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ISBN: 978-989-51-5797-6
Depósito Legal n.º 399229/15

Minha mãe me disse certa vez ter ouvido que o livro se escreve sozinho e que nós
somos meras ferramentas utilizadas por ele para que isso seja possível.

Por Arley França

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PRÓLOGO

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Monte Negro – Cem anos atrás
Todos os anjos eram irmãos, porém, ao
nascimento de mil deles, dois eram criados como
irmãos de espírito.
Haziel batalhava ao lado de sua irmã de espírito
Hariel e alguns anjos irmãos, contra uma centena de
inimigos demoníacos. Estes eram compostos por
pele rochosa, que cintilava em escarlate.
Rachaduras, por seus corpos, irradiavam pequenas
auroras douradas. Cada criatura tinhacerca de dois
metros e meio de altura. Os chifres grandes, negros e
razoavelmente contorcidos saíam da parte da frente
das cabeças lisas. Os monstros se excediam de
sobrancelhas, evidenciando os olhos negros. Das
bocas, desprendiam-se presas como as dos
hipopótamos, mas as de algumas criaturas jaziam
quebradas. Os corpos eram fortes como de touros,
musculosos. Sem vestes, dava para ver que não
possuíam distinção de sexo. As pernas eram fortes e
terminavam com pés de cavalos fornidos. As mãos
tinham dedos com garras enormes, pretas, foscas e
robustas.
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As montanhas, ao redor dos guerreiros, eram
agigantadas e difundiam suas cores em tons de
marrom. O céu estava quase escuro, mas sua cor
ainda corria em degradês avermelhados.
Em menor quantidade, os anjos estavam em
desvantagem. A maioria lutava com as asas
expostas, plainando no ar para se nivelar à altura das
criaturas. Cada celeste enfrentava duas criaturas,
alguns enfrentavam três.
Haziel, um dos mais poderosos anjos guerreiros,
enfrentava três criaturas com suas asas desabrigadas.
A disputa estava acirrada. Uma criatura investiu,
com sua lança, contra o anjo. Uma tentativa
frustrada pela espada do guerreiro, que com um
movimento circular, segurando a empunhadura com
as duas mãos, arremessou longe a arma do monstro.
Em seguida,afundou sua espada na cabeça da
criatura, abrindo um rombo. O corpo do demônio
caiu no chão e uma explosão irradiadora aconteceu,
formando uma redoma de energia, que alcançou
cerca de dez metros de diâmetro.
Girando seu corpo e dando uma cambalhota para
trás, Haziel acertou o queixo do outro demônio com
o pé. O pescoço da besta quebrou com um barulho
horrível. Assim, a segunda criatura fora abatida,
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explodindo em seguida. Com voracidade, voou para
cima da terceira criatura, que não teve tempo de
reagir. O celeste transpassou seu coração. Moveu a
lâmina da espada para baixo, rasgando a carne e
cortando o monstro em dois. As entranhas se
expuseram e o corpo caiu, como uma massa de carne
escaldante, para assim explodir.
Haziel era uma exceção, pois os anjos estavam
sendo abatidos a dezenas. O campo de batalha estava
repleto de cadáveres de celestes e demônios,
pedaços de corpos e armaduras. Bolos de carne
reluzentes, armas angelicais e infernais estavam
jogadasaos montes. Hariel chegou, voando com
extrema velocidade e deu uma rajada nas asas,
freando ao lado de Haziel.
– Haziel! – gritou a loura. – Mais um monte de
criaturas está vindo do sul, só que duas vezes
maiores. Tem dez dos nossos tomando a linha de
frente. Barrattiel está lá!
O anjo olhou espantado. Além da insuperável
Hariel, que era sua irmã de espírito, tinha também
Barrattiel e Daniel como seus parceiros mais
antigos. Porém, o celeste mais íntimo de sua vida,
depois de Hariel, era Barrattiel, a quem ele ensinou
praticamente tudo. Sem tempo para reflexão, apenas
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impulsionado pelo seu lado guerreiro, ainda mais
quando se tratava de seu mais íntimo irmão, o
celeste investiu nas asas, explodindo o ar em volta e
seguiu em direção sul. Sua metade espiritual esticou
o braço, gritando para que não fosse,
tentandoalcança-lo, mas fora interrompida por
Daniel, um anjo guerreiro de força estupenda. Ele a
segurou com os dois braços em volta do corpo
enquanto ela se debatia.
– Não! Me solta, Daniel, me solta! – Hariel se
debatia com todas as forças, mas não conseguia se
largar da pegada.
– Não, Hariel. Se você for, teremos um
problema a mais! – O celeste berrava a seus ouvidos.
– Estamos falando de Haziel, Daniel. Me solta!
Eu tenho que ir! Me solta, me solta! – Hariel soltou
um grito tão agudo, que ecoou nas montanhas
avermelhadas, reluzentes, à sua volta.
Daniel fora o anjo mais íntimo de Hariel desde a
sua criação. Vendo o desespero da moça, murmurou
em seu ouvido.
– Hariel, escuta! – Mas Hariel não parava de se
debater. Então o anjo falou mais alto: – Escuta!
A moça parou de se mexer e se aquietou. Daniel
prosseguiu:
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– Eu vou e trago Haziel de volta! – Maneirou
sua pegada e se virou, olhando nos olhos azuis da
moça.
– Não, aí eu perco vocês dois! – Hariel gritou,
franzindo o rosto.
– Eu prometo que o trago de volta, mas fique
aqui!– pediu o anjo, rodando seu corpo cento e
oitenta graus no ar, seguindo na mesma direção de
Haziel.
Chegando ao local, o que Daniel avistou foi
terrível. Corpos de anjos estavam destroçados no
chão. Alguns perambulavam com as asas quebradas,
rodeados com ferimentos tão profundos que não
tinham chance de recuperação, sendo esmagados
com facilidade. Demônios também foram tombados,
mas poucos.
Daniel reparou no centro do abate e viu quando
dois anjos lutavam ferozmente. Suas asas estavam
expostas, ajudando-os em suas manobras no ar. As
vinte bestas que os rodeavam deixavam-nos sem
chance de vencer. Haziel e Barrattiel lutavam
bravamente pelas suas vidas contra demônios
enormes. Eram parecidos com os anteriores, só que
mais robustos e maiores. Daniel retirou sua espada
da bainha e seguiu para a batalha. Chegando de
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surpresa, conseguiu derrubar dois monstros de uma
só vez com um movimento circular de espada,
decapitando suas cabeças. Em seguida, esmurrou
mais um deles tão forte na face, que o demônio
tombou com um buraco no crânio. Barrattiel o olhou
com gratidão e se prostraram juntos para a batalha.
O restante das criaturas deu um passo para trás.
Agora eram dezessete demônios contra três
anjos. Mas a força dos infernais ainda era superior.
Os três celestes estavam colados uns de costas para
os outros, formando um triângulo. As asas quase se
engalfinhavam. Seguravam as empunhaduras das
espadas com força. Estavam encurralados, sem
saída. Em volta deles, havia muitas criaturas com
mais desete metros de altura cada uma. Os seres
encabeçavam o teto rochoso com seus chifres
enormes, desprendendo pedras que caíam como
granizos gigantes.
O primeiro ataque, após a chegada de Daniel,
partiu da maior criatura da pequena horda
demoníaca. Fora em direção a Barrattiel, que não
teve outra opção, a não ser contra-atacar com um
chute lateral. Mas fora impedido pelo chifre da besta
poderosa, que com seu ataque frontal o arremessou
contra o teto, esmagando-o contra as rochas. O
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chifre da besta o esfregava na cobertura arrancando
pedaços enormes das rochas, que caíam como
melancias, estourando ao encontrar o solo. Haziel
tentou ajudar o amigo, voando com toda ferocidade
para cima da criatura, mas fora impedido por um
forte soco de outro demônio e arremessado contra
outra criatura. A força do impacto abriu uma brecha
no círculo infernal, jogando o corpo do anjo e o do
demônioa mais de duzentos metros contra rochas
pontiagudas, destruindo-as, explodindo-as em todas
as direções.
A velocidade estupenda de Daniel o
impulsionou à fresta demoníaca, indo ao encontro de
Haziel, que estava desnorteado pela pancada contra
a montanha rubra. Muito velozmente, os demônios
seguiramatrás dele com seus passos largos, mas o
anjo, mais ágil, chegava para aparar seu amigoe
irmão de espírito de sua amiga mais próxima.
Pousou o voo muito velozmente. Em seguida,
ergueu uma enorme rocha, com mais de dez metros,
que se dispunha sobre Haziel. Arremessou-a alguns
metros para a lateral e puxou o braço do celeste
louro, amparando-o. De imediato, investiu nas asas,
mas ao se desprender do solo, fora agarrado por uma
enorme mão forrada por unhas enormes. Um
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demônio agarrou sua perna, puxando-o para baixo.
As forças se contrapunham, até que Daniel, com
uma mão, retirou a espada do cinto e com uma
investida, arrancou dois dedos da criatura, que
puxou o braço de volta, soltando um alto uivo. Com
uma rajada das asas, chegou ao local onde estava
Barrattiel. O celeste sangrava muito, jogado no chão.
Muitos cortesenvolviam seu grande corpo. Então
colocou Haziel no chão para ajeitar os dois anjos e
colocar um em cada ombro.
Subitamente Haziel despertou. Com os olhos um
tanto embaçados, reparou enquanto Daniel colocava
Barrattiel em seu ombro direito. O corpulento anjo
sangrava aos montes, desacordado. A visão de
Haziel se cristalizou e olhando em outra direção,
avistou os gigantes demônios se aproximando
rapidamente.
– Daniel! – berrou Haziel enquanto se levantava.
– Saia daqui.
Daniel olhou para trás, surpreso, ao ver Haziel
em pé, disposto, encarando a horda que se
aproximava. Haziel voltou seu olhar para Daniel e
repetiu:
– Saia daqui! Leve Barrattiel, que precisa de
ajuda. Rápido!
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O louro fitou novamente a horda, que já estava
a cerca de cinquenta metrosde distância.
– Estou bem! Vou segurá-los.
Os olhos azuis do anjo se douraram ao lampejo
de sua áurea magníficaao explodi-la. A energia
irradiava muita luz, tomando como forma uma linda
tocha reluzente, que alcançava quase os limites do
teto. Cintilava em raios dourados, amarelos e
alaranjados. Daniel olhou para o anjo, analisou
rapidamente sua vontade. Sabendo que não poderia
fazer nada sobre a decisão de Haziel, balançou a
cabeça em forma de positivo. Então alçou voo,
aparando Barrattiel, que ainda estava desacordado.
Daniel conhecia Haziel muito bem e sabia que
não adiantaria perder nem ao menos um segundo
para tentar fazê-lo mudar de ideia. Independente do
que estivesse passando em sua mente, sua opinião
era forte e nunca mudava qualquer decisão tomada.
Então Daniel apenas aceitou e seguiu adiante.
Haziel explodiu o ar em volta de seu corpo, ao
investir em suas branquíssimas asas. Seguiu em
velocidade descomunal para cima da massa
demoníaca escarlate. Seu corpo cortou o ar como um
míssil. Na colisão com os grandes corpos, derrubou
quase todas as criaturas, como pinos de boliche. Seu
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corpo rolou por cima dos demônios, mas com a
força dos impactos, sua asa direita quebrou, dando-
lhe uma extrema dor latejante. O anjo soltou um
berro e tentou colocar as asas na carne, mas apenas a
esquerda entrou. A direita, por estar com fratura
exposta, ficou para fora. No centro do abate, os
infernais se erguiam do chão e o encurralavam um a
um.
Olhando de cima, enquanto se afastava aos
poucos, Daniel seguia em frente observando Haziel
desaparecendo meio aos odiosos infernais. Olhou
para Barrattiel em seus braços e depois para frente,
acometendoas asas ferozmente, partindo em direção
à saída.
As rochas caíam do teto aos montes. Lava
derretida escorria pelas laterais em rios, dançando
em explosões desordenadas. Desviando-se de cada
elemento, Daniel observou uma luz brilhante a
alguns quilômetros de distância. Então intensificou
suas rajadas, ganhando mais velocidade. Uma pedra
enorme se desprendeu do teto e iria acertá-los se não
fosse por sua velocidade. Ele desferiu um poderoso
soco direto contra a rocha, desintegrando-a
totalmente.

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Aproximando-se da passagem reluzente, foram
sugados e cuspidos no ar, em outro lugar, por uma
brecha que se abrira no espaço. O pequeno batalhão
angélico os aguardava, plainando a dez quilômetros
acima do solo. Estavam na Terra. O país era Irlanda.
Abaixo, o que se via, até onde os olhos alcançavam,
era uma imensidão de verde em várias tonalidades,
com grandes terrenos divididos. Uma grande ilha
rodeada por águas escuras.
A atenção de Hariel se voltou primeiro para os
dois que atravessavam a abertura. Depois para onde
se abrira a passagem, na esperança de ver seu irmão
de espírito atravessá-la. Aguardou alguns segundos
que pareceram horas. Na demora, voou
desesperadamente em direção a Daniel, indagando:
– Onde está ele? Onde está Haziel, Daniel? – O
olhar da mulher anjo expelia desespero. Os dedos
entrelaçados na frente do queixo. Os lábios tremiam.
Daniel apenas cerrou os olhos, abaixando a
cabeça. Hariel, percebendo o sinal, deu um longo
grito agudo, estridente. Colocou as mãos na frente
do rosto em forma de concha e sentiu, naquele
momento, sucumbir uma parte de si.

***
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Haziel acordara em um lugar escuro, onde a
única luz que brilhava vinha da parte externa,
transpassando a pequena abertura na parede uns
cinco metros acima. Pouco iluminava o ambiente,
em tons avermelhados. O anjo escutava gritos de
horror que chegavam por todos os lados, abafados.
Ouvindo um barulho de correntes, imediatamente
levantou-se e tentou dar um passo, mas percebeu que
seus dois pés estavam presos. Com toda força,
tentou estourar o objeto que prendia seus membros,
mas o material entrelaçado nem ao menos rangia.
O anjo estava cansado, fraco, com lesões no
corpo. Seu traje fora arrancado. Tinha apenas um
tecido velho envolvendo a região da pélvis. Escutou
um barulho de fechadura se abrindo e levantou-se
rapidamente. No salão, uma criatura horrenda
adentrou-se. Segurava uma tocha. O fogo pulsava,
deixando aparente sua maléfica feição. Tinha cabeça
de falcão e dos olhos saltavam pequenas labaredas.
O corpo era humano, mas as unhas eram maiores do
que o normal, negras. Vestia-se com uma espécie de
roupão marrom. As vestes caíam até os calcanhares
e deixavam os pés com formato de patas de lobo,
aparentes.
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– Haziel, Haziel! – disse a criatura calmamente,
negativando a cabeça, com um sorriso sarcástico.
O anjo guerreiro logo reconheceu o ser maligno.
Era um antigo serafim, que na época negra caiu ao
submundo, junto com o restante.
– Pruflas! – murmurou o anjo com os olhos
semicerrados.
O demônio abriu um leve sorriso sarcástico para
Haziel, falando em seguida:
–Calma, Haziel. Não seja ríspido!
O anjo tinha um olhar desconfiado, fechado.
– O que você quer, Pruflas? Porque você não
acaba logo com isso?
As labaredas nos olhos do demônio se
apagaram, deixando aparente sua esclera
completamente branca. Os olhos incharam,
avermelhando-se de raiva. Seu rosto mostrou as
veias pela pele despenada. Soltou uma curta
gargalhada, cuspiu no chão e disse:
– Acabar logo com isso?
O fogo da tocha ganhou corpo e brilho, o
demônio deu um passo rápido à frente.
– Você sabe o que vocês me fizeram passar na
queda?
Haziel apenas o encarava.
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– Você lembra o que fizeram para merecer isso?
– indagou o anjo.
– Isso para mim é irrelevante. Vou deixa-lo
descansar hoje, mas amanhã começaremos as
brincadeiras.
O demônio se virou, sorrindo, e acenou,
olhando com o canto do olho, seguindo até a porta.
O anjo observou a luz se afastando, enquanto
seu fogo cintilante, com suas centelhas, iluminava o
demônio. Pruflas atravessou a porta. Ao fechar e
trancar a fechadura, o escuro prevaleceu novamente,
deixando o celeste sozinho naquele devasto
universo, rodeado por tijolos.
Ao passar de dez minutos, a porta foi aberta
novamente e dois demônios entraram. Um segurava
uma tocha. Este tinha pele escamosa como dos
Varanus komodoensis, mais conhecidos como
dragões de komodo. Tinha o corpo comprido,
atingindo boa estatura e era dotado de grande
musculatura. O outro era menor, flácido. A cara era
de tartaruga, e apesar de ser um infernal, seus olhos
eram amigáveis. Dispunha de uma pequena
corcunda, talvez pelo fato de estar segurando um baú
com mais de um metro de comprimento, de
aparência pesada. Ao se aproximarem do celeste, o
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cara de tartaruga depositou a caixa no chão
encarando-o.
– Está com fome, celeste?
O demônio gordo abriu a tampa do baú e
retirouum pedaço de carne podre de dentro,
oferecendo-o para o anjo.
Nesse momento, vermes caíram no chão aos
montes, misturando-se aos dedos do anjo.
Haziel fez cara de nojo.
– É verdade, eu me esqueci de que vocês não
comem.
O infernal enfiou a carne na boca e arrancou um
belo pedaço. Com a língua, colocou para dentro da
boca alguns vermes que tinham ficado nos lábios.
Então acrescentou:
– Brincadeira! Queria deixar as coisas apenas
mais divertidas.
O demônio sorriu e olhou para o grandalhão
mudo ao seu lado, que retribuiu o olhar soltando
uma gargalhada curta, rouca.
Haziel balançava a cabeça em negativação.
Tinha um sorriso provocante repuxando os lábios. O
cara de tartaruga olhou novamente para ele, abaixou-
se, enfiando a mão na caixa aberta. De lá, retirou um
porrete forrado com pregos.
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– Isso aqui, celeste. Isso aqui! – O demônio
segurava o objeto e não tirava seus olhos dos pregos.
– Isso aqui é o que vai me agradar com a música que
vai sair da sua boca, quando for penetrado por esses
pregos.
O cara de tartaruga deu dois passos em direção a
Haziel já preparando a pancada. Parou, levou uma
mão ao queixo, depois levantou o dedo indicador
para o alto.
– Melhor!
O demônio se virou para o demônio mais
robusto e entregando-lhe o bastão, disse:
– É com você, Socran. Arrepia ele!
O demônio segurou o bastão rindo, abobalhado.
Seu olhar odioso voltou-se para o anjo.
Aproximando-se, levantou o objeto e lhe desferiu
um golpe nas costelas, perfurando os músculos,
quebrando ossos.

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PARTE PRIMEIRA.
O REFÚGIO

22
CAPÍTULO 01

Brasil, cidade de São Paulo, Zona Sul – tempos


atuais
Caliel observava enquanto Aron, adormecido,
rolava na cama para abraçar sua esposa. A luz do
luar iluminava o quarto durante a madrugada,
irradiando seu raio pelos vidros da sacada. Os
cabelos ruivos do anjo tinham um tom mais
escurecido devido à falta de claridade. Encarava,
tranquilo,o corpo de Aron tão relaxado. O sorriso do
ruivo não se desmanchava,tamanha felicidade por
estar tudo bem.
A madrugada percorria suas horas e Caliel não
desgrudava os olhos de seu guardado. Estava em sua
majestosa postura, sobre o chão da sacada, do lado
de fora do quarto. Aumentou sua atenção ao
perceber que o homem começou a tossir
bruscamente. Rapidamente o problema cessou. Não
era nada de mais, apenas engasgou com a própria
saliva.
Trinta minutos se passaram. Aron acordou com
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o despertar do celular, que piscava seus números
vermelhos, reluzentes, marcando 05:00 AM – Pegar
voo. Com a cara enfiada no travesseiro, o homem
deslizou o dedo sobre a tela, parando o som do
despertador. Virou-se para o lado, sorrindo, ao ver
Sun dormindo como uma criança. Os olhos estavam
mais puxados do que o normal, devido ao leve
sorriso que tinha em seus lábios.
– Como eu te amo! – disse Aron, beijando a
testa da mulher.
Sun mexeu a cabeça, abriu mais o sorriso e
espreguiçou-se, esticando os braços.
– Não ama! – disse Sun, com voz mole de sono,
em tom brincalhão, abrindo um pouco os olhos. Esse
era um bordão que acompanhava o relacionamento
dos dois. Sempre que Aron dizia que a amava, ela
retrucava falando que não amava, querendo mais.
– Amo sim! – Aron apertou a bochecha da
mulher e deu-lhe um beijo no cangote.– Vou tomar
banho! –sussurrou, passando a mão em sua cabeça.
– Tá bom! – Sun fechou totalmente os olhos,
aninhando-se ainda mais.
Aron levantou-se, deu a volta na cama, abriu o
armário e pegou uma toalha de cor creme. Seguiu
para o banheiro, passando na frente da sacada onde
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estava Caliel, que o fitava com seu olhar bondoso.
Fechou a porta, ligou o chuveiro e tirou a roupa.
Nesse momento, a água já havia esquentado e caía
no chão levantando fumaça, forrando o banheiro
com uma névoa clara. Aron, que pegava sua escova
de dentes, olhou em volta e viu-se meio a uma
nuvem branca. Nesse momento, correu e entrou
debaixo da água quente.
Sun esperou mais cinco minutos, criou coragem
e esticou os braços para se espreguiçar. Inclinou o
corpo e tirou os pés para fora da cama, calçando seus
chinelos azuis, camurçados. Passou a mão na
cabeça, respirou fundo e levantou-se. Caliel viu
quando a mulher passou na frente da janela e olhou
na sua direção para observar o lado de fora. Sun
pensava em quanto o sol brilhava naquela manhã. A
mestiça andava arrastando os pés de sono, mas
estava disposta a enfrentar o cansaço para o que viria
a seguir.
Aron saiu do banho e esticou o braço para pegar
a toalha que tinha se esquecido de pendurar ao lado
do box. Colocou a cabeça para fora e a observou na
maçaneta da porta. Que estranho! – pensou Aron,
franzindo as sobrancelhas. Deixou pra lá e saiu
molhado para pegar o pedaço de tecido
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macio.Secou-se e saiu para o quarto para se vestir.
Os pés estavam molhados, deixando pequenas
marcas no tapete. Pegou o celular e apertou o botão
superior para ver a hora. Percebeu que tinha ficado
vinte minutos no banho. Apressou-se e logo colocou
roupas com tecidos leves. Por cima, colocou uma
jaqueta. Pegou a mochila e foi na direção da área
onde tomariam café. Caliel transpassou o vidro da
varanda se adentrando no quarto, seguindo Aron.
Viu quando o humano encontrou Sun sentada,
esperando-o para tomarem café juntos. Aron
arrastou a cadeira sobre o carpete e sentou-se,
colocando a mochila ao lado. O ruivo se prostrou no
canto do cômodo e ali ficou observando os dois.
Caliel não podia ser visto, não estava
materializado no mundo carnal. Podia observar seu
guardado através do véu que separava a sua
realidade da dele. Do seu ponto de vista, a única
coisa que diferia as duas realidades eram as cores
mais vivasda sua. O contorno dos objetos também
parecia oscilar um pouco, como se estivessem meio
a uma grande piscina.
Em relação ao seu guardado, agia em seu
benefício sem ser notado, porém, se algo mudasse, o
anjo poderia se materializar do outro lado do tecido,
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colocando sua aparência à vista – algo que nunca
tinha acontecido. Sentia amor por aquele humano.
Acompanhou-o desde o seu nascimento e nunca
deixou que algo o surpreendesse na vida.
– E aí, baixinha? – uma forma carinhosa como
Aron chamava Sun – Tá empolgada?
Ela riu e disse, com os olhos lampejantes,
sorridente:
– Nossa! Você não tem ideia – respondeu,
enquanto pegava o suco de laranja.
– Quais passeios nós vamos fazer? Você já
sabe?
– Não. A Mari falou pra gente ir naquela agência
de turismo que fica quase na frente do hotel. O nome
é – ela começou a estalar os dedos a fim de se
lembrar – Álvaro Tours, é isso.
– Legal. Não vejo a hora! – disse Aron,
passando manteiga em uma torrada.
Sun acrescentou.
– Ela disse que eles são especializados em
brasileiros.
– Eles falam português?
– Ela disse que alguns guias falam. Tem um
quefala perfeitamente. Tomara que façamos os rolês
com ele.
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– Tomara! – exclamou o homem. – A festa
ontem arrebentou hein, amor.
– Nossa! Meu coração já começa a palpitar só de
eu me lembrar. – Sun fechou o punho e bateu contra
o peito algumas vezes.
– Você estava parecendo um anjo! – Ele esticou
a mão deslizando-a pelos cabelos da moça.
Sun o fitou com gratidão e lhe mandou um beijo.
Aron retribuiu. Perto deles, observando-os, Caliel
esboçou um sorriso naquelemomento.
O casal acabou sua refeição. Aron se levantou e
pediu o carregador de malas pelo telefone. Após
alguns minutos, o funcionário chegou e encheu o
equipamento com os pertences dos dois. Com
pressa, eles saíram e fecharam a porta do quarto.
Aron a abriu novamente, correu para dentro e pegou
sua mochila que havia esquecido. Percorreram o
corredor até os elevadores. O funcionário do hotel
foi quem acionou o botão.
– Já está me dando frio na barriga! – disse Aron.
– Por quê?
– Só de pensar naquele avião decolando.
–É a parte que eu mais gosto! – Ela sorriu.
O elevador chegou e eles entraram. Caliel
também deslizou para dentro, na sua realidade. O
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casal se prostrou de frente para a porta. O
funcionário estava no canto, com as mãos cruzadas,
na frente do corpo e com o carrinho ao lado. A
exatamente um metro de Aron e Sun, Caliel estava
de frente para eles, encostado no aço da abertura.
Quando o elevador parou, o funcionário fez
menção para que o casal saísse e em seguida saiu,
empurrando o carrinho. Aron foi fazer o check–out
enquanto Sun ficou sentada em uma poltrona, mais
parecida com uma cápsula de humanos, vendo as
atualizações no seu smartphone.
– Vamos? – Subitamente Aron chamou Sun, que
estava distraída.
Ela se levantou. Saíram pela porta principal do
hotel e entraram no táxi, que os aguardava.
A trajetória até o Aeroporto Internacional de
Guarulhos, naquele dia ensolarado, radiante, estava
tranquila. O sol parecia brilhar mais forte, fazendo
com que Aron estreitasse seus olhos. Após trinta
minutos, na rodovia Airton Senna, eles puderam
avistar o primeiro avião decolando. Sun apontou a
aeronave para seu recém–marido. Imediatamente ele
respirou fundo, dando um sorrisinho.

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Aeroporto Internacional de Guarulhos– 13
horas
O casal seguia até o local onde fariam o check–
in com suas bagagens em mãos. A fila era curta.
Após cinco minutos, já faziam a pesagem das malas.
Uma delas ultrapassou o limite de quilogramas.
Como sempre desesperada, Sun arregalou os olhos.
– E agora?
–Calma, Sun. Vamos comprar outra mala, menor
– disse Aron.
– Vocês podem aguardar ali ao lado, por favor?
– disse a profissional do check–in, educadamente.
– É claro! – respondeu Aron.
Ela agradeceu, com um sorriso. O casal se
afastou alguns metros.
– Fique aqui, que eu vou conseguir uma mala. –
Aron apontou o chão.
Sun balançou a cabeça positivamente. O homem
se retirou e retornou após apenas cinco minutos. Nas
mãos, tinha uma mala mais parecida com um trapo.
– O que é isso? – ela indagou surpresa.
– Foi o melhor que consegui! – Aron deu de
ombros – Na loja, estavam muito caras– disse,
fitando a mochila verde e azul, suja.– Comprei essa
aqui de um carregador, rapidinho.
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– Quanto você gastou? – Sun indagou, com as
mãos na cintura.
– Cinquenta reais – Aron falou, um tanto
hesitante.
– Cinquenta reais, por isso? – Ela apontou a
mala. – Ai Aron, só você mesmo. Vamos vai, já
perdemos muito tempo.
Eles transferiram o máximo de bagagem que
julgaram ser possível para a nova–velha mochila.
Quando Aron puxou o zíper, com sua delicadeza,
estourou o lacre.
– Que merda! – praguejou ele.
Em seguida, utilizou as alças da mochila como
cordas. Deu algumas voltas, e no final, prendeu com
um forte nó. Estava horrível.
– Melhor do que nada! –disse ele, olhando para
Sun, sorridente. Depois levou a mala às costas,
segurando-a por uma ponta da alça.
Passaram novamente pela pesagem. Dessa vez
deu certo. Despacharam a mala maior e ficaram com
as pequenas em mãos. Seguiram para a entrega das
passagens, adentrando-se no local de averiguação de
bagagens. Sun se preocupou, pois tinha colocado
produtos líquidos que excediam o limite do conteúdo
permitido, mas rapidamente se tranquilizou, quando
31
tudo correu normalmente. Pegaram as bagagens e
correram para o portão de embarque.
Faltando alguns minutos ainda para a primeira
chamada, Aron quis ir a uma das livrarias do
aeroporto. Lá, ele comprou um dos best-sellers
atuais, uma obra de Eduardo Spohr, o qual queria ler
há quase um mês. Saindo da livraria, pegou o livro
nas mãos e deslizou os dedos sobre a capa dura da
edição especial.
Aguardaram até a hora em que foram chamados.
Eles foram um dos primeiros a embarcar. As
poltronas azuis pareciam estreitas, pouco
confortáveis. Sentaram-se e admiraram as telas de
LCD presas nas cadeiras da frente.
– HAHA, temfilme! – disse Aron, em tom alto,
apontando a tela, feliz.
– Psiu! Fala baixo! – disse Sun.
O avião não demorou a lotar. As aeromoças
lacraram a porta e seguiram para a sua sala privada.
O comandante falou em português, depois em inglês
para que todos fechassem os cintos. Em seguida, a
aeronave começou a se movimentar. Aron olhou
para Sun um tanto empolgado. Segurou forte sua
mão e disse:
– Vamos nessa, amor!
32
Ela o olhou, sorridente, admirando a criança em
seus olhos.
O avião fez algumas curvas até cair na rua
principal. As turbinas foram acionadas com um
barulho grandioso. Nesse momento, o coração de
Aron acelerou e ele forçou as costas no assento.
Com um impulso, a nave começou a se mover e foi
ganhando velocidade rapidamente. Após alguns
segundos, já estava a mais de duzentos e cinquenta
quilômetros por hora – mostrado na tela de LCD.
Com mais um solavanco, a aeronave se desprendeu
do chão, fazendo com que o homem sentisse um
arrepio que percorreu completamente seu corpo.
Começou na região do abdômen e rapidamente já
formigava em sua cabeça.
– Puta que pariu! Isso aqui é muito bom! – disse
Aron.
– Eu não disse? Sabia que você ia gostar!
Para Sun, foi uma longa viagem de seis horas,
em que ela quase não conseguiu pregar os olhos. O
frio do ar condicionado foi pior do que ela havia
previsto. Aron colocou um filme, mas conseguiu vê-
lo por apenas uma hora. O resto da viagem dormiu,
quase babando, no colo de sua esposa.

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No trecho, atravessaram uma grande parte de
terra firme, até que em certo momento, a mulher
olhou abaixo e só viu água. Depois de poucas horas,
olhou no relógio de bordo. Lá, marcava apenas uma
centena de quilômetros para chegarem ao país do
Panamá, onde fariam a transferência para o voo que
ia à Cancun.

Aeroporto Internacional do Panamá–22 horas


– Aron? – Sun o chacoalhou. – Estamos
chegando!
Ele se levantou bruscamente, acertando a cabeça
no queixo de Sun. Ela berrou de dor,
envergonhando-se em seguida.
– Ai, Aron. Seu ogro!
– Desculpe! Deixe-me ver. – Ele afastou a mão
dela, analisando o machucado. – Não foi nada. Só
está vermelhinho. – Ele aproximou o rosto e deu um
beijo exatamente no ponto. – Pronto, sarou.
–Tá doendo! – disse ela, choramingando.
– Eu sei que tá, mas já vai passar.
– Olhe! – ele apontou a grande ilha da cidade do
Panamá se aproximando.
Aterrissando, com um tranco, o avião tocou o
solo. Em seguida, um barulho de borracha se atritou
34
ao asfalto. O avião parou e logo deslizavampelo
túnel que dava no piso do aeroporto do Panamá.
Tinham quase uma hora antes de embarcar no voo
que chegaria a Cancun. Passaram por uma loja e
compraram óculos escuros para os dois.
No portão de embarque, entraram já na primeira
chamada. A decepção de Aron foi nítida ao perceber
que naquele voo não teria filmes para
entretenimento. Nas poltronas não tinham telas,
apenas entradas para fones que tocavam músicas das
rádios da companhia. Depois de duas dezenas de
minutos, o avião começou a se mover. Mais alguns
minutos e já se erguia do solo.
O aeroporto era uma grande construção erguida,
meio a uma enorme região com vegetação inundada.
As águas eram abundantes. Tudo no lugar era
banhado pelas águas do mar. Dentro de pouco
tempo, já começavam a plainar sobre o mar escuro.
Olhando pela janela, o humano percebeu alguns
pontos onde subia fumaça.
Caliel voava ao lado da aeronave. Estava
acompanhado por alguns irmãos que guardavam
certos humanos quetambém estavam no avião.
Olhando algumas centenas de metros à frente, viu
uma pequena nuvem negra se aproximando.
35
Dentro do avião, a cinco poltronas na frente do
casal, de súbito, um homem gordo se levantou
ferozmente, prostrando-se no meio do corredor.
Esboçava um grandioso sorriso satânico. Abrindo
seu casaco ocre, apresentou uma bomba colada no
abdômen.
Fora da aeronave, na aproximação da massa
escura, o anjo ruivo percebeu que se tratava de uma
horda demoníaca alada. Imediatamente, todos os
guardadores uniram suas forças, criando uma
barreira translúcida em volta do avião. Por algum
motivo, Caliel olhou para dentro através das janelas.
O que viu o assustou ainda mais. Um homem tirava
do casaco um controle preto com um botão
vermelho central. Na cintura, tinha bombas presas.
O anjo olhou à frente e reparou os demônios a
pouco mais de cem metros. Dentro da aeronave, o
homem gordo apertou o botão vermelho.
Instantaneamente seu corpo se desintegrou com a
explosão. Nesse momento, um espírito negro saiu de
seu corpo. Como uma bala, Caliel voou para dentro
do avião, transpassando seu metal.
A um metro dos humanos, Calielparecia ver
tudo em câmera lenta. A grande esfera escaldante já
tinha liquidado grande parte da tripulação e agora
36
alcançava Sun e Aron. O ruivo teve destreza o
suficiente para criar uma barreira em volta deles,
impedindo que fossem atingidos pelo fogo ou
destroços da enorme explosão.
Os passageiros, mais ao fundo da nave, não
foram atingidos pela força da bomba, mas muitos
eram sugados pelo buraco aberto. Um homem se
segurava em uma poltrona, com todas as suas forças,
utilizando apenas um braço. Na outramão, segurava
sua – preciosa – maleta.
Enquanto pressionava as costas, com toda a
força, uma mãe prendia o filho pequeno ao cinto. No
final, abriu um sorriso angustiado. Pegou o cinto da
sua poltrona e começou a dar volta para prendê-lo
em sua volta. De súbito, fora atingida na cabeça por
uma pequena mala que voou das poltronas mais ao
fundo. Isso fez com que perdesse a consciência. Seu
corpo foi levado pela força do vento, deixando a
criança completamente sozinha.
Sun e Aron ainda estavam presos em seus cintos.
A mulher berrava, enquanto cravava suas unhas nos
antebraços do marido, que a envolvia em um
poderoso abraço.
Caliel reparou em outro ponto do avião: um
guardador protegendo um senhor de idade avançada.
37
Era Pahaliah, um poderoso guardador que seguiu sua
vida protegendo grandes homens de fé, até aquele
momento. Repentinamente, uma figura demoníaca,
um enorme infernal, com o corpo negro, asas de
morcego e grandes chifres, transpassou o metal do
avião que seguia em queda. Ele agarrou Pahaliah
pelo pescoço. Com a outra mão girou sua cabeça. O
momento foi curto, mas Caliel pôde ver a vida
desaparecendo dos olhos do anjo, enquanto o
demônio girava mais uma vez sua cabeça,
arrancando-a, segurando-a pelos cabelos. Em
seguida, jogou-a no chão.
O idoso tinha o desespero no olhar. Segurava
nas mãos uma pequena cruz de madeira, enquanto
sussurrava algumas palavras. O demônio se
aproximou e com sua unha fez um pequeno rasgo no
cinto de segurança. Na realidade do humano, ele
apenas sentiu o cinto arrebentando, para em seguida
ser sugado para fora.
– Te amo! – Aron sussurrou no ouvido de Sun.
– Eu também te amo!
Fitando o demônio, Caliel percebeu quando ele
reparou em sua presença. Imediatamente ele
começou a flutuar na sua direção. Dos olhos, cuspia
fogo. O anjo sabia que estava prestes a ser
38
massacrado, para em seguida seu humano também
ser. Então, sem pensar muito, resolveu agir
imediatamente. Esticando os braços na direção dos
humanos, colocando um pouco de força, ele
estourou os dois cintos ao mesmo tempo.
Imediatamente, o casal foi sugado para fora e só não
bateram em nada, porque o anjo os seguiu criando
uma barreira protetora.
Os corpos foram cuspidos pela abertura e
começaram a despencar no céu. Rapidamente
atingiram a velocidade máxima que um corpo
humano pode atingir em queda livre. Mas Caliel os
mantinha próximos um do outro. Olhando em volta,
o celeste reparou em alguns corpos angélicos
também em queda livre, mortos. Corpos humanos
destroçados, outros vivos, desesperados. Pelo visto,
tinha sido o único sobrevivente de seus irmãos.
Assombrou-se completamente, quando olhando
para cima, reparou em uma dezena de infernais
descendo vorazmente em sua direção. Não podia
fugir e deixar seu humano à beira daquele ataque
demoníaco. Explodiu sua magnífica áurea colorida e
aguardou, acompanhando a queda de seu humano,
juntamente com sua esposa.

39
Rapidamente os demônios chegavam e em dez
metros o arrematariam. Súbito, uma rajada dourada
explodiu a horda como um míssil, desintegrando
metade deles instantaneamente. Outros foram
arremessados longe, mas três delesconseguiram
escapar.
Enquanto caía, acompanhando a queda dos
humanos com suas asas abertas, Caliel reparou na
mulher anjo loura, posicionando-se para sua feroz
investida contra os demônios. Ela retirou sua espada
e com um movimento extraordinariamente rápido,
decepou a cabeça dos três restantes, guardando sua
espada em seguida. Os outros que se aproximavam
mudaram a direção e fugiram como covardes.
Em um piscar de olhos, ela já se posicionava ao
lado de Caliel, descendo como uma águia.
– Tudo bem, Caliel? – berrou ela.
– Você chegou exatamente na hora – respondeu
Caliel. – Obrigado, Hariel! Está tudo sob controle.
Ela meneou a cabeça. Em seguida, lampejou
seus olhos azuis, guardou sua espada e explodiu o ar,
seguindo em outra direção. Caliel voltou sua atenção
aos humanos e reparou o solo se aproximando
rapidamente. Ambos jaziam desacordados, talvez
pelo pânico excessivo.
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Os primeiros destroços já atingiam o mar,
levantando a água com pequenas explosões. Alguns
corpos mortos acertaram a água com um pequeno
estrondo abafado. Pelos ainda vivos, ele não podia
fazer nada, pois tinha que voltar a sua atenção ao seu
guardado e esposa.
Com a força do pensamento, Caliel os envolveu
em uma esfera dourada. Desafiando todas as leis da
física, os corpos foram freando aos poucos e logo já
flutuavam no ar. Com um movimento da mão, Caliel
os direcionou para outro lado, acompanhando-os.
Procurou algum lugar apropriado e avistou uma ilha
nas redondezas. Guiou-os até lá e fez com que
descessem, tocando o solo levemente.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida–23:30


horas
Poucos minutos se passaram, até que Sun
acordou meio a uma vegetação úmida. As estrelas no
céu pareciam brilhar mais intensamente. Tinha
alguma coisa diferente no ar daquela noite, além de
estarem em um lugar completamente desértico,
sozinhos, perdidos.
– Aron? – Ela chacoalhou o marido.

41
Ele acordou com um berro, rolando e se
levantando desesperado, ofegante. Olhando abaixo,
viu Sun ainda deitada, encarando-o.
– Como chegamos aqui? – ele indagou com os
olhos esbugalhados.
– Não sei! – Ela mostrou as palmas das mãos.
Refletindo um pouco, ele disse:
– A última coisa que lembro é de uma explosão
no avião. Em seguida, o estouro de nossos cintos.
Depois de mais nada.
– Como estamos vivos?
– Não tenho a mínima ideia!
A lua levava grande luminosidade ao lugar,
então a escuridão não era extrema. Aron ajudou Sun
a se levantar e espreitou mata adentro, semicerrando
os olhos. Dava-se para ver a silhueta das árvores,
frente ao grande céu estrelado. O casal resolveu ficar
exatamente ondeestava, pois era um local aberto,
dando para espreitar qualquer movimento à
distância.
Aninharam-se juntos, colados em uma rocha que
se erguia do chão. Os dois ficaram ali aguardando a
madrugada passar. Sun chegou a cochilar algumas
vezes, mas Aron não pregou os olhos. Ao longe, o
homem podia escutar o que pareciam ser explosões,
42
mas imaginou que fossem ondas se
chocandovorazmente contra as pedras.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Um dia


depois do acidente – 05:50 horas
O sol começara a raiar, despontando seus
primeiros raios no horizonte. Nesse momento, Aron
cutucou Sun, que o olhou com os olhos vermelhos
de sono. O homem se levantou encarando a
paisagem. O que ele viuforam inúmeras árvores com
folhas verdes, relativamente altas. Afastado cerca de
quinhentos metros,erguia-se um morro no formato
de vulcão, mas era completamente coberto por
vegetação. Uma região, com cerca de duzentos
metros quadrados, rodeava-os. Naquelaregião, no
solo, erguia-se um tapete de grama úmida.
– O que vamos fazer? – indagou Sun.
Aron demorou um pouco a responder, enquanto
encarava a mata adentro.
– Sobreviver – disse ele.– Vamos!
– Vamos aonde? – elaretrucou.
– Primeira coisa. Temos que criar um refúgio.
Ela inclinou a cabeça, concordando. Aron a
segurou pela mão e os dois deslizaram para o meio
das árvores. Caliel estava sentado em cima da rocha
43
que o casal tinha escolhido para se recolher à noite.
Ele os observou se afastando, em seguida alçou
voo,acompanhando-os.
Perto de uma árvore robusta, Aron pediu para
que Sun aguardasse. Ela concordou e acompanhou,
com os olhos, seu marido se afastando. Aron tateava
galhos no solo, mas estavam completamente úmidos.
Procurava madeira para fazer fogo. Depois de dez
minutos, retornou aonde Sun aguardava, já
preocupada.
– E aí? – perguntou ela.
– Nada! Está tudo muito úmido.
Ela o encarou com decepção. Aron acrescentou:
– Eu vou ter queprocurar por mais tempo.
– Eu vou com você!
– Não! É perigoso.
– Por isso mesmo – retrucou Sun.
Aron a encarou por alguns segundos e levou as
mãos à cintura.
–Tá bom, mas fique colada em mim.
Ela concordou com a cabeça.
Caliel já havia pousado. Deslizava atrás dos
humanos, afastado cerca de dois metros. Via a
frustração de seu guardado a cada tronco que
segurava, sentindo sua umidade. Nesse momento,
44
ele teve uma ideia que considerou brilhante. Ele
calculou mais ou menos por onde Aron passaria
procurando por material. Então quebrou alguns
galhos das úmidas árvores, deixando que caíssem no
chão, quase empilhados. Ele juntou as palmas das
mãos e aumentou a temperatura do ar em volta da
madeira. Isso fez com que a água evaporasse,
deixando-a seca, pronta para o que o humano
pretendia fazer.
Após alguns segundos, Aron e Sun passaram
exatamente por aquele local. Iam passando pelos
troncos despercebidos. Caliel percebeu e com a
força do pensamento deslizou a madeira sobre os pés
do humano, que deu um pulo para trás, fazendo com
que Sun caísse, batendo com a bunda na lama.
Sun se levantou sozinha, enquanto Aron se
aproximava para analisar os troncos. Quando
segurou um deles, analisando-o, abriu um enorme
sorriso, virando-se para trás e encarando Sun.
O casal seguiu para o local onde consideraram a
área segura. Aron despejou a madeira no chão,
tomando cuidado para que não a molhasse. Montou
a fogueira da maneira que sabia. Olhou satisfeito
para a planta Barba de Velho que tinha achado no
caminho – era uma espécie de planta seca. Prestando
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atenção, parecia mesmo uma barba branca.
Ajudaria-os a criar a faísca necessária para acender o
fogo.
– É! Estou vendo que os programas do Berry
Girls serviram para alguma coisa – disse ela,
sacaneando-o.
Aron passou longas horas assistindo maratonas
do programa, incansavelmente. Era completamente
fã do apresentador. Tiveram algumas discussões
naquela época, porque ele só queria fazer aquilo.
Enfim, ele construiu uma ferramenta exatamente
igual a uma dos que o protagonista da série criava.
Satisfeito, ele a usou para girar madeira contra
madeira. Após alguns minutos, uma fumaça branca
começou a exalar daquele ponto. Ele parou de girar
e analisou a brasa, que ainda não estava pronta.
Iniciou o movimento novamente. Enfim surgiu uma
brasa, a fumaça saía mais cheia. Aron pegou a
madeira, tombou-a sobre a barba de velho e
começou a soprar. Rapidamente a brasa apagou,
transformando-se apenas em carvão.
Sem perder as esperanças, o homem começou
novamente repetindo tudo que fez anteriormente,
mas novamente a brasa se apagou. Repetiu tudo
cerca de cinco vezes, enfim se sentiu esgotado. Os
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dois estavam decepcionados em volta da fogueira,
segurando os queixos com as próprias mãos.
– Eu vou tentar mais uma vez! – disse Aron se
levantando.
– Não! Descanse um pouco.
Teimoso, o homem começou a repetir a mesma
ação que tentou todas as vezes anteriores. Caliel
estava em pé ao lado deles e viu quando a brasa
começava a perder força. Ele respirou fundo,
manejando sua energia, tentando estalar alguma
faísca, mas não sentiu sua energia vibrar. Bateu as
palmas novamente, fechou os olhos e forçou o
pensamento. Nesse momento, escutou um grito de
Aron, alegre. Abriu os olhos e viu o fogo pegando.
Em seguida, sentiu o cansaço da segunda emanação
de energia, precisando se sentar.
Fazer algo acontecer, com a força do
pensamento em uma dimensão paralela, não era uma
tarefa fácil. Apenas alguns guardadores conseguiam
prosseguir com excelência em suas investidas. Caliel
era um deles.
– Sopra, sopra. Uhuuuu! – Sun espalmava as
próprias mãos enquanto gritava de felicidade. – Esse
é o meu marido!

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Em dois minutos, a chama já ardia bravamente.
Aron recolheu alguns troncos mais robustos,
envolvendo-os em volta da fogueira.
– Agora temos fogo! – Aron disse, sorridente,
enquanto fitava a fogueira, com ar de satisfação.
Ele se sentou, recostando-se na rocha, pedindo
para que Sun se sentasse ao seu lado. Sun se
recolheu em seus braços. Os dois ficaram à beira da
fogueira, admirando-a cerca de meia hora. Enfim
adormeceram.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Um dia


depois do acidente – 14:00 horas
Acordaram algumas horas depois e com um
pulo, colocaram-se em pé rapidinho. Aron olhou
para cima e percebeu que o sol já tinha deslizado um
tanto do centro.
– Já devem ser umas três horas! Temos que fazer
uma barraca.
Desde pequeno, Aron armava gambiarras para se
satisfazer. Enquanto trabalhava na formação da
barraca, lembrou-se da parafernália que fez para
arrumar sua bateria musical. Utilizou tecidos,
parafusos, molas e fita adesiva, muita fita adesiva.
Enfim, terminou de montar sua modesta cabana.
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– E aí, o que acha? – ele indagou satisfeito.
Sun encarou a construção por alguns segundos e
disse, olhando para Aron:
– Eu estou morrendo de sede! – Sentiu seu
estômago roncar forte e levou a mão a essa região. –
E fome!
Nesse exato momento, do nada, despencou uma
chuva torrencial. O casal se abrigou imediatamente.
– Espere aqui, eu já volto – disse Aron.
– Aonde você vai?
– Encontrar algo para recolhermos água – disse
o homem, enquanto já saía da barraca, impulsivo.
– Certo!
Depois de alguns minutos, Aron retornou com
uma grande folha verde. Segurou-a do lado de fora,
deixando que a água escorresse diretamente em suas
bocas. Repetiram isso várias vezes durante o tempo
em que a chuva caiu. Isso durou cerca de duas horas,
para assim começar a diminuir. Já estavam
satisfeitos com a abundância do líquido ingerido.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Um dia


depois do acidente –20:30 horas
Os dois estavam aninhados dentro da barraca.
Tremiam de frio, pois a gambiarra de Aron não foi o
49
suficiente para segurar uma chuva daquela
magnitude. Sentado exatamente de frente para o
casal, como se tivessem em uma conversa a três,
estava Caliel, cinquenta centímetros fora da porta da
barraca. O anjo esfregou as mãos, fazendo comque o
ar, em volta dos humanos, aquecesse sutilmente.
Isso foi o bastante para que eles parassem de bater
os dentes.
Subitamente, na realidade de Caliel, um
demônio desceu atingindo o solo como um meteoro,
fazendo com que a terra explodisse, deixando uma
cratera no lugar. O anjo deu um salto para trás,
explodindo suas asas da carne e ficou parado,
observando a besta surgir do buraco. O grande
infernal se levantou, expondo suas asas grotescas. O
anjo sabia que não poderia com ele, mas lutaria até
que sua última gota de sangue esgotasse. Não
entendia porque daqueles ataques repentinos,
ferozes. Fazia quase cem anos que isso não acontecia
frequentemente.
Antes que a besta investisse, um clarão explodiu
no céu. Em seguida, outro e mais outro. Depois uma
bola reluzente caiu, explodindo também uma cratera.
Hariel pousou, imponente, em posição de abate, com
sua espada em punho. Três corpos demoníacos
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despencaram mortos, caindo um em cada lugar do
terreno.
A fúria tomou conta do demônio que ia investir
contra Caliel. Mas esse se posicionou e explodiu na
direção da loura. Com velocidade descomunal, ela se
deslocou para o lado e deixou que sua lâmina
deslizasse no abdômen do monstro. Um grande
rombo foi aberto, fazendo comque suas entranhas
lavassem o solo aos montes. O infernal caiu de
joelhos, depois tombou para o lado.
– Lá fora está um holocausto! – disse Hariel,
embainhando sua espada.
–O que você quer dizer com isso? – indagou o
ruivo.
– Como o ataque ao avião de ontem, tiveram
centenas de milhares pelo mundo todo. Humanos
começaram a se explodir em bancos, supermercados,
shoppings. Como se isso não fosse o suficiente, hoje
um avião russo foi abatido na fronteira entre a
Ucrânia e Rússia, por uma ofensiva israelense.
Depois disso, houve um encontro entre cinco líderes,
dos países Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul.
– Isso é extremamente perigoso! – exclamou o
ruivo.
51
– Sim, uma grande parte das legiões celestes está
em missões pelo mundo todo. Mas tem alguma coisa
muito estranha no meio dissotudo.
Súbito, uma grande gargalhada partiu do
demônio que naquele momento os anjos achavam
que já estava morto. A loura tirou sua espada e se
aproximou.
– Do que você está rindo, demônio?
– De vocês! HAHAHAHA...
Os anjos se entreolharam, desconfiados. O
demônio acrescentou:
– Vocês não entendem!
– Do que você está falando? – perguntou a loura.
– Nós vencemos! – O infernal tossiu algumas
vezes. – Após cem anos, nós conseguimos!
– Você está delirando! – disse a mulher anjo,
rispidamente.
O demônio esboçou um sorriso satânico.
– O que você acha que está acontecendo no
mundo? Você acha que isso é obra divina? –
indagou o demônio, sarcástico. – Nós estamos
fazendo isso. Nós fizemos isso!
– Os humanos estão confusos. Nós vamos pará-
los antes de começarem a lutar entre si, como
sempre fizemos! – retrucou a loura.
52
– Dessa vez não, minha bela loura! – O infernal
se pôs a gargalhar novamente, mas interrompeu a
risada abruptamente enquanto engasgava com o
próprio sangue. O líquido quase negro escorreu pela
boca, deixando sua traqueia livre. Então ele
acrescentou: – Nós vamos acabar com todos vocês
como estamos acabando com aquele anjo há cem
anos.
Nesse momento, uma onda de choque atravessou
a espinha de Hariel e Caliel.
– De que anjo você está falando? – berrou a
loura.
Mas o demônio não respondeu. Apenas começou
a rir como forma de último suspiro. Depois agonizou
por mais dez segundos. Deixou a cabeça cair no
chão e a luz, ainda em seus olhos, apagou-se. O
infernal estava morto.
– Ele só pode estar falando de... – ela hesitou
antes de falar.
– Sim Hariel, eu também acredito nisso!
– Como isso é possível? – Hariel se perguntou,
estupefata.
A loura não acreditava no que podia estar
acontecendo. Seus olhos, que pareciam estar

53
apagados há cem anos, brilharam com um brilho que
só o amor verdadeiro é capaz.
– Meu irmão!?! Não é possível!
– Nós todos sabemos o quanto ele é teimoso e
poderoso. Para mim, não chega a ser tão difícil
acreditar que ele ainda esteja vivo – afirmou Caliel.
Ainda comovida com a notícia de que seu irmão
de espírito ainda poderia estar vivo, Hariel olhou
para Caliel, dizendo:
– Eu tenho que ir!
– Para onde?
Alçando voo, ela berrou:
– Eu não sei ainda! Avisarei você.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Um dia


depois do acidente – 23:30 horas
Dentro da barraca, o casal estava aninhado.
Gotículas de água passavam entre o telhado forjado
com plantas, caindo na perna de Aron. Isso
dificultava a sua concentração para tentar
adormecer. Enfim, mexeu a posição da folha que lhe
atormentava, fazendo com que a água respingasse
em outro local. Após apenas alguns minutos, tomado
pelo cansaço, fechou os olhos e dormiu. Não sonhou
com nada durante a noite.
54
Quando Aron despertou, já estava
completamente claro. Reparando na posição do sol
de dentro do refúgio, calculou que já era em torno de
sete da manhã. Cutucou Sun e os dois saíram da
barraca, espreguiçando-se juntos. Subitamente,
escutaram um forte som que parecia rasgar o céu. O
que viram, assustou-os de imediato e muito. O que
parecia ser uma espécie de foguete deslizava pelo
azul claro, deixando um rastro de fumaça tênue. Em
determinado momento, mais uma explosão vinda do
objeto e ele se dividiu em três, seguindo trajetórias
diferentes.
Após apenas alguns minutos, ao longe,
repararam em clarões que cresceram confundindo-se
com o céu. Depois o barulho muito baixo de três
explosões seguidas.
Nesse momento, Caliel explodiu suas asas e
voou na vertical, alcançando rapidamente algumas
centenas de metros de altura. Olhando na direção
dos clarões, percebeu que se tratava de explosões
poderosas. Então se preocupou imensamente quando
se lembrou do que Hariel havia lhe dito.
Incontinente, desceu para dar proteção aos humanos.

55
Quando aterrissou no solo, próximo ao casal,
muito velozmente, Hariel chegou e pousou ao seu
lado.
– Está acontecendo. Estourou a guerra! – disse a
loura, angustiada.
– Eu percebi! O que está sendo feito?
– Grandes legiões de guardadores se deslocaram
do Sexto Céu e nesse exato momento estão se
espalhando pelo planeta.
– Perfeito, conduzirei esse humano à
sobrevivência. Creio que este seja o local mais
seguro no momento.
Ela meneou a cabeça com seus olhos
resplandecentes, azuis. Em seguida, disse, esticando
o braço, segurando a mão de Caliel.
– Eu precisarei de você e tem que ser agora,
meio a essa confusão.
– Para o quê? – ele perguntou, surpreso.
– Vou resgatar meu irmão do inferno!
Caliel esbugalhou os olhos, puxando a mão de
volta.
– Hariel! Veja bem. Creio que você não esteja
raciocinando direito.
Ela esperou um pouco para falar, depois soltou:

56
– Estou o suficiente para saber que posso trazê-
lo de volta.
O ruivo franziu a testa, respirando fundo.
Encarou a loura, revirou os olhos e indagou:
– Como você quer fazer isso?
Ela o olhou, sorridente.
– Eu conto com a sua capacidade de esconder
sua energia.
– Você quer que eu vá lá? – ele perguntou,
colocando uma mão na cintura, apontando algum
lugar no horizonte.
– Creio que nenhum anjo da sua casta consiga
concluir essa missão. Penso apenas em você.
Caliel apenas a encarou e aguardou que ela
prosseguisse:
– Eu tenho um plano infalível – disse ela.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Três dias


depois do acidente – 14:00 horas
A fome dos humanos começava a se tornar
insuportável. Para ajudar, a ferocidade dos raios do
sol queimava suas peles rapidamente. A sensação
era de estarem dentro de um forno.
– Eu não aguento mais! – disse Sun, sentindo
seu estômago regurgitar. A sensação de ânsia de
57
vômito era grande, mas sabia que não tinha nada no
estômago para fazê-lo.
– Eu vou resolver isso! – disse Aron,
levantando-se imediatamente, confiante.
– Aonde você vai?
– Trazer comida para você!
Sun não se moveu. Sentia-se completamente
fraca pela falta de ingestão de alimentos. A água
caía do céu quase toda hora, às vezes fortemente, às
vezes em pequenas garoas. Mas sempre tinham
muito do líquido para se esbaldarem. A mestiça
ficou olhando o homemse afastar, pisoteando a
grama úmida com força. Sabia que ele faria de tudo
para deixa-la o mais confortável possível.
Admirando–o, naquele momento, lembrou–se de que
aquele homem era seu marido e com orgulho, ela
sabia que podia contar com o seu super–homem.
Após uma hora, Sun viu quando Aron retornava,
a uns cem metros, segurando um tronco comprido.
Nele estavam presos, quase meia dúzia de peixes
relativamente grandes. Atrás do humano, vinha
Caliel. No rosto, tinha uma grande aparência
cansada – mas Sun não podia vê–lo.
– Não acredito! Meu herói! – A mulher correu
para abraçar seu marido.
58
Aron soltou o tronco com os peixes, que caíram
no chão. Em seguida, ergueu sua esposa no ar,
rodopiando seu corpo, como um pião.
Eles limparam os animais, utilizando pedras
pontiagudas. Colocaram-nos na fogueira, que se
mantinha acesa, com os humanos sempre a
alimentando. Os peixes assaram por alguns minutos,
para assim servirem de alimento, dando força e
energia aos humanos.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Sete dias


depois do acidente – 3:00 horas
Aron pulou da cama ao escutar uma poderosa
explosão. O barulho foi tão poderoso que pareceu
estourar dentro da barraca. Com um pulo, ele saiu da
barraca empurrando sua porta – naquele momento,
já tinha trabalhado em sua criação. Era para estar
escuro, mas a explosão descomunal transformou a
noite em dia.
Calculou que aquilo aconteceu muito longe dali,
talvez a alguns milhares de quilômetros. Pela
magnitude da explosão, se tivesse vindo mesmo de
uma bomba, talvez tivesse acabado com o país
inteiro – pensou o humano.

59
Caliel se mantinha em espreita para qualquer
situação. Aquilo começava realmente a ficar
perigoso. Ele teria que investir todo o seu poder na
proteção daqueles humanos.

Brasil, São Paulo, Zona leste. Dez dias depois


do acidente –12:00 horas no horário de São Paulo
Uma pequena família, com três pessoas,
ocupava seu apartamento na Penha – um bairro na
cidade de São Paulo. Naquele dia, todos estavam em
casa, em férias merecidas de seus trabalhos. A mãe
era professora e os filhos tinham uma empresa de
publicidade. Um deles, o mais novo, estava trancado
com a porta fechada, no quarto dos fundos. O outro
também tinha a dele fechada. Ficava no meio do
corredor. Esse se entretinha com as coisas de que
mais gostava, enquanto sua esposa trabalhava nos
dois empregos. Era enfermeira. Suas folgas não
tinham dias nem horas certas. O jovem assistia a um
dos seriados em que mais era viciado. Na história,
era contada a vida de um sobrevivente de um
apocalipse zumbi, que ficou em coma por alguns
meses. Depois despertou em um mundo
completamente devastado.

60
A mãe estava sentada no sofá. Acontecia um dia
tenebroso, deprimente, clima pesado. As nuvens
ocupavam uma grande parte do céu ofuscando a luz
do sol. A guerra, alastrada pelo mundo, ainda não
tinha chegado naquela região do país. Apesar de
que, em certos lugares, como em Brasília e Rio de
Janeiro, o holocausto já tinha tomado conta.
Súbito, as luzes se apagaram. Escutava-se um
forte zunido pela cidade. No início era agudo. Aos
poucos, foi transformando-se em grave, para depois
cessar. Um dos jovens, o mais velho, saiu do quarto
e foi olhar os disjuntores.
– Será que caiu, mãe?
– Acho que não, filho. Os outros apartamentos
também apagaram– respondeu ela, apontando os
vizinhos do apartamento da frente.
O outro filho se manteve no quarto. Deve ter
adormecido enquanto assistia a um filme. Fato
ocorrente em sua vida desde sempre.
Aquele momento durou apenas alguns poucos
minutos. Repentinamente, ao mesmo tempo, mãe e
filho despencaram no chão, desacordados. Após um
minuto, começaram a voltar, mexendo
primeiramente os dedos das mãos. Aos poucos se
colocaram em pé, observando em volta, como se não
61
reconhecessem o lugar. Tinham um olhar sinistro,
como se tivessem esquecido a vida que existira ali.
Um fato completamente grotesco foi que seus olhos
já não eram mais brancos, cristalinos. Agora eram
negros, foscos. Pareciam torrados por uma poderosa
chama que queimou apenas aquela região.
Começaram a perambular pelo apartamento, até
se cruzarem e baterem os ombros. Mas tudo
aconteceu como se nem tivessem percebido. O
jovem deu com o rosto no vidro da sacada e voltou
como um carrinho de bate-bate. Com a mãe
aconteceu o mesmo, mas ela bateu na madeira em
volta da mesa de jantar.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Dez dias


depois do acidente – 16:00 horas
A barraca dos humanos tinha o dobro do
tamanho inicial. Sun estava apenas de calcinha e
sutiã, enquanto aguardava sua roupa secar em cima
da pedra. Ao longe, Aron retornava com dois peixes
presos por duas flechas. O peito estava desnudo, em
volta tinha um arco criado para caça – a imaginação
do humano para criação era enorme. Sun vivia
dizendo para ele voltar para o mundo real. Achava

62
que ele passava mais tempo em seus devaneios do
que pensando em coisas sérias.
Caliel voltava, andando ao lado do humano e
dessa vez não parecia afetado por cansaço. Olhando
para cima, reparou em Hariel chegando, traçando um
voo calmo. Ela pousou ao seu lado, caminhando
junto a ele.
– Aconteceu a pior coisa que poderia ter
acontecido! – ela disse.
O ruivo parou os passos por um momento.
Hariel acrescentou.
–Dessa vez o inferno conseguiu. Eles
planejaram. Nós nem imaginávamos! Tudo
aconteceu muito rápido.
– Hariel! Tenha calma, explique-me isso melhor
– disse Caliel, franzindo as sobrancelhas.
A moça bufou, hesitante.
– Eles fizeram alguma coisa. Quem não está
morrendo na guerra, está sendo dominado.
– Dominado?
– Sim! Os infernais invadiram os espíritos
humanos e não podemos fazer nada quanto a isso.
Caliel semicerrou os olhos, respirou fundo e
esperou um pouco para perguntar.
– Você está me dizendo q...
63
– Exato! – ela o interrompeu. – Depois de todo
esse tempo, eles, de alguma forma, conseguiram a
mesma proeza.
– Não é possível! – exclamou o ruivo, fitando o
chão.– Existe algum plano?
– Ainda não, estamos estudando as
possibilidades.
Sem avisar, naquele momento despencou uma
chuva torrencial. Os anjos ficaram ali, observando a
água que não podia atingi-los em sua realidade.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Treze


dias depois do acidente – 2:00 horas
Sun e Aron estavam adormecidos em sua
barraca. Já estavam perdendo as esperanças de
serem resgatados. Suas roupas estavam em trapos,
rasgadas em várias partes. O rosto do homem já se
forrava com uma barba escura.
Caliel flutuava trezentos metros acima do solo,
não muito alto, para ficar atento ao seu guardado.
Súbito, com uma rajada, Hariel freou ao seu lado,
pregando-lhe um susto.
– Chegou a hora! – disse a loura.
Caliel fechou os olhos por um tempo, depois os
abriu.
64
– Como faremos isso?
Ela lhe passou todos os detalhes do plano em
poucos minutos. Então Caliel indagou:
– Quem ficará no cargo de proteção a ele? – O
guardador apontou para baixo.
Nesse momento, a mulher anjo o encarou com
olhar preocupado.
– Hekamiah ficará no cargo!
O ruivo franziu a testa, depois arqueou as
sobrancelhas.
– Porque um guerreiro e não um guardador? –
Mostrou uma palma.
– Porque ele é o único que sobrou!
– Sobrou do quê?
Hariel fez uma pausa antes de prosseguir. Foi o
tempo de bater suas asas três vezes.
– Seu guardado é a última esperança da
humanidade.

Costa do Panamá. Ilha desconhecida. Quatorze


dias depois do acidente – 20:00 horas
Sentindo-se desamparado, completamente
desolado, o casal se mantinha em volta da fogueira.
Eles vislumbravam o fogo queimar os galhos, que
estalavam de vez em quando. Sequer imaginavam
65
que naquele dia eles seriam tirados daquela ilha, à
força.
– Você acha que seremos resgatados? – indagou
a mestiça.
– Eu não sei! Você percebeu que a não ser por
jatos, nenhuma aeronave passou por aqui? – Ele
apontou o céu.
Ela inclinou a cabeça como forma de
concordância. Aron acrescentou:
– Eu acho que já passou muito tempo. Creio que
teríamos visto pelo menos um helicóptero
sobrevoando o local do acidente à procura de
sobreviventes.
Sentado na rocha, perto dos humanos, Caliel
observava o céu, ansioso. Ele levantou-se quando
viu uma estrela despontar no imenso azul claro. Em
menos de um minuto, um anjo pousava cerca de dez
metros afastado. O ruivo se aproximou.
– Olá, Hekamiah!
– Olá, Caliel. Quanto tempo! – disse o anjo,
sorridente.
– É um prazer revê-lo, irmão. – respondeu o
ruivo – Já está tudo pronto?
– Sim! Pode ir. Eu os protegerei com todas as
minhas forças.
66
Caliel meneou a cabeça e fitou o humano com os
olhos lampejantes, erguendo voo em seguida.

Inferno, Monte Negro. Quinze dias depois do


acidente
Cem anos se passaram. Durante quase todos os
dias desse século, Haziel foi torturado radicalmente.
Às vezes, davam-lhe alguns dias de descanso, mas
servia apenas para que ele se regenerasse e não
morresse de sangrar, ou de seja lá do que fosse. A
criatividade dos infernais era de se admirar. Nunca
obtivera uma repetição na maneira das torturas em
todo esse tempo.
O anjo estava com pele pálida. Os cabelos
caíram aos montes. O corpo estava magro e coberto
apenas por um saiote velho, sujo. Preso ainda pelas
mesmas correntes, jogado no chão, deitado de
bruços, desacordado. Não tinha forças quase para
respirar. Se dissipasse sua energia no inferno, ao
morrer, provavelmente sua consciência ficaria ali,
eternamente presa. Jamais poderia acender em outro
local, como qualquer outra coisa, ou mesmo como
uma estrela. Haziel sofreria para sempre,
confundindo sua consciência com outras perdidas no
submundo.
67
A mente do anjo começou a obscurecer. Sua
consciência, aos poucos, ia se afastando, deixando-o
à deriva de algo. Haziel avistou a si próprio de cima
jogado na devasta escuridão, sem roupas. Sua asa
direita estava quebrada e seus olhos fechados. Sua
consciência subia, enquanto seu corpo ficava para
trás. Desesperado, o anjo tentava agarrar seu próprio
“eu”, mas uma força o impedia de alcança-lo.
Quanto mais lutava, mais distante ficava.
Repentinamente, da escuridão, o anjo escutou
som de metal colidindo, depois o barulho de aço
rangendo. Passos, passos rápidos. O barulho parou e
ele sentiu uma presença ao seu lado. Um choque
radiante emanou de seu peito, fazendo o coração
acelerar, o corpo formigar. O sangue corria pelas
suas veias como um rio que acabara de ser liberado
por uma comporta. Sentiu sua áurea acender no
centro de seu espírito, para assim sentir seus
músculos vibrarem. A consciência voltou, sentindo-
se apto a abrir os olhos.
– Haziel? – O anjo escutou uma voz que soava
tranquila. – Fique calmo, meu amigo. Estou aqui
agora!
O celeste abriu os olhos. À sua frente, dispunha-
se um anjo com uma áurea magnífica. Não pela
68
magnitude, mas sim pela beleza. A energia cintilava
nas cores do arco-íris. As asas do anjo eram brancas,
mas possuíam auroras reluzentes, claras. Os olhos
eram amigáveis, amendoados. A cor era de um azul
pulsante. Os cabelos eram ruivos e encaracolados,
curtos, mas um pouco volumosos. A pele era rosada,
com sardas se desfilando abaixo dos olhos. No
corpo, usava um vestido branco, que descia do
ombro direito, passava em cima do dorso e fechava
em um saiote acompanhando o mesmo tecido. Nos
pés, calçava sandálias leves de couro, presas por
cintos que serpenteavam em volta das panturrilhas.
– Caliel! – disse Haziel, surpreso, mas feliz.
O anjo ruivo alargou o sorriso.
– Não podemos perder tempo, Haziel. Vamos! –
O anjo se virou para partir, mas Haziel o segurou
pelo antebraço.
– Como você chegou aqui?
– Haziel! – O guardador respirou fundo. – Nós
temos que ir rápido. Eu tive uma ajudinha.
O louro olhou desconfiado, mas deixou para lá,
levantando-se a seguir. Sem nenhum problema,
estourou as correntes que envolviam suas pernas.
Agora estava totalmente recuperado e dotado de
energia completa.
69
CAPÍTULO 02

Monte Negro – 24 horas atrás


–Vamos! – disse Haziel, seguindo em direção à
porta, mas parou diante da mão de Caliel
atravessada na frente de seu peito.
– Espere! – Caliel tirou o braço da frente. – Tem
alguns guardas rodeando os corredores da torre.
– Torre? – murmurou o louro.
– Sim! Estamos na torre de Babel, no inferno.
– Agora eu entendo! – Haziel olhou para baixo.
–Entende o quê?
– Pruflas! – Haziel cuspiu seu nome. – Ele me
fez diversas visitas desagradáveis. – O anjo
olhou novamente para Caliel. – Vamos logo.
Temos que sair daqui o quanto antes.
– Vamos! – Caliel assentiu. – Como faremos?
Eu espreito?
– Sim! – Haziel inclinou a cabeça em
concordância.
Caliel seguiu até a porta e destrancou a
fechadura metálica, com cuidado. Atravessou a
70
porta, chegando ao meio do corredor e olhou para
Haziel. Suas asas estavam expostas, deixando
evidente sua naturalidade. Olhou para dois diabos a
algumas dezenas de metros. Inclinou sua cabeça
para baixo e assoviou. Imediatamente, os demônios
volveram suas cabeças, avistando o celestial
posicionado no centro da passagem, encarando-os.
Sua áurea refletia muitas cores, cintilando
ondulações pelo seu corpo. Estava com o punho
esquerdo fechado, enquanto a mão direita estava
aberta, com a palma apontada para a sala onde
Haziel ficou preso um século. O fechamento do
punho mostraria a hora exata em que Haziel teria
que investir.
Os infernais se lançaram na direção de Caliel.
Atravessaram o corredor rapidamente. A fúria em
seus olhos era amedrontadora. Caliel fechou o punho
a dois metros de Haziel e deu sinal para que o anjo,
como um vulto dourado, saísse da cela, abatendo
assim os dois demônios contra o muro. Quando os
corpos encontraram a rocha dura, escura,
explodiram, convertendo-seem uma massa difusa em
tonsde verde, azul e vermelho. As entranhas podres
dos infernais escorreram pelo muro encontrando o

71
chão. Os ossos se reduziram a minúsculos pedaços
de cálcio.
De costas para Caliel, encarando a gosma com
olhar odioso, Haziel tinha seus pés descalços no
chão. Suas asas brancas estavam à mostra. A áurea
brilhava magnificamente. Seus punhos estavam
fechados, mostrando as veias desfilando pelos
braços. Virou-se para o ruivo, dizendo:
– Vamos! – Jogou a cabeça para o lado,
informando a direção.
Caliel sorriu e contestou:
– É por ali, Haziel! – apontando para a direção
oposta a que Haziel apontava.
O anjo de cabelos dourados ainda estava
atordoado mentalmente pelo sacrifício dos cem anos.
Queria apenas deixar aquele lugar, enfrentar os
infernais e ganhar a guerra eterna – como era
conhecida – de uma vez por todas.
Haziel viu uma espada de chumbo meio ao
emaranhado de entranhas e a pegou limpando-a no
saiote, para depois colocar na cintura. Os anjos
alçaram voo e seguiramadiante pelo corredor, que ao
seu final, possuía uma notável brecha quadrada que
dava acesso à parte externa da torre. O anjo
guerreiro assumiu a posição da frente e os dois
72
percorreram velozmente pela longa e larga
passagem.
Atravessaram o primeiro cruzamento e
prosseguiram. Quando se aproximaram da segunda
via que cruzava o corredor, uma robusta criatura se
apresentou em suas frentes, batendo os pés,
tremeleando o chão. Possuía um enorme machado
com o comprimento da metade de seu tamanho. O
monstro tinha um corpo com cerca de três metros de
altura. Era desprovido de cabelos. Sua cabeça era
pequena em comparação ao seu tamanho. A cor da
pele era amarelada, rochosa, com estrias profundas e
negras que se mapeavam por cada centímetro
quadrado de seu corpo robusto. Os braços pareciam
troncos de árvore de tão fortes. Não tinha nariz e as
sobrancelhas eram saltadas, terminando em um olhar
negro, sem esclera. As vestes eram claras,
formando-se em um vestido que cobria o peito
direito, mas que expunha o esquerdo juntamente
com o ombro. O cinto fechava no lugar certo e nos
pés calçava sandálias de couro.
Haziel não hesitou, pelo contrário, prosseguiu
com mais vontade. Abriu uma boa distância entre ele
e Caliel, para assim marretar a criatura com seu
ombro. O peito da besta fora esmagado fazendo um
73
barulho abafado. O som foi parecido ao de um ovo
se partindo. A força do impacto jogou-a contra a
abertura na parede, estourando toda a estrutura de
pedra com seu grande corpo. O moribundo infernal
caiu nas profundezas externas da torre,
desaparecendo na brisa negra que acompanhava suas
paredes. Os anjos voaram pela abertura, expelindo
seus corpos no espaço sombrio do inferno.
Explodiram o restante das rochas que ainda se
desprendiam da parede destruída pelo corpo do
gigante. Nada podia pará-los. Estavam
determinados. Os olhos de Haziel pulsavam como
nunca, vendo aquela possibilidade de escape. Seguia
na direção em que Caliel vinha instruindo, logo
atrás.
– Haziel, oeste em setenta graus, oeste em
setenta graus! – Caliel berrava deixando aparente
suas veias do pescoço.
O louro seguia na frente, rajando suas asas
ferozmente. Ao olhar para trás, percebeu que Caliel
não o acompanhava com a mesma competência,
abrindo um espaço de quinhentos metros entre eles.
Haziel freou e parou no ar, virando seu corpo,
aguardando, enquanto o ruivo se aproximava
rapidamente. Faltando cem metros para o encontro
74
dos anjos, uma rajada vermelha, em forma de
cometa, chocou-se contra Caliel, bravamente.
Arremessou-o a centenas de metros contra rochas
que estouraram ao se chocarem com seu corpo.
–NÃO! – gritou Haziel.
Com um corpo rubro, musculoso e coberto por
rajadas negras, Pruflas estava abaixo de Haziel cerca
de vinte metros, flutuando com suas asas de fogo
imponentes. O duque tinha no rosto um sorriso
sarcástico. As labaredas em seus olhos pulsavam.
Estava totalmente disposto a impedir a escapada do
celeste. Era o rei de Monte Negro. Apenas ele
detinha poder o suficiente para duelar contra um
anjo com aquele poder.
– Você acha que vai ser tão fácil assim sair
daqui, Haziel? – perguntou Pruflas, contendo as
chamas dos olhos.
– Eu nunca achei que seria! – Haziel cerrou os
punhos. – Mas uma coisa eu prometo! – O celeste
fez uma breve pausa.– Farei o possível para passar
por cima de quem se colocar na minha frente.
As veias dos antebraços do anjo saltaram. Seus
bíceps incharam, expondo duas veias robustas
centrais. Gritou bravamente, explodindo sua áurea

75
dourada. Investiu nas asas e avançou contra a fera
que o aguardava, sorrindo.
Pruflas também rajou suas fogosas asas,
seguindo no contra-ataque. O impacto dos corpos,
quando se encontraram, provocou uma grande
explosão. Relâmpagos dourados foram cuspidos da
bola de energia que envolvia os dois combatentes.
Estavam com as mãos entrelaçadas, disputando
força. Pequenos, mas potentes raios se manifestavam
de seus membros colados. A cada segundo, as
pequenas estrias de energia que envolviam seus
membros aumentavam, até que formaram uma
pequena esfera dourada.
As células que compunham a pequena esfera de
energia reluzente se agitaram. Em seguida, um
estouro formidável. Uma onda de choque, com
tamanho poder, irradiou daquele ponto. Assim,
estourou completamente a parede de luz mais fraca
que envolvia os corpos dos guerreiros. Os dois
foram arremessados a centenas de metros para lados
opostos, destruindo tudo que encontravam pelo
caminho: rochas, estalactites gigantescas que
surgiam das nuvens, montanhas. O impacto sobre o
corpo dos guerreiros foi forte. Não controlaram sua
fúria, depositando-a totalmente em suas investidas.
76
Os dois lutadores ficaram poucos segundos
atordoados. Logo se recuperaram do choque. A
centenas de metros de distância um do outro,
estouraram suas áureas. Uma era vermelha, a outra
loura. Investiram em suas asas e seguiram para a
peleja, para assim rapidamente abaterem seus
corpos. O anjo avançou com uma joelhada direta
inclinando o peito para trás, dando mais
profundidade ao golpe. Mas o diabo era tão rápido
quanto ele edesviou-se da investida. Haziel passou
direto pelo demônio e abriu suas asas, freando,
cambalhotando no ar. Também girou seu corpo
dentro da cambalhota, virando-o de frente para
Pruflas.
O anjo tinha as sobrancelhas franzidas. O olhar
era sério, temeroso. Levou a mão à cintura. Do
saiote, tirou a espada que pegou dos soldados
anteriormente. Posicionou-a àfrente, segurando a
empunhadura com as duas mãos. Pruflas ainda tinha
no rosto um sorriso sarcástico. Subitamente, soltou
uma baixa gargalhada interna, mas que ressoou para
fora. Levou sua mão demoníaca à frente do corpo,
remexeu suas grandes unhas negras e avançou para
cima do anjo.

77
O monstro seguiu de encontro ao herói, rajando
suas asas de fogo. Ao se aproximar, seu corpo se
afunilou até as pontas dos dedos e começou a girar
em torno de si, cortando o vento como um míssil.
Pruflas tinha se tornado um redemoinho escaldante
que deixava para trás um grande rabo dourado.
Investindo de cima para baixo, Haziel arrematou a
arma contra o corpo do demônio impedido seu
ataque. Mas ao se chocar com o turbilhão de fogo, a
espada de chumbo foi arremessada a dezenas de
metros, penetrando e tremeleando em uma rocha,
que explodiu algumas pequenas pedras, com o
impacto.
A investida contra o demônio não fora fatal, ou
sequer deixara algum corte na carne. Isso devido à
rotação de seu corpo que o protegeu. Mas o impacto
da arma atribuído pelos músculos do anjo serviu
para tonteá-lo. Haziel aproveitou e voou em direção
a Pruflas, preparando um soco voraz. Enquanto ele
ainda se aproximava, o demônio voltou a si e
conseguiu cruzar os braços na frente do rosto, onde
seria atingido diretamente. O murro veio com uma
potência tão poderosa que ao encontrar os
antebraços do duque, criou uma onda de choque
dourada, arremessando o demônio contra uma
78
montanha. O monte marrom imediatamente
tremeleou e despencou, soterrando-o.
Haziel estava parado cem metros acima,
plainando no ar, assistindo ao sepultamento de
Pruflas. Por um momento, tudo ficou calmo. O anjo
considerou sua a vitória. De repente, as pedras
começaram a trepidar na região devastada. Iniciou-
se uma espécie de avalanche interna, onde todos os
fragmentos de rocha afundavam no centro do monte
destruído, meio a um redemoinho. Tudo começou a
brilhar em um tom avermelhado e os corpos
terrestres começaram a se fundir. Enquanto
derretiam, transmutavam-se em uma massa
escaldante.
No meio, quando a rocha acabava de se
liquefazer, uma silhueta escarlate surgia, na medida
em que a maré ardente descia. Era Pruflas. Irradiava
de seu corpo uma energia vermelha de aparência
poderosa. A luz cintilava em volta dele em uma fina
camada translúcida, criando uma pequena
tempestade energética dentro de si.
A luz vermelha pulsava, premeditando uma
eminente explosão. Os punhos do duque estavam
fechados, os braços esticados. As unhas passavam da
altura dos pulsos. Os músculos estavam inchados e
79
rígidos. O olhar era sério, odioso. A energia em
volta de seu corpo ardeu, ganhando brilho e explodiu
em uma tocha gigante, cintilante. O infernal partiu
para cima do anjo com toda voracidade possível em
seu coração maligno, expelindo lava derretida aos
metros, quando decolou.
Pruflas preparou um soco feroz e quando
arremetido, foi malogrado pelo contra-ataque de
Haziel, que girou seu antebraço para fora, fazendo
um movimento arqueado com o braço. Tudo que se
passou a seguir durou cerca de cinco segundos.
Diante da investida do herói, o demônio perdeu
o foco de seu soco direto, mas conseguiu retroagir a
mão direita a tempo de preparar um murro em forma
de gancho com o outro braço, acometendo-o.
Esquivando-se para trás do murro do monstro, o anjo
aproveitou a inclinação de seu próprio corpo quando
jogou seu pescoço para trás, para assim subir com
um poderoso chute, que acertaria o queixo da besta.
Mas Pruflas era rápido e amparou o golpe de Haziel
com os dois antebraços juntos, recebendo a
caneladaque estremeceu seus músculos. A força do
demônio era grande, arremessando as pernas do
celeste para baixo com um solavanco. A impressão
de Haziel era de como se ele tivesse batido em um
80
tronco inquebrável, de baixo para cima. O corpo do
anjo daria uma volta de 360 graus, se não fosse pela
investida nas asas, que impulsionou seu corpo para
trás, dando-lhe uma distância de dois metros do
duque. Com uma poderosa rajada de suas
branquíssimas asas, o anjo louro avançou muito
rapidamente contra o corpo de Pruflas, que dessa vez
não teve tempo de reagir com tanta destreza. As
mãos de Haziel brilharam como fogo para então ele
seguir com uma sessão de socos. Usando da mesma
técnica utilizada pelo anjo anteriormente, o demônio
girou seu braço para fora em movimento arqueado,
expulsando um dos socos do herói, que perdeu a
desenvoltura. A mão direita da besta brilhou mais
que a áurea em volta de seu corpo, contra-atacando e
arremetendo um gancho no abdômen do anjo. Haziel
fora jogado às alturas, parando apenas quando
encontrou o teto, penetrando seu corpo alguns
metros na rocha. As pedras explodiram com o
impacto e caíram em uma chuva de detritos, que
arrebentava ao encontrar o solo.
Pruflas esperava que Haziel despencasse junto
com as pedras no impacto, mas quando percebeu que
o anjo demorava a cair, já era tarde. Um vulto louro
saiu da abertura e se prostrou na sua frente em um
81
piscar de olhos. Haziel acertou um soco cruzado
direito no queixo do duque, que não teve
escapatória. Segurando seu ombro, desferiu-lhe um
gancho com o outro braço, também no queixo. O
corpo da besta subira com a pancada, mas
rapidamente fora marretado para baixo pelas mãos
entrelaçadas do anjo. A áurea do anjo guerreiro
estourou formidavelmente e ele desceu com
voracidade, encontrando o corpo da criatura
atordoada, ainda despencando no ar. Haziel iniciou
uma sessão de poderosos murros contra ele e seguiu
assim até seus corpos se chocarem no chão.
Continuou com sua investida distribuindo socos
atrás de socos, abrindo uma cratera no solo, que ia
afundando no decorrer de sua investida. As rochas
iam sendo cuspidas pela abertura no chão, na medida
em que a terra cedia. Enfim, o anjo parou. Pruflas
estava massacrado, seu rosto desfigurado. O sangue
escorria em abundância. O corpo tremia em
espasmos. A massa cefálica se liquefez e escorria
pela abertura que antes era o nariz. Os espasmos do
demônio duraram cerca de um minuto e meio, até
que ele morreu.
Após contemplar a morte do demônio, Haziel
investiu em suas asas, partindo na direção onde jazia
82
Caliel. Avistando a espada de chumbo, que nesse
momento já tinha despencado, ele a pegou e
prosseguiu. A cidade de Monte Negro, que era
comandada pelo espírito maligno de Pruflas, sentira
a dissipação de sua energia e começara a entrar em
colapso, aumentando bruscamente sua temperatura.
As paredes começaram a derreter, descendo em uma
massa reluzente escaldante. Então Haziel apertou a
velocidade do voo.
Chegando ao lugar, o anjo observou de cima e
rapidamente identificou o local onde Caliel tinha
caído. Uma selva de pedras se dispunha sobre o
corpo do ruivo. Haziel desceu em rasante e penetrou
no meio das rochas como um alfinete em um isopor.
De lá, saiu carregando Caliel em seu ombro,
explodindo as rochas em todas as direções. O louro
voava em velocidade descomunal. Sua áurea
brilhava, deixando uma calda resplandecente no ar.
Desviava dos pedregulhos que se desprendiam do
teto com rapidez, fazendo manobras magníficas.
Seguia na mesma direção, antes dita pelo protetor
dos humanos. Avistou um ponto brilhante e colocou
toda a sua potência no voo, seguindo na sua direção.
Quando chegou, penetrou na passagem e foi
cuspido no ar quilômetros acima do solo. O que o
83
anjo observou abaixo foi terrível. Uma enorme ilha
devastada em todos os pontos. O sinal de vida já não
existia mais.

84
CAPÍTULO 03
Irlanda
Haziel observou e com sua visão
astronomicamente mais apurada que a dos humanos,
avistou a muitos quilômetros, um castelo que se
mantinha ainda ereto. O anjo desceu em direção ao
solo, amparando Caliel nos braços. A uns vinte
metros do chão, plainou o voo fitando o mundo
abaixo. Gados mortos em estado de putrefação
estavam em toda parte. Áreas destruídas por fogo
inundavam o campo de visão do anjo, misturando-se
com poucas áreas ainda preservadas. Casas em
ruínas, humanos com aparência doentia
perambulavam sem rumo. Mas o que mais o
assombrou foi ver centenas de cadáveres humanos,
fustigados.
Ao se aproximar, o anjo logo reconheceu o
castelo Cashel. A estrutura fora construída sobre o
rochedo de Cashel. A torre redonda estava
perfeitamente preservada, elevando-se a quase trinta
metros de altura. A sua entrada era a três metros e
meio do solo. A Catedral apresentava planta
85
cruciforme, tendo uma torre central e terminando a
Oeste em um vasto castelo residencial. O edifício
incluía, na arcada exterior, um telhado com barra em
relevo, um tímpano esculpido sobre ambas as portas
de entrada, a magnífica porta Norte e o arco da
Capela-mor.
Aproximando-se, Haziel atravessou por uma
janela comprida e entrou em uma sala grande,
batendo suas asas calmamente. De cima, viu o que
parecia ser o único objeto no recinto. Abaixo de seus
olhos, tinha uma mesa de pedra sob um lençol sem
detalhes, branco. Dois cintos de couro marrom o
prendiam na rocha. Uma cruz estava tombada sobre
o móvel. O anjo desceu e pousou, prendendo suas
asas na carne. Colocou Caliel, que ainda estava
desacordado, no chão e andou até uma porta que
dava em um cômodo completamente escuro.
Espreitou, semicerrando os olhos, tentando enxergar
algo no breu, mas rapidamente deu meia volta,
aproximando-se de Caliel novamente. Fitou o anjo
no chão e olhando para trás, reparou novamente na
mesa com o lençol.
Cansado do saiote velho, sujo, Haziel se
aproximou do móvel e soltou os dois cintos de
couro, jogando-os no chão. Olhou a cruz,
86
observando o molde do Filho do Senhor e a ergueu
com cuidado, colocando-a em uma posição segura.
Retirou a espada de bronze da cintura e a depositou
no solo. Tirou a saia, arremessando-a longe e pegou
o lençol. Rasgando o tecido cautelosamente,
transformou-o em uma espécie de vestido que caiu
perfeitamente em seu corpo. Envolveu os dois cintos
em volta da cintura e colocou a arma entre seu corpo
e o couro. Satisfeito, locomoveu-se até Caliel.
Arrastou-o até a parede e acostou sua cabeça em um
pedaço de lençol enrolado que sobrou da roupa
forjada. Sentou-se ao seu lado, encostando-se na
parede. Passou a mão na cabeça, jogando a franja
loura para trás. Fitou Caliel e olhou para frente, um
tanto sem propósito. A espada o estava
incomodando um pouco, então a retirou e a colocou
ao lado.
Fechando as pálpebras, Haziel começou a
refletir sobre a luta com Pruflas. Foi aí que percebeu
a energia perdida no combate. Aos poucos, foi
entrando em estado de relaxamento, para assim
recuperar toda a força esvaída.
Ao se passar em torno de quatro horas, Haziel
fora interrompido de seu momento transitivo com
um leve chacoalhão. Rapidamente se levantou em
87
posição de defensiva e percebeu Caliel ainda
sentado, com a mão apoiada no chão. Um leve
sorriso se desenhava em seu rosto e balançava a
cabeça de um lado para outro, rindo um pouco, após
o susto do louro.
– Calma. Calma. Sou eu, Haziel!
– Eu sei! – O anjo guerreiro franziu as
sobrancelhas.
– É! Eu percebi! – Caliel soltou mais uma
risada.– Gostei da roupa nova!
Haziel também abriu um sorriso e começou a rir,
dispensando toda a tensão das últimas horas. Por um
momento, esquecera tudo que viu ao chegar à terra.
Subitamente parou de rir e indagou:
– O que aconteceu nesse tempo em que fiquei
ausente?
– Você viu, né? – Caliel tinha o olhar triste.
Haziel assentiu. O ruivo olhou para a janela.
Dava-se para avistar alguns borrões dos brilhos
vindos das estrelas, ofuscados pela atmosfera densa.
– O inferno conseguiu! – disse o ruivo, olhando
afora.
– Não é possível! – Haziel olhou espantado para
Caliel, que voltou seu olhar a ele.

88
– Sim, é possível! Eles conseguiram destruir
“quase” completamente a humanidade.
Haziel tentou falar algo, mas suas cordas vocais
não soaram. O anjo estava estupefato com a notícia.
Olhou com olhos apavorados e boca aberta para
Caliel. Depois indagou:
– Baal derrotou os arcanjos? – Haziel colocou a
mão na cabeça, fazendo seus fios capilares
escorrerem entre seus dedos. – Não é possível!
Como estão as coisas no céu? – Ele encarou Caliel
com o olhar ainda mais espantado.
–Calma, Haziel! Não foi como está pensando. –
O anjo ruivo tinha a voz jovial, calma.
– Então como foi? – Haziel respirou fundo.
– Baal enganou os arcanjos.
Haziel franziu as sobrancelhas mexendo os
lábios sem soltar nenhum ruído. Tudo mudara
completamente em apenas cem anos, depois de
tantos milênios de batalhas sangrentas e rios de
sangue. – Enganou os arcanjos? – pensou Haziel.
– Como ele enganou os arcanjos?
Caliel olhou com reprovação para o nada e
depois para Haziel, semicerrando os olhos.
Levantou-se e se prostrou na frente do celeste.

89
– Ele forjou um acordo de paz para com a
humanidade, em que não os incomodaria mais. Em
troca, quis o livramento para transitar no mundo
terrestre pelo lado espiritual. Isso valia apenas para
demônios de castas mais altas. – O ruivo fez uma
pausa.
– Continue, por favor! – disse Haziel, não
acreditando no que estava ouvindo. – Conte-me
tudo!
Caliel assentiu com a cabeça e prosseguiu:
– Os arcanjos discutiram a possibilidade
algumas vezes. Sabiam que se os infernais parassem
de atacar a humanidade, tudo entraria em seus eixos,
aos poucos. Depois de uma semana, por algum
motivo, aceitaram o pedido.
– Depois de tudo que ele fez? – Haziel
reprovava a ideia.
– Eu também pensei nisso, Haziel! Mas pense
bem. Eles são divindades forjadas da própria luz do
Pai. O seu maior feitio é o perdão. – Caliel mordeu
os lábios e arqueou as sobrancelhas, mostrando as
palmas das mãos.
Haziel deu de ombros.
– Certo! Mas e aí?

90
– E aí que ele conseguiu exatamente o que
queria. – Caliel começou a andar pela sala de um
lado para o outro. – Com isso, toda a atenção que os
arcanjos voltavam a ele, quase desapareceu. Depois
disso, de alguma maneira, Baal conseguiu manipular
as almas humanas, depositando em cada espírito
uma célula demoníaca.
– Célula demoníaca! De novo? – indagou
Haziel.
– Essa é nova, né? – ironizou Caliel. – Com a
perda de fé da humanidade, uma brecha se formou
nas almas a partir dessa célula. Então foi depositado
um tipo de vírus demoníaco. Uma espécie de câncer
que tomou conta da alma humana. Foi assim que ele
conseguiu deteriorar a humanidade em um século,
com apenas três guerras, sendo que a última foi a
devastadora.
– Tiveram três guerras enquanto eu estive no...
Inferno? – Nesse momento, Haziel fitou o chão,
triste.
– Sim, três guerras que envolveram muitos
países. A primeira foi menor. Mas a tecnologia
cresceu e na segunda tiveram muito mais baixas. A
terceira guerra foi devastadora e só não acabou com
o planeta completamente, porque ela própria acabou
91
com os humanos antes disso acontecer.
Inacreditavelmente, a guerra durou apenas uma
semana e meia. O resto quem fez foi o inferno.
– Eu não entendi uma coisa: ele depositou a
célula antes ou depois da guerra? – perguntou
Haziel.
Caliel parou de andar e se sentou no degrau que
dava na mesa de pedra.
– Antes e depois! – Caliel fez uma pausa. – Eu
não tenho certeza, mas creio que ele tenha
manipulado alguns líderes para que essas guerras
estourassem. Depois de ter conseguido liquidar tudo,
utilizando as próprias mãos humanas, mostrou a cara
novamente e conquistou o que restava da
humanidade.
– O que o Céu fez sobre isso? – indagou Haziel.
– Até agora não foi feito nada. Mas soubemos de
um boato em que um anjo completaria um
centenário no inferno. Soubemos imediatamente que
se tratava de você. Ao mesmo tempo, foi descoberto
que dentre todos os humanos infectados, um deles
não pôde ser dominado.
– Porque apenas um? – Haziel estreitou os olhos.
– Você vai se surpreender com essa! – Sorriu
Caliel. – Porque esse ser é o único herdeiro de Adão
92
ainda vivo e só ele tem a alma completa. Por pura
coincidência, ele é o meu guardado.
– E isso quer dizer que...
Caliel falou, completando a frase de Haziel:
– Isso quer dizer que ele é a cura para a
humanidade. Apenas ele tem o poder da abertura dos
portais que guardam a luz divina.
– Que ligação isso tudo tem comigo? – Haziel
mostrou as palmas.
– Ligação mesmo nenhuma, mas a oportunidade
apareceu e depois de sabermos de você, foi enviada
uma missão para resgatá-lo.
– Entendi, mas porque enviaram você para me
resgatar e não um guerreiro?
– Porque Hariel achou melhor um guardador do
que um guerreiro, pelo controle da energia.
– O que Hariel tem aver com isso? – indagou o
louro.
– Se não fosse ela, não teríamos conseguido! –
O ruivo levantou o dedo. – Só uma pergunta. Como
a gente chegou aqui? – Caliel olhou em volta,
apontando para baixo.
– Eu derrotei Pruflas! – Haziel cerrou o punho
direito, fechando os olhos.

93
– Ótimo! – Caliel abriu um sorriso com o canto
direito da boca. –Agora eu queria lhe pedir um
favor.
– Pode dizer, Caliel – disse Haziel, sorridente.
– O inferno já sabe sobre o humano. Sendo
assim, o perigo aumentou. – Caliel deu um risinho.–
Todos nós sabemos que vocês, os guerreiros de Deus
são muito poderosos. – Ele encarou Haziel com seus
olhos azuis cintilantes. – Você é o melhor anjo para
proteger Aron nesse momento!
– É o nome dele? – Haziel perguntou
rapidamente, antes que Caliel continuasse.
– Sim! – o ruivo respondeu.
–Onde ele está? – indagou Haziel já explodindo
as asas.
– Atualmente ele está em uma ilha, perdido. Eu
vou te dar as coordenadas.
Caliel apertou um pequeno botão em seu cinto.
Um compartimento se abriu e uma pequena esfera
de luz reluzente flutuou de lá, pousando na palma de
sua mão. Os dois anjos observaram a minúscula
esfera aumentar seu brilho, fazendo-os semicerrar os
olhos. A bola de luz cresceu, formando-se
rapidamente em um mapa translúcido, onde as linhas
dos desenhos eram douradas, evidentes, como se
94
tivessem sido escritas por alguma caneta de luz, em
plástico transparente.
– Você reconhece esse local? – Caliel apontou
um ponto no mapa e olhou para Haziel.
– Creio que sim! – O anjo balançou a cabeça,
atento às linhas brilhantes. Depois fitou os olhos de
Caliel. – É uma ilha próxima à costa do Panamá?
– Sim, ele está lá, Haziel! – O sorriso de Caliel
se intensificou.
– Pode deixar comigo agora, Caliel. – O
guerreiro tinha postura imponente, enquanto fitava o
luar ofuscado – Obrigado por tudo. Cumprirei com
as minhas promessas e utilizarei até minha última
gota de sangue para protege-lo! – Inclinou a cabeça
para frente, olhando a última vez para Caliel e
investiu nas asas, transpassando pela janela com
velocidade estupenda.
Caliel observava o anjo se afastando
rapidamente com sorriso no rosto e brilho no olhar.
Fora coberto por um sentimento de tarefa cumprida.

95
CAPÍTULO 04

Costa do Panamá, Ilha desconhecida


Era noite. Subitamente uma explosão poderosa
no céu. Hekamiah correu para o centro do terreno,
observando acima. Uma esfera flamejante apareceu
muito longe, depois de mais um poderoso estouro.
Mais três dessas aconteceram e a cada vez estavam
mais próximas da ilha. Em determinado momento, o
anjo percebeu que se tratava de uma batalha
espiritual. Instantaneamente ele explodiu sua áurea e
seguiu de encontro à luta.
Muito velozmente, Hekamiah se aproximou do
combate. Apesar de preocupado, certa tranquilidade
se aflorou em seu peito quando percebeu que ali,
lutando com todas as forças, encontrava-se Haziel.
Desde sempre admirou aquele celeste pelo seu poder
abundante. Um sorriso inundou seu rosto ao
perceber o quanto ele seria útil naquele momento em
que passavam.
Sem perder tempo, feroz, o celeste explodiu o ar
na intenção de ajudar seu irmão. Haziel arregalou os

96
olhos quando o viu. Nesse momento, esmurrava um
grande demônio na face.
– O que faz aqui, Hekamiah?
– Eu vim te ajudar!
– Cadê o humano? – berrou Haziel.
Nesse momento, uma onda elétrica percorreu a
espinha de Hekamiah e ele mergulhou na direção do
humano. Quando se aproximou, dando para enxergar
o casal, a ansiedade tomou conta de sua mente. Dois
diabretes estavam de cócoras sobre a rocha. Nas
mãos, cada um segurava uma navalha prateada. Ele
sabia o que poderia acontecer exatamente naquele
momento. Sem que ao menos Aron percebesse, sua
carótida seria cortada e ele morreria rapidamente de
hemorragia interna, sem sequer imaginar o que
acontecera.
Quando os pequenos demônios ameaçaram se
movimentar, o anjo soltou um berro que ecoou quase
por toda a ilha. Isso fez com que os demônios o
olhassem assustados. O tempo que ganhou foi
precioso, pois conseguiu chegar a tempo. Mirando o
corpo dos infernais com seu corpo, explodiu-os ao
chocar-se com eles, transformando-os em pó
instantaneamente.

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O choque foi tão poderoso, que nessa hora, os
humanos, juntamente com sua barraca, foram
arremessados aos metros por uma súbita ventania.
– Sun? – Aron se levantou engatinhando até sua
esposa – Você está bem?
A mulher acordava um tanto desnorteada. Um
fio de sangue escorria por sua testa, saindo do meio
dos cabelos. Muito preocupado, imediatamente o
homem remexeu os fios. Mas se tranquilizou quando
viu apenas um arranhão, um pouquinho profundo.
– Ai! – A mulher colocou a mão na cabeça – O
que aconteceu?
– Não imagino! – respondeu Aron.
No mundo espiritual, Haziel caiu no solo como
um cometa, abrindo uma grande cratera. Hekamiah
pulou para trás e logo se aproximou. Haziel se
levantava com ódio na face, fitando o céu. Olhando
também para cima, Hekamiah percebeu uma
pequena horda, a apenas duzentos metros deles,
descendo vorazmente. Eram grandes, fortes e
seguravam enormes porretes enferrujados.
Repentinamente, Haziel açoitou as asas,
explodindo toda a terra deteriorada à volta, seguindo
na direção dos infernais. Como uma bola de boliche,
chocou-se contra eles, criando uma grande esfera
98
dourada expansiva. O som do estouro tão próximo
foi grandioso. Em um movimento espetacular,
Hekamiah se prostrou na frente dos humanos com
suas asas abertas, utilizando-as como escudo,
impedindo que fossem atingidos por outra onda de
ar.
Em volta do casal, detritos da barraca, grama e
terra explodiram como se alguém tivesse pisado em
uma mina. Aron se jogou em cima de sua esposa em
uma reação espontânea.
– O que está acontecendo? – berrou Sun,
desesperada.
Em volta dos humanos e Hekamiah, Haziel
percebeu que uma horda demoníaca se formava. Já
havia aproximadamente cem demônios e
continuavam chegando como formigas ferozes.
Haziel desceu em rasante, pousando ao lado do outro
celeste. Os dois se prostraram, um ao lado do outro,
afim do grande combate que se sucederia. Hekamiah
retirou sua espada da bainha e Haziel fechou os
punhos.
Percebendo a atrocidade dos demônios, Haziel
não esperou. Subitamente explodiu para cima deles,
iniciando um combate voraz. Com uma investida,

99
desintegrou mais de vinte deles, derrubando em
efeito dominó mais de cinquenta.
Hekamiah se mantinha em guarda,
movimentando sua espada, protegendo os humanos,
na ideia de não deixar nenhuma das bestas se
aproximar. Duas delas saíram do meio da horda e
atacaram, segurando lanças enferrujadas. Mas o anjo
cortou o ar com sua lâmina, até atingir um deles no
meio do corpo, dividindo-o em dois. Imediatamente,
o outro parou e retornou para o meio dos outros
demônios.
Os humanos se mantinham abraçados no meio
daquele ataque, que para eles era incompreensível. A
sensação era de estarem no meio das trevas, mas não
podiam ver nada. Apenas seus corações saltitavam
ferozmente, impedindo-os de reagir. A chuva
despencava em um dilúvio, fustigando-os ao
máximo.
Haziel lutava vorazmente. Esmurrava muitos
demônios com velocidade, eliminando-os um a um.
Hekamiah se mantinha em guarda rodeando os
humanos, não deixando que ninguém se
aproximasse.
Hekamiah pareceu ver tudo em câmera lenta,
quando notou um raio se formando. A explosão de
100
energia desceu como uma lança automática.
Atingiria os humanos em cheio, se não fosse por ele
que, abrindo suas asas, pulou em cima deles. A
descarga de energia rasgou as duas realidades no
meio, abatendo-se contra Hekamiah. Suas moléculas
se agitaram e em frações de milésimos de segundo,
até os humanos sentiram um pouco do impacto,
caindo desacordados imediatamente. O anjo
despencou, batendo seu corpo contra a água que
subia dentre a grama.
Haziel viu aquilo acontecer completamente
espantado. Os dois humanos caídos de um lado,
Hekamiah do outro. Teve que tomar uma atitude
imediata, batendo as asas com toda a sua velocidade
a fim de resgatá-los, pousando junto a eles. Todos os
demônios que arrematavam seus corpos contra os
humanos, pararam diante da imponência do celeste.
Naquele momento, a sua mente entrou em uma
confusão. Sabia que poderia resgatar dois deles, mas
teria que deixar um. Sem tempo para raciocinar,
materializou-se no mundo carnal, agarrou Aron com
um braço e segurou Hekamiah com o outro pela sua
própria realidade. Em seguida, tentou pegar a
humana pelo braço, mas sua mão agarrou apenas o
tecido de sua blusa, que não aguentou, rasgando-se.
101
Erguendo voo em uma explosão súbita, ele
desapareceu meio a chuva torrencial e aguardou a
duzentos metros acima. Olhando no meio da horda
demoníaca, ele percebeu meia dúzia de demônios se
materializando no mundo carnal. Em seguida,
ergueram o corpo desacordado da mestiça, olhando
para cima, encarando-o com sorriso demoníaco.

102
CAPÍTULO 05

Local desconhecido
De alguma forma, finalmente Aron conseguiu
chegar à terra firme. Despertou na areia da praia,
enquanto o mar lambia seu corpo. Nesse momento,
gritou o nome da esposa. Ainda estirado, levantou a
cabeça e olhou para os lados, mas não avistou nada
familiar. O desespero assolou-se. As ondas do mar
chegavam até a areia, mas a cor da água estava
diferente, talvez um pouco sem cor, na verdade. O
homem se pôs em pé e espalmou a roupa em trapos.
Andando pela praia, reparou que o sol estava
ofuscado e o céu acinzentado. Como se aproximasse
de uma tempestade, mas sem relâmpagos, raios ou
vento.
Nada daquilo parecia com a ilha. E Sun? Cadê
Sun? –perguntava-se Aron. Depois de cinco minutos
perambulando pela imensidão desértica, o humano
avistou um homem andando a uns quatrocentos
metros. Parecia desolado. Sem pestanejar, Aron
colocou as duas mãos em volta da boca e começou a
103
gritar:
– Ei, amigo!
Imediatamente a pessoa olhou para trás, contraiu
os ombros e começou a correr em sua direção, com
vontade. Aron se sentia completamente fraco por
causa da desidratação. Mas a ajuda veio rápido,
fácil. Até demais. Apesar do desespero e ansiedade
sentidos por não imaginar onde Sun se metera, ou
melhor, onde ele se metera, ele ainda tinha forças
para prosseguir. Quanto mais o homem que corria se
aproximava, mais aparente ficava o algo estranho
que Aron tinha notado em seu rosto.
Os quase vinte metros de distância deram uma
visão nítida a Aron e o que viu foi assustador. O
homem tinha olhos negros, parecidos com duas
bolas de carvão. A baba negra escorria da boca,
sujando suas vestes esfarrapadas. O tom da pele
estava estranho, pálido, acinzentado.
Apavorado, Aron começou a correr na direção
contrária. Mas o homem era incrivelmente veloz,
alcançando-o rapidamente. Logo a criatura pulou
para cima dele, derrubando-o. Tentava de qualquer
maneira mordê-lo, arrancar um pedaço. Mais parecia
com a boca de um lobo, de tantas vezes que abria e

104
fechava as mandíbulas com violência. Seus dedos
estavam encravados na carne de Aron.
Lutando para se defender com todas as forças,
Aron colocava o antebraço no pescoço do ser, mas
esse humano, louco, só queria uma coisa: arrancar-
lhe um pedaço. Que merda é essa? Onde está Sun? –
pensava o humano, enquanto se defendia.
Segurando-o pelo pescoço, Aron olhou para o
lado e notou um belo tronco trazido pelo mar.
Imediatamente o pegou com o braço livre e o
colocou no pescoço da criatura, empurrando-o para
trás com as duas mãos, fazendo com que ele caísse
para o lado. Levantou-se rapidamente e ficou de
frente para o louco, segurando o pau como um taco
de baseball. O homem se levantou jácorrendo para
cima dele. Súbito, Aron o acertou com muita força,
na cabeça. O sangue começou a sair, sem parar, com
seu corpo caído na areia. Totalmente desesperado, o
herói largou o pau, ajoelhou-se ao lado do homem e
colocou as mãos sobre seus próprios olhos. Mas ele
não tinha muito tempo. Quando olhou à frente, um
bando de humanos atormentados corria em sua
direção. Ele criou forças e começou a correr em
outro sentido.

105
CAPÍTULO 06

Local desconhecido
Aron corria desesperadamente daquele bando de
loucos. Viu que na avenida da praia alguns carros se
amontoavam. Então correu naquela direção, usando
todo o ar possível ainda em seus pulmões. O homem
transpassou a divisória da areia para a avenida com
um salto, passando por cima dos bancos de
alvenaria. Aproveitou para dar uma espiada à volta,
esperançoso para ver sua esposa. Logo chegou aos
automóveis e começou a serpentear entre eles. À
frente, viu uma picape erguida por outro carro.
Jogou-se em baixo do motor e ficou ali agachado,
ofegante, atento. Por um descuido, bateu a cabeça
em alguma parte, embaixo do motor. Uma peça se
desprendeu e subitamente foi lavado por óleo.
Olíquido estava frio.
Imóvel, Aron não pensava em nada, a não ser no
rosto de sua amada emitindo um belo sorriso. O
bando se aproximava, com seus lapsos horripilantes.
Enquanto isso, o humano respirava com muita
calma, tentando fazer o menor barulho possível.
106
Então viu quando a trupe passou, observando suas
pisadas firmes no chão. Conseguia enxerga-los
apenas até um pouco acima dos joelhos. Ficou ali
por alguns minutos, ansioso, espreitando por todos
os lados.
Saindo de baixo do carro, reparou quando o
grupo se afastava. Sem chamar atenção, ainda
abaixado, deu a volta no automóvel e seguiu para o
lado oposto ao grupo. O homem se recompôs do
pavor e seguiu por uma rua que saía da avenida
principal da praia. Dezenas de carros abandonados
se distribuíam pela comprida rua. A grande maioria
tinha os vidros embaçados ou quebrados.
Aron se aproximou de um carro vermelho um
pouco mais conservado que os outros. Passou sua
camisa em círculos no vidro para limpar a poeira
superficial, deixando-o quase cristalino. As duas
mãos sobre o vidro tamparam o reflexo do sol.
Aproximou o rosto para poder enxergar a parte
interna. Mas nesse momento, quando conseguiu
enxergar melhor, assustou-se e deu alguns passos
descoordenados para trás, batendo as costas em
outro carro. Aproximou-se novamente e olhou com
mais atenção. Dentro do veículo, tinha uma mulher
morta. Em seus braços, segurava o corpo de um
107
bebê. Enojado, Aron se inclinou e vomitou um
líquido verde. Recompôs-se e continuou andando.
Ao passar por um monte de carros, Aron viu um
montante de corpos. Centenas deles jogados como
lixo pelos próximos quinhentos metros. Ainda
estavam conservados. Se não fosse pela tonalidade
da pele, não pareceriam mortos.
O humano andava pela estrada cautelosamente.
Nenhum ruído podia ser ouvido, nem do homem,
nem da natureza. Até os insetos pareciam ter se
calado. A área, em volta das ruas, onde era para se
erguer muita grama verde, fora tomada por uma
vegetação escura, morta. Os amplos sítios que
seguiam por toda a vista não demonstravam nenhum
sinal de vida. A cerca de madeira que separava a
avenida da natureza, em alguns pontos, estava
destruída, em outros, escurecida.
Mais adiante, quando já não existia mais a cerca
de madeira, o humano avistou troncos de árvores
deitados no chão, separando os terrenos. Passando
na frente de um dos terrenos e observando bem,
Aron avistou um galpão um tanto grande, a cerca de
trezentos metros da avenida. O homem pulou um
dos troncos, seguindo terreno adentro.
Andando com passos rápidos, seguia
108
diretamente para o galpão onde poderia conseguir
alguma ajuda. Aumentou um pouco o ritmo,
iniciando um trote. Mas logo tropeçou em algo e
rolou por cima da vegetação morta, levantando
pequenas folhas secas que giravam com seu corpo.
Caindo sentado, o homem olhou para trás, deu um
grito e se levantou muito rápido quando percebeu
que tinha tropeçado em uma perna humana. Nesse
momento, em sua mente, passou uma imagem de
Sun, essa que preferiu afastar. A perna no chão
estava cortada na altura da coxa, ou melhor, pelo
estrago, com os músculos e artérias saltando,
destroçados, aquele membro fora arrancado de
alguma maneira e deixado ali para apodrecer.
Com o estômago embrulhado, o homem seguiu
para o seu destino e logo chegou à porta grande,
metálica, que separava o exterior do interior do
galpão. A cor alaranjada estava ofuscada pela
ferrugem. Mapas de metal marrom, descascando,
desenhavam-se por todo o portão, dando um aspecto
de fragilidade. Aron não se intimidou pelo tamanho
do acesso e o empurrou com uma mão. O peso da
porta não era compatível com o seu tamanho, talvez
pelo excesso de desgaste.

109
Com a necessidade de encontrar alguém, Aron
entrou no galpão sem hesitar. Mas preferiu evitar
fazer barulho até seus olhos se acostumarem com a
escuridão. Aos poucos, silhuetas cúbicas começaram
a se formar. Estavam empilhadas uma sobre a outra,
até Aron perceber que eram caixas. Andou até os
objetos e colocou a mão, sentindo o frio do metal
liso. Retrocedeu alguns passos e abriu a porta cerca
de dois centímetros, deixando um pouco de luz
entrar. Aproximou-se das caixas novamente e
abraçou a que estava em cima de todas. Retirou-a do
lugar e colocou-a rapidamente no chão, quasea
soltando. Esticou o corpo com a mão direita nas
costas e o inclinou um pouco para trás, alongando-o.
Ao abrir a tampa da caixa sem lacre, Aron se
deparou com dezenas de latas de atum. Só nesse
momento, o homem percebeu a fome esmagadora
que estava. Seu estômago respondeu contorcendo-se
com um forte ronco. Enfiou a mão direita na caixa,
pegou uma lata, abriu-a e começou a comer,
utilizando dois dedos como talheres. Nessa hora,
lembrou-se de um acontecimento na sua vida que o
fez rir.

** *
110
Uma vez, ele e Sun, logo no começo do
relacionamento, resolveram se meter em uma dessas
festas rave. Lá, encontraram amigos e conheceram
outros que se tornaram amigos. A festa durou quase
vinte e quatro horas no total. Não para o casal, pois
na vigésima hora já se despediam dos antigos e
novos amigos.
Completamente bêbados, andavam tropicando,
divertindo-se muito com a sensação deixada pela
festa. Passaram pela portaria e seguiram para o
estacionamento. Era um espaço aberto, lamacento
por causa da garoa da noite. Perambularam,
divertidos, cerca de vinte minutos. Aquele lugar
podia ter milhares de carros. Na situação dos dois,
seria impossível achá-lo. Teimoso, Aron persistiu e
depois de apenas cinco minutos, apertando o botão
do controle da porta, incansavelmente, escutou um
pi–pi. Locomoveu-se até o local e quando avistou o
automóvel, olhou sorridente para a mestiça logo
atrás dele.
Aquele problema foi pequeno, comparando-se
ao que veio a seguir. Perderam-se nas estreitas ruas
de terra que uma hora ou outra desembocariam na
rodovia. Aquilo percorreu quase por três horas, até
111
que o homem resolveu parar. Passaram a madrugada
inteira em claro até o sol raiar. Depois prosseguiram.
Durante todo aquele período, o que mais escutou da
boca de sua esposa, que na época era apenas sua
namorada, foi:
– Estou com fome! Estou com fome!

***

Aron repetiu a refeição três vezes, até que


começou a se sentir saciado. A sede veio. Logo
jogou fora a lata que estava nas mãos e começou a
procurar por alguma torneira nas vigas erguidas no
salão. Chegando ao final do ambiente, viu uma
torneira simples. Girou a manivela e sem qualquer
problema, a água jorrou. O homem enfiou o rosto
debaixo dela e se esbaldou com o líquido cristalino.
Recostou o corpo na parede, deixando a água cair
em sua boca e escorrer pelas suas bochechas. Lavava
seu pescoço, peito e barriga. Por fim, caía no chão
pelas laterais de seu corpo.
Tirando a cabeça de debaixo da água, Aron
estava até mais sorridente, disposto. Olhou a
manivela e a fechou. Ficou ali, com um grande
sorriso no rosto. Rapidamente sua mente começou a
112
relaxar. Fora tomado por um cansaço repentino que
o fez fechar os olhos. Em poucos segundos,
adormeceu, deixando que sua mente fosse levada
pela maré do sono.

Algumas horas depois


Súbito, o portão metálico rangeu. Nesse
momento, Aron, que estava em seu centésimo sono,
acordou assustado e se jogou no chão, procurando
algum lugar mais escuro no salão. Ficou lá por
alguns segundos com o coração palpitante, sem
mover um músculo. Nada mais aconteceu. Foi o
vento que balançou a porta. Ainda no chão, Aron
reparou ao seu lado, em uma caixa um pouco maior
do que as de Atum. Curioso, abriu-a e se
surpreendeu com algumas armas. A que lhe chamou
mais atenção foi a de calibre quarenta e cinco, que
tinha o cano um pouco mais longo, era mais robusta.
A cor era metálica e dispunha de tambor. Por
precaução, o homem olhou no tambor avistando três
balas, logo colocou a peça na cintura. O cinto
forjado com um pedaço de lona estava velho, mas
seguraria o objeto. Aron fechou a caixa, levantou-se,
deu um passo e parou. Deu meia volta, retornou um
passo, abriu a tampa da caixa novamente e pegou
113
uma faca de tamanho médio, colocando-a também
na cintura.
Cercado pelas pedras, que se erguiam
empilhadas para formar o galpão, Aron seguiu até a
comida e pegou algumas latas de atum. Olhou em
volta, analisando se via algum recipiente para
guarda-las, mas não localizando, saiu do local,
segurando-as nas mãos.
Andando por aquela rua deserta, sem nenhum
ruído a não ser pelo vento que soprava, Aron
observou um corpo jogado. Estava até que
preservado, deixando o homem completamente
desvairado. Não conseguia parar de pensar em Sun
naquela posição. Com sua mente criativa, chegou a
pensar até que foi transportado para outra dimensão.
Sua lista de filmes, séries e livros de ficção científica
era grande.
Após mais algumas horas, Aron caminhavapela
rua calmamente, mas distraído. Tinha o polegar na
boca, enquanto olhava o chão se deslizando abaixo
de seus pés. Naquele momento, ele estava perdido
em seus pensamentos, alheio a qualquer coisa fora
de sua cabeça. Já tinha caminhado cerca de quatro
quilômetros depois que saiu do galpão. Passou por
mais um monte de carros parados, destruídos e
114
abandonados, mas continuou adiante, perdido em
devaneios. Subitamente, de trás de um dos carros,
uma mulher, com os cabelos sujos e encrespados,
surgiu e seguiu de encontro a ele. Mas Aron não
percebeu.
A mulher corria com apenas um ponto fixo no
olhar. Uma mancha azul ambulante em volta de uma
negridão. Era Aron, mas por algum motivo, ela
podia enxergar apenas essa luz em seu lugar. Sua
mente, afundada no obscuro, inconscientemente,
buscava a luz, alguma porta de saída daquele
precipício negro. A fêmea corria buscando a saída e
quanto mais se aproximava, mais sede de energia ela
sentia. Seus lapsos corporais eram originários de
uma corrente elétrica que passada pelos seus nervos,
causava alguns transtornos nos ligamentos. Isso a
fazia retrair os membros.
A cerca de vinte metros do humano, quase o
alcançando, inesperadamente a mulher chutou um
pedaço de metal no chão. Isso fez com que Aron
olhasse para trás e a visse se aproximando.
Rapidamente ele jogou as latas no chão, puxou a
arma do cinto e gritou, colocando a mão na frente do
corpo, pedindo para que ela parasse. Mas o espírito
doente, que buscava apenas aquela saída, não parou.
115
Então o humano puxou o gatilho, mas a arma não
disparou. Ele olhou na lateral, puxou a trava de
segurança e apertou novamente. O estouro foi
instantâneo, soltando um clarão, iluminando o rosto
de Aron enquanto ele cerrava os olhos, entortava a
boca e chegava com o antebraço na frente do rosto.
Nesse momento, ele viu uma coisa que ainda
não tinha visto. Pássaros negros voaram por causa da
explosão, a certa distância. O tiro acertou a mulher
no pescoço, abrindo um enorme rombo, deixando a
cabeça quase pendurada. Aquela arma tinha o
calibre poderosíssimo. Fazia um grande estrago onde
acertava. A sorte de Aron é que das várias aventuras
com um amigo chamado Iago, uma delas envolveu
caça. A mulher caiu quase aos seus pés, chicoteando
o corpo contra o asfalto em tremeliques. Isso durou
apenas alguns segundos, antes de apagar
completamente.
Aron olhou o corpo caído abaixo, respirou fundo
e guardou a arma.
– Desculpe! – Ele meneou a cabeça pensando
em Sun.
Mas fitou a mulher caída, durante alguns
segundos, antes de se virar e seguir caminho. Ficou
chocado com a situação. Esqueceu-se
116
completamente das latas, deixando-as para trás.
Andando mais trezentos metros, deparou-se com
um cruzamento. Os terrenos em todos os lados eram
praticamente iguais. Sem virar para qualquer lado,
prosseguiu em linha reta. Suas pernas já começavam
a doer e apesar disso, o homem apertou os passos
deixando a vontade de sair daquele lugar dominá-lo
completamente. Finalmente, pensouem algo e se
achou completamente burro por não pensar antes.
Um carro. Preciso de um carro!
Em determinado momento, Aron reparou que
acima das nuvens, em sentido a sua lateral direita,
uma luz brilhava, ofuscada. Não poderia ser o sol,
pois o astro estava à sua frente, também ofuscado.
Voltando sua atenção à avenida, viu um amontoado
ao longe. Apertou os passos, largamente. Percebeu,
ao chegar mais perto, que se tratava de mais carros.
Dessa vez, seu foco o levou exatamente aonde
queria. Passando pelo primeiro carro, preferiu não o
testar. Os pneus estavam furados, a pintura gasta e
os vidros quebrados. Como a maioria, estava
inutilizável.
À frente, mais carros destruídos. O homem
olhou à sua esquerda e viu um automóvel vermelho,
praticamente estacionado. A pintura estava gasta e
117
os pneus um pouco murchos, mas poderia ser útil.
Seguiu e abriu a porta facilmente, entrando no
veículo em seguida. Com as duas mãos no volante,
divertiu-se ao apreciar a borracha que o envolvia.
Colocou a mão na parte de onde se dava partida e
sentiu um molho de chaves balançando sobre seus
dedos. Então a girou. Inesperadamente o carro pegou
de primeira. O homem arregalou os olhos, ligou o
rádio, colocou na primeira marcha e seguiu
viagemafastando-se da praia, escutando “Lord of
Light do Iron Maiden”.

118
CAPÍTULO 07

Passados cerca de vinte minutos, Aron avistou


um grupo grande de loucos que impediriam a sua
passagem a uns duzentos metros. O problema maior
veio quando ele também foi visto. Na mesma hora,
os andantes iniciaram uma corrida voraz em direção
ao seu carro. Aron engatou a marcha ré e acelerou.
Conforme o veículo ganhava velocidade, começou a
fazer um barulho estranho. O homem assustou-se.
Isso agora nãooooo, pensou. Ele tinha que ganhar
distância. Aquele barulho não podia pará-lo. Mas
sossegou quando viu que era um metal preso na
parte de baixo do carro. Assim, acabou deixando os
loucos para trás. Girou o volante, fazendo com que o
carro desse meia-volta, derrapando no asfalto. Então
seguiu em direção oposta, deixando poeira para trás.
Aron entrou na primeira à direita e seguiu por
quinhentos metros. Entrou em mais uma direita e
continuou na direção em que estava antes. A rua que
percorria era esburacada, com algumas rachaduras
no asfalto velho. Automaticamente, teve que
119
diminuir a velocidade. A música era alguma da
banda ACDC, mas ele não gostava muito. Foi aí que
desviou sua atenção por um segundo para trocar a
faixa do CD e não viu um grande buraco à frente. O
carro passou. Oestouro do pneu aconteceu. Aron
sentiu uma sacodida quando o carro pulou e bateu a
parte de baixo no chão. O automóvel fazia barulho
repetido quando a borracha se chocava com o solo
na parte do rasgo.
O humano conseguiu prosseguir apenas por mais
alguns quilômetros, antes que a borracha se
desfizesse completamente e a roda de aço começasse
a encontrar o asfalto. Então parou o carro, desligou o
motor, abriu o porta-malas no botão acima do rádio
e deu a volta no carro para encontrar algum pneu
reserva, mas sem chance. No porta-malas, só tinha
um pano velho e alguns papéis rasgados.
Cansado e decepcionado, Aron voltou para o
banco do motorista e recostou sua cabeça. Nesse
momento, a dois metros à frente do carro, notou uma
pequena luz roxa, brilhante. Essa cresceu, formando-
se em uma esfera do tamanho de uma bola de
basquete, flutuante. Alguns relâmpagos trovejavam
da bola de luz. O vento começou a soprar mais forte.

120
O homem, assustado, fechou a porta do carro,
rodou a manivela do vidro, vedando o vão e abaixou
os pinos da porta. Então viu tentáculos que
começaram a crescer da energia, tomando
rapidamente a forma de um corpo reluzente em tons
roxos. A luz foi se dissipando aos poucos e o que
ficou no lugar foi uma figura de homem, que com
calma, olhou fixamente nos olhos de Aron. Suas
asas negras eram como de um corvo. Seu corpo era
forte como de um lutador peso pesado, coberto por
uma armadura negra, que ficava sobre um tecido
escuro colado ao corpo. Seus olhos eram negros.
Não existia a esclera branca. Oscabelos louros
despontavam seus cachos, caindo até as
sobrancelhas. A pele era dourada como se tomasse
sol regularmente.

121
CAPÍTULO 08

O ser tinha o olhar obscuro. Estavafixo


diretamente nos olhos de Aron. O humano estava
envolvido pelo pânico diante daquela figura
tenebrosa. Repentinamente, a criatura encravou seus
dedos no capô do carro, perfurando sua lataria como
se fosse isopor. Puxou a peça com extrema
ferocidade e a arremessou a dezenas de metros. Deu
a volta no carro, emparelhando-se com a porta do
motorista e repetiu a ofensiva, arrancando a porta,
amassando-a como papel.
Ofegante, apavorado, Aron teve a única reação
cabível naquela situação. Pulou para o banco do
passageiro e abriu a porta, rolando seu corpo no
chão, em seguida. Tentou se levantar, mas o ser
perverso já estava em cima do carro preparando um
assalto. Aron olhoucom seus olhos arregaladospara
cima e tentou se arrastar para trás como os insetos
fazem, com todos os membros tocando o solo.
De repente, um corpo desfocado pela
velocidade, acertou a cruel criatura que foi
122
arremessada a centenas de metros, destruindo carros,
rochas e o solo do terreno que contornava a estrada.
Quando a poeira começou a se dissipar, o humano
enxergou não uma, mas duas criaturas se encarando.
Uma estava no final do rastro deixado pelo arrastar
de seu corpo. Estava em pé. Suas asas negras
estavam abertas. O olhar impunha ódio. Os
músculos estavam contraídos, apenas aguardando a
hora da investida. Reparando na outra criatura, Aron
se assustou pela energia divina abundante que
exalava de seu corpo. Tinha asas imponentes,
brancas, abertas. Sua pose era bela e elegante, mas
ao mesmo tempo intimidadora. Os cabelos louros
desfiavam-se ondulados e caíam quase na altura dos
ombros, refletindo a luz do Sol. Seu corpo era
delgado, mas tinha algumas curvas fortes no bíceps,
tórax e costas. Sua pele era clara, combinando com
as vestes que caíam sobre seu corpo. Uma espécie de
vestido trançado deixava seus braços e um pedaço
das pernas de fora. Na cintura, tinha dois cintos de
couro sobrepostos. Os pés estavam descalços.
Apenas a distância da largura da rua separava
Aron da criatura divina. O ser magnífico olhou para
Aron, sorridente, impondo uma espécie de paz e
proteção. Reparando diretamente em seus olhos, o
123
humano viu que sua cor tinha a tonalidade azulada.
Irradiava uma espécie de brilho próprio. Era belo. O
pensamento do humano foi longe, tudo passava pela
sua cabeça. Mas anjos? Nesse momento, perdeu-se
em devaneios, desconfiando de sua própria sanidade.
No pequeno segundo em que houve a troca de
olhares, foi o suficiente para o ataque do anjo negro.
Esquivando-se do soco que atravessou apenas o
vento, o anjo branco aproveitou o adianto do
adversário para esmurrar seu abdômen,
arremessando-o para o alto. Em uma fração de
segundo, encontrava-se ao lado do ser obscuro.
Juntando as mãos, marretou-o para baixo, acertando
suas costas e ficou ali, parado, com suas asas abertas
por alguns segundos. Ele abservou que foi aberta
uma cratera na terra com o impacto. A besta estava
praticamente desfalecida. Alguns gemidos saíam de
sua boca. Sua asa direita estava quebrada. O celeste
desceu flutuando, com calma e aterrissou ao lado da
criatura, dentro da cratera. Rolou o anjo negro com o
pé, deixando sua barriga para cima e disse:
– Vocês nunca conseguirão!
– Nós já conseguimos, Haziel! – retrucou o anjo
negro, cuspindo sangue.

124
O anjo branco tirou uma espada chumbo do
cinto. Sua empunhadura tinha uns trinta centímetros
e parecia do mesmo material da parte do corte, só
que fosco. Ele segurou o coposda espada com as
duas mãos. Levantou os braços, virando a ponta da
espada para baixo e a fincou no coração da criatura.
A lâmina ultrapassou a linha das costas do
demônio, encontrando o solo. A criatura contraiu os
músculos das pernas, braços, costas e abdômen,
formando uma ponte com o corpo. Quando retirada a
espada, o sangue negro jorrou pelo furo, em litros. A
pele foi perdendo a tonalidade, empalidecendo-se.
Os olhos negros se tornaram cinzas, até que
perderam totalmente a cor. O infernal desfaleceu e
seu sangue escuro desenhou algo abstrato no chão,
acompanhando a linha das pedras. O corpo foi
envolvido por uma energia ora negra, ora roxa,
trevosa. O corpo ficou completamente negro, quase
como se tostado, mas a camada exterior da pele e
vestes era uniforme, lisas como de uma estátua.
Decompondo-se, o corpo se fez cinzas. A energia
flutuante se moldou em uma esfera negra que
exalava escuridão tenebrosa. Em seguida,
comprimiu-se quase ao tamanho de uma bola de
gude e explodiu. Seu raio de choque foi tão forte que
125
virou carros, arremessou pedras e pequenas rochas,
como tiros, parando seu avanço apenas após os
duzentos metros de raio.
O humano estava agachado com as mãos sobre a
cabeça. Só não fora atingido por destroços, porque
subitamente o anjo se prostrou em sua frente. Estava
posicionado como um escudo, com suas asas
abertas, envolvendo-o. Fora atingido por vários
destroços, mas nenhum arranhão marcou seu corpo,
que parecia forte como titânio. Abrindo os olhos,
Aron notou o corpo do anjo inclinado. As pontas de
suas asas fincavam o chão como navalhas, abrindo
dois buracos, formando um arco por cima de Aron.
– Você está bem? – indagou o celeste.
Ainda agachado, com as mãos na cabeça, Aron
olhou para cima, apavorado, com os olhos
arregalados. De sua boca, saíam apenas meias
palavras enquanto gaguejava. Enfim, soltou uma
palavra.
– Sim! – ainda em choque, terminou a frase –
Sim! Estou bem!
Era visível sua perturbação. A criatura radiante
puxou suas asas e as enfiou na carne. Os buracos na
pele, por onde saíam suas asas, regeneraram-se, não
sobrando sequer uma cicatriz. O processo durou
126
apenas um segundo ou dois. Estendendo a mão
direita, oferecendo ajuda para Aron se levantar, o
anjo disse:
– Venha comigo!
Aron lhe entregou a sua, dando impulso para se
levantar.
O humano pôs-se em pé, encarando-o. Aqueles
minutos vindouros foram de pura agonia, mas foram
substituídos por certo alívio após a boa ação do
celeste.
– Quem é você, ou melhor, o que é você? O que
foi tudo isso? O que era aquela criatura?
Sem fazer suspense, o anjo respondeu:
– Meu nome é Haziel e eu sou um anjo. Mas
calma! Vou lhe explicar tudo mais tarde. Venha
comigo agora, pois há outros como Zeqiel atrás de
você.
Aron, apreensivo, arqueou as sobrancelhas e ao
perguntar algo, interrompendo-o, o ser magnífico o
colocou nos braços com muita facilidade. Era como
se estivesse carregando uma criança. Explodiu suas
asas da carne e as abriu, exalando do corpo uma aura
admirável.
Com apenas uma investida em suas asas
branquíssimas, os dois foram lançados a centenas de
127
metros de altura. A velocidade era assombrosa para
Aron, que nunca tinha presenciado algo tão
espetacular. A cada batida das sagradas asas, os dois
eram lançados mais longe e a velocidade se
multiplicava. Era impossível algum tipo de diálogo.
Mantiveram uma direção de mais ou menos setenta
graus, até que em poucos segundos, o que
conseguiam enxergar eram as casas menores do que
em maquetes, pareciam mais pontos no mapa.
Transpassavam as nuvens em rajadas. O vento
fustigante não maltratava Aron. Estavam protegidos
por uma espécie de energia celestial estupenda. Era
dourada e brilhava radiantemente. Em certo
momento, a luz fora tomada pela mesma tonalidade
da cor da parte externa da película. Subiam como
um cometa, deixando um rastro vermelho,
despontando vigor no céu.
Súbito, houve uma explosão magnífica de
tentáculos dourados, quando a velocidade aumentou
bruscamente, de uma hora para outra. As cores
ficavam alternando seus tons com velocidade
admirável. Por fim, atravessaram todas as camadas
da atmosfera terrestre rapidamente, explodindo a
barreira da termosfera, encontrando o espaço sideral.

128
Avançando mais alguns quilômetros, houve uma
pausa repentina. Oanjo se dirigiu ao humano
estupefato.
– Esse é o seu planeta, Aron. Estamos em um
lugar onde podemos desfrutar da sua mais pura
beleza.
Aron olhou nos olhos de Haziel e indagou:
–O que são esses pontos escuros? –apontou
diretamente para a maior mancha à vista. Pegava um
grande terreno da América do Norte.
O anjo fez uma pausa e fitou o planeta com seus
olhos azuis, franzindo as sobrancelhas.
– Isso, Aron. – Haziel fez mais uma pausa. –
Isso foi a guerra.
– Guerra? – o humano indagou espantado,
lembrando-se nitidamente do que pareciam ser
mísseis passando sobre a ilha.
Aron esbugalhou os olhos e seu estômago
revirou. Um formigamento intenso forrou sua
cabeça. A pele começou a transpirar e a respiração a
ofegar. Sun! – pensou o humano.
– A Sun! – o homem falou alto e olhou para
Haziel.
Haziel o olhou com compaixão, os olhos baixos.

129
– Está tudo sob controle. Fique calmo! – O
celeste aumentou a vontade de sua áurea
intensificando o brilho.
Nesse momento, Aron expeliu o ar em seu
pulmão, soltou as pálpebras, repuxou levemente os
cantos da boca e seus músculos relaxaram. Tinha
levado uma forte descarga de energia divina.
O guerreiro, satisfeito, mergulhou, amparando
Aron em direção à atmosfera. Dessa vez, a
velocidade aumentava assombrosamente. A energia
confundia seus tons dourados com rajadas azuis.
Espantado e admirado ao mesmo tempo, Aron
percebeu uma distorção na imagem à vista, difusa
pela velocidade exercida. O túnel que se formava em
volta dos dois, na descida, tinha tom escuro. Rajadas
douradas e azuis em abundância formavam linhas
tênues que seguiam os dois corpos em mergulho. A
velocidade era irreconhecível. Mas tudo durou
apenas alguns poucos segundos. Então foram
cuspidos pelas nuvens no céu entre duas montanhas.
A menor possuía, no mínimo, alguns milhares de
metros de altura. Sua largura era desconhecível pelo
fato de que não dava para se enxergar abaixo. As
montanhas, com cores enegrecidas, despontavam-se
das nuvens, afunilando-se do começo ao fim,
130
terminando em uma ponta uniforme, com cerca de
duzentos metros quadrados. O chão era plano e tinha
uma estrutura erguida no centro. Tinha o tamanho de
uma casa relativamente grande, mas era rochosa e
seguia aterrando-se na montanha, formada pelo
mesmo material rochoso.
Os dois avançaram para a abertura da espécie de
gruta e entraram ainda plainando no ar. A velocidade
agora era pequena e dava-se para observar tudo com
clareza. Chegaram à entrada e avançaram por uma
enorme porta, que dava em um galpão com as
paredes disformes. Estavam mais claras, iluminadas
por tochas já acesas.

131
PARTE SEGUNDA.
A LEGIÃO

132
CAPÍTULO 09

Fortaleza angélica – tempos atuais


Açoitando as asas com leveza, o magnífico ser
encontrou o solo com seus pés, colocando o
humano, com calma, no chão. Admirado pelas
alturas do galpão, Aron esperou alguns segundos,
observando todos os lados, dando volta em seu
próprio eixo. Estava um tanto desnorteado.
Enquanto isso, o celeste o observava ali, parado, de
prontidão. Sua postura leve impunha respeito ao
mesmo tempo.
Aron se virou para o anjo, colocou as mãos nos
bolsos da calça com os olhos semicerrados.
Inclinou-se para frente e indagou, falando mole:
– Agora você pode me contar o que está
acontecendo? Você sabe alguma coisa sobre a minha
esposa? – Então esticou o pescoço arqueando as
sobrancelhas.
O guerreiro encarou Aron arqueando uma
sobrancelha, os olhos baixos.
– Sim, eu posso. – Sem nenhum suspense, o anjo
começou: – Como já te disse anteriormente, eu sou
133
um anjo. Sou um guerreiro de Deus e minha missão
é protegê-lo – o anjo se aproximou alguns metros de
Aron, enfiou suas asas brancas e lustrosas na carne.
Seus olhos azuis brilharam nesse momento. Fez um
gesto, estendendo a palma da mão direita, apontando
uma pequena abertura na rocha, mais parecida com
uma larga rachadura. – Venha por aqui, humano.
Tenho umas coisas para lhe mostrar.
A abertura dava em uma sala menor, com a
iluminação um tanto mais baixa, avermelhada. Tinha
apenas uma pequena tocha acesa, presa por um
castiçal artesanal fixado à parede.
O anjo se aproximou de uma mesa de pedra com
a superfície lisa. Sobre o móvel, alguns papéis
envelhecidos se embaralhavam. Pedras de
tonalidades e formas diferentes. Algumas brilhantes
e outras foscas também se enfileiravam. Uma em
especial chamou a atenção de Aron. Era uma espécie
de triacontágono, com todos os lados íntegros. Tinha
um tom de vermelho escuro, exalava luz própria. O
humano levou a mão à boca e indagou, com a fala
quase incompreensível, enquanto bocejava,
apontando a pedra:
– O que é aquela pedra?
Haziel retraiu os lábios, divertindo-se com a
134
reação humana e indagou em cima da pergunta de
Aron:
– Qual pedra?
Estava procurando algo, de costas para o
humano. Parou e virou sua cabeça alguns graus para
onde o simples benevolente apontava, fixando a
pedra vermelha com os olhos. Então apontou para a
mesma referida.
– Essa pedra?
O humano fez gesto de positivo com a cabeça.
– Não é nada! Nada que você precise saber, mas
isto... – uma breve pausa, enquanto Haziel pegava
algo que estava sobre a mesa - isto sim você precisa
saber o que é!
O anjo retirou uma folha endurecida,
amarelenta, manchada com algumas nuvens mais
escuras. Traços finos de cor vermelha formavam um
desenho no papel. Uma estrela com seis pontas se
despontava, saindo do centro de dois círculos. Estes
formavam duas esferas, uma dentro da outra, sendo
que a interna tinha o traço um tanto mais afinado. As
linhas dos círculos freavam a alguns milímetros
antes de cruzar com a linha da estrela. Tinha um
elemento central no desenho. Este se formava em
duas asas angélicas.
135
O anjo virou para o humano, segurando a peça
com muito cuidado.
– Este é o pergaminho de Adão! – disse o anjo,
abrindo um sorriso.
– Adão? – Aron soltou a voz, com uma
entonação assustada – Que Adão? – O humano
trouxe a cabeça para trás, arregalando os olhos
vermelhos de sono. – Não! – soltou uma curta
gargalhada rouca. – Não! Você está de brincadeira.
Haziel sorriu com os olhos, colocou as mãos
para trás e negativou com a cabeça. O humano
acrescentou:
–Tá, que seja o Adão. Mas porque EU preciso
saber disso? – Aron ironizava.
– Vou te contar a narrativa averiguada, mas
desconhecida, em algumas partes, para a
humanidade – começou Haziel – O tempo
encarregou-se de degradar as histórias escritas nos
livros sagrados antigos. O único livro que continha a
história verdadeira foi destruído há muito tempo.
– E como foi a história real então? – perguntou
Aron e sentou-se, atento, em uma pedra com
formato de banco. Parecia esculpida à mão.

136
Haziel depositou a folha de couro na mesa e
disse, olhando para a abertura, que dava no salão
principal, ainda com as mãos para trás:
– Há cerca de 150 mil anos, Deus criou o
primeiro ser humano semelhante a ele, esse que fora
batizado com o nome de Adão. Ele foi um humano
de grande valor nas lutas contra as trevas que se
estabeleceram na época.
– As trevas que você quer dizer é o inferno? –
indagou Aron, atento à história, enquanto seus olhos
tremeleavam.
– Sim! – disse o anjo. – Baal, para ser mais
exato!
Aron franziu as sobrancelhas.
– Calma, que eu chegarei lá! Alguns outros, do
sexo masculino e feminino, já existiam na época, em
volta do globo. Mas os únicos possuidores de uma
alma de alta magnitude, que o Pai moldou com toda
sabedoria, durante milênios, depositando todo seu
suor e amor, foi o povo de Adão. Uma evolução dos
seres antecedentes. Os outros possuíam uma brecha
na alma que poderia ser invadida por forças ocultas
de qualquer tipo: espirituais ou demoníacas. – Haziel
deu uma pausa.

137
– Certo! – Aron assentiu com a cabeça,
formalizando seu entendimento.
– Lúcifer, o arcanjo precursor da luz, estava
tentado e enciumado com essa criação do Pai.–
Haziel balançou a cabeça com gesto de negativação.
– Infelizmente, outros celestes também se sentiram
da mesma forma. Mas diferente do arcanjo, eles se
revoltaram.
– O que eles fizeram? – Aron apressou-se a
perguntar.
– Lúcifer era um arcanjo e tinha poder
grandioso. Mas todos nós sabemos que nunca faria
mal a seus irmãos, ou a alguma criação do Pai.
Aron, ansioso, gesticulou para que Haziel
prosseguisse, para saber mais rapidamente sobre a
história. Haziel sorriu e quase soltou uma risada,
mas prosseguiu:
– Triste, sentindo-se excluído, Lúcifer se
recusou a viver em benefício dessa raça. Ele a
considerava inferior. Todos, hoje em dia, pensam
que ele foi arremessado ao abismo, mas não foi
exatamente assim que aconteceu. Ele propriamente
se isolou no submundo e acabou sendo seguido por
outros anjos. A partir daí, estes anjos, exceto
Lúcifer, começaram a agir contra a humanidade.
138
Eles descobriram uma forma de entender a alma de
alguns dos povos criados por Deus e se apossaram
de seus espíritos. O resultado foi catastrófico.
Tinham apenas poucos milhões de humanos e
humanos menos evoluídos de espírito habitando a
terra. Os povoados eram divididos em subespécies.
O anjo andava pela sala de um lado para outro,
com as mãos para trás, a postura vistosa. Não
pausava, nem gaguejava uma só palavra. Sua
entonação de voz era robusta. Ressentia as paredes
com seus graves evidentes. Enquanto prosseguia
com seus ensinamentos, Aron não tirava seus olhos
dele por nenhum segundo, nem ao menos para
piscar.
Súbito, Aron fez com a cabeça sinais de
negativos curtos, rápidos, baixando o queixo e
fechando os olhos – como se tivesse tido um
flashback. Então interrompeu Haziel, perguntando:
– Como eram esses seres humanos menos
evoluídos?
O celeste parou, fechou os olhos e pendeu a
cabeça para baixo.
– A rebelião ou a guerra, como podia ser
chamada também, revolucionou completamente a
direção da humanidade. Alguns eram movidos
139
apenas pelo extinto de guerra e dominação, outros
pelo extinto de sobrevivência. Não possuíam a
sabedoria na alma e isso os levava a travarem
grandes batalhas, cada vez extinguindo mais seus
povos. Alguns povos mais inteligentes, moldados a
partir do barro, eram dotados de grandes poderes.
Foram justamente esses povos que sobraram quase
no final da guerra.
Aron estava muito atento, mas lutava contra o
sono. Tinha seu cotovelo apoiado no joelho que se
dobrava em cima da outra coxa. Subitamente, seus
olhos se fecharam e seu cotovelo escorregou. Seu
queixo veio abaixo, desequilibrando-o, mas logo se
recompôs. Haziel fez uma pausa e perguntou:
– Tudo bem, humano?
– Sim, sim! Pode prosseguir, por favor – Aron
fez gesto com as mãos para que o anjo desse
andamento.
– Pois bem! – Haziel cerrou os olhos e logo os
abriu, continuando – Adão, que era o mais velho e
líder de seu povoado, tinha o pergaminho. Junto com
ele, ou melhor, junto com o seu espírito, podia abrir
passagens celestiais. Era a única chave que dava
acesso a tais portais naquela época. Então ele
conseguia ligação direta com entidades magníficas,
140
assim vencendo a guerra e aniquilando os povos
menos evoluídos de espírito. – Haziel fez uma
pausa.
– Continue, por favor! – disse Aron. – Espere! –
O humano levou o dedo indicador aos lábios
olhando para cima, depois olhou para Haziel e
indagou: – Você está querendo me dizer que Adão
não foi o primeiro?
– Não é isso! – O anjo balançou a cabeça. – Ele
foi sim o primeiro, mas dentro dos que nasceram a
partir do espírito santo.
– Mas e os outros? – Aron levou a mão à frente.
– Mas porque ele eliminou os outros então? –
Ohumano levantou o tom de voz.
– Aí é que aconteceu o verdadeiro problema!
Alguns dos povos viviam como animais, como te
disse. Esses foram aniquilados em poucas dezenas
de anos, pois sempre atacavam sem estratégia
nenhuma. O problema verdadeiro se iniciou quando
o inferno percebeu a pequena brecha nas almas dos
povos feitos de barro, mas que não eram moldados a
partir do espírito do Pai. Com isso, eles
simplesmente conseguiram possuir os povoados sem
serem os de Adão, completamente, levando a
humanidade a sua guerra mais sangrenta na
141
“Primeira Era”– como ficou conhecida aquela
época.
– Então, como Adão fez para livrá-los do mal?
– Eu não entendi a sua pergunta! – O anjo
estreitou os olhos.
– Porque o povo de Adão não foi atingido pelo
inferno? – perguntou Aron, um tanto efusivo.
– Ah, entendi! – Haziel sorriu e colocou a mão
na cintura. – A casta de Adão tinha o espírito
perfeito, não era dotada da brecha, então não foi
possível penetrá-la.
–Tá bom, mas como Adão conseguiu derrotar o
inferno?
– Era aí que eu queria chegar. – Haziel se
direcionou novamente ao pergaminho e o segurou
mostrando-o para Aron. – Adão tinha um elemento
na alma, que junto com esse pergaminho, ele
adquiriu o direito da concepção celestial.
– Concepção celestial? – Aron fez uma careta
engraçada, mas indescritível.
Haziel deu uma pequena gargalhada, colocou a
mão à frente do corpo e prosseguiu.
– Concepção celestial era ter o direito de ajuda
angélica nas rebeliões humanas.

142
– Por que ele recebeu esse direito se Deus criou
todo mundo igual?
– Você gosta de perguntar hein, Aron! – Haziel
falou um pouco ríspido, depois sorriu quebrando o
gelo.
Aron sorriu, olhou para cima, envergonhado e
coçou a cabeça.
– Deus criou todos, mas quando o inferno
conseguiu se apossar da subespécie, o criador teve
que tomar essa decisão difícil para que a raça
humana tomasse a direção que foi criada pra tomar,
e não ser massacrada pelos demônios, que naquela
época eram anjos que tinham acabado de cair,
confusos. Sobraram alguns humanos moldados do
barro, que com o tempo se proliferaram aos montes.
O povo de Adão, também moldado do barro, mas
também com o espírito moldado a partir do Espírito
Santo, também se proliferou por todos os lados do
globo.
– Essa é a explicação para tantos bandidos e
pessoas más na rua? Estes não têm o espírito
moldado a partir do espírito santo?
– Você entende rápido! – afirmou Haziel.
– Certo, entendi tudo até aí! Mas e eu nessa
história. O que eu tenho aver com isso? – Aron se
143
levantou e mostrou as palmas das mãos.
– Você, meu caro humano... – Haziel fez uma
pausa, semicerrou os olhos e sorriu, abrindo-os em
seguida. – Você é a chave disso tudo que está
acontecendo no mundo, agora!
Aron arregalou ainda mais os olhos e engasgou
com a própria saliva, tossindo algumas vezes com as
mãos na barriga. Jogou-se, sentado no mesmo lugar
onde estava, deu uma pausa para uma longa
respiração e perguntou:
– Por que eu?
O anjo melindrou-se com uma longa respiração
e proferiu:
– Você é o único herdeiro de Adão ainda vivo!
– Você não pode estar falando sério. – O
humano estava indignado com a informação. –Mas
por quê?
– Por que o quê? – indagou Haziel.
– Por que eu estou no meio disso tudo? Por que
vocês têm que me proteger? Porque o cara está atrás
de mim? – Os olhos do humano se arregalavam cada
vez mais. Então ele se levantou e começou a puxar
os próprios cabelos, repetindo as mesmas perguntas.
– Por que... Por que... Por que...?
– Aron?... Aron? – Haziel aumentou o tom de
144
voz. – ARON?
O humano se aquietou e olhou para o anjo diante
de sua voz imponente que estremeceu as paredes.
– Desculpe! – disse Aron, assentando-se
novamente.
Haziel assentiu com a cabeça e disse:
– Não tem problema, mas quero que saiba que
você pode ficar calmo. – O anjo sorriu. – Você é a
prioridade celestial atual e sua sobrevivência é a
chave para a salvação da humanidade.
– Chave? – Inquieto, Aron se levantou
novamente.
– Sim! – Haziel esticou o braço, colocando-o no
ombro do humano. – Seu espírito é a chave e só um
elemento nele pode curar a humanidade.
– Que elemento é esse? – indagou Aron. –
Porque só sobrei eu?
– O inferno foi astuto e seu plano inicial, pelo
que vimos, foi acabar com todos providos da célula
azul, primeiramente– disse Haziel, retirando seu
braço, dando meia volta e se afastando alguns
passos.
– A célula azul? O que é isso?
– Esse foi um elemento especial que o Pai
utilizou na construção dessa espécie. O único que
145
hoje é dotado dessa energia especial é você.
– Mas não existe mais dessa energia em outro
lugar? – Aron perguntou um tanto preocupado.
– Não exatamente!
– Vocês não podem falar com Deus?
Haziel se virou para o humano, parecendo
assustado com a pergunta.
– Não é assim que as coisas funcionam! – disse
o anjo, rapidamente.
– Como assim?
Haziel olhou para Aron com olhar um tanto
inferior.
– Essa é uma história para outro momento.
Agora você precisa descansar! Está com fome?
Não foi preciso de resposta diante da cara que o
humano fez.
– Vou trazer algumas coisas para você. Espere
um pouco.
O celeste saiu pela porta de entrada por alguns
minutos. Mas logo voltou com uma bandeja com
frutas e água. Na bandeja, que parecia uma espécie
de folha dura de árvore, com um tom de marrom
envelhecido, dispunham-se frutas, como banana,
maçã, caqui e manga.

146
O humano, que já não tinha uma boa refeição há
muitos dias, estava faminto. Seu estômago parecia
querer se rasgar por dentro. Olhou para a bandeja se
aproximando, com os alimentos e quando o anjo a
colocou em cima da mesa, Aron se levantou e atacou
a refeição. Enquanto mordia um caqui, com a outra
mão já pegava uma maçã, mordendo-a em seguida.
Amparou a vasilha e se esbaldou com água. Uma
cachoeira deslizava pelo seu peito, encharcando suas
vestes até encontrar a calça.
O anjo olhou, sorridente. Com um tom de voz
gracioso disse:
– Vá com calma, Aron. Assim você vai se
engasgar!
Aron olhou o anjo com gratidão, mastigando e
continuou a devorar sua comida.
– Eu vou tentar contato com outros celestes.
Com certeza, muitos não sabem do nosso paradeiro.
Estarei na sala aqui ao lado se precisar de mim. –
Haziel apontou para a saída.
Aron balançou a cabeça positivamente e se
direcionou novamente para as frutas. O anjo saía
pela porta que dava no salão principal, quando...

– Paradeiro? – Aron soltou um sussurro –


147
Ninguém sabe onde estamos?
Haziel olhou com apreço para o homem e
abaixou a cabeça.
– Eu tive problemas grandiosos nas últimas
décadas. Creio que alguns não saibam que eu esteja
vivo.

148
CAPÍTULO 10

Fortaleza angélica – tempos atuais


Satisfeito pela abundância de alimentos
ingeridos, Aron pegou no sono. Haziel, um guerreiro
de Deus para guardar e lutar, ficou de prontidão e
satisfeito pela alacridade do humano, que se
esquecera dos pensamentos ruins, entrando em
relaxamento. Sentiu-se tão reconfortado que dormiu
por longas horas seguidas.
Aron abriu o olho direito, ainda meio embaçado
e vislumbrou a imagem de Haziel. O anjo estava
sentado e apoiava a cabeça sobre a mão. Com a
outra segurava uma folha envelhecida com algumas
escritas. Mas quando o humano caiu em si do que
acontecia de verdade, abriu os dois, arregalando-os.
A imagem focou uma silhueta negra, com olhos
brilhantes, totalmente rubros. Os pés imitavam o
pisar de uma cabra.
Antes de Aron gritar, Haziel percebeu a
presença maligna e imediatamente se levantou com a
destreza de um anjo guerreiro, puxando a espada da
149
cintura. A criatura, que não esperava reação de tal
magnitude, pulou para trás, encontrando a parede,
abrindo uma rachadura na rocha. Seu corpo caiu
para frente, mas ele se levantou rapidamente.
Nesse momento, Aron gritou e pulou da cadeira,
passando por cima do braço esquerdo, encolhendo-
se ao lado do móvel. Ficou ali, apenas fitando os
dois que nos segundos porvindouros entrariam em
combate.
A tensão do momento se multiplicou quando os
dois guerreiros se colocaram em posição de luta.
Haziel tinha sua espada em mãos. O metal brilhava
ao lampejo das tochas acesas. O demônio, prostrado
na frente do anjo, tinha a pele negra como carvão,
mas brilhava diante do fluído corporal que escorria
como suor. Da carne das costas, o infernal tirou uma
espada negra que se fundiu à sua mão. Colocou o
braço esquerdo na frente do corpo com o punho
fechado e retraiu a mão direita que se fundia ao
objeto, apontando-o para a frente. Em seguida,
semicerrou os olhos, tampando metade de seus
globos rubros.
Mostrando os dentes, a fera partiu para o ataque
vorazmente, lançando-se, com a sua arma, em linha
frontal, contra o corpo do anjo. Amortecido e pronto
150
para receber a ofensiva, Haziel segurou a
empunhadura de sua espada com as duas mãos
receptando o ataque, bravamente. As duas lâminas
se encontraram e houve um choque radiante de
energia sobressalente. Duas cores se confundiam em
dourado e purpúreo. Relâmpagos estouravam em
clarões reluzentes da disputa.
Subitamente, uma segunda figura entrou pela
porta principal e seguiu na direção da lateral do anjo,
que segurava o ataque da primeira criatura,
concentrado totalmente no momento.
– Haziel? – gritou Aron.
O anjo encarou o humano no mesmo momento
em que o demônio, que corria na sua direção,
localizou Aron com os olhos.
Com destreza, o anjo voltou seu olhar para a
besta que duelava e de súbito, impulsionou os
músculos fortes de seus braços parafrente,
arremessando o demôniocontra a parede rachada.
Novamente, um choque contra o mesmo muro, dessa
vez abrindo um rombo. Logo correu na direção do
outro demônio que já deslizava na direção do
humano. A besta viu sua aproximação, então lançou
um golpe.

151
Abaixando e se esquivando do ataque de espada
do monstro, o celeste mudou sua arma de mão,
segurando-a firmemente com a mão esquerda.
Rodando a lâmina, juntamente com o seu corpo, em
torno de noventa graus, decapitou a criatura. A
cabeça rolou e parou quando encontrou a parede,
explodindo em uma nuvem negra junto ao corpo.
Em um movimento circular com as mãos, o anjo
virou a espada na direção vertical atingindo o peito
da outra besta, transpassando seu coração.
Com um joelho no chão e o outro flexionado, o
anjo retirou a espada do diabo que já entrava em
estado de decomposição. O corpo da besta explodiu
e se dissipou no ar.
Com um pulo, Haziel chegou até o buraco aberto
pelo corpo da criatura e enfiou a cabeça para fora,
observando o externo. Diante de seus olhos, em
torno de quarenta metros abaixo, por uma passarela
que ligava algumas montanhas, havia um pequeno
exército com mais de cem demônios. Uma massa
escura, que desordenada, aproximava-se do recinto
onde o anjo se encontrava com o humano. O solo era
esburacado e algumas pequenas rochas se erguiam
do chão. Demônios caíam tropeçando em pedras e

152
buracos, mas o pelotão não freava, avançando com
vontade.
O celestial preferiu se prevenir a esperar. Olhou
para Aron e pediu para que ele aguardasse.
– Aonde você vai? – O humano se levantou e
correu até o anjo.
Haziel apenas o fitou e colocou seus braços para
fora da rachadura na parede, puxando a rocha,
repelindo seu corpo no ar.
Aron correu até o vão. Olhando diretamente para
o corpo do anjo despencando, viu quando suas
magníficas asas brancas explodiram a carne. Uma
única investida lhe deu velocidade incrível para o
rasante premeditado. Ele mergulhou novamente, só
que mais rápido, recolhendo suas asas como uma
águia. Chegando a alguns metros da tropa, abriu-as
novamente, colocando-lhe em direção horizontal.
Segurando a empunhadura da espada com as
duas mãos, Haziel mirou a cabeça da primeira
criatura, que o olhava com os olhos vermelhos e
arregalados diante de sua avidez. A primeira cabeça
ainda estava se desprendendo do corpo, enquanto
outras dez criaturas eram destroçadas pela poderosa
espada do celeste. O anjo ainda plainava no ar em
linha reta, destruindo qualquer ser maligno em sua
153
frente. Manuseava sua espada como um samurai,
sobrenatural. Deixou mais de quarenta cadáveres
mutilados, que aos poucos iam explodindo e
desaparecendo.
Enquanto isso, a retaguarda, um pouco mais
distante, era composta por guerreiros mais robustos.
Feras que despontavam presas enormes das bocas,
mais precisamente dois caninos que se ligavam a
uma serra de dentes pontiagudos. Tinham mais de
três metros de altura, chifres grandes e couro forte
revestindo o corpo. Quase cinquentabestas
compunham a parte traseira da horda demoníaca,
esta que se aproximava da fortaleza do anjo como
uma manada de rinocerontes pronta para destruir
tudo pelo seu caminho.
Sem tempo para frear, em função de sua
velocidade, Haziel topou de frente com a primeira
criatura gigantesca. A força do impacto estremeceu
o horizonte, derrubando mais de vinte demônios de
uma só vez como pinos de boliche. Os monstros que
ficaram em pé se puseram em volta do anjo que
ainda se levantava. Também atordoado pelo impacto
contra os grandes corpos, não tendo muitas chances
contra tantos daqueles, o guerreiro divino se
levantou rapidamente, esticou as asas e investiu.
154
Uma rajada foi o suficiente para levá-lo até a
rachadura em apenas dois segundos.
Aron o observava pelo lado esquerdo da abertura
na rocha. Segurava a parede com as duas mãos e
tinha só um pedaço da cabeça à vista. Quando
Haziel chegou, passou pelo buraco e pelo humano,
que se assustou e caiu para trás. O anjo pousou,
agarrou-o com um braço e o colocou embaixo da
axila direita, como se estivesse segurando um objeto
comprido. Pulou pelo buraco e investiu nas asas com
ferocidade, impulsionando seus corpos para o céu. A
imensidão azul escura trovejava e figurava formas
abstratas com manchas negras desenhadas pelas
nuvens.
A rapidez dos corpos era de tamanha grandeza,
que quando transpassavam as nuvens, afastavam-nas
para o lado, formando vapores desarmônicos, que
depois se configuravam, formando um funil de ar em
volta deles.
Voaram na direção de quarenta e cinco graus por
vinte segundos. Depois o anjo se endireitou na
vertical, diminuindo levemente a velocidade.
– Segure firme! – disse Haziel.
O humano o encarou, assustado. Deu tempo
apenas de ver o anjo batendo suas asas tão forte que
155
seus corpos foram arremessados frontalmente com
velocidade estupenda. O funil apareceu novamente
em volta dos dois, mas começou a tomar a forma de
um cogumelo apontado para frente, enquanto a
velocidade aumentava. De repente, o humano
escutou uma explosão. Foi exatamente no momento
em que o ar se intensificou, sendo possível enxergá-
lo como uma parede translúcida que os
acompanhava.
Voaram assim cerca de trinta minutos, até que o
anjo reparou algo estranho na cara do humano. Logo
ele avistou uma ilha no mar e seguiram em direção a
ela.
Haziel pousou com flexibilidade, depositando
Aron no chão. O humano deu alguns passos rápidos
como se perdesse o equilíbrio, mas conseguiu frear
antes de cair. Ele olhou para o anjo, colocando as
mãos na cintura. Tinha no rosto um sorriso largo que
deixava aparentes todos os dentes da frente, mas as
sobrancelhas estavam franzidas. O suor escorria pela
face. Sua camisa estava escurecida pelo excesso de
suor. Inesperadamente Aron levou as mãos à barriga.
O vômito jorrou no chão, expondo tudo que havia
ingerido algumas horas atrás. O anjo deu um pulo,
conseguindo não ser atingido pela massa. Após o
156
término, o humano prostrou a mão direita na perna,
ainda segurando o estômago com a esquerda. Deu
uma longa respirada. O celeste apenas observava a
reação da criatura carnal.
– Vamos! Não temos tempo a perder – disse
Haziel, sem dar tempo para Aron se recompor
direito.
O humano levantou a cabeça e encarou o anjo,
ofegando.
– Sério?
O guerreiro deu um sorriso e com um solavanco,
seguido de muita destreza, jogou o plebeu em seus
braços, erguendo voo em seguida.

157
CAPÍTULO 11

Em algum lugar no planeta – tempos atuais


Haziel voava dentre as nuvens com Aron em
velocidade descomunal. O humano só aguentava
tamanha rapidez em função da áurea do anjo, que o
protegia como uma espécie de casca reluzente. Sem
a energia, os membros do humano provavelmente
seriam arrancados pela força do vento.
Na mesma direção em que seguiam, Haziel
percebeu a presença de cinco criaturas se
aproximando rapidamente. Em poucos segundos,
Haziel e Aron foram rodeados por seres infernais,
enegrecidos. Voavam tão velozmente quanto o anjo.
Provavelmente dotavam poder grandioso. Os
demônios estavam ordenados em dois na frente
deles, dois atrás e um plainava abaixo dos heróis. O
celeste previu um ataque total e nesse momento
arremessou o humano para cima, não desprendendo
sua áurea, que manipulada por ele, formava uma
espécie de corda translúcida, reluzente, entre ele e
Aron, ligando seus corpos. Afundando no ar,
investiu sua espada contra a criatura que estava
158
abaixo, arrematando-a facilmente. Os quatro acima
se trombaram, formando uma esfera desordenada
que cambalhotava no ar.
O anjo recuperou Aron e a acometida em suas
asas os impulsionou para longe ganhando algum
espaço dos infernais. Rapidamente, os demônios se
ordenaram e partiram para o ataque novamente,
aproximando-se com velocidade. O celeste sabia que
não poderia com os quatro naquela situação. Então
colocava toda sua virilidade no voo, fazendo
manobras colossais, dificultando o ataque das bestas.
Uma das criaturas se aproximou com destreza,
segurando sua espada negra. Ia lançar sua ofensiva,
mas subitamente fora interrompida por outro anjo,
que com sua voraz chegada, surpreendeu até a
Haziel. Com seus olhos verdes resplandecentes, o
anjo arremeteu um soco feroz que atravessou o rosto
da criatura, transpondo sua mão pela nuca. A outra
mão foi introduzida no peito do outro demônio
negro, arrancando seu coração. Os corpos caíram
como bonecos, desaparecendo dentre as nuvensantes
de explodirem. Nesse momento, Haziel estava
parado, segurando Aron, observando a cena. Já tinha
reconhecido o anjo que os ajudara. De costas,
segurando o coração negro, estava Yesalel, o
159
segundo comandante da casta dos guerreiros de
Deus.
Os demônios ficaram aterrorizados diante da
investida do anjo, que ainda segurava o coração. Ele
observava o pedaço de carne com ódio nos olhos,
olhando-o fixamente. Fechou a mão com força
esmagadora, transformando o órgão em uma massa
vermelha quase enegrecida, que escorreu dentre seus
dedos. Os olhos das duas bestas restantes se
arregalaram ainda mais, o desesperoera iminente.
Com o punho massacrador ainda fechado,
Yesalel levantou a cabeça e encarou os demônios
com um leve sorriso imponente. Não dando tempo
para qualquer investida inimiga, o anjo se lançou em
suas direções explodindo sua áurea pulsante
dourada. Com um chute lateral, quebrou as costelas
da criatura da direita, estourando seu órgão vital.
Com velocidade estupenda, o anjo se virou alguns
graus. Abrindo suas pernas e usando o joelho do
outro membro, investiu, acertando o queixo da
segunda criatura, arrancando sua cabeça
instantaneamente. Os dois corpos caíram,
desaparecendo.
– Não acredito! –exclamou Haziel, sorridente.
– Eu também não acreditei quando soube que
160
estava vivo! – disse o anjo de olhos verdes, virando-
se para ele.
– É claro que estou! O que você está fazendo
aqui, comandante?
– Quando Caliel retornou e nos informou do
sucesso da escapada, segui para o único lugar que
achei que estaria, aqui na Terra. – O anjo abaixou a
cabeça cerrando os olhos. – Quando cheguei lá,
encontrei o lugar completamente destruído.
– Eu já esperava por isso. – Haziel franziu as
sobrancelhas.
Yesalel meneou a cabeça e prosseguiu:
– Na fortaleza, reparei que no meio de todos os
documentos remexidos, não estava a folha de Adão.
Soube, no mesmo momento, que estava contigo.
Então segui seus passos e aqui estou. – Sorrindo,
indagou: – Como você está?
– Graças a Caliel, estou bem! – Haziel fez uma
pequena pausa. – Ele chegou na hora certa!
Aron, que estava nos braços de Haziel e apenas
observava o diálogo, olhava de um lado para outro
enquanto as vozes dos anjos saíam. Então perguntou,
com o seu jeito efusivo, soltando um berro:
– E quem é ele, Haziel? – Apontou para Yesalel.
Haziel olhou para Aron, sorridente.
161
– Esse Aron... Esse é Yesalel. O segundo
comandante dos anjos guerreiros.
– Seu comandante? – O humano franziu as
sobrancelhas. – Anjos têm comandantes?
Os dois celestes soltaram uma pequena risada.
Yesalel disse:
– Eu ensinei tudo que ele sabe. – Olhou para
Haziel com um sorrisinho.
Aron também olhou para Haziel, surpreso.
Nesse momento, admirou suas asas, açoitando o
ar perto dele.
– É verdade? – indagou o humano.
O louro assentiu com a cabeça, orgulhoso.
Repentinamente Yesalel interrompeu o momento.
– Haziel, você já sabe o que está acontecendo
exatamente?
– Sim! Caliel me deixou a par.
– O que está rolando? – indagou Aron.
– Aquilo que te expliquei! – disse Haziel.
– Aquilo sobre Adão?
- Sim!
– Ah tá. Então eu sei tudo! – O humano voltou
seus olhos para Yesalel, esboçando um olhar
como se fosse o sabe-tudo.

162
O segundo comandante o olhou com
desaprovação, enquanto plainava, rajando suas asas
com leveza no ar. Depois olhou para Haziel e
indagou:
– Você sabe sobre a vitória deles? – Yesalel
apontou a cabeça para qualquer lado.
– Sim! – Haziel respondeu, fechando os olhos.
– Então. Nós vamos reverter o jogo! – Yesalel
apontou seu dedo para Aron, olhando-o fixamente. –
Com a sua ajuda!
– De novo essa história? – falou Aron,
remexendo os olhos.
Yesalel franziu as sobrancelhas com o olhar
semicerrado.
– Eu já expliquei algumas coisas para ele,
Yesalel! – disse Haziel.
– Ótimo. Já estamos muito tempo aqui. Temos
que ir! Atualizaremo-nos em um lugar seguro. –
Yesalel encolheu as asas, olhando para Haziel.
Haziel também encolheu as asas e os dois
desceram em rasante. Aron arregalou os olhos e
pensou – lá vamos nós de novo. – Yesalel foi à
frente. Perderam altitude rapidamente e abriram as
asas quando estavam já abaixo das nuvens.
Plainavam no ar com velocidade cautelosa. O mapa,
163
abaixo, confundia-se em cinza com manchas negras,
derivadas das explosões da guerra. O verde fora
devastado por completo e o céu era cinzento devido
à poeira expelida na atmosfera. Depois de um
tempo, os celestes encolheram suas asas novamente
e desceram em direção ao solo.
– Estamos chegando! – gritou Yesalel, olhando
para trás.
– Aonde? – perguntou Haziel, berrando, com
suas veias saltando no pescoço.
– Em águas vermelhas. Nós estamos no Brasil!
O humano, que apenas assistia a paisagem, teve
um flash repentino.
– Minha esposa, minha esposa! Como pude
esquecer? – Seus olhos se encheram de lágrimas e
escorreram pelo seu rosto.
– Fique tranquilo, Aron. Nós vamos resgatá-la! –
disse Haziel, olhando-o com comiseração.
Aron arregalou seus olhos e indagou:
– Como assim? Vamos resgatá-la? – indagou,
colocando suas mãos na cabeça.
Haziel respirou intensamente, percebendo as
palavras mal colocadas, na hora errada.
– Como assim? Vamos resgatá-la? – Aron
perguntou de novo – hein, Haziel? Como assim?
164
– Fique calmo, Aron! Eu vou te contar.
– Está tudo bem aí? – gritou Yesalel.
– Está tudo bem, não é nada! – Haziel retrucou.
– Como assim, não é nada? – Aron olhava
fixamente nos olhos de Haziel quase o enforcando,
enquanto segurava em seu pescoço. De repente,
berrou com as veias saltadas na testa: – Você acaba
de falar que vamos ter que resgatar minha esposa e
diz que não é nada? Me larga! – Aron soltou o
pescoço do anjo e começou a lhe dar trancos
tentando se desprender. – Me larga!
– Pare, Aron! Você vai cair – disse Haziel, sério.
– Não quero saber! Me larga, me larga! – O
humano se debatia.
– Para, Aron! – Haziel apertou Aron com mais
força. O humano soltou um berro abafado:
– Socorro, socorro! Ele está me esmagando.
Socorro!
Aron se debatia com mais força, na medida em
que o aperto se fortalecia. Haziel jamais deixaria o
homem cair. Então tinha que segurá-lo com força
diante daquela situação. Yesalel percebeu o que
acontecia e se aproximou dos dois, colocando a mão
na testa de Aron, que adormeceu no mesmo
momento.
165
Os três se aproximaram de um conjunto de casas
em ruínas. O espaço da pequena cidade era bem
grande, mas estava totalmente devastado. As
moradas não possuíam mais tetos. As que ainda se
conservavam em pé tinham suas paredes enodoadas
e esfumaçadas. Estavam quase totalmente
enegrecidas.
Sobrevoando a cidadela, Haziel observava a
destruição. Yesalel sobrevoava alguns metros à
frente. Passados alguns quilômetros de terrenos
escuros, o anjo de cabelos louros avistou uma massa
clara de celestes a algumas centenas de metros à
frente. O batalhão estava em um terreno aberto em
meio à natureza destruída. Estavam todos
materializados no mundo carnal.
Quando ganharam mais terreno, Haziel reparou
em uma mulher anjo com vestido branco, cabelos
longos e dourados. Estava instruindo um comboio de
outros anjos. A atenção dos celestes se prendia
totalmente na loura, que gesticulava com leveza,
diante de um quadro feito de luz dourada. As bordas
da lousa eram mais grossas. Onde ia a escrita
também era dourado, mas de um dourado
translúcido, forrado com letras douradas.

166
Os três aterrissaram, com os anjos
imediatamente prendendo suas asas na carne.
Yesalel seguiu na frente a dois metros de Haziel que
apanhava o humano adormecido nos braços. A
atenção da loura então se voltou aos recém-
chegados, que se aproximavam com rapidez nos
passos, em sua direção. Súbito, levou um susto e
seus olhos azuis lampejaram quando avistou Haziel
aparecendo no seu campo de visão, na medida em
que Yesalel se aproximava abrindo espaço.
Haziel abriu um belo sorriso quando viu Hariel
parada, olhando para ele daquela maneira. Os
cabelos louros da mulher, quase ondulados,
balançavam ao vento. Seu vestido curto e branco
como algodão repetia a mesma ação em função de
seu leve tecido. Emocionada, ela tinha as mãos nas
bochechas em forma de concha, então correu em
direção ao anjo. Haziel deu alguns passos mais
rápidos e entregou o humano entorpecido a Yesalel,
que o amparou em seus braços. O anjo louro foi em
direção à moça celestial, também emocionado.
Quando se prostraram, um na frente do outro, ele
olhava para baixo e ela para cima, os dois olhos
azuis se entreolhavam fixamente.
– Não acredito... Haziel? – A mulher passou a
167
mão no rosto do irmão enquanto seus olhos
lacrimejavam.
– Sim, irmã! – O anjo tinha um sorriso
emocionado no rosto, até que uma lágrima escorreu
de seu olho esquerdo.
A celeste deu um pulo e agarrou o pescoço de
seu irmão de espírito com um abraço esmagador. Ele
a envolveu em seus braços pela sua cintura,
apertando-a com sutileza. Ela inclinou a cabeça para
trás olhando em seus olhos, sorrindo muito
alegremente. Então sussurrou:
– Eu sabia que Caliel conseguiria – dando uma
longa respiração.
O guerreiro esboçou um sorriso vibrante e
envolveu sua mão esquerda em volta da cabeça da
loura, puxando-a para seu ombro. Com a outra ainda
a segurava pela cintura.
Ambos foram criados juntos há cerca de cinco
bilhões de anos. Um embrião fora separado em dois
para formar essa irmandade. O sentimento era
diferente dos sentidos pelos humanos e longe de ser
compreendido por qualquer ser de carne e osso. Esse
evento era exclusivo da casta dos guerreiros de Deus
que a cada mil, dois formavam essa ligação.

168
Haziel pousou Hariel no chão. A mulher saiu do
transe, balançou a cabeça algumas vezes em formas
negativas e perguntou com um tom de voz agudo.
– Por quais coisas você passou nesse tempo,
meu querido irmão?
– Por coisas horríveis, minha querida irmã! –
Haziel franziu as sobrancelhas, olhando o horizonte.
O coração de Hariel, nesse momento, palpitou
mais forte.
– Conte-me. Por favor! – disse ela.
Haziel contou tudo para a irmã, enquanto
caminhavam pelas finas ruas do bairro. Yesalel os
encontrou depois de cinco minutos e também quis
ouvir a história. Ainda carregava Aron nos braços
desacordado. Entregou-o a Haziel e caminhou junto
a eles.
Yesalel era um dos anjos mais poderosos da
casta dos guerreiros de Deus. Se não fosse por ele,
nas primeiras guerras contra o inferno, o céu não
teria levado a vitória.

169
CAPÍTULO 12
(150.000 a.C.)

Anjos lutavam contra demônios. Suas vestes


claras estavam manchadascom sangue infernal.
Como formigas selvagens, manejavam suas espadas
contra as feras de olhos escarlates. Em vinte metros
quadrados, pelo menos dois membros angelicais
combatiam de cinco a dez criaturas, despedaçando-
as como papel. O pântano de corpos decapitados e
destroçados subia até a altura da canela dos
guerreiros. O céu era trevoso e cinza. Montanhas,
que sumiam ao chegarem à altura das nuvens,
rodeavam o pelotão de combate.
Visto de cima, o mar de corpos lutando cintilava
em ondas. Em um ponto específico da batalha, um
anjo de cabelos castanhos escuros, olhos verdes e
pele clara fora rodeado por duzentos inimigos. A
pele do celestial estava suja e possuía alguns
ferimentos. Desprovido de armas, utilizava apenas
seus braços fortes como recurso. O corpo rígido e a
barba rala lhe davam a aparência de um homem na
casa dos quarenta anos. Fechando os punhos com
170
muita ferocidade, o anjo gritou e explodiu sua áurea
dourada magnífica. A energia fugaz expelia para
cima terminando em auroras poderosas, que davam a
impressão de átomos se agitando para explodir com
magnitude grandiosa. Os demônios que tentavam se
aproximar eram arremessados a centenas de metros
pelo choque contra a luz magnífica exposta pelo
celeste.
A energia divina brilhou ainda mais forte e
ganhou massa, expandindo seu raio de contenção
rapidamente, assim desintegrando todos os
demônios em seu caminho. Parou seu avanço
bruscamente após atingir cem metros de raio. Sua
tonalidade começou a se alaranjar. O anjo, no centro
da acometida, gritava com muita voracidade. Parecia
que seus músculos iam estourar a pele, de tão
rígidos. O clarão, repentinamente, subiu aos céus
fitando uma linha tênue que transpassava as nuvens.
A energia exalada dele, em abundância, tornou-se
avermelhada repentinamente, parecendo estar segura
apenas por um fino véu translúcido. A luz se retraiu
completamente, tonalizando o corpo do anjo em
completo rubro e explodiu em uma detonação
colossal.

171
A força da explosão desintegrou toda criatura
maligna naquela parte do campo agigantado de
batalha. Os celestes que previram a investida, no
momento certo, saltaram para longe. Outros voaram,
assim conseguindo fugir da onda explosiva.
A mais ou menos quinhentos metros de
distância, Haziel tinha seus olhos arregalados
segurando sua espada com as duas mãos. Em uma
investida, bateu as asas e pousou ao lado de Yesalel,
que exalava cansaço pela força bruta utilizada.
O quer foi isso, comandante? – indagou Haziel!
O anjo de olhos verdesainda estava abaixado a
fim de recuperar as forças. Tinha uma mão posta no
chão e a outra no joelho. Levantou a cabeça e falou
com respiração ofegante.
– Uma poderosa técnica, Haziel.
– Que poder grandioso! – Haziel sorriu
vislumbrado.
Yesalel sorriu com o canto da boca.
– O poder real é muito maior do que esse!
Haziel estreitou os olhos, reflexivo. O
comandante acrescentou:
– Temos que acabar com essa guerra de uma vez
por todas! – Yesalel se levantou com olhos cerrados

172
e depois olhou para Haziel. – Aprimoraremos sua
técnica mais tarde.
Haziel, que muito respeitava seu comandante,
apenas introduziu a espada na bainha pendurada em
seu cinto, assentiu com a cabeça e ficou em
prontidão apenas aguardando ordens. Aquela era
uma das primeiras batalhas participadas por Haziel e
por outros milhões de anjos. Antes da queda dos
rebelados, a paz podia ser vista como um ser físico
nos sete céus. A rebelião levou a sua deterioração e
morte.
Yesalel se levantou e olhou para o Sul, onde a
batalha ainda continuava. Virou seu corpo naquela
direção, apresentando suas asas brancas ao batalhão
atrás dele. Os celestes que assistiram a investida do
comandante também explodiram as asas. A legião
composta por mais de dez mil anjos levantou voo.
Com manobras espetaculares, entraram em formação
de ofensiva triangular. Vorazes, atravessaram os
quilômetros até a outra parteaté encontrarem os
guerreiros infernais duelando contra milhares de
outros guerreiros de Deus. Yesalel retirou sua
espada dourada ainda guardada na bainha e levantou
sua lâmina. Todos os anjos, na retaguarda, repetiram
o movimento. Repentinos rasantes angelicais
173
exuberantes começaram a descer dos céus,
encontrando as bestas no solo com suas espadas em
punho, destroçando-as com facilidade.
Pousando meio ao holocausto, os dez mil
guerreiros alados deram força àqueles celestes que já
dominavam a situação. Rapidamente acabaram
completamente com o exército infernal. Por fim,
sobrou apenas uma massa negra e vermelha no chão.
Era formada por pedaços de corpos e sangue
demoníacos.
Yesalel subiu em uma pedra com sua postura
imponente, fitando o horizonte catastrófico à sua
frente. O pelotão angélico o observava e todos
estavam atentos ao segundo comandante. Ele então
levantou sua espada, clamando:
– Pelo povo de Adão! – o segundo comandante
louvava aos céus com a lâmina apontada para cima.
Os guerreiros celestes também ergueram suas
armas e repetiram a ação. O barulho era
ensurdecedor. As rochas vibravam diante daquele
coro de guerreiros vitoriosos.

174
CAPÍTULO 13

Minas Gerais, Águas Vermelhas –


temposatuais
Hariel, Yesalel e Haziel que carregava o humano
desacordado deslizavampor um enorme campo onde
se encontravam centenas de anjos. Todos se
atualizavam sobre o último século passado.
Repentinamente, Aron abriu os olhos e reparou em
alguns seres celestiais irradiando auroras de seus
corpos. Percebia quando as cores mudavam seus
tons de dourado para rosa, de rosa para violeta e
depois para azul. A energia exalava divindade. Os
olhos de Aron chegaram a brilhar enquanto se
embebedava com tal energia divina.
– Acordou?
Aron virou sua cabeça para Haziel, ainda
comovido pela exuberância de proteção que enchera
seu peito naquele momento.
– Quem são eles? – Aron apontou para os seres
magníficos.
Haziel sorriu. Seus olhos também pareceram
sorrir.
– Esses são os guardadores de Deus! – disse o
celeste, parando os passos, colocando Aron em pé
no chão.
175
– Guardadores de Deus? – indagou Aron,
arqueando as sobrancelhas.
– Sim! – Haziel meneou a cabeça. – Essa é uma
casta angélica como a minha, dos guerreiros de
Deus. Mas esses são os anjos protetores dos
humanos.
Por coincidência, nesse momento, um anjo ruivo
se aproximou.
– Vejo que conseguiu, Haziel! – O ruivo tinha
um grande sorriso emocionado.
– Olá, Caliel! – Haziel o cumprimentou.
Caliel meneou a cabeça e voltou seu olhar para
Aron.
– Olá, Aron!
– O... Olá! – gaguejou o humano, surpreso.
– Você não me conhece ainda, mas eu te
conheço muito melhor do que imagina! – exclamou
o ruivo, sorridente.
Aron franziu as sobrancelhas e olhou para
Haziel, que abriu um sorrisinho, olhando para Caliel.
O ruivo se aproximou um tanto de Aron, fazendo-o
dar um passo para trás.
– Eu estava ao seu lado quando você nasceu –
disse Caliel, um tanto emocionado. – Eu estava ao
seu lado ao florescer da sua vida. Eu estava ao seu
lado quando perdeu seus pais. Eu estava ao seu lado
na depressão que passou naquele período. Eu estava
ao seu lado na queda do mundo. – O celeste deu uma
breve pausa, colocando as mãos no rosto do
176
humano. – Estou ao seu lado agora e estarei até que
todos os fótons de meu corpo sejam dissipados no
cosmos.

– Ele é o seu anjo da guarda! – disse Haziel,


apontando com a cabeça para Caliel.
Caliel deslizou as mãos sobre a pele do rosto do
humano, deixando-a cair em seguida, trazendo de
volta ao seu corpo.
– Meu anjo da guarda? – Aron semicerrou os
olhos encarando Caliel. – Então isso existe mesmo?
– Olhou para Haziel.
– E aí, vocês vêm? – Hariel estava parada com a
cabeça virada para trás como Yesalel, gritando.
Nesse momento, ela encarou Caliel com um largo
sorriso. O guardador retribuiu.
Haziel olhou para a irmã e assentiu com a
cabeça. Olhando para Aron e Caliel à sua
frente,pediu quecontinuassem andando, pois tinham
muito que conversar. Haziel se aproximou de Hariel
e Yesalel, deixando o ruivo com Aron.

***

Os dois andavam um ao lado do outro. Caliel


tinha um belo sorriso estampado no rosto. Aron já
estava um pouco desconfortável com aquela
repentina situação. Ouvia tudo o que o anjo tinha a

177
dizer, tirando suas dúvidas com perguntas
congestionadas:
– Você é meu anjo da guarda, então?
Caliel olhou para frente e confirmou:
– Desde sempre, Aron! – Seus olhos azuis
lampejaram nesse momento, enquanto fitava os
olhos do humano.
– Por que eu nunca te vi, ou te senti?
– Veja bem! – Caliel parou os passos. Tendo a
mesma altura de Aron, nivelou seu olhar com o dele.
Com as mãos para trás, prosseguiu: – Como há
regras na Terra, impostas pelos próprios humanos,
no Céu também há. Uma situação normal, dentro de
qualquer padrão organizado. – O anjo deu uma
pausa, o suficiente para Aron perguntar:
– Que regras? – Aron pendeu a cabeça um pouco
para o lado arqueando uma sobrancelha.
– Não podemos nos materializar na frente dos
humanos, apenas em situações absurdas, sem saída.
– Como estou vendo vários de vocês agora? –
Aron apontou a volta com a cabeça.
– Esse momento que a terra está passando é
extremo. Estou falando de casos mais simples, casos
que colocariam a vida do guardado – Calielapontou
rapidamente para Aron – em risco.
– Estou entendendo – afirmou Aron.
– Como é bom te ver bem! – Caliel abriu um
sorriso com os cantos da boca e acenou com a

178
cabeça para o lado para que eles prosseguissem
andando.
Os dois continuaram andando por entre os
corredores de corpos angelicais de todos os
tamanhos e raças. Alguns tinham suas asas expostas,
enquanto sentados na grama que naquela região
estava verde. Conversavam, gargalhavam como
pessoas normais e interagiam entre si, com diálogos
que pareciam cotidianos. Alguns olhavam para
Caliel e o cumprimentavam.
Um anjo muito musculoso, com cerca de dois
metros de altura, aproximou-se dos dois. Aron
observou suas vestes claras que deixavam apenas um
peito desnudo. Seu cinto robusto, dourado levava um
compartimento atrás, onde sua gigantesca espada
ficava presa.
– Caliel! É verdade?
– Sim, Barrattiel! – O anjo sorriu e arqueou as
sobrancelhas arregalando os olhos. – Haziel voltou!
Barrattiel respirou fundo, abrindo a boca, para
depois soltar um berro, fechando os punhos na frente
do corpo. Colocou as mãos na cabeça careca,
olhando para baixo. Olhou para Caliel com um
sorriso que só faltava estourar seus músculos do
rosto e indagou:
– Onde ele está?
Caliel apontou na direção em que Haziel seguiu,
com os olhos brilhando e repuxando os lábios diante
da felicidade do gigante.
179
– Obrigado, Caliel! – Barrattiel meneou a cabeça
e se virou para partir, parou e se virou novamente,
olhando para Aron. – Olá, humano, seja bem-vindo!
– O anjo segurou a mão de Aron com as suas duas,
inclinou a cabeça e sem dar tempo para ele
responder,virou-se, para logo sair correndo atrás de
Haziel.
– Quem é ele? – Aron olhava para Caliel,
apontando para Barrattiel, que já desaparecia de
vista.
– Esse é Barrattiel, o anjo para quem Haziel
ensinou tudo – uma breve pausa do ruivo –, na
linguagem humana, vamos dizer que ele seja seu
mehor amigo.
– Anjos também tem melhores amigos?
Caliel bufou com o nariz curtamente, soltando
um pequeno som junto. Abriu o sorrisoe levando as
mãos para trás do corpo novamente, disse:
– Somos mais parecidos com vocês, humanos,
do que você imagina!
Aron olhou satisfeito para o anjo, que olhou para
cima, dizendo:
– O Pai criou todos à sua semelhança. Apenas
acrescentou em suas crias modificações, que no final
das contas, acrescentariam na evolução precisa da
humanidade – Caliel falava seriamente.
– Como assim? – indagou Aron.
Caliel mostrou o dedo indicador e disse:

180
– Vou citar um exemplo prático, esse que
acabou levando ao declínio celestial!
Aron andava e ficava virando a cabeça para o
lado de vez em quando, atento a Caliel.
– Quando o Pai nos criou, já estava pensando no
futuro. Fomos feitos para ajudar na evolução da
humanidade, e como isso era vontade Dele, fizemos
com prazer e estamos aqui lutando por vocês. –
Caliel sorriu e olhou com seus olhos azuis e
penetrantes para Aron.
– Certo! – O humano balançou a cabeça.
– Mas nem todos aceitaram isso muito bem, por
puro ciúme do Pai. Você concorda comigo que esse
é um sentimento cotidiano, humano?
Aron interrompeu Caliel.
– Posso fazer uma pergunta? – O humano
mostrou dois dedos.
– É claro!
– Em quê nos diferimos então? Eu não entendi!
– Aron deu de ombros, mostrando as palmas.
– Você sempre foi apressado. Eu vou chegar lá!
– Caliel riu. – A nossa consciência é parecida com a
de vocês, porém temos a adoração pelo Pai em
abundância. Isso pelo fato de estarmos tão próximos
a Ele, sempre. Acabamos absorvendo toda a sua
energia divina que é exalada como um mar vibrante
de amor. Isso nos faz querer viver por Ele. Sua
vontade é nossa vontade! Outro fato que nos difere é
a pujança depositada em nosso espírito. Nós, anjos,
181
fomos criados mais fortes, justamente para auxiliar
na proteção de vocês. – O celeste pendeu a cabeça
para baixo fechando os olhos. –Uma coisa que
ninguém imaginava é que teríamos que usar essas
habilidades contra nossos próprios irmãos.
– Lúcifer, né?
– Não exatamente. Mas sim. – O ruivo hesitou
um pouco. – É essa a história que vocês ouviram.
Aron parou, franzindo as sobrancelhas. Esticou
as costas, cruzando os dedos e levando-os acima da
cabeça. Em seguida, disse:
– Minhas costas estão doendo!
Caliel sorriu e colocou a mão na face de Aron.
Seu membro brilhou em violeta e ele o retirou
rapidamente.
– Está melhor? – indagou o anjo.
Aron arregalou os olhos, rodou os braços para
trás, depois para frente, alongou as costas para os
dois lados, repuxou os lábios para baixo, surpreso e
disse:
– Cacete! ops... Desculpe! – disse, sussurrando,
com vergonha.
– Não tem problema! – Caliel sorriu.
– Mas obrigado! Realmente melhorou! – Aron
falou, satisfeito.
– Quer se sentar um pouco? – Caliel apontou
para a grama verde.
– Sim, obrigado! – Aron nem esperou e já se
sentou, cruzando as pernas sujas.
182
O anjo mostrou as palmas arqueando as
sobrancelhas, jogou a mão para trás e se sentou na
frente de Aron da mesma maneira.
–Tá bom, eu já entendi tudo até aqui! Mas e
Haziel, porque ele me salvou e não você?
Caliel semicerrou os olhos, dizendo em seguida:
– Essa é uma história que podemos deixar para
depois – deu um sorrisinho.
O humano também sorriu. Rapidamente o ruivo
mudou de assunto.
Haziel já te explicou sobre sua alma?
– O lance da energia azul, né?
– Isso! Exatamente por esse motivo você é a
maior prioridade do Céu hoje, para restaurar a
humanidade.
– E que eu sou herdeiro de Adão, que posso
abrir os portais e blá, blá, blá...
Caliel soltou uma risada e assentiu com a
cabeça.

***

Barrattiel percorria as vielas da pequena cidade


em passos largos. Tinha um sorriso inocente no
rosto. A poeira levantava do chão diante de sua
pisada. Passando por um grupo de três anjos, que se
dispunham em dois guerreiros e um guardador,
perguntou se tinham visto Yesalel. Os celestes
apontaram para o norte e disseram que ele havia
183
passado há cinco minutos. O gigante agradeceu e
explodiu as asas. Os anjos se retraíram pela investida
repentina. Barrattiel alçou voo e em um segundo já
tinha ganhado cem metros de altura.
Flutuando em velocidade reduzida, o gigante
rapidamente localizou Yesalel. Queria perguntar
sobre Haziel, mas o que não esperava era encontrá-
lo com o comandante deslizando pela rua,
entretendo-se com passos calmos.
– Haziel! – gritou Barrattiel, descendo em
rasante. Um sorriso que só lhe faltava estourar os
músculos do maxilar parecia fazer seu rosto brilhar.
Haziel olhou para cima e fitou seu melhor amigo
se aproximando com velocidade. A descida do
celeste vinha com tanta vontade que Haziel sorriu,
mas ao mesmo tempo arregalou os olhos e esticou os
antebraços na frente do corpo, assustado. Quase no
mesmo momento, foi atingido pelo gigante corpo de
Barrattiel, que o jogou no chão. Os dois rolaram por
alguns metros e ainda no chão soltaram gargalhadas.
Barrattiel se levantou primeiro e esticou o braço para
o louro. Haziel retribuiu e com muita força Barrattiel
o puxou, erguendo-o do chão e o esmagando contra
seu peito.
Uma lágrima de felicidade escorreu do olho
direito do gigante.

184
CAPÍTULO 14

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Sentados na grama verde, Haziel e Hariel
matavam as saudades entre si. Haziel tinha uma
perna colada ao peito segurada por um braço.
Encarava a grama e enquanto falava, arrancava-a,
jogando-a ao lado.
Hariel tinha as duas pernas cruzadas e os braços
esticados no meio do buraco formado pelas pernas
entrelaçadas. Tinha as mãos encontrando também a
grama. Remexia-as como se fossem cabelos. Seu
olhar também se direcionava ao verde à frente. Ela
contava detalhadamentetodos os acontecimentos
importantes do último século. Minuciosamente,
informou ao irmão de espírito quais eram os planos
do céu para resolver o holocausto terrestre.
– Quanta coisa mudou em cem anos! – Haziel
disse com sorriso no rosto, mas com os olhos um
tanto assustados. – Sabe irmã, eu não vi o Daniel
ainda. Onde ele está?
– Está treinando com os gigantes há quase cinco
horas!
– Ele adora, né?!
– Sempre!
185
Os dois riram.

***

– Você sabe sobre a minha esposa, Caliel? –


Aron indagou enquanto caminhava com Caliel.
– A Sun! – Caliel sorriu e olhou para cima,
depois olhou para Aron um tanto triste – Eu sei,
Aron! – O sorriso se intensificou. – Saiba que
faremos de tudo para resgatá-la!
– Eu acredito nisso! – O humano semicerrou os
olhos. – Só estou achando uma coisa estranha.
– O quê?
– Eu não estou tão preocupado como antes! –
Aron sentiu ódio de si por não estar preocupado.
– Eu sei! – Caliel colocou a mão no ombro dele
enquanto caminhavam.
Aron parou os passos e arregalou seus olhos
para Caliel, que também parou.
– Como assim, você sabe?
Caliel riu, abaixou a cabeça, cerrou os olhos e
disse:
–Eu estou fazendo isso, Aron! – O anjo olhou
para Aron com seus olhos amendoados.
– Como? – o humano perguntou, com as
sobrancelhas franzidas.
– Por que você acha que nunca sentiu algo ruim
em seu coração? – O guardador tocou o peito do
humano. – Por que você acha que nunca sentiu ódio?
186
Por que você acha que nunca sentiu medo? – Retirou
sua mão e mostrou a palma. – Estou emitindo
energias para te tranquilizar.
O rosto do humano se enraiveceu. Eu não quero
ficar tranquilo, eu não quero, eu não quero! –
pensou Aron.
Caliel sentiu o espírito do humano se inundando
de raiva, então fortaleceu sua investida impedindo
que o desespero o dominasse. Mas Aron começou a
sentir raiva porque não podia sentir raiva. Caliel
mudou o timbre de suas emanações, burlando o
sentimento do humano. Repentinamente Aron falou:
– Eu não quero ficar tranquilo! – Tinha no rosto
um olhar fechado.
Caliel fechou o sorriso, surpreso.
– Eu posso fazer o que você quiser, Aron!
– Eu quero sentir! Não acho justo com ela –
disse o humano, pisando firme.
– Como você quiser!
Caliel juntou as palmas das mãos e uma luz azul
brilhou envolvendo-as. Nesse momento, Aron
colocou a mão no coração e uma lágrima escorreu
do seu olho direito, depois do esquerdo. Uma
enxurrada de lágrimas começou a escorrer dos olhos
do humano. Ele se ajoelhou e olhou para o Céu,
juntando as duas mãos.
– Por favor, Deus, ajude-me! Ajude a Sun!

187
Caliel olhava, enquanto o humano esboçava sua
angústia. Queria acabar com aquilo, mas respeitava a
opinião dele.
– Aron! – quase um grito do ruivo.
O humano olhou para Caliel com os olhos
inchados.
– Você tem certeza disso? – indagou Caliel.
O humano assentiu com as lágrimas caindo
como cachoeiras.
– Venha aqui! – O anjo esticou os braços para
ajudar o humano a se levantar.
– Pode deixar! – Aron se levantou, sem tocar na
mão de seu guardador. – Obrigado! – Espalmou os
joelhos.
– Você precisa descansar! – Caliel o olhava com
olhar melindroso. – Você tem certeza que não quer
que eu acabe com essa dor?
– Tenho!
– Eu só preciso descansar mesmo! – O sorriso de
Aron se escondia embaixo de uma tonelada de
sentimentos obscuros.
Os dois caminharam até uma casa com algumas
paredes destruídas e quando chegaram à porta,
Caliel disse:
– Você pode descansar aqui!
Aron espreitou dentro da residência.
– Tudo bem! – Deu um passo em direção à
porta.
– Você não quer comer nada? – indagou Caliel.
188
Aron apenas levantou o braço movimentando a
mão negativamente e entrou na casa. Caliel ficou do
lado de fora e pediu para que dois anjos guerreiros
ficassem de prontidão na porta. Imediatamente, os
dois anjos aceitaram e o fizeram.
Ao se adentrar na casa, o humano reparou em
uma sala pequena, ruinosa. Possuía um buraco no
teto com mais ou menos dois metros de raio. As
paredes eram brancas e tinha uma cama com pernas
presas com cordas e vigas de madeira. O móvel
estava no meio da sala, coberto com um robusto
lençol branco. Um tecido, que fora enrolado para
servir de travesseiro, estava no lugar onde iria a
cabeça do humano. Um monte se erguia no meio da
cama formando uma pequena pilha de roupas. O
chão era de piso frio, com muitas partes
estilhaçadas. Vislumbrando o pequeno ambiente,
Aron só conseguia pensar em Sun. Sentou-se na
beira da cama e colocou a mão na cabeça, em
reflexão.

***

Conhecia Sun desde a infância. Aquela bela


mestiça era a razão de sua vida. Perdeu os pais em
um acidente de carro em que foi o único
sobrevivente. Sem irmãos para compartilhar a dor,
absorveu aquilo tudo sozinho. Tinha apenas dezoito
anos de idade quando aconteceu e daí em diante teve
189
que se virar sozinho no mundo, contando apenas
com o auxílio de Sun, que na época era apenas sua
amiga.
Durante a adolescência, no colégio, teve alguns
rolos com várias garotas, uma delas foi Sun. Sua
amizade com a moça continuou, mesmo depois dos
estudos e a intimidade cresceu. Após o acidente, a
presteza da mestiça perante o sofrimento de Aron foi
tão grande que o amor floresceu entre os dois.
Tinham um amigo chamado Iago, mas que logo
se afastou, pois teve que servir o exército. Em sua
vida, tinha apenas Sun. Atingiram a parte adulta da
vida juntos. Com vinte cinco anos de idade, Aron e
Sun noivaram. Completamente entristecido, pensou
que preferia não ter casado. Assim não teriam
viajado e ele poderia estar com ela naquele
momento.
Mas de uma coisa ele tinha certeza: salvaria sua
amada de um jeito ou de outro.

***

Passadas duas horas de reflexão, Aron teve um


lapso de energia espontâneo. Levantou-se
rapidamente, seguiu até a porta e colocou a cabeça
para fora. Dois anjos musculosos se mantinham
prostrados do lado de fora. O humano passou o
corpo com cautela pela porta e cumprimentou os
190
celestes. Dois guerreiros enormes. Um louro, com
rosto liso e cabelo comprido, o outro tinha a barba
longa e cabelos baixos. Os dois menearam a cabeça
e se mantiveram em posição. Aron deslizou pelas
vielas destruídas e cumprimentava, sorridente, todos
os anjos que passavam por ele. O homemvestia
camiseta de algodão vermelha, calça de moletom
cinza-clara e tênis de corrida preto.
O aroma atual do corpo não era agradável, mas
pelo menos estava com vestes limpas. Sua intenção
era óbvia. Estava desesperado e não queria esperar
para salvar sua esposa. Então, sem raciocinar direito,
seguiu, com seu extinto de proteção. Não pediu
ajuda dos celestes por pensar que a ideia seria
rejeitada de primeira.
Ao final de meia hora de caminhada, Aron
chegou aos pequenos grupos de anjos que gostavam
de treinar mais afastados. Alguns conversavam entre
si nos limites do vilarejo, que tinha sido dominado
pelos celestes. A pequena cidade era repleta de
casas. Algumas agrupadas, outras separadas por
causa de seus grandes terrenos. Outras áreas eram
maiores e cobertas por vegetação, mas como em
todo o planeta, algumas partes estavam mortas. Os
celestes estavam totalmente focados em seus
afazeres, então Aron passou despercebido.
Em uma rua de paralelepípedos, o humano
passou por uma igreja de cor amarelenta, que
terminava no final de uma pequena escada. Nas
191
laterais, dois corrimões compridos acompanhavam
os degraus, que Aron subiu deparando-se com a
porta da construção arrancada. Entrou no salão e
vislumbrou bancos simples de madeira enfileirados
na esquerda e na direita. Nas laterais, imagens de
santos estavam erguidas em cima de pequenos
altares presos às paredes. No altar principal, tinha
uma mesa central sobreposta por um tecido verde,
encimado por outro menor, branco. As rosas à frente
da mesa haviam murchado. Na parede, ao final do
salão, uma imagem maravilhosa de Jesus Cristo
estava pintada. Exibia o desenho do filho de Deus
protegendo a cidade de Águas Vermelhas.
Aron caminhou até um banco e se ajoelhou na
madeira exposta quase no solo, presa nas costas do
acento. Cruzou as mãos, olhando a imagem do
enviado do Senhor, abaixou a cabeça, fechando os
olhos e iniciou uma oração. Pedia a proteção para
sua esposa.
– Deus! Por favor, proteja minha amada esposa
Sun das mãos do maligno. Dá-me forças para
encontrá-la e livrá-la de todo o mal. Eu sei que sou
fraco, apenas um humano no meio de tudo isso.
Então preciso do Senhor para me ajudar nessa
investida. Senhor, meu Deus, a Sun é tudo o que
tenho! É o amor da minha vida! – Com lágrimas nos
olhos, repetiu as frases várias vezes, assim
terminando a reza. – Amém.

192
Manteve-se naquela posição com pensamentos
distantes durante alguns minutos, até que um
barulho estranho o despertou. Ainda com os dedos
entrelaçados, abriu os olhos e levantou a cabeça.
Olhando com o canto dos olhos, atento à sua
audição, percebeu que o barulho era externo. Antes
como ruídos, o fragor ia aumentando e se
aproximando. Rapidamente, Aron se levantou e
correu até aporta, prostrou suas mãos nas laterais e
colocou a cabeça para fora. O que viu foi
aterrorizante. Uma leva de possuídos estava
rodeando a igreja, não deixando abertura para o
humano passar. Chegavam aos montes, assim
reforçando a parede de corpos. Ameaçavam avançar,
mas no mesmo momento freavam e voltavam. A
impressão era de estarem aguardando a ordem do
ataque. Aron sentiu um calafrio forte no corpo e uma
onda elétrica percorrendo sua espinha.

193
CAPÍTULO 15

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
– Cadê o humano? – gritou Yesalel, colocando a
cabeça para fora do cômodo, onde se abrigava Aron.
Imediatamente, todos os anjos se alarmaram e
começaram a observar por todos os lados como
falcões. Haziel correu até a porta, chegando como
um touro.
– Cadê ele? – O louro espiou com a cabeça
dentro do quarto. Rapidamente olhou para Yesalel e
indagou:
– Faz quanto tempo que ninguém o vê?
Os dois soldados, prostrados na frente da porta,
disseram que ele tinha saído há cerca de meia hora.
Hariel pousou a tempo de escutar os guardas
angélicos, observando a cara de espanto do irmão.
– Vamos atrás dele, Haziel! – disse Hariel.
Haziel assentiu e explodiu suas branquíssimas
asas, investindo vorazmente nelas. Mas um fato
inesperado aconteceu. Com os olhos arregalados, o
anjo percebeu o mundo à sua volta travando. Seu
corpo começava a se mover em câmera lenta,
enquanto todos já estavam imóveis como estátuas.
Hariel olhava para cima como um falcão e suas asas,
194
naquele momento, já a tinham tirado do chão. Seus
cabelos estavam jogados para trás em função do
repentino vento. Sua mão estava presa à bainha da
espada. Barrattiel chegava correndo a cerca de cem
metros. Tinha acabado de explodir suas asas naquele
momento. As duas estavam abertas, mas ainda
estavam em processo de formação, deixando apenas
duas silhuetas douradas no ar.
Uma luz dourada, tão clara que parecia branca,
envolveu Haziel, tirando toda a possibilidade de
enxergar outras cores, ou qualquer coisa que não
fosse a luz. Uma voz grave, imponente, apresentou-
se naquele universo de luz.
– Haziel! – a voz ecoou pelo ambiente. – Tu és
um herói divino. Ficastepreso no inferno durante um
século. Tu te livraste e derrotaste Pruflas, um dos
caídos.
Sem saber o que o aguardava, mas satisfeito
pelos elogios, o anjo apenas permaneceu parado e
atento. Não dava para distinguir de onde vinha a
voz, pois parecia vir de todos os lugares.
Da claridade, subitamente, uma luz mais forte,
disforme e dourada apareceu, começando a tomar
forma na medida em que se aproximava de Haziel.
Ao chegar perto, o anjo percebeu que seus traços
ficavam evidentes aos poucos. Com cabelos
dourados e escorridos, olhos azuis e brilhantes e pele
de ouro, apresentava-se Gabriel, o arcanjo, cujo
codinome era “Força de Deus”.
195
O arcanjo estava completamente desnudo. No
lugar do sexo, tinha uma pele lisa como uma casca
de ovo dourada, ou seja, não possuía distinção
sexual. Apenas pelos traços masculinos era possível
distingui-la. Exalava uma luz leve, cintilante, em
volta de seu corpo. Pequenas ondas, como erupções
solares, eram criadas, em todo momento, na borda
da luz, dissipando-se no ar quase no mesmo
momento. O brilho era magnífico e aconchegante. O
arcanjo não tinha um par de asas normais, mas duas
luzes douradas em forma de asas, com cerca de três
metros cada uma. Combinavam com os dois metros
e meio de altura de seu corpo.
Haziel estava petrificado diante da presença do
gigante. Sua áurea era de beleza tão grandiosa que
chegava a penetrar no espírito do anjo. Ondas de
energia exalavam do arcanjo e encontravam
diretamente o corpo do guerreiro, que naquele
momento, também estava envolvido por aquela
energia magnífica.
–Olá, Haziel! – Gabriel falou diretamente dentro
da sua mente.
Sem entender como também estava fazendo
aquilo, Haziel respondeu da mesma forma.
–Arcanjo, Gabriel! – Os olhos de Haziel
brilharam e uma lágrima escorreu de seu olho,
quando meneou a cabeça.
O sentimento de amor envolvido, naquele
momento, era de tamanha grandeza que era
196
impossível para qualquer um conter as lágrimas. O
branco que envolvia os dois celestes demonstrava a
paz daquela dimensão. Subitamente, a voz do
arcanjo novamente soou na mente do anjo.
– Sobre o que estás pensando agora, por favor,
fique em paz. Trouxe-te aqui exatamente por esse
motivo.
Espantado com tal pujança, Haziel exclamou:
– Não entendo, arcanjo!
Gabriel cerrou os olhos e respirou fundo.
– Estamos parados no contínuo espaço-tempo.
Haziel franziu as sobrancelhas e antes de
esboçar uma pergunta em sua mente, Gabriel
respondeu:
– O tempo fora deste mundo está parado.
Podemos ficar aqui pela eternidade, se quisermos. –
Gabriel contraiu os lábios e depois sorriu. – Mas
sabemos nossas prioridades, não é, guerreiro?!
Haziel inclinou a cabeça para frente e aguardou
o arcanjo se manifestar. Gabriel inclinou a cabeça
um pouco para baixo evidenciando suas
sobrancelhas douradas, levando a mão à frente do
corpo. Uma pequenina luz dourada brilhou acima de
sua palma. Ondas azuis, quase parecidas com
tentáculos delgados, iniciaram sua dança,
multiplicando-se. Por fim, formando-se em uma
esfera de energia violeta. Uma segunda onda de
tentáculos dourados começou a se manifestar ao
redor da esfera. Como cabelos crescendo
197
rapidamente, novos tentáculos, só que azuis,
apareceram dentre os outros. Cintilando como se
estivessem na água, os milhares de pequenos braços
começaram a se entrelaçar. Súbito, a energia cresceu
e depois se alongou em uma luz comprida, dourada,
que flutuava acima da mão do arcanjo.
A luz era tão divina e o sentimento no peito de
Haziel era tão perfeito que tinha a sensação de jorrar
fluídos sanguíneos por todo o seu corpo como rios
ferozes. Com o olhar penetrante no elemento, o anjo
guerreiro percebeu quando, aos poucos, a luz foi
perdendo seu brilho e deixando no lugar um objeto.
A luz se dissipou quase totalmente, deixando apenas
uma fina camada translúcida em volta do elemento.
Foi aí que Haziel percebeu que flutuando acima das
mãos de Gabriel estava sua espada, ou a réplica dela,
perdida há mais de cem anos.
A espada dançava no ar acima da palma do
arcanjo. Com uma mão, ele segurou sua
empunhadura e a esticou para cima, à frente de seu
corpo. Fitava a lâmina do objeto de cima a baixo.
Haziel apenas assistia à cena sem perguntar
nada. Gabriel afrouxou a pegada da espada e deixou
que ela fizesse uma volta pendendo sua lâmina para
baixo. Com um movimento, esticou o braço e pediu
que Haziel a segurasse. O anjo hesitou, mas a pegou,
levantando-a. Observou sua ponta brilhando e olhou
para Gabriel, indagando algo no olhar.

198
– Haziel, essa espada foi forjada para ti,
utilizando uma célula da Força de Deus posta em
minha áurea. – O arcanjo falava com a voz de sua
própria garganta.
– Por que eu?
Gabriel arqueou as sobrancelhas douradas
sorrindo.
– Simples! Agora precisamos também de ti, um
dos anjos mais poderosos, completamente equipado.
Precisamos do brilho da tua luz. Tu sabes do que
falo. – O arcanjo inclinou a cabeça para baixo
penetrando o olhar nos olhos do anjo.
Com as duas palmas esticadas à frente do corpo,
o arcanjo materializou uma bainha prateada e um
cinto de couro com detalhes prateados, entregando-
os ao guerreiro. Haziel apanhou os objetos.
Admirado pela beleza das peças, ficou segurando-as
e olhando para Gabriel sem dizer nada. O arcanjo
fez menção para que ele vestisse o cinto. Haziel o
fez, circulando por sua cintura o pedaço de couro.
Após lacrar o feixe, depositou a espada na bainha,
por fim fazendo um clique.
Haziel nunca precisava fazer perguntas, pois o
arcanjo parecia saber todas as respostas, mesmo
antes das questões se formarem na sua cabeça e mais
uma vez o informou:
– O humano está em uma capela cristã,
localizada no centro da cidade de Águas Vermelhas.

199
O anjo entendeu o que era para ser entendido e
meneou a cabeça em respeito à divindade. O arcanjo
sorriu, abriu os braços, esticando suas asas e
inclinou o queixo para os céus, cerrando os olhos.
Naquele lugar, o céu era relativo. Gabriel
desapareceu na branquidão com um feixe de luz.
Nesse momento, Haziel olhou seus antebraços à
frente do corpo e os notou desaparecendo, sendo
totalmente tomados por uma névoa quase liquefeita,
clara.
Haziel, repentinamente, retornou ao local de
onde estava partindo para salvar o humano,
exatamente no mesmo milésimo de segundo. Em
benefício de já ter investido nas asas anteriormente,
quando retornou à sua realidade, subitamente foi
lançado aos céus. Ao seu lado direito, subia Hariel
em velocidade descomunal. Haziel tateou a cintura e
percebeu a presença da arma. Hariel também
reparou na peça e arregalou os olhos.

***

Aron se via rodeado por criaturas que estavam


na parte de fora da igreja. Tendo uma ideia, puxou
os bancos mais próximos da porta e os empilhou
como pôde, o mais rápido possível. Vedou as janelas
com alguns assentos que sobraram. Subiu três
degraus até o altar e se sentou atrás da mesa, com as
pernas abraçadas. Já era noite. Uma agigantada
200
tempestade se iniciou. Um relâmpago estourou tão
perto e tão forte que o humano se assustou, sentindo
seu coração pular, parecendo alcançar a garganta.
Nunca tinha presenciado um relâmpago de potência
tão grandiosa. O barulho das criaturas em tocaia se
misturava com o som da chuva torrencial.
Na demora de qualquer investida inimiga, Aron
levantou-se e espreitou pelos vãos dos bancos
empilhados. As centenas de humanos possuídos,
com seus lapsos atemorizadores, ainda aguardavam
a linha imaginária se desfazer para atacarem.
Inesperado, um poderoso relâmpago cortou o
céu, seguido por um estrondo muito maior do que
qualquer um anterior. Esse foi diferente. A
impressão do humano foi de mil bombas nucleares
estarem explodindo ao mesmo tempo, pelo mundo
todo. Nesse momento, da parte externa da capela,
um alvoroço hercúleo pôde ser ouvido por Aron. É
agora! – pensou o humano, aflito.
Com vontade colossal, as criaturas adentraram a
igreja e atacaram os bancos empilhados. Sem
qualquer cautela, alguns chocavam seus corpos
contra as madeiras, abrindo buracos nos próprios
corpos. Outros arrancavam pedaços e iam
desfazendo as barreiras das janelas, com rapidez.
Alguns escalavam a propriedade como podiam. O
som emitido pelos seres era aterrorizante. Os que
estavam no teto rosnavam para os céus e seus mucos
negros eram arremessados das bocas. Outros corriam
201
e se colidiam contra as paredes; muitos desses caíam
moribundos. Alguns abriam rachaduras na cabeça,
ou em qualquer parte do corpo. Quando não
sucumbiam, levantavam-se e voltavam a investir até
caírem mortos.
Enfim, a barreira principal foi rompida e os
humanos raivosos entraram no salão como um
enxame. Invadiram o recinto, entrando em dezenas,
esmagando-se entre si. Trombavam-se aos montes e
capotavam ao tropeçar em objetos. Observavam e
farejavam como animais ferozes. A energia azulada
de Aron levava todos em sua direção. A imagem do
divino não parecia lhes afetar em nada. A penumbra
azulada do salão só deixava o clima mais tenso.

***

Os celestes voavam como se nada pudesse pará-


los. Haziel investia em suas asas como nunca. Os
dois irmãos de espírito voavam como jatos,
deixando uma marca clara no ar. Uma explosão
esférica rodeou os anjos quando estouraram a
barreira do som. Um estrondo grave e abafado pôde
ser ouvido ao longe. Logo atrás, dez anjos guerreiros
os acompanhavam quase com a mesma destreza.
Barrattiel estava entre eles.
Antes de alcançar seu objetivo final, Haziel
avistou uma massa humana desordenada em uma
igreja a alguns quilômetros. No mesmo momento,
202
soube que se tratava do humano, seguindo naquela
direção como um míssil. Mergulhando no ar,
alcançou o local em apenas cinco segundos. Pousou
agachado, abrindo uma cratera na rua de
paralelepípedos, lançando as pedras ao longe. A
cabeça estava baixa e sua mão aberta no chão. O
outro braço estava apoiado na perna flexionada. O
estrondo foi tão poderoso que a atenção se voltou
totalmente para ele. As criaturas que ainda não
tinham entrado na igreja seguiram com o ataque em
direção ao anjo.
Hariel estava plainando no alto assistindo a
investida do irmão. Os dez guerreiros iam descer
para ajudar Haziel, mas a loura abriu os braços
pedindo que esperassem e depois os cruzou, fitando
a demonstração de força de seu irmão de espírito.

***

Dentro da igreja, Aron fora localizado e rodeado


por criaturas. Três humanos possuídos vinham pela
direita e três pela esquerda. O humano se enfiou no
buraco entre as duas vigas que erguiam a mesa e
tentou sair pela frente, deparando-se com mais dez
criaturas que avançaram em sua direção com fereza.
O humano hesitou em continuar e voltou pelo
buraco, mas as seis criaturas já estavam em cima
dele. Encurralado, indo e voltando, Aron fora
agarrado pelo pé.
203
***

Na parte de fora, Haziel se levantou calmamente


e abriu os braços, fechando os olhos. A fina camada
de sua áurea brilhou como o sol em volta de seu
corpo. Suas asas abertas impulsionavam sua energia
celestial, pulsando luz em todas as direções.
Rapidamente, a primeira pulsação do raio de luz
encontrou os primeiros seres que foram
desintegrados, desaparecendo completamente.
Assim foram os que estavam no teto da igreja e
assim foram aqueles que nos próximos milésimos de
segundo arrematariam Aron.
Abaixado, com as mãos na cabeça,
extremamente assustado, Aron abriu apenas um
olho. Olhando com o canto do globo ocular, viu a
silhueta de Haziel parado na porta com suas asas
abertas. O humano se levantou e correu na direção
dele. Pulou e o abraçou em um ato de gratidão. O
anjo, que apesar de durão, mas também sentimental,
abraçou-o com um braço firme e disse em seguida:
– Apesar de sua tolice, humano! – Haziel olhou
com reprovação para o humano – Sempre estaremos
aqui para protegê-lo! – O anjo o colocou no chão e
sorriu, olhando em seus olhos.

204
PARTE TERCEIRA.
REVELAÇÕES

205
CAPÍTULO 16

14.745.498.254 anos atrás


Há cerca de 15 bilhões de anos, tudo que havia
era escuridão. A única existência nessa devasta
negridão era o poderoso e onipotente Yahweh. As
leis atuais da física não se aplicavam. Então, apesar
de existir apenas a escuridão, ela propriamente dita
também era Yahweh, pois Ele era a própria
existência. Sem Ele, a palavra “existência”
simplesmente não existiria. Ele era o tudo.
Em um determinado momento de sua existência,
Yahweh decidiu que não queria mais ficar sozinho,
não que se sentisse solitário, mas queria aplicar
algumas ideias que teve. Com apenas um
pensamento seu, uma luz azul brilhou na devasta
escuridão, crescendo como um embrião. As células
iluminadas se multiplicavam. Em apenas alguns
minutos, já eram bilhões de pequenas partículas
brilhantes, que quando unidas, começaram a tomar
uma forma esférica. Tentáculos cintilantes se
ergueram da energia esférica de luz e começaram a
206
dançar no imenso vazio. A luz crescia tão magnífica
que dava a impressão de ser impossível encontrar
um limite em sua expansão. Mas sim, isso aconteceu
e a energia começou a se condensar. Enquanto
tentava se expandir, uma força a impedia.
Finalmente a primeira cor no caminho da existência
apareceu e foi o dourado, que rapidamente se
transformou em laranja, ganhando um tom escarlate
no final. A densidade da bola de energia mostrava
que estava prestes a explodir. Como previsto, a luz
vermelha se comprimiu e estourou em uma
hipernova magnífica.
As cores da linha tênue de luz que cortava a
escuridão se fundiam como turbilhões na velocidade
da luz. O rastro de energia gigante, que percorreria
trilhões de quilômetros, demonstrava a pujança
depositada naquela obra.
Em poucos minutos, quando a energia se
dissipou totalmente, naquela região, deixou uma
figura majestosa em seu lugar: um homem, com
cerca de dois metros e meio de altura, que ainda não
compreendia sua existência, ou o que seria essa tal
existência. Ele estava parado, flutuando na escuridão
e envolvido por uma camada fina de energia divina
pulsante, dourada. Seu corpo girava gentilmente em
207
todas as direções. Seus olhos azuis em tons de safira
tinham brilho próprio. O rosto tinha traços leves,
quase femininos, terminando em um queixo
triangular. Sua pele era dourada como ouro; estava
desnudo. Seus cabelos, ou fios de ouro que
deslizavam por sua cabeça, caíam na altura das
costas. O corpo era musculoso e não tinha umbigo,
nem distinção de sexo. Repentinamente, duas placas
reluzentes se formaram em suas costas,
configurando-se no desenho de duas asas feitas de
luz. O homem olhou para trás e reparou nos
elementos radiantes. De súbito, uma voz ecoou na
sua própria mente e por todos os lugares.
– Meu filho!
Meu filho? – pensou a criatura, como primeiro
pensamento. – O que é isso? – Franziu as
sobrancelhas como primeiro movimento, sentindo os
músculos retraindo-se acima dos olhos. Confuso,
pensou em levar as mãos até lá, mas no meio da
trajetória, parou. – Mãos? – E reparou em suas
próprias mãos com os olhos arregalados. – O que
são essas coisas na minha mente? O que é mente?
Como eu sei disso tudo? Como eu sei que sei disso
tudo? – Sua mente estava inundada de confusão,

208
mas aos poucos seu cérebro foi se organizando na
medida em que o “tempo” passava.
Tempo? – pensou a criatura. – O que é o tempo?
Subitamente a voz ecoou novamente.
– O tempo começa a existir agora, meu filho!
Meu filho? – Lúcifer pensou novamente. – O
que é meu filho?
– És tu, o portador da luz, a primeira na devasta
escuridão. – A voz ecoava na cabeça do ser. – Teu
nome será Lúcifer! – disse a voz, imponente.
Nome? – O homem, que fora nomeado de
Lúcifer, parecia um bebê com corpo adulto e
capacidade de raciocínio avançada. – O que é nome?
– Sua mente tentava compreender os fatos. – O que é
existir? O que é Lúcifer? O que é o...
– Tudo andará de acordo com o teu tempo, meu
filho!
Na negridão, uma luz branca encheu a visão à
frente de Lúcifer. Ondas e tentáculos claros
cintilavam na borda da energia branca esfumaçada.
Estava comovido com a exuberância de um
sentimento que inundou seu coração - Coração? –
pensou Lúcifer. O amor pulsava em seu peito. –
Peito? – Lágrimas desciam como cachoeiras diante

209
daquela sensação maravilhosa. O arcanjo levou a
mão ao rosto e tateou a pele dourada, úmida.
– Meu primogênito! – A voz soou emocionada.
Lúcifer ergueu os olhos para a névoa clara e
enfim indagou com sua própria voz.
– O que eu sou?
– Tu és meu filho! – disse a voz.
– Quem és tu? – Lúcifer indagou, ainda mais
confuso.
– O que tu és? Tu sabes a resposta, meu filho!
Houve uma pausa de muitos segundos. O
arcanjo aguardou atento e respeitoso. Nesse
momento, seu corpo já não girava
desordenadamente. Sua postura majestosa não era
mais de alguém perdido.
– Deus! – disse Lúcifer olhando as mãos, depois
para a névoa. – Eu sei teu nome. – O arcanjo
arregalou os olhos e depois de uma pequena pausa
reflexiva, exclamou: – Tu és meu Pai, Yahweh, o
Deus todo poderoso, o Onipotente, a Existência! –
Na imensa escuridão, o arcanjo meneou a cabeça,
mantendo-a baixa.
– Olha para mim, meu filho! – disse Deus. – Tu
estás certo e citou algo muito importante sobre a

210
existência... Sim, este sou eu! Tu sempre viveste em
mim. Agora eu também vivo em ti.
Os olhos do arcanjo enxergavam apenas uma
névoa branca, mas seu coração podia enxergar e
compartilhar do mesmo ambiente que o coração do
Pai. A presença do amor, naquele lugar, era de
tamanha grandeza que o sentimento chegava a se
tornar sólido. Sentindo-se completamente amado,
após o completo entendimento sobre o momento de
louvor entre pai e filho, Lúcifer meneou novamente
a cabeça.
– Meu Pai! – uma breve pausa – Obrigado por
isso. Obrigado por deixar-me compartilhar dessa
alegria.
A partir desse momento, a primeira existência
material foi criada e assim o tempo começou a ser
contado.
Durante séculos, Pai e filho conviveram juntos
na devasta escuridão e Lúcifer pôde absorver Dele
toda a sabedoria daquele universo escuro. Após a
passagem do oitavo século, Deus percebeu a
maravilha de sua criação já crescida e totalmente
dotada de astúcia, tendo a brilhante ideia de dar a ele
um irmão.

211
– Lúcifer! – a voz majestosa ecoava pela
escuridão até chegar aos ouvidos do arcanjo
dourado.
Olá, meu Pai. Como posso lhe ser útil? –
indagou o portador da luz em pensamentos.
– Meu filho! – uma breve pausa – Hoje,
presentear-te-ei com um irmão!
– Irmão? – O arcanjo franziu as sobrancelhas. –
O que é um irmão, meu Pai?
– Olhe para ti, Lúcifer!
Lúcifer desfilou o olhar por seu corpo até focar
os pés. Então Deus acrescentou.
– Tu podes ver a magnitude de tua perfeição?
O arcanjo esboçou um olhar de confusão,
contraindo os lábios. Após a demonstração de
dúvida de Lúcifer, Deus prosseguiu:
– Tu terás um companheiro igual a ti para
compartilhar de tuas ideias.
– Companheiro?
– Sim! A criação dele partirá de ti, ou seja, de
uma célula tua.
Lúcifer sorriu e arqueou as sobrancelhas.
– Desculpe, meu Pai, mas ainda não consigo
compreender o que é um companheiro!

212
– Por favor, meu filho! Preciso que estiques a
palma de tua mão.
Sem hesitar, Lúcifer o fez, fitando sua própria
mão à frente do corpo. Nela, não existiam linhas de
marcação. Da pele dourada e lisa, um embrião
luminoso floresceu e flutuou acima da mão do
arcanjo. O brilho se distanciou de Lúcifer e em
milésimos de segundos parou a uma grande
distância. A partir desse momento, Lúcifer assistiu a
exatamente todos os processos que ele próprio
passou até ser criado.
Toda a energia se dissipou. No lugar ficou a
imagem de uma criatura semelhante ao próprio
Lúcifer. Apenas algumas coisas eram
dessemelhantes. Os olhos, em vez de azuis, eram
verdes e brilhavam como duas esmeraldas. Os
cabelos dourados, em vez de compridos, eram curtos
e caíam apenas até a altura da testa. Os traços, em
vez de leves, eram fortes e no maxilar tinha
músculos fortes. O corpo era identicamente forte e
comprido. As asas apareceram e brilharam na
mesma intensidade das de Lúcifer.
Os dois arcanjos trocaram olhares e os dois
sorrisos foram esboçados. Mas o segundo, em
seguida, franziu as sobrancelhas e quase teve a
213
mesma reação de Lúcifer em sua criação. Mas logo
o Pai interferiu, explicando coisas ao segundo e
tentando fazê-lo entender.
– Teu nome será Miguel...
A partir daquele momento, foi construída uma
verdadeira relação maravilhosa entre irmãos, Pai e
filhos.
A evolução de suas criações juntas foi tão
perfeita que Deus resolveu entregar mais quatro
irmãos para Lúcifer e Miguel. Já que preferiu criá-
los utilizando a célula dos próprios arcanjos,
trabalhou em duas sessões. Na primeira leva, foram
criados Gabriel e Rafael, na segunda Jeremiel e
Uriel.
A irmandade florescia e um tipo novo de
existência progredia. A afinidade dos seis era bela e
verdadeira. O amor entre eles era demasiado e puro.
Vendo a alegria de suas crianças brincando e criando
os únicos brilhos na devasta escuridão, o Pai se
sentiu satisfeito e naquele momento, determinou
dentro de seu coração que suas vidas seriam
maravilhosas.

214
CAPÍTULO 17

Antiga Mesopotâmia 2758 a.C.


No início do terceiro milênio a.C, formava-se a
cidade de Lagash. O rei que governava, Eannatum,
tinha sede de poder, de terras e de morte. Era filho
de Akurgal, um ser detestável, que acabou
transmitindo toda a sua hostilidade a Eannatum.
Akurgal tinha a severa opinião de que todos tinham
que se curvar a seus pés. Seu filho Eannatum
absorveu tudo que lhe foi ensinado no decorrer da
vida, mas em seu poder, criou suas próprias
entrelinhas, ainda baseando-se nas ideias do pai.
Utilizando de sua habilidade mental mais sábia,
conquistou reinos e liderou cidades que se
submeteram a soberania de Lagash, que já tinha se
tornado a grande metrópole da época.
Um guerreiro humano, com força estupenda,
destacava-se na história de combatentes da capital.
Beirava seus cinquenta anos e nunca tinha perdido
uma luta corporal ou batalha em sua vida. Era o
general do exército de Eannatum, direcionando suas
tropas ao caminho certo. Além de uma força
215
colossal, era o homem mais inteligente que já fora
registrado nas áreas da mesopotâmia, até então. Sua
capacidade rápida de decisão sempre o fazia realizar
suas façanhas com excelência. Seu nome era Ninurta
e em seu natural, sua pujança equivalia à força de
trinta homens. Desproporcional, nascera com
alguma anomalia genética que interferiu no seu
crescimento, dando-lhe dois metros e setenta de
altura. O corpo era naturalmente musculoso nas
proporções máximas. Levava o título de Deus pela
população. Era seguido e adorado, principalmente
pelos guerreiros. Quando passava dentre os grandes
sítios, era louvado aos berros.
A cidade era dividida em três grupos sociais: os
plebeus, os soldados, a nobreza. Um antigo
provérbio da cultura dizia:

"O pobre está melhor morto do que vivo.


Se tem pão, não tem sal,
Se tem sal, não tem pão,
Se tem carne, não tem cordeiro,
Se tem cordeiro, não tem carne."

Ou seja, os pobres eram odiados pela nobreza.


216
***

Um diferente guerreiro caminhava pelo deserto


que rodeava os muros da capital. Estava abatido.
Tinha hematomas pelo corpo e andava aos tropeços.
As roupas não eram costumeiras daquela região.
Fora avistado pelos guardas, quando ainda estava a
centenas de metros dos muros da parte de trás da
cidade. Levantando seus arcos e lanças, os soldados
se prontificaram para qualquer abate. Ficavam em
alerta a qualquer elemento não rotineiro, por ordem
do rei. Ao se aproximar, o homem pediu ajuda
erguendo seus braços aos guardas. Estava despido de
vestes superiores. O peito forte era forrado com
pelos negros, dando-lhe certa imponência. Vestia
calças largas e brancas e calçava botas de couro. Os
olhos eram caramelados, cobertos por grossas
sobrancelhas negras. Os cabelos eram curtos,
despontados e negros. O corpo era forte e suas
características lhe davam a aparência de um homem
na casa dos trinta anos.
O homem olhava para cima com seus braços
levantados. Repentinamente, caiu de joelhos,

217
perdendo os sentidos. Seus olhos se reviraram e seu
corpo despencou na areia fofa.

***

O anjo acordou em uma cela de pedras escuras.


Um buraco no teto, com grades de aço que saíam das
rochas, iluminava o recinto com a luz do luar. As
estrelas brilhavam na grande maioria em tonalidades
azuladas, mas podiam-se ver brilhos avermelhados e
amarelados também. Daniel reparou em uma estrela
cadente e nesse momento, sentou-se na cama forjada
de pedra, colocando a mão no queixo. A sala estava
trancada com uma porta de aço de cor chumbo.
Tinha uma pequena abertura na altura da cabeça
humana, mas que também se fechava com finas
grades de aço.
Daniel poderia sair daquela prisão na hora que
quisesse. Afinal, era um guerreiro de Deus e tinha
força extraordinariamente grande. Não seriam
pequenas pedras que o parariam. O celeste já se
sentia um tanto recuperado. Ali estava encoberto e
fora de perigo. Preferiu manter a máscara humana,
assim poderia se recuperar totalmente. Fora
fustigado em missão celestial contra um duque do
218
inferno. O anjo teve êxito, mas pagou caro.
Precisava de algum tempo para se recuperar
totalmente para dar suas caras novamente e não ser
massacrado.
Subitamente, a porta de aço foi destrancada e
aberta. Um homem completamente careca, com
barbas negras, entrou na sala. Os olhos eram
amendoados e azuis. Tinha no corpo um vestido de
cor branca, encimado por um tecido vermelho.
Estrelas douradas, com seis pontas, bordavam a
veste escarlate. Franjas de ouro contornavam
completamente o tecido. O ombro ficava à mostra.
Nos pés, tinha sandálias de couro trançado até os
tornozelos, com detalhes de ouro.
Vindo logo atrás, um gigante homem o seguia,
adentrando também o salão. Teve que abaixar a
cabeça e flexionar os joelhos para passar pela porta.
Era Ninurta, seu general. Um homem gigante e forte
como um touro. Tinha cavanhaque, cabelos baixos e
escuros, olhos malvados e enegrecidos e nariz largo.
Vestia uma comprida camisa branca que caía quase
até os joelhos. Um cinto de ouro se fechava na
cintura, forrado com vários recipientes para segurar
armas. Possuía ombreiras de couro forte, negro, com
franjas douradas. Dois cinturões de couro preto
219
desciam dos ombros, cruzando-se na altura de seu
estômago. Chegavam até o cinto sendo presos por
ganchos de aço. Usava calças largas, pretas, que
terminavam em botas de couro, negras. No cinto,
levava uma enorme espada, proporcional ao seu
tamanho. Tinha a lâmina prateada e arqueada.
O rei segurava um cetro dourado. Estava
tocando o solo com a peça, que era moldada em uma
cabeça de falcão com a boca aberta – nesse caso o
animal tinha presas. Os olhos do falcão brilhavam
como dois rubis. O homem bateu o cetro no chão,
chamando a atenção do guerreiro que permanecia na
mesma posição. Parecia não dar a menor atenção ao
rei. Daniel bufou e olhou para o homem, dizendo:
– Sim? – o anjo tinha um tom sarcástico na voz.
– Quem você pensa que é, miserável? –
Eannatum cuspiu as palavras e um pouco de saliva
ficou grudada nos pelos negros de sua barba. –
Cuidado com o tom que usa comigo, rapaz! –
Esticando o cetro ao lado, disse: – Mande levarem-
no ao campo de combate, Ninurta.
O general assentiu brevemente, deu dois passos
para trás e saiu da cela. Virou a cabeça para a direita
e inclinou o queixo. Imediatamente, dois guardas
entraram no recinto e cada um pegou Daniel por um
220
braço, levantando-o com brutalidade da cama. O
anjo franziu as sobrancelhas e olhou para os dois
soldados movendo a cabeça rapidamente.
Subitamente, arremessou-os na parede à sua frente
como se fossem dois bonecos. Não colocou tanta
força na investida para não os matar. Os dois caíram
desacordados. Ninurta partiu como um touro para
cima dele. Sendo freado pelo cetro que o rei
posicionou na frente de seu peito, na transversal.
Ninurta bufava. O rei encarava Daniel enquanto o
silêncio da tensão se fazia no ambiente. Todos
ficaram imóveis por um tempo.
– Venha comigo, rapaz! – Eannatum bateu o
cetro no chão nesse momento.
Daniel não resistiu e o seguiu. O gigante Ninurta
ia logo atrás, atento, e observando o celeste.
Passaram por guardas vestidos com armaduras
criadas com metal e couro, todos menearam a
cabeça. Os três continuaram e transcorreram por
imensos corredores até saírem por uma porta, que
dava na parte externa da torre. O celeste olhou para
cima e reparou em uma enorme passarela dourada
transpassando a sua frente. Acima do monumento,
ele pode ver um lindo jardim colorido.

221
Prosseguiram até se encontrarem no meio de um
campo de combate. Guerreiros treinavam e lutavam
entre si. A voracidade das pelejas era de tamanha
grandeza que algumas fatalidades chegavam a
acontecer. Daniel reparou em suas armas; a maioria
utilizava espadas. Alguns usavam lanças, ou mesmo
lutavam sem armas, utilizando apenas a força do
corpo. As armas usadas nos treinos não continham
pontas e eram totalmente esculpidas em madeira.
Alguns lutadores paravam os combates para
observarem o anjo, que ao passar, por algum motivo,
chamava a atenção de todos. Tinha postura
diferenciada e beleza estupenda. Era robusto e
impunha respeito com sua majestade. Tinha
músculos fortes e definidos. Com 1,87m de altura,
não era tão alto, mas impunha respeito. As
sobrancelhas eram grossas, ajudando-o a formar o
olhar sério. Tinha pupilas grandes no meio da íris
cor de mel que reluzia um brilho próprio, sutil.
Os três homens chegaram a um ponto do campo
aberto. Lá, encontrava-se também um antigo
guerreiro que acabara de chegar e ainda se
familiarizava com o local. Aparentava estar na casa
dos cinquenta anos. Sua cabeça era pelada, mas no
rosto tinha um cheio cavanhaque branco. Os olhos
222
eram puxados e fechados, mas dava-se para ver que
a cor era esverdeada. Usava um tipo de roupão
batido de cor creme, que era preso por uma faixa de
cor caramelo. A peça fechava-se na altura da cintura,
deixando um V no peito descoberto. A calça era
larga e escura. Nos pés, tinha sapatilhas pretas. Não
era alto e nem forte, tinha aparência frágil e no rosto
esboçava um sorriso amistoso.
Quando os homens se aproximaram, o ancião se
virou para eles, colocou as mãos para trás
calmamente e encarou o rei. Daniel semicerrou os
olhos, fitando diretamente os globos verdes do
asiático. O homem também olhou em seus olhos, de
relance, nesse momento. Foi rápido, mas o suficiente
para que Daniel entrasse em seus devaneios,
remexendo em memórias antigas.
O rei se aproximou de Ninurta ao ponto de
invadir seu espaço pessoal, pedindo que abaixasse.
Em seu ouvido, cochichou algumas coisas. Ninurta
direcionou o olhar para Daniel e o asiático. O rei
virou-se também, encarando os dois e seguiu em
direção a um altar que ficava no centro do campo. O
general o acompanhou. Subiram alguns degraus até
ficarem no topo do elevado, a cerca de quatro metros
de altura. Repentinamente, o rei esfregou seu cajado
223
dourado contra quatro barras ocas de metal. O
barulho pôde ser ouvido ao longe. Imediatamente,
no campo de treino, foi cessado o som das pelejas.
Gritos de garra pararam e os guerreiros se
aquietaram.
Daniel estava inquieto. Não precisava passar por
aquilo. Mas desde sempre existiram cinco regras que
jamais poderiam ser quebradas.

”Nunca te revelarás perante a humanidade”


”Nunca cometerás coito com a humanidade”
”Nunca matarás, a não ser pela própria vida, a
humanidade”
”Nunca criarás guerra, a não ser pela proteção
da humanidade”
”Nunca te rebelarás contra o Criador, ou
contra Sua criação, a humanidade”

Saindo do seu momento de pensamentos, Daniel


voltou sua atenção ao rei e seu gigante general, que
premeditavam um anúncio. O asiático também fitava
a realeza, mas de vez em quando encontrava seu
olhar com o de Daniel.

224
–Meus caros guerreiros! – berrava Eannatum.
– Eu sei quanto se dedicam em treinos para
conquistarmos tudo que viemos conquistando
ultimamente. – Pela primeira vez o rei sorriu,
mostrando os dentes. Depois continuou, após uma
breve pausa. –Tenho todos vocês como meus filhos
e lhes agradeço tudo que têm feito por nosso
povo. Hoje – abrindo os braços, deixando o cetro
totalmente aparente, o rei abriu a boca, emitindo um
grandioso riso. Após alguns segundos, acrescentou –
,hoje lhes entregarei um presente!
Ninurta desceu os degraus do altar e seguiu na
direção do asiático e de Daniel, que estavam a cerca
de dois metros de distância um do outro. Os
soldados do rei iam abrindo passagem para o gigante
general passar e meneavam a cabeça em toda a sua
trajetória.
–Hoje, em nosso reino, fomos presenteados
com dois grandes guerreiros. – O rei apontou a
cabeça de falcão dourada na direção do anjo e do
asiático, dizendo: – E eles se enfrentarão entre si,
sendo que – Eannatum levantou o dedo indicador
aos céus com a outra mão – Apenas um
sobreviverá!

225
Daniel e o asiático se entreolharam e voltaram
suas atenções ao rei, sem questionar.
Daniel levaria aquilo tudo até onde desse, por
fim escaparia sem deixar vestígios celestiais. Tinha
acabado de voltar de um combate brutal e ainda se
recuperava. Teria que passar por aquelas situações
até o limite.
– Vamos! – Ninurta indicava com o queixo para
que os dois guerreiros andassem.
Novamente os dois se entreolharam e Daniel,
nesse momento, arqueou as sobrancelhas diante do
sorriso do asiático. Os olhos do senhor de meia
idade brilharam seus verdes repentinamente. O anjo
guerreiro quase caiu ao tropeçar no próprio pé. A
partir desse momento, não conseguiu mais tirar os
olhos do homem que o encarava de vez em quando.
No rosto, tinha um sorriso passivo enquanto andava.
Os dois caminhavam com Ninurta, atrás,
indicando a direção. Chegaram a uma arena
quadrada com arquibancadas. Nos quatro lados,
tinham portões grandes, fechados com grades
robustas, escuras. Daniel e o asiático iam à frente,
Ninurta atrás e a multidão de guerreiros na
retaguarda.

226
De uma hora para outra, o rei apareceu em um
altar encimado por um obelisco com cerca de oito
metros de altura. No topo do monumento, tinham
largas janelas que pegavam quase toda a parede. As
aberturas só se dividiam por quatro colunas que se
erguiam nos cantos, para levantarem seu telhado de
ouro. Eannatum adentrou-se em uma porta lateral do
obelisco e desapareceu na penumbra do recinto.
Chegando ao centro do campo de luta, Ninurta
ordenou que todos parassem. Do muro de guerreiros,
escalou dez soldados. Posicionou cinco ao lado de
Daniel, cinco ao lado do asiático e pediu para que os
escoltassem até as celas, até chegar o momento da
luta. Sem hesitar, os soldados o fizeram e com um
pouco de brutalidade viraram Daniel para que
seguisse em frente. O celeste não gostou e em seus
primeiros passos, subitamente, soltou uma leve
cotovelada no soldado que o escoltava ao seu lado
direito e continuou andando. O soldado caiu se
esgoelando para tentar puxar o ar. Ninurta não
acreditou no que viu e ordenou que mais cinco
soldados levassem Daniel, assim totalizando nove de
pé. Daniel permitiu que o levassem e seguiu para
dentro da cela. O asiático também se adentrou no
outro lado da arena.
227
***

Daniel se deparou com um salão escroto. O chão


era forrado de excrementos humanos, tais como
fezes, urina e sangue. Enojado, preferiu recostar-se
no canto da cela. Pensou em arrebentar o concreto e
fugir dali, mas isso infringiria uma das regras. Então
se manteve paciente – uma das coisas mais difíceis
para ele.
– Ei! – de súbito uma voz.
Daniel olhou a parte externa e viu um garotinho
com cerca de dez anos chamando-o.
– Ei, guerreiro! – o menino chamou novamente.
Daniel se pôs em postura e fitou os olhos negros
do menino. Seu corpo era magro. A pele tinha um
tom dourado queimado de sol, com algumas
manchas escuras de sujeira. Os olhos eram
amendoados. O cabelo castanho escuro despontava
seus fios caindo acima das sobrancelhas. No corpo,
tinha um vestido branco, mas estava sujo e era
velho. Os pés estavam descalços.
– O que foi, garoto? – indagou o anjo, sem
paciência.

228
– Você vai lutar com aquele homem baixinho,
né? – A voz soava inocente.
– Creio que sim! – disse o celeste fitando o chão,
pensativo.
– Você é forte, né? – indagou o menino.
– Por que você quer saber? – perguntou Daniel,
um tanto desinteressado.
O menino deu uma longa respiração olhando
para baixo.
– Eu só queria saber quando chegaria alguém
muito forte para nos salvar.
– Do que você está falando?
Agora o menino tinha a atenção total do anjo.
Mas um barulho se sucedeu. O garoto tremeu. Olhou
para os dois lados e disse:
– Tem gente por aqui. Tenho que ir! – E
desapareceu da mesma forma que apareceu.

***

O asiático se encontrava na mesma situação.


Estava virado de costas para a parte externa da
prisão e tinha as mãos cruzadas atrás do corpo. O
sorriso ainda se mantinha em seu rosto.

229
***

Daniel podia ouvir o barulho da multidão


chegando. O teto da cela tremia diante das pisadas
humanas enquanto se assentavam. A ansiedade
podia ser sentida no timbre de suas vozes.

– Dois guerreiros se enfrentando?...

– Quem são eles?...

– Me disseram que um deles tem olhos de fogo.

– Olhos de fogo? Sai chama?

– Falaram que sim!

O celeste podia ouvir as conversas alheias


aumentando suas vibrações, na medida em que a
arena lotava.
Cerca de uma hora se passou. O barulho das
vozes e louvores era agigantado. Gritos ecoavam por
todo o estádio fazendo suas paredes e vigas
vibrarem. De repente, tudo se aquietou e foi possível
apenas ouvir alguns murmúrios.
230
***

–Meu povo! – a voz de Eannatum começou a


ecoar pela arena. – Obrigado por estarem aqui
para presenciarem essa luta incrível. Dois
guerreiros alheios a nossa cidadela. – O rei bateu o
cetro no chão. – Dois guerreiros com força
estupenda.
O povo clamou por batalha.
–Hoje teremos uma verdadeira demonstração
de força. – Eannatum bateu a segunda vez o cajado
contra o chão. – Que o melhor vença! – Colidiu
pela terceira vez o objeto contra o solo e o levantou,
reverenciando aos céus, abrindo o outro braço como
uma asa.

***

Um som metálico estalou. Após, outro barulho,


agora de correntes rangendo. As portas começaram a
abrir sendo erguidas do chão. Quando dois metros já
abertas, Daniel atravessou para a parte externa. O
povo foi à loucura com seus berros estridentes.
Mulheres gritavam em frases apaixonantes, jogando
231
flores ao celeste. O asiático ainda não tinha saído de
sua cela escura. O que dava para ver na parte interna
da prisão era apenas a sombra negra do telhado,
sendo transpassada pela sombra em movimento da
grade se erguendo.
De súbito, as sapatilhas surgiram em passos
vagarosos. Na medida em que se aproximava, seu
corpo despontava das sombras. Ao completo
alvorecer, ainda tinha o mesmo sorriso no rosto e os
olhos brilhavam como duas pedras preciosas.
Daniel seguia de encontro ao homem grisalho,
chegando primeiro ao centro demarcado da arena.
De maneira nenhuma poderia materializar suas asas,
ou quebraria uma das regras. Pensou que poderia
apenas passar por aquela luta e em outro momento
escapar. Aguardou enquanto o homem atravessava a
linha delimitada. Seus olhos radiantes encaravam
Daniel, que não se sentia intimidado.
O asiático meneou a cabeça para o celeste com
os braços colados no corpo e em seguida, flexionou
a perna traseira, deixando a dianteira esticada. As
mãos estavam quase niveladas na altura de seu
abdômen, retas, semelhando-se a facas. Aos olhos
dos espectadores, pareciam rígidas como madeira.
Seus olhos emitiram um brilho sagaz e a cor se
232
revigorou. Daniel semicerrou os olhos, mordeu o
maxilar e fechou os punhos, mostrando as veias que
desfilavam pelo seu antebraço como rios
entrelaçados. O peito desnudo estava inchado e as
botas pareciam duas bigornas presas ao chão.
Àquela altura, o anjo já sabia que o asiático não era
um mero humano.
A plateia foi ao delírio. Eannatum se levantou
gargalhando e se aproximou do parapeito da abertura
que tinha na parte de cima do obelisco, fazendo
negativas com a cabeça. Levou o braço à parte
externa expondo o cetro com a cabeça de falcão. O
estádio se calou.
– O melhor é agora! – gritou, em seguida,
soltando uma gargalhada horrorosa.
Repentinamente, os olhos vermelhos do pássaro
dourado resplandeceram seu escarlate. Nesse
momento, a arena, onde estavam os lutadores,
começou a trepidar. Parecia distinta da
arquibancada, que se mantinha intacta, uma obra
engonha. O povo berrava em alvoroço.
Inesperadamente, grades de aço escuro, robustas,
ergueram-se das laterais da arena e rapidamente se
encontraram cerca de trinta metros acima, fechando-
os em uma redoma. O celeste não se assustou, pois
233
em qualquer situação lidaria com aquilo com
facilidade. O asiático também parecia tranquilo.
Ninurta entrou por uma abertura na lateral da
jaula e se aproximou dos lutadores. Com o olhar
assombroso, o gigante olhava os homens com
reprovação e não falou nada por cerca de um
minuto.
– A luta será decidida com a morte de um de
vocês – disse Ninurta, com sua voz grave. – As
regras. Bom! Não há regras.
Os combatentes se entreolharam. Ninurta
acrescentou:
– O início do combate será estabelecido ao
trancar daquela fechadura. – O gigante apontou para
a porta que utilizou para entrar na jaula. – Boa luta a
vocês! – O general, sagaz, sorriu, virou-se e saiu
pela abertura, trancando o trinco.
O duelo estava travado.

234
CAPÍTULO 18

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Daniel deslizava por uma rua de barro seco
avermelhado. De certa forma mostrava um pouco de
fadiga. Estava em treino e quando o fazia, gostava
de agir com toda sua pujança. Vestia apenas uma
larga calça de tecido leve branco. Nos pés, ia um par
de sandálias. O peito forte estava descoberto. Uma
camisa branca escorria pelo ombro. O olhar vago,
demonstrando alienação. Tinha se tornado quase um
hábito, enquanto voltava de seus treinos, sozinho,
pensar no irmão de espírito, que havia perdido todos
os contatos, há mais de quatro mil anos. Seus
pensamentos foram interrompidos, quando
subitamente dois anjos aterrissaram ao seu lado
como meteoros.
– Olá, meu amigo! – Haziel estava na frente de
Daniel encarando-o com sorriso grandioso.
O guerreiro, com olhos de fogo, nesse momento
sentiu uma onda elétrica percorrer sua espinha. Os

235
pelos das costas arrepiaram e o estômago se
comprimiu.
– Não acredito! – Seus pensamentos sombrios
foram deixados de lado e então ele correu e abraçou
Haziel. De olhos fechados disse:
– Eu achei que você estava m...
Haziel o interrompeu.
– Não, Daniel! – O louro lampejou os olhos,
sorridente. – Eu escapei – Franziu as sobrancelhas
nesse momento.
Hariel assistia ao reencontro com seus olhos
azuis pulsantes. Lágrimas inundaram seu globo
ocular quando notou a enxurrada cristalina descendo
pelo rosto de Daniel.
Haziel e Daniel se distanciaram cerca de
cinquenta centímetros.
– Escapou de onde, Haziel? – Daniel semicerrou
os olhos, esperando pela resposta que julgava já
saber.
Haziel abaixou a cabeça fitando o solo,
enraivecendo a feição.

“Cem anos de tortura. Dor profunda. Até meu


espírito chegara a ser afetado diante de tanta
hostilidade. Mas agora... Agora eu tenho que deixar
236
isso para trás! Tenho que lutar contra aqueles que
deterioraram o planeta e que também fizeram isso
comigo.”

– Haziel? – Daniel cutucou seu ombro, rindo.


O celeste louro balançou a cabeça, arqueou as
sobrancelhas e sorriu.
– Oi? – indagou Haziel. – Desculpe! – um
sorriso sem graça - Do inferno! – disse
pausadamente.
Daniel entrou em devaneios e se lembrou das
cenas daquele dia sombrio passando rapidamente
por sua mente. A imagem nítida de Haziel pedindo
que ele tirasse Barrattiel daquele lugar passou por
trás de sua retina. Em seguida, surgiu a imagem de
Haziel estourando a áurea. E depois pulou para a
parte em que as criaturas cercavam o anjo e ele
desaparecia na multidão de corpos infernais.
Agora foi Hariel que estalou os dedos na frente
de Daniel, que olhou assustado.
– O que está acontecendo com vocês, hein? –
Hariel falava com as mãos na cintura.
Os dois homens anjos riram e se abraçaram. O
braço de Haziel ia por cima do ombro de Daniel.

237
Inesperadamente, uma figura brotou no céu,
descendo um tanto desordenada. Suas asas
repentinamente se entrelaçaram e seu corpo
despencou. Se não fosse a destreza de Daniel, que
pulou e o agarrou no ar, o anjo teria se espatifado no
chão. As asas estavam quebradas e hematomas
rodeavam-se por seu corpo. Os cabelos castanhos
estavam molhados e a pele clara mais rosada do que
o normal.
– Malahel! O que foi isso? – indagou Hariel,
enquanto corria até o celeste.
Daniel o colocou no chão, segurando sua cabeça
com cuidado. Todos se abaixaram em volta de seu
corpo. Sua respiração estava ofegante. Um esguicho
de sangue voou pela boca quando ele tossiu.
– Coloquem-no de lado! – disse Hariel.
Os dois homens anjo viraram o corpo do celeste.
Haziel indagou:
– Quem fez isso com você? – O anjo louro tinha
seus olhos esbugalhados.
– Os infernais! Uma tropa gigantesca está
chegando do Norte. Fui pego desprevenido. –
Malahel esgoelou com algumas tosses.
Haziel e Daniel se entreolharam espantados e se
levantaram. Hariel ficou abaixada amparando o anjo.
238
– Hariel? – chamou Haziel, explodindo suas
asas.
A loura o olhou com o canto do olho, fitando sua
postura monumental.
– Pode ir, irmão. Eu resolvo isso aqui! – Hariel
olhou para Daniel e disse: – Vá com ele!
O anjo, com olhos de fogo, meneou a cabeça e
explodiu as asas, olhando para Haziel.
– Vamos rápido! – Haziel olhou rapidamente
para sua irmã e depois para cima.
Subitamente os celestes alçaram voo,
explodindo o ar em todas as direções diante da
investida em suas asas.
– Para quem eu posso te levar de sua casta? –
Hariel tinha o olhar preocupado e a voz esganiçada.
– Caliel! Me leve para Caliel. – O anjo deixou a
cabeça cair de lado, fechou os olhos e apagou.
Hariel se levantou, explodiu as asas e o colocou
em seu ombro. Em seguida alçou voo.

239
CAPÍTULO 19

Antiga Mesopotâmia 2758 a.C


Repentinamente, o asiático puxou as calças e
começou a correr em volta de Daniel, levantando
poeira. O celeste o acompanhava só na base do
olhar, sem mexer o corpo ou a cabeça. O homem se
movimentou na direção dele aumentando sua
velocidade. Daniel reparou quando o asiático
repuxou o tronco, então deduziu que ele investiria
com um chute. Foi exatamente o que aconteceu. O
homem utilizou o peso do tronco para pular em um
movimento espetacular, arremetendo um belo chute
em Daniel. O celeste sorriu diante da ousadia
humana e deixou que o golpe o acertasse. Mas não
contava com a tamanha pujança introduzida na
investida. Diferente do que imaginava, foi
arremessado como uma bala batendo suas costas na
grade.
O anjo bateu no aço e caiu para frente, abaixado,
fitando o solo. Uma das mãos estava com o punho
fechado, forçando o chão. Daniel levantou a cabeça
e seus olhos brilharam como fogo. De súbito,
240
levantou-se e correu em disparada contra o asiático,
que se mantinha com o mesmo sorriso. Os olhos de
Daniel cintilaram seu caramelo no momento em que
ele preparou um soco voraz. O homem não se
moveu do lugar. Quando o soco chegou, cruzou os
antebraços e deixou que o murro transpassasse a
linha do braço, para assim o travar. Daniel arregalou
os olhos diante da ousadia do homem.
Os dois lutadores se fitavam com os rostos
próximos. Daniel tentou puxar seu braço preso, mas
a trava estava muito bem fechada. Nesse momento,
o asiático levantou um pouco sua cabeça ainda
fitando os olhos de fogo do anjo. Sua íris se acendeu
em um brilho intenso e logo se apagou. Nesse
momento, o estômago de Daniel embrulhou. As
cores verdes dos olhos do homem entraram nas
estradas de sua memória, percorreram centenas de
milhares de anos. Foi aí que imediatamente ele
reconheceu aquele olhar.
– Mazarak? – indagou Daniel em um murmúrio,
inclinando a cabeça um pouco para frente, com os
olhos arregalados.
O sorriso do senhor de meia idade se alongou e
ele impulsionou seu corpo para frente, arremessando
Daniel cerca de cinco metros de distância. O celeste
241
caiu no chão e se arrastou mais dois metros para trás.
Ficou ali, olhando, enquanto o homem se
aproximava com passos remansados. Olhava em
seus olhos de fogo, profundamente. Tão fundo que o
asiático pôde imaginar o que se passava na mente do
anjo naquele momento. Esticando o braço, ofereceu
ajuda para que Daniel se levantasse, dizendo:
– Olá, irmão! – Soltou uma piscadela.
Daniel engoliu a seco e esticou o braço com os
olhos esbugalhados. O asiático o puxou contra seu
peito. O corpo do anjo se aproximou, enquanto seus
olhos cor de fogo não piscavam. Os dois corpos se
encontraram e Mazarak abraçou o irmão.
Nitidamente chocado, Daniel levantou aos poucos o
braço e o envolveu pela cintura do asiático.
Na arquibancada, o povo estava mudo. Podiam
escutar apenas alguns sussurros.
– Oi, meu irmão! – Mazarak sussurrou no
ouvido de Daniel.
Os olhos dos homens encheram-se de lágrimas e
resplandeceram pulsantes.
Daniel se distanciou, segurando os ombros do
irmão.
– Como? – O celeste não conseguiu terminar a
frase.
242
***

– Basta! – gritou Eannatum, colocando metade


do corpo para fora da abertura no monumento.
Mazarak esboçou um sorriso grandioso ainda
olhando os olhos de Daniel, franziu as sobrancelhas
e se virou para o obelisco onde se encontrava
Eannatum.
– Nós não lutaremos mais! – Mazarak gritou,
imponente, encarando o rei.
– Como ousa? – Eannatum bateu novamente o
cajado no chão. – Insolente!
O estádio estava mudo.
Vermelho de raiva e babando, aos berros, o rei
chamou Ninurta e pediu que interviesse. O gigante
meneou a cabeça a Eannatum e olhou na direção de
dois homens eretos ao lado de quatro alavancas.
Ninurta balançou a cabeça em positivo.
Imediatamente os homens puxaram duas delas.
Súbito, os portões laterais começaram a se abrir e os
anjos se prostraram um de costas para outro no meio
da arena, cada um na direção de uma abertura.
Duas criaturas gigantes, quadrúpedes, saíram
correndo dos portões na direção dos celestes. Suas
243
garras rasgavam o chão. Das grandes presas escorria
saliva. Parecia uma mistura de lobo com tigre, mas
com músculos mais inchados, quatro metros de
altura e sete de comprimento. Um era marrom com
rajadas negras e o outro era completamente preto.
Os irmãos sorriram com o canto da boca. O
pensamento, naquele momento, foi de expectativa de
um guerreiro ao aguardar da batalha. As feras
atacaram juntas quando penetraram em um raio de
proximidade dos celestes. Uma de cada lado
contraiu as patas traseiras ao mesmo tempo e
pularam com as garras e bocas abertas na direção
dos celestes.
Dando um pequeno pulo, fechando o punho e
subindo com um soco gancho, Daniel acertou a
mandíbula da criatura nocauteando-a
instantaneamente. Mazarak preferiu abusar um
pouco. Deixando que o monstro o alcançasse e
utilizando de sua velocidade, o anjo deu um passo
para o lado e deixou que a criatura passasse
rasgando o ar. A fera patinou na terra dura da arena
arrancando grandes lascas, enquanto já tentava se
virar para acabar com a sua presa. Com facilidade,
Mazarak agarrou o rabo do monstro, rodou-o três
vezes no ar e o arremessou contra a grade da
244
redoma. Seu corpo bateu, amassando o aço,
despencando desacordado.
A multidão do estádio clamou por batalha. O rei
tinha os olhos esbugalhados, enquanto uma gota de
suor descia por sua têmpora. Ele olhou para Ninurta,
que retribuiu o olhar e em seguida se virou na
direção da porta de aço. Destrancou a fechadura e se
adentrou na arena de combate. O homem de quase
três metros de altura pisava com os seus pés gigantes
levantando poeira. Atrás dele entravam soldados aos
montes, segurando suas armas e correndo para
formar fileiras na frente dos celestes. Ao final, a
multidão de guerreiros vista pela arquibancada,
formava o desenho de um arco, com Ninurta em
suas frentes, parado.
– O que vocês estão pensando? – Ninurta
apontava o dedo indicador para os dois – Lutem...
Agora!
Os anjos cruzaram os braços projetando um
sorriso sarcástico. Ninurta semicerrou os olhos e
franziu as sobrancelhas. A pele do rosto estava
vermelha de ódio. O gigante cerrou os punhos e
soltou um berro de raiva. Levantando o dedo
indicador para cima, ordenou aos guerreiros do rei.
– Ataquem-nos! Agora!
245
O arco de homens se desfez e de repente
começaram a correr em volta dos anjos. Em alguns
segundos, o círculo estava fechado e os celestes não
podendo explodir as asas, teriam que lutar.
– Vamos nos divertir, irmão! – disse Mazarak,
montando guarda.
– Certo! – Daniel preparou a guarda, mas sem
muita demonstração de força.
Reparando no corpo franzino de Mazarak, só
que com mais atenção, Daniel indagou:
– E esse corpo? – O anjo fitava o corpo do
asiático de cima a baixo.
– É uma longa história, Daniel. Contarei pra
você após sairmos daqui. – O tom era sério.

***

– Ataquem agora! – um grito estridente de


Ninurta.
Enquanto o gigante general se virava para sair
da arena, o batalhão se movimentou e os soldados
investiram contra os anjos em passos rápidos e
largos. As espadas estavam em mãos. Os clamores
de batalha eram vibrantes.

246
– É agora, irmão! – Mazarak esfregou uma
palma contra a outra.
Daniel achou graça e balançou a cabeça em
negativas, rindo.
– Você não mudou nada! – afirmou Daniel.
Daniel viu quando Mazarak correu na direção
oposta a ele. Sua velocidade era grande, não total,
mas grande. Ia bater seu corpo contra a multidão de
guerreiros. Mas não foi o que aconteceu. Na
proximidade máxima dos soldados, o anjo rolou seu
corpo no chão fazendo com que os guerreiros
tropicassem. Os que não tropeçaram em seu corpo,
tropeçaram nos próprios guerreiros já tombados.
O restante dos guerreiros perdeu a concentração.
Foi aí que Daniel investiu em sua força sobre-
humana e pulou por cima dos guerreiros. O anjo caiu
na frente deles abrindo uma cratera no chão com um
soco voraz. Dezenas de homens foram arremessados
em todas as direções.
Mazarak se levantou do rolamento e investiu em
murros, nocauteando mais de cinco adversários por
segundo.

***

247
Eannatum borbulhava de raiva e batia
repetidamente o cetro contra o chão.
Ninurta assistia a peleja concentrado, coçando o
cavanhaque. Nunca tinha visto tamanha pujança
dentre homens normais. Estudava seus movimentos
de luta com um olho semicerrado e o outro tinha a
sobrancelha quase arqueada. Com um olho, fitou o
rei e reparou em sua feição explosiva de raiva.
Eannatum esticou o cetro para ele e apontou na
direção dos guerreiros. Ninurta meneou a cabeça.

***

Daniel se levantou com os punhos inclinados,


fechados e olhos cerrados. Sobraram em pé cerca de
vinte soldados. Esses hesitaram em contra-atacar o
celeste. Os que combatiam Mazarak também
cessaram seu ataque.
Por um momento a batalha cessou. A arena se
calou. O rei não conseguia emitir som algum e as
veias saltavam em sua testa. Subitamente, a pequena
porta da redoma se abriu e Ninurta se adentrou na
jaula em passos fortes. Os guerreiros do rei se
afastavam para ele passar. Quando se aproximou de

248
Daniel e Mazarak, prostrou-se no meio dos dois e
apontando para Daniel, disse:
– Vou esmagar você! – Depois apontou para
Mazarak. – E você! Como insetos! – Deu um soco
no próprio punho. – Darei-lhes o prazer de ter seus
nomes escritos em meu pergaminho. – uma breve
pausa – Inseto um e inseto dois. Ótimo!
Ninurta cerrou os punhos, flexionou o braço,
depois as pernas. Bateu o pé direito no chão
trepidando de leve aquela parte da arena. Os celestes
se entreolharam. Eannatum sorriu tenebrosamente. A
plateia foi a delírio.
O general saiu em disparada como um touro
para cima de Daniel, que ficou parado apenas
aguardando a colisão dos corpos. Mazarak cruzou os
braços e levou a mão à barba afagando seus pelos
brancos. A plateia silenciou-se nesse momento. O
ombro do gigante encontrou o peito do anjo. O
resultado do ataque não aconteceu como previsto
pelo anjo moreno. A força inserida na investida, para
um ser humano, foi completamente fora das
proporções naturais. O anjo fora arremessado a cerca
de trinta metros de distância. Mas antes de cair no
chão, equilibrou-se, virando o corpo no ar, caindo
com os dois pés e uma mão no chão, arrastando seus
249
membros na terra, cerca de cinco metros, antes de
conseguir frear. No mesmo momento, levantou a
cabeça encarando Ninurta, contraindo os lábios, de
raiva.
O alvoroço na plateia, nessa hora, intensificou-
se.
Repentinamente, Daniel se levantou disparando
contra Ninurta. Mazarak, nesse momento, riu
internamente. Ao se aproximar do grande homem, os
olhos de Daniel brilharam e ele investiu um soco
direto no peito do General, que cruzou os braços
como um escudo, recebendo a pancada. Diante da
força do celeste, nada pôde ser feito e seu corpo foi
arremessado contra o aço que formava a redoma.
Bateu fortemente de costas no metal e caiu no chão.
Logo no início da batalha, já deu para perceber
que aquele ambiente era pequeno para uma luta
daquele tamanho.
Era claro que um humano normal pereceria com
tal investida, mas não Ninurta. Estirado no solo, seu
corpo tremeu. Ele flexionou os braços, inclinando-os
em seguida, no mesmo momento em que flexionava
também os joelhos. Levantou-se, apenas um tanto
atordoado. Tinha os punhos cerrados e o corpo
tremia de adrenalina.
250
Eannatum, que não acreditava no que via, nesse
momento comemorou. A plateia não acreditou.
Todos estavam sentados e a maior parte tinha a boca
aberta. Um homem moreno, de cabelos
encaracolados, levantou-se e começou a gritar,
dando socos no alto.
– Ninurta... Ninurta... Ninurta!
Uma mulher se levantou e repetiu a ação. Depois
mais um homem. Logo, metade do estádio já
clamava por seu general. Os celestes olharam em
volta reprovando o comportamento alheio.
O general soltou um berro de partida,
enraivecido e percorreu metade da arena na direção
de Daniel. Dava-se para ver os músculos de seus
gigantes braços inchados. Veias saltavam na testa e
o rosto estava em fúria como um vulcão em erupção.
Mordia os dentes quase ao ponto de estourá-los.
Dessa vez a reação do celeste foi diferente.
Quando Ninurta investiu um poderoso soco que
acertaria seu rosto, repentinamente saiu de lado,
segurou o braço do general, rodou-o no alto e o
atirou na mesma direção de onde veio. O corpo do
gigante bateu no chão e quicou a cerca de vinte
metros de distância. O estádio inteiro se calou e suas

251
esperanças de vitória do general começavam a
desvanecer.
Novamente Ninurta se levantou e se posicionou
para um novo ataque. Daniel balançou a cabeça em
negativas e disse:
– Pare com isso! Eu não quero lhe ferir.
– Escute o que ele está falando! – Mazarak
berrou, depois gargalhou, cruzando os braços.
– Você... não... vai... me... ferir! – disse Ninurta
pausadamente. – Eu vou lhe ferir! – Disparou
novamente na direção do celeste.
– Que seja então! – exclamou Daniel, fechando
as pernas e cerrando os punhos na frente do corpo.
O povo inteiro estava boquiaberto, calado.
Dessa vez o celeste não foi cauteloso em sua
pujança e quando o gigante se aproximou, com
velocidade descomunal, arremeteu um soco voraz
contra seu abdômen. O general arregalou os olhos,
suas pupilas se contraíram e ele cuspiu sangue. Seu
corpo foi arremessado novamente contra o aço da
redoma, só que bateu com o dobro da força anterior.
Assim Ninurta caiu desacordado.
Daniel olhou o corpo do homem de longe e
depois se virou para o rei fazendo um gesto com os
braços.
252
– E agora, como vai ser? – Daniel queria
arrebentar tudo e sair logo dali, mas precisava seguir
regras e já tinha demonstrado muita coisa.
Eannatum mostrou os dentes com um sorriso
maligno.
– Vai ser assim... – disse o rei sorridente,
colocando seu cetro para fora da abertura do
obelisco. – Soltarei-os, após passarem por Ninurta.
O celeste uniu as sobrancelhas e depois as
ergueu. Soltando uma leve risada, disse:
– Então já estamos indo. – Sorriu para
Eannatum. – Obrigado pela sua hospedagem e
conforto!
Daniel ia se virando quando os olhos do falcão
do cetro do rei brilharam como duas estrelas rubras.
Ele parou e voltou sua atenção para a peça de ouro.
Nesse momento, o estádio soltou um ruído de
espanto. Daniel se virou novamente para o outro
lado, encontrando o general em seu campo de visão.
Estava acordado e dessa vez se levantava com mais
imponência. Quase não parecia ter sofrido as duas
pancadas brutais. Ficou em pé, fitando Daniel com
olhar sério. Cerrou os punhos e olhou para o rei
esboçando um sorriso malicioso.

253
De súbito, os músculos do gigante começaram a
inchar – uma façanha que parecia impossível. Sua
pele foi se avermelhando e suas veias saltaram tão
gordas, que se assemelhavam a canos. O corpo do
homem, que já era enorme, começou a esticar
juntamente com seus músculos, proporcionalmente.
No momento em que crescia, sua tonalidade voltava
à cor normal. Por fim, parou de crescer quando
alcançou o vigésimo metro.
Dando dois passos à frente, fazendo o chão
tremer, o gigantesco Ninurta apontou para os
celestes, perplexos, que assistiam ao inimaginável.
Então disse:
– Eu falei que esmagaria vocês como insetos!

254
CAPÍTULO 20

Lago Vermelho, Inferno – tempos atuais


Sentado em seu fornido trono de aparência
horrenda, Belial batia repetidas vezes suas unhas
contra o braço do assento feito com inúmeros tipos
de ossos entrelaçados. O trono era forrado com
bocas humanas. Os dentes podres delas batiam
repetidamente, sem intervalos. A camada exterior do
assento fora forjada com pele humana, que agora
parecia um couro escurecido, manchado. Nas
encostas, erguiam-se duas colunas laterais,
encimadas por dois crânios humanos. Quatro braços
humanos, musculosos, formavam as pernas do trono.
O oitavo duque do inferno tinha os cabelos louros,
compridos e lisos. Dois chifres relativamente
grandes e finos se erguiam nas laterais da testa. Uma
negridão absoluta cobria completamente suas íris,
unindo-se com as pupilas. As escleras, em vez de
brancas, eram rubras. Era tenebroso. A pele era
cinza como de um defunto e vestia-se com uma
elegante armadura de couro. Suas vestes lhe cobriam
255
quase completamente o corpo e eram ornadas com
pequenas e médias esferas de prata. Os pés tinham
garras enormes. As mãos eram cobertas pela cor
vermelha e unhas negras, compridas, erguiam-se dos
dedos. Tinha asas vermelhas com penas rajadas de
sangue.
Belial foi um dos anjos caídos ao lado de todo o
restante. Sendo um príncipe da união apocalíptica,
após a morte de muitos príncipes do inferno, acabou
por ocupar a oitava posição na hierarquia infernal.
O demônio levantou-se e andou por cima de seu
tapete vermelho, até chegar a uma porta triangular
que dava em um largo corredor. Colunas laterais no
estilo grego estavam erguidas, presas à parede.
Totalizavam cinco de cada lado, com cerca de cem
metros de distância entre elas. Isso até onde dava
para se ver, antes do salão ser tomado pela
penumbra ao seu fundo. Provido de pouca luz, os
tons pobres da sala predominavam o ambiente. As
colunas que eram para ser brancas eram quase
amarronzadas. Formas humanoides com bocas
gritantes em agonia e olhos embaralhados forravam
a casca dos pilares. Finas estrias em abundância,
formadas de lava, cintilantes em fogo, criavam
mapas brilhantes entre as cabeças gritantes. A única
256
iluminação do ambiente vinha dessas estrias
luminosas.
O demônio deslizava pelo alto e largo corredor
que escurecia cada vez mais ao seu percorrer. As
criaturas iam ficando mais caladas. O fogo ia
perdendo força até se apagar completamente. Ao
final, tudo estava calmo, mudo, os humanoides
estavam imóveis. Na penumbra, tinham a cor
azulada.
Ao percorrer mais de quinhentos metros, Belial
chegou a um local onde uma pequena porta de finas
colunas de aço apresentou-se. Ele prostrou-se na
frente da abertura. Imediatamente as colunas de aço
escuro amoleceram e ganharam vida própria.
Moviam-se como serpentes. Aproveitando disso,
abriram-se ao meio deixando uma passagem oval
para o duque. O demônio passou pela abertura,
chegando a um corredor muito menor, apertado.
Esse era construído com tijolos vermelhos de barro.
Deslizando pelos próximos vinte metros, chegou a
um cômodo quadrado – uma cela escura, sem
janelas. Não tinha cama ou qualquer objeto, a não
ser uma pequena sombra no canto da sala.
O demônio flexionou o braço e estendeu a palma
para cima. Sua mão, repentinamente, acendeu como
257
uma pedra superaquecida. Ondas flamejantes de
calor cintilavam por seu membro. Isso fez com que o
local ganhasse meia-luz. A silhueta no canto da sala
ganhou contornos. Então foi possível enxergar o que
se dispunha naquele local. Parecia ser uma mulher
sentada de cabeça baixa, abraçando os joelhos. Seu
corpo tremeu quando o demônio deu mais um passo
à frente.
– Ei, lindeza! – disse o duque com sua voz
aguda e rouca, abrindo um sorriso. – Levante-se!
A mulher hesitou e se aninhou ainda mais no
canto da cela. A cara do demônio se fechou em
raiva. Aproximou-se da mulher, segurou seu braço
com suas grandes unhas e a levantou com
hostilidade, dizendo:
– Eu disse para você se levantar! – Um breve
sorrisinho.
A moça obrigatoriamente foi posta em pé.
Estava de cabeça baixa, com as mãos entrelaçadas
entre as pernas. Seu vestido batido antes de cor
branca, agora tinha alguns rasgos. Sua pele clara
exibia alguns hematomas. O corpo era esbelto,
dando-lhe o aspecto de uma mulher no final de sua
terceira década de vida.
– Olhe para mim! – disse o demônio.
258
A moça continuou de cabeça baixa em sua
frente.
– Olhe para mim! – falou o duque mordendo os
dentes, levantando e pressionando abaixo do queixo
da moça com sua unha do dedo indicador.
Mais uma vez, sendo obrigada a fazer o que não
queria, a mulher abriu os olhos levemente puxados,
castanhos escuros, que brilhavam em função das
lágrimas que se formavam.
– Como prevíamos, seu marido é corajoso, mas
burro! – O demônio sorriu, mostrando os dentes
novamente. – Eu passei aqui apenas para te dar uma
boa notícia.
Sun quase sorriu com os olhos, mas em um
piscar de olhos o sentimento se esvaiu.
– Você! – Com a outra unha, o duque cutucou o
nariz da mulher, dando uma pausa e rindo perto de
sua face. – Você vai nos ajudar a capturá-lo!
– Não saia daqui! – O demônio saiu gargalhando
e acenando com a mão. – Eu já volto.

***

Logo Belial retornou com outro demônio.

259
A humana, que tinha se recostado no canto
novamente, reparou em Belial entrando na cela com
sua mão reluzente. Em sua retaguarda, outra criatura
horrorosa se aproximava. Tinha uma casca negra e
escamosa no lugar da pele. Os olhos eram como de
répteis com a pupila rasgando o raio inteiro da íris.
Tinha aparência humanoide e corpo forte. Nos dedos
dos pés e das mãos tinha fortes garras de cor clara. A
boca era grande, com dentes triangulares amarelos.
A cabeça era lisa com escamas escuras. A postura
era horrorosa. Talvez um pouco corcunda, mas
imponente e tenebrosa.
Ao ver o demônio reptiliano se aproximar de seu
corpo, Sun tremelicou por completo ofegando sua
respiração. Seu coração pareceu querer estourar o
peito. Nesse momento, não se conteve e soltou um
grito de espanto. Subitamente o novo demônio a
agarrou pelo braço. De forma brutal, arrastou seu
corpo pelo chão.
O demônio a levantou com extrema facilidade e
prendeu seus braços em uma corda que Belial
entregou a ele. Pegou a outra ponta da corda e jogou
por cima de um cano robusto, escuro, que
transpassava a sala. Puxou o cabo, erguendo o corpo
da mulher que ficara sem o toque do solo nos pés.
260
Nos tornozelos, prendeu correntes prateadas que
desciam até o chão. Com um pequeno gancho, o
demônio ligou a corrente a um recipiente preto
parecido com uma caixa, que estava chumbada no
solo. Distanciando-se e abrindo espaço para Belial
passar, o demônio disse com sua voz aterrorizante:
– Ela é toda sua! – uma pequena pausa – Por
enquanto! – então gargalhou.
– Obrigado, Leviatã! – Belial passou pelo
demônio e se aproximou da mulher erguida no alto.
Apesar de ser um duque do inferno, Belial era
contido de certa educação e postura.
Com sua unha, o oitavo duque do inferno fez um
grande corte que ia de ponta a ponta na sola do pé
direito da mulher. Ela deu um berro estridente que
ecoou dentre os recintos. O sangue jorrou enchendo
alguns milímetros do jarro instantaneamente. Então
sua unha brilhou e ele fechou a cicatriz derretendo a
carne da moça. Sun berrou novamente e mordeu os
dentes, fechando os olhos. O demônio não fechou o
corte todo, deixando uma pequena fissura aberta,
gotejante de sangue. Depois olhou para Leviatã e se
afastou de costas.

261
O demônio reptiliano se aproximou, afagou as
próprias mãos, lambeu os lábios, esticou o punho e
disse:
– Pode fazer! – Esticou o braço em cima do
recipiente.
Belial também fez uma “pequena” fissura no
antebraço do demônio, deixando cair apenas
algumas gotas de um sangue quase negro,
misturando-se com o sangue da humana. As gotas
pingavam como minúsculos pedaços de ônix,
resplandecendo diante da luminosidade vinda da
mão do oitavo.
Enquanto o sangue gotejava, Belial conjurava
algumas palavras em murmúrios. Tinha as mãos
entrelaçadas na frente do rosto, sendo que os dois
indicadores estavam apontados para cima. Os olhos
estavam fechados e sua concentração o deixava
alheio àquele lugar. O oitavo então parou a
conjuração e girou a mão apontando os indicadores
para baixo, depois para Leviatã, abrindo os olhos em
seguida – agora completamente rubros.
Leviatã encarou Belial e sorriu com o canto da
boca. Repentinamente sentiu um impacto no
estômago, fazendo-o esboçar uma cara de espanto.
Mais um e esse lhe pareceu um chute de dentro para
262
fora. Seus olhos se arregalaram e ele colocou a mão
sobre a barriga.
– Olha, essa doeu! – Leviatã massageou seus
músculos abdominais.
Sua pele começou a esticar na região do
abdômen, fazendo-o gritar de dor.
– Pare! Pare com isso, Belial! – o demônio
berrava. – Isso tá doendo muito!
A pele continuava se alargando, formando-se
uma montanha escamosa e verde na barriga do
duque.
Belial não saía de seu transe e continuava
apontando para Leviatã.
– Pare! Pare! Pare por favor! – um berro do
demônio réptil. Dessa vez saiu esganiçado, quando
as costelas se quebraram. – Pare, Belial! Eu suplico!
Um rasgo apareceu no meio da barriga de
Leviatã e foi se abrindo até chegar às regiões de sua
clavícula e pélvis.
– Por quê? – foi o último sussurro de Leviatã.
Seu corpo, quase dividido em dois, despencou
no chão. Caiu como uma massa podre de carne. Os
órgãos se espalharam pelo recinto e o sangue escuro
formava uma grande mancha no chão, na medida em
que escorria.
263
Súbito, algo se mexeu naquele alvoroço de
restos. Uma criatura humanoide, de aparência
sensível, inclinou-se, abrindo seus olhos brancos,
com lindas íris escuras.
Belial saiu de seu transe e se aproximou do
humanoide. Nesse momento ele vislumbrou a exata
cópia de Sun.
– E aí, Leviatã? Tudo em ordem? – Belial emitiu
um sorriso negro.
– Eu não sabia que essa merda iria doer tanto. –
Leviatã bufou.
– Agora podemos acabar com isso de uma vez
por todas! – Uma breve pausa e Belial repuxou os
cantos da boca semicerrando os olhos. – “Certo,
Sun?” – Os dois demônios gargalharam longamente.
Belial acrescentou, apontando para a mestiça: – Com
esse corte no pé que não se curará, ela durará em
média um dia. Se ela morrer antes de você completar
a missão, sua forma voltará ao normal
instantaneamente. – Belial arqueou uma sobrancelha
para Leviatã, que retribuiu com atenção, penetrando
seu olhar quase sem vida. – Você não pode jamais
deixar que descubram, ou que desconfiem de você.
Caso isso aconteça, a magia também cessará.

264
– Pode deixar comigo, mago! – forma como se
referiam a Belial no inferno.
Leviatã encenou uma reverência muito mal
encenada e gargalhou saindo pela porta, afastando-se
com seu corpo nu.
Nesse momento, os olhos da verdadeira Sun se
embaçaram e de repente tudo ficou preto. Então ela
apagou, caindo com a cabeça para frente.

265
CAPÍTULO 21

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Haziel e Daniel tinham acabado de deixar Hariel
com Malahel. Estavam afastados do centro celestial
cerca de algumas dezenas de segundos, voando em
suas velocidades totais. Suas rajadas eram tão
ferozes quanto tornados. Seus corpos deslizavam no
ar como balas nas suas mais altas escalas fugazes.
Percorreram por cima de terrenos destruídos.
Cortaram rios. Passaram por árvores, fazendo-as
envergar seus troncos.
Haziel olhou para Daniel à sua esquerda e
apontou para cima. Daniel assentiu e os anjos
dispararam em diagonal de encontro às nuvens.
Quando atingiram determinada altura, onde o campo
de visão era amplo, os anjos pararam e observaram
na direção que Malahel apontara. Com os olhos
semicerrados e feição séria, os dois anjos afundavam
suas visões no horizonte ao norte. Tudo estava
deserto. O único movimento ao longe era das poucas
árvores que balançavam seus galhos sem folhas,
266
quando o vento soprava forte. Pássaros negros
voavam aos montes naquela região.
– Olhe! – Haziel apontou não exatamente para o
Norte, mas sim para o Nordeste. Daniel girou sua
cabeça, fitando o lugar sugerido e respirou fundo.
– Temos que ir. Rápido! – disse Haziel.
Os celestes então explodiram o vento à volta e
seguiram para o centro celestial. Quando chegaram,
aterrissaram em passos largos e não guardaram as
asas. Haziel e Daniel andavam com seus peitos
estufados, olhando para todos os lados. Haziel fitou
dois anjos guerreiros discutindo algo, com seus
olhos azuis que pulsavam seu brilho. Ele se
aproximou e indagou:
– Vocês viram Yesalel?
A dupla apontou na mesma direção. Haziel e
Daniel partiram correndo. Avistaram o segundo
comandante e se aproximaram ainda mais rápido.
Chegaram ofegantes. Sutilmente, Haziel sussurrou
algo em seu ouvido. Os olhos de Yesalel lampejaram
seus verdes quando ele os arregalou.
– Rápido! – O segundo comandante encarou os
dois guerreiros. – Passem a informação adiante.
Preparem-se para o combate e encontrem-me na
minha sala.
267
Os celestes menearam a cabeça e os anjos que
estavam em volta olharam surpresos. Mas logo
entenderam o recado e começaram a se mexer. Logo
o batalhão inteiro já se prontificava empunhando
suas espadas em mãos.

***

Depois de poucos minutos, Haziel e Daniel


chegaram juntos ao recinto de Yesalel. Barrattiel
estava com eles. Algumas esferas de luz verde
brincavam rodeando o tórax do segundo
comandante. De uma hora para outra, elas se
juntaram, formando uma placa de luz que cobria
completamente aquela região. O brilho se
intensificou e depois se apagou, deixando no lugar a
parte de cima de uma armadura de prata, ornada com
detalhes em verde esmeralda no seu tom mais
escuro. De seu cinto, também prateado, Yesalel tirou
sua espada. Segurando o objeto forte com as duas
mãos, olhou para os três guerreiros que estavam
parados à sua porta, assistindo ao movimento.
– Vamos fazer o nosso papel, garotos! – afirmou
para o três, que menearam a cabeça e tiraram as
armas do cinto.
268
Barrattiel puxou sua gigante espada com as duas
mãos e a trouxe à frente do corpo, dizendo:
– Vamos acabar com eles!
Haziel respondeu, mostrando sua arma, que
lampejou sua prata quase em azul, ao reflexo
ofuscado da lua.
– Onde está o Aron? – indagou Haziel.
– Está seguro! – disse Yesalel guardando a
espada na cintura. – Pedi que Hekamiah o deixasse
com Israel.
– Perfeito! – disse Haziel, meneando a cabeça.
– Ele é a nossa maior responsabilidade! –
exclamou o segundo comandante.
Haziel inclinou a cabeça para frente. Yesalel
sorriu e lhe deu um tapinha na lateral do braço.
– Vamos!
– Até que enfim! – Barrattiel soltou um bufo
com sua voz grossa. – Vamos botar pra quebrar com
aqueles chifrudos.
Apesar da ansiedade perante a batalha, todos
riram e partiram para a luta.

269
CAPÍTULO 22

Antiga Mesopotâmia 2758 a.C


Ninurta saiu em disparada na direção dos
celestes preparando uma investida e quando se
aproximou, desceu com os punhos, utilizando os
braços como marretas. Se não fosse pela agilidade
dos anjos, saltando um para cada lado, o general os
teria esmagado. Enquanto rolava, Daniel tinha seus
olhos estreitos. Estava pensativo.
Mazarak correu, fazendo o desenho de um arco
na arena, até chegar a Daniel.
– O que é isso? – indagou Daniel abismado,
fitando Ninurta.
– Não tenho a mínima ideia. – O anjo asiático
esfregou as palmas e se posicionou para a luta. – O
que importa é que agora vamos brincar de verdade!
– O que...
Sem dar tempo para Daniel terminar a frase,
Mazarak arregaçou as calças e saiu em disparada,
clamando por luta. As veias saltavam em sua testa.
Nirurta sorriu com um canto da boca e
semicerrou os olhos. Em seguida flexionou as
270
pernas, batendo os pés fortemente contra o solo,
socando o punho.
Quando se aproximou a dez metros do gigante,
Mazarak flexionou os joelhos rapidamente e saltou
para cima dele. O pulo do anjo foi de tamanha
pujança que alcançou cerca de quinze metros de
altura. Ele acertaria o peito de Ninurta, mas não
podendo utilizar de sua habilidade sobre-humana
para fugir do gigante, fora atingido por um murro
tão forte, que o arremessou contra o aço da redoma.
Mais um amassado surgiu no aço com o bater de seu
corpo.
A multidão gritava, aplaudia, clamava por
batalha. Todos naquela arquibancada se
surpreendiam com a força de batalha dos
“humanos”.
Eannatum assistia surpreso, mas tranquilo. Sabia
que seu general resolveria a situação, como tinha
feito em todas as batalhas nos últimos vinte anos.
Súbito, os olhos do falcão dourado brilharam seu
vermelho pulsante novamente.
Daniel fitou o corpo de seu irmão no chão,
enquanto ele ainda se levantava desnorteado. Então
correu até ele, para ajudá-lo. Desviando o olhar para

271
o gigante general, o anjo percebeu suas veias
pulsando com mais força.
–Tudo bem, Mazarak? – Daniel indagou,
enquanto derrapava e já segurava os braços do
irmão.
O anjo asiático balançou a cabeça para um lado
e para o outro algumas vezes. Deu alguns tapas no
próprio rosto. Revirando os olhos, olhando para o
chão, tentando focar a visão, disse:
–Tá tudo bem! Esse cara é duro na qued... Olhe
ele aí! – Mazarak gritou olhando para trás de Daniel,
já se movimentando para o lado.
Com puro reflexo, o asiático deu um salto para
frente, conseguindo fugir. Mas Daniel foi pego pela
gigante mão do general. Ele o esmagava com os seus
dedos. Era difícil de o celeste respirar. De súbito,
Mazarak serpenteou pela arena. Fingiu que pularia
contra o corpo do gigante, mas em vez disso, mudou
a estratégia e continuou correndo em direção ao
meio de suas pernas. Repentinamente, fora acertado
por um chute ainda mais forte do que o soco
anterior. Seu corpo bateu contra o teto da redoma e
despencou, chocando-se contra o chão, quicando
uma vez.
– Não! – Daniel gritou com sua voz esganiçada.
272
O anjo tentava forçar a mão do gigante, mas sem
explodir sua áurea não conseguiria atingir a força
necessária para isso. O general começou a apertar
ainda mais, até que seus ossos deram alguns estalos.
Daniel gritou de dor. Foi aí que percebeu que
poderia estar correndo sérios riscos. Fitou a plateia à
sua volta gritando. Alguns pediam por clemência,
outros pediam por execução. O suor do anjo
escorria. Seu irmão jazia no chão desacordado,
talvez morto.
Os olhos do gigante homem expeliam raiva.
Fazia agora exatamente o que tinha dito. Esmagaria
aquele ser como um inseto.
A respiração do anjo começou a falhar e sua
cabeça a formigar. A borda de seu campo de visão
começara a se desfocar. Já não ouvia mais os
clamores da plateia. Podia escutar apenas o
batimento de seu coração perdendo força. O rosto de
Ninurta estava vermelho de tanta força que fazia
com a mão, mas nesse momento ele já era apenas
um borrão na visão do celeste. Eu não esperava por
isso – foi o último pensamento de Daniel antes de
ele apagar e ser engolido por um clarão repentino.

***
273
De um momento para o outro, Daniel fora
transportado para um lugar onde a impressão era de
estar nadando no leite. Mas podia respirar
normalmente. Flutuando no ar, imagens repetidas
começaram a passar diante de seus olhos. Momentos
em que passou com Hariel. Ao lado de Mazarak em
sua verdadeira forma. Com Haziel, Barrattiel e os
outros. Esses curtos momentos se repetiam em um
turbilhão de imagens. As cenas estavam tão rápidas
que inundaram por completo sua visão. Súbito, sua
consciência voltou e ele se viu novamente nas mãos
do gigante. Mas dessa vez tinha trazido consigo o
amor da irmandade. Jamais se daria por vencido e
jamais deixaria todos que amava para trás.

***

Uma força que o anjo desconhecia em si brotou


em seu peito. Dessa pujança ele pôde retirar energia.
Explodindo essa energia, transferiu todo o poder
para seus braços. Com um grito grave e poderoso,
Daniel forçou os membros e como uma alavanca
começou abrir a mão de Ninurta. O gigante também
soltou um berro e fechou a outra mão por cima da
274
esmagadora, comprimindo Daniel novamente, com
mais força. Mas nem isso foi o suficiente para parar
o anjo. Repentinamente, as duas mãos de Ninurta
começaram a brilhar, fazendo-o esboçar uma careta
feia. A energia ganhou um tom dourado, formando
uma esfera que dominava por completo as duas
mãos entrelaçadas do gigante. Súbito, uma explosão.
O general foi atirado contra as grades, batendo as
costas e caindo ajoelhado, com uma mão no solo.
Livre da pegada do gigante, Daniel correu até
Mazarak que estava jogado na beira da arena.
Aproximou-se do irmão rapidamente, abaixou e o
sacudiu pelo braço.
– Mazarak, você está bem? – Daniel indagou
ofegante. O silêncio imperou por alguns segundos. –
Mazarak? – O celeste o balançou novamente.
Dessa vez um murmúrio.
– Mazarak! – Daniel aproximou o rosto da face
do irmão. – Graças ao Pai! – Olhou para os céus. –
Você está bem!
– Daniel? – O anjo asiático virou um pouco a
cabeça. Seus olhos estavam semicerrados. – É você?
– Sim, irmão! Por que você não se levanta?
– Eu não posso!

275
– Como não pode? Já era para você estar se
recuperando.
– Já acabou a melação dos dois? –Ninurta gritou
do meio da arena.
Daniel fechou os olhos em uma longa piscada e
inclinou o pescoço. Nesse momento, viu uma coisa
terrível ao se deparar com uma pequena porta de
grades à sua frente. Não foi possível conter as
lágrimas. Seus olhos começaram a brilhar,
cristalinos. Depois se encheram com a cor do fogo
que pulsava em sua íris. Seu cenho também se
franziu.

***

O celeste se levantou com o olhar obscuro e


virou-se encarando o gigante. Aproximou-se do
centro com passos tranquilos. Tinha os punhos
fechados. Os dois estavam dentro da linha que
demarcava um círculo no campo de combate.
A plateia não parava de gritar. Os berros eram
estridentes. Cerca de cinco mil pessoas eram o
suficiente para abalar as estruturas da construção
com seus graves. Suas cordas vocais faziam jus à
tensão daquela luta.
276
– O que você é? – indagou Ninurta.
A arquibancada se calou atenta.
–Eu sou um guerreiro de Deus! – O anjo apertou
os punhos que já estavam fechados. – E você! –
Respirou profundamente. – Uma coisa que você e
seu rei não são é de Deus!
O estádio já estava calado. Ninurta também se
calou, arqueando as sobrancelhas. Ficou assim por
cerca de cinco segundos. Repentinamente soltou
uma gargalhada. Colocou a mão sobre a barriga e
dobrou o corpo para frente, ainda rindo muito alto.
Sem entender porque, mas seguindo seu general, o
estádio também entrou na mesma onda e todos
começaram a gargalhar.
Daniel tinha a cara fechada. Aguardava
tranquilamente a reação “espontânea” do general
acabar.
Depois de uma longa risada, Ninurta olhou para
Daniel, ainda soltando algumas risadas. Entre uma e
outra indagou.
– Você não tem mais nenhuma piada? – Mais
algumas curtas risadas. – Muito boa! Muito boa!
Parabéns.
O gigante aplaudiu o anjo. Repentinamente
fechou a cara, cuspiu no chão e perguntou:
277
– Que merda é essa toda que você tá falando,
verme?
O anjo ficou mudo por um tempo e apontando o
dedo polegar para trás, indagou:
– O que são todas aquelas inocentes crianças
destroçadas?
– Aquela carne de segunda? – O general cruzou
os braços – Nós utilizamos para várias coisas.
Alimentar as feras; rituais...
– Como vocês podem? – Daniel apertava tanto
as mãos que os nós dos dedos estavam ficando
brancos.
Ninurta deu de ombros e disse:
– A gente não ia usar aquilo para nada!
– Já chega! – Daniel pisou forte. – Isso é insulto
ao Pai! Agora você provará da ira que me foi
concedida.
O vento soprou mais forte e foi possível escutá-
lo. Nenhum ruído se sucedia. Repentinamente o solo
abaixo dos pés do anjo rachou. A torcida se
surpreendeu com uma reação espontânea na voz.
Ninurta tirou o sorriso do rosto.
Eletricidade corria pelas veias de Daniel como
ondas que acompanhavam um rio em fúria. Essa
energia explodiu para a camada exterior e foi
278
possível ver correntes elétricas, douradas,
aparecendo e sumindo rapidamente pelo seu corpo.
A rachadura abaixo de seus pés acentuou-se. Nesse
momento Ninurta deu um passo para trás. O vento
começara a soprar ainda mais forte, levantando os
tecidos das vestes da plateia. Folhas dos jardins
erguidos eram arrancadas. A arena de batalha
tremeleava levemente. A engenharia utilizada na
construção a separava da arquibancada, que se
mantinha intacta.
Ninurta hesitou e deu mais um passo para trás.
As ondas elétricas se multiplicaram e cobriram por
completo o corpo do celeste. De repente a explosão
da áurea aconteceu, subindo como uma tocha que
queimava com fulgor.

***

Eannatum se levantou de seu trono com os olhos


esbugalhados. Deu alguns passos para trás e
trombou com os dois guardas que se encontravam no
final da sala. Olhou-os assustado, movendo a cabeça
para um lado e para o outro. Andou novamente para
frente, debruçando-se no parapeito do monumento
279
no qual permanecera no momento do combate.
Fitou, desacreditado, o celeste que ardia como uma
fogueira. A cabeça de falcão de seu cetro ainda
pulsava o escarlate nos olhos.

***

– Conheça a ira dos guerreiros de Deus! –


Daniel correu e saltou contra Ninurta.
O anjo puxou a mão flexionando o bíceps e
preparou um murro. A única opção que o general
teve foi cruzar os braços na frente do rosto. O
estrondo foi grande, explodindo uma luz dourada da
região do impacto. O gigante foi arremessado contra
o aço da redoma, amassando suas linhas verticais.
A plateia, naquela região, assustou-se. Muitos
caíram para trás.
No combate, após ter acertado os antebraços de
Ninurta, Daniel pousou no chão e correu na direção
do gigante. A ira de Daniel era expulsa por seus
olhos, que ardiam juntamente com sua áurea
magnífica. Nos seus braços, as ondas formadas pelos
músculos se moviam como um mar em fúria, na
medida em que avançava.

280
Ninurta nunca tinha perdido um combate, mas
também nunca tinha se deparado com alguém tão
poderoso. Não queria perder sua onipotência, então
também iniciou a sua trajetória até Daniel. A
diferença de tamanhos era tremenda, mas a
majestade do anjo o agigantava diante de sua
postura.
Todos no estádio assistiam àquele que prometia
ser o maior combate visto por eles. A ansiedade
quase os matava de empolgação. Alguns roíam as
unhas e suas pernas tremiam. Nenhum sequer
gritava ou virava para o lado para conversar. A
atenção era completa.
Os dois guerreiros se aproximavam com todas as
suas voracidades. O rosto inchado e vermelho de
cólera de Ninurta brilhava pelo suor. Daniel corria
concentrado como um touro prestes a derrotar sua
presa. Quando os corpos se chocaram, todo elemento
existente para criar qualquer campo energético,
naquela região, fora abalado. A onda de choque foi
varrida do centro do combate até atingir a
arquibancada. Muitos humanos foram jogados a
alguns metros de distância quando golpeados pelo
ar. Alguns se machucaram, mas nada de grave
aconteceu. No estádio, o corpo de Ninurta estava
281
estancado no aço da redoma. Seu corpo afundou no
metal alguns metros, deformando toda a estrutura. O
gigante tinha a língua de fora e soltava alguns
murmúrios esganiçados. Sangue escorria de seus
olhos, boca, nariz e orelhas. Os ossos dos braços e
pernas estavam quebrados, em algumas partes do
corpo estavam expostos. A agonia do gigante durou
apenas alguns segundos e ele virou os olhos
baixando a cabeça.
Ninurta nunca tinha perdido um combate, mas
morreu em sua primeira queda.

282
CAPÍTULO 23

Minas Gerais, Águas Vermelhas – Tempos


atuais
Os anjos voavam em velocidade descomunal.
Cerca de quatrocentos soldados rasgavam o vento
com suas asas celestiais. Todos seguravam suas
espadas em mãos. Na ponta do triângulo, seguia o
segundo comandante, Yesalel. Na segunda fileira, os
poderosos Haziel e Daniel, seguidos na terceira fila
por Barrattiel e mais dois robustos guerreiros de
Deus. Fechando o triângulo composto por filas,
umas maiores que as outras, seguia o restante de
trezentos e noventa e quatro soldados angélicos. A
legião deslizava no céu como uma seta. Após alguns
poucos minutos de voo, foi possível avistar, pela
visão dos anjos, a massa negra demoníaca se
aproximando. Os rostos dos guerreiros angélicos se
estreitaram e eles partiram para a guerra.
Depois de uma ordem de Yesalel, a legião se
dividiu em duas e essas seguiram em direções
opostas. Abaixo dos celestes, a gigante horda
demoníaca era formada por demônios de todos os
283
tipos: altos e fortes, baixos e magros. Alguns tinham
a aparência frágil e demonstravam medo ao se
depararem com os anjos. Outros demonstravam puro
ódio e não viam a hora de enfrentá-los.
A massa seguida por Yesalel desceu e se chocou
com os demônios. O som de carne sendo cortada e
metal se chocando começou. Os celestes eram
ávidos e despedaçavam com facilidade muitos
infernais rapidamente. Demônios tentavam correr,
mas não eram poupados. Outros tentavam se
aproximar utilizando de sua maior velocidade, mas
ainda assim eram muito lentos diante da velocidade
dos celestes.
Yesalel manejava sua espada prateada com tanta
destreza quanto a sua casta permitia. Qualquer
demônio que se permitisse se prostrar em sua frente
cairia. Passado apenas um minuto de batalha, o
segundo já tinha derrubado cerca de duzentos
infernais, sozinho. Mordia os dentes fazendo
saltarem os músculos da mandíbula. As sobrancelhas
estavam quase unidas. Seus berros de luta, a cada
golpe, eram assustadores para os demoníacos.
Depois de criar, em volta de seu corpo, um monte de
corpos infernais, que crescia a cada investida,
Yesalel parou seus movimentos, guardou a espada
284
na bainha, com agilidade, e cerrou os punhos,
flexionando os braços. As veias de seu bíceps
apareceram e então ele gritou. Sua áurea explodiu,
queimando no formato de um cometa dourado.
Repentinamente puxou o braço direito para trás e
desceu o punho fazendo-o se chocar contra o solo
como um meteoro. Uma cratera se abriu e do centro
do choque, uma energia dourada floresceu no
formato de uma redoma. Percorreu na velocidade de
um raio, por uma grande parte do campo de batalha.
Todos os demônios atingidos foram desintegrados.
Os celestes eram imunes a essa técnica.
Barrattiel lutava contra dezenas de monstros
utilizando apenas seus braços fortes. Sua espada
ainda estava guardada nas costas. Fazia movimento,
manejando os braços de dentro para fora,
derrubando cerca de cinco criaturas a cada investida.
Estava dentro do raio de onde a redoma de energia
passou. Diante de seus olhos, muitos dos seus
adversários foram desintegrados. Fitando Yesalel, a
cerca de cinquenta metros, Barrattiel assentiu com a
cabeça para ele. O segundo retribuiu. Então o celeste
de dois metros de altura alçou voo a fim de buscar
outro ponto da batalha.

285
***

No outro lado do campo de batalha, Haziel


devastava um montante de demônios a cada
investida, com sua espada. Cortava o ar, deixando
um rastro prateado, flutuando, por onde a arma tinha
passado. O anjo guerreiro lutava contra uma raça
esquisita. Estes não utilizavam armas, mas seus
quatro membros superiores imitavam lanças. Os
olhos eram parecidos com de moscas. Dois dentes
grandes, pontudos, saíam do meio da boca, quase
unidos. Os corpos eram grandes e escuros. Suas
quatro patas pontudas tocando o chão
apresentavamum bom equilíbrio. Apesar de tudo
isso, para um anjo, com a pujança de Haziel, eram
meros insetos.
Afastado cerca de dez metros de Haziel, Daniel
lutava contra a mesma casta de seu parceiro. Dando
um salto, Daniel acertou um soco na cara de um dos
demônios fazendo-o criar um efeito dominó.
Girando o corpo, moveu a lâmina de sua espada
trezentos e sessenta graus, eliminando todos os
infernais à sua volta.
Repentinamente, Barrattiel pousou ao lado de
Daniel, gritando:
286
– Precisando de ajuda, meu irmão? – Barrattiel
esmurrou três demônios de uma vez, arremessando-
os aos metros.
Daniel apertou os olhos fitando Barrattiel
derrubar os demônios com facilidade. Olhou para
frente e com movimentos que quase não eram
possíveis serem vistos pelo excesso de velocidade,
derrubou dezenas de infernais. Sua lâmina deslizava
no ar em todas as direções. Por fim, deixou um
grande rastro de corpos demoníacos.
– Acho que estou dando conta, Barrattiel! Mas
obrigado. – Daniel sorriu e continuou sua luta contra
os infernais.
– Metido! – Barrattiel sussurrou para ele mesmo.
Depois retirou sua enorme espada das costas,
trazendo à frente do corpo. – Vamos botar pra
quebrar! – gritou com um belo sorriso que mostrava
os dentes, estreitando os olhos.
Com um ataque furioso, Barrattiel girou sua
espada de quase dois metros como uma hélice. Isso
fez com que todas as criaturas à sua volta fossem
cortadas ao meio. Dando um salto, ele caiu cinco
metros à frente e repetiu a ação cortando mais
demônios.

287
– É isso aí! Aqui não tem pra ninguém, seus
chifrudos. – Barrattiel socava o próprio peito. Pode
vir todo mundo. – Nos seus duzentos e cinquenta
milhões de anos de vida, Barrattiel já tinha tido
muitos contatos humanos. Muitas vezes tinha
reações semelhantes a eles.
Chamando a atenção para si, o anjo fora cercado
por dezenas de demônios que cresciam sua massa a
cada segundo. Ele olhou para a direita e reparou em
Haziel lutando ferozmente a quase dez metros dele.
Empolgou-se ao ver seu irmão e instrutor ali,
lutando ao seu lado novamente. Então levantou a
mão gritando e acenando:
– Ei, Haziel! – Abanava o braço com
entusiasmo. – Haziel?
Haziel percebeu um movimento diferente com o
canto do olho. Olhou avistando Barrattiel gritando e
pulando muito efusivo, tentando chamar sua
atenção. O que ele tá fazendo? – pensou Haziel.
Perdendo toda a sua concentração acenando para
Haziel, repentinamente dezenas de demônios
pularam em cima de Barrattiel e ele não teve como
escapar. Cada fração de segundo era o suficiente
para a montanha de corpos de infernais ganhar
volume. O celeste era forte, mas com tantos
288
demoníacos fazendo força contrária, ia se afogando
no mar de espíritos malignos.
Haziel reparou que Barrattiel não surgia do
alvoroço. Logo largou sua parte do campo e se
moveu na direção dele. Na trajetória, guardou sua
espada na bainha e penetrou no amontoado de
demônios. Repentinamente, a montanha brilhou
dentre os corpos amontoados e os infernais foram
arremessados a vários metros, enquanto Haziel
explodia sua magnífica áurea dourada.
– Obrigado, irmão! – disse Barrattiel,
levantando-se e ajeitando as asas.
– Guarde as asas. Vai facilitar o combate. –
Haziel se virou para combater os infernais, que já
corriam na sua direção.
– Pode deixar! – o gigante falou e depois as
guardou, preparando-se para o abate.
De súbito, um clarão muito forte estourou nas
nuvens simultaneamente com um forte barulho.
Algo descia na força de um meteoro deixando um
rastro no ar. Rapidamente, aproximou-se do solo. O
campo de batalha parou e todos voltaram a atenção
para o corpo cadente. Um alvoroço começou e o
foco da batalha foi perdido. Os demônios
começaram a correr para todos os lados. Os anjos
289
estreitaram os olhos e colocaram os antebraços na
frente do rosto a fim de tampar o clarão. Nesse
momento, houve um impacto e instantaneamente
uma grande esfera de energia explodiu como uma
bomba nuclear. O raio do impacto varreu
completamente o campo de batalha, acabando
completamente com a legião angélica.
Nada sobrou no lugar. A vegetação, que já não
era muita, foi desintegrada completamente. Podiam-
se ver corpos amontados aos montes. A maioria era
de demônios que dominavam, em número, o lugar
do combate. Anjos estavam completamente
carbonizados, caídos. Nas asas não tinham mais
penas. Alguns celestes ainda tinham duas massas de
carne no formato de asas grudadas nas costas.
Do meio da cratera formada pelo impacto, uma
figura angelical estava ajoelhada com uma mão
fechada, tocando o solo. Este ser se levantou com as
sobrancelhas franzidas. O olhar era de raiva, mas na
boca o sorriso quase se esboçava. Os cabelos eram
louros e caíam sobre os ombros, bem desfiados. A
franja repicada quase lhe cobria os olhos. A pele era
clara e o corpo atlético. De vestes, utilizava apenas
uma calça larga, branca. Os pés estavam descalços.
Das costas, erguiam-se duas asas branquíssimas. Ao
290
olhar era nitidamente um anjo, se não fosse por duas
diferenças. Os olhos da criatura eram completamente
rubros, com um pequeno ponto negro no meio,
figurando a pupila e a energia exalada, em vez de
dourada, era escarlate, tenebrosa.
– Que ridículo, esperava por mais ação! –
sussurrou a criatura para si mesma.
Uma voz surgiu alguns metros nas costas da
criatura.
– Ridículo é vocês matarem até os seus para
conseguirem o que querem.
O ser de cabelos louros se virou e avistou
Yesalel andando na sua direção, mancando. Metade
do corpo do anjo estava carbonizado. Nessa metade
não tinha mais o braço e nem a asa. Andava
utilizando a perna boa, enquanto a outra era
arrastada.
– Yesalel! – A criatura abriu o sorriso. – Vejo
que está machucado. Desculpe por isso. – Coçando a
cabeça, indagou: – Você por um acaso sabe onde
está o humano? – Soltou uma piscadela. – Um velho
favor para um velho amigo! – O ser mostrou os
dentes.
– Independente de qualquer coisa, faremos tudo
que for possível para deixarmos ele longe de vocês.
291
– Yesalel estava com dor, mas fazia o possível para
não demonstrar. – Vou lutar e dar até a minha última
gota de sangue para protegê-lo! – O celeste apontou
para o horizonte. – Volte para o seu submundo,
Astaroth. É lá que você merece viver, junto com
todos os seus irmãos traidores.
– Vejo que não tem muitas gotas de sangue,
então... – uma leve risada – Você acha que é ruim
viver onde vivemos? – Astaroth falou rindo um
pouco mais. – Você não sabe de nada!
– O que eu sei é que sirvo ao Pai e nunca
deixarei de servi-lo! – Yesalel falava com muita
imponência.
– Isso mesmo! – disse Astaroth, fazendo gesto
de desprezo. – Sirva mesmo ao “Pai” – fez sinal de
aspas com as mãos. – Que trocou todos nós por esses
vermes que habitam esse planeta.
Yesalel abriu a boca para falar algo, mas o caído
o interrompeu:
– Bom! Já que você não pode me ajudar em
merda nenhuma, eu vou achar aquele verme sozinho.
– Astaroth se moveu na direção de Yesalel.
– Eu não vou deixá-lo passar! – disse o segundo,
fechando o punho que lhe restava.
– Eu não esperava que você fosse deixar.
292
Quando o demônio se aproximou de Yesalel,
que tentou acertá-lo com um soco, rapidamente ele
se moveu para a esquerda, segurando o braço do
anjo com um reflexo incrível. Com um movimento,
arrancou-o e o jogou longe. Yesalel soltou um berro
e caiu de joelhos. Astaroth soltou uma curta
gargalhada e disse:
– E agora? – O anjo caído olhou para baixo,
arregalando os olhos para o segundo comandante. –
Menos sangue ainda – uma piscadela.
Yesalel ainda não tinha se dado por vencido.
Utilizando um joelho no chão, rodou o corpo,
tentando acertar Astaroth com uma rasteira. O
demônio pulou apenas um metro para trás
tranquilamente. Depois se moveu contra Yesalel.
Segurou o cabelo que lhe restava, com muita
agressividade e aproximou seu rosto do dele, do
modo em que as respirações se confundiam.
– Agora, meu irmão! – Astaroth tremia o braço,
enquanto segurava os cabelos do segundo
comandante. – Eu vou acabar com o seu sofrimento!
Com um movimento brusco, o demônio jogou
Yesalel, que era quase só um toco, no chão e
materializou uma espada cor de chumbo em sua
mão.
293
– Você tem alguma coisa a dizer? – indagou o
caído.
– Vocês nunca conseguirão! – O anjo fechou
ainda mais a cara. – Nunca me chame de irmão!
– Você não acha que isso é um pouco de
hipocrisia? – O demônio girou o dedo mostrando o
campo de batalha para o anjo. – Acho que já
conseguimos! Quanto a te chamar de irmão,
realmente não será mais necessário. – Em seguida,
girou a lâmina de sua espada e desceu de encontro
ao pescoço do anjo. Instantaneamente, sua cabeça
fora decepada, fazendo com que o sangue jorrasse
aos litros.
Yesalel estava morto!

294
CAPÍTULO 24

Aron pulou na cama, acabara de acordar de seu


horrível pesadelo. O coração do humano batia na
garganta. Tudo parecia muito real. Já era dia e dava
para ver, por sua porta sem divisória, que os anjos
andavam tranquilamente fora da casa.
Aparentemente tudo estava normal. O homem
colocou seus pés para fora da cama. Fitava o chão
enquanto coçava a cabeça. Já estava extremamente
angustiado perante a situação em que sua esposa
estava. O pesadelo veio para piorar um pouco o
clima de seu dia.
Levantando-se, Aron andou até um espelho
quebrado e abriu a boca olhando os dentes. Calçou
um tênis que lhe foi concedido e saiu pela abertura
da casa. Apesar do céu cinzento, naquele dia o sol
brilhava mais forte. Quando ele o fitou, quase teve
que fechar os olhos totalmente.
Ao deslizar pelas vielas da cidade, o homem
cumprimentava os celestes distribuídos por todos os
lugares. Alguns tinham as asas branquíssimas
aparentes, outros não. Depois de dez minutos
295
andando, deparou-se com Barrattiel. O anjo estava
de costas para uma casa com o muro amarelo. Tinha
sua espada com a ponta no chão, segurando-a com
as duas mãos na empunhadura, quase se apoiando na
arma.
– Olá! Você é o Barrattiel, né? – Aron
perguntava um tanto sem graça.
– Olá, humano! – O anjo sorriu mostrando os
dentes. Tinha características parecidas com as de
gladiadores, mas o sorriso era como de uma criança.
–Você por um acaso sabe onde está Haziel? –
Aron perguntou, coçando a nuca.
– Eu não sei exatamente, mas acho que ele e
Hariel foram encontrar Daniel.
– Daniel? – O humano olhou para o chão e levou
o dedo indicador aos lábios. – Eu acho que não o
conheço ainda! Mas mesmo assim, ele não me é
estranho – pensou ele. – Bom. Obrigado, Barrattiel!
– Não por isso, humano. Sempre que precisar...
Esse Barrattiel é simpático – pensou Aron.
O humano continuou percorrendo dentre as ruas
da cidadela. Virando uma esquina, chutou algumas
pedrinhas no chão e acenou para dois anjos que
reconheceu. Repentinamente lembrou-se. Daniel é o

296
anjo do meu sonho. É engraçado eu sonhar com ele
sem ao menos conhecê-lo.
– Tudo bem! – sussurrou o humano.
Olhando o horizonte, Aron percebeu tudo muito
calmo. O vento não soprava. O sol continuava
ardendo. Nesse momento, ele olhou para o lado e viu
Yesalel sentado atrás de uma mesa de pedra, em
uma garagem. Aron se aproximou e entrou no
recinto. Yesalel olhou para ele e disse:
– Aron! – O anjo se levantou esboçando um
grande sorriso. – Está precisando de algo?
O humano olhou para o segundo por alguns
segundos, mudo. Depois falou:
– Não! – balançou a cabeça. – Na verdade sim!
Eu tive um sonho estranho. – Franziu as
sobrancelhas.
– Sonho? Que maravilha! É bom sonhar.
No olhar, Aron tinha confusão.
– Está tudo bem, Aron? – indagou Yesalel.
– Eu não gostei do sonho! – O humano suspirou
fundo.
– Conte-me então, por favor! Ajudarei no que
for possível. Sente-se! – O anjo fez sinal para que
Aron se sentasse.

297
O humano afastou o móvel quadrúpede e sentou-
se com as mãos cruzadas. Yesalel se sentou na
poltrona atrás da mesa.
– Eu sonhei que você morria – prosseguiu Aron.
O anjo engoliu a seco e disse:
– Tudo bem. Foi só um sonho. Não se preocupe
com isso! – Yesalel olhou com os cantos da boca
quase puxados. Seus olhos brilharam o verde e ele
acrescentou: – Como pode ver, estou bem aqui! –
mostrou o corpo com as mãos.
– Na verdade, todos morriam, não só você! – O
humano olhou para o lado. – Foi horrível!
– Todos estão bem! – Yesalel apontava para o
lado de fora. – Como você pode ver!
– Eu sei! Eu sei! – O humano se levantou
rapidamente e virou-se para o lado de fora fitando o
externo. – Mas é que...
Nesse momento, Yesalel chegou ao seu lado e o
abraçou por cima do ombro.
– Fique tranquilo, Aron! – O segundo
comandante falava com a voz calma. – Não
acontecerá nada com ninguém. Isso eu posso lhe
garantir! – Então soltou o humano.
Aron contraiu os lábios e colocou as mãos na
cintura, dizendo:
298
– Tudo bem! – uma pequena pausa – Foi mesmo
somente um sonho! – Virou a cabeça para o
segundo. – Obrigado pelo seu tempo, Yesalel!
– Por nada, Aron! – disse Yesalel, colocando a
mão no ombro do humano. – Sempre que precisar...
O humano meneou a cabeça e saiu da garagem.
Depois de andar cerca de dois minutos, subitamente
dois anjos rasgaram o ar a algumas dezenas de
metros acima de sua cabeça. Fizeram a volta e
vieram em sua direção. Quando se aproximaram,
Aron percebeu que eram Haziel e Daniel. Quando
chegaram, os celestes reduziram a velocidade e
passaram por Aron sem ao menos percebê-lo.
Aterrissaram e continuaram andando com passos
rápidos. Pararam e perguntaram algo para dois anjos.
Estes apontaram em uma direção. Então Haziel e
Daniel saíram em disparada. Aron tentou alcançá-
los, mas não conseguiu.
Após correr cerca de quarenta segundos sem
parar, o humano percebeu um alvoroço entre os
anjos. Desse alvoroço, Haziel e Daniel alçaram voo,
seguidos por mais dois celestes. Yesalel saiu da
multidão de anjos junto com outro anjo e veio na
direção de Aron, correndo rápido. Enquanto se

299
aproximava, dizia para o outro celeste que o
acompanhava:
– Rápido! – O segundo comandante apontou
para Aron. – Leve-o para Israel.
Levar-me para Israel? – pensou Aron. – Tá tudo
acontecendo! Era tudo real!
– Quando o anjo já amparava Aron, ele o parou
colocando as mãos em seu peitoral, gritando:
– Espere... Yesalel?
O celeste se inclinou deixando Aron em paz e
olhou para Yesalel, que já voltava.
– O que foi, Aron? Está tudo bem?
– Está tudo acontecendo, Yesalel! Tudo!
– Tudo o quê, Aron?
– Como no meu sonho! – O humano bateu nas
coxas com os olhos esbugalhados. – Tudo isso aqui
aconteceu no meu sonho!
Yesalel entortou a boca e deu uma pausa
encarando Aron, depois olhou para o outro celeste,
dizendo:
– Hekamiah, leve-o! Rápido!
Hekamiah?
Nesse momento o anjo alçou voo, levando Aron
junto.

300
– Yesalel? Não... – gritava Aron esticando os
braços. – Você não está entendendo!
– Hekamiah, seu nome é Hekamiah, né? – o
humano perguntava, ofegante.
O celeste olhou para ele com seus olhos
penetrantes de cor violeta. Antes de ele responder,
Aron acrescentou:
– Yesalel não acreditou em mim. Todos vão
morrer!
O anjo franziu suas sobrancelhas escuras.
– Do que você está falando, humano?
– Não tenho tempo para explicar. Precisamos
voltar. Por favor! Dê meia volta.
– Eu não posso desobedecer a uma ordem direta.
– Hekamiah voltou a olhar para frente, concentrado
no voo.
– Ai, meu Deus! – Aron arranhou o rosto com as
cabeças dos dedos, puxando toda a pele para baixo.
– Se você não voltar, todos vão morrer! Aron
berrava. – Você está me entendendo direito? – o
humano perguntava com o rosto vermelho, além das
marcas dos dedos.
– Estou te entendendo perfeitamente. Mas acho
que Yesalel sabe o que faz! – O celeste apontou com
a cabeça. – Olhe, já estamos chegando!
301
Aron olhou para onde o anjo apontava e reparou
em uma casa grande nos limites da cidade. A única
em pé naquela região. Era muito ampla, com cerca
de três andares. As paredes eram pintadas de
amarelo mostarda. No quintal de grama verde, tinha
uma piscina com água cristalina. – Algo diferente
para aquela atual condição mundial.
Na trajetória, Aron não viu nenhum humano
possuído. Provavelmente, todos naquela cidade
foram extintos com a investida de Haziel – pensou
ele.
Eles se aproximaram da residência e Hekamiah
pousou, já colocando Aron de imediato no chão. O
anjo deu uma volta na piscina e pediu para que o
humano o seguisse. Pararam na frente de uma porta
de madeira com janelas de vidro separadas por
grades também de madeira. Adentraram-se na casa e
se depararam com uma linda sala decorada. Tinha
luz amarelada. O ambiente era aconchegante. O piso
era de tacos caramelados. Um tapete bege e macio
ficava no centro, contornado por dois grandes sofás
brancos. Pendendo do centro do teto, um robusto
lustre de cristal cintilava.
Hekamiah colocou a mão na frente de Aron e
pediu que ele esperasse. Os dois ficaram no centro
302
da sala, em pé. Aron tentou perguntar algo, mas
Hekamiah o calou colocando o indicador sobre os
lábios. Súbito, passos calmos vindos de outro
cômodo. Um anjo, com postura majestosa,
atravessou a porta, dizendo:
– Olá, Hekamiah! Eu esperava por vocês.
Hekamiah meneou a cabeça e se ajoelhou. Aron
preferiu copiá-lo. O anjo em pé esboçou um sorriso.
– Não precisa disso, meus caros! – O anjo
vistoso meneou a cabeça e com a mão pediu que se
levantassem.
Aron reparou bem no anjo, achando-o um pouco
diferente dos outros. Tinha os cabelos azulados e
olhos grandes, amarelos. Tinha um corpo com quase
dois metros de altura, mas magro. A pele era branca,
quase pálida. As feições do rosto muito delicadas lhe
davam uma aparência um tanto frágil. Na testa,
levava um tipo de coroa dourada, cuja ponta descia
entre os dois olhos. No centro da peça, brilhava uma
pedra no mesmo tom dos olhos do celeste. No corpo,
tinha um lindo vestido branco caindo até os pés
descalços. Mesmo dentro de casa, suas lustrosas asas
branquíssimas estavam expostas.
Ansioso como sempre, Aron não aguardou e
logo deu um passo à frente, dizendo:
303
– Olá! – O humano olhou para os lados
gaguejando um pouco. – Eu tenho uma coisa
importante para falar!
Hekamiah deu um passo à frente, interrompendo
Aron.
– Desculpe pela petulância, meu senhor! Ele não
tem nada de importante para dizer.
– Por favor, Hekamiah! Pode me tratar pelo meu
próprio nome, que é – o anjo imponente olhou
sorridente para Aron e disse – Israel! Por favor,
chame-me de Israel.
O humano meneou a cabeça e Israel
acrescentou, voltando seu olhar para Hekamiah.
– Deixe-o falar, Hekamiah. Tudo o que sai de
nossa boca, independente se são palavras confusas
ou não, sempre tem importância de alguma maneira.
Hekamiah meneou a cabeça e deu um passo para
trás. Israel pediu para que Aron prosseguisse.
– Obrigado! – o humano assentiu. – Eu tive um
sonho! – disse, fitando diretamente os olhos de
Israel.
– Prossiga, por favor!
– Eu tive um sonho em que todos morriam!
– Certo! Porque você acha importante me dizer
isso? – indagou Israel.
304
– Tem uma horda demoníaca chegando! –
prosseguiu Aron.
– Eu sei da horda! – disse Israel sorridente. – Os
anjos guerreiros darão conta. Pode se tranquilizar
quanto a isso, Aron.
O humano arqueou as sobrancelhas. Israel olhou
para Hekamiah.
– Pode ir, Hekamiah. Deixe-o aqui comigo e vá
ajudar os outros.
Hekamiah meneou a cabeça e já ia saindo
quando Aron gritou:
– Não! – O humano bateu nas próprias coxas,
um tanto nervoso. – Ninguém acredita em mim!
Ninguém entende!
Os dois celestes o olharam com os olhos
arregalados.
– Vocês não entendem! – Aron olhou bravo para
Israel e depois para Hekamiah. – Esse ataque deles é
só uma distração!
– Porque você acha isso? – indagou Israel.
– Porque desde que acordei, tudo está
acontecendo como no meu sonho! – Aron conduzia
suas palavras rapidamente. - Eu sonhei com o ataque
demoníaco antes de saber dele. Após isso, tudo se
desenrolou como era para ser. Quando Yesalel pediu
305
para que Hekamiah me trouxesse aqui, eu tive a
certeza, porque foi exatamente assim que aconteceu
no meu sonho.
Os anjos olharam desconfiados e em seguida
Israel indagou:
– E como foi isso? – O celeste já começava a
mudar sua feição para preocupada, assim como
Hekamiah.
– Os anjos estavam combatendo os infernais e
levavam vantagem. Mas inesperadamente um anjo
desceu do céu como um meteoro e quando se chocou
com o solo, matou todos.
– Como era esse anjo? – indagou Israel,
franzindo as sobrancelhas, espantado.
– Ele era louro e forte. Parecia muito mal
também! – Aron puxou os cantos da boca para baixo
arregalando os olhos. – Seu nome era... – dava
estalos com os dedos como se quisesse lembrar-se
de algo. – Lembrei! Astaroth, esse era seu nome.
– Astaroth! Alguém já lhe falou esse nome
alguma vez? – Israel tinha os olhos arregalados.
– Não! – disse o humano, balançando a cabeça.
– Bom, Aron, ele não é um anjo! – Israel deu
uma pequena pausa. – Ele é um demônio; um
príncipe do inferno. Extraordinariamente forte! – O
306
anjo suspirou. – Sua informação foi muito valiosa.
Obrigado por isso!
Israel ficou mudo durante alguns segundos
fitando o chão, depois olhou para Hekamiah e disse,
apontando o chão:
– Fique aqui com Aron! – Israel tinha os olhos
arregalados. – Tenho que resolver umas coisas.
O celeste cerrou os olhos e inclinou a cabeça
para cima. Na altura da cintura, as palmas das mãos
foram apontadas também para cima.
Repentinamente uma energia dourada, maravilhosa,
envolveu-o por completo. Parecia sair do chão e
continuava para o teto, como uma cachoeira
luminosa que em vez de cair, subia. Súbito, Israel
desapareceu e a luz se dissipou.
Aron olhou com olhos esbugalhados para
Hekamiah e indagou:
– Ele vai nos ajudar?
Hekamiak abriu um grande sorriso. Balançando
a cabeça em positivo, disse:
– Pode ter certeza disso!

307
CAPÍTULO 25

Antiga Mesopotâmia 2758 a.C.


O estádio inteiro estava mudo.
Eannatum estava de pé e batia o cetro no chão
repetidas vezes. Os olhos estavam inchados.
– Não é possível! Não é possível! – gritava o rei.
Daniel gritou do meio da arena.
– Agora nos liberte. Derrotamos seu general!
– Não! – gritou o rei, babando.
– Como não? – O celeste deu um passo à frente
fechando um punho. – Você disse que sairíamos se o
derrotássemos. Está feito!
– Não! – Eannatum bateu seu cajado contra o
chão.
Daniel abaixou a cabeça, fitando-o com olhos
semicerrados. Alguns lampejos se manifestavam
pelo corpo do anjo.
– Se você não nos deixar sair por bem, sairemos
por mal! – A áurea do celeste explodiu. O estádio
novamente se surpreendeu em murmúrios.
Eannatum esboçou um sorriso maléfico e
colocou a cabeça do falcão para fora da janela. Os
308
olhos do pássaro dourado brilharam seus vermelhos.
Uma esfera rubra surgiu na frente dos olhos
cintilantes, brilhando como uma estrela.
Repentinamente, o brilho se alongou e foi disparado
como um raio na direção de Daniel. O anjo pulou
para o lado, sendo atingido de raspão no braço. A
energia atingiu o solo, abrindo uma rachadura. O
celeste olhou para trás fitando o buraco e depois
reparou no braço queimado, ainda fumegante.
Nesse meio tempo, o rei gritou, ordenando que
todos os soldados invadissem a redoma. Pela
pequena porta, uma massa gigante de homens
entrava e ia tomando toda a região do campo. O
celeste tinha a mão no braço e apenas fitava a leva
de humanos rodeando-o. Em menos de um minuto,
quase duzentos soldados já tinham entrado no local.
Se Daniel tivesse que lutar, muitas mortes
aconteceriam. Não vendo outra opção, o anjo deu
um salto, passando por cima das cabeças dos
humanos, aterrissando ao lado do corpo de Mazarak
desacordado. Nesse momento, os soldados já
corriam com suas espadas em punho na sua direção.
O anjo os fitou, abaixou e ergueu Mazarak. Súbito,
explodiu suas magníficas asas brancas.
Imediatamente o pelotão freou e alguns homens se
309
trombaram. Estavam indignados com o que se
depararam. A plateia, indignada, emitia murmúrios.
Eannatum tinha o queixo caído. Daniel o fitou e
investiu nas asas, explodindo o ar à volta. A poeira
da arena levantou e o anjo quebrou o aço do teto da
redoma como se fosse madeira. O rei e a multidão
puderam apenas avistá-los sumindo no céu, depois
de virarem apenas um ponto.

***

Daniel e Mazarak estavam à beira do rio


Eufrates. Daniel tinha as asas guardadas e o irmão
estava desacordado. O celeste de olhos de fogo
andou até a beira do rio, colocou as mãos em
formato de concha e pegou água, andou até Mazarak
e lavou seu rosto. O anjo asiático acordou passando
a mão sobre o rosto para enxugá-lo. Inclinou-se e
ficou sentado, reclamando de dor.
– O que está acontecendo com você? – indagou
Daniel, agachado. – Já era paraestar quase curado.
Não foi nada demais o que aconteceu com você na
luta!
Mazarak fitou o horizonte, franzindo as
sobrancelhas e disse:
310
– As coisas não são mais como antes, irmão!
– Posso ver! – retrucou Daniel, medindo o corpo
do asiático.
Mazarak o encarou, fazendo uma breve pausa.
– Exato! Como você pode ver também, eu
consegui fugir! – Olhou para o próprio corpo e para
Daniel de novo.
– Sim, irmão. Estou surpreso quanto a isso!
Mazarak sorriu e continuou:
– Então! – o celeste suspirou. – Mas eu tive que
pagar um preço muito alto para isso! – Entristeceu a
face.
– Como exatamente aconteceu isso? – O
estômago de Daniel embrulhou.
Suspirando e mordendo os lábios, Mazarak
soltou:
– Eu não posso mais manifestar minhas asas.
Agora eu me curo quase igual a um humano e minha
força foi reduzida pela metade.
– Eu lamento muito por isso, irmão! Como
aconteceu?
– Magia. – Mazarak esticou o braço para que
Daniel o ajudasse a levantar. – Foi a única forma.

311
Daniel o segurou pela mão e puxou seu corpo.
Os dois se levantaram e Mazarak fez uma careta,
colocando a mão nas costas.
– O que você teve que fazer exatamente? –
indagou Daniel.
– Eu simplesmente transferi a essência do meu
espírito para esse corpo humano. – Mazarak passou
as mãos sobre o corpo. – Ele me concedeu a
permissão. Serei eternamente grato a ele. Se não
fosse por ele – o anjo bateu no próprio peito – Eu
não estaria aqui, estaria com os caídos!
– Tem alguma forma de revertermos isso?
– Sim, uma forma!
– Qual? – indagou Daniel.
– Precisamos da ajuda de algum dos arcanjos!

312
CAPÍTULO 26

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Dez minutos se passaram. Hekamiah estava de
prontidão, fitando a parte externa da casa pela janela
aberta. Seus cabelos castanhos esvoaçavam diante
do vento. Aron acabara de se sentar com as pernas
cruzadas no tapete bege, quando repentinamente, à
sua frente, a cachoeira dourada, inversa, se fez
novamente. Israel surgiu do nada, no meio da
energia e estava acompanhado de uma linda mulher
anjo. Quando os dois deram um passo à frente,
ficaram evidentes seus leves traços. Os cabelos da
mulher caíam longos e não tinham uma cor normal.
Naturalmente dourados, em alguns momentos
reluzia um tom rosado.
Aron se levantou e deu um passo para trás,
arregalando os olhos pela beleza estupenda da moça.
Já fora da luz, o humano reparou em seu olhar
penetrante. Sua íris não tinha apenas uma cor, os
tons dançavam nas cores do arco-íris. Após cerca de
dez segundos fitando os olhos da mulher anjo, Aron
313
sentiu uma paz colossal que o fez derreter por
dentro. Reparando em sua majestade, o homem se
viu frente a uma mulher bela, imponente e
exatamente de sua altura. As vestes claras seguiam
exatamente a cor de suas asas brancas como leite,
reluzentes.
Com o canto do olho, Aron viu Hekamiah
ajoelhado e logo também se ajoelhou. A moça
meneou a cabeça aos dois e pediu que se
levantassem. Com olhar virtuoso, a mulher anjo se
dirigiu a Aron.
– Olá, Aron! – Esboçou um lindo sorriso que
também emanava paz. – Então esse é você. É uma
honra poder conhecê-lo!
O humano arregalou os olhos e tocou o próprio
peito com o dedo indicador.
– Me conhecer?
– Sim! – A mulher anjo suspirou. – Dentro de
você existe a mais bela criação do Pai. Eu posso
enxergar nitidamente! – Ela fitou o corpo inteiro do
humano, enchendo seus olhos de lágrimas.
Aron se sentiu um pouco desconfortável e suas
bochechas se avermelharam. Teve a sensação de
estar sendo observado nu.

314
– Se me permite, Princesa! – Israel gesticulou,
com a mão, na frente da mulher anjo.
Ela assentiu com a cabeça, sorridente. Aron
tinha os olhos esbugalhados. Hekamiah mantinha
sua postura guerreira. Dando um passo à frente,
Israel falou:
– Aron, essa é Auriel, a princesa dos tronos.
– Princesa? – o humano falou tossindo. –
Também existe princesa no céu?
– É claro, Aron! – Israel disse, um tanto
engraçado. – Como em todo lugar, existe uma
hierarquia a ser seguida.
O humano revirou os olhos e soltou:
– Claro! Como aqui na terra, certo? Desculpe! É
tudo muito novo para mim. – O humano se pôs a rir
de si próprio.
– Eu entendo! – Movendo de um lado para o
outro o dedo indicador, Israel prosseguiu: – Mas a
hierarquia no Céu, em muitos casos, é
completamente diferente da adotada pelos humanos.
– Como isso? – indagou Aron, confuso.
– Por favor, Israel. Deixe-me explicar! – A
princesa dos tronos deu um passo à frente. – Aron,
meu garoto! – A mulher sorriu. – a Hierarquia não
foi criada para ser seguida da forma que é. A
315
autoridade é utilizada de forma errônea pela
humanidade, “vamos dizer assim”. Quando a ponta
da hierarquia de algum reino, governo ou de outras
situações age da forma não adequada, muitas vezes
isso leva os humanos a travarem guerras ferozes. –
A princesa rodeou o dedo, mostrando o mundo. – A
forma adequada de utilizá-la é apenas pela
simplicidade de sua organização. Se assim fosse,
todos viveriam em harmonia. – A mulher abaixou
um pouco a cabeça, sorrindo. – Entendeu?
– Acho que sim. – Aron coçou a cabeça,
franzindo as sobrancelhas.
– Explicar-te-ei melhor mais tarde! – A princesa
dos tronos se aproximou do humano ao ponto em
que ele quase se inclinou para trás. – Assim que
vencermos essa batalha!
Auriel se aproximou de Israel meneando a
cabeça. Imediatamente ele se dirigiu ao anjo
guerreiro na sala.
– Hekamiah!
– Sim, Israel! – O anjo deu um passo à frente.
– Por favor, escolte a princesa até o campo de
batalha e a proteja com o seu espírito. Quando os
nossos outros irmãos estiverem chegando, você
saberá.
316
– Pode contar comigo! – O guerreiro fitou a
princesa e esperou que ela se aproximasse.
– Vamos, Hekamiah? – Auriel indagou, com seu
jeito delicado, abaixando levemente a cabeça.
O celeste indicou, respeitoso, para que ela fosse
à frente. Ela assentiu. Tocando o solo levemente
com seus pés descalços, Auriel saiu da sala pela
porta principal. À beira da piscina, ela balançou suas
belíssimas asas e seu corpo se ergueu no ar com a
mesma destreza de como se estivesse na água.
Hekamiah seguiu a moça e pairou ao seu lado
indicando a direção. Repentinamente, os dois
celestes desapareceram na imensidão acinzentada.
– E agora? – indagou Aron, olhando para Israel.
O anjo fitava, sorridente, o local onde os anjos
sumiram no céu e respondeu:
– Agora nós esperamos!

317
CAPÍTULO 27

– Minha princesa? – chamou Hekamiah


enquanto voavam. – Qual é a estratégia para
travarmos o ataque?
– O restante dos tronos! – A mulher falou
calmamente.
O anjo guerreiro a fitou com dúvidas no olhar.
Então ela acrescentou:
– Onze membros dos vinte e quatro tronos vão
nos ajudar nessa tarefa. – Auriel sorriu. – Eles já
estão a caminho. Veja! – A moça olhou para cima,
indicando para que Hekamiah olhasse.
Olhando na direção, o anjo percebeu uma
grandiosa luz dourada que os seguia sobre as
nuvens. Hekamiah fitou a princesa, satisfeito.
Enquanto rasgavam o ar rajando suas asas,
Aurieu mantinha sua áurea evidenciada
naturalmente. Centenas de tons enxurravam a
energia cintilando em ondas suaves. Hekamiah tinha
sua luz muito bem guardada. A princesa podia vê-la
envolvendo seu coração. A luz pulsava como
exatamente tinha que pulsar no coração de um
318
guerreiro. Ela demonstrou satisfação. Apesar de
Hekamiah escoltar a princesa, ali ele se sentia o
protegido. A exuberância de paz e proteção que
emanava dela era simples. Era o puro e refinado
amor presenteado pelo Pai.
Os dois avistaram o campo de batalha a cerca de
um quilômetro à frente e quinhentos metros abaixo.
Parecia um montante de formigas ferozes. Como a
legião angélica era consideravelmente menor do que
a horda demoníaca, era possível apenas enxergar
algumas asas brancas espalhadas.
Hekamiah e Auriel frearam e plainaram no ar
olhando a batalha acontecer.
– Siga e vá ajudar nossos irmãos, Hekamiah! – a
princesa disse, um tanto séria.
– Não posso te deixar sozinha, princesa!
– Faça o que estou pedindo. Ficarei bem! – disse
Auriel, sorridente, arqueando as sobrancelhas.
O anjo hesitou e a moça acrescentou:
– Pode ir!
O anjo meneou a cabeça, retirou a espada da
bainha e desceu em rasante na direção da batalha,
cortando o vento como um míssil. Em poucos
segundos, já plainava acima dos lutadores furiosos.
Em queda ao chão, dilacerou mais de quarenta
319
demônios antes de tocar o solo. Quando se pôs em
pé, guardou as asas e partiu para a luta, manejando
sua espada, como um samurai sobrenatural.
Após ter vencido mais de trezentos inimigos,
súbito uma explosão no céu, seguida de outra
explosão mais aguda. Hekamiah ergueu a cabeça e
viu o clarão ganhar as nuvens. Um corpo celeste caía
como um meteoro. Nesse momento, o anjo guerreiro
se lembrou de Aron falando: “Ele desceu como um
meteoro e matou todos no solo”. O campo de
batalha se aquietou e o único barulho que se podia
ouvir era do corpo cadente rasgando o céu.
Demônios e anjos fitavam o meteoro se
aproximando em velocidade descomunal. Quando o
corpo se aproximou e a energia brilhou ante o
impacto, todos os guerreiros no campo de batalha
levaram os antebraços à frente dos olhos.
Hekamiah tinha perdido as esperanças e se viu
meio a um poderoso ataque infernal que teria seu
sucesso nos segundos porvindouros. Com cerca de
um pouco mais de um segundo para agir, o celeste
investiu nas asas e voou contra o corpo cadente a
fim de chocar-se com ele.
Súbito, o choque aconteceu. Mas não como
Hekamiah esperava, ou como qualquer guerreiro
320
naquele campo de batalha esperava. De fato, era
Astaroth que descia com toda a sua fúria e eliminaria
todos os combatentes naquele lugar, se não fosse por
uma redoma de energia que segurou o impacto.
Quando o corpo do duque bateu contra o campo
energético, um estouro grandiosamente poderoso
aconteceu. Tudo ficou ainda mais claro perante a
magnitude daquela explosão. Uma energia possante
varreu a parte externa da redoma, deixando todos
dentro de uma meia esfera de luz.
Quando a luminosidade caiu e a energia furiosa
se dissipou, o batalhão de guerreiros reparou em
uma massa de seres celestiais que sobrevoava quase
o teto da redoma. Plainavam, movendo suas asas
com sutileza. Os sexos e raças se misturavam. Uma
potente luz dourada envolvia o corpo de todos eles.
Tinham os olhos fechados em uma espécie de
meditação. Na frente do grupo, com as mãos
levantadas, estava Auriel em profundo transe.
Acima da energia em forma de redoma
translúcida, plainava Astaroth. Fitava com cólera na
face os doze celestiais radiantes culpados pela
criação daquele campo energético. Tirando o duque,
todos os anjos e demônios abaixo, no interno da
redoma, foram tocados pelo amor supremo emanado
321
dos doze tronos. Suas armas já não se moviam mais
e os olhos estavam focados naquele ponto que
transbordava paz.
Apesar de transparente, quase que imperceptível,
a parede da redoma pulsava em tons indescritíveis.
O brilho nos olhos de todos os guerreiros, sem
exceção, naquele momento era puro. Não existia
mais vontade de luta.
Existia apenas uma vontade, a de amar.

322
CAPÍTULO 28

Antiga Mesopotâmia 2650 a.C.


Cem anos se passaram após o encontro dos
irmãos celestiais. Daniel não desgrudou de Mazarak
por nenhum dia em todo esse tempo. A esperança de
trazer o irmão de volta a sua antiga forma era grande
e nunca se apagava. Quem sabe não pudesse levá-lo
para o Céu novamente? Nos reinos pelos quais eles
passaram, criaram inúmeras personalidades. Agora
viviam no reino de uma cidade chamada Kish. Na
época, era governada pelo rei Enmebaragesi,
conhecido como Rei Mebaragesi.
Os celestes estavam no topo de uma escadaria.
Plantas verdejantes contornavam a transversal da
escada. O piso onde se encontravam era decorado
com belas esculturas de leões e muita natureza, com
seus jardins suspensos. De onde estavam, dava para
ver o grande rio Eufrates com suas águas cristalinas
banhando o reino. Muito distante, erguia-se uma
torre que um dia seria grandiosa. Durante sua
construção, dali cerca de duzentos anos, enfrentaria

323
o maior holocausto já passado pelos humanos, o
dilúvio.
Daniel e Mazarak conversavam sobre algum
determinado assunto, até que foram surpreendidos.
– Olhem vocês aí! – O homem estava
extremamente sorridente. – Os meus guerreiros
favoritos!
Os anjos menearam as cabeças, também
sorridentes.
– Olá, meu rei! – respondeu Daniel.
Mazarak se conduziu igualmente.
Com sua majestade excessiva para um homem
na casa dos quarenta anos, o rei trajava um lindo
roupão vermelho, que deixava seu peitoral com
músculos levemente delineados, à mostra. Mas o que
dava mais beleza àquelas vestes eram seus detalhes
de ouro em abundância. Exatamente o mesmo ouro
que ia nas argolas em volta de seus bíceps desnudos.
Outras menores rodeavam os pulsos. Um exagerado
colar de ouro pegava quase toda a região do
pescoço. Apesar da barba cheia, negra, os traços do
rosto chegavam a ser delicados. O brilho reluzente
de sua coroa e brincos dourados, quando refletiam a
luz solar, chegavam a incomodar.

324
Ao lado e um passo atrás do rei, um homem com
o dobro de músculos de Daniel e um tanto mais alto
estava em prontidão. Mebaragesi arqueou uma
sobrancelha, inclinou o corpo um pouco para frente,
apontou o polegar para trás e disse:
– Vocês sabem que eu descobri porque
Uragamesh não sorri? – Ele colocou uma mão ao
lado da boca e encenou um sussurro. – Ele riu tanto
quando era criança que ficou bobo e não sabe mais
quando rir. Esses dias ele estava chorando porque
cinco mulheres o queriam ao mesmo tempo. –
Imediatamente o rei começou a gargalhar da própria
piada.
Os anjos também iniciaram risadas forçadas. O
grandalhão resmungou, mas não falou nada. O rei se
virou e olhou para ele franzindo as sobrancelhas. No
rosto, tinha um sorriso profundo, como de alguém
que acabara de se afundar em lágrimas criadas por
risos extremos.
– Calma Uraga! É apenas uma brincadeira. – O
rei soltou mais algumas curtas risadas e virou-se
novamente para os celestes. – Foi muito bom
encontrá-los! – O homem meneou um pouco a
cabeça e em seguida, já se virando para ir embora,

325
parou no meio do giro e indagou: – Vocês vão hoje
ao jantar cerimonial?
Os celestes confirmaram presença e ele se virou
totalmente. Acenando com a mão, falou um pouco
mais alto:
– Espero vocês lá!
– Eu gosto dele! – Mazarak disse a Daniel,
apontando com a cabeça para o rei que se afastava.
Daniel apenas encarou o irmão, ignorando seu
comentário. Após uma breve pausa, disse:
– O sol está se pondo. – O anjo fitou o astro. –
Vamos nos arrumar.
Mazarak meneou a cabeça e eles se viraram,
adentrando-se na grande estrutura em que
Mebaragesi entrou. Percorreram um alto e largo
corredor até chegarem a uma escada. Puseram-se a
subi-la e ao final, depararam-se com outro corredor,
que no fim tinha uma grande porta arqueada. Os dois
se aproximaram e Daniel empurrou uma das metades
da porta, abrindo-a. Ao entrarem no aposento, os
dois seguiram até seus dormitórios, que se dividiam
por um grande tecido de aparência pesada, vermelho
e com detalhes dourados.
– Pode ir se lavar primeiro, irmão! – disse
Daniel.
326
Mazarak meneou a cabeça e entrou no banheiro.
Uma grande banheira esculpida na pedra clara já
estava cheia com água cristalina. O celeste se despiu
rapidamente soltando apenas um lacre do tecido de
sua veste e logo ingressou na água.
Daniel separava as roupas que usariam naquela
noite. Tratava dos tecidos com gentileza esticando-
os sutilmente sobre a cama. Os dois roupões eram
longos. Um tinha a cor verde vibrante e o outro era
branco. Cada um deles tinha um tecido que ia até a
cintura, combinando perfeitamente com a veste. Ao
lado do verde corria um menor tecido vermelho. Ao
lado do branco tinha um amarelo, com alguns traços
verticais mais claros.
O anjo asiático saiu do banho enrolado em uma
espécie de toalha e falou para Daniel seguir em
frente. O anjo assentiu com a cabeça e seguiu para o
banheiro. No meio do caminho, tirou as roupas e as
deixou jogadas na frente da porta, entrando
completamente nu no aposento. Mazarak olhou com
reprovação e se aproximou recolhendo a pequena
trouxa de roupas do chão. Em seguida, empilhou-as
em um canto. Fitou as vestes limpas, perfeitamente
separadas em cima da cama do irmão e balançou a
cabeça em negativas. De nenhuma maneira
327
conseguia entender a personalidade oscilante de
Daniel.

* * *

Daniel saiu pela porta do lavatório e reparou no


irmão já trocado. Rapidamente ele se vestiu com a
roupa verde – os dois conversaram um pouco
durante esse tempo. Após Daniel estar pronto, eles
se deslocaram novamente ao grande corredor
externo. Após serpentearem pelo comprido labirinto
de corredores da torre, os dois anjos chegaram a uma
grande galeria decorada com peças douradas,
estátuas e muita cor. Os anjos andavam trocando
ideias sem ao menos repararem nas belas criações
artísticas. Afinal, já eram acostumados com a beleza
estonteante celeste.
Aproximando-se de uma grande porta, os dois
irmãos pararam à sua frente antes de abri-la,
sorriram um para o outro e cada um empurrou uma
metade. Subitamente, uma explosão em palmas se
sucedeu em um grandioso alvoroço de prestígio aos
celestes. Os dois homens entraram sorridentes no
monumental salão. Daniel foi recepcionado por suas
lindas garotas na casa dos vinte anos. Mazarak por
328
apenas uma mulher na casa dos quarenta, porém era
mais bela que as duas de Daniel juntas. Seus olhos
cativavam o anjo renegado e ele não conseguia
desviar seu olhar do dela. Ela sorriu e soltou uma
piscadela.
Os dois celestes e as três moças se afundaram
mais no salão. Mais à frente, os cinco foram
recepcionados por Mebaragesi, juntamente com seu
fiel guarda costas Uragamesh.
– Gostaram? – indagou o rei, sorridente.
Daniel sorriu e depois disse:
– Elas são belas e ficamos muito gratos por isso.
Mas não é necessário. – O anjo fitou as três
mulheres e com muita educação acrescentou: –
Podem ir meninas. Muito obrigado por tudo! Podem
curtir a sua noite nesse delicioso banquete. – Abriu
os braços e girou o corpo levemente.
Por um momento, aquele grupo, com cerca de
dez pessoas, calou-se. Rapidamente, quebrando o
gelo, Mebaragesi soltou uma risada sincera.
O resto do salão já se embebedava com sua
receita favorita, a Kash, um líquido amarelo
espumoso. Conversavam e se entretinham entre si
com risadas e muita alegria.

329
– Podem ir, meninas – apontou o rei com a
cabeça, sem deixar cair os cantos da boca.
As mulheres assentiram e se deslocaram para
fora do grupo. Menos a mulher de quarenta anos,
que quando dava seu calmo passo à parte externa
daquele pequeno círculo de pessoas, foi pega por um
braço.
– Espere! – disse Mazarak, sorrindo com os
olhos.
Todos olharam surpresos, principalmente
Daniel.
– Eu vou aceitar a minha companhia! – O anjo
meneou a cabeça ao rei.
Daniel não acreditou e chegou a questionar
dentro da própria cabeça a personalidade que o
irmão tinha adquirido naquele cento e cinquenta mil
anos dentre os humanos.

330
CAPÍTULO 29

250 milhões de anos a.C.


Aquela foi a era dos anjos. Eles foram criados
um a um e todos passaram por situações
semelhantes, cada um no seu tempo. Fora aquele o
momento de Barrattiel. Após suas criações, todos os
anjos passaram uma fração de sua vida na Terra. Um
plano fora minuciosamente elaborado pelo Pai, para
que em determinado momento, o despertar do
Conhecer florescesse. Todas as personalidades
angélicas foram construídas a partir daquele
momento, cada um na sua fração da história.
O corpulento Barrattiel tinha acabado de
encalhar na maravilhosa ilha da Vida Eterna. Deus
tinha acabado de criá-lo e o colocou no momento
perfeito do tempo, em que seria construída a
personalidade mais adequada para ele.
O anjo estava à beira de um vulcão com as asas
abertas. Fitava a lava que borbulhava muitos metros
abaixo. Ainda não entendia com clareza todo o lance
da criação. Não entendia o fundamento encontrado
pelo Pai para criar tudo.
331
O celeste investiu nas formidáveis asas e alçou
voo transpassando a fumaça negra que exalava do
gigante vulcão. Pairando no céu calmamente,
observava a vegetação densa, confusa em cores
magníficas. Animais gigantes, reptilianos, rodeavam
todas as áreas, dividindo-se em subespécies. Uma
em especial chamou atenção do anjo. Era dotada de
uma enorme boca com presas agudas, relativamente
pequenas. Tinha em torno de dois metros e meio de
altura, sete de comprimento, mais três de rabo. Eram
quadrúpedes, sendo que as patas traseiras eram mais
robustas.
O anjo sobrevoava um grupo de répteis que
descansava ao sinal da noite. Aterrissou em uma
abertura, numa gigantesca montanha rochosa e ficou
lá durante a madrugada, em profunda meditação.
Pensava e encaixava as peças daquele dia, em sua
mente. Barrattiel era um anjo em contínua evolução.
Fora enviado para a Terra em missão de
aprendizado. Um período em que estaria sozinho
pelo tempo em que fosse necessário para entender a
criação.
Quando o sol estava para raiar, ele aguardou os
répteis acordarem, ansioso. No dia anterior – o dia
em que tinha chegado ao planeta -, aprendeu a ser
332
mais cauteloso. Então esperou os animais tomarem
seu longo banho de sol. As maiores criaturas
começaram a sair para a caça. Sem pestanejar,
Barrattiel explodiu suas asas e se deslocou da
abertura, plainando acima delas.
De longe, o anjo fitava todos os quadrúpedes
andantes e reparou quando dois deles se destacavam
aproximando-se de seres mais frágeis. Aqueles
seriam seus escolhidos da vez – pensou Barrattiel.
Um dos grandes répteis aguardou, enquanto o
outro se aproximava dos pequenos animais.
Repentinamente, o ataque aconteceu e a presa foi
fisgada facilmente. A segunda grande criatura se
aproximou da criatura caçadora e os dois começaram
a se alimentar. Nesse momento, Barrattiel franziu as
sobrancelhas, sorriu como uma criança arteira e
desceu em rasante na direção dos bichos.
Os dois monstros se alimentavam tranquilos.
Súbito, um deles foi puxado pelo rabo cerca de dois
metros para trás. Virando a cabeça, o animal bateu
as mandíbulas tentando esmagar o anjo, que o soltou
na mesma hora, voando alguns metros acima. A
criatura o encarou e se virou para continuar se
alimentando. A outra pareceu nem perceber o
movimento, sem desprender-se de sua refeição.
333
Barrattiel novamente manejou suas asas para
que seu corpo descesse minuciosamente. Tocando o
pé no solo, aproximou-se de novo da criatura e
repetiu a mesma ação anterior. Fugindo de uma
grande mordida, o anjo voou, deslocando-se dessa
vez para trás. O animal o encarou e ameaçou segui-
lo, mas não foi o que fez, virando-se e voltando para
sua refeição.
O réptil estava concentrado no seu alimento,
mas volta e meia fitava o celeste com um dos olhos.
Barrattiel coçava a barba rala, pensativo e ao
perceber que o animal estava esperto, bolou um
plano diferente: investiu nas asas e subiu em direção
às nuvens, desaparecendo totalmente da vista do
monstro. Aguardou alguns minutos até que a criatura
o esquecesse.
Súbito, o anjo guardou as asas e despencou,
deixando que seu corpo deslizasse em queda livre no
ar. A velocidade aumentava a cada fração de
segundo. Rasgava as nuvens com seu grande corpo e
o vento forte chicoteava seu rosto, formando ondas
na pele.
Quando o corpo do celeste explodiu a barreira
das poucas nuvens claras e sua visão se cristalizou,
ele fitou ao longe uma imensidão azul que ainda não
334
tinha visto. Aquela era a coisa mais linda que já
tinha se deparado – pensou ele.
Como um míssil angélico, o anjo descia
deixando um rastro claro no ar. As cores do grande
horizonte que podia ver daquela altura eram
hipnotizadoras de tão belas. O solo se aproximava
rapidamente e o choque aconteceria nos próximos
segundos. Quase a trinta metros do chão, o anjo
explodiu suas magníficas asas e sua direção mudou
para horizontal. A pujança foi tão estupenda que a
terra abaixo fora levantada quando seu corpo passou
como uma rajada clara. As folhas das árvores não
aguentaram a pressão e se desprenderam, caindo ao
leve balanço do vento rodopiante. Animais o
observavam passar deslocando o ar à sua volta, com
voracidade.
O celeste se ergueu algumas dezenas de metros e
seguiu em direção à bela imensidão azul. A
ansiedade estava estampada em sua face. Naquele
momento, colocava todo o poder concedido a ele nas
asas. Estas se manifestavam com desenvoltura
impulsionando seu corpo com destreza.
O anjo cortou o ar até se aproximar da
imensidão azul. Em certo ponto, antes de quebrar a
barreira que separava a areia perolada do infinito
335
azul, que quase se confundia com o céu, o celeste
parou no ar e fitou o horizonte cristalino. Meneou a
cabeça propriamente para si e seguiu adiante,
enxurrado de satisfação. Ultrapassou a linha e
rapidamente se viu meio ao azul balançante.
Colocou mais força nas asas e aumentou a potência
da força inserida nelas. Seu corpo explodiu em fúria,
mar adentro, como uma bala.
Avistando nada, a não ser água a sua volta, o
anjo viu uma gigantesca montanha cônica que se
erguia do mar. Ele se aproximou e pousou em seu
solo, ao seu topo. Fitava o mar azul, que aos seus
olhos, ainda não apresentava nada misterioso.
Observou suas ondas se formando a partir do vento
que soprava terra adentro, formando pequenas marés
dançantes. Em sua grandeza, refletia a luz do sol. O
rastro reluzente, deixado por ele, seguia até onde o
celeste não podia mais ver. O astro brilhava ardente,
fazendo com que o anjo estreitasse os olhos. Fitava o
mar com seu olhar sério. Meditava, estudando o
novo ambiente, ficando ali por horas.
Em certo momento, após a longa pausa, o anjo
alçou voo. Bateu as asas furiosamente, alcançando
certa velocidade. Algumas ilhas pontiagudas, que se
erguiam do mar, passavam como vultos por ele.
336
Passados cerca de cinco minutos plainando em
alta velocidade, Barrattiel diminuiu o ritmo para
melhor observar a redondeza azul. Abaixo, enxergou
alguns enormes cardumes de pequenas criaturas
marinhas, que em milhares, dançavam no mar. O
celeste, que nunca vira algo tão exuberante, subiu na
vertical a fim de abrir seu campo de visão.
Impressionado com a beleza daquela imensidão e de
seus seres, o anjo não achou que veria algo ainda
mais belo. Chegando ao ponto em que ficaria
abismado com a venustidade da criação do Pai,
Barrattiel parou e fitou incontáveis animais
marinhos coreografando suas danças naturais.
Serpentes gigantes nadavam sob e sobre a água
com suas cristas vermelhas, subiam e desciam como
ondas em perfeita sincronia. Ocupando o mesmo
local, pequenos seres saltavam da água cristalina,
para assim caírem novamente. Formavam uma dança
que chegava a ser poética, quando se misturavam
com as serpentes. Algumas espécies chegavam a
plainar sobre a água quando abriam as barbatanas
que imitavam asas. O reflexo do sol, quando refletia
na pele das criaturas, ajudava a criar aquele
momento confuso em cores e brilho.

337
Súbito, o celeste reparou em uma grande
mancha escura a algumas centenas de metros, mas
que se aproximava rapidamente. Quando a mancha
já serpenteava pelas proximidades, Barrattiel
identificou o que seria uma enorme criatura, muito
maior do que qualquer uma que já tinha visto. Uma
tensão sombria tomou conta do ambiente dentre as
menores criaturas. Então começaram a nadar em
direção oposta, a toda velocidade.
Barrattiel não gostou da interrupção da
apresentação teatral dos animais e sentiu o mais
próximo que poderia sentir da raiva daquela gigante
criatura que espantara os seres menores. O anjo
investiu nas asas e foi observar mais de perto.
Plainou alguns segundos poucos metros acima da
água. Nadando em círculos, abaixo dele, a mancha
escura deslizava como uma cobra sob a água do mar.
De repente, uma enorme boca vasou a água indo de
encontro ao anjo. Ele não se esquivou e deixou que o
monstro fechasse a boca sobre ele.
Enquanto o corpo da besta subia, após seu
grande impulso da água, Barrattiel segurava sua
boca aberta, posicionando os membros entre seus
dentes. Seu corpo não deixava que ela fechasse a
boca, funcionando como uma alavanca. Quando o
338
corpo escamoso do monstro começou a despencar,
indo novamente de encontro ao mar, Barrattiel bateu
suas asas e foi impulsionado para trás,
desprendendo-se da pegada das grandes mandíbulas.
Então mergulhou em direção à criatura. Antes de ela
tocar a água, o anjo agarrou seu rabo e a trouxe
novamente para cima. Começou a girar o gigante
corpo do monstro inúmeras vezes. Após alguns
instantes, arremessou o corpo monstruoso ao longe,
enterrando-o completamente no mar. O impacto fez
com que a água subisse na forma de um cogumelo.
A criatura se pôs a fugir. O anjo observou com
satisfação.
A comemoração interna de Barrattiel fora
interrompida quando ele avistou, muito longe, uma
massa negra subindo na direção das nuvens.
Explodiu o vento e saiu naquela direção como um
míssil. Utilizando toda a potência de suas asas,
aproximou-se da terra firme daquela região em cerca
de cinco minutos. Reparou em muitos fragmentos
escaldantes que caíam do céu como pequenos
cometas após sucessivas explosões do agigantado
vulcão. Naquele momento, os animais corriam
desesperados, todos na mesma direção. Os mais
lentos eram abatidos pelo fogo.
339
Repentinamente, na região que contornava o
vulcão, em determinados locais, a terra começou a
brilhar. A fumaça surgiu desses pontos. Então
estouros também se iniciaram cuspindo lava. De
uma hora para outra, o grande vulcão se tornou um
gigante corpo escaldante que vomitava lava por
todos os seus orifícios. As grandes criaturas que
tinham conseguido escapar da primeira investida
natural, tornaram-se pequenas na escala daquela
magnitude, e naquele momento, todas pereceram.

A lava ardente lambia a região como um


tsunami em fúria. Por onde passava, deixava a
região coberta por brasas. Barrattiel não acreditava
no que via. Aquela beleza virtuosa em cores fora
transformada em um grande mar de lava.
Assistindo ao caos, com os olhos esbugalhados,
o anjo estava perplexo com tamanha desgraça. Até
que caiu em si e percebeu o risco que ele próprio
corria naquele local. Em seguida, uma grande
fumaça negra envolveu seu corpo em trevas. O anjo
disparou em linha reta, tentando se livrar daquela
escuridão.
As aberturas cuspiam rochas ferventes muito
altamente. Sem enxergar, o celeste se desviava dos
340
corpos escaldantes com seu puro reflexo. Após
alguns segundos voando em velocidade descomunal,
o anjo explodiu a barreira de fumaça escura.
Mudando sua direção, disparou em vertical,
contornando a névoa negra que subia até ele perdê-la
de vista.
O céu, naquela região, já tomava um tom mais
acinzentado. Parando no ar, o celeste teve uma visão
mais ampla do caos. O sítio, rico em cores, estava
escuro, inundado com rios vermelhos, escaldantes. O
anjo mergulhou como uma águia e ao se aproximar
do solo, seguiu na direção sul. Tentava chegar a um
lugar que não fora atingido.
Abaixo, avistava rios vermelhos, ardentes, que
escorriam de pequenos vulcões. Estes,
aparentemente, não existiam, mas depois da erupção
vulcânica, cuspiam lava em abundância. Isso
acontecia em todas as direções, até onde ele podia
enxergar. Rochas cônicas começaram a se erguer do
nada, explodindo pedras fogosas no ar. A visão do
mundo, naquele momento, era de um planeta
trevoso, não habitável.
A nuvem negra não parava de se expandir. Em
poucos minutos, todas as erupções se fundiram,
transformando-se em um monstruoso mar de lava. O
341
dia se tornara noite. As águas frias borbulhavam
como caldeirões escaldantes. Um vulcão atrás do
outro entrava em erupção. O anjo sentiu seu
estômago remexer, franziu as sobrancelhas e
explodiu o vento à sua volta, partindo. Colocou toda
a potência possível nas asas. Seu corpo se movia
como uma bala perfurando o ar.
Em alguns minutos, Barrattiel chegou a um local
que ainda não tinha sido atingido pelo super vulcão.
Mas o ar já se enegrecia. Podia avistar os animais
correndo na direção oposta ao monstro de fumaça. A
névoa escura crescia em todas as direções. O celeste
ainda não sabia como voltar para o Céu e teve que se
virar como pôde. Para fugir daquela calamidade,
inclinou o corpo e começou a subir aos céus.
Atravessou todas as fases da atmosfera, encontrando
o espaço sideral. Plainava no ar, assistindo, de muito
longe, o holocausto que ganhava proporção.
Daquela altura, o anjo reparou que o planeta era
dividido em apenas duas partes, o azul e o marrom.
A parte amarronzada brilhava em diversos lugares,
nos momentos eruptivos. A fumaça escura subia e ia
se expandindo, misturando-se com a atmosfera
terrestre.

342
Sem precisar de oxigênio ou de alimentos
orgânicos, Barrattiel assistiu à acometida natural
terrestre durante dias, plainando no espaço sideral. A
visão do planeta já não era mais cristalina em função
da névoa escura que o cobria. Completamente
perdido em seus próprios devaneios, o anjo não
sabia como proceder. Súbito, a apenas uma centena
de metros, uma luz dourada apareceu e clarificou-se
diante de seus olhos. Um anjo se materializou e
voou em sua direção. Na aproximação, Barrattiel
reparou em suas asas branquíssimas. Os cabelos
dourados do celeste balançavam na medida em que
seu próprio cosmo dançava por seu corpo. Os olhos
azuis brilhavam em uma luz própria.
– Olá, Barrattiel! – disse o celeste de cabelos
dourados, sorridente.
– Quem é você? – indagou o gigante.
O anjo de cabelos louros cerrou os olhos, abriu-
os e disse calmamente:
– Meu nome é Haziel – uma breve pausa –.
Você já teve sua tarefa cumprida. Essa era, neste
planeta, acabou. Nós dois juntos ajudaremos na
construção de uma NOVA ERA.

343
CAPÍTULO 30

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
A redoma pulsava e em seu interno era
esbanjado o amor dos doze tronos. Todos os
corações, naquele ambiente, estavam tocados. O
brilho nos olhos de celestiais e infernais era intenso.
Em um ponto do campo estava Hekamiah com seu
olhar penetrado nos doze. Haziel, Daniel e
Barrattiel, que combatiam próximos a ele, tinham
suas espadas tocando sua ponta no solo.
Repentinamente, todas as armas dos lutadores na
arena de combate caíram no chão. O som de metal se
chocando contra as pequenas rochas no solo foi
grandioso, mas nenhum dos lutadores perdeu seu
foco dos doze. Aquele sentimento era indescritível
para os celestes, quanto mais para os infernais, que
eram movidos por ódio e vontades escrotas.
Fora dos limites das paredes da redoma, Caliel
chegou repentinamente como um vulto. O anjo
reparou na completa cena maravilhosa, calma, em
seu interior. Em algum ponto da sua visão, o anjo
344
percebeu certo movimento. Ele direcionou o olhar.
No mesmo momento, seu coração bateu na garganta
e sua respiração parou por um segundo. Cerca de
duzentos metros dele, estava Astaroth sobrevoando a
redoma, encarando-o. O sorriso malévolo do caído
era assustador.
Completamente apavorado, Caliel investiu nas
asas e se pôs a voar com toda a sua velocidade.
Astaroth disparou na sua direção. O anjo ruivo deu
uma volta na redoma com esperança de alguém
perceber o movimento, mas o transe lá dentro era tão
grande que nada se moveu.
O ruivo voava, desesperado, colocando toda a
sua força nas asas. O tempo todo olhava para trás,
reparando que Astaroth estava mais próximo a cada
segundo. O duque do inferno voava com seus
punhos fechados. O olhar rubro era tenebroso.
Astaroth voava como uma águia perseguindo
sua pequena presa no ar. Aproximava-se de seu
corpo rapidamente e em meros vinte segundos já o
seguia na distância de vinte metros.
A desesperança corroía as veias do celeste. Seu
sangue fluía tão rápido quanto ele voava. O demônio
estava chegando perto e em qualquer momento daria
o bote. Caliel não se daria por vencido e usaria toda
345
a sua energia até que sua última gota de sangue
caísse.
O demônio já chegara a cinco metros dele e
ainda se aproximava, quando gritou:
– Não adianta fugir! – Seus olhos pegaram fogo
e suas veias saltaram. Ele abriu as mãos ao ponto de
agarrar o calcanhar do anjo ruivo que fugia como
uma pequena presa de um grande falcão.
Por fim, Astaroth agarrou a perna do ruivo que
imediatamente perdeu força de voo.
– Te peguei! – disse o demônio, rindo.
Súbito, uma grande explosão no céu. Ainda mais
forte do que a outra quando o príncipe do inferno
chegou. Astaroth perdeu a concentração e acabou
largando sua presa. Ele viu quando Caliel saiu em
disparada, distanciando-se. Ficou parado e fitando o
corpo cadente com a mão na frente dos olhos. O
meteoro se aproximou em velocidade colossal. Em
determinado momento, mudou seu curso e foi
diretamente em direção ao duque. Não tendo tempo
de se desvencilhar, Astaroth recebeu o gigantesco
impacto. Uma luz brilhou na força de uma bomba
poderosa e seu corpo bateu com violência
extraordinária na redoma, gerando mais uma
agigantada onda de choque que varreu o campo
346
energético. Imediatamente, o demônio foi
nocauteado e despencou das alturas com suas lindas
asas desordenadas. O corpo rolava no ar e seus
cabelos louros esvoaçavam com o vento.
A vinte metros do chão, Astaroth despertou e
fitou o solo aproximando-se rapidamente. Pensando
no impacto, investiu nas asas e flutuou sobre o solo
fazendo com que folhas secas no chão levantassem
diante da força do vento.
O duque alçou voo e ganhou altura. Acima da
redoma, plainava uma figura celestial, de majestade
formidável. Os cabelos prateados e longos
balançavam ao forte vento. Seus olhos, também
prateados, brilhavam intensamente. Lampejos do sol
ofuscado refletiam sobre os detalhes dourados de
suas vestes claras. Segurava sua espada dourada com
as mãos e montava guarda na frente de Caliel, que se
escondia atrás de seu grande corpo.
– Fuja, Caliel. Tenho uma tarefa a terminar. –
Mesmo atrás de suas costas, a figura majestosa
percebeu o movimento do pescoço de Caliel
enquanto ele meneava a cabeça – Vá... Agora!
– Obrigado, Primeiro Comandante! – disse
Caliel.

347
O anjo ruivo seguiu para o outro lado da redoma
e ficou ali, observando o grande combate que se
sucederia.

348
CAPÍTULO 31

Antiga Mesopotâmia 2650 a.C.


– Você tem certeza disso, irmão? – indagou
Daniel.
Olhando para a moça, Mazarak soltou uma
piscadela e disse em seguida:
– Tenho mais do que isso, irmão! – Indicou com
a palma da mão para que a mulher o acompanhasse.
O casal se deslocou rumo ao fundo do salão.
Daniel ficou ali, observando, sem tirar os olhos
deles.
– Deixe que ele se divirta! – disse o rei,
cutucando seu ombro.
O anjo o olhou um tanto sem graça. Espiou
novamente o irmão, que já sumia no meio da
multidão e deslizou na conversa do grupo.

* * *

Mazarak e a bela mulher deslizavam pelo


corredor externo do salão.

349
– Você é uma bela mulher! – disse Mazarak,
completamente hipnotizado, contemplando os olhos
levemente puxados da mulher.
Ela sorriu, olhou para baixo com as bochechas
avermelhadas e agradeceu.
– É sério! – disse o anjo asiático esboçando um
grandioso sorriso. – Como é o seu nome?
Os olhos da mulher brilharam quando ela disse:
– Aniel!
A testa de Mazarak se franziu e ele exclamou:
– Esse não é um nome comum para essa região!
– Sim, eu sei! – respondeu ela. – Quando eu era
mais nova, minha mãe me disse que a história por
trás desse nome é grande.
O anjo arqueou as sobrancelhas e soltou:
– A história que eu sei sobre esse nome também
é muito grande.
– O que você sabe sobre esse nome? – indagou a
mulher, colocando-se em sua frente, sorrindo.
– Não é nada! – Mazarak fechou os olhos,
abaixando a cabeça, rindo.
– Conte-me! – A mulher entrelaçou as mãos na
frente do rosto e seus olhos brilharam diante da luz
do luar. – Por favor!

350
– Não é uma história verdadeira! – disse o anjo,
enquanto mexia em uma folha do jardim que
contornava o corredor.
– Mesmo assim, eu quero saber!
– Tudo bem! – Essa é a história do anjo Aniel.
– Anjo? – indagou a linda mulher, um tanto
impressionada.
– Sim! – O celeste riu. – Anjo! Eu disse que não
era verdadeira. – Uma breve pausa. –Tá vendo?! É
uma história besta! Deixa pra lá.
– Não, agora eu estou curiosa! Conte-me. Por
favor, por favor! – A mulher segurou o braço
desnudo do anjo e nesse momento arregalou os
olhos. Rapidamente olhou para baixo e depois fixou
o olhar em seu olho novamente. – Antes me diga seu
nome!
O anjo sorriu.
– Mazarak!
– Mazarak? Que nome forte! – afirmou ela.
– Obrigado! – Ele meneou a cabeça.
– Agora me conta a história! – Ela tinha o braço
preso ao do anjo.
–Tá bom. Eu contarei!
O celeste deu uma longa respiração e começou a
andar novamente. A mulher andava ao seu lado.
351
– Há muito tempo, um valente guerreiro
angélico, chamado Aniel, foi o responsável pela
descoberta da traição no Céu.
– Traição no Céu? – indagou a mulher.
– Sim, é apenas uma história! – O anjo deu um
risinho.
Ela abriu um sorriso cativante. O celeste
prosseguiu:
– Como eu dizia, a traição foi descoberta por ele.
Os revolucionários conseguiram um grande grupo de
anjos, manifestando uma guerra feroz que se
sucederia no Céu. Isso só pôde ser impedido pelo
fato de Aniel ter descoberto a tempo.
– Olha, olha! – Ela aplaudiu. – Viu? Uma grande
história!
– É igual a da sua mãe? – indagou Mazarak.
Ela baixou a cabeça e cerrou os olhos.
– Não sei!
– Como você não sabe?
– Não deu tempo de ela me contar!
O celeste engoliu a seco.
– Eu lamento por escutar isso!
– Não tem problema! – A mulher levantou a
cabeça, sorrindo. – Já faz muito tempo! – Aniel
parou e se colocou na frente do anjo novamente em
352
um impulso. – Chega de histórias tristes! Quer dar
uma volta na beira do rio?
– É claro! – O celeste meneou a cabeça.

* * *

Passadas cerca de duas horas que Mazarak tinha


saído do salão, súbito Daniel teve uma sensação
indescritível que corroeu seu peito. Ele colocou a
mão sobre os músculos peitorais e respirou fundo.
– Está tudo bem? – indagou o rei.
– Sim, sim! – O anjo tinha as sobrancelhas um
tanto franzidas enquanto massageava o peito – Faz
tempo que Mazarak saiu, né?
Uragamesh se inclinou para frente e disse em
um sussurro divertido:
– Ele deve estar se divertindo! – O grandalhão
ao menos sorriu perante a própria piada.
O restante da pequena massa soltou algumas
risadas.
– Deixe-me ver se está tudo bem! – disse Daniel,
deslizando-se para fora do grupo.
– Deixe-o, rapaz! Guerreiros também precisam
se divertir! – disse o rei, em uma risada.
Todos em volta de Enmebaragesi gargalharam.
353
– Eu já volto! – Daniel meneou a cabeça e
depois se retirou do salão.
O anjo percorreu o corredor externo do salão e
ao seu final desceu uma grande escada que dava no
piso inferior. Toda a região era forrada e contornada
com diversos tipos de plantas. Na corrida dentre
aquela região natural, o celeste às vezes trombava
com alguns galhos, fazendo com que plantas se
desprendessem e caíssem no chão.
Com a grande festa rolando, o reino estava
vazio. O anjo observou isso e olhando para todos os
lados, repentinamente deu um salto, passando por
cima de um vão que dava no piso inferior. Tinha dez
metros de largura e vinte de altura. Caiu do outro
lado e continuou trotando. Colocou a mão do lado da
boca e gritou:
– Mazarak?
Não ouviu nada, além do sopro do vento. A
sensação em seu peito o angustiava. Ele levou a mão
até lá e o massageou novamente.
Após algum tempo, o anjo já tinha percorrido o
reino completamente. Perdeu as esperanças de
encontrar o irmão. Nesse momento, ele espreitou por
todos os lugares. Vendo que nada se movia,
explodiu suas asas e alçou voo. Seu corpo subiu na
354
escuridão cerca de duzentos metros e ele começou a
plainar sobre a região.
Após apenas um minuto voando, o anjo avistou
o irmão e quase perdeu altitude com a visão. Uma
corrente elétrica passou por sua espinha. O estômago
regurgitou.
– Não! – disse o celeste para si mesmo.
Mazarak estava jogado à beira do rio Eufrates.
Daniel desceu em rasante, na direção do irmão,
gritando seu nome.

355
CAPÍTULO 32

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
O anjo e o demônio flutuavam acima da redoma
de energia pulsante. Um encarava o outro com as
faces fechadas. Repentinamente, Astaroth esboçou
um sorriso.
– Quanto tempo, comandante. Estava com
saudades! – disse o demônio.
– Eu não posso dizer o mesmo, Astaroth! – disse
o primeiro comandante, um tanto ríspido.
– Quanta hostilidade! – O duque arqueou as
sobrancelhas. – Eu nunca imaginei que Bariel, o
primeiro comandante dos guerreiros de Deus,
perderia seu tempo comigo.
– Pare com graça! – disse o comandante. – Você
sabe o porquê de eu estar aqui. Vamos logo acabar
com isso.
Bariel cerrou os punhos. Lampejos energéticos
começaram a refletir em volta de seu corpo. Seu
cabelo esvoaçava com a força do vento, mas também
começava a dançar em várias direções diante da
356
exposição de seu cosmo. Súbito, explodiu
completamente sua áurea, que pulsava como um
agigantado incêndio.
O demônio entortou a boca e meneou a cabeça.
– Grande poder, comandante! – uma breve pausa
– Mas será que é o suficiente para me derrotar? – O
demônio semicerrou os olhos e explodiu sua
grandiosa energia trevosa.
– Não sei se é o suficiente! – respondeu Bariel. –
Mas sei que lutarei com todas as minhas forças e
impedirei você de fazer o que quer que seja.
O comandante voou para cima do duque e os
dois corpos se chocaram, criando uma grande esfera
explosiva. A energia se chocou contra a redoma,
mas seus muros não sofreram nenhum abalo.
De dentro do campo energético, a princesa
percebeu a magnitude da energia em seu externo e
abriu os olhos fitando a parte de fora. Ela se
surpreendeu quando viu o primeiro comandante
lutando com um poder extraordinário contra o duque
infernal. Ambos tinham suas armas guardadas
trocando socos e chutes. Eram tão rápidos que quase
não dava para enxergá-los. Na investida de seus
golpes, os membros passavam como vultos até
atingirem seu objetivo final. Olhando no outro lado
357
da redoma, ela observou Caliel concentrado,
assistindo à luta.
– É só isso que você tem? – gritou Astaroth,
enquanto defendia um murro do primeiro
comandante.
Bariel puxou o braço de volta e flexionou a
perna preparando um chute lateral. O duque ergueu
sua canela para receber a pancada naquela região.
Fitando a perna do primeiro comandante, que saía da
sua posição original para acertá-lo, o demônio não
percebeu sua estratégia final, que era usar a perna
apenas como distração para assim lhe atribuir um
poderoso soco direto na face. O murro foi perfeito e
tão forte que arremessou o demônio a mais de
quinhentos metros.
O primeiro não perdeu tempo e rajou suas asas
na direção do corpo cadente do duque. Aproximou-
se dele como um relâmpago, preparando as duas
mãos para marretá-lo. Mas Astaroth não estava
nocauteado e usando do erro do anjo, acertou-lhe
uma poderosa joelhada no abdômen.
Na mesma hora, Bariel cuspiu sangue. Seus
olhos estavam esbugalhados e seu abdômen
flexionado para trás. Em seguida, percebeu o braço
do demônio se aproximando em forma de gancho.
358
Nesse momento, o comandante jogou o queixo para
trás e recebeu apenas uma fração do que seria o
golpe total. Seu corpo fora arremessado para cima.
Rapidamente se recompôs e deu uma cambalhota no
ar, para em seguida voar em direção ao duque.
O comandante se aproximou em centésimos de
segundos, mas Astaroth era hábil e o surpreendeu.
Tirando com muita destreza a espada da bainha, o
demônio percorreu o ar com sua arma na forma de
um arco, quase acertando Bariel. Captando o
movimento do demônio a tempo, o primeiro bateu as
asas freando seu corpo, sendo jogado para trás. A
lâmina passou rente ao seu peito, abrindo um
pequeno corte. O sangue vívido, de um vermelho
cristalino, reluzente, escorreu, manchando suas
vestes claras.
O anjo abaixou a cabeça, fitando o rasgo na
roupa manchado de vermelho brilhante, depois a
levantou e encarou Astaroth. As sobrancelhas de
Bariel abaixaram e seus olhos brilharam o tom prata,
quase se embranquecendo completamente. O
demônio puxou os cantos da boca e fez sinal com a
mão chamando-o para briga. Levantou sua espada e
segurou a empunhadura com as duas mãos.

359
O celeste estava visivelmente irritado. Respirou
fundo, também desprendeu sua arma utilizando o
dedão, quando um clique se sucedeu. Ele puxou a
espada e a posicionou para o combate.
O anjo e o demônio voaram um de encontro ao
outro. Bariel tinha sua lâmina apontada para frente,
lampejando seu dourado, indo até o infernal.
Astaroth levantou sua lâmina acima da cabeça, na
esperança de acertá-la na parte superior do corpo do
primeiro comandante.
Os dois lutadores rasgavam o ar com suas asas.
Um dos dois cairia diante de alguma das investidas.
Bariel respirava fundo e tinha seu olhar concentrado.
Astaroth tinha ódio no rosto e suas veias saltavam
por todo o corpo. O impacto dos corpos se sucederia
naquele momento. Súbito, ambos trombaram com
muita violência contra um campo magnético
invisível, sendo jogados para trás fortemente.
Um tanto desnorteados, os combatentes levaram
alguns segundos para ordenarem o raciocínio. Os
dois tinham as mãos em suas cabeças e as
massageavam onde tinham se chocado. Astaroth
voltou a si mais rápido e novamente partiu para cima
do anjo. Seu corpo bateu novamente contra uma
camada transparente. Bariel, nesse momento,
360
deslizava um pouco para trás na intenção de ganhar
distância e tempo, enquanto se recompunha.
Astaroth bateu suas asas e seguiu na direção
vertical a fim de passar por cima do véu. Não foi
isso o que aconteceu. Rapidamente o duque bateu a
cabeça e em seguida o corpo contra a camada
superior da parede translúcida. Massageou a cabeça
e desceu para passar por baixo. Dessa vez desceu
com os pés apontados para baixo. Como previa,
encontrou também a parte inferior da cela.
O primeiro comandante se recompôs
completamente e reparou enquanto Astaroth flutuava
e tocava as paredes do que parecia ser uma espécie
de cadeia transparente. Percebendo a prisão do
demônio, Bariel também deslizou pelos arredores e
percebeu que não estava preso. Nessa hora sorriu e
guardou sua espada.
Olhando para cima, fitou uma luz que descia
rapidamente do meio das nuvens. Logo a bola
inteligente de energia se aproximou e parou em sua
frente, dissipando sua luz deixando-a desvanecer aos
poucos.
– No momento em que percebi, soube na mesma
hora que tinha a mão de vocês nisso! – disse Bariel,
esbanjando seu sorriso.
361
À sua frente, dispunham-se mais onze anjos
característicos aos doze de dentro da redoma. Com
esses, totalizavam vinte e três dos vinte e quatro
tronos, em todo o campo de batalha.
Caliel plainava ao lado dos onze e tinha um
sorriso de satisfação estampado no rosto.

362
CAPÍTULO 33

Antiga Mesopotâmia 2650 a.C.


Daniel pousou como um meteoro ao lado de
Mazarak e correu até seu corpo. Ao se aproximar,
uma onda de tranquilidade inundou seu peito. Seu
irmão respirava e estava apenas desacordado.
Imediatamente ele o amparou nos braços e alçou
voo. Subindo a certa altura, onde não seria possível
avistá-los, o anjo sobrevoou o rio Eufrates alguns
instantes tentando localizar o motivo de o irmão
estar daquele jeito, mas tudo estava calmo e
desértico.
O celeste decidiu seguir até o reino. Reparando
que a festa ainda acontecia da mesma forma que
quando partiu, com todos se divertindo no salão
cheio, decidiu descer até o pátio, na parte traseira da
torre principal. Guardando a asas, o anjo correu e
percorreu todos os corredores até chegar aos seus
aposentos.
Entrando pela porta, Daniel pôs seu irmão na
própria cama e em seguida lhe deu tapas no rosto.
Mazarak continuou imóvel, movimentava apenas o
363
peito em função do ar que entrava e saía de seu
pulmão.
– Mazarak? – chamou Daniel, enquanto lhe
atribuía mais tapas. – Mazarak? – chamou mais alto.
Nada, o irmão não se movia. Daniel se
preocupou e sentou-se ao seu lado, puxando seus
próprios cabelos, desesperado. Nesse momento,
pensou na mulher que saiu do salão com Mazarak e
que agora tinha desaparecido. Daniel o fitou, estava
desacordado, a face tranquila. Em seguida, levantou-
se e saiu do quarto com passos rápidos. Serpenteou
pelos corredores e avançou até alcançar a porta
principal do salão de festas. Sem pestanejar, andou
até a porta e a abriu, empurrando as duas partes,
usando os dois braços, imponente. Entrou no salão e
foi até o rei que já lhe fitava com olhos
esbugalhados. Quando se aproximou, o rei indagou,
antes mesmo de o anjo dizer algo.
– Está tudo bem, meu guerreiro? – As
sobrancelhas negras estavam baixas.
– Sim! Está tudo ótimo, meu rei! – Daniel
respondeu rapidamente.
Percebendo que o anjo tentava esconder sua
ansiedade muito mal escondida, o rei perguntou:
– Tem certeza de que está tudo bem?
364
– O senhor viu aquela mulher que saiu daqui
com Mazarak? – O celeste respondeu com outra
pergunta.
O rei franziu as sobrancelhas e com o olhar
sério, disse:
– Não! A última vez que a vi foi saindo com ele.
– Entortando um tanto a cabeça, perguntou: – O que
está acontecendo? Diga-me. Tenho certeza que
poderei te ajudar! – abriu um sorriso.
– Não sei se quanto a isso! – exclamou o anjo.
– Conte-me! O que é?
– É Mazarak! Eu o encontrei na beira do rio,
desacordado.
– Está tudo bem com ele?
– Aparentemente sim, mas eu não consigo
acordá-lo – disse o anjo, colocando as mãos na
cintura.
– Onde você o deixou? – indagou o rei.
– No nosso aposento!
– Podemos ir até lá?
O anjo deu de ombros. Mebaragesi se virou para
seu guarda-costas.
– Vamos, Uragamesh – disse, acenando com a
cabeça.

365
O grandalhão meneou a cabeça, indicando que
estava pronto para seguir em frente. Mebaragesi,
com toda a sua educação, pediu licença ao seu
círculo conversativo e os três se retiraram.
Logo o trio entrava no quarto e se dirigia ao
local onde ficava a cama do anjo desacordado.
Prostrados, à beira da cama, o rei se inclinou e
passou sua mão na frente do nariz de Mazarak.
Virou o corpo e inclinando-se mais, colocou o
ouvido em seu coração. Depois puxou suas
pálpebras e analisou suas pupilas.
Em pé, o rei tinha o dedo indicador na boca e
fitava Mazarak desacordado. Depois de alguns
segundos, manifestou-se:
– Uragamesh?
– Sim, meu senhor – respondeu o corpulento
homem.
– Por favor, busque Chiuaia.
– Sim, senhor! – O homem se retirou do
dormitório.
– Quem é Schiuia? – perguntou Daniel.
– O correto é Chiuaia. – O rei colocou as mãos
para trás e sorriu. – Você verá!

* * *
366
Depois de cinco minutos, a porta se abriu e
Uragamesh entrou. Quando o grande homem se
aproximou, Daniel reparou em uma pequenina
mulher andando atrás dele. Não tinha mais do que
um metro de altura. O tom de seu simples vestido
era rosado. Suas bochechas eram sobressalentes. A
pele escurecida brilhava aos lampejos do fogo que
pulsava nas lamparinas. O corpo cheio a fazia andar
com passos um tanto vacilantes.
Aproximando-se, ela fitou os olhos de Daniel
com os seus semicerrados. O anjo teve uma sensação
estranha nesse momento, não ruim, porém um pouco
desconfortável. Desviando o olhar, a mulher se
dirigiu ao anjo desacordado e não deu atenção nem
ao menos ao rei.
Enmebaragesi acompanhava a pequena com seus
olhos, mantendo suas mãos entrelaçadas atrás do
corpo. Com um pouco de dificuldade, Chiuaia subiu
na cama colocando um joelho de cada vez em cima
da cama. Por fim, engatinhou até perto do tronco de
Mazarak e sentou-se ao seu lado, com os joelhos
flexionados. Colocou suas mãos na coxa, respirou
fundo e fechou os olhos virando a cabeça para cima.

367
Nenhum dos três na sala esboçava qualquer
reação. A atenção sobre os movimentos da pequena
mulher era grande. O único barulho no recinto era da
calma respiração do anjo desacordado e da profunda
respiração de Chiuaia. De repente, ela começou a
sussurrar algumas palavras incompreensíveis muito
rapidamente. Após alguns segundos, Daniel
percebeu que ela repetia as mesmas quatro palavras,
sem interrupção.
Passados alguns minutos de murmúrio, súbito,
um vento soprou dentro do recinto e o fogo se
apagou extinguindo a iluminação do lugar.
– Por favor, acenda o fogo, Uragamesh – pediu o
rei.
– Sim, meu rei.
– Não é preciso! – disse Chiuaia.
Nesse mesmo momento, a luz voltou com o
retorno repentino do fogo, que se acendeu sozinho.
Os dois homens e o anjo, acordados, entreolharam-
se. Enmebaragesi mostrava nos olhos que já
esperava tal reação espontânea. Os cantos de sua
boca também se repuxavam levemente.
– Nós não podemos fazer nada! – a mulher
disse.
Daniel deu um passo à frente e indagou:
368
– O que ele tem?
Chiuaia fez uma pequena pausa de alguns
segundos, depois disse remexendo os olhos:
– Um demônio!
Daniel olhou desconfiado.
– Um demônio? – indagou o anjo.
– Sim, foi um demônio que fez isso a ele!
O rei e seu guarda-costas participavam do
diálogo só com seus ouvidos, atentos.
– Você não sabe o que está dizendo! – afirmou o
anjo.
A mulher o olhou por poucos segundos, com os
olhos estreitados, sem falar nada.
– Eu sei exatamente o que estou dizendo! – disse
ela com a voz suave, porém imponente.
– Desculpe-me pelo questionamento, mas onde o
senhor a encontrou, meu rei? – indagou Daniel com
reprovação à mulher.
Mebaragesi não soube o que responder.
Gaguejou coisas sem sentido, até que Chiuaia o
interrompeu, dirigindo-se a Daniel:
– Meu rapaz, você não sabe o que diz! – uma
breve pausa – Eu sei que você está ansioso pelo fato
de seu irmão estar assim. Mas a partir de agora, você

369
terá que abrir o jogo para que tenhamos pelo menos
uma chance de trazê-lo de volta.
Os dois homens voltaram suas atenções para
Daniel, um tanto desconfiados. Nessa hora, o anjo se
embaraçou e acabou mostrando que escondia algo.
– Do que ela fala, guerreiro? – indagou o rei.
– Nada! – Daniel franziu as sobrancelhas. – Não
sei do que ela está falando!
– Não tem problema, pode dizer a eles – disse
ela, levantando os ombros.
– Não! – gritou o celeste. – Eu não sei do que
você está falando.
O rei o olhava com os olhos esbugalhados.
Uragamesh se mantinha em postura, sério. Chiuaia
sentou-se à beira da cama e deu um pulo, chegando
ao chão. Andou até o celeste calmamente e se
aproximando, parou em sua frente. Olhou para cima,
inclinando bastante a cabeça para encontrar seus
olhos.
– Pode dizer-lhes! – Os olhos inocentes dela
brilharam ao lampejo do fogo nesse momento. – Eu
falo sério! Não tem problema.
O anjo mordia as mandíbulas, olhando para ela.
Fitou o rei, que não tirava os olhos dele e depois
olhou para a mulher novamente. Ela assentiu com a
370
cabeça. Sentindo-se encurralado, Daniel abaixou sua
cabeça, fechando os olhos. Depois de alguns
segundos de suspense, ele levantou a cabeça e abriu
os olhos. O olhar era sério e a sobrancelha estava
baixa. Então disse, olhando para Mazarak e depois
para o rei:
– Nós somos guerreiros de Deus!
O rei e seu guarda-costas o continuaram
olhando, inexpressivos. Então Daniel acrescentou:
– Somos anjos do Senhor!

371
CAPÍTULO 34

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Nelchael, um dos tronos com maior pujança,
flutuou, aproximando-se mais de Bariel. Suas asas
tinham uma grande envergadura. A sua energia
pulsante, colorida, era própria.
– O que faremos com ele? – indagou o trono,
apontando para Astaroth.
Bariel fitou o demônio dentro da caixa
translúcida, a cerca de vinte metros de distância.
Nesse momento, Astaroth estava imóvel e encarava
Bariel, com ódio na face. Suas asas branquíssimas
estavam abertas.
– Não sei o que podemos fazer nesse momento!
– O primeiro comandante apontou com o dedão para
trás, dizendo: – Temos que resolver primeiro o que
faremos com toda essa horda demoníaca.
O trono colocou a cabeça de lado para observar
a redoma forrada com guerreiros. O restante dos
tronos e Caliel aguardavam, atentos, o diálogo.

372
– Se o restante de nossos irmãos pararem de
emanar a energia, o retorno da batalha será imediato.
E isso não é bom! – uma breve pausa do trono –
Podemos perder alguns dos nossos também.
Bariel cerrou os olhos e negativou com a cabeça.
Depois os abriu e indagou:
– O que faremos então?
– Onde está Yesalel? – indagou Nelchael.
– Está lá! – Bariel apontou a redoma
transparente com a cabeça.
– Certo! – Quando o trono ia acrescentar outras
palavras a sua frase, repentinamente uma explosão
com um barulho, um tanto eletrônico, aconteceu.
Todos os celestes, naquele círculo, voltaram sua
atenção para o local de onde veio o som. Astaroth
tinha estourado a parede translúcida criada pelos
tronos e desaparecia no horizonte, voando, com toda
a sua velocidade.
– Não creio nisso! – disse Bariel, balançando a
cabeça.
Todos ficaram mudos por um momento.
– Sei que não contávamos com isso, meus
irmãos! – disse Bariel. – Mas agora já aconteceu!
Vamos nos preocupar com o que nos resta. – O

373
comandante virou-se para a redoma de energia e
cerrou os punhos.
– Como o faremos? – indagou Nelchael.
– Eu tenho uma ideia que talvez possa nos
ajudar!
O trono arqueou as sobrancelhas, em
expectativa.
– Qual de vocês tem habilidade o suficiente para
conseguir conversar com alguém de dentro da
redoma? – perguntou Bariel.
Com o olhar um tanto decepcionado, Nelchael
respondeu:
– Nenhum de nós aqui presente!
Bariel contraiu os lábios, pensou um momento.
– Eu irei buscar o vigésimo quarto.
O trono meneou a cabeça. Bariel respondeu com
o mesmo movimento.
– Vamos comigo? – Bariel perguntou a Caliel.
Caliel cerrou os punhos e respondeu que sim. Os
dois explodiram o vento e partiram na busca do
vigésimo quarto trono.

* * *

374
Aron olhava pela janela, sentindo-se
completamente seguro. Desfrutava da paz exalada
por aquele anjo diferente de todos que ele já tinha
visto. Depois veio a princesa ainda mais abundante.
De repente, dois pontos apareceram no céu e se
aproximaram rapidamente. O humano correu e foi
chamar Israel no outro cômodo. Quando Aron
retornou à sala, com o anjo, os dois pontos já tinham
chegado e entravam pela porta.
Primeiramente, entrou um anjo majestoso, com
cabelos prateados. Atrás dele, adentrava-se no
recinto, com a cabeça baixa, Caliel. Aron arregalou
os olhos, sorriu com a boca aberta e correu até o
ruivo. Na trajetória, passou ao lado do anjo de
cabelos prateados que andava de encontro a Israel. O
humano se surpreendeu com sua altura, não
conseguindo tirar os olhos dele enquanto passava ao
seu lado. O anjo continuou andando e parou na
frente de Israel, meneando a cabeça.
Aron deu mais dois passos, virando a cabeça
para Caliel, aproximando-se dele efusivamente.
– Olá, Aron! – disse Caliel, sorridente.
Antes que o humano perguntasse ou falasse
algo, o anjo acrescentou:

375
– A notícia boa é que agora eu ficarei aqui com
você! – O celeste tocou no próprio peito, sorridente.
– Como nos velhos tempos!
Aron repuxou os cantos da boca, satisfeito.
– Estamos partindo, Caliel! – Bariel falava atrás
de Aron, que se virou assustado. – Na medida em
que estiver tudo resolvido, você será avisado.
– Obrigado, Comandante! – Caliel meneou a
cabeça.
Bariel o encarou como em aceitação e chamou
Israel.
– Vamos?
– Sim! – respondeu o vigésimo quarto trono.
Israel prosseguiu e quando passou por Aron,
olhou-o com o canto do olho, sorridente. O humano
assentiu com a cabeça, também sorrindo. Os dois
celestes virtuosos seguiram ao campo de batalha,
erguendo voo e desaparecendo no Céu.
Aron e Caliel fitavam os grandes anjos sumindo.
No rosto, o anjo ruivo tinha um olhar de satisfação.
O humano apenas sorria, como fazia o tempo todo.
Então virou-se para Caliel e indagou:
– Quem era aquele anjo alto?
– Aquele? – Caliel respondeu com tanto orgulho
que suas palavras pareceram sair como canto – Ele é
376
Bariel, o primeiro comandante da casta dos
guerreiros de Deus.
Aron arqueou as sobrancelhas e balançou a
cabeça para cima e para baixo calmamente,
demonstrando uma forma de entendimento.

377
CAPÍTULO 35

Cidade da Luz, submundo – tempos atuais


O Céu era azul, como um maravilhoso Céu
claro, no seu mais belo tom. Nenhuma nuvem existia
para manchar aquela linda imensidão. Na parte
terrestre, grandes montanhas de folhas verdes se
erguiam, formando um grande labirinto vegetal.
Alguns pontos, no meio das montanhas serpentinas,
formavam riachos cristalinos. De alguma forma, a
água brotava de paredes translúcidas, surgindo do
nada, formando cachoeiras cristalinas que quando se
chocavam com a água das grandes bacias, criava-se
uma bela nuvem de vapor.
Ao longe, dava-se para avistar uma gigantesca
torre cônica. Era clara e refletia a luz que vinha de
algum lugar. Nenhum sol ou fonte de luz podia ser
visto. Tudo era claro, com cores vivas. Voando em
direção ao grande monumento, acima da imensidão
confusa em tons verdes e azuis, ia Astaroth, com
suas branquíssimas asas.
Oduque se aproximava da construção titânica
rapidamente. Quanto mais perto chegava, maior era
378
a impressão de estar se aproximando de uma
gigantesca parede de mármore branco,
completamente lisa.
Quando estava a cerca de duzentos metros da
torre, uma grande porta com cem metros de diâmetro
em forma de triângulo se abriu. O demônio entrou
na abertura e a porta se fechou da mesma forma que
se abriu. Era como se a abertura tivesse sido criada
do nada e lacrada do nada. A parede externa
continuou lisa da mesma forma. Na parte interna,
Astaroth plainava transcorrendo um largo corredor
triangular. Tinha a mesma altura da abertura em que
o infernal entrou.
Após um minuto de voo flutuante, o duque
chegou a um grande salão com o dobro da altura do
corredor. Esse tinha mais cinco saídas iguais a que
Astaroth percorreu para chegar naquele gigante
ambiente. Uma coluna central se erguia dochão até
alcançar o teto abobadado. O duque pousou ao lado
dessa robusta viga e sem guardar as asas, seguiu em
frente, andando por um dos corredores escuros.
Quando chegou à outra sala, um pouco menor,
fora recebido por Beelzebuth, um príncipe daquela
região do submundo. O receptor tinha aparência
bela. O rosto era completamente humano, porém de
379
uma beleza estonteante. Seus olhos tinham a cor de
quando um rio refletia a luz do sol ao final da tarde.
Os cabelos eram completamente negros e a pele
extremamente clara. Vestia-se com um sobretudo
azul marinho, elegante. Estava aberto, deixando
aparente uma camisa preta com o tecido liso, que
colava no seu corpo musculoso. A camisa estava por
dentro da calça preta, que caía sobre botas negras de
couro. Sua postura era mais ou menos como a de um
atleta olímpico em sua maior virilidade. Das costas,
desprendiam-se lindas asas como as de Astaroth,
mas suas penas tinham a cor laranja.
– Olá, meu irmão! – disse Beelzebuth,
abraçando-o fortemente.
Astaroth não fez questão de abraçá-lo. Quando
afastaram os corpos, Beelzebuth tinha um olhar
sincero de satisfação. Astaroth estava um tanto
ansioso, a face fechada.
– Eu tinha certeza de que você viria para este
lado! – exclamou Beelzebuth.
– Eu não tinha, meu irmão! – Astaroth franziu as
sobrancelhas. – Eu não esperava pelos tronos
naquele lugar. Se não fosse por eles, eu não estaria
aqui agora.
– Você viu o restante dos nossos irmãos?
380
Nesse momento, Astaroth enraiveceu a face e
não respondeu à pergunta. Então Beelzebuth
acrescentou:
– Não se esqueça de que eles também são nossos
irmãos. Eu apenas sinto muito pelo fato de acharem
que estão lutando por uma causa diferente da nossa,
que estamos aqui deste lado.
– Você, com essa sua história! – Astaroth se
virou afastando-se alguns passos. – Tantos milênios
e você não mudou nada!
– Um dia você entenderá, irmão!
– O que vou entender? – O duque louro se virou
falando mais alto. – Que os nossos “irmãos”– fez
sinal de aspas com os dedos – nos jogaram nesse
lugar, esquecendo-se completamente de nós? Isso
por causa daqueles – uma breve pausa e seu rosto
entortou em raiva quando disse – humanos... Que
não servem para nada!
– Meu irmão! – Beelzebuth sorriu. – Não precisa
ficar nervoso. Eu concordo que eles falharam na
forma em que resolveram as coisas. Mas hoje nós
entendemos o porquê da criação e temos que
compreender também porque eles fizeram o que
fizeram – uma breve pausa –. Nós somos todos
irmãos, brigando por causas iguais, hoje. – O duque
381
deu de ombros, fitando o chão. – Por falhas de todos,
agora temos que conviver com essa guerra, que não
sabemos quando acabará. E outra coisa – mostrou o
dedo indicador –, eles não sabem o que está
acontecendo aqui exatamente. O jogo pode virar
para o lado de todos. – Beelzebuth sorriu.
Astaroth assentiu com a cabeça e disse:
– Sim, eu sei disso. Mas eu não consigo não
sentir raiva deles.
– Eu sei, meu irmão. Mas o bom sinal é que pelo
menos agora você está aqui conosco! Deste lado. –
Beelzebuth apontou para o chão.
Astaroth sorriu. Beelzebuth colocou as mãos em
seus ombros e indagou:
– Como ficaram as coisas do outro lado?
– Não sei! Eu vim direto para cá. Não sei se
demorará para que Baal perceba a minha ausência de
seu inferno.
– Que ele leve o tempo necessário. Agora você
está sob a proteção do arcanjo de bronze – um
sorriso –. Vamos! Tenho que levá-lo até ele!

382
CAPÍTULO 36

Antiga Mesopotâmia 2650 a.C.


Depois da revelação de Daniel, o silêncio pairou
sobre o dormitório. O anjo fitava o rei tentando
decifrar algum sentimento, mas Mebaragesi apenas o
encarava seriamente. Uragamesh se mantinha em
sua postura de guarda, sem olhar exatamente para
nada. Chiuaia também aguardava alguma reação do
rei. Aquele momento constrangedor durou cerca de
um minuto.
– Eu pensei que nunca escutaria isso da sua
boca! – disse Mebaragesi.
O queixo do celeste caiu e ele não conseguiu
falar nada durante um momento.
– Você sabia? – indagou o anjo.
O rei sorriu, depois prosseguiu:
– Eu soube desde o momento em que te
encontrei caminhando com o seu companheiro à
beira do rio Eufrates.
– Ele é meu irmão de espírito! – Daniel falou
seriamente. – Porque você nunca me falou nada?
O rei fez uma cara de surpresa e disse:
383
– Porque eu achei que vocês teriam a sua hora! –
afirmou o rei, acrescentando: – Eu notei também que
tem algo de diferente em Mazarak. – Ele olhou o
anjo desacordado sobre a cama. – Mas não consegui
decifrar o problema.
– Sim! – O celeste também fitou o corpo do
irmão, deitado. – Ele está preso nesse corpo há mais
de uma centena de milhares de anos.
O rei esbugalhou os olhos e engoliu a seco.
– Como, preso nesse corpo? – indagou
Mebaragesi.
– Essa é uma história antiga, grandiosa. Teremos
que deixar para depois – disse Daniel, repuxando os
lábios.
Mebaragesi meneou a cabeça, dizendo em
seguida:
– Mesmo se eu não soubesse, vocês têm que
esconder melhor suas façanhas. Você não acha? – O
rei riu arqueando apenas uma sobrancelha.
O anjo o encarou com um breve sorriso que
quase não se fez e depois disse:
– Não que isso quisesse dizer algo. – O celeste
arqueou as sobrancelhas repuxando os cantos da
boca. – Se você soubesse como todos os nossos
irmãos se diferenciam uns dos outros, ficaria
384
abismado. Todos nós somos mais parecidos com
vocês, humanos, do que imagina.
O rei tinha a satisfação estampada no rosto e
disse:
– Você pensa que não, mas eu vi vocês fazerem
algumas coisas que nenhum humano seria capaz.
Então essa história de se parecer com os humanos
não desce. – O rei abriu um largo sorriso sincero.
Então Daniel mudou de assunto, acrescentando
uma pergunta:
– O que podemos fazer em relação a Mazarak?
Você sabe de algo? – o anjo se dirigiu à pequena
mulher.
Ela o encarou e apontou para o rei. O anjo
direcionou seu olhar arregalado à Mebaragesi que
assentiu com a cabeça, sorridente.
–Uragamesh! Por favor, vá buscar – pediu o rei.
O homem meneou a cabeça e saiu da sala.
– O que ele vai buscar? – indagou o anjo,
desconfiado.
– Você verá!
Daniel o olhou, sério, virou-se e andou até a
janela. Fitou a Lua e as estrelas espalhadas pelo
imenso azul escuro. Como sentia falta de casa! Mas
como poderia ir embora e deixar seu irmão? –
385
pensou ele. O tempo estava passando e eles ainda
não tinham encontrado uma forma de falar com os
arcanjos, para mostrar que Mazarak tinha
conseguido o livramento sozinho e não tinha caído
com os outros.
Depois de alguns minutos, Uragamesh retornou
com uma caixa de madeira. Nela estavam esculpidos
muitos desenhos em baixo relevo. O homem
depositou o objeto em cima de uma mesa de
mármore, que ficava encostada na parede. Na parte
da frente, a caixa tinha uma fechadura com dois
buracos redondos. Mebaragesi se aproximou e
enfiou a mão em uma espécie de bolso, que ficava
na parte da frente de suas vestes. De lá, retirou um
objeto semelhante a uma tomada, mas na frente dos
dois pequenos bastões de metal, tinham duas formas
triangulares, também metalizadas. O rei enfiou o
objeto na fechadura, com um clique. Na mesma hora
a caixa se abriu.
De costas para todos, Mebaragesi levantou
totalmente a tampa do recipiente, tombando-a para
trás, enfiando sua mão dentro. De lá, retirou alguma
coisa, que Daniel identificou como uma folha
envelhecida de couro. Um desenho avermelhado
estava estampado em sua face. Quando o rei se
386
aproximou, o anjo se espantou ao reparar qual
exatamente era aquele objeto.
– Não é possível! – disse Daniel. – Este é o
pergaminho de Adão?
O rei assentiu com a cabeça. Daniel logo
acrescentou outra pergunta:
– Você conhece alguém apto a utilizá-la?
Mebaragesi olhou, satisfeito, para Uragamesh,
que deu um passo à frente, fitando o celeste e
abrindo o primeiro sorriso que Daniel viu, desde que
o conhecera.
– Eu poderei ajudá-los – disse o brutamonte,
com sua voz grossa.
O rosto do anjo se inundava com seu sorriso
satisfeito, agora esperançoso.
– Como faremos isso? – o celeste indagou ao rei.
– Venham todos para cá. – Mebagaresi andou
até o centro do quarto, onde tinha um espaço sem
mobília, depositando a folha no chão.
Uragamesh e Daniel o seguiram. Chiuaia,
apenas observando, ficou onde estava.
– Tome! – O rei entregou um objeto pontiagudo
a Uragamesh e perguntou a Daniel:
– Tem alguém em especial, que você tenha
confiança plena e que gostaria de chamar?
387
O celeste assentiu com a cabeça.
– Como é o seu nome? – indagou Mebaragesi,
escutando atento, enquanto o celeste pronunciava-o.
Nesse momento, o rei olhou para Uragamesh
como se desse uma ordem com o olhar. O guarda-
costas aproximou suas mãos da folha de adão. Com
um toque, espetou o dedo e deixou que uma gota de
sangue caísse sobre ela. O vermelho cristalino
pingou e quando se chocou com a folha, esparramou
mais duas gotículas ao lado da gota maior. Súbito, o
líquido escarlate tremeleou e as três partes se
juntaram. Como se tivesse vida própria, o sangue
deslizou até o centro do papel e lá se dissolveu por
todas as linhas do desenho da estrela de seis pontas.
As linhas avermelhadas do desenho brilharam
como aço ardente e uma grande ventania se iniciou
dentro do quarto. A luz do fogo dourado se apagou,
enquanto uma pequena luz azul começava a brilhar,
flutuando sobre a folha de Adão. Todos se
distanciaram da folha. A luz azul ganhou proporção,
crescendo achatada e alcançando seus dois metros de
raio. A energia radiante flutuava acima da folha
como um rio na vertical.
Do meio daquele espelho de luz cintilante,
surgiu uma grande silhueta de um corpo com asas.
388
Transpassando a barreira azul, o anjo adentrou-se no
quarto passando pelo portal. Encarou todos na sala
com sua grande imponência e quando viu Daniel,
arqueou as sobrancelhas.
– Não acredito! Irmão? – indagou o celeste.
Daniel respondeu com um sorriso, enquanto uma
lágrima escorria.
– Olá, Haziel!
Daniel se aproximou do anjo e o abraçou.

389
CAPÍTULO 37

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Os dois grandes Bariel e Israel chegaram ao
campo de batalha. Israel reparou na agigantada
redoma bem trabalhada pelos tronos e assentiu com
a cabeça para Bariel. Nesse momento, seguiu
deslizando calmamente no ar, sozinho, em direção
ao campo energético. Passou pelos outros onze
externos da redoma de energia e meneou a cabeça. O
restante deles retribuiu o gesto.
Ao se aproximar da redoma, batendo suas asas
levemente, Israel cerrou os olhos e levou dois dedos
à têmpora.
– Princesa?
Nada. Uma nova tentativa.
– Princesa?
Uma resposta.
– Israel? – Auriel se virou para o celeste.
Encarava-o a duzentos metros de distância, enquanto
introduzia seus pensamentos em sua mente. – O que
faz aqui?
390
– Como prevíamos, o plano foi um sucesso! –
Ele meneou a cabeça.
– Sim! Graças à força do espírito! – exclamou a
princesa, com a força de seus pensamentos.
– Israel sorriu, fechou os olhos e meneou a
cabeça novamente. Olhando para Auriel, transmitiu-
lhe.
– Quanto tempo ainda resta, antes de a energia
se dispersar?
A princesa o encarou sem lhe enviar nenhum
pensamento por cerca de cinco segundos. Então lhe
informou.
–Aproximadamente cinco horas!
Ele assentiu com a cabeça e em seguida
transferiu o pensamento.
– Obrigado, Princesa! Faremos o possível para
resolvermos a situação com o humano antes disso.
Ela assentiu.
Israel se virou e plainou até o restante dos
celestes. Bariel, nessa hora, já se reunira com o
grupo dos tronos.
– Cinco horas! – gritou Israel ao primeiro
comandante dos guerreiros de Deus.
– Cinco horas?! – murmurou Bariel, fitando o
chão a centenas de metros abaixo. Olhou para Israel
391
novamente. – Certo! Temos que começar nos
movimentar agora. Irei até o humano. Você acha que
com todos vocês que estão na parte externa,
podemos conseguir mais tempo?
– Talvez! – disse Israel.
– Por favor, faça com que isso aconteça! –
Bariel investiu tão ferozmente nas asas que acabou
jogando Israel para trás. De uma hora para outra
desapareceu, seguindo para sua missão, usando
todas as suas forças.

* * *

Em questão de poucos segundos, cortando o ar


como uma bala, o primeiro comandante chegou à
residência onde estavam Aron e Caliel. De súbito,
entrou na sala em passos rápidos, fazendo com que o
anjo e o humano se assustassem. Aron se levantou
do chão em um pulo. Caliel apenas mexeu
rapidamente a cabeça em sua direção. Aproximando-
se dos dois, dizia, enquanto andava.
– Temos que ir agora! – disse muito diretamente
a eles.
– Aconteceu alguma coisa, Primeiro? – indagou
Caliel.
392
– Não! Está tudo bem. O tempo só está correndo
contra nós! – disse o comandante enquanto parava
de lado, já se preparando para sair. O tom prata em
seus olhos começara a brilhar levemente. –
Humano?
– Sim, senhor?
O comandante estava sério.
– Eu vou precisar que você faça uma coisa.
Aron o encarou sem dizer nada, estava surpreso.
– Vamos para o lado de fora. A partir desse
momento, temos que agir muito rapidamente em
todos os nossos passos. Vocês compreenderam?
Os dois assentiram com a cabeça.
– Então vamos! – Bariel se virou e andou até a
porta que dava na piscina.
Caliel e Aron o seguiram até a parte de fora. Lá,
o comandante pediu para que Aron se aproximasse
dele. O humano se movimentou e parou à sua frente.
Bariel esticou os dois braços e os posicionou com as
mãos juntas, acima da cabeça do humano. Aron
mexeu os globos oculares, acompanhando as mãos
do anjo. Repentinamente, uma luz prateada brilhou
forte entre os membros do comandante e a cabeça do
humano. Nesse momento, Caliel arregalou os olhos.
Aron sentiu como se uma onda elétrica percorresse
393
seu corpo. Na mesma hora, ele se sentiu leve como
uma pena. Parecia não precisar mais usar os
músculos da perna para se manter em pé. A luz
cessou.
O celeste puxou os braços de volta e disse:
– Você está pronto!
– Pronto para quê? – indagou Aron.
Bariel encarou os pés do humano. Aron
percorreu seu próprio corpo com os olhos até chegar
aos seus pés. O susto foi tão grande ao perceber que
flutuava vinte centímetros acima do chão que na
mesma hora despencou. O cotovelo se chocou contra
o chão fazendo-o soltar um berro de dor. Levantou-
se olhando o machucado. A dor se intensificou
quando ele percebeu o osso claro transpassando sua
carne.
– Deixe-me ver isso! – Caliel se aproximou e
tocou o braço de Aron.
O humano soltou um berro e puxou o braço de
volta. O ruivo o olhou nos olhos com os seus azuis
resplandecentes e aproximou seus braços do dele
novamente, com mais calma dessa vez. Aron
permitiu que ele o encostasse.

394
– Isso está feio! – exclamou Caliel. Levantando
a cabeça, olhou nos olhos de Aron, sorrindo. – Deixe
comigo! – Soltou uma piscadela.
Ele envolveu o braço do humano com as suas
duas mãos. Aron entortou a face, mas Caliel não
soltou e apertou firme. Gritando de dor, Aron
percebeu a energia dourada envolvendo as mãos do
anjo sobre seu machucado. Mesmo doendo, ele
parou de gritar e se atentou ao momento, tentando se
concentrar em qualquer outra coisa, menos naquilo.
Tudo durou cerca de um minuto e quando o anjo o
soltou, a fratura estava completamente curada. Na
pele, tinha apenas uma pequena marca, um pouco
mais escura, da cicatrização. O que levaria meses
para curar, o anjo fez em apenas um minuto.
Aron olhou o machucado completamente
extasiado. Pareceu levar mais uma injeção de
energia celeste apenas uns dois minutos depois da de
Bariel. Com os olhos esbugalhados, Aron deu um
salto, bateu o pé contra o chão e continuou saltitando
com os punhos fechados.
– Não sei para o que é, mas sei que estou pronto!
– O humano respirava rapidamente e sentia seu
corpo como um campo elétrico. Não tirava o sorriso
do rosto.
395
Caliel o olhava como um pai ao ver seu filho se
divertindo.
– Humano, preste atenção! – falou Bariel.
Aron se atentou a ele imediatamente. O primeiro
comandante acrescentou:
– Eu preciso que você pense que pode voar! –
pediu o comandante.
– Certo, estou pensando!
– Não, não está!
– É claro que estou!
Bariel o olhou com reprovação.
–Tá bom, vamos lá! Vou pensar. – Aron se
acalmou e fechou os olhos. Não aconteceu nada.
– Você não está pensando direito! – Bariel levou
o punho à frente do corpo, apertando-o fortemente,
ao ponto de sua mão tremelear. – Você tem que
realmente acreditar nisso com o coração.
– Certo! Eu vou tentar. – Aron falou em tom
sério.
Cerrando os olhos, Aron fechou os punhos,
respirou fundo e se concentrou. Quase um minuto se
passou e não aconteceu nada. Ele abriu os olhos,
esticou a palma e disse:
– Calma! Eu vou conseguir! – fechou os olhos
novamente.
396
Depois de alguns segundos, abriu-os, respirou
fundo e começou a pressionar o ar no pulmão, sem
deixar que escapasse. Fazia uma força tremenda. Seu
rosto estava ficando vermelho e suas veias saltando
na testa. A situação estava ficando bizarra. O
humano começou a gritar um berro esganiçado e
engraçado. Até que repentinamente soltou todo o ar,
levou as mãos aos joelhos e começou a respirar,
ofegante.
– Eu desisto! – Ele fitou os dois anjos e os
apontou com o dedo indicador, indo de um para o
outro, repetidas vezes. – Nenhum de vocês pode me
levar?
– Não acredito nisso! – Bariel se virou para trás,
completamente impaciente. Virou-se para Aron e
disse, um pouco mais ríspido: – Humano, a situação
é a seguinte: nenhum de nós pode te levar. Isso
porque, a qualquer momento, podemos sofrer um
ataque brutal e precisamos estar com as mãos livres
para que possamos lutar e te proteger – uma breve
pausa –. Fui claro?
– Foi sim, senhor! – respondeu Aron, um tanto
sem graça, vermelho de vergonha. – Eu vou
conseguir agora!
– Eu sei que vai! – disse Bariel.
397
– Concentre-se, Aron! – falou Caliel,
calmamente, transmitindo-lhe calma. – Pense em
Sun.
Essa calma, juntamente com o pensamento em
resgatar a esposa, penetrou diretamente no coração
do humano e ele sentiu mais uma injeção de
adrenalina. Mas dessa vez foi diferente, parecia mais
concentrado. Apesar de tudo, o mundo parecia estar
mais brilhante. Ele sorriu, fechou os punhos,
encarou Caliel, depois Bariel. Cerrou os olhos e
começou a sussurrar bem baixo.
– Eu posso voar... Eu posso voar... Eu posso
voar... Eu posso voar. – Aron abriu um dos olhos e
olhou para o chão. Surpreendeu-se ao ver que estava
a um metro do chão e continuava a subir. – Estou
voando, estou voando! – gritava como uma criança
feliz.
Seu corpo começou a subir rápido demais e ele
começou a gritar assustado:
–Tá muito rápido! Tá muito rápido!
Os dois celestes se entreolharam. Caliel achou
graça da reação do humano. Então investiram nas
asas, indo ao encontro do humano. Alguns segundos
depois, os dois anjos estavam juntos a Aron, cada
um de um lado.
398
– Como eu controlo isso aqui? – perguntou Aron
desesperado, dirigindo-se a Bariel.
– Da mesma forma que você conseguiu erguer
voo!
Aron o olhou surpreso e sorriu satisfeito. Em
poucos segundos, seu corpo começou a se ordenar e
o controle da situação veio à tona, aos poucos.
Olhando para baixo, expressou uma cara de medo.
Seu corpo tremeu e todos os seus pelos se
arrepiaram.
– Você vai se acostumar! – disse Caliel.
– Espero mesmo! – Aron tinha os dois olhos
arregalados. Estava focado em apenas um ponto, o
Céu. De nenhuma maneira queria olhar para baixo,
agora que ele controlava seu próprio voo.
Caliel sorriu mais alegremente ainda e todos
seguiram adiante. Bariel se mantinha sério, tal como
em toda a sua vida, desde a sua criação. Arrancar um
sorriso do Primeiro era como conseguir a proeza de
fazer um leão faminto brincar com uma zebra ao
invés de comê-la.

399
CAPÍTULO 38

Antiga Mesopotâmia 2650 a.C.


O abraço dos celestes foi grande e demorado. Os
humanos, na sala, ficaram surpresos com o brilho
reluzente nos olhos deles quando seus corpos se
encontraram. Haziel fitou um por um na sala
novamente, olhou para Daniel e indagou:
– O que está acontecendo, Daniel?
O anjo, com olhos de fogo, fechou-os, abaixou a
cabeça e depois voltou a olhar para Haziel.
– Você se lembra de Mazarak? – As
sobrancelhas estavam um tanto caídas.
– Sim! – respondeu Haziel. – Eu ainda sinto a
sua perda!
Daniel ficou mudo por um momento e deu um
passo à frente pedindo que Haziel o acompanhasse.
Eles se aproximaram da cama de Mazarak e Daniel
apontou o irmão.
– Olhe! – o celeste indicou a Haziel.
Haziel o fitou com as sobrancelhas franzidas e
indagou:

400
– Certo! O que este homem tem a ver com
Mazarak?
– Olhe direito! – Daniel deu a volta na cama,
inclinou-se sobre Mazarak e puxou suas pálpebras.
Haziel olhou fundo nos olhos verdes e
dormentes do anjo. Súbito, arregalou os seus e sentiu
uma pontada no peito diante da aceleração
espontânea de seu coração.
– Não é possível! – Haziel olhou para Daniel. –
O que aconteceu com ele?
As sobrancelhas de Daniel não se levantavam
mais. Sua cara de preocupação já transmitia o
sentimento para Haziel.
– Esse não é o maior problema! – exclamou
Daniel. – Agora ele não acorda mais, porque algum
demônio fez algo com ele. Já que ele não pode
retornar ao céu, porque acham que ele caiu junto
com os outros, só pude pensar em recorrer a você
para nos ajudar.
– Pensou corretamente, meu irmão! – disse o
anjo louro.
Todos os humanos presentes estavam
impressionados com as palavras que tinham saído da
boca de Daniel, naquele curto período de tempo.

401
– Você sugere algo que possamos fazer? –
perguntou Daniel.
Haziel levou o dedo à boca e olhou sério para
Daniel, pensou um pouco e disse, um pouco
hesitante.
– Sim, eu creio que sim!
Os olhos de Daniel brilharam.
– O quê?
– Acho que podemos falar com um dos
guardadores – disse o anjo louro.
Depois de horas, foi a primeira vez que Daniel
esboçou um sorriso. Mesmo com apenas uma
esperança, ao menos era uma que tinha surgido.
– Será que podemos confiar em alguém ao ponto
de resolver tudo, sem alastrar o que se passa? –
Daniel perguntou, hesitante.
– Eu conheço alguém, e você também!
– Quem?
– Caliel! Ele tem seus meios.
Daniel esboçou um grande sorriso. Rapidamente
Haziel se moveu em direção à abertura.
– Eu vou e retornarei com ele! – Haziel olhou
para os dois homens humanos presentes na sala.
Apontando o chão, disse: – Tentem manter a
passagem aberta pelos próximos vinte minutos para
402
facilitar a minha volta. Retornarei dentro desse
período. Caso não consigam, nós daremos um jeito.
Mas tentem, por favor!
Daniel e Mebaragesi assentiram com a cabeça,
juntos. O anjo louro entrou na passagem e
desapareceu no espelho azul de energia cintilante.

* * *

Passados exatamente quinze minutos, Haziel


retornou com o prometido. O anjo ruivo entrou no
quarto e a primeira coisa que fez foi cumprimentar
os humanos com um grande sorriso. Todos
retribuíram educadamente. Enmebaragesi cutucou
seu guarda-costas.
– Daqui a pouco eu vou me sentir um anjo! – O
rei deu risada da própria piada sem sentido.
O grandalhão arqueou uma sobrancelha, sem
entender o que o rei queria dizer, mas sorriu apenas
para agradá-lo. Chiuaia assistia o momento celeste
sem desprender sua atenção deles.
– Olá, Daniel! – Caliel meneou a cabeça, muito
feliz em ver o irmão.
– Olá, Caliel. Fico agradecido pela sua grande
ajuda. – exclamou Daniel.
403
– Nunca pense que eu faria o contrário disso. –
Caliel o olhou, preocupado. – Deixe-me ver o que
posso fazer.
Caliel se aproximou da cama e se sentou ao lado
de Mazarak. Encarou seu rosto dormente e colocou a
mão sobre seu peito. Fechou os olhos e aguardou
quase um minuto. Abrindo os olhos, disse:
– Foi mesmo um demônio!
– E nós podemos fazer algo? – indagou Daniel,
dando um passo à frente.
Caliel assentiu com a cabeça. Mas seu olhar não
demonstrava muita confiança.
– Farei todo o possível para que isso aconteça! –
O anjo ruivo colocou as duas mãos sobre o peito de
Mazarak e deixou que sua mão fosse envolvida por
uma energia colorida. Essa que começou a se
transferir ao corpo de Mazarak como uma cascata
nas cores do arco-íris.
Todos assistiam a investida angélica com
atenção. Cinco minutos já haviam se passado desde
o início da transferência de energia. Caliel já
começava a sentir-se um tanto diferente, mas não
disse nada e continuou a transferência. Mais cinco
minutos foram percorridos e nada. A visão de Caliel
começava a se embaçar. De súbito, o celeste perdeu
404
as forças e despencou em cima de Mazarak. Haziel
se aproximou, rapidamente, amparando-o.
– Caliel, tudo bem? – perguntou Haziel,
enquanto levantava o tronco do celeste ruivo.
Ofegante, o guardador abriu os olhos, um tanto
desnorteado, dizendo:
– Não há nada que possamos fazer, aqui!
Isso fez com que uma corrente de eletricidade
percorresse as espinhas de Daniel. Seu estômago
regurgitou e seus olhos brilharam como fogo. Nesse
momento, os humanos, na sala, impressionaram-se.
– Como não há nada que possamos fazer? –
Daniel se aproximou como um touro em fúria – Tem
que ter algo que possamos fazer!
Caliel já estava quase totalmente recomposto e
se inclinava na cama para se sentar. Com a mão na
cabeça, falou:
– Fique calmo, Daniel! Eu não disse que não
temos o que fazer. – Caliel respirou fundo. – Disse
que não temos recursos, aqui! – Apontou o solo e
encarou Daniel.
Novamente o celeste sentiu uma ponta de
esperança.
– O que podemos fazer?

405
Caliel hesitou, antes de falar, com uma longa
pausa.
– Eu tenho que levá-lo comigo!
– Levá-lo com você? Para quê? – indagou
Daniel, com as sobrancelhas franzidas.
– Eu conheço alguém que pode ajudá-lo. –
exclamou Caliel, sorridente.
– Quem? – indagou Daniel.
– Eu não posso dizer agora! – Encarou Haziel
também. – Para nenhum de vocês dois.
– Porque não pode dizer? – perguntou Daniel,
desconfiado.
– Ele não me permite dizer – uma breve pausa –.
Mas eu lhe garanto que conseguirei resolver o
problema de Mazarak!
– Eu confio em você! Pode levá-lo. Por favor,
faça o possível para trazer meu irmão de volta deste
longo sono. – Daniel olhou Mazarak, um tanto
sentido.
Caliel assentiu com a cabeça para Mazarak
desacordado. Levantou-se, amparou-o, fitou Daniel,
depois Haziel. Subitamente desapareceu dentro de
uma luz colorida que ficou no ar na forma de seu
corpo, para depois desvanecer por completo.

406
* * *

Cidade da Luz, Inferno –2650 a.C.


Caliel deslizava pelo ar acima do labirinto
natural, virente. Seguia em direção à grande torre de
mármore branco. Ao se aproximar, a grande porta
triangular se abriu e o anjo entrou voando, com
Mazarak em seus braços. Ele transcorreu o largo
corredor, sobrevoando-o, batendo suas asas
calmamente. Chegando ao salão com teto
abobadado, fora recebido pelo grande Beelzebuth. O
duque estava sorridente.
Pousando ao lado dele, Caliel disse:
– Olá, meu caro duque! – Meneou a cabeça.
Beelzebuth retribuiu o cumprimento. Seus olhos
brilharam quando ele abaixou sua cabeça.
– Eu vim ver o arcanjo! – Caliel disse,
sorridente.
Muito receptivo, Beelzebuth respondeu, com os
braços cruzados na frente do corpo:
– Ele está esperando por você!
Caliel o olhou surpreso.
– A qualquer momento...
Repentinamente, uma luz forte brilhou, surgindo
do teto. Descia como uma cachoeira bronzeada.
407
Sorrindo, Beelzebuth acrescentou:
– Como eu dizia, a qualquer momento ele estaria
chegando! – O duque apontou a luz em cascata,
cintilante. Dando um passo para trás, reverenciou a
luz que já se transformava em uma gigante silhueta
brilhante, humanoide.
O gigante arcanjo deu um passo à frente. Tinha a
pele bronzeada como uma peça de bronze
envelhecido, com suas asas reluzentes à mostra.
Combinavam completamente com a sua imponência.
Com seus olhos azuis-safira, que brilhavam
exageradamente, dirigiu-se ao anjo ruivo:
– Olá, Caliel! – O arcanjo sorriu, com sua
majestade. – Fico contente com sua visita surpresa.
– Olá, meu arcanjo! Desculpe por incomodá-lo.
– Caliel fitou Mazarak em seus braços e depois
olhou para o arcanjo de bronze novamente. – Como
o senhor pode ver, eu tenho um problema. E sei que
esse é um caso em que eu poderia recorrer apenas a
você.
– Primeiramente, você nunca me incomodará.
Além de Beelzebuth, fora um dos únicos que sempre
me presenteou com suas visitas – um sorriso se
alargou –. E sim, você está correto! – uma breve
pausa do arcanjo – Eu posso te ajudar.
408
Caliel esticou os cantos da boca em um grande
sorriso e disse:
– Eu sabia que podia contar com você, Estrela
da Manhã!

409
CAPÍTULO 39

Cidade da Luz, Submundo – tempos atuais


Beelzebuth e Astaroth percorriam um grande
corredor da torre. Ao final deste, chegaram a um
cômodo diferente. Tinha pé direito duplo, sendo que
duas escadas de mármore, laterais, eram usadas para
alcançar o andar de cima. Ainda no andar de baixo,
entre as duas escadas, repousava uma linda piscina
com águas cristalinas, esculpida na pedra clara.
Os dois duques subiram a escada lateral direita e
chegaram ao piso superior. O segundo andar do
cômodo tinha um grande vão no meio. Dava-se para
enxergar completamente a piscina no andar inferior,
ela ocupava exatamente a dimensão do buraco.
Contornando o grande vão, dois corredores se
formavam na distribuição do segundo piso. Ao final
destes, outro corredor passava na transversal. Ao
centro dele, erguia-se uma grande porta, com cerca
de cinco metros de altura. Os corredores estavam
decorados com dois vasos de mármore branco, ao
final de cada. Cada objeto tinha cerca de dois metros
de altura.
410
Beelzebuth e Astaroth seguiram em frente,
passaram pelo vaso e viraram à esquerda,
deparando-se com a grande porta. De dentro do
ambiente, exalava uma demasiada luz clara.
Percorreram mais alguns passos e adentraram o
ambiente. Astaroth pôde enxergar o poderoso
arcanjo de bronze de costas, com suas asas abertas.
Fitava o horizonte pela janela de cristal.
– Vejo que finalmente veio para o nosso lado,
irmão! – disse Lúcifer, virando-se para o duque
louro, penetrando-lhe seus maravilhosos olhos em
tons de safira.
Astaroth ficou mudo, apenas o encarando, sem
reação nenhuma.
– O que te fez mudar de ideia? – indagou o
arcanjo, imponente.
Astaroth não sabia o que responder. Sentia-se
intimidado perante o gigante. O momento mudo foi
grande o suficiente para que da sombra, na esquerda
da sala, uma voz surgisse, dizendo:
– Responda ao Filho do Alvorecer – falou a voz
robusta.
A figura no escuro deu um passo à frente,
recebendo uma luminosidade fraca. Nesse momento,

411
foi possível ver seus olhos verdes, brilhantes. Então
acrescentou:
– Você está aqui agora, e a partir de hoje lutará
por essa causa! – A figura deu mais um passo à
frente.
O que se revelou foi um anjo moreno, forte, com
aparência de um homem na casa dos trinta anos.
Suas asas ainda estavam nas sombras, mas era
possível ver sua silhueta. O anjo estava despido de
vestes superiores. Abaixo usava uma calça preta um
tanto justa. No pé, tinha botas negras, foscas.
Astaroth espantou-se ao reparar em suas asas, pois
nunca havia visto daquela cor. Uma dupla de asas
negras como as trevas.
– Desculpe-me interrompê-lo, meu senhor! – O
anjo de asas negras dirigiu-se a Lúcifer. – Mas
precisava lhe dizer isso – disse apontando para
Astaroth.
– Não tem problema! Você é meu duque e sabe
que é livre para fazer o que bem entender, dentro dos
limites necessários – respondeu Lúcifer.
O duque de asas negras meneou a cabeça e se
dirigiu a Astaroth.
– Olá, Astaroth! – Estampou um belo sorriso no
rosto. – Lembra-se de mim?
412
Astaroth deixou seu queixo cair, em seguida
dizendo:
– Não é possível! Eu achei que você tivesse
morrido na queda. Mazarak?
– Eu mesmo! – O anjo de asas negras abriu os
braços e exagerou seu sorriso.

413
PARTE QUARTA.
CONSAGRAÇÃO

414
CAPÍTULO 40

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Os dois celestes e Aron seguiam percorrendo a
cidade a trezentos metros de altura. Nesse momento,
o humano já tinha se acostumado com seu novo
dom. Tinha o sorriso estampado no rosto. Sua
vontade de voar sempre foi o seu maior fetiche
impossível, que agora se tornara possível.
Caliel seguia à direita e Bariel à esquerda do
humano. O anjo ruivo perguntou ao comandante:
– O que faremos agora, Primeiro Comandante?
– Temos que resolver a situação, depressa. –
respondeu Bariel - A redoma não aguentará tanto
tempo. Agora é a hora de que precisamos do arcanjo
Rafael. Vim aqui para buscar o humano, mas as
coisas desandaram com Astaroth e o tempo se esvaiu
rapidamente.
– Entendo! – O ruivo assentiu com a cabeça
enquanto o vento lhe martelava.

415
– O arcanjo? – indagou Aron, um tanto surpreso.
– Eu vou conhecer um arcanjo? – perguntou,
dirigindo-se a Caliel.
O anjo guardador assentiu com a cabeça,
sorridente, dizendo:
– Eu creio que sim, Aron! – Encarando o
comandante, ele indagou: – Como faremos isso,
Primeiro?
Bariel sorriu e exclamou:
– Eu tenho certeza de que Rafael sabia que esse
momento chegaria, antes de nós! Vamos aguardá-lo.
– Onde?
Bariel apontou uma gigante montanha que se
erguia ao sul, dizendo que antes fora apontada pelo
arcanjo, para esperarem ali. Caliel e Aron fitaram o
monte, seguindo em frente.

* * *

Israel aguardava, ansioso, do lado de fora da


redoma de energia. Plainava de um lado para outro,
meditando em seu próprio universo paralelo. A cada
minuto que passava, a pequena camada de energia,
que ondulava pelo seu corpo, parecia se tornar ainda
mais colorida.
416
Os onze que estavam fora da redoma
aguardavam um pouco afastados, envolvidos por
uma única esfera de energia. Todos repararam em
Israel se aproximando e quando ele chegou, falou,
olhando pra todos:
– Obrigado, meus irmãos! Podem ir agora.
Temos mais de quatro horas. Vocês retornam depois.
– Não! – disse Lauviah, flutuando um pouco
mais à frente. – Nós ficaremos aqui para ajudar até o
final – seus olhos azuis-turquesa brilharam forte.
– Sim, isso seria ótimo! – respondeu Israel,
sorridente. – Mas creio que vocês podem ajudar
muito mais apoiando Bariel em sua causa atual.
Chegou o momento!
Dessa vez Lauviah não respondeu. Apenas
absorveu a contradita de Israel e vendo que ele tinha
razão, meneou a cabeça e se virou aos outros dez
atrás dele. Todos menearam a cabeça para ele.
Virando-se novamente para Israel, disse:
– Estaremos de volta daqui quatro horas exatas!
Israel assentiu com a cabeça. Súbito, a energia
se dissipou levando os onze com ela.

* * *

417
Bariel e os outros esperavam acima da grande,
pontuda montanha. Os anjos tinham suas asas
guardadas. Aron estava sentado, não tinha paciência
de aguardar em pé como os celestes, mas Caliel já
sabia disso. De vez em quando, o anjo fitava seu
guardado apenas por pura admiração. Aron se
levantou, perguntando a Bariel:
– Quanto tempo será que isso demorará?
Sem sair de sua posição, ou mesmo olhar para o
lado, Bariel respondeu:
– Temos que ter paciência! – Olhando para o
céu, acrescentou: – Os arcanjos sempre sabem o que
fazem e quando fazem. Tenho certeza que as coisas
estão sendo adiantadas.
– Uhm! – Colocando o dedo indicador no lábio,
Aron indagou: – Posso te fazer só mais uma
pergunta, Primeiro Comandante? – Ele cruzou seu
olhar com o de Caliel nesse momento.
– Faça! – respondeu Bariel, diretamente.
– O que o mundo ganhará com a reconstrução da
humanidade?
Os dois anjos o olharam, espantados com a
pergunta.
– O que você quer dizer com isso? – perguntou o
comandante.
418
– Olha! – O humano gesticulava. – Se você
pensar bem, estamos vivendo uma época parecida
com a de Noé. – Ele deu de ombros, arqueando as
sobrancelhas.
Os celestes o olhavam, desconfiados. As
sobrancelhas estavam franzidas. Aron acrescentou:
– E pensando nisso, eu tive uma ideia brilhante!
– Sorriu como uma criança.
Bariel apenas o encarava. Caliel não sabia o que
dizer. Até que Aron proferiu sua “brilhante” ideia:
– Por que não saímos daqui agora, vamos até o
inferno, resgatamos Sun, matamos todos os
demônios e começamos tudo como Adão e Eva?
Caliel revirou os olhos e Bariel se virou,
chutando uma pedra. Dirigindo-se a Caliel, o
comandante exclamou em tom bravo:
– Esse é o nosso guerreiro, herdeiro de Adão. Eu
não tenho paciência para isso! – Bateu as asas e
voou na vertical puto da vida.
Aron o olhou, espantado, afastando-se e
perguntou para Caliel, com seus olhos esbugalhados,
mostrando as palmas:
– O que eu disse?

419
– Ah, Aron! O que você disse? Não se faça de
bobo – Caliel falava com Aron, utilizando um tom
que nunca tinha usado.
O humano deu de ombros. Olhando para o chão,
disse:
– Não custava nada tentar!
– Que ideia maluca foi essa de falar isso logo
para Bariel?
– Caliel, já faz mais de um dia que vocês me
falaram sobre Sun e ninguém nesse tempo fez nada
sobre isso. Eu estou desesperado! – Colocando as
mãos na cintura, acrescentou: – Vocês têm que me
entender!
Caliel balançava a cabeça desaprovando o que o
humano dizia.
– Você realmente não entende, né?
– Entende o quê? – Aron gritou, mostrando os
dedos como garras. Nesse momento, já estava
ficando nervoso. – Entender que ninguém está nem
aí para minha esposa? Entender que todo mundo fica
por aí querendo me proteger e nenhum de vocês –
falou mais ríspido nessa hora – pode mandar
ninguém lá?
– Escute, Aron! – Caliel se aproximou dele e
colocou a mão em seu ombro.
420
Aron lhe estapeou no membro, retirando-o, com
um pouco de brutalidade.
– Escute o quê? – Ele gesticulou, fazendo um
arco com o braço para cima. – Ninguém faz nada
nessa merda!
– Que é isso, Aron? Por favor, escute-me.
– Eu vou sair daqui! Eu vou embora! – Deu
alguns passos em direção à beira da montanha. – Eu,
sozinho, vou resgatá-la. Não preciso de vocês!
Caliel se aproximou, correndo muito rápido
dele, gritando:
– Espere, Aron!
Mas era tarde. O humano mergulhou no ar como
faria se fosse erguer voo. Mas não foi isso o que
aconteceu. Aquela habilidade não estava mais com
ele e seu corpo despencou, atingindo velocidade
total rapidamente. O desespero em seus olhos, nesse
momento, foi terrível.
Caliel explodiu suas asas e mergulhou como um
foguete de cabeça para baixo. Rapidamente ele
alcançou Aron. Com sutileza, amparou-o no ar, sem
forçar contra seu corpo para não o machucar. Sem
olhar Aron nos olhos, bateu suas maravilhosas asas e
voou para o topo da montanha novamente. Colocou

421
o humano no chão e não disse nada. Deixou que ele
se recompusesse do momento de choque.
– Obrigado! – disse Aron, ofegante.
Caliel ficou mudo cerca de dez segundos e disse:
– Aron, saiba que para você conseguir utilizar
esse dom, Bariel tem que estar presente. Você
realmente não entende!
– O que eu não entendo?
– Você não entende toda a situação relacionada
à Sun! – Falando rapidamente, Caliel continuou: –
Nós queríamos sim, queríamos muito poder resgatá-
la do inferno agora. Mas não podemos!
O humano o encarava.
– Temos que ser cautelosos, principalmente
agora. Não podemos simplesmente invadir o lado
esquerdo do inferno e...
– Lado esquerdo do inferno? – indagou o
humano, interrompendo Caliel.
– Isso agora é irrelevante, Aron. Preste atenção!
– O anjo se aproximou do humano. – Nós temos, no
máximo, quatro horas para tentar finalizar o plano de
absolver a humanidade. Se isso correr como
planejado, em seguida percorreremos o caminho até
Sun – uma breve pausa –. Nem que eu tenha que ir

422
sozinho! – o celeste assentiu sorridente quando
terminou de falar.
Aron meneou a cabeça. Eles se encararam por
um tempo e se viraram, fitando a redoma pulsante,
ao longe.

423
CAPÍTULO 41

Cidade do Escaravelho, Inferno – tempos


atuais
Tão poderosos quanto o celeste mais poderoso,
quatro duques estavam reunidos em uma grande
mesa de pedra escura. Três deles estavam sentados
em tronos robustos. Apenas Cerberus, um gigante
cão com três cabeças, sentava-se no chão, por seu
excesso de tamanho.
Ao final da mesa, ocupando a posição de líder,
estava Baal, um grande demônio temeroso. Seus
olhos eram completamente negros, profundos como
um poço sem fundo. O corpo, com cerca de dois
metros de altura, era vermelho, com escamas e
extremamente musculoso. Grandes chifres negros,
contorcidos, erguiam-se de sua cabeça. O mais
assustador eram suas grandes presas parecidas com
de hipopótamos, porém, menores.
Em pé, batia na mesa com a mão fechada tão
forte que a grande rocha quase tombou. Baal estava
furioso.

424
– Aqueles vermes daqueles tronos! Quem eles
pensam que são? – Socou a própria mão, fazendo
um grande estalo. – Eu vou esmagá-los com as
minhas próprias mãos quando Abaddon os trouxer
até aqui.
Sua voz era grossa e mantinha um timbre
diferente. A impressão era de estarem saindo três
vozes de sua garganta. Chegava a intimidar até o
restante dos duques naquele ambiente.
– Fique frio, Baal. Nós vamos resolver! – disse a
cabeça do meio de Cerberus.
– Fique frio? Quem você acha que é pra falar
assim comigo, cãozinho? – Baal apontou para
qualquer lugar. – Porque você não vai cuidar do
grande portal? Lá é o seu lugar!
A cabeça da direita do grande cachorro se pôs a
rosnar, enquanto a do meio a cabeceou para que
parasse. Mas não foi o que aconteceu. A cabeça da
direita atacou a cabeça do meio, aplicando-lhe uma
leve mordida apenas de intimidação. Nesse
momento, a central gritou de dor e se afastou,
chocando-se com a cabeça da esquerda. Essa
também gritou de forma aguda. Então as três se
aquietaram. A central e a esquerda se abaixaram,
enquanto a da direita encarava Baal. Mas foram
425
apenas por poucos cinco segundos, depois desviou o
olhar novamente.
Baal tinha suas sobrancelhas quase unidas.
– Foi o que eu pensei! – disse o duque escarlate.
Dirigindo-se a Azrael, indagou:
– O que acha que faremos daqui por diante,
Azra? – esta era a forma como se dirigia ao caído.
O duque se afastou, deslizando sua poltrona para
trás e se levantou. Dando a volta na mesa, com as
mãos para trás, disse:
– Vamos deixar as coisas nas mãos de Leviatã
agora! O humano sente falta de sua esposa e creio
que isso resolverá nossos problemas.
Azrael era imponente, deslizando no solo com
suas majestosas asas, brancas, expostas. Seu corpo
era amedrontador. Não pelo tamanho, formato ou
qualquer coisa aparente, mas sim porque ficava
escondido atrás de uma grande túnica preta, com
tecido pesado, que caía até seus pés. Tinha também
seu rosto anulado por trás de um grande capuz. Por
trás do buraco, onde ficaria seu rosto, o que se
encontravam eram trevas. Em um cinto na cintura,
ficava pendurada sua espada prateada, ainda
angélica.

426
Baal olhou desconfiado para Azrael nesse
momento e dirigiu-se a Belial.
– Quanto tempo você acha que esse feitiço
durará?
– Creio que temos o tempo necessário para que
dê certo! – disse Belial, dando de ombros.
Baal bateu as duas mãos abertas na mesa.
Inclinou-se até ficar próximo, quase rosto a rosto
com Belial.
– Não foi isso que perguntei. Insolente! – o
grande demônio rosnou. – Eu perguntei quanto
tempo temos?
Belial estava contraído em seu próprio espaço.
Seu olhar esboçava terror diante do monstro
vermelho.
– Não sei! – Belial remexeu os olhos. – Talvez
três ou quatro horas? – Levantou os ombros. O
tempo que a mulher durar.
– Você está afirmando ou perguntando? – Baal
bateu na mesa novamente com raiva. Ergueu o corpo
e disse: – Você não serve para nada!
Baal cruzou os braços e deu a volta na mesa.
Aproximando-se de Azrael, falou:
– Nós temos que agir depressa, Azra!

427
– Eu concordo, Baal! – um murmúrio de risada
por baixo do capuz.
Baal assentiu com a cabeça e indagou:
– O que houve com a sua voz?
– Eu não sei! Foi repentino. Estou resolvendo
isso. – Azrael respondeu, dando um passo para trás e
inclinando o capuz para cima, pigarreando.
– Resolve logo, que você tá parecendo uma
gazela. – Baal riu.
Virando-se para Belial, Azrael pediu
educadamente a ele que verificasse como andavam
as coisas com Leviatã. O duque assentiu a Azrael,
depois encarou Baal e saiu do recinto.

* * *

Dez minutos se passaram. Belial entrou no salão.


– Ele está pronto!
Baal arregalou os olhos e quase esboçou um
sorriso. Deu alguns passos na direção de Belial,
dizendo:
– Vamos seguir com isso então! – súbito, o
duque parou de andar – Como está a humana?
– Ela não durará muito tempo! – respondeu
Belial.
428
– Então cuide para que ela dure até quando
precisarmos.
– Belial inclinou a cabeça para baixo e se
afastou.

429
CAPÍTULO 42

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
A redoma se mantinha da mesma maneira,
exatamente como os guerreiros em seu interno.
Israel aguardava ansiosamente do lado de fora.
Plainava em um só ponto em uma espécie de
meditação. De repente, sentiu uma emoção
agigantada que tomou conta de seu peito.
Avistando ao longe, o anjo reparou que o Céu,
naquela grande região, começara a se dourar. A luz
ficava muito intensa, rapidamente. Parecia que as
nuvens eram feitas de ouro. Do Céu, uma titânica
energia brilhosa, magnífica, desceu como uma
cachoeira até encontrar uma grande montanha
cônica. Só pode ser ele! – pensou Israel.
O anjo explodiu o vento e seguiu na direção do
monte. Muito velozmente, aproximou-se e reparou
que em seu topo, Caliel, o humano e Bariel estavam
envolvidos pela energia descomunal. Israel seguiu
para a luz, indo ao encontro dos outros. Mas quando
tocou sua camada dourada com o corpo, foi jogado
430
para fora, como se tivesse batido em uma parede de
gelatina. No mesmo momento, ele olhou para os
céus e meneou a cabeça. Ficou ali, do lado de fora,
apenas observando o que acontecia com os outros.
Aron e Caliel olhavam para o Céu como se
estivessem em transe. O Primeiro Comandante já
chegava quase perto deles. De súbito, os três
desapareceram instantaneamente, como ondas de
energia. A agigantada cachoeira se recolheu e
desapareceu dentre as nuvens. Deixando tudo como
estava antes.

* * *

A claridade se dissipou em volta dos três e de


repente se encontraram em um grande salão, se é
que se pode chamar aquilo de salão. Aron nunca
tinha pensado em estar em algum lugar tão
majestoso como aquele. Ou melhor, sua mente
jamais teria a capacidade de criar algo parecido com
aquilo. O humano começou a dar voltas em seu
próprio eixo, reparando em tudo, até onde seus olhos
alcançavam.
O chão era quase branco. Aron podia vê-lo, mas
não podia senti-lo abaixo de seus pés, apesar de ter
431
total controle sobre seus passos. O ambiente tinha o
tamanho de um campo de futebol, sendo que quatro
paredes se erguiam, encontrando-se e formando o
contorno retangular do local. No meio de cada uma
das quatro paredes, havia uma viga no estilo grego
antigo. Subiam até passarem da linha de onde
acabavam as paredes titânicas e continuavam a subir
até desaparecerem no imenso céu. Esse que seria
completamente negro se não fosse a luz abundante
das estrelas. A impressão, naquele lugar, era de
poder enxergar o universo inteiro de seu próprio
centro. Um gigantesco cômodo retangular flutuando
no imenso universo.
Aron sentia um enorme frio na barriga. Apesar
do sentimento louvado em seu peito, naquele
momento, estava extremamente ansioso. Os celestes
estavam tranquilos, mas também não pareciam
reconhecer o lugar.
– Onde nós estamos? – Aron se dirigiu a Bariel.
O Primeiro demorou um pouco para responder,
fitando um grande símbolo circular que estava na
frente deles. Uma grande estrela de seis pontas
explodia a linha circular. Uma asa no meio da estrela
se evidenciava dentre as linhas tênues. Então Aron
percebeu que era o mesmo símbolo que estava na
432
folha mostrada a ele por Haziel. Não esperando a
resposta, acrescentou:
– Eu conheço esse símbolo!
– É o símbolo dos arcanjos! – exclamou Bariel,
um tanto sorridente.
– É um belo símbolo! – Caliel falou,
aproximando-se dos dois, fitando o desenho.
Em alguns minutos, depois que todos encararam
o símbolo, Aron indagou:
– E agora?
Nesse momento, houve um estalo. Uma fenda
desceu como um raio no meio do desenho, dividindo
a parede em duas. Mais um estalo e os muros
começaram a se mover um para cada lado. Não
havia barulho de pedra se atritando com o chão
enquanto os muros andavam. Não havia barulho
nenhum enquanto as paredes deslizavam. O som que
se ouvia dava a impressão de as paredes estarem
deslizando sobre a água.
Quando a fenda cresceu, uma luz colossal
invadiu o ambiente cegando todos nele. Os anjos
fecharam os olhos. Aron levou o braço à frente dos
seus tentando olhar adiante, utilizando sua sombra.
Mas o que viu foi apenas a silhueta dos dois grandes
muros ainda se movendo.
433
A luz diminuiu retraindo-se a um ponto
brilhante, parecia uma espécie de sol. Pensando que
não poderia se impressionar ainda mais, o que Aron
avistou à sua frente, deixou-o completamente
espantado.

434
CAPÍTULO 43

Cidade da Luz, Submundo – tempos atuais


Astaroth estava surpreso ao ver Mazarak à sua
frente. Na queda, sabia que ele iria junto, mas na
hora letal da batalha, o anjo desapareceu e nunca
mais foi visto.
– Como? – indagou Astaroth.
– Eu me misturei aos humanos! – Mazarak falou
com satisfação.
– Como você pôde? – Astaroth indagou,
expressando uma espécie de nojo.
– Eles não são o que você pensa!
– Eu não quero perder tempo pensando o que
eles são! – o duque falou rispidamente.
– Escute ele, irmão! – disse Beelzebuth,
calmamente – Escute o que ele tem para dizer!
Lúcifer apenas os observava do outro lado da
sala, com sua grande majestade. O poder emanado
de sua grande áurea brilhava muito, chegava a fazer
com que os duques estreitassem os olhos. A não ser
por Mazarak que estava quase de costas para ele.

435
Astaroth ficou mudo por um momento, então
Mazarak aproveitou e prosseguiu:
– Os humanos têm qualidades incríveis!
O duque louro revirou seus olhos vermelhos e
fitou Lúcifer nesse momento. Nessa hora, intimidou-
se com a postura do arcanjo, que o encarava com os
olhos azuis-safira. Então começou a prestar atenção
no que Mazarak falava.
– Nesse tempo que passei com os humanos,
percebi que são corajosos. Isso os impulsiona para
conseguirem tudo que querem. Veja por exemplo a
sua evolução nesses milhões de anos. E agora olhe
para nós! – Mazarak olhou para o próprio corpo – O
que nós evoluímos, ou melhor, quando nós
evoluímos? Continuamos os mesmos desde a nossa
criação. Mantivemo-nos esse tempo todo em guerras
ridículas entre nós, apenas por querer que uma raça
não existisse. Eles não! – O anjo apontou com seu
braço musculoso para alguma direção. – Apesar de
também guerrilharem entre si, pelo menos sempre
existiu algum sentido mais honroso nisso. Nós todos
fomos criados pelo mesmo Pai, um de cada vez.
Temos que seguir Seus objetivos sem questionar.
Esse é o ponto final!

436
Astaroth apenas o encarava, com os braços
cruzados, enquanto ele prosseguia.
– Creio que podemos aprender muito com eles!
– disse o duque de asas negras.
– Ah não, não diga isso! Eles são seres inferiores
e nunca conseguirão nos ensinar nada! – Astaroth
falou, um tanto bravo. – Eu vim aqui apenas porque
cansei de lutar nessa guerra sem fim. Alguma coisa
aconteceu naquela arena e eu percebi que o lado
certo é aqui – o duque apontou o chão –, com vocês.
Mas não me diga que podemos aprender alguma
coisa com esses – Astaroth ficou mudo com a
palavra presa na garganta, em alguns segundos
soltou – vermes!
– Você não sabe o que fala! – Mazarak o
reprovava com a cabeça.
– Ele tem razão, irmão! – Beelzebuth deu um
passo à frente.
Apontando, com o dedo para os outros, Astaroth
se manifestou verdadeiramente bravo:
– Vocês não sabem o que falam! Eu jamais
aceitarei algo que venha desses...
– BASTA! – Lúcifer o interrompeu e se
aproximou com passos calmos.

437
Todos os duques presentes na sala deram um
passo para trás. O gigante arcanjo seguiu na direção
de Astaroth e parou em sua frente, iluminando sua
pele com o bronze de seu próprio corpo.
– Você está aqui agora, Astaroth? – indagou
Lúcifer, nervoso.
Astaroth esbugalhou os olhos e falou algo
parecido com nada. Gaguejou algumas sílabas, até
que...
– Está aqui ou não? Se não quiser seguir nossos
ideais, saia daqui agora! – O arcanjo caído apontou
na direção da porta.
Astaroth se recompôs, engoliu em seco, respirou
fundo.
– Sim, meu senhor! – O duque retirou a espada
da bainha, fincou-a no chão e se ajoelhou em
seguida, com a cabeça baixa. – Estou aqui com
vocês agora!
Lúcifer o olhou, sorridente. Quando Astaroth
levantou a cabeça e olhou diretamente nos olhos do
arcanjo caído, suas íris imediatamente perderam a
cor rubra e aos poucos se transformaram em um
verde brilhante, cristalino.

438
CAPÍTULO 44

Em algum lugar – tempos atuais


O humano encarava a imagem ao abrir do
grande portão. Não conseguia desprender seus olhos
daquela magnífica paisagem. Seus olhos inundaram
de lágrimas que logo começaram a escorrer, sem
parar. Ele as enxugava, mas a linda cachoeira
cristalina cadente continuava seguindo sua trajetória,
até molhar sua camisa.
– Onde estamos? – indagou Aron, continuando a
fitar a linda paisagem.
Bariel levou um tempo para responder à
pergunta do humano, pois também fora atingido pela
exuberância divina daquele lugar.
Não parecia existir mais nada além daquele
cômodo, onde os três se encontravam. Subitamente,
saindo do titânico portão, uma grande avenida de
ouro seguia adiante. A larga rua dividia um infinito
jardim de beleza estonteante. Era decorado com
flores jamais vistas na terra. Mas o que deixava o
local mais lindo não era a vegetação colorida e sim
as maravilhosas pedras preciosas em abundância.
439
Estas eram tão brilhantes que alagavam a região com
seus reflexos coloridos e invadiam o grande salão
onde se encontravam o humano, o primeiro
comandante e o guardador. O grande lugar era
encimado por um lindo céu azul claro, que subia até
certo ponto. Então começava um degradê até
alcançar a escuridão do espaço forrado com estrelas
de todas as cores.
Depois de alguns minutos, Aron já tinha se
esquecido de sua pergunta. Então Bariel respondeu
com sua voz trêmula:
– Nós estamos no Sétimo Céu! – Nesse
momento, escorreu uma lágrima do olho direito do
Primeiro.
Caliel tinha seus olhos tão amendoados que
parecia em transe.
– Temos que seguir adiante! – disse Bariel,
olhando os dois que estavam um em cada lado seu.
Os dois assentiram. Então o comandante deu o
primeiro passo em direção à porta, seguido pelo
segundo, o terceiro veio com mais certeza. Aron e
Caliel começaram a segui-lo.
Todos andavam em direção ao grandioso portão
e quase cruzavam a linha que separava o gigante
salão da avenida de ouro. De repente, uma estrela
440
brilhou mais forte no céu escuro e começou a descer
rapidamente. Nessa hora, todos pararam, fitando o
astro cadente. Quando a luz, em sua queda
consciente, chegou ao grande alvo céu, mudou de
direção e seguiu na direção dos três. Aproximou-se
em uma velocidade surpreendente até para Bariel.
Foi quando todos puderam reparar em suas
majestosas asas brancas batendo com voracidade.
Seus pelos curtos e claros deixavam aparentes
robustos músculos. Sua crina alva acompanhava o
vento, mas seus olhos eram o que mais chamava
atenção. Não era possível enxergá-los, pois se
tomavam completamente por uma luz branca.
O ser chegou como um cometa ao solo dourado
e pousou com delicadeza, correndo em direção à
porta. O animal fez uma curva na frente dos três,
fitou-os e relinchou, movendo a cabeça em uma
direção. Depois correu na direção oposta e alçou
voo.
Bariel semicerrou os olhos dizendo:
– Vamos!
Os dois assentiram com a cabeça e aguardaram o
comandante erguer voo. Aron sabia que poderia
voar. Não sabia por que, mas sabia que podia,
naquele momento.
441
O Primeiro bateu suas asas e disparou na direção
do cavalo alado. Caliel fez gesto para que Aron
fosse primeiro. O humano sorriu com os olhos ainda
lacrimejantes e disparou como um míssil. Em
seguida, o anjo ruivo explodiu o ar seguindo na
direção dos outros.
Aron reparou que conseguira voar em uma
velocidade pelo menos dez vezes maior do que
atingira anteriormente. Os três voavam em escolta,
com Bariel na frente, Aron no meio e Caliel atrás.
Cerca de quinhentos metros à frente, seguia o cavalo
branco, com suas asas abertas e os pés correndo
sobre relâmpagos coloridos.
Voavam em linha reta por cima da larga avenida
de ouro. Além da natureza, podiam se avistar lindas
praias com areias peroladas, seguidas por águas
cristalinas que compunham o mar infinito. Peixes
coloridos, com asas, sobrevoavam as águas. Às
vezes mergulhando para surgir novamente no ar,
criando uma sincronia magnífica.
Pássaros azuis, com rabos compridos nas cores
do arco-íris, sobrevoavam a natureza, deixando um
rastro brilhante no ar. Pequeninos seres humanoides,
com asas de libélulas, voavam rapidamente em todas
as direções.
442
– Aron? – gritou Caliel ao seu lado. – Mais
rápido! – O anjo apontou Bariel, muito à frente.
Afetado pela beleza contagiosa do lugar, Aron
se atentou ao anjo ruivo, assentiu com a cabeça e
disparou na frente. Caliel, no mesmo momento,
abriu um sorriso orgulhoso de seu garoto.
Os três e o cavalo com asas voaram cerca de
cinco minutos, até que muito longe, todos repararam
em uma grande construção cintilante que se erguia
das nuvens. Quanto mais se aproximavam, mais
ficava visível a magnitude do monumento. Ao se
aproximarem mais, foi possível avistar seis torres
menores, com cerca de vinte por cento da altura da
torre principal, mas que a copiavam por inteiro, em
decorações. Uma agigantada porta arqueada,
delimitada com grandes pedras de diamante, ficava
no centro da torre central.
Por fim, o cavalo pousou em um logradouro em
forma de arco que passava em cima das nuvens. Era
liso como mármore na sua mais avançada lapidação
e branco como algodão. Virou-se para os outros que
ainda chegavam e empinou, lampejando seus olhos
astrais, seguindo assim para a gigante porta, em
passos muito rápidos.

443
Em vez de pousarem, os três continuaram
voando por cima da grande ponte arqueada até se
aproximarem do cavalo branco com asas. Todos,
juntos, chegaram à frente da grande porta, com cerca
de cem metros de altura. Não tinha uma fissura
sequer em sua face, era apenas uma rocha gigantesca
e lisa. Repentinamente, a grande pedra dourada
brilhou, como se de uma hora para a outra se
tornasse uma grande porta de luz, ofuscando a visão
de todos, menos do animal.
O cavalo prosseguiu adiante e transpassou o
grande portal de luz dourada. Todos o seguiram e
quando seus corpos passaram a linha da porta, cada
um deles sentiu uma enorme descarga divina de
energia que percorreu completamente por suas
espinhas. Por fim, transpassaram a imensidão
luminosa. Olhando para trás, viram apenas uma
gigante pedra clara, que seguia para todas as
direções, sem ter um fim à vista.
Aron estava completamente extasiado. Chegou a
se questionar se tudo aquilo não se passava de um
terrível, maravilhoso sonho.
Todos arregalaram os olhos pelo que viram à
frente. Não estavam exatamente dentro da torre, pois
o que se podia ver à frente era um grande jardim
444
forrado com flores gigantes, maravilhosas. Seus tons
se embaralhavam em lilás e vermelho. Na medida
em que todos caminhavam acima da grama, a
vegetação, ao redor, parecia encará-los.
Andaram até chegarem a um riacho cristalino.
Dava-se para enxergar a beleza do fundo. Estava
forrado com pedras preciosas de todos os tipos. As
mais abundantes eram as safiras e as turmalinas.
Havia uma cachoeira que saía do ar e caía na água
fazendo um pequeno movimento, apenas na região
em que se chocava. As águas daquele rio eram
completamente calmas.
Aron foi o primeiro a flutuar para passar por
cima do riacho, mas o cavalo fez sinal de negativo
com a cabeça e o humano pousou no chão,
desconcertado. Subitamente, o animal com asas deu
um passo em cima da água e continuou andando,
sem afundar. Pequenas ondas se faziam abaixo de
suas patas quando tocavam a água. Bariel foi o
primeiro a segui-lo. Caliel fez sinal para que Aron
fosse à frente, mas o humano o olhou assustado,
hesitante.
– Pode ir, Aron! – O anjo gesticulou com a mão
aberta. Suas asas faziam leves movimentos de
acordo com os seus. – Você não vai afundar.
445
– Como você sabe? – Aron abaixou as
sobrancelhas.
– Eu apenas sei! – disse o anjo, sorridente.
Cauteloso, Aron seguiu com o primeiro passo
apenas tocando a água. Vendo que não afundava,
colocou o outro pé e assim seguiu riacho adentro.
Caliel o seguiu.
Depois de alguns minutos, todos seguiam por
cima da água cristalina, vendo as pedras cintilarem a
luminosidade abaixo de seus pés. Peixes de todos os
tamanhos passavam dançantes sob eles. A água
criava pequenas ondas a cada passo, mas que
desvaneciam rapidamente.
Os quatro passaram por uma grande rocha
pontiaguda de um branco tão claro quanto uma folha
de papel. Essa se erguia da água do rio. Na medida
em que ganhavam terreno, ao transcorrerem a lateral
da pedra, puderam ver uma sutil luz dourada atrás
dela. Ganhando visão total, ao finalizar a trajetória
da grande rocha, depararam-se com uma linda figura
celestial. O Arcanjo Rafael estava em pé, em cima
da água, como eles. Uma mão estava para trás,
enquanto a outra alimentava os peixes.

446
Ele olhou na direção deles com um sorriso que
pareceu iluminar mais do que a luz do sol e disse
com seus lábios carnudos:
– Enfim, meus irmãos. Vocês conseguiram!

447
CAPÍTULO 45

Cidade do Escaravelho, Inferno – tempos


atuais
Azrael e Cerberus ficaram no salão, enquanto
Baal e Belial seguiram para o outro recinto onde se
encontrava Leviatã. O duque, com olhos profundos
como as trevas, juntamente com o duque de olhos
vermelhos como sangue, percorreram um apertado
corredor escuro. A luminosidade era baixa. Provinha
de tochas presas à parede, que cintilavam suas
chamas em tons roxeados. O chão era negro e
molhado, com algumas rachaduras. Por fim, os dois
duques chegaram a uma pequena porta abobadada, à
direita. Baal girou a maçaneta e abaixou a cabeça
para entrar. Belial entrou, sem precisar se abaixar.
O cômodo, se não fosse por algumas peças de
roupas amontoadas no canto e por uma figura
feminina erguida no centro da sala, de costas, estaria
completamente vazio. A iluminação era um pouco
melhor. Vinha de duas tochas presas à parede, que
expeliam um fogo pulsante, dourado.

448
A mulher se virou com a mão na cintura, numa
pose sexy. O olhar era chamativo. Só não mais que
seu vestido vermelho de seda colado ao corpo.
Definia completamente a silhueta de suas curvas
bem definidas.
Baal deu uma curta risada e em seguida disse:
– Se eu não soubesse que era você, Leviatã, te
levava pra casa agora! – Voltou a dar risadas.
Belial tinha suas mãos para trás e sorria com
satisfação.
– Gostou? – indagou Leviatã, dando alguns
passos na direção de Baal.
Sai pra lá! – O grande duque o empurrou e
Leviatã caiu para trás, quicando o traseiro no chão.
O demônio se levantou espalmando o vestido.
Olhava Baal, mas ao mesmo tempo tinha o olhar
baixo. –todos os duques se sentiam intimidados por
ele.
– Vai, agora faça o seu trabalho, gatinha! – Baal
apertou as bochechas de Leviatã na forma de Sun.
Quando o demônio saiu e passou ao seu lado,
Baal assobiou e lhe desferiu um tapa no traseiro,
fazendo Leviatã pular para frente. Ele continuou e
antes de sair pela porta, encarou Belial, um tanto

449
envergonhado. Baal saiu, passando por Belial que
saiu em seguida, fechando a porta.
No corredor, Baal fitou Leviatã em sua frente.
– Que porra é essa? – disse o grande duque.

* * *

Na sala de reunião, Cerberus tinha sua cabeça


direita baixa, os olhos demonstravam raiva.
– Ninguém gosta desse cara! – disse a cabeça
direita.
– Sim! Mas o que podemos fazer? – respondeu a
cabeça do meio.
– Você pode, Azrael! – disse a cabeça da direita,
fitando o anjo caído, de costas, que olhava o
horizonte trevoso, rubro, pela janela.
– Sim, eu posso! – uma breve pausa – Mas não o
farei!
– Ele confia em você. Por que não o fará? Você
não se incomoda com isso também? – indagou a
cabeça da direita, enquanto a central apenas o
encarava e a da esquerda lambia o próprio peito.
Virando-se para Cerberus, o duque imponente
disse:

450
– Nós precisamos dele, nesse momento! – disse
Azrael, com sua voz aguda, que saía do escuro,
abaixo do capuz. – Vocês verão que tudo se
resolverá na hora certa – falou hesitante, mas quando
soltou, a confiança predominava naquelas palavras.
Súbito, todos escutaram um barulho muito forte
de algo se partindo ferozmente, que vinha do
corredor. Azrael retirou sua espada prateada da
bainha e correu, sendo seguido por Cerberus, que
levantou seu traseiro do chão e também correu na
mesma direção.
Quando Azrael abriu a porta da sala, deparou-se
com Baal na frente da porta lateral direita no
corredor, esmurrando-a, explodindo madeira para
todos os lados. Belial se afastava com seus passos
para trás, assustado pela fúria exibida por Baal.
Azrael correu em suas direções e quando chegou a
Belial, indagou:
– O que está acontecendo? – indagou Azrael,
segurando os ombros de Belial.
Mas o duque apenas o olhou ofegante, os olhos
esbugalhados. Azrael o tirou de lado e seguiu para
dentro da sala que nesse momento Baal já tinha
invadido. Debruçando-se na porta, visualizou Baal
dirigindo-se ao canto, furioso. Então entrou na sala e
451
correu em sua direção. Aproximando-se, viu uma
cena que o surpreendeu. Leviatã estava aninhado no
canto, em sua forma natural, completamente
amedrontado. Batia os dentes e escondia a cabeça
atrás dos braços, olhando a frente como podia, pelas
frestas de seus membros. Baal estava em cima dele
preparando um murro.
– O que está fazendo, Baal! – gritou Azrael.
O duque parou o soco e retraiu o braço. De
costas, olhando com o canto do olho, exclamou:
– Esse verme não serve para nada! – Baal
apontou para Leviatã.
Azrael deu um passo à frente.
– Nesse momento, precisamos ficar fortes,
unidos e juntos – disse o anjo caído do capuz.
– Mas de que ele serve para nós agora? – Baal
preparou novamente o murro. Súbito, sentiu uma
lâmina nas costas.
– Pare com isso, Baal! – a voz da criatura de
capuz soou, hesitante. O que ela mais queria naquele
momento, era rasgar Baal em dois, mas sabia que
não podia correr qualquer tipo de risco naquele
momento.
Uma pequena pausa, até o demônio escarlate
organizar as ideias.
452
– O que você está fazendo? Vai me matar? –
indagou Baal.
– Não, se eu não precisar!
O grande duque escarlate levantou os braços.
Azrael abaixou sua espada. Baal se virou, encarou-o
por muitos segundos e depois disse:
– Eu vou ver a situação da humana!
O demônio passou trombando em Azrael e saiu
do recinto. Azrael ficou parado por um tempo e
guardou sua espada.
– Obrigado! – disse Leviatã.
– Obrigado por causa de quê?
– Por ter me salvado?! – Leviatã exclamou em
tom de questão.
– Eu não salvei! – o anjo caído das trevas disse
rispidamente e se virou indo atrás de Baal.
Leviatã ficou no canto da sala sem saber o que
dizer.
Azrael percorria um grande corredor de
pedregulhos. Na trajetória, pensava no que poderia
ter dado errado. Lá, deparou-se com a humana presa
pelas mãos. O sangue já não gotejava mais como
antes. Baal estava em sua frente com a cabeça baixa
e olhos cerrados. Os punhos estavam tão apertados
que as veias saltavam por todo o seu braço.
453
Não pode ser! – pensou Azrael. Seus olhos se
esbugalharam na escuridão.
– Ela está morta! – disse Baal.
Ao ouvir o que Baal disse, Azrael ficou mudo e
sem saber o que responder. Novamente, o grande
duque, virando-se para Azrael e com mais raiva,
gritou:
– A humana está morta!
Enfurecido, Baal andou em direção à saída e
quando passou por Azrael, falou diretamente, sem
parar ou olhar nele:
– Prepare-se! Nós atacaremos com força total.

454
CAPÍTULO 46

Sétimo céu – tempos atuais


Todos se abaixaram reverenciando o arcanjo,
inclusive o cavalo. Aron demorou um pouco, mas
também se ajoelhou. Rafael virou completamente o
corpo em suas direções e seguiu com alguns passos,
aproximando-se.
– Levantem-se, por favor, meus caros! – disse
Rafael, fazendo gesto com a mão.
O grande cavalo com asas se aproximou de
Rafael que lhe acarinhou a cabeça.
– Olá, Aron!
O humano deu um passo à frente, sem saber
muito bem o que fazer.
– Por favor, aproxime-se! – Rafael sorriu.
Aron seguiu com alguns passos e se prostrou em
sua frente. Com seus dois metros e meio de altura, o
arcanjo se inclinou em direção ao humano e lhe
abraçou. Sentindo como se conhecesse aquele
abraço desde sempre, Aron o retribuiu e depois eles
se distanciaram.

455
– Tu és muito importante, sabia! – disse Rafael,
tocando a cabeça de Aron, com seus dedos leves
como penas.
– Todo mundo me diz isso!
Rafael escutou o humano, sorriu e olhou para
Bariel.
– Obrigado, Primeiro Comandante! – O arcanjo
assentiu com a cabeça.
Bariel meneou a sua, dizendo em seguida:
– Às suas ordens, meu senhor! – respondeu
Bariel.
Rafael pisou novamente por cima da água
cristalina em direção a Caliel. O anjo ruivo inclinava
sua cabeça para conseguir cruzar seu olhar com o do
arcanjo. Por fim, Rafael soltou:
– Caliel!
O guardador meneou a cabeça. Rafael
acrescentou:
–Tu fostes uma das peças primordiais para que
conseguíssemos estar aqui agora, esbaldando-nos
com esse momento. Todo trabalho bem feito deve
ser reconhecido e agora lhe presenteio. – O arcanjo
colocou a palma da mão sobre o peito de Caliel.
Súbito, uma luz dourada brilhou na mão de
Rafael e rapidamente dominou o corpo do anjo
456
ruivo. Caliel olhava para baixo fitando seu corpo
brilhar como uma estrela, até que a luz subiu e
dominou também a parte de sua cabeça. A energia
pulsou uma, duas, três, quatro, cinco e na sexta vez
explodiu em um estouro suave. O que ficou no lugar
surpreendeu a todos.
As vestes do anjo tinham se modificado por
completo. No peito, tinha uma armadura dourada
que cobria o tórax, ondas criavam desenhos de
músculos definidos no metal. De um largo cinturão
de ouro, caía uma saia branca com tecidos de seda
até quase na altura de seus joelhos. Nos pés, calçava
uma sandália de ouro, decorada com rubis. O mais
impressionante fora a mudança em seus olhos. Em
vez de azuis, brilhavam em um tom avermelhado.
Na mão, segurava uma linda lira dourada, com
cordas douradas. No centro do arco principal do
instrumento, tinha um grande rubi cintilante, que
brilhava como os novos olhos do celeste.
Rafael tinha um sorriso contagiante no rosto,
enquanto encarava a armadura de cima a baixo.
– Meu caro, fostes um guardador exemplar.
Caliel tinha a mente confusa como um mar de
águas vivas com seus tentáculos dançantes.

457
– A consagração de teu espírito alcançou o nível
máximo de conhecimento. A partir de agora,
ocuparás o assento do vigésimo quinto trono. –
Rafael lhe apertou os ombros.
Todos arregalaram os olhos diante do anúncio
do arcanjo, menos Caliel. Rafael prosseguiu:
– Tu ocuparás a vigésima quinta cadeira no
conselho. Além disso, ser-lhe-á atribuída uma tarefa
a mais – uma breve pausa –. Tu serás o primeiro
Guardião dos Tronos. – Rafael deu um passo para
trás, mas continuou falando.
Caliel o continuou encarando respeitosamente,
enquanto o arcanjo falava:
– Tu sentes o sangue fluindo por tuas veias
como rios em fúrias? – indagou o arcanjo.
Caliel assentiu com a cabeça. Rafael
acrescentou:
– Esse é o sangue dos querubins de Deus. O
mesmo sangue que também corre nas veias dos
guerreiros de Deus. Agora tu és possuidor de duas
honras: a dos guardadores do Pai e a dos guerreiros
do Pai. – O arcanjo segurou a mão de Caliel. – Tudo
mudou! Os humanos, o planeta, nossos irmãos, o
Céu – uma pequena pausa, com o olhar entristecido

458
–. Até o inferno mudou! Você sabe muito bem disso.
– O arcanjo soltou uma piscadela.
Todos arquearam as sobrancelhas nesse
momento, menos Caliel. O cavalo relinchou. Então o
arcanjo continuou:
– Por isso, agora precisamos de uma nova raça
de anjos e tu, Caliel. – O arcanjo pegou novamente
no ombro do ruivo, mas dessa vez apenas com uma
das mãos. – Tu és o Adão dessa nova raça.
A personalidade de Caliel pareceu se alterar
subitamente. Não tinha mais aquele olhar
amendoado, calmo. Agora tinha nos olhos o brilho
do guerreiro e ninguém o pararia. O arcanjo lhe deu
um leve sacolejo no ombro. Então seus lábios
carnudos se moveram:
– Estás pronto, irmão! – disse Rafael, sorrindo.
Caliel meneou a cabeça. Rafael o encarou e saiu
de lado, andou até Aron com as mãos para trás e
parou em sua frente.
– Agora podemos seguir em frente, Aron!
Os olhos do humano ainda lacrimejavam. O
arcanjo esticou a mão e com o dedo indicador
resgatou uma das lágrimas cadentes. Levou a mão à
frente de seus olhos, fitando a tremulante cristalina.
Na outra mão, materializou um pequeno recipiente
459
de ouro que segurou apenas com dois dedos. Lá ele
despejou a pequena lágrima.
– Pronto! – disse Rafael lacrando o pote.
– É só isso? – indagou Aron.
– Quase, Aron. Estamos quase lá! – exclamou o
gigante arcanjo.
Rafael se aproximou do cavalo alado, colocou o
pequeno recipiente em sua boca e lhe acarinhou a
cara. Relinchando, o animal empinou, correu sobre a
água e ergueu voo na sua forma mais bela.
– Arcanjo? – chamou Aron, enquanto fitava o
cavalo se afastar.
– Sim, Aron.
– Esse é um pegasus, né?
Rafael sorriu como diante de uma pergunta que
para ele soava infantil.
– Na verdade, Aron, esse é o Pegasus. Ele é o
único Pegasus!
O humano arregalou os olhos completamente
surpreso com a resposta.
Dirigindo-se a Bariel, o arcanjo mencionou:
– Agora precisamos apenas aguardar Gabriel! –
O arcanjo olhou o horizonte ao longe. – Ele está
trazendo o espírito de Adão do Primeiro Céu.

460
CAPÍTULO 47

Cidade da Luz, Submundo – tempos atuais


Lúcifer estava em pé, em sua majestosa sala,
fitando o horizonte pela janela – era o que mais
gostava de fazer. De cada lado da grande porta,
estavam Mazarak, com suas asas negras expostas, e
Astaroth, com as suas claras, também expostas. Os
olhos do duque de asas brancas já não eram mais
tenebrosos. Sua aparência, completamente angélica,
agora começara a modificar sua áurea também. A
leve energia que emanava de seu corpo, aos poucos,
ia se azulando, anulando seu terror.
Por algum motivo, naquele momento, todos os
caídos se protegiam com uma pequena camada de
energia. Mazarak emanava um tom azulado. Lúcifer,
como nos últimos tempos, estava bronze e brilhava
como um astro. Repentinamente, Beelzebuth passou
pela porta. Sua áurea brilhava no tom do céu pela
manhã.
– Meu senhor! – disse Beelzebuth, dirigindo-se
ao arcanjo caído.

461
– Diga, Beelzebuth! – respondeu Lúcifer,
virando-se para ele.
O duque hesitou um pouco antes de falar:
– O mensageiro chegou!
Lúcifer assentiu, dizendo:
– Deixe-o entrar!
Beelzebtuh meneou a cabeça e saiu da sala.
Lúcifer aguardou um tanto ansioso, mas não o
demonstrou nem sequer por um segundo. Depois de
dois minutos, o duque retornou, adentrando-se na
sala novamente. Atrás dele, deslizou para dentro
uma figura demoníaca. Segurando a bainha de sua
espada como sempre e escondendo-se atrás de seu
capuz, Azrael transpassou a linha da porta,
imediatamente meneando a cabeça ao arcanjo caído.
Nesse momento, Astaroth deu um pulo para trás.
– Azrael? –Astaroth gritou completamente
estupefato. – Como?
– Permita-me, senhor? – Azrael se dirigia a
Lúcifer.
O arcanjo assentiu com a cabeça. Um suspense
plainou na sala. Azrael depositou a bainha com sua
espada no chão. Levou as mãos até o capuz e com
leveza, puxou o tecido para trás, fazendo com que
seu rosto ficasse evidente. O susto de Astaroth,
462
nesse momento, foi maior ainda do que antes levara
ao se deparar com quem achava que fosse Azrael.
Nesse momento, Astaroth começou a recapitular
a escapada de Haziel do inferno. Nunca achou
possível que um simples guardador pudesse invadir
o submundo, sozinho, para libertá-lo. Com essa
revelação, ele juntou as peças, impressionando-se
com a estratégia angélica. Realmente percebera a
sutil mudança em Azrael nas últimas semanas.
– Hariel? – indagou Astaroth, surpreso.
– Olá, Astaroth!
– Mas como?
– Sinceramente, foi muito fácil enganá-los.
Antes de te contar essa história, por favor, deixe-me
passar uma notícia ao arcanjo!
– Por favor, diga-me, Hariel! – pediu Lúcifer.
– Baal atacará com força total!
O gigante arcanjo olhou para qualquer direção
com as mãos ainda para trás.
– Quando será isso?
– Agora! – disse a mulher anjo, um tanto
tristonha.
Levando as mãos à frente do corpo e
gesticulando, Lúcifer disse a todos:

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– Vamos, meus irmãos. Chegou a nossa hora! –
Majestosamente, o arcanjo acrescentou: – Vamos
mostrar ao Pai que sabemos que estávamos errados
em relação aos humanos e que nos arrependemos.
Vamos reconquistar o nosso lugar da mais perfeita
forma.
Todos na sala clamaram e explodiram mais
fortemente suas áureas. Menos o arcanjo, que se
virou novamente para o horizonte por sua janela,
pensativo. Depois disse:
– Vão!

* * *

O anjo caído, de asas negras, andava em passos


rápidos, ao lado de Beelzebuth, em direção ao salão
dos túneis. Eram seguidos por Hariel e Astaroth. A
mulher anjo segurava uma pequena sacola de
algodão.
– Como tudo isso aconteceu? – indagou Astaroth
à mulher anjo.
Ela hesitou um pouco, mas determinou naquele
momento que eles realmente estavam do mesmo
lado, então começou a falar:

464
– Há cerca de duas semanas, nós descobrimos
sobre o anjo que faria um século preso no inferno.
No mesmo momento, soubemos que se tratava de
Haziel. Então tive uma ideia e levei ao meu
comandante, Yesalel. Conversando, tivemos a ideia
de levar um brilhante plano adiante. Mas para isso,
teríamos que encurralar Azrael, que naquele
momento era a melhor opção dentre vocês, tendo em
vista sua túnica anuladora de energia. Tudo andou
como planejado e eu me apoderei de todos os seus
elementos.
– Como você conseguiu isso? – indagou
Astaroth.
– Eu tive muita ajuda!
– Onde está Azrael?
– Bem guardado! – respondeu a mulher anjo,
sorridente. Seus olhos azuis brilharam nesse
momento.
– Se me permite mais uma pergunta?!
Hariel assentiu com a cabeça. Astaroth meneou
a sua e indagou:
– Porque mandar um guardador ao inferno para
salvar um guerreiro, ao invés de mandar um
guerreiro?
– Você realmente não se lembra de mais nada?
465
Astaroth a encarou com os olhos semicerrados
sem dizer nada. Então Hariel acrescentou:
– Nós, os guerreiros, não somos capazes de
esconder nosso poder. Os guardadores possuem essa
virtude.
Astaroth balançou a cabeça, arregalando os
olhos e repuxando os lábios. Satisfeito com a
resposta, meneou sua cabeça novamente.
Todos chegaram ao salão, onde havia várias
entradas para os túneis. Beelzebuth andou até o pilar
central, colocou sua mão sobre ele, empurrou um
pequeno tijolo quadrado, que antes não parecia
existir. No mesmo momento, o pilar se dividiu em
dois, juntamente com o gigante teto que ficava a
cerca de duzentos metros de altura.
As duas partes do teto começaram a deslizar,
abrindo uma gigantesca fresta. A luz entrou pelo que
parecia ser um gigante túnel que percorria até o teto
da torre, a quilômetros de altura.
– Como você conseguiu se passar por ele sem
ninguém descobrir?
Hariel deu uma curta risada, dizendo em
seguida:
–Essa foi a parte mais fácil! – Ela abriu um
sorriso engraçado. – Não sei o que acontece com
466
vocês lá. Todos parecem não prestar atenção ao que
acontece em suas voltas.
Astaroth a olhou com reprovação. Ela
acrescentou:
– Não me entenda mal! Mas é que vocês só
pensam em matar, conquistar e acabam não
percebendo o que acontece ao redor de vocês. Mas
esse não é mais o seu caso, certo? – Ela arqueou as
sobrancelhas.
– Vamos, meus caros! – disse Beelzebuth.
– E o arcanjo? – indagou Astaroth.
– Ele irá à sua maneira! – respondeu o caído.
Astaroth assentiu com a cabeça. Nesse
momento, todos olharam para cima e com suas asas
já expostas, explodiram o vento, seguindo céu
acima, subindo pelo largo túnel como jatos. Subiram
muito velozmente, vencendo toda a trajetória da
estrutura. Enfim, chegaram ao final, saindo pela
boca da passagem como balas ao puxar de um
gatilho.

467
CAPÍTULO 48

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Quanto tempo, Princesa? – indagou Israel, com
sua mente.
Creio que tenhamos cerca de trinta minutos! –
respondeu Auriel.
O vigésimo quarto trono fitou o lugar onde
Bariel, Aron e Caliel desapareceram. Já se haviam
passado cerca de duas horas e ainda nenhuma notícia
chegara. Ainda olhando nessa mesma direção, só
que muito longe, Israel pôde avistar uma grande
nuvem negra se aproximando. Rapidamente, a
nuvem chegou e Israel reparou no que era um
enorme bando de corvos voando na direção da
redoma.
Como pedras lançadas, os pássaros começaram a
se chocar contra a redoma de energia. Seus corpos
batiam nela e em seguida despencavam da grande
altura. O grande número de corvos cadentes criava
uma larga cachoeira negra. O barulho de pescoços se
partindo era demasiado.
468
Nenhum dos seres no interno da redoma notou o
que se passava do lado de fora. Apenas Israel, que
estava no externo, via de muito perto os pássaros se
atirando para a morte.
Quando a investida mortal do bando cessou,
com a queda de milhares de pássaros, por algum
motivo, Israel olhou na mesma direção da qual os
corvos vieram. O que avistou o fez petrificar no
mesmo momento. Aproximava-se, como a lava
cuspida de um vulcão em erupção, um grande mar
negro, demoníaco. Não se podia ver seu fim. Ondas
se formavam ao marchar dos soldados infernais.
Israel saiu de seu transe amedrontador e seguiu
na direção da gigantesca horda. O anjo se aproximou
rapidamente, mas se mantinha cerca de trezentos
metros acima. Começou a sobrevoar acima do mar
de guerreiros, visualizando demônios de todos os
tipos. Nem sequer passou o primeiro quilômetro,
súbito, uma figura apareceu como um raio à sua
frente. Tinha no rosto um sorriso forçado, tenebroso.
– Belial! – disse Israel, depois de frear.
– Olá, meu caro irmão. Quanto tempo! –o
sarcasmo soou forte na frase de Belial enquanto
plainava, batendo suas asas negras de morcego.

469
– Nunca é tempo o suficiente para ficar longe de
vocês! – resmungou Israel.
Belial semicerrou os olhos e se lançou contra o
trono. O choque foi enorme, porém não contra o
corpo de Israel e sim contra uma barreira invisível
criada por ele em volta de seu próprio corpo. Mas
isso não impediu que ele fosse lançado a centenas de
metros em direção à redoma. Àquela hora, o anjo se
lembrou do restante dos tronos, percebendo, naquele
exato momento, seu estranho atraso.
Como uma bala, Belial explodiu em direção a
Israel. Aproximando-se rapidamente, começou a lhe
desferir uma sessão de socos. Antes que o Primeiro
acertasse o anjo, ele cruzou os braços na frente do
corpo, criando mais um escudo invisível, recebendo
assim o ataque nele.
Belial era incansável e já tinha lhe atribuído
centenas de murros brutais. Em certo momento, a
energia começou a pulsar e falhar. Subitamente, um
soco transpassou a camada protetora, acertando os
braços cruzados do celeste. A potência da investida
fez com que os ossos de seus antebraços se
partissem. Seu corpo foi lançado novamente, só que
agora Israel sentia uma dor alucinante.
Israel? – era a princesa. – Você está bem?
470
Princesa! Eu os segurarei o máximo que puder.
Por favor, concentre-se e utilize a sua maior força
para manter o campo intacto. Creio que os celestes
dentro da redoma, mesmo que mínima, sejam a
nossa única esperança.
Mas ele vai te matar, Israel! – a voz de Auriel
soava ansiosa, no pensamento de Israel.
O anjo demorou um pouco a responder. Então a
princesa acrescentou:
Bariel, os outros e o restante dos tronos devem
chegar a qualquer momento. – Israel não acreditava
nisso, mas precisava manter a concentração da
princesa na redoma.
Nesse momento, o trono fora acertado por mais
um poderoso soco, que o fez percorrer centenas de
metros, até acertar a parede da redoma com um
estrondo poderoso. Seu corpo bateu e caiu.
– Israel?– Escutou a voz de Auriel, angustiada,
enquanto sua mente desvanecia, deixando-o na
completa escuridão.
Belial assistiu ao corpo do celeste despencar por
alguns segundos até se chocar com o solo, e ali
ficou. A queda de aproximadamente cem metros,
para um anjo guardador, mesmo muito evoluído,
poderia ser mortal. Satisfeito, Belial rajou suas
471
negras asas, seguindo de encontro à agigantada
horda demoníaca. Ele passou por quilômetros, até
encontrar o fim do exército e seguiu em direção ao
solo. Em cima de uma rocha erguida, estava Baal,
fitando a redoma ao longe, com seus olhos negros,
como um poço sem fundo. Segurava a empunhadura
de sua espada ainda presa à bainha. Cerberus estava
ao seu lado, mas no solo.
– Pronto! Não temos mais nada no nosso
caminho! – disse Belial, mostrando os dentes.
– Ótimo! – disse Baal. Olhando em volta, ele
indagou: – Onde será que se meteu Azrael?
– Ele disse que estaria aqui no momento do
avanço! – respondeu a cabeça central de Cerberus.
– O avanço está sendo agora! – retrucou Baal. –
Vamos, não temos tempo a perder.
O demônio explodiu suas grandes asas de dragão
com quatro metros cada uma e tirou sua espada
negra da bainha. Rajou-as e partiu na direção
ofensiva.
Belial o seguiu. Cerberus saltou e também
começou a correr rapidamente na mesma direção dos
outros dois duques. Com seu tamanho, força e
agilidade, o gigante cão, com três cabeças,

472
provavelmente atingia suas centenas de quilômetros
por hora.

473
CAPÍTULO 49

Sétimo céu – tempos atuais


Rafael se entretinha com seu cavalo na margem
do belo rio. Bariel estava ao seu lado olhando os
peixes saltarem. Cerca de cinco metros adentro da
vegetação, próximos dali, Aron e Caliel
conversavam.
– Você está diferente! – exclamou Aron,
encarando o anjo ruivo com um sorrisinho no canto
da boca.
– Eu também me sinto diferente! – retrucou o
celeste.
– Como assim?
– Eu não sei direito. – Caliel estreitou os olhos e
fitou as mãos. – Eu desconhecia imenso poder!
– Você parece mais forte mesmo! – Aron
apertou o bíceps do celeste, brincando.
Caliel soltou uma risada, dizendo:
– O mesmo Aron de sempre.
Aron também riu.
– Seus olhos estão bem diferentes também!

474
– Estão? – Caliel indagou, surpreso. – Como
eles estão?
Aron sorriu, depois reparou com mais atenção a
lira nas mãos do celeste.
– Estão vermelhos como essa pedra! – O
humano apontou o rubi preso ao instrumento
musical.
O anjo arqueou as sobrancelhas e aproximou-se
do rio. Abaixou em sua beira e olhou diretamente
seu reflexo na água. Como dois rubis cintilantes, viu
suas íris pulsarem em escarlate. Levantou, com os
olhos presos em Aron, um tanto assustado diante da
mudança repentina em seus próprios olhos.
Alguns metros dali, Rafael e Bariel repararam o
movimento, então o arcanjo indagou:
– Está tudo bem, Caliel?
– Sim, senhor! Mas é que... – Caliel travou,
olhando para o outro lado.
Rafael o encarou sorridente. Caliel voltou a
encará-lo e apontou os olhos, franzindo a testa.
– Meus olhos agora estão vermelhos!
O gigante arcanjo dourado se aproximou de
Caliel e parou em sua frente. De cima para baixo o
olhou, sorridente.

475
– Caliel, o que você precisa saber agora é que
essa foi uma mudança saudável. O restante sobre ela
você aprenderá com o tempo.
O anjo ruivo meneou a cabeça. Rafael olhou
para longe, estreitando os olhos.
– Está tudo bem, senhor? – indagou Caliel.
– É, Gabriel! – uma breve pausa – Ele chegou!
Bariel também se aproximou de todos. Pegasus
corria na beira do rio se refrescando com a água.
– A qualquer momento... – Rafael parou de falar
e sorriu olhando em frente, no Céu – Lá está ele! – O
arcanjo apontou uma brilhante estrela dourada, que
acabara de despontar-se ao longe, no imenso azul
escuro, acima do alvo azul.
Nesse momento, Pegasus também se aproximou
e se prostrou ao lado de Rafael. Como os outros, ele
agora também fitava a estrela brilhante se
aproximando. Quando Gabriel chegou mais perto,
todos puderam reparar com mais detalhe a majestade
do arcanjo ganhando terreno. Menos Aron, pois não
tinha visão celestial.
O arcanjo voava como um cometa. Não batia
suas asas. Em sua velocidade atual, suas reluzentes
asas eram deixadas para trás, formando um
grandioso rabo dourado. Ele não estava sozinho. Ao
476
seu lado, voava um grande leão branco. Suas asas
tinham formas de penas, mas brilhavam como luzes
douradas. Sua juba clara era imponente. Quando
mais próximo, foi possível avistar atrás de sua juba,
segurando em seus sedosos pelos, um homem e uma
mulher. Nesse momento, Aron já conseguia ver que
Gabriel não estava sozinho, mas ainda não via os
detalhes.
Quando chegaram, com um estrondo, ao frearem
bruscamente, plainaram no ar acima da cabeça de
todos e desceram em linha reta, com mais cautela. O
gigante Gabriel meneou a cabeça ao irmão arcanjo,
depois aos outros. O grande leão se abaixou para que
o casal descesse. Primeiro saltou o homem.
Esticando a mão, ajudou a mulher a descer.
Aron não escondera sua surpresa ao desconfiar
que o homem e a mulher à sua frente pudessem ser
Adão e Eva. O homem alto, musculoso, com pele
dourada, tinha a barba negra forrando o rosto e
usava apenas um saiote como veste. Ainda assim
impunha respeito. A mulher era frágil, com cerca de
um metro e setenta. O corpo era curvilíneo. Como
vestes, também utilizava uma pequena saia,
deixando as partes de cima à mostra. Os seios eram
belos, perfeitos, com mamilos redondos e rosados,
477
quase escondidos pelos lisos cabelos negros, que
caíam até a sua cintura. Isso deixou Aron um tanto
constrangido. Adão e Eva tinham os olhos castanho-
escuros.
O casal se ajoelhou perante o Arcanjo Rafael.
Então Adão disse, levantando a cabeça.
– Obrigado por nos permitir a entrada no Sétimo
Céu, Arcanjo.
– Você sabe que isso não cabe a mim, Adão.
Isso cabe ao Pai! – Rafael sorriu e pediu para que
eles se levantassem com um gesto e abrindo os
braços, acrescentou: – Como todos vocês podem ver,
estamos reunidos aqui hoje. Somos anjos, arcanjos e
humanos. – O arcanjo fez um gesto para que Gabriel
se aproximasse dele. Ele o fez. Abraçando o irmão
pela lateral, Rafael prosseguiu: – Não importa se o
Sétimo Céu é a morada do Pai, ou a morada dos
arcanjos. O que importa é que aqui, agora – o
arcanjo soltou Gabriel e apontou o chão –, nós temos
tudo de que precisamos para limpar a raça humana.

478
CAPÍTULO 50

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Uma gigantesca massa demoníaca se punha ao
redor da redoma, cada vez mais tomando-a. Um mar
crescente de corpos demoníacos ia se fechando em
volta da redoma de energia. Na medida em que os
guerreiros infernais iam chegando e se posicionando,
a massa continuava a crescer, tomando
completamente a região, fazendo com que a redoma
se tornasse um pequeno ponto no meio de um mar
negro, cintilante.
No meio dos guerreiros, um corredor se
formava, na medida em que Cerberus passava
correndo, abrindo espaço. Acima, plainavam Baal e
Belial. Os três duques se aproximaram e chegaram
quase a tocar a parede translúcida. Baal e Belial
pousaram em uma rocha, com quatro metros de
altura. Então os três príncipes infernais fitaram, da
parte externa, todo o interno da redoma. Estreitaram
os olhos ao repararem nos doze tronos quase no teto
da redoma.
479
– Não tem como estourarmos esse campo? –
indagou Belial.
– Não! – respondeu Baal estreitando os olhos. –
Por enquanto!
Belial olhou em volta e não encontrou o corpo
de Israel, que caiu ao bater na redoma. Mas um
grande monte negro de pássaros mortos se erguia
recostado na parede translúcida. Baal desceu da
rocha com um salto. Em passos calmos, deu a volta
no monte de corvos, aproximou-se do véu
transparente e o tocou com a mão aberta. Daquele
ponto, uma névoa negra cresceu, preenchendo
alguns metros da parede de energia celestial. Baal
retirou a mão, um tanto insatisfeito. Tirou a espada
da bainha, colocou-a com a ponta no chão, apoiou as
mãos sobre ela e ali ficou, fitando os doze a centenas
de metros acima.

* * *

Passados cinco minutos, Baal tocou novamente a


parede translucidada. A névoa negra cresceu daquele
ponto novamente e dessa vez atingiu o triplo do
tamanho anterior. O duque sorriu com o canto da
boca.
480
Belial o observava a alguns metros de distância.
Vendo a segunda tentativa de Baal, ele percebeu que
aquilo se tratava de algum tipo de termômetro.
Muito acima, a princesa pôde sentir as trevas
emanando daquela região. Abrindo os olhos e
olhando para baixo, pela primeira vez Auriel reparou
no grande mar demoníaco cintilante, fora da redoma.
Isso a preocupou, mas não mais do que quando
sentiu a energia demoníaca poderosa de Baal
confundindo-se com a energia dos tronos em uma
energia negra, tenebrosa.
Auriel sentia a barreira celestial perdendo força
e sabia que a qualquer momento ela poderia se
dissipar. A princesa emanava de sua áurea todo o
poder ainda contido em seu coração. Mas sua força,
aos poucos, ia perdendo pujança, como a dos outros
onze tronos.
A energia negra de Baal começara a se fortalecer
emitindo alguns relâmpagos internos. Já atingira
certa dimensão na parede da redoma. Sentindo as
trevas crescendo naquele ambiente, Auriel gritou e
explodiu sua áurea magnífica. A energia queimava
como uma grande chama nas cores do arco-íris. Isso
fez com que a névoa negra se reduzisse. Baal
enraiveceu a face e colocou a outra mão na redoma.
481
Soltando um grito, uma grande explosão aconteceu
vinda de suas mãos. Uma poderosa onda de choque
varreu completamente as paredes da redoma de
energia, fazendo com que suas paredes tremeleassem
em ondas.
Auriel, que estava de costas para os tronos,
virou-se e com um olhar, conseguiu encarar todos
eles. Na mesma hora, eles explodiram suas áureas
quase tão belas quanto a da princesa. Isso fez com
que a parede de energia ganhasse consistência e
parasse de tremer.
Em vez de isso fazer com que Baal se
enfurecesse, pelo contrário, o grande duque se
afastou alguns passos da redoma de energia. No
rosto, tinha um grande sorriso maligno.
– Belial! – um berro de Baal – Cerberus!
Belial, que já o fitava, respondeu:
– De prontidão, Baal.
– Estamos prontos! – respondeu as cabeças da
direita e central de Cerberus.
– Agora! – gritou Baal, levantando sua espada.

482
CAPÍTULO 51

Sétimo céu – tempos atuais


Rafael tinha a aparência de um afrodescendente.
Os olhos amendoados eram bondosos, o nariz era
largo e os lábios fartos. Gabriel já puxava mais para
o lado europeu. Os cabelos eram levemente
encaracolados, os traços da face gentis e os olhos
eram de um azul exatamente da cor do céu pela
manhã. Ambos forjados do modo de que até seus
pelos eram de ouro. Os dois arcanjos, juntos, faziam
com que aquele local refletisse em todo lugar o
dourado em abundância.
Dava-se para ver o dourado dançando junto com
as pequenas ondas do rio; dava-se para vê-lo
refletido nas diversas pedras coloridas, sendo que
cada uma emanava um tom sutil, uma diferente da
outra. O lampejo dourado existia também nas flores,
plantas, que balançavam a leveza do vento quase
cristalino.
– Adão! – disse Rafael. – Gabriel lhe explicou o
que teria que fazer?
O primeiro homem assentiu com a cabeça.
483
Aron os encarava com as sobrancelhas
arqueadas. Estava completamente impressionado ao
presenciar toda aquela divindade em um lugar só.
Não entendia nada sobre as conversas alheias, mas
também não queria entender. Queria apenas passar
por tudo aquilo e fazer o que fosse necessário para
que sua vida voltasse a ser como antes.
Rafael gesticulou para Adão, que meneou a
cabeça e se aproximou de Aron.
Completamente pasmo, com os olhos
esbugalhados, frio na barriga, Aron não sabia como
agir. Apesar de querer fazer tudo em benefício da
humanidade, sem questionar, era ansioso e queria
que as coisas andassem depressa. Como ninguém lhe
dizia o que iria acontecer, ou como iria acontecer,
estava um tanto aflito.
Pegasus e o grande leão com asas contemplavam
ao momento juntos, à beira do rio. Bariel e Caliel
estavam cerca de cinco metros afastados e ambos
tinham os braços cruzados. Eva se mantinha cerca de
três passos de Adão. Estava envolvida por um manto
branco que Gabriel lhe entregou, depois de
materializá-lo.
– Aguardemos um momento! – Rafael fechou os
olhos, cruzando as mãos à frente da região da pélvis.
484
Gabriel o copiou igualmente. O momento durou
cerca de dois minutos. Então Gabriel abriu os olhos.
Em seguida, Rafael os abriu. Entreolhando-se, os
arcanjos disseram juntos, calmamente:
– Eles chegaram!
Nesse momento, os dois gigantes novamente
cerraram os olhos e esticaram os braços, deixando
Adão e Aron abaixo de suas palmas esticadas.
Súbito, exatamente acima do quarteto, cerca de cem
metros no alto, uma imensa luz clara brilhou, com a
força de dez sóis. Isso fez com que a visão de todos
se ofuscasse, menos as dos arcanjos, que viviam
meio àquela luz.
A grandiosa luz desceu como uma estrela
flutuante. Por apenas dez segundos, naquela região,
com o excesso de luz, tudo simplesmente ficou
branco. Não se podia ver nada, a não ser o puro
branco.

– Bariel? – indagou Caliel.


– Estou aqui, Caliel!
Caliel assentiu com a cabeça. Mas caindo em si
de que Bariel não podia ver, disse:

485
– Por essa eu não esperava – uma breve pausa –.
Quero dizer, todos eles juntos, assim, emanando
tanta divindade!

Meio à branquidão, todos puderam ver, nesse


momento, cinco silhuetas brilhantes, douradas. Uma
poderosa voz, grave, surgiu dali:

Do barro vós fostes criados.


Foram plasmados e alentados com o espírito do
Pai.
Prostremo-nos ante vós.

“E as cinco silhuetas se inclinaram para frente. ”

No meio dos cinco, uma pequena esfera, tão


brilhante quanto eles, surgiu. Essa brilhou mais forte
e rapidamente explodiu. O estouro foi abafado e
agudo ao mesmo tempo. Foi tudo tão rápido que não
houve tempo para que todos se protegessem. Não
que precisassem, pois foi uma explosão inofensiva.
Do centro da detonação, o raio de impacto varreu o
lugar, levando a claridade com ela.
Todos se surpreenderam ao avistar não dois, mas
cinco arcanjos em volta dos dois varões humanos.
486
Mas o que deixou todos boquiabertos não foi isso,
mas sim o fato de que Adão e Aron não eram mesmo
eles exatamente. Agora tinham, em sua majestade,
olhos azuis como o céu. Dentro de suas íris,
pareciam cintilar milhões de pequenas estrelas azuis.
Nas mãos, seguravam pequenas pedras azuis de
natureza desconhecida, tinham as cores de seus
olhos.
Adão observou a pedra em sua mão e disse:
– Como nos velhos tempos! – olhando para
Rafael, ele perguntou: – Sem o pergaminho, senhor?
– Não será necessário dessa vez!

487
CAPÍTULO 52

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Baal saltou muito alto, cerca de vinte metros de
altura. Nessa trajetória rodou sua lâmina, segurando
a empunhadura da espada com as duas mãos.
Quando seu corpo ia começar a despencar, com um
movimento espetacular, o grande duque fincou sua
espada na parede translúcida. Como ele previa, a
arma transpassou o véu como se fosse uma grossa
camada de vidro. Com a lâmina da espada ainda
presa, a partir daquele ponto, uma rachadura
brilhante começou a se formar e crescer em todas as
direções. Nas rachaduras da redoma formavam-se
auroras brancas.
Após alguns segundos, a barreira de energia se
transformou em algo parecido com vidro prestes a se
estilhaçar.
Colocando os pés na parede da redoma, Baal
forçou suas pernas e retirou sua espada. Seu corpo
despencou, girando em uma cambalhota para trás,
caindo no chão com as pernas flexionadas.
488
Levantou-se como um touro e correu na direção
oposta à redoma, gritando para que todos se
afastassem. Como formigas, todos os guerreiros
correram. Súbito, uma agigantada explosão luminosa
foi criada a partir da redoma, atingindo apenas a
parte externa. Os diabretes mais próximos, no
mesmo momento foram desintegrados. Uma grande
vala profunda, no formato de um anel, formou-se na
terra, dividindo os demônios internos dos externos à
redoma.
Todos os guerreiros agora estavam no mesmo
ambiente. A força da redoma se dissipou e os
lutadores infernais e celestiais, antes atingidos por
seu amor, agora voltavam a si. Os demônios
externos se levantavam após o grande tumulto e aos
poucos iam reparando que a grande redoma de
energia tinha desaparecido por completo.
Baal e os outros duques tinham conseguido se
afastar cerca de quinhentos metros. O grande duque
encarou, com satisfação, o local onde ficava a
redoma.
– Chegou a hora, meus caros duques! – disse o
demônio, referindo-se a Belial e Cerberus.
Os duques sorriram e Belial disse:

489
– Primeiro você, Baal! – Belial gesticulou para
que o grande duque fosse à frente.
Ele sorriu satisfeito. Bateu suas gigantescas asas,
partindo na direção da princesa e dos tronos.
Aproximou-se como um gavião prestes a pegar sua
presa. Súbito, uma figura apareceu na sua frente.
Baal bateu as asas e foi jogado para trás em um
susto. Encarou o demônio por um momento até cair
sua ficha.
– O que você está fazendo? – indagou Baal. –
Porque você demorou, Azrael?
Abaixo do capuz, o duque segurava sua espada
em mãos. Soltando uma mão, levou-a à cabeça e
deslizou a touca para trás. Ao que viu, Baal
esbugalhou os olhos, engolindo a seco.
– Ca... Dê... Az... Ra... El? – perguntou Baal, um
tanto furioso.
Com um sorriso sarcástico, Hariel respondeu:
– Está bem guardado! – esticou os lábios,
mostrando os dentes.

* * *

Abaixo, os demônios que estavam na parte


externa da redoma avançaram para o centro como
490
formigas ferozes. Com pelo menos cem mil
guerreiros a mais que o batalhão angélico, os
infernais partiram para o massacre.
Não tendo alternativa, os anjos começaram a
despontar do centro do abate, erguendo voo. Mas só
conseguiam isso os que naquele momento tinham
suas asas expostas, ou os mais poderosos que
conseguiam abrir caminho lutando, para explodi-las
e assim alçar voo. Nessa investida instantânea, pelo
menos metade da legião angélica foi capturada e
massacrada.
Com muita agilidade, Daniel já tinha percorrido
cinquenta metros para cima, com Yesalel apenas
cinco metros abaixo dele, seguindo na mesma
direção.
Haziel acabara de erguer voo e no meio do
alvoroço, reparou em Barrattiel ainda preso, com
dezenas de demônios o segurando, tentando
massacrá-lo. O celeste os afastava para tentar
explodir as asas, mas não dava tempo. No mesmo
momento, outros já o atacavam vindos de outras
direções. Barrattiel era muito forte, mas não
aguentaria esses ataques repentinos por muito
tempo.

491
Olhando acima, Barrattiel cruzou o olhar com
Haziel e viu quando ele desceu como um míssil.
Atingindo o solo naquela região, do ponto do
choque, uma grande bola dourada cresceu
desintegrando os infernais, abrindo um grande
espaço esférico, limpo, no chão.
Em determinado momento, em frações de
milésimos de segundos, prevendo a investida de
Haziel, Barrattiel conseguiu saltar e não fora
atingido pelo ataque que se sucedeu. Ainda no ar, o
gigante anjo explodiu suas asas e dali partiu,
radiante.
Haziel o olhou subindo e bateu suas asas, ergueu
voo e seguiu na mesma direção. Repentinamente,
fora interrompido por um corpo que o atingiu com
violência, arremessando-o longe, meio ao alvoroço
demoníaco. O corpo do anjo abriu um rastro nos
corpos negros, levantando poeira. Haziel se
recompôs rapidamente e antes que os diabretes o
alcançassem, ergueu voo novamente.
Alguns metros acima, olhando à frente, viu
Belial plainando no ar. Tinha um sorriso demoníaco
na face e os braços cruzados. Suas asas de morcego
rajavam, calmamente. Haziel o encarou e parou
cerca de cinquenta metros à sua frente, plainando.
492
– Que prazer grandioso! – disse Belial.
– Eu não posso dizer o mesmo! – respondeu o
anjo, rispidamente.
– Nossa! Faz tanto tempo que não nos vemos. A
recepção de vocês está abalada. Não estou gostando.
– Belial levou a mão à frente do corpo e bateu no
dedo indicador com o outro. – Primeiro Israel me
recepcionou como um cachorro. Agora você. Quanta
hostilidade!
– Não seja sonso, Belial! Vamos acabar logo
com isso. – Haziel cerrou os punhos.
– Fazer o quê! Já que você quer assim! – O
duque estreitou os olhos. – Só não pense que será
como com Pruflas.
Belial explodiu sua áurea satânica e partiu para
cima de Haziel.
No momento em que viu Belial partindo para
cima de Haziel, olhando a cerca de trezentos metros
à direita, Barrattiel também reparou em Baal
seguindo de encontro a Hariel. Mas nesse caso,
Daniel e Yesalel já partiam para aquele ponto. Então
ele desceu de encontro ao confronto entre Haziel e
Belial.

* * *
493
Em outro ponto do campo de batalha, Hekamiah
acabara de conseguir abrir espaço, derrubando uma
centena de demônios com uma só poderosa
investida. Ele explodiu suas asas e com ferocidade
alçou voo. Súbito, sentiu uma forte fisgada na perna,
depois outra na outra perna. Por fim, uma terceira o
acertou nas costelas. Tudo isso aconteceu em menos
de um segundo. O anjo despencou junto a Cerberus,
meio ao bando de demônios ferozes abaixo. Ele caiu
alguns metros afastado do gigante cão,
desaparecendo no mar negro, infernal.

494
CAPÍTULO 53

Sétimo céu – tempos atuais


Os cinco irmãos arcanjos, juntos, faziam com
que o lugar adquirisse uma beleza ainda maior, não
física, mas espiritual. Nitidamente, o maior em
majestade dentre os cinco era Miguel, com seus
longos cabelos lisos, dourados. Este olhou para
Rafael com seus olhos amarelos. Rafael, no mesmo
momento, meneou a cabeça. Em seguida, Miguel se
dirigiu a Aron e Adão:
– Meus caros humanos, nós teremos apenas uma
chance!
Os homens escutavam, completamente atentos.
– Adão, como podes ver, foi lhe concedido
novamente um corpo feito de carne e osso, como o
de seu descendente. – Miguel olhou para Aron. –
Juntos, vós rumareis ao centro do mundo e lá
saudareis as pedras que lhe foram concedidas,
juntamente.
– Desculpe-me, senhor! – disse Adão. – Mas
como faremos isso?
– No momento certo, vós sabereis!

495
O primeiro homem assentiu com a cabeça.
Miguel seguiu e se aproximou de Bariel e Caliel. Os
dois se ajoelharam à sua frente. O arcanjo pediu que
eles se levantassem, proferindo em seguida:
– Meus anjos! – um largo sorriso – Dentro das
centenas de milênios que lutamos por essa raça,
nunca houve uma tarefa mais importante do que
essa. Fazei todo o possível para que os humanos
cheguem ao centro do planeta e saúdem suas pedras.
– Faremos isso, meu senhor! – exclamou Bariel,
sério.
– Mitra, Pegasus! – chamou Miguel.
Os dois animais deram um passo à frente.
– Por favor, assumi vossos postos – acrescentou
o gigante arcanjo de olhos amarelos.
Aproximando-se dos dois humanos, os bichos se
prostraram um de cada lado deles. Mitra ao lado de
Adão e Pegasus de Aron. Abaixaram-se e
aguardaram para que os humanos subissem em seus
corpos. Adão encarou Eva com um sorriso. Ela
meneou a cabeça, também sorridente. Adão então
posicionou sua mão no pelo macio do grande leão e
com um salto, montou o animal. Aron hesitou e
nesse momento fitou Caliel. O anjo lhe meneou a
cabeça e o humano então subiu no cavalo com asas.
496
Miguel tocou o cavalo com dois dedos e soltando
pequeninas estrelas luminescentes douradas, uma
rédea se materializou a partir do nada. O humano a
segurou.
Novamente, direcionando-se aos anjos, Miguel
disse:
– Meus caros anjos, ide! Fazei com que os
humanos atinjam seu objetivo e que a humanidade
consiga entrar em sua nova era.
– Lutaremos até a nossa última gota de sangue,
senhor! – Bariel fitou o restante dos arcanjos. –
Senhores! – disse meneando a cabeça.
Todos os cinco lhe assentiram com a cabeça,
sorridentes. Nesse momento, Pegasus empinou e
relinchou, dando pequenos chutes no ar, com as
patas dianteiras. Aron segurou o cinto de couro com
força e assim o cavalo saiu em disparada galopante.
Mitra deu um salto felino, alcançando cerca de
quinze metros à frente e dali saiu correndo com a
majestade de um rei leão. Adão segurava-nos pelos
macios que compunham sua grande juba.
Os animais corriam, beirando o rio cristalino.
Peixes avantajados nadavam tão velozmente quanto
eles, como lanchas submarinas. Bariel e Caliel
seguiam, voando, com velocidade nivelada aos
497
corredores abaixo. Súbito, os animais pisotearam o
ar. Daí por diante, começaram a subir em direção ao
céu escuro, correndo sobre o vento. Lindos
relâmpagos se formavam abaixo de seus pés, criando
uma avenida de luz cintilante. Os peixes, ali,
pararam e começaram a nadar em círculos, saltando
em sincronia. A impressão era de que o cardume
ficou observando o voo voraz do grupo, enquanto se
afastavam.
Quanto mais subiam, mais admirado ficava o
humano com a beleza divina do Sétimo Céu. Já tinha
ouvido falar que essa era a morada exclusiva de
Deus e dos arcanjos, mas ele também estava ali,
lutando a favor da humanidade.
Em determinado momento, os animais
encolheram as patas e começaram a bater suas
majestosas asas. A velocidade foi aumentando
consideravelmente e a direção do voo mudou. Bariel
e Caliel investiram mais ferozmente em suas asas,
explodindo o ar à volta. Rapidamente, alcançaram o
lado escuro do céu.
Uma estrela brilhou mais forte ao longe,
exatamente na direção da qual eles seguiam. O
fulgor, em volta dos seres celestiais, começara a se
expressar com mais vontade. Os anjos batiam suas
498
asas com todo o poder concedido a eles. Bariel
seguia um tanto à frente de Caliel, que apesar de
estar mais poderoso, lutava para acompanhar o
bando. Os dois anjos ficavam para trás, diante da
pujança dos dois animais divinos.
Olhando para trás, Aron percebeu a diferença na
distância entre eles e cutucou Pegasus. O cavalo, por
algum motivo, entendeu o que o humano queria,
então desacelerou e relinchou para Mitra, que
também diminuiu a velocidade. Os celestes, atrás,
aproximaram-se rapidamente e logo, todos estavam
lado a lado.
Subam...
Bariel e Caliel escutaram em suas mentes no
mesmo momento. Entreolhando-se, ouviram
novamente.
Subam, agora!
Os dois animais os encaravam.
Entendendo o recado, os dois celestes se
aproximaram dos dois gigantes bichos e montaram
seus corpos. Guardando suas asas na carne, os anjos
seguiram em trio. Aron e Caliel com Pegasus; Adão
e Bariel com Mitra.
Pegasus e Mitra se entreolharam e nesse
momento explodiram como dois mísseis, só que mil
499
vezes mais rápidos. A velocidade aumentava de uma
maneira colossal, nunca vista nem pelos anjos.
– O que é isso? – gritou Aron, segurando as
rédeas do cavalo alado, com toda a sua força.
Não que isso fosse ajudá-lo a se segurar, fazia
isso apenas por próprio alívio. O que os mantinha
presos era a energia divina dos animais. As estrelas,
ao redor, começaram a se deformar, transformando-
se em fechos de luz, que se alongaram de uma hora
para a outra, passando pelas laterais dos seres
voadores. As estrelas disformes pareciam estar em
próprio movimento, ao contrário deles.
O grande astro mais brilhante, de uma hora para
outra, foi alcançado e todos foram tomados por uma
grandiosa claridade. Naquele ambiente, pareciam
estar sobrevoando meio a um rio leitoso, em câmera
lenta. Aron reparou em suas mãos, quando as levava
à frente do corpo. O movimento era bem sutil, muito
mais leve do que se estivesse nadando. Moveu sua
cabeça para o lado. Dava a impressão de que o
movimento levava uma eternidade para acabar.
Reparou em Adão segurando a juba de Mitra, com
força. Os longos pelos claros movimentavam-se em
ondas suaves.

500
Subitamente, foram arremessados a outro
universo mais familiar para Aron. As estrelas tinham
apenas um tom e a uniformidade delas tinha uma
sincronia conhecida pelo humano. Olhando à frente,
Aron viu sua grande casa, o enorme planeta azul
meio a uma névoa cinza. Mas ali, a velocidade tinha
se reduzido bruscamente.
Todos mergulharam no globo, partindo para a
principal empreitada de suas vidas.

501
CAPÍTULO 54

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Baal explodia em fúria para cima de Hariel.
Meio a trajetória, pôde avistar uma grande estrela
cadente estourando céu adentro. Seu corpo estava a
se chocar com o de Hariel. Súbito, por sorte da
mulher anjo, o grande duque mudou de direção e
partiu como um foguete, seguindo o astro. Nesse
momento, Daniel se aproximou vorazmente dela.
– Você está bem? – indagou Daniel, um tanto
ofegante.
– Estou! – respondeu ela, fitando o duque se
distanciar rapidamente.
Daniel olhou Baal desaparecendo.
– Aonde ele foi?
– Foi atrás dos outros. – Apontando a estrela
brilhante se afastando, Hariel continuou: – Sinto três
tipos de energia naquele ponto: reconheço as
angélicas de Bariel e Caliel, a de Aron, mas tem
mais três que não consigo identificar.
– Estou sentindo! – retrucou Daniel. – O
comandante está lá, podemos ficar tranquilos. –
Olhando para os lados, franziu as sobrancelhas

502
dizendo: – Yesalel estava atrás de mim. Onde ele
está?
Nesse momento, eles viram Yesalel como um
míssil partindo na mesma direção da estrela e de
Baal. Daniel acrescentou, olhando os que se
afastavam rapidamente:
– Bariel e Yesalel juntos! Hum... Podemos
realmente nos concentrar totalmente aqui.

* * *

Cerca de cinco quilômetros dos limites do


campo de batalha, Beelzebuth, Mazarak e Astaroth,
com seus novos olhos cintilando, plainavam,
visualizando o combate sangrento. Viam quando
alguns poucos celestes despontavam do mar negro
de guerreiros infernais, subindo aos céus,
desesperadamente.
– Chegou a hora! – disse Beelzebuth. – Vamos
ajudar nossos irmãos!
Mazarak e Astaroth assentiram. Ele acrescentou:
– Temos que chegar primeiro nos tronos! – O
duque fitou os doze a centenas de metros, acima do
mar negro.
A trindade do submundo explodiu o vento em
direção à batalha. Subindo alguns graus em direção
às nuvens, na intenção de se esconderem até o
momento certo, os três duques plainaram e se
aproximaram dos tronos. Em certo momento,
503
estavam exatamente sobre eles, apenas algumas
centenas de metros acima.
Meneando a cabeça aos outros dois, Beelzebuth
movimentou suas asas para que descesse plainando,
em linha reta. Astaroth e Mazarak o acompanharam
da mesma forma. Despontando-se das nuvens, os
três duques de Lúcifer desceram ao ponto em que
ficaram quase cara a cara com Auriel. Ao vê-los, a
princesa se assustou e bateu as asas uma vez. Seu
corpo foi jogado para trás e ela topou com os outros
onze tronos.
* * *

Daniel, nesse momento, plainava no ar de frente


para Hariel. Movia suas asas com sutileza até que se
atentou ao movimento no meio dos tronos.
Arregalando os olhos, desprendendo totalmente a
atenção da loura, disparou em direção a eles. Hariel
captou a tensão do celeste e se virou, um tanto
ansiosa. Analisou rapidamente do que se tratava e
tentou gritar seu nome a fim de lhe explicar. Mas
Daniel já voava em direção aos duques como um
touro valente.
Vendo que a princesa flutuava em direção a
Beelzebuth e aos dois guerreiros em sua retaguarda,
pensou que naquele momento ela seria esmagada.
Mas não foi exatamente o que aconteceu. Auriel se
aproximou do duque ao ponto de ficar a meio metro
de distância. Beelzebuth pareceu completamente
504
inofensivo. Ao se aproximar, em vez de interferir,
Daniel assistiu a cena e viu Auriel levando as mãos
ao rosto dele, aproximando o seu e dizendo algo.
Analisando aquela cena surpreendente, Daniel
passou os olhos pelos guerreiros atrás de Beelzebuth
e notou Astaroth. O outro tinha asas negras enão o
reconheceu no primeiro segundo. –Não acredito! –
pensou Daniel.
– Mazarak? – o berro de Daniel foi tão alto, que
não só Mazarak, mas Astaroth, Beelzebuth, a
princesa e os outros onze olharam para ele.
A versão exata de Daniel, mas com asas negras,
olhava-o, com os olhos brilhantes.
– Olá, irmão! – sussurrou Mazarak, com a voz
baixa.
Daniel leu os lábios do irmão entendendo-o
completamente. Nesse momento, plainou até ele,
aproximou-se e o envolveu em um abraço
esmagador.
– Eu achei que nunca mais iria te ver! –
exclamou Daniel, com voz trêmula.
– Eu estou aqui, irmão!
O abraço durou vários segundos, até que Daniel
abriu os olhos, dando de cara com as asas negras.
Ele se afastou sutilmente e olhando direto nos olhos
do irmão, indagou, franzindo as sobrancelhas:
– E essas asas negras?
Mazarak sorriu, um tanto envergonhado.

505
– Este é um presente da cidade da luz, meu caro
irmão. Uma história para depois – respondeu
Mazarak.
A emoção de Daniel, naquele momento, foi tão
grande que se comparada a algo material, poderia ser
considerada titânica.
– O que significa isso tudo? – após se recompor,
Daniel indagou, olhando os outros duques em volta.
Antes que o duque de asas negras respondesse,
aproximando-se, sem que Daniel percebesse, Hariel
falou nas suas costas:
– Eles estão conosco, Daniel!
– Quem... Está conosco? – o anjo se virou,
perguntando à loura.
– Todos eles!
– Eles são demônios, Hariel! – afirmou Daniel.
– Não, Daniel. Eles são Duques de Lúcifer.
– Como você p...
Hariel interrompeu, antes que Daniel pudesse
terminar sua pergunta.
– Não temos tempo para isso agora. Você vai ter
que confiar em mim! – Hariel segurou seus braços.
Daniel hesitou por alguns segundos. Então a
princesa Auriel se aproximou, dizendo:
– Ela tem razão, Daniel. Eu posso senti-los! –
estava sorridente.
Ele a olhou por alguns segundos, depois meneou
a cabeça. Auriel também assentiu com a dela.

506
– Baal partiu para lá atrás de algo. – Hariel
apontou ao norte olhando para Beelzebuth.
– Sim, ele foi atrás do humano. – Virando-se
para Astaroth, Beelzebuth disse: – Você venha
comigo! – Olhou para Mazarak. – Fique aqui e ajude
os outros.
Astaroth segurou a bainha de sua espada como
forma de prontidão à partida e disparou para o norte
seguindo Beelzebuth.

507
CAPÍTULO 55

Sobrevoando quase os limites da cidade de


Águas Vermelhas, em Minas Gerais, o grande duque
do lado esquerdo do inferno, Baal, procurava o
corpo cadente que passou como um cometa por ele.
Não podia ver nada, a não ser um grande céu
cinzento. Mas sua vontade era grande e ele voava
com toda a sua virilidade, na direção em que o
meteoro tinha ido.
Após dez minutos perdido de seu alvo, muito
longe, a milhares de quilômetros de seu ponto
inicial, Baal observou o despontar de uma pequena
estrela dourada meio a nebulosa. O duque mordeu as
mandíbulas e semicerrou os olhos partindo na sua
direção.

* * *

Cerca de vinte quilômetros atrás, Beelzebuth e


Astaroth o seguiam rastreando sua áurea maligna.
Mas a cada segundo, Baal se distanciava por ser
muito mais veloz que eles.
508
– O que faremos quando o encontrarmos? –
indagou Astaroth.
– Faremos o que nossos irmãos – Beelzebuth
apontou com o indicador para trás – fariam. Vamos
lutar até nossa última gota de sangue a favor da
criação do Pai!
– Eu lutarei! – exclamou Astaroth, imponente.
Beelzebuth abriu um sorriso que estava
escondido há algum tempo.
– Eu sei, irmão!

* * *

– Eu não consigo ficar aqui apenas vendo meus


irmãos sendo massacrados lá em baixo – disse
Daniel, apertando os punhos.
– Façamos algo, irmão! – disse Mazarak.
Daniel o olhou com olhar um tanto sentimental.
– Eu prefiro ser dilacerado com eles a deixar que
eles sejam sozinhos, sem eu fazer nada. – Daniel
semicerrou os olhos e desceu em rasante na direção
da batalha.
Mazarak arregalou seus olhos fitando
diretamente Hariel.

509
– Vá com ele! – a mulher disse. Se tivesse os pés
tocando o chão, chocaria um deles contra ele nesse
momento.
– Estou indo! – O duque de Lúcifer das asas
negras mergulhou no ar.
– Obrigado por ficar conosco, Hariel! – disse
Auriel.
– É uma honra, princesa! – olhando em volta,
Hariel indagou: – Onde estão os outros doze?
Olhando para baixo, com o olhar triste, Auriel
falou:
– Israel se foi!
Hariel a olhou, estupefata. A princesa
acrescentou:
– E estou preocupada com o restante deles. –
Voltou a encarar os olhos azuis da loura.

* * *

Abaixo, dava-se para ver um anjo ou outro


despontando do mar negro em direção ao céu. A
maioria já tinha caído, mas alguns ainda lutavam
bravamente, tentando se livrar daquele inferno
gerado na terra, a qualquer custo.

510
Plainando rapidamente a quinze metros acima
do solo, Daniel voava e alguns demônios pulavam,
tentando alcançá-lo. Alguns se aproximavam, mas
caíam novamente. Mazarak vinha logo atrás, um
pouco mais baixo. Os monstros que pulavam para
apanhá-lo eram bombardeados com murros e chutes
poderosos. Muitos eram desintegrados na mesma
hora.
Avistando algumas dezenas de metros à frente,
Daniel viu Hekamiah lutando desesperadamente pela
própria vida. Diabretes pulavam em cima dele,
mordendo, arranhando-o. Ele os afastava, mas outros
acometiam em seguida. Outros, mais robustos,
tentavam lhe acertar com grandes porretes, mas
esses não eram dotados de velocidade suficiente para
isso.
Daniel partiu em sua direção. Aproximando-se,
subitamente fora interrompido por Cerberus, que
pulou muito alto e o agarrou com a boca da cabeça
central. A primeira reação do celeste foi esconder
suas asas. No mesmo momento, Mazarak disparou
para tentar desprender o irmão das mandíbulas
poderosas do grande cão. Enquanto ele se
aproximava, Daniel gritou, ainda despencando meio
aos dentes de Cerberus:
511
– Não! Ajude Hekamiah! – O celeste apontou
para o anjo e o cachorro mergulhou com ele no meio
da agigantada população furiosa de infernais.
Daniel lhe desferia socos na mandíbula, mas
Cerberus só o apertava mais. O anjo girou o corpo o
mais forte que pôde, tentando escapar, mas estava
tão bem preso, que o gigante cachorro girou seu
corpo junto e se esborrachou no chão.
Levantando, com a destreza de um pitbull
sobrenatural, ágil, o duque começou a girar a cabeça
de um lado para o outro, furioso. O anjo balançava
em sua boca como um boneco, cada vez sentindo
mais os grandes dentes penetrando em sua carne. Em
determinado momento, o anjo conseguiu desprender
um braço, estava molhado com sangue. Ele o levou
até a bainha e conseguiu pegar a espada. Exatamente
na hora em que ele puxou a arma, fora abocanhado
novamente, só que dessa vez na perna, por outra
cabeça do cachorro.
Por sorte, já tinha sua lâmina solta, senão seria
rasgado ao meio. Com muita agilidade, introduziu-a
diretamente na cabeça central do duque. Um grito
agudo. Imediatamente sentiu seu tronco solto, mas a
perna ainda estava presa e seu corpo balançava
como um pedaço de bife, prestes a se romper.
512
Utilizando o próprio peso do corpo e o
movimento criado, na medida em que o cachorro o
balançava, Daniel levantou sua lâmina e só precisou
esticar o braço. A arma passou pela garganta do
cachorro, degolando-o, abrindo um grande corte que
ia de um lado ao outro. Isso foi o suficiente para que
Cerberus o soltasse. A cabeça começou a se debater
e revirar os olhos. A da esquerda, ainda intacta,
também revirou os seus. O sangue esguichava da
ferida como de uma mangueira potente.
O corpo do anjo caiu no chão e foi lavado por
um grosso sangue tão escuro, que era quase negro.
Fez um rolamento para o lado e fitou o gigante
cachorro estrebuchar com as duas cabeças. Não
esperou sua queda e começou a correr em alguma
direção, trombando em diabretes, fazendo-os cair
com violência. Ao perceberem o celeste avançando,
os demônios começaram a se lançar em cima dele.
Aqueles tinham aproximadamente seu tamanho. Ele
os retirava de cima do corpo e os arremessava com
facilidade enquanto corria. Muitos eram destroçados
por sua espada prateada.
Aquilo não teria fim. O anjo tinha que pensar em
algo para se livrar daqueles infernais e explodir suas
asas. Enquanto corria disparadamente, Daniel
513
avistou, à sua esquerda, demônios sendo lançados ao
alto. Então seguiu naquela direção. Quando se
aproximou, estourou uma barreira de infernais, que
formavam uma arena circular com seus corpos,
hesitando, ao atacar dois ferozes guerreiros,
poderosos. Vendo a tamanha fúria de Hekamiah e
Mazarak, no meio da arena, esmurrando, chutando
demônios para todos os lados, Daniel se posicionou
de costas para os dois e socou o próprio punho,
dizendo:
– Vamos arrebentar!

514
CAPÍTULO 56

Oceano Atlântico – tempos atuais


Passados alguns minutos, o tempo começou a
mudar. Nuvens negras iam se fechando, formando
muros negros à frente dos celestes. Relâmpagos
rasgavam o céu em milhares e os estrondos eram
ensurdecedores. Os dois trios se adentraram na
gigantesca parede de nuvens escuras. Nada os
deteria. Alguns raios serpenteavam meio às nuvens,
passando rentes aos seus corpos.
Ao final do muro escuro, nebuloso, todos
puderam avistar a imensidão do mar azul às suas
voltas novamente. Única beleza natural mantida no
planeta, após o holocausto global.
Mais alguns minutos se passaram, até que eles
começavam a atravessar a barreira que dividia a
Nigéria do mar. Abaixo, já viam terra firme, mas os
animais prosseguiam com velocidade para o destino,
rajando suas asas, com vigor.
Abaixo, era possível ver grandes áreas que antes
eram verdes, mas agora estavam completamente
devastadas. Sobraram, no lugar, apenas gigantes
515
áreas de terra escura, bombardeadas. Em linha reta,
desde Minas Gerais, sobrevoaram a Nigéria, Tchad-
Chad, Líbia, Egito. Pegaram um pedaço de Israel,
Jordânia, Arábia e por fim chegaram ao Iraque. Uma
imensidão de areia clara sem fim, que podia ser vista
em todas as direções.
Os animais mergulharam terra abaixo e
plainaram cerca de dois minutos, dez metros acima
da terra. Aos poucos, foram perdendo altitude. Por
fim, pousaram em passos quase rápidos, até
pararem.
– Chegamos! – a voz que parecia ser de Mitra,
ecoou na mente de todos.
Os dois animais se abaixaram para que todos
descessem, mas nesse percurso, Bariel já saltava na
terra dura. A primeira coisa que fez, ao aterrissar, foi
explodir as asas, pois raramente as guardava. Os
outros desceram. Caliel tocou o chão e continuou
com as suas guardadas.
Mitra e Pegasus iam à frente dirigindo-os. Todos
andavam tranquilamente. O momento havia
chegado. Aquele que seria o momento em que a
população humana seria salva. Aquele momento em
que aquela raça tão especial para o Pai subiria mais
um degrau a uma linda, Nova Era.
516
A expectativa dos heróis era grande. Ainda mais
a de Adão, que reparava que apesar de
completamente diferente, aquele fora seu terreno um
dia. Os passos de todos eram calmos, mas queriam
acelerar. A ansiedade perante algo daquela
magnitude fazia seus corações se apertarem. Foram
apenas quinhentos metros a passos relativamente
lentos, mas o tempo foi suficiente para que uma
figura horrenda explodisse em chamas às suas
frentes.
Como uma fogueira gigante, a áurea de Baal
dançava em fúria à frente dos heróis. O imenso
fogaréu começara a esquentar a região como um
pequeno sol. O suor dos humanos começou
instantaneamente.
O grande duque, comandante do inferno, deixou
que sua espada negra abaixasse. No rosto, tinha
estampado um longo sorriso de satisfação, porém
maligno como as trevas. Súbito, ele começou a
gargalhar e guardou a arma. Em seguida, flutuou,
rajando levemente suas negras asas, alguns metros à
frente. Isso fez com que os celestes dessem passos
ligeiros para trás. O duque escarlate parou,
mostrando as palmas e deixou que seus pés tocassem
o chão, diminuindo sua energia fogosa.
517
– Calma, pessoal. Estou apenas emocionado! –
disse o grandalhão, trazendo as asas rubras mais
rentes ao seu corpo.
Todos, inclusive os animais alados, olharam-no
surpresos. Baal levou as mãos aos olhos e fez
menção de chorar. Com a voz trêmula, ele começou
a falar:
– Estou emocionado por estar na frente do
humano... Buá! – ele gritou literalmente, fechando
os olhos, mostrando a língua.
Ajoelhando-se no chão e se arrastando até Aron,
Baal levantou a cabeça, cerca de dois metros de
distância dele.
Todos se movimentaram ligeiramente para trás
em passos rápidos. Bariel retirou sua espada, ligeiro.
O grande duque do inferno tinha a face enfurecida.
Fitou o comandante dos guerreiros de Deus com o
canto do olho e encarou Aron com seus dois olhos
negros, sem vida. Então mostrou suas grandes
presas, dizendo com uma voz odiosa:
– Agora eu posso massacrá-lo com as minhas
próprias mãos.

518
CAPÍTULO 57

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
A luta, com espadas no ar, entre Haziel e Belial,
estava acirrada. Os dois guerreiros seguravam suas
empunhaduras com muita força, tentando forçar as
espadas para cima do oponente. As armas se
atritavam enquanto as lâminas raspavam uma na
outra, soltando faíscas coloridas. Súbito, Haziel
puxou a sua com velocidade e arremeteu sobre a
cabeça de Belial, mas o duque previu o ataque e
posicionou sua espada para que o choque ocorresse
na lâmina e não em sua cabeça. Foi exatamente o
que aconteceu, fazendo o fogo negro cintilar mais
furioso, jogando os dois corpos para trás.
Haziel atacou novamente, mas dessa vez fez um
giro do modo como fosse acertar as pernas do duque
pela lateral, mas Belial as retraiu, fazendo a arma
passar por baixo delas. Enquanto o corpo do celeste
acabava de girar pelo impulso do golpe, o demônio
desceu com sua lâmina em direção ao corpo dele.
Ao final do giro, Haziel conseguiu levantar sua
519
espada, parando o ataque antes que fosse acertado.
Com o choque, a espada de Belial foi jogada para
trás e Haziel subiu com a sua, mirando a ponta da
arma no rosto do demônio. Jogando o pescoço para
trás, o duque viu a lâmina passar diante de seus
olhos, para assim continuar subindo. A lâmina do
anjo fez a volta e veio em sua direção novamente, só
que dessa vez pela lateral de seu corpo. Colocando
sua espada na frente, Belial impediu o ataque. Em
seguida, levou sua lâmina à frente ao ponto em que
acertaria o abdômen do celeste. Mas Haziel foi
rápido e jogou o quadril para trás, ganhando
distância, vendo a lâmina rasgar o ar à sua frente.
Tudo isso aconteceu antes que se fechasse o terceiro
segundo de luta.
– Gostei de ver, Haziel! – disse o duque infernal,
segurando a espada apenas com uma das mãos.
Haziel apenas o encarou sem dizer uma palavra,
estava ofegante. O demônio tinha um sorriso
irritante, repuxando os lábios.
– Vamos fazer assim, então – acrescentou o
demônio. – Vou parar de brincar e ver do que você é
capaz.
Belial explodiu sua áurea maligna ainda mais
forte. A luz trevosa ardia como um tornado em sua
520
volta. Então voou para cima de Haziel com sua
espada flamejante, acometendo um golpe de cima
para baixo. O anjo se defendeu com sua arma
prateada, jogando a arma de Belial para cima. Em
seguida, subiu com um murro, que pegou o queixo
do demônio, mas a potência não foi grande. Belial
apenas o encarou e sorriu com mais raiva.
Novamente desferiu a espada contra Haziel, só que
com mais violência. Isso fez com que o anjo fosse
arremessado contra o solo, meio ao mar demoníaco,
abrindo uma grande cratera, arremessando centenas
de infernais ao longe, levantando uma grande poeira.

* * *

No outro ponto da batalha, Daniel, Mazarak e


Hekamiah lutavam, estourando os demoníacos para
todos os lados. Repentinamente, um corpo celeste
pousou junto a eles, batendo no chão como um
meteoro, arremessando pedras ao alto.
– Vamos acabar com todos eles, meus irmãos! –
disse Barrattiel, enquanto socava o próprio punho,
com olhos estreitos.
Nesse momento, o grandalhão visualizou
Mazarak com suas asas negras. Olhou assustado
521
para Daniel, que reparou em seus olhos
esbugalhados, na medida em que afastava os
infernais com socos e pontapés. Então o anjo com
olhos de fogo gritou:
– Depois vemos isso, Barrattiel!
O grandalhão meneou a cabeça, confiando no
irmão e correu em volta da arena forjada,
esmurrando todos os demônios em sua beira.

* * *

A princesa Auriel, Hariel e os outros onze tronos


aguardavam o restante dos onze, ansiosos.
– Você acha que aconteceu alguma coisa? –
indagou Hariel para a princesa.
Auriel hesitou um pouco a falar, revirou os olhos
sutilmente.
– Eu não sei! Eles nunca se atrasam! – Ela olhou
suas próprias palmas. – E agora eu já não posso
senti-los!
A loura a olhou com os olhos arregalados,
enquanto seu estômago começava a se enosar. Então
a princesa acrescentou:
– Mas isso não quer dizer que estejam mortos!
– O que isso significa, então?
522
– Eu não sei! – exclamou a princesa, fitando o
horizonte, com os olhos semicerrados. – As
possibilidades são infinitas.
– Qual é a melhor delas? – indagou Hariel.
A princesa esperou um pouco e respirou fundo
antes de responder.
– Eu prefiro pensar que estejam presos em
alguma dimensão que não tenhamos acesso.
Subitamente, massas negras, redondas,
começaram a cair naquela região, em volta da
princesa e do restante.
– O que é isso? – indagou Hariel, armando sua
própria proteção com os braços.
Auriel fechou os olhos e formou um campo de
força, protegendo todos eles. As massas esféricas
então começaram a bater aos montes, como granitos,
contra a bola de energia pulsante em volta dos
celestes. Assim quicavam e continuavam
despencando em direção ao combate abaixo.

523
CAPÍTULO 58

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Bariel e Caliel estavam prostrados na frente de
Aron, em posição de luta, com suas armas em mãos
– uma coisa completamente nova para Caliel.
– Pegasus, Mitra, levem os humanos daqui! –
berrou o Primeiro Comandante.
Imediatamente, os animais se mexeram e
rapidamente Mitra agarrou o braço de Adão com a
boca, jogando-o em suas costas. No mesmo
momento, Pegasus avançava para cima de Aron.
Enfiou sua cabeça embaixo das pernas do humano,
arremessando-o para o alto. Aron era esperto e nesse
momento agarrou as rédeas do cavalo alado. Então
eles começaram a correr a uma velocidade
surpreendente, afastando-se rapidamente.
Tudo aconteceu tão rápido que Baal não reagiu a
tempo, mas quando percebeu o que acontecia, tentou
avançar furiosamente. Porém, Bariel lhe desferiu um
poderoso murro no abdômen com a mão livre,
arremessando-o a centenas de metros. Foi a única
coisa que pensou em fazer tão rapidamente.
524
Caliel quase não percebeu o movimento, de tão
veloz, e só viu o corpo do demônio se afastando
depois da pancada. Baal se chocou contra uma
grande rocha, fazendo-a desmoronar sobre ele.
Ao longe, os dois anjos puderam ver as rochas
sendo explodidas e o corpo de Baal aparecendo meio
à poeira. O duque se aproximou em passos calmos,
imponente, levando cerca de três minutos para
chegar até eles. Ainda limpava o corpo do pó
impregnado, espalmando-o. Parando na frente de
Bariel, que segurava sua arma firmemente, disse:
– Você não devia ter feito isso, comandante.
Meu problema não era com você! – Baal falava com
desdém, enquanto esfregava o antebraço. – Você
poderia simplesmente ter me deixado acabar com
aquele verme. – O grande duque apontou ao longe. –
Eu iria embora e todos nós ficaríamos felizes. Mas
não! – O demônio escarlate o encarou, balançando a
cabeça em negativas. – Você tinha que fazer isso.
– Nunca! – gritou Bariel, segurando sua espada
com força.
Baal arqueou as sobrancelhas, peladas. O
Primeiro acrescentou:
– Para isso, você terá que passar por cima de
mim.
525
Baal deu de ombros.
– Acho que isso não será um problema – disse o
grande duque, olhando suas unhas, tirando sujeira
debaixo delas.
Nesse momento, Caliel se aproximou e se
prostrou ao lado do comandante, segurando sua
espada.
– Nossa! – O grande duque começou a bater
palmas. – Até seu cão Shiuaua vai lutar? Vai, vamos
começar logo com isso. – Baal puxava as calças,
quando exatamente naquele momento, um meteoro
desceu do céu, explodindo o terreno em volta deles.
Todos levaram os antebraços à frente do rosto e
se abaixaram. Quando a grande terra que subiu
começou a se dissipar, duas figuras ficaram em seu
lugar e começaram a se aproximar dos anjos.
Quando o comandante percebeu de quem se tratava,
deu um pulo para trás ao ponto em que ficou de
frente para Baal e ao mesmo tempo para os dois que
se aproximavam. Caliel o copiou. Mas eles
continuaram se aproximando, com passos calmos.
– Comandante! – disse Beelzebuth, com a voz
séria. – Nós estamos do mesmo lado!

526
– Nunca diga isso! – gritou Bariel – Eu nunca
lutaria ao lado de alguém com intenções como as
suas.
– Infelizmente, este rebelde diz a verdade! –
disse Baal, com tom de voz um pouco mais alto.
Acrescentou, em seguida, repuxando um canto da
boca: – Agora você, Astaroth, você me decepcionou
de verdade!
Bariel o olhou com os olhos arregalados, depois
fitou Beelzebuth, que disse:
– Irmão! Nós estamos do mesmo lado e lutamos
pela mesma causa – uma breve pausa –. Pela
humanidade!
O primeiro comandante estava estupefato. Caliel
deu um passo à frente e virou um pouco o rosto para
Bariel, dizendo:
– Ele diz a verdade, comandante.
– Como? – pela primeira vez Bariel se sentia
completamente confuso.
– Blá, blá, blá. Blá, blá, blá! Agora vamos parar
com essa melação, que eu tenho pressa – disse Baal,
interrompendo o diálogo. – Então são quatro agora?
– Mostrou quatro dedos. – Acho que agora começou
a se tornar divertido. – O grande duque explodiu sua

527
satânica áurea, fogosa, berrando em seguida: –
Quem vai ser o primeiro?
O quarteto se armou, prontificando-se para o
grande combate.

528
CAPÍTULO 59

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
O corpo de Haziel desapareceu meio aos
escombros naturais e dos corpos demoníacos vivos e
mortos. Belial o procurava, mas não conseguia
avistá-lo. Súbito, uma enorme explosão dourada
meio ao alvoroço. De lá, subiu Haziel, majestoso,
poderoso, com suas asas reluzentes, brilhando ainda
mais do que sua áurea. Sua espada flamejava de um
fogo ardente, dourado. A arma pendia.
Nesse momento, Belial fechou seu sorriso e
semicerrou os olhos. Levou sua espada flamejante
de fogo negro à frente do corpo e aguardou a
iniciativa do anjo.
– Eu sou um guerreiro do Pai! – gritava Haziel.
– Um guerreiro de Deus. –uma breve pausa – Nunca
seu poder maligno será sobressalente ao meu. – O
celeste levantou sua espada, o brilho ardeu mais
forte em um lampejo. – Agora sinta a ira de Deus
ante aqueles que machucam seus filhos.

529
Nesse momento, o anjo disparou como um
míssil na direção de Belial. Tudo passou como em
câmera lenta. O celeste se aproximou com fúria
guerreira no olhar e levantou sua espada flamejante
como quem descesse com a lâmina em direção ao
corpo do duque. Belial levantou sua espada para
chocá-la contra a arma de Haziel, mas
inesperadamente, a arma brilhante do celeste
atravessou sua espada, quebrando-a em duas. Em
seguida, desceu em direção ao centro dos olhos do
demônio. A lâmina penetrou na carne e continuou
cortando tudo pela frente.
Os olhos do duque acenderam em um estalo e se
apagaram quando a lâmina passou meio aos seus
olhos, prosseguindo, atravessando o nariz, queixo,
pescoço. Chegando aos ossos peitorais, estalos
puderam ser ouvidos. Por fim, venceu a linha do
abdômen e saiu pela região da pélvis. O corpo do
duque despencou em duas partes, misturando-se com
os diabretes abaixo.
Sem esperar, Haziel explodiu para outro ponto
da batalha. Durante o voo, reparou nas esferas
cadentes.

* * *
530
Furiosos, Daniel, seu irmão de espírito,
Hekamiah e Barrattiel duelavam contra os
demoníacos. Pareciam estar no controle da situação,
só precisavam de mais tempo para explodir suas asas
e sair dali. Repentinamente, eles perceberam grandes
corpos redondos despencando de algum lugar no
céu, caindo em todos os lugares da grande arena.
As grandes bolas negras, ao se chocarem,
acabavam matando alguns próprios infernais. Uma
quase caiu sobre Daniel, mas ele se esquivou
rapidamente, pulando para o lado. Como um grande
tatu se desenrolando, a esfera se transformou em um
robusto demônio, com cerca de dois metros de
altura. Um gigante chifre único se erguia do que
parecia ser sua cara. Os braços eram troncudos,
porém, no lugar das mãos, tinham grandes pontas
metálicas. Nas costas, tinha um casco sutil. Dele se
ergueram grandes asas com cerca de quatro metros
cada uma. Isso aconteceu no campo inteiro de
batalha.
Aproveitando esse tempo, Daniel explodiu suas
asas junto a Hekamiah. Barrattiel e Mazarak. Então
todos ergueram voo na vertical, despontando-se
também do mar negro de guerreiros demoníacos.
531
Olhando para baixo, Daniel reparou que estavam
sendo seguidos por três enormes criaturas das
recém-chegadas. Os outros três parceiros também
perceberam a presença.
Apesar de grandes, as criaturas eram tão ágeis
quanto os celestes. Voavam em suas rabeiras como
grandes e enfurecidos rinocerontes alados.
Repentinamente, a criatura que guiava o bando fora
destroçada por um só golpe dos punhos de Haziel
que chegou como um foguete. Isso fez com que as
que estavam na retaguarda parassem. O anjo se
posicionou às suas frentes majestosamente,
segurando sua espada flamejante.
Sentindo tal poder emanado de Haziel, Daniel
olhou para trás e avistando o anjo louro, imponente,
viu que não estavam mais sendo seguidos. Agora o
poder de Haziel estava tão grande que uma grande
fogueira ardia de seu corpo. Toda a atenção do
campo de batalha se voltava aos poucos a ele. Em
pequenos grupos, os novos demônios alados
começaram a se lançar na direção de Haziel. Quando
um pequeno enxame se aproximou, súbito Haziel
expandiu sua poderosa áurea cintilante, ao ponto em
que os infernais fossem atingidos, sendo

532
desintegrados imediatamente – o anjo acabara de
iniciar a mais poderosa técnica celeste.
Durante todo aquele curto período lutando
contra as forças demoníacas, não parou de pensar,
por apenas um segundo, sobre seu centenário no
inferno. Sabia que tinha vencido Pruflas, mas aquilo
nunca seria o suficiente para compensar o que ele
passou nas mãos deles. Pensava também no que eles
fizeram com a humanidade. Haziel estava disposto a
dar sua vida para acabar com aquela batalha. Nesse
mesmo momento, pela primeira vez, um sentimento
de vingança brotava no peito do anjo.

533
CAPÍTULO 60

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Em vez de tirar a espada da bainha, Baal fechou
seus dois poderosos punhos em pose de pugilista,
chamando os adversários para o combate. Começou
a saltitar e socar o ar em própria apresentação.
– Vamos lá, vamos lá! – disse o grande duque
soltando dois curtos socos no ar. – Quem vem para o
primeiro round? – encarou Bariel – Você,
comandante? Creio que esteja se mordendo para
vingar seu irmão de espírito. – Em uma pose
pensativa, Baal acrescentou: – Dariel era um grande
guerreiro, mas é uma pena para você que não foi
melhor do que Mephisto.
Bariel deu um passo à frente, já segurando sua
espada. Com um grito, bateu suas asas e seguiu para
a luta. Com um movimento preciso, levantou sua
espada dourada e desceu na direção do demônio.
Baal não se esquivou e nem tirou sua espada da
bainha, apenas colocou seu antebraço cascudo na
frente da arma. Nesse momento, o primeiro
comandante abriu um sorriso, já cantando a própria
534
vitória, internamente. Mas esse foi apagado
completamente quando sua espada de ouro se
chocou contra o braço do grande duque. Em vez de
cortá-lo, o metal se estilhaçou como vidro.
Estupefato e sem tempo para reação, Bariel apenas
viu quando a mão rubra do grande duque se
aproximou, acertando-lhe um poderosíssimo soco no
queixo, tão forte que nunca presenciou algo daquela
magnitude. Isso o nocauteou instantaneamente,
arremessando-o a dezenas de centenas de metros ao
longe.
Caliel lampejou seus olhos rubros e no mesmo
momento, disparou na direção que ia o corpo de
Bariel.
– Certo, o primeiro já era! Quem será o seg... –
dizia Baal.
Antes de terminar sua frase, o grande duque fora
surpreendido por Beelzebuth que muito velozmente
lhe desferiu uma joelhada no abdômen. Baal
inclinou o corpo para frente com os olhos
esbugalhados e nesse momento a mão do duque de
Lúcifer o acertou com um gancho abaixo do queixo.
Os olhos de Baal se reviraram e ele foi lançado
metros às alturas, para em seguida se espatifar no
chão.
535
Nesse momento, Beelzebuth já pulava em sua
direção, mirando sua poderosa espada no peito do
grande duque. Mas Baal rolou para o lado e viu
quando a lâmina de Beelzebuth penetrou o chão.
Nesse momento, ele girou o corpo e desferiu um
grande chute contra o duque de Lúcifer. Beelzebuth
era poderoso e veloz, então conseguiu posicionar o
braço, travando a investida de Baal. Girando os dois
braços, um para cada lado, fez com que o corpo de
Baal rodopiasse no ar como um pião. Nisso, saltou
dois metros ao alto e desceu com um poderoso
murro, que acertou Baal, introduzindo-o em uma
cratera que acabara de abrir com o seu próprio
corpo. Sem hesitar, Beelzebuth mergulhou no
buraco e iniciou uma grande sequência de socos em
cima de Baal.
Após esmurrar Baal com centenas de murros,
Beelzebuth pulou para trás, caindo um pouco à
frente de Astaroth. Nesse momento, Caliel retornou,
amparando o Primeiro, que estava desacordado.
– Como ele está? – indagou Beelzebuth, sem
tirar os olhos da terra que subia onde foi sua
investida.
– O pescoço dele está quebrado, mas ainda está
respirando, com um pouco de dificuldade –
536
respondeu Caliel, já posicionando suas mãos sobre o
pescoço de Bariel.
Caliel fez com que suas mãos brilhassem em
dourado. Nesse momento, um sutil movimento no
interno do pescoço do primeiro, em seguida um
estalo. Mas ele não acordou. Repentinamente o tom
mudou para violeta, então Caliel disse:
– Pelo menos agora ele não está sentindo dor!

537
CAPÍTULO 61

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Meio a uma esfera de energia, dotada de um
poder avassalador, estava Haziel em sua postura
majestosa. A sensação era de estar no centro do Sol,
com todas as suas explosões nucleares por todos os
lados. A bola energética pulsava como uma grande
bomba vívida, aguardando o estalo da explosão.
Acima, Hariel, a princesa, e o restante dos tronos
analisavam o poderoso celeste em sua investida
descomunal.
A algumas centenas de metros dali, Daniel e os
outros também observavam o anjo. Barrattiel tinha
um orgulhoso sorriso indo de orelha a orelha. Os
braços estavam cruzados frente ao peitoral.
– Esse é Haziel. Meu orgulho!
– Nosso orgulho! – corrigiu Daniel.
– Ele sempre foi o mais poderoso dentre nós! –
disse Mazarak.
Súbito, a esfera cintilante pulsou mais forte,
criando uma única e grande onda de choque. Essa
538
que varreu o campo de batalha inteiro. Muitos
demônios foram arremessados ao longe. Todos os
celestes à volta se protegeram com os braços e foram
deslocados de seus lugares alguns metros.

* * *

À frente da princesa, Hariel disse, enquanto


fitava o irmão, um tanto ansiosa:
– Haziel sempre foi impulsivo. Ele pretende
acabar com tudo com uma única investida. Mas eu
tenho medo de uma coisa.
A princesa a encarou, estreitando o olho direito.
Hariel acrescentou:
– Tenho medo de que ele utilize toda a sua
energia – uma breve pausa. – Toda a sua energia
mesmo. – A loura fechou os olhos.

* * *

A atenção de todos os demônios estava voltada à


grande esfera nebulosa, principalmente a dos
infernais alados que voltavam aos seus lugares
depois do arremesso da onda de choque. Agora
começavam a circular a massa brilhante, tentando
539
arrumar alguma maneira desesperada de se
aproximar do anjo em seu centro.
Abaixo, os detritos da batalha começavam a
levitar e subir aos céus, impulsionados por alguma
força maior, expelida pela energia abundante de
Haziel. Alguns guerreiros infernais, covardes, nesse
momento, começaram a correr em direção oposta à
esfera cintilante.

540
CAPÍTULO 62

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Do centro da poeira da cratera, Astaroth viu
quando a grande silhueta de Baal se erguia, como se
não tivesse acontecido nada. O céu ficara trevoso e o
vento começara a soprar com mais pujança.
– Não acredito! – disse o duque.
Na mesma hora, Beelzebuth se virou naquela
direção e Caliel levantou sua cabeça. Ambos
também repararam na monstruosa silhueta do grande
duque. Calmamente, ele saiu do meio da poeira e se
aproximou dos celestes novamente. Dessa vez
cuspindo poeira, limpando o sangue da boca com o
antebraço.
– Que merda! – disse o grande duque. – Essa
porra de terra agora tá impregnada na minha boca.
Sem avisar, naquele exato momento, um cometa
explodiu em volta a Baal, estourando rochas,
afundando o demônio novamente na terra. Do centro
do abate, saiu correndo Yesalel em direção aos
outros. Caliel esbugalhou os olhos, soltou a cabeça
de Bariel com cuidado no chão e correu em direção
541
a Yesalel a fim de alertá-lo de que Beelzebuth e
Astaroth estavam do lado deles.
– Não, comandante, espere – gritou Caliel,
aproximando-se de Yesalel.
Foi quando o ruivo percebeu que Yesalel não
corria para atacar os outros e sim para dizer algo.
Com os quatro reunidos em um raio de dez metros, o
segundo comandante disse:
– Eu vi o que vocês estão fazendo!
Beelzebuth o encarou por um momento e abriu o
sorriso.
– Nós estamos do mesmo lado, irmão! –
exclamou o duque, esticando o braço.
Yesalel repuxou os cantos da boca, sorrindo
também com os olhos. Em seguida, esticou seu
braço e segurou firme no antebraço de Beelzebuth,
que fez o mesmo.
– Caralhada, não é possível! Vocês devem estar
brincando comigo! – gritava Baal, enquanto se
levantava. – Perdi a paciência! Eu vou matar vocês
todos agora e depois vou acabar com aqueles vermes
dos humanos.
– Leve-o daqui e cuide dele! – Yesalel disse a
Caliel, apontando Bariel a alguns metros no chão.

542
O ruivo meneou a cabeça e correu em direção ao
primeiro comandante, amparando-o e o levando
embora. O trio se pôs a lutar e dessa vez Astaroth
também tirou sua espada da bainha. Baal esfregou as
palmas, dizendo:
– Que beleza! Três contra um. Agora a
brincadeira vai começar de verdade.
Quem atacou primeiro foi Yesalel, em seguida
Beelzebuth. Os dois chegaram juntos a Baal, que
com um solavanco direito, explodiu o peito de
Yesalel. Esquivando a cabeça para o lado como um
vulto, fugiu do soco direto de Beelzebuth. Com essa
vantagem, flexionou a perna e soltou uma poderosa
joelhada nas costelas do duque. Em um movimento
tão rápido que quase não se podia ver, Baal segurou
os dois guerreiros pelo pescoço e os arremessou no
chão, aos seus pés. Em seguida, pulou e caiu,
afundando suas cabeças no solo, com seus pés.
Com os dois guerreiros caídos ao lado, olhando
para Astaroth, o grande duque indagou:
– E você, não vem?
As pernas de Astaroth tremiam. Seu estômago
regurgitava. O pavor perante Baal era colossal.
Todos aqueles anos e ele nunca teve coragem de
dizer o que sentia de verdade. Como um covarde,
543
apenas passou para o lado oposto, deixando seu
outro grupo maléfico desamparado. Sabia que se o
atacasse, morreria. Naquele momento, Astaroth
levantou sua lâmina e em um poderoso rajar de asas,
explodiu o vento em volta e subiu para o Céu como
um meteoro ao contrário. Baal o fitou distanciando-
se rapidamente. Tinha as mãos na cintura.
– Covarde! – disse Baal.
O grande demônio olhou seus dois adversários
no chão, tão machucados na face que não
conseguiam se mexer. Ele levou a mão à cintura e
puxou sua grande espada escura.
– Como eu disse anteriormente, eu vou matar
vocês. – Olhando acima, para onde Astaroth partiu,
acrescentou: – Depois eu pego aquele covarde.
Em um movimento veloz, sem hesitar, Baal
fincou sua espada, atravessando a carne e perfurando
o coração de Beelzebuth. O duque soltou um grito
abafado, contraindo todos os músculos do corpo. Em
seguida, sua cabeça pendeu, chocando-se com o
solo.
– Um já era! – puxando sua lâmina
sanguinolenta de volta, Baal andou até Yesalel e o
cutucou, dando-lhe alguns chutes nas costelas. –

544
Agora vamos ver como me saio com o grande
segundo comandante dos anjos.
Baal levantou sua lâmina negra, lampejando o
brilho dos relâmpagos. Em seguida, desceu furioso
em direção ao peito do celeste. Mas Yesalel tirou de
dentro de seu espírito um resquício de energia,
segurando a arma com as duas mãos. Enquanto a
força de Baal impulsionava para baixo, a folha
cortava as mãos do anjo, fazendo escorrer um
sangue vívido. Mas ele não desistia e apesar da dor
alucinante, forçava ao contrário, lutando pela vida.
– Eu vou te matar, comandante. Eu vou te matar!
Não adianta você tentar prolongar isso alguns
segundos. Eu... Vou... Te... Matar! – gritou Baal.
A espada já começava a perfurar as primeiras
camadas de pele. A fisgada foi mais forte quando
penetrou o músculo peitoral de Yesalel, que nesse
momento rosnou. Em seguida, soltou um berro
furioso, retirando alguns centímetros a lâmina. Mas
Baal começou a forçar ainda mais. Dessa vez
perfurando completamente a camada muscular do
anjo, chegando até quase seu coração. O segundo
comandante gritou bravamente e não conseguindo
mover a lâmina para cima, segurou-a onde estava
por alguns segundos. Esse foi o tempo suficiente
545
para que Baal fosse atingido por uma pequenina bola
luminosa. Essa o atingiu na testa, perfurando seu
crânio como uma bala.
O duque caía com os olhos se revirando,
soltando a pegada de sua espada. A arma caiu ao
lado de Yesalel, que antes de apagar, enquanto sua
mente escurecia e entrava nas trevas, pôde avistar
uma linda cachoeira bronzeada, luminosa,
formando-se metros à sua frente. As trevas do
ambiente cessaram e então seu último fragmento de
consciência desvaneceu.

546
CAPÍTULO 63

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
A grande esfera em volta de Haziel parecia se
enfurecer a cada segundo. Relâmpagos começaram a
dançar em volta da bola radiante de energia.
Dentro da grande massa, Haziel se sentia como
um único ser, diferente, no meio de trilhões de
átomos se agitando, querendo se expandir
exponencialmente. As veias pereciam pulsar por
todo o corpo do celeste, acompanhando a pulsação
da bola de energia. Seus olhos brilhavam como duas
chamas ardentes. Suas mandíbulas estavam cerradas
quase ao ponto de estourar os dentes.
Naquele momento, memórias belas, antigas,
começaram a inundar sua mente com turbilhões de
imagens: Barrattiel caindo desengonçado ao
primeiro bater de suas asas, meio a multidão de
anjos que acompanhava a sua criação; de Daniel
meneando a cabeça a ele após o sucesso de sua
primeira técnica a nível nuclear; o rosto iluminado
de Caliel, quando chegou para resgatá-lo do inferno;
547
Yesalel lhe ensinando técnica de combate corpo a
corpo; o olhar de Aron assustado na primeira vez
que o viu, quando derrotou Zeqiel.
A lembrança a seguir inundou seu coração de
emoção, ao relembrar seu primeiro sentimento após
sua criação. Ao seu primeiro abrir dos olhos, a
primeira coisa que viu foram as lindas íris azuis –
como as dele – cintilantes, radiantes, à sua frente,
quase coladas ao seu rosto. Os olhos de Hariel
brilhavam como duas pedras preciosas. Aquilo,
imediatamente, fez com que ele se sentisse seguro.

* * *

Acima do campo de batalha, plainando frente


aos tronos, Hariel observava a grande bola de
energia, com seus olhos lacrimejantes. Seu coração
se movia a batimentos frenéticos, pareciam querer
estourar seus ossos peitorais.
– Ele sabe o que faz! – A princesa se aproximou
e colocou a mão em suas costas.
Hariel se virou para ela, desesperada.
– Não podemos fazer nada?

548
– Deixe que seu coração guerreiro o guie ao
caminho certo. Haziel é poderoso. Tenho certeza de
que ele conhece os seus próprios limites.
– É disso que eu tenho medo! – respondeu
Hariel.

* * *

A algumas centenas de metros, Daniel analisava


a esfera brilhante, calculando.
– Eu acho que Haziel está extrapolando! – disse
ele.
– Eu sei! – respondeu Barrattiel, sorridente.
– Isso é perigoso!
– Como perigoso? – indagou o grandalhão,
surpreso.
– Ele não pode executar essa técnica com tanta
energia investida.
– Por quê?
– Porque ele pode causar danos materiais
irreversíveis a ele próprio.

549
CAPÍTULO 64

Iraque, Bagdá – tempos atuais


A mente de Yesalel despertou e ele abriu os
olhos. A primeira coisa que visualizou fora seu
próprio peito, depois de tudo, descoberto e liso, sem
nenhum ferimento. Um movimento chamou sua
atenção, cerca de quatro metros ao lado. Perto de
Beelzebuth, uma grande figura bronzeada estava
agachada, envolvendo-o em uma luz estupenda, com
a mesma tonalidade de seu corpo. Rapidamente a luz
cessou, a criatura ergueu-se, virando-se para Yesalel,
que já levantava a cabeça. Olhando diretamente nos
olhos do segundo, com os seus azuis-safira, disse:
– Olá, comandante!
Estupefato, Yesalel rapidamente se levantou sem
nenhuma dor no corpo, desconfiado.
– Arcanjo? – indagou Yesalel.
Nesse momento, o anjo reparou em Beelzebuth
se inclinando, retornando da morte. Ele se levantou e
meneou a cabeça ao arcanjo caído. Yesalel deixou
que sua pose segura se fosse embora, deixando no
lugar uma mente totalmente confusa.
550
– O que está acontecendo? Porque vocês estão
nos ajudando e lutando contra seus aliados?
– Eles nunca foram meus aliados! – disse
Lúcifer, com sua linda voz.
– Ele diz a verdade! – Caliel pousava ainda com
Bariel desacordado em seus braços.
Yesalel o olhou um tanto surpreso. Caliel
acrescentou:
– O arcanjo nunca lutou contra nós. Ele nunca se
pôs a duelar contra seus próprios irmãos,
comandante.
O segundo comandante encarou Lúcifer e viu
quando ele inclinou a cabeça em concordância.
– Caliel fala a verdade! Eu não aceitei a criação
da humanidade na época e então me isolei solitário
no submundo. Recebi, com grande surpresa, a visita
de Beelzebuth um belo dia, que acabou ficando
comigo até hoje. Essa relação foi fundamental para
que eu entendesse a verdade. Hoje entendo o quanto
eles são importantes para o Pai e creio que seja
exatamente pelo motivo de não serem perfeitos.
Entendo também porque eles foram moldados à
semelhança do próprio Pai. – uma breve pausa – Por
causa do seu grande amor, sem limites.

551
Um grande raio dourado explodiu próximo aos
guerreiros. Olhando acima, repararam nas nuvens e
em seus movimentos furiosos. Relâmpagos
rasgavam o céu e eram seguidos por trovões que
tinham a força de mil bombas. Mais uma descarga
elétrica. Dessa vez mais poderosa, mais próxima.
Essa atingiu o corpo moribundo de Baal. Em
seguida, mais uma e mais uma. Todas em tons
alaranjados. Um cheiro forte de queimado subiu com
a fumaça negra que exalava do corpo do grande
duque infernal.
Yesalel se aproximou do corpo do demônio,
averiguando seu lamentável estado. Sua cara
demonstrou repugnância, fazendo os outros
hesitarem a olhar. Então não o fizeram.
– Vamos! Temos que salvar a humanidade –
disse Lúcifer.
Ao término da frase do arcanjo caído, o corpo de
Baal começou a levitar em posição ereta, tomado por
uma luminosidade avermelhada em sua volta. A
cabeça do duque estava tombada para o lado, apele
completamente enegrecida, o corpo reduzido, a
língua de fora e no lugar dos olhos tinham dois
buracos, torrados, ainda exalando fumaça.
Completamente morto, era manejado por alguma
552
força maior. Finas estrias flamejantes começaram e
se formar por todo o seu corpo, transformando-o em
algo parecido com solo seco, mas com lava por
baixo.
Todos pararam e fitaram o grande duque
entrando em estado de decomposição. De negra, sua
pele passou a ser vermelha, quase querendo derreter.
A temperatura, em seu corpo, parecia aumentar
astronomicamente a cada segundo. Súbito, ele se
contraiu em uma pequena esfera rubra, explodindo
em seguida, criando uma grande onda de choque em
todas as direções.
Lúcifer, Yesalel, Beelzebuth e Caliel viram o
que parecia ser o completo fim de Baal, mas não foi
o que aconteceu. No lugar da esfera escarlate, uma
negra, exatamente igual, ficou plainando no ar.
Acima, o céu começara a se tornar vermelho.
Relâmpagos multicoloridos, trevosos, serpenteavam
pelas nuvens escuras. Repentinamente, a água
começou a despencar em uma tempestade torrencial.
Dava-se para ver que antes de tocar na esfera negra,
a água evaporava, criando um anel de névoa clara
em sua volta. Súbito, uma onda poderosa de choque
emanou da bola preta. Todos os guerreiros ativos
colocaram-se a se defender, sendo arrastados poucos
553
metros. Apenas Lúcifer parecia uma rocha presa ao
solo, de tão firme. Antes que pudessem reatar a
posição inicial, mais uma onda, um pouco mais
poderosa. Em seguida, mais uma e essa fez com que
a esfera aumentasse sua massa cerca de vinte vezes.
– O que é isso? – perguntou Caliel, aos gritos,
prendendo suas pernas no chão com todas as forças.
Fitando a esfera com os olhos semicerrados, o
arcanjo de bronze disse:
– Como eu suspeitava! Não seria tão fácil.
Feixes elétricos roxeados inundavam a camada
externa da bola. Pulsando novamente, a esfera
emitiu um som agudo, vibrante. O ar se deslocou
com violência, tirando os celestes do lugar alguns
metros. Menos o arcanjo, que se manteve firme. De
uma hora para a outra, a esfera se tornou uma grande
fumaça negra, que cobria uma região com cem
metros de altura por cem de largura. Uma larga
risada maligna foi emitida do que pareceu vir do
centro da nuvem.
– Ele voltou! – disse Beelzebuth.
– Como é possível? – indagou Caliel.
– Ele adquiriu muito poder com a revolução
mundial. Não vejo outra explicação! – disse o duque
de Lúcifer.
554
– Não foi exatamente isso! – respondeu o
arcanjo.
Todos olharam para ele, atentos. Então ele
acrescentou:
– A própria humanidade foi a causadora por lhe
atribuir grandioso poder! – uma leve respirada – Os
pecados terrestres criaram uma energia maligna,
poderosa, e ele a absorveu completamente.
A grande nuvem negra começou a girar em seu
próprio eixo, transformando-se em um poderoso
furacão, mas que rapidamente se afunilou e moldou-
se na forma do próprio Baal. Agora sua pele era
negra. Seus olhos escuros continuavam escuros.
Seus chifres pretos continuavam pretos, só que o
fosco se transformara em brilho. Suas juntas
pareciam expelir grandes ossos pontudos, negros,
por todo o corpo. Seu sorriso macabro, confiante,
arrepiou todos, menos Lúcifer.
Nesse momento, o grande arcanjo de bronze
materializou uma grande espada de bronze, tendo na
divisão entre a empunhadura e a lâmina, uma
lampejante pedra de safira – brilhante, igual seus
olhos.
– Não poderia ser um final mais perfeito! – disse
Baal.
555
– Concordo! – exclamou o arcanjo, repuxando
um canto da boca em um sorriso.

556
CAPÍTULO 65

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Começou como um pequeno assovio, mas que
aos poucos foi se tornando completamente
insuportável aos infernais. Os que corriam,
covardemente, na outra direção da esfera pulsante,
caíam ao chão, levando suas mãos à cabeça. Os
demônios pareciam formigas resistindo ao calor de
uma fogueira, perambulando e trombando entre si.
Os voadores pareciam suportar um pouco mais,
apenas tonteando-se um pouco.
De uma hora para a outra, a esfera dobrou seu
tamanho, desintegrando todos os demônios na
região. O barulho ensurdecedor aos infernais
aumentou e nesse momento, os alados despencaram
todos de uma vez.
– O que está acontecendo? – indagou Barrattiel.
– É o som da trombeta – disse Hekamiah.
– Como é possível Haziel atingir tamanho
poder? – Barrattiel perguntava, animado.

557
– Eu sempre suspeitei que isso fosse acontecer
um dia. – Hekamiah estreitou os olhos. – Afinal, um
dia Bariel passou por isso e todos nós passaremos.
Só não sabemos quando. Agora é a vez de Haziel.
Temos que agradecer por isso nesse momento.
Todos levantaram suas espadas e clamaram a
Haziel, inclusive o anjo de asas negras. Barrattiel
baixou sua grande espada e levou o dedo indicador
ao queixo.
– Se Bariel e Yesalel passaram por isso e estão
aqui, isso quer dizer que Haziel e Daniel tem
chances – uma breve pausa –. Mas quantosjá
passaram por isso?

* * *

Sobrevoando o campo de batalha, observando


com uma ansiedade nauseante, Hariel lacrimejava
aos montes.
– Quanto tempo, princesa?
– Não sei exatamente! Poucos minutos, talvez
segundos?
Hariel voltou sua atenção à esfera de contenção
e em um piscar de olhos mergulhou em sua direção.

558
– Hariel, espere – gritou Auriel, já sem nenhuma
esperança de Hariel retornar.
A mulher anjo parou exatamente de frente para
Haziel, fora do raio da esfera de energia. Isso lhes
dava cerca de cem metros de distância. Ela gritava o
nome do anjo, mas ele não parecia escutar, nem a
enxergar. Ao longe, ela percebia que seus olhos
estavam completamente brancos. Sua mente estava,
por inteiro, alheia às percepções daquele mundo
externo.
Foi aí que Hariel aproximou seu braço, tocando
a esfera. Instantaneamente pôde ser ouvido um som
parecido com água quando é jogada em uma
fogueira. Ela puxou o braço de volta e fitou a carne
tostada, fumegante.

* * *

A algumas centenas de metros dali, Daniel


estreitou os olhos. Hariel? – pensou o anjo.
– É a Hariel! – Ele a apontou.
– Ela está muito próxima! – disse Hekamiah.
Sem hesitar, Daniel explodiu o ar como um
tornado e seguiu na direção da moça. Em quase dois
segundos a alcançou, pegando em seu braço. Ela
559
puxou o membro de volta, soltando um berro. Daniel
observou a queimadura.
– O que você fez?
Ela encarou a parede de energia à frente e
baixou o olhar.
– Vamos sair daqui! – pediu o anjo.
– Não! De novo isso não!
Daniel apenas a encarou.
– Da última vez, ele ficou preso cem anos no
inferno.
– Hariel, se ficarmos aqui, iremos nós três.
– Então vá embora e me deixe cuidar disso! –
Ela colocou as mãos em volta da boca e gritou: –
Hazieel?
Daniel a puxou pelo outro braço. Ela deu um
tranco, desprendendo-se. Em seguida, deu-lhe um
empurrão um tanto forte no peito, fazendo-o se
deslocar alguns metros. O anjo insistiu e se
aproximou novamente.
– Hariel, vamos! Eu volto aqui e resolvo isso.
– Não, eu não vou! Já te disse o que aconteceu
da última vez. – Ela berrou, desesperada –
Hazieeeel?
Daniel meneou a cabeça e se afastou. Hariel o
fitou e voltou a gritar o nome de Haziel. Berrava
560
repetidas vezes. A voz ficava mais aguda a cada
investida.
– Desculpe! – um sussurro no ouvido da loura.
Hariel se debateu poucos segundos, até apagar
nos braços de Daniel. O anjo tinha envolvido seu
musculoso braço pelo pescoço da loura, cortando a
pulsação do sangue ao cérebro.
Em um instante, Daniel deixou Hariel com
Barrattiel e os outros, para, em seguida, retornar e
cumprir sua promessa.
– Daniel? – berrou Hekamiah. – Não vá!
– Deixe-o – disse Mazarak, com seus braços
cruzados. – Ele sabe o que faz!

561
CAPÍTULO 66

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Lúcifer foi o primeiro a atacar, empunhando sua
espada com as duas mãos. Em frações de segundos,
sem possibilidade de que os outros anjos
enxergassem o movimento, um poderoso estrondo se
sucedeu ao chocar das armas dos gigantes. Uma
poderosa onda de choque foi criada a partir daquele
ponto, arremessando aos metros, Caliel, Beelzebuth,
Yesalel e o corpo de Bariel, que antes de se chocar
com uma rocha, fora amparado pelo anjo ruivo.
Todos subiram algumas centenas de metros e
pararam, analisando o combate. Os dois guerreiros
se moviam como dois vultos. Cada choque de suas
armas deslocava o ar ferozmente. O solo começou a
tremer. Depois mais forte, na medida em que a luta
avançava.
No combate, nenhum dos dois adversários
conseguira atingir o opositor. A paisagem em volta
deles se movia difusa. A velocidade era colossal. As
explosões demasiadas estouravam pedregulhos em
todas as direções. Por fim uma pausa, mas era
562
apenas uma disputa de força, que durou não muito
mais do que um segundo, para voltarem a chocar
suas armas furiosamente.
Em um piscar de olhos, a luta foi levada a cem
metros de altura, lampejando como estrelas.
Explodindo em um grave que ao mesmo tempo era
agudo. Os golpes ficaram mais violentos e nesse
momento, o vento começou a soprar ainda mais
forte, alcançando mais de trezentos quilômetros por
hora. A chuva era tão poderosa que nenhum dos
presentes, em todos aqueles anos de vida, tinha
presenciado a natureza tão feroz.
– Temos que sair daqui – berrou Beelzebuth,
com os olhos estreitos, sendo chicoteado pelo vento.
– Isso vai ficar pior!
Nesse momento, aconteceu uma explosão
bronzeada do centro da luta, criando uma esfera de
luz que se expandiu até quase alcançar o restante do
grupo. Mas eles foram ágeis e conseguiram fugir,
com uma vantagem de apenas dez metros.
O bando voou cerca de dez segundos, para assim
alcançar uma distância segura. Olhando para onde o
combate acontecia, ao longe, viam-se as construções
caindo como dominós. Rochas eram erguidas como
papel ao soprar de uma leve brisa.
563
– Você tem certeza de que estamos seguros
aqui? – indagou Caliel a Beelzebuth.
– Não! Mas por enquanto sim.
– Vamos atrás dos humanos, enquanto Lúcifer o
segura.
– Certo! – disse Caliel, amparando Bariel nos
braços.
Yesalel concordou, meneando a cabeça e todos
explodiram em alguma direção.
Não muito longe dali, os celestes puderam sentir
a energia divina abundante dos animais. Então
Yesalel começou a guiar o grupo. Rapidamente
localizaram Aron, Adão e os animais. Quando
pousaram, Aron correu em suas direções lampejando
seus novos olhos.
– Comandante! – Aron abraçou Yesalel.
– Olá, Aron! – Yesalel disse com um sorriso.
Em seguida, reparou em Adão esbugalhando os
olhos. – Adão,é um prazer revê-lo!
– O prazer é meu, comandante! – retribuiu o
humano, sorridente. A barba negra refletia a pouca
luminosidade do lugar. Naquela região, as nuvens
escuras tomaram conta do local, mas não chovia.

564
Súbito, o cavalo relinchou, empinando e o leão
soltou um grandioso rugido. Yesalel os observou
repuxando o canto direito da boca.
– Temos que ir! – disse o segundo.

565
CAPÍTULO 67

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Daniel estava parado diante da esfera gigante de
energia, sem saber como reagir. De repente, pensou
em uma maneira de tentar despertar a atenção de
Haziel. Subitamente, explodiu sua áurea magnífica.
O fulgor subia como um grande fogaréu cintilante.
Daniel soltou um berro, cerrando os punhos. Na
mesma hora, a energia ganhou um pequeno volume
em comparação com a esfera. Seu brilhoera intenso,
ficando mais forte a cada segundo.
Após alguns segundos, a própria energia exalada
de Daniel começou a se moldar no formato de outra
esfera. Os dois corpos brilhantes flutuavam no ar
como duas estrelas, uma gigante e outra anã. Em
seguida, a esfera, com Daniel dentro, começou a se
mover na direção da de Haziel. Quando as duas
camadas se encontraram, uma grande onda de
radiação foi exalada com grandioso poder. Correntes
elétricas se movimentavam como furiosas serpentes.

566
Repentinamente, a esfera menor penetrou na maior,
formando apenas uma esfera, mais poderosa.
Dentro do campo energético, onde o som era
abafado, Daniel flutuou até Haziel, aproximando-se
e ficando apenas um metro de distância dele. A essa
altura, sua esfera já tinha se fundido com a do anjo
louro. Nitidamente a mente de Haziel estava em
outro lugar. Com calma, Daniel chamou seu nome,
mas ele não emitiu nenhuma reação.
O poder interno da esfera chegava a ser
assustador. A impressão era de estarem dentro de um
buraco negro, com seus trilhões de lampejos
radiantes. A qualquer segundo poderia explodir.
Sem perder tempo, Daniel segurou os braços de
Haziel pelas laterais e o chacoalhou. Em cinco
segundos de investida, Haziel mostrou suas íris
azuis, brilhantes.
Para quem estava fora da esfera, foi possível vê-
la pulsando, explodindo o ar à sua volta.
– Daniel! O que está fazendo aqui? – indagou o
anjo, surpreso, aos berros.
– Você tem que parar com isso!
– Eu não posso!
Daniel passou a mão pelo queixo e depois levou
os braços à cintura.
567
– Vamos fazer isso juntos então – retrucou
Daniel.
– Não dá! Saia daqui, agora.
– Não. Estarei com você até o fim! – gritava o
anjo moreno. – E outra, é impossível eu sair daqui –
ele deu um sorrisinho.
Nesse momento, Daniel se colocou ao lado de
Haziel, forçando seus músculos, impulsionando uma
grande energia para fora de seu corpo.

568
CAPÍTULO 68

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Após um grande encontro das armas dos dois
guerreiros, Lúcifer e Baal foram arremessados para
lados opostos, encontrando o solo. Ambos caíram
em pé, arrastando-seno chão, criando um comprido
rastro com seus pés. Com trezentos metros de
distância entre eles, Baal gritou, meio aos
relâmpagos.
– Você sabe que não vencerá essa luta, arcanjo?
– Lembre-se que antes de tudo acontecer, você
era um mero serafim.
– Sim, eu era! Mas as coisas mudaram.
– Eu sei! – disse Lúcifer, desmaterializando sua
espada de bronze.
– O que você está fazendo? – indagou o
demônio.
– Eu sempre soube que tinha algo errado com
você. Sempre desconfiei disso. Tentei alertar o Pai,
meus irmãos, mas nenhum deles me deu ouvidos.
Todos estavam focados na criação da humanidade.
– Vamos lutar, arcanjo! Mostre sua arma.
569
– Eu não preciso dela para acabar com você,
Rafar! – retrucou Lúcifer.
– Faz tempo que não escuto alguém me chamar
por esse nome – ironizou o demônio.
Baal tinha um sorriso nos lábios, mas se apagou
quando viu a energia em volta do arcanjo começar a
brilhar mais forte, alterando sua cor quase que
imediatamente para dourado.
Os olhos de Lúcifer brilharam com uma pujança
ainda maior. O sorriso do arcanjo se alargou e nesse
momento uma grande explosão, sem cor alguma,
que só deslocou o ar, emanou de seu corpo. O
grande duque se protegeu e quando voltou a fitar o
arcanjo, um grande calafrio passou pela sua espinha.
Lúcifer estava completamente dourado. Sua energia
brilhava como nunca.
– Quando você era o Rafar, apesar da maldade
que era encontrada apenas em você e em nenhum
anjo mais, ainda existia uma possibilidade de te
curar. Agora você é o puro mal encarnado em
espírito.
– Não é possível! – Baal tinha seus olhos
esbugalhados. – Como?
– É possível! – retrucou o arcanjo. - O Pai sabe
quem eu sou; o Pai sabe por quem luto; o Pai sabe
570
que eu sei que ele nunca me deixaria. Ele está do
meu lado. Nunca me abandonou e não é agora que
ele me abandonaria.
– Eu vou acabar com você, com seus irmãos e
depois com seu Deus. – O ódio do grande duque era
eminente.
– Ter se tornado o pior inimigo do Pai, não faz
de você apto a conseguir – o tom da voz do arcanjo
de Deus aumentava no decorrer da frase, até
terminar com um berro – lutar contra a graça divina!
–Nesse momento Lúcifer cerrou os punhos e
explodiu sua áurea, que subiu em um relâmpago
vertical dourado, até atingir as nuvens.
Baal se sentia completamente apavorado, mas
não demonstrava. Em seguida de Lúcifer, também
explodiu sua poderosa energia trevosa, que se
manifestou como uma gigante fogueira roxa com
cerca de duzentos metros de altura. Com sua espada
em punho, explodiu suas asas, que passaram a ser
negras como fumaça e não tinha uma forma
específica. Em uma poderosa investida, voou para
cima do arcanjo, que também explodiu em sua
direção.

571
CAPÍTULO 69

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Olhando a grande esfera flutuando no ar,
Mazarak percebeu sua alteração na cor de dourada
para vermelha. Grandes estrias douradas, mais
reluzentes do que a própria bola de energia,
desfilavam por sua casca rubra. Bem no centro da
esfera, dava-se para ver a silhueta dos dois anjos, um
ao lado do outro. Juntos na mesma empreitada,
poderosos.
Poucos segundos depois, a esfera de energia
começou a pulsar em branco a cada cinco segundos.
Lampejava como uma lâmpada prestes a queimar.
Rapidamente, os intervalos entre as pulsações
começaram a diminuir e logo estava pulsando mais
de uma vez por segundo. Foi nesse momento que
Hariel acordou e fitou de longe a grande esfera
dourada piscando repetidas vezes. O som emitido
por ela era um tanto eletrônico, grave. Mas não era
desconfortável aos angélicos. Apenas aos infernais,
que além de sentir a potência do grave como se
fossem grandes marretas martelando-os, um forte
572
agudo penetrava em seus ouvidos, fazendo com que
seus tímpanos inchassem em seus limites, até
estourarem.
– Haziel! – disse a mulher anjo, levantando-se.
Ela fez menção de partir em direção à esfera,
mas no mesmo momento, a loura fora impedida por
Barrattiel, em seguida por Hekamiah, que a
seguravam com todas as suas forças. Hariel fitou o
restante dos doze tronos que flutuavam centenas de
metros acima, afastando-se rapidamente. Muitos dos
celestes à volta voavam em direção oposta à esfera.
Os demônios estavam amontados aos montes,
estrebuchando perante a dor lacerante. Muitos
tinham sangue escorrendo pelos ouvidos, outros
jaziam caídos, quase mortos. Alguns, um pouco
maiores, perambulavam trombando-se entre si.
Barrattiel segurava Hariel pela cintura, enquanto
Hekamiah segurava seus braços.
– Deixem-me ir! – berrou a loura.
– Não há tempo, Hariel! – gritou Hekamiah.
Não foi preciso insistir, pois nesse exato
momento, as pulsações aumentaram de uma maneira
tão frenética, que não se dava mais para enxergar os
intervalos onde ela ficava rubra. Parecia estar
completamente branca, a não ser por uma leve
573
oscilação colorida em suas ondas de luz que era
criada em sua camada externa. O barulho grave
subia seu tom aos poucos e ia atingindo cada vez
mais forte um tom agudo, gritante.
O vento soprava a centenas de quilômetros por
hora, fazendo as asas dos anjos balançarem
ferozmente.
– Temos que sair daqui! – gritou Hekamiah
meio ao assovio do vento.
Mazarak e Hariel hesitaram, mas concordaram.
Nesse exato momento, a moça entendeu que não
podia fazer nada. Mas acreditava em Haziel,
acreditava nele como sempre acreditou. Ele nunca a
decepcionara. Os dois celestes menearam a cabeça e
os quatro explodiram o vento, voando, com toda a
sua voracidade, em sentido oposto.
Em poucos segundos já tinham avançado alguns
quilômetros. Vendo a esfera cintilar, fez com que
Hariel pensasse na criação. Pensou na grande
explosão de magnitude colossal que foi preciso para
isso acontecer. – Isso, como lhe foi ensinado, pois
ela ainda não existia naquela época, nem nenhum
dos anjos. Apenas os arcanjos e Deus entregavam a
bênção de sua existência.

574
Dentro da bola de energia, Haziel e Daniel se
entreolharam, meneando a cabeça um para o outro.
De repente, tudo foi tomado por uma névoa branca,
ficando impossível a percepção visual naquele
ambiente. Daniel tentou gritar o nome de Haziel,
mas percebeu que não escutava sua própria voz,
além de não poder enxergar sua mão um centímetro
na frente do rosto.
Cerca de vinte quilômetros afastados, ainda em
avanço, o quarteto percebeu quando o som
desapareceu por completo. Era como se todos
tivessem ficado surdos de uma hora para outra.
Todos pararam e fitaram a grande esfera. A surdez
durou apenas um pouco mais de um segundo. Em
seguida, a grande bola se reduziu a quase nada e
explodiu em uma detonação de magnitude
descomunal.
– Não vamos conseguir! – gritou Hekamiah,
fitando a grande nuvem de poeira se aproximando a
toda velocidade.
Todos arregalaram os olhos. Foi esse o tempo
necessário para que fossem atingidos por uma
grandiosa claridade, em conjunto com a força da
detonação e seus detritos. Tudo ficou branco.

575
CAPÍTULO 70

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Aron, Caliel e os outros voavam, seguindo os
animais. Súbito, uma explosão. Em seguida, eles
foram cobertos por uma poderosa luminosidade
vinda do combate entre Lúcifer e Baal. Espreitando
a direção, repararam em dois enormes raios que
subiam até as nuvens, unidos como canudos
dourados e roxos. Anéis brilhantes começaram a
desfilar pelos raios, indo do chão até se chocarem
com as nuvens, criando ondas de luz no céu,
expandindo-se para todos os lados, em velocidade
descomunal.
Na batalha, Baal tinha chocado sua espada
contra o ombro do arcanjo, com toda a força
possível, exercida pelos seus poderosos músculos.
Mas o que aconteceu surpreendeu a ele, não somente
a ele, mas também a Lúcifer. A grande arma do
demônio se estilhaçou como uma espada de cristal.
Seus olhos esbugalharam. Sem hesitar, utilizando
sua grande habilidade de reação, seguiu com um
poderoso soco, que foi preso pela mão aberta do
576
arcanjo. Outro soco com a outra mão, que Lúcifer
também parou.
A força sobressalente do arcanjo era óbvia,
sendo que esmagava os punhos do demônio com
suas próprias mãos, como se fossem duas presas
mortais. Baal se sacudia, tentando se desprender,
mas parecia estar grudado a Lúcifer, que o olhava
com seus olhos cor de safira, penetrantes, as
sobrancelhas franzidas, as mandíbulas forçadas.
– Com quem você vai acabar? – berrou Lúcifer.
– Com todos vocês! – disse o demônio, com a
voz trêmula.
– Repita. Com quem você vai acabar? – O
arcanjo esmagou ainda mais forte as mãos do grande
duque.
– Eu... Vou... Matar... Deus! – gritou Baal,
enfurecido. Chamas saíram de seus olhos, nesse
momento.
– Você... Nunca... Tocará... No... Meu... Pai! –
gritou o arcanjo, com toda a sua ira.
Lúcifer soltou as mãos de Baal, que as retraiu
imediatamente. Os ossos estavam expostos. O
aspecto era desastroso. Mas quase não deu tempo de
Baal perceber isso, pois o arcanjo envolveu seu

577
crânio com as suas mãos e começou a apertar com
uma força esmagadora.
Imediatamente, uma dor alucinante se
desenvolveu pela cabeça do duque. Naquele
momento, sua vida passou inteiramente pela sua
cabeça. Um grão de arrependimento acendeu em seu
peito, mas logo fora substituído por uma onda de
ódio infernal; ódio dos humanos; ódio dos anjos;
ódio dos arcanjos; ÓDIO DE DEUS!
– Nunca ouse ameaçar meu Pai! – disse Lúcifer.
Por fim, a cabeça de Baal explodiu nas mãos do
arcanjo como uma melancia, espirrando pedaços e
sangue negro para todos os lados. O corpo do grande
duque caiu de joelhos, oscilou cerca de três
segundos e caiu de lado. Seus dedos soltaram
movimentos involuntários por alguns segundos,
contraíram-se e se abriram levemente. Baal estava
morto.
Lúcifer fitou o corpo de Baal no chão, em volta
de uma grande poça de sangue escuro, em
crescimento. Súbito, sem nenhum aviso, o corpo do
grande duque explodiu em uma grande detonação. O
arcanjo fora arremessado a dezenas de metros,
caindo em pé. Olhando na mesma hora para o local,
onde antes estivera o corpo de Baal, reparou em uma
578
pequena nuvem negra que subira e se dissipara no
ar.

579
CAPÍTULO 71

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
O lugar, que antes era o campo de batalha, com
um grandioso mar negro de guerreiros infernais, fora
reduzido a nada. Transformou-se em um extenso
terreno cor de terra que se perdia de vista. Muitos
pontos estavam esfumaçados. Uma grande cratera,
com dezenas de quilômetros de extensão e centenas
de metros de profundidade, fora criada pela
explosão.
O vento soprava calmo. Uma chuva, do que
parecia ser resquício de energia, ou qualquer outra
coisa, caía do céu como purpurinas douradas. A
vegetação, animais, tudo na região foi desintegrado
completamente.
Exatamente no local onde estavam antes da
explosão, unidos, poderosos, estavam Haziel e
Daniel, desacordados, envolvidos em uma esfera
transparente. Afastado, uma centena de metros,
ajoelhado, no meio de uma redoma de energia
translúcida, estava Israel. O Trono estava muito
580
machucado. Um olho era uma bola vermelha do
tamanho de uma bola de tênis, o outro estava quase
fechado, rubro em volta. Um dos braços estava
quebrado, o outro erguido acima da cabeça,
parecendo manejar as duas proteções: uma o
envolvia, a outra Haziel e Daniel.
Como dois mísseis, Hariel e Mazarak chegaram
ao lugar, parando bruscamente no ar. Suas vestes
estavam em trapos. Tiveram tempo de ver quando
Israel pendia a cabeça e caía de lado.
Instantaneamente, as paredes de energia se
desfizeram e os corpos dos anjos despencaram.
Hariel e Mazarak dispararam e antes que
sechocassem contra o chão, conseguiram apanhá-los.
O duque com asas negras ea loura tinham largos
sorrisos repuxando os lábios. Se Haziel e Daniel
estavam ali, era porque tinham conseguido, graças a
Israel. Eles fizeram um arco no ar e desceram em
direção ao trono. Pousaram quase ao seu lado. Hariel
colocou Haziel no chão e correu até ele ajoelhando-
se, segurando sua mão.
– Graças ao pai, você está vivo!
– Escute, Hariel! – O anjo tossiu. – Não tenho
muito tempo!
– Mas, Israel!
581
– Escute! – Tossiu novamente. – Eu posso
sentir, Baal foi derrotado. Mas eles ainda não
completaram a transição. Isso está nas mãos de
vocês.
– Eu vou te levar para alguém – disse a loura,
quase o levantando.
– Não. Espere! – Israel estendeu o braço bom.
Hariel parou o movimento e olhou em seus
olhos.
– Mas aqui você irá morrer!
– Eu sucumbirei em qualquer lugar. – Israel
sorriu. – Aqui estou bem! Nós conseguimos. – Um
sorriso se alargou em seu rosto. – É o que importa!
Nesse momento, os olhos de Israel brilharam em
seu lindo tom violeta. Seu corpo fora envolvido por
uma luminosa energia dourada, que brilhava como
uma estrela. Desprendendo-se da pegada da mulher
anjo, o corpo começou a levitar, alcançando uma
altura de cinquenta centímetros. A luz, em volta de
seu corpo, transformou-se em uma névoa brilhante,
que começou a cair como uma cachoeira, deslizando
pelo chão, dissipando-se. Isso aconteceu até seu
corpo desaparecer por completo.
Israel fora dissipado no cosmos, para assim um
dia, quem sabe, retornar como uma estrela de luz.
582
Ou mesmo como um habitante de um novo espírito,
de um novo anjo.
Hariel ficou ali, cabisbaixa. Uma lágrima
escorreu de seus olhos cerrados. Os cabelos longos
tocavam as coxas brancas. Suas asas balançavam ao
soprar do leve vento frio.
Mazarak se mantinha ereto, segurando o irmão
nos braços. Fitava a loura triste, que agora
engatinhava até Haziel. Ela tocou no rosto do irmão,
afastando seus cabelos louros.
– Haziel? – um sussurro – Haziel? – falou um
pouco mais alto, batendo levemente em seu rosto.
Quando o anjo abriu os olhos, fechou-os
novamente. Descansou as pupilas e os abriu de
novo, só que com calma. Uma grande claridade
tomou conta de sua visão, para assim, aos poucos
voltar, mostrando as primeiras silhuetas à sua frente.
Como na primeira vez que abriu os olhos em sua
vida, o que avistou foram duas esferas azuis
brilhantes.
– Olá, meu amado irmão! – disse Hariel, com
um grande sorriso e lágrimas nos olhos.

583
CAPÍTULO 72

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Os dois humanos, os celestes e Beelzebuth
chegaram ao local onde acontecera o grande
combate. Lúcifer estava de costas, fitando o
horizonte em sua pose imperial. Seu corpo brilhava
como ouro, fazendo todos se surpreenderem com a
repentina mudança. Os dois animais se aproximaram
dele e abaixaram as cabeças na sua frente, em
reverência. Lúcifer também meneou a dele,
colocando suas palmas sobre suas cabeças,
acarinhando-os.
– Eu estava com saudades de vocês, garotos! –
disse o arcanjo, sorridente.
Mitra se empolgou, levantou e começou a correr
em círculos em volta de Lúcifer e Pegasus. O cavalo
alado encarou os olhos de Lúcifer como se dissesse
algo, então o arcanjo falou, com sorriso nos lábios:
– Deixe-o Pegasus. Ele sempre foi uma criança.
Nesse momento, o cavalo balançou a cabeça em
negativas. Em seguida relinchou. Direcionando-se

584
ao restante, Lúcifer disse, estapeando as próprias
palmas:
– Agora vamos salvar a humanidade!
Yesalel se aproximou.
– Desculpe, arcanjo. Eu não tive tempo de lhe
agradecer.
– Não é necessário, comandante. – Lúcifer
passou as mãos na frente do corpo, mostrando o
brilho dourado. – Agora tenho tudo de que eu
precisava! A benção do Pai, novamente.
Lúcifer flutuou, sem precisar mostrar suas
majestosas asas resplandecentes. Quando ele
explodiu em uma direção, todos o seguiram.
Sobrevoaram a região em círculos, por cerca de
cinco minutos, até que o arcanjo parou, encarando
certa parte dela.
– Eu sei, Pegasus. Está tudo muito diferente –
respondeu o arcanjo a algum comentário mental do
cavalo. Em seguida, mergulhou em direção ao
ponto, seguido por todos.
Pousaram após alguns segundos, meio a um
grande terreno desértico, com solo seco, claro. Havia
rochas erguidas aos montes. A maior atingindo no
máximo dois metros de altura, sendo assim, menor
do que o arcanjo. Lúcifer encarou as duas pedras
585
azuis-safira presas a uma sacola transparente, em
cada cintura de cada um dos humanos.
– Por favor, meus meninos, vão à frente! –
Lúcifer gesticulou aos humanos.
Aron arregalou os olhos, olhou à frente e viu
apenas uma grande pedra a dois passos dele. Fitou o
arcanjo, confuso. Mas quem tomou a iniciativa foi
Adão, que impaciente, aproximou-se da pedra e
atravessou sua face como se fosse uma parede de
água, que brilhou em branco, ao seu transpassar.
Aron deu de ombros e seguiu Adão. Em seguida,
passou Caliel, os animais, Beelzebuth e Yesalel.
Quando passou pelo arcanjo, parou e indagou:
– Estamos seguindo para onde acho, meu
senhor?
Com um sorriso repuxando os lábios, Lúcifer
respondeu:
– Você verá.
O Segundo comandante sorriu e entrou na
passagem. Lúcifer se abaixou e entrou logo atrás
dele.

586
CAPITULO 73

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
Antes de se levantar, Haziel envolveu Hariel em
um abraço.
– Eu sei que passei dos limites! – exclamou o
anjo.
Hariel retribuiu, respondendo:
– Você sempre passa, sempre passa!
Soltaram-se e Haziel se levantou, espalmando o
corpo quase nu. Suas vestes estavam em trapos
como as de Daniel, que ainda repousava nos braços
do irmão.
– Mazarak? – indagou Haziel, estupefato,
parando de estapear o corpo. – Como? Quando? –
Suas palavras se perdiam ao seu raciocínio confuso.
– Eu achei que nunca mais o veria, após a
Mesopotâmia.
O duque de asas negras arqueou as sobrancelhas.
– É uma longa história! – disse ele.
– Mesopotâmia? – indagou Hariel, com a face
franzida.
587
– É uma longa história! – responderam os dois
homens anjos em uníssono, entreolhando-se.
– Nós conseguimos? – perguntou Haziel,
voltando-se a Hariel.
– Essa batalha nós vencemos, irmão!
Haziel abriu um leve sorriso e logo perguntou:
– Tem notícias de Aron?
– Não! – disse Hariel, cabisbaixa.
Nesse momento, a pequena legião celeste
sobrevivente chegava, voando muito alto. Os anjos
não tinham posições específicas. Um deles desceu
em disparada e aterrissou. Em seguida, correu até
Haziel para abraçá-lo.
– Eu nunca duvidei de que você conseguiria,
irmão!
– Olá, Barrattiel! – Haziel devolveu o abraço.

588
CAPÍTULO 74

Iraque, Bagdá – tempos atuais


Todos passavam por algo que parecia ser uma
espécie de túnel, completamente escuro. Cerca de
cem metros à frente, uma abertura redonda irradiava
um poderoso brilho que parecia vir da luz do sol.
Prosseguindo com cautela, os humanos foram os
primeiros a receberem o raio de luz, ainda dentro da
caverna. Isso fez com que seus olhos estreitassem.
Faltando apenas dois metros para passarem para
o lado externo, pararam. Todos atrás chocaram os
corpos em efeito dominó. Fora da passagem, dava-se
para enxergar um grandioso azul claro.
– Adão! – A voz de Lúcifer ecoou do fundo. –
Vá primeiro!
O humano concordou, inclinando a cabeça, mas
só foi possível enxergar a sua silhueta. Em seguida,
deu um passo.
– Mas antes! – falou o arcanjo, um pouco mais
alto. – Pule bem forte para sair do túnel.
O humano meneou a cabeça. Depois colocou
uma perna para trás, correu e saltou, desaparecendo
589
na abertura. Aron olhou para trás, fitando Caliel
meio ao breu.
– Pode ir, Aron!
Ele hesitou alguns segundos, mas criou
coragem, correu e saltou. Repentinamente, fora
tomado por uma sensação muito estranha ao cair
sentado ao lado de um buraco no chão. De algum
modo, quando passou para o lado externo do túnel, a
direção do mundo mudou. Ele tinha saído de um
poço no solo e não de um túnel em uma parede. No
mínimo estranho, mas compreensível – pensou ele.
Aron reparou em Adão completamente
hipnotizado com a paisagem. Nesse momento, ele se
levantou e se aproximou de Adão. Foi quando Caliel
surgiu do buraco no chão, caindo em pé. Com os
dois humanos lado a lado, fitando a paisagem juntos,
Aron disse:
– Maravilhoso, né!
– Maravilhoso! – respondeu Adão. – Exatamente
como me lembro!
– Aqui é? – Aron apontou o chão com os olhos
amigáveis.
Adão sorriu com os olhos cintilantes e olhou
para Aron de volta, balançando a cabeça, com
sutileza.
590
– Sim, o jardim!
– Lindo, né? – Caliel falava, posicionando-seao
lado de Aron.
– Aqui é o Jardim do Éden?! – Aron se
direcionou a Caliel, apontando o chão, ainda
espantado.
– Estamos no primeiro céu – disse o ruivo,
meneando a cabeça em positivo.
Aron ficou calado alguns momentos em
reflexão.
Pequenos pássaros coloridos sobrevoavam o
local, cantando suas belas melodias. Árvores de mais
de cem espécies podiam ser vistas na região até onde
seus olhos alcançavam. O solo era completamente
forrado com um lindo carpete de grama verde. Na
direita deles, um gigante rio com água cristalina, que
mais parecia o mar pela grandeza, seguia longe no
horizonte. O sol brilhava como Aron nunca tinha
visto, mas não queimava a pele e o calor também
não era insuportável.
– Quantos céus existem? –indagou Aron.
– Sete ao todo. – Caliel sabia que viriam mais
perguntas pela frente.

591
– O Sétimo Céu é onde estávamos antes, certo?
– Sem esperar a resposta, Aron continuou: – Se lá é
a morada dos arcanjos, aqui é a morada de quem?
Caliel sorriu com a inocência da pergunta e
balançou a cabeça para Adão, que respondeu,
entrando na conversa:
– Aqui já foi a minha morada, mas antes de se
transformar no Primeiro Céu. Antes de tudo. Antes
que Deus criasse todos os outros céus.
– Quem reside nos outros céus? – perguntou
Aron.
Todos já tinham saído do poço, até que Lúcifer
flutuou pelo buraco, entrando na dimensão, em
posição horizontal, para assim virar o corpo,
pousando imediatamente. A atenção no arcanjo
dourado quebrou o raciocínio de todos na conversa.
Em seguida, Lúcifer disse:
– Venham por aqui, meninos! – Lúcifer seguiu
em frente, sendo seguido por todos.
– Contarei a história dos sete céus outra hora.
Mas antes, eram apenas três céus. – O ruivo soltou
uma piscadela, deixando Aron curioso.
Todos andavam em conjunto, reparando na
abundância poética da paisagem. Pequenos
mamíferos corriam. Macacos saltavam de árvore em
592
árvore. Cinco onças repousavam à sombra de uma
pequena, porém, volumosa árvore. Um pouco mais à
frente, hipopótamos se banhavam no rio cristalino.
Dois ursos pardos atravessaram na frente deles,
fazendo com que Aron ficasse assustado.
– Pode vir! – Lúcifer o chamou. – Eles não vão
fazer nada.
Aron hesitou, mas voltou a andar, sem
desprender os olhos dos grandes ursos.
– Desculpe, Lúcifer, mas para onde estamos
indo? – indagou Adão, enquanto caminhavam sobre
a grama verde.
Lúcifer colocou as mãos para trás, com sua
majestade.
– Você se lembra do seixo divino?
Adão concordou com a cabeça.
– Nós estamos indo para lá.

593
CAPÍTULO 75

Minas Gerais, Águas Vermelhas – tempos


atuais
A legião de celestes ia perdendo altitude
cautelosamente. Para assim se aproximar de seus
irmãos, abaixo. Pousando, continuaram andando,
guardando suas asas. Formaram um círculo em volta
de Haziel e dos outros. Barrattiel se juntou a eles.
Hariel, ao perceber o que se passava, também se
uniu ao círculo. No mesmo momento, todos tiraram
suas espadas das bainhas, criando um grande som de
metal se raspando. Levaram-nas em sentido ao céu e
clamaram, berrando:

– AO GRANDE HAZIEL.
– AO GRANDE DANIEL.
– UM POR TODOS!
– TODOS POR UM!

Em seguida, mais gritos estridentes. O som de


armas sendo guardadas aos montes. Depois palmas
explodiram o ambiente, seguidas de mais berros.
594
Nesse momento, Daniel despertou e olhou
diretamente nos olhos de Mazarak, que o amparava
no centro de todos.
– Mazarak?
– Ahhh, o “bebezão” acordou! – Mazarak o
colocou no chão.– Isso tudo é por sua causa. – Abriu
os braços, mostrando a felicidade dos celestes à
volta, pulando, abraçando-se e berrando.
Daniel olhou com os olhos lampejantes. Um
sorriso inundou seu rosto, enquanto rodava em seu
próprio eixo. Nesse caminho, viu Haziel de costas,
em pose majestosa, fitando todos os guerreiros a
gritar. Ele se aproximou e tocou o ombro do louro,
sorridente.
– Conseguimos! – disse, enquanto encaravam
juntos todos os irmãos.
Haziel o olhou com o canto do olho e sorriu
largamente.
– Conseguimos Daniel, conseguimos! – disse
Haziel.

595
CAPÍTULO 76

Jardim do Éden – tempos atuais


Todos percorreram cerca de um quilômetro e
meio pelo lindo jardim. As histórias contadas nos
livros antigos nunca conseguiram chegar perto de
descrever a beleza real do lugar. Duas centenas de
metros à frente, Aron reparou em um lampejo
prateado, similar ao de uma estrela. Continuaram
andando, até que ele percebeu uma grande rocha de
prata, aguda. Todos se aproximaram e pararam cerca
de dez metros afastados do monumento.
– Lindo como sempre! – exclamou Adão,
olhando a estrutura, emocionado.
– O que é isso? – indagou Aron.
– O Seixo Divino – disse Caliel, sorridente.
Lúcifer encarou o monumento por cerca de um
minuto, com seus braços cruzados. Depois se virou
para os humanos e perguntou:
– Estão prontos?
Adão meneou a cabeça. Aron abaixou as
sobrancelhas encarando Caliel. Em seguida, inclinou

596
a cabeça para baixo. Os animais, nesse momento,
aproximaram-se dos humanos. Lúcifer acrescentou:
– Mostrem-me suas pedras.
Todos olharam estupefatos para o arcanjo,
tentando entender como ele sabia das pedras azuis.
Enquanto isso, os humanos as tiravam das sacolas
transparentes.
Aron e Adão o fizeram.
– Arcanjo? Posso fazer uma pergunta? –
perguntou Aron.
– Mais uma além dessa? – indagou Lúcifer,
brincalhão.
Aron sorriu sem graça, coçou a cabeça.
– É! – O humano tinha um sorriso largo.
– É claro, estou apenas brincando! – o arcanjo
respondeu com um brilho nos olhos cor de safira.
– Como saberíamos o que fazer se você não
estivesse aqui?
– Acredite em mim. Vocês descobririam! – mais
um sorriso do arcanjo dourado.
– Como?
–As possibilidades são infinitas – afirmou o
arcanjo. – Agora vamos salvar o mundo?
Beelzebuth, Yesalel e Caliel analisavam o
momento, um tanto mais atrás.
597
– Preciso que vocês façam mais uma coisa! –
Lúcifer apontou as pedras. – Toquem uma na outra,
por favor.
Aron e Adão manejaram suas pedras, tocando-as
imediatamente. Nesse momento, um leve brilho
claro floresceu das pedras unidas.
– Muito bom! – disse o arcanjo. – Você está
pronto, Adão?
O humano inclinou a cabeça e disse:
– Sim!
Súbito, Adão movimentou sua cabeça, olhando o
Céu. Seus olhos brilharam em uma luz própria.
Ampliando-se, a luz se alongou em um raio dourado,
que subiu até se perder de vista, ainda ligada aos
olhos do humano.
Aron tinha os seus arregalados diante do transe
de Adão. Ele acompanhou a linha brilhante até o
Céu. Lá, ele percebeu que um desenho começara a
se formar ao traçar dos fios dourados. Seis pontos
brilharam mais fortes. Ligados pelas linhas
radiantes, formaram o símbolo dos arcanjos, a
estrela de seis pontas. Repentinamente, do centro da
estrela, desceu um poderoso feixe de luz, atingindo
Aron em cheio. No mesmo momento, o humano foi
levado a um fundo transe.
598
Imagens que nunca tinha visto começaram a
passar por sua cabeça em turbilhões. Humanos
guerreando entre si desde as épocas antigas. Imagens
da primeira guerra mundial, da segunda, de guerras
menores. Sangue, ele via muito sangue.
Isso tudo foi muito rápido, mas a tensão das
cenas horrendas fora substituída por uma sensação
de paz, quando começou a enxergar imagens belas e
emocionantes: o nascer de uma criança esperada
ansiosamente pelos pais; músicos tocando seus
instrumentos, compondo melodias reconfortantes;
pessoas deficientes sendo guiadas, ou ajudadas de
qualquer forma por outros humanos; homens
parando carros para ajudarem pessoas dificultosas a
atravessarem ruas, rodovias; animais recebendo
tratamentos de igualdade, agradecendo com seus
olhares inocentes; um idoso sendo amparado nas
ruas, levado a algum lugar seguro; mendigos sendo
alimentados por multidões honrosas; abraços, muitos
abraços; risos; lágrimas de felicidade.
O humano nunca sentira tanta paz, alegria e
conforto como naquele momento.

599
CAPÍTULO 77

Planeta Terra – tempos atuais


A cidade de Bagdá estava calma. O vento
soprava em uma leve brisa meio aos destroços do
combate entre Lúcifer e Baal. Súbito, no Céu, uma
grande luz muito brilhante floresceu. Em seguida,
uma poderosa explosão de magnitude colossal. Uma
chuva de centelhas reluzentes foi arremessada como
cometas em todas as direções. Ao choque dos
meteoros de luz, o solo começara a se inundar. Não
de água, mas sim de uma grossa camada de luz,
dourada, radiante.

* * *

Em Águas Vermelhas, no Estado de Minas


Gerais, os anjos avistaram uma gigante onda
dourada se aproximando muito velozmente. Foi tão
rápido que esse foi o tempo para que fossem
atingidos, fazendo-os desaparecer por completo,
meio à claridade divina.

600
Em São Paulo, um bando de humanos possuídos
perambulava pelas ruas, sem rumo. O poder da
energia era tão imenso que despertou a atenção
deles, fazendo-os fitar a poderosa parede se
aproximando ao longe. Ficaram ali parados,
olhando, com seus olhos enegrecidos, mas que
naquele momento pareciam inocentes.
Nesse mesmo momento, a gigantesca onda
dourada, radiante atingia Hong Kong na China,
Sydney na Austrália, Fort Rupert no Canadá, Nova
York nos Estados Unidos e Vorkuta na Rússia.
Quase toda a Europa já tinha sido tomada. A África
se tornara completamente dourada, inundada de luz.
Olhando do espaço sideral, dava-se para ver uma
agigantada onda dourada varrendo o planeta, até
tomá-lo por completo. Mais afastado, o planeta
Terra, naquele momento, tornou-se um ponto
reluzente, que obtinha ainda mais luz do que uma
estrela de meia vida, como o sol.
Uma grossa camada de luz envolvia
completamente o planeta, fazendo com que todos os
seres ainda vivos nele, humanos ou não, ficassem à
deriva na energia divina, em transe total.

601
CAPÍTULO 78

Brasil, São Paulo, Zona Leste – tempos atuais


Em um apartamento na Penha, um bairro da
zona leste de São Paulo, uma família abençoada
retornava aos poucos do transe maligno induzido
pelo inferno.
– Mãe? – berrou um dos jovens, enquanto se via
deitado no chão à frente da entrada da cozinha.
A mãe, uma mulher na faixa dos cinquenta anos,
conservada, seguiu o barulho dos gritos do filho.
Mas quando ela se aproximou, aos seus olhos só
enxergava uma fumaça negra onde se encontrava o
filho. Ela ficou ali parada, no corredor que dava na
porta de saída do apartamento, ao lado da mesa de
jantar, fitando a nuvem escura.
– Mãe! Seus olhos! – disse o jovem.
A mulher pendeu a cabeça para o lado,
parecendo não compreender.
– Mãezinha? – outro grito dos fundos do
apartamento.
Rapidamente outro jovem se aproximou. Este
parecia mais alto, robusto, cerca de três anos mais
velho. Parecia ator de Hollywood de tão belo. Os
602
olhos eram pequenos, felinos, decorados por uma
íris difusa em cores claras, do mel ao verde.
– Ian! A mãe está esquisita – disse o jovem no
chão, com dificuldades para se levantar.
Nesse momento, a mulher se virou para o outro
filho às suas costas. Ele encarou seus olhos, dando
um pulo para trás, caindo no chão. Ela se aproximou
dele como um animal espreitando sua presa.
Agachou e engatinhou, chegando ofegante próximo
ao seu rosto. Nesse exato momento, a mulher se
inclinou, contorcendo-se para trás. Seu corpo
despencou ao chão, com os membros desordenados.
–Mãe? – gritaram os dois juntos.
Ela abriu a boca e vomitou uma fumaça negra,
que se esguichou como água ao sair de uma
mangueira potente. A nuvem se condensou em uma
esfera, flutuando no ar. Em seguida, começou a se
comprimir, até desaparecer completamente. Mas isso
os humanos não viram.
A mulher ficou deitada no chão, desacordada.
Cinco segundos depois, abriu os olhos, que estavam
normais. Lindas íris cor de café ficavam ao centro de
seus olhos amendoados.
–Mãe? – chamou o jovem no chão, hesitante.
– Igor? – disse ela, em um sussurro.
603
– Você está bem, Mãezinha? – indagou Ian,
levantando e se aproximando rapidamente.
– O que aconteceu, meus filhos?
Eles não responderam, dando de ombros,
estupefatos.
– Preciso falar com a Isa – disse Igor.

604
CAPÍTULO 79

Jardim do Éden – tempos atuais


Adão e Aron estavam envolvidos pela mesma
energia, que saía de Adão, tocava o Céu, criando a
estrela de seis pontas e retornava para Aron. Aquele
momento durou cerca de três minutos, até que a
energia se dissipou, deixando apenas um feixe de luz
no Céu, que ia sumindo aos poucos. Os dois
humanos caíram desacordados.

* * *

Dois dias depois, em algum lugar - tempos


atuais
Aron acordava de seu longo repouso após o
grande esbanjamento de energia. Quando abriu os
olhos, a primeira coisa que viu foi um pequeno
lustre branco, redondo. A luz estava apagada, mas os
raios de sol entravam pela janela e pela porta
entreaberta.
Ele inclinou o corpo e tirou as pernas para fora
da cama, tocando o chão de madeira. Reparou em
605
sua calça de moletom, cinza, encimada por uma
camiseta de algodão, branca. Levantou-se,
locomovendo-se com seus pés descalços, tocando o
solo. Andou até a porta e a puxou pela lateral,
enfiando a cabeça para o lado de fora. Colocou o
corpo inteiro para fora, pisando a madeira trilhada,
fria.
O terreno à frente era verde, mas também
colorido pelas flores. Tinha certa inclinação,
deixando à vista a bela paisagem a algumas centenas
de metros, abaixo de onde o humano estava. Ele
escutou risadas vindas do morro, onde ele não podia
ver. Atentou-se e começou a andar, deixando a
cabana de madeira para trás. Desceu a escada
também de madeira, com cerca de cinco degraus. Ao
final, tocou a grama úmida com a sola dos pés.
Começou a andar cada vez mais rápido,
aproximando-se da beira do morro.
Chegou, deparando-se com cinco anjos sentados
com os braços em volta dos joelhos. As asas
estavam expostas, porém recolhidas. Conversavam
entre si e apontavam o horizonte à frente. Um deles
se virou e olhou Aron com seus olhos radiantes,
rubros. Uma leve brisa balançou seus cabelos ruivos.

606
– Venha, Aron! – gesticulou com uma das mãos.
– Junte-se a nós.
O humano se moveu com passos rápidos. Mas
ao mesmo tempo, descia concentrado, sobre a
inclinação do morro verde. Aproximando-se de
todos, berrou, indagando, efusivo.
– Nós conseguimos?
Caliel se levantou, tocando o ombro de Aron
pela lateral, enquanto ele ofegava.
– Sim, Aron! Graças a você.
– Graças a mim?
Haziel se levantou e se aproximou, sorridente.
Barrattiel também se levantou.
– Graças a você! – Haziel disse para Aron.
Olhou para Daniel, depois para Hariel ainda
sentados, alargando ainda mais o sorriso. – Graças a
todos nós, aos arcanjos, a Lúcifer e principalmente
ao Pai.
– Então nós conseguimos! – disse o humano
levando o dedo à boca, olhando para o chão. Em
seguida, arregalou os olhos, voltando o olhar a
Caliel. – Então agora podemos resgatar Sun! – Ele
abriu o sorriso. Mas que logo se apagou ao ver os
olhos do ruivo se abaixando.
– O que foi? – indagou o humano.
607
Caliel o olhou diretamente nos olhos, triste.
– Eu não vejo melhor hora para te dizer isso!
– Dizer o quê? – berrou Aron.
Caliel hesitou alguns segundos. Aron gritou
novamente:
– Dizer o quê, Caliel? Fala! O que aconteceu? –
Uma onda elétrica passava pela espinha de Aron.
Seu estômago regurgitava. Os olhos estavam
inundados, vermelhos e arregalados.
– Aron! Saiba que o que eu vou te dizer agora
não é o fim!
– Não! Não! Ela morreu! – Aron começou a
puxar os seus próprios cabelos, olhando para baixo.
– Ela morreu, Caliel? Por favor, não me diga isso.
Por favor!
– Ela não aguentou! – disse Caliel.
Instantaneamente Aron inflou as bochechas,
inclinou-se para frente e começou a vomitar as
poucas coisas que tinha no estômago. Após quase
desmaiar de falta de ar, Aron parou de vomitar e
caiu no chão, chorando muito.
– Não! – ele berrava. – Não. Não. Não. Não.
Não acredito! A Sun! – Esfregava as mãos no rosto,
enquanto rolava de um lado para o outro. – Não,
meu Deus, por favor, não!
608
Nesse momento, Caliel fitou o humano com seus
olhos tristes, segurando sua lira. Pousou o
instrumento no chão e envergou os dedos. Uma
pequena esfera dourada se moldou entre eles. Aos
poucos, Aron fora se acalmando. O choro ia se
escondendo, transformando-se em pequenos
sussurros. Aos poucos, o humano se recompunha.
Quando ele conseguiu se colocar em pé, com os
olhos ainda baixos, Caliel disse:
– Aron, este não é o fim!
O humano aguardou alguns segundos e indagou:
– Porque este não é o fim? Ela morreu!
– Sim, ela morreu! – O estômago de Aron se
revirou nessa hora. – Mas temos uma chance!
Instantaneamente um brilho de esperança
floresceu no coração do humano.
– Uma chance?
– Sim! – afirmou o anjo ruivo, sorridente.
Nesse momento, Aron mostrou um leve sorriso.
Caliel acrescentou:
– Ela morreu no inferno! – o ruivo viu quando
Aron respirou fundo. – Isso quer dizer que sua alma
está lá. Com uma ajudinha, nós podemos resgatar a
alma dela e trazê-la à vida novamente.

609
– Então nós temos uma chance? – indagou Aron,
um tanto sorridente.
Caliel meneou a cabeça em concordância,
também sorridente. Seus olhos escarlates brilhavam.
Olhando à volta, o humano admirava a bela
paisagem.
– Onde nós estamos? – indagou Aron.
Caliel soltou uma risadinha. Pegou sua lira no
chão, fitou a bela vista ao longe e perguntou:
– Onde você acha?

Fim do Livro 1

“Até o próximo.”

610
AGRADECIMENTOS

Obrigado a minha mãe e revisora, Roseli Magro, por


acreditar em mim e me ajudar mais do que qualquer um,
nessa trajetória.
Obrigado ao meu irmão, André Rodrigues, pelas
incansáveis discussões, gerando, ao final delas, o nome do
livro. Sabia que podia contar com ele para isso desde o
início de minha caminhada.
Obrigado a minha esposa Vanessa França pela
paciência eterna comigo e por escutar minhas viagens
fantásticas, incansavelmente.
Obrigado a minha mais fiel leitora e amiga Juliana
Checo. Ela me acompanhou desde as primeiras páginas
do livro e continua me acompanhando, enquanto as
páginas do segundo livro dessa trilogia se desenrolam.
Obrigado ao meu grande amigo Apolo Saturnino, que
com grandes bate-papos, me ajudou a mudar detalhes da
história que só a deixaram mais rica.
Por fim, obrigado a todos aqueles amigos e pessoas
desconhecidas, que com pequenos gestos, ajudaram-me a
criar essa história.
Não sei o quanto vocês, meus leitores, visualizarão
dessa obra, pois o mundo criado nela é muito maior para
mim do que o meu próprio mundo “real”.

611
EXTRAS

612
613
“Dois meses após a vitória dos anjos.”

Parte primeira. No mundo espiritual

CAPÍTULO 01

Sexto Céu – tempos atuais


Haziel e Caliel estavam em cima de uma rocha
olhando o horizonte. Os olhos rubros de Caliel
encaravam Haziel com imponência. Apesar da cor,
ainda eram amigáveis. Apesar do brilho guerreiro,
ainda tinham seu brilho inocente de um guardador.
Sua lira estava presa à cintura, cintilando seu rubi
central, igual aos de sua sandália. Sua armadura
peitoral ainda lampejava seu dourado. Sua saia de
tecido leve esvoaçava com o vento. Suas asas
estavam desabrigadas.
O anjo louro vestia a tradicional roupa branca
angelical. Esta que cobria apenas algumas partes do
corpo. O ombro direito ficava à mostra, juntamente
com o peito e dorso direito. As pernas musculosas
ficavam evidentes a partir da coxa. Nos pés calçava
614
uma sandália de couro marrom. Como as de Caliel,
suas asas também estavam expostas.
– Caliel, Haziel! Posso ir aí?
Os dois anjos olharam para baixo e avistaram
Aron os encarando com seus novos olhos azuis,
resplandecentes.
– Venha! – Caliel gritou e gesticulou com a
mão.
Aron subiu o pico correndo. Quando chegou
acima do monte, mesmo antes de cumprimentar os
anjos, vislumbrou a imensidão divina do Sexto Céu.
Algo que já tinha feito muitas vezes.
Milhares de legiões de anjos plainavam dentre as
nuvens brancas como algodão. O céu azul claro
tinha um brilho próprio. O solo era colorido em
milhares de tons, sendo que o predominante era o
rosa. No meio do terreno infinito, corria um grande
rio também infinito, prateado. Este que seguia
cortando o solo até o fim do horizonte, onde
começava a raiar uma gigante estrela branca. Muito
maior do que o Sol terrestre.
– Chegaram a uma conclusão? – indagou Aron
sorridente, mas seu cenho franzido demonstrava
certa preocupação.

615
Caliel sorriu e encarou Aron por três segundos,
antes de colocar a mão em seu ombro e dizer:
– Ao dormir da estrela branca!
O humano arregalou os olhos e olhou para
Haziel. O louro inclinou a cabeça sorridente.
– Então é amanhã?
– Vamos dizer que sim! – afirmou o anjo que
agora era metade guardador, metade guerreiro. –
Temos apenas que falar com alguém antes.

***

Haziel, Caliel e Aron entraram no grande salão


de mármore azul claro. O templo de Bariel. O
primeiro comandante estava sentado em seu robusto
trono branco, ao final do tapete dourado que cortava
o salão. Seus cabelos prateados agora tinham um
tom azulado devido às paredes da construção. Três
pilares de cada lado seguiam do começo até o final
do grande salão, com cerca de trezentos metros de
comprimento. Sua altura também era grande, tanto
quanto um prédio humano com vinte andares. Entre
uma viga e outra, próximos às paredes,
posicionavam-se dois anjos guerreiros, totalizando
oito no enorme espaço. Ambos tinham armaduras
616
semelhantes, prateadas. Única coisa que as diferia
eram as pedras na cor de seus olhos que ficavam no
centro do peitoral.
Rapidamente os três alcançaram o primeiro
comandante, atravessando o grande tapete dourado.
Sua feição era séria. O trio meneou a cabeça quase
que juntamente.
– Digam – disse Bariel diretamente.
Haziel deu um passo à frente fazendo com que
suas lustrosas asas balançassem.
– Senhor! Temos permissão para prosseguir com
o plano após o dormir da estrela branca?
Bariel penetrou seus olhos nos de Haziel,
abaixando as sobrancelhas. Um momento de silêncio
pairou no salão.
Um pouco atrás, Aron sentia um formigamento
na cabeça. Caliel, ao lado, podia ver seus lábios
tremendo.
– Fique calmo, Aron. Vai dar tudo certo! – disse
o ruivo, cochichando.
– É o que eu espero! – Aron estreitou os olhos. –
Por que ele não fala nada?
– O Primeiro gosta de fazer suspense. – O
sorriso de Caliel foi tão maravilhoso que Aron se
tranquilizou no mesmo momento.
617
Depois de quase um minuto, Bariel indagou:
– Como vocês pretendem fazer isso?
Gesticulando com as mãos, Haziel contou nos
dedos ele, Daniel e Caliel para chegarem ao inferno.
Para isso utilizariam o poder de esconder a energia
de Caliel. Bariel franziu as sobrancelhas e abriu mais
o olho direito.
– Você acha que vale a pena arriscar tudo?
Aron apertou os punhos nesse momento e disse
com tom alto:
– É claro que vale a pena arriscar!
Bariel se levantou do trono e deu alguns passos à
frente, ficando a apenas dois metros de Aron.
– Só se dirija a mim quando eu lhe perguntar
algo, humano.
Aron apertou mais forte os punhos, mas ficou
calado após Caliel colocar a mão em seu peito.
– Perdoe-o Primeiro. Ele não sabe como agir.
Creio que seu desespero nesse momento seja
insuportável.
Bariel deu-lhes as costas e começou a andar para
a lateral do salão dizendo:
– Façam o que quiseram, mas saibam que não
aprovo isso. Uma missão é uma missão. Duas? – Ele

618
entrou em uma porta de pedra com cerca de quatro
metros de altura, batendo-a forte em seguida.
– Pelo menos conseguimos, depois de dois
meses. – Aron apontou, com a cabeça, para a porta
onde passou Bariel.
– O primeiro comandante é difícil, mas ele
entenderá a importância disso uma hora – disse
Caliel.

***

Não muito longe dali, próximo ao palácio


central.
– Daniel! – alguém o chamou.
Enquanto ele organizava sua nova roupa, que
inclusive estava odiando, tentando prender aqui e ali,
respondeu:
– Diga, Barrattiel.
– Você vai mesmo para o inferno?
– Por que me pergunta isso? – Olhando
fixamente para Barrattiel, Daniel parou o que fazia.
– Me sinto ansioso sobre isso!
– Como ansioso?

619
O grandalhão respirou fundo, deu a volta na
fonte central de águas coloridas e chegando mais
próximo de Daniel, disse:
– Eu tenho medo de perder vocês nessa. – Ele
tinha o olhar triste. – Como podemos saber que isso
de esconder a energia de Caliel ajudará vocês
também?
Daniel se aproximou mais dele, tendo que
inclinar um pouco a cabeça para cima. Colocando a
mão em seu ombro, soltou:
– Eu prometo que acabarei com mais chifrudos
do que o necessário em sua homenagem. E se a
nossa energia não puder ser escondida – Daniel
respirou fundo –, teremos que ser mais cautelosos,
para inibi-la o máximo possível.
Barrattiel sorriu, evidenciando seus olhos
escuros e jogou Daniel para cima algumas vezes.
– Tá bom, tá bom. Pode parar!
Barrattiel colocou Daniel no chão, mas
continuou esbanjando sua felicidade.
– Acho que eu quero ir também – disse ele
pulando, socando o próprio punho.
– Não! Temos que ser cautelosos e você se
conhece. – Daniel tentava prender um lacre da veste

620
que havia se soltado quando Barrattiel o jogou para
cima. – Por que isso não fica preso? – resmungou.
– Daniel! – entrou correndo, naquela parte do
pátio, um anjo guerreiro com a aparência de um
menino de dezessete anos. – Tenho uma mensagem
de Mazarak. – A pele clara, os cabelos negros e os
olhos azuis os faziam parecer um felino.
– Aladiah! – Com os olhos arregalados, Daniel
pediu que ele dissesse.
– Ele vai ao inferno com vocês.
Barrattiel estapeou as mãos de emoção,
assustando os outros. Eles o olharam fazendo com
que seu rosto ficasse rubro.
– Vocês não podem me julgar. Mazarak é uma
grande ajuda – disse o grandalhão um tanto tímido.
– Não, não podemos, Barrattiel. – Daniel deu um
risinho e depois se dirigiu a Aladiah: – Como você
recebeu essa mensagem?
– Ele está fora do grande portão. – O anjo de
aparência jovem apontou com o dedão para qualquer
lugar.
Daniel arqueou as sobrancelhas e expôs as asas,
explodindo o ar em volta, deixando os outros dois
anjos para trás.

621
***

Daniel percorria o Sexto Céu a toda velocidade,


deixando apenas vultos de grandes monumentos e
nuvens para trás. Muito longe, tão longe quanto a
Lua da Terra, Daniel visualizou a titânica entrada
para o Sexto Céu. Não parecia possível, mas ele
aumentou sua potência no voo e disparou com uma
velocidade cem vezes maior do que de uma nave
humana. Nas regiões celestes, os anjos obtinham
muito mais poder. Quanto mais próximos de Deus,
maior sua pujança.
Após alguns minutos, ele começou a se
aproximar do portal, uma grande construção
arqueada de mármore. Milhões de pedras preciosas
rodeavam sua casca. Luzes coloridas lampejavam
por toda a estrutura. Seus dois pés estavam presos a
uma imensidão de nuvens, que por seus
movimentos, pareciam vivas.
Ele seguiu em direção ao grande arco que cada
vez parecia maior à sua aproximação. Quando
plainava sob a construção, podia ver que ela se
erguia a milhares de quilômetros de altura. Naquele
momento, lembrou-se de quando as milhares de
622
legiões angélicas, com milhares de anjos cada,
entravam por aquela porta, após vitórias em batalhas
sangrentas. Os clamores eram estridentes. Sempre.
Após atravessar os quilômetros que sustentavam
aquela estrutura colossal, ele avistou Mazarak. O
duque de Lúcifer plainava com suas asas negras
sobre as nuvens vívidas.
– Vejo que o guardião te entregou meu recado. –
O duque repuxou um breve sorriso.
Daniel se aproximou do irmão de espírito e lhe
deu um abraço. Mazarak lhe retribuiu.
– Por que você não foi até mim?
– Você sabe por quê! – O anjo com asas negras
baixou as sobrancelhas e se virou.
Daniel plainou dando a volta em seu corpo e
ficou novamente de frente para ele.
– Você sabe que é bem vindo para vir aqui
quando quiser, ou mesmo para ficar aqui.
– Eu não enxergo dessa maneira.
– Então como você enxerga, irmão?
Duas rajadas leves das asas negras antes que
Mazarak dissesse:
– Eu fiquei exilado por mais de cem mil anos
por culpa deles.

623
Daniel ficou mudo e Mazarak acrescentou,
cortando o assunto:
– Afinal. Você vai querer a minha ajuda?
Daniel abriu um sorriso e colocou a mão no
ombro do irmão.
– Sempre, irmão. Sempre! – Inclinando a cabeça
um pouco para baixo, Daniel indagou: – Vem
comigo?

***

A estrela branca ocupava o centro do Céu.


Haziel, Caliel e Aron se dispunham sobre um tapete
de grama verde. Alguns animais rodopiavam no ar e
brincavam por todos os lados. Um chamou a atenção
de Aron. Era um coelho com asas. As asas eram
grandes e em vez de penas, tinham pelos brancos.
Súbito, Aron sentiu um grande tremor, quase como
um terremoto. Ele arregalou os olhos encarando
Caliel, assustado. Ambos os anjos riram. De repente,
uma grande criatura submergiu do tapete de grama.
Era uma grande baleia azul. Ela subiu e caiu como
se estivesse no mar, explodindo terra para todos os
lados. Mas logo os destroços se integraram,

624
transformando o solo novamente em um tapete de
grama verde.
– O que é isso? – gritou Aron, assustado.
Os anjos se puseram a rir ainda mais.
– Uma baleia terrestre, Aron. – disse Caliel,
rindo.
Nesse momento, Hariel explodiu o solo ao lado
do humano com sua aterrissagem “delicada”. Isso o
fez cair para trás. Então todos começaram a rir sem
parar.
Um momento se passou.
– Como vocês vão fazer isso? – indagou a loura,
dirigindo-se a Haziel.
– Partiremos daqui a seis estações da estrela
branca, minha irmã.
– Não é mais fácil você dizer seis horas? –
resmungou Aron enquanto se levantava, emburrado.
– Irão apenas você, Caliel e Daniel? Barrattiel
não irá?
Aron gritou do fundo que também iria, mas
ninguém lhe deu atenção.
– Barrattiel não vai, mas quanto a irmos apenas
nós três, creio que não – disse o louro, olhando para
cima.

625
Hariel olhou juntamente para o local e eles
puderam avistar Daniel se aproximando. Mazarak
voava ao seu lado rajando suas plumas negras.
Ambos pousaram, assustando Aron novamente.
Mas dessa vez o humano não caiu. Logo Daniel
disse:
– Temos reforço.
Haziel deu dois passos e parou na frente de
Mazarak, colocando a mão em seu ombro.
– Um grande reforço – disse o louro, sorridente.
Naquele momento Aron teve um pensamento:
Daniel e Mazarak eram idênticos. A não ser pelo
fator dos olhos, das asas e pelas tatuagens no corpo
do duque. Olhando Hariel, reparou que ela era
idêntica a Haziel, mas que era apenas sua versão
feminina. Ele achou isso fabuloso, principalmente
no mundo angelical. Nunca imaginou que isso
pudesse acontecer também naquele mundo. Não que
ele pensasse nisso antes de tudo acontecer.

***

Os olhos do humano lampejavam mais do que o


costume naquele momento. Estava sentado sobre
uma grande rocha que se erguia no meio de um
626
morro verdejante. Sua mente estava no lugar que
pelos últimos dois meses visitou todos os dias. Pôde
ver, acima de sua cabeça, um grande bando do que
pensou serem aves. Essas criaturas dançavam,
formando sincronias incríveis e belas. Só quando
uma delas desceu em rasante e plainou como um
beija-flor, alguns centímetros na frente de seu rosto,
que ele percebeu que se tratava de miniaturas de
gatos coloridos. Os olhos mais esbugalhados do que
o normal o encaravam amigavelmente. A pupila
escura que ia de uma ponta a outra nos olhos
naturalmente nos felinos, nesse animal com asas
tinha o formato diferente. Assemelhava-se ao
desenho de uma estrela feito por uma criança.
– Belos animais né, Aron! – O anjo ruivo se
sentou ao seu lado, esticando a mão para acariciar o
animal alado. Este que lhe lambeu o dedo e bateu as
asas para se juntar ao seu grupo.
Aron abriu um sorriso um tanto sem graça.
Caliel percebeu uma lágrima escorrendo do olho
direito do humano. Ele a pegou e a observou.
– Isso foi uma das principais ferramentas para
salvarmos o mundo.
O humano contraiu os lábios e respirou fundo.
Então Caliel indagou:
627
– O que você tem, Aron? Posso sentir que não
está bem! – O ruivo tinha os braços entre as coxas
enquanto as balançava, encarando Aron.
– Saudades, Caliel! Eu sinto saudades! – Uma
breve pausa, enquanto o humano observava os
animais alados se afastando. – Eu não sei quanto a
vocês, mas nós humanos, sentimos muito a ausência
de nossos entes queridos.
Caliel sorriu e disse:
– Você lembra que eu te disse uma vez que nós
somos muito mais parecidos do que você imagina?
Aron concordou com a cabeça. Caliel arregalou
os olhos sem tirar o sorriso do rosto e acrescentou:
– Eu não retiro isso. Eu sei muito bem o que
você está passando – uma pausa –. Tá, não muito
bem. Mas entendo.
– Tudo bem. Eu posso concordar que você –
Aron apontou para Caliel – pode ser parecido com
os humanos. Mas Bariel não é! Caso fosse, não
levaria dois meses para permitir a missão.
– Eu também compreendo esse seu sentimento.
Mas pense que são duas missões em uma e uma
delas teve que esperar a outra concretizar o início da
execução para avançar. – Caliel olhou para a frente e
os dois ficaram observando o horizonte.
628
***

Hekamiah mantinha a sua mesma armadura.


Apenas uma robusta ombreira no ombro esquerdo.
Mas parecia mais viva do que antes. O símbolo
vermelho em seu abdômen foi trocado por um da cor
dourada. A calça branca do mesmo tecido leve,
agora estava limpa. Suas espadas com dentes
disformes estavam em suas costas, presas no couro
divino.
O anjo estava na frente de seu aposento, sentado,
com as asas guardadas. Um grande banco de granito
branco absoluto o recolhia como um abraço.
Olhando à frente, ele avistou Hariel se aproximando,
balançando suas asas para trás e para frente. Logo a
loura chegou e disse:
– Preciso conversar com você, Hekamiah.
– Diga, Hariel. – O anjo se levantou e beijou sua
mão, sorridente.
Ela meneou a cabeça e agradeceu a gentileza.
– Você acha que as especulações são
verdadeiras?
– Eu sinto que sim!

629
– Temos que nos preparar então. – Ela piscou
duas vezes rapidamente.
– Hariel, eu sempre estou preparado!
– Ótimo! Eles partirão em três estações da
estrela branca.

Fim do primeiro capítulo...

Lançamento do livro 2 da série “Anjos do


Apocalipse”, dia 15 de junho de 2020

Instagram do autor
@arleymrfranca

Skoob de Domínio Espiritual


https://www.skoob.com.br/a-guerra-dos-anjos-
531581ed540121.html

Agora para finalizar


Abaixo um conto ambientado no mundo da série.
Boa leitura!

630
Um conto de Kabarú
20.000 a.C

631
Em tempos em que nem a torre da Babilônia
havia sido erguida, ou as pirâmides do Egito sequer
tivessem o privilégio de serem pensadas, o império
Romano demoraria pelo menos duas décadas para
colonizar aquelas regiões, ou mesmo para existir. As
águas do mar mediterrâneo, que não era conhecido
por esse nome, lambiam a costa das terras que um
dia seriam chamadas de Argélia. Em um vilarejo
com poucas pessoas, existia um líder que porventura
dominava as artes do xamanismo. Estava inerte em
sua barraca sem se alimentar e sem beber água há
onze luas cheias. Disse que era um culto necessário
para que pudesse viver mais tempo. Mas aquilo na
verdade era apenas um sacrifício que Kabaru fazia
em próprio benefício. O anjo renegado vivia na
Terra desde a queda dos anjos e de tempos em
tempos, precisava se mudar para não chamar atenção
em função do seu não envelhecimento. Naquela
época, existiam vampiros e ele não queria ser
confundido com tais criaturas.
Há onze luas cheias, o anjo estava inerte, sob a
632
barraca construída com madeira reforçada e forrada
com folhas secas, para proteger-se da chuva. Ele
poderia manter-se ali por quanto tempo fosse
necessário; porém precisava apenas de mais um mês
para convencer sua tribo.
Mas em uma noite, em que a Lua estava quase
escondida sob um aglomerado de nuvens que não se
moviam e em que os lobos uivavam sem parar,
como se aquilo fosse um prelúdio aterrorizante de
uma noite conturbada, Kabaru ouviu, com sua
audição aguçada de um guerreiro, que outrofora fora
celestial, um barulho seguido de galhos estalando
sob as árvores da floresta. Esta que consumia todo o
solo por uma grande região até chegar aos limites da
praia, onde ficava a aldeia. Eram vários pequenos
pedaços de madeira estalando, indicando que a visita
era grupal e sorrateira e não amigável.
O anjo estava nas dependências da Terra, sem
conseguir voltar para o Céu, há cento e trinta mil
anos. Naquele tempo, conhecera quase todas as
coisas que no planeta existiam. Mas como em tudo,
existem coisas novas a serem conhecidas que vão
florescendo e morrendo com o tempo. Ele foi um
dos perseguidores da causa contra o vampirismo nas
terras abençoadas que eram consideradas as terras do
633
planeta Terra. Foi por causa dele que eles foram
extintos e naquela noite o anjo receberia uma visita
do último lampejo de vida desses seres que lhe
custariam muito.
Os barulhos cessaram, ou não eram audíveis
nem para os anjos. Existia a possibilidade de os
visitantes terem ido embora, ou eram mais
sorrateiros do que o esperado. Kabaru preferiu
contar com a primeira opção, confiando 100% em
seus instintos guerreiros. Ele nem se mexia sob o
teto triangular da barraca, e por vezes era visitado e
honrado por homens de sua tribo que o reconheciam
como o melhor deles, ou talvez o melhor do mundo.
O Deus na Terra. Deixavam oferendas e
sussurravam seus cotidianos, com a esperança de
que mesmo imerso em seu mundo, o xamã pudesse
estar ali por eles. Mas isso não aconteceu naquela
noite e nem na manhã seguinte. Nem uma pessoa lhe
visitando. Isso nunca tinha acontecido nas últimas
onze Luas.
Kabaru prestou mais atenção ao externo da
cabana, onde o sol batia, mas nem os pássaros ele
pôde ouvir. As ondas batiam sutilmente nas pedras e
lambiam a areia cristalina da praia. O coração do
anjo petrificou-se, pois só poderia haver uma
634
possibilidade. Um lampejo de ansiedade lhe fez abrir
os olhos e saltar para fora da barraca. Todas as
outras cabanas estavam intactas, porém com suas
fogueiras apagadas. Ele correu até a primeira delas e
entrou pela porta sem medo de que fosse visto. A
cena de horror lhe tomou ao ver homem e mulher
degolados. Foi um trabalho carniceiro, rápido.
Correu para a próxima barraca e o resultado foi o
mesmo, com todos os homens, mulheres e crianças
da tribo, mortos como animais e deixados para
apodrecer. Ele saiu ao meio da clareira e caiu
ajoelhado, gritando para Deus, enquanto as lágrimas
lhe cobriam o rosto.
Ficou ali por diversas horas, chorando e rezando
para Deus, pois sabia que aquilo tinha sido obra do
oposto de Deus. Uma raça terrível do inferno que
assolava o planeta por milênios de anos. Mas que
seria seu fim, pois ele não mais permitiria que
nenhum daqueles seres bebedores de sangue andasse
sobre a Terra.
Levantou-se e rasgou a veste superior, deixando
evidentes suas tatuagens feitas com ferro ardente.
Soltou os cabelos negros que lhe caíam sobre os
ombros e em seguida explodiu suas asas
branquíssimas com um lampejo de luz dourada. Ele
635
as rajou e foi arremessado às alturas, em uma
velocidade incrível.

O anjo sobrevoou uma região coberta com águas


salgadas, passando por um vulcão que cuspia
fumaça clara. Seu corpo fazia as nuvens se
movimentarem pelo excesso de velocidade em que
passava rajando suas asas. Atravessou mares e
montanhas, florestas e riachos, até começar a plainar
sobre uma região em que ele sabia onde estariam
suas presas. O cheiro podre delas era terrível, pois
eram demônios sanguinolentos, vampiros
consumidores do sangue humano. Kabaru plainou
como uma águia, tentando avistar de longe e quando
os viu, bateu as asas e as espremeu contra o corpo,
descendo como uma seta em velocidade
descomunal.
O chão de terra seca tremeu e levantou
fragmentos, quando o anjo pousou com um dos
joelhos sobre ele e a palma estendida. Mesmo
durante o dia, tochas grandes queimavam nos limites
daquele terreno ocupado por entidades demoníacas.
Foi de uma hora para outra, e ele estava rodeado por
essas criaturas. Não eram assim tão diferentes dos
636
humanos, ou dos anjos, pois um dia eles foram um
deles. A pele era quase branca, com a impressão de
nunca correr sangue ali. Os olhos eram vermelhos
como se houvesse toda a concentração do sangue do
corpo naquela região, deixando a retina
completamente evidente sobre um mar rubro.
Tinham presas e garras maiores, porém sutis e
mortais.
Só naquele anel em volta do anjo, tinha mais de
cinquenta deles. Raivovo, o primeiro, partiu para
cima de Kabaru e voltou para trás por um soco,
acertando o restante do grupo e derrubando-os. Mais
dois seguiram para atacar o anjo, mas ele acertou sua
barriga com um chute lateral e derrubou o outro ao
solo com uma cotovelada de cima para baixo. Ele
tinha poder e técnicas de combate, além de ser mais
rápido do que os vampiros. Ele saltou e rodou a
perna, derrubando três deles de uma vez e quando
caiu no solo, acertou com o calcanhar o crânio de
outro vampiro. Naquele momento, todos os infernais
já corriam em sua direção para tentar agarrá-lo. Mas
como um furacão, distribuindo chutes e socos
vorazmente, não conseguiam nem chegar perto.
– Vocês se arrependerão para sempre por terem
mexido com a minha gente! – ele gritou, enquanto
637
acertou mais de cinco deles no tempo da frase e
assim continuou os golpes enquanto desabafava. –
Eu caí com vocês, meus irmãos traiçoeiros. Mas foi
um erro, pois vou achar uma forma de voltar ao Céu.
Em dado momento, Kabaru já estava satisfeito
com tantos socos que lhes acertara e em um quarto
de segundo, ele juntou as duas mãos, os dedos
cruzados, com exceção dos indicadores que estavam
colados e apontados para cima. Seu corpo virou uma
bomba que irradiou uma onda azul de choque,
destruindo todos os seres à sua volta, fazendo-os
explodir suas entranhas em pleno ar. Em volta do
anjo, ficou marcada no solo uma cratera de terra
mais escurecida.
Os vampiros já estavam quase extintos e sendo
aquele grupo o último deles, estavam mais ferozes
do que nunca, destruindo todas as tribos em volta da
sua. Mas nunca mais isso iria acontecer, pois na
história houve um anjo caído que extinguiu toda a
raça deles.
Kabaru avistou um deles agachado, rosnando
sobre o braço que lhe tapava os olhos. A energia não
chegou até ele, mas era um monstro e tinha restado.
Não temeroso a Kabaru, ele saltou para dentro da
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cratera ao mesmo tempo em que o anjo caminhava
até ele com as asas balançando. Mas o vampiro
corria e logo começou a correr com os quatro
membros, ganhando mais velocidade, com a
intenção de empoderar seu ataque. Ele saltou a dez
metros de distância do anjo e esticou os braços, as
garras abertas como um tigre dentes de sabre.
Kabaru esticou o braço e com um solavanco em que
seu corpo sacolejou, grudou em seu pescoço como
se este fosse um boneco. Em seguida, trouxe-o para
bem perto de seu rosto, encarando seus olhos com
fúria, enquanto a criatura lhe arranhava o corpo. Ele
fechou o punho e acertou a cara do monstro uma,
duas, na terceira vez sua mão se afundou nas
entranhas do crânio do vampiro. Ele o trouxe de
volta vendo pedaços de carne caindo no chão e
soltou o corpo que caiu da mesma maneira em que
ficou até que animais viessem e dilacerassem sua
carne até os ossos.

639
FIM

640

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