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A de animal

TERRITÓRIO E DEVIR
Para Deleuze, que rejeita as essências e faz da
variação, da diferença e do devir as questões
Materiais decisivas da filosofia, o animal é uma aposta
estratégica. Na filosofia, ele tradicionalmente
Letra A do abecedário desempenha uma função de corte que polariza as
Diálogos (parte I de uma conversa,
o que é, para que serve?)
divisões entre forma e matéria, espírito e corpo, e
Mil platôs 4, capitulo 10. (Devir) isso nas duas esferas relacionadas de separação
O livro ‘escute as feras’ entre humanidade e animalidade, mas também
O filme grizzly man de Herzog entre vida e matéria. O animal, portanto, serve
como um parafuso teórico que garantirá a distinção
hierárquica dos reinos humano, animal, vegetal e
Del animal al arte - Anne
mineral. A partir de uma perspectiva típica de
Savagnarguers
Spinoza, Bergson e Nietzsche, Deleuze, recusando-
se a considerar o homem como um império dentro
de um império, substitui a antropologia por uma
etologia que deve muito às ciências da vida.
(Sauvagnarguers, Del animal al arte)
Letra A de animal
O bestiário de Gilles Deleuze

Parnet: Por enquanto, deixemos de lado as crianças, sei


que você não gosta muito de animais domésticos, e
nem prefere, como Baudelaire ou Cocteau, os gatos aos
cachorros. Em compensação, você tem um bestiário, ao
longo de sua obra, que é bastante repugnante, ou seja,
além das feras, que são animais nobres, você fala muito
do carrapato, do piolho, de alguns pequenos animais
como esses, repugnantes, e além disso, que os animais
lhe serviram muito desde O anti-Édipo. Um conceito
importante em sua obra é o devir-animal. Qual é, então,
sua relação com os animais? (abecedário)
Os diferentes tipos de animais
Não é o animal doméstico, domado, selvagem, o que me preocupa. O problema é que os
gatos, os cachorros, são animais familiares, familiais, e é verdade que desses animais
domados, domésticos, eu não gosto. Em compensação, gosto de animais domésticos não-
familiares, não-familiais.

Seria mesmo preciso distinguir três espécies de animais: os animais individuados, sentimentais, os
animais edipianos, de historinha, "meu" gato, "meu" cachorro; estes nos convidam a regredir, arrastam-
nos para uma contemplação narcísica, e a psicanálise só compreende esses animais para melhor
descobrir, por trás deles, a imagem de um papai, de uma mamãe, de um irmãozinho (quando a
psicanálise fala dos animais, os animais aprendem a rir): todos aqueles que amam os gatos, os cachorros,
são idiotas. E depois haveria uma segunda espécie, os animais com característica ou atributo, os animais
de gênero, de classificação ou de Estado, tais como os grandes mitos divinos os tratam, para deles extrair
séries ou estruturas, arquétipos ou modelos (Jung é, ainda assim, mais profundo que Freud). Enfim,
haveria animais mais demoníacos, de matilhas e afectos, e que fazem multiplicidade, devir, população,
conto... Ou então, mais uma vez, não são todos os animais que podem ser tratados das três maneiras? (Mil
platôs 4)
Os gritos da natureza

Deleuze teve gatos.

Incomoda: roçar dos gatos e latido dos cachorros.

"O latido me parece ser o grito mais estúpido. E há muitos gritos na Natureza!
Há uma variedade de gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino
animal. Suporto, em compensação, suporto mais, se não durar muito, o grito,
não sei como se diz, o uivo para a lua, um cachorro que uiva para a lua, eu
suporto mais.

CP: O uivo para a morte.


GD: Para a morte, não sei, suporto mais que o latido. E, quando soube que
cachorros e
gatos fraudavam a previdência social, minha antipatia aumentou."
A humanização dos animais

O importante é ter uma relação animal com o animal. O que


é ter uma relação animal com o animal? Não é falar com ele...
Em todo caso, o que não suporto é a relação humana com o
animal. Sei o que digo porque moro em uma rua um pouco
deserta e as pessoas levam seus cachorros para passear. O
que ouço de minha janela é espantoso. É espantoso como as
pessoas falam com seus bichos. Isso inclui a própria
psicanálise. A psicanálise está tão fixada nos animais
familiares ou familiais, nos animais da família, que qualquer
tema animal... em um sonho, por exemplo, é interpretado
pela psicanálise como uma imagem do pai, da mãe ou do
filho, ou seja, o animal como membro da família. Acho isso
odioso, não suporto.
Os animais e seus
mundos

O que me fascina no animal? Meu ódio por certos animais é nutrido


por meu fascínio por muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o
que me toca em um animal, a primeira coisa é que todo animal tem
um mundo. É curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm
mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de
qualquer coisa, os animais têm mundos. Um mundo animal, às vezes, é
extraordinariamente restrito e é isso que emociona. Os animais reagem
a muito pouca coisa.

Jakob von Uëxkull (1864-1944)


biólogo
O TERRITÓRIO

O que me fascina completamente são as questões de


território e acho que Félix e eu criamos um conceito que
se pode dizer que é filosófico, com a idéia de território. Os
animais de território, há animais sem território, mas os
animais de território são prodigiosos, porque constituir
um território, para mim, é quase o nascimento da arte.

Quando vemos como um animal marca seu território, todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as
histórias de glândulas anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu território. O que intervém
na marcação é, também, uma série de posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de cores, os
macacos, por exemplo, as cores das nádegas dos macacos, que eles manifestam na fronteira do território... Cor,
canto, postura, são as três determinações da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas animais são, às vezes,
verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. É a arte em estado puro. E, então, eu me digo, quando eles saem de seu
território ou quando voltam para ele, seu comportamento... O território é o domínio do ter. É curioso que seja no
ter, isto é, minhas propriedades, minhas propriedades à maneira de Beckett ou de Michaux. O território são as
propriedades do animal, e sair do território é se aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge, o
reconhecem no território, mas não fora dele. (ABECEDÁRIO)
NATUREZA ARTISTA

Toda forma de vida se expressa.

O rastro
O território
A assinatura

recomendação: video de Manuel De Landa, teoria e prática da


catástrofe no YouTube / e dancing with birds, Netflix
E o território só vale em relação a um
movimento através do qual se sai dele. É
preciso reunir isso. Preciso de uma palavra,
aparentemente bárbara. Então, Félix e eu
construímos um conceito de que gosto muito,
o de desterritorialização (outlandish - Melville).
A noção com pretensão nova é que não há
território sem um vetor de saída do território e
não há saída do território, ou seja,
desterritorialização, sem, ao mesmo tempo,
um esforço para se reterritorializar em outra
parte. Tudo isso acontece nos animais. TERRITORIALIZAÇÃO,
DESTERRITORIALIZAÇÃO
E RETERRITORIALIZAÇÃO
É ISSO QUE ME FASCINA, TODO O DOMÍNIO DOS
SIGNOS. OS ANIMAIS EMITEM SIGNOS, NÃO PARAM
DE EMITIR SIGNOS, PRODUZEM SIGNOS NO DUPLO
SENTIDO: REAGEM A SIGNOS, POR EXEMPLO, UMA
ARANHA: TUDO O QUE TOCA SUA TELA, ELA REAGE A
QUALQUER COISA, ELA REAGE A SIGNOS.

GD: É. SE ME PERGUNTASSEM O QUE É UM ANIMAL,


EU RESPONDERIA: É O SER À ESPREITA, UM SER,
FUNDAMENTALMENTE, À ESPREITA.

OS SIGNOS = AFETOS?
Mas escrever no lugar dos animais que morrem
é levar a linguagem a esse limite. Não há
literatura que não leve a linguagem a esse
limite que separa o homem do animal. Deve-se
estar nesse limite. Mesmo quando se faz
filosofia. Fica-se no limite que separa o
pensamento do não-pensamento. Deve-se
estar sempre no limite que o separa da
animalidade, mas de modo que não se fique
separado dela. Há uma inumanidade própria ao
corpo humano, e ao espírito humano, há
relações animais com o animal. HABITAR OS LIMITES
O DEVIR

“Só se ouvia falar de vampiros, de


1730 a 1735”. Mil platôs vol. 4, p. 17

Pois fui, durante um tempo,


menino e menina, árvore e pássaro,
e peixe perdido no mar.
Empédocles, Da natureza,
fragmento II7 , epigrafe do livro
escutes as feras
Definição geral do devir

O devir é a dimensão das relações moleculares, das relações afetivas. É conceber um


mundo sem fronteiras entre substâncias, sujeitos ou objetos. É o mundo das
composições e decomposições de graus de potências. Antes das formas e
substâncias, há todo um mundo de interações de partículas elementares que estão
mudando as próprias formas e substâncias. Estamos novamente no reino do desejo:
"De certa maneira, é preciso começar pelo fim: todos os devires já são moleculares. E
que devir não é imitar algo ou alguém, identificar-se com ele. Tampouco é
proporcionar relações formais. Nenhuma dessas duas figuras de analogia convém ao
devir, nem a imitação de um sujeito, nem a proporcionalidade de uma forma. Devir é,
a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das
funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de
movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que
estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido
que o devir é o processo do desejo."
Os devires são sempre múltiplos

devir-animal, devir-mulher, devir-criança, devir-imperceptivel, devir-molécula,


devir-música, devir-minoritário, devir-intenso, devir-vegetal, devenir-mineral etc
.

"A ficção científica tem toda uma evolução que a faz passar de
devires animais, vegetais ou minerais, a devires de bactérias, de
vírus, de moléculas e de imperceptíveis." Mil platôs, vol. 4 p. 32
(indicação de leitura: historia de Camille, de Donna Haraway)

O devir-animal é apenas um caso entre outros. Vemo-nos tomados em segmentos de devir, entre os
quais podemos estabelecer uma espécie de ordem ou de progressão aparente: devir-mulher, devir-
criança; devir-animal, vegetal ou mineral; devires moleculares de toda espécie, devires-partículas.
Fibras levam de uns aos outros, transformam uns nos outros, atravessam suas portas e limiares.
Cantar ou compor, pintar, escrever não têm talvez outro objetivo: desencadear esses devires. Mil
platôs vol 4. p 63 (edição eletrônica p. 55)
Como concebemos os animais?

Relações de analogias:

série: encontro semelhanças entre os sujeitos (gato,


tigre, leão = felinos)
estrutura: encontro uma estrutura formal
semelhante entre diferenças (pulmão está para o
homem como as brânquias estão para os peixes)
Animais podem servir de arquétipo para o Estado,
pode servir também para a ciencia.

Série = mito - imitação (imaginação)


Estrutura = tótem - correspondencia de relações
(razão)
O DEVIR ANIMAL

Outra concepção de relações entre humanos e animais

Não se trata nem de encontrar semelhanças com certos


animais, nem de encontrar as mesmas funções. Estamos
além (ou aquém) dos sujeitos, das formas, ou das funções
do organismo. Se trata de uma composição de afetos. É o
uso que faz o feiticeiro.
Se cruza os limites entre os reinos. Há relações essenciais
entre elementos completamente heterogêneos, um
mundo de produção além das fronteiras que não
impusemos as relações vitais.
Um parênteses importante

Baruch Spinoza
Deus=Substância=Potência=Natureza
Atributos (pensamento/extensão)
modos ou graus(mente/cuerpo)
a composição
de corpos
simples
Os modos ou graus de potência variam de acordo com a composição
dos elementos mais simples (partículas que ainda não são indivíduos).
Há infinitas partículas em relação, em colisão, encontrando-se umas
com as outras. Nesse encontro, ambas são afetadas, e essa afecção
produz uma afeto (aumento ou diminuição da potência de ambos os
corpos simples).

Um individuo é o resultado de n composições entre partículas -


exemplo do sangue
a etologia
ou a ética

"Assim como evitávamos definir um corpo por seus órgãos e suas funções, evitamos defini-lo por
características Espécie ou Gênero: procuramos enumerar seus afectos. Chamamos "etologia" um tal estudo,
e é nesse sentido que Espinosa escreve uma verdadeira Ética. Há mais diferenças entre um cavalo de
corrida e um cavalo de lavoura do que entre um cavalo de lavoura e um boi."

"Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afectos,
como eles podem ou não compor-se com outros afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para
destruí-lo ou ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor
com ele um corpo mais potente."
O mundo do carrapato

"Quando Von Uexküll define os mundos animais, ele procura os afectos


ativos e passivos de que o bicho é capaz, num agenciamento individuado
do qual ele faz parte. Por exemplo, o Carrapato, atraído pela luz, ergue-se
até a ponta de um galho; sensível ao odor de um mamífero, deixa-se cair
quando passa um mamífero sob o galho; esconde-se sob sua pele, num
lugar o menos peludo possível. Três afectos e é tudo; durante o resto do
tempo o carrapato dorme, às vezes por anos, indiferente a tudo o que se
passa na floresta imensa. Seu grau de potência está efetivamente
compreendido entre dois limites, o limite ótimo de seu festim depois do
qual ele morre, o limite péssimo de sua espera durante a qual ele jejua.
Dirão que os três afectos do carrapato já supõem características
específicas e genéricas, órgãos e funções, patas e trompas. É verdade do
ponto de vista da fisiologia; mas não do ponto de vista da Ética onde as
características orgânicas decorrem ao contrário da longitude e de suas
relações, da latitude e de seus graus."

Mil platôs vol 4. p 42-43 (edição eletrônica p. 36-37)


O PLANO DA NATUREZA
“Criticou-se as formas essenciais ou substanciais de maneiras muito diversas. Mas Espinosa procede radicalmente:
chegar a elementos que não têm mais nem forma nem função, que são portanto abstratos nesse sentido, embora
sejam perfeitamente reais. Distinguem-se apenas pelo movimento e o repouso, a lentidão e a velocidade. Não são
átomos, isto é, elementos finitos ainda dotados de forma. (...) São as últimas partes infinitamente pequenas de um
infinito atual, estendido num mesmo plano, de consistência ou de composição. Elas não se definem pelo número,
porque andam sempre por infinidades. Mas, segundo o grau de velocidade ou a relação de movimento e de repouso
no qual entram, elas pertencem a este ou àquele Indivíduo, que pode ele mesmo ser parte de um outro Indivíduo
numa outra relação mais complexa, ao infinito. (...) Tanto que cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e a
Natureza inteira uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada. O plano de consistência da
Natureza é como uma imensa Máquina abstrata, no entanto real e individual, cujas peças são os agenciamentos ou os
indivíduos diversos que agrupam, cada um, uma infinidade de partículas sob uma infinidade de relações mais ou
menos compostas. Há, portanto, unidade de um plano de natureza, que vale tanto para os inanimados, quanto para
os animados, para os artificiais e os naturais.
Esse plano nada tem a ver com uma forma ou uma figura, nem com um desenho ou uma função. Sua unidade não
tem nada a ver com a de um fundamento escondido nas profundezas das coisas, nem de um fim ou de um projeto
no espírito de Deus. É um plano de extensão, que é antes como a secção de todas as formas, a máquina de todas as
funções, e cujas dimensões, no entanto, crescem com as das multiplicidades ou individualidades que ele recorta.
Plano fixo, onde as coisas não se distinguem senão pela velocidade e a lentidão. Plano de imanência ou de
univocidade, que se impõe à analogia. O Uno se diz num só e mesmo sentido de todo o múltiplo, o Ser se diz num só e
mesmo sentido de tudo o que difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das
modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida."
Mil platôs vol 4. p 39 (edição eletrônica p. 33)

A UNIVOCIDADE DO SER
Bodas contra natureza: a involução ou a evolução a-pararela

Essa relação ocorre além das fronteiras entre reinos,


espécies e gêneros, mesmo entre as fronteiras do
orgânico/inorgânico, natural/artificial.

"Se o neo-evolucionismo afirmou sua originalidade, é em parte em relação a esses


fenômenos nos quais a evolução não vai de um menos diferenciado a um mais diferenciado,
e cessa de ser uma evolução filiativa hereditária para tornar-se antes comunicativa ou
contagiosa. Preferimos então chamar de "involução" essa forma de evolução que se faz entre
heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda a involução com uma
regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos
diferenciado."

Mil platôs vol 4. p 19 (edição eletrônica p. 15)


Aliança e Filiação

"O devir é sempre de uma ordem outra que a


da filiação. Ele é da ordem da aliança. Se a
evolução comporta verdadeiros devires, é no
vasto domínio das simbioses que coloca em
jogo seres de escalas e reinos inteiramente
diferentes, sem qualquer filiação possível. Há
um bloco de devir que toma a vespa e a
orquídea, mas do qual nenhuma vespa-
orquídea pode descender."
Mil platôs vol 4. p 19 (edição eletrônica p. 15-16)

A orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há um devir-vespa da orquídea, um
devir-orquídea da vespa, uma dupla captura pois "o que" cada um se torna não muda menos do que "aquele"
que se torna. A vespa torna-se parte do aparelho reprodutor da orquídea, ao mesmo tempo em que a
orquídea torna-se órgão sexual para a vespa. Um único e mesmo devir, um único bloco de devir, ou, como diz
Rémy Chauvin, uma "evolução a-paralela de dois seres que não têm absolutamente nada a ver um com o
outro".
Lógica da disjunção inclusiva: e...e...e
(paradoxo)

Fazer uma linha ou um bloco passar


entre duas pessoas, produzir todos os
fenômenos de dupla captura, mostrar
o que é a conjunção E, nem uma
reunião, nem uma justaposição, mas
o nascimento de uma gagueira, o
traçado de uma linha quebrada que
parte sempre em adjacência, uma
espécie de linha de fuga ativa e
criadora? E... E... E...
Somos desertos povoados

Nós somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas e floras. Passamos nosso tempo a
arrumar essas tribos, a dispô-las de outro modo, a eliminar algumas delas, a fazer prosperar
outras. E todos esses povoados, todas essas multidões não impedem o deserto, que é nossa
própria ascese; ao contrário, elas o habitam, passam por ele, sobre ele.

Posso falar de Foucault, contar que ele me disse isso e


aquilo, detalhar como o vejo. Não é nada enquanto eu
não souber encontrar realmente esse conjunto de sons
martelados, de gestos decisivos, de idéias em madeira
seca e fogo, de atenção extrema e de fechamento
súbito, de risos e sorrisos que sentimos serem
"perigosos" no mesmo momento em que se sente a
ternura – esse conjunto como única combinação cujo
nome próprio seria Foucault.
A MULTIPLICIDADE
OU A MATILHA

imagem do filme Willard, 2003.


os bandos
"Lembrança de um feiticeiro, I. — Num devir-animal, estamos sempre
lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento,
em suma, com uma multiplicidade. Nós, feiticeiros, sabemos disso desde
sempre. Pode acontecer que outras instâncias, aliás muito diferentes entre
si, tenham uma outra consideração do animal: pode-se reter ou extrair do
animal certas características, espécies e gêneros, formas e funções, etc. A
sociedade e o Estado precisam das características animais para classificar
os homens; a história natural e a ciência precisam de características para
classificar os próprios animais. O serialismo e o estruturalismo ora graduam
características segundo suas semelhanças, ora as ordenam segundo suas
diferenças. As características animais podem ser míticas ou científicas. Mas
não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos
de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento.
Eu sou legião. Fascinação do homem dos lobos diante dos vários lobos que
olham para ele. O que seria um lobo sozinho? e uma baleia, um piolho, um
rato, uma mosca? Belzebu é o diabo, mas o diabo como senhor das
moscas."
Mil platôs vol 4. p 19-20 (edição eletrônica p. 16)
"Não queremos dizer que certos animais vivem em matilhas; não queremos entrar em ridículas
classificações evolucionistas à Ia Lorentz, onde haveria matilhas inferiores e sociedades
superiores. Dizemos que todo animal é antes um bando, uma matilha. Que ele tem seus modos
de matilha, mais do que características, mesmo que caiba fazer distinções no interior desses
modos. É esse o ponto em que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem
um fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Fascínio do fora? Ou a multiplicidade que nos
fascina já está em relação com uma multiplicidade que habita dentro de nós? "
Mil platôs vol 4. p 20 (edição eletrônica p. 16)
Propagação por contágio

Como conceber um povoamento, uma propagação, um devir, sem filiação


nem produção hereditária? Uma multiplicidade, sem unidade de um
ancestral? É muito simples e todo mundo sabe, ainda que só se fale nisso em
segredo. Opomos a epidemia à filiação, o contágio à hereditariedade, o
povoamento por contágio à reprodução sexuada, à produção sexual. Os
bandos, humanos e animais proliferam com os contágios, as epidemias, os
campos de batalha e as catástrofes. É como os híbridos, eles próprios
estéreis, nascidos de uma união sexual que não se reproduzirá, mas que
sempre recomeça ganhando terreno a cada vez. O vampiro não filiaciona,
ele contagia. A diferença é que o contágio, a epidemia coloca em jogo
termos inteiramente heterogêneos: por exemplo, um homem, um animal e
uma bactéria, um vírus, uma molécula, um microorganismo. Ou, como para
a trufa, uma árvore, uma mosca e um porco. (Mil Platôs vol. 4)
O ANÔMALO

imagem do filme Willard, 2003.


No devir não só encontramos a multiplicidade como escolhemos um anômalo nessa multiplicidade com
quem fazemos a aliança, o pacto.
"(...) por toda parte onde há multiplicidade, você encontrará também um indivíduo excepcional, e é com ele
que terá que fazer aliança para devir-animal. Não um lobo sozinho talvez, mas há o chefe de bando, o
senhor de matilha, ou então o antigo chefe destituído que vive agora sozinho, há o Solitário, ou ainda o
Demônio. (...) Moby Dick inteiro é uma das maiores obras-primas de devir; o capitão Ahab tem um devir-
baleia irresistível, mas que justamente contorna a matilha ou o cardume, e passa diretamente por uma
aliança monstruosa com o Único, com o Leviatã, Moby Dick."
Mil platôs vol 4. p 25 (edição eletrônica p. 21)
O anômalo, o elemento preferencial da matilha, não tem nada a ver com o indivíduo preferido, doméstico e
psicanalítico. Mas o anômalo não é tampouco um portador de espécie, que apresentaria as características
específicas e genéricas no mais puro estado, modelo ou exemplar único perfeição típica encarnada, termo
eminente de uma série, ou suporte de uma correspondência absolutamente harmoniosa. O anômalo não é nem
indivíduo nem espécie, ele abriga apenas afectos, não comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados,
nem características específicas ou significativas. Lovecraft chama de Outsider essa coisa ou entidade, a Coisa, que
chega e transborda, linear e no entanto múltipla, "inquieta, fervilhante, marulhosa, espumante, estendendo-se
como uma doença infecciosa, esse horror sem nome".
(Mil platôs vol 4)
Anômalo = conectar com a borda, com o fora

“Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo? É um fenômeno, mas um fenômeno de borda." Mil
platôs, p. 27 (edição eletrônica p. 22)
"Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos ou dos bosques. Eles
assombram as fronteiras. Eles se encontram na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos. O importante é sua
afinidade com a aliança, com o pacto, que lhes dá um estatuto oposto ao da filiação. Com o anômalo, a
relação é de aliança. O feiticeiro está numa relação de aliança com o demônio como potência do anômalo."
Mil platôs, p. 28 (edição eletrônica p. 24)
O trapaceiro e o traidor
O Antigo Testamento não é uma epopéia nem uma
tragédia, é o primeiro romance, é assim que os ingleses o
compreendem, como fundação do romance. O traidor é
o personagem essencial do romance, o herói. Traidor do
mundo das significações dominantes e da ordem
estabelecida. É bem diferente do trapaceiro: o trapaceiro
pretende se apropriar de propriedades fixas, ou
conquistar um território, ou, até mesmo, instaurar uma
nova ordem. O trapaceiro tem muito futuro, mas de
modo algum um devir. O padre, o adivinho, é um
trapaceiro, mas o experimentador, um traidor. O homem
de Estado ou homem de corte, é um trapaceiro, mas o
homem de guerra (não marechal ou general), um traidor.
Diálogos p. 34

É que trair édifícil, é criar. É preciso perder sua identidade, seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se
desconhecido. Diálogos, p. 37.
Devir e literatura

Há devires-animais na escritura, que não consistem em falar de seu cachorro ou de


seu gato. É, antes, um encontro entre dois reinos, um curto-circuito, uma captura
de código onde cada um se desterritorializa. Ao escrever sempre se dá escritura a
quem não tem, mas estes dão a escritura um devir sem o qual ela não existiria,
sem o qual ela seria pura redundância a serviço das potências estabelecidas. Que o
escritor seja minoritário não significa que há menos pessoas que escrevam do que
leitores; já não seria verdade hoje em dia: significa que a escritura encontra sempre
uma minoria que não escreve, e ela não se encarrega de escrever para essa
minoria, em seu lugar, e tampouco sobre ela, mas há encontro onde cada um
empurra o outro, o leva em sua linha de fuga, em uma desterritorialização
conjugada. A escritura se conjuga sempre com outra coisa que é seu próprio devir.
Não existe agenciamento que funcione sobre um único fluxo. Não é caso de
imitação, mas de conjugação. O escritor é penetrado pelo mais profundo, por um
devir-não-escritor.” D.H Lawrence
"Ser traidor de seu próprio reino, ser traidor de seu sexo, de sua classe, de sua
maioria – que outra razão para escrever? E ser traidor da escritura."
Diálogos, p. 36-37.

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