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O VISITANTE INOPORTUNO: O ESTUDO

DA ESCOLA NUM GRUPO TRIBAL


Eneida Corrêa de Assis (Coord.)

Série Documental: Relatos de Pesquisa, n.8, out./1993


DIRETOR
Divonzir Arthur Gusso

COORDENADORA DE PESQUISA
Margarida Maria Souza de Oliveira

COORDENADOR DE ADMINISTRAÇÃO
Luís Carlos Veloso

COORDENADOR DE ESTUDOS DE
POLÍTICAS PÚBLICAS Tancredo
Maia Filho

GERENTE DO PROGRAMA EDITORIAL


Arsênio Canísio Becker

SUBGERENTE DE DISSEMINAÇÃO E CIRCULAÇÃO


Sueli Macedo Silveira

GERENTE DO CENTRO DE INFORMAÇÕES


BIBLIOGRÁFICAS EM EDUCAÇÃO Gaetano
Lo Mônaco

RESPONSÁVEL EDITORIAL
Cleusa Maria Alves

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Celi Rosalia Soares de Melo
Hermes de Oliveira Leão

APOIO GRÁFICO
Maria Madalena Argentina

Série Documental: Relatos de Pesquisa, n.8

Tiragem: 300 exemplares

INEP - Gerência do Programa Editorial


Campus da UnB, Acesso Sul
Asa Norte
70910-900 - Brasília - DF
Fone: (061) 347 8970
Fax:(061) 273 3233
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO - MEC
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS

O VISITANTE INOPORTUNO: O
ESTUDO DA ESCOLA NUM GRU-
PO TRIBAL
Eneida Corrêa de Assis (Coord.)

O artigo-síntese, exigência do convênio de financia-


mento de pesquisa n° 27/91, firmado entre o INEP e
a Universidade Federal do Pará (UFPA), cuja con-
clusão se deu em setmbro de 1992, é de responsa-
bilidade de sua coordenadora. O relatório final
encontra-se à disposição, no INEP, para consultas in
loco. Os interessados em adquirir fotocópias poderão
solicitá-las à Coordenadoria de Pesquisa ou à
Subgerência de Disseminação e Circulação deste
Instituto, mediante pagamento.

Brasília/1993
APRESENTAÇÃO

Uma das funções institucionais do INEP consiste em prover e estimular a


disseminação e discussão de conhecimentos e informações sobre educação, visando seu
desenvolvimento e domínio público, através de sua produção editorial.
Com o objetivo de contribuir para a democratização de parte desses conhecimentos,
de modo mais ágil e dinâmico, o INEP criou recentemente as Séries Documentais, com o
mesmo desenho de capa: elas formam um novo canal de comunicações, diversificado quanto
a público, temática e referenciação; abrangendo vários campos, elas podem alcançar, com
tiragens monitoradas, segmentos de público com maior presteza e focalização; cada série
poderá captar material em diferentes fontes (pesquisas em andamento ou concluídas, estudos
de caso, papers de pequena circulação, comunicações feitas em eventos técnico-científicos,
textos estrangeiros de difícil acesso, etc).
São as seguintes as séries:
1. Antecipações tem o objetivo de apresentar textos produzidos por pesquisadores
nacionais, cuja circulação está em fase inicial nos meios acadêmicos e técnicos.
2. Avaliação tem o objetivo de apresentar textos e estudos produzidos pela Gerência
de Avaliação.
3. Estudo de Políticas Públicas tem o objetivo de apresentar textos e documentos
relevantes para subsidiar a formulação de políticas da Educação.
4. Eventos tem o objetivo publicar textos e conferências apresentados em eventos,
quando não se publicam seus anais.
5. Inovações tem o objetivo de apresentar textos produzidos pelo Centro de
Referências sobre Inovações e Experimentos Educacionais (CRIE).
6. Relatos de Pesquisa tem o objetivo de apresentar relatos de pesquisas financiadas
pelo INEP.
7. Traduções tem o- objetivo de apresentar traduções de textos básicos sobre
Educação produzidos no Exterior.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................. 6
OS PALIKUR E A ESCOLA .................................... 6
A ESCOLA ENTRE OS PALIKUR ............................... 7
ALFABETIZAR: UM DESAFIO A ENFRENTAR ...................... 9
OS PALIKUR DIANTE DESSE QUADRO .......................... 12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................. 13
INTRODUÇÃO jeto em etnoeducação, que coordenei, cuja
proposta de instalação de uma escola bilingüe
Em estudo anterior, publicado pela Revista implica, também, estudos sobre a condição
"Espaço Científico", discuti a identidade étnica masculina e feminina, a ação pente-costal, o
e as escolas em populações tribais. meio ambiente, a personalidade e o simbólico e
a criança indígena.
Os grupos estudados foram os Galibí e Ka-
ripúna, da região do rio Uaçá, afluente do rio Foram entrevistados professores, lideranças
Oiapoque, no município do mesmo nome. locais e chefia de postos, observada a dinâmica
Refleti sobre a presença e o papel da escola das aulas, além da observação participante,
como instrumento de contato, cujo processo característica do trabalho antropológico.
socializador, provocado por ela, influenciaria
no enfraquecimento da identidade étnica do
grupo, forjando indivíduos mais adequados aos OS PALIKÚR E A ESCOLA
padrões estabelecidos pela escola.
A escola, enquanto uma instituição de ensino e
O ponto central do debate era o retomar da própria das sociedades letradas, tem sido alvo
identidade étnica daqueles que saíam para além das discussões as mais diversas. Ora atacada,
das escolas da aldeia e buscavam emprego nas ora defendida, a escola está presente em,
cidades dos brancos, da mesma forma, como aproximadamente, 50% do período de vida das
essa passagem pelo mundo exterior poderia pessoas. Selecionadora social, a escola aloca os
contribuir para a formação de uma contra- indivíduos no cenário social, premiando alguns,
consciência. acoplando uma parcela em níveis médios ou
expulsando outros já atingidos por diversas
A escola ainda permanece como simples compulsões, que irão alimentar a reprodução
agência de contato ou ela adquiriu contornos das desigualdades sociais.
próprios, produzidos pela sua eficácia e
legitimada pelos índios? Em outras palavras, a A respeito da escola considera-se:
escola continua atuando de forma ativa sobre — que a instituição de ensino não é uma
uma população passiva ou algo mudou nessa empresa neutra;
relação? O que é a escola, afinal? O que é a — que a escola, apesar de estar a serviço dos
escola para o Estado? O que significa a escola interesses de muitos, parece fazer as vezes de
para os índios? Como eles a vêem? Como a poderosos agentes de reprodução econômica e
consideram? Qual o papel atribuído por eles à cultural das relações de classes;
escola neste momento? — que a escola é necessária;
— que há necessidade de se lutar pela sua
Nesse artigo, as considerações feitas se melhoria e pela garantia de acesso a ela pelos
prendem mais a situações vividas pelos — indivíduos em idade escolar.
Palikúr, do rio Urucauá, observadas, num
espaço de tempo de vinte dias, entre as aldeias O papel da escola nas sociedades tribais tem
do Kumenê, Flecha e Tawari, durante a sido amplamente debatido e gerado
realização da primeira fase do pro-
questionamentos a respeito de todo o processo aparato escolar, e essas mudanças são mais
escolar, qual sejam: como a escola se instala sensíveis quando se trata de sociedades ágrafas.
numa dada sociedade, passando pelo ensino da
linguagem escrita? Este deve ser dado em
português ou na língua do grupo, pelo A ESCOLA ENTRE OS PALIKÚR
professor ou pelo uso ou não de cartilhas?1
A escola, enquanto uma agência de contato,
Freitag considera que a escola atua no tem uma história particular em cada sociedade
"interesse da estrutura de dominação de que atinge e, a meu ver, é esse processo que
classe...", sendo que essa dominação não se dá define os contornos de sua trajetória.
por via direta, mas de "maneira disfarçada com
o consentimento dos indivíduos que sofrem a Desde que foi instalada a primeira escola entre
violência da ação pedagógica". Está em os Palikúr, em 1935, por iniciativa do governo
discussão, sem dúvida, a mul-tífuncionalidade do Estado do Pará, como tentativa de incorporá-
do sistema educacional na sociedade los à sociedade nacional, a escola sofreu várias
capitalista, esse mesmo sistema do qual as interrupções, ora por acharem que os brancos
escolas das áreas indígenas fazem parte, e um iam escravizá-los ou mandá-los para a guerra,
estudo sobre o papel da escola, nessas áreas, ora simplesmente por falta de assistência do
não pode se furtar. estado.

Nas sociedades não-letradas a tradição oral é o Esta situação perdurou até 1964, quando o
elemento marcante da transmissão de Serviço de Proteção ao índio (SPI) instalou uma
conhecimentos e de sua memória. A escola escola que também teve curso irregular. A
elaborada nos moldes dos brancos se carac- partir daí, a escola se fez presente, apesar de
teriza pela introdução de novos comporta- todos os percalços sofridos, tais como a
mentos, novos valores e, sobretudo, pela mudança e a falta freqüente de professores, o
priorização da linguagem escrita. A respeito desconhecimento do português por parte dos
disso, diz Ortiz Rescanière (1979, pg. 89) que a índios, bem como, do palikúr por parte dos
professores, além do pouco interesse da
"audição, o gosto e o tato das coisas, comunidade pela escola e pelo aprendizado do
meios essenciais de conhecimento e de co- português.
municação nas sociedades tradicionais, se
perdem diante do contato com a civili-
zação moderna; suas normas, condutas e Nesse ano de 1964, dois lingüistas do Summer
conhecimentos se seguem cada vez mais Institute of Linguistic (SIL) já haviam
pelo universo fixado e pela dinâmica da começado a estudar a língua palikúr, a traduzir
escrita...". a Bíblia e a ensinar a ler e a escrever em
palikúr.
Há, portanto, sensíveis mudanças no seio de
uma sociedade, com a introdução do Sem dúvida, a conversão da liderança de uma
das aldeias — o Kumenê — ao pente-
I Encontro Nacional de Trabalho sobre Educação Indígena, costalismo foi um fator decisivo para a
dezembro, 1979. permanência da escola neste grupo. Várias
famílias de outras aldeias foram atraídas para o Grupos Indígenas do Uaçá, que teve como
Kumenê "pelo evangelho da fé que chamou ponto básico da discussão a demarcação da
todo mundo", como se expressou essa reserva Indígena.
liderança.
Os Palikúr estavam envolvidos nesse processo e
A partir de 1980, surge uma nova liderança requeriam, para um enfrentamento satisfatório
religiosa local que alicerçou as bases do nas Assembléias Indígenas, em nível nacional,
pentecostalismo entre os Palikúr, ocorrendo ou nos debates com políticos e administradores,
aquilo que é definido pela atual liderança como o domínio da língua portuguesa. Esta passou a
"derramamento do Espírito Santo", e tornando ser um instrumento de defesa. Portanto, falar
o Kumenê a aldeia mais populosa do grupo bem português tornou-se uma necessidade
Palikúr. crescente.

O clima religioso, por outro lado, funcionou O que foi, de certa maneira, rejeitado por eles,
também como elemento desagregador, durante muito tempo, começou a ser valorizado.
provocando a transferência para Saint-Georges As lideranças entenderam, também, que a
de famílias descontentes com a nova situação conservação de sua própria língua e cultura era
do grupo. importante como demarcação de sua diferença
enquanto povo possuidor de uma história, de
Os que permaneceram no Urucauá apoiavam um território, de um pensamento.
um ou outro líder, disputa esta que teve fim
com a morte de um deles, em 1986. A tradução Uma atitude que havia marcado, até então,
da Bíblia, realizada pelos lingüistas do SIL, grande parte dos grupos indígenas que ainda
acresceu a necessidade do aprendizado da falavam suas línguas era a negação das mesmas.
leitura. As palavras do Evangelho estavam ali Acompanhados de sentimentos de vergonha e
para serem lidas e aprendidas, e apenas a escola humilhação, pela discriminação sofrida,
poderia facilitar esse processo. numerosos grupos tribais resistem ao
aprendizado bilíngüe, questionando a validade
O movimento político surgido no início dos desse tipo de ensino. Expressões como "Para
anos setenta, na esteira da campanha da auto- que interessa aprender a nossa língua?" ou "O
emancipação, o surgimento dos Grupos de que vale é o português" foram frases ouvidas
Apoio à Causa Indígena2 e a formação das pelos pesquisadores ou mesmo professores que
Assembléias Indígenas, promovidas pelo trabalhavam com os grupos indígenas naquele
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), momento. Será que as escolas existentes nos
introduziram uma nova dinâmica nas relações grupos tribais estão consoantes com a realidade
entre as populações tribais e a sociedade dessas populações? A divisão de
nacional. Em 1976, realizou-se em Kumaruman responsabilidades para com a
(aldeia Galibí) a primeira Assembléia Geral
dos

2
No Pará, o Grupo de Apoio ao índio (GAI) foi uma dessas entidades
que promoveu encontros, perdendo seu caráter militante por volta de quando muito, troca de correspondência com alguns grupos de apoio
1986. O Gai-Pará mantém, atualmente, que ainda permanecem militantes.
escola entre a Funai e a Secretaria de Educação ALFABETIZAR: UM DESAFIO A
do Amapá, por exemplo, não mudou muito ENFRENTAR
quanto à forma de recrutamento de professores
para trabalharem com os grupos indígenas do As dificuldades de alfabetização em língua
Uaçá. portuguesa têm sido uma das razões de maior
desestímulo para os professores que atuam em
Ainda não são fornecidas informações práticas grupos tribais.
sobre os grupos, sobre o nível de conhecimento
e entendimento do português pelos alunos ou O percentual de reprovação na 1- série obriga o
mesmo sobre que condições o professor irá professor a desdobrar essas séries iniciais em
trabalhar nesta ou naquela aldeia (cf. Braga, primeira série "repetente", ou "atrasada", e
1992). primeira série "adiantada". Esse percentual
tende a diminuir à medida em que o aluno
Uma das professoras entrevistadas relatou que consegue atingir as classes mais adiantadas,
a única informação que recebeu foi apenas que mesmo levando em conta um número menor de
deveria levar para a aldeia "prato, colher e aluno que consegue fazê-lo.
panela".
Atualmente, há, por parte das lideranças, um
Além disso, ainda perduram por parte dos maior incentivo às crianças e adolescentes
candidatos ao cargo de professor idéias sobre o quanto à necessidade de freqüentarem a escola,
índio como "primitivo", "selvagem", o que de o que nem sempre é compartilhado pela maioria
uma maneira ou de outra criam dificuldades dos pais. Indagadas sobre a necessidade da
para a contratação de professores para a área criança de estudar, algumas mães disseram "ser
indígena3. muito bom, mas que atrapalha" e, assim, a obri-
gação de ir à escola dependerá inteiramente da
Essas idéias podem funcionar como barreiras criança.
no relacionamento futuro do professor com o
Esse "atrapalho" causado pela obrigação de
grupo e, conseqüentemente, no desempenho de
freqüentar as aulas desvia um auxílio que é
suas atividades profissionais.
fundamental na mão-de-obra familiar — a
ajuda das crianças no trabalho da roça. Nesse
Desta maneira, pode ser que ele se recuse a
sentido, a escola é vista como "inoportuna",
aprender a língua dos falantes com quem vai
especialmente pelas mães que são obrigadas a
atuar ou mesmo desconsiderar as atividades e a
dispensar seus principais ajudantes4.
dinâmica social do grupo com o qual vai
interagir. Esses fatores, direta ou
indiretamente, irão repercutir no "fazer" do 4
As crianças até os 8 e 9 anos estão mais sujeitas à influência e
autoridade maternas. Após essa idade, as relações mãe/filho tendem a
professor em seu cotidiano escolar e social. sofrer alterações com a entrada da figura paterna nessa constelação. No
entanto, pudemos perceber, durante essa primeira fase da pesquisa, que
a figura da mãe parece ser preponderante no âmbito da família, no
entanto, não temos dados suficientes que nos esclareçam melhor essa
ação materna (cf. San-ches, 1992).

As noções de "primitivo" ou "selvagem", aparentemente arcaicas,


demonstram a lacuna dos cursos de magistério no que tange à
educação indígena.
Quanto aos termos "iniciante" e "repetente" Por esse motivo, os processos de avaliação,
foram adotados como forma de atender os característicos do cotidiano escolar, normal-
alunos que ainda não falam português. mente, causam reações bastante complexas no
seio de uma sociedade que tem seus próprios
Na classe dos "iniciantes" permanecem aqueles critérios de avaliação. Mesmo levando em
que estão entrando na escola pela primeira vez, conta que essa sociedade tenha alguns séculos
que não falam português ou mesmo que já de contato com a civilização, ela própria molda
tenham freqüentado alguma vez a escola, mas e propõe as formas pelas quais os indivíduos
que por uma razão qualquer não cursaram um terão seus valores estimados e/ou computados.
ano escolar completo. Funciona como uma
espécie de pré-escolar. A avaliação escolar está imbuída de noções
como "competência", "capacidade", ou seja,
O aluno "repetente" não é necessariamente um critérios exigidos para que um indivíduo possa
aluno que tenha sido reprovado na classe dar conta de um rol de informações e destrezas
anterior, porém uma criança que já entende um próprias da situação ensino-aprendizagem. Por
pouco de português, mas que ainda não outro lado, a avaliação é acompanhada do
consegue acompanhar com sucesso as sentimento de fracasso, levando o indivíduo e o
exigências da escola. grupo familiar a experimentar uma situação
traumática, tendo em vista que essa prova, pela
Entre os Palikúr tal estratégia foi usada pelos qual o indivíduo vai passar, envolve critérios
professores como uma forma de minorar os aos quais ele não tem referência.
danos que uma reprovação pode causar no seio
do grupo.
E um mundo de sinais e símbolos dotados de
A reprovação é considerada inaceitável, significação que ele não encontra entre aqueles
gerando descontentamentos e ameaças (quase que ele conhece, com os quais convive e
sempre cumpridas) de retirada da criança da valoriza. O mundo da palavra escrita e os
escola. conteúdos que ela contém é uma Caixa de
Pandora cheia de segredos e temores.

Este é um momento extremamente delicado em Por essa razão, os processos de avaliação


que o professor deve saber como agir com base requerem discussão com a comunidade tribal
no conhecimento adquirido em sua vivência para ver de que forma serão feitos ou se
com a população. deixarão de existir conforme os moldes da
escola dos brancos.
Até algum tempo atrás, esta era uma razão
bastante forte para o professor tornar-se Por outro lado, a escola começa a ser vista,
persona non grata entre os Palikúr. Atual- sobretudo pelas lideranças, como uma ins-
mente, esse tipo de reação da família dos tituição cada vez mais necessária, exigindo do
alunos que sofrem reprovação tende a mudar (o professor estratégias que atendam as
que não significa que não seja um momento expectativas pretendidas.
delicado) em razão da mudança de visão em
relação à escola.
Agrupar crianças que não falam português em Kapit: antes de que acontecimento (antes de
séries denominadas "atrasadas" e crianças que sair? antes de dormir? antes da chegada dele?).
já conseguem, pelo menos, entender as
palavras de comando dirigidas pelo professor, A mesma preocupação se observa em relação
durante as aulas, em séries "adiantadas" foi um aos números. Os palikúr contam até dez, a
procedimento que suavizou, razoavelmente, o partir daí eles empregam a numeração cardinal
choque sofrido pelas crianças que entram na em português. O número um, por exemplo, é
escola todos os anos no Kumenê, no Flecha e designado por termos como pakat, panou,
no Tawari. pakauwi e paha, respectivamente, para formas
cilíndricas, quadradas, para seres masculinos e
Em Kumenê, atuavam, até o momento em que para formas difíceis de definir como, por
esses dados foram levantados, três professores, exemplo, uma máquina fotográfica (Green,
que se distribuíam entre duas primeiras séries e [19..]).
três outras turmas, respectivamente, de 2-, 3- e
4ª séries. O desconhecimento do professor dessas es-
pecializações da língua vão refletir-se no
Em qualquer uma dessas turmas, os professores aprendizado do aluno que, certamente, emitirá
sempre traduziam para o palikúr as tarefas um outro tipo de resposta que não aquela
solicitadas, se desejassem obter algum esperada pelo professor, ocasionando com isso
resultado satisfatório. uma avaliação negativa do aluno por parte de
seu examinador.
A guisa de exemplo, posso considerar — certos Entre outros obstáculos que a criança enfrenta
aspectos de caráter sócio-lingüístico do palikúr, está a não familiaridade com o manuseio do
geralmente desconhecidos pelo professor-
lápis ou caneta, com o papel pautado e com os
alfabetizador, que são, a meu ver, um dos
livros. Aprender a manusear os instrumentos da
pontos de entrave da alfabetização, pois este,
escrita vão exigir dessa criança um longo
além, de não conhecer o idioma do grupo,
aprendizado, tempo esse que está em desacordo
tampouco conhece o português.
com o tempo e com as exigências do programa
estabelecido pelas secretarias de educação.
Existem, por exemplo, quatro formas de
emprego dos advérbios interrogativos de tempo No aprendizado dos desenhos, que fazem parte
(quando) e de lugar (onde) na língua palikúr. O da identificação de suas linhagens, o Kayapó é
advérbio de tempo quando é exprimido pelos pintado com genipapo pelas mulheres, que
termos Aysaw, Aysawhka e Kapit para designar aprendem essa tarefa desde criança. Para as
diferentes espaços de tempo: meninas, isso requer um longo aprendizado. O
desenho deve ser feito em linhas finas, retas,
Aysaw. em que tempo (ontem? mais tarde? paralelas, deve ser limpo, simétrico e com as
sempre?). devidas proporções. Um trabalho assim não são
todas que conseguem fazê-lo.
Aysawhka: em que tempo? (bem no passado ou
bem no futuro?).
Estabelecendo um paralelo com o exemplo dirigentes das reuniões, quem são os mais
citado por Aracy Lopes (1981), a aprendi- ouvidos, quem são os que sentam nos ban-
zagem da leitura e da escrita em grupos cos que contornam o centro da sala ou os
tribais deve ser pensada em termos de so- que sentam nos lugares mais afastados e que
ciedades ágrafas, de tradição oral, onde a permanecem como uma espécie de platéia,
aprendizagem se processa através da ob- que se pode observar e sentir melhor a
servação e da imitação, de noções de tempo influência da escola. São os que "sabem
e espaço diferentes, cuja penetração e ler", não apenas em português, mas também
imposição de um sistema de linguagem em palikúr, que granjeiam para si grande
escrita deve considerar esses aspectos só- prestígio, seja para os cargos de chefia, seja
cio-culturais. para o desempenho de funções que carecem
do domínio da leitura e da escrita.
OS PALIKÚS DIANTE DESSE QUADRO
Nesse sentido, trata-se de angariar instrução
E aqui cabe uma pergunta: por que os ín- suficiente, que não se restrinja apenas a ler,
dios continuam exigindo a escola, apesar de a escrever, a contar ou a entender um texto,
suas deficiências? A escola encerra em si mas de saber utilizar esse conhecimento
uma contradição: estranha a esse universo adquirido como uma forma de melhor se
cultural — inadequada, defasada, sub- conduzir entre os meandros sinuosos da
metida a um programa curricular autoritá- civilização.
rio, que privilegia o ensino do português —
torna-se necessária em função do contato. Em se tratando de grupos tribais portadores
de língua e cultura específicas, a educação
Os professores que trabalham nas escolas, bilíngüe deve ser defendida como um
em áreas indígenas, apesar de toda a boa direito e uma necessidade dessas sociedades
vontade e desempenho, carecem quase para poderem comunicar-se e expressar-se
sempre de cursos de atualização e, sobretu- culturalmente; o português deve ser
do, de treinamento em educação bilíngüe. ensinado como uma segunda língua,
politicamente necessária; deve ser pensado
A improvisação, como já foi dito anterior- em termos de uma língua estrangeira, cujo
mente, será uma tônica que acompanha es- ensino exigirá, para seu sucesso, de
se profissional, o que significa um gasto de metodologia adequada e de professores
tempo e esforço nem sempre recompensá- treinados, uma vez que a clientela com
veis pelos seus resultados. quem vão atuar não fala o português.
O reverso da medalha é que os grupos in-
dígenas entendem, hoje, que uma das for- Uma proposta escolar, portanto, precisa ser
mas de competição no mundo civilizado é pensada em termos de uma educação liber-
propiciada pela educação escolar. tadora, que considere a identidade cultural e
que respeite as estruturas internas de cada
E no momento das reuniões da comunida- sociedade, uma educação, enfim, pensada
de, quando se indaga sobre quem são os junto com a comunidade envolvida.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS GILLIN, John. Tribes of the Guianas.
Handbook of South American India7is.
ASSIS, Eneida Corrêa de. A nova identidade Washington, v.3, 1948.
étnica dada pela escola em grupo
integrado: o caso dos índios Galibí e GREEN, Harold. Como se pergunta em
Karipúna. Revista Espaço Cientifico, Palikúr? Belém: Summer Institute of Li-
Belém, 1985. nguistic, [19..].

BRAGA, Alzerinda de Oliveira. Dialetos do LOPES, Aracy. A questão da educação in-


português e o ensino do português-padrão: dígena. São Paulo: Brasiliense, 1981.
o caso do Posto Indígena Guaporé. Belém: ORTIZ RESCANIÈRE, Alejandro. Educación
UFPA, 1992. mimeo. bilingüe: una experiência en la Amazônia
peruana. Lima: Ed. Ignácio Prado Pastor,
CENTRO ECUMÊNICO DE DOCUMEN 1979. Algunas consideraciones
TAÇÁO E INFORMAÇÃO 24,34 — antropológicas sobre la educación bilingüe.
CEDI. Povos indígenas no Brasil. São
Paulo, 1983. SANCHES, Rinaldo Barbosa. Os Palikúr: o
papel masculino nas relações de trabalho e
DIAS, Mônica da Silva. De Tino a Kiyavu no: na vida política. Belém: UFPA, 1992.
o tornar-se mulher num grupo tribal; os Monografia (Conclusão de curso).
Palikúr. Belém: UFPA, 1992. Monografia
(Conclusão de curso).

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