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1. Trabalho e a politização da vida pela
cultura1
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Esse texto compõe a pesquisa da autora: “Percursos de trabalho na periferia da cidade de São
Paulo: trabalhos e trabalhos paralelos na produção da vida, a produção do comum”, financiada
pela Fundação Escola de Sociologia e Política, PIPED – Programa de Incentivo à Pesquisa
Docente.
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profissionais e/ou de militância por pessoas de proximidade. Para isso são
mobilizados afetos.
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Nessa medida, a reconversão que BORDIEU (2007), assim como
LUCKMANN e BERGER (1978) afirmam como mudança de filiação religiosa ou
de condição de vida, pode ser lida aqui na constituição dos novos percursos de
trabalho. Uma reconversão de vida a partir do corte com trabalhos
desqualificados, com pouco reconhecimento social e que não formam uma
produção de sentido forte.
Como para Aline Maria, 36, filha de doméstica, que era levada pela
mãe ao trabalho algumas vezes, onde brincava com canetinhas, lápis de cor, a
brincadeira preferida, em um dos escritórios que fazia faxina. Foi conhecer
trabalhos mais politizados depois de entrar no curso universitário de Artes
Visuais nas Belas Artes, em São Paulo. Curso que entrou com bolsa PROUNI –
a primeira da família a começar um curso universitário, que ainda não conseguiu
terminar. Um trabalho em uma ONG lhe abriu a atenção para essa dimensão da
vida: “Me vi limitada”. A politização da vida e do trabalho foi chegando nesse
momento e depois com a sua chegada na Casa da Mulher do Campo Limpo,
trabalhando com Dona Neide Abati, liderança antiga da zona sul de São Paulo,
que até hoje está à frente da União Popular de Mulheres do Campo Limpo, e
com seu companheiro Rafael Mesquita, 36, que foi coordenador do Banco União
Sampaio. Hoje, Aline mora em um sítio com Rafael e os 3 filhos, produzindo
alimentos orgânicos, em nova mudança da vida, como veremos adiante.
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Aline estava contando a influência desse contato na sua formação.
Tanto na produção cultural e, também, nas escolhas de vida que tomaram. E
detalha um pouco sua percepção da participação da Agência Solano Trindade
naquela edição da 31ª Bienal de São Paulo em 2014, onde articularam todo o
conhecimento que estavam buscando em apresentações na exposição:
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importante das doenças são psicossomáticas), quanto psíquico (DEJOURS
2000 e 2017). Nessa medida, essa atividade psíquica de produção de sentido
através do trabalho na área da cultura é fundamento para uma vida social
criadora de identidades sociais potentes para movimentar as sociabilidades
locais. Uma política da vida.
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As entrevistas e conversas com os participantes da pesquisa foram realizadas entre julho de
2019 e novembro de 2020. Os percursos de trabalho foram traçados com as trajetórias familiares
e as composições de trabalhos, percorrendo especialmente os percursos da última década.
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aí que falei: - Agora que não vou arrumar emprego fixo, não. Decidi
que ia trabalhar por conta. Aí fiquei dividida. “Frilando” com desenho
e sendo cantora, só; não trabalhava com teatro, até 2011. Foi quando
rolou a ocupação do Cita, que você conheceu” (Dêssa).
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Pensar na constituição de outras formas de trabalho perfaz, então, um
polo diverso do mundo do labor na luta por outra inserção social que saia de uma
constituição meramente filiada à produção neoliberal da vida social, que acaba
determinando aos mais pobres (TELLES, 2010), um lugar submisso à
reprodução social da pobreza. Nessa medida, o campo cultural que se forma
como identidade social ganha essa dimensão política, por colocar o conflito como
motor da vida na periferia, nos moldes da constituição de RANCIÈRE (1996).
Uma definição desse campo seria a posição de colocar uma racionalidade
política no jogo, com disputas sobre o mundo comum, perfazendo esse campo
político. A reivindicação de fazer parte do mundo comum conduz a quebra da
ordem estabelecida que busca, na instauração do conflito, mudanças. Disputar
recursos, disputar narrativas, mudar práticas. O campo da cultura pode se
apresentar nas suas dimensões militantes como campo de luta política por
transformar modos de vida, através da circulação de novos afetos na construção
de campos distintos de trabalho e, portanto, de vida Comum. A invenção de
trabalhos, é certa invenção de futuro.
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O rebaixamento bastante significativo da renda do trabalho nos anos
2010, vai mostrando que o trabalho nessa segunda década encontra desafios
para enfrentamento da desigualdade estrutural brasileira. E na década de 2020
novos desafios se impõem surgiram com a pandemia de Covid-19 que mostrou
a face mais cruel da reprodução da pobreza, com mais mortes nos bairros
periféricos da cidade de São Paulo, desemprego alto, überização do trabalho,
inflação incidindo mais para os mais pobres; mas também de produção de novas
desigualdades de gênero e racial. A desigualdade está estabelecida
historicamente em patamares bastantes altos no país, aqui 28% das riquezas
estão concentradas nos 1,0% mais ricos do país (SOUZA, 2019) e com certa
estabilidade na série desde o século XX até a pandemia do Coronavírus, com
grande capacidade para embaralhar ainda mais esta disposição.
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2. Trabalho e cultura: política e identificação
social para além da reprodução da pobreza
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sentido para as novas escolhas artísticas. Dêssa impulsiona uma vontade de
estar mais fortemente conectada com processos em ligação com um feminino e
muda mais recentemente de grupo musical para construir uma ligação maior com
mulheres no palco, já que na banda que inicia sua carreira de cantora são
homens que compõem o grupo.
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periferia rumo ao centro. Fernando Ferrari encampou essa disputa pela Lei de
Fomento à Cultura da Periferia (Lei 16.496/16,), até chegar a Co-deputado da
Mandata ativista, na Assembleia Legislativa de São Paulo, desde 2019, na
primeira experiência de mandato coletivo do Brasil.
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massacrada pela violência”, diz o articulador cultural Fernando
Ferrari, 38, professor e membro da Rede Popular de Cultura Mboi
Campo Limpo, da zona sul da cidade” (Fernando Ferrari, apud LIMA,
2016).
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3. As escolhas de trabalho: políticas do afeto
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pedinte”, me disse. Ele fala num cansaço de ser eternamente pedinte, como se
torna quem trabalha no terceiro setor na periferia de São Paulo. Para fazer os
projetos é sempre preciso lutar por financiamentos, disputar os editais, contar
com a boa vontade de possíveis parceiros. O cansaço dessa articulação
constante, sem finais de semana, sem folgas, pesou.
Rafael trocou essas atividades e foi morar num sítio e hoje produz
verduras orgânicas que vende com entregas com um carro na região do sítio e
em São Paulo. Produz também uma cerveja artesanal, a cerveja da Roça. Ao
narrar suas empreitadas como sitiante vai elaborando as novas formas do fazer
político, com um deslocamento, mas continua produzindo uma vida política na
ligação com a terra e as questões alimentares, sustentabilidade da produção,
uso da água.
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atividade laboral. Nessa medida, a experiência ganha possibilidade de inspirar
outras trajetórias, não é pouca coisa!
Outra figura de muita visibilidade por seu trabalho na zona sul da são
Paulo é Thiago Vinícius, 31, que assumiu a condução da Agência Solano
Trindade e mantém a casa, com um restaurante, estúdio de gravação e assumiu
um lugar de bastante proeminência tanto nas atividades cotidianas da casa,
quanto no contato com a mídia e outras atividades que realiza. Ganhou um
prêmio internacional agora em 2021, de jovem empreendedor em gastronomia,
do World’s 50 Best, ganhou o 50 Next, para jovens empreendedores que
contribuem para a gastronomia no mundo 2021. Seu papel como produtor
cultural articula redes de pessoas e projetos pela cidade e pelo país.
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Pensar a vida a partir da alimentação e da produção de comida
também confere para Rafael e Thiago sentidos na parceria que vão
configurando. A produção dos orgânicos se tornou um ponto de partida para uma
nova forma de vida, ligada à terra. Articular a política com uma base produtiva
lhe pareceu importante para Rafael e o restaurante que Thiago mantém com sua
mãe Tia Nice, ampliam as significações para ambos. A busca nesse momento é
ampliar a produção e organização das vendas da produção local (sua e de outros
sitiantes), fazendo chegar os orgânicos na periferia.
Considerações finais
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novas formas de vida. De como nos territórios periféricos da cidade aquecem a
criação dessas formas de vida mais conectadas, mais familiares a cada um.
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