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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

BÁRBARA ARAÚJO MACHADO

A FORMAÇÃO DO MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL (1978-2000):


Uma abordagem a partir da teoria da reprodução social

Niterói
2020

1
BÁRBARA ARAÚJO MACHADO

A Formação do Movimento de Mulheres Negras no Brasil (1979-2000):


Uma abordagem a partir da teoria da reprodução social

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutora em
História.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos

Niterói
2020

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BÁRBARA ARAÚJO MACHADO

A FORMAÇÃO DO MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL


(1978-2000): Uma abordagem a partir da teoria da reprodução social

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em História da Universidade
Federal Fluminense como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutora em
História.

Aprovada em 05 de março de 2020.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos (Orientador)

______________________________________________________
Prof. Dr. Amílcar Araújo Pereira (Arguidor)

______________________________________________________
Profª. Dra. Flávia Fernandes de Souza (Arguidora)

______________________________________________________
Profª. Dra. Flávia Mateus Rios (Arguidora)

______________________________________________________
Profª. Dr. Hugo Alexandre de Lemos Bellucco (Arguidor)

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

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Você pode prender revolucionários, mas não pode prender a revolução.
Você pode expulsar um libertador do país, mas você não pode expulsar do país a libertação.
Você pode assassinar um lutador pela liberdade, mas você não pode assassinar a luta pela
liberdade.

(Adaptação de trecho do discurso de Fred Hampton,


liderança do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa,
assassinado em sua casa pelo Estado aos 21 anos de idade)

Em memória de Marielle Franco,


de Mestre Moa do Katendê
e de todas as lutadoras e lutadores pela liberdade que nos têm arrancado.
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AGRADECIMENTOS

É uma tarefa ao mesmo tempo impossível e indispensável agradecer a todas e todos

que de alguma forma apoiaram a formulação desta tese. Peço desculpas de antemão para

quem deveria figurar aqui e, por falta de memória e cansaço, acabou ficando de fora.

Agradeço à minha família: minha mãe, a fêmea-fênix que é porto seguro mesmo

quando mar agitado; minha avó, que mesmo estando um pouco fora desse mundo continua

demonstrando um carinho e um orgulho da minha trajetória profissional que me emocionam

muito; meu tio dindo, agora colega de vida acadêmica, pelos papos, almoços, cumplicidade e

generosidade de sempre; minha tia dinda, que me recebeu ao longo do doutorado por diversas

vezes em sua casa, que para mim é lar, pela torcida feroz de sempre; tio Caio, minha

inspiração como intelectual comprometido com o desenvolvimento da ciência, pelo interesse

e disposição em me ajudar sempre; Marcos e Maria Clara, minha fonte inesgotável de orgulho

e minha certeza absoluta de felicidade.

Agradeço também à minha família estendida pelos laços do não-matrimônio: Suely,

Silvio, Raquel, Rodrigo, Lúcia e Paçoca, obrigada pelo carinho e pelo cuidado com que me

acolhem sempre.

À Larissa, a quem nem tenho mais palavras novas pra agradecer, de tanto tempo que já

está ao meu lado. Obrigada por ser minha dupla, pela sua alegria, pela sua lealdade. À

Marluce, a quem não posso deixar de ser repetitiva e agradecer pela lealdade, além de todas as

sacudidas que me deu quando eu me coloquei injustificavelmente para baixo, e da

compreensão carinhosa com que me acolheu quando me coloquei um pouco mais

justificavelmente para baixo. À Flora, por ser tão “querida!” e por ter sido minha parceira de

São Paulo, mesmo que por tempo limitado. À Michelle, por buscar sempre fazer-se presente,

mesmo quando distante, e pelas aulas de crochê. À Bia, Natassja, Tati e Giovanna, minhas

Meninas-CP2; À Thaís, Luisa, Rafael, André e Sophia, por serem a melodia de karaokê que

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alegra minha vida. Ao Erick e à Isa, pela amizade verdejante que dá frutos; Ao Fernandão,

pela parceria que vai de diálogos etílico-amorosos aos político-acadêmicos com toda fluidez.

Ao Kappa, por ter me aturado no berço ao lado naquele longínquo ano de 1989.

Aos queridos capoeiras e agregados, em especial Sansão, Alegria, Íris e Marciano,

obrigada pelo axé que ultrapassou em muito as rodas.

Às integrantes da República Feminista do Fazendo Gênero, Camila Pinheiro, Larissa

Costard e Fernanda Haag, por todas as trocas intelectuais que tivemos nos últimos anos, mas

principalmente por serem maravilhosas das galáxias (na impossibilidade de usar a expressão

original neste espaço).

Às/aos marxistas alcoolizades, meus grandes companheiros dessa jornada acadêmica:

Camila Pizzolotto, Dani Jardim, Marcelo Ramos, Becca, Ana Kallás e Livia, vocês

subverteram o isolamento característico da pós-graduação e negaram a competitividade que às

vezes impregna o meio acadêmico: nós realmente caminhamos e construímos juntos. Devo

demais a vocês. À Camila, um agradecimento especial, com ares de brisa da Baía de

Guanabara que movimentava nossos cabelos quando voltávamos tarde da noite naquela barca

velha saindo de Niterói.

Às Blogueiras Feministas, responsáveis pela minha iniciação na atuação política

feminista, com agradecimentos especiais a Sabrina, Jussara, Luma, Fabi Motroni, Maíra

Kubik, Georgia, Camilla Magalhães, Priscila, Thayz e Marília.

À Natália Guerellus, pela amizade na distância e por sempre se lembrar do meu

trabalho e incentivá-lo de diversas formas.

Ao Fábio Frizzo, ao Zé Knust e ao Paulo Pachá, pelo apoio e pela ajuda que me deram

em vários momentos; À Ingrid e ao Dudu, pelo carinho e acolhimento que me fazem sentir.

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A Juliana Nascimento, Rhaysa Ruas, Thaís Paz, Thaíz Senna, Diego Martins,

Anderson Tavares, Thiago Romão, André Guiot, Marco Pestana e Rejane Hoeveler, pelas

trocas acadêmicas.

Às professoras Fátima Lima e Vanessa Berner, pela importante disciplina de

Linguagens, feminismos e interseccionalidades, que me abriu novas perspectivas. À

professora Sônia Mendonça, pelas aulas inspiradoras e textos fundamentais. À professora

Virgínia Fontes, por me abrir sua casa para conversar sobre minha pesquisa com toda atenção,

dedicação e generosidade.

Às professoras Flávia Fernandes e Flávia Rios, pelas preciosas contribuições na banca

de qualificação. Também agradeço à professora Flávia Rios pela disponibilidade para

conversar sobre minha pesquisa e pelo importante curso “Armas, artes e lutas”. Aos

professores Amílcar Pereira e Hugo Bellucco, por terem aceito o convite para a banca de

defesa da tese. Ao professor Amílcar, um agradecimento especial por ter se disposto a me

ajudar em diversos momentos, desde o mestrado, sempre com muita atenção e generosidade.

Ao professor Marcos Alvito, que me ensinou a ser pesquisadora e professora, obrigada

por tudo.

Ao professor Marcelo Badaró Mattos, que aceitou a empreitada de me orientar no

doutorado, pela comprometimento com o processo da orientação, pela paciência com que

tirou minhas dúvidas e por proporcionar plataformas de troca acadêmica e política

fundamentais, como o Observatório da História da Classe Trabalhadora, que tenho o prazer de

integrar.

À Cinzia Arruzza, pelo apoio em minhas tentativas de pesquisar no exterior sob sua

supervisão e por ter me recebido na New School for Social Research, tendo sido fundamental

para a conclusão desta tese. À Titthi Bhattacharya, que, com a professora Cinzia, ofereceram

um minicurso sobre a teoria da reprodução social que ajudou a consolidar meu entendimento.

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Agradeço também pela abertura e paciência com que receberam os anseios acadêmicos e

políticos das feministas brasileiras no Colóquio Marx e Marxismo de 2019.

À Edmeire Exaltação, pelas trocas e por me apresentar à Neusa. A Neusa Pereira e

Vanda Ferreira, pela generosidade com que me concederam suas entrevistas.

Às/aos estudantes do curso que ministrei na graduação em História da UFF, em

especial a Clarissa O’Neill, Jéssica Alves, Lisia Cariello, Lia Castanho e Djamila Dias.

Agradeço a meus ex alunos do Colégio Pedro II – campus Engenho Novo e do Pré-

vestibular comunitário Machado de Assis, aos ex e atuais alunos do Colégio Técnico de

Campinas e aos demais estudantes que cruzaram meu caminho, me permitiram estabelecer um

laço de troca e aprendizado e me ensinaram o verdadeiro significado de afeto. Aos meus

colegas de sala dos professores e de corredores escolares nesses últimos anos, em especial

Carolina Medeiros, Eduardo De Biase, Luna Campos, Pedro Cazes, Luiza Aguiar e André

Pasti. Minhas experiências preciosas no chão da escola também integram este trabalho.

Por fim, agradeço ao Juca, que entrou na minha vida no último semestre do doutorado

causando um furacão e me transformando na famigerada figura da “mãe de pet”, por me

ensinar cada dia uma coisa nova sobre mim, sobre a vida, sobre as relações e sobre amor. E ao

Renato, meu companheiro de vida, meu amor, de quem eu escolhi andar ao lado na resistência

e nos – cada vez mais raros – dias de paz. Muito mais que apoio e incentivo, você foi desde o

responsável logístico até o interlocutor acadêmico preferencial desta tese. Sem você, nem sei.

E nem quero saber.

Agradeço ainda a CAPES, pela bolsa que financiou essa pesquisa.

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RESUMO

Esta tese tem como tema a formação do movimento de mulheres negras no Brasil entre fins da
década de 1970 e os anos 1990. Seu objetivo geral é compreender a experiência das mulheres
que integraram as primeiras organizações específicas do movimento de mulheres negras como
parte da experiência da classe trabalhadora e, portanto, como parte do processo da formação
de classe. Essa proposição depende de um entendimento de classe social como unidade
contraditória, constituída por relações raciais, de gênero e sexualidade, conforme propõe a
Teoria da Reprodução Social (TRS). A tese se debruça sobre a dinâmica histórica de
formação do movimento de mulheres negras: as experiências de suas intelectuais orgânicas
em organizações mistas, a construção de seus primeiros espaços políticos específicos, suas
estratégias de organização e suas pautas políticas nas décadas de 1980 e 1990, observando as
transformações ocorridas nesse período.

Palavras-chave: Movimento de mulheres negras, teoria da reprodução social, feminismo


negro.

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ABSTRACT

The current thesis addresses the making of Black Women’s Movement in Brazil between the
decades of 1970s and 1990s. The main goal of the thesis is to understand the experience of the
women who organized the first specific black women’s organizations as a part of the working
class experience. Therefore, the making of those movements are also part of the making of a
social class. Such proposition is based on the comprehension of social class as a contradictory
unity, built by racial, gender and sexuality relations, as proposed by the Social Reproduction
Theory (SRT). The thesis addresses the dynamics of the making of black women’s movement
by analysing: 1) the experiences of its organic intellectuals in mixed organizations; 2) the
construction of their first politically specific spaces; 3) its organization tactics and the political
agenda through the decades of 1980s and 1990s, observing the transformations throughout
this period.

Keywords: Black Women’s Movement, Social Reproduction Theory, Black Feminism.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 14
CAPÍTULO I - Repensando o capitalismo no Brasil como uma totalidade contraditória ....... 23
1. Relações raciais, de gênero e capitalismo no pensamento social brasileiro .................. 23
2. O pensamento feminista negro e a ideia de articulação................................................. 47
2.1 Articulação no feminismo amefricano ................................................................... 47
2.2 O pensamento de Lélia Gonzalez ................................................................................ 60
3. Repensando o capitalismo brasileiro como totalidade contraditória: uma proposta de
síntese.................................................................................................................................... 78
3.1 Modo de produção como totalidade contraditória...................................................... 78
3.2 Exploração, alienação, opressão................................................................................. 91
4.Conclusão: Brasil: Uma totalidade capitalista, racista, (hetero)sexista e dependente ....... 96
CAPÍTULO II - Experiência de mulheres negras como experiência de uma classe
trabalhadora contraditória (1970-1990) .................................................................................... 99
1. “Nossos passos vem de longe” : breve comentário sobre a origem do movimento de
mulheres negras .................................................................................................................. 116
2. Biografias das entrevistadas ........................................................................................ 122
3. Experiência organizativa ............................................................................................. 141
3.1 Resistência à Ditadura Empresarial-Militar .............................................................. 141
3.2 Movimento negro contemporâneo ............................................................................ 156
3.3 Feminismo ................................................................................................................. 168
4. Conclusão: A unidade contraditória como experiência: experiência de mulheres negras
como experiência de classe ................................................................................................. 178
CAPÍTULO III - Organizações de mulheres negras: espaços específicos, pautas contra-
hegemônicas (década de 1980) ............................................................................................... 181
1. A construção de espaços políticos específicos ............................................................ 185
1.1 Primeiros coletivos específicos de mulheres negras ............................................ 189
1.2 Grupos de mulheres negras dentro de organizações mistas ................................. 197
1.3 Encontros de mulheres negras .............................................................................. 201
2. Pautas contra-hegemônicas.......................................................................................... 219
2.1 Saúde .................................................................................................................... 220

12
2.2 Trabalho ............................................................................................................... 242
2.3 Subjetividade ........................................................................................................ 249
3. Conclusão .................................................................................................................... 258
CAPÍTULO IV - Organizações de mulheres negras no Estado Ampliado (década de 1990) 260
1. O conceito de Estado Ampliado .................................................................................. 260
2. O processo de institucionalização do movimento de mulheres negras ....................... 270
2.1 Contexto ............................................................................................................... 270
2.2 ONGs de Mulheres negras: casos analisados ....................................................... 276
2.3 Política transnacional: atuação das organizações de mulheres negras em
Conferências Internacionais ............................................................................................ 301
3. Relação do movimento de mulheres negras com o Estado restrito ............................. 309
3.1 Atuação em conselhos .......................................................................................... 312
4. Conclusão........................................................................................................................ 323
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 325
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 330
Fontes orais ......................................................................................................................... 330
Fontes escritas ..................................................................................................................... 330
Referências bibliográficas................................................................................................... 333
ANEXO A - Quadro: Elementos biográficos das entrevistadas ............................................. 355
ANEXO B - Quadro: Cronologia - Eventos significativos para o movimento de mulheres
negras ...................................................................................................................................... 357

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INTRODUÇÃO

Esta tese tem como tema a formação do movimento de mulheres negras no Brasil entre

fins da década de 1970 e os anos 1990. Seu objetivo geral é compreender a experiência das

mulheres que integraram as primeiras organizações específicas do movimento de mulheres

negras como parte da experiência da classe trabalhadora e, portanto, como parte do processo

da formação de classe. A palavra “formação”, aqui, se trata da categoria proposta por Edward

Palmer Thompson (2015), que, conforme sugere o original em inglês the making, se refere ao

processo histórico de fazer-se da classe trabalhadora. Propor que a experiência das mulheres

negras desse movimento é uma experiência de classe não significa reduzir à classe as

dimensões de raça e gênero. Ao contrário, essa proposição depende do entendimento de classe

social como uma unidade contraditória, constituída por relações raciais, de gênero e

sexualidade, conforme propõe a Teoria da Reprodução Social (TRS). A tese se debruça sobre

a dinâmica histórica de formação do movimento de mulheres negras: as experiências de suas

intelectuais1 em organizações mistas, a construção de seus primeiros espaços políticos

específicos, suas estratégias de organização e suas pautas políticas nas décadas de 1980 e

1990, observando as transformações ocorridas nesse período.

O recorte cronológico da pesquisa se relaciona com o período que autores como

Petrônio Domingues (2007) e Amílcar Pereira (2013) consideram como a fase contemporânea

do movimento negro, que tem início no ano de 1978, com a fundação do Movimento Negro

Unificado (MNU). Muitas das militantes do movimento de mulheres negras aqui estudado

atuaram também no âmbito do movimento negro, havendo uma relação significativa entre os

movimentos. Os marcos temporais específicos da tese, de 1978 a 2000, se referem

1
A palavra “intelectuais” aqui e ao longo de toda a tese se refere ao conceito de “intelectual orgânico” de
Antonio Gramsci, que caracteriza o intelectual como sujeito vinculado orgânicamente a um dos grupos sociais
em disputa na sociedade – afastando-se, assim, da concepção tradicional de intelectual como alguém que está
acima dos conflitos sociais – e responsável pela organização da vontade coletiva do grupo a que se vincula
(GRAMSCI, 2001). O adjetivo “orgânico”, portanto, se remete tanto à organicidade quanto à organização.

14
respectivamente à data de fundação daquela que provavelmente é a primeira organização

específica de mulheres negras nesse período, a Reunião de Mulheres Negras Aqualtune

(REMUNEA), e à data de fundação da Articulação de Organizações de Mulheres Negras

Brasileiras (AMNB), entidade que marca o estabelecimento de uma importante rede nacional

que influencia a atuação do movimento de mulheres negras a partir da virada do milênio.

Como o movimento de mulheres negras a que me refiro continua figurando no cenário

político atual, vale demarcar sua diferença com relação ao que Flávia Rios e Regimeire

Maciel (2018) chamam de “feminismo negro contemporâneo”, que, embora mantenha

relações com o feminismo negro “clássico”, como chamam as autoras, tem características que

o particularizam, tais como: o envolvimento simultâneo de raça e gênero enquanto categorias

políticas contenciosas; o uso de tecnologia da informação como ferramenta de protesto

político e; o uso das redes sociais como espaço de formação de grupos cuja atuação não se

restringe a internet (RIOS; MACIEL, 2018, s.p.).

Cabe ainda fazer a ressalva de que, embora a tese se refira ao movimento de mulheres

negras brasileiras, não pretendo de dar conta da ampla diversidade regional desse movimento

pelo país. Os exemplos às quais a análise recorre se concentram no sudeste, particularmente

no Rio de Janeiro e em São Paulo, limitação que deve ser reconhecida, embora creia que não

comprometa uma análise que tem como objetivo observar processos e relações sociais mais

amplos.

O tema “movimento de mulheres negras”, com o recorte designado nesta tese, tem

recebido alguma atenção – ainda que insuficiente – na área das ciências humanas no Brasil

desde meados dos anos 1990, mas essa atenção esteve concentrada em áreas como ciências

sociais e psicologia. A dissertação de Rosália Lemos (1997), resultado de seu mestrado em

Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos trabalhos pioneiros a se

debruçar sobre o Feminismo Negro brasileiro. Pode-se apontar ainda a importante pesquisa de

15
Núbia Moreira (2018, 2ª ed.), finalizada em 2007 e publicada como livro pela primeira vez

em 2011, bem como as subsequentes pesquisas de Cristiano Rodrigues (2006), Ana Angélica

Sebastião (2007), Marjorie Nogueira Chaves (2008), Mariana Damasco (2009), Lady

Christina de Almeida (2010), Silvana Bispo (2011), Claudia Pons Cardoso (2012) e Mariana

Cestari (2015). Destaco ainda, no âmbito internacional, a obra de Kia Lilly Caldwell, com

resultados importantes como seu livro Negras in Brazil (2007). Destes, apenas as pesquisas de

Chaves, Damasco e Cardoso são trabalhos feitos por historiadoras; os demais vem de áreas

como Sociologia, Comunicação e Estudos da linguagem. Mesmo diante da amostragem

tímida no âmbito da historiografia, dada a relevância do tema, a presente tese se destaca por

uma abordagem inovadora. Um objeto ainda insuficientemente explorado é, aqui, analisado

através de lentes que buscam combinar importantes contribuições de feministas negras à uma

nova proposta marxista de análise: a Teoria da Reprodução Social. A historicidade do tema, a

partir de uma perspectiva totalizante, mas não menos preocupada com agência dos sujeitos

envolvidos e suas subjetividades, é reforçada por proposições teóricas de E. P. Thompson. O

caminho percorrido para a construção dessa abordagem é trilhado a seguir.

O projeto de pesquisa que deu origem a esta tese foi intitulado “Entre raça, gênero e

classe: a formação do movimento de mulheres negras no Brasil (1978-2000)”. O doutorado é

um processo longo, que leva o mesmo tempo, em termos quantitativos, que uma graduação

pode levar. Mas qualitativamente é muito diferente: são quatro anos com a mesma pesquisa, o

mesmo tema. Ocorre que, se uma pesquisa caminha, ela não pode ser a mesma durante quatro

anos. A minha se transformou quando ganhei novas lentes de observação. Meu problema

inicial tinha a ver com a forma como gênero, classe e raça interagem, se entrelaçam e criam as

condições de nossas vidas. Diante da afirmação frequente de militantes negras sobre sua

experiência com racismo no movimento feminista, machismo no movimento negro e ambos

em organizações de esquerda, o movimento de mulheres negras me parecia o sujeito

16
preferencial para entender a relação entre racismo, sexismo e capitalismo, no sentido do

engendramento de desigualdades, mas também no de possibilidades de resistência.

Ingressei no doutorado tendo a interseccionalidade como lente preferencial. Conheci o

conceito no mestrado, quando estudei a trajetória e a obra de Conceição Evaristo. O conceito,

ao menos no campo da história, no âmbito da academia fluminense, parecia absolutamente

inovador (apesar de circular no Brasil pelo menos desde 2002, com a publicação do texto de

Kimberlé Crenshaw na Revista Estudos Feministas). Ele ajudava a compreender aquilo que

Conceição chamava de “escre(vivência) de dupla face” e que eu, marxista iniciante àquela

altura, desdobrei em uma escre(vivência) de tripla face, para incluir a classe social, relação

que me parecia igualmente importante na obra da autora, ainda que ela não se referisse

especificamente a ela ao cunhar sua expressão “escre(vivência)”.

Minha empreitada tornou-se, a partir de então, qualificar a interseccionalidade ao

acrescentar a ela a dimensão de classe social, defendendo nos meios “interseccionais” –

espaços onde se discutia gênero e raça, mas em que “classe” era tida ora com desconfiança,

ora de maneira descritiva, liberal, como um adjetivo agravante, o“ser pobre”. Trazer a classe

como relação social em termos marxistas me parecia solucionar o que ficava em aberto na

abordagem interseccional.

Me aprofundando nos debates sobre o conceito, conheci outras matrizes teóricas para

pensar as relações sociais de gênero, raça e classe, como o feminismo materialista francês.

Angela Davis, que se tornou sucesso no Brasil depois de constrangedoras décadas com a

publicação de seu Mulheres, Raça e Classe pela editora Boitempo, encorporou diante dos

meus olhos a interseccionalidade que eu perseguia: o entendimento de gênero, raça e classe

como relações sociais manifestas na realidade social de maneira una, ainda que contraditória.

Se aquilo era interseccionalidade, era aquela a que eu queria: uma perspectiva materialista, de

17
base marxista, que compreendesse o papel sócio-histórico do racismo e do sexismo na

conformação das relações sociais.

A interseccionalidade tornou-se, então, um conceito que me era quadro teórico, mas

também objeto. Como produção intelectual do feminismo negro, era uma contribuição

original que as intelectuais negras (no sentido gramsciano) trouxeram para o debate sobre

desigualdade e resistência.

Em meio aos estudos sobre tais questões, eu ouvia dizer de uma Teoria da Reprodução

Social, que se estabelecia no meio acadêmico do norte global, mas que pouco – pouquíssimo

– espaço ocupava nos meios marxistas brasileiros. Meios marxistas, porque era uma teoria

marxista e feminista que, em sua mais recente versão, incorporava o debate sobre relações

raciais de maneira bastante interessante a suas formulações. Entrando no campo da TRS, uma

luz acendeu na minha cabeça. A mesma que acende quando leio ou ouço Angela Davis falar.

Aquela que acende diante da análise das relações de gênero, raça e classe sociais sob uma

perspectiva materialista, marxista, mas jamais reducionista em relação à dimensão dos dois

primeiros elementos.

A teoria da reprodução social passou a orientar meu olhar, não tanto para o objeto de

pesquisa, mas para a realidade social como um todo, ao trazer para a reflexão sobre relações

raciais e de gênero aquilo que faltava à interseccionalidade: uma teoria do capitalismo. Me

parecia a chave de leitura primordial para entender o capitalismo brasileiro, principalmente

quando tomado em conjunto com as discussões marxistas sobre dependência, de Ruy Mauro

Marini e outros. Embora isso estivesse claro para mim, a nova lente se embaçava ao observar

a estrutura da tese e meu objeto de pesquisa. Mulheres que estavam “entre raça, gênero e

classe”, uma imagem topográfica típica da metáfora interseccional conforme sua formulação

original – a mesma metáfora que passei a considerar a partir de uma perspectiva bastante

crítica. Se a Teoria da Reprodução Social propunha que classe, raça e gênero são relações que

18
se constituem umas às outras, que integram umas as outras, sendo todas determinantes de uma

totalidade social contraditória, o título da pesquisa perdia seu sentido, tendo sido necessário

alterar o título inicial para o que se apresenta agora.

Há ainda que se considerar que esta pesquisa, como todas as produções acadêmicas, é

fruto de uma conjuntura histórica específica. No seu caso, essa conjuntura marcou

profundamente as perguntas colocadas e as reflexões geradas. A tese começou a ser gestada

em 2016, ano em que a então presidenta Dilma Rousseff sofreu um impeachment – um golpe

– que deu início a um período de incertezas e de retrocessos significativos nas conquistas

democráticas que pareciam ter se consolidado em 1988 sob a Constituição Cidadã. O material

para a qualificação do doutorado foi produzido em um período que incluiu a campanha

eleitoral e os primeiros meses após o resultado das eleições de 2018. No dia da banca de

qualificação, 12 de março de 2019, foram divulgados os nomes dos assassinos de Marielle

Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), cujo

trabalho eu acompanhava com alegria e esperança.

Esse período foi marcado por grande desgaste físico e emocional para todas e todos

que partilham do consenso de que a democracia é um bem a ser garantido e a divergência e o

debate são direitos inalienáveis. Para os socialistas, se tornou um momento de defesa daquelas

liberdades iluministas, de luta pela garantia da própria possibilidade de existência, uma

batalha contra genocídios e mordaças. Uma batalha perdida. Foi difícil, nesse período,

trabalhar nesta tese. Mesmo porque sua matéria é indissociável da realidade que se apresenta

atualmente no Brasil. Nos últimos tempos, a cada notícia, a cada hectare queimado, a cada

criança favelada assassinada, ressoam as perguntas: Como chegamos até aqui? Há saída? Essa

tese constitui, de certa forma, um reverberar de tais perguntas e uma tentativa de contribuição

para possíveis respostas.

19
O recorte cronológico da presente pesquisa envolve nosso passado recente. Nela, o

olhar se volta ao nosso último período autoritário e à redemocratização, construída sobre

terreno não tão sólido – como fica evidente hoje, diante da ascensão neoconservadora ao

governo por via eleitoral e das inúmeras manifestações de ódio e de aversão a políticas de

inclusão social. Refletir sobre um movimento social formado quando da construção dessa

frágil democracia é refletir também sobre como chegamos até aqui. O movimento de

mulheres negras no Brasil emerge no seio dos movimentos sociais da redemocratização,

passando por uma década de 1990 marcada pelo avanço neoliberal e chega fortalecido aos

governos do Partido dos Trabalhadores, com sua política de inclusão social associada à

conciliação de classes e abertura para diversos setores da burguesia. Quando vimos, desde os

últimos anos de governo petista, com acentuação no golpe de 2016 e aprofundamento sem

precedentes com as eleições de 2018, tantas conquistas dos movimentos sociais e da classe

trabalhadora desmanchando-se no ar, examinar com cuidado a formação de um movimento

social que representa de maneira exemplar a unidade contraditória das relações de classe,

raça, gênero e sexualidade ganha ainda mais gravidade e urgência. Quais foram as relações

sociais determinantes para a experiência das mulheres negras que viriam a formar suas

organizações específicas? Como se deu essa experiência? Como se organizaram na disputa

por hegemonia e de que maneiras procuraram se inserir no Estado Restrito2? Quais as relações

de seus aparelhos privados de hegemonia3 com outros aparelhos? Quais, enfim, os limites

encontrados por esse movimento e o alcance de seu potencial emancipatório? O que temos a

aprender com o movimento de mulheres negras, principalmente em tão nefasto contexto

atual?

Como chegamos até aqui? E como superaremos esse “aqui”?


2
Estado restrito, segundo Antonio Gramsci, se refere ao "Estado-político", "Estado-governo" ou ainda
"sociedade política", isto é, o "aparelho governamental encarregado da administração direta e do exercício legal
da coerção" (BIANCHI, 2008, p. 178-179).
3
Aparelhos privados de hegemonia, para Gramsci, são organismos que compõem a sociedade civil com o
objetivo de “despertar e organizar sua vontade coletiva" (GRAMSCI, 2000, p. 14).
20
O primeiro capítulo tem como objetivo caracterizar o capitalismo brasileiro como uma

totalidade contraditória racista, (hetero)sexista e dependente, a partir da contribuição de

autores que buscaram articular as relações sociais de classe, raça, gênero e sexualidade. Essa

caracterização do capitalismo brasileiro, que visa estabelecer em que realidade social as

experiências das intelectuais do movimento de mulheres negras se deram, parte de leituras de

autores importantes do pensamento social brasileiro, como Florestan Fernandes e Heleieth

Saffiotti, indo ao encontro do pensamento feminista negro norte-americano, latino-americano

e caribenho e brasileiro – considerando-se em especial a contribuição de Lélia Gonzalez. Com

o auxílio da teoria marxista da dependência, das considerações sobre classe de E.P. Thompson

e da Teoria da Reprodução Social, estabelece-se a expressão do modo de produção capitalista

no Brasil como base para pensar a experiência das mulheres negras.

No capítulo II, busco caracterizar a experiência de mulheres negras como uma

experiência de classe, categoria entendida aqui necessariamente como uma unidade

contraditória. O capítulo se concentra no sujeito social mulheres negras, notadamente entre os

anos 1970 e 1990, primeiro de maneira panorâmica, levando em consideração principalmente

questões relativas a demografia e trabalho e, depois, com o olhar voltado para as experiências

de algumas lideranças do que virá a se constituir como o movimento de mulheres negras nos

anos 1980 e 1990.

O capítulo III aborda a construção dos primeiros espaços específicos de mulheres

negras nos anos 1980 e, principalmente, os temas que embasaram suas pautas de luta política.

O objetivo é estabelecer as características do movimento em sua fase inicial, bem como

observar em que medida suas pautas são específicas, mas também contra-hegemônicas em

sentido mais amplo, estando conectadas com dinâmicas que influenciam outros grupos

subalternizados.

21
O último capítulo analisa as transformações vividas pelo movimento na década de

1990, notadamente um processo de institucionalização, caracterizado pela adoção do formato

de organização-não-governamental (ONG) por importantes instituições do movimento negro.

O conceito de Estado Ampliado, de Antonio Gramsci, orienta o capítulo, sendo mobilizado

aqui amplamente o aparato conceitual gramsciano, como os conceitos de “aparelho privado de

hegemonia”, “sociedade civil” e “Estado restrito”. Me debruço sobre o contexto e as

consequências da adoção do formato de ONG por algumas organizações de mulheres negras,

em especial sobre o desafio da autonomia financeira ligada à dependência de financiamentos

externos. O debate sobre ONGs, agências financiadoras, autonomia e conflitos de interesses é

extremamente rico e amplo, aparecendo aqui não apenas para caracterizar o movimento na

década de 1990, mas também para levantar questões para um debate que me parece

fundamental, mais do que propriamente constituir uma análise acabada.

22
CAPÍTULO I - Repensando o capitalismo no Brasil como uma totalidade contraditória

"'Capitalismo' como uma simples abstração não existe 'realmente'. Há apenas o capitalismo racializado,
patriarcal, no qual a classe é concebida como uma unidade de relações diversas que produzem não apenas lucro
ou capital, mas o capitalismo."
(Susan Ferguson, Feminismos interseccional e da reprodução social, p. 23)

"Reconhecemos que a libertação de todas as pessoas oprimidas requer a destruição dos sistemas político-
econômicos do capitalismo e do imperialismo, tanto como a do patriarcado. [...] Não estamos convencidas,
entretanto, que uma revolução socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista nos
garantirá nossa libertação. [...] Precisamos verbalizar a situação real de classe de pessoas que não são
simplesmente trabalhadoras sem raça, sem sexo, mas para quem as opressões raciais são significantes
determinantes em suas vidas de trabalho/econômicas."
(Combahee River Collective,Una declaración feminista negra, p. 176)

Este capítulo tem como objetivo específico analisar as relações sociais em que as

intelectuais orgânicas do movimento de mulheres negras no recorte desta pesquisa se inserem.

Mais amplamente, visa propor uma reflexão sobre a necessidade de se compreender o

capitalismo como uma totalidade de relações contraditórias – abordagem que se torna

particularmente indispensável no caso brasileiro, onde a experiência escravista, o racismo e o

(hetero)sexismo conformaram uma totalidade capitalista que não pode ser verdadeiramente

compreendida desconsiderando-se algum desses elementos.

Para tanto, me voltarei às formulações de autores do pensamento social brasileiro, a

contribuições do feminismo negro e a autores marxistas como E. P. Thompson e aquelas

ligadas ao feminismo da reprodução social. A partir desses debates, será proposta uma síntese

das questões discutidas sob um novo escopo analítico.

1. Relações raciais, de gênero e capitalismo no pensamento social brasileiro

A importância da questão racial para compreender a sociedade brasileira tem sido uma

consideração constante na tradição do pensamento social brasileiro. A experiência da

escravidão, como não poderia deixar de ser em uma sociedade que viveu institucionalmente

23
relações escravistas por quase quatro séculos, esteve substancialmente presente nas reflexões

desse campo, bem como seus desdobramentos nas relações sociais pós-abolição. Pode-se

considerar, assim, que a própria tradição intelectual que se dedicou a compreender a (ou,

antes, a viabilizar a criação da ideia de) nação brasileira se confunde com uma tradição de

pensamento sobre raça no Brasil. Segundo Lília Schwarcz,

“Da constatação da hibridação em Von Martius à afirmação darwinista em [Silvio]


Romero, para se chegar ao elogio da democracia racial com Gilberto Freyre,
percebe-se como é arraigado o argumento de que ‘o Brasil se define pela raça’”
(SCHWARCZ, 1993, p. 247).

Em O Espetáculo das Raças (1993), Schwarcz faz um exame crítico da apropriação

das teorias racialistas pela intelectualidade brasileira na passagem da monarquia para a

república, até 1930. O esforço dos teóricos racialistas consistiu não apenas em classificar, mas

em hierarquizar os diferentes grupos raciais identificados na humanidade, erigindo uma

relação intrínseca entre aspectos biológicos e qualidades psicológicas, morais, intelectuais e

culturais de cada “raça” (MUNANGA, 2000, p. 21). Não à toa esse conjunto de pensamento

ficou também conhecido, posteriormente, como “racismo científico”.4

O trecho supracitado de Schwarcz se refere a uma noção bastante estabelecida de que

o Brasil possuía na configuração racial sua singularidade central: a mestiçagem. Desde os

naturalistas que visitavam o Brasil no século XIX ao projeto UNESCO dos anos 1950, o

Brasil era, aos olhos do mundo, um caso único de miscigenação racial – apontada ora como

ruína e impedimento à viabilidade na nação, no caso dos racialistas, ora como riqueza e

exemplo de harmonia social.

Até os anos 1930, a apropriação das teorias raciais europeias no Brasil “incorporou o

que serviu e esqueceu o que não se ajustava” ao projeto de nação almejado, combinando

4
É importante frisar que o pensamento racialista teve críticos mesmo em seu período de hegemonia. Exemplo
disso é Machado de Assis, cuja literatura “recusou o estatuto científico das teorias racistas, ao qual destinou
tenaz silêncio, só quebrado com mordazes ironias” (SCHNEIDER, 2018, p. 459).
24
evolucionismo com darwinismo social “como se fosse possível negar a civilização aos negros

e mestiços, sem citar os efeitos da miscigenação já avançada”. Nesse contexto, a perspectiva

do embranquecimento progressivo da nação apareceu como a solução “para garantir que o

futuro da nação” fosse “branco e ocidental” (SCHWARCZ, 1993, p. 242).

A década de 1930 deu lugar a uma importante mudança de interpretação. A

miscigenação ainda era ponto central, mas passa a ser tratada através de uma perspectiva

culturalista, com as teses de Gilberto Freyre, ficando para trás a abordagem naturalista. De

acordo com Lília Schwarcz, embora as ideias de Freyre tenham enfraquecido os modelos

raciais de análise social, as associações feitas pelas teorias racialistas entre “raça” biológica e

características psicológicas, morais etc. permaneceram vivas no senso comum e nas

representações populares (SCHWARCZ, 1993, p. 247).

A publicação de Casa-Grande & Senzala, em 1933, se deu em um contexto histórico

qualitativamente diferente do anterior, quando a ascensão de Getúlio Vargas ao poder trouxe

consigo um novo projeto de país. Caracterizado pela sobreposição da unidade às partes, esse

projeto visava à homogeneização da diversidade regional sob um manto de coesão nacional,

combinada à formulação de uma identidade nacional uma e positiva, que “inspirasse otimismo

à nação” (PESAVENTO, 2006, p. 41). A obra de Freyre foi ao encontro dessa demanda,

oferecendo uma nova abordagem da formação nacional que se voltava “para o passado na

expectativa de justificar o presente e garantir o futuro” (PESAVENTO, 2006, p. 42). A

interpretação freyreana trouxe um elogio à mestiçagem, substituindo a caracterização negativa

da matriz africana por uma chave de valorização cultural, ao conferir à contribuição africana

para o Brasil como tendo dotado ao país valores civilizatórios (FREYRE, 2006). Assim,

Freyre redimia “a alma nacional do estigma racial herdado do século XIX e que comprometia

o futuro da nação” (PESAVENTO, 2006, p. 42).

25
A imagem subsequente do Brasil como paraíso da democracia racial tem, nessa obra,

sua base intelectual, na medida em que enfatiza a negociação e as relações amistosas e de

compadrio entre escravizados e as classes dominantes. Se Freyre foi acusado nas décadas

posteriores de eliminar o conflito da análise da sociedade brasileira, foi justamente essa ênfase

na harmonia social entre as raças a saída ideológica do “entrave” racial do projeto nacional

brasileiro, apontado por Schwarcz. A mestiçagem deixava de configurar estigma e atraso: nos

versos jocosos de Manuel Bandeira, “A mania ariana / de Oliveira Viana / Leva aqui sua

lambada / Bem puxada” (BANDEIRA apud FREYRE, 2006, s.p.).5

Tanto a obra de Gilberto Freyre quanto seu significado em relação ao rearranjo

político-econômico no Brasil a partir de 1930 geraram intensos debates entre cientistas sociais

e historiadores que não cabem no espaço desta tese. O que interessa particularmente aqui, no

âmbito das reflexões sobre relações raciais no pensamento social brasileiro, é uma obra

posterior a essa: a de Florestan Fernandes. Esse autor for responsável pela primeira

formulação intelectual consistente a relacionar relações raciais e capitalismo, ainda que não

em termos integralmente marxistas. Como a preocupação aqui recai sobre o modo de

produção capitalista no Brasil e as formas como as relações raciais e de gênero o integra, me

deterei a seguir em alguns aspectos de sua obra.

Um dos mais importantes textos produzidos por Florestan Fernandes foi, sem dúvida,

A Integração do Negro na Sociedade de Classes, que contestou frontalmente a noção

hegemônica do Brasil como uma democracia racial, tomada pelo autor como um mito. Essa

caracterização fazia ressoar, no âmbito do pensamento social, a denúncia feita pela militância

5
Oliveira Viana (1883-1951) foi um historiador, sociólogo e jurista brasileiro, cuja obra foi marcada por
posições conservadoras em seu objetivo de interpretação da realidade brasileira. Era anti-liberal e defensor de
um Poder Executivo forte, por acreditar na incapacidade das massas populares para conduzir a si mesmas e à
nação. Tal posição se baseava em concepções do determinismo geográfico e biológico, sendo particularmente
afiliado às teorias racialistas de autores como Arthur de Gobineau e Vacher de Lapouge. Nesse sentido, defendia
a necessidade de que a elite dirigente do país pertencesse à raça superior, ariana, para incutir seus padrões morais
civilizatórios nas massas,compostas por mestiços e negros (Cf.
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/francisco-jose-de-oliveira-viana>. Acesso em
20 nov. 2018).
26
negra paulistana, com a qual Florestan pode dialogar diretamente em um amplo esforço de

pesquisa sobre relações raciais no Brasil sob sua coordenação e de Roger Bastide, a pedido da

UNESCO, no início dos anos 1950 (FERNANDES, 2017, p. 10-12, 32). O Projeto UNESCO

tinha como objetivo "apresentar ao mundo os detalhes de uma experiência no campo das

interações raciais julgada, na época, singular e bem-sucedida" (MAIO, 1999, p. 141). Embora

a pesquisa de Fernandes e Bastide tenha derrubado a hipótese da UNESCO, a ideia do Brasil

como um paraíso racial miscigenado onde inexistem tensões raciais permaneceu viva, sendo

defendida pelo Estado brasileiro durante a ditadura empresarial-militar.6

Como um dos desdobramentos dessa pesquisa, A Integração do Negro... foi lançada

no ano do golpe, 1964. Segundo o autor, ela se trata de um "estudo da formação, consolidação

e expansão do regime de classes sociais no Brasil do ângulo das relações raciais"

(FERNANDES, 2008, p. 14). Seu objetivo, ao estudar particularmente a cidade de São Paulo,

era analisar "as conexões existentes entre a revolução burguesa, a desagregação do regime

servil e a expulsão do 'negro' do sistema de relações de produção" (FERNANDES, 2008, p.

15).

Segundo Antônio Sérgio Guimarães, o livro é resultante de um método de

investigação histórico-estrutural, apresentando conceitos de autores como Durkheim e,

"principalmente, a dialética de Marx, a que Antonio Candido se refere como o 'rio

subterrâneo' que sempre correu nos escritos de Florestan" (GUIMARÃES, 2008, p. 9). Ainda

6
O uso da expressão “ditadura empresarial-militar” indica uma tomada de posição em um importante debate
historiográfico a respeito do golpe de 1964 no Brasil. Nesse debate, me oponho à corrente que sustenta uma
narrativa sobre o golpe alinhada ao discurso dos vencedores, ao argumentar que “esquerda e direita foram
igualmente responsáveis”, fazendo ecoar a própria justificativa dos golpistas quanto à existência de uma ameaça
iminente de revolução comunista no Brasil naquele período (MELO, 2014, p. 158). A crítica a essa perspectiva
revisionista resgata trabalhos fundamentais como a tese de René Dreyfuss, que demonstra não apenas a
ingerência dos Estados Unidos no processo do golpe, como também que “uma articulação de interesses do
capital multinacional e associado, [...] que se tornou a fração das classes dominantes mais beneficiada pela
ditadura” (MELO, 2014, p. 160). Destaca-se, assim, a ação do empresariado, além do oficialato militar, na
articulação do golpe, o que não acontece no caso da expressão “ditadura civil-militar”. Esta última tem sido
usada na defesa de uma “cumplicidade da ‘sociedade brasileira’ com a ditadura” – sociedade aqui entendida de
forma reificada, como um ente homogêneo “capaz de ‘assumir responsabilidades’ ou ‘esquecer’”, deixando de
lado o importante viés classista da parte “civil” do golpe (MELO, 2014, p. 168).
27
assim a concepção de classe social de Fernandes aqui é predominantemente weberiana. A

despeito de sua importância, a obra traz teses controversas, refutadas por estudos posteriores,

tais como “a tese da auto-exclusão do negro e do mulato do mercado de trabalho paulista, nos

anos que se seguiram à Abolição; e a tese complementar de que os imigrantes europeus não

discriminaram racialmente os negros" (GUIMARÃES, 2008, p. 11).7

Diante da verificação da não integração do negro na sociedade de classes no Brasil,

Florestan questionou-se quanto ao motivo da desigualdade racial, quando o modelo europeu

de transição capitalista indica um caráter democrático para o que ele chama de “ordem social

competitiva”. Numa democracia burguesa, as desigualdades sociais deveriam, de acordo com

essa lógica, ser de ordem estritamente econômica. A resposta estaria em uma sobrevivência

tradicionalista e patrimonialista da sociedade brasileira, que atravancava o pleno

desenvolvimento da ordem competitiva. O sociólogo Carlos Hasenbalg critica essa

perspectiva de Florestan em A Integração do Negro..., de que "o desenvolvimento ulterior da

sociedade de classes levará ao desaparecimento do preconceito e da discriminação", posição

que qualifica como demasiadamente "otimista" (HASENBALG, 1979, p. 76).8 O autor afirma

que a explicação baseada em "sobrevivências" e "atrasos" não explica a verdadeiramente a

persistência da desigualdade racial na nova estrutura. Segundo o autor, "as 'sobrevivências'

são elaboradas e transformadas dentro da estrutura social modificada" (HASENBALG, 1979,

p. 77). Ele explica:

7
A obra de Clóvis Moura, historiador, sociólogo, jornalista, escritor e militante comunista, foi fundamental na
refutação desses aspectos problemáticos apontados nas primeiras obras de Fernandes, ligadas ao projeto
UNESCO, bem como das teses freyreanas. Moura, ao buscar desenvolver uma sociologia da práxis negra e uma
análise histórica da resistência negra à escravidão, desconstruiu as teses da passividade da população negra,
reinterpretando a história através de uma “tradução do marxismo a partir de uma perspectiva do negro”
(OLIVEIRA, 2011, p. 45).
8
A crítica ao dualismo da oposição entre “atraso” e “modernidade” não surge pela primeira vez na obra de
Hasenbalg; há uma intensa discussão sobre essa questão no campo da sociologia que não cabe nesse espaço. Para
relevantes contribuições, conferir: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres em uma Sociedade
Escravocrata. São Paulo: Editora Unesp, 1997; SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas
Cidades, 1992; OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
28
"A sociedade capitalista transforma o significado da raça como dimensão adscritiva
dentro de um sistema de estratificação e mobilidade social em que a competição e
atributos adquiridos são enfatizados. A sociedade de classes confere uma nova
função ao preconceito e discriminação raciais: as práticas racistas [...] tendem a
desqualificar os não-brancos da competição pelas posições mais almejadas que
resultam do desenvolvimento capitalista e da diferenciação da estrutura de classes"
(HASENBALG, 1979, p. 77)

A problematização de Hasenbalg indica um dos pontos chave da análise que pretendo

propor. Em sua obra de 1964, Florestan identificou um aspecto fundamental do

desenvolvimento do capitalismo no Brasil: a função social do preconceito e da discriminação

raciais. Mas sua perspectiva weberiana naquele momento desdobrou-se em um entendimento

de que essa função social está ligada à manutenção das “castas” de senhor e escravo:

preconceito e discriminação serviriam para "legitimar comportamentos e instituições

moralmente proscritos" e "regular o convívio inter-racial, submetendo todas as suas

manifestações [...] a um código de ética inflexível na preservação da distância econômica,

social e cultural existente entre senhor e escravo" (FERNANDES, 2018, p. 182). Nessa

análise, preconceito e discriminação possuiriam uma faceta social, vinculando-se à "estrutura

e o funcionamento de uma sociedade de castas, na qual a estratificação racial correspondia aos

princípios de integração social” e também uma faceta racial, "menos aparente e dissimulada",

na medida em que os senhores eram "extraídos de um estoque racial branco" e exerciam uma

"dominação social que era, ao mesmo tempo, uma dominação racial" (FERNANDES, 2018,

p. 183). Desse modo, "a estratificação social pressupunha [...] uma estratificação racial e a

ocultava" (FERNANDES, 2018, p. 183), havendo aí “um paralelismo fundamental entre 'cor'

e 'posição social'" (FERNANDES, 2018, p. 183).

Uma perspectiva marxista permite ir além dessa análise, evidenciando a função social

do preconceito e da discriminação raciais não como estranha ao desenvolvimento do

capitalismo, mas pertencente à dinâmica das relações sociais conflituosas presente no

capitalismo. Abigail Bakan (2016) explica que essas relações não apenas pertencem ao

29
capitalismo, mas que ele depende dessas relações e as reproduz. Segundo a autora, embora o

impulso econômico do capitalismo pareça tender a anular as diferenças entre os seres

humanos como trabalhadores mercantilizados, eles interagem em uma relação competitiva por

meios de reprodução e sobrevivência escassos. Nessa competição, as diferenças são

instrumentalmente enfatizadas pelo capitalismo. Pensando nos entraves para a integração do

negro na sociedade de classes, a reprodução de relações de alienação entre membros da classe

trabalhadores negros e brancos (inclusive imigrantes) atua como uma forma opor sujeitos

explorados e enevoa distinções de classe, ao mesmo tempo em que cultiva diferenças que

isolam indivíduos de aliados potenciais dentro da mesma classe. Além disso, causa impacto

em baixas de salários, molda exércitos de reserva e divide mercados de trabalho (BAKAN,

2016). Nesse sentido, cabe retomar a colocação de Florestan:

"A 'revolução burguesa' praticamente baniu o 'negro' da cena da história. [...] o negro
não ficou apenas à margem dessa revolução. Foi selecionado negativamente,
precisando contentar-se com aquilo que, daí por diante, seria conhecido como
'serviços de negro': trabalhos incertos ou brutos, tão penosos quanto mal
remunerados" (FERNANDES, 2018, p. 171).

Nessa leitura, as funções do preconceito e da discriminação racial dizem menos

respeito à manutenção das castas senhor e escravo, sobrevivência de uma ordem social

patrimonialista pré-capitalista, e mais à reprodução de relações de exploração, alienação e

opressão no capitalismo, discussão que será desenvolvida mais adiante, na conclusão deste

capítulo. As formulações de Bakan (2016) sobre tais relações indicam que a alienação

contribui para uma “boa” recepção das relações historicamente específicas de opressão – o

preconceito e a discriminação racial, neste caso – ao se alimentar de um sentimento de

estranhamento entre os sujeitos humanos. Nesse sentido, a exclusão da população negra não é

nem uma sobrevivência nem o resultado de uma auto-exclusão, como chega a sugerir

Florestan em dado momento. Ela é resultado das dinâmicas contraditórias, mas concretas, do

30
capitalismo. Assim, embora Florestan identifique corretamente a não integração do negro, o

“dilema racial brasileiro” por ele identificado, que imiscuiu “traços do passado” à gênese da

sociedade de classes no Brasil (ARRUDA, 1996, p. 200), não é verdadeiramente um dilema

ou um paradoxo, mas faz parte do jogo do capitalismo no Brasil e de seu lugar na dinâmica

capitalista global.

Desde a publicação de A Integração do Negro..., a perspectiva de Florestan quanto à

relação entre a questão racial e o capitalismo no Brasil transformou-se significativamente. A

partir de O Negro no Mundo dos Brancos, de 1972, o autor se aproxima de uma visão

segundo a qual o capitalismo na realidade incorpora e retroalimenta a discriminação racial

como um instrumento político e ideológico, em especial em países periféricos como o Brasil

(COSTA, 2017, p. 14). De acordo com Diogo Costa, é nessa obra que “a questão racial

emerge como uma das questões fundamentais para compreendermos a construção política da

categoria de capitalismo dependente” formulada pelo autor em suas próximas obras (COSTA,

2017, p. 14).

A particularidade do desenvolvimento de um capitalismo periférico no Brasil e sua

relação com as nações capitalistas centrais e hegemônicas são analisadas por Florestan em A

Revolução Burguesa no Brasil. Nessa obra, publicada em 1975 mas redigida desde meados

dos anos 60, Florestan reflete sobre"como e por que a Revolução Burguesa constitui uma

realidade histórica peculiar nas nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas"

(FERNANDES, 2006, p. 340), focando-se particularmente no caso brasileiro. Ele dialoga com

a ideia da necessidade de uma revolução nacional democrática, presente no debate socialista

brasileiro, como requisito para uma revolução socialista, dados os resquícios pré-capitalistas

em nossa sociedade (MATTOS, 2017, p; 17-18). O acontecimento do golpe militar de 1964,

como marco de um viés autoritário no capitalismo brasileiro, aparece também como questão a

ser compreendida.

31
Em A Revolução Burguesa, Florestan desenvolve sua mudança de perspectiva quanto

à peculiaridade da transição capitalista no Brasil: ela não aparece mais como atrasada por

conter “sobrevivências” de sistemas anteriores, que poderiam ser superadas pela continuidade

do desenvolvimento capitalista; seu “atraso” tem relação direta com os interesses tanto das

burguesias dos países centrais como da burguesia nacional. Aqui, a burguesia nacional é

retirada do lugar de vítima do imperialismo para uma compreensão mais profunda de seu

papel na dinâmica do capitalismo global. Segundo Florestan,

“tanto as burguesias nacionais da periferia quanto as burguesias das nações


capitalistas centrais e hegemônicas [...] querem: manter a ordem, salvar e fortalecer
o capitalismo, impedir que a dominação burguesa e o controle burguês sobre o
Estado nacional se deteriorem." (FERNANDES, 2006, p. 343).

Assim, ele sublinha a presença de interesses comuns entre as frações burguesas, que se

desdobram em uma configuração particular do desenvolvimento do capitalismo em países

periféricos como o Brasil. Essa configuração demanda, aqui, uma “dissociação pragmática

entre desenvolvimento capitalista e democracia; ou, usando-se uma notação sociológica

positiva: uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia”

(FERNANDES, 2006, p. 340). A dinâmica do capitalismo dependente, portanto, direcionou o

país ao autoritarismo, o que ficou explícito no acontecimento do golpe de 1964. A análise de

Florestan sobre a formação de um capitalismo dependente se distingue de análises como a

teoria da dependência ligada a um de seus orientandos, Fernando Henrique Cardoso, na

medida em que não se centra na noção de dependência, mas na de capitalismo, para

compreender a dinâmica social global (LEHER, 2015).

Marcelo Badaró Mattos destaca a importância da “superação das teses que procuravam

entender o passado brasileiro a partir do modelo rígido de evolução dos modos de produção

típicos da história europeia (escravismo antigo, feudalismo, capitalismo)” (MATTOS, 2017,

p. 17). A perspectiva de que a sociedade brasileira era marcada por “sobrevivências” de


32
sistemas anteriores – desdobrando-se inclusive em programa político para o PCB até os anos

1960 – inclui-se aqui. Mattos destaca que, politicamente, críticas a tal concepção existiam

desde os anos 1930, mas foram aprofundadas no início dos anos 1960, por organizações como

a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP), a qual avaliava que a

sociedade brasileira era plenamente capitalista e que

“a evolução e a dinâmica do capitalismo brasileiro apresentavam características


distintas em relação aos países que primeiro se industrializaram. Tratava-se de um
capitalismo que se desenvolveu de forma dependente em relação à acumulação de
capital nas economias que chegaram ao capitalismo no século XIX e se construíram
como potências imperialistas” (MATTOS, 2017, p. 19).

Essa discussão da POLOP levou ao desenvolvimento de uma teoria marxista da

dependência (TMD) no Brasil por intelectuais orgânicos que atuavam como dirigentes na

organização: Ruy Mauro Marini, Vania Bambirra e Theotonio dos Santos (LUCE, 2018, p. 9).

Mathias Luce explica que a TMD foi “a síntese do encontro profícuo entre a teoria do valor

em Marx e a teoria marxista do imperialismo. Em relação a Marx, partiu-se em particular da

discussão feita em O Capital sobre a lei de tendência à queda da taxa de lucros.9 Marx

percebeu uma contradição entre a acumulação capitalista e sua dinâmica de desenvolvimento:

embora a ampliação do capital leve à incorporação de uma quantidade cada vez maior de

trabalhadores ao processo produtivo, a necessidade de ampliação da produtividade exige um

investimento cada vez maior nos meios de produção como máquinas, tecnologia e matérias-

primas, diminuindo a proporção entre esses últimos, chamados “trabalho morto” e a massa de

trabalhadores, o “trabalho vivo”. Como a mais valia é extraída dos trabalhadores e não do

trabalho morto, há uma tendência à queda na taxa de lucro, que é justamente relacionada à

extração de mais-valia do trabalho vivo (MATTOS, 2017, P. 20-22).

9
A teoria marxista da dependência, assim como as formulações de Florestan Fernandes, não se confunde com a
teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso, mencionada anteriormente.
33
Essa tendência à queda na taxa de lucros é importante para entender economias

capitalistas dependentes na medida em que existem “contratendências” para tentar frear esse

efeito, tais como: a elevação do grau de exploração do trabalho; o pagamento de salários

inferiores ao mínimo necessário para a manutenção e reprodução da força de trabalho e; o

aumento de lucro com o comércio exterior. Quanto a esse último ponto, Marx indica que os

países centrais conseguiriam vender mais caro para os dependentes por conta do

“desenvolvimento industrial mais atrasado dos países compradores” e pelo fato de as relações

de produção serem “menos desenvolvidas em países coloniais ou recém-saídos da situação

colonial” (MATTOS, 2017, p. 22). De acordo com Mattos, dessa forma “Marx demonstrava

como a acumulação capitalista tendia a conectar parcelas cada vez mais amplas do planeta”,

em um

“processo de desenvolvimento global, porém profundamente desigual, pois as


assimetrias entre os países que primeiro desenvolveram o modo de produção
capitalista e os demais, arrastados por aqueles à submissão às leis da acumulação,
tendem a se perpetuar” (MATTOS, 2017, P. 23).

Mattos (2017) ressalta ainda a importância das formulações de Lênin sobre o

imperialismo e o desenvolvimento acelerado, mas desigual – do capitalismo nessa fase, bem

como a formulação do “desenvolvimento desigual e combinado”, fixado por Trotsky, e que

será depois fundamental para o desenvolvimento da teoria marxista da dependência.

Embora não se filiasse diretamente a esse ramo político e teórico, Florestan Fernandes

também desenvolveu sua análise sobre o capitalismo dependente com bases no marxismo,

como vimos. Já dentro do escopo da teoria marxista da dependência, as formulações de Ruy

Mauro Marini ajudam a complexificar a caracterização do Brasil enquanto economia

dependente. Uma das principais contribuições desse autor é o conceito de “superexploração”

da força de trabalho, explicado por Mathias Luce como um processo em que

34
“a corporeidade viva da força de trabalho é submetida a um desgaste prematuro;
e/ou a reposição de seu desgaste acontece de tal maneira em que a substância viva
do valor não é restaurada em condições normais (isto é, nas condições sociais
dadas), ocorrendo o rebaixamento de seu valor (LUCE, 2018, p. 135).

Para entender esse conceito de forma mais concreta, Luce elenca e explica as formas

com que a superexploração da força de trabalho se manifesta (LUCE, 2018, p. 177-196).

Destaco, entre elas, o aumento da intensidade de trabalho, o prolongamento da jornada de

trabalho e o pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor. Essas formas viabilizam uma

espécie de compensação, para a burguesia nacional, da apropriação externa na lógica do

desenvolvimento desigual e combinado:

“o capitalismo brasileiro só poderia desenvolver-se extraindo uma quantidade


suficientemente elevada de mais-valor, de forma a garantir não só a reprodução do
capital internamente, mas também a remuneração do capitalismo central, em uma
espécie de compensação por suas desvantagens relativas” (MATTOS, 2017, p. 28).

Pensar o aspecto dependente do Brasil considerando a dinâmica do capitalismo global

superando a caracterização dos “atrasos” na sociedade brasileira como “sobrevivências” –

como fez Florestan ao tratar da desigualdade racial em A Integração do Negro – e

compreendê-las como elemento da consolidação de interesses de frações burguesas nacionais

e internacionais, se apresenta como uma chave de entendimento muito importante para

compreender o modo de produção capitalista no Brasil.

Voltando à obra de Florestan, essa chave de compreensão se sofisticou com as

formulações amadurecidas nos textos de Significado do Protesto Negro, publicado em 1989,

em que associa organicamente as questões raciais e de classe – aqui em uma abordagem não

apenas teórica, mas abertamente política.10 Nessa obra, que reúne publicações de momentos

diversos da vida do autor, vale destacar suas elaborações mais recentes, como em “Luta de

raças e classes”, de 1988. Nesse artigo, Florestan trata raça e classe como “duas polaridades,
10
O autor chega a classificar essa obra como um “panfleto de estímulo à consciência crítica e à pugna política
libertária” (FERNANDES, 2017, p. 27).
35
que não se contrapõem mas se interpenetram como elementos explosivos”, isto é, de potencial

revolucionário (FERNANDES, 2017, p. 84-85):

“Classe e raça se fortalecem reciprocamente e combinam forças centrífugas à ordem


existente, que só podem se recompor em uma unidade mais complexa, uma
sociedade nova, por exemplo. Aí está o busílis da questão no plano político
revolucionário. Se além da classe existem elementos diferenciais revolucionários,
que são essenciais para a negação e a transformação da ordem vigente, há distintas
radicalidades que precisam ser compreendidas (e utilizadas na prática
revolucionária) como uma unidade, uma síntese no diverso” (FERNANDES, 2017,
p. 85)

Essa argumentação é a base para sua intervenção do intelectual junto ao Partido dos

Trabalhadores (PT), ao qual era vinculado, quanto à necessidade de compreender a classe

trabalhadora brasileira como multirracial. Isso implicava compreender as especificidades das

demandas da população negra, que não deveriam ser subsumidas nas reivindicações mais

amplas da classe, mas também em perceber a história de luta da população negra desde a luta

pela libertação dos grilhões da escravidão, contra a exclusão que lhe foi imposta do pós-

abolição até o centenário da “abolição”, cujo significado oficial confronta em seu texto, em

consonância com o movimento negro à época. Chama atenção, ainda, o uso da expressão

“unidade no diverso” ou “síntese no diverso”, que dialoga diretamente com a concepção de

classe da Teoria da Reprodução Social (TRS), questão que desenvolverei à frente.11

As reflexões que permeiam toda obra de Florestan, assim, articulam relações de classe

e raciais no capitalismo, aumentando o escopo de análise para além do cenário nacional ao

compreender como as dinâmicas do capital mundial entram nessa equação. Nesse sentido,

ajudam a compreender como capitalismo, racismo e colonialismo/imperialismo se integram e

produzem as condições em que se deram e se dão as relações sociais na sociedade brasileira.

11
Nessa passagem, Florestan parece dialogar com uma importante colocação de Marx na Introdução à
Contribuição para a Crítica da Economia Política, em que afirma que “o concreto é concreto porque é a síntese
de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso” (MARX, 1859, s.p.).
36
As dinâmicas de gênero nas relações sócio-históricas brasileiras ficaram à margem da

análise de Florestan, salvo menções muito pontuais à situação das mulheres negras, por

exemplo (FERNANDES, 2017). O esforço de compreensão do papel estruturante do sexo e

do gênero no capitalismo ficou a cargo de Heleieth Saffioti, sua orientanda e uma das maiores

referências dos estudos sobre gênero e mulheres no Brasil. Como ocorreu com Florestan, a

ambição de Saffioti de entender a interação entre gênero e capitalismo no Brasil construiu a

obra de uma vida inteira, havendo, portanto, significativas transformações em suas

abordagens e conceituações. Longe de nos propormos a delinear esse complexo e denso

caminho intelectual, me debruçarei aqui sobre alguns aspectos que nos parecem

particularmente promissores para uma proposta de síntese analítica.

O livro A Mulher na sociedade de classes, publicado em 1969 como tese de livre

docência, é considerado como o primeiro grande avanço teórico do novo feminismo pós-

Beauvoir (CONNEL; PEARSE, 2015). Profundamente marcado por um referencial teórico

marxista, foi escrito em um momento de grande limitação do acesso a essa bibliografia no

Brasil, enfrentando também significativa ausência de obras que se dedicassem à inserção das

mulheres no capitalismo. Esses limites não impediram a concretização de uma obra de grande

fôlego, cujo objetivo era explicar como e por que "o fator sexo opera nas sociedades de classe

de modo a alijar da estrutura ocupacional grandes contingentes do sexo feminino"

(SAFFIOTI, 2013, p. 39). As dificuldades de acesso à bibliografia resultaram em definições

um tanto engessadas da categoria de modo de produção (GONÇALVES, 2013, p. 13-15),

fundamental para a presente reflexão. Essas definições foram sofisticadas pela autora no

artigo "A mulher no modo de produção capitalista", de 1976, ao qual também nos referiremos

a seguir.

Dialogando com a obra de Florestan Fernandes, Saffioti intervém no debate sobre a

(não) integração de determinados contingentes populacionais na sociedade capitalista no

37
Brasil através das seguintes posições: 1) O preconceito contra esses contingentes

populacionais não é estranho, mas sim parte integrante da dinâmica do capitalismo; 2) O

advento do capitalismo não integrou as mulheres à ordem competitiva e seu desenvolvimento

não resultará ulteriormente nessa integração.12 Sobre isso, a autora explica que

“Ilusoriamente, tem-se acreditado que o desenvolvimento das forças produtivas


elimina a utilização dos fatores naturais como justificativa da marginalização de
enormes contingentes humanos quer do sistema de produção, quer da estrutura de
poder da sociedade. [...] Em vez, pois, de se constatar uma associação negativa entre
o desenvolvimento das forças produtivas e a utilização de critérios irracionais para a
legitimação da ordem social vigente, verifica-se que a associação entre os dois
fenômenos mencionados é altamente positiva, embora sutil. [...] Assim, na defesa de
valores real ou supostamente mais altos, como o equilíbrio das relações familiais, o
bom andamento dos serviços domésticos, a preservação dos métodos tradicionais de
socialização dos imaturos, o respeito ao princípio moral da distância entre os sexos,
faz-se a mais completa e racional utilização de critérios irracionais, tais como a
debilidade física, a instabilidade emocional e a pequena inteligência femininas, a fim
de imprimir ao trabalho da mulher o caráter subsidiário e torná-la elemento
constitutivo por excelência do enorme contingente humano diretamente
marginalizado das forças produtivas” (SAFFIOTI, 2013, p. 329-330).

Podemos destrinchar, a partir desse trecho, algumas questões fundamentais. Primeiro,

a autora percebe que a contradição aparente entre o desenvolvimento do capitalismo e formas

“irracionais” de estratificação social baseadas em características “naturais”, como raça e sexo,

na verdade constitui uma simbiose positiva para o capitalismo. Como essa operação acontece?

Segundo Saffioti, a estratificação social no capitalismo é "altamente limitativa das

potencialidades humanas", fato que demanda uma constante renovação na crença de que a

origem dessas limitações se localiza não no sistema, mas nos "caracteres naturais de certo

contingente populacional" (SAFFIOTI, 2013, p. 59). Essa crença resulta no entendimento de

que a liberdade formal dos sujeitos no capitalismo só não se efetiva na realidade em virtude

das "desvantagens maiores ou menores com que cada um joga no processo de luta pela

existência" (SAFFIOTI, 2013, p. 59). Assim,

12
Na obra de 1969, a análise de Saffioti revela um alijamento das mulheres do setor produtivo no capitalismo,
isto é, uma não integração. Pesquisas posteriores indicam um crescimento na participação feminina no setor
produtivo, mas a autora percebe que tal integração se dá de maneira desigual e principalmente em atividades
precarizadas (mercado informal, setor terciário, etc.) (SAFFIOTI, 1985).
38
"Do ponto de vista da aparência, portanto, não é a estrutura das classes que limita a
atualização das potencialidades humanas, mas, ao contrário, a ausência de
potencialidades de determinadas categorias sociais que dificulta e mesmo impede a
realização plena da ordem competitiva" (SAFFIOTI, 2013, p. 59)

Conforme a citação de Marx retirada de O Capital por Saffioti para servir de epígrafe

em seu artigo, "toda a ciência seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente

com sua essência" (MARX apud SAFFIOTI, 1976, p. 1). O capitalismo veicula a aparência de

que os caracteres "naturais" são os limitadores das capacidades humanas, quando na verdade

são as próprias relações capitalistas os responsáveis por essas limitações. É preciso então ir à

essência, buscar nas relações de produção a explicação da "seleção de caracteres raciais e de

sexo para operarem como marcas sociais que permitem hierarquizar [...] os membros de uma

sociedade historicamente dada" (SAFFIOTI, 2013, p. 60).

Cabe, portanto, atentar para uma segunda questão: o lugar das mulheres e do trabalho

feminino no modo de produção capitalista. No artigo de 1976, Saffioti define o modo de

produção capitalista como a

"combinação histórica específica que resulta da autonomização relativa do processo


econômico, inaugurando formas inéditas de relações de produção nas quais se
acham incorporadas e redefinidas as antigas formas de relações de produção"
(SAFFIOTI, 1976, p. 2).

Sua concepção dialoga com o debate a que me referi anteriormente, presente na obra

de Florestan Fernandes, sobre a forma como relações sociais de modos de produção anteriores

se expressariam no capitalismo (para Florestan em A Integração do Negro, como

"sobrevivências"). A autora esclarece que não há coexistência de modos de produção

diferentes, mas uma redefinição de antigas relações sociais que se incorporam ao modo de

produção capitalista para servir à sua reprodução. Mais que isso, a sobrevivência do

capitalismo depende da preservação dessas relações "pré-capitalistas" redefinidas, na medida


39
em que não são diretamente produtivos mas influenciam a mais-valia obtida de outras formas.

O trabalho doméstico, para Saffioti, é um desses "bolsões pré-capitalistas" que mantém

relação simbiótica com o modo de produção capitalista, pois

"caracteriza-se pela produção de valores de uso diretamente consumidos pela


família, não podendo afirmar-se que esteja organizado em moldes capitalistas [...].
Embora o fruto de seu trabalho não circule no mercado capitalista, a dona de casa
desempenha função importantíssima na preservação do sistema capitalista, na
medida em que os serviços que presta incidem diretamente na produção e na
reprodução da força de trabalho, mercadoria imprescindível à reprodução do capital"
(SAFFIOTI, 1976, p. 3-4).

Saffioti traz, assim, a fundamental dimensão da reprodução da força de trabalho,

especialmente importante para a presente discussão. Nesta tese, quando tratar do modo de

produção capitalista e suas relações sociais típicas, me remeto tanto às relações de produção

como às de reprodução. Reprodução social, na literatura marxista, pode referir-se a dois

sentidos distintos: à “reprodução de um sistema inteiro de relações sociais” e ao "domínio

mais específico da renovação e da manutenção da vida e das instituições e o trabalho

necessário aí envolvido" (BRENNER; LASLETT apud ARRUZZA, 2017, p. 40). A

integração desse segundo sentido à análise da totalidade capitalista tem sido defendida por

feministas marxistas há décadas, movimento que resultou no feminismo da reprodução social

ou Teoria da Reprodução Social, que destrincharemos mais à frente neste capítulo. É

importante frisar que trabalho reprodutivo não é sinônimo de trabalho doméstico, sendo mais

amplo que este último. Ainda assim, é relevante que grande parte desse trabalho social recaia

sobre as mulheres, sendo frequentemente subsumido no âmbito do privado pela instituição

social da família nuclear no capitalismo.13

13
Dados do IPEA entre 2001 e 2015 indicam que mulheres trabalham 18 horas a mais que os homens nos
chamados "afazeres domésticos". A proporção de mulheres que realizam esse trabalho ficou acima de 91%,
enquanto entre os homens, variou entre 45% e 55%. (Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34450&Itemid=9>. Acesso
em 28 mai. 2019). Gráficos comparativos interessantes baseados no censo de 2017 do IBGE podem ser
40
A conceituação de modo de produção da autora, ao menos até o texto de 1976, faz uso

da metáfora da base/superestrutura para compreender de que maneira o capitalismo alija as

mulheres e lucra com suas atividades. Para ela, as capacidades femininas são subvalorizadas

no "plano superestrutural" e, no plano "estrutural", há uma inserção periférica das mulheres

no sistema produtivo. Em outras palavras, para lucrar com o trabalho doméstico feminino,

forma "arcaica" de trabalho redefinida no seio do capitalismo, a "ideologia do patriarcalismo"

(SAFFIOTI, 1976, p. 9) engendra preconceitos que impõem limites "naturais" à integração

das mulheres no sistema, enquanto simultaneamente são impostas limitações à sua

participação nas atividades produtivas, por exemplo, na indústria. Assim, há uma separação

analítica entre a superestrutura ideológica (preconceito) e a estrutura econômica (relações de

produção). Os preconceitos, então, "nutrem-se da seiva" oferecida pela estrutura "e

proliferam, contraem-se e diferenciam-se segundo as conveniências da base econômica da

sociedade" (SAFFIOTI, 1976, p. 8). Essa separação analítica não impede a autora de formular

uma concepção integral da "elaboração social do fator sexo", que, como defende, "não pode

ser tomada simplesmente enquanto variável ideológica sem eficácia na produção, mas, ao

contrário, como um fenômeno cujas raízes se incrustam no núcleo econômico do modo de

produção capitalista e, neste sentido, como parte constitutiva deste" (SAFFIOTI, 1976, p.9).

Essa separação entre base econômica e superestrutura ideológica será matizada nas

formulações posteriores de Saffioti, à medida que se aproxima das discussões do feminismo

em meados dos anos 1980. Um conceito chave para a superação dessa concepção estanque é o

de “dominação-exploração”. Na obra de divulgação intitulada O Poder do Macho (1987),

Saffioti veicula de maneira bastante didática uma série de noções que se tornarão básicos para

sua obra a partir de então. Ela passa a adotar o conceito de "patriarcado", muito presente no

debate feminista da época, definindo-o como um "sistema de relações sociais que garante a

encontrados em: <https://www.nexojornal.com.br/grafico/2018/04/30/As-horas-de-trabalho-dom%C3%A9stico-


de-homens-e-mulheres-do-Brasil>. Acesso em 28 mai. 2019.
41
subordinação da mulher ao homem" (SAFFIOTI, 1987, p. 26). A autora explica, na obra de

1987, que "o patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia

machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração (SAFFIOTI, 1987, p. 50).

Há aqui as bases para o conceito de dominação-exploração, cunhado em debate com

feministas francesas que caracterizavam o patriarcado como um "sistema sociopolítico",

localizado apenas no âmbito da dominação (COMBES; HAICAULT apud SAFFIOTI, 1985,

p. 104). "Dominação-exploração" busca superar, por um lado, a noção de que a base

econômica do patriarcado se expressa apenas no âmbito produtivo (discriminação salarial,

segregação ocupacional, etc.), mas também no controle da sexualidade e da capacidade

reprodutiva das mulheres (SAFFIOTTI, 2015, p. 113). Por outro lado, procura superar uma

concepção tripartite de sociedade, que separe político, econômico e social. Assim, “a

dominação-exploração constitui um único fenômeno, apresentando duas faces” (SAFFIOTTI,

2015, p. 113).

Outra importante mudança de perspectiva se dá quanto à abordagem da interação entre

sexo, raça e classe social. Em A Mulher na sociedade de classes, as duas primeiras são tidas

como "categorias subalternas" que "operam segundo as necessidades e conveniências do

sistema produtivo de bens e serviços" (SAFFIOTI, 2013, p. 60). Já a partir de O Poder do

Macho, Saffioti passa a tratar a questão sob outro ponto de vista. Ela afirma que os "três

esquemas básicos de dominação atuantes na sociedade brasileira" – "patriarcado",

"preconceito racial" e "classes sociais" – não podem ser tomados isoladamente exceto para

fins analíticos, pois operam juntos na realidade. Assim, não podem hierarquizados na análise

sociológica ou na luta política (SAFFIOTI, 1987, p. 59).

Buscando evidenciar essa unidade das relações sociais, a autora cunha o conceito de

"patriarcado-racismo-capitalismo", sobre o qual podemos encontrar formulações teóricas mais

acabadas no livro Gênero patriarcado violência, publicado em 2004. Com esse conceito, a

42
autora pretende afirmar que o capitalismo não deve ser adjetivado como "patriarcal" ou

"racista", mas que as relações patriarcais, raciais e capitalistas se entrelaçam, conformando a

realidade social. A esse entrelaçamento Saffioti denomina "nó", outra categoria fundamental

de seu corpus teórico.

Antes de nos determos em tais conceitos, vale comentar que a autora passa também a

usar o conceito de gênero, juntamente ao de patriarcado. Enquanto esse último foi

significativo de sua aproximação com o movimento feminista a partir dos anos 1980,

"gênero" é adotado por Saffioti com algumas ressalvas, mais tardia e progressivamente. De

fato, a história do feminismo na academia é marcada por um embate entre aquelas que

acreditam que o gênero é útil como categoria história, analítica e relacional, e outras que

percebem nele um apagamento das categorias "mulher" e "feminismo" em um termo menos

ameaçador para o status quo e, por isso, menos combativo.14 Ao combinar o uso de gênero e

patriarcado, Saffioti parece considerar ambos os aspectos, argumentando que o primeiro “não

explicita, necessariamente, desigualdades entre homens e mulheres. Muitas vezes a hierarquia

é apenas presumida” (SAFFIOTI, 2015, p. 15). Defende, por isso, que não se abandone o

patriarcado, por ser “o único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher” e

“singulariza a forma de direito político que todos os homens exercem por serem homens”

(PATEMAN apud SAFFIOTI, 2015, p. 58). Ela não se furta, ainda assim, de usufruir das

potencialidades do conceito de gênero. Em artigo de 2001, chega a estabelecer diálogo com

Judith Butler, autora ligada a teorias pós-estruturalistas e queer. Afastando-se de uma

concepção binária que o predominante uso da categoria "sexo" até então poderia indicar,

Saffioti traz os conceitos de "inteligibilidade cultural de gênero" e de "performance de

gênero" de Butler para argumentar que há, na realidade, "múltiplas matrizes de gênero: uma

dominante e as demais competindo por hegemonia" (SAFFIOTI, 2001, p. 124). Nessa leitura,

14
Conferir discussão de Cisne (2014) sobre as críticas do feminismo materialista ao conceito de gênero.
43
ao performarem o gênero, os sujeitos transitariam entre essas matrizes, comportando-se

segundo várias delas - sejam dominantes ou alternativas (sendo estas últimas as que

perturbam a hegemonia de gênero).

Como vimos, para Saffioti, nem o gênero nem o patriarcado operam isoladamente.

Segundo ela,

“o gênero, a raça/etnicidade e as classes sociais constituem eixos estruturantes da


sociedade. Essas contradições, tomadas isoladamente, apresentam características
distintas daquela que se pode detectar no nó que formaram ao longo da história”
(SAFFIOTI, 2015, p. 83).

O nó, portanto, não representa a soma desses eixos, mas "uma condensação, uma

exacerbação, uma potenciação de contradições”, que nele “atuam, de forma imbricada”

(SAFFIOTI, 2015, p. 83). É interessante a observação pela autora de que a imagem do nó não

indica uma relação rígida, mas frouxa, entre os “eixos estruturantes da sociedade”, deixando

espaço para certo grau de mobilidade entre eles. Em síntese:

“as classes sociais são, desde sua gênese, um fenômeno gendrado. Por sua vez, uma
série de transformações no gênero são introduzidas pela emergência da classe. Para
amarrar melhor essa questão, precisa-se juntar o racismo. O nó formado por estas
três contradições apresenta uma qualidade distinta das determinações que o
integram. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a
realidade compósita e nova que resulta desta fusão” (SAFFIOTI, 2015, p. 122).

Para a autora, sendo o patriarcado um sistema de dominação anterior ao capitalismo, o

primeiro se molda para coexistir e potencializar o processo de dominação-exploração presente

no segundo. Essa relação é alterada conforme o contexto social e os processos de

desenvolvimento e crise por qual passa o capitalismo desde sua gênese. Portanto, “não há de

um lado dominação patriarcal e, de outro, a exploração capitalista, não existe um processo de

dominação separado de outro de exploração”, mas de dominação-exploração, como vimos

(SAFFIOTI, 2015, p. 138). O conceito de nó está diretamente ligado ao de "patriarcado-

44
racismo-capitalismo" (por vezes, a autora refere-se apenas a "patriarcado-capitalismo"),

ambos sublinhando a unidade desses sistemas de relações sociais na realidade:

“É impossível isolar a responsabilidade de cada um dos sistemas de dominação-


exploração fundidos no patriarcado-racismo-capitalismo pelas discriminações
diariamente praticadas contra as mulheres. De outra parte, convém notar que a
referida simbiose não é harmônica, não é pacífica. Ao contrário, trata-se de uma
unidade contraditória” (SAFFIOTTI, 1987, p. 62).

Os dois últimos trechos citados revelam, a meu ver, uma tensão latente nas

formulações de Saffioti. Por um lado, a autora busca sempre apontar para o caráter indiviso da

"unidade contraditória" que configura a realidade social, argumentando para o fato que ela é

algo novo, além da soma dos "eixos estruturantes da sociedade" e dos "sistemas de dominação

exploração". Por outro, a metáfora de um entrelaçamento, de um nó "frouxo" cujos fios têm

certa autonomia não deixa de indicar algum nível de partição. Afinal, a realidade resultante do

nó é "compósita" e um entrelaçamento pressupõe partes que se entrelaçam. Sua própria opção

por hifenizar patriarcado-racismo-capitalismo e dominação-exploração é um exemplo formal

de uma tentativa de superar uma perspectiva aditiva das relações sociais, mas ainda

assombrada pelo fantasma do "atomismo ontológico”, para usar a expressão de David

McNally. Segundo o autor, análises que propõem o entrelaçamento de sistemas de opressão

acabam recaindo na "ideia de que há relações de opressão independentemente constituídas

que, em algumas circunstâncias se cruzam” (MCNALLY, 2017, p. 110, tradução minha).

Essa observação não pretende diminuir de modo algum o refinamento teórico e

analítico da obra de Heleieth Saffioti, cujo esforço fez avançar nossa compreensão sobre a

natureza simbiótica das relações entre raça, gênero e classe social, particularmente na

realidade brasileira. É bastante significativo, nesse sentido, que a autora utilize a expressão

“unidade contraditória” para se referir à realidade social. Seu marxismo de não permite o

45
abandono de uma perspectiva dialética, que olha para as contradições sem perder de vista sua

síntese:

“Há uma estrutura de poder que unifica as três ordens – de gênero, de raça/etnia e
de classe social –, embora as análises tendam a separá-las. Aliás, o prejuízo
científico e político não advém da separação para fins analíticos, mas sim da
ausência do caminho reverso: a síntese. [...] o patriarcado [...] penetrou em todas as
esferas da vida social [...]. De outra parte, o capitalismo também mercantilizou todas
as relações sociais, nelas incluídas as chamadas específicas de gênero [...]. Da
mesma forma, a raça/etnia [...] imprimiu sua marca no corpo social por inteiro. A
análise das relações de gênero não pode, assim, prescindir, de um lado, das análises
das demais, e, de outro, da recomposição da realidade de acordo com a posição que,
nesta nova realidade, ocupam as três contradições sociais básicas.” (SAFFIOTI,
2015, p. 134).

Sem dúvida, o nó de Heleieth Saffioti representa uma contribuição fundamental para a

análise das relações de classe, raça e gênero na sociedade brasileira. Contudo, a ideia de que

tais relações não podem ser analisadas separadamente por encontrarem-se imbricadas na

realidade não surge originalmente no pensamento brasileiro a partir da autora. Na verdade,

foram intelectuais negras as pioneiras nesse tipo de argumentação. O campo do pensamento

social brasileiro, a despeito das renovações temáticas e de abordagens nas últimas décadas

(SCHWARCZ, 2011), foi tradicionalmente um pensamento de homens brancos que, ao

debruçarem-se sobre a formação da sociedade brasileira e as dinâmicas sociais nela

envolvidas, foram nomeados "intérpretes do Brasil". Sem questionar a relevância desses

autores "clássicos", o cânone do pensamento social deixou de fora a intelectualidade negra

brasileira, ainda que eventualmente alguns deles "furem o cerco" (BARRETO, 2018, p. 15).

Dentre os que não ultrapassaram as barreiras do cânone está Lélia Gonzalez, historiadora,

geógrafa e filósofa negra, cuja obra tem sido considerada como uma "contribuição teórica

original para o desenvolvimento do feminismo negro brasileiro", mas cujo significado pode ir

além (BARRETO, 2018, p. 15). Raquel Barreto, estudiosa da obra de Gonzalez, afirma que a

autora deve ser considerada também como "uma intérprete negra do Brasil", na medida em

que se dedicou à compreensão da formação da sociedade brasileira e suas dinâmicas de


46
funcionamento, "em um esforço sistemático para analisar e interpretar o Brasil numa

perspectiva negra" (BARRETO, 2018, p. 16). Concordo com Barreto quanto à justeza e à

importância política de considerar Lélia no escopo do pensamento social brasileiro. A título

de organização, trataremos de sua obra juntamente às formulações de outras intelectuais

negras amefricanas, para usar o conceito da autora, focando-nos por fim em algumas de suas

contribuições originais.15

2. O pensamento feminista negro e a ideia de articulação

2.1 Articulação no feminismo amefricano

A ideia de que é fundamental pensar as relações de desigualdade social sob mais que

um único prisma (apenas de gênero ou apenas racial, por exemplo) tem se tornado cada vez

mais estabelecida, não apenas entre os meios intelectuais, mas também nos meios políticos

progressistas em geral. Essa ideia tem ganhado terreno dentro e a partir de discussões

feministas, trazendo politicamente para o centro do debate a necessidade de pensar

"mulheres" no plural, considerando os múltiplos atravessamentos que, articulados ao gênero,

produzem subjetividades negras, transgêneras, trabalhadoras, etc. A essa ideia, na política e na

academia, se tem chamado "interseccionalidade" ou "feminismo interseccional".

O conceito de interseccionalidade foi cunhado pela jurista norte-americana Kimberlé

Crenshaw (1989, 1993) na virada dos anos 1980 para os 1990, mas o entendimento de que

gênero, classe, raça e sexualidade devem ser entendidos de maneira articulada remonta aos

15
A categoria de “amefricanidade” se refere à experiência de afrodescendentes nas “América como um todo
(austral, central, insular e setentrional)”, designando, para além do caráter geográfico, “todo um processo
histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodação, reinterpretação, criação de novas formas)
referenciada em modelos africanos e que remete à construção de toda uma identidade étnica” (GONZALEZ,
2018f, p. 336).
47
movimentos de mulheres negras e mulheres de cor16 norte-americanas da década de 1970.17 O

coletivo de mulheres negras Combahee River Colective, em manifesto datado de 1977, já

afirmava um compromisso de "lutar contra a opressão racial, sexual, heterossexual e

classista", tendo como tarefa "o desenvolvimento de uma análise e uma prática integradas,

baseadas no fato de que os maiores sistemas de opressão se encadeiam", configurando uma

"síntese dessas opressões [que] criam as condições de nossas vidas." (LA COLECTIVA DEL

RIO COMBAHEE, 1988, p. 172, tradução minha).18

O feminismo negro teve, portanto, papel primordial no engendramento do que viria a

ser sistematizado no conceito de interseccionalidade. Nos anos 1980, obras de autoras negras

fundamentais, como Sister outsider, de Audre Lorde, e Feminist Theory: from margin to

center, de bell hooks19, associavam críticas ao que se convencionou chamar de "feminismo

branco" a proposições em torno da necessidade de uma teoria feminista que correspondesse à

complexa realidade das experiências vividas por mulheres negras, trabalhadoras, lésbicas etc.

(HOOKS, 1984; LORDE, 2007). Em Feminist Theory, hooks denunciou o caráter branco,

burguês e liberal que minava o potencial transformador do feminismo, já que o movimento se

concentrava predominantemente nas experiências de mulheres brancas privilegiadas, ora

consideradas como universais a todas as mulheres, ora como prioritárias (HOOKS, 1984).

Com isso em vista, a autora apontou para a "necessidade de desenvolver ideias e análises que

16
A expressão "mulheres de cor" aqui é uma tradução de "women of color", usada no contexto norte-americano
em referência não apenas a mulheres negras, mas também latinas ou de algum pertencimento étnico não-branco.
Há, no mesmo sentido, a expressão "people of color" em referência a populações racializadas de alguma forma.
17
O chamado feminismo materialista francês também tem sido considerado como uma matriz teórica pioneira
quanto à abordagem da articulação. Essa vertente, contudo, em seus primórdios, buscou articular relações de
sexo e classe social, vindo a considerar sistematicamente as relações étnico-raciais posteriormente. Assim,
considero ainda o feminismo negro norte-americano como precursor da ideia, cujo marco pode ser localizado no
manifesto do Combahee River Colective.
18
Um importante trabalho realizado sobre o Combahee River Collective, contendo entrevistas com suas
integrantes originais, é o de Keeanga-Yamahtta Taylor (2017). Segundo a autora, “o manifesto do Combahee
River Collective se destaca dentre muitos manifestos, declarações e outras declarações públicas do período por
sua clareza, rigor e alcance político. É um documento importante, não apenas como uma declaração do
feminismo negro radical, mas também em sua contribuição para a esquerda revolucionária nos Estados Unidos”
(TAYLOR, 2017, p. 10)
19
“bell hooks” é o pseudônimo da feminista negra norte-americana Gloria Jean Watkins, que o adota grafado em
letras minúsculas – grafia que adoto também aqui.
48
englobem um maior número de experiências, que sirvam para unificar em vez de polarizar"

(HOOKS, 1984, p. x, tradução minha). Reivindicação similar foi feita por Audre Lorde que,

em afirmação didática e sintética, concluiu que “não há algo como uma luta envolvendo uma

só questão porque nós não vivemos vidas de uma só questão” (LORDE, 2007, p. 139,

tradução minha).

Na virada dos anos 1980 para os 1990, Kimberlé Crenshaw sistematizou algumas

dessas questões no conceito de interseccionalidade, definido por ela como uma analogia,

segundo a qual

"vários eixos de poder [...] constituem avenidas que estruturam terrenos sociais,
econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas do desempoderamento de
movem. [...] Tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando
intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As
mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o
racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão
sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias"
(CRENSHAW, 2002, p. 177).

Autoras ligadas a diferentes campos do feminismo afirmam que a interseccionalidade

se tornou um hit concept ou um conceito mainstream, principalmente nos meios acadêmicos

norte-americano e europeu, atingindo franco sucesso a partir dos anos 2000 (PISCITELLI,

2008; CARBIN; EDENHEIM, 2013; HIRATA, 2014; KERNER, 2016). No Brasil, o termo

vem crescendo cada vez mais, ocupando prateleiras em livrarias (AKOTIRENE, 2018;

ABREU; HIRATA; LOMBARDI, 2016) e figurando em cursos de pós-graduação e eventos

acadêmicos.

Esse sucesso, contudo, se deu à custa de um afastamento entre o conceito e seu sentido

original (e radical), ligado ao feminismo negro norte-americano. É o que apontam Sara Carbin

e Maria Edenheim, pesquisadoras nórdicas de matriz teórica pós-estruturalista. Carbin e

Edenheim, ao analisar o crescimento da interseccionalidade no contexto da pesquisa feminista

europeia e norte-americana, trazem uma análise que consideramos bastante instigante. Elas

49
argumentam que a "vitória" do termo tem relação com seu caráter "aberto", o que resultou na

falta de discussões ontológicas importantes e permitiu que fosse adotado como uma espécie

de linguagem universal que permitiria um consenso entre feministas de orientações políticas e

teóricas conflitantes (CARBIN; EDENHEIM, 2013). Para as autoras, "a interseccionalidade

[...] não preenche os requerimentos de uma teoria e consequentemente 'todo mundo' sente que

ela se adéqua ao 'seu modo de pesquisar'" (CARBIN; EDENHEIM, 2013, p.13, tradução

minha).

Ina Kerner (2016) também identifica uma mudança de caráter na interseccionalidade à

medida que foi ganhando espaço nos meios acadêmicos, deslocando-se das margens dos

estudos feministas para seu centro. Segundo ela, o termo tem cada vez mais transcendido a

orientação dada por sua origem, ligada às mulheres negras e "de cor", e se expandido como

mecanismo de interpretação de questões variadas (para pensar abstratamente relações entre

categorias de desigualdade, por exemplo) (KERNER, 2016). Kerner afirma que

"A metáfora da interseccionalidade pode facilmente ser destacada da crítica social


radical do feminismo negro e de mulheres de cor, de onde precisamente a ideia de
interseccionalidade surgiu. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao menos em alguns
casos, foi a metáfora e não a ideia que viajou com tanto sucesso das margens do
feminismo para o centro dos estudos de gênero e das ciências sociais em geral"
(KERNER, 2016, p. 15, tradução minha).

Diante do enevoamento de conflitos teóricos e políticos sob a metáfora da

interseccionalidade e o esvaziamento da crítica política original do conceito, é premente voltar

a atenção à proposta original de Kimberlé Crenshaw. A autora utiliza pela primeira vez o

conceito no artigo "Demarginalizing the intersection of race and sex" (CRENSHAW, 1989),

no qual explicita impasses jurídicos em que mulheres negras norte-americanas se encontraram

como resultado de uma abordagem aditiva dos preconceitos racial e de gênero. O

emblemático caso DeGraffernreid v. General Motors, esse grupo social se viu privado da

garantia de seus direitos na medida em que o judiciário considerou que uma situação
50
trabalhista que contemplou homens negros e mulheres brancas teria, consequentemente,

contemplado a questão racial e de gênero, negligenciando a especificidade jurídica das

mulheres negras. Contratar mulheres e contratar negros não significou a contratação de

mulheres negras, mas a perspectiva aditiva do judiciário norte-americano naquele momento

não garantia os direitos de um grupo social atingido pela interseção de racismo e sexismo.

Diante desse quadro, Crenshaw advoga por uma perspectiva interseccional (CRENSHAW,

1989). A gênese da interseccionalidade, como se pode ver, se dá a partir de uma demanda

jurídica bastante prática: a exclusão de dado grupo social de direitos que deveriam estar

garantidos a ele.

Me concentrarei a seguir nos artigos "Mapping the margins: intersectionality, identity

politics, and violence against women of color" (CRENSHAW, 1993), em que Crenshaw

aprofunda suas considerações, abordando as diferentes formas de violência contra mulheres

de cor, e "Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial

relativos ao gênero" (CRENSHAW, 2002), o primeiro texto da autora traduzido no Brasil e

que, por isso, vem informando muitas pesquisadoras e pesquisadores interessados em

trabalhar com interseccionalidade no país.

Em "Mapping the margins", Crenshaw afirma que seu objetivo é "explorar as

dimensões de raça e gênero da violência contra mulheres de cor" (CRENSHAW, 1993,

p.1242, tradução minha). Nesse texto, ela retoma e aprofunda alguns aspectos de seu trabalho

anterior (CRENSHAW, 1989), em que refletiu sobre a influência da interseccionalidade nas

configurações do mercado de trabalho, considerando as experiências de mulheres negras e de

cor. Já o "Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial

Relativos ao Gênero" (CRENSHAW, 2002) se volta para a intervenção em políticas de

direitos humanos. Nesse texto, Crenshaw estabelece uma crítica ao universalismo que

caracteriza a proteção dos direitos humanos das mulheres via Declaração Universal dos

51
Direitos Humanos, argumentando que ele "fundamentava-se firmemente nas experiências dos

homens" e que, por isso, não dava conta das experiências específicas e das violências sofridas

por mulheres, escamoteadas como abusos "periféricos" (CRENSHAW, 2002 p.171-172). Ela

assinala que um processo similar ocorre em torno da questão racial, já que a discriminação

que não se enquadra em um modelo-padrão pode ser "tratada como 'excessivamente diferente'

das experiências formais do tipo apartheid para que possa constituir abuso de direitos

humanos" (CRENSHAW, 2002, p.172). Para alterar esse cenário, a autora propõe "um

modelo provisório para a identificação das várias formas de subordinação que refletem os

efeitos interativos das discriminações de raça e de gênero", além de sugerir "um protocolo

provisório a ser seguido, a fim de melhor identificar as situações em que tal discriminação

interativa possa ter ocorrido" (CRENSHAW, 2002, p.171, grifos meus).

No texto de 1993, Crenshaw afirma que a interseccionalidade deve constituir "uma

metodologia que irá, em última instância, interromper as tendências a ver raça e gênero como

exclusivos ou separáveis", ressaltando também aqui seu caráter "provisório" (CRENSHAW,

1993, p.244, tradução minha, grifos meus). Ela divide a "metodologia" em três aspectos:

"interseccionalidade estrutural", isto é, "as formas com que a localização das mulheres de cor

na interseção de raça e gênero"; "interseccionalidade política", relativa à "política feminista e

antirracista", ou seja, a esses movimentos sociais e suas ações e; "interseccionalidade

representativa", referente à "construção cultural das mulheres de cor" (CRENSHAW, 1993,

p.1245, tradução minha).

A interseccionalidade estrutural, com sua ênfase na "localização", pode ser relacionada

com a definição de interseccionalidade que aparece no "Documento...", citada anteriormente,

que descreve a metáfora do cruzamento de diversas "avenidas" – os "eixos de poder". Ela

chega a usar o termo "topologias" para se referir à localização de mulheres no

entrecruzamento interseccional (CRENSHAW, 2002, p.177).

52
Nesse mesmo texto, Crenshaw elabora uma definição que resume bem sua proposta:

"A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras" (CRENSHAW, 2002, p.177).

Essa definição é precedida por um subtítulo que a apresenta como uma "conceituação

metafórica". "Conceituação metafórica", "modelo provisório", "protocolo provisório",

"metodologia" etc.: a variedade de expressões associadas à interseccionalidade, bem como seu

reafirmado aspecto provisório, pode ser relacionada ao caráter aberto que Carbin e Edenheim

identificaram como tendo sido, por um lado, fonte de sucesso do conceito e, por outro, motivo

de confusões teóricas e apropriações indevidas. O fato de o conceito englobar categorias que

suscitam debates teóricos extensos e profundos, tais como raça, classe social, gênero e

sexualidade, pode ter dado origem a um salto de compreensão que transforma a própria

interseccionalidade em teoria – coisa que Crenshaw, ao menos segundo os textos analisados,

não parece ter tido como pretensão.

Um ponto relevante é o fato de Crenshaw priorizar, dentre outras, as interseções entre

raça e gênero. Em "Mapping the margins", ela procura demonstrar como as mulheres de cor

não têm sido representadas pelo feminismo nem pelo antirracismo, sendo marginalizadas em

ambos, e afirma que "as experiências das mulheres [que sofrem violência doméstica] são

frequentemente o produto de padrões intersectados de racismo e sexismo" (CRENSHAW,

1993, p. 1243, tradução minha). Uma nota de rodapé traz uma breve ressalva em relação à sua

priorização. Nela, a autora explica que "o conceito pode e deve ser expandido ao trazer para a

equação questões como classe, orientação sexual, idade e cor" (CRENSHAW, 1993, p.1244-

1245, tradução minha).

53
Essa priorização de raça e gênero, em detrimento de classe e sexualidade, por

exemplo, tem sido apontada por críticos da interseccionalidade como um de seus grandes

problemas (HIRATA, 2014; FERGUSON, 2017). No artigo de 1993, a questão de classe é

mencionada em termos de "opressão de classe" – e não exploração – quando Crenshaw se

refere a mulheres "pobres", "desempregadas" e "subempregadas" (CRENSHAW, 1993,

p.1245-46, tradução minha), ponto que não chega a desenvolver além da menção.20 Vale

observar que o termo "pobres", usado para qualificar mulheres, revela uma abordagem

quantitativa da classe – pobre sendo aquela que não possui dinheiro e acesso ao consumo –

em vez de uma concepção qualitativa, ligada à concepção de luta de classes.21

A abordagem parcial ou periférica da classe social nos trabalhos que adotam a

interseccionalidade como pressuposto é um elemento da crítica que tem sido feita por autoras

ligadas ao feminismo materialista francófono (HIRATA, 2014) e ao marxismo. Helena Hirata

sistematiza alguma dessas críticas, em especial as feitas pela feminista materialista francesa

Danièle Kergoat:

"1) a multiplicidade de pontos de entrada (casta, religião, etnia, nação etc., e não
apenas raça, gênero e classe) leva a um perigo de fragmentação das práticas sociais e
à dissolução da violência das relações sociais, com o risco de contribuir à sua
reprodução; 2) não é certo que todos esses pontos remetem a relações sociais e
talvez não seja o caso de colocá-los todos num mesmo plano; 3) os teóricos da
interseccionalidade continuam a raciocinar em termos de categorias e não de
relações sociais, privilegiando uma ou outra categoria, como por exemplo a nação, a
classe, a religião, o sexo, a casta etc., sem historicizá-las e por vezes não levando em
conta as dimensões materiais da dominação.” (HIRATA, 2014, p.65)

Nesse mesmo sentido, Heleieth Saffioti defendia que "nem todos os fenômenos são da

mesma natureza ou têm a mesma capacidade de determinação" (SAFFIOTI, 2001, p. 133).

20
A palavra classe ("class") aparece também no início do texto, quando Crenshaw afirma que questões como a
violência doméstica afetam as "mulheres enquanto classe" ("women as a class") (CRENSHAW, 1993, p.1241,
tradução minha). Acredito que aqui a autora não utilize a palavra para se referir à classe social no sentido a que
temos nos referido, mas provavelmente como grupo social de certo tipo.
21
Para uma discussão crítica da divisão de classes baseada no acesso ao consumo e no poder de compra, ver
POCHMANN, 2012 e LUCE, 2013.
54
Para melhor compreender tais questões, pode-se considerar a crítica que muitas autoras e

autores marxistas têm feito à noção de "identidade", frequentemente ligada a concepções

teóricas pós-modernas e pós-estruturalistas que rejeitam qualquer ideia de totalidade e a

existência de determinações sociais historicamente específicas (WOOD; FOSTER, 1999).

Kenan Malik, em artigo sobre raça e pós-modernismo, reconhece a importância da percepção

de que os seres humanos estão sujeitos a reivindicações e identidades conflitantes, mas

argumenta que

"O problema surge, contudo, quando todas as identidades são tratadas como
equivalentes, de modo tal que preferências pessoais em estilo de vida, como os
'estilos musicais', recebem o mesmo peso e importância que atributos físicos, tais
como 'deficiência física' ou alguns produtos sociais como raça e classe [...]. Na
verdade, para começar, já há um problema quando se concebe raça ou classe como
uma 'identidade'. Relações sociais, tal como opressão racial, não se transformam
absolutamente em relações sociais, mas em atributos pessoais ou mesmo em opções
de estilo de vida. Quando raça é considerada equivalente a 'estilos musicais' ou a
códigos de vestuário', aparentemente o 'social' não significa nada mais que uma
decisão particular que qualquer indivíduo pode tomar, e a 'sociedade' é reduzida ao
agregado de identidades individuais" (MALIK, 1999, p.127).

Essa afiada crítica à ideia de identidade ressalta o perigo de compreender como

individual um tipo de relação que é social, histórico e efetivamente material. O que Malik e

Kergoat apontam é o caráter problemático de compreender que há tantas identidades quanto

há possibilidades de estilos de vida disponíveis para escolha de cada indivíduo. Não é isso que

está em jogo quando se pensa sistemas estruturantes das relações sociais. Embora a crítica de

Kergoat se volte especificamente para a interseccionalidade, não acredito que essa posição

seja inerente ao conceito, mesmo porque a própria Kimberlé Crenshaw assinalou como parte

de sua proposta o "processo de reconhecer como social e sistêmico o que foi anteriormente

percebido como isolado e individual" (CRENSHAW, 1993, p.1241-42, tradução minha).

Crenshaw utiliza a noção de identidade constantemente em seus escritos, adotando

uma pluralidade terminológica para se referir a gênero, raça, classe etc., como "categorias

identitárias" (CRENSHAW, 1993, p.1242, tradução minha), "padrões de subordinação"

55
(CRENSHAW, 1993, p.1249, tradução minha), "múltiplas dimensões da identidade"

(CRENSHAW, 1993, p.1299, tradução minha), "eixos de poder", "eixos de subordinação"

(CRENSHAW, 2002, p.177), entre outros. Ela se refere a "grupos identitários" e "políticas

identitárias" (CRENSHAW, 1993, p.1299, tradução minha), mas também fala em "sistemas

de subordinação" e "estrutura" (CRENSHAW, 2002, p.176), termos que ressaltam mais o

aspecto social e histórico das questões abordadas. O fato de a interseccionalidade, segundo

sua proposta original, não constituir uma teoria não significa que não carregue consigo

categorias que têm, por si só, carga teórica (gênero, classe, raça, etc.). Seria fundamental,

então, explicitar a partir de que matriz teórica se abordam tais categorias, já que mencioná-las

sem identificar esse aspecto fundamental tem gerado a falsa percepção da interseccionalidade

como linguagem comum, quando na verdade há perspectivas diferentes e, com frequência,

conflitantes em jogo.

O conceito de interseccionalidade é abordado nesta tese não apenas como parte de um

debate teórico-metodológico, mas é ele mesmo objeto de investigação, sendo ele mesmo

expressão e instrumento das lutas travadas por intelectuais negras dentro e fora dos meios

acadêmicos. A importância que o termo atingiu nos debates feministas no Brasil também faz

dele um conceito a ser considerado, ainda que a partir de uma abordagem crítica, dada através

de um diálogo com as demais abordagens que discutimos no presente capítulo. Além disso,

creio que a chave para um possível uso crítico do termo parece estar na retomada da origem

radical e antissistêmica da noção de articulação do feminismo negro, presente na declaração

pioneira do Combahee River Collective, citada como epígrafe deste capítulo:

"Reconhecemos que a libertação de todas as pessoas oprimidas requer a destruição


dos sistemas político-econômicos do capitalismo e do imperialismo, tanto como a do
patriarcado. Somos socialistas porque cremos que o trabalho deve ser organizado
para o benefício coletivo daqueles que o realizam e criam os produtos, e não para o
proveito dos patrões. Os recursos materiais têm de ser distribuídos igualmente entre
todos que os produzem. Não estamos convencidas, entretanto, que uma revolução
socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista nos garantirá
56
nossa libertação. [...] Precisamos verbalizar a situação real de classe de pessoas que
não são simplesmente trabalhadoras sem raça, sem sexo, mas para quem as
opressões raciais são significantes determinantes em suas vidas de
trabalho/econômicas. Ainda que compartilhemos um acordo essencial com a teoria
de Marx no que se refere às relações econômicas específicas que ele analisou,
sabemos que sua análise precisa se estender mais para que nós compreendamos
nossa situação econômica específica como negras" (LA COLECTIVA DEL RIO
COMBAHEE, 1988, p. 176, tradução minha).

A perda da dimensão da luta de classes no uso do conceito de classe social,

transformado em mera descrição de quantidade de riqueza possuída e de acesso ao consumo,

faz o jogo do liberalismo, matriz ideológica diametralmente oposta a um entendimento crítico

da interseccionalidade. bell hooks explicou como "a ideologia do 'individualismo competitivo,

atomista e liberal" chegou a permear o feminismo ao ponto de quase minar o radicalismo

potencial da luta feminista (HOOKS, 1984, p. 7, tradução minha). Ela explica que

"Mulheres que não se opunham ao patriarcado, ao capitalismo, ao classismo ou ao


racismo se intitularam 'feministas'. [...] Queriam igualdade social em relação aos
homens de sua classe; outras queriam pagamento igual para trabalhos iguais; outras
queriam um estilo de vida alternativo. Muitas dessas preocupações legítimas foram
facilmente cooptadas pelo patriarcado capitalista dominante" (HOOKS, 1984, p.7,
tradução minha).

hooks assinala, assim, que "a ordem burguesa, o capitalismo e o falocentrismo estão

prontos para integrar quantas feministas forem necessárias" (FOUQUE apud HOOKS, 1984,

p. 7, tradução minha). Nesse sentido, pode-se considerar que a análise interseccional que

considera racismo e sexismo, mas que não desenvolve uma crítica do capitalismo, não

representa uma ameaça real aos sistemas integrados que produzem desigualdade, já que as

demandas individuais podem ser tragadas por ele sem custos significativos, mas as lutas

coletivas exigem sua desestruturação.

A compreensão quanto à articulação dessas categorias se torna particularmente

importante na análise as realidades latino-americanas e caribenhas, dado o papel fundamental

do sexismo, da desigualdade de classes, do colonialismo e do racismo nesses contextos. É

57
nesse sentido que Ochy Curiel, teórica feminista negra dominicana, argumenta que pensar

raça, sexo, classe e sexualidade articuladamente

"nos dá ferramentas para entender por exemplo como a mestiçagem como ideologia
nacionalista e homogeneizante teve como base fundamental a violação das mulheres
indígenas e negras por parte dos colonizadores, a partir de uma lógica heterossexual
que faz com que os homens se apropriem do corpo das mulheres, sobretudo aquelas
cujos corpos são valorizados ou como mercadoria, ou como meros objetos referidos
à natureza" (CURIEL, 2008, p. 20, tradução minha).

Curiel faz um esforço particular para compreender a questão da sexualidade nessa

dinâmica. Em La Nación Heterosexual, a autora analisa a Constituição Colombiana de 1991

como um contrato que "expressa o regime da heterossexualidade na nação" (CURIEL, 2013,

p. 29, tradução minha), ou seja, um "contrato heterossexual" (CURIEL, 2013, p. 42, tradução

minha). De acordo com Curiel, a heterossexualidade "não se trata de uma prática social dentro

de uma diversidade [de práticas]", mas de "uma instituição e um regime político que atravessa

as relações sociais, afetando fundamentalmente às mulheres e às lésbicas" (CURIEL, 2013, p.

28, tradução minha). Apesar de não partilhar da maior parte das orientações teóricas da

autora, concordamos com a importância de levar em conta o peso da sexualidade - em

particular, da heterossexualidade compulsória - nas relações sociais que formaram

historicamente nações na América Latina e no Caribe que passaram pela experiência do

colonialismo.22 Ao analisar o quadro histórico da colonização, ela retoma o papel central da

mestiçagem na definição das identidades nacionais na América Latina e no Caribe, discussão

já travada anteriormente para o caso brasileiro. Curiel cita a autora hondurenha Breny

Mendoza, que introduz a heterossexualidade na análise da mestiçagem como dispositivo de

poder na conformação da sociedade hondurenha. Para Mendoza, "o conceito de mestiçagem

22
Curiel apresenta uma gama de influências teóricas, mas sua aproximação particular com o feminismo
materialista francófono é nosso principal ponto de discordância. Esse campo de pensamento, ainda que englobe
perspectivas variadas e não unissonantes, faz uma transposição de conceitos marxistas para um conformar um
corpus teórico, em nossa visão, não marxista – como é o caso dos conceitos de “classes de sexo” e “relações
sociais de sexo” (cf. MACHADO, 2017 e ARRUZZA, 2010, p. 102-105).
58
foi construído como uma categoria heterossexual, pois implicou o produto híbrido da relação

entre o espanhol e a mulher indígena, através da apropriação de seus corpos, de sua

sexualidade e de sua força de trabalho" (BRENY apud CURIEL, 2013, p. 146, tradução

minha). Essa relação pode, sem dúvida, ser pensada para o caso brasileiro, principalmente os

seguintes aspectos abordados por Mendoza: "a vinculação entre conquista, racismo e

sexualidade, a partir da qual se explica a invasão dos corpos das mulheres, fundamentalmente

através de atos de violação sexual" pelos colonizadores e seus descendentes; "o caráter

heterossexual e o fator reprodutivo que regulam o regime de família patriarcal" (BRENY

apud CURIEL, 2013, p. 145-146, tradução minha).

A filósofa Sueli Carneiro argumenta sobre a necessidade urgente de “enegrecer o

feminismo” diante do apagamento das demandas políticas e da experiência histórica das

mulheres negras no “discurso clássico sobre a opressão da mulher” (CARNEIRO, 2011, s.p.).

Ela observa o processo descrito por Curiel, acentuando o lugar da violência sexual como

verdade ocultada pelo mito da democracia racial decorrente da miscigenação na América

Latina e, em especial, no Brasil:

“a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e


indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções de
nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial
latino-americana, que no Brasil chegou às últimas conseqüências. Essa violência
sexual colonial é, também, o ‘cimento’ de todas as hierarquias de gênero e de raça
presentes em nossas sociedades, configurando aquilo que Angela Gilliam define
como ‘a grande teoria do esperma em nossa formação nacional’, através da qual,
segundo Giliam: ‘O papel da mulher negra é negado na formação da cultura
nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; e a violência sexual
contra as mulheres negras foi convertida em romance” (CARNEIRO, 2011, s.p.).

No caso do Brasil, "o estupro colonial da mulher negra pelo homem branco no passado

e a miscigenação daí decorrente” não apenas constituíram base para o mito da democracia

racial, mas também para o “mito da cordialidade” brasileira, desdobrando-se em uma

expressão do racismo que tem na negação uma de suas armas mais poderosas (CARNEIRO,

59
1995, p. 546). Uma pesquisa realizada no Brasil em 1988, citada por Lília Schwarcz em Nem

preto, nem branco, muito pelo contrário (SCHWARCZ, 2013), indicou que 97% dos

entrevistados disseram não serem racistas e 98% afirmaram conhecer quem fosse racista. O

paradoxo representado pelos dados tornou-se exemplo da negação e do silenciamento desse

cruel racismo “à brasileira”.

Uma das principais intelectuais a formular uma análise sobre essas relações no caso

brasileiro foi Lélia Gonzalez, sobre cuja obra me debruçarei a seguir.

2.2 O pensamento de Lélia Gonzalez

Nos textos produzidos por Lélia na década de 1970 e no início dos anos 1980, a autora

demonstra uma significativa influência marxista, ainda que estabelecendo com essa matriz de

pensamento um diálogo bastante crítico. Segundo Raquel Barreto, nesse momento ela “estava

mais interessada em analisar e compreender a formação do capitalismo brasileiro com recorte

racial” (BARRETO, 2018, p. 16). No decorrer dos anos 1980, as categorias marxistas de

análise vão dando lugar a um diálogo com a psicanálise, com o feminismo e, principalmente,

a uma perspectiva ligada ao afrocentrismo (BARRETO, 2018, p. 16).23

É possível relacionar o marxismo presente na obra de Lélia com a perspectiva política

original do Movimento Negro Unificado (MNU), do qual Lélia participou desde seus

primórdios. O movimento demonstrava a forte afinidade com uma perspectiva socialista de

combate às diferentes formas de desigualdade social, defendendo a importância de uma

23
Segundo Bussotti e Nhaueleque, o afrocentrismo é uma corrente filosófica que “pretende edificar um novo
paradigma alternativo ao eurocêntrico dominante”, propondo que a África não apenas é o “berço da
humanidade”, mas o “berço da civilização” a partir do Egito Antigo, tendo primazia nos “diferentes aspetos do
saber: filosofia, ciência, religião, política, arte, comunicação” (BUSSOTTI; NHAUELEQUE, 2018, p. 1). Paulo
Farias ressalta, contudo, que não é “uma doutrina monolítica, mas um rótulo que cobre um leque de posturas e
propostas” (FARIAS, 2003, p. 317), um conjunto de ideias que possui uma longa genealogia e que “inclui
tradições que reconciliam, de maneira aparentemente paradoxal, assimilação à chamada cultura ocidental com
separação em relação a esta” (FARIAS, 2003, p. 318).
60
solidariedade entre os grupos sociais oprimidos. Nos textos escritos nos anos seguintes à

fundação do MNU (1978), Lélia dedicou-se principalmente à caracterização do capitalismo

brasileiro e a centralidade do racismo (primordialmente) e do sexismo em sua formação e sua

dinâmica contemporânea. A autora faz referência e se posiciona quanto a temas na ordem do

dia do pensamento social brasileiro àquela altura, como os debates sobre desenvolvimento e

dependência e as peculiaridades da formação econômica brasileira, introduzindo também

novas questões e perspectivas pioneiras de análise.

Examinando a produção intelectual sobre relações raciais no Brasil até o momento em

que escrevia, Lélia identificou três tendências dominantes no âmbito da sociologia acadêmica.

A primeira tendência seria aquela que trata a integração do negro como algo que viria a

acontecer em decorrência da industrialização e da modernização do país. Essa perspectiva

analisaria o processo abolicionista sob uma ótica que vê no despreparo dos negros a

justificativa para não terem assumido o papel de trabalhadores livres: “cultura da pobreza,

anomia social, família desestruturada, explicariam as desigualdades raciais vigentes”

(GONZALEZ, 2018e [1979], p. 62). Citando autores como Florestan Fernandes e Otávio

Ianni como pertencentes a tal tendência, Lélia critica o fato de ela “deslocar para o negro as

razões de sua mobilidade social”, desconsiderar “o fato de que a grande maioria da população

de cor (90%) já se encontra livre e economicamente ativa antes de 1888” e, finalmente, liberar

“o segmento branco e suas instituições, em face da menor responsabilidade quanto à situação

atual do negro” (GONZALEZ, 2018e [1979], p. 62).

A segunda tendência identificada por ela se localiza no que chama de “marxismo

ortodoxo”, cuja abordagem economicista diluiria a categoria “raça” ao argumentar que “a

discriminação não passa de um instrumento manipulado pelo capitalista que visa [...] dividir o

operariado. A solução seria a aliança entre trabalhadores de diferentes raças” (GONZALEZ,

2018e [1979], p. 62). Na crítica a essa tendência, a autora lembra a situação extrema da

61
relação entre o operariado na África do Sul do apartheid, além de sublinhar a peculiaridade da

realidade brasileira, em que “a maioria da população, praticamente, não alcançou a situação

de força de trabalho relacionada ao capitalismo industrial competitivo” (GONZALEZ, 2018e

[1979], p. 62).

A terceira abordagem identificada por Lélia “é aquela que [a]firma serem os grupos

racialmente subordinados, minorias que internalizam o processo de colonização”

(GONZALEZ, 2018e [1979], p. 63). O grande exemplo disso, segundo ela, é Oliveira Viana,

mulato, pertencente a um “grupo racialmente dominado que internacionalizou e reproduziu a

linguagem do grupo dominante”, tendo sido “grande ideólogo do branqueamento da

população brasileira” (GONZALEZ, 2018e [1979], p. 63).

Sua perspectiva particular diferencia-se dessas três tendências, mas, segundo ela, leva

em consideração as duas últimas em sua formulação. Sua análise do capitalismo brasileiro

dialoga diretamente com os fervilhantes debates, à época, sobre dependência e

desenvolvimento – presentes, como visto anteriormente, nas obras de Florestan Fernandes e

Heleieth Saffioti. Lélia se baseia largamente nas formulações do intelectual argentino José

Nun e sua tese da “massa marginal” para argumentar quanto à existência, no Brasil, de um

capitalismo desigual e dependente, cuja dinâmica externa de dependência “neocolonial”

resultaria em uma dinâmica interna de coexistência entre diferentes processos de acumulação:

o capitalismo competitivo (comercial e industrial) e o capitalismo monopolista – este último,

hegemônico. Essa coexistência teria consequencia direta nas relações de trabalho, ponto

crucial para a autora, como será exposto adiante. Para melhor compreender essa densa análise,

vale nos determos brevemente nas considerações de Jose Nun sobre o desenvolvimento do

capitalismo na América Latina.24

24
Embora traga uma breve explicação sobre as formulações de Nun, importantes para a obra de Lélia Gonzalez,
acredito que a perspectiva desenvolvida pela teoria marxista da dependência dê conta da questão da dependência
com mais sucesso que à ligada à noção de “massa marginal”, visto que a primeira não trabalha com a noção de
62
De acordo com esse autor, muitos intelectuais tratam dois conceitos de Marx,

“superpopulação relativa” e “exército industrial de reserva”, como se fossem sinônimos, “não

reconhecendo a importante diferença entre a gênese de uma superpopulação e os efeitos que

ela tem no sistema em que ascende” (NUN, 2000, p. 8, tradução minha). Baseando-se nos

Grundrisse de Marx, ele assinala que a superpopulação é relativa ao nível de desenvolvimento

da sociedade e que, portanto, “em diferentes modos de produção social há diferentes leis de

crescimento da população e da superpopulação” (MARX apud NUN, 2000, p. 9, tradução

minha).

É a partir desse raciocínio que o autor diferencia capitalismo competitivo e capitalismo

monopolista, considerando que a categoria de exército industrial de reserva é insuficiente

explicar a superpopulação em sua totalidade no segundo caso, em especial para analisar o

capitalismo monopolista dependente que caracterizava a América Latina contemporânea

(SOUZA, 2005, p. 115).

Na perspectiva de Nun, o capitalismo competitivo apresenta “períodos de animação

média, produção a todo vapor, crise e estagnação”, “além do lançamento do capital em novas

áreas”. Nesse contexto, a superpopulação possui “a função de disponibilizar mão de obra para

cada momento da produção” (FILHO; OLIVEIRA, 2012, p. 2), configurando “uma ‘reserva’

pronta para responder a qualquer aumento na demanda de força de trabalho” (DELFINO,

2012, p. 24, tradução minha). Esse exército industrial de reserva, portanto, é sempre funcional

na medida em que alavanca a acumulação capitalista (SOUZA, 2005, p. 115).

Para o contexto do capitalismo monopolista, Nun propõe a categoria de massa

marginal, adotada por Lélia em diversos textos produzidos na virada dos anos 1970 para os

1980. No capitalismo monopolista, o desenvolvimento dos meios de produção é constante, e

não cíclico, e a mão de obra se qualifica e se especializa mais, sendo menor a possibilidade de

“marginalidade” trazida à baile pela última, mas percebe de que forma o trabalho superexplorado se integra ao à
dinâmica capitalista global.
63
transferência de trabalhadores entre diferentes ramos. Há, portanto, uma “massa marginal”

que “não estabelece relações funcionais com o sistema integrado das grandes empresas

monopolistas, dado o volume dessa superpopulação, as condições gerais da economia e a

forma como essas empresas tendem a combinar os fatores produtivos” (NUN apud

DELFINO, 2012, p. 24, tradução minha). Por isso, a massa marginal “baseia-se na

afuncionalidade ou na disfuncionalidade com relação ao mercado de trabalho” (SOUZA,

2005, p. 115). O conceito de massa marginal, dessa forma, indica

“um baixo grau de ‘integração do sistema’, devido a um desenvolvimento capitalista


desigual e dependente que, ao combinar diversos processos de acumulação em um
contexto de estagnação crônica, gera uma superpopulação relativa não funcional em
relação às formas produtivas hegemônicas. Essa população excedente é, no melhor
dos casos, irrelevante para o setor hegemônico da economia e, no pior dos casos,
pode se converter em um perigo para sua estabilidade. A categoria introduzida por
Nun implica, assim, uma referência dupla para o sistema que, por um lado, gera esse
excedente e, por outro, não precisa dele para seguir funcionando” (DELFINA, 2012,
p. 25, tradução minha).

Configuram “massa marginal” desempregados, trabalhadores não-assalariados,

trabalhadores que não possuem situação estável de assalariamento (p.e. prestadores de

serviços domésticos), trabalhadores ocasionais, trabalhadores em atividades terciárias de

baixa renda, etc. (FILHO; OLIVEIRA, 2012, p. 3; DELFINA, 2012, p. 25, tradução minha).

O cientista político brasileiro Lúcio Kowarick acrescenta ainda trabalhadores autônomos de

comércio de mercadorias (ambulantes) e prestadores de serviços (FILHO; OLIVEIRA, 2012,

p. 3).

Em relação ao Brasil em particular, Lélia afirma que aqui coexistem

“três processos qualitativamente distintos de acumulação: capital comercial, capital


industrial competitivo e capital industrial monopolista. Cabe ao capital monopolista
a hegemonia sobre os demais, dadas as articulações entre os três setores (formas pré-
capitalistas de mão de obra, capitalismo competitivo e capitalismo monopolista com
seus respectivos mercados de trabalho). [...] Tal tipo de coexistência, por um lado,
demonstra que esse desenvolvimento desigual e dependente mescla e integra
momentos históricos diversos” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 42)

64
Em termos de impactos desses processos no mercado de trabalho, Lélia caracteriza da

seguinte forma os processos de acumulação:

a) Capitalismo monopolista:

“alta taxa de rendimentos; predeterminação, a médio prazo, dos custos; menor


incidência relativa da mão de obra sobre os custos, etc. implicam, em termos de
força de trabalho, na integração estável do trabalhador na empresa salários maiores,
cumprimento das leis sociais, capacidade de negociação com organizações
trabalhistas, etc.” (GONZALEZ, 2018e [1980], p. 56).

b) Capitalismo competitivo:

“(satelitizado pelo anterior ou com seu campo de atuação reduzido) – demanda


instável; margem de lucro pequena ou flutuante; créditos restringidos; baixa
produtividade grande contingente de mão de obra implica numa tendência para
redução dos salários a baixos níveis, no não cumprimento das leis sociais, na
neutralização da ação sindical” (GONZALEZ, 2018e [1980], p. 56).

A coexistência de dois mercados de trabalho, referentes aos tipos de capitalismo

descritos, resulta em “altíssima dispersão de salários” (GONZALEZ, 2018e [1980], p. 56). O

impacto dessa configuração nas relações de trabalho no que concerne à população negra – e

particularmente, às mulheres negras – é questão crucial na argumental de Lélia. Segundo ela,

“o gênero e a etnicidade são manipulados de tal modo que, no caso brasileiro, os mais baixos

níveis de participação na força de trabalho, “coincidentemente”, pertencem exatamente às

mulheres e à população negra” (GONZALEZ, 2018e [1980], p. 57).

A autora recupera a história da escravidão e da abolição para demonstrar a forma com

que a população negra ocupou o lugar de “massa marginal”. Ela argumenta que o processo de

formação da figura do trabalhador livre típico do capitalismo no Brasil passou por “fatores

deformadores”, já que vínculos característicos de formas pré-capitalistas de mão de obra ainda

se mantinham em grande parte no setor rural. Essas formas de trabalho articulam-se “(em

65
graus de maior ou menor complexidade) com o setor hegemônico da economia e de maneira

proveitosa para este último” (GONZALEZ, 2018e [1980], p. 55). Dessa forma, Lélia se

posiciona frontalmente contra a tese de que a discriminação racial consiste em uma

sobrevivência de formações sociais anteriores, que viria a desaparecer progressivamente com

o desenvolvimento do capitalismo. Ao contrário, ela procura demonstrar, ao trazer para a tese

de Nun o impacto das relações raciais e de gênero, como esses fatores integram o capitalismo

e o beneficiam. Dando um passo além, podemos relacionar as considerações de Lélia com o

conceito de “superexploração” proposto por Ruy Mauro Marini, reforçando o argumento de

que a aparente “marginalização” da força de trabalho de setores sociais racializados e

“genderizados” constitui parte integrante da dinâmica capitalista, na medida em que

compensa a tendência à queda na margem de lucro ao remunerar abaixo do custo social de sua

reprodução o trabalho de tais setores, rebaixando, por consequência, o conjunto da massa

salarial.

Trazendo em particular o racismo para o centro do debate, Lélia Gonzalez defende a

existência de uma “divisão racial do trabalho” no Brasil. Com isso, ela pretende destacar a

forma como a discriminação racial atravessa as diferentes classes sociais, fazendo com que o

racismo beneficie não apenas a burguesia branca (a que ela se refere no trecho a seguir como

“capitalismo branco”), mas também os trabalhadores brancos:

“O privilégio racial é uma característica marcante da sociedade brasileira, uma vez


que o grupo branco é o grande beneficiário da exploração, especialmente da
população negra. E não estamos nos referindo apenas ao capitalismo branco, mas
também aos brancos sem propriedade dos meios de produção que recebem os
dividendos do racismo. Quando se trata de competir para o preenchimento de
posições que implicam em recompensas materiais ou simbólicas, mesmo que os
negros possuam a mesma capacitação, os resultados são sempre mais favoráveis aos
competidores brancos. (GONZALEZ, 2018b [1979], p. 78)

A questão colocada por Lélia é extremamente relevante e guarda relação direta com o

debate que buscamos estabelecer aqui quanto às formas com que o capitalismo se beneficia,
66
na expressão de Lélia, mas também depende da discriminação racial – e, por isso, reproduz o

racismo. Ao apontar para o fato de que os trabalhadores brancos recebem os “dividendos do

racismo”, Lélia sublinha a questão abordada por Florestan Fernandes e por Abigail Bakan: a

competição por recursos e posições escassos no capitalismo com a qual a classe trabalhadora

se defronta.25 Esses “dividendos”, que podem ser considerados benefícios em sentido

imediato, em termos sistêmicos consistem em um reforço da alienação entre os sujeitos da

classe trabalhadora, atuando na reprodução do sistema como um todo – e, assim, na

reprodução das condições de exploração da classe trabalhadora. É nesse sentido que a autora

afirma que

“O racismo [...] denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma
divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações capitalistas e
multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema
como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos
mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de
estratificação social” (GONZALEZ, 2018d [1979], p. 98)

Se a reprodução sistêmica reforça os grilhões da classe trabalhadora como conjunto

amplo, as condições objetivas impostas pelo racismo agravam em particular as vidas dos

sujeitos negros. Lélia chama atenção para o lugar de tais sujeitos, em especial o das mulheres

negras, no mercado de trabalho brasileiro, a despeito de se deparar com a “intenção [dos

órgãos de pesquisa] de escamotear as informações a respeito da chamada população de ‘cor’

de nosso país” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 43).26 A população negra se encontrava

principalmente no “desemprego aberto ou não, ocupação ‘refúgio’ em serviços puros, trabalho

ocasional, ocupação intermitente ou por temporada” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 44) –

25
O uso da expressão “dividendos do racismo” dialoga com a formulação do célebre intelectual negro
estadunidense W.E.B. Du Bois de que a branquitude conferia aos trabalhadores brancos compensação pelas
relações de classe de alienação e exploração. Du Bois fala em um “tipo de remuneração [wage] pública e
psicológica”, ideia que David Roediger vem a desenvolver em seu livro The Wages of Whiteness (DU BOIS
apud ROEDIGER, 2007, p. xx).
26
O censo dos anos 1970 excluiu o quesito “cor” e o de 1980 o incluiu como amostra, invisibilizando o fator
racial nas informações demográficas do período (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 43). Não por acaso, o período
apontado pela autora é o do regime militar, que negava oficialmente a existência de racismo no Brasil e
perseguia qualquer tipo de prática ou discurso que indicasse o contrário (KÖSSLING, 2007).
67
justamente as atividades ocupadas pela “massa marginal”, de Nun. Um dos argumentos

centrais de Lélia no período é justamente a caracterização da maioria da população negra

como massa marginal, como consequência do desenvolvimento, no Brasil, de um capitalismo

desigual e combinado/dependente (ela usa ambas as expressões), com hegemonia do capital

monopolista.

As mulheres negras, nessa massa marginal, figuravam em atividades específicas como

consequência das relações de gênero, além das de raça: atuavam “na prestação de serviços

domésticos junto às famílias das classes média e alta” e “na prestação de serviços de baixa

remuneração (‘refúgios’) nos supermercados, nas escolas ou nos hospitais, sob a denominação

genérica de “servente” (que se atente para as significações que tal significante nos remete)”

(GONZALEZ, 2018c [1981], p. 44-45). Embora Lélia tenha escrito em 1981, essa

configuração mostra-se atual em uma observação a olho nu das realidades brasileiras em

zonas urbanas.

Um ponto interessante é a atenção que Lélia dá a uma ocupação específica: a

“profissão” (gravada por ela entre aspas) de “mulata”, em seus textos referindo-se a mulheres

negras passistas que trabalhavam em eventos relacionados a samba e carnaval. Nessa

atividade, segundo a autora, jovens negras “submetem-se à exposição de seus corpos (com o

mínimo de roupas possíveis), através do ‘rebolado’, para o deleite e voyeurismo dos turistas e

dos representantes da burguesia nacional” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 46). Ela considera

que essa profissão só pode ser exercida “num processo extremo de alienação imposto pelo

sistema” às jovens negras, no qual

“sem se aperceberem, elas são manipuladas, não só como objetos sexuais, mas como
provas concretas da ‘democracia racial’ brasileira; afinal, são tão bonitas e
admiradas! Não se apercebem que constituem uma nova interpretação do velho
ditado racista: “preta pra cozinhar/ mulata pra fornicar/ e branca pra casar”. Em
outros termos, são sutilmente cooptadas pelo sistema sem se aperceberem do alto
preço a pagar: o da própria dignidade” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 45-46)

68
Essa leitura tira o foco da agência27 das mulheres negras que atuam na profissão de

“mulatas”, na medida em que utiliza a concepção de alienação como “manipulação”. Ela

chega a se referir a um processo de “lavagem cerebral”, argumentando que esse tipo de

trabalho aparece como meio de ascensão social individual, como saída da pobreza, mas que

na verdade levaria a maioria “à prostituição aberta, à bebida e outras drogas” (GONZALEZ,

2018c [1981], p. 46).

Sua interpretação quanto à mulata pode ser relacionada com sua concepção de racismo

como “construção ideológica cujas práticas se concretizam nos diferentes processos de

discriminação racial” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 41). Ideologia, aqui, é categoria de

Althusser, significando

“uma representação do real, mas necessariamente falseada, porque é


necessariamente orientada e tendenciosa – e é tendenciosa porque seu objetivo não é
dar aos homens o conhecimento objetivo do sistema social em que vivem, mas, ao
contrário, oferecer-lhes uma representação mistificada deste sistema social, para
mantê-los em seu “lugar”, no sistema de exploração de classe” (ALTHUSSER apud
GONZALEZ, 2018c [1981], p. 41)

Entender o racismo como ideologia no sentido althusseriano pode ser o que levou

Lélia a usar noções de “manipulação” e “lavagem cerebral” para se referir a sujeitos negros

que, de alguma forma, fizeram o jogo do racismo, em sua visão. Essa perspectiva acaba por

recair na “reificação da agência” denunciada por E. P. Thompson em referência à obra de

Althusser (THOMPSON, 1981). Quando Lélia afirma que à profissão da mulata como um

“processo extremo de alienação”, ela se refere muito mais à imposição de uma falsa

consciência – a ideologia althusseriana – do que efetivamente de uma dinâmica de alienação

no sentido que encontramos em Marx. Na verdade, consideramos que o conceito de alienação

27
Agência aqui se apresenta no sentido marxista, em particular conforme usado por E. P. Thompson: traduzido
do inglês “agency”, o termo é “associado à noção de que os homens [e mulheres] são sujeitos de sua própria
história, embora em condições que não escolhem” (MATTOS, 2012, p. 27).
69
para caracterizar o racismo é mais proveitoso, concordando com a explicação de Marcelo

Badaró Mattos baseada nas formulações de Thompson:

“Outra forma de encarar os limites impostos à consciência social pela determinação


do ser social, ou outra forma de compreensão da prevalência do modo de produção e
das relações sociais nele engendradas no entendimento dos limites da subjetividade
humana, aparece no conceito marxiano de alienação. É na própria materialidade das
relações de trabalho (e de exploração) que os homens perdem o controle sobre o que
produzem e sobre porque produzem. E enquanto não recuperarem esse controle, não
poderão atribuir sentido pelo ao trabalho – que media suas relações com a natureza e
os outros homens – e, portanto, a vida” (MATTOS, 2012, p. 131-132)

Essa discussão será aprofundada no item seguinte desse capítulo, que reunirá nosso

esforço de síntese para a análise do capitalismo como totalidade contraditória no Brasil.

Além de ter como base a discussão de José Nun para compreender a relação entre

capitalismo e racismo no Brasil, Lélia traz também uma proposição de Carlos Hasenbalg,

baseada em Nikos Poulantzas, para compreender de que forma raça e classe se relacionariam

em termos de estratificação social.28 A autora explica que a base dessa proposição é a

“distinção estabelecida por Poulantzas entre os dois aspectos da reprodução ampliada das

classes sociais”: primeiro, a reprodução dos lugares das classes (o aspecto principal) e,

segundo, a reprodução dos atores e sua distribuição entre esses lugares (o aspecto

subordinado) (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 41). Para Hasenbalg, a raça se relacionaria com

o segundo aspecto, domínio da “formação-qualificação-submissão” dos sujeitos

(HASENBALG apud GONZALEZ, 2018c [1981], p. 42). Assumir essa proposição

28
Embora não caiba neste espaço um aprofundamento a discussão sobre sua obra por conta das especificidades
dos objetivos desta tese, não se pode deixar de ressaltar a importância da contribuição de Carlos Hasenbalg para
os estudos sobre relações raciais no Brasil. Segundo Angela Figueiredo, Hasenbalg foi pioneiro ao “demonstrar,
já na década de 1970, a existência das desigualdades raciais na configuração do mercado de trabalho e de seus
desdobramentos em períodos posteriores, através de pesquisas sobre as desigualdades no acesso à educação e
nos desníveis de renda entre negros e brancos”. Sua contribuição foi fundamental, entre outros motivos, “por
operar um deslocamento na ênfase dos estudos de relações raciais para os estudos sobre as desigualdades raciais
no Brasil” (FIGUEIREDO, 2015, p. 13). O autor não apenas foi base para algumas das formulações de Lélia
Gonzalez, mas a parceria dos dois chegou a materializar-se no importante livro Lugar de Negro, publicado em
1982.
70
“implica em que as minorias raciais não estão excluídas da estrutura de classes das
sociedades multirraciais onde as relações de produção capitalistas [...] são as
dominantes. Mais ainda, o racismo [...] é um dos principais determinantes da
posição dos negros e não-brancos dentro das relações de produção e distribuição”
(HASENBALG apud GONZALEZ, 2018c [1981], p. 42)

O racismo e o sexismo se transformam, assim, em “parte da estrutura objetiva das

relações ideológicas e políticas do capitalismo, a reprodução da divisão racial (ou sexual) do

trabalho” (HASENBALG apud GONZALEZ, 2018c [1981], p. 42). Essa interpretação quanto

à forma como racismo, sexismo e capitalismo se relacionam é fundamental, na medida em

que aborda essas relações estruturalmente, mas ainda de forma “subordinada”. A abordagem

de Lélia, de fato, apresenta uma divisão entre o que é econômico (domínio para qual utiliza as

formulações de Jose Nun) e o que é político e ideológico, o que pode ser lido como uma

referência indireta à metáfora da base/superestrutura, bastante relevante no contexto

acadêmico em que escrevia. Isso não significa, contudo, que a autora recaísse de forma

alguma em um determinismo econômico, pois em seus textos fez fortes críticas a perspectivas

economicistas e apontou para a relevância da discriminação racial e de gênero nas relações de

produção, não indicando uma relação de via única de determinação da superestrutura pela

base.

Como nos referimos anteriormente, no desenrolar dos anos 1980 os escritos de Lélia

vão revelando uma maior aproximação com o afrocentrismo, a psicanálise e com o feminismo

– este último, em diálogo crítico. Ela passa progressivamente de uma análise do capitalismo

centrada na questão racial para uma preocupação com a compreensão da relação entre racismo

e sexismo na realidade social, defendendo a especificidade da situação e da experiência das

mulheres negras no Brasil, bem como da discriminação por elas sofrida. Já na primeira fase de

sua obra, a autora conclui que se trata de um “processo de tríplice discriminação [...]

(enquanto raça, classe e sexo)” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 42).

71
Lélia apresenta uma visão qualitativamente diferente em “Racismo e sexismo na

cultura brasileira”, ainda que o texto tenha sido apresentado em 1980, época em que publicou

os textos com que trabalhamos até aqui. Nesse artigo, a autora aborda o racismo e o sexismo

como um “duplo fenômeno”, afirmando que “o racismo se constitui como a sintomática que

caracteriza a neurose cultural brasileira” (GONZALEZ, 2018h [1980], p. 191). Essa

afirmação aponta para a forte influência da psicanálise em sua abordagem, notadamente de

textos de Freud e Lacan. O objetivo desse artigo, segundo a autora, é compreender quais

processos determinaram o “discurso” do mito da democracia racial, por que teve tanta

aceitação e divulgação, o que ele “oculta” e como a mulher negra é situada nele

(GONZALEZ, 2018h [1980], p. 191). A aproximação com a psicanálise se evidencia no

enfoque do mito da democracia racial como “discurso” e “sintoma” que “oculta” um

problema mais profundo, da ordem da cultura.

A mudança na forma dos textos também é sensível: Lélia adota uma linguagem muito

mais informal, carregada de gírias, expressões populares e um humor mordaz, o que torna a

leitura do texto fluida e agradável. Ela explica brevemente que sua experiência em eventos

internacionais, a participação no MNU e no Grêmio Recreativo Arte Negra e Escola de

Samba Quilombo ajudara a transformar sua visão na medida em que “começaram a se

delinear, para nós, aquilo que se poderia chamar de contradições internas” (GONZALEZ,

2018h [1980], p. 192). Assim, “enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar

nessa (sic) reflexão, em vez de continuarmos na reprodução e repetição de modelos que nos

eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais” (GONZALEZ, 2018h

[1980], p. 192). Dessa forma, Lélia se afasta de modelos explicativos como o de Jose Nun

para, com base no “suporte epistemológico” da psicanálise, buscar uma interpretação original

sobre a articulação entre racismo e sexismo no Brasil que fosse além da “perspectiva sócio-

econômica” (GONZALEZ, 2018h [1980], p. 192).

72
Para situar a mulher negra no “discurso” da democracia racial e entender os “efeitos

violentos que a “articulação” entre racismo e sexismo produz sobre ela (GONZALEZ, 2018h

[1980], p. 191), Lélia aprofunda uma discussão estabelecida nos textos anteriores sobre as

representações da mulher negra como mulata, doméstica e “mãe preta”. Essa discussão aqui

se dá com base em duas noções centrais: consciência e memória. A primeira aparece em

sentido que se pode relacionar com o de ideologia, conforme apareceu nos textos discutidos

anteriormente: “Como consciência, a gente entende o lugar do desconhecimento, do

encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso

ideológico se faz presente” (GONZALEZ, 2018h [1980], p. 194). Já a memória seria “o lugar

do não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi

escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”

(GONZALEZ, 2018h [1980], p. 194). Considerando que Lélia tem como suporte

epistemológico a psicanálise, essas conceituações podem ser aproximadas das categorias

freudianas de ego e id, sendo este último próximo a percepção de memória como um nível

mais profundo, não consciente mas portador de algum tipo de verdade. O ego, a consciência,

se relaciona ainda com o sentido althusseriano de ideologia como falsa consciência (FREUD,

1990). Lélia explica que:

“Na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso


dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória,
mediante imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória
tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do
discurso da consciência” (GONZALEZ, 2018h [1980], p. 194).

Essas “mancadas” da consciência revelando o nível mais profundo da memória, em

Freud, são os “atos falhos” (FREUD, 2014). Assim, o “jogo” da linguagem, que revela a

“verdade” por meio dessas “mancadas” da consciência, é a chave para desvendar o que a

73
ideologia (ou consciência) do racismo oculta através da reprodução do discurso do mito da

democracia racial. Este é didaticamente sintetizado por Lélia:

“Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem
diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é
bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça,
ele sobre na vida como qualquer um. Conheço um que é médico. Educadíssimo,
culto, elegante e com umas feições tão finas... nem parece que é preto”
(GONZALEZ, 2018h [1980], p. 194)

Esse mito, como foi dito, produz efeitos específicos sobre as mulheres negras,

apreendidos por Lélia através da análise da linguagem e das representações. Seu argumento se

centra na ideia de que “os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito”

(GONZALEZ, 2018h [1980], p. 196). Por um lado, “o rito carnavalesco” é o momento em

que o mito da democracia racial “é atualizado com toda sua força simbólica”, quando a

mulher negra passa por um “endeusamento carnavalesco”, transformando-se em rainha,

transfigurando-se “na Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar de

príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la” (GONZALEZ, 2018h [1980],

p. 196). Por outro lado, no avesso do endeusamento está o “cotidiano dessa mulher, no

momento em que ela se transfigura em empregada doméstica” (GONZALEZ, 2018h [1980],

p. 196).

Ao relacionar essa configuração de discurso com a experiência da escravidão, Lélia

encontra na figura da mucama o engendramento das representações da mulata do carnaval e

da empregada doméstica. No dicionário Aurélio, a autora verifica que mucama consta com

sua origem linguística do quimbundo, significando "amásia escrava", ocultada entre

parênteses fora da definição oficial do verbete. Há, segundo a autora, uma “neutralização”,

um “esvaziamento” do sentido original na medida em que o dicionário apenas marca a face do

trabalho, ao definir mucama como “a escrava negra moça e de estimação que era escolhida

para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família e que, por vezes era
74
ama-de-leite” (DICIONÁRIO AURÉLIO apud GONZALEZ, 2018h [1980], p. 197). Essa

descoberta feita por Lélia tem relação direta com a discussão que estabelecemos

anteriormente sobre a dimensão da sexualidade (da heterossexualidade compulsória e da

violência sexual) na experiência da escravidão vivida pelas mulheres negras. O estupro

colonial da mulher negra, para usar a expressão de Sueli Carneiro, que tem papel primordial

na fundação do discurso da mestiçagem por toda América Latina, no caso brasileiro tem

agravada a dimensão da ocultação, onde mesmo o sentido ocultado – “amásia”, concubina,

amante – não explicita a real dimensão de violência e agressão sofrida por essas mulheres.

A filósofa marxista Angela Davis, um dos maiores nomes do feminismo negro norte-

americano, também voltou seu olhar para a escravidão em "O legado da escravidão:

parâmetros para uma nova condição da mulher". Nesse magistral texto de 1981, Davis critica

a ausência de um estudo historiográfico que analise com seriedade a experiência das mulheres

negras escravizadas nos Estados Unidos, apontando para a importância desse tipo de estudo

não apenas "pela precisão histórica", mas porque trariam "esclarecimentos sobre a luta atual

das mulheres negras e de todas as mulheres em busca de emancipação" (DAVIS, 2016 [1981]:

17). A partir de então, a autora desenvolve uma delicada análise, baseada em fontes históricas

e na bibliografia disponível sobre o assunto, enovelando representações culturais e condições

objetivas estruturais, discussões sobre trabalho, gênero e violência, num exemplo de

abordagem qualitativa da articulação entre raça, classe, gênero e sexualidade. Um dos

aspectos abordados por Davis é a violência sexual sofrida pelas escravas, analisada até então

de maneira problemática. Os estudiosos do tema, elogiosos à ideia de miscigenação,

apagavam o caráter de violência e de exploração sexual a despeito de que, na realidade,

"dificilmente havia uma base para 'prazer, afeto e amor' quando os homens brancos, por sua

posição econômica, tinham acesso ilimitado ao corpo das mulheres negras" (DAVIS, 2016

[1981]: 38). Crítica similar é feita por Lélia a Caio Prado Jr., que objetificou e animalizou as

75
mulheres escravizadas ao afirmar, por exemplo, que o "fator sexual" relativo a elas foi

incapaz de realizar "o milagre do amor humano", que "constrói os edifícios de sentimentos os

mais complexos e delicados" (PRADO JR. apud GONZALEZ, 2018h [1980]: 199, 204).

Lélia encontra na figura da “mãe preta” a “única colher de chá” que Caio Prado Jr. dá

na caracterização da população negra. Mas justamente essa questão “vai dar rasteira na raça

dominante”, na medida em que, no entendimento de Lélia, foi justamente a figura da mãe

preta uma das responsáveis pelo fato de a cultura brasileira ser “eminentemente negra”

(GONZALEZ, 2018c [1981], p. 41). A autora explica que a “figura da boa ama negra”

(FREYRE apud GONZALEZ, 2018h [1981], p. 204) que consta em Caio Prado e Gilberto

Freyre

“não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como querem os


brancos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como querem alguns
negros apressados em seu julgamento. Ela simplesmente é mãe. [...] Se assim não é,
a gente pergunta: que[m] é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe
pra dormir, que acorda de noite prá cuidar, que ensina a falar, que conta história e
por aí afora? É a mãe, não é? Ela é a mãe nesse barato doido da cultura brasileira.
[...] A branca, a chamada legítima esposa, só serve prá parir os filhos do senhor. Não
exerce a função materna” (GONZALEZ, 2018h [1981], p. 204-205).

A questão de Lélia, com essa afirmação, é apontar que a mãe preta, ao exercer a

função de mãe, transmitiu uma série de valores às crianças brasileiras:

“Ao nosso ver, a ‘Mãe Preta’ e o ‘Pai João’, com suas estórias, criaram uma espécie
de ‘romance familiar’ que teve uma importância fundamental na formação dos
valores e crenças do nosso povo, do nosso ‘Volksgeist’. Conscientemente ou não,
passaram para o brasileiro ‘branco’ as categorias das culturas africanas de quem
eram representantes. Mais precisamente, coube à ‘Mãe Preta’ [...] a africanização do
português falado no Brasil (o ‘pretuguês’, como dizem os africanos lusófonos) e,
consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira” (GONZALEZ,
2018c [1981], p. 40).

Essa conclusão é expandida por Lélia ao adotar o conceito de “amefricanidade” para

caracterizar principalmente a América Latina, renomeada por M.D. Magno, autor no qual se

baseia, como “Améfrica Ladina”. Essa nomeação procura negar a latinidade de matriz

76
europeia e branca e, em contraponto, evidenciar a presença negra e a circularidade cultural de

matriz africana pelas Américas (GONZALEZ, 2018a [1988], p. 321-322).

Nessas formulações de Lélia, a relação do Brasil e da América Latina com os países

centrais, em particular os colonizadores, aparece principalmente em sua dimensão ideológica

e cultural, com foco na dominação colonial. Afasta-se, portanto, de sua abordagem nos textos

de fins dos anos 1970 e início dos 1980, quando sua abordagem se dava mais no sentido de

compreender o desenvolvimento desigual e dependente/combinado do capitalismo e suas

relações com o racismo e o sexismo. Aproxima-se, por outro lado, de autores como Franz

Fanon, Molefi Asante e Walter Rodney, lembrando ainda com admiração de Marcus Garvey –

importantes intelectuais ligados a perspectivas afrocêntricas e pan-africanistas.

Em “Por um feminismo afrolatinoamericano”, Lélia tem como objetivo contribuir para

o avanço do feminismo latino-americano através da problematização de um esquecimento da

questão racial nesse movimento, que ela considera como configurando “racismo por

omissão”, cujas raízes estão “em uma cosmovisão eurocêntrica e neocolonialista da realidade”

(GONZALEZ, 2018g [1988], p. 309):

“Tentar [compreender], por exemplo, a divisão sexual do trabalho sem articulá-lo


com o correspondente ao nível racial é recair sobre um tipo de racionalismo
universal abstrato, típico de um discurso masculinizante branco. Falar da opressão
das mulheres latino-americanas é falar de uma generalidade que esconde, enfatiza,
que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um
preço muito alto por não serem brancas” (GONZALEZ, 2018g [1988], p. 310-311).

Nesse texto, Lélia delineia o que ela vem chamando de “tripla discriminação”,

sintetizando as diversas discussões que estabeleceu em sua obra, inclusive quanto à questão

de exploração do trabalho e do caráter dependente do capitalismo latino-americano:

“No contexto das profundas desigualdades raciais existentes no continente, se insere


de maneira muito bem articulada, a desigualdade sexual. Essa é uma dupla
discriminação contra as mulheres não brancas na região: as mulheres africanas e
ameríndias. O duplo caráter de sua condição biológica – ou racial e sexual – as torna
77
as mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região dependente de um
capitalismo patriarcal e racista. Precisamente porque esse sistema transforma as
diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um caráter
triplo, dada sua posição de classe: os ameríndios e afro-americanos fazem parte, em
sua imensa maioria, do imenso proletariado latino-americano” (GONZALEZ, 2018g
[1988], p. 314).

A obra de Lélia reflete a pluralidade de inserções acadêmicas (graduou-se em História,

Geografia e Filosofia, foi mestre em comunicação social e doutora em antropologia social) e

na militância (fundou o Instituto de Pesquisas Negras - IPCN, o MNU e o Coletivo de

Mulheres Negra Nzinga, atuou na G.R.A.N.E.S. Quilombo, filiou-se ao Partido dos

Trabalhadores (PT) e depois ao Partido Democrático Trabalhista (PDT). Sua trajetória, tanto

intelectual quanto pessoal, permitiu o desenvolvimento de uma obra original que se nutriu dos

mais diversos debates políticos presentes dentro e fora do meio acadêmico. A partir desse

breve panorama sobre alguns aspectos de sua obra, bem como da questão da articulação entre

racismo, sexismo e capitalismo no feminismo negro – ou amefricano – mais amplamente e em

autores do pensamento social brasileiro, buscaremos a seguir propor uma síntese analítica

para o modo de produção capitalista na realidade brasileira.

3. Repensando o capitalismo brasileiro como totalidade contraditória: uma proposta de

síntese

3.1 Modo de produção como totalidade contraditória

Conforme estabelecido no item anterior, o conceito de interseccionalidade tem se

tornado cada vez mais importante no âmbito acadêmico e na militância feminista e antirracista

no Brasil. O conceito de Kimberlé Crenshaw se tornou um paradigma para uma abordagem

das desigualdades que não seja parcial – no caso do feminismo, que considere a

multiplicidade possível do “ser mulher” e as diferentes formas de vulnerabilidade social a que


78
estão expostas essas mulheres possíveis. Decorreu disso que pensar temáticas em que a

questão racial e de gênero estejam presente tem sido, frequentemente, olhar para uma situação

específica, identificar quais “eixos de subordinação” se aplicam a ela e de que maneira esses

eixos se “intersectam” em determinado cenário. Por mais que possa ser útil para resolver

impasses jurídicos, como os apresentados por Crenshaw, ou para a elaboração de políticas

públicas para grupos ou indivíduos em situação de vulnerabilidade social, a abordagem

interseccional dificulta uma análise mais global – na realidade, uma análise total, sistêmica,

da relação entre racismo, (hetero)sexismo e capitalismo.

Defender a necessidade de uma análise totalizante ou sistêmica dessa questão não

significa deixar de lado ou em segundo plano a ação dos sujeitos ou as relações interpessoais.

Ao contrário: parto do pressuposto colocado por Marx em O 18 Brumário de que as pessoas

“fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob

circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e

transmitidas pelo passado” (MARX, 2011, p. 25). Pretendo, então, compreender, de um lado,

a agência dos sujeitos históricos e, de outro, as condições em que esses sujeitos se inserem,

vivem suas experiências e elaboram consciência e ação. Para tanto, uma abordagem da

categoria de modo de produção como uma totalidade contraditória nos parece ser uma das

questões fundamentais nesta análise.

A forma como Thompson aborda o modo de produção se relaciona com sua crítica à

metáfora da base e superestrutura, que aparece em alguns momentos nas obras de Heleieth

Saffioti e de Lélia Gonzalez, como vimos. Para o historiador inglês, a metáfora se trata de

uma analogia “mecânica e insatisfatória”, segundo a qual “a ‘base’ vem identificada com o

‘econômico’, afirmando uma prioridade heurística das necessidades e comportamentos

econômicos diante das normas e sistemas de valores” (THOMPSON, 2001a, p. 252-253).

Essa “analogia espacial” “petrificada em conceito” (THOMPSON, 1981, p. 119; 175) levou,

79
com alguma freqüência, a um determinismo economicista de tudo aquilo que estava “alocado”

na superestrutura, como se fosse mero reflexo da estrutura econômica. Diante disso,

Thompson rejeitou a metáfora como (THOMPSON, 2001a), ao contrário de seu colega

Raymond Williams, que, defendendo a complexidade da superestrutura e que os diversos

elementos nela presentes influenciam o curso da história, recorria ao esclarecimento de Engels

em relação à determinação econômica “em última instância”. Williams argumentava em favor

de uma múltipla determinação, afirmando que “há uma interação de todos esses elementos,

em meio a uma série infindável de elementos extemporâneos [que não se percebe], (...) [de

modo que] o elemento econômico por fim se afirma como fator necessário”. (WILLIAMS,

1969, p. 278).

Thompson, por sua vez, retoma uma analogia do processo histórico feita por Marx nos

Grundrisse para propor um retorno à “acepção plena” do modo de produção (THOMPSON,

2001a, p. 259-260):

“em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas relações que
atribuem posição e influência a qualquer outra produção e suas relações. É uma
iluminação geral, em que são imersas todas as cores e que modifica suas tonalidades
particulares. É um éter especial a definir a gravidade específica de tudo o que dele se
destaca” (MARX apud THOMPSON, 2001a, p. 254)

Com essa passagem, Thompson quer enfatizar, “no lugar da noção de primazia do

econômico”, “a simultaneidade da manifestação de relações produtivas particulares em todos

os sistemas e áreas da vida social” (THOMPSON, 2001a, p. 254). Assim, se aproxima mais

do Williams das múltiplas determinações do que o da determinação econômica em última

instância. Thompson propõe, então, uma conceituação de modo de produção “no qual as

relações de produção e seus correspondentes conceitos, normas e formas de poder devem ser

tomados como um todo” (THOMPSON, 2001a, p. 259, grifo meu). Essa conceituação

80
“nos oferece as consequentes relações de produção (que também são relações de
dominação e subordinação) nas quais homens e mulheres nascem ou
voluntariamente ingressam. Isso fornece a ‘iluminação geral, em que são imersas
todas as cores e que modifica suas tonalidades particulares’” (THOMPSON, 2001a,
p. 259-260)

Para a compreensão do modo de produção como um todo de relações sociais é

primordial a questão da determinação, no sentido de “estabelecer limites”, “exercer pressões”

(THOMPSON, 1981, p. 176). Na totalidade, a determinação se dá na medida em que há

“simultaneidade da manifestação de relações produtivas particulares em todos os sistemas e

áreas da vida social” (THOMPSON apud MATTOS, 2012, p. 86). Assim, não há como

conceber uma determinação puramente “econômica” que se imponha aos elementos

superestruturais, mas sim a presença de limites e pressões em todas as áreas da vida social

exercidas pelas relações de produção em que os sujeitos estão inseridos.

Estabelecer o modo de produção como totalidade é fundamental, mas ainda

insuficiente para explicar de que maneira as relações raciais, de classe, de gênero e de

sexualidade se apresentam na realidade social. É aí que a Teoria da Reprodução Social se

apresenta com suas contribuições originais, que superam, a nosso ver, alguns dos impasses e

limites que encontramos nas tentativas de explicar a relação entre essas relações que

abordamos até aqui. Algumas autoras marxistas, principalmente aquelas ligadas à TRS, têm

proposto compreender o capitalismo como uma totalidade contraditória

(BHATTACHARYA, 2017; FERGUSON, 2017; BAKAN, 2016). O modo de produção

capitalista, nessa perspectiva, consiste em uma totalidade unificada, mas diferenciada e

contraditória; “aberta e historicamente mutável, cuja lógica reprodutiva reside em todas as

suas partes, mesmo se essas partes não são necessariamente ou puramente funcionais ou

redutíveis ao todo" (FERGUSON, 2017, p. 22).

Essa forma de conceber o modo de produção guarda relação direta com as observações

de Thompson em relação à centralidade da determinação, que, para as autoras da TRS, precisa

81
ser entendida dialeticamente. Isso significa não ocupar-se “da identificação de uma

causalidade simples ou uma funcionalidade”, rejeitar “a noção de que o todo é externo às

partes”, mas sim analisar

“as maneiras pelas quais aspectos do social (que são, eles mesmos, reciprocamente
determinados ou co-constituídos) relacionam-se no interior de um contexto
historicamente dado, com o objetivo de revelar a lógica subjacente que estrutura
essas relações. Essa é a lógica que reside no todo" (FERGUSON, 2017, p. 22).

Segundo essa perspectiva, na totalidade social concreta “cada aspecto pode ser

mostrado para refletir outros”, “cada aspecto contem o macrocosmo no microcosmo. As

distintas partes da totalidade social são, portanto, internamente relacionadas; elas mediam

umas as outras e, fazendo isso, constituem umas às outras” (BANNERJI apud MCNALLY,

2017, p. 118, tradução minha). Essa formulação supera alguns do limites enfrentados tanto

pela perspectiva interseccional quanto pela perspectiva compósita do nó de Heleieth Saffioti.

Nela, concebe-se que as relações de classe, gênero e raça “determinam ou constituem umas às

outras e a totalidade social, essa última, por sua vez, exibe sua própria lógica de reprodução”

(FERGUSON, 2017, p. 22). Assim, evita-se o reducionismo econômico ou para

compreensões parciais em relação à raça, gênero e classe, afinal

"'Capitalismo' como uma simples abstração não existe 'realmente'. Há apenas o


capitalismo racializado, patriarcal, no qual a classe é concebida como uma unidade
de relações diversas que produzem não apenas lucro ou capital, mas o capitalismo"
(FERGUSON, 2017, p. 23).

Esse trecho nos remete às citações de Florestan Fernandes e Heleieth Saffioti que

apontaram, respectivamente, para a necessidade de conceber uma a classe como “unidade” ou

uma “síntese no diverso” e o sistema social como uma “unidade contraditória”. Vê-se,

portanto, que o entendimento de classe social como uma categoria história e dialética é

essencial para qualificar o debate sobre a articulação entre raça, gênero, sexualidade e classe –
82
e, logo, entre racismo, (hetero)sexismo e capitalismo. Segundo a TRS, a classe não interage

ou “se intersecta” com a raça e o gênero ou quaisquer outros elementos. A classe contém raça

e gênero, assim como o gênero contem raça e classe e assim sucessivamente. Essa ampliação

do entendimento de classe como um todo contraditório corresponde à realidade sobre como a

classe é vivida, como ela se apresenta na realidade e é experimentada pelos sujeitos. Pensar a

classe como unidade de relações diversas é pensá-la efetivamente como “categoria histórica”

da forma defendida por Thompson, isto é, uma categoria que descreve as “pessoas numa

relação no decurso do tempo e das maneiras pelas quais se tornam conscientes de suas

relações, como se separam, unem, entram em conflito, formam instituições e transmitem

valores de modo classista” (THOMPSON, 2001a, p. 260). A classe, nessa perspectiva, se

forma, decorre de um processo (a luta de classes), ela acontece (THOMPSON, 2015, p. 10) de

maneira relacional. Como afirma Thompson:

“as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de
relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter
poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-
se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si
mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de
classe.” (THOMPSON, 2001b, p. 274).

Observe-se, nesse trecho, que Thompson se remete às relações de produção e à

exploração para explicitar as condições em que os sujeitos históricos se inserem. De fato, as

relações de trabalho tem sido ponto fulcral para o pensamento marxista (e marxiano,

naturalmente). Ocorre que o centramento do trabalho na produção é, justamente, antigo objeto

da crítica feminista marxista. Desde o final dos anos 1960, o debate do trabalho doméstico

debruçou-se sobre a busca “por localizar fundamentos sócio-materiais da opressão às

mulheres nos termos e conceitos de economia política marxiana” (FERGUSON; MCNALLY,

2017, p. 27). Esse complexo debate envolveu diferentes correntes feministas em torno da

questão da apropriação ou exploração do trabalho doméstico feminino pelos homens. Essa

83
discussão tem em seu cerne uma confusão entre trabalho produtivo, aquele que produz valor e

que, portanto, pode ser explorado, e trabalho reprodutivo, o trabalho de alimentar, limpar,

vestir, entre outras tarefas, realizadas via de regra por mulheres no âmbito doméstico e que

garantiam a reprodução da mão de obra operária. Para a corrente do feminismo operário, esse

trabalho reprodutivo era apropriado pelo capitalismo na medida em que as mulheres não

recebiam salário por seu trabalho. Já para as feministas materialistas, o trabalho reprodutivo

era explorado pelos homens operários. Cinzia Arruzza, filósofa feminista e marxista,

problematiza essas posições:

"Afirmar que o trabalho doméstico produz valor [e que, portanto, é produtivo e pode
ser explorado] equivale a depreciar aquele que deveria ser o aspecto essencial para
compreender a natureza e a forma pela qual o capitalismo transformou a família. De
facto, o ponto fundamental é que este trabalho reprodutivo acontece fora do
mercado, não é produção de mercadoria, não é uma produção destinada à troca. E
não o é precisamente porque o capitalismo, por um lado, subtraiu à família o papel
de unidade reprodutiva e, por outro, levou a que o trabalho de reprodução da força
de trabalho tivesse lugar majoritariamente no espaço da família, separando-o do
processo de produção e circulação de mercadorias. [...] Este aspecto é
substancialmente ignorado por Christine Delphy, como se a questão se referisse à
natureza dos serviços oferecidos pelo trabalho doméstico, e não à sua inserção (ou
não) no processo de produção e circulação das mercadorias" (ARRUZZA, 2010, p.
102).

Arruzza se refere à argumentação de Christine Delphy, autora fundamental do

feminismo materialista francês, que procurava provar que os homens se apropriam do trabalho

das mulheres, produtivo por natureza. Isso porque, quando feito externamente ao âmbito do

lar (como cozinhar em casa para família ou comercialmente em um restaurante), é

remunerado, diferentemente do trabalho doméstico. Por natureza, então, o trabalho

reprodutivo seria produtivo. O que Arruzza questiona é justamente essa ideia de uma

"natureza" inerente ao trabalho, já que sua classificação como produtivo ou improdutivo, de

acordo com a concepção marxiana, dependeria de sua inserção nas relações sociais.

Uma questão que surge a partir desse debate é o lugar do trabalho doméstico e da

opressão às mulheres no sistema capitalista: existe um modo de produção doméstico, a parte


84
deste? O trabalho doméstico constitui um bolsão pré-capitalista, conforme análise de Saffioti,

do qual o capitalismo se beneficia? Existe um “sistema patriarcal” ou “patriarcado” autônomo

em relação ao capitalismo? Nesse debate, muitas feministas adotaram uma perspectiva que

Cinzia Arruzza nomeia como “teoria dos sistemas duplos ou triplos”, segundo a qual

“gênero e relações sexuais constituem um sistema autônomo que se combina ao


capitalismo e remodela as relações de classe, enquanto é, ao mesmo tempo,
modificado pelo capitalismo em um processo de interação recíproca. A versão mais
atualizada desta teoria inclui as relações raciais, também consideradas como um
sistema de relações sociais autônomas interconectadas com as relações de gênero e
classe” (ARRUZZA, 2015, p. 36)

É difícil não identificar, nessa passagem, alguns aspectos da obra de Heleieth Saffioti,

com sua proposta de patriarcado-capitalismo-racismo e do “entrelaçamento” de classe, raça e

gênero em um “nó”. Para ela, sendo o patriarcado um sistema de dominação anterior ao

capitalismo, ele se molda para coexistir e potencializar o processo de dominação-exploração

presente neste. Junta-se a essa dinâmica o racismo (SAFFIOTI, 2015, p. 122). Vimos,

contudo, que, ainda que Saffioti recaia no atomismo ontológico da teoria de sistemas triplos,

ela procura ir além, apontando para a necessidade de entender esses sistemas como “unidade

contraditória” (SAFFIOTTI, 1987, p. 62).

Arruzza prossegue a caracterização das teorias dos sistemas duplos ou triplos: “No

geral, estas teses têm uma compreensão das relações de classe como definidas unicamente em

termos econômicos. É apenas via interação com o patriarcado e com o sistema de dominação

racial que elas adquirem um caráter extra-econômico” (ARRUZZA, 2015, p. 37). Essa

separação entre econômico e ideológico, sendo o segundo o domínio do racismo, está presente

nas primeiras obras de Lélia Gonzalez, como vimos. É possível superar esse tipo de

concepção através de um entendimento de modo de produção como totalidade em que

relações raciais e de gênero aparecem como determinantes, e não localizadas “espacialmente”

na base econômica ou na superestrutura ideológica.


85
Nos anos 1980, feministas marxistas pioneiras procuraram superar a análise baseadas

na ideia de sistemas duais ou triplos, procurando incluir as dimensões da produção e da

reprodução em uma teoria unitária. Para tanto, buscou-se considerar a relação entre o trabalho

dispensado para produzir mercadoria e o trabalho dispensado para produzir pessoas como

parte da totalidade sistêmica do capitalismo, ampliando e complexificando, assim, o conceito

de trabalho (BHATTACHARYA, 2017, p. 15; FERGUSON, 2017, p. 15). Essa ampliação

está na base da Teoria da Reprodução Social. Susan Ferguson observa que as feministas da

reprodução social, nesse primeiro momento, "inclinaram-se a conceituar o social de maneira

estreita, frequentemente em termos estruturalistas que privilegiam as relações de gênero e de

classe acima das outras" (como raça, colonização e "queerness"). Mas, a partir dos anos 2000,

novos esforços foram feitos no sentido de superar essas “limitações herdadas” (FERGUSON,

2017, p. 15), estabelecendo-se assim a configuração atual dessa teoria.

Segundo Tithi Bhattacharya, Marx indica que a força de trabalho, a mercadoria

"única", é singular no sentido de que não é produzida capitalistamente, mas ele não

desenvolve as implicações desse insight (BHATTACHARYA, 2017, p. 16). O capitalismo

reconhece o trabalho produtivo para o mercado como a única forma de trabalho legítimo,

enquanto naturaliza como inexistente a enorme quantidade de trabalho familiar ou

comunitário necessário para sustentar e reproduzir o trabalhador (mais especificamente, sua

força de trabalho) (BHATTACHARYA, 2017, p. 15). Diante disso, Bhattacharya pergunta:

"Se o trabalho do trabalhador produz toda a riqueza em nossa sociedade, quem então produz o

trabalhador?" (BHATTACHARYA, 2017, p. 14). A TRS se propõe a responder tal questão,

configurando-se em

“uma abordagem que não se contenta em aceitar o que parece ser uma entidade
visível e acabada – nesse caso, nossa trabalhadora nos portões de seu local de
trabalho – mas interroga a complexa rede dos processos sociais e relações humanas
que produzem as condições de existência dessa entidade" (BHATTACHARYA,
2017, p. 15).
86
Assim, o trabalho de reprodução é incluído no conceito mais amplo de trabalho, mas é

entendido como uma forma social específica, cujo “conjunto específico de relações sociais no

interior do qual ele se realiza (como, por exemplo, as relações de parentesco) [...] pode ser

distinguido teoricamente do trabalho formal remunerado" (ARRUZZA, 2017, p. 47). Temos,

então, uma concepção de trabalho como "amplamente produtivo - criador não apenas de

valores econômicos, mas da sociedade (e, portanto, da vida) mesma"; como uma "'atividade

humana prática' que cria todas as coisas, práticas, pessoas, relações e ideias que constituem a

totalidade social mais ampla" (FERGUSON, 2017, p. 24).

A concepção de que "a produção e a reprodução da força de trabalho é uma condição

essencial que sustenta a dinâmica do sistema capitalista" explica a opressão às mulheres sob o

capitalismo. Para a manutenção do sistema, busca-se "maneiras de regular a reprodução social

no geral, e as capacidades biofísicas das mulheres de reproduzir a próxima geração, no

particular" (FERGUSON, 2017, p. 25). É nesse sentido que há uma estrita relação interna

entre o trabalho reprodutivo (inclusive o doméstico) e o produtivo. Embora existam, sob o

capitalismo, outras formas de reprodução social (como campos de trabalho forçado, etc.),

"a existência das necessidades do capital explica porque uma instituição altamente
efetiva - o âmbito doméstico privatizado - é alardeada e reforçada (através de uma
legislação machista, sistemas educacionais, práticas de seguridade social, por
exemplo) e, desse modo, enraizada nas sociedades capitalistas. É essa relação
essencial entre as necessidades produtivas e reprodutivas da formação social
capitalista, e não um impulso patriarcal trans-histórico, portanto, que torna a
opressão das mulheres possível e provável sob o capitalismo" (FERGUSON, 2017,
p. 26).

Além de ampliar a noção de trabalho, o feminismo da reprodução social enfatiza a

diversidade dos corpos que trabalham, na medida em que "o trabalho é uma experiência

concreta, corporificada" (FERGUSON, 2017, p. 27). Susan Ferguson aponta para a

importância de se pensar a racialização dos corpos, considerando que “diferentemente da

87
generificação, [a racialização] não pode ser nem mesmo parcialmente explicada em termos de

diferenças biológicas ou genéticas” (FERGUSON, 2017, p. 28). Nesse sentido, ela afirma que

"os corpos que trabalham não são apenas diferentemente sexuados, eles também são
diferentemente especializados em sentido tanto geográfico como social. Todos nós
nascemos e trabalhamos para reproduzir o mundo em locais sócio-históricos e
geográficos específicos. (...) esses locais são alcançados de maneira desigual pela
desigual dinâmica sempre expansiva do capitalismo. Dependendo de quais espaços
os diferentes corpos ocupam no interior desse sistema mundial hierárquico (...) o
trabalho e as vidas das pessoas são valorados de maneira diferente" (FERGUSON,
2017, p. 28-29)

A partir da afirmação de Tithi Bhattacharya diz que é preciso ir além da trabalhadora

na porta de seu local de trabalho, interrogando as relações que constituem essa entidade

social, podemos, no sentido proposto por Ferguson e com a ajuda de Angela Davis, racializar

essa interrogação. Davis, remetendo-se à realidade estadunidense pós-abolição, afirma que

“apenas um número infinitesimal de mulheres negras conseguiu escapar do campo, da cozinha

ou da lavanderia”, sendo que apenas 2,8% delas ocupavam postos em manufaturas de acordo

com o censo de 1890 (DAVIS, 2016, p. 95).

Assim, a maioria das mulheres negras trabalhadoras que não estava no setor agrícola

exercia trabalho doméstico, que, segundo a autora, “trazia o familiar selo da escravidão” na

visão dos ex-proprietários de escravos (DAVIS, 2016, p. 98). Essa afirmação ressoa na

realidade brasileira, conforme o depoimento de uma trabalhadora doméstica negra

entrevistada por Celma Vieira:

“A pessoa, quando tinha uma senzala, os senhores tinham o cuidado de cuidar dos
seus escravos, e agora, só porque tinha que pagar, dizia que era livre, então você não
me interessa mais, não faz as coisas, como eu quero, escravatoriamente, então vai
[pra rua]” (VIEIRA, 1987, p. 144).

Esse trecho indica que, embora houvesse certa continuidade da escravidão, havia uma

ruptura no sentido da desobrigação das patroas e patrões com relação às trabalhadoras: a

88
escravidão continuava na subserviência esperada, mas limitava-se na obrigação de cuidados

com as trabalhadoras tuteladas. Um exemplo cruel de continuidade é o “abuso sexual

cometido pelo ‘homem da casa’”, considerado, conforme Angela Davis, como um risco

inerente à profissão de empregada doméstica nos EUA. No Brasil, esse fator sem dúvida

também se apresenta, como fica claro nas entrevistas realizadas por Celma Vieira (1987, p.

150).

Ampliar a categoria “trabalho”, considerando o presente objetivo de delinear o caráter

de totalidade contraditória do modo de produção capitalista no Brasil, precisa incluir

complexificar a discussão sobre trabalho reprodutivo e trabalho doméstico, em especial em

termos de racialização dos sujeitos. Angela Davis marca a distinção entre as donas de casa

brancas e as trabalhadoras domésticas negras nos Estados Unidos (DAVIS, 2016, p. 104-105).

Ela indica, contudo, que a Segunda Guerra Mundial mudou esse quadro: “no auge da guerra,

o número de mulheres negras na indústria havia mais que dobrado”, ainda que pelo menos um

terço das trabalhadoras negras permanecesse no emprego doméstico (DAVIS, 2016, p. 106).

A situação norte-americana difere bastante dos caminhos do emprego doméstico no

Brasil. Embora os censos de 1970 e 1980 não permitam fazer um diagnóstico em relação à

questão racial, a análise de Heleieth Saffioti sobre a participação feminina na População

Economicamente Ativa (PEA) auxilia a caracterização do emprego doméstico no Brasil no

período.29 Segundo ela, nos anos 1970 “a incapacidade relativa dos setores primário e

secundário de absorver maior quantidade de força de trabalho faz crescer a oferta de mão de

obra no terciário” (SAFFIOTI, 1978, p. 11). A partir da observação de uma acentuada

concentração de renda no Brasil e da baixa escolarização feminina a partir da década de 1960,

a autora afirma que também “é possível inferir que grande parte destes elementos femininos

29
Como indicado anteriormente, o censo dos anos 1970 excluiu o quesito “cor” e o de 1980 o incluiu como
amostra, invisibilizando o fator racial nas informações demográficas do período (GONZALEZ, 2018c [1981], p.
43).
89
estivesse, em 1960 como em 1970, empregado no setor de serviços domésticos” (SAFFIOTI,

1978, p. 13). Apesar da dificuldade de acesso aos dados, Saffioti afirma que “pode-se

presumir que as empregadas domésticas alcançavam 30% da PEA feminina, constituindo-se,

pois, esta ocupação aquela que maior número de mulheres absorve” (SAFFIOTI, 1978, p. 14).

Saffioti argumenta que o modelo de modernização brasileiro da ditadura militar, com

alta concentração de renda e baixo grau de escolarização das classes subalternas “não apenas

não traz benefícios materiais as mulheres, como também impele-as a aceitar, a fim de

sobreviver, o desempenho de atividades mal remuneradas e pouco ou nada prestigiadas do

ponto de vista social” (SAFFIOTI, 1978, p. 17-18). A título de ilustração, pode-se considerar

o dado de que quase 90% das empregadas domésticas ganhavam menos de 75% do valor do

salário mínimo no Rio de Janeiro em 1960 (SAFFIOTI, 1978, p. 15).

Embora a pesquisa de Saffioti traga uma série de elementos interessantes para se

pensar o emprego doméstico no Brasil, a questão racial fica escamoteada nesta obra. Já o

trabalho de Celma Rosa Vieira (1987) traz, em uma abordagem qualitativa, considerações

sobre relações raciais, de gênero e de trabalho nesse âmbito. A pesquisadora entrevistou

trabalhadoras domésticas negras ligadas à Associação Profissional dos Empregados

Domésticos do Rio de Janeiro em meados da década de 1980. Vieira afirma que, embora a

grande maioria das associadas fosse constituída por mulheres negras, a questão racial era

secundarizada por elas. As acusações de exploração pelos patrões, de falta de garantias legais

etc. são entendidas como resultado da discriminação contra a profissão de empregada

doméstica, e não pela influência de racismo ou sexismo na dinâmica capitalista que rege seus

trabalhos e suas vidas. Vieira aponta que suas entrevistadas consideram a discriminação como

uma questão de classe, existindo “para todos aqueles que são pobres” (VIEIRA, 1987, p. 146).

Podemos acrescentar ainda a dimensão econômico-corporativa, no sentido de Gramsci

(GRAMSCI, 2000, p. 36-46), para compreender esse entendimento, visto que o sindicato se

90
organizava de acordo com o setor profissional e tinha como objetivo principalmente suas

demandas materiais mais objetivas. Segundo Vieira, “admitem o racismo de modo geral, mas

é muito doloroso. Nesse fato reside a resistência em não perceber o problema enquanto étnico.

Preferem acreditar que é uma questão de categoria profissional” (VIEIRA, 1987, p. 146).

Assim como a pesquisa de Saffioti, o trabalho de Vieira aponta para o grande número

de mulheres migrantes no emprego doméstico, principalmente de zonas rurais para urbanas. É

possível afirmar, sem hesitação, que o trabalho reprodutivo – em especial no âmbito do

emprego doméstico – no Brasil não apenas é feito por mulheres, mas por mulheres negras ou

racializadas de distintas formas, como as nordestinas que migram para o sudeste para

trabalhar.

Diante desse quadro, cabe analisar mais detalhadamente as formas de relações sociais

conflituosas que caracterizam o modo de produção capitalista no Brasil, considerando as

relações de gênero, raça, classe e sexualidade.

3.2 Exploração, alienação, opressão

O livro Theorizing Racism, organizado por Abigail Bakan e Enakshi Dua (2014) é um

exemplo de engajamento na promoção de um diálogo frutífero entre o marxismo entre teorias

críticas sobre raça. Um dos artigos que compõem o livro, citado anteriormente, foi traduzido

para o português sob o título “Marxismo e antirracismo: repensando a política da diferença”

(BAKAN, 2016). Nele, Bakan procura delinear a presença de uma “política da diferença” na

obra de Marx, expressão usada em referência ao fato de que muitos teóricos anti-opressões

têm adotado o reconhecimento da diferença como ponto de partida teórico e metodológico –

procedimento visto como “uma bem vinda correção a um reducionismo econômico associado

ao marxismo” (BAKAN, 2016, p. 47). Todavia, a questão da diferença em Marx não aparece

91
no sentido pós-moderno, dada sua concepção centralizada de poder, mas como “várias formas

de relações sociais conflituosas que ocorrem dentro da sociedade capitalista” (BAKAN, 2016,

p. 47).

Em sua análise, Bakan responde a uma questão colocada por Tithi Bhattacharya

quanto à necessidade de se refletir sobre a pertinência de uma divisão entre exploração,

normalmente ligada à classe, e opressão, normalmente ligada a gênero, raça, etc.

(BHATTACHARYA, 2017, p. 16). Para Bakan, a exploração é apenas uma das relações

sociais conflituosas identificadas por Marx, sendo comumente vista como a única relevante

para as análises marxistas. Contudo, ela traz os conceitos de alienação e opressão para

demonstrar as diferenças (nesse artigo, o racismo em particular) não como resultado de

relações imutáveis, caóticas e inexplicáveis que fragmentam a sociedade, mas como processos

de conflitos sociais frutos de uma ordem competitiva – o capitalismo (BAKAN, 2016, p. 48).

O conceito de exploração, em definição simples, se refere a relações sociais que se

desenvolvem e são reproduzidas no processo de extração econômica de excedente. Chamando

atenção para a importância de não reduzi-la a uma categoria economicista e isolada de

opressão e alienação, Bakan sublinha que a exploração é uma "relação social que é mediada

através do processo de produção" e, portanto, "interage com vários tipos de diferença

humana" (BAKAN, 2016, p. 53). É central para sua argumentação o entendimento de que a

exploração não é o único fator de continuação e expansão do capitalismo, na medida em que o

sistema enfatiza as diferenças entre os seres humanos e se baseia “na atomização como parte

da forma através da qual relações sistêmicas de exploração, assim como alienação e opressão,

são invisibilizadas e reificadas” (BAKAN, 2016, p. 54). Essa atomização apareceu em nossa

discussão sobre as obras de Florestan Fernandes e de Heleieth Saffioti. As categorias de

exploração, alienação e opressão nomeiam e tornam inteligíveis a maneira como essa

atomização acontece.

92
A alienação se refere “à distância geral da humanidade de seu real potencial” e,

portanto, não é mensurável. Ela molda as relações humanas, expressando-se na distância da

humanidade em relação aos produtos do trabalho humano (e ao processo trabalho em si); aos

outros seres humanos; e àquilo que faz os seres humanos únicos (BAKAN, 2016, p. 55). A

alienação, assim, “cria um sentimento de solidão e de isolamento, baseado em uma

experiência universalizada de competição com outros seres humanos", não estando, portanto,

contraposta à exploração (BAKAN, 2016, p. 55). Ela explica, ainda, a “criação ativa de seu

oposto”, os movimentos de solidariedade e luta por um mundo livre de alienação (BAKAN,

2016, p. 55). Diante dessa caracterização, Bakan afirma que o racismo pode ser entendido, em

parte,

“como uma codificação ideológica e expressão prática de alienação extrema,


afetando não somente o ‘outro’ oprimido, mas o designado opressor hegemônico
‘branco’ também. [...] O racismo divide os seres humanos de outros seres humanos
de uma maneira que é [...] completamente infundada cientificamente e, na verdade,
aleatória, mas que parece, ou ‘dá impressão’, de não ser aleatória, mas significativa.
Nos termos de Gramsci [...] o racismo é integrado no processo de hegemonia
capitalista para parecer senso comum. O racismo oferece uma ideologia organizada,
ostensivamente coerente e um sistema institucionalmente forçado de ‘nós’ e ‘eles’,
como forma de possuir um elemento racional. [...] Ele proporciona uma estrutura de
análise, definida por algumas características determinadas de traços físicos ou
culturais, que opõe membros explorados contra outros membros da sociedade,
incluindo membros de sua própria classe. [...] Nesse sentido, o racismo pode
enevoar uma forma de diferença, a diferença de classe, ao mesmo tempo em que
cultiva diferenças que isolam indivíduo de aliados potenciais dentro da mesma
classe” (BAKAN, 2016, p. 57).

Esse trecho guarda estreitas relações com as observações de Saffioti, Fernandes e

Lélia Gonzalez sobre a forma como opera o racismo, mas as complementa com a categoria de

alienação em Marx, que havíamos indicado como relevante para entender a questão.

Particularmente, “é útil para explicar a diferença e a racialização como manifestas em

processos globalizados de subjugação de setores inteiros da humanidade através da conquista,

da colonização e escravização” (BAKAN, 2016, p. 57), processos ricamente discutidos pelas

feministas amefricanas, conforme abordado. Bakan delineia especificamente a manifestação

93
extrema de alienação no caso do racismo atlântico, que procurou compatibilizar os “direitos

universais do homem” com a ideia de que “certos humanos, definidos por características

raciais determinadas, deveriam não ser considerados humanos de forma alguma”, sendo

identificados como propriedade privada (BAKAN, 2016, p. 58). Ela aponta ainda para esse

processo de alienação via racismo como “um componente no fazer-se da classe dominante”,

que “expressou o desenvolvimento de uma cultura, ideologia e mitologia da ‘branquitude’

[whiteness]” (BAKAN, 2016, p. 58). Esse aspecto relacional da alienação é, portanto, muito

relevante quando pensado em termos da formação de classe, tanto dos grupos dominantes

como dos subordinados. Intelectuais do movimento negro e intelectuais brancos antirracistas

têm chamado atenção para a importância de se pensar a questão da “branquitude” (SOVIK,

2005) e fazer isso considerando a classe como unidade de relações diversas parece uma via

muito interessante para o exercício, principalmente no Brasil e na América Latina, onde a

formação da classe dominante no capitalismo se liga diretamente à experiência da escravidão.

Bakan trabalha ainda com a noção de “privilégio”, em discussão muito semelhante à

que Lélia Gonzalez propõe ao apontar para uma divisão racial do trabalho na qual os

trabalhadores brancos receberiam os “dividendos do racismo”. A autora canadense se refere à

experiência dos Estados Unidos antes da Guerra da Secessão, em que a branquitude

transformou direitos que pertenciam a todas as pessoas na Inglaterra em privilégios da raça

branca nas Américas (como casamento, posse de armas e presunção de liberdade). Assim,

alguns trabalhadores eram “promovidos” à raça branca sem serem “promovidos” à classe

proprietária (BAKAN, 2016, p. 59-60). A proibição de casamento entre pessoas negras,

segundo essa análise, “contribui para a criação de uma forma americana de supremacia branca

absolutamente única, o privilégio masculino-branco de pressupor intimidade com qualquer

mulher ou menina afro-americana” (BAKAN, 2016, p. 59).

94
Por fim, Bakan se refere ao conceito de opressão, amplamente usado para qualificar as

questões de gênero e raça, mas tratada por ela a partir da concepção de Marx da categoria. A

autora afirma que, embora a opressão seja a relação menos estudada dentre as trabalhadas por

Marx, “elementos significativos de uma estrutura de análise anti-opressão” foram sugeridos

no método desenvolvido por ele (BAKAN, 2016, p. 61). De modo geral, a opressão em Marx

não pode ser quantificada, mas é uma categoria historicamente específica e só pode ser

entendida em condições concretas específicas. Bakan faz uma divisão entre opressão de classe

e “opressão específica de setores das classes”, estas últimas que “dividem a classe

trabalhadora ou qualquer outra classe oprimida contra ela mesma e [...] obscurece as

diferenças de classe ao criar novas linhas de demarcação que são usadas como formas de

subordinação” (BAKAN, 2016, p. 62). Nesse ponto, é preciso ter cuidado com uma possível

simplificação da análise que depreenda daí a antiga (e lamentável) máxima de setores da

esquerda socialista que acusaram (e alguns ainda o fazem) as denúncias de racismo,

machismo e LGBTfobia como “divisionistas da luta da classe trabalhadora”. O que

procuramos delinear aqui é a forma como o capitalismo – racista, machista e LGBTfóbico –

costura formas de alienação, exploração e opressão que dividem os seres humanos de modo

que não reconheçam humanidade uns nos outros. Essas relações estão integradas na totalidade

contraditória do capitalismo e devem ser enfrentadas sob uma perspectiva integrada. Assim,

apesar das ressalvas à expressão “opressões específicas”, pela possibilidade de causar um

entendimento de que de alguma forma são procedimentos separados das relações de classe em

sentido amplo, a entendemos aqui no sentido de se remeter às relações raciais e de gênero

para facilitar a análise.

Essas opressões “específicas” são fundamentais para o capitalismo na medida em que

as relações de produção no capitalismo, “ao tratarem os trabalhadores de forma comum e

unitária no esforço de fornecimento de força de trabalho mercantilizada, ameaçam reduzir a

95
diferença e forjar elos de solidariedade” (BAKAN, 2016, p. 62). Ao relacionar a opressão de

classe com as formulações de Marx de “classe em si” e “classe para si”, Bakan nos fornece a

possibilidade de entender a opressão como um aspecto da “experiência” da classe conforme

Thompson. A autora afirma que

“A condição de opressão da classe não é [...] unidimensional. Aquilo que há em


comum na experiência como uma classe é contraposto pela diferenciação imposta
pela opressão específica, onde grupos definidos dentro e através das classes,
identificados por características determinadas, são sujeitos a práticas
discriminatórias específicas” (BAKAN, 2016, p. 64).

Nesse sentido, a opressão pode ser entendida como a forma com que os setores do

grupo opressor dentro da classe trabalhadora podem explicar seu sentimento de alienação em

relação aos demais. A alienação, segundo Bakan, é o pano de fundo das opressões na medida

em que ajuda em uma “boa recepção” destas. A opressão, assim, opera como expressão

concreta da exploração e da alienação, valendo a ressalva de que

“tanto o opressor quanto o oprimido sofrem alienação, mas a condição de opressor garante

que eles não experimentem sua alienação como uma condição humana comum” (BAKAN,

2016, p. 70).

4.Conclusão: Brasil: Uma totalidade capitalista, racista, (hetero)sexista e dependente

Esse capítulo teve como objetivo estabelecer as bases para análise das relações de

produção e de reprodução social nas quais os sujeitos desta tese – mulheres negras que, de

fins dos anos 1970 ao início dos 1990 fundaram e compuseram suas organizações específicas

– se inserem. Partiu-se, em termos de método, do princípio de que a construção de

conhecimento via dialética não significa o abandono das formulações antigas, mas o

confronto de suas teses com novas perspectivas críticas para a formulação de uma síntese.

96
Assim, foram retomadas algumas de reflexões de autoras e autores significativos para o

pensamento sobre as relações raciais, de gênero e sexualidade na América Latina e,

particularmente, no Brasil. Procurei estabelecer um diálogo crítico entre questões

fundamentais por eles levantadas e formulações recentes de marxistas feministas e

antirracistas, além da obra mais antiga mas ainda extremamente relevante de Edward Palmer

Thompson. Nossa proposta, então, é partir de um entendimento do capitalismo no Brasil

como uma totalidade contraditória, em que as relações de classe, raça, gênero e sexualidade se

co-constituem e determinam-se umas às outras, gerando um entendimento da classe social

como uma unidade dessas relações diversas.

No caso brasileiro, é impossível compreender a formação do capitalismo sem

considerar o racismo e o (hetero)sexismo como elementos que engendraram o sistema como

um todo, sendo ainda fundamentais para a sua reprodução. A experiência da escravidão e seu

caráter patriarcal tiveram impactos significativos na constituição da sociedade brasileira

contemporânea, inclusive em seu aspecto dependente no contexto do capital global. A

exploração e alienação dos grupos dominados, manifesta em práticas de opressão que são

negadas sistematicamente (chegando a constituir um “mito” no caso da difundida ideia de

democracia racial) gerou, entretanto, movimentos de resistência e solidariedade.

Procuraremos, nos capítulos que se seguem, focarmo-nos na agência de mulheres negras que,

vivendo nessas “condições que não escolhem”, viveram e experimentaram essas opressões e

esses laços de solidariedade, constituindo, assim, suas organizações políticas. Retomamos,

para melhor delinear nosso propósito, o tão citado trecho de Thompson com que abre seu A

formação da classe operária inglesa:

“A classe acontece quando alguns homens [e mulheres], como resultado de


experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de
seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e
geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande
medida, pelas relações de produção em que os homens [e mulheres] nasceram – ou
97
entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas
experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de
valores, idéias e formas institucionais.” (THOMPSON, 2015, p. 10)

Ao considerar a classe como uma unidade de relações diversas e, portanto,

contraditórias, a identificação por um grupo de interesses entre si e contra interesses que

diferem dos seus pode ocorrer internamente à classe, na medida em que os processos de

alienação, exploração e opressão atuam. Isso não significa, contudo, uma cisão definitiva na

classe trabalhadora, pois, como visto, esses processos também engendram resistência e

solidariedade.

As relações diversas e contraditórias experimentadas pelas mulheres negras em

aparelhos de hegemonia dos subalternos, mas ainda não específicos para essas mulheres,

serão objeto de análise de nosso próximo capítulo. A forma como experimentaram o racismo,

o sexismo, a LBTfobia30 nos movimentos dos quais participavam nos ajuda a entender o que

as levou ao entendimento quanto à necessidade de criação de organizações específicas.

30
“LBT” é uma sigla utilizada em movimentos de mulheres para designar as denominações que se referem a
mulheres: lésbicas, bissexuais e transgêneros (os dois últimos incluindo mulheres e homens).
98
CAPÍTULO II - Experiência de mulheres negras como experiência de uma classe
trabalhadora contraditória (1970-1990)

No capítulo anterior, foi traçado um panorama geral sobre a totalidade

contraditória capitalista no Brasil, ressaltando particularmente as relações de raça,

classe, sexualidade e gênero como determinantes. A partir disso, o presente capítulo se

concentra no sujeito social que se constitui como agente no objeto de análise desta tese:

as mulheres negras, notadamente entre os anos 1970 e 1990, período crucial para a

formação do movimento de mulheres negras no Brasil.

Vale ressaltar que, embora esteja observando a particularidade da experiência de

mulheres negras, não as considero como um grupo social à parte da classe trabalhadora.

Minha análise, conforme explicitado no capítulo anterior, parte de um entendimento de

classe como “unidade no diverso” (MARX, 1859, s.p.). Com as contribuições da teoria

da reprodução social, entendo classe como unidade contraditória, co-constituída por

múltiplas determinações. Isso, combinado ao entendimento thompsoniano de classe

como categoria histórica, possibilita uma nova abordagem da formação do movimento

de mulheres negras, na medida em que elas são parte integrante da classe trabalhadora,

no sentido marxiano. Embora possam ter “posições de classe”31 diversas, o grupo

“mulheres negras”, que o movimento de mulheres negras pretende organizar, integram a

unidade contraditória da classe trabalhadora: elas são parte da classe.

Dessa forma, a classe trabalhadora em si e para si está presente no contexto aqui

considerado, como sujeito histórico constituído e em constituição. Busca-se analisar,

neste capítulo, a experiência de um grupo pertencente à classe trabalhadora no período

indicado, levando em conta as contradições internas dessa classe, assim como as

relações de solidariedade possíveis frente a tais contradições. As mulheres negras que


31
Uso “posições de classe” no sentido mesmo que Marcel van der Linden (2013), conforme se
destrinchará adiante neste texto.

99
formam suas organizações específicas fazem parte da classe trabalhadora, mas

experimentam o racismo e o (hetero)sexismo a partir de um polo subalternizado dessas

relações. Estudar a história e a agência dessas mulheres me parece uma forma

privilegiada de entender o significado concreto de classe trabalhadora em sentido

ampliado.

Dito isso, o objetivo desse capítulo é delinear a experiência de classe do sujeito

social mulheres negras, primeiro de maneira panorâmica, levando em consideração

principalmente questões relativas a demografia e trabalho (aspecto central para

compreender as relações sociais co-constituídas do capitalismo) e, depois, com o olhar

voltado para as experiências de algumas lideranças do que se virá a se constituir como o

movimento de mulheres negras nos anos 1980 e 1990. Com isso, busco estabelecer uma

caracterização geral sobre a base desse movimento, bem como entender a experiência

de suas lideranças e o “tratamento” que dão a essa experiência em suas narrativas.

1. A classe trabalhadora entre os anos 1970 e 1990: o caso das mulheres negras

Para entender as mulheres negras, base social do movimento analisado nesta

tese, como parte constituinte da classe trabalhadora, é necessário estabelecer algumas

considerações sobre o que significa ser “classe trabalhadora” no capitalismo brasileiro

entre os anos 1970 e 1990. A discussão de Marcel Van der Linden sobre a categoria

“classe trabalhadora” enriquece essa reflexão, acrescida às colocações previamente

estabelecidas em relação às determinações de raça, gênero e sexualidade, que co-

constituem a classe.

O autor argumenta que a visão da ortodoxia marxista sobre a existência de cinco

principais “semiclasses subalternas” – assalariados livres, pequena burguesia,

autônomos, escravos e lumpemproletariado – esconde a complexa realidade do

100
capitalismo, que apresenta “uma variedade quase infinita de tipos de produtores” e

“formas intermediárias” de trabalho bastante fluidas entre essas semiclasses (VAN DER

LINDEN, 2013, p. 30).32

Dentre essas formas, destaco duas, particularmente relevantes para a presente

análise. Primeiro, as “formas intermediárias entre trabalho assalariado e escravidão”,

nas quais os trabalhadores são “menos ‘livres’ do que a versão clássica sugere” e os

empregados se veem presos a seu trabalho por conta de mecanismos diversos (VAN

DER LINDEN, 2013, p. 31-32). Nessas formas, destacam-se “as ligações sociais ou

econômicas entre empregador e empregado externas à relação imediata de emprego

[que] poderiam ter como efeito manter este último preso ao emprego” (VAN DER

LINDEN, 2013, p. 33). Com isso, Van der Linden se refere ao fato de que o grau de

autonomia e, portanto, a “posição de classe” do trabalhador, se torna menor quanto

menor for o poder que ele tem sobre “(i) sua capacidade de trabalho, (ii) seus meios de

trabalho, (iii) o produto de seu trabalho, (iv) os demais membros de sua família, (v) sua

relação com o empregador fora do processo de trabalho imediato e (iv) com seus

possíveis companheiros no processo de trabalho” (VAN DER LINDEN, 2013, p. 42-

43). Assim, “as mulheres, de modo geral, têm menos autonomia que os homens, e a

autonomia dos trabalhadores assalariados é maior do que a dos escravos, mas menor do

que a dos trabalhadores autônomos” (VAN DER LINDEN, 2013, p. 43).f

O autor destaca ainda as “formas intermediárias entre trabalho

assalariado/escravidão/trabalho autônomo e lumpemproletariado”. Elas são

particularmente importantes para pensar trabalho e população negra na sociedade

32
Seriam as cinco semiclasses subalternas: “trabalhadores assalariados livres, eu possuem apenas sua
própria força de trabalho e a vendem; a pequena burguesia, formada por pequenos produtores e
distribuidores de bens que empregam um número reduzido de trabalhadores; os trabalhadores
autônomos, que são proprietários de sua força de trabalho e de seus meios de produção e vendem os
produtos ou serviços resultantes de seu trabalho [...]; os escravos, que não possuem nem força de trabalho
nem suas ferramentas e são vendidos; e o lumpemproletariado, que é totalmente excluído do mercado de
trabalho legalizado” (VAN DER LINDEN, 2013, p. 30).

101
brasileira, uma sociedade “onde a mera subsistência é a norma para grande parte da

classe trabalhadora, e onde homens, mulheres e crianças são obrigados a buscar meios

alternativos de subsistência além dos seus meios tradicionais” (ALLEN apud VAN

DER LINDEN, 2013, p. 35). Van der Linden exemplifica essas formas como situações

em que a miséria leva os trabalhadores a roubos, furtos e à cata de lixo, por exemplo

(VAN DER LINDEN, 2013, p. 35-36).

Diante da compreensão dessas gradações de tipos de trabalho, que abalam a

imagem do trabalhador assalariado livre “clássico”, e do fato de que os trabalhadores

podem, individualmente, exercer mais de um tipo de trabalho dentre tais gradações, o

autor defende o uso do conceito de “trabalhadores subalternos” para identificar tal

“multidão” (VAN DER LINDEN, 2013, p. 40). O que demarca esse grupo, segundo sua

proposta, é a “mercantilização coagida de de sua força de trabalho” VAN DER

LINDEN, 2013, p. 41), em um contexto de “condições de privação e opressão, [de] uma

estrutura solidificada e global, material e institucional da economia, do poder e da

ideologia, [de] indução, mistificação, manipulação e violência” (CASTORIADIS apud

VAN DER LINDEN, 2013, p. 40-41).

A partir dessas colocações, pode-se analisar o contexto em que se inseriu a

classe trabalhadora brasileira a partir dos anos 1970, período que engloba a ditadura

empresarial-militar no país. Segundo Mattos, ao conquistar o Estado, o governo militar

tinha diante de si a tarefa de combater uma crise econômica instalada desde o fim do

governo Juscelino Kubitschek, o que foi feito através de “uma receita cujo principal

remédio seria o arrocho salarial” (MATTOS, 2008, p. 101). Esse arrocho foi combinado

com uma política de repressão aos sindicatos, que passaram a ser tutelados pelo Estado

a partir de 1970, ainda que organizações clandestinas de trabalhadores tentassem manter

alguma ação sindical autônoma no período (MATTOS, 2008, p. 102). Segundo Virginia

102
Fontes, essa “truculência seletiva permanente e naturalizada” pelo Estado favorecia “a

expansão de entidades de aglutinação de interesses e de convencimento social de cunho

empresarial, ao mesmo tempo em que havia dramaticamente constrangido e julgado as

iniciativas organizativas de cunho popular” (FONTES, 2010, p. 226-227).

Em termos demográficos, alguns elementos importantes ajudam a caracterizar a

classe trabalhadora no período. Até 1960,

“a maioria da população brasileira vivia na zona rural e três quartos eram


funcionalmente analfabetos; no mercado de trabalho havia amplo predomínio
masculino [...]; e a desigualdade entre brancos e negros estava fortemente
relacionada com a maior ou menor possibilidade de estudar e obter uma
formação profissional” (ARRETCHE apud PRONI; GOMES, 2015, p. 138).

Na década seguinte, contudo, esse quadro mudou. Mattos e Terra apontam para

um crescimento demográfico urbano dramaticamente rápido nas últimas décadas do

século XX, o que resultou em “todo o tipo de contradições sociais decorrentes desse

inchaço” populacional (MATTOS; TERRA, 2017, p. 191). Esses autores identificam

um “processo de proletarização em curso” entre os anos 1970 e 2010, na medida em que

verificam que o percentual de assalariados no total da força de trabalho cresceu, mas “os

novos postos de trabalho criados nos últimos anos se constituem basicamente em

ocupações de baixa remuração” (MATTOS; TERRA, 2017, p. 197). Sua análise aponta

para o avanço do emprego urbano e do assalariamento, simultaneamente ao aumento do

peso do trabalho informal e a tendência à acentuação da precarização nas relações de

trabalho entre 1970 e 2010. Em relação a esse último aspecto, os autores afirmam que

“as políticas de retirada de direitos, encetadas desde a década de 1980, promoveram

uma ampliação da insegurança estrutural dos trabalhadores e trabalhadoras frente ao

103
mercado de trabalho”, principalmente na periferia do capitalismo (MATTOS; TERRA,

2017, p. 206), como é o caso do Brasil.

A implantação do neoliberalismo no Brasil a partir do governo Collor traz

consigo uma disseminação da terceirização no país, com o objetivo de “redução de

custos [para as empresas privadas], através da flexibilização do trabalho, transferindo a

outrem os riscos e as responsabilidades trabalhistas, o que resulta na intensificação da

precarização da força de trabalho tanto masculina, quanto feminina” (PASSOS;

NOGUEIRA, 2018, p. 486). É também na década de 1990 que o crescimento do setor

de serviços ganha força. Em 1991, o setor terciário passa pela primeira vez a concentrar

a maior parte da força de trabalho, enquanto o percentual que ocupa o setor secundário

(indústrias), que cresceu continuamente até 1980, passa a retroceder a partir da década

seguinte. O PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar – IBGE) de 2015 indica

que 64,5% da população ocupada se encontrava no setor de serviços (MATTOS;

TERRA, 2017).

Em relação à situação demográfica e sócio-econômica das mulheres negras

brasileiras nas décadas em questão, há uma série de dificuldades de obter dados

sistematizados. Sueli Carneiro, em “Mulher negra”, texto cujo objetivo é analisar a

situação desse grupo na Década da Mulher (1975-1985, de acordo com a ONU),

enumerou os seguintes obstáculos:33

“a não coleta sistemática dos dados estatísticos desagregados no quesito cor


pelos órgãos responsáveis pelo recenseamento da população brasileira, sendo
exemplo disso a ausência do quesito cor no recenseamento de 1970; as
poucas tabulações que são divulgadas quando tal quesito é coletado, como é
o caso do Censo de 1980; as mudanças de critério ocorridas de um
recenseamento para outro, dificultando que os dados sejam facilmente
comparáveis, [...], como ocorre com os Censos de 50, 60 e 80” (CARNEIRO,
2019, p. 14).

33
Esse texto foi originalmente publicado em CARNEIRO, Sueli; SANTOS, Thereza. Mulher negra:
política governamental e a mulher. São Paulo: Ed. Nobel/Conselho Estadual da Condição Feminina de
São Paulo, 1985.

104
Desagregando dados obtidos pelo IBGE no Censo de 1980, Carneiro conseguiu

estabelecer estatísticas importantes sobre as mulheres negras paulistas, em particular, e

brasileiras naquele ano. Em relação à escolaridade, Carneiro mostra que quase 90% das

mulheres negras tinham apenas 4 anos de instrução, enquanto esse mesmo nível de

escolaridade era atingido por 69,8% das mulheres brancas e por 51% das amarelas

(CARNEIRO, 2019, p. 21).34 Em relação ao ensino superior, tanto em São Paulo como

no Brasil, as mulheres negras configuravam menos de 1% do contingente total de

estudantes, índice inferior ao das brancas e amarelas em ambos os recortes espaciais. A

desigualdade entre mulheres no ensino superior cresce entre 1960 e 2010, período

analisado na obra Trajetórias de desigualdades (ARRETCHE, 2015). Segundo

Arretche, nesse período “houve expressivo crescimento da participação dos mais

pobres, das mulheres e dos pardos e pretos na vida universitária”, mas esse crescimento

foi paralelo ao das mulheres brancas nesse nível de escolaridade, com taxas de ingresso

muito superiores às da população negra em geral “a ponto de [...] superarem os homens

em termos percentuais a partir de 1991.” (ARRETCHE, 2015, p. 12). Para Sueli

Carneiro, dados como esses permitem antever as perspectivas no mercado de trabalho

dessas mulheres, bem como as condições materiais de existência a que estão submetidas

(CARNEIRO, 2019, p. 22). De fato, segundo Arretche, as relações entre educação e

renda operam em “duas direções, isto é, a origem social afeta o acesso à educação e o

desempenho escolar, assim como há um prêmio associado à educação que distingue

indivíduos mais ou menos escolarizados no mercado de trabalho” (ARRETCHE, 2015,

p. 10).

34
Sueli Carneiro usa as classificações padrão do IBGE, porém agrega “pretas” e “pardas” como “negras”,
mantendo “brancas” e “amarelas”.

105
O melhor acesso das mulheres a níveis superiores de educação se combina com

“uma melhor distribuição da força de trabalho feminina na estrutura ocupacional e a

uma diminuição da concentração de mulheres em grupos específicos de ocupação”,

mudanças observáveis já entre 1960 e 1980 (HASENBALG; VALE apud CARNEIRO,

2019, p. 27-28). Uma análise da estrutura ocupacional da População Economicamente

Ativa (PEA) nesse período, no entanto, revelou um “confinamento” das mulheres

negras “nos setores do baixo-terciário”, estando esmagadoramente presentes na

prestação de serviços (CARNEIRO, 2019, p. 26-27).

O setor terciário, a terceirização e a informalidade guardam íntima relação entre

si. Os dois últimos podem ser considerados componentes cruciais da precarização no

Brasil, à que me referi anteriormente, acentuada em nossa realidade a partir da

introdução de políticas econômicas neoliberais. De acordo com Passos e Nogueira,

“existe uma preponderância de que esses trabalhos terceirizados, tanto no


setor público quanto no privado, sejam aqueles voltados ao segmento da
prestação de serviços, que de certa forma, apresentam características como a
baixa remuneração, trabalhos repetitivos, pouca exigência de qualificação,
etc., como os setores de limpeza e zeladoria, onde exatamente as mulheres
estão mais inseridas” (PASSOS; NOGUEIRA, 2018, p. 489).

Cabe lembrar, nesse ponto, a colocação de Lélia Gonzalez, no início dos anos

1980, quanto à presença massiva de mulheres negras nesse tipo de atividade “sob a

denominação genérica de ‘servente’” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 44-45). Os dados

levantados por Carneiro corroboram essa afirmação.

A prestação de serviços, de acordo com a definição do IBGE para o censo de

1980, inclui “categorias profissionais dos proprietários nos serviços, ocupações

domésticas remuneradas, ocupações dos serviços de alojamentos e alimentação;

ocupações dos serviços de higiene pessoal, atletas profissionais e funções afins;

porteiros, ascensoristas, vigias e serventes” (CARNEIRO, 2019, p. 34). Carneiro

106
observou, nesse grupo profissional, que “a cor funciona, em relação às mulheres negras,

como fator não somente de expulsão da população feminina negra para as piores

atividades do mercado de trabalho, como também determina os mais baixos

rendimentos, mesmo nessas funções subalternas” (CARNEIRO, 2019, p. 36). Isso

porque, comparando remunerações de trabalhadoras subalternas negras e brancas na

prestação de serviços, as negras constituíam em 1980 o maior percentual a receber os

menores salários (menos de ¼ do salário mínimo) (CARNEIRO, 2019, p. 34-35).

Dentre as ocupações integrantes da prestação do serviços, o emprego doméstico

é crucial para pensar a situação das mulheres negras nas relações de trabalho no Brasil.

Carneiro afirma que não pôde obter os dados específicos em relação a esse tipo de

ocupação, mas admite a hipótese de que as mulheres negras alocadas na prestação de

serviço tão principalmente empregadas domésticas. A autora ressalta o impacto da

escravidão e da exclusão social no pós-abolição na conformação de tal quadro,

afirmando que

“nem a ‘tradição’ nem o ‘know how’ que, historicamente, vimos acumulando


em tais funções são suficientes para que ao menos nessas ocupações as
mulheres negras percebam rendimentos semelhantes aos das mulheres
brancas. Ao contrário, [...] somos mais desprotegidas em termos de garantias
sociais” (CARNEIRO, 2019, p. 36-37).

No ano 2000, o emprego doméstico era ocupado por 90% de mulheres – dentre

as quais se pode considerar a hipótese de uma maioria de mulheres negras e/ou de

origem nordestina ou nortista –, sendo que, do contingente total, dois em cada três

trabalhadores estavam em situação de informalidade naquele ano (MATTOS; TERRA,

2017, p. 198). Fazendo ecoar a colocação de Carneiro, vale assinalar que informalidade

significa, antes de mais nada, a negação do acesso aos direitos garantidos pela

assinatura da carteira de trabalho.

107
Cabe, nesse ponto, retomar as considerações de Marcel Van der Linden sobre os

diferentes graus de autonomia dos trabalhadores considerando as formas intermediárias

de trabalho entre trabalho assalariado e escravidão. Conforme o autor, quanto menor o

poder do trabalhador sobre elementos como sua relação com o empregador fora do

processo de trabalho imediato, menor seu grau de autonomia. Essa caracterização pode

ser complexificada quando combinada com as considerações de Carmen Hopkins

(2017), autora ligada à Teoria da Reprodução Social, sobre o trabalho doméstico

assalariado, predominantemente realizado por mulheres racializadas. Embora sua

pesquisa se foque em mulheres imigrantes no Canadá, tocando na experiência de

mulheres afro-americanas, há alguns pontos de convergência interessantes em termos

teóricos e históricos. Citando uma pesquisa sobre o emprego doméstico em Michigan,

Hopkins afirma que:

“Quando empregadores de trabalhadoras domésticas assalariadas


contemporâneas são famílias ou lares (em oposição a agências e empresas), a
relação empregatícia é frequentemente firmada nas relações mestre-servo da
escravidão histórica. Ainda que o trabalho pago de reprodução social seja em
geral degradante, há características específicas do trabalho doméstico pago
para empregadores que são indivíduos ou famílias que se distinguem de
agências de empregadas, enfermeiras, servidoras(es) home care pessoal,
professoras e zeladores. Trabalhadoras domésticas assalariadas tendem a ser
sócio-espacialmente isolados porque não tem colegas de trabalho, não são
sindicalizados e são frequentemente excluídos das leis trabalhistas”
(HOPKINS, 2017, p. 150, tradução minha).

A relação entre emprego doméstico e informalidade – e portanto, negação de

direitos trabalhistas, fica mais uma vez patente, mas destaca-se ainda o importante

elemento do isolamento sócio-espacial das trabalhadoras que trabalham no espaço do lar

alheio. Segundo Hopkins, essa ligação entre lar e trabalho “fez do emprego doméstico

um exemplo privilegiado dos espaços sobrepostos de produção e reprodução”

(HOPKINS, 2017, p. 152, tradução minha). Ela argumenta que, particularmente no caso

de empregadas domésticas que dormem no trabalho (o lar dos empregadores), é

108
fundamental considerar o tempo de cuidado não-pago exercido por longas horas, o que

limita a quantidade de tempo que podem dedicar a suas próprias necessidades de

reprodução social (HOPKINS, 2017, p. 160, tradução minha) – ou, dito de maneira

simples, o cuidado consigo e com os seus. Assim, enquanto o trabalho dessas mulheres

permite que seus empregadores equilibrem seu trabalho (inclusive o produtivo) e suas

obrigações familiares, elas são tratadas como se não tivessem suas próprias

responsabilidades relativas a esse cuidado não pago (HOPKINS, 2017, p. 160, tradução

minha).

Voltando à análise de Sueli Carneiro, também são observadas as diferenças de

rendimento entre homens e mulheres negras nos diversos grupos ocupacionais, sendo

que as últimas estão constantemente em desvantagem em relação aos primeiros.

Comparando os dados do Brasil e de São Paulo em 1980, ela percebe que: 1) mulheres e

homens negros de São Paulo aparecem melhor distribuídos nas faixas de rendimento em

relação ao Brasil, o que expressa as “vantagens” relativas oferecidas pelo estado; 2) as

diferenças de renda auferida entre homens e mulheres negras são mais acentuadas em

São Paulo do que no Brasil (CARNEIRO, 2019, p. 41). Esses dados levam a autora à

suposição de que

“as melhores chances de trabalho encontradas em São Paulo vêm


acompanhadas da exacerbação dos efeitos tanto do racismo quanto do
sexismo, considerando que tanto a competição entre homens e mulheres se
acirra no mercado de trabalho quanto a competição entre os grupos raciais, já
que no resto do país o confinamento dos dois grupos a seus lugares ‘naturais’
é maior” (CARNEIRO, 2019, p. 41)

Até aqui, foi estabelecida uma caracterização da classe trabalhadora

aproximadamente entre as décadas de 1970 e 1990, com destaque especial à situação

das trabalhadoras negras, cujas informações foram extraídas principalmente da análise

feita por Sueli Carneiro de dados do Censo de 1980. O quadro apresentado revela que as

109
mulheres negras, no período considerado, não apenas são integrantes da classe

trabalhadora, mas constituem a maioria dos trabalhadores subalternos, na expressão de

Van der Linden, tanto no contexto nacional quanto em uma região de maior

desenvolvimento urbano e econômico, como é o caso de São Paulo. Essa é, portanto, a

base social que o movimento de mulheres negras, com as organizações que surgem a

partir dos anos 1980, se propõe a representar. Entender essa composição social é

fundamental para pensar as demandas sociais das organizações e suas formas de

atuação, como será feito mais adiante nesta tese. No presente ponto, me voltarei para

algumas lideranças do movimento de mulheres negras, buscando principalmente

compreender sua experiência organizativa, além de suas trajetórias pessoais e origens

sociais. A partir disso, poderá ser estabelecida uma comparação entre a base do

movimento e suas lideranças, bem como uma análise das narrativas sobre a formação do

movimento de mulheres negras em seu estágio “embrionário”, com foco na experiência

de classe veiculada do ponto de vista dessas lideranças.

2. Experiências de mulheres negras brasileiras em movimentos sociais nas décadas de

1960 a 1980

O objetivo deste item é analisar de que forma algumas mulheres, que se

tornaram lideranças de organizações específicas de mulheres negras, experimentaram as

relações de gênero, sexualidade, raça e classe em movimentos sociais anteriormente à

fundação daquelas organizações nos anos 1980 e 1990. Embora essas relações se

encontrem co-constituídas na realidade social, elas são frequentemente percebidas e

nomeadas de formas diversas por essas lideranças. Buscaremos identificar em seus

depoimentos tanto as expressões sentidas separadamente, sob forma de racismo,

110
sexismo etc., quando o aspecto integrado (co-constituído) de tais relações. A

experiência organizativa nesses movimentos, com seus limites, dificuldades e

aprendizado, é também objeto de nossa análise.

As fontes utilizadas são entrevistas realizadas com intelectuais orgânicas do

movimento de mulheres negras que atuaram em organizações específicas a partir de fins

dos anos 1980. O material que baseia esta parte da tese, então, tem relação com duas

categorias complexas e fundamentais para a história: experiência e memória. A

categoria “experiência” é entendida conforme formulada por E.P. Thompson, tal qual

apontado no capítulo anterior. Isso significa que a experiência aparece aqui como um

termo médio entre as relações sociais de produção (o “ser social”) e a consciência

social, ou seja, ela está envolvida no processo através do qual sujeitos “experimentam

suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e

como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua

cultura [...] das mais complexas maneiras [...] e em seguida [...] agem, por sua vez,

sobre sua situação determinada” (THOMPSON, 1981, p. 182). O trabalho com fontes

orais não nos revela a experiência diretamente, mas um aspecto do seu “tratamento”:

narrativas de memória construídas a partir dela, da consciência, da cultura e da ação

social. Assim, minha análise busca menos os “fatos” do que as formas com que as

mulheres entrevistadas sentiram, trataram, enquadraram35 e, finalmente, narraram sua

experiência.

Já a categoria “memória” é entendida com base em discussões de dois autores

clássicos do campo da história oral: Michel Pollak e Alessandro Portelli. Em “A

filosofia e os fatos”, Portelli discute a questão da presença da subjetividade nas fontes

orais ou narrativas de memórias, argumentando que não se trata de um obstáculo aos

35
Referência ao conceito de “trabalho de enquadramento da memória”, de Michel Pollak (1989).

111
estudos históricos, mas precisamente de uma riqueza passível de ser analisada

(PORTELLI, 1996, p. 4). Segundo o autor, trabalhando com fontes orais “não dispomos

de fatos, mas dispomos de textos; e estes, a seu modo, são também fatos, ou o que é o

mesmo: dados de algum modo objetivos, que podem ser analisados e estudados com

técnicas e procedimentos em alguma medida controláveis” (PORTELLI, 1996, p. 4). A

ideia de que a história oral “nos conta menos sobre eventos que sobre seus

significados”, de acordo com Portelli, “não significa que [...] não tenha validade factual.

Entrevistas frequentemente revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos

de eventos conhecidos” (PORTELLI, 1991, p. 67). A dimensão relativa aos eventos está

presente, mas não é predominante, na medida em que as “fontes orais nos contam não

apenas o que as pessoas fizeram, mas o que elas queriam fazer, o que elas acreditavam

estar fazendo e o que elas agora acham que fizeram” (PORTELLI, 1991, p. 67).

Michel Pollak, por sua vez, se debruçou sobre a relação entre memória e a

construção de identidades coletivas. Embora não use especificamente o conceito de

“identidade” nesta tese, a noção de grupo social e o processo de identificação desse

grupo de seus interesses em comum e dos interesses opostos que têm com relação a

outros grupos (para retomar o léxico thompsoniano) é fundamental para as presentes

reflexões. Pollak ressalta a dimensão política expressa em narrativas com esse tipo de

relação, aludindo “a todos os investimentos que um grupo deve fazer ao longo do

tempo, todo o trabalho necessário para dar a cada membro do grupo [...] o sentimento de

unidade, de continuidade e de coerência” (POLLAK, 1992, p. 7). As implicações dos

pertencimentos políticos das entrevistadas nas narrativas orais aqui destrinchadas são

um ponto importante a ser levado em conta na análise.

A historiadora Verena Alberti adverte que é importante para a análise das

entrevistas

112
“saber quem é o entrevistador e como ele se apresentou, para entendermos a
relação de entrevista que ali se estabeleceu e, por extensão, entendermos (ou
procurarmos entender) por que o entrevistado disse o que disse. O
entrevistado também fala para nossas instituições, depositárias das entrevistas
e, muitas vezes, vistas como depositárias da própria ‘História’. [...] Em
alguns casos, o entrevistado também fala para a comunidade acadêmica, para
aqueles que vão escrever a história daquele acontecimento ou período. E,
finalmente, ele fala para os pares – tanto os que participaram do mesmo
movimento ou ação como os opositores” (ALBERTI, 2012, p. 162-163)

Das entrevistas analisadas neste e nos demais capítulos, duas foram conduzidas

por mim (Neusa das Dores Pereira e Vanda de Souza Ferreira, em 2017), uma pela

equipe coordenada por Márcia Contins que realizou uma pesquisa sobre raça e gênero

no Brasil na CIEC/UFRJ entre 1996 e 1998 (Joselina da Silva, sem data registrada), e as

demais por Verena Alberti e Amílcar Pereira, no âmbito do projeto História do

Movimento Negro no Brasil, ligado ao CPDOC/FGV (Lúcia Xavier, em 2003 e 2004, e

Edna Roland, Jurema Batista e Sueli Carneiro, em 2004). Assim, há diferenças

significativas no contexto de realização de cada entrevista. A maioria delas foi realizada

por pesquisadores renomados, vinculados a instituições e projetos de pesquisa de grande

alcance, enquanto as entrevistas realizadas por mim se deram num cenário mais

simplório, por assim dizer, tendo me apresentado como estudante de doutorado da

Universidade Federal Fluminense realizando pesquisa para minha tese sobre o

movimento de mulheres negras. Meu caminho até as entrevistadas foi percorrido através

de relações pessoais: no caso de Vanda Ferreira, sua sobrinha Djamila, para quem dei

aulas durante um período, viabilizou nosso contato; no caso de Neusa Pereira, fiz uma

disciplina da pós-graduação com Edmeire Exaltação, vinculada à Casa das Pretas, que

me apresentou à Neusa.

É importante sublinhar que a presente seleção de entrevistas não pretende

representar a íntegra das experiências das mulheres negras como sujeito coletivo –

113
mesmo porque, como disse Jurema Werneck, “as mulheres negras não existem”.36 Em

relação à questão da representatividade de entrevistas individuais, Portelli coloca as

seguintes perguntas: “como é possível tirar conclusões generalizadoras de um episódio

individual? O que nos autoriza” a pensar que alguns entrevistados “são, como se

costuma dizer, representativos?” (PORTELLI, 1996, p. 3). O autor traz respostas que

ajudam a explicitar a forma como lido com as entrevistas:

“No plano textual, a representatividade das fontes orais e das memórias se


mede pela capacidade de abrir e delinear o campo das possibilidades
expressivas. No plano dos conteúdos, mede-se não tanto pela reconstrução da
experiência concreta, mas pelo delinear da esfera subjetiva da experiência
imaginável: não tanto o que acontece materialmente com as pessoas, mas o
que as pessoas sabem ou imaginam que possa acontecer. E é o complexo
horizonte das possibilidades o que constrói o âmbito de uma subjetividade
socialmente compartilhada” (PORTELLI, 1996, p. 7-8)

Esse trecho retoma as questões da subjetividade como riqueza e dos sentidos

atribuídos à experiência como aspectos fundamentais do trabalho com memória e fontes

orais. Mas avança no entendimento quanto à memória para além do seu aspecto

individual. Portelli é crítico da ideia de uma “memória coletiva”, mas entende que

depoimentos individuais apresentam “um campo de possibilidades compartilhadas” por

sujeitos sociais (PORTELLI, 1996, p. 9). Mais que coletiva, a memória é social. É com

isso em vista que me proponho a realizar uma análise qualitativa de trajetórias diversas

que se apresentam como possibilidades no interior de uma experiência mais geral,

entendendo as particularidades de cada uma e aquilo que compartilham entre si.37

36 “Ou, falando de outra forma, as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado
de uma articulação de heterogeneidades”. A autora se refere aos processos históricos de colonização,
racismo, sexismo, capitalismo e seu vigor contemporâneo, bem como à resistência a esses processos, sem
os quais “talvez não houvesse mulheres negras” (WERNECK, 2010, p. 10-11).
37
O esforço de catalogação de organizações pelo Brasil e de estabelecimento da miríade de intelectuais
negras atuantes no período em questão é, também, trabalho fundamental, mas difere do objetivo da
presente tese. Um interessante esforço nesse sentido consiste no livro Mulheres Negras do Brasil,
organizado por Schumaher e Vital Brazil (2007).

114
Além de abrangerem a totalidade do recorte cronológico abordado nesta

pesquisa (exceto o de Joselina, que vai até meados da década de 1990), ainda que de

perspectivas diversas a partir do momento em que se dão, as entrevistas são, no geral,

muitíssimo ricas. Aquelas realizadas no contexto do projeto História do Movimento

Negro (CPDOC/FGV) recuperam as trajetórias individuais das entrevistadas, superando

uma abordagem exclusivamente temática. Busquei, nas entrevistas que conduzi,

abordagem similar, ainda que com o olhar orientado para as relações sociais co-

constituídas na trajetória individual e coletiva das entrevistadas. A entrevista conduzida

pela equipe do CIEC/UFRJ buscou também abordar história de vida, assim como a

experiência individual e coletiva no movimento negro e de mulheres negras, mas em

depoimento mais reduzido do que os demais analisados nesta tese.

A escolha das entrevistadas supracitadas se deu por uma conjunção de fatores.

Primeiramente, elas têm em comum a atuação como intelectuais orgânicas em

organizações de mulheres negras brasileiras de alcance internacional, tendo atuado em

ONGs, no Estado restrito, conforme a concepção de Antonio Gramsci, e em eventos

internacionais organizadas pelas chamadas organizações multilaterais. Todas essas

intelectuais continuavam atuantes no movimento de mulheres negras até o momento de

redação da tese, o que muitas vezes significou dificuldade de acesso para realização de

entrevistas por mim. Felizmente o acervo do CPDOC foi uma fonte de depoimentos

fundamental, sendo possível acessar integralmente as entrevistas realizadas no projeto

História do Movimento Negro.38

A seguir, será desenvolvida uma breve discussão sobre a origem histórica do

movimento de mulheres negras, destrinchando o recorte cronológico que a pesquisa

38
O livro Histórias do Movimento Negro (ALBERTI; PEREIRA, 2007) reúne esses depoimentos em
versão editada e ordenada conforme um roteiro temático. Foi importante ter acesso às versões integrais
das entrevistas, que constam no acervo da instituição e podem ser consultadas, no formato de áudio, no
CPDOC-FGV.

115
enfoca diante de uma perspectiva, presente em alguns depoimentos e na literatura sobre

o assunto, de que esta origem coincide com a chegada das mulheres africanas

escravizadas ao Brasil. Depois, o olhar se volta para as trajetórias das entrevistadas,

particularmente sobre sua origem familiar e formação escolar/acadêmica, assinalando-se

ainda as principais organizações de que participaram ao longo da vida. A experiência

organizativa dessas mulheres, então, passa ao centro da discussão, através da análise de

narrativas sobre suas vivências em organizações de resistência contra a ditadura militar,

no movimento negro contemporâneo e no movimento feminista.

1. “Nossos passos vem de longe” 39: breve comentário sobre a origem do movimento

de mulheres negras

Ao comentar sua participação em movimentos sociais desde os anos 1960,

Neusa das Dores Pereira localiza o início da “organização de mulheres negras” em

meados da década de 1980, fazendo, contudo, imediata ressalva:

“Quer dizer, isso aí é uma fala muito perigosa... O que eu tenho pra dizer pra
você é que mulheres negras se organizaram no Brasil desde que aqui
40
chegaram. Tem a Irmandade da Boa Morte , você tem as mulheres nas
confrarias, entendeu? Eu tô falando dessa forma como a gente está hoje”
(PEREIRA, 2017, s.p.).

Observação similar foi feita por Joselina da Silva no Simpósio Temático

"Pensamento de mulheres negras na diáspora" do Seminário Internacional Fazendo

39
WERNECK, 2010.
40
As irmandades religiosas foram uma tradicional forma de associativismo entre africanos e afro-
descendentes escravizados, libertos e livres no Brasil desde o período colonial, tendo como funções
principais a realização de ritos religiosos, de caridade e, em alguns casos, esforços para libertar do
cativeiro seus membros (KARASCH, 2012, p. 53). Neusa Pereira aqui provavelmente se refere à
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, confraria secular criada em Salvador, Bahia, no início do
século XIX, transferindo-se para a cidade de Cachoeira posteriormente. A marcante especificidade dessa
Irmandade foi ter sido criada e mantida exclusivamente por mulheres negras, vindo ainda a dar origem ao
terreiro de candomblé Iyá Omi Axé Intilá e, a partir desse, a outros terreiros (SILVA, 2005).

116
Gênero 11, realizado entre 30 de julho e 04 de agosto de 2017 na Universidade Federal

de Santa Catarina (UFSC), no qual apresentei parte da presente pesquisa. Joselina, que

além de intelectual orgânica do movimento de mulheres negras e estudiosa do tema

(SILVA; PEREIRA, 2014), apontou sua discordância em relação ao recorte cronológico

de minha pesquisa, ao defender, como Neusa Pereira, a noção de que as “mulheres

negras se organizaram no Brasil desde que aqui chegaram”.

Por um lado, o recorte cronológico desta pesquisa se refere, como aponta a fala

de Neusa, ao modo como o movimento “está hoje”, ou seja, a partir de um referencial

organizativo contemporâneo, como similarmente historiadores classificaram o

movimento negro a partir de 1978 (PEREIRA, 2013; DOMINGUES, 2007). Assim,

localizar o movimento de mulheres negras nesse recorte não significa desqualificar as

formas de resistência anteriores, mas diferenciar os processos e contextos históricos

com o devido cuidado. Por outro lado, a afirmação por parte de mulheres que

construíram esse movimento “como está hoje” de que o início da organização de

mulheres negras coincide com a própria presença delas no Brasil, inaugurada pelo

tráfico negreiro, é em si um elemento significativo interessante para análise.

Primeiro, chama atenção a continuidade trans-histórica do sujeito “mulheres

negras” nesse tipo de colocação. Se o movimento de mulheres negras é protagonizado

por “nós” e esse mesmo movimento existe desde que as mulheres negras “aqui

chegaram”, então esse “nós” apresenta uma continuidade entre as que chegaram do

continente africano no Brasil pelas garras do tráfico negreiro e as que atuam em

organizações políticas contemporâneas. Essa continuidade pode começar a ser entendida

através daquilo que Michel Pollak chama de “elementos constitutivos da memória”,

sendo eles: 1) os “acontecimentos vividos pessoalmente” e; 2) os acontecimentos

117
“vividos por tabela”, ou seja, “pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente

pertencer”, grupos esses

“dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram
tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga
saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos
vividos por tabela vêm a se juntar todos os eventos que não se situam dentro
do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível
que, no meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um
fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão
forte que podemos falar numa memória quase que herdada” (POLLAK,
1992, p. 2).

Assim, há uma dimensão política inerente a esse “nós” trans-histórico

identificado em posições como as de Neusa e Joselina. Para aprofundar o entendimento

dessa questão, vale retomar também a categoria de experiência de Thompson. O

historiador afirma que a classe acontece “como resultado de experiências comuns

(herdadas ou partilhadas)” pelos sujeitos históricos (THOMPSON, 2015, p. 10). É

possível considerar como experiências “herdadas” toda uma tradição de luta, resistência

e organização de mulheres africanas e afro-descendentes no Brasil. Já as experiências

“partilhadas” envolveriam aquelas vividas pelas intelectuais orgânicas do movimento de

mulheres negras que aparecem como sujeitos no recorte cronológico nesse trabalho,

bem como as apropriações e ressignificações feitas em torno dessa tradição organizativa

“herdada”. Com tais reflexões em vista, consideramos que a afirmação da origem do

movimento como coincidente com a chegada das mulheres africanas ao Brasil revela

uma construção discursiva da memória sobre o movimento que:

a) unifica a experiência das mulheres afrodescendentes no Brasil

contemporâneo a uma ancestralidade feminina africana e afro-brasileira sob

uma tradição história de luta, resistência e organização;

118
b) confere bases simbólicas e constrói uma identidade sólida para o movimento

cujas organizações específicas despontaram em fins dos anos 1980;

c) recupera uma história de resistência das mulheres negras que oferece

elementos para a construção de um repertório organizativo através da

recuperação, reconstrução e ressignificação de trajetórias individuais e

coletivas e de processos históricos de organização e de luta.

A obra “Mulheres Negras no Brasil”, organizada por Schuma Schumaher e Érico

Vital Brazil (2007), que contou com a participação de intelectuais negras/os na sua

elaboração, recupera essa tradição organizativa:

“Nas últimas décadas do século XVI, as mulheres africanas começaram a


chegar ao chamado Novo Mundo, ou seja, após serem apresadas pelos
europeus em suas terras, foram trazidas brutalmente para as Américas, onde
em diferentes territórios recém-‘descobertos’ foram cruelmente exploradas.
Roubaram delas parte da liberdade e muitas vidas, mas não a memória e os
traços de identidade. Desde os primeiros momentos resistiram, lutaram e
geraram soluções. Ao longo do tempo reinventaram verdadeiramente um
Mundo Novo, no qual plantaram sementes e valores que brotaram
floresceram e deram os mais variados, belos e vigorosos frutos.”
(SCHUMAHER; VITAL BRAZIL, 2007, p. 23)

A localização da origem do movimento de mulheres negras no momento em que

“aqui chegaram” também se apresenta como um contra-argumento para a explicação de

que “o surgimento das organizações e movimentos de mulheres negras no Brasil [teria

se dado] pelo fato destas não encontrarem espaço no movimento feminista e no

movimento negro, de não serem ouvidas ou contempladas nesses movimentos”

(ALMEIDA, 2014, p. 108). Essa premissa, de acordo com Lady Christina Almeida, “é

extremamente simplista e superficial”, na medida em que desconsidera o fato de que as

mulheres negras “sempre se organizaram” (ANA apud ALMEIDA, 2014, p. 108, grifo

meu).

119
Ampliando o escopo da análise, a ideia de que a origem da resistência da

população negra do Brasil coincide com seu momento de chegada a estas terras – ou

seja, desde sempre – aparece na historiografia desde a obra fundamental de Clóvis

Moura, historiador negro cujas intervenções foram decisivas na historiografia sobre

escravidão e resistência. Moura afirmava, já em 1959, que “o negro brasileiro sempre

foi um organizador” (MOURA, 1983, p. 143, grifo meu). Ele sistematiza a ideia de que

haveria um “espírito associativo do negro brasileiro”, de análises precedentes, no

entendimento de que “em toda a nossa história social vemos os negros se organizando”,

mesmo que em “organizações frágeis e um tanto desarticuladas, mas sempre constantes:

quilombos, confrarias religiosas, irmandades, cantos na Bahia, grupos religiosos [...]”

(MOURA, 1983, p. 143). Do entendimento de que as organizações negras de resistência

no Brasil sempre existiram para uma identificação da origem do movimento negro em

sua chegada no Brasil como escravizados não se dá um passo assim tão largo. Isso, sem

dúvida, envolve uma dimensão de intervenção política com vistas a enfrentar a noção,

predominante até a intervenção de Moura, do “escravo coisa”, segundo a qual os

escravizados eram passivos às violências sofridas. Similarmente, a noção de que o

movimento de mulheres negras começa com a resistência das mulheres escravizadas no

Brasil, coincidente à sua chegada nesse país, tem sentido político de enfrentamento e de

fortalecimento do sujeito coletivo mulheres negras em luta na contemporaneidade.

Com isso, não pretendo ler como incorretos tais entendimentos, mas os tomo

como objetos de reflexão em si. Analiticamente, é possível distinguir uma história de

organização e resistência das mulheres negras no Brasil, que integra um repertório

organizativo fundamental para sua experiência de classe, de uma memória de

organização e resistência dessas mulheres, que é construída e reconstruída pelas

mulheres negras da contemporaneidade ao mobilizarem personagens, movimentos e

120
conceitos históricos que, ressignificados, se expressam de diversas formas na sua

mobilização política contemporânea.

Essa questão é destrinchada de modo interessante por Jurema Werneck em seu

artigo “Nossos passos vêm de longe”, frase que se tornou uma espécie de lema no

movimento de mulheres negras contemporâneo.41 A autora aborda a história e a

memória de organização e resistência das mulheres negras brasileiras desde as tradições

iorubá e dos povos bantu até os dias atuais, retomando tanto figuras simbólicas e

divindades quanto experiências históricas de organização e resistência política. Segundo

ela, entre os

“diferentes repertórios ou pressupostos de (auto)identificação ou de


identidade e de organização política [...] estão alguns dos mitos sagrados
presentes no Brasil desde que a diáspora africana foi criada. Eles referem-se a
figuras femininas que atuaram e ainda atuam como modelos, como
condutores de possibilidades identitárias para a criação e recriação de
diferentes formas de feminilidade negra. Assinale-se aqui uma visão da
tradição como repertório maleável e mutante, que responde a contextos
históricos, políticos e, principalmente, a projetos de futuro.” (WERNECK,
2010, p. 11)

Assim como a história e a memória de organização e resistência são elementos

que constituem a experiência de classe das intelectuais orgânicas que fundaram

organizações específicas de mulheres negras a partir dos anos 1980, igualmente

constitui essa experiência o modo com que viveram, lidaram – enfim, experimentaram –

individual e coletivamente as relações co-constituídas de gênero, sexualidade, raça e

classe em suas trajetórias pessoais e políticas. A experiência vivida e partilhada em

movimentos sociais mistos, frequentemente marcados por racismo e (hetero)sexismo, é

considerada fundamental para a formação da consciência de classe das mulheres negras

41
Cf. GÓES, Emanuelle. Mulheres negras em marcha, esses passos vêm de longe. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/mulheres-negras-em-marcha-esses-passos-vem-de-longe/>. Acesso em: 16
jan. 2019.

121
como protagonista político específico. Nesse sentido, os limites encontrados nas

organizações mistas nas quais muitas mulheres negras que viriam a fundar organizações

específicas estavam inseridas constituem, também, elementos fundamentais para

compreender a formação do movimento de mulheres negras nas décadas de 1980 e

1990. Compreender isso não significa reduzir o surgimento do movimento de mulheres

negras a esses limites e dificuldades, conforme a crítica apontada por Lady Christina

Almeida. Todavia não se pode deixar de considerar tais questões no conjunto da

experiência que integra a formação desse movimento.

Estabelecidas essas discussões iniciais, pode-se adentrar propriamente nas

análises das entrevistas.

2. Biografias das entrevistadas

Neusa das Dores Pereira conta que nasceu no Rio de Janeiro em 1945, embora

conste o ano de 1943 em sua certidão de nascimento. Com pai ausente, é filha “só de

mãe” (PEREIRA, 2017, s.p.), uma trabalhadora doméstica que a levava consigo para as

casas onde trabalhava. Neusa conta que sua mãe desempenhava “um papel de liderança”

no morro onde moravam, alimentando muitas das mulheres vizinhas com a comida que

as “pessoas abastadas” para quem trabalhava jogavam fora: “Ela era chamada ‘mãe do

morro’ por causa disso”. Além de alimentar essas mulheres, a “mãe do morro” exercia

uma função de proteção contra a violência sofrida por elas:

“Então quando alguém batia na mulher ou alguém fazia alguma coisa, as


pessoas chegavam pra ela. Ela tinha uma autoridade moral, porque não tinha
nem marido, nem era líder espiritual, não tinha religiosidade por trás. Mas ela
mandava chamar o homem na minha casa e conversava com ele firme: ‘O
senhor não vai mais bater na sua mulher, chama sua mulher aqui, por que
você bate nela?’ Ela tinha sempre uma coisa assim. Eu me lembro de
algumas passagens [...] dela chamando os homens pra uma conversa e
protegendo as mulheres. As mulheres apanhavam e corriam lá pro nosso

122
barraco, que ela deixava a chave com alguém. E lá eles não iam. Aquele lugar
era um lugar seguro. E eu venho resgatar esse espaço agora, na minha
militância. Safe space... Não sei porque eles não entravam na minha casa.
Mas as mulheres pegavam a chave com a vizinha, que ela deixava, e ficavam
na minha casa”(PEREIRA, 2017, s.p.).

Com o apoio da mãe, Neusa formou-se professora no prestigioso Instituto de

Educação do Rio de Janeiro: “foi uma festa na minha rua! Quando eu botava o

uniforme, não é exagero não, tinha gente que aplaudia” (PEREIRA, 2017, s.p.). Estudou

Psicologia na Universidade Gama Filho e se graduou em Português-Literaturas pela

Faculdade São Judas Tadeu em 1984. Ingressou em organizações de movimentos

sociais no sindicato dos professores, à época CEP (Centro Estadual de Professores),

vindo posteriormente a fundar o Grupo de Mulheres Negras de Jacarepaguá no fim dos

anos 1980. Integrou ainda o CEAP (Centro de Articulação de Populações

Marginalizadas), ONG fundada por ex-alunos da antiga FUNABEM (Fundação

Nacional do Bem-Estar do Menor), onde participou do Programa de Mulheres. Fez

parte do grupo que fundou a ONG Criola em 1992, organização da qual saiu em 1994,

ano em que fundou o Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher. A partir

de Coisa de Mulher, fundou a Casa das Pretas em 2017.

Vanda de Souza Ferreira nasceu em 1947 em Niterói, Rio de Janeiro. Ela

conta que seu pai foi “menino de rua”, “moleque de recado de Madame Satã”42 e que,

tendo vivido na região do Saara, um centro comercial da cidade do Rio de Janeiro, teve

apoio dos comerciantes portugueses e árabes da região para constituir a vida, vindo a

tornar-se, quando adulto, motorista de táxi (FERREIRA, 2017, s.p.). Em uma breve

biografia cedida por ela, consta que foi politicamente influenciada pelo trabalhismo, por

42
Madame Satã (1900-1976), epíteto de João Francisco dos Santos, foi um capoeirista, folião, boêmio e
"malandro" pernambucano radicado no Rio de Janeiro. Negro e homossexual, Madame Satã ficou assim
conhecido por travestir-se no carnaval, entre 1938 e 1941, batizando sua fantasia de "Madame Satã",
inspirado em filme homônimo de Cecil B. DeMille. Cf. “Madame Satã: o arquétipo da malandragem”.
Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?p=40727>. Acesso em: 11 out. 2019.

123
conta da participação de seu pai no sindicato dos motoristas de táxi.43 Como no caso de

Neusa, Vanda conta também que sua mãe foi empregada doméstica e exerceu um papel

de liderança comunitária, inclusive em uma interessante passagem sua pelos Estados

Unidos:

“Porque, aos 12 anos de idade, ela se apaixona pelo inquilino do meu avô,
que tinha 22 anos. E meu avô trabalhava no arsenal de Marinha, analfabeto.
Fazia navios olhando nuns livros todos escritos em inglês, só decodificando
os desenhos. [...] E aí todo dia a minha avó fazendo queixa da minha mãe. O
chefe dele, que era oficial da Marinha, fecha um contrato nos Estados Unidos
de uma capacitação para os nossos oficiais brasileiros para ir para os Estados
Unidos fazer um curso de três anos. De castigo, meu avô manda minha mãe ir
para os Estados Unidos ser empregada doméstica nessa família. E aí ela já
disse para o que veio. Ela começou a observar que as empregadas domésticas
aqui no Brasil bebiam leite e lá não tinha... Então dentro da forma dela e do
jeito dela, ela fazia encontro das empregadas domésticas no Bronx e no
Brooklyn, sobre a forma de viver. Como ela foi sob autorização do juizado de
menores, quando acabou o curso, ela teve que voltar. Mas você imagina:
hoje, qualquer brasileiro ou brasileira que vá para os Estados Unidos três
anos para estudar, para fazer alguma coisa, já dá um status, ainda, para nossa
sociedade. Você imagina isso na época da Segunda Guerra Mundial, essa
semi-analfabeta voltar falando inglês à moda caipora, mas que se
comunicava!” (FERREIRA, 2017, s.p.)

A forma como Vanda lembra da história de sua mãe, como alguém que, desde

muito jovem “já disse para o que veio”, dialoga com uma observação interessante

elaborada pela historiadora Claudia Pons Cardoso em sua pesquisa sobre ativistas

negras no Brasil, na qual entrevistou 22 integrantes do movimento de mulheres negras.

Segundo Cardoso,

“Grande parte das ativistas entrevistadas trouxe as mulheres mais velhas de


sua família como inspiração para sua mobilização política. Das avós, mães,
tias, aprenderam, desde cedo, as estratégias de enfrentamento ao poder
instituído, as atitudes e o comportamento de insubordinação. As mulheres em
que se espelharam enfrentaram o racismo e o sexismo sem se preocuparem
em dar nome à sua ação. Elas criavam redes de solidariedade, de apoio, de
proteção umas com as outras” (CARDOSO, 2012, p. 145).

43
FERREIRA, Vanda. Trajetória de Vanda Maria de Souza Ferreira. Cópia cedida pela autora, s.d. As
fontes escritas, diferentemente das orais, cuja referência consta no corpo do texto, ficarão designadas por
completo em notas de rodapé e na bibliografia final da tese.

124
Também ecoa nesse trecho a história narrada por Neusa Pereira sobre a atuação

de sua mãe em defesa das mulheres que sofriam violência doméstica no morro em que

moravam. Como essas, outras mulheres aparecem nas entrevistas aqui analisadas como

fonte de inspiração e resistência.

Assim como Neusa, Vanda Ferreira formou-se professora pelo Instituto de

Educação com o apoio da família e dos comerciantes do Saara, que lhe providenciaram

o uniforme e o material escolar “porque eles sentiam muito orgulho de mim, em função

do que eles viveram com meu pai” (FERREIRA, 2017, s.p.). Trabalhou como

professora nas redes municipal e estadual do Rio de Janeiro. Iniciou uma graduação em

1973, interrompida pela rotina de trabalho, mas veio a formar-se pedagoga em 2006

pela UNISUAM. Em 1987, ingressou como educadora no sistema penitenciário do Rio

de Janeiro e fundou, junto com José Carlos Brasileiro, à época interno da penitenciária

Lemos de Brito, o Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela. Sobre

isso, conta:

Logo que eu entrei, eu descobri que lá tudo se tinha que barganhar. E eu


pensei: eu sou educadora, então só posso barganhar do bem. Então a primeira
barganha que eu faço com ele é o seguinte: ‘Se eu disser que a proposta é
sua, não vai passar. Então eu vou pegar toda a sua ideia, não vou mexer em
nada, e vou apresentar ao secretário como se fosse minha. Lá fora eu conto a
verdade’. E ele concordou. Então o projeto político-pedagógico, que eu tinha
acabado de sair da coordenação do projeto Zumbi dos Palmares, era de
questão racial. E o resto foi ele que escreveu, tudo dele. A fundação acontece
no dia 18 de julho de 1989... Ficamos dois anos maturando, discutindo... No
44
dia do aniversário do Mandela [...]. Este menino ficou preso 19 anos Eu
pego os últimos anos dele na cadeia. Ele sai; nós trouxemos a instituição para
fora, que é a primeira instituição de movimento negro do Brasil [a ser
fundada dentro de um presídio]” (FERREIRA, 2017, s.p.)

O projeto Zumbi dos Palmares, ao qual se refere, se trata de um projeto ligado à

secretaria de educação do município do Rio de Janeiro o qual Vanda coordenou entre os

anos de 1986 e 1987. Vanda teve uma extensa atuação institucional ao longo da vida.
44
16 anos, segundo José Carlos Brasileiro em entrevista (cf. <
https://www.youtube.com/watch?v=YYNEaT384JA>. Acesso em: 17 jan. 2019).

125
Atua desde 1992 no Instituto Palmares de Direitos Humanos e no Conselho Consultivo

do Grupo Cultural OLODUM e desde 2000 no Conselho do ELAS - Fundo de

Investimento Social. A partir de 2000 passa a participar da Diretoria do Instituto de

Estudo e Pesquisa de Populações Afro-brasileiras (IPEAFRO) e da Associação dos

Naturais e Amigos de Angola. Em 2004, compõe o Conselho do Prêmio Camélia da

Liberdade do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) e, a partir

2013, o Conselho de Amigos do Centro Afro-Carioca de Cinema Zózimo Bubul. No

ano de 1994, participou da fundação do Fórum de Solidariedade às Vítimas de

Violência Sexual na Região da Leopoldina - Ramos, Olaria e Penha e, junto com Neusa

Pereira, do Centro de Informação e Documentação Coisa de Mulher. Foi ainda nomeada

Griot do Programa ReConhecer da ONG Estimativa em 2011.

Jurema Batista nasceu no Rio de Janeiro em 1957. Sua família, de origem

mineira, veio para a cidade em busca de uma vida melhor, tendo se estabelecido no

morro do Andaraí, “nas primeiras ocupações de favelas ali naquela área da grande

Tijuca” (BATISTA, 2004, s.p.). Seu pai sofria de alcoolismo e tornou-se ausente. A

mãe era empregada doméstica e sustentava duas filhas (outra irmã de Jurema faleceu na

infância e um irmão foi criado por outra família) com esse trabalho:

“E era um trabalho escravo. Porque, como é que era o trabalho? [...] Minha
mãe saía de casa geralmente às seis horas da manhã e voltava depois das dez
da noite. Então, ela voltava assim, e a gente ficava... parte minha irmã
tomava conta de mim, mas logo depois ela também foi trabalhar fora para
ajudar, e aí, com 17 anos ela casou e caiu fora. Eu digo que ela fugiu da
pobreza” (BATISTA, 2004, s.p.)

Jurema conta que “as madames gostavam de mulheres que dormiam na casa”,

então era comum que sua mãe a levasse consigo para dormirem na casa onde

trabalhava. A mãe veio a desenvolver também alcoolismo,

126
“e aí, a coisa ficou complicada porque ela bebia muito e não tinha muito... A
vida não era assim muito certinha: Ela bebia, ficava mal, aí mudava de
emprego... E nessa história, eu acho que eu morei em umas dez ou quinze
casas no Grajaú” (BATISTA, 2004, s.p.).

Ela conta que, por ter sido uma criança bastante estudiosa, algumas dessas

famílias que empregavam sua mãe lhe compravam uniforme e material escolar. No fim

do ensino básico, Jurema engravidou de sua primeira filha e, após seu nascimento,

ingressou no curso de Letras na Universidade Santa Úrsula, onde se formou em 1983.

Jurema foi fundadora e presidente da Associação de Moradores do Morro do Andaraí e

uma das primeiras filiadas do Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio de Janeiro. Foi

filiada ao IPCN e participou da fundação, junto com Lélia Gonzalez, do N’zinga -

Coletivo de Mulheres Negras. Trabalhou como funcionária da Secretaria Municipal de

Educação, supervisionando creches comunitárias no morro do Andaraí. Teve uma

extensa carreira política: foi assessora parlamentar de Benedita da Silva entre 1983 e

1985, vereadora (1993-1996, 1997-2000, 2001-2002) e deputada estadual (2003-2006)

pelo Rio de Janeiro. Passou a integrar o Movimento Negro Unificado no fim da década

de 1980. Foi presidente do Diretório Municipal do PT em 1993 e, como parlamentar,

presidiu por duas vezes a comissão de direitos humanos da Câmara dos Vereadores e as

CPIs sobre as chacinas da Candelária e de Vigário Geral.

Lúcia Maria Xavier de Castro nasceu em 1959 e viveu a infância no subúrbio

do Rio de Janeiro. Seu pai foi operador de som e morreu jovem, aos 30 anos. Sua mãe

foi dada quando criança aos cuidados de uma família que tinha um terreiro de

Candomblé, religião na qual foi formada. Tendo trabalhado como doméstica ao longo

da infância de Lúcia, sua mãe passou a trabalhar no comércio, em uma loja de artigos

religiosos, a partir da influência de uma ex-patroa que se tornara amiga da família. Essa

127
mulher, branca, também incentiva Lúcia em seus estudos e a auxilia na entrada no

mercado de trabalho.

Lúcia conta que se iniciou no Candomblé apenas a partir de seu contato com o

movimento negro, nos anos 1980, apesar de sua mãe ser praticante da religião. Isso

porque seu ambiente familiar – ela era próxima e chegou a morar com a família do pai –

era fortemente católico. Lúcia foi incentivada a cursar vestibular para o curso de

Direito, mas acaba ingressando no de Serviço Social, apresentado a ela pela filha da ex-

patroa de sua mãe: “Cheguei lá, abri a ementa do curso, era: Política, Antropologia,

Ciências Sociais, Direito... Eu falei: ‘Adoro isso aqui. Isso é a minha cara’.” (CASTRO,

2003, s.p.). Ela se forma pela UFRJ em 1984.

A primeira organização de movimento social em que Lúcia se insere é o grupo

Acorda Crioulo, da Cidade de Deus, que se caracterizava por uma atuação social local,

ligada à associação de moradores do bairro. Lúcia sai do Acorda Crioulo em 1982 e em

1984 se filia ao IPCN. Ela participa do Movimento pelos Direitos da Criança e entra na

ONG Criola em 1992, onde ainda trabalha atualmente.

Edna Roland nasceu em Codó, Maranhão, em 1951, mas mudou-se para

Fortaleza, Ceará, ainda na infância, depois da morte prematura de sua mãe. Ela conta

que seu avô era filho de um francês, de possível origem judaica, com uma mulher negra.

O avô teve acesso à educação – teria sido um rábula – e estabeleceu na família a

educação como um referencial fundamental. Seu pai, comerciante, preocupava-se com a

formação de Edna, que chegou a fazer intercâmbio nos Estados Unidos por um ano, na

época em que a família morava em Goiânia:

“[...] no segundo ano do Liceu eu concorri à uma bolsa de estudos e consegui,


fui aprovada. E eu fui então para os Estados Unidos em um programa de
intercâmbio do American Field Service. E uma coisa que o meu pai fez logo

128
eu entrei no primeiro ano do ginásio, ele fez duas coisas: ele me colocou no
curso de inglês, no Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, e na aula de
datilografia, que era o correspondente ao computador de hoje. Então ele tinha
uma preocupação de que nós tivéssemos habilidades, condições de trabalho e
de sobrevivência, então, aos onze anos eu entrei nas duas coisas, na aula de
datilografia e no curso de inglês.” (ROLAND, 2004, s.p.).

A trajetória de Edna é bastante singular. Após o intercâmbio nos Estados Unidos

e ao término do ensino básico, ingressa no curso de Psicologia da UFMG, onde se

forma em 1972. Edna participa do Centro Acadêmico de Psicologia da UFMG em plena

ditadura militar e se aproxima da POLOP, integrando um OPP (Organismo Para-

Partidário) da periferia do partido. Quando já ocupava cargo de professora universitária,

tendo inclusive sendo aprovada em um concurso para o magistério na UFMG, Edna

larga a vida em Belo Horizonte para entrar na clandestinidade, sob orientação do

partido, e se muda para São Paulo. Nesse movimento, conta que passa por um “processo

de queda social muito profundo”, vivendo em cortiços na capital paulista (ROLAND,

2004, s.p.). Em São Paulo, trabalha como datilógrafa, livreira e se estabelece como

secretária bilíngüe em uma multinacional. Com a saída da clandestinidade, Edna

ingressa em uma pós-graduação em psicologia na qual estuda a questão do trabalho

doméstico, se aproximando mais do debate racial.

Conhece Sueli Carneiro no início dos anos 1980 e, após algumas iniciativas de

organização de grupos voltados para a questão racial, participa da fundação do Bloco

Afro Alafiá. Participa, com Sueli, do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo,

fundado no contexto da reivindicação de uma representação de mulheres negras no

Conselho Estadual da Condição Feminina. Participa, no Conselho, da comissão de

saúde e da comissão de mulheres negras. É convidada, à época do governo de Luiza

Erundina em São Paulo, a coordenar o Programa de Saúde da Mulher na prefeitura da

capital. Participa da Fundação do Geledés – Instituto da Mulher Negra em 1988.

Integra, posteriormente, a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos

129
Reprodutivos e o Grupo Internacional de Trabalho e Consultoria da Iniciativa

Comparativa de Relações Humanas, tendo ainda sido coordenadora de combate ao

racismo e à discriminação da Unesco.

Sueli Carneiro nasceu na cidade de São Paulo em 1950. Sua mãe foi costureira

e, após o casamento, tornou-se dona-de-casa. Seu pai era trabalhador rural em Minas

Gerais e migrou para São Paulo em busca de melhoria de vida. Na cidade, veio a tornar-

se ferroviário. Em relação a isso, Sueli comenta que sua família “tem uma forte cultura

proletária, herança dessa condição de operário do meu pai” (CARNEIRO, 2004, s.p.):

“Ele vivia, enquanto ferroviário, dentro de uma categoria que era muito
solidária, que era muito combativa, na época, muito gregária. E eu acho que
ele transferiu esses valores mesmo para os filhos. Então, nós somos
culturalmente muito proletários dessa forma: gregários, comunitários;
vivemos em uma estrutura de família extensa mesmo, muito próximos uns
dos outros, em um sistema autoajuda, de compadrio. Então, eu me sinto
culturalmente proletária.” (CARNEIRO, 2004, s.p.)

Se aproxima do movimento negro a partir da década de 1970, quando passa a

frequentar as reuniões do CECAN (Centro de Cultura e Arte Negra). Em 1972, entra na

graduação em Filosofia pela USP e estabelece contato com os negros universitários, que

mobilizavam o debate racial naquele espaço. Se aproxima do MNU e, pela influência de

Lélia Gonzalez, passa a pensar a questão de gênero conjugada à racial. É uma das

fundadoras do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo e vem a atuar no Conselho

Estadual da Condição Feminina como conselheira e secretária-geral. Foi coordenadora

do programa da mulher negra do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão do

Ministério da Justiça, no fim dos anos 1980 e, em 1988, participa da fundação do

Geledés – Instituto da Mulher Negra, organização que compõe até a atualidade.

130
Participou, ainda, como conselheira, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e

Social entre 2003 e 2005 (GUIOT, 2015).

Joselina da Silva nasceu em Duque de Caxias, estado do Rio de Janeiro. Conta

que seus pais tinham pouca instrução do ponto de vista formal, “mas ambos muito

críticos, principalmente meu pai, do ponto de vista da sociedade e da relação da

sociedade com o negro” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 53). Conta que foi criada

dentro de uma casa de Candomblé e que seu pai tinha “filhos de santo” de diversos

níveis econômicos.

Estudou em escola normal e graduou-se em Letras Português-Inglês. No início

dos anos 1970, passou a frequentar reuniões do CEBA (Centro de Estudos Brasil-

África), vindo posteriormente a frequentar o IPCN como participante ativa, mas não

filiada. Em 1981, engajou-se no Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro,

organização que parou de funcionar em meados da década de 1980. Participou do Bloco

Agbara Dudu ao longo dessa década, mas se afastou dele, aproximando-se cada vez

mais do nascente movimento de mulheres negras. Em 1989, entra no CEAP e integra o

Programa de Mulheres da ONG.

Joselina possui consolidada carreira acadêmica: é professora associada da

UFRRJ e da pós-graduação em Educação da UFC. Possui mestrado (2001) e doutorado

(2005) em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi

vice-secretária da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros entre 2006 e 2008 e

coordenou o Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (CRIRC) da

Fundação Palmares entre 2014 e 2015. É coordenadora do Núcleo Brasileiro, Latino-

Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais

(N’BLAC).

131
Alguns elementos da biografia das entrevistadas, em seus anos formativos,

merecem atenção particular. Um desses é a forma como o incentivo a educação se

relaciona com a questão do trabalho doméstico na maior parte dos depoimentos. Quase

todas as entrevistadas demarcam o incentivo de seus familiares para que estudassem,

como Edna Roland e Vanda Ferreira. Mas esse incentivo ganha contornos específicos

nos casos em que as mães das entrevistadas trabalharam como empregadas domésticas:

elas ativamente retiravam suas filhas do alcance do emprego doméstico. É o que revela

o depoimento de Neusa Pereira sobre sua mãe:

“Ela dizia assim: ‘A senhora está contratando a mim, a minha filha não. A
senhora não está pagando uma pra levar duas’. [...] Se ela chegasse na casa de
família e o salário fosse 1500, ela dizia: ‘A senhora vai me pagar 1000, e 500
é a pensão da minha filha. Não mande ela fazer nada porque minha filha só
estuda’.” (PEREIRA, 2017, s.p.)

Essa fala revela não apenas o ato da mãe de Neusa, ao colocá-la fora do alcance

da patroa como adendo da empregada contratada, mas também que esse tipo de atitude

em relação às filhas das domésticas era bastante comum, dada a necessidade do

esclarecimento. A ocupação de Neusa estava colocada: era estudante e, nesse sentido,

sua mãe separava uma parcela significativa do salário para suprir suas necessidades. O

depoimento de Jurema Batista também vai nesse sentido:

“tinha um detalhe nessa história da minha mãe que é super legal, de


preservação que ela teve comigo: Ela não deixou eu fazer nada. Não tinha
madame que me mandasse fazer, porque ela não deixava. Ela não me deixava
lavar louça, não deixava lavar... Eu me lembro que quando ela estava fazendo
nhoque, que o nhoque estava subindo lá, aí eu falava: ‘Deixa eu tirar o
nhoque.’ Ela falava: ‘Sai daqui!’ Por preservação, porque ela sabia que não
era bom ser empregada doméstica. O resultado disso é que eu não sei nem
fazer arroz. Mas ela sabia porque que ela tinha que me preservar. Porque na
verdade ela não queria que eu seguisse a mesma trilha dela, que, com certeza,
ela não gostava. Aí passou, aí já vim para a adolescência... Sempre passava
de ano, era uma boa aluna, alguns desses patrões resolveram investir em mim
em algumas casas que ela ficava, compravam algumas coisas, livros,

132
uniforme... Mas, precisamente a partir da quinta série, eu tive uma família
que começou a bancar o material escolar para mim, mesmo. Então, cada ano,
quando eu recebia a lista, eu levava nessa casa e a moça falava: ‘Volta...’
geralmente eu levava na segunda-feira, ela falava: ‘Volta na quinta-feira.’ Aí
chegava aquele monte de material, aquelas caixas de material escolar, de
livrarias. Eu ficava muito feliz.” (BATISTA, 2004, s.p., grifo meu)

Jurema nomeia a atitude de sua mãe: preservação. O medo de que Jurema viesse

a ter o mesmo tipo de trabalho que a mãe fez com que a proibição se desse ao ponto de

impedir o aprendizado de atividades domésticas básicas, que poderiam servir para a

vida pessoal de sua filha, como fazer arroz. Como no caso de Neusa, sua ocupação

única deveria ser o estudo, e apenas nessa atividade os patrões poderiam se envolver,

financiando seu material escolar.

No caso de Lúcia Xavier, esse envolvimento dos patrões apresentou novos

contornos na medida em que a patroa que contratava sua mãe tornou-se amiga da

família, influenciando, inclusive, sua mãe a deixar o trabalho doméstico:

“Essa mulher, então, resolve que a minha mãe não vai ser mais empregada
doméstica, que ela vai arrumar um emprego no comércio, porque como
empregada doméstica ela não conseguia conciliar, viver a família e o
trabalho. Aí, ela pega e aluga um quarto na Tijuca, e aí, minha mãe vem,
pega a gente e leva para esse quarto na Tijuca.” (CASTRO, 2003, s.p.)

Essa mulher branca, chamada Maria Regina, arruma um emprego para a mãe de

Lúcia e, segundo o depoimento, é ela, e não sua mãe (como nos casos anteriores) que

decide afastar Lúcia da possibilidade do emprego doméstico:

“Ela então arruma esse emprego, e, depois ela decide, no meu caso foi ela
que decidiu, que eu não podia seguir o mesmo caminho da minha mãe. Ela
disse: ‘Não. A gente tem encontrar uma forma de você estudar.’ Então, ela
pediu a um afilhado de casamento que me arrumasse um emprego no
escritório. Porque primeiro ela pediu para esse casal que arrumou esse
trabalho para minha mãe, para arrumar um para mim. Aí eu comecei a
trabalhar nessa loja, na fábrica. E aí ela via que não ia conciliar o tempo de
estudo e a fábrica. Então eu comecei a trabalhar na fábrica, e quando
começou o ano letivo ela achou que não ia dar certo, aí convocou um outro
parente, um afilhado de casamento que tinha um escritório, que era corretor
de imóveis. Então eu trabalhei, aí eu saí da fábrica e fui trabalhar com ele.

133
Tem um período de meio ano, que eu saio daqui para lá e a situação fica
difícil pra caramba, porque mesmo a gente trabalhando, a situação econômica
era muito difícil, e aí ela resolve que para minha mãe não me ocupar com
outro trabalho, ela me bota para fazer um curso de corte e costura, no
Sindicato dos Telefônicos, que era na Moraes e Silva, que é até hoje. E aí, eu
aprendo corte e costura, mas raramente eu costuro, até costuro, mas
raramente. Aí eu vou trabalhar nesse período, e ela obriga o cara a me dar o
tempo para terminar o curso, porque se um dia acontecesse alguma coisa eu
saberia costurar, e aí eu vou trabalhar com esse cara e trabalho com ele um
bom tempo.” (CASTRO, 2003, s.p.).

No depoimento de Lúcia aparece ainda uma preocupação com a necessidade de

garantir a subsistência de forma autônoma – em seu caso, o curso de costura faz esse

papel, como um plano de emergência para além dos estudos. É possível compreender

nessa chave também o fato de que muitas das entrevistadas estudaram em escolas

normais, em que as estudantes saíam formadas professoras. Além de ser uma ocupação

feminina comum nas décadas de 1950 e 1960, era particularmente ocupada por

mulheres de camadas médias, em sua maioria brancas, sendo assim, uma ocupação de

mais prestígio social e garantidora de alguma autonomia financeira do que a de

empregada doméstica.

O depoimento de Sueli Carneiro revela ainda uma restrição não apenas ao

emprego doméstico, mas ao trabalho doméstico mais geral, exercido pela figura da

dona-de-casa:

“A minha mãe é uma mulher muito inteligente e muito promissora, muito


talentosa e muito ambiciosa, do ponto de vista profissional. Embora ela
nunca tenha se arrependido de ter deixado a profissão por amor, ela carregou
durante toda vida uma grande frustração, de não ter podido realizar tudo o
que ela ambicionava em termos de estudo e sobretudo em termos de
autonomia econômica, profissional, essas coisas. Então ela sempre educou as
filhas, empurrou as filhas para buscarem autonomia econômica, financeira,
sobretudo através da educação. Então nós fomos fortemente estimuladas. E
era uma coisa muito interessante como é que isso se manifestava, que ela
nunca nos estimulou para as tarefas domésticas. Embora... Era uma família
enorme, de nove pessoas, e uma família pobre, a gente vivia em casa muito
precárias, era tudo muito difícil e exigia que todo mundo tivesse atividade.
Mas embora a gente tivesse algumas tarefas que fossem necessárias serem
realizadas, ela nunca valorizou para nós que aquilo fosse para nenhuma das
quatro filhas – nós somos quatro mulheres e três homens. Mas ela nunca
permitiu que nós sonhássemos com aquilo, de ter por projeto de vida sermos
donas de casa. Então ela nos impulsionou muito para buscar autonomia e
independência.” (CARNEIRO, 2004, s.p.)

134
Novamente, a autonomia financeira aparece como uma preocupação materna,

vista como incompatível com o trabalho doméstico. Cabe relembrar, nesse ponto, a

discussão sobre trabalho doméstico desenvolvida no primeiro capítulo desta tese. O

trabalho reprodutivo feito no âmbito doméstico por mulheres ora é trabalho não pago

feito pelas donas-de-casa, ora é remunerado, feito pelas domésticas. Essas últimas, no

Brasil, são trabalhadoras racializadas: fundamentalmente mulheres negras, muitas de

origem migrante rural, principalmente nordestina. A questão do emprego doméstico no

Brasil é um objeto que revela com clareza a dinâmica co-constituída das relações de

classe, gênero e raça. A especificidade engendrada por essas relações foi analisada de

forma brilhante por Lélia Gonzalez, que viu na figura da mucama a articulação entre

uma representação hipersexualizada das mulheres negras, de um lado, e sua

representação como empregada doméstica (GONZALEZ, 2018h [1980], p. 196-197).

Como o abuso sexual das mulheres negras de modo algum ficou restrito ao período

escravista, o fato de que as mães e mulheres próximas às nossas entrevistadas a

quisessem distantes do trabalho doméstico pode ter um sentido de preservação ainda

mais profundo e abrangente do que a autonomia financeira.

bell hooks, em artigo sobre intelectuais negras, afirma que o corpo da mulher

negra, desde a escravidão, “tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo

quintessencial de uma presença feminina ‘natural’, orgânica, mais próxima da natureza,

animalística e primitiva” (HOOKS, 1995, p. 468). Essa formulação discursiva atua para

tornar o domínio intelectual um lugar interdito, já que “mais do que qualquer grupo de

mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’”

(HOOKS, 1995, p. 469). Nesse sentido, o incentivo aos estudos dados às intelectuais

que entrevistamos é um convite ao rompimento dessa representação, à superação dessa

135
interdição. Para suas mães, interdito é o lugar do trabalho doméstico, que algumas delas

já ocupavam.

Diante disso, cabe considerar a importância do fato de que todas as entrevistadas

passaram por cursos universitários, algumas das quais chegando ao nível de pós-

graduação e mesmo tornando-se doutoras, como no caso de Joselina da Silva.45 O

sociólogo Sales Augusto dos Santos aponta para um aumento significativo de

intelectuais negros “oriundos direta ou indiretamente” do movimento negro

notadamente a partir dos anos 1980 (SANTOS, 2011, p. 103). Ele deve esse movimento

a uma busca por “novos ou outros métodos [...] para estudar, pesquisar e compreender

as relações raciais brasileiras, assim como por apresentar propostas para promover a

igualdade racial no Brasil” (SANTOS, 2011, p. 108). A combinação entre a experiência

na militância e a inserção no ambiente acadêmico sem dúvida guarda íntima relação

com os papéis de liderança assumidos pelas entrevistadas, principalmente considerando

as questões colocadas por bell hooks, discutidas acima.

O desenvolvimento de uma consciência racial no plano individual – aquilo que

Neusa Santos Souza (1983) chama de “tornar-se negro” – também é destacado nos

depoimentos e, via de regra, localizado nesse primeiro período formativo de vida: na

escola ou na família. Lúcia conta que a avó instruía a ela e aos primos quanto à

necessidade de enfrentar o racismo que, de fato, se expressou desde o início de sua vida

escolar:

“No primário ainda, na Tijuca. Éramos os dois negros. O Francisco era classe
média, eu não. Nós éramos os únicos dois negros da sala. Tudo de errado era
o Francisco. O Francisco tinha lápis, tinha borracha, tinha caneta, tinha
hidrocor, tinha tudo isso, mas se sumisse alguma coisa, era o Francisco. Já
havia uma clara diferença. Eu podia não dar o nome de racismo, mas já sabia
que essa diferença era grande. E lógico, você vai sendo rechaçada, vai
criando os conflitos, os problemas... Por exemplo: Eu tinha uma vizinha de
origem alemã. Minha primeira briga na escola foi por causa dela, que

45
Para uma visão comparada das trajetórias das entrevistadas, conferir anexo A, ao fim deste material.

136
resolveu que eu deveria sair da cadeira onde estava sentada para ela sentar.
Eu disse: ‘Não’. E ela disse: ‘Porque você já comeu lá em casa, você mora na
casa de cômodo, porque você é preta, porque você é isso...’ Peguei a cadeira
e joguei nela. Só isso que eu fiz. Era o mínimo que eu podia fazer. Depois
peguei a cadeira de volta e sentei.” (CASTRO, 2003, s.p.)

A perspectiva quanto à necessidade de reagir à discriminação racial, inclusive de

maneira violenta, também aparece no relato de Sueli Carneiro:

“Meus pais sempre nos alertaram aos filhos que seriam discriminados, que
sofreriam processos de discriminação. Então eles não tinham grandes
elaborações de como, o que fazer com isso. Mas nós sabíamos que não
poderíamos nos deixar ser humilhados. Então, em geral, uma agressão racial
a gente deveria responder de qualquer maneira, fosse inclusive de forma
violenta. Então a minha mãe dizia: ‘Se chegar chorando em casa vai apanhar
de novo’. Então tinha que reagir. Cada um que fizesse como pudesse, mas
tinha que reagir. E em função disso eu me tornei uma menina bastante braba,
porque eu tinha mais medo da minha mãe que do racismo. [riso] Minha mãe
era terrível, e ela batia sem piedade. Então a instrução era mais ou menos
essa: ‘Tem que responder, tem que reagir. Não pode se deixar ser humilhado.
Então se não der para responder na palavra, resolve no braço.’ Era mais ou
menos esse tipo de pedagogia. As agressões eram constantes. A partir do
momento que a gente entra para a escola, a gente começa a viver. Eu me
lembro que a partir dos seis anos de idade, que eu entrei para a escola que
começa a aparecer: ‘Negrinha! Cabelo de bombril! Pelezinho!’ Todo o tipo
de agressão, e eu não tinha dúvida: quando não tinha argumento eu descia o
braço, numa boa. [riso] Numa boa. Essa coisa de: ‘Somos negros e nós temos
que...’ também tinha um outro tipo de instrução, que é muito comum nas
famílias negras quer dizer: ‘Nós somos negros, nós somos visados, então nós
temos que fazer tudo melhor, temos que fazer tudo muito bem feito para não
dar elementos para que nos discriminem.’ Então também essa exigência de
que tínhamos que fazer as coisas muito bem feitas, porque “somos negros e
se não fizermos, seremos discriminados”. (CARNEIRO, 2004, s.p.)

A importância de se destacar, de “fazer as coisas muito bem feitas” aparece de

outra forma na fala de Neusa Pereira. Ela conta que era muito aplicada e empolgada

com as atividades escolares, mas que viveu um episódio de racismo por parte de uma

professora de história:

“E ela era nordestina! Nordestino não vê sua cor, ele só é nordestino, né? Não
vê sua origem... E muito racista! Ela parou perto de mim uma vez, foi na
minha mesa... Ela estava dando aula de formação do povo brasileiro, pra você
ver como marca. Aí ela diz: ‘Para o Rio de Janeiro vieram os bantos. Pretos,
muito pretos!’ Eu nem era preta, muito preta, nem tinha consciência disso
ainda. Aí ela dizia pra mim: ‘Pretos, muito pretos, muito feios! Nariz
atarracado, testas enormes!’ E a gente tinha que decorar isso pra escrever na

137
prova depois. ‘Burros!’ Eu era a primeira aluna da turma, ela não estava
falando nada comigo... (tom irônico) Quando eu saí da sala para alguma
coisa, tinha uma menina judia, que ficou minha amiga muito anos, ela falou
assim: ‘Neusa, ela falou contigo...’ Eu era a única preta da sala! ‘Comigo?’
(risada) Ela disse: ‘É, ela falou contigo... Presta atenção’. Aí ela me alertou,
porque ela estava acostumada a sofrer. E ela vinha de uma família onde isso
era bem explicitado... Pra mim, a minha mãe sempre me dizia ‘Cuidado para
não ser expulsa da escola’. Porque se você era expulsa de uma boa escola,
desse nível, diziam: ‘Vai sujar sua caderneta’. Você não conseguia vaga em
mais lugar nenhum. Não podia pagar! (PEREIRA, 2017, s.p.)

Aqui, o revide à discriminação não é uma opção, dado a ameaça de expulsão da

escola. Era necessário, segundo a orientação da mãe de Neusa, preservar a vaga naquela

boa escola pública – e gratuita – como prioridade.

Vanda Ferreira, por sua vez, identifica sua experiência de desenvolvimento de

uma consciência racial mais tarde, também no ambiente escolar, mas onde ela atuava

como professora:

“E [eu] era toda embranquecida, cabelo de henê até aqui, essas coisas todas...
Quando eu conheço um engenheiro da Petrobrás, era o período da ditadura e
com dois meses de namoro ele diz pra mim assim: ‘se eu quisesse namorar
alguém de cabelo liso, eu não ia procurar uma negra’. E eu não entendi o
quanto esse homem era importante, o quanto esse homem queria a equidade
de gênero e raça. Eu me afastei dele. Porque a escola que eu dava aula em
Rocha Miranda éramos 70 professoras. Nenhuma solteira tinha namorado que
tinha carro. E eu apareci na escola com um homem de carro! Fusca, que era a
grande... era o carro do ano naquela época! (risos) Então as abordagens eram
sempre preconceituosas. [Diziam:] ‘Você não tá vendo que ele não quer nada
com você?’ E quando ocorre isso, eu não tive coragem de contar e todo
mundo começou de tititi na escola. ‘Vai ver que ela já está grávida! Também,
como pode?’ Essas coisas todas. Mas aí minha irmã do meio estudava no
(inaudível) e o professor dela de história estava dando o movimento Black
Power nos Estados Unidos e os povos de libertação de Angola. [...] Quanto
mais ele tentava abordar mais eu me afastava, pulava muro... [...] E a minha
irmã que vai e fala, e eu gostava muito dele, muito, muito, e o retorno ao
namoro foi eu ficar Black Power. Então eu fico Black Power em 1970. E ele
traduzia muito os livros, que a maioria tudo era em inglês. E eu começo a
ressignificar tudo que eu tinha passado. Que ele me ouvia muito, né? E ele
dizia assim: ‘Você tem um papel muito importante. Você é uma educadora. E
como você tem o dom de passar as informações, você tem que passar
correto’. E aí eu começo a mudar as minhas aulas lá em Rocha Miranda, com
meus alunos, trabalhando só os sambas-enredo, pegando só as turmas
renitentes, aquela que ficava três, quatro, cinco anos... e no final do ano todo
mundo feliz, porque já sabiam escrever.” (FERREIRA, 2017, s.p.)

138
Na experiência de Vanda, os relacionamentos amorosos têm um papel

importante: eles passam pela questão afetiva, por sua concepção de beleza e sua

autoimagem, mas também pelas representações projetadas sobre ela, enquanto mulher

negra. Já um segundo relacionamento a levou à ressignificação não apenas de sua

autoimagem, mas de seu papel como educadora, como parte de uma geração nova de

professoras que atuariam no avesso das práticas racistas relatadas pelas outras

entrevistadas.

Cabe ainda observar o relato de Jurema Batista, para quem a valorização de uma

formação escolar e acadêmica foi acompanhada de uma visão que ignorava o racismo

como fator do insucesso que observava entre a população negra:

“Eu entrei na faculdade para lá de alienada. Eu não tinha noção de nada, eu


queria estudar na universidade católica... Não sei como na época eu não
pensei na PUC. Na época eu só queria estudar na universidade católica. Vim
para cá para a faculdade para estudar, eu tinha um monte de pré-conceitos na
minha cabeça. Eu achava que a maioria dos negros não conseguiu nada
porque eles não queriam nada, porque eles não corriam atrás, porque o
pessoal não queria nada. Eu achava isso: ‘As pessoas não querem nada’. E
era isso, eu entrei para a faculdade pensando isso. Eu tinha uma visão, que eu
recebi algumas coisas da vida e que eu tinha que devolver. Era uma visão
cristã, mas eu não sabia disso. Então, eu resolvi começar um trabalho dentro
da minha comunidade de alfabetização de adultos, aí busquei um preparo
para fazer isso, me apresentaram o método Paulo Freire. Aí começou,
começou já a abrir um pouquinho a cabeça... [...] Aí comecei a fazer parte
desse grupo, ainda não tinha nada desse negócio de PT na minha cabeça, mas
logo depois começou o surgimento do PT, e as filiações, e as pessoas
começaram a falar em filiar. Foi tudo junto: A consciência do Movimento
Negro, a consciência político-partidária”. (BATISTA, 2004, s.p.)

A questão da religiosidade, que aparece nesta fala de Jurema e em outros

momentos de sua entrevista, aparece como um elemento relevante em outras entrevistas,

notadamente o catolicismo e o candomblé. A religião figura também como um elemento

importante no processo formativo que se busca analisar aqui, principalmente no sentido

de que é “eminentemente coletiva” (DURKHEIM, 1989, p. 79), criando laços de

139
pertencimento comunitário e, muitas vezes, estimulando o envolvimento ativo na vida

comunitária e o trabalho em prol da comunidade.

Vale considerar os elementos biográficos observados até aqui à luz das questões

demográficas relativas a mulheres negras, obtidas principalmente a partir de dados do

censo de 1980. Esse grupo apresentava-se predominantemente na prestação de serviços

– em especial no emprego doméstico e naquele tipo de trabalho que Lélia Gonzalez

lembra se comumente referido como de “servente”, como serviços de limpeza, etc. Os

mesmos dados revelam que as mulheres negras representavam o maior percentual de

pessoas a receber os menores salários. O processo de proletarização e de precarização

do trabalho no Brasil se acentuou com a flexibilização das leis trabalhistas e a

terceirização, o que sem dúvida afetou sobremaneira as trabalhadoras negras. Já em

termos de educação, tanto em São Paulo como no Brasil, em 1980 as mulheres negras

configuravam menos de 1% do total de estudantes no ensino superior.

Na história familiar das mulheres entrevistadas, o emprego doméstico tem papel

significativo: as mães de Neusa Pereira, Vanda Ferreira, Jurema Batista e Lúcia Xavier

trabalharam como domésticas. As relações interpessoais entre as mulheres que atuavam

como domésticas e as famílias que as empregavam aparece com destaque nas narrativas

das entrevistadas, seja no sentido de impor limites quanto à ingerência destas últimas

sobre as filhas das trabalhadoras, seja na interferência das famílias em algum grau sobre

a educação e o trabalho dessas filhas. Como visto, Van der Linden (2013) argumenta

que a relação com o empregador fora do processo de trabalho imediato é um elemento

que interfere diretamente o grau de autonomia e, portanto, a “posição de classe” da

trabalhadora subalterna. Essa afirmação ajuda a delinear o grau de complexidade na

relação entre doméstica e família empregadora, marcada pelas relações co-constituídas

140
de gênero, sexualidade, raça e classe. Essa questão se agrava quando consideramos que,

muito provavelmente, essas trabalhadoras atuavam por fora das garantias celetistas.

Em relação à questão educacional, revela-se que as entrevistadas ocupavam um

lugar bastante seleto considerando os dados demográficos sobre mulheres negras no

período considerado. Todas elas passaram pela universidade, uma delas tendo tido os

estudos interrompidos pelo trabalho como professora no fim dos anos 1970 (Vanda

Ferreira). Edna Roland e Sueli Carneiro graduaram-se em universidades públicas e

Joselina da Silva avançou pelo campo acadêmico, tendo adquirido extensa formação

com pós-graduação stricto sensu e tornando-se professora universitária. Como

mencionado anteriormente, Sueli Carneiro informa que os dados de 1980 mostram

menos de 1% do total de estudantes universitários como sendo mulheres negras. É sem

dúvida significativo que as mulheres que atuaram nas organizações aqui analisadas

tenham constituído essa minoria. Há, assim, algum grau de distância – a formação

universitária, por exemplo – e outro de proximidade – as mães, a geração imediatamente

anterior, como domésticas – entre as lideranças do movimento e suas bases sociais. Esse

dado será relevante também nos capítulos seguintes, quando considerarmos as

demandas e pautas que as organizações a serem analisadas adotaram como suas.

3. Experiência organizativa

3.1 Resistência à Ditadura Empresarial-Militar

A atuação de algumas das entrevistadas em aparelhos de hegemonia, assim

como sua formação universitária, tem início no período da ditadura empresarial-militar

(MELO, 2014). A experiência de organização e resistência nesse período deixa fortes

141
marcas na forma como irão atuar politicamente mais tarde. Edna Roland e Neusa

Pereira abordaram essa experiência em suas entrevistas. Para melhor analisar esse

aspecto de suas trajetórias, vale remetermo-nos à participação de mulheres e negros/as

na resistência à ditadura.

Embora a historiografia brasileira tenha se debruçado amplamente sobre ditadura

e formas de resistência, a participação de mulheres e negros nesses processos ocupa

uma fatia modesta de tais estudos. Segundo Maria Cláudia Ribeiro, “dentro e fora das

organizações de luta armada, as mulheres desempenharam uma variedade de funções

que ganharam pouca ou quase nenhuma ênfase na historiografia.” (RIBEIRO, 2018, p.

16) Com isso, a autora se remete não apenas às mulheres que se engajaram na luta

armada no sentido direto do termo, mas à toda uma rede de apoio e logística tecida por

elas na retaguarda das organizações de resistência.

Em relação à participação de negros na resistência ao regime, há alguns

trabalhos interessantes que abordam a trajetória de militantes comunistas negros (RIOS;

OLIVEIRA, 2014; RIOS, 2014a e 2014b), bem como a repressão sofrida pelas

organizações antirracistas nesse contexto (KÖSSLING, 2007). Historiadores como

Petrônio Domingues consideram o golpe de 1964 como uma “derrota, ainda que

temporária, para a luta política dos negros”, na medida em que “o Movimento Negro

organizado entrou em refluxo” (DOMINGUES, 2007, p. 111). Defendendo

ferrenhamente a ideia do Brasil como uma democracia racial, o regime considerava que

a prática de denúncia do racismo consistia na “criação de um problema que

supostamente não existia” (DOMINGUES, 2007, p. 111).46 Nesse sentido, lideranças

46
Karin Kössling sinaliza que essa visão das associações negras como “introdutoras’ da questão racial no
Brasil e, por consequência, geradoras de conflitos que poderiam desestabilizar a ‘democracia racial
brasileira’” não se inaugura no regime militar, mas se faz presente desde a década de 1930 na perspectiva
de órgãos policiais (KÖSSLING, 2007, p. 9)

142
políticas e acadêmicos envolvidos com o antirracismo no Brasil foram perseguidos,

presos e exilados (RIOS, 2014b).

A perseguição política não evitou que algumas ações tenham sido realizadas,

como a formação do CECAN em 1972 em São Paulo e do IPCN em 1976 no Rio de

Janeiro, onde também floresceu o movimento Soul47 ao longo dos anos 1970, com seus

bailes Black que traziam à cena a valorização de uma estética da negritude

(DOMINGUES, 2007, p. 12). Por outro lado, negros e negras se engajaram na luta

armada, embora isso não tenha significado uma presença contundente da pauta sobre

relações raciais e racismo no interior desses movimentos. Da mesma forma, embora a

dinâmica da luta armada e da guerrilha pudesse promover certo grau de autonomia

feminina num plano individual, uma crítica frontal ao machismo e à

heteronormatividade não estava colocada (RIDENTI, 1990; SARTI, 2004).

O envolvimento na resistência contra a ditadura teve consequências importantes

na vida de todas/os aquelas/es que nela bravamente se engajaram, questão que aparece

no depoimento das entrevistadas desta pesquisa. Quando Neusa Pereira fala sobre seu

ingresso no ensino superior, o caracteriza como “meio atribulado”: “primeiro não me

deram a entrada, eu era persona non grata e esse título me acompanhou um certo

tempo, depois eles esqueceram de mim...” (PEREIRA, 2017, s.p.). Questionada sobre

de onde viera esse título, ela responde:

“Do DOPS! Depois esse título me largou um pouco. Por causa disso eu vou
também para a universidade particular, porque era mais fácil. Também não
tinha dinheiro pra pagar, e as universidades particulares naquela época davam
bolsas de estudo para a gente. Aí eu faço uma parte na Gama Filho, uma
parte na São Judas Tadeu e vou pulando assim, até que terminei de me
formar.” (PEREIRA, 2017, s.p.)

47
Na entrevista de Lúcia Xavier, ela diferencia o movimento soul do movimento negro, considerando
que o primeiro se limitava a uma questão de valorização estética da negritude: “Nos bailes não se tinha
discussão, se vivia a dimensão da condição racial em um patamar superior, de... Somos negros, somos
bonitos, somos isso, somos aquilo... Acabou. Dali,é evidente que a gente circula nas atividades do
Movimento Negro, mas não com essa dimensão organizacional, institucional” (CASTRO, 2003, s.p.).

143
Embora não aprofunde seu relato, Neusa conta: “Participei de luta política,

participei de aparelhos ideológicos, dei tiro de bola de gude na cara de cavalo...”. Ela

afirma que chegou a ser integrante do PCdoB antes de 1970. Neusa conta também que

chegou a fazer prova para ingressar no curso de sociologia da UFRJ, mas que, por conta

de perseguição política, foi impedida de cursar a faculdade:

“Quando cheguei lá um dia não tinha mais a minha turma. [...] E nós éramos
nove, nós tínhamos passado nove. Que era muita gente. Mas nós não
sabíamos que, desses nove, quatro não eram alunos. E aí nossos nomes foram
substituídos e nós perdemos a matrícula. Alguns ficaram lá brigando e eu
falei: ‘Não vou’. Porque eu também continuava entrando na renda de família,
tinha minha mãe... Eu tinha uma filha... Pouca gente sabe, mas ela é minha
filha adotiva e criava o meu primo, que morreu em novembro. E a minha mãe
já tinha tido um derrame. Eu tinha muita gente pra cuidar na minha vida. Aí
eu parei de correr atrás. Muita gente correu. ‘Muita gente’ não, nós éramos só
cinco. Alguns conseguiram reintegração... Estão brigando até hoje por algum
dinheiro aí. Mas eu vi uma coisa muito feia... Aí desisti, saí de tudo. Eles
destruíram um aparelho que tinha em frente à minha casa. Eu morava no
Lins. Eu nunca ouvi tanto tiro na minha vida. E eu tinha certeza que uma das
pessoas que eles estavam procurando era eu. Só que eu estava em frente!
Morava numa vila muito pobre, acho que eles nunca pensaram que eu estava
naquela vila. E o aparelho que tinha em frente à minha casa foi destruído. Aí
eu desisti de tudo... Mas a gente nunca desiste, né? Nunca desiste. Eu tinha
um namoradinho na época que era... ‘Namoradinho’ eu digo não é diminutivo
não... É que éramos jovens, né? Já fui jovem! (risos) E ele era liderança
política em duas universidades: na UERJ, que a ainda era na Haddock Lobo,
e na UFRJ... Também que tinha que ser preservado. Ah, eu tinha que
trabalhar, tinha que fazer outras coisas, sabe? Aí em 70 eu saí de tudo.”
(PEREIRA, 2017, s.p.)

Seu relato traz um aspecto muito interessante: a responsabilidade familiar, do

cuidado com os seus, aparece como um elemento crucial na decisão de “desistir”, de

“sair de tudo”. Tendo visto a brutalidade da repressão a um “aparelho” na frente de sua

casa, a ameaça sobre sua vida se revela como uma ameaça ao cuidado da mãe e da filha.

Ela tem ainda a responsabilidade de “preservar” seu “namoradinho”, liderança política

universitária. Aqui, possivelmente Neusa se refere ao perigo de que a repressão

obtivesse através dela algum tipo de acesso ao namorado.

144
Nesse trecho, explicita-se o aspecto integrado da classe ao gênero e à raça. Além

da tensão envolvida na necessidade de preservar seu namorado, ela aponta para um

limite entrar ingressar plenamente na resistência e a responsabilidade pelo cuidado ou,

em expressão mais precisa, pelo trabalho reprodutivo e afetivo junto à família. Ela

completa:

“E também foi ficando muito pior! Que aí já pegava 1968, 1972... E eu era
muito jovem. Não quis mais. Fui fazer a luta de outra forma. Nas instituições,
nas organizações partidárias... Nunca deixei de lutar até hoje. Até hoje tá na
minha página: Fora Temer! (risos)” (PEREIRA, 2017, s.p.)

A trajetória de Edna Roland, por sua vez, é um dos casos em que o

comprometimento com a luta significou um rompimento com laços familiares e

afetivos, a partir de sua entrada na clandestinidade. A vida universitária, no caso de

Edna, significou o primeiro contato com a luta política de resistência à ditadura. Ela

conta que ingressou na Universidade em 1969, “uma época em que não se podia colocar

um cartaz na parede, recortes de notícias de jornal, se você colocasse na parede, eram

arrancadas pelos funcionários da Universidade” (ROLAND, 2004, s.p.). Ela participou

da reabertura do centro acadêmico de Psicologia da UFMG, que estivera fechado.

Idalísio Aranha – militante do PCdoB morto na Guerrilha do Araguaia, mas àquela

altura, estudante de psicologia – propôs que cada turma tirasse uma representação

estudantil para que se compusesse uma chapa para a reabertura do Centro de Estudos de

Psicologia. Nesse processo, Edna foi eleita e passou a integrar a organização estudantil

(ROLAND, 2004, s.p.). Sobre sua atuação nesse contexto, diz ter poucas lembranças:

“Eu me lembro mais de algumas atividades supostamente clandestinas que


tentamos fazer, não sei se enquanto Centro de Estudos, eu não lembro mais
direito. Mas teve um vestibular em que, nós todos dentro de um carro,
Idalísio, eu e outros caras, a gente queria fazer uma panfletagem, certamente
falando desses problemas da repressão, sei lá, dessas coisas dentro da
universidade... Chegamos a ir próximo ao estádio do Mineirão, aí chegando

145
lá, avaliamos que não havia condições de segurança para distribuir os
panfletos, desistimos. Tudo era proibido, você era preso pelos livros que você
tinha em casa. Era uma situação de muito medo. Professores denunciavam
alunos, denunciavam colegas.” (ROLAND, 2004, s.p.).

Esse contato com a repressão no movimento estudantil adquiriu dimensões

muito mais severas quando Edna se aproxima da POLOP, tendo sido recrutada por um

colega de suas aulas de francês que veio, mais tarde, a se tornar seu marido. A POLOP

foi uma organização criada em 1961 por militantes que buscavam espaço entre a linha

dominante na esquerda brasileira, representada pelo PCB, e as poucas alternativas, ora

consideradas “insuficientemente revolucionárias, ora abertamente stalinistas”

(MATTOS, 2007, p. 197).48 Em 1967, ocorre um racha na organização e uma parcela

dos integrantes se une a uma dissidência do PCB no Rio Grande do Sul para formar o

POC (Partido Operário Comunista). Em 1970, uma divisão no POC dá origem à outra

organização que ressuscita a legenda POLOP: a Organização de Combate Marxista-

Leninista – Política Operária (OCML-PO). Segundo Marcelo Badaró Mattos, “esta

nova sigla já não poderia guardar senão alguns paralelos com a POLOP original”

(MATTOS, 2007, p. 198).

A POLOP na qual Edna Roland ingressa é, na realidade, a OCML-PO

(ROLAND, 2004, s.p.). Ela conta que foi recrutada pelo futuro marido “no terceiro ano

da escola” (possivelmente se referindo à faculdade), na qual teria entrado em 1969

(ROLAND, 2004, s.p.). Assim, sua aproximação da organização possivelmente dataria

de 1971. Sobre suas atividades na organização, ela explica:

“A gente fazia reuniões clandestinas em que a gente estudava. A gente


estudava marxismo, a gente estudava O Capital, a gente estudava textos de

48
Os fundadores da POLOP, dentre os quais “jovens intelectuais dos meios universitário e jornalístico”
como Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Emir e Eder Sader, criticavam em particular a
perspectiva etapista do PCB, defendendo que a realidade brasileira era plenamente capitalista e, portanto,
não precisaria passar ainda por uma revolução democrático-burguesa, mas imediatamente por uma
revolução socialista.

146
Lênin, ou textos de Emir Sader, os irmãos Sader eram da POLOP. E aí a
gente se reunia em casa, essa coisa toda... Quando chegou em 1973, nós
[Edna e o marido] já morávamos juntos, e aí um dia, voltando para casa, nós
chegamos em casa e a porta tinha sido aberta, arrombada creio. Nossa casa
funcionava como um arquivo da organização, nós tínhamos uma mala com
quilos de documentos considerados clandestinos. E essa mala tinha sido
revirada, tinha coisas que tinham sido reviradas na casa, e nós informamos
então aos companheiros e isso foi considerado como tendo sido a repressão.
A repressão teria entrado na nossa casa. E teve outros companheiros, mais ou
menos na mesma época, se julgou que eram situações semelhantes também.
Teve o Alemão, que hoje é líder sindical, ele era meu companheiro de
organização. Ele julgou que chegou em casa, ele deixava a chave em uma
determinada posição e a chave estava não sei de que jeito. Tudo era muito
assim...” (ROLAND, 2004, s.p.).

A forma como Edna relata a invasão a sua casa e situações semelhantes vividas

por seus companheiros de organização deixa entrever a visão que ela atribui, desde o

presente, à leitura que foi feita dos fatos no passado. “Isso foi considerado como tendo

sido a repressão”, “A repressão teria entrado na nossa casa”, “se julgou” que a chave do

apartamento teria sido movida... Essas escolhas de verbos e tempos verbais demarcam o

caráter suposto de que a repressão tenha de fato executado aquelas incursões, sendo

possível que todos os acontecimentos não tenham tido relação direta com isso. Assim,

fica indicada uma sensação de paranoia fortemente presente entre os militantes e na

organização em si:

“Enfim, a organização achou que pelo menos três diferentes grupos, casais,
estavam sendo vigiados pela repressão e considerou que havia riscos de
prisão. Nesse momento a POLOP vivia um momento que se chamava o
momento do recuo organizado provisório. A avaliação política se fazia era
que a Ditadura Militar tinha condições de eliminar fisicamente a esquerda no
Brasil. E nesse sentido, a tarefa prioritária de todos os militantes era
permanecer vivo. E havendo risco de repressão, havendo risco de prisão, era
um momento que havia muitas torturas, as pessoas quando eram presas... A
POLOP então decidiu, a direção decidiu que não havia condições da nossa
permanência em Belo Horizonte, e que nós devíamos entrar para a
clandestinidade.” (ROLAND, 2004, s.p.)

Seu relato prossegue sublinhando uma desconfiança com relação ao grau de

risco a que de fato estava exposta:

147
“Eu na época não acreditei muito nessa interpretação dos fatos, eu falei:
‘Poxa, mas se a repressão quer nos pegar, por que não ficou nos esperando?
Se não queria pegar, por que deixou sinais da sua presença?’ Eu achava que
não era muito coerente essa interpretação. Mas os companheiros diziam
assim: ‘Você não tem que ficar cobrando coerência da repressão. Os fatos
estão aí. Há elementos que indicam que há riscos’. Parece que o pessoal da
AP também tinha indícios de que havia movimentações, de que haveria
quedas, como se falava. Enfim, nós ainda permanecemos, eu e meu
companheiro que se chama Antônio Maurício Fonseca de Oliveira – foi meu
primeiro marido –, nós permanecemos ainda cerca de, não sei se um mês ou
dois em Belo Horizonte, já escondidos, não mais morando em nossa casa,
mas eu morando na casa de alguns amigos e ele morando na casa de outras
pessoas, aguardando que a direção da POLOP definisse para onde que a
gente ia. Eu nessa época, na verdade, eu era de uma OPP, Organismo Pára-
Partidário, eu nem era propriamente militante da própria organização, eu
estava na periferia da POLOP. Ele era o meu assistente, ele era o responsável
pelas reuniões. E aí, finalmente a POLOP definiu que nós deveríamos ir para
São Paulo, e que nós teríamos que romper todos os laços com nossa vida
anterior. Isso significava romper relações com a família, com o trabalho, com
os amigos etc. Estabelecer um corte de tal forma que, vivendo em São Paulo,
ninguém pudesse nos localizar e a repressão não nos pudesse atingir.”
(ROLAND, 2004, s.p.)

Apesar de discordar da interpretação generalizada de que a repressão estivesse

atrás dela, Edna é orientada a não “cobrar coerência da repressão” e a acatar a

orientação do partido. Ao comentar sobre os indícios de perseguição à AP (Ação

Popular), ela parece ponderar a possibilidade de haver, de fato, algum risco. Um pouco

mais à frente no depoimento, ela afirma: “Agora, digamos assim, eu posso ter passado a

ser observada e seguida, porque eles seguiam as pessoas durante um certo tempo... Eu

não sei direito, eu nunca soube direito essa história” (ROLAND, 2004, s.p.). Essa

dúvida, esse não saber direito e ter que acatar ordens ainda assim pode indicar um

incômodo com o centralismo no partido, que a levou a cumprir a decisão de deixar sua

casa. Isso aparece quando ela relembra que “nem era propriamente militante da própria

organização”, mas de um organismo que orbitava na periferia da POLOP. O centralismo

do partido se traduz, enfim, no fato de que “finalmente [...] definiu” sua ida a São Paulo

e a necessidade de romper todas as relações sociais e afetivas estabelecidas até então –

era a entrada na clandestinidade. Essas relações, que levaram Neusa Pereira a afastar-se

148
definitivamente da luta contra a ditadura, foram postas novamente em jogo no caso de

Edna. Ela conta sobre como se deu esse rompimento com a família:

“E é muito engraçado, porque você chega em um primeiro momento, em uma


situação dessa, e você ainda não tem muita consciência do que está fazendo,
do peso dessas decisões, da mudança que vai acontecer na sua vida. Eu, antes
de ir, eu pedi a minha irmã, minha irmã morava em São Paulo, eu pedi que
ela viesse em Belo Horizonte porque eu tinha que falar com ela. Aí eu
comuniquei a ela, eu falei: ‘Eu estou entrando para a clandestinidade’. Era
assim que se falava. ‘E tu vais ter que segurar as pontas’. Eu falei para ela. E
entreguei para ela então uma carta para os meus pais, uma carta em que eu
dizia – uma história maluca – que eu tinha chegado à conclusão que eu não
queria ser psicóloga, porque não era essa a minha vocação, e que eu
precisava de um tempo para repensar o que eu ia fazer da minha vida. Que eu
ia fazer uma viagem, que eles não se preocupassem porque eu mandaria
notícias. Entreguei a carta para a minha irmã e falei: ‘Vai segurando a onda
lá. Eu vou, na medida do possível, tentar enviar informações, notícias. Mas
não me procura, porque isso vai me colocar em risco’.” (ROLAND, 2004,
s.p.)

Nesse trecho, fica claro a forma como o olhar do presente caracteriza o passado:

ela sublinha a falta de noção quanto à dimensão daquele acontecimento, além de

caracterizar sua justificativa como “uma história maluca”. A falta de “consciência do

que está fazendo” se revela também na falta de planejamento quando da chegada em

São Paulo:

“Aí chegamos, deixamos a nossa bagagem na rodoviária para primeiro ver o


que a gente ia fazer, aí Tonico, como eu chamava meu marido, conhecia a
USP, sabia onde era a USP, e a gente não sabia para onde ir, resolvemos
procurar um hotel em Pinheiros, porque Pinheiros era perto da USP. Então
assim, nós estávamos entrando em uma nova situação de vida clandestina,
mas o referencial é todo anterior. Então a gente queria estar perto da USP, do
lugar onde os estudantes moravam. Passamos três dias em um hotel lá em
Pinheiros, depois arranjamos um quarto para morar no Paraíso. Então esse
meu primeiro ano em São Paulo eu passei morando em cortiços na verdade.
A gente alugava quartos e, como a situação era sempre precária, a gente
estava sempre suspeitando de alguma coisa, que alguém tinha seguido, esse
tipo de coisa. A gente ficava, às vezes, um mês, dois meses em um quarto e
daí a gente mudava para outro canto. Foi bastante difícil, porque nós
passamos por um processo de queda social muito profundo.Eu, lá em Belo
Horizonte, eu já era professora universitária. Porque eu já tinha o
bacharelado,no quarto ano eu já era bacharel, tinha feito a seleção na Católica
de Minas Gerais então eu já era professora universitária aos 22 anos de idade.
Enfim, vivia na universidade, a gente ganhava pouco e tudo, mas do ponto de
vista da vida social, a gente vivia em espaços interessantes, embora tivesse
pouco dinheiro. E aí em São Paulo, nós passamos a viver em cortiços,

149
perdemos todas as relações sociais, todos os laços sociais que a gente tinha.
A única coisa e pessoa que cada um tinha era o outro, e as relações com a
organização, que a gente chegou em São Paulo já tendo pontos para encontrar
com os companheiros.” (ROLAND, 2004, s.p.).

Os impactos objetivos e subjetivos da entrada na clandestinidade ficam patentes

nesse trecho. Eram perdas materiais, inclusive de capital simbólico (Edna deixa o cargo

de professora universitária, tendo acabo de ser aprovada para um concurso de docente

na UFMG), e afetivas, psicológicas – um isolamento de todos os laços que não fossem

referentes ao partido. Ela explica que sua situação não era de “clandestinidade

absoluta”, pois não teve que abandonar sua identidade no sentido de mudança de nome,

mas um abandono de aspectos de sua identidade foi demandado, pois não poderia ser

identificada por pessoas com quem tinha quaisquer tipos de relações anteriormente

(ROLAND, 2004, s.p.).

Edna conta que trabalhou como datilógrafa e livreira até conseguir um emprego

como secretária bilíngue em uma multinacional, apesar de não ter ideia de como realizar

a função e ter aprendido na prática. Mesmo vivendo como secretária, seu compromisso

ainda era plenamente para com o partido:

“E como era uma época de muito emprego, década de 1970, os salários eram
bons, e aí o meu salário passou a ser considerado muito importante para a
organização. Eu tinha ido para São Paulo para me integrar na produção,
porque eu estava vinculada à Frente de Trabalho Operário, e meu sonho era ir
trabalhar na fábrica. Mas como eu consegui um bom emprego e um bom
salário, a organização não me liberava e não me encaminhava para trabalhar
na produção, era o que eu queria. E eles foram me mantendo no trabalho
burocrático. E eu então, entregava à organização praticamente todo o meu
salário. Era só o essencial para sobreviver, a gente anotava o cafezinho, os
cruzeiros que a gente gastava com cada coisinha, apresentava o meu relatório
dos gastos mensais e o restante do meu salário era todo entregue para a
organização.” (ROLAND, 2004, s.p.)

Assim, mesmo ganhando um bom salário, Edna continuou morando em cortiços

por cerca de um ano, quando resolveu contrariar o partido alugando uma casa para

150
morar. Comentando sobre suas atividades de militância em São Paulo, ela lembra que

realizavam reuniões às “5 horas da manhã durante o inverno”:

“Parecíamos um bando de loucos. A gente se reunia em parques, um frio


terrível, o parque completamente vazio e aquele grupinho secretamente
reunido no meio do parque. Às vezes em lugares, a gente levava varas de
pescar, enfiava varas de pescar no chão, a vara de pescar passava o dia
todinho lá abandonada e o grupinho ali sentado por horas a fio discutindo,
debatendo questões, fossem textos, fossem avaliações de conjuntura. Enfim,
uma coisa completamente fantasmagórica, você pensando a posteriori”
(ROLAND, 2004, s.p.).

Essa avaliação de que os militantes pareciam “um bando de loucos” vivendo

situações “completamente fantasmagóricas” é reforçada em um episódio relatado por

Edna de uma noite que ela e o companheiro passaram em claro, após ver a polícia

entrando na casa de um vizinho, de que “a polícia estava nos cercando, ia nos prender, e

nós íamos ter que enfrentar metralhadoras e torturas, e tudo mais.”. Na manhã seguinte,

descobriram que a visita da política ao vizinho se dera por conta de um caso de

violência doméstica. Segundo Edna, “essa foi a situação de maior medo que eu passei

na minha vida e que tudo foi fruto da nossa imaginação, embora naquelas circunstâncias

poderia sem dúvida ser verdade” (ROLAND, 2004, s.p.). Mais uma vez, seu

depoimento revela descrença no real perigo que corria, combinada à ponderação de que

toda a paranoia poderia, de fato, se justificar. Esse constante sentimento de preocupação

com a repressão fez com que, na visão de Edna, o momento de saída de clandestinidade

tenha variado entre os militantes, a partir de avaliações individuais de que o perigo já

havia passado, independente da presença de indícios de abertura do regime (ROLAND,

2004, s.p.).

No seu caso, a saída da clandestinidade foi marcada pela dúvida em relação a

como sobreviver, ao que fazer nessa nova fase da vida. Eventualmente, Edna abandona

o trabalho como secretária e reingressa na vida acadêmica, a princípio prestando

151
vestibular para o curso de Ciências Sociais na USP, não concluído, e posteriormente

iniciando uma pós-graduação em Psicologia, onde pesquisou o tema do emprego

doméstico. Nesse contexto, as relações raciais aparecem como questão de pesquisa:

“Aí então, para realizar essa pesquisa que eu começo a buscar o pessoal do
movimento negro. Porque eu queria encontrar sujeitos da minha pesquisa, eu
queria entrevistar, eu queria procurar mulheres negras empregadas
domésticas. E o caminho como eu achei que deveria fazer isso, era através do
movimento negro. Então eu começo a buscar contatos com o movimento
negro, pessoas do movimento negro, começo a fazer minhas entrevistas”.
(ROLAND, 2004, s.p.)

A experiência de Edna Roland na resistência contra a ditadura, marcada pela

entrada na clandestinidade, pelo centralismo partidário e por um grau de desconfiança

quanto à real necessidade das medidas de segurança contra a repressão, teve impactos

nessa sua aproximação do movimento negro. Ela conta que a pesquisa sobre a temática

racial leva a uma “identificação minha com o movimento, com a temática”, a partir da

qual ela decide tornar-se militante do movimento negro.

“Vai ocorrendo esse processo de transformação, e tem um momento em que


eu fui a um debate que o Miltão era o debatedor [...] E eu fui lá e fiquei, tinha
pouquíssimas pessoas, uns gatinhos pingados. E eu fiquei assistindo o debate
esperando o final para poder conversar com o Miltão. Aí no final eu cheguei,
me apresentei... ‘Queria saber a cerca do MNU...’ Perguntei de uma forma
assim indireta, e ele me respondeu de uma forma mais indireta ainda. Até que
eu perdi a paciência e falei: ‘Escuta. Se eu quiser entrar para o MNU, como é
que eu tenho que fazer?’ Aí ele me apresentou um catatau de documentos
dessa grossura, e falou: ‘Aqui está o nosso programa. Então primeiro você
leia para ver se você está de acordo com o nosso programa. Aí se você estiver
de acordo, nós vamos te avaliar. Nós vamos avaliar se você tem condições
ideológicas para você entrar para o MNU’. Aí quando ele falou isso, eu falei:
‘Muito obrigada’. Peguei o documento e: ‘Vou levar para casa’. Mas depois
de ter vivido cinco anos na clandestinidade, eu estou em busca do movimento
social, eu quero um espaço de militância social, uma pessoa dizer que vai
fazer uma avaliação ideológica, se eu tenho condições... Eu falei: ‘Esse filme
eu já vi. E não é esse o filme que eu estou querendo ver mais. Eu quero um
espaço de atuação política e social’.” (ROLAND, 2004, s.p.)

Edna comenta ainda que, antes da entrada no movimento negro, participou de

um movimento popular na periferia de São Paulo, junto a “associações de moradores

152
que começam a lutar por saneamento, por água encanada”, porque “nós, eu e meu

companheiro, a gente não conseguia viver sem ter uma atuação política. Tinha que

encontrar alguma coisa para se sentir vivo, se sentir contribuindo” (ROLAND, 2004,

s.p.). Nessa época, também participou de comitês de apoio às grandes greves do ABC

Paulista, movimento no qual despontou a liderança política de Luís Inácio Lula da

Silva. Um conflito físico envolvendo militantes do chamado “movimento da água” e

sindicalistas levou Edna a afastar-se de ambos, “porque eu achei que eticamente era

inadmissível o comportamento que eles tinham tido” (ROLAND, 2004, s.p.).

A trajetória de Edna revela uma intensa – e extensa – dedicação às lutas sociais,

o que se desdobra em um amplo repertório organizativo. A experiência vivida ao longo

da década de 1970 resultou em certos critérios éticos e políticos, bem como na definição

de limites pessoais no envolvimento com movimentos sociais. Essa experiência a levou

a desistir de entrar no MNU, após a conversa supracitada com Miltão: “Porque eu falei:

‘Não. Não quero mais essa prática das organizações dos partidos marxistas, leninistas,

de esquerda... Não quero mais isso. Eu quero outra coisa’” (ROLAND, 2004, s.p.). De

fato, o movimento negro no fim dos anos 1970 havia se aproximado bastante dessa

“prática” política identificada por Edna. O fim da luta armada resultara em um

“processo de reorganização das esquerdas”, que passa a apresentar organizações

“permeáveis à influência e à ação de militantes negros que passam a colocar a temática

racial na pauta das discussões” (RIOS; OLIVEIRA, 2014, p. 508). Uma dessas

organizações foi a Liga Operária, que se tornou conhecida como Convergência

Socialista, organização trotskista de influência morenista que formou seus primeiros

núcleos em São Paulo e, a partir de 1973, se ligou ao jornal Versus (RIOS; OLIVEIRA,

2014, p. 508-509). De acordo com Petrônio Domingues, a Convergência Socialista

153
“foi a escola de formação política e ideológica de várias lideranças
importantes dessa nova fase do movimento negro. Havia, na Convergência
Socialista, um grupo de militantes negros que entendia que a luta antirracista
tinha que ser combinada com a luta revolucionária anticapitalista. Na
concepção desses militantes, o capitalismo era o sistema que alimentava e se
beneficiava do racismo; assim, só com a derrubada desse sistema e a
consequente construção de uma sociedade igualitária era possível superar o
racismo” (DOMINGUES, 2007: 113).

Sobre a influência da Convergência Socialista no MNU, Michael Hanchard

afirma que “pela primeira vez no Brasil, a defesa de uma posição quanto à raça e à

classe não foi marginalizada pela intelectualidade afro-brasileira” (HANCHARD, 2001,

p. 148). A Carta de Princípios do MNU defendia “a ideia de transformação social, de

construção de ‘uma nova sociedade onde todos realmente participem’, [que] está

diretamente ligada ao momento histórico e ao contexto social no qual ela surge” – o de

combate à ditadura militar, em processo de abertura (PEREIRA, 2013, p. 137). Essa

reivindicação de uma transformação social generalizada fica clara no encerramento da

Carta:

“Como não estamos isolados do restante da sociedade brasileira, NOS


SOLIDARIZAMOS: a) com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores
populares da sociedade brasileira que visem a real conquista de seus direitos
políticos, econômicos e sociais; b) com a luta internacional contra o racismo.
POR UMA AUTÊNTICA DEMOCRACIA RACIAL! PELA LIBERTAÇÃO
DO POVO NEGRO!” (GONZÁLES; HASENBALG, 1982, p. 66).

No caso de Edna, essa proximidade com uma perspectiva à esquerda guardava

relações com o que havia vivido na resistência à ditadura e foi motivo de afastamento

do MNU. Ela acaba se engajando, em um primeiro momento, em projetos que

conjugavam seus interesses acadêmicos com os interesses políticos no movimento

negro, como o Centro de Documentação do Negro (CEDOC) e o Instituto Negro de

Estudos Brasileiros (INEB), ambos não chegaram a se concretizar por conta de

problemas de relacionamento entre alguns membros (ROLAND, 2004, s.p.).

154
Embora a proximidade do MNU com uma perspectiva política socialista, em sua

origem, possa ter representado uma situação difícil na trajetória de Edna Roland, a

relação entre o movimento negro e a esquerda socialista é mais ampla e complexa. O

marxismo representou um referencial teórico importante para o movimento negro

inclusive no diálogo com os movimentos de libertação de países africanos, como se

verificava, por exemplo, em debates ocorridos no IPCN (CASTRO, 2004, p. 2-3). Sueli

Carneiro, em seu depoimento, afirma que a perspectiva do MNU que articulava raça e

classe “situa, traz um nível de politização maior para o debate racial e situa o

movimento negro em uma perspectiva mais à esquerda, em uma visão mais de esquerda,

que eu acho que foi a influência fundamental de toda a militância da minha geração”

(CARNEIRO, 2004, p. 7)

O binômio raça e classe, presente na origem do MNU, “permitiu alguma

abertura para alianças e negociações com setores socialistas, universitários, intelectuais

e alguns partidos no processo de abertura política”, mas estava “longe de ser dominante

na esquerda nacional” (RIOS, 2014b, p. 51). Flávia Rios identifica uma “baixa

permeabilidade dessas correntes partidárias [de esquerda] em absorver demandas de

caráter não-classista” – tendo classe aqui um sentido mais restrito do que aquele que

pretendemos empregar nesta tese (RIOS, 2014b, p. 51).

Em sua entrevista, Lúcia Xavier chega a afirmar que “Ninguém da esquerda

nunca deu apoio ao Movimento Negro. Nunca. Não teve ninguém da esquerda que

dissesse: ‘Esse é um movimento que nós devemos apoiar’.” (CASTRO, 2004, p. 7).

Essa afirmação peremptória deixa bem claro o aspecto conflituoso e, em alguma

medida, os ressentimentos gerados pela parcela majoritária do campo da esquerda que

negava a questão racial. Lélia Gonzalez analisou essa difícil relação:

155
“o que eu tenho percebido é uma tentativa por parte da esquerda em geral de
reduzir a questão do negro a uma questão meramente econômico-social. Na
medida em que se liquida o problema da luta de classes, na medida em que
entramos numa sociedade socialista, o problema da discriminação racial está
resolvido. [...] As chamadas correntes progressistas brasileiras, elas
minimizam da forma mais incrível as nossas reivindicações. Eu posso dar
exemplo: há pouco tempo, em dezembro de 78, no Encontro Nacional pela
Democracia, promovido pelo Centro Brasil Democrático, eu estava ouvindo
um dos deputados mais votados, uma das esperanças das jovens esquerdas
brasileiras falando etc. e tal, e essa esperança de um pensamento de esquerda
brasileiro colocou o seguinte: todos os regimes políticos brasileiros se
caracterizam pela institucionalização da repressão social e esta repressão, no
passado, se dera conta o índio e contra o negro, e no presente se dava contra a
mulher e os pobres. Bom, eu me inscrevi evidentemente, [...] perguntei pro
tal deputado como ele explicava que no dia 7 de julho daquele mesmo ano
nós, os negros, estivéssemos reunidos nas escadarias do Teatro Municipal de
São Paulo fazendo um ato público contra a discriminação racial e por que
determinados setores da sociedade brasileira estavam aí brigando em função
das leis que o governo pretendia impingir ao índio, no sentido de jogá-lo na
mesma situação que jogou a nós negros com o 13 de maio. [...] Nós
constituímos a maioria da população. No entanto, ninguém levantava a
questão do negro”. (GONZALEZ, 2018i, p. 84-85).

Assim, embora um setor da esquerda radical tenha interagido e estimulado a

formação de organizações do movimento negro (como no caso do MNU), uma parcela

expressiva, ou mesmo majoritária, da esquerda secundarizava a questão racial em

relação à dimensão econômica, traduzida imediatamente como “de classe”. Por isso,

apesar da importância, reconhecida em alguns depoimentos, da interação das

organizações de esquerda com o movimento negro, predomina uma avaliação de

silenciamento da questão racial pelas organizações de esquerda.

3.2 Movimento negro contemporâneo

A experiência organizativa das entrevistadas no contexto do movimento negro

contemporâneo é bastante diversa. Em vez de detalhar aspectos sobre cada organização

em que participaram (conferir anexo A), destacarei aqui alguns aspectos dessa

experiência que se evidenciam no depoimento como importantes num processo similar

ao descrito por E. P. Thompson como de identificação de interesses comuns entre si e

156
contrários em relação a outro grupo social, caracterizando-se a formação da consciência

de classe. No caso da participação das mulheres no movimento negro, o processo está

envolto em contradições, já que há uma simultaneidade de identificação relativa à

racialidade e à percepção de conflitos ligados principalmente a gênero e sexualidade.

Como afirma Joselina da Silva em entrevista de meados dos anos 1990, “às vezes fica

complicado dizer assim: ‘o movimento de mulheres negras não é o movimento negro’.

Nós somos parte do movimento negro, somos integrantes do movimento negro”

(SILVA apud CONTINS, 2003, p. 57).

A importância de se abordar as práticas de machismo e lesbofobia a partir dos

depoimentos se dá não apenas pelo impacto que exercem subjetivamente nas mulheres,

como também por seus impactos em arranjos organizativos.49 O depoimento de Neusa

Pereira traz uma série de questões importantes nesse sentido. Ela conta que,

inicialmente, se aproximou mais das organizações de mulheres do que do movimento

negro, porque:

“Eu fui educada de uma forma e ali eu vi algumas coisas que eu não gostava.
Muitos homens... As mulheres sempre em papéis... colar cartaz, fazer café...
E muito palavrão! Eu tinha pavor de palavrão. [...] Eu tinha pavor, eu fui
educada assim. Eu fui educada pra ser uma mocinha de bem, professora,
educadinha... E era muito palavrão, muita coisa, eu levava cada susto! Mas
depois não era nada disso, não era o palavrão, era a postura masculina mesmo
que me incomodava. Eu vi mulheres sendo sentadas à força: "Senta aí, cala a
boca!" [...] Eu vi umas coisas que eu... Não é o meu lugar. Sempre passei por
ali e até hoje minhas lembranças não são muito boas”. (PEREIRA, 2017, s.p.)

Além de criticar as funções destinadas às mulheres nas organizações de

movimento negro, Neusa identifica um incômodo profundo com uma certa

performatividade de gênero masculina, para usar o conceito de Butler (2016): uma

“postura masculina” simbolizada pelo palavrão, mas também por um comportamento

agressivo para com as mulheres – “senta aí, cala a boca!”.

49
Me refiro especificamente à lesbofobia porque nenhuma das entrevistas referiu-se à bissexualidade.

157
Em “Gênero, Raça e Ascensão Social”, Sueli Carneiro responde a um texto

bastante ofensivo de Joel Rufino dos Santos, em que compara mulheres negras a Fuscas

e brancas a Monzas – como se estas últimas fossem um objeto que evidenciasse status

social e as primeiras, objetos que “qualquer pé-rapado” poderia obter (CARNEIRO,

1995, p. 165). Denunciando os aspectos de racismo e machismo contra mulheres negras,

Sueli aponta que “o texto explode também em ódio pelas mulheres brancas”,

evidenciando assim “o único espaço de cumplicidade efetiva existente entre o homem

negro e o homem branco: o machismo” (CARNEIRO, 1995, p. 165). A coisificação das

mulheres negras e brancas, denunciada por Sueli, e a “postura masculina” agressiva e

violenta identificada por Neusa fazem parte de um exercício ativo de masculinidade,

uma performance que reforça as relações de poder entre homens e mulheres.

Vale frisar que, embora a masculinidade não seja “uma entidade fixa encarnada

no corpo ou nos traços de personalidade dos indivíduos”, é possível utilizar criticamente

o conceito a partir da compreensão de masculinidades como “configurações de práticas

que são realizadas na ação social”, conforme Raewyn Connell e James Messerschmidt

(2013). Essa autora lembra que o conceito de “masculinidade hegemônica” não pode ser

tomado de forma trans-histórica, mas considerando-se os “modelos de conduta

masculina” exaltados – pela igreja, pelo Estado, pela mídia – em contextos sociais

específicos (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 252.). Nesse sentido, ainda que

consideremos as masculinidades negras no Brasil – no caso de Neusa, no Rio de Janeiro

da década de 1980 – como masculinidades subordinadas, considerando toda a

estereotipia e a desqualificação direcionada a elas (SOUZA, 2009), elas realizam uma

interação ativa com a masculinidade hegemônica, não estando isentas da reprodução de

violência de gênero, por exemplo. A masculinidade hegemônica estabelece uma relação

dialética com as masculinidades marginalizadas, em “um processo constante em que

158
ocorrem negociação, tradução e reconfiguração” (CONNELL; MESSERSCHMIDT,

2013, p. 260). Do contrário, seríamos levados à compreensão de que as masculinidades

marginalizadas não teriam impacto algum na construção da masculinidade hegemônica

(CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 260-261)

Embora nenhuma das entrevistadas desta pesquisa se refira especificamente à

reprodução da violência no âmbito doméstico, é marcante o trecho do livro de Michael

Hanchard sobre o movimento negro contemporâneo, no qual afirma:

“Muitos ativistas afro-brasileiros do sexo masculino pregavam a igualdade


entre os sexos como parte de sua retórica política, mas esperavam que as
afro-brasileiras executassem as tarefas de dona de casa convencional,
enquanto eles participavam plenamente do movimento e, às vezes, de
relacionamentos com outras mulheres. Para as afro-brasileiras engajadas no
movimento, essa disjunção serviu para sublinhar a necessidade de estratégias
políticas que independessem da versão masculinista [sic] do movimento”.
(HANCHARD, 2001, p. 154)

A pesquisa de Rosália Lemos reúne uma série de relatos que evidenciam o

machismo em organizações de mulheres negras. Uma de suas entrevistadas, Vânia

Santana, chega a afirmar que o motivo de não ter permanecido no movimento negro foi

que “o assédio sexual era um problema gravíssimo” (SANTANA apud LEMOS, 1997,

p. 52). Ela completa com o seguinte: “Aí você ajeita a mesa, você põe o microfone e

alguém vai falar. [...] achava isso uma prática inconcebível [...], quer dizer, qual é a

possibilidade de você tomar pra si o microfone” (SANTANA apud LEMOS, 1997, p.

52).

Essa divisão de tarefas por gênero no interior das organizações é outro ponto que

aparece em muitos relatos. Em relação a isso, Joselina da Silva afirmou que as mulheres

negras

“entendem que passar um pano sobre uma mesa para organizar uma reunião é
um ato tão político quanto sentar e fazer um discurso. Só que como vivemos

159
numa sociedade machista o que é entendido é o seguinte: as mulheres limpam
a mesa e os homens fazem o discurso. A nossa tendência, a nossa postura é
mudar isso e estar o tempo todo atentas para mudar, porque senão você acaba
reproduzindo isso de uma forma, sem perceber você acaba arrumando a casa
para as pessoas dançarem” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 57).

Joselina comenta também que a “reprodução da opressão [sexista] vai se dar

muito no movimento negro”, porque “há uma tendência muito grande a que os

oprimidos oprimam os mais oprimidos.” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 57). Essa

“tendência” foi explicada por Angela Davis de maneira muito instigante em conferência

realizada em 2017 na Universidade Federal da Bahia. Segundo Davis, para compreender

a reprodução da violência contra as mulheres por parte dos homens negros, é necessário

integrar a análise da questão com “nossas teorias sobre a violência do Estado e

institucional”.50 A violência sofrida pelos homens negros envolve relações co-

constituídas de gênero, raça e classe – o que fica patente no Brasil à luz das estatísticas

sobre o genocídio de jovens negros, em sua maioria homens, pelo Estado. Nesse

sentido, Davis defende a necessidade de lutar pela erradicação das “formas

institucionais de violência”, especialmente a abolição do encarceramento como forma

de punição.

Embora um fenômeno não se reduza ao outro, é possível considerar a íntima

relação entre gênero e sexualidade – e entre sexismo e LGBTfobia – na medida em que

a heterossexualidade compulsória está inextricavelmente ligada aos padrões de gênero

dominantes. Lúcia Xavier conta que, em sua experiência no movimento negro, esse

debate não estava colocado:

“ser homossexual, ou viver a homossexualidade, não era nem discutido. Eu


nem me lembrava que alguém falasse isso. Você sabia que tinham
homossexuais, mas essa discussão não se juntava. Exceto quando se fazia

50
A tradução da conferência transcrita está disponível em: <https://lucianagenro.com.br/2017/07/o-
discurso-completo-de-angela-davis-na-ufba/>. O vídeo da conferência está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=2vYZ4IJtgD0&feature=youtu.be>. Acesso em 22 jan. 2019.

160
aquela célebre piada, de que já é negro e ainda por cima homossexual, para
não dizer que era negro e ainda por cima veado. A gente ficava todo mundo
chateado com a história, mas a discussão sobre a homossexualidade nunca
entrou.” (CASTRO, 2003, s.p.)

A questão específica da lesbofobia no movimento negro aparece de maneira

impactante no relato de Neusa Pereira, quando conta sobre sua atuação no CEAP:

“Eu tava no CEAP e minha namorada ia junto, participava. Ela não era do
CEAP mas ela participava de algumas discussões, dos encontros, etc. E era
uma mulher bonita. Os caras chegavam em cima, na maior cara de pau! ‘E aí,
Neusa, rola alguma coisa com a Fulana?’ Eu dizia: ‘Pergunta pra ela. Ela que
tem que te responder’. Eles tinham a cara de pau de ir lá mexer com ela,
entendeu? Então sempre foi uma relação de profundo... De muito desrespeito
com a gente. Nós sempre tivemos muito embate, mesmo dentro do CEAP.
Muitos! Por sermos mulheres, pelo grupo [de mulheres do CEAP], na época,
ter uma, duas, três lésbicas. Uma era meio enrustida [...] Agora que ela fala
mais de peito aberto, mas tinha lá seus motivos pra... Dentro, com a gente
não, entendeu? Dentro do CEAP não, mas pra fora ela mostrava muito pouco.
Mas eu e Joselina [da Silva] sempre fomos de dizer: ó, o caso é esse! ‘Ah, é
sua irmã?’ Não, é minha namorada! Naquela época tinha a tal da prima...
Todo mundo tinha uma prima que não desgrudava da prima! ‘Ah, é sua
prima?’ Não, é minha... Eles já sabiam que era namorada! ‘Ah, aquela sua
prima...’ Não é minha prima não, é minha namorada! Dizer isso era um soco
na cara deles, eles não aturavam, mas muito duro mesmo! (risos) A misoginia
era... é um negócio muito sério. Eu te juro: eu queria ser homem por um dia
pra entender a misoginia. Não queria ser homem pra mais nada não! (risos)
Mas só pra entender a misoginia, eu queria.” (PEREIRA, 2017, s.p.)

Nota-se que Neusa caracteriza a lesbofobia sofrida no CEAP como “misoginia”,

trazendo, por um lado, uma perspectiva articulada entre ambas, mas não chegando a

nomear especificamente a discriminação como lesbofobia ou mesmo homofobia. É

interessante, ainda, a forma diversa como Joselina da Silva relembra como era tratada a

lesbianidade no contexto do CEAP:

“Do grupo de cinco, três mulheres são lésbicas e toda a entidade sempre
soube que elas são lésbicas e que traziam as namoradas. Nunca ninguém
falou nenhuma piada pra elas. É claro que a gente sabe que por trás devem ter
os mais incríveis comentários, porque infelizmente vivemos numa sociedade
extremamente discriminatória. Mas, presentemente, o que se normalmente
ouviria numa outra entidade não se ouve aqui. Quer dizer, as namoradas
sempre foram respeitadas da mesma forma como eram as pessoas que
trabalhavam na equipe. [...] Não é que viessem namorar aqui, mas assim
como a esposa do Fulano vem, ou marido de Fulana vinha, a namorada de
Fulana vem, e sempre foi tranquilamente respeitada, como grande ganho na

161
sociedade que a gente vive. Acho que dentro do movimento negro, de um
modo geral, hoje a gente vai ver alguns homens que quando querem atacar o
movimento de mulheres negras atacam por aí: ‘aquilo lá é um bando de
lésbicas, sapatão!’. Mas jamais dizem pessoalmente” (SILVA apud
51
CONTINS, 2003, p. 62).

Enquanto Neusa narra uma dinâmica de lesbofobia desabrida, com cantadas

inapropriadas e desconsideração da validade de relacionamentos entre mulheres,

Joselina traz uma visão diferente, segundo a qual nenhum comentário preconceituoso

jamais fora feito – abertamente. Ao mesmo tempo em que afirma que as mulheres

lésbicas eram respeitadas no CEAP, ela pondera que no âmbito do privado esse mesmo

respeito não se verificaria, completando ainda que a lesbofobia aparecia como um

recurso para “atacar” o movimento de mulheres negras. Vale lembrar que a entrevista de

Neusa e de Joselina foram realizadas em momentos bastante diferentes: a primeira em

2017 e a segunda em meados dos anos 1990, quando Joselina ainda atuava no CEAP.

Atuar em organizações mistas como as do movimento negro significava, como

se pode ver, constantes embates. Sobre a forma de lidar com isso, Joselina comenta que,

no CEAP

“era a conscientização da porrada mesmo! Quer dizer, do dia-a-dia, da


discussão. A porrada não era porrada de briga, mas do processo de se
conscientizar para acompanhar. Porque, no início, o Programa de Mulheres
tentou organizar umas reuniões de informação, era até por conta da campanha
de esterilização em massa de mulheres negras. Havia uma série de
informações novas de conjunto. Tentou-se organizar reuniões de
conscientização que aconteceriam uma vez por semana. As pessoas estavam
cada vez mais presentes, então ela acabou deixando de acontecer por causa de
falta de quórum. Os homens da entidade acabaram tendo que respeitar e
acompanhar a questão específica de gênero, porque o grupo que aqui estava
era um grupo feminista muito forte, muito atuante, muito (eu não gosto da
palavra radical, mas enfim...) presente, daquele tipo que não relaxa. Chamou
de feia, o pessoal já transforma num fato político e aí os caras não querem
bancar os politicamente incorretos. Isso criou um respeito muito grande em
relação às mulheres que aqui estavam [...] Eu tenho certeza porque este grupo
se impôs de forma muito veemente” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 61)

51
O trabalho de Rosália Lemos menciona um caso sobre o qual não encontrei evidências em outras
fontes, mas que ainda assim cabe mencionar: Ela afirma que foi criada em 1988 a Sociedade Ogboni – em
referência a uma sociedade secreta masculina no contexto da Revolta dos Malês –, grupo formado apenas
por homens negros, em reação à ocorrência do I Encontro Nacional de Mulheres Negras. Reproduzindo
uma visão estereotipada do feminismo, membros da Ogboni teriam classificado o Encontro como “uma
reunião de 'sapatonas'”, numa tentativa de desqualificação e esvaziamento de seu significado político
(LEMOS, 1997, p. 49).

162
Assim, a estratégia adotada, ao menos no caso do CEAP, foi a de “se impor”,

não deixar passar qualquer atitude considerada machista ou inapropriada, levando a

discussão para o campo da política. Essa necessidade constante de se impor é vista

como Joselina como um dos elementos que levaram as mulheres a priorizarem outras

formas de organização, pois, “no caso do Rio de Janeiro, por exemplo, as mulheres

chegaram a um momento de ficar sem paciência de trabalhar dentro do movimento

negro no dia-a-dia” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 61).

Uma dessas novas formas de organização foram os encontros de mulheres

negras, que podem ser considerados um marco fundamental na formação do movimento

de mulheres negras. Como a primeira grande expressão do movimento de mulheres

negras no contexto da fase contemporânea do movimento negro, os primeiros encontros

regionais e o Encontro Nacional de Mulheres Negras não foram recebidos sem

complicações por parte de alguns homens negros. Joselina da Silva conta que, embora

tenha havido encontros de mulheres nos quais homens negros e mulheres brancas

participaram,

“O Rio puxa em outubro de 87 o seu 1º Encontro Estadual já com uma linha


feminista e especificamente étnica. É o primeiro encontro que acontece no
Rio de Janeiro em que os homens não são permitidos participar e mulheres
não-negras também. Um ponto inclusive que trouxe uma série de polêmicas
na entrada, porque uma série de homens não concebiam a ideia de não
estarem participando de um encontro” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 59)

A interpretação de Joselina, segundo esse trecho, é de que os homens sequer

concebiam a possibilidade de um encontro específico de mulheres negras sem sua

ingerência. Esse não conceber se transmuta em não aceitar e invisibilizar esse tipo de

iniciativa. Joselina conta que o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, realizado em

dezembro de 1988 em Valença, estado do Rio de Janeiro, contou com mais de 400

163
mulheres de 19 estados diferentes (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 62). Em abril do

ano seguinte, teria sido realizado “pela maioria de homens” o Encontro Estadual do

Movimento Negro do Rio de Janeiro, no qual não se reconhece “este encontro que

acabou de acontecer, organizado pelas mulheres do Rio de Janeiro. Não percebem isso!”

(SILVA apud CONTINS, 2003, p. 62).

Esse não conceber e não aceitar a negativa da participação masculina nos

espaços exclusivos das mulheres negras se mistura profundamente com a lesbofobia a

que nos referimos acima, ao ponto de haver tentativa de sabotagem ao Encontro

Nacional de Valença. De acordo com Neusa Pereira,

“na véspera do encontro, na véspera das mulheres embarcarem, [...] a gente


tinha contratado ônibus etc., que ninguém ia pra Valença com suas próprias
expensas. [...] Aí um cidadão aí, que na época era liderança, chamou pra uma
reunião na casa dele... as mulheres! [...] Chamou as mulheres negras pra uma
reunião na casa dele, reuniu as principais [...] dizendo pra elas não irem pro
encontro, porque lá tinha muita lésbica, tinha muita ‘chincheira’, muita
maconheira, tudo muito! [...] [Disse que] tinha muita lésbica e que eram
mulheres de pegar no banheiro! [Que] pegavam na força! Olha, honestamente
eu nunca soube de nenhum caso desses. A não ser no imaginário! Você sabe
que as mulheres heterossexuais têm um imaginário muito grande em cima
das lésbicas. Mas a não ser no imaginário... Inclusive todas elas disseram:
‘Ah, nada! Eu conheço a Fulana, Fulana não faz isso não! Eu conheço a
Beltrana!’ Deram um passa-fora nele, deram as costas e foram pro encontro.
Eles tiveram a capacidade de fazer isso!” (PEREIRA, 2017, s.p.)

Neusa revela ainda que a sabotagem assumiu outra face no 2º Encontro

Nacional, ocorrido em 1991 em Salvador, Bahia:

“No segundo encontro, eles já foram com outro diálogo, que era de implodir
o encontro. E eles fizeram – inclusive, do PCdoB, com nome, CPF: Juarez.
Era uma liderança do PCdoB, foi pro segundo encontro, porque lá era aberto!
Era uma colônia enorme e a colônia tava funcionando, ele podia entrar, né?
Entrou na reunião com algumas mulheres, que eram do PCdoB e outras
simpatizantes, dizendo que era pra implodir o encontro mesmo! Combinando
com algumas mulheres que as mulheres tinham que abrir aquele encontro
para as mulheres brancas participarem e pros homens, porque o encontro era
fechado. E que elas votassem em massa nessa hora. Conseguiu até algumas
loucas que foram pra lá e fizeram essa defesa. Uma das defesas era essa: que
a gente ia com as nossas namoradas, por que elas não podiam ir com os
namorados delas? Porra! Simplesmente nossas namoradas era mulheres
negras, eles não! Coisa mais simples de responder, né? E eles queriam estar.
E até de vez em quando a gente deixou eles estarem. Eles e as mulheres

164
brancas. Aí nós começamos a convidá-los e a convidá-las [...] Aí nós
convidamos algum pra tomar conta da creche... (sorri) Pra cuidar das nossas
crianças... Alguns e algumas. Ninguém quis! ‘Você quer mesmo ajudar?
Você é amiga das mulheres negras? Paga a inscrição pra sua empregada’.
Falávamos assim pras mulheres brancas. ‘Libera sua empregada três dias pra
participar do encontro’. Quem liberou? Nenhuma! [...] Isso seria
solidariedade. Isso é sororidade. Nós conseguimos em um pré encontro que
nós fizemos em Moquetá (Nova Iguaçu) que alguns companheiros cara de
pau fossem. “Eu fico com a creche! Eu também fico!” Quando a gente olhava
eles estavam assim na porta (gesto de espionar). E as crianças pulando em
cima da cama. Nunca deu certo. Faz a comida das crianças, prepara um
lanche pras crianças. Isso tudo é forma de estar no encontro. Agora, na
discussão não. [...] Mas tinha um, que ele ficava assim: a gente tava numa
roda aqui e ele ficava em volta. Como se fosse um cão de guarda em volta da
roda! (risos) Em volta da Mandala! [Dizíamos:] ‘O que você ta fazendo aí??’
[Ele:] ‘Não, não! Nada não!’” (PEREIRA, 2017, s.p.)

O homem que fica ao redor das mulheres como “cão de guarda” é a imagem

daqueles que “não concebiam” não participar, conforme as palavras de Joselina da

Silva. Neusa comenta ainda sobre as possibilidades de participação de mulheres brancas

em relação ao encontro: liberando suas empregadas domésticas negras para participar

e/ou pagando-lhes a inscrição do evento. Ela sinaliza que, em ambos os casos, homens

negros e mulheres brancas não estavam interessados em construir ou apoiar o

movimento, mas em ingerir nele de alguma forma. Na impossibilidade de fazê-lo, muito

homens optaram por negá-lo, sabotá-lo ou deslegitimá-lo. Na visão de Joselina, o ataque

ao movimento na base da lesbofobia, por exemplo, “não é só uma questão de

desrespeitar a opção sexual das pessoas, mas acabam pegando por aí para diminuir a

importância deste movimento, exatamente porque este movimento incomoda” (SILVA

apud CONTINS, 2003, p. 62).

Lúcia Xavier, por sua vez, fala sobre sua experiência no IPCN, afirmando que,

lá, “a tendência maior em relação ao Movimento de Mulheres Negras era: ‘Não ao

Movimento.’ Porque se dizia que o Movimento de Mulheres Negras racharia o

Movimento Negro” (CASTRO, 2003, s.p.). Ela comenta que o impedimento a atuação

das mulheres negras era mais amplo do que a negação dos espaços específicos, mas

165
configurava dentro das próprias organizações mistas um impedimento às mulheres de

acessarem cargos de poder:

“O IPCN sempre teve figuras fantásticas, você convivia com a Lélia o tempo
inteiro, nas discussões políticas, nos encaminhamentos... Mas era
basicamente dirigido por homens [...] Pode ser que hoje seja fácil fazer essa
análise, mas a gente já sabia que não era possível que a direção sempre
estivesse só nas mãos dos homens. Na verdade, quem conduzia a ação eram
as mulheres. Eram elas que estavam lá o tempo inteiro para carregar a
bandeira, para fazer o panfleto... Para organizar os encontros, porque, no caso
do Rio, a gente ainda tinha os encontros estaduais, os encontros de Sul-
Sudeste, depois o encontro nacional... Mas tinha toda essa movimentação
interna que fazia do Movimento essa... Mostrava que o Movimento não
conseguia incorporar a discussão de gênero”. (CASTRO, 2003, s.p.)

Esse teto de vidro das mulheres nas organizações tem grande importância no

processo de diferenciação de interesses entre grupos sociais, conforme sugere

Thompson sobre a experiência de classe. Além das limitações de acesso a cargos de

direção, há também, no depoimento de Neusa Pereira, a questão dos limites de acesso a

decisões e informações de cunho financeiro:

“[O CEAP era] uma organização muito grande e com lideranças. E o chefe
maior, presidente, era o Ivanir dos Santos. Criatura controversa... Muito, até
hoje... Mas à época ele juntou muita gente legal. Depois ele mesmo desfez
tudo![...] Mas a gente tinha uma coisa muito legal, ele fazia projetos, não sei
como ele negociava isso – e isso foi uma coisa que nunca ficou cuidado pelas
mulheres negras em lugar nenhum. Você não tinha acesso aos projetos, não
tinha acesso às planilhas... Ou melhor, tinha, numa reunião, te davam uma
folha de papel, não sabia... o que rolava, né? Você não tinha poder financeiro.
Tinha poder político! Mas financeiro, nenhum”. (PEREIRA, 2017, s.p.)

Foram também questões de ordem financeira que levaram ao afastamento de

Lúcia Xavier do IPCN. Ela conta que houve uma divergência sobre as contas da

organização (para qual os filiados contribuíam financeiramente) que resultou na

demanda, por parte dos integrantes, de uma auditoria. As lideranças do IPCN, à época

Amauri Mendes e Yedo Ferreira “não concordaram que a gente levasse essa discussão

até o final, porque era irmão brigando com irmão, irmãos agindo contra irmãos”

166
(CASTRO, 2003, s.p.). Ela coloca em questão, então, essa ideia de irmandade à toda

prova:

“a nossa oposição, passou a ser uma oposição ética, uma oposição de que não
bastava só ser negro sofrendo racismo, que nós éramos todos irmãos, mas não
éramos todos tão irmãos assim. Que o nosso compromisso com a nossa
comunidade não podia nos deixar fazer com que aquele espaço, que era um
espaço de recuperação da nossa identidade, da nossa força... Fosse também,
um espaço permissivo. O que eu chamo de permissivo? Qualquer coisa pode
acontecer, porque é meu irmão. [...] Não é porque Fulano era nosso irmão,
porque era muito legal... Que a gente não ia criticar a maneira com que ele se
comportava diante de um processo político e de organização. [...] Somos
todos negros, temos que denunciar o racismo sim, mesmo em situações em
que a pessoa esteja errada, há racismo, a gente tem que denunciar. Mas se ela
está errada, a responsabilidade dela precisa ser levada em consideração. A
gente não pode dizer: ‘Ah, porque todo mundo é negro, então vamos
desculpar...’ Para mim, isso foi crucial para romper com essa fase.
(CASTRO, 2003, s.p.)

As questões financeiras, particularmente de financiamento, são um grande

dilema organizativo enfrentado pelas organizações do movimento negro ao longo da

década de 1980. Edna Roland conta que essa foi uma das principais polêmicas

enfrentadas pelo Bloco Afro Alafiá, fundado em 1984, do qual ela fez parte ao lado de

Sueli Carneiro e outros intelectuais orgânicos do movimento negro paulista:

“o bloco tinha que ser absolutamente, totalmente autônomo. E o conceito de


autonomia era assim: não podia receber recurso de nenhuma fonte que não
fosse a própria contribuição dos membros. Não podia receber qualquer
recurso nem de empresa, nem de Estado, nem de nada. Ele era tão radical, o
Ciro, que ele achava,por exemplo, assim: o bloco não podia se apresentar
nem em uma escola, porque uma escola era um espaço institucional do
Estado. Nem em uma escola não poderia se apresentar. Era uma coisa
impossível de se conseguir realizar. Na prática, o que acontecia? Como não
se podia pedir dinheiro para o governo, não se podia pedir dinheiro para
empresa e teria que viver só da contribuição dos sócios, e os sócios
praticamente ninguém contribuía, eu que acabava sustentando o bloco. Então
eu pegava meu dinheiro, meu salário e investia nas coisas que eram
necessárias para fazer o bloco funcionar. E nós conseguimos então fazer um
desfile.” (ROLAND, 2004, s.p.)

O debate autonomia versus financiamento, que marcara o movimento negro,

esteve presente também no movimento de mulheres negras, com a peculiaridade de que

167
o acúmulo de experiência organizativa anterior direcionou algumas das grandes

organizações que viriam a se constituir, como Geledés e Criola, para o caminho do

financiamento por “instituições da chamada ‘cooperação internacional’” (PEREIRA,

2013, p. 309). Essa questão será detidamente trabalhada no capítulo 3 desta tese.

3.3 Feminismo

No primeiro capítulo desta tese, a tensão inerente à ideia unívoca de “ser

mulher” foi abordada, principalmente no que diz respeito a seus desdobramentos

teóricos. Intelectuais orgânicas ligadas ao feminismo negro, assim como mulheres

lésbicas, trabalhadoras e aquelas racializadas de formas diversas, abordaram a

necessidade de ampliar a noção de mulher, evidenciando as hierarquias que atravessam

as relações sociais e impossibilitam um feminismo pensado de maneira homogênea.52 A

mobilização de uma diversidade religiosa, geográfica, étnica e de orientação sexual,

notadamente a partir da década de 1970, implodiu a hegemonia de um feminismo liberal

branco que se queria como o feminismo.

Neste tópico, o olhar se voltará especificamente para a experiência de

intelectuais orgânicas do movimento de mulheres negras com relação ao movimento

feminista no Brasil. Cabem, então, algumas observações sobre a história (e a escrita da

história) desse movimento.

A escrita estabelecida da história do feminismo no Brasil tem estado alinhada a

uma abordagem que classifica o movimento através da metáfora de “ondas” feministas,

que “costuma eleger marcos tidos como hegemônicos em cada período” (FRACCARO,

52
Uma contribuição instigante para esse debate está no livro editado por Cherríe Moraga e Ana Castillo
(1988), intitulado Esta puenta, mi espalda (“Esta ponte, minhas costas”), coletânea que conta com textos
sobre experiências diversas de grupos sociais de mulheres que não se conformavam ao padrão do
feminismo norte-americano hegemônico.

168
2018, p. 10). Nessa lógica, a primeira “onda” feminista no Brasil consistiria na fundação

da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), fundada em 1922 e liderada

por Bertha Lutz. Essa organização tinha como demanda central a conquista do sufrágio

feminino no Brasil e seu “núcleo duro” era composto por um grupo “altamente elitista”

(PINTO, 2003, p. 25). A “segunda onda” dataria dos anos 1960, com a problematização

dos papéis públicos e privados das mulheres, e uma “terceira onda” consistiria no

questionamento ligado à multiplicidade interna à noção de “mulher” (FRACCARO,

2018, p. 10). De acordo com Kathleen Laughlin e outras historiadoras, embora a

metáfora das ondas ajude na identificação de grandes mudanças histórias de maneira

simples, ela “mascara as águas que correm profundas e aparentemente paradas do

ativismo cotidiano”, obscurece organizações locais menores e “reinscreve omissões e

preconceitos de raça/classe/sexualidade” ao privilegiar setores do movimento que

colocam o gênero no centro da análise (LAUGHLIN et al, 2010, p. 104, tradução

minha). A historiadora Glaucia Fraccaro aponta para o fato de que, no caso brasileiro, a

historiografia tem se caracterizado por “perpetuar a noção de que a classe trabalhadora

havia faltado na emergência de um movimento feminista, exclusivo das elites letradas e

das financeiras” (FRACCARO, 2018, p. 9). Essa ressalva é importante para superar a

“centralidade de Bertha Lutz” (SCHPUN apud FRACCARO, 2018, p. 9) e reinscrever

as mulheres trabalhadoras que, no mesmo período de atuação da FBPF, compuseram em

partidos, associações e sindicatos, realizaram greves e estabeleceram-se em redes

feministas internacionais, integrando a luta pelos direitos das mulheres.

Vale sublinhar, contudo, que o movimento feminista no Brasil não esteve

necessariamente associado ao campo político da esquerda: o próprio movimento

sufragista, além de sua composição social restrita, tinha uma pauta igualmente restrita,

“na medida em que agia no limite da pressão intraclasse, não buscando agregar nenhum

169
tipo de tema que pudesse pôr em xeque as bases da organização das relações

patriarcais” – e, acrescento, capitalistas (PINTO, 2003, p. 26).

Na década de 1970, as relações entre feminismo e esquerda apresentam-se

envoltas por certa tensão. Havia uma concepção majoritária de que o feminismo

constituía “uma dupla ameaça: à unidade da luta do proletariado [...] e ao próprio poder

que os homens exerciam dentro dessas organizações e em suas relações pessoais”

(PINTO, 2003, p. 53). Era comum a reprodução de uma visão estereotipada das

militantes feministas, rotuladas de “masculinizadas, feias, despeitadas”, “depravadas,

promíscuas”, conforme expressões do jornal alternativo O Pasquim (SOIHET, 2007, p.

42). O uso desse tipo de adjetivos para a deslegitimação de mulheres também foi prática

comum entre homens do movimento negro que procuravam sabotar os espaços

exclusivos de mulheres negras, como discutimos.

Após os primeiros sinais significativos de abertura política, “nos anos 1980 o

movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social consolidada” (SARTI,

2004, p. 42). Segundo Cynthia Sarti, nesse período os grupos feministas alastraram-se

pelo país e o movimento penetrou associações profissionais, partidos e sindicatos. Ao

mesmo tempo, as organizações atomizaram-se, ganhando força

“uma atuação mais especializada, com uma perspectiva mais técnica e


profissional. Muitos grupos adquiriam a forma de organizações não-
governamentais (ONGs) e buscaram influenciar as políticas públicas [...]
utilizando-se dos canais institucionais” (SARTI, 2004, p. 42).

A autora aponta ainda que esse processo de institucionalização direcionou o

movimento para as questões que respondiam às prioridades das agências financiadoras

(SARTI, 2004, p. 42). Esse movimento de “onguização” (FONTES, 2010: 236) não se

restringiu ao movimento feminista, mas a diversos movimentos sociais que entraram em

ascensão com o fim da ditadura. O movimento negro e o movimento de mulheres negras

170
passam também por tal processo, questão que analisaremos detidamente no capítulo

posterior.

A institucionalização do movimento feminista também passa pela atuação no

Estado restrito. Céli Pinto destaca a criação de Conselhos da Mulher como “a forma

mais visível” da institucionalização do movimento feminista no período (PINTO, 2003,

p. 68-69). Os “conselhos da condição feminina” foram criados em todos os níveis,

federal, estadual e municipal (SARTI, 2004, p. 42). O primeiro deles foi o Conselho

Estadual da Condição Feminina (SP), criado em 1983. Seguindo Céli Pinto, o CECF

“tinha caráter consultivo e propositivo, não possuía orçamento próprio e era composto

por mulheres do partido vencedor [das eleições para o governo do estado, em 1982].

Desde sua criação enfrentou uma forte oposição de feministas ligadas ao PT e de grupos

de mulheres das camadas populares” (PINTO, 2004, 70-71).

Essa forte oposição ocorreu porque o Conselho era visto como uma ameaça à

autonomia do movimento de mulheres na medida em que as conselheiras fossem

indicadas pelo partido do governo, o MDB de Franco Montoro, e não a partir dos

movimentos. Edna Roland conta que a composição inicial do conselho, com trinta

mulheres brancas, causou revolta também nas mulheres negras. Contudo, a oposição

pública à composição do conselho começou a ser centralizada na figura de Marta

Arruda,

“uma mulher [negra] de posições políticas conservadoras, e que tinha muito


acesso à mídia, começa um processo de denúncia do Conselho, começa a
atacar o Conselho. O Conselho era presidido por Eva Blay, uma mulher
judia. E Marta Arruda começa a dar entrevistas no rádio, atacando o
Conselho, chamando Eva Brown, o nome da amante de Adolph Hitler. E
virou um escândalo imenso em São Paulo, e aí estávamos eu, Sueli [...] nós
dissemos: ‘Nós temos que fazer alguma coisa, porque como é que fica essa
questão?’ E a nossa preocupação era de tentar garantir que se fosse definir
uma representação para o Conselho, que fosse uma mulher de posturas mais
progressistas. Era essa a nossa preocupação. Então se organizou, se chamou
todas as mulheres que se conheciam, militantes lá em São Paulo e se chamou

171
53
Thereza Santos , que é uma militante histórica, antiga, muito vinculada à
área de cultura, e se considerou que Thereza Santos era o nome que reuniria
todo mundo, teria força suficiente para ser indicada, poderia ser aceita pela
Marta Arruda e teria um perfil político mais adequado. E se conseguiu, então
nesse processo, a indicação da Thereza Santos como titular, e Vera Saraiva,
creio que, assistente social que trabalhava no Hospital do Servidor Público
Estadual de São Paulo, como suplente”. (ROLAND, 2004, s.p.).

Edna conta ainda que, para articular a indicação Thereza Santos e Vera Saraiva

para o CECF-SP, foi fundado o Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo:

“Porque uma das coisas que as mulheres brancas diziam era: ‘O problema é
que vocês são desorganizadas’. Então nós juntamos várias militantes que
estavam dispersas, individuais ou em vários grupos, e constituímos o
Coletivo de Mulheres Negras. Ele nasce então, muito acoplado, muito
próximo ao Conselho da condição Feminina de São Paulo. Inicialmente
então, ele funcionava no espaço do Conselho inclusive, até fisicamente.
(ROLAND, 2004, s.p.)

A colocação de Edna quanto à fala das feministas brancas de que “o problema é

que vocês estão desorganizadas” é importante. Ela explicita, simultaneamente, os

limites da representação das demandas das mulheres negras no movimento feminista

conforme se configurava, bem como a responsabilização das próprias mulheres negras

por não estarem organizadas. Ora, vimos que as mulheres entrevistadas que figuram

nesta pesquisa participaram de uma miríade de organizações políticas. Essa fala,

portanto, parece delimitar que as organizações feministas, de fato, não se pensavam

como organizações de demandas de mulheres negras.

Cláudia Pons Cardoso, em sua tese sobre feministas negras brasileiras, afirma

que a relação das mulheres negras com o feminismo “foi permeada, inicialmente, pelo

conflito e definição, muitas vezes rotulado de ‘coisa’ de mulher branca” (CARDOSO,

53
Thereza Santos nasceu Jaci dos Santos, em 7 de julho de 1938, na cidade do Rio de Janeiro. Atriz e
militante comunista, foi para São Paulo fugindo da repressão da ditadura militar. Na cidade, fundou o
Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) em 1971. Envolveu-se ainda com as lutas de libertação de
países como Moçambique e Guiné-Bissau, onde teria sido treinada guerrilheira. Passou por uma Angola
recém-independente, onde atuou no campo da cultura e de onde saiu, de maneira conflituosa, por motivos
políticos. De volta ao Brasil, reaproximou-se do movimento negro e do nascente movimento de mulheres
negras, tendo atuado como conselheira no CECF-SP para representar esse segmento (RIOS, 2014a).

172
2012, p. 253), de mulheres “louras, sociólogas, ‘doutorólogas’, cabelo vermelho”

(ANDRADE apud CARDOSO, 2012, p. 253).54 A pesquisa de Rosália Lemos aponta

também para tal aspecto, citando uma entrevista de Jurema Wernerck, em que afirma

que

“As mulheres negras recusavam... não reconheciam nas suas bandeiras o


feminismo, porque feminismo era coisa de feia de Bety Friddan (sic), de
mulher feia que rasgava sutiã, de mulheres lésbicas que muita gente não
queria se identificar... essas coisas assim, o pejorativo disso” (WERNECK
apud LEMOS, 1997, p. 61-62).

Esse tipo de perspectiva apresenta uma ambivalência: por um lado, guarda

relações com os estereótipos antifeministas vigentes, inclusive na reprodução da ideia

de que uma reunião política de mulheres era “coisa de lésbicas”, modo como homens

negros rotulavam espaços exclusivos das próprias mulheres negras, conforme vimos

anteriormente. Por outro lado, esse distanciamento se baseia em uma experiência

concreta de não pertencimento ao feminismo hegemônico. O depoimento de Jurema

Batista a Márcia Contins é revelador nesse sentido:

“Por exemplo, as mulheres querem acabar com a discriminação contra a


mulher. Só que nesse meio tem mulheres que estão em situações melhores do
que as outras. Então o que acontecia nessa época que a gente entrou pro
movimento é que existia sempre uma briga dentro do movimento, já que as
mulheres estavam mais avançadas, tinham uma situação econômica legal,
tinham casa... A briga delas era sobre orgasmo, falavam muito de orgasmo,
do prazer e a gente dizia: ‘pô, não dá pra mulher ficar o tempo todo
carregando lata d’água na cabeça, tomando porrada do marido... as mínimas
condições de vida dela não estão resolvidas, pra ficar falando que o meu
corpo me pertence, prazer oral...’ Ficar falando de prazer quando a vida dela
é um eterno desprazer. [...] Aí elas diziam: ‘não, a gente vai falar do prazer’.
Tudo bem, você fala do prazer, você tem tua suíte, mas fala do prazer da
mulher que dorme no mesmo quarto ela, dez filhos e o marido bêbado. Um
trepado em cima do outro, não é a mesma coisa. [...] A gente sabe que tem
direito ao prazer, mas se você não tiver condições de vida você não tem
prazer. E elas diziam que a gente era obreirista, e que isso é coisa de mulher,
isso é coisa de socialismo. [...] Elas sempre acharam que a gente não era

54
“Para a direita era um movimento imoral, portanto perigoso. Para a esquerda, reformismo burguês, e
para muitos homens e mulheres, independentemente de sua ideologia, feminismo tinha uma conotação
antifeminina” (SARTI, 2004, p. 40).

173
feminista. Que ser feminista era aquilo. Era falar sobre coisas mais da vida
delas, da realidade delas” (BATISTA apud CONTINS, 2003, p. 70).

Em sentido semelhante, Lélia Gonzalez afirmou em entrevista ao Jornal do

MNU em 1991 que

“A questão da sexualidade tem que ser discutida num nível muito mais amplo
e não no nível do orgasmo, pura e simplesmente. Estou propondo um
orgasmo muito maior, um prazer e uma felicidade muito maiores”
(GONZALEZ, 2018j, p. 388).

Céli Pinto explica que “a questão fundamental que acompanha o feminismo

brasileiro na época” consistia em uma “tensão entre aquelas que pensavam que o

feminismo tinha que estar associado à luta de classes e aquelas que associavam o

feminismo a um movimento libertário que dava ênfase ao corpo, à sexualidade e ao

prazer” (PINTO, 2003, p. 55). Embora Jurema Batista atuasse no campo da esquerda,

sendo filiada ao PT, é possível matizar essa tensão fundamental através da consideração

da tensão racial, que Céli Pinto não aborda significativamente em sua obra. A acusação

sofrida por mulheres do campo político de Jurema, no debate interno ao feminismo, é

justamente o de “obreirista”, “coisa de socialismo”, apagando-se o fato de que a

compreensão da situação peculiar das mulheres negras no Brasil considerava as relações

de gênero, de classe e de raça.

Lélia Gonzalez aponta, em sua obra, esse “esquecimento do feminismo” quanto

à questão racial (GONZALEZ, 2018g, p. 309). A relação de Lélia com o feminismo

“tradicional” ou hegemônico foi caracterizada por aproximações e contundentes críticas.

Ela reconhece a importância prática e teórica do movimento (GONZALEZ, 2018g, p.

308) e identifica avanços em relação à articulação com o movimento negro

(GONZALEZ, 2018c, p. 47, 48). Em entrevista ao Jornal do MNU, em 1991, ela conta

que “no meio do movimento das mulheres brancas, eu sou a criadora de caso, porque

174
elas não conseguiram me cooptar” (GONZALEZ, 2018j, p. 386). É interessante aqui ela

apontar uma tentativa de cooptação do movimento, pois embora frequentasse os espaços

feministas, ela se posiciona dessa forma como organicamente alinhada ao movimento

negro – em que pese a entrevista ter sido dada justamente para o Jornal do MNU. Ela

prossegue:

“No interior do movimento havia um discurso estabelecido com relação às


mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, são
criadoras de caso, não dá para a gente dialogar com elas, etc. E eu me
enquadrei legal nessa perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha
que ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as
questões que elas estavam colocando” (GONZALEZ, 2018j, p. 387).

Uma fala interessante de Lélia diz respeito a um encontro nacional feminista

ocorrido no Rio de Janeiro em 1979, que traz à luz um aspecto diferente daquele

colocado por Jurema Batista em relação aos espaços feministas. Jurema ressaltou um

embate entre a perspectiva das mulheres negras e trabalhadoras e outra, preocupada

somente com o âmbito do privado e com a sexualidade individual de mulheres cujas

condições de classe permitiam isso. Na fala de Lélia, a questão da exploração de classe

é amplamente reconhecida, mas a denúncia do racismo é recebida de outra forma:

“Até aquele momento, tínhamos observado uma sucessão de falas


acentuadamente de esquerda, que colocavam uma série de exigências quanto
à luta contra a exploração da mulher, do operariado, etc., etc. A unanimidade
das participantes quanto a essas denúncias era absoluta. Mas no momento em
que começamos a falar do racismo e suas práticas em termos de mulher
negra, já não houve mais unanimidade. Nossa fala foi acusada de emocional
por umas e até mesmo de revanchista por outras; todavia, as representantes
de regiões mais pobres nos entenderam perfeitamente (eram mestiças em sua
maioria)” (GONZALEZ, 2018c, p. 48).

Fica aparente, pelo exposto, que as relações de raça, gênero, sexualidade e raça

se expressavam frequentemente de forma confusa e conflituosa nos movimentos que se

pautavam por um eixo prioritário, tendo dificuldades de lidar com a pluralidade que

175
constitui a realidade – isto é, com a realidade de uma totalidade contraditória e com as

demandas sobre como organizar resistências nessa realidade. As mulheres negras

estavam no epicentro desses embates, em todos os movimentos que se inseriam. Isso

gerava questões subjetivas e objetivas quanto às possibilidades concretas de organização

política e às formas de fazê-lo.

A figura de Lélia Gonzalez incorpora, de certa forma, todo esse caldeirão

político em que se encontravam os movimentos sociais nos anos 1970 e 1980. Além da

importante produção intelectual abordada nesta tese no primeiro capítulo, Lélia foi uma

intelectual chave na formação do movimento de mulheres negras no Brasil. Ela conta

que seu pai era operário, negro e sua mãe “uma índia analfabeta” (GONZALEZ, 2018i,

p. 82). Lélia foi membro do MNU, onde integrou o Comitê Executivo Nacional;

participou a partir de 1976 o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba

Quilombo, escola fundada por Candeia que reuniu diversos intelectuais do movimento

negro no período; foi filiada ao PT e, posteriormente, ao PDT, tendo se candidatado

como deputada pelos dois partidos. Foi ainda fundadora do Nzinga, coletivo de

mulheres negras do Rio de Janeiro.

Em um contexto no qual as mulheres negras enfrentavam as diversas formas de

machismo no interior do movimento negro, Lélia foi uma das poucas mulheres que

efetivamente ocupava a posição de porta-voz no movimento negro. Segundo Ratts e

Rios, o fato de ser a mais velha do grupo e já ter um currículo profissional prestigioso

lhe conferia uma posição de autoridade no movimento, diferenciando-se “das outras

ativistas, que eram mais jovens, mães de família e/ou estudantes sem destino

profissional definido” (RATTS; RIOS, 2010, p. 96). Além disso, sua forma de se

colocar nos espaços políticos impressionava a militância em geral. Segundo Luisa

Bairros,

176
“a todos surpreendia pelo comportamento ousado, a risada de corpo inteiro, o
linguajar popular, bem ao modo do falar carioca, salpicado de expressões
acadêmicas, que até permitia que nós, os militantes mais novos,
entendêssemos o que é epistemologia! Na época, não havia ninguém com a
capacidade dela de pulverizar os argumentos racistas nos debates de que
participávamos, de defender a legitimidade e a necessidade do movimento
negro, quando todos os setores auto-intitulados progressistas nos acusavam
de divisionistas da luta popular. Quando a maioria das militantes do MNU
ainda não tinha uma elaboração mais aprofundada sobre a mulher negra, era
Lélia que servia como nossa porta-voz contra o sexismo que ameaçava
subordinar a participação de mulheres no interior do MNU, e o racismo que
impedia nossa inserção plena no movimento de mulheres. Mas através de
muitas e longas conversas e dos textos dela, aprendemos como incorporar um
certo modo de ser feminista às nossas vidas e à nossa militância, articulamos
nossos próprios interesses e criamos condições para valorizar a ação política
das mulheres negras.” (BAIRROS, 2000, p. 342)

Não é incomum a fala de que ouvir Lélia palestrar configurou um divisor de

águas na trajetória de mulheres negras. Jurema Batista conta que sua tomada de

consciência racial, seu “tornar-se negra” (SOUSA, 1983) se deu a partir um debate

sobre racismo, realizado na universidade em que estudava, que contou com Lélia no

painel:

“Aquela forma contundente com que ela falava, apaixonada. Mas eu briguei
emocionalmente com ela. Eu falei: ‘Essa mulher está ficando doida. Onde é
que essa mulher arrumou isso?’ Foi muita resistência, mas, ao mesmo tempo,
alguma coisa ela falou que tocou tão profundamente, que eu lia muito o
Jornal do Brasil, e eu sabia assim: ‘A Lélia Gonzáles vai estar fazendo uma
palestra na Fundação Getúlio Vargas...’ Eu vinha. ‘Lélia Gonzáles vai estar
fazendo palestra não sei onde...’ Eu ia. Comecei a ir onde eu sabia que ela
estava e ficava ouvindo, aí entendi tudo. Foi exatamente nesse momento que
eu tomei consciência da questão racial. Eu fiquei muito brava, muito brava...
Era uma ‘militante pitbull’, entendeu? Porque eu fiquei com muita raiva.
Depois que eu entendi isso, no processo psicanalítico, inclusive. Porque eu
fui enganada a vida inteira. A vida inteira eu bebi na tal estória de que no
Brasil não tinha racismo. Quando eu descobri que existia, e quais eram os
índices, que naquela época nem tinha muito, não tinha muitas pesquisas com
item cor. Mas quando as pessoas faziam as denúncias e eu comecei a ver,
realmente eu morava, e quantas pessoas que moravam lá, como a polícia
tratava essas pessoas, qual era o nível de escolaridade daquelas pessoas... Eu
via empiricamente. Eu comecei a perceber: ‘Realmente, aquele pessoal está
falando aquilo e é tudo verdade’. E eu vivia ali no caldeirão, sabia que aquilo
era verdade. (BATISTA, 2004, s.p.)

177
Na trajetória de Jurema, Lélia cumpriu um papel de fazer desmoronar o mito da

democracia racial, processo que subjetivamente foi traumático, como conta. No caso de

Sueli Carneiro, a fala de Lélia aparece como uma solução para suas inquietações

políticas:

“E de fato, quando eu ouvi a Lélia Gonzalez, eu descobri o que eu queria ser


quando crescesse. [riso] Politicamente, do ponto de vista político. Porque a
Lélia veio resolver o pedaço que faltava em toda essa efervescência, de todo
esse debate, e que era fundamental para minha experiência pessoal, para
minhas inquietações. Que era como pensar a questão de gênero, pensar a
questão específica da mulher negra no contexto da luta racial. E quando eu
ouvi a Lélia, parecia que ela estava dentro do meu cérebro organizando,
entrando no meu cérebro e organizando tudo que me inquietava, tudo que eu
sentia, que eu não conseguia formular, que eu não conseguia organizar,
parece que ela botou ordem na casa. E a partir daquele dia eu sabia
perfeitamente o que é que eu iria fazer, que eu iria construir a minha
militância articulando as duas questões de gênero e de raça. Então, dali para
frente é o que eu faço. Porque aí eu já sabia. Quando eu ouvi a Lélia eu
descobri perfeitamente para onde ir, e dali surgiu um engajamento mais
profundo com o movimento de mulheres, com o movimento feminista e as
perspectivas que decorreram dali, a pensar formas de organização específicas
de mulheres negras e aí o resto deu no que deu.” (CARNEIRO, 2004, s.p.)

Segundo Ratts e Rios, “a importância de Lélia Gonzalez na produção de um

discurso crítico sobre a posição subalterna da mulher negra na sociedade brasileira é

consenso no interior da militância feminista e negra em todo país” (RATTS; RIOS,

2010, p. 100). A fala de Sueli Carneiro traz a dimensão política desse impacto: a

influência da militância de Lélia Gonzalez no surgimento de organizações específicas

de mulheres negras, tendo ela mesma participado de uma das primeiras organizações

desse tipo no período no Rio de Janeiro, O Nzinga – Coletivo de Mulheres, fundado em

1983 (RATT; RIOS, 2010, P. 97).

4. Conclusão: A unidade contraditória como experiência: experiência de mulheres

negras como experiência de classe

178
Esse capítulo se abriu com o esclarecimento de que mulheres negras, nesta tese,

são entendidas como parte integrante de uma classe trabalhadora contraditória, uma

“unidade no diverso” e que, por isso, a experiência dessas mulheres é uma experiência

de classe, em sentido ampliado. À primeira vista, as dificuldades enfrentadas pelas

mulheres a que nos referimos mostram-se como exemplos da dificuldade de integração

de pautas ligadas às demandas do grupo social mulheres negras, abordado em termos

demográficos no início do capítulo, pelos movimentos sociais de recorte racial e de

classe (como partidos políticos e algumas organizações de resistência à ditadura

empresarial-militar). Uma das hipóteses iniciais da pesquisa que resultou na presente

tese era justamente a de que as mulheres negras fundaram suas organizações específicas

porque não se viam plenamente representadas nessas organizações de tipo misto. Na

breve discussão sobre a origem do movimento de mulheres negras, tratou-se das

narrativas que remontam o início desse movimento à chegada das primeiras mulheres

africanas escravizadas ao continente americano. Dentre os objetivos dessas narrativas,

está a necessidade de superar a ideia de que o o surgimento das organizações de

mulheres negras no Brasil teria se dado pela ausência de espaço no movimento

feminista e no movimento negro (ALMEIDA, 2014, p. 108). Para além do debate sobre

outras formas de organização e resistência de mulheres negras e a construção de uma

memória combativa, conforme abordado anteriormente, há outra questão importante

para se considerar em relação a essa hipótese.

Mais do que “falta de espaço”, limites de “representatividade” ou ausência de

“pautas”, as tensões enfrentadas pelas intelectuais negras nos movimentos sociais de

tipo misto revelam o próprio caráter contraditório da classe, que de modo algum pode

ser tomada monoliticamente. Parte constituinte da classe trabalhadora, no sentido

marxiano, as mulheres negras que se envolveram em movimentos sociais no período

179
analisado foram sujeitos em um processo de extrema disputa no interior da classe

trabalhadora, disputa essa que frequentemente se desdobrou na priorização de

determinados “eixos de desigualdade”, para usar a expressão de Kimberlé Crenshaw,

em detrimento de outros. O entendimento das relações raciais, de gênero e de classe

como dimensões separadas (e, portanto, hierarquizáveis) era uma realidade histórica dos

movimentos sociais no período analisado. Foram as mulheres negras – para ser exata, as

mulheres que não se pareciam com a noção hegemônica de “mulher”, brancas,

heterossexuais, de camadas médias urbanas etc. –, na experiência concreta tanto das

contradições como do próprio caráter uno dessas relações, as responsáveis pelas

formulações sobre sua verdadeira natureza integrada. É o que se viu na obra de Lélia

Gonzalez, assim como nas colocações pioneiras do Combahee River Collective, nos

Estados Unidos.

Diante desse quadro, foram diversos os caminhos organizativos adotados por

mulheres negras envolvidas em movimentos sociais. Muitas mulheres permaneceram

nos espaços mistos, em movimentos populares, associações culturais ou de moradores,

etc. O foco aqui, contudo, recai sobre a experiência de organizações específicas de

mulheres negras, em especial aquelas que adotaram o formato de ONGs, sendo ainda

hoje atuantes politicamente. Para analisar tais organizações, a teoria da reprodução

social continua guiando a análise, assim como o aparato conceitual gramsciano, que

ajudará a analisar a atuação das intelectuais negras em questão no Estado Ampliado,

conforme se verá adiante.

180
CAPÍTULO III - Organizações de mulheres negras: espaços específicos, pautas
contra-hegemônicas (década de 1980)

O presente capítulo parte do pressuposto, cuja motivação estabeleceu-se no

capítulo anterior, de que as militantes negras precisaram criar espaços específicos de

luta política para atender às demandas do grupo social que buscavam representar.

Argumento que essas pautas são específicas, mas também são pautas de classe, ou seja,

são pautas contra-hegemônicas num sistema capitalista contraditório.

Essa afirmação pretende estabelecer que é preciso ir além do entendimento de

que as pautas políticas do movimento de mulheres negras são apenas “específicas”, pois

elas o são apenas na medida em que dizem respeito a um grupo intraclasse, com suas

particularidades. Essas pautas também podem ser consideradas contra-hegemônicas e

antissistêmicas em sentido amplo, na medida em que a saúde, as relações de trabalho e a

própria subjetividade dessas pessoas são aspectos da vida conformados por um sistema

capitalista racista e (hetero)sexista, conforme a discussão do capítulo que abre esta tese.

Isso não significa dizer que toda atuação de organizações de mulheres negras é

necessariamente antissistêmica: assim como há um feminismo liberal que vê na

ocupação de altos postos administrativos em multinacionais por mulheres, por exemplo,

uma vitória, essas organizações também podem apresentar formas de atuação alinhadas

com uma perspectiva liberal. Ainda assim, considerar as mulheres negras como parte

integrante de uma classe trabalhadora contraditória, co-constituída por raça, gênero e

sexualidade, significa que a luta política para emancipação dessas mulheres no

capitalismo como é atualmente precisa necessariamente configurar-se em uma luta

antissistêmica – como já deixava claro em 1977 o Combahee River Collective (LA

COLECTIVA DEL RIO COMBAHEE, 1988).

181
É importante, nesse ponto, retomar Thompson para frisar que classe, aqui, é

pensada como um processo histórico, e não uma categoria estática na qual se pode

pretender “enquadrar” um sujeito social (nesse caso, as mulheres negras). Como lembra

Cinzia Arruzza,

“as definições de classe trabalhadora como o conjunto de todos os


trabalhadores assalariados ou de todos aqueles que, empregados ou não, não
tem outros recursos se não a venda de sua força de trabalho, ainda que não
sejam falsas em si, são vagas, abstratas e incompletas. [...] Para Thompson,
classe é o ponto de chegada e não o ponto de partida do processo de
formação. Por mais paradoxal que pareça, classe é o produto da luta de
classes, e não seu pressuposto” (ARRUZZA, 2018, s.p., tradução minha).

Partindo dessa compreensão, o fazer-se da classe trabalhadora enquanto unidade

co-constituída por gênero, raça e sexualidade, inclui relações que não apenas as de

exploração (que também são atravessadas pelas relações mencionadas), mas também de

alienação e opressão, conforme argumenta Abigail Bakan (2016). As experiências

vividas e compartilhadas pelas mulheres negras em movimento constituem esse

processo de formação, que acontece no âmbito da luta de classes em sentido amplo. É

nesse sentido que argumento que as pautas do movimento de mulheres negras são ao

mesmo tempo “específicas” quanto pautas “de classe”.

Para compreender como se deu esse processo, este capítulo aborda a construção

dos primeiros espaços específicos de mulheres negras nos anos 1980 e, principalmente,

os temas que embasaram suas pautas de luta política. Assim, as fontes analisadas nesse

capítulo foram produzidas principalmente na década de 1980 e no início da de 1990.

Cláudia Pons Cardoso ressalta a importância em se ter cuidado ao tentar elencar

um marco fundador do movimento de mulheres negras (CARDOSO, 2012, p. 186-187).

Para além da discussão sobre a origem do movimento, estabelecida no capítulo II,

intelectuais negras, ao elaborarem a história do movimento de mulheres negras no

182
Brasil contemporâneo, têm identificado diferentes acontecimentos históricos como o

“início” desse movimento: para Edna Roland, o Coletivo de Mulheres Negras de São

Paulo, criado como consequência de um Conselho Estadual da Condição Feminina

(CECF) sem a devida participação de mulheres negras (ROLAND, 2000); para Sueli

Carneiro, a criação do Nzinga – Coletivo de mulheres negras, do Rio de Janeiro, em

1983, que teria inspirado a fundação do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo

(ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 184); para Jurema Batista, o embate entre mulheres

brancas e negras no III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe, ocorrido em

Bertioga, São Paulo, em 1985 (CONTINS apud CARDOSO, 2012, p. 186).55 Kia

Caldwell vai mais atrás, elencando a importância da “apresentação do Manifesto das

Mulheres Negras durante o Congresso de Mulheres Brasileiras e julho de 1975”, que

teria marcado “o primeiro reconhecimento formal de divisões raciais dentro do

movimento feminista brasileiro” (CALDWELL, 2000, p. 7).

A escolha de cada um desses marcos, além de demonstrar diferentes

perspectivas analíticas, tem a ver com o fato de que as intelectuais negras que os

defendem “falam a partir de distintas posições tecidas por suas histórias e experiências

específicas, as quais foram marcantes em suas vidas, individualmente e para o conjunto

do grupo em que estavam inseridas” (CARDOSO, 2012, p. 186). A exceção de Kia

Caldwell, todas essas intelectuais tiveram participação direta nesse processo histórico, e

55
Em 1985, ocorreu em Bertioga, São Paulo, o III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe
(EFLAC), no qual um episódio envolvendo um grupo de mulheres que não pôde participar do evento
dividiu opiniões entre feministas. Jurema Batista conta que um grupo de mulheres, em maioria negras,
vindo do Rio de Janeiro, foi impedido de participar do encontro por não ter conseguido juntas dinheiro o
suficiente para pagar a taxa de participação, que era muito cara, e acabou realizando um evento paralelo
do lado de fora do Encontro (BATISTA apud CARDOSO, 2012, p. 189-190). Núbia Moreira percebe que
esse acontecimento aparece em todas as entrevistas que realizou com militantes negras (MOREIRA,
2018, p. 72). Para a autora, “a partir do encontro ocorrido em Bertioga, se consolida entre as mulheres
negras um discurso feminista (MOREIRA, 2018, p. 73), que considero, pelos depoimentos realizados, ser
um discurso feminista negro, já consciente das questões de raça e classe envolvidas nessas relações.
Voltarei a falar desse acontecimento no tópico sobre encontros de mulheres negras.

183
suas realidades regionais, organizativas etc. influenciam seu olhar para a eleição de um

“marco fundador”.

Para esta tese, o fundamental não é o estabelecimento de um ponto de partida

cronológico, mesmo porque não é seu objetivo escrever uma história do movimento de

mulheres negras que dê conta suas diversas territorialidades e temporalidades. O

objetivo aqui é esboçar um quadro analítico para observar a construção de espaços

específicos de mulheres negras a partir de uma perspectiva temática, orientada pelo

feminismo da reprodução social e pela produção de intelectuais negras que

experimentaram e refletiram sobre esses processos.

Sueli Carneiro afirma que o desenvolvimento de uma agenda específica para

combater “as desigualdades de gênero e intragênero” foi fundamental no processo de

“engajamento das mulheres negras nas lutas gerais dos movimentos populares e nas

empreendidas pelos Movimentos Negros e Movimentos de Mulheres no plano nacional

e internacional” (CARNEIRO, 2003, p. 120). Segundo ela, foi esse processo que

resultou, “desde meados da década de 1980, na criação de diversas organizações de

mulheres negras que hoje se espalham em nível nacional” (CARNEIRO, 2003, p. 120).

Assim, a autora aponta para os seguintes elementos como principais norteadores das

pautas do movimento de mulheres negras formado naquele período:

a) A especificidade das dificuldades de acesso das mulheres negras ao mercado

de trabalho;

b) As particularidades que a violência racial assume em relação às mulheres

negras, como o constrangimento do “direito à imagem ou a uma

representação positiva”, o limite às “possibilidades de encontro no mercado

afetivo”, a inibição do “pleno exercício da sexualidade pelo peso dos

184
estigmas seculares”, o cerceamento do acesso ao trabalho, o arrefecimento

das aspirações e o rebaixamento da autoestima (CARNEIRO, 2003, p. 122);

c) “A temática da saúde e dos direitos reprodutivos” e o “reconhecimento das

diferenças étnicas e raciais nessa temática” (CARNEIRO, 2003, p. 123),

destacando-se aí: a luta pela inclusão do quesito “cor” nas pesquisas sobre

população, que havia sido retirado no censo de 1970, para possibilitar

formulação de políticas públicas; a questão da esterilização de mulheres de

baixa renda; a demanda de um programa de atenção à anemia falciforme; a

discussão sobre bioética e os riscos de desenvolvimento de práticas

eugenistas nas pesquisas com seres humanos;

d) A transformação da lógica de representação que naturaliza o racismo e o

sexismo na mídia, reproduzindo e cristalizando estereótipos e estigmas sobre

mulheres negras.

Saúde, trabalho e subjetividade – com a violência racial permeando os três –

serão os grandes temas analisados neste capítulo, tendo sido elencados a partir do

panorama traçado por Sueli Carneiro e da análise mais ampla da bibliografia e das

fontes. De início, traçarei um panorama para apresentar em linhas gerais os primeiros

tipos de espaço específico estabelecidos por mulheres negras, sendo eles: alguns dos

primeiros coletivos específicos de mulheres negras; organizações de mulheres negras

dentro de grupos mistos do movimento negro; alguns dos primeiros encontros

específicos de mulheres negras. Na segunda parte deste capítulo, abordarei

tematicamente as matrizes fundamentais das pautas que o movimento de mulheres

negras, a partir desses novos espaços, passará a organizar.

1. A construção de espaços políticos específicos

185
Colin Barker sugere pensar no “movimento social em geral” ao invés de tratar

apenas de movimentos específicos (movimento negro, movimento de mulheres, etc.). A

proposta vem no sentido de “iluminar as características partilhadas” desses movimentos

a partir da exploração de seus vínculos e observação de padrões de “ascensão e queda,

desenvolvimento e desintegração parcial, expansão e retração” (BARKER, 2014, p. 7-

8). Para a presente tese, é importante diferenciar os movimentos para analisar suas

relações – mesmo porque o movimento estudado se percebe de maneira específica,

ainda que em constante relações com outros movimentos. Ainda assim, o exercício de

pensar “o movimento social em geral” é bastante interessante, principalmente

considerando nosso pressuposto da classe como unidade contraditória.56

Segundo Barker, considerar o movimento social como um todo não significa

pensá-lo como entidade homogênea. O autor propõe a imagem de uma renda:

“redes de movimentos podem ter múltiplos padrões, elas consistem em


diversos agrupamentos, organizações, indivíduos e assim por diante,
entrelaçados de maneira variada em relações de cooperação e (algumas
vezes) antagonismo.” (BARKER, 2014, p. 9)

De acordo com o autor, quanto mais heterogêneos os círculos sociais que

compõem o movimento social, mais diversas serão as lutas particulares que o

constituem. Ele ressalta, ainda, que “essa diversidade não significa necessariamente, de

modo algum, a divisão do movimento e sua fragilidade” (BARKER, 2014, p. 9).

56
Em relação a essa questão, Cinzia Arruzza afirma que nessa lógica de “movimentos paralelos”, “na
melhor das hipóteses, pensava-se em como unir esses movimentos; na pior, os vários movimentos
‘parciais’ eram acusados de dividir a unidade da classe, de expressar tendências liberais ou de distrair a
atenção da questão realmetne central: a exploração” (ARRUZZA, 2018, s.p., tradução minha). A autora
defende que uma “nova onda feminista” na atualidade traz consigo a possibilidade de superar o impasse
dessa abordagem, pois "o movimento feminista está se tornando cada vez mais um processo de
subjetividade de classe com características específicas: antiliberal, internacionalista, antirracista,
obviamente feminista e tendencialmente anticapitalista”, processo que tem variações dependendo dos
contextos nacionais (ARRUZZA, 2018, s.p., tradução minha).

186
Retomando Rosa Luxemburgo, Barker explica que a diversidade de interesses e

grupos de um movimento pode tanto estimular quanto ajudar a retroceder o movimento

como um todo. Assim como uma seção mais “avançada” pode desafiar o status quo,

encorajando seções mais “atrasadas” (aspas usadas pelo autor), “um passo atrás de uma

seção pode também empurrar outras para trás, gerando um movimento de fragmentação

e retiradas” (BARKER, 2014, p. 10). Essa ideia de avanços e retrocessos coletivos faz

lembrar a colocação de Angela Davis, em conferência na Universidade Federal da

Bahia, em 2017, de que “quando as mulher negra se movimenta, toda a estrutura da

sociedade se movimenta com ela”.57 Quando o movimento de mulheres negras avança,

ele pode estimular o avanço do movimento social como um todo.

Para pensar o “movimento social em geral” no Brasil das décadas de 1970 e

1980, a clássica obra de Eder Sader, Quando novos personagens entram em cena

(1988), é indispensável. Analisando os novos movimentos sociais de São Paulo entre

1970 e 1980, Sader identifica e analisa as “novas configurações sociais assumidas” pela

parcela dos trabalhadores que constitui os movimentos sociais, “com novos padrões de

ação coletiva, que nos permitem falar na emergência de novos sujeitos políticos”

(SADER, 1988, p. 17). As derrotas sofridas pelo movimento operário em 1964 e 1968,

no contexto da repressão pela ditadura empresarial militar (MELO, 2014) fizeram com

que o Estado deixasse “de ser visto como parâmetro no qual se media a relevância de

cada manifestação social” (SADER, 1988, p. 34) e, por consequência, “manifestações

incapazes de decidir eficazmente sobre a institucionalidade estatal [...] começaram a ser

valorizadas como expressão de resistência, de autonomia e criatividade” (SADER,

1988, p. 32-33). Desse processo, surgem novos personagens, ou “um novo sujeito social

57
EL PAÍS. Angela Davis: ‘Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se
movimento com ela. 27 jul. 2017. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html>. Acesso em: 18 dez.
2019.

187
e histórico” (CHAUÍ, 1988, p. 10) que, “embora coletivo, não se apresenta como

portador da universalidade definida a partir de uma organização determinada que

operaria como centro” (CHAUÍ, 1988, p. 11). Nesse processo, tornou-se central a defesa

da “autonomia dos movimentos, tendendo a romper com a tradição sócio política da

tutela e da cooptação e, por isso mesmo, fazendo a política criar novos lugares para

exercitar-se. Lugares onde [...] se efetua a experiência do cotidiano popular” (CHAUÍ,

1988, p. 11).

Essas novas configurações são explicadas por Sader em termos de “matrizes

discursivas”, isto é formas de nomear os problemas, objetivos e valores em dada

sociedade em dado período; ou ainda, nas palavras do autor, “modos de abordagem da

realidade, que implicam diversas atribuições de significado”, que “não são simples

ideias”, pois “sua produção e reprodução dependem de lugares e práticas materiais de

onde são emitidas as falas” (SADER, 1988, p. 143).

Para Sader, na década de 1970 as três matrizes discursivas decisivas para os

movimentos sociais na década seguinte foram reelaboradas: da Igreja Católica surgiram

as comunidades de base; de grupos de esquerda desarticulados surgiu uma busca de

novas formas de integração com os trabalhadores; da estrutura sindical esvaziada, surgiu

o “novo sindicalismo”.

Ele ressalta ainda que

“Os movimentos constituídos a partir de trabalhadores precários, de donas de


casa, de favelados, tendo por base a ‘esfera da reprodução’, teriam de se
apoiar em outras referências [em relação ao sindicalismo dos trabalhadores
“qualificados”]. Tinham consciência da falta de poder de barganha e pressão
na esfera da reprodução. Desenvolvendo suas reivindicações na esfera da
reprodução, não dispunham de um poder no nível econômico para sustentar
seus movimentos. Tampouco podiam apoiar-se no plano legal: uma longa
experiência mostrava que as referências jurídicas aos direitos a serviços de
saúde, transporte, educação, à habitação só existiam nos palanques
eleitorais.” (SADER, 1988, p. 311).

188
A necessidade de criar novas referências, apontada por Sader, ao contrário de ser

imobilizante, deu origem a novas formas de organização, nas quais o “cotidiano” passou

a ser entendido enquanto lugar de resistência, “base desde onde se gesta um projeto

autônomo das classes subalternas, livres dos discursos elitistas conformados e

institucionalizados em agências que lhes são exteriores.” (SADER, 1988, p. 141).58

Assim,

“O repúdio à forma instituída da prática política, encarada como


manipulação, teve por contrapartida a vontade de serem ‘sujeitos de sua
própria história’ [...]. Com isso acabaram (p. 311) alargando a própria noção
da política, pois politizaram múltiplas esferas do cotidiano” (SADER, 1988,
p. 311-312).

A valorização da autonomia organizativa e do cotidiano como lugar de

construção política a partir da base são pontos bastante significativos na construção dos

primeiros espaços específicos de mulheres negras. A seguir veremos de que forma esses

debates se expressaram nos processos de formação do movimento.

1.1 Primeiros coletivos específicos de mulheres negras

O primeiro coletivo específico de mulheres negras surgido a partir dos anos

1970 parece ter sido o Aqualtune59, fundado em 1978 no Rio de Janeiro.60 Teve entre

58
Eder Sader ressalta a importância de não reduzir o cotidiano a um “lugar mítico” e puro, sendo “melhor
vê-lo em sua ambiguidade de ‘conformismo e resistência’, expresso na ‘consciência fragmentada’ da
cultura popular” (SADER, 1988, p. 141).
59
Sobre a escolha do nome do grupo, Pedrina de Deus conta que “Aqualtune foi a avó de Zumbi. Trazida
como escrava, desembarcou num navio em Recife e foi obrigada a manter relações sexuais com um negro
para reproduzir escravos. Ela, que já ouvira falar em Palmares, fugiu da fazenda em que trabalhava e foi
pra lá, para que o filho não nascesse escravo. Teve uma filha, que é a mãe de Zumbi. Ela trabalhou na
organização política do quilombo de Palmares” (Nzinga Informativo, n. 3, ano I, fevereiro/março, 1986, p.
4). Segundo a pesquisadora da USP Sandra Santos, Aqualtune foi “uma princesa africana, filha do rei do
Congo”, tendo ido para a frente de batalha quando sua nação foi invadida por mercenários. Nesse
conflito, foi derrotada e vendida como escrava, desembarcando em Recife em 1597. Lá, comendou uma
fuga de escravos e ajudou a erguer o Quilombo dos Palmares. Deu à luz três filhos, dentre os quais
Sabina, mãe de Zumbi (SANTOS, 2007, p. 49).

189
suas participantes Azoilda Trindade, Cristina Daniel Cruz, Édila Silva das Virgens,

Estela da Costa Monteiro, Irani Maia Pereira, Léa Garcia, Jurema Gomes da Silva, Oir

Nascimento de Oliveira, Pedrina de Deus, Shirlei da Silva, Suzete Paiva, etc.

(SCHUMAHER, VITAL BRAZIL, 2007; SEBASTIÃO, 2007, p. 15). A partir do

Aqualtune, os anos 1980 e 1990 vêem surgirem uma série de organizações de mulheres

negras por todo o país.

Também no Rio de Janeiro, em 16 de junho de 1983, é fundado o Nzinga61 –

Coletivo de Mulheres negras. Esse grupo tinha entre suas fundadoras mulheres negras

“originárias principalmente do movimento de favelas e do movimento negro”

(FREITAS, 2017, p. 106), dentre as quais Jurema Batista, Lelia Gonzalez, Geralda

Alcântara, Helena Maria de Souza, Rosália Lemos, Elizabeth Viana, Jurema Gomes,

Regina Coeli, Pedrina de Deus, etc. (SCHUMAHER, VITAL BRAZIL, 2007). De

acordo com Flávia Rios e Alex Ratts, o Nzinga alcançou “algo singular”:

“de um lado, formou-se um grupamento político de mulheres de diferentes


posições sociais (moradoras do morro e de bairro de classe média,
trabalhadoras manuais com baixa escolaridade e mulheres com formação
universitária); de outro, reuniram-se experiências diversas de formação, do
movimento negro e dos movimentos de bairro e de favelas etc.” (RATTS;
RIOS, 2010, p. 98).62

60
O trabalho de Rosália Lemos se refere ao grupo como REUNIMA – Reunião de Mulheres Aqualtune,
conforme depoimento de Suzete Paiva (LEMOS, 1997, p. 71).
61
O primeiro volume do Nzinga Informativo traz um texto intitulado Mulheres negras e guerreira –
NZINGA (1582-1663) com uma breve biografia da rainha Nzinga, de Ndongo (“uma região de Angola”),
afirmando que “seu carisma, independência e inteligência brilhante incentivaram outros vizinhos a
combateres lado a lado com seu povo contra o domínio dos invasores [portugueses]” (p. 2), tendo
sustentato “uma guerra desigual durante 35 anos em defesa da preservação do reino e da liberdade de seu
povo” (Nzinga Informativo, n. 1, ano I, 1985, p.3). Segundo Sandra Santos, Nzinga Mbandi Ngola, a
“Rainha Jinga”, subiu ao trono em 1622 e “declarou que bastava de escravidão para seu povo e chegou a
exigir que fossem repatriados”. Lutou contra a escravidão de seu povo por meios diplomáticos e por meio
de guerra, tendo se tornado uma “figura mítica”, ainda que diversos documentos comprovem sua
existência histórica (SANTOS, 2007, p. 50-51).
62
No item “um pouquinho da nossa caminhada” do texto “O que é o NZINGA? Um coletivo de mulheres
negras, no primeiro volume do Nzinga Informativo, lê-se: “O 1º encontro foi na Sede da Associação dos
Moradores do Morro dos Cabritos, na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Rio de Janeiro. Éramos 8
mulheres: do Movimento de Favelas, do Movimento Negro e do Movimento de Bairros” (Nzinga
Informativo, op. cit., p. 2-3).

190
Rosália Lemos afirma que “o NZINGA alcançou uma enorme expressão,

atingindo, inclusive, outras partes do país”, participando, por exemplo, de encontros

estaduais de mulheres negras em outros estados (LEMOS, 1997, p. 74). O primeiro

volume do Nzinga Informativo traz, em um texto intitulado “O que é o NZINGA? Um

coletivo de mulheres negras”, um item que diz que enumera alguns dos objetivos

centrais do grupo (“Para que viemos?”):

“Para ser um serviço em defesa da mulher negra, da conquista de seus


direitos, numa perspectiva democrática e visando a justiça social;
Para exercer este serviço junto à comunidade negra enquanto setor
marginalizado e explorado da população;
Para exercer este serviço junto aos grupos, organizações populares e
entidades, no esforço de elevar seu nível de consciência, assim como, e
principalmente, junto às organizações negras, fortalecendo-as no que se
refere à maior elucidação quanto à articulação racismo e sexismo.”63

Nesse trecho, fica bastante evidente uma priorização da relação com

organizações ligadas ao movimento negro, embora o mesmo texto de apresentação

destaque a luta contra o sexismo e o fato de o coletivo ser um “coletivo de mulheres”.64

Há alguns trabalhos bastante cuidadosos que buscam elencar a maior parte (se

não todas) das organizações de mulheres negras surgidas no Brasil a partir de fins dos

anos 1970, como o de Schumaher e Vital Brazil (2007). Diferentemente, o objetivo aqui

será observar características gerais de algumas dessas organizações pioneiras. Para

tanto, há uma fonte bastante interessante, que coloca em diálogo direto mulheres do

Aqualtune e do Nzinga: uma entrevista registrada no Nzinga Informativo, veículo de

divulgação da segunda organização, feita com componentes do Aqualtune.65

Participaram da entrevista Jurema Gomes, Beth, Cláudia, Valéria, Bárbara, Carmem

63
Ibidem.
64
Ibidem.
65
Nzinga Informativo, n. 3, ano I, fevereiro/março, 1986, p. 3-6. Todas as citações entre aspas a seguir,
até indicação em nota de rodapé, foram retiradas dessa fonte.

191
Lúcia (Nzinga), Pedrina, Vera Lúcia, Suzete (Aqualtune) e Joana Angélica (CEMUFP –

Centro de Mulheres de Favela e Periferia).66

Suzete conta de sua experiência nas reuniões do IPCN e da ausência de

discussões sistemáticas sobre mulheres negras, além de problemas de machismo nas

reuniões: “as meninas que apareciam eram todas cantadas...”. Ela diz que a participação

de mulheres em espaços como o IPCN e o SINBA não garantiam o debate sobre o

assunto, porque

“naquele momento elas não estavam pensando a questão da mulher negra.


Estavam discutindo outras coisas. Não se tinha pensado em mulher negra
numa forma organizada. O que havia era um lamento aqui, uma discussão ali,
uma coisa isolada. Inclusive, eu tive uma discussão com a Lélia (Lélia
González – socióloga), porque ela afirmava num depoimento que já se falava
sobre a mulher na época em que o IPCN se reunia na Cândido Mendes. A
imagem que ela (Lélia) me passava era a de feminista, e eu tentei mostrar que
o que havia em termos de reivindicação dentro do conjunto de mulheres
organizadas eram reivindicações feministas”.

Segundo Suzete, a ideia do Aqualtune surgiu para “reunir mulheres que

participavam ou tinham participado de várias entidades para discutir, sem formar mais

um grupinho”. A narrativa de Suzete dá a entender que o objetivo do Aqualtune era

mais ser um espaço de reunião de mulheres negras de diversas organizações do que uma

organização política de mulheres negras em termos formais. Por outro lado, Pedrina

afirma que “Queríamos discutir a quesão da mulher negra especificamente. [...]

Estávamos inclusive pensando em registro, estatuto, etc...”.

A princípio, o Aqualtune se reunia no mesmo espaço do IPCN, até “o dia do

incidente”, nas palavras de Pedrina:

“Fomos para a nossa reunião [...] e o Paulo Roberto, Pres. do IPCN na época,
nos disse: vocês se reúnam em outro lugar, porque nós temos uma reunião
muito importante”. Em 1979, reunião de mulheres negras era uma coisa nova,
eles não nos tratavam com a devida importância. O incidente gerou uma crise

66
Ibidem, p. 3.

192
interna. A Suzete, que era uma das que achavam que devíamos brigar pelo
espaço do IPCN, ficou lá, e nós saímos e passamos a nos reunir na casa de
alguém.”

Assim, o Aqualtune passou a funcionar tanto no espaço do IPCN, com a atuação

de Suzete, por exemplo, quanto fora dele. Suzete diz que “as pessoas não estavam

entendendo o que era ser Aqualtune – não era fazer parte de outro grupo”. Em

depoimento a Rosália Lemos, ela chega afirmar que “não era grupo, era uma

ancestralidade, era uma questão de articulação, de um espírito, então todo mundo se

considerava Aqualtune” (LEMOS, 1997, p. 71). Essa indefinição em relação ao grupo,

tanto em termos de espaço quanto em termos de estatuto – ser um espaço de reunião ou

um grupo constituído – levou à criação de outro grupo, o GMN – Grupo de Mulheres

Negras, fundado em 1980 (SCHUMAHER, VITAL BRAZIL, 2007).

Suzete afirma que as Aqualtunes ligadas ao IPCN se definiam como “um grupo

de agitação”, mas num formato diferente do tradicional, baseado nas técnicas de Paulo

Freire:

“Não acreditávamos em atos públicos, em manifestações convencionais (esse


negócio de palanque, discurso, etc.). Daí fazíamos pesquisa diária de campo e
a gente ocupava um local estratégico – geralmente uma praça – com
impressos, megafone e cartazes sobre a questão racial. As pessoas passavam,
viam os desenhos e se manifestavam contra ou favor. A partir daí se iniciava
o processo de discussão.”

Já o grupo de mulheres que saiu do IPCN continuou aberto

“a todas as mulheres que quizessem (sic) participar sem ter que optar por um
grupo. Elas poderiam se reunir conosco, não como representantes de
entidades, mas como mulheres discutindo a questão da mulher negra.
Passamos a ser um Grupo de Reflexão. Neste momento, nós tiramos uma
Carta de Princípios que definia nossa situação. Formaríamos a REMUNEA –
Reunião de Mulheres Negras Aqualtune –, um grupo de combate ao racismo
e ao machismo, com objetivo de preparar suas participantes para a ação
política, cuja atuação fosse voltada para o fim dessas duas ideologias.
Dispensaríamos o registro oficial como entidade e não seríamos uma
organização negra a mais”.

193
É curioso notar que a “REMUNEA – Reunião de Mulheres Negras” aparece em

trabalhos como o de Sebastião (2007) e Schumaher e Vital Brazil (2007) como sendo a

primeira organização específica de mulheres negras, sendo que esse grupo rejeitou o

estatuto de “organização” – ainda que elas se refiram à organização de movimento

negro. A Aqualtune, fundada a partir do IPCN, foi anterior ao REMUNEA e tinha

estatuto confuso. Já a REMUNEA, que chegou a ter Carta de Princípios, segundo

Pedrina afirma na entrevista, não se considerava como organização, mas como uma

“reunião”, um “grupo” que comportasse diversos grupos ou mesmo mulheres negras

independentes de grupos. A entrevista no Nzinga Informativo me faz inferir que

REMUNEA foi um grupo que formou-se a partir de Aqualtune, grupo mais amplo que

dividiu-se em outros.

O documento que cria o REMUNEA data de 22 de setembro de 1979. Vera

Lúcia afirma que sua proposta

“era preparar mulheres para discutir a questão da mulher e do negro em seu


local de atuação. Nós escolhíamos um tema, discutíamos, debatíamos,
levávamos para casa, refletíamos... Reuníamos outra vez e escrecíamos um
texto. Esse texto era impresso e distribuído.”

Pedrina afirma que a negação do estatuto de entidade tinha relação com o

objetivo do grupo, que era criar um espaço de reflexão para que “cada mulher que

participasse do Aqualtune levasse a discussão para o seu grupo”, em um “trabalho de

formiguinha”.

Apesar dessa negação de estatuto de grupo, Suzete afirma que “Uma

contribuição do Aqualtune foi a organização das mulheres negras, que até então [...] não

havia, e o surgimento de grupos”. Ela faz ainda um adendo interessante, relembrando as

194
discussões feitas anteriormente neste capítulo em relação ao “movimento social como

um todo” no Brasil na década de 1970:

“Uma outra [contribuição] é o fortalecimento das entidades do Movimento


Negro e sua articulação com o Movimento Social como um todo no Rio de
Janeiro, no desenvolvimento de mecanismos eficazes no combate à
discriminação no mercado de trabalho, por exemplo”.

Pedrina faz uma observação bastante interessante em relação à conjuntura

histórica de abertura da ditadura e esses “novos personagens” que surgiam no

movimento social:

“Antes dessas discussões eu sabia da exploração social, sabia da luta contra o


racismo, mas não tinha claro como solucionar isso. Porque a gente achava
que se o país mudasse de regime estariam resolvidos os nossos problemas, já
que mudariam as leis, etc. etc.... É preciso incomodar racialmente e
sexualmente. Depois das reflexões do Aqualtune está claro para mim que sem
mulheres e sem negros não se faz a revolução nesse país”.

Na visão de Rosália Lemos (1997), as duas correntes do Aqualtune, lideradas

respectivamente por Suzete Paiva e Pedrina de Deus, definiram os rumos que o

movimento de mulheres negras viria a tomar: por um lado, a defesa da necessidade de

que as mulheres negras disputassem espaços mistos do movimento negro, como o

IPCN, e, por outro, o entendimento que era preciso deixar esses espaços para construir

organizações específicas. De acordo com Lemos, essa divergência criava

“uma divisão de tendências, na qual uma achava que a criação de grupos e


instituições políticas de mulheres iria dividir o Movimento Negro e a outra,
entendia que o Feminismo Negro deveria ser incentivado como uma
organização autônoma” (LEMOS, 1997, p. 72).

Antes de abordar a presença de grupos de mulheres negras em grupos mistos,

como organizações de movimento negro, vale observar que a experiência das mulheres

negras de São Paulo na constituição de seu primeiro coletivo específico – o Coletivo de


195
Mulheres Negras de São Paulo – é considerada por alguns como um marco no

movimento nacional de mulheres negras. Edna Roland, intelectual envolvida no

processo, parte da experiência de São Paulo não apenas por ser este o lugar em que se

situa, mas também “pelo impacto que os acontecimentos de São Paulo têm tido na

história do movimento no nível nacional” (ROLAND, 2000, p. 237).

A experiência de São Paulo tem uma relação muito próxima com o Estado,

diferentemente do que foi visto até agora. Em 1982, ocorriam as primeiras eleições

estaduais diretas desde o golpe empresarial-militar de 1964 (MELO, 2014), com vitória

de Franco Montoro, do MDB. Segundo Roland, Montoro “tinha como um dos seus

compromissos garantir a participação da sociedade civil na gestão estadual, através dos

chamados conselhos, órgãos híbridos, de governo, mas com representação da

sociedade” (ROLAND, 2000, p. 238). A criação desse tipo de conselho foi abordada no

capítulo II desta tese, em que se colocou que conselhos da condição feminina foram

criados em todos os níveis, federal, estadual e municipal (SARTI, 2004, p. 42). Dentre

esses, o governo Montoro criou o Conselho Estadual da Condição Feminina – composto

unicamente por mulheres brancas, indicadas pelo estado. Essa configuração levou à

mobilização das militantes negras de São Paulo no sentido de mudar a composição do

Conselho, e foi nesse processo que se constituiu o Coletivo de Mulheres Negras de São

Paulo, que indicou Thereza Santos e Vera Saraiva para ocupar cadeiras no CECF-SP.

Cristiano Rodrigues e Marco Aurélio Prado afirmam que

“a entrada das mulheres negras no CECF [Conselho Estadual da Condição


Feminina] de São Paulo e, em seguida, no CNDM [Conselho Nacional de
Direitos das Mulheres], abrindo espaços de participação institucional,
propiciou o início de um processo de consolidação de um movimento
autônomo de mulheres negras” (RODRIGUES; PRADO, 2010, p. 450).

196
No próximo capítulo, será discutida essa relação mais próxima do movimento de

mulheres negras com o Estado restrito e as possibilidades e limites observados nessa

trajetória.

1.2 Grupos de mulheres negras dentro de organizações mistas

Dentre as primeiras formas de organização de grupos específicos de mulheres

negras, pode-se considerar grupos de mulheres dentro de organizações mistas –

notadamente do movimento negro. Retomando o contexto do MNU de Salvador do

início dos anos 1980, a militante Valdecir Nascimento falou para Cláudia Cardoso sobre

“o desejo [das mulheres] de dar um salto em relação ao nosso posicionamento no

Movimento [Negro] Unificado”, obtido através “do investimento e fortalecimento das

integrantes, que passaram a assumir atividades de destaque e de direção no grupo,

tradicionalmente realizadas pelos homens.” (CARDOSO, 2012, p. 172). Valdecir e

outras companheiras de Salvador criam o grupo de mulheres do MNU, “cuja primeira

ação foi: denunciar os caras do MNU que se apropriavam das coisas do MNU”

(NASCIMENTO apud CARDOSO, 2012, p. 172). Cardoso afirma que

“o Grupo de Mulheres tinha por objetivo o empoderamento político das


integrantes para que exercessem uma atuação proativa no interior do MNU,
assumindo o lugar de protagonistas no movimento negro. A estratégia
passava pela troca de experiências para expor as fragilidades, para dividir os
medos alimentados pelo racismo, pelas imagens negativas depreciativas, os
estereótipos, que acabavam solapando a autoestima e a capacidade de falarem
em seu próprio nome” (CARDOSO, 2012, p. 172).

Cardoso diz ainda que o grupo de mulheres configurava um grupo de estudos, no

sentido de qualificar as intervenções das mulheres nas reuniões mistas, umas

fortalecendo as outras.

197
No contexto do Maranhão, Marta Andrade contou à Cláudia Cardoso sobre

processo semelhante de formação de um grupo de mulheres dentro de uma organização

mista do movimento negro, o Centro de Cultura Negra (CCN). Segundo Cardoso, esse

grupo “não foi bem aceito por parte dos militantes”, dizendo, conforme o depoimento

de Marta, que “Se tinha o grupo de mulheres deveria ter o grupo de homens... na cabeça

deles era: ‘Minha mulher não vai ficar nesse grupo. Se quer namorar comigo tem de

largar essas meninas. Essas meninas são mal-amadas, são sapatão’” (CARDOSO, 2012,

p. 174). O grupo de mulheres negras do CCN foi nomeado Grupo de Mulheres Negras

Mãe Andressa, vindo a constituir grupo independente em relação à instituição de origem

(CARDOSO, 2012, p. 175).

No capítulo II, ao abordar às questões de sexismo e lesbofobia dentro do

movimento negro, tratou-se da existência do Programa de Mulheres do CEAP,

organização do movimento negro do Rio de Janeiro. Esse programa – ou o grupo de

mulheres do CEAP, como é chamado pelas militantes em alguns momentos, também se

constitui como um desses espaços específicos de mulheres construídos no interior de

organizações negras mistas. Na entrevista que concedeu a mim, Neusa Pereira fala de

sua experiência no CEAP e no grupo de mulheres:

“Eu, em 1989, fui trabalhar no CEAP e fiquei lá por três anos [...]. Foi um
projeto que eu acreditei, de uma ONG em que eu acreditei. Era uma ONG
que tinha tudo pra dar certo e tinha um grupo de mulheres negras que me
atraiu e tinha um grupo de... uma comissão pra trabalhar com crianças. Com
meninas, outra com crianças, outra com negro, outra com a religião dos
orixás, outra com jornalistas, aliado ao jornal Maioria Falante67... Enfim,
uma organização muito grande” (PEREIRA, 2017, s.p.)

Pela fala de Neusa, percebe-se que o grupo de mulheres do CEAP era um dentre

tantos outros grupos – ou comissões, como ela diz – com temáticas específicas. Como

67
O jornal Maioria Falante foi um veículo de imprensa alternativa com linha editorial voltada para o
combate ao racismo e à discriminação que circulou entre 1987 e 1996, com sede no Rio de Janeiro. Cf.
<http://culturadigital.br/mnupe/2017/04/27/jornal-maioria-falante/>. Acesso em 20 dez. 2019.

198
abordado no capítulo II, Neusa identificava limitações no acesso a decisões e

informações de cunho financeiro, centralizadas no CEAP na figura de uma liderança

masculina, Ivanir dos Santos.

Segundo a entrevista de Neusa e conforme consta no folheto sobre Esterilização

publicado pelo CEAP, o Programa de Mulheres era composto por cinco integrantes:

Geni de Oliveira Mattos Silva, Jurema Pinto Werneck, Neusa das Dores Pereira,

Joselina da Silva e Josina Maria da Cunha.68 O folheto sobre Esterilização é aberto com

uma apresentação do grupo:

“NÓS... MULHERES... NEGRAS...


Uma entidade. Um programa. Cinco projetos.
É nova a entidade. Novo o programa e novíssimos são os projetos. Todos,
porém, sérios, consequentes, respeitosos, e com penetração direta nas
camadas populares. A Mulher, A Mulher Negra, o ser Mulher e Negra nesta
sociedade, constituem a grande discussão.
Inserção, articulação, apoio, fortalecimento, formação, estímulo, reflexão,
conscientização, denúncia, luta, organização e autonomia não são meras
palavras, são atitudes reais e políticas de um grupo composto por cinco
mulheres que hoje lança mais um de seus trabalhos”

Retomando as questões trabalhadas na abertura deste capítulo a partir de Eder

Sader, chama atenção a menção à “penetração direta nas camadas populares” e a

importância da “autonomia”, entre outras palavras norteadoras das atitudes do Programa

de Mulheres do CEAP. O próprio CEAP traz no nome a ideia de “populações

marginalizadas”, expandindo o escopo para além da negritude, abrangendo outros

grupos socialmente marginalizados, embora fosse uma organização do movimento

negro.

Vale notar ainda que as cinco mulheres que compunham o Programa não eram

as únicas mulheres do CEAP. Neusa Pereira comenta a questão:

68
CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES MARGINALIZADAS. Esterilização – Do
controle da natalidade ao genocídio do povo negro. [Folheto] Rio de Janeiro: CEAP, 1990.

199
“P: Ah, tá, então tinham outras mulheres que não estavam no projeto...
R: Tinham. Mas não se reconheciam como mulheres. Até atendiam o
telefone: ‘Alô? É pro grupo de mulheres? Mulheres, estão chamando vocês!’
(risada) É muito interessante isso.” (PEREIRA, 2017, s.p.)

A fala de Neusa demonstra um distanciamento de mulheres que integravam o

movimento negro, mas não se engajavam diretamente com as questões específicas das

mulheres negras, o que se dava, na análise de Neusa, porque “não se reconheciam como

mulheres”. Daí, depreende-se que a identidade política de “mulher” ou “mulher negra”

ou uma perspectiva feminista não era absoluta entre as mulheres do movimento negro

na virada dos anos 1980 para os 1990.

Além desse distanciamento de algumas mulheres, havia ainda outra questão que

as militantes negras em grupos mistos tiveram que enfrentar. Segundo Luiza Bairros,

em depoimento a Cláudia Cardoso, havia um embate político entre militantes negras em

torno dos limites de atuação delas em organizações mistas. Segundo Bairros, “as

mulheres negras de grupos mistos eram criticadas pelas próprias companheiras do

movimento de mulheres negras, estas pertencentes a grupos exclusivos de mulheres”

(CARDOSO, 2012, p. 198). Em suas palavras,

“nós éramos em primeiro lugar muito discriminadas pelas outras mulheres


negras, que eram do movimento de mulheres negras, porque nós eramos do
MNU, que era uma organização mista, mulher de organização mista sempre
foi uma coisa assim, meio menor no processo todo” (BAIRROS apud
CARDOSO, 2012, p. 198).

A análise de Cardoso em relação a essa desconfiança das militantes de

organizações específicas de mulheres negras diante daquelas que atuavam em espaços

mistos indica três aspectos principais:

“o receio de que o sexismo dos homens negros fosse acobertado pelas


companheiras dos grupos mistos; a suposta tolerância das mulheres negras
com a invisibilidade da opressão sexista enquanto agenda política nos grupos
mistos; e a ideia de que o movimento de mulheres negras poderia se

200
fortalecer ainda mais se contasse com a participação das mulheres que
estavam no movimento negro” (CARDOSO, 2012, p. 198).

Se muitas mulheres negras continuariam atuando em organizações mistas – não

apenas no movimento negro, mas em movimentos de favelas, na área da cultura, etc., as

organizações específicas de mulheres negras que surgiram desde fins da década de 1970

foram crescendo e se diversificando, questão abordada a seguir.

1.3 Encontros de mulheres negras

Alguns acontecimentos muito importantes na formação do movimento de

mulheres negras não se deram sob a forma de fundação de organizações, mas na

construção de fóruns de discussão e reunião de mulheres negras em âmbitos estadual e

nacional. O I Encontro Nacional de Mulheres Negras aconteceu em 1988, em Valença,

no Rio de Janeiro, mas antes disso outros houve encontros regionais, como o I Encontro

Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, que ocorreu em 1987. A experiência da

construção desses espaços pode ser contada de formas diferentes, dependendo da

perspectiva de quem a conta, e a questão local tem impacto importante aí. Nesta tese,

tive acesso principalmente às narrativas de intelectuais negras que atuaram no Rio e em

São Paulo, assim serão essas as perspectiva com maior destaque aqui.69

Ainda que não tenha tido acesso aos relatórios finais do I e II Encontro Nacional

de Mulheres Negras, recolhi alguns depoimentos sobre eles na relatoria da reunião de

Avaliação dos 30 anos do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, realizado no âmbito

do Fórum Permanente de Mulheres Negras no 13º Fórum Social Mundial, que ocorreu
69
O trabalho de Cláudia Pons Cardoso (2012) traz perspectivas de intelectuais envolvidas no movimento
de mulheres negras com um recorte regional mais diverso. Também aparecem depoimentos com boa
diversidade regional no livro Histórias do Movimento Negro (PEREIRA, 2013). Um número cada vez
maior de trabalhos de pós-graduação têm se dedicado aos movimentos de mulheres negras com recortes
regionais diversos, com destaque para trabalhos sobre o movimento de mulheres negras da Bahia, do qual
o trabalho de Silvana Bispo (2011) é um bom exemplo.

201
em 14 15 de março de 2018 em Salvador, na Bahia.70 O Fórum é realizado pela

Articulação Nacional de ONGs de Mulheres Negras (ANMB) e outras entidades que

compõem o Comitê Mulheres Negras Rumo ao Planeta 50-50 em 2030.71 Além disso,

uso diferentes fontes secundárias que analisam documentos ligados ao encontro, citados

adiante.

Antes de analisar os encontros específicos de mulheres negras, vale voltar o

olhar para um acontecimento que marcou diversos depoimentos e análises sobre o

movimento de mulheres negras e sua relação com o feminismo: o III Encontro Latino-

Americano e do Caribe, ocorrido em Bertioga, em São Paulo, em 1985. Esse encontro,

como mencionado anteriormente, foi cenário de um acontecimento que é tomado por

algumas intelectuais negras como o marco fundador do movimento de mulheres negras.

Mesmo que reconhecê-lo como marco fundador não seja consenso, sua importância na

história desse movimento é sem dúvida uma afirmativa compartilhada por muitas.

Vivian Silva classifica o episódio como “o maior dos embates entre o MMN em

formação e o movimento feminista” (SILVA, 2015, p. 157). Segundo a autora,

“Sob a organização do Coletivo de Mulheres de Favela e Periferia


(CEMUFP) do Rio de Janeiro, um ônibus com 27 mulheres, a maioria negras,
segue para o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe sem que,
no entanto, suas integrantes tivessem a intenção de [...] pagar a taxa
estipulada pela organização” (SILVA, 2015, p. 157).

70
FÓRUM PERMANENTE DE MULHERES NEGRAS. Avaliação dos 30 anos do I Encontro Nacional
de Mulheres Negras.[Relatoria] Salvador, 13º Fórum Social Mundial, 14 e 15 mar. 2018. Disponível em:
<http://blogueirasnegras.org/wp-content/uploads/2018/03/Relatorio_Final_FPermanente_30-
anos_e_Anexos.pdf>. Acesso em 15 dez. 2019.
71
Segundo a ONU Mulheres, o Comitê Mulheres Negras Rumo ao Planeta 50-50 em 2030 integra uma
parceria de “desenvolvimento de estratégia de comunicação e advocacy público para a priorização das
mulheres negras na resposta do Brasil aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e à Década
Internacional de Afrodescendentes, tendo como referência o Marco de Parceria para o Desenvolvimento
Sustentável 2017-2021”. Integram o Comitê: Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras
(AMNB), Agentes da Pastoral Negra (APNs), Coordenação Nacional de Quilombos, Federação Nacional
de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Fórum Nacional de Mulheres Negras, Movimento Negro
Unificado (MNU) -, entidades negras do Grupo de Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres,
Articulação Nacional de Negras Jovens Feministas (ANJF), Criola, Geledés – Instituto da Mulher Negra e
Ìrohìn. Cf. <http://www.onumulheres.org.br/mulheresnegras/comite-mulheres-negras/>. Acesso em 15
dez. 2019.

202
Jurema Batista conta que o coletivo tentou angariar fundos para pagar as

inscrições de todas, mas que não conseguiu juntar o valor necessário, que era muito alto

(BATISTA apud CARDOSO, 2012, p. 189-190). Chegando ao Encontro, as mulheres

do CEMUFP insistiram em participar mesmo sem o pagamento, tendo sua participação

negada pela organização do encontro e acabando por estabelecer um encontro

“paralelo” do lado de fora (BATISTA apud CARDOSO, 2012, p. 189-190). Segundo

Mariana Cestari:

“As organizadoras brasileiras haviam assegurado bolsas para mulheres


pobres e várias participantes do encontro levantaram a suspeita de que o
incidente do ônibus havia sido tramado por partidos políticos para
desacreditar o feminismo. Por outro lado, outras participantes, especialmente
as militantes do então emergente movimento de mulheres negras, insistiram
que as questões de raça e classe não ocupavam um lugar central na agenda do
Encontro e que as mulheres negras e pobres não haviam tido uma
participação significativa na elaboração dessa agenda (CESTARI apud
SILVA, 2015, p. 158).

A polêmica, que chegou a ser noticiada pelo jornal O Estado de São Paulo,

acabou gerando um debate sobre racismo, elitismo e diferentes vertentes do feminismo

em um espaço mais amplo do que o encontro (CESTARI apud SILVA, 2015, p. 158).

Para além dessa questão, a participação das mulheres negras internamente ao encontro

também deixou marcas, estabelecendo definitivamente uma relação entre as mulheres

negras e o feminismo, como se pode notar na fala de Luiza Bairros na plenária final do

evento:

“Houve um primeiro momento do movimento feminista manter uma unidade,


um certo fechamento, no sentido positivo da palavra, em cima de questões
específicas, mas eu creio que agora é o momento da gente começar a olhar o
que existe de diferente no movimento, o que existe de aparentemente
contraditório. E se a gente começar a enxergar isso de frente, acho que vai ter
sido dado um salto qualitativo muito importante. Basicamente, essa coisa nos
vem em função do fato de nós tentarmos trabalhar enquanto mulheres negras
certas coisas que nós aprendemos com o feminismo levando em conta nossa
especificidade étnica. E a gente não pode de maneira nenhuma esquecer que,
na América Latina e no Caribe, a grande maioria das mulheres não são
brancas e, por não serem brancas, têm uma forma muito especial de inserção

203
na sociedade determinada por essa condição” (BAIRROS apud SILVA,
2015, p. 159).

Essa fala de Luiza Bairros dialoga com uma questão bastante importante para

esta tese, quando ela se refere à importância de olhar “o que existe de aparentemente

contraditório” no “todo” das mulheres. O III Encontro Feminista Latino-americano e do

Caribe é um exemplo vivo das relações sociais contraditórias que constituem-se umas as

outras, criando uma realidade social que não pode ser fatiada, porque é múltipla em si

mesma.

1.3.1 O I Encontro Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro (1987) e as novas


configurações do movimento social

Joselina da Silva afirma que falar do I Encontro Nacional de Mulheres negras “a

partir de uma perspectiva das mulheres negras do Rio de Janeiro [...] é, antes de tudo,

abordar o I Encontro Estadual de Mulheres Negras, ocorrido em 1987” (SILVA, 2014,

p. 18).72 Segundo a autora,

“uma das principais características do I Encontro Estadual de Mulheres


Negras do Estado do Rio de Janeiro foi garantir, pela primeira vez no País,
que apenas mulheres afrodescendentes pudessem comparticipar. Os homens
– negros ou brancos – e as mulheres brancas foram vetados de partilhar do
evento. Dito de outra forma, embora recebendo aportes financeiros oriundos
de entidades, parlamentares e organizações feministas brancas, aquela se
constituía numa oportunidade de introspecção organizativa.” (SILVA, 2014,
p. 18-19, grifo meu).

A análise de Joselina tem um caráter ambivalente: ela fala tanto como intelectual

no sentido tradicional, como pesquisadora do movimento de mulheres negras, quanto

como intelectual orgânica do movimento, tendo inclusive sido membro da Comissão

72
Entre as organizadoras do I Encontro Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro estavam Sandra
Belo, Joana Angélica, Antonia Nolasco, Joselina da Silva, Maria José da Silva e Neusa das Dores Pereira.
O encontro ocorreu no Centro de Formação de Líderes, em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro (SILVA, 2014,
p. 19).

204
Organizadora do I Encontro Nacional de Mulheres Negras. Ela afirma que, apesar das

tensões oriundas de construir um espaço específico em relação ao movimento feminista

e ao movimento negro, “autonomia era a palavra de ordem” (SILVA, 2014, p. 19).

Como visto anteriormente com Eder Sader (1988), autonomia era uma questão chave

para os “novos personagens” que entravam na cena pública brasileira a partir da década

de 1970; não apenas autonomia em relação aos mecanismos do Estado, mas, no caso

das mulheres negras, autonomia política em relação a outros sujeitos que compunham

os grupos subalternizados – mulheres brancas e homens negros. Se Sader se refere aos

anos 1970, esses encontros ocorrem já em fins dos anos 1980, quando, de fato, o cenário

já se transformou um tanto. O “novo sujeito coletivo” ou o novo movimento social

“como um todo”, incluindo o novo sindicalismo, os movimentos comunitários e de

favelas, entre outros, já estavam estabelecidos na cena pública – em 1989 teríamos

inclusive uma liderança sindical do ABC Paulista concorrendo às eleições diretas para

presidente.73 Contudo, as “novas configurações” do movimento social surgidas na

década anterior ainda informavam muito da atuação desses movimentos e de suas

preocupações centrais. O próximo capítulo abordará, dentre outras questões, a

centralidade da questão da autonomia para as organizações e espaços específicos de

mulheres negras. Além disso, a negação de uma lógica de tutela e vanguardismo

estimulou estratégias de valorização do cotidiano popular como lugar político (SADER,

1988).

Nesse sentido, a metodologia de preparação do I Encontro Estadual do Rio de

Janeiro é digna de nota. Segundo Joselina da Silva,

73
Luís Inácio “Lula” da Silva, torneiro mecânico e liderança sindical nas greves de 1978-80 concorreu à
presidência nas eleições de 1989, tendo passado ao segundo turno e ficado em segundo lugar, perdendo
para Fernando Collor de Mello, do Partido da Renovação Nacional (PRN).

205
“a preparação do encontro, que durou quase um ano, realizou reuniões,
debates, seminários, festas, oficinas, mesas redondas e minicursos em
diferentes bairros da cidade e em municípios diversos do Estado do Rio de
Janeiro. Por vários meses, em comunidades e cidades periféricas da Capital,
as integrantes foram sendo inseridas no decorrer de reflexões e grupos de
estudos [...]. Essa performance fez alargar, consideravelmente, o número de
integrantes nas várias comissões, garantindo mais de duas centenas de
participantes durante o conclave”.

Vê-se, na fala de Joselina, que a construção do encontro se dá a partir da ida às

bases do movimento: atividades de diversos formatos eram realizadas em regiões

diversas do Estado, incluindo zonas periféricas. Não apenas reuniões políticas

“tradicionais”, mas festas e oficinas foram a fonte a partir da qual as próprias comissões

de construção do Encontro foram se constituindo e engrossando suas fileiras.

Outra estratégia ligada a essas “novas configurações” aparece em outra fala de

Joselina, sobre a importância de uma experiência vivida por mulheres negras que

estavam presentes do IX Encontro Nacional Feminista, em Garanhus, Pernambuco, que

ocorreu no mesmo ano de 1987. De acordo com ela, de início foi perceptível a ausência

de debates sobre raça e racismo na pauta do evento, o que acabou levando a que Sandra

Belo, por sugestão de Joselina, organizasse uma oficina com a técnica da Linha da Vida,

“muito utilizada pelo movimento feminista” (SILVA, 2014, p. 21), para reunir as

mulheres negras presentes no evento:

“Paulatinamente e nos dias sucessivos, mulheres negras, oriundas das cinco


regiões do País, começaram a se assomar ao grupo. A técnica da linha da vida
pressupõe depoimentos divididos por momentos diferentes das etapas
existenciais de cada participante.
Chocava-nos perceber que faixa etária, posição geográfica, lugar social
formação acadêmica, ou mesmo tom de pele (mais claras ou mais escuras),
enfim, nada obstaculizava a ação dos racismos e sexismos sobre cada uma de
nós. As histórias eram muito assemelhadas. Mesmo quando se referiam a
tenras idades. Lágrimas de tristeza, contentamento, emoção ou revolta foram
vertidas em grande quantidade [...]” (SILVA, 2014, p. 22)

Nesse ponto, é interessante pensar a formação de uma consciência de grupo

social – ou de uma identidade de grupo que se formava nesse momento. Existem

206
possibilidades de análise distintas para o processo histórico que essas mulheres viviam.

A narrativa de que as mulheres negras não se viram plenamente “representadas” no

movimento feminista, no movimento negro e em organizações de esquerda com recorte

classista pode levar a um entendimento de que os espaços específicos de mulheres

negras constituem a formação de uma consciência social específica, no sentido usado

por E. P. Thompson. Quando, na clássica citação do Prefácio de A formação da classe

operária inglesa, Thompson diz que “a classe acontece quando alguns homens [...]

sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos

interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”, é possível fazer uma analogia

mais ou menos direta com o que acontece no processo histórico aqui analisado. Assim,

as mulheres negras teriam identificado seus interesses em comum enquanto grupo e, por

outro lado, teriam percebido a divergência de seus interesses em relação, por exemplo,

ao movimento feminista “branco” ou “hegemônico”.

De fato, há um processo histórico no qual a experiência vivida e compartilhada

por mulheres negras que atuavam como intelectuais orgânicas em movimentos sociais

de diversos tipos (conforme a discussão do capítulo II) se expressa na necessidade de

construção de espaços e organizações específicas. Contudo, isso não significa dizer que

essa consciência constitui-se em uma consciência “fechada”, como se esse grupo social

fosse antagônico e oposto a outros grupos sociais, como os homens negros e as

mulheres brancas. O que proponho é entender essa consciência como expressão da

experiência da classe trabalhadora como um todo, entendida como unidade

contraditória, que inclui e é determinada pelas relações raciais, de gênero e de

sexualidade. A experiência das mulheres negras integra e modifica a experiência da

classe. É uma experiência específica, mas que faz parte de um todo complexo, dinâmico

e contraditório.

207
Essa questão pode ser melhor compreendida se analisarmos a forma como a

questão da “identidade” das mulheres negras aparece em algumas discussões

relacionadas aos encontros. Segundo uma militante negra entrevistada por Núbia

Moreira,

“a principal questão desses encontros de mulheres negras sempre foi uma


afirmação de identidade. As mulheres negras se afirmando como mulheres
negras, como pessoas, como facção política, como sujeito político”
(MOREIRA, 2018, p. 82).

Como mencionado, quando Joselina da Silva afirma que a construção de um

Encontro Estadual de Mulheres Negras envolveu tensões com os movimentos feminista

e negro, que não participaram do evento, ela ressalta que “autonomia era a palavra de

ordem” (SILVA, 2014, p. 19), Há, portanto, nesses primeiros encontros, decididamente

um movimento de construção de autonomia do sujeito político “mulheres negras” em

relação a outros grupos intraclasse com os quais se relacionavam e dividiam

organizações políticas mistas. Contudo, esse movimento não significa que o sujeito

“mulheres negras” seja um grupo homogêneo, nem que escape ao caráter contraditório

da classe social, entendida em sentido ampliado.

Nesse sentido, a análise de Núbia Moreira sobre o “desmantelamento da

identidade Feminina Negra” é bastante interessante. A autora traz o seguinte

depoimento de uma de suas informantes:

“No feminismo em geral, achava-se que todas as mulheres eram iguais. As


mulheres negras achavam que todas nós éramos iguais. Taí que deu briga.
Nós não éramos... [...] Eu era favelada, mas isso não quer dizer que eu não
tenha muita diferença com alguma mulheres que têm a mesma origem
favelada que eu e continuo. São as demandas. As demandas cotidianas são
diferentes. As mulheres negras que permanecem vivendo na favela têm uma
demanda cotidiana diferente de quem está vivendo fora da favela, por
exemplo, para dar um exemplo, a violência” (MOREIRA, 2018, p. 83).

208
Núbia Moreira analisa esse depoimento dando ênfase às “demandas de

localização da zona de moradia” (MOREIRA, 2018, p. 84). Minha análise, por outro

lado, observa a heterogeneidade do sujeito “mulheres negras”, evidenciado no trecho

pela especificidade de demandas de mulheres negras faveladas, como uma expressão do

caráter contraditório da classe social. Cabe retomar, aqui, algumas questões trabalhadas

anteriormente: há diversos elementos que caracterizam as relações sociais no

capitalismo, relações estas que se expressam sob formas de opressão, alienação e

exploração, conforme Bakan (2016), mas também de solidariedade. A heterogeneidade

das mulheres negras se explica pela diversidade de formas de trabalho, tanto no sentido

das “formas intermediárias” analisadas por Marcel van der Linden (2013) quanto no

sentido de um entendimento ampliado do trabalho, incluindo o trabalho reprodutivo e

todas as questões envolvendo o trabalho doméstico, assalariado ou não, conforme as

propostas da teoria da reprodução social, abordadas no capítulo I desta tese. Assim,

tanto sujeito social “mulheres negras” guarda particularidades como grupo intraclasse

na classe trabalhadora, como apresenta diversidade e aspectos contraditórios em si

próprio. Isso porque há uma pluralidade de experiências, subjetividades e relações

sociais que conformam os diferentes sujeitos sociais englobados no grupo “mulheres

negras”. Essa diversidade, entretanto, não significa impossibilidade de ação coletiva –

afinal, o movimento de mulheres negras organizou-se e expandiu-se, como se sabe. No

entanto, reconhecer a heterogeneidade tanto da classe trabalhadora quanto do próprio

sujeito social “mulheres negras” é fundamental para uma análise aprofundada e acertada

do processo histórico ora estudado, bem como para a construção de laços de

solidariedade e resistência coletiva do movimento social “como um todo”, retomando

Colin Barker.

209
1.3.2 Os primeiros Encontros Nacionais de Mulheres Negras

O I Encontro Nacional de Mulheres Negras ocorreu na cidade de Valença,

interior do estado do Rio de Janeiro, em 1988, e contou com a participação de 450

militantes de 17 estados brasileiros (MOREIRA, 2018, p. 80). O ano de 1988 foi

particularmente importante para o movimento negro brasileiro: a abolição da escravidão

do país completava seu centenário e as tentativas de celebração oficial foram

respondidas com protestos por diversas entidades do movimento negro (ALBERTI;

PEREIRA, 2007, p. 252-270).74 Na avaliação de Kátia Melo, registrada no Nzinga

Informativo nº. 5, de 1989, revela que o I Encontro Nacional de Mulheres Negras

também se integrou a essa onda de protestos contra as comemorações do centenário da

abolição:

“A razão fundamental da realização desse Encontro, ou pelo menos a idéia


geradora deste, foi a partir da constatação de que ‘nos 472 anos de opressão
da raça negra no Brasil, nós mulheres negras temos lutado para resgatar a
nossa participação ativa no processo de transformação da Sociedade
Brasileira, desde o momento da nossa chegada ao Brasil’, o que no ano do
Centenário da falsa Abolição nós teríamos o dever de nos organizarmos
Nacionalmente, para manifestarmos a nossa visão da ‘Abolição’ e
analisarmos as consequências desta no homem e mulheres negros,
devolvendo para a percepção da sociedade através do Encontro, na tentativa
de identificarmos as nossas variadas formas de luta contra o racismo e o
sexismo e apontar para uma ação efetiva de combater estas chagas sociais”
(NZINGA INFORMATIVO apud CARDOSO, 2012, p. 192).

Núbia Moreira, com base no relatório do I Encontro, resume seus objetivos da

seguinte forma: “a) denunciar as desigualdades sexuais, sociais e raciais existentes,

indicando as diversas visões que as mulheres negras brasileiras têm em relação ao seu

futuro; b) fazer emergir as diversas formas locais de luta e autodeterminação face às

formas de discriminação existentes; c) elaborar um documento para uma política

74
Um dos principais eventos realizados no país foi a “Marcha contra a farsa da abolição”, no Rio de
Janeiro, em 11 de maio de 1988: “essa Marcha do Rio de Janeiro acabou ganhando repercussão nacional e
internacional, em função do grande aparato militar disponibilizado pelo Exército brasileiro para impedir a
passagem dos militantes negros pelo busto de Duque de Caxias” (PEREIRA, 2013, p. 305-306).

210
alternativa de desenvolvimento; d) encaminhar uma perspectiva unitária de luta dentro

da diversidade social, cultural e política às mulheres presentes no Encontro; e) realizar

diagnóstico da mulher negra; f) discutir as formas de organização das mulheres negras;

g) elaborar propostas políticas que façam avançar a organização das mulheres negras,

colocando para o mundo a existência do movimento de mulheres negras no Brasil de

forma unitária e de diferentes vertentes políticas” (MOREIRA, 2018, p. 80).

Compunham a Comissão Executiva do I Encontro: Wânia Sant’Anna, Sandra Helena

Torres Belo, Jurema Gomes, Hildésia Alves Medeiros, Helena Maria de Souza, Maria

Lúcia de Carvalho (Malu), Maria José Lopes da Silva (Zezé), Neli Adelaide Gonçalves,

Maria Helena Fuzer, Neusa das Dores Pereira, Agnes Consula Joseph Rodrigues,

Jurema dos Santos Baptista, Judith dos Santos Rosário e Joselina da Silva.75

As falas presentes na Avaliação dos 30 anos do I Encontro Nacional de

Mulheres Negras em referência a esse primeiro encontro buscam caracterizá-lo como

um marco inicial no movimento de mulheres negras da década de 1980. Segundo Kátia

Melo,

“o I Encontro se refere a um ato de ousadia, sabedoria e da possibilidade de


apontar um caminho novo para a questão civilizatória no Brasil. As mulheres
negras entendiam que precisavam se colocar, enquanto organização,
apontando e mexendo naquela ferida que os brasileiros, de alguma maneira,
queriam jogar para debaixo do tapete. Era um racismo velado, que se
colocava como que para sustentar o mito da ‘democracia racial’”.76

Centrada no confronto ao racismo, sob a forma particular que assumira no

Brasil, a fala de Kátia busca localizar o encontro – na verdade, o surgimento do

movimento de mulheres negras na cena pública brasileira – como fundamental para uma

transformação social profunda no país.

Consta também no relatório que


75
FÓRUM PERMANENTE DE MULHERES NEGRAS, op. cit., p. 16.
76
FÓRUM PERMANENTE DE MULHERES NEGRAS, op. cit., p. 10.

211
“Lúcia Dutra afirmou que a autonomia e a estrutura política do movimento de
mulheres negras brasileiras nasceu, de fato, com a realização do I Encontro
em 1988, [...] sob o tema ‘A mulher negra e a sua organização’”.77

A militante ressalta, assim, a centralidade desse encontro para toda a lógica

organizativa que viria a se estabelecer no movimento de mulheres negras. É importante

levar em conta o contexto dessas falas: um momento institucionalizado de avaliação,

mas também de celebração dos 30 anos do I Encontro Nacional de Mulheres Negras. Há

que se considerar os objetivos políticos das participantes, da organização e da própria

razão de ser desse evento.78 Segundo seu relatório, o evento “constituiu-se em momento

especial de avaliação da trajetória de organização das mulheres negras brasileiras nessas

últimas três décadas”.79

Defendendo que as mulheres negras, desde o I Encontro Nacional, têm

“reivindicado o estabelecimento de um novo Pacto Civilizatório para o Brasil”,

“propondo uma sociedade com base na dignidade humana, no desenvolvimento

humano, social e equitativo”, o relatório traz a pergunta:“ ‘Se fomos vitoriosas?...’ Os

debates apontaram que, parcialmente, sim, mas que ainda tem-se muito a percorrer”.80

Essa visão muito positiva do I Encontro – ainda que considerando a manutenção

de uma série de desafios ainda a enfrentar – é matizada por depoimentos dados à

Cláudia Cardoso. Neusa das Dores Pereira, intelectual que também pude entrevistar,

contou à historiadora que o rumo organizativo que o I Encontro tomou divergiu do que

havia sido planejado pela Comissão Executiva do Encontro, da qual participava. A

77
Ibidem, p. 11
78
Cabe ressaltar que o evento de 2018 contou com o apoio da ONU Mulheres Brasil, da Embaixada do
Reino dos Países Baixos, da Fundação Ford e do Heinrich Böll Stiffung (Ibidem, p. 3). O apoio dessas
organizações também pode influenciar de alguma forma o teor das discussões e do material de avaliação
produzido. A discussão sobre financiamentos e apoios financeiros às organizações será analisada no
próximo capítulo.
79
Ibidem, p. 3
80
Ibidem, p. 4.

212
proposta da Comissão era uma metodologia de “discussões em pequenos grupos para

garantir à participação de todas as mulheres”, como era feito em atividades do

movimento feminista branco (CARDOSO, 2012, p. 207). Entretanto, nas palavras de

Neusa, “Qual não foi a nossa surpresa que, quando chegamos ao Encontro, a primeira

discussão foi regimento interno. E a gente perdeu um dia discutindo regimento interno e

nós não estávamos preparadas para aquilo, justamente porque éramos feministas. E

dentro do feminismo não tinha essa discussão” (PEREIRA apud CARDOSO, 2012, p.

207). A visão de Neusa, portanto, era de que a recusa da metodologia se relacionava

com uma recusa ao feminismo branco e seus procedimentos. Contudo, Fátima Oliveira,

ligada ao movimento feminista, atuando na União Brasileira de Mulheres (UBM),

considerou o modelo proposto pela comissão como “inadequado para atender

eficientemente a um grande número de mulheres” (CARDOSO, 2012, p. 208). Na visão

de Cardoso, “essas divergências refletiram, por um lado, a diversidade das mulheres

negras e suas diferentes formas de organização política, realidade que, até então, ainda

era percebida como problema. Por outro lado, diferentes concepções de feminismo”

(CARDOSO, 2012, p. 208). A presença dessa divergência de estratégias e metodologias

é abordada como um aspecto interessante do evento na avaliação de Helena Maria

Souza, publicada no quinto volume do Nzinga Informativo:

“Pela primeira vez, nós organizamos um evento, onde estavam presente


mulheres oriundas de Partidos Políticos, das Comunidades de Base, dos
Sindicatos, dos Grupos Religiosos, do Movimento de Mulheres e de todas as
correntes do Movimento negro onde foi garantida a todas elas, espaço para
discordar de todos os encaminhamentos [...]
[...] Foi possível a reunião de mulheres de grupos distintos, com estratégias
diferenciadas, para acima das divergências políticas e partidárias –, criar as
condições para que outras 500, pudessem, num ambiente acolhedor, tranquilo
e confortável, [...] refletir sobre o significado de ser uma mulher negra, numa
sociedade que duplamente nos discrimina (NZINGA INFORMATIVO apud
CARDOSO, 2012, p. 209).

213
O fato de que o I Encontro tenha sido considerado um marco do movimento de

mulheres negras não significa que as discussões nele travadas não tenham tido seus

limites. Na análise de Neusa Pereira:

“O que eu percebi naquele momento, que nós, as mulheres negras, a gente


sabia que era negra, sabia que estava sofrendo racismo, mas, quando ia
discutir educação, você discutia educação, mas não era educação e mulher
negra, que era a diferença. Eu vou notar, dois anos depois em Salvador, você
já tem essa questão colocada e parece que a partir dali muitas mulheres foram
realmente se debruçar e fazer essa pesquisa (PEREIRA apud CARDOSO,
2012, p. 209).

O II Encontro Nacional de Mulheres Negras, ao qual Neusa faz referência,

acontece em aconteceu em 1991, em Salvador, Bahia, e reuniu 430 mulheres de 17

estados. Teve como tema “Organização, Estratégias e Perspectivas”, demonstrando uma

preocupação organizativa do movimento mais acentuada. Segundo Núbia Moreira, esse

Encontro “tinha como principal objetivo a definição de um Projeto Político Nacional

que respondesse à situação da mulher negra, levando em consideração a diversidade

social, cultural e política da sociedade brasileira” (MOREIRA, 2018, p. 82).

Os três anos de diferença entre os dois encontros fazem bastante diferença em

termos de contexto:

“Entre as estratégias de luta na década de 1990, Lúcia destacou os direitos


sexuais e reprodutivos; a análise de conjuntura do início da década de 1990,
na vigência do governo Collor, marcado por perda de direitos e problemas
políticos, sociais e econômicos que atingiam, majoritariamente, a população
negra”.81

Além dessa questão conjuntural mais ampla, o movimento de mulheres negras se

encontrava em um momento mais avançado, onde diversas organizações específicas já

haviam se estabelecido, como o Grupo de Mulheres Negras Mãe Andressa (Maranhão,

81
Ibidem, p. 11.

214
1986), Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras (Rio Grande do Sul, 1987), o

Gedelés - Instituto da Mulher Negra (São Paulo, 1988), o Coletivo de Mulheres Negras

do Distrito Federal (1990) (SCHUMAHER, VITAL BRAZIL, 2007). Além desses,

grupos de mulheres negras em organizações mistas como o Grupo de Mulheres do

MNU da Bahia e o Programa de Mulheres no CEAP eram bastante atuantes – este

último viria a ser a espinha dorsal da ONG Criola em 1992.

O peso da conjuntura também foi lembrado na reunião de Avaliação de 2018 por

Kátia Melo, que

“falou sobre o II Encontro de Mulheres Negras como desdobramento do


primeiro, só que realizado em um ano de eleições, período que, segundo
disse, às vezes ajuda na discussão, mas também pode gerar entraves. Kátia
lembrou que à época, o lema era o reconhecimento, a autonomia da mulher
negra de estar onde ela quisesse, inclusive no que se referia aos partidos
políticos. ‘A gente tem que ter a identidade no sentido de ver o que nos une’,
afirmou. De acordo com Kátia, a questão racial se sobrepunha a outras como
a partidária, à época, porque o momento era de afirmação das lutas do
movimento de mulheres negras”.82

A fala de Kátia Melo aponta para alguns pontos interessantes. Sua fala é

contemporânea, informada pelas preocupações políticas do presente, mas nos dá pistas

sobre questões relevantes à época do segundo encontro: a questão da política formal,

com a menção das eleições e da presença de mulheres negras em partidos políticos, e a

questão da “afirmação” do movimento e de suas pautas, com centralidade na questão do

racismo. O primeiro ponto será trabalhado no próximo capítulo da tese. Com relação ao

segundo, Núbia Moreira afirma que

“o movimento de mulheres negras demarcava sua identidade (abstraindo


outros marcadores) por meio do contato e experiência de vida com o racismo.
Para efeito de comprovação, a pele negra e/ou a identidade política negra,
condição inscrita no corpo e na militância se constituía como sinal distintivo
e demarcados da posição de mulher negra que, em contraste com as
feministas brancas, determinava a diferença” (MOREIRA, 2018, p. 83).

82
Ibidem, p. 18.

215
Esse trecho faz lembrar a discussão que Stuart Hall propõe sobre a presença de

um momento de “essencialismo” por que passou o movimento negro em sua luta contra-

hegemônica frente à “cultura dominante” (HALL, 2003, p. 326). Para o autor, é preciso

ter cuidado com esse “toque de essencialismo”, na medida em que ele naturaliza o que é

cultural e des-historiciza o que é histórico, não servindo à luta antirracista ao evocar

uma “experiência negra garantida” (HALL, 2003, p. 326). Na visão do intelectual

britânico, "é para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra que

devemos dirigir inteiramente nossa atenção criativa " (HALL, 2003, p. 327-328).

No movimento de mulheres negras, essa questão toma outros contornos. A

afirmação da “identidade”, como já discutido, é também uma afirmação de autonomia

política e organizativa. Contudo, esse “toque de essencialismo” aparece não apenas em

relação à dimensão racial, mas como uma busca de “unicidade” das mulheres negras, na

análise de Núbia Moreira (2018, p. 82). Uma visão homogeneizadora das mulheres

negras, mesmo que se dê com o propósito de criar unidade política e pautas unificadas,

gerou problemas e questionamentos dentro do próprio movimento, conforme

demonstrado anteriormente. A necessidade de reconhecer a diversidade dentro do

sujeito político “mulheres negras” será uma pauta cada vez mais relevante para o

movimento.

Em 1993, houve o I Seminário Nacional de Mulheres Negras, cuja realização

havia sido deliberada no Encontro de 1991. Segundo Núbia Moreira, a plenária presente

no II Encontro propusera “‘um tempo para pensar’ antes da preparação do III Encontro

Nacional” (MOREIRA, 2018, p. 84). O Seminário foi organizado pelo Fórum de

Mulheres Negras do Estado de São Paulo, tendo constituído um “momento de avaliação

acerca da organização política das mulheres negras”, com ênfase na discussão em torno

216
“da questão da autonomia do movimento de mulheres negras, quer em relação aos

movimentos negro e feminista, quer em relação ao Estado. Outro ponto apresentado

versou sobre a presença e a função das recentes Organizações Não Governamentais

(ONGs)” (MOREIRA, 2018, p. 84-85).

A heterogeneidade do movimento apareceu no Seminário em debates sobre

“várias concepções de movimento de mulheres negras”, chegando-se à seguinte

concepção inscrita no relatório do Seminário:

“O movimento de mulheres negras vem se constituindo a partir do


cruzamento da questão de gênero, raça e classe social. Deve ser autônomo,
independente, composto por mulheres de diferentes setores (por exemplo:
movimento negro, sindical, popular, partidário, acadêmico). Deve estar
articulado prioritariamente com o movimento negro e feminista, na medida
em que estes incorporem e apóiem a luta das mulheres negras, mantendo sua
especificidade” (SEMINÁRIO apud MOREIRA, 2018, p. 85).

Esse documento demonstra uma nova forma de concepção do movimento:

heterogêneo, diverso, mas integrado, reconhecendo-se a existência de uma

especificidade de pautas políticas que baseiam a constituição de um movimento que é

específico, mas também em relação necessária com outros movimentos sociais.

Uma questão bastante relevante na virada dos anos 1980 para os 1990 no

movimento social em geral foi a adoção, por muitas organizações, do formato de ONG.

Essa questão será tratada no capítulo IV desta tese, no qual serão analisadas

organizações bastante importantes na história do movimento de mulheres negras, como

as ONGs Geledés e Criola. Ainda assim, cabe fazer, nesse ponto, uma apresentação em

linhas gerais dessas organizações, na medida em que são citadas no próximo item desta

capítulo.

Em 1987, é fundada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a Maria Mulher –

Organização de Mulheres Negras, por Maria da Conceição Lopes Fontoura, Claudia

217
Cardoso, Lucia Regina Brito Pereira, Saionara Santos, Sandra Silveira, Vera Lúcia

Lopes, entre outras (SCHUMAHER; VITAL BRAZIL, 2007). O primeiro Boletim de

Maria Mulher, de 1987, afirma que o objetivo dessas mulheres naquele momento era

“refletir, discutir e até formar um grupo que desse continuidade a uma ação política

voltada à Mulher Negra” (MARIA MULHER apud FONTOURA, 2004, p. 133). O

grupo tem em cinco linhas de ação: “promoção da igualdade racial; defesa dos direitos

das mulheres; construção da cidadania de meninas e adolescentes; intervenção política;

documentação, informação e pesquisa”.83 Edna Roland ressalta que Maria Mulher

“realiza trabalho na área de saúde reprodutiva, buscando sensibilizar as mulheres quanto

aos seus direitos, orientando-as para o exercício da cidadania, exigindo atendimento

médico adequado (ROLAND, 2000, p. 241).

O Geledés – Instituto da Mulher Negra foi fundado em 1988 na cidade de São

Paulo e teve como membros mulheres como Edna Roland, Maria Lucia Silva, Nilza

Iraci, Sonia Maria Pereira, Solimar Carneiro, Sueli Carneiro e Vanderli Salatiel

(SCHUMAHER; VITAL BRAZIL, 2007). A fundação do Geledés tem íntima relação

com o processo de organização das mulheres negras de São Paulo em torno do Coletivo

de Mulheres Negras e das disputas envolvendo o Conselho Estadual da Condição

Feminina de São Paulo. A organização desde sua fundação se estabeleceu como ONG,

tendo obtido recursos junto a Fundação Ford para estabelecer-se como entidade.

Atuante até a atualidade, o Geledés se organiza em programas temáticos: Programa de

Direitos Humanos, Programa de Educação, Programa de Comunicação e Programa de

Saúde.84 Roland afirma que o Geledés

83
Cf. <https://www.fundobrasil.org.br/projeto/maria-mulher-organizacao-de-mulheres-negras/>. Acesso
em 28 dez. 2019.
84
Cf. <https://www.geledes.org.br/geledes-missao-institucional/>. Acesso em 28 dez. 2019.

218
“foi o primeiro grupo de mulheres negras no Brasil a criar um programa de
saúde, que desenvolveu atividades no campo da saúde reprodutiva e
prevenção de AIDS, influenciando diversos grupos a assumirem a temática
da saúde” (ROLAND, 2000, p. 241-242).

O Criola foi fundado em 1992 no Rio de Janeiro a partir do grupo que compunha

o Programa de Mulheres Negras do CEAP, tendo tido como membros Jurema Werneck,

Lúcia Xavier, Geni de Oliveira Matos, Maria Josina da Cunha, Neusa das Dores Pereira,

etc. (SCHUMAHER, VITAL BRAZIL, 2007). Trabalha nas seguintes áreas de atuação:

Justiça e direitos humanos; Saúde; Memória e Reconhecimento;

Arte/Empreendedorismo e trabalho; Formação, difusão do pensamento das mulheres

negras.85

2. Pautas contra-hegemônicas

Conforme a proposta de uma análise totalizante e qualitativa, me debruçarei

agora sobre três temas que considerei centrais para o movimento de mulheres negras

que se estabelece na década de 1980, a partir de análises de bibliografia e fontes

primárias. Esses temas – saúde, trabalho e subjetividade – são entendidos como

matrizes das pautas contra-hegemônicas que as organizações de mulheres negras que se

formam passam a ter como bandeiras de atuação política.

A análise desses temas ganha novas camadas quando se pensa a questão da

reprodução social, que abrange três formas: a reprodução biológica de pessoas, a

reprodução da força de trabalho via trabalho de cuidado não pago e a reprodução da

força de trabalho via indivíduos e instituições que executam o trabalho de cuidado pago

(HOPKINS, 2017, p. 145). As questões de saúde e trabalho enfrentadas pelas mulheres

negras passam profundamente pelo âmbito da reprodução social, da mesma forma como

85
Cf. <https://criola.org.br/?onepage=quem-somos>. Acesso em 28 dez. 2019.

219
os problemas ligados à subjetividade, a serem discutidos, atravessam a construção

dessas relações.

2.1 Saúde

Estudiosos da relação entre etnia/raça e saúde, como Simone Monteiro,

caracterizam o desenvolvimento do tema como ainda incipiente na produção acadêmica

latino-americana. De acordo como Monteiro, “no caso brasileiro, observa-se que as

reflexões são escassas, mas deve ser salientado que, nos últimos anos, este tema tem

sido objeto de interesse de pesquisadores, lideranças do movimento negro, de

instituições intergovernamentais [...], de fundações filantrópicas norte-americanas e

agências de fomento a pesquisas nacionais” (MONTEIRO, 2004, p. 46).86 Monteiro

escreve em 2004, referindo-se portanto ao crescimento da temática em fins dos anos

1990 e início dos 2000.87

O tema não tem sido apenas importante no âmbito acadêmico, mas também para

os movimentos sociais e para o desenvolvimento de políticas públicas. Os autores

afirmam que a maior parte da publicações sobre saúde da população negra foi

produzida, pelo menos até 2005, por ativistas, destacando o papel das intelectuais

negras na produção desse material (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 424).88 Nessas

publicações, “predomina o argumento segundo o qual a invisibilidade do recorte étnico-

86
O envolvimento dessas “instituições intergovernamentais” e “fundações filantrópicas norte-
americanas” na produção sobre saúde da mulher negra e outras temáticas ligadas ao movimento de
mulheres negras será abordado no próximo capítulo.
87
Uma abordagem panorâmica sobre a saúde da população negra brasileira, com ênfase na saúde
reprodutiva da mulher negra, é apresentada por Fátima Oliveira (2004). Nesse texto, a autora descreve
doenças prevalentes nessa população e analisa a atuação do governo brasileiro, assim como as pesquisas e
propostas sobre o tema.
88
Essa produção procura demonstrar “a importância da variável raça na prevalência entre a população
feminina negra de diabetes tipo II, miomas, hipertensão arterial e anemia falciforme, que podem
promover abortamento espontâneo e maior suscetibilidade a infecções, entre outros problemas” (MAIO;
MONTEIRO, 2005, p. 424).

220
racial nas pesquisas da área de saúde pública decorre do não-reconhecimento do

racismo na sociedade brasileira”, havendo

“uma espécie de aliança entre gestores do sistema de saúde e produção


acadêmica para ofuscar a ‘saúde da população negra’, ao reiterar chaves
explicativas sociológicas que reduziriam o racismo às disparidades sócio-
econômicas. Com isso, as evidências dos males à saúde atribuídos apenas à
pobreza seriam equivocadas, configurando-se como mais uma variante do
mito da democracia racial” (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 424).

Essa operação de redução das desigualdades raciais às desigualdades

econômicas pode ser relacionada com o embate entre raça e classe nos movimentos

sociais analisado no capítulo anterior. A questão, assim, se expressa também nas

pesquisas sobre saúde pública e, consequentemente, na elaboração de políticas públicas

e se devem considerar ou não aspectos étnico-raciais.

Segundo Maio e Monteiro (2005), a proposta de uma política com recorte racial

na área de saúde pública no Brasil só ganhou visibilidade no governo Fernando

Henrique Cardoso (1994-2002) e principalmente após a Conferência de Durban (2001).

Os autores apontam que, até então, “algumas iniciativas do movimento feminista e, em

particular, de lideranças negras foram desenvolvidas, a partir da década de 1980, com o

objetivo de ressaltar especificidades raciais no âmbito da saúde reprodutiva” (MAIO;

MONTEIRO, 2005, p. 423). Maio e Monteiro (2005) ressaltam o alcance limitado

dessas iniciativas, destacando o surgimento de um debate no âmbito público e

acadêmico sobre a existência de um programa de esterilização em massa no Brasil.89

Mariana Damasco, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro argumentam quanto à

“importância da saúde reprodutiva para a constituição de um feminismo negro no país,

89
Esse quadro muda a partir da segunda metade dos anos 1990, com uma mais ampla aceitação do
entendimento de que políticas públicas racializadas deveriam ser o norte para se atingir justiça social, em
contraposição às de perfil universalista” (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 427). Nesse contexto, agências
do Estado brasileiro como o Ipea e o Itamaraty, jornalistas, economistas, acadêmicos e parlamentares se
envolvem na defesa desse tipo de demana social (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 427). A atuação das
intelectuais negras nesses debates em âmbito internacional será abordada no próximo capítulo.

221
entre os anos 1975 a 1993” (DAMASCO et al., 2012, p. 133). Segundo os autores, as

“acusações de que as mulheres negras estariam sendo vítimas de esterilização cirúrgica

em massa durante a década de 1980 com o objetivo de controlar a natalidade desse

grupo populacional” acabaram por tornar-se a “mola propulsora de uma militância

feminista negra no Brasil” (DAMASCO et al., 2012, p. 133-134).

A pauta da saúde e dos direitos reprodutivos, ainda que possa ser pensada como

específica à luta feminista, ou mesmo com ainda mais especificidades enquanto pauta

do movimento de mulheres negras, se integra a um quadro maior quando considerada

dentro do escopo da reprodução social. Isso ocorre ao se propor compreender o

“trabalho de manutenção da vida e de reprodução da próxima geração como parte do

trabalho necessário no interior de todo o processo de reprodução societal” (ARRUZZA,

2017, p. 41).

Considerar isso não significa adotar uma visão biologizante, que atrele as

mulheres à função da reprodução biológica como destino necessário. Significa, sim,

entender que se trata de “um fato central da vida humana, [...] sempre socialmente

organizado” (ARRUZZA, 2017, p. 52), isto é, que ocorre dentro de fronteiras colocadas

pelas relações sociais de classe (em sentido amplo). Segundo Arruzza, “os limites

colocados à reprodução biológica por relações de classe específicas e por uma

organização específica do processo produtivo” (ARRUZZA, 2017, p. 53) são centrais

para compreender a subordinação das mulheres – no caso aqui analisado, em especial

das mulheres negras. Essa subordinação, contudo, não é apenas uma “especificidade”,

mas integra uma organização mais ampla da reprodução social e societal, dizendo

respeito às relações de subordinação mais amplas através das quais se reproduz o

capitalismo em contextos históricos específicos.

222
Cabe destacar ainda que a questão da saúde reprodutiva era uma agenda

particularmente importante para o movimento feminista desde meados dos anos 1970, o

que intensificou-se na década de 1980. Em 1984, é criado o Programa de Assistência

Integral à Saúde da Mulher (PAISM), primeiro programa governamental direcionado

integralmente ao atendimento da saúde feminina, voltado para planejamento familiar e

saúde reprodutiva (DAMASCO et al., 2012, p. 135). O documento que lançou o

programa, segundo folder de divulgação do Ministério da Saúde, “incorporou o ideário

feminista para atenção à saúde, com ênfase em aspectos de saúde reprodutiva, mas com

propostas de ações dirigidas à atenção integral das necessidades prioritárias da

população feminina, significando uma ruptura com o modelo de atenção materno-

infantil até então desenvolvido” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005, s.p.). O Programa

agia no sentido de fornecer acesso para mulheres a informações sobre o funcionamento

de seu corpo, métodos contraceptivos e exames ginecológicos e preventivos

(DAMASCO et al., 2012, p. 134).

Em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM),

que “desempenhou um papel fundamental na luta em torno da saúde e dos direitos

reprodutivos e sexuais das mulheres no país, defendendo “a descriminalização do aborto

em caso de estupro e risco de vida, o direito da mulher optar ou não pela maternidade e

a liberdade sexual” (DAMASCO, 2009, p. 86). Segundo Mariana Damasco, essa pauta

recebeu críticas ferozes de setores conservadores ligados ao Ministério da Justiça, ao

qual o conselho era vinculado, entrando por isso em crise o CNDM na década de 1990.

A temática dos direitos e da saúde sexual e reprodutiva, então, passa a ser discutida

preferencialmente por “ONGs e grupos de mulheres que emergem no contexto nacional

do início da década de 1990” (DAMASCO, 2009, p. 86-87).

223
Na imprensa feminista, a questão da saúde também aparece como

particularmente importante. O tema dos direitos sexuais e reprodutivos, conforme a

pesquisa de Viviane Freitas, aparece como o terceiro mais abordado pelo jornal

Mulherio, o mais duradouro veículo da imprensa feminista nas décadas de 1970 e 1980

no Brasil (FREITAS, 2017, p. 95). Sendo apenas superado por “família” e

“organizações de mulheres” (FREITAS, 2017, p. 100), o tema figura já na edição de

número 0 do jornal de abril de 1981.90 Trata-se de uma nota noticiando a realização do

Terceiro Encontro Internacional Mulheres e Saúde, promovido pelo Serviço

Internacional de Informação e de Comunicação das Mulheres e pelo Dispensário de

Mulheres de Genebra, na cidade de Genebra, de 6 a 8 de junho de 1981. A nota

menciona uma circular enviada a instituições brasileiras, convidando mulheres

interessadas a participarem, além de elencar alguns temas do evento: “as mulheres e o

sistema médico”, “sexualidade”, “medicinas naturais”, “os aspectos políticos da

contracepção e do aborto”.91 A menção ao evento aponta para uma atenção dos

movimentos feministas brasileiros aos debates sobre saúde da mulher no cenário

internacional.

Viviane Freitas faz um panorama da história do Mulherio, afirmando que o

jornal é “um exemplo da mobilização do feminismo acadêmico”, tendo sido fundado no

seio do Coletivo de Mulheres do Departamento de Pesquisas da Fundação Carlos

Chagas (FREITAS, 2017, p. 93). O jornal contou com financiamento da Fundação Ford

até 1988, tendo estado vinculado à Fundação Carlos Chagas até 1983, a partir de

quando passa a ser editado pelo Núcleo de Comunicações Mulherio, constituído na

época. O jornal “não era ligado a nenhum grupo feminista em particular – essa era a

90
Mulherio, março/abril 1981, ano I, n. 0.
91
Ibidem, “Saúde em debate”, p. 2.

224
linha editorial do jornal” (FREITAS, 2017, p. 95). Na primeira página da primeira

edição consta o seguinte:

“A pauta do jornal e seus rumos são definidos pelo nosso Conselho Editorial,
composto por 16 mulheres, que têm batalhado pela melhoria da condição
feminina no Brasil, como profissionais e como militantes [...]. Em sua
primeira reunião, [...] o Conselho decidiu que Mulherio não terá uma posição
pré-estabelecida sobre este ou aquele assunto – seja planejamento familiar ou
tendências no movimento feminista. Pretendemos, sim, debater todos os
problemas que afetam a mulher, abrindo espaço para a discussão ampla das
92
diferentes posições”.

Essa busca por uma pluralidade (e mesmo pela exposição de divergências e

conflitos internos aos movimentos feministas à época) se expressa em um amplo

conselho editorial, com mulheres de diferentes espectros políticos, como Heleieth

Saffioti, Eva Blay, Ruth Cardoso e Lélia Gonzalez – esta última, que conta com uma

coluna sob sua assinatura nos primeiros dois anos de existência do jornal.93

O peso do tema da saúde reprodutiva aparece de maneira menos expressiva no

Nzinga Informativo, veículo editado pelo Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras.

Viviane Freitas, que teve acesso apenas aos primeiros quatro dos 5 volumes publicados

do Nzinga Informativo (assim como foi meu caso), afirma que os principais temas

abordados, segundo sua categorização, foram “comunidade negra”, com mais de 60%

do total de textos, “organizações de mulheres” e “política institucional”, sendo “direitos

sexuais e produtivos” o sexto tema, com 6% do total, e “saúde” o nono, com 2% dos

textos contabilizados pela autora.

Esse quadro, contudo, vai sofrer uma alteração contundente a partir do debate

sobre esterilização em massa de mulheres – em especial de mulheres negras, no Brasil,

92
Ibidem, “Nossa pauta”, p. 1.
93
O conselho editorial do número 0 do Mulherio era composto por: Carmem Barroso, Carmen da Silva,
Cristina Bruschini, Elizabeth Souza Lobo, Eva Blay, Fúlvia Rosemberg, Heleieth Saffioti, Lélia
Gonzalez, Maria Carneiro da Cunha, Maria Moraes, Maria Malta Campos, Maria Rita Kehl, Maria
Valéria Junho Pena, Marília de Andrade, Maria Correa e Ruth Cardoso (Mulherio, op. cit.).

225
que marca a virada da década de 1980 para a de 1990. O debate sobre saúde

reprodutiva, que já era central para o movimento feminista, passa a ser lido de forma

racializada a partir das intervenções das militantes negras.

O tema da saúde – em particular o da saúde reprodutiva – vai figurar no volume

4 do Nzinga Informativo, de 1988; “Esterilização” será tema dos Cadernos CEAP de

1990, editado pelo Grupo de Mulheres do CEAP; “Mulher Negra e saúde” e

“Esterilização: Impunidade ou Regulamentação” serão temas dos Cadernos Geledés

volumes I e II, publicados em 1991. O tema saúde constitui uma das linhas de atuação

do Geledés – Instituto da Mulher Negra, através de seu Programa de Saúde. O tema é

igualmente importante na organização de Criola, constando em Cartilhas e Boletins da

organização e constituindo-se em uma de suas 5 áreas principais de atuação.94

Como veremos, a mobilização do movimento de mulheres negras em torno dessa

questão chegou a resultar em uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) em

1993, “destinada a examinar a ‘incidência de esterilização em massa de mulheres no

Brasil’”95, presidida pela então deputada federal Benedita da Silva, que esteve envolvida

no movimento de mulheres negras desde a fundação do Nzinga, no Rio de Janeiro

(FREITAS, 2017, p. 107). Em agosto do mesmo ano, o Programa de Saúde do Geledés

– Instituto da Mulher Negra realizou o Seminário Nacional Políticas e Direitos

Reprodutivos das Mulheres Negras, “para estimular a participação das mulheres negras

no processo que antecede a Conferência Internacional” de População e

Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida no Cairo em

1994.96

94
Cf. <https://criola.org.br/?onepage=quem-somos>. Acesso em: 11 dez. 2019.
95
CONGRESSO NACIONAL. Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – criada
através de requerimento n. 796/91-CN. Relatório n. 2, Brasília, 1993, p.1.
96
GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres
Negras Brasileiras. [Folheto] 17 p.

226
2.1.1 A questão da esterilização

O tema da saúde reprodutiva das mulheres negras e o debate em torno da prática

de esterilização cirúrgica dessa população pode ser considerado um marco fundador no

movimento de mulheres negras brasileiro a partir da década de 1980. O tema marcou

algumas das primeiras ações de grupos de mulheres no interior de organizações do

movimento negro (DAMASCO, 2009, p. 84) e foi eixo central de organizações

específicas de mulheres negras, como a Criola e o Geledés. Jurema Werneck conta que

sua entrada no CEAP se deu por conta de sua militância na área da saúde, tendo a

questão da esterilização importância central nesse processo. Ela atuava como médica em

favelas do Rio de Janeiro pela Secretaria Municipal de Saúde, quando passa a ter

contato com entidades e grupos de mulheres negras:

“eu faço uma proposta, faço um projeto que era pra trabalhar contra a
esterilização em massa das mulheres negras e proponho para diferentes
organizações aqui do Rio de Janeiro. Aí o programa de mulheres do CEAP
concorda em desenvolver este projeto e me convida para trabalhar lá.”
(WERNECK apud CARDOSO, 2012, p. 216).

O debate relativo à saúde da população negra tornou-se público na década de

1980, particularmente em relação à questão da esterilização. Em 1982, o economista

Benedito Pio da Silva, membro de um Grupo de Assessoria de Participação97 (GAP-

Banespa) do governo Paulo Maluf (1979-1982), produziu um documento intitulado O

Censo de 1980 no Brasil e no Estado de São Paulo e suas curiosidades e preocupações,

distribuído entre os GAPs e tornado público quando o deputado Luiz Carlos Santos, do

PMDB-SP, leu trechos na Assembleia Legislativa de São Paulo:

97
Segundo o verbete biográfico de Paulo Maluf elaborada pelo CPDOC-FGV, os GAPs visavam
“integrar estado e comunidade” *Cf. <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/paulo-salim-maluf >. Acesso em: 11 dez. 2019). De acordo com o Decreto nº 13.431, de
21/03/1979, que instituiu os GAPs, cada um desses grupos vinculava-se a uma instituição ligada ao
estado de São Paulo, tais como GAPs de secretarias, de bancos estaduais, de companhias estaduais, etc.
Disponível em:< https://www.al.sp.gov.br/legislacao/norma.do?id=77406 >. Acesso em: 11 dez. 2019).

227
“A população branca corresponde a 55%, a parda a 38%, a negra a 6% e a
amarela a 1%. De 1970 para 1980 a população branca reduziu-se de 61%
para 55% e a parda aumentou de 29% para 38% [...] Enquanto a população
branca praticamente já se conscientizou da necessidade de controlar a
natalidade, principalmente nas classes médias e altas, a negra e a parda
elevaram seu índices de expansão em 10 anos, de 29% para 38%. Assim,
temos 65 milhões de brancos, 45 milhões de pardos e um milhão de negros.
A manter essa tendência no ano 2000 a população parda e negra será de
ordem de 60%, portanto muito superior à branca, e eleitoralmente poderá
mandar na política e dominar postos chaves. A não ser que façamos como em
Washington, capital dos Estados Unidos, que devido ao fato da população
negra ser da ordem de 63% não há eleições” (SÃO PAULO apud
DAMASCO ET AL. , 2012, p. 137-138).

Segundo os Damasco, Monteiro e Maio, o GAP do qual Benedito Pio da Silva

era membro tinha como objetivo “encontrar mecanismos para impedir que a natalidade

da população parda e negra superasse a dos brancos” (DAMASCO ET AL., 2012, p.

138). Apesar de afirmarem que sua preocupação central era “o aumento da miséria do

país”, o receio dos membros do GAP era “a ascensão dos negros e pardos aos mais

importantes cargos do país”, chegando a cogitar, tendo como inspiração os Estados

Unidos segregacionistas, a extinção das eleições caso a população negra superasse a

branca (DAMASCO et al., 2012, p. 138).98

Outro marco da questão da saúde reprodutiva da população negra na cena

pública foi a divulgação do recém inaugurado Centro de Pesquisa e Assistência em

Reprodução Humana (CEPARH) em Salvador, Bahia, em 1986. A divulgação incluiu

outdoors com imagens de uma criança negra ao lado de um cadáver de uma mulher

negra e os dizeres “Defeito de fabricação”, com o objetivo de convencer a população

baiana da importância do controle de natalidade (DAMASCO ET AL., 2012, p. 139).

Além desses acontecimentos, dados demográficos ligados à saúde reprodutiva e

à questão racial levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)

98
As chamadas Leis Jim Crow, vigentes no Sul dos Estados Unidos até 1965, instituíram normas de
segregação racial que incluíam a cassação dos direitos políticos da população negra, além de proibir
casamentos interraciais, segragar transportes públicos, restaurantes, escolas etc. (SOUSA, 2014).

228
e pelo Núcleo de Estudos de População da Unicamp (NEPO) trouxeram dados que

apoiaram as denúncias das militantes negras sobre “planos e práticas controlistas sobre a

população negra”, afirmando que “havia em curso no Brasil um plano racialista

direcionado a reduzir” essa população (DAMASCO ET AL., 2012, p. 140).99

Mariana Damasco afirma que entre os anos de 1964 e 1974, “a história do

planejamento familiar no Brasil sofre uma inflexão”, estabelecendo-se um cenário em

que duas grandes posições estavam em disputa:

“os ‘antinatalistas’ (setores liberais das forças armadas liderados pela Escola
Superior de Guerra, agências do governo norte-americano [...] e economistas)
e os ‘anticontrolistas’ (militares nacionalistas, Igreja Católica e partidos de
esquerda)” (DAMASCO, 2009, p. 97).

Na análise de Damasco, essa falta de consenso provocada pela divergência entre

antinatalistas e anticontrolistas fez com que o Estado Brasileiro não elaborasse, nos anos

1960 e 1970, políticas públicas de planejamento familiar – o que só foi feito a partir da

criação do PAISM, que se deu em um contexto de declínio do acirramento do debate

antinatalistas versus anticontrolistas (DAMASCO, 2009, p. 100).100 Contudo, nesse

período, estabeleceram-se iniciativas de organismos privados voltados para o controle

populacional, muitos dos quais ligados a entidades internacionais.101 A posição

antinatalista, que chega ao Brasil nos anos 1960, foi influenciada significativamente
99
Alguns dados relevantes nesse sentido foram que, em 1986, mulheres pretas e pardas recorriam à
esterilização cirúrgica aproximadamente 5 anos mais cedo do que as mulheres brancas; no mesmo ano, os
maiores índices de esterilização do país se encontravam nos estados do Maranhão e Pernambuco, onde a
população preta e parda era majoritária. Damasco afirma que os argumentos das mulheres negras se
basearam em dados como esses, defendendo que as mulheres não-brancas eram mais esterilizadas que as
brancs na época (DAMASCO, 2009, p. 115).
100
O arrefecimento do debate tem relação com a mudança de posição de instituições como a Igreja
Católica “que passou a admitir o planejamento familiar através de métodos naturais” (DAMASCO, 2009,
p. 100).
101
É o caso da Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar (BEMFAM), criada em 1966, cujas políticas
baseavam-se no combate ao aborto através do estabelecimento de convênios com servios de saúde
privado e públicos pelo país. Uma das ações da BEMFAM era o financiamento de cirurgias de
esterilização (DAMASCO, 2009, p. 99). O folheto sobre Esterilização produzido pelo grupo de mulheres
do CEAP afirma que “A BEMFAM [...] teve entre seus quadros o sociólogo Gilberto Freyre, criador da
teoria da democracia racial brasileira” (CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES
MARGINALIZADAS, op. cit., p. 11).

229
pelas políticas controlistas empreendidas pelo governo norte-americano. Vale, então,

uma breve análise dessa questão antes de prosseguir no tema.

Peter J. Donaldson (1990) debruçou-se sobre as origens da política de controle

populacional do governo norte-americano, fazendo um histórico da questão com um

olhar atento ao Estado restrito e às motivações dessa política. O autor cita alguns grupos

cuja contribuição para o pensamento sobre população e para a elaboração de programas

de assistência para o exterior. São eles: International Union for the Scientific Study of

Population e United Nations Population Division, “que proporcionou fóruns para a troca

de ideias e informações sobre problemas populacionais internacionais” (DONALDSON,

1990, 385); International Planned Parenthood Federation, que

“fez lobby junto a políticos estrangeiros e americanos para apoiar programas


de planejamento familiar” e; “provavelmente mais importante, um grupo de
fundações americanas incluindo o Milbank Memorial Fund, o Population
Council e as Fundações Ford e Rockefeller, que providenciaram apoio
financeiro para treinamentos voltados para pesquisa e demografia, assim
como para atividades de planejamento familiar em países em
desenvolvimento” (DONALDSON, 1990, p. 385-386).

Em fins dos anos 1950, o interesse no controle populacional dos países em

desenvolvimento tinha relação com o clima anticomunista da Guerra Fria. Segundo

Donaldson, o Comitê Draper, um grupo ligado ao exército e ao governo americanos, se

preocupava com uma possível “ameaça (política, econômica, militar e subversiva) ao

mundo livre por ditaduras comunistas” – ameaça essa “mais forte do que nunca”

(DONALDSON, 1990, p. 387). Não apenas a sombra da URSS, mas a Revolução

Cubana no “quintal” norte-americano informava amplamente essa percepção.

A partir do governo Kennedy, a política controlista para os países em

desenvolvimento se torna uma política de Estado. Foi então que a burocracia estatal

juntou-se aos esforços das fundações e ONGs já ativas nesse campo. Foi também no

230
governo Kennedy que o USAID foi criado (United States Agency for International

Development) (DONALDSON, 1990, p. 389). As justificativa para a intervenção norte-

americana no controle populacional internacional tinha dois argumentos principais: 1) o

de que era vontade das mulheres em todo mundo limitar sua fertilidade; 2) o de que o

crescimento populacional era uma “barreira para a modernização” e o desenvolvimento

social (DONALDSON, 1990, p. 391). No governo Lyndon Johnson, adotou-se o

argumento de que o controle populacional em países pobres era o primeiro passo para a

resolução de escassez de alimentos (DONALDSON, 1990, p. 393). O autor afirma que

administrações subsequentes continuaram a apoiar políticas de controle populacional

(ao menos até o momento de redação do artigo, em 1990) (DONALDSON, 1990, p.

396).

Donaldson afirma que as motivações do governo norte-americano em relação ao

controle populacional nos países em desenvolvimento podem ser aplicáveis para outras

instituições doadoras privadas, como as Fundações Ford e Rockefeller (DONALDSON,

1990, p. 386). Segundo o autor, “um racismo feio” era motivação para uma minoria

daqueles envolvidos com controle populacional. Entre os motivos mais gerais estariam:

a ideia de que o controle populaional contribuía para a estabilidade nacional e

internacional; a preocupação com o impacto do crescimento no desenvolvimento

econômico e na saúde; um esforço dos Estados Unidos em “civilizar o mundo em

desenvolvimento” através da educação para o uso de contraceptivos (DONALDSON,

1990, p. 390).

Donaldson coloca a ideia de preocupação com a estabilidade nacional e

internacional e com o “desenvolvimento” dos países em desenvolvimento como uma

preocupação honesta dos indivíduos e organismos envolvidos em políticas de controle

populacional. Contudo, vale lembrar que o que significa “estabilidade” e

231
“desenvolvimento” para os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria: manutenção do

capitalismo e controle de quaisquer possibilidade de agitação social, principalmente as

que poderiam adquirir caráter antissistêmico.

De acordo com Damasco, a Comissão de Mulheres Negras do Conselho

Estadual da Condição Feminina de São Paulo “reiterava as afirmações de que agências

internacionais como a IPPF e a USAID financiavam as práticas e ações relativas ao

planejamento familiar no Brasil empreendidas por instituições privadas” (DAMASCO,

2009, p. 113). Ambas as instituições são citadas na pesquisa de Donaldson como

centrais nas políticas norte-americanas de controle populacional para os ditos países em

desenvolvimento.

O documento produzido em 1986 pelo Conselho, intitulado “Mulher Negra:

dossiê sobre a discriminação racial”, traz um texto intitulado “Controle da

Natalidade”.102 “Em contraposição às políticas que colocavam as mulheres parideiras

como responsáveis pelo aumento da pobreza”103, o documento defende que a verdadeira

razão para o fenômeno é a concentração de renda.

Além disso, o documento ressalta que a ideia de planejamento familiar, para as

mulheres negras, significava “o controle de sua prole”, pois

“A combinação do binômio pobre e negro tem colocado a população


feminina negra à mercê das políticas controlistas disseminadas por todo o
país. Isto tem levado inúmeras mulheres a verem seu corpo controlado pelo
Estado, através de farta distribuição de pílulas anticoncepcionais,
laqueaduras, anticoncepcionais injetávies etc., às vezes proibidos no país de
origem, sem propiciar acesso às informações dos fenômenos causados por
estes contraceptivos e sem um acompanhamento sistemático devido às
precárias condições de atendimento à sua saúde.”104

102
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP). Mulher negra: dossiê sobre a
discriminação racial. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, dez. 1986. A “Comissão para assuntos
da mulher negra” responsável pela produção do documento era composta por: Conceição Mendes de
Alemeida, Deise Benedito, Elza Maria de Jesus, Ilma Fátima de Jesus, Maria Lucia da Silva, Marly de
Sousa Correa, Solimar Carneiro, Sueli Carneiro, Vera Lucia Benedito.
103
Ibidem, p. 14.
104
Ibidem.

232
É ressaltado ainda que o aspecto da falta de informação, associado à falta de

“condições mínimas de subsistência” e de “trabalho digno”, são elementos que

inviabilizam “a mulher poder escolher o que melhor lhe convém” em relação à

natalidade e ao seu próprio corpo.105 Como observou Damasco, a influência de

instituições privadas, financiadas por entidades internacionais, é destacada no

documento, que cita que

“o controle da natalidade, além de ser uma imposição do imperialismo, é


manobra sub-reptícia do racismo e constitui discriminação universal do
racismo, isto é, do patriarcado industrial e científico contra a mulher,
especialmente as do Terceiro Mundo e no Brasil, contra as nordestinas
particularmente... O Brasil hoje é um dos alvos principais do imperialismo
racista e antinatalista, que pretende repetir em nosso país campanhas
desencadeadas no Quência, na Uganda, Tanzânia, Rodésia, Nigéria, Gana,
Zâmbia, Libéria, Tunísia, Botsuana, Lesoto [...] e outros países
subdesenvolvidos”.106

O documento ressalta a importância do PAISM na questão da natalidade, mas

afirma que “isto não elimina a necessidade de uma vigilância constante sobre as

atividades desenvolvidas, uma vez que a clientela que demanda os serviços é formada,

basicamente, por mulheres não-brancas e pobres”.107

A virada da década de 1980 para a de 1990 continuou tendo a questão da

esterilização cirúrgica como pauta central no movimento de mulheres negras. Evidência

disso é que o grupo de mulheres do CEAP publicou, em 1990, um documento exclusivo

para tratar da questão: “Esterilização: do controle da natalidade ao genocídio do povo

negro!”.108 A linguagem desse folheto é mais didática e acessível do que o documento

produzido pelo CECF-SP, e parece ter como objetivo informar um público mais geral

105
Ibidem.
106
ASSIS PACHECO apud CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op.
cit., p. 14.
107
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op. cit., p. 17.
108
CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES MARGINALIZADAS. op. cit., 1990.

233
sobre o problema da esterilização. Um dos primeiros tópicos do folheto tem o título “O

que é esterilização?” e explica que

“Quando realizada na mulher, a esterilização é chamada de ligação de


trompas, amarração, ligadura ou laqueadura tubária e impede o encontro do
óvulo com o espermatozóide dentro da trompa, impedindo, assim, a
109
fecundação e a gravidez”.

Após advertir que “pouco se conhece ainda hoje as alterações produzidas pela

esterilização no organismo da mulher”, o folheto argumenta que “Esterilização não é

método anticoncepcional”, pois este tipo de método consiste em “diversas maneiras de

se evitar a gravidez, sem, no entanto, acabar com a capacidade de procriar”.110

O tópico “ESTERILIZAÇÃO E PRECONCEITO” traz os itens “O papel da

ideologia machista”, “O papel do preconceito de classe” e “O Racismo”, sustentando

uma perspectiva de que as mulheres negras são “triplamente discriminadas: por serem

negras, por serem pobres, por serem mulheres”.111

Assim como no material produzido pelo CECF-SP, o peso da desinformação das

mulheres em relação à questão da saúde reprodutiva é sublinhado também pelo folheto

do CEAP, que afirma que a mulher desinformada é muitas vezes utilizada “enquanto

cobaia ou ‘alvo’ de ações controlistas”.112 O folheto põe em causa a questão da “opção

consciente” feita pelas mulheres que aceitam a esterilização cirúrgica, levantando

questões como: “É possível afirmar que mulheres de 15, 18, 20 anos, esterilizadas

porque não dispunham de alternativas para a regulação da fertilidade, exerceram algum

direito?”.113

O folheto faz uma distinção entre planejamento familiar e controle de natalidade:

109
Ibidem, p. 5.
110
Ibidem.
111
Ibidem, p; 8-10.
112
Ibidem, p. 8.
113
Ibidem, p. 14.

234
“Diferentemente do planejamento familiar, que reconhece o direito da
mulher, do casal, ou da família em decidir quantos filhos quer ter, o controle
da natalidade é uma política que decide diminuir ou controlar os nascimentos
numa determinada população, sem levar em consideração a vontade destas
pessoas.
Assim, o controle da natalidade tem sido usado de forma a limitar o
nascimento de crianças nas classes dominadas de modo a mantê-las dentro de
limites apenas necessários à manutenção e reprodução do sistema
114
capitalista”.

Ainda no tópico sobre “o papel do preconceito de classe”, é destacado o papel de

entidades “interessadas neste controle, tanto nacionais, como, principalmente,

internacionais”.115 Segundo Damasco, Monteiro e Maio, “na década de 1990, [...] havia

uma ideia dominante acerca da existência de um interesse internacional, em especial dos

Estados Unidos, de controlar a natalidade de populações de países menos

desenvolvidos” (DAMASCO ET AL., 2012, p. 142).

Quando aborda o racismo, o folheto recupera políticas de embranquecimento da

população brasileira “desde a guerra do Paraguai, onde milhares de negros foram

enviados à morte nas frentes de batalha”.116 A argumentação procura estabelecer uma

ligação entre o Estado e a política de esterilização, a despeito de grande parte das

iniciativas de planejamento familiar e controle de natalidade tenham se dado a partir de

organismos privados, como estabelecido anteriormente. Após sublinhar que “grande

parte das esterilizações é paga pelo Estado”, o folheto cita que “técnicos do IBGE

afirmaram: ‘Somos assim levados a interpretar que há, até certo ponto, uma política

implícita por parte do Governo através de suas instituições públicas de saúde, de utilizar

a esterilização como método mais radical para limitar o número de filhos, em especial

114
Ibidem, p. 9.
115
Ibidem.
116
Ibidem, p. 10.

235
naquelas áreas onde os níveis de fecundidade ainda se encontram em patamares

relativamente elevados”.117

Essa consideração é seguida pelo item “GENOCÍDIO”, que estabelece uma

relação entre as políticas de esterilização, “escândalo nacional”, que impedem

“nascimentos de novas crianças negras e mestiças” como um elemento dentro de uma

política estatal de genocídio da população negra, ao lado do desemprego sistemático,

violência policial e violência obstétrica.118 Embora a forma como essa relação se dá não

seja explicada de modo explícito, o texto do folheto se encerra com as seguintes frases:

“NEGROS E MESTIÇOS!
É PRECISO DENUNCIAR O GENOCÍDIO!
É PRECISO ACABAR COM A ESTERILIZAÇÃO EM MASSA DE
MULHERES NEGRAS E MESTIÇAS NO BRASIL!!”119

A denúncia do genocídio da população negra é um elemento importante para o

movimento negro no Brasil, decorrendo também em importantes pesquisas acadêmicas

(FEFFERMANN et al, 2018). Se na atualidade a denúncia se tem focado no genocídio

da juventude negra (GOIZ, 2016), na fase chamada “contemporânea” – entre 1978 e

2000 (DOMINGUES, 2007; PEREIRA, 2013) – o sentido de “genocídio” variou

internamente. Petrônio Domingues afirma que esse discurso esteve ligado a setores do

movimento que defendia casamentos endogâmicos e a constituição de famílias negras.

O homem negro teria que, inexoravelmente, casar-se com a mulher do mesmo

grupo racial e vice-versa. Por essa concepção, os casamentos interraciais produziam o

fenômeno da mestiçagem que, por sua vez, redundariam, a longo prazo, em etnocídio. O

discurso nacional pró-mestiçagem era, assim, concebido como uma estratégia da classe

117
Ibidem, p. 11. Esse trecho faz referência a OLIVEIRA, Luiz Antonio P.; SIMÕES, Celso Cardoso da
S. As informações sobre a Fecundidade, Mortalidade e Anticoncepção nas PNADS. IBGE, 1989.
118
CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES MARGINALIZADAS, op. cit., p. 11-12.
119
Idem, Ibidem, p. 16.

236
dominante para provocar o ‘genocídio’ do negro no país” (DOMINGUES, 2007, p.

117).

Na leitura de Domingues, é nesse sentido que o célebre intelectual negro Abdias

do Nascimento (2016) entendia a questão do genocídio. A visão do movimento de

mulheres negras, conforme as análises aqui realizadas, guardam pouca relação com essa

visão, questão exemplificada no primeiro volume dos Cadernos Geledés, com o tema

“Mulher Negra e Saúde”, publicado em 1991, que será analisado a seguir.120

Segundo o próprio documento, “é a primeira publicação editada no Brasil

dedicada inteiramente às questões de saúde da mulher negra” e “trata-se de uma

primeira tentativa de sistematizar o nosso entendimento do que deve ser um programa

de saúde voltado para as mulheres negras”.121

Fazendo um panorama bastante abrangente sobre saúde das mulheres negras,

baseados em fontes bibliográficas diversas, os Cadernos trazem um ponto não abordado

anteriormente nos documentos que trataram da questão da saúde reprodutiva das

mulheres negras: o fato de que a fecundidade dessas mulheres caiu acentuadamente nos

anos 1980 seria explicado por “autores conservadores” através da relação entre

esterilidade e “prevalência de doenças sexualmente transmissíveis que não foram

adequadamente tratadas”. Segundo o texto dos Cadernos, essa

“explicação é bastante confortável para aqueles que desejam ratificar o mito


da mulher negra como portadora de uma sexualidade animal, na medida em
que essas doenças seriam decorrentes de uma maior promiscuidade das
mulheres pretas”.122

O segundo volume dos Cadernos Geledés, lançado ainda em 1991, debruça-se

exclusivamente sobre a questão da Esterilização, trazendo no tema dos Cadernos o


120
GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Cadernos Geledés – Mulher Negra e Saúde.
Caderno I. São Paulo, 1991.
121
Ibidem, p. 7.
122
Ibidem, p. 13.

237
subtítulo: “Impunidade ou Regulamentação?”.123 Os Cadernos trazem a reprodução de

diversos documentos tocantes à questão no cenário político nacional, além do texto

“Esterilização Feminina no Brasil”, de Elza Berquó.

O documento afirma que “o Movimento Negro no Brasil tem uma posição

histórica de denúncia das políticas controlistas da natalidade que se desenvolveram no

país através de instituições privadas como a BEMFAM e o CEAPIMC, a despeito da

ausência de uma política oficial por parte do governo”.124

O Geledés propõe, nesse volume dos Cadernos, as seguintes causas para o

“quadro abusivo de esterilização das mulheres no Brasil”:

1. Interesses internacionais de redução da população dos países pobres [...]


e que atuam através de instituições internacionais e privada (sic).
2. Conivência dos governos com essas instituições internacionais e privadas
[...], enquanto oficialmente se mantinha a nível federal uma atitude de
avestruz diante da demanda da população por métodos
anticoncepcionais.
3. Mudanças no papel da mulher decorrentes do processo de urbanização,
que fazem com que as mulheres não tenham mais condições e não
desejem mais famílias tão numerosas quanto no passado.
4. Omissão do sistema público de saúde, que não oferece alternativas
seguras e eficazes que permitam às mulheres o controle de sua natalidade
[...].
5. Existência de um clima cultural, principalmente nas grandes cidades, que
considera ‘anormal’ uma prole grande e a laqueadura como o destino
‘natural’ a que todas as mulheres deverão chegar inevitavelmente.
6. Tecnização cada vez maior da medicina, que difunde na sociedade uma
desvalorização dos processos naturais de vida e reprodução, bem como
dos métodos contraceptivos mais simples, e privilegia interferências
tecnológicas, ocultando os riscos e sequelas produzidas.125

O texto considera que “há consenso geral em todos os setores do movimento

social organizado com relação à necessidade de se dar um basta a esta situação”,

defendendo “a necessidade de mecanismos de controle” sobre a esterilização, como a

criação de uma lei federal específica que regulamente a prática, elaborada com

123
GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Cadernos Geledés – Esterilização: Impunidade ou
Regulamentação? Caderno II. São Paulo, 1991.
124
Ibidem, p. 9.
125
Ibidem, p. 11-12.

238
participação de “setores organizados da Sociedade Civil”.126 Apesar do “consenso” que

observado nos movimentos sociais, o texto revela que há divergências quanto à questão

da regulamentação legal: “Para alguns setores do Movimento Negro, as propostas de

regulamentação da esterilização [...] colocam o risco da possibilidade de legalização da

esterilização massiva das mulheres”.127 Sobre esse ponto, Mariana Damasco afirma que

houve uma divergência entre mulheres e homens do movimento negro em relação à

questão da saúde reprodutiva:

“O embate mais significativo envolveu militantes do movimento negro e as


participantes do programa de Saúde do Geledés. Os primeiros condenavam
totalmente a prática da esterilização cirúrgica nas mulheres negras. Tais
ativistas chegavam até mesmo a declarar que gerar filhos seria uma tarefa
política das mulheres negras. Em contraposição a essa visão, estava o
Geledés e algumas militantes do MNU de Belo Horizonte, que afirmavam
que a questão dos direitos reprodutivos deveria ser analisada e discutida com
mais cautela, levando-se em consideração as necessidades e desejos das
mulheres negras. Assim, uma das metas do Programa de Saúde do Geledés
era a regulamentação da prática da esterilização cirúrgica para que esta não
fosse exercida sem controle e de forma abusiva” (DAMASCO, 2009, p. 66).

Pode-se inferir, a partir disso, que o sentido com que as mulheres do movimento

negro denunciavam um “genocídio” negro diverge do sentido com que alguns homens

negros abordavam a questão: para elas, era preciso garantir informação para a

possibilidade de escolha da mulher negra quanto à sua fertilidade, sendo contra a

imposição de uma negação violenta desta.

Nesse sentido, o Geledés defendia que há circunstâncias em que a esterilização

pode ser admitada: “situações em que há condições clínicas que indicam a realização da

esterilização pois a gravidez colocaria em risco a vida das mulheres”;

“como um último recurso, quando todos os outros métodos contraceptivos


considerados seguros para a saúde da mulher já foram usados corretamente

126
Ibidem, p. 12.
127
Ibidem, p. 13.

239
[...] e a mulher está segura de que mesmo que mudem suas condições de vida
[...] nunca mais desejará ter filhos”.128

Em 1993, o Geledés organizou o Seminário Nacional de Políticas e Direitos

Reprodutivos das Mulheres Negras, que ocorreu entre 20 e 22 de agosto em Itapecerica

da Serra, São Paulo. O Seminário tinha como objetivo elaborar um documento que

expressasse a visão do movimento de mulheres negras quanto à questão dos direitos

reprodutivos, “tendo em vista a participação das militantes na Conferência Internacional

sobre População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994”. O Seminário gerou a

Declaração de Itapecerica da Serra, elaborada pelo Programa de Saúde do Geledés com

apoio financeiro da Fundação MacArthur e International Women’s Health Coalition

(DAMASCO ET AL., 2012, 142).

O ano de 1993 também foi marcado, no âmbito do debate sobre saúde

reprodutiva e esterilização, pela criação de uma Comissão Parlamentar Mista de

Inquérito (CPMI) para investigar a incidência da esterilização em massa de mulheres no

Brasil. Com requerimento apresentado por Benedita da Silva e Eduardo Suplicy, essa

CPMI “pretendeu averiguar se a prática da esterilização cirúrgica se configurava como

uma política eugênica direcionada à população negra no país (DAMASCO ET AL.,

2012, p. 143-144). De acordo com Damasco, Monteiro e Maio:

“O governo federal já tinha criado anteriormente duas CPIs com o intuito de


verificar a prática da esterilização cirúrgica no país, uma em 1967 e a outra
em 1983. Entretanto, as duas CPIs não tiveram êxito, já que a primeira não
foi concluída [...], enquanto a segunda produziu ao final das investigações um
relatório fraudulento, copiado quase que integralmente de um documento da
Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar (BEMFAM)” (DAMASCO ET AL.,
2012, p.143).

NA CPMI, Jurema Werneck, Edna Roland e Luiza Bairros afirmaram que “o

governo brasileiro não promovia informações suficientes sobre a população negra no

128
Ibidem, p. 18.

240
país”, além de apontar “a ausência de dados estatísticos confiáveis sobre a prática da

esterilização nas mulheres negras”, tendo havido “um erro quantitativo no PNAD [de

1986] pelo fato de o documento não ter incluído nas estatísticas oficiais a esterilização

involuntária, relacionada à presença de doenças que interferem diretamente na saúde

reprodutiva da mulher, como hipertensão arterial, câncer de colo do útero e miomas

uterinos” (DAMASCO ET AL., 2012, p. 145).

Os membros da CPMI que não integravam movimentos negros ou de mulheres

negras “não confirmaram a tese defendida [...] de que a esterilização cirúrgica foi

direcionada às mulheres negras na década de 1980 com o objetivo de controlar a

natalidade desse grupo populacional no Brasil”, mas “concordaram com o fato de que

não havia até aquele período estatísticas oficiais satisfatórias que desagregassem por

raça os aspectos relacionados à saúde da população brasileira” (DAMASCO ET AL.,

2012, p. 146).

Em consonância com a proposta do movimento de mulheres negras, conforme

expresso nos documentos analisados até aqui,

“as discussões promovidas pela CPMI levaram à proposta de criação de um


projeto de lei específico para normatizar e conter o uso abusivo da
esterilização cirúrgica no Brasil. Esse projeto serviu de base para a Lei do
Planejamento Familiar n. 9.263, criada em janeiro de 1996, durante o
governo de Fernando Henrique Cardoso, que estabeleceu que a esterilização
cirúrgica só pode ser realizada em mulheres com idade mínima de 25 anos ou
que tiverem pelo menos dois filhos” (DAMASCO ET AL., 2012, p. 147)

Na análise de Damasco et al., embora a CPMI não tenha constatado a existência

de políticas oficiais voltadas para o controle de natalidade da população negra no país,

“ela representou um passo importante na afirmação da identidade das


ativistas negras na medida em que abriu espaço, na esfera parlamentar e
governamental, para averiguação das denúncias suscitadas pelas militantes,
gerando maior visibilidade do feminismo negro” (DAMASCO ET AL., 2012,
p. 147).

241
2.2 Trabalho

Visto que uma discussão sobre mulheres negras enquanto trabalhadoras foi

desenvolvida nos capítulos anteriores, o objetivo deste tópico é analisar de que maneira

demandas sobre trabalho apareceram em fontes ligadas a organizações de mulheres

negras nos anos 1980 e 1990. Para tanto, sigo utilizando fontes como documentos

produzidos por grupos de mulheres negras e jornais de movimentos sociais do período.

O primeiro tema tratado no documento “Mulher Negra: dossiê sobre a

discriminação racial”, editado pela Comissão para assuntos da Mulher Negra do CECF-

SP, é o trabalho. Antes de tabelas, dados e estatísticas, o primeiro elemento que aparece

no alto da página é um anúncio de emprego, em que se lê:

“Secretária p/ diretoria
C/ boa aparência, alta, branca, solteira de 20 a 29 anos, datilografia IBM, c/
conhecimento em inglês, redação própria em Português, excelente salário.
Comparecer x/ Curriculum e foto, Av. Senador Feijó, 144 Santos. (X13.
(Anúncio publicado no jornal “A TRIBUNA”, de Santos, no dia 13 de abril
129
de 1986)”

Em seguida, o texto recupera a pesquisa de Oracy Nogueira que trata da questão

do racismo entre os empregadores que anunciavam vagas de trabalho em jornais.130 A

mesma pesquisa foi revisitada por Caetana Damasceno (2000), que faz uma história dos

estudos sobre o uso da expressão “boa aparência” em anúncios de trabalho no Brasil –

questão que aparece em diversos textos produzidos por mulheres negras discutindo

129
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op. cit., p. 4.
130
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco. São Paulo: T.A. Queiroz, 1941.

242
mercado de trabalho.131 Além de Nogueira, Carlos Hasenbalg também abordou o tema.

O autor identificou entre 1968 e 1977 três anúncios de trabalho em que o anunciante

exige pessoas “branca” ou “clara” (DAMASCENO, 2000, p. 170). Se três anúncios em

9 anos pode parecer um número baixo, o autor lembra que, no período analisado, “já se

empregava com muita frequência o ‘irreprochável eufemismo ‘exige-se boa aparência’”

(HASENBALG apud DAMASCENO, 2000, p. 170-171), diante do que se torna notável

que ainda existam anúncios que façam exigências explícitas em termos de raça.

Damasceno explica o argumento de Hasenbalg de que “a frequente utilização da ‘boa

aparência’ nos anúncios contemporâneos é uma demonstração do grau de

aperfeiçoamento a ‘democracia racial’” (DAMASCENO, 2000, p. 171). Indo além

desse argumento, a autora propõe uma nova leitura da questão:

“antes de ser um aperfeiçoamento da ‘democracia racial’, no sentido de uma


camuflagem do racismo, a ‘boa aparência’ talvez seja o modo de expressão
mais convencional desse racismo. Cedo aprende-se [...] a interpretar a ‘boa
aparência’ e os modos possíveis de se haver com ela para conseguir manter
um lugar de trabalho” (DAMASCENO, 2000, p. 171).

Damasceno retoma pesquisas sobre o peso da “boa aparência” em cargos

administrativos, em que pessoas negras tendem a não ser contratadas “sob a alegação de

que a imagem de sua empresa seria comprometida” (TELES apud DAMASCENO,

2000, p. 172). Traz também a leitura de um observador estrangeiro, Robert Eccles, que

notou, em trabalho de 1991, que “a expressão ‘boa aparência’ é amplamente entendida

no Brasil como ‘só para brancos’ e pode ser encontrada entre as qualificações para

emprego nos anúncios classificados de qualquer jornal” (ECCLES apud

DAMASCENO, 2000, p. 173). Embora as pesquisas de Oracy Nogueira se refiram às

décadas de 1940 e 1950, vê-se que, ainda nos anos 1970 e 1980, a exigência de “boa

131
Um exemplo é o texto de Sueli Carneiro no jornal Mulherio, n. 21, que será abordado mais adiante
nesse item.

243
aparência” se apresenta como um entrave para a população negra, mas em especial para

mulheres negras trabalhadoras.

O texto do documento do CECF-SP não traz propostas específicas para a pauta

do trabalho, mas faz um panorama da situação das mulheres negras como trabalhadoras

em áreas diversas lançando mão de estatísticas e depoimentos para tal. Abordei alguns

desses dados nos capítulos anteriores, mas retomo rapidamente alguns pontos aqui. O

trabalho de Celma Vieira (1987) apontou para o fato de que, em meados da década de

1980, a grande maioria dos associados à Associação Profissional dos Empregados

Domésticos do Rio de Janeiro eram mulheres negras. No entanto, a discriminação racial

era secundarizada por elas, que tomavam os problemas enfrentados como resultado da

discriminação contra a profissão de empregadas domésticas. É interessante notar que o

documento do CECF-SP vai na contramão dessa análise, centrando a análise do tema

“trabalho” na questão da discriminação racial, inclusive no que se refere ao emprego

doméstico.

A forma como o tema sobre discriminação racial no trabalho é tratada tem

interseção significativa com a questão da construção da subjetividade e das

representações das mulheres negras, da qual tratarei no próximo item. Após um trecho

em que se questiona a criação do elevador “social” e a imposição de que as empregadas

domésticas entrem “pela garagem dos prédios”, o texto do documento do CECF-SP traz

um anúncio de uniformes de empregada, precedido pelo seguinte: “Além da questão

fundamental que é a não-regulamentação trabalhista, a empregada doméstica está sujeita

a humilhações do tipo:”132

132
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op. cit., p. 9.

244
Figura 1 - Propaganda da empresa Safira

O texto segue:

“Este anúncio nos leva a pensar que a única aspiração (meta) da mulher
negra, em especial aquelas que são empregadas domésticas, é uma roupa de
passista e quatro dias de folia. É misturado – propositadamente – o prazer
lúdico do Carnaval com aspirações e expectativas profissionais, educacionais,
133
culturais, etc., que ela venha a ter”.

Esse trecho remete à reflexão de Lélia Gonzalez no texto “Racismo e Sexismo

na cultura brasileira” em que ela afirma que os termos mulata e doméstica são

atribuições de um mesmo sujeito” (GONZALEZ, 2018h [1980], p. 196) – questão

discutida no primeiro capítulo desta tese. Lélia destrincha de modo instigante a palavra

“mucama” como representação desse sujeito ambíguo: de um lado, a mulata do

carnaval, sexualizada e adorada, e, de outro, a empregada doméstica, a “servente”. Essa

ambiguidade está encarnada no anúncio de uniformes da Safira, reproduzido pelo

133
Ibidem, p. 10.

245
documento do CECF-SP, com o agravante de que a figura da mulata é explicitamente

apontada como o horizonte máximo da doméstica. Ainda por cima, o verniz senhorial e

paternal da propaganda é sentido na “benevolência” que ela convida o patrão a ter pela

“pobre” empregada: sendo seu horizonte de expectativa tão simplório, compadecer-se

dando-lhes um “uniforme bonito” é uma forma de fazer um agrado a sua pobre

existência. Assim, acena-se para a ilusão do carnaval ao mesmo tempo em que se

delimita o “verdadeiro” lugar da mulher negra – estático, fixo – no imaginário

patronal/senhorial: o de doméstica.

O desenvolvimento de demandas em relação ao trabalho dialoga, também, com

as pautas defendidas pelo movimento feminista hegemônico ou “branco”. Para

complementar as discussões estabelecidas sobre a classe trabalhadora e as trabalhadoras

negras nos anos 1970 e 1980, o artigo de Márcia Lima (1995), que relaciona educação e

inserção no mercado de trabalho considerando gênero e raça é muito útil. Analisando

dados estatísticos de 1980 e 1990, a autora observa que já nesse período as mulheres

começavam a superar os homens em relação a taxas de escolarização, ainda que sua

participação no ensino superior se concentrasse “em cursos tipicamente femininos, de

status inferior e menos valorizados no mercado de trabalho” (LIMA, 1995, p. 489-490).

Esse aumento de escolarização foi acompanhado por um aumento da participação

feminina no mercado de trabalho, “proporcionado pela industrialização” e pela

necessidade de complementação da renda familiar devido à deteriorização dos salários

dos trabalhadores brasileiros desde a década de 1970 (LIMA, 1995, p. 491). A autora

observa, contudo, que essas mudanças são marcadas por especificidades para o grupo

feminino negro, concluindo que:

“O fato de 48% das mulheres pretas e 30,5% das mulheres pardas estarem no
serviço doméstico é sinal de que a expansão do mercado de trabalho para
essas mulheres não significou ganhos significativos. E quando esta barreira

246
social é rompida, ou seja, quando as mulheres negras conseguem investir em
educação numa tentativa de mobilidade social, elas se dirigem para empregos
com menores rendimentos e menos reconhecidos no mercado de trabalho.”
(LIMA, 1995, p. 495)

O artigo de Lima demarca com clareza as especificidades da situação das

mulheres negras em relação à inserção no mercado de trabalho, delimitando-as

comparativamente com mulheres brancas e homens negros. Com uma situação

quantitativa e qualitativamente específica, as reivindicações políticas sobre trabalho das

mulheres negras precisaram se caracterizar por especificidades. Nesse sentido, vale

recuperar o trecho do texto “Enegrecer o feminismo”, de Sueli Carneiro, em que ela diz:

“Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante


séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras,
quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as
feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!”
(CARNEIRO, 2011, p. 1).

Nesse sentido, as demandas do movimento feminista por entrada no mercado de

trabalho e equiparação salarial de modo algum era as preocupações centrais das

intelectuais negras. Isso fica nítido no texto de Dulce Pereira Cardoso no jornal

Mulherio n. 14, que faz um apanhado de algumas demandas principais do movimento

de mulheres negras, analisando as formas como a “ideologia machista, classista e racista

que nos impõe o capital branco europeu” atinge as vidas das mulheres negras.134

Especificamente sobre a pauta do trabalho, ela diz:

“enquanto a maioria das trabalhadoras ainda está, como as empregadas


domésticas, trabalhadoras rurais e mesmo trabalhadoras urbanas, às voltas
com com a regulamentação e fiscalização da sua situação profissional (quase
metade da população trabalhadora paulista, grande parte mulheres, não tem
registro profissional), os movimentos feministas estão atentos principalmente
à questão da equiparação salarial, sem se aperceber das nuanças das formas
de exploração das mulheres, como se fosse possível lutar por salários iguais

134
CARDOSO, Dulce Pereira. Mulher Negra: e nós, aonde vamos? Mulherio, ano III, n. 14, p. 8-9,
jul./ago. 1983.

247
sem a conquista, em sua integridade, do estatuto de membros da classe
135
trabalhadora.”

É bastante interessante a colocação de Dulce Cardoso sobre como ainda falta às

mulheres negras e muitas outras trabalhadoras brasileiras conquistar integralmente o

estatuto de membro da classe trabalhadora, principalmente no sentido de estar protegido

por garantias legais, através de fiscalização e regulamentação profissional. Observou-se,

no capítulo anterior, que a população negra, nos anos 1980 e 1990, ocupava faixa

significativa dos postos de trabalho terceirizados e da prestação de serviços,

(CARNEIRO, 2019; PASSOS; NOGUEIRA, 2018), destacando-se a crescente

desregulamentação desses setores (MATTOS; TERRA, 2017, p. 198).

Enquanto Gonzalez propunha a noção de que a população negra compunha uma

“massa marginal” de trabalhadores, minha análise, baseada em autores da teoria

marxista da dependência e Marcel Van der Linden, apontou para a presença de “formas

intermediárias” de trabalho (VAN DER LINDEN, 2013), para além do trabalhador

formal assalariado, que integram a dinâmica do capital sem, contudo, estar “integrado”

ao mercado formal, em termos de direitos e garantias trabalhistas.

No Mulherio n. 21, de 1984, Sueli Carneiro escreve um texto instigante

intitulado “Trazer a negritude ao novo feminismo”, no qual trata da necessidade de

reivindicar pautas práticas ligadas ao mundo do trabalho.136 Ela afirma que

“É preciso haver um esforço conjunto dos vários setores progressistas de


nossa sociedade para que a questão da discriminação no mercado de trabalho
seja enfrentada. Criar leis efetivas e mecanismos de controle para que ela seja
punida. Porque a discriminação deixa a mulher negra num círculo vicioso de
subalternidade. Eis como atuam os mecanismos discriminatórios: o grupo
branco reserva para si os melhores lugares do mercado; as funções
secundárias, reserva para seus subalternos. Então temos homens brancos

135
Ibidem, p. 8.
136
CARNEIRO, Sueli. Trazer a negritude ao novo feminismo. Mulherio, ano V, n. 21, p. 17,
abr./mai./jun. 1985.

248
como executivos e mulheres brancas como suas secretárias. As sobras são
dadas para o homem negro, e só depois entra a mulher negra.”.137

Sueli Carneiro evoca uma hierarquia social muito rígida (homem branco >

mulher branca> homem negro> mulher negra), visão que pode ser complexificada com

os elementos de análise que propus principalmente no primeiro capítulo da tese, como a

noção de classe social como unidade no diverso. Ainda assim, sua visão condiz com as

estatísticas que exibiam as mulheres negras nas situações de maior precarização de

trabalho desde os anos 1970.138 As reflexões de Abigail Bakan (2016) sobre exploração,

alienação e opressão intraclasse trabalhadora ajudam a entender esse quadro, assim

como as colocações de Gonzalez sobre o fato de que os trabalhadores brancos

receberiam os “dividendos do racismo” (GONZALEZ, 2018b [1979], p. 78). Essa

“hierarquia” de que fala Sueli Carneiro no texto para o Mulherio é a expressão de uma

operação alienante do capitalismo, que usa as estruturas do racismo e do

(hetero)sexismo para apresentar como “privilégios” de alguns grupos intraclasse aquilo

que, na realidade, eram direitos (BAKAN, 2016, p. 59-60) – como é o caso da questão

da regulamentação e da fiscalização do trabalho, abordada por Dulce Cardoso no

Mulherio n. 14.

2.3 Subjetividade

Falar sobre o tema “subjetividade” trata-se de uma tentativa de englobar diversas

questões, complexas e delicadas, que fazem parte da reflexão política do movimento de

mulheres negras. São questões como as representações sociais estereotípicas feitas sobre

essas mulheres e suas implicações no campo afetivo, sexual, na sua autoimagem e nas

137
Ibidem, p. 17.
138
Esse recorte temporal se dá por efeito do recorte mais amplo desta pesquisa, não querendo implicar
que a situação das mulheres negras fosse mais vantajosa em períodos anteriores.

249
experiências vividas por elas. Tais aspectos aparecem nos mais diversos tipos de fonte –

depoimentos, reflexões acadêmicas, obras artísticas –, inclusive figurando

transversalmente nos temas tratados nos itens anteriores deste capítulo. Longe de

pretender esgotar o assunto, vastíssimo, a intenção aqui é delinear aspectos centrais

sobre construção de subjetividade e representações sociais na medida em que tornam-se

pautas políticas do movimento de mulheres negras que toma forma a partir de fins dos

anos 1970. Vale ressaltar que muito do que será tratado aqui dialoga com discussões

feitas no capítulo I desta tese, quando se abordou o pensamento feminista negro e a

ideia de articulação.

É importante sublinhar que, quando se fala de subjetividade aqui, trata-se de

uma questão que tem implicações bastante materiais. Não é por tratar de representações,

imagens e sentimentos que adentramos o campo etéreo do idealismo abstrato. A

construção de subjetividades humanas deve ser considerada como um processo

concreto, como parte da realidade social. Na visão do próprio Marx, a realidade precisa

ser compreendida “na condição de atividade humana sensível, de práxis, [...]

subjetivamente” (MARX; ENGELS, 2007, p. 27). A proposta, nesta análise, conforme

Marx, é integrar a análise da vida material e da subjetividade. Ao tratar de

subjetividades de mulheres negras, considerar os impactos materiais do capitalismo

racista e (hetero)sexista sobre a construção dessas é exigência mínima para uma análise

adequada.

O primeiro número do Nzinga Informativo, nas páginas dedicadas à apresentação

do veículo e de seus objetivos, traz um trecho sobre “A mulher negra e suas

especificidades”:

“Aceitas apenas como ‘instrumento’ de trabalho (empregadas domésticas,


serventes, babás, faxineiras, etc.) ou ‘instrumento’ de prazer (‘as mulatas que

250
não estão no mapa’), que são utilizadas para saciar os apetites, recalques e as
taras sexuais masculinas.

Faz-se necessário que a Mulher Negra entenda que a opressão racial e sexual,
fazem parte de um contexto maior que é a opressão social. Daí, acreditamos
que a compreensão das questões fundamentais do racismo e do sexismo,
levarão a MULHER NEGRA a um mais fácil entendimento dos problemas
sociais mais amplos”.139

No primeiro parágrafo citado, é possível observar mais uma vez a díade evocada

por Lélia Gonzalez, a mulata/doméstica, aspectos de um mesmo ser, conforme a

representação social das mulheres negras no Brasil (GONZALEZ, 2018h [1980], p.

196). No segundo, o texto apresenta um elemento propositivo: a necessidade de que as

mulheres negras descortinem as opressões que sofrem, percebendo-as de maneira

integrada a “um contexto maior que é a opressão social”. Essa colocação é muito

interessante ao ser pensada pelo olhar totalizante desta tese, pois propõe que o racismo e

o sexismo que oprimem esses sujeitos sociais fazem parte de uma “opressão social”

mais ampla, que envolve diversos “problemas sociais” – o que, na minha proposta

analística, tem a ver com um entendimento dos efeitos de um sistema capitalista racista,

(hetero)sexista e dependente, da forma como se expressa na realidade brasileira.

A díade mulata/doméstica merece ser abordada com mais calma, visto que

aparece em diversos textos sobre representações de mulheres negras na sociedade

brasileira. O Caderno IV dos Geledés, com o tema “Mulher Negra” coloca que:

“Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto.


Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados.
Hoje empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou mulatas
140
tipo exportação”.

Segundo Mariza Corrêa, a “construção do sujeito” mulata tem sido “objeto de

discursos médicos, literários e carnavalescos” (CORRÊA, 1996, p. 38). A autora afirma


139
Nzinga Informativo, ano I, n. 1, junho 1985, p. 3.
140
GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Cadernos Geledés – Mulher Negra. Caderno IV.
São Paulo, 1994, p. 11.

251
que, “além de cheirosa e gostosa, a mulata” é representada na literatura e na música

popular brasileira como “bonita e graciosa, dengosa e sensual; em suma, desejável”

(CORRÊA, 1996, p. 39). Corrêa sinaliza que “tal estatuto simbólico [...] firmou-se no

mesmo campo semântico do qual faziam parte uma série de outros discursos [...] nos

quais as palavras chave” foram utilizadas para classificar a figura da mulata como

indesejada. São designações que a vinculam diretamente “ao universo da pura sensação

corporal: lubricidade, volubilidade, amoralidade” (CORRÊA, 1996, p. 40). Assim, a

mulata é, simultaneamente, desejável e indesejada. Essa dualidade leva a uma outra

questão que tem ganho cada vez mais espaço nas reflexões dos movimentos de

mulheres negras, nomeada como “a solidão da mulher negra”.

Enquanto os impactos psicossociais do racismo têm sido objeto de estudo de

muitos intelectuais negros (SOUZA, 1983; FANON, 2008), o volume se torna menos

significativo quando se considera as relações de gênero nesse quadro. Em relação

especificamente aos impactos dessas relações sobre a afetividade, Ana Cláudia Pacheco

afirma que o tema surge na academia brasileira nos anos 1980, com as pesquisas o

Núcleo de Estudos da População da Unicamp (NEPO), em especial a desenvolvida por

Elza Berquó. A pesquisa de Berquó apontou o seguinte cenário:

“i) A miscigenação vem sendo realizada muito mais pela preferência afetiva
de homens negros por mulheres brancas ou mulheres de pele clara do que de
mulheres negras por homens brancos; ii) as mulheres negras (pardas e pretas)
são as menos preferidas para uma união afetiva estável pelos homens negros
e brancos, perdendo na disputa matrimonial-afetiva para as mulheres brancas;
iii) como resultante dessa disputa haveria um excedente de mulheres negras
solitárias, sem parceiros para contraírem uma união; iv) por outro lado, as
negras perfazem a maioria (mais de 50%) entre as mulheres solteiras, viúvas
e separadas” (PACHECO, 2006, p. 154).

Pacheco ressalta que os estudos demográficos sobre relações matrimonial-

afetivas dos grupos raciais, ainda que sejam contribuições importantes, se focam

“muitos mais nos fatores de ordem populacional em detrimento dos fatores sócio-

252
culturais” (PACHECO, 2006, p. 156). A autora, então, faz uma revisão bibliográfica

dos estudos sobre o tema nas Ciências Sociais para tentar “explicar a solidão afetiva das

mulheres negras (pardas e pretas) do Brasil” (PACHECO, 2006, p. 158). Ao cabo dessa

revisão, Pacheco sugere que “a afetividade produz muitas mais hierarquias do que

reciprocidades, se correlacionada com o binômio gênero e raça, excluindo, assim, as

mulheres negras desse campo ‘afetivo’” (PACHECO, 2006, p. 188).

Bruna Pereira (2019) estudou em seu doutorado o que chama de “vivência

afetivo-sexuais de mulheres negras”. A autora afirma que “na união com homens

brancos, o lugar adequado para as mulheres negras parece ser o de amantes, ou para

usar os temos de Gonzalez (1984), o regime de ‘concubinagem’: concubinato com

sacanagem” (PEREIRA, 2018, p. 183). Pereira ressalta ainda, citando Lélia Gonzalez, a

“mais valia racial” representada pela branquitude no âmbito dos relacionamentos afetivo

sexuais. Ela recupera Frantz Fanon e Joel Rufino dos Santos para afirmar que

“ser objeto do amor de uma pessoa branca, sobretudo em público e em um


relacionamento oficial e/ou estável, é muitas vezes uma experiência
almejada, idealizada e buscada. Afinal, um/a parceiro/a branco/a é tomado/a
como um passaporte para um status social, ponte para uma dignidade, que
uma pessoa negra sozinha ou se relacionando com outra pessoa negra jamais
poderia alcançar” (PEREIRA, 2018, p. 184).

A pesquisa de Bruna Pereira revelou uma experiência comum entre mulheres

negras: uma “dinâmica de interdição/desejo” por homens brancos, construída

socialmente desde a infância, que valoriza a experiência sexual-afetiva com esses

homens, ao mesmo tempo em que “é vista como inadequada, e que deve ser silenciada”

(PEREIRA, 2018, P. 185). A autora conclui que

“dinâmicas próprias do racismo patriarcal [...] têm implicações próprias para


a experiência e para a violência nos âmbitos sexual, familiar e doméstico;
para a construção e vivência da subjetividade em contextos de

253
subalternidade; para a circulação de bens materiais e simbólicos” (PEREIRA,
2018, p. 186).

Fica claro, no texto de Pereira, o impacto das representações sociais sobre

mulheres negras na construção de sua subjetividade, cujas consequências são bastante

materiais. Não apenas no campo afetivo, mas pensando a construção subjetiva como um

todo, essa questão amarra os diversos temas que são fundamentais para a construção das

pautas políticas do movimento de mulheres negras. Voltamos à algumas fontes a seguir

para perceber de que forma essa questão aparece na constituição do movimento na

década de 1980.

Dulce Cardoso, em texto no jornal Mulherio n. 14, consegue em um parágrafo

levantar diversos aspectos relacionados à representação social das mulheres negras

brasileiras:

“A mulher negra, ainda que reconhecida como ‘mãe’ da cultura brasileira [...]
ou quando pensada preconceituosamente como ‘a boa de cama’, ou,
objetivamente, como a mão-de-obra mais barata [...] tem sido confinada a um
gueto histórico. Desta forma, atrelada por sua condição subumana de
existência, é pressionada ideologicamente a ficar incapacitada de mover-se a
partir de ‘sua própria alienação’ e condenada a atuar dentro dos limites que
convêm aos diversos níveis da ordem estabelecida”141

A autora propõe que essa “alienação” imposta às mulheres negras, associada a

um entendimento de que elas sofreriam uma “tripla exploração”, “como se ocorressem

três etapas diferentes de exploração”, resultou em um entrave para a militância dessas

mulheres em seu pleno potencial. Isso porque a experiência dessas mulheres “é única e

histórica”, conferindo-lhes “um caráter particular de existência” e “possibilidades

enormes na postulação à transformação social”: “Como membro sexual, racial de uma

141
CARDOSO, op. cit., p. 8

254
determinada classe [...] tem o privilégio de admirar a história e a sociedade de vários

ângulos e lugares ao mesmo tempo”.142

Esse lugar “privilegiado” para a transformação social só pode ser devidamente

vivido como locus de ação quando superada a “alienação” a qual são submetidas as

mulheres negras na sociedade. No Nzinga Informativo n. 4, Pedrina de Deus escreve um

texto que aborda essa “alienação” de modo bastante interessante, tendo como o objetivo

de explicar aos leitores o significado das “ideologias de dominação” machismo e

racismo.143 A primeira questão colocada é a seguinte:

“Num sistema econômico onde o objetivo é o lucro, ‘levar vantagem


sempre’, torna-se necessário que uma parte da população (a maior parte
possível) fique desempregada para substituir por qualquer salário um
trabalhador mais exigente. É necessário que uma parcela da população
permaneça desqualificada profissionalmente para fazer o trabalho de 3 pelo
preço de 1, já que a classe dominante lucra mais na medida que paga menos.
E, para manter esta grande parcela da população desqualificada e
desempregada, a classe dominante lança mão de mecanismos ideológicos
para justificar este desnível injusto e para manter os injustiçados passivos e
conformados”.144

Nesse texto, de 1986, Pedrina de Deus traz uma proposta analítica e explicativa

que está em conformidade com as análises que embasam esta tese, como quando

Abigail Bakan, em 2014, argumenta que o capitalismo depende de tais relações sociais

conflituosas e as reproduz em seu benefício (BAKAN, 2016).145 Bakan explica

teoricamente, através de categorias marxistas, o que Pedrina explica didaticamente

utilizando-se de categorias teóricas (como “aparelhos ideológicos do Estado”146) e,

principalmente, exemplos cotidianos: A exploração da classe trabalhadora está em

constante relação com dinâmicas sociais de alienação e opressão, encarnadas no racismo

142
Ibidem.
143
DE DEUS, Pedrina. Racismo e Machismo. Nzinga Informativo, ano III, n. 4, jul./ago. 1988.
144
Ibidem, p. 4.
145
O artigo de Bakan de 2016 é uma tradução do texto original, publicado em 2014 na obra de BAKAN;
DUA, 2014.
146
O uso dessa categoria indica uma influência da obra de Althusser nas reflexões de Pedrina de Deus.

255
e no sexismo. Os trabalhadores, em competição por recursos de sobrevivência escassos,

tem suas diferenças instrumentalizadas pelo capitalismo, de modo a opor os sujeitos

explorados entre si, causando baixas de salário e criando exércitos de mão de obra

reserva (BAKAN, 2016). De acordo com Pedrina:

“Os aparelhos ideológicos do Estado (escola, religião, família, meios de


comunicação, etc.) que estão a serviço da classe dominante branca, tratam de
espalhar através de todos os meios a ideia de que aquela gente que está sendo
explorada é incapaz devido a sua inferioridade. Eles justificam essa
exploração do nosso trabalho dizendo que somos seres humanos de segunda
categoria. Colocam as diferenças de raça em evidência, dizem que essas
diferenças são inferioridades e tratam de nos privar das condições necessárias
para provar o contrário. Para eles, as diferenças se tornam desigualdades.”147

Especificamente sobre a forma que essa dinâmica social toma em relação às

mulheres negras, a autora fala:

“A classe dominante não paga ao trabalhador negro ou branco o suficiente


para que ele possa fazer face às despesas de alimentação, habitação,
transporte e lazer, necessárias para renovar a força após um dia dia de
trabalho. E mais uma vez a organização da vida econômica utiliza o trabalho
da mulher dentro de casa para cobrir aquilo que a classe dominante [...] não
quer pagar. A mulher negra, como mãe, esposa, irmã, companheira, etc.... se
encarrega de todas as tarefas necessárias para a renovação da força de
trabalho, sem que o patrão precise incluir no salário do trabalhador o
pagamento pela prestação desses serviços.”148

Esse trecho chama atenção pelo diálogo claro que estabelece com as discussões

no interior do feminismo (materialista e operário, principalmente) sobre o papel do

trabalho doméstico, em geral a cargo da mulher, na reprodução dos trabalhadores.

Embora não se utilize da terminologia específica proposta pelo feminismo da

reprodução social, é possível estabelecer uma relação bastante clara com sua proposta

teórica. Pedrina de Deus complementa a questão com a seguinte reflexão:

147
Ibidem.
148
Ibidem.

256
“Porque nasceu mulher, a mulher negra [...] vai recebendo desde pequena a
informação de que a servidão está na sua natureza de mulher e de negra. E, à
medida que ela vai se convencendo de que sua posição é de dependência em
relação ao homem e em relação aos brancos, ela se torna um ser passivo
diante da sociedade. [...] E enquanto os homens negros avançam na luta
contra o racismo, nós mulheres negras estamos dentro de casa passando para
nossos filhos as superstições e concepções racistas e machistas, porque
permanecemos na ignorância e somos alvos fáceis dessa ideologia que vai
nos atacar dentro das nossas casas”.149

A autora dá um peso grande ao âmbito familiar e doméstico, centrando-se na

figura feminina dona-de-casa, responsável pelo trabalho doméstico e de cuidado dos

filhos, o que destoa da maior parte dos discursos das militante negras, que identificam

como diferença marcante entre mulheres brancas e negras o fato de que as negras

trabalham “fora” – como domésticas, “serventes”, etc. – há muito tempo, enquanto as

feministas brancas clamariam pela libertação da dona de casa do domínio privado do

lar, “saindo” para inserir-se no mercado de trabalho.150 Ainda assim, essa perspectiva

traz um outro olhar sobre a situação das mulheres negras diante dos movimentos

sociais, trazendo a necessidade de descortinamento das suas reais condições como

elemento central para a constituição de um movimento de mulheres negras. É nesse

sentido que o texto se encerra, trazendo uma série de propostas concretas para promoção

da emancipação das mulheres negras:

a) A “formação de uma contra-ideologia que desmistifique a dominação que

interiorizamos”;151

b) Superar uma finalidade individualista do movimento, entendendo-o como

“um veículo de transformação das condições de vida de seu povo negro” e

do povo brasileiro como um todo;152

149
Ibidem, p. 4-5.
150
“Quando falamos em romper com o mito da r[a]inha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que
mulheres estamos falando? As mulhers negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são
rainhas de nada, que são retratadas como as anti-musas da sociedade brasileira, porque o modelo estético
de mulher é a mulher branca” (GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. op. cit., 1993, p. 11).
151
Ibidem, p. 5
152
Ibidem.

257
c) Ir além da demanda por mudanças na legislação, tendo como objetivo último

o combate ao machismo e ao racismo, através da atuação em grupos de

mulheres negras, em entidades negras e, finalmente, “no processo de

transformação da sociedade, conquistado e exercido pela maioria

explorada”.153

3. Conclusão

No panorama desenvolvido neste capítulo, busquei abordar os primeiros espaços

específicos de mulheres negras e suas pautas principais, que englobei em três grandes

temas: saúde, trabalho e subjetividade. A partir desse panorama, foi possível identificar

algumas características gerais do movimento de mulheres negras nos anos 1980 e no

início dos 1990. São elas:

a) Aproximação da “base” e dos grupos subalternizados;

b) Manutenção da relação com o movimento social como um todo,

principalmente o movimento negro (eventualmente destaca-se também o

movimento feminista);154

c) Formação: Preparar mulheres negras para discutir e qualificar suas

intervenções em espaços políticos, inclusive produzindo informativos,

cadernos e boletins (com diferentes níveis de complexidade para públicos

mais amplos ou politicamente “iniciados”);

d) Fortalecimento: troca de experiências, apoio, construção de autonomia

(individual e coletiva), abertura às emoções e compartilhamento de

fragilidades e dificuldades pessoais;

153
Ibidem.
154
Segundo Flávia Rios e Regimeire Maciel, “sustentaram forte interdependência em relação às
organizações feministas e antirracistas, além de outras bases como as eclesiais, as sindicais e as
comunitárias” (RIOS; MACIEL, 2018, s.p.)

258
e) Aproximação gradativa com instituições privadas e com o Estado

restrito, através de conselhos e de representantes políticos parceiros (como

Benedita da Silva, que integrava o movimento e presidiu a CPMI da

esterilização), inclusive para demandar regulamentação e fiscalização do

trabalho (doméstico e precarizado) e garantias trabalhistas.

f) Denúncia e combate às diferentes formas de discriminação (racial e de

gênero, principalmente) e seus impactos na saúde, nas relações de trabalho,

na construção de subjetividades e nas relações pessoais.

Essas características delineiam um movimento atento às especificidades do

grupo social que busca representar, mas consciente de seu papel político no movimento

social “como um todo” e na luta por uma transformação social ampla, que supere a

exploração do “povo”, conforme o texto de Pedrina de Deus – ou da classe trabalhadora,

como prefiro colocar. É nesse sentido que afirmo que esse movimento tem pautas

específicas, mas também contra-hegemônicas de modo amplo. Não apenas porque

“quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com

ela”, mas porque, como visto, as demandas “específicas” estão ligadas às dinâmicas de

exploração, alienação e opressão que atingem a classe trabalhadora de diferentes formas

e em diferentes graus. Atingem seus salários, sua auto-consciência, suas relações

interpessoais, sua capacidade de mobilização e resistência. Concordo com a análise de

Dulce Cardoso de que as mulheres negras são um grupo social cujas possibilidades de

transformação social são fundamentais – não apenas para elas, mas para os grupos

sociais subjugados como um todo.

259
CAPÍTULO IV - Organizações de mulheres negras no Estado Ampliado (década
de 1990)

De acordo Flávia Rios e Regimeire Maciel, nos anos 1990, o movimento de

mulheres negras passou

“por processos de formalização de suas organizações civis, muitas das vezes


apoiadas por organizações internacionais. Além disso, houve um avanço
importante no tocante à formação de redes transnacionais e suas relações com
o Estado” (RIOS; MACIEL, 2018, s.p.).

Essa mudança de caráter do movimento e a consolidação de algumas formas e

estratégias de luta na década de 1990 serão questões abordadas neste capítulo. Utilizarei

o conceito gramsciano de Estado Ampliado para compreender o contexto em que

algumas das principais organizações do movimento de mulheres negras no Brasil

adotaram a forma de organizações não-governamentais (ONGs), buscando compreender

a dinâmica dos financiamentos internacionais recebidos por ela. Esse processo, pensado

como uma institucionalização do movimento de mulheres negras, também tem como

característica a inserção de intelectuais negras no Estado restrito, de diferentes formas.

Esses processos caracterizam um movimento de mulheres negras qualitativamente

diferente daquele que surgiu na virada dos anos 1970 para os 1980, conforme se

discutirá.

1. O conceito de Estado Ampliado

O presente capítulo se utiliza de um aparato teórico um tanto quanto denso o

qual ainda não foi mobilizado extensamente nesta tese: o conceito de Estado Ampliado

e outras categorias desenvolvidas pelo marxista italiano Antonio Gramsci. Desse modo,

260
farei um breve interlúdio teórico para estabelecer o sentido de alguns conceitos

principais e de maneira serão utilizados aqui.

Estudiosos da obra de Gramsci afirmam que o conceito de Estado Ampliado –

ou "Estado Integral", como escreve o autor (GRAMSCI, 1999, p. 436) – é o "momento

teórico mais denso" de sua obra (LIGUORI apud FONTES, 2010, p. 132), visto que

“permite verificar a estreita correlação existente entre as formas de


organização das vontades (singulares e, sobretudo, coletivas), a ação e a
própria consciência (sociedade civil) – sempre enraizadas na vida
socioeconômica – e as instituições específicas do Estado em sua acepção
restrita (sociedade política)” (MENDONÇA, 2014, p. 34).

Trabalhos sobre o movimento negro e sobre organizações de mulheres

frequentemente utilizaram o conceito Estado, que também aparece nesta tese em

diversos momentos. Contudo, as elaborações de Gramsci convidam a um entendimento

diferente da categoria, entendimento esse que se afasta de uma noção reificada de

Estado, presente no senso comum, na qual ele é "identificado ora a um organismo bu-

rocrático, ora a alguma figura destacada da administração pública" (MENDONÇA,

2014, p. 28).

Para Sônia Mendonça, essa reificação tem origem em uma perspectiva liberal de

Estado, de acordo com a qual, as pessoas passariam de um "estado de natureza" – o

reino das vontades individuais incontroláveis – para um "estado" ou "sociedade civil" a

partir de um contrato, mediante o qual "deveriam abrir mão de seus direitos e

prerrogativas individuais, em nome de um outro elemento – o Soberano – tido por capaz

de frear as consequências funestas do 'autogoverno' até então vigente" (MENDONÇA,

2014: 29). Esse mito de origem do Estado liberal seria o responsável, de acordo com

Mendonça, pela ideia um "Estado Sujeito", uma entidade

261
"acima dos homens e da sociedade em seu conjunto, dotada de vontade
própria, de autoiniciativa, sem correspondência com os indivíduos e grupos
sociais distintos e, por isso mesmo, dotada de total pode de (co)mando sobre
os homens em sociedade" (MENDONÇA, 2014, p. 30).

A matriz liberal criou, assim, uma acepção de Estado descolada da história e das

classes sociais, destacado de e sobreposto a elas. Criou, ainda, uma definição de

"sociedade civil" como a contraparte do Estado, como aquilo que "se centra no terreno

dos interesses privados, da propriedade e do mercado" (FONTES, 2010, p. 133). Essa

noção de sociedade civil é frequentemente utilizada em pesquisas que se referem a

organizações não governamentais, inclusive as ligadas ao movimento de mulheres

negras.155 Não é essa noção a utilizada aqui, como explicarei adiante.

Diante da perspectiva liberal de Estado, Marx realizou importante intervenção ao

negar a existência de um "estado de natureza" e de um "contrato social", historicizando

profundamente as noções de Estado e sociedade civil:

"Se existe uma natureza no homem, ela possui um cunho social e é, portanto,
passível de transformação. Os homens teriam uma sociabilidade própria, que
lhes era conferida não por um “contrato”, mas, sim, pelo lugar por eles
ocupado no processo de produção e de trabalho. [...] A origem do Estado,
nessa concepção residiu, justamente, na emergência da propriedade privada,
no momento em que uma dada coletividade – ou grupo social – apropriou-se
privadamente daquilo que pertencia a todos, subordinando os demais,
transformados em força de trabalho" (MENDONÇA, 2014, p. 31).

Mendonça explica que Marx substitui o binômio "estado de natureza" versus

"sociedade civil" pelo par "sociedade política" versus "sociedade civil”, persistindo,

portanto, um caráter binário entre os elementos. A despeito da historicização valiosa, a

155
No caso brasileiro, Virgínia Fontes explica a “extensão acrítica do termo ‘sociedade civil’”
considerando a peculiaridade da forma como, no país, “a organização e a difusão de aparelhos privados
de hegemonia [...] concentrara-se nos setores burgueses dominantes, em função da truculência social
predominante no trato da questão social” (FONTES, 2010, p. 226-227). Assim, houve uma
“simultaneidade da emergência de múlltiplas organizações populares [...] em luta contra a ditadura
militar”, que resultou em uma “identificação entre forma de governo e Estado, na qual a recusa da
ditadura passava a se constituir, simultaneamente, numa negação da luta no âmbito do Estado” (FONTES,
2010, p. 227). Essa peculiaridade histórica contribuiu para um entendimento que opõe sociedade civil ao
Estado. Cf. também FONTES, 2018.

262
contribuição marxiana156 deu origem a uma variante adotada por alguns marxistas que

tomou o Estado não mais como Sujeito, como fez a matriz liberal, mas como "Estado

Objeto", "cuja existência devia-se, tão somente, para garantir e fazer valer os interesses

econômicos das classes dominantes" (MENDONÇA, 2014, p. 32).

É Antonio Gramsci quem vai sofisticar e efetivamente ampliar o conceito de

Estado no pensamento marxista.157 Diferentemente do Estado Objeto, Mendonça

adverte que

"o Estado em Gramsci não deve e nem pode ser pensado como organismo
próprio de um grupo ou fração de classe, como no caso de outras vertentes
marxistas. Ele deve representar uma expressão universal de toda a sociedade"
(MENDONÇA, 2014, p. 34).

Assim, a noção gramsciana de Estado passará a incorporar tanto o Estado no

sentido restrito – "Estado-político", "Estado-governo" ou ainda "sociedade política", isto

é, o "aparelho governamental encarregado da administração direta e do exercício legal

da coerção" (BIANCHI, 2008, p. 178-179) – quanto a sociedade civil.

Bianchi explica que, enquanto o Estado restrito ou "sociedade política" tem

sentido bastante claro na obra de Gramsci, a "sociedade civil" traz uma definição mais

complexa,

"seja porque no texto gramsciano o conceito tem contornos bastante


imprecisos; seja porque não existe apenas uma definição para o termo; seja
porque na linguagem política contemporânea o termo 'sociedade civil' foi

156
Como Mendonça (2014), uso o termo “marxiana” para me referir à produção de Karl Marx, enquanto
“marxistas” são outros sujeitos que se apropriaram, de diferentes formas, de sua obra.
157
Em O Laboratório de Gramsci, Álvaro Bianchi elabora uma leitura transversal dos conceitos de
"Estado" e "sociedade civil" nos escritos de Gramsci (BIANCHI, 2008). Bianchi revela que o ponto de
partida do autor foi considerar o Estado como expressão superestrutural de uma determinada forma de
organização da produção, já no Caderno 1. Essa visão, bastante simplificada em comparação com aquilo
que se seguiria, é retomada no Caderno 10 com a ressalva de que, embora haja uma relação entre o Estado
e a produção, essa relação não é simples ou imediata. Bianchi esclarece que essa reelaboração está
relacionada com o projeto de Gramsci, ao longo do tempo, de depurar o marxismo do economicismo.
Para isso, era fundamental evitar uma leitura mecânica e automática da noção de Estado.

263
incorporado fazendo, muitas vezes, referências ao próprio Gramsci, embora
com um sentido diferente" (BIANCHI, 2008, p. 178).

No Caderno 12, o marxista italiano define "sociedade civil" sucintamente como

o "conjunto dos organismos vulgarmente designados como 'privados'" (GRAMSCI,

2001, p. 20). Observar essa definição pode ser um passo inicial interessante para sua

compreensão, entretanto é preciso ter algum cuidado. Isso porque há leituras – como a

do italiano Norberto Bobbio (BIANCHI, 2008, p. 180) – que afirmam um caráter

positivo imanente à sociedade civil, em oposição à sociedade política. Para Bianchi,

essa posição compartilha da concepção tocquevilliana de sociedade civil, que seria

"um conjunto de associações situadas fora da esfera estatal, indiferenciadas e


potencialmente progressistas, agentes da transformação e portadoras de
interesses universais não contraditórios" (BIANCHI, 2008, p. 180).

Em contraposição a essa leitura, autores como Álvaro Bianchi, Sônia Mendonça

e Virgínia Fontes ressaltam o caráter conflituoso da sociedade civil. Mendonça postula

que

"a sociedade civil nada tem de ‘idílica’ ou ilusória, uma vez que é em seu
seio que se elaboram e se confrontam projetos distintos e até mesmo
antagônicos, ficando claro, no pensamento gramsciano, que ela é a arena da
luta de classes e da afirmação de projetos em disputa, derivados de aparelhos
de hegemonia distintos, ainda que, em muitos casos, pertençam a uma mesma
classe ou fração dela" (MENDONÇA, 2014, p. 36).

Fontes delineia esses conflitos intra e entre classes, abordando não apenas a

construção da hegemonia pelas classes dominantes, mas a possibilidade de "superação

do mundo dos interesses através da contra-hegemonia" promovida pelos dominados

(FONTES, 2010, p. 142):

264
"O fulcro do conceito gramsciano de sociedade civil - e dos aparelhos
privados de hegemonia - remete para a (...) produção coletiva de visões de
mundo, da consciência social, de formas de ser adequadas aos interesses do
mundo burguês (a hegemonia) ou, ao contrário, capazes de opor-se
resolutamente a este terreno dos interesses (corporativo), em direção a uma
sociedade igualitária ('regulada') na qual a eticidade prevaleceria, como o
momento eticopolítico da contra-hegemonia)" (FONTES, 2010, p. 133).

É importante ressaltar que o Estado Ampliado não se constitui pela simples

soma de dois elementos opostos. Para deixar claro o tipo de vinculação entre sociedade

civil e sociedade política, Gramsci se apropriou da figura do Centauro: parte ser

humano, parte cavalo – partes essas organicamente ligadas (GRAMSCI, 2000, p. 33).

Bianchi explica que esta "dupla-perspectiva" em relação ao Estado consiste em uma

"concepção unitária do poder político", segundo a qual o Estado se caracteriza

"pela presença de elementos que mantêm entre si uma relação tensa de


distinção, sem que cada um deles chegue a anular seu par no processo
histórico; pelo contrário, cada um molda e até mesmo reforça o outro"
(BIANCHI, 2008, p. 189).

Assim, sociedade civil e sociedade política têm entre si uma "relação de

unidade-distinção", formando "dois planos superpostos que só podem ser separados

com fins meramente analíticos" (BIANCHI, 2008, p. 185).158

Em alguns momentos em seus escritos, Gramsci procura estabelecer uma relação

entre sociedade política/sociedade civil e coerção/hegemonia. Um dos objetivos do

autor, ao ampliar a noção de Estado, era afirmar que ele não se limita ao exercício da

coerção, mas que também é domínio da hegemonia (BIANCHI, 2008). Há um

problema, entretanto, na correspondência direta entre sociedade política = coerção e

sociedade civil = hegemonia, esquema simplista e "contrário à complexa análise

gramsciana, na qual não existe uma rígida divisão de tarefas entre as duas esferas"

158
A relação de "unidade-distinção" é uma reformulação feita por Gramsci da concepção de "nexo dos
distintos" presente em Croce, segundo a qual "não existia relação de oposição, mas apenas de unidade e
distinção". Para Gramsci, a distinção é "uma forma de oposição não antagonista na qual cada distinto se
encontra em uma relação de 'tensão (dialética) com o outro" (BIANCHI, 2008, p. 184).

265
(PRESTIPINO apud BIANCHI, 2008, p. 178). Sobre essa questão, Bianchi aponta para

o fato de que Gramsci, no Caderno 14, identificou a presença da coerção na sociedade

civil e do consentimento na sociedade política, o que de modo algum cancelou suas

formulações anteriores, mas sim as sofisticou, na medida em que explicita que "na

sociedade civil o consenso é 'hegemônico', enquanto na sociedade política, é a coerção.

Ou seja, os espaços institucionais de exercício das funções de direção e dominação não

são exclusivos" (BIANCHI, 2008, p. 197-198).

As organizações de mulheres negras analisadas nesta tese são compreendidas

como aparelhos privados de hegemonia (APHs), que, nas palavras de Virgínia Fontes,

são a "vertebração da sociedade civil" (FONTES, 2010, p. 133). Os APHs são uma das

questões trabalhadas por Gramsci em Breves notas sobre a Política de Maquiavel

(GRAMSCI, 2000). O autor caracteriza o príncipe de Maquiavel como o "condutor da

vontade coletiva", ou seja, aquele que "atua sobre um povo disperso e pulverizado para

despertar e organizar sua vontade coletiva" (GRAMSCI, 2000, p. 14). Para ele, o

moderno príncipe é o partido – não no sentido de partido político tradicional, presente

no senso comum, mas designando os chamados aparelhos privados de hegemonia

(igrejas, escolas, associações privadas, imprensa, etc).

Gramsci problematiza a visão de Sorel, para quem a ação prática do sindicato

profissional era a expressão maior da organização de uma vontade coletiva. A

realização máxima dessa ação prática, para Sorel, seria a greve geral, cujo caráter, na

visão de Gramsci, seria "negativo e preliminar", na medida em que é uma atividade

ligada a um “impulso vital” e à "espontaneidade", já que relacionada a necessidades

materiais imediatas (GRAMSCI, 2000, p. 14). O autor adverte que atividades desse tipo

formam uma vontade coletiva demasiado elementar, podendo vir a deixar de existir,

pulverizando-se em vontades individuais e contrastantes. Para Gramsci, uma ação que

266
apenas reage diante de um perigo iminente não pode ser ampla ou ter caráter orgânico;

ela “será quase sempre do tipo restauração e reorganização, não do tipo peculiar à

fundação de novos Estados e de novas estruturas nacionais e sociais […], será de tipo

'defensivo' e não criativo original” (GRAMSCI, 2000, p. 16).

O moderno príncipe gramsciano – o partido ou APH – deve, portanto, atuar na

criação de uma vontade coletiva original e orgânica (GRAMSCI, 2000, p. 17). É tarefa

desse organismo promover uma reforma intelectual e moral, isto é, uma transformação

na concepção de mundo cujo objetivo é criar terreno para a fundação de uma vontade

coletiva "nacional-popular" (GRAMSCI, 2000, p. 18). Importante sublinhar que essa

reforma intelectual e moral não é um fim em si mesmo, mas está organicamente

vinculada a uma transformação estrutural da sociedade. Álvaro Bianchi ressalta o

caráter material dos aparelhos privados de hegemonia ao afirmar que "a luta de

hegemonias não é apenas luta entre 'concepções de mundo', [...] ela é também luta dos

aparelhos que funcionam como suportes materiais dessas ideologias, organizando-as e

difundindo-as" (BIANCHI, 2008, p. 180).

Para desempenhar as funções referidas, os APHs têm como "prepostos" ou

"funcionários" os intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 2001, p. 20-21). Segundo

Gramsci, “todo grupo social (...) cria para si (...) uma ou mais camadas de intelectuais

que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo

econômico, mas também no social e político” (GRAMSCI, 2001, p. 15). Ser intelectual,

portanto, significa estar organicamente associado a uma grupo social. Ao evidenciar

isso, o autor rejeita a ideia de uma neutralidade política dos intelectuais, afirmando seu

papel ativo na luta de classes. Gramsci chama atenção para o fato de que “todos os

homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de

intelectuais” (GRAMSCI, 2001, p. 18). Com isso, ele se refere ao fato de que “em

267
qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe um mínimo de

qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora” (GRAMSCI,

2001, p. 18). A diferença que caracteriza um intelectual orgânico em termos de sua

função é a organização do grupo social a que se vincula, e não meramente o exercício

de atividades intelectuais. Dessa forma, ao atuar em um aparelho privado de hegemonia,

os intelectuais orgânicos exercem a função de organização da vontade coletiva.

Gramsci sinaliza para a especificidade dos intelectuais associados aos grupos

subalternos, cuja atuação se dá no sentido da construção de uma contra-hegemonia.

Considere-se a afirmação de Sônia Mendonça explica de que "o pleno desenvolvimento

de uma classe – ou fração – depende de sua capacidade de gerar seu próprio quadro de

intelectuais, aptos a lhe conferirem homogeneidade e mesmo consciência de sua função,

seja no âmbito econômico, político ou ideológico" (MENDONÇA, 2014, p. 35). Nesse

sentido, a organização de intelectuais orgânicos subalternos em aparelhos privados de

hegemonia é fundamental para a disputa contra-hegemônica e para a reforma do senso

comum, visando à construção de uma concepção de mundo alternativa e crítica como

parte da luta por uma nova realidade social.

Sônia Mendonça afirma que o conceito de Estado Ampliado de Gramsci

“institui-se em ferramenta metodológica contendo em si mesmo um ‘roteiro’ de

pesquisa” (MENDONÇA, 2014, p. 27). Esse roteiro, de acordo com a autora, parte de

uma “extensa investigação junto aos aparelhos de hegemonia [...] visando detalhar suas

formas organizacionais, suas bases sociais, seus intelectuais orgânicos, bem como as

divergências e disputas entre elas” (MENDONÇA, 2014, p. 39).

Mendonça aponta caminhos possíveis de pesquisa baseados nessa metodologia:

1) analisar a correlação de forças entre os APHs em disputa para perceber “quais de

seus projetos inseriram-se na materialidade do Estado restrito” ou; 2) enfatizar a

268
dinâmica interna de um APH específico, “privilegiando as divergências de projetos

endogenamente existentes na agremiação, com vistas a detectar a imposição

hegemônica de um deles”, observando ainda sua reação às medidas do governo

(MENDONÇA, 2014, p. 39). Ela ressalta que, em ambos os casos, é necessário ir além

da “simples identificação dos distintos projetos em disputa”, ao verificar-se “as forças

sociais em confronto por ele ‘personificadas’” (MENDONÇA, 2014, p. 39). A autora

propõe uma análise cuidadosa de publicações produzidas pelas organizações para

“inferir seus quadros dirigentes, bases sociais, cotidiano de funcionamento institucional,

além de projetos e demandas homogêneas ou conflitivas” (MENDONÇA, 2014, p. 40).

A partir disso, partir-se-ia para um “estudo minucioso não apenas de suas ações

coletivas, mas também de suas campanhas, propagandas ideológicas e modalidades de

correlação com o Estado restrito” (MENDONÇA, 2014, p. 40). A metodologia do

Estado Ampliado, através da interpretação de Sônia Mendonça, tem dado origem a

diversos estudos muito interessantes e profundos sobre diversos aparelhos de

hegemonia (em especial os ligados às classes dirigentes) e as disputas mais amplas no

âmbito do Estado Ampliado.159 A presente tese não tem tal metodologia como “roteiro”,

mas como inspiração – em especial neste capítulo.

Por um lado, não está entre os objetivos desta tese fazer um mapeamento de

todos os aparelhos de hegemonia ligados ao movimento de mulheres negras, todas as

intelectuais orgânicas a eles vinculados, suas vinculações com outros APHs, etc. – essa

seria uma tese em si. Por outro, me baseio na metodologia do Estado Ampliado para:

compreender as estratégias adotadas por algumas das principais organizações do

movimento de mulheres negras brasileiro na virada dos anos 1980 para os 1990 (em

especial sob a forma ONG); a relação dessas organizações com o Estado restrito e com

159
Exemplos podem ser encontrados na coletânea Gramsci e a pesquisa histórica, organizada por Sônia
Mendonça e Rodrigo Lamosa (MENDONÇA; LAMOSA, 2018).

269
outros aparelhos privados de hegemonia; as possibilidades e limites de atuação política,

considerando um horizonte de uma transformação profunda da sociedade, desses

formatos e relações diante das demandas da base social do movimento.-

2. O processo de institucionalização do movimento de mulheres negras

2.1 Contexto

No capítulo III desta tese, procurei estabelecer que as pautas do movimento de

mulheres negras, ainda que específicas à base que procura representar, são também

pautas contra-hegemônicas, pautas da classe trabalhadora como um todo. Essas pautas

se relacionam não apenas com o momento “econômico-corporativo” da luta de classes,

considerando os impactos nos salários e as lutas por direitos trabalhistas por exemplo,

mas têm um potencial de transformação social que se refere a fases posteriores das

relações de força políticas conforme entendidas por Gramsci:

“um terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os


próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro,
superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e
devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase
mais estritamente política [...], determinando, além da unicidade dos fins
econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as
questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num
plano ‘universal’, criando assim a hegemonia de um grupo social
fundamental sobre uma série de grupos subordinados” (GRAMSCI, 2000, p.
40-41).

Como foi visto anteriormente, o movimento de mulheres negras dos anos 1980

tinha entre suas reflexões uma perspectiva de aproximação não apenas de suas bases

sociais, como também do “movimento social como um todo”, entendendo sua

importância na construção de uma transformação social mais ampla, que supere a

270
exploração da classe trabalhadora. Nesse ponto, vale lembrar que se está trabalhando

aqui com uma concepção de classe trabalhadora que é fundamentalmente histórica,

nunca estanque. Isso significa que a presença dessa percepção no movimento de

mulheres negras não constitui uma característica fixa que marcou o movimento

indistintamente em suas diversas organizações e em diferentes temporalidades. É uma

perspectiva presente, mas não única, e que tem maior ou menor força em diferentes

momentos históricos. Em minha análise, essa perspectiva ganha contornos diferentes no

movimento quando se compara os anos 1970 e início dos 1980 com a década de 1990

em diante, questão que a ser delineada adiante.

De todo modo, é possível afirmar que as pautas do movimento de mulheres

negras, em momentos mais ou menos radicalizados (no sentido de investidos em uma

transformação social mais ampla e profunda), são pautas contra-hegemônicas, na

medida em que exigem direitos e transformações na sociedade que alteram a correlação

de forças na realidade social – seja em um momento econômico-corporativo, seja em

um momento “mais estritamente político” de “reforma intelectual e moral”, para citar

Gramsci. É nesse sentido que compreendo as organizações de mulheres negras como

aparelhos privados de hegemonia – ou aparelhos privados de contra-hegemonia, no

sentido de que se insere nos conflitos sociais no sentido de construir uma propondo uma

nova hegemonia antirracista, antissexista, antiLGBTfóbica e, em alguns casos,

anticapitalista.

A partir de fins da década de 1980, o movimento de mulheres negras passa por

algumas mudanças significativas. A forma de organização adotada pelo movimento,

particularmente nas regiões sul e sudeste, torna-se predominantemente a configuração

de organização não governamental (ONG). Ao adotar essa forma, as organizações de

mulheres negras passam a apresentar características novas, como a profissionalização

271
das militantes, a atuação por meio de “projetos”, o estabelecimento de parcerias com

outras organizações com a finalidade de obter financiamentos, enfim, adequações

necessárias às dinâmicas ligadas ao universo das ONGs. Essa mudança não foi um

processo vivido isoladamente pelo movimento de mulheres negras, mas uma

característica do movimento social no geral nesse período. Estudos sobre a chamada

“institucionalização” do movimento negro ajudam a compreender esse contexto.

Segundo Flávia Rios (2008), o processo de institucionalização do movimento negro

ocorrida nos anos 1990

“já vem sendo gestado desde os anos 1980 com a abertura democrática do
país, que, em certa medida, possibilitou a profissionalização e a
especialização dos ativistas, bem como a formalização e a burocratização dos
coletivos e das entidades. Muitas destas tornaram-se, aos poucos, associações
civis formalmente mais complexas, cujo modelo exemplar é o de organização
160
não-governamental (ONG)” (RIOS, 2008, p. 145).

Contudo, ela faz a ressalva de que

“Esse processo, no entanto, não afetou o ativismo negro de forma


homogênea, sendo possível identificar zonas mais ou menos
institucionalizadas no interior do movimento. O maior ou menor grau de
institucionalização depende da aquisição de certas competências e recursos
para participar do jogo político. Nem todos optaram por atuar na disputa
institucional; muitos não conseguiram atingir as exigências necessárias para
desempenhar os papéis da dinâmica do poder.” (RIOS, 2008, p. 147)

Ainda que não corresponda à totalidade do movimento, a institucionalização sob

o formato de ONG foi predominante no movimento negro em geral e no movimento de

mulheres negras. Essa questão é abordada por Cristiano Rodrigues e Marco Aurélio

Prado, que tratam especificamente do movimento de mulheres negras.

Esses autores afirmam que os anos 1980 e 1990 marcam uma inflexão na

dinâmica entre os movimentos sociais latino-americanos e o Estado, que passa de


160160
A autora considerou como parte do movimento negro organizações de mulheres negras como
Geledés e Criola, que abordarei neste capítulo.

272
“inimigo” a “interlocutor” (RODRIGUES; PRADO, 2010, p. 447). Para Rodrigues e

Prado, no caso do Brasil, a política neoliberal adotada pelo governo contribuiu para que

questões sociais passassem

“a ser terceirizadas para organizações da sociedade civil. As organizações


não-governamentais (ONGs) começam, nesse cenário, a ter uma atuação
mais forte junto ao Estado e, em muitos casos, a disputar espaço com
movimentos sociais [...]. Por conta disso, muitos grupos ligados a
movimentos sociais se tornaram ONGs, desejando obter mais financiamento
e sustentar uma organização com estrutura mais estável” (RODRIGUES;
PRADO, 2010, p. 447- 448).

Daniela Feijó, ao estudar algumas ONGs brasileiras cuja atuação se baseava nas

questões de gênero e raça, também observou essa mudança de postura nas organizações:

“Se num primeiro momento (compreendido entre a década de 60 [e] a


segunda medade dos anos 80), [as ONGs] procuraram se diferenciar do
Estado, do mercado e de formas organizativas como igrejas, partidos e
movimentos [...]; num segundo momento (a partir dos anos 90), essa
demarcação de cunho mais opositor se atenua” (FEIJÓ, 2006, p. 9).

Com isso, a autora reitera o entendimento de que, a partir da década de 1980, as

ONGs brasileiras, incluindo as de mulheres negras, se aproximaram mais do Estado e de

outras instituições, abandonando uma postura “de cunho mais opositor”. Segundo Feijó,

há então “uma maior inserção das ONGs na esfera pública oficial, conduzindo para

dentro do Estado suas demandas” (FEIJÓ, 2006, p. 9). Esse movimento se daria pelo

fato dessas organizações já terem alcançado um grau de autonomia em relação ao

Estado, às igrejas, partidos, etc., bem como “pela atitude da nova geração de integrantes

que ingressam nas ONGs, oriundos de uma postura mais profissional e menos militante

do que na primeira geração” (FEIJÓ, 2006, p. 9).

Rodrigues e Prado usam a expressão “processo de ‘onguização’” para se referir a

um boom das ONGs no fim dos anos 1980 e nos 1990. Tal processo integra a

273
“institucionalização” analisada por Flávia Rios. Essa autora explica a mudança de

caráter do movimento indicando uma “maior abertura da opinião pública, do Estado e

dos governos”, expressa no fato de que “os ativistas podem acessar os órgãos decisórios

e mover-se com certa liberdade pelos espaços públicos, como os órgãos judiciários de

defesa dos direitos humanos, conselhos e secretarias especiais” (RIOS, 2008, p. 141).

Enquanto no período da ditadura haveria “maiores chances de desenvolvimento de

protestos de tipo reivindicativo”, dado o caráter fechado e autoritário do regime, o

avanço da democracia incentivaria uma aproximação entre ONGs e Estado (RIOS,

2008, p. 141). Assim, o momento de boom das ONGs teria como contexto justamente o

momento do fim da ditadura, em meados dos anos 1980, quando as organizações se

aproximariam do Estado e teriam maiores possibilidades reivindicativas através desse

formato, recorrendo menos aos protestos de rua, “de tipo reivindicativo”.

Essa análise pode ser complexificada com a contribuição de Virgínia Fontes.

Segundo ela, a peculiaridade da expansão dos aparelhos privados de hegemonia no

Brasil nos anos 1970 e 1980, caracterizada por uma forte oposição ao Estado,

identificado com a repressão da ditadura militar, gerou uma recusa da luta no âmbito do

Estado por muitas organizações, enaltecendo-se “uma atuação ‘de costas’ para o Estado,

sem a intermediação de partidos”, considerados “camisas de força” para os movimentos

(FONTES, 2010, p. 227).

Fontes caracteriza esse contexto, que daria origem ao boom de ONGs no Brasil,

elencando alguns fatores importantes. Primeiro, o momento posterior às crises de 1973

e 1979, que levaram a uma disputa dos agora escassos recursos públicos pelos

diferentes setores empresariais. Além disso, “as principais entidades empresariais

voltaram a [...] demandar maior espaço de atuação privada”, o que também expressava

não apenas sua disputa por recursos públicos, como “a tentativa do empresariado de

274
precaver-se perante as lutas populares, que reivindicavam a extensão dos serviços

públicos (FONTES, 2010, p. 228). Outro elemento importante, para Fontes, foi o que se

deu a partir da ampliação das universidades e do retorno dos exilados nos anos 1980.

Desencantados com a experiência soviética e influenciados pela vaga pós-estruturalista

europeia, muitos intelectuais "desconfiavam dos partidos políticos e os viam como

'aparelhamento' das organizações populares" (FONTES, 2010, p. 228). Em decorrência

disso, consolidava-se uma “visão imediatista dos setores populares” e difundia-se “uma

concepção da ‘recusa’ da luta em torno do Estado, desconsiderando-a como momento

necessário” (FONTES, 2010, p. 230). Assim, os setores populares

“eram duplamente instados, de forma paradoxal, a permanecerem no terreno


de suas reivindicações imediatas: pela repressão, de um lado, e por esses
novos acadêmicos, fascinados com o popular” (FONTES, 2010, p. 230).

Para alguns desses, era necessário “abandonar expectativas revolucionárias” e

“conviver com o mundo restritivo da política institucional como horizonte insuperável”

(FONTES, 2010, p. 230). Considerar esse contexto não significa dizer que era essa

necessariamente a postura das intelectuais envolvidas na construção de ONGs de

mulheres negras. Contudo, o contexto geral deve ser levado em consideração, vistas as

possibilidades conjunturais colocadas para as organizações de movimentos sociais no

Brasil da década de 1980 e o repertório político dominante então.

O conceito do Estado Ampliado permite propor uma compreensão diferente do

processo de institucionalização do movimento de mulheres negras, na medida em que

supera a separação entre Estado e organizações, que ora se afastam e ora se aproximam.

Isso porque permite analisar a relação entre sociedade civil e instituições do Estado

restrito com o cuidado de compreender esses espaços como organicamente ligados.

Virgínia Fontes lembra que

275
“para Gramsci, o Estado não está apenas numa ‘cúpula’, ainda que assim
procure se apresentar. Ao contrário, o Estado capitalista ampliado integra e
penetra espaços crescentes da vida social, da mesma maneira que as
entidades organizativas – ligadas aos grupos dominantes e/ou aos subalternos
– não estão apenas do lado de fora, mas também são incorporadas às
definições políticas (e de políticas públicas). Com isso pode conter os
impulsos revolucionários dos subalternos (modificando-os e conformando-os
através de revoluções passivas) e assegurar as condições de reprodução de
uma acumulação capitalista a cada dia mais dinâmica, mais extensa e mais
complexa.” (FONTES, 2018, p. 221)

Nessa perspectiva, o Estado e as ONGs nunca estão afastados ou separados, mas

integram um Estado Ampliado – embora deva-se considerar a maior ou menor

penetração de representantes dos aparelhos privados de hegemonia (no caso, as ONGs)

no Estado Restrito em diferentes contextos históricos.

Essa análise traz ainda outro elemento: a contenção “dos impulsos

revolucionários dos subalternos” e a reprodução do capitalismo através da penetração

do Estado na vida social. A questão que se levanta com esse elemento tem a ver com os

próprios limites da estratégia de penetração dos APHs de grupos subalternizados, como

as organizações de mulheres negras no Estado restrito, tema a ser debatido adiante.

2.2 ONGs de Mulheres negras: casos analisados

Segundo o trabalho de Ana Angélica Sebastião, a organização de mulheres

negras que pioneiramente adota o formato de organização não governamental é o grupo

gaúcho Maria Mulher (SEBASTIÃO, 2007, p. 32). Seus projetos iniciais, com temas

que abarcavam discriminação racial e violência doméstica, eram voltados para meninas

e mulheres negras da Vila Cruzeiro, em Porto Alegre (FEIJÓ, 2006, p. 17). Vale notar,

contudo, que, de acordo com Cláudia Cardoso, fundadora do grupo e pesquisadora, o

Maria Mulher é criado em 1987, mas se transforma em organização não governamental

276
em 1999, passando a denominar-se Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras

(CARDOSO, 2012, p. 17).

A presente análise se foca em duas ONGs de mulheres negras: Geledés e Criola,

de São Paulo e do Rio de Janeiro respectivamente. Essas organizações, ainda atuantes

hoje, além de terem sido objeto de análise frequentes em estudos sobre o movimento de

mulheres negras (LEMOS, 1997; ALMEIDA, 2010), dispõem de um corpus

documental significativo e relativamente mais acessível do que outras organizações.161

Mesmo que possa não ter sido a primeira ONG de mulheres negras no Brasil, o

Geledés – Instituto da Mulher Negra tem, sem dúvida, uma importância singular. A

trajetória dessa organização traz diversos elementos interessantes para esta pesquisa,

principalmente no que diz respeito à sua atuação no Estado Ampliado. As fontes

disponíveis ligadas à organização – publicações, entrevistas e fontes secundárias –

formam um corpus rico para análise. Assim, nosso foco se voltará, neste capítulo,

diversas vezes para a experiência do Geledés.

Outra organização que informa a presente análise é Criola, fundada em 1992 no

Rio de Janeiro. Destaco, entretanto, que as publicações analisadas – as únicas a que foi

possível obter acesso – datam da segunda metade da década de 1990 até o início dos

anos 2010. Apesar da diversidade cronológica em relação ao recorte preferencial da

pesquisa (décadas de 1980 e 1990), penso que desconsiderar essa documentação seria

um erro.

Em relação ao surgimento dessas duas organizações, seus processos foram

bastante diversos. O Geledés foi criado a partir do Coletivo de Mulheres Negras, que

havia surgido, por sua vez, da organização das mulheres negras envolvidas no Conselho

Estadual da Condição Feminina de São Paulo. Conforme discutido em capítulos

161
Ambas disponibilizam muitas publicações online, em seus respectivos sites.

277
anteriores, a falta de representação de mulheres negras nesse Conselho fez com que

mulheres negras paulistas se organizassem nesse coletivo no intuito de garantir sua

devida participação no espaço. Sua origem, assim, parte de uma necessidade de

inclusão em uma instituição ligada ao Estado restrito.

Edna Roland conta que a decisão de criar o Geledés não se deu em uníssono no

Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, mas partiu especificamente daquelas

militantes que estavam no “espaço governamental”, enquanto outras “tinham ficado

mais no espaço do Coletivo” (ROLAND, 2004 s.p.). Segundo ela:

“nós tivemos um ritmo e uma dinâmica de trabalho muito mais intensa, e


ficou um certo [...] mal-estar, por a gente ter ido muito a frente, digamos,
independente do Coletivo. Sueli em Brasília e eu em São Paulo. [...] A gente
já sabia que provavelmente nós teríamos que passar por uma luta com outras
companheiras que estavam no Coletivo para poder imprimir ao Coletivo as
concepções, as ideias e o ritmo que a gente gostaria de ter. Aí, avaliamos que
o custo político de criar uma nova organização era menor do que o custo
político de ter que enfrentar um debate interno. E aí então, resolvemos criar o
que veio a ser o Geledés” (ROLAND, 2004, s.p.).

De acordo com Edna, ela e suas companheiras fundadoras do Geledés avaliaram

que, nos anos 1990, o espaço de atuação “dentro do Estado” diminuiria, em particular

nos conselhos da condição feminina (estadual e nacional) – o que de fato ocorreu com o

ascenso do neoliberalismo no país –, e, por isso, era necessário criar uma organização

“por fora” desse espaço. O Geledés é criado em 1988 e já de início consegue

financiamento da Fundação Ford162, através do projeto SOS Racismo. Segundo Feijó,

esse financiamento “consolidou o estabelecimento da ONG” (FEIJÓ, 2006, p. 57). Edna

narra esse processo:

162
Fundação criada em 1936 a partir da empresa automobilística Ford Motor Company. Durante a Guerra
Fria, a Fundação Ford teve importante atuação nos espaços universitários brasileiros, em especial nas
ciências sociais, tendo um papel no surgimento e na difusão de teorias baseadas em "valores americanos"
(CANEDO, 2017). Segundo Letícia Canedo, o interesse da Ford era assegurar "a hegemonia americana
em ciência política em escala mundial" (CANEDO, 2017, p. 19). A partir dos anos 1980 e,
principalmente, dos 1990, a Fundação passa a ter como foco o financiamento de organizações privadas,
como ONGs.

278
“E aí, o que tinha acontecido com a nossa passagem no Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher e no Conselho Estadual da condição Feminina? Nós
tínhamos aprendido certas coisas. Primeiro, nós tínhamos aprendido certas
práticas administrativas, como é que você organiza uma instituição,
comissões, grupos de trabalho... E tínhamos entrado em contato com algumas
agências financiadoras. Então quando há esse processo de fechamento do
Conselho Nacional, a Sueli estava em Brasília negociando um projeto, que
era justamente um projeto do SOS Racismo, que ia ser um projeto do
Conselho Nacional com a OAB, acho que a OAB de São Paulo. Quando o
Conselho praticamente fecha, ela então negocia com a Fundação Ford a
transferência desse projeto, que seria do Conselho Nacional, para ser um
projeto em parceria OAB com o Geledés, o nascente Geledés. Ela negocia
isso e entra, a pedido da Ford, entra um terceiro parceiro, que é o Núcleo de
Estudos de violência da USP. Então aí ela está nesse processo de negociação,
mas o primeiro financiamento que nós tivemos no Geledés, foi um
financiamento da International Women’s Health Coalition” (ROLAND,
2004, s.p.).163

De acordo com Feijó, a relação do Geledés com o Estado se daria de maneira

direta apenas em 1996, por meio de parceria com o Ministério da Justiça (FEIJÓ, 2006,

p. 57).

Criola, por sua vez, foi uma organização criada em 1992 por iniciativa das

mulheres que compunham o Programa de Mulheres do CEAP: Neusa das Dores Pereira,

Joselina da Silva, Jurema Werneck, Geni Guimarães e Josina Maria da Cunha. Lúcia

Xavier Castro foi convidada para integrar a organização no mesmo ano (CASTRO,

2003, s.p.). Neusa Pereira relata que as viagens realizadas pelas mulheres do CEAP para

o II Encontro Nacional de Mulheres Negras (Salvador, 1991) e no I Encontro Latino-

Americano e do Caribe de Mulheres Negras (República Dominicana, 1992) foram

experiências que as estimularam para criar o Criola, “que era o grande sonho. Era o

grande sonho das cinco” (PEREIRA, 2017, s.p.). Ela comenta que, por conta de

algumas divergências pessoais, as cinco fundadoras foram saindo de Criola. Hoje,

163
A International Women’s Health Coalition é uma ONG feminista baseada em Nova York (EUA)
fundada em 1984, com o objetivo de apoiar organizações feministas locais e influencias políticas
nacionais em favor dos direitos das mulheres. Suas fundadoras, Joan Dunlop e Adrianne German, haviam
trabalhado junto à Fundação Ford antes de fundarem a IWHC. Inicialmente com foco em campanhas
nacionais pelo direito ao aborto, ainda com alcance restrito, a organização tomou proporções globais na
década de 1990. Cf. <https://www.britannica.com/biography/Joan-Dunlop> e <https://iwhc.org/about-
us/history/>. Acesso em: 05 fev. 2020.

279
permanece à frente da organização Lúcia Xavier e, das mulheres do CEAP, Jurema

Werneck teve a participação mais longeva, tendo saído de Criola para integrar a Anistia

Internacional em 2017.

Em relação aos financiamentos recebidos no início da trajetória da organização,

Lúcia Xavier conta que:

“O nosso primeiro financiamento inicial foi um grupo de mulheres brasileiras


que vivia nos Estados Unidos, que conheceram nesses encontros feministas
uma das nossas integrantes. E sabendo que a gente estava montando a
organização, fizeram uma festa e mandaram o recurso para a gente se
registrar como organização.” (CASTRO, 2003, s.p.)

Também foi por intermédio de uma feminista negra estrangeira que morava na

Alemanha que viabilizou o primeiro financiamento institucional de Criola, feito por

uma instituição ligada ao Partido Verde Alemão, que veio a constituir a Fundação

Heirich Böll (CASTRO, 2003, s.p.). Segundo Lúcia, “ essa fundação ofereceu todos os

recursos para a nossa estruturação, estruturação física. Desde comprar a cadeira até o

computador, e nos ajudou nas primeiras atividades que nós desenvolvemos” (CASTRO,

2003, s.p.). Diferentemente do Geledés, a Criola nunca teve apoio da Fundação Ford – é

o que menciona Lúcia Xavier ao comentar sobre as reuniões de preparação para a

Conferência de Durban, de 2001 (CASTRO, 2003, s.p.). Ela não comenta, no entanto,

porque não houve esse apoio, se por desinteresse da Fundação ou por restrições da

própria Criola em submeter-se às suas exigências para financiamento. O segundo caso é

mais provável, considerando que Lúcia Xavier comenta que Criola deixou de participar

de conferências internacionais por discordar da posição política da instituição

financiadora:

“Nós da Criola não tínhamos ido a Cairo ou Beijim, se não me engano, por
uma questão política. [...] Nós discordávamos do financiamento, que era feito
pela USAID. Então como a maior parte do financiamento era USAID, nós

280
resolvemos não ir. Porque o que funda a Criola é uma ação política contra a
esterilização de mulheres negras, foi uma forte campanha que inicia no
CEAP a contextualização, e que toma o Brasil inteiro. Então a USAID sendo
a base dessa ação de esterilização, a gente não tinha como aceitar recurso da
USAID para ação em Beijim. Aí nós não fomos, ficamos fora da
conferência” (CASTRO, 2003, s.p.).

A complexidade e as contradições envolvidas na questão do financiamento de

ONGs ligadas a movimentos sociais, especificamente ao movimento de mulheres

negras, como o caso de Criola e Geledés, serão destrinchadas a seguir.

2.2.1 O desafio da autonomia: recursos e financiamentos

Nas palavras de Neusa Pereira: “Nosso problema é e sempre foi um: falta de

verba. A verba acompanha os brancos e os homens” (PEREIRA, 2017, s.p.). O debate

sobre autonomia financeira tem sido importante (e difícil) nas discussões entre

militantes e pesquisadoras sobre o movimento de mulheres negras – destacando-se o

fato de que, com frequência, um mesmo sujeito tem ambas as atribuições. Esse debate

tem como pivô principalmente a relação com organizações internacionais provedoras de

financiamentos e os termos sob os quais essa relação se dá.

A socióloga Millie Thayer (2010) pesquisou a relação entre a ONG feminista

pernambucana SOS Corpo, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais de

Pernambuco e as agências financiadoras internacionais a que recorreram, de diferentes

formas e em diferentes medidas. O recorte cronológico da pesquisa é semelhante ao

desta tese, e ainda que guarde a diferença regional, tem em comum o tema dos

movimentos sociais de mulheres. A SOS Corpo chegou a realizar projetos sobre saúde

reprodutiva, tendo assim alguns pontos de contato com Criola e Geledés, cuja

preocupação com a saúde das mulheres negras foi um tema definidor de suas agendas

políticas.

281
Thayer observa o aumento do influxo de financiamentos, a partir da década de

1980, de agências de desenvolvimento do Norte Global164 para ONGs e, em menor

extensão, movimentos sociais de base [grassroots movements] do Sul Global. Nesse

contexto, ela ressalta o papel das feministas do Norte global em pressionar tais agências

para direcionarem seus recursos a organizações feministas do “Terceiro Mundo”

(THAYER, 2010, p. 130). Segundo a autora, as demandas das feministas do Norte

global com relação a direitos reprodutivos crescentemente se sobrepuseram às

perspectivas controlistas – que, como visto anteriormente, ainda se faziam sentir no

Brasil, inclusive pelo movimento de mulheres negras. Seguindo esse movimento,

agências financiadoras como a Fundação Ford passaram a investir em projetos ligados a

saúde reprodutiva de organizações de mulheres (THAYER, 2010, p. 133). Essa

mudança coincide com o boom de ONGs no Brasil e com o surgimento desse tipo de

organização a partir de movimentos feministas e, posteriormente, do movimento de

mulheres negras. Assim, é possível considerar que a oferta de recursos foi um elemento

significativo para a opção pelo formato de ONG por organizações como Criola e

Geledés. Embora as quantias desembolsadas pelas agências fossem pequenas em

relação a seu orçamento total, “esses fundos eram condição indispensável para a

sobrevivência de muitos movimentos, dada a falta de filantropia local e a escassez de

apoio estatal” (THAYER, 2010, p. 130, tradução minha). O auto-financiamento dos

movimentos sociais é um desafio histórico e, nesse cenário, encontrou solução nos

editais de agências internacionais.

Fazendo uma revisão bibliográfica sobre essa questão, Thayer compara a

literatura produzida pelas próprias agências de desenvolvimento e pelas organizações

164
O termo “Norte global”, utilizado pela autora, tem figurado em estudos pós-coloniais e transnacionais
(sua pesquisa se enquadra nesse último tipo) para se referir aos países que historicamente exerceram um
papel de dominação colonial, econômica, cultural e/ou politicamente, em relação aos chamados países do
“Sul global”.

282
financiadas com a literatura acadêmica. A utiliza termos como “parceria” e “cooperação

internacional”, que obscurecem as relações hierárquicas necessariamente envolvidas

(THAYER, 2010, p. 132). Já a literatura acadêmica costuma recair no extremo oposto,

conferindo poder absoluto às agências financiadoras e desconsiderando as “formas

complexas de negociação através das quais ‘beneficiários’ trabalham para impor suas

agendas” (THAYER, 2010, p. 132, tradução minha). Sua pesquisa mostrou um quadro

mais complexo. Por um lado, as disparidades econômicas entre as organizações

feministas e seus financiadores do Norte Global influenciam a estrutura e a orientação

política dessas organizações de várias maneiras, além de terem efeitos negativos nas

relações internas do movimento. Por outro lado, tanto as organizações feministas em

forma de movimento social de base quanto as ONGs têm algum grau de força em face

dos financiadores: aceitar auxílio financeiro internacional não significou, em si, o

abandono de objetivos políticos feministas, tendo as organizações defendido sua

autonomia financeira, comprando algumas brigas ou se engajando em diálogos

transnacionais (THAYER, 2010, p. 132-133).

Assim como Thayer, Cristiano Rodrigues e Marco Aurélio Prado usam as

categorias “ONG” e “movimento social de base” como formas organizativas possíveis

para o movimento social. Abordando especificamente o movimento de mulheres negras

e seu processo de “onguização”, eles comparam as duas formas e se referem ao

surgimento de conflitos internos ao movimento diante da tensão entre o dois formatos.

Por outro lado, identificam como vantagens do formato ONG: a “capacidade de

mobilizar recursos financeiros a partir de agência de fomento”; “possibilidade de se

relacionarem com organismos internacionais de regulação, como a ONU”;

“profissionalizarem seus quadros militantes, garantindo-lhes acesso a informações e

ferramentas de intervenção fundamentais” (RODRIGUES; PRADO, 2010, p. 452).

283
A profissionalização dos quadros e a captação de recursos de agências de

fomento são abordadas no trabalho de Millie Thayer não necessariamente como

vantagens, mas como fontes de conflitos internos ao movimento feminista. Para

entender as contradições desse quadro, vale observar o contexto em que os primeiros

financiamentos foram recebidos pelas ONGs de mulheres negras aqui analisadas.

As fundações do Geledés em 1988 e de Criola em 1992 as localizam em um

momento específico da dinâmica do “mundo do financiamento internacional”. Segundo

Thayer, a virada dos anos 1980 para os 1990 foi marcada por “uma sujeição mais ampla

do setor social às exigências de performance do mercado” (THAYER, 2010, p. 139,

tradução minha). Na leitura de uma integrante da SOS corpo, “se os anos 1970 foram a

‘década da solidariedade’ e os 1980, a ‘década das parcerias’, os anos 1990 foram a

‘década da dominação do profissionalismo, impacto e resultados’” (THAYER, 2010, p.

139, tradução minha). Considerando a guinada ao neoliberalismo nesse período tanto

nos Estados Unidos, onde grande parte das agências financiadoras se baseavam, como

no Brasil, o acirramento da disputa por recursos privados para demandas sociais, diante

do sucateamento crescente do setor público, ajuda a explicar esse quadro. Thayer afirma

que, como as agências passaram a sofrer maior escrutínio de seus doadores, as

condições para envio de dinheiro para o exterior foram dificultadas, crescendo nas

ONGs o tempo dedicado a escrever projetos e relatórios mais detalhados para os

financiadores (THAYER, 2010, p. 140, tradução minha).

A autora destaca ainda que o volume de trabalho que a formulação de projetos e

relatórios exigia contribuiu para a necessidade de contratar profissionais especializados

para lidar com certos assuntos (como contabilidade e administração). Nesse sentido,

Solimar Carneiro, do Geledés, afirmou, acentuando a tensão entre as demandas

burocráticas e as demandas do movimento social (“militância”):

284
“Há uma necessidade de profissionalização, há necessidade de capacitação,
há necessidade de você ter quadros de gerenciamento na sua organização e há
necessidade de você ter a militância porque também sem militância você não
faz ONG” (Solimar Carneiro, do Geledés, apud FEIJÓ, 2006, p. 35).

Na análise de Núbia Moreira, o processo de profissionalização da militância

acarretado pela “onguização” do movimento de mulheres negras “atendeu às pressões

que afetaram os movimentos sociais”, incluindo fatores como a “diminuição da

empregabilidade formal” e o “surgimento da economia informal que reduzira o acesso a

direitos sociais e à filiação sindical” nos anos 1990 (MOREIRA, 2018, p. 104).

Novamente, ressalto o impacto do avanço do neoliberalismo para a configuração desse

cenário.

Voltando à pesquisa de Millie Thayer, no caso da SOS Corpo, os financiamentos

internacionais resultaram em mudanças na própria estrutura da organização: de uma

“horizontalidade espontânea”, onde todas faziam de tudo, para uma estrutura

verticalizada e especializada (THAYER, 2010, p. 136). Um financiamento da Fundação

Ford, já em 1982, teve impacto particular nesse processo, pois previa algumas posições

específicas de trabalho que receberiam salários integrais, enquanto o restante da

organização continuaria como voluntária (THAYER, 2010, p. 136). De modo geral,

Thayer caracteriza esse movimento como uma mudança “do voluntarismo para a

profissionalização, das responsabilidades compartilhadas para o início de uma

especialização, do igualitarismo para a criação de uma hierarquia de salários e

autoridade” (THAYER, 2010, p. 137, tradução minha).

Para além da questão da profissionalização, as demandas das agências

financiadoras também impactaram em outros aspectos da atuação das ONGs advindas

de movimentos sociais. Embora continuassem a manter sua linha política feminista e/ou

antirracista, suas ações políticas não eram mais estritamente fruto das demandas

285
populares, passando a ter como critério a capacidade de captação de recursos sob forma

de projeto (THAYER, 2010, p. 140).

O caso da SOS Corpo ilustra outro aspecto dessa mudança nas formas de

atuação: os financiamentos abriram portas para colaborações com instituições ligadas ao

Estado, o que, por sua vez, gerou maior interesse das agências de fomento, “ávidas por

reforçar o processo de democratização e o papel da sociedade civil” junto ao Estado. O

porquê desse interesse por parte das agências de fomento será abordado adiante.

O afastamento relativo com as demandas da base e o foco de atuação voltado

para influenciar politicamente o aparelho do Estado aparece nesse depoimento de

Noelci Romero, do Maria Mulher:

“Eu acho que a maioria das ONGS não têm um atendimento, não têm um
contato direto com o público, ficam mais mesmo é na construção, na
elaboração e no acompanhamento de políticas públicas, mas para isso precisa
ter essa base que é o contato direto com as pessoas (...) mas são muito poucas
as organizações que têm o contato direto com o público” (FEIJÓ, 2006, p.
34)

De acordo com a análise de Millie Thayer, as mudanças nas formas de atuação

das ONGs incluem uma consequência mais ampla: a mercantilização das relações no

âmbito dos movimentos sociais. Segundo ela:

“Junto com os financiamentos de instituições doadoras vêm discursos e


práticas que ajudam a moldar o terreno em que os beneficiários
conceitualizam e executam seu trabalho. Muitos desses discursos e práticas
fazem ecoar os do capital global de outra forma; o efeito é atrair os
movimentos sociais – os profissionalizados em particular – para mais perto
de uma rede de relações mercantilizadas, que ameaçam substituir
solidariedades políticas e valores morais compartilhados por relações
instrumentais baseadas em interesses institucionais” (THAYER, 2010, p.
142).

2.2.2. Quem financia as ONGs de mulheres negras?

286
Antes de entrar nessa questão, vale ressaltar que não tenho a intenção de fazer

uma análise profunda sobre a dinâmica dos financiamentos das organizações aqui

citadas, porque esse trabalho, que requereria procedimentos complexos e cuidadosos,

sem dúvida resultaria em uma tese a parte. Ainda assim, não poderia me furtar a abordar

essa questão, ainda que de maneira panorâmica e superficial, dada a importância que

acredito que essa análise tenha para pensar a autonomia dos movimentos sociais e suas

estratégias organizativas. Acredito, ainda, que uma pesquisa dedicada sobre as relações

entre APHs financiadores e financiados no movimento de mulheres negras baseada no

método do Estado Ampliado poderia trazer elementos riquíssimos para a discussão. As

considerações estabelecidas aqui procuram ser um ponto de partida para tal.

Outro ponto importante a sublinhar trata da amostragem de fontes com que

trabalho nesse ponto. Utilizo principalmente publicações institucionais de Criola e

Geledés, como cadernos, boletins e cartilhas, além de informações sobre as instituições

financiadoras presentes em suas páginas oficiais da internet. As publicações de Criola e

Geledés foram obtidas na biblioteca do Geledés e na internet, que varri com afinco para

encontrar tudo que pudesse estar em algum lugar na rede. Não consegui ter acesso aos

arquivos do Geledés, ainda que tenha ido pessoalmente à sede da organização. Assim,

minha amostragem não cobre todo o recorte cronológico da pesquisa, tendo alguns

lapsos e intervalos. Além das publicações oficiais, teria sido muito importante ter acesso

a relatórios financeiros e documentos que pudessem revelar não apenas as quantias

recebidas e as ações com elas empreendidas, mas também aqueles que estabelecessem

os termos dos financiamentos, como editais e contratos. Acredito que uma pesquisadora

ou pesquisador dedicada exclusivamente à questão dos financiamentos possa ter mais

sucesso do que eu na busca por esse tipo de documentação.

287
No site de Criola, na aba “Quem Somos”, há uma lista intitulada “instituições

que apoiaram o trabalho de Criola ao longo de sua história”. Essa lista, que não

discrimina as instituições que atuaram como financiadoras das que apoiaram de outras

formas a ONG, ou traz valores ou períodos em que o apoio ocorreu, lista as seguintes

instituições: American Jewish World Service (AJWS), Ashoka, Fundación AVINA,

Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Baobá – Fundo para Equidade Racial

(TIDES Foundation), CMC-PSO, CORDAID, Department for International

Development (DFID-UK), FASE/SAAP, Frauen Anstiftung165, Fundação Cultural

Palmares, Fundação Heinrich Böll, Fundo Angela Borba (Fundo Elas de Investimento

Social), Fundo Fiduciário das Nações Unidas Contra a Violência Contra a Mulher,

Fundo Nacional de Saúde, Global Exchange, Global Fund for Women, ICCO

Cooperation, Instituto Avon, Inter-American Foundation (IAF), Mama Cash, McKinsey

& Co., Melania Foundation, Ministério da Saúde/CN-DST/AIDS, Movimento Laici

America Latina (MLAL), Mulheres Imigrantes Brasileiras (MUIMBRAS), Public

Welfare, Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afro-Americanos –

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROAFRO/UERJ) e Programa de Estudos

Pós-Graduados em Política Social e Núcleo Transdisciplinar em Estudos de Gênero –

Universidade Federal Fluminense (UFF).166

Fora as duas universidades públicas, a lista é composta por 7 instituições

nacionais e 19 internacionais.167 Das internacionais, desconsiderando as multilaterais

(BID e ONU), 8 são baseadas nos Estados Unidos, 8 na Europa e apenas 1 na América

165
O Frauen Stiftung tem relação com o Heirich Böll Stiftung, como consta no site da Fundação Heinrich
Böll. As cartilhas Toques de Criola de 1997 tratam a primeira como se fosse o antigo nome da Heinrich
Böll. Cf. <https://www.boell.de/de/geschichte-der-stiftung>. Acesso em 23 jan. 2020.
166
Cf. <https://criola.org.br/?onepage=quem-somos>. Acesso em 23 jan. 2020.
167
Não consegui identifcar a sigla CMC-PSO, que consta no site de Criola, ou associá-la a nenhuma
instituição.

288
Latina. O “tipo” de instituição que consta na tabela está alinhado com a própria

descrição das instituições em seus respectivos sites.

Tabela. Instituições Financiadoras Internacionais (Criola)

Instituição País base Tipo Observação168


American Jewish World EUA ONG Associação
Service (AJWS) religiosa (judaica)
Ashoka EUA ONG Fundada pelo
“empreendedor
social” Bill
Drayton169
Avina Panamá Fundação Ligada ao Grupo
Nueva (holding de
empreendimentos
florestais)170
Banco Interamericano de Internacional Org. financeira
Desenvolvimento (BID)
Tides EUA Org. filantrópica
Cordaid HOL Org. filantrópica Fusão de
instituições de
caridade católicas
Department of International GB Org.
Development (DFID) governamental
Frauen Anstiftung ALE Fundo Fundação federal
do Partido Verde
Alemão
Heinrich Böll ALE Fundação Fusão de
fundações ligadas
ao Partido Verde
alemão
ONU Internacional Org. internacional
Global Exchange EUA ONG
Global Fund for Women EUA Fundação
ICCO HOL ONG Originalmente,
orga. religiosa de
igrejas
protestantes
Inter-American Foundation EUA Organização
(IAF) governamental
Mama Cash HOL Fundo
McKinsey & Co. EUA Empresa
Melania HOL Fundação
Movimento Laici America ITA ONG
Latina (MLAL)
Public Welfare Foundation EUA Fundação Originalmente
ligada a um
holding de jornais

168
Informações encontradas sobre vinculações das organizações com entidades religiosas, empresas e/ou
partidos.
169
Cf. <https://en.wikipedia.org/wiki/Bill_Drayton>. Acesso em: 05 fev. 2020.
170
Cf. <https://gruponueva.com/?page_id=218&lang=pt>. Acesso em: 05 fev. 2020.

289
Das publicações de Criola a que tive acesso, as mais antigas datam de 1997: são

as cartilhas “Toques – Prevenção de DTS/AIDS para adolescentes”, volumes 1, 2 3 e 4.

Todas trazem na contracapa uma ficha técnica com informações sobre o financiamento

do material, além dos responsáveis pela elaboração, projeto gráfico, etc. Ministério da

Saúde e Heinrich Böll Stiftung. Nos anos 2000, os boletins Toques – com o mesmo

nome, mas com outro formato e proposta, também traz ficha técnica semelhante ao fim

de cada publicação. A Public Welfare Foundation financiou sozinha pelo menos 11

boletins entre 2001 e 2003, todos com tiragem de 5000 exemplares. Em 2004 e 2005, a

American Jewish World Service aparece ao lado da Public Welfare no financiamento

dessa publicação. A partir de 2009, a tiragem do Boletim aumenta para 8000

exemplares e passa a ser financiado pelo Heinrich Böll Stiftung, com apoio do Global

Fund For Women. Em 2010, o Global Fund prossegue figurando como “apoio” e o

“financiador” passa a ser a Fundación Avina.

Sobre o organização orçamentária de Criola, Ana Angélica Sebastião conseguiu

levantar dados relativos ao ano de 2006, em que a organização teria registrado uma

dotação orçamentária de um milhão de reais,

“sendo 611 mil destinados para a área da saúde, 345 mil para projetos
dedicados aos direitos humanos e 30 mil para o setor de geração de renda. O
programa de difusão de informação (publicação de livros, boletins, folders,
entre outros) é financiado com os recursos dos projetos específicos. A
articulação política (encontros políticos, palestras, eventos, entre outros) e o
desenvolvimento institucional (metodologia, transparência, captação de
recursos, etc) não recebem nenhum tipo de financiamento” (SEBASTIÃO,
2007, p. 53).

Naquele ano, esse valor foi distribuído da seguinte forma: 5% para despesas

com prestadoras de serviço público (água, luz, telefone, etc.); 10% para quadro pessoal;

10% para encargos; 8% para material de escritório e pedagógico; 10% para publicações

e manutenção do site; 40% para cursos (incluindo transporte, hospedagem, aluguel de

290
equipamentos); 3% para suporte para geração de renda; 0,1% para advocacy, 5% para

consultorias, 5% em infra-estrutura e 0,1% em taxas” (SEBASTIÃO, 2007, p. 53).

Com relação ao Geledés, seu portal online contem uma aba “parcerias”, em que

traz os logos de instituições que apoiam suas iniciativas, conforme o próprio site coloca.

Não fica claro, mas é provável, pelo número reduzido de instituições, que sejam apenas

as “parceiras” atuais do Geledés. São elas: Fundação Tide Setubal, Instituto

Ibirapitanga, Fundação Ford, Open Society Foundations, Coordenadoria da Mulher em

Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo

(COMESP) e Instituto Mattos Filho, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

(IBCCRIM).

Os Cadernos Geledés, embora tragam ficha técnica assim como as publicações

de Criola, não discriminam instituições financiadoras ou de apoio ao material. Já o

documento produzido por ocasião do Seminário Nacional de Políticas e Direitos

Reprodutivos das Mulheres Negras, organizado pelo Geledés em agosto de 1993 na

cidade paulista de Itapecerica da Serra, traz na contracapa os apoios de: International

Women’s Coalition, Fundação MacArthur, Medische hulp aan de derde Wereid

(MEMISA) e Banco do Estado de São Paulo (Banespa).

Outro documento proveniente de um encontro do qual o Geledés participou da

comissão organizadora foi a Carta produzida por ocasião do Encontro Nacional Mulher

e População – Nossos Direitos para Cairo 94. Além do Geledés, organizaram esse

Encontro a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), a ONG feminista

Cidadania: Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA), o Centro Feminista de

Estudos e Assessoria (CFMEA), a Comissão de Cidadania e Reprodução e a SOS

Corpo. Apoiaram o evento e a publicação a Fundação MacArthur, a Fundação Ford e o

Fundo de População das Nações Unidas (FNUAP).

291
A entrevista de Sueli Carneiro para Amílcar Pereira e Verena Alberti apresenta

alguns dos principais financiadores do Geledés ao longo do tempo. Sueli comenta de

saída sobre essa questão que “Nós temos tido apoio institucional da Fundação Ford

historicamente” (CARNEIRO, 2004, s.p.). Ela afirma ainda que o primeiro

financiamento internacional recebido pela organização foi da International Women’s

Coalition. Além disso, identifica a Fundação MacArthur, o Ministério da Justiça, a

Fundação Palmares, Fundação Lévi-Strauss, Kodak do Brasil e Fundação Bank Boston.

O Geledés aparece pela primeira vez no relatório anual da Fundação Ford

referente ao ano de 1990, na categoria “Direitos humanos e justiça social, subcategoria

“Acesso à justiça social/serviços legais”, com uma doação de US$50 mil.171 Os

financiamentos prosseguem por toda a década de 1990. No relatório anual de 1991, nas

mesmas categoria e subcategoria, a doação para o Instituto sobe para US$200 mil.172

Em 1993, é feita uma nova doação de US$200 mil.173 No relatório de 1994, ano em que

recebeu US$25 mil, o Geledés figura no corpo de texto que apresenta as doações da

Fundação, para além da tabela, pela primeira vez:174

“Também no Brasil, o Geledés – Instituto da Mulher Negra recebeu


financiamento suplementar para pesquisa e educação pública sobre normas
comparadas de direitos civis [comparative civil rights law] e serviços legais
para vítimas de discriminação racial”.175

Em 1996, o financiamento recebido aparece na categoria “Saúde reprodutiva e

população”, subcategoria “Pesquisa e treinamento em ciência social”, no valor de

171
FORD FOUNDATION. 1990 Annual Report, p. 79. Disponível em:
<https://www.fordfoundation.org/media/2430/1990-annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
172
Idem. 1991 Annual Report, p. 68. Disponível em: <
https://www.fordfoundation.org/about/library/annual-reports/1991-annual-report/> Acesso em 24 jan.
2020.
173
Idem. 1993 Annual Report, p. 41. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2427/1993-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
174
Idem. 1994 Annual Report, p. 41. Disponível em: <
https://www.fordfoundation.org/media/2426/1994-annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
175
Ibidem, p. 33.

292
US$30 mil.176 Em 1998, na categoria “Direitos Humanos e Cooperação Internacional”,

subcategoria “Acesso à justiça social/serviços legais”, é feita doação de US$210 mil

para o Instituto, discriminada a mesma finalidade do relatório de 1994, supracitada.177 O

valor recebido em 1998 foi de US$295 mil, “para curso de treinamento em

administração pública para lideranças afro-brasileiras”.178 Em 1999, US$199.200 para

“conscientização pública sobre racismo e desigualdade na jurisprudência brasileira”.179

Em 2000, US$350 mil “para pesquisa e assistência em direitos afro-brasileiros e para

preparação para a Conferência Beijing + 5 e a Conferência das Nações Unidas de 2001

contra o racismo”.180

O depoimento de Edna Roland a Verena Alberti e Amílcar Pereira também

ilustra a importância da Fundação Ford e sublinha a importância da Fundação

MacArthur no financiamento da organização:

“Acho que já em 1990, sai o financiamento da Ford para o SOS Racismo. Ao


mesmo tempo, Carmem Barroso, que foi da Fundação Carlos Chagas no
Brasil, ela tinha ido para os Estados Unidos dirigir um programa de
população. E ela vem ao Brasil, ela está em busca de projetos interessantes e
instituições para financiar. [...] Então eu procuro Carmem para falar que nós
estamos com essa organização de mulheres negras, se a Fundação MacArthur
poderia nos apoiar. Ela demonstra interesse, pede que a gente elabore um
projeto. Então a gente elabora um projeto, e aí então, eu creio que é isso – eu
não sei se é 1990, 91 –, eu sei que o primeiro grande financiamento é da Ford
– a [International Women’s] Coalition foi um pequeno para essa viagem
[para os Estados Unidos], aí vem a Ford. Não, a Coalition só intermedia, mas
ela foi fundamental. Aí a Fundação Ford é um grande financiamento, depois
a Fundação MacArthur é o segundo grande financiamento. A Ford então vai
financiando o Programa de Direitos Humanos do Geledés e a Fundação
MacArthur financiando o Programa de Saúde. (ROLAND, 2004, s.p.).

176
Idem. 1996 Annual Report, p. 34. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2424/1996-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
177
Idem. 1997 Annual Report, p. 98. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2423/1997-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
178
Idem. 1998 Annual Report, p. 86. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2422/1998-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
179
Idem. 1999 Annual Report, p. 93. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2410/1999-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
180
Idem. 2000 Annual Report, p. 120. Disponível em:
<https://www.fordfoundation.org/media/2410/1999-annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.

293
Edna também comenta sobre o impacto do financiamento no Seminário de

Direitos Reprodutivos de Itapecerica da Serra, de 1994:

“[...] O financiamento deste seminário foi, justamente, feito pela Fundação


MacArthur, acho que a Coalition também pôs algum dinheiro, nós já
estávamos com os projetos, já tínhamos dinheiro... e colocamos na
organização do seminário. Então a gente deu uma qualidade e uma
profissionalização no funcionamento, na administração... Eu lembro que nós
tínhamos um laptop, que nós tínhamos ganho...
V.A. – Muito chique, em 1994.
E.R. – É, mas foi um buffet chiquérrimo. [riso]” (ROLAND, 2004, s.p.)

Encontrei algumas informações em relação ao apoio da Fundação MacArthur ao

Geledés no início dos anos 1990. O matemático Vipul Naik formulou um portal com

informações sobre doações e financiamentos que foram anunciadas publicamente ou

compartilhadas com permissão pelas partes envolvidas.181 Ele ressalta que o repositório

de informações ainda está em fase de desenvolvimento e que os dados ainda são

preliminares. No site, consta que o Geledés teria recebido da Fundação MacArthur

US$230 mil em 1991, US$100 mil em 1993 e US$333.500 em 1994. O repositório traz

ainda o propósito de cada financiamento. Seguem, respectivamente, os propósitos dos

financiamentos de 1991, 1993 e 1994: “Expandir o programa de saúde, incluindo

pesquisa, educação e advocacy ligados à saúde de mulheres negras no Brasil”; “Avaliar

o programa de saúde, criado para aumentar o conhecimento e a conscientização entre as

mulheres negras em relação à sua saúde”; “Apoiar o programa de saúde servindo a

mulheres negras”. 182

Diante desse complexo quadro e da impossibilidade de analisar todas as

instituições mencionadas, opto por observar mais detidamente algumas delas, focando-

me em organizações baseadas em países norte-americanos e europeus, em sintonia com

181
Disponível em: <https://donations.vipulnaik.com/>. Acesso em 23 jan. 2020.
182
Todos os dados sobre o Geledés citados estão disponíveis em:
<https://donations.vipulnaik.com/donee.php?donee=Geledes+Instituto+da+Mulher+Negra>. Acesso em
23 jan. 2020.

294
a análise de Millie Thayer dos financiamentos do Norte global para o Sul global.

Considerando ainda o volume de estudos e informações disponíveis sobre as instituições

financiadoras, abordarei especificamente apenas as Fundações Ford e MacArthur.

Das instituições financiadoras citadas até aqui, a Fundação Ford possivelmente é

a que mais extensamente tem sido estudada em diferentes campos acadêmicos, dada a

extensão de sua influência global e, em especial, na América Latina e no Brasil. A

Fundação Ford foi criada em 1936, como consequência de uma reforma fiscal do

governo de Franklin D. Roosevelt (1933-1945) nos Estados Unidos, que elevou o

imposto a ser pago por patrimônio ou rena superior a cinquenta milhões de dólares:

“Mirando as isenções fiscais, [...] 90% das ações da Ford Motor Company foram

transferidas para o caixa de fundo filantrópico familiar, a Fundação Ford” (CHAVES,

2015, p. 229-230). A filantropia norte-americana do período se afastava da ideia de

caridade, sendo entendida como “gestora de um empreendimento capitalista”, devendo

então observar “princípios de mercado na captação, aplicação e reprodução dos ativos

financeiros” das fundações (CHAVES, 2015, p. 230).

Em 1948, a Fundação passou por uma reformulação com o objetivo de

consolidá-la como “parte da grande filantropia”. Segundo Wanderson Chaves, “a

expectativa [...] era de que a Fundação Ford utilizasse seu imenso potencial de recursos

e influência para engajar-se nos enfrentamentos entre ‘mundo livre’ e mundo

comunista”, através de uma orientação voltada para o âmbito interno e para o exterior

(CHAVES, 2015, p. 232). A partir da década de 1950, a Ford consolidava algumas

posições, tais como: “que a pobreza era o repositório e o principal estímulo das formas

autoritárias de vida política; que o ‘progresso econômico’ era a expressão ampla e acaba

do amadurecimento das sociedades [...]”, etc (CHAVES, 2015 p. 234). Assim, a defesa

de uma sociedade democrática pela Ford significava necessariamente a defesa do

295
capitalismo enquanto sistema promotor de estabilidade social. O chamado Relatório

Gaither, que estabelece tais posições, continua sendo a carta de princípios da Fundação

até a atualidade (CHAVES, 2015, p. 248)

A defesa da democracia e, com ela, do capitalismo pela Fundação ganhou novos

contornos na virada dos anos 1980 para os 1990, com o advento da política econômica

neoliberal em várias partes do globo. Jacquelyn Holmes argumenta que “quando os

efeitos colaterais da política neoliberal começaram a emergir na América Latina”, a

Fundação Ford voltou sua atenção para organizações privadas (HOLMES, 2013, p. 76)

– que, antes, focava-se no desenvolvimento de pesquisas em ciências sociais em

universidades públicas (CANEDO, 2017). Segundo Holmes, na virada para os anos

1990 a Fundação acreditava que o Estado de Bem Estar Social não era mais necessário,

que organizações privadas poderiam ser responsáveis pelos cidadãos marginalizados e

que, “ao apoiar esses grupos, [...] acreditava que poderia se aproximar do reforço do

tipo de democracia definida em sua missão” (HOLMES, 2013, p. 88) – democracia essa

inextricavelmente ligada à preservação do stablishment capitalista.

A Fundação MacArthur, similarmente à Ford, foi criada para proteger os

negócios de John D. MacArthur da taxação de seu patrimônio (ELKIND, 2015, p. 45).

Fundada em 1970, se estabeleceu como fundação consolidada apenas no fim dos anos

1980, sendo assim uma organização comparativamente recente (ELKIND, 2015, p. 48).

Seu programa de População, apresentado em 1988, ano de criação do Geledés, baseava-

se em uma “abordagem compreensiva da saúde feminina para além dos serviços de

planejamento familiar”, além de um atendimento às necessidades financeiras e sociais

das mulheres (ELKIND, 2015, p 52). Perrin Elkind atribui essa compreensão, presente

na MacArthur desde o início, ao fato de que o movimento feminista já havia “vencido”

o debate sobre saúde reprodutiva contra os controlistas populacionais a essa altura.

296
Elkind ressalta que a MacArthur teve uma abordagem mais “ousada” do que as

fundações mais antigas ao investir pesadamente nas novas organizações dos países em

desenvolvimento e não tanto nas instituições estadunidenses mais estabelecidas

(ELKIND, 2015, p. 70).

No relatório da Fundação MacArthur sobre sua atuação no Brasil, afirma-se que

“organizações da sociedade civil trabalham através de redes e de exercer


influência em instituições mais poderosas. Elas selecionam e usam
informações convincentes para explicitar as consequências do fracasso e do
sucesso na saúde reprodutiva e sexual. Elas também desenvolvem e
defendem políticas e estratégias que vão ao encontro a seus objetivos”183

A perspectiva de ação da MacArthur baseia-se, como a Ford, na defesa do

acesso a direitos fundamentais por grupos marginalizados – no caso, a saúde

reprodutiva de mulheres. No contexto da política neoliberal, a Fundação apoia

organizações privadas, da “sociedade civil”, “não-governamentais”, para que se

instrumentalizem e pressionem “instituições mais poderosas” a garantirem esse acesso.

2.3.2 Por que financiam? Interesses em jogo

Dizer que tanto as ONGs e as instituições que as financiam são aparelhos

privados de hegemonia significa que elas são entendidas como espaços de atuação de

intelectuais orgânicos. Como explica Gramsci, não existe intelectual que paire acima

dos conflitos sociais, desvinculado dos conflitos e desinteressado, neutro. Assim,

enquanto as ONGs de mulheres negras são APHs da classe trabalhadora como unidade

contraditória, as instituições financiadoras são APHs empresariais, cujos intelectuais

orgânicos defendem os interesses desse grupo social.

183
THE JOHN D. AND CATHERINE T. MACARTHUR FOUNDATION. The Population and
Reproductive Health Program in Brazil: Lessons Learned (1990-2002). Chicago: MacArthur Foundation,
2003.

297
Segundo Virgínia Fontes, além das entidades organizativas empresariais que

defendem “interesses políticos voltados imediatamente para questões econômicas”, há

aquelas destinadas à “acomodação social convenientes a dominação de classe”

(FONTES, 2018, p. 226). Entender os interesses de classe dos APHs empresariais no

financiamento de APHs de movimentos sociais contra-hegemônicos não significa cair

em “uma visão demoníaca da sociedade civil, como o local de controle quase absoluto

de todas as instâncias de vida social pelo capital”, perspectiva essa que “hipostasia a

dominação e desconsidera a importância das contradições sociais e das modalidades

multiformes da luta de classes” (FONTES, 2018, p. 229). É preciso entender a dinâmica

desse conflito e os interesses contraditórios em jogo.

Me refiro principalmente à década de 1990 para pensar as dinâmicas de

financiamento de ONGs de mulheres negras, contexto de dominação da política

neoliberal globalmente e no Brasil. Susan Watkins abordou o impacto dos

financiamentos de fundações empresariais na política feminista estadunidense, que

mudou acentuadamente de uma perspectiva “liberacionista” na década de 1960 para o

que ela chama de um feminismo “anti-discriminação”, que acabou se tornando

hegemônico nas décadas posteriores. Essa abordagem, segundo Watkins, deixa de ter

como como alvo as estruturas que promovem a desigualdade e passa a demandar

medidas que promovam “oportunidades iguais” para mulheres: “mais mulheres no topo

das 500 empresas da Forbes”, mais mulheres CEOs, etc. (WATKINS, 2018, p. 15).

Watkins analisa a maneira como o pensamento neoliberal, especificamente de

Milton Friedman e dos “Chicago Boys”, formulou a aproximação entre o

neoliberalismo e uma política “anti-discriminação”. A autora afirma que os neoliberais

norte-americanos

298
“estavam ávidos para se posicionar ao lado do progresso, contra “obstáculos”
ultrapassados – sindicatos e burocracia, claro, mas também intolerância e
preconceito racista, sexista ou homofóbico – para amaciar o funcionamento
de um livre mercado” (WATKINS, 2018, p. 13).

Segundo ela, a perspectiva neoliberal “passou a ver vantagens na promoção ativa

de mulheres e minorias”, que trouxe “uma aparência progressista para a imagem das

empresas sem nenhum custo extra” (WATKINS, 2018, p. 15).

Watkins ressalta a “intervenção ativa” de fundações filantrópicas na

institucionalização do feminismo estadunidense (WATKINS, 2018, p. 21). Esse

processo seria responsável pela instalação da “abordagem anti-discriminação como a

forma hegemônica de política feminista, enquanto o ‘mainstream’ em que se tentava

integrar as mulheres estava sendo reformulado por políticas neoliberais Friedmanianas”

(WATKINS, 2018, p. 21). A autora aponta a Fundação Ford como a principal

financiadora das organizações feministas, “com US$200 milhões por ano para gastar em

reforma social e um time de 400 pessoas para varrer o país buscando beneficiários

promissores” (WATKINS, 2018, p. 21).

Desde a década de 1970, a Ford “encheu de dinheiro os comitês feministas anti-

discriminação cujas agendas combinavam com a da Fundação” (WATKINS, 2018, p.

22). Na década de 1990, “o financiamento de fundações para o feminismo mainstream

norte-americano ultrapassava os US$ 60 milhões por ano, dando-lhe uma enorme

vantagem em relação aos ramos mais radicais”, dentro e fora do país (WATKINS, 2018,

p. 23).

Se considerarmos o contexto brasileiro da virada dos anos 1980 para os 1990,

com o fim da ditadura empresarial-militar e a expansão das lutas populares e de

organizações a elas ligadas, esse quadro torna-se ainda mais crítico (FONTES, 2018, p.

227). Segundo Fontes,

299
“Foi sobre essas lutas populares que as estratégias burguesas da filantropia
procuraram agir, numa verdadeira operação de conversão. No plano interno,
nos diversos âmbitos nacionais, tratava-se de converter reivindicações
emergentes em ajuda emergencial, esvaziando um provável sentido de
enfrentamento ao capital. No plano externo, tratava-se de assegurar uma
distância segura entre ativismo internacional e conexões políticas
internacionais. Forneciam recursos – escassos e insuficientes – para
problemas variados, sustentando um ativismo limitado em seu alcance.
Tratava-se de gerir diferentes lutas específicas, especializadas. Em todos os
casos, uma condição fundamental para o acesso a recursos: a de se manterem
estritamente na atuação imediata, pragmática, ‘apolítica’” (FONTES, 2018,
p. 230)

Como coloca Watkins, “naturalmente, os doadores estabeleciam um preço”

(WATKINS, 2018, p. 24). Assim como ocorreu com o feminismo norte-americano, a

prática de recorrer a financiamentos resultou em uma “perda de autonomia, radicalidade

e combatividade da militância feminista” (GURGEL apud MOREIRA, 2018, p. 109).

Sobre as ONGs feministas norte-americanas, Watkins diz que:

“Novos grupos buscando financiamento eram direcionados para trabalhar


com ações afirmativas – ajudar mulheres individualmente, principalmente
mulheres jovens, ou pessoas de cor, ou mulheres com desvantagens, ou
mulheres de países com desvantagens, para obter sucesso dentro do sistema –
ou justiça criminal: cooperação ativa com a polícia, os tribunais, as
autoridades imigratórias. Financiamentos de fundações e ajuda estatal
recalibraram a cultura interna das organizações do movimento. Discussões
estratégicas mais amplas, campanhas mais radicais e programas de educação
popular foram deixados de lado em favor de procedimentos demorados de
concorrer ao status de organização não-lucrativa, escrever descrição de
cargos, retirar seguros e adotar estruturas pseudo-empresariais: diretor
executivo, conselho fiduciário, contadores profissionais, relações públicas,
captador de recursos. Assim que as militantes houvessem se transformado em
oficiais assalariadas, o medo de perder seu meio de subsistência levou a um
crescente conservadorismo e auto-censura. A preferência das fundações por
projetos inovadores ajudou a aprofundar a segmentação da prática feminista,
com grupos de campanha sob pressão para promover sua especialidade como
exclusivas, com seu próprio ‘nicho organizacional’. Em vez de aproximar
diferentes grupos de mulheres, como o movimento em seu início desejava
fazer, os processos de concorrência dos doadores os encorajaram a competir
uns com os outros na luta por financiamento.” (WATKINS, 2018, p. 24).

Esse tipo de dinâmica, longe de se tratar de um controle absoluto dos

movimentos sociais pelas entidades empresariais, configura um quadro cheio de

contradições. Uma das entrevistadas por Núbia Moreira em sua pesquisa comentou o

300
impacto da institucionalização do movimento de mulheres negras, ilustrando muito bem

esse cenário. Ela diz:

“Não é mais uma reunião no final da tarde, depois que você deu 500 aulas ou
cuidou de filhos e marido, você é financiado para poder se organizar. Então
isso dá uma diferença nos anos 90, pois a partir do momento que você tem
uma ONG, você começa a ter também a sua linha de atuação e muitas
pessoas não gostam que se diga isso: agora em muitos momentos você vai ter
que agir de acordo com agendas das financiadoras. Isso fortalece do ponto de
vista de uma organização, mas muitas vezes não ajuda ao movimento
enquanto tal, porque o movimento quer fazer revolução. Ninguém financia
revolução!” (MOREIRA, 2018, p. 117, grifo meu).

O relatório anual da Fundação Ford de 1990 estabelece que “provê apoio para

programas de pesquisa, educação e advocacy que se preocupam com a diversidade, que

desafiam barreiras legais e de costumes para o avança econômico, político e social, que

resguardam o exercício dos direitos civis e políticos e que promovem a observância do

cumprimento da lei”.184 A revolução, sem dúvida, não observa o cumprimento da lei

burguesa.

2.3 Política transnacional: atuação das organizações de mulheres negras

em Conferências Internacionais

Catalina Zambramo usa o termo “ativismo afro latino-americano” para designar

“um tipo de ativismo transnacional que se desenvolve em distintos espaços onde se

promove a interação entre indivíduos e as organizações dos diferentes países da região”

(ZAMBRAMO, 2017, p. 131) Ela destaca a importância dos eventos internacionais para

a formação dessa rede de “ativismo transnacional”. Esses eventos, assim, constituiriam

“espaços transnacionais” nos quais “se traçaram alianças e propostas de ação entre as

184
FORD FOUNDATION. 1990 Annual Report, p. 54.

301
ativistas de movimentos de mulheres negras na América Latina” (ZAMBRAMO, 2017,

p. 128).

Dentre esses espaços transnacionais, destaco aqui três eventos de grande

importância para o movimento de mulheres negras, todos organizados pela Organização

das Nações Unidas: Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (Cairo,

1994); IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995) e; III Conferência

Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de

Intolerância (Durban, 2001). Meu objetivo aqui não é me aprofundar nos pormenores

das Conferências, mas compreendê-los como um aspecto do cenário contraditório em

que atuaram as ONGs de mulheres negras, como Geledés e Criola. Se, por um lado, a

institucionalização do movimento foi acompanhada da dependência em larga escala de

financiamentos internacionais, com seus encargos, por outro, compreendeu também um

fortalecimento de laços de solidariedade transnacional com mulheres negras latino-

americanas, caribenhas e de outros lugares do globo. Cabe lembrar que, como revelaram

alguns dos depoimentos já citados, a decisão de comparecer ou não a esses eventos

também envolveu o financiamento internacional.

2.3.1 Cairo, 1994

O Seminário Nacional de Políticas Públicas e Direitos Reprodutivos, organizado

em Itapecerica da Serra em agosto de 1993 pelo Geledés, fez parte de uma série de

eventos de preparação para a Conferência Internacional de População e

Desenvolvimento, que ocorreria no Cairo em 1994. Esse evento recebeu apoio (e,

possivelmente, financiamento) da International Women’s Health Coalition, da

302
Fundação MacArthur, da Medische hulp aan de derde Wereid (MEMISA) e do Banco

do Estado de São Paulo (BANESPA). 185

Segundo a Apresentação da Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres

Negras Brasileiras, o objetivo do Seminário era “estimular a participação das mulheres

negras no processo que antecede a Conferência Internacional do Cairo”.186 O

documento afirma que “pela primeira vez no Brasil, as mulheres negras pertencentes às

mais diversas organizações do movimento de mulheres negras, movimento negro,

movimento feminista, centros de pesquisa e rede de saúde se reuniram para definir a sua

visão em relação às questões de população e direitos reprodutivos”.187 As lideranças

presentes nesse Seminário representavam 45 organizações de 15 estados brasileiros

diferentes e do Distrito Federal.188

Edna Roland conta que a Conferência do Cairo “foi a primeira conferência em

que o governo brasileiro incorpora a representação da sociedade civil na delegação

oficial do Brasil” (ROLAND, 2004, s.p.). Para Catalina Zambramo,o Cairo representou

um ponto de encontro para compartilhamento de experiências e estratégias das mulheres

da América Latina que, ao longo dos anos 1990, reclamavam “o direito à sexualidade e

a saúde reprodutiva, combatendo a esterilização forçada e colocando novas tecnologias

de controle de fecundidade à disposição das mulheres” (ZAMBRAMO, 2017, p. 176).

Como exposto anteriormente, questões ligadas à saúde e a direitos reprodutivos foram

de capital importância para o movimento de mulheres negras desde a década de 1980,

tendo constituído alguns dos eixos centrais que orientaram a atuação de organizações

como Criola e Geledés, que participaram da conferência do Cairo. Além da participação

de intelectuais negras brasileiras, Zambramo afirma que destacaram-se a participação de

185
GELEDÉS-INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Declararação de Itapecerica da Serra das
Mulheres Negras Brasileiras. [Folheto] 1993, s.p.
186
Ibidem.
187
Ibidem.
188
Ibidem, p. 1.

303
militantes negras dominicanas, costarriquenhas e da Rede de Mulheres Afro Latino-

americanas (ZAMBRAMO, 2017, p. 180). Elas pautavam a necessidade de construção

de programas de saúde reprodutiva que satisfizessem as necessidades das mulheres,

inclusive adolescentes, e que envolvessem essas mulheres “na liderança, planificação,

tomada de decisões, gestão, implantação, organização e avaliação dos serviços”

(ZAMBRAMO, 2017, p. 180).

Zambramo afirma ainda que “diversos itens pautados pelas mulheres negras

foram incorporados ao Relatório Oficial do governo brasileiro para a Conferência do

Cairo” e que elas foram responsáveis por organizar um painel internacional sobre saúde

e direitos reprodutivos no Fórum de ONGs, paralelo à Conferência (ZAMBRAMO,

2017, p. 181).

2.3.2. Beijing, 1995

De acordo com Cristiano Rodrigues, as preparações para a IV Conferência

Mundial sobre a Mulher, que ocorreu em Beijing, 1995, começaram já no ano de 1994,

o que revela “um crescente esforço de envolvimento nos processos de articulação e

intervenção na sociedade civil mundial” por parte das organizações de mulheres negras

(RODRIGUES, 2006, p. 186). No escopo dessa preparação, “ativistas do movimento de

mulheres negras participaram em fóruns estaduais e compareceram amplamente durante

a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, que ocorreu em julho de 1995”

(CALDWELL, 2007, p. 163). O resultado desse envolvimento foi a incorporação da

questão racial na Declaração de Mulheres Brasileiras para a Conferência sobre

Mulheres de 1995, assim como no documento oficial do governo brasileiro para

Beijing’95 (CALDWELL, 2007, p. 163).

Segundo Alvarez,
304
“as mulheres afro-latino-americanas [...] participaram do processo de Beijing
em números expressivos, proclamando que ‘qualquer estratégia para o
desenvolvimento, a paz e a igualdade deve necessariamente levar em conta as
particularidades das mulheres negras’” (ALVAREZ apud RODRIGUES,
2006, p. 187).

Como resultado da Conferência, foi publicada a Declaração e Programa de Ação

de Beijing, que

“diagnostica e aponta medidas para alteração das condições de vida,


reafirmando compromissos em prol dos direitos humanos das mulheres,
combinados com a necessidade de superação das injustiças sociais que [se]
abatem sobre a população não branca, discriminada pelo racismo”
(RIBEIRO, 2008, p. 995)

Para Zambramo, essa conferência “foi um momento chave para a articulação do

ativismo negro na América Latina, pois ali se mostrou a relação entre a questão racial e

as diversidades entre feminismos” (ZAMBRAMO, 2017, p. 182). A autora ressalta

ainda “o aprendizado das mulheres nas instituições governamentais e as formas de

operar e funcionar nestes espaços transnacionais e no estabelecimento de alianças com

mulheres de organismos e agências globais e regionais das Nações Unidas”

(ZAMBRAMO, 2017, p. 185)

Alguns autores observam que, a partir de Beijing, há uma inflexão na forma

dominante de se entender a dinâmica da discriminação sofrida pelas mulheres negras, na

medida em que “cresce o interesse pela temática da mulher negra com um discurso de

interseccionalidade que expõe a interação entre as categorias de gênero e de raça”

(ZAMBRAMO, 2017, p. 187). Cristiano Rodrigues afirma que “a partir do processo de

Beijing, mas não como decorrência dele”, há um “amadurecimento das mulheres negras

em relação às articulações entre gênero e raça. Há um deslocamento, pelo menos em

nível teórico, da ideia de somatório de discriminações [...] para uma perspectiva de

305
ponto de vista (standpoint) e/ou do feminismo norte-americano” (RODRIGUES, 2006,

p. 187-188).

A Declaração de Beijing’95 apresenta o uso dos termos ‘raça’ e ‘etnia’, questão

que “gerou longa e dura divergência sobre a qual o Brasil e os Estados Unidos se

manifestaram a favor da menção de ambos para fins de dados estatísticos que pudessem

gerar documentação acerca da injustiça social” (RIBEIRO, 2006, p. 805)

2.3.2 Durban, 2001

Sueli Carneiro ressalta a importância que a Conferência de Durban teve para o

movimento negro brasileiro, o que resultou em um intenso engajamento das

organizações negras, processo que “teve início em abril de 2000, com a constituição de

um Comitê Impulsor pró-Conferência” (CARNEIRO, 2002, p. 209). Esse Comitê foi

responsável pela criação do Fórum Nacional de Entidades Negras para a III Conferência

contra o Racismo, a partir do qual se elaborou um documento sobre os efeitos do

racismo no brasil e se formaram delegações para participação na conferência

(CARNEIRO, 2002, p. 210).

Cristiano Rodrigues afirma que o processo preparatório para a Conferência é um

marco fundamental para o movimento de mulheres negras “tanto pelos seus

desdobramentos quanto por materializar, em certa medida, um processo de consolidação

e visibilidade política das mulheres negras que se iniciou no início dos anos 90”

(RODRIGUES, 2006, p. 192-193). Ao longo do ano 2000, houve reuniões ligadas aos

Grupos de Trabalho do Comitê Preparatório para a Conferência Mundial (RIBEIRO,

2008, p. 996). A Conferência das Américas ocorreu em Santiago, Chile, em dezembro

de 2000. Carneiro conta que a presença das mulheres negras na Conferência das

Américas foi marcante: elas compunham a maioria da delegação brasileira e foram


306
decisivas “para a aprovação dos parágrafos relativos aos afrodescendentes”, tendo

oferecido “contribuições originais que sensibilizaram várias delegações governamentais

de países da América Latina” (CARNEIRO, 2002, p. 211).

Nesse contexto, foi produzida a Declaração e Plano de Ação de Santiago, em

que se apontou a necessidade de superação “das múltiplas formas de discriminação que

podem afetar mais diretamente as mulheres”; “das desigualdades geradas pelas

condições de raça, cor, linguagem ou origem nacional ou étnica”; “dos motivos

conexos, como o sexo, o idioma, a religião, as opiniões políticas ou de outra índole”;

“das barreiras por origem social, situação econômica, nascimento ou outra condição”

(RIBEIRO, 2008, p. 996).

Segundo Matilde Ribeiro,

“A Conferência de Durban teve como slogan ‘Unidos para combater o


Racismo: Igualdade, Justiça e Dignidade’ e foi conectada à agenda ‘2001 –
Ano Internacional de Mobilização contra o Racismo, a Discriminação Racial,
a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância’” (RIBEIRO, 2008, p. 995-
996)

A autora destaca “o protagonismo das organizações negras e das mulheres

negras brasileiras, acrescentando-se à aliança com o movimento feminista”, que teria

sido “fundamental para o debate de gênero e políticas anti-racismo não só para o Brasil,

mas também para toda a América Latina” (RIBEIRO, 2006, p. 805)

Na visão de Sueli Carneiro, as mulheres negras brasileiras deram “um show à

parte” na Conferência de Durban (CARNEIRO, 2002, p. 210). Foi desenvolvida, no

contexto de preparação para a Conferência, a Articulação de Organizações de Mulheres

Negras Brasileiras Pró-Durban, “composta por mais de uma dezena de organizações de

mulheres negras do país” e coordenada por Criola, Geledés e Maria Mulher

(CARNEIRO, 2002, p. 210).

307
Cristiano Rodrigues aponta que a criação da Articulação Nacional de

Organizações de mulheres negras tornou-se um foco de conflitos dentro do movimento,

“ressaltando as dificuldades [...] em conseguir se articular nacionalmente a partir de

uma forma minimamente consensual” (RODRIGUES, 2006, p. 194).

A diversidade regional do movimento de mulheres negras se expressa também

na distribuição dos financiamentos obtidos pelas organizações. No processo de

preparação para Durban, os recursos para ONGs foram “centralizados nas mãos de

poucas organizações do Sudeste, evidenciando as disparidades de poder político e

econômico” internamente ao movimento (RODRIGUES, 2006, p. 194).

A despeito dos conflitos, a Conferência de Durban é, sem dúvida, um marco na

história do movimento de mulheres negras e do movimento negro brasileiro, como

afirmou Edna Roland em 2004:

“Eu considero que o que nós estamos vivendo hoje no Brasil não teria
acontecido, pelo menos no prazo em que as coisas estão se dando, se não
tivesse havido a Conferência de Durban. E eu acredito que os historiadores
do futuro contarão a história das relações raciais no Brasil colocando um
marco fundamental: antes e depois de Durban. Há outros marcos também.
Não é um marco único, mas é um marco fundamental. E Durban no Brasil
não é a mesma coisa que Durban em outros lugares do mundo. Porque a
Conferência de Durban impactou de formas diversas dependendo das
circunstâncias políticas existentes em cada sociedade. E como você tinha
todo um processo de acumulação de forças do movimento negro no Brasil
que vem aí desde a década de 1970, 80 e 90... A Conferência vem em um
momento em que você já tem uma maturação de crescimento político, de
compreensão da realidade, de relacionamento entre o movimento social e o
Estado, de compreensão do Estado... Tem uma série de coisas que vão
acontecendo que fazem com que naquele momento específico pudesse ter o
impacto que teve e que está tendo” (ROLAND, 2004, s.p.).

A atuação das organizações de mulheres negras em espaços transnacionais

ilustra os aspectos contraditórios específicos que o movimento experimentou a partir de

sua institucionalização. Sua agenda política, que guardava certas limitações dentro da

institucionalidade tendo em vista as demandas do processo de onguização, teve alcance

significativo, tanto nos espaços transnacionais dos eventos da ONU como junto ao

308
próprio governo brasileiro. A ampliação da mobilização em favor de políticas

afirmativas antirracistas, como a política de cotas, pode ser tida como uma das

consequências de Durban. Em relação ao movimento de mulheres negras, o

estabelecimento de redes transnacionais junto a outras organizações de mulheres afro-

latino-americanas pode ser considerada uma forma de fortalecimento e solidariedade

que desafia a história compartilhada do colonialismo nessa região. Assim, as

organizações de mulheres negras se fortalecem perante outros agentes, inclusive aqueles

que as provém com financiamentos e que, como visto, esperam alguma coisa em troca.

3. Relação do movimento de mulheres negras com o Estado restrito

Até aqui, a discussão se focou principalmente na relação entre os diferentes

aparelhos privados de hegemonia, inclusive nos espaços transnacionais. Para pensar a

totalidade do Estado Ampliado, considerar a relação desses aparelhos de hegemonia

com o Estado restrito é fundamental. As intelectuais ligadas ao movimento de mulheres

negras desde o início da década de 1980 tentaram se inserir de diversas formas no

Estado restrito, buscando levar suas pautas contra-hegemônicas para a disputa

institucional nesse âmbito.

A disputa que caracteriza a dinâmica da relação entre aparelhos privados de

hegemonia e o Estado restrito segue uma lógica que tem a ver com a manutenção do

domínio hegemônico pelas classes dominantes e a necessidade de investidas contra-

hegemônicas dos grupos subalternos. Sônia Mendonça lembra Gramsci ao afirmar que,

segundo ele,

"a transformação social e do Estado nas sociedades capitalistas ocidentais só


pode ser obtida [...] a partir da multiplicação dos aparelhos de hegemonia da
sociedade civil [...] Mas para tanto, é indispensável que o grupo ou fração de

309
classe, organizado neste ou naquele aparelho de hegemonia, atue no sentido
de inserir alguns de seus representantes – ou intelectuais – junto ao Estado
restrito" (MENDONÇA, 2014, p. 38).

A inserção dos APHs dos grupos subalternos, como é o caso das organizações de

mulheres negras, no Estado restrito, todavia, é sempre limitada, na medida que os

"sacrifícios de ordem econômico-corporativa" feitos pelos grupos dirigentes "não

podem envolver o essencial" – a dominação de classes (GRAMSCI, 2000, p. 48). Ou

seja,

"o Estado podia agregar em sua própria estrutura elementos oriundos das
reivindicações das classes dominadas, ampliando-se também na direção de
incorporação de demandas dos grupos subalternos e em peculiar
democratização, na qual a incorporação ampliava a política, mas mantinha a
subalternização de classes" (FONTES, 2010, p. 139).

Nessa dinâmica, dependendo de que frações da classe dominante foram

hegemônicas no Estado restrito em cada período das últimas décadas, a inserção das

demandas antirracistas e feministas avançou ou recuou. Por exemplo, como resultado da

intensa mobilização das organizações negras no governo Fernando Henrique Cardoso,

com especial destaque à Marcha Zumbi dos Palmares em 1995,

"foram criados dois espaços de formulação política – o Grupo de Trabalho


Interministerial para a Valorização da População Negra GTI População
Negra, em 1996, e o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação
no Emprego e na Ocupação – GTDEO, em 1997. Foi instalado o Programa
Nacional de Direitos Humanos (I PNDH, em 1996; II PNHD, em 2002). E,
em 2001, após a Conferência de Durban, foram iniciadas ações em vários
ministérios, destacando-se a criação do Conselho Nacional de Combate à
Discriminação - CNCD e do Programa Nacional de Ações Afirmativas, em
2002. No entanto, essas ações não significaram a efetivação de políticas
continuadas, também não foi instituída uma coordenação entre as áreas
citadas e nem um órgão responsável diretamente pela implementação de
políticas de igualdade racial" (RIBEIRO, 2008, p. 993).

Esse avanço um tanto quanto limitado das demandas do movimento negro pode

ser relacionado ao que representaram para as classes subalternas os oito anos de gestão

310
do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), caracterizado por André Guiot

como o "moderno príncipe" da burguesia brasileira, isto é, o "organismo formulador,

divulgador e implementador da contra-reforma intelectual e moral neoliberal" no Brasil

(GUIOT, 2006). Diante disso, não surpreende que tenham havido resistências e tensões

no interior do movimento negro quanto às possibilidades de negociação com o governo

FHC (RIOS, 2008, p. 65-66).

Ao chegar ao Executivo Federal, o Partido dos Trabalhadores, em cujas fileiras

muitos intelectuais do movimento negro figuram ou figuraram – como a própria Lélia

Gonzalez – aprofundou essa inserção, ainda que o partido tenha se submetido a um

processo que Eurelino Coelho classifica como de transformismo, no sentido gramsciano

de conversão de militantes e grupos políticos surgidos em meio às lutas dos subalternos

às construções hegemônicas das classes dominantes (COELHO, 2012). Nesse caminho

de participação no Estado restrito, há que se destacar a criação da Secretaria Especial de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em 21 de março de 2003. Entre

2003 e 2015, a SEPPIR teve status de ministério e função de assessoramento à

Presidência da República, tendo contado com três militantes negras em sua presidência:

Matilde Ribeiro entre março de 2003 e fevereiro de 2008, Luiza Bairros entre janeiro de

2011 e janeiro de 2015 e Nilma Lino Gomes entre janeiro e outubro de 2015. Esta

última continuou à frente da Secretaria de Políticas para Mulheres, Igualdade racial e

Direitos Humanos, ministério que fundiu três pastas anteriormente distintas (Direitos

Humanos, Mulheres e Igualdade Racial) na reforma ministerial promovida pela

presidenta Dilma Rousseff em 2015. A partir da criação da SEPPIR, foram criados a

PNPIR - Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial e o CNPIR - Conselho

Nacional de Promoção de Igualdade Racial, que estabeleceu um novo marco regulatório

para as ações do Governo Federal em relação às questões raciais (RIBEIRO, 2008:

311
994).189 A SEPPIR sofreu duro golpe em maio de 2016, quando da reforma ministerial

realizada pelo então presidente interino Michel Temer (PMDB), levado à presidência

efetiva pelo controverso processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Representante do que há de mais conservador em termos de projeto político da

burguesia nacional, Temer extinguiu as pastas de Igualdade Racial, Mulheres e Direitos

Humanos, transformando formalmente a SEPPIR em uma secretaria subordinada ao

Ministério da Justiça, chefiada por Alexandre de Morais. Passou a atuar como secretária

da SEPPIR a desembargadora negra Luislinda Dias de Valois Santos (PSDB-BA). Vale

pontuar a carga simbólica contida em ter uma mulher negra no cargo de "secretária",

enquanto o Ministro, seu superior na hierarquia institucional, é um homem branco;

ainda mais se considerarmos a luta das mulheres negras no interior das organizações

mistas de que participavam para superar as limitações em termos das funções que lhes

eram delegadas.

Em relação ao movimento de mulheres negras especificamente, destaco aqui

algumas experiências para perceber de que forma se deu a relação com o Estado restrito:

3.1 Atuação em conselhos

A atuação do Coletivo de Mulheres Negras no Conselho Estadual da Condição

Feminina do Estado de São Paulo (CECF-SP), já abordada nesta tese, é um exemplo

importante desse movimento de inserção no Estado restrito. Ainda que tenha sido

mencionado anteriormente, vale a pena elaborar alguns aspectos desse processo.

189
Vale mencionar o aprofundamento da implementação das políticas de cotas. Para Alberti e Pereira, o
debate em relação às cotas raciais teria provocado “aquilo que as lideranças do movimento procuravam
suscitar há décadas: uma discussão ampla sobre a questão racial no Brasil, envolvendo diferentes setores
da sociedade” (ALBERTI; PEREIRA, 2006, p. 145).

312
O Conselho Estadual da Condição Feminina conta com a participação de

representantes do Estado restrito e demais pessoas, cujas tarefas são formular e

acompanhar políticas públicas referentes aos direitos das mulheres.190 Ocorre que a

composição inicial do Conselho, com 32 conselheiras, não incluía representantes

negras, o que gerou forte reação das intelectuais integrantes do CMN. Organizadas

coletivamente, elas reivindicaram e conquistaram postos representativos ocupados por

Thereza Santos (titular) e Vera Lúcia Saraiva (suplente) (ALMEIDA, 2010, p. 128-129;

BRAZIL; SCHUMAHER, 2007, p. 350). Segundo Schuma Schumaher e Érico Vital

Brazil, a atuação dessas e de outras intelectuais negras no corpo técnico do Conselho

"incentivou o debate sobre a realidade das mulheres negras e contribuiu para que a luta

contra a opressão de raça fosse incorporada ao conjunto de ações" (BRAZIL;

SCHUMAHER, 2007, p. 350). A representação negra no Conselho, assegurada nesse

período, incluiu posteriormente postos em instâncias diretoras e teve a primeira

presidenta negra na figura de Maria Aparecida de Laia, que, em 1995, foi nomeada para

duas gestões consecutivas (BRAZIL; SCHUMAHER, 2007, p. 350).

No Rio de Janeiro, a atuação de Jurema Werneck, uma das fundadoras de Criola,

no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e no Conselho de Desenvolvimento Econômico

e Social (CDES), é um caso que permite ver bem as contradições envolvidas nas

tentativas de inserção de intelectuais de APHs contra-hegemônicos no Estado restrito. O

CNS é um órgão vinculado ao Ministério da Saúde, composto por "representantes de

entidades e movimentos representativos de usuários, entidades representativas de

trabalhadores da área da saúde, governo e prestadores de serviços de saúde". Ele é

instância máxima de deliberação do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como

190
Informação retirada do site do Conselho da Condição Feminina de São Paulo. Disponível em
<http://www.condicaofeminina.sp.gov.br/portal.php/hist>. Acesso em 31 de agosto de 2016. Em 2020,
informações sobre o conselho constavam no seguinte endereço: <
http://justica.sp.gov.br/index.php/conselhos/condicao_feminina/historico-e-composicao/>. Acesso em 26
jan. 2020.

313
funções deliberar, fiscalizar e acompanhar políticas públicas de saúde.191 A partir de

2006, quando o Conselho passou a eleger seus membros e sua Presidência (cargo até

então ocupado pelo ministro da Saúde), Jurema Werneck, que é médica, tornou-se uma

dos 48 conselheiros eleitos para o CNS como representante do movimento negro.192

Já a atuação de Jurema Werneck no CDES é abordada por André Guiot em sua

tese de doutorado sobre o órgão (GUIOT, 2015). Esse Conselho, criado em 2003,

diferentemente dos outros conselhos mencionados, não elege seus membros; estes são

designados pelo/a Presidente da República, que, por sua vez, preside o Conselho.

Segundo sua lei de criação, são funções do CDES

"assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes


específicas, e apreciar propostas de políticas públicas, de reformas estruturais
e de desenvolvimento econômico e social que lhe sejam submetidas pelo
Presidente da República, com vistas na articulação das relações de governo
com representantes da sociedade".193

Guiot caracteriza a participação de Jurema Werneck no Conselho como

reveladora de tensões "trazidas pelas experiências de luta dos subalternos" (GUIOT,

2015, p. 53), que podem ser observadas em seu pronunciamento fortemente militante

quando ocupava uma vaga de suplente:

"(...) é preciso lembrar que participamos tanto da formulação quanto do


resultado do desenvolvimento brasileiro, de forma diferenciada. E como
diferenciada aqui eu quero dizer hierarquizada e, desde o lugar que ocupo,
inferiorizada, isso precisa ser considerado em qualquer discussão sobre
desenvolvimento. (...) Nós temos participado, sim, de forma inferiorizada.
Nós mulheres, nós negros, nós pobres, nós tantos temos participado de forma
inferiorizada, mas temos contribuído ao longo desse tempo todo. Só estamos
aqui, no século XXI, diante de toda a violência que significa a desigualdade,
porque trabalhamos e trabalhamos muito, ainda que em grande parte do

191
Conferir o site do Conselho Nacional de Saúde, disponível em <http://conselho.saude.gov.br/>, acesso
em 31 de agosto de 2016.
192
Conferir Carta de Apoio a Candidatura de Jurema Werneck á Presidência do Conselho Nacional de
Saúde, disponível em <http://www.geledes.org.br/carta-de-apoio-candidatura-de-jurema-werneck-
presidencia-conselho-nacional-de-saude/>, acesso em 31 de agosto de 2016.
193
Conferir o site do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, disponível em
<http://www.cdes.gov.br/conteudo/43/composicao-do-conselho.html>, acesso em 31 de agosto de 2016.

314
tempo, de forma isolada. Passamos grande parte do tempo sem sentar à mesa
do debate do desenvolvimento. Agora estamos aqui, e para estar aqui custou
muita luta, custou muita gente que ficou para trás. Mas estamos aqui e é
preciso considerar que temos de continuar aqui e cada vez mais. Eu
represento uma legião de pessoas. Represento as mulheres organizadas,
represento os negros organizados, de alguma forma represento os indígenas
que não estão nos Conselhos, represento as ONGs que são minoria,
represento uma legião de tantos que vieram de favelas (...). Então, é preciso
ampliar e reconhecer que necessitamos participar mais efetivamente, ter
ressonância da luta que temos travado ao longo dos 500 anos até aqui"
(WERNECK apud GUIOT, 2015, p. 53-54).

O posicionamento de Jurema Werneck em um órgão com forte presença do

empresariado e da cúpula de uma burocracia sindical que assumiu "uma perspectiva de

pactuação ou parceria com largos setores do capital" (GUIOT, 2015: 83), por

representar uma investida contra-hegemônica, foi rapidamente isolado e anulado. Sobre

seu afastamento do CDES, Sônia Fleury, outra conselheira, comentou:

"Todas as substituições [de um conselheiro por outro] são políticas. [...] Não
há critério definido para a substituição. A Jurema Werneck, do grupo Criola,
foi eliminada sem que se negociasse para que deixasse de ser suplente e
passasse a titular. Ela incomodava, falava das mulheres negras e pobres, de
um lugar na sociedade que incomoda" (FLEURY apud GUIOT, 2015, p. 72).

3.1.1 Atuação em partidos políticos e no poder Executivo

Segundo Luiza Bairros, Lélia Gonzalez foi uma das primeiras dentre os

membros da Comissão Executiva Nacional do MNU a candidatar-se como deputada

pelo PT do Rio de Janeiro, em 1982. Bairros considera que essa atitude tenha sido “o

momento em que o MNU começou a pavimentar o caminho para o gradual afastamento

de Lélia da entidade”, por conta de uma política de que pessoas que se candidatassem a

cargos eleitorais não poderiam permanecer em cargos de direção no movimento

(BAIRROS, p. 347).

De acordo com Bairros, apesar de ter críticas aos setores de esquerda na época,

Lélia defendia a necessidade de garantir a participação negra em suas fileiras. Em suas

315
palavras: “o quadro da classe política: é a mesma coisa desde que o Brasil é Brasil. É o

cara, daqui a pouco é o filho dele, daqui a pouco é o neto dele, e o poder rola nas

mesmas mãos e nós ficamos de fora, nós que somos o povo” (GONZALEZ apud

BAIRROS, 2000, p. 348).

Lélia, considerando a dificuldade do PT em estabelecer “precários mecanismos

de participação negra em sua estrutura” naquele momento, saiu do partido e filiou-se ao

PDT, que colocava “a questão racial entre as prioridades do partido – junto com

questões da mulher, da criança e do trabalhador” (BAIRROS, 2000, p. 348). Para

Bairros,

“a mudança de partido não provocou mudanças na plataforma de Lélia como


candidata, numa demonstração inequívoca de que seu programa político
originava-se no compromisso com as lutas do movimento negro que ela
ajudou a construir [...]. [...] bandeiras em defesa dos direitos e contra o
racismo, o sexismo e a homofobia” (BAIRROS, 2000, p. 349).

Jurema Batista, por sua vez, se aproximou do PT porque quis começar a atuar

com alfabetização popular em sua comunidade. Um grupo do PT em Vila Isabel, “PT da

Educação” segundo ela, fazia reuniões de preparação para alfabetização de adultos. Ela

fala sobre seu processo de filiação:

“E, em um dia desses que eu estava lá cantando o samba, veio o cara do PT


que sempre estava comigo e me passou uma cantada, falou assim: “Nós
estamos criando um partido dos trabalhadores. Você não vê como é que é
esse negócio de partido aí...” Era ARENA e MDB. “Dois partidos, e a gente
está brigando para mudar esse país. A gente precisa criar um partido, mas
tem que ser um partido que tenha a cara dos trabalhadores...” Eu falei: “Estou
nessa.” Aí eu falei: “Mas quem é que está nisso?” Ele falou assim: “Tem o
Lula lá em São Paulo.” Eu falei: “O Lula, aquele barbudo?” Toda animada:
Me filiei. Sou uma das primeiras filiações aqui do Rio de Janeiro. Aí, depois
que eu me filiei, ele falou assim: “Agora, não é só isso não. Agora que você
se filiou, você vai ter que filiar um montão de gente, porque a gente está
construindo um partido.” Eu me lembro que na época eu filiei 600 pessoas,
porque era mole: Eu cantava no samba, dava aulas para os adultos, aí depois
ainda fiquei dando aulas para as crianças na comunidade. Então era mole, eu
tinha uma relação muito boa com o pessoal lá no morro.” (BATISTA, 2003,
s.p.).

316
No mesmo ano, Jurema ajudou a fundar e tornou-se presidente da Associação de

Moradores do Morro do Andaraí, que foi fundada com auxílio de militantes do PT. Sua

primeira experiência no âmbito do Estado restrito foi como assessora de Benedita da

Silva, de 1983 a 1985:

“Foi legal, porque eu comecei a pensar via instituição. Porque eu pensava


sempre como Movimento Negro, como movimento social... [...] Foi uma
experiência legal, uma experiência boa, que me “caçifou” para depois,
inclusive quando eu pensei em ser candidata a vereadora, eu já tinha uma
experiência com parlamento, de ter sido uma assessora de uma parlamentar
negra, mulher, vinda de uma comunidade... A gente tinha quase o mesmo
perfil, não é? Então eu já sabia um pouco como transitar dentro do
parlamento.” (BATISTA, 2003, s.p.).

Os mandatos de Jurema contaram com a participação de suas bases populares,

que se integraram a eles organicamente, o que resultou em um aumento expressivo de

suas votações ao longo do tempo:

“Aí eu fui eleita. No meu primeiro mandato a gente dizia que a gente seria o
porta-voz dos excluídos na Câmara Municipal, em 1992 eu fui eleita,
primeiro mandato. Fui eleita, acho que, como a sexta do PT, fiquei em sexto
lugar no Partido. Aí, quando eu assumi a vereança, eu levei essas questões
todas para lá. A questão racial, a questão da mulher, a questão das
comunidades... Mas as pessoas começaram a identificar no mandato a
possibilidade de trazer várias demandas. E aí começou a vir pessoas de todos
os lados, de outras comunidades, Zona Sul, Zona Oeste, eu comecei a fazer
debates no rádio, era convidada para falar na Manchete na época, eu fazia o
programa do Roberto Canazi toda terça-feira na Manchete... E aí fui ficando
famosa. E aí em 1996 teve uma outra eleição e eu tripliquei a votação. Foi
uma votação belíssima. Na primeira eleição eu tive 5 mil votos, na última eu
tive 17 mil, na segunda aliás. Na última eu repeti a votação, mas fui a mais
votada do PT. Aí depois disso o pessoal decidiu, então, que ia me lançar
deputada. Aí, agora, eu fui eleita deputada.” (BATISTA, 2003, s.p.).

Ela ressalta que o caráter popular e orgânico de seu mandato se destacava dentre

os demais no parlamento, contando com representações dos diferentes movimentos

sociais com os quais o mandato se associava:

“O pessoal colocou o nome do nosso gabinete de “quilombo” lá na Câmara.


Porque diziam que aquilo lá era um quilombo, só tinha crioulo e favelado. Na
campanha já tinha acontecido isso. Na campanha fizeram uma entrevista com
vários parlamentares, o que eles tinham de carros. Aí um tinha van, outro

317
tinha ônibus, outro tinha não sei o quê lá, outro tinha uma frota; aí me
perguntaram o que eu tinha. Aí deu até uma matéria grandona no jornal O
Globo, eu falei que eu tinha um quilombomóvel. Aí o pessoal falou: “Mas
por quê?” “Meu carro não é um automóvel, é um quilombomóvel. Só anda
cheio de crioulos. Um trepado em cima do outro, um sentado em cima do
outro, um quase cuspido pela janela...” [riso] Era um quilombomóvel mesmo,
não é? Que foi já o que deu a cara do mandato. A cara do mandato foi
construída exatamente com quem abraçou a candidatura. Aí também foi uma
coisa legal, que nós pedimos que cada setor indicasse o seu representante
para compor o mandato.
[...] tinha o movimento negro, aí o movimento negro indicou. Tinha o
movimento de mulheres...
[...] Então o mandato era muito legal. [...] A gente fez uma coisa legal assim:
Os salários eram todos iguais. Na Câmara tinha salário de, hoje por exemplo,
acho que seria de quatro mil a mil e poucos. A gente fazia um caixa só e
depois distribuía igual para todo mundo. Aí depois a gente provou que isso
também não funciona. A gente queria criar o socialismo ali dentro.”
(BATISTA, 2003, s.p.).

Ela ressalta que a experiência de democratização do mandato– ou de “criar um

socialismo ali dentro” – não teve sucesso, mas que foi uma experiência muito valiosa de

horizontalização política:

“As pessoas são diferentes, têm expectativas diferentes. A gente fez uma
avaliação... Um só queria ser assessor, o outro queria ser assessor mas queria
ter uma vida na universidade... A gente foi vendo que não funcionou
direitinho. Mas a gente fez um laboratório. Aquele mandato foi um
laboratório mesmo, de tentar implementar algumas coisas na política. Muitas
coisas deram certo. A gente discutia tudo à exaustão: “Vamos trocar essa
cadeira de lugar: reunião.” “Essa cadeira fica não bem aqui.” “Ela ficou bem
ali” [riso] Era uma coisas assim. A gente chamava de “mandato popular e
democrático Jurema Batista”. E aí era tudo assim muito discutido. Eu nunca
tomava decisão nenhuma. Perdia, ficava irada quando eu perdia. O pessoal às
vezes fazia até reuniões para ir: “A gente vai discutir isso...” Aí reunia
aqueles grupinhos lá, cada um se defendia... “Estão formando uma tendência
dentro do gabinete.” Aí chegavam, às vezes com posições fechadas, eu perdia
na votação e ficava irada. E tinha que implementar o que realmente as
pessoas decidiram. Esse foi o primeiro mandato.” (BATISTA, 2003, s.p.).

Jurema chegou a ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos da

Câmara dos Vereadores. Sobre isso, comenta:

Então, tem umas comissões que todo mundo quer, por exemplo, Transporte,
de Orçamento, comissão de Justiça e Redação, que é a que dá parecer, ou
seja, quando você dá um parecer, você pode negociar com o empresário de
transportes; quando você dá parecer de um projeto, você pode negociar com
o empresário da construção civil. Então, geralmente, as pessoas no
parlamento, infelizmente, as pessoas que estão à frente dessas comissões têm

318
muito poder de fogo, inclusive poder econômico. Então sempre tiveram essas
comissões que a esquerda não tinha de jeito nenhum. A comissão de Direitos
Humanos, historicamente no Brasil pós-Ditadura Militar, sempre esteve na
mão do PT ou do PCdoB, da chamada esquerda. Direitos Humanos não dá
dinheiro, Direitos Humanos dá muito trabalho.
[...]
Eu era chamada para resolver problema de baile funk porque a polícia
resolveu entrar na comunidade, bater nas pessoas. Então de madrugada, no
mesmo dia, era até com o Rômulo Costa, estava no Chapéu Mangueira, a
polícia deu ordem de prisão para ele: fui parar na delegacia. Ou seja, a
comissão de Direitos Humano tira a individualidade de quem está à frente
dela, mas por outro lado também dá uma visibilidade positiva e negativa. A
sociedade, de uma forma geral, acha que defender Direitos Humanos é
defender bandidos, entendeu? Então é uma coisa dúbia, você pode ganhar e
perder. Tanto que naquela época eu fiquei meio marcada: “Ela só defende
bandido!” E não era. A gente defendia a comunidade quando a polícia
invadia e matava as pessoas.
[..]
E como é que eu consegui? Porque ninguém queria. Mas depois, aí já no
primeiro ano, no segundo, aí começou a incomodar. Nós começamos a
incomodar, a comissão. Porque a gente começou a botar o dedo na ferida de
governos, de omissão, em congressos... Eu fui em um congresso na
Dinamarca, onde estavam fazendo avaliação sobre o governo e direitos das
crianças – tinha acabado de acontecer a chacina da Candelária. Eu levei um
monte de dados para lá. Aí eles ficaram: “Está falando mal do Rio...” Eles
entendiam assim. “Está falando mal do Rio, não pode!” E aí, assim que eles
puderam, colocaram uma pessoa só para ser presidente da comissão, e
desmontaram a comissão.” (BATISTA, 2003, s.p.).

Esses embates e limites de atuação, que aparecem em outras experiências de

mulheres negras no Estado restrito, como no caso de Jurema Werneck ao atuar do

CDES, acabam muitas vezes se combinando com a necessidade de uma mudança de

postura e criação de estratégias menos “belicosas” ou “radicais” para viabilizar alguns

avanços.

Ao entrevistar Jurema Batista, Verena Alberti a questiona sobre uma mudança

de postura assinalada por ela, um processo de “desradicalização” com relação a sua

postura inicial no movimento negro:

“V.A. – Você disse assim: Que você começou no Movimento Negro muito
brava, muito radical, com muita raiva, e que você agora está mais moderada.
Como é que foi essa transformação?
J.B. – Acho que foi a idade. [risos] A idade, eu estar no parlamento, a gente
ver que nem tudo é possível, ver que você tem que fazer algumas alianças
para conseguir alguma coisa...

319
V.A. – Porque a sua atuação agora é política mesmo, política partidária.
Deixou de ser...
J.B. – Uma militante... Hoje eu sou... Eu vou em tudo que o Movimento
Negro me chama, mas muito mais como palestrante. Mudei, o espaço de
ocupação no Movimento hoje é outro. Eu tenho que ter essa clareza, inclusive
para não atropelar quem está na militância, respeitar os militantes. Eu
respeito isso.” (BATISTA, 2003, s.p.).

É interessante notar que Jurema associa a radicalização política ao ser militante,

posição de que passa a se desvincular no momento em que se torna mais moderada, a

partir da atuação como parlamentar. Ainda que atue organicamente junto ao movimento

negro e ao movimento de mulheres negras, buscando fazer avançar suas pautas,

desradicalizar, para Jurema, é dissociar-se, de alguma forma, da militância.

Em relação a essa mudança de postura e estratégia, o depoimento de Vanda

Ferreira é bastante interessante. Embora tenha atuado lado a lado com o movimento de

mulheres negras, sendo inclusive uma grande companheira de Neura Pereira,

frequentando Encontros de Mulheres Negras, etc., Vanda também se dissocia da figura

da “militante”:

“Na realidade, eu nunca fui a militante ativista. Eu sou, eu estou e tô na


causa. O que eu estou querendo dizer? Eu nunca tive uma posição assim
como Neusa, de organizadora, de comando. Mas o tempo todo, lado a lado
com elas. Mas sei de todas as amarguras, de tudo que elas sofreram, do
quanto foi difícil... E a minha situação confortável. Porque o tempo todo que
elas estão na militância, eu estava em órgãos públicos. Eu era gestora. Mas
que sempre usei e concordei e assino embaixo de todo o discurso levantado
naquela época.” (FERREIRA, 2017, s.p.)

Em relação à sua postura e estratégia política nos espaços em que atuou, Vanda

afirma:

“Então a minha forma sempre foi essa. Ser proativa, mas através da
pedagogia e da didática. Não batia de frente. Querendo sempre que em algum
momento, alguns externaram, outros não, pudessem dizer pra mim a
constatação da realidade. Eu não convenci: eles se convenceram. É essa
minha forma de trabalhar, é nisso que eu acredito.” (FERREIRA, 2017, s.p.)

320
A atuação de Vanda Ferreira na defesa de pautas antirracistas e feministas se deu

principalmente em espaços institucionais do Estado restrito. Em sua visão, o avanço

dessas pautas nos espaços em que atuou esteve sempre combinado a essa postura

moderada, didática e compreensiva:

“as gestões públicas onde eu estive só aconteceram enquanto a Vanda estava.


Porque ela é boazinha, porque ela é simpática, ela é uma liderança do
movimento negro e ela não atrapalha. Então, enquanto ela ficar, existe. [Se]
por qualquer motivo, eu sair, porque eu fui exonerada, porque fui chamada
pra outro cargo, naquela hora acaba. Isso ficou muito claro: não tem mesmo
de fato políticas públicas e eu não acredito em políticas públicas para nós
com o sistema vigente ainda.” (FERREIRA, 2017, s.p.)

Ela ressalta que o impacto de sua agenda política diminuiu quando deixou de

ocupar os espaços institucionais em que atuou, como se esse impacto fosse uma

concessão dada a ela por “não atrapalhar”, por ser “boazinha” e “simpática”. Além de

um notável paternalismo nessa caracterização, há um personalismo em sua figura:

enquanto Vanda está, o espaço pode ser antirracista e antissexista, mas quando não se

faz mais presente, não é mais necessário atuar nesse sentido. É interessante, ainda,

considerar sua fala de que, “no sistema vigente”, políticas públicas contra-hegemônicas

que sejam profundas e duradouras não são possíveis de fato. Essa impossibilidade,

contudo, não significa que se deva deixar de ocupar esses espaços:

“Mas por enquanto... Não é pra deixar de aceitar os cargos. O mínimo que se
possa fazer já é muito. Mas não [se deve] acreditar que aquilo vai virar
verdade, vai virar políticas públicas. A máxima de sempre: para inglês ver. O
tempo todo a gente está perpetuando, nos avanços sociais de inclusão, uma
tática pra inglês ver. Você implanta uma lei e durante 13 anos ela não
aconteceu nada, vamos acabar com essa lei porque ela realmente não valeu de
nada. Então o tempo todo eles querem provar que não pode, que não é isso.”
(FERREIRA, 2017, s.p.)

Esses casos de inserção de intelectuais do movimento de mulheres negras no

Estado restrito trazem algumas reflexões importantes. Autores que se valeram do

321
conceito de Estado Ampliado e mesmo seu próprio autor sublinharam que a inserção

dos grupos subalternizados no Estado restrito será sempre, necessariamente, limitada,

pois, como discutido anteriormente, o essencial – as bases do sistema, o status quo –

não pode ser comprometido.

Essa limitação não significa que esse tipo de estratégia seja desimportante ou

equivocado. Como afirma Virgínia Fontes, as lutas contra-hegemônicas podem ter o

papel de assegurar conquistas institucionais, inclusive junto ao Estado restrito. Contudo,

outra face dessa luta, em uma perspectiva verdadeiramente transformadora, inclui um

momento de enfrentamento do próprio Estado. A autora ressalta que não se pode perder

de vista que essas lutas “ocorrem em um campo minado”, envolvendo o enfrentamento

do “conjunto das relações sociais burguesas, inclusive seu Estado” (FONTES, 2018, p.

223).

Citando Gramsci, a autora lembra que conquistas legais e democráticas de

massas vêm sendo sistematicamente derrubadas através das "trincheiras avançadas da

dominação burguesa”, o Estado restrito moderno (FONTES, 2018, p. 223). É no espaço

do Estado restrito que temos sistematicamente perdido esses direitos conquistados ao

longo do tempo pela classe trabalhadora. A conjuntura brasileira, desde o golpe

institucional de 2016 e, mais acentuadamente, a partir dos mandatos resultantes das

eleições de 2018, vêm evidenciando essas perdas. Com relação a esses processos mais

recentes, Rios e Maciel afirmam:

“Com a crise política e destituição do governo de base popular e com estreito


relacionamento com os movimentos sociais, as mulheres negras do ativismo
tradicional ou clássico, assim como diversos tipos de ativistas, perderam
espaços no âmbito federal, mas buscaram manter espaços de atuação
antirracista e feminista nas esferas locais. Na sociedade civil, militam em
organizações específicas, mas também em organizações mistas; compõe
espaços partidários e/ou de interação sócio-estatal, particularmente nas
esferas estaduais e municipais. [...] Além disso, continuam a atuar em redes
transnacionais ou em organismos internacionais de Direitos Humanos”
(RIOS; MACIEL, 2018, s.p.)

322
4. Conclusão

É preciso reconhecer a importância e as limitações envolvidas na atuação dos

aparelhos de hegemonia de grupos subalternos, como é o caso das organizações de

mulheres negras, no Estado Ampliado. A limitação da inserção desses grupos no

Estado, por exemplo, se dá no sentido de manter sua subalternização. Por isso,

"sua superação, para Gramsci, demandaria enorme esforço organizativo das


classes dominadas para contrapor-se, em todos os âmbitos, às múltiplas e
reiteradas modalidades de subalternização promovidas pelas cambiantes
formas de hegemonia burguesa" (FONTES, 2010, p. 139).

Considerando as formulações de Gramsci sobre os diferentes momentos da luta

de classe e as relações de forças políticas nelas envolvidas, vale colocar a pergunta: de

que forma a institucionalização do movimento de mulheres negras influenciou seus

APHs nessas relações de força? Considerando os limites colocados pelas agências

financiadoras ligadas ao empresariado e pelas estratégias usadas na atuação junto ao

Estado restrito, é possível considerar que o movimento teria permanecido em um

momento de caráter econômico-corporativo, concentrado em demandas mais imediatas,

sem realizar uma “reforma intelectual e moral” que unifique os grupos subalternizados

em luta para sua emancipação. Ainda assim, não se pode desconsiderar que a atuação do

movimento de mulheres negras tenha tido algum grau de impacto na transformação do

senso comum em bom senso, o que em termos gramscianos possui o sentido de

conscientização social, na medida em que seguiu denunciando o racismo e o sexismo no

espaço público, desafiando visões pré-estabelecidas sobre grupos sociais subordinados

pela raça, pelo gênero, pela sexualidade e pela classe social.

Assim, como características gerais do movimento de mulheres negras na década

de 1990, pode-se considerar:

323
a) Institucionalização do movimento via adoção do formato de ONGs;

b) Profissionalização da militância e a adoção de estratégias e posturas mais

“moderadas” na atuação política;

c) Formação de redes transnacionais de mulheres negras a partir da atuação em

fóruns internacionais (usados como espaços transnacionais);

d) Tentativas de inserção no Estado restrito através da participação em

conselhos, no poder legislativo e no executivo, em secretarias especiais, etc.

324
CONCLUSÃO

Ao analisar a atuação do Combahee River Collective no cenário político

estadunidense dos anos 1970, Keeanga-Yamahtta Taylor afirma que o termo “política

de identidade” [identity politics] foi usado pela primeira vez em um texto no manifesto

do Coletivo, em 1977. Taylor explica que o termo não se referia “apenas a quem você

era, mas era também sobre o que você poderia fazer para confrontar a opressão que

estava enfrentando” (TAYLOR, 2017, p. 11). Assim, política de identidade, para o

Coletivo, se referia à “forma como as experiências nas vidas das mulheres negras

moldavam sua perspectiva política” (TAYLOR, 2017, p. 11). A radicalização política

das mulheres negras estadunidenses não se deu por “questões abstratas de doutrina”,

mas pelo fato de que o lugar que ocupavam na sociedade “as fazia

disproporcionalmente sucetíveis aos danos do capitalismo, incluindo pobreza, doença,

violência, agressão sexual, saúde e habitação inadequadas, para nomear apenas os mais

óbvios” (TAYLOR, 2017, p. 10). Eram as “experiências de opressão, humilhação e as

indignidades criadas pela pobreza, pelo racismo e pelo sexismo” que “levavam as

mulheres negras à possibilidade da política radical e revolucionária” (TAYLOR, 2017,

p. 11).

O Combahee River Collective identificava a “opressão de classe” como central

na experiência das mulheres negras, distinguindo-se assim de uma “orientação de classe

média na política negra que estava em ascensão na década de 1970” (TAYLOR, 2017,

p. 11) – ou, em outros termos, de um movimento negro de atuação liberal. Como afirma

Taylor, elas não estavam agindo “contra o marxismo”, mas buscando estender sua

análise de forma que incorporasse um entendimento da opressão vivida pelas mulheres

negras (TAYLOR, 2017, p. 10). Assim, se por um lado as militantes do Coletivo

consideravam-se parte da classe trabalhadora, ainda que tendo particularidades

325
fundamentais, por outro lado, seu engajamento político significava não apenas uma luta

pela emancipação de todos, mas uma luta pela própria liberdade das mulheres negras.

O manifesto do Coletivo colocava a questão da solidariedade com outros grupos

subalternos como central:

“Solidariedade não significava a subsunção das suas lutas para ajudar o


outro; tinha a intenção de fortalecer o comprometimento político de outros
grupos ao fazê-los reconhecer como diferentes lutas eram relacionadas entre
si e conectadas sob o capitalismo” (TAYLOR, 2017, p. 12).

A perspectiva política do Combahee River Collective representa uma

contribuição ímpar para pensar as estratégias políticas dos grupos subalternos. Nesta

tese, busquei argumentar algo semelhante ao que o Coletivo propôs em seu manifesto,

com o olhar voltado para o movimento de mulheres negras brasileiras: a experiência

dessas mulheres também é experiência de classe. Isso não significa que não tenha

particularidades, mas implica que todos os grupos subalternizados sob o capitalismo

têm na solidariedade uma chave de atuação essencial, como propuseram as militantes do

Combahee River Collective.

O que me levou a escrever esta tese foi o desejo de entender as relações entre

classe social, raça, gênero e sexualidade, como elas configuram as condições nas quais

vivemos e sobre as quais agimos. Esse desejo advinha da necessidade de superar um

debate ainda presente na esquerda, que isola e cria hierarquias entre esses aspectos.

Embora o conceito de interseccionalidade seja uma forma de superar essa perspectiva,

falta a ele uma teoria do capitalismo. Em geral, autoras e autores que trabalham com

interseccionalidade – ou mesmo movimentos sociais que se utilizam do conceito –

trazem uma perspectiva descritiva de classe, e não uma categoria que efetivamente se

remeta a relações sociais históricas e concretas. A teoria da reprodução social, por sua

vez, fornece a base teórica para compreender a configuração das relações sociais que

326
forjam a exploração e a opressão sob o capitalismo. Diante disso, me pareceu que

estudar a experiência do movimento de mulheres negras no Brasil de uma perspectiva

marxista, baseada na teoria da reprodução social, poderia não apenas me trazer um olhar

privilegiado sobre como essas relações moldam nossa realidade social, mas também

sobre nossas possibilidades de resistência.

A primeira parte da tese, que engloba os primeiros dois capítulos, tem como

objetivo compreender o movimento de mulheres negras como parte da formação (no

sentido de E.P. Thompson) da classe trabalhadora. Com a percepção da importância de

uma teoria do capitalismo bem fundamentada que observasse o peso das relações de

gênero, sexualidade e raça em sua configuração, abri a tese com uma análise do

capitalismo no Brasil. Argumentei que se trata de uma totalidade contraditória racista,

(hetero)sexista e dependente, sendo essa a configuração de relações sociais em que as

mulheres negras vivem suas experiências sociais, permeadas por dinâmicas de

exploração, alienação e opressão. A experiência vivida e compartilhada pelas mulheres

que vieram a criar organizações políticas específicas é uma experiência de classe, no

sentido proposto por E.P. Thompson. Mas essa afirmação só é verdadeira na medida em

que classe for entendida como uma unidade contraditória de determinações co-

constituídas, como propõe a teoria da reprodução social. A experiência das mulheres

negras é determinada pelo racismo e pelo (hetero)sexismo, o que faz com que elas

ocupem um lugar subalterno nas relações sociais. Sua experiência, assim, integra a

experiência de classe e, ao mesmo tempo, tem particularidades, considerando suas

experiências concretas de opressão.

A segunda parte da tese se volta para a dinâmica histórica do movimento

estudado. A experiência das mulheres negras nos anos 1960 e 1970 as levou a fundarem

suas organizações específicas, dadas as particularidades de suas pautas. Argumentei que

327
essas pautas são também demandas de classe, no sentido de que são demandas contra-

hegemônicas em um sistema contraditório capitalista. Elas estão conectadas com

demandas mais amplas da classe, pois têm impactos sobre a classe trabalhadora como

um todo.

A análise aqui empreendida mostrou que, nos anos 1980, as primeiras

organizações de mulheres negras tinham uma relação próxima com sua base social e

com o movimento social em geral. Essas organizações tinham como foco a educação

política das mulheres negras e seu fortalecimento em termos subjetivos, além de

buscarem denunciar diferentes formas de discriminação e seus impactos na saúde, nas

relações de trabalho e na construção de subjetividades e relações pessoais. O

movimento de mulheres negras, nesse momento, apontava para as especificidades do

grupo social que se propunha a representar, mas também se apresentava como tendo um

papel político no movimento social em geral e na luta por uma transformação social

mais ampla, que superasse a exploração dos subalternos.

Nos anos 1990, o movimento de mulheres negras passou por um processo de

institucionalização, a partir do qual algumas das mais importantes organizações do

movimento organizaram-se sob forma de ONGs. O contexto dos anos 1990 favoreceu

essa institucionalização. As ONGs estabeleceram relações com agências de

financiamento internacionais, a maioria das quais aparelhos privados de hegemonia da

burguesia e, portanto, defensoras dos interesses da classe dominante. Como minha

argumentação se deu no sentido de que as pautas do movimento de mulheres negras são

contra-hegemônicas, essa relação é contraditória e complicada. Por outro lado, a

institucionalização e os financiamentos permitiram a participação de intelectuais do

movimento em fóruns internacionais, desenvolvendo redes políticas transnacionais com

mulheres negras da América Latina e dos Estados Unidos.

328
Desde a década de 1980, as intelectuais negras buscaram se inserir no Estado

restrito, participando de conselhos, do parlamento, de secretarias especiais, etc. Mas o

impacto político dessa inserção foi limitado, já que o Estado nunca incorpora

plenamente pautas contra-hegemônicas que venham a ameaçar o domínio das classes

dominantes. Apesar dos limites dessa atuação, essa inserção no Estado restrito

alavancou algumas conquistas institucionais importantes, garantindo a ampliação de

políticas de orientação antirracista no âmbito do Estado Restrito.

Entender de que forma classe, raça, gênero e sexualidade se relacionam vai

muito além de um problema teórico. Trata-se de um problema político que tem a ver

com resistência e construção de realidades alternativas. Os grupos subalternos sob o

capitalismo têm em comum a luta contra a exploração, a alienação e a opressão, mas

eles experimentam essas relações de formas diferentes, tendo conflitos intraclasse por

conta da natureza contraditória da classe. O movimento de mulheres negras é um

exemplo histórico da natureza contraditória da classe trabalhadora. Pos isso, entender

suas estratégias histórias de luta é importante para todas e todos interessados na

transformação da sociedade em direção à emancipação humana.

É necessário, ainda qualificar os termos em que se dão as discussões que

envolvem as dimensões de de classe social, raça, gênero e sexualidade, que devem ser

compreendidas enquanto relações sociais determinantes e que se constituem umas às

outras. A preocupação com uma compreensão profunda da totalidade social não implica

abandonar subjetividade e experiência, mas trata-se de uma condição para historicizar

essas relações e provar que elas podem ser transformadas.

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354
ANEXO A - Quadro: Elementos biográficos das entrevistadas194
Nome Naturalidade Origem familiar Formação/Escolaridade Organizações em que atuou
Neusa Pereira Rio de Janeiro, Mãe era cozinheira e Curso normal no Instituto de CEP/RJ - Centro Estadual de Professores; Grupo de Mulheres Negras de
RJ, 1945 lavadeira, empregada Educação do Rio de Janeiro. Jacarepaguá (fundadora); Centro de Articulação de Populações
doméstica. Pai ausente. Graduação em Psicologia Marginalizadas - CEAP; Criola (fundadora); Centro de Informação e
Moravam em favela. interrompida (Universidade Documentação Coisa de Mulher (fundadora); Casa das Pretas.
Gama Filho); Graduação em
Letras-Português (Faculdade
São Judas Tadeu)
Vanda Ferreira Niterói, RJ, Pai foi menino de rua na Curso normal no Instituto de ONG Instituto de Pesquisas e Estudos da Língua e Cultura Yorubá –
1947 infância, tornou-se motorista Educação do Rio de Janeiro. IPELCY (diretora cultural); Instituto de Cultura e Consciência Negra
de táxi, participando do Graduação em Pedagogia Nelson Mandela (fundadora); Instituto Palmares de Direitos Humanos;
sindicato da categoria. Mãe (UNISUAM), pós-graduada Fórum de Solidariedade às Vítimas de Violência Sexual na Região da
foi empregada doméstica. Lato-Sensu em História da Leopoldina (Ramos, Olaria e Penha); Conselho Consultivo do Grupo
África e do Negro no Brasil. Cultural OLODUM; Centro de Informação e Documentação Coisa de
Mulher (fundadora); Conselheira do ELAS - Fundo de Investimento
Social; Instituto de Estudo e Pesquisa de Populações Afro-brasileiras
(IPEAFRO); Diretoria de Intercâmbio da Associação dos Naturais e
Amigos de Angola; Membro do Conselho do Prêmio Camélia da
Liberdade do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas –
CEAP, Griot do Programa ReConhecer da ONG Estimativa; Conselho de
Amigos do Centro Afro-Carioca de Cinema Zózimo Bubul.
Jurema Batista Rio de Janeiro, Mãe empregada doméstica; Graduação em Letras Associação de Moradores do Morro do Andaraí (fundadora e
RJ, 1957 moravam no morro do (Universidade Santa Úrsula) presidente); Partido dos Trabalhadores; IPCN; N’zinga - Coletivo de
Andaraí. Pai ausente. Duas Mulheres Negras (fundadora); Movimento Negro Unificado - MNU;
irmãs e um irmão (criado Assessora parlamentar de Benedita da Silva (1983-85); Funcionária
por outra família) por parte pública da Secretaria Municipal – supervisão de creches comunitárias;
de mãe. Uma terceira irmã Vereadora (1993-1996, 1997-2000, 2001-2002) e deputada estadual
falecida na infância. (2003-2006); presidente do Diretório Municipal do PT; Presidente das
CPIs sobre as chacinas da Candelária e de Vigário Geral.
Lúcia Xavier Rio de Janeiro, Mãe empregada doméstica e Graduação em Serviço Acorda Crioulo; IPCN; Movimento pelos Direitos da Criança; Criola.
RJ, 1959 depois trabalhadora de Social (UFRJ)
comércio. Pai operador de

194
De acordo com informações cedidas pelas entrevistadas.

355
som, morreu aos 30 anos.
Duas irmãs.
Edna Roland Codó, MA, 1951 Trisavô paterno francês Graduação em Psicologia Centro Acadêmico de Psicologia da UFMG; POLOP; movimento da
(possível origem judaica), pela UFMG (1972); água (luta por saneamento na zona sul de SP), comitês de apoio às greves
que teve filho com uma Graduação em Ciências do ABC; Bloco Afro Alafiá; Coletivo de Mulheres Negras (ligado ao
mulher negra. Avô paterno Sociais interrompida (USP); Conselho); Comissão de Saúde do Conselho Estadual da Condição
teria sido rábula. Pai mestrado/pós-graduação em Feminina (coordenadora); Comissão de Mulheres Negras no Conselho
comerciante, “guarda- Psicologia Social (PUC); Estadual da Condição Feminina; Programa de Saúde da Mulher na
livros”. Mãe dona-de-casa. Especialização em prefeitura de São Paulo (coordenadora); Geledés (fundadora); Rede
Psicanálise (Instituto Sedes Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; Grupo
Sapientiae) Internacional de Trabalho e Consultoria da Iniciativa Comparativa de
Relações Humanas;
Coordenadora de combate ao racismo e à discriminação da Unesco.
Sueli Carneiro São Paulo, SP, Pai ferroviário e mãe Graduação em Filosofia CECAN; Coletivo de Mulheres Negras; Conselho Estadual da Condição
1950 costureira (após casar, torna- (USP) Feminina (conselheira, secretária-geral); Programa da mulher negra do
se dona de casa) Mestrado inconcluso em Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (coordenadora); Geledés
Filosofia (fundadora); Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.

Joselina da Pai baiano (pai-de-santo) e Escola Normal. Graduação CEBA (Centro de Estudos Brasil-África); IPCN (participante ativa mas
Silva mãe mineira, pouca em Letras português-inglês. não sócia); Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro; Bloco Afro
instrução formal. Mestrado e Doutorado em Agbara Dudu; Centro de Articulação de Populações Marginalizadas –
Ciências Sociais (UERJ). CEAP.

356
ANEXO B - Quadro: Cronologia - Eventos significativos para o movimento de
mulheres negras

Ano Evento
1975  Início da Década da Mulher (ONU)

1978  Fundação do Movimento Negro Unificado

1979  Encontro Nacional Feminista (CE)

1980  II Congresso da Mulher Paulista (SP)


1983  Conselho Estadual da Condição Feminina (SP)
 I Encontro Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro
 II Conferência Mundial contra o Racismo (Genebra, Suíça)
1985  III Encontro Feminista Latino Americano e do Caribe (Bertioga - SP)
1986  I Encontro Estadual de Mulheres Negras de São Paulo
 I Congresso das Mulheres trabalhadoras (SP)
1987  I Encontro Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro
 IX Encontro Nacional Feminista (Garanhus-PE)
1988  I Encontro Nacional de Mulheres Negras (Valença- RJ)
1990  Criação do Comitê Impulsor para a realização do Encontro Latino-
Americano e do Caribe de Mulheres Negras, durante o Encontro
Feminista de São Bernardo-Argentina.
1991  II Encontro Nacional de Mulheres Negras (Salvador-BA)
1991  Campanha Nacional contra a Esterelização de Mulheres Negras
1992  I Encontro Latino-Americano e do Caribe de Mulheres Negras
(República Dominicana)
1993  I Seminário Nacional das Mulheres Negras (Atibaia – SP)
 Seminário Nacional de Políticas e Direitos Reprodutivos de Mulheres
Negras (Itapecerica da Serra - SP)
1994  II Seminário Nacional de Mulheres Negras
 Painel Mulheres Negras Latinoamericanas e Caribenhas - Balanço e
perspectivas para o 3º milênio (Mar del Plata - ARG)
1995  V Conferência Mundial sobre as Mulheres (China/Beijing)
 Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela
Vida
1996  Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População
Negra (GTI População Negra)
 Reunião Nacional de Mulheres Negras (BH-MG)
1997  Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego
e na Ocupação (GTDEO)
2000  Conferência Regional das Américas, Preparatória à Conferência de
Durban (Santiago, Chile)
2001  III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância (África do Sul,
Durban)
 III Encontro Nacional de Mulheres Negras (Belo Horizonte-MG)
2002  Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD)
2003  Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR)
2004  Conferência Nacional dos Direitos da Mulher (CNPM)
 Seminário Nacional de Mulheres Negras – SP
2005  Marcha Zumbi + 10
2006  Conferência Regional das Américas sobre os Avanços e Desafios do
Plano de Ação contra o Racismo, a Discriminação Racial, a

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Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas (Brasília)
2007  II Conferência Nacional dos Direitos da Mulher
2008  Fórum da Sociedade Civil das Américas para Avaliação dos
Resultados de Durban
 Conferência da América Latina e do Caribe, Preparatória à
Conferência de Exame de Durban

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