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A fazenda dos animais

Por Denise Bottmann

Creio que uma das áreas a que melhor se aplica o sapientíssimo dito “Ninguém é dono da
verdade” é, provavelmente, a tradução. E a infindável variedade de seus frutos é o que faz da
tradução algo tão interessante e fascinante.

Assim é que Animal Farm, a fábula escrita por George Orwell nos idos dos anos 40, pode ser
lida em Portugal e no Brasil sob diferentes títulos: A quinta dos animais, O porco triunfante, O
triunfo dos porcos, A revolução dos bichos e, last but not least, A fazenda dos animais.

De meu ponto de vista, um elemento útil para me nortear no oceano relativista em que nós
tradutorxs podemos navegar – e talvez, ou não, nos afogar – é o original. Não ouço
mentalmente nenhuma voz clamando para que me afaste de um claro e singelo Animal Farm: A
fazenda dos animais, sem maiores problemas nem grandes dúvidas. Aí alguém pode objetar:
“fazenda”? Melhor “sítio” ou “granja” ou “herdade”… Tenho lá minhas razões para preferir
“fazenda” – mas que seja, não vou ficar brigando por causa disso.

Até aí, é simples. Mas, atendo-nos ao título mais usado no Brasil – A revolução dos bichos –,
fico um pouco confusa, em primeiro lugar, com “bichos”. Que bichos, gente? Pois, quanto a
isso, a grande questão é que Orwell estabelece muito cuidadosamente, muito
meticulosamente, muito sistematicamente, uma divisão do reino animal dentro da obra. E a
estabelece adotando uma terminologia muito específica e constante ao longo de toda a sua
fábula.

Vejamos, pois. Por animals ele designa única e exclusivamente o que chamamos de animais
domésticos, de trabalho, criação e reprodução: vacas, cavalos, cabras, ovelhas, porcos,
galinhas, gansos, pombos. Aram as terras, puxam carroças, pisam o trigo, fornecem ovos,
servem de reprodutores e assim por diante. Note-se – e isso é bonitinho – que também há
entre eles uma gata: ela vive fugindo ao trabalho, mas os outros animais não se zangam com
sua mandriice porque, quando aparece depois das jornadas de trabalho, é sempre muito
meiga, carinhosa e afetiva. Ou seja, entre os animais domésticos inclui-se também o que
chamaríamos de animal de estimação (não de trabalho, criação etc.). Além da gata, há os
cachorros, também incluídos entre eles na função de cães de guarda, de pastoreio e mesmo de
caça. Esses são os animals orwellianos.

E os outros? Os ratos, os coelhos do mato, os pardais? Orwell nunca, nunca os trata como
animals: são wild creatures, não domésticos e sim silvestres. Aliás, é muito interessante que,
depois de expulsos os homens e instaurado o novo regime – animal – na fazenda, um dos
líderes, o porco Bola de Neve, cria “o Comitê de Reeducação dos Camaradas Silvestres (o
objetivo desse comitê era domesticar os ratos e os coelhos)”, para integrar as wild creatures à
sociedade animal – que a iniciativa não tenha dado muito certo, são outros quinhentos.

E, por fim, temos beasts: aqui, sim, eu diria “bichos”. Com o termo beasts, Orwell abarca a
totalidade dos seres animais, domésticos e silvestres. Daí a importância da canção Beasts of
England, que se torna por algum tempo o hino da nova sociedade animal: todos os seres
animais, os domésticos e os silvestres, nele se congregam. Aliás, logo no começo, quando o
Maioral começava a organizar os animais da fazenda, havia até algumas dúvidas se os bichos
do mato, as criaturas silvestres, seriam considerados “camaradas” dos animais domésticos.
“Os bichos do mato, como os ratos e os coelhos, são amigos ou inimigos nossos? Vamos pôr
em votação. Faço a seguinte pergunta à assembleia: os ratos são camaradas?”. Sim, foram
considerados camaradas quase por unanimidade (e vale notar que apenas os cachorros
votaram contra: afinal gostavam de perseguir os ratos e acompanhavam os homens na caça às
lebres).

Bem, a questão central é que animals, wild creatures e beasts designam coisas diferentes, de
abrangência e interrelações bem específicas. Posso em sã consciência tratar
indiscriminadamente os termos? Falar em “bichos” para me referir especificamente aos
animals? Ou, inversamente, falar em “animais” para me referir especificamente às wild
creatures? A meu ver, creio que não. Se Orwell fez assim, tinha lá suas razões para isso – as
quais, aliás, ficam muito claras durante a leitura do texto. Assim, não entendo como eu poderia
falar em Fazenda dos bichos ou, ainda menos, em Revolução dos bichos. Repisando, não
foram as beasts que se rebelaram, foram apenas os animals.

E os animais não fazem uma revolução: os animais se rebelam, se levantam numa rebelião.
Não têm qualquer programa revolucionário, a não ser aspirações de tipo cooperativista e
autogestionário de longo prazo. Mobilizam-se por insatisfação, rebelam-se contra a opressão:
que essa rebelião coletiva depois resulte numa nova situação, cujo comando virá a se
concentrar progressivamente num número cada vez mais restrito de animais, é outra história.
Dá-se a rebelião, mas não se implanta concretamente qualquer tipo de coisa que se assemelhe
às aspirações que acompanhavam a rebelião: e é esse é o drama da coisa.

A propósito, é o papel fundamental dessa mobilização pessoal contra a opressão que Orwell
deixa tão claro em relação a si mesmo, no famoso prefácio à edição ucraniana: “Tornei-me pró-
socialista mais por horror à opressão e ao descaso a que estava submetida a parcela mais
pobre dos operários industriais do que por qualquer admiração teórica por uma sociedade
planejada”. É esse elemento subjetivo, a profunda insatisfação com o status quo, amparado em
outro elemento subjetivo, o sonho com um mundo melhor, que leva os animais da Fazenda do
Solar a se erguerem contra a situação, e não uma adesão a um projeto revolucionário
específico ou pré-elaborado. Não à toa, jamais, em momento algum encontramos o termo
revolution em Animal Farm; é sempre, única e exclusivamente, rebellion. A única vez em que
encontramos algo similar a revolution é um derivado: o adjetivo revolutionary, tratado como
algo descabido, quando o porco Napoleão se reúne com um grupo de fazendeiros humanos e
declara, em discurso indireto citado: “Por muito tempo circularam rumores – divulgados … por
algum inimigo malévolo – de que havia algo de subversivo e até de revolucionário na posição
dele e dos seus colegas. … Nada podia estar mais distante da verdade!”.

Em suma, em tradução pode-se fazer praticamente qualquer coisa. O que nos dá bússola,
guia, norte, é o texto original. Nada, porém, obriga que o tomemos como bússola, guia ou
norte. Vai de cada um. De minha parte, prefiro me ancorar no autor. E viva A fazenda dos
animais!

Texto originalmente publicado no blog da editora L&PM

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