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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Hur, Domenico Uhng
Psicologia, política e esquizoanálise / Domenico
Uhng Hur. - 2ª ed - Campinas, SP : Alínea, 2019.
e-Pub
Bibliografia
1. Deleuze, Gilles, 1925-1995 2. Esquizofrenia
3. Esquizofrenia - Aspectos sociais 4. Guattari,
Félix, 1930-1992 5. Psicanálise - Aspectos sociais
6. Psicologia - Aspectos sociais 7. Psicologia
política 8. Psicologia social I. Título.
18-16909 CDD-150.19

Índices para catálogo sistemático:


1. Esquizoanálise : Psicologia 150.19
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

ISBN 978-85-7516-865-3

Todos os direitos reservados ao


Grupo Átomo e Alínea
Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP
CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 / 3232.0047

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SUMÁRIO

PREFÁCIO
Gregório F. Baremblitt

INTRODUÇÃO

1. FORÇAS, POTÊNCIA E MICROPOLÍTICA


Magma: fluxos, estratos e território
Potência e afetos
Diagrama e poder de resistir
Agenciamento e estrutura
Micropolítica e ‘método esquizoanalítico de intervenção’

2. SUBJETIVAÇÃO
Constituição da subjetividade e o hábito
A dobra e a subjetivação
Subjetividade, subjetivação e indivíduo
Coeficiente de territorialização

3. CÓDIGOS, INSTITUIÇÃO E DISCIPLINA


Imagem do pensamento
Inscrição-registro do código: o diagrama de inscrição
Sobrecodificação dos fluxos: o diagrama de captura/soberania
Institucionalização do código: as instituições concretas
Autonomização do código: norma e diagrama disciplinar
Subjetividade disciplinar
4. CAPITALISMO: AXIOMÁTICA DO CAPITAL E DIAGRAMA DE
RENDIMENTO
Desterritorialização dos fluxos
Axiomatização dos fluxos: classe universal e CMI/Império
Diagrama de forças: controle e rendimento
Instituições imateriais e noopolítica
Subjetividade capitalista e corpocapital
Capitalismo mafioso

5. PRÁTICAS E AGENCIAMENTOS PSICOPOLÍTICOS


Discursos conscientes e investimentos desejantes
Investimentos desejantes e agenciamentos psicopolíticos: estratopolítica,
tecnopolítica e nomadopolítica
Modos de funcionamento

6. MICROFASCISMOS E NEOCONSERVADORISMOS
Governamentalidade fascista
Micropolítica do fascismo: ódio e destrutividade
Neoconservadorismos: extremismos de direita e recodificação do cotidiano

7. ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E NEOCOLONIZAÇÃO


Estado estratopolítico
Estado tecnopolítico
Políticas públicas e neocolonização

8. MOVIMENTOS SOCIAIS NÔMADES


A máquina de guerra
Movimentos sociais como máquina de guerra
Ecosofia: um mundo por vir

REFERÊNCIAS
Bibliografia

SOBRE O AUTOR
PREFÁCIO

Quando o autor deste livro-máquina-de-guerra me solicitou um prefácio


para seu esplêndido escrito, em função de nossa comprovada afinidade
esquizoanalítica e da amizade que firmemente nos une, aceitei honrado de
imediato.
Não obstante, pedi para Domenico um bom tempo para efetuar a leitura
desse texto, ainda inédito. É claro que o amigo me concedeu o prazo de que
precisasse. O recorrido desse escrito me criou um dilema: li o mesmo
aceleradamente, porque queria possibilitar sua edição o mais rápido possível.
O texto, se bem está redigido de uma maneira rigorosa, também é muito
fluido; mas constatei um pouco surpreendido que tinha de estudá-lo.
A copiosa bibliografia publicada nestes últimos vinte anos em torno da
obra de Deleuze e Guattari inclui, desde logo, artigos e volumes muito
valiosos. Lamentavelmente, a meu entender, a potência da letra desses
autores não teve ainda a difusão, adoção, recriação e encarnação que brinda e
merece. Isso acontece não apenas no âmbito acadêmico, jugulado pelo
utilitarismo do adestramento, ou pastoreado por religiões estruturalistas.
A recomendável aplicação da práxis da esquizoanálise des-acontece na
imensa maioria estatística das minorias singulares, nos seus heroicos
movimentos, nas suas épicas campanhas, nas suas fraternas iniciativas
autogestionárias, em suma, nas suas Utopias Ativas.
Desde logo, em muitos casos, essa assimilação demorada pode ser
perfeitamente prescindível. A criatividade revolucionária pode produzir a
inteligência do que faz sem precisar de nenhum saber erudito.
Mas se, em alguma medida, esse valor desperdiçado se deve às
peculiaridades dessa fecunda obra, não só vale a pena destinar-lhe um ótimo
livro como este que estou prologando, senão, que autoriza algum breve
comentário.
Segundo me parece – e creio concordar com Domenico nestas páginas –,
a biblioteca de Deleuze e Guattari, composta a duas mãos, assim como a
publicada separadamente, tem poucos textos propriamente pedagógicos ou
destinados a militantes populares ou de nível não sofisticado. Talvez o
“Abecedário de Deleuze”, a “Revolução Molecular” e “As Três Ecologias”
de Guattari sejam exceções.
A isso se tem de acrescentar que tampouco para o leitor culto muitos
desses escritos são fáceis de entender, não apenas pelo denso e douto do
conteúdo, senão pelo estilo da exposição – dito em esquizoanalês, pela forma
e substância de conteúdo e expressão.
O Anti-Édipo e Mil platôs são exemplares nesse sentido. Robert Castel
(1978), numa publicação quase que simultânea com o primeiro, o qualificou
como “fulgurante e elíptico”.
Embora nossos grandes pensadores sustentem que se pode entrar e sair de
seu universo por onde se queira, porque cada parte implica o todo, por outro
lado, têm acunhado uma sentença esquizossêmica concluintemente
reveladora: não há todo; cada todo se acrescenta aos todos como um todo a
mais. Essa pluralidade das totalizações não equivale, para nada, a dizer
(segundo certos cultos do negativo) ‘não todo’ e é uma bela amostra de
originalidade, da potência da afirmação e da diferença conceitual.
A sucessão editorial cronológica dos livros de nossos autores não
significa nada por relação ao tempo Aiônico de sua tessitura. Seu ‘estroma’ e
seu ‘parênquima’ oscilam constantemente entre os espaços lisos e os
estriados, entre desestratificação e re-estratificação, entre descodificação e
recodificação, entre desterritorialização e territorialização, entre
desaxiomatização e axiomatização. Linhas duras, flexíveis e de fuga
transversalizam as páginas. Forças não vetorizadas diagramatizam seus
subterrâneos. Formações molares e moleculares se imanentizam em seus
parágrafos, os gêneros literários se multiplicitam e rizomatizam. Há, nos
capítulos, especialmente os de ‘Capitalismo e Esquizofrenia’, um
funcionamento polissemiótico que não aceita em absoluto reduzir-se a uma
semiologia maneirista do significante. Talvez se possa qualificar de quântica
(matéria-forma e energia-fluxo permutáveis) a uma escritura que lembra
aquela que Deleuze descobre nos Escólios da ‘Ética’ de Espinosa.
O leitor, que é peça autoral influente nesse redemoinhado oceano no qual
emergem incessantemente colossais cordilheiras móveis (ver Solaris), vive
experiências alucinantes. Não obstante, bastante amiúde naufraga nas
turbulências, e no melhor dos casos, tem de remontar às correntes que o
arrastam; em outros, o achamos aferrado numa pedra estriada, repetindo
como um eco uma noção ‘salvadora’ da ‘demoníaca’ correnteza.
Durante minhas leituras (muitas) de Capitalismo e esquizofrenia, tenho-
me elevado aos firmamentos cósmicos, às vezes me precipitei nas
protopáticas profundezas e noutras fiquei boiando nos rios de lava ou me
precipitei nas cataratas estilísticas (tal como estão descritas as superfícies na
Lógica do sentido). Frequentemente me acometeram impulsos solidários que
pretendiam responder ao SOS de meus companheiros leitores, alunos etc.
Escrevi alguma “Introdução”, mas senti que se precisava algo do tipo de
“Para ler...” que as publicações existentes não resolviam.
Penso que Psicologia, Política e Esquizoanálise cumpre exaustivamente
essa missão.
Não é por casualidade que o afluente de entrada – e o promontório de
atalaia – deste livro é a esquizoanálise. Desde esse portal zaratustriano se
divisa a geopolítica do planeta deleuzo-guattariano na hora da Aurora e não
necessariamente na do meio-dia ígneo de Kafka, por uma literatura menor ou
na do aristocrático crepúsculo de O que é a filosofia?.
Por certo, não se trata de privilegiar – nem muito menos de excluir –
nenhum volume dessa formidável e generosa prateleira. Nossos autores não o
tolerariam. Trata-se de enfatizar paragens-chave, olhando para a vasta
paisagem esquizossêmica com uma lente que mereceria ser lavrada por
Espinosa, e calçada por Marx. Mas enfatizar exige selecionar e definir com
clareza e precisão, o qual não implica engessamento, senão, que denota
sensibilidade para o nascimento do novo radical: revolução, produção,
invenção, criação.
É a partir desse insólito que se re-definem os domínios, continentes,
regiões, locais e povoações, tanto de outras localidades do mapa deleuzo-
guattariano como o das velhas disciplinas; suas vozes sem dúvida enriquecem
o coro, mas elas ressoam segundo uma partitura cuidada por princípios, não
por fundamentos. Isso ajuda a equacionar o que em seu ‘discurso’ pode
eventualmente soar como palavras de ordem. A esquizoanálise não ‘importa’
materiais de ‘outros’ campos para enriquecer um Império de especificidade
solipsista. A esquizoanálise navega como nômade que é – ‘entre’ – embora,
pitorescamente, diga que ‘rouba’. A esquizoanálise não dissimula sua ética-
política com nenhum ardil ‘purista’ de extramundanidade.
O amigo Domenico nos obsequiou esta bela caixa de ferramentas, mas
dotada de uma sistematização caosmótica que permite escolher com
segurança no estrondo dos mais de quarenta volumes, sabendo em que
consiste cada instrumento e quais são as principais opções para empregá-lo.
Tal precisão sem dúvida promoverá e melhorará em muito as
performances esquizoanalíticas dos leitores.
Apesar desse esmero, a travessia por estas folhas é bem amena, tem muito
de cartografia, mas também de uma viagem “à la Julio Verne”.
Este tomo não é para ser só ‘alegremente’ folheado, com o espírito desses
ocos embalos carnavalescos que contaminaram até alguns pesquisadores. A
futilidade demagógica, igual ao enciclopedismo atemorizante, são inimigos
da idoneidade heurística.
Este livro, como disse ao princípio, tem de ser cuidadosamente
estudado... para poder ser operacionalizado.
Parabenizo ao autor e a seus expedicionários.

Gregório F. Baremblitt [1]


INTRODUÇÃO

A esquizoanálise é um conjunto de saberes contemporâneo,


multifacetado, plural e heterogêneo – um campo teórico-político criado pelos
pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari após as agitações do maio de
1968 francês e que é a expressão filosófica desse acontecimento. Trata-se de
uma análise micropolítica dos agenciamentos, investimentos desejantes e de
poder que propõe uma cartografia das relações clínicas, institucionais, sociais
e políticas não mais no par família e neurose, tal como privilegiado na
psicanálise, mas, sim, na articulação entre capitalismo e esquizofrenia.
Desse novo par, desdobra-se extenso repertório de conceitos, proposições
e práticas que transpassam as tradicionais leituras da psicanálise, da
psicologia social, do estruturalismo ou do marxismo. São produzidas
concepções originais do inconsciente como usina intensiva e não como teatro
representativo e do desejo, como produção e não como falta, bem como um
novo paradigma: o ético-estético-político. Nele, opera-se com base nas
lógicas e práticas críticas que incitam processos instituintes, desejantes, de
experimentação e a expressão das diferenças e multiplicidades, em vez da
hierarquia e das normas adaptativas.
No Brasil e na América Latina, tornou-se importante referência para os
estudos sobre a clínica, a sociedade e a arte. Contudo, mesmo elaborando
valiosas ferramentas teóricas para o estudo dos fenômenos políticos, nota-se
uma lacuna referente às produções neste campo, pois seu potencial analítico é
pouco utilizado para refletir sobre a política.
Dessa forma, o livro Psicologia, Política e Esquizoanálise tem como
objetivo apresentar e discutir conceitos esquizoanalíticos que sirvam como
instrumentos teóricos para a análise dos fenômenos psicopolíticos atuais.
Busca proporcionar linhas de experimentação que ampliam os repertórios
analíticos da Psicologia e das Ciências Humanas, ao apreender os fenômenos
no triângulo resultante das relações entre poder, investimentos desejantes e
processos de subjetivação. Em outras palavras, remete à conexão de três
instâncias fundamentais: política, psicologia e subjetividade.
Como método de trabalho, foi realizada uma cartografia sobre toda a
longa obra de Deleuze e Guattari, que supera quarenta títulos. Buscou-se
sistematizar as principais passagens em que figuram os conceitos que
fornecem uma análise dos processos psicopolíticos. A cartografia é um modo
de produção metodológico que fabrica seus sentidos por meio do
acompanhamento dos processos investigados (Passos, Kastrup & Escóssia,
2009). É um mapa que realiza e atualiza os movimentos do território ao
analisá-lo (Rolnik, 1989). Assim, traçamos linhas, coordenadas e articulações
para investigar as engrenagens psicopolíticas do cotidiano presentes na obra
de Deleuze e Guattari. Também se citam reflexões de pensadores próximos,
como Michel Foucault, Maurizio Lazzarato, Gregório Baremblitt, bem como
outros com quem estabeleceram parceria [2].
Para a compreensão do atual cenário de efervescência e crise política,
desenvolvemos oito temáticas fundamentais na articulação entre psicologia e
política:
1. Poder;
2. Subjetividade;
3. Instituições e códigos;
4. Capitalismo;
5. Práticas e agenciamentos psicopolíticos;
6. Microfascismos;
7. Estado;
8. Movimentos sociais.

O Capítulo 1, Forças, potência e micropolítica, inicia o livro com uma


reflexão sobre as forças como fundamento do poder, da política e de todos os
processos. Desenvolve sua atualização em fluxos e estratos, diagramas e
máquinas concretas, intensidades e extensões, agenciamento e estrutura.
Discute as qualidades das forças, sua atividade e reatividade, que marcam os
processos de composição e decomposição entre os corpos e os modos de
afecções resultantes. Também versa sobre o poder de resistir e sobre um
‘método esquizoanalítico de intervenção’.
O Capítulo 2, Subjetivação, discute a produção de subjetividade com base
em dois modelos filosóficos: o hábito e a dobra. Diferencia subjetivação de
subjetividade e de indivíduo. Adiciona uma dimensão a mais nessa questão
ao desenvolver o conceito de coeficiente de territorialização como fenômeno
fundamental para a compreensão das diferenças individuais.
O Capítulo 3, Códigos, instituição e disciplina, versa sobre os
fundamentos do pensar e do agir sociais tomando como base as figuras do
código, instituições, normas e imagem do pensamento. Por intermédio da
consolidação das forças pelos diagramas de captura e disciplinar discute a
formação das Instituições concretas e da subjetividade disciplinar.
O Capítulo 4, Capitalismo: axiomática do capital e diagrama de
rendimento, é a dobradiça central do livro, que proporciona a compreensão de
como funciona a sociedade atual e suas fraturas. Faz a cartografia das forças
do capitalismo por meio dos conceitos de axiomática do capital e diagrama de
rendimento. Também aborda sua atualização nas Instituições imateriais, em
novas formas de governabilidade, em modalidades corporais e numa nova
configuração subjetiva: a subjetividade capitalista, a qual é hipertrofiada,
busca o máximo rendimento, mas está esgotada e endividada.
O Capítulo 5, Práticas e agenciamentos psicopolíticos, visa articular os
investimentos desejantes às práticas políticas. Oferece uma proposição que
traz um novo ângulo de visualização à ação política: os agenciamentos
psicopolíticos. Elabora uma nova tipologia tripartite que explica as práticas
políticas de forma que se vai além das ideologias, dicotomias de classe ou de
esquerda e direita políticas.
O Capítulo 6, Microfascismos e neoconservadorismos, discute um dos
fenômenos que mais assombra o planeta na atualidade: o retorno e
intensificação dos fascismos e conservadorismos. Com uma leitura
micropolítica do fascismo, em sua dimensão molecular, analisa sua
governamentalidade, pautada no ódio ao outro. Essa lógica consolida-se nos
fundamentalismos e extremismos políticos que se intensificaram na
contemporaneidade, tal como se vê na vitória eleitoral da extrema-direita no
Brasil.
O Capítulo 7, Estado, políticas públicas e neocolonização, analisa outro
tema bastante atual, que são as novas configurações do Estado e suas formas
de governo. Versa sobre dois modelos de Estado, em transição devido à
intensificação do capitalismo. Também aborda as políticas públicas como
equipamentos de efetivação de sua razão governamental e que fortalecem o
fenômeno denominado neocolonização.
O Capítulo 8, Movimentos sociais nômades, visa desenvolver uma
concepção esquizoanalítica de movimentos sociais articulada ao conceito de
máquina de guerra, cuja atualização faz com que tais movimentos assumam
características singulares, muito distintas das práticas políticas de Estado ou
de partidos. O livro finaliza ressaltando esse diferencial de forças, que não
somente conforma outro modo de funcionamento aos movimentos coletivos,
bem como direciona à constituição de uma Utopia Ativa na forma de uma
Ecosofia que pode instaurar outros mundos e formas de viver possíveis.
Na esquizoanálise, as referidas temáticas não aparecem com essa
categorização. Contudo, optamos por organizar os capítulos dessa maneira
para aproximar as categorias utilizadas das reflexões psicossociais correntes e
por didatismo. Essa transdução também expressa traços estilísticos nossos e a
forma com que nos apropriamos da obra de Deleuze e Guattari. Por mais que
o livro tenha certa linearidade, cada capítulo corresponde a problemáticas
distintas e pode ser lido isoladamente, de acordo com os interesses do leitor.
Por exemplo, aqueles que pretendem consultar apenas o tema dos processos
de subjetivação, podem ler o Capítulo 2 e os tópicos Subjetividade disciplinar
e Subjetividade capitalista e corpocapital; o tema das Instituições, os tópicos
Institucionalização do código: as instituições concretas, Autonomização do
código: norma e diagrama disciplinar e Instituições imateriais e noopolítica;
o tema do Estado, o Capítulo 7 e os tópicos Sobrecodificação dos fluxos: o
diagrama de captura/soberania e A máquina de guerra; o tema do
Capitalismo, o Capítulo 4 e o tópico Estado tecnopolítico; o tema dos
movimentos sociais, o Capítulo 8 etc.
Esta obra pode ser utilizada como uma introdução à esquizoanálise,
embora não busque ficar somente em sua reprodução, ou numa suposta
exatidão de seus enunciados. Da mesma forma que este pensamento crítico
incita a insurgência e a transformação, não deve ficar limitado a conceitos e
proposições reconhecidos e legitimados. Deve repensar-se e reconfigurar-se
tendo como base acontecimentos do fora e do presente, que impelem suas
enunciações a se extrapolarem e a assumirem novas conformações e efeitos.
Nem a própria esquizoanálise deve ficar incólume às forças do pensar, deve
transpassar as fronteiras. Por isso, suas teorias são agenciadas aos problemas
do presente, a uma crítica do contemporâneo, transversalizando o campo
filosófico às problemáticas psicopolíticas, na qual se distendem e se propõem
outros conceitos, como os de agenciamentos psicopolíticos, movimentos
sociais nômades e linhas de luta.
Este livro oferece elementos que expressam que a esquizoanálise é, ou
fundamenta, uma Psicologia Política, ou melhor, uma Psicologia Política
Crítica, comprometida com o fomento das potências insurgentes, sempre
direcionadas à variação contínua, à transformação e ao projeto da autonomia.
E, como qualquer outra produção, é muito mais coletiva do que individual.
Gera-se num campo de intersecção de diversas linhas, pensamentos e
debates: é um agenciamento coletivo de enunciação. É uma composição que
atravessa leituras, estudos teóricos e reflexões resultantes de pesquisas com
diversos ativistas políticos e participação anterior em movimentos políticos.
Parte de uma reorganização de distintos escritos realizados ao longo de nossa
trajetória e do nosso projeto de pesquisa “Psicologia Social e Esquizoanálise:
crítica, política e intervenção social” na Universidade Federal de Goiás
(UFG). Deriva-se também de meu histórico de aulas assistidas e proferidas,
discussões empreendidas, orientações realizadas, oficinas e dispositivos
vivenciados e coordenados.
Muitos mestres influenciaram, direta ou indiretamente, esta obra. De
vários, nomearei apenas alguns, aos quais sou extremamente agradecido, por
mais que talvez não se reconheçam neste livro: Gregório Baremblitt, Maria
Inês Assumpção Fernandes, Heliana Conde Rodrigues, Félix Vázquez,
Salvador Sandoval, José Manuel Sabucedo e Gregório Kazi. Também
agradeço aos alunos das disciplinas “Psicologia, política e subjetividade:
debates contemporâneos”, do Programa de Pós-graduação em Psicologia da
UFG, e dos “Seminários optativos”, do Programa de Mestrado em Psicologia
Social da Universidade Pontifícia Bolivariana (Medellín/Colômbia), com os
quais pudemos, ao longo de 2016/2017, apresentar, debater e desenvolver
estas reflexões.
CAPÍTULO I
FORÇAS, POTÊNCIA E MICROPOLÍTICA

As relações de forças atravessam e formam o território, a sociedade, a


subjetividade, o corpo. A todo momento, são forças que produzem,
consolidam e destroem os processos. Não há vida sem relações de forças, isto
é, relações de poder (Deleuze, 2014). A compreensão da lógica das forças é
fundamental para a cartografia das relações sociais e a crítica à conformação
que elas apresentam. A esquizoanálise analisa as configurações e mutações
nos jogos de forças e diagramas, tanto da perspectiva molar, como da
molecular. Sua concepção de poder não se restringe à mera descrição, senão
assume um projeto ético-estético-político que busca eliciar processos
instituintes, potencializadores e libertários: visa rachar e demolir os bloqueios
dos fluxos desejantes e psicossociais. Tal postura é explícita em toda a obra
de Deleuze e Guattari principalmente na discussão do conceito de
micropolítica.
Este capítulo discute o poder e a ação das forças, refletindo sobre suas
características e como constituem o território e a sociedade. Como o poder é
apreendido? Quais são os distintos enunciados que são por ele
desenvolvidos? Traçamos cinco tópicos. Primeiro, a incidência das forças no
território, na qual se utilizam as figurações de magma, linhas e rizoma.
Segundo, a relação entre potência e afetos, que se referencia nas forças em
Nietzsche e Espinosa. Terceiro, as proposições de diagrama e poder de
resistir. Quarto, o conceito de agenciamento em contraposição ao de
estrutura. E, finalmente, a discussão da micropolítica e de um ‘método
esquizoanalítico de intervenção’ que se pode derivar desse pensamento.
Magma: fluxos, estratos e território

As forças são o fundamento e unidade básica de análise de todos os


processos. São dinâmicas e móveis, de forma alguma são estáticas, e estão,
portanto, em movimento incessante. Operam num campo, no território, e
sempre estão em contato com outras forças. Permanecem em conflito, em
tensão e produzem distintos efeitos. Atualizam-se em composições como
fluxos, ondas, partículas, formas e objetos de diferentes materialidades, que
compõem camadas e estratos do território, povoando-o e formando-o. Ondas
de diferentes amplitudes e frequências, que se remetem à movimentação e
agitação de moléculas, átomos e suas fissões. Produzem formações e
processos plásticos e maleáveis, que podem vir a se estabilizar, mas sempre
em movimento e itinerância.
Forças, movimentos e fluxos precedem as formas e estratos.
Exemplificamos essa anterioridade por meio da lógica magmática [3] das
forças vulcânicas. Nas erupções de um vulcão, toneladas de jatos de lava são
expelidas no cume de uma montanha, acompanhadas de explosões, fogo,
gases, radiações, como se a natureza gritasse. Fluxos de magma com um
calor inimaginável, com extrema potência de energia e ação, transitam pela
superfície e consomem-conformam tudo que tocam. Trata-se de linhas que
têm uma configuração singular, pois não possuem princípio de estruturação
interna nem segmentaridade. Atuam como um fluxo louco, que jorra e foge,
produtor de rupturas e aberturas para a criação e indeterminação: tal como
uma linha de fuga. Em seu processo de desterritorialização arrastam o
território a uma nova jornada. Essas forças não conseguem ficar contidas nas
formas instituídas, seus corpos não suportam tamanho grau de potência, de
energia: extrapolam-se. Desterritorialização do território. Abertura radical ao
outro. Por não possuírem forma nem estruturação, esses fluxos são expressos
por vetores, campos de força e intensidades, em vez de medidas e segmentos.
Referem-se ao devir e não ao ser, são a linha do fora e desejante. Mais
turbilhão do que estrutura, são a irrupção do caos, do incerto, a produção do
novo, de uma anomalia. A linha de fuga propaga-se por vetores centrífugos,
direcionados para o fora, difusamente como um gás (Deleuze, 2007b). São
fluxos de movimento e transformação que fomentam processos de mudança,
ruptura e revolução, seja no território, numa Instituição, no corpo de um
indivíduo etc. Sua vazão instaura outras realidades e novos campos,
exprimindo acontecimentos.
Na lógica magmática, os fluxos operam como uma enxurrada, arrastando
e misturando-se. Mas com a dispersão e dissipação do seu grau energético, a
velocidade e força de seu movimento gradativamente diminuem: esfriam,
alcançam um repouso, precipitam e sedimentam-se. Os fluxos contraem-se e
cristalizam-se em linhas segmentárias e estratos, dando outra configuração ao
território: estrato sobre fluxo.
Cada novo estrato não apenas reveste o território como se fosse uma capa,
mas arrasta e cria a sua superfície. Produz novo plano, híbrido, no qual
coexistem os detritos e fluxos anteriores, com os que irromperam e se
precipitaram: é o processo de reterritorialização. A lava cristaliza-se,
transforma-se em pedra, transmuta-se a basalto. Não é à toa que é conhecida
como rocha magmática, ou ígnea, que provém do fogo.
Da jornada de precipitação e cristalização resultam linhas segmentárias,
estratos que apresentam uma estruturação e rigidez: a linha de
segmentaridade rígida, com maior potencial de gravitação e fixação, ao
invés de instabilidade e variação. A linha dura atua eminentemente por
vetores centrípetos, assim constitui e é base dos estratos e das instituições: é a
linha molar, dos processos e formações rígidos e estáveis. São exemplos as
leis, os rituais instituídos, a identidade, bem como a linha que estrutura o
caminho institucional da vida do indivíduo: nasce numa família, é depositado
numa creche, vai à escola, ingressa no serviço militar, arruma um emprego,
casa-se, aposenta-se, é despejado num asilo, sempre de acordo com as
normas disciplinares das instituições concretas. Além das linhas duras das
disciplinas institucionais, também há a estratificação de movimentos quase
imperceptíveis, como a do hábito cotidiano do indivíduo que repete sua rotina
indefinidamente em práticas instituídas. Figura emblemática desse
comportamento é a do ‘homem na caixa’, que sempre segue os mesmos
trajetos na clausura de seus hábitos e de sua espacialidade estriada.
Outra modalidade de linhas é a de segmentaridade flexível (Deleuze &
Guattari, 1996). Esta é mais fluida, permite maleabilidade e flexibilidade que
as linhas rígidas não possuem. Possibilita desvios que geram dobras, curvas,
flexões, trajetos diferenciados e outras experiências ante a rigidez dos
segmentos estratificados. Assume potencial de atualizar o virtual e abrir
espaço à irrupção dos devires e da diferença: é a linha molecular, que tem
movimentação e agitação maior e pode trazer processos de mudança. Tais
linhas são vetores que dramatizam a duração, o movimento e a propagação,
enquanto o ponto tem a conotação de algo parado, estanque, em repouso e
estático.
As forças e a sociedade traçam linhas que se dispersam para além das
fronteiras, que não ficam contidas nas estruturas instituídas, mas também
outras que constituem os estratos rígidos. Entrelaçam-se e formam nós,
segmentaridades, blocos e tramas. A tessitura de linhas heterogêneas constitui
tanto o território como os coletivos que o ocupam, seja pela sua propagação,
seja pelos seus pontos de repouso. Portanto, o território é constituído pela
ação das distintas forças, pelo entrelaçamento entre fluxos e estratos. É um
plano de imanência e de itinerância, é matéria-movimento. Composição entre
inúmeras partículas e ondas, visíveis e invisíveis, perceptíveis e
imperceptíveis, e máquinas de diversas espécies. O campo territorial é
preenchido, construído e modificado pela sua ocupação e movimentação. Ao
mesmo tempo, é um plano de fixidez e mobilidade. Não há apenas sua
geologia e geografia, mas também sua história, dinâmica, forças e energias.
Nele, não há um modelo evolutivo de sedentarização dos fluxos selvagens
em um único sentido, mas, sim, o de uma coexistência em zigue-zague, seja
do congelamento dos fluxos, seja da erupção do estrato: as transformações e
os movimentos são constantes. O território é, aparentemente, estável no plano
molar, dos grandes conjuntos, e dinâmico no plano molecular, no âmbito de
suas partículas e ondulações. Entretanto, mesmo sua molaridade se
metamorfoseia e transforma-se, tal como as forças da natureza. Não há
somente transmutação entre estados, por exemplo, do líquido ao sólido, pois
até um corpo sólido se metamorfoseia em outro sólido aparentemente fixo.
Quando as rochas magmáticas sofrem elevadas alterações de temperatura e
pressão, transformam-se em rochas metamórficas. O granito transmuta-se em
gnaisse. Nesse caso, não por dissipação de sua própria energia, mas por ser
afetado pelas forças do fora.
No caso das transformações da água, a incidência das forças do frio sobre
ela faz com que suas moléculas se organizem de outra forma, tornando-a
sólida. No extremo, pode formar grandes icebergs, cristalizando-se e
petrificando-se, tornando-se imóvel por eras. Por outro lado, a potência do
calor, ou do fogo, traz outra organização molecular, liquefaz as grandes
pedras, tirando-as de sua aparente estática, para um movimento que pode
tornar-se uma grande enxurrada que arrasta e arrasa uma cidade inteira.
Nosso temor já não é do deserto nem do sertão, mas do tsunami e dos rejeitos
da cidade de Mariana-Minas Gerais. A água possui uma variedade de
respostas e metamorfoseia-se molecular e molarmente ante as diferentes
forças que a afetam, nos agenciamentos que forma, independentemente de
sua ‘intencionalidade’. E, no caso das ondas eletromagnéticas e radiações,
ocorrem os efeitos mais díspares, os quais podem decorrer em centenas de
anos, ou rapidamente em produções teratogênicas ou mortíferas.
A vazão e a sedimentação dos fluxos de diversas materialidades e graus
de organização formam um emaranhado de linhas que constitui intrincada e
complexa rede: o território é uma megamáquina de coexistência virtual.
Caótico à primeira vista, é esquadrinhado e identificado pelos seres que o
ocupam. Os mecanismos sociais buscam a codificação dos processos, com o
movimento contrário das linhas de fuga e de expansão no território.
Assumem uma força centrípeta que tenta impedir que os fluxos fujam e se
dispersem. Sua função é a de inscrever e codificar os fluxos
desterritorializados, prover significações, organizar o movimento caótico,
para constituir estratos determinados. O caos é codificado em cosmos, em
ilhas e continentes de significações, padrões, traços identitários e sistemas de
enunciados que designam o desordenado. Constitui-se um cosmos comum
para a experiência inteligível e que faz com que a dispersão dos fluxos e
linhas seja identificada em códigos, estruturas, regras e leis.
A rede complexa entre as linhas expressa a interconexão direta entre caos
e cosmos. Com base na Botânica, distinguem-se dois tipos de tramas que
dramatizam o entrelaçamento entre o caótico e o organizado, ou os planos de
produção e de registro-controle (Baremblitt, 1998): o rizoma e a árvore. O
rizoma (Deleuze & Guattari, 1995a) é a trama vegetal de como se propagam
os fluxos e estratos no real: desordenadamente, para todos os lados, sem
centro, tronco principal e limites definidos. No seu movimento e expansão,
há processos de desestratificação e desterritorialização, tal como na
propagação de um bananal, o crescimento de tubérculos ou fungos. Um
exemplo de rizoma animal pode ser visto em uma malta de ratos que sai do
duto do esgoto, ou mesmo num grupo de crianças correndo e brincando no
recreio no pátio da escola. Um tipo de rizoma arquitetônico são as favelas no
Rio de Janeiro e São Paulo, que se sobrepõem nos morros e vielas,
desafiando os princípios de ordenação e construção da Engenharia Civil e até
da gravidade. O rizoma é a figuração da lógica magmática e da transgressão
do ordenado, é a pura esquematização das multiplicidades.
A árvore, por outro lado, é a trama da lógica identitária, na qual há um
enraizamento firme dos processos, um tronco comum que articula suas
diferentes ramificações, as folhas, flores e frutos. As formações arborescentes
são a dramatização do cosmos diante do caos e a idealização do projeto
iluminista de edificar um conhecimento sólido e bem enraizado. Desse modo,
o cosmos não suprime o caos, a estrutura não extingue o turbilhão dos
distintos fluxos, nem a territorialidade suprime os processos de
desterritorialização. Na relação indissociável entre caos e cosmos, utiliza-se o
neologismo “caosmos”, ou melhor, como estabelecem uma relação de
contínua retroalimentação, o termo mais exato é “caosmose” (Guattari, 1992).
Esta pode ser visualizada como o plano de imanência no qual ocorre a
movimentação e propagação das séries de linhas, fluxos e estratos. A
“caosmose” é território de constituição híbrida e coexistência virtual entre
elementos de diversos tipos e naturezas.

Figura 1.1. Intensio e extensio.

Considero que a relação caosmótica é a integração-articulação de uma


bipolaridade que atravessa a história da filosofia: a relação entre energia e
matéria, virtual e atual, intensio e extensio, uma intensão e sua extensão. As
intensidades e extensões não são pares contraditórios, mas forças
interpenetradas. São indissociáveis, mas irredutíveis entre si. O primeiro
refere-se às energias livres, sem ligação, aos fluxos nômades, singularidades
virtuais e linhas de fuga, ao passo que o segundo diz respeito ao estrato, ao
sólido, à extensão do que é matéria, à linha integral que conjuntiza os
diferentes elementos a um movimento formatador ou ondulatório que
atualiza, integra ou captura as singularidades. Fluxos e estratos, energia e
matéria, formam o território. Na Figura 1.1, é esquematizada a relação
indissociável entre uma intensio que se distende em si como um fluxo e
contrai-se em extensio como matéria. Virtualidade que se atualiza, mas atual
que se virtualiza. Há uma infinitude de combinações no espaço de dispersão
entre esses dois polos. Apreendemos a relação entre intensidades e extensões,
e mesmo a de caos e cosmos, com o conceito do filósofo Henri Bergson
(1999) de duração.
A duração é o fluxo da diferença, o movimento da alteração, que se
propaga num jato múltiplo que não para de se dividir e, nessa jornada,
transmuta-se, seja nos processos intensivos, seja nas materialidades extensas.
Tal como o tempo, não é apreendida apenas em sua dimensão linear e
quantitativa, cronometrada, mensurável, como sucessão de eventos. Não se
propaga num sentido único, do passado ao presente, senão como coexistência
virtual de fluxos heterogêneos, de múltiplos planos temporais: a duração
segue caminhos divergentes no mesmo momento. A sucessão do tempo
cronológico perde a determinância e o fluxo do tempo ramifica-se em jatos
dissimétricos em diversas direções: distende-se ao passado e contrai-se no
presente, desdobra-se em intensio e materializa-se em extensio.
O presente não segue o passado, bem como não precisa efetuar-se para
que o passado se constitua, pois ambos se propagam no mesmo instante, no
entrelaçamento entre virtualidades e atualizações. Então, no fluxo da duração
não há relação de linearidade ou de sucessão: passado, presente e futuro
coexistem ao mesmo momento em que há um paradoxo de
contemporaneidade entre movimentos heterogêneos e de naturezas distintas.
O tempo foge da circularidade e avança por trajetórias espiraladas e
fragmentadas, configurando-se como um cristal com múltiplas faces
(Deleuze, 1990, 1999; Pelbart, 2004).
A coexistência de temporalidades pode ser constatada tanto nas
recordações, como em qualquer narrativa. Por isso, a lembrança não é
posterior à percepção, ambas se constituem no mesmo instante (Bergson,
1999). As distintas temporalidades sobrepõem-se, misturam-se, transitam em
movimentos descontínuos entre diferentes planos, como fractais. Dessa
forma, além do tempo objetivo, estriado e medido, regido por Cronos
(cronológico), o titã que devora seus filhos, há outra temporalidade, que está
sob a égide de Aion. É a temporalidade da duração, difusa, antilinear,
rizomática. Tempo das vivências, intensidades e devires. Em Aion, o tempo
possui um caráter múltiplo, difuso, caótico, que se ramifica e se desdobra de
maneira magmática, a partir de uma interconexão de diversos planos
temporais dissimétricos e sobrepostos, que até podem ser contraditórios
(Deleuze, 2003). Dessa perspectiva, o tempo, o ser, é multiplicidade,
turbilhão. Por isso, Bergson diferencia duas modalidades de multiplicidades:
as contínuas e as discretas. A primeira é intensiva, infinita, qualitativa, é a
expressão da duração e do fluxo do tempo de Aion e a segunda é delimitada,
segmentada e quantitativa, o tempo estriado de Cronos.
A duração distende-se em intensão e contrai-se em extensão. Dilata-se na
energia, no movimento, nas intensidades e contrai-se, incorpora-se na
matéria, no estrato, nas extensões. Ramifica-se nas distintas linhas, em fluxos
e estratos, conformando caos e cosmos, rizoma e árvore, virtual e atual: a
duração é o fluxo da vida. Mas há casos em que há elevada contração da
extensão, numa alta materialização que torna os estratos muito rígidos.
Frequentemente, esse fenômeno ocorre quando o corpo não consegue lidar
com as forças do fluxo e do virtual. Tenta atualizar-se mais e mais; estrato
sobre estrato, couraça sobre couraça. A força dobra-se e é recoberta em
camadas, constituindo próteses e órteses para sua manutenção, mas que
bloqueiam as intensidades do fora. O estrato petrifica-se, perde relação com a
intensão, fragmenta-se e pulveriza-se: o processo torna-se antiprodução,
esvaziando-se e despotencializando-se (Figura 1.1).
Portanto, o território, enquanto caosmose, tem uma constituição
paradoxal, ao mesmo tempo em que é delimitado, é aberto; é estrutura e
fluxo. É propenso à fixação e territorialização, mas sempre aberto à
desterritorialização. Suas forças não são apenas de atração, gravitação, mas
também de repulsão, propagação. Não cessa de se movimentar, de se
expandir e se retrair, tal como ondas que chicoteiam e arrastam a costa
marítima. Os distintos corpos do plano territorial agenciam-se e promovem
variados processos. Tudo está misturado e as forças ininterruptamente estão
em ação. Sempre há relações de forças entre um corpo e outro.
Potência e afetos

A esquizoanálise instaura uma ética da potência pela articulação entre as


forças e os modos de afecção. Este tópico visa discutir três características
dessa conexão que se fundamentam nos enunciados dos filósofos Nietzsche e
Espinosa. Primeiro, a relação entre as forças ativas e reativas. Segundo, os
modos de composição das forças e suas afecções correlatas. Terceiro, a dupla
caracterização de poder, como potentia e potestas.
O exercício das relações de forças e de poder mostra flagrante inversão e
adoção de valores contraditórios no espaço social. Nota-se uma reprodução
das relações instituídas, em que se trata mais de obedecer, em vez de criar. A
moral, a culpa, o mérito, o bem e o mal são imperativos sociais bastante
propagados e que estão diretamente atrelados ao exercício da dominação e à
obediência (Deleuze, 2002). Trazem mais infelicidade do que realização e
satisfação. Espinosa afirma que tal configuração é resultante do
desconhecimento da ordem das causas no agenciamento entre os corpos.
Dessa forma, denuncia a consciência, os valores e as paixões tristes como
fatores que mantêm esse desconhecimento, a ilusão e a servidão, pois
encobrem e bloqueiam as potências do corpo. Aponta também que não
sabemos o que pode um corpo, não conhecemos sua potência, ela é
desconhecida. Qual é a potência de um corpo?
O filósofo holandês defende que se deve utilizar o corpo como um outro
modelo que transpassa a consciência. Compreende que são os regimes de
composição e de afecções entre as forças e os corpos que constituem os
modos de existência de ser. Assim, como método, deve-se realizar sua
cartografia, calcada por agenciamentos de movimentos e afetos. O corpo,
como o território, não deve ser apreendido como substância, mas pelo seu
funcionamento, por seus regimes de forças e afecção. Deve ser tomado por
uma dupla dimensão: sua longitude e latitude. A longitude refere-se à sua
cinética e dinâmica, aos movimentos e repousos, às velocidades e lentidões,
ao seu posicionamento; ao passo que a latitude alude ao seu gradiente de
afecções, sua variação intensiva, ao seu poder de afetar e de ser afetado por
outros corpos (Deleuze, 2002).
Nietzsche fornece o fundamento das forças ao propor sua dualidade, na
qual há as que agem e outras que reagem, e que são qualificadas como forças
ativas e reativas (Deleuze, 1976a). As forças ativas são as de ação, criação e
produção. Atualizam singularidades e referem-se a potências livres, que são
tomadas pelo seu caráter de afirmação, construção e composição. Já as forças
reativas são secundárias e apreendidas pelo seu caráter negativo, de reação,
adaptação e subtração. A diferença entre as forças não é quantitativa, mas
qualitativa e tipológica. Sua distinção funda-se numa espécie de hierarquia
entre uma força dominante e uma dominada, uma vontade a ser obedecida e
uma obediente, enfim, uma força afirmativa e outra negativa. Portanto, ativo
e reativo são qualidades das forças, bem como afirmação e negação são
qualidades da vontade de potência (Deleuze, 2007a).
Contudo, as forças não estão isoladas, estão em combate, em
entrelaçamento, do qual resultam os modos qualitativos de vida. Em tal
relação, há uma espécie de processo parasitário das forças reativas diante das
ativas. As reativas não formam processos de composição, mas de
decomposição, pois bloqueiam e subtraem as potências e virtudes das forças
ativas. Transformam-nas em reativas (Deleuze, 1976a). Nesse caso, há uma
obstacularização da força positiva, sua subjugação, sua reação às forças
reativas. A relação de forças não opera mais por adição ou multiplicação,
senão por subtração e divisão. Esse processo está diretamente relacionado ao
bloqueio da própria vontade, em que o elemento negativo passa ao primeiro
plano. Dessa forma, para Nietzsche, há o primado do negativo, o triunfo das
forças reativas sobre as ativas, do qual decorre a vitória dos fracos sobre os
fortes. O triunfo dos fracos não se dá pela potência de sua força, mas pelo seu
caráter de subtração do outro, pelo qual bloqueia e separa o forte de suas
potencialidades. "Eles triunfam, não pela composição do seu poder, mas pelo
poder do seu contágio. Acarretam um devir reativo de todas as forças. É isso
a 'degenerescência'" (Deleuze, 2007a, p. 25).
O filósofo alemão denomina a vitória das forças reativas de niilismo, ou
triunfo dos escravos, que é a modalidade de depreciação e negação da vida e
da existência. A divisão e afastamento das forças acarretam um conjunto de
sintomas que são expressos pelas principais formas do niilismo:
ressentimento, má consciência e constituição de um ideal ascético (Deleuze,
1976a).
O ressentimento funda-se na atitude de expressar o negativo para o
externo, em acusar e depreciar a existência, culpabilizar e odiar o outro. É a
perpetuação do estado reativo das forças.
A má consciência refere-se a movimento similar, mas que ocorre em
sentido inverso do ressentimento, a uma internalização do negativo. É a
consciência que está capturada pelas forças reativas e que, num ciclo vicioso,
multiplica os processos de subtração e decomposição da dor e da abnegação,
mas de modo introjetado. Direciona-se o mal-estar para si próprio e não
apenas ao outro.
Já o ideal ascético é decorrência direta das formas de vida reativas e nele
se opera uma negação da própria vida, prevalecendo o ideal e a vontade de
nada: o niilismo. Nessa conjuntura, a figura do sacerdote é emblemática, pois
é ele quem instaura a trindade das forças reativas: o pecado, a falta e a
culpabilidade como maneiras de aprisionar o forte e fazê-lo internalizar a má
consciência. Pode-se afirmar que o sacerdote/padre hoje é atualizado na
figura do psicanalista uma vez que ambos não possuem apenas uma
disposição maquínica-corporal muito semelhante, na qual é necessário
subtrair a face do olhar. Na reatualização do dispositivo do confessionário no
sofá-divã, o psicanalista também incute as forças reativas e o ressentimento
sob a fórmula da tríplice maldição: o desejo como falta, a conexão do desejo
ao prazer e o ideal transcendente do fantasma (Deleuze & Guattari, 1996).
São modos de capturar e enfraquecer o forte.
Na vitória das forças reativas, dos fracos, impacta a crítica filosófica de
que, mesmo tomando o poder, o fraco não deixa de ser fraco, o escravo não
deixa de ser escravo, bem como as forças reativas não deixam de ser reativas.
Deleuze (2007a) afirma:

"Nossos senhores são escravos que triunfam num devir-escravo


universal: o homem europeu, o homem domesticado, o bobo...
Nietzsche descreve os Estados modernos como formigueiros, em que
os chefes e os poderosos levam a melhor devido à sua baixeza, ao
contágio desta baixeza e desta truanice [...] Quando o niilismo
triunfa, então e só então a vontade de poder deixa de querer dizer
‘criar’, mas significa: querer o poder, desejar dominar (portanto,
atribuir-se ou fazer com que atribuam os valores estabelecidos,
dinheiro, honras, poder...). Ora, esta vontade deste poder é
precisamente a do escravo, é a maneira como o escravo ou o
impotente concebe o poder, a ideia que dele faz, e que ele aplica
quando triunfa. Acontece que um doente pode dizer: ah! Se eu
estivesse bom, faria isto – e talvez o fizesse –, mas os seus projetos e
as suas concepções são ainda as de um doente, e nada mais que as de
um doente" (p. 26).

As forças ativas e reativas geram duas formas diferentes de poder: o


poder afirmativo, de querer criar, e um poder negativo, de querer capturar,
sobrepujar, que está relacionado a valores mesquinhos. Desejar o poder,
forma contemporânea de relação com as forças, remete à lógica do fraco, do
escravo, ao triunfo do niilismo. Então, há uma inversão, pois quem detém o
poder atualiza a lógica das forças reativas, do escravo, daquele que se
mantém aprisionado em sua vigarice e baixeza. Não é o mais forte, senão o
mais adoecido. Tal crítica ao poder aparece também na denúncia à dialética,
em que Nietzsche a compreende como equipamento das forças reativas, como
a moral e a maneira de pensar do fraco:

"o pensamento abstrato da contradição prevalece sobre o sentimento


concreto da diferença positiva, a reação sobre a ação, a vingança e o
ressentimento tomam o lugar da agressividade [...] o célebre aspecto
dialético da relação senhor-escravo depende de que o poder é aí
concebido não como vontade de poder, mas como representação do
poder, como representação da superioridade, como o reconhecimento
por 'um' da superioridade do 'outro'" (Deleuze, 1976a, p. 8).

O filósofo alemão compreende que a dialética e a contradição operam sob


a lógica do negativo. Afirma que negação e representação assumem o
primado sobre as diferenças positivas, bloqueando-as. Atuam por intermédio
das forças reativas produzindo índices de uma suposta superioridade. Para
Nietzsche, essa perspectiva que expressa a necessidade de reconhecimento e
representação do poder é a percepção do escravo, é a "imagem que o homem
do ressentimento faz do poder" (Deleuze, 1976a, p. 8). E como é a forma de
poder mais propagada no âmbito social, conclui-se que permanece o triunfo
das forças reativas e dos fracos. Desse modo, encontra-se nesse pensamento o
fundamento das relações de forças e a denúncia das formas de vida
despotencializadas, nas quais se nega a vontade de potência e assumem-se
maneiras reativas e ressentidas de ser.
Por sua vez, Espinosa discute o entrelaçamento entre as forças com base
nas distintas modalidades de relação que decorrem da conexão entre os
corpos e que produzem afetos correlatos. Há composição quando os corpos
se compõem para formar um todo mais potente, quando as forças ativas se
adicionam. E há decomposição quando um corpo subtrai algo do outro e
destrói a coesão de suas partes. Se um corpo se compõe com outro,
potencializando-o, considera-se que há um bom encontro. Todavia, se um
corpo se liga a outro despotencializando-o, isto é, decompondo a potência
daquele ao qual se vincula, tem-se um mau encontro. Na composição entre
corpos, há o afeto correspondente da alegria, já na experiência de
decomposição, tristeza. Configura-se, portanto, toda uma qualificação dos
modos de existência, na qual se relaciona o bom com o forte e a
potencialização, a composição, o dinamismo, o livre, a alegria ao que
adiciona, ao passo que ao mau estão relacionados o fraco, a
despotencialização, a decomposição, o bloqueio, o escravo, a tristeza e o que
subtrai (Deleuze, 2002).
Distinguem-se então duas modalidades de afecções: as ativas e passivas, a
potência de agir e de sofrer, as ações e paixões. Quando um corpo está
preenchido por afecções ativas, eleva-se sua potência de agir, suas
capacidades de realização. Mas quando está ocupado pelas paixões, sua
afecção refere-se à potência de padecer, ou sofrer (Deleuze, 1976b).
Diferentemente de Nietzsche, Espinosa não opera com a negatividade das
forças, pois amplia a concepção sobre o poder de ser afetado. Para o filósofo
holandês, a potência para padecer não está dissociada das afecções ativas e
não tem nada de passividade, ou reatividade, mas expressa a potência de um
corpo. Ao contrário do que se entende no senso comum, ser afetado não
corresponde a uma fraqueza, à permeabilidade que despotencializa, mas, sim,
a ser preenchido por afecções, ao seu grau de potência. O próprio indivíduo é
compreendido como um grau de potência a que "corresponde certo poder de
ser afetado" (Deleuze, 2002, p. 33). Então, quanto mais um corpo pode ser
afetado, mais são aumentados seus graus de afecção, sua potência de agir:

"em efeito, as afecções ativas são as únicas a preencher real e


positivamente o poder de ser afetado. Por si só, a potência de agir é
idêntica ao poder de ser afetado. Exprime a essência e as afecções
ativas, elas mesmas, afirmam a essência. No modo existente, a
essência e a potência de agir são somente uma só coisa e a potência
de agir e o poder de ser afetado são também uma só coisa" (Deleuze,
1968, p. 205).

Constata-se que a potência de um corpo é diretamente relacionada ao


quantum de poder de ser afetado, isto é, há uma relação de retroalimentação
entre ambas as forças, uma codependência mútua, na qual uma não funciona
sem a outra. A potência de sofrer pode elevar, ou mesmo diminuir, o
potencial de agir. Corresponde a dois tipos: as paixões alegres e as tristes. As
paixões alegres são tomadas como uma afecção que é útil ou boa para o
corpo. Por serem um bom afeto, aumentam a potência de ação do corpo, que
uma vez preenchido pela afecção positiva, busca manter essa alegria ou o
objeto que a fomenta, cultivando um ciclo em ascendência ativa.

"Se supomos uma linha de afecções alegres resultando umas das


outras a partir de um primeiro sentimento de alegria, vemos que
nosso poder de ser afetado torna-se preenchido de tal maneira que
nossa potência de agir aumenta sempre" (Deleuze, 1968, p. 220).

Por outro lado, as paixões tristes, resultantes de uma relação de


decomposição, produzem uma afecção que diminui o potencial de ação de
um corpo, na qual a tristeza pode levar à impotência. Expressam: "[...] o grau
mais baixo de nossa potência: o momento em que estamos separados ao
máximo de nossa potência de agir, altamente alienados, entregues aos
fantasmas da superstição e às mistificações do tirano [...] é sempre
impotência" (Deleuze, 2002, p. 34). Diminuem o grau da potência de agir de
um corpo, pois subtraem e dividem sua força.
Dessa forma, o problema não é ser afetado, senão ser decomposto pelas
paixões tristes e maus encontros. Então, dependendo da afecção, pode haver
aumento ou diminuição do potencial de ação. Há assim ligação direta entre
afetos e potência.
Do ponto de vista macropolítico, o filósofo holandês afirma que os
homens das paixões tristes são o escravo, o tirano e o padre: a trindade
moralista. Ambos exploram as paixões tristes e o processo de decomposição
das forças. O tirano e o padre o fazem para manutenção da dominação e de
seu poder: "O tirano precisa da tristeza das almas para triunfar, do mesmo
modo que as almas tristes precisam de um tirano para se prover e propagar.
De qualquer maneira, o que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a
vida" (Deleuze, 2002, p. 31). Então há um uso dos afetos como processo de
governabilidade das populações. Nele se exploram as relações bloqueadoras,
despotencializadoras, os afetos tristes e o medo como formas de domínio de
um sobre outros.

"A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa
potência de agir. E os poderes estabelecidos precisam deles para nos
converter em escravos. O tirano, o padre, o ladrão de almas,
necessitam nos persuadir de que a vida é dura e pesada. Os poderes
têm mais necessidade de nos angustiar, do que de nos reprimir, ou,
como disse Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos
terrores íntimos" (Deleuze & Parnet, 2004, p. 71).

Espinosa compreende que até a própria religião utiliza o fomento de


afecções despotencializadoras como meio de subjugação, dominação e
enganação: "O grande segredo do regime monárquico e seu profundo
interesse consistem em enganar os homens, dissimulando, sob o nome de
religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem
por sua servidão como se fosse sua salvação" (apud Deleuze, 2002, p. 31).
Assim, denuncia a ilusão dos valores e as relações constituídas na Instituição
religião, na qual imperam forças que bloqueiam as potências da vida e
desencadeiam paixões tristes. O resultado é óbvio: a despotencialização dos
corpos e sua obediência a um poder transcendente. Por isso, o filósofo
holandês busca substituir a Moral pela Ética, trocar os valores instituídos
pelos modos qualitativos e potencializadores da vida. A Moral relaciona a
existência a valores transcendentes, é o juízo de Deus, um dever, a Lei. O
sistema de julgamento e a obediência são sua única finalidade. Não traz
conhecimento, apenas servidão. A Ética refere-se à tipologia qualitativa dos
modos de existência imanente, das relações de composição e decomposição,
do que potencializa e despotencializa, do conhecimento sobre o poder de ser
afetado. A Moral e a Lei bloqueiam, subtraem, enquanto a Ética compõe e
potencializa.
São, pois, as afecções que modulam o modo qualitativo da potência de
um corpo. As afecções alegres, positivas, potencializadoras, relacionam-se ao
potencial de produção e criação, e as afecções tristes, negativas,
despotencializadoras, à impotência, obediência, antiprodução, servidão e
captura.
Espinosa enuncia um terceiro aspecto sobre o poder que faz com que seja
compreendido de duas maneiras, como potentia e como potestas. A primeira
diferencia-se pela natureza infinita, de criação, virtual, intensiva, e a segunda
por ser atual, extensa:

"Deus se definia pela identidade da sua essência e de uma potência


absolutamente infinita, potentia. Como tal, teria uma potestas, ou
seja, um poder de ser afetado de uma infinidade de maneiras; esse
poder estaria eterna e necessariamente preenchido, Deus sendo
causa de todas as coisas no mesmo sentido que é causa de si"
(Deleuze, 1968, p. 198).

Consideramos que essa dupla dimensão está ligada, respectivamente, à


relação entre virtual e atual, intensio e extensio. Potentia diz respeito às
intensidades, virtualidades, à criação e multiplicidade, ao passo que potestas
remete às formas encarnadas e atualizadas de poder, ao exercício do domínio
pelo soberano, que opera na lógica da antiprodução, do bloqueio e captura e
não da criação e transformação.
Nos livros sobre Espinosa, Deleuze (1968, 1976b, 2002) não instaura um
regime de oposição radical entre potentia e potestas. Porém, posteriormente
ele modifica esse posicionamento e afirma que a obra de Espinosa é uma
"filosofia da potentia contra a potestas" (Deleuze, 1993, p. 7). No
documentário televisivo, O Abecedário de Deleuze, detalha melhor essa
oposição entre potência e poder:

"É preciso especificar que não existem potências ruins [...] O ruim é
o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade?
É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém
efetue a sua potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes
maus. E talvez todo poder seja mau por natureza [...] A confusão
entre poder e potência é arrasadora, porque o poder sempre separa
as pessoas que lhe estão submissas, separa-as do que elas podem
fazer [...] O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das
potências. Eu diria que todo poder é triste".

A potência refere-se ao exercício de criação e produção, sempre assume


uma positividade. Por outro lado, valora-se negativamente o seu menor grau,
que é diretamente vinculado à noção de poder, entendido como aquilo que
separa e bloqueia a potência do seu fazer. No âmbito das afecções, o poder
remonta aos afetos tristes e despotencializadores. Para Baremblitt (2003b),
poder é potência morta. Por isso, compreende-se que, nessa dupla polaridade
das relações de forças, se podem extrair duas modalidades de poder em
tensão: o poder como potência (potentia) e o poder como poder (potestas), ou
as forças de criação e forças de captura. Propõem-se, assim, dois polos das
relações de forças, conforme está esquematizado na Figura 1.2:

Figura 1.2. Os dois polos do poder.


O polo da potência corresponde aos processos de intensão, ao virtual, ao
infinito e às afecções positivas e o do poder à extensão, ao atual, ao finito e às
afecções negativas. Se utilizada a terminologia de Nietzsche, o primeiro polo
relaciona-se às forças ativas, de transmutação, à vontade de potência, ao
passo que o segundo concerne às forças reativas, ao niilismo, à lógica do
fraco, à dialética senhor/escravo e à representação do poder. A potência está
relacionada ao poder de criar, ao poder enquanto verbo, instituinte, como
devir em movimento: o ‘poder fazer’. Já o poder está relacionado ao poder de
dominação e captura, ao ‘querer o poder’, ao poder como substantivo, como
substância, estático, instituído e repressor: o ‘poder sobre’. Constata-se,
então, uma modalidade de ética das forças, na qual a potência é resultante do
triunfo das forças ativas, das afecções positivas e potencializadoras, por isso
que é eminentemente criadora, desejante, produtiva e alegre. Já o poder é
decorrente do triunfo das forças reativas, do niilismo, das afecções negativas
e despotencializadoras, por isso é conservador, capturante, coercitivo, de
submissão e triste.
No interjogo entre potência e poder, a primeira tende a ser bloqueada pelo
segundo, o qual possui um maior poder de gravitação. Nesse processo de
atualização e captura, o movimento converte-se em estática; a força ativa em
reativa; a lógica do devir é reduzida à lógica do ser e o fluxo do processo
desejante é interrompido e fixado ao estrato, gerando um poder conservador,
bloqueador de outras possibilidades de vida, característico das normalizações
disciplinares e de controle do biopoder: o desejo é fixado ao estrato do poder.
Nesse movimento, a criação pode ficar capturada pela dominação, a linha
converter-se em ponto e o movimento em repouso. E para a conservação do
poder no plano macropolítico, institui-se as políticas do medo, da tristeza, da
paranoia, do terror e da violência, que incitam afecções negativas,
despotencializadoras, no coletivo social, para manter a vida aprisionada e
dominada.
Ambos os pensadores não realizam somente uma Filosofia das forças,
pois como o próprio Nietzsche diz: “a Filosofia é uma força” (Deleuze,
1976a). Dessa perspectiva, ele instaura reflexão assaz crítica à dominação e
às formas de vida instituídas, conjecturando como as forças afirmativas e
potencializadoras podem triunfar, numa transformação dos valores. Trata-se
de filosofar com o martelo, potência para destruição do que nega e aprisiona a
vida: transmutação. Para o filósofo alemão, o dispositivo do Eterno retorno,
do personagem Zaratustra, é um dos mecanismos que pode realizá-la.
Deleuze (2006a) interpreta essa proposição de forma singular, bastante
distinta dos comentadores de Nietzsche, ao compreender que Eterno retorno e
repetição são disposições que não agenciam o mesmo, mas a diferença.
O Eterno retorno é um esquema de ação, e não de reflexão, que opera
pelas frequências de rotação da repetição, instaurando uma transgressão do
que está posto. Coloca em ação diferentes elementos, selecionando as forças
ativas e expulsando as reativas. De sua operação apenas retorna "a afirmação,
só volta àquilo que pode ser afirmado, só a alegria volta. Tudo o que pode
ser negado, tudo o que é negação é expulso pelo próprio movimento do
Eterno retorno" (Deleuze, 2007a, p. 35). Então, o que repete não é a cópia, o
mesmo, é sempre a diferença, a emergência de uma novidade. Somente repete
e retorna o que tem força, ou seja, a afirmação e não a negação:

"O Eterno retorno só afeta o novo, isto é, o que é produzido sob a


condição da insuficiência e por intermédio da metamorfose. Mas ele
não faz retornar nem a condição nem o agente; ao contrário, ele os
expulsa, os renega com toda a sua força centrífuga. Ele constitui a
autonomia do produto, a independência da obra. Ele é a repetição
por excesso, que nada deixa subsistir da insuficiência nem do devir
igual. Ele é o novo, é toda a novidade" (Deleuze, 2006a, p. 138).

Nessa operação, há, portanto, uma força centrífuga que expulsa o


negativo. As formas fracas, pequenas, as forças reativas, a negatividade não
voltam, não têm potência. Somente as forças afirmativas é que retornam, pois
insistem e têm energia para continuar agindo. A insistência no repetir não
porta a reprodução do mesmo, mas do absolutamente diferente, ou seja, a
criação e produção da diferença, do novo e de simulacros. Não há o retorno
do mesmo, ou do igual: "trata-se de fazer, pelo Eterno retorno, entrar no ser
o que nele não pode entrar sem mudar de natureza" (Deleuze, 1976a, p. 58).
O Eterno retorno é o mecanismo de depuração que expulsa as forças que
operam na lógica do negativo e que seleciona as forças ligadas à criação. Não
opera pela reprodução, senão pela produção da diferença. Produz mutações
que portam a potência do novo, do descentramento, da divergência e do caos,
ou seja, a afirmação do ser e a atualização das forças ativas. Irrupção e
propagação das intensidades, multiplicidades, positividades e do devir-ativo,
que desconhece a negação. Por tais razões, é dispositivo privilegiado para o
processo de transmutação das forças, valores e vida. Nele, a vontade e o
desejo tornam-se iguais à criação: vontade de potência.
Diagrama e poder de resistir

O poder não é substância, matéria, coisa nem estado, é uma prática que se
refere a relações incessantes de forças. As forças exercem-se em relações
móveis e instáveis, estão em conflito (Foucault, 2006). Portam relações
desiguais e assumem variabilidade e plasticidade em suas configurações. Não
estão totalizadas numa Instituição como o Estado ou nas mãos de um
soberano. As forças estão descentralizadas, capilarizadas, regionalizadas,
estão disseminadas por todos os lados, difusas, tanto nos pequenos, como nos
grandes conjuntos sociais. Tanto na instância molar, quanto na molecular. Há
uma onipresença das relações de forças em um jogo incessante e dinâmico.
Dessa forma, deve-se realizar antes uma microfísica do poder, ao invés de
uma macrofísica, visto que as forças primeiramente são uma relação
molecular, mais do que molar, local, mais do que global. Devem ser
apreendidas no âmbito das moléculas e pequenos corpos, e não apenas nas
grandes instituições. Assim, Deleuze (2014), apoiado em Foucault, descreve
seis postulados para discutir o poder que implicam no deslocamento de uma
perspectiva macrofísica para uma analítica das agitações moleculares:
1. Propriedade: o poder, enquanto forças, não é possuído, mas
exercido. Não é posse de ninguém nem de uma burocracia, nem de
uma classe social, mas antes uma estratégia que se define como
múltiplos focos de enfrentamento e processos de instabilidade, pois
em suas relações não há estabilidade.
2. Localização: o poder não se localiza numa estrutura ou no Estado,
transita em focos locais e regionalizados. O Estado, como formação
concreta, é efeito das relações de forças e de engrenagens sociais. O
fato de se apropriar e exercer as disciplinas é que traz a impressão
equivocada de que o poder está totalizado no Estado.
3. Subordinação: o poder não está subordinado a um estrato, nem a um
modo de produção, infraestrutura, ou a questões econômicas.
Tampouco se subordina a uma superestrutura, pois é imanente e
constitutiva de todo campo social.
4. Essência ou atributo: o poder não tem essência nem interioridade,
pois é funcional, operatório. Não é atributo de algum ente, mas, sim,
relação. Passa tanto pelas forças dominantes, como pelas dominadas.
O poder passa. Deleuze (2014) afirma que não importa apenas a ação
arbitrária do soberano, mas também a maneira pela qual os dominados
participam de sua ação arbitrária, visto que as forças atuam em ambos
os polos.
5. Modalidade: o poder não é repressivo (violência) nem ideológico: é a
ação de uma força sobre outra. A relação de forças é o jogo da força
com a força, a ação sobre a ação, diferente da violência, que não é
uma ação sobre uma força, senão a "relação da força com um ser ou
com um objeto [...] Uma força não é destruída por outra força" (p.
49). Tanto Foucault como Deleuze não operam na lógica da
negatividade, compreendem que as forças em ação assumem uma
positividade que produz realidades e regimes de verdade. O poder não
atua pela repressão ou pela ideologização, senão pela normalização
das condutas, produzindo-as por meio das normas (cf. Capítulo 3).
6. Legalidade: no senso comum, compreende-se a Lei como um código
que se aplica a todos, que denota o que é justo e suprime a
ilegalidade. Porém, para Foucault, a Lei não veda uma conduta, é uma
forma de repartição dos ilegalismos. Em vez de proibir determinada
conduta, normatiza em que condições e lugares ela pode ser exercida.
Porque não há ‘a’ Lei, existem as leis: dependendo do contexto e do
personagem, podem-se aplicar diferentes leis e, consequentemente,
gerar distintos resultados nos processos. Então, longe de promover a
paz e uma justiça social ao coletivo, a Lei é mais uma estratégia de
poder, também variável: "a lei não é nem um estado de paz nem o
resultado de uma guerra ganha: ela é a própria guerra e a estratégia
dessa guerra em ato, exatamente como o poder, não é uma
propriedade adquirida pela classe dominante, mas um exercício atual
de sua estratégia" (Deleuze, 1988, p. 40).

Desse modo, as multiplicidades e as relações de forças são primeiras no


que concerne às formações estratificadas, são o virtual que, posteriormente, é
atualizado em formas e estratos. As forças móveis passam a se corporificar e
criar distintas composições encarnadas em formações abstratas e concretas.
No movimento de sua atualização, da intensão à extensão, o espaço liso
estria-se e segmenta-se, constituindo a matéria, cristalizando-se nas
instituições e formações sociais. Então, o poder não é explicado pela ação das
Instituições, as formações concretas e demais máquinas estratificadas é que
são decorrentes das relações de forças que ali se atualizam. Portanto, entre
intensidades e extensões, apreendem-se dois tipos de maquinação. De um
lado, a máquina abstrata e, do outro, as formações estratificadas, a máquina
concreta. A máquina abstrata refere-se ao mapa complexo no qual ocorre o
interjogo entre os distintos vetores de forças, virtuais, e que também pode ser
denominada diagrama.
O diagrama é o plano virtual de composição de vetores de forças e
intensidades, o mapa de suas configurações, difuso e não localizável.
Caracteriza-se por ser informe, abstrato, virtual, em perpétuo movimento e
mutação, variável com as coordenadas do espaço-tempo e sempre instável. "É
a mistura das puras funções não formalizadas e das puras matérias não
formadas" (Deleuze, 1988, p. 80). É o plano dos movimentos abstratos e
intensivos, sem sua corporificação em uma materialidade concreta: é sua
cartografia. Corresponde à intensão anterior à constituição de formas, por
isso "ignora toda distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão,
entre uma formação discursiva e uma formação não discursiva" (Deleuze,
1988, p. 44). Antecede as máquinas concretas, dispositivos e arquivos: os
estratos resultam de seus movimentos de extensão. É o agenciamento, na sua
transição à polaridade virtual, ao passo que as máquinas concretas são a sua
atualização e concretização, conforme a Figura 1.3.

Figura 1.3. Diagrama e máquina concreta.

Dessa perspectiva, todos os processos devem ser tomados na apreensão


dessa bipolaridade, entre máquina abstrata e máquina concreta. Não se deve
apreender o diagrama sem sua atualização, ou as formações sociais
decorrentes, as estruturas, sem o virtual. O cosmos não deve ser apreendido
sem o caos, nem extensio sem intensio. No entanto, a matéria cristalizada
decorrente, a segmentaridade rígida, passa a ter predominância na
organização do campo e da experiência, pois as linhas e formas dão
materialidade ao imaterial, concretude ao abstrato, canalização aos fluxos (cf.
Capítulo 3).
Por outro lado, Foucault diagnostica um terceiro tipo de poder que não se
deixa apreender nas configurações de forças expressas no diagrama.
Diferencia outro vetor que vai além das forças ativas e reativas e do poder de
afetar e ser afetado, desenvolvidos respectivamente por Nietzsche e Espinosa.
O poder de resistir refere-se a singularidades que não se deixam enlaçar e
regularizar pela curva integral: é o que resiste às relações de poder. Para
Deleuze (1988), essa modalidade de força tem uma relação direta com as
linhas do fora:

"As forças vêm sempre de fora, de um fora mais longínquo que toda
forma de exterioridade. Por isso não há apenas singularidades presas
em relações de forças, mas singularidades de resistência, capazes de
modificar essas relações, de invertê-las, de mudar o diagrama
instável. E existem até singularidades selvagens, não ligadas ainda,
na linha do próprio fora e que borbulham justamente em cima da
fissura [...]. Mas, por mais terrível que seja essa linha, é uma linha de
vida que não se mede mais por relações de forças e que transporta o
homem para além do terror" (pp. 129-130).

As linhas de resistência são as partículas nômades, as singularidades


selvagens, que excedem o diagrama e não se deixam capturar. São anteriores
às relações de poder e aos estratos, não se conectando ao diagrama nem aos
dispositivos de poder. Deleuze articula essas forças aos agenciamentos
desejantes e às linhas de fuga, compreendendo que "são picos de
desterritorialização dos agenciamentos de desejo" (2007b, p. 125), nos quais
o próprio desejo se mescla às linhas de fuga. Dessa forma, o resistir não é o
a posteriori de uma relação de poder, é o próprio "potencial da força, [...] da
singularidade, enquanto não se deixa esgotar por uma relação de forças
dada no diagrama. Há resistências" (2014, p. 207).
As forças referentes ao poder de resistir operam além da configuração do
diagrama e são irredutíveis às relações de poder instituídas. Pode-se dizer que
são o adversário do poder, pois têm "a estranha propriedade de voltar contra
o poder aquilo pelo qual o poder faz seu objeto, ou seja, aquilo que o poder
pretendeu controlar. O ponto de resistência é algo incontrolável no objeto do
poder" (Deleuze, 2014, p. 407).
Essa modalidade de força ocupa, então, lugar central para a discussão das
mutações do diagrama, dos seus processos de transição, como, por exemplo,
do diagrama de captura para o de disciplina. Por estarem fora dos estratos
instituídos, as linhas de resistência instauram processos de disrupção no
diagrama vigente, fomentando câmbios e reconfigurações, podendo fissurá-lo
e até transformá-lo. Quando há a multiplicação dos pontos de resistência é
que pode haver o declínio de um diagrama de forças para um novo (Deleuze,
2014).
Se esses agenciamentos assumem alguma configuração, articulam-se
muito mais como uma máquina de guerra do que como um equipamento de
poder – o aparelho de captura, por exemplo – e expressam um engajamento à
vida e processos de reinvenção existencial (Guattari, 2013). Assim,
estabelece-se uma relação direta entre resistência e vida:

"A vida se torna resistência ao poder quando o poder toma como


objeto a vida [...] Quando o poder se torna biopoder, a resistência se
torna poder da vida, poder-vital que vai além das espécies, dos meios
e dos caminhos desse ou daquele diagrama. A força vinda do lado de
fora – não é uma certa ideia da Vida, um certo vitalismo, em que
culmina o pensamento de Foucault? A vida não seria essa
capacidade de força de resistir?" (Deleuze, 1988, p. 99).

O poder de resistir torna-se vida, potência, quando o poder se torna


biopoder, isto é, poder sobre a vida. Então a vida, a resistência, é a que
escapa e traça linhas de fuga perante os mecanismos disciplinares e de
controle; é a que esquematiza linhas de singularização diante das relações de
forças instituídas e normalizadoras. Portanto, as linhas de resistências são
diretamente vinculadas à criação e à vida, ao que vai na direção contrária das
forças de captura e de morte. Criar é resistir efetivamente, num exercício de
libertação da vida (Deleuze, 1994). Vida que se insurge contra a
disciplinarização e o controle. Potência contra poder.
Agenciamento e estrutura

O plano de forças movediças, dinâmicas, instáveis, também pode ser


aludido por outros nomes, como máquina e agenciamento. A terminologia de
máquina (Guattari, 2004a) é utilizada para se referir tanto à estrutura
atualizada, como aos vetores de forças virtuais que a atravessam, por isso é
que se diferencia a máquina concreta da abstrata. Já o conceito de
agenciamento (Deleuze & Guattari, 1995b) é mais amplo. Expressa a dobra
de conexões e articulações entre distintos elementos que se dispõem,
agenciam e constituem uma maquinaria, seja no polo da virtualidade, seja no
das atualizações. Tanto o território quanto os objetos que o ocupam, quer
sejam considerados animados ou inanimados, possuem capacidade de
agência, isto é, de ser agentes e de se agenciar com outros. A lava que se
agencia na floresta, o calor que transforma a rocha magmática em
metamórfica, a radiação do Sol, têm capacidade de agência. O potencial de
agência não se refere à vida/consciência de determinado objeto, mas às suas
possibilidades de compor e agenciar movimentos, processos, estratos,
caminhos, realizações, conjuntos e relações de forças. As ações das forças do
fora sobre um corpo eliciam novas forças que não dependem de uma
intencionalidade, mas dos regimes de forças que conservam e dissipam e das
composições que constituem.
Dessa forma, o agenciamento articula a máquina abstrata à concreta
(Figura 1.3), as multiplicidades à estrutura, o virtual ao atual, o diagrama às
suas formações estratificadas decorrentes, produzindo o modelo de um
sistema em aberto. Compõe uma articulação que conecta partículas de
materialidades heterogêneas que efetuam processos, entram em operação. As
forças é que fornecem a liga entre as diferentes peças do agenciamento, isto
é, o desejo como "efetuação de uma máquina" (Deleuze, 2017, p. 175)
proporciona o cofuncionamento conjunto. Há, assim, uma composição por
coexistência, na qual um elemento não se subjuga a outro, ou a uma síntese,
tal como no mecanismo da dialética hegeliana.
Se o agenciamento é comparado à dialética, constatam-se duas diferenças
fundamentais:
A primeira é a que ele não opera na lógica da negatividade, numa relação
entre pares antitéticos, da universalidade com a particularidade, senão na
conexão entre positividades diferenciais. Não põe em antagonismo uma
imagem ‘correta’ de pensamento, a tese, o polo da positividade com outra
figura, como se fosse sua antítese, a negação da afirmação. O elemento
diferencial não é o oposto, ou o negativo, da tese. O pensamento filosófico da
negatividade remete a um dos grandes equívocos da modernidade, que foi
colocar a diferença como negação, oposição e antítese (Deleuze, 2006a).
Sempre se subjuga a diferença ao idêntico, numa concepção redutora e
dicotômica, supondo-se o primado do semelhante e da boa cópia. Porém, a
diferença de forma alguma é a negação de um elemento, ou do igual, não se
opõe como contradição. É processo que difere por si só, é afirmação das
singularidades e multiplicidades. Não porta em si o caráter de negatividade,
senão o de positividade.
A segunda diferença é que, na tensão entre os elementos diferenciais, não
necessariamente emerge um terceiro termo que supera os dois anteriores
(Deleuze, 1976a), isto é, não há a produção de uma síntese totalizadora. A
emergência de um novo elemento que congregue os outros em tensão é
apenas uma idealização para resolver os dissensos das forças. Nem sempre há
superação, mas acontece uma ‘co-operação’ conexa, uma coexistência entre
virtualidades e diferenças. O agenciamento é um esquema de operação que
diz mais respeito a uma complexidade conectiva, às articulações advindas dos
excessos das multiplicidades, do que à totalidade, mais à coexistência
paradoxal, do que à superação. Esse conceito abarca a rede de múltiplas
conexões que vai além da lógica dicotômica negativa e de supostas sínteses.
No agenciamento, três modalidades de processos são articuladas: saber,
poder e subjetivação (Deleuze, 1989). Ocorrem processos de produção,
reprodução e consumo (Baremblitt, 1998) ligados a essas três instâncias. O
agenciamento é a articulação entre o diagrama e suas formações concretas de
fazer ver, de expressar e de modos de subjetivação, constituindo enunciações,
visibilidades distintas, acontecimentos e modos de ser. Deleuze e Guattari
(1995b) o cartografam, propondo a existência de dois eixos: o vertical e o
horizontal. Cada eixo possui duas partes, totalizando quatro polaridades.
O eixo vertical [4] comporta dois segmentos: o primeiro relacionado ao
conteúdo e o segundo à expressão. No hemisfério sul, há um agenciamento
maquínico corporal, que é relativo à disposição e articulação de corpos,
afecções e espacialidades. No norte, há um agenciamento coletivo de
enunciação, relativo aos processos de produção e composição de expressão e
enunciação, que sempre são coletivos. O polo maquínico refere-se a um
sistema pragmático de ações, afecções, movimentos e distribuições espaciais
e o de enunciação remete a uma máquina semiótica, produtora de regimes de
signos, símbolos e de expressão.
O eixo horizontal do agenciamento também é dividido em dois. No polo
esquerdo, situam-se as forças relacionadas às singularidades nômades e
selvagens que incitam os processos de arrebatamento, fluidez,
desterritorialização. Esse polo é denominado picos de desterritorialização. Já
no polo direito, ocorrem os processos de contração, atualização e extensão
das forças, constituindo as formas, estratos e territórios. Tal valência é
chamada de lados territoriais. Dessa forma, num polo, há a predominância de
processos de transmutação e de criação, enquanto no outro prevalecem
consolidação e estabilização. Nesse âmbito, quanto mais para a esquerda,
mais se está relacionado aos movimentos de abertura, aos fluxos instituintes e
mutantes, às linhas de resistência, do fora e de fuga, que se vinculam ao
novo, à criação, à produção de um corpo sem órgãos e às multiplicidades. E,
quanto mais à direita, mais se remete aos movimentos de territorialização e
estratificação, à estrutura e extensão. Então, no eixo horizontal, o
agenciamento possui um enquadramento que proporciona a base que dá
sustentação aos distintos processos e à constituição de um corpo cheio: as
características fixas e constantes. Mas também os picos de
desterritorialização, que se referem às multiplicidades, ao fomento de
movimentos de produção da diferença, do novo e de expressão das
intensidades assignificantes. Nessa polaridade, há a vazão de linhas de fuga,
dos fluxos desejantes, da experienciação estética e da produção de um corpo
sem órgãos (Deleuze & Guattari, 1996). Portanto, o agenciamento é uma
máquina virtual e concreta que realiza operações de disposições corporais e
de produção de enunciações. Tem uma polaridade que provê constância,
territorialidade, e outra que dispara as linhas de fuga, as energias livres e não
ligadas. Possui uma tetravalência: conteúdo e expressão (eixo vertical) e
desterritorialização e territorialização (eixo horizontal), conforme está
sistematizado na Figura 1.4.

Figura 1.4. Tetravalência do agenciamento.


Essa figuração expressa a conexão entre as diferentes engrenagens do
agenciamento. A produção que emerge na articulação das distintas valências
é impessoal e anônima, e o sentido não surge como predicado nem como
propriedade, mas, sim, como acontecimento (Deleuze, 2003). O
agenciamento não é substância, ele funciona, opera, é mais verbo no
infinitivo do que adjetivo: produz acontecimentos. Se há o primado de um
sentido vetorial dos movimentos, este é da esquerda para a direita, pois as
linhas de fuga e o diagrama são primeiros em relação às estruturas e estratos.
Desse modo, os lados territoriais é que são resultantes dos picos de
desterritorialização, mas pode decorrer também o contrário.
Porém, um dos problemas da lógica-ontologia herdada é que se realiza
uma inversão, na qual o território não é apreendido pela multiplicidade de
seus fluxos, mas apenas pelas estruturas que a designam – os substantivos
que nomeiam as forças, o cosmos que significa o caos – ou até pela
idealização de uma suposta essência. As multiplicidades, o território, os
fluxos e a sociedade são compreendidos pelas suas formações estratificadas
resultantes e não pelo mapa de forças que os constitui, somente por extensio e
não pela sua relação de retroalimentação com intensio. Por Cronos e não por
Aion. O senso comum reduz as multiplicidades contínuas às multiplicidades
discretas, por serem mensuráveis e medíveis. O tempo não é vivido em sua
intensidade (Aion), mas apenas em suas dimensões quantificáveis, os dias, as
horas, os minutos (Cronos).
Apreende-se a duração e o múltiplo por meio da lógica e funcionamento
da estrutura. A forma de expressão sobrecodifica e assume primazia sobre a
forma de conteúdo. O território sofre uma redução, pois é apreendido
somente pela lógica do significante e pelos processos da racionalidade
reinante, tendo suas multiplicidades reduzidas à lógica da estrutura. É como
se o caos do real fosse reduzido a pequenas ilhas de significação, diminutas
porções de cosmos, em que os saberes se configuram isolados num grande
oceano, numa esperança de formarem um arquipélago idealizado e de que
essas ilhotas possuam um enraizamento e eixo em comum.
Por tal razão, não é coincidência o fato de que os acontecimentos e
fenômenos sejam apreendidos de maneira hegemônica por uma matriz teórica
conhecida como Estruturalismo. Nela há um movimento de redução do caos e
do infinito que se baseia no primado da estrutura fixa e identitária, seguindo a
lógica da constância e da boa forma. Codificam-se os processos na lógica de
estruturas delimitadas, que se referem a um ciclo fechado, designando um
estado de equilíbrio (Deleuze, 2014), e que atualizam a lógica das
multiplicidades discretas. Exemplo emblemático é a utilização da abordagem
linguística como uma gramática universal para a compreensão dos processos
psicossociais. Assume-se a primazia, a partir de Saussure, das relações
configuradas como um sistema, uma estrutura. Nessa lógica, o sentido é uma
decorrência direta da posição na estrutura e é, portanto, topológico. O
elemento em si, isolado, não tem um valor e sentido a priori; este decorre
somente do lugar que ocupa e da relação que estabelece com os outros
lugares da estrutura: o produto é diretamente derivado do posicionamento
num sistema fechado e totalizado. Considera-se que as condutas dos
indivíduos são diretamente decorrentes das operações da estrutura. Então, o
sujeito da enunciação é a estrutura e não as pessoas, ou os elementos que a
compõem. Há o predomínio do topológico, do relacional e de um sistema de
equilíbrio termodinâmico.
Entretanto, Deleuze (1981), ao discutir o Estruturalismo, realiza uma
inversão ao ampliar a concepção de estrutura. Por compreender o primado do
diagrama de forças, pré-estruturais, abandona a suposta totalização de uma
estrutura fechada, com linhas, pontos e cálculos determinados, retirando dela
a determinância da ação. Não fica, assim, restrito a um modelo fechado e a
posições fixas e pressupostas. Na articulação entre as máquinas abstratas e
concretas, compreende que não são as multiplicidades que estão contidas na
estrutura, mas é esta que é resultante das operações das multiplicidades, dos
diagramas de relações de forças (Deleuze, 2015). Sua proposta é de uma
estrutura aberta que resulta das forças do fora e desejantes, é a concretização
das operações das multiplicidades contínuas e virtuais, tal como está
esquematizado na Figura 1.3. Portanto, traz para a estrutura as relações entre
atual e virtual, significante e assignificante, sentido e não sentido, que são
múltiplas e não respondem à lógica da negatividade e antagonista, senão a
uma positividade múltipla, plural e heterogênea. Essa perspectiva segue o
mesmo movimento do fluxo do tempo e da duração. Não atua no primado de
uma operação sintética, mas, sim, na coexistência de contração com distensão
ou de ‘sínteses abertas’ que comportam múltiplas disjunções, sendo uma
multiplicidade de coexistência virtual.
A coexistência de múltiplos e diferentes planos, elementos e relações
incita maior tensão e interações de forças na estrutura, pois supõe maior
mobilidade e dinamicidade dos processos. As operações das multiplicidades,
dos agenciamentos desejantes e dos vetores de forças que permanecem
virtuais e não se atualizam geram uma infinidade de composições entre os
diferentes pontos, linhas da estrutura e elementos, produzindo um excesso de
sentidos. O que excede e transborda não é reduzido pelo enquadre linguístico
e se expressa por outros registros semióticos, sejam eles afetivos, corporais,
intensivos e assignificantes (Deleuze & Guattari, 1995b). Então, as
formações atualizadas da estrutura perdem sua primazia, visto que não
contemplam as forças de intensio.
Por isso, a esquizoanálise propõe novos conceitos para a apreensão das
multiplicidades conectadas às estruturas, como o de rizoma em contraposição
à árvore, de espaço liso diante de um espaço estriado-estratificado, devir em
relação ao ser, caosmose em correlação ao cosmos e do corpo sem órgãos
perante o mundo-sociedade-corpo cheio, organizado e instituído. Tais
conceitos corporificam as multiplicidades e apreendem a estrutura resultante
delas. Consideramos que tratar a estrutura como multiplicidade contínua e
não somente discreta é realizar uma inversão no que tange à lógica-ontologia
herdada. As multiplicidades preexistem às estruturas e operam como
coexistência virtual de múltiplos planos e dobras, nas conexões entre fluxos e
estratos, que, dependendo das distintas atualizações e combinações, geram
diferentes acontecimentos e realidades.
Enfim, o território não é apenas apreendido como conjunto de estruturas,
não é um fundamento fixo e imutável, nem porção de terra estática, visto que
se movimenta, convulsiona-se. É constituído por multiplicidades, diagramas,
agenciamentos, máquinas, forças, que podem atualizar-se em estruturas,
instituições e outras formações sociais. É campo formado por ondas e
camadas tectônicas que se movimentam, que arrastam estratos, fomentam
fluxos, numa dispersão de inúmeras forças. Lugar de fuga e fixação.
Caosmose.
Micropolítica e ‘método esquizoanalítico de intervenção’

As relações de forças, ou de poder, são fundantes e constituintes. Em


todos os processos e formas sempre há relações de forças, poder e potência,
que assumem um caráter mais dinâmico do que estático, mais mutante do que
estável. Porém passam por um processo de contração e estratificação, bem
como apresentam duas polaridades: a primeira, com primazia dos processos
de intensão, corresponde à dimensão molecular e a segunda, com
predominância dos processos de extensão, corresponde à dimensão molar. A
força, a potência, o poder e a política são apreendidos nesses dois ângulos,
havendo, ao mesmo tempo, macropolítica e micropolítica.
A macropolítica corresponde ao molar, à política instituída e estratificada,
ao Estado, partidos políticos e conjuntos sociais instituídos. Busca analisar as
relações de poder e embates nas instâncias dos processos decisórios. Refere-
se à concepção tradicional de política com suas categorias estabelecidas. A
micropolítica corresponde ao molecular, às forças instituintes e móveis e à
"questão de uma analítica das formações do desejo no campo social"
(Guattari & Rolnik, 1986, p. 127). Não se caracteriza por apreender as
relações de forças num âmbito reduzido, tal como numa microfísica dos
poderes, conforme é entendido pelo leigo. Investiga as relações de forças
articuladas aos agenciamentos desejantes no campo social, seja nos grandes
ou pequenos conjuntos, ou melhor, compreende as forças como desejo. Por
exemplo, pode-se realizar uma micropolítica da família, bem como uma
micropolítica do Estado. A distinção entre macro e micropolítica não se
refere a políticas antagônicas, mas à modalidade de apreensão dos
fenômenos. Ambas coexistem, tal como a relação molar e a molecular.
Contudo, da perspectiva micropolítica, focaliza-se não apenas o instituído,
mas também o instituinte, não só a extensão, também a intensão, o cosmos
articulado ao caos, o entrelaçamento dos conjuntos estáveis com os instáveis,
os fluxos e investimentos desejantes que sempre subvertem e transgridem os
blocos estratificados.
Decorre, então, uma pragmática ético-estético-política que atua tanto nas
instâncias políticas e sociais, quanto nas instâncias psíquicas, desejantes e
afetivas. Prescinde-se, ainda, das análises políticas tradicionais
eminentemente macropolíticas. Por exemplo, a esquerda política dá o
primado a categorias como consciência, ideologia, alienação e atribui ao
partido e ao sindicato a função de aparelhos privilegiados da revolução e da
transformação social. Entretanto, para Guattari (1974), a luta política deve
estar disseminada não apenas nessas entidades, mas em diversas instâncias:

"Não se trata apenas de simplesmente descrever os objetos sociais


preexistentes, mas de engajar uma luta política contra todas as
máquinas do poder dominante, quer se trate do poder do Estado
burguês, do poder dos burocratas de toda natureza, do poder escolar,
do poder familiar, do poder falocrático no casal e mesmo do poder
repressivo do superego sobre o indivíduo" (p. 44).
As relações de forças estão difusas e disseminadas em todos os espaços e
não apenas no que se considera como política tradicional. A sua fixação nas
estruturas de poder, e seu correlato funcionamento psíquico, não está presente
apenas na política, mas nos diversos agenciamentos sociais. Então, há duas
metas no projeto político esquizoanalítico. A primeira é a explicitação das
relações de forças opressivas em qualquer âmbito. Denunciam-se os
conjuntos sociais instituídos, como o Estado, as práticas políticas
burocratizadas e os fenômenos das relações cotidianas, que, no senso comum,
não se configuram como política, como as relações de forças na escola, o
patriarcalismo na família, o sexismo no casal, a heteronormatividade entre
gêneros, o racismo entre as etnias, as formas de vida estratificadas e
esvaziadas, as instâncias repressivas psíquicas, o superego, a castração no
bloqueio do desejo, isto é, das forças.
Compreende-se que a fixação nas estruturas de poder, e seu correlato
funcionamento psíquico, não está presente apenas na política, mas nos
diversos agenciamentos sociais.
A segunda é a de que se assume claramente um posicionamento político
ao se incitar o combate contra essas máquinas dominantes e cerceadoras da
vida e dos processos desejantes. Há toda uma implicação psicopolítica pela
transformação e autonomia, que faz com que se atue contra os poderes
coercitivos e aprisionadores da vida.
Portanto, afirmamos que há um método esquizoanalítico de intervenção
e que se estipulam três tarefas críticas que visam à desterritorialização e a
ressingularização dos distintos agenciamentos que intervêm entre si: a
primeira, negativa e as outras duas, positivas (Deleuze & Guattari, 1976).
A primeira tarefa, de caráter destrutivo, objetiva raspar, demolir e
desconstruir as estruturas coercitivas e edipianas, os estratos que bloqueiam o
desejo e mantêm os coletivos submetidos a determinadas normas. Busca
desbloquear e suprimir as barreiras que causam algum tipo de sofrimento aos
indivíduos numa práxis de desterritorialização das condutas instituídas.
Estratos que podem situar-se em distintas instâncias, seja sociais, seja
psíquicas, tal como o complexo de Édipo, que é um limite-bloqueio
internalizado, um equipamento de domesticação e represamento do desejo.
A segunda, positiva, assume caráter cartográfico, de mapear e captar o
funcionamento dos agenciamentos das máquinas de quaisquer naturezas –
técnicas, sociais ou desejantes – sempre apreendendo os fatores psíquicos
articulados aos sociais. Após a raspagem do que bloqueia e da cartografia de
como as máquinas funcionam e se articulam, a terceira tarefa, também
positiva, visa conectar os investimentos desejantes aos agenciamentos
sociais, as forças e os fluxos ao campo, possibilitando a fluidez entre ser e
máquinas, conectando o indivíduo ao seu desejo, corpo e ambiente. Opera-se
com uma metamodelização (Guattari, 2015) que busca fazer com que as
linhas de fuga e forças ativas tenham vazão e constituam territórios
existenciais singulares e potenciais para novas experimentações da vida.
Essas tarefas expressam um caráter crítico às estruturas instituídas e aos
investimentos autocráticos e persecutórios que qualquer segmento pode
atualizar. Fomentam o movimento, os fluxos, a diferença, em contraposição à
estática e bloqueios. Afirmam, como posicionamento político, a diversidade,
as multiplicidades, as dissonâncias e as forças ativas, instituintes e desejantes.
Por exemplo, como vetor de ação política não se busca um acordo
programático, uma totalização que encubra as diferenças entre os distintos
coletivos políticos. Procura-se, em vez disso,

"um diagrama coletivo que permita articular as práticas em benefício


de cada um deles, sem que um se imponha sobre o outro [...],
fazendo-os convergir em certos objetivos contingentes de lutas
emancipatórias e de modificação das relações de forças referentes às
formações conservadoras"(Guattari, 2015, pp. 437-438).

Busca-se o fomento de políticas das multiplicidades que não levem à


totalização, senão à coexistência de práticas singulares e diferenciais. Essa
pragmática está no cerne do que se denomina revoluções moleculares, que
são incitadas em todas as esferas do cotidiano.

"A tarefa de uma tal pragmática consistirá então em operar conexões


entre os sistemas transformacionais capazes de anular os efeitos das
gerações significantes e discernir as orientações micropolíticas
concernentes ao conjunto dos sistemas semióticos caminhando no
sentido de ‘revoluções moleculares’. As transformações
diagramáticas são suscetíveis de levar seus efeitos a qualquer
registro semiótico [...] Em cada situação o objetivo esquizoanalítico
consistirá em livrar a natureza das cristalizações do poder que se
operam em redor de um componente transformacional dominante"
(Guattari, 1988, p. 173).

As revoluções moleculares são os processos de desbloqueio e


transformações que se instigam nos diversos âmbitos da existência. Em tal
fazer, há uma insistência na propagação de linhas de fuga onde existe rigidez
e petrificação e o fomento da expressão das intensidades nos âmbitos em que
a matéria extensa está contraída e instituída. Busca-se desconstruir os estratos
rígidos do poder. Moleculariza-se o molar, movimenta-se o que parece
estático, desestabiliza-se o que parece estável e ordenado, fluxos desejantes
fluem em corpos que pareciam esvaziados. Provocam-se fendas e rachaduras
no instituído, que podem ocasionar situações de crise e desterritorialização. A
crise não é tomada no sentido negativo, pois é apreendida como momento
transitório de desconstrução, processo intermediário com alto potencial de
transformação. Instante em que se (des)valora, se desterritorializa o que se
vive, acede-se ao estranho, ao informe, o que pode acarretar novas
associações, acontecimentos e um movimento de transmutação, no qual o
coletivo/indivíduo pode realizar um movimento de suspeição sobre sua
realidade, desconstruindo a lógica da governamentalidade e as estruturas
psicossociais heterônomas num exercício de autoanálise e autogestão.
Trata-se de um momento de reelaboração da experiência para
possibilidades mais produtivas e potencializadas de vida. A transformação e a
incitação de linhas de fuga e a singularização subjetiva, como regimes de
afecções, provocam processos de composição que levam ao aumento da
potência dos corpos e máquinas envolvidos. Eleva-se potência do pensar, do
desejar, do afetar-se e do agir do ser. Portanto, o método esquizoanalítico de
intervenção está diretamente articulado ao estímulo dos processos de
potencialização dos atores envolvidos. Potencialização que é multiplicar a
potência, as forças já existentes de intensio e dos corpos. Não é assumir a
postura vertical, ou doutrinária, de um profissional que irá empoderar os que
não têm poder, ou fortalecer os ‘fracos’, ou conscientizar os que estão
‘alienados’ [5]; não é operar por intermédio de potestas. Nesse método,
instaura-se uma relação transversal, que, por meio das três tarefas,
desbloqueia e potencializa as forças e afetos em cena, fomentando as energias
dionisíacas, libertando as forças ativas de todos os envolvidos. Movimento é
força, transformação, potentia. Vale citar que Gregório Baremblitt (2002,
2004, 2014a, 2014b) criou o Esquizodrama como um conjunto de
dispositivos klínico[6]-políticos de intervenção que tem como finalidade
efetuar tais processos de transmutação e potencialização por meio de distintos
e criativos procedimentos.
A micropolítica rompe com a concepção tradicional de política,
ampliando-a e, por conseguinte, transformando-a, pois cria um novo regime
de visibilidades e aumenta o ângulo de visualização de como atuam as
relações de forças nos agenciamentos psicossociais. Então, define-se política
como a ação das relações de forças, nesse caso investimentos desejantes, que
configura processos instituintes e instituídos, assume distintos graus de
organização e resulta na gestão da vida e na produção de subjetividade.
Nessa perspectiva, a política passa a estar difusa em distintas instâncias e
não se restringe à participação nas organizações instituídas, reprodutoras de
normas e funcionamentos sociais. Muitas práticas se tornam políticas, já que,
uma vez que estão imbuídas de relações de forças, expressam regimes
desejantes e governam a vida. Por isso se fala em políticas do cotidiano, da
família, da subjetividade, do corpo, do desejo etc.
Trabalhar nessa concepção é provocar o encontro entre desejo e campo
social, isto é, entre psicologia e política, o que significa se aproximar muito
mais da democracia direta, da autogestão, da participação plural e
generalizada dos movimentos moleculares e anárquicos das maltas, em vez
de tradicionais modelos de uma política institucionalizada, ou de um
centralismo democrático, que funcionam na primazia da representação.
Portanto, grande parte dos trabalhos referenciados na esquizoanálise partilha
de uma concepção crítica em relação aos aspectos instituídos das estruturas
sociais. Fomentam-se a autoanálise, a autogestão generalizada, os processos
de desterritorialização e potencialização dos conjuntos sociais em que se
intervém. Busca-se elaborar linhas de resistência e de afecções contra os
diagramas de poder que oprimem e entristecem os coletivos e a vida em
geral. A autonomia é a Utopia Ativa que se persegue como projeto ético-
estético-político. Por mais que tenha influência do marxismo, não trabalha
com algumas noções centrais como as de conflito de classes sociais e
ideologia, devido a distinções no seu método analítico e a outra leitura do
Capitalismo (cf. Capítulo 4).
Em vez de defender uma política de um grupo social, seja o proletariado,
seja alguma outra minoria particularizada, exalta e defende as diversas
políticas das multiplicidades, pois o dissenso e a multiplicidade são instâncias
criadoras e produtoras de vida e de outros mundos possíveis.
CAPÍTULO
II
SUBJETIVAÇÃO

O interjogo entre as forças, além de produzir o território e os processos de


composição entre os corpos, se atualiza nas formas de ser e existir. O ser e a
subjetividade são decorrentes das ações das forças, dos movimentos de
desterritorialização e estratificação, dos fluxos que fogem e se precipitam.
Sua textura refere-se às forças que atualiza, seu conjunto de caracteres, à
latitude da variação e à relação dos limites (Deleuze, 1991). Portanto, não é o
ser que produz o território, mas o contrário: é a partir dos movimentos de des-
territorialização que se compõem os territórios da subjetividade.
A produção da subjetividade não corresponde à constituição de caracteres
internos de um indivíduo, uma forma de subjetivar o objetivo, como se
fossem instâncias segmentadas, um mero perfil de um modo de ser, ou sua
intimidade. Também não é algo imutável e estável (Rolnik, 1997). Refere-se
a um processo no qual se articulam múltiplas instâncias, extensão e intensão,
materialidade e energia, pois é resultado de agenciamentos coletivos.
Os processos de subjetivação são tema fundamental para o pensamento
contemporâneo e a esquizoanálise. A reflexão sobre a constituição desses
processos já está na obra mais antiga de Deleuze, Empirismo e subjetividade,
de 1953 (Deleuze, 2012), em que a subjetividade se relaciona às forças do
fora e às operações do hábito.
Neste capítulo, discutem-se os processos de subjetivação em quatro
tópicos. Primeiro, sua constituição como hábito, como efeito do regime de
forças; segundo, como a efetuação de dobras, na autoinflexão da força;
terceiro, a relação entre subjetividade e subjetivação, e quarto, desenvolve-se
a noção de coeficiente de territorialização para discutir seus processos de
estratificação.
Constituição da subjetividade e o hábito

A Filosofia Moderna conjectura a anterioridade do sujeito mediante o


objeto, no clássico modelo do cogito cartesiano, do “Penso, logo existo”, que
propõe que o pensar tem primazia sobre o dado e a existência. O sujeito deve
pensar para existir, ter uma consciência que atribui sentido ao objeto, ou seja,
supõe-se que ele é anterior ao dado, ao território. Entretanto, ao tratar da
constituição da subjetividade, Deleuze inverte essa equação, não mais
perguntando como o sujeito constitui o dado, senão como ele próprio é
constituído pelo dado. O filósofo francês abandona o cogito, o internalismo e
o isolacionismo do ser por compreender o primado das forças do território.
Então, o sujeito não é primeiro em relação ao dado, mas, sim, sua
decorrência.
O dado refere-se aos movimentos do território, aos seus regimes de
forças. É compreendido como o "fluxo do sensível, uma coleção de
impressões e de imagens, um conjunto de percepções, [...] o movimento, a
mudança, sem identidade nem lei" (Deleuze, 2012, p. 101). Trata-se das
forças do fora, dos fluxos caóticos, sem princípio de estruturação e que são
anteriores ao sujeito. O ser, em contato com a multiplicidade do dado, do
real, não consegue lidar com sua complexidade. Para apreendê-lo, passa a
reduzi-lo. Inicialmente, opera por mecanismos mais ‘primitivos’, por
processos de associação sensório-motores, que geram esquemas de ação. O
dado é contraído em esquemas associativos, que são formas de apreensão
pré-reflexiva do território. Esse processo é mediado pelas afecções, as quais
cumprem a função de seleção e repetição de determinados esquemas. Num
segundo momento, os esquemas associativos articulam-se em nova
configuração, compondo um sistema, uma regra geral de associações
denominada hábito.
O hábito é uma disposição mais sofisticada que os primeiros esquemas
associativos; é um arranjo que opera a síntese esquemática sobre o dado.
Atua com uma força de contração sobre o fluxo do presente, realizando
articulação entre experiência vivida, imagens captadas e esquemas de ação.
Emerge como um princípio "que fixa e desdobra as sínteses passivas da
associação" (Prado Jr., 2000, p. 44). Não é substância, senão a composição
entre elementos heterogêneos concretizados em esquemas de ações e
sensações. É modo de afecção que emerge como um protoagenciamento de
associações, uma disposição decorrente de sínteses e esquemas, articulação
que se constitui e se desfaz pela experiência no território. Devido a seu
caráter pré-reflexivo, considera-se que é uma espécie de síntese passiva, pois
o hábito não é exercido pelo sujeito nem necessita da memória (Deleuze,
2012). Então, não é o sujeito que produz o hábito, inversamente, é a operação
constituinte de sua repetição que permite a produção do ser e da
subjetividade:
"Adquirimos hábitos contemplando, e contraindo o que
contemplamos. O hábito é criador. [...] Nós somos todos
contemplações, portanto hábitos. Eu é um hábito. Há conceito em
toda a parte onde há hábito, e os hábitos se fundam e se desfazem
sobre o plano de imanência da experiência radical: são
‘convenções’" (Deleuze & Guattari, 1992, p. 137).

Dessa forma, a coexistência de múltiplos planos experienciais, a visão da


paisagem, os processos cinesiológicos do corpo, a gravidade sofrida,
pensamentos, humores, crenças, valores, performatizam uma totalidade e
unidade que temos o hábito de chamar de Eu. "Somos hábitos, nada mais que
hábitos, o hábito de dizer Eu... Talvez não tenha havido uma resposta mais
surpreendente para o problema do Eu" (Deleuze, 2007b, p. 330).
Portanto, a subjetividade é produção que decorre da contração de
composições de associações mediadas pelas afecções e da articulação de um
conjunto de coexistência de hábitos heterogêneos entre si. Os esquemas
precedem as sínteses, das quais, talvez a mais rebuscada seja a do Eu.
Verifica-se que o primado das ações se desloca da interioridade da
consciência para o território, numa disposição denominada campo
transcendental (Deleuze, 2003), noção que posteriormente é substituída pela
de agenciamento (cf. Capítulo 1) e que se refere à conexão entre ser e campo.
Essa operação pode parecer convergente à do filósofo Edmund Husserl
(1983), quando tenta sair do cogito, transitando do modo de apreensão
noética (noesys) para a noemática (noema). Husserl buscou focalizar as
operações não mais no campo da consciência, mas, sim, no campo
fenomenológico, criando o conceito de Lebenswelt (mundo da vida),
proposição empregada por fenomenólogos e existencialistas, como Heidegger
(1995), Merleau-Ponty (1991), Sartre (1997) e Schutz (1979).
Entretanto, a crítica que se faz a Husserl é que, mesmo com a invenção do
campo noemático e do Lebenswelt, continuou a dar primazia às ações da
consciência diante do mundo, permaneceu preso a ela. Na esquizoanálise, há
um deslocamento do primado do Eu para as afecções ocorridas no turbilhão
do fluxo do sensível. Abandona-se o consciencialismo para se apreender as
suas articulações no território e suas afecções. O campo e o agenciamento
transpassam a consciência, não se reduzem ao Eu nem à identidade. Talvez
um dos problemas do consciencialismo seja a perspectiva solipsista que
sempre toma a gênese do sujeito isolado de outros no campo. Tanto na
experiência do cogito como na da intencionalidade da consciência, as teorias
da subjetividade costumam supor um intrassujeito, e não um sujeito que é
decorrente de relações heterogêneas de forças no território.
Nesse primeiro momento, a subjetividade é constituída por meio do
agenciamento com o território, maquinação e articulação entre mundo e ser,
dado e corpo. Não é pensada separada do fora, pois é constituída pelas
afecções dos fluxos do território, do regime de forças do campo experiencial,
do vetor contrainte do hábito. São as forças do território que constituem a
subjetividade e a consciência. Então, o sujeito não é primeiramente ativo no
campo e não produz o mundo e o dado, bem como o conhecimento não
resulta do cogito nem da essência de um ser em si. Não é a alma que anima o
corpo, mas as forças e movimentos que produzem o corpo é que a animam;
constituem o ser enquanto acontecimento. Desse modo, há o deslocamento de
uma teoria do conhecimento para uma teoria da práxis. Em contraposição à
psicologia do espírito, da transcendência, constitui-se uma psicologia das
afecções, ou melhor, uma psicologia da práxis.
A dobra e a subjetivação

No campo de imanência, os fluxos e forças do fora incidem na matéria e


no território do ser. Afetam o corpo e o instigam para que reaja e aja,
constituindo esquemas de ações, o hábito e a subjetividade. O ser
originariamente não é de si, mas do território. Não apenas sucede o dado, o
objeto, como ele próprio é objeto, resultante dos agenciamentos do território
e de quem o ocupa. O território, a intensão-extensão, atualiza-se nos objetos-
sujeitos. A matéria produz novas matérias, acontecimentos e formações
imateriais, como o pensamento, os afetos, as intensidades.
Para os processos de subjetivação, Deleuze (1991) propõe um novo
modelo para as linhas, que não se refere a uma de suas três modalidades (de
fuga, flexíveis e rígidas, cf. Capítulo 1), mas a um tipo de movimentação na
qual elas se torcem, dobram-se. As afecções das forças do fora fazem com
que as linhas se curvem e sofram um regime de inflexão, moldando-se numa
nova figura: a dobra. Essa torção pode ser resultante da ação de uma força
sobre outra ou mesmo do processo singular de ação de uma linha sobre si
mesma, dobrando-se.
Contudo, a dobra não atua por intermédio de uma síntese passiva tal
como o hábito. Para a subjetivação, ela não será meramente objeto de forças
externas, pois é resultante da atividade da força de dobrar-se sobre si mesma.
Então, há uma autoafecção que expressa o movimento de uma força que se
dobra, que faz um arco, vai e volta, produzindo nova configuração que não se
restringe às relações de poder.
Deleuze (2015) exemplifica esse processo com a cartografia das forças do
diagrama da antiga cidade grega, que se pauta na relação de rivalidade entre
os homens livres. A novidade instaurada pelo mapa de forças grego é que há
a máxima de que só pode governar no regime de homens livres aquele que é
capaz de governar a si próprio, ou seja, que é capaz de "dobrar sua força
sobre si" (p. 100). Então, para um homem livre governar-dominar o outro é
necessário que governe-domine a si mesmo (Foucault, 2007). Governar a si
próprio expressa uma ação, regra facultativa, que deriva, mas se autonomiza
da relação de poder. A força deixa de afetar apenas outras forças, mas tem de
se dobrar em si, num processo de autoafecção e nessa dobragem, gera um
novo posicionamento político, que resulta na produção de subjetivação. Caso
contrário, se a força não dobra sobre si, o regime de governabilidade não
seria mais entre homens livres, senão uma tirania.

"Aprender a governar a si mesmo é a arte de si, é a relação consigo


mesmo, ou se preferem é a subjetivação. E não se confunde nem com
a relação de forças que define o poder, nem com o código moral que
define o saber. Voltamos a encontrar nossa ideia de que há um
terceiro eixo distinto do eixo do saber e do poder, que definimos
agora como a dobra da relação de força ou a subjetivação, isto é, a
operação pela qual a força se afeta a ela mesma, o afeto de si por si
mesma" (Deleuze, 2015, p. 105).
A subjetivação, ou dobra da relação de força, não se configura como uma
síntese passiva, senão como um processo ativo, uma arte da constituição de
si, pois mesmo decorrente das relações de forças, torna-se autônoma na
medida em que provoca uma torção da força na dobra sobre si. Ao abrir mão
da regra de coação e atuar entre homens livres "a subjetividade grega se
organiza como existência estética" (Deleuze, 2015, p. 128). É nesse ponto
que a subjetivação como criação transpassa o poder: o dobrar-se em si, a
flexão da força, é a operação que faz com que o ser deixe de ser subjugado
pelas forças reativas e assuma afecções ativas.
Dessa forma, a força reativa dobra-se e transmuta-se em ativa. É quando a
dobra subjetiva passa à atividade, agenciando-se e constituindo outros
acontecimentos. Dobrar a linha é o que produz a curva e o ser da
subjetividade, por isso a dobra é o que constitui o processo de subjetivação.
Nesse sentido, as linhas de subjetivação transpassam os estratos de saber e
poder portando outras modalidades de afecção, uma abertura de
potencialidades.
Compõe-se, assim, o terceiro eixo autônomo, marcado pela experiência
estética e de criação. É em razão desse caráter que emergem as linhas de
resistências, pois "são os modos de subjetivação que multiplicam os pontos
de resistência em uma formação social" (Deleuze, 2015, p. 140).
Deleuze (2015) identifica quatro tipos de dobras na obra foucaultiana. A
primeira é a força que dobra sobre si mesma, uma autoafecção. A segunda é a
regra pela qual ela se dobra, que pode ser moral, ética ou estética. A terceira é
a relação que o sujeito tem com a verdade; a subjetivação do verdadeiro, não
uma Verdade última. Finalmente, apoiada em Blanchot (2008), afirma que,
após a linha se dobrar, se forma uma interioridade de espera, ou de exceção.
Essa quarta dobra é a subjetividade que pressupõe não apenas uma
interioridade, mas, sobretudo, uma temporalidade. Nesse âmbito, o
movimento de dobragens resulta no início da coexistência de planos
temporais distintos, na qual a internalidade decorrente é fundamental para
proporcionar uma conservação. Então passa a operar não apenas no fluxo do
presente do hábito, mas também no fluxo do que foi, seja do que circula, seja
do que se estratifica dentro do campo. Presente e passado passam a coexistir
e não entram num regime de contradição: começa a haver memória, a síntese
ativa do tempo.
A dobra é figuração esquemática que expressa a gênese da subjetividade
na constituição de um estrato e de um dentro (Deleuze, 2006c).
Consideramos que, na jornada da dobragem, na flexão da linha, ocorre uma
espécie de invaginação, que constitui vacúolos que tendem a se fechar sob si
mesmos e a configurar uma condição de interioridade, conforme a Figura 2.1.
Também se podem formar dobras dentro de dobras, vacúolos dentro de
vacúolos, todo um território estriado e uma nova vida.

Figura 2.1. Constituição da dobra.


Entretanto, aparentemente fechado, o vacúolo produzido não está isolado
do exterior, dentro e fora não estão separados, pois são coextensivos
(Deleuze, 2015). Na relação entre espacialidades, mantém-se uma interação
indissociável entre interno e externo, porque:

"o dentro é uma desintensificação do movimento das forças do fora,


cristalizadas temporariamente num determinado diagrama que ganha
corpo numa figura com seu microcosmo; o fora é uma permanente
agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro,
diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile"
(Rolnik, 1997, p. 15).
Não há internalidade cindida do externo, pois o dentro é apenas a
desaceleração das velocidades e forças do fora. É a decantação das forças
num espaço delimitado, para uma determinada configuração. Desse modo, a
subjetividade é resultante da conformação efêmera de forças, tal como uma
externalidade internalizada. O ser e o dado formam uma inter-relação,
agenciamento no qual a dobradura da linha de força constitui a subjetividade.
Para figurar essa relação indissociável entre interior e exterior, ser e mundo,
Deleuze (1991) utiliza-se do conceito de mônada de Leibniz:

"Vimos que o mundo era uma infinidade de séries convergentes,


prolongáveis umas nas outras, em torno de pontos singulares. Assim,
cada indivíduo, cada mônada individual expressa o mesmo mundo em
seu conjunto, embora só expresse claramente uma parte desse mundo,
uma série ou mesmo uma sequência finita" (p. 94).

Constata-se que o ser não está cindido do mundo: ele é sua realização, sua
atualização perspectiva das forças do fora. Dessa forma, a dobra que produz o
dentro é um duplo do fora que mantém uma relação de indissociabilidade, e
não de oposição. Mas ocupa um posicionamento perspectivo, visto que só
expressa uma parte do mundo, a partir de sua latitude e longitude, sua
regionalidade e potencial de afecção. Compreende-se assim que a
subjetividade é a contração da pluralidade, complexidade e paradoxalidade do
território em uma dobra desde seu posicionamento perspectivo: "é a
atualização de singularidades pré-individuais" (Deleuze, 1991, p. 101) do
plano de imanência. É um tecido repleto de dobras e preenchido de hábitos,
ritornelos e corpúsculos organizados.
Um contraponto à psicanálise é que a dobra subjetiva não é clivada pelo
inconsciente na lógica da negatividade. Fluxos e estratos de pensamento e
afetos articulam-se como multiplicidades no campo transcendental, no qual
diferentes planos e dobras têm seu quantum de determinabilidade e
indeterminabilidade. A maquinaria psíquica agencia-se como multiplicidade
de coexistência virtual, povoada por múltiplos planos de temporalidade e
experienciais, alguns mais estratificados e organizados e outros mais
informes, fluidos, desorganizados e indiscriminados. Circula uma infinidade
de estratos-fluxos que variam segundo o gradiente distinto de intensidades,
simbolização e expressão, numa dispersão de multiplicidades. Abandona-se,
assim, a ideia de um aparelho psíquico interno, em prol de uma maquinaria
que se desloca ao campo, atravessa as fronteiras da pele e se forma no
agenciamento entre ser, outros e território, entre materialidade psíquica e
campo experiencial.
O coletivo e o território configuram, fazem parte e são indissociáveis do
psiquismo, o qual transborda de sua suposta individualidade. Tal apreensão
faz com que se recuse o modelo tripartite da primeira e segunda tópicas
freudianas, que postulam um aparelho psíquico dividido em três instâncias,
seja consciente, pré-consciente e inconsciente (na primeira), e id, Eu e
superEu (na segunda).
A máquina psíquica é dispositivo de operação e articulação entre
elementos de diferentes materialidades, que, ao mesmo tempo em que
agencia, é agenciada, enquanto articula, é articulada: aparelho dotado de
plasticidade que se modula conforme seus elementos em interação. Máquina
que sempre é relacional e que nunca está restrita à internalidade; não é
substância enclausurada no envelope corporal. Sua natureza não se refere a
uma coisa, substância, mundo interno, mas à operação de articulação e
agenciamento que ultrapassa as fronteiras e limites da corporeidade orgânica:
o indivíduo vai além das dobras da superfície de sua pele. Então, a
consciência não é a apreensão de algo, no sentido da intencionalidade
fenomenológica husserliana, mas a articulação e esquematização de distintos
elementos do mundo. Abandona-se o modelo tradicional de inconsciente, que
se trata de uma caixa-preta, poço sem fundo, espaço em que as recordações
são arquivadas e tragadas. Expulsam-se o inconsciente e o consciente da
cabeça e do corpo do indivíduo para o campo experiencial, lócus onde as
multiplicidades e investimentos desejantes povoam e transitam nos
agenciamentos do ser com outros e o mundo. Assim, não se deve des-cobrir
ou traduzir o inconsciente, mas, sim, produzi-lo, multiplicá-lo. Não é o
negativo do consciente senão a manifestação de materialidades distintas que
se configuram como positividades, virtualidades, diferenças afirmativas e não
negativas de algo constituído e delimitado.
Subjetividade, subjetivação e indivíduo

Além das diferentes forças do território, atuam nos processos de


subjetivação inúmeras dimensões maquínicas, que obviamente não se
restringem ao significante. Na dobra, conjugam-se diversas materialidades
que abrangem variadas instâncias heterogêneas. Articulam-se hábitos,
esquemas, afecções que formam a subjetividade e o indivíduo. Na
encruzilhada de linhas, constitui-se uma subjetividade que não se reduz ao
humano, mas, ao contrário, se amplia para ser "de natureza industrial,
maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida,
consumida" (Guattari & Rolnik, 1986, p. 25).
Dessa forma, a subjetividade possui uma dimensão maquínica formada
por distintos componentes que transpassa e não fica presa ao humano.
Guattari (1992) compreende que a subjetivação decorre da concatenação de
elementos heterogêneos, como:

"1. componentes semiológicos significantes que se manifestam


através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da
arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela indústria da mídia, do
cinema, etc. 3. dimensões semiológicas a-significantes colocando em
jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente
ou independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem
significações e denotações que escapam então às axiomáticas
propriamente linguísticas" (p. 14).
Nessa composição, atuam distintas semiologias, tanto as semióticas
significantes, como assignificantes. Não só a representação, mas diversas
instâncias heterogêneas em interação: aspectos sociais, tecnológicos,
midiáticos, ecológicos e etológicos, componentes que podem ser
inconscientes, do domínio do corpo, dos grupos primários e da produção do
poder. Portanto, há uma materialidade inumana da subjetividade que não
pode deixar de ser levada em consideração. As conexões que faz com o
território, natureza, animais, dispositivos tecnológicos, ou outros vetores
maquínicos, são fundamentais para a compreensão do funcionamento da
subjetivação. São inegáveis as alterações subjetivas advindas do aumento de
conexões virtuais brindadas pelo desenvolvimento das tecnologias de
informação e comunicação, a internet e demais máquinas concretas.
Instauram-se outra espacialidade psíquica, novas formas de ser e de se
relacionar.
A subjetividade resulta, então, da composição de forças e articulações de
estratos e fluxos, da acoplagem entre esquemas e materialidades
heterogêneos, tal como a memória é a coexistência entre múltiplos planos
temporais. Em perspectiva mais complexa, Guattari (2000) desenvolve suas
“cartografias esquizoanalíticas” ao compreender que a subjetividade é
decorrente da articulação entre diferentes planos que denomina phylum
maquínico, universos de referência incorporais, fluxos e território existencial.
Refere-se aos componentes de subjetivação, que são os vetores constituintes
desses processos e não mais a termos tradicionais, como a ideologia, ou a
consciência. Também afirma que o processo de subjetivação não é unitário e
distingue uma dupla face, na qual pode haver uma relação de alienação, ou de
singularização, à subjetividade instituída:

"O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila


entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o
indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma
relação de expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos
componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu
chamaria de singularização" (Guattari & Rolnik, 1986, p. 33).

Num extremo, há a submissão às linhas segmentárias, de formatação


subjetiva, da extensão, trazendo a opressão, reatividade do ser e reprodução
de uma subjetividade alienada. Mas, na medida em que não há mera
submissão à codificação, mas processos intensivos que atualizam as forças
ativas, existe uma subjetivação singular e de criação. Baremblitt (2003a)
intensifica essa diferenciação ao discutir processos de antiprodução e
produção:

"Os processos subjetivantes podem ser resistenciais reprodutivos,


antiprodutivos, negativos, reativos ou, pelo contrário, resistenciais
produtivos, afirmativos, ativos. No primeiro caso chamaremos de
subjetividades, no segundo, de subjetivações e em todos os casos as
mesmas compõem multiplicidades que se conectam em todas as
direções (cardinais, não ordinais) e que se efetuam em identidades
seriais ou em singularidades incomensuráveis e incomparáveis"
(p. 3).
Para o esquizodramatista, subjetividade, como decorrência, refere-se à
reprodução e formatação proporcionada pelo socius. É eminentemente
estratificada e sedentarizada. Já a subjetivação se refere ao processo de
criação, afirmação e singularização. Considero que a subjetivação pode ser
entendida como um processo de des-territorialização, produção que transita
pelo território, em que a subjetividade emerge no cruzamento entre linhas e
planos de materialidades distintas. É resultante da inflexão pelas afecções das
forças e assume uma preensão subjetiva, um posicionamento perspectivo.
Então, o que singulariza o ser não são as linhas segmentárias de identidade
proporcionadas pela subjetividade e códigos, senão a variação e mudança dos
processos de subjetivação: a ação desejante das linhas de fuga que desdobra a
dobra codificada e que porta um quantum de indeterminação e criação nos
processos. Portanto, subjetivação refere-se ao processo, é a expressão
instituinte, transformadora, magmática, insurgente e intensiva, ao passo que a
subjetividade alude ao produto, é extensiva e assujeita o indivíduo, embora
sempre instável e em movimento. A produção de subjetividade porta um
processo paradoxal, duplo, que, de um lado, estratifica e, de outro,
desterritorializa, conjugando a estratificação ao movimento do devir: "A
produção de subjetividade não é senão esta máquina fractal de rostidade
inexoravelmente comprometida em um devir abstrato" (Guattari, 2000, p.
205).
Desse modo, a subjetividade não pode ser encarada como algo relativo a
uma essência, natural, restrito ao indivíduo ou por ele produzido; ela sempre
está em movimento e deriva de agenciamentos maquínicos: "[...] está em
circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é
essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências
particulares" (Guattari & Rolnik, 1986, p. 33).
O indivíduo, sendo produção decorrente do processo de subjetivação,
pode assumir e atualizar, de modo não intencional, determinada modalidade
subjetiva: é o produto resultante, mas não é a subjetividade em si. Nesse
processo, é como se ocupasse o lugar de repouso, a posição de ‘terminal’
(Guattari, 2016), dentre os distintos fluxos maquínicos, tecnológicos,
econômicos, orgânicos etc. Ele "está na encruzilhada de múltiplos
componentes da subjetividade" (Guattari & Rolnik, 1986, p. 34). "Assim, a
interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes
relativamente autônomos uns em relação aos outros, e, se for o caso,
francamente discordantes" (Guattari, 1990, p. 17).
Enfim, os modos de subjetivação tratam de processos maquínicos que
produzem o próprio indivíduo, entretanto nunca se reduzem a ele. O
indivíduo é a formação final, o produto, da subjetivação e, uma vez que é um
terminal, um ponto conectivo de parada, é atravessado por diversos fluxos
que o tornam portador de uma caosmose experiencial: é povoado por
multiplicidades. Mesmo o indivíduo dito biológico-corporal é formado por
zilhões de corpúsculos independentes, órgãos, tecidos, fluxos, micro-
organismos e o indivíduo dito imaterial é constituído por uma pluralidade de
pensamentos, falas, crenças e sentimentos que advêm de processos de
imitação, repetição e simulação de cognições, falas e valores de outros,
anteriores e contemporâneos a ele.
O indivíduo de forma alguma é restrito ao seu envelope corporal
biológico ou psíquico individual, pois as relações com outros humanos, ou
mesmo inumanos, formam e fazem parte de seu território existencial. Desde
sempre, o indivíduo é polifônico, pluralidade, multiplicidade de vozes e
discursos (Deleuze, 2015). Então é resultante da integração de
multiplicidades, povoadas por singularidades: "Finalmente a curva integral
terá como produto o ‘Eu’. Mas a curva rodeia uma coisa completamente
diferente do Eu, rodeia as singularidades constitutivas" (Deleuze, 2014, p.
197). A curva integral, a dobra, envolve multiplicidades de singularidades,
que constitutivamente são diferentes, formando uma integração que
chamamos de Eu, ou indivíduo. A hibridez e a mistura são processos que
marcam os componentes de subjetivação e constituem o agenciamento entre
múltiplas materialidades, humanas e inumanas.
Coeficiente de territorialização

Se a subjetividade não é individual e os processos de subjetivação a


atravessam, por que as pessoas não são todas iguais? Por que a relação com
os códigos, a moral, varia, entre um e outro, mesmo quando as condições
históricas e materiais são as mesmas? Como os indivíduos se diferenciam?
O processo de subjetivação é dependente dos regimes de saberes, códigos
e relações de forças, mas não fica limitado por eles. Consideramos que a sua
combinação e adesão resultam do que Guattari (2015) denomina “coeficiente
de territorialização”. Cada corpo, cada elemento químico, tem um potencial
de ação e resposta diferentes, que ao mesmo tempo depende de sua longitude
e latitude, das forças do exterior e do seu próprio potencial de forças.
O coeficiente de territorialização refere-se a um vetor centrípeto,
direcionado à territorialização, seja no material, seja no imaterial, na
propriedade, ou em crenças e valores. É o índice que traz o potencial de
agência e afecção com outros corpos, no que tange principalmente aos
processos de precipitação, sedimentação e cristalização: está relacionado à
força gravitacional de um corpo. É o quociente responsável pelos graus de
atração e fixação dos elementos ao território, bem como aos processos de
estratificação do ser e da subjetividade.
Esse coeficiente torna singular os modos de mistura e transmutação com
outros elementos, de acordo com as variações de forças do exterior e da
constituição da matéria. Expressa o quantum de territorialização que faz com
que certos indivíduos tenham maior propensão a processos de fixação e
institucionalização do que outros. Também indica os graus de dureza e
rigidez de um corpo em determinado momento, seus índices de fechamento e
encouraçamento. Sua intensidade está diretamente relacionada à adesão do
investimento desejante ao estrato. Então, esse coeficiente é o que define a
produção de subjetividade no que concerne aos movimentos de fixação a
determinados territórios, o quantum de dobragem, fechamento, e ao grau de
receptividade aos processos de codificação. Na Figura 2.2, está
esquematizada a relação entre poder, desejo, códigos e produção da
subjetividade, levando-se em consideração o coeficiente de territorialização.

Figura 2.2. Coeficiente de territorialização.


Um alto coeficiente de territorialização leva à constituição de uma
subjetividade mais codificada, estratificada e rígida, que sofre grande adesão
ao código transmitido. A ancoragem e fixação, ante a fluidez das forças,
tornam-se prejudiciais quando expressam a interrupção dos processos de
afecção e subjetivação. Diminuem-se o movimento, a vazão dos fluxos
desejantes e os processos de composição, isto é, seu potencial de ação. A
estratificação e rigidez subjetivas produzem um fechamento às forças do fora,
processo que pode levar a força a se voltar contra si mesma, tornando-a
reativa.
O alto grau de reatividade das forças faz com que o ser se feche sobre si
próprio, cerrando-se a outras terras e possibilidades. Ao dobrar-se
intensamente sobre si, assume apenas um território instituído, apegando-se a
verdades inquestionáveis, aos códigos religiosos, políticos, acadêmicos, de
gênero, sem tolerância a outros discursos que divirjam dos seus códigos
assumidos. Quanto mais territorializado, maior é o seu grau de resistência à
mudança e à novidade.
Uma subjetividade altamente codificada opera pelo binarismo, dicotomias
e lógica do negativo, visto que apenas conhece e aceita o que se adéqua ao
código. O que não se ajusta deve ser negado e eliminado, numa atualização
do niilismo e das forças de abolição, nutrindo a intolerância às diferenças,
atuando nos microfascismos (cf. Capítulo 6). Num extremo, as subjetividades
rígidas e extremistas podem atuar por fundamentalismos, em que sua força
centrípeta se assemelha ao poder gravitacional de um buraco negro, que tudo
absorve, capturante.
Na direção inversa, temos que quanto menor o coeficiente de
territorialização de um corpo, menor o seu grau de fixação ao código ou ao
território e, portanto, maior é sua autonomia nos processos de codificação e
territorialização. O “coeficiente de desterritorialização” (Deleuze & Guattari,
1977) não se refere a processos de fixação e de constituição de territórios,
mas apresenta um movimento contrário, os picos de desterritorialização, que
se articulam às linhas que fogem, fluem e atravessam as fronteiras. A
independência e a não fixação ao código não resulta do fechamento do corpo
ao fora, senão de sua abertura e porosidade. O grau alto de afecção, o poder
de ser afetado do corpo faz com que este não fique à mercê dos processos de
captura do código. Nesse caso, o código não é tomado como uma verdade
inquestionável e totalizante pelo ser. Não é o único território, mas rota para
novas cartografias, base para a vazão das forças ativas e linhas de fuga. Da
subjetivação resultante, da mistura entre corpos e códigos, não ocorre uma
simbiose, mas uma composição efêmera de forças. Não há fechamento e
formatação, senão abertura e propagação. Portanto, subjetividades nômades e
fluidas podem ser constituídas, ou mesmo a subjetividade poiética do artista
que atualiza em si um constante devir de forças e afetos, traficante do caos,
contrabandista das formações caoides. Está numa constante busca por novas
terras, novas produções estéticas que expressem o desassossego, a
insustentável leveza do movimento e a inquietude de atravessar as fronteiras.
A arte é a criação de novos territórios, por meio de fluxos que fogem e se
propagam.
Estabeleço analogia entre o maior grau do coeficiente de territorialização
com os processos de extensão, e o menor grau com os de intensão. A fixação
ao território está articulada aos processos de contração da extensão, ao passo
que o movimento está vinculado aos processos de distensão das intensidades.
E não é à toa que a contração busca e gera a matéria, os pontos de parada,
enquanto a distensão incita as energias livres e não ligadas, os fluxos
nômades e selvagens. Então, a questão que se coloca é: qual é o seu
coeficiente de territorialização? Por que ele é tão elevado? Por que, na
constituição do próprio território, se forma uma casca dura sobre o próprio
corpo, que dificulta a mistura com outros corpos? Ou o contrário, por que seu
corpo é tão levado pela deriva dos movimentos? Por que se mistura e se
perde no corpo do outro?
O coeficiente de territorialização é um índice e, como tal, pode ser
mudado. Transformação que é dependente da compreensão da lógica das
forças que operam na composição entre os corpos no território. Se um corpo
produz uma casca dura, imóvel, é porque há uma função defensiva diante das
forças do fora, à crise, ou uma tentativa de supressão da expressão das linhas
de fuga, um represamento dos fluxos desejantes.
Os estratos territorializados corporais são mecanismos defensivos, base e
firmamento dos processos. Considero que a intensidade do coeficiente de
territorialização se refere a uma regulação das forças, como um filtro às
forças do fora, ou de dentro, que arrebatam o corpo. A couraça territorial
constituída assume a função de regulação afetiva e da indeterminação do ser.
Mas, quanto mais dura e grossa for essa casca, mais difíceis são os processos
de troca com o meio, e mais as forças do corpo ficam enclausuradas e
estagnadas, com o risco de haver assoreamento e esvaziamento das
intensidades, ou uma autointoxicação pela reatividade das próprias forças.
Uma carcaça que engloba o vazio ou um corpo cheio, fechado em si,
preenchido de toxinas: a reprodução de um código dogmatizado, sem a
fruição da vida e das potências, sem a abertura ao novo, num
autoenvenenamento.
A crise vem com as fissuras e rachaduras que podem preencher, ou
esvaziar, o corpo como uma enxurrada. Nesse processo, o elemento cognitivo
adéqua-se ao afetivo, sendo arrastado por ele. Por isso, em prol da
manutenção da couraça, do território, a cognição pode assumir os estados
mais regredidos e irracionais, por mais que o corpo esteja se autoconsumindo
e se autodestruindo.
Discutiu-se neste capítulo uma concepção de subjetivação como processo
fluido, em movimento e mutação, fundado na diferença e variação. A
subjetivação é indissociável do território, pois é produção decorrente da
contração das relações de forças, das afecções no campo e das dobragens do
fora, quer pelos esquemas de associações, mediados pelos afetos, que
compõem o hábito, quer por regimes de inflexões que constituem as dobras.
O coeficiente de territorialização desempenha, nesse processo, papel
central, pois é índice determinante para as variações entre os indivíduos.
Todavia, os modos de subjetivação são alvo de gestão e controle biopolítico.
A gestão da vida é regulada por processos de codificação e pela axiomática
do capital, conformando dois tipos distintos de subjetividade, a disciplinar
(cf. Capítulo 3) e a capitalista (cf. Capítulo 4).
CAPÍTULO
III
CÓDIGOS, INSTITUIÇÃO E DISCIPLINA

A relação com o território é marcada por uma infinidade de fluxos,


relações de forças e formações caoides que trazem vivências e experiências
de não sentido, indiscerníveis, caóticas e múltiplas. Contudo, o socius não se
caracteriza somente pelas suas forças em seus estados móveis, fluidos e
mutantes, mas principalmente pelos processos de parada e estratificação dos
fluxos. Os mecanismos de codificação social visam atribuir significados à
existência como um todo. Constituem sistemas de tradução das
multiplicidades baseados em noções e categorias numa lógica binária e
dicotômica. Categorizam o não categorizado, transformam em reconhecido o
desconhecido, normalizam a anomalia e o desviante, tomando como
fundamento noções pressupostas e instituídas de interpretação do mundo,
numa redução do real. As categorias construídas que enunciam a vida e o real
recebem o nome de códigos.
O código é o meio de expressão do visível, é a materialização em forma
de enunciados do real, o cosmos do caos. É o conjunto de significantes que
registram e expressam o que uma coisa é e deve ser. Funciona como um
molde, integra um elemento a um designante, uma conduta a significantes e
indicadores. Não é a coisa em si, mas o duplo do fluxo extraído e recortado, a
sua atualização.
Codificar é atribuir caracteres fixos, etiqueta, identidade, número de
registro, cifra, tal como o significante é o referente de uma coisa, de um
objeto. Assim, serve para mediar relações, identificar coisas, processar
informações, produzindo estratos e linhas rígidas. O código é a unidade dos
construtos sociais enunciadores do mundo, como as crenças, valores, mitos,
instituições, ideologias, religiões e ciências.
Este capítulo discute os processos de codificação, perpassando instâncias
fundamentais para as relações psicossociais, como o pensamento, a inscrição
do código, as disciplinas e as instituições. O primeiro tópico aborda a
imagem do pensamento como gérmen do código, um protocódigo. Contrapõe
o pensar à imagem do pensamento, que é a forma do pensar codificado. O
segundo e o terceiro discutem os processos de inscrição e sobrecodificação
dos códigos com base na transição de diagramas de forças. Ocupa lugar
central o Estado, principal Instituição governamental na história universal. O
quarto tópico aborda as Instituições, imprescindíveis para a gestão da vida
nas sociedades disciplinares. O quinto apresenta a noção de disciplina, que se
refere à autonomização dos códigos em relação à soberania/Estado e que
constitui saberes e técnicas disciplinares. Por fim, o último discute a
produção subjetiva resultante dos processos de codificação: uma
subjetividade disciplinar.
Imagem do pensamento

A imagem do pensamento é a configuração prototípica dos códigos.


Porém a pergunta que se coloca é: o que é o pensar? Como funciona?
Questão fundamental, mas que não é respondida satisfatoriamente, pois
apreender o pensamento é ato de alcançar o inapreensível. É uma operação
que parece ser de compreensão tácita a todos, mas que não se sabe bem
explicar ou colocar em palavras. Falar sobre o pensar é um exercício de dizer
o indizível.
A reflexão sobre o pensar recebe o nome de noologia, a ciência do
pensamento. Noo deriva do radical grego nous, que etimologicamente
significa pensamento, enquanto logia vem de logos, saber. Noologia é o saber
sobre o pensar, "o estudo das imagens do pensamento e sua historicidade"
(Deleuze & Guattari, 1997b, p. 46). Contudo, a crítica que se coloca é a de
que não há um método sobre o pensar. Toma-se o pensamento pelo senso
comum, por intermédio de suas imagens instituídas, suas sínteses. O pensar é
reduzido às suas imagens conhecidas, como se operasse apenas por
reconhecimento e reprodução, por categorias pressupostas e instituídas. É
como se somente fosse possível pensar por sínteses, imagens consolidadas e
figuras imagéticas que povoam o pensar: a imagem do pensamento. Não se
pensa então por um método intuitivo, mas, sim, por imagens pressupostas
(Deleuze, 2006a).
Entretanto, o pensar é o contrário. Não é substância, forma e tampouco se
reduz ao imaginário. É fluxo, o movimento em propagação. Tal como
Antonin Artaud exclama, o pensar é caótico, é desagregação. É "o
desmoronamento central, que só pode viver de sua própria impossibilidade
de criar forma" (Deleuze & Guattari, 1997b, p. 48). Para pensar devem-se
desmanchar as imagens, o que está formado, pois se trata de um mecanismo
que só funciona desordenando-se, desorganizando-se, ou seja, o pensar sem
imagens. O fluxo é figura emblemática do exercício do movimento,
desarranjo daquilo que não tem forma nem organização, sejam os fluxos de
distintas populações, humanas e inumanas, maltas desordenadas, torrentes
que passam, arrastam e fogem.
O pensamento opera pelo desarranjo, pelo cruzamento e pela vazão de
fluxos, ao invés de imagens constituídas e formadas. Não efetua apenas
sínteses e processos de reconhecimento, mas também uma movimentação,
ritmicidade e dinamismo espaço-temporal, que se aproxima muito mais da
lógica dos esquemas (Deleuze, 2008). Se as sínteses remetem à reprodução
das figuras instituídas, os esquemas referem-se ao tracejar e articular de
fluxos que não são contemplados pelas imagens ou conceitos. São erupções
produtivas que traçam linhas e deslocamentos na superfície. Se as sínteses
codificam o real, no esquema, o real transborda da imagem. Desse modo,
compreende-se o pensar como fluxos caóticos e esquemas de operação
dinâmicos que transpassam os processos de sínteses da representação e da
imagem. Mais que uma imagem sintética, é uma máquina de operação de
vazão, articulação e produção. Talvez não haja resposta mais simples para ‘o
que é o pensamento?’ Este não se explica por imagens ou substância que
preenchem uma suposta internalidade, mas sim como máquina de operação
do movimento. É o movimento de articulação com outros fluxos, sínteses e
elementos, que não se situa num interior: é a ultrapassagem e não a limitação.
Por isso que é difícil representar o pensamento, pois não é mera síntese e
representação, e sim fluxos e esquemas de operação.
O sonho é exemplo de fluxo de pensamento produtivo, rizomático e
caótico, já que, além de ser formado por imagens, também se compõe por
ações, trajetórias, deslocamentos, sons, afetos etc. Não é restitutivo de uma
falta, ou mera figuração de um trauma, ou desejo, nem se reduz ao fato
passado: apenas tem como ponto de partida um afeto ainda indiscriminado e
bruto. Mas, no movimento de sua semiotização em distintos símbolos,
situações, rotas, acontecimentos e novos afetos, traça cartografias outras que
vão muito adiante da problemática inicial, construindo outros presentes e
devires, atualizando um novo real. Os fluxos oníricos riscam linhas de fuga,
potencialmente poiéticos e desejantes, mas que podem ser bloqueados e
reterritorializados nos mesmos becos sem saída estratificados. São linhas que
se propagam, mas que podem ficar presas pelo carretel.
Porém sempre é um novo lance de dados. Nada garante que continuará no
bloqueio da insistência do sintoma. Por essa razão o movimento onírico não
deve ser trabalhado na lógica do significante, em vez disso se deve lidar com
ele da perspectiva dos vetores, rastros e índices maquínicos que se expressam
pelos seus canais de vazão e comportas de bloqueios, nos processos de
desterritorialização e territorialização.
Contudo, o pensar e o delirar onírico caóticos e disruptivos sofrem os
processos de formatação das imagens de pensamento estratificadas. O
pensamento autônomo e nômade é acoplado ao seu duplo estratificado.
Figuramos esse processo com duas cadeias distintas, a do fluxo do pensar e a
do fluxo de imagens de pensamento, que se referem respectivamente às
singularidades dispersas e à curva integral que codifica o pensar. São cadeias
singulares, heterogêneas, mas que sofrem pressuposição recíproca. No
entrelaçamento das duas, a segunda assume o primado sobre a primeira. A
curva que integra as singularidades passa a operar não mais pela apreensão,
mas pela reprodução, síntese e reconhecimento. Assume uma função
mediadora, tendo assim maior poder de afetar. Nessa relação de acoplagem,
integra, preenche e molda as indeterminações e lacunas do pensar por meio
de imagens ideais, que podem ser quaisquer, como a representação, o senso
comum, hierarquia, binarismos do belo, correto, harmônico, bom, pacífico,
sexo, gênero, Édipo, raça, família etc. Em tal entrelaçamento, as duas cadeias
não são tomadas como independentes, senão numa relação de hierarquia na
qual o movimento é referido pelo seu índice, o fluxo pelo estrato, a coisa pelo
significado. Captura-se o pensar nas formas instituídas, nas imagens do
pensamento, pois como são simbolizadas, podem ser reproduzidas e
reapresentadas de forma mais ‘entificada’ do que o movimento do pensar. Na
Figura 3.1, esquematiza-se esse processo de integração, que corresponde aos
demais processos de codificação.

Figura 3.1. Processo de codificação e integração das singularidades


dispersas.

As imagens de pensamento têm um poder de integração das


singularidades livres: a síntese da imaginação integra, regulariza e organiza o
pensar. Traça uma curva integral que cria um regime de vizinhança para as
singularidades até então dispersas. Regulam e homogeneízam as diferenças
na mesma curva, na mesma imagem, sendo o gérmen dos códigos instituídos:
os protocódigos. As imagens estruturadas possuem um poder de gravitação
no qual a série do fluxo do pensar forma uma simbiose com a série das
imagens de pensamento: elas se combinam e se misturam.
Nessa composição, as imagens instituídas assumem primazia e moldam o
pensar, que passa a ser preponderantemente representado e produzido por
suas imagens, e não mais atuado pelo movimento; é reduzido às formas que
pensam, ao representável. Assim o movimento do pensar é estratificado e
congelado em imagens ideais e cristalizadas pela doxa, a imagem dogmática.
É capturado aos regimes de representações, tornando-se forma e não
movimento. Há então a prevalência dos mecanismos de reprodução e não de
produção, massificação e não singularização. Dessa maneira, as imagens de
pensamento têm um poder de instituição e consolidação, assumindo um
grande poder de afetar. São a figuração e expressão do hábito em figuras
sintéticas, a própria codificação do pensamento em construções imagéticas,
que, em sua intensificação, podem tornar-se significantes despóticos. Por isso
que o leigo acredita que o pensamento apenas opera por representações, o que
é uma redução de sua complexidade, pois há singularidades que não são
integradas pelos protocódigos: as imagens e os significantes não expressam
uma diversidade de processos assignificantes e intensivos.
A imagem de pensamento é o primeiro conceito deleuzeano que traça
uma política do pensamento, sua codificação e captura. É um procedimento
redutor na operação do pensar, tal como o mecanismo da dialética. A
dialética é uma forma de captura e codificação das diferenças pelas imagens
de pensamento, que reduz a pluralidade de forças e elementos a um dualismo
de dois polos opostos com processos sintéticos (cf. Capítulo 1). Porém, as
multiplicidades situam-se fora do código, da norma: deformam a imagem de
pensamento padronizada.
Nesse sentido, o Eu não pensa o pensamento nem é senhor do que se
denomina como consciência. Eu e consciência é que são resultantes das
relações de forças no território, a síntese dos hábitos, esquemas e imagens de
pensamento codificados. Do mesmo modo que o território produz o sujeito,
sua consciência também é produzida. Então, o indivíduo, mais objeto que
sujeito, não é serviçal apenas do seu inconsciente, perspectiva eminentemente
individualista e liberal. Anteriormente, é assujeitado pelo conjunto de
imagens de pensamento coletivas, uma espécie de ‘consciente coletivo’ que,
como conjunto de códigos sociais de sistemas de enunciados e valores, tem
como função atribuir regimes de significados à existência partilhada, bem
como codificar e tentar manter estabilizadas as relações de forças
constituídas. Na tradição sociológica, recebe o nome de ideologia, ou Moral e
é muito mais determinante que o inconsciente individual. É o fundo no qual
se constitui e tem efeito de moldagem e formação de todos os processos.
Dessa perspectiva, abandona-se a concepção da ideologia como um falso
conjunto de representações que tem como finalidade o encobrimento da
realidade para a manutenção das relações de dominação, pois, ao formar e ser
formado por um conjunto de códigos e imagens de pensamento com efeitos
pragmáticos, o consciente coletivo assume propriedades realizadoras e
performativas que não se restringem à mera representação: produzem regimes
de verdades. Então não há uma essência última que difere da aparência, uma
internalidade distinta da superfície ou uma ideologia que falseia a realidade.
Não há uma Verdade transcendente, senão imagens de pensamento coletivas
que organizam e integram a cognição, descrevem e produzem regimes de
realidade. Operam por intermédio de uma transcendência imagética nos
âmbitos individual e coletivo, moldando os modos de ser e de se subjetivar.
Propagam um juízo moral entre o que é certo e errado, normal e patológico,
que disciplinariza e referencia a vida no social. Produzem enunciados e
distintos regimes de verdades que legitimam a hierarquia e assimetria de
poder de forma generalizada.
Inscrição-registro do código: o diagrama de inscrição

Em cada momento histórico-social, há um diagrama de forças distinto. O


socius opera com distintas engrenagens nos diversos momentos espaço-
temporais, atuando predominantemente por processos de codificação e
descodificação dos fluxos sociais e conformam uma História universal
(Deleuze & Guattari, 1976). Esta não corresponde a uma sucessão de fatos,
datas ou personagens históricos, senão a vetores de forças, movimentos e
deslocamentos. Age na lógica das contingências, cortes e dissonâncias e não
nas continuidades e harmonias. Pode ser chamada de Engenharia Social, pois
se trata de uma análise da mecânica do funcionamento das engrenagens e
fluxos sociais. Pode ser, ainda, focalizada do ponto de vista de uma
Diagramática [7], pois descreve e discute os distintos agenciamentos de
forças e diagramas em cada momento social-histórico.
O diagrama é a máquina abstrata, o mapa das relações de forças,
movediças, dinâmicas e instáveis (cf. Capítulo 1). É composto pelos vetores
de forças em movimento, fluidos, não estratificados e não codificados, dos
quais resultam as formações sociais estratificadas e codificadas. "O mapa
estratégico está sempre em relação com os arquivos que derivam dele"
(Deleuze, 2014, p. 204), pois distintas formações concretas decorrem dos
diagramas de forças. Na sucessão histórica, há diversos diagramas, como, por
exemplo, os de: rivalidade da antiga cidade grega, inscrição das sociedades
primitivas, soberania/captura das formações imperiais etc. Na Diagramática,
os processos de codificação são fundamentais, pois o pensamento, o afeto e
as condutas sociais são operados por códigos. O socius, com seus processos
extensivos, codifica, mas, por outro lado, os fluxos desejantes traçam linhas
de fuga, instauram linhas caoides e de desterritorialização.
A História universal é a decorrência concreta da Diagramática. É formada
por três momentos expressos pela tríade selvagens-bárbaros-civilizados. Os
selvagens relacionam-se à máquina territorial primitiva, os bárbaros à
formação imperial-despótica e os civilizados à formação capitalista integrada
(Deleuze & Guattari, 1976). Esses momentos são respectivos aos seguintes
modos de operação: codificação, sobrecodificação e axiomática do capital, ou
aos diagramas de inscrição, captura/soberania e de disciplina-
controle/rendimento. No capitalismo, atuam dois diagramas distintos e que,
no seu ápice, substituem os processos de codificação (cf. Capítulo 4).
O diagrama de inscrição materializa-se em uma máquina social que tem
como finalidade a inscrição dos fluxos livres e selvagens, ainda não
codificados. Os processos de inscrição e registro dos códigos iniciam-se no
momento fundador de uma máquina territorial primitiva. É o período dos
coletivos ‘originários’, das tribos, coletores e caçadores nômades, dos
agrupamentos sem Estado.
Nesse momento inicial de codificação, a unidade primitiva do desejo e de
produção é a Terra, que é a referência, o corpo pleno, para a inscrição dos
fluxos sociais. O território é o plano de imanência, assume referência central
e fundamental para os coletivos humanos. Tudo é feito em sua alusão, o
grande e pulsante ovo. Em tal diagrama, parte-se de uma situação de
instabilidade e desequilíbrio, em que o magma deve ser estratificado e
registrado. Há um movimento de intensio para extensio, no qual o fluxo e o
dado são extraídos, delimitados e contraídos. Os fluxos e corpos são inscritos
e codificados tendo por referência o território e o que o ocupa, seja por
imitação, mimese, ou conexão com a natureza e animais. Sua principal
função é a inscrição de um cosmos no corpo e nos fluxos que transbordam.
Grafar, cortar, mutilar, tatuar e codificar no corpo elementos da terra são
formas de prover marcas e inscrições que proporcionam a constituição de um
registro, símbolos, códigos, regimes de significações (Deleuze & Guattari,
1976). Nesse sentido, os fluxos tornam-se

"objeto de extrações que constituam um mínimo de estoque, e que a


cadeia significante seja objeto de desligamentos que constituam um
mínimo de mediações. Um fluxo é codificado quando desligamentos
de cadeia e extrações de fluxo operam em correspondência, se
estreitam e se esposam" (Deleuze & Guattari, 2010, p. 198).

O processo de codificação, portanto, busca extrair, cortar, ligar e canalizar


os fluxos sociais desterritorializados, formatando-os em moldes
normatizados, (re)territorializando-os. Extrai-se parte do fluxo, articulando-a
a traços e características específicas. O significante proporciona tal
desligamento e isolamento do conjunto, constituindo formas para as parcelas
significadas do fluxo. O código porta as marcas que significam-designam o
fluxo recortado, dando-lhe forma e significado: é sua forma de expressão.
Nessa operação, articulam-se as linhagens primitivas ao território. Então, o
código surge como a contração do dado e a inscrição e registro do fluxo,
como forma de molarizar as forças moleculares e informes.
Os rituais tribais que celebram o planeta e a natureza são os momentos
privilegiados dos processos de inscrição, em que os membros da tribo passam
por uma série de iniciações. Os rituais são a espetacularização pública e
simbólica do coletivo e neles se cria um regime de visibilidade sobre a
operação de inscrição gráfica no corpo de seus membros. As marcas
simbolizam o corpo intensivo e fluido, o divino expresso por devires animais
e forças da natureza. É operação que visa territorializar o ser, simbolizá-lo,
moldá-lo, produzi-lo, religá-lo à Terra. A crueldade de inscrever marcas na
carne dos membros do coletivo faz com que se instaure um plano de registro
social, no qual se atribui ao indivíduo uma posição na tribo. O olhar do grupo
vê suas marcas e reconhece o lugar de pertencimento que ocupa no coletivo.
Ele passou por sua provação. Essas inscrições dão sentido a seu corpo, à sua
situação no grupo, bem como constituem uma memória social, pois oferecem
marcas e códigos ao clã. Traçam sua historicidade e territorialidade,
proporcionam a diferenciação entre uma tribo e outra: constitui-se assim a
mais valia de código, numa operação convergente à expressa pela Figura 3.1.
As marcas, códigos, o totem e a memória sempre lembram o indivíduo de seu
débito com sua tribo e o território. Assim, a dívida torna-se constituinte do
laço social do indivíduo com seu coletivo, assinalando uma situação de
constante desequilíbrio. Então esse diagrama mais se caracteriza pela
inscrição dos fluxos que transbordam na forma de códigos e não pela
circulação e a troca, que são secundários.
Os códigos são inscritos na máquina territorial primitiva por regimes de
filiação ou de aliança. A filiação é extensiva, hierárquica, faz o membro
lembrar de seu tributo à tribo, do seu lugar na cadeia filiativa. A aliança já é
uma operação social que não decorre diretamente da filiação. Há uma
negociação entre as tribos e seus componentes entre que elementos devem ser
conectados. É uma forma de agenciamento horizontal entre distintos coletivos
que tem finalidades políticas e econômicas e que produz uma rede de
conexões. Há, assim, uma subdivisão entre as pessoas, mas não do território:
a Terra continua como corpo indivisível. Vive-se seguindo os códigos dos
fluxos da natureza e luta-se contra formações transcendentes, como a
constituição do Aparelho de Estado e a moeda, que são aspectos que
desterritorializariam seu sistema de códigos inscritos. Os coletivos
organizam-se então como sociedades contra o Estado. Buscam rechaçar essa
maquinação, que pode causar sua morte e destruição, no entanto esta vem de
fora, num corte, numa ruptura. Nietzsche (2004) descreve:

"Eles vêm como o destino, sem motivo, razão, consideração, pretexto,


eles surgem como o raio, de maneira demasiado terrível, repentina,
persuasiva, demasiado “outra”, para serem sequer odiados [...] um
bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que,
organizada guerreiramente e com força para organizar, sem
hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez
imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade" (p.
75).

Surge um novo povo, com outra lógica, relações de forças, códigos


sociais, que não busca uma comunhão com a terra; mas dominá-la e espoliá-
la. Uma horda de guerreiros que atua pelo laço de captura busca conquistar
territórios, destruir tribos e construir formações sociais soberanas, tal como o
Estado. O bárbaro contrapõe-se ao selvagem por se posicionar exteriormente
a uma civilização, por ser de fora, além muros, é aquele que invade as
fronteiras de um coletivo,

"penetrando, incendiando e destruindo uma civilização [...] é


essencialmente um vetor de algo muito diferente da troca: é o vetor
de dominação. O bárbaro, diferentemente do selvagem, se apodera,
se apropria; pratica não a ocupação primitiva do solo, mas a rapina"
(Foucault, 1999, pp. 233-234).
Sobrecodificação dos fluxos: o diagrama de
captura/soberania
Na transição de um diagrama de forças a outro, ocorre uma ruptura no
mecanismo de funcionamento, que resulta em outra formação social. O novo
maquinismo é instaurado pelas invasões guerreiras, a dominação de povos e a
constituição de formações soberanas. A sobrecodificação e captura dos fluxos
tornam-se determinantes em relação a sua inscrição. Constitui-se o segundo
momento da Diagramática: o diagrama de captura, que também pode ser
denominado de soberania, com sua concretização na máquina imperial-
despótica. Esse é o momento no qual guerreiros dominam povos e constituem
formações imperiais. Invadem e capturam tribos para conquistar territórios,
acumular riquezas e capturar mão de obra escrava.
Constitui-se um agenciamento de forças verticalizado que pode ser tão
antigo quanto a História universal. Nesse diagrama, mantém-se uma relação
de tensão com o que é externo, tentando-se invariavelmente dominá-lo,
sobrecodificá-lo e integrá-lo. No processo de conquista e dominação,
combatem-se os coletivos que ficam à margem, as tribos nômades, as
máquinas de guerra (cf. Capítulo 8), os movimentos de êxodo e as
insurgências sociais, em que se ataca, arrasta e subjuga o antigo regime de
códigos da máquina territorial primitiva. Desterritorializam-se os fluxos
sociais anteriores e transmitem-se novos códigos baseados em uma lógica
hierarquizada: uma captura e sobrecodificação dos fluxos. Sua operação
consiste na codificação de uma série sobre outra, na lógica da negatividade.
Se há duas séries de códigos, uma dominante e outra dominada, a segunda é
descodificada, negativada, tendo de assimilar a série dominante.
Descodificam-se os códigos primitivos, móveis e dinâmicos, e aplica-se o
código imperial: amarram-se e capturam-se os códigos do antigo sistema. O
regime de códigos dominantes da máquina imperial assume determinância
sobre as séries de códigos singulares dos coletivos dominados. Atua como
uma nova curva integral, uma unidade formal superior, que interioriza as
singularidades autônomas, gerando uma heteronomia transcendental, uma
captura à força. O código do Império torna-se o único regime de enunciados
legitimado e os códigos das tribos capturadas não têm mais valor nessa
formação social, devendo ser abandonados. Os coletivos tribais são
integrados na lógica desse diagrama, tendo de se submeter aos novos códigos.
Tal fenômeno pode ser constatado quando um Império conquista um povo
menor. A população subjugada deve abrir mão de sua língua, cultura,
crenças, moeda, religião e é obrigada a partilhar os códigos instituídos dos
dominadores. Seu corpo fica à mercê dos conquistadores, é escravizado para
o trabalho ou nas constantes violações corporais. Há uma nova forma de
aliança, não mais horizontal, mas vertical e externa, à qual as tribos
autóctones dominadas devem aderir e submeter-se. A aliança é externa e
organizada pelo laço da captura e do terror, ampliando o regime da dívida: as
relações de poder tornam-se transcendentes.
Nesse contexto, o código ocupa importante função de governabilidade,
pois marca as diferenciações sociais, quais traços são hegemônicos e quais
devem ser deplorados. O código de sexo/gênero marca a exploração e
dominação intracultural sobre a mulher, bem como os códigos raciais
marcam a opressão intercultural entre raças e povos.
Nesse diagrama há outra configuração de forças que não é resultante do
diagrama de inscrição nem de um processo evolutivo da máquina de guerra
nômade. Por exemplo, não são o sedentarismo e a agricultura que criam o
Estado, mas o contrário. As formações imperiais, por intermédio da relação
com os coletivos de coletores e de caça, é que passam a cultivar os grãos
selvagens, constituindo a agricultura, como forma de proporcionar
alimentação aos trabalhadores da metalurgia (Deleuze, 2016).Assim, o corpo
pleno, de referência, deixa de ser a Terra e passa a ser a formação de
soberania, estatal e religiosa, representante direta das forças divinas. O
Império tem domínio sobre o território e seus subjugados: sua palavra, seu
código, é Lei. Detém o poder sobre a vida e a morte, o de matar e deixar
viver. Opera por uma dominação vertical, com o uso direto da força. O
despotismo oriental é exemplo expressivo de como o poder sobre o coletivo
era de tal magnitude que o Estado era mais forte que a sociedade. O terror e
violência eram utilizados pelo soberano como dispositivos para a manutenção
da dominação:

"Nas grandes tribos hidráulicas o chefe pode reforçar sua autocracia


incipiente mediante o emprego de terror espetacular. Um chefe
chagga, por exemplo, pode cometer toda classe de crueldades contra
seus súditos. Afirma-se que Ndeserno arrancou os corações dos
corpos das vítimas enquanto ainda estavam vivas e que os assou para
seus filhos. Um líder que chegava a estes extremos era contemplado
com grande terror, porém [...] o temor que inspiravam cimentava a
estabilidade do regime" (Wittfogel, 1966, p. 171).

A sobrecodificação dos fluxos sociais é muito eficaz, não apenas pela


força direta, mas devido à criação de códigos bastante estratificados, como o
Direito, as Leis, a escrita, a religião e uma estrutura social rígida que se
estabelece no Estado. As sociedades de captura vão muito além da existência
de um soberano. Seu diagrama de forças atualiza a constituição de um
aparelho que reproduz, conserva e atua por processos de captura. Busca
capturar todos os processos para tentar não deixar escapar os fluxos,
constituindo e perpetuando estamentos, castas e, posteriormente, classes
sociais. Então, o aparelho de captura define-se primeiramente pela

"perpetuação e conservação de órgãos de poder. A preocupação do


Estado é conservar. Portanto, são necessárias instituições especiais
para que um chefe possa tornar-se homem de Estado, porém requer-
se não menos mecanismos coletivos difusos para impedir que isso
ocorra" (Deleuze & Guattari, 1997b, p. 19).
Dessa forma, o Estado é um aparelho de sobrecodificação e captura dos
fluxos que atua por uma força centrípeta, codificadora, com mecanismos de
conservação e fixação. Singulariza-se em conservar os códigos instituídos e
seu funcionamento permanece o mesmo, independendo de quem o ocupe:
governantes são trocados a todo o momento. As formações de soberania
possuem, assim, uma estrutura estratificada e consolidada. O Direito e as Leis
cumprem a mesma função de conservação, são um conjunto de regras que o
soberano encomendou aos seus pensadores para justificar, legitimar, reforçar
e perpetuar seu poder (Foucault, 1979). Sua produção é a codificação das
relações de forças desse diagrama, a concretização direta do processo de
captura e, portanto, são a expressão e a normatização do poder imperial, seus
códigos de governabilidade. Compõe-se todo um sistema jurídico edificado
que trata da dominação e da sujeição da população para a manutenção do
poder.
A religião também realiza o mesmo diagrama de forças e é usada como
modo de sobrecodificação e governo via captura das almas. A história das
instituições religiosas expressa as narrativas do poder e da dominação por
meio de discursos de obediência, recompensa e bondade. Utiliza-se a
imponência da arquitetura e da crueldade nos dispositivos de imolação e
tortura para provocar medo, terror e temor. A Inquisição, por exemplo, foi
uma forma espetacular e sangrenta de dominar a diferença e o estranho:
satisfação no exercício da relação de poder e da extrema dominação que
resultou no governo e obediência das populações por meio das forças
reativas, como a culpabilidade, o ressentimento, a má consciência e o ideal
ascético. É uma aparente contradição uma religião que prega o amor e a
bondade ter como símbolo um instrumento de tortura, no qual suas vítimas
agonizavam lentamente até a morte: a cruz.
O diagrama de captura opera por alto grau de centralização, rechaçando a
desterritorialização dos fluxos sociais. Exemplo emblemático é o da China
imperial, onde já havia uma sofisticada organização com figuras autônomas
ao soberano, como o proprietário de terras, o empresário das grandes obras e
o banqueiro de impostos (Deleuze, 2017). Entretanto erigiu-se uma
maquinaria de concentração dos poderes para impedir e coibir a
descentralização do território, as apropriações indevidas do tesouro do Estado
e os fluxos de natureza privada. O domínio era exercido com severas leis e
rígida fiscalização, na qual se empregavam fiscais, espiões e informantes
(Wittfogel, 1966).
Os produtores sofriam uma vigilância direta que, inclusive, influía nos
índices de produção e mercantilização. Caso houvesse um excedente de
extração de minérios, proibia-se a abertura das minas. Cobravam-se altos
impostos e casos de roubo ou de não pagamento das taxas eram castigados
com o uso da força direta, do terror e da punição (Balazs, 1964). Deleuze
(2017) considera que a origem da moeda vem das atividades de centralização
ao invés da descentralização do comércio e do mercado. Para o filósofo, a
moeda surgiu como sistema de equivalências e tradutibilidade do arrecadado
com os impostos, em que o banqueiro devia pagar sua cota ao soberano. O
domínio sobre a vazão dos fluxos foi tão intenso que foi o que evitou o
surgimento do capitalismo entre os séculos XI-XIII, momento em que havia
todas as condições técnicas e científicas para sua emergência. O capitalismo
apenas emergiu séculos depois no Ocidente, quando tal centralização e
captura se fragmentaram e os fluxos vazaram por todos os lados.
Institucionalização do código: as instituições concretas

O código advém do diagrama de inscrição e tem seu apogeu no diagrama


de captura, na máquina imperial-despótica, culminando na constituição das
disciplinas. No primeiro momento, trata-se de instaurá-lo, inscrevê-lo, para
promover os laços sociais do coletivo. O totem torna-se símbolo de como um
agrupamento primitivo deve portar-se, de suas interdições e do marco
territorial-político a outros coletivos. No segundo momento, o código é
sobrecodificado e está à mercê do poder soberano do Estado. Seu imperativo
é Lei e deve ser obedecido. O código sempre esteve a serviço das relações de
poder, significa a existência e governa uma população.
A Instituição, tal como o Estado, é uma formação social que é constituída
pelos códigos e processos de codificação, os quais atualiza e institucionaliza.
É a precipitação, sedimentação e cristalização dos vetores de forças em uma
configuração fixa e estável, seguindo o movimento das multiplicidades de
fluxos em direção à estrutura. É a instância molar que integra os elementos
moleculares e microfísicos, que deles deriva e é atualização. Não se
singulariza pelo exercício explícito do poder, mas como formação reguladora
e de semiotização dos processos psicossociais. Da mesma maneira que o
código, dá forma ao informe e codifica o fluxo. Opera como uma curva
integral, um enunciado, que passa pela região de vizinhança das
singularidades, traça uma linha comum aos distintos elementos, regulariza as
diferenças e ‘conjuntiza’ as partes separadas. Nela, as forças "adquirem uma
estabilidade e uma fixidez que não têm por si mesmas" (Deleuze, 2014, p.
146).
É a formalização do comum entre diferentes elementos, o real
simbolizado e codificado. Transmite e produz imagens de pensamento e
formas de ser com base em seus códigos instituídos, além de possuir
engrenagens que também operam por mecanismos de registro e de
codificação. Constitui-se e atua por esquemas, hábitos, dobras, códigos e
normas, multiplicando os processos de codificação. Atualiza forças e
afecções padronizadas que moldam e fabricam tipos de dobras homogêneas e
formatadas. Se o hábito e a dobra geram a subjetividade, a instituição é sua
cristalização, seu grau máximo, a concretização dos esquemas de ação.
Todas as instituições são criações sociais-históricas (Castoriadis, 1982),
pois são construções coletivas que portam significações e códigos
relacionados à sua temporalidade histórica, espacialidade geográfica e
cultural, e diagrama de forças. Remetem a um ser consolidado e codificado,
mas também em movimento, num devir em transformação, isto é, a seus
traços instituídos e instituintes. Nas diversas definições de instituição
presentes na literatura, encontram-se múltiplos significados referentes à
variedade de fenômenos e processos codificados.
Instituição pode ser um conjunto de regras, normas que regulam a
sociedade, a linguagem, rituais etc. No senso comum, é sinônimo de
estabelecimento concreto, de um lugar onde pessoas trabalham. Mas
Baremblitt (1986) traz definição mais ampla. Afirma que são árvores de
composições lógicas que têm distintos graus de formalização. Com
fundamento nessa definição, consideramos que as instituições são formas
heterogêneas de significações e regimes de códigos que objetivam ordenar e
atribuir sentido à experiência coletiva e partilhada. Cumprem função de base
para a semiotização dos processos, canalização dos investimentos desejantes
e de forças, e têm distintos graus de formalização, que vão desde a
estratificação e a rigidez de uma Lei à esfera quase imperceptível de um
hábito.
Em síntese, instituição é um conjunto de códigos que cumpre distintas
funções de enunciação, regulação e estabilização dos processos, e assume
diferentes graus de estratificação.
Constata-se que, na diferenciação entre os graus de formalização de uma
Instituição, há uma variação entre seu coeficiente de imaterialização e o de
estratificação, um gradiente entre os graus de abstração e atualização. Por
exemplo, temos desde a abstração e imaterialidade da ideia de um ser
supremo e cósmico, Instituição-Deus, até sua concretização e materialização
na Instituição concreta Igreja/religião ou da abstração da Instituição-Saúde
até sua atualização na Instituição concreta Hospital. Tanto a abstração quanto
a forma concreta são instituições, mas com materialidades distintas. Para
apreender essa variação, Baremblitt (1986) propõe uma diferenciação precisa
entre as distintas instâncias institucionais: Instituição, Organização,
Estabelecimento, Equipamentos, Dispositivos, Agentes e Práticas, que
operam em regime de coexistência. Optamos por trabalhar com um modelo
mais sintético. Postulamos que o fenômeno institucional se dá num campo de
dispersão entre dois polos, no qual as configurações de forças se efetuam
entre sua virtualidade e sua materialização-concretização-atualização, como
Instituições abstratas e Instituições concretas, conforme a Figura 3.2.

Figura 3.2. Os dois polos das instituições.

Esse modelo de dois polos é baseado na relação entre o diagrama e as


instituições. Se o diagrama fosse colocado nesse esquema, estaria localizado
mais à esquerda. As instituições abstratas são instituições sociais-históricas
que norteiam e significam a vida social. São as formações mais próximas da
máquina abstrata, do plano diagramático, abstrato, virtual, do agenciamento
de ideias, símbolos e forças moleculares. Não têm estruturação material,
concretude e, muitas vezes, não são explícitas e manifestas, mas possuem
certo grau de formalização, visto que as "instituições são formas que
integram microrrelações de poder" (Deleuze, 2014, p. 118). Operam num
regime híbrido entre molecularidade e molaridade, numa microfísica das
relações de forças disseminadas no campo social, constituindo estratos mais
ou menos organizados. No processo de atualização, as instituições abstratas
situam-se na dobradiça e as instituições concretas são o ápice da
estratificação.
As instituições concretas [8] são a atualização, a máquina concreta, das
instituições abstratas; a efetuação material, estratificada e codificada que,
devido à sua atualização e extensão, possui uma espacialidade, estratos fixos
e linhas de segmentaridade rígida que definem sua identidade e modos de
funcionamento. São formações extensivas resultantes da concretização das
distintas forças moleculares, as quais se atualizam num processo de extensão
e diferenciação. São o grau máximo da integração e regulação e têm um
centro de atração que opera uma força centrípeta, pois são espaços molares de
gravitação que tendem a atrair as partículas à sua volta, tal como um buraco
negro, ou um aparelho de captura, com variados coeficientes de
territorialização. É no seu interior que o poder é exercido sobre os corpos por
meio de práticas de normalização. Já as instituições abstratas possuem um
caráter mais etéreo, incorporal, fluido, plástico e disperso, embora com certo
grau de organização: um esprit de corps. Por exemplo, a instituição concreta
Escola é a máquina atualizada da instituição abstrata Educação, a Fábrica é a
concretização da Instituição-Trabalho e a Grande Mídia concretiza a
Instituição-Lazer. Nota-se que, na atualização da instituição concreta, há um
processo de diferenciação entre uma e outra, pois as instituições abstratas
extrapolam o seu correlato atualizado: o virtual excede o atual. A intensão do
abstrato diferencia-se da contração e extensão do concreto. Desse modo, a
Educação vai muito além da Escola, bem como o Lazer ultrapassa o que a
Mídia oferece como práticas de entretenimento, e o Trabalho transcende a
Fábrica.
A Instituição assume função protagonista para a modelação da
subjetividade, bem como para a governamentalidade social. Cada instituição
tem seus índices de curvatura, sua lógica e seus procedimentos de ação. Na
gestão da vida, a codificação dos pensamentos e condutas torna-se
fundamental para a ordenação e dominação social, pois é operação central
nos processos de governabilidade. Porém, com a substituição do código pela
axiomática do capital como maquinismo de funcionamento, ocorre uma
transformação no modelo de Instituição, assunto a ser trabalhado no próximo
capítulo.
Autonomização do código: norma e diagrama disciplinar

A autonomização e institucionalização dos conjuntos de códigos,


enquanto regimes de saberes, fizeram com que emergisse uma nova
configuração de forças que se torna independente do poder soberano, do
Estado, e constitui outras técnicas sobre a vida e a governabilidade social.
Surge nova tecnologia de governo, outra engrenagem social, inédita e
paralela, ao diagrama de captura, que contribui para a transição da máquina
imperial-feudal para a formação capitalista incipiente. Se, por um lado, o
Estado é a consecução do código na radicalização do polo do poder, por
outro, constituíram-se variados dispositivos de saber, técnicas e instrumentos,
não jurídicos, regionalizados e difusos, denominados saberes disciplinares
(Foucault, 1979). São códigos instituídos que se autonomizam do poder
soberano e que articulam regimes de saber e poder. Apoiam-se

"mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. [...] É
um tipo de poder que se exerce continuamente através da vigilância e
não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações
distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de
coerções materiais do que a existência física de um soberano.
Finalmente ele se apoia no princípio, que representa uma nova
economia do poder, segundo o qual se deve propiciar
simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da
força e da eficácia de quem as domina" (Foucault, 1979, pp. 187-
188).
O diagrama de captura e suas máquinas concretas são agenciados por um
sistema de forças de extração e de dominação, seja da vida, seja de um
território, para retirar seus produtos e tributos. Diferentemente do poder
soberano do decidir a morte e do fazer morrer, os saberes disciplinares têm
como foco a vida e o fazer viver.
Tal mecânica expressa outro diagrama de composição de forças, mais
comprometido com a produção do que com a dominação. Constitui
disciplinas para gerir e produzir a vida enquanto um corpo-máquina.

"Nossas sociedades disciplinares passam por categorias de poder


(ações sobre ações) que podem ser definidas assim: impor uma tarefa
qualquer ou produzir um efeito útil, controlar uma população
qualquer ou gerir a vida. Mas as antigas sociedades de soberania se
definiam por outras categorias igualmente diagramáticas: confiscar
(ação de se apropriar de ações ou produtos, força de confiscar
forças) e decidir a morte ('causar a morte ou deixar viver', o que é
bem diferente de gerir a vida)" (Deleuze, 1988, p. 91).

As disciplinas foram determinantes para a constituição do capitalismo


industrial, pois são práticas que se acoplam a esse sistema produtivo,
examinando e otimizando os corpos, tomando-os como máquina. É quando a
vida (biós) entra e torna-se alvo da política e o poder inscreve-se no corpo,
numa anatomia de um corpo que melhor produza: uma anatomopolítica. A
gestão do corpo-máquina produtivo se dá com base em novos saberes e
práticas que não provêm do âmbito direto da jurisdição do Estado, mas da
jurisprudência do saber clínico, os saberes psi, de instituições disciplinares
como a Psiquiatria, Psicologia, Pedagogia etc., que agem diretamente no
corpo populacional.
Esses saberes adotam novos procedimentos como o exame, a vigilância, o
confinamento num espaço e o manejo do tempo. Não apenas descrevem
traços dos indivíduos, mas produzem medidas, moldes, códigos e enunciados
como meios de conhecimento sobre a vida e com intuito de maior eficácia e
produtividade. Utilizam como formas interventivas a sanção normalizadora, a
regulação das condutas e a correção dos desvios: uma domesticação dos
corpos. Sua utopia reside nos pares diagnosticar e corrigir, ou vigiar e punir.
Os saberes produzidos por esses procedimentos recebem o nome de ‘normas’.
A norma é o conjunto de códigos que se refere aos enunciados de verdade
produzidos pelas disciplinas de saber; é uma forma de poder científica, não
jurídica e historicamente localizada. Corresponde aos domínios de saber e
não à Lei e ao Estado. Oferece os parâmetros de referência de determinada
medida, sua classificação e categorização, sua média e variância, seu padrão e
desvios. Designa o que está dentro da curva normal, proporcionando um grau
de comparação entre os indivíduos. Torna-se o código/imagem de
pensamento que referencia e regula o pensar, a existência e as relações
sociais. Normatiza as regras de ser e de civilidade que se estabelecem em
diferentes sociedades. É dotada de um poder de gravitação que codifica ainda
mais os processos. Além de constituir-se como molde estratificado e fixo,
assume propriedades realizativas, efeitos performativos, de produção de
formas de ser, pensar e parecer. Possui uma potência ilocutória e pragmática,
é um duplo que, ao recortar, molda os fluxos. Suas medidas tornam-se
referência para o viver e são repetidas pela população. Assim, constitui
padrões e gere a vida na produção de verdades sobre as regularidades e
irregularidades, o normal e o anormal, a saúde e a doença, o cidadão e o
criminoso. As multiplicidades que estão fora da norma são consideradas
desviantes, patológicas, marginais, loucas. Então "as sociedades modernas
não funcionam por ideologia ou repressão, senão por normalização. [...]
Normalizar é a relação de forças por excelência. A saber, é repartir no
espaço, ordenar no tempo, compor no espaço-tempo" (Deleuze, 2014, p. 51).
O dispositivo do panóptico de Jeremy Bentham é a figuração singular que
expressa o mapa das relações de forças, a máquina abstrata desse momento
(Foucault, 1984). É o diagrama de manejo espacial e temporal que encarna as
relações de vigilância, confinamento e exame. Consiste numa formação
arquitetônica circular em forma de anéis fechada em si, como um claustro. De
um ponto central, um observador pode vigiar os diferentes lugares, sem ser
observado. Sua proposta é a de uma vigilância total sobre os corpos
confinados num determinado espaço, seguindo certo regime de
temporalidade. Considero que sua tecnologia é uma sofisticação do aparato
monástico, em que se ‘transduzem’ práticas do âmbito religioso para o
científico. Assim, não se realizam apenas ações de vigilância e exame, mas
tem-se como utopia a correção do anormal, do desviante, numa adaptação às
normas tal como se fosse uma recuperação das ‘almas’. Porém, ao método de
correção não é atribuída uma causa divina, mas, sim, científica.
Então, os corpos e condutas são esquadrinhados e, pelos procedimentos
de intervenção e resultados obtidos, são desenvolvidos conjuntos de códigos
e saberes psi, os quais são norteadores do biopoder. Dessa forma, o panóptico
foi a máquina abstrata de descodificar os indivíduos e codificá-los em novas
normas; um aparelho de sobrecodificação dos fluxos sociais, não mais pelo
soberano, mas pelos regimes do que se produziu como verdades e técnicas
científicas. A tecnologia arquitetônica panóptica não foi emblemática
somente para os estabelecimentos de encarceramento, mas foi a expressão do
diagrama de poder, espacial e temporal, para todas as instituições concretas.
É nesse contexto que se constroem as prisões, asilos e manicômios,
aparelhos de confinamento do corpo em Instituições totais onde se pode
esquadrinhá-lo, vigiá-lo e governá-lo diretamente. A própria escola, como a
fábrica ou o hospital, é organizada pela lógica panóptica. Por isso, no
diagrama disciplinar, o modelo das instituições atingiu seu ápice como
mecanismo de governo do social, pois é o estabelecimento isolado e
especializado de correção e normalização de condutas.
Entretanto, mesmo autônomos, os saberes disciplinares conectam-se, não
sem tensão, ao regime de soberania, ao poder jurídico-estatal. Atrelam-se e
tornam-se legitimadores da governamentalidade, fornecendo um novo
aparato de gestão da vida ao Estado [9]. Gerem os coletivos, constituindo um
poder sobre a vida, um biopoder, o qual incide sobre o indivíduo e a
sociedade. Ocupam, assim, um lugar estratégico, pois se situam entre o saber
científico e a gestão política, vinculando as práticas científicas às políticas de
intervenção (Foucault, 1984).
Portanto, os regimes disciplinares surgem como mecanismo de produção
e adaptação às normas, assumem o estatuto de verdade e de
governamentalidade e modelização da vida de acordo com a lógica liberal:
são os mecanismos do biopoder, máquinas tecnopolíticas de codificação.
Servem tanto para a disciplinarização do corpo, como para a regulação das
condutas de uma população. Operam por intermédio dos códigos e foram a
maquinação transitória do regime imperial à emergência do capitalismo.
As disciplinas criam, abandonam e recriam códigos com os processos de
acúmulo de saber. Aumentam a frequência de criação e descarte dos
códigos/moldes. Porém, com a intensificação do capitalismo, surge nova
máquina social que adquire primazia em modular os processos psicossociais.
Os códigos diversificam-se e multiplicam-se ainda mais, não operando por
linearidade e continuidade.
Subjetividade disciplinar

As instituições disciplinares têm como principal objetivo a modelização


do corpo e dos modos de subjetivação, que são modelados como "um tecido,
que se deve dobrar e moldar para gerar uma superfície nova cheia de
hábitos e rotinas que resistam à passagem do tempo" (Tirado & Domènech,
2006, p. 194). Tal como as Instituições, resultam do agenciamento de linhas
que podem ser de três tipos: de segmentaridade rígida, flexível e de fuga (cf.
Capítulo 1).
Os aparelhos disciplinares funcionam como máquinas semióticas de
sobrecodificação do sujeito e operam a substituição de um sistema de códigos
para o da disciplina, que visa formatar o corpo, a subjetividade e o indivíduo.
Dessa maneira, descodificam e recodificam na lógica disciplinar, na qual as
imagens de pensamento e as formas de ser são pressupostas e devem ser
inscritas e sobrecodificadas. Atuam na codificação dos pensamentos e
condutas, propagando formas normatizadas de pensar, simbolizar, afetar-se e
agir, que devem possuir uma permanência. Trabalham no primado da ação
das normas, em que os códigos instituídos conscientes devem ser seguidos,
internalizados e obedecidos pelos coletivos sociais para manter a perpetuação
e reprodução das relações sociais. Portam imperativos que programam os
indivíduos por meio da lógica significante, inscrevendo códigos na carne e na
alma. O mandato institucional é seguir as normas, pensar e ser com base no
que as regras e códigos consignam. Na disciplina, a obediência é a ‘Lei’.
As relações de forças do diagrama disciplinar afetam e modelam os
esquemas de associações que compõem o hábito, bem como os regimes de
inflexões que constituem as dobras, a partir de linhas de segmentaridade
rígida. As práticas institucionais e a ação das forças da estrutura e do
conjunto fomentam uma semiotização normalizadora dos modos de
subjetivação, gerando dobras padronizadas, formatadas e fechadas. O
processo de dobragem subjetiva segue o molde dos códigos institucionais, em
que se produz uma subjetividade disciplinar, a qual é codificada e
estratificada pelos saberes e normas instituídos, bem como capturada por suas
instâncias de poder. É constituída por linhas de segmentaridade rígida,
apresentando traços identitários estereotipados conforme as normas
institucionais e instância molar bastante consolidada e estabelecida. Assume
características de fixação aos estratos e de rechaço aos processos de mudança,
disrupção e transformação: a dobra subjetiva deve ser idêntica à dobra
institucional.
Na produção da subjetividade disciplinar, conjugam-se produção e
repressão. A disciplina cria um território, estrato, com função de ancoragem,
firmamento, para que os processos psicossociais se desenvolvam. Fornece
segurança e continência psíquica aos indivíduos, disseminando um
conhecimento teórico, técnico e de posicionamento no mundo. Contudo, as
normas não apenas alicerçam, como também moldam e capturam os
investimentos desejantes, pois são equipamentos de interdição e
domesticação das forças moleculares. Descodificam e canalizam o desejo às
normas institucionais, tal como a normalização e manejo da sexualidade
infantil (Guattari, 2013).
Freud (1976a) conjectura que, no grau zero da sexualidade, o bebê se
constitui como um polimorfo perverso porque possui pluralidade de zonas
erógenas e objetos de satisfação, isto é, sua pulsão sexual está dirigida a
múltiplos focos, ainda não canalizada no sexo oposto nem no imperativo-
código da heteronormatividade. O psicanalista afirma que o desejo, a
princípio, se apresenta plural e rizomático, mas passa a ser formatado e
canalizado em apenas um objeto em torno dos cinco anos; coincidentemente
a idade em que as crianças ingressam em instituições educacionais.
Consideramos que a codificação dos fluxos sexuais se dá por meio dos
processos de normatização institucional disciplinar, tanto da Instituição-
família, quanto da Instituição-escola. Há domesticação do desejo e
canalização da sexualidade baseada na norma disciplinar codificada, calcada
na heteronormatividade, que reproduz o código da heterossexualidade.

Figura 3.3. Processo de canalização-formatação-institucionalização do


desejo.
A Figura 3.3 esquematiza a jornada de codificação e captura do desejo.
Constata-se a redução da pluralidade para uma unidade, na qual o indivíduo
tem de se adequar à norma instituída, ao código propagado pela disciplina.
Tal processo não se refere apenas à sexualidade, mas a todas as formas de
ser, expressar-se e desejar, que são moldadas conforme os códigos e normas
institucionais: as forças e agenciamentos desejantes devem ser canalizados. O
processo civilizador institucional consiste na composição-formatação dos
territórios existenciais, tratando de transformar o caosmos em um cosmos
identitário preenchido de códigos.
Percebe-se que o código da norma e da subjetividade disciplinar opera
pela lógica do negativo, em que qualquer desvio ao que não faz parte dos
regimes da disciplina é patologizado e negativado. A subjetividade
disciplinar atua pela negatividade da norma, numa lógica binária e
excludente. Por isso, fica presa nas dicotomias e na sombra de uma
‘negatividade originária’: está capturada pela interdição, na busca por uma
essência idealizada e pelo preenchimento de uma suposta falta originária.
O desejo interdito pela norma conforma-se como tensão, mal-estar e
sofrimento, processo pelo qual, frequentemente, a força ativa e desejante se
volta contra si mesma. Em muitos casos, o investimento desejante não pode
ser contido nesses moldes, o que pode ocasionar rupturas. Porém, se o
indivíduo não se adapta às normas, ingressa em um regime de dívida com o
código, estando em débito. Ele próprio se força à autoacomodação na norma
e, caso não tenha êxito, instaura para si uma culpabilidade por não seguir os
imperativos disciplinares.
A Moral surge como mais um elemento de captura, reativo, e é o
imperativo do código, o enunciado que reforça a necessidade da subjetividade
disciplinar de manter a obediência às normas e regras das instituições.
Adaptar-se à norma sem resistir é a consigna geral. A obediência é
positivada, ao passo que a desobediência é negativada. A utopia desse
diagrama é a produção de uma subjetividade disciplinar padronizada e
homogênea. Seu êxito pode ser visto na disciplinarização militar, na qual a
subjetividade disciplinada é produzida nas condutas dos seus indivíduos,
muitos dos quais levam seus códigos para outras instituições, como para a
Instituição-família. Devido à adaptação aos códigos e normas, a produção
subjetiva proveniente tende a ser estandardizada e massificada. Consideramos
que os códigos e imperativos disciplinares são mais eficazes no processo de
institucionalização subjetiva quando o indivíduo se implica nas atividades
institucionais, atribui sentido ao repertório institucional ou crê que será
recompensado reproduzindo-o e transmitindo-o. É sua implicação na
Instituição que catalisa a eficácia da moldagem subjetiva institucional.
Entretanto, a produção subjetiva nas Instituições é limitada por ao menos
dois âmbitos: o interinstitucional e o intrainstitucional. No primeiro, a
subjetividade disciplinar já não se sustenta, pois há uma série de curtos-
circuitos em razão da multiplicidade de semânticas institucionais. A
diversidade de instituições com lógicas heterogêneas porta diferentes normas,
códigos e enunciados que, muitas vezes, são contraditórios entre si. Essa
lógica disjuntiva denota uma ‘babelização’ entre as distintas línguas e
semânticas institucionais, que dividem e colocam em crise o indivíduo. Qual
instituição e norma se deve seguir? Reproduzir o discurso religioso ou o
universitário? A utopia desse período é a integração das diferentes línguas.
No âmbito intrainstitucional, a manutenção dessa modalidade subjetiva se dá
somente quando há uma constante vigilância. Por mais que ela própria seja
vigilante e vigiada, tal conduta apenas é impressa no espaço público
institucional, no alcance do olhar do panóptico. A reprodução dos códigos e a
obediência a eles ficam geralmente reservadas ao espaço da coletividade
disciplinar, pois as normas não contêm a amplitude e variação do desejo
humano. Nas instituições, sempre algo foge, sempre há um fora. No espaço
‘privado’, fora da instituição e da vigilância dos outros, o indivíduo
constantemente transgride as normas, dando vazão ao seu desejo.
As linhas de fuga não aceitam ser formatadas pelas normas institucionais,
subvertem seus códigos e criam outras linhas de sentidos e subjetivação. São
transversalizadas por vetores de desejo que não aceitam ser submetidos pelas
linhas de segmentaridade rígida da instituição. Caso contrário, tudo
funcionaria ‘bem’ nas instituições. A criança estudaria na escola, o
trabalhador não faria greve, as pessoas não se drogariam, o cônjuge não seria
infiel. A eficácia limitada do diagrama disciplinar e de sua forma de gestão da
vida refere-se a essa dificuldade de manejo do desejo e da insurgência, que
faz com que surja a coexistência de dois mundos que possuem duas condutas
distintas: o público e o privado.
Os investimentos desejantes não se adequam às normas, insurgindo-se e
excedendo-se. Mas o surgimento de um novo diagrama de forças altera tudo,
fissurando os códigos, num novo manejo dos fluxos desejantes.
CAPÍTULO
IV
CAPITALISMO:
AXIOMÁTICA DO CAPITAL E DIAGRAMA
DE RENDIMENTO

O capitalismo trouxe nova configuração de forças que alterou toda a


sociedade e o planeta. Não se restringe a uma forma de relação econômica e
política, mas produz novos processos psicossociais, formas de ser e de se
relacionar de maneira muito distinta dos mecanismos de codificação. É o
processo mais determinante na conformação da nova subjetividade
hegemônica.
Neste capítulo, o capitalismo é analisado minuciosamente em suas
distintas instâncias. Primeiro, discute-se seu potencial de desterritorialização
dos fluxos sociais, que faz com que porte um funcionamento considerado
como o negativo do socius, que foi rechaçado pelos diagramas precedentes.
Segundo, aborda-se a reterritorialização dos fluxos num mecanismo singular
denominado axiomática do capital e sua concretização numa rede global e
descentrada: o Capitalismo Mundial Integrado, mais conhecido como
Império. Em seguida, analisa-se seu diagrama de forças, nas formas de
controle e rendimento. Quarto, debate-se sua atualização em novas formações
sociais, as Instituições imateriais, e um novo modo de gestão sobre o
pensamento e a subjetividade: a noopolítica. Na sequência, discorre-se sobre
a modalidade subjetiva e corporeidade resultantes dessa configuração de
forças, a subjetividade capitalista e o ‘corpocapital’. Por fim, analisa-se como
o capitalismo não traz a riqueza, a liberdade e a emancipação prometidas,
conformando-se mais como uma nova máfia que opera pela chantagem
contínua.
Desterritorialização dos fluxos

A autonomização dos códigos e a constituição das disciplinas


contribuíram para o primado do aumento da produção, elevando a vazão dos
fluxos descodificados que o Estado não conseguiu reterritorializar e controlar.
Tal corrente incitou processos de desterritorialização nos estratos
territorializados, trazendo um acontecimento inédito, um corte, um novo tipo
de operação: o surgimento de uma maquinaria social que prescinde do
código. O diagrama de inscrição consistia em codificar os fluxos sobre o
corpo cheio da Terra e o de captura em sobrecodificá-los aos imperativos de
conservação e do Estado, mas a máquina capitalista trouxe outro processo: a
descodificação dos fluxos sobre o corpo cheio do capital-dinheiro.
A ruptura não consistiu apenas na elevação da produção ou na
substituição de máquinas técnicas, da polia e dos mecanismos de relojoaria,
referentes aos dois primeiros momentos, pelas máquinas de combustão e
energéticas. Instaurou-se outro diagrama de poder, uma nova racionalidade
governamental. O encontro de três diferentes tipos de fluxos
desterritorializados demoliu a formação de captura e as funções públicas e
estatizantes. A conjugação entre a descentralização da propriedade territorial,
dos fluxos de trabalhadores e dos fluxos monetários (Deleuze & Guattari,
1976) acelerou a vazão produtivista. A propriedade privada, a mão de obra
liberta e a moeda como sistema de quantidades abstratas se conectaram e
produziram um turbilhão que não pôde mais ser contido pelo aparelho de
captura. Transmutaram-se as relações de propriedade, de trabalho e as
financeiras, em que o imperativo é gerar fluxos de riqueza e valor, concretos
e abstratos.
A aceleração e conjugação dos fluxos desterritorializados romperam os
códigos estratificados e a formação de soberania. Sua propagação varreu uma
diversidade de códigos culturais que referenciavam uma infinidade de
coletivos. Houve o declínio da pirâmide do faraó, da torre de Babel, a queda
da Casa de Deus, num processo generalizado de descodificação de tradições,
costumes, crenças e identidades. Os códigos, a moral, os valores instituídos, a
formação imperial, as disciplinas foram arrastados e desconstruídos, por
representarem um bloqueio, um limite externo, para a amplificação do
capitalismo. As monarquias que permanecem pouco exercem a
governabilidade, assumem mais um poder simbólico e figurativo. Somente
são mantidos os códigos que são instrumentais para a lógica produtiva. Dessa
forma, diferentemente dos momentos anteriores e das antigas Instituições, a
maquinaria capitalista não atua pelo primado de códigos, seja por inscrição,
codificação, normatização ou autonomização das normas. Opera pela
conjugação generalizada dos fluxos descodificados, visando multiplicar a
vazão produtiva do objeto, qualquer que seja. Portanto, não importa o que é
produzido, mas, sim, o aumento do quantum de sua produção. É a "relação
entre atividade criadora da riqueza sem determinação e o objeto qualquer do
trabalho abstrato" (Deleuze, 2017, p. 256).
A Revolução Francesa é o acontecimento que simboliza esse corte. Com
a mutação da configuração de forças, encarnada por um novo segmento
social dominante, houve literalmente a decapitação do sistema imperial e
feudal para a subsequente passagem à formação capitalista incipiente.
O trabalho deixou de seguir o modelo de um mestre e seu aprendiz para
assumir a velocidade e a eficácia da linha de produção, no putting-out system,
no qual o humano se torna parte da máquina industrial. Não há, então, mais
sentido na separação em castas, gêneros, raças, mitos religiosos, se essas
delimitações diminuem o quantum de produção: tanto faz se um indivíduo é
de determinado sexo, cor, idade ou religião: todos são tomados como corpo
com potencial maquínico para a produtividade. O movimento de
desterritorialização capitalista arrastou o socius para uma nova jornada,
seguindo a vazão da produtividade capitalista sempre em desequilíbrio e
instabilidade. As relações sociais foram desterritorializadas e o que parecia
sólido se derrete e se liquefaz.
A máquina capitalista é tão complexa que, no lugar de uma mais-valia de
código, instaurou uma mais-valia de fluxo, que se apresenta de três formas
cuja origem e modo de operação estão vinculados a relações diferenciais e de
desequilíbrio. A relação diferencial fluxo de capital/fluxo de trabalho gera a
mais-valia denominada humana, resultante do trabalho das forças produtivas.
A relação diferencial entre fluxo de financiamento/fluxo de rendas produz a
mais-valia financeira e a última, fluxo de mercado/fluxo de inovação
engendra a mais-valia maquínica. Elas estão ligadas, respectivamente, ao
capital industrial, ao financeiro e ao mercantil (Deleuze, 2005).
O primeiro tipo de mais-valia, a humana, é bastante desenvolvida pelos
estudos marxistas, na sua relação entre força de trabalho, produção e
expropriação do excedente. Os trabalhadores, despossuídos de bens materiais,
subordinam-se à exploração do proprietário dos meios produtivos,
legitimando, por ora, sua submissão e o sentimento de dívida. Produzem um
excedente no trabalho que é absorvido pelo detentor dos equipamentos como
mais-valia. Configura-se uma relação imanente de assimetria entre quem
possui a maquinaria de produção e a força de trabalho, entre capital constante
e capital variável, a qual é fundante na estruturação do trabalho e é um dos
pilares do capitalismo.
O segundo tipo, e que torna o domínio mais intensificado, é a mais-valia
financeira, em que há a diferenciação entre dois tipos de fluxos no sistema
financeiro com quantidades potenciais distintas: os fluxos de
pagamento/renda e os fluxos de financiamento. Tratam-se de modalidades de
fluxos heterogêneos e de potências irredutíveis uma a outra que se
entrelaçam. Os fluxos de renda são os de troca, câmbio direto ou compra; são
a moeda, concretizada, territorializada, com um caráter fixo, que o
trabalhador recebe como salário e com a qual paga o que consome, como
alimentos, moradia, vestimentas. Já os fluxos de financiamento correspondem
ao investimento, à moeda virtual, abstrata que se investe em operações e não
está ligada à circulação de mercadorias, senão se inscreve num outro registro,
o das maquinações e especulações. Trata-se de um capital virtual, real, não
atualizado, imaterial, ‘prometido’, que serve para muitas e concomitantes
operações financeiras. Assume configuração variável e instável: é
desterritorializado-desterritorializante. Nas operações capitalistas, o dinheiro
virtual assume determinância sobre o dinheiro material: "O capitalismo é
fluxo de capital sob a forma de estrutura de financiamento e fluxo de
intercâmbio sob a forma de poder de compra, sendo o intercâmbio segundo,
isto é, sendo o fluxo de menor potência" (Deleuze, 2005, p. 263).
Os fluxos de financiamento, abstratos, têm primazia sobre os fluxos de
pagamento, pois assumem maior potência de ação para a (re)produção de
capital. Arrastam, são envolventes e dominantes em relação ao primeiro tipo.
Então, o valor do câmbio não é resultante apenas dos fluxos de pagamento,
mas principalmente dos fluxos de financiamento.
A homogeneidade fictícia entre as duas formas de fluxos financeiros é
garantida pelas operações de agências reguladoras, como as de um Banco
Central de um Estado-nação. Complexos cálculos são realizados para planejar
a estabilidade ou o plano econômico de um país, as taxas de inflação, juros,
lucros déficits e a quantidade de emissão de moedas prevista para
determinado período. Essas operações envolvem um novo mecanismo, que é
o quantum "de criação e destruição de moeda" (Deleuze, 2005, p. 241), a
operação sobre os fluxos de financiamento. Passa-se a emitir/destruir mais
papel-moeda, investimentos, créditos, empréstimos, taxas, como forma de
atrair fluxos de capital, acelerar a economia e aumentar os lucros. Como esses
fluxos pertencem ao campo virtual, a mesma soma financeira em um Banco é
usada como capital imaterial para inúmeras operações ao mesmo tempo. Em
outras palavras, a soma virtual de todo o dinheiro dos correntistas investido
no Banco excede em muito o valor total concreto que este possui. Por isso, na
situação remota de os correntistas retirarem todo o seu dinheiro na mesma
hora, o Banco quebra. Mas, exceto em momentos de crise, tal situação é
improvável, pois há regulação e cálculo dos fluxos de financiamento para
evitar tal quadro e numa situação-limite, o Banco restringe as retiradas
financeiras. Devido à diferenciação de poder entre os dois fluxos, os de
financiamento são denominados signos de potência, ao passo que os de
compra são chamados de signos impotentes. A relação entre essas duas
quantidades distintas de potência não pode ser pensada pela aritmética, mas
apenas por relações diferenciais, pelo cálculo diferencial (Deleuze, 2005).
A terceira forma de relações diferenciais no capital mercantil diz respeito
ao fluxo de mercado e ao fluxo de conhecimento ou inovação, na mais-valia
maquínica. A inovação, a criação e o conhecimento assumem lugar de
destaque no sistema capitalista, pois expressam o potencial de geração de
fluxos de riquezas. O fluxo de inovação é patenteado, assume um valor
percentual sobre o lucro das vendas e modula os fluxos de financiamento.
Esse fluxo de mercado tem rentabilidade de natureza diversa e potencial
incomensurável. "Trata-se de uma relação diferencial tipicamente capitalista
entre quantidades que não são da mesma potência: não é a mesma forma de
dinheiro a que serve para pagar a inovação e a que define a rentabilidade
desta inovação" (Deleuze, 2005, p. 100). Vide, por exemplo, os valores
astronômicos de inovações virtuais na bolsa de valores, como as redes sociais
virtuais, e a produção de uma hegemonia geopolítica por meio de grandes
iniciativas científicas, como o Projeto Genoma.
A máquina capitalista muito se complexificou desde sua instauração até a
atualidade. Na conjunção entre os três tipos de mais valia, o fluxo líquido de
moedas tornou-se secundário em relação aos fluxos imateriais de
financiamento. A mais-valia financeira e maquínica faz com que a máquina
capitalista se torne muito mais maleável e mutante, operando não só no plano
concreto e atual, mas principalmente no abstrato e virtual. Sua complexidade
decorre do fato de que não se trata mais da mera produção e concentração, da
compra de matéria-prima e venda do produto manufaturado. Tornou-se um
capitalismo de especulação, pautado pelo trabalho imaterial e nas operações
sobre índices, taxas, fluxos de créditos, de financiamento, dívidas e da vazão
destes no mercado internacional. A própria moeda está desterritorializada e
atinge níveis impensáveis de maleabilidade. E longe de simples cálculos
matemáticos, outras variáveis imateriais passam a influir, como a
confiabilidade, a crença e a mensuração do valor de inovação, impacto e
atratividade.
Axiomatização dos fluxos: classe universal e CMI/Império

A desterritorialização dos códigos instituídos das formações imperiais


porta um avanço em relação aos antigos regimes de dominação e sujeição
social. Intelectuais liberais defendem o capitalismo apoiando-se nesse
argumento. Entretanto, a desterritorialização capitalista não ocorre
isoladamente. As forças que emergem desse diagrama não se referem
somente à descodificação dos códigos sociais instituídos. Não trazem apenas
a promessa da liberdade e criação, mas também o seu inverso. Atualizam
outro movimento que remete a uma espécie de reterritorialização dos fluxos
descodificados. No mesmo golpe, os fluxos desterritorializados sofrem um
bloqueio e captura, mas não num novo código, ou território fixo, senão num
novo mecanismo, uma equação, uma máxima: a axiomática do capital.
A axiomática do capital porta um duplo movimento concomitante:
descodificação dos fluxos e substituição "dos códigos desfeitos por uma
combinatória" (Deleuze, 2005, p. 105), isto é, desterritorializa, mas enlaça.
Os fluxos descodificados não ficam ‘livres’, mas não são novamente fixos e
estratificados: são conjugados. A principal operação do novo diagrama
consiste na modulação-conjugação dos processos pelo esquema capitalista.
Desse modo, proporciona uma matriz, combinatória, que é fórmula de
funcionamento para os fluxos sociais e se configura como um "conjunto de
relações funcionais entre elementos não especificados" (Deleuze, 2017, p.
278), "equações e relações que determinam e combinam variáveis e
coeficientes imediata e igualmente através dos diversos âmbitos, sem se
remeterem a definições ou termos prévios e estabelecidos" (Hardt & Negri,
2005, p. 348). Isso quer dizer que a axiomática do capital opera por uma
equação que independe dos termos e elementos. Não funciona no plano das
sínteses, conceitos e imagens, mas na lógica dos esquemas e vetores. Atua
por relações funcionais que têm como finalidade a intensificação da
produção, qualquer que seja o objeto produzido. Direciona como deve ser o
movimento e a ação, em vez de proporcionar uma substância imagética,
conceitual, sintética ou significante.
Por isso, não ocorrem processos de recodificação numa unidade formal
transcendente, senão a modulação dos fluxos sociais a partir de seu diagrama
de forças. Na substituição do código pela axiomática, o primado não é mais
do significante, código, ou molde, que formatam as condutas e o ser, mas,
sim, um modo de funcionar, uma estratégia, um esquema imaterial.
A axiomática do capital arrasta, descodifica e proporciona uma
‘frequência’ aos fluxos e estratos. Troca a fixação pelo movimento, a forma
pela estratégia, o molde pela modulação, o modelo pelo programa e as
lógicas aritméticas e geométricas pela função exponencial. Não normatiza e
captura, mas modula, propaga, reverbera e multiplica a sua lógica, que é
difundida em todas instâncias da vida e incita uma instabilidade perpétua.
Atua como um amplificador, caixa de ressonância, de seus princípios de
fomento à produtividade, competitividade, livre iniciativa, lógica privada e
acúmulo – diretrizes que fazem as máquinas produzirem cada vez mais, por
mais que se desgastem nesse processo.
Tal axiomática não segue a lógica do magma que se estratifica e se
pereniza em formas, mas a dos fluxos móveis, aquecidos, que se flexibilizam
e se amplificam. No novo zeitgeist, o fluxo e a liquidez tornam-se mais
expressivos que o estrato e o repouso. Dessa maneira, não há mais formas
constantes nem definições pressupostas. Não há um sistema fechado e a
produção energética deve ser incessante. A ‘alienação’ não ocorre mais pela
ideologia, pelo objeto ou pelo mito fetichizados, mas pelo modo de
funcionamento, o mais produzir, que se torna constituinte das condutas e do
ser.
A transição entre diagramas é similar à lógica quântica, do câmbio da
lógica das partículas (códigos) para a da ondulação (axiomática). Então, ao
invés de uma estrutura, partícula ou forma, a axiomática proporciona um
movimento ondulatório e de ressonância: como uma onda eletromagnética.
Sua transmissão e efetivação tornam-se muito mais acentuadas, pois se dão
no campo aberto, atravessam os muros institucionais e sua velocidade supera
o campo da visão. Atua por ressonância e contágio, como se fosse um vírus,
numa infecção por ressonância. É como se as ondas capitalistas propagassem
uma mesma frequência, na qual os corpos afetados ressoam os mesmos hertz:
as moléculas passam a ter um movimento de rotação na mesma ondulação.
Tal ressonância ocorre de modo análogo ao movimento da radiação, que
proporciona o aumento de agitação e vibração das moléculas celulares.
Distinguem-se dois tipos gerais: a radiação não ionizante e a ionizante.
O primeiro tipo refere-se às ondas de alta amplitude e baixa frequência,
que supostamente não causam danos no organismo, apenas um aumento
ínfimo de energia no âmbito molecular. Tal como ondas de rádio, ou wifi,
propagadas em campo aberto, invisíveis, imperceptíveis, transpassam sólidos,
fazem os corpos captar e ressoar essa mesma ondulação, modulando-os.
O segundo tipo refere-se às ondas de baixa amplitude e alta frequência, as
quais são dotadas de muita energia e agitação e, ao afetarem outros corpos,
acarretam maior movimentação molecular. Essa agitação provoca a retirada
de elétrons das células e sua consequente ionização, que resulta em
fragmentação celular e, no seu limite, mutação. Trata-se de um regime de
afecção que pode produzir células cancerosas, que têm o potencial de
autodestruir o corpo como um todo. Consideramos que o capitalismo se
comporta de forma idêntica à radiação. Sua operação já estabelece um
aumento da frequência de movimentação e trabalho, que parece, a princípio,
não trazer grandes riscos ao corpo, ou seja, ser uma onda não ionizante. Mas
a intensificação de sua atualização, o aumento de sua frequência, traça essa
linha de esvaziamento e fragmentação celular, tendo efeito ionizante, gerando
esgotamento e elementos cancerígenos que podem levar à autodestruição e
morte. E o limiar entre o não ionizante e o ionizante é desconhecido.
O movimento ondulatório, radioativo, substituiu os processos de
codificação pelas frequências da estratégia neoliberal, mas não há a
derrocada, ou desaparecimento, dos fluxos de códigos. As disciplinas, moldes
e códigos continuam tendo grande importância. A vazão capitalista arrasta os
estratos e produz como efeitos outros códigos e normas. Mas agora, mais
efêmeros, descontínuos, são continuamente criados, substituídos e
descartados. Sua produção é acessória e está acoplada à axiomática. Troca-se
de códigos, como se fossem novas roupagens para as mesmas máquinas, o
que gera uma aparência de constante novidade. Esse caráter aparentemente
mutante é um dos seus fatores de êxito, pois como não se cristaliza, sempre
traz a promessa do novo, do inédito e da transcendência. Por isso, parece que
a sociedade está em extrema transformação, com ‘ares de liberdade’ e que se
valoriza a novidade e se muda constantemente.
Entretanto, a mudança fica restrita apenas ao plano das formas e códigos,
pois o modo de funcionamento é o mesmo, visto que os processos sociais e
de codificação seguem a axiomática do capital. É como se as coisas
mudassem sem mudar no seu cerne, um double bind, duplo vínculo,
sociopolítico. O engenho da máquina capitalista é operar por esse movimento
concomitante e paradoxal: desterritorialização e modulação dos fluxos
sociais. Libera-se por um lado, mas modula-se pelo outro, constituindo-se
mecanismos de servidão e sujeição muito mais sofisticados e sutilizados.
A vazão dos fluxos capitalistas como governabilidade da vida instituiu o
mundo de outra forma: descodificou e modulou a sociedade para novas
configurações. Os estamentos e castas tornaram-se posições e codificações
sociais que já não têm mais eficácia para a reprodução do capital. As classes
sociais emergiram como duas formações sociais que funcionavam por meio
de maquinações distintas, constituindo um modelo dicotômico na formação
capitalista incipiente: burguesia e proletariado. Uma classe, dominante,
detinha os meios de produção e a outra, dominada, era a força de trabalho,
explorada, que fazia as engrenagens rodarem. Tal relação não era vivida sem
tensão: o conflito de classes constituiu-se como motor da história no
capitalismo industrial.
Com o surgimento e incremento do neoliberalismo, esse modelo binário,
que marcou as análises sociológicas no último século, deixou de ter a
primazia para o funcionamento social, perdeu seu primado, pois o próprio
código instituído das duas classes sociais foi descodificado. Atualmente, não
há fronteiras claras de diferenciação entre a classe dominante e a dominada,
tanto que são segmentarizadas em categorias confusas, que vão de A a E, e a
definição de proletariado não contempla as heterogêneas características dos
trabalhadores formais, informais, precarizados e dos sem emprego.
A luta entre duas classes deixou de ser o processo determinante da
história, pois as classes foram desterritorializadas. Nesse diagrama, em todos
os estratos sociais, mesmo com as diferenças materiais, financeiras e
ideológicas entre o operário de ‘chão de fábrica’, o funcionário do
telemarketing e o rico empresário, assume-se a mesma finalidade: trabalhar
em prol da reprodução do capital. Uma classe já não se opõe ou combate a
outra, pois adotam o mesmo objetivo de produzir e trabalhar mais. O que
importa à subjetividade emergente é poder gerir a vida com o acúmulo de
capital, a maximização do rendimento do trabalho do seu corpo-máquina. Os
investimentos desejantes direcionam-se ao mesmo processo. Não há mais
luta, mas aliança, ou lógica de integração, entre as duas classes. O antigo
proletariado integra-se, ou deseja integrar-se, à lógica burguesa, seja do ponto
de vista concreto, seja do idealizado, partilhar os mesmos bens de consumo,
ou fingindo fazer isso. Dessa perspectiva, há a constituição de apenas uma
classe com tendência universalista: a burguesia.

"[...] o campo de imanência burguês, tal como ele é definido pela


conjunção dos fluxos descodificados, a negação de toda
transcendência ou limite exterior, a efusão da antiprodução na
própria produção, instaura uma escravidão incomparável, uma
sujeição sem precedentes: não há mais nem mesmo senhor, apenas
agora escravos comandam os escravos, não há mais necessidade de
carregar o animal do exterior, ele mesmo se carrega. Não que o
homem seja jamais o escravo da máquina técnica; mas escravo da
máquina social, o burguês dá o exemplo, ele absorve a mais-valia
para fins que, no seu conjunto, não têm nada a ver com seu gozo:
mais escravo que o último dos escravos, primeiro servente da
máquina esfomeada, animal de reprodução de capital, interiorização
da dívida infinita. Eu também, eu sou escravo, estas são as palavras
novas do senhor" (Deleuze & Guattari, 1976, p. 323).
Na integração entre classes, o lugar de mestre, de chefe, torna-se etéreo.
Da mesma maneira que o surgimento do capitalismo demoliu os códigos
sociais da formação imperial, o chefe foi substituído, não por outra pessoa,
mas por nova figura, a empresa-corporação, bem como o latifundiário pelo
agronegócio. Não há mais um senhor, dono dos meios de produção, mestre
dos fantoches, visto que esse mesmo chefe está subjugado à axiomática. Não
há mais um único dono de uma empresa, mas um grupo, uma associação de
empresários e acionistas que gestiona determinada corporação, especulando
os fluxos de investimento e de especulação. Não há mais soberano [10] nem
mestre supremo, todos se tornam servos, prisioneiros e escravos dessa
máquina.
Por isso, a luta de classes perde a primazia para a busca pela produção de
capital e a integração numa classe universal de escravos autófagos. A
desterritorialização das classes sociais não significa que a dominação social
ou as lutas sociais acabaram. Muito pelo contrário, estas perduram de forma
ainda mais intensificada, dispersas sobre toda a classe universal, mas
multiplicadas por n características identitárias.
A integração difratada da gramática neoliberal ocorre de forma eficaz,
pois como não se refere a um código, mas a uma modalidade de
funcionamento, tem seu diagrama atualizado nas mais diferentes instâncias.
Produz uma espécie de simbiose molecular entre humano e máquina que se
configura como uma servidão maquínica jamais vista. Conforma-se uma
nova configuração, na qual os tradicionais Estados-nação perdem sua
primazia nesse modo de funcionamento. Suas fronteiras ficam porosas, são
alargadas e sutilizadas pelos fluxos de circulação capitalistas, que não têm
limites espaciais e geográficos. "O capital tem uma mobilidade que lhe é
própria, é seu caráter internacional, seu sistema de fuga, o movimento de
circulação de capital" (Deleuze, 2005, p. 263). Sua propagação e operações
extrapolam os limites dos Estados-nação resultando na interconexão do
mercado internacional e globalização das economias. Constitui-se, no plano
mundial, uma nova megamáquina: o Capitalismo Mundial Integrado – CMI
(Deleuze & Guattari, 1976; Negri & Guattari, 1999).
Essa forma de poder não se localiza mais dentro das fronteiras do Estado
e consiste num agenciamento de forças descentrado e em rede: um
capitalismo transnacional. A globalização é sua concretização mais
expressiva, pois homogeneíza o funcionamento dos Estados-nação numa rede
transnacional baseada em sua lógica [11]. O CMI foi o conceito prototípico
de outro que gerou muita discussão à intelectualidade no início deste milênio,
o Império, que é um:

"aparelho descentralizado e desterritorializador de domínio que


progressivamente incorpora a totalidade do terreno global dentro de
suas fronteiras abertas e em permanente expansão. O império maneja
identidades híbridas, hierarquias flexíveis e intercâmbios plurais
através de redes de mando adaptáveis. As cores nacionais distintivas
do mapa imperialista do mundo se fusionaram e mesclaram-se no
arco-íris do império global" (Hardt & Negri, 2005, pp. 14-15).
Nessa configuração, há a diminuição das distâncias espaciais e a
composição de um denominador comum entre os Estados, que produz uma
espécie de matemática universal e compartilhada por todos: a estratégia
neoliberal. O CMI/Império torna-se o novo denominador comum,
constituindo-se como instância imanente à nova conformação dos Estados. O
imperialismo, pautado nas tradicionais relações de dominação de um país
sobre o outro, dá lugar à constituição de uma rede mundial difusa e
descentrada. Já não são países que dominam outros países [12], mas a
estratégia neoliberal que axiomatiza o funcionamento de todos eles. Há,
então, o declínio da hegemonia política dos Estados na determinância dos
processos políticos e sociais. Desloca-se sua primazia à rede do mercado
globalizado, ao CMI/Império.
Na substituição de um diagrama pelo outro, não se trata da aniquilação do
antigo, mas da prevalência do novo hegemônico nos processos de
governamentalidade. Os fluxos capitalistas não atuam por codificação, mas
por modulação dos processos sociais de acordo com sua equação. O
capitalismo opera como uma máquina que procede por desterritorialização
constante e não tem limite externo. Difuso e mutante, configura-se num
sistema metaestável que não atua num modelo fechado, totalizado: sempre se
deve produzir mais energia num campo aberto. A instabilidade é estruturante
de sua maquinação e as relações entre seus fluxos sempre estão em
desequilíbrio, em crise. Comporta-se como o sistema imunológico: regula e
fomenta por meio de processos instáveis o fortalecimento e operação do
corpo (mercado). Os elementos que obstruem as atividades são abandonados,
excretados, ou destruídos. É imunitário e não comunitário.
Diagrama de forças: controle e rendimento

As transformações trazidas pela intensificação da axiomática do capital


efetuam o câmbio entre os diagramas de forças: da disciplina ao controle. Os
processos atuais assumem configuração mais plural, plástica e
descentralizada e redefinem incessantemente suas fronteiras, constituindo
novo mapa de forças.
Muitos estudos discutem essa transição (cf. Hardt, 2000; Lazzarato, 2006;
Tirado & Domènech, 2006), expressando as diferenças de funcionamento de
cada diagrama. Retomam a proposição de sociedades de controle (Deleuze,
1992), descrevendo, de forma geral, o caráter fluido que as instituições
assumem, mas sem articulá-la ao capitalismo. Mesmo Deleuze (1992, 2014)
não associa explicitamente a emergência das sociedades de controle à
axiomática do capital. Estabelecemos essa relação por entender que, em seu
raciocínio, o regime de forças operantes nesse diagrama é diretamente
decorrente da operação capitalista.
Foucault traz os fundamentos do atual diagrama de forças ao traçar a
emergência de nova mecânica de poder que não se desenvolve no espaço da
Instituição fechada, mas no campo aberto. Não mais no registro do corpo,
senão no da população: constitui-se um poder sobre a vida denominado
biopolítica. Se, no diagrama de captura, se trata de extrair e decidir sobre a
morte e, na disciplina, a constituição de um corpo domesticado é decorrente
da organização do espaço-tempo no interior das instituições concretas, a
biopolítica distingue-se pelo aparecimento do governo da população. É
marcada pela emergência de mecanismos de regulação relacionados a uma
prática de governo e norteados pela formação de conjunto de saberes
estatísticos e demográficos. Se a disciplina focaliza as minúcias do corpo para
seu adestramento e composição de forças numa anatomopolítica, a biopolítica
está voltada à regulação da vida e da população por intermédio de
mecanismos de controle. Debruça-se nos processos de regulamentação da
vida coletiva, como a gestão da natalidade, mortalidade, longevidade etc.
Adota a estratégia de gerir a população por meio de cálculos, inúmeros
dispositivos de seguridade social, de saúde pública ou mesmo de controle da
criminalidade. Sua finalidade é administrar a vida como espécie, enfim "uma
tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população"
(Foucault, 1999, p. 297).
Deleuze (2014) prossegue esses enunciados ao propor que a sofisticação
das técnicas de gestão da vida constitui outra mecânica de poder, em que o
governo da população é realizado de forma distinta da mecânica disciplinar.
Não apenas com base em normas e códigos, mas também por mecanismos
sofisticados que advém do que chama de diagrama de controle. Além de
Foucault, o filósofo tomou como referência o pensamento pós-moderno, a
mutação das máquinas técnicas e a literatura beatnik.
A reflexão pós-moderna começou a tratar da possibilidade de um novo
diagrama de forças decorrente de novas formas de relações sociais e do
controle e policiamento do movimento e das velocidades no espaço aberto
(Virilio, 1996). No que tange à mutação no trabalho, as máquinas de terceira
geração acarretaram grande transformação nas relações de produção e na
própria interação homem-máquina. O advento das máquinas cibernéticas e
computadores, em substituição às máquinas energéticas, trouxe produções e
realizações impensáveis. Nesse contexto, a substituição do carbono pelo
silício, fundamento das máquinas informáticas, é emblemático. Não se faz
‘memória-hardware’ com o carbono, mas, sim, com o silício.
Finalmente, a linha que concluiu a proposição deleuziana veio do campo
da arte, da literatura. Deleuze inspirou-se nos escritos de William Burroughs
sobre os novos mecanismos de controle pelos quais a existência cotidiana
está marcada. O escritor beatnik descreveu de modo inédito esse diagrama,
criando o enunciado que ampliou a compreensão sobre a sociedade
contemporânea. Por isso, o filósofo utilizou o termo cunhado por Burroughs,
controle, para denominar esse diagrama e sua formação social correlata.
Com todos esses elementos, Deleuze desenvolve uma terceira mecânica
de poder: biopolítica das populações, sociedades de controle, diagrama de
controle. Considera que, nas três maquinarias sociais, soberania, disciplina e
controle, há três formas jurídicas e agenciamentos de forças muito diferentes.
Na substituição do código pela axiomática, do diagrama disciplinar para o de
controle, há a transição da interioridade à superfície, dos valores instituídos à
lógica capitalista, do espaço fechado dos muros institucionais ao campo
aberto em rede, da adaptação ao maior rendimento. No controle, não se
utilizam mais as táticas de confinamento e vigilância dos corpos num espaço
delimitado, em instituições concretas, mas, sim, a gestão e administração da
vida de multiplicidades quaisquer no campo aberto. As forças imperantes não
são de extração nem de composição, senão de administração. O cálculo das
probabilidades é a nova forma de gestão:

"O desenvolvimento do cálculo das probabilidades no sentido social,


e no sentido de controle social das probabilidades: probabilidades de
casamentos em uma nação, probabilidade de mortalidade,
probabilidade de natalidade. Planificação: expansão dos cultivos de
cereais, colheita dos vinhedos etc. Vinhedos e cereais também são
populações. Não apenas os homens são populações. Trata-se
verdadeiramente de administrar as populações em espaços abertos"
(Deleuze, 2014, p. 366).

Nesse diagrama, a vigilância deixa de ser uma prática eficaz de controle,


pois a gestão da vida passa a ser sobre as multiplicidades no campo aberto, no
qual os limites são infinitos. O governo e a administração da circulação e do
movimento dos fluxos de populações humanas e não humanas, a gestão do
vivo, são realizados em espaços não delimitados, ao ar livre. Então, instaura-
se governamentalidade que não tem mais necessidade de que os indivíduos
fiquem sob o olhar de uma instituição panóptica que os vigia se seguem e
obedecem aos imperativos institucionais.
A gestão da vida desloca-se da vigilância às escalas probabilísticas, zonas
de probabilidades, assumindo mecanismos mais sofisticados e complexos de
domínio:

"A terceira época já não se trata do encerro, que já não tem nada o
que fazer aí, tendo em vista que os limites demarcados são
substituídos pelas zonas de frequência. Qual é a necessidade de
encerrar as pessoas se a probabilidade assegura que se encontre a
todos sobre a estrada tal dia a tal hora? É óbvio que o encerro é
absolutamente inútil. Inclusive neste aspecto se torna caro, estúpido,
socialmente irracional. O cálculo das probabilidades é aí muito
melhor que os muros de uma prisão [...] Portanto, é o fim dos meios
disciplinares, que eram meios de encerro para multiplicidades
aritméticas. Faltam meios de controle abertos sobre multiplicidades
probabilísticas" (Deleuze, 2014, pp. 367-368).

Se as estratégias de confinamento se referem a moldes, no diagrama de


controle a prática é de modulação das condutas, numa plasticidade que se
modifica a cada instante, como uma peneira cujas malhas mudam de um
ponto a outro (Deleuze, 1992). Esse diagrama pressupõe que as relações e
instituições se tornem mais fluidas e, consequentemente, há uma
descodificação generalizada dos códigos sociais. A fixidez das condutas e a
codificação são substituídas pela variação contínua. A prática do exame,
comum à disciplina, é trocada pelo controle permanente. O modelo do
panóptico, como máquina abstrata, é substituído pelo modelo de rede, que se
situa além das fronteiras institucionais e atua numa lógica difratada, marcado
por contínuas conexões e desconexões.
Difunde-se uma variedade de mecanismos de controle no espaço aberto
que se tornam preponderantes, como a utilização do cartão magnético, o
controle direto nas próprias residências, via visitas domiciliares de agentes
estatais, profissionais de saúde e de assistência social, as práticas de
regulação sobre o movimento, a circulação, as vias e a velocidade (Virilio,
1996) e a multiplicação de novos dispositivos tecnológicos: câmeras,
tornozeleiras eletrônicas, tecnologias GPS e 3G, e rastreio de acesso a sites na
internet.
Há, ainda, os drones, pequenos dispositivos voadores, guiados à distância
por controle remoto e que têm instrumentos de vigilância acoplados, como
uma câmera portátil. Percorrem e alcançam lugares de difícil acesso e estão
em constante movimento. Se um drone é alvejado e destruído, não se tem
acesso a quem o controla. Há também outros dispositivos móveis que têm
funções militares e de controle: mísseis teleguiados, aviões de
reconhecimento em voo contínuo, a rede de satélites, porta-aviões e
submarinos (Baremblitt, 2014b), que são parte da maquinaria de controle
característica desse diagrama de forças. E a estratégia nuclear,
contraditoriamente, é o dispositivo mortífero que tenta assegurar a ordem
mundial, para que uma nação não aniquile a outra e o planeta.
Todavia, consideramos que controle não é a atividade principal desse
diagrama, não é o que melhor sintetiza tal configuração de forças. É mais
correto afirmar que o triunfo da axiomática do capital, antes de se referir ao
diagrama de controle, atualiza um diagrama de rendimento. Uma vez que é
diretamente resultante do agenciamento de forças da estratégia capitalista, sua
meta principal não é a de exercer um controle sobre a população, mas, sim,
de aumentar o rendimento dos corpos-máquinas ao máximo para a geração da
riqueza abstrata.
Trata-se, portanto, de maximizar a produção, incrementar a eficácia no
mais produzir, numa lógica de empresa, e não do controle em si, que é
decorrência secundária desse diagrama. As relações de forças obedecem
muito mais aos imperativos do hiperproduzir do que, efetivamente, ao
controle do social. Todos os processos passam a estar vetorizados pela
máxima do rendimento. Opta-se então por seguir a denominação diagrama de
rendimento (Han, 2012), em vez de diagrama de controle.
Instituições imateriais e noopolítica

A axiomática do capital trouxe outra configuração às instituições, ao


governo da vida e à subjetividade, pois modula todas as instituições e formas
de ser, mesmo dos atores institucionais que a criticam [13], e faz com que as
formações e estratos sociais, e o modelo disciplinar sofram mutações
vertiginosas, numa transição das instituições tradicionais para outro modelo.
Os antigos moldes deixam de ser preponderantes e as tarefas não precisam
mais ser realizadas dentro de sua espacialidade concreta. Sofrem um declínio
na gestão da vida, mas não desaparecem: modificam-se, tornando-se
diretamente correia de transmissão do capital, a sua atualização. Padecem de
descodificação, que é provocada pelo mesmo processo que leva a mutação do
diagrama disciplinar ao de rendimento.
Tal transição se inicia "pelo desmoronamento dos muros que definiam as
instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinções entre o dentro e o
fora" (Hardt, 2000, p. 358). As instituições contemporâneas distinguem-se
das do passado e não se encerram mais na fixidez de suas antigas
espacialidades. São reconfiguradas, desterritorializam-se e assumem
fronteiras porosas, cujos limites ficam fluidos e imprecisos, difíceis de
definir. Adquirem configuração móvel e são regidas por linhas de
segmentaridade maleável: flexibilizam-se as linhas institucionais. Então, o
antigo processo de moldagem dos códigos sociais perpetrado pelas
instituições é substituído pela modulação dos fluxos sociais em prol da
maximização da reprodução do capital.
As instituições disciplinares passam a ser vistas como ineficazes, por
exemplo, a fábrica não é mais o lócus privilegiado de trabalho, a prisão é
antiquada para as práticas de ressocialização, assim como a escola e a
universidade o são para o ensino-aprendizagem. Esse acontecimento é
conhecido como a crise das instituições, seja a crise da família, da educação,
do trabalho. Mas não é somente a crise das formações concretas, é também
do diagrama disciplinar. Na transição de diagramas, abandona-se o modelo
arquitetônico centrado nos limites de um espaço-tempo para atuar pela
dispersão. As instituições concretas assumem novas configurações: da fábrica
à empresa, da escola à formação continuada, do hospital ao hospital-dia, do
manicômio às novas práticas psiquiátricas, da prisão às penas alternativas
(com dispositivos de rastreamento eletrônico), da segurança pública à
segurança privada, do exército nacional às tropas de mercenários, da
vigilância à persuasão do marketing. Se no deslocamento entre instituições
nunca se parava de recomeçar (creche-escola-exército-trabalho-asilo), nas
sociedades de rendimento nunca se termina nada, num estado de "perpétua
metaestabilidade [...], a empresa, a formação e o serviço sendo os estados
metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação" (Deleuze, 1992, pp.
221-222).
Contudo, a configuração das instituições nas sociedades de rendimento
não se torna tão fluida, líquida, mutante e instável como pensadores
contemporâneos afirmam (Bauman, 1999; Hardt, 2000; Maffesoli, 2001;
Lazzarato, 2006), não se instaura um processo rizomático. Ao mesmo tempo
em que as instituições se desterritorializam, são axiomatizadas no
funcionamento da estratégia neoliberal, suas linhas maleabilizadas são
moduladas pela mesma equação capitalista. Não se constitui uma rede aberta
e de propagação plural, não há a expressão de fluxos livres e estes não são
recanalizados no molde disciplinar. Os fluxos descodificados entram num
regime de ressonância, reverberação, ondulação, no qual toda sua ‘liquidez’
segue uma estratégia, que é a do capitalismo. Nem árvore, nem rizoma, mas
rede de ressonância em espaço aberto. Decorre um novo modelo híbrido de
Instituição, em que os processos de codificação não são abolidos, mas
ocupam lugar secundário.
Os códigos institucionais tornam-se os meios de atualização da
axiomática, por isso sempre estão em regime de mutação e são temporários,
incessantemente substituídos por outros códigos, ou melhor, por softwares
institucionais – meios racionalizados de gestão e operação que sempre estão
em modificação para incitar maior eficácia e produtividade da Instituição.
O formato é substituído pelo funcionamento, as formas mudam, os
tradicionais lugares de saber e poder se modificam, mas a axiomática do
capital permanece. As instituições ficam, de certa forma, mais imateriais e
são acopladas e subjetivadas pelos indivíduos e coletivos no cotidiano. Por
isso, por mais que pareça que nos tornamos livres dos muros das instituições,
estes permanecem, não concretamente, mas imaterialmente. Não mais pela
forma aprisionante dos códigos, mas pelas lógicas institucionais e operações
imateriais norteadas pelo diagrama de rendimento. Liberta-se do código, mas
enreda-se na lógica do capital. Denominamos essa nova modalidade de
Instituições imateriais [14], esquematizadas pela Figura 4.1, que se
constituem como uma instância autônoma, um terceiro vértice, ante o modelo
anterior das instituições abstratas e concretas (Figura 3.2).

Figura 4.1. Os três vértices das instituições.

Utilizamos o termo imaterial por influência dos pensadores da Autonomia


italiana, como Lazzarato e Negri (2001), que desenvolvem a proposição de
trabalho imaterial para se referir às transformações nos processos de
produção. As mutações do trabalho fazem com que este não se centre apenas
na produção dos bens materiais, mas principalmente na dos bens imateriais,
efêmeros e não duráveis, como a subjetividade, as relações sociais, as formas
de ser e pensar, "um serviço, um produto cultural, conhecimento ou
comunicação" (Hardt & Negri, 2005, p. 314), que se tornam fundamentais ao
mercado. Consideramos que a transição do trabalho clássico ao imaterial
corresponde ao mesmo mecanismo de transição das instituições concretas
tradicionais às imateriais, em que ambas funcionam de modo convergente, na
produção, regulação e modulação subjetiva.
Se as instituições concretas se pautam na fixação dos lugares e das
normas, as instituições imateriais articulam-se pela variação das posições dos
diferentes elos na rede. Não se organizam pelo encerro em um espaço
fechado, mas pelo modelo de rede no espaço aberto. Seu funcionamento não
se dá por meio da inscrição e codificação, senão pela elevação da produção.
O antigo modelo normativo é substituído pelo sistema produtivo e a tradução
e a inscrição são trocadas pela aceleração generalizada dos fluxos produtivos.
Nessa configuração, não há processos de desinstitucionalização, mas de
imaterialização e molecularização da instituição, a qual se reterritorializa em
outros modos, passando dos espaços concretos às configurações das relações
sociais e à produção subjetiva. Ela não é negada, mas tornada etérea,
volatilizada, numa superfície que conjuga internalidade e externalidade.
As instituições imateriais agem como fórmulas programáticas que se
disseminam e se dispersam na coletividade. Não seguem o modelo piramidal
das instituições concretas, mas atualizam o modelo de ressonância celular e
molecular na tessitura de redes descentralizadas. Não operam por intermédio
de uma força centrípeta direcionada ao centro do estrato. Seu sentido é
inverso, ao exterior, com vetores de forças centrífugas. Ao contrário da
gravitação, agem pela transmissão, ressonância, como ondas de rádio. Não
importa mais o coeficiente de territorialização, mas, sim, o coeficiente de
ressonância e reverberação. São estabelecidas conjugações horizontais em
rede, que devem efetuar trocas e circulação de fluxos e de populações de
quaisquer espécies, em vez da lógica conjuntiva das instituições concretas.
Constituem-se redes hiperprodutivas que funcionam por associativismo,
nas quais cada ponto conectivo busca extrair a mais-valia de cada relação de
especulação, troca e produção. A rede pode ser instável, mas, mesmo com a
mudança dos elos-elementos, reconfigura-se e permanece. Não há mais um
único centro, mas múltiplos polos difratados e dispersos no território. Não há
panóptico nem satélites orbitando seu núcleo, mas células de trabalho
dispersas que atuam pela sua própria lógica. O alcance do olhar é substituído
pelo raio da transmissão para ressoar, reverberar e propagar as diretrizes para
a maior produção e ao funcionamento do ser. Portanto, não há mais
necessidade dos muros de uma instituição se o governo das condutas é
operado em campo aberto.
O diagrama do rendimento é atualizado no âmbito molecular e local, em
cada célula, indivíduo, como ondas que se propagam no campo aberto. É o
imperativo que obteve êxito em integrar a babelização institucional. As
diferenças institucionais são articuladas por esse novo denominador: é um
modo de funcionamento político-econômico-subjetivo legitimado por todos.
Todas as instituições, privadas, públicas e do terceiro setor são axiomatizadas
pelo capital e adotam a lógica da empresa, com todos os seus imperativos de
maximizar os lucros, reduzir os custos, organizar células autônomas de
trabalho, eliminar os gargalos de produção e o potencial insurgente dos
trabalhadores.
Atua-se na suposição da produção de um indivíduo considerado ‘livre’ e
já não há a lógica da negatividade, mas, sim, a das múltiplas positividades
conjugadas em coexistência. O outro não é mais representado como o
negativo, o ‘inferno’. Outrora se tentava anulá-lo, agora ele tem de produzir,
para que o Eu também possa. Por isso, é visto paradoxalmente como
companheiro e rival, porém o Eu deve produzir mais que esse outro. A
positividade das diferenças é apenas aceita se ocupam seus lugares nas
cadeias de produção e enquanto não ameacem o Eu.
O processo de descodificação das instituições não produziu uma
identidade híbrida e maleável, conforme Hardt e Negri (2005) defendem. Elas
se desterritorializam, imaterializam-se, mas assumem o mesmo tipo de
funcionamento, atualizam o mesmo diagrama, tornando-se então bastante
homogêneas, mesmo que tenham aparências e escopos de atuação diferentes.
Nunca se foi tão diferente e homogêneo ao mesmo tempo. Até mesmo a
pluralidade e dispersão das significações das religiões passam a ser
homogeneizadas por esse funcionamento. Por exemplo, Deus passa a ser
significado em convergência com a estratégia neoliberal. O crescimento
vertiginoso do neopentecostalismo, que articula credo religioso ao
capitalismo (Dantas, 2014) denota esse aspecto. A imaterialidade da crença é
conjugada pela fórmula capitalista de ser, expressando assim o êxito da
organização da religião em células e o declínio da Igreja Católica, piramidal.
Dessa forma, por mais que as instituições possam ter tarefas e características
distintas, há uma homogeneidade no funcionamento. As instituições
imateriais passam a predominar sobre as outras formações institucionais e a
descodificação, que parecia abertura à pluralidade, converteu-se numa
dispersão à homogeneidade.
A transmutação e sofisticação das engrenagens institucionais na lógica
imaterial e o aprimoramento das máquinas técnicas produzem uma nova
modalidade de tecnologia de gestão da vida que opera sobre novas
dimensões. O poder deixa de atuar apenas sobre o corpo e incide em distintas
instâncias, não somente no concreto, mas também no virtual e no imaterial,
como a consciência e a subjetividade. Transita-se de um poder sobre a vida
para o poder sobre o pensamento, da biopolítica para a noopolítica
(Lazzarato, 2006), ou psicopolítica (Han, 2014).
O governo no campo aberto opera por nova tecnologia, a noopolítica, que
se desloca do foco sobre o corpo para o controle da memória, dos hábitos e
do pensamento, ou seja, sobre o cérebro. Atua diretamente sobre os processos
imateriais das lógicas coletivas das pluralidades dispersas, onde as fronteiras
e a dominação se tornam etéreas. Opera por ressonância e propagação,
difundindo processos, formas de pensar, de desejar e de ser da população. A
noopolítica resulta da conexão entre engrenagens distintas que se acoplam e
amplificam a ressonância de sua força de integração: a axiomática do capital
e o aparelho de captura. A estratégia neoliberal funde-se ao poder das
engrenagens estatais, em que os princípios do capitalismo se transformam em
fundamentos da governamentalidade. Incita o incremento da produção, do
acúmulo, da competitividade e do consumo, atuando como uma máquina
performativa de ações e de modulação dos investimentos desejantes. No
‘campo fechado’, tal lógica é reforçada pelos códigos das instituições, que se
tornam suas correias de transmissão, isto é, a concretização e estratificação
do diagrama do rendimento.
Nessa governamentalidade, a população deixa de ser tomada como massa,
para ser vista como público (Lazzarato, 2011). Trabalha-se principalmente
sobre o potencial de receptividade do público e não de espontaneidade,
injetando cargas excessivas de determinados repertórios de informações para
lograr a governamentalidade imaterial. Assim, a Mídia, os dispositivos de
publicidade e pesquisas de opinião pública passaram a ser as instituições
paradigmáticas da atualidade e campos de saber e prática centrais do governo
imaterial (Lazzarato, 2006). Essas instituições atuam diretamente sobre os
processos de cognição e afecção produzindo modos de pensar e subjetivar de
forma mais ampla, eficaz e dispersa. Cumprem função regulatória, ou melhor,
de programação, sobre as lógicas cognitivas e do ser.

"O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a


raça impudente de nossos senhores. O controle é de curto prazo e de
rotação rápida, mas também contínuo e limitado, ao passo que a
disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não
é mais o homem confinado, mas o homem endividado" (Deleuze,
1992, p. 224).

A Mídia constrói fatos, acontecimentos e regimes de verdade (mesmo que


sejam falsos): toma o lugar de autor. A eficácia psicopolítica da Mídia e do
marketing decorre do fato de que não governam mediante a interdição e
negação do código, da norma e da Moral, senão por meio de experiência de
fruição, entretenimento, prazer e satisfação do público. Ao mesmo tempo,
conjugam diversão, formação humana e opinião pública, produzindo bens
imateriais. Constituem rede que se retroalimenta e se legitima: o marketing,
por intermédio da Mídia, modula o desejo e a opinião do público, que, por
sua vez, legitima os produtos do marketing que a Mídia apresenta. Não
disciplinarizam nem domesticam: divertem e entretêm. Não interditam o
desejo, mas o incitam. Não vigiam e encerram o público, ao contrário, as
próprias pessoas é que buscam se autoencerrar em suas salas de estar diante
do televisor e computador e consumir dados massivos de programação
noopolítica, na infinidade de mercadorias de seriados, novelas, filmes,
noticiários, documentários, talk shows, programas de comportamento,
desenhos etc.
As tecnologias midiáticas desenvolvem-se a tal ponto que são elaborados
aplicativos que mapeiam os gostos pessoais de cada um, antecipando-se ao
consumidor e oferecendo filmes, seriados e músicas que provavelmente o
satisfarão. Portanto, no processo de gestão da vida via noopolítica não se
necessita mais confinar e vigiar os corpos para exercer a disciplina, pois o
governo é capilarizado e exercido em campo aberto. Esse diagrama de poder
sofistica e eterealiza as formas de dominação e controle, longe de trazer mais
liberdade, como alguns filósofos liberais afirmam.
Deleuze e Guattari, ao longo de sua obra, posicionam-se de forma crítica
à axiomática do capital. Não é porque apreendem os processos pela lógica da
multiplicidade e da positividade que defendem a inevitabilidade do
capitalismo ou do diagrama de controle, como alguns comentadores [15]
afirmam. Assumem posição antiestatal e anticapitalista e clamam por linhas
de fuga e novas formas de luta que se oponham aos sistemas que aprisionam
e despotencializam os indivíduos e coletivos.
Uma possível direção na luta contra o capitalismo tratada no Anti-édipo
passa pela desterritorialização do limite interno do capitalismo, a
desconstrução de sua axiomática. Por isso, os autores falam em
esquizofrenizar os fluxos, acelerar sua vazão, aumentar desordenadamente
sua frequência e agitações a ponto de fissurar a máxima do capital. Fissuras
que podem provocar curtos-circuitos e desconexões, nos quais os elos da rede
não mais se articulam e entram em regime de repulsão e antiprodução.
Rachaduras que podem ser também resultantes da introdução de vírus, da
ação de hackers. Combater a axiomática do capital com a intensificação de
sua própria crise, para a desterritorialização de seu diagrama e uma nova
reconfiguração de forças. Um caminho que implica mais numa abertura a um
novo cenário a se constituir, em vez de uma teleologia codificada sobre o
futuro da revolução.
Subjetividade capitalista e corpocapital

A axiomática do capital é uma máquina abstrata que se atualiza em


processos sociais como as relações econômicas, políticas, institucionais. Mas
também se efetiva nas mais distintas instâncias, como no afeto, no
pensamento, no desejo, nos símbolos, nas temporalidades e "componentes de
expressão – arquiteturais, urbanísticos, artísticos, pedagógicos etc."
(Guattari, 1992, p. 76). Funciona como uma máquina de semiotização que
axiomatiza espacialidades, processos estéticos, formativos e os modos
desejantes e de subjetivação. Assim, seu êxito não decorre apenas por
questões econômicas, mas por produzir uma nova modalidade subjetiva que
opera pelo mesmo diagrama de forças no espaço aberto.
Atualmente, o capitalismo opera por duas modalidades de fluxos
descodificados: o do trabalho independente e o da riqueza abstrata.
Fundamenta-se na ideia de que um trabalho qualquer possa gerar um
quantum de riqueza qualquer, não apenas na dimensão concreta, mas também
na abstrata. A ideia do direito à propriedade também não é mais sobre
elementos concretos, mas, sim, a respeito da propriedade dos direitos
abstratos, que possam ter elevado potencial de convertibilidade. Assim, para
Deleuze (2017), o "capital é a riqueza abstrata, isto é, a riqueza que devém
subjetiva" (p. 255).
O filósofo compreende o capital como a subjetividade da riqueza, ou "a
riqueza enquanto subjetividade universal" (p. 249). Dessa maneira, há uma
correlação direta entre capitalismo e produção de subjetividade, numa
conjugação entre fluxos econômicos e subjetivos, na qual a meta econômica
passa a ser a mesma meta subjetiva. Portanto, ao mesmo tempo em que uma
empresa cria um produto, um serviço, cria um mundo e uma forma de
subjetivação (Lazzarato, 2006).

"O capitalismo 'lança modelos (subjetivos) do mesmo modo como a


indústria automobilística lança uma nova linha de carros'. Portanto,
o projeto central da política do capitalismo consiste na articulação
dos fluxos econômicos, tecnológicos e sociais com a produção de
subjetividade de tal maneira que a economia política se mostre
idêntica à 'economia subjetiva'" (Lazzarato, 2014, p. 14).

O CMI é o ambiente, o fundo estruturante, de onde a nova subjetividade


hegemônica emerge. Essa operação de mão dupla, de produção material e
imaterial, de produtos concretos e de uma modalidade subjetiva, faz com que
as engrenagens psicossociais atuem muito distintamente. No diagrama
disciplinar, os códigos institucionais configuram-se como um mandato
externo que se deve obedecer, em que o pensar e os processos de
simbolização e subjetivação estão moldados pelos binarismos codificados, na
inscrição de imagens de pensamento e de modelos que devem ser
reproduzidos.
Já no diagrama de rendimento, não se propagam somente normas,
códigos e imagens do pensamento, mas principalmente um funcionamento
de pensamento. Há uma modulação semiótica dos processos materiais e
imateriais, na qual o pensar, o afetar, o desejar e o subjetivar são
axiomatizados na marcha incessante da estratégia neoliberal, que se torna
uma pragmática universal que todos os coletivos humanos passam a atualizar
em qualquer contexto, tanto no público, como no privado.
Desse modo, há uma transição da configuração da dobra subjetiva, que
não age, primeiramente, na inscrição da carne, na anatomopolítica, senão no
poder sobre o pensamento, na noopolítica, constituindo os processos de
acordo com sua máquina abstrata. Deixa de seguir o modelo de uma
substância fechada e codificada, uma partícula, para constituir-se como uma
dobra aberta e ondulatória, que ressoa com a axiomática do capital. A
subjetividade deixa de ser primordialmente fabricada com base nos códigos,
dentro dos limites de cada instituição, para ser produzida no campo aberto,
mediante a modulação da ressonância neoliberal. Se antes havia a produção
da subjetividade disciplinada, codificada e normatizada, hoje há a produção
de outra forma: a subjetividade capitalista, híbrida em sua aparência, embora
homogênea em seu funcionamento. Essa nova subjetividade não se norteia
pelo binarismo entre normal e anormal, ultrapassa as fronteiras culturais e
nacionais e assume diferentes rostos, cores e credos, variadas expressões
diferenciais. Utiliza distintas semânticas, mas a mesma pragmática do capital.
Este diagrama é muito eficaz, pois gestiona de outra forma o desejo. No
diagrama disciplinar, emprega-se o mecanismo de repressão para bloqueá-lo
e moldá-lo. Muitas vezes, gera-se um sistema de tensão no qual a carga
energética necessita ser descarregada. Já no diagrama do rendimento, as
forças e investimentos desejantes são acoplados e modulados pela axiomática
do capital. Não são bloqueados ou canalizados, mas incitados a operar ao
máximo. Então, não há uma lógica da negatividade e cerceamento, senão da
positividade de uma amplificação e intensificação. Incita-se perpetuamente o
desejo à produção e rendimento incessantes, à busca da mais-valia e lucro em
todas as esferas da vida, e não apenas no âmbito do trabalho e da economia.
Mobilizam-se os afetos de agressividade em direção ao produzir mais e
sempre, e ao superar-se na consumação do desejo hiperincitado. Deseja-se
render mais, sempre obter a máxima eficácia, numa hipertrofia desejante.
Dissemina-se assim um modelo subjetivo empreendedor, que tem como
imperativo a hiperprodução de forma universalizada.
A produção da subjetividade capitalista é realizada como uma
programação da mente, tal como a implantação de novo software. A
governamentalidade noopolítica injeta cotidianamente enorme quantidade de
informações de formas de ser e desejar, tal como as atualizações obrigatórias
dos programas do computador, que são diárias, compulsórias e não se podem
evitar. Nesse programa subjetivo, os indivíduos e coletivos são compostos e
formados nessa lógica, naturalizando-a como o funcionamento correto de ser
e agir. Há, assim, um processo de semiotização capitalista da matéria
psíquica, tal como um espírito que anima o corpo, uma matéria viscosa
intersticial que liga as singularidades: é uma pedagogia do self e do ser. Em
tempos de rendimento, somos todos ondulações que pulsam de acordo com a
ressonância das frequências da estratégia neoliberal.
Desse modo, a instância psíquica não é mais regida pelo código da lei
paterna, mas pelo diagrama do rendimento atualizado psicopoliticamente. O
governo não se dá mais pela disciplina da imago paterna, codificada com
base na negatividade e na interdição, mas pela estratégia capitalista,
formulada pela positividade de poder-dever produzir mais, em que o pai entra
como mero índice a ser superado. Não há mais sujeito edipiano nem
castração, mas o sujeito do rendimento e da produção. Se a lei e o código
implicam o interdito, a axiomática do capital traz a promessa e o ideal da
perpétua superação. Por tais razões, o diagrama de rendimento instaura um
mapa de forças que cumpre governamentalidade mais eficaz do que a
moldagem dos códigos institucionais, pois impele sua produção subjetiva a
uma atividade sem fim, sempre em um estado de instabilidade.
O indivíduo sente que deve maximizar seu rendimento, produzir mais e se
superar, elevando a produção e atualizando para si uma lógica de empresa no
âmbito celular-molecular. Torna-se a sua própria empresa e busca ser
empreendedor de sua vida, como se fosse uma carreira. É produzido de
maneira que se julga independente e protagonista do sistema produtivo, para
que a lógica do rendimento seja elevada ao máximo. Logo, não é mais
necessário confiná-lo dentro dos muros institucionais, pois opera
indefinidamente na estratégia neoliberal: ele está programado para atuar
nesse funcionamento, que não tem fronteiras e limites. Deve produzir e
trabalhar tanto a ponto de não lhe sobrar tempo para revoltar-se contra o
sistema. É constituído de modo que conceba que esse é o melhor sistema.
Que estratégia de controle mais eficaz pode ser exercida fora da arquitetura
da clausura institucional, sem impactar as configurações de poder instituídas,
sem colocar a ordem social em risco e que faz com que o indivíduo ainda se
sinta ‘livre’? "A autonomia do self não é, portanto, a eterna antítese do poder
político, mas um dos objetivos e instrumentos das mentalidades e estratégias
modernas de condução da conduta" (Rose, 2011, p. 216).
O ideal de liberdade não é contraditório ao mapa de forças atual, mas,
sim, uma de suas táticas mais eficazes. A estratégia neoliberal exalta a
mitificação de um indivíduo independente, homem que, após assassinar
Deus, quis ocupar seu lugar; momento de extrema arrogância e declínio da
humanidade (Nietzsche, 2001). O indivíduo deve ser investido como singular
e especial, para que consiga suportar as agruras da hiperprodução no trabalho.
Constitui uma fantasia narcísica de que apenas o Eu pode realizar o trabalho,
imaginando que os outros não conseguirão. O imaginário de um Eu potente é
fundamental para o contrato narcísico do imaginário do rendimento.
Imaginário coletivo que é vivido em cada mônada e que mantém os corpos-
máquinas em operação; é constitutivo para a crença de que se deve continuar
trabalhando, combustível indispensável das estratégias da
governamentalidade.
Esse contrato narcísico chega a um limite em que o trabalhador não
consegue mais se desconectar do trabalho, mesmo no período de férias. A
impossibilidade da desconexão é um dos sintomas do mal-estar no diagrama
de rendimento, ainda mais que, atualmente, se pode trabalhar de qualquer
lugar, em qualquer hora, e não mais só no antigo lócus de trabalho.
O diagrama de rendimento atualiza-se como parâmetro de conduta até
onde, a princípio, parecia não incidir: nos relacionamentos afetivos, na
sexualidade e na relação com o corpo. Tudo passa a ser capitalizado e as
experiências intensivas e qualitativas importam menos que as quantitativas.
Gera-se uma hipertrofia do ser, em que se tem como utopia sempre evoluir,
superar-se, tornar-se sempre mais X (produtivo, rico, independente,
inteligente, competente, forte, livre etc.), enquanto na disciplina a utopia era
tornar-se normal, adaptar-se à norma. Seus indicadores de realização não são
só a consecução das metas no trabalho ou o aumento financeiro na conta
bancária, senão o aumento quantitativo de conquistas afetivas, pontos no
currículo e músculos no corpo.
Nesse diagrama, o corpo deixou de ser codificado pelas normas, para ser
axiomatizado pelo capital. Não busca mais normas pressupostas, os códigos
de um corpo ideal e perfeito, mas, sim, um funcionamento hipertrofiado a se
realizar na dimensão corporal: o corpocapital. Tal modalidade somática é a
atualização do capitalismo no corpo: deve-se render e crescer o máximo
possível. Não se trata de um novo código, porque nunca se atinge a meta e
não existe norma estabelecida: há a estratégia de crescimento perpétuo.
Então, numa operação similar a um just in time (toyotismo) corporal,
deve-se maximizar o rendimento, os fluxos, mas sem deixar produtos
estocados. Aumentar a eficácia corporal, hipertrofiar os músculos e eliminar
o estoque energético na forma de lipídios, obtendo índices quase mínimos de
gordura corporal: o que importa é o treino (trabalho) e a produção.
A prática amadora do fisiculturismo é a expressão do corpocapital.
Diversas pessoas no cotidiano, homens ou mulheres, jovens ou velhos, ricos
ou pobres, hipertrofiam os músculos ao limite. A meta estética não é atingir
determinado padrão, não se busca um corpo magro ou curvilíneo como
outrora, senão hipertrofiá-lo ao extremo, maximizar e aumentar os músculos,
fazendo-os adquirir dimensões descomunais, na superação do máximo. Nessa
lógica, os limites existem para serem superados. E vale qualquer prática para
chegar a esse corpo hipertrofiado, como, por exemplo, a adoção de dietas
espartanas, de suplementos alimentares e hormônios que levarão a essa
hipertrofia e à eliminação dos ‘excedentes corporais’. Entretanto, o indivíduo
que já se apresenta forte, musculoso, com baixos índices de gordura corporal,
não está satisfeito com seu corpo. Ele se vê no espelho, mas sempre julga que
deve treinar para ficar mais forte e crescer. Não para de se hipertrofiar, mas
nunca é o suficiente.
Por isso, a vigorexia, fenômeno que a pessoa musculosa não se enxerga
assim, não é uma mera distorção da imagem corporal, trata-se da atualização
do diagrama de rendimento no corpo, é efeito das forças sociais no soma, em
que o indivíduo está sempre em dívida com sua estratégia, sempre busca
crescer mais. Não é à toa que os esportes valorizados, além da hipertrofia
incessante da musculação, são modalidades como a corrida e as
ultramaratonas, numa frenética superação das novas marcas. O esporte
tornou-se um dispositivo disciplinar a favor da sociedade de rendimento. Na
Figura 4.2 é esquematizada a transição desses dois momentos, do diagrama
disciplinar ao de rendimento.

Figura 4.2. Do diagrama da disciplina ao de rendimento.


Também há significativo câmbio no âmbito dos saberes e técnicas psi.
Não se busca mais conhecer para diagnosticar, disciplinarizar, normatizar e
adaptar. Visa-se agora conhecer para intervir, estimular, aprimorar e fomentar
a maior produtividade. Não se objetiva mais normalizar o anormal como no
diagrama disciplinar, mas aprimorar seu potencial produtivo somático. Não
importa se determinado indivíduo se desvia da norma, mas, sim, se em sua
anomalia, ou em sua loucura, pode ser um corpo produtivo que atualize o
diagrama do rendimento.
O corpo e a psique passam a ser apreendidos como máquinas altamente
rentáveis. Os estudos da inteligência, emoções e comportamento social visam
à mudança de conduta para administrar o empreendedorismo dos indivíduos e
incitar sua maior produção. Gerenciam-se o corpo e a saúde buscando um
maior rendimento, seja conseguindo corpos eternamente jovens, melhores
resultados nos esportes, filhos aperfeiçoados e, consequentemente, almas
felizes (Rose, 2013).
Dessa forma, as "tecnologias médicas contemporâneas não buscam
simplesmente curar doenças, uma vez tendo elas se manifestado, mas
controlar os processos vitais do corpo e da mente. Elas são, concluo,
tecnologias de otimização" (Rose, 2013, p. 32). A promessa é a de que o
corpo sempre poderá ser sofisticado e desenvolvido.
Nas tecnologias de aperfeiçoamento do corpo, as antigas normas
corporais são ultrapassadas. A norma do envelhecimento sexual corporal
mudou drasticamente com as terapias de reposição hormonal (TRTs) ou com
a introdução do Viagra. A própria "biotecnologia muda o que é ser
biológico" (Rose, 2013, p. 33). A endocrinologia e a farmacologia tornaram-
se campos de saber indispensáveis para a utilização de hormônios e
medicamentos para a otimização corporal. A testosterona transformou-se no
hormônio paradigmático da subjetividade capitalista, empreendedora de si e
hipertrofiada, tanto para homens como para mulheres, na promessa do
crescimento incessante. Transita-se assim das normas às tecnologias de
otimização, bem como da adaptação ao maior rendimento.
O deslocamento e a corporificação da psique na superfície, seja no
cérebro, seja na genética, e não mais numa interioridade (o inconsciente),
segue a lógica da maior eficácia. Sabendo-se em que estrutura somática é que
se deve intervir, as possibilidades de aprimoramento corporal ficam maiores.
Os distúrbios não são mais enfocados pela perspectiva da patologia, senão na
possibilidade de lucro. As condutas inadequadas não mais se referem ao que
está fora da norma, mas ao que não produz. Por essa razão, as disciplinas
como a psicanálise, que calcam suas ferramentas conceituais em processos de
codificação e normatização, vêm perdendo espaço na atualidade. Ressalta-se
também o novo fenômeno relacionado à desterritorialização dos saberes psi.
Hoje, o consumidor, como molécula empresarial, adquire uma expertise
médica e adota processos de automedicalização (Rose, 2013). Assume
cotidianamente autotécnicas, não fica subjugado ao saber do especialista e até
prescinde de sua opinião. Passa de paciente a consumidor ativo. Antes o
Outro institucionalizado é que governava o corpo, agora o Eu é que o
governa para otimizá-lo continuamente, com os cuidados com a dieta e com a
pressão arterial, a automedicação e os exercícios físicos.
Todavia, o que parece abertura e pluralidade é, de fato, a atualização de
um funcionamento utilitarista, competitivo e que deve produzir ao máximo
numa mania sem limites. Mesmo hegemônica, a axiomática do capital sofre
um duplo desgaste, decorrente de sua própria lógica. Primeiro, do ponto de
vista econômico, a crise financeira mundial que já se arrasta é inevitável, pois
elevar os índices de crescimento somente será possível se a produção e
consumo aumentarem indefinidamente. O capitalismo, com seus curtos-
circuitos, mostra que não é possível manter o mesmo ritmo de crescimento, o
que resulta numa economia planetária marcada por recessões e crises
financeiras. O mercado já dá muitas mostras do seu desgaste e a bancarrota
do sistema é iminente.
Segundo, a crise do capital não se refere somente à crise financeira, mas
também à impossibilidade de uma nova produção subjetiva que dê
continência às frustrações da subjetividade capitalista: há o esgotamento do
seu modelo. A estratégia do máximo rendimento está articulada à promessa
de realização e satisfação, como se o mais produzir fosse uma solução
mágico-onipotente para todos os problemas da existência, trazendo um
sentimento de esperança com o porvir.
Porém, as promessas do capitalismo de realização subjetiva pelo
enriquecimento e pelo consumo desenfreado não foram exitosas, apenas
constituíram um ideal de felicidade inalcançável e assim é porque sempre se
deve crescer mais, sem limites. Fomenta-se que se aumente ainda mais a
frequência da produção e a riqueza abstrata, como se fosse um vício e uma
adição reiterada e perpétua, mas a promessa da satisfação nunca se realiza.
Então, o diagrama do rendimento não leva à consecução da meta
idealizada do ‘mais-produzir’, à sociedade do máximo rendimento, senão ao
esgotamento da sociedade do cansaço (Han, 2012). O indivíduo não consegue
atingir o alto rendimento idealizado nem a felicidade prometida, senão
internaliza o sentimento de culpa pelo seu ‘fracasso individual’. Resulta disso
a crise da subjetividade capitalista (Lazzarato, 2014), que é a produção do
sujeito competitivo, frustrado, esgotado, cansado e culpado. Sofre-se um
esgotamento generalizado, expresso em diversos sintomas corporais e
afetivos. A depressão, o burnout e o absenteísmo no trabalho não se referem
somente a uma despotencialização do organismo isolado, senão ao seu
esgotamento diante dos exigentes imperativos da axiomática do capital. O
inimigo não é mais externo, senão interno (a dívida com a estratégia), muito
mais duro e mordaz.
Dessa forma, radicaliza-se ainda mais a condição fundante de dívida do
indivíduo contemporâneo. As tecnologias de programação subjetiva
estabelecem uma série de procedimentos que o mantém preso no laço da
dívida, perpetuando a escravização à axiomática do capital. Vive-se sob a
experiência ontológica de uma dívida infinita constituinte, sempre estando em
débito e fadado à frustração.
Se, no diagrama disciplinar, havia o sujeito confinado, no atual diagrama
se constitui o sujeito ‘livre’ e endividado (Lazzarato, 2013, 2015). Se outrora
se estimulava uma subjetividade normatizada e adaptada, hoje se instiga uma
subjetividade hiperprodutiva, hipertrofiada e empreendedora, mas que se
sente esgotada. Se, na sociedade disciplinar, o problema era a Babel, na
sociedade do rendimento é a dívida generalizada, que resulta na
autoculpabilização e automutilação. O mal-estar também se intensifica
devido ao fato de a subjetividade capitalista investir num individualismo que
leva a um isolamento na vida pessoal e afetiva, incitando afetos de
ressentimento e angústia. Paradoxalmente, nunca estivemos tão conectados,
mas tão isolados, o que é um dos problemas político-existenciais atuais. Um
dos efeitos de compensação de tal crise é a recodificação da subjetividade,
que leva à emergência dos neoconservadorismos e microfascismos (cf.
Capítulo 6).
Como forma de contenção, busca-se lidar com os sintomas de
esgotamento por meio da indústria farmacêutica, que supostamente possui
medicamentos que ‘resolvem’ os problemas psíquicos e corporais:
antidepressivos, remédios para distúrbios de ansiedade, quimioterápicos e
drogas para melhorar o rendimento cognitivo e a produção. O uso abusivo de
psicofármacos e hormônios é uma maneira de regulação psíquica e corporal
para lidar com essa crise.
Então, no diagrama do rendimento, deve-se drogar o corpo ao máximo
para que se sinta animado e disposto a trabalhar e produzir, mesmo esgotado,
transitando-se do polo depressivo ao maníaco. Emblemático é o novo
fenômeno do uso exarcebado de nootrópicos. São drogas farmacêuticas que
visam aumentar a inteligência, a criatividade e a memória, na promessa de
que se pode ficar mais inteligente e focado com seu uso. A ritalina é um
medicamento utilizado não apenas por crianças portadoras do transtorno e
déficit de aprendizagem e hiperatividade (TDAH), mas também por adultos
que buscam aperfeiçoar suas capacidades cognitivas, resultado que nem
sempre é atingido.
Enfim, as economias da vitalidade que prometiam a vida estão levando ao
esgotamento. A morte não vem de fora, mas de dentro. A crise e a
aniquilação não surgem do externo, da guerra ou da destruição, senão da
própria promessa de produção, riqueza e criação. As energias produtivas
entram em colapso e contaminam o solo, o ar, os corpos, invisível, e
imperceptivelmente.
Contraditoriamente, o que deveria produzir vida, causa a morte, a
deterioração e corpos cancerosos. Por isso, Auschwitz não é mais o
paradigma contemporâneo, mas, sim, Tchernóbil. O horror não é mais pela
morte provocada por guerras perpetradas por populações distintas e os
encerros em campos de concentração, é a morte que vem pelas próprias
forças produtivas do homem. O que traria vida e potência porta aquecimento
radioativo que elicia mutações cancerosas e sequelas inimagináveis e ainda
não conhecidas. Capitalismo, Tchernóbil e radiação são sinônimos: as forças
incontroláveis que prometem a vida, mas que carregam a morte e o
esgotamento no mundo contemporâneo. Portanto, constata-se que surge um
novo desafio no atual diagrama de forças: não mais apenas lutar contra o
surgimento de novos Auschwitz, mas combater a implosão de novos
Tchernóbil, situação paradigmática das relações contemporâneas.
Capitalismo mafioso

Uma das crenças do projeto liberal foi a possibilidade de maior


mobilidade social e distribuição de renda, caso comparado com as formações
imperiais e feudais. Em vez de escravos, ou camponeses presos à terra, passa-
se a ter trabalhadores remunerados. Com a descodificação da mão de obra
trabalhadora, da terra e da moeda, a expectativa foi de que também houvesse
uma desconcentração da renda e da propriedade privada. Mas ocorreu algo
que parece ser contraditório aos fluxos desterritorializadores da axiomática
do capital. Ao invés de se desterritorializarem mais e mais, seus fluxos de
riqueza e investimentos se concentram nas mãos dos novos mestres, os
banqueiros e especuladores. Ocorreu o contrário.
No século XX, a renda dos 1% mais ricos do planeta, os hipermilionários,
decresceu da década de 1920 até a de 1970. Entretanto, o período da
intensificação do neoliberalismo fez com que essa tendência realizasse um
giro e, opostamente à manutenção da tendência de diminuição, começou a
haver elevação. A concentração de renda desse 1% populacional não para de
crescer e hoje já é relativa a 50% da riqueza do mundo. Tal incremento da
renda dos hipermilionários faz com que não só os pobres, mas a classe média
e os ricos tenham um elevado decréscimo em sua renda. Obviamente, essa
concentração monetária dificulta, ou invalida, as possibilidades de
mobilidade social e de distribuição da renda planetária.
Mas, se havia a expectativa de que as famílias tradicionais de
hipermilionários desaparecessem por que houve o caminho inverso e elas
vêm se fortalecendo? Por que tais famílias se mantêm e o poder financeiro
não é descentralizado? Se a axiomática do capital traria justamente o fim das
formações imperiais, por que se vê a emergência de bilionários que se tornam
tal como novos imperadores?
Se antes havia a ‘latifundiarização’ da terra, como na América Latina,
hoje isso ocorre com os fluxos financeiros. Tal processo apenas foi possível
com o êxito do projeto neoliberal. Os detentores das grandes fortunas
aprenderam os princípios do funcionamento e a gerir os fluxos de
financiamento. Passaram a especular os mercados, para gerar e acumular
mais fluxos de riqueza. Os grupos dominantes-especuladores organizaram-se
e utilizam a governabilidade da axiomática do capital para acumular poder.
Por isso há sua ascensão como novos ‘mestres’. E o processo é relativamente
simples. Aqueles que gerem os fluxos financeiros têm maior potência de ação
comparativamente aos que gerem a estrutura política. Domesticaram os
fluxos de investimento, de créditos e dívidas, arrastando os demais processos,
fazendo-os correr para longe, ou atraindo-os para outras terras, outros
mercados, inclusive chantageando os governos e bancos centrais mais
vulneráveis com suas especulações político-econômicas. Numa tacada, a
saída desses fluxos pode desequilibrar a economia de um país, ou mesmo
derrubar governos democraticamente eleitos. Por esse motivo, ações óbvias,
como a maior taxação de impostos das grandes fortunas, que poderia resolver
o problema da fome mundial, nunca ocorrem, pois vão contra os mafiosos do
capital. A posse e vazão do capital abstrato têm muita potência para as
operações de créditos e dívidas e originam o maior quantum de potestas já
visto na história universal. A sujeição social e servidão maquínica nunca
foram de tal magnitude.
Esses grupos organizaram-se e não atuam apenas pela incessante
especulação, mas também pela chantagem generalizada, seja ao Estado, a
outras corporações financeiras, grupos políticos etc. Constitui-se uma espécie
de máfia que realiza a gestão dos fluxos de financiamento. Mas não se trata
de uma máfia tradicional, pois não está centralizada na figura do Padrinho, ou
do Coronel, na filiação ou redes de aliança, mas reside numa espécie de
configuração móvel e estratégica das relações de forças e dos fluxos de
investimentos: um capitalismo mafioso.
Tal modalidade organiza-se por intermédio de um novo agenciamento: a
Corporação. Nela os ‘diretores’ são móveis, muitos desconhecidos um dos
outros e podem emergir e cair instantaneamente. As relações não precisam
ser presenciais. O que importa é a agilidade das operações, em que se
utilizam softwares que compram e revendem ações em questão de
nanossegundos.
As Corporações articulam-se diretamente com os Organismos de
avaliação de ‘bom pagador’, que são aquelas associações de direito privado
que concedem o selo de legitimidade (bom pagador) para países, empresas,
por critérios e cálculos um tanto obscuros. Os índices de crescimento e
decrescimento do mercado e da bolsa são alvo constante de especulação e
manipulação, de forma alguma são neutros ou meros indicadores da
economia. O capitalismo mafioso opera pela chantagem contínua,
especulando os fluxos de investimentos e créditos, injetando e retirando
verbas, dominando pelo controle da dívida e incitação de crises intermitentes
e perenes. Não é à toa que, nos momentos de crise financeira, os
hipermilionários mais lucram, enquanto a população e os Estados perdem
poder financeiro e endividam-se cada vez mais. Na crise econômica no
Brasil, os bancos não param de bater recordes de lucro, ao mesmo empo em
que os trabalhadores perdem seus empregos e direitos trabalhistas.
Na especulação dos fluxos de financiamento, há uma alteração da
geografia territorial e política planetária. As mobilizações de independência e
autonomia nacional são arquitetadas por aqueles que gerenciarão os fluxos
financeiros relacionados aos processos produtivos e lucrarão com isso, como
se pode constatar nos países do antigo bloco soviético, que sofreram um
processo de capitalismo agressivo. O povo acredita na união e afirmação
identitária, de uma nação e cultura, mas o que está em jogo é a produção da
mais-valia de fluxo. Tal como o golpe do impeachment no Brasil não foi
contra a democracia, uma figura política ou um partido. Foi a luta pela
transição de um modelo político a outro, pela constituição de um Estado
ainda mais a serviço do capitalismo mafioso: reforma da previdência, perda
de direitos básicos dos trabalhadores, privatização e terceirização do sistema
público. Diminuir os gastos e aumentar a mais-valia de fluxo para fazer com
que os fluxos financeiros se potencializem e atinjam maiores distâncias e
quantum de potências.
A manutenção da concentração exacerbada do poder financeiro não pode
ser explicada apenas pela economia ou pela política, pois racionalmente esses
grupos não necessitam de tanta fortuna para sobreviver. Poderiam aceitar
maiores taxações tributárias e compartilhar parte minúscula dessa renda para
erradicar a miséria do mundo, financiar pesquisas de novos medicamentos
etc. Entretanto, não aceitam e tentam espoliar ainda mais o planeta, os
Estados e os trabalhadores, seja do chão de fábrica, ou altos executivos.
A axiomática do capital conecta-se com o que há de mais primitivo no
psiquismo humano. As forças desejantes entram num regime de simbiose
com a lógica do máximo rendimento, talvez com o anseio da constituição de
um território ainda maior, ou de defesa diante das ameaças externas e
ansiedades persecutórias. Deseja-se produzir e acumular mais e mais. Se,
antes, os grupos dominantes, com práticas predatórias, roubavam terras e
escravizavam povos, hoje lucram com a dívida, a especulação e as crises
sociais. Os coletivos não são mais oprimidos somente pela coerção da
violência estrutural do Estado, mas principalmente pela possibilidade de não
acompanhar a frequência de rotação do diagrama do rendimento, ficando
excluídos dos processos de produção e consumo capitalistas.
Há, assim, o deslocamento da violência de Estado para a violência do
rendimento incessante. Com tal quadro, parece que a História universal chega
a uma conclusão: o ‘fim da história’. Mas os curtos-circuitos que o
capitalismo vem sofrendo, a crise da subjetividade capitalista e a própria
deterioração do planeta pela sua hiperexploração trazem pistas de que esse
diagrama está colapsando. Porém, qual será o novo diagrama de forças? Não
há como saber ou prever, mas certamente não se chegou à última formação
social da história.
CAPÍTULO V
PRÁTICAS E AGENCIAMENTOS
PSICOPOLÍTICOS

No senso comum, as práticas políticas são apreendidas com proposições


relacionadas à consciência, ideologia e a lógica do significante. Costumam
ser reduzidas à dicotomia direita versus esquerda, ou então no espectro
político de dois eixos de Eysenck (1957), adaptado na Figura 5.1. Nesse
esquema, os distintos posicionamentos políticos dispersam-se nos diferentes
quadrantes. Por exemplo, o socialismo libertário está situado no quadrante
superior à esquerda, ao passo que o comunismo soviético no quadrante
inferior à esquerda. Já o neoliberalismo está no quadrante superior à direita, e
o fascismo no quadrante inferior à direita.

Figura 5.1. Espectro político de dois eixos.


Trata-se de uma proposição interessante por diferenciar tipos de esquerda
e direita, mas ainda fica restrita à lógica dos discursos conscientes. Tais
perspectivas cognitivas limitam-se aos aspectos relacionados à macropolítica,
às formações estratificadas, à extensão, ao plano dos grandes conjuntos e
códigos assumidos. Entretanto, ao considerar o plano das múltiplas relações
de forças e os distintos investimentos desejantes, constata-se que há aspectos
que são deixados de fora desse modelo.
Muitas vezes, as práticas políticas exercidas são bastante diversas do
discurso assumido, pois há modalidades de funcionamento psicopolítico que
se distinguem dos códigos identitários das ideologias. Assim, não raras vezes,
discursos e práticas são díspares entre si, seja nos grandes ou pequenos
conjuntos.
Este capítulo tem como objetivo discutir as diferentes modalidades de
agenciamentos de forças que atravessam as práticas políticas e que não se
reduzem ao discurso consciente. No primeiro tópico, é abordada a relação
entre discurso e investimentos desejantes, cuja articulação frequentemente é
contraditória. No segundo, proponho o conceito de agenciamentos
psicopolíticos como uma nova forma de apreensão das práticas políticas,
para, por fim, realizar uma cartografia dos três agenciamentos psicopolíticos
propostos.
Discursos conscientes e investimentos desejantes

Na articulação entre psiquismo e política, W. Reich (1988) compreende


que os investimentos desejantes se diferenciam e possuem autonomia em
relação aos códigos políticos assumidos. Para o psicanalista, os fluxos
desejantes subdividem-se em dois: os investimentos revolucionário e
conservador. Mesmo que haja uma tendência à correlação entre fluxo
revolucionário e consciência de classe proletária, e entre investimento
conservador e burguesia, os fluxos desejantes não estão diretamente atrelados
aos aspectos conscientes e identitários de classe.
Desse modo, emerge o fenômeno contraditório da cisão entre consciência
e investimento desejante, ou seja, o que é representado de forma consciente
pode ser diferente do modo pelo qual se opera, o que resulta na citada
contradição entre discurso e prática. Portanto, o proletariado não atualiza em
suas práticas políticas somente o investimento desejante revolucionário e uma
prática progressista, também pode atuar o fluxo conservador, por isso que há
casos de um funcionamento reacionário na classe trabalhadora. O inverso
também ocorre. Por mais que seja raro, segmentos da burguesia podem
atualizar um funcionamento transformador, não ficando restritos ao
investimento conservador. Então, Reich formula os alicerces do conceito de
agenciamento psicopolítico ao afirmar que os investimentos desejantes
articulados às práticas políticas podem trazer uma modalidade de operação
distinta dos discursos. Instaura, assim, uma diferenciação entre o
funcionamento maquínico e o regime de enunciados.
Deleuze e Guattari (1976) reformulam a proposição de Reich,
sofisticando seus mecanismos. Apresentam raciocínio convergente ao
corroborar a existência da dissociação entre investimento desejante e
discurso. Porém, propõem duas instâncias distintas na máquina psíquica, o
aparelho de interesse, relativo às funções conscientes, e a máquina do desejo,
correspondente às relações de forças e desejantes. A primeira opera no
registro do que é conhecido, na adesão a determinado conjunto de códigos
políticos, por exemplo, ao socialismo, liberalismo, anarquismo etc. Na outra
instância, há uma aparelhagem constituída por dois polos de investimento
desejante e político: o paranoico e o esquizofrênico [16]. No polo paranoico,
os investimentos desejantes prendem-se aos estratos e, consequentemente,
aos processos de bloqueio, estática e captura. Há o funcionamento de uma
estrutura psíquica conservadora que se caracteriza pela fixação, manutenção
do poder e estereotipia dos processos psicopolíticos, numa modalidade de
investimento autocrático. Já no polo esquizofrênico, o investimento desejante
está relacionado ao movimento e à transformação, às forças do fora e linhas
de fuga, em vez de a estratos fixos e enrijecidos. Pode ser chamado de
revolucionário, libertário, comprometido com a potência e não com o poder
(potestas). Fomenta uma política nômade que, em seu devir, arroja os estratos
territorializados a uma nova jornada, a uma indeterminação. Ambos os polos
se relacionam, respectivamente, ao funcionamento da antiga formulação de
Guattari (2004a) de grupo sujeitado e grupo sujeito.
A operação desejante relacionada a esses dois polos não é determinada
pelos processos conscientes, pois é independente do aparelho de interesse.
Essa clivagem gera a mesma dissociação presente em Reich, entre regimes de
enunciados e investimentos desejantes. Dessa forma, um indivíduo que
assume um discurso emancipatório, progressista e uma vontade de combater
a estrutura do Estado burocrático não está, necessariamente, acoplado a
investimentos desejantes transformadores. Pode ocorrer funcionamento
contrário, de estar conectado à máquina paranoica. Nesse caso, resulta uma
coexistência à primeira vista contraditória: um discurso revolucionário
articulado a investimentos desejantes capturantes e bloqueadores, que, por
conseguinte, atualizam uma prática política conservadora.
Portanto, o discurso consciente do indivíduo é limitado, pois pode
encobrir e mascarar suas relações de forças e desejantes. Esse fenômeno
contraditório é constatado em ativistas políticos com perfil mais autoritário e
de soberania. Quando estão na oposição, assumem postura crítica à situação,
pautando-se em discursos transformadores. Contudo, ao assumirem cargos de
destaque e de mando, passam a reproduzir a mesma lógica hierarquizada que
criticavam, repetindo as mesmas práticas de dominação, exclusão e
segmentarização.
Nesse caso, atualizam o funcionamento no polo paranoico, de caráter
conservador e reacionário, em detrimento do denominado polo esquizo e
revolucionário. Os discursos e ideais defendidos conscientemente se tornam
contraditórios às práticas, servindo apenas como ferramenta para alcançar e
manter o poder de determinada instituição.
Considero que o polo paranoico e de conservação é o agenciamento
comum do aparelho de captura do Estado, no qual há o rechaço às diferenças
e se pretende totalizar as condutas, acabando com qualquer forma de
oposição, seja pela integração, seja pela destruição. Nesse aparelho, não se
percebe tanta diferença entre a esquerda e a direita políticas quando estas
ocupam os estratos de poder, porque a operação psíquica comumente adotada
se refere ao investimento no polo paranoico e é autocrática.
Esta leitura que estipula a distinção entre as maquinações consciente e
desejante, com seus dois polos de investimento, fornece uma perspectiva
original para a apreensão da contradição entre discurso revolucionário e
prática conservadora. Sintetizamos, na Figura 5.2, a relação entre os dois
agenciamentos. As máquinas consciente e desejante são independentes entre
si, mas estão em inter-relação: indissociáveis, mas irredutíveis. São duas
máquinas que funcionam de maneiras distintas, mas que se acoplam e podem
influenciar-se. Se há primazia de uma sobre a outra, é da máquina desejante,
cujas forças e investimentos arrastam ou fixam os processos. Mas essa
determinância não faz com que o discurso consciente decorra dos
investimentos desejantes, visto que são instâncias autônomas. Ambos os
investimentos podem atrelar-se aos distintos enunciados políticos
conscientes, aos diferentes códigos, resultando nas diferenças entre condutas
políticas dos indivíduos, ainda que partilhem do mesmo código político. No
esquema, determinado indivíduo que partilha de X código político consciente
pode oscilar tal como um pêndulo no espaço de dispersão entre os dois polos
desejantes, assumindo postura política mais libertária, ou mais conservadora,
em diferentes situações espaço-temporais.

Figura 5.2. Maquinações inconscientes e pré-conscientes.

Consideramos que apenas os que aderem ao código fascista não possuem


esse movimento pendular, estando diretamente aderidos ao polo paranoico.
Nesse modelo, também fica claro o porquê da distinção entre um socialista
libertário e um socialista autoritário. Mesmo que partilhem do mesmo
discurso, ideologia e plataforma política, o que os diferencia e torna suas
práticas políticas muito distintas são os polos de investimento desejante. Os
polos irradiam vetores de forças que se concretizam diretamente nas práticas
psicopolíticas assumidas pelos atores sociais. Portanto, o repertório político
consciente não é o que principalmente norteia as práticas psicopolíticas, mas,
sim, seus fluxos desejantes, seja no polo capturante ou no polo
desterritorializador. Então não importa apenas como o sujeito político se
reconhece e suas identidades ideológicas, pois sua própria consciência pode
enganar-se, além de enganar os outros.
Em síntese, Reich, Deleuze e Guattari estipulam duas modalidades de
agenciamentos psicopolíticos: o investimento revolucionário referente ao
polo esquizofrênico e o investimento conservador que remete ao polo
paranoico. Propõem, assim, um agenciamento transformador e um
conservador-paranoico; uma máquina revolucionária e outra reacionária.
Devido à coexistência dessa aparelhagem com diferentes discursos,
ideologias e investimentos desejantes é que emergem as usuais dissonâncias
entre discurso e prática.
Esse modelo marca uma grande diferença em relação ao construcionismo
social, pois o discurso consciente não assume mais a determinância para as
práticas psicopolíticas, transforma-se em mera roupagem: a linguagem torna-
se mera semântica de encobrimento e justificação dos atos, é o duplo da ação.
Os investimentos desejantes e os agenciamentos assumem o primado para os
repertórios das práticas psicopolíticas, podendo ou não determinar os
discursos, em que as duas instâncias muitas vezes ficam desatreladas e
desconectadas.
A intensificação da axiomática do capital e a constituição de uma
subjetividade capitalista demandam uma ampliação desse modelo. O
funcionamento neoliberal de ser é expresso empiricamente em muitos
ativistas políticos. A modulação do desejo operada pelo diagrama do
rendimento é tamanha que, conjecturamos, não há apenas dois polos de
investimento desejante, mas agora três. Da mesma forma que propusemos um
terceiro polo das Instituições, as imateriais, além das abstratas e concretas
(cf. Capítulo 4), também compreendemos que há um terceiro tipo de
investimento desejante, direcionado ao polo capitalista.
Consideramos que o triunfo do diagrama do rendimento reconfigurou a
própria aparelhagem psíquica, pois as forças decorrentes da atual conjuntura
política têm essa capacidade. Portanto, a máquina inconsciente agora não terá
mais um modelo bipolar, mas, sim, tripartite (ver Figura 5.3), conformação
na qual tem hegemonia a produção da subjetividade capitalista.
Investimentos desejantes e agenciamentos psicopolíticos:
estratopolítica, tecnopolítica e nomadopolítica
Os investimentos desejantes sempre estão articulados a um objeto e
modulam o seu modo de funcionamento. As forças e o desejo investem o
real, formam regimes de composição entre os polos da máquina desejante, os
fluxos e elementos do território: os agenciamentos psicopolíticos.
Os agenciamentos psicopolíticos são as máquinas que decorrem da
composição entre elementos de diferentes materialidades: fluxos desejantes,
afetivos, cognitivos, discursivos e políticos. Dramatizam distintas
configurações que transversalizam os indivíduos e constituem seus processos
de subjetivação. Têm importância pelo seu modo de operação, suas
propriedades realizadoras, sua performatividade e não por um conjunto de
significantes, uma essência, representação ou identidade. Não dependem das
roupagens ou nomes atribuídos, pois funcionam do modo pelo qual estão
investidos e agenciados. Ultrapassam o discurso ideológico e a lógica
discursiva e semântica, atuando como modalidade de operação pragmática.
Não se reduzem às pessoas e expressam os distintos mapas de forças. Porém,
não há um núcleo comum que estrutura e homogeneíza os processos dos
elementos heterogêneos. As diversas materialidades não se mesclam, ou se
misturam, mas articulam-se por um funcionamento em comum, por uma
dobradiça que faz a ligação para que cofuncionem. Portanto, são resultantes
de uma composição de diferentes engrenagens e roldanas, numa configuração
híbrida de materialidades, que cofuncionam articuladas em coexistência.
Propomos três modalidades de agenciamentos psicopolíticos que
expressam os três polos de investimentos desejantes. Neste modelo, os polos
irradiam uma modalidade de funcionamento que é determinante para a
combinação dos distintos elementos, tal como um grau de valência. É como
se cada polo, com seus coeficientes de territorialização, desterritorialização e
de ressonância, fosse correlato a um diagrama de forças distinto. Os polos
atualizam diversas relações de forças e ressoam as moléculas para
movimentos distintos, produzindo três tipos singulares de combinação. O
polo paranoico é a base para a constituição do agenciamento estratopolítico,
o polo esquizofrênico alicerça a política nômade e o novo polo capitalista é o
suporte da tecnopolítica, conforme a Figura 5.3, que é desenvolvimento da
Figura 5.2.

Figura 5.3. Agenciamentos psicopolíticos.


No esquema em questão, é inserido o polo capitalista, como um terceiro
tipo de funcionamento desejante. O raio pendular de cada código consciente
se amplia e não fica mais restrito aos polos paranoico e esquizofrênico, sendo
atraído à modulação do novo polo. Devido à intensificação do projeto
neoliberal, que fez com que o diagrama de rendimento se tornasse
hegemônico, o movimento de todos os códigos políticos tendeu a pendular
mais sobre o polo capitalista, por isso foram utilizadas no esquema as linhas
cheias direcionadas a esse polo. Todos os códigos passaram a ser modulados
pelo funcionamento da axiomática do capital, sofrendo uma descodificação e
transformação de seus postulados essenciais.
Dessas modificações e mesclas, decorrem formações de aparências
contraditórias, como um socialismo capitalista, um anarquismo capitalista,
um fascismo capitalista etc. Os códigos políticos ainda pendulam no espaço
entre os outros dois polos, paranoico e esquizofrênico, mas com menor
frequência, pois o diagrama de rendimento, com suas operações e sua
pragmática, direciona o movimento para o novo tipo de investimento
desejante e agenciamento psicopolítico: a tecnopolítica. A seguir
descreveremos os três agenciamentos.

Estratopolítica

A composição psicopolítica resultante dos investimentos desejantes no


polo paranoico recebe o nome de estratopolítica. Como esse polo tem um
elevado coeficiente de territorialização e conservação, considero que esse
agenciamento atua eminentemente por processos de permanência e
estratificação. Os fluxos desejantes são direcionados e buscam fixar-se aos
estratos, à estrutura, à Instituição, ao Estado, por conseguinte, aos processos
de institucionalização. Por isso, os indivíduos agenciados nessa configuração
têm como finalidade a ocupação de posições e lugares políticos, numa prática
que valoriza mais o instituído que o instituinte, a conservação que o
movimento, os resultados em vez do processo, a lógica do ser e do estado de
coisas no lugar do devir. É majoritariamente macropolítica, sempre
agenciando suas forças moleculares, táticas e estratégias de forma molar.
A ocupação e conservação dos lugares institucionais têm como função o
aumento do quantum de potestas. Ocupar determinados estratos traz a
sensação de um acúmulo de poder, na clássica figuração do amor ao poder.
A fixação busca a extração de uma mais-valia política, institucional,
simbólica, do estrato que se ocupa; agarrar-se à terra e extrair seus bens, um
extrativismo político.
Desse modo, importa mais a ocupação e fixação aos lugares de poder do
que realizar as atividades relacionadas a esses cargos, o fazer em si. Não se
realiza a tarefa institucional, mas, sim, são empreendidas as ações referentes à
continuidade da perpetuação ao estrato de poder: há uma inversão entre
meios e fins, denominada burocratização (Bleger, 1980).
Consideramos que a fixação no polo paranoico e no seu correlato
material-espacial, a Instituição, oferece uma estabilização dos afetos diante
das forças do fora. Assim, a Instituição concreta, enquanto território a se
ocupar, é crucial e imprescindível para os modos de gestão e governabilidade.
Por isso, é necessário conquistar a Instituição, tomar o poder do Estado ou
estar num Partido para realizar as tarefas políticas. A estrutura e a Instituição
são sinônimas de poder, mas ao poder como potestas, o poder sobre, ao invés
do poder como potentia, o poder fazer; extensio e não intensio.
Como o investimento desejante é muito intensificado ao estrato, ocorre
uma espécie de mistura, simbiose (Bleger, 1975), colagem imaginária (Kaës,
1997) entre indivíduo e estrato institucional. É como se, nesse processo de
fusão, molecular e molar, as características da Instituição fossem
incorporadas por quem a assume. Na simbiose com o território, gera-se um
enrijecimento das práticas, consolidando-se uma rigidez e uma falta de
maleabilidade e flexibilidade. As condutas tendem a ser estratificadas, rígidas
e estereotipadas, marcadas pela reprodução e conservação, e não pela
produção e mudança.
Assim, a fixação à estrutura adquire primazia e orquestra o processo
político. Ela se torna o sujeito da enunciação, produz o ator político que a
ocupa, direcionando seus interesses. Constitui-se uma subjetividade
estratopolítica, de captura, ou mesmo disciplinar, pela incorporação dos
traços institucionais como se fossem próprios de quem a ocupa. Por tal
motivo, sair dos estratos institucionais pode acarretar rupturas psíquicas
inomináveis ao indivíduo sedentarizado nesses lugares, pois o bônus que
determinados líderes e chefes, ou mesmo o pai, têm ao ocupar esses estratos
de poder se refere muito mais a questões simbólicas, identitárias, desejantes e
de pertencimento do que a meros lucros materiais.
Os verbos que caracterizam a estratopolítica são o Ser e Ter. E o tipo de
personalidade correlata é a personalista, pois é a que se coloca como centro
dos processos políticos, de traços carismáticos e que deve seduzir-dominar o
público. É a que visa codificar os fluxos sociais por meio de seus desejos, tal
como um mestre em sua instituição regionalizada ou o soberano em seu
Império. Disso decorre o fato de que esse agenciamento é semelhante à
máquina imperial-despótica, correspondendo ao diagrama de forças de
captura/soberania.
Contudo, tal como na dialética senhor-escravo, o contrário também
ocorre. O agenciamento estratopolítico opera nos casos de submissão e
obediência ao poder instituído e às normas institucionais vigentes. Servir a
esses lugares de dominação e subserviência cumpre a mesma função
psicopolítica da manutenção e perpetuação dos estratos territoriais, por mais
que possa gerar algum tipo de sofrimento. Aferrar-se ao estrato fatalizado da
vítima, do papel de subjugado que não pode mais nada fazer, cumpre
importante função de estabilização dos processos. É o território que dá
sentido à existência desses que se submetem e que, por tal fixação ao estrato,
dificilmente conseguem mudar e transformar.
A obediência irrestrita ao agenciamento jurídico, disciplinar, burocrático
e codificado é expressão do funcionamento estratopolítico, tal como o
agenciamento contratual masoquista (Deleuze, 2009), que é a modalidade
estratopolítica para aquele que se submete a tal sistema. Por intermédio desse
lugar instituído e estratificado, por mais penoso que possa parecer, é que se
consegue dar vazão aos fluxos desejantes. E vale ressaltar que a
estratopolítica é uma forma de funcionamento que não atua apenas no modelo
das denominadas organizações carismáticas, mas também no das
organizações burocráticas, como a tradição psicossociológica nomeia
(Rouchy & Desroche, 2005; Enriquez, 2014).
Nesse agenciamento, mesmo que determinado partido defenda a
transformação social, esta dificilmente se efetivará. Devido à inversão entre
meios e fins, a tarefa, a mudança social, sempre será secundária, ficando
como retórica e ideal. A estratopolítica assume maior compromisso com a
conservação de lugares na estrutura institucional do que com o fazer político
transformador, com potestas, em vez de potentia, com a formação de
pequenas vanguardas, de um núcleo reduzido de líderes, a oligarquização das
minorias dirigentes (Michels, 1982), ao invés da potência da multidão.
Assim, há o primado da perpetuação da fixação no estrato institucional de
poder. Deseja-se o poder e, para que essa permanência seja possível, são
realizadas as mais contraditórias alianças políticas. Sua síntese é a
conformidade à lógica da racionalidade governamental estatal de conservação
e nunca de transformação. Por sua configuração estática, não há Estado de
esquerda (Deleuze, 1994), visto que é uma instituição com traços de
conservação (Holloway, 2003), instituídos, de fixação e estatização. O Estado
é a formação social que é a maior consecução da estratopolítica.

Tecnopolítica

O diagrama do rendimento produz não apenas uma nova modalidade


subjetiva, como também um novo polo de investimento desejante: o polo
capitalista. Na axiomática do capital, deseja-se produzir e render mais,
ensandecidamente, o que tem sua concretização numa nova forma subjetiva e
em um novo agenciamento psicopolítico: a tecnopolítica. Existe um
investimento desejante na consumação do trabalho e do fazer, na
maximização da produção e reprodução. Para a hipertrofia do rendimento,
não se deseja mais a fixação irracional a instituições arcaicas de poder,
crenças e valores instituídos, objetos, ou estratos, mas, sim, em operações
racionalizadas que se utilizam de saberes e técnicas para a consecução de
suas finalidades. Desejam-se o fazer e a realização por meios mais rápidos
possíveis, com a minimização dos gastos e energia. Então, não se busca a
fixação nem a ocupação de cargos políticos, senão a (re)produção de saberes
para a gestão da vida e da política.
A tecnopolítica conjuga saberes, técnicas e práticas políticas, enfocando o
desenvolvimento de conhecimentos e de uma tecnologia de governabilidade
sobre a gestão da vida e da população, objetivando sempre uma maior
eficácia nos procedimentos. Então, dispensa a ideologia partidária e a opinião
da antiga liderança política carismática, optando pelos enunciados dos
técnicos da política, que assumem o discurso competente do bom gestor.
Importa mais gerir os fluxos financeiros e políticos para gerar mais lucros
e menos prejuízos, e avaliar os efeitos de uma política pública por cálculos,
estatísticas e um survey, em vez de uma plataforma político-ideológica de um
partido. Não interessa quem ocupa o lugar de gestão institucional, importam
apenas as metodologias e procedimentos que se adotam para uma maior
eficácia da racionalidade governamental, numa lógica de empresa.
A tecnopolítica baseia-se em todo um repertório de conhecimentos e
dispositivos técnicos que criam fórmulas e equações para que as ações de
gestão social possam atingir índices de eficácia sempre mais elevados. Sua
tecnologia da governabilidade política segue todos os princípios da
axiomática do capital, sempre se modificando e sofisticando. A gestão da
vida deixa de ser exercida apenas pelo Estado, pois se agregam dispositivos
de saber e disciplinas desenvolvidos pelas Ciências, corporações empresariais
e técnicos da política. Focaliza-se no desenvolvimento das melhores
ferramentas que componham o conjunto da tecnologia social, constituindo-se
uma política pragmática e que valoriza a eficiência. Por conseguinte,
desenvolvem-se mecanismos de segurança e controle sociais mais
sofisticados e eficazes, em que o desenvolvimento tecnológico é
fundamental.
Dessa forma, tal agenciamento não se caracteriza pelo ser nem pelo ter,
mas pelo ‘saber-fazer’. A meta é o acúmulo de saber como técnica e o
desenvolvimento de estratégias com maior eficácia. Os investimentos
desejantes não estão direcionados a um estrato, mas, sim, à utopia de um
melhor saber-fazer sobre a governamentalidade: deseja-se o máximo
rendimento com mínimo dispêndio energético. Portanto, a forma de
subjetivação resultante é a da subjetividade pragmática, funcionalista e
hipertrofiada, conforme a axiomática do capital: a subjetividade capitalista.
Essa modalidade subjetiva faz com que o indivíduo se comporte com base na
modulação do capitalismo, independendo se se compreende como de direita
ou de esquerda.
Com o êxito do diagrama do rendimento, a tecnopolítica torna-se o modo
hegemônico de governabilidade no planeta, o Capitalismo Mundial
Integrado, que gera formações bizarras como a que ocorre na China, com seu
Comunismo de mercado. O agenciamento tecnopolítico explica por que
muitos governos de esquerda política não fomentam os processos de
transformação e mudança social defendidos em suas plataformas políticas e
somente reproduzem a mesma racionalidade governamental instituída.
Adequam-se e desejam o aprimoramento da gestão dos fluxos financeiros
axiomatizados pelo CMI, afastando-se dos antigos ideais e lutas políticas, e
preocupando-se prioritariamente com os índices do mercado.

Nomadopolítica

O polo esquizofrênico, com seus processos de vazão e fluidez, tem sua


concretização no agenciamento psicopolítico que denominamos política
nômade, ou nomadopolítica. Seu investimento desejante está direcionado ao
fluxo, movimento, dinâmica e transformação. Adquire configuração fluida e
fugidia, na qual suas práticas e deslocamento são direcionados a um fora, às
bordas, para cruzar os limites e fronteiras, fugir das totalizações e dos
imperativos de determinados grupos políticos ou das equações capitalistas
das corporações empresariais.
Esse polo opera por forças centrífugas, ao invés das forças centrípetas que
orbitavam sobre um partido ou outra Instituição. Atualiza a força disruptiva
das linhas de fuga, que faz com que os coletivos não se formatem pelas
normas e subvertam a ordem instituída. Abandona o modelo hierarquizado de
relações de poder, seja pelo lugar ocupado, pelo acúmulo de saber ou por
traços identitários. Posiciona-se contra a heteronomia instituída, o modelo
autocrático, a gestão técnica da competência e as políticas sedentarizadas e
estratificadas de quaisquer tipos. Não busca a fixação ao estrato, uma nova
segmentaridade nem a constituição de saberes e técnicas de gestão da vida.
Desse modo, critica e distancia-se das práticas políticas totalizadas de
Estado, dos discursos cristalizados de grupelhos políticos e do funcionamento
do diagrama do rendimento. Assume posições territoriais variáveis, flexíveis
e ocupações fugazes. Dramatiza a propagação e a jornada das tribos nômades
que se opõem à sedentarização e seguem movimentação contínua, de derivas,
de abrir sendas e trilhas, cujas cartografias são produzidas por seus regimes
de afecções com o meio.
A política nômade é a travessia do diagrama, o deslocamento no deserto,
a vazão torrencial nas estepes. Trata-se das singularidades e forças que não se
deixam ser normalizadas pela curva integral dos diagramas de captura,
disciplinar ou de rendimento, isto é, são energia livre e não ligada;
multiplicidades em excesso e não estrutura conjuntizada. São fluxos que se
dispersam e corroem os estratos e a matéria sólida por onde transitam: canos
que oxidam, concreto que se desfaz; tudo se esburaca. Operam um processo
autopoiético de criação e singularização, tirando o ser da passividade para a
atividade. Enfim, atuam numa prática política autônoma e molecular, num
modelo horizontalizado de gestão, que efetua a autogestão.
Tal política atualiza um sentido contrário aos processos de estratificação
do Estado, possuindo baixo coeficiente de territorialização. Não há o amor ao
poder, enquanto potestas, senão investimento no poder enquanto potentia, na
potência do poder fazer que efetua micropolíticas desejantes, que à primeira
vista parecem operar apenas no âmbito molecular. Contudo, a micropolítica
transversaliza-se à macropolítica, bem como o molecular ao molar, então,
desse movimento instituinte que incita as forças ativas e desejantes,
provocam-se rachaduras no instituído, multiplicando-as e ocasionando
transformações macropolíticas.
Exemplo emblemático foi a guerrilha do Movimento 26 de Julho de Fidel
Castro e Che Guevara, que, desde Sierra Maestra, agitou o país, multiplicou-
se e criou a primeira revolução da esquerda guerrilheira num país latino-
americano. Do pequeno foco guerrilheiro, iniciou-se uma revolução
molecular, que se tornou uma revolução molar e nacional e que interferiu em
toda a geopolítica planetária. O mundo transformou-se após a Revolução
Cubana.
A nomadopolítica opera como um dispositivo de desterritorialização que
instaura outras linhas de possível, ou melhor, linhas de fuga e desejantes
perante os processos de captura do Estado e de modulação do diagrama de
rendimento. Age pelo primado das forças instituintes que podem implodir os
modelos tradicionais de funcionamento político partidário, estatal e
capitalista. Fomenta novas experimentações ante práticas instituídas e
hierarquizadas, como se fossem invasões bárbaras irrompendo no Império
estatal neoliberal. Atualiza o potencial de uma máquina de guerra contra o
aparelho de captura (cf. Capítulo 8), encarnando a lógica do guerreiro diante
do legislador. "O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota
com sua máquina administrativa; a unidade nomádica extrínseca se opõe à
unidade despótica intrínseca" (Deleuze, 1985, p. 65). É a revolução posta em
prática, em movimento, em ação, que engaja as múltiplas facetas da própria
vida. É crítica à ideia de que tomar o poder do Estado ocasiona a
transformação social e está muito mais próxima da irrupção de um devir
revolucionário do que de uma preocupação com o futuro da Revolução
(Deleuze, 2007b), ou seja, é mais a propagação magmática de fluxos do que a
estratificação de uma estrutura. Nem ser nem saber, caracteriza-se pelo devir.
Conforma-se, assim, uma Utopia Ativa, no sentido de imaginar um não
lugar e tentar construí-lo. É o funcionamento que expressa o que Deleuze e
Guattari (1976) descrevem sobre a esquizofrenização dos fluxos, que pode
desterritorializar e fraturar a axiomática capitalista. É um regime de
funcionamento que se opõe ao código e à axiomática.
Consideramos que a política nômade é a decorrência política do
pensamento esquizoanalítico, pois atualiza o diagrama de forças da
autonomia e da transmutação. É o agenciamento que busca reinventar o
cotidiano por meio de lutas e devires: a transformação social pode ser feita
em qualquer momento, nas pequenas e grandes práticas, nos âmbitos
molecular e molar, no cotidiano e no partido, na família e no Estado, nos
planos subjetivo e institucional, desejante e social, e não há uma fórmula
pressuposta disso. Não se sabe se a nomadopolítica um dia agitará tanto os
estratos que resultará em grandes transformações molares e ruptura do
diagrama de rendimento. Mas é uma aposta, linha de ação e Utopia ativa, em
que se traçam linhas de resistência que produzem novas possibilidades.
Modos de funcionamento

Os agenciamentos psicopolíticos são a concretização da composição de


elementos baseada em três polos distintos de investimentos desejantes. Não
operam no campo da semântica, mas, sim, no de uma pragmática, por isso
não são redutíveis às ideologias, como a do comunismo, a da social-
democracia e a do anarquismo. O aparelho de interesse, os códigos
conscientes, não assume determinância nessa tipologia, pois um indivíduo
qualquer pode atuar nessas três formas distintas em diferentes momentos e
espaços da vida.
Os agenciamentos comportam-se como três vértices de uma mesma
máquina, que opera de formas diferentes, dependendo do polo que está
determinante. Portanto, é comum que a máquina psicopolítica, num
determinado momento, opere num vértice e, depois, passe a outro. Por
exemplo, o jovem anarquista que trabalha de uma forma nomadopolítica,
pode, posteriormente, ao construir uma Federação, regê-la de modo
estratopolítico, como se fosse seu soberano. Também pode ocorrer o inverso,
da estratopolítica dar espaço à política nômade, como numa anarquia
coroada, dos delírios e caprichos de Heliogábalo no topo do Império Romano
(Artaud, 1972).
Estratopolítica e política nômade constituem um regime de oposição,
ambas ocupam posições contrárias numa reta, situando-se em polos opostos,
tal como extensio e intensio. Quanto mais estratopolítico for um
agenciamento, menos nomadopolítico ele será e vice-versa. Já a tecnopolítica
segue por outro registro, desterritorializado em relação aos estratos
tradicionais de poder, mas modulado pelos saberes que o referendam, à
axiomática do capital.
O investimento desejante no polo paranoico do agenciamento
estratopolítico tem como função a regulação dos processos em face da
vertigem fomentada pelas forças do fora. Então, muitas vezes, a operação nos
modos nomadopolítico e tecnopolítico pode sofrer uma regressão ao polo
paranoico, quando acometida pela intensificação dos processos de
desorganização. O movimento fomentado por esses dois agenciamentos pode
congelar-se em estratos e códigos devido a uma desestabilização insuportável
sentida pelo ser: deseja fixar-se ao estrato para conter as forças intoleráveis
do fora. Retorna para a cena originária porque não conseguiu lidar com as
forças das novas terras.
Trata-se de regressão ao conhecido para não lidar com o novo a conhecer;
fixação ao Édipo soberano ou preso com os pés inchados, ao invés de
transitar como o nômade cego pelo deserto, com suas linhas de fuga
produtoras de novas existências. Sempre se busca uma segmentaridade.
Supõe-se, assim, que a estratopolítica, com suas territorializações forçadas,
está relacionada a uma forma de funcionamento menos sofisticada, a afetos
mais rudimentares e com maior possibilidade de adesão a discursos
totalitários e fantasias coletivas alienadoras. Ressaltamos que não se propõe
um modelo evolutivo, uma teleologia de como ser, mas apenas que a
estratopolítica segue um funcionamento mais primitivo, como a regressão aos
grupos sujeitados (Guattari, 2004b), aos pressupostos básicos de grupo (Bion,
1975), ao grupo na pré-tarefa (Pichon-Rivière, 1986), ou o polo isomórfico
de grupo, fusional, simbiótico, em contraposição aos processos de criação e
simbolização do grupo de trabalho, ou do polo homomórfico (Kaës, 1997).
A insegurança e instabilidade dos processos podem fazer com que estes
se fixem e se paralisem sedentariamente nos territórios conhecidos, em vez de
criar e simbolizar novos processos, mapas e territórios, da mudança e do
deslocamento nômade. Podem fazer com que se atualizem as forças reativas,
ao invés das ativas, perpetuando o niilismo e o ódio ao outro.
Exemplifica-se o funcionamento dos agenciamentos psicopolíticos em
algumas tríades como: fixação, modulação e linha de fuga; manutenção,
produção e experimentação; perpetuação, consumação e demolição;
moldagem, gestão e transformação, e sobrecodificação, axiomatização e
desterritorialização. Ou em três diferentes planos como Guattari (2000)
profere: a Terra, o Capital e o Corpo sem Órgãos. Enfim, se há uma história
universal dramatizada pelo triângulo selvagens, bárbaros e civilizados
(Deleuze & Guattari, 1976), há uma engenharia social maquinada pela tríade
código, axiomática e linhas de fuga, uma diagramática pelos diagramas de
inscrição, captura, disciplina/rendimento e desterritorialização, como também
uma práxis política performatizada pela estratopolítica, tecnopolítica e
nomadopolítica. E exceto a Diagramática, as outras duas atuam pelos três
vértices:
1. Processos de inscrição, codificação e sobrecodificação;
2. Axiomatização e modulação capitalista e
3. Desterritorialização e transmutação.

Cartografamos, no Quadro 5.1, características gerais dos agenciamentos


para visibilizar de forma mais detalhada seus modos de funcionamento.

Quadro 5.1. Cartografias dos agenciamentos psicopolíticos.

Estratopolítica Tecnopolítica Política nômade

Expressão
Extensões Cálculo Intensidades
Substância
Estratos Saberes técnicos Magma, fluxos
Vetor de
Força centrípeta Ressonância Força centrífuga
Forças
Sobrecodificação Axiomatização Desterritorialização
Mecanismo
Fixação Modulação Dispersão
Movimento
Conservação Gestão Transmutação
Manutenção/perpetuação Produção/reprodução Criação/experimentação
Sedentário Exploratório Nômade
Deslocamento
Molar Celular Molecular
Dimensão
Terra Capital Corpo sem Órgãos
Plano
Estriado Equacional Liso
Campo
Estrutura Ondas Multiplicidades
Expressão
Instituído Técnico Instituinte
Momento
Ser/ter/estar/extrair Saber/fazer Devir
Verbo
Posições sociais Eficácia Movimento
Utopia

Tipo
Fixidez Competência Metamorfose
identitário
Paranoico Capitalista Esquizofrênico
Polo desejante

Instituições
Concretas Imateriais Máquina de Guerra
Gestão
Burocracia Tecnocracia Autogestão
Hierarquia
Vertical – poder Vertical - saber/fazer Horizontal
Governo
Imperialismo/populismo Liberalismo Anarquismo
Diagrama
Captura/Soberania Rendimento Autonomia
Democracia
Representativa Técnica Direta
Ideologia
Usa as ideologias Anti-ideológico Abandona as ideologias
Tipo de poder
Potestas Poder para fazer Potentia
Transformação
via Estado via melhor gestão via participação direta
social

A proposta dos agenciamentos psicopolíticos é a de apreender as práticas


políticas sem reduzi-las à intencionalidade de um indivíduo, de coletivos ou
às ideologias. Os regimes de enunciados conectam-se aos agenciamentos,
mas são mera roupagem, em que muitas vezes a prática política de um gestor
é completamente distinta de sua plataforma ideológica. Desse modo,
consideramos que seu funcionamento se dá num campo povoado por distintos
elementos, tanto humanos, como inumanos, que estão em interconexão e
assumem o primado para as práticas políticas. Compreendemos que esse
modelo ultrapassa a exterioridade, e o sociologismo, das ideologias, bem
como transpassa a interioridade, e o psicologismo, das instâncias psíquicas.
Situa-se na dobradiça entre psíquico e social, no entrelaçamento dos
investimentos desejantes com os processos políticos, sem cair num
psicologismo do social, ou num sociologismo do psíquico. Os agenciamentos
psicopolíticos são as formações bifaces decorrentes das relações de forças
articuladas aos investimentos desejantes, conformando distintos tipos de
práticas, diagramas e racionalidades governamentais.
Enfim, essa formulação é uma proposição para tratar da articulação entre
psiquismo, investimentos desejantes e práticas políticas numa ultrapassagem
do sujeito como objeto da Psicologia Política Crítica, para uma perspectiva de
uma transubjetivação maquínica.
Nesse modelo também pode haver a combinação entre os agenciamentos
psicopolíticos, em seus pontos de intersecção, originando distintas formas de
governamentalidade, como está esquematizado na Figura 5.4.

Figura 5.4. Agenciamentos psicopolíticos e suas decorrências


governamentais.
A combinação entre estratopolítica e tecnopolítica gera a
governamentalidade liberal, com seus diferentes dispositivos disciplinares e
de controle de gestão, em que a maquinaria estatal se conjuga à axiomática do
capital. É expressão dessa composição o Estado liberal, da formação
capitalista, configuração hegemônica da atualidade. O segundo tipo de
intersecção, entre tecnopolítica e a nomadopolítica, engendra uma espécie de
tecnopolítica de esquerda, ou uma racionalidade governamental que conjuga
os princípios da autonomia e da autogestão com saberes e técnicas
instrumentais. Há todo um desenvolvimento de saberes e técnicas que prezam
os modos de produção e vivência com base nos princípios de horizontalidade
e igualdade. Consideramos que uma possível realização dessa composição é
expressa na Economia Solidária e no cooperativismo, na Utopia ativa de
saberes e fazeres minoritários que levam à constituição de uma sociedade
horizontal e autogestionada (cf. Singer & Souza, 2000). Finalmente, o
terceiro tipo de combinação é a que conforma a configuração mais estranha e
bizarra. A mistura entre os dois polos contraditórios, estratopolítica e política
nômade, produz uma linha autocrática e abolicionista, como se fosse uma
linha de fuga destrutiva e autoarrasadora. Tal conexão atualiza as potências
de desterritorialização das linhas do fora com as forças da dominação, do
ressentimento e do niilismo. Resulta, assim, na consecução de uma
governamentalidade calcada no fascismo, com a radicalização de seu
potencial destrutivo: abolicionismo e autodestruição total, a consumação do
aniquilamento e a constituição de um deserto inóspito e inabitável.
É o triunfo das forças reativas, da vontade do nada e da
governamentalidade da destrutividade. Forças que levam à morte e ao
autoextermínio (ver Capítulo 6). Em face dessas forças mortíferas, neste
esquema, a única saída possível é pela esquerda, seja traçando as linhas da
nomadopolítica, ou criando as relações solidárias de uma economia
cooperativa.
CAPÍTULO
VI
MICROFASCISMOS E
NEOCONSERVADORISMOS

A desterritorialização e fratura das instituições e valores instituídos fazem


com que os coletivos sociais percam suas referências codificadas. O
desmoronamento do território é vivido de forma traumática, pois sua
estruturação cumpre funções de regulação e apoio, fornecendo sistemas de
significações à existência partilhada. Desse modo, decorrem experiências de
fragmentação que são acompanhadas de sintomas como sofrimento, perda
das fronteiras, dos limites e desenraizamento.
Entretanto, constata-se uma conduta contrária no atual cenário político e
social. Quanto mais há situações de crise, mais se demonstram discursos
fundamentalistas e intolerância em relação ao que é diferente. Ampara-se e
defende-se extremamente a própria opinião, crenças, valores e códigos
assumidos. Há o acirramento e polarização das posições políticas entre
conservadores e esquerda política, em que agressões e rupturas nos laços de
sociabilidade são constantes. Gera-se clara disputa para se provar quem está
correto, mesmo que as opiniões não estejam amparadas num saber refletido e
embasado, e seja uma reprodução de ‘achismos’ ou fake news. Depara-se
com a mesma rigidez de posturas e rechaço ao que é diferente, não apenas no
território da política, mas em todas as esferas da existência. Exalta-se a
própria identidade, religião, gênero, orientação sexual, tomando-se como
fundamento discursos autoritários, fundamentalistas e totalitários, fenômeno
denominado o retorno dos neoarcaísmos, ou neoconservadorismos (Guattari,
2015).
Mas por que retornam? Seu retorno e intensificação, a fixação aos antigos
códigos, parecem ser contraditórios aos fluxos desterritorializantes da
axiomática do capital, pois aparentam ter vetor de forças inverso. Se a
maquinaria social hegemônica promove processos de desterritorialização e
descodificação, por que há o retorno aos processos de codificação e
territorialização? Por que há a coexistência de fenômenos, aparentemente, tão
contraditórios? O pano de fundo do retorno dos neoconservadorismos é a
própria intensificação do neoliberalismo. Não são fenômenos opostos, pois os
próprios fluxos capitalistas produzem o fortalecimento dos neoarcaísmos
subjetivos (Guattari, 2015).
O objetivo deste capítulo é discutir o retorno dos neoconservadorismos,
articulando-o à intensificação dos microfascismos políticos na
contemporaneidade. Inicia-se com uma reflexão sobre a governamentalidade
fascista e sua relação com a destruição de populações, tal como ocorre no
diagrama de rendimento. Em seguida, discutem-se sua micropolítica e
eficácia por meio de um funcionamento molecular, e não apenas molar.
Finaliza-se com a discussão sobre os neoconservadorismos, que se
relacionam com a emergência e triunfo dos extremismos de direita no Brasil,
e a recodificação dos fluxos no cotidiano e corpo do indivíduo.
Governamentalidade fascista

O fascismo surge como um amplo movimento político na primeira


metade do século XX, estando disseminado em países europeus como a
Alemanha e a Itália. É uma governamentalidade das sociedades de
rendimento que parece ser contrária ao movimento da axiomática do capital.
Entretanto, não é uma decorrência contraditória dos fluxos capitalistas, mas
sua contrapartida, seu consorte. Foi uma das formas iniciais de governo das
coletividades sociais em espaço aberto (Deleuze, 2014), pois foi a
prefiguração e um dos resultados da axiomática do capital.
Consideramos que o fascismo emergiu como forma de contenção da
insegurança populacional em relação às agruras da guerra e à propagação da
exploração e miséria intensificadas pelo capitalismo. Surgiu como uma
reatualização da lógica da máquina imperial-despótica, do diagrama de
soberania, como tentativa de capturar os fluxos sociais descodificados pela
axiomática do capital. Mas não como uma ideologia, um conjunto de
representações, senão como uma nova prática, uma modalidade de
funcionamento que visou conectar as multiplicidades dispersas no campo
aberto, modular diretamente os investimentos desejantes das massas. "Dentro
do capitalismo, o Estado fascista foi, sem dúvida, a mais fantástica tentativa
de reterritorialização econômica e política" (Deleuze & Guattari, 2010, p.
342).
O fascismo caracteriza-se por uma noopolítica populacional que institui
limites claros entre interno e externo. Sua gestão da vida valoriza o grupo
interno e deprecia o externo, assumindo práticas de endogenia, rejeição e
eliminação do diferente. Para Deleuze (2014), sua governamentalidade
consiste em três aspectos:

"E aqui, parece-me, a trindade do fascismo: biopolítica racial;


reclamação do espaço vital, isto é, do espaço aberto, de um espaço de
expansão; e denúncia do inimigo, não como outra pessoa, mas como
agente biológico perigoso, como agente infeccioso, ou seja, capaz de
contaminar a raça ou a civilização, a cultura etc. Portanto, o
genocídio se faz em função das condições de sobrevivência da
população que o comete. Trata-se de libertar-se dos agentes
infecciosos. E é em nome da vida no homem e da sobrevivência no
homem que se efetua o genocídio" (p. 376).

Essa modalidade governamental fundamenta-se nas múltiplas


diferenciações e hierarquizações de um povo sobre outro, tanto do ponto de
vista biológico como cultural, ou seja, numa lógica racista, em suas diversas
acepções. Incita uma fixação intensa e irracional às suas normas
sobrecodificadas, utilizando-se da mais-valia de código para operar suas
diferenciações. Há uma demarcação clara entre dentro e fora na constituição
de um espaço vital, na busca por uma raça pura e na adesão a um
nacionalismo exacerbado. Positivam-se as características do endogrupo,
exaltando-se seus traços biológicos, características geográfico-políticas, a
ideia de uma nação única e a promessa de um grande desenvolvimento e
riqueza por vir, caso a união da nação seja consumada. Por isso, do ponto de
vista econômico, opera na fabricação interna de capital que exclui os capitais
estrangeiros.
A busca mitológica da geração da raça pura concebe que, para a sua
própria sobrevivência, o diferente, elemento do exogrupo, considerado como
rival, deve ser aniquilado. O outro – o estrangeiro e o estranho –, por
questões étnico-raciais, ideologicopolíticas ou religiosas, é simbolizado e
visualizado como o inimigo, tornando-se a origem de todos os males
sentidos. A tática de criação de um inimigo comum é muito eficaz para o
estímulo de um gregarismo de um coletivo, por questões conscientes ou
devido a formações regredidas de grupo (Bion, 1975).
Para que o extermínio seja legitimado, esse inimigo tem de ser
desumanizado, colocado como proveniente de uma raça inferior,
‘bestializado’, impuro, como se fosse um corpo infeccioso, que pode infectar
e contaminar a população. Por isso, as práticas de expulsão desses corpos em
espaços de quarentena compulsória, os campos de concentração e de
extermínio populacional são justificados e ocupam um lugar central na gestão
da vida e das populações no nazifascismo. Utiliza-se um paradigma
imunitário e não comunitário, no qual se defende a morte do outro para
garantir a vida do coletivo: o genocídio como prática para a
autossobrevivência.
O funcionamento imunitário é característico do diagrama do rendimento,
pois nele se maneja, tal como nos fluxos de financiamento, uma nova
potência: a da destruição. Erige-se uma guerra total contra o outro, na qual "o
adversário é identificado com o conjunto da população inimiga. [...] trata-se
de uma aniquilação no sentido de destruição radical" (Deleuze, 2017, p.
339).
Diferentemente da sociedade disciplinar, que se caracteriza pelas forças
de produção, a abolição torna-se o procedimento fundamental da gestão da
vida no espaço aberto. De forma análoga à destruição de populações de
moedas pela estratégia neoliberal, que serve para a regulação dos fluxos
econômicos e de investimentos, opera-se a destruição de populações
humanas. A eliminação de determinados fluxos humanos tem como
finalidade a regulação da espécie e do controle da circulação entre as
fronteiras. Portanto, no capitalismo, a vida é manejada tal como os fluxos
financeiros.
Dessa forma, a Indústria da guerra e o extermínio populacional não são
característicos apenas do primeiro momento do capitalismo, com os campos
de concentração do nazifascismo, mas também da atualidade, com as
cruzadas militaristas anti-islâmicas, processos independentistas étnicos que
beiram ao fascismo, a chacina da população jovem e negra residente nas
periferias brasileiras, o intenso controle nas fronteiras e o abandono
intencional de massas populacionais à deriva no grande oceano, em que
centenas de imigrantes árabes e africanos se afogam mensalmente antes de
chegar a terras europeias.
Há, portanto, uma composição destruição/criação das populações de
quaisquer espécies, operação que se destina a uma regulação móvel, calcada
na instabilidade e no destruir/criar. Atua-se num modelo imunitário, de
eliminação daquilo que não se conseguiu modular pela axiomática do capital,
ou que não é considerado útil para o incremento da produtividade: ‘os restos’,
os corpos improdutivos, os corpos matáveis, o homo sacer (Agamben, 2002).
O homo sacer ocupa lugar paradigmático na contemporaneidade, pois
figura o ser considerado matável e insacrificável, isto é, não protegido pela
jurisdição humana nem pela divina. São os corpos considerados descartáveis,
pois não contribuem para a reprodução do capital e não se adéquam aos
códigos sociais instituídos. Corpos que não têm mais-valia em época de
‘corpocapital’ e que são tomados como corpos-dejetos.
Então, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista jurídico, há a abolição
da pena de morte, ocorre também o extermínio de coletividades, o genocídio.
Não se deve assassinar o igual, corpo produtivo em potencial, mas, sim,
exterminar o diferente. Assim, biopolítica racial [17], fascismo e genocídio
estão intimamente relacionados ao diagrama de rendimento. Conjecturamos
que a potência da autodestruição está diretamente ligada à própria
consumação/realização da axiomática capitalista, na produção e reprodução
de corpos cansados, esgotados e zumbis, que se movem sem potência e sem
fruição, ávidos por produzir mais e mais, incessantemente.
Micropolítica do fascismo: ódio e destrutividade

Na esquizoanálise, o ângulo de apreensão do fascismo é ampliado.


Compreende-se que portou uma governamentalidade inovadora, pois
conjugou molaridade e molecularidade. O fascismo não é tomado apenas no
seu âmbito molar, da constituição histórica do Partido Fascista de Mussolini,
ou como forma autoritária e reacionária de gestão do Estado. É apreendido
principalmente em sua dimensão molecular, nos pequenos fascismos do
cotidiano: há uma molecularização do fascismo no tecido social. Está
disperso no território e pode emergir em qualquer momento e contexto, ser
atualizado em qualquer instância. Não apenas nos espaços macropolíticos,
mas nas ações cotidianas nas Instituições concretas, na família, no casal, e
mesmo em um indivíduo consigo próprio. Assim, os microfascismos podem
ser compreendidos como os fascismos moleculares, dispersos e
regionalizados sob a forma das diversas opressões cotidianas: do machista
sobre a mulher, do racista sobre o negro, do heterossexual sobre o
homossexual, do rico sobre o pobre, do professor sobre o aluno, no prazer de
submeter e subjugar o outro. O fascismo possui uma governamentalidade
molecularizada que:

"Passa através da mais fina malha; ele está em constante evolução;


parece vir de fora, mas encontra sua energia no coração do desejo de
cada um de nós. [...] O fascismo, assim como o desejo, está
espalhado por toda parte, em peças descartáveis, no conjunto do
campo social; ele toma forma, num lugar ou noutro, em função das
relações de força" (Guattari, 1981, pp. 188-189).

Além dessa molecularidade, não opera prioritariamente nos processos


cognitivos, tal como a lógica dos códigos, senão na afetividade e nas forças
desejantes dos coletivos sociais de forma difusa e capilarizada: maneja uma
gestão dos afetos. Sua estratégia governamental consiste na mobilização de
uma multiplicidade de desejos reprimidos e dos afetos mais íntimos e
escondidos de um indivíduo (Guattari, 1981). Investe o desejo no polo
paranoico da máquina psíquica e trabalha com uma nova semiotização da
vida. Instila emoções primitivas e rudimentares que incitam processos
regressivos, como a insegurança, o medo e o ódio, para estimular o
gregarismo via códigos instituídos. Essa modelação afetiva se dá por
intermédio de um funcionamento celular, no qual as moléculas se contagiam
umas às outras:

"o fascismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam


de um ponto a outro, em interação, antes de ressoarem juntos no
Estado nacional-socialista. [...] Cada fascismo se define por um
microburaco negro, que vale por si mesmo e comunica com os outros,
antes de ressoar num grande buraco negro central generalizado. [...]
É uma potência micropolítica ou molecular que torna o fascismo
perigoso, porque é um movimento de massa: um corpo canceroso
mais do que um organismo totalitário" (Deleuze & Guattari, 1996, p.
92).
Constata-se que o fascismo não se restringe aos processos de sugestão e
contágio ou de identificação com um líder, descritos respectivamente por Le
Bon (2005) e Freud (1976b). Os focos moleculares agenciam-se a partir de
pontos locais e independentes, que podem ressoar em uma estrutura
macropolítica, constituindo um grande buraco negro, uma máquina fascista
que atua mais por destruição do que por totalização. Sua macroestrutura não
se constitui como um Estado totalizado, de cima para baixo, tal como a
formação imperial-despótica. Não há um soberano que escraviza seu povo
nem a estratégia piramidal da Instituição concreta e da disciplina. Não é o
líder que domina a massa, senão o contrário, ele é resultante e expressão dos
anseios do coletivo, ou seja, seu funcionamento atravessa o molecular ao
molar. As vibrações e ressonâncias das moléculas e focos microfascistas
agitam-se reverberando uma ‘radiação’ que produz ‘células cancerosas’ que
se alastram por contágio e dispersão, independendo de suas distâncias
espaciais e temporais. Tal reverberação dos afetos destrutivos assume uma
perenidade que vai além do comportamento das massas nas manifestações,
não correspondendo a aspectos inconscientes e irracionais, mas, sim,
desejados e afirmados. É um modo de gestão molecular na qual as células
sobrevivem até mesmo quando a cabeça é decepada, isto é, o movimento
continua apesar da ausência de seus líderes. Por isso, o Estado fascista, o
nazifascismo, é diferente do Estado totalitário, da burocracia do socialismo
soviético de Estado. Portanto, o fascismo é uma estratégia governamental que
possui tecnologia sofisticada e eficaz, pois opera como um programa de
modulação das condutas que age por ressonância e propagação. Atravessa os
muros institucionais e mobiliza e gere a energia molecular das populações
dispersas e heterogêneas no campo aberto no território da nação. Assim, não
necessita de práticas de vigilância, exame ou correção, nem encerrar as
populações num espaço fechado, tal como no diagrama disciplinar.
O ódio ao diferente é a afecção principal do desejo fascista, o qual
conforma a consistência do seu laço social. A sociedade passa a ser gerida
por moléculas de ódio e destruição que estão disseminadas a tal ponto que se
constituem regimes de autointoxicação e despotencialização. Seu quantum de
destrutividade decorre de efeitos:

"[...] de buracos negros coletivos que captam as energias de desejo


num processo infernal de desterritorialização, desencadeando um
louco desejo de extermínio de tudo que escapa à norma comum e
levando inclusive a uma vontade de autoabolição, para terminar de
uma vez por todas com o desejo, no paroxismo último de uma
explosão de desejo" (Guattari, 2013, p. 127).

Há uma força de gravitação coletiva que atrai e amplifica os


investimentos desejantes nas forças reativas de ressentimento e destruição.
Estimula-se o desejo intensificado pela abolição e extermínio do diferente;
sobre aquilo que não se coaduna com as normas codificadas. Dessa
perspectiva, constata-se que Reich foi mais preciso que Espinosa. As massas
populacionais não desejaram a servidão, não foram enganadas (Deleuze &
Guattari, 1976). Mobilizaram-se aspectos que fizeram com que desejassem a
destruição e o aniquilamento do outro diferente. Entraram em ressonância
desejando atuar sobre os fluxos de populações humanas que deveriam ser
excluídos e destruídos. Almejaram o fascismo, numa noopolítica
populacional de extermínio, independendo de quem fosse o líder.
Contudo, há um segundo movimento do fascismo, quando o
ressentimento se interioriza e torna-se má consciência. Há o desejo de
abolição do outro, mas também de uma autoimplosão, um movimento de
autoabolição, no tracejar de uma linha de fuga abolicionista. Destruição e
extermínio generalizado: ódio ao outro e a si próprio. O fascismo é a
atualização política do niilismo e da vontade de nada.
Dessa forma, os microfascismos atualizam as forças reativas de
destrutividade e do niilismo. As forças desejantes são direcionadas à fixação
aos estratos, gerando configuração cristalizada, conservadora e reacionária e
com um elevado coeficiente de territorialização (cf. Capítulo 2). Os fluxos
desejantes sofrem grande força gravitacional em torno do estrato ou código
escolhido, desejando a conservação e perpetuação deste, mas com a
consequente destruição do outro.
Por isso, há o desejo pela conservação e fixação aos estratos, códigos e
símbolos instituídos, tornando difícil a mudança e a transformação e
negando-se outras territorialidades. Decorrem disso condutas altamente
codificadas e estereotipadas e um sistema intolerante à abertura. Atua-se com
um alto grau afetivo, mas com respostas racionalizadas para tudo e um
discurso único e autoritário. É a estratopolítica que traçou uma linha de fuga
abolicionista. É como se operasse com o pressuposto básico de ataque e fuga
(Bion, 1975). Ataca-se o diferente e erigem-se defesas e escudos para não
lidar com a indeterminação e a incerteza. É uma conduta na qual, muitas
vezes, há uma dissociação entre desejo e representações conscientes, que gera
processos contraditórios. É por esse motivo que: "É muito fácil ser
antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que
entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas"
(Deleuze & Guattari, 1996, p. 93).
As moléculas fascistas possuem uma valência de fácil combinação com
outras moléculas. Ressoam na mesma onda e conjugam-se, amplificam-se e
constituem novas molaridades. Células cancerosas que se multiplicam por
irradiação, que surgem a qualquer momento e em qualquer lugar do corpo e
podem levá-lo à destruição.
Não é à toa que, na atualidade, o câncer é a enfermidade mais temida. É a
doença que é expressão desta época, que aterroriza não apenas no nível
biológico, mas igualmente no âmbito social. Propaga-se no nível horizontal,
alastrando-se como um rizoma destrutivo, sem centro, limite demarcado nem
fim. Não possui tronco, eixo comum, cabeça, então não precisa de líder, pois
cada célula sadia, de uma hora para outra, pode sofrer a mutação e tornar-se
uma célula cancerosa, e assim contaminar as outras. É a morte que vem de
dentro, e não de fora. Bombas-relógio, autodemolição da vida, o fascismo
pode emergir em qualquer um, até em nós próprios. As faces do ódio
emergem como equipamentos de mobilização e segregação política.
Neoconservadorismos: extremismos de direita e
recodificação do cotidiano
Atualmente, constata-se grande número de coletivos sociais fascistas
surgindo e tomando força, ressoando e amplificando o mesmo discurso
codificado, com um caráter altamente conservador e destrutivo,
independendo das ideologias que assumem. A vibração das moléculas
fascistas intensifica-se, ocupando espaço novamente no cenário
macropolítico. Com sua intensificação, há a emergência dos
neoconservadorismos, a centralização de poderes em líderes carismáticos e a
maior legitimação de Instituições religiosas, policiais e forças militares.
O surgimento da onda de movimentos de extrema-direita, a xenofobia e
os nacionalismos identitários, que levam aos movimentos de separação
territorial, obedecem aos mecanismos supracitados de recodificação dos
fluxos sociais. O Brexit, saída do Reino Unido da União Europeia, a Jihad,
guerra santa, promovida por grupos islâmicos, o muro de Donald Trump, o
rechaço europeu aos imigrantes são movimentos moleculares e molares que
portam esses mesmos movimentos de fixação e captura na colagem intensa a
determinados repertórios de códigos. Os nacionalismos aparecem
discursivamente como meio de ‘resistência’ das culturas minoritárias ao caos
do neoliberalismo, mas, em alguns casos, propagam-se e comportam-se de
forma microfascista e neoliberal radical. São práticas que conjugam em si
autonomia, neoliberalismo e fascismo. Há, assim, uma reterritorialização
intensa a significantes e códigos, na qual pode existir a adesão a ideias e
regimes conservadores e totalitários como mecanismo de ancoragem.
Desse modo, os extremismos figuram como uma forma defensiva à
situação de crise radical, em que se busca a recodificação dos processos, não
apenas em sua molaridade, mas também em sua molecularidade.
Consideramos que o sentimento do caos da indiferenciação e esgotamento,
que gera um terror sem nome que toma o corpo, impele indivíduos e
coletivos a uma reterritorialização maciça. O investimento desejante é
direcionado ao polo paranoico (cf. Capítulo 5), buscando adesão imediata a
qualquer sistema de códigos, visto que há a ausência de mediações [18] para
lidar com as experiências de crise. Gera-se fixação intensa aos estratos
instituídos, imagens de pensamento e instituições que ocupam a função de
próteses psíquicas (Kaës, 1979). Essa tentativa de contenção do mal-estar
ocorre como um processo de identificação de urgência (Kaës, 2011), que se
configura como um mecanismo de continência com a finalidade de
estabilização dos processos psicossociais.
Nesse sentido, a fixação e reterritorialização são realizadas em qualquer
estrato, seja na exaltação da identidade, fetichização do corpo, dogmas
religiosos, seitas alternativas, discursos fundamentalistas e ortodoxos,
nacionalismos identitários, normas, a Moral ou em posições políticas
fascistas. Os códigos passam a ressignificar a existência e o ser, a determinar
o que era indeterminado, assumindo o estatuto de verdade inquestionável.
Cumprem a função psíquica de regulação, estabilização e paralisação dos
processos, diante dos fluxos desterritorializados do capital. Atuam como os
rituais de reterritorialização do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC),
como forma de interrupção das forças do fora, escudo e anestésico diante da
vertigem do real.
Essa adesão é tão elevada que se assemelha a uma sutura psíquica de
urgência, resultando numa espécie de hiperterritorialização em significantes
que se tornam ‘despóticos’. O pensamento e o desejo ficam capturados pelos
dogmas estratificados de fundamentalismos diversos, nas imagens instituídas
dos neoconservadorismos.
A ancoragem nos códigos e significantes despóticos faz com que os
coletivos reterritorializados se fechem aos acontecimentos diferenciais do
fora, enclausurando-se em seus códigos reinstituídos, para evitar a variação
intensiva do real. O indivíduo que está estratificado "tem horror ao turbilhão
de linhas em sua pele" (Rolnik, 1997, p. 17). Amedrontado pela
multiplicidade das forças do fora, tende a negá-las, a cerrar o corpo para que
não o afetem, numa tentativa de alienar-se e não se defrontar com o caos. Os
códigos assumidos tornam-se sua couraça, sua defesa, para lidar com as
indeterminações e excessos da existência. Quanto mais se sente ameaçado ou
frustrado, mais recorre a seu sistema de códigos, à sua prótese psíquica. Ao
se sentir impelido no turbilhão da indeterminação, lançado à deriva dos
movimentos, mais afirma seu porto seguro, sua zona de conforto e tenta
fixar-se num território cristalizado. Esse funcionamento é similar à
dependência e adição a alguma droga, bem como à própria identidade
(Rolnik, 1997).
O código, além de proporcionar regulação psíquica, cumpre função de
diferenciação do outro. O que não corresponde ao código assumido é
criticado, rechaçado: atua-se na lógica da negatividade. Não se aceita o
código do outro se este não entra em grau de coerência e homogeneidade com
o conjunto de códigos que o Eu assume. O dogma codificado coloca o
indivíduo em uma posição imaginária de superioridade em relação àqueles
que não partilham dele; funciona como marcador de poder. Por isso, as
discussões políticas cotidianas, que tratam de debates entre diferentes códigos
dogmatizados, tornam-se disputadas e tensas.
No Brasil, as manifestações pelo impeachment da ex-presidente Dilma
Rousseff e o apoio popular à campanha presidencial de Jair Bolsonaro são
exemplos emblemáticos da emergência dos neoconservadorismos e
microfascismos. Foram perpetrados com a finalidade de reasseguramento do
poder do Estado nas mãos das corporações empresariais, para efetivar a
transição final do modelo estratopolítico ao tecnopolítico. Para tanto,
incitaram o ódio e a intolerância de parte significativa da população à
presidente eleita, ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao establishment de
forma geral, conjugando o declínio do crescimento econômico, práticas de
corrupção generalizada, a depreciação da esquerda política e a imagem de
uma mulher não carismática e pouco empática no poder do Estado. Essas
manifestações assumiram as duas faces da moeda capitalista: a neoliberal e a
neoconservadora-regredida.
O perfil neoliberal refere-se à afirmação exaltada e orgulhosa do
diagrama do rendimento. Reitera os princípios do capitalismo, lutando contra
as políticas sociais do governo e de um partido da esquerda política.
Posiciona-se também contra as instituições políticas tradicionais, clamando
pelo fim do Congresso, do Senado e até do Supremo Tribunal Federal.
Compreende que o sistema público somente acarreta prejuízos e deve ser
enxugado, senão extirpado. É a luta política do neoliberalismo contra a
social-democracia, a expressão declarada e intensificada do projeto neoliberal
reinante, embora falaciosa.
O perfil neoconservador foi o que teve maior êxito na mobilização das
massas populacionais. As manifestações intolerantes e microfascistas que
reivindicam a intervenção militar, a defesa da família e ações contra o
marxismo e a ‘ideologia de gênero’ nas escolas são sintomas da tentativa de
recodificação e identificação de urgência devido à indeterminação e
insegurança sofridas em razão da desterritorialização dos fluxos sociais e da
crise da subjetividade capitalista. Bradar pela disciplina, atualizada no
exército, família e religião, é um mecanismo defensivo para lidar com a crise
e o desconhecido. Pede-se o retorno das normas e formatos instituídos, pois
não se consegue suportar as transformações do cotidiano arrastadas pelos
fluxos neoliberais.
O ideal totalizante, imaginariamente, é visto como uma forma de salvação
ante as ansiedades primitivas que circulam: o messias. É um modo de atuação
bastante regredido, do ponto de vista cognitivo e afetivo. Há uma regressão e
codificação em estratos mais rígidos que impedem quaisquer processos de
mudança. Perante as incertezas trazidas pela tecnopolítica, investe-se
novamente na estratopolítica. Entretanto, não se trata apenas de uma adesão
massiva a determinado regime de códigos para se amparar, mas
principalmente da criação de bodes expiatórios (Pichon-Rivière, 1986) para
se culpar, a criação da vítima sacrificial (Girard, 1990).
O mal-estar é depositado no outro, que se torna depositário das
vicissitudes vividas. O afeto mais presente nessa expiação é o ódio à
diferença. Hostiliza-se o que se teme, se desconhece e que nega a si próprio.
Nutre-se o ressentimento e o desejo de destruir, negar, excluir e eliminar
intensamente o outro. Pode-se afirmar que, quanto maior a hostilidade com a
diferença, maior é o índice de intolerância, regressão e existência de maiores
contradições sociais. Por exemplo, quanto maior é o machismo, maior é a
estratificação da sociedade em diferentes segmentos sociais.
Por tais razões, consideramos que as manifestações a favor do
impeachment não buscaram a mudança e a transformação social, senão a
manutenção da configuração das forças instituídas da axiomática do capital.
Foram movimentos que almejaram a conservação e a reprodução, seja da
lógica estatal, da subjetividade capitalista, ou a tentativa de continência do
mal-estar experienciado, mesmo que para isso fosse necessária a destruição
do outro.
Reiteram-se os diagramas de forças hegemônicos de captura e de
rendimento, adotando-se prática tecnopolítica ou estratopolítica. Essas
manifestações não lutaram pela transformação do diagrama, mas, sim, pela
sua perpetuação por meio das forças reativas e do niilismo. Contudo, ao invés
de eliminarem o mal-estar proveniente do diagrama do rendimento,
intensificam-no, despotencializando-se ainda mais.
Vale ressaltar que não há apenas uma codificação microfascista de direita,
como também de esquerda. Mesmo aqueles que estão na posição de vítimas e
combatem uma injustiça podem atualizar os microfascismos. Os códigos
conscientes são variáveis e independentes em relação à máquina desejante,
então podem atrelar-se ao polo paranoico, conformando o mesmo
investimento desejante de fixação ao estrato e ódio ao outro diferente.
O discurso consciente pode ter um matiz revolucionário, mas se aparelhar
de forma microfascista. Por isso, o pensamento e a prática de alguns
movimentos sociais identitários deixam de ser plurais para se tornarem
segmentários. Em vez de seguirem a diferença e a multiplicidade de uma
política nômade, recaem nas segmentaridades da estratopolítica. Ao invés de
se abrirem à pluralidade do campo do debate político e social, fecham-se e
enclausuram-se no próprio grupelho, reproduzindo uma linguagem e
comportamento quase religiosos e fundamentalistas.
As políticas da inclusão e da igualdade podem converter-se em exclusão e
desigualdade. Da inclusão de si, do próprio código, para a aniquilação do
diferente. Deixam assim de ser múltiplos, para se tornarem antagonistas, no
mesmo movimento de recodificação supracitado. O código partilhado pelo
grupelho é considerado superior aos outros códigos políticos, que, nessa
perspectiva, devem ser rechaçados. As forças reativas triunfam, fomentam o
ressentimento e a destrutividade do outro. Por exemplo, a potência instituinte
de alguns feminismos pode cair em microfascismos à la Valerie Solanas
(1968), ou outros movimentos sociais assumirem comportamento
convergente. Não se deve olvidar que, no investimento desejante
microfascista, há até certo gozo de entrar em oposição, ao invés de
estabelecer relações de composição. Há infinitos tipos de
neoconservadorismos [19] difundidos por aí, que são trocados por outros com
certa rapidez.
Compreendemos que a intensidade desse fenômeno também está
relacionada ao coeficiente de territorialização, que opera como garras de
fixação ao território, qualquer que seja. Um agarramento que proporciona
ancoragem em face da vertigem e ansiedade diante do movimento e
desmoronamento dos códigos. Sua quantidade elevada pode estar relacionada
ao quantum do medo de desagregação e emergência das ansiedades
(auto)destrutivas. O temor de despersonalização, exclusão e não
reconhecimento faz com que o indivíduo assuma conduta de congelamento
dos fluxos: apega-se irrestritamente ao primeiro conjunto de códigos a que
tem acesso. Códigos que façam sentido para si, sejam novos ou velhos, ou
que proporcionem o que considera um melhor viver, uma nova dietética, ou
mesmo que atualizem a axiomática do capital.
A ‘novidade’ do código é importante. Então o ‘novo’ regime de
enunciados é adotado massiva e maciçamente como um dogma irrefutável e
absoluto: torna-se total e totalitário. Nunca é objeto de suspeição, é pouco
racionalizado e objeto de adesão extrema e apaixonada.
No âmbito corporal, os processos de contenção e de identificação de
urgência são constatados na necessidade de inscrições corporais, seja de
músculos volumosos e demarcados, tatuagens padronizadas, cirurgias
estéticas, plásticas e implantes na região peitoral, glúteos, panturrilhas etc.
Constitui-se um microfascismo corporal em que a gordofobia é o novo
imperativo de exclusão. Já a tatuagem cumpre uma função de territorialização
do corpo em tempos de indiferenciação, de registro de traços na carne que
visam significá-lo, tal como no diagrama de inscrição: a constituição de um
regime de visibilidades.
A selfie [20] cumpre a mesma função de inscrição em tempos de
desterritorialização: a tentativa ensandecida de cristalizar-codificar momentos
da ‘rostidade’ perfeita, feliz e sorridente, nesse corte de fluxo que é a foto,
torna-se premente. ‘Rostificar’ o corpo, reproduzir a ‘boa cópia’
insistentemente como forma de defesa ao caos da indiferenciação. Afirmação
adicta e reiterada à ‘rostidade’ do Eu identitário. Codificação do rosto e rosto
codificado que devem ser repetidos e cristalizados.
A face triste dá lugar ao sorriso para apenas aparecer na foto e simular a
felicidade, como riqueza abstrata aos outros, para idealizar um momento que,
muitas vezes, não foi vivido com alegria. Até que, no futuro, ao se rever o
registro fotográfico, se sentirá certa nostalgia daquilo que não foi
experienciado, mas simulado. Tende-se a valorar que aquele momento
passado, além de ser melhor do que foi, é ainda melhor do que a vida
presente. Fica-se com saudade de um bom momento que, no instante vivido,
não foi tão bom e enganado por uma ficção que, em muitos casos, é
positivada, ao passo que o real vivido é negativado. O sorriso torna-se o novo
significante despótico em tempos de microfascismos.
Consideramos que as personagens retratadas por Botero são a expressão
dessa fixação e enclausuramento subjetivos deste período. O artista
colombiano não retrata meras figuras obesas, mas, sim, a representação
pictórica do homem contemporâneo. Nelas não há somente gordura, mas
também uma força centrípeta sobre si que as fazem ficar roliças e inchadas
como um planeta. Não são moles, mas rígidas. São a gravitação de tudo sobre
o Eu, a tal ponto que ficam com o olhar idiotizado, pois nada mais veem. Não
há o que olhar ou perceber no exterior e na diferença, se tudo que importa
parece estar contido no interior, gravita em torno do Eu. O presidente,
dançarinos, todos idiotizados. À exceção de Músicos e Mona Lisa, que
expressam algo ao exterior, e, principalmente, Manuel Marulanda, o Tirofijo,
que assume olhar firme e lutador diante da apatia social.
Por outro lado, a clausura do ser também é expressa pelo seu contrário,
não apenas por uma autogravitação que faz com que os corpos se tornem
inchados e orbitem em volta de si, mas pela repulsão de tudo que lhe é
externo. O corpo anoréxico e bulímico é expressão da clausura do ser, em que
se rechaça a entrada de qualquer elemento externo no interior da mônada
corporal. Caso entre, é violentamente expulso e regurgitado. Não se busca um
corpo perfeito que siga a norma da beleza instituída. Há uma fixação numa
utopia inatingível, de negação dos corpos estranhos que podem afetar o
próprio soma. Pretende-se um esvaziamento radical das intensidades. Criar
um deserto inabitável e vazio, que é linha de fuga abolicionista,
autodestruição; grau de afecção zero que gradativamente leva ao esgotamento
da vida.
Os microfascismos estão propagados no campo social com diferentes
roupagens e são o sinal dos tempos. Afirmação de si e destruição do outro;
em seu limite, autodestruição de tudo. Propagam-se e ressoam tal como ondas
eletromagnéticas radioativas, mas como as do segundo tipo: as ionizantes.
Sua vibração e agitação esvaziam e subtraem as moléculas que afetam,
transformando-as em células cancerígenas, as quais infectam outras, fazendo
com que o tumor se expanda e mortifique o próprio corpo social. Marcam a
crise e o declínio do diagrama do rendimento e da subjetividade capitalista,
sendo o sintoma da transição para um novo diagrama de forças.
Se Auschwitz foi a dobradiça para o diagrama de rendimento, Tchernóbil
expressa o fim deste diagrama e a transição para o porvir. Também se pode
afirmar que o acidente com Césio 137, em Goiânia, marca a articulação entre
os diagramas. Não ocorreu de forma espetacular ou explosiva. Foi caseira,
quase periférica: no cotidiano da cidade, abriu-se uma cápsula radioativa. O
brilho do pó radioativo encantou aqueles que a encontraram, sem imaginar a
morte potencial que contaminou o ambiente e ceifou vidas. Transmissão
etérea e imperceptível. Aquilo que otimizaria e embelezaria a vida trouxe
sofrimento, morte e corpos cancerosos. Não ocorreu dentro dos muros da
usina, mas num recanto qualquer da cidade, no campo aberto, em qualquer
momento, sem aviso ou espetáculo midiático. A morte, o foco microfascista,
pode vir de qualquer lugar, a qualquer hora, ao ar livre, eliciada não pelo
inimigo, mas pelas forças que supostamente produziriam a vida.
Os campos de concentração e o Estado de exceção dão lugar às ondas
eletromagnéticas e radioativas no campo aberto. Irradiação que nos faz pulsar
a tal ponto que resulta no esgotamento dos corpos, via utopia do rendimento
máximo ou nos cancros abolicionistas microfascistas. A crise contemporânea
é expressão do declínio de um diagrama de forças para o surgimento de
outro, ainda por construir e conhecer. Mas quais são as possibilidades de
transmutação?
CAPÍTULO
VII
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E
NEOCOLONIZAÇÃO

O Estado é a formação concreta fundamental para a gestão social.


Concretiza e é concretizado pelo movimento de codificação do socius,
conservando e mantendo os códigos e fluxos sociais estratificados. Assume
estrutura estratificada e cumpre função de ordenação, fixação e permanência.
Etimologicamente, denota a questão do repouso: Estado = estático = parado.
É uma máquina formada por uma segmentaridade dura, rígida e molarizada,
que faz com que esteja atrelada à perpetuação dos movimentos, ao invés de
mudanças efetivas e transformações. "O Estado é exatamente o que a palavra
sugere: um bastião contra a mudança, contra o fluxo do fazer, a encarnação
da identidade" (Holloway, 2003, p. 115).
Em seu momento inicial, a conformação estatal decorreu do diagrama de
forças de captura. Mas com a intensificação da axiomática do capital, houve
uma modificação: agora funciona prioritariamente pelo diagrama do
rendimento. A transição entre diagramas de forças e o consequente
desenvolvimento de distintas formações concretas, como os mecanismos
disciplinares e de controle na gestão da vida, desterritorializaram o Estado.
Tiraram-no de sua estruturação monolítica para uma configuração
descentralizada, regionalizada, difusa e mais presente no espaço cotidiano.
Não assume mais uma constituição totalitária e centralizada, senão uma
conformação híbrida, difusa, ramificada e capilarizada.
Desse modo, a gestão da vida e do Estado passa por uma transição de
agenciamentos: de uma atuação eminentemente estratopolítica, para a
operação tecnopolítica, da lógica soberana à liberal.
Na transição de diagramas de forças na aparelhagem do Estado, foi
inventada nova tecnologia de gestão da vida, denominada políticas públicas.
Estas vêm sendo positivadas nos discursos de intelectuais e entidades de
classes profissionais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP),
enquanto forma de contribuição para o compromisso e transformação social.
Por isso, o CFP adotou como slogan “Psicologia e Políticas Públicas”.
Contudo, a discussão sobre as políticas públicas, como aparatos estratégicos
no governo da população, deve ser desenvolvida e não meramente positivada.
Como se trata de práticas de Estado, cumprem função de gestão da vida e da
sociedade civil. Que diagrama de forças atualizam? Seguem as demandas dos
movimentos sociais, ou não? Este capítulo visa discutir a nova configuração
da gestão estatal e o lugar que as políticas públicas ocupam nessa
governamentalidade.
Ressalta-se que, nas políticas públicas, os saberes psi cumprem função
primordial, pois funcionam como repertório de conhecimento e técnicas de
gestão e intervenção social. Mas sua utilização nas práticas de gestão fomenta
processos de autonomia e a almejada transformação social? Qual é o
posicionamento político que assumem?
Estado estratopolítico

Tradicionalmente, o Estado é compreendido, em sua concepção molar e


macropolítica, como uma máquina de repressão que permite aos grupos
hegemônicos assegurar a dominação sobre os trabalhadores, para submetê-los
ao processo de extorsão da mais-valia. É o aparelho que serve como força de
execução e intervenção repressiva da classe dominante e que é formado pelas
instâncias jurídica (política, tribunais e prisão), repressiva (exército e polícia)
e ideológica (mídia e escolas). Maquinaria que perpetua as relações de poder
e executa tarefas políticas como a gestão do território, sociedade e pessoas.
Entretanto, no âmbito molecular, age primordialmente pela
sobrecodificação dos fluxos sociais e de semiotização dos afetos e formas de
ser. Opera por processos de conservação e captura, nas mais variadas
instâncias. Estratifica os fluxos em códigos, canaliza os investimentos
desejantes, reproduzindo segmentos rígidos, identidades fixas e estáticas. Por
meio da codificação e disciplinarização, transmite imagens de pensamento e
normas que devem ser reproduzidas, inscrevendo e reduzindo as
multiplicidades a uma lógica dicotômica. "O Estado proporciona ao
pensamento uma forma de interioridade" (Deleuze & Guattari, 1997b, p. 44),
capturando-o. Atua diretamente nas políticas da cognição difundindo imagens
e significantes que são reproduzidos como as formas corretas de pensar,
sentir e agir. Sua imagem de pensamento é a da hierarquia, estrutura, árvore,
norma, família, propriedade, castas ou classes sociais, formas que são
reforçadas e moldadas pelos códigos das instituições.
A hierarquia é uma imagem de pensamento naturalizada, tal como o
imperativo da existência de um chefe, líder, ou mesmo do Estado. Esses
modos de pensar são cristalizados, tomados como primeiros, sem o exercício
de uma suspeição. Legitimam-se em sua repetição: são formas pressupostas
na existência do ser.
Em tal configuração, não há apenas a estratificação do pensamento, mas
também do desejo. Os investimentos desejantes são dirigidos a esses estratos
e formas pressupostas, estando aparelhados no polo paranoico, no
agenciamento estratopolítico. Assim, os indivíduos passam a desejar os
estratos, normas e lugares de poder e ficam enlaçados aos seus padrões
sociais, valorativos e de pensamento.
O Estado realiza uma prática soberana que tem função capturante e
ordenadora. Possui um alto coeficiente de territorialização que trabalha por
dois vetores: pela força centrípeta de gravitação e também pela força
centrífuga de ressonância. Ao mesmo tempo em que exerce a força de um
buraco negro, criando elipses de orbitação sobre si, ressoa imagens de
pensamento, códigos, formas de conduta e investimentos desejantes que
mantêm os laços de captura e codificação. Por meio desses processos,
consolida uma padronização nas formas de pensar, sentir e agir, inscrevendo
condutas e práticas. O Estado torna-se "parte do firmamento fixo do caráter
do ser" (Holloway, 2003, p. 140).
Dessa forma, resulta também uma modalidade subjetiva atrelada a esse
agenciamento, codificada numa lógica estatizante, na qual a heteronomia
social está diretamente articulada à heteronomia psíquica.
Em razão desse modo de funcionamento, é impossível a existência de um
Estado de esquerda. No máximo, pode haver um Estado permeável a algumas
demandas da esquerda política (Deleuze, 1994), pois, mesmo que um partido
de esquerda assuma o poder do Estado, a lógica de captura estatal permanece.
Mesmo que haja um novo discurso político, perpetua-se o diagrama de forças
do Estado que remete a características de fixação e conservação. Os
conteúdos ideológicos e discursivos não são condição suficiente para
transformar o Estado (cf. Capítulo 5). Holloway, inclusive, afirma que as
revoluções socialistas fracassaram devido ao equívoco de sempre
pretenderem tomar o poder do Estado.

"Uma vez que a lógica do poder se converte na lógica do processo


revolucionário, uma vez que o negativo da rejeição se converte no
positivo da construção do poder. [...] Não se pode construir uma
sociedade de relações de não poder por meio da conquista do poder.
Uma vez que se adota a lógica do poder, a luta contra ele já está
perdida" (Holloway, 2003, p. 32).

Então, na conexão entre esquerda política e Estado, não há revolução, ou


transformação social. As experiências da esquerda no Estado fracassaram
pelo fato de não ter criado um diagrama alternativo de poder, uma nova
racionalidade governamental (Foucault, 2008), restringindo-se a reproduzir a
mesma governamentalidade. Em alguns casos, a dominação foi até mais
intensa que outrora, já que reatualizou a codificação e opressão contidas nos
estratos estatais que remetiam às máquinas imperiais, na atualização do
diagrama de captura como forma totalitária de domínio dos fluxos de
quaisquer espécies, como o ocorrido na antiga União Soviética e na Coreia do
Norte. Atualmente, nos diversos governos da esquerda política nos países da
América Latina, também não se constituiu um Estado que promovesse a
transformação social, somente governos que geriram os fluxos capitalistas de
um Estado neoliberal, mas ligados a algumas reivindicações dos movimentos
sociais, as quais, obviamente, não entravam em regime de oposição com a
axiomática do capital.
A transformação social não se dá pelo Estado, pois não se pode mudar o
mundo por sua ocupação (Holloway, 2003), com a reprodução do mesmo
diagrama de forças e códigos. A mudança só acontecerá pela constituição de
outras relações de forças que prescindam da heteronomia, em direção a
processos de autonomia que se situem à margem do Estado e das formas de
poder e dominação. Trata-se de transformar o mundo sem querer partilhar
dos mesmos códigos e forças do diagrama de captura, de mudar o mundo sem
tomar o poder – potentia e não potestas.
Por isso, Lenin (1983) e outros revolucionários defendem a destruição do
Estado e a constituição da Comuna e do homem novo: a criação de uma nova
lógica, de um novo agenciamento psicopolítico. Devem-se mudar o
agenciamento maquínico, as relações de forças e investimentos desejantes.
Incitar uma política nômade, um diagrama de forças disruptivas e criadoras, e
não permanecer na lógica de fixação do desejo ao polo de captura paranoico,
à prática estratopolítica.
Estado tecnopolítico

O triunfo da axiomática do capital trouxe maior velocidade e potência à


vazão dos fluxos, concomitantemente aos movimentos de desterritorialização
e axiomatização. Na segunda fase do capitalismo, a especulação sobre os
fluxos financeiros torna-se mais importante que a mera produção e
acumulação. A maquinaria de rendimento passa a determinar as distintas
formas de atuação e afetou até o Estado. Mas, diferentemente do que o
pensamento pós-moderno defende, não há o fim do Estado, ele não
desaparece nem se torna acessório. No novo diagrama de forças, tal como os
códigos e disciplinas, a estrutura estatal é arrastada pelos fluxos capitalistas,
assumindo nova configuração. A instituição estatal transforma-se e seus
códigos e funcionamento são reconfigurados, formando o Estado neoliberal,
ou Estado tecnopolítico.
O Estado, em seu momento inicial, na máquina imperial-despótica, foi
resultante do diagrama de forças de captura. Atualmente, na acoplagem entre
aparelho de captura e axiomática do capital, coexistem as forças dos
diagramas de rendimento e de captura, que geram uma composição mais
poderosa e dominante: uma megamáquina de captura. Sua
governamentalidade ocorre com a atuação de engrenagens heterogêneas:
captura pela codificação e ressonância da equação neoliberal. Nessa conexão,
o Estado deixa de ter como função principal os processos de sobrecodificação
dos fluxos sociais. Toma para si o novo papel de regulação/incitação dos
fluxos sociais descodificados, na lógica da estratégia neoliberal. "Os Estados
não são mais absolutamente paradigmas transcendentes de uma
sobrecodificação, mas de modelos de realização imanentes para uma
axiomática dos fluxos descodificados" (Deleuze & Guattari, 1997b, p. 154).
Nessa conformação, na qual continua como aparelho de captura, é adicionada
a atribuição de regular a axiomatização dos fluxos descodificados.

"Os Estados modernos da terceira era restauraram bem o império


mais absoluto, nova ‘megamáquina’, seja qual for a novidade ou a
atualidade da forma tomada imanente, realizando uma axiomática
que funciona por servidão maquínica tanto quanto por sujeição
social. O capitalismo acordou o Urstaat, e lhe dá novas forças"
(Deleuze & Guattari, 1997b, p. 160).

O Estado tecnopolítico, enquanto atualização da lógica de mercado no


estrato estatal, modula e incita os fluxos financeiros e de financiamentos,
estipula taxas, como a de juros, inflação e impostos, media a negociação entre
nações e empresas, adota medidas e políticas para conter déficits financeiros
e cambiais, controla os sistemas de créditos e dívidas, cria e destrói o
quantum de moedas; ou seja, de forma alguma há supressão da função do
Estado diante da política econômica de mercado, como é propagado no
falacioso discurso neoliberal. Não há sistema de livre mercado e comércio
sem regulações estatais. As grandes corporações empresariais estão
incrustadas ao Estado (ou o gerem), e não é à toa que, frequentemente, lhes
são perdoadas dívidas bilionárias. O capitalismo nunca foi liberal, sempre foi
capitalismo de Estado (Deleuze & Guattari, 2010). Estado e capitalismo não
são instâncias contraditórias, são engrenagens de maquinarias distintas
acopladas. O aparelho de captura ramifica-se, eterealiza-se e é arrastado pela
axiomática do capital, constituindo-se uma maquinaria com maior poder de
ação. Nessa composição, em que as ações do Estado saem do primeiro plano
e tornam-se invisíveis, imaterializam-se, as relações econômicas assumem o
primado e modulam as práticas políticas. A razão governamental deixa de ser
guiada por ideologias, crenças políticas ou pelas aspirações dos grupos
governantes, bem como os sistemas político, jurídico e militar também
perdem primazia nos processos de governabilidade.
Não apenas o Estado, mas também a população e até os movimentos
sociais, padecem da servidão maquínica à modulação da axiomática do
capital. No diagrama de rendimento, todos são modulados por uma indústria
da gestão social, política, subjetiva, desejante e corpórea calcada no modelo
do maior rendimento, da máxima eficácia: opera-se com base na
tecnopolítica. O indivíduo transforma-se uma célula empresarial, na qual a
subjetividade capitalista é hipertrofiada, numa extrapolação sem limites, para
uma constante e perpétua superação (cf. Capítulo 4).
O ideal da hiperprodutividade em todos os âmbitos da vida incita a
concorrência, a lógica de empresa e a desigualdade social e individual. Isola e
opõe os indivíduos numa lógica competitiva, despotencializando a produção
política coletiva. Nesse contexto, há o declínio do debate e da participação
política, que leva à diminuição da potência de ação, de insurgência e o
esvaziamento da pujança desejante e crítica dos coletivos, tornando mais
eficaz o governo das condutas.
Participar de reuniões e manifestações políticas é visto como perda de
tempo, pois, ao invés de investir horas ali, o indivíduo julga que poderia estar
trabalhando, produzindo. Prefere utilizar seu tempo para gerar fluxos
financeiros, visto que os espaços políticos não são a priori rentáveis
economicamente. Então, a política passa a ser apreendida de outra forma, não
mais como o exercício de autogoverno de um coletivo. Torna-se ou perda de
tempo, ou negócio que segue a lógica capitalista e é objeto de empresários,
tecnocratas e de uma minoria de representantes que ganha recursos com esse
‘emprego’.
É como se não houvesse mais por que lutar, ou regras do jogo a criar, o
funcionamento das coisas já está dado: tudo passa pela axiomática do capital.
Portanto, há a substituição da política como debate ideológico e utópico, para
um saber técnico de governo da vida e das coletividades e que traz resultados
práticos de seu rendimento e eficácia. As ideologias políticas, ou o grupo
político que gere o Estado, já não são determinantes para a
governamentalidade, pois o modo de gestão se torna o mesmo: tecnopolítica.
No Estado tecnopolítico, não há mais a antítese do inimigo político, pois
para a gestão da vida no diagrama do rendimento deve haver a composição e
o governo das diferenças para a maximização da produção de fluxos sociais,
materiais e imateriais. Não há como governar isolado dos distintos setores,
visto que, na política atual, se trata da transição de um modelo pautado na
negatividade do outro para a coexistência com a variedade de inúmeros
outros.
O desafio de gestão aos governantes, além do saber técnico, é: como gerir
e compor com a diversidade das diferenças que se coloca para o governo da
vida? Como negociar com os múltiplos e contraditórios interesses? Então, há
uma descentralização do governo, de um antigo centro (o Estado) para uma
rede ramificada, dispersa e cada vez com mais conexões.
Vale citar que toda a estrutura pública passa a ser enxugada para
minimizar os gastos, assim os processos de privatização são os mais
correntes. Desde a venda de indústrias e bens públicos, como estradas,
aeroportos, companhias energéticas, bem como a terceirização dos serviços.
Há a descodificação dos direitos dos trabalhadores, em que estes a cada dia
possuem condições mais precárias de trabalho. As instituições de saúde e de
ensino passam a ser mensuradas por índices quantitativos de produtividade,
não mais pela qualidade de saúde ou de formação incitados, e imaterializam-
se, pois não são praticadas apenas em espaços fixos, senão numa atenção e
trabalho permanente em qualquer lugar, como a formação e capacitação
continuada.
As mudanças que se atualizam não decorrem de um ‘progressismo
político’, mas da adoção de mecanismos mais ‘racionalizados’, rentáveis,
eficazes e menos custosos de gestão da vida, considerando o aumento das
populações que não cabem mais dentro dos muros. A curva integral do
Capital serve como denominador comum para esse processo de transição.
Na Figura 7.1, é esquematizada a articulação da aparelhagem do Estado à
axiomática do capital. Adotamos como ponto de partida a distinção realizada
por Althusser (1980) entre aparelhos repressivos e aparelhos ideológicos de
Estado. Entretanto, diferenciamos os aparelhos jurídicos dos repressivos e,
substituímos os aparelhos ideológicos pelos saberes e tecnologias psi, como a
psiquiatria, psicologia, pedagogia, estatística e pela mídia. Enfatiza-se a ação
da axiomática do capital, que incide diretamente na gestão da vida.

Figura 7.1. Entrelaçamento do aparelho de Estado com a axiomática do


capital.
Os aparelhos de Estado, os saberes e tecnologias psi, e outras formações
são reatualizados pelo funcionamento da gramática neoliberal. A
governamentalidade resultante dessa composição atua pelo agenciamento
tecnopolítico, que busca como utopia maior rendimento e eficácia máxima
em suas ações políticas. Como decorrência, há o desenvolvimento de
tecnologias de gestão denominadas políticas públicas, que visam à produção
de práticas e formas de ser que atinjam maior eficiência, sempre direcionadas
à amplificação da axiomática do capital.
Políticas públicas e neocolonização

As políticas públicas surgem como nova tecnologia de


governamentalidade que têm como finalidade a execução da lógica do Estado
no diagrama de rendimento. São os procedimentos técnicos elaborados para a
consecução de determinadas leis e projetos institucionais. As políticas
públicas são práticas de Estado que operam de forma capilarizada e
regionalizada, em distintas instâncias, como na saúde, educação, segurança
pública etc. Não se restringem à espacialidade dos estabelecimentos do
Estado, como as escolas, hospitais e quartéis militares, uma vez que se
singularizam por ultrapassar a clausura das Instituições concretas. São nova
tecnologia, pois efetuam a governabilidade estatal em campo aberto e
utilizam-se dos saberes disciplinares para a gestão da vida.
Dessa maneira, não é mais necessário encerrar os coletivos sociais num
delimitado espaço com uma determinada duração temporal para governá-los.
As políticas públicas vão diretamente até os indivíduos, por meio de técnicas
e equipamentos concretos e imateriais.
A política pública tem natureza heterogênea e híbrida, pois pode ser
compreendida como a aparelhagem resultante da conexão de diferentes
relações de forças na gestão social. É uma formação mista decorrente da
articulação entre aparelhagem estatal, axiomática do capital e saberes e
tecnologias psi. É um prolongamento do Estado, mas que funciona com base
na estratégia neoliberal: axiomatiza e recodifica. Contudo, usa os saberes e
tecnologias psi, de estudos da cognição, afetos e conduta social, para a gestão
da vida. Apoia-se nos saberes disciplinares e de controle como forma de
conseguir maior eficácia e rendimento na gestão governamental. Esses
saberes ocupam lugar fundamental para o governo das populações em campo
aberto. Tornam-se importante ferramenta biopolítica e noopolítica, que
exerce o poder sobre a vida, o pensamento, os afetos e o comportamento.
Funcionam como um aparato técnico de gestão, como saberes e técnicas
disciplinarizadores e de incitação ao rendimento, que têm como função a
regulação da vida, constituindo uma biopolítica populacional. Seja por meio
do cálculo aritmético ou do probabilístico, são importante engrenagem da
indústria da gestão social e política norteada prioritariamente pelo diagrama
de rendimento.
Constata-se que a política pública está na intersecção de três diagramas de
forças distintos: captura, disciplina e rendimento. Assume traços e
características de cada diagrama, funcionando por três engrenagens distintas,
três lógicas heterogêneas. Captura, por portar e transmitir a lógica soberana
do Estado. Disciplina, por atualizar e agir por meio de saberes disciplinares e
codificadores. Rendimento, por suas metas e ações estarem norteadas pela
axiomática do capital e a utopia da máxima eficácia. Sua substância é a da
lógica soberana, mas funciona por meio da disciplina, norteada pelo
rendimento. Portanto, atua baseada no diagrama de captura, agencia
processos na lógica da normatização conforme o diagrama disciplinar, bem
como modula e incita a máxima eficácia de acordo com o diagrama de
rendimento.
Configura-se como correia de transmissão dos processos de inscrição e
codificação policial estatal e axiomatização neoliberal. As políticas públicas e
os saberes psi passam a funcionar como propagadores da lógica capitalista-
estatal, sendo equipamentos privilegiados do poder sobre a vida e o
pensamento, pois estão em conexão direta com os diagramas de captura e de
codificação do Estado, bem como com o de rendimento.
Muito longe de uma suposta neutralidade teórica e técnica, os saberes
disciplinares são os enunciados científicos que dão legitimidade às ações do
Estado com seus processos de intervenção e governo da vida. Essa
aparelhagem, que denominamos Triângulo do controle, utiliza práticas de
exílio, como a segregação e o ostracismo, conformes ao diagrama de captura.
Quadricula o espaço urbano com práticas de vigilância, exame e lógica
policial, referentes às técnicas disciplinares e lança mão de técnicas de
programação subjetiva noopolíticas que incitam o maior rendimento, uma
sofisticação do poder pastoral que se encontra no diagrama atual. Assim,
estão muito mais a serviço da governamentalidade hegemônica e dificilmente
fomentam processos de autonomia, como é propagado discursivamente em
muitos projetos sociais.
Os conhecimentos teórico-técnicos nas políticas públicas transmitem as
imagens de pensamento de Estado, capturam e axiomatizam os fluxos sociais
e desejantes dos coletivos que intervêm nas estratégias disciplinares e de
rendimento, agindo numa modalidade de governo que chamamos de
neocolonização.
Se a colonização consiste na dominação territorial e política de um povo
sobre outro, por meio de relações de força diretas, consideramos que a
neocolonização ocorre no âmago de uma mesma população. É uma
modalidade de dominação que não se exerce pelo poder explícito, mas pela
modulação e transmissão de uma forma de desejar, pensar e ser. É a
propagação noopolítica dos códigos dominantes numa sobrecodificação e
modulação dos fluxos sociais, nas normas adaptativas do Estado e na lógica
do capitalismo.
Configura-se como uma colonização e doutrinação subjetiva e desejante
dos coletivos sociais, numa moralização e controle dos hábitos, costumes e
condutas. Os grupos dominantes transmitem as formas do pensar hegemônico
mediante sofisticados mecanismos noopolíticos, legitimados pelos saberes
psi. A conquista já foi realizada, a neocolonização trata apenas de sua
consolidação. Busca fazer com que as minorias sociais ajam na lógica da
governamentalidade, para que reproduzam o diagrama de rendimento, e
aceitem, conscientemente ou não, sua servidão.
O momento da colonização foi o da conquista e subjugação, o da
neocolonização é o de valorar e desejar o mundo igual aos grupos
hegemônicos, legitimando os lugares de dominação e sujeição social por
meio da moralização dos hábitos e da ‘promessa’ do capitalismo, de um dia
conseguir enriquecer e ser ‘feliz’. Mecanismo de modulação e integração
cognitiva e política, a neocolonização atua na lógica do diagrama de
rendimento e na doutrinação dos hábitos via códigos sociais estatais e
hegemônicos.
Compreende-se, então, que as políticas públicas não fomentam a
autonomia nem a transformação social. Muito pelo contrário, incitam um
trabalho para não transformar, uma operação para a permanência do mesmo,
ou para a reprodução da axiomática do capital. As transformações sociais
almejadas pelas políticas públicas estão apenas no âmbito discursivo de
determinado programa institucional ou, no máximo, são mudanças
relacionadas às esferas da assistência e do cuidado, que não colocam em risco
a atual configuração das relações de forças do diagrama. Ocasionam a
integração de pequenos setores sociais, no acesso ao consumo na lógica do
capital ou dando mínima infraestrutura para que seus corpos possam
continuar a trabalhar e produzir. Raramente problematizam as relações de
poder instituídas ou fomentam processos de insurgência ou participação
direta nos espaços macropolíticos. Portanto, tais políticas, por serem práticas
de Estado, carregam em si sua razão governamental e, por conseguinte,
contribuem para a manutenção da heteronomia social, tendo em vista a sua
natureza eminentemente conservadora. Portam uma lógica vertical que incita
mais a conservação do que a transformação.
Mas se um programa do Estado gera transformação social em caminho à
autonomia, isso não se deve à política pública em si, senão a outros fatores.
Esse acontecimento apenas se efetua quando os agentes das políticas públicas
atualizam as linhas do fora, de resistência e assumem características
antiestatais, antidisciplinares e anticapitalistas. É quando deixam de efetivar a
racionalidade governamental e a prática de Estado para assumir o projeto da
autonomia.
Se uma intervenção de um agente estatal empregado por política pública
fomenta ao coletivo uma reflexão e uma ação problematizadora das relações
de poder instituídas, é justamente quando ele entra num regime de afecção e
composição com o grupo e ‘deixa de ser Estado’.
Nesse momento, insurge-se e trai o agenciamento tecnopolítico, opera
segundo uma lógica antigovernamental, defende uma noopolítica da
autonomia, o pensar sem imagens (Deleuze, 2006a), o fluxo desejante ético-
estético-político, as linhas de fuga e não a noopolítica estatal e do diagrama
de rendimento. É quando, por meio da atualização das potências da vida,
consegue compor outras práticas e regimes de afetações, transmutar as forças
reativas em ativas, nesse enquadramento estriado e delimitado. É quando se
atinge um inconsciente molecular em que as partículas passam a vibrar
através de outro agenciamento de forças: a nomadopolítica.
Ocasionam-se, portanto, fissuras e dobras que podem incitar agitações e
revoluções moleculares. Então, mesmo com a faceta neocolonizadora e
capturante, compreende-se que pode haver práticas transformadoras
vinculadas às políticas públicas, mas apenas na medida em que se fratura o
diagrama de forças hegemônico.
Desse modo, concluímos que a política pública, como uma nova
tecnologia de gestão estatal característica do diagrama de rendimento, assume
um caráter maior de captura do que de transformação social, bastante distinto
do que é propagado discursivamente em muitos programas sociais. Os
saberes psi conectados à lógica do Estado capitalista transmitem imagens de
pensamento instituídas, canalizam os investimentos desejantes e moldam um
tipo subjetivo que legitima a concepção de mundo e formas de ser atualizadas
do diagrama de rendimento, ficando muito distante do fomento da autonomia.
A política pública é o mecanismo tecnopolítico que opera como correia de
transmissão e amplificação da axiomática do capital e dos códigos estatais,
mantendo a heteronomia social instituída e atuando na lógica da
neocolonização.
Entretanto, muitos agentes estatais agenciados aos coletivos sociais optam
por trair a racionalidade governamental, instaurando fissuras, mudanças e
transformações, justamente quando deixam de ser Estado e abrem um novo
horizonte de possíveis, que levam a novas linhas e às mais surpreendentes
realizações. O poder de resistir propaga linhas de fuga e assume maior
compromisso com a potencialização da vida e com o desejo, em vez da
neocolonização.
CAPÍTULO
VIII
MOVIMENTOS SOCIAIS NÔMADES

O cenário social marcado pelo diagrama do rendimento, pelas políticas


públicas neocolonizadoras e emergência dos neoconservadorismos e
microfascismos pode trazer certo pessimismo em relação à almejada
autonomia. Mas, como dizia Franco Basaglia (1979), melhor que o
pessimismo da razão, o otimismo da prática. Constata-se que ações políticas
transformadoras se efetuam a todo momento, em múltiplos lugares, por mais
que o diagrama de rendimento seja hegemônico. Sempre muitas linhas de
fuga e de resistência são traçadas por inúmeros e anônimos atores sociais e
políticos, que não se cansam de desejar, sonhar, delirar, lutar e criar outros
mundos possíveis.
O desejo revolta-se e não fica contido nos estratos instituídos, ou no
imperativo do mais produzir: traça outras linhas e possibilidades existenciais.
O território é o lugar do movimento, da diferença, mudança e transformação.
A política nômade é atualizada a qualquer hora, em qualquer lugar e as
moléculas não param de se agitar em frequências distintas das ondas da
axiomática do capital e dos microfascismos.
Os distintos atores que ousam desejar, lutar e produzir outro mundo
possível costumam agenciar-se com outros pares, em coletivos, quaisquer
sejam. Abandonam a clausura das linhas individuais para a formação de nós.
Compõem um agenciamento mais potente denominado movimentos sociais,
cujas distintas concepções podem ser encontradas na literatura. Dentre elas,
referenciamo-nos em definição que ressalta seu caráter de movimento e
transformação, segundo a qual o movimento social é uma "ação coletiva cuja
orientação comporta solidariedade, manifesta um conflito e implica a
ruptura dos limites de compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere"
(Melucci, 2001, p. 35). Não alude, portanto, a uma ação organizada de
qualquer coletivo social, senão a uma movimentação com enlaces solidários
que porta processos de mudança, ruptura com o instituído e busca pela
transformação: os movimentos sociais lutam contra inúmeras modalidades de
opressão em diversas instâncias.
Neste capítulo, articula-se a noção de movimentos sociais ao conceito de
máquina de guerra (Deleuze & Guattari, 1997b), que resulta no que
chamamos de movimentos sociais nômades. Primeiro apresenta-se o conceito
de máquina de guerra. Em seguida discutem-se características dos
movimentos sociais atualizadas por esse diagrama de forças, com suas
possíveis decorrências. Finaliza-se o capítulo, e o livro, tecendo-se
considerações sobre possíveis linhas para um novo diagrama de forças, a
Ecosofia, que opere de forma distinta ao de rendimento.
A máquina de guerra

A máquina de guerra é um agenciamento formado por linhas de fuga,


intensidades, forças instituintes e de resistência. Seus vetores são centrífugos
e fugidios, propagando-se às margens, às fronteiras e não aos centros.
Expressam o excesso e o transbordamento, e não a falta ou a lacuna. É o
diagrama do corpo sem órgãos, das energias livres e não ligadas, que segue
os vetores dos picos de desterritorialização e tem o efeito de provocar fissuras
e transmutações. Por atualizar outras configurações de forças, possui
conformação totalmente diversa do Estado e movimenta-se de forma distinta
à da axiomática do capital. É uma máquina abstrata que perpetra movimentos
disruptivos de fuga e singularização e que se concretiza nas mais diferentes
instâncias, como na etnologia, nas ciências, na mitologia etc.
No âmbito da etnologia, a tensão entre uma máquina de guerra e o Estado
é temática preponderante para apreender as distintas formas de organização
social. Grande parte dos estudos das Ciências Humanas adota uma
perspectiva evolutiva, ao compreender que as tribos sem Estado não o
possuem devido a uma organização incipiente e mecanismos primitivos de
gestão. Supõe-se que, na futura evolução de sua organização constituirão um
Estado.
O antropólogo político Pierre Clastres diverge radicalmente dessa
proposição, pois nas suas investigações sobre tribos nômades indígenas sul-
americanas chegou a conclusão diversa.
Clastres (1988) constatou que essas tribos possuem refinados mecanismos
sociais de organização coletiva para manter a horizontalidade nas relações de
poder e impedir a dominação do um sobre os outros. Por exemplo, o líder não
detém um poder imperativo sobre o coletivo, cumpre função mais simbólica e
cerimonial nos rituais e, inclusive, subordina-se aos pedidos dos membros da
tribo, tendo de trabalhar mais para atender as demandas destes.
Até a guerra funciona como um dispositivo de combate à constituição de
um Estado. Quando emerge uma coalizão que poderia fundar um
agenciamento estatal, desencadeia-se uma guerra. Apenas nesse momento, o
líder tem poder de comando. Mas, findado o conflito, retorna-se ao
agenciamento horizontal de forças e destitui-se do chefe o poder conferido no
período de guerra. O líder que pretende perpetuar seu poder sobre os outros,
ou manter o período de batalhas, costumeiramente é deposto pelo resto da
tribo (Clastres, 1988).
Desse modo, não possuir um Estado não é resultado de uma organização
rudimentar, mas, pelo contrário, decorre de uma sofisticação social. Há uma
antecipação e compreensão do regime de forças do diagrama de captura, na
formação do Estado, que é recusado e evitado. Portanto, as tribos que não
possuem um Estado não são apenas sociedades sem Estado, são também
sociedades contra o Estado. Rechaçam explicitamente a lógica heterônoma e
vertical, bem como os chefes que tentam monopolizar o poder. Constituem
uma máquina de guerra tribal contra a estruturação da formação estatal, pois
possuem um diagrama de alianças e não de captura.
Um acontecimento pouco conhecido que expressa a efetuação de uma
máquina de guerra contra o Estado foi a insurreição de tribos nômades no
Piauí contra os colonizadores no início do século XVIII. Nesse período, havia
mais de trinta tribos indígenas que estavam sendo chacinadas. Mandu-
Ladino, um índio ‘catequizado’ pelos jesuítas e que presenciou o assassinato
de sua família por colonizadores, foi ‘contratado’ como almocreve de um
fazendeiro. Durante suas viagens em seu trabalho como vaqueiro, articulou
uma grande insurgência com as tribos nômades, muitas inimigas entre si.
Organizou diversos ataques aos colonizadores portugueses e suas fazendas. O
período de insurgência e luta durou quatro anos, encerrando-se com um
massacre violento dos indígenas e o assassinato de Mandu-Ladino [21]: a
captura se deu sob a forma do extermínio total de populações.
Esse acontecimento expressa a constituição de uma máquina de guerra
exterior ao Estado, que lutou contra sua dominação e pela assunção da
autonomia de um povo livre. Os indígenas que se recusaram a ser
escravizados partilhavam de um diagrama de forças contra a dominação e
eram a autêntica expressão de uma sociedade contra o Estado.
Na América Andina havia outro agenciamento psicopolítico. Os
indígenas organizavam-se por meio da máquina imperial-despótica, no
diagrama de captura. Então, não havia a luta contra o Estado, pois este já
estava bem consolidado, como a própria cultura escravocrata: tribos
derrotadas eram escravizadas pelos seus conquistadores. O Império Inca é
ilustração emblemática de um povo dotado de riqueza científica e cultural,
mas que conquistava e submetia os componentes das tribos dominadas. O
agenciamento político de dominação era intenso e as lutas pelo poder do
Império eram frequentes. Quando foram subjugados pelos espanhóis, o
processo de escravização foi mais ‘naturalizado’ do que nas tribos indígenas
amazônicas, pois esse era o diagrama de forças hegemônico e partilhado.
A máquina de guerra nômade de Átila, o huno, é outro exemplo de
formação diferenciada do aparelho de captura. Por mais que tivessem todas as
condições materiais e militaristas para tomar o Império Romano, oriental e
ocidental, para se sedentarizarem como soberanos do mundo, os hunos
preferiram continuar no infinito espaço liso das estepes entre a Ásia Oriental
e o Rio Danúbio. Ao invés de invadirem e conquistarem Constantinopla e
Roma, optaram por receber periodicamente do Império o pagamento de
metais preciosos, como o ouro (Deschodt, 2008). Os hunos também se
anteciparam a uma formação-Estado, conjurando-o, mas de forma ativa, pela
força direta, extraindo dela grande parte de seus bens.
As ciências também atualizam uma máquina de guerra na forma das
ciências menores (Deleuze & Guattari, 1997b). Estas são os saberes locais,
exteriores à ciência régia e dominante do Estado. São os saberes considerados
profanos, populares, das minorias sociais. Menor não no sentido do que tem
menos valor, mas de conhecimentos e estilos referidos às diferenças,
singularidades, devires e processos que ocupam as bordas, margens e
fronteiras, de forma diversa às normas hegemônicas dominantes.
Minorias que numericamente são maioria, mas que estão num regime de
agenciamento de forças inferior em relação aos segmentos dominantes. As
ciências menores também se relacionam às artes e literaturas menores, como
a obra de William Burroughs, ou de outros artistas anônimos: expressam as
políticas minoritárias. Cita-se trecho do comunicado do Subcomandante
Marcos do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que dramatiza
toda a multiplicidade das minorias:

“Marcos é gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na


Europa, hispânico em San Isidro, anarquista na Espanha, palestino
em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, boy band em Neza,
roqueiro na cidade universitária, judeu na Alemanha, ombudsman na
Sedena, feminista nos partidos políticos, comunista no pós-guerra
fria, preso em Cintalapa, pacifista na Bósnia, mapuche nos Andes,
professor na CNTE, artista sem galeria e sem portfólio, dona de casa
num sábado à noite numa colônia qualquer de qualquer cidade de
qualquer México, guerrilheiro no México no fim do século XX,
grevista na CTM, jornalista de notas de preenchimento nas páginas
interiores do jornal, machista no movimento feminista, mulher
sozinha no metrô após as 22h, aposentado no plantão em Zócalo,
camponês sem terra, editor marginal, operário sem trabalho, médico
sem consultório, estudante inconformado, dissidente no
neoliberalismo, escritor sem livros nem leitores e, sobretudo,
zapatista no Sudeste mexicano. Enfim, Marcos é um ser humano
qualquer neste mundo. Marcos é todas as minorias intoleradas,
oprimidas, resistindo, exploradas, dizendo ¡Ya basta! Todas as
minorias na hora de falar e maiorias na hora de se calar e aguentar.
Todos os intolerados buscando uma palavra, sua palavra, o que
devolva a maioria aos eternos fragmentados, nós mesmos. Tudo que
incomoda o poder e as boas consciências, este é Marcos”
(Subcomandante Marcos, comunicado de 28 de maio de 1994).

Já a ciência de Estado é o saber teoremático, que cria padrões, normas e


disciplinas que dão referências e imperativos ao pensar e fazer. É o
conhecimento disciplinar e normatizador que busca prever para controlar,
integrar e racionalizar, sobrecodificando as condutas e o viver com base na
lógica das maiorias dominantes. É a ciência de potestas, de captura,
rendimento e integração.
Do outro lado, a ciência da máquina de guerra apreende os saberes
problemáticos que afirmam as diferenças, desenvolvem questões, produzem
novas demandas e acontecimentos, em vez de ter respostas e padrões fixos
como fórmulas pressupostas sobre a vida. Abre-se para a incerteza e a
indeterminação. Grito que rasga a solenidade da conferência no auditório.
Traça linhas e não se apega aos princípios da previsão e controle. No campo
da política, a implicação com a problematização refere-se a uma
experimentação radical, a um desafio, de atravessar o muro branco, de
escapar do buraco negro. Diferencia-se, então, uma ciência problemática da
máquina de guerra, da ciência teoremática de Estado.
Na América Latina, nas lutas contra as opressões, constituiu-se uma
diversidade de ciências menores, como a Pedagogia do Oprimido de Paulo
Freire, a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, a Sociologia da
Libertação de Fals Borda, a Psicologia da Libertação de Martín-Baró, o
Teatro do Oprimido de Augusto Boal, o Esquizodrama de Gregório
Baremblitt, os Saberes do movimento zapatista etc. Conhecimentos que
instauram linhas de fuga e de luta contra as disciplinas de saber e captura do
Estado. Em tempos de Estado de exceção e CMI, somos todos minorias,
somos todos Marcos.
No campo da mitologia, a atualização de uma máquina de guerra pode ser
vista na figura do guerreiro. Esse personagem corresponde a uma linha
diversa que não está sobrecodificada por nenhum dos polos do aparelho de
captura, seja o polo do soberano, seja o do legislador.
O guerreiro é portador de uma exterioridade radical que atualiza um
diagrama de forças estranho à totalização estatal. Por ser estrangeiro e
alteritário, é apreendido como um bárbaro, inimigo, pois se constitui como
ameaça aos estratos consolidados. Tal como o nômade, com suas linhas de
fuga desejantes, transita num fora, que é um território mais fluido, de abertura
de sendas e clareiras, cercado por indeterminações e incertezas. Tem que
estar pronto a qualquer momento para o incomensurável e o inesperado, a
combates, ataques e traições. Como atualiza outro diagrama de forças, até os
deuses arrolados aos guerreiros são distintos dos deuses referidos ao Estado.
Na mitologia hindu, Indra, deus dos guerreiros, é radicalmente distinto
dos deuses soberanos, Mitra e Varuna, tal como Heracles na grega e Starkadr
na escandinava. Possuem outra forma de funcionamento perante a legislação
divina tradicional: ultrapassam as regras instituídas e sempre instauram um
regime de tensão e transgressão. A subversão e independência diante da
soberania é uma condição que enuncia liberdade, mas também perigos.

"A autonomia da qual os guerreiros se orgulham, e que os poetas


reconhecem enfaticamente aos deuses combatentes quando os
invocam, está preenchida de tentações para quem a possui, sendo
inquietante para a ordem social ou para a ordem cósmica" (Dumézil,
1971, p. 84).

A insurgência acaba por gerar os pecados dos deuses guerreiros em


diferentes narrativas mitológicas, pois rompem com as leis instituídas. Em
razão das transgressões, os deuses guerreiros são punidos pelos deuses
imperadores. De certa forma, a lógica do guerreiro rompe os limites de
compatibilidade instituídos por um coletivo, invertendo o que estava
pactuado até então. A ação guerreira performatiza a potência da energia livre,
não ligada, que porta um fluxo de luta que arrasta o território a processos de
desterritorialização e destruição. Todavia, não apenas o arrasamento da terra
e dos códigos, mas a produção de acontecimentos, pois

"o guerreiro, pelo fato de se colocar à margem, ou acima do código,


arroga-se o direito de salvar, o direito de quebrar entre outros
mecanismos normais o da justiça rigorosa, isto é, o direito de
introduzir no determinismo das relações humanas o milagre que é a
humanidade" (Dumézil, 1971, p. 132).
Em síntese, a máquina de guerra tem um agenciamento totalmente
distinto e atua contra o aparelho de Estado. Não o produz, mas pode ser
capturada e atrelada a ele. É horizontalizada e não verticalizada, fluida e não
fixa. Transita num espaço liso, de ubiquidade e não estriado. Não atua na
demarcação de um território, mas na composição aritmética de elementos
numa máquina nômade. Sua atividade principal não se define pelo trabalho,
que é o centro de gravidade/deslocamento da força, mas pela ação livre, em
"um movimento turbulento que ocupa de maneira simultânea um máximo de
pontos do espaço" (Deleuze, 2017, p. 21). Assim, tem as armas como
instrumentos e não as ferramentas ou o signo. Assume uma independência
em relação à captura, conservação e sobrecodificação, estando mais ligada à
conformação de algo mutante que, no seu prosseguir, se transforma e se
metamorfoseia. Porta o movimento e deslocamento como traços
emblemáticos, ao invés da fixação e gravitação do Estado, que tende à
precipitação e estratificação dos processos.
A máquina de guerra responde mais à lógica do devir do que à do ser. Em
vez de uma árvore, família, ou sujeito sedentário, pode-se figurá-la como um
rizoma, bando, malta, coletivos nômades, algo que fica à margem do Estado,
exterior e à deriva de suas fronteiras, num maior processo de
desterritorialização do que de fixação.
Movimentos sociais como máquina de guerra

Compreender os movimentos sociais como uma concretização da


máquina de guerra elucida a sua composição e funcionamento. Constata-se
que atualizam outro diagrama, linhas de forças e de resistência. Realizam
outras práticas e formas organizativas, compromissadas com a transformação
e não a com a conservação. Por isso, não é novidade que os movimentos
sociais prescindam dos intelectuais e da universidade. Possuem saberes
minoritários e singulares que norteiam suas ações e seus próprios pensadores.
Assim, não necessitam de um intelectual que fale o que devem fazer ou como
devem portar-se. Compreendem que muitas vezes é um intelectual de Estado,
ou que segue as normas de um Partido, ou da Moral, sendo um agente de
codificação e não de emancipação.
Obviamente, há movimentos sociais que se sedentarizam, obedecem e
reproduzem determinados códigos, estratificando-se e situando-se no polo
paranoico, ou que até se tornam microfascistas. Mas a partir da atualização da
máquina de guerra nos movimentos sociais, constata-se que muitos coletivos
adquirem outra conformação que denominamos movimentos sociais
nômades. São movimentos que estão acoplados ao polo esquizo e portam
ações instituintes, singulares, insurgentes e criativas. A seguir, cartografam-se
as características gerais que podem nos inspirar e ensinar sobre suas práticas,
formas de ser e devir.
Autogestão e afetos potencializadores

Nos movimentos sociais nômades, há um giro nas relações de forças, no


qual se abandona e se recusa a hierarquia verticalizada, as relações de
rivalidade e de competição que a subjetividade capitalista reproduz. Seus
participantes consideram o outro não mais como inimigo, ou rival, senão
como companheiro. Auxiliam-se e compõem forças mediante uma
modalidade de poder horizontalizada, saindo da heteronomia para a
autogestão. Atualizam o diagrama de forças de aliança, no qual todos têm
direito de participar, de se expressar e construir coletivamente. Esse câmbio
nas relações de forças é extremamente formativo e pedagógico, pois é um
modo de aprendizado e de viver alternativo ao diagrama de forças
hegemônico e que se constitui e se transmite na vivência do movimento
social.
A autogestão praticada nos movimentos sociais nômades não se restringe
à política, mas afeta as distintas esferas da vida, nas quais o ator político
passa a compartilhar as forças no seu trabalho, na família, com seu grupo de
amigos. Compartilhamento que também dispara processos de autoanálise e
melhor compreensão do que se passa no coletivo. Gera-se uma nova
sociabilidade, em que se reatam os laços sociais há muito fraturados. Os
vínculos estabelecidos entre o coletivo constituem-se como bons encontros,
agenciamentos intensivos que aumentam os afetos potencializadores de seus
integrantes. Os afetos e corpos mais potencializados também elevam seu
potencial de ação, sua capacidade de realizações, visto que são atualizadas
forças e relações de composição, e não de decomposição tal como é marcada
na rivalidade capitalista. E devido ao aumento de grau de afecção, à
potencialização, é que a participação em um movimento social pode ter um
efeito curativo aos seus integrantes, tanto do ponto de vista psicológico, como
somático (Zibechi, 2007), transformação psicossocial bastante visibilizada
nas intervenções grupais de Pichon-Rivière (1986) com outros coletivos
sociais. Obviamente, o aumento do grau de afetividade é uma dimensão
fundamental para que seus membros permaneçam no movimento social, ou
que manifestem interesse em participar politicamente em coletivos sociais
(Hur et al., 2016).
A autogestão nos movimentos sociais é uma autêntica revolução
molecular, na qual o medo e o ódio dão lugar à solidariedade e às forças de
composição.

Política nômade

Os movimentos sociais nômades atuam por meio da nomadopolítica, pois


traçam movimentos centrífugos, de mudança, em vez dos movimentos
centrípetos e de conservação que são reproduzidos pelas tradicionais
instituições políticas, como os partidos e sindicatos. O agenciamento
psicopolítico nomádico não busca a fixação às ideologias, ao Estado, ou à
modulação capitalista, mas tem como implicação o movimento e o
deslocamento. É o nomadismo que faz com que os movimentos sociais
escapem do sedentarismo da lógica estatal e não se enredem na axiomática do
capital.
A máquina de guerra é diretamente resultante do agenciamento de forças
do fora e comporta-se nomadicamente. Não procura fundar um novo estrato,
estabelecimento, ou Instituição, mas, sim, instalar uma situação (Fernández,
2007). A nomadopolítica atualiza o potencial insurgente de movimentos
sociais históricos, como a impetuosidade dos bandos cangaceiros de Lampião
e Corisco, a insurreição das tribos indígenas de Mandu-Ladino contra os
invasores portugueses, a luta guerrilheira e libertária contra a ditadura civil-
militar etc.
Esse agenciamento psicopolítico é atualizado em muitos movimentos
políticos contemporâneos, com distintos regimes de expressão e visibilidade.
Por mais que pareça utópico, invisível, imperceptível, ele se efetua nos
movimentos da multidão, das maltas, dos indígenas amazônicos contra a
estruturação de um Estado, na luta armada pacífica zapatista, que prescinde
da conquista do poder e defende uma transformação molecular da sociedade.
A luta zapatista inspira o desejo de transformação, de crítica à estratopolítica,
de mudar o mundo sem tomar o poder (Holloway, 2003).
A política nômade também é atualizada no cotidiano das cidades, em
alguns movimentos artísticos de intervenção urbana, coletivos de casas
Okupa [22], associações culturais alternativas, movimentos ecológicos, nas
ocupações de escolas por movimentos estudantis secundaristas, em alguns
movimentos da juventude, nas práticas de rebelião, insurgência,
insubordinação, desobediência civil e de ruptura com o instituído. A bandeira
de luta emblemática dos movimentos sociais nômades não é mais “Tomar o
poder”, mas, sim, “Ocupar e resistir”, que significa atualizar o poder de
resistir contra a modulação e axiomatização, radiação capitalista; não se
deixar levar por sua vazão, ocupar o território, criar possibilidades e um
mundo e vida em comum.
Se a nomadopolítica pode ser atualizada nas práticas políticas do Estado é
outra questão. Por ser tão disruptiva e insurgente, talvez instaure rupturas
inconciliáveis com o estrato institucional, tal como o efeito Che Guevara em
Cuba, ou as organizações de guerrilha em relação ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB), durante o período da ditadura civil-militar. Mas se esse
diagrama de forças for atualizado no Aparelho de Estado, ou em qualquer
instituição, numa relação direta entre fora e interno, entre fluxos e estratos,
parte da estrutura institucionalizada poderá desterritorializar-se, dando lugar a
uma gestão transversalizada, menos burocratizada e hierarquizada, saindo do
personalismo para a coletividade, da democracia representativa para a direta,
da reprodução para a experimentação, da identidade para a metamorfose e,
quem sabe, do amor pelo poder ao poder da transformação. Uma política
nômade que combata as práticas sedentarizadas, que esteja comprometida
com as demandas dos movimentos sociais e não com as do mercado
transnacional e capitalista, o CMI, e que sustente uma ética da potência e não
a moral da dominação.
A política nômade é o movimento de buscar alternativas e saídas para o
que falhou anteriormente. Criar práticas, mundos possíveis e processos de
subjetivação e, quem sabe, a produção de um novo homem, como Che
Guevara defendia, ou um transumane [23].

Linhas de luta e não apenas linhas de fuga

Os movimentos sociais nômades, com suas reivindicações e auto-


organização, traçam um deslocamento nomádico em relação ao Aparelho de
Estado e à axiomática do capital, com a propagação de linhas disruptoras. As
linhas de fuga referem-se às forças desejantes e do fora, à possibilidade de
agenciar-se diferentemente das linhas estratificadas, de segmentaridade
rígida, do Estado, ou de segmentaridade aparentemente maleável, da
axiomática do capital. Sua propagação é a possibilidade de criar regimes que
desterritorializem o instituído e estratificado, não se restringindo a uma
espécie de passividade ou de mero abandono e escape. Sua vazão atualiza o
potencial de produção de outros possíveis diante da captura ou axiomatização
existente, a criação de um caminho ante o claustro sufocante e opressor que
se apresenta.
O pantera negra George Jackson escreve de sua prisão: "É possível que eu
fuja, mas ao longo de minha fuga, procuro uma arma" (Deleuze & Parnet,
2004, p. 45). Constata-se que, ao traçar linhas de fuga perante as opressões
vividas, também procura uma nova estratégia, criando uma dobra na linha de
força, constituindo assim um novo vetor. Não apenas fugir, mas resistir,
combater, lutar. Então, ao traçar suas linhas disruptivas, fugir não basta aos
movimentos sociais. A intensificação do potencial desterritorializador das
linhas de fuga faz com que essas próprias forças sofram uma autoinflexão,
que se dobrem sobre si, que façam um arco, tensionando-se em si mesmas e
passem a constituir-se como linhas de luta.
Essas linhas expressam as forças do fora e de resistir, configurando
estratégias e táticas de combate e de resistência em face do Estado e do
capitalismo, em que se devem buscar armas ao mesmo tempo em que se
escapa e se combate a opressão. Portanto, o movimento de fuga em si não é
combativo, é condição necessária e transicional, mas não suficiente, para a
produção de outra configuração.
Os movimentos sociais nômades traçam linhas de luta e de confronto
direto com os setores que causam opressão aos coletivos sociais, sejam eles
os latifundiários, o Estado, os grupos hegemônicos, o patriarcalismo, o
falocentrismo, o racismo, os microfascismos ou os preconceitos. A luta é
generalizada contra os inúmeros focos de opressão. As linhas de luta são as
forças desejantes e de resistência direcionadas à transformação e à construção
de outros mundos possíveis. Distensões da contração, irrupção de
intensidades, que causam rachaduras e fendas no instituído. Traçam-se rotas
que superam as usuais linhas de fuga que, em sua autoinflexão, se constituem
como linhas de luta, que se potencializam e se singularizam nessa atuação,
beligerante, seja no âmbito direto, ou no da negociação.
As linhas de luta são como marretadas contra os estratos duros, que
aumentam seu potencial para fissurar e destruir os bloqueios que limitam as
possibilidades de vida, não apenas abrindo a janela para que entre o ar puro,
mas rompendo-a para causar um turbilhão.

Método da insurgência

Os movimentos sociais nômades não utilizam práticas de captura,


disciplinares, ou de rendimento. Empregam outro método, que prescinde das
normas, padrões, harmonizações, totalizações, integrações e equações da
axiomática capitalista, ou da lógica disciplinar, pois esses procedimentos
tradicionais mantêm as mesmas configurações de forças. Operam pelo
método da insurgência em suas práticas políticas, em suas linhas de luta.
Insurgir-se é efetuar uma dobra, um arco, realizar a autoinflexão da força. É
fazer com que a força reativa, o ressentimento ou o medo, se volte contra ela
própria, num movimento centrífugo que faz com que mude qualitativamente,
libertando e incitando as forças ativas, instituintes de composição e criação, e
não mais as forças instituídas de reprodução, dominação e submissão.
Transmutação de potestas para potentia, de baixo grau de afecção para
elevado: rotação do Eterno retorno e produção da diferença.
A insurgência é a dobra que fomenta a desterritorialização dos estratos, o
embaralhamento dos códigos, a rachadura no instituído e a expressão das
diferenças e singularidades anômalas. É o método paradigmático para a
constituição de saberes e práticas das minorias sociais, das ciências menores,
é o caminho para a produção de conhecimentos e fazeres da máquina de
guerra. Por isso, a revolta, a desobediência e a insurgência são o combustível
da ação política dos movimentos sociais nômades.
Todos os processos de insurgência levam à intensificação da crise e da
ruptura dos limites de compatibilidade. Se a configuração de forças
atualizada e vivida é despotencializadora à maior parte dos coletivos, esta
deve ser rompida e alterada. Portanto, fomentar a crise é um método de
intervenção decorrente dos processos de incitação da insurgência. É uma
forma de transformar o instituído. Compreendemos que a atuação insurgente
dos movimentos sociais é uma esquizoanálise em ação, já que age por meio
de tarefas negativa e positivas (cf. Capítulo 1).
Com suas linhas de luta, opera a tarefa destrutiva de raspagem e
demolição dos elementos bloqueadores, sejam materiais, imateriais, a
axiomática do capital etc. Em seguida, atuam as tarefas positivas de
cartografar o funcionamento das máquinas sociais e dos investimentos
desejantes, de criar suas teorizações e tomadas de consciência sobre as
contingências psicossociais que lhes afetam, para conectar, desse modo, os
fluxos desejantes ao campo social.
Criam, assim, através da autogestão, novas modalidades de sociabilidade,
novos modos de afecção, e, por conseguinte, uma nova modalidade subjetiva.
Fomentam em suas práticas processos de elaboração que superam os
sofrimentos existenciais advindos da axiomática do capital, para a criação de
novas forças, potências, composições e modalidades de vida.
Desse modo, amplifica-se seu potencial de pensamento, de afecção e
ação, fortalecendo o próprio movimento social a partir de seus processos de
insurgência.
O método da insurgência é romper o diagrama de forças hegemônico, é um
grito da vida contra a opressão, o “¡Ya basta!”.
Ressalta-se que a afirmação identitária dos movimentos sociais cumpre
essa função de elaboração das vicissitudes vividas e de potencialização.
Entretanto, deve-se tomar cuidado para que a identidade afirmada não se
estratifique, não se cristalize numa nova norma, ou num novo significante
despótico, que sedentarize o movimento, reduzindo as multiplicidades
intensivas a um novo código, ou criando um novo mestre.
O método da insurgência deve ser contínuo e intermitente, a ponto de
nomadizar os territórios instituídos, no sentido de que as identidades devem
ser territórios de ancoragem para possibilitar o movimento, e não os pontos
finais de chegada. No método da insurgência, as identidades não são estáticas
e estanques, mas, sim, movimento e metamorfose.

Constituição de subjetividades nômades e insurgentes


Resulta das linhas de luta, das práticas nomadopolíticas e do método da
insurgência dos movimentos sociais nômades uma nova modalidade subjetiva
em contraposição à subjetividade capitalista, que se denomina subjetividades
insurgentes (Hur & Lacerda Jr., 2017).
Utiliza-se o termo no plural, pois se trata de um processo de subjetivação
múltiplo, heterogêneo e variado, mas que se articula pela insurgência e
rechaço da lógica disciplinar, de captura-estatal e da axiomática do capital.
Por meio da irrupção das forças do fora, dos investimentos desejantes no polo
esquizo e do agenciamento da política nômade, a subjetividade capitalista
estala e dá espaço para outra conformação: plural, múltipla e difusa.
As subjetividades insurgentes não são estáticas e conformes ao mapa de
forças hegemônico. Realizam uma autoinflexão, atualizam as afecções das
linhas de luta e do método da insurgência, incitando processos de
transpassamento e transmutação. Operam eminentemente pelas políticas do
dissenso, com uma prática radical que chamamos de agenciamento
demolição/criação, no qual se deve lutar contra as formas de sujeição social e
psíquica para desbloquear os investimentos desejantes e
libertar/construir/compor as potências de vida. Em todo processo de
demolição, há criação e composição. Em toda reforma, há revolução.
Instalam processos de ruptura e abertura que as distancia do tradicional
conceito de proletariado, aproximando-as ao de multidão, por se tratar dessa
multiplicidade híbrida, que não foi capturada pelo CMI:
"A multidão está engajada na produção de diferenças, invenções e
modos de vida. Deve, assim, ocasionar uma explosão de
singularidades. Essas singularidades são conectadas e coordenadas
de acordo com um processo constitutivo sempre reiterado e aberto
[...] A multidão é a forma ininterrupta de relação aberta que as
singularidades põem em movimento" (Hardt & Negri apud Brown &
Szeman, 2006, p. 99).

Desse modo, devido ao seu potencial de abertura ao outro e de conexão,


as subjetividades insurgentes não atuam somente por intermédio da revolta e
do rechaço, mas principalmente pelas suas capacidades de agenciamento
coletivo, que lhes possibilitam a invenção e composição de novas formas de
vida, de possíveis e de um comum que vão além da axiomática do capital: um
novo agenciamento ético-estético-político da vida. Em suas práticas, há
processos de composição e produção de outros mundos possíveis, outras
formas de ser, que transbordam fluxos desejantes que desestabilizam o
diagrama de forças hegemônico, para um outro porvir.
No âmbito das corporeidades das subjetividades insurgentes, considero
que há linhas de singularização radical que seguem outros regimes de forças,
vetores nomádicos que constituem os corpos dissidentes. São traçadas linhas
de resistências, ou melhor, ‘re-existências’, que insistem e simulam outras
práticas e expressões corporais. Corpos que não buscam reproduzir o código
da boa forma, que não são negatividade nem dejeto (Fernández, 2007) e
performatizam e dramatizam outras forças.
Através de linhas de fuga insurgentes e dissidentes produzem outras
modalidades corporais que não se restringem ao código nem ao corpocapital.
Sua própria expressão embaralha os códigos, pois suas linhas traçam
experimentações que produzem um corpo sem órgãos, intensivo, nômade e
dionisíaco, e que levam a corporeidade a configurações nunca antes vistas.
Por exemplo, os processos de transformação identitária de gênero, as
jornadas trans e de redesignação sexual configuram-se como corpos
dissidentes que escapam do significante do binarismo sexual. São produzidos
corpos anômalos que desafiam os limites da representabilidade. Simulacros
corporais, corpos nômades, que trafegam e viajam a pontos não
determinados, traçando linhas de fuga e dissidentes diante dos códigos e
máximas sociais.
Muitos movimentos sociais e políticos de gênero trazem a corporeidade
como instrumento de luta política. Os movimentos de afirmação étnica e
racial, que não se subordinam mais à rostidade do branco e assumem com
orgulho seus traços, corporeidade e histórias. Os movimentos das mulheres,
como a marcha das vadias, com cartazes como “Eu não vim da sua costela,
você que veio de meu útero”, são manifestações políticas que expressam a
singularidade feminina, numa luta contra a heteronormatividade e o
patriarcalismo. Também as ucranianas do Femen, que utilizam todos os
códigos instituídos de beleza (mulheres magras, arianas, belas e de seios de
fora) com performances espetacularizadas, como forma de chamar a atenção
da opinião pública contra a exploração sexual sobre a mulher e a afirmação
de pautas feministas. Muitos jovens organizam manifestações de rua
utilizando seus corpos para se insurgir contra a lógica instituída.
Desse modo, o movimento social nômade é uma composição de pessoas
agenciadas por relações de sociabilidade, que, a partir de vetores de forças
instituintes e linhas de luta, visa alterar a configuração de forças instituídas na
sociedade, no Estado, ou mesmo no cotidiano. Porta uma ação instituinte,
desejante e insurgente, que fomenta processos de autonomia e transformação,
com relações de forças que vão em direção diversa aos diagramas de poder
hegemônicos. Entra em conflito com o poder instituído, gerando fissuras,
fendas e crises nas relações existentes, sendo uma ação de uma sociedade
contra o Estado. É a expressão da resistência e da insurgência e tem um efeito
desterritorializador, funcionando como uma máquina de guerra contra a
captura do Aparelho de Estado e a modulação da axiomática do capital.
Geralmente, é formado por uma heterogeneidade de minorias e coletivos
sociais quaisquer e traz em si o imaginário da transformação social. Por estar
comprometido com a criação de novas realidades e práticas, incita processos
de desobediência, subversão e transgressão, constituindo as subjetividades
nômades e insurgentes.
Ecosofia: um mundo por vir

Neste livro, discutiram-se diferentes maquinações que atravessam os


territórios e os corpos, bem como suas decorrências. O momento do Código,
seja de sua inscrição ou sobrecodificação, refere-se a uma crença totalizada
no que é instituído, seja a Lei ou a norma. O momento da axiomática do
capital diz respeito ao funcionamento na fórmula capitalista, numa f(x). Os
embates entre diagrama de poder hegemônico e as linhas de luta dos
movimentos sociais nômades prenunciam a transição a um novo diagrama.
A promessa da estratégia neoliberal não se efetivou, os microfascismos
emergem de forma difusa e ampliada. Aquilo que geraria vida acabou por
fragmentar as moléculas, produzindo corpos esvaziados e esgotados. Os
microfascismos surgem como forma de contenção do mal-estar generalizado,
mas produzem células cancerosas. Há a derrocada de um diagrama, para
surgimento de novos mapas de forças. Se os acontecimentos de Tchernóbil se
tornaram o paradigma do contemporâneo, devem-se construir novas formas
de relações existenciais.
Em detrimento da crise difratada em diversas instâncias e da
despotencialização e autodestruição da vida, considera-se que uma das linhas
para construir outro mundo possível é o que Guattari (1990) chama de
Ecosofia. Nela, propõe um projeto ético-estético-político que agencia os
processos psíquicos, sociais e políticos, numa autêntica apreensão
psicopolítica. O autor compreende que, para lidar com os desafios de
apreender a subjetividade relacionada ao seu contexto, bem como da gestão
política e ambiental do planeta, devem-se trabalhar articuladamente os três
registros ecológicos: do meio ambiente, das relações sociais e da
subjetividade humana.
Nesse diagrama por vir, não impera uma crença ou funcionamento
instituídos, mas, sim, uma aposta no viver, experienciar e afetar, em direção
ao plano intensivo do Corpo sem órgãos, da Ecosofia. Os diagramas de
captura, disciplinar e de rendimento estão relacionados à transcendência da
experiência, desde os códigos instituídos, ou da axiomática do capital, na
lógica do doador que antecede o dado. Defende-se que deve haver um giro
em que o diagrama por vir se situe na lógica da imanência, do dado e dos
fluxos que antecedam, afetem e transformem o doador.
A Ecosofia é a articulação das distintas ecologias, significando Saberes
(sofia) da Casa (oikos), ou melhor, Saberes do ambiente. Substitui uma
Economia, as regras/lei (nomos) da Casa, pois as singularidades não devem
se pautar por imperativos transcendentes, mas pelos saberes imanentes que
produzem em seu cotidiano.
Guattari (2015) apreende as distintas instâncias da Ecosofia não de forma
homogênea, mas ressaltando suas diferenças, sua heterogeneidade, e o que
resulta dela:
"O enlace da ecologia ambiental, da ecologia científica, da ecologia
econômica, da ecologia urbana e das ecologias social e mental, não
para englobar todas essas abordagens ecológicas heterogêneas em
uma mesma ideologia totalizante ou totalitária, senão para assinalar
o contrário, a perspectiva de uma escolha ético-política da
diversidade, do dissenso criador, da responsabilidade a respeito da
diferença e da alteridade" (p. 31).

O entrecruzamento das distintas ecologias não resulta numa instância


totalizadora, mas, sim, numa multiplicidade criadora, que a partir dos
processos de diferenciação é que têm seu quantum de transformação e
produção em relações de dissenso e não de consenso, rizomáticas e não
arborescentes. A Ecosofia é nomádica em si. Nessa articulação, o
entrelaçamento da política com a ética e estética são fundamentais. A criação
e a composição é o que possibilita ir além do existente, transpassar o
instituído e o senso comum. A extensão estratificada e estriada há muito está
petrificada e esmerilhada. O diagrama ecosófico deve transbordar como
vetores de forças e intensidades que resultem em outros mundos possíveis, ou
em um mundo em que caibam muitos outros mundos.
Nesse processo, o desenvolvimento tecnológico e dos meios de
comunicação ocupa um lugar duplo. Ao mesmo tempo em que a Mídia é um
poderoso instrumento noopolítico massificador e de controle, a emergência
das novas tecnologias de comunicação descentraliza o controle da
informação, historicamente em posse de poucos. As mídias digitais
alternativas, que povoam a internet, constituem-se como zonas potenciais de
articulação e resistência que podem gerar processos de heterogênese da
subjetividade, que levam a desenvolvimentos maquínicos e autopoiéticos, os
quais proporcionam novas modalidades de ser, valores e territórios
existenciais que, obviamente, devem ser levados em consideração nas
discussões ecosóficas. As diversas mídias e tecnologias de comunicação
situam-se no enclave das estratégias de forças, ocupando lugar central para a
transição ao novo diagrama.
Enfim, que linhas podem ser traçadas? Que agenciamentos de forças
podem romper o triunfo do poder e das forças reativas e fazer com que a
potência suplante potestas? Não há um programa nem uma teleologia para
essa transmutação. Mas há pistas a seguir. Traçar essas linhas ecosóficas, que
são imanentes à política nômade, pode atualizar um espaço liso e intensivo,
tal como o plano de um Corpo sem órgãos. A irrupção das forças do fora que
direcionam a um novo diagrama, quem sabe mais sustentável e
potencializador. Trata-se de radicalizar o poder de resistir, compor e criar,
constituir afecções potencializadoras, combater a lógica do negativo e da
reatividade, afirmar as positividades por meio do dispositivo do Eterno
retorno, substituir a Moral pela Ética e estabelecer relações transversais para
a constituição de novas práticas, um novo comum, uma nova vida e outros
processos de subjetivação que prescindam do poder da captura e do
rendimento. Assumir formas de sociabilidade que privilegiem a autogestão e
os afetos potencializadores, ao invés das estruturas piramidais e afetos de
decomposição. Adotar não mais as tradicionais formas sedentarizadas de
fazer política, mas uma política nômade que remeta às forças do fora e de
resistência, nos investimentos desejantes direcionados ao polo esquizo e
libertário, sempre comprometida com a potência e a Utopia ativa da criação,
composição e transmutação. Transmutar as próprias linhas de fuga para as
linhas de luta e desejantes: é no combate que se constrói uma arma, se forjam
o ser e o coletivo. Utilizar o método da insurgência de forma disseminada, e
não da disciplina, obediência, ou rendimento da axiomática do capital.
Transmutar-se da subjetividade capitalista em direção às subjetividades
insurgentes, do corpocapital aos corpos dissidentes. Não mais tomar o poder,
mas ocupar e resistir. Pistas, linhas, vetores e rotas possíveis que podem nos
tirar do claustro do poder instituído para as novas terras da potência ecosófica
instituinte. Mas que apenas serão experimentadas ao serem traçadas,
construídas e postas em movimento.
Concluímos que os deslocamentos e experiências dos movimentos sociais
nômades podem servir como inspiração, pois são a composição coletiva
estratégica que está traçando essas linhas e são os focos de resistência para a
transição desta sociedade que está se desmanchando em prol da nova que está
se constituindo, mas que ainda não se conhece. Trazem modalidades de ser e
devir que atualizam relações de resistência à axiomática do capital e aos
microfascismos, e que podem potencializar a vida e inspirar a esquizoanálise
como uma Psicologia Política Crítica, que produza novos saberes, práticas e
configurações de forças. Com o CMI e a axiomática do capital, não se chegou
ao fim da história, pois os movimentos sociais nômades e insurgentes
instauram novos regimes de enunciados e sociabilidades que estão levando a
novas agitações moleculares e à produção de um novo comum por vir e em
movimento.
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Domenico Uhng Hur

Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de


Psicologia da USP, com estágio doutoral na Universidade
Autônoma de Barcelona (UAB-Catalunha) e pós-doutorado na
Universidade de Santiago de Compostela (USC-Espanha). Atua
como docente da Graduação e do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da UFG. É editor da Associação Ibero Latino-
Americana de Psicologia Política (gestão 2016-2018) e membro do
CRISE: Núcleo de Estudos e Pesquisas Crítica, Insurgência,
Subjetividade e Emancipação.
NOTAS

[1] Nascido em Santiago del Estero, Argentina. Médico-psiquiatra formado e


livre-docente em Psiquiatria pela Universidade Nacional de Buenos Aires.
Autor de 14 livros e dezenas de artigos publicados. Realizou inúmeras
intervenções institucionais.
Professor da Cátedra de Medicina do Hospital das Clínicas, Buenos Aires e
da Faculdade de Humanidades da Universidade Nacional de la Plata,
Argentina. Professor convidado de diversas Instituições: na Faculdade de
Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, no mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais
e no curso de especialização na Faculdade de Serviço Social da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Ministrante de cursos e grupos de
estudo sobre temas de filosofia, esquizoanálise, esquizodrama, psiquiatria,
psicanálise e psicologia social em diversas cidades, como: Montevidéu,
Caracas, Cidade do México, Lisboa, Bolonha e Zurique.
Membro fundador do grupo Plataforma argentino, filiado à Plataforma
internacional, Zurique. Fundador do Instituto Brasileiro de psicanálise,
grupos e instituições (IBRAPSI), Rio de Janeiro. Membro honorário da
Fundação Gregorio Baremblitt de Belo Horizonte, da Fundação Gregorio
Baremblitt de Uberaba e do Instituto Gregorio Baremblitt de Frutal. Cidadão
de honra das cidades de Belo Horizonte e de Uberaba, Minas Gerais.
[2] Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas pelo autor para
o português.
[3] Aqui também me apoio na ideia de magma de Cornelius Castoriadis
(1982).
[4] Os eixos propostos por Deleuze e Guattari (1995b), vertical e horizontal,
foram invertidos para convergir com o sentido das figuras expostas neste
livro, em que o virtual se localiza à esquerda e o atual à direita.
[5] Vale lembrar a narrativa do subcomandante Marcos, guerrilheiro
zapatista, que afirmou que quando parou de falar e se abriu à escuta dos
indígenas da Selva Lacandona é que o movimento zapatista começou a se
agenciar.
[6] Klínica com ‘k’ em alusão a klinos e klinamen, que se referem aos
movimentos das partículas subatômicas, seus encontros e desvios. Uma breve
introdução à obra do autor pode ser consultada em Hur (2014).

[7] No fim de sua obra, Deleuze (2014) refuta a ideia de uma História
universal, preferindo discutir as recomposições dos agenciamentos de forças
vetorizados em distintos diagramas nos diferentes momentos históricos:
“Portanto, ao mesmo tempo há que se dizer que não, que isso não é história
universal porque apela constantemente a novas mutações, a novas saídas.
Tudo torna a sair, constantemente tudo volta a sair” (p. 114).
[8] Ressaltamos que por instituições concretas não entendemos o mesmo, por
mais que haja convergências, da definição de Guilhon de Albuquerque
(1986), que enuncia sobre os processos de repetição de práticas, de
reconhecimento e sua decorrente legitimação.
[9] Frequentemente, os saberes psi entram em conflito com o próprio Estado.
Essa tensão é trabalhada de forma magistral por Foucault (1982) na obra Eu,
Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Trata-se do
caso de um jovem que matou sua família e se tornou disputa entre Direito e
Medicina, isto é, Estado e disciplina. Dessa forma, deveria ser preso ou
internado no manicômio? Era um criminoso ou louco? Qual instância tinha
poder sobre Pierre Rivière, a base jurídica do Estado ou o mecanismo
disciplinar da Medicina? Trata-se de um caso pelo qual se pode analisar a
tensão entre os dois poderes heterogêneos, entre duas mecânicas distintas.
[10] Ressaltamos que mesmo com o processo de descodificação
generalizado, algumas famílias historicamente dominantes ainda se
perpetuam no governo e na especulação dos fluxos financeiros de muitos
países, não apenas no Oriente. A máquina capitalista não varreu todos os
traços feudais da sociedade, como as oligarquias no poder.
[11] Vale ressaltar que Guattari (2004b) discutiu a expansão da lógica do
mercado e do capital transnacional através das fronteiras já na década de
1960, anos antes do tema da globalização entrar na pauta acadêmica
(Berardo, 2013).
[12] Atualmente, todos os países estão endividados, mesmo os países ricos. E
os credores não são outros países, mas corporações bancárias, de
investimentos e empresariais.
[13] Fenômeno comum nas universidades é que até professores que se
posicionam politicamente na esquerda e são críticos ao capitalismo, atualizam
sua axiomática. Muitos agem, mesmo sem saber, na estratégia neoliberal,
com os princípios de competitividade, acúmulo e extremo produtivismo.
Mas, ao invés de exibirem suas propriedades privadas, ou o extrato bancário,
exibem seu ‘extrato acadêmico’, seu currículo Lattes, em que cada artigo
mostra o quantum de sua ‘riqueza’. Mesmo ideologicamente críticos ao
capital, reproduzem a lógica ‘ CAPEStalista’, pois seus investimentos
desejantes, pensamentos e subjetividade estão modulados pela axiomática do
capital.
[14] Optamos por não seguir Serres (1994) e Tirado e Domènech (2006), que
chamam essas instituições de “extituições”. Suas definições estão centradas
nas sociedades de controle e intensificam o caráter de fluidez e de
exterioridade que as instituições assumem, porém não trabalham a
axiomatização dos fluxos sociais pela máquina capitalista.
[15] Mengué (2013), em sua obra sobre Deleuze, realiza interpretação liberal
de seu pensamento. Compreende que o advento do diagrama de controle
instaura novas modalidades de liberdade, em que o poder não é repressor e
que Deleuze se afasta da esquerda política. Entende que os modos de
resistência no cotidiano passam pelo papel de “fazer o idiota”, de instaurar
mecanismos de não sentido e incomunicabilidade nas relações sociais,
despolitizando os dilemas políticos contemporâneos e utilizando saídas
individualistas. O pensamento de Mengué é exemplo claro de apropriação de
direita do pensamento deleuzeano, no qual se desintensifica sua criticidade
política, aproximando-o ao conformismo pós-moderno.
[16] Deleuze e Guattari utilizam os termos ‘esquizofrênico’ e ‘paranoico’ não
para se referirem às entidades clínicas, mas, sim, às modalidades de
funcionamento que expressam um fluxo desterritorializador e outro
capturante.
[17] No Brasil, o racismo perdura de tal forma que nos horrorizamos mais
com os campos de extermínio de Auschwitz, onde foram aniquilados judeus
europeus brancos, do que com os campos de extermínio no próprio país, em
que milhões de indígenas e negros brasileiros pobres foram e são
assassinados.

[18] Por essa razão, os modelos psicológicos atuais priorizam os processos


psicóticos, de objetos parciais, ao invés do modelo neurótico, de objetos
totais. Se a histeria era o distúrbio paradigmático da sociedade disciplinar,
têm-se os transtornos borderline, o surto psicótico de indiferenciação, a
síndrome do pânico e a depressão como emblemas das sociedades de
rendimento.
[19] Por exemplo, até alguns adeptos do veganismo podem atualizar os
microfascismos. Há a adesão a um conjunto de códigos que aludem até ao
funcionamento de outra maquinaria social. Retorno histórico que perpassa a
sociedade pastoral e chega às sociedades agrícolas e de coletores: um novo
‘tribalismo’. União com a mãe Terra, na tentativa de evitar o assassinato
predatório de mamíferos, aves e peixes. Mas, muitas vezes, essa união com a
Terra é acompanhada de ódio, depreciação e desprezo aos que não praticam o
código do veganismo.
[20] A noção de ‘selfie’ refere-se a um tipo de registro fotográfico usado há
décadas. O bastão de selfie foi criado em meados de 1920, não obtendo
sucesso comercial. Porém, apenas com a criação do significante ‘selfie’, se
tornou uma explosão de vendas e difundiu-se no mundo. Não importa o país,
ou a cultura, todos tiram selfie como se fosse uma grande novidade. A selfie
expressa o zeitgeist: individualismo narcísico, vaidade, exibicionismo, sem a
necessidade de pedir auxílio a um outro para que registre a foto. Exibir os
mesmos sorrisos e expressões faciais em paisagens diferentes, mesmo que
não esteja gostando do momento. Quem está olhando?
[21] Um caso latino-americano semelhante e muito mais famoso foi o levante
organizado pelo indígena Tupac Amaru, no Peru, contra os espanhóis e os
‘criollos’ (descendentes dos espanhóis) (Debray, 1967; Galeano, 2010).

[22] Casas abandonadas ocupadas por jovens que passam a desenvolver ali
atividades culturais e oficinas de diversas espécies. Muitas delas se
organizam pela autogestão.
[23] Utiliza-se o sufixo ‘e’ para fugir da dicotomia de gênero, na qual se
coloca como masculino ou feminino. O sufixo ‘e’ traz uma característica de
impessoalidade e de transgenericidade.

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