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COORDENADORA DE PESQUISA
Margarida Maria Souza de Oliveira
COORDENADOR DE ADMINISTRAÇÃO
Luís Carlos Veloso
COORDENADOR DE ESTUDOS DE
POLÍTICAS PÚBLICAS Tancredo
Maia Filho
RESPONSÁVEL EDITORIAL
Cleusa Maria Alves
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Celi Rosalia Soares de Melo
Hermes de Oliveira Leão
APOIO GRÁFICO
Maria Madalena Argentina
O VISITANTE INOPORTUNO: O
ESTUDO DA ESCOLA NUM GRU-
PO TRIBAL
Eneida Corrêa de Assis (Coord.)
Brasília/1993
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO ............................................. 6
OS PALIKUR E A ESCOLA .................................... 6
A ESCOLA ENTRE OS PALIKUR ............................... 7
ALFABETIZAR: UM DESAFIO A ENFRENTAR ...................... 9
OS PALIKUR DIANTE DESSE QUADRO .......................... 12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................. 13
INTRODUÇÃO jeto em etnoeducação, que coordenei, cuja
proposta de instalação de uma escola bilingüe
Em estudo anterior, publicado pela Revista implica, também, estudos sobre a condição
"Espaço Científico", discuti a identidade étnica masculina e feminina, a ação pente-costal, o
e as escolas em populações tribais. meio ambiente, a personalidade e o simbólico e
a criança indígena.
Os grupos estudados foram os Galibí e Ka-
ripúna, da região do rio Uaçá, afluente do rio Foram entrevistados professores, lideranças
Oiapoque, no município do mesmo nome. locais e chefia de postos, observada a dinâmica
Refleti sobre a presença e o papel da escola das aulas, além da observação participante,
como instrumento de contato, cujo processo característica do trabalho antropológico.
socializador, provocado por ela, influenciaria
no enfraquecimento da identidade étnica do
grupo, forjando indivíduos mais adequados aos OS PALIKÚR E A ESCOLA
padrões estabelecidos pela escola.
A escola, enquanto uma instituição de ensino e
O ponto central do debate era o retomar da própria das sociedades letradas, tem sido alvo
identidade étnica daqueles que saíam para além das discussões as mais diversas. Ora atacada,
das escolas da aldeia e buscavam emprego nas ora defendida, a escola está presente em,
cidades dos brancos, da mesma forma, como aproximadamente, 50% do período de vida das
essa passagem pelo mundo exterior poderia pessoas. Selecionadora social, a escola aloca os
contribuir para a formação de uma contra- indivíduos no cenário social, premiando alguns,
consciência. acoplando uma parcela em níveis médios ou
expulsando outros já atingidos por diversas
A escola ainda permanece como simples compulsões, que irão alimentar a reprodução
agência de contato ou ela adquiriu contornos das desigualdades sociais.
próprios, produzidos pela sua eficácia e
legitimada pelos índios? Em outras palavras, a A respeito da escola considera-se:
escola continua atuando de forma ativa sobre — que a instituição de ensino não é uma
uma população passiva ou algo mudou nessa empresa neutra;
relação? O que é a escola, afinal? O que é a — que a escola, apesar de estar a serviço dos
escola para o Estado? O que significa a escola interesses de muitos, parece fazer as vezes de
para os índios? Como eles a vêem? Como a poderosos agentes de reprodução econômica e
consideram? Qual o papel atribuído por eles à cultural das relações de classes;
escola neste momento? — que a escola é necessária;
— que há necessidade de se lutar pela sua
Nesse artigo, as considerações feitas se melhoria e pela garantia de acesso a ela pelos
prendem mais a situações vividas pelos — indivíduos em idade escolar.
Palikúr, do rio Urucauá, observadas, num
espaço de tempo de vinte dias, entre as aldeias O papel da escola nas sociedades tribais tem
do Kumenê, Flecha e Tawari, durante a sido amplamente debatido e gerado
realização da primeira fase do pro-
questionamentos a respeito de todo o processo aparato escolar, e essas mudanças são mais
escolar, qual sejam: como a escola se instala sensíveis quando se trata de sociedades ágrafas.
numa dada sociedade, passando pelo ensino da
linguagem escrita? Este deve ser dado em
português ou na língua do grupo, pelo A ESCOLA ENTRE OS PALIKÚR
professor ou pelo uso ou não de cartilhas?1
A escola, enquanto uma agência de contato,
Freitag considera que a escola atua no tem uma história particular em cada sociedade
"interesse da estrutura de dominação de que atinge e, a meu ver, é esse processo que
classe...", sendo que essa dominação não se dá define os contornos de sua trajetória.
por via direta, mas de "maneira disfarçada com
o consentimento dos indivíduos que sofrem a Desde que foi instalada a primeira escola entre
violência da ação pedagógica". Está em os Palikúr, em 1935, por iniciativa do governo
discussão, sem dúvida, a mul-tífuncionalidade do Estado do Pará, como tentativa de incorporá-
do sistema educacional na sociedade los à sociedade nacional, a escola sofreu várias
capitalista, esse mesmo sistema do qual as interrupções, ora por acharem que os brancos
escolas das áreas indígenas fazem parte, e um iam escravizá-los ou mandá-los para a guerra,
estudo sobre o papel da escola, nessas áreas, ora simplesmente por falta de assistência do
não pode se furtar. estado.
Nas sociedades não-letradas a tradição oral é o Esta situação perdurou até 1964, quando o
elemento marcante da transmissão de Serviço de Proteção ao índio (SPI) instalou uma
conhecimentos e de sua memória. A escola escola que também teve curso irregular. A
elaborada nos moldes dos brancos se carac- partir daí, a escola se fez presente, apesar de
teriza pela introdução de novos comporta- todos os percalços sofridos, tais como a
mentos, novos valores e, sobretudo, pela mudança e a falta freqüente de professores, o
priorização da linguagem escrita. A respeito desconhecimento do português por parte dos
disso, diz Ortiz Rescanière (1979, pg. 89) que a índios, bem como, do palikúr por parte dos
professores, além do pouco interesse da
"audição, o gosto e o tato das coisas, comunidade pela escola e pelo aprendizado do
meios essenciais de conhecimento e de co- português.
municação nas sociedades tradicionais, se
perdem diante do contato com a civili-
zação moderna; suas normas, condutas e Nesse ano de 1964, dois lingüistas do Summer
conhecimentos se seguem cada vez mais Institute of Linguistic (SIL) já haviam
pelo universo fixado e pela dinâmica da começado a estudar a língua palikúr, a traduzir
escrita...". a Bíblia e a ensinar a ler e a escrever em
palikúr.
Há, portanto, sensíveis mudanças no seio de
uma sociedade, com a introdução do Sem dúvida, a conversão da liderança de uma
das aldeias — o Kumenê — ao pente-
I Encontro Nacional de Trabalho sobre Educação Indígena, costalismo foi um fator decisivo para a
dezembro, 1979. permanência da escola neste grupo. Várias
famílias de outras aldeias foram atraídas para o Grupos Indígenas do Uaçá, que teve como
Kumenê "pelo evangelho da fé que chamou ponto básico da discussão a demarcação da
todo mundo", como se expressou essa reserva Indígena.
liderança.
Os Palikúr estavam envolvidos nesse processo e
A partir de 1980, surge uma nova liderança requeriam, para um enfrentamento satisfatório
religiosa local que alicerçou as bases do nas Assembléias Indígenas, em nível nacional,
pentecostalismo entre os Palikúr, ocorrendo ou nos debates com políticos e administradores,
aquilo que é definido pela atual liderança como o domínio da língua portuguesa. Esta passou a
"derramamento do Espírito Santo", e tornando ser um instrumento de defesa. Portanto, falar
o Kumenê a aldeia mais populosa do grupo bem português tornou-se uma necessidade
Palikúr. crescente.
O clima religioso, por outro lado, funcionou O que foi, de certa maneira, rejeitado por eles,
também como elemento desagregador, durante muito tempo, começou a ser valorizado.
provocando a transferência para Saint-Georges As lideranças entenderam, também, que a
de famílias descontentes com a nova situação conservação de sua própria língua e cultura era
do grupo. importante como demarcação de sua diferença
enquanto povo possuidor de uma história, de
Os que permaneceram no Urucauá apoiavam um território, de um pensamento.
um ou outro líder, disputa esta que teve fim
com a morte de um deles, em 1986. A tradução Uma atitude que havia marcado, até então,
da Bíblia, realizada pelos lingüistas do SIL, grande parte dos grupos indígenas que ainda
acresceu a necessidade do aprendizado da falavam suas línguas era a negação das mesmas.
leitura. As palavras do Evangelho estavam ali Acompanhados de sentimentos de vergonha e
para serem lidas e aprendidas, e apenas a escola humilhação, pela discriminação sofrida,
poderia facilitar esse processo. numerosos grupos tribais resistem ao
aprendizado bilíngüe, questionando a validade
O movimento político surgido no início dos desse tipo de ensino. Expressões como "Para
anos setenta, na esteira da campanha da auto- que interessa aprender a nossa língua?" ou "O
emancipação, o surgimento dos Grupos de que vale é o português" foram frases ouvidas
Apoio à Causa Indígena2 e a formação das pelos pesquisadores ou mesmo professores que
Assembléias Indígenas, promovidas pelo trabalhavam com os grupos indígenas naquele
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), momento. Será que as escolas existentes nos
introduziram uma nova dinâmica nas relações grupos tribais estão consoantes com a realidade
entre as populações tribais e a sociedade dessas populações? A divisão de
nacional. Em 1976, realizou-se em Kumaruman responsabilidades para com a
(aldeia Galibí) a primeira Assembléia Geral
dos
2
No Pará, o Grupo de Apoio ao índio (GAI) foi uma dessas entidades
que promoveu encontros, perdendo seu caráter militante por volta de quando muito, troca de correspondência com alguns grupos de apoio
1986. O Gai-Pará mantém, atualmente, que ainda permanecem militantes.
escola entre a Funai e a Secretaria de Educação ALFABETIZAR: UM DESAFIO A
do Amapá, por exemplo, não mudou muito ENFRENTAR
quanto à forma de recrutamento de professores
para trabalharem com os grupos indígenas do As dificuldades de alfabetização em língua
Uaçá. portuguesa têm sido uma das razões de maior
desestímulo para os professores que atuam em
Ainda não são fornecidas informações práticas grupos tribais.
sobre os grupos, sobre o nível de conhecimento
e entendimento do português pelos alunos ou O percentual de reprovação na 1- série obriga o
mesmo sobre que condições o professor irá professor a desdobrar essas séries iniciais em
trabalhar nesta ou naquela aldeia (cf. Braga, primeira série "repetente", ou "atrasada", e
1992). primeira série "adiantada". Esse percentual
tende a diminuir à medida em que o aluno
Uma das professoras entrevistadas relatou que consegue atingir as classes mais adiantadas,
a única informação que recebeu foi apenas que mesmo levando em conta um número menor de
deveria levar para a aldeia "prato, colher e aluno que consegue fazê-lo.
panela".
Atualmente, há, por parte das lideranças, um
Além disso, ainda perduram por parte dos maior incentivo às crianças e adolescentes
candidatos ao cargo de professor idéias sobre o quanto à necessidade de freqüentarem a escola,
índio como "primitivo", "selvagem", o que de o que nem sempre é compartilhado pela maioria
uma maneira ou de outra criam dificuldades dos pais. Indagadas sobre a necessidade da
para a contratação de professores para a área criança de estudar, algumas mães disseram "ser
indígena3. muito bom, mas que atrapalha" e, assim, a obri-
gação de ir à escola dependerá inteiramente da
Essas idéias podem funcionar como barreiras criança.
no relacionamento futuro do professor com o
Esse "atrapalho" causado pela obrigação de
grupo e, conseqüentemente, no desempenho de
freqüentar as aulas desvia um auxílio que é
suas atividades profissionais.
fundamental na mão-de-obra familiar — a
ajuda das crianças no trabalho da roça. Nesse
Desta maneira, pode ser que ele se recuse a
sentido, a escola é vista como "inoportuna",
aprender a língua dos falantes com quem vai
especialmente pelas mães que são obrigadas a
atuar ou mesmo desconsiderar as atividades e a
dispensar seus principais ajudantes4.
dinâmica social do grupo com o qual vai
interagir. Esses fatores, direta ou
indiretamente, irão repercutir no "fazer" do 4
As crianças até os 8 e 9 anos estão mais sujeitas à influência e
autoridade maternas. Após essa idade, as relações mãe/filho tendem a
professor em seu cotidiano escolar e social. sofrer alterações com a entrada da figura paterna nessa constelação. No
entanto, pudemos perceber, durante essa primeira fase da pesquisa, que
a figura da mãe parece ser preponderante no âmbito da família, no
entanto, não temos dados suficientes que nos esclareçam melhor essa
ação materna (cf. San-ches, 1992).