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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Antonia Maria Alves de La Cruz

"Mãe, por que me abandonaste?": mito do amor materno, abandono e


circulação de crianças em camadas populares.

Rio de Janeiro
2014
Antonia Maria Alves de La cruz

"Mãe, por que me abandonaste?": mito do amor materno, abandono e circulação de


crianças em camadas populares

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Doutor em Psicologia
Social, no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.

Orientadora: Profª Drª Anna Paula Uziel

Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

C957 Cruz, Antonia Maria Alves de La.


"Mãe, por que me abandonaste?": mito do amor materno, abandono e
circulação de crianças em camadas populares / Antonia Maria Alves de La Cruz.
– 2014.
227 f.

Orientadora: Anna Paula Uziel.


Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.

1. Menores abandonados – Teses. 2. Mãe e filhos – Teses. 3. Amor materno


– Teses. I. Uziel, Anna Paula. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia. III. Título.

es CDU 159.9-055.26

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,
desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Antonia Maria Alves de La Cruz

"Mãe, por que me abandonaste?": mito do amor materno, abandono e circulação de


crianças em camadas populares

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Psicologia Social.

Aprovada em 27 de março de 2014.

Banca Examinadora:

_____________________________________________
Profª. Dra. Anna Paula Uziel (Orientadora)
Instituto de Psicologia - UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. José Cesar Coimbra
Corregedoria Geral da Justiça – RJ
Serviço de Apoio aos Psicólogos

_____________________________________________
Profª.Dra. Maria Gabriela Lugones
UNC Universidad Nacional de CBA

_____________________________________________
Profª.Dra. Luciene Alves Miguez Naiff
Universidade Rural do Rio de Janeiro/UFRRJ

_____________________________________________
Profª.Dra. Gabriela Salomão Alves Pinho
Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

Rio de Janeiro
2014
AGRADECIMENTOS

À professora Anna Uziel, orientadora da tese, pela paciência, apoio, interesse,


incentivo, carinho e por seus valiosos comentários e contribuições durante a realização desse
trabalho. Por seus ensinamentos, também como professora durante o curso, que possibilitaram
muitas transformações ao longo dessa trajetória. Meu muito obrigada!!!!!!
Ao meu marido, amigo e companheiro constante na realização deste trabalho,
agradeço pelas discussões, do tema, é claro!, incentivo e paciência nos momentos em que a
ansiedade e cansaço ficaram mais intensos e o estudo um fardo pesado demais. Enfim, por
toda a sua participação, o que o tornou doutor em Psicologia Social, meu muito obrigada.
Ao meu pai e minha mãe (in memória) por tornar essa historia possível, sou
imensamente grata. A minha família (irmão, sobrinhos, cunhada, enteadas e as “ex” do meu
marido) pelo carinho e incentivo e para aqueles irmãos da infância tão presentes e que me
inspiraram na elaboração desse trabalho.
À equipe de professores do Curso pela transmissão de seus conhecimentos,
indispensáveis hoje à elaboração dessa pesquisa e em especial a Heliana Conde, Marisa
Rocha e Leila Torraca.
À Irene Rizzini pelos debates sobre o tema, apoio, incentivo e carinho. Obrigada pela
oportunidade de ter sido sua aluna e pelos ensinamentos valiosos.
Às amigas Karine e Letícia pelo constante apoio, incentivo e carinho, que foram além
do que as circunstâncias administrativas ditavam. Obrigada por apostarem em mim.
Aos colegas de trabalho, pelo incentivo, material fornecido e pela ajuda na busca pelos
sujeitos de pesquisa e pelas constantes discussões que proporcionaram o amadurecimento do
tema. Agradeço, principalmente, a Claudia Gonçalvez, Mariana e Fabiana, pela sinceridade de
suas amizades e por não terem desistido de mim (sei que me tornei muito chata).
Aos meus alunos pela ajuda, apoio, compreensão e em particular a Simone pelo apoio
e presença constante, percebidos mesmo na ausência de sua presença.
À professora Stella Aranha pelos artigos e livros emprestados e sugeridos.
A todos os colegas de curso pelas discussões realizadas em aula.
Por último, e não menos importante, aos sujeitos que participaram com suas historias
para a elaboração dessa pesquisa. Muito, muito obrigada!!!
Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar
linhas de fuga.
Gilles Deleuze
RESUMO

DE LA CRUZ, Antonia Maria Alves. "Mãe, por que me abandonaste?": mito do amor
materno, abandono e circulação de crianças em camadas populares. 2014. 227f. Tese
(Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Esta tese parte da construção histórica da família como instituição importante para a
nossa sociedade e que vem experimentando profundas mudanças sociais, culturais e legais,
desde o século XVII, notadamente a partir da segunda metade do século XX. Nesse período
essas mudanças refletiram sobre a estrutura e dinâmica das famílias, principalmente no que
diz respeito ao que vinha sendo concebido como funções femininas, bastante atreladas à
maternidade, e masculinas, em geral sinônimas de provedor. Todas essas transformações vêm
afetando diretamente as relações conjugais e filiais. Em meio a tantas transformações fez-se
necessária uma analise da implicação que também atravessa essa tese. Foram realizadas 8
entrevistas com mães e filhos adultos que se afastaram quando estes ainda eram crianças, por
motivos variados, visando por em análise os sentidos que os envolvidos constroem para e
sobre este afastamento tão socialmente naturalizado como abandono. Esse comportamento, no
que diz respeito à mulher/mãe causa certo estranhamento em função da crença no amor
materno como atributo natural da mulher que vira mãe. As entrevistas realizadas permitiram-
nos concluir o quanto o exercício do cuidado materno ganha dimensões tão importantes que a
mãe é valorada em função da maior ou menor aproximação com os filhos, e como esses
filhos, ao naturalizarem o comportamento da genitora, associado ao cuidado, entendem o seu
afastamento como abandono. Foi possível também observar como alguns filhos identificaram
no afastamento da mãe uma preferência pela conjugalidade, pois o investimento realizado na
construção de um novo relacionamento pode não contabilizar esses filhos. Em decorrência
dessa separação entre mãe e filhos nas historias que ouvimos, que repercurtem a bibliografia
da área, esses filhos circularam por muitas casas de familiares, conhecidos e desconhecidos.
Nos discursos das mães as ideias de afastamento e abandono não aparecem. O direito a buscar
a felicidade com outro parceiro e a entrega cuidadosa do filho são alguns dos sentidos que
elas dão.

Palavras-chave: Família. Filhos. Afastamento. Mito do amor materno.


ABSTRACT

DE LA CRUZ, Antonia Maria Alves. "Mom, why have you forsaken me?": The myth of
maternal love, abandonment and movement of children in lower classes. 2014. 227f. Tese
(Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

This thesis parts of the historical construction of the family as important to our society
that has experienced profound social, cultural and legal changes since the seventeenth
century, especially since the second half of the twentieth century institution. During this
period these changes reflected on the structure and dynamics of families, especially with
regard to what had been conceived as feminine, very tied to motherhood, and men in general
provider functions synonymous. All these changes came directly affecting marital and filial
relationship. Amid the many changes made if necessary - an analysis of the implication that
also runs through this thesis. Interviews with 8 mothers and adult children who were taken
away when they were still children, for various reasons, in order to analyze the meanings that
the involved build to and over this separation socially known as abandonment. This behavior,
in regards to the woman / mother causes some strangeness in the light of belief in maternal
love as a natural attribute of the woman who turns into mother. The interviews enabled us to
complete the exercise as maternal care gains important dimensions that the mother is valued
according to the greater or lesser proximity with their children and how these children,
naturalize the behavior of mothers' , associated with the care, understanding their removal as
abandonment. It was also possible to observe how some children identified a preference for
the mother's marital condition over abandonment because of the investment in construction of
a new relationship does not take in consideration those children. As a result of this separation
between mother and sons in the stories we heard, which translate the bibliography of the area ,
these children have circulated for many homes of relatives, acquaintances and strangers . In
the mothers’ speeches, the idea of remoteness and abandonment do not appear. The right to
pursue happiness with another partner and careful delivery of the child are some of the
directions they give.

Keywords: Family . Children . Pitch . Myth of maternal love .


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 9
QUANDO É POSSÍVEL ENTRAR PELAS BEIRAS:
1
CONSTRUINDO O CAMPO................................................................ 21

1.1 O Campo em mim: Flor mamãe amor (desfeito).................................. 21

1.2 Nascimento de uma proposta.................................................................. 23

1.3 Ouvindo e tecendo histórias.................................................................... 29

2 FAMÍLIA E SUAS DIVERSAS FORMAS DE SER E EXISTIR....... 39

2.1 As famílias nas camadas populares: por onde circulam homens e


43
mulheres....................................................................................................
2.2 Famílias chefiadas por mulheres ............................................................ 48

3. CASAMENTO E DIVÓRCIO: CONSIDERAÇÕES GERAIS E LEI.


61
OU... “Casar é preciso, viver não é preciso” (Del Priore) ..................................
3.1 A eternidade do enlace matrimonial. “Toda nudez será castigada”.... 61

3.2 “Sexo! Eu quero sexo! Me dá mais sexo!” - Considerações sobre o


67
casamento na contemporaneidade ........................................................
3.3 Separação e divórcio – desencontros e despedidas............................... 70

3.4 Perspectiva jurídica do casamento, separação e divórcio no Brasil.... 73

3.4.1 Constituição de 1988 – “A gente não quer só comida, a gente quer


80
comida, diversão e arte” .............................................................................
4 CONSTRUÇÃO DA MATERNIDADE – QUEM PARIU MATEUS
86
NEM SEMPRE O EMBALOU ..............................................................
4.1 A Invenção da maternidade ou… Derrubando o mito do amor
88
materno .....................................................................................................
5 ABANDONO: NÓS, NINHOS E ASAS - NORMA E LIBERDADE 102

5.1 Afastamento e abandono: sinônimos? ................................................... 102

5.2 Uma história possível para o abandono ................................................. 109

5.2.1 O-abandono- das-crianças-em-nós: notas históricas .................................. 112

5.2.2 O higienismo, o jurídico e o controle social: novas amarras de uma


118
sociedade em transformação .....................................................................
6 RECASAMENTO: O NÓ QUE (DES)ATA .......................................... 130

6.1 Introduzindo o recasamento, as famílias recompostas, reconstituídas


130
e suas personagens ...................................................................................
6.2 Conjugalidade: algumas palavras de pessoas recasadas ...................... 136

6.2.1 Satisfação garantida ou casamento desfeito .............................................. 138

6.3 Quando a parentalidade habita o recasamento .................................... 141

6.3.1 A perspectiva dos filhos também na literatura ......................................... 151

6.3.2 Paternidade no recasamento ..................................................................... 156

7 QUEM É QUEM NESSAS FAMÍLIAS? ............................................... 161

7.1 Parentalidade e conjugalidade – quando o resultado da equação é


161
nulo, impossível, indeterminado .............................................................
7.2 Avós: porto seguro, disputa, afeto .......................................................... 174

7.2.1 Avos que cuidam dos netos na família original – classe popular x classe
174
média .........................................................................................................
7.2.2 Os novos parentescos introduzidos pelo recasamento ............................... 184

7.3 Os irmãos: produzindo sentidos para o sangue, o afeto, a


185
convivência ou a falta dela ......................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 199

REFERÊNCIAS ...................................................................................... 208


9

INTRODUÇÃO

CALEIDOSCÓPIO DE RELAÇÕES

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo,
nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos... É ao nível de cada
tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a
um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1990, p.
6)

Ao utilizar esse termo – caleidoscópio – pensei inicialmente na minha família, aquela


de minha infância, rodeada de vizinhos que entravam e saiam de casa. Uns permaneciam dias,
meses, anos e por toda a sua infância e adolescência, outros retornavam as suas residências.
Entretanto o centro que garantia o intercambio dessas relações era a minha casa, lugar em que
as mães confiavam os seus filhos para serem cuidados, para brincar e ser criança. Com tudo
que tinham direito, comer, beber, dormir além do afeto e atenção. O cotidiano parecia uma
festa constante com quantidades enormes de comida feita por minha mãe, que cuidava do lar e
de nós. Não era fácil!!!!! Papai parecia um eterno papai Noel entrando em casa com sacas de
comida para garantir o sustento de todos. Nas festas oficiais como Natal, Ano Novo e os
aniversários, bem como, festa junina e outras que inventávamos, todos compareciam,
inclusive os familiares de cada um que convivia em nossa casa. Lembrei-me desses
amigos/irmãos e de suas famílias com pai, mãe e irmão, mas também daquelas famílias de
configurações totalmente diversas, em que moravam juntos avós, tios, sobrinhos, mães e pais.
Tinham também as que eram formadas somente pela mãe e seus filhos, por serem viúvas,
separadas ou mães solteiras. A diversidade era enorme!!!!! Diversa e a cada momento
apresentava combinações variadas e interessantes. Olhando hoje para aquele cenário percebo,
seja qual for a motivação que mantinha os vínculos entre aquelas pessoas e a mim também,
que as nossas vidas já anunciavam uma forma corajosa de construir modos de vida.
Então como definir família? Creio que esse é um ponto inacabado que me relança
constantemente à criação do nós, ou seja, do nós mesmos, colocando-me em contato com o
desejo na possibilidade de múltiplos encontros com a existência do outro. Dito isto o que
buscamos são os sentidos de uma escrita, que pensamos inacabada, que na possibilidade do
encontro possa abrir caminhos itinerantes que nos coloquem sempre em movimento. Segundo
Gilles Deleuze (1997, p. 11), escrever não é “... impor uma forma (de expressão) a uma
10

matéria vivida... é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que
atravessa qualquer matéria vivível ou vivida ...”.
Ao longo deste texto, vamos experimentar construir histórias, também inacabadas.
Seja das definições de família, seja das vidas com as quais nos encontramos para compor este
trabalho.

Transformações na família: sujeito moderno, amor romântico e feminismo

Esta tese fala de família, casamento, separação, recasamento, maternidade, filiação,


mas foca principalmente as relações entre mães e filhos que escapam, de formas variadas, ao
normativo. Longe de querer recuperar uma história da família, o que demandaria um enorme
esforço que desviaria o escopo do trabalho, pretende-se, aqui, elencar elementos dessas
transformações que parecem ter relevo para a questão em pauta.
No modelo de casamento das sociedades ocidentais, antes da época romana, ao
homem era dado o direito de dissolvê-lo e de recomeçar. Se, por alguma razão, o casamento
não atingisse a sua finalidade, como por exemplo, por motivos de esterilidade, era dissolvido
e a mulher voltava para a casa da família. Imediatamente um novo casamento deveria ser
contraído. Nesse período, que remonta ao século IX, os casos de repúdio ao casamento eram
frequentes, pois o objetivo era se desfazer do matrimônio atual para desposar novamente. Foi
dentro desse contexto que o casamento ocidental se desenvolveu e chegou ao modelo
indissolúvel, que hoje é praticado “sob formas laicizadas, tornadas mais leves pela
possibilidade do divórcio, mas fixados pelo Direito” (ARIÈS, 1987, p 164).
A permanência do termo família, herdado dos romanos, não dá conta das
modificações, das rupturas, da concepção do termo em nossa história. Formas importadas do
direito de família romano e pela doutrina cristã, no entanto, contrastam com essa
descontinuidade, embora por sua vez tenham sofrido profundas transformações até o século
XVIII (DUARTE, 1995). Comparando as formas de organização familiar do século XVIII
com as posteriormente encontradas e que se tornaram predominantes no período moderno,
verifica-se que a organização familiar sofreu modificações significativas e que predominaram,
nesse período, sentimentos de ternura e intimidade ligando pais e filhos.
As transformações pelas quais vem passando a família a partir do século XVIII
permitiram que os conceitos e práticas relacionadas à maternidade e aos cuidados maternos
11

também fossem modificados. As contribuições científicas, que tiveram como fio condutor os
discursos médicos, colaboraram para uma nova forma de relação mãe-filho, através da
importância atribuída às características especificas da maternidade e, mais recentemente, do
lugar do pai.
No bojo do que se denominou moderno afirmou-se o conceito de indivíduo livre e
igual, reestruturando a família em função do valor-indivíduo. Seu eixo deslocou-se do laço
conjugal para a organização do que serviria de matriz para o indivíduo adulto, por meio de
uma complexa e intensa reforma cultural. Investiram os agentes públicos e privados da
modernidade, bem como a Igreja Católica, contra os formatos ampliados e entranhados de
antes, a favor dessa família considerada por eles natural e inevitável, capaz de abrigar o
embrião dos indivíduos modernos. A distinção do que é público em relação ao que é privado
cabe nesse processo. O público será laico, igualitário e individualizado. À família, espaço
privado, caberá o estatuto englobado da relação, da diferença, da hierarquia, e, portanto, da
ética (DUARTE, 1995).
Embora os indivíduos tivessem alcançado maior liberdade em suas escolhas, novos
discursos são produzidos gerando outras formas de subjetividade. Segundo Foucault, (1988) a
partir do século XVIII, ao dispositivo de aliança se superpõe o de sexualidade: criado,
inventado e instalado pelas sociedades modernas –- porque os processos econômicos e as
estruturas políticas não encontravam mais no dispositivo de aliança um instrumento adequado
a seus propósitos. Imperativos de ordem social e econômica sobrepuseram esses dois
dispositivos. O primeiro, baseado no matrimônio, desempenha importante papel na
transmissão e circulação de riquezas – dispositivo de aliança. O segundo é baseado no corpo
enquanto produtor e consumidor - dispositivo de sexualidade. O casamento legal deixou de
ser a única forma legitima de se constituir família e separação, divórcio e recasamento
passaram a ser práticas constantes no meio social, o que sugere uma maior liberdade dos
indivíduos para viver suas aspirações baseadas no companheirismo, amor e afeto.
O dispositivo de aliança visa a homeostasia do corpo social, vinculando parceiros com
papeis e status definidos. O dispositivo de sexualidade vincula-se ao corpo, aos prazeres e
impressões (FOUCAULT, 1988). O dispositivo de sexualidade não substituiu o dispositivo de
aliança. “Historicamente, aliás, foi em torno e a partir do dispositivo de aliança que o de
sexualidade se instalou” (FOUCAULT, 1988, p 102).
Foucault (1988) descreve, a partir do século XVIII, conjuntos de estratégias que
foram desenvolvidas com o objetivo de saber e poder sobre o sexo. Desenvolveram-se
dispositivos específicos – de saber e poder – que evoluíram ao longo do século XIX e
12

estabeleceram estratégias que, de formas diversas, percorreram e utilizaram o sexo das


crianças, das mulheres e dos homens, “atingindo eficácia na ordem do poder e produtividade
na ordem do saber (pg. 99)”. Esses dispositivos que constituem o saber e o poder dizem
respeito à histerização do corpo da mulher, à pedagogização do sexo da criança, socialização
das condutas de procriação e psiquiatrização do prazer perverso.

Para Foucault (1995), as subjetividades se originam dos discursos que as constituem. É


importante notar que a subjetividade se constitui, por meio dos discursos, entre o sujeito e as
diferentes instancias da qual ele participa e que esses discursos não se reportam somente à
linguagem simbólica, mas às práticas concretas. São difundidos por meio das instituições na
forma de práticas disciplinares e disciplinadoras (FOUCAULT, 1969, 1995). A medicina,
como uma das disciplinas normatizantes, impõe-se para a constituição da subjetividade nesse
contexto histórico (FOUCAULT, 2002a).
Para Duarte (1995) a família é tão paradoxal quanto o processo de construção do
mundo social, quando embasado na ideologia individualista, fruto de uma visão que nega o
todo em favor da parte. A prevalência do individualismo tornou mais comum e constante a
versão que considera a família como reacionária e conservadora, “de onde cabe aos heróis
solares escapar e aos saturninos permanecer em danação” (DUARTE, 1995, p 31). Não se
pode separar as características deste modelo de família dos aspectos sociomórficos resultantes
da individualização nas sociedades modernas. Assim, a fragmentação, a redução das unidades
sociais à sua expressão mais indivisível, fazendo a família nuclear corresponder a um virtual
indivíduo coletivo (pois indiviso), correspondendo também às estratégias de higienização da
nova família, pressupunha o expurgo de todos os apêndices perturbadores da paz doméstica e
para tanto o estabelecimento de um modelo de unidades residenciais monofamiliares,
impostas às classes médias e trabalhadores na indústria (DUARTE, 1995).
Para Vaitsman (1994, 2001) o que caracteriza a família, hoje, é a ausência de um
modelo dominante, uma vez que as relações são mais instáveis e as normas e valores são mais
frágeis. Como escreve Elza Berquó (apud KEHL, 2003, p 165), “casar, ter filhos e se separar
leva cada vez menos tempo”.
Giddens (1992) traz para suas discussões os ideais do amor romântico quando
descreve as transformações da intimidade nas sociedades ocidentais. Segundo o autor, o amor
romântico está associado aos ideais de liberdade individual e a auto-realização. Assim, os
relacionamentos sociais e familiares cedem lugar a relacionamentos mais íntimos, restritos.
Essa transformação delimita com mais clareza o espaço do relacionamento conjugal, que
13

passa a ser mais valorizado. Giddens (1992) afirma que os ideais do amor romântico, no
casamento contemporâneo, tendem a se fragmentar em virtude da emancipação e autonomia
feminina. Desse modo, a ideia de eternidade não prevalece na conjugalidade contemporânea,
uma vez que somente permanece se proporcionar satisfação a ambos os parceiros.
Corroborando essa ideia Costa (1998) enfatiza que o amor romântico só pode se
realizar em uma sociedade em que o indivíduo prioriza e dá importância à privacidade. O
individuo autônomo que surge juntamente com o contemporâneo utiliza-se do amor para dar
sentido a sua própria vida, uma vez que este sentimento proporciona o pertencimento,
mantendo sua autonomia ao mesmo tempo em que se conecta ao mundo através do outro.
Assim, a partir das trocas intersubjetivas o indivíduo garante a sua identidade, reassegurando
o próprio eu, sem que exista, entretanto a garantia de permanência.
Essas transformações abalaram o padrão institucionalizado do casamento, qual seja, a
eternidade das relações, sustentada pela ideia da indissolubilidade do matrimônio. A noção de
eternidade das relações e dos sentimentos, uma vez abaladas, proporcionou maior
instabilidade e insegurança, mas também maior liberdade, e um número elevado de
separações. “O casamento e a família passaram a desfazer-se e refazer-se continuamente”
(VAITSMAN, 2001, p 16).
Os sistemas de valores introduzidos nas famílias modificaram o comportamento, a
percepção, a memória, a sensibilidade e as formas de relacionamento. Percebe-se que o valor
atribuído ao relacionamento mãe-filho não foi uma constante e se modificou no decorrer da
história, sendo que as variações derivadas das concepções e práticas relacionadas à
maternidade tiveram sua origem em uma série de agenciamentos sociais em que o discurso
científico teve importância fundamental.
A criança passa a ser o centro da atenção familiar; a mulher, reclusa ao espaço
privado, é coroada a “rainha do lar” e o homem ganha, além do espaço público, a função de
provedor financeiro da família. Dentro desses ideais nasce a família moderna, dividida em
dois mundos distintos: privado e público. O espaço privado desenvolveu uma nova forma de
reclusão feminina, o que proporcionou e redefiniu, em termos de socialização e
comportamento, as fronteiras do feminino e do masculino. Socialmente, muitas vezes com
recursos à biologia (LAQUEUR, 2001), a mulher foi definida como não tendo os requisitos
necessários para o mundo público, sua atuação restringindo-se às relações na família, como
filha e esposa. Em contrapartida, o espaço público, domínio masculino, se definiu pelos
princípios universalistas, igualitários do mercado e posteriormente da cidadania
(VAITSMAN, 2001). Essas relações desenharam modos de subjetivação, construíram
14

subjetividades, instituições sociais, e, dentre elas, as configurações familiares (FOUCAULT,


2004; BERGER; LUCKMANN, 1966). A desigualdade entre homem e mulher, que foi
edificada com base na dicotomia entre o público e o privado e na divisão sexual do trabalho,
passou a ser o campo fértil à manifestação dos conflitos conjugais.
Encontramos na família patriarcal o poder centrado na figura do pai, poder que lhe
autorizava a decidir sobre a vida ou morte dos membros da família. Esse poder que veio se
diluindo ao longo do percurso teve sua autoridade obstaculizada pela imposição de outros
poderes advindos do Estado e do poder médico. Abalada a autoridade paterna, homens,
mulheres e crianças passam a submeter-se ao Estado e às Ciências (COSTA, 1983).
A Medicina, por meio das famílias, instituiu novas configurações que influenciaram e
modelaram o comportamento e o modo de os indivíduos perceberem o mundo (COSTA,
1998). A maternidade será valorizada ou depreciada, e a mulher classificada como boa ou má
mãe (BADINTER, 1985). Desse modo, assiste-se à mudança progressiva do foco ideológico,
que se desloca da autoridade paterna ao “amor materno”. O homem, que exercia com
exclusividade o poder sobre a mulher e os filhos, começa a perdê-lo em função da aliança
estabelecida entre a mulher e o médico higienista. Essa cumplicidade, se por um lado,
garantiu um maior poder sobre os filhos; por outro a conduziu e restringiu ao espaço
doméstico.
A institucionalização da família conjugal moderna construiu-se com base em uma
cultura familiar em que se enfatizava a privacidade, o amor materno e a criança, “fazendo da
mulher a própria encarnação de tudo aquilo que a vida privada e familiar passou a significar
no imaginário social” (VAITSMAN, 2001, p 14). Dentro desse contexto, a mulher é
segregada das novas formas de sociabilidade pública, onde as atividades políticas,
educacionais, artísticas, culturais, empresariais, cientificas e administrativas são
desempenhadas. A família conjugal moderna, balizada pelo casamento legal e indissolúvel,
em que indivíduos manifestavam a liberdade de escolha pessoal, vê-se em dilema devido ao
constrangimento perante o que é definido socialmente no exercício da individualidade de cada
um. A construção desse modo de vida impediu a igualdade entre os gêneros, bem como
retardou a conquista feminina da cidadania, estando à mulher subordinada legalmente ao
marido.
No entanto, um emaranhado de movimentos do século XX produz reivindicações que
foram dirigidas para a livre disposição do seu corpo, de seu ventre, de seu sexo. Os slogans
feministas retratavam a luta por essa liberdade enunciando os seus desejos por meio da
seguinte expressão: “Ter um filho quando quero, como quero”. A liberação pode constituir
15

elemento vital para a prática da liberdade. Entretanto, pode não ser suficiente para que,
individual ou coletivamente, estabeleçam-se formas aceitáveis e satisfatórias de existência.

“é verdade que foi necessário um certo número de liberações em relação ao poder do


macho, que foi preciso se liberar de uma moral opressiva relativa tanto a
heterossexualidade quanto à homossexualidade; mas essa liberação não faz surgir o
ser feliz e pleno de uma sexualidade na qual o sujeito tivesse atingido uma relação
completa e satisfatória. A liberação abre um campo para novas relações de poder,
que devem ser controladas por práticas de liberdade (FOUCAULT, 1984, p. 268)

O movimento feminista, a partir da década de 1960, não reivindicava somente as


questões relacionadas à desigualdade no exercício de direitos — políticos, trabalhistas, civis
—, questionava também as desigualdades das raízes culturais. Dessa forma, denunciava a
crença na inferioridade “natural” da mulher, calcada em fatores biológicos. Questionava assim
a discriminação social, segundo a qual, o homem e a mulher estariam predeterminados, por
sua natureza, a cumprir papéis opostos na sociedade: ao homem é delegado o mundo externo
e à mulher o interno (ALVES, 1980). Desaprovava esta diferenciação, reivindicando a
igualdade em todos os níveis, seja no mundo externo, seja no âmbito doméstico. Revela que
esta ideologia encobre na realidade uma relação de poder entre os sexos, e que a diferenciação
baseia-se mais em critérios sociais do que biológicos. O masculino e o feminino são criações
culturais e, como tal, são comportamentos apreendidos através do processo de socialização.

Cabe ressaltar que, em toda essa trajetória, o movimento feminista teve grande
participação nas mudanças dos núcleos familiares, principalmente na transformação do lugar
da mulher, que não mais se caracteriza ou ocupa-se, primariamente, na criação dos filhos. A
família moderna passa a exercer suas escolhas e os relacionamentos interpessoais determinam
a permanência ou não do casamento. Assim é que as mulheres, mesmo submetidas ao
discurso dominante, originado nas formações sociais e institucionais, podem subverter
subjetividades assujeitadas, por meio de estratégias de luta e resistência (FOUCAULT, 2004;
1988; 2002a e b). Quando a divisão sexual do trabalho é redefinida e a mulher passa a
reivindicar a igualdade, e conquista um novo espaço de atuação que não se limita somente ao
privado, passando a desempenhar várias funções no espaço público e em sua vida cotidiana,
muitas mulheres deixam de reduzir as suas aspirações ao casamento e aos filhos
(VAITSMAN, 2001; PERROT, 1993).
O declínio da autoridade masculina cedeu lugar à onipotência da figura feminina nas
relações familiares quando da ocupação das funções maternais, ou seja, a importância
atribuída ao exercício da maternidade. Hoje, em decorrência das transformações sociais,
16

econômicas e culturais, principalmente no que se refere à entrada da mulher no mercado de


trabalho, as responsabilidades com o filho têm sido compartilhadas com outros membros da
família, pai, avós dentre outros que fazem parte desse universo. Assim, podemos arriscar que
mesmo nas famílias que conservam o modelo nuclear, a parentalidade é vivenciada de formas
diversas, não se limitando mais somente aos cuidados maternos. Hoje esse cuidado é disperso
entrando na pauta do dia o pai e os avós. Não raro observamos avós cuidando dos netos para
que as filhas possam trabalhar, os levam a instituições diversas tais como, balé, inglês, judô
dentre outras atividades (DIAS et al, 2005) ou sustentando a casa e dedicando parte do seu dia
à gerência mais geral da vida dos netos.
Assim, podemos entender a família dentro de diferentes contextos sócio-históricos e
culturais que se modificam, ensejando visibilidades de formas e modelos diversos. Uziel
(2004) e Zambrano (2011) reafirmam essa ideia de que o modelo normativo hegemônico não
abrange todos os modelos de organizações familiares, nem as organizações familiares mais
predominantes.
Sarti (2004) diz que família se define pela história que é contada ao individuo. Ao
nascer e ao longo do seu percurso são internalizadas palavras, gestos, atitudes ou mesmo o
que não foi dito ou falado, mas é por ele reproduzido e ressignificado, cada um a sua maneira
em função dos diferentes lugares e momentos dos indivíduos na família. Assim, a família é
uma realidade que se constitui pelo seu próprio discurso, discurso que é internalizado pelo
sujeito na busca de uma definição que nos permita pensar como a família se constrói. Essa
construção se forma dentro da cultura circunscrita pelo coletivo que engloba o tempo e o
espaço em que vivemos, ordenando as relações de parentesco em relação aos membros da
família – entre irmãos, pais e filhos e marido e mulher. É através da família, independente da
sua formação, que começamos a ver e a significar o mundo.

Portanto, a família não se define pelos indivíduos unidos por laços biológicos, mas
pelos significantes que criam os elos de sentido nas relações, sem os quais essas
relações se esfacelam, precisamente pela perda, ou inexistência, de sentido. A
família, como o mundo social, não é uma soma de indivíduos, mas sim um universo
de relações (SARTI, 2004, p 18).

Durham (1982) classifica a família como grupos sociais que estão estruturados
segundo relações de afinidade, descendência e consanguinidade e que sua existência se
estabelece a partir de unidades de reprodução humana. Apresenta dupla referência: a de
grupos sociais concretos, sendo reconhecidos pelos membros e pela sociedade; ao mesmo
tempo constitui a referência a regras, padrões e/ou modelos culturais.
17

Independente da forma como vem sendo estruturada ou do seu arranjo, na descrição de


Kaloustian e Ferrari (2002), a família é o espaço que garante a sobrevivência,
desenvolvimento e proteção integral dos filhos e demais membros que a constitui. É na
dinâmica interpessoal que são propiciados os afetos, apoio material, os valores éticos e
humanitários em que poderão se aprofundar os laços de solidariedade.
Groeninga (2003) diz que a família é “sistema de relações que se traduz em conceitos
e preconceitos, ideias e ideais, sonhos e realizações. Uma instituição que mexe com nossos
mais caros sentimentos. Paradigmática para outros relacionamentos, celula mater da
sociedade” (p. 125).
A família contemporânea edifica suas relações com base em uma função principal, a
afetividade. Fundamenta-se em vínculos afetivos duradouros que desenham e narram o
conjunto de vida daquelas pessoas. A família gera um ambiente de proteção em uma relação
de grupo através do qual se estabelecem as relações de parentesco (GRISARD, 2010). No
entanto, é preciso lembrar que, uma vez que se trata de uma construção, a proteção e o amor
não são atributos intrínsecos à família que, por vezes, não exerce cuidado, tampouco tem afeto
por seus membros. A diversidade a que se refere este texto também está presente nesses
aspectos.
Segundo Perrot (1993), as mudanças levaram a uma ambiguidade no sentimento em
relação à família, o que foi denominado pela autora de “ninho e nó”. Ninho porque constituía
“o refúgio caloroso, centro de intercâmbio afetivo e sexual, barreira contra agressões
exteriores (p 78)”; e nó, porque se tornou o espaço de constantes conflitos. Se as relações são
produzidas por meio das ações humanas, por elas, também, se transformam.
A família não comporta um modelo único e ideal devido a sua riqueza de
configurações e mobilidade, o que permite no contexto social, cultural e econômico, a
existência de ricos mosaicos. A família capturada em cada momento histórico resiste a ser
enclausurada por condicionantes sociais.
Não obstante a variedade de modelos existentes, o modelo hegemônico de família, a
família conjugal burguesa, está presente nas sociedades industriais modernas, até os dias
atuais (UZIEL, 2004; ZAMBRANO, 2011).
Embora a família nuclear burguesa seja uma realidade, Fonseca (1995, 2002a)
considera que essa configuração vem se tornando cada vez mais minoritária, ainda que traga a
ideia ilusória de maior garantia de felicidade.
Variados arranjos de família têm emergido no cenário social trazendo diferentes
configurações familiares em que existe uma diversidade de classificações, utilizadas por
18

alguns autores: famílias cujos adultos casaram apenas uma vez e possuem filhos, famílias em
processo de separação; famílias monoparentais; famílias recompostas (reconstituídas ou
tentaculares); famílias constituídas por casais homossexuais; famílias com filhos adotivos;
famílias constituídas por meio de novas técnicas de reprodução (MOREIRA, 2002;
ZAMBRANO, 2011).
Separações, divórcios e recasamentos têm sido questões presentes em nossa cultura, o
que pode contribuir, por vezes, para o afastamento de um ou ambos os genitores. Quando não
desistem totalmente de suas funções, maternas ou paternas, por vezes afastam-se dos filhos
material e/ou afetivamente, por priorizar novos projetos de vida que não incluem
necessariamente os filhos do relacionamento anterior. É neste cenário, sobretudo, que se
desenvolve a presente pesquisa.
Lutas, rupturas, novos sentidos, parece ser assim que a família ganha novas feições:
sua constituição e manutenção sustentam-se em geral na existência de laços afetivos e não
mais, somente, na moral religiosa ou na imposição social com ênfase na preservação do
patrimônio e da propriedade de bens materiais. Significa dizer que as rupturas que ocorreram
nos últimos anos deslocaram os alicerces sobre os quais a família era entendida. Os novos são
novos desafios.
O olhar sobre a família e seus relacionamentos provocaram também deslocamentos
nessa pesquisadora que motivaram o estudo do afastamento materno. Essa necessidade partiu
de maiores conhecimentos, por exigência dos atendimentos aos usuários do serviço de
psicologia em uma Comarca do Estado do Rio de Janeiro. Momento em que se começou a
pensar essa relação de afastamento juntamente com a demanda, cada vez maior, de
atendimentos envolvendo famílias que se afastaram dos seus filhos.
Na Vara de Família, Infância, Juventude e Idoso desta Comarca percebemos que
vem crescendo o número de processos em que as famílias se afastaram dos seus filhos. Nos
atendimentos a algumas mães, praticamente todas de classe popular1, a fala era recorrente ao
expressarem a impossibilidade de permanecerem com o(s) filho(s) quando da ocorrência de
um novo relacionamento após a separação. Isso não significa que o mesmo comportamento
não possa ser identificado também no homem. No entanto, há que se observar que
culturalmente sequer entendemos como abandono a saída definitiva ou ausências temporárias

1 A renda adquirida pela família é, basicamente, o que define suas possibilidades de aquisição de bens e
serviços. Nessa medida, a renda familiar per capita é um indicador bastante eficaz para caracterizar o perfil
socioeconômico das famílias brasileiras. (IBGE. Disponível em: <http:/www.ibge.org.br> Acesso em 24 de
fevereiro de 2010.
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do pai em casa, ainda que a presença masculina esteja sendo mais exigida socialmente e mais
exercida pelos homens.
A partir dessas considerações é que pretendemos desenvolver o conteúdo dessa tese,
da qual passaremos a apresentar os capítulos que a constituem e que contam histórias que não
têm fim: histórias de famílias e das pessoas que nela habitam.
No primeiro capitulo, será exposto o referencial metodológico em que se baseou a
pesquisa, marcada pela análise da implicação que atravessa a tese. Em seguida são
apresentados os oitos entrevistados, mães, filhos e filhas que passaram, na infância destes
últimos, pela experiência da separação, fenômeno que ainda hoje, com todas as
transformações sociais, nos causa espanto, visto que os filhos ainda ficam prioritariamente
com a mãe.
No segundo capitulo, serão apresentados os diversos modelos de constituição familiar,
seus valores e formas de existir, apontando para as especificidades das diferentes classes
sociais, com enfoque na classe popular.
O capitulo três trata de transformações sociais e jurídicas pelas quais passou o
casamento, demonstrando como as mudanças nas relações conjugais deslocaram-se das
conveniências sociais e patrimoniais para um sistema que pressupõe auto-realização e
satisfação emocional, inserindo na união das pessoas o amor romântico.
O quarto capitulo trata do mito do amor materno, sua construção social e cultural,
como as pessoas o significam e o que nos diz a literatura sobre esse fenômeno, apontando a
relação entre a maternidade e os fluxos de poder que fazem deste mito uma verdade
incontornável, marcando vidas, condenando práticas.
No quinto capitulo, afastamento e abandono estão em pauta. Tendo como pano de
fundo transformações nas concepções de família, maternidade e infância, acompanha como
foi sendo construída a noção de abandono como sinônimo de afastamento, quando os atores
da situação são mães e filhos.
No sexto capitulo, será abordado o recasamento e suas diversas formas de
constituição, englobando os temas conjugalidade e parentalidade, suas funções e construções
no campo relacional, com ênfase na perspectiva dos filhos. O recasamento merece destaque
porque, embora não seja o tema premente da tese, apareceu de forma significativa na
construção da relação entre mães e filhos.
No sétimo e último capitulo o foco está nas decorrências da separação entre mães e
filhos que se desdobram em três campos: a circulação de crianças, a relação com a família
extensiva, em especial os avós, que entram no circuito para garantir os cuidados aos netos, e a
20

relação entre irmãos, sejam eles de sangue, de consideração, de convivência, filhos e filhas de
mesmos pais e mães, com um dos genitores apenas coincidindo ou nenhum deles.
A tese foi produzida em meio a muitos deslocamentos. É um convite, a girar o
caleidoscópio tendo a família como foco, em especial a relação entre mães e filhos.
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1 QUANDO É POSSÍVEL ENTRAR PELAS BEIRAS: CONSTRUINDO O CAMPO

1.1 O Campo em mim: Flor mamãe amor (desfeito)

Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.


(Caetano Veloso 1982)

Essa história conta parte da infância de uma menina que foi morar com os parentes
paternos em tenra idade. Em uma noite qualquer, o pai, ao chegar a casa, pede para que ela e o
irmão arrumem a roupa porque o destino seria a casa da avó. Assim fizeram. Dias e noites
passaram e o retorno para a sua residência não acontecia, parecia distanciar-se a cada instante.
Disseram a ela que sua mãe havia morrido, por isso não poderia retornar.
Não sei como precisar esse instante, pois não sei o que aconteceu. Inocente silêncio!!?
Grito emudecedor!!? Sei lá! Sabe-se que ao rever a mãe não teve qualquer reação de espanto,
talvez por não entender o que era morrer. A menina, parada e surpreendida, observava o
comportamento do irmão que descontrolado chorava e gritava. Embora o episódio tenha lhe
causado espanto ela correu, abraçou e beijou a mãe. Posteriormente foi reprimida por aquela
atitude, proibida de beijar e sentar no seu colo, quando esta comparecia à casa da avó. Nas
esporádicas visitas, realizadas pela mãe, conflitos e brigas marcavam os encontros. Em seu
sentimento, acreditava ter sido abandonada pela mãe. Tempos depois todos voltaram a morar
juntos, pai, mãe e os filhos.
Essa menina sou eu, que cresceu e que hoje escreve a sua história, que vai se misturar
com outras... Poderia dizer que o tema que hoje estudo estava inscrito na minha vida, na
minha pele, no meu corpo, sem que eu, até o momento presente de escritura desta tese, tivesse
consciência.
Durante a trajetória dessa pesquisa, por mais que quisesse falar das situações em que
mães e filhos tinham sido afastados, tive grande dificuldade de abandonar a expressão
“abandono”. Era difícil até mesmo compreender que nem todo afastamento entre mãe e filhos
pode ser visto e sentido, por seus atores, como abandono. A janela que permite a projeção
dessa imagem, a imagem do abandono, continuava e continua aberta na busca de um cenário
em que se pudesse pousar a atenção. A tentativa, então, foi reconhecer, re-configurar o
22

território através do mergulho, da observação; viajar e percorrer caminhos que pudessem


produzir e construir fissuras que permitissem o movimento de fazer passar aquela imagem,
que está conectada à vida. Não somente a minha, mas dos sujeitos desta pesquisa que a cada
encontro me remetiam ao pensar; a produzir a construção de uma obra que me permitiria olhar
de fora a minha própria história, contribuindo para essa enorme rede que instaura, a cada
momento, novas conexões e que nos fez e faz vibrar, na urdidura de suas tramas.
Pois foi em um desses encontros, no meio de uma entrevista, que percebi o quanto o
sentimento de abandono ainda me afetava, fazendo parte da minha existência. Por isso, talvez,
a resistência em “abandonar” o abandono. O que eu procurava em outros discursos, em outras
vidas? A voz define uma pessoa e seu mistério, constituindo a subjetividade – o que é, e como
é. Após a entrevista começamos a conversar e lembrei-me dessa infância, quando
inesperadamente falei da separação de meus pais e percebi que entendera o afastamento da
minha mãe como abandono. Aquela informante perguntou: “mas você nunca falou com sua
mãe sobre o assunto? Eu perguntei à minha” – disse ela. A ficha caiu!!!! Percebi que estava
buscando nessa pesquisa uma resposta para o meu próprio abandono, para minha dor. Que
dor!!!! Que parto difícil!!! Abri passagem no labirinto do tempo e finalmente abortei o puto
do abandono. Assim, foi possível “abandoná-lo” e assumir o termo afastamento para os casos
em que ele não significava abandono. Afastamento passava a ser a palavra genérica até que
cada um e cada uma dos entrevistados desse um sentido próprio àquela situação.
Aquele campo que antes estava ocupado, impossibilitando que outras dimensões se
fizessem presentes, agora conseguia que fosse posto em análise para discutir as práticas e os
discursos que atravessam os sujeitos da pesquisa e a mim mesma. Não raras vezes fui
apontada como preconceituosa; infelizmente não puderam meus críticos vislumbrar que, em
toda a leitura que se faz da vida, nenhuma teoria, até a mais incontroversa, consegue atingir a
dimensão do humano que nos afeta. Como diz Deleuze (2002, p 19/29) “basta não
compreender para moralizar. A vida é uma maneira de ser, um mesmo modo eterno em todos
os seus atributos”. Que venham os devires!!
23

1.2 Nascimento de uma proposta

As inquietações que me afetavam também iluminaram o caminho para que pudesse


investir nas reflexões sobre a prática do afastamento materno, que por diversas vezes nos
atendimentos às mães, realizados no espaço jurídico, causaram-me estranhamento. Foi a
partir desse espaço, através desses atendimentos realizados aos jurisdicionados de uma
Comarca do Rio de Janeiro, que o comportamento de algumas mulheres chamou-me a
atenção: a não permanência com os filhos e, mais que isso, quando a situação era uma opção
delas, não uma determinação da justiça.
Não raro encontramos normas que são impostas e intensificadas pela sociedade e que
passam a ser naturalizadas como um padrão de mulher mãe cujo resultado é a produção de
uma norma da maternidade. Assim, determinadas caracteristicas desenham o modo de ser
mãe considerando-o o mais adequado, ou seja, associa-se à mulher a condição de ser mãe.
Porém, é a partir dessa mesma norma que outros modos de ser mãe são avaliados e
hierarquizados. Salta-nos aos olhos, no fluxo mais urgente das demandas, exemplos
recorrentes no espaço sociojurídico que parecem conduzir de modo diverso mulheres que não
querem, que não podem, que se afastam e/ou que rejeitam por diversos motivos permanecer
com o filho. O comportamento dessas mulheres demarca no cotidiano uma intervenção que
captou (e aos poucos não mais tanto capturou) o olhar desta pesquisadora. Sabe-se que as
situações que desestabilizam a ordem do esperado e que são endereçadas ao judidiciario
clamam por soluções que envolvem todo o corpo técnico (psicólogos, assistentes sociais) e os
operadores do Direito (promotor de justiça e juizes). É, portanto, no fazer cotidiano que esses
discursos são produzidos e fixados.
Um caso em particular chamou-me a atenção pela atuação dos profissionais
envolvidos: tratava-se de uma adolescente que passou a ser abrigada constantemente após a
separação dos genitores, o que ocorreu quando ainda era criança. A adolescente ficou em
companhia do pai e irmãos. Sua mãe constituiu outra família, incluindo filhos da nova
relação. A criança, então adolescente, fugia habitualmente de casa, sendo encaminhada
diversas vezes ao abrigo pelo Conselho Tutelar. As fugas pareciam estar condicionadas ao
desejo de viver com a mãe, recusando a companhia do pai. A genitora dizia ter dificuldades
em permanecer com a filha, em função principalmente do novo companheiro que não o
desejava. Embora os relatos e observações realizados pelos profissionais (psicólogos e
assistentes sociais) envolvidos no procedimento descrevessem a ausência do desejo materno
24

nos cuidados com a filha, bem como as dificuldades expressas pela genitora em permanecer
com a adolescente dizerem do seu limite e de sua impotência, o juiz decidiu que a adolescente
devia ficar em companhia da genitora, negligenciando seu discurso e desrespeitando seu
desejo. Apesar da legislação não dizer mais que o melhor para a criança é estar com a mãe, a
fala dos profissionais perpetuava antigos padrões gerados na sociedade patriarcal, que
conferem à mãe/mulher a faculdade natural de amar sem restrições e de cuidar sob qualquer
condição. Esse discurso moralizador, que cobra da genitora o dever da maternagem, pode
estar imbuído do mito do amor materno e de um determinado e idealizado perfil de mulher,
em que padrões de comportamento e sentimentos veiculados como necessários produzem
verdades absolutas e atributos da natureza feminina. Este ideal de mãe/mulher está tão
presente em nossa sociedade que já está previsto no Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121,
que as novas núpcias da mãe não a afastariam dos filhos.
Minha proposta no curso de Especialização em Psicologia Jurídica, onde desenvolvi
um esboço de pesquisa com esta temática, à época, a partir de relatórios técnicos dos casos em
que mães e filhos não ficavam juntos por opção da mãe, foi problematizar a visão mais
comum dos profissionais que são convocados a se posicionar para a decisão dos casos:
estranhar e condenar as mães que optam por não ficar com seus filhos.
Diante desse cenário um ponto parece-me inquietante: como entender as condições
sob as quais algumas transformações, vinculadas à maternidade e à relação mãe-filho, se
tornaram alvo de controle e normatização, ou seja, de formas especificas de exercício do
poder que se endereçam ao campo da relação mãe-filho? Que discursos atravessam esses
filhos e produzem neles um sentimento de abandono e inadequação? Que brechas
possibilitarão a reflexão sobre esse universo? Um dos cuidados, nesta investigação, foi ficar
atenta às capturas por práticas produtoras de normas universais, negligenciadoras do sujeito
que vive e produz em seu discurso estranhamentos colados em normas sociais invisíveis e
naturalizadas. Romper com a lógica que impede ampliar a análise e produz tais situações nos
leva a questionar: que territórios demarcam os movimentos dos sujeitos dentro de suas
próprias histórias? Como entender possíveis deslocamentos que fazem ao longo de suas vidas,
em relação a este aspecto?
Com a pesquisa aqui desenvolvida, procurei ampliar a lente para um olhar que,
desnaturalizado, não perpetue “verdades” que moldem subjetividades, mas que ponha em
análise os efeitos e as implicações dos modos de se perceber, agir e entender o mundo
(RODRIGUES; CRUZ, 2010).
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A partir desse recorte do cotidiano pretendi destacar e pensar sobre alguns aspectos do
relacionamento mãe-filho, especificamente como os filhos entendem o afastamento da mãe
ocorrido ainda durante a infância, procurando problematizar a naturalização de compreensões
que emergem como naturais neste universo, tais como a fixidez na ideia de abandono e
sofrimento. E ouvi algumas poucas mães que se dispuseram a contar suas experiências neste
sentido.
Como ferramenta metodológica utilizei entrevistas em profundidade como estratégia
de acesso às histórias que vamos incorporar e revisitar nesta tese. Compreendemos estes
contatos com os entrevistados não como espaço de coleta de dados, mas como produtora de
material sobre o tema, por meio dos enunciados que constituem a perspectiva dos filhos que,
por motivos diversos, foram afastados de suas mães, o que nos convoca a assumir, como diz
Kastrup (2007, p 15) a atenção como “detecção de signos e forças circulantes, ou seja, de
pontas do processo em curso”.
A pesquisa foi desenvolvida com filhos adultos que, na infância, passaram pelo
afastamento de sua genitora e mulheres mães que se afastaram de seus filhos. Nas entrevistas
buscou-se resgatar a história de vida desses sujeitos por se acreditar na oportunidade de
(re)significações e construções de diversos discursos que atravessam a história desses filhos e
a minha história também. Como nos propõe Coimbra (s/d), ao colocarmos em análise nossas
implicações buscamos uma forma de pensar como as diversas intervenções têm sido propostas
por nós mesmos. Devemos considerar, a partir da análise de nossas implicações, em que
medida reafirmamos a norma, o controle sobre o que é certo ou errado, o que passamos a
entender como normal ou problemático. Sair desse lugar de especialista e questionarmos o
instituído, eis o desafio!!!
Por que a opção de trabalhar com mães e filhos? Essa escolha foi desenhada pelo
próprio campo, uma vez que incialmente pensou-se em entrevistar apenas as mães que
passaram pela experiência do afastamento dos filhos, o que foi realizado com um pequeno
grupo. Foi difícil encontrar essas mulheres. Entendemos a importância de se escutar essas
mães, mas a dificuldade tanto por conta da escassez de trabalhos cientificos sobre o tema,
como do sujeito de pesquisa impossibilitaram uma articulação maior com esse grupo, talvez
por ser uma área caracterizada pelo silêncio. Silêncio que pode significar o desejo dessa mãe,
quando possível, não falar sobre esta situação. Supomos, com esta dificuldade, não a
inexistência deste fenômeno, mas uma possível dificuldade das pessoas em dizer que viveram
esta situação, em função das condenações oriundas do mito do amor materno que a sociedade
vivencia como verdade. Ou, o que pensamos mais claramente depois de algumas conversas, é
26

que talvez as mães não compreendam mesmo o afastamento como um abandono e, mais
ainda, é possível que não estejam atentas a este aspecto da vida, ao momento desta separação,
e isso por vários motivos também. A preocupação pode ser, sobretudo, com o cuidado que
alguém, eleito por ela, será capaz de prover a seu filho. Para algumas, a oportunidade que a
separação pode ocasionar para os filhos supera qualquer outro entendimento.
Em meio a esta dificuldade, foram surgindo relatos de pessoas que conheciam outras
que tinham passado por este situação, mas como filhos e filhas. Nesse processo, procuramos
explorar também a experiência do afastamento sob a ótica dos filhos. Que práticas atravessam
o modo de pensar e dizer que afirmam o seu modo de existir, de ser? Que reflexões
atravessam a sua história? Esses questionamentos assinalam a importância de trazer para a
apreciação e análise os depoimentos dos filhos e suas narativas históricas buscando-se apontar
possibilidades e limites, além de que compreensões são direcionadas a esse campo
(afastamento materno) e como os sujeitos agem sobre elas, entendendo essas conexões como
em construção.
Visando encontrar pessoas para entrevistar, divulguei o trabalho a ser realizado por
email, por contatos pessoais na rede de amigos e pedi ajuda aos colegas e professores do
doutorado. Outro meio de divulgação foi o ambiente acadêmico em que ministro aulas,
solicitei o auxilio dos alunos nessa busca. Cada pessoa que se propunha a participar da
pesquisa era convidada para uma entrevista individual, avaliava-se se o candidato apresentava
as características mínimas pensadas por mim, ou seja, ter vivido longe da mãe durante a
infância ou parte dela, e na oportunidade explicava-se os objetivos da pesquisa. Desse modo,
convidei os sujeitos para que falassem sobre a sua história. As entrevistas foram gravadas e
transcritas e sua realização se deu em locais variados, de acordo com a disponibilidade de
cada um, levando-se em consideração que o local deveria mostrar-se confortável para que o
participante sentisse liberdade e confiança para abordar o tema, ao se manter a privacidade
nesse encontro. Não houve tempo estipulado previamente para a duração das entrevistas, estas
ocorreram de acordo com a disponibilidade de cada sujeito, os depoimentos encerravam
quando se tornavam repetitivos ou não traziam mais fatos ou considerações novas.
A preocupação central era dar oportunidade para que o sujeito se expressasse como
quisesse sobre o tema, dando vazão aos pensamentos, ações e sentimentos que expressassem
suas vivências. Ou seja, construir a sua própria história e revelar modos de vida. Permitindo a
compreensão de como o sujeito experimentou e interpretou acontecimentos, situações e
modos de vida, tendo como interesse o próprio sujeito da história. A comunicação permite
produzir espaços de dizer (PORTELLI, 2010). O que se pretende é ampliar o discurso desses
27

filhos/filhas que passaram pelo afastaram materno; que possam falar e ser ouvidos ampliando
esse espaço de escuta, uma vez que muitos se perdem na imensidão do cotidiano que abordam
diversas outras historias. Ouvir também essas mães sobre sua experiência. “O que se oferece é
uma possibilidade de fala, é um espaço narrativo em que a agenda do historiador e a agenda
do entrevistado se encontram (PORTELLI, 2010, p.4)”. O que se pretende é aprender, saber
sobre a vida dessas pessoas, ou seja, “estar com eles em uma historia compartilhada”,
(MARTINO, 2010 apud PORTELLI, 2010 p. 6).
No final das entrevistas alguns revelaram a satisfação em ter participado da pesquisa,
talvez este sentimento seja a explicação para algumas entrevistas terem ficado bastante
extensas. É importante destacar que inicialmente tive dificuldade em despir-me das
intervenções que são realizadas na prática como psicóloga clinica e da justiça. Posteriormente
a ansiedade e expectativas foram diminuindo dando lugar a um momento de escuta atenta,
sem ser passiva, já que era importante que vozes do sujeito se produzissem naquela interação.
Ampliando o espaço de compreensão da família através de uma abordagem
rizomática, com foco centralizado nos filhos e nas mães, as concepções teóricas de Deleuze
são fundamentais, especificamente, os conceitos de dispositivo, tramas e urdiduras, linhas de
naturezas diversas e distribuição informe e que assim formam processos em constante
desequilíbrio. Cada componente, partido e submetido às mais diversas influências,
constantemente produz sujeitos, objetos e práticas, podendo ser percebidos, segundo Deleuze,
como “máquinas de fazer ver e de fazer falar” (p.84) que, ao compreender múltiplas linhas de
força “estabelecem o vai e vem entre o ver e o dizer, agem como flechas, que não cessam de
entrecruzar as coisas e as palavras, sem que por isso deixem de conduzir a batalha” (p.85).
São linhas, por operarem como forças singulares, e de variação por conterem múltiplos
processos que se movem e se cruzam e se misturam, ocasionando variações (mudanças?) e
mutações. No conjunto os dispositivos compõem-se de linhas de força, de enunciação,de
subjetivação, de brecha e fissura, de fratura, em constante mistura e entrecruzamento gerando
e inspirando outras através de variações ou mesmo mutações de agenciamento (DELEUZE,
1996). Esses conceitos ganham relevância no presente estudo quando nos causa
estranhamento a não permanência do filho junto a sua mãe, comportamento que opõe-se ao
discurso hegemônico.
Tenho clareza de que não podemos pensar a sociedade como blocos monolíticos,
estanques e neutros. Somos (in)formados por uma discussão sobre família (DUARTE, 1995;
SARTI, 2011; FONSECA, 2002) que parte da ideia de que a classe social marca as
concepções de família dos sujeitos, como pretendo desenvolver ao longo da tese. Dentro desse
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entendimento, optei por entrevistar mães, filhos e filhas de camadas populares. Ao entrevistar
essas pessoas, busquei compreender que sentidos são atribuídos e construídos sobre a
vivência do afastamento entre mãe e seus filhos e filhas.
Nesta pesquisa procurei dar a palavra tanto a filhos quanto a mães, ou seja, a palavra
está com aqueles que, por motivos diversos não tiveram continuidade em seus
relacionamentos com coabitação e contatos continuados. Aqui tentei resistir à asséptica
construção do discurso especialista; minha escrita articula-se à vida, aos movimentos que
possibilitam a vida, libertando-a, onde está presa ao que se apresenta como natural, traçando
linhas de fuga.
Embora tivesse clareza sobre o ponto inicial dessa pesquisa e que pessoas gostaria de
encontrar, o uso de um termo que definisse a situação não era questão simples, parecia uma
janela aberta pela qual transitamos sem direção definida. Minha movimentação deslocou-se
num território provisório em que definições diversas foram usadas para que os sentidos
construídos tivessem passagem. Tinha clareza de que falar em abandono ou em afastamento
colocava a pessoa e meu encontro com ela em posições muito diferentes. Afastamento, em
princípio, parecia me oferecer muito mais uma descrição da situação do que um valor, que
deveria ser dado pela interação com cada um de meus entrevistados e entrevistadas. Por isso,
minhas palavras são inexatas, imprecisas, mais do que qualquer coisa um convite para
mergulharmos nessa investigação.
Meu interesse nesses encontros foi por em análise as linhas de força que atravessam o
sujeito, bem como nos abrirmos também para análise das forças que nos atravessam em
relação ao afastamento entre a genitora e sua prole. Nesses encontros não tive intenção de
coletar a verdade da história de cada um/a, prender o sujeito nas formas como entende sua
experiência, mas promover uma oportunidade para escrever novas linhas sobre o que se
passou na sua vida. Como nos diz Saidon (1987, p 15) “colocar em funcionamento alguma
coisa que estava caminhando de forma excessivamente bem adaptada” é produzir novos
acontecimentos. Acreditamos que os encontros de pesquisa podem ter este tom.

possibilitar espaços, ser e oferecer dispositivos à sensibilização de olhares ainda não


experenciados, ou “esquecidos”, como o olhar do estranhamento sobre aquilo que,
aos nossos olhos, está sendo naturalizado e, nesse movimento, ser capaz de
problematizar fazeres, posturas, escutas, modos de estar, e então reinventar, se
preciso for, outros modos mais comprometidos com o cuidado pela (e com a) vida
(RODRIGUES; CRUZ, 2010, p 356).
29

Procurei não ceder à linearidade de um discurso já produzido, mas endereçar meus


esforços através de caminhos que me conduzisse aos bons encontros – o que o campo me
oferece? Assim, propostas que instigam essa demanda tornam-se, também, possibilidades.
Para Polit e Hungler (1995), a história de vida é contada pela pessoa que a vivenciou.
Desse modo, “a pesquisa qualitativa preocupa-se com os indivíduos e seus ambientes em suas
complexidades, não havendo limites ou controle impostos pelo pesquisador” (SPINDOLA;
SANTOS, 2003, p 120).

1.3 Ouvindo e tecendo histórias

Como já dito anteriormente, nessa pesquisa pretendia-se entrevistar as mães. Foram


meses de trabalho árduo na busca por contato a essas mulheres-mães, mas não obtivemos
muito sucesso. Nessa busca foram aparecendo os filhos que se mostraram dispostos a falar
sobre a vivência de afastamento.
Para a realização desse trabalho foi solicitada ajuda de várias pessoas, amigos, colegas
do curso, colegas de trabalho, meus alunos, professores, e-mail e rede sociais na divulgação e
busca de interessados em que pudessem contribuir para a pesquisa contando a sua história.
A mensagem dirigida a essas pessoas dizia da necessidade de se entrevistar filhos e
mães que passaram pela experiência e vivência do afastamento entre mães e filhos. O contato
com os sujeitos se estabeleceu através de e-mail e telefone. Algumas mães inicialmente
mostraram o desejo de participar, porém, quando havia a oportunidade desse encontro se
realizar, esquivavam-se de diversas formas com compromissos, trabalho, doenças. Entretanto,
não verbalizavam, por alguma razão, que não podiam participar. Marcavam para uma próxima
oportunidade que infelizmente não se realizou. Foram várias tentativas! Buscava-se outros
sujeitos e esbarrávamos, mais uma vez, nessas resistências.
Duas mães foram entrevistadas. As entrevistas foram realizadas em ambientes
distintos, de acordo com a possibilidade e escolha de cada uma. Uma das entrevistas foi
realizada na residência da pesquisadora, facilitando o encontro com a entrevistada que
trabalha no prédio. Em todas as entrevistas passávamos a informação de que seria
resguardado o sigilo da fonte, ou seja, que não revelaríamos os seus nomes, mas que a história
seria material de estudo para essa pesquisa. Pedíamos também a permissão para gravar,
30

solicitação realizada em todas as entrevistas. Além do que, procurávamos sempre um


ambiente em que os sujeitos se sentissem confortáveis revelarão contar sua história de vida.
Inicialmente esta participante expressou-se de modo reticente, mas no desenrolar da
entrevista deixou fluir a sua história, relatando que o afastamento da filha se deu em razão da
falta do respaldo do pai (avó da criança) que não aceita, até hoje, o fato de ela ter sido mãe
fora do casamento. Assim, para evitar as confusões em casa prefere permanecer no trabalho,
visitando a filha nos dias de sua folga, quinzenalmente. A filha foi e é criada por sua mãe. No
final verbalizou a sua satisfação em participar da entrevista, sorriu e se colocou a disposição
para novos encontros.
Na entrevista com a segunda mãe procedemos do mesmo modo, solicitando que
contasse a sua história de vida, englobando relacionamento conjugal e o relacionamento com
os filhos. Marquei a entrevista por meio de contato telefônico, sendo aceita de imediato.
Quando cheguei a sua residência ela me esperava no portão, ao me aproxima logo perguntou:
Você que é a Antonia? Convidou-me para entrar, encontrava-se sozinha em casa, o que
facilitou a entrevista. Parecia estar ansiosa para falar. Fez questão de contar os mínimos
detalhes de sua vida, por isso a entrevista ficou bastante longa e demorada. Revelou situações
de sua vida desde o namoro até a separação, ora expressava-se calmamente; ora se mostrava
irritada com o ex-marido e sua atual companheira. Disse que quando se separou os filhos
inicialmente permaneceram com ela, mas que devido à depressão e por acreditar que,
deixando os filhos com o marido ele voltaria, as crianças foram para a companhia do pai. No
momento em que a entrevista ocorreu, ela estava tentando revogar a guarda. Agradeceu a
participação e colocou-se também a disposição para mais entrevistas.
No que se referem aos filhos, as entrevistas também ocorreram em lugares variados na
casa dessa entrevistadora, na faculdade e no local de trabalho do entrevistado. Como já
salientado, sempre respeitando a privacidade dos entrevistados. Fornecemos também as
mesmas orientações (sigilo, gravação e solicitação da descrição de sua historia de vida) dadas
às mães. Em sua maioria os filhos se encontravam muito emotivos, choraram, expressaram
raiva e ódio com relação à mãe, mas em nenhum momento quiseram desistir da entrevista. O
silencio se fez presente em diversos momentos, quando a emoção sufocava o livre percurso
das palavras. Esses sentimentos apareceram de forma acentuada, direcionados à figura
materna. Dentre todos os filhos entrevistados, somente uma não queria realizar a entrevista
inicialmente, Eliene. Começamos a conversar e ela, então, se sentiu mais confiante em relatar
sua história. Disse ela: a gente já conversou tanto que... não vai fazer muita diferença não
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(risos). Essa foi uma das entrevistas mais longa, durou muito tempo, quando começou a falar
não queria termina, mesmo quando demos por encerrada a entrevista.
Os entrevistados mostraram satisfação em participar da entrevista e agradeceram a
oportunidade de falar sobre suas vidas, embora sejam realidades que guardam dores,
sofrimento, incertezas, desamparo, sonhos, esperanças, vida.
Foram realizadas 8 entrevistas, compreendendo 3 filhas, 3 filhos e duas mães de
camada popular. A partir desse ponto apresentaremos os entrevistados e as entrevistadas, seus
relatos, as emoções e sentimentos que por vezes foram sufocados, em outras foram expressos
por lágrimas, expectativas, frustrações, esperanças que emergiam de fontes de emoções que
produziam palavras, muitas vezes, entrecortadas que abrem caminho para o não dito. Esses
sujeitos puderam nessa entrevista deixar aflorar diversos sentimentos vivenciados com a
experiência do afastamento materno. Como nos diz Lalanda (1998) “contar-se é também
olhar-se e identificar momentos marcantes de transição e mudança”. Importante ressaltar que
os sujeitos tiveram os nomes alterados.

Tamiris

Tamiris tem 30 anos, trabalha como empregada doméstica, nasceu em João Pessoa e
reside atualmente no Rio de janeiro.
Quando Tamiris nasceu, seus pais eram namorados. O pai mantinha vários
relacionamentos, simultaneamente. Tanto o pai de Tamiris quanto a família dele não
aceitavam nem a continuidade do relacionamento, nem a gravidez, por esse motivo o pai não
a registrou. Ainda assim, ao nascer, foi para a companhia da família paterna para que a mãe
pudesse trabalhar, mesmo contra a vontade do avô que não a aceitava. Com o objetivo de
livrar-se dela ateou fogo à própria casa. A partir desse incidente Tamiris foi levada para a casa
do avô materno que a criou até os nove anos de idade. Desconhecendo, até esse momento, a
genitora como sua mãe, chamava-a de tia. Ao saber da verdadeira historia não aceitou, porque
acreditava que os avôs fossem seus pais. Até hoje os reconhece como pais. A partir da
revelação de sua origem foi morar com a mãe, momento em que descobriu que tinha dois
irmãos mais novos. Havia um estranhamento na relação com os irmãos, brigavam e
particularmente a irmã expressava muito ciúme. Para Tamiris esse comportamento da irmã era
motivado pelo mino e carinho que recebia da genitora.
Não conheceu o pai biológico, mas o seu sonho era conhecê-lo. Chorava
constantemente querendo conhecer o pai. Aos onze anos, sua mãe a levou para conhecê-lo, foi
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quando a avó paterna informou que o genitor havia casado e tinha filhos. Tamiris não
conheceu esses irmãos. Desde essa época, não teve mais contato com a família paterna.
Reconhece como figuras paternas o avô materno e o padrasto.
As constantes brigas entre irmãos, bem como a rigidez e ignorância do padrasto
levaram-na a sair da casa da genitora aos doze anos. Contudo, já exercia trabalho remunerado
como doméstica desde os 10 anos. Trabalhava como babá, o que a impossibilitava de estudar,
uma vez que ficava dia e noite em seu trabalho. Permaneceu nessa atividade até os 12 anos
quando voltou para a casa. No mesmo período envolveu-se com um jovem de 14 anos, saiu
de casa mais uma vez e foi trabalhar em casa de família enquanto o rapaz morava em
companhia dos pais. O relacionamento não deu certo e tentou voltar para junto de sua mãe.
Tanto a genitora quanto o padrasto recusaram a sua volta. Acredita que a recusa da mãe
obedecia ao desejo do padrasto. A partir de então, passou a morar na casa dos outros. Com o
passar do tempo foi conviver com uma pessoa e tiveram quatro filhos: a primeira quando
Tamiris estava com 13 anos de idade, a segunda com dezesseis, o terceiro com dezoito, e o
quarto com vinte e dois anos. A relação conjugal durou quinze anos.
Quando se separou e veio morar no Rio de Janeiro deixou dois filhos em João Pessoa;
posteriormente eles vieram para a sua companhia. A menina que hoje está com dezesseis anos
recusou-se a vir na ocasião, permanecendo na companhia da avó paterna e do pai, até que, aos
quinze anos, engravidou e a avó e o pai não mais quiseram responsabilizar-se por ela, vindo
para a companhia da genitora.
Hoje mora no Rio de Janeiro com os quatro filhos e uma neta (dezesseis, catorze,
onze, sete anos e a neta de sete meses) e mantém relação conjugal há três anos com uma
pessoa de trinta e um anos de idade. A entrevistada resume sua vida da seguinte maneira: não
teve pai, não teve uma mãe presente, casou precocemente, teve filho antes da hora e não
estudou.

Sara
Sara, 47 anos, funcionária pública, nasceu e mora no Rio de Janeiro.
Desde que nasceu foi criada pela avó paterna, embora tenha convivido com a mãe até
mais ou menos 1 ano e 4 meses. Considera a avó, sua avó, mãe, madrinha, tudo para ela. Foi
fruto de uma segunda relação conjugal de sua mãe. No primeiro casamento sua mãe gerou um
casal de filhos, irmãos que Sara não conheceu e não sabe quem são. Conhece somente os
irmãos por parte de pai. Por ser casada, a mãe não registrou a filha Sara. Tanto ela quanto o
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irmão foram criados pela avó. A genitora teve cinco filhos e todos foram criados pelas avós
paternas.
Sua mãe se distanciou dos filhos do primeiro casamento quando foi morar com seu
pai. Ocorreu o mesmo comportamento em relação a ela, Sara, e ao seu pai: a mãe conheceu
outra pessoa e se distanciou. Para Sara, a mãe a abandonou para sair pelo mundo, conheceu
outra pessoa e foi viver com ele.
Desconhece a origem da mãe e de seus parentes maternos. A avó paterna foi
responsável por todo cuidado, embora o pai convivesse em sua companhia. O pai era muito
mulherengo, jornaleiro, novo, foi pai aos 18, 19 anos, o pai lhe oferecia dinheiro se o
chamasse de tio. Sempre quem a sustentou foi a avó.
Cresceu sentindo muito a falta da presença materna, esse sentimento muitas vezes foi
reforçado quando as pessoas interrogavam-na sobre o nome da mãe, pergunta que até hoje
tem que responder. Recebeu em seu registro somente o nome do pai.
Os encontros entre ela e a mãe foram esporádicos e são poucas as lembranças. Sempre
achou chato o fato de todos terem mãe e ela não, embora, para ela, a avó tenha suprido essa
ausência. Explica que não chamava a sua avó de mãe porque sempre entendeu que tinha mãe.
A mãe teve filho de uma terceira relação com quem manteve mais contato. Após essa
relação conjugal passou a fazer uso de álcool e virou mendiga. Sara passou a procurar a mãe
quando soube de seu estado, cuidou dela, internou-a e hoje ela vive em um asilo. Sara a visita
poucas vezes, na época da entrevista fazia um ano que não a via.
Afirma que a genitora participou raras vezes de sua vida e Sara até hoje tem o desejo
de ter o nome da mãe em seu registro de nascimento.

Eliane
Eliane, 43 anos, empregada doméstica, nasceu na Bahia e hoje mora no Rio de Janeiro.
Eliane estava com uns 5 anos quando os pais se separam e a mãe foi embora de casa
levando os 4 filhos, inclusive ela, e estava grávida do quinto filho. Foram para a casa de sua
avó materna. Eliane permaneceu com a mãe mais ou menos 1 ano, até o nascimento de seu
irmão quando foi para a companhia da tia materna. Ficou com a tia até seus 8 anos quando
nasceu sua irmã mais nova e a mãe a chamou para ajudar nos cuidados com a criança.
Permaneceu com a mãe pouco tempo e foi levada para a casa do pai ficando sob os cuidados
da madrasta durante 8 meses, retornando mais uma vez para a companhia da mãe.
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Quando estava com 10 anos a mãe a entregou para uma família que desejava uma
menina, porém a mãe não conhecia, não sabia nem quem eram. Ficou em Ilhéus algum tempo
e depois foi levada para Salvador. Durante esse tempo sofreu muito querendo retornar para
casa, para sua mãe. Dos 10 anos em diante foi criada por essa família e pediu que não fosse
afastada dos irmãos. Aos 12 anos de idade teve a noticia de que a mãe foi morar com uma
pessoa e largou os filhos porque o novo companheiro não queria saber de nenhum filho seu.
Todos ficaram com a avó materna, exceto ela, Eliane, que já estava na companhia dessa
família. A irmã mais nova foi para a casa em que Eliane se encontrava, mas ficou pouco
tempo, indo para a companhia da tia e posteriormente a prima assumiu a criação. Algum
tempo depois o pai levou os irmãos que estavam na casa da avó para junto dele, facilitando,
desse modo, a proximidade entre ela e os irmãos.
Sua mãe teve mais filhos que também foram criados por outras pessoas, mas ela não
os conheceu e desconhece seus paradeiros. Recentemente, havia descoberto um irmão com 29
anos, porém ainda não tivera contato pessoal, somente pela internet.
Cresceu sob os cuidados da família afetiva. Aos 21 anos engravidou, dando a luz a sua
primeira filha e não permaneceu com o pai biológico da criança. Conheceu uma pessoa que
assumiu as duas, ela e a filha, vindo a engravidar da segunda filha. O relacionamento durou
13 anos. Embora tivesse constituído sua família, nunca deixou de ajudar e cuidar dos irmãos.
Quando se separou procurou residir perto dos irmãos e do pai. Hoje mora no Rio de Janeiro
com as duas filhas e perto dos irmãos de quem continua a cuidar, pois sente-se responsável.
Também cuida da genitora que atualmente reside com ela, suas filhas e os irmãos.

Renato
Renato, 24 anos, contratado pelo serviço público como serventuário da justiça, nasceu
e mora no Rio de Janeiro.
Renato viveu com a avó materna até os 12 anos de idade porque a mãe fugiu de casa.
Segundo ele a saída da genitora teve como motivação ir morar com um homem, deixando ele
e mais 4 irmãos com a avó. Aos 12 anos Renato fugiu da casa da avó e foi morar com a mãe.
O marido da mãe não aceitou, então, diz ele, a mãe optou pelo marido e não quis ficar com
ele. Diante da recusa da mãe ele foi morar com a tia materna, a quem chama de mãe e o
marido da tia, que reconhece como seu pai. Morou com a tia até os 19 anos, nesse período
estudou e teve a oportunidade de conhecer o pai biológico. Porém, até os 8 anos nunca tinha
escutado falar nada do pai, a primeira pessoa a falar da existência do pai foi a tia.
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Durante anos seu sentimento era de que nunca iria conhecer o pai, mas aos 18 anos
conheceu o genitor e mais 4 irmãos paternos. Realizou teste de paternidade e passou a receber
pensão alimentícia, o que lhe possibilitou o acesso ao curso de ensino superior. Não tem uma
boa convivência com o genitor quando o procura, faz ligações telefônicas, mas o pai não
responde. Não tem, também, muito contato com a família paterna, avós, tios, primos.
O relacionamento com a mãe é conflituoso. Há um ano não fala com a mãe, pois teve
um desentendimento com o atual marido da genitora e a mãe defendeu o companheiro. A
partir desse episodio se distanciou de sua mãe.
Suas figuras maternas são a avó, a tia paterna e o marido da tia a quem chama de pai.
Considera “desnaturados” tanto o pai quanto a mãe biológica porque, segundo ele, a mãe o
largou para viver com um homem. Não tem pela mãe o mesmo amor que diz sentir pela tia. A
tia é tudo para ele. Expressou o desejo de juntar toda a família, irmãos e mãe, porque cada
irmão mora em local diferente.

Pedro
Pedro, 18 anos, ajudante de obra, nasceu no Rio de Janeiro e foi criado em Salvador.
Hoje reside no Rio de Janeiro.
Quando Pedro estava com 2 meses, segundo o que lhe contaram, sua mãe o entregou
para um casal, isto porque conheceu um companheiro que não a aceitava com filho. Teve que
escolher entre o filho e o companheiro. O pai desconhecia tudo que estava ocorrendo. Quando
o pai ficou sabendo veio ao Rio de Janeiro e o levou para Salvador. Foi criado pelo pai até 11
anos de idade. A relação com o genitor não parecia ser de pai e filho, uma vez que o pai
falava que o estava “criando porque era obrigação, porque minha mãe não me quis e tal, ele
também não tinha obrigação nenhuma, que ela me deu, então ele só tava fazendo isso porque
ele se sentia obrigado”.
Seu pai, quando Pedro estava com 1 ano de idade, conheceu uma pessoa e foram
morar juntos, ele, o pai, a companheira e a filha dessa companheira, tendo sido os dois criados
juntos. O relacionamento com o pai passou a ser bastante conflituoso em virtude de ter ficado
sabendo do envolvimento do pai com a enteada, sua irmã de criação. O fato foi revelado para
a madrasta e o pai biológico da irmã de criação. O pai então a levou para viver com ele. O pai
de Pedro sempre voltava ao mesmo discurso, dizendo que só o criava por obrigação, já que
mãe o havia não teria ficado com ele. O relacionamento com a madrasta também não era
satisfatório contribuindo para a sua decisão de sair de casa. Encontrou uma pessoa que o
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abrigou, porém, o pai passou a persegui-los, levando-a a desistir. Por medo de retornar a casa
do pai, fugiu mais uma vez. Foi para a companhia de outra pessoa, mas o pai continuou a
persegui-lo até que foi morar nas ruas. Envolveu-se com drogados e participou de um assalto
por necessidade de comer. Conheceu uma pessoa que vinha para o Rio de Janeiro e veio com
ele para tentar encontrar a mãe que havia localizado através de uma rede social. Circulou em
Copacabana até ser acolhido por uma igreja que entrou em contato com a sua mãe. Viveu
algum tempo com a mãe, que dizia tê-lo deixado porque na época não tinha juízo. Tempos
depois, ela o mandou ir embora, pois não queria sustentar filho marmanjo nenhum. Voltou
para as ruas onde, com seu trabalho, conseguiu alugar um local para viver. Em relação a sua
mãe, seu sentimento é de que nada justifica o que ela fez e que não tem amor de filho por ela.
Relata que a genitora teve 4 filhos e que só criou 1. Quanto aos irmãos paternos e maternos,
considera-os como irmãos.
Hoje com 18 anos tem uma filha com quem tem contato constante embora não more
com a companheira. Relata que, apesar das dificuldades impostas pela mãe de sua filha, não a
deixa por nada e que foi a melhor coisa que já lhe aconteceu.

Ilan
Ilan, 50 anos, auxiliar administrativo, nasceu e reside no Rio de Janeiro. Quando tinha
3 anos de idade os pais se separaram, nunca soube o motivo, e ficou residindo, em companhia
de uma irmã, com a avó materna. O pai, que morava próximo, era violento e não permitia
qualquer contato com a mãe, que residia nas imediações. Atribui a essas circunstâncias ter
urinado na cama até 13, 14 anos.
Seu pai casou-se uma segunda vez, tendo 2 filhos dessa união. Convivia com todos,
inclusive a madrasta, a qual defendia da violência do pai. Entretanto ficava mais com a avó
que, considera, ocupou o lugar da mãe, embora não a chame assim. Era ela inclusive que
continha o filho nos seus excessos.
Somente aos 15 anos conseguiu se aproximar e frequentar a casa de sua genitora.
Relatou não ter sentido nada neste reencontro, quando conheceu o esposo da mãe e três outros
irmãos. Relatou também que foi um processo bem lento de aproximação, de aceitação.
Teve muitos problemas de comportamento na adolescência, inclusive envolvimento
com drogas, até que conheceu a mãe de seu filho. Tempos depois se separou sem, entretanto,
afastar-se do filho que ficara com a mãe. Considera que a Faculdade e a Igreja ajudaram-no
no relacionamento com o filho.
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Renata
Renata, 46 anos, empregada doméstica, nasceu e mora no Rio de Janeiro.
Renata trabalhava quando conheceu uma pessoa e ficou grávida. Quando da gravidez
morava e continuou morando com os pais. O namorado não aceitou a gravidez dizendo que o
filho não era dele.
A gravidez foi acidental, ela não queria ficar grávida, o que a fez sentir-se triste.
Quando a criança nasceu ela estava com 25 anos, ficou com medo da reação dos pais. A mãe
disse que não a colocaria para fora, que não iria deixar a filha abandonada. O pai reclamou
muito, falou muito, foi difícil de aceitar. Desejava que ela e a filha morressem.
A criança nasceu e aos 8 meses parou de mamar, quando então, Renata voltou a
trabalhar, deixando a filha sob os cuidados da avó, sua mãe. Hoje a filha está com 19 anos.
Chama tanto a avó como a genitora de mãe.
A filha nunca conheceu o pai, que inclusive faleceu, sem que fizesse contato. Até hoje
não conhece ninguém da família paterna.
A filha foi criada junto à família materna, sob os cuidados da avó, pois Renata
arrumava trabalho que exigia que pernoitasse. Não conviveu com a filha, porém, todos os dias
ligava para saber se estava tudo bem. No inicio foi difícil porque sentia muito a falta da filha.
Considera que sua mãe, avó da criança, seja mais mãe do que ela, uma vez que foi quem a
criou, levou para o colégio, médico, fez dormir. Até hoje é a avó quem cria. Ressente-se da
desaprovação do pai, pois considera que, apesar de tudo, trabalha e não abandonou a filha,
deixando-a nas costas dos pais, como muitas fazem. Renata, por conta da atitude de seu pai,
tomou a decisão de trabalhar, porque se ficasse em casa não teria paz, apesar de a mãe
defendê-la. Sente falta de não ter visto a filha crescer, mas considera que foi melhor assim
evitando as constantes reclamações do pai.

Tatiana
Tatiana, 31 anos, trabalha com estamparia por conta própria, nasceu na Bahia e
atualmente mora no Rio de janeiro.
Começou a namorar com 14 anos, em pouco tempo ficou noiva, montaram casa e aos
17 teve a primeira filha. O relacionamento começou a deteriorar inicialmente por conta de
infidelidade do ex-marido. Tatiana perdoou, mas em seguida também foi infiel. Perdoaram-se
mutuamente e tiveram uma segunda filha. A situação financeira piorou e Tatiana foi trabalhar,
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e conheceu outra pessoa com a qual iniciou relacionamento. Quis separar-se, mas seu marido
não aceitava. Conversaram e acertaram-se. Aconteceu o nascimento do terceiro filho.
O marido interessou-se por outra pessoa, o que culminou na separação, que ela não
aceitou. Inicialmente os filhos ficaram como ela, contando com a rede de apoio familiar, mas,
por conta de problemas emocionais, as crianças passaram a transitar entre as residências dos
genitores. Por esse motivo o ex-marido pediu e ela aceitou que ele ficasse com as crianças,
acreditando que se agradasse o marido ele voltaria para ela. Tal não ocorreu e, quando quis
retomar os filhos, não conseguiu, tendo que entrar na justiça. Neste momento da entrevista, o
contato com os filhos ocorre de 15 em 15 dias.
Com a separação a filha mais velha assumiu o cuidado dos irmãos mais novos, quando
foi residir com o pai. Tatiana reclama da postura da filha mais velha que exerce sobre os
irmãos a autoridade que deveria ser dela. Atualmente expressa o desejo de continuar com o
pai, e os irmãos dizem não querer se separar da irmã. Tatiana acusa o ex-marido por essa
opção dos filhos.
Nossas entrevistadas e nossos entrevistados que entraram na pesquisa no lugar de
filhas e filhos também são pais e mães. Não pretendemos separar suas experiências de
parentalidade e de filiação, no entanto, ficou marcado o lugar a partir do qual o convite foi
feito.
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2 FAMÍLIA E SUAS DIVERSAS FORMAS DE SER E EXISTIR

A família reconhecidamente se constitui por uma diversidade de modelos


caracterizados por agenciamentos de valores que constituem suas formas de ser e existir. No
Brasil, alguns autores (DUARTE, 1995; SARTI, 1995; FONSECA, 2002a e b, entre outros)
ressaltam a importância da classe social na compreensão da família. Interessa-nos aqui
abordar, inicialmente, baseados na proposta de Duarte (1995), os aspectos globais referentes
aos modelos presentes nas três classes sociais, elite, classe média e classe popular.
Posteriormente, reporto-me às ideias de Bilac (1995), Goldani (1991) e outros autores para
falar sobre a família de classe média e a Bilac (1995), Duarte (1995), Sarti (1995) Fonseca
(2002a e b) e outros teóricos para abordar a família de classe popular, foco especifico da
presente pesquisa.
Como diz Duarte (1995), a família ajustou-se aos contextos da cultura universal
moderna, parametrizando-os sem, contudo, conformá-los. O autor, lançando mão da
“tripartição habitual” (p. 33) – elite, classe média e classe popular –, sugere que o modelo
central encontra nas classes médias nacionais o espaço privilegiado de atualização.
Formatação diferente seguiria a elite, “em que a ideia familiarista convive com a preservação
daquela “unidade de identidade” a que se refere à Etnologia” (p. 33). Quanto às classes
populares, seus núcleos independeriam da subordinação à ideologia familiarista, submetendo-
se, entretanto, à dimensão unidade doméstica. Ainda segundo o autor, o modelo de família
com maior visibilidade no mundo ocidental é o modelo preconizado pelas camadas médias da
população, em função do imaginário ligado ao seu vínculo com o núcleo ideológico moderno,
de onde, inclusive, é captada a maior parte dos produtores de cultura, bem como pelo seu
predomínio, estatisticamente comprovado, nos aglomerados urbanos. Os demais formatos
somente adquirem visibilidade em pesquisas específicas.
Os estudos e publicações que têm como objeto a família nas camadas populares
predominam nas pesquisas das ciências sociais, em comparação com aqueles voltados às
famílias da elite. O autor pode comprovar também em suas pesquisas a coerência dos dados
disponíveis, ao observar esta classe “à luz da fraca subordinação da cultura desses grupos de
nossas sociedades à ideologia individualista e da concomitante preeminência de uma visão
relacional e hierárquica de mundo, expressa em boa parte na alta valoração de seu modelo de
família” (DUARTE, 1995, p 33), caracterizado pela absoluta convicção da
complementaridade de seus membros e na produção de “pessoas relacionais” (p.33) voltadas a
40

compor outras e idênticas unidades familiares. Nestas famílias o eixo de identidade desloca-se
do sujeito social isolado, o indivíduo (tão caro ao ideal familiarista), para a família, ou seja,
para a mônada doméstica. Nesse aspecto distancia-se da exceção representada pelo modelo de
família estruturado no valor-indivíduo, para a muito próxima e pertinente dimensão do
parentesco, combinando-a com outra dimensão, esta operacional, do grupo doméstico, com o
propósito de assistir a essa reprodução estereotípica do mundo social excetuando-se aqueles
influenciados pela ideologia individualista (DUARTE, 1995).
Subordinada à preferência pela corporatividade, embora alinhada externamente com o
modelo tido como dominante, a família das elites divide sua tarefa entre a produção de
indivíduos e a reprodução do ente corporado, que pode assumir ou não o formato efetivo de
parentela. Requer atenção, para a distinção desses modelos, elite e classe popular, face ao
modelo central, a percepção de suas diferenças valóricas e ideológicas, para que não os
confundamos com ele por sua exterioridade e morfologia. Igual atenção é requerida para, em
se reconhecendo diferenças e especificidades, não as reduzirmos a um mero efeito de
sobrevivência daquele modelo central. Resta do exposto que esses modelos de família
destacados do modelo central individualizante e, supostamente, dominante, vinculam-se
àquelas formas tradicionais, pré-modernas por seu caráter nitidamente hierarquizante.
Entretanto, devemos considerar a forte pressão a que estão expostos esses modelos por
vicejarem em sociedades institucionalmente empenhadas na imposição da ideologia central.
Assemelham-se estas famílias das camadas populares (como também a das elites) às formas
tradicionais, pré-modernas, no seu aspecto/caráter não individualista e hierarquizante
(DUARTE, 1995).

Embora as classes populares representem certamente um espaço de


índisponibilidade primordial a esses valores — graças, em parte, à sua condição não-
letrada, não-cultivada —, elas não deixam de vir sofrendo longamente a pressão do
pólo cultural dinâmico, sobretudo nesse locus privilegiado da individualização que é
o mundo urbano moderno. Essa convivência parece favorecer aproximações lexicais
ou morfológicas, ao que não corresponde uma efetiva conversão ou transformação
sintática ou simbólica, como pude demonstrar a propósito do modelo da pessoa e das
perturbações físico-morais presente no modelo do nervoso (Duarte, 1986). O que
ocorre com as elites é diferente. Embora tão expostas quanto as camadas médias à
ideologia individualista, a substância ou sentido da cultura ocidental moderna, que
lhes impõe o formato central da família, apresentam-na subordinada à identidade
corporada (DUARTE,1995, p 35).

Examinamos até aqui os três modelos de família, nas suas características diferenciais
em face do modelo central de família na modernidade. Passaremos agora a discutir a dinâmica
das famílias de classe média, por sua identificação com o modelo central.
41

Na família de classe média o acesso a emprego, escola e habitação garante os


requisitos externos, participação social e a possibilidade de implementação daquele modelo.
Essas famílias caracterizam-se ainda pelas funções reprodutivas, em que a criança habita
nesse contexto o lugar central. Nesse modelo a unidade familiar é responsável pela satisfação
de necessidades de diversas ordens (econômica, social e afetiva) realizada por e para seus
membros através do exercício das funções de casal, pais e filhos, garantindo-se, desta forma,
no contexto da centralidade atribuída à criança, sua socialização e estabilidade da
personalidade adulta.
A importância dada ao individualismo, privacidade e às relações afetivas são
fundamentais para seus membros (BILAC, 1995a; GOLDANI, 1991). Esta família está
comprometida com a mobilidade social, não apenas pela sua exclusão da família estendida, o
que facilita a mobilidade espacial, que favorece por sua vez o progresso social, como também
induz o provedor a dedicar a esta mobilidade, e a das seguintes gerações, parte significativa de
seus esforços. Este comportamento reforça o individualismo nos homens, pois que suas
necessidades e desejos passam a ser prioritários, como também nas crianças, que passam a ser
o centro das atenções (BILAC, 1995a).
Estas características resumem-se na complementaridade assimétrica dos chamados
papeis sociais, onde as mulheres só possuem reivindicações individuais relacionadas com suas
atribuições de mãe e esposa. O que costumava ser atribuído à mulher passa a competir com a
escola e profissões especializadas e essas mulheres, preparadas para a socialização, passam a
reagir à domesticação, reforçando suas reivindicações através dos movimentos feministas e da
ocupação de postos no mercado de trabalho. As demandas femininas por individualismo e
realização pessoal fora da super-socialização ligada à maternidade e maternagem sofrem não
só a influência de padrões emergentes de relações de gênero como também são influenciadas
por características próprias dessas camadas (BILAC, 1995a).
A precariedade dos serviços públicos relacionados à saúde e à educação não satisfaz a
camada média da população, gerando intensa demanda por seus congêneres privados, com a
consequente elevação dos custos da reprodução. Por outro lado, sua renda, no quadro da
desigual distribuição, torna-a atrativa aos apelos publicitários do setor de bens de consumo,
diz Bilac (1995a).
Estas circunstâncias estimulam fortemente o trabalho feminino, para o qual
contribuem também o nível de escolaridade dessas mulheres e, em nosso país, a cultura do
emprego de domésticas. Aliás, o emprego dessas profissionais não deve ser subestimado, pois
ameniza a pressão por mudanças nas relações de gênero, porque atenua os efeitos da dupla
42

jornada. A oferta dessa mão de obra feminina de classe média não corresponde à demanda, o
que se expressa pela baixa taxa de atividade feminina e pela desigualdade da remuneração
oferecida para a mulher (BILAC, 1995a).
Os arranjos familiares alternativos nas famílias das camadas médias não estariam
vinculados às limitações materiais, mas sim à “insatisfação com o modelo hegemônico em um
contexto de abertura no leque das opções individuais e estilos de vida” (GOLDANI, 1991, p
75).
Apesar da diversidade presente entre as camadas médias da população (vinculada aos
padrões de consumo, tanto de bens materiais quanto simbólicos) prevalece entre elas o
modelo nuclear com base nos laços conjugais. Paralelamente, maternidade fora do
casamento, moradias distintas e o celibato constituem experiências, envolvendo homens e
mulheres em arranjos afetivos sexuais diversificados. Tornam-se igualitárias essas famílias,
no envolvimento de homens e mulheres e na percepção da igualdade como indivíduos, porém
diferenciados pessoal e idiossincraticamente (GOLDANI, 1991).
Em consonância com as propostas de Bilac (1995) e Goldani (1991), Claudia Fonseca
em estudo comparativo das classes sociais, média e popular, aprofunda as circunstâncias do
cuidado com as crianças. Para Fonseca (2002a), classe média e classe trabalhadora diferem
substancialmente em relação ao lugar da criança na família. A classe média percebe o
desenvolvimento da criança dentro de fases que compreendem o emocional e o intelectual, e
que cada fase exige cuidado de um adulto especifico; a Psicologia e a Pedagogia, junto com a
escola e a família nuclear, desempenham funções importantes na socialização da criança,
incluindo-a em um processo de ascensão sócio-econômica de longa duração. Já nas camadas
populares, a função dos genitores não está voltada para a manutenção de uma relação
emocional, mas sim de garantir que certas necessidades sejam atendidas.
Enquanto as camadas médias caracterizam-se por manter um ambiente doméstico
fechado voltado para a escola e carreiras futuras, nas famílias de baixa renda, a dinâmica é
aberta em torno da unidade conjugal. A ideia de que as famílias, nas camadas populares, se
organizam em rede, não em núcleo, aponta para uma maior diversidade de destinos para
crianças, parentes ou não: surge daí o tema do afastamento entre mães e filhos nesta classe, o
mote desta tese.
A marca da dualidade entre tradição e modernidade bem como comportamentos
hierárquicos ou igualitários atravessam a literatura brasileira sobre o tema da família, tida
como “literatura de polarização”, na concepção de Sorj e Goldenberg (2001). Neste texto,
sobre conversão para o judaísmo e casamento, as autoras mostram como em algumas famílias
43

esses valores estão mesclados, forte que são, entre os judeus, a centralidade dos filhos e a
importância da educação deles. Segundo as autoras, uma crítica que se faz a este sistema de
classificação, o qual permite essas ilações em relação às classes sociais, diz respeito ao
advento de novas formas de conjugalidade que não se enquadram exclusivamente em um dos
pólos: reprodução da tradição ou assunção de valores igualitários.
Dizem, assim, que essa abordagem dualista não levaria em consideração o processo de
re-significação de práticas sociais, que modificam a dualidade expressa por essa postura
analítica, e recombinam valores hierárquicos e igualitários. Apesar de reconhecer que a crítica
procede e que de fato muitas combinações são possíveis na micropolítica cotidiana das
famílias, vamos utilizar majoritariamente as referências dos autores que trabalham com essa
perspectiva dualista, seus entendimentos sobre valores individualistas ou holísticos, mais ou
menos centrado no indivíduo ou na família.
Na parte que se inicia agora, pretendemos compreender, servindo-nos das ideias de
Sarti e Fonseca, dentre outras, as formas de organização das famílias nas camadas populares,
não tomadas como verdades e amarras, mas pelas expressões as quais a literatura sobre o tema
as trata. Nesta revisão temos no horizonte duas questões gerais que orientam nossas reflexões
e que estão presentes em nosso campo: em que circunstâncias é aceitável a separação da mãe
com relação ao seu filho? Em que casos essa mesma separação condena a mulher que se
afastou do filho?
Com estas questões em mente, três aspectos do funcionamento dessas famílias nos
chamam a atenção: a centralidade da mulher na família, a busca por recasamentos que alguns
autores, como veremos, identificam como tentativas de reprodução e consolidação de um
modelo nuclear de família e a lógica da solidariedade que impera, parece, em função da forma
de organização desses núcleos que muitas vezes se fragilizam do ponto de vista material.

2.1 As famílias nas camadas populares: por onde circulam homens e mulheres

As famílias de um modo geral passaram e continuam passando por transformações


significativas. Especificamente, no que se refere às famílias das camadas populares, sua
tendência parece ser, em um primeiro momento, reproduzir o modelo burguês de família com
o objetivo de corresponder ao modelo preeminente na sociedade. Para atingir o seu propósito
44

tentam adequá-lo as suas condições de existência. O modelo de família com maior


visibilidade no mundo ocidental é, sem dúvida, o modelo preconizado pelas camadas médias
da população, em função do imaginário ligado ao seu vínculo com o núcleo ideológico
moderno (DUARTE, 1995). Entretanto o autor pondera que a família de classe popular

conjuga a dimensão genérica do parentesco com a dimensão operacional do “grupo


doméstico” de modo a servir a essa reprodução estereotípica característica de todo o
mundo social, à exceção daqueles permeados pela ideologia individualista. Ela se
assemelha nesse sentido fortemente à família camponesa; em que pesem tantas e tão
fortes diferenças dos contextos sociais em que se desenvolvem (DUARTE, 1995, p
34).

Dentro dessa perspectiva podemos arriscar dizer que uma das diferenças existentes
nesse tipo de família se refere ao significado dos filhos, em que estes representariam, ao
contrário de despesas, maior potencial de trabalho e ganhos econômicos.

Uma família que se baseia na articulação entre o trabalho doméstico e o trabalho


remunerado, mas que, reiterada, embora intermitentemente, termina por recorrer ao
trabalho feminino remunerado e, dada à precariedade deste, ao trabalho das crianças
e jovens, ao mesmo tempo em que busca prolongar a escolarização dos filhos....
(BILAC, 1995a, p 47).

Os entrevistados também relatam o recurso ao trabalho dos filhos mencionado por


Bilac (1995a) sem que tenha aparecido, entre eles, menção ao prolongamento da
escolarização descrita pela autora, o que não é significativo para nenhuma afirmação sobre
tema.

aliás, com dez anos eu já saí de casa e fui trabalhar na casa de uma pessoa, aí eu
contei a ela que eu não estudei devido isso, porque eu fui trabalhar de babá, e eu
tinha que dormir... morava com a pessoa, né... então eu tinha que ficar do dia à noite
com ela, não tinha como estudar. (Tamiris, 30 anos, filha).

Observa também a autora (BILAC, 1995a) que nessas famílias populares, inicial e
basicamente nucleares, há preferência por uniões juridicamente estabelecidas, ou seja, que
atendam ao caráter formal de união que se pretende duradoura. Sua extinção ocorre
geralmente por conduta do provedor ou suposto (ou ainda deposto) provedor que perturbe o já
frágil equilíbrio econômico – “alcoolismo ou outro desvio que impede que o pai cumpra a sua
tarefa de pai-provedor” (BILAC, 1995a, p 47). Não estamos querendo afirmar estas
características como exclusivas da classe popular, pois acreditamos que ocorrem nas demais
classes. Entretanto acentua-se nesta classe devido à maior vulnerabilidade econômica.
45

Diferentemente da ideia expressa por Bilac (1995a) - preferência por uniões


juridicamente estabelecidas - Fonseca (2008), realizando também estudos com grupos
populares, com base nos levantamentos de processos jurídicos sobre as famílias pobres do
século passado, observou a ausência de registros que apontassem nessa direção. Questionou a
falta de informação perguntando: será que separações conjugais não eram comuns? Encontrou
como resposta “uma sociedade de pessoas que se esquivavam de controles legais: juntavam-se
sem casar, pariam filhos sem fazer certidão de nascimento, separavam-se sem fazer divórcio”
(FONSECA, 2008, p 523). Em pesquisa realizada com famílias pobres na contemporaneidade,
a autora enfatiza que algumas práticas conjugais permanecem prevalentes dentro desse grupo,
tais como as uniões consensuais e a instabilidade conjugal (FONSECA, 2004).
É importante ressaltar que, embora se refiram a famílias de classe popular, as autoras
mencionadas apropriaram-se de campos distintos, ou seja, Bilac (1995a) reportou-se a
famílias inicial e basicamente nucleares, atribuindo-lhes a preferência pela união
juridicamente reconhecida e Fonseca (2008) explorou a ausência de registros em
levantamentos de processos jurídicos sobre separações conjugais, concluindo pela preferência
por uniões consensuais.
Retomando a ideia de Bilac (1995a) – entre provedor e equilíbrio econômico – a
autora nos relata a preocupação da família com a relação entre provedores e consumidores,
que se estabelece sob a ameaça contínua de baixos salários e desemprego. Por isso mesmo
ganham importância a solidariedade no núcleo familiar e a posse e/ou propriedade da
residência. Por conseguinte, segundo ainda Bilac (1995a), é

uma família sempre preocupada com o equilíbrio entre provedores e consumidores


no núcleo familiar, ameaçada que é, continuamente, pelos salários arrochados e pelo
desemprego, e que, por isso mesmo reforça a solidariedade entre seus membros e
valoriza ao extremo a casa e a propriedade da casa. Por tudo isso, uma família que
continuamente se organiza e se reorganiza, uma família que se estrutura e se
reestrutura (BILAC, 1995a, p 47)

Além da busca de equilíbrio, de que nos fala Bilac (1995a), entre provedores e
consumidores nas famílias de classe popular, surgem, também, pontos de tensão que muitas
vezes resultam em espancamentos e maus tratos contra mulheres e crianças, notícias diárias
nos órgãos de imprensa no país. A chamada lógica da solidariedade identifica esta família,
mesmo nos casos em que disputas e conflitos de diversas ordens aconteçam no cotidiano. A
interdependência, por outro lado, pode explicar o retorno a casa, de mulheres e crianças
vitimadas.
46

Essa lógica da solidariedade aparece em alguns casos desta pesquisa e nota-se,


também, disputas entre os irmãos, buscando negociar os sentidos da qualidade do afeto da
mãe traduzida no apoio material que elas concedem a uns filhos e não a outros. Parece estar
em pauta a qualidade das relações construídas entre os membros da família ampliada, como
destarte observado em diferentes instâncias relacionais ao longo deste trabalho.

prá não ver faltando as coisas prás crianças... e faltava! Faltava, porque você... é
quatro criança, você só. Minha mãe, assim... nesse tempo ela nunca me ajudou. Com
os meus filhos, ela nunca me ajudou. Ela hoje, até hoje, ela ajuda a minha irmã.
Minha irmã mora na casa dela, mora com uma pessoa, mas mora dentro da casa
dela, não paga aluguel. Meu padrasto morreu, deixou a pensão... então, assim, não
falta nada. Eu falo prá ela, quando eu ligo prá ela, assim: “é, a vida que sua neta tem,
que a senhora tá dando a sua neta, né...”, ela nunca deu a meus filhos. Eu sei que ela
ama meus filhos, ela gosta dos meus filhos, e ela sente isso... eu digo que ela se
sente culpada. Ela se sente culpada, por não ter me ajudado, quando eu precisava
dela, ela não me ajudava. Muitas vezes eu tentei me separar do meu esposo, logo,
quando eu tinha, assim, um ou dois filhos, mas ela não aceitava eu na casa dela. Eu
ia, mas chegava lá minha irmã não queria, porque a minha irmã que mandava na
casa... assim, ela é... ela tá mudando agora, depois que ela foi mãe, ela mudou um
pouco. Arrumou uma pessoa que é muito boa, uma pessoa assim que... coração
muito maravilhoso... então tá mudando ela, o modo de pensar dela, o modo dela agir
com as pessoas.
(Tamiris, 30 anos, filha).

Ainda em Bilac (1995a) verifica-se nessas famílias a tentativa de conciliar o modelo


nuclear com a realidade social por eles vivida. As organizações familiares, nas camadas
populares, sob a influência de outras classes, notadamente a camada média da população,
ainda que persigam ideais e valores desses grupos, destoam pela necessidade de traçar
estratégias de sobrevivência condizentes com suas realidades marcadas pela baixa
escolaridade, subemprego e desemprego.
Essa família, em termos gerais, hierarquizada e patriarcal, segue a linha de autoridade
do homem sobre a mulher, desses para os filhos, dos mais velhos para os mais novos.
Percebe-se nitidamente a divisão sexual, tendo o homem que exercer o papel de provedor e a
mulher, o de dona de casa. Estes arranjos, quando desfeita a relação conjugal, geralmente
transferem-se para outros membros do mesmo sexo, integrantes da rede familiar ampliada por
consanguinidade ou afinidade.
Para Sarti (1995) as relações de gênero estabelecidas dessa forma (homens provedores,
mulheres donas de casa e cuidadoras do marido e dos filhos) persistem como substrato, muito
mais no horizonte idealizado, do que na concretude de suas vidas, não prevalecendo no
cotidiano das famílias, pela exigibilidade do trabalho feminino remunerado e instabilidade da
atuação do homem no papel de provedor.
47

foi por esse motivo que eu deixei ele, porque ele não dava amor, não dava carinho,
não dava atenção. Ele era muito ignorante, só reclamava... e bater. Eu falava prá ele
assim: “ter uma pessoa dentro de casa, só prá dizer assim, que tem um homem
dentro de casa, que é o pai e o marido”. E não faz o papel, nem de pai, nem de
marido.

Trabalhar, né, assumir aquela família, botar o pão dentro de casa pros filhos
comerem. Ele não fazia nada disso... então, eu tava com ele, e eu que tinha que me
esforçar, prá arrumar tudo dentro de casa pros meus filhos. Então, assim, eu tava
sustentando meus filhos e sustentando ele.
(Tamiris, 30 anos, filha).

Compulsoriamente estas famílias ampliadas desenvolvem estratégias de sobrevivência


com base na solidariedade de todo o grupo para prover recursos de ordem material e/ou
emocional, destinada a garantir a sobrevivência e a qualidade de vida de cada um dos seus
membros, notadamente as crianças. Estas estratégias, opostas ao individualismo, reorganizam
o sistema de valores, submetendo interesses individuais às contingências do grupo,
eventualmente contando mesmo com pessoas que não pertençam ao grupo de parentes
(vizinhos, pais e mães de coleguinhas da escola, etc.), para que os provedores possam
trabalhar (SARTI, 1995).
Assim, a lógica da solidariedade mencionada acima organiza muitas vezes as relações
familiares, em contraste com a ordenação imposta pela lógica do individualismo às relações
nas famílias das camadas médias da população, como rapidamente abordamos no início desta
parte. Indaga-se neste momento se não seriam estas fronteiras (trabalho/não trabalho,
trabalho/consumo, cidadania/exclusão) que serviriam de base para as “práticas familiares de
reprodução cotidiana que já foram denominadas estratégias de sobrevivência” (BILAC,
1995a, p 49), vinculadas à lógica da solidariedade, criando relações entre o trabalho,
consumo, cidadania e exclusão, não pela ótica da produção ou com base em uma ética do
trabalho, “mas pela ótica do consumo e com base em uma ética do provedor” (BILAC, 1995a,
p 49).
Cabe salientar que nas famílias das classes populares é comum agregar, além dos
parentes, amigos e irmãos por afinidade. Essa característica se desdobra, muitas vezes, na
coabitação, que pode ser explicada em razão da falta de emprego e moradia, levando os
indivíduos a buscarem refugio e recorrerem à mãe, ao irmão e ao vizinho.
48

2.2 Famílias chefiadas por mulheres

Outra característica que vem sendo apontada como dominante é a presença da família
monoparental, destoante do modelo nuclear de família (SILVEIRA; FALCKE; WAGNER,
2000), por serem essas famílias, em grande parte, chefiadas por mulheres. Bilac (1995a)
desenvolve mais ainda a questão oferecida pelos autores citados, quando nos fala que nas
famílias chefiadas por mulheres haveria uma significativa centralidade da relação mãe-filho,
que se reforça, ampliando para a mulher o exercício de liderança, não só nas questões de
consumo como também na obtenção de recursos, ou seja, a mulher teria se tornado também a
provedora desse núcleo familiar.
Além do cuidado e afeto que já estabeleciam um vínculo na relação mãe-filho, uma
vez que a ela fora atribuída com certa exclusividade essa função, acrescenta-se agora a
contribuição para o sustento da casa, isto quando não é a única responsável por essa
manutenção. Assim é que a mulher passa a ser o agente principal na organização e
manutenção, desempenhando inúmeras funções na família.
Para alguns autores, famílias chefiadas por mulheres e as sucessivas uniões com novos
parceiros não passariam de tentativas de manutenção da figura do provedor, o que Bilac
(1995a, p 53) denomina de “monogamia serial”, pelo esforço de manter o provedor mesmo
não sendo o pai biológico.
Em função de desemprego e outras condições acirradas pela desigualdade social,
muitas vezes atravessadas pela dependência química, o exercício do papel de provedor muitas
vezes possui limitações nas camadas populares, com o que também concordam Woortmann
(1987) e Durham (1982), propiciando as trocas de parceiros, sem que se inviabilize a unidade
familiar, já que garantida muitas vezes pela permanência da relação mãe-filho (BILAC,
1995a). Também para Bilac (1995a) esta circunstância não representaria nenhuma
especificidade, “mas a acentuação de um traço já existente na família solidária de múltiplos
provedores” (p.53). Importante pontuar, no entanto, que a relação mãe-filho muitas vezes fica
inviabilizada, como veremos no nosso campo e demonstram alguns trabalhos (FONSECA,
2002a; SARTI, 2011), seja em função de recasamento, pobreza, necessidade de mudança de
local de moradia.
Poder-se-ia pensar como desorganização familiar a multiplicidade dos arranjos na
família das classes populares (notadamente monoparentais, geralmente matricentradas),
destacando, dessa forma, a instabilidade do vínculo conjugal. Este mito, entranhado nos meios
49

profissionais e acadêmicos, adquire aspectos de perversidade e estigmatização quando influi


no comportamento das pessoas em relação aos mais pobres, desqualificando-os (GOMES,
1991).
Essas constantes e múltiplas uniões podem significar um empenho da mulher em
manter a figura do provedor no lar, como mencionado. Quanto mais as condições de vida
dessas famílias afastam-se dos padrões esperados para a existência do modelo tradicional
(emprego estável, residência digna e escola pública de qualidade), maior significado e
centralidade assume a relação mãe-filho (BILAC, 1995a). Este maior significado, que não
implica necessariamente que mães e filhos ficarão juntos, como veremos, é o que nos faz
estranhar as situações que entendemos como de exceção, quais sejam, as de separação entre
mães e filhos, como as de nossos entrevistados.

quando eu tinha 2 meses minha mãe me abandonou, me deu para um casal, porque
ela (mãe) tinha conhecido um companheiro, e ele falou prá ela que ela teria que
escolher, no caso, o filho, ou ficar com ela, que ele não queria a criança. Aí ela me
deu, prá uma pessoa, um casal, sem meu pai ter conhecimento disso.
(Pedro, 18 anos, filho).

vocês têm uma mãe, né. E a sua mãe não ficou, até, com vocês.... Ela nunca seguiu
aquela linha de ser mãe, e de... entendeu? Porque eu me separei, e fiquei com meus
filhos, não abandonei meus filhos ora nenhuma, por hipótese nenhuma, a gente ia
passar o que passasse.
(Sara, 47 anos, filha).

Amazonas et al (2003), em consonância com a abordagem exposta nos parágrafos


anteriores, realizaram pesquisa sobre o funcionamento e os arranjos familiares de crianças de
uma escola pública na cidade de Recife. A argumentação desses autores gira em torno da
socialização realizada pela família, considerando-a a principal reprodutora de padrões
culturais para o individuo, transmissora e responsável pela produção do comportamento.
Respaldados nesta ideia resolveram investigar como algumas famílias das camadas
populares da cidade do Recife se organizavam, ou seja, que tipos de arranjos – entendidos
como somente constituídos por membros da família ou agregando outras pessoas que vivem
no mesmo domicilio – estão presentes entre elas e quais as formas de funcionamento
adotadas. Para tal, consideraram “os motivos que o viabilizam, as relações hierárquicas
estabelecidas com relação ao poder, as relações afetivas, a organização e o desempenho dos
papeis familiares” (p.11).
Estudaram uma amostra composta por 100 pessoas, distribuídos em 50 adultos, pais ou
responsáveis pelas crianças, e 50 crianças com idade entre 6 a 11 anos. Utilizaram como
50

instrumento de pesquisa Entrevista do Genograma e o Desenho da Família com Estória.


Chegaram aos seguintes resultados: entre essas crianças existem vários tipos de arranjos
familiares, porém, o que predomina é o tipo de família nuclear. Esse modelo se mostrou com
maior frequência nas famílias compostas por crianças de baixa faixa etária. Levando os
autores ao entendimento de que, com o desenvolvimento etário e os anos de convivência do
casal, iniciam-se separações, bem como a família pode aumentar com a absorção de outros
membros, originando as famílias monoparentais, recasadas ou/e extensas.
No que se refere ao funcionamento dessas famílias, observaram, como os demais
autores citados, que sua organização se dá, significativamente, em torno da mulher, figura
central dentro do âmbito familiar, uma vez que as figuras masculinas encontram-se
fragilizadas pela falta de emprego, envolvimento com a polícia, hábito do álcool ou outras
drogas e pouco ou nenhum envolvimento com a família.
Outro aspecto central nessa discussão diz respeito às relações hierárquicas e ao
exercício de poder. Quando nos referimos à hierarquização percebemos que engloba relações
de direitos e deveres para todo o grupo familiar, não se limitando apenas ao casal, atingindo
também os demais membros consanguíneos (ascendentes ou descendentes). Essa extensão de
direitos e deveres torna-se importante em virtude das frequentes rupturas conjugais (SARTI,
1995). O exercício do poder, em sua concepção, está centralizado na figura masculina, o que
contrasta com a chefia da família exercida pela mulher, fruto da intensificação do papel de
provedora desempenhado por esta nas famílias das camadas populares.
Observado em algumas das entrevistas realizadas, o papel de provedora, por si só, não
garante à mulher o exercício do poder, que parece reservado ainda ao homem dentro do
núcleo familiar, e mesmo na família ampliada, para onde migram os lugares sob a mesma
lógica hierárquica. Ainda quando assume a responsabilidade pelo sustento material da família
a mulher poderá não ser reconhecida como provedora quando permanece ao seu lado uma
figura masculina, como relatou Tamiris, em trecho recortado acima, sobre sua necessidade de
“se esforçar”, e que continua:

eu que trabalhei. Eu sempre trabalhei, eu sempre fiz alguma coisa, né, prá... tudo
dentro do contexto, assim, de honestidade. Né... você... eu não tinha um emprego
fixo, mas eu fazia faxina, aí eu vendia uma roupa de um, uma roupa de outro, aí eu
pegava perfume prá vender, sempre prá botar dentro de casa, prá não ver faltando as
coisas prás crianças...
(Tamiris, 30 anos, filha).
51

Ainda quando a chefia da família é exercida pela mulher provedora, há que se


considerar que isso não ocorre para todas as dimensões da autoridade vinculadas
tradicionalmente ao masculino. Mesmo quando o homem não provê materialmente a família e
tem sua autoridade diminuída, toda ou parte dela migra para avós, tios ou outros. A busca
desse provedor idealizado está também na raiz de inúmeros casamentos (SARTI, 2011), como
mais uma vez aparece.
Também na impossibilidade de sua realização em uma só figura, o mesmo ocorre, em
alguns casos, em relação aos papéis femininos de mãe, dona de casa, e esposa. Exercidos
tradicionalmente pela mulher, podem envolver a rede familiar mais ampla, bem como a
comunidade na qual esta família está contida. Mais uma vez a lógica da solidariedade convive
com a indistinta distribuição de papéis de gênero (SARTI, 1995).

mas tudo quem sempre me deu foi minha avó, e meus tios... que nem meu pai
também bancava a gente não.
(Sara, 47 anos, filha)

Em consonância com a ideia proposta por Sarti (2003, 2011), de que o homem se sente
fragilizado quando não consegue prover a família, Fonseca (2002a e b, 2004, 2008) e Scott
(1990) enfatizam o desemprego como o fator mais significativo para a fragilização do homem
em comparação a outros fatores.
Há, para Amazonas et al (2003), deslocamento no que se refere ao exercício das
funções familiares, ou seja, a manutenção da família e os cuidados e afetos dedicados às
crianças são partilhados entre os membros da família e da comunidade. Não é raro encontrar,
nessas famílias, tios, madrinhas, avós e até vizinhos cuidando das crianças para que seus pais
possam trabalhar. Existe também a ajuda financeira, em que os recursos são provenientes da
família da genitora, avós que sustentam filha e neto por falta do exercício de atividade
remunerada da mãe. Como dizem os autores “a solidariedade é uma forma de enfrentar a
condição social, é uma estratégia de sobrevivência” (p. 19).

Aí eu aluguei essa casa, com ajuda do meu atual marido. Ele também:” não, pode
alugar, eu vou te dar uma ajuda...” E ela... aí eu fui e aluguei, fui com as crianças prá
lá, do lado da minha mãe, daí eu comecei a trabalhar. Ia trabalhar, minha mãe, como
era na mesma vila, um casa do lado da outra, quitinete do lado da outra, e minha
mãe ficava tomando conta deles pra mim, ela botava na escola, enquanto eu tava
trabalhando.
.....primeira compra que depois de dois meses, quem me deu foi essa minha ex-
cunhada, ela: “como é que você tá vivendo?”, eu falei: “eu tô tentando, tô ajudando
no aluguel, porque ele não dava o aluguel inteiro, eram 350, ele dava um pouco e ela
terminava de inteirar, e ele me ajudava nas compras...” aí ela: “como é que você tá
se virando?”, eu falei “ó, tô trabalhando, do jeito que eu posso, e ele tá me
52

ajudando” ai, ela “não vou fazer umas compras”, foi no Carrefour fez um comprão, e
deixou lá.
(Tatiana, 31 anos, mãe).

Talvez essa fragilidade que paira sobre a conjugalidade da classe popular possa ser
explicada pela influência do modelo hegemônico de família nuclear vivenciado ou
apresentado como ideal pelas camadas médias urbanas. Modelo que, ao ser seguido, dificulta
a família pobre arcar com suas exigências, face às expectativas geradas e por vezes
impossíveis de serem cumpridas, sobretudo porque supõe um funcionamento social do qual
parte da população, que não é escolarizada e tem pouco acesso ao mercado formal de
trabalho, está alijada.
Não obstante as dificuldades, muitas famílias das camadas populares tentam replicar o
modelo tradicional, mesmo quando do rompimento da relação com o provedor masculino,
seja por desemprego, alcoolismo ou doença. Nelas coexiste a lógica da solidariedade, já
mencionada, que interage com esse modelo nuclear, estabelecendo não só uma indistinção e
consequente migração de papeis para a rede familiar ampliada, como, ao tomar a rua, produz
indefinição entre o que é público e o que é privado, que, se de um lado aponta para a
necessidade de contar com aquele grupo ampliado para o cuidado, notadamente das crianças,
também dá margem para a socialização destas no contato com tios, avós, vizinhos,
comunidade.
A dinâmica da extensão da residência para a comunidade que a cerca submete-se às
condições físicas das habitações, geralmente quentes, pequenas, desconfortáveis e até
precárias, fazendo das ruas local de passatempo, vivência e convivência para estas famílias
(AMAZONAS et al, 2003).

As práticas familiares constituem-se, assim, de contínua apropriação e reelaboração


destes elementos "externos" e "públicos", ditadas porém pelas solicitações e
aspirações implícitas no seu próprio coti-diano "interno" e "privado". Através
destas práticas se constróem certas identidades sociais, que, desse modo, não
são baseadas na ética do trabalho, mas antes na ética da reprodução e da família
— identidades como mãe, pai, filhos... (BILAC, 1995a, p 55)

A aquisição de residência, emprego estável e acesso à educação e saúde, considerada


por alguns autores (BILAC, 1995a; GOLDANI, 1991) como ideais de mobilidade social,
seriam antes projetos de participação social, cidadania, dadas as condições de exclusão
presentes para grande parte da população. Entretanto há que se considerar como cada classe
social (média e popular) representa esta mobilidade e/ou participação social.
53

Para tanto contribuiu Almeida (2007), que investigou os sentidos construídos pela
sociedade sobre maternidade, cuidados infantis e trabalho. Realizou pesquisa comparando
mães trabalhadoras da classe média e da classe popular. Importante salientar que o
investimento no trabalho pela mulher da classe média ocorreu nas últimas décadas, e,
especialmente a partir dos anos 60, tem-se verificado a valorização e sua participação no
mercado de trabalho. Nesse sentido, a mulher da classe média assimila mais uma função, a de
trabalhadora, à sua identidade, diferentemente da mulher da classe popular, que já praticava
simultaneamente as funções de trabalhadora e mãe.
Para alcançar o objetivo do seu estudo, que se fundamentou na Rede de Significações,
realizou entrevistas com quatro trabalhadoras da camada média e grupos de mães
trabalhadoras da camada popular procurando conhecer e demonstrar como as mulheres desses
dois segmentos sociais lidavam com as atribuições do trabalho que requer usualmente o
afastamento do lar, ou seja, como “lidam com as identidades de mães e trabalhadoras e que
sentidos elas atribuem a maternidade, aos cuidados infantis e ao trabalho” (ALMEIDA, 2007,
s/p).
Os resultados revelaram que tanto na camada média como na popular as mulheres
atribuíram à genitora, exclusivamente, a função de educar e cuidar dos filhos, embora
algumas mulheres da camada popular parecessem conseguir dividir ou até mesmo delegar a
educação e o cuidado dos filhos a alguém da família ou a outras instituições como creche ou
escola. Além disso, a tarefa materna de cuidado pode também ser dividida com membros da
rede familiar mais ampla ou até mesmo entre os vizinhos da comunidade, nas famílias pobres,
incluindo como cuidador, muitas vezes, o filho mais velho, que dá assistência aos irmãos
menores, como também observado por Sarti (2011) e Amazonas (2003).

Meus filhos ficam sozinhos, a mais velha, que hoje tem catorze anos é quem toma
conta de todo mundo.
(Tatiana, 31 anos, mãe).

Nas camadas médias, essas responsabilidades de educação e cuidados infantis, mesmo


havendo a possibilidade de dividir a tarefa com uma rede social de apoio – marido, avó, tios –
a genitora continuava a se ver como a responsável. Nos dois extratos sociais, revelou-se a
dificuldade de conciliar as tarefas de mãe e trabalhadora. A maior dificuldade na camada
média pode estar ligada ao significado imputado ao trabalho, que para a mulher da camada
média se refere a um projeto individual, mobilizando grande quantidade de tempo fora do lar,
o que reduz a sua participação direta na vida familiar. Já na camada popular o significado
54

atribuído ao trabalho se circunscreve às garantias e necessidades básicas da família e não


somente para satisfazer as necessidades pessoais.
Almeida (2007, p. s/n) descreve que “há de se considerar também que as mulheres
pobres sempre trabalharam, enquanto que o trabalho é uma conquista recente da mulher da
camada média, tendo adquirido fôlego no século XX, principalmente a partir da década de
1970”. O trabalho assume assim sentidos diferentes nas duas camadas sociais. A autora
concluiu que em ambas as camadas, “o significado atribuído à maternidade antagonizava-se e
coexistia com os sentidos construídos sobre trabalho, o que em muitos casos gerou
explicitamente um sentimento de culpa em relação aos cuidados dispensados aos filhos”
(ALMEIDA, 2007 s/p).
Costa (1983), referindo-se à inserção da mulher no trabalho fora do lar, descreve as
modificações que ocorreram na tradicional divisão de tarefas no espaço doméstico, ampliando
a ideia acima exposta no sentido de que a diminuição do tempo dedicado pela mulher nos
cuidados com os filhos, em função de sua atuação no mercado de trabalho, trouxe mudanças
que afetaram não somente a mulher, mas também os homens. Com a saída da mulher do
âmbito doméstico o homem começou a assumir funções ditas exclusivamente femininas. A
mulher passou a ser mais competente no trabalho, a conquistar a sua autonomia e praticar a
competitividade, enquanto o homem aprendeu a ser mais cuidadoso e cuidador nas relações.
Não podemos afirmar que essas transformações ocorreram sem resistência em ambos,
homens e mulheres, uma vez que o homem teve que abandonar o lugar de senhor absoluto na
família tradicional e a mulher o de rainha do lar, frágil e submissa - o que lhe conferia
vantagens secundárias, exercendo um poder paralelo no mundo privado.
Para Féres-Carneiro (2001), entretanto, houve sim, como Costa verificou em seu
estudo, o aumento do trabalho para a mulher fora do âmbito doméstico, porém, para a autora,
não ocorreu na mesma proporção o aumento significativo da divisão do trabalho doméstico
entre homens e mulheres, embora o homem venha assumindo, como apontava Costa, funções
vistas como femininas. Demonstra através do seu estudo que os homens efetuam tarefas
domésticas de modo esporádico ou as desempenham como auxiliar, uma vez que são as
mulheres as responsáveis por esse trabalho.
Em contrapartida, o trabalho feminino fora do lar é considerado como sendo uma
ajuda ao homem, ou seja, é considerado de remuneração secundária em função do menor
valor auferido, não obstante contribua para o sustento da família. Nesse contexto as
dissoluções conjugais trazem a possibilidade de produzir desvios e reapropriação, pois
desestabilizam as relações de gênero instituídas dentro das alianças familiares e exigem novas
55

negociações e enfrentamentos sociais que originam novas formas de famílias, como as


chefiadas por mulheres.
Ainda para Féres-Carneiro (2001), embora os mundos masculino e feminino estejam
em um processo mais fluido, existem ainda elementos de registro fixados por referencias
dominantes que vinculam as funções de gênero e que estabelecem a centralidade da mulher
nos cuidados da família e da casa. Assim é que a mulher, com as raras exceções que nos
interessam nesta pesquisa, assume a guarda dos filhos após a separação conjugal, devido a sua
performance vista naturalmente como feminina. O fato de se depositar somente na mulher a
responsabilidade pelo cuidado da família pode gerar falta de recursos econômicos,
principalmente porque estamos nos referindo a famílias de baixa renda, acentuando-se ainda
mais sua carência.
Sarti (2011), em uma etnografia em famílias de baixa renda da periferia de São Paulo,
estudou as relações de sexo e de gerações (entre pais e filhos, marido e mulher) e a relação
estabelecida com os vizinhos. Fonseca (2002a) ocupou-se de estudar a circulação de crianças.
Ambas apontaram em seus estudos aspectos relacionados à ruptura conjugal, ampliando nossa
compreensão desse aspecto, já abordado com Féres-Carneiro (2001). Seus estudos realizados
com famílias pobres acerca da conjugalidade indicaram e observaram nos arranjos familiares
múltiplos aspectos que dizem respeito à realidade familiar abalada pela ruptura da
conjugalidade.
Sarti (2011) descreve que as relações de gênero nas famílias pobres, no que se refere à
divisão sexual do trabalho e relações hierárquicas entre homens e mulheres, obedecem a
padrões comportamentais bem definidos. A autoridade da mulher circunscreve-se à
maternidade e à ordem doméstica e, a do homem, à função de provedor e de garantidor da
respeitabilidade familiar. Em sua análise a autora mostra que a força simbólica dessa divisão
de funções conduz e reafirma a autoridade masculina; em contrapartida fragiliza socialmente
a família que não tem um homem “provedor de teto, alimento e respeito” (p. 58). Afirma que
“dada a configuração das relações de gênero, o homem se sente fracassado, e a mulher vê
rolar por água abaixo suas chances de ter alguma coisa através do projeto do casamento”
(SARTI, 2011, p 66). Sarti (2011) observou, bem como outros trabalhos, o quanto a pobreza
afeta a estrutura tanto psíquica como as relações sociais do homem que não consegue fazer
face a todas as despesas da casa (SARTI, 2003; FONSECA, 2002a, 2004, 2008; SCOTT,
1990).
A autoridade da família, nas classes populares, não se realiza exclusivamente nas
figuras maternas e paternas. Com as constantes rupturas dos vínculos conjugais e a
56

instabilidade do trabalho, contribuindo para destituir o homem do seu lugar de provedor, a


família busca na rede familiar mais ampla auxilio para continuar a atualizar os papeis que a
estruturam, ou seja, viabilizar a sua existência, como foi dito anteriormente.
Ressalta-se que essas rupturas conduzem a diversas alterações nas dinâmicas das
relações familiares. A mulher pode assumir a responsabilidade econômica da família e delegar
as atribuições de autoridade, respeito e proteção a diferentes figuras masculinas. Essa situação
se concretiza especialmente nos casos de ruptura da sociedade conjugal e de um novo
casamento, em que o marido dessa nova relação não vai ocupar obrigatoriamente o lugar
masculino em relação ao filho de sua atual companheira. Dispersam-se os papeis masculinos e
femininos, envolvendo diferentes atores. Frequentemente os filhos, devido à separação dos
pais ou a ocorrência de gravidez na adolescência, ficam – geralmente, mas não
necessariamente – com avós que os criam com ou sem a presença da mãe.
Przybysz e Silva (2012), em “Articulando os Espaços Público e Privado:
Transformações das Espacialidades Vividas por Mulheres Moradoras de Periferias Pobres
Após a Dissolução Conjugal na Cidade de Ponta Grossa – PR” apontaram as transformações,
após a dissolução da conjugalidade, das espacialidades vividas pelas mulheres que se
tornaram responsáveis pelo domicilio em razão da ruptura conjugal na cidade de Ponta
Grossa. O estudo foi realizado com famílias moradoras de periferias pobres, constituídas por
mulheres que permaneceram com os filhos, ou seja, com a guarda quando do processo de
dissolução conjugal, apontando para famílias em que se destaca a chefia exercida por
mulheres.
Para cumprir com o objetivo proposto, as autoras realizaram levantamento dos
processos da Segunda Vara de Família de Ponta Grossa, especificamente os que se referiam a
Separação, Divórcio e Alimentos em um período que compreendeu os anos de 2003 a 2007.
Para esse propósito selecionaram quinhentos e vinte e dois processos de família cuja renda
fosse entre zero e dois salários mínimos e que houvesse filhos menores de quatorze anos na
época da separação. Efetuaram também entrevistas, confeccionadas a partir de um roteiro
semiestruturado, com dezessete mulheres chefes de família. Przybysz e Silva (2012)
concluíram que as espacialidades vivenciadas por mulheres chefes de família se modificaram
após a separação conjugal, articulando de forma diversa as esferas pública e privada no
espaço urbano.
Como já salientado em outros momentos, a família revelou-se dinâmica e
apresentando tensões diante do modelo hegemônico. Transformações foram observadas
quando da dissolução conjugal, havendo uma reorganização dos papeis sociais instituídos,
57

embora majoritariamente a mulher assumisse a guarda dos filhos do casal, o que constituiu
uma prática habitual.
Conforme já argumenta Badinter (1985), que discutiremos mais profundamente
adiante, a maternagem é atribuída tradicionalmente à mulher, assim como os cuidados com a
família e a casa. Corroborando a ideia proposta por Badinter (1985) Féres-Carneiro (2001)
também considera que a manutenção dos afazeres domésticos, compreendendo o cuidado da
casa e da família, ainda sustenta a identidade feminina no mundo atual, embora a sua atuação
no mercado do trabalho venha sendo mais constante. O que podemos destacar no estudo de
Przybysz e Silva (2012) nesse sentido são as consequências que serão diferentes para homens
e mulheres nos padrões de espacialidades estabelecidos anteriormente. “Embora várias
mulheres tenham atividades remuneradas durante o período de conjugalidade, o papel
feminino instituído socialmente prioriza a atuação da maternagem e do cuidado com a
família” (PRZYBYSZ; SILVA, 2012, p 111).
No que se refere às transformações das espacialidades vividas pelas mulheres que se
tornaram responsáveis pelo sustento da família após a ruptura conjugal, as autoras destacam
duas posições passíveis de serem ocupadas por essas mulheres: uma diz respeito ao espaço
privado em que a mulher poderia ocupar uma posição central em relação ao marido e aos
filhos; e a outra ao espaço público no qual assumiria uma posição periférica, como vimos.
Ambas as posições são vivenciadas pelas mulheres no curso de suas vidas, entretanto, com a
separação, a mulher deverá intensificar a luta no sentido de melhorar o seu desempenho no
espaço público, almejando produzir maior rendimento econômico para o sustento da família,
agora reconfigurada devido à ausência do homem – pai e esposo.
O trabalho muda de sentido de acordo com a permanência ou dissolução conjugal:
quando casada a renda da mulher é percebida como complementar; quando separada, seus
ganhos são fundamentais para a existência econômica da família. Com a análise dos
processos as autoras detectaram que existe, por parte do genitor, segundo afirmam as mães,
abandono econômico dos filhos. Detectaram, também, mudança de residência e dependência
dos pais/avós/parentes, além da falta de visitas e abandono afetivo. De acordo com esse
estudo as mulheres são apoiadas pelos avós ou parentes que acolhem a família. Em geral
contam com a ajuda da avó materna da criança, considerada figura central no sustento e
abrigo da família monoparental de baixa renda.
Depreende-se do estudo realizado por Przybysz e Silva (2012) uma crescente
manifestação da feminização de chefias familiares provenientes da dissolução conjugal em
que os recursos giram em torno, quase que exclusivamente ou exclusivamente, da figura
58

feminina – incluindo nesses recursos também a avó materna – que permanece com a guarda
dos filhos na maioria dos casos até hoje. Organizam-se também em torno de redes de vizinhos
e parentes para enfrentar as adversidades impostas pelo cotidiano como filas de espera nos
postos médicos e longas distâncias percorridas com seus filhos nos braços para conseguir
transporte.
A não permanência do homem na família pode levar a uma tensão que nos conduz a
questionar o valor-família ou o homem como valor para a família. Salem (2006) enumera
alguns fatores que inauguram e reafirmam o pendor masculino para a impermanência e o
feminino para a permanência: a particularidade de suas socializações, vivência precoce com a
matrifocalidade, a especificidade de seu contexto moral e o agenciamento voltado as suas
inserções sociais.
Esses aspectos conscientizam cada gênero em relação ao outro e a seu próprio, tanto
que a autora no artigo “Tensões entre gêneros na classe popular: uma discussão com o
paradigma holista” analisa o jogo que se estabelece entre as relações de gênero trabalhando os
conceitos de vínculo e circulação entre as famílias de camadas populares. De acordo com a
autora não é raro encontramos no mundo feminino a ideia de que o homem escapa ao vínculo,
ou seja, não permanece na relação, o que reforça a obsessão feminina com a aliança,
recorrendo a diversos recursos para prendê-lo, como crises de ciúmes, sexo e gravidez. Tais
manobras remetem o homem às seguintes percepções sobre a mulher:

de ser a mulher dissimulada e/ou maquiavélica, agrava no homem a sensação de que


ela visa apenas enredá-lo nas teias do vínculo. Esta acusação, vale notar, é muitas
vezes acionada por ele inclusive contra parceiras consideradas "fixas” a posteriori,
isto é, depois de o vínculo ter sido desfeito. Ele tenderá a esquivar-se da relação e,
mesmo eventualmente, das responsabilidades com relação à criança (SALEM, 2006,
s/p)

A permanência feminina, muitas vezes sustentada na sua rede de apoio, geralmente


permanente, virtualmente autoriza a circulação do homem, liberando-o até mesmo em relação
à prole. Como descreve a autora: “a impermanência masculina descansa na permanência
feminina e/ou na de sua rede de apoio, ou seja, estes agentes, justo porque "permanentes", são
quem, de uma perspectiva bastante particular, "autorizam" a circulação do homem” (SALEM,
2006 s/p.). A impermanência masculina, por sua vez, cria entre as mulheres o consenso
grandemente difundido da irresponsabilidade dos homens, retroalimentando o ímpeto de retê-
lo, fixando os estereótipos de gênero e comprometendo o princípio da reciprocidade.
59

Apesar das condições de instabilidade geradas pela tensão entre os gêneros, a


dependência recíproca entre homens e mulheres pode ser apontada como fator centrípeto,
promotor do equilíbrio dinâmico do sistema. Esta interdependência assenta no apreço que
atribuem à hierarquia, que delimita rigidamente os domínios de cada gênero, estimulada pela
precariedade social desses estratos, onde a ausência do homem adquire cores dramáticas, não
só pela citada precariedade como também por ser ele visto como o mais apto a exercer a
função de provedor.
Apesar da maior visibilidade na mulher, não deixa o homem de acusar sua
dependência, atestada até mesmo pelas sucessivas uniões em que se envolvem durante o
decorrer da vida. Embora se constate a mútua dependência isso não significa que tenha o
mesmo valor para os gêneros, pois que os homens podem “impermanecer” não obstante a
dependência.
Não pretendemos afirmar que todas as relações se constituem dentro desses padrões,
apenas constatar diferentes inclinações de cada gênero, que também variam bem. Inclusive
“são precisamente as inevitáveis inconsistências nos ethos de cada gênero que impelem a
busca e fomentam a fé de encontrar o(a) parceiro(a) adequado(a). Reafirmando o valor-
família, elas amortizam igualmente a tendência do sistema em direção ao colapso total”
(SALEM, 2006, s/p). A persistência do valor família extrapola o vinculo entre os parceiros (o
que incorreria numa ideia individualista-igualitária que garantiria um sentido ético do casal
em torno de si mesmo), sugerindo que a reciprocidade ultrapassa sua expressão na
conjugalidade, sustentando através da parentela o equilíbrio dinâmico da relação.
Abordando aspectos não contemplados por outros autores citados no texto, Salem
(2006) concentra-se especificamente na transferência (notadamente entre as mulheres que
experimentaram sucessivas rupturas), da responsabilidade masculina pelo amparo (antes
atribuída aos parceiros), para quem denomina de “filho eleito” (em particular o primogênito),
fixando o valor dado à complementaridade entre homens e mulheres, e seu caráter hierárquico
expresso nas instâncias públicas e privadas. “O filho-homem, encarado como representante da
unidade familiar no mundo externo, é quem possibilita a permanência da mãe no interno”
(SALEM, 2006, s/p). Mesclada à consanguinidade, a relação dessa forma estabelecida entre
mãe e filho adquire foro de permanência jamais obtida com os parceiros, reiterando o valor-
família e resgatando o homem enquanto valor.
Um desafio parece pensar em que medida a lógica da solidariedade perturba e
atravessa um funcionamento baseado no consumo e na ideia da centralidade do provedor que,
efetivamente, como vimos, não está no cotidiano na figura do homem-pai-marido, mas
60

permanece assim na forma como se contam histórias sobre a formação das famílias, mesmo
com as mudanças contemporâneas. Ainda em relação a modelos, mais dois pontos
despertaram a atenção. Um é a centralidade da relação mãe-filho atravessando as relações,
inclusive para marcar a falta da genitora, quando do afastamento. O outro é o modelo de
família nuclear que persegue os outros formatos que vão se constituindo no interior das casas.
Mesmo não seguindo o modelo de provedor, mesmo sem ter um emprego seguro e formal que
dê segurança à família, em cima do que foi construído o ideal; é nesta imagem de homem que
se ancora a organização da família e se inscreve o modelo de felicidade de adultos e crianças.
61

3 CASAMENTO E DIVÓRCIO: CONSIDERAÇÕES GERAIS E LEI. OU... “Casar é


preciso, viver não é preciso” (Del Priore).

Desde a Constituição Federal de 1988, no Brasil, o casal e a família são reconhecidos


independentemente do casamento, não há mais esta exigência para o reconhecimento dos
filhos, tampouco para parceiros partilharem bens e direitos. No entanto, ainda é uma
instituição importante em nossa sociedade e constrói formas de viver em comunidade. A
conjugalidade é um formato ainda tão comum de viver, mesmo sem a exigência da
formalização do casamento, que leis dos anos 1994 e 1996, e que foram substituídas pelo
Código Civil de 2002, regulavam a conjugalidade, concedendo direitos e traçando deveres
entre os membros do par.
O casamento parece um evento importante nesta pesquisa e a referência aqui não é
necessariamente de um casal casado do ponto de vista jurídico, mas que vivem uma vida a
dois, com ou sem coabitação, embora o primeiro caso seja o mais comum enquanto a relação
dure. São muitas as referências ao fim do casamento e em boa parte das vezes a concepção
dos filhos se dá no decorrer de uma relação de casal, por isso ele é tematizado neste momento
da tese.
É muitas vezes na vigência do casamento e nos sucessivos enlaces que questões sobre
a parentalidade se colocam. Um passeio pela história do casamento nos auxilia no
estranhamento da punição ou do julgamento daqueles que ousam não seguir as estabelecidas
regras de gênero. Inclusive porque, como Salienta Perrot (1993), a resistência de nossos
contemporâneos não está direcionada à formação da família, mas ao seu modelo rígido de
existência, ao seu modelo normativo assumido no século XIX. O que se rejeita é o nó e não o
ninho

3.1 A eternidade do enlace matrimonial. “Toda nudez será castigada”.

A história do casamento no Brasil tem início no período da colonização. A


historiadora Del Priore (2006) relata que a chegada dos portugueses se deu acompanhada da
Igreja Católica, o que sugere que a colonização tenha sido realizada sob a égide do
62

catolicismo. A influência do catolicismo em solo brasileiro trouxe a preocupação com o


matrimônio, presente assim desde a chegada dos portugueses.
O casamento religioso realizado pela Igreja exigia elevado investimento financeiro,
pois o trâmite da documentação envolvia papeis que estavam em outras terras, no caso,
Portugal. Essa situação contribuiu para que ocorressem no Brasil inúmeros casos de bigamia e
favoreceu o surgimento do concubinato. Na época que compreende os séculos XVI, XVII e
XVIII usava-se a palavra mancebia, expressão utilizada para designar a situação das pessoas
que viviam em concubinato. As transformações começam a acontecer à medida que o estado
português começa a se organizar no Brasil e com a chegada dos governadores. A partir de
então, são criadas leis com o objetivo de coibir uniões formadas fora do casamento, passando
o matrimonio a ser enaltecido, ou seja, valorizado (DEL PRIORE, 2006).
A mentalidade patriarcal presente na colônia foi recepcionada pela Igreja que a
incorporou, além de explorar “as relações de dominação que presidiam o encontro entre os
sexos” (DEL PRIORE, 2006, p 17). Em uma sociedade em que a relação de poder já se fazia
presente em virtude da relação escravagista, não foi difícil reproduzi-la dentro das relações
mais íntimas, dos casais. O homem, assumindo dessa forma esse modelo, impõe à esposa a
condição de escrava doméstica, obediente e submissa. À mulher caberia cuidar da casa,
cozinhar, lavar a roupa e servir sexualmente o seu marido. Reconhecia-se a necessidade de
indivíduos de sexos diferentes viverem juntos, pela própria lei da natureza, comportamento
valorizado em função da sobrevivência da espécie – procriação. Entretanto, para a realização
do ato – viver juntos – impunha-se o controle estabelecido por meio de um sistema de regras
civis e/ou religiosas (DEL PRIORE, 2006).

O instinto sexual não controlado pelas regras do casamento se transformava em


luxúria e paixão nas páginas de moralistas. Ou em doença grave, nas teorias médicas
da época. Ao ordenar as práticas sexuais pelos campos do certo e do errado, do lícito
e do ilícito, a Igreja procurava controlar justamente o desejo. E a luta pela extinção
ou domesticação do amor-paixão vem na rabeira dessa onda (DEL PRIORE, 2006, p
18).

Diferente da elite – onde o casamento realizado com pessoas de classes distintas era
condenado (inclusive alguns parentes recorriam à autoridade do governador para impedir o
enlace matrimonial não desejado) – as classes subalternas expressavam maior liberdade na
escolha dos cônjuges, de acordo com esta autora, uma vez que não havia entre os pobres da
colônia interesses político-econômicos a preservar. Desse modo, podiam deixar emergir os
sentimentos sem rígidas restrições.
63

A igreja Católica, com seu ideal de indissolubilidade do matrimonio, incentivava


escolhas mais criteriosas, desvinculadas da ideia de amor-paixão, ou de outros sentimentos
parecidos. O entusiasmo ditado por esse interesse (amor-paixão), aí incluída a atração física,
segundo ela, poderia comprometer o futuro da relação. “A racionalidade devia marginalizar a
paixão ou a atração física” (DEL PRIORE, 2006, p 22). Qualquer forma de atrativo que
valorizasse o sexo era depreciada.
A origem do casamento não surgia da escolha pessoal dos cônjuges e sim do acordo
pré-estabelecido entre as famílias, configurando-se assim como uma instituição básica para a
transmissão do patrimônio e, por esse motivo, realizava-se por meio de contrato civil,
posteriormente sacramentado. Por impedir a dispersão da riqueza acumulada pelas famílias, o
casamento entre iguais era tão valorizado, por isso, no século XVIII, a reforma legislativa
sobre o casamento, elaborada pelo marques de Pombal em Portugal, reforçava a autoridade
paterna, autorizando o pai a impedir casamentos realizados entre desiguais (MOURA;
ARAÚJO, 2004; DEL PRIORE, 2006).
Além das questões patrimoniais envolvidas nos trâmites do casamento, a mulher
deveria apresentar características femininas importantes como ser provedora e recebedora de
amor, de acordo sempre com a ordem familiar. Assim, virtuosidade, honestidade, honra e
discrição, essas qualidades eram as valorizadas, indicando ao homem que aquela mulher
estava preparada para o estabelecimento da união conjugal. A virtude dos seus
comportamentos deveria ser exibida dentro ou fora do matrimônio, perpetuando os
sentimentos e deveres de disciplinas advindas da sociedade patriarcal. Sua vida se resumia a
confinamento e recato, obediente aos preceitos da Igreja, ao mesmo tempo em que atendia aos
interesses dos maridos (DEL PRIORE, 2006; BASSANEZI, 1997).

Impunha-se uma dicotomia sexual, na qual o homem era ativo e a mulher, passiva.
O desejo sexual constituía-se em um direito exclusivo do homem, cabendo às
esposas, a submissão e a virtude. O esforço de adestramento dos afetos, dos amores
e da sexualidade, sobretudo a feminina, afinava-se com os objetivos do Estado
Moderno e da Igreja, em tornar a relação entre os sexos mais próxima do ideal da
sociedade católica, evitando as infrações que o pudessem perturbar (DEL PRIORE,
2006, p 26).

Com a domesticação do amor conjugal, a Igreja criava a sexualidade útil, lícita e


protegida, livre da condenação do pecado mortal dos casais que praticassem sexo por amor. O
sexo lícito na situação conjugal estava restrito à reprodução da espécie, sendo também
proibido evitar filhos. As regras morais restringiam o prazer no casamento à finalidade de
procriar, além de sugerirem algumas posições consideradas adequadas às relações sexuais. Só
64

faltou o manual detalhando como o sexo deveria ser usado! (DEL PRIORE, 2006;
BASSANEZI, 1997).
O amor no casamento e fora dele oferecia percepções distintas. Isto é o que aponta a
literatura que versa sobre a história da sexualidade até o século XVIII, caracterizando o ato
como um fenômeno importante e prevalente no mundo ocidental. Isso não significa dizer que
o amor estava ausente, porém não guardava relação direta com o amor conjugal. FLANDRIN
(1981) descreve que, desde o século XII, o amor esteve presente na literatura ocidental,
entretanto, raramente esteve vinculado ao amor conjugal.
A realidade histórica no Brasil, retratada por Del Priori (2006), apresentava-se de
forma distinta quanto aos grupos menos favorecidos. Nas famílias afrodescendentes observou-
se uma formação que variava entre concubinatos e matrimônios. Em determinadas áreas,
como as de mineração, as relações estáveis não eram comuns. Em outras localidades, como
nas grandes fazendas, o acesso ao casamento era mais fácil, em razão da proximidade com o
pároco. Além disso, nessas propriedades, o casamento de escravos, realizado de acordo com
os mandamentos sagrados e os proclames legais, interessava especialmente à família que
deles era proprietária, em virtude da transmissão desse patrimônio representado por esses
escravos e seus descendentes. Entretanto, as relações sob a forma de concubinato,
consensuais, estáveis e de longa permanência eram uma realidade comum entre os escravos
(DEL PRIORE, 2006).
Resumindo, o casamento, pelo menos para a classe abastada, apresentava aspectos
bem definidos: conduzia-se na forma de aliança, que atendia, antes de tudo, “à transmissão do
patrimônio, à distribuição de poder, à conservação de linhagens e ao reforço de solidariedades
de grupos. Sendo legitimo somente quando disposto em função da família e da prole” (DEL
PRIORE, 2006, p 72). O casamento ocorria por vários interesses e não pelo amor. Aliás,
estava longe de ser um intercâmbio amoroso entre homens e mulheres. O amor conjugal era
considerado desnecessário a um bom casamento (MOURA; ARAÚJO, 2004; DEL PRIORE,
2006). As duas mais importantes dimensões da vida conjugal são a aliança e a sexualidade,
como nos informa Fères-Carneiro (1987). Assim é que para Levi-Strauss (1982) uma das
formas de intervir no grupo é através da aliança e que a intervenção se dá sobre bens
considerados raros e importantes para a sua sobrevivência.

Não que o amor estivesse “obrigatoriamente” ausente dos matrimônios, sobretudo,


dos arranjados, e presente, fora deles; estava, sim, submetido a mil
constrangimentos, incluindo os de ordem sexual. O risco do casamento movido por
sentimentos era o de subverter a função dessa mesma instituição, desestabilizando a
65

transmissão do patrimônio, a garantia de alianças e o predomínio de certos grupos de


poder sobre outros (DEL PRIORE, 2006, p 87).

Na Idade Moderna podemos apontar três mudanças fundamentais nas relações


conjugais: a primeira dizendo respeito à centralização do Estado, atingindo a vida privada e
cobrando dela, com sua interferência, a oficialização do casamento, perseguição aos
celibatários, reforço da autoridade dos maridos, impossibilidade de a mulher exercer atos da
vida civil sem a autorização do marido (tornando-a incapaz juridicamente) e, quanto aos
filhos, a obrigatoriedade do consentimento dos pais para a realização do casamento. A
segunda foram as Reformas Protestante e Católica, cujo controle incidia diretamente sobre a
moral dos fiéis, com perseguição a crimes sexuais como a sodomia, o homossexualismo e as
posições do coito julgadas pecaminosas. A terceira foi a divulgação da leitura e do livro que,
se por um lado tornou as pessoas mais aptas e desembaraçadas, por outro trouxe contradições
sobre a representação do amor e da paixão (DEL PRIORE, 2006).
Para Féres-Carneiro (1998), referindo-se às classes mais favorecidas, casava-se por
interesse econômico e político. Aponta também para duas expressões de afeto existentes no
século XVII, o amor-paixão e o amor cortês. Ambos ocorriam fora do casamento. O primeiro,
amor-paixão, decorria das uniões extra-conjugais, ou seja, amava-se fora do casamento, da
união formalizada. O segundo, amor cortês, era aquele que não se realizava, pois não existia o
encontro sexual; caracterizava-se pelo distanciamento entre o amor e o erotismo.
Flandrin (1981) afirma que o amor esteve sempre presente na literatura a partir do
século XII dissociado do casamento, que, em todos os níveis da sociedade, implicava na união
de duas famílias com o propósito de se perpetuarem. A importância da procriação
sobrepunha-se à satisfação do amor entre duas pessoas, ou seja, ia além dessa satisfação. Diz
também o autor que o amor-paixão é essencialmente extra-conjugal. Féres-Carneiro (2000;
2001), reportando-se às considerações de Philippe Ariès (1982), compartilha a mesma
compreensão do amor-paixão extra-conjugal, excluindo desse contexto as negociações entre
as alianças e os bens, circunscritos na interseção do espaço público e privado.
Somente a partir do século XVIII, segundo a autora, as relações conjugais começam a
se modificar e as duas formas de amor passaram a coexistir dentro do casamento. Assim, o
erotismo passou a coabitar o espaço da vida íntima do casal e o amor-paixão a servir de base
para a perpetuação do relacionamento e escolha do companheiro.
Retornando a Flandrin (1981) encontramos a descrição do movimento de aproximação
das duas formas de amor – amor conjugal e extraconjugal – a partir do século XVIII. Outra
realidade se impõe ao casamento abrindo espaço a novas perspectivas conjugais. Dos
66

cônjuges espera-se que se amem e que tenham expectativas sobre o amor. O casamento passa
a conviver com o erotismo, antes eminentemente extraconjugal, e o amor-paixão é percebido
como modelo.
O período compreendido entre o final do século XVIII e início do século XIX marca a
passagem entre o declínio da família patriarcal e o início da família romântica, período em
que a mulher começa a impor o seu desejo de sexo e de bem querer. As relações conjugais
modificam-se e os casamentos passam a se realizar com base no amor. O casamento por
contrato não atende mais a atual realidade, esculpida sob os novos ideais libertários e
igualitários. O amor passa para a ordem primeira e a felicidade conjugal triunfa na família,
embora ainda permaneça a velha distinção entre homem e mulher. Mas a consciência social
ampliou-se, trazendo com ela significativas alterações nas relações marido-mulher, tendo
como sustentáculo sentimentos de amor e felicidade. O amor e o desejo são ingredientes
essenciais para a realização dos casamentos na sociedade contemporânea, sem os quais essa
sociedade dificilmente aceita que alguém possa se casar (FLANDRIN, 1981; DEL PRIORE,
2006).
Assiste-se a uma transposição da formação da família hierarquizada para a igualitária,
em que o enlace matrimonial deixa de ser um instrumento destinado a viabilizar interesses
patrimoniais e econômicos, e passa a basear suas relações na livre escolha dos cônjuges,
motivados por sentimento. Essa mudança trouxe consequências no cenário das relações, uma
vez que os indivíduos passaram a ter liberdade de escolha, baseada no amor. Nesse novo
espaço, de ideais libertários e igualitários as relações deixaram de ser permanentes e
incontestáveis.
Foucault (1977), ao abordar as funções de aliança e sexualidade nas instituições e suas
implicações, utiliza-se do conceito de dispositivo para explicar como se articulam,
principalmente no modelo burguês de casamento, na sociedade contemporânea. Para ele, a
produção da sexualidade está vinculada aos dispositivos de poder. Distingue, para um
primeiro momento, o dispositivo de aliança, ligado ao casamento, na fixação e
desenvolvimento de parentescos e de transmissão de nomes e de bens, objetivando a
homeostase do corpo social, estabelecendo uma posição definida para o vínculo familiar,
cercando-o de regras de interdição e de permissão, com base na lei. Concomitantemente e a
partir daí é que se instalou o dispositivo de sexualidade, não mais referido a um sistema de
normas e sim ao corpo, à qualidade dos prazeres, à própria sexualidade no seio da família;
postula, como pertinentes, as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres e a natureza das
impressões. Os dispositivos de aliança e sexualidade permitem-nos, segundo Foucault,
67

compreender, no contexto da família, a manutenção da homeostase do corpo social e como


ela, a família, se tornou o lugar dos afetos, dos sentimentos e do amor, bem como o centro
irradiador da sexualidade.

A partir do século XIX, o poder transforma-se em agenciamentos concretos – o


dispositivo da sexualidade será um deles, por exemplo – que constituirão a grande
tecnologia do poder no século XX, capaz de majorar as forças, a vida em geral,
através da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um
ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos
(PORTOCARRERO, 2009, p 203).

3.2 “Sexo! Eu quero sexo! Me dá mais sexo!” (Ultraje-a-rigor)2 - Considerações sobre o


casamento na contemporaneidade

Dando continuidade às discussões acima expostas sobre as transformações na família e


no casamento que se iniciaram com uma visão bastante sucinta, nas próximas linhas
destacaremos os aspectos que caracterizam a família dentro de um modelo dito central, ou de
maior visibilidade, que compreende a classe média e orienta, muitas vezes, além de atravessar
as camadas populares.
Os ideais contemporâneos fazem com que os laços de dependência entre os cônjuges
sejam menos importantes do que a autonomia e a satisfação do casal. Nesse sentido, esses
valores atravessam a constituição e a manutenção do casamento na contemporaneidade, e são
característicos do modelo central de família de classe média, profundamente influenciado pelo
valor atribuído ao individualismo. Podemos constatar então um campo de tensão na estrutura
desse novo modelo, que se faz presente através do confronto entre a individualidade e a
conjugalidade. Se por um lado a autonomia é incentivada pelos ideais individualistas, em que
a ajuda mútua deve sustentar o desenvolvimento e crescimento individual de ambos os
membros, de outro lado nos deparamos com a convivência conjugal composta de
necessidades partilhadas, da realidade comum entre os cônjuges e dos desejos e projetos
conjugais (FÉRES-CARNEIRO, 1998).
Na contemporaneidade é recorrente a formação do casal baseada em sentimentos que
expressam amor, desejo, paixão, consubstanciada na confiança estabelecida entre eles.

2 WWW. Vagalume.com.br/ultraje-a-rigor/sexo.html
68

Quando iluminamos o processo de individualização e focalizamos a esfera da intimidade,


podemos perceber que, particularmente no campo da afetividade, as relações sociais são
marcadas por construção e negociação intensas. Como já descrito acima, essas relações são
conduzidas no sentido da busca da autonomia em uma condição plural, evidenciando as
diferenças subjetivas que serão inscritas e inseridas nas posições sociais dos indivíduos. Essa
relação marcada pela idiossincrasia, em que o processo da construção da individualidade
impõe as suas limitações, se realiza com a escolha do par com quem se quer estar, escolha
essa que é regida pelo sentimento do amor paixão (GIDDENS, 1993, 2002; SINGLY, 2000,
2007; LUHMANN, 1991).
A liberdade individual e a auto realização vinculados ao amor romântico delimitam o
campo do relacionamento conjugal, valorizando-o e priorizando-o, apartando os indivíduos de
relações sociais e familiares mais amplas, conforme pondera Giddens (1993) discorrendo
sobre a transformação da intimidade nas sociedades ocidentais. Atribui também, o autor, ao
encontro do amor romântico, um caráter reparador: quando ocorre preenche um vazio, muitas
vezes não reconhecido pelo indivíduo, que passa a sentir-se inteiro.
Féres-Carneiro (1998), utilizando-se de conceitos de Simmel (1971), versando sobre o
ideal contemporâneo de casamento, em que se deseja um ao outro integralmente em toda a
sua intimidade, aponta para sérias implicações. A entrega total pode gerar um sentimento de
esvaziamento. Uma forte expectativa em relação ao outro, a par de forte auto-exigência,
provoca dissensões, podendo até culminar na separação. Ou seja, o outro representar uma
fonte inesgotável de satisfação gera expectativas, extrema idealização deste outro e alta
exigência do individuo consigo mesmo, fatores que podem ser apontados como responsáveis
por separações.
Os homens, diz aquele autor, tiveram acesso às transformações pertinentes ao
casamento e às relações pessoais através das mulheres. O amor romântico estava tipificado
como da natureza feminina, voltada à conquista do coração do amado, contra sua natureza
rude e instável. Para os homens, a paixão permanecia voltada ao acesso à mulher, que só se
realizava, via de regra, após o casamento. Os homens especializaram-se na conquista, não nas
questões de intimidade. O amor romântico opunha-se à sedução, pois estava desvinculado da
intimidade.
A ênfase hoje dada ao prazer nas relações sexuais, não necessariamente vinculadas à
procriação, promove mudanças nas relações entre os gêneros, na expressão da sexualidade e
nas interações sociais; especialmente perceptível no que diz respeito às mulheres
(HEILBORN, 1998) por estarem pautadas, essas mudanças, em igualdades sexual e
69

emocional e por valorizarem a autonomia individual no que diz respeito a escolhas, passíveis
inclusive de finalização a qualquer momento (GIDDENS, 1993).
De Singly (2007), partindo da mesma perspectiva individualista, ressalta que o casal
contemporâneo atribui importância à qualidade do relacionamento, do convívio. Enfatiza que
a manutenção da relação conjugal se fortalece de acordo com o prazer e enquanto é útil aos
parceiros. Parece estar em jogo a relação entre o conjugal e o individual e, dependendo dos
valores atribuídos a cada uma das peças, o espaço conjugal poderá fragilizar-se em
decorrência da valorização dos espaços individuais, ou, quando o indivíduo valoriza a
conjugalidade, poderá ceder diante das individualidades. Essas tensões são constantes, pois ao
mesmo tempo em que se valorizam os laços de dependência como necessários, negam-se
esses mesmos laços. São dois lados da mesma moeda: de um lado a necessidade de
interdependência, do outro, a sua negação. De Singly (2007), abstraindo gênero e classe
social, embora refira-se a projetos sociais e faça referência a famílias relacionais, em seu
estudo sobre família contemporânea francesa, relata que em uma sociedade que tem como
referência o valor atribuído ao “eu”, a família torna-se espaço de importância fundamental na
constituição do individuo autônomo, em que o “eu” é mais importante do que o “nós” (p.
132).
Em consonância com essas ideias, Giddens (1993) relata que o casamento
contemporâneo representado pelo ideal de amor romântico tende à fragmentação,
notadamente em função da emancipação e autonomia da mulher. A máxima “seremos felizes
para sempre” parece não prevalecer nesse casamento contemporâneo. Giddens, a respeito do
equilíbrio entre o dar e receber afeto denomina de “amor confluente” e ao relacionamento
com a propriedade de satisfazer a ambos os cônjuges, chama “relacionamento puro”.
Apresentamos até agora, pelo menos em sua maioria, estudos que apresentam uma
realidade que mais comumente é referida à classe média, apontando as tensões existentes
entre o campo conjugal e a individualidade. E as classes populares? Será que reproduzem o
mesmo comportamento?
Nas classes populares, por questões financeiras relacionadas com o alto custo das
unidades residenciais, inaugura-se um modelo de ajuda no formato de redes, em que residem
no mesmo local diversos casais, também incluindo arranjos monoparentais e famílias
chefiadas por mulheres, entre outros arranjos (FONSECA, 2004).
Na mesma linha, Heilborn (1997) fala da diferenciação estabelecida pelas lógicas
culturais das classes trabalhadoras e das camadas médias na construção da identidade social:
nas classes trabalhadoras, para a autora, haveria prevalência do valor atribuído à família sobre
70

o individuo; nas classes médias a ênfase incidiria sobre o processo de individualização, como
já abordamos.

3.3 Separação e divórcio – desencontros e despedidas

As mudanças ocorridas nas relações conjugais tornaram-nas abertas à negociação em


função do deslocamento do eixo das convenções morais para os valores modernos, em que a
auto-realização e satisfação emocional passaram a ser preeminentes para o casal, tanto na sua
formação como no seu término. O amor passou a ser indispensável às uniões e a falta dele
passou a determinar separação das pessoas. Para Vaitsman (1994) a contradição do
casamento moderno, baseado no amor e na livre escolha, traz a dificuldade de se conciliar a
reciprocidade e a individualidade. Diz que a liberdade de escolha sempre foi o ponto
nevrálgico do casamento moderno conduzindo-o à dissolução, seja ou não aprovada pela lei
secular ou religiosa. A igualdade criou condições sociais favoráveis à separação.
Consequentemente, se aceita mais como lógica, e não tanto como problemática, a
separação conjugal em virtude da desilusão romântica, pois se compreende o afeto como eixo
da relação (FONSECA, 2007 citando THÉRY, 1993). A dinâmica produzida pela separação
provocará respostas diferentes de acordo com o grupo social. Quando enfocamos o grupo
popular é nítida a importância atribuída à parentela extensa, em que a ajuda recíproca torna-se
indispensável para o enfrentamento das difíceis condições de vida, como abordamos
anteriormente, sobretudo com as constantes separações conjugais (SCOTT 1990, SARTI,
2011). Entretanto, nas camadas médias da população, não é incomum encontrar casais
recorrendo à família – pais, tios, primos e irmãos - para auxiliá-los e ampará-los até mesmo
nas rotinas diárias dos cuidados com os filhos, embora este contexto, em princípio, se edifique
sob as bases do ideário individualista. O recurso à família, tanto para rotinas diárias, quanto
para a separação, pode ser explicado pela falta de equipamentos públicos, creche, escolas em
tempo integral entre outros que possam ser oferecidos (SALEM, 1989; DUARTE, 1995;
BILAC, 1995b). As camadas médias, além da família, podem contar com creches e escolas
em período integral, além de empregados que ajudam a compor a dinâmica do dia a dia.
Com a consolidação e a possibilidade do divórcio aprovado no Brasil em 1977, como
já apontado anteriormente, esse fenômeno deixou de ser um acontecimento raro e passou a
71

fazer parte do cotidiano das famílias. Conceituando o divórcio Glanz (2005) afirma que é o
“processo que dissolve o vinculo do casamento, permitindo que os ex-cônjuges possam casar
com terceiras pessoas” (p. 516). Grzybowski (2010) diz que desde a sua aprovação vem
aumentando o número de divórcios e que essa procura se justifica pela insatisfação conjugal.
O casal vê nessa prática, cada vez mais, a solução para o seu descontentamento.
Embora o número de separações e divórcios venha aumentando nas sociedades
contemporâneas nas camadas médias da população do Rio de Janeiro, para Féres-Carneiro
(2003) isso não significa o desprezo ao casamento, mas a sua valorização. Fundamenta sua
argumentação na ideia de que as pessoas se divorciam porque o casamento não correspondeu
às suas expectativas. Assim sendo, inicia-se a busca de uma nova relação e/ou outro
casamento. Para a autora o casamento ainda é fundamental para algumas pessoas; por isso se
divorciam: porque esperam mais de seus relacionamentos. Sua pesquisa aponta também para
o fato de que existe uma prevalência da mulher na decisão da separação e que os homens
confirmaram na pesquisa esta informação, ou seja, em sua grande maioria são as mulheres
que tomam a iniciativa da separação. Outra característica apontada por Féres-Carneiro (2003)
é que, em sua maioria, as mulheres também tomavam a iniciativa para o diálogo, com o
objetivo de buscar alternativas para o relacionamento. No que se refere aos filhos, as
percepções são diferentes entre homens e mulheres após o divórcio. O homem perceberia os
filhos como “dificuldade e problema”, porque é mais ausente no dia-a-dia dos filhos, e
consequentemente tende a projetar as dificuldades e sofrimentos decorrentes da separação. A
mulher, entretanto, percebe os filhos com menor dificuldade, uma vez que o seu dia-a-dia é
marcado pelos frequentes contatos, estando mais presente em seu cotidiano.
Os estudos acima denotam a dificuldade encontrada por alguns homens e mulheres
após a separação de manter a convivência com os filhos, seja em função da importância
atribuída à mulher devido à permanência com os filhos, seja em função de algum tipo de
impossibilidade apresentada pelo homem.
Um dado importante na divisão de responsabilidades nas relações entre homens e
mulheres diz respeito à separação conjugal em que, na maioria das vezes, a mulher assume a
guarda do filho. A sociedade, ainda hoje, delega à mulher a parte maior na responsabilidade
dos filhos, embora a nova legislação brasileira garanta a igualdade entre os sexos quanto aos
direitos e deveres na parentalidade e, mais recentemente, tenha sido promulgada a lei nacional
da guarda compartilhada (lei 11.698 de 2008). No entanto, ao se separar, alguns homens não
se responsabilizam e/ou não prestam apoio financeiro ou emocional aos filhos. Outros,
apesar de continuar a prover financeiramente os filhos, rompem os laços afetivos ao deixarem
72

de exercer a paternidade, o que pode ser percebido como abandono afetivo. E outros tantos,
cada vez mais, fazem questão de manter os vínculos com os filhos.
Desde 1988 no Brasil, há o reconhecimento jurídico de outras formas de união além
do casamento, como vimos anteriormente. As uniões estáveis, prescindindo de formalização,
passaram a ser consideradas pela sociedade e pela legislação (SANTOS; SANTOS, 2009).
Como nos diz Zarias (2010) a união estável é o resultado da ampliação dos direitos
relacionada com o concubinato. Historicamente, sabe-se que o casamento civil somente
atendia a uma minoria economicamente privilegiada da população. Com a transformação do
direito, não somente a Constituição Federal, mas recentemente o Código Civil de 2002,
passou dessa forma, a contemplar os diferentes grupos sociais. Por outro lado, essas
transformações têm propiciado a ruptura do vínculo conjugal - o divorcio - para casamentos
juridicamente estabelecidos, ou o seu correspondente nas uniões consensuais.
Alguns autores apontam para a questão da diferença de gênero (sob influência do
movimento feminista), estabelecendo a questão da busca pela igualdade entre os sexos como
favorecendo e influenciando de alguma forma o divórcio. O número de divórcios tem
aumentado em razão da modificação da mulher no mundo ocidental (ARAÚJO; SCALON,
2006; BIASOLI-ALVES, 2004; GOLDANI, 2002). Enumeram estes autores uma sequência
de mudanças que contribuíram e contribuem para a ocorrência desse fenômeno, como a
entrada da mulher no mercado de trabalho, o que lhe proporcionou independência financeira,
além da autonomia nas escolhas amorosas. Vinculada à sua auto-sustentação também está a
sua maior liberdade de escolha, o que torna mais rara a permanência da mulher no casamento
em função da dependência financeira, dependência essa que muitas vezes fazia com que a
mulher se percebesse impossibilitada de optar pela separação (GOLDENBERG, 2003). As
autoras Fleck e Wagner (2003) e Testoni e Tonelli (2006) confirmam a ideia de liberdade de
optar pela separação, constatando que é cada vez maior o percentual de famílias chefiadas por
mulheres, e que garantem todo o sustento financeiro dos seus membros.
Biasoli-Alves (2004) foca a questão priorizando a importância do trabalho da mulher
fora do espaço doméstico, salienta que essa saída da mulher provocou várias mudanças na
vida da família, elevou a importância nos valores democráticos e também gerou modificação
expressiva tanto na família como no casamento. Com a intenção de ter mais autonomia na
escolha do companheiro, as mulheres estão dispostas a ter poucos filhos, adquirindo com isso
um maior grau de independência e menos sujeições e interdições em relação ao cônjuge.
Um dos fatores condicionantes dos processos de separação e divorcio diz respeito ao
pertencimento sócio-econômico-cultural ao qual estão vinculados os cônjuges. Há que se
73

levar em conta a respeito da hipótese acima, portanto, este pertencimento, pois que, nas
camadas populares, verifica-se frequentemente configurações familiares diversas das
configurações encontradas nas camadas médias e altas. Reafirmando o que foi acima exposto
por meio das ideias de Fonseca (2004), Biasoli-Alves (2004) diz que o divórcio geralmente
cria na população de baixa renda, em função da carência financeira, um modelo de ajuda
mútua, baseado em redes, onde mais de uma família, muitas vezes, reside em um mesmo
espaço domiciliar, pela impossibilidade de manutenção de casas separadas.
Notadamente para as camadas populares, Bilac (1995a) chama a atenção para a ideia
de centralidade da relação mãe-filho que se reforça, ampliando para a mulher o exercício de
liderança, não só nas questões de consumo com também na da obtenção de recursos. Daí
podemos depreender que nesta classe, em função de desemprego, dependências químicas, etc,
o exercício do papel de provedor possui limitações, propiciando as trocas de parceiros, sem
que se inviabilize a unidade familiar, já que garantida pela permanência da relação mãe-filho.
Para Bilac esta circunstância não representaria nenhuma especificidade, “mas a acentuação de
um traço já existente na família solidária de múltiplos provedores” (p. 53). Quanto mais as
condições de vida dessas famílias afastam-se dos padrões esperados para a existência do
modelo tradicional (emprego estável, residência digna e escola pública de qualidade), maior
significado, centralidade, assume a relação mãe-filho.
Importante salientar que o divórcio ocorre para cada família de modo totalmente
diferenciado, complexo e pluridimensional (FÉRES-CARNEIRO, 2003). Podemos considerá-
lo um processo singular em que, embora afetando toda a família, cada um de seus membros
vivencia-o de forma individualizada, dependente de fatores de ordem econômica, social,
cultural, religiosa, bem como das redes de apoio eventualmente estabelecidas. Fatores que vão
concorrer para os diferentes graus de complexidade em que a família está envolvida (PECK;
MANOCHERIAN, 2001).

3.4 Perspectiva jurídica do casamento, separação e divórcio no Brasil

O Direito Brasileiro recebeu grande influência da arquitetura familiar romana, nos


períodos que compreendem, principalmente, os séculos XIX e grande parte do século XX. A
institucionalização das uniões e separações, tanto no que se refere à Igreja quanto ao Poder
74

Judiciário, estiveram sob grande influência dos hábitos, costumes e legislações gestadas e
importadas de Portugal, cuja origem foi basicamente romana.
As uniões matrimoniais, ao longo do tempo, variaram segundo os sistemas legais
compreendidos em cada época. No Império, o estado conjugal era determinado pela cerimônia
católica, rito religioso que tornava indissolúvel o vínculo entre as pessoas. A organização do
registro civil pelo Estado impeliu a Igreja a encaminhar as informações por ela registradas à
autoridade civil. Essa passagem do domínio da Igreja para a autoridade civil realizou-se por
força da Lei nº 1829, a partir de 1870 (BERQUÓ, 1998).
Em 24 de janeiro de 1890, já na República, foi instituído o Decreto-Lei nº 181 que
estabelecia o casamento civil como o único a ter legitimidade jurídica e civil, descolado do
casamento religioso. Outro dado relevante baseado no mesmo Decreto refere-se ao direito
concedido à mulher, viúva, de exercer o pátrio poder. Para que tivesse o direito de exercê-lo,
entretanto, não poderia contrair novas núpcias. Depreende-se daí que tal norma criava para
essa mãe o dilema de escolher entre uma vida sem matrimônio ou a perda do controle sobre os
filhos. O poder do Estado impunha-se nas relações familiares privadas procurando normatizar
essas relações, em que a criança era mantida ou não sob o domínio da mãe, de acordo com as
imposições do modelo hegemônico. Não obstante a manutenção do ideário patriarcal imposto
à família, o Decreto trouxe significativa transformação, pois, pela primeira vez no Brasil, a
mulher passa a exercer supletivamente com o homem, o exercício do pátrio poder, deixando
de ser uma prerrogativa exclusivamente masculina (BERQUÓ, 1998; TEIXEIRA, 2009). Será
que podemos arriscar ou vislumbrar uma visão futurista de que viria a fazer parte de nossa
legislação o principio da isonomia?
O formato acima apresentado, embora limitado, serviu para determinar e delinear a
elaboração do Código Civil de 1916, cujas características tentaremos acentuar nas próximas
linhas.
A família, isto é, seu caráter, era basicamente patriarcal, patrimonializado,
matrimonializado e hierarquizado. O pai era o detentor de todo poder, poder que lhe conferia
a decisão e o destino de todas as pessoas subordinadas a ele, filhos, parentes e empregados.
Além de ser a figura centralizadora do patrimônio da família. No sentido de resguardar a
hierarquia doméstica na família, o homem era considerado o cabeça-de-casal, chefe da
sociedade conjugal. Essas ideias foram sustentadas pelo Código Civil de 1916. O art. 233
descreve que “o marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a
colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”. Significa dizer que ao
homem eram destinadas todas as decisões e a representação da instituição familiar. Assim,
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cabia-lhe administrar os bens comuns (nesses compreendidos inclusive os bens particulares da


mulher), fixar o domicilio do casal, bem como autorizar a mulher a exercer alguns atos da
vida civil, tais como estudar e trabalhar.
O matrimônio era o único laço legítimo e legal para se constituir família e somente
quem era ligado por tal vínculo tinha a proteção do Estado. Essa concepção, gestada sob
influência sócio-religiosa manteve-se desde o Código Civil até a Constituição Federal de
1988, de forma quase indivisa, impondo valores e produzindo contradições. O casamento
repousava sobre o nítido interesse procriativo e de continuidade da família, em que o papel de
cada um dos partícipes estava bem definido hierarquicamente: “ao homem competia a chefia
da sociedade conjugal, administrar o patrimônio familiar, nesse compreendido os bens do
casal, além de reger a pessoa e bens dos filhos menores na medida em que detinha, com
exclusividade, o poder familiar” (BARBOSA, 2001, p 67). À mulher cabia, como mera
reprodutora, a administração da casa e a criação dos filhos. Ao se casar tornava-se
relativamente incapaz, o que lhe conferia uma posição de inferioridade em relação ao marido,
uma vez que para os atos da vida civil dependia de autorização do marido como por exemplo,
o direito à profissionalização (BARBOSA, 2001; FACHIN, 1999).
Do exposto infere-se que a mulher casada esteve submetida totalmente ao marido,
competindo a ele a direção exclusiva da família, restando à mulher, à margem dessa direção,
um espaço estrito, limitado. Tal afirmação baseia-se na própria lei que descreve o
comportamento esperado pela mulher ao contrair as núpcias. O casamento para a mulher,
como já dito acima, levava à perda da autonomia em administrar os próprios bens, de exercer
atividade profissional sem autorização do marido, além de torná-la relativamente incapaz.
Em 1962 a Lei 4.121 instituiu o Estatuto da Mulher Casada, trazendo para o
matrimonio a colaboração da mulher, junto com algumas funções antes exercidas
exclusivamente pelo homem. Essa Lei teve especial importância no que se refere às relações
jurídicas materno-filiais, modificando o conteúdo do art. 393 do Código Civil de 1916. Na
nova redação a mãe/viúva teria o direito, após contrair novo casamento, de manter o vinculo
jurídico e afetivo com os filhos, permanecendo com o pátrio poder. Diz o art. 393 “A mãe que
contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos de leito anterior os direitos ao pátrio poder,

exercendo-os sem qualquer interferência do marido”. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de

1962). Poderíamos, aqui, questionar se a origem do que chamaríamos posteriormente de


principio da igualdade não estaria sendo gestado através da incipiente Lei.
76

Sendo o homem chefe da família e estando a mulher e os filhos submetidos ao poder


do marido/pai, a mulher somente exercia o pátrio poder de forma a auxiliá-lo, isto é,
colaborava com o marido. Essas relações eram justificadas em função da preservação da
instituição familiar; qualquer ameaça à sua integridade gerava esforços no sentido de manter a
organização social, a ordem privada e os preceitos jurídicos. Confirmam essa orientação a
rejeição do filho havido fora do casamento, bem como a recusa em atribuir direitos às
relações extraconjugais, pois, como dissemos na apresentação desta capítulo, o casamento era
o único fator gerador de legitimidade da família e dos filhos. O casamento permanecia, desse
modo, como única forma de se constituir família, na qual os cônjuges assumiam uma posição
passiva em relação ao matrimonio, em conformidade com as normas instituídas e praticadas
na própria família (TEIXEIRA, 2009).
Não estamos desconhecendo a existência de outros modelos à margem da legislação,
pois as pessoas se juntavam, tinham filhos e se separavam fora dos ritos legais. Entretanto,
tais disposições legais destinavam-se basicamente à família criada em torno do núcleo
pai/mãe, deixando de levar em consideração, como já nos referimos em outro capítulo, à
fragilidade do vínculo com o provedor por bebida, desemprego etc, levando a mulher a
assumir, muitas vezes em conjunto com a família ampliada, as tarefas familiares, constituindo
novos arranjos, como vimos. As famílias assim constituídas foram, durante muito tempo,
lançadas na clandestinidade.
As relações que ocorriam fora do casamento eram moral, social e civilmente
reprovadas. A virgindade da mulher era de fundamental importância como parâmetro de sua
honra e honestidade. As mulheres que não preservavam a sua virgindade eram oprimidas e
desprezadas por uma sociedade cheia de preconceitos e de dupla moral. Indignas aos olhos da
sociedade, pela perda de sua virgindade, eram marginalizadas, privando-se do direito de
participar do mercado do casamento, no qual a sociedade perpetuava a ideia da virgindade
como um supremo bem de troca (AZEVEDO, 1981). As mulheres ofendidas em sua honra
poderiam exigir do ofensor uma indenização pelo dano moral, isto é, quando esse dano não
fosse reparado pelo casamento. O casamento reparava igualmente o dano civil e penal
causado à mulher.
A instituição familiar, aquela constituída pelo casamento, recebeu especial atenção da
lei penal que objetivava preservar a família. O Código Penal de 1942 penalizava com maior
rigor o adultério cometido pela esposa, uma vez que esse ato poderia possibilitar a introdução
de prole espúria no casamento. Quanto ao adultério cometido pelo homem somente os casos
77

de concubinato teúdo e manteúdo eram penalizados, o que pressupunha uma maior liberdade
para relacionamentos extras conjugais.
As relações que não se baseavam no casamento traziam consequências para os filhos,
que eram discriminados e classificados de acordo com a situação jurídica dos pais. Os filhos
nascidos na constância do casamento eram os legítimos. Os nascidos fora dessa situação
jurídica eram denominados de ilegítimos, os quais se subdividiam em duas categorias:
naturais e espúrios. Naturais eram os filhos nascidos de relacionamentos em que não havia
impedimentos matrimoniais e os espúrios os nascidos de pessoas impedidas de se casar. Na
designação de filhos espúrios, ainda, englobavam-se duas outras denominações: a de
adulterinos e a de incestuosos (BARBOSA, 2001). Os filhos considerados e nomeados como
ilegítimos não recebiam proteção legal, ou seja, não tinham sua filiação assegurada pela lei.
Dentre os ilegítimos, os adulterinos e incestuosos tiveram uma longa jornada de exclusão do
mundo jurídico, pois que até 1988 não podiam sequer ser reconhecidos por seus pais. Até esse
momento histórico o que se percebe é que os interesses de preservação da família
sobrepunham-se aos interesses dos seus membros, sobretudo os da criança, que foi sacrificada
em prol das conveniências dos seus genitores.
Resumindo, embora o Direito prometesse, em princípio, a resolução dos conflitos, o
Código Civil Brasileiro, datado de 1916, perpetuava a ideia de submissão da mulher e a
divisão dos papéis desempenhados socialmente nas relações conjugais. A imagem da mulher
foi construída pelos discursos da igreja, dos médicos e juristas, e descrita no Código Civil de
1916 como mãe-esposa-dona de casa; já o homem detinha o poder sobre a mulher e os filhos,
o pátrio poder. O Código Civil somente admitia como entidade familiar aquela instituída pelo
casamento, livre de impedimentos e cumpridas as formalidades legais. Afirmava ainda que o
matrimônio era o sustentáculo da família, cabendo ao Direito de Família as relações
familiares que compreendiam o casamento, o poder familiar, a tutela e a curatela
(BARBOSA, 2001; FACHIN, 1999).
O casamento, além de impor o dever de procriar - associado ao dever, também, de
manter relações sexuais - era visto como um vínculo indissolúvel entre os cônjuges. Como já
descrito acima, no período da República somente era reconhecido o casamento civil. A lei
civil, que se pautava no sentido de ser família somente aquela constituída pelo casamento, em
1934 transforma-se em norma constitucional (BARBOSA, 2001). Essa norma foi
recepcionada e legitimada por todas as outras Constituições que se seguiram a de 1934, sendo
alterada e modificada com a Constituição de 1988 em aspectos que serão abordados no
decorrer do texto. Ressaltamos: até a promulgação desta Constituição de 1988, o matrimônio
78

era o único laço legítimo e legal de constituir família e somente quem era ligado por tal
vínculo tinha a proteção do Estado.
Em 1942 através da introdução do art. 315 no Código Civil abriu-se a possibilidade de
separação, sem, contudo, haver a dissolução do vínculo. A esse novo ato deu-se o nome de
desquite.

Art. 315. A sociedade conjugal termina: (Revogado pela Lei nº 6.515, de 1977).
I. Pela morte de um dos cônjuges.
II. Pela nulidade ou anulação do casamento.
III. Pelo desquite, amigável ou judicial.

No mesmo ano admitiu-se a anulação do casamento, que se deu por meio da Lei nº
4529, de 30 de julho. Em 1977 a eternidade das relações imposta pela indissolubilidade é
abalada pela Lei de nº. 6515, de 26 de dezembro de 1977, que institui o divórcio, permitindo a
dissolução judicial do matrimonio e também que os divorciados contraíssem novas núpcias.
Podemos dizer que até este momento, um dos aspectos mais relevantes do casamento era a
proteção de interesses econômicos e que os códigos que disciplinavam essa família não
consideravam a afetividade como um aspecto importante nas trocas interpessoais, no que diz
respeito não só ao casamento como também nas relações paterno-filiais.
Na separação procurava-se quem tinha dado causa à ruptura do que se nomeava
normalidade conjugal, ou seja, quem era o culpado. Essa busca tinha como objetivo finalizar a
conjugalidade, além de servir como base para definir o pagamento da pensão alimentícia,
guarda dos filhos e o uso do nome do marido pela mulher separada. Como o pátrio poder
continuava sendo exercido de forma predominante pelo homem, embora a mulher pudesse
exercê-lo sob determinadas condições, o marido era quem decidia sobre a vida dos filhos;
estava nas suas atribuições o poder de resolver os impasses. Assim, as relações parentais
estavam sob o jugo, autoridade e poder do chefe da família. Os filhos permaneciam ou não
dentro do seio familiar, como já dito, de acordo com os ditames do casamento. Os direitos
dos filhos eram estabelecidos pelo pai, circunscritos, nessa disposição, à concepção do direito
subjetivo do genitor. O Código Civil de 1916, no art. 379, dispôs que o pátrio poder seria
exercido para com os filhos legítimos, os legitimados, os legalmente reconhecidos e os
adotivos, enquanto menores. Os filhos ilegítimos, ou seja, aqueles que não eram reconhecidos
pelo pai, ficavam sob a responsabilidade, poder da mãe. Se a mãe fosse desconhecida ou não
pudesse exercer o pátrio poder, o menor permaneceria sob os cuidados de um tutor, redação
consonante com o art. 383 do Código Civil (TEIXEIRA, 2009). Esse dispositivo trazia
79

subjacente a ideia de circulação de crianças, posteriormente objeto dos estudos levados a


termo por Fonseca (2002a).
O fim do casamento – desquite, anulação e divórcio – não alterava o direito ao pátrio
poder, exceto quanto à permanência do filho na companhia de um dos cônjuges. Como já dito
anteriormente, a guarda ficava com o cônjuge que não havia causado a separação e esta
compreensão deixa de existir recentemente, em 2002, em razão do Novo Código Civil em.
Entretanto, não podemos deixar de considerar a preeminência da mulher na permanência com
os filhos, em conformidade com o ideário de uma sociedade que impunha uma divisão sexual
do trabalho, além da disseminação de pretensas leis naturais que dotariam a genitora, como
diz Badinter (1985), de um instinto materno, tema que será tratado no próximo capítulo.
Essa viagem pelos meandros do Direito coloca em evidência o fato de que a
preocupação com os aspectos econômicos da família conduziu o referido Código Civil a uma
escolha patrimonialista, opção que mereceu destaque privilegiado, sendo seu objetivo maior.
Soma-se a essa característica o autoritarismo e a discriminação nas relações familiares, por
considerarem como peças fundamentais e preponderantes, a figura do marido, o casamento
civil e a exclusividade dos filhos legítimos.
Destacando os pontos mais específicos das transformações trazidas pelo Direito, de
1916 até 1988, três grandes alterações legislativas ocorreram. A primeira, em 1949, diz
respeito ao reconhecimento do filho fora do casamento. A segunda alteração foi em 1962 com
o Estatuto da Mulher Casada, que trazia determinadas condições e que colocava a mulher
como colaboradora do marido, ou seja, promoveu a sua relativa emancipação. A mulher
passou a ter tratamento igualitário nos atos da vida civil, deixando de ser relativamente
incapaz para a prática da vida civil. A terceira grande alteração ocorreu em 1977 com a Lei do
Divórcio, trazendo a possibilidade da dissolução da sociedade conjugal. Em seu art. 24 essa
Lei “põe termo ao casamento e aos efeitos civis do matrimônio religioso” (BARBOSA,
2001). A Lei n.6.515/77, que regulamentou o divórcio possibilitou, também, o recasamento.
Juridicamente, a separação judicial põe termo aos deveres de coabitação, fidelidade
recíproca e ao regime matrimonial de bens, caso o casamento fosse dissolvido (conforme art.
3º da Lei 6.515, de 26 de dezembro1977). Esta definição também é valida para o desquite –
termo que era usado para as separações legais ocorridas antes da promulgação da referida Lei
e que não permitia contrair novas núpcias legalmente. Cabe ressaltar que a separação judicial
não terminava com o casamento; fixava um período de no mínimo um ano para que o casal
pudesse repensar a situação decidindo ou não pela separação definitiva. Essa situação
perdurou até o advento da Emenda Constitucional 66, de 13 de julho 2010 que extinguiu o
80

instituto da separação. A partir da Lei 6.515, e adiante, na citada Emenda, conceituou-se


divórcio como marca da dissolução do casamento, ou seja, a separação do marido e da
mulher, conferindo-lhes a partir dele, como já destacado, o direito de novo casamento. (IBGE
– Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010).

3.4.1 Constituição de 1988 – “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e
arte”

A família, como descrita na vigente Constituição de 1988, está voltada para a


promoção e desenvolvimento da personalidade de seus membros. O que importa na nova
arquitetura são a liberdade, a autonomia e realização, adquirindo concretude e
instrumentalizando espaços para que seus membros se realizem. O valor atribuído aos seus
componentes não pode ser mais pensado de forma dissociada. Teixeira (2009) citando
Tepedino (2004) diz

Altera-se o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal


de pais e filhos legítimos baseada no casamento, para um conceito flexível e
instrumento que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores
com seus filhos – tendo por origem não apenas o casamento – e inteiramente voltado
para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros
(TEPEDINO apud TEIXEIRA, 2009, p 29).

Com a possibilidade de separações judiciais – expressão que veio substituir a palavra


desquite – divórcios e dissoluções das uniões estáveis, ganha importância, também, a família
monoparental. Acompanhando todas essas mudanças, a Constituição de 1988 cede lugar a
diversas formas de família, como já esclarecemos.
A Constituição Federal de 1988 abrigou novo conceito de família considerando, além
daquela advinda do casamento (Código Civil de 1916), também a união estável e a família
monoparental. Refletia tendência, confirmada pela regulamentação subsequente, de considerar
tanto uma quanto outra como ente familiar, sob a proteção do Estado, lugar privilegiado do
afeto, solidariedade e cooperação (LOBO, 1989). Assim surgem as leis 8.971, de 1994 e
9.278, de 1996. A primeira estabelecendo direitos dos companheiros aos alimentos e à
sucessão. A segunda reconhecendo como família a união estável entre homem e mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradora e estabelecida como objetivo de
81

constituição de família, conceito repetido integralmente no art. 1723 do Novo Código Civil
(BARBOSA, 2001; FACHIN, 1999).
Os novos valores para a constituição da família passaram a ser fundamentais,
principalmente com o advento da Constituição Federal e do Código Civil/2002, que
introduziram na sociedade ideais de igualdade, afetividade e, sobretudo, de dignidade humana
(Art. 1º, III, Art. 5º, I, CF/88), estabelecendo novas formas de famílias.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos


Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta


Constituição;

O art. 226 traz em seu bojo diversas formas de entidade familiar que são meramente
exemplificativas, pois não abarcam todas as possibilidades existentes dela, família, se
estabelecer.

A Constituição Federal de 1988 descreve em seu artigo 226:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem
e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento.

A interpretação realizada por alguns juristas segue uma visão literal do conteúdo
expresso, no que se refere ao parágrafo acima descrito, pois perpetua a ideia de desigualdade
ao considerar como regra a primazia do casamento. Essa percepção tem apoio no final do
enunciado quando se declara que a união estável deve ser convertida em casamento.

Não impõe requisito para que se considere existente união estável ou que subordine
sua validade ou eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando
ao legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificuldades para
os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da
solenidade de celebração. Em face dos companheiros, apresenta-se como norma de
indução. Contudo, para os que desejarem permanecer em união estável, a tutela
constitucional é completa, segundo o princípio de igualdade que se conferiu a todas
82

as entidades familiares. Não pode o legislador infraconstitucional estabelecer


dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a união estável, pois facilitar
uma situação não significa dificultar outra (LÔBO, 2002, s/p ).

Em razão do pluralismo reconhecido no próprio texto constitucional, há, ainda, que se


considerar o princípio da liberdade de escolha, que se baseia na admissão da dignidade da
pessoa humana. “Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir
a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial. Não pode o
legislador definir qual a melhor e mais adequada” (LÔBO, 2002, s/p). Completa sua
argumentação expondo as ideias de C. Massimo Bianca que, tendo por base o sistema jurídico
italiano, destaca que a liberdade vincula-se à escolha do individuo na constituição da própria
família, proporcionando-lhe também o desenvolvimento da personalidade.
Essa discussão nos leva a uma ambiguidade da forma como a família é compreendida
hoje, com base no contexto Constitucional que não obstante os avanços, ora aponta o
casamento como tendo a primazia na formação da família, ora nos leva a compreensão de que
outras estruturas também são consideradas como família. Nesse sentido, concordamos com
Lôbo (2002) quando afirma que a exclusão ou inclusão não está na Constituição, mas na sua
interpretação. Em nossa compreensão as nomenclaturas empregadas no texto constitucional
sugerem uma política inclusiva de ampliação do conceito de família.
As pessoas que integram a família passaram a ser o objeto principal da norma, ou seja,
a importância passou do casamento para as pessoas que fazem parte da família. Aquela
família compreendida no modelo único – o casamento – e que considerava este casamento
como um bem em si mesmo, valorizado como uma instituição essencial, cede lugar às pessoas
humanas que a integram, impondo normas mais garantidoras dos direitos subjetivos. “O
caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível
excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e
ostentabilidade” (LÔBO, 2002, s/p). Seus parágrafos exemplificam formas diferentes de
entidades familiares, não tendo o Estado o poder de controlar as formas de constituição das
famílias. O foco volta-se para a preocupação com a proteção dos direitos e garantias das
relações familiares, princípios consagrados também nas Declarações de direitos, considerando
a família a base emocional e social da formação do homem (LÔBO, 2002; TEIXEIRA, 2009).
Houve, portanto, uma grande transformação na estrutura do casamento, introduzida
pela plena igualdade no exercício dos direitos e deveres na sociedade conjugal, extinguindo-se
a tradicional família patriarcal. Muda-se a configuração do triângulo pai-mãe-filhos, sendo
reconhecidos também como família os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por
83

adoção, aos quais foram atribuídos iguais direitos e qualificações, proibida qualquer
designação discriminatória. Descreve a Constituição Federal em seus artigos 226 e 227
respectivamente:

§5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente


pelo homem e pela mulher.

§6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os


mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação.

Essas ideias corporificam os objetivos da família bem como dos seus membros como
sujeitos livres. Corroborando essa ideia Villela (1994) identifica um modelo aberto de família,
em que afeto, solidariedade e devotamento são ingredientes substanciais ao viver comum. Nas
relações pessoais o foco se dirige para a preocupação com a dignidade da pessoa humana.
Preocupação trazida pela Constituição em seu primeiro artigo, inciso III, em que as relações
interpessoais são garantidas segundo expressa norma de respeito aos direitos fundamentais do
cidadão.

Busca-se uma família mais livre, sem massificação, com valorização da liberdade
individual, mas também da reciprocidade, com uma vivência mais solidarista, em
que cada qual pensa e vive a família como resposta as suas aspirações de
desenvolvimento pessoal, mas também com base na ajuda mútua e no diálogo. A
família solidarista é o novo paradigma, que vem substituir o da família patriarcal.
Não é mais o patrimônio o valor fundamental, mas sim, a pessoa humana
(TEIXEIRA, 2009, p. 34).

Percebe-se no art. 227 a preocupação com o indivíduo em formação, colocando o foco


imediato da atenção jurídica sobre o seu desenvolvimento existencial e afetivo, envolvendo
neste processo todos os entes (família, sociedade e Estado), que passaram a exercer papel
ativo na sua educação e criação. Assim, independentemente das formas como se estruturam e
organizam as famílias, estão todas consideradas na sua potencialidade de fornecer as
condições indispensáveis para a realização e desenvolvimento da pessoa, uma vez que a
exclusão de qualquer das suas variantes refletiria negativamente nas pessoas que as compõem,
e comprometeria a realização do princípio da dignidade humana (LÔBO, 2002; FARIAS,
2004).
A parametrização pelo afeto não é apenas princípio defendido por sociólogos e
psicólogos, está presente também no texto constitucional. A modificação dos valores de nossa
civilização conduziu a uma progressiva recusa às ideias discriminatórias, no que diz respeito
84

aos filhos havidos nos diferentes arranjos familiares, tornando-se princípio constitucional,
coerente com a índole inclusiva de nossa Constituição (LÔBO, 2002).
Depreende-se das normas citadas que a Constituição valorizou o afeto nas relações
com os filhos, afastando qualquer interesse ou valores que não estejam de acordo com esse
fundamento. Ou seja, todos os filhos são iguais independentemente de sua origem natural ou
de livre escolha, sem distinção entre aqueles filhos oriundos da relação biológica ou os
adotivos. A Constituição os compreende como filhos do amor e do afeto edificado no dia-a-
dia.

A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses


materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se
em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca
densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete,
ante cada situação real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou
comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e
final, haverá família (LÔBO, 2002, s/p).

A noção de proteção e dependência atravessa a relação entre pais e filhos. A família é


o território indispensável à garantia da sobrevivência, desenvolvimento e proteção de todos os
seus membros.
As diversas modificações ocorridas na dinâmica familiar como, por exemplo, maior
liberdade na intimidade e na expressão dos sentimentos, como aponta Giddens (1993),
perfazem um caminho que conduz à construção de um conteúdo que tem por finalidade a
valorização da pessoa humana e que por se aproximar da realidade humana, leva em
consideração a renovação das práticas afetivas, emocionais e sexuais. É nesse espaço que se
inscrevem as relações parentais, e que se tornaram mais democráticas na contemporaneidade.
Exemplo desta abertura foi dado pelo Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer em
maio de 2011 a união estável para casais do mesmo sexo, excluindo qualquer significado
discriminatório ao artigo 1723, do Código Civil, que só reconhecia “como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Em seu pronunciamento
ao Conselho Nacional de Justiça, o Ministro Ayres Britto afirmou que:

a Constituição proíbe a discriminação das pessoas – seja em razão do gênero ou


opção sexual. “Consignado que a nossa Constituição vedou às expressas o
preconceito em razão do sexo e intencionalmente nem obrigou nem proibiu o
concreto uso da sexualidade humana, o que se tem como resultado dessa conjugada
técnica de normação é o reconhecimento de que tal uso faz parte da autonomia de
vontade das pessoas naturais, constituindo-se em direito subjetivo ou situação
jurídica ativa”.
85

É no bojo dessas transformações que se insere a discussão proposta nesta tese, a


respeito do afastamento entre mães e filhos. Como pudemos observar, apesar de toda a
importância dada ao homem, marido e pai, o lar foi se constituindo historicamente como local
da presença feminina, se desdobrando algumas vezes em autoridade, embora na relação com a
rua e nas esferas de decisão tenha sido o pai constituído socialmente como quem deveria
tomar a dianteira.
Apesar das transformações nas concepções de família e casamento, a parentalidade
costuma se dar no interior da conjugalidade, mesmo que esta se dissipe rapidamente. E é neste
contexto que se instaura o exercício da maternidade, fenômeno sobre o qual vamos nos
debruçar a seguir, perturbado, muitas vezes, pelo advento do divórcio e/ou do recasamento.
86

4 CONSTRUÇÃO DA MATERNIDADE – QUEM PARIU MATEUS NEM SEMPRE


O EMBALOU...

SÃO PAULO - A recém-nascida abandonada pela mãe em uma caçamba de lixo em


Praia Grande, no último dia 18, deverá receber alta nesta sexta-feira. A informação
foi divulgada por meio de nota oficial do Hospital Municipal Irmã Dulce informa. A
guarda da criança será repassada para a tia materna da menina, que mora em Mauá,
Grande São Paulo. Rosineide Sales Lins, 39 anos, mãe da criança, prestou
depoimento à polícia. Ela disse que teve a criança sozinha, dentro do almoxarifado
da Clínica de Repouso onde trabalhava, e que a deixou escondida no local por medo
de perder o emprego. Rosineide disse à polícia que não tinha intenção de matar a
menina e que a deixou na caçamba porque a rua é movimentada e alguém a
encontraria. Rosineide ficou com o bebê por cerca de uma hora e depois o escondeu
no almoxarifado. Só às 19 horas, quando terminou seu expediente, pegou a criança e
foi para casa. No sábado, ela estava de folga e ficou com a criança. No domingo, a
levou novamente para a clínica e escondeu novamente. Voltou para casa com a
criança e na segunda-feira decidiu abandoná-la. Ela disse que estava em situação de
desespero e não teve outra alternativa. A tia do bebê abandonado manifestou o
desejo de adotar a sobrinha. O promotor da Infância e Juventude, Carlos Cabral
Cabrera, do Ministério Público de Praia Grande, disse ao GLOBO, que a tia é
evangélica, tem 41 anos, é casada e mãe de dois filhos. Ela disse ao promotor que
ficou envergonhada ao ver as imagens da sobrinha sendo colocada na caçamba. A
tia manifestou ao Ministério Público o desejo de adotar a sobrinha. Pedimos uma
avaliação das condições em que ela vive e o resultado parece positivo. É uma família
estruturada, o marido se mostrou favorável a acolher a criança, e a tia disse que ficou
envergonhada em ver a sobrinha ser colocada na caçamba. Ela afirmou que não
tinha contato com a irmã (a mãe da criança) e não sabia que ela estava grávida.
Assim que a avaliação da família, que está sendo feita por funcionários da prefeitura
onde a tia mora, sair, meu desejo é que a criança saia do hospital e siga direto para lá
- disse o promotor Cabrera. O promotor afirmou que deve entrar na Justiça com uma
ação de destituição do poder familiar da mãe do bebê, que continua presa. Em
seguida, vai formular um pedido de adoção em nome da tia e do marido e um pedido
de liminar para a guarda provisória. O promotor alertou, entretanto que se ficar
comprovado que o vigia Miguel Lemos Ribeiro, de 58 anos, for mesmo o pai da
criança, ele tem preferência em ficar com a criança. O vigia submeteu-se a um
exame de DNA. Roseneide deu outros três filhos. Em março passado ela teve um
casal de gêmeos, que foram entregues a uma família da Praia Grande. A outra filha
de Rosineide é uma adolescente de 15 anos, que foi adotada por um casal da região
de Campinas (JORNAL O GLOBO, 29 de abril de 2011).

O termo utilizado na reportagem é abandono. A mãe declara que não teve intenção de
machucar a filha, fala do seu desespero. O texto do jornal fala de religião e da família
estruturada da tia sem por nada em análise. O que a tia sente é vergonha e a mãe está presa.
Alguma coisa está fora da ordem. Mais criminalização da pobreza? Temos que responder
sempre com o mesmo modelo de família? Condenação de mulheres pobres que ousam não
ficar com os filhos?

A exposição de um comportamento tão extremado, imediata e consensualmente


descrito como abandono foi aqui colocado para provocar uma reflexão sobre o que pode ou
87

não ser caracterizado como tal. È importante ressaltar que as situações da tese distanciam-se
dessa narrativa, entretanto, alguns elementos como vulnerabilidade social, pressões exercidas
sobre a mulher/mãe pela sociedade e as questões de gênero/ conjugalidade, presentes no caso,
são fatores que nos auxiliam a por em análise as situações em que as mulheres/mães afastam-
se de seus filhos, respeitadas as devidas proporções.
A narrativa apresentada pelo jornal parece contribuir para um discurso que, baseado
no mito do amor materno, reforça estereótipo com o efeito de poder, capaz de sugerir, e até
mesmo impor como uma mulher deve se comportar e como deve ser tratada quando se desvia
do modelo de mãe tipificado como uma conduta materna universal, podendo ser punida e
marginalizada.
A reportagem nos lança dentro de nosso tema: o estranhamento provocado pelo
afastamento entre mãe e filhos.
Nos últimos cem anos pode-se afirmar que no Brasil foi e continua sendo muito
comum encontrar crianças sob o cuidado de mulheres, em geral suas mães – sejam biológicas,
adotivas ou de criação. Essa perspectiva, naturalizada, faz com que se perceba toda a situação
de afastamento entre mãe e filhos como abandono. Na construção deste trabalho adotar-se-ão
estratégias para não ceder a essa compreensão como dada e necessária. Assim, acredita-se
fundamental entender como a noção de abandono se construiu na literatura sobre a temática
da maternidade, o que será feito no próximo capitulo, buscando o entendimento em relação a
mães e filhos que não permanecem juntos.
A reflexão sobre maternidade serve para expressar a resistência de alguns teóricos em
pensar esta temática como atravessada por relações de poder, visto que a maternidade é uma
construção histórico/social que impõe à mulher a posição central na dinâmica mãe/filho,
relação que a subordina ao cuidado e atenção e que, de acordo com esses parâmetros, a
classifica como boa ou má mãe, sendo a condição de abandonante a das mais condenáveis. No
entanto, muitas vezes a dimensão de construção histórico/social se perde e a naturalização do
nosso olhar passa a ser uma poderosa juíza.
A noção de poder descrita por Foucault (1988) como multiplicidade de relações de
força conduz a um espaço mais abrangente de poderes, que existem simultaneamente nas
tramas das relações familiares e sociais, condição que se faz necessária às transformações
impostas pelo discurso dominante. Como descrito por Foucault (1995) “não há relação de
poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder
implica, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta” (p. 248). Ter clareza dessa
dimensão capilar do poder faz acreditar na ideia de que as capturas serão mais raras, que
88

haverá, por parte da pesquisadora, maior resistência aos apelos de enquadramento dessas
mulheres.
Pretende-se trabalhar modos de subjetivação da maternidade, destacando o
envolvimento na trama social. Longe de ser uma essência, a maternidade pode ser vista como
uma potência, recriada permanentemente; processos contínuos de produção social que
envolvem diferentes instâncias e formas – modos de ser em constante devir. Pois

tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos
rodeiam – não é apenas uma questão de ideia ou de significações por meio de
enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a
identificações com pólos maternos e paternos. Trata-se de sistemas de conexão
direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social
e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo”.(DELEUZE,
1992, p 35).

Pretende-se habitar essas linhas de força das quais trata Foucault, para apostar em
variadas formas de se perceber o mundo, como inspira Deleuze. Falamos em maternidades,
sempre no plural, e refutamos a versão necessária de abandono para falar de afastamento entre
mães e filhos.

4.1 A Invenção da maternidade ou… Derrubando o mito do amor materno

Ao colocar em discussão o caráter inventado da maternidade, convoca-se uma série de


autores que, com suas diferenças, olham atenta e criticamente para a sua interpretação como
um fenômeno natural. Tradicionalmente, mesmo quando se admite a existência de uma
relação entre maternidade e o poder que é exercido pela sociedade sob a forma de controle, e
que cobra da mulher a função materna, nos referimos à renúncia da maternidade como
abandono, buscando explicações como o desamparo, solidão, repressão, exclusão ou
violência. E em geral culpabilizando-se a mulher.
Para conhecer este campo, vamos contar com a contribuição de Venâncio (1997),
Marcilio (1998) e Del Priore (1992/1993), para depois discutirmos que outros olhares são
possíveis sobre este objeto, que considerem outros aspectos.
O ponto de partida é o conhecido livro de Elizabeth Badinter (1985) que explicita o
amor materno como um mito que ampara nossa visão de maternidade e que, como sugerido
acima, produz cotidianamente sofrimento e exclusão.
89

O caso acima relatado, na reportagem, aponta no sentido da desconstrução do mito do


amor materno, numa clara demonstração de que os processos que envolvem a chamada
natureza feminina, ditos naturais e espontâneos, não são assim tão naturais nem tão
espontâneos, como salienta Badinter (1985). Esperado pela sociedade, o comportamento que
reforça esse mito não foi identificado na genitora em foco, o que leva a sociedade,
imediatamente, a buscar uma explicação. Não é pelo fato de ser mulher que a maternidade
será exercida de forma natural e espontânea como pretendido e esperado socialmente.
Nos padrões tradicionais, presentes no ideário do corpo social, pautados na figura
materna que exerce uma função de abnegada entrega, o cuidado, a atenção, a proteção, a
educação dos filhos são atribuídos à mulher como sendo a base de construção da relação
mãe/filho. A naturalização do exercício da maternidade, diante de um comportamento como o
descrito na reportagem, causa estranheza, mobilizando a mídia e as pessoas em torno do
acontecimento.
Seria o amor materno determinado simplesmente pelo sexo, por uma questão de
gênero, ou por características pessoais, construídas ao longo da vida do sujeito e com
possibilidade de modificação? Que normas são produzidas e que configuram a maternidade?
Quais os investimentos produzidos na criação de um padrão de mulher vinculado e tendo
como produto uma norma de maternidade? Como essa norma se naturalizou? Existem outros
modos de ser e de não ser mãe? Como pensar a prática da maternidade, em contextos
diversos, atravessada pela desigualdade social que conforma as diferentes classes sociais?
Podemos afirmar que ao se tornarem mães essas mulheres passam a ser iguais?
Essas interrogações permitem pensar como essas normas foram construídas,
configuraram e configuram um modo de ser mãe como o mais adequado e legítimo. Como se
a maternidade tivesse um padrão a ser seguido, ou seja, nos remetendo à ideia de um único
padrão aceitável de maternidade. Mais uma vez podemos nos perguntar: como essas mulheres
escapam a esse controle? Quais são as fissuras e o que emerge das linhas de luta? Como
entender os processos de subjetivação dessas mulheres e como a maternidade atravessa esses
processos?
Dois conceitos propostos por Foucault (1988) são fundamentais dentro do contexto
estudado para se pensar na construção da normatividade que envolve a mulher-mãe. O
primeiro se refere à histerização do corpo da mulher e o segundo ao processo de socialização
das condutas de procriação, o que nos conduz a refletir sobre as estratégias que incidem
diretamente sobre o corpo das mulheres ao se tornarem mães. O primeiro conceito está
associado ao corpo feminino passando este a se comunicar organicamente com o corpo social,
90

com o espaço familiar e com a vida das crianças; o segundo está ligado a questões
econômicas, políticas e médicas. Essas e outras estratégias vão moldando o corpo dessa
mulher por meio do biopoder. Em Foucault temos a definição do biopoder: "técnicas
buscando a sujeição dos corpos e o controle das populações" (FOUCAULT, 1988, p 131).
Quando voltamos a nossa atenção a esse poder que está centrado na vida, percebemos efeitos
outros que são produzidos pela sociedade, que o normatiza por meio da construção de
parâmetros de conduta e julgamento que investem no corpo. Será que esquecem que a mulher
é agenciada por outras instâncias e ao esquecerem a rotulam somente como mãe? Que jogos
de força insistem nesta limitação?
A análise sobre todo esse investimento que incide sobre a mulher e que a colocou em
uma posição distinta também mereceu a atenção de Elizabeth Badinter (1985) ao refletir sobre
as práticas de cuidado dispensadas à criança, ou seja, a autora foca nas transformações dessas
práticas. A mulher, situada em um campo que torna possível a ligação e a interlocução entre o
Estado e família, dispõe também da responsabilidade sobre o futuro das nações. Desse modo,
o amor materno estaria associado ao discurso econômico, inseridos nesse contexto a
importância da população e controle da mortalidade, e filosófico, no período das ideias do
iluminismo vinculadas à expressão do amor.
Ariès (2011), ao se reportar à infância, a descreve como uma fase que se distingue da
vida adulta ou mesmo jovem e que o sentido de infância não guarda uma relação direta com a
afeição pelas crianças. Para Ariès trata-se mais de uma consciência da particularidade infantil.
Acredita, inclusive, que as transformações que conduziram aos cuidados - em particular o
amor materno tal como hoje concebido - até então inexistentes, começaram por volta do
século XVII. A partir daí a criança sai do anonimato e, ainda sem ocupar um lugar de
destaque, sua perda adquire peso para as famílias. Essas transformações foram significativas,
tanto que, segundo o autor, no final do século XVIII a infância ganha realce com as diversas
publicações, dirigidas aos pais, em particular às mães, exortando-os a novos sentimentos em
relação aos filhos. Estava assim esboçada a família moderna alicerçada no amor materno. Este
conceito emerge, comprometendo a organização familiar, em particular as mães, em função
da criança. Nesse sentido, observa-se na produção literária o propósito de modificar
radicalmente a imagem da mulher, atribuindo-lhe quase que exclusivamente as obrigações
com o cuidado, fixadas como maternas. Encontramos em Badinter (1985) a constatação de
que, nesse momento, foi,“engendrado o mito, que continua bem vivo duzentos anos mais
tarde: o do instinto materno, ou do amor espontâneo, de toda mãe pelo filho” (p. 145).
91

Era comum, até o século XVIII, que as mães entregassem seus filhos para o cuidado
de amas de leite, pois o que hoje são consideradas atribuições maternas eram subestimadas e
até vistas como estorvo. As mulheres enviavam seus filhos para amas de leite mercenárias,
para serem criados e devolvidos quando estivessem mais fortes. Para Ariès (2011), a mulher
dessa época também, dessa forma, evitava apegar-se ao ser frágil, para não sofrer depois com
sua perda. A entrega dos bebês era uma prática comum e pesquisas sobre esse período
constataram que de quatro crianças enviadas, somente uma sobrevivia. A mortalidade era
elevada e, consequentemente, preocupante (SANTOS, 1998; CAMAROTTI, 1998). Alguns
jamais voltariam a seus lares. O Estado passa a interessar-se pela perda de crianças porque
perderia pessoas que futuramente poderiam servi-lo.
Assim é que no final do século XVII e inicio do XVIII as normas estabeleciam regras
de tratamento a ser dispensado aos filhos e que deveriam ser reproduzidas pela mãe e pelo pai
na relação com a sua prole. Cabia à mãe a formação, além de envolver-se nos cuidados
materiais, como o cuidado com roupas e alimentos. Ao pai competia a transmissão de valores
morais, religiosos, e a manutenção econômica da família. A criança somente ficaria mais
próxima ao pai após o início da idade da razão, por volta dos sete anos de idade. Até então ela
deveria ser cuidada quase exclusivamente pela mãe. Os pais que não dessem conta de tais
compromissos expunham-se a sanções, pois estariam descumprindo normas sociais e pondo
em risco a vida adulta do filho (MELLO, s/a).
Com base nessas preocupações, tornou-se imperativo estatal que a mulher assumisse
os cuidados com a criança. Assim, nos séculos XVII e meados do século XVIII, o amor
materno passa por transformações. A associação das palavras “amor” e “materno” surge nesta
ocasião, vinculada não apenas à promoção do sentimento, mas também ao status de mãe
atribuído à mulher (BADINTER, 1985). O incentivo à estreita presença materna junto à
criança começou a ser desenvolvido ainda no século XVIII, pois a presença da mãe passou a
ser importante em vários aspectos, como os educacionais e religiosos.
Ainda de acordo com Badinter (1985), para que a mulher assumisse suas tarefas
maternas foi preciso apelar para os sentimentos femininos. Assim, moralistas, administradores
e médicos, empenhados na tarefa de persuadi-las, lançaram mão de diversos argumentos
como o senso do dever e culpa e até mesmo recorrendo a ameaças, reconduzindo e
convocando as mães para sua atividade “instintiva”, a sua função matritícia e maternante, dita
natural e espontânea. O Estado convoca a ajuda da mãe, suplica que cumpra o seu dever, isto
é, assegure a sobrevivência do filho. Somente as mulheres poderiam salvar as crianças da
92

morte frequente, deixando de encaminhá-las às amas-de-leite e dispensando-lhes os cuidados


necessários e intensivos para sua preservação (BADINTER, 1985).
Todos procuravam um meio de frear a mortalidade excessiva nos primeiros anos de
vida. Também para Donzelot (1986) com a especialização dos costumes, elaborada nas
publicações realizadas por médicos, administradores e outros, estratégias distintas foram
dirigidas às classes populares. Nas camadas abastadas foi o discurso médico, enquanto um
conjunto de técnicas, que influenciou e modificou a organização familiar. Dentro desse
contexto a ênfase se desenvolveu com base nos laços afetivos. Já nas camadas populares a
intervenção se deu com base em estratégias filantrópicas, o que proporcionou o afastamento
progressivo dos laços afetivos, que foram substituídos pelas políticas sociais. Assim, nas
camadas populares o que se viu foi o isolamento dos seus membros, introduzido por um
complexo tutelar que pretendeu controlar a família em seus desvios, definidos pelo Estado
(MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008; COSTA, 1999).
Mas Badinter (1985) afirma que o amor materno não esteve presente, e da mesma
forma, em todas as mulheres, como tentou fazer crer a moral burguesa, principalmente em
meados do século XIX. O apogeu do culto ao amor materno teve seu ápice nos séculos XIX e
XX. O homem foi levado a sair de casa em função de circunstâncias econômicas e políticas,
entregando toda a responsabilidade do lar à mulher. Ela, que exercia, em relação à família,
uma função reprodutiva, assumiu, nesse momento, um papel de educadora e passou a ter uma
função social específica. Também, sob a influência da Psicanálise, foi delegada à mãe a
responsabilidade pelo desenvolvimento emocional dos filhos (ARIÈS, 2011). Sinteticamente
a posição que a mulher ocupou em relação aos filhos no século XVIII, de acordo com
Badinter (1985), foi de auxiliar dos médicos; já no século XIX, ela foi vista como educadora.
Mas é no século XX que sua responsabilidade aumenta, pois passa a ser responsável pela
saúde emocional dos filhos. Assim, a imagem materna será redesenhada, e como diz a autora:
“a era das provas de amor começou. O bebê e a criança transformaram-se em objetos
privilegiados da atenção materna. A mulher aceita sacrificar-se para que seu filho viva, e viva
melhor junto dela“ (p. 202). Camarotti (1998), no entanto, apresenta-nos o incentivo aos
cuidados maternos como uma tentativa masculina de refrear a emancipação feminina, além de
desestimular-lhes a demanda por cultura e impor à mulher as tarefas maternas, as quais
passam a ser consideradas sagradas.
Não é a toa que as palavras amor e materno são associadas constantemente, no intuito
de fixar os conceitos de mulher-mãe e do amor de forma indelével e constante. A ela são
atribuídos valores de ordem natural e social, facilmente absorvidos, pois fica implícita a
93

mensagem de sua utilidade para a espécie e para a sociedade. Assim, a crença geral é de que,
uma vez que inato à natureza feminina, a mulher há de ser mãe e amar seu filho. A relação
entre maternidade e gravidez parece contribuir para a associação entre a ideia de que toda
mulher grávida é, ou será, mãe e que toda mãe foi, ou é, grávida. Consideramos inegável essa
associação, uma vez que a qualidade ou condição de mãe está relacionada ao estado da
mulher no período da gestação, ainda que a adoção, formal ou não, seja prática antiga na
sociedade. As duas condições, maternidade e gravidez, sofrem influências sociais e
psicológicas (BADINTER, 1985).
Em consonância com essa ideia, Santos (1998) e Chodorow (1990) afirmam que
vivenciar a maternidade não implica necessariamente em desejar exercê-la porque desejo e
necessidade de gerar filhos podem resultar de agenciamentos sociais que impõem à mulher o
lugar de mãe. Há que se considerar neste aspecto questões subjetivas e conjunturais no
exercício da maternidade, como as condições psicológicas e sócio-econômicas.

o desejo/necessidade de gerar um filho pode ser resultante – ainda que não


conscientemente – da pressão social que impõe às mulheres a assunção do papel de
mãe, conforme modelo ideal traçado desde Rousseau e que subentende a
identificação absoluta entre o ser mulher e o ser mãe. Nesse sentido, um só pode se
realizar no outro (SANTOS, 1998, p 103).

Badinter (1985) afirma que o aspecto biológico da gravidez, que desencadeia na


mulher alterações naturais e fisiológicas, não deve ser visto, como geralmente ocorre, como
um dispositivo capaz de responder a todas as questões do “ser mãe”, pois que gravidez é um
fenômeno provisório, enquanto o exercício da maternidade significa envolvimento a “longo
prazo” (p. 12). A cobrança desse envolvimento aparece claramente na fala de uma
entrevistada que vivenciou o afastamento da genitora.

“a senhora nunca discutiu porque a minha avó nunca te abandonou, a minha avó
nunca te deixou, nunca te deu prá ninguém, a minha avó te criou, te viu crescer,
acompanhou a sua adolescência, sua juventude, acompanhou o seu casamento e
ainda criou os seus filhos. E a gente não, a gente não teve isso que a senhora teve. A
gente não teve um acompanhamento de mãe, a nossa família é desestruturada... ela
não tem estrutura”. (Eliane, 43 anos, filha).

É provavelmente através da observação desses fenômenos de gestar e parir,


amamentar e, posteriormente, cuidar, e da comparação com fêmeas de outras espécies, que
surge, para muitos, a associação da condição de mulher com o cuidado da infância a longo
prazo.
94

A ideia, naturalizada, de que todas as mulheres compartilhariam o incondicional amor


materno, colocar-nos-ia o conceito não hegemônico de instinto, substituído diferencialmente
pelo sucedâneo humano – o amor – atribuindo-lhe o mesmo caráter instintivo.

Mesmo reconhecendo que as atitudes maternas não pertencem ao domínio do


instinto, continua-se a pensar que o amor da mãe pelo filho é tão forte e quase geral
que provavelmente deve alguma coisinha à natureza. Mudou-se o vocabulário, mas
conservaram-se as ilusões (BADINTER, 1985, p 21).

Verifica-se que as genitoras que não desejam o exercício da maternidade, ainda assim
são pressionadas, não importando o prejuízo que possa resultar para todos os envolvidos. A
fala de duas entrevistadas parece perpetuar o estereotipo da mulher cuidadora do lar e dos
filhos:

não, eu acho assim, que ela tinha que ter se esforçado e ter me criado. Porque prá
tudo dá um jeito, pagava alguém prá cuidar de mim... ela não trabalhava? Pagava
alguém prá cuidar de mim, sei lá, deixava na casa de alguma amiga, que nem muitas
pessoas fazem até hoje. Deixa numa creche, sei lá onde, mas que criasse... (Tamiris,
30 anos, filha).

Ela nunca seguiu aquela linha de ser mãe, e de... entendeu? Porque eu me separei, e
fiquei com meus filhos, não abandonei meus filhos ora nenhuma, por hipótese
nenhuma, a gente ia passar o que passasse. (Sara, 47 anos, filha)

Podemos concluir que esse discurso moralizador, que cobra da genitora o exercício
da maternidade, está mergulhado no mito do amor materno e de um determinado e
idealizado perfil de mulher que tem no cuidado sua função precípua. A fala de Sara, no
sentido de comparar seu comportamento com o da mãe, revela a influência de
agenciamentos sociais que reportam-nos à noção de biopoder, já abordada anteriormente,
por seus efeitos na “sujeição dos corpos e controle das populações” (FOUCAULT, 1988,
p.131) e reproduzidos na sociedade através da normatização de condutas.
Badinter (1985), ao se referir ao amor materno, demonstra como esse amor dito inato é
um mito, uma vez que não é dado e sim conquistado. Porém, o imaginário social, não raras
vezes, percebe esse amor como algo natural, que nasce com a mulher. Caso a mulher não o
expresse pode ser vitima de preconceito, pois algo de fundamental lhe falta: o “instinto
materno”, o que parece reverberado nos discursos de Sara e Tamiris.
Assim a fala dos profissionais no caso da reportagem acima descrita, apesar da
legislação não dizer mais que o melhor para a criança é estar com a mãe, perpetua antigos
padrões gerados na sociedade patriarcal, que conferem à mãe/mulher a faculdade natural de
95

amar sem restrições e de cuidar sob qualquer condição e, consequentemente, de condenar a


mulher que gera um bebê e que não procede de acordo com esses padrões.
Não obstante as transformações sociais quanto ao papel desempenhado pelas
disposições de gênero, permanece, tanto no discurso científico quanto no imaginário social, a
ideologia de uma prática patriarcal em que se originam as subjetividades dos sujeitos por
meio da ciência e, no caso particular, do Direito, conduzindo a dispositivos disciplinares,
disciplinantes e normatizantes (FOUCAULT, 2002b). E esses dispositivos estão em todos
nos.

O pai vai embora, segue o caminho dele. Mas a mãe não, a mãe fica com os filhos
(Eliane, 43 anos, filha).

Tendo como base a fala acima da entrevistada observamos um padrão de


comportamento e sentimento que reafirmam a distinção entre os gêneros, veiculados pela
ideologia dominante como sendo verdades e atributos de natureza feminina ou masculina. Na
fala da entrevistada, a ênfase em relação ao genitor aponta para o pai que não tem a obrigação
e a responsabilidade de permanecer e cuidar dos filhos, como se pudesse ser descartado. A
mulher-mãe tem que permanecer sob qualquer condição, seus desejos e vontades parecem
apartados, não fazer parte e tampouco são considerados pelos universos dos filhos e o
masculino.
Foucault em História da Loucura (2002c), ao analisar saberes em relação à loucura na
Idade Média e na Era Clássica, comparando-os com as práticas institucionais, já apontava que
mudanças no plano dos saberes nem sempre implicavam em mudanças nas práticas. Embora
se remeta a um tempo muito distante, essas ponderações parecem escritas para o momento
atual referido no parágrafo acima, quando consideradas as intervenções dos profissionais da
assistência. No mesmo sentido Deleuze (1988) aponta que não existe uma homologia ou
isomorfismos entre constituição de saber e práticas institucionais, e sim uma insinuação de
uma sobre a outra. Assim, ocorreria uma defasagem quando a insinuação de uma gera pouco
efeito sobre a outra.

As noções de gênese, descontinuidade e defasagem, presentes na perspectiva


genealógica, são ferramentas conceituais importantes na análise de um determinado
diagrama de forças, uma vez que possibilitam entender como estas forças se
agenciam na constituição de uma forma específica. (ZAMBENEDETTI; SILVA,
2011, s/p)
96

É a partir desse diagrama de forças que se pretende compreender a idealização da


relação mãe-filho que pressupõe a união perfeita, de modo a possibilitar a completude que
protege das ansiedades e medos com relação aos sentimentos mais primitivos ligados à
separação, abandono e perda. Assim, a mãe é concebida como um ser de sentimentos nobres
de acolhimento e abrigo, mas também é vista como um ser dotado da capacidade de satisfazer
a criança e a si mesma nessa relação funcional (BADINTER, 1985).

a minha avó, que me criou, criou a minha irmã... então a gente não teve ela, a gente
tinha que ter prá... olha, eu acho que prá mim... poderia faltar todo mundo, menos a
minha mãe. Porque a minha mãe era sagrada... tudo eu chorava atrás da minha mãe.
(Eliana, 43 anos, filha).

A crença atribuída ao amor materno como sendo instintivo e incondicional poderá


trazer importantes consequências quando do afastamento das mães em relação aos filhos
como a dificuldade de se observar modificações nos parâmetros de convivência pré-
estabelecidos como naturais e espontâneos. Nessas percepções sedimentadas no imaginário
social é que repousa a dificuldade de alterar a visão de mundo e dos valores sobre os quais as
experiências estão assentadas. A partir da reportagem em apreço podemos dizer que as
experiências vividas pelos atores envolvidos na situação acima exposta – juízes, promotor e
jurisdicionados – demandam esforço e provocam desconforto naqueles que ousam mudar,
bem como naqueles que os cercam. Assim, à mãe que deixa o filho não restará opção que não
perceber-se ou ser percebida como incompetente, abandonante ou má genitora.

“ah, você é uma filha de vagabundo, que não quis te criar, aí veio, tua mãe veio e
joga você aqui na porta de pai... papai tá criando depois de velho...” (Tamiris, 30
anos, filha).

eu, pelo que eu me lembro, assim me contaram, quando eu tinha 2 meses minha mãe
me abandonou, me deu para um casal ......(Pedro, 18 anos, filho).

eu acho que filho é filho. Desde que quando você põe ao mundo, você tem que
criar... se você não criou, algum problema houve. (Eliana, 43 anos, filha).

infelizmente... né? Ela não teve juízo, assim... responsabilidade, sei lá...
compromisso, né? De ter botado todos esses filhos, não ter seguido com um... pelo
menos ela chegar e falar assim: “pô, pelo menos um.. eu tenho que levar até o final,
tenho que levar até a maioridade”, sei lá... qualquer coisa... e ela não conseguiu ......
(Sara, 47 anos, filha).

O ato de afastar-se do filho ainda é mais penalizado quando realizado pela mulher/mãe
do que pelo pai, em nossa sociedade. Ou seja, produz-se menos espanto quando são os pais
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que saem, e demandam-se explicações, sejam sociais, econômicas ou psicológicas das mães
não cuidadoras. O estudo em questão mostra essa demanda gerada pelos filhos.

Eu me pergunto muito, por que ela faz isso? Por que ela não ficou com a gente, por
que ela não brigou em querer ficar com os filhos?
Ela trabalhava... minha avó não ficou comigo? Com meu irmão? Por que ela não
podia ficar?
por que ela não foi a frente com os filhos, com nenhum dos 5 filhos e não criar um?
É algo inexplicável, né? Por que sempre, às vezes, “ah, larguei um com a avó, com
tio, com não sei quem”, mas sempre um segue aquele caminho com a mãe, ela
consegue sustentar aquela coisa materna. Ela não, todos os 5, com a avó.... (Sara, 47
anos, filha).

Eu fiz isso por causa do seu pai, eu fiz isso por causa de suas tias, eu fiz isso porque
eu tava... ” Ela nunca é a culpada, sempre tem um culpado. E eu acho que a culpada
na história é só ela. (Eliana, 43 anos, filha).

A fala dos entrevistados aponta para questionamentos que perpetuam normas sociais
determinantes do comportamento, tendo como expectativa a continuidade do cuidado que
deve ser proporcionado pela genitora, bem como questionamentos encapsulados pela
ideologia patriarcal, denotando que é ainda através desses discursos que as posições são
avaliadas como normais e legítimas.
As entrevistas realizadas com os filhos, ao descreverem o comportamento materno,
apontam para a desconstrução do mito do amor, numa clara demonstração de que os processos
que envolvem a chamada “natureza feminina”, ditos naturais e espontâneos, não são assim tão
naturais nem tão espontâneos, como já salientado por Badinter (1985). Esperado pela
sociedade, o comportamento que reforça esse mito foi identificado na fala dos filhos. Porém,
foi possível perceber que não é pelo fato de ser mulher que os atributos maternos ser-lhe-ão
garantidos. Os padrões ditos tradicionais, pautados na divisão de funções predeterminadas, em
que a figura materna exerce uma função de abnegada entrega, onde cuidado, atenção,
proteção, educação dos filhos ser-lhe-iam atribuídos, essas características não foram
encontradas em todas as suas dimensões, como sendo a base de construção da relação
mãe/filhos, sugerindo que a função da maternidade não seria determinada por uma questão de
gênero, destino inevitável de toda mulher que nasce para ser mãe (BADINTER, 1985), mas
sim por singularidades, construídas ao longo da vida do sujeito e com possibilidade de
modificação. Por que toda mulher tem que ser mãe? Como nos diz Guatari (2011) a “única
garantia de que não transformem seus processos de singularização em bandeira é tentar
preservar a função de autonomia” (p.153).
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A dinâmica imposta pelas transformações sociais, especialmente na modernidade e na


pós-modernidade, dever ser revista sob a ótica da transformação das funções e atribuições da
mulher, para que não se incorra no estereótipo da mulher, símbolo imaginário universal da
afetividade, da capacidade de procriar, de cuidar, enfim, de conceber e zelar pela sua prole,
fenômenos esses que, no universo social, estão impregnados de um sentimento capaz de, por
si só, diferenciar o gênero feminino. Essas concepções pressionam as mulheres, e não só elas,
como percebido nos depoimentos dos nossos entrevistados – também os filhos, a super-
valorizar a maternidade. Há uma tendência generalizada de se acreditar que processos sociais
são naturais, de confundir o cultural com o “natural”, determinado biologicamente,
ancorando-se nesse paradigma biológico para sustentar as razões das diferenças entre os
gêneros, como fez Laqueur (2001) a respeito da diferença entre os sexos. É nessa linha que
muitos pensam que a mulher nasce, e naturalmente, é determinada para o cuidado da prole.
Podemos identificar que os agentes sociais, embasados em um discurso padronizado,
respaldado nas leis jurídicas em que é direito da criança a convivência familiar e comunitária,
muitas vezes sequer levam em consideração a fala dos genitores com relação a suas próprias
vidas. Desse modo, o espaço para a escuta perde o seu objetivo e fica esvaziado do seu
significado, no qual cada pessoa é uma realidade singular. A letra fria da lei apenas serve para
enquadrar os genitores, “pessoas fora dos padrões sociais aceitáveis”, permitindo, e
legitimando, ao Poder judiciário, o controle social sobre os indivíduos. Percebe-se, assim, o
papel normatizante das disciplinas, dentre elas a psicologia, que exercem, nesse contexto,
função disciplinadora e punitiva.

O juiz não julga mais sozinho, proliferando uma série de instâncias anexas. Um
saber, técnicas, discursos científicos se formam e se entrelaçam com a prática do
poder de punir (...). Um exército de técnicos veio substituir o carrasco, entre eles os
psiquiatras, médicos e psicólogos e educadores, guardas e capelães. O laudo
psiquiátrico, a antropologia criminal e o discurso da criminologia, introduzindo as
infrações no campo do conhecimento científico, dão ao mecanismo da punição legal
um poder justificável, não mais apenas sobre as infrações, mas sobre os indivíduos;
não mais sobre o que fizeram, mas sobre o que são e serão, ou possam ser
(FOUCAULT, 2002a, p 20-25).

O julgamento, realizado sob tal ótica, não alcança a realidade das pessoas. A resposta
oferecida por profissionais parece demonstrar que é absolutamente imprescindível considerar
os aspectos mais pessoais, como se houvesse uma essência do indivíduo a atingir. Acredita-se
que sem um diagnóstico aprofundado não se pode nem compreender adequadamente o
sofrimento das pessoas e o mundo que as cerca, nem tampouco escolher o tipo de estratégia
mais adequada, que atenda às suas necessidades. O que esta perspectiva traz de interessante é
99

o desmonte do universal. No entanto, corre-se o risco, como mencionamos acima, de reforçar


uma crença no que seria essencial em cada sujeito. No entanto, faz-se necessário pontuar a
importância da dimensão micropolítica do cotidiano. Se o objetivo é a realidade vivida pela
família é preciso ter atenção ao singular, sem perder de vista que somos agentes de
enunciação coletiva (GUATTARI, 2011).
Algumas praticas disciplinares referidas reforçam determinados territórios. Instala-se a
luta pelos direitos na análise dos dispositivos produzidos pela sociedade moderna, localizados
em torno das disciplinas, retirando-se do território mais restrito da legalidade (no qual toda lei
pode ser burlada). Tais dispositivos têm forjado técnicas normalizadoras, sustentadas pelo
discurso científico (FOUCAULT, 2010).
A crença na neutralidade científica é um mecanismo de assujeitamento do poder
disciplinar que atua através de dispositivos técnicos. Em nome dessa suposta neutralidade,
modelos hegemônicos, tidos como naturais, são reforçados e normalizados. Assim
normalizados, os modelos não se prestam a problematizar as relações, mas rotulam alguns
sujeitos como problemáticos e responsáveis por determinado quadro sócio-político
virtualmente determinante das condições de vida das classes sociais. O saber técnico
profissional dos operadores sociais (advogados, médicos, psicólogos, professores, assistentes
sociais, que atuam como elemento catalizador, dos equipamentos sociais) que qualificam o
comportamento particular das pessoas e famílias, também deve ser analisado, estabelecido
que

as disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica


derivada da soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da norma; definirão um
código que não será o da lei, mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte
teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito, mas o domínio das
ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico (FOUCAULT,
1982, p 189).

As teias produzidas nos encontros entre as famílias de camadas populares e os técnicos


dos equipamentos estatais que as recebem reproduzem o discurso da falta, da carência;
reforçam a ideia de que esta mulher-mãe não sabe ou não quer ocupar o que deveria ser seu
lugar.
Este discurso reverbera entre os entrevistados, como pode ser observado; os
depoimentos analisados retratam o quanto do mito do amor materno é vivo em nós e nos
filhos que participaram dessa pesquisa, e como estes aparentemente reafirmam a existência
deste mito como verdade quando naturalizam e priorizam a mãe na relação e no cuidado.
100

Seus discursos marcam e fazem emergir através de rede discursiva a construção de


histórias que compõem tramas e sentidos específicos do que é ou deveria ser mãe, articulando
sentido a essa mãe por eles constituída. Reforçam o conceito construído de maternidade; este
sujeito-mãe é produção de discurso e também de efeito social, cultural e econômico.
Afirmamos no início deste trabalho, a partir de Deleuze (1999), que as linhas (de
força, de luz e de enunciação) não evolvem sistemas homogêneos, seguem direções e traçam
processos que se mostram sempre em desequilíbrio e que incessantemente afastam-se e se
aproximam uma das outras. Essa característica multilinear é que nos da a compreensão das
múltiplas naturezas transitórias e efêmeras, não são linhas com limites rígidos de um sistema
ou de um objeto. São linhas que desestabilizam o sistema e o objeto, ou seja, os fazem entrar
em um constante processo de suscetíveis movimentos e continua acomodação que não
cessam. São linhas tensionadas pelas enunciações, objetos, sujeitos e forças em exercício
produzidas pelo próprio dispositivo. Nesta pesquisa buscamos fazer vibrar estas linhas, não
deixar que a linha dura se constitua como verdade.
Essa maternidade que se pronuncia no discurso dos nossos entrevistados traça formas
de cumprir a norma ao mesmo tempo em que a coloca em funcionamento. Ao se assumirem
pais e mães em contraste com os comportamentos maternos, os entrevistados intentam
demonstrar um amor incondicional, este que não encontram em suas histórias como filhos,
afirmando que nunca se afastarão de suas proles como fizeram as suas mães, característico de
uma maternidade normativa em que cuidado e atenção devem ser realizados exclusivamente
pela genitora.

sempre falei isso p´ros meus filhos, nunca abandonei vocês, o jeito que a minha mãe
abandonou. Minha avó diz que não, mas prá mim é abandono (Sara, 47 anos, filha).

É nesse campo enunciativo que a norma da maternidade encontra espaço para sua
afirmação, sentidos e contornos caracterizando-a e determinando-a como função feminina,
constituindo uma linha dura.

o dispositivo é a causa imanente que produz agenciamentos concretos. É isso, pois,


que permite a constituição do dispositivo da maternidade: a forma complexa e
relativamente estruturada pela qual se faz funcionar as relações de poder em função
da produção de práticas de maternização e, mais amplamente, da experiência
materna. (MARCELLO, 2009, p 234)
101

Criam-se posições de sujeito, às quais as mulheres são convidadas a ocupar como mãe,
direcionando e veiculando a relação dos sujeitos consigo mesmos, o que favorece o
estabelecimento de modos de subjetivação do ser mãe.
Na fala dos entrevistados evidenciam-se as linhas de visibilidade e curvas de
enunciação do ser mãe; essas linhas são traçadas descrevendo o afastamento da mãe que
proporcionou sentimento de magoa, tristeza e revolta, além de provocar a redução, ou
ausência, da companhia dos irmãos. Esses relatos que estão vinculados a momentos do
passado, ao serem narrados constroem os momentos de rupturas, descontinuidades e fazem do
presente o lugar de aproximação, de diminuição das distancias, por isso, mais seguro, de
maior equilíbrio. Desse modo, tornam-se visíveis e enunciáveis os acontecimentos que
provocaram o afastamento entre mãe e filhos: a separação conjugal, que ajuda a encerrar e
confinar estes sentidos.
As linhas que enunciam a responsabilidade da mãe no cuidado com os filhos parecem
também julgá-la por não permanecer com eles após a ruptura conjugal. Diz uma entrevistada:
o pai quando se separa vai embora, mas a mãe tem que permanecer com os filhos. A análise
que se endereça ao pai e mãe mostra as diferenças marcadas e postas a operar nessa narrativa,
além de evidenciar a relação diferenciada entre maternidade e paternidade que se dá a partir
do dispositivo de maternidade.
Esse dispositivo que está configurado a partir da relação de poder-saber pode irromper
em linhas de fratura, ruptura por sua capacidade de transformar-se, de romper os próprios
limites, dando lugar a produção de linhas com novas configurações de saber-poder-
subjetividade, e, junto a isso, novas formas de produção de sujeitos. “Trata-se de práticas que
indicam um conjunto de características ligadas ao caráter de imprevisibilidade do próprio
dispositivo e, por que não dizer, naquilo que tange seu caráter de “acontecimento”
(MARCELLO, 2009, p 234). As linhas de fratura e fissura que podem ser produzidas pelas
mães ao afastarem-se dos filhos ilustram essa condição de “introduzir o acaso, contingência,
novidade, diferença, vontade de jogo e experimentação como formas de pensamento e
sociabilidade” (MARCELLO, 2009, p 235).
102

5 ABANDONO: NÓS, NINHOS E ASAS - NORMA E LIBERDADE

“O que mata o jardim não é mesmo alguma ausência nem o


abandono. O que mata o jardim é esse olhar vazio de quem por ele
passa indiferente”.
(Mario Quintana)

A busca por descolar afastamento e abandono atravessa esta tese, como se deixou
claro desde o início. Não para tratar esta nova concepção como verdade, mas como esforço de
abertura para lacunas, para que novos possíveis sentidos para a separação entre mães e filhos
possam emergir, para afastar cristalizações e capturas. É um estado de alerta, sobretudo, para
que a pesquisa seja instigante, que possa deslocar certezas. E assim caminha este capítulo.
Pretendemos abordar, de início, algumas dessas situações outras que levam à
separação entre mães e filhos para, em seguida, acompanhar a literatura que trata, ai sim, a
entrega dos filhos ou a tomada de filhos pela justiça como abandono.

5.1 Afastamento e abandono: sinônimos?

Ainda que o afastamento entre mãe e filhos se dê, primordialmente, nas situações de
separação e recasamento da mãe, outros fatores podem gerar esta situação que ainda gera
estranhamento e surpresa. Pode ser a não aceitação da gravidez por avós que vão se ocupar do
sustento da criança, ou ainda em função da necessidade de trabalho da mãe da criança. E essas
situações terão desdobramentos que serão discutidos no último capítulo da tese. Por ora, entre
a literatura e nossos entrevistados, buscamos mapear situações de afastamento que não são
decorrências da separação entre os pais visto não ser este o único motivo que leva ao
afastamento entre mãe e filhos.
O recurso aos avós ou sua opção por cuidar dos netos nem sempre ocorre de forma
amistosa e a não aceitação da gravidez por um deles pode levar a mãe a afastar-se dos filhos,
como observado em uma das entrevistas. Como o pai de Renata não aceitava e não aceita a
maternidade fora do casamento, o caminho dela foi buscar emprego em que pudesse pernoitar,
livrando-se das recriminações do genitor. Não só condições financeiras desfavoráveis, mas
103

também a condenação moral parece conspirar para o enfraquecimento do núcleo mãe-filho em


circunstâncias em que não existe suporte na família.

eu não vi a minha filha crescer.


não ter visto... porque, o negócio de trabalhar, sabe? Não ia dar prá mim ter como
ficar ali. .. porque... assim... se o meu pai desse também apoio... quer dizer, eu
ficaria... teria ficado mais tempo com ela, entendeu? ...mas eu só tive o apoio da
minha mãe. Não adianta eu ficar em casa com ela e tendo ele todo dia, ficar
passando na minha cara, ficar falando as coisas comigo, e a minha filha ouvindo...
então, é preferível trabalhar, né... ter deixado ela com minha mãe e trabalhar. Por
que também, trabalhando já... né? porque se ficar em casa vai ficar pior. E a criança
pequena, não pode conviver nessa situação. (Renata, 46 anos, mãe).

Estudos têm apontado que após a separação o afastamento é mais frequente com
relação ao pai, sobretudo porque, em geral, os filhos permanecem com a mãe.
Desde os anos 1990, estudos vêm apontando mudanças na construção das
masculinidades (ARILHA; UBENHAUN; MEDRADO, 1998). É possível, neste sentido,
identificar uma crise da paternidade, decorrência do rompimento dos modelos e padrões
tradicionais. Os pais, observa-se em geral, assumem pouco o direito/dever da formação,
convivência afetiva e desenvolvimento dos filhos, e muitas vezes isso ainda na vigência do
casamento, ainda que se constate, neste aspecto, significativas mudanças.
Embora o Direito possa trazer remédio para as questões materiais, oferecendo
instrumentos de cobrança e sanção, não os possui de igual eficácia para a ausência psíquica,
social e afetiva do pai. Fontes do Superior Tribunal de Justiça 3 divulgaram que inúmeros
processos com pedido de indenização por dano moral têm sido impetrados por filhos contra os
pais, em decorrência do abandono afetivo. Os filhos justificam tais pedidos, motivados pela
privação afetiva à qual foram submetidos.
Segundo Brito (2008), o afastamento tem sido uma das queixas produzidas pelos
filhos em virtude do distanciamento do genitor não guardião, englobando nesse afastamento a
ausência daquele que não permanece com a guarda. Essa dificuldade muitas vezes decorre da
aliança estabelecida entre o genitor guardião e os filhos, principalmente no caso de filhos em
tenra idade, em detrimento do genitor não guardião, sob influência da hostilidade instalada no
processo de separação (BRITO, 2008). Em geral, o genitor não guardião é o pai, diferente do
que ocorre nos casos dos entrevistados desta tese.
Embora as pesquisas de Brito (2008) abordem, sobretudo, o afastamento do pai da
criança, os argumentos servem para pensar este distanciamento que foi relatado por um filho

3 http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=77861
104

com relação à genitora. Quando criança foi para a companhia do pai, tendo contatos
esporádicos com a mãe através das redes sociais; não a conhecia pessoalmente. No que se
refere ao pai diz que o relacionamento não era de pai e filho, uma vez que escutava do genitor
que o criava por obrigação. Tampouco uma aliança estabelecida entre filho e guardião, mas
isso não facilitava o contato com a mãe, ao contrário.

aí, fui praticamente criado por meu pai, fui lavado prá morar com ele, minha mãe
ficou aqui no Rio, aí fui criado por ele até os 11 anos de idade... Ai sempre... eu fui
criado com ele assim, mais ou menos, não era muito... como é que eu vou dizer...
não parecíamos ser pai e filho, essa coisa... porque ele sempre falou que.. sempre
falava prá mim que ele só tava.. só estava me criando porque era obrigação, porque
minha mãe não me quis e tal, ele também não tinha obrigação nenhuma, que ela me
deu, então ele só tava fazendo isso porque ele se sentia obrigado (Pedro, 18 anos,
filho).

Ela (mãe) conversava comigo (Orkut). Eu não conhecia ela. Ela só me ligou, que eu
me lembre, quando eu morava com o pai, duas vezes... falava que tava aqui
trabalhando, que quando ela tivesse oportunidade, que ela ia lá me ver, que no
momento ela não podia, essas coisas.
não sei... porque eu achava ela estranha, até hoje eu acho......uma pessoa que você vê
na rua .....é uma pessoa que você vê na rua,prá mim uma pessoa estranha. Eu só sei
que ela é minha mãe por que me disseram, que quando eu vi ela, quando ela viajou
uma vez, que eu era bem menor, ela viajou uma vez.. se eu me lembro, eu tava na
Lan House, aí ela tava parada, falaram assim: “sua mãe é aquela ali!”, eu olhei pra
cara dela, continuei parado...... não foi bem prá me ver, ela foi ver a família dela. Ela
foi pra ver a família dela. Aí, uniu o útil ao agradável (Pedro, 18 anos, filho).

Outro entrevistado nos conta que o pai não permitia que ele falasse com a mãe, não
sabe explicar por que, mas talvez possamos arriscar que esse comportamento do genitor esteja
vinculado ao sentimento de hostilidade instalado no período da separação como nos
informava Brito (2008).

É que minha mãe passava na porta da minha casa e eu não tinha permissão prá pedir
benção pra ela. Meu pai não deixava.
Eu só consegui me aproximar da minha mãe e saber aonde que ela morava depois de
quinze anos de idade, que aí eu comecei a ir à casa dela. Que era... e aí eu consegui,
né, ir a casa dela, eu consegui me aproximar mais dela, né. (Ilan, 50 anos, filho)

Outra hipótese distintiva do afastamento do genitor não guardião ocorre quando da


assunção plena, por um padrasto, das atribuições inerentes à condição de pai, o que aponta
para a transitoriedade desta função, principalmente quando da adoção, através da prerrogativa
expressa no parágrafo 1º do artigo 41 do Estatuto da Criança e do adolescente, nos casos de
destituição do poder familiar do pai. Segundo Brito e Diuana (2002) este arranjo seria uma
maneira utilizada pela mãe para dificultar ou impedir o contato dos filhos com o pai.
105

Soares (2008), citando trabalhos realizados por Wagner e Sarriera (1999), discorre
sobre o afastamento relatado pelos filhos em famílias com padrasto e/ou madrasta, que
abordamos na parte sobre o recasamento, em comparação com a família original, ainda tendo
como premissa que na maioria dos casos os filhos permanecem com a mãe, restando ao outro
genitor o direito de visita periódica. Segundo aqueles autores o afastamento neste modelo
tende a se intensificar na medida em que o pai inicia novo relacionamento, com eventuais
filhos. Em decorrência das exigências destes novos filhos e do comportamento do pai e da
madrasta, esse distanciamento pode ser ampliado (WALLENSTEIN; KELLY, 1998;
SOARES, 2008).
Por outro lado, e não menos comum, exigências inerentes a um novo relacionamento
da mãe, como desejo de privacidade e investimento em nova relação, têm também a
capacidade de induzir o distanciamento da genitora, com as mesmas características das
dificuldades enfrentadas pelo genitor, quando da chegada de filhos em uma nova relação. Em
ambos os casos, e não obstante o comportamento/condução dos adultos possa atenuar ou não
seus efeitos, os filhos sentem diminuir o interesse de um ou ambos os genitores (SOARES,
2008). Aqui podemos indagar se as exigências são de tal maneira irresistíveis, por serem
consideradas essenciais à formação de uma nova família, que representem de fato um corte
nos antigos relacionamentos e, consequentemente, impliquem no afastamento não só do ex-
cônjuge como até mesmo dos filhos havidos anteriormente.
Muzio (1998) recorre a pesquisas que afirmam ainda estar presente, como trabalhamos
em capítulo anterior, resquícios de uma sociedade que ainda pensa a mulher como sendo
depositaria de um instinto materno que, por si só, a conduziria a uma predisposição ao
cuidado da prole, enquanto ao homem estaria vinculada a figura de provedor da família. Essa
distinção, raras exceções, contribui para que se perpetue a ideia de que a criança deva
permanecer com a mulher após a separação conjugal, comportamento que colabora para o
afastamento do pai, podendo acentuar-se em função dos conflitos entre os ex-cônjuges.
Brito (2002), em consonância com o que foi acima exposto, descreve que algumas
mulheres propiciam o distanciamento do pai na vida dos filhos, tornando-se as únicas
responsáveis pela educação e transmissão de valores, mesmo que com isso acumulem funções
que poderiam ser divididas com o ex cônjuge, permitindo-lhe um espaço para suas realizações
e desejos pessoais.
Lopes (2008) destaca que apesar da guarda ser atribuída quase que exclusivamente a
mãe, uma pequena parcela de homens detém a guarda dos filhos. Diz a autora:
106

Esses pais esforçam-se, de todas as maneiras, para suprir a ausência de suas ex-
companheiras nas próprias vidas e no cotidiano das crianças. Apesar de serem
rotineiramente auxiliados por suas mães ou por outras mulheres de sua família de
origem, é comum que se encarreguem de uma parcela significativa dos cuidados
com os filhos. Ocasionalmente afirmam, inclusive, que esses últimos não costumam
perguntar pelas mães. Essa atitude seria uma confirmação para seus pais de que as
mães não fazem, necessariamente, falta às crianças (LOPES, 2008, p 147).

Importante salientar que a falta de interesse da criança em não querer saber noticias da
genitora pode estar vinculada a sentimentos variados. No caso de um filho que foi
entrevistado, a suposta ausência de interesse, estava vinculada ao medo que sentia do pai por
ser um homem muito agressivo.

não cheguei a perguntar porque eu tinha um certo medo do meu pai, né, que meu pai
era muito violento na época, né........eu não tinha [permissão]... meu pai não me dava
ordem prá eu falar com ela. (Ilan, 50 anos, filho)

Não obstante a guarda representar divisão desequilibrada de funções, principalmente


quando é concedida unilateralmente, predomina em nosso ideário a ideia de que essa deva ser
atribuída de preferência à mulher. Assim percebe-se a aceitação tácita neste caso e o
estranhamento quando é o pai que a detém, pois é recorrente a crença de que só a mulher é
capaz de cuidar adequadamente dos filhos, e que esta seria uma característica inata, própria do
gênero feminino (LOPES, 2008). É importante notar que a naturalização desta crença é
compartilhada por homens e mulheres e conduziu à pergunta inicial da tese, como já houve
oportunidade de esclarecer.
De toda forma, desde que os filhos não permaneçam com a mãe e sim com o pai ou
com a família extensiva, a sociedade, sob a influência desses valores instituídos, consideram-
na uma “não boa” mãe, desprovida do amor materno (AYRES, 2008). Narratividades
referenciadas à mulher, determinando modos de conviver e comportar e que pretendem a
construção de resposta padronizada da mulher/mãe, exigem discussões e negociações com o
campo que envolva a compreensão de múltiplas expressões do conhecimento, construído em
diferentes modos de inventar a vida. Como o conhecimento pode contemplar as
peculiaridades da vida, da relação estabelecida entre os sujeitos que a compõe? Como
identificar fatores que edificam e depreciam a vida? Que direitos atendem a necessidade de
cada um, dimensionando suas vidas?
Múltiplas e diferentes são as práticas coexistentes na família que nos instigam a
contemplar a diversidade de conteúdo, ações e ideias. Intervir nesse campo parece-nos
convidar a fugir do desenho convencional e de relações hierárquicas que impõem à mulher e
107

somente a ela o cuidado adequado com a prole. Pulsante e viva a relação familiar com todos
os seus componentes – pai, mãe, filhos e parentela – pode realizar-se dentro de um contexto
de horizontalidade nas suas relações e de pluralidade de entradas, quebrando sua hierarquia e
o consequente delineamento das sucessivas instâncias que a compõe - mãe cuidadora e pai
provedor - abrindo-se à interlocução, com iguais direitos de voz, possibilitando discussões
ainda não demarcadas, por onde possam se expandir linhas de invenção, acontecimentos.
Deleuze (1995) dirá que esse é um modelo de movimento rizomático que “acolhe o outro-
imprevisível-inusitado, o qual sempre pode irromper em meio a um fluxo processual, dando
visibilidade à diferença (AXT, 2007, p 94)”.
A possibilidade de a criança tornar-se mais livre pode contribuir para comportamentos
antagônicos. Embora aumente a sua emancipação frente ao adulto, pode conduzir à perda de
importantes suportes de ordem emocional necessários à distinção entre escolhas verdadeiras,
livres, e o mero atendimento às imposições sócio-econômicas. A palavra de ordem é
autonomia. Nesse novo cenário a mulher passa da situação em que lhe era imposta uma
dedicação exclusiva à casa e aos filhos, para um afastamento que, pretende-se, proporcione
aos filhos sua autonomia.
Em função do trabalho dos pais a infância estaria se tornando mais desprotegida? Para
Mizrahi (2004) elogios tais como criança inteligente e independente, que parece prescindir da
proteção do adulto, podem ser um convite a mascarar condições que envolvem solidão e
vulnerabilidade, contribuindo para a percepção de que essas circunstâncias fazem parte de um
aspecto “natural” da vida. “A própria vinculação afetiva do sujeito em desenvolvimento numa
relação intensa e estável com o adulto pode deixar de ser desejada, passando a conter o risco
de limitar suas potencialidades de inserção num mundo que rejeita por completo as proteções”
(pg. 78).
Em Castel (1998) citado por Mizrahi (2004) encontramos a seguinte posição: “é uma
volta a esse modelo onde a solidão é falseada como liberdade”. A autora relata que as falas
dos sujeitos são contraditórias: se por um lado criticam o fato de a infância tornar-se mais
desprotegida em razão do trabalho dos pais, por outro, naturalizam essa mesma situação como
parte inevitável das experiências.

as perdas a serem vividas pela criança, e que são consideradas naturais e importantes
para o desenvolvimento, são ditadas por uma organização do trabalho que não
parece aos pais como passível de ser transformada. Nesse sentido, da mesma forma
que o indivíduo isolado é confrontado com uma realidade social pouco acolhedora, a
escolaridade precoce pode surgir como imposição que desconsidera o ritmo que
permitiria a criança dela participar sem se submeter (MIZRAHI, 2004 – p. 80).
108

O que estamos tentando demonstrar é que o trabalho também pode ser um meio pelo
qual o filho tem a atenção e os cuidados diminuídos, podendo ser compreendido como
afastamento pela necessidade da mãe ausentar-se, o que não pode ser traduzido como
abandono. Muitas vezes para que essa mãe possa trabalhar depende da ajuda e apoio dos
familiares, assim o seu trabalho pode ser condição necessária, mas não suficiente.

olha... eu tava trabalhando em Vila Isabel... então, eu trabalhando eu peguei a


gravidez da minha filha, né... aí ganhei ela e moro com meus pais, continuo
morando até hoje. Aí eu tive ela, ela parou de mamar, parou de mamar com 8 meses,
aí eu falei com a mãe, eu falei: “mãe, eu vou trabalhar, a P. não tá amamentando
mais no peito, eu vou arrumar um trabalho, eu vou trabalhar. Aí, tudo bem, eu
arrumei um serviço, eu deixei ela com oito meses, minha mãe ficou com ela.
Então, eu fui trabalhar, eu não gosto de ficar parada, né. Eu falei: “eu vou trabalhar,
prá ajudar a senhora, né, a comprar o leite da minha filha. Ela ficou, com a minha
mãe, desde pequenininha. E minha mãe ama ela, é o xodó da minha mãe. Aí eu
fiquei assim: “gente, eu... eu agradeço muito a Deus, e primeiro a minha mãe, por
ela estar me ajudando, né. Tá me dando essa força, eu trabalhando e ela com a minha
filha, tomando conta da minha filha”. (Renata, 46 anos, mãe)

Como se nota, a partir do depoimento de Renata, essa é a perspectiva de uma mãe, que
entende ter protegido sua filha ao deixá-la com a avó, que era capaz de cuidar dela.
De acordo com Sarti (2011) a “capacidade de trabalho torna-se o meio através do qual
a mulher pode reparar seu erro, mostrando que é digna do respeito” (p. 36). Entretanto, o
entendimento para o mesmo fato pode ter interpretações diferentes; no caso que nos foi
relatado a filha atribui importância ao trabalho, ou seja, o trabalho “adquire um sentido
particular de honra, portanto, de afirmação de si enquanto indivíduo, porque, através do
trabalho, ela tem a oportunidade de reparar o ato condenado ou readquirir seu orgulho e amor
próprio (SARTI, 2011, p 103)”. Em contrapartida, o pai atribui maior valor ao casamento
talvez por acreditar que o ato de ter um filho deve estar subordinado ao casamento
moralmente legitimado.

não gostava, mas mesmo assim, tá sendo difícil ele aceitar, sabe por que? Porque
minha irmã casou, minha outra irmã casou, eu não casei.
não casei. Quer dizer... agora... ninguém nasce com a estrela na testa.. quer dizer, eu
não me arrependo de ter ela não... eu ganhei ela, eu botei ela nos meus braços e
chorei, chorei muito, aí, pedindo a Deus, prá Deus me dar força, prá mim continuar
seguindo em frente. Ele não vê o que os filhos faz, ele não vê o esforço dos filhos,
não trabalha, isso ele não vê. Agora, do jeito que ele falou isso comigo, eu acho que
se eu fosse outro tipo.. . tem mulher, tem pessoa que faz isso, eu não, caía na vida do
mundo, né? Abandonava o filho, por que muitas fazem... é... abandonar, deixar nas
costas dos pais, somem, entendeu? Eu não, eu segui a minha vida a frente, falei:
“vou reerguer a minha cabeça”. E até hoje eu tô trabalhando, até hoje. (Renata, 46
anos, mãe)
109

Deixar o filho para trabalhar resgata nobreza para a mulher sem marido, embora o
trabalho feminino colabore para a realocação dos cuidados maternos. Mas também pode
significar a redução das obrigações e alivio da sobrecarga das tarefas maternas, que passam a
ser atribuídas a outro membro da família, em muitas situações a avó, como vimos. Assim,
contribuem para o afastamento entre mães e filhos, no que tratamos aqui, a guarda do pai, que
será desenvolvida com mais cuidado em capítulo posterior, a condenação da gravidez da mãe
e a necessidade da mãe de trabalhar e não conseguir ou não poder se organizar para manter a
guarda da prole.
Ainda que não identificadas como abandono, essas situações de afastamento nos
causam estranheza. De toda forma, a literatura que trata como abandono o afastamento entre
mães e filhos é vasta, como veremos a seguir, e marca principalmente a história da infância
pobre no Brasil. Como um lembrete, mas não menos importante, não estamos dizendo com
isso que seja uma característica das famílias desfavorecidas. Além desta tese trabalhar com
famílias de camadas populares, sabemos, e é sempre bom lembrar, que a desigualdade social
que assola nosso país faz com que as camadas médias e as elites não passem com seus filhos
pela visibilidade das instituições do estado, portanto, são menos vigiadas, julgadas e
condenadas por seus comportamentos e condutas.

5.2 Uma história possível para o abandono

Parte da literatura (VENÂNCIO, 1997; MARCÍLIO, 1998; DEL PRIORI, 1992/1993)


sobre infância trata como abandono o afastamento entre pais e filhos, mais especificamente
entre mães e filhos. Este entendimento reforça a ideia de que tal situação é um desmonte dos
valores atribuídos à maternidade, visto estar em desacordo com a postura hegemônica por nós
conhecida – mãe lugar de proteção, afeto e cuidado, como já tratamos anteriormente. Outros
autores (DONZELOT, 1986; FONSECA, 1997), assim como leituras inspiradas em Foucault
(1987/2002/2010), irão entender essa situação de forma mais plural, com possibilidade de
redescrever a realidade de diferentes formas, interagindo com o momento e o local em que se
está inserido e percebendo que não existem essências, nem universais. A partir desse
delineamento descreveremos as transformações históricas em torno da mulher-mãe e os
110

filhos, considerando as diversas visões epistemológicas como importantes para a construção


de nossas ideias.
Ao longo dos séculos a maternidade e a relação mãe-filho têm assumido feições
diversificadas que estão ligadas a discursos e práticas os mais variados. A finalidade é
aprofundar a compreensão de como o fenômeno social – maternidade e a relação mãe-filho –
se constituiu historicamente, isto é, que estratégias possibilitaram a sua produção. Como a
maternidade e o relacionamento mãe-filho se tornam questões sociais tão importantes? Essas
discussões estão ancoradas nos argumentos explorados no capítulo anterior, sobre o mito do
amor materno.
Inicialmente forçoso admitir que a história do cuidado com crianças nada tem de conto
de fadas, contrariando o romantismo no qual muitos, inclusive os que trabalham hoje no
campo da infância, acreditam. Alias, contos infantis como Chapeuzinho Vermelho e João e
Maria (hoje considerados perversos) relatavam a realidade cotidiana das famílias camponesas.
O interessante é que antes do século XVIII tais contos não conduziam a um final feliz, não se
destinavam ao público infantil e não pregavam bom comportamento e sim cautela. Fatalistas
afirmavam que desastres não podem ser previstos nem explicados, apenas suportados;
pessimistas acreditavam que bom comportamento não determina o sucesso em um mundo que
não é governado pela moral (DANTON, 1986).
A literatura descreve a situação das crianças de forma que certamente hoje gera horror:
engloba desde a exposição aos perigos da floresta, como nos contos mencionados, à exposição
a morte em pilhas de enjeitados, “lançamento ao mar ou nas fétidas ruas infestadas por fauna
diversificada; queimadas junto a dejetos ou sacrificadas em prol de alguma entidade”.
Também sofriam amputações e mutilações que incentivassem as esmolas. Estas práticas
sustentaram-se com maior ou menor morbidez até o século XVIII (ARIÈS, 2011; CECCIM E
PALOMBINI, 2009; COSTA, 1999; MARCÍLIO, 1998; VENÂNCIO, 1997; BADINTER,
1985).
O infanticídio constituía prática frequente, da Antiguidade até o século XII, visando
mesmo o controle populacional, pontualmente incentivado. Era assim tão comum que a Igreja
por vezes providenciou o recolhimento de crianças, como forma de reduzir as mortes (ARIÈS,
2011; BADINTER, 1985; COSTA, 1999). Até este momento – século XII – as crianças não
eram representadas na arte em geral e, na pintura, em particular, o corpo infantil não era
retratado, senão como um já adulto, em miniatura, abstraídos seu potencial e crescimento
(ARIÈS, 2011).
111

A deposição de crianças às portas de igrejas e conventos no século XIII, praticada por


famílias pobres, com caráter reivindicatório de direitos (à honra e respeito social),
disseminou-se, com o objetivo de entregar filhos para que fossem cuidados e educados e se
tornassem freis e freiras.
Apenas em pleno Renascimento, no século XV, a infância começou a ser retratada na
pintura, anjinhos coloridos em tons de rosa e azul; na escultura através dos mesmos anjinhos,
risonhos, rechonchudos e bochechudos, eventualmente nus e assexuados. Representavam a
infância, identificando-a com as virtudes da ingenuidade, pureza, bondade e inocência,
associadas indelevelmente ao paraíso e o reino dos céus, por conta do imaginário da época,
pelo qual a criança morta (e era elevada a mortalidade infantil) virava um anjo e ascendia aos
céus.
A referência ao afastamento como forma de abandono é marcante na literatura voltada
à história das famílias, apesar de ser uma categoria que muda de sentido, adquire nuances de
seu tempo, e aponta, sobretudo nas últimas décadas, para novas compreensões. É importante
lembrar que até o século XVII não se tinha noção de família próxima ao modelo preconizado
a partir do final século XVIII onde a proteção e o cuidado eram atributos do núcleo familiar
tal como o concebemos e naturalizamos até hoje.
Rever as práticas do cuidado de crianças no decorrer da história coloca-nos diante
mesmo da jornada histórica dos conceitos de ordem moral voltados à civilização, razão,
consciência e perfeição humanas. Se hoje consideramos que a infância é um período de
intenso desenvolvimento tanto físico quanto emocional, atribuindo-lhe garantias legais e
status preferencial no acesso aos bens da saúde e educação, através de programas a ela
dedicados, não podemos esquecer que, até o século XVIII, o crescimento e desenvolvimento
infantil consistiam em reprimir o estado infantil de homens nas idades precoces, na crença de
que homens se faziam humanos pela erradicação do que ali houvesse de criança. Ao homem
cabia ser racional e consciente.

Era pela luta contra o que de infância houvesse em nós que poderíamos nos alçar à
humanidade e à cidadania. A infância não se confundia com ingenuidade;
identificava-se com animalidade e com incapacidade: ausência de razão, de domínio
linguístico e de consciência moral. Entendia-se que uma criança aprendia com o
corpo e não com o intelecto, sua vontade era instintiva e não crítica; logo, faltava-lhe
caráter, inteligência e competência humana. (CECCIM; PALOMBINI, 2009, p 303).
112

5.2.1 O-abandono- das-crianças-em-nós: notas históricas4

No Brasil, a assistência e a proteção à criança abandonada receberam grande


influência de hábitos relacionados a uma cultura gestada na Europa. Ariès (2011), em seus
estudos que se reportam ao século XIV, na França, procurou demonstrar as transformações
pelas quais a instituição família passou ao longo do tempo, bem como a descrição das famílias
em diferentes épocas, e como as crianças eram retratadas nesse contexto. Segundo o autor, o
tema, englobando assuntos referentes à família, começou a ser valorizado a partir do século
XVII, e as mudanças são acompanhadas sob o ponto de vista dos sentimentos nelas
observados. O sistema aqui implantado, no Brasil, foi marcado por intensas modificações que
penetraram no desenvolvimento e na organização dos sentimentos presentes na família,
incluindo os relacionados à maternidade e aos cuidados maternos. Nessa transposição de
hábitos europeus para os costumes coloniais brasileiros, os higienistas foram atores
importantes na assimilação de novos valores pela família brasileira.
Inicialmente, o relacionamento familiar era desprovido de qualquer sentimento afetivo
entre pais e filhos. Esse comportamento se evidenciava pela inexistência do que hoje
nomeamos como da ordem da preocupação com a infância, quando muitas crianças eram
enviadas a lares estranhos para serem criadas. Deste modo, não se concebia a relação mãe-
filho que estrutura os parâmetros atuais. A falta de cuidados adequados e de alimentação no
trajeto para as nutrizes, e durante o período em que lá estavam, eram os grandes vilões da
mortalidade infantil (ARIÈS, 2011).
Foi no período da própria colonização que se iniciou a proteção à criança abandonada.
Inicialmente, a responsabilidade era dirigida a Câmara Municipal que tinha como objetivo
encontrar os meios necessários para criar a criança desamparada e sem família, tarefa que
cumpria a contragosto. Fato é que no período colonial, o Estado e a Igreja não se incumbiram
diretamente com a assistência aos abandonados, suas atuações circunscreveram-se aos
aspectos de controle legal e jurídico, ajudas financeiras esporádicas, dentre outros estímulos.
A sociedade civil foi quem se preocupou com a criança sem família (MARCÍLIO, 1998;
RIZZINI, 2008). Assim, do período colonial até meados do século XIX foi à caridade
exercida pela sociedade civil que socorreu a infância abandonada.

4 Como dissemos anteriormente, muitos autores referem-se ao termo abandono para falar de afastamento entre
mães e filhos. Vamos preservar os termos utilizados pelos autores com o objetivo de acompanhar suas
trajetórias nas discussões dessas questões.
113

Esse período ficou conhecido como caritativo tendo como característica principal o
sentimento de fraternidade embasado na inspiração religiosa (MARCÍLIO, 1998). Para esse
extenso período, os historiadores apontam vários motivos para a exposição ou abandono dos
filhos, que variavam entre a necessidade e a vontade de se enjeitar uma criança.
O grande número de crianças abandonadas, no período Colonial, originava-se, em sua
maioria, das camadas populacionais dos miseráveis. Para alguns autores (VENÂNCIO, 1997;
MARCÍLIO, 1998) a pobreza foi, na história do abandono em nossa terra, a maior causa da
exposição de crianças.
Venâncio (1997), entretanto, questiona essa relação que, embora correta, deve ser
relativizada, pois a comparação entre a curva de preço dos bens de subsistência e a do número
de matrículas de expostos no mesmo período nem sempre apresentou correlação positiva. Ou
seja, ao aumento de preço dos alimentos básicos da população pobre nem sempre
correspondeu o aumento do registro de novos enjeitados. Embora subscreva a preeminência
do fator, Venâncio (1997) também sugere que o abandono não deve ser relacionado, de forma
isolada, com a pobreza dos pais, já que com ela coexistiram, também, outros fatos que
contribuíam para o abandono. Soma-se à pobreza, por exemplo, a morte ou a doença do pai ou
da mãe, a enfermidade das crianças, o nascimento de gêmeos, a saída do pai de casa e a falta
de leite da mãe. Desse modo, é de se supor que a pobreza não foi o único fator isoladamente
que impulsionou o abandono de crianças nas Rodas ou em locais públicos.
É o caso para Marcílio (1998), citando Ressel-Wood, das consequências do acréscimo
de mais um membro às famílias que possuíam poucos recursos financeiros, colocando-as sob
pressões impossíveis de serem superadas. As famílias acreditavam que com a colocação do
filho na Roda da Misericórdia este teria melhor tratamento e possibilidade de melhores
condições de vida, tais como: batismo, atenção, sustento e educação. Essa ideia justificava a
exposição de muitas crianças.
Também durante os surtos epidêmicos que atingiam elevados índices de letalidade, a
morte dos pais aliada à pobreza foi causa do abandono. Venâncio (1997) relata que, no que
diz respeito ao século XIX, foi confirmada a correlação entre óbitos dos pobres e a matrícula
de expostos, nas cidades de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Salvador. Segundo o autor, as
Santas Casas de Misericórdia cumpriam o papel de abrigo de órfãos, uma vez que a sociedade
da época não possuía orfanatos para crianças, nem serviço hospitalar pediátrico, excetuando-
se o concedido pela casa dos expostos (VENÂNCIO, 1997; MARCÍLIO, 1998).
As crianças portadoras de deficiências ou de deformidades tiveram as suas cotas de
participação no complexo universo que envolve o fenômeno do abandono (MARCÍLIO,
114

1997). Fato curioso pode ser observado quanto às crianças portadoras de deficiência, pois, se
de um lado, algumas famílias resolviam seus problemas com o abandono, aquela mesma
deformidade excitava os olhares da caridade humana, produzindo renda que atenuava a
precariedade econômica.
O nascimento de gêmeos contribuía para aumentar o número de abandonados, pois
lançava sobre a família uma carga muitas vezes insuportável. Assim, a simples ocorrência do
duplo nascimento justificava o abandono (VENÂNCIO, 1997, MARCÍLIO, 1998). Outra
razão que era invocada para justificar o abandono do filho era a falta de leite da mãe, em uma
época em que a amamentação artificial era pouco frequente.
Todavia, as causas que levavam ao abandono não se restringiam somente às
vinculadas de alguma forma à pobreza dos pais. As normas comportamentais do modelo
dominante de família, que se pautavam pela monogamia, indissolubilidade do matrimônio,
condenação ao divórcio, proibição do aborto e na família sacramentada chocavam-se com um
ambiente marcado, alem da miséria, pela exploração e marginalização e, portanto, de difícil
disseminação desses ideais culturais (MARCÍLIO, 1997; VENÂNCIO, 1997).
Nesse contexto a sexualidade feminina estava restrita aos ditames matrimoniais. A
virgindade determinava restrições à atividade sexual feminina, a mulher deveria manter sua
virgindade até o casamento. Esse padrão de comportamento, imposto pela sociedade
burguesa, submetia as mulheres, sobretudo as pertencentes à elite, sem exceções. Além disso,
um determinado tipo de moral, revestido de preconceitos e regras, ditava as relações
familiares e regulava as práticas reprodutivas limitadas ao casamento (GONÇALVES, 1987).

A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade


subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em
que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso,
a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,
encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e de poder
(FOUCAULT, 1988, p 100).

Assim é que no Brasil, durante o período colonial, uma das causas do abandono que a
história relata nas classes mais abastadas é a gravidez indesejada, solucionada pelo abandono
ou a exposição da criança, quando não se recorria ao infanticídio (MOTTA, 2001).
Enfatizando esse ponto de vista, Motta (2001), referindo-se à posição teórica de Gonçalves
(1987) e Venâncio (1997), descreve as pressões psicológicas, a vergonha e o medo da rejeição
social, como motivadores da ocultação da gravidez, levando as mulheres, logo após o parto, a
desfazerem-se das crianças.
115

Em todas as classes sociais os filhos também eram enjeitados em razão das


recriminações e condenações morais (VENÂNCIO, 1997). No período colonial, o sigilo dos
amores ilícitos era garantido por meio da prática do abandono. O segredo sobre a origem da
criança tinha por finalidade a manutenção dos relacionamentos. Assim, as crianças eram
deixadas nas calçadas, florestas, terrenos baldios, praias e, posteriormente, também na Roda
dos Expostos. As Rodas não estavam destinadas, somente, ao recebimento de crianças que
provinham do estado de miserabilidade de suas famílias, mas também às de mulheres que
procuravam proteger-se da condenação moral. Essa motivação parece ter sido responsável por
significativo número de abandonos à época (VENÂNCIO, 1997; MARCÍLIO, 1997).
Sabe-se que a manutenção moral de muitas famílias levava ao abandono, sobretudo
por mães solteiras e viúvas. No Brasil colonial, a viúva, inclusive, para se casar novamente,
obedecia a duas condições que lhe eram impostas: a renúncia à herança e a renúncia ao pátrio
poder sobre seus filhos (FONSECA, 1997). Conclui-se que o recasamento conduzia à fissão
do núcleo mãe-filhos, questão que é central para a nossa discussão de pesquisa.
O preconceito e o estigma social, se por um lado explicam o abandono e a entrega de
crianças às Rodas, por outro lado contrariam a tese do amor materno como instinto natural,
revelando que esse amor não é inato, pois muitas mulheres tentavam livrar-se de seus filhos, a
qualquer custo. O abandono ou a entrega de crianças à Roda dos Expostos eram práticas
utilizadas tanto por segmentos da população empobrecida, como por pessoas pertencentes às
camadas de maior poder aquisitivo, como vimos. Cabe lembrar, como já identificamos, que as
motivações se diferenciavam, pois o abandono nas camadas pobres se justificava com base,
em sua maioria, nas dificuldades financeiras, enquanto que nas camadas de melhores
condições socioeconômicas, o que motivava a prática do abandono era a preservação da honra
ou a divisão de posses (FÁVERO, 2001).
Ilegitimidade e Abandono constituíam relação fortemente vinculada à maternidade
dentro das camadas abastadas até bem recentemente no Brasil. O abandono se explicava em
razão da manutenção de heranças (ameaçadas pela ilegitimidade) a serem protegidas. O
abandono garantia o anonimato e o segredo dos “amores pecaminosos”. A questão da
legitimidade somente fazia sentido no contexto das relações familiares abrigadas na lei, pois
que esta só considerava filhos legítimos aqueles que nasciam do e na constância do casamento
(MARCÍLIO, 1998; VENÂNCIO, 1997).
Fato a ser considerado é que, entre a população branca, o comportamento feminino,
dentro dos padrões morais estabelecidos, era permanentemente fiscalizado pela Igreja e pela
comunidade. Assim, um filho ilegítimo de mulheres negras e mestiças não desonrava a mãe
116

na mesma proporção de uma mulher branca. Del Priore (1993) relata que as consequências
realmente graves da maternidade fora do casamento eram, sobretudo, de ordem sócio-
econômica e não moral.
Por último Venâncio (1997) e Fonseca (1997) tecem considerações sobre os conceitos
de abandono apontando diferentes modos de compreendê-lo e dando-lhe sentido e forma
diversas, ou seja, distintos significados.
Venâncio (1997) faz distinção entre duas formas de abandono. Uma denominada de
“abandono selvagem”, que se caracterizava pela exposição da criança em locais desprovidos
de proteção dos perigos das ruas, da chuva e do frio, “tendo por companhia cães, porcos e
ratos que perambulavam pelas ruas” (p. 190). A outra forma, chamada de “abandono
civilizado”, se caracterizava pela circulação 5 de crianças entre vizinhos e familiares.
Para Fonseca (2002a), a história evidencia que a prática de circulação de crianças entre
os pobres urbanos do Brasil, nos séculos XVIII, XIX, e ainda, no final do século XX,
preservava o mesmo modelo, permitindo a existência de uma cultura popular distinta da
ideologia dominante que repudiava esse comportamento. Entretanto, nas camadas populares
as mulheres persistiam no ato de dar o filho para outros criarem, apesar das pressões sociais às
quais eram submetidas. Essa perspectiva sobrepõe a prática de circulação de crianças às
influências da ideologia dominante, criando um novo sentido, trata-se de forma alternativa de
organização vinculada a uma cultura popular urbana, as quais não são consideradas abandono,
por seus praticantes adultos.
Em suma, o que até aqui se está nomeando como abandono de crianças, com base em
autores como Del Priore (1993), Donzelot (1986), Marcílio (1998) e Venâncio (1997), pode
ser explicado por uma diversidade de causas, porém, o que se observou é que, no período
colonial, não existia nenhuma forma de controle efetivo ou qualquer tipo de repressão
sistemática à prática do abandono. A existência das Rodas estimulou, mais que limitou, várias
formas de abandono em uma sociedade que, não obstante desaprovar a prática, daí o
anonimato e segredo, também não se dispunha a atuar jurídica ou socialmente contra o ato de
expor um filho, diante dos dramas que poderia suscitar ou agravar. Pelo contrário, a sua
existência contribuiu como fator estimulador do abandono segundo Venâncio (1997) e
Marcílio (1998).

5 O tema circulação de crianças será melhor abordado no capítulo 7.


117

As Rodas, dado o significado simbólico que adquirem em nosso imaginário, permite-


nos explorar antecipada, não precocemente, alguns aspectos do cuidado e tentar extrair -
contendo e estancando um fluxo conexo - imagens da realidade.
Vimos que entre o período da colonização até a metade do século XIX tivemos uma
fase predominantemente caritativa que zelava pelas crianças sem famílias, órfãs e expostas. O
exemplo mais significativo dessa proteção foi a Roda dos Expostos – mecanismo que permitia
deixar a criança sem ser identificado. Entretanto, a partir do século XIX até meados do século
XX as mudanças que ocorreram no Brasil foram profundas no que se refere às políticas
públicas sociais voltadas para a infância abandonada. Uma vez que o modelo caritativo não
atendia mais a mentalidade do presente período, ou seja, não atendia mais às demandas e às
exigências da nova sociedade liberal. Assim é que surge uma nova mentalidade inspirada na
atenção filantrópico-científica em favor das crianças abandonadas. Rizzini, citada por
Marcílio (1998, p 195), descreve que a filantropia “surge para dar continuidade à obra de
caridade, mas sob uma nova concepção da assistência. Não mais a esmola que humilha, mas a
reintegração social daqueles que seriam os eternos clientes da caridade: os desajustados”
(MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008), mudando a categoria e o julgamento moral sobre esses
sujeitos.
A Roda dos Expostos se constitui no centro dos debates dos higienistas e demais
moralistas que procuravam refletir sobre a moralidade da sua existência. Dentro desse cenário
os médicos higienistas e as elites pensantes foram os primeiros a lutar pela extinção da Roda
dos Expostos, apontando solução racional e técnica para a situação social da criança
abandonada.
Para alguns médicos a Roda procurava atenuar as consequências dos crimes morais,
protegendo as mulheres dos escândalos, ao mesmo tempo em que oferecia alternativa à
crueldade do infanticídio e do aborto. Assim, muitas crianças foram expostas como um meio
de se preservar a honra da mulher e de sua família, que enfrentavam obstáculos
intransponíveis ao tentar assumir o filho. Se lançarmos outro olhar sobre as circunstancias em
que ocorria, talvez a prática de expor o filho às Rodas, naquele período, possa ser
compreendida como um ato de amor, em uma sociedade que não disponibilizava recursos
para políticas públicas e assistência às famílias, sendo a Roda, por vezes, a única solução para
os problemas enfrentados. Registre-se que essas famílias, antes de abandonarem seus filhos,
encontravam-se em total abandono social pela ausência de uma rede de apoio que pudessem
auxiliá-las em situações adversas (MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008; COSTA, 1999).
118

“avançava a concepção segundo a qual a família – ou pelo menos a mãe – era


fundamental para o desenvolvimento não apenas físico da criança, mas também
psicológico, social e afetivo. Discutia-se que, antes de suprimir a Roda, seria preciso
criar serviços de proteção à mãe, para que esta chegasse ao termino de sua gestação
e não abandonasse o filho, ao nascer. Pela primeira vez, no Brasil, punha-se em
discussão o ato mesmo do abandono de crianças” (MARCÍLIO, 1998, p 200)

Na Europa a situação não foi diferente da nossa, pois foram as instituições de asilos ou
hospícios de expostos que se responsabilizaram pela proteção à criança abandonada. Segundo
Donzelot (1986), a instituição das Rodas dos Expostos nos hospícios para menores
abandonados teve como finalidade unir respeito à vida e respeito à honra familiar. O objetivo
era manter a tranquilidade da família, rompendo sem escândalo o vínculo da origem
indesejada, oriunda de relacionamentos não conformes com a lei familiar, às suas ambições e
à sua reputação.

5.2.2 O higienismo, o jurídico e o controle social: novas amarras de uma sociedade em


transformação.

Donzelot (1986) realizou um estudo em que aponta para as tecnologias políticas –


práticas que dizem respeito ao corpo, a saúde, a alimentação, a moradia, ou seja, ao espaço
que compreende toda a existência humana – como elementos das transformações que
ocorreram nas condições de vida na França, e em outros países da Europa, a partir do século
XVIII. Foucault (2002b), no texto Governamentalidade, aborda a arte de governar, e ao
discutir as práticas de governo, relata que essas práticas são múltiplas, uma vez que várias
pessoas podem governar: o pai de família, o professor, o pedagogo. Ou seja, existem muitos
governos e diversas modalidades de se governar. Porém, esses governos estão dentro do
Estado ou da sociedade. Foucault descreve que vivemos, desde o século XVIII, a
governamentalidade que são táticas de governo que permitem definir a cada instante o que
deve ou não competir ao Estado, o que é público e o que é privado.
Costa (1999) retrata que entre a época da colonização e o século XIX a medicina
social teve grande influencia na intimidade da vida familiar, privada, associando-a ao destino
político da burguesia. De um lado, usando o corpo, o sexo e os sentimentos conjugais como
instrumento de dominação política e distinção social. De outro, fazendo com que a ética do
convívio social burguês modelasse o convívio familiar replicando conflitos e antagonismos
119

sociais. A família, ao passar por esse cuidado higiênico, teve modificado, não só o seu perfil
sanitário, mas também sua feição social. Para Costa (1999) ao se observar “os resultados
dessa educação higiênica, uma conclusão se impõe: a norma produzida pela ordem médica
solicita de forma constante a presença de intervenções disciplinares por parte dos agentes de
normalização” (p. 15).
Pode-se, então, pensar nas práticas de conduzir vidas como modos de governo para
atingir, por meio ou não de suas famílias, crianças e adolescentes de classes sociais distintas e
o modo como a sociedade passa a entendê-las. Essas práticas de governo buscam dirigir as
condutas e regular a sociedade, com o objetivo de produzir e dar sentido a um discurso
hegemônico, sustentando e legitimando a forma de a sociedade lidar com essa população.
Com a finalidade de preparar a criança pobre para o mundo do trabalho, educando,
protegendo e corrigindo as crianças abandonadas, várias instituições foram criadas com
características e modalidades diferentes: reformatórios, asilos, orfanatos, institutos
correcionais, etc. Além de preparar a criança, buscava-se proteger a família da ociosidade, e
de outras atividades não conformes com as regras da sociedade, tais como a prostituição, a
mendicância, o crime, o abandono do menor, a criança na rua, apontados como
desclassificados. Com isso se justificaria a domesticação e controle desses grupos conhecidos
como “classes perigosas” (RIZZINI, 2008, p 122).
Assiste-se, assim, ao aumento das instituições que servem de base estratégica para as
intervenções corretivas sobre a vida familiar, e da atenção à crescente demanda daqueles
considerados indesejáveis à ordem familiar. É a institucionalização dos conflitos sociais,
sequestrados para dentro dos muros das instituições totais, espaço reservado aos infortúnios e
aos miseráveis, que serviram para mobilizar as energias filantrópicas, assim como ponto de
observação das condutas populares para contrariar (a fim de neutralizar) seus efeitos
negativos e reorganizar a família popular em função de imperativos econômico-sociais. Sob a
justificativa da reeducação são legitimadas as práticas de privação de liberdade sem processo,
sem garantias e sem tempo definido de duração. Com o isolamento da família, tornou-se mais
fácil o seu controle por meio do complexo tutelar, tendo por objetivo conter os desvios
(MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008; COSTA, 1999).
A criança começava a ganhar importância, sua saúde e educação surgiam como
prioridades das políticas públicas. Paralelamente, a valorização da família e das relações
mãe/filho passa a ser vista como fator importante para o desenvolvimento harmônico da
criança (MARCÍLIO, 1998). No século XX, a infância passa a ser reconhecida como etapa de
120

fundamental importância na vida do individuo, determinante do desenvolvimento físico e


psíquico.
No decorrer do processo de transformação, a família esteve sob a permeabilidade da
ordem disciplinar em que se engendram, entre outros saberes, os saberes psicológicos. Dentre
os saberes psi, a psicanálise tem uma importante função no reconhecimento da criança como
alvo de amor materno ou parental.
No percurso da história do que em geral se denomina abandono de crianças, observa-
se que a criança ganhou espaço na sociedade e se transformou em alvo de proteção,
vigilância, de cuidado com o corpo e educação, a fim de se tornar útil para si e para a
sociedade. A criança foi avaliada, investigada, classificada, separada, controlada, vigiada,
protegida para que sua educação fosse eficaz. Utiliza-se o adestramento dos corpos, a todo
instante submetidos a “um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma
economia calculada, mas permanente” (FOUCAULT, 1987, p 143). Enfim, através do
discurso especializado, produzido por médicos e outros especialistas, estas intervenções
contribuíram para a edificação de normas reguladoras da vida familiar e individual e passaram
a ser influenciadas pelo desejo de uma vida normal e saudável.
Sob a influência de um discurso moralizador produzido por médicos, especialistas e
outros pensadores da época, desenhou-se uma nova imagem de mãe (FONSECA, 2002a).
Publicações versando sobre a conservação das crianças edificaram conhecimentos sobre esse
discurso que contribuiu para a produção das subjetividades que modificaram a maneira do
individuo perceber o mundo e apreender sistema de valores e submissão, alterando
comportamento, percepção, memória e modos de relacionamentos. A disciplina entendida
como hábito e exercício cria saberes/verdades, que não somente a justifiquem, mas apontem
se o indivíduo se conduz ou não conforme as regras instituídas. O objetivo das sociedades
disciplinares é a concentração, a repartição no espaço e a ordenação do tempo, fixando os
corpos a um aparelho de normalização e controle (CARVALHO, 1997).
Donzelot (1986), referindo-se à abundante literatura sobre conservação de crianças
produzida por médicos, administradores e militares na segunda metade século XVIII, nos
países europeus, relata que todos se ocupavam dos costumes educativos vigentes à sua época,
principalmente no que diz respeito à prática dos “hospícios de menores abandonados, a da
criação dos filhos por amas-de-leite e a da educação artificial das crianças ricas” (p.15). Não
somente os filhos ilegítimos eram abandonados. Segundo Badinter (1985), entre o século
XVII e o século XVIII, sobretudo no último, o abandono também atingiu o filho legitimo,
através do processo de educação que se caracterizava por três fases distintas e que se
121

denominou três “atos do abandono”: a colocação na casa de uma ama, o retorno ao lar e
depois a partida para o convento ou o internato. Durante esse período de trânsito, pouco
tempo a criança viveu sob o teto paterno, o que significa que não conviveu com os pais.
Segundo a autora, o estilo de educação proporcionada pelas famílias dos comerciantes ou dos
artesãos, bem como as dos magistrados ou dos aristocratas da corte, configurava o abandono
moral e afetivo, uma vez que seus filhos conheceram uma longa jornada de solidão e por
vezes a falta de cuidados.
Para Ariès (2011), o desejo de educação e instrução denotava o interesse dos pais
pelas crianças e esse afastamento foi uma das faces da grande moralização dos homens.
Algumas restrições são apontadas por Badinter (1985) a essa observação. Segundo a autora
não se pode negar que a burguesia considerava o saber como um meio de ascensão social.
Entretanto, “não seria possível ver igualmente, nessa nova atenção dos pais aos filhos, a
marca de um outro interesse por si mesmos?” (BADINTER, 1985, p 133). A realização dos
pais projetada sobre os filhos representaria uma nova maneira de satisfação narcísica?
Considerar o afastamento dos jovens para sua formação pode ser entendido como
abandono, se admitirmos como formato natural viverem em casa com os seus pais até
adquirirem independência. Porém, pode também fazer parte da formação, uma etapa
necessária para a construção de um cidadão. São compreensões distintas apropriadas em
diferentes momentos históricos, trazendo outras análises e entendimentos sobre infância e
juventude.
As publicações de conceitos médicos e higienistas trouxeram verdadeira revolução,
que pretendeu modificar o comportamento educacional em duas realidades bastante distintas:
as famílias burguesas e as famílias populares. Quanto à realidade vivida pela mulher
burguesa, se por um lado perdia o espaço público, abdicando da parceria no comércio ou da
oficina familiar, ocupando-se inteiramente do espaço doméstico, por outro lado ganhava,
através da importância maior das funções maternas, um novo poder na esfera doméstica. A
mãe seria a única responsável por conter o obscurantismo da criadagem, bem como de impor
o seu poder à criança (BADINTER, 1985; DONZELOT, 1986; FONSECA, 2002a e b).
Paralelamente a essas transformações sociais, foram surgindo novas formas de
relacionamento familiar, permeado pelos sentimentos de afeto e ternura, possibilitando a
existência de uma relação mais solidária entre os seus membros. A privatização da instituição
familiar, sobretudo da família burguesa, é um dos traços marcantes da nova constituição da
família moderna (DONZELOT, 1986).
122

A família progressivamente foi se interiorizando, e dentro desse cenário de


enclausuramento redes extensivas de parentela deram lugar a espaços compartimentalizados
para seus membros. A mulher e a criança passaram a ser os personagens principais do âmbito
doméstico, excluindo-se do ambiente público. A atuação da mulher limitava-se ao governo
doméstico, ou seja, não se intrometia no que ocorresse fora desse contexto e mantinha-se
fechada em casa (MARCILIO, 1998).
As crianças, que antes eram entregues a serviçais ou amas-de-leite para serem criadas
por elas, retornavam ao convívio doméstico, quando sobreviviam, após os cinco anos de idade
e ganhavam, a partir da influência exercida pelos especialistas, um novo destino. A
socialização, que anteriormente ocorria pela convivência com adultos, passou a ser confiada a
especialistas (tutores, governantas, professores de escolas) em um espaço especificamente
reservado às crianças, sob o olhar discreto, mas onipresente, da mãe (DONZELOT, 1986).
O reconhecimento e a aceitação, pela mulher, da obrigação de velar pela felicidade e
conservação dos filhos, foram reforçados pela moral burguesa, que influenciou tanto o espaço
público como o espaço privado de forma dominante. Lançaram-se sobre os ombros da mulher
o sentimento de culpa e do dever de permanecer com o filho sob os seus cuidados a qualquer
custo, sobretudo para a criança, nos casos em que não existia a possibilidade ou o desejo de
exercer a maternidade.
Na Europa, assim como acontecia no Brasil, segundo Donzelot (1986), o que
perturbava as famílias eram os filhos adulterinos, e o que inquietava o Estado era o
desperdício de forças vivas. Se para a família a concentração desses enjeitados proporcionava-
lhes alívio, para o Estado essa concentração representava “a interrupção das custosas práticas
familiares, como ponto de partida de uma vontade de conservação e de utilização dos
indivíduos” (p. 29). Se por um lado o abandono solucionava o problema gerado, quer por
circunstância moral ou econômica, por outro clamava por ações assistenciais de proteção à
criança abandonada.
Badinter (1985) relata que a filantropia destinava-se à preservação da criança, ou seja,
à luta por sua sobrevivência, entre elas, as que eram tradicionalmente abandonadas à morte.
Essas crianças, muitas das quais morriam antes de atingirem uma utilidade econômica, eram
consideradas um verdadeiro estorvo para o Estado, que não obtinha nenhum lucro em mantê-
las, representando apenas um ônus para a nação. Badinter (1985) descreve o pensamento do
filantropo Chamousset, referindo-se à questão econômica:
123

É aflitivo ver que as despesas consideráveis que os asilos são obrigados a fazer com
as crianças expostas (abandonadas) produzem tão poucas vantagens para o Estado.
A maioria dessas crianças morre antes de chegar a uma idade em que se poderia
extrair delas alguma utilidade... (p.156).

A conservação das crianças abandonadas, que teve a sua origem com a preocupação
no baixo nível populacional da Europa, ganhava agora dois novos aliados: essas crianças
serviam para o povoamento das colônias e para as guerras. A atitude de proteção não pode ser
explicada somente com base na preservação da criança. A população de enjeitados, pelo fato
de não possuírem vínculo de obrigação familiar, pois os menores abandonados eram em sua
maioria institucionalizados, foi destinada a tarefas como colonização, milícia, marinha. Foram
essas as determinantes para a sobrevivência das crianças abandonadas. Não se via mais a
criança abandonada como um peso para o Estado, mas como força de produção (BADINTER,
1985; DONZELOT, 1986).
A essas motivações de natureza prática contrapõem-se o desejo e a necessidade de
proteção aos assistidos, como sendo os sentimentos de fato desencadeadores da proteção à
criança abandonada e que determinaram, ainda que não exclusivamente, a qualidade da
relação, ora entre as famílias e os filhos de criação, ora entre as instituições e os menores
expostos.
Seguindo a mesma ótica utilitária do final do século XVIII — de que as perdas
humanas deviam ser evitadas, pois significavam perda para o Estado — o século XIX foi
chamado de o século da criança, na Europa, devido ao crescente número de crianças. Esse
crescimento foi o resultado obtido entre a alta taxa de natalidade e uma baixa taxa de
mortalidade. Entretanto, as altas taxas de nascimento conviviam com as altas taxas de
mortalidade infantil nas categorias mais pobres da população. Para enfrentar esse problema
social os governos e a sociedade se viram pressionados a estabelecer normas, instituições e
políticas públicas.
A tomada de consciência dessa situação social, concomitante com o desenvolvimento
científico e tecnológico — fase da filantropia científica — provocaram verdadeira revolução
no trabalho dos médicos higienistas. As descobertas científicas proporcionaram métodos mais
eficazes de amamentação artificial e nos cuidados com os bebês institucionalizados.
No Brasil, a intervenção filantrópica nas famílias populares também teve como
objetivo conduzir e moldar a infância dentro dos ideais que refletiam o futuro do país, qual
seja, de que na infância estava o futuro da nação. Desse modo, tornava-se necessário criar
mecanismos de proteção que pudessem assegurar o encaminhamento dessas crianças ao
124

trabalho e à ordem. Ao mesmo tempo, visava proteger a sociedade dos infortunados, daqueles
que se entregavam a viciosidade e por isso, eram uma ameaça para a paz social. Salvar a
infância pobre constituía um importante elemento para o projeto civilizatório do país
(RIZZINI, 2008). A preocupação com a criança, especialmente no século XIX, remeteu-se à
percepção de que ela era uma riqueza para a nação, e, assim, adquiriu importância e valor
social.
Convertida em supremo bem para a nação, a criança pobre, sem família transforma-se,
de estorvo que era, numa provisão preciosa para o Estado, é o seu futuro. Para garantir-lhe o
futuro foi criado um complexo aparato jurídico-assistencial.

Para essa criança, tutelada pelo Estado, instituiu-se um complexo aparato jurídico-
assistencial, encarregado de educá-la e contê-la. Tornou-se ela objeto de minucioso
escrutínio e ampla manipulação. Examinada sob todos os ângulos, classificada de
acordo com o seu estado de abandono e grau de periculosidade, diagnosticada e
finalmente submetida ao tratamento que a ‘remediasse’, essa criança,
invariavelmente filha da pobreza, será transformada em menor (RIZZINI, 2008, p
89).

Como se observa, a criança pobre, sem família, não foi alvo somente dos médicos
higienistas, foi foco de atenção e preocupação também dos juristas. Médicos e juristas aliados
aos mesmos princípios de higiene e disciplina e de acordo com valores e normas cientificas –
a recuperação por meio da educação, o trabalho e a disciplina - criaram um projeto de prisão-
modelo para a recuperação dos menores considerados carentes ou infratores.
Gostaríamos de chamar atenção para as estratégias que colocaram a criança como alvo
de algumas ações que foram atribuídas inicialmente à caridade, posteriormente à filantropia e
hoje são entendidas como parte dos mecanismos de segurança social, que podemos entender,
aqui, como tecnologias de governamento, pois referem-se ao exercício do poder para conduzir
a conduta dos indivíduos. Significa dizer que essas estratégias não ocorreram em um continuo
aprimoramento dos mecanismos de proteção à infância.
A criança não pode ser compreendida como algo natural, sua compreensão passa por
um complexo de saberes, de instituições e de estratégias de poder que lhe possibilitaram uma
existência histórica (BUJES, 2010).
A noção de cuidado ou a ética de cuidado em crianças, que se caracteriza pela
compreensão de que para cuidar é necessário abrir o caminho ao outro, exposição a ele, isto é,
aceitá-lo como é e oferecer-lhe o acolhimento. “Aceitação do outro como ele é, mas também
oferta de acolhimento ao que nele pede passagem (devires, experimentação), isto é, aceitar o
125

outro como ele é, mas também oferecer acolhimento ao tornar-se o que se é” (CECCIM;
PALOMBINI, 2009, p 301).

É das crianças a invenção e a criatividade ou a facilidade de enveredar pelos


estranhos e insólitos universos do jogo, do desenho e dos brinquedos. O imaginário-
criança é o das afecções sensíveis, dos acoplamentos cognitivos, da invenção de
linguagens para descobertas vividas. Um imaginário-criança não busca o verdadeiro,
experimenta. Não analisa logicamente, deixa-se afetar. Não se prende a identidades
e limites, embarca na expansão. (CECCIM; PALOMBINI, 2009, p 301).

A partir da República a distinção de classes marca diferentes tratamentos para as


crianças ricas e pobres. A criança abastada recebia atenção das políticas da família e da
educação, sendo preparada para dirigir a sociedade. A criança pobre pertencente as “classes
perigosas” e, por isso, estigmatizada como menor, deveria receber uma educação que a
preparasse profissionalmente para o mundo do trabalho, transformando-os em corpos úteis e
dóceis para o trabalho. Diz Coimbra (2008, p 3) que “definindo-se formas consideradas
corretas e verdadeiras de ser e de existir, forjam-se subjetividades sobre a pobreza e sobre o
pobre; diz-se o que são e o que deverão ser”. (MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008; COIMBRA
e NASCIMENTO, 2008; FOUCAULT, 2010).
Rizzini (2008) descreve a diferença entre os pobres dignos e os viciosos, afirma que a
produção da pobreza segue estratégias diferentes para cada segmento (dignos x viciosos). Os
pobres dignos, definidos como aqueles que trabalham, têm família e seguem os preceitos
religiosos, devem ser observados em seus valores morais, uma vez que pertencem a uma
classe mais vulnerável aos vícios e doenças. De acordo com esses preceitos, os vícios e as
doenças, os filhos provenientes dessas famílias pobres deveriam de ser afastados das ruas e de
suas próprias casas por ser considerado um ambiente pernicioso. Esse preconceito de que a
família pobre era permissiva legitimou o afastamento de muitos jovens de sua família com a
justificativa de que era preferível a internação à permanência em seus lares pobres. Os pobres
viciosos, ao contrario dos dignos, são aqueles que não trabalham, vivem na ociosidade, por
isso são portadores de delinqüência, são libertinos e considerados maus pais. Classificados
como criminosos em potencial, medidas coercitivas deveriam ser adotadas no sentido de
erradicar essa população que representava um perigo social. As duas classes, os pobres dignos
e os viciosos, representavam periculosidade para a sociedade. Cada qual contribuindo de
forma diferente para essa visão, os pobres dignos com sua natureza pobre e os viciosos com a
ociosidade, esses representando um perigo maior devido ao seu potencial destruidor e
126

contaminador. Essas crianças e jovens das “classes perigosas” deverão ter as suas
virtualidades sob controle (RIZZINI, 2008; COIMBRA; NASCIMENTO, 2008).
Pensando o controle da infância e da adolescência abandonada e delinquente é que, em
1927, foi elaborado o primeiro conjunto de leis, o Código de Menores de 1927. A Lei
estabelecia que qualquer comportamento dos pais, não condizentes com as normas, tais como
delitos ou atitudes anti-sociais, poderia levar à destituição do pátrio poder, bem como a da
tutela. A intervenção do juiz estava direcionada a infância pobre e desvalida, com o objetivo
de vigiar para punir (MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008; DEL PRIORE, 1992).
A todo esse aparato dirigido à criança pobre, mas não somente a ela, Michel Foucault
(1986) chamou de sociedade disciplinar, em que se observa o controle das elites que passam a
se preocupar tanto com as infrações cometidas pelo sujeito, como as que por ventura viessem
a cometer. Esse controle é o dispositivo da periculosidade que pretende exercer o seu domínio
não apenas sobre o que se é, mas também sobre o que se fez e o que se poderá vir a ser e
fazer, ou seja, sobre as virtualidades dos sujeitos (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008).
Não se tem noticia da intervenção do Estado brasileiro voltada à assistência e proteção
da infância desvalida até os anos de 1960. Até então, sua atuação direcionava-se à vigilância e
ao controle da assistência ao menor e à repressão aos desviantes. Vários órgãos públicos
especializados foram criados com esse intuito de controlar e reprimir. Entretanto, mostraram-
se ineficientes e incompetentes em sua atuação. Como exemplo podemos citar: o
Departamento Nacional da Criança em 1919 e o Serviço Nacional de Menores (SAM),
implantado em 1941, em pleno Estado Novo. O primeiro, tendo como objetivo controlar à
assistência a infância carente, e o segundo, além da fiscalização da assistência, objetivava
também a atenção ao menor infrator. Esses órgãos foram alvo de criticas dos profissionais e
da sociedade, pois se destinavam a uma prática repressora, tendo características de
reformatório. Foi somente a partir de 1960 que o Estado se tornou responsável pela assistência
e proteção a infância pobre e desviante. A intervenção do Estado se deu através da criação da
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM, que introduziu a Política Nacional
do Bem-Estar do Menor nos assuntos de assistência à infância. Seu estatuto tinha como
“objetivo básico formular e implantar a política nacional do bem estar do menor, mediante o
estudo do problema e do planejamento das soluções, e a orientação, a coordenação e a
fiscalização das entidades que executavam essa política (MARCÍLIO, 1998 – p. 225)”
(MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008; DEL PRIORE, 1992; BRITO, 2000; COIMBRA;
NASCIMENTO, 2008)
127

A FUNABEM surgiu durante a ditadura militar em 1964. Essa instituição tinha como
propósito o regime educativo e a preservação da criança e do jovem das camadas pobres da
população. Esse estabelecimento ficou conhecido como “deposito” em que crianças e jovens
pobres eram submetidos a diversos tipos de maus-tratos. Assim,

Em nosso país, desde o início do século XX, diferentes dispositivos sociais vêm
produzindo subjetividades onde o “emprego fixo” e a “família organizada” tornam-
se padrões de reconhecimento, aceitação, legitimação sociais e direito à vida. Ao
fugir a esses territórios modelares entra-se para a enorme legião dos “perigosos”,
daqueles que são olhados com desconfiança, evitados, afastados, enclausurados e
mesmo exterminados (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008, p 7).

Com o propósito de tornarem-se cidadãos honestos, trabalhadores e bons pais de


família, essas crianças e jovens pobres foram institucionalizados em sistemas fechados, com o
objetivo de serem disciplinados e normatizados.
Uma nova ideia começou a ser gestada em resposta às pressões advindas da
Declaração Universal dos Direitos da Criança e através da participação ativa das organizações
não-governamentais. Enquanto o Código de Menores de 1927 sustentava a ideia de menor
como sinônimo de carente, pobre, e por isso, um possível criminoso em potencial, a nova lei,
o Código de Menores de 1979, se baseou na doutrina de “situação irregular”. Segundo a nova
lei, ao Poder Público caberia à criação de entidades de assistência e proteção ao menor e
deveria dispor de centros especializados para essa prática, ou seja, recepção, triagem,
observação e permanência de crianças e jovens (MARCÍLIO, 1998; RIZZINI, 2008; DEL
PRIORE, 1992; BRITO, 2000; COIMBRA; NASCIMENTO, 2008).

Essas duas legislações seguiram uma lógica que colocava no terreno da imoralidade,
da anormalidade e mesmo da patologia os modos de vida das famílias pobres,
justificando, assim, a necessidade do Estado tomar para si a tarefa de proteger
crianças e jovens cujas famílias eram consideradas fora das normas. Ou seja, os
textos das duas leis defendiam que existiam formas melhores e, portanto, ideais dos
pobres educarem, cuidarem e protegerem seus filhos. Com base nisso, ao longo de
todo o século XX, justificavam-se as propostas de retirada do pátrio poder devido à
condição de pobreza, incentivavam-se as adoções de crianças pobres, internavam-se
os chamados abandonados, dentre outras práticas de exclusão. É interessante notar
que os princípios que regiam os dois códigos sofreram influência direta do
higienismo, aliado às teorias racistas, eugênicas, da degenerescência e da evolução
das espécies, que marcaram os momentos de emergência dessas leis (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2008, p 8)

Para a garantia consecução desses objetivos surgiram as Fundações Estaduais do Bem-


Estar do Menor (FEBEMS), com responsabilidade de observar e acompanhar a formulação e
a implantação da Política Nacional do Bem-Estar do Menor em todo o território nacional e de
128

executarem, nos Estados, as ações pertinentes a essa política. Essa instituição de internamento
abrigava tanto a criança desamparada quanto aquela com desvios de conduta e foram palco de
sucessivas rebeliões com episódios frequentes de rebeliões, fugas, depredações a par da
repressão institucional, o que contribuiu para que se tornasse um dos símbolos da violência,
da desorganização e do medo. Revelava-se, desse modo a ineficiência de sua proposta
educativa, uma vez que falhava em sua tarefa de ressocializar.
Diante desse quadro e motivados pela violência dos episódios tornados públicos,
foram surgindo ações de movimentos sociais, através de inúmeros grupos de defesa dos
direitos das crianças e dos jovens, que atuaram durante toda a década de 1980. O objetivo
desses grupos era garantir os direitos das crianças e adolescentes, frequentemente violados no
interior dessas instituições. Entre os anos de 1988 e 1990 os movimentos investiram na
criação e elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente. O documento legal (ECA)
entrou em vigor em 13 de julho de 1990, trazendo em seu bojo teórico marcos históricos da
construção de uma nova idéia de cidadania, no que se refere à infância e juventude, cujo
destinatário não é somente o “menor”. Após a sua implementação todas as crianças e
adolescentes passaram a ter direitos garantidos. Em substituição à doutrina de “situação
irregular” a nova lei preconiza a doutrina de “proteção integral”, além de recusar a pratica de
internação como medida principal de assistência à infância e adolescência. O ECA
representou e representa significativa transformação nas condições legais para a reformulação
das políticas públicas em prol da criança e do adolescente. A criança e adolescente, a partir
desse estatuto, respaldado no art. 227 da Constituição Federal deixou a sua condição anterior
de mero objeto de Direito e passou a ser considerado sujeito de Direito. (MARCÍLIO, 1998;
RIZZINI, 2008; DEL PRIORE, 1992; BRITO, 2000; COIMBRA; NASCIMENTO, 2008).
Para alguns teóricos (MARCÍLIO, 1998; COIMBRA; NASCIMENTO, 2008) o ECA
inegavelmente trouxe avanços, mas carece de aproximar-se da realidade, garantindo os
direitos e deveres de crianças e adolescentes que cotidianamente ainda são violados, através
do contínuo aprimoramento de seus mecanismos de proteção. Distintos dos já mencionados e
antigos dispositivos de controle, assentados sobre os saberes, instituições e estratégias de
poder, estratégias e tecnologias de governamento, mecanismos de segurança social voltados
ao exercício do poder, limitados a conduzir a conduta dos indivíduos.
De todo jeito e com as alterações que sua maioridade exigem sofrer, a legislação atual
sobre infância, o ECA, toma a família como central. Tenta, a cada recorrência a ele, se adaptar
às novas situações sociais, mas depende da interpretação de técnicos e operadores do Direito
cujo ritmo de mudança nem sempre é o mesmo. Em relação às políticas públicas que incluem
129

infância e família, muitas alterações precisam acontecer. E dependem, parece, das


transformações destes conceitos que se atualizam no cotidiano.
130

6. RECASAMENTO: O NÓ QUE (DES)ATA

Ainda que o tema central desta tese não seja o recasamento, o ponto de partida da
pesquisa foi a constatação, como já anunciamos na introdução, e retomamos em alguns
momentos, de casos em que mulheres optaram pelo novo marido, tornando a maternidade
uma opção. Em muitas historias, inclusive de nossos entrevistados (quatro), é a partir do
recasamento ou da separação conjugal que se dá a separação entre mãe e filhos. Neste sentido,
buscamos estudos que abordassem questões despertadas pelas situações de recasamento, bem
como relatassem o destino dos filhos em situações de recasamento da mãe e constituição de
novas famílias.
Este levantamento6, a partir da palavra recasamento, teve como foco estudos que
abordassem possíveis consequências do recasamento da mãe para a vida dos filhos,
notadamente o afastamento da genitora.
A revisão da literatura que agora se inicia está dividida em três partes. Na primeira,
buscamos apresentar brevemente as definições de recasamento e famílias reconstituídas,
recompostas e tentaculares, no intuito de dar um contexto para a discussão. Na segunda
apresentamos trabalhos que tematizam a conjugalidade no recasamento. A terceira reúne
trabalhos que abordam a parentalidade no recasamento, discutindo funções e construções de
madrasta e de padrasto. Ao final, destacamos duas temáticas mais especificas: a perspectiva
dos filhos, foco pouco comum no campo, mas que nos interessa em especial, e trabalhos sobre
paternidade no recasamento, o que nos chama a atenção, visto que, até bem pouco tempo, o
recasamento significava por parte dos pais, em geral, afastamento (ou abandono) dos filhos da
primeira relação.

6.1 Introduzindo o recasamento, as famílias recompostas, reconstituídas e suas


personagens

No Brasil, conforme Bucher e Rodrigues (1990), as pesquisas sobre o recasamento


iniciaram-se na década de 1980. Nesse período inicial, portanto, observa-se escassez de

6 Este levantamento foi feito no SCIELO, LILACS, IBICT e no banco de teses da CAPES.
131

estudos brasileiros, com um número bastante reduzido de produções. Atualmente,


pesquisadores parecem estar despertando a atenção para o tema; essa constatação advém dos
trabalhos recentemente publicados.
Tendo em vista a complexidade das relações envolvidas na dinâmica contemporânea
das famílias, hoje diversificadas tanto por suas formas quanto por suas possibilidades
relacionais, importa atualmente identificá-las, sabendo que recebem nomes distintos. Em
especial, neste trabalho, vamos privilegiar rompimentos de relacionamentos conjugais com
formação de novos relacionamentos em alguns casos. Assim, vamos falar de recasamento e
famílias recompostas, reconstituídas e tentaculares, entre outros nomes.
O recasamento, termo utilizado por Carter; Mcgoldrick (1995), pode ser considerado
uma segunda união, em que pelo menos um dos contraentes já tenha tido uma história com
terceiros e, agora juntos, formam uma família, num processo complexo que envolve mais de
um sistema familiar.
Ainda em Carter; Mcgoldrick (1995) encontramos a citação de Visher; Visher (1988)
que, fazendo uso do mesmo termo, recasamento, trazem a seguinte consideração: “definimos
uma família recasada como um lar onde vive um casal e pelo menos um dos parceiros tem um
filho do casamento anterior” (p.8).
Brun (2004) optou também pela expressão recasamento.

A palavra recasamento foi escolhida na ausência de qualquer outra que defina


melhor a relação. Mas, assim como as demais, seu significado está longe de
expressar a singularidade dessa nova união, atraindo com o prefixo “re”, idéias de
repetição, reformulação e recriação. Só encontramos referências que nos levam a
pensar em remendo, segunda mão, imitação, reconstituição, palavras e expressões
com forte carga negativa. A família nuclear – mãe, pai e filhos – fica sendo
vivenciada como a única e verdadeira, valorizada boa e legítima. Tudo que for
diferente dessa família padrão é “menos” (BRUN, 2004, p 23-24).

A pesquisa realizada por Travis (2003) nos dá uma pista sobre a importância de
estudos sobre o recasamento a partir de outro viés: para além das pessoas que estão
experimentando novas conjugalidades em suas vidas, a família nuclear formada por um
homem e uma mulher7 que coabitam e estabelecem uma relação de conjugalidade com uma
prole marca nossa definição de família e nos fornece as lentes para olhar e refletir sobre os
arranjos familiares que hoje encontramos em nosso país.

7 É preciso atentar para o fato de este texto ter sido escrito em 2003, quando ainda era incipiente o debate
público sobre famílias com casais do mesmo sexo.
132

A autora realizou estudo com o objetivo de analisar a percepção dos terapeutas de


família da cidade do Rio de Janeiro a respeito do recasamento, assim como as abordagens
teórico-práticas preferencialmente utilizadas no atendimento aos membros de famílias
recasadas. Participaram da pesquisa de campo dez terapeutas da cidade do Rio de Janeiro,
sendo seis sujeitos do sexo feminino e quatro do sexo masculino, com mais de quatorze anos
de experiência clínica na área de terapia de família. Para Travis (2003), o discurso formulado
pelos entrevistados manifestou-se sob a influência da ideia de família nuclear, ou seja, o
discurso produzido pelos terapeutas retrata nítida influência do modelo dominante, parecendo
não ter considerado relevantes as especificidades da família recasada. Apresentaram
dificuldade em definir essa modalidade de família cada vez mais comum e que imprime uma
diversidade de modelos existentes e cada vez mais aceitos pela sociedade.
Esta pesquisa trata de profissionais da psicologia, mas arriscamos apostar que não são
os únicos a utilizar a família nuclear como filtro, apesar de todas as mudanças ocorridas nos
últimos anos e sobre as quais vimos falando ao longo deste trabalho. A opção por este
trabalho no inicio desta revisão se da exatamente como uma provocação, visto que no
consultório esses profissionais tem acesso a um universo razoável de formatos e
funcionamentos de família e, mesmo assim, as lentes da família nuclear continuam dando os
contornos. Ao vislumbrar o mesmo modelo, negam outras possibilidades de existência, o que
demonstra a importância de introduzir o questionamento dos diversos formatos de família na
prática diária desses profissionais.

de relações de ‘poder-saber’ que não devem ser analisadas a partir de um sujeito de


conhecimento livre das tramas do poder. Ao contrário, é preciso considerar que o
sujeito que conhece, os objetos que conhece e as modalidades de conhecimento são
efeitos dessas implicações do poder-saber e de suas transformações históricas.
Resumindo, não é a atividade do sujeito do conhecimento que produziria um saber,
útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam
e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do
conhecimento (FOUCAULT, 2002, p 27).

No presente estudo adotaremos a expressão recasamento para identificarmos um novo


casamento ou uma nova conjugalidade com coabitação, sem necessariamente ter sido
legalizada. Assim, consideraremos englobadas na mesma denominação as relações legais ou
consensuais, definindo a consensual como aquela formada de uniões sem vínculos legais.
Alguns autores (SAGER; COLABORADORES, 1983; WOODS, 1987; CARTER;
MCGOLDRICK, 1995; BRUN, 1999) confirmam nossa observação de que as expressões são
variadas e adotam diferentes denominações de acordo com a compreensão que têm dessa
133

realidade. Uma vez que não há consenso, procuraremos acompanhar as explicações dos
autores, perseguindo as definições que buscam compreender algumas das transformações da
família na nossa sociedade.
O recasamento introduz estrutura diversa da conhecida tradicionalmente nas
sociedades ocidentais contemporâneas no que se refere à constituição familiar. No formato da
família nuclear, as funções de pai, mãe, filhos e de membros da família extensa, como os
avós, estão claramente definidos, ainda que consigamos observar pequenas variações. E nas
novas famílias decorrentes do recasamento? Ainda temos necessidade de definir as novas
figuras que o recasamento cria, como madrasta, enteados, padrasto ou pais do padrasto e da
madrasta, às vezes já nomeados como vodrasta e vodrasto.
Segalen (1996) diz que se soma a essa ausência de definição a falta de enquadramento
jurídico ou legal para esta nova constituição familiar, o mesmo ocorrendo no Brasil. Petrini
(2005) compartilha dessa inquietação ao constatar que os modelos padronizados de
configuração familiar vêm sendo abandonados, porém, inexistem outros que os substituam.
Ao menos que estejam sistematizados, porque as vivências já existem, arriscaríamos afirmar.
Afinal, o que é recasamento? O que essa ideia representa?
Interessante frisar que o que provoca e dá origem a essas indagações é um fato, ou
melhor dizendo, um acontecimento, o recasamento. É ele que modifica a vida dos envolvidos,
do lugar ocupado por cada um no grupo familiar. Muitas vezes, deste recasamento nascem
novas famílias com ou sem filhos de relacionamentos anteriores, com filhos dos atuais e
projetos para o futuro. Variações na literatura concebem essas novas famílias como
recompostas, reconstituídas, tentaculares.
Alguns autores como Sager et al (1983), Visher; Visher (1988); Carter; McGoldrick
(1999) afirmam que a dificuldade encontrada pelos membros das famílias recasadas deve-se,
em grande parte, à referência ao modelo nuclear de família a ser seguido e alcançado e que a
sociedade em geral, as próprias famílias, bem como os terapeutas de família reforçam essa
ideia, como vimos anteriormente. Por ser um modelo de referência, exaltado pela sociedade,
criam-se valores e crenças por ela disseminados. Relatam ainda, os autores, que os próprios
pesquisadores do tema colocam a família nuclear em uma posição privilegiada, com que as
outras – recasadas, recompostas, reconstituídas, tentaculares – serão comparadas.
Para Vaitsman (1994), a família recasada é formada a partir de uma expectativa
irrealista, englobando nessa visão crianças e adultos: espera-se que as famílias recasadas
funcionem da mesma forma que as famílias nucleares, o que a autora considera a mais
problemática de todas as expectativas. Essa visão pode conduzir à compreensão de que as
134

relações não necessitam de qualquer investimento para acontecer, pois serão automaticamente
boas. Esse modo de perceber a família recasada está impregnado de crenças culturais que ora
adotam formas negativas, atribuindo aos seus personagens comportamentos que os
desqualificam (madrastas ou padrastos maus), ora irrealistas, julgando que as pessoas
envolvidas sempre interagirão positivamente (amor instantâneo).
Kelley (1996 apud COSTA, 2008) descreve que as famílias recasadas esforçam-se
para encaixar-se no modelo da família nuclear e que, por não atingirem esse objetivo,
acreditam que estão fracassando. Essa compreensão remete à falta de entendimento e da não
aceitação de regras diferenciadas, coerentes com as especificidades dessa nova família. Nessa
dinâmica o que importa é saber que a diferença não constitui um problema em si mesma, mas
que o seu entendimento é fundamental para apossarmo-nos dos novos sentidos.
O fato é que enquanto a sociedade não se reestruturar para conviver e validar as
famílias recasadas, o modelo nuclear continuará a ser o padrão. Porém se, de outro modo,
pensarmos essas famílias distintamente como possíveis e viáveis, essa visão poderá contribuir
para uma percepção social diferente, na qual suas estruturas complexas não mais serão
identificadas como cópias imperfeitas da família nuclear (VISHER; VISHER, 1988).
Grisard (2010) priorizou a expressão família reconstituída para referir-se ao
estabelecimento de um novo relacionamento após a dissolução de família anteriormente
formada. Conceitua o autor como família reconstituída “a estrutura familiar originada do
casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros tem um
ou vários filhos de uma relação anterior. Numa formulação mais sintética, é a família na qual
ao menos um dos adultos é padrasto ou madrasta” (p. 85).
Segalen (1996) realizou o seu estudo na França com famílias que haviam se
divorciado e denominou de recomposta a experiência vivida por seus membros quando de um
novo relacionamento pós-divórcio, salientando que o número de famílias desse tipo tem
aumentado. Relatou que entre os anos de 1981 e 1986, 48% das crianças vivenciaram o
recasamento de pelo menos um dos pais e que em relação a outros 37% das crianças ambos os
genitores recasaram.
As famílias recompostas não podem ser vistas como uma preexistência calcada no
modelo da família nuclear. E sim precisam dar sentido às suas existências por suas próprias
formulações, ou seja, como autores/atores dessa trama, atribuindo-lhe significados,
articulando modos de viver e dando sentido a suas vidas. Assim, não é a mera substituição ou
transformação de um termo por outro que define essa nova constituição familiar. Não são os
termos supostamente afixados a esse contexto – família recasada, recomposta, reconstituída –
135

que decodificam aquilo que a família se torna (VASCONCELLOS, 2005).


Independentemente do termo utilizado, uma nova relação conduz à formação de múltiplos
laços de parentesco tornando-se difícil defini-los de antemão. Poderíamos dizer que essa
dificuldade, respaldando nosso entendimento na ideia acima exposta por Carter e Mcgoldrick
(1999), deve-se ainda à importância atribuída ao modelo nuclear. Não são nítidos os
parâmetros de como os membros dessa nova família vão desempenhar suas funções,
tampouco como serão nomeados. Muitas vezes as funções da família constituída por um novo
casamento, no que tange à reprodução e transmissão de normas constituídas, também se vê
inserida em um contexto permeado pela valorização dos significados atribuídos à produção e
manutenção dos vínculos familiares e perpetuação de sua própria existência. Neste sentido,
podem assumir características não tão modernas assim, mas que reforçam a construção de
antigos estereótipos e paradigmas que circunscrevem e dão significado à família nuclear
(BRUN, 1999).
A exemplo da nomenclatura até agora utilizada para identificar as novas famílias que
se formam após o rompimento de uma relação anterior – recasada, reconstituída e recomposta,
também podemos utilizar o termo tentacular, privilegiado por Kehl (2003) para distingui-la da
família extensa pré-moderna e da família nuclear. Para a autora,

na confusa árvore genealógica da família tentacular, irmãos não consanguíneos


convivem com “padrastos” ou “madrastas” (na falta de termos melhores), às vezes já
de uma segunda ou terceira união de um de seus pais, acumulando vínculos
profundos com pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas. Cada
uma dessas árvores hiper-ramificadas guarda o traçado das moções de desejo dos
adultos ao longo das várias fases de suas vidas – desejo errático, tornado ainda mais
complexo no quadro de uma cultura que possibilita e exige dos sujeitos que lutem
incansavelmente para satisfazer suas fantasias (KEHL, 2003, p 169).

Miranda-Ribeiro (1993), com base na teoria econômica e no processo de tomada de


decisão racional, estudou os determinantes sócio-econômicos e demográficos do
descasamento e do recasamento feminino nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, em
comparação à Região Nordeste, com base nos dados da PNAD (Pesquisa Nacional por
Amostra Domiciliar) de 1984. No caso do descasamento, o estudo englobou as mulheres
alguma vez unidas ou atualmente em primeira união, bem como aquelas cuja última separação
foi da primeira união. Em relação ao recasamento, o foco de análise foi direcionado às
mulheres descasadas da primeira união - via separação ou viuvez -, ou seja, passíveis de
estabelecer uma segunda união. Os resultados indicaram que as mulheres de maior
escolaridade se descasam mais e se recasam menos. Entre aquelas cuja primeira união foi
136

consensual, o risco de descasamento é maior. As descasadas se recasam mais facilmente, se


comparadas às viúvas. O padrão de descasamento varia segundo também a classe social de
nascimento da mulher, seu tipo de união, sua idade à primeira união, a diferença de idade
entre os cônjuges e o fato do primeiro filho ter nascido dentro ou fora da união 8.
Recentemente encontramos na PNAD (2012), mesma base de dados utilizada por
Miranda-Ribeiro (1993), embora a autora apresente pontos mais específicos sobre
descasamento e recasamento - a seguinte realidade no que se refere à separação, divórcio e
recasamento: o aumento expressivo de separações, divórcios e recasamentos, e a queda do
número de casamentos legais nas ultimas três décadas. Foi possível constatar também o
crescente número de outras formas de família, como os arranjos unipessoais, que são pessoas
que vivem sozinhas. A PNAD (2012) aponta como fatores significativos para esse arranjo a
queda da fecundidade e o envelhecimento da população. Nas famílias que preservam os laços
de parentesco houve redução dos arranjos formados por casal com filhos, ocorrendo aumento
do número de casais sem filhos, bem como o incremento do número de arranjos
monoparentais femininos, indicados pela PNAD (2012) como uma das prováveis causas para
a queda da fecundidade, incluindo também nessas causas o desenvolvimento das relações de
gênero, em conformidade com as transformações econômicas e sociais, tanto no âmbito
público como no privado, vinculadas a uma maior presença de mulheres no mercado de
trabalho e com maiores níveis de escolaridade. Isso reflete consideravelmente no aumento da
incidência de mulheres responsáveis por núcleos familiares entre 2001 e 2011. Esses estudos
confirmam a nossa compreensão sobre as transformações que vêm ocorrendo com a família
nos últimos anos.

6.2 Conjugalidade: algumas palavras de pessoas recasadas

Outro aspecto importante que pode ser considerado na família de segundo casamento é
a comunicação. Souza (2000) considera a dificuldade de diálogo uma de suas características.
Essa dificuldade pode estar associada à ausência de comunicação vinculada ao processo de
separação. A falta de dialogo pode ser também uma característica vivida na família de origem

8 Vide página 141 na página abaixo


http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais201
0/SIS_2010.pdf
ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf
137

e transportada para o novo núcleo familiar. A autora observou também que nas famílias com
filhos pequenos existe a dificuldade de abordar a separação conjugal, sob a justificativa de
que o assunto poderia trazer prejuízos para a criança. Desse modo, os filhos mantêm o
silêncio que é compreendido, pelos pais, como ausência de dificuldade (SOUZA, 2000).
Dolto (1988) nos fala que o divórcio é um processo tão honroso como o casamento.
“De outro modo, todo o silêncio feito em torno dele fica sendo, para as crianças, como se o
divórcio fosse uma “sujeira”, sob o pretexto de esse acontecimento ser acompanhado de
sofrimento” (P. 26). Para ele, os pais deveriam assumir o processo de separação, ou seja,
responsabilizar-se por esse acontecimento e realizar um trabalho de preparação.

Os dois pais devem humanizar sua separação, dizê-la em palavras, e não guardá-la
para si sob a forma de uma angustia indizível, exprimível somente pelos humores,
por estados depressivos ou de excitação que a criança sente como um abalo na
segurança dos pais (DOLTO, 2011, p 22).

Não são raros os casos em que a família busca recursos terapêuticos para o novo
arranjo, talvez na tentativa de conciliar o desenvolvimento de suas vidas e as relações afetivas
entre os seus componentes, como nos propõe Carter e Mcgoldrick (1995).
Coerente com essa observação encontramos, no estudo de Woods (1987) sobre o
recasamento no Brasil, a constatação de que o número de casais recasados que recorriam à
ajuda terapêutica para seus conflitos aumentou. Para Woods, mesmo com a possibilidade do
recasamento após o divórcio, os divorciados hoje experimentam sentimento maior de
liberdade e de não comprometimento em relação à nova união. Esses sentimentos, em geral,
não faziam parte da experiência vivida no primeiro casamento.
A expressão desses sentimentos, se por um lado contribui para um melhor
relacionamento, por outro parece contribuir para que o recasamento se configure como uma
relação de “segunda categoria, menos qualificada socialmente, principalmente para o(a)
outro(a) parceiro(a) que não vivenciou a experiência de rituais, cerimônias e preparações de
um primeiro casamento” (TRAVIS, 2003, p 14).
Quando se pensa a família no imaginário social, ainda vincula-se a essa imagem a
família formada por pai, mãe e filho, a família nuclear. Travis (2003) nos relata que algumas
estruturas sociais não reconhecem plenamente a legitimidade de outras relações familiares,
apontando como exemplo a escola, que insiste em preservar o modelo preconcebido da
família nuclear. O que nos remete a pensar uma escala hierárquica em que a família nuclear
ocuparia posição e status superior ao da família recasada ou reconstituída.
138

6.2.1 Satisfação garantida ou casamento desfeito...

Destacando a importância dos sentimentos nas relações conjugais, englobando


reapaixonamentos, recasamentos e adolescência conjugal, Vargas (1997) propõe em seu
trabalho que existe a necessidade de vivências polares no casamento para que haja uma
verdadeira conjugalidade, rica e criativa. A transformação da paixão em amor, que permite
estas vivências, segundo ele, é uma condição básica.
Abordando também a questão dos sentimentos no contexto conjugal, a pesquisa de
Echeverria (1996) pretendeu contribuir para a compreensão dos processos de
construção/destruição/construção de territórios afetivos: primeiro casamento, separação e
segundo casamento, assim como abordar as transformações da subjetividade feminina ao
longo desses processos. Para isso foi feito um estudo de campo, em que entrevistou quatorze
mulheres da classe média. Concluindo, a autora relatou que o que faz do recasamento uma
nova chance é a abertura à alteridade, à experimentação e o acolhimento das diferenças na
nova relação, sem que a filiação ou a maternidade tenham sido especialmente abordadas.
Pascual (1990) investigou a relação entre as dimensões individualidade e
conjugalidade no re-casamento. Para o autor existem diferenças significativas na vivência de
ambas as dimensões em cada um dos grupos. Realizou pesquisa com pessoas da classe média
carioca e os resultados demonstraram diferenças significativas, neste sentido, entre pessoas
casadas de primeiras núpcias e as recasadas. Considerou que, uma vez que a relação marital é
caracterizada por forte presença de atitudes polarizadas entre a identidade pessoal de cada
cônjuge e a identidade conjugal, o casal ou cria rígidos limites entre si ou se funde numa
relação em que os limites da individualidade desaparecem. Identificou que duas
características encontradas no casamento de primeiras núpcias - a rigidez e a preservação de
padrões estereotipados - apareceram no re-casamento, mas de forma atenuada.
Dentro dessa perspectiva, em que a qualidade das relações torna-se primordial,
Wagner (2002) considera o re-investimento afetivo, envolvendo os membros dessa família
recasada, a base para sua formação. Os vínculos afetivos são a sustentabilidade da construção
e desenvolvimento das famílias, inclusive a reconstituída, que se caracteriza pela complexa
rede de relações criadas com a entrada de novos membros. Não são apenas os termos, mas a
sua estrutura e o desenvolvimento das suas relações que carecem de compreensão. Essa ideia
trabalhada pela autora – re-investimento - traz a possibilidade de reconstrução da vida afetiva.
Assim, o recasamento pode estar vinculado à ideia de reconquista e recriação de vínculos de
139

intimidade, afeto e companheirismo. A ideia de reinvestimento aqui pode sofrer a mesma


crítica sofrida pela ideia de recasamento – a da impropriedade, por tratar-se de novos
relacionamentos e não de repetição.
Ainda que Vargas (1997), Echeverria (1996) e Pascual (1990) não tematizem a
filiação, que é central na nossa pesquisa, estes trabalhos contribuem para a compreensão do
que está em jogo no recasamento. Negociações e transformações parecem marcar o cotidiano
dos casais recasados que partem para esta segunda relação com bagagem e expectativas de
quem imagina ou deseja o que quer repetir e o que pretende abortar do casamento.
Encontramos em Silva, Trindade e Silva Junior (2012) estudo de como cada gênero
lida com essas expectativas. Tiveram como objetivo analisar as representações sociais (RS) de
conjugalidade em casais recasados. Os resultados revelaram que a RS da conjugalidade se
organiza de maneira diferente para homens e mulheres.
Em consonância com o estudo acima, Martins (2009) pesquisou a conjugalidade
abordando como um dos objetos de representação social o tema recasamento. Realizou
pesquisa com grupos de classe média alta e classe alta. Seu estudo teve como objetivo
principal pesquisar a conjugalidade, enfatizando que a relevância dessa temática está na
compreensão de uma realidade que, em princípio, pode ser vista como paradoxal: observou-se
o aumento no número de separações e divórcios, mas, ao mesmo tempo, verificou-se, a
manutenção da importância do casamento para os indivíduos. Diante dessa constatação seu
objetivo passou a ser identificar o campo representacional da conjugalidade e a sua relação
com as práticas cotidianas do casal. A autora utilizou a Teoria das Representações Sociais
como base para as análises. Delineou a metodologia adotando a abordagem qualitativa e o
instrumento de coleta de dados foi a técnica de grupo focal. Com o propósito de atingir o seu
objetivo formou 6 grupos focais, 3 grupos formados por mulheres e 3 grupos por homens.
Apresentou os seguintes critérios para participação: Grupo 1: estar casado até 10 anos; Grupo
2: estar separado e/ ou divorciado; Grupo 3: estar no segundo casamento. Além dos
participantes terem que ter filho do primeiro casamento. No campo representacional da
conjugalidade foram determinados os objetos de representação social do amor,
casamento/recasamento e separação/divórcio, compartilhados ou específicos para cada sexo.
Assim, observou, compartilha-se a conjugalidade como representada por amor, cumplicidade
e respeito; a separação como frustração do desejo de conjugalidade. Especificamente no que
diz respeito às mulheres estas representavam a conjugalidade como espaço de doação para o
bem da relação conjugal. Representações idealizadas/ românticas modificavam-se em face do
cotidiano. Pela análise do campo representacional evidenciaram-se elementos tradicionais de
140

gênero tanto quanto aqueles que configuram uma igualdade maior. A análise de ancoragem do
campo representacional da conjugalidade destacou a satisfação e a felicidade individuais.
Resultou da pesquisa que a conjugalidade determina um espaço afetivo em que ambos
precisam estar satisfeitos, para o que a negociação revela-se elemento essencial.
Independentemente do modelo de família a satisfação e a felicidade estarão em jogo.
Levy e Gomes (2010), partindo do entendimento de que a família nuclear, até recentemente,
era considerada como a família padrão, mas que convive hoje com novas configurações,
elaboraram seu artigo a partir da análise de um caso clínico. Assim, discutiram os encontros e
desencontros que permeiam o laço amoroso, tomando o jogo instituído pelos cônjuges como
uma metáfora dos tempos vividos nos casamentos e recasamentos.
Por fim, fechando a presente revisão de estudos ligados à conjugalidade no
recasamento, os próximos dois trabalhos abordam respectivamente “mudanças na concepção
do casamento” e “dispositivos de aliança e de sexualidade no casamento e recasamento”,
aspectos a nosso ver importantes e que demandam iniciativas que possam enriquecê-los.
Bucher e Rodrigues (1990) apresentaram uma reflexão acerca das mudanças na
concepção legal de casamento e filiação, decorrentes da nova Constituição Brasileira. Em
seguida avaliaram os estudos sobre recasamento e a recomposição familiar, realizados nos
últimos 10 anos. Abordaram as principais questões metodológicas decorrentes deste novo
objeto de estudo e a problemática em relação à nomenclatura utilizada pelos pesquisadores.
Analisaram também a linguagem usada entre as pessoas pertencentes a essas novas redes de
relações. Refletiram ainda sobre a contribuição das principais abordagens teóricas acerca do
recasamento e da recomposição familiar.
Féres-Carneiro (1987), com o objetivo de verificar como se manifestavam as
dimensões de aliança e sexualidade em casais de primeiro casamento e em casais recasados,
realizou um estudo empírico com dois grupos de casais da classe média carioca. Os dados
foram levantados através de uma entrevista semi-estruturada elaborada a partir da delimitação
dos conceitos de aliança e sexualidade, realizada conjuntamente com ambos os membros do
casal. O estudo permitiu concluir que aliança e sexualidade se manifestavam de forma
diferente em casais de primeiro casamento e em casais recasados e ressaltou as principais
diferenças na manifestação destas dimensões na vida conjugal dos dois grupos de casais.
Como já dissemos o campo carece de estudos, que não só abordem novas temáticas,
como também proporcionem maior compreensão de aspectos pouco abordados ou abordados
por apenas um ou poucos estudiosos.
141

Cano et al (2009) concordam com nossa avaliação, quando ao descreveram o


panorama do divórcio no Brasil e as pesquisas encontradas nesta área, examinando os fatores
relacionados com o processo de separação, o impacto associado a essa transição nas famílias,
assim como o período de pós-divórcio e de recasamento, consideraram que existem lacunas a
ser preenchidas com novos estudos, sugeriram a realização de pesquisas envolvendo o
processo de divórcio e recasamento nos diferentes momentos do ciclo vital da família, bem
como sobre a fratria dos filhos de casais divorciados, as variadas configurações familiares e a
rede de apoio dessas famílias.

6.3 Quando a parentalidade habita o recasamento

Féres-Carneiro (1998) discutiu diversas questões tendo como objeto o casamento


contemporâneo. Assim ressaltou como aspectos importantes: a relevância institucional do
casamento e o papel que ele desempenha para os indivíduos como instrumento de construção
nômica; descreveu como o casal contemporâneo é confrontado por duas forças paradoxais, ou
seja, pelas tensões entre individualidade e conjugalidade; abordou o tema da manifestação da
aliança e da sexualidade no casamento e no recasamento contemporâneos; discutiu a questão
da separação conjugal e suas conseqüências para os membros do casal e da família; descreveu
as características da família recasada e suas possibilidades de interação funcional; enfatizou a
importância da relação conjugal para o desenvolvimento emocional dos filhos e, finalmente,
ressaltou que o compromisso da terapia de casal não é com a manutenção ou a ruptura do
casamento, mas com a saúde emocional dos membros do casal e da família.
Guerriero et al., (1999) objetivando realizar uma revisão na literatura sobre famílias
recasadas, fizeram levantamento abrangendo um período de 30 anos, incluindo artigos e
dissertações. Foram utilizadas as bases de dados Medline, Lilacs, PsyciNFO-APA e UMI.
Num contexto geral, constataram, existia na literatura grande ênfase em estudos e pesquisas
sobre a consequência do recasamento na saúde mental dos filhos e sobre o recasamento e a
saúde física dos cônjuges. As autoras discutiram a necessidade e a importância de um maior
número de pesquisas em determinadas áreas de estudo da família recasada, como a dinâmica,
o funcionamento e a intervenção.
O estudo de Grillo (2011) retratou a vida conjugal de mulheres da camada popular de
Salvador, Bahia. Teve por objetivo identificar o contexto em que ocorre a vida conjugal de
142

mulheres da camada popular e ampliar a compreensão sobre conjugalidade. Na realização do


estudo utilizou a abordagem qualitativa de estudo de caso. Foram por ela entrevistadas sete
mulheres moradoras em um bairro popular de Salvador. Para a realização das entrevistas
elaborou questionário semi-estruturado visando descrever e identificar as situações
relacionadas à conjugalidade. O método de análise foi por derivação dos conteúdos das
entrevistas que objetivou a criação de categorias. Para a obtenção dos resultados foram
agrupados em dois eixos, sub-divididos em categorias: 1º eixo: contextos das conjugalidades:
agressividade; maternidade; ambivalência no enfrentamento; 2º eixo: modos de resolução das
tensões : presença do homem; rede de apoio; modos de enfrentamento da situação conjugal;
recasamento. Em sua conclusão, relata que as entrevistadas vivenciaram experiências
amorosas que as levaram a optar pelo companheiro, esforçando-se em manter os
relacionamentos, tendo estes, contudo laços frágeis, ocasionando conjugalidades, embora
tradicionais, sucessivas. A maternidade, para o estudo em causa, foi fonte geradora de
desavenças conjugais, devido à agressividade e violência conjugal por ciúme, uso de drogas e
traição, ocorrendo humilhações e sentimentos contraditórios dirigidos ao companheiro. Na
busca pela resolução das tensões, solicitaram apoio às famílias e a outras instituições, tais
como, delegacias e igrejas. Buscaram também recursos em si mesmas, desenvolvendo
competências internas. O recasamento sucessivo, ou a troca dos parceiros, condicionava-se à
necessidade de sustentação econômica, para educar os seus filhos e para a proteção moral e
física. Segundo a autora, essas mulheres parecem estar imersas em um contexto cultural no
qual valores tradicionais de conjugalidade coexistem com valores modernos gerando modelos
de conjugalidade a serem melhor conhecidos. Dois pontos chamam a atenção nesta pesquisa
em relação a que agora desenvolvemos: a opção pela conjugalidade e a maternidade como um
entrave para novas relações.
O campo por nós estudado possibilitou-nos perceber que, em sua maioria, as mães dos
entrevistados recasaram e que o recasamento da genitora conduzia, no entendimento de seus
filhos, ao afastamento deles. Não se observou na fala dos filhos o relato de que eles teriam
sido o impedimento para uma nova relação.
Com o recasamento da mãe outros personagens entram em cena, mas não
necessariamente serão nomeados, talvez pela ausência de intimidade, afeto ou rivalidade com
o novo membro da família na sua relação com a figura materna, talvez pela falta de termos
que possam defini-lo. A busca de termos adequados para os membros das famílias que
passam por um segundo casamento parece uma constante entre autores e teóricos. Carter e
Mcgoldrick (1999) dizem que ainda estamos utilizando a família nuclear como modelo de
143

referência e Brun (1999) destaca que os termos madrasta, padrasto e enteado, até agora
sugeridos, carregam sentido negativo. Outros autores (SAGER et al, 1983; VISHER;
VISHER,1988 citado em CARTER; MCGOLDRICK,1995; BERNSTEIN, 2002; BRUN,
2004) fizeram também referencia a esses mesmos termos, considerando-os inadequados para
designar as representações que emergem da multifacetada família composta pelo recasamento.
Para Bernstein (2002), os termos madrasta, padrasto, enteado(a), etc, frequentemente remetem
a conceitos como “perversa”, “abusivo”, “maltratado(a)”, “infeliz” ou “não tão boa quanto”.
A autora reporta-se às histórias infantis, às tensões existentes entre madrastas e enteados,
influenciando no imaginário social a percepção de que madrastas são malvadas e enteados,
infelizes. Brun (2004) notou também aquilo que denominou “ausência de códigos linguísticos
para o recasamento”, ou seja, tensões que comprometem a assimilação dos membros desta
família em seus novos papéis. Na dinâmica das famílias as regras não são evidentes nem
sinalizadas e inexiste a formação, sob o ponto de vista cultural, de usos e costumes que
possam nortear os relacionamentos, suscitando inúmeras duvidas e questionamentos: Quem é
o provedor, quem é o disciplinador e quem acompanha a educação das crianças? Os espaços,
os lugares, os feitios de madrasta, padrasto e enteado não são claramente definidos e
compreendidos, ao contrário dos de pai, mãe, filhos e irmãos, claras do ponto de vista social.
Entendemos que os relacionamentos que se seguem ao divórcio podem ter
configurações diferentes do mencionado acima. Para tanto buscamos em Wagner e Sarriera
(1999) os resultados encontrados em seus estudos com adolescentes mais velhos, que
apontam nesse grupo melhor aceitação do recasamento dos pais. Inclusive observaram que,
em alguns casos, adolescentes que assumiram responsabilidades na ausência de um dos
genitores tiveram essas mesmas responsabilidades diminuídas em função da presença do
padrasto ou madrasta. Notaram que a idade dos jovens, em geral condiciona a relação de
proteção e cuidado, vinculado no caso dos mais velhos também com o padrasto/madrasta. O
mesmo não ocorre no caso dos mais novos que a mantém preferencialmente com seus
genitores, o que pode resultar em comprometimento da relação com o padrasto ou madrasta.
É nosso entendimento que o padrasto/madrasta pode assumir uma posição relevante no
novo contexto familiar, quando um ou mais genitores estão ausentes, pois abre-se a
possibilidade de novos vínculos, sem que isso signifique, necessariamente, a substituição do
correspondente biológico. Como pondera Bernstein (2002, p 309): ”tornar-se madrasta de
filhos que ainda têm suas mães e padrasto de filhos que continuam a se encontrar com seus
pais implica criar um novo tipo de relação ao invés de tentar copiar os ideais culturais
profundamente interiorizados do que significa ser um pai ou uma mãe”.
144

Estamos tentando abordar a ideia de pertencimento, pois tudo nos leva a crer que na
família de origem temos garantida uma identidade própria. Entretanto, com o processo de
entrada e saída de pessoas que passam a fazer parte de nosso cotidiano a dinâmica pode trazer
a percepção de territórios compartimentalizados entre o “nós e os outros”.

alguém vai lá e molha a batata. Então, foi o que aconteceu com a gente. Uns foram
assim, ajudando, botava aquela aguinha prá que a gente crescesse, dava ajuda, tipo a
minha avó, que me criou, criou a minha irmã... então a gente não teve ela, a gente
tinha que ter prá...... tudo eu chorava atrás da minha mãe. Teve uma hora aqui que eu
tava muito doente, eu chorava, falava: “eu quero a minha mãe, eu quero a minha
mãe”, aí a moça que tava me criando, ela falou assim: “você... a sua mãe sou eu...
esqueça a sua mãe, esqueça... sua mãe sou eu, sou eu que tô do seu lado, p’ro que
der e vier... posso não ser a sua mãe, mas tô fazendo o papel dela.” Aí eu falava:
“então tá bom”. E ali eu fui vivendo, fui crescendo, tudo que eu pedia prá ela, ela
me dava.. eu era chatinha, ela fazia a minha vontade. Eu falava: “quero sorvete”,
coisa de adolescente, respondia muito ela, por causa da adolescência, mas ela
sempre fala que eu fui uma menina boa e comportada, nunca dei trabalho, né?
(Eliane, 43 anos, Filha)

Assim, na formação de uma nova família encontramos pessoas desconhecidas daquele


universo inicial – a primeira família – que entram em cena, padrastos/madrastas e enteados,
demandando a confecção de novos vínculos, novos laços. A edificação desses novos laços
pode não ser tão simples para as crianças, pois à ausência física de familiares pode não
corresponder a sua ausência psicológica, tornando difícil a reorganização das funções,
defende Zonabend (1986).
Antes de sermos nós mesmos, somos o filho ou a filha de Fulano ou Beltrano;
nascemos numa família, e antes que possamos ter uma existência social própria, é por um
nome de família que se nos referem. As primeiras palavras que qualquer criança aprende – os
tão significativos “papá” e “mamã” – são as que designam o seu pai e a sua mãe, logo a
seguir, os demais vocábulos do parentesco. Assim o mundo se reparte entre os Seus e os
Outros (ZONABEND, 1986, p 14).
Essas discussões enfatizam e priorizam o estabelecimento de termos que possam
acomodar, dar lugar aos membros dessa nova formação familiar. Como ficam estes termos -
madrasta, padrasto e enteado - diante do significado que as famílias lhes atribuem no
estabelecimento e qualidade de suas relações? As relações só poderão ser de qualidade ou
aceitas e entendidas pela sociedade a partir de uma definição? De acordo com Szymanski
(2003) não é a estrutura da família que devemos focalizar, mas a qualidade das suas relações.
Para Amaral (2010) o recasamento tem ocorrido com bastante frequência,
principalmente, como decorrência do número de separações e divórcios. A adaptação entre os
145

diversos membros, nesta nova família, pode trazer-lhes muito sofrimento, dada a necessidade
de conhecimento, tempo e flexibilidade que tal configuração demanda. Os filhos,
especialmente, podem sentir solidão, abandono, conflitos de identidade e de lealdade, e
desenvolver sintomas ou dificuldades que precisam ser compreendidas e enfrentadas.
Investigou como os filhos perceberam e vivenciaram as mudanças que ocorreram em suas
vidas devido ao recasamento de um ou de ambos os genitores. Trata-se de uma pesquisa de
natureza qualitativa, da qual participaram quatro adolescentes e jovens adultos, com idades
entre 15 e 24 anos, solteiros, de camada social média, que responderam a uma entrevista
conduzida de forma semi-dirigida. Concluiu a autora que, apesar das dificuldades iniciais
devidas às alterações na estrutura física (perda de privacidade), na rotina (novos hábitos e
regras) e na dinâmica da casa, com a introdução de novos personagens (padrasto/madrasta,
meio-irmãos e irmãos políticos ou de convívio), os participantes relataram mais aspectos
positivos do que negativos nesta configuração.
Nesse estudo, realizado em camadas medias da população, são destacadas
decorrências da inclusão de novos membros na casa e as negociações necessárias às
adaptações, mas não há referência à busca por aparelhos do Estado que dessem conta da nova
situação. Sem querer reduzir as diferenças, tampouco desconsiderar singularidades,
importante destacar que a classe social é um importante marcador no que se refere à família.
Tanto por conta dos modos de funcionamento, como descrevemos há pouco, quanto na sua
exposição aos mecanismos e instituições do Estado que oferece, em alguns casos, direitos
muito básicos a população, mas é bastante eficiente em vigilância e punição da população
mais pobre.
Costa (2008), em trabalho intitulado “A arte de recomeçar: uma compreensão da
dinâmica das famílias recasadas”, teve por objetivo investigar como individualmente os
membros do casal recasado, há pelo menos dois anos, vivenciavam essa experiência. Para
atingir o objetivo proposto foram entrevistadas oito pessoas residentes da cidade do Recife. O
grupo foi constituído por cinco pessoas do sexo feminino e três do sexo masculino, todos
recasados e com filhos de casamento anterior, biológicos ou adotivos. Ficou evidente, para a
autora, que as famílias recasadas apresentavam as mesmas características de partilha de
residência, atividades e responsabilidades comuns na família que ela denomina intacta,
referindo-a também como casamento. Também foi observado o esforço dispendido na
preservação desse sistema conjugal, bem como na sua distinção perante outros sistemas.
Particular atenção resultou da divisão da prole obedecendo a sua origem – seus filhos, meus
filhos – nunca sendo designados como “nossos”. Revelou-se a angústia quanto ao
146

desempenho dos papéis de madrasta e padrasto, atenuados a partir dos três a quatro anos de
convivência, quando observada maior integração familiar. Pode-se observar a preeminência
do modelo nuclear nas representações do recasamento, fato que, segundo a autora, não
diverge das críticas dos teóricos a respeito da influência do modelo de família nuclear, pois
que estes não sugerem o abandono completo do modelo.
David (2005) em seu trabalho investigou os conteúdos de papel familiar e parental
atribuídos ao padrasto por adolescentes que vivem e que não vivem em famílias recasadas.
Tratou-se de um estudo quantitativo realizado com 155 adolescentes de 12 a 20 anos que
moram no Estado de São Paulo. Foi usado um questionário de aplicação coletiva que incluía
questões sobre composição familiar, atributos de papel, temas de dúvida e de conflito com o
novo cônjuge materno. Os resultados indicam que jovens que não têm uma experiência direta
com padrasto exibem expectativas de papel mais flexíveis do que os que vivem em famílias
recasadas. Em ambos os grupos, não se esperava qualquer comportamento parental por parte
do padrasto. Sexo, idade e tempo de separação dos pais estão relacionados à qualidade do
relacionamento com o mesmo.
Ribeiro (2005) abordou o assunto recasamento considerando os múltiplos laços de
parentesco que se originam dessa formação – recasamento. Diz que, quando não existem
filhos no primeiro casamento ou em uniões anteriores, a chegada do filho ocorre após o ajuste
inicial do casal e que nas famílias recasadas esse tempo não existe, levando os membros da
nova família a uma acelerada readaptação, construção e expansão dos territórios afetivos.
Ribeiro (2005) ainda observou em seu estudo, realizado em famílias das camadas médias, um
significativo aumento do número de recasamentos, e que essa modalidade de relação emerge
com múltiplos vínculos de parentesco de difícil definição. Com base nessas considerações a
autora desenvolveu a sua pesquisa de campo, cujo objetivo foi investigar a construção das
relações afetivas entre padrastos/madrastas e seus enteados adolescentes. Os membros, que
passam a conviver dentro da família recasada, seriam responsáveis pela construção e
ampliação das trocas afetivas, levando-os à constante readaptação e ajustes da rotina familiar.
A pesquisa de campo foi realizada com famílias formadas com pelo menos um dos filhos do
casamento anterior convivendo com a família atual. Com o objetivo de averiguar os
relacionamentos afetivos entre padrastos, madrastas e seus enteados adolescentes, efetuou
entrevista com 10 indivíduos distribuídos segundo a amostra selecionada (padrasto, madrasta
e enteado). Foram entrevistados, em separado, cinco padrastos/madrastas e seus respectivos
enteados. Todos os participantes pertencentes à classe média, moradores da cidade do Rio de
Janeiro e com dois anos, no mínimo, de convivência entre os membros. As entrevistas foram
147

gravadas e os textos resultantes da transcrição foram submetidos a uma análise de discurso.


Os resultados apontam para o fato de que a maioria dos padrastos/madrastas e enteados não
conseguiram estabelecer, entre si, uma relação afetiva satisfatória. Ao contrário, verificou que
existe um distanciamento entre a maior parte dos entrevistados, provocado, principalmente,
pela falta de diálogo. Observou, também, a influência significativa do modelo tradicional de
família (pai-mãe-filhos) dificultando a construção e/ou o desempenho de papéis mais
específicos (madrasta/padrasto-enteados) e pertinentes à nova configuração familiar. Em
outras palavras, os resultados apontaram para uma utilização do modelo tradicional de família
para parametrizar os vínculos surgidos no recasamento, na busca por uma relação afetiva
satisfatória entre padrastos, madrastas e enteados. E que esse modelo preexistente dentro do
contexto da família recasada, qual seja, o modelo nuclear de família, internalizado, dificultava
a construção e o desempenho de outras configurações familiares.
Enfim, os trabalhos de Costa (2008), David (2005) e Ribeiro (2005), todos tratam das
dificuldades na relação enteados/padrastos e madrastas em famílias de camadas medias.
Woods (1987) diante da falta de material a respeito do recasamento e da constatação
do aumento de sua ocorrência buscou aprofundar o conhecimento sobre o recasamento no
Brasil. O trabalho de campo compreendeu o período do mês de janeiro a julho de 1987 no Rio
de Janeiro e São Paulo quando foram realizadas entrevistas com onze famílias recasadas da
classe média. Utilizou o método biográfico por sua adequação a um grupo típico de pessoas.
Para fundamentação teórica baseou-se na teoria geral de sistemas e em seus conceitos sobre
interdependência entre sistemas limites e equilíbrio familiar. Concluiu que a relação do casal
recasado é mais aberta que a anterior e mais realista. Constatou mais compreensão, esforço e
paciência; que os filhos são o que mais pesa e que sua atitude com padrastos e madrastas
depende da atitude dos pais.
Este estudo de Woods (1987) introduz um importante aspecto para os estudos sobre
relação entre os cônjuges no recasamento e seus enteados, que é a mediação dos pais e mães.
Wagner (1999) tendo por objetivo conhecer as expectativas e percepções que os
adolescentes têm sobre a união de suas mães com outro companheiro, e em relação ao novo
núcleo familiar, realizou um estudo de natureza qualitativa. Utilizou a entrevista em
profundidade semi-estruturada (OLABUENÁGA, 1996), em três duplas de mães e filhos
adolescentes com o intuito de conhecer a trajetória das famílias desde a separação dos casais
até o recasamento. Além das Entrevistas, para os filhos também utilizou o Desenho da
Família e um instrumento de doze Frases Incompletas, que aprofundaram os dados obtidos
com as entrevistas. A partir do estudo de cada caso, verificou que os sujeitos perceberam o
148

recasamento de suas mães como um acontecimento positivo, tanto para sua vida pessoal como
para a vida de suas mães. Os sujeitos têm, para a pesquisa, a expectativa de que o recasamento
continue e que o casal permaneça unido futuramente. Quanto às famílias reconstituídas das
quais fazem parte, eles a percebiam de forma positiva e tiveram expectativas de que as
mesmas permanecessem unidas e seguissem o seu ciclo evolutivo vital. Concluiu que os
fatores que propiciaram essas expectativas positivas em relação ao recasamento estão
associados à percepção que os sujeitos têm a respeito da relação de suas mães com seus
cônjuges, pois o fato de os filhos perceberem suas mães com melhores níveis de bem-estar
junto aos seus atuais companheiros fazia com que os sujeitos esperassem que o recasamento
fosse duradouro.
Os casos que aparecem na pesquisa de Wagner (1999) não experimentaram o
afastamento de suas mães quando da nova união, o que, em principio, diferencia radicalmente
os filhos daqueles da pesquisa que apresentamos nesta tese. Chama a atenção o relato positivo
da relação entre padrastos e enteados, fenômeno que nem sempre aparece, como vimos
percebendo ao longo dessa revisão, e como pudemos observar em relação a filhos de uniões
anteriores do cônjuge:

meu padrasto era muito chato mesmo, eu não podia acender uma luz, você tinha que
dormir sete horas da noite, tendo festa, ou final de ano, Natal, ele não deixava a
gente ir, né... não podia conversar com ninguém. Ele era uma pessoa agressiva, prá
resumir ele, era muito chato mesmo ele. .....ele chegou a me bater uma vez, minha
mãe nunca me bateu, ele chegou a me bater, meu deu um... eu fiquei com uma raiva
dele nesse dia, eu fiquei com ódio dele na verdade, porque, assim, ele me bateu sem
motivo, porque ele acordava a gente cinco horas da manhã. (Tamiris, 30 anos, filha).

Não obstante considerarmos o afeto como estrutura fundamental para a formação


dessa nova família, não é nossa intenção desconsiderar as tensões existentes em sua
composição. Sabe-se, como nos apontam Visher e Visher (1988), citados por Cano et al
(2009), da importância de a família recasada ser reconhecida e elaborada, uma vez que essas
famílias são formadas a partir de perdas. Embora a separação possa ser fruto de um desejo,
pode promover ao mesmo tempo sentimentos de perda, solidão, vazio e tristeza por ser
oriunda de insatisfação e sofrimento.
Uma mãe que participou do presente estudo contou como reagiu emocionalmente na
separação.

Eu fiquei em depressão por um ano, tomando remédio de manipulação, mas forte,


remédio forte. Remédio que a gente tem que tomar de doze em doze horas, eu
tomava de seis em seis horas. Eu chegava a quebrar as coisas dentro de casa, eu tive
149

síndrome do pânico, eu ficava assim na minha separação. Eu ficava embaixo do


chuveiro, por horas, prá mim era coisa de minutos que eu tava embaixo do chuveiro.
(Tatiana, 31 anos, mãe).

Nesse mesmo sentido - de que a família recasada se constitui a partir do rompimento


de uma estrutura anterior de família - encontramos em Maldonado (1986) a posição de que
quando a nova família possui filhos do primeiro casamento, pode enfrentar vários tipos de
conflitos e sentimentos. A autora enumera uma série de dificuldades, tais como: a ausência de
nomeação dos novos papéis, convivência com meio-irmãos, o que ela chama de “conflito de
lealdade” para com os pais biológicos e o exercício da autoridade. Refere-se em especial à
questão da autoridade nessas famílias descrevendo que “há um tipo diferente de autoridade
não baseada em prerrogativas do vínculo biológico, mas na relação de respeito e nos papeis
representados dentro da nova família” (MALDONADO, 1986, p. 186).
As dificuldades apontadas acima por Maldonado (1986) reafirmam-se em Andolfi
(2002): a resistência dos filhos frente às mudanças pode também estar associada ao
sentimento de lealdade. Andolfi (2002) também afirma que, ao assumirem uma nova
identidade familiar no contexto do recasamento de um dos genitores, os filhos podem sentir-
se traindo o outro. Por isso, não é fácil passar de um mundo para o outro imediatamente.
Podemos apontar que além da resistência associada ao sentimento de lealdade para
com os pais, o desejo de conhecê-los também pode gerar resistência na aceitação do novo
companheiro da mãe como figura representativa do lugar de genitor.

eu tinha sonhado com meu pai, esse meu pai que eu nunca vi. Só que eu tive um
sonho, fiquei muito feliz porque eu tinha sonhado, porque eu conheci meu pai no...
ai eu comecei a contar prá minha irmã, chamei ela e contei. Aí falei: “Paulinha, eu
tenho um sonho prá te contar! Eu sonhei que eu conhecia meu pai”. E isso ele
(padrasto) reclamando, falando: “levanta!”, aí eu chamava ele de pai, por respeito,
eu chamava ele de pai.. aí eu “pai, eu já tô acordada!”, “mas levanta”, “eu tô
acordada”. Aí, na terceira vez ele já veio com cinto.
(Tamiris, 30 anos, filha).

Sager et al (1983); Carter e Mcgoldrick (1995) apontam que o sentimento de lealdade


não é privilegio somente dos filhos e que os pais também o vivenciam. Para os teóricos, os
conflitos que atingem os cônjuges na família recasada englobam sentimento de divisão que se
dá entre o novo companheiro/a e seus filhos e entre os filhos biológicos e os enteados.
Conforme Sager et al (1983), a maior fonte de tensão emerge do conflito interno dos pais
entre o amor pelos próprios filhos e o atual cônjuge. Movidos por sentimento de culpa, esses
pais podem sentir que estão traindo suas relações com os filhos. Podemos destacar aqui
algumas situações que podem gerar sentimentos de culpa e de raiva: disputa pela atenção e
150

afeto entre cônjuge e filhos; conflito com relação ao sentimento dispensado aos próprios
filhos e enteados; exercício de tarefas parentais, como por exemplo, cuidar dos enteados,
enquanto os próprios filhos moram em outra residência. Assim comentou uma filha que não
foi criada por sua mãe que, entretanto, criou filho do companheiro:

E no final da história, minha mãe conviveu com esta pessoa, durante muitos anos,
foi morar com ele, largou todo mundo, ia ver de vez em quando, quando ele
deixava... Todo mundo se virando como podia... daí, essa criatura com quem ela foi
viver, logo em seguida, arrumou um filho na rua, acabou tendo que criar... o garoto
hoje tem 22 anos, é um menino muito bom, ela criou esse menino e conviveu com
ele. Ele morreu, tem mais ou menos, acho que, 3 anos que ele faleceu. Só que depois
que ele faleceu, ela foi bater na porta dos filhos, e os filhos abriu a porta prá ela,
entendeu? É com quem ela vive, ela vive com a gente, comigo e com os meus
irmãos. (Eliane, 43 anos, filha).

A conjugalidade e a parentalidade parecem gerar tensões quando já existe filho de


relação anterior. O vínculo biológico, em algumas famílias de primeiro casamento, parece ser
mais forte na sedimentação do afeto, o que pode ser explicado pelo período de acomodação e
ajuste do casal às exigências da parentalidade. As novas famílias, entretanto, não contam
muitas vezes com esse período para responder satisfatoriamente às exigências dessa
parentalidade instantânea. Nada impede, entretanto que o vinculo afetivo venha a ser mais
forte que o biológico, o que, por sua vez também pode gerar conflitos de lealdade
(MALDONADO, 1986). Para a nova família constituída convergem elementos próprios do
sistema familiar precedente, demandando tempo para a realização de ajustes e reformulações
de expectativas e necessidades (MALDONADO, 1986; GRISARD, 2010). Códigos, regras e
estilos da parentalidade anterior dificultam a formação de novos vínculos.
No caso de nossa entrevistada a dificuldade na formação de novos vínculos a
impulsionou a sair de casa com doze anos de idade, pois considerava o padrasto rígido e
ignorante.

ele chegou a me bater uma vez, minha mãe nunca me bateu, ele chegou a me bater,
meu deu um... eu fiquei com uma raiva dele nesse dia, eu fiquei com ódio dele na
verdade, porque, assim, ele me bateu sem motivo, porque ele acordava a gente cinco
horas da manhã. (...) e meu avô tinha falado prá ele assim: “você não criou ela, eu
não batia nela, também eu não vou querer que ninguém toque um dedo nela, porque
ela tá saindo da minha casa contra a minha vontade.” (Tamiris, 30 anos,filha).

“Surgem novas regras que precisam ajustar-se às anteriores, originando diversos


triângulos conflitivos que dificultam a estabilidade do sistema” (GRISARD, 2010, p 92). “A
família pós-divorcio é uma forma nova de família que tem exigências muito distintas para
151

cada um dos pais, cada filho e para cada um dos vários novos adultos que entram na órbita
familiar” (WALLERSTEIN; LEWIS; BLAKESLEE, 2002, p 48). Essas exigências
significam, para os autores, problemas que devem ser enfrentados na família pós-divórcio.
Grisard (2010) e Ribeiro (2005) consideram o respeito, que nutre a nova relação, como
um dos sentimentos edificadores dessa família na contemporaneidade e que pode estar
presente nos diversos tipos de formação familiar. Entretanto, quanto à ocupação de cada
membro no novo sistema, acreditamos ser bastante complexa essa interação com o outro, uma
vez que carregamos formas de ser filho, pai e mãe, o que pode desencadear expectativas
diferentes na atuação do outro e de si mesmo. Essa família deve encontrar recursos próprios
para satisfazer as suas necessidades emocionais; para tanto devem estar preparados para o
intercambio afetivo, disponibilidade de dar e receber afeto uns dos outros. Como salienta
Ribeiro (2005, p. 11) “adotar emocionalmente uns aos outros”.
Muitos pais não se dão conta de que os filhos apresentam percepções diferentes, ou
seja, não compartilham da mesma visão dos pais, de que a separação ou divorcio é uma fuga,
uma saída para a situação infeliz. Não percebem também que os filhos necessitam de apoio e
ajuda para começar a aceitar as mudanças ocorridas em função da nova configuração familiar
(WALLERSTEIN, LEWIS; BLAKESLEE, 2002). Não estamos com isso desconsiderando as
necessidades dos pais. Acreditamos, também, que os pais necessitem de tempo, como propõe
Féres-Carneiro (2003), para processar a separação e reformular sua identidade individual. De
acordo com Peck e Manocherian (1995), todos os indivíduos, em função da modificação da
dinâmica familiar, terão que buscar ajuste face à nova realidade.

6.3.1 A perspectiva dos filhos também na literatura

Outros trabalhos tratam do recasamento do ponto de vista dos filhos. Porreca (2011)
descreve as transformações da instituição familiar como sendo profundas e rápidas e afirmam
que essas mudanças afetam vários aspectos de sua constituição, como a maneira de se
relacionarem, a sexualidade, a fecundidade, a procriação. Para o autor, essas alterações
provocam a busca de alternativas para a vida familiar, entre elas as separações conjugais e
segundas uniões, que interferem na relação pais e filhos. Seu estudo investigou a compreensão
que filhos dão à segunda união conjugal dos seus pais, considerando sua história e contexto de
vida. O estudo foi desenvolvido através de estudos de caso realizados com três famílias em
152

segunda união, procurando visualizar elementos que possibilitassem discutir a situação dos
filhos no novo contexto familiar, a partir das versões dos envolvidos: pais e filhos. A análise
consistiu de entrevistas semiestruturadas realizadas com pais e filhos, sendo utilizada a
modalidade história de vida temática com os filhos. O resultado indicou que para os filhos a
família continua sendo vista como um lugar favorável para o seu desenvolvimento e
socialização primária, espaço adequado de recursos duráveis; que o modelo nuclear de família
ainda é o desejado. As situações "separação" e "segunda união" foram marcantes e sentidas
como influenciadoras na vida dos filhos, como realidades estressoras quando foram
associadas a conflitos conjugais e falta de comunicação clara dos seus pais sobre esses
eventos.

“por que ela faz isso?” eu não sei! Ela podia, tenho certeza, que meu pai, por mais
que fosse algum tipo de traição que ela fez, ele iria permitir que ela continuasse na
casa com os filhos. (Sara, 47 anos, filha).

Sem a intenção de culpabilizar a família, no cenário traçado pelos filhos pode-se supor
que precisaram de tempo, comunicação, entendimento e segurança do afeto parental, na
elaboração, pelo menos inicial e parcial, das perdas e tristeza geradas com a separação e
segunda união dos pais.

ah, de dor, igual eu falei. Apesar de que eu não tive muito com ela, era criança, tinha
12 anos, entendeu? Só que quando ela foi embora, eu fiquei muito triste. Triste, por
que eu falava, pensava assim: “olha só como é que é as coisas... minha mãe, largar 5
filhos, largar 5 filhos prá viver com homem?” (Renato, 24 anos, filho)

E, por fim, apesar da situação vivida, na visão dos envolvidos a família continuava
sendo um lugar privilegiado de relações; a separação e segunda união, não sem tensões e
conflitos, foram eventos aos quais foi possível uma adaptação a médio e longo prazo.
Concordamos com Porreca (2011) de que a família permanece como o lugar
privilegiado das relações; alguns entrevistados dessa pesquisa expressaram claramente o
desejo de reatar a convivência com familiares apontando a mãe como a figura central nessa
ligação. Em sua entrevista diz:

“mãe, olha só, vamos voltar prá casa, vamos reunir os irmãos, todos, entendeu”
(Renato, 24 anos, filho)

Watarai (2010) objetivando analisar as formas de relacionamento de adolescentes e


jovens de famílias recompostas de camadas populares, filhos de união anterior da mãe, com
153

quem moravam em nova união, com diversos parentes, pesquisou, sob a multiplicidade dos
vínculos, os estatutos atribuídos aos diferentes integrantes dessas famílias e como ocorreu a
prática socializadora dos sujeitos em face desta circunstância. A pesquisa foi realizada por
meio de entrevistas com 11 adolescentes e jovens de ambos os sexos, de idades entre 14 e 20
anos, de 10 famílias recompostas. Os resultados das análises apontaram para a centralidade da
mãe nos arranjos familiares. Como resultado desta centralidade constatou-se a proximidade
maior com os parentes maternos em relação aos parentes paternos e do padrasto, considerados
pelos sujeitos como parente de menor importância, muito embora este padrasto seja visto em
alguns casos “como um pai”, dependendo do seu relacionamento com a mãe e com os
próprios sujeitos. Diferentemente ocorreu com os vários tipos de irmãos que, com o passar do
tempo, passaram a ser classificados como irmãos, de forma similar aos biológicos. Ademais
foram constatados diversos aspectos dessa família recomposta como a imensa complexidade
dos relacionamentos, a tensão entre parentesco consanguíneo e socialmente estabelecido e
extensão dos relacionamentos para além da unidade doméstica, em função das diferentes
uniões de pais e padrastos, constituindo para o autor verdadeiras constelações familiares. No
universo estudado, embora a participação da mulher no mercado de trabalho seja maior
atualmente, a execução das tarefas ditas femininas continua a ser atribuída às mães, em
algumas circunstâncias auxiliadas por filhos, filhas e até mesmo pelo companheiro, o que
constitui pequenas variações na prática cotidiana das famílias, ainda organizada segundo
preceitos tradicionais. Constatou-se no estudo que a iniciativa de separação procedia da mãe,
a quem geralmente cabia a guarda dos filhos. Quanto aos filhos, verificou-se que tendem a
avaliar insatisfatoriamente as uniões anteriores da mãe remetidas ao desempenho precário do
pai nas suas atribuições e nos conflitos entre os genitores. Para essa insatisfação contribuia o
conhecimento parcial dos fatos da ruptura conjugal, o que determinava em grande parte a
responsabilização da separação ao genitor e sentimento de expressão de lealdade à mãe. Em
decorrência identificavam o casamento como esfera privilegiada para a realização pessoal e
endossavam a possibilidade de sucessivas uniões, tidas como justificáveis quando são
necessárias para a satisfação pessoal dos parceiros conjugais.
É importante a observação dos fatores gênero, maturidade e idade quando nos
reportamos à dificuldade em estabelecer o contato com outros indivíduos estranhos ao núcleo
familiar de origem (BERNSTEIN, 2002). Quando nos referimos ao gênero, Bernstein (2002)
nos traz informações significativas, sugerindo que as filhas apresentam, com maior
frequência, sentimento de perda quando um dos genitores contrai novas núpcias e que esse
sentimento se intensifica quando é o pai que inicia um novo relacionamento. A autora relata
154

que os filhos podem se sentir abandonados em face da presença de outra pessoa, estranha ao
núcleo familiar e com a qual terão que dividir o pai ou a mãe. Bernstein (2002, p 312)
descreve que “um filho ou uma filha que se sinta abandonada pelo pai ou pela mãe não terá
uma atitude de aceitação em relação ao padrasto ou a madrasta, que é visto como um rival
pelo amor do pai ou da mãe”.
Entendemos que os relacionamentos que se seguem ao divorcio podem ter
configurações diferentes do mencionado acima. Para tanto buscamos em Wagner e Sarriera
(1999) os resultados encontrados em seus estudos com adolescentes mais velhos, que
apontam nesse grupo melhor aceitação do recasamento dos pais. Inclusive observaram que,
em alguns casos, adolescentes que assumiram responsabilidades na ausência de um dos
genitores tiveram essas mesmas responsabilidades diminuídas em função da presença do
padrasto ou madrasta. Notaram que a idade dos jovens, em geral condiciona a relação de
proteção e cuidado, vinculado no caso dos mais velhos também com o padrasto/madrasta. O
mesmo não ocorre no caso dos mais novos que a mantém preferencialmente com seus
genitores, o que pode resultar em comprometimento da relação com o padrasto ou madrasta.
Na verdade, o que estamos tentando ressaltar é que a atenção com os filhos pode ser
prejudicada em função da nova demanda que a vida impõe, como também salientaram
Wallerstein, Lewis e Blakeslee (2002). Como reagem os membros dessa família quando são
excluídos do convívio ou tem os vínculos rompidos? O que sentem? As necessidades,
percepções e sentimentos entre pais e filhos são transformados a partir do rompimento da
sociedade conjugal, significando para os pais reconstruir a vida, seja no plano econômico,
social ou sexual. Diante disso as necessidades dos filhos, muitas vezes, podem ser sacrificadas
em razão das necessidades e desejos dos pais (WALLERSTEIN, LEWIS; BLAKESLEE,
2002).

“então a senhora volta pro Jardim América, eu volto a morar com a senhora, tô
trabalhando, a gente.... entendeu? eu ajudo, aquela compra de casa, entendeu? Larga
esse rapaz aí, entendeu? A senhora tem como arrumar um homem melhor do que
ele”, como já arrumou, homem bem melhor do que ele, do que esse rapaz que ela tá
agora, “entendeu? E volta prá casa, que eu volto também”... entrou num ouvido e
saiu no outro, entendeu? (Renato, 24 anos, filho).

Importante ressaltar que as histórias produzidas no encontro entre a pesquisadora e os


entrevistados se reportam a uma época distante de suas vidas e recebem hoje novos
significados nessa releitura. Com isso não pretendemos afirmar que não tenham, como
crianças, vivido essas sensações que relatam, mas é preciso considerar tanto que se trata de
155

contar uma história com a experiência atual, quanto de uma resposta a uma pergunta que
talvez sugerisse também a necessidade do sentimento de abandono.

minha mãe fugiu de casa. Minha mãe era desnaturada, entendeu? Foi atrás de
homem.. eu era.... eu e mais 4 irmãos. A minha mãe deixou a gente com a minha
avó, e foi morar com o homem... simplesmente aconteceu isso.
eu falava, pensava assim: “olha só como é que é as coisas... minha mãe, largar 5
filhos, largar 5 filhos prá viver com homem?” pô, ela não precisa disso, por que a
casa dela é aqui, vai se meter longe prá caramba, prá viver com homem. Eu, nunca
mais. Daí já começou a dar minha raiva prá ela. Fiquei com raiva mesmo. (Renato,
24 anos, filho).

A preocupação dos pais, em refazer a vida, pode contribuir para o sentimento de


abandono e de exclusão dos filhos, percebendo-se como um peso ou a referência que os
reportam à lembrança de um casamento infeliz (MALDONADO, 1986; WALLERSTEIN,
LEWIS; BLAKESLEE, 2002).
São particularmente marcantes, no estudo por nós realizado, os casos de filhos adultos
que consideram o afastamento da genitora como abandono, o que não necessariamente é a
percepção da mãe que se afastou. Uma entrevistada relatar o sentimento quando do
afastamento da genitora.

tenho sim, de abandono. Eu tenho... acho que fui rejeitada.. não só eu, como a minha
irmã junto a mim. E agora esse meu irmão que apareceu... então, eu fico procurando
saber as coisas.... o que que eu vou dizer prá ele? (Eliane, 43 anos, filha).

sempre falei isso pros meus filhos, nunca abandonei vocês, o jeito que a minha mãe
abandonou. (Sara, 47 anos, filha).

Devido às complicações impostas pela situação, que envolve encargos e


responsabilidade sobre os filhos, muitos destes sentem-se culpados pelo divórcio, além de
sentirem que sua “existência faz pesar sobre ambos os pais” (DOLTO, 2011, p 33). Quando o
processo de separação ou divórcio potencializa subjetividades em que os envolvidos
vivenciam essa ruptura de maneira responsável, e que emerge dessa vivência o
amadurecimento, os filhos, apesar da situação, poderão conservar sua afeição tanto pelo pai
como pela mãe.
156

6.3.2 Paternidade no recasamento

Arriscamos afirmar que, cada vez mais, os pais que recasam escolhem manter relação
com seus filhos de casamentos anteriores, o que é um fenômeno recente, visto que a
paternidade era bastante atrelada a conjugalidade. Assim, uma vez desfeita a relação conjugal,
o afastamento entre pais e filhos parecia inevitável, sobretudo se houvesse recasamento
paterno. Essas mudanças na sociedade brasileira dão sentido às pesquisas como as que
destacamos abaixo.
Dantas, Jablonski, Feres-Carneiro (2004) buscaram investigar a construção e a
manutenção do vínculo afetivo entre pai e filhos após a separação focalizando a questão da
paternidade e a da própria formação da identidade masculina. Para os autores, com o divórcio
e, posteriormente, o recasamento dos componentes da família, criou-se uma teia complexa de
relacionamentos a ser estudada, principalmente no que diz respeito ao papel a ser exercido
pelos homens como pais separados e sua relação com seus filhos.
Branco (2001) observou que o crescente número de separações e recasamentos trazia
importantes repercussões no relacionamento familiar durante o período de adaptação da
família à sua nova organização. Tendo por objetivo investigar essa adaptação a autora
examinou a transição do casal recasado para a família recasada. Deu especial destaque às
expectativas em relação à paternidade, em função da configuração familiar escolhida, na qual
o futuro pai já possuía filho (s) de casamento anterior. Esta configuração foi denominada casal
recasado, em função de os filhos do primeiro casamento não morarem junto com o casal.
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com oito casais recasados, examinando a
história, dinâmica do casal e expectativas dos futuros pais e das futuras mães em relação à
paternidade. Cada casal foi entrevistado conjuntamente e individualmente. Foi realizada uma
análise de cada caso separadamente. Na história dos casais, percebeu-se que, dos oito casais
entrevistados, apenas dois não haviam planejado a gravidez. As mulheres, em especial,
demonstraram de forma explícita seu desejo de serem mães e todas, com exceção de uma,
afirmaram ter escolhido o nome do bebê. Fato que chamou bastante atenção da pesquisadora
foi que todos os pais referiram-se ao(s) filho(s) do casamento anterior quando lhes foi
solicitado que falassem da gravidez da esposa. Manifestaram, também, espontaneamente, o
desejo de agir com o filho atual da mesma forma como agiam com seu(s) primeiro(s) filho(s).
Já nas mulheres, destacou-se a tendência a desvalorizar a experiência de paternidade anterior
do marido, deixando claro o desejo de que seu marido seja melhor e diferente com o bebê que
157

está por nascer. Verificou-se também dificuldades de relacionamento das mulheres com o(s)
filho(s) do casamento anterior do marido. Tomados em conjunto, os resultados apontaram
para as especificidades do processo de transição do casal recasado para a família recasada, em
especial, para as diferentes expectativas e representações que cada parceiro traz em relação ao
filho e à nova família em construção.
Esta pesquisa, cujo foco era a introdução da parentalidade na nova união, não abordou
a convivência entre madrastas, padrastos e enteados, sobretudo em função do desenho da
investigação.
O estudo de Marcondes (2008) focalizou os arranjos familiares constituídos a partir do
recasamento de pessoas separadas ou divorciadas. O objetivo principal foi apreender os
aspectos da conjugalidade e da reprodução de homens que passaram pela experiência de
ruptura conjugal e recasamento. Buscou apreender em que medida uma nova união conjugal e
a existência de filhos de uniões anteriores exercem influência na intenção ou decisão
masculina de ampliar a sua prole. Para explorar estas questões, a pesquisa foi desenvolvida
em duas etapas, quantitativa e qualitativa. Foram realizadas 20 entrevistas semi-estruturadas,
sendo 10 com homens recasados e suas atuais companheiras. A partir das análises das
entrevistas, reflexões e dados quantitativos a autora chegou à seguinte conclusão: de que os
homens que teriam maiores chances de encerrar sua carreira reprodutiva com uma prole maior
do que desejavam seriam aqueles que: recasaram com mulheres que ainda não tinham filhos;
os filhos dele não viviam com o casal; residiam com menos de dois filhos e/ou enteados. Os
resistentes a ter mais de um filho no recasamento foram aqueles em que a parceira já tinha três
filhos ou mais ou residiam com mais de dois filhos e enteados.
Lima (2003) teve como objetivo investigar mais profundamente a experiência
masculina de paternagem dos filhos das parceiras, o relacionamento que se estabelece entre o
companheiro da mulher e os filhos dela. Nove homens entre 27 e 49 anos foram entrevistados
individualmente e outros nove homens entre 27 e 43 anos participaram de um grupo focal.
Todos tinham em comum a situação de estarem vivendo conjugalmente há pelo menos um
ano com mulheres com filhos menores e pertencerem à classe média urbana. Os depoimentos
foram organizados sob a forma de quatro sessões temáticas, a saber: escolha da parceira,
relações de moradia, relacionamento com os filhos dela e relacionamento com o ex-marido. A
autora apresentou como resultado a situação particular destes homens que aparentemente
elegem a relação conjugal como prioridade sobre toda a dinâmica familiar. Relatou que o
comportamento parental em relação aos filhos da parceira só pode ser atingido gradualmente,
quando por ela autorizado. Os homens, constatou, percebem algumas vantagens nesta
158

dinâmica complexa, como a não responsabilidade psicológica sobre a existência dos filhos da
mulher e a desmistificação de fantasias pessoais, ao conviverem no quotidiano da mãe com
seus filhos. Para a autora a flexibilidade do olhar do homem sobre o sistema familiar como
um todo e o questionamento sobre si mesmo enquanto pessoa/atitude/comportamento são
aspectos que podemos considerar como facilitadores em todo este contexto.
Diante do exposto, podemos constatar que, nos últimos 30 anos, o tema do
recasamento vem sendo estudado cada vez com maior frequência. Entretanto muito ainda
precisa ser abordado, em função de sua complexidade, importância e frequência social.
Acreditamos na necessidade de se elaborar mais trabalhos qualitativos com o objetivo de
examinar o significado das experiências, as percepções e as reflexões dos membros da família
recasada. Alguns aspectos do tema vêm sendo estudados, tais como: relações conjugais, dados
demográficos acerca da separação e do recasamento, visão e vivência de adolescentes frente
ao recasamento de suas mães, expectativas acerca da paternidade entre casais recasados e
exercício da paternidade após a separação. Observa-se também que significativa parcela dos
estudos realizados no Brasil sobre a temática do recasamento reporta-nos ao campo da
psicologia clínica. Necessário, portanto, o concurso de outras abordagens, que ainda irão
exigir dos pesquisadores diferentes percepções para a apropriação dos inúmeros aspectos que
o tema comporta.
Finalmente, embora algumas pesquisas aproximem-se do tema de nosso estudo, pois
abordam o recasamento, não contemplam especificamente a permanência ou não dos filhos
em função do recasamento da genitora, e de como é percebido, tanto do seu ponto de vista
quanto o de seus filhos, como fator do afastamento.
Ao pesquisar famílias que passaram pela ruptura da relação conjugal, observamos que
a separação, constituiu uma condicionante para o afastamento, ou seja, a não permanência dos
filhos junto a essa genitora.

essa encostada ficou com a madrinha... ela ficou prá trás, quando minha mãe
separou, ela ficou mais ou menos com uns 2 anos........ quando eu tinha mais ou
menos uns 12 anos de idade, eu fiquei sabendo que minha mãe foi embora, largou
esses meus irmãos, foi morar com uma pessoa, e largou. Ele não queria saber de
filho nenhum. Largou todos para trás. .... não queria filho nenhum dela. Aí largou
todos eles para trás. Daí eu fiquei sabendo, eu fiquei muito triste, porque eu, como a
mais velha, já estava naquele momento já... já estava com 12 anos.. aí fiquei triste...
Porque, se eu estava com 12, quantos anos tinha o pequenininho? E a pequenininha?
Tava tudo novinho. Aí ficou tudo com a minha avó.” (Eliane, 43 anos, Filha)

De acordo com a descrição acima foi possível observar que as necessidades,


percepções e sentimentos entre pais e filhos foram transformados a partir da separação
159

conjugal. Assim podemos pensar que quando o relacionamento entre os genitores estava
funcionando bem, os filhos foram recompensados pela convivência com ambos. Após a
separação, os filhos passaram a ter outro significado para os pais, o genitor se distanciou
devido a separação e a genitora passou o cuidado dos filhos para sua mãe. A diminuição do
cuidado e atenção aos filhos pode ser justificada pela preocupação ou ocupação com a
construção de uma vida de separada. No caso em questão, a genitora, ao separar-se
constituiu uma nova relação conjugal, afastando-se dos filhos. Segundo o relato acima, a
impossibilidade de permanecer com os filhos estava vinculada a negativa do companheiro,
atual marido da genitora. Ressalta-se que quando a conjugalidade acaba e a mãe deixa os
filhos sob os cuidados de outros consanguíneos ou não para viver uma nova relação, os filhos
a consideram uma mãe abandonante.
Foi possível analisar através da fala dos filhos que as genitoras por eles relatadas
apresentaram mudança no comportamento, frente aos ditames sociais que a impelem a
permanecer com os filhos. Essa mãe, retratada nos relatos, “optou” (por escolha ou
impossibilidade de escolha) não assumir responsabilidades, que também são suas, “opção”
implícita na provocação contida no titulo dessa tese - Mãe, por que me abandonaste?.

a vó expulsou eu de casa. Aí nisso, eu fui morar com a minha minha mãe! ... na casa
do marido dela. E isso, o marido dela não queria eu lá com ela, e ela optou a ficar
com ele, e não querer ficar comigo, entendeu? Aí eu fui morar com a minha tia, que
eu falo que é a minha mãe. (Renato, 24 anos, filho)

O discurso revelou que a continuidade do relacionamento mãe/filho envolvia um


terceiro elemento, ao qual se atribuiu a opção de não permanecer com os filhos, o que pode
denotar a falta de liberdade de escolha, bem como a submissão da mulher à imposição do
homem. Poderíamos até pensar que ao concordar com o companheiro, estariam buscando uma
tentativa de suavizar a culpa advinda das pressões sociais quanto à posição assumida,
atribuindo a uma outra pessoa o fato de não permanecer com os filhos. Observa-se também,
em razão do novo casamento da genitora, a presença de múltiplos cuidadores oferecendo
suporte seja no plano afetivo e/ou financeiro.
Como parte fundamental dessa discussão, faz-se necessário sinalizar que a
conjugalidade pode ser mais importante do que a permanência com os filhos em determinados
momentos, o que não significa que as mães não os amem. O que estamos tentando demonstrar
é que as compreensões são diferentes e que mudam de acordo com cada contexto. Diz uma
mãe entrevistada que no inicio da separação os filhos permaneceram com ela, mas que depois
foram para a companhia do pai, pois ela acreditava que assim ele poderia reatar a relação.
160

“mas você não tá com condição, deixa as crianças comigo.” Eu acho... eu falava
assim: vou agradar ele, prá ver se ele volta. Então, vou deixar as crianças com ele...
dei as crianças prá ele, deixei com ele. Aí, eu vi que ele foi embora, as crianças
também, aí me dava a doida. Eu falava: “caraca, tô sem os meus filhos, tô sem o
meu marido, que que eu vou fazer?”, aí eu ia lá, “por favor, deixa as crianças
voltarem eu não vou conseguir sozinha, eu tô sem ninguém em casa...” (Tatiana, 31
anos, mãe)

Como salientado anteriormente, esse amor se circunscreve nas características pessoais,


e essa dimensão pessoal se intensifica ou não de acordo com cada pessoa, podendo uma
mulher amar muito, pouco, ou, simplesmente, não amar seu filho. Todos esses fatos nos
levam a inferir que algumas mulheres, embora ainda sob forte pressão social, poderão abrir
mão dos filhos em função de suas próprias vidas, o que não implica em ausência de afeto.
161

7 QUEM É QUEM NESSAS FAMÍLIAS?

Como vimos, as separações e os recasamentos oportunizam encontros e


distanciamentos. Neste capítulo vamos priorizar três modalidades de relações, possíveis
decorrências da separação entre mães e filhos crianças: a circulação de crianças, a vivência
com avós maternos e paternos e a relação desenvolvida entre irmãos.

7.1 Parentalidade e conjugalidade – quando o resultado da equação é nulo, impossível,


indeterminado...

Cada vez mais, como tem sido constatado a partir da literatura da área e das
entrevistas, aumentam as famílias recompostas em função dos novos casamentos e das novas
uniões que incluem pessoas que já têm filhos. A existência de filhos que não se originam do
mesmo pai e da mesma mãe muda a configuração das famílias, o que certamente afeta a
relação de direitos e deveres entre pais e filhos, propiciando um deslocamento na rede para
fora desse núcleo (SARTI, 2011). “Nesse sentido, os conflitos entre os filhos e o novo
cônjuge podem levar a mulher a optar por dar para criar seus filhos, ou algum/uns deles, ainda
que temporariamente” (p.77).

Nos casos de separação, pode haver preferência da mãe pelo novo companheiro,
prevalecendo o laço conjugal, circunstancialmente mais forte que o vínculo mãe-
filho. Uma nova união tem implicações na relação da mãe com os filhos da união
anterior, que expressam o conflito entre conjugalidade e maternidade (SARTI, 2011,
p 78).

A fala abaixo do filho Renato reflete essa situação:

Ai, a vó expulsou eu de casa. Aí nisso, eu fui morar com a minha avó... com a minha
mãe! ... na casa do marido dela. E isso, o marido dela não queria eu lá com ela, e ela
optou a ficar com ele, e não querer ficar comigo, entendeu? (Renato, 24 anos, filho)

De acordo ainda com Sarti (2011), a dificuldade enfrentada por essas mulheres pobres
para criarem os filhos pode levá-las a buscar solução para superar a situação, dentre as quais a
da criança permanecer com o pai, deixar os filhos com a avó das crianças ou destiná-los a
162

não-parentes dentro do grupo de referência. Exemplificando essa última situação,


permanência com não-parente, Sarti (2011) relata a entrevista de um homem que foi criado
pelos compadres do pai: “quando a mãe arrumou outro amante e o largou (p. 58)” para ilustrar
o êxodo do filho em razão de outro relacionamento conjugal da mãe.

é... eu, pelo que eu me lembro, assim me contaram, quando eu tinha 2 meses minha
mãe me abandonou, me deu para um casal, porque ela tinha conhecido um
companheiro, e ele falou prá ela que ela teria que escolher, no caso, o filho, ou ficar
com ela, que ele não queria a criança. Aí ela me deu, prá uma pessoa, um casal, sem
meu pai ter conhecimento disso. Aí meu pai, depois sabendo, que ele morava em
Salvador, aí ele veio até o Rio de Janeiro, entrou em contato com um pessoal, me
levou prá... aí, fui praticamente criado por meu pai. (Pedro, 18 anos, filho)

A minha mãe deixou a gente com a minha avó, e foi morar com o homem...
simplesmente aconteceu isso. (Renato, 24 anos, filho)

No momento em que a separação entre mãe e filhos acontece, em geral tem início a
circulação das crianças. Estudo realizado por Fonseca (2002a) retrata a prática de circulação
que consiste no trânsito de crianças entre diversas casas de diferentes personagens. Descreve
que essa prática atravessa muitas gerações; assim, é comum as crianças estarem nas casas de
avós, madrinhas, vizinhas e pais biológicos. A circulação de crianças ocorre em meio ao
contexto urbano contemporâneo dos grupos populares e se caracteriza pela experiência de
família pobre, que possui crianças vivendo parte da infância ou adolescência em casas que
não pertencem a seus genitores.

quando eu tinha mais ou menos, acho que, uns 5 anos, eu não me lembro, os meus
pais se separaram, né. Minha mãe foi embora, levando eu, a mais velha, o meu
irmão do meio e a minha irmã, junto a mim. E o mais novinho foi na barriga,
entendeu? Foi embora, prá casa da mãe dela, numa cidadezinha, lá na Bahia, e
quando chegamos lá, eu fiquei com ela, assim, mais ou menos 1 ano, até o meu
irmão nascer. Logo depois, eu fui passada prá minha tia, a irmã da minha mãe, que
ela só tinha uma menina e um outro menino. Fiquei com ela mais ou menos uns 6, 7
anos., mais ou menos isso aí. Foi quando a minha irmã mais nova nasceu.. foi 7...
deixa eu ver... ela é mais nova que eu, vamos supor... 10 anos. Uns 7, 8 anos eu
fiquei com a minha tia, aí minha mãe me chamou prá ajudar a olhar minha irmã,
fiquei com ela um pouco, e logo depois eu fui morar com a minha madrasta, fiquei 1
ano na minha madrasta. Foi quando meu pai passou por lá, levando esta minha irmã,
que eu não conhecia... ela tinha ficado prá trás...a minha irmã do meio, tinha ficado
prá trás. Então meu pai resolveu trazer, levar a gente prá cidade de Salvador. E de lá
eu fiquei com a minha madrasta, mais ou menos uns 8 meses. Fiquei uns 8 meses,
depois voltei prá onde tava minha mãe de novo. (Eliane, 43 anos, filha).

aí, ela voltou... voltou, só que a minha irmã não ficou mais com a minha avó. A
minha irmã já passou a morar com a minha tia, essa que eu fui criada um bom
tempo. Depois a minha tia passou ela prá filha dela... ela ficou com a minha prima.
E daí foi crescendo assim. Foi crescendo assim, e aí chegou um tempo que meu pai
foi lá, pegou os meus irmãos, trouxe, prá perto de mim... a minha irmã, também que
163

eu não conhecia, que é essa encostada a mim passou a ficar com a gente. (Eliane, 43
anos, filha).

aí, depois desse acontecimento, dele ter incendiado a casa meu avó, ela foi... isso foi
em João Pessoa, aí ela foi prá um interiorzinho chamado Tamanduá, que eu acho
que nem no mapa existe. ..... de tão longe que é, é um interior mesmo, e foi na época
que ela me levou e deixou eu com o pai dela. Então foi ele que me criou, eu fui
com... ela falou que eu tinha oito meses, aí eu fiquei com ele até os nove anos.
(Tamiris, 30 anos, filha).

Reafirmando as ideias expressas por Sarti (2011), Fonseca (2002a e b) descreve as


situações de instabilidade familiar que ocorrem em função da separação dos pais ou de sua
morte, somando a essa situação a instabilidade econômica estrutural. Por essas e outras
circunstâncias é que a criança passa a ser responsabilidade de toda a rede de sociabilidade
nesse universo em que a família está inserida; a responsabilidade não se limita exclusivamente
ao núcleo familiar de origem, mas a toda rede. Essa prática foi denominada por Fonseca como
“coletivização das responsabilidades” pelas crianças dentro do grupo de parentesco ou
vizinhos, o que caracteriza, mais uma vez, a circulação de crianças.
Como essas crianças e adolescentes constroem e pensam o mundo onde se situam?
Que concepções se articulam à sua criação de mundo e como configuram uma maneira de
responder a ela? Quais as circunstâncias de afastamento são consideradas por elas
justificáveis?

Mas eu não aceito o fato de ela ter dado, nem meus irmãos ter ficado para trás... não
justifica, eu acho que filho é filho. Desde que quando você põe ao mundo, você tem
que criar... se você não criou, algum problema houve. Mas não justifica você
arrumar alguém, deixar seus filhos prá trás, ou pegar seus filhos e sair dando
(Eliane, 43 anos, filha).

“o pai não quer, o pai não assume, vocês têm que assumir a responsabilidade de
vocês, não é simplesmente ter e jogar prá lá”, né? Ou senão, por que ela não deixou
eu com alguém? Sei lá, tinha tantas outras pessoas. Mas assim... com a família do
meu pai, minha tia queria, minha avó queria, mas meu avô não queria. (Tamiris, 30
anos, filha).

não, eu acho assim, que ela tinha que ter se esforçado e ter me criado. Porque prá
tudo dá um jeito, pagava alguém prá cuidar de mim... ela não trabalhava? Pagava
alguém prá cuidar de mim, sei lá, deixava na casa de alguma amiga, que nem muitas
pessoas fazem até hoje. Deixa numa creche, sei lá onde, mas que criasse, porque o
que eu acho ruim é isso. Se ela não me criou, por que criou a minha irmã? (Tamiris,
30 anos, filha).

Não tivesse condição, ou estivesse sendo ameaçada por algum motivo, aí tivesse que
dar o filho, por algum motivo tinha que deixar prá trás... mas de amar uma pessoa e
ir embora?... isso não justifica... “ah, eu não pude trabalhar, porque eu era uma
pessoa doente”... também não justifica.. porque ela era uma pessoa doente, mas foi
164

prá companhia de outra pessoa. Era uma pessoa doente, mas... tipo assim... ela não
ficou com aqueles filhos que ela tinha. Por que que ela não ficou com aqueles filhos
que ela tinha, em vez de ela arrumar mais? Então, não vejo certo... quer dizer, ela
dava um, daqui a pouco ela arrumava um outro. Então, eu não admito. (Eliane, 43
anos, filha).

Retomando a ideia de pulverização da responsabilidade pelas crianças, Fonseca


(2002a) alerta, com base em seus dados etnográficos, que as decisões que se referem às
crianças não envolvem isoladamente os genitores, ou seja, não se restringem apenas ao casal.
Assim, não é difícil ver “os primeiros-nascidos de uma geração frequentemente passarem seus
primeiros anos com uma avó que, cuidando deles, cumpre as últimas obrigações familiares”
(FONSECA, 2002a, p. 32).

eu já nasci em casa, quem me aparou foi minha avó, essa que me criou, desde
quando eu nasci.....(Sara, 47 anos, filha,).

Essa prática, receber crianças mais pobres na unidade familiar, garante a continuidade
dos laços, ao mesmo tempo em que coloca a criança no contato diário com a classe
trabalhadora mais simples. Destaca também aquela autora a desigualdade com que são
tratadas as crianças (excetuando-se as que permanecem com as avós), que ao serem
destinadas a outros lares ocupam uma posição subalterna, existindo uma desigualdade entre os
filhos chamados legítimos e o filho de criação. Apesar das circunstâncias apresentadas,
tratamento desigual dispensado, essas crianças não expressavam grande ressentimento,
exprimindo, inclusive, que estavam naquela residência voluntariamente, o que não aparece
nesses entrevistados da presente pesquisa.
Para a autora, o trânsito entre instituições e lares adotivos parece não contribuir
significativamente para o desenvolvimento de mágoas e mesmo quando se tem algum
ressentimento não é um empecilho a lealdade aos genitores. Fonseca (2002a), durante o seu
trabalho de campo “encontrou vários exemplos de jovens adultos que, depois de passarem a
maior parte da infância em lares adotivos ou em instituições, decidiram viver perto de sua
“verdadeira” mãe” (p. 36). Os filhos que foram foco desta pesquisa também passaram pela
mesma experiência de viverem junto da genitora depois de algum tempo afastados.
Expressaram sentimento de mágoa, embora esse sentimento não tenha sido empecilho para a
aceitação e aproximação da genitora.

ele faleceu, ela foi bater na porta dos filhos, e os filhos abriu a porta prá ela,
entendeu? É com quem ela vive, ela vive com a gente, comigo e com os meus
irmãos...... eu falo prá ela que eu gosto muito dela, ajudo ela no que for preciso, mas,
165

não é aquela coisa assim, entendeu? De ter aquele amor todo, porque eu não fui
criada... eu não fui criada, ela não me ensinou nada, não me ensinou a fazer nada na
vida, tudo o que eu sei, que eu aprendei, se eu aprendi a ler e escrever, foi a mulher
que me criou que me ensinou tudo isso. Cozinhar, passar, lavar.. eu sei tudo do meu
jeito. (Eliane, 43 anos, filha).

Nas famílias pertencentes às camadas mais pobres,

“Cada membro do casal está envolvido em uma rede consanguínea que exige
constante demonstração de solidariedade, muitas vezes em detrimento do laço
conjugal. “O sangue puxa”. Laços de sangue – imediatos, imutáveis – têm
precedência sobre relacionamentos contratuais, como o casamento. A identidade
familiar, longe de ser construída, é dada a partir do nascimento. Crianças são
consideradas não como indivíduos singulares mas sim como partes integrantes do
grupo. Neste contexto, o status de pai ou mãe adotivos – status “adquirido” através
do trabalho “investido” na relação entre duas gerações – faz pouco sentido “
(FONSECA, 2002, p 39)

Embora falte pesquisa sistemática sobre o tema, Fonseca (2002a) arrisca a


compreensão de que as crianças pertencentes à classe média, na última geração, pararam de
circular. A classe média teria passado a desaprovar a prática de circulação de crianças,
designando-a como a de pais “desnaturados”, expressão usada para marcar a diferença entre
as famílias respeitáveis e as moralmente censuráveis.
Em artigo com o titulo “Mãe é uma só? reflexões em torno de alguns casos
brasileiros”, Fonseca (2002b) nos possibilita uma nova leitura dessa realidade – circulação de
criança – narrando algumas histórias em que essa prática se desvenda em famílias de classe
média. Ou seja, os casos que envolvem circulação de crianças na classe média não são
infrequentes. A partir do contato com diferentes histórias, a autora pode reconhecer que a
prática de circulação de crianças não se restringe somente a grupos populares, sendo extensiva
também a classe média. Com base nos depoimentos de colegas universitárias e da pesquisa
sobre a circulação de crianças entre famílias de grupos populares, a autora aponta diferenças
significativas nos dois grupos estudados. Nos depoimentos colhidos – colegas universitárias –
verificou que as crianças permaneciam dentro da rede consanguínea de parentesco. Em
contrapartida, nos grupos populares metade das crianças que circulavam tinha como destino o
abrigo ou acabavam em famílias não aparentadas.
De acordo com suas pesquisas, até pouco tempo atrás, anos 50 e 60, a circulação não
era necessariamente uma forma condenável, como a temos hoje, reputada como sintoma de
desorganização familiar ou abandono materno. Infere-se que o cuidado com a criança
transcende ao âmbito familiar, não se limita ao casal, nem tampouco, somente a mãe. As
crianças, na maioria dos casos, segundo Fonseca (2002), falavam sobre a circulação em suas
166

vidas como se fosse algo comum, ou seja, como se as crianças não vissem qualquer
significado naquela prática. Outros significados e sentimentos foram externalizados pelos
entrevistados que passaram por essa experiência – afastamento materno e circulação de
crianças - e hoje contam e relatam as historias de suas vidas a partir desse lugar - adulto - que
agora ocupam.

não... assim... eu, eu como a mais velha, eu tenho muita mágoa, eu não vou mentir,
eu tenho muita mágoa, por mim e mais pelos meus irmãos. Porque se fosse só eu,
dava prá passar, mas eu tenho os meus irmãos, que foram ficados prá trás, e eram
pequenininhos, precisavam de alguém. Então, não adianta, isso não entra na minha
cabeça. Isso eu não aceito de jeito nenhum (Eliane, 43 anos, filha).

sim, de abandono. Eu tenho... acho que fui rejeitada.. não só eu, como a minha irmã
junto a mim. E agora esse meu irmão que apareceu... então, eu fico procurando saber
as coisas.... o que que eu vou dizer prá ele? (Eliane, 43 anos, filha).

então não adianta. Não adianta, ela mesmo já falou: “de todas as três, eu prefiro a
fulana”, que é a mais nova... “ela sim... vocês, prá mim, eu não tô ligando muito
não”. Então a gente ainda continua sendo rejeitada. Não tem carinho... não tem
aquele carinho. (Eliane, 43 anos, filha).

de dor, igual eu falei. Apesar de que eu não tive muito com ela, era criança, tinha 12
anos, entendeu? Só que quando ela foi embora, eu fiquei muito triste. Triste, por que
eu falava, pensava assim: “olha só como é que é as coisas... minha mãe, largar 5
filhos, largar 5 filhos prá viver com homem?” pô, ela não precisa disso, por que a
casa dela é aqui, vai se meter longe prá caramba, prá viver com homem. Eu, nunca
mais. Daí já começou a dar minha raiva prá ela. Fiquei com raiva mesmo. (Renato,
24 anos, filho).

mas sempre a minha avó, sempre falou bem dela. Falou prá gente nunca ficar
magoada, triste, por ela ter deixado nós.
mas tem hora que acho que os filhos preferem sofrer, mas estar ali com os pais, né?
Não sei... eu não sei, tem hora que eu fico assim: eu preferia sofrer, mas de repente
eu não ia ter a vida que eu tenho hoje. Sabe? será que ela optou pelo melhor, ter
deixado a gente com a minha avó? (Sara, 47 anos, filha).

prá mim, nada vai... se ela acha que um dia eu vai poder ter amor de filho como ela...
nunca vai acontecer isso...(Pedro, 18 anos, filho).

Embora a instabilidade familiar se configure em um dos aspectos importantes para a


circulação de crianças, não esgota, não exaure o significado atribuído a essa prática que pode
ou não ocorrer com a instabilidade familiar, ou seja, mesmo nas famílias em que não houve a
ruptura da relação conjugal a criança ou jovem pode circular entre os grupos. Fonseca (2002a)
demonstra essa última situação quando se refere às mães que dão para criar seu filho ou filha
exigindo, em alguns casos, uma contrapartida. Assim, mãe biológica e mãe adotiva entram
em um jogo. De um lado, a mãe biológica vê na dádiva da entrega, no seu sacrifício materno,
167

a possibilidade de solicitar, reivindicar retribuição, ajuda material de quem cuidou de sua


criança. “A ideia implícita é: Eu te emprestei meu filho, agora o que tu vais me emprestar”?
(FONSECA, 2002a, p 36).

A mãe biológica quase nunca considera ter “abandonado” seus rebentos. Uma
mulher que, sete anos depois de colocar a filha com uma comadre, insiste em ter a
criança de volta está furiosa ao encontrar oposição: “O que ela está pensando? Não
sou cadela para dar meus filhos!” (FONSECA, 2002a, p 36).

Do outro lado encontramos a mãe adotiva com a expectativa de ter alguma retribuição
pelos cuidados dispensados à criança. Mulheres que se sacrificaram cuidando de uma criança
muitas vezes esperam algum tipo de retribuição que pode ser financeira. O que se depreende
dessa relação por vezes tensa é que os conflitos sociais tanto podem explicitar a organização
social de um grupo, como podem também revelar o funcionamento de supostas normas.
Os motivos da entrega da criança para outros criarem, que refletem o valor material e
simbólico da criança, podem variar dentro do grupo popular. Algumas mães aceitam ter seus
filhos criados por outros atribuindo maior importância à criação – “filhos bem criados”- que a
outra família poderá proporcionar. A importância não está no outro criar, mas como vai ser
criado. Sua responsabilidade está em proporcionar bons cuidados aos filhos e isso pode ser
desempenhado por outra pessoa tão bem quanto ela, se pudesse ocupar-se desses mesmos
filhos. Por outro lado, não é raro encontrar o filho sendo cuidado por outras pessoas, mesmo
que esse cuidado não seja o único objetivo. Por exemplo, o estreitamento dos laços com a
sogra ou a satisfação de sua mãe podem ser outros dispositivos a serem considerados para que
uma mãe disponha do filho. Acreditamos que os objetivos possam ser variados e que o valor
simbólico da criança também possa servir de manobra na tentativa de se evitar a separação
conjugal, agradar o marido. Nesse caso, pode ser considerado outro dispositivo na disposição
dos filhos.

eu falava assim: vou agradar ele, prá ver se ele volta. Então, vou deixar as crianças
com ele... dei as crianças prá ele, deixei com ele. Aí, eu vi que ele foi embora, as
crianças também, aí me dava a doida. (Tatiana, 31 anos, mãe)

Fonseca (2002a) observa ainda outros aspectos da situação de mulher sem marido que
pode, ao contrair novas núpcias “ceder à insistência do novo esposo mandando a criança
embora, em vez de tentar outros arranjos para a sobrevivência (tais como, por exemplo,
unidades domésticas matrifocais)” (p. 40). Afirma que a expressão matrifocal se refere a certo
tipo de organização familiar em que prevalece a valorização do papel materno; em que as
168

relações entre mães e filhos são mais enfatizadas, em detrimento daquelas entre marido e
mulher e que a mãe tem o controle sobre os processos econômicos e de decisão9.

eu tava lá porque minha avó quis fazer um favor, assim, prá ela trabalhar, porque de
qualquer forma teria que me sustentar, né... não ia depender do meu pai, porque ele
não aceitava... era um tal, que ele não me registrou...(Tamiris, 30 anos, filha).

A guarda dos filhos demanda considerável esforço para uma mãe sozinha e podemos
arriscar dizer que, da forma normativa como nossa sociedade vem se constituindo, é quase
inevitável uma nova relação. A consequente presença de um homem em casa, se de um lado
representa prestígio e segurança, por outro torna crítica a unidade formada por ela e seus
filhos (FONSECA, 2002a).

E dái, quando eu tinha mais ou menos uns 12 anos de idade, eu fiquei sabendo que
minha mãe foi embora, largou esses meus irmãos, foi morar com uma pessoa, e
largou. Ele não queria saber de filho nenhum. Largou todos para trás. (Eliane, 43
anos, filha).

Ai, a vó expulsou eu de casa. Aí nisso, eu fui morar com a minha avó... com a minha
mãe! ... na casa do marido dela. E isso, o marido dela não queria eu lá com ela, e ela
optou a ficar com ele, e não querer ficar comigo, entendeu? (Renato, 24 anos, filho).

foi, eu fui morar com ela, eu tinha mais.... aí eu descobri que eu tinha dois irmãos,
né... tinha a minha irmã e o meu irmão caçula... meu padrasto era muito ignorante,
uma pessoa muito rígida, então, tal que eu, com doze anos eu saí de casa... (Tamiris,
30 anos, filha).

Cria-se uma continuada tensão representada pela bipolarização da autoridade, que se


remete às relações entre os filhos menores e os adultos que com estes convivem, além do
desconforto que representa para um homem criar filhos de outro homem. De igual forma esta
dificuldade também pode ser enfrentada pela mulher que cria os filhos do companheiro -
realidade esta menos visível porque em geral a guarda fica com a mãe e não com o pai. Bazon
(2000) relata que o homem, ou seja, o novo companheiro da mãe, poderá sentir a sua
masculinidade abalada em razão dos filhos advindos de outro relacionamento da mulher,
resistindo à entrada dos filhos de sua companheira no novo lar. É essa tensão que justifica o
afastamento dos filhos quando de uma nova relação da mãe.

9(I-dicionário Aulete; Dicionário informal).


169

Nenhuma mãe confessaria ter preferido um marido a seus filhos, mas diversas pistas
nos levam a crer que tal ocorre com bastante frequência. Por exemplo, uma mulher
explica como sua filha adotiva acabou ficando com ela: a mãe “verdadeira”, antes de
trazê-la ao mundo, havia encontrado um homem que aceitava desposá-la à condição
de que se livrasse da criança. Por outro lado, ao reconstituir historias de vida
descobrimos que os filhos do primeiro leito de uma mulher frequentemente eram
redistribuídos, não na hora da separação conjugal, mas sim no momento do
nascimento de meios-irmãos por um leito subsequente – como se, tendo consolidado
a lealdade do novo marido, a mulher aceitasse mais facilmente abrir mão do vínculo
com seu ex-marido. Ninguém pode dizer que as mães “optam” por um novo marido
em detrimento de seus filhos, pois frequentemente as circunstâncias não dão
margem de escolha. Contudo, em geral as mães sós não ficam muito tempo sem
marido e as crianças circulam em grande número (FONSECA, 2002a, p 94).

Como vem sendo discutido, quando a criança não permanece em companhia da


genitora o seu destino pode ser a própria família, outras famílias ou instituições de
acolhimento - abrigos. No que se refere ao abrigamento de crianças, encontramos em Bazon
(2000) aspectos inerentes à dinâmica e sociabilidade de famílias de classes populares. Seu
estudo foi realizado em uma instituição de abrigo, com famílias em que os filhos
encontravam-se sob medida protetiva. O levantamento dos dados foi produzido por meio da
análise dos prontuários (documentos da instituição), entrevistas com profissionais
responsáveis pelo acompanhamento do caso (coordenador e responsáveis que se encontravam
em contato direto com a família) e contato informal com a família. Os dados foram
organizados de acordo com as histórias de vida das famílias, demonstrando a trajetória antes e
depois do abrigamento dos filhos.
Chegou-se à conclusão que as três famílias estudadas originavam-se do modelo
nuclear de família e que o abrigamento fazia parte de uma estratégia de superação das
diversas dificuldades de sobrevivência, inclusive a material. Nas três famílias foi possível
observar que a sociabilidade e a dinâmica que constituem a realidade dessas pessoas
refletiam-se em uma situação circunscrita à luta pela sobrevivência econômica,
impossibilitando a manutenção dos componentes da família. O resultado dessa dinâmica é a
transformação dos seus ideais, que, como o de toda família nuclear, é o de formar
relacionamento entre um homem e uma mulher, gerar filhos e sonhar com melhores condições
de vida. No caso estudado, o destino foi a desagregação do grupo familiar.

os projetos e ideais dessas famílias, sempre pensados como sendo de iniciativa e


responsabilidade do indivíduo, começa a pesar sobre a estrutura da mesma na medida
em que as condições "dadas" socialmente dificultam enormemente, chegando a
impedir, a realização da maioria dos sonhos (BAZON, 2000, p 47).

Em consonância com o pensamento de Bazon,


170

A crise econômica com seus corolários de desemprego, diminuição da renda familiar


e aumento do custo de vida desestrutura todo o esquema em função do qual as
classes populares 'organizam' sua prática social... (DURHAM,1986, s/p).

No que se refere especificamente ao homem, este estaria vivenciando, no plano


individual, uma situação de fracasso, em virtude da dificuldade de se inserir no mercado de
trabalho, impedindo assim a preservação de sua identidade de provedor e chefe de família. Os
resultados de sua análise identificaram o comportamento de pânico ou fuga, que poderia ser
explicado pelo alcoolismo e pela prática de atos infracionais, como uma “solução alternativa”,
tendo como objetivo manter a própria integridade e a de sua família. Assim, no “processo de
aviltamento socioeconômico, o valor moral do trabalho desvincula-se da atividade
propriamente dita ("ética do trabalho") para ligar-se ao fato dele garantir o "ganha-pão" da
família ("ética do provedor")” (ZALUAR, 1985, apud BAZON, 2000, p. 47). Quanto às
mulheres que ficaram um período do tempo sozinhas, tiveram nesse período que assumir na
íntegra a responsabilidade pelos filhos. Muitos dos filhos se encontravam em tenra idade,
momento que exige maiores cuidados maternos. O rendimento do marido importa para as
exigências desse momento, ou seja, indispensáveis à sobrevivência da família.

Levando-se em consideração que para a auto-imagem dessas mulheres os elementos


fundamentais referem-se ao sentimento de serem "boas mães" e "de terem seus
maridos, não só ao lado, mas trabalhando", é possível imaginar que as mesmas
tivessem começado a sofrer um processo de dupla perda em termos de identidade
pessoal e social. A situação se desequilibra tanto no domínio privado quanto no
público (BAZON, 2000, p 48).

Para Bazon (2000), a busca de recursos dentro da rede de vizinhos e parentes e a


circulação de crianças – expressão que toma de Fonseca (2002a) –, como forma de
sobrevivência da família, se de um lado pode minimizar as dificuldades, por outro, dentro do
campo afetivo e sentimental, pode exacerbar o sentimento de fracasso para a mãe. Esse
sentimento pode se acentuar com a presença da figura da avó materna, quando esta assume as
decisões e responsabilidades maternais. Bazon (2000) concorda com Sarti (1995) que este é
um mecanismo comum que “diminuiria gradativamente a importância da mãe biológica no
cenário familiar, encorajando sua "má conduta" e explicando-se através dela” (BAZON, 2000,
p 48).

”não, ele nunca ajudou. Por que, quando eu tava grávida dela, aí ele falou que não
era filha dele. E eu também deixei prá lá, como ele já falou, então eu não vou ficar
me matando, correndo atrás, eu vou trabalhar e vou criar a minha filha”.
171

”olha, ela chama o meu pai de avô, ela não chama de pai. Agora, a minha mãe, ela
chama de mãe. Aí, ela chega, eu tô em casa, e ela: “mãe!”, eu falo: “o que, P.?”, ela
não: “é minha outra mãe!” Que é a avó né?”.
“mãe!” eu falo: “o que, filha, fala”. Ela: “não mãe, é a vó, minha mãe...” (risos)...
“ai, meu Deus!”. Ela é mais com a minha mãe, do que comigo... ela só conversa
(Renata, 46 anos, mãe).

Quando essa rede é escassa, ou se por algum motivo não foi construída – isolamento
vivido com relação a parentes e vizinhos – o caminho é a institucionalização, na tentativa de
superar o problema naquele momento. Nesse caso aliando a maternidade – entendida como os
cuidados que a criança precisa receber – às precárias condições de vida.
Seja qual for a situação espelhada – circulação de crianças ou institucionalização – o
fato é que tais práticas poderão, além de reforçar a ideia de que a sua atuação se distância dos
valores atribuídos ao perfil materno – cuidar do filho –, pode contribuir para a concretização
do sentimento de fracasso enquanto mulher e mãe. Fazendo um contraponto às ideias de
Badinter (1985) esta mulher seria, antes de tudo, a própria encarnação das imposições e
obrigações maternas.
Bazon (2000) confirmando achados de outros autores (FONSECA, 2002a; SARTI,
2011) descreve que a ida dos filhos para as instituições pode significar a garantia de sua
sobrevivência, porém a sua permanência na instituição poderia estar relacionada à
constituição de novo arranjo familiar criado pela mãe, com outro companheiro e os filhos
gerados nessa nova relação. O recasamento para muitas mulheres pode representar uma
ruptura mais significativa do que a separação, uma vez que não se limita ao afastamento do
cônjuge, mas também o afastamento dos filhos do primeiro casamento por imposição do novo
companheiro. Essas crianças, como já foi dito, podem ter destinos variados como entregá-las
ao cuidado de um parente consanguíneo, parentes afins, estranhos ou instituições, o que não
significa dizer que os laços afetivos entre mãe e filhos foram fragilizados ou enfraquecidos,
mas contribui para reduzir a influencia das crianças nas decisões domésticas, ao mesmo
tempo em que limita o poder da mãe (FONSECA, 1987),

O distanciamento desta mulher em relação aos filhos da primeira união pode ser
interpretado como investimento necessário para o estabelecimento de um novo
relacionamento, tendo em vista a possibilidade de recriar a família nuclear, e não
necessariamente em função de um desapego materno-filial crescente (BAZON,
2000, p 48).

Bazon (2000) aponta para a distinção entre a “família idealizada” e a “vivida”. Diz ela
que a pretensão de uma família idealizada cria um abismo com relação à experiência vivida
por cada família e que vai aumentando ao longo de sua trajetória, acentuando-se também o
172

sentimento de mal-estar entre os membros que compõem o seu núcleo. Concluindo sua
análise, ressalta a importância de um olhar diferenciado que atenda as complexas e variáveis
circunstancias a serem consideradas, de acordo com cada universo, compreendendo as
condições circunscritas de forma concreta e subjetiva, na tentativa de se evitar julgamentos de
valor quanto aos padrões comportamentais.
A importância atribuída aos aspectos subjetivos é significativa no sentido de
ultrapassar a visão de um modelo reducionista em razão das abordagens que se inclinam a
considerar as classes populares somente em suas necessidades materiais (BAZON, 2000).
A diversidade das falas trazidas pelos entrevistados parece confirmar a complexidade
da realidade dessas pessoas e atestar a existência de uma distância significativa entre a
concretude vivida por eles e os estereótipos que lhes são atribuídos sob a influência da família
idealizada. Nota-se que a distinta estrutura e expectativas na vivencia dessas famílias não se
submete à rigidez do modelo idealizado.

“mãe, olha só, vamos voltar prá casa, no Jardim América, vamos reunir os irmãos,
todos, entendeu, volta pro Jardim América... que Jardim América, é meu avô e
minha avó, aquela casa ali é prá usos e frutos,” entendeu? (Renato, 24 anos, filho)

Eu nunca vou abandonar as minhas irmãs, que nada, de jeito nenhum. Eles adoram
minha comida, viu? Mas gostam demais. Tudo só eu... tudo. Fico já planejando... aí
eu falo: “vocês precisam casar”... “ah, eu vou casar prá que, se eu tenho uma irmã
maravilhosa”. Eu falei: “ah, eu já tô cansada, eu já tô com 43 anos”. (Eliane, 43
anos, filha)

Uma visão parcial dessa realidade, ou seja, quando o foco ilumina somente parte
desse contexto (alcoolismo, drogadição, crime, distanciamento do filho e a busca das
mulheres por novos companheiros), impede que se deduza, que se pondere outra forma de
compreensão dessas famílias da classe popular, culpabilizando e/ou criminalizando suas
atitudes e comportamentos que, por seu turno, “naturalizam o movimento de afastamento puro
e simples das crianças de seu meio de origem, para institucionalizá-las durante um longo
período, impondo aos adultos a necessidade de mudarem sua conduta” (BAZON, 2000, p
49).
Essa visão parcial da realidade e suas implicações reporta à ideia trazida por Foucault
(2002d) no livro “Os Anormais”, quando pondera a relação entre as instâncias de poder (toda
mãe deve permanecer com o filho) e os campos de saber (compreensão da realidade). Desse
modo, podem surgir as condutas imediatamente entendidas socialmente como criminalizadas,
na acepção do autor, como o afastamento da genitora do filho, considerado muitas vezes pela
173

sociedade como uma conduta anormal. É dentro desse contexto que a relação mãe-filhos se
constitui como um novo campo de saber. Isso porque o afastamento da genitora produz uma
lacuna para a sociedade que só pode julgar o seu comportamento à medida que conheça a
natureza, ou seja, a causa que a levou a essa conduta. É na explicação para este afastamento
que se encontra o destino desta mulher. Esse comportamento, julgado sob um ponto de vista
moral, entendemos ser possível encaixá-lo no que foi denominado por Foucault (2002d) ao
longo do século XIX como monstruosidade das condutas cotidianas. A genitora, por não
atender às normas vigentes em sociedade poderá ser considerada um ser desviante e
degenerado, devido ao seu comportamento, a sua maneira de ser.
Diante do que é entendido como abandono de um filho pela mãe, comportamento que,
quando realizado pelo pai, não recebe as mesmas sanções da sociedade, alguns diriam ficar
caracterizada a falta de amor materno, constituindo uma patologia/desvio da mãe, pois uma
mulher que se pretenda normal não abandona o seu filho, como vimos em capítulos
anteriores. Passa privações, riscos, mas não o deixa. Nem caberia dizer que antes este amor
materno natural existia e se perdeu, pois que, independentemente do contexto histórico
observado, efetivamente algumas mulheres abandonavam seus filhos, outras não, face às
sanções ontem ou hoje impostas.
Tamiris foi criada pelo avô materno e os familiares quando brigavam com ela, diziam
que a mãe era uma vagabunda e que por isso o avô tinha que criá-la, lembrando sempre que a
mãe a deixou e desqualificando a genitora.

brigavam sempre comigo, e sempre que eles brigavam comigo, eles falavam sempre
da minha mãe. “ah, você é uma filha de vagabundo, que não quis te criar, aí veio, tua
mãe veio e joga você aqui na porta de pai... papai tá criando depois de velho...”
(Tamiris, 30 anos, filha)

Uma mulher mãe vagabunda é capaz de abandonar a filha.


Guiada pelas questões de Sarti (2004) é possível compreender e pensar a família da
classe popular, de acordo com o que foi exposto, dentro de parâmetros coletivos do tempo e
espaço em que vivemos e que ordenam as relações de parentesco entre irmãos, pais e filhos,
marido e mulher. Ou seja, pensar essa família sob uma realidade que se constrói pelo seu
próprio discurso, isto é, sobre si própria.
174

7.2 Avós: porto seguro, disputa, afeto...

As desuniões são capazes de originar uma pluralidade de trajetórias em que pais e


filhos poderão habitar territórios distintos, proporcionando, também, situações variadas: filhos
transitando entre os genitores; somente um dos genitores permanecendo com os filhos;
crianças que são criadas por pessoas que não pertencem à família consanguínea, crianças
institucionalizadas – apenas as das camadas populares, como as da nossa pesquisa – e crianças
que podem ser cuidadas por membros da própria família extensa materna ou paterna
(RIBEIRO, 1988). Falemos agora um pouco deste último cenário.
Ressalte-se que quando não há separação, ou mesmo afastamento da mãe, muitas
vezes nas camadas populares a família extensa reside no mesmo terreno e participa do
cotidiano um dos outros.
Não é incomum encontrar pais que sentem dificuldade em compatibilizar as funções
de cuidado com os encargos profissionais, pessoais e parentais, recorrendo aos avós para essa
função. Não podemos esquecer, também, que a busca pelos avós pode estar associada a falta
de equipamentos sociais públicos destinados a crianças para suprir a ociosidade do tempo fora
da escola, bem como a ausência dos pais quando do exercício profissional.
Consequentemente, os avós passam a criar os netos, fornecendo apoio afetivo, moral e
financeiro, não somente para esses netos, mas também para os filhos, possibilitando a estes a
continuidade no exercício de atividades profissionais (CARDOSO, 2010). Entendemos que,
de forma geral, esse cuidado pode ser oferecido tanto por famílias populares como de
camadas médias. Desse modo passamos a descrever estudos que abordam não só aspectos
comuns como também distintos desses diferentes universos.

7.2.1 Avos que cuidam dos netos na família original – classe popular x classe média.

Ramos (2011) aponta a presença dos avós na vida dos netos como sendo tão ou mais
presentes, em alguns casos, do que os pais, tornando-se personagens importantes no
crescimento e desenvolvimento da criança. Sua presença não se limita somente à imagem
representativa da família, mas sua influência estende-se ao cuidado cotidiano do neto.
175

Entre os entrevistados, corroborando o que mostra a literatura abordada na sequência,


os avós têm uma presença muito significativa e, muitas vezes, definitiva em suas vidas.

e a sorte disso tudo ainda foi porque meu avô me dava muito carinho, muito amor
mesmo, muito carinho. Se preocupava muito comigo, então, a minha vida... se eu
falar prá você assim: eu fui criada por meus avós... foi uma benção? Não! Foi bom,
porque meu avô foi uma benção na minha vida, assim, em termos de substituir o pai,
mas em termos de condição de vida, condição financeira, educação... não tinha
como! (Tamiris, 30 anos, filha)

avó, essa que me criou, desde quando eu nasci... que é minha avó, ela é minha avó,
ela é minha madrinha e minha mãe, né .... , mas tudo quem sempre me deu foi minha
avó.... bancava a gente (Sara, 47 anos, filha)

Minha avó era tudo! Minha avó cuidava mais da gente do que tudo na vida, sempre
amou a gente. Morreu agora, tem pouco tempo, a minha avozinha, morreu com 93
anos. Ela sabia, ela sabia que chegou a hora dela. Morreu de velha. Ela criou todos,
ajudou a todos. (Eliane, 43 anos, filha)

o tratamento da minha avó era o tratamento de filho... o tratamento que ela tinha
comigo era de filho, me dava conselho, colocava na escola, então, ela ocupou o
lugar da minha mãe, né? Aí, foi... a educação. (Ilan, 50 anos, filho)

Essa vivência poderá desencadear experiência recíproca, que além de enriquecer os


laços familiares, também enriquece os laços que constituem as crianças como sujeitos, sendo
os avós figuras centrais nessa formação. Barros (1987) afirma que a convivência dos netos
com os avós é importante para o desenvolvimento da subjetividade, deixando os pais de serem
suas únicas referências, mesmo quando essa relação é permeada por tensões e conflitos de
geração ou diferenças de opinião.
Oliveira (1993) realizou seu estudo com avós que cuidavam dos netos devido ao
impedimento dos pais. Seu objetivo foi a relação educativa que se pode estabelecer entre avós
e netos no espaço vivido e compartilhado do cotidiano, e suas experiências simbólicas.
Concluiu que os avós absorvem de forma satisfatória a decisão de cuidar dos netos, mesmo
que esse cuidado os remeta a um lugar de dedicação servil. Cuidar dos netos proporciona-lhes
significado à própria vida, além de colaborar para a diminuição de sentimentos, que por
ventura, possam conduzi-los à percepção de serem um estorvo dentro de casa. Embora, a
princípio, os cuidados dispensados aos netos possam não ser um problema, Oliveira (1993)
diz que quando está atrelado à separação ou ao abandono dos pais pode trazer problemas.
Nada impede que a situação aos poucos se defina, ganhando outros contornos que
proporcionem melhor assimilação. É dentro desse contexto, cuidado, que a relação se edifica,
176

permitindo a ambos reciprocidade no educar e ser reeducado; nessa dinâmica se renovando e


se construindo como sujeito.
O estudo de Atalla (1996) demonstra opostos sentimentos dos avós nos cuidados com
os netos. Enquanto uns aceitavam com prazer, outros relutavam sentindo-se pressionados a
aceitar. Entre eles constataram-se sentimentos ambivalentes: de um lado experimentavam
cansaço e medo de perder a liberdade que concorriam com o sentimento de realização,
renovação, orgulho e satisfação por sua contribuição geracional. Dentro da mesma perspectiva
os estudos de Lopes et al (2005, p, s/n) apontam aspectos positivos e negativos. Os positivos
englobam “satisfação em prover a nova geração, senso de renovação pessoal e dever
cumprido, ter companhia e afastar o sentimento de solidão”; e os negativos “queda na
qualidade da saúde física e emocional, alterações na vida social e familiar, sobrecarga
financeira e estresse”.
Féres-Carneiro (1999), citando as ideias de Langer (1990), enfatiza que os avós ao
cuidarem de seus netos experimentam sentimento de conforto, satisfação e prazer, atribuindo
maior relevância a essa tarefa do que as de aspecto instrumental como a realização de
trabalhos domésticos.
Oliveira (1999), em seu estudo baseado em depoimentos obtidos de avós e netos de
classes populares de uma cidade do interior paulista, detectou mudanças positivas no ânimo
dos avós, um novo sentido. Fruto, segundo ele, dessa interação geracional, desse aprendizado
recíproco, bem como dos sentimentos ligados a auto-imagem no enfrentamento dos desafios.
No plano material revelaram frustração, quando não podiam proporcionar aos netos o que lhes
era pedido. Relataram dificuldades, não só de ordem material, como também de ordem
sentimental, advindas das dinâmicas de separação ou abandono que, de um lado, lhes provara
o fracasso em relação aos filhos, mas que também lhes trouxera os netos ao cuidado, fixando-
se mais nos benefícios e nessa troca que lhes fornece motivação para a vida. Ressentiam-se
quando os netos não estavam com eles, demonstrando tristeza e solidão.

porque ela tá saindo da minha casa contra a minha vontade.” Que quando eu saí da
casa do meu avô, ele não aceitava que eu saísse, ele chorou muito, não queria que eu
saísse porque ele tinha... acho que assim, eu não gosto nem de... (choro) falar dele
porquê eu acho que foi a única pessoa que meu deu amor, foi ele. Eu não gosto nem
de tocar no assunto, assim... falar do meu avó, porque ele foi mais do que um pai prá
mim. (Tamiris, 30 anos, filha)

Notou-se também que expectativas sociais podem influir na decisão de ocupar o lugar
de pais, mas o sentimento que nutrem pelos netos é determinante para que se comprometam
177

com a tarefa, diante da alternativa de vê-los em instituições ou cuidados por terceiros,


descontinuando a linhagem.
Essa propensão tem sua contrapartida nos avós que não aceitam assumir o cuidado
primário de seus netos, privilegiando projetos de realização pessoal. Barros (1987), em
depoimentos colhidos de avós de classe média do Rio de Janeiro determinou que muitos avós
vêem negativamente a função e não pretendem assumi-la. Para tanto, talvez contribua a
construção social do conceito de Terceira Idade, onde, segundo Debert e Simões (1998), aos
anos iniciais da velhice correspondem lazeres, descobertas e aprendizados, realizações de
sonhos pretéritos, em que não cabem os netos. Idosos com melhor nível sócio-econômico
certamente tem acesso a oportunidades que resultam em maior qualidade de vida, o que pode
influir na decisão de cuidar ou não dos netos.
De toda forma encontramos nos trabalhos citados resultados distintos que podemos
relacionar em parte à matriz sócio-econômica dos entrevistados, mas que precisam ser melhor
compreendidos no contexto da multiplicidade do envelhecer e da qualidade das relações
familiares (geracionais).
Embora estejamos usando o termo no plural - “avós” – o que sugere a atenção do
cuidado dispensado tanto pelos avós paternos quanto maternos, alguns autores (CUNHA;
MATOS, 2010; RAMOS, 2011 citando ROBERTO; STROES, 1995; NORRIS; TINDALE,
1994) fazem um recorte de gênero demonstrando que nas sociedades ocidentais os laços são
mais acentuados com a família materna. Justificam a preeminência do vínculo em função da
centralidade das mulheres nas relações familiares. Enfatizando essa ideia Britto da Mota
(2004), em Ramos (2011), relata que as mulheres geralmente são as que fazem a
intermediação nas relações familiares entre as varias gerações, reforçando a manutenção do
vínculo. Salvo algumas exceções, as mães costumam recorrer, mais frequentemente, à sua
própria mãe do que à sogra no cuidado com a prole; em decorrência o contato com a linhagem
materna se intensifica. Contribuem para esse estreitamento os desentendimentos que por
ventura ocorram entre nora e sogra, intensificando mais ainda a relação com a linha materna e
fragilizando a paterna (RAMOS, 2011 citando DENCH; OGG, 2001).
O apoio oferecido pelos avós maternos é o mais observado, nada impedindo que a mãe
recorra aos avós paternos quando mantém um relacionamento amistoso com eles e
principalmente quando por algum motivo – desentendimento, moradia distante ou ausência de
interesse ou impossibilidade de cuidar – os avós maternos não assumem a tarefa. Nos casos
observados, chama-nos a atenção uma situação em que a genitora deixa os filhos com a avó
paterna. Embora a genitora não crie a filha e, por isso, não lhe mereça igual afeto (por não
178

estar junto a ela, nas horas boas e ruins), não se desfaz a imagem da mãe idealizada, aquela
que gostaria de ter.

Que eu sempre fui ligada aos parentes dos meus pais, do meu pai, né?....que a
materna mesmo eu nem me lembro.
Mas não tive aquela coisa próxima de mãe, aquele... é um amor sanguíneo, uma
coisa de pele, mas não é aquele amor que eu tenho à minha avó, aquela falta... (Sara,
47 anos, filha)

mas aquele amor.... sei lá, é uma coisa diferente, é uma coisa inexplicável, que não
dá pra se explicar. Eu sempre falei, que se viesse um anjo lá de cima e me
perguntasse: “você leva sua mãe ou sua avó?”, eu mandava minha mãe primeiro, que
geralmente a gente manda a mãe depois, mas eu mando a minha primeiro
“poxa, é chato, todo mundo tem mãe, eu não tenho”, mas a minha avó ela... assim...
ela conseguiu suprir
todos os filhos dela foram criados com avós, e paternos. Todos. Todos eles. São
cinco filhos, né? .......entendeu? Quem sempre me apoiou, quem sempre teve com os
filhos, eu sempre trabalhei, minha avó que tomava conta dos meus filhos, até um
certo período, até meio dia, minha avó sempre me ajudou, entendeu? Na hora do
parto, eu tava com dor, minha avó que estava ali, quando eu tinha dor de ouvido,
todos os dias, a minha avó que estava ali, entendeu? Quando eu operei, minha avó
que estava ali, então, todos os momentos difíceis da minha vida, minha avó esteve. E
ela nunca teve presente. Então, tem o seu preço também, né? .......colégio, as
primeiras letrinhas foi minha avó. Escreve com a mão esquerda... batia na mão... “é
com a direita,..”, foi a minha avó, entendeu? Então, o que que ela participou? Na
minha vida? Nada. Participou? Foi o parto, que eu nasci em casa... a dor, só! Mas
todo momento que eu estive com minha mãe, era sempre muito sorriso. muito
alegre, não tinha tristeza. Podia estar triste, mas quando tava perto......(Sara, 47 anos,
filha)

Confirmando o habitual desconforto diante de situações formalizadas, como retiradas


de documentos e inclusão no sistema educacional, a filha argumenta que:

Quando ela [a mãe] foi morar com o meu pai, já tinha esses dois, que ela também
deixou com os avós. Naquela época, né, não se podia nem dar o nome, por que ela
era casada com o pai desses meus dois irmãos, que não sei nem quem são. Se ver na
rua, eu não conheço.
e eu sempre sentia muita falta da minha mãe, muito! Sentia muita falta, mas... no
colégio, todo mundo perguntava: “ué, cade o nome da mãe?”, como me perguntam
até hoje, porque eu não sou registrada.
o que que ela participou? Eu tenho a maior vontade de botar o nome dela no meu
registro. Ah, mas eu acho que vai dar muita complicação. Eu tenho vontade, por que
é ruim. Aí, agora mesmo, vou mudar o meu cpf, foi uma complicação, tem que ir na
receita, que ninguém acredita que não tem nome de mãe. (Sara, 47 anos, filha)

Ramos (2011) diz que o cuidado permite aos avôs paternos o acesso aos descendentes
o que, via de regra, esses avós não confiam que poderia ser proporcionado por seus filhos.
Conclui a autora que a filiação não se restringe a pais e filhos e que da qualidade cotidiana das
relações entre os genitores depende a inserção dos netos nas duas linhagens.
179

A situação de alguns dos entrevistados corrobora a literatura: nos casos em questão os


avós paternos assumiram os netos quando do afastamento da mãe e, em alguns casos, de toda
a linhagem materna.
Resumindo, o re-alinhamento geracional pós-divórcio é determinado por inúmeros
fatores como linhagem, qualidade dos relacionamentos antes e após o rompimento,
circunstâncias do divórcio e distância geográfica.
Concordamos com Segalen (2001) expresso em Ramos (2011) e em coro com alguns
dos entrevistados, quando a autora diz que o divórcio se inscreve dentro das tensões que
concorrem para o risco da desfiliação. E a figura dos avós, como apontamos, é crucial para
reverter este processo.
Brawin-Legros e Gauthier (1992) destacaram também o forte vínculo afetivo
desenvolvido entre netos e avós maternos. As autoras desenvolveram suas pesquisas adotando
duas categorias, as quais denominaram de “avós substitutos educativos” e “avós
transmissores”, tendo como objetivo a interrogação acerca da produção social, permanência
ou ruptura intergeracional. Os “avós substitutos educativos” são encontrados nos meios
menos favorecidos e, como o próprio nome sugeriu, a tendência é a substituição dos pais na
responsabilidade de educar. Por isso, os contatos são mais intensos nesse tipo de
relacionamento.

olha, ela chama o meu pai de avô, ela não chama de pai. Agora, a minha mãe, ela
chama de mãe....criou ela desde pequena. Mas ela ama muito a avó dela. Também,
todo lugar que a avó dela ia, ela ia também, a avó dela nunca deixou ela brincar na
rua, sempre dentro de casa.... quer dizer, praticamente, minha mãe é mais mãe que
eu...é mais mãe que eu, porque praticamente, minha mãe criou ela, desde pequena...
dormia no canto da cama da minha mãe, dorme até hoje...(Renata, 46 anos, mãe)

Diferentemente dos avós substitutos, cuja tendência é assumir a educação do neto, os


avos especialistas, que a literatura localiza nas camadas médias, o que pode ser explicado
pelos níveis de escolaridade e as condições financeiras das famílias, baseiam o seu
relacionamento no companheirismo, apontando para uma responsabilidade mais limitada,
específica. Os pais têm importante função no contato dos netos com os avós, no sentido de
serem eles o elo dos laços geracionais (RAMOS, 2011). Embora isso não signifique que as
relações sejam uniformes nem que tenham a mesma relevância para os vínculos da família
materna e paterna.
Dias et al (2005) sugerem outro termo, citando pesquisa realizada por Neugarten e
Weinstein (1964), denominando-os pais substitutos. Embora utilize a expressão pais, como
180

plural de pai e mãe, refere-se aos avós que cuidam parcialmente ou permanentemente dos
netos. Outros autores como Ehrle e Day (1994), citados em Dias et al, 2005, chamam de avós
guardiões os que criam seus netos. As autoras relatam que tem sido cada vez mais
significativa a participação dos avós nos cuidados integrais dos netos e que o percentual de
crianças que vivem sob os seus cuidados vem aumentando consideravelmente. Lopes et al
(2005) confirmam essa tendência ao constatar que o número de avós que cuida dos netos, ou
seja, assumem o papel de pais dos seus netos, tem se elevado nas ultimas décadas. Os motivos
para essa modalidade de convivência podem ser os mais variados: problemas emocionais, uso
de álcool, uso de drogas, gravidez na adolescência, doenças dos pais ou sua morte, bem como,
a não-aceitação dos netos em lares adotivos (DIAS et tal, 2005), como é possível também
observar nos depoimentos de nossos entrevistados.
Lopes et al (2005) identificam as principais causas pelas quais os avós assumem a
responsabilidade pelos netos, tornando-se pais dos netos:

 inserção das mulheres no mercado de trabalho dificultando-lhes o cuidar integral


dos filhos;
 dificuldades econômicas como desemprego dos pais e necessidade de ajuda
financeira por parte dos avós;
 necessidade de ambos os pais trabalharem para proverem o sustento doméstico;
 divórcio do casal com retorno para casa dos pais juntamente com os netos;
 novo casamento de pais separados e, não aceitação das crianças por parte do
cônjuge;
 gravidez precoce e despreparo para cuidar dos filhos;
 morte precoce dos pais devido à violência ou doenças como a AIDS;
 incapacidade dos pais decorrente de desordens emocionais ou neurológicas;
 uso de drogas ou envolvimento em programas de recuperação para usuários de
drogas;
 envolvimento em situações ilícitas e problemas judiciais. (LOPES et. al., 2005,
s/p).

No caso de separação e divórcio os avós podem ser o suporte durante e depois da


dissolução do relacionamento conjugal, tendo como consequência a permanência temporária
ou definitiva dos filhos em sua companhia. A transição ocorrida em razão do divórcio pode
levar a coabitação dos filhos motivados em construir um novo lar, em buscar emprego,
administrar o cuidado com seus próprios filhos. A separação pode ocasionar redução da
capacidade financeira, levando a precárias condições de vida. Para Ramos (2011) “a transição
para a monoparentalidade é normalmente acompanhada por uma importante redução
financeira, que pode levar a situações de pobreza, reforçando a importância do suporte
familiar” (p. 189). De Singly (2007) em consonância com essa ideia relata que em países
como o Canadá, Inglaterra e os Estados Unidos as famílias monoparentais apresentam uma
181

percentagem maior de pobreza quando comparadas às famílias constituídas pelos pais com os
seus respectivos filhos. Como em sua maioria a guarda permanece com a mãe, a
monoparentalidade e a coabitação parecem ser uma realidade mais próxima das genitoras;
embora não possamos descartar que o mesmo ocorra com o homem quando está sozinho ou
acompanhado dos filhos.
O apoio proporcionado pelos avós estreita os laços da linhagem que detém a guarda;
essa aliança não inclui geralmente o não guardião, podendo inclusive provocar um
relaxamento naquele que não a detém. O divórcio assim produz duas alternativas contrárias
em relação aos pais e seus(s) filho(s): aproximação e afastamento. Ramos (2011) constatou
que o relaxamento do vínculo com o genitor que não detém a guarda reflete-se até mesmo
pelo distanciamento geográfico em relação aos filhos, reduzindo a convivência e tornando o
contato esporádico, podendo até evoluir para uma ruptura total. O apoio dos avós suscita-nos
a pensar se, de igual forma, não ocorreria um afastamento até mesmo do guardião, uma vez
que poderiam experimentar também um relaxamento nos cuidados e criação dos filhos em
função desse apoio.

bom.... eu fico feliz, muito feliz. Porque eu não me preocupo, e ela, a minha filha, é
evangélica. Eu não me preocupo, por que? Porque ela está em boas mãos, né, com a
minha mãe... ela não tá, sabe... tipo... essas meninas que tá no funk, passa a noite...
então ... eu trabalho tranquila... trabalho tranquila (Renata, 46 anos, mãe).

Quando toda a responsabilidade e autoridade sobre os netos recaem sobre os avós


estes assumem, com maior ou menor desenvoltura, o cuidado primário no lugar dos genitores,
podendo obter correspondentes graus de satisfação na tarefa. Entretanto a configuração mais
comum é a do convívio das três gerações nas moradias em que avós e netos convivem,
conforme informa Ramos (2011), citando levantamento realizado nos Estados Unidos (U.S.
Census Bureau, 2010), compreendendo tanto genitores, que continuaram residindo com os
pais após o casamento ou nascimento de filhos, quanto os que permaneceram, ou passaram a
residir com eles após divórcio. Outro aspecto relevante é que a guarda, geralmente atribuída à
mulher, paralelamente a maior longevidade das avós, em relação aos avôs, proporciona às
crianças uma predominante convivência feminina (CAMARANO, 2006). A permanência da
criança com uma das famílias de origem dos genitores parece contribuir para a influência e
interferência únicas desse segmento familiar. “As leis, regras, mitos, enfim toda a herança
transgeracional fica restrita a um lado da família, ficando o filho com uma visão mais parcial
de seu pertencimento” (HINTZ, 2007, p. 167).
182

de repente, você é minha irmã e eu não sei. Entendeu? A Gente tava conversando no
ônibus, “tô conversando com a minha irmã e não sei. “ Me lembro muito vagamente
do rostinho dela, mas olha o tempo que já é..... Se eu vi minha irmã? Se eu vi minha
irmã duas ou três vezes, foi muito... já vi maiorzinha, por isso que eu me lembro
mais ou menos, do corpinho... meu irmão, nem sei... só conheço meu irmão V., e os
que são parte de pai. Os parentes dela eu não sei nenhum. Não tenho noção se eles
são brancos, se são negros, não tenho... parte sanguínea, se tem algum problema...
que a gente pergunta, né? “Vocês tem algum problema? Saúde...?”..ah, só sei do
meu pai, porque minha mãe... “como é que você não sabe de sua mãe?” “não sei,
não sou nem registrada no nome dela”. Ai pronto, ai mata logo tudo, que eu não sei
nada da vida dela. .... Único contato que eu tenho é com o meu irmão paterno, que é
assim: hoje cada um tá com a sua vidinha, né? Mas é assim, meu irmão paterno e
meus dois irmãos paternos. Um tá até em Florianópolis, mas assim, que a gente tem
mesmo, que a gente sabe da vida, é o meu irmão paterno (Sara, 47 anos, filha)

Geralmente, em função da posse ou propriedade do imóvel ser predominantemente dos


mais idosos, são eles que acolhem seus descendentes (CAMARANO; KANSO; MELLO,
2004). Essa prática, observada tanto na classe média quanto na classe popular, atenua a
monoparentalidade e transformaram 7 em cada 10 idosos no Brasil, segundo Néri (2007) - na
alça dos projetos de distribuição de renda e seguridade social - em provedores, no universo de
26% dos domicílios brasileiros nos quais residem (CAMARANO, 2006). Muitos idosos
continuam trabalhando após a aposentadoria, não só para garantir o seu padrão de vida, como
também para o suporte de seus familiares.
Uma questão pertinente ao nosso tema nos assalta à luz dessas anotações e que
demandariam outra linha de pesquisa. A redução à monoparentalidade e suas consequências
inevitáveis, notadamente o empobrecimento, a par do fortalecimento dos vínculos geracionais,
nestas famílias, proporcionando maior coesão e sustentabilidade, poderiam estar contribuindo
para amenizar a incidência e visibilidade do afastamento materno, tanto por necessidade como
até pelo não desejo de maternar, este inibido por agenciamentos familiares? Ou melhor: esta
rede de solidariedade intergeracional, que alivia o peso da maternidade jogado às costas das
mulheres, estaria borrando um dado maior na estatística do afastamento?
Um interessante dado para nosso estudo surge da relação que nos é oferecida por
Ramos (2011) para a distribuição da frequência do cuidado disponibilizado pelos avós nos
arranjos nucleares (pouco frequente); no recasamento (eventual); e monoparentais (mais
constante), o que nos reportaria a Bilac (1995a) quando nos fala na substituição do provedor
tradicional por outros arranjos familiares, tendo como constante a centralidade materna,
acentuada por um traço pré-existente de família solidaria de múltiplos provedores.
183

também representa uma forma de suprir as necessidades familiares, criando


alternativas à escassa ou inadequada provisão oferecida pelo Estado. Especialmente
entre as mulheres, a ajuda dada à jovem mãe representa um suporte à sua realização
profissional, testemunhando uma solidariedade feminina na busca pela inserção no
mercado de trabalho (RAMOS, 2011, p 261).

Para Dolto (1998) bem como para Segalen (2001), esta aliança entre pais e avós não
está isenta de tensões no borramento do ethos, de visão de mundo atribuídos a cada um deles.
Mas é justamente nas tensões que reside a potência, a possibilidade de novos caminhos para a
produção e reprodução sociais. Ou então

A ideia de família como um conjunto de emoções e sentimentos permite representá-


la como uma instituição que amplia os quadros biológicos e legais do parentesco.
Embora esses quadros façam parte da construção social da família, eles estão
envolvidos pelas emoções e sentimentos, vistos como forma de expressão familiar
(BARROS, 1987, p 81).

Embora, ainda seja grande a escassez de literatura sobre o tema, encontramos em


Gladstone (1999), citado em Féres-Carneiro, 1999) um estudo realizado com avós e netos
após o divórcio e recasamento do (a) filho (a) em que observou o divórcio e/ou recasamento
como transição para o relacionamento avós e netos.
É importante apontar que a relação divórcio e/ou recasamento como forma de
transição para a casa dos avós não é uma constante. Explica-nos Costa (2007) que em
consequência do elevado número de recasamentos, um quarto das crianças viverá com uma
família não conseguínea, por algum tempo. O autor diz, ainda, que a reação das crianças não
só varia individualmente, como também em função da idade e de acordo com a dinâmica de
cada família, principalmente pela forma como os pais lidam com a separação, que tende a ser
mais significativa para o comportamento dos filhos do que a separação em si.
Seja qual for o posicionamento adotado acreditamos que os avós são figuras
importantes na fase da separação tanto para os pais quanto para os netos. Como nos informa
Wallerstein e Kelly (1998), para que as crianças suportem e sobrevivam à separação é
importante, além dos seus próprios recursos internos, a presença de todas as pessoas
significativas para a criança, incluindo nesse universo a figura dos avós. A ausência dos avós
em situação de separação ou divorcio pode contribuir para prejudicar o desenvolvimento
psicossocial da criança (ARAÚJO, 2001). “Além de seus recursos internos, as crianças
precisarão de ajuda e do encorajamento sensível dos pais, avós, professores e outros adultos
cujas vidas profissionais e pessoais entrarem em contato, significativamente, com as suas.”
(WALLERSTEIN; KELLY, 1998, p 13).
184

7.2.2 Os novos parentescos introduzidos pelo recasamento

Nas famílias divorciadas, o que o recasamento poderá gerar ou influenciar nos novos
relacionamentos, principalmente quando da existência de filhos anteriores? As mesmas
tensões que encontramos para as funções que são desempenhadas pelos padrastos e madrastas
também encontramos para os avós sociais, como denomina Hintz (2007), o que no senso
comum muitas vezes é conhecido como “vódrasta” e “vôdrasto”. A expressão avós sociais é
utilizado para representar os pais e/ou mães dos padrastos ou madrastas que não tem vínculo
biológico com a criança. O convívio dessas crianças e ou adolescentes com esses novos
personagens não está claramente definido, ou seja, como devem ser desenvolvidos ou
negociados (HINTZ, 2007). Na dinâmica dessa nova realidade – o recasamento – tanto pode
haver perda do relacionamento dos avós com os netos devido a separação dos pais, tendo
como consequência um novo relacionamento, como pode por meio dessa nova configuração a
família estender-se ou aumentar em consequência da ruptura e recasamento. A permanência
da relação entre os avós e netos dependerá também do quanto é amistosa a relação entre os
membros da família. Hintz (2007, p 166) diz que a situação mais comum é a avó conseguir
manter contato com a ex-nora após a separação, o que facilita a sua convivência com o neto,
mesmo que o seu filho se mantenha distante da criança. “A continuidade do relacionamento
facilita que a avó mantenha o relacionamento com o neto”. Por outro lado o recasamento
introduz novos atores nas relações: pais da madrasta e do padrasto passam a fazer parte do
círculo familiar (HINTZ, 2007). Diferentemente dos avôs biológicos, que ocupam posição
singular no universo biográfico dos netos, o lugar desses avôs sociais depende de construção
para estabelecer-se, pois carecem “do instinto de ligação que existe no nascimento de um neto
biológico” (KORNHABER; WOODWARD, 1985, p. 225, apud RAMOS, 2011). Esta
construção depende grandemente da disponibilidade emocional tanto dos avôs quanto dos
netos, que já vivenciam, no recasamento, a introdução de um novo companheiro ou
companheira na vida de seus genitores, cuja relação com os enteados influirá, por sua vez, no
vínculo com os avôs sociais. É nosso entendimento que essas relações tão complexas
dependerão de todos os envolvidos - os pais, padrastos, madrastas e netos - pois os
desentendimentos entre seus filhos(as) e o(a) novo(a) companheiro(a) poderá diminuir ou até
romper a convivência com o(a) neto(a) (HINTZ, 2007).
A aliança estabelecida entre netos e avós sociais depende de inúmeros fatores, porém
constata-se ser mais fácil, como destarte ocorre em relação ao padrasto ou madrasta, quando a
185

convivência inicia-se nos primeiros anos de vida, ou seja, no período da infância dos netos e
permanece. Constata-se, coerentemente, que a não integração de padrastos e madrastas nas
linhas familiares implica na possibilidade de exclusão dos correspondentes avós sociais
(RAMOS, 2011).
A imensa gama de relacionamentos, biológicos como também afetivos, implica na
complexidade dos vínculos, também incluindo na vida das crianças, além dos já citados, os
padrastos e madrastas dos padrastos e madrastas, e avós emprestados - adotivos ou do
coração. A efetividade desses vínculos será condicionada a inúmeros fatores ligados
principalmente à proximidade, regularidade, disponibilidade e afinidade. Assim ocorre
quando avós assumem toda ou parte dos encargos com os netos, quando os genitores não
podem ou não querem assumi-los total ou parcialmente.

7.3 Os irmãos: produzindo sentidos para o sangue, o afeto, a convivência ou a falta dela

As separações, divórcios e novos relacionamentos podem trazer mudanças para todos


os membros da família, como já assinalado anteriormente. Buscou-se aqui compreender como
os filhos percebem as mudanças ocorridas em suas vidas em função do novo relacionamento
materno. Especificamente no que se refere aos irmãos, que relações se estabeleceram após o
afastamento da mãe.
A relação entre irmãos, de início, não acontece por escolha ou decisão própria, mas
pela convivência dentro do mesmo sistema familiar. Os vínculos entre eles, mesmo que haja a
ruptura da relação conjugal, poderá continuar no decorrer da vida.

E eu ajudando ele a sustentar eles. E assim a gente ficou, um ajudando o outro.


Cresceu assim, um ajudando o outro; a gente tem os irmãos, nós temos um ao outro.
(Eliane, 43 anos, filha)

É o vinculo mais duradouro, inicia-se na infância e nos acompanha ao longo da vida


(AMARAL; DIAS, 2011; OLIVEIRA; CERVENY, 2010). Como pode ser extraído do relato,
mesmo quando não se acompanham integralmente ao longo da vida, os irmãos passam a
ajudar uns aos outros preenchendo suas necessidades emocionais e possivelmente diminuindo
o sentimento de perda, interagindo e se fortalecendo.
186

Caleidoscópio de relações, a família se caracteriza por componentes variáveis que


interatuam e se influenciam mutuamente. Assim, a entrada de um membro pode trazer o
desequilíbrio para todo o sistema, quer seja pela modificação da estrutura material, de espaço
e de tempo, quer seja, nas relações entre seus integrantes (PEREIRA; PICCININI, 2007).
Acreditamos que o afastamento ou a ausência de um dos seus componentes também possa
proporcionar desequilíbrio, introduzindo na dinâmica da família um novo ciclo de mudanças.

Aí, o que acontece, fui embora, deixando prá trás o meu irmão mais velho, o meu
irmão mais novo. Eu fico muito triste quando falo nessa história... e a minha
caçulinha, que é a minha irmão pequenininha, mais nova. Então, ficaram elas prá
trás, eu segui em frente. A minha irmã, juntou a mim, já morava com a madrinha,
né, no interior lá. Aí eu vim embora, fui criada por essa família, dos dez anos em
diante, fui criada por uma nova família, só que daí eu pedi prá ela não me afastar dos
meus irmãos, porque os meus irmãos eu gostava muito, muito mesmo. Aí ela falou
que sempre que podia me levava lá prá ver os meus irmãos. E dái, quando eu tinha
mais ou menos uns 12 anos de idade, eu fiquei sabendo que minha mãe foi embora,
largou esses meus irmãos, foi morar com uma pessoa, e largou. Ela não queria saber
de filho nenhum. Largou todos para trás. (Eliane, 43 anos, filha).

Esse fluxo de relações pode ser acompanhado por sentimentos diversos, no que diz
respeito aos irmãos.
Alguns autores (AMARAL; DIAS, 2011; OLIVEIRA; CERVENY, 2010) identificam
uma ambivalência de afetos que podem ser expressos de forma positiva ou negativa. Afirmam
que o sentimento de rivalidade, característica que se atribui frequentemente a relação fraterna,
coexiste com outras formas de sentimento, como: carinho, heroísmo, lealdade, sentimento de
obrigação, admiração, inveja, frustração, raiva, ciúme. Além de oportunizar aprendizagens:
disputa, cooperação, negociação, competição, imitação, entre outros. As relações entre irmãos
se formam sob diferentes aspectos, “há uma multiplicidade de vínculos que se arranjam entre
si em diferentes padrões de relacionamentos” (OLIVEIRA; CERVENY, 2010, p 96).
Entretanto, seja qual for à relação, satisfatória ou frustrante, esse ambiente emocional
servirá de laboratório, como nos informa Silveira (2002), proporcionando habilidades e
sentimentos que formam a base com a qual se molda a vida de cada um e preparando futuras
relações sociais que serão vivenciadas, também, fora do núcleo familiar (OLIVEIRA;
CERVENY, 2010). “Pertencer ao mesmo subsistema (subsistema fraterno ou fratria)
estabelece uma relação entre iguais, que é íntima, diária e complexa” (AMARAL; DIAS,
2011, p 124).

Assim, o vínculo fraterno pode ser compreendido como resultado de um processo


inter-relacional, que é construído e definido mediante as trocas estabelecidas entre
os irmãos, as quais poderão satisfazer suas diferentes necessidades. O vínculo
187

fraterno pode ser transformado e ressignificado ao longo de toda vida, o que revela
seu caráter dinâmico e duradouro. Enquanto vinculo afetivo, a relação fraterna
poderá apresentar as seguintes características: ser um laço duradouro que perdura
mesmo em face da separação pelo tempo e pela distancia; ter evidenciado o desejo
de manter proximidade, o prazer em face da união, assim como tristeza diante da
perda (OLIVEIRA; CERVENY, 2010, p 96).

Dentro do ciclo que compreende a infância, adolescência e a fase adulta o


relacionamento pode apresentar intensidades diversas, o que poderá resultar em vínculos de
apego com diferentes irmãos de diferentes formas, inclusive como figuras de conforto e
segurança. Para explicar a formação desse vínculo recorre-se, em geral, à teoria de Bowlby
(1979) que diz que o apego é um tipo de vínculo em que o senso de conforto e de segurança
está presente. Desse modo, podem-se desenvolver múltiplos apegos com pessoas diversas que
interajam na relação de forma responsiva e protetora, como é o caso de irmãos que passam a
cuidar de outros irmãos, quando a genitora por motivos variados se afasta.
Oliveira e Cerveny (2010), baseadas em Bank e Kahn (1997), descrevem que esse
afastamento, que pode representar um lapso nos cuidados parentais, também favorece a
intensidade dos vínculos fraternos que pode assumir maior importância. Não se pretende
afirmar que na presença das figuras parentais esses comportamentos não se manifestem.
Porém, na ausência da mãe os irmãos podem tornar-se fonte de conforto, proteção, segurança
e apoio, desempenhando a função maternal e de cuidado, o que pode levar a vínculos
recíprocos de apego, além de diminuir sentimentos de tristeza, pela interação com o outro.
Assim como quem está sendo cuidado pode sentir-se aliviado pelo cuidado recebido, quem
cuida também pode ter a mesma sensação de alivio de seus próprios sentimentos.

não queria filho nenhum dela. Aí largou todos eles para trás. Daí eu fiquei sabendo,
eu fiquei muito triste, porque eu, como a mais velha, já estava naquele momento já...
já estava com 12 anos.. aí fiquei triste... Porque, se eu estava com 12, quantos anos
tinha o pequenininho? E a pequenininha? Tava tudo novinho. Aí ficou tudo com a
minha avó. Aí, eu pedi prá moça me levar lá, ela me levou, eu via meus irmãos...
sempre eu tava viajando, mesmo menor de idade eu tava viajando, de Salvador, à
cidade que é Ilhéus. Viajava, aí levava roupa, sapato, comida, livro. (Eliane, 43
anos, filha).

Eliane, no caso a irmã, comporta-se como mãe, provendo o cuidado e buscando


compensar a falta dela. A reorganização familiar, provocada pelas transformações da vida e
que gera tensões, pode levar ao deslocamento das funções no interior do grupo de irmãos,
transformando seus papeis no subsistema familiar (AMARAL; DIAS, 2011). Em consonância
com essa informação a fala abaixo evidencia a variação que ocorreu no referido subsistema.
188

eu fiquei assumindo os meus irmãos, sendo que essa minha outra irmã, que é junto a
mim, já estava fora, né? Já estava ela fora, ficou eu fora... e daí, passou um tempo,
eu peguei a menor, levei prá ficar comigo, mas ficou pouco tempo, ficou um ano. E
sempre ajudando (Eliane, 43 anos, filha).

Porém, como relata Oliveira (2005), o distanciamento pode inviabilizar essa relação,
caso não haja o convívio e o acesso entre os irmãos.
Ressalte-se que a ausência da mãe pode contribuir para a formação do vínculo entre
irmãos, mas junto a esse fator, como se pode inferir do relato acima, deve-se considerar a
oportunidade de convivência, que provavelmente possibilitará a interação dentro do contexto
das relações familiares, desenhando-se territórios possíveis, formadores de vínculos
importantes na vida dos irmãos. Como descrevem Oliveira e Cerveny (2010, p 108) “os
irmãos, como membros de uma família, fazem parte de uma rede interativa e interdependente,
na qual o comportamento de um indivíduo ou de um subsistema afeta e é afetado pelos
demais”.
Em situação de conflito, de grande dificuldade, separação e desamparo como a
ausência parental, a fratria poderá contribuir para o enfrentamento da situação, propiciando
apoio recíproco, em que os irmãos passam a representar importante fonte de ajuda. Amaral e
Dias (2011) relatam que em situações como essas – conflito, dificuldade, separação e
desamparo – os vínculos fraternos geralmente são reforçados, podendo intensificar o
sentimento de lealdade entre os irmãos.

Eu também fui dada, e cresci dessa forma. Só que eu tava criada numa família, e
dando atenção aos meus irmãos. Sempre perto dos meus irmãos, pro que desse e
viesse, ajudando eles.
(Eliane, 43 anos, filha)

Companheirismo e afeto entre os irmãos parecem contribuir para um possível ajuste da


situação provocado pelo afastamento parental. A cumplicidade pode ser a base da
proximidade, emergindo dessa relação amadurecimento e crescimento pessoal, que por sua
vez podem ser facilitadores na ajuda e ajustamento entre eles. Em Oliveira (2005)
encontramos a sustentação para essa discussão. A autora, em sua pesquisa com irmãos
biológicos que vivenciaram a separação e o recasamento dos pais, descreveu que essa
experiência – separação e recasamento – proporcionou cumplicidade, conduzindo a uma
maior proximidade. Esclarece ainda a autora, que a separação e recasamento deixam marcas
nos filhos, devido às perdas emocionais e materiais, e que a possibilidade de elaborá-las
conduz à formação de relações, favoráveis ou não, com os componentes da família e com os
189

que passam a fazer parte dela. Oliveira e Cerveny (2010) dizem que as perdas emocionais
podem ser evidenciadas em três situações: afastamento das figuras parentais, o sentimento de
abandono, a separação da família extensa do pai ou da mãe. Além de “trazer o sentimento de
ter sido trocado pelo novo cônjuge da mãe ou do pai, ter sido colocado para escanteio
(p.164)”.
As falas abaixo expressam o sentimento de exclusão, rejeição e abandono direcionado
para a figura parental, por terem sido preteridos em razão de uma nova conjugalidade. No
caso desse estudo foi à genitora quem se afastou. Outro sentimento que fica evidente ocorre
quando a mãe fica com um filho e não com outro. A leitura que se faz é de pouco
investimento, falta de esforço e ausência do desejo de permanecer com o filho. Há a
compreensão, também, de que a mãe abandonou o filho porque não permaneceu na
companhia do pai.

não queria filho nenhum dela. Aí largou todos eles para trás. Daí eu fiquei sabendo,
eu fiquei muito triste... Eu também fui dada, e cresci dessa forma.
tenho sim, de abandono. Eu tenho... acho que fui rejeitada.. não só eu, como a minha
irmã junto a mim. E agora esse meu irmão que apareceu... então, eu fico procurando
saber as coisas... o que que eu vou dizer prá ele?
Eu crio as minhas filhas sozinha, eu não vou condenar o pai delas, o pai delas não
presta, não vale nada. Eu não vou culpar, eu poderia ter dado as minhas filhas, mas
não, não dou. (Eliane, 43 anos, filha).

assim, eu acho assim, que a partir do momento que ela chegou... do jeito que ela
teve condições prá criar dois, por que ela não me criou? Por que se ela teve... quando
ela ficou com a minha irmã, ela não tinha marido... o pai da menina também não
assumiu ela, e ela não ficou com ela? E por que não ficou comigo, que o mesmo
esforço que ela tinha que ter prá criar a minha irmã, tinha tido prá criar eu também.
E quando a gente quer... eu tô com quatro filhos, eu tenho quatro filhos. Mas eu
nunca vou abandonar meus filhos porque eu não tô com o pai deles. Jamais! São
meus filhos. Eu falo sempre prá eles...
Eu não aceito nada que aconteceu, prá mim não há justificativa... prá mim só teria
justificativa assim... se minha mãe fosse uma pessoa doente, incapacitada para o
trabalho, entendeu? Não tivesse condição, ou estivesse sendo ameaçada por algum
motivo, aí tivesse que dar o filho, por algum motivo tinha que deixar prá trás... mas
de amar uma pessoa e ir embora?... isso não justifica... “ah, eu não pude trabalhar,
porque eu era uma pessoa doente”... também não justifica.. porque ela era uma
pessoa doente, mas foi prá companhia de outra pessoa. Era uma pessoa doente,
mas... tipo assim... ela não ficou com aqueles filhos que ela tinha. Por que que ela
não ficou com aqueles filhos que ela tinha, em vez de ela arrumar mais? Então, não
vejo certo... quer dizer, ela dava um, daqui a pouco ela arrumava um outro. Então,
eu não admito. (Tamiris, 30 anos, filha).

Constata-se também que o vínculo entre irmãos pode ser enfraquecido quando da
ocorrência do afastamento das figuras parentais, entretanto diante da ameaça de uma ruptura
definitiva o sentimento de apego poderá ser desencadeado como uma forma de preservar a si
mesmo, a figura de apego ou ambos. Não se está afirmando que o sentimento de apego não
190

existia, mas que pode se intensificar com esse ou outros eventos como morte e doença na
família (OLIVEIRA; CERVENY, 2010).

E aí pronto, meus irmãos cresceram, todo mundo cresceu, a menorzinha foi embora
prá São Paulo, acabou ficando adulta por lá. Se envolveu com uma pessoa, hoje ela é
casada, vive mal, mas está com o marido. Tem duas filhas, e eu como a irmã mais
velha, dou assistência a todos até hoje, né. Mas a minha vida foi assim, fui criada
por uma família, passei uns bons bocados, quase morro. Sempre chamava pela
minha mãe, sempre cuidava dos meus irmãos (Eliane, 43 anos, filha).

Fica evidente que a irmã mais velha tentou suprir, com o cuidado dispensado, a
ausência da mãe junto aos seus irmãos mais novos. Esse comportamento de cuidar do irmão
mais novo na ausência dos pais já foi foco de pesquisa realizada por Ferreira (1999). No
estudo elaborado pela autora os filhos são, por seus pais, responsabilizados pela realização das
tarefas domésticas e pelo cuidado com os irmãos mais novos, ou seja, incorporam nas suas
vivências elementos característicos do relacionamento progenitores-filhos (DELLAZZANA;
FREITAS, 2010). Embora na entrevista acima não fique claro o quanto a participante agiu por
livre iniciativa ou foi impelida a responsabilizar-se pelos irmãos, pode-se questionar se a
cobrança dessa mesma responsabilização já fizera parte de sua rotina cotidiana, produzindo
efeitos mesmo após o afastamento materno. Como salientado por Dellazzana e Freitas (2010)
“em algumas culturas, as crianças assumem a tarefa de cuidar de seus irmãos menores como
parte de sua rotina” (s/p).

eu sempre tomei conta dos meus irmãos. A adolescência do mais velho eu


acompanhei, mesmo sendo adolescente, do mais novo também, que ele era um
capetinha, sempre eu falo com ele, que ele era um capetinha....apareceu a outra, que
hoje é a caçula. Mas eu cuido dessa como se fosse uma filha. Só que eu não tenho
idade prá ser mãe dela. Mas ela é tudo que eu tenho. Nossa! Essa e as minhas filhas,
sabe? O que eu puder apoiar elas, tiver a minha casa, se separar ou qualquer coisa,
eu tô ali prá ajudar ela no que der e vier. (Eliane, 43 anos, filha).

No relato da entrevistada foi possível constatar que os filhos deram continuidade a sua
historia de vida após a separação dos pais e o afastamento materno: por meio de um sistema
cooperativo ofereceram cuidado e apoio uns aos outros.
Dellazzana e Freitas (2010) dizem que esse cuidado e apoio são mais prováveis
quando o irmão mais velho reconhece alguma forma de perigo para os demais.

Eu me sinto muito triste, eu tenho... eu acho que ela tá viva, e eu ainda vou
encontrar, eu tenho certeza, se ela tiver viva, eu vou encontrar. Porque foi uma
garotinha, quando ela nasceu, eu era bem novinha ainda, mas eu lembro dela. Eu
lembro quando ela foi arrancada, que ela me chamava, abria os braços, chamava.
191

Tinha um apelidozinho que ela me chamava tão engraçado. Ela falava: “me leva, me
leva”, eu falava: “não posso, eu sou uma criança”. Eu era criança, eu acho que eu
não tinha nem 10 anos, eu tinha mais ou menos uns 7 anos.. então como que eu ia
criar? Aí, ela sumiu... ela foi levada. (Eliane, 43 anos, filha).

Considerações importantes para esse estudo fazem Dellazzana e Freitas (2010) ao se


reportarem a ideia de Stewart e Marvin (1984). Dizem os autores que, nas culturas ocidentais,
quando o irmão mais velho age como figura de “apego secundária”, isso significa um claro
afastamento do foco usual configurado no vínculo mãe-bebe. Situação estressora como a que
aparece no caso acima mencionado – afastamento da genitora - pode potencializar vínculos de
amor, produzindo experiências, que entretanto poderão ser melhor suportadas dentro do grupo
de irmãos, ou seja, em uma vivência conjunta e compartilhada, no que concordam Amaral e
Dias (2011). Esse tipo de relacionamento poderá promover alianças, compreensão e satisfação
no convívio consolidando o sentimento fraterno. Como descrevem Oliveira e Cerveny (2010,
p 172) “a possibilidade de ter a vida reconstituída ao lado e com o apoio da figura parental
também contribui para fortalecer os laços e para a aproximação”.

Ai meus irmãos começaram a falar assim: “quando eu crescer mais um pouquinho,


eu quero ir embora encontrar você...”, o mais velho,e veio embora... todos eles
vieram embora. (Eliane, 43 anos, filha).

Na situação exposta, o sentimento fraterno, que foi construído, proporcionou o vínculo


entre os irmãos, embora a convivência tenha sido esporádica e distante. De acordo com
Oliveira e Cerveny (2010), no decorrer da infância e adolescência, entra em cena um jogo de
forças psicológicas, que se vai estruturando dentro de cada irmão e da família,
proporcionando o desenvolvimento do vínculo fraterno.
A experiência dos irmãos – afastamento materno – parece ter sido crucial para a
aproximação entre eles. Não que a aproximação ocorra somente nessa circunstância. Oliveira
(2000) vai dizer que a principal força motivadora, isto é, que pode provocar o movimento de
afastamento e aproximação são as novas identificações características da adolescência,
fazendo com que as diferenças afastem e as semelhanças aproximem. No caso de Eliane, os
vínculos de apego foram fortalecidos por ela representar a base segura para seus outros
irmãos. Verifica-se que a manutenção do vínculo entre os irmãos foi sustentada pela
proximidade e contato, aspectos importantes para o senso de identidade pessoal e familiar.
Oliveira e Cerveny (2010, p 118) fornecem informações importantes ao destacarem a
relevância dos aspectos sociais e culturais em nosso contexto.
192

Os papéis fraternos estão centrados, não apenas na figura de apoio potencial que um
irmão representa para o outro, mas também na expectativa de que, enquanto fratria,
possam preservar a unidade de sua família de origem. É a possibilidade de remeter a
si mesmo e a sua família de origem, por meio da memória construída de forma
compartilhada com o irmão, a qual pode ser “revisitada” a qualquer momento do
ciclo da vida, o que proporciona um senso de identidade pessoal, o fenômeno central
que impulsiona o processo de manutenção do vinculo fraterno ao longo da vida das
pessoas (OLIVEIRA; CERVENY, 2010, p 118).

Com o recasamento dos pais podem entrar em cena outros personagens, como os
irmãos advindos do novo relacionamento e que podem ser filhos de um dos genitores com a
madrasta ou padrasto ou somente filhos da madrasta ou do padrasto. Adotam-se os termos
meio-irmãos e coirmãos para diferenciar as relações que se formam a partir dessa nova
configuração familiar. Os termos – meio-irmão e coirmão – remetem-nos ao estudo
desenvolvido por Oliveira e Cerveny (2010) que os adotam, definindo como irmãos aqueles
que nasceram do mesmo par biológico, meio-irmãos - que possuem ou pai ou mãe em comum
e coirmãos - aqueles adquiridos pelo recasamento de um dos genitores e em relação aos quais
não existe vinculo biológico - somente afetivo.
Independentemente da estrutura familiar que se forma, depende da qualidade das
relações a menor ou maior satisfação e bem-estar entre os seus membros. Sabe-se que junto a
esse fator coexistem outros, como os papéis que são desempenhados, a hierarquia entre os
membros e a qualidade dos vínculos, primordiais para o funcionamento familiar. Assim os
rumos dessa família repousa em parte nos relacionamentos que são desenvolvidos entre os
irmãos, mas “não se pode entender o relacionamento entre os irmãos, sem compreender como
as condições ao redor e da família afetam a interação entre eles e definir a experiência
especifica de cada família” (OLIVEIRA; CERVENY, 2010, p 122).
Dividir espaço, organizar a nova composição familiar e compartilhar de diferentes
desejos e emoções requer dos genitores paciência, tempo, disponibilidade para lidar com as
intensidades de sentimentos que envolvem toda a família (AMARAL; DIAS, 2011).
O tempo, flexibilidade e respeito parecem ser dimensões importantes para a
consolidação do relacionamento na nova família. Amaral e Dias (2011) descrevem que quanto
mais favorável for o relacionamento entre as figurais parentais, maiores são as chances de
interação entre os seus membros. Ressalte-se que os autores ao abordarem essa situação,
referiam-se especificamente à relação entre co-irmãos, que denominam de irmãos políticos.
Mcgoldrick e Carter (1995) e Travis (2003) descrevem a dificuldade encontrada nos
novos relacionamentos, uma vez que eles não ocorrem de forma gradual. Quando os
componentes que passam a fazer parte dessa família são lançados dentro de um círculo (cujo
193

centro já foi deslocado), as tensões criadas necessitam do estabelecimento de regras que


contribuam para a interação. A falta de adaptação pode desencadear sentimento de não-
pertencimento ao sistema familiar que se formou após um novo casamento.
Foi possível verificar no relacionamento entre irmãos que não têm os mesmos pais que
a interação pode ou não ser facilitada pela convivência, bem como contribuir para o
sentimento de pertencimento. Isto não ocorreu com Tamiris em relação ao padrasto e aos
irmãos uma vez que relata dificuldades na interação com esses outros membros.

é, eu fico... eu fico assim observando, é quase a mesma coisa. Entendeu, daquela


coisa assim de você... ter a mãe... eu, tenho mãe, tinha o padrasto... aí, chamava ele
de pai, respeitava como pai, mas ele não tinha eu como filha. Não tinha eu como
filha, mas ele se arrependeu, porque assim... ele brigava comigo, eu obedecia ele, eu
disse assim, que eu agradeço a Deus por eu ter perdido pro meu avô. Eu obedecia
ele, mesmo ele sendo ruim prá mim, eu obedecia ele. (Tamiris, 30 anos, filha).

Assim, outras figuras – como padrastos e madrastas - que compõe este universo estão
potencialmente ligadas à qualidade das relações. A relação com os demais membros da
família pode não ter favorecido a integração de Tamires na nova família formada pela mãe. É
o caso, por exemplo, do padrasto que ela considerava uma pessoa chata e rígida. Ela realiza
comparação entre o comportamento da mãe e do padrasto, parecendo buscar um ponto de
referência para o que considera favorável nessa dinâmica.

mas meu padrasto era muito chato mesmo, eu não podia acender uma luz, você tinha
que dormir sete horas da noite, tendo festa, ou final de ano, Natal, ele não deixava a
gente ir, né... não podia conversar com ninguém. Ele era uma pessoa agressiva, prá
resumir ele, era muito chato mesmo ele.
ele chegou a me bater uma vez, minha mãe nunca me bateu, ele chegou a me bater,
meu deu um... eu fiquei com uma raiva dele nesse dia, eu fiquei com ódio dele na
verdade, porque, assim, ele me bateu sem motivo, porque ele acordava a gente cinco
horas da manhã. (Tamiris, 30 anos, filha).

O relato de Tamires corrobora a observação de Oliveira (2005) de que a diferença de


tratamento, ou, como no caso em tela, a percepção dessa diferença pode contribuir para a
dificuldade do relacionamento. Na fala de Tamires havia desigualdade na atenção e afeto,
sendo a irmã a privilegiada pela atitude da mãe. Segundo ela, essa desigualdade de tratamento
provocou brigas que dificultaram a construção dos vínculos fraternos. A relação que se
estabeleceu parece estar baseada em rivalidade, conflito, em razão do ciúme pela atenção que
a mãe proporcionava à irmã.
194

porque eu acreditava que eu era caçula da casa... aí quando falaram que a minha mãe
era outra pessoa, no momento, assim, eu não gostei. Aí depois eu aceitei, e com
nove anos eu fui morar com ela..... foi, eu fui morar com ela, eu tinha mais.... aí eu
descobri que eu tinha dois irmãos, né... tinha a minha irmã e o meu irmão caçula...
teve mais dois filhos, aí quando eu fui morar com ela, assim... por que não ter sido
criada com ela, e... meus irmãos não... a gente não se dava assim como irmão.
Brigava muito, e principalmente com a minha irmã. A minha irmã, ela ficou com
ciúme, por... né. Logo de início ela achou... mais depois ela ficou chateada, ela era
muito mimada, minha mãe dava muito carinho a ela, e então ela achou que eu ia
atrapalhar nisso. E começou as briguinhas de irmã, né?
na verdade a gente não se entendia mesmo, assim nem... eu nem sei se... é, minha
mãe fala assim prá mim, que eu sou diferente dos dois. Eu sempre fui mais... eu
acho que eu era muito boba, então, eles me batiam, por ser mais novo que eu, mas
eles me batiam, e dava confusão a todo momento, meu padrasto era muito ignorante,
uma pessoa muito rígida, então, tal que eu, com doze anos eu saí de casa...(Tamiris,
30 anos, filha)

Ainda em Oliveira (2005) encontra-se a afirmação de que a disputa por espaços e bens
materiais entre irmãos biológicos torna-se menos acirrada em virtude da percepção de se
encontrarem em uma relação de igualdade. Entretanto, deve-se levar em consideração as
condições sobre as quais essa dinâmica familiar foi construída. No caso aqui relatado a
aproximação com a figura materna e os irmãos dessa nova relação foi tardia, o que pode ter
contribuído para dificultar o relacionamento. Esse argumento contribui para o que foi
anteriormente descrito como a essencialidade do convívio para a formação de vínculos,
facilitando a interação e os sentimentos dentro da família. A não convivência, como também a
convivência esporádica ou tardia podem produzir distanciamento afetivo, uma vez que não
existe uma historia conjunta, afinidade, nem tampouco, intimidade.
Embora Cano et al (2009) alinhem-se com Oliveira (2005) quanto a consanguinidade
como facilitadora da formação de vínculos, colaborando para o pertencimento, nesse relato a
participante não expressou a existência de afeto entre ela e os meio-irmãos. Porém,
concordamos com Oliveira (2005) que a disputa por atenção, bens e espaços podem
simbolizar a busca, no sentido de reafirmar o amor parental.
No caso de Tamiris houve um comprometimento do equilíbrio no subsistema fraterno,
a irmã não aceitou satisfatoriamente a convivência e a coabitação ocasionou tensões, conflitos
e sentimento de não pertencimento, parecendo revelar sentimentos de ciúmes e rivalidade pela
atenção que a mãe dava à irmã.
Talvez esses conflitos possam ser explicados pela alteração na dinâmica familiar, pois
a irmã e Tamires passaram a dividir o espaço e perderam a posição de únicas filhas. Uma fala
de Tamiris ilustra bem as condições em que foi estruturada a relação entre os irmãos,
dificultando que fosse satisfatória:
195

Mas a minha irmã era muito ruim, ela só pensava em si. Ela tem muito aquele
negócio, o eu dela, só “eu”, eu, mais ninguém. Então, quando eu falava assim: “mãe,
eu vou prá aí”... “ah, se ela vir, ou eu ou ela! Se ela entrar eu saio.” E a minha mãe
sempre opinava por ela... né, então, eu sempre ficava na...(Tamiris, 30 anos, filha)

Observa-se aqui, como já apontado por Oliveira (2005) que a relação entre os irmãos
foi permeada por rivalidades e competições. Esse comportamento pode estar associado a
sentimentos como ameaça e temor de perda do afeto e atenção da genitora, como expressa
Tamires referindo-se ao comportamento da irmã, que reivindica a atenção da mãe.
O encontro de histórias tão diferentes, ao se confrontarem com estilos de vidas
distintos devido à nova configuração familiar parece ser um grande desafio para essa família
que terá que produzir, agora juntos, uma nova historia com personagens diferentes. Na
narrativa de Tamires percebe-se a dificuldade em interagir com a nova configuração familiar e
o sentimento de arrependimento por ter saído da casa e da companhia do avô.

Minha mãe não era rica, tinha condição melhor do que o meu avô, mas, assim...
morava num lugar melhor. Então, aquilo me encantou, eu acredito que foi isso. Só
que, quando eu saí da casa do meu avo, eu me arrependi. Porque foi tudo diferente...
na hora, você é muito pequena, você não vai pensar no que vai acontecer de ruim.
Você tá vendo a parte boa, né? E minha mãe era... fez mil promessas, ah, que...
muitas coisas... então, eu me encantei com essas coisas. Só ilusão, né, que quando eu
fui prá lá foi onde... fiquei lá pouco tempo na casa da minha mãe, aí... é como eu
tava ouvindo uma vez na TV, que... até hoje no rádio mesmo, que, às vezes, o amor
que os filhos não tem em casa, principalmente quando é mulher, menina, ela sempre
busca fora. Aí se aparece alguém que dá mais amor, mais carinho, mais atenção do
que a mãe, ou um pai que você não teve, você se ilude, que foi o meu caso. Eu me
casei logo cedo, cedo, cedo mesmo. (Tamiris, 30 anos, filha)

Percebe-se, a par da frustrada expectativa de uma vida melhor, um novo horizonte


representado por outra expectativa, depositada em alguém que lhe pudesse dar mais carinho,
atenção e amor do que a mãe ou um pai, que nunca teve, ou seja no homem provedor de
carinho, atenção e afeto.
Observa-se também que, para Tamires, a mudança foi mais difícil em virtude de ter
vindo para a casa da mãe, que já estava com a estrutura familiar pronta, deparando-se com
uma nova vida constituída por irmãos e padrasto, diferente da estrutura anterior em que a
figura paternal, vivida na relação com o avô, dedicava-lhe atenção integral. Agora a atenção
oferecida pela mãe deve ser compartilhada com terceiros.
Além da proteção e apoio oferecidos pelos irmãos biológicos em que uns cuidam dos
outros, também pode ocorrer apoio da família extensiva após a separação e a saída dos pais;
em especial as crianças podem receber a atenção dos avôs e dos tios. As falas apontam para
196

essa convivência e para as dificuldades enfrentadas diante das transformações vividas e as


suas percepções diante da nova experiência.

Minha avó era tudo! Minha avó cuidava mais da gente do que tudo na vida, sempre
amou a gente. (Eliane, 43 anos, filha)

eu, até os 12 anos, eu vivi com a minha avó... 12 anos.... 12 anos, minha mãe fugiu
de casa. Minha mãe era desnaturada, entendeu? Foi atrás de homem.. eu era.... eu e
mais 4 irmãos. A minha mãe deixou a gente com a minha avó, e foi morar com o
homem... simplesmente aconteceu isso........ Aí eu fui morar com a minha tia, que eu
falo que é a minha mãe, minha tia Cláudia. (Renato, 24 anos, filho)

eu já nasci em casa, quem me aparou foi minha avó, essa que me criou, desde
quando eu nasci... que é minha avó, ela é minha avó, ela é minha madrinha e minha
mãe, né? Então, ela é tudo... então, eu fiquei com a .... (Sara, 47 anos, filha)

moravam perto mas meu pai, antes de chegar ao trabalho, e antes de chegar em casa,
ele passava pela porta da casa da minha avó, né. (Ilan, 50 anos, filho)

cresceu à toa, né... alguém ajudou a criar, alguém ajudou.. porque a batata, eu acho
que prá ela crescer ela tem que ser molhada, porque senão ela não vai crescer, não
vai dar fruto... alguém vai lá e molha a batata. Então, foi o que aconteceu com a
gente. Uma foram assim, ajudando, botava aquela aguinha prá que a gente crescesse,
dava ajuda, tipo a minha avó, que me criou, criou a minha irmã... então a gente não
teve ela, a gente tinha que ter prá... olha , eu acho que prá mim... poderia faltar todo
mundo, menos a minha mãe (Eliane, 43 anos, filha).

Em alguns casos a ajuda e o apoio vêm de fora da família extensiva. A experiência


relatada ilustra essa situação em que a separação e a renúncia aos filhos, os conduzem a outros
lares e que, por isso, expressam sentimento de magoa.

ela levou eu, o meu irmão mais velho e a minha irmã encostada em mim ficou prá
trás, com a madrinha.... então ela levou a mim, o meu irmão e um na barriga... o
caçula foi na barriga, entendeu? Só que ao chegar lá eu fui prá minha tia, depois o
caçula nasceu, aí nasceu uma outra garotinha, que não faz parte do meu pai, essa
garotinha foi dada. Depois, ela... nasceu uma outra que é a mais nova.. essa que eu
falo que é a mais nova não é a do meu pai.
Teve uma hora aqui que eu tava muito doente, eu chorava, falava: “eu quero a minha
mãe, eu quero a minha mãe”, aí a moça que tava me criando, ela falou assim:
“você... a sua mãe sou eu... esqueça a sua mãe, esqueça... sua mãe sou eu, sou eu que
tô do seu lado, p’ro que der e vier... posso não ser a sua mãe, mas tô fazendo o papel
dela.” Aí eu falava: “então tá bom”. E ali eu fui vivendo, fui crescendo, tudo que eu
pedia prá ela, ela me dava.. eu era chatinha, ela fazia a minha vontade. Eu falava:
“quero sorvete”, coisa de adolescente, respondia muito ela, por causa da
adolescência, mas ela sempre fala que eu fui uma menina boa e comportada, nunca
dei trabalho, né? E assim foi a minha história, minha história é essa aí.
“você não tem a mesma mágoa, porque você não foi dado, prá pessoas estranhas,
vocês ficaram com a minha avó. Quem foi distribuído foi eu, a minha irmã, e esse
meu irmão que apareceu agora. Então, a gente foi criado por uma pessoa diferente,
entendeu? Cada um foi pra um canto. (Eliane, 43 anos, filha).
197

Os filhos dispersos relataram, em alguns casos, o desejo de reunir novamente a


família. Esse comportamento pode ser analisado como uma busca da retomada das relações
parentais (OLIVEIRA; CERVENY, 2010) após a experiência da separação dos pais, que por
sua vez provocou o afastamento nas relações filiais. O afastamento entre pais e filhos, que
ocorre em função da separação, tem um significado distinto em que o sentimento de perda e o
ressentimento são vivenciados mais intensamente na figura da genitora, como observado nas
histórias contadas.

Eu me separei porque eu descobri que ele saiu, ficou com alguém, aí eu não aceitei.
Peguei minhas filhas e vim-me embora, prá onde tava os meus irmãos e o meu pai.
Aí, tô por aqui, mas sempre com os meus irmãos, mas sempre... até hoje tô com eles,
vivo com eles, agora que eu tô querendo morar sozinha, descansar um pouco... eles
já cresceram, né?
ela (a mãe) separou... não deixou com o meu pai, e nem ficou com ela. Então eu
tenho mágoa, por eu ser dada, dada prá alguém, e ter dado... ter deixado os meus
irmãos. Eu não sinto tanto por mim, eu até que deixo passar a minha parte, mas
quando eu lembro que aqueles pequenininhos ficaram prá trás, aquilo dói em mim,
aquela mágoa vem mais forte ainda. Eu, como mãe hoje, eu sei que aquilo dói e dói
muito. E aquilo foi a diferença, fez muita falta prá todos nós, a ausência dela.
Aí eu fui-me embora, para esta família, entendeu? Então, acho que o meu pai tem
culpa no cartório, mas não tem tanto, porque ela levou dele, e se ela levou, ela tinha
que tomar conta, ela tinha que dar conta. Então... acho que eu não tenho mágoa do
meu pai, de jeito nenhum... eu tenho mágoa é da minha mãe, dele eu não tenho.
Olha, eu abraço o meu pai com o maior amor, sabe? Aquela coisa... todos nós. A
gente abraça ele, meu pai é muito brincalhão, nossa... eu dou a benção... “bença meu
pai” “bença meu pai” na hora que eu chego que eu vejo, “Bença meu pai” na hora
que eu vou embora, “bença meu pai” pelo telefone, e aquela alegria, aquele amor
que a gente tem
Nós duas somos destacadas. Então isso a gente tem mágoa... a gente já tava prá
conversar com ela... “tudo é o meu pai que é o culpado”. Eu não acho que o meu pai
seja o culpado sozinho, porque o meu pai não fez a gente sozinho, não fez. E o meu
pai é uma pessoa muito boa, por incrível que pareça. Ele não criou nenhum de nós,
mas a gente não tem mágoa dele... não tem, sabe? Meu pai... eu falo de boca cheia
mesmo.
adoro meu pai, eu amo meu pai... nossa! Quando eu abraço ele assim... aquela coisa
de pai, sabe? A minha mãe eu abraço ela, mas eu não tenho aquela coisa, “ai minha
mãezinha”... sabe? (Eliane, 43 anos, filha).

Constatou-se uma ambivalência de sentimento em relação à mãe, existindo mesmo


sentimentos contraditórios como, por exemplo: ao mesmo tempo em que expressam magoa
pela falta da genitora desejam a convivência. Nos casos descritos os filhos não só aceitam
como desejam a presença da genitora. A perda de contato com os pais parece ter gerado mais
sofrimento e ressentimento com relação à genitora. As falas evidenciam uma importância
simbólica no ato de pedir “benção”, como se esse comportamento diferenciado com relação
aos genitores revelasse e quantificasse os sentimentos de afeto, de respeito e a qualidade da
relação que mantém com figuras parentais.
198

às vezes ela olhava prá mim e prá minha irmã e falava assim: “você, comigo dentro
de casa não dá certo, porque eu sou a sua mãe, e você não me compreende. Eu
convivi com a minha mãe e a gente nunca discutiu, nunca teve esse problema que eu
tô tendo com você”. Eu falei: “a senhora nunca discutiu porque a minha avó nunca e
abandonou, a minha avó nunca te deixou, nunca te deu prá ninguém, a minha avó te
criou, te viu crescer, acompanhou a sua adolescência, sua juventude, acompanhou o
seu casamento e ainda criou os seus filhos. E a gente não, a gente não teve isso que a
senhora teve. A gente não teve um acompanhamento de mãe, a nossa família é
desestruturada... ela não tem estrutura. Eu falo que ela não tem... porque a senhora
era o esteio da nossa casa, e o meu pai.... então, a gente não teve isso, a gente
cresceu que nem batata, ou melhor, igual aquela plantinha, que nasce lá no sol, na
chuva e vai sobrevivendo e assim a gente foi criado.(Eliane, 43 anos, filha).

eu chegando lá, quantas vezes eu cheguei: “mãe”... eu fui o filho mais afastado,
morei sozinho, único filho que morei sozinho, mais afastado, era eu, entendeu?
“mãe, olha só, vamos voltar prá casa, no Jardim América, vamos reunir os irmãos,
todos, entendeu, volta pro Jardim América... que Jardim América, é meu avô e
minha avó, aquela casa ali é prá usos e frutos,” entendeu? (Renato, 24 anos, filho).

Afastamentos e aproximações parecem fazer parte da rotina cotidiana dessas famílias.


A aproximação pode fortalecer os laços familiares, mas também pode gerar conflitos,
aflorando sentimentos contrastantes que vão surgir de acordo com a compreensão que os
componentes fazem dos acontecimentos. Os relatos revelam que no que se refere a figura
paterna, mesmo com pouca convivência com os filhos, não foram observados sentimentos de
magoa proporcionais aos manifestados em relação a mãe. Pode-se inferir que os sentimentos
de rejeição, magoa e abandono emergiram e proliferam do discurso que relaciona mãe e
cuidado, de forma contínua e indissolúvel, e que esse mesmo discurso subordina os
sentimentos relacionados com o afastamento entre mães e filhos.

o pai, quando ele separa da mãe, os filhos ficam com a mãe, geralmente fica com a
mãe, né? O pai vai embora, segue o caminho dele. Mas a mãe não, a mãe fica com
os filhos (Eliane, 43 anos, filha).
199

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A família nuclear durante décadas protagonizou, para a sociedade em geral, o ideal de


família, e ainda resiste como modelo a ser seguido e alcançado por novas formas de família
(CARTER; MCGOLDRICK, 1999). Nesse sentido, alguns autores (RIZZINI, 2006) chamam
a atenção para as posturas normativas que circunscrevem as famílias recompostas como
desviantes, uma vez que a sua formação surge sob circunstâncias específicas e singulares. Isto
significando dizer que o recasamento não pode ser pensado como permanência e imobilidade,
como eram constituídas as famílias antes da possibilidade do divórcio, ou seja, com todos os
seus atos previsíveis e controláveis.
Dentro de uma perspectiva foucaultiana, essas circunstâncias preservam o modelo das
sociedades disciplinares hoje em processo de substituição pelas sociedades de controle. Os
meios de confinamento das sociedades disciplinares estão em crise, dentre os quais a família.
“Trata- se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças”
(DELEUZE, 1992, p 220). Diz o autor que a sociedade contemporânea revela-se uma
sociedade de controle, que traz e adquire novos contornos e nuances, embora preserve algo do
modelo disciplinar – aquele em que as disciplinas operavam primordialmente pelo
confinamento, por meio de um sistema fechado tendo por objetivo o controle sobre os corpos,
em que a inserção em cada instituição remeter-se-ia a um recomeço, caracterizando-se assim
sua descontinuidade. Afirma Deleuze (1992, p 220) que “encontramo-nos numa crise
generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família”. O
controle é exercido, atualmente, de forma contínua e por meio da comunicação instantânea e
ininterrupta. Dito de outro modo não se termina nada, muda-se continuamente sem nunca
terminar. Esse mecanismo aponta para o aspecto descartável dos aparelhos de normalização
(escola, fabrica, hospital, família, etc.) além de estabelecer a sua crise.

A dinâmica da sociedade do “descarte” (...) significa mais do que jogar fora bens
produzidos (criando um monumental problema sobre o que fazer com o lixo);
significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos
estáveis, apego as coisas, etc. (...) Por intermédio desses mecanismos (altamente
eficazes da perspectiva da aceleração do giro de bens de consumo) as pessoas foram
forçadas a lidar com a descartabilidade, as perspectivas da obsolescência instantânea
(HARVEY (1993) apud NEVES, 1997, p 4).

Ramos (2003) descreve que as respostas e resultados são perseguidos de forma


imediata e as conquistas têm que ser rápidas. Esses são aspectos da sociedade pós-moderna,
200

que se constitui priorizando o individualismo e a velocidade. Caso desconsideradas estas


prioridades perde-se também todo o sentido das coisas. É a partir desse contexto, baseado na
sociedade do consumo, que a ideia do descartável atingiu a vida da relação conjugal. A noção
de permanência parece ter perdido espaço no investimento da relação, comprometendo o
relacionamento que requer tempo, paciência e solidariedade para ser construído.
No entanto, cheia de mudanças, com crises, variados questionamentos, a família
continua em voga.
Ao longo deste trabalho perseguimos a seguinte questão: afinal, como filhos e mães
entendem o mútuo afastamento após o rompimento conjugal? Não se pretendeu obter
respostas definitivas, nem exigir que as pessoas fossem coerentes com seus sentimentos e
histórias; mas pensar no que é família e como as pessoas entendem as relações entre mães e
filhos, considerando que suas percepções podem se modificar ao longo dos anos.
As tensões presentes nos discursos dos entrevistados sugerem que diversos aspectos
podem e devem ser considerados. Dentre eles apontamos: os filhos perceberem o afastamento
da genitora em virtude da não permanecia com o genitor; a ideia de preferência pela
conjugalidade quando de uma nova relação da mãe; o pai não sofrer proporcionalmente as
mesmas sanções que a mãe quando do afastamento; as andanças por outros lares, vivenciadas
com sofrimento; a volta para a companhia da genitora no momento do nascimento de um
irmão (para auxilia-la nos cuidados com a criança); o desejo de voltar a conviver com a mãe e
irmãos.
Esta pesquisa, no entanto, nos permitiu concluir o quanto os filhos percebem que
maternidade e cuidado devem andar juntos, que a insistência em cuidar dos filhos, de
preferência através da coabitação, é necessária à condição de mãe, uma definição que, se não
podemos dizer que é unânime, visto que não buscamos extrair verdades dos sujeitos e
consideramos que os sentidos da palavra deslizam, podemos arriscar concluir que é bastante
presente. Assim, ao naturalizarem o comportamento da genitora, entendem o seu afastamento
como abandono. O cuidado materno ganha, nos relatos dos entrevistados, dimensões tão
importantes que a mãe é valorada em função da maior ou menor aproximação com os filhos e
do seu exercício. Na perspectiva dos filhos, fica explícito o quanto eles esperam que a mãe
seja a fonte e a base de cuidado, afeto e presença – sinais, talvez, de um amor atemporal,
intrínseco à condição de genitora.
Dito isso, em que circunstâncias seria permitido à mulher-mãe se afastar do filho?
Nessa pesquisa ficou claro o quanto as mulheres são agenciadas por uma maternidade na qual
a mãe é percebida como desnaturada, quando não se dedica aos filhos. Percebemos uma forte
201

naturalização da maternidade presente na fala dos entrevistados, o que parece contribuir para
o que se entende como sendo uma natureza feminina, que deveria fazer com que a mãe
permanecesse com o filho sob qualquer circunstância. Nesse contexto parece óbvia a
produção de um normal e um anormal em relação aos jeitos de ser mãe. Fica claro, nos
depoimentos dos entrevistados, que o afastamento entre mãe e filhos precisa ter uma boa
justificativa para que se torne palatável.
Importante sinalizarmos que os entrevistados hoje são pais e mães que contam a sua
experiência como filhos. Desse modo, foi possível perceber, através dos seus discursos que a
experiência de afastamento, vinculada a um espaço cultural de produção da maternidade,
produz incessantemente formas normais e anormais de ser mãe, fazendo com que avaliem
suas mães e reforcem suas próprias experiências de boas mães e bons pais tendo como
referência, parâmetro a experiência (o comportamento) de afastamento de suas genitoras.
Reafirmam essa percepção dizendo que nunca se afastarão de suas proles como fizeram as
suas mães.
Que mães foram produzidas pelos discursos dos entrevistados? As reflexões
desenvolvidas ao longo deste trabalho apontam para um campo de tensão, que é produzido na
relação entre genitora e filho, a partir dos entendimentos que ambos relatam, agora, já
passados muitos anos, de suas percepções sobre o afastamento entre eles. A investigação teve
como objetivo compreender as diferentes vivências que filhos e mães tiveram acerca dessa
separação que, no imaginário social, precisa ter uma explicação, caso aconteça. O que em
alguns momentos os filhos identificam como preferência pela conjugalidade, aposta na
relação com o novo companheiro, pode ser entendido como um comportamento que subverte
algumas regras na expectativa do que é ser uma “boa mãe“. O afastamento materno, portanto,
pode envolver resistência e transgressão.
Assim, ao mesmo tempo em que uma nova relação pode representar uma escolha, uma
opção para a mulher, também cria a figura de uma mãe abandonante, o que reforça a ideia de
que a maternidade deve se sobrepor a tudo na vida de uma mulher, ideia muito amparada,
como já apontamos, no mito do amor materno, tão disseminado em nossa sociedade.
Uma questão interessante que aparece em algumas entrevistas é a surpresa, revolta,
sentimentos diversos, mas que põem em destaque uma prática que os filhos entendem como
contíguas: quando o pai vai embora, a mãe deixa os filhos. O que parece surpreendê-los é que
o desfazimento da relação conjugal impeça ou inviabilize a maternidade desta mulher. Na
literatura observamos que muitas vezes a paternidade se inscreve no interior da conjugalidade,
mas com a maternidade isso é menos comum.
202

Wallerstein, Lewis e Blakeslee (2002) descrevem que com a ruptura do casamento


outros sentidos poderão ser vivenciados por seus membros na reestruturação de suas vidas, o
que pode levar os filhos a acreditar que se os pais podem abandonar um ao outro, eles podem
também ser objeto de abandono. No que diz respeito a alguns dos entrevistados apareceu
claramente a vinculação entre o fim da relação entre os pais e a inviabilização do exercício da
maternidade, como se os filhos tivessem perdido a importância para a mãe devido à separação
– a mãe abandonou por não estar mais com o pai dos filhos. Essa vinculação emerge em uma
fala de Tamiris que parece sustentar essa lógica: “eu nunca vou abandonar meus filhos porque
eu não tô com o pai deles”.
A noção de resistência postulada por Foucault (1995, 1999), para quem as relações de
poder implicam necessariamente em resistência, ou seja, em um jogo de forças contínuo, pode
ser aqui destacada no comportamento da genitora ao transgredir formas de dominação
impostas pelo corpo social, ao deixar os filhos e viver uma nova relação. Apesar da prescrição
de obediência e de poder patriarcal a que a mulher foi submetida ao longo da historia,
encontram-se, nestes relatos, posições de resistência que parecem ter sido provocadas pelo
mesmo poder patriarcal que as originou.

"quero dizer que as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada


instante, abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há possibilidade de
resistência e resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter com
tanto mais força, tanto maior astúcia quanto maior for a resistência. De que modo
que é mais a luta perpétua e multiforme que procuro fazer aparecer do que a
dominação morna e estável de um aparelho uniformizante. Em toda parte se está em
luta [...]" (FOUCAULT 2006, p. 232)

Como descrito por Foucault (1995, p. 248) “não há relação de poder sem resistência,
sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, pelo menos de
modo virtual, uma estratégia de luta”.

"[...] As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que
sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há
milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de força de
pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo. [...] Em toda parte se está em
luta - há, a cada instante, a revolta da criança que põe seu dedo no nariz à mesa, para
aborrecer seus pais, o que é uma rebelião, se quiserem -, e, a cada instante, se vai da
rebelião à dominação, da dominação à rebelião; e é toda esta agitação perpétua que
gostaria de tentar fazer aparecer. [...] Mas há igualmente todo um método, toda uma
série de procedimentos pelos quais se exercem o poder do pai sobre os filhos, toda
uma série de procedimentos pelos quais, em uma família, vemos se enlaçarem
relações de poder, dos pais sobre os filhos, mas também dos filhos sobre os pais, do
homem sobre a mulher, e também da mulher sobre o homem, sobre os filhos. Tudo
isto tem seus métodos, sua tecnologia próprios. Enfim, é preciso dizer também que
não se podem conceber essas relações de poder como uma espécie de dominação
203

brutal sob a forma: 'Você faz isto, ou eu o mato'. Essas não são senão situações
extremas de poder. De fato, relações de poder são relações de força, enfrentamentos,
portanto, sempre reversíveis. Não relações de poder que sejam completamente
triunfantes e cuja dominação seja incontornável. Com freqüência se disse - os
críticos me dirigiam esta censura - que, para mim, ao colocar o poder em toda parte,
excluo qualquer possibilidade de resistência. Mas é o contrário!". (FOUCAULT,
2006, p. 231-2)

Substituindo antigos paradigmas do que é ser mulher, em que ela, e somente ela, é
dotada de requisitos que possibilitam a maternidade, justificados pela singularidade da mulher
no processo de procriação, instalam-se, atualmente, importantes alterações nas relações de
gênero. No que diz respeito diretamente à mulher, ressalta-se o desejo e a possibilidade de
experimentar de forma mais integrada a sexualidade, muitas vezes em detrimento da
maternidade e seu exercício. Reafirmando esse comportamento da mulher, aferido nos relatos,
observamos o rompimento de um padrão de comportamento e sentimentos veiculados pela
ideologia dominante como sendo verdades absolutas, o que pode levar ao questionamento do
lugar da mulher na sociedade moderna.
Foi possível observar nos referidos relatos desencontro das expectativas do
relacionamento mãe/filho, com a realidade da mulher que procura livrar-se das repressões
sociais e voltar-se para a realização de seus próprios projetos, para suas próprias exigências de
prazer e de auto-realização. Se essas transformações vão aproximar comportamentos e
compreensões de homens e mulheres acerca do exercício parental, só o tempo dirá.
Assim, escapar da maternidade também significa para a mulher por mais que
presente na expectativa dos filhos, não mais aceitá-la como um destino inevitável e sim
concebê-la como uma escolha livre e autônoma, como uma opção. A ideia da liberdade de
escolha coloca em questão valores ligados às relações inter-geracionais, proporcionando à
mulher ser a senhora absoluta de seus projetos que, por vezes, não incluem filhos ou a
permanência desses em sua companhia. Afinal, até que ponto se pode rotular como abandono
essa opção pela liberdade?
Ser mãe poderia não ser uma escolha. Uma vez que a mulher estivesse grávida e desse
à luz, sobretudo em um país que criminaliza o aborto, esta opção teria sido feita e não poderia
ser revertida, cabendo-lhe apenas trocar uma forma de opressão – o chamado amor
incondicional – por outra. A mulher que é mãe não teria, sequer, chance de investir em outros
aspectos de sua vida sem condenação, se isso significasse um desvio de atenção em relação à
maternidade.
A posição assumida pela mãe pode encontrar apoio em familiares, como no caso das
avós e tias que, ao cuidarem dos netos e dos sobrinhos, parecem garantir e autorizar a mãe a
204

envolver-se em outro relacionamento, rompendo com as amarras de um discurso


homogeneizante de que somente a mãe é capaz de cuidar do seu filho. Nesse sentido, rompe-
se com a produção de modos específicos de ser mãe. Entende-se que as exigências
direcionadas a esta mulher tenham um custo subjetivo bastante elevado para elas, pelas
condições sobre as quais a maternidade se torna possível em nosso contexto. O mesmo não foi
observado quando o discurso aborda a figura paterna, pois ao pai é natural não permanecer
com os filhos.
Podemos pensar que condições permitiram a naturalização de que a existência de
filhos traz restrições para a mãe - limitando o seu afastamento e o envolvimento com outra
pessoa - liberando o pai das mesmas limitações. Porque, nos relatos oferecidos pelos filhos, as
mães, cuja ausência pareceu-lhes voluntária, não correspondem a este ideal naturalizado.
Percebem esses filhos uma relação de causa e efeito entre suas andanças por outros lares
(recebendo, em alguns casos, a atenção de múltiplos cuidadores) e o comportamento ou
ausência da mãe, não relatando, no que diz respeito ao pai, cobrança semelhante. Poderíamos
dizer que os filhos continuam naturalizando o amor materno e atribuindo menor valor ao amor
paterno ou, pelo menos, não reconhecendo-o como natural.
Em algumas entrevistas, chamou a atenção que o filho atribuía ao recasamento da mãe
o afastamento ocorrido. No entanto, ao atentar para a história que foi contada, ele mesmo
relata que o afastamento já tinha se dado quando do fim da relação entre seus pais. Os filhos
sentem-se preteridos nessa nova relação e não percebem ou não consideram que a origem do
afastamento é anterior. Nesses casos, o sentimento de ter sido preterido parece se intensificar,
talvez pela reedição da experiência vivida, quando então mais uma vez ou dando continuidade
ao que ocorrera, os filhos deixam de conviver com suas mães.
Em função da centralidade que a mulher ocupa na organização da família, sua
ausência exige novas estruturações das disposições entre os envolvidos.
Para os entrevistados, corroborando a literatura explorada neste trabalho, quando a
mulher deixa os filhos por uma nova relação os filhos passam a conviver em diferentes lares,
começam a circular por casas de familiares, vizinhos, amigos e desconhecidos que podem vir
a virar família ou não.
Em novas uniões conjugais da mãe os direitos e deveres dela para com os filhos
podem se expandir para outras pessoas do núcleo familiar, como por exemplo, avós e tias, ou
para pessoas estranhas a esse núcleo. Na pesquisa, em sua maioria as crianças foram
confiadas a outras mulheres. Há a possibilidade também que os filhos fiquem com os pais.
Porém, foi observado que a educação do filho ocorreu com o concurso de outras presenças
205

femininas, muitas vezes, inclusive, avós paternas. Como se fosse essencial a presença
feminina na educação de crianças. Entre os casos que acompanhamos, dois homens ficaram
com os filhos, tendo a ajuda da mãe (avó paterna) e da atual companheira. Parece que as
mulheres aceitam com menor relutância a convivência com o filho de outra relação em
comparação com os homens. Uma entrevistada conta que a mãe foi “embora, largou os filhos,
foi morar com uma pessoa e largou. Ele (padrasto) não queria saber de filho nenhum”
(Eliane). Outro entrevistado relata a seguinte situação:

Triste, porque eu falava, pensava assim: “olha só como é que é as coisas... minha
mãe, largar 5 filhos, largar 5 filhos prá viver com homem?” pô, ela não precisa
disso, porque a casa dela é aqui, vai se meter longe prá caramba, prá viver com
homem. (Renato, 24 anos, filho)

Desfeita a família em razão da ruptura conjugal, a sua colocação na família ampliada


garante o cuidado das crianças e também o seu suporte financeiro. Contudo, não descarta o
julgamento nem evita a culpabilização da mãe. Essa andança por diferentes lares parece não
ser considerada como abandono, porque é inerente a esta lógica da solidariedade que já faz
parte de suas estratégias de sobrevivência. Ainda assim, não passa despercebida.
Dessa forma, a criança pode ser destinada a pessoas fora da referência familiar, como
ocorreu com uma das entrevistadas, em que a genitora deu para criar a uma pessoa que não
conhecia.

“você não tem a mesma mágoa, porque você não foi dado, prá pessoas estranhas,
vocês ficaram com a minha avó. Quem foi distribuído foi eu, a minha irmã, e esse
meu irmão que apareceu agora. Então, a gente foi criado por uma pessoa diferente,
entendeu? Cada um foi pra um canto. Vocês deram sorte, porque eu não quis me
afastar. Se a pessoa que me levou se afastasse, vocês não iam me conhecer”(Eliane,
43 anos, filha).

A permanência ou não dentro no núcleo familiar contribui para a intensificação do


sentimento de mágoa e disputa como tão claramente revelado no diálogo acima entre os
irmãos, demonstrando como eles ressignificam, hoje, as transformações que vivenciaram em
decorrência da modificação da estrutura familiar. Com o processo de entrada e saída de
pessoas que passam a fazer parte do cotidiano desses filhos a dinâmica pode trazer a
percepção de territórios compartimentalizados entre o “nós e os outros: o nós são os irmãos,
os outros são as pessoas que passaram por suas vidas. O pertencimento ganha particular
importância na vida desses filhos da circulação, pois lhes garante uma identidade própria
vinculada à família de origem. Isso inaugura um outro tema, que é o do pertencimento. O
206

incômodo relatado pelos entrevistados também se refere à falta do sentimento de pertencer a


um grupo, a uma família, a conseguir traçar sua origem e sua continuidade. Isso é tão
relevante, que todos os que foram entrevistados e possuem filhos afirmam com ênfase que não
repetiriam esta situação com sua prole.
Dessa maneira, observou-se que a prática de recorrer a múltiplos cuidadores garantiu
as crianças que foram afastadas das mães, e que retornaram a companhia da genitora no
momento do nascimento de um irmão (para auxiliá-la nos cuidados com a criança), um lugar,
mesmo que provisório, na família. Através do nascimento do irmão reafirma-se o vinculo de
referência da criança com a família.
Essas crianças que transitaram entre cuidadores, hoje adultos, manifestaram em seus
discursos o desejo de voltar a conviver com a mãe e eventuais irmãos. Embora permaneça
algum tipo de ressentimento, de mágoa, com relação à genitora, a falta de convivência com o
pai não gera o mesmo sentimento de mágoa, e também não expressaram o desejo de voltar a
conviver com eles. Será que mais uma vez podemos nos respaldar no mito do amor materno
para explicar esse comportamento? Nesse comportamento em filhos adultos, poderíamos
pensar mais uma vez na influência de uma cultura na qual a mãe é supervalorizada, e que,
internalizada, impeça-os, não obstante os sentimentos de mágoa, de trair a aliança produzida
sob a influência dessa mesma cultura.
Ressalte-se que apesar de concordamos com Sarti (2011) que a “circulação de crianças
permite uma solução conciliatória entre o valor da maternidade e as dificuldades concretas de
criar os filhos, levando as mães a não se desligarem deles, mas manterem o vinculo através de
uma circulação temporária”, salientamos que no caso dessa pesquisa a circulação em vários
casos não foi temporária, tendo como duração todo o período que compreendeu a infância e
até adolescência.
A temporalidade nos assuntos de família parece muito especial. Em geral as relações
com a família de origem são tomadas como eternas; talvez por isso seja possível se considerar
a retomada de relações com intervalos grandes de tempo sem convivência ou mesmo contato.
Outro aspecto chama a atenção em relação ao que é naturalizado. A discussão em
torno do amor materno, tido como instintivo, é grande na literatura, como pudemos observar,
e bastante presente nas falas dos entrevistados, reflexo do dia a dia da nossa sociedade
brasileira. No entanto, pouco se fala a respeito do amor dos filhos pela mãe, talvez menos
naturalizado, ou menos tematizado apenas. No entanto, chama a atenção entre os
entrevistados o desejo ou a resignação relativa ao cuidado da mãe que fica velha ou doente. O
207

que faz com que o afastamento dos irmãos e mesmo da mãe não seja suficiente para impedir o
desejo de voltar a conviver? A expressão “o sangue puxa” seria uma forma de explicar?
Talvez esses questionamentos nos permita pensar que sujeitos estão (emergindo)
sendo produzidos nessa relação.
A sociedade de controle emerge trazendo em suas configurações produções que dizem
respeito ao mesmo tempo à desterritorialização contínua e a subjetivações serializadas e
homogeneizadoras. Gera necessidades, como a de acompanhar novidades tecnológicas, grifes,
a leitura do livro recém lançado, decompondo o indivíduo em faltas, desqualificação e
segregação cotidianas. Produz subjetividades solitárias que retiram os homens da história,
limitados ao seu conhecimento interior, cujo produto é a distância, paralisia e individualização
(DELEUZE, 1992; GUATTARI, 2011). É esta inquietação e o entendimento de que família é
plural que nos fazem apostar em um olhar sobre maternidade e filiação a partir da
desterritorialização, acreditando que este filtro pode ser potente para olhar para a diversidade
de expressões dessas relações, sem buscar falta, incompletude, novos modelos a seguir.
Não pretendemos ceder à simplificação oferecida por essa argumentação binária sob
pena de produzir uma lógica totalitária que por sua vez pode conduzir à captura do desejo,
proporcionando entorpecimentos produtores de subjetividades serializadas. Nossa
preocupação acentua-se quando o foco da pesquisa volta-se à parentalidade e filiação, uma
vez que esse estudo propôs discutir, sob a ótica dos filhos, e também das mães, o afastamento
da genitora. Buscamos então saber que linhas de forças foram e estão se desenhando no
cotidiano da vivência do afastamento, como se estabelecem as eventuais estratégias que
possam desnaturalizar as lógicas totalitárias que por ventura emerjam do campo trabalhado ou
do nosso olhar viciado em uma visão de mãe e filhos que passem pela naturalidade do amor
materno, como discutimos. Quais desafios foram atravessados? Que linhas que se
deslocaram? Foi possível escapar, em alguma medida, dos equipamentos sociais que as fixam,
criando linhas de fuga ou permitindo que reverberassem? Como fazer para que, habitadas
pelo devir, possam inventar outros territórios, inesperados e conectados com o desejo e
expansão da vida, compreendendo a sua existência ao que nele (sujeito) pede passagem
(DELEUZE, 1992; GUATTARI, 2011).
Finalizando, o que se pretende é deixar a passagem aberta para movimentos que
possam produzir e construir fissuras, que nos permitam um olhar que capture novas conexões
nessa imensa rede e suas tramas imanentes à vida.
208

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