Você está na página 1de 7

Relatório das atividades de estágio

Estudante: Jefferson Godoy Athaydes, R.A.: 138562


Supervisor(a): Vitor B. Menini
Docente responsável: Prof. Dr. Vicente Rodriguez
Natureza do estágio: EL774-P – Estágio Supervisionado I
Local de realização do estágio: Rede Emancipa de Cursinhos Populares
Carga horária: 90 horas (60 horas práticas e 30 horas teóricas)
Período de realização: De 14/03/2016 a 06/06/2016
Tipo de relatório: Final

Introdução

É sabido que o ingresso na universidade possui um filtro, selecionando


apenas os “mais aptos” a cursarem os mais variados cursos de graduação. Esse filtro
seleciona aqueles que possuem conhecimentos dos mais diversos, e os que conseguem
melhor expressar esses conhecimentos devem prová-lo por meio de um teste, o
vestibular. Também é de conhecimento geral que as escolas públicas possuem diversos
problemas, seja a falta de investimentos, falta de professores, etc. De certo modo, os
alunos dessas escolas, especialmente as mais periféricas, têm um déficit educacional em
comparação com alunos de escolas particulares. E, com mais certeza ainda, em relação
às escolas particulares cujo foco, nos três anos do ensino médio, é preparar o aluno para
prestar a prova do vestibular. Sendo assim, é comum alunos que querem se preparar
para a prova, ou falharam no ingresso à universidade, se matriculem em cursinhos pré-
vestibulares. Contudo, esses cursos em escolas conceituadas são às vezes muito além do
que um aluno sem condições financeiras – o que é o caso de muitos dos que estudam em
escolas públicas – pode pagar. Dessa forma, eles encontram nas iniciativas de cursinhos
populares a oportunidade de ensino e de preparação para o ingresso em uma
universidade.

O estágio foi realizado no cursinho do Emancipa – Unidade Antônio da


Costa Santos, localizado na Unicamp, e que possui duas turmas de vestibulandos,
divididos em uma sala localizada no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e outra
no Instituto de Biologia (IB), e foram acompanhadas as aulas de História. Além das
aulas, foram realizadas entrevistas com alguns alunos a fim de compreender o perfil
socioeconômico, a sua escolaridade e a de sua família, assim como analisar suas
trajetórias escolares, suas particularidades e similaridades. A escolha do cursinho
popular como local de estágio se deu pela sua particularidade dentro do meio escolar:
um cursinho voluntário em que os professores são alunos de graduação e que trabalham
para ajudar pessoas vindas de escolas públicas a entrar em uma universidade. Dessa
maneira, o cursinho foge um pouco da hierarquia escolar clássica constituída em escolas
da rede municipal e estadual, em que há uma estrutura escolar rígida formada pela
administração escolar e pelo corpo docente de um lado, e de outro os estudantes.

É necessário afirmar, assim, que o ingresso dos estudantes no cursinho é


aberto para pessoas provenientes tanto de escolas públicas quanto privadas, com
formação ou sem formação. Contudo, a prioridade do ingresso se dá a estudantes vindos
de escolas públicas, confirmando o compromisso social do cursinho popular. O seu
estatuto, além disso, propõe que a construção do projeto político e pedagógico não se
limite apenas à preparação do aluno para o vestibular, mas também

que possibilite à juventude um espaço inovador de debate,


criação e recriação do saber acerca do mundo e da vida. Neste
projeto se engajam estudantes universitários, secundaristas,
professores do ensino básico, professores e estudantes da Rede
Emancipa, família, associação de bairro, comunidade e todos
que queiram construir uma educação democrática e
emancipatória1
Dessa forma, o cursinho popular busca possibilitar aos alunos não somente
o acesso a uma universidade, mas também a experiência e a construção de um ideário de
cidadania.

Disposição física

No que diz respeito à disposição física as duas salas do cursinho são iguais
àquelas usadas pelos alunos de graduação dos dois institutos em que elas se encontram.
É importante ressaltar que o espaço reservado às aulas é disponibilizado pela direção
dos institutos em negociação anual com os coordenadores do cursinho. Elas possuem as
carteiras enfileiradas, indo de um lado a outro da sala, uma mesa do professor, sua
cadeira, e a lousa à frente. Podemos notar que a sala localizada no IB é
1
Estatuto, p. 1
consideravelmente menor, mais apertada, e a lousa é também mais estreita, em
comparação à lousa da sala do IEL que possui duas divisões corrediças mais um quadro
branco. Ambas as salas possuem Datashow, permitindo uma maior possibilidade de uso
de materiais multimídia nas aulas. Devido à localização na Unicamp, as cantinas
utilizadas nos intervalos são as mesmas que os alunos da universidade utilizam.

Perfil dos alunos e dos familiares

Podemos notar, através das entrevistas, algumas características que são


compartilhadas pelos alunos do cursinho popular. A grande maioria está em torno de
18-22 anos e possui ensino médio completo, sendo alguns desses com ensino técnico. A
renda familiar gira em torno de 3 a 4 salários mínimos quando pai e mãe constituem o
núcleo familiar, enquanto, quando somente a mãe é presente, a renda cai para,
aproximadamente, um salário mínimo e meio. A escolaridade dos pais, também, não
chega a ultrapassar o ensino médio completo, sendo algumas exceções em que um dos
familiares, em geral o do sexo masculino, possui ensino superior completo ou
incompleto. As profissões dos familiares e dos próprios alunos refletem essa baixa
necessidade de escolaridade. Muitas das mães trabalham como domésticas, enquanto
outras são donas de casa. Os pais já possuem profissões variadas, como motorista,
porteiro, operador de máquinas, mestre de obras, entre outras. Alguns alunos trabalham,
também em profissões que não exigem qualificação, enquanto outros apenas estudam.

Experiências escolares

Podemos notar nos depoimentos o diferente sentido que os alunos dão ao


cursinho quando comparam com sua anterior experiência escolar. Os depoimentos
citam, especialmente os anos do ensino médio, como aqueles em que são os mais
defasados, sendo a falta de professores e o péssimo ambiente escolar exemplos
recorrentes. Questões como a disciplina escolar (ou a falta de disciplina) e a relação
com a qualidade do ensino são também evocadas nos depoimentos.

Também podemos notar algumas falas que afirmam até mesmo os


problemas da evasão escolar e como isso afetou e afeta a sua vida até hoje. Uma das
entrevistas mais é com uma aluna, antiga moradora de assentamento, que só conseguiu
ter acesso à educação formal aos 12 anos de idade:

Aluna 1: (...) Eu fui mudar pra cidade quando minha mãe tinha
engravidado da minha irmã mais nova, porque ela não tinha
condições mesmo de uma mulher grávida ficar lá. Ai a gente foi
morar com meus avós que ficavam na cidade, mas era uma
cidade que não chegava... não tinha nem 10 mil habitantes, era
Alta Floresta mesmo. E lá comecei a estudar, num colégio.
Comecei as estudar muito velhas e tinha quase 12 anos, e aí...
Entrevistador: Foi quando você começou a estudar?
Aluna 1: Foi quando eu comecei a estudar. Aí eu fiquei fazendo,
ah, tinha o prézinho naquela época ainda. Aí eu fiz em seis
meses, aí eu fiz a primeira série em seis meses também, e foi
assim. Meu pai era caminhoneiro e ia aonde tinha trabalho. E
ficava sempre se mudando. Morei em Curitiba, depois de...
fiquei estudando lá em Alta Floresta, depois aos 13 anos morei
em Curitiba. Ai em Curitiba eu também fiz a quinta e a sexta
série completa. Aí eu parei de estudar de novo porque meu pai
ficou se mudando, aí ele veio pra cá.
Seu depoimento ressalta também o trabalho realizados por Ensinos de
Jovens e Adultos (EJA), além do próprio cursinho popular, na sua “recuperação”:

Aluna 1: Eu fui pro EJA pra me recuperar daquele ensino


fundamental, assim, terrível que eu tive. Depois eu vim pro
cursinho pra me recuperar do EJA que eu fiz, assim, sétima,
oitava, primeiro, segundo e terceiro em dois anos e meio. Então,
a minha vida, assim, na escola, é sempre de muita recuperação.
Dessa forma, podemos constatar que o cursinho se esforça para cumprir
aquilo que está definido em seu estatuto: o acesso dos estudantes a uma cidadania que, a
meu ver, se dá pelo acesso a uma educação de qualidade. Outros depoimentos atestam
essa visão. Quando perguntando o que seria, para ele, um cursinho popular, o aluno
respondeu:

Aluno 1: Eu acho uma boa construção de que possa dar uma


outra vertente de caminho além do que a gente pode ver como a
universidade. Não somente porque, assim, diferente dos
cursinhos pagos, além da questão do conhecimento pro
vestibular, enfim... Eu acho que por ser um cursinho popular,
por ter essa construção de pessoas que saem de suas áreas
muitas vezes mais distantes e tal, eu acho que, e também há um
espaço de... Cursinho popular também é uma discussão, abrir
discussões políticas também, discussões sobre a própria
sociedade, como... Por cada um já também ter muitas vezes essa
vivência. Então eu olho com esse outro aspecto também, não
somente a parte do vestibular, mas também algo bem mais
abrangente.
Logo, o debate sobre a atualidade, o debate político, em suma, as discussões
sobre o mundo que cercam o estudante e que, de certa maneira, fogem ao espectro
estrito da preparação para o vestibular, também encontram seu lugar e encontram a
aprovação do aluno. Para eles, o cursinho popular é um lugar de auxílio, mas também de
oportunidade de atingir objetivos e de desenvolvimento pessoal:

Aluna 2: Ah, acho que é mais uma oportunidade, porque, assim,


falando por mim, eu não teria condição de estar pagando um
pré-vestibular, e também não teria condição de sozinha, pelo o
que eu passei nas minhas escolas, eu também não teria condição
de entrar, por exemplo, eu quero entrar aqui na Unicamp. Eu
acho que eu não teria base suficiente para entrar. Então, acho
que é uma... uma... uma porta bem, sabe, pra gente conseguir ter
o acesso ao estudo e se aprofundar pra conseguir alcançar o que
a gente quer.
A relação com os professores é também vista, em algumas das entrevistas,
como próxima e acessível. Mais ainda, podemos constatar que há uma clara
diferenciação entre os professores das antigas escolas e os professores do cursinho.
Aluna 3: Acho que o cursinho faz a gente acreditar na gente
mesmo. Tipo, vão, gente, vocês conseguem, tal. Você tá meio na
bad o professor vem e conversa com você. Eles falam das
experiências dele, a gente troca experiência, sabe? E, tipo, você
vê que eles são que nem você, sabe? Não é uma pessoa a mais,
são pessoas tipo, super... a pessoa que você acha , tipo super
poderosa, nariz empinado e tal.
Entrevistador: Não há uma hierarquia.
Aluna 3: É! Eu sou tipo que nem você, sabe? Posso passar pelas
mesmas dificuldades, só que agora ele só tem mais experiências
e sabe das coisas (...).
Compreendo, com isso, que o fato do professor do cursinho popular não ser
um cargo oficializado, ligado à burocracia e à administração de uma escola, colabora
para que haja uma aproximação entre eles e os alunos, permitindo uma maior troca de
experiência e, consequentemente, abrindo maiores oportunidades para que haja um
intercâmbio de conhecimentos.

Acompanhamento das aulas


Compreendendo que o objetivo deste relatório não é analisar tão
profundamente o conteúdo ministrado pelo professor, buscarei levantar algumas
observações sobre como ele discute certos assuntos em sala de aula.

É sempre presente na aula de história do Brasil a crítica a termos


comumente utilizados em sala de aula como, por exemplo, “invasão” ao se referir às
conquistas islâmicas na península ibérica a partir do século VII. Além disso, o professor
também discute as experiências colonizadoras de Portugal e a sua relação com a
escravidão. Portugal teria entrado em um mercado já existente, mas isso não o redimiria
da culpa, já que as dinâmicas da escravidão africana são diferentes daquela perpetradas
pelos portugueses nas Américas.

Alguns momentos também foram curiosos. Em uma aula sobre o Brasil


Holandês, o professor avisa em uma das salas para não rir e que não se deve fazer
piadas com escravos. Surpreendentemente, a sala ri disso, falando que quando ele diz
para não dar risada é quando dá mais vontade de rir. Já o contrário acontece na outra
sala. O mesmo aviso é dado e a sala não reage, e debate com o professor. Perguntei para
ele o porquê da diferença e ele disse que, provavelmente, deve ser porque na segunda
sala existem mais veteranos do cursinho, que já passaram pelas discussões promovidas
pelos vários professores.

Mas importante foi uma das aulas, após a votação sobre o processo de
impeachment na Câmara dos Deputados, em que o debate não foi sobre a história do
bandeirantismo, mas sim sobre a situação atual do país. Isso deixa claro, mais uma vez,
o papel de acesso à cidadania e o desenvolvimento da capacidade crítica que o cursinho
popular desempenha. Mais do que passar no vestibular, é importantíssimo discutir o
mundo à sua volta para que sejam formados cidadãos.

Considerações finais

A experiência de acompanhar as aulas no cursinho do Emancipa é


gratificante e recompensadora. Eu já estudei em escolas públicas no ensino
fundamental, participei do programa do PIBID e, agora, assisto as aulas nesse cursinho
popular. Ter contato com alunos que não têm condições de pagar um pré-vestibular
privado mostra as mazelas do sistema público ao mesmo tempo em que mostra o
sistema excludente em que estamos inseridos. A busca de uma educação pública de
qualidade vai além do âmbito das universidades, mas tem que necessariamente passar
pela educação básica, permitindo, democraticamente, o acesso à educação a todos.

Você também pode gostar