado do bebé, o
motorista já pode largar o câmera
_ Malditos!-Vocifera , não contendo a raiva
Temos a esperança de que fiquem zonzos , ficaria mais fácil, tentamos localizar objetos cortantes
que por ali se encontrem, estupidamente , nem um canivete trouxemos. Com a decisão da colega
não deu para pensar em tudo, arranjámos um pau afiado, mais indicado para ir aos figos.
_ Já estão desgraçados de todo- Ilustro-O coxo, decididamente bebe pouco daquilo, entra e sai da
cabana, dorme lá com, ao que parece, duas donzelas, uma controla a outra, devem ter sido os únicos
a receber a bênção da libido, alguma ajuda poderá vir dali, pelo menos da parte do coxo
_ Aquela espécie de faca com que cortaram o animal, vais lá tu e nós esperamos aqui junto à cerca,
por detrás das redes- Diz o motorista dirigindo-se ao câmera que rebate a ideia
_Podíamos descer aqui
_ É perigoso! Por entre os paus das palhotas vêm esta encosta toda, iremos arriscar tudo fazendo um
desvio pelo lado esquerdo, estaremos em terreno mais acidentado, com árvores à mistura
_ Lá está o coxo- Observo
_ Parece gostar da colega- Brinca o motorista
_ Está a limpar o vomitado do bebé...e reparem, está a desatar os braços dela…, já é bom- Desabafa
o câmera
_Ai…!que merda é esta?- Queixa-se o motorista
_ O que é que foi?!- Questiono, ao mesmo tempo que...ai!… que merda é esta…
Acordei há pouco tempo, não nos ataram, tenho sempre comigo um pequeno bloco e uma caneta
que guardo nas botas, com alguma ginástica consigo fazer o relato do que se passou, e do que se
está a passar.
Não fomos acometidos por alguma doença súbita ou picados por alguma vespa, ainda tenho a perna
dorida, o motorista dorme, espero que não o tenham morto, o câmera já está acordado, puseram
mais um saco para nos receberem, estou pendurado ao lado do ratazão, que não se mexe.
Tudo leva a crer que os dois indígenas que tinham ido aos pássaros nos tenham apanhado por trás e
soprado aquelas setas, ficámos sedados, e aqui estamos os quatro, um bebé e um ratazão, que agora
me parece mais um porco-espinho, o câmera , dois metros à minha direita está de cabeça para baixo,
tenta lentamente melhorar a posição do corpo.
_ Há quanto tempo estamos aqui?- Pergunta, nervoso, penso que também devido à presença de um
indígena ...tenta localizar a colega- Oh...oh, seus canalhas!- Exclama, quando repara que tentam
meter rãs vivas na boca dela
O tipo, vendo que é difícil , atira com as rãs pra cima do nosso motorista que...vá lá, está vivo e
acorda, os indígenas dão sinais de euforia, devem pensar que nunca tiveram tanta comida.
Estranhamente a colega, a uns três metros de nós olha-nos com comiseração, desviando no entanto
a atenção para o bebé, cujos olhos, reparo, são exatamente iguais aos seus, verdes escuros, bonitos,
como os dela.
A maneira como fui atirado para aqui permitiu que me acomodasse de forma a colocar-me em
posição fetal, que me permite algum movimento.
Após um período de silêncio, o motorista só agora parece ter tomado consciência da situação em
que nos encontramos.
_ E agora?...- Questiona
Estou de frente para a colega, cujas lágrimas evidenciam agora o seu estado de espírito
_ Desculpem- Diz enquanto tenta enxugar as lágrimas
O coxo sai neste momento da sua cubata, uma das suas companheiras vem à saída, como que
perguntando “onde é que vais?”. É um indivíduo com idade entre vinte e trinta anos, é difícil
precisar, usa o cabelo atado com mais do que um nó, à semelhança da maior parte deles, revela um
comportamento estranho , se comparado com os outros.
Junto ao poço um grupo de quatro deles, denota alguma alteração, gesticulam bastante, um deles
aponta na nossa direção, aproximam-se e dirigem-se ao saco onde está o motorista, todos contornam
a rede, apertam-lhe os braços, ele dá um safanão
_ Acham que já estou bom para ser assado ou cozido- Desabafa o motorista
_ Se já tivessem descoberto o azeite, estávamos fritos- Diz o câmera, ironizando e denotando já
algum desequilíbrio na forma como nos olha, mesmo para os indígenas , rindo desalmadamente.
O coxo chega perto dos tipos que estão junto ao poço e aponta para dentro do mesmo, dirigindo-se
a seguir para a sua cabana.
_ É o único que não tem a função renal no cérebro , e tem noção desta barbaridade- Indica a colega
_ Está a tentar demovê-los de começarem a utilizar-nos como comida
_ Ele que nos solte durante a noite…, se é assim tão diferente… que nos solte...ai!..ai! que já parti
um dente, a rede é difícil de roer!- Exclama o motorista
A colega lá conseguiu pôr-se de maneira a esticar o braço por de entre os buracos da rede, e de vez
em quando dá a mão ao bebé.
_ Tem os teus olhos- Observo, finalmente
_ É o meu filho!Exclama, não contendo mais uma vez as lágrimas que lhe correm pela face
O câmera que se encontra virado para o lado contrário e ainda não tinha reparado nesse pormenor,
ergue o tronco e tenta a custo olhar nessa direção
_ Foi por isso que viemos !- Solta o motorista , complacente, mas, de alguma forma interpelando a
colega
_ Desculpem...desculpem, peço-vos desculpa!…, não imaginei…,devia ter vindo sozinha , peço-vos
perdão- Lamenta a colega entre soluços e em concomitância com o choro do bebé, já com pouca
volumetria, dado o seu estado evidente de fraqueza, o que não o impediu de , aparentemente, reagir
ao descalabro emocional da… …!mãe.
Durante a noite, por várias vezes , o indígena coxo veio cá fora, numa delas percorreu quase todo o
perímetro da aldeia , sempre junto à cerca. Depois de passar o poço e estando a dirigir-se na nossa
direção, foi interrompido no seu percurso por uma das suas amigas, que o interpelou barafustando
bastante. Pelo meio, outros indígenas saíram também, para necessidades fisiológicas, voltando
depois para dentro, as noites arrefeceram daí o recolher generalizado.
Agora , desta vez o coxo que parece querer ajudar, mal conseguiu percorrer meia dúzia de metros
quando a mais corpulenta das suas amigas veio na nossa direção, pôs-se de costas voltadas para nós,
como que desafiando o coxo. Era evidente que ele queria fazer qualquer coisa por nós e elas não
deixavam, o homem acaba por voltar para dentro , com evidente desalento.
_ O gajo queria soltar-nos- Diz o motorista
_ Eu reparei, elas se calhar devem dizer-lhe que se nos solta fazem queixa aos outros gajos ,
estamos tramados
O câmera , na posição em que se encontra , pouco ou nada terá visto
_ Mas… porquê?- Interroga-se de forma evasiva
_ São ciúmes- Murmura a colega de forma quase impercetível
_Ciúmes de quê? E porquê?- Questiono ao mesmo tempo que reparo na sua posição quase
acrobática para estar de mão dada com o bebé
_ Ciúme, simplesmente ciúmes da preocupação dele para connosco, o ciúme é o pai da mola que
move o mundo
_ E o que é a mola?- Questiono, intrigado
_ O dinheiro- Responde, enquanto tenta puxar a rede do bebé mais para si- Se eu fosse capaz de lhe
dar peito!
O silêncio invade-nos por dentro e por fora, o câmera assume uma desistência precoce, o motorista
dá mostras de estar pronto para dar uma patada nalgum deles, se tiver oportunidade, o ratazão ou o
(porco-espinho) deve estar morto, o cheiro assim o indica. Estes tipos se tivessem escassez de
comida, não o deixavam aqui tanto tempo, andam muitas vezes a trincar qualquer coisa , parece
fruta, tâmaras ou algo da mesma família , embora não larguem casca, talvez a comam, o grau de
inconsciência a que estamos submetidos , ultrapassa qualquer tipo de razoabilidade que
esperaríamos por parte de terceiros, ainda por cima da classe humanoide .
Apercebo-me que o motorista não desiste da sua intenção de roer a corda , não parece tarefa fácil,
apesar de, pelos vistos , o querido o ter conseguido. A rede é feita de filamentos de raízes,
entrelaçados, dando-lhes alguma robustez , enquanto tiver dentes vai tentando, até porque temos
pouco que fazer .
Contenho a raiva que me invade com quanto me vou apercebendo do sofrimento por que passa a
colega na iminência de ver o fim de vida deste bebé que ela diz ser seu filho.
Seria pretensioso estar a tecer qualquer tipo de consideração acerca desta sua crença , será sempre
uma deriva do natural e convencional para o sobrenatural. Reagindo à cronologia dos factos e às
semelhanças físicas , acorrento essa hipótese no espaço do meu imaginário, só isso.
É de dia, acabei por perder a luta contra o sono, o corpo , esse, está cada vez mais dorido, imagino o
câmera naquela posição , levo-me a pensar no que poderá e deverá seguir-se, começo a ter de
aceitar que acabar como o ratazão será dos melhores desfechos a equacionar, outro previsível rumo
dos acontecimentos, é por demais horrível .
Um dos indígenas vem até nós com uma tigela na mão , aborda-nos como se de animais se
tratássemos, o câmera não esboça qualquer tipo de reação, a colega aceita, o motorista...penso que
também, eu faço sinal de que estou ocupado a escrever, sendo que quando o indígena se prepara
para levar a tigela à boca do bebé, a colega cospe a poção que tem na boca em direção ao tipo, que
lhe dá um pontapé debaixo para cima, acertando-lhe nas costas, tendo ela refreado algum tipo de
queixume , o motorista, como que reagindo por ela, emite um som , mais parecendo o de um boi
enfurecido.
_ O que é que tu tens?- Pergunta a colega , devendo estar a dirigir-se ao câmera , que não responde
Alguns nativos já se encontram fora das suas cabanas, alguma coisa se passa, parecem nervosos, o
coxo , que se encontra a cortar alguma vegetação junto à cerca, é abordado por outros quatro
indígenas, também as suas duas companheiras estão próximas do local participando no fervilhado
diálogo apontando amiúde para nós.
O coxo começa a ser pontapeado e esbofeteado, mais indígenas se chegam, se calhar informados
por elas da sua intenção de nos libertar, e envolvem-se também no massacre ao pobre coxo que
agora se tenta defender da chuva de pauladas , que já o deixam a sangrar da cabeça, eis quando as
duas mulheres, que até aqui iam assistindo, desatam aos gritos e a puxar o cabelo dos agressores,
conseguindo libertar o coxo, uma delas dirige-se ao poço trazendo agua de volta, com a qual
limpam as feridas, enquanto barafustam com o resto da aldeia e mais uma vez apontando para nós.
Este episódio nem sequer adensou a tensão e o nervosismo no nosso seio, o conformismo vai
tomando conta de nós, é sem surpresa e com recato que nos apercebemos que eles preparam
alguma, um grupo grande que não consigo contabilizar vem em direção a nós, mais propriamente ao
motorista envolvem-no formando um cordão, e começam a desatar o saco de rede.
Apesar do seu letárgico estado, a colega lança uma série de insultos, agarra-se à rede com as duas
mãos e implora que nos deixem em paz, os seus olhos parecem em vias de lhe saltar.
O motorista tenta defender-se “um murro dele põe qualquer um ko”, um dos indígenas vai buscar
um daqueles tubos, para, a uns metros de nós, lançar uma daquelas agulhas e… mais uma, agora
esperam que ele adormeça.
Agarram-no como a um porco, desvio o olhar, as lágrimas já me correm pela face, a colega tapa os
olhos com as mãos, o câmera nem se volta, acabar desta maneira é terrível , levam-no para o centro
do recinto onde estão a acender o lume, o panelão ainda lá está, se calhar com os restos do animal.
_ Estão a soprar no tubo, oh meu deus!… vão queimá-lo vivo , atira-me a tua caneta que eu acabo
com isto
A colega quer pôr termo à sua vida e à do bebé , hesito, lá estão a agarrar o motorista, vou entregar
a caneta à colega, começo a fechar o bloco de notas… ...a colega faz-me sinal para não fazer
barulho
_ Os queridos estão aqui!- Murmura
Consigo voltar um pouco a cabeça e com dificuldade reparo , com o sabre está a romper a rede do
câmera , que mal se mexeu
É raro acontecer, mas estou a tremer enquanto escrevo, espero, se sair daqui, compreender a letra.
Antevejo que eles se vão dar conta da nossa tentativa de fuga, o coxo que devia estar a observar-nos
vai na direção do poço, tenta distrai-los , o que não consegue, um deles já se apercebeu e dá o
alarme, o câmera já se encontra solto… cai para o chão, vêm na nossa direção com os tubos e os
paus, vão sedar-nos ou acabar já connosco, ...o que é isto?… ouço um barulho que vem ali da
montanha, o que é aquilo!..?
_ É alguém, é alguém- Grita a colega
O barulho está mais próximo...isto parece barulho de motores, motas...esperem, é um helicóptero
_ São eles , são eles!...- Grita mais uma vez a colega- Acorda – Avisa desesperadamente o câmera
que vai começando a reagir.
O helicóptero já está por cima da aldeia vai aterrar no meio, um pouco para lá do panelão, os
indígenas começam primeiro por se afastar, já estão por detrás das palhotas, desatam agora todos a
fugir pela encosta acima.

_ Estás magríssimo!...o que fizeste- Pergunta a colega


_ É uma longa história- Responde, ao mesmo tempo que solta uma sonora gargalhada
Sobrevoamos o Pacífico em direção a casa, tiveram o cuidado de trazer um biberão e alguns
medicamentos
_ Tenho andado por aí, já vos observo, faz algum tempo, tenho os meus contactos e já consigo voar
- Diz o papagaio-piloto, que elegantíssimo , comanda o helicóptero
_ O que aconteceu?- Insiste a colega , ao mesmo tempo que lhe dá um beijo no bico e lhe afaga as
penas
_Hei hei, cuidado que pus base e fui ao cabeleireiro
A seu lado uma bonita e extravagante galinhola, exageradamente pintada, convenhamos, desfaz-se
em sorrisos para connosco, junto à porta o outro papagaio, cabisbaixo, continua gordo, muito gordo
_ Estávamos fartos de estar sozinhos , e agora com a Internet é fácil, pusemos um anúncio e
passados dois dias fez-se luz- Diz , ao mesmo tempo que olha para o outro papagaio- Combinámos
um encontro , calhou-me esta linda passarinha, daí eu estar magro, é sempre a abrir
_ E ele – Pergunta o câmera , já recomposto
_ Ele – Continua o papagaio- Também levou a sua passarinha para casa, de noite ouço um bater de
asas e a porta a abrir, acho que era um passarinho, mas são coisas dele.
Quase a chegar, começamos a despedir-se mais uma vez dos dois papagaios e também dos queridos
que seguem viagem para os seus países, ficando neste adeus emocionado , a promessa conjunta de
que nos voltaremos a ver em breve.
A colega e o bebé não tiram os olhos um do outro, é delicioso testemunhar o seu relacionamento, o
câmera parece rendido demais à evidencia, encolhe os ombros constantemente, diz que não sabe
como, mas que aquele é o seu filho.

Esta equipa despede-se aqui, foi um prazer compartilhar estas experiências convosco...um até breve,
ou até sempre

O CÂMERA
EU
A COLEGA
O MOTORISTA

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