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Julho de 2023
1.
2.
Outra interpretação simbólica considera Chad Gadya como uma representação da jornada
do desenvolvimento humano. Nessa perspectiva, cada elemento da música pode ser visto
como uma metáfora para os desafios e obstáculos encontrados ao longo da vida. Neste
caso, o cabritinho pode simbolizar a inocência, o gato pode representar as tentações, o
pedaço de pau a força e determinação, o fogo os desejos e paixões, a água a sabedoria e
purificação, e assim por diante, refletindo a jornada do homem em busca do crescimento
pessoal e espiritual.
3.
E Deus, bendito seja, feriu o anjo da morte, que matou o açougueiro, que matou o boi,
que bebeu a água, que apagou o fogo, que queimou a madeira, que bateu no cachorro, que
mordeu o gato, que comeu o cabritinho, que meu pai comprou por dois zuzins. Nesse
entrelaçamento de relações termina o último verso de Chad Gadya. É uma construção
simples que, certamente, não se propõe a esmiuçar cada uma dessas existências. Mas,
apesar de sua simplicidade, a canção sugere uma definição desses seres não em absoluto,
em sua essência, mas a partir de relações. Um gato, por exemplo, dentro da classificação
porfírica, é uma substância corporal, animada, vivente, sensível, animal e irracional. Em
uma classificação biológica, o gato pertence ao reino dos animais, na subclasse dos
mamíferos digitígrados, da família dos felídeos, da ordem dos carnívoros. Em Chad
Gadya, entretanto, esse gato essencial não existe. Nosso personagem é definido por suas
relações, e desempenha papéis distintos a partir de cada uma delas. Ele é uma existência
que, em seu encontro com cabritinhos, se alimenta destes. Mas que também pode ser
mordida por cachorros.
Todo animal tem um mundo, diz Deleuze. Podemos dizer o mesmo das coisas. Um
mundo, ou uma história, ressonando Tim Ingold. Em um exercício de perspectiva e
fabulação, abandonemos nossa racionalidade para entrarmos nestes mundos e nestas
histórias.
4.
Pois olhemos para o gato a gatear, senhor de seu mundo. Lesto e seguro, como diz
Vinícius de Morais, o gato corre de mansinho. Em sua agilidade desliza pela casa com
destreza. Fosse ele dotado de características humanas, poderíamos dizer que o gato é
elegante. Tal gesto, no entanto, parece emoldurar a experiência gato em uma caixa
conhecida. Elegância não é um atributo felino.
Um dia, nasceram os filhotes da cadela do sítio. Uma dezena deles. Fizeram da varanda
dos gatos, o seu ninho. E, como sabemos, cachorros podem morder gatos. Os gatos
também parecem saber. Assim, por semanas, notamos que a ração permanecia intocada.
Os gatos sumiram para longe dos cachorros. Do alto da pirâmide hierárquica, temíamos
a morte dos gatos por falta de comida, afinal, somos nós quem os alimentamos. Mas não
os gatos.
Nos dias que se seguiram, aos poucos, encontramos restos de pequenos animais mortos,
abandonados pelo sítio. Algumas partes de um pequeno pássaro, de um pequeno rato, de
uma pequena cobra. Todo animal tem um mundo, e em seu mundo, aqueles gatos caçam.
O gato come pássaro, rato, cobra. O gato come o cabritinho que meu pai comprou por
dois zuzins.
Em um dia, no palco da rotina diária, onde os objetos mais comuns se mostram apenas
aos olhos atentos, flagrei um dos gatos surpreender um pequeno sabiá-laranjeira. Uma
cena peculiar então começa a se desenrolar. No espetáculo sutil que se apresenta, os
personagens assumiam outros papéis, e o pequeno sabiá-laranjeira ganha um outro
significado nas patas habilidosas do felino. Antes de ser alimento, o pequeno pássaro
tornara-se brinquedo para o gato.
É como se o gato, ao se deparar com seu alimento, não se limitasse apenas a saciar sua
fome, mas também encontrasse prazer em explorar as possibilidades lúdicas que aqueles
pequenos pedaços oferecem. Ele transformara a presa em brinquedos de sua predatória
imaginação. Um pedaço de carne que tenta escapar de suas garras habilidosas. Seus
movimentos graciosos, ágeis e precisos exibiam a destreza de um caçador, ao mesmo
tempo em que transmitem uma graciosidade quase etérea. É como se a própria comida,
ao ser manipulada por suas patas habilidosas, se rendesse à dança, obedecendo às regras
implícitas de um jogo ancestral.
5.
Um pedaço de pau. Tecido vegetal morto, essa ripa de madeira um dia já foi uma
majestosa árvore. Um dia dela já brotaram flores. Um dia ela ofereceu sombra. Já nos
ofereceu o som do farfalhar de suas folhas. Hoje, não mais. Inerte, aquela árvore
transformou-se em pedaço de pau. No entanto, não podemos dizer que está morto. Vidas
o habitam, uma colônia delas, um mundo delas. Um universo microscópico de pequenas
criaturas. Existências minúsculas, que encontram abrigo em suas fissuras e galerias,
transformando-o em um verdadeiro ecossistema de dimensões reduzidas. Suas vidas
secretas, inaudíveis aos ouvidos humanos, desdobram-se em um jogo silencioso, onde
cada movimento é uma pequena conquista em meio à rigidez aparente do material. Da
madeira se faz casa. Casa para homens, casa para bichos.
Mas a madeira da Chad Gadya nem inerte está. Ela bate no cachorro que mordeu o gato.
Madeiras não batem, um leitor cético poderia afirmar, quem bate é o homem. Mas não
aqui. Aqui, esse pedaço de pau bateu. Madeiras não tem atributos, madeiras tem história,
outra vez pensemos com Tim Ingold. Seus veios e texturas, antes testemunhas silenciosas
da passagem do tempo, tornam-se agora os protagonistas de uma narrativa impiedosa. No
encontro com o cachorro, o pedaço de pau assume o papel de agressor, rompendo a
tranquilidade com sua presença imponente. O animal foge, acuado, enquanto a ripa de
madeira reina soberana.
Mas esse pedaço de pau que bate não é mais o mesmo quando chega o fogo. Uma
atmosfera nebulosa e quente enfatiza esse encontro. Com sua dança hipnotizante, o fogo
cobre a madeira em um abraço ardente e, aos poucos, a distinção entre ambos se desfaz.
Em uma relação simbiótica, nos torna impossível distinguir o que é madeira do que é
fogo. Aquela pequena brasa, antes foguinho, aos poucos engrandece e se torna fogueira,
enquanto aquele pedaço de pau que, outrora vigoroso, bateu em um cachorro, aos poucos
torna-se pó. O calor intenso consome sua estrutura, reduzindo a madeira a cinzas, que se
misturam com as chamas dançantes.
Nessa fusão, o pedaço de pau experimenta uma existência efêmera. Ele se torna parte
integrante do fogo, perdendo-se nas chamas e, ao mesmo tempo, ganhando uma outra
forma de existir. Como se renunciasse à sua forma anterior para se transformar em outra,
aderir ao fogo. Cantando (“a madeira quando morre, canta”, cantam João Nogueira e
Paulo Cesar Pinheiro). Resta o fogo.
6.
LÍQUIDO é por definição o que prefere obedecer ao seu peso a manter sua forma,
o que recusa toda forma para obedecer ao seu peso. (PONGE, 2022, p. 34)
Não nos deixemos enganar pela beleza hipnótica do fogo. Ele, o fogo, é destruidor.
Queima consigo tudo que encontra pela frente. Arrasta em seu bloco quem atravessa seu
caminho, mostrando-se enquanto um ser indomável em sua missão de consumir e
transformar tudo o que toca. Toda e qualquer matéria que o alimenta, pau, galho, folha,
mistura-se a ele. Soma-se ao seu corpo-fogo, que cresce, que se alastra, que foge ao
controle, que não encontra limites.
Não encontra limite, até que encontra a água. E nesse embate de opostos, água e fogo se
confrontam em um diálogo quase silencioso. Fluida, a água recusa toda forma fixa. Ela
pode até fingir se deixar contornar por algum recipiente, mas apenas por um instante. Pois
no momento seguinte, a água escorre. Despeja-se. Abraça o desenfreado fogo que, por
sua vez, encontra na água um convite a se acalmar. Perde a sua fúria e, moribundo, sobe
ao céu em forma de fumaça.
Mas o fogo não recua, não desiste facilmente. Sua labareda ainda dança, procurando
desafiar a água. Estende seus tentáculos flamejantes, na esperança de conseguir consumir
algo ao seu redor. Em vão. Todo peso da água desaba sobre o fogo, que desaparece por
completo.
Quanto à aguerrida água, cansada de tanta guerra, ela agora se acomoda em poças nos
pequenos sulcos no chão, aderindo à outra forma temporária, até que um próximo
personagem cruze o seu caminho.
7.
Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e
o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e
assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e
desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado.
Ver isso desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua humanidade
frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade – pois o homem quer
apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em
vão, porque não quer como o animal. (NIETZSCHE, 2003, p. 7)
Um boi pasta pelo campo. O boi não faz planos. Zanza daqui, zanza para acolá. Ele tem
fome, ele come. Ele tem sede, ele bebe. Para diante de uma poça d'água. Todo um mundo
do boi nesse encontro. No instante efêmero, o animal se aproxima cauteloso, com suas
patas pesadas e imponentes que deixam marcas firmes na terra úmida, pegadas que
demarcam seu território. Com sua língua rústica, o boi se inclina sobre a poça, fazendo
com que a água lhe toque os lábios. E, sem um grande e eloquente confronto, foi-se a
água. E o boi, saciado (e feliz?), descansa.
8.
O camponês se afeiçoa a seu porco e fica satisfeito em salgar a carne deste mesmo
animal. O que é significativo nessa frase, e de difícil compreensão para um
forasteiro da cidade, é que as duas orações estão conectadas por um e e não por um
mas. (BERGER, 2021)
Pois como temer o homem? Aquele homem rural cuidou do boi quando bezerro. E cuidou
do boi quando novilho. Por qual razão precisaria suspeitar o boi adulto? Aquele homem,
que um dia até desejou ser feliz como o boi. O boi não tem problemas, o boi não tem
boletos. Aquele homem rural, que talvez um dia tenha pastado e ruminado e também
esquecido dos problemas. Talvez aquele homem pense, no entanto, que abater o animal
seja o preço a pagar para que sua condição de homem fosse recuperada. Talvez.
Mas Chad Gadya é uma canção judaica, e chegando ao homem, torna-se mais difícil
continuar o nosso exercício de perspectiva. O homem é um shochet, o açougueiro judeu,
treinado nas leis e técnicas do abate kosher. Eles são responsáveis por garantir que a morte
do animal seja rápida e humanitária, sem causar sofrimento desnecessário. Uma morte
humanitária. Para essa tradição antropocêntrica, nós, os humanos, somos superiores às
demais espécies não apenas por nossa capacidade lógica e cognitiva. Somos superiores,
também, por conta da nossa empatia.
Referências:
BERGER, John. Por que olhar para os animais?. São Paulo: Fósforo, 2021.
DE MORAES, Vinícius. A arca de Noé. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs 4. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
INGOLD, Tim. “Trazendo as coisas de volta à vida”. Horizontes Antropológicos. Porto
Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun, 2012.
INGOLD, Tim. “Materiais contra a materialidade”. Estar vivo. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002.
PONGE, Francis. Partido das coisas. São Paulo: Editora Iluminuras, 2022.