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entrevista

Graça Paulino

“Ainda não
temos um
Brasil literário,
mas precisamos
continuar

Arquivo pessoal
lutando por
isso”
Graça Paulino

Entrevista concedida a
Érica Cristina dos Santos,
Marta Passos Pinheiro e
Simone Cristina Salgado
G Graça Paulino é licenciada em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais
(1971), mestre em literatura brasileira pela mesma universidade (1979), doutora em
teoria literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990) e pós-doutora em
educação pela PUC-Rio. Foi professora de teoria da literatura e semiótica na Facul-
dade de Letras da UFMG de 1973 a 1994. Atualmente, é professora associada da Fa-
culdade de Educação (FaE) da UFMG.
Tem experiência nas áreas de letras e educação, com ênfase em ensino de litera-
tura, atuando principalmente nos seguintes campos temáticos: formação de leitores,
ensino de literatura, leitura literária e letramento. É pesquisadora do Centro de Alfa-
betização, Leitura e Escrita (Ceale/FaE-UFMG), com Bolsa de Produtividade do
CNPq. Foi editora geral de Presença Pedagógica de 1995 a 2005, e compõe hoje o Con-
selho Editorial da revista.
O livro Das leituras ao letramento literário, organizado pela professora Cristina
Rosa (FaE-UFMG/UFPel), reúne alguns artigos publicados em diferentes veículos du-
rante 20 anos (1979-1999) de trabalho de Graça Paulino.

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Presença Pedagógica: No seu artigo “Intelectuais no zada no currículo do professor universitário. Ganham-
trabalho de formação de leitores críticos”, ainda iné- se bolsas de produtividade por pesquisa, mas não por
dito, você diz que existem dois Brasis que se separam: aulas bem ministradas. Outro descaso que encontramos
um dos professores intelectuais, que produzem, muitas relaciona-se a projetos de extensão. Esses projetos, que
vezes, em língua estrangeira, e outro dos professores fazem com que a universidade se insira na vida social da
de escolas públicas de Educação Básica, que, muitas comunidade, não são valorizados. Nem o ensino nem a
vezes, nem têm acesso à internet. Como mudar essa si- extensão são premiados, destacados, somente a pes-
tuação? quisa. Se a universidade está dividida em ensino, pes-
Graça Paulino: Não há reforma cultural sem reforma quisa e extensão, se são essas as três funções que temos
econômica. E essas são sempre negadas no Brasil. Nós de exercer, então que sejam exercidas com equilíbrio.
temos, por exemplo, em vez de uma reforma agrária, al- Um pesquisador não deve ser mais valorizado do que
gumas ajudas como se fossem esmolas para quem não um professor.
tem terra. Temos o programa Bolsa Família, que acaba
mascarando problemas sociais que não são de fato re- PP: Na sua opinião, o que caracteriza um intelectual?
solvidos. Um desses problemas sociais é a educação. Para Qual deve ser o papel do intelectual no Brasil?
começar, o professor precisa ser mais bem remunerado. Graça: Minha formação profissional, na qual a litera-
Não adianta melhorar o currículo, investir na formação tura sempre esteve acompanhada de estudos de várias
de professores se a valorização desse profissional, que se áreas, como sociologia, antropologia, psicologia, psica-
reflete no salário, permanecer vergonhosa. O professor nálise, filosofia, me fez ter contato com pesquisas e
da Educação Básica não é incentivado a investir numa pontos de vista de intelectuais atuantes e participantes,
formação continuada de verdade. Se houvesse incentivo, como Sartre. Isso alterou minha percepção e construção
o professor poderia dar aula num turno e, no outro ser de mundo e me fez acreditar que existe um papel a ser
pago para se atualizar, continuar sua formação, aprender cumprido pelos intelectuais na sociedade. Quanto a
coisas novas. Ele só consegue se atualizar nas férias, nos Sartre, acompanhei com admiração seu percurso. Em
fins de semana e existem muitos cursos desse tipo. 1964, eu estava terminando o antigo ginásio, que cor-
Quanto ao papel dos intelectuais, professores responde à última série do Ensino Fundamental hoje,
universitários, acredito que primeiramente eles devem quando ouvi falar que um homem havia recusado o
assumir a graduação, dedicar-se a esse nível de ensino. prêmio Nobel. Isso me deixou curiosa. Era Sartre. Fi-
Tenho visto nas universidades públicas uma inversão. quei me indagando: por que será? O prêmio é uma for-
Quem se considera intelectual, professor de primeira tuna! Tratava-se de uma posição política. No Brasil, em
linha, só quer dar aula para a pós-graduação e não para 1968, quando o movimento contra a ditadura se forta-
a graduação. Isso tem de mudar para que a graduação leceu, muitos dos que foram para as ruas, dos que foram
melhore e para que os alunos da licenciatura possam perseguidos, eram intelectuais. Eu sempre tive essa per-
chegar a suas escolas de uma maneira diferente. Dessa cepção de que um intelectual não seria aquele pesqui-
forma, com professores bem formados, o diálogo entre sador fechado na sua sala, preocupado apenas com
universidade e escola básica pode melhorar muito. Na livros e teorias. O intelectual deve envolver-se com a
verdade, o que ocorre é que apenas a pesquisa é valori- vida social.

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PP: Você teve uma boa formação e escolheu estudar le- Na década de 1970, época em que o ensino pú-
tras. Hoje, quando o aluno é muito bom, costuma ser blico começava sua ampliação, ainda havia respeito para
desencorajado, inclusive pela família, de fazer letras ou com o professor. Lembro-me de que eu ganhava muitos
qualquer outro curso de licenciatura. O que mudou nos presentes dos alunos no dia do professor. Havia soleni-
dias de hoje? dade comemorando o dia, isso era noticiado pela mídia.
Graça: As escolas públicas eram de outra natureza, eram Hoje, os baixos salários somam-se ao desrespeito, tanto
muito boas. Os professores que ganhavam melhor eram no ensino público quanto no privado. Como professora
os de escolas públicas. Meu
A educação nasceu em crise. E
de Prática de Ensino na Fa-
sonho era me formar em culdade de Educação da
letras e me tornar profes- UFMG, tenho ouvido

nasceu para poucos. Hoje, existem


sora do Colégio Estadual, muitas queixas de meus
em Belo Horizonte (hoje, alunos. Nas escolas públi-

outros fatores que levam à crise na


Escola Estadual Governa- cas, eles assustam-se com a
dor Milton Campos). Em desorganização e com as
quatro anos, enquanto ameaças de alunos. Muitos

educação. Acreditamos que, no


fazia graduação, de 1968 a diretores chegam a dizer
1971, a situação se inver- que é para tomar cuidado

Brasil, alcançamos uma


teu. Vivíamos o auge da porque o pai do aluno é
ditadura, em 1968. Mes- isto, a mãe é aquilo, e que
mo assim, quando comecei o próprio aluno pode

democratização do ensino. Temos


a trabalhar, juntei dinheiro matar o professor. Nas es-
durante três anos e comprei, colas particulares, o profes-

muitas escolas, livros didáticos


à vista, um apartamento de sor passou a ser
três quartos num bairro considerado um empre-
nobre de Belo Horizonte. O gado do aluno, tido como

garantidos pelo governo federal. E


salário ainda compensava. cliente da escola. Para mui-
Mas, ao escolher letras, pas- tas escolas particulares, o

quanto ao ensino de qualidade? E


sei por cima da preferência mais importante é não per-
de minha mãe, que queria der a clientela. Acredita-se
que eu fizesse medicina. Eu que o professor é um pres-

quanto à valorização do professor?


já estava no terceiro ano de tador de serviço, que é re-
letras e minha mãe conti- munerado para isso, e as
nuava falando para as ami- próprias famílias acreditam
gas que eu fazia medicina. Portanto, não se podia dizer nessa visão deformada da função docente. Hoje, no final
naquela época que ser professor era uma profissão de pres- de um curso de licenciatura, ao fazer o estágio docente,
tígio. Mas, sem dúvida, a relação professor/aluno mudou muitos alunos chegam à conclusão de que não querem
muito. ser professores.

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PP: Estamos vivendo em um período de crise na educação? Para mim, é impossível, nos dias de hoje, ver de ma-
Graça: Na verdade, a educação nunca saiu da crise no neira tão separada a leitura literária das outras. Essa salada
Brasil, nunca houve a era de ouro da educação brasileira. de linguagens, esse hibridismo, hoje, é inevitável. Houve
A educação nasceu em crise. E nasceu para poucos. O Co- um enriquecimento de todas as linguagens, de fontes di-
légio Pedro II, no Rio de Janeiro, foi fundado em uma versas e há um diálogo ininterrupto de linguagens. Estou
época em que pouquíssimos podiam frequentá-lo. Em revendo esses conceitos mais fechados sobre o que caracte-
Belo Horizonte, no fim da década de 1950, só havia um rizaria a recepção literária, para ver se é possível uma recep-
Colégio Estadual e um Colégio Municipal para atender a ção literária misturada a outros tipos de recepção textual.
todos. Entrar era dificílimo, havia um funil. Esse funil fun- De qualquer maneira, a produção de sentidos não vai poder
cionava primeiro na Educação Básica. Só não havia seleção ser arrancada da vida do sujeito leitor e ser colocada apenas
para os grupos escolares, para as quatro primeiras séries. Para numa estesia com relação ao objeto da experiência que é o
essa fase a entrada era livre, depois era necessário fazer a se- texto. Se nós formos olhar, numa perspectiva mais aberta, a
leção para o ginásio, tanto que existia o "curso de admis- “cultura” é uma rede de linguagens que vão se entrelaçando,
são". Hoje, certamente, existem outros fatores que levam à que vão funcionando desta maneira ou daquela, que vão
crise na educação. Acreditamos que, no Brasil, alcançamos mudando de acordo com camadas sociais, de acordo com
uma democratização do ensino. Temos muitas escolas, li- momentos históricos. Dessa forma, é inevitável que nós es-
vros didáticos garantidos pelo governo federal. E quanto ao tejamos, desde que nascemos, enredados em linguagens.
ensino de qualidade? E quanto à valorização do professor?
PP: Levando em conta esse diálogo entre diversas lin-
PP: Em seus artigos, você demonstra uma preocupação guagens, todo texto pode ser considerado literário, de-
em distinguir a leitura literária de outros tipos de lei- pendendo do tipo de leitura realizada?
tura, chegando a afirmar que a “leitura” pode caracteri- Graça: Certamente não é qualquer texto que pode ser con-
zar um texto como literário ou não. Pensando dessa siderado literário. A recepção pode ser literária, mas a gente
maneira, é possível ler uma notícia de jornal como texto não pode colocar o leitor no trono em lugar do autor. Se
literário? Existem especificidades que caracterizam uma eu tirar o autor do trono e colocar o leitor, estou fazendo
leitura como literária? apenas uma troca de lados, não uma transformação. Será
Graça: Se você quer uma informação, busca um texto in- o outro lado da mesma moeda. Não é essa a proposta, e
formativo. Mas não podemos negar o diálogo que existe sim perceber os dois lados. Isso é muito importante por-
entre textos informativos e literários. Muitos textos lite- que nós não podemos restringir a produção de sentidos
rários são baseados em textos informativos, como o ro- nem na recepção, nem no momento da produção.
mance francês Madame Bovary, de Flaubert, publicado Para mim, de um modo geral, vem sendo mos-
em 1857. Flaubert inspirou-se numa notícia de jornal trado apenas um lado da moeda: o de que todo texto pode
sobre uma mulher de um médico de província que, tendo ser analisado como não literário. Há uma tendência, tal-
praticado o adultério, suicida. Moacyr Scliar assumia isso vez pelo período da História em que estamos vivendo, de
de modo tão declarado que reproduzia o texto informa- mostrar a função prática de tudo. Mesmo um texto que
tivo publicado no jornal Folha de S. Paulo e escrevia um possui uma função poética vem sendo mostrado de ma-
conto a partir do texto. neira pragmática, como se fosse um documento. Na es-

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cola, os temas transversais contribuíram muito para essa PP: Como você vê a produção literária atual que vem
distorção, para essa deformação da literatura. sendo destinada às crianças e aos jovens?
É bom que se respeite a linguagem, a organização, Graça: Existem bons escritores, mas tenho lido também
o gênero, a estrutura, o modo do texto. O que ele está pro- produções muito fracas, que estão sendo compradas pela
pondo? Se ele está pro- escola só porque tocam
pondo um pacto ficcional, Talvez pelo período da História em nas questões dos temas
se esse pacto predomina, o transversais, preconceito,

que estamos vivendo, há uma


leitor deve entrar no pacto. etnia, ou porque dão in-
O pacto ficcional exige que formações sobre a história
o leitor entenda que não há da África, por exemplo.
compromisso de fidelidade tendência de mostrar a função prática Esse tipo de produção da-
histórica, não há compro- tada demais tende a não

de tudo. Mesmo um texto que possui


misso documental do texto. permanecer.
Então, um texto literário Sem dúvida, a lite-

uma função poética vem sendo


não deve ser lido como uma ratura infantil brasileira
notícia, um documento ou evoluiu muito e se diver-
um texto científico. A pro- sificou. Encontramos li-
mostrado de maneira pragmática,
posta dele vai por outro ca- vros muito ruins e livros
minho, em outra direção. muito bons. Em relação

como se fosse um documento. Na


Se você ler um texto literá- aos jovens, eles são afasta-
rio como se fosse um texto dos da literatura, muitas
informativo para decorar vezes, por não existirem
informações, para mudar de escola, os temas transversais livros de qualidade na es-
comportamento, como se o cola que sejam atraentes,

contribuíram muito para essa


texto fosse de autoajuda, há, sedutores para o leitor
aí, de fato, quase um con- jovem. É necessário ter-

distorção, para essa deformação da


trassenso. mos esta dupla preocupa-
Em um texto literá- ção: o texto deve ser
rio, se a linguagem é mui- sedutor para a faixa etária
literatura.
tas vezes ambígua, se os e ter qualidade. Um texto
finais, muitas vezes, são pode ter muita qualidade
abertos, como se vai chegar literária, mas não se desti-
a uma verdade absoluta? Não é possível. Acredito ainda nar ao jovem. Então, o jovem sai da literatura infantil e
que o texto literário tenha um lugar, hoje, que deveria ser tem que entrar na literatura para adultos. É aí que, mui-
privilegiado porque nós estamos num mundo de mu- tas vezes, se perde o leitor! Quanto à escolha dos livros,
danças muito rápidas, desordenado e muito aberto a im- acho que existem duas perspectivas: a escolha do aluno e
previstos. E a literatura é o texto aberto a imprevistos. a do professor.

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PP: Você acredita na função social da literatura. Qual a literatura fizesse parte, fosse um dos links, um desses
seria o papel da literatura nos dias de hoje? pontos de encontros como os que existem nas redes so-
Graça: Acho que nós estamos vivendo um momento de ciais da internet. Acho que a literatura pode ser vista hoje
uma sociedade hiperconsumista e de extremo individua- dessa forma porque ela pode conectar as pessoas, ela pode
lismo que me faz concordar com o filósofo francês Gilles enriquecer o diálogo entre as pessoas, os momentos de
Lipovetsky, quando ele diz que nós estamos num mo- encontro. É fundamental que a escola trate a literatura
mento hipermoderno em que os três grandes pilares da dessa maneira, para que sua importância social seja per-
burguesia – o capital, o mercado, o indivíduo – estão mais cebida. Precisamos, em uma sociedade que se coisificou
fortes do que nunca. Por outro lado, o capitalismo está demais, dessa função reumanizadora.
em crise. Então, chamamos essa fase de problemática do
capitalismo. Por quê? Porque se chegou a um extremo do PP: Você afirmou, em uma palestra recente, que atual-
consumo. Consumir se mente não há projeto
tornou importantíssimo, A literatura pode conectar as pessoas concreto de mudança, mas
mais do que nunca. Existe utopias. A utopia não esta-

e enriquecer o diálogo entre elas.


um individualismo fortale- ria ligada a um lugar idea-
cido por esses pilares, daí as lizado, bem distante do
pessoas pensarem que a es- mundo real?

É fundamental que a escola perceba a


cola não é mais necessária, Graça: Transformar o país
que cada um pode estudar num país melhor para mui-
em casa, em seu computa- tos, para a maioria... Essa é
dor. Essa postura representa importância social da literatura. uma das minhas utopias.
o extremo do individua- Eu acredito que talvez

Precisamos dessa função


lismo que não leva a uma ainda cheguemos lá. Num
organização social coerente, Brasil literário também,
coesa, e que pode fazer com que é a utopia do Bartolo-

reumanizadora na sociedade.
que as pessoas saiam por aí meu Queirós e de muitos
matando, já que não existe outros. Ainda não temos
compromisso com o outro. um Brasil literário, mas
Num mundo como temos que continuar lu-
esse, a literatura pode ter uma função reumanizadora, de tando por ele. Essa minha luta é antiga. Considero a lite-
fazer com que a comunidade seja repensada e de contri- ratura como um processo de reumanização, de
buir para uma troca de leituras. A literatura pode contri- ressocialização, na linha de Antonio Candido. Se nós con-
buir para a socialização, como ocorria nos salões literários, sideramos dessa maneira, a prática de leitura literária pode
e ela deve ser socializada, não deve ficar num quartinho. ser vista como coletiva e não como prática de elite, fe-
O silêncio do quarto também é necessário numa socie- chada. Não podemos perder a ideia de que a transforma-
dade como a nossa. A recepção individualizada, persona- ção é possível. Manter vivas as utopias é manter vivo o
lizada é importante, mas é necessário “abrir-se”, como se ser humano.

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