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BIBLIOTECA DO PROFESSOR
2 . 2 Textos de formação teórica
Antropocentrismo
No texto que reproduzimos abaixo, o professor e filósofo brasileiro Charles Feitosa apresenta criti-
camente o antropocentrismo, conceito que define a relação dos seres humanos com os outros animais.
Essa relação é marcada pela superioridade que os homens sentem em relação às outras espécies. A
aquisição e o desenvolvimento da linguagem são dois pontos em que essa postura mais se evidencia. O
autor aborda ainda várias perspectivas filosóficas em que esse tema da relação entre os seres humanos
e os animais é explorada.
ativista dos direitos humanos e dos animais, expressa de forma contundente essa descon-
fiança: ‘A questão não é: os animais podem falar? Mas sim: eles podem sofrer?’(Princípios
da moral e da legislação [1789]). Parece que não suportamos considerar como semelhantes
os animais que tratamos como nossos escravos. As relações dos viventes humanos com
os viventes não humanos têm sido violentas e devem mudar. Será preciso reavaliar nossa
responsabilidade ética diante de nossos vizinhos na Terra: ficar atento, de um lado, para
a pluralidade irredutível dos animais, e, de outro lado, para a dimensão animal que há no
corpo de cada um de nós.
A diferença entre o silêncio dos animais e a linguagem humana não pode ser menos-
prezada. Talvez seja uma diferença tão importante como a que existe entre os seres inani-
mados e os viventes. Mas essa diferença não é rígida nem total. Para o pensador argelino
Jacques Derrida (1930-2004), a perspectiva da morte, por exemplo, faz com que a fronteira
supostamente fixa e imutável entre o homem e o animal fique enfraquecida, pois a lingua-
gem humana esbarra no seu limite: ‘A morte [...] é o lugar onde toda fronteira entre a fera
e a existência do homem da fala torna-se indeterminável’ (Aporias: Morrer, 1994, p. 323).
A morte não pode ser dita, expressa ou explicada com palavras. Diante da morte somos
como que empurrados de volta à nossa condição animal, pois só nos resta o silêncio.
Em uma famosa passagem, Nietzsche nos faz pensar acerca da sabedoria que pode
haver na vida animal: ‘Observe um rebanho, que pasta diante de ti. Ele nada sabe sobre o
ontem ou o hoje, ele corre daqui para ali, come, descansa, digere, corre novamente, e assim
de manhã até a noite, dia após dia, amarrado através de seu prazer e de sua dor à estaca
do instante, e por isso mesmo nunca melancólico ou deprimido’ (Segunda consideração
intempestiva [1874]). Segundo Nietzsche, o homem observa o comportamento do animal e
fica com inveja, pois também gostaria de não ficar triste. Pergunta então: ‘por que você só
fica aí me olhando e não me fala da sua felicidade? O animal quer responder e dizer: isso
vem do fato de que eu sempre esqueço o que queria dizer – mas ele já esquece também
essa resposta e se cala. O homem fica admirado de seu silêncio’ (ibid.).
O olhar oblíquo de Nietzsche sobre o rebanho no pasto faz com que também veja-
mos tudo de forma insólita e surpreendente. O animal, que é sem passado e sem futuro,
parece viver mais intensamente que o homem, oprimido pelo excesso de memória e de
‘pré-ocupações’. Para ser feliz e fazer os outros felizes será preciso recuperar um pouco
da sabedoria dos animais ou das crianças: a sabedoria do esquecimento. ”
FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com arte.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 90-97.