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FILOSOFIA DVD do professor

BIBLIOTECA DO PROFESSOR • Textos de formação teórica


Maria Lúcia
PARTE 1 UNIDADE 1 Antropologia filosófica
de Arruda Aranha
Capítulo 2 Natureza e cultura 1

BIBLIOTECA DO PROFESSOR
2 . 2 Textos de formação teórica

Antropocentrismo
No texto que reproduzimos abaixo, o professor e filósofo brasileiro Charles Feitosa apresenta criti-
camente o antropocentrismo, conceito que define a relação dos seres humanos com os outros animais.
Essa relação é marcada pela superioridade que os homens sentem em relação às outras espécies. A
aquisição e o desenvolvimento da linguagem são dois pontos em que essa postura mais se evidencia. O
autor aborda ainda várias perspectivas filosóficas em que esse tema da relação entre os seres humanos
e os animais é explorada.

A sabedoria dos animais

“ Os animais são tradicionalmente divididos em três categorias: comestíveis ou não


comestíveis; ferozes ou mansos; úteis ou inúteis. São nossos principais vizinhos na Terra.
Os animais são como lembretes ambulantes de que há natureza em torno de nós. Embora
estejamos acostumados a conviver com cães, gatos, pássaros e outros animais domésticos,
é muito difícil tentar entender seu modo de ser sem cair em um certo antropomorfismo
(literalmente, na forma humana), ou seja, projetando no comportamento do animal ca-
racterísticas que são nossas. Interpretamos assim os sons emitidos por golfinhos como
risos de alegria, ou o canto dos pássaros como uma forma de música. Entretanto, tal an-
tropomorfização não enfraquece a crença de que há uma fronteira fixa e imutável entre
os homens e os animais. A ideia de que o animal é um ‘completamente outro’ serve de
justificativa para a caça, domesticação e consumo dos corpos animais.
Sabemos que, em geral, o ser humano costuma rejeitar a sua condição animal. Essa ten-
dência se expressa nas famosas definições do homem como sendo o único ser que pensa, que
fala, que ri, que chora, que brinca, que faz arte, que faz política, que faz cultura, que faz greve
de fome, que se mata. A cultura ocidental é antropocêntrica, quer dizer, tende a colocar o
homem como centro da natureza e como a medida de todas as coisas. De fato, o ser humano
é dotado de linguagem articulada, e isso o torna diferente. Imagine um pássaro que migra do
hemisfério sul para o hemisfério norte sempre em busca de comida e de temperaturas mais
amenas. Embora ele se desloque no espaço, não tem consciência de sua própria migração.
Para o pássaro, cada nova paisagem é absoluta, não há continuidade ou conexão entre os
diferentes lugares percorridos. O pássaro não viaja, apenas movimenta-se. Imagine agora
um homem que tenha passado toda a sua vida em uma aldeia no interior da China. Mesmo
sem nunca ter visitado outras cidades ou outros países, ele sabe que há sempre algo mais
do que o lugar onde vive. Ele sabe que sua aldeia está inserida em um contexto geográfico,
mesmo que não conheça mapas. Ele pode viajar, mesmo sem sair de casa. O animal pode se
alimentar, se defender, se reproduzir, mas só o homem é capaz de habitar a Terra enquanto
Terra, quer dizer, como um horizonte a partir do qual pode desenvolver infinitas possibili-
dades de existência. O animal vive no ambiente, mas o homem existe no mundo.
Embora a demarcação entre o homem e o animal pareça evidente, é preciso ter cuidado.
A linguagem nos faz diferentes, mas não completamente separados dos animais. Sabemos
que sentem algo, ainda que não seja possível determinar com exatidão o que eles sentem.
Como não reconhecer a enorme gama de gritos, gemidos, caretas, gestos e posturas dos
animais como uma forma de expressão? O estudo dos primatas já demonstrou que esses
animais possuem estruturas refinadas de organização simbólica, sendo capazes de realizar
trabalhos de luto, de sepultura, de preservação da identidade familiar. Cometemos em geral
a arrogância de reduzir a impressionante variedade de seres vivos não humanos a uma
única classificação homogênea de ‘animal’, desconsiderando assim diferenças abismais
entre uma borboleta e um rinoceronte, por exemplo.
É necessário desconfiar da necessidade do homem de confirmar a todo custo sua su-
perioridade diante dos animais. O filósofo e jurista Jeremy Bentham (1748-1832), famoso
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Capítulo 2 Natureza e cultura 2

ativista dos direitos humanos e dos animais, expressa de forma contundente essa descon-
fiança: ‘A questão não é: os animais podem falar? Mas sim: eles podem sofrer?’(Princípios
da moral e da legislação [1789]). Parece que não suportamos considerar como semelhantes
os animais que tratamos como nossos escravos. As relações dos viventes humanos com
os viventes não humanos têm sido violentas e devem mudar. Será preciso reavaliar nossa
responsabilidade ética diante de nossos vizinhos na Terra: ficar atento, de um lado, para
a pluralidade irredutível dos animais, e, de outro lado, para a dimensão animal que há no
corpo de cada um de nós.
A diferença entre o silêncio dos animais e a linguagem humana não pode ser menos-
prezada. Talvez seja uma diferença tão importante como a que existe entre os seres inani-
mados e os viventes. Mas essa diferença não é rígida nem total. Para o pensador argelino
Jacques Derrida (1930-2004), a perspectiva da morte, por exemplo, faz com que a fronteira
supostamente fixa e imutável entre o homem e o animal fique enfraquecida, pois a lingua-
gem humana esbarra no seu limite: ‘A morte [...] é o lugar onde toda fronteira entre a fera
e a existência do homem da fala torna-se indeterminável’ (Aporias: Morrer, 1994, p. 323).
A morte não pode ser dita, expressa ou explicada com palavras. Diante da morte somos
como que empurrados de volta à nossa condição animal, pois só nos resta o silêncio.
Em uma famosa passagem, Nietzsche nos faz pensar acerca da sabedoria que pode
haver na vida animal: ‘Observe um rebanho, que pasta diante de ti. Ele nada sabe sobre o
ontem ou o hoje, ele corre daqui para ali, come, descansa, digere, corre novamente, e assim
de manhã até a noite, dia após dia, amarrado através de seu prazer e de sua dor à estaca
do instante, e por isso mesmo nunca melancólico ou deprimido’ (Segunda consideração
intempestiva [1874]). Segundo Nietzsche, o homem observa o comportamento do animal e
fica com inveja, pois também gostaria de não ficar triste. Pergunta então: ‘por que você só
fica aí me olhando e não me fala da sua felicidade? O animal quer responder e dizer: isso
vem do fato de que eu sempre esqueço o que queria dizer – mas ele já esquece também
essa resposta e se cala. O homem fica admirado de seu silêncio’ (ibid.).
O olhar oblíquo de Nietzsche sobre o rebanho no pasto faz com que também veja-
mos tudo de forma insólita e surpreendente. O animal, que é sem passado e sem futuro,
parece viver mais intensamente que o homem, oprimido pelo excesso de memória e de
‘pré-ocupações’. Para ser feliz e fazer os outros felizes será preciso recuperar um pouco
da sabedoria dos animais ou das crianças: a sabedoria do esquecimento. ”
FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com arte.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 90-97.

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