Para Quem Investigamos - para Quem Escrevemos Reflexoes Sobre A Responsabilidade Social Do Pesquisador.

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o livro aqui apresentado é o produto parcial de um PARA QUEM INVESTIGAMOS -

desses encontros. Sua preocupação central se expressa


claramente num título que, de maneira sintética, decla- PARA QUEM ESCREVEMOS:
ra o desafio que hoje temos, pesquisadores e pesquisa-
doras das Ciências Sociais no mundo todo, especial- Reflexões sobre a responsabilidade
mente na América Latina: Para quem pesquisamos? social do pesquisador
Para quem escrevemos?

Nilda Alves Regina Leite Garcia!


Presidente da ANPEd

Pablo Gentili e Gaudêncio Frigotto Tenho o prazer particular em reconhecer a in-


Coordenadores do GT - Educação, Trabalho e fluência crucial de idéias vindas de fora (ou das
Exclusão Social, CLACSO margens) da Academia.
Homi Bhabha

idéia dessa discussão surgiu de uma recorrente


I' o 'ul ação de pesquisadores e pesquisadoras em edu-
I lIIi 0, entre os quais me incluo, com o destino de nos-
11 p isquisas e de nossos escritos. Se a escola é o fim
11 nossas pesquisas e de tudo o que escrevemos, o re-
1111/1 I} de nossas pesquisas deveria a ela chegar e, de
1111111\1 modo, a ela beneficiar. A princípio, talvez por
III 111111 história, estava especialmente preocupada com
11111 Ino fundamental e com os cursos de formação de
11111/'1 ssorcs para atuarem nos primeiros anos de esco-
1111 dlld " dado ser neste momento que se anuncia o fra-
111 ti li .olar, Todos afirmávamos que ainda é a escola
",,/111/'(/ (/ única possibilidade de democratização da

I 1'1 IjlllSlld ra Associada do Programa de Pós-graduação da Fa-


1111111"1 111 I!dll 'UÇl o da Universidade Federal Fluminense.

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educação. É ali que as classes subalternas- buscam a crianças interagiam no processo de ensino-aprendiza-
consolidação, aprofundamento e ampliação dos sabe- gem. Ampliar a minha visão de educação levava-me a
res que trazem a partir de suas vivências e experiências ampliar e diversificar o público ao qual me dirigia, seja
(no sentido benjaminiano). como pesquisadora seja como escritora. Tratava-se en-
lão de escrever e falar para um. auditório mais amplo e
Hoje, embora mantenha minha forte preocupação
heterogêneo, tornando-se mais desafiadora para mim a
com a escola pública fundamental, amplio o sentido de
socialização do resultado de minhas pesquisas e estu-
educação a partir das experiências de educação popu-
dos - como escrever e falar para ser compreendida
lar em seu sentido mais amplo, que incorpora, por exem-
pelos destinatários de minhas pesquisas, sem que esta
plo, o projeto educativo do MST ou mesmo experiên-
preocupação com a forma significasse descaso à con-
cias educativas de alguns grupos subalternos.
sistência teórica. Enfim, como articular conteúdo e for-
Mais que nunca, a idéia de que toda ação política ma. Este o grande e permanente desafio que se coloca
tem um entido educativo e que toda ação educativa para quem pesquisa e escreve e fala como parte de sua
carrega um forte componente político. militância política.
Isso não significa deslocar meu interesse da escola
como locus privilegiado de minhas pesquisas e escri-
tos, mas apenas ampliar o sentido de práticas educa- Nossa solidariedade de preocupações
tivas, complexificando, portanto, o que até um tempo
se limitava à escola e à sala de aula onde professoras e Tenho mantido há muitos anos um preocupado diá-
logo com alguns companheiros e companheiras sobre
tl destino de nossas pesquisas e escritos. Magda Soa-
2. Estou dando a classes subalternas o sentido que encontro em
r 'S, Nilda Alves, Victor Valia, Corinta Geraldi, Antô-
Gramsci, retomado por José de Sousa Martins, no Brasil, e pelos in-
telectuais que vêm produzindo os Subaltern Studies, em que se desta-
nio Flávio Barbosa Moreira e, é claro, meu grupo de
ca Ranajit Guha, historiador e economista político indiano e editor p squisa, para só citar os mais freqüentes. As pergun-
do primeiro número dos importantes Subaltern Studies, que, denun- 11IS que reaparecem insistentemente são - "será que
ciando uma História escrita do ponto de vista do colonizador e das nossas pesquisas contribuem para melhorar a escola?"
elites indianas, vêm reescrevendo a História da índia, em que recupe-
ou" erá que nos fazemos compreender quando estamos
ram a importância da participação das classes subalternas nas lutas
pela libertação do jugo britânico. A palavra subalterno tem, aqui, tanto trubalhando com grupos populares?" Ou ainda "Será
um sentido político quanto epistemológico. Implica a problematização IlI' conseguimos compreender o compreender do ou-
ela relação elos que ocupam uma posição subalterna na relação com os 11'0 ou continuamos a 'ler' a realidade a partir de velhos
grupos que estão no poder e exercem hegemonia, seja por formas 1" 'ssupostos apesar de muitas vezes os criticarmos?"
coercitivas, seja pela dominação ideológica. Implica a explicitação
elas formas ele negociação e resistência dos subalternos aos que exer-
"Nossa pesquisas, reflexões e escritos contribuem para
cem poder na socieelaele. tub I cer um fértil diálogo universidade-escola ou

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apenas ampliam o fosso entre estes dois níveis de esco- ras e professores que estão nas salas de aula enfrentan-
laridade?" do todas as dificuldades para que seus alunos e alunas
Algumas pesquisadoras de meu grupo vez por outra aprendam?". "Será que as pesquisas que realizamos
propunham que criássemos materiais de aux~'lioàs pro- contribuem para melhorar a qualidade do trabalho pe-
fessoras alfabetizadoras, defendendo que, ajudando as dagógico?"
professoras hoje, estaríamos contribuindo para que en- Nessas conversas/questionámentos, sempre me lem-
contrassem amanhã os seus próprios caminhos, crian- brava de minha própria reação a pesquisadoras vindas
do então estratégias pedagógicas mais adequadas às da universidade, quando atuava na escola primária (as-
situações desafiadoras que enfrentam a cada dia na sal.a sim era denominada o que hoje é chamado ensino fun-
de aula. A esta posição de algumas, outras companhei-
damental); não apenas a minha reação, mas a de mi-
ra e punham contra, sob o argumento de que, assim
nhas colegas. Sentíamo-nos invadidas por quem che-
fazendo, estaríamos dando receitas. Segundo estas,
gava à escola, com ares muito importantes de quem
estaríamos, e não impedindo, pelo menos dificultan-
sabe, e se punha a nos fazer perguntas ou nos solicita-
do a emergência de uma postura crítica e da criatividade
va observar nossas aulas. Era constrangedor, sentíamo-
das professoras, sem o que não há prática pedagógica
nos desconfortáveis ao nos depararmos com uma pes-
inovadora.
quisadora desconhecida que se punha a tomar notas ou
É tão forte a pressão contra certos materiais peda- a gravar nossas aulas. Tudo o que sabíamos sobre dar
gógicos que, a cada vez que Magda Soares faz um li- aula parecia desaparecer e daí para a frente a minha
vro para professoras, com sugestões, explicações, exer- ensação era de estar vivendo um teatro de absurdo,
cícios, ilustrações etc. me diz temerosa: "Lá vem fogo em que o meu saber fazer escapava-me e eu me sentia
dos puristas". Como o seu prestígio está além do que a personificação do não saber. Assim também se sen-
certas críticas podem atingir, pelo menos publicamente tiam minhas colegas, algumas tendo coragem de usar
ninguém se atreve. Mas uma coisa é evidente - as pro- lesculpas para impedir a invasão de sua sala de aula,
fessoras adoram. Sentem-se ajudadas, que é o que inte- outras, mais tímidas, aceitando cheias de medo daque-
ressa. Se a partir da ajuda de Magda elas avançam, só
les olhos investigadores (o mau olho ou mau olhado a
muita pesquisa poderá nos dizer. que se refere Bhabha, que permanece para vigiar e
Igual preocupação com os resultados de nossas pes- assombrar), que as faziam perder toda a naturalidade e
quisas e de nossos escritos, encontrava em Antônio Flá- que, mesmo quando não estavam presentes, perrnane-
vio Barbosa Moreira, com quem nossos freqüentes diá- 'iam como censura internalizada. E o que mais nos re-
logos sobre a pertinência de nossas pesquisas e escri- V( Itava - jamais recebemos uma visita para nos dar
tos, invariavelmente, chegavam à embaraçosa pergun- .onta do que havia sido "descoberto" em nossas salas
ta que nos fazíamos sem encontrarmos resposta: "Será de aula e o que fora feito com o que havia sido colhido
que o que escrevemos ajuda efetivamente às professo- nu I squisa em nossa escola. Sentíamo-nos usadas, nada
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recebendo em troca de nossa receptividade ainda que nossa intervenção, mas nós próprias não éramos mais
constrangi da. Ninguém nos perguntava o que pensáva- as mesmas, pois que havíamos aprendido na prática
mos das visitas. investigativa que estávamos influindo sobre a resposta
Hoje, com os recursos teóricos de que disponho, do sujeito que estava no lugar de objeto de nossa pes-
posso saber que muitas vezes nos ouviam, não a partir quisa.
do que dizíamos, mas a partir do que acreditavam de- É interessante observar que foi na situação vivida
ver ser dito, para o bem e para o mal. Com a ajuda de por nós, como pesquisadoras, que mudamos, tal im-
Martins agora sabemos que a crise da interpretação é pacto causou a pergunta do menino. Só então, tendo
nossa, pesquisadores e pesquisadoras que íamos, e refletido coletivamente sobre a situação observada é
muitos continuam a ir, a campo tão cheios e cheias de que fomos buscar/encontrar explicações teóricas para
certezas, que me parecem, hoje, inimigas da pesquisa o que no primeiro momento apenas constatávamos,
séria, pois quem tem certezas não tem boas razões para embora não dispuséssemos de explicação teórica. O que
fazer pesquisa. Hoje sabemos que a dúvida, a incerte- até então era apenas uma vivência tornou-se uma expe-
za, a insegurança, a consciência de nosso ainda não riência, no sentido benjaminiano. Havíamos experien-
saber é que nos convida a investigar e, investigando, ciado uma situação em que ficava claro o sem sentido
podermos aprender algo que antes não sabíamos. da crença na neutralidade e na objetividade e, ainda
Pois, apesar de ter sofrido a situação de ser objeto que nossa perplexidade ante o ocorrido fosse portado-
de pesquisa, mais tarde, como pesquisadora, fui pilha- ra de teoria, dela não tínhamos conhecimento. A expli-
da por um menino, mais esperto e/ou corajoso do que cação teórica foi construída e encontrada pos facto.
eu e minhas antigas colegas professoras primárias que, Hoje, sabemos que a crença na neutralidade e na
ao ser solicitado a dizer o que lia nos cartões sugeridos objetividade, tão cara a tantos, caiu por terra, quando
por Emília Ferrero e que meu grupo seguia entusias- pesquisadores como Maturana nos fizeram compreen-
mado, no respondeu/perguntando: "O que você quer der que "O conhecimento não poderá entrar com passo
que eu diga?" firme no recinto das ciências sociais se pretender fazê-
A fala do menino mostrava o rei nu, anunciando o 10 sob a concepção de que o conhecer é um conhecer
que mais tarde fomos encontrar na física quântica, de 'objetivamente' o mundo e, portanto, independente
que o olhar do investigador influi sobre a resposta do daquele(s) que faz a descrição de tal atividade". E ain-
fenômeno investigado, tendo, então, aprendido com da com Maturana: "Não é possível conhecer 'objetiva-
Heisenberg e Bohr não ser possível observar ou medir mente' fenômenos (sociais) nos quais o próprio obser-
um objeto sem nele interferir, sem o modificar, de tal vador-pesquisador que descreve o fenômeno está en-
forma que o objeto, exposto ao processo de observa- volvido", ainda que não o creia.
ção ou medição, ao final já não é o mesmo. Em nosso Livres da armadilha da verdade objetiva e real, eis-
caso, não apenas o menino não era o mesmo ao final de nos entregues a dúvidas e incertezas, que, afinal, são

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no que o outro diz e não no que já trazemos como sua
uma boa razão para pesquisarmos, pois, como já disse,
resposta. O que se torna mais e mais difícil, se Lacan
quem tem certezas não tem motivos para pesquisar. Daí
está certo, em sua radical leitura de Freud. Para ele,
porque estamos sempre envolvidas, eu e meu grupo,
em pesquisar, numa busca permanente por melhor com- estamos sempre em bipolaridade com o outro - o eu é
antes de tudo um outro; é igual a mim e por ser igual é
preender a complexidade da escola, do processo de
ensinar/aprender, do fracasso de tantos e do sucesso de
meu rival. O que fica mais complicado quando o outro,
o que chega, traz consigo uma posição de poder que
alguns que não seria esperado que o conseguissem (o
me ameaça. O outro que traz uma demanda que eu não
que Cyrulnik denomina résilience). Neste instigante
processo de investigação, vemo-nos a cada descoberta estou disposta a atender. O ego é alter - alter ego - o
ante um novo desafio, pois a cada novo saber (resulta- ego alterado. Heteronomia radical.
do sempre provisório da pesquisa) um novo ·ainda não É o que vamos encontrar em Bhabha quando afirma
saber (convite à ampliação ou redirecionamento da a complexidade da relação ambivalente entre o coloni-
pesquisa) que se mostra. E sempre, ao entrar numa es- zador e o colonizado, quando o desejo pelo outro as-
cola, o sentimento de ser uma estranha que chega e sim como o medo do outro os constituem. Para Bhabha
que não foi convidada. "a identidade só é possível na negação de qualquer sen-
tido de originalidade ou plenitude, através do princí-
Talvez por ter vivido esta desagradável experiência
pio de deslocamento e diferenciação ... que a coloca
de receber estranhos e de me sentir estranha, me identi-
sempre num limite da realidade".
fique tanto com a discussão de José de Sousa Martins
Pois é dessas nossas preocupações/buscas comuns,
sobre a chegada do estranho. A pesquisadora que che-
solidariedade de preocupações, como diria Milton San-
gava à nossa escola era, para nós, uma estranha, que ia
tos, que surge a idéia de um colóquio, resultado da par-
chegando, entrando e ocupando espaços para os quais
ceria ANPED/CLACSO, o 3° Colóquio Produção de
não a havíamos convidado. Hoje posso saber, pois vivo
Conhecimento e Responsabilidade Social do Pesqui-
a situação de ser eu a estranha que chega à escola - o
sador - em que traríamos à discussão de nossos pares
sentimento de insegurança, de constrangimento, de
as questões que nos inquietam: Afinal, para quem
medo que sente também quem chega e, por termos vin-
pesquisamos? E para quem escrevemos? Perguntas que
do~ quase todas as companheiras de meu grupo de pes-
acabam nos levando inclusive a questionar o papel do
qUIsa de uma experiência de escola primária, tendo
intelectual.
vivido a situação de receber uma pesquisadora sem a
Uma vez definida a parceria, Magda Soares, Antô-
termos convidado, refletimos muito sobre a dificulda-
nio Flávio Barbosa Moreira e eu, surgiu um outro no-
de deste momento de entrada na escola: o indispensá-
me a se juntar a nós - Roberto Follari, companheiro
vel cuidado, a atenção, a delicadeza, a sensibilidade
desde o início dos anos noventa, quando esteve em
para o outro, a aceitação do outro como legítimo ou-
nosso Programa de Pós-graduação em Educação da UFF
tro, conforme Maturana, o que significa ouvir o outro
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(à época apenas de Mestrado) e que colaborou conosco, Algumas perguntas, de início, direcionaram a nossa
participando de discussões e coordenando um seminá- reflexão:
rio muito enriquecedor para nossos alunos e alunas e
para nós, professores e professoras. Sugerido pelos Pesquisamos para a academia e para as agências de
companheiros da CLACSO, seu nome foi unanimemen- fomento ou para as escolas onde a complexidade da
te aceito e bem-vindo a nosso grupo inicial de três pre- realidade desafia a cada dia a competência docente?
ocupados pesquisadores-escritores brasileiros. Pesquisamos para ganhar pontos nos relatórios in-
Apresentamos efetivamente o Colóquio durante a 23" ternos e externos, para publicar e vender livros, para
Reunião da ANPED, realizada em setembro de 2000. adquirir/consolidar prestígio, ou nossa pesquisa é par-
A recepção superou nossas expectativas, tendo alguns te de nosso compromisso político com a luta pela trans-
e algumas colegas nos sugerido publicar, dada a rele- formação da sociedade?
vância do tema e a possibilidade de abrirmos a discus- Escrevemos para nossos pares ou para as professo-
são social izando as im nossas preocupações comuns. ras que estão na sala de aula?
Esta é a p qu na história deste livro. Quatro pesqui- Quem, afinal, se beneficia com as nossas pesquisas
sador e crit re , dois homens e duas mulheres, igual- e os nossos escritos?
mente compr m Lido e comprometidas com a luta em Com que projeto de sociedade nossas pesquisas es-
defe a da se Ia públ ica e, porque comprometidos nesta tão comprometidas e a que projeto de sociedade nossas
luta, consci nt de que nossa luta passa pela constru- pesquisas se opõem, ou, simplesmente, nos pretende-
ção c I tiva d uma c Ia pública de qualidade, cons- mos neutros?
truçã qu xig um diálogo permanente, generoso, Afinal, de onde falamos, para quem falamos e o que
proffcu cora] so ntre a universidade e a escola. pretendemos com nossas falas?
Ne t livro, c m n olóquio, não falamos em unís- Existe em nós uma preocupação em ampliar o nosso
sono (que m n l no eria se assim o fosse), mas fica auditório ou nos interessa apenas uma platéia seleta de
claro que falam s de lugares diferentes porque traze- iniciados?
mos em n S l xtos, como fizéramos em nossas fa- Com essas perguntas vem outra que a todos e todas
Ias, falas de autores diferentes a partir de nossas histó- inquieta e que há muito nos temos feito:
rias diferentes, de nossa afinidades e idiossincrasias Qual o papel que nos parece ser o do intelectual, se
peculiares. Trata- e, poi , de uma conversa polifônica é que o há, num momento de crise generalizada como a
e polissêmica de companheiros e companheiras que que enfrentamos neste fim/início de século?
expressam a sua diferença na luta comum em defesa da Pergunta que um dia nos levou, a Célia Linhares e a
escola pública e de uma sociedade mais justa, mais igua- mim, a organizarmos um livro de entrevistas quando
litária, mais plural, mais democrática. nos encontrávamos na Europa em bolsa de pós-dou to-

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rado, livro ao qual sempre voltamos para reacender a mesma língua - a linguagem falada pelos acadêmi-
nossa esperança de que embora seja inevitável o pessi- cos. E, no entanto, quanto é freqüente o desencontro
mismo da inteligência, existe em cada intelectual por de linguagens na escola, seja de que nível for.
nós entrevistado o otimismo da vontade que leva à ação.
Em nossa pesquisa, encontramos a situação de uma
A essas perguntas, cada um fuma de nós, envolvi- criança que, nada entendendo do que dizia a professo-
dos neste livro, foi por um caminho, o que me parece ra, lhe pediu: fala português, professora. Esta criança
bastante interessante. Nossa preocupação não era teve a coragem de mostrar à professora que a lingua-
polemizar, mas a partir de algumas questões, que nos gem por ela falada era incompreensível. Sua observa-
instigavam, reagir, refletir, responder, cada um e cada ção levou a professora a refletir e a mudar, o que con-
uma, do lugar de onde fala. Uns foram em defesa da tribuiu para que as crianças, compreendendo-a, pudes-
teoria, outros em defesa da prática, embora acredito sem avançar aprendendo o que antes não aprendiam
estarmos de acordo em não haver prática despida de por não compreenderem afala esquisita da professora.
teoria ou teoria descolada da prática, especialmente Mas ... e quando não há na sala de aula uma criança
quando se trata de educação. com a coragem para dizer, em nome do coletivo, que
Mas as perguntas persistiam - será que o que não está entendendo o que diz a professora?
pesquisamos e escrevemos contribui para melhorar a Até um tempo diríamos: resta-lhes o conformismo
prática pedagógica, a aprendizagem dos alunos e alu- ou a resistência. Ou se conformam e "esquecem" a lin-
nas, produz alguma mudança na escola, influi sobre o guagem falada em seu grupo sociocultural de origem,
sucesso ou fracasso escolar, contribui para o silencia- mimetizando a fala valorizada e ensinada na escola
mento ou para a tomada da palavra de quem tem sido (aprenderam as regras do jogo e a elas se submetem)
historicamente impedido de falar, vítima da' discrimi- ou resistem à imposição de uma linguagem estranha,
nação, rotulação, segregação e exclusão na sociedade tentando manter a sua integridade ao preço de entra-
e na escola? rem no estreito caminho para o fracasso escolar. Atual-
Inúmeros autores se fazem o mesmo questionamento mente, tendo aprendido com Bhabha a escapar das
e com eles tenho tido um profícuo diálogo, o que me antinomias simplificadoras do ou/ou para tentar com-
leva a buscar as suas falas quando, em algum momen- preender a complexidade da realidade na qual sujeitos
to, lhes perguntei para quem pesquisam e para quem se formam no entre-lugar, em que são isto e aquilo,
escrevem. espaço de contínuas negociações e traduções, pro-
curamos investigar o que acontece no cotidiano da sala
Michael Apple e Paulo Freire são os primeiros em
de aula, e como se dão as relações das crianças com a
que penso, pois tudo o que falaram e escreveramsem-
professora no rico processo de encontros e desencontros
pre esteve comprometido com a compreensão de todos
de linguagens. São estas crianças que nos desafiam a
e todas e não apenas dos que já sabem porque falam a
pesquisar. E são também os rapazes e as moças que
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vêm para os cursos superiores e que muitas vezes Mo tantes intelectuais fazendo questão de dizer de sua con-
têm coragem de dizer Fala português, professor, pois cordância com as idéias freireanas e querendo saber
nesta língua esquisita não estão entendendo o que está mais sobre a Pedagogia do Oprimido ou sobre Educa-
sendo explicado, que nos levam a pensar sobre a im- ção como Prática de Liberdade. E ele, com aquela tran-
portância de ser compreendido quando falamos ou quan- qüilidade e simplicidade que eram a sua marca, res-
do escrevemos, se queremos mudar a escola e a socie- pondia, colocava as suas próprias dúvidas, falava de sua
dade. experiência e de seus sonhos com um mundo melhor.
Em Paulo Freire, esta preocupação esteve presente Não admira que eu vá encontrar um livro de bell
desde seu primeiro livro, que se tornou livro de cabe- hooks, afro-descendente militante feminista norte-ame-
ceira de professores e professoras do mundo inteiro, ricana, cujo título é Teaching to Transgress - Education
pela relevância do que escrevia e por um estilo de es- as the Practice of Freedom. E, ao abri-Io, confirmo tra-
crever que, endo belo, não deixava de ser consistente tar-se da leitura entusiasmada por uma intelectual ne-
pelo conteúd que aportava. Em Paulo Freire, forma e gra feminista do pensamento de Paulo Freire, com o
conteúd estão f rternente articulados. Todos e todas o qual se identifica na busca de novas palavras e novos
compre nd m ainda que dele possam discordar. Paulo mundos, ela que aprendeu na carne que com as pala-
Freir é c m fruta madura ou como vinho - quanto vras vêm as visões de mundo do opressor que
mais v Ih ,m Ih r foi ficando. Nele, saber e sabor fo- ! subalterniza o outro desqualificando a sua linguagem.
ram s apr ximando até se tornarem indissociáveis. hooks sabe o que significou para os afro-descendentes
Quanto mais avançava na idade, mais coerente entre a americanos a imposição do inglês padrão acompanha-
sua f rrna le s r O que propunha que fosse - prática da do silenciamento de sua própria linguagem, e o pre-
e teoria carninh ivam juntas, interpenetrando-se. Suas ço da perda de tantas vidas na luta para o reconheci-
conferências rarn l ngas e generosas conversas em que mento do vernáculo negro. Só muito recentemente e
a sabedoria era compartilhada e as dúvidas reveladas como resultado' de muita luta, o Black English aparece
sem pudor. Long de portar-se como quem tudo sabe, como uma variedade lingüística da língua inglesa. Afro-
mostrava-s um p rmanente aprendiz. descendente que é, hooks sabe o que significa tentar
Para mim, foi em cionante ver o auditório do Insti- falar e ser silenciada. E ela encontra em Paulo Freire a
tuto de Educação da Univer idade de Londres lotado resposta para a sua busca de uma linguagem política
de professore e alun s vindos de todos os cantos da- de resistência. E escreve: "há uma fala de Paulo Freire
quela ilha que ainda e acredita o centro do mundo, que se tornou um mantra revolucionário para mim -
ansiando por ouvir e dialogar com Paulo Freire. Aque- 'Não se pode entrar na luta como objetos, para mais
le povo orgulhoso e frio fazia reverência a um educa- tarde nos tornarmos sujeitos'." E continua: "Esta expe-
dor brasileiro, trazia-lhe perguntas, querendo saber mais riência colocou Freire em minha mente e coração como
do que lhes pareciam novos ares na educação. Impor- um professor desafiador". E é por esta razão que ela

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afirma ,a educação, quando merece esta denominação, direta, fácil de ser compreendida por quem quer que o
como transgressão, pois, se não transgride, não é ver- leia, uma escrita de quem está acostumado a falar e
dadeiramente educação. escrever para grandes grupos heterogêneos, muitos
Michael Apple seria minha segunda lembrança. Já oriundos das classes populares ou com elas compro-
o vi falar inúmeras vezes, em diferentes lugares, para metidos. Tudo o que diz revela o seu compromisso com
diferentes grupos e pude confirmar o que ele sempre a escola pública, com os profissionais que nela atuam,
me disse - do seu compromisso com a mudança da com a sua própria história de filho de imigrantes ju-
sociedade e da escola, de seu compromisso com as pro- deus comunistas, solidário a todos aqueles e aquelas
fessoras e professores seja de que nível de ensino for, que de alguma forma são discriminados e subal-
de suas pesquisas sempre voltadas para as classes su- ternizados, tanto que além de seu filho branco natural
balternas visando à sua emancipação. Jamais deixou tem um filho negro adotado, ambos considerados legí-
de atender a um pedido meu, ou de qualquer militante, timos.
como ele diz, para participar de algum evento ligado a Seu engajamento apaixonado, sua exposição perma-
um sindicato, a um grupo de professores e professoras, nente, sua busca de coerência, seu envolvimento nas
a um partido político progressista, a um grupo ligado a questões que assolam o mundo e seu compromisso com
um movimento social libertário. Sua resposta é sempre pri cípios, fazem-me considerá-Io o que Edward Said
a mesma - "Se é militância, conta comigo. Estamos denomina o "intelectual amateur - aquele que é mo-
juntos neste barco". vido não por recompensas ou prêmios ou pela satisfa-
A militância de Apple, embora a tantos e tantas te- ção de um plano de carreira, mas por um engajamento
nha ajudado pelo mundo, foi incomodando a alguns de comprometido com idéias, causas e valores na esfera
seus antigos colegas que, por levarem tão a sério a sua pública".
condição de INTELECTUAIS, se horrorizam com o sujar E, já que citei Said, não posso deixar de trazer a sua
as mãos participando das mazelas das lutas travadas na importante fala quando agraciado com o Reith Lectures
sociedade. Lembro-me, por exemplo, do comentário, de 1993, série de conferências inauguradas em 1948
entre irônico e enfurecido, de Basil Bernstein sobre seu por Bertrand Russell, honra que foi sendo concedida a
velho amigo Michael Apple, em conversa comigo. Di- intelectuais como Robert Oppenheimer, John Kenneth
zia ele: "Mike já foi um intelectual importante, hoje é Galbraith, John Searle, Toynbee e outros de igual va-
apenas um militante". Para Bernstein, como para tan- lor. O seu tema na conferência - Representações do
tos, o papel do intelectual é bem outro - pensar o Intelectual - tese que gira em torno do papel público
mundo, pesquisar, escrever, fazer conferências. "A do intelectual como um outsider, amateur e transgressor
militância para o militantes".
permanente do status quo. "Os intelectuais são preci-
O fato é que a militância de Michael Apple foi pro- samente aquelas figuras cuja atuação pública não pode
vocando mudanças em sua escrita, cada vez mais clara, ser prevista ou encaixada em slogans, na linha de parti-

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dos ortodoxos ou em rígidos dogmas". Sua responsa- entre assustadas e excitadas, adentramos em seu escri-
bilidade seria de denúncia a qualquer tipo de discrimi- tório no Massachusetts lnstitute of Technology, o fa-
nação, segregação e exclusão, de defesa aos oprimi- moso MIT, recebidas por sua formal secretária, logo
dos, explorados, desrespeitados. Para defender esta interrompida por nosso herói que foi nos receber à por-
idéia, Said se vale de sólidos conhecimentos teóricos, ta. Durante o tempo da entrevista, que durou mais de
de ampla cultura, de ímpar qualidade da fala e da escri- uma hora, Chomsky nos dava a impressão de sermos
ta, o que lhe permite ser ouvido e respeitado pelos de as pessoas mais importantes do mundo - atento, solí-
cima e pelos de baixo. E sintetiza o que para ele seria o cito, como se nos oferecesse todo o tempo do mundo.
papel do intelectual - "O propósito da atividade do in- Ao final da entrevista, e só' ao final, pois em momento
telectual é de promover a liberdade humana e o conhe- algum fomos interrompidas por telefonemas ou entra-
cimento". da de quem fosse na sala, levantou-se e o acompanha-
E eu pergunto - não é isso o que Noam Chomsky mos, pois este era o sinal de que nosso tempo havia
vem fazendo, expondo-se aos ódios dos conservadores terminado. E eis que entra um íntimo amigo seu para
americanos e aos reclamos dos lingüistas puros? felicitá-I o por seu aniversário.
Chomsky, além de ser um dos mais importantes e Aquele homem, um dos mais importantes intelec-
respeitados lingüistas de nossa época, é um intelectual tuais de nosso século, havia nos recebido no dia de seu
que se manifesta corajosamente sobre todas as ques- aniversário, nos dando toda a atenção, apenas por ter
tões que impedem o exercício da liberdade e da demo- reconhecido em nós duas mulheres sul-americanas com-
cracia, o respeito à diferença, a expressão da pluralida- prometidas com a socialização de um pensamento re-
de. Seu escri to denunciadores circulam pela Internet volucionário. Diante de nós estava um intelectual
e ganham o mundo, municiando as discussões e as ações amateur, sem dúvida, aquele que está ligado organica-
revolucionária. Onde haja opressão, exploração, dis- mente à experiência social dos pobres, dos desfavore-
criminaçã , af aparece a sua voz que potencializa as cidos, dos sem voz, dos não representados, dos sem
lutas emancipat rias. E i so tudo sem perder a doçura, poder. Aquele que, no dizer de Said, "representa a eman-
uma delicadeza ímpàr. cipação e a clarificação, mas nunca abstrações ou au-
Para mim para Célia Linhares é inesquecível o sência de sangue e paixão".
nosso encontro c m ele, numa fria manhã de inverno Também em Franz Fanon e Aimé Césaire, ambos ori-
em Bo tono Duas mulh res para ele desconhecidas que ginais da Martinica, eu encontrara essas características
se apre entararn como militantes pesquisadoras brasi- apontadas por Said. Ambos escolheram sempre os ris-
leiras e: que lhe solicitaram uma entrevista a ser cos e os resultados incertos da esfera pública, enfrentan-
publicada num livro em que se perguntava o que pen- do todas as dificuldades na luta pelos direitos dos
sam os intelectuais face aos dilemas de um final de deserdados da terra, sem deixarem de dar importante
século. No dia aprazado e na hora marcada, nós duas, contribuição teórica à compreensão da relação coloni-

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Afirma-se um intelectual público - um intelectual
zador-colonizado, um valendo-se da arte, poeta que era,
negro público - cuja função é interromper e intervir
o outro da ciência para denunciar as conseqüências
nas conversações, para incomodar e levar à indagação
psicológicas do processo de colonização, psiquiatra que
do porquê as questões são colocadas de uma determi-
era. Ambos lidos e citados por todos aqueles que se
nada forma ou por que as análises são feitas de tal for-
vinculam a uma perspectiva teórica pós-colonial. Am-
ma. Trabalha numa perspectiva desconstrutivista para
bos leitura obrigatória de quem pretenda melhor com-
reconstruir uma história, a seu ver, mal contada. Sendo
preender o processo de resistência à ação do coloniza-
extremamente preocupado com a questão da linguagem,
dor ou daquele que oprime e subalterniza o outro.
é consciente do tipo de linguagem que pode e deve usar
E a lista de intelectuais comprometidos seria muito quando se dirige a diferentes auditórios. Sabe que a
grande e vale a pena trazer alguns provocativos inte- linguagem pode potencializar ou enfraquecer de acor-
lectuais militantes que, sem abrir mão do rigor, culti- do como é usada, seja nas relações de trabalho acadê-
vam uma linguagem capaz de atingir a grande massa mico, seja nas vidas das pessoas fora de suas frontei-
de subalternos que engrossam a cada dia, num mundo ras. Está engajado num projeto de tornar acessível às
em que o projeto hegemônico é inevitável e crescen- massas o projeto intelectual da academia de modo que
temente excludente.
provoque mudanças e reconsideração de como o mun-
Michael Eric Dyson - intelectual norte-americano do vê raça, classe social, gênero, e outros construtos
negro, militante, que procura levar o trabalho intelec- • que modelam o nosso pensamento sobre diferença.
tual da academia para a cultura de massas, de modo a
Glória Anzaldúa - tendo muito cedo aprendido ser
pote~~ializá-Ias para a luta emancipatória. Consegue
diferente, não se adequando às normas e expectativas
mobilizar para a ação política, mantendo a integridade
de sua família ou da comunidade, continua pela vida
acadêmica. Diz ele em tom desafiador a seus colegas
afora sua luta pelo direito à diferença, como homosse-
acadêrni s:" m tipo de geografia do destino está as-
xual, feminista, marxista, mística, sempre uma outra.
ociada a se ocupam o terreno do específico da acade-
Seu lugar é o entre-lugar - no México era indígena e
mia c m um acadêmico. Nós adoramos falar de trans-
nos Estados Unidos, mexicana. Vivendo na ambiva-
gre são int I ctualmente, academicamente, mas não
lência, cria um novo estilo de escrita - uma escrita
queremos fazê-lo Iisi arnente e epistemologicamente".
mestiza, em que mistura diferentes gêneros numa col-
Apesar do tom permanentemente desafiador e irôni- cha de retalhos de linguagens na qual palavras e ima-
co, Dyson é ouvido re peitado dentro da academia e gens, poesia e prosa, escrita autobiográfica e cantos
fora de seus muros. E e te é seu objetivo, pois embora místicos dialogam numa mistura de espanhol e inglês
considere a teoria urna avenida pela qual importantes (Benjamin não teria ousado mais), a que denomina
questões são indagadas, defende que essas questões Spanglish. Assim vai teorizando sobre o espaço da fron-
não necessitam ser apresentadas de modo que neguem
teira, espaço de múltiplas identidades e vozes, em que
o acesso não-acadêmico a respostas.
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dobras se desdobram revelando o inusitado, o detalhe,
o insuspeitado, o oculto. alunos e alunas da universidade, pois não ensina ape-
nas literatura, ou inglês, ou composição, ensina a es-
"Eu terei a minha voz: indígena, espanhola, branca.
crever textos que possam ser potencializadores.
Eu terei a minha língua de serpente - minha voz de
mulher, minha voz sexual, minha voz de poeta. Eu su- Refletindo sobre a importância da teoria, propõe o
seu uso para melhor compreender o que acontece no
perarei a tradição do silêncio". Para ela "Não há sepa-
mundo e, compreendendo, poder mudá-lo, embora re-
ração entre vida e escrita", daí postular uma escrita
clame novos tipos de teoria, "teorias que rompam as
orgânica. Quando afirma "Eu faço a composição, mas
1.1 é tirada de pequenos mosaicos de vidas de outras fronteiras com novos métodos de teorização, como a
p essous, de percepções de outras pessoas", aproxima- ficção e a poesia, por exemplo ... é apenas mais difícil
s \ do diulo isrno bakhtiniano. ... em vez de vir pela cabeça Com um conceito intelec-
tual, vem pela porta de trás, com o sentimento, a emo-
Assim c mo Bhabha, Anzaldúa rejeita a dicotomia
ção, a experiência. Mas se se começa a refletir sobre
do ou/ou em favor de ambos/e, defendendo uma iden-
esta experiência, volta-se à teoria".
tidade sempre em processo. A identidade seria como
um rio queflui, um processo. Recusando-se a uma iden- Denuncia o impedimento de acesso a certo tipo de
tidade binária, rompe com todas as dicotomias: entre teoria a quem já é excluído socialmente, comprome-
masculino e feminino, entre razão e emoção, entre gay tendo-se em tornar suas narrativas acessíveis a todos.
e "normal", entre branco e de cor, entre mítico e real,
Nós fomos um povo colonizado que não era permitido
entre mente e corpo, entre espírito e matéria, entre
falar a nossa própria linguagem ... A educação pública ten-
oral idade e escritura, entre eu e outro. Ela se sente e se tava apagar tudo o que trazíamos de nossa cultura. Assim,
afirma na fronteira, no entre-lugar, daí valer-se de aqui estou eu, uma espécie de cidadã internacional cuja
múlti pias estratégias de escrita, a que denomina escrita vida e privilégios não são iguais aos direitos e privilégios
III istiza ou que alguns autores denominam retórica de pessoas comuns anglo, brancas, euro-americanas. Mi-
iuestiza. Vivendo no entre-lugar, advoga uma tolerân- nhas narrativas sempre levam em consideração estas ou-
cia à ambigüidade, pois que aprendeu a viver a situa- tras etnicidades, estas outras raças, estas outras culturas,
estas outras histórias.
ção de ser uma indígena na cultura mexicana e uma
mexicana na cultura americana. O processo de hibridi-
Muitos outros autores e autoras têm a mesma preo-
zação permanente que vive se revela numa rica mistura
cupação que os autores e autoras que apresentei neste
de gêneros, num tipo de patchwork de linguagens. E
pequeno texto. O que me parece importante é que pos-
afirma orgulhosa "Eu sou minha linguagem. Enquanto
samos refletir no espaço acadêmico sobre qual o lu-
eu não tiver orgulho de minha linguagem, não poderei
gar da teoria num projeto emancipatório e como S
ter orgulho de mim mesma". E é este orgulho por sua
pode reaproximar a teoria da prática e a prática da
própria linguagem que Glória procura cultivar em seus
teoria, potencializando aqueles e aquelas que vêm S n-
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do excluídos e impedidos de aprender a dizer a sua tradições culturais, projetos de sociedade alternativos.
própria palavra de modo que mudem as suas próprias Essas vozes silenciadas começam a se fazer ouvir, tra-
vidas e comprometam-se num processo de mudança dições e projetos alternativos reaparecem, povos um
social. dia colonizados reescrevem a sua história, o neocolonia-
Para isso, encontro respaldo em Boaventura de Sousa lismo é denunciado, grupos se organizam, criando no-
Santos quando proclama uma segunda ruptura episte- vas formas de relações mais solidárias e igualitárias,
mológica, em que ciência e senso comum, separados velhas utopias se atualizam. À globalização por cima
na primeira ruptura epistemológica, se reaproximem. os de baixo reagem e começam a se 'organizar em pro-
É preciso ir a Bachelard para compreender do que postas de uma globalização contra-hegemônica, aos de-
fala Boaventura. Para Bachelard, "a ciência se opõe à fensores do pensamento único o pensamento múltiplo
opinião, construindo-se, portanto, contra o senso comum responde em sua pluralidade.
e recusando as orientações da vida prática dele decor- Novos ventos anunciam a possibilidade de novos
rentes, o que exige uma permanente vigilância episte- tempos.
mológica". Este o modelo de racionalidade, a racionali- Será que neste momento de crise global, que pode
dade formal ou instrumental, subjacente ao paradigma levar até à destruição do planeta Terra, mas que tam-
da ciência moderna e que se opõe a qualquer manifes-
bém pode ser o prenúncio de novas formas auto-eco-
tação do que possa parecer irracionalidade, desconhe-
organizativas, alguém que se pretenda intelectual pode
cendo a complexidade da relação racionalidade e
estar in ensível ao que acontece?
irracionalidade, já hoje bastante estudada.
Este me parece um momento desafiador a que os
Boaventura está propondo
intelectuais públicos são chamados a participar se com-
... uma transformação tanto da ciência quanto do senso prometendo com a radicalização da democracia, pon-
comum, pois enquanto a primeira ruptura é imprescindí- do as suas pesquisas, os seus escritos e as suas falas a
vel para constituir a ciência, mas deixa o senso comum tal serviço de um projeto emancipatório.
como estava antes dela, a segunda ruptura transforma o O resto é silêncio ...
senso comum com base na ciência. Com esta dupla trans-
formação pretende-se um senso comum esclarecido e uma
ciência prudente ... uma configuração de conhecimentos Referências bibliográficas
que, sendo prática, não deixa de ser esclareci da e, sendo
sábia, não deixe de estar democraticamente distribuída.
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É preciso lembrar que o paradigma da modernidade
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