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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


ESTÁGIO CURRICULAR NO ENSINO II
LICENCIATURA EM HISTÓRIA

4ª ATIVIDADE: ENTREVISTA COM O PROFESSOR SUPERVISOR


SALATIEL MAGNO SIQUEIRA ALVES

ESTAGIÁRIO: DANIEL DOS SANTOS GOMES

Recife, 22 de maio de 2023


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De forma sintética gostaria que o Sr. falasse de sua trajetória de vida: como veio a se
interessar pela disciplina de história, em específico no campo da licenciatura. Além
disso, gostaria que falasse um pouco sobre seus conhecimentos de notório saber,
dado a sua relação com a arte, e como essa relação veio a contribuir na sua formação
como professor.

Sou da cidade de Caruaru, interior de Pernambuco. A cultura [música] foi a porta de inclusão
social onde fui desenvolvendo meus trabalhos. Vim para Recife estudar no Conservatório
Pernambucano de Música e quem me estimulou a olhar a história com um olhar distinto foi
um professor, que era um padre - ele usava muita história para explicar a teoria musical,
dando sentido e significado a tudo que fazíamos ali. Aquilo mexeu muito comigo e comecei a
trabalhar na noite [em shows] num certo tempo. Depois, não lembro exatamente o porquê,
eu comecei a dar aula de música, daí quando eu me vi já estava dando aula de música e me
inspirei muito nesse professor. Quando eu vim a ser reconhecido como detentor de cultura
[popular], a qual hoje é considerada patrimônio imaterial, começou a haver muitas
discussões históricas sobre o forró. Contudo as pessoas que vinham narrando sobre esse
assunto não tinham propriedade sobre o assunto, então como eu já vinha nesse caminho,
conhecendo e convivendo com os detentores desta arte que é o forró, comecei a diluir e
esclarecer determinadas equívocos em relação a alguns conceitos históricos por sobre o
forró, porque existe uma diferença de falar sobre cultura e falar de cultura: quem fala de
cultura é o detentor que tem a experiência; falar sobre [e com propriedade] é através do
mundo acadêmico.

Para situar temporalmente, isso foi em torno de que ano?

Isso foi no começo da década de 90, principalmente no sudeste. E aí eu comecei a


frequentar alguns espaços para explicar determinadas características do forró, seja na
dança ou na música, por meio da história. Aí a situação começou a ficar mais complexa,
porque tive que me deslocar pra mais de um lugar. E os detentores achavam, por eu ser
mais novo e ter, segundo eles, facilidade no diálogo com as pessoas, [que deveria] assumir
esse papel [de interlocutor do saber]. Os mestres [detentores] que estou falando são:
Camarão, Dominguinhos, Severo, Arlindo dos Oito Baixos…

Mas neste momento o Sr. ainda não estava na academia, correto?

Pra quem vem do interior, principalmente da classe social de onde vim, frequentar uma
universidade era coisa de filho de fazendeiro. O pobre podia ser esperto, desenrolado,
articulado, mas uma universidade não era um espaço para o nosso povo, tanto que sou o
primeiro da minha família a pisar em uma universidade como aluno. [Mas antes disso e dada
a minha realidade] pessoas foram me incentivando a entrar na universidade. Então fiz o
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vestibular, passei e [ao chegar na universidade] passei alguns meses me sentindo


desconfortável porque achava que aquilo ali não era o meu lugar. Daí, quando comecei a
conhecer a história dos professores, as dificuldades de onde eles vieram, então isso me
despertou [o sentimento de] que estava ali por merecimento, e não por misericórdia. E aí sim
foi quando comecei a me debruçar na história, passando de professor de música à professor
de história - embora a história já estivesse comigo há muito tempo.

Como a sua experiência no ramo cultural, em específico na música, veio a contribuir


didaticamente para o ensino da história?

Acho que para quem vem da cultura tem, digamos assim, alguns privilégios. Primeiro a
questão da adaptação ao diálogo, você conseguir ter o feeling, a sensibilidade de se adaptar
ao diálogo que vai utilizar: se está numa universidade você vai usar uma [determinada]
linguagem, se você está na escola fundamental você vai usar outra. A gente vai tendo uma
facilidade maior com isso porque sempre vai estar vivendo em espaços variados, pois tanto
fazia eu estar tocando com a Orquestra de Câmara como estar tocando com um grupo de
côco. Então eu conseguia andar em universos diferentes, sempre adaptando a linguagem,
isso me proporcionou certa facilidade em adequar os conteúdos para a linguagem da
educação.

Nesse aspecto, a principal contribuição da arte em seu ofício de professor foi a


questão da adaptabilidade da linguagem na comunicação didática?

Sim! E também na questão de olhar para aquele sujeito histórico. Quem vem da cultura vai
olhar o aluno com um olhar distinto, posso dizer até que mais humanizado do que se tem
hoje. Acho que temos um hiato na área de educação que as pessoas buscam muito a
educação pela estabilidade financeira, sei que é importante, mas não o fundamental.

Acerca do olhar mais humanizado, venho observando que o período de isolamento


social, devido à pandemia, acarretou nas crianças e adolescentes uma certa perda da
relação de empatia e verossimilhança para com o próximo. Daí, dado esta perda do
exercício do afeto na vida social propriamente dita, juntamente à ascensão da hiper
relação digital, gostaria que o Sr. abordasse a importância do afeto no exercício da
docência.

Em relação a pandemia, acho que ela foi o estopim, não o início. Acho que a gente já tinha
um problema: quem atua na área da educação a um certo tempo, percebe um declínio,
muito grande, da competência da instituição família e isso vem afetando a área da
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educação. A maioria das crianças chegam com baixa estima, muitas delas com problemas
emocionais muito fortes, [fruto] dum processo que já vem há muito tempo, criando [por
exemplo], o [auto] isolamento. Existe até uma teoria que é o isolamento do quarto, abordada
num livro de caráter pedagógico, escrito por uma professora, acerca desse mundo [paralelo]
que esses jovens vem a criar. Já a tecnologia vai fortalecendo muito esse universo onde o
jovem não se submete a determinadas situações e supostamente não sofre, fica numa zona
de conforto. Esse processo vem ocorrendo já há um certo tempo. Então, agora, com a
chegada da pandemia, piorou porque o único contato real que muitas crianças tinham era na
escola, onde tinham contato com outras pessoas, com outras culturas, com outras
identidades - e isso foi cortado. Então, para reintegrá-los na escola, tivemos uma certa
dificuldade. O ano passado foi muito complicado porque tiveram que se adaptar novamente
a reconviver com as pessoas, aprender onde é seu espaço, onde é o do outro; entender os
processos de alteridade, identidade… Ainda está complicado, mas o ano passado foi bem
mais complexo.

Na primeira visita que fiz aqui no Liceu, o Sr. abordou, superficialmente, essa questão
de que, na retomada das aulas no pós pandemia, os alunos demonstraram um perfil
um tanto violento ou extremamente recluso. Você poderia falar um pouco mais sobre
isso e como a situação se encontra agora.

A nossa sociedade, de uma certa maneira, abandonou a questão de grupo social e começou
a se tornar uma coisa de clã. As pessoas estão muito intolerantes, e isso chega na escola.
Então os meninos, muitos deles criados em bolhas, tem uma certa dificuldade de escutar o
outro e respeitar o direito do outro, então os convívios vão se tornando complicados. Por
exemplo, os jogos [escolares] foram muito complicados porque os meninos não sabiam
perder, não sabiam trabalhar em grupo, achavam que sempre eram “a verdade”, logo não
conseguiam comunicar-se entre si para trabalhar coletivamente em um jogo. Esse processo
de aprendizado: de perder, de ganhar, de conviver com a diferença, de tentar dialogar com o
outro em busca de uma solução, eles perderam durante os anos que estava afastado da
escola. Então foi muito difícil conseguir fazer com que entendessem que a relação coletiva é
necessária e faz parte dum processo que vão levar para o resto da vida, [ou seja, trabalhar a
habilidade] de se relacionar com pessoas diferentes, aprender com os erros e acertos, saber
lidar com seus sentimento, porque não é o tempo todo que estaremos certos e teremos o
que desejamos. Apesar do ditado popular dizer que querer é poder, querer é um desejo, e
não simplesmente um poder em si de realizar tudo que se deseja.
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Gostaria agora que o Sr. falasse um pouco sobre suas ideias a respeito do ensinar e
do aprender, pois são duas coisas distintas mas que estão interligadas no exercício
da docência.

De fato uma não anula a outra, [o ensinar e aprender] caminham juntos. A todo momento
aprendemos quando nos propomos a ensinar aos outros. Às vezes os alunos nos ensinam
muito porque [trazem] uma perspectiva diferente, vem com um olhar diferente por sobre o
assunto que às vezes não tinha sido percebido, e isso enriquece o conteúdo [da aula e o
repertório do professor]. Eu acho que o professor enriquece muito quando ele tem um aluno
que tem um dificuldade em aprender, porque você vai sair da sua zona de conforto e vai
criar um leque maior, pedagogicamente falando, pra conseguir atingir seu objetivo com
aquele aluno. [A meu ver], o professor só atinge o seu objetivo, só pratica o seu ofício,
quando busca transmitir conhecimento, não só informação. Quando o professor consegue,
principalmente na nossa área, que é a área de História, seduzir o aluno ao interesse num
determinado tema e que este tema influenciou ou pode influenciar na vida dele, o aluno
despertará o interesse em relação [ao que está sendo ensinado], sem aquela visão
positivista [de distância entre o conteúdo e a realidade do aluno]. [Porque neste caso],
muitas vezes, o aluno não entende por que está estudando aquilo e, muitas vezes, cai no
desinteresse, então busco trazer o aluno para o tema [através de] uma realidade que faça
parte [do cotidiano] dele, para que aquilo se torne [algo] presente em [toda a] sua [trajetória]
de vida.

Em síntese, pode-se dizer que o Sr. tem como foco a construção cidadão através do
conhecimento historiográfico?

Sim! Acho que é o papel principal. A História ensina você a pensar, a questionar, a se
posicionar. Acho que o principal [papel] da história é fazer você entender o passado [tendo
em vista] demonstrar as ferramentas do presente, [elucidando como programar-se] para o
futuro.

Como professor, acerca do Novo Ensino Médio, qual o seu posicionamento sobre a
implementação e como o Sr. encara a política de delegação de disciplinas eletivas as
quais o docente não tem formação específica porém possui noções básicas e/ou
notório saber?

A gente tem um pensador grego que já responde. Sócrates vai colocar muito essas
questões: isso é benéfico? qual a utilidade disto? ganhamos o que com isto? O que percebo
é que, na prática, existe uma divisão, uma separação entre grupos sociais. Porque temos
um grande problema - e não apenas um problema mas um fato: na escola privada tem-se
uma estrutura e uma metodologia direcionada ao tecnicismo (...); no público não tem-se
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essa estrutura. Então essa é uma discussão que deveria ter sido feita ao inverso. não se
discutiu-se a eficácia desse Novo Ensino Médio, não teve formação para os professores e
simplesmente aplicaram. Somente agora começou-se a se discutir sobre isso. No Brasil é
interessante que sempre é o inverso. Então o que vai acontecer? Você vai ter pouquíssimos
conteúdos e muita informação que muitas vezes não são relevantes. Temos disciplinas
fictícias que não vão agregar nada à formação educacional do aluno.

O Sr. poderia exemplificar uma dessas “disciplinas fictícias”? No caso são as eletivas,
correto?

Você tem desde ensinar a fazer crochê a plantar árvores. São informações que eu não vou
dizer que sejam irrelevantes, mas pensando numa estrutura de formação de um aluno, o
que é que isso agrega no conteúdo escolar? Essas estratégias são direcionadas para onde?
É para passar o tempo? É para preencher a carga horária ou para melhorar o nível de
educação do aluno? Essa é a grande questão! Porque enquanto o aluno da escola pública
está aprendendo a plantar umas árvores - que pode ser uma ação a ser feita dentro da
disciplina da ciência [naturais] e não numa disciplina em si (...) - as escolas privadas estão
usando técnicas, metodologias, e conhecimentos para atingir objetivos [que direcionam seus
alunos a terem competências que lhe proporcione a escolha de uma carreira], podendo ser a
universidade ou não. Acredito ser um projeto intencional de afastar classes sociais
[carentes] de atingir determinados objetivos [reduzindo drasticamente] o direito de escolha
[dos alunos de escola pública] de fazer um curso superior ou não. Estes são direitos que (...)
estão sendo anulados por políticas públicas de determinados grupos sociais [que não
desejam expandir o amplo acesso às universidades] (...).

Sobre o processo avaliativo do Liceu, percebi que são dois módulos que formam a
nota do semestre: no primeiro módulo o aluno apresenta dois trabalhos e no segundo
é a prova propriamente dita. Com base nisto, como o senhor vem a utilizar o
diagnóstico de déficits e potencialidades individuais dos alunos, de forma a aplicar no
processo avaliativo?

A gente usa uma metodologia que foi criada há muitos anos atrás que é muito punitiva, mas
do que avaliativa. Tanto que algumas expressões da nomenclatura do sistema, como, por
exemplo, GRADE curricular, etc. Logo, soa mais como uma punição do que como uma
avaliação. Então você tem que olhar o aluno como um todo e hoje existe muito essa
discussão sobre os tipos de metodologia de avaliação que busca olhar o aluno por vários
segmentos. Eu uso a metodologia multimodal onde eu procuro trazer por meio do áudio, do
vídeo, do texto e da oralidade do aluno, assim consegue-se ter uma visão mais completa do
aluno porque às vezes ele tem uma certa dificuldade, fruto de uma deficiência, criada por
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vários fatores. A formação básica do nosso país é muito ruim. O Fundamental I é muito ruim.
As crianças chegam aqui copistas, não sabem ler um texto, não sabem interpretar um texto,
não sabem escrever, eles sabem copiar. Ou seja, eles desenham o que está no quadro.
Então este aluno tem muita dificuldades em interpretar, dialogar e expressar uma opinião
sobre determinadas coisas, porque não vieram de um processo de construção. Eles têm um
choque quando chegam do 6º ano em diante.

Neste aspecto, o Liceu, por ser uma espécie de “escola laboratório”, dado que é
vinculada a UNICAP, consegue se diferenciar para amenizar as lacunas que o Sr.
acabou de relatar?

As ideias dos professores daqui são o que fazem a diferença. O Liceu busca professores
que tragam uma visão humanizada da educação e que, além disso, busquem, por meio
interdisciplinar, estratégias de ajuda mútuas para tentar “equilibrar” estes alunos. Então a
gente se junta, os profissionais de português com os de história, juntamente com
matemática, geografia, etc. de forma a construir formas e estratégias com vista a subir o
nível desses alunos. Daí é um fator relevante a questão da contribuição e do compromisso
dos professores para com a educação. Ao menos o grupo que trabalha comigo se preocupa
muito neste sentido. A gente sabe dos problemas que existem: sociais, na própria instituição
educacional, e por isso sabemos que o professor, dentro das quatro paredes da sala de
aula, ainda faz a diferença. Seu empenho, a sua postura, a forma de enxergar o aluno… Por
exemplo, eu busco avaliar os alunos não simplesmente pela prova, a prova avalia um
momento, não avalia o conteúdo do aluno. Então através das discussões em sala, a
participação do aluno, sua dedicação, isso sim são caminhos que indicam a apreensão dos
conteúdos pelo aluno, assim pode-se avaliá-lo melhor. Então eu busco muito esse caminho,
porque às vezes a gente pode perder pessoas relevantes para a sociedade, que podem
contribuir mais a frente na sociedade. Por exemplo, muitas vezes o aluno não é bom em
história, ou não é bom em matemática, mas ele às vezes vai assumir uma função que essas
disciplinas não são necessariamente primordiais. [Sem este olhar] podemos estar tirando
alguém relevante à sociedade, por causa de uma visão arcaica que pode vir mais a
prejudicar o aluno do que a ajudá-lo. Essa é uma convicção que tenho!

Alguns professores não são muito abertos a receber estagiários e percebo uma
grande disponibilidade do Sr. em receber essa nova geração de professores. E não só
receber no sentido de deixar de forma bancária, nos deixando lá na cadeira, mas
também colocando o compromisso por sobre a gente, sempre em constante diálogo,
nos fazendo participativos diante dos alunos. Dito isso, explica um pouco desse seu
prazer em ser mais aberto e acolhedor com a nova geração de professores que está
junto ao Sr. em seu dia-a-dia.
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Eu tenho um compromisso com a cultura, pois ela me foi uma porta de inclusão social. E a
cultura é uma escola empírica. Então a mesma oportunidade me foi ofertada, para hoje ser
quem eu sou e fazer o que faço, eu devo à [cultura]. Então a mesma oportunidade que tive
tento passar para os outros. Este é um compromisso particular que tenho. Então como estou
como educador, um dos princípios bases é ensinar. Eu não entendo como uma pessoa se
forma como professor e não aceita estagiários, ou vê um estagiário como um adversário,
para mim não tem sentido isto. Não me formei para ensinar a uns e a outros, não. Eu me
formei para ensinar - ou, ao menos, tentar. Só em tentar, para mim, já estou realizando
minha função. Por isso, receber vocês, estagiários, é essencial para novas trocas de
informações, desafios e construção de novas possibilidades no exercício do ensinar.

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