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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Disciplina: Didática
Docente: Joana D’arc Vaz
Camila Freitas Gomes – Turma P
ESCRITOS MEMORIAIS - MEMÓRIAS ESCOLARES

No dia 04 de janeiro de 2002 na cidade de Belo Horizonte, nasce uma criança cujos pais
deram o nome de Camila Freitas Gomes (Sim, Camila veio pela música da banda
“Nenhum de Nós”). Camila Freitas Gomes atualmente se apresenta como uma mulher,
negra e corpo político, ativo. Eu sou Camila Freitas Gomes.

No que se segue irei descrever o que me vem à lembrança, e relatos mais consistentes
da memória de meu pai em toda a minha trajetória enquanto estudante e farei relações
desta com o documentário “Pro Dia Nascer Feliz”, no que tange meu conhecimento
sobre direitos na educação além de pontos críticos que me sinto em lugar confortável de
comentar enquanto sujeito que realiza a ação de assegurar a sua cidadania, pois creio
que uma educação efetiva, mais que escolarizada para atender a um tipo de sociedade de
consumo, é a educação política, crítica, emancipatória.

No ano de 2005, com três anos de idade, fui inserida na pré-escola, onde tive o primeiro
contato com um modelo de espaço escolar e início as minhas primeiras relações com
meus pares e onde se inicia o meu desenvolvimento de “ser humana”, partindo de uma
perspectiva sociointeracionista, o conhecimento do mundo egocêntrico que vai se
encaminhar para o conhecimento da realidade através da interação com outras pessoas.
A pequena escola se localizava a 5 minutos da minha casa e não tenho descrições
precisas sobre a estrutura, mas me recordo de um pátio de tamanho médio, de passar por
uma sala de aula para chegar até a minha salinha. Nessa escola fiquei até completar 5
anos.

Em 2007, mudei de escola e, assim como a anterior essa escola era uma instituição
privada. Ademais, era um colégio cristão protestante - e minha família é cristã católica o
que me resultou em alguns anos de questionamento e desconforto sobre o local-. A
escola possuía uma estrutura grande, com dois pátios, duas quadras, várias salas de aula
além de um grande auditório onde aconteciam os cultos. Como mencionei
anteriormente, a questão religiosa me impunha desconfortos e o momento do culto
talvez era o maior destes. Nos dias atuais aproveito para fazer jus à uma famosa
pergunta que ronda os meios digitais sociais: “onde a sua religião estava na escravidão?
”, pois tendo o lado paterno da minha família inteiramente composta por pessoas negras
me questiono em qual momento a minha ancestralidade passa a cultuar a religião
católica, mesmo que com algumas crenças advindas do processo de sincretismo
religioso. Todavia, não terei essa resposta, pois a última pessoa de minha família a fazer
parte de uma religião de matriz africana era meu avô, que veio a falecer no mesmo ano
já citado ao início deste parágrafo.

Sempre possuí um desempenho agradável na escola e, por ser uma instituição privada,
sempre tínhamos a oportunidade de ter a experiência do conhecimento em sala de aula e
em campo. Todavia algumas aulas, e seus conteúdos, chegavam a mim carregados de
vieses da religião seguida pela escola. Ademais, como minoria na escola, fui vítima de
discriminações em relação à minha raça que até a minha saída do colégio que me
servem como parte do trauma colonial revivido até a contemporaneidade por pessoas
negras – os racismos cotidianos – (KILOMBA, 2019), mas na época isso não foi
percebido por mim e futuramente viria a ser um fator importante para me entender como
pessoa capaz de realizar ações e reivindicar direitos. Em resumo, não tinham pautas
políticas na escola além da religiosa – esta que se isentava de adentrar em assuntos
políticos - uma vez que a abdicação de pautas políticas favorece o prevalecimento do
sistema privado de educação. Todavia, considero que a minha vivência de nove anos no
espaço foi vazia de conteúdos que me formariam como cidadã, uma vez que durante
todo esse tempo não tinha espaço para mim na escola, não falavam sobre minha raça a
não ser em um dia comemorativo onde todas as crianças brancas faziam “blackface”,
também não conheci a verdadeira história do nosso território (neste período a lei 10.639
já estava em vigor) e muito menos ouvi falar de referências negras como a rainha
N’Zinga, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez ou Frantz
Fanon; ressalto Lélia mais uma vez em uma destemida frase que ela nos deixou e cabe
perfeitamente a mim: “A única saída que eu encontrei para superar estes problemas foi
ser a primeira aluna da sala. É aquela história, “ela é pretinha, mas é inteligente”,
porque para lidar com os problemas de invisibilidade e preterimento de crianças pretas
em relação à crianças brancas, tive que dar muito do meu esforço para ser notada de
uma forma um pouco mais acolhedora pela instituição.

Em 2016, devido a dificuldades financeiras, migrei para a instituição pública de ensino,


a escola possui semelhança em estrutura com uma das escolas do documentário “Pro dia
nascer feliz”. Neste momento sofri uma quebra de paradigma e estigmas que a
sociedade coloca sobre as escolas públicas. No mesmo ano eu passei a entender pautas
que atualmente são prioridades em minha vida, principalmente a pauta racial, pois é um
fator importante para a forma como os ambientes me veem, junto à consciência racial e
de classe); também comecei a me aproximar da arte como possibilidade de fazer parte
do universo.

Em 2017 inicio minha trajetória no ensino médio. Fiquei em uma turma com a maioria
de estudantes aparentemente “desinteressados” e estigmatizados pelo corpo docente da
escola. Fui representante da turma 102, e junto com outros representantes começamos a
nos reunir após o horário da aula para discutir nossas demandas até que coletivamente,
nos movimentamos e junto com professores e direção, foi aberto o conselho de
representantes para que a relação da escola conosco se aproximasse de uma relação
horizontal. Aqui, consigo observar as questões dos professores e seus desgastes assim
como visualizar melhor realidades muito distintas da minha que são também mostradas
no documentário. Neste ano, tenho a oportunidade de realizar um curso de
administração promovido pelo governo do estado e percebo que tenciono o modo como
a escola mede conhecimento, o método de pontuação e que muitas vezes aumentam
desigualdades em locais onde as oportunidades poderiam ser igualmente distribuídas.
Com o curso, vi o funcionamento da escola à noite e era um funcionamento bem
próximo ao esquema apresentado com uma das escolas apresentadas no documentário,
sala com estudantes de idade diversificadas, falta de professores no espaço e afins. Vale
ressaltar que as primeiras luzes da pedagogia fizeram presença na minha mente neste
ano.

No ano de 2018, começo a fazer parte do grêmio estudantil e ao mesmo tempo, dou
início ao curso de teatro do Valores de Minas - este é o momento mais importante da
minha vivência até os dias de hoje, pois o espaço propunha a arte como caminho para a
cidadania, a arte política - e atuo no grêmio na área da cultura. Durante o período, me
aliei a professora de geografia de minha escola e promovemos rodas de conversa sobre a
questão racial com convidadas de referência, promovendo trabalhos conjuntos com os
alunos e oferecendo oficinas de teatro a fim de despertar o questionamento político
sobre o direito de acesso à arte nas escolas e como poderíamos quebrar ideias universais
de ocupação de espaços que é válido mencioná-los aqui: quem acessa a arte? Quem tem
esse acesso, dá suporte a qual tipo de arte? É possível integrar arte, questionamentos da
leitura de mundo a outros conteúdos escolares? Passamos a compreender que se nós,
estudantes em coletivo, não levássemos nossas demandas e participássemos ativamente
da dinâmica da escola, elas não seriam atendidas. Desde então, a escola passou a ter
maior contato com a arte, com debates políticos e com os esportes através da
organização de clubes.

No ano seguinte, em 2019, não me relaciono tão ativamente com a direção da escola,
por ser o ano da formatura e as preocupações com universidade começarem a surgir.
Porém observei o movimento de estudantes secundaristas dentro e fora da escola se
esforçando para assegurar a nova dinâmica escolar. Tive uma fase de conflitos pessoais
e uma fragilidade na minha saúde mental devido à sobrecarga por estudar nos três
turnos, resultado da ideia implantada, mas real de que pessoas negras precisam fazer
voando o que pessoas brancas fazem caminhando (ROCK, 2009). Por esse motivo, não
tenho muito a compartilhar deste período, infelizmente. Para finalizar minha trajetória
escolar, volto a dizer que sempre busquei fazer meus esforços para ser reconhecida por
algum motivo e isso vem de um incentivo muito forte de meu pai, um homem negro, o
primeiro graduado da nossa família em Tecnologia da Informação, e por isso, recebi
alguns títulos de honra ao mérito e “Aluno destaque”, estes que anexarei abaixo para
evidenciar esses esforços e relacionar isso ao desamparo da população negra no campo
da educação (seja pela desvalorização ou a busca por esta) que trazem consequências
futuras devido a demanda e oferta de oportunidades que raramente nos alcança,
afetando a forma como nós vivemos, como nos cuidamos, como nos alimentamos e
como lidamos com nossa saúde mental

Figura 1 – Certificado “Aluno Destaque” Camila Freitas Gomes, 2016.


Figura 2 – Certificado de Excelência Camila Freitas Gomes, 2013.

Em 2020 ingresso no curso de pedagogia na UFMG, e atualmente estou finalizando o


sexto período. Durante esses três anos de curso, tive oportunidade de atuar como
monitora no Centro Pedagógico, e atualmente sou monitora em Antropologia e
Educação, e atuo em um projeto de extensão e uma Iniciação Científica. Ademais sou
reorganizadora do GEAA – Grupo de Estudos Ações Afirmativas – onde debatemos
leituras que partem de perspectivas negras a fim de dar voz para esse público na
academia e afirmar a potencialidade do nosso povo enquanto produtores de
conhecimento. Utilizo esse espaço para fazer um agradecimento a quem veio antes de
mim e não deixa de me observar - mais ainda ao meu pai -, aos que estão comigo nessa
trajetória almejando por mudanças e cavando mais até o fundo para as alcançar, e a
quem se utiliza de mim como figura de inspiração, com a possibilidade de sonhar e não
me deixar desistir. Além de um muito obrigada também quero dizer que estou chegando
lá, que eu estou quase lá.

Por fim, após assistir ao documentário e analisar a minha experiência, penso que não é
somente um sujeito que faz a escola, mas todos (escola, sociedade e estudantes)
deveriam atuar em ação coletiva consciente das realidades, pensando estratégias e
táticas (CERTAU, apud. COSTA; MOMO, 2010) para transformar locais de tensão
dentro da educação afim de reivindicar mais equidade escolar, mais oportunidades para
todos os corpos políticos e firmar uma educação libertadora, que resultará em impactos
em todos os campos sociais e instituições que compõe e constroem a nossa sociedade. É
preciso transitar e ocupar novos locais.
REFERÊNCIAS:

EDUCAÇÃO DO RIO EM GREVE. Pro Dia Nascer Feliz. Youtube, 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=nvsbb6XHu_I&ab_channel=EDUCA%C3%87%C3%83ODORIOE
MGREVE. Acesso em: 15 de maio de 2023;
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. 1ª reimpressão. São Paulo: Ubu Editora, 2020/320 pp;
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1ª edição. Cobogó, 2019;
MOMO, Mariangela; COSTA, Marisa Vorraber. Crianças escolares do século XXI: para se pensar uma
infância pós-moderna. Cadernos de Pesquisa [online]. 2010, v. 40, n. 141 [Acessado 15 janeiro 2022], pp.
965- 991. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/NBpzTPtSzby3Dvf3ZP9fFGh/abstract/?lang=pt.;
SLUDGE CENTRAL. Chris Rock on his New Jersey Home. Youtube, 2009. Disponível em:
https://youtu.be/9Kxp9CEJeAg. Acesso em: 15 de maio de 2023.

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