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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Renan Monteiro Barcellos - 2016040429

Meu nome é Renan Monteiro Barcellos, natural da cidade Muriaé – MG, zona da
mata, zona de fronteira, dividindo geografias com o estado do Rio de Espirito Santo.

Acredito que para muitas pessoas, também para mim a trajetória escolar é
fundamental na formação não só de um corpo de conhecimento construído e adquirido,
mas de valores e subjetividades da nossa humanidade que muitas vezes escapa a uma
análise mais apressada. Tenho lembranças vivas desde o chamado “jardim de infância”
até o momento atual, levando em consideração que o estudo, a escola, sempre foi um
dos fios condutores da minha trajetória, que está em pleno desenvolvimento.

Mais especificamente, a disciplina de História, anteriormente ao meu ingresso na


universidade, exerceu forte influência em minha vida de maneira integral, e não
somente com um conteúdo obrigatório em uma estrutura de ensino estatal formal. E as
pessoas que ministraram essas disciplinas durante minha caminhada escolar foram
fundamentais na forma como a vivência e não só o estudo da história torna uma parte
importante do que sou e onde estou hoje.

Não me aterei aqui ao processo universitário, mesmo tendo uma caminhada


anterior em outra instituição federal anterior ao meu ingresso na Federal de Minas
Gerais. Como é um caminhar que ainda se dá, falarei sobre o ensino fundamental e
médio, locais estes fartos de relatos em muitos casos vazios ou mesmo negativos em
relação às experiências não só com a história, mas com as demais disciplinas.

Ao contrário de muitas e muitas pessoas na realidade do nosso país, tive o


privilégio de desde o contato mais inicial com escolas. A minha geração viveu uma
divisão da trajetória um pouco diferente da adotada hoje. Primeiro fazíamos da primeira
à quarta série do fundamental, e neste período não destaco lembranças e momentos
significativos em relação à história enquanto disciplina, até porque a proposta
educacional desse período da caminhada escolar não pretendia o que, no próximo
momento, já apresentava, uma sistematização do conteúdo e consequente separação
entre as disciplinas.

Aqui, quando ingressei no próximo passo do ensino fundamental, da quinta à


oitava série, posso afirmar veementemente que se deu o processo inicial de criticidade
em pensar a realidade e seus fatos.

FONTE: https://www.facebook.com/photo?
fbid=2491847344371711&set=br.AbrgV4Wk2BB6quthtsDEiUBWlUk1655T5ohjGp_GelBl3mPBUabxYdmzh0G-
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Acessado em 10/12/2020

Este período da minha caminha escolar foi cursado na Escola Municipal Gilberto
José Tanus Brás (foto acima), situada no bairro João XXIII, da cidade de Muriaé. O ano
em que me matriculei foi o ano que esta estrutura física mostrada na imagem foi
inaugurada. Anteriormente, ela funcionava em uma antiga fábrica de macarrão, no
mesmo bairro, bairro este de classe média alta, entretanto que sempre recebeu alunas e
alunos das comunidades periféricos do entorno. De certa forma, penso hoje, mas
também na época, pois já conhecia este histórico, foi uma conquista essa evolução da
fábrica à escola, pois as populações que eram majoritárias nesta ganharam muito em
qualidade de ensino que também compreende uma estrutura física harmoniosa. Quando
entrei, a escola estava novinha!

Juntamente à novidade da estrutura recém construída, existia uma jovialidade e


uma proposta muito progressista e aberta em relação às praticas pedagógicas adotadas
nessa escola. Por exemplo, além das disciplinas “comuns”, a escola possuía educação
ambiental com práticas no bairro, forte incentivo e movimentação artística na escola,
com presença de bandas formadas por discentes, festivais e festividades relacionadas ao
calendário e suas comemorações e uma abordagem muito humanizada por parte do
corpo docente. Disso vinha um compromisso com uma educação de caráter
emancipatório, e isso refletia por consequência também no ensino de história.

A professora chamava-se Donizete, a Beth (infelizmente não me lembro do


sobrenome) e acompanhou a minha turma, dentre outras, da quinta à oitava série. Ao
meu ver, isso é muito bom, pois cria a possibilidade real de acompanhamento de alunas
e alunos, compreender suas subjetividades para além das notas e atividades e em
consequência ter um acolhimento mais humano de situações que em muitos casos
rompia com barreiras comumente estabelecidas entre o corpo docente e discente. Na
minha trajetória particular, esse último aspecto foi essencial para que anos depois eu
pleiteasse entrar em uma universidade pública para História. Destaco três momentos e
um aspecto.

O aspecto diz respeito à metodologia de avaliação de Beth, que do primeiro ao


último ano de aulas com ela, foi o mesmo: sempre duas questões, raramente três, onde a
primeira consistia em explicar com nossas próprias palavras os principais entendimentos
da matéria trabalhada; a segunda, e a melhor parte, consistia em explicar uma questão
específica que exemplificasse em muito o conteúdo trabalhado em forma de desenho
e/ou história em quadrinho. A variedade imensa e em grande parte inusitada das
narrativas produzidas na verdade era melhor parte, pois em grande medida eram
compartilhadas num momento de correção coletiva, parte final do processo de
avaliação. As aulas eram comandadas por uma capacidade admirável de construir
exemplos e traduções dos conteúdos trabalhados que até hoje me é admirável,
considerando principalmente a faixa etária da maioria do corpo discente. Adicionado de
uma voz potente, grave e forte em volume, que hipnotizava à todas as crianças!

Um dos momentos que mais me marcaram foi a vivência do episódio da queda


das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, na cidade de Nova York, Estados
Unidos. Lembro que no dia, não sei o motivo, fomos liberados mais cedo, às 9:30 da
manhã. Ao chegar em casa, encontro meu pai e meu irmão atônitos, em frente à tv,
atentos às imagens dos aviões. Não demorou para eu entrar no mesmo modo e me
lembro de passar o restante do dia com imensas dúvidas e bem apreensivo pelo futuro.
Eu estava na sexta série.

Ao retornar à escola no dia seguinte, aula de história. Beth teve um brilhantismo


em não explicar, pois seria um movimento muito complexo, acredito, para nossas
pequenas mentes. Entretanto, nos instigava, e eu particularmente ficava bem
empolgado, em procurar informações, textos, mas principalmente, questionar sobre as
notícias que estávamos vendo, o que já tínhamos estudados sobre as culturas da região
do Oriente Médio e seus conflitos, e no dia seguinte, enxurrada de materiais trazidos
pela turma. A semana toda foi somente sobre esse assunto.

No último encontro da semana, ela nos lançou uma “avaliação surpresa”, nos
instigando, como de praxe, a nos expressarmos sobre os ocorridos da semana, só que
desta vez, somente por desenhos. Lembro que um grande amigo produziu um desenho
onde a figura de Bin Laden, que tinha assumido a autoria dos atentados, fazendo sexo
anal com a figura de George W. Bush, este último em flagrante representação de
submissão, com frases do tipo “agora você se fudeu!”; eu produzi uma história em
quadrinhos onde o gran finale era uma bomba atômica lançada pelos países ocidentais
no Afeganistão, pois rapidamente a mídia construiu um quadro mais complexo sobre
tais acontecimentos. Estávamos na sexta série!!!

Ao invés de nos reprovar ou nos expor por conta de nossa audácia, ela
pedagogicamente, em meio a muitas risadas, expôs nossas produções no intuito de
criticamente compreendê-las e formar um quadro crítico sobre, na mesma medida que
depois nos chamou em particular para conversar sobre. Nesse momento, nos instigava
ainda mais, nos fazendo perguntas do tipo: “será que uma bomba e destruir todo mundo
dessa região é a solução? Todas as pessoas que estão ali são culpadas?”; “esse conflito
se trata apenas da vitória e humilhação de uma parte sobre a outra? Quais os motivos
para esse ataque? Está certo utilizarmos conotações sexuais para expressar abuso e
dominação?”. Ao invés de sairmos humilhados e reduzidos a crianças mal comportados,
saímos empolgadíssimos com a possibilidade de elevar nosso próprio pensamento, pois
mesmo vindo de formar bem violentas, como mostrado, tais ideias eram sempre
consideradas, sempre se partia delas, e ela, mais do que conteúdo, nos ensinava de
verdade a pensar.

Anos depois, já ao fim do terceiro ano do ensino médio, ao sair de um ensaio de


uma das primeiras experiências com bandas que tive na vida, de baquetas na mão,
encontro Beth na rua. Nos reconhecemos, e disse para ela que iria tentar o vestibular,
que meu sonho era música mas que, pela vida e por influência dela, tentaria para
História e a agradeci por tudo. As lágrimas correram dela com muita sinceridade, me
deu um abraço e pegou o ônibus. Nunca mais a encontrei pra dizer que sim, deu certo e
eu passei!

Durante o ensino médio, cursado na Escola Estadual Professor Orlando de Lima


Faria, também foi de grande importância em minha formação. O professor, José Torres,
Zé torres para íntimos e não íntimos, era figura muy grata por toda escola por sua forte
personalidade e inteligência destacada. Nos acompanhou também pelas três séries do
ensino médio e tinha metodologia bem diferente de Beth: era sério, falava pouco, mas
com muita autoridade e profundidade, flamenguista doente, tinha por didática nos
preparar para o vestibular, ministrando grande conteúdo e sempre fazendo avaliações de
múltipla escolha, assim como eram os vestibulares dessa época, e que pegava muitas
pessoas na armadilha de que tais avaliações seriam fáceis, coisa que nunca foram. E o
melhor detalhe: Zé Torres foi a primeira pessoa que conheci na vida abertamente ateu e
comunista! Inclusive, adorava falar que nunca teve e que nunca compraria um carro na
vida (ia para escola a pé todos os dias, morava a periferia e inclusive no caminho era
acompanhado de vários alunos e alunas) e ostentar a foto que ele tinha com Fidel
Castro. Sim, ele tinha ido à Cuba em um congresso e em sua juventude e a foto era real!
FONTE: https://www.facebook.com/EEPOLF/photos/a.2196665560571857/2307329986172080 Acesso em: 10/12/2020.
FONTE: https://www.facebook.com/EEPOLF/photos/a.2196657003906046/2196665090571904 Acesso em: 10/12/2020.

O “Estadual”, como era mais comumente conhecida a escola, recebia tal alcunha
por ter sido de fato a primeira escola desta modalidade na cidade de Muriaé. De maneira
à primeira escola citada, o Estadual se encontrava em um bairro de classe média alta,
mas era majoritariamente ocupada pela população dos bairros mais vulneráveis do
entorno. Por conta desse pioneirismo, o corpo docente era de certa maneira antigo, e a
escola possuía já certo nome e autonomia para concretizar suas particularidades
enquanto instituição. Não objetivava uma educação tão emancipatória quanto à
primeira, mas tinha muita humanidade e compreensão com a multiplicidade de situações
vividas pelo corpo discente.
Para mim, Zé Torres foi uma figura importante na formação de uma primeira
ideia de intelectualidade. De certa maneira, embora todo corpo docente carregava cada
qual sua sabedoria, essa imagem de “intelectual”, de pessoa crítica, bem fundamentada,
que tinha respostas para quase tudo, mas ao mesmo tempo muito simples, de fala não
complicada, era bem representada na figura dele. Alunas e alunos de diferentes turmas
se entusiasmavam com suas investidas críticas e sempre muito bem fundamentadas
contra o sistema capitalista e ao Cristianismo. Pelo para mim, na mesma medida dos
questionamentos de Beth, me deixava extremamente instigado, não só por compactuar
em grande medida com suas ideias, mas também com o respeito e autoridade que tinha
diante de temas que são espinhosos e podem eventualmente ferir pessoas, das mais
variadas formas. Me lembro bem de quando ele soube da notícia de que eu tinha
passado em um federal, eu já fora da escola e retornando para obter um histórico, falar
rispidamente o seguinte: “ah, que bom! Você sempre foi bom aluno, só conversa
demais!”. Pronto, assim. Mas por dentro, eu sabia que ele estava bem feliz e satisfeito,
pois infelizmente a realidade de boa parte das alunas e alunos direcionavam suas vidas
para outros fins, e somente eu e mais dois amigos, ambos da mesma turma, passamos
não só em instituições federais como em vestibulares em geral, de todo o corpo docente.

Acredito que a trajetória acadêmica caia bem em outra narrativa e esses foram as
lembranças que mais queria destacar em minha autobiografia escolar.

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