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Niterói
2020
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BÁRBARA ARAÚJO MACHADO
Niterói
2020
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BÁRBARA ARAÚJO MACHADO
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos (Orientador)
______________________________________________________
Prof. Dr. Amílcar Araújo Pereira (Arguidor)
______________________________________________________
Profª. Dra. Flávia Fernandes de Souza (Arguidora)
______________________________________________________
Profª. Dra. Flávia Mateus Rios (Arguidora)
______________________________________________________
Profª. Dr. Hugo Alexandre de Lemos Bellucco (Arguidor)
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
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Você pode prender revolucionários, mas não pode prender a revolução.
Você pode expulsar um libertador do país, mas você não pode expulsar do país a libertação.
Você pode assassinar um lutador pela liberdade, mas você não pode assassinar a luta pela
liberdade.
que de alguma forma apoiaram a formulação desta tese. Peço desculpas de antemão para
quem deveria figurar aqui e, por falta de memória e cansaço, acabou ficando de fora.
Agradeço à minha família: minha mãe, a fêmea-fênix que é porto seguro mesmo
quando mar agitado; minha avó, que mesmo estando um pouco fora desse mundo continua
muito; meu tio dindo, agora colega de vida acadêmica, pelos papos, almoços, cumplicidade e
generosidade de sempre; minha tia dinda, que me recebeu ao longo do doutorado por diversas
vezes em sua casa, que para mim é lar, pela torcida feroz de sempre; tio Caio, minha
e disposição em me ajudar sempre; Marcos e Maria Clara, minha fonte inesgotável de orgulho
Silvio, Raquel, Rodrigo, Lúcia e Paçoca, obrigada pelo carinho e pelo cuidado com que me
acolhem sempre.
À Larissa, a quem nem tenho mais palavras novas pra agradecer, de tanto tempo que já
está ao meu lado. Obrigada por ser minha dupla, pela sua alegria, pela sua lealdade. À
Marluce, a quem não posso deixar de ser repetitiva e agradecer pela lealdade, além de todas as
justificavelmente para baixo. À Flora, por ser tão “querida!” e por ter sido minha parceira de
São Paulo, mesmo que por tempo limitado. À Michelle, por buscar sempre fazer-se presente,
mesmo quando distante, e pelas aulas de crochê. À Bia, Natassja, Tati e Giovanna, minhas
Meninas-CP2; À Thaís, Luisa, Rafael, André e Sophia, por serem a melodia de karaokê que
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alegra minha vida. Ao Erick e à Isa, pela amizade verdejante que dá frutos; Ao Fernandão,
pela parceria que vai de diálogos etílico-amorosos aos político-acadêmicos com toda fluidez.
Ao Kappa, por ter me aturado no berço ao lado naquele longínquo ano de 1989.
Costard e Fernanda Haag, por todas as trocas intelectuais que tivemos nos últimos anos, mas
principalmente por serem maravilhosas das galáxias (na impossibilidade de usar a expressão
Camila Pizzolotto, Dani Jardim, Marcelo Ramos, Becca, Ana Kallás e Livia, vocês
vezes impregna o meio acadêmico: nós realmente caminhamos e construímos juntos. Devo
Guanabara que movimentava nossos cabelos quando voltávamos tarde da noite naquela barca
feminista, com agradecimentos especiais a Sabrina, Jussara, Luma, Fabi Motroni, Maíra
Ao Fábio Frizzo, ao Zé Knust e ao Paulo Pachá, pelo apoio e pela ajuda que me deram
em vários momentos; À Ingrid e ao Dudu, pelo carinho e acolhimento que me fazem sentir.
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A Juliana Nascimento, Rhaysa Ruas, Thaís Paz, Thaíz Senna, Diego Martins,
Anderson Tavares, Thiago Romão, André Guiot, Marco Pestana e Rejane Hoeveler, pelas
trocas acadêmicas.
Virgínia Fontes, por me abrir sua casa para conversar sobre minha pesquisa com toda atenção,
dedicação e generosidade.
conversar sobre minha pesquisa e pelo importante curso “Armas, artes e lutas”. Aos
professores Amílcar Pereira e Hugo Bellucco, por terem aceito o convite para a banca de
ajudar em diversos momentos, desde o mestrado, sempre com muita atenção e generosidade.
por tudo.
doutorado, pela comprometimento com o processo da orientação, pela paciência com que
integrar.
À Cinzia Arruzza, pelo apoio em minhas tentativas de pesquisar no exterior sob sua
supervisão e por ter me recebido na New School for Social Research, tendo sido fundamental
para a conclusão desta tese. À Titthi Bhattacharya, que, com a professora Cinzia, ofereceram
um minicurso sobre a teoria da reprodução social que ajudou a consolidar meu entendimento.
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Agradeço também pela abertura e paciência com que receberam os anseios acadêmicos e
especial a Clarissa O’Neill, Jéssica Alves, Lisia Cariello, Lia Castanho e Djamila Dias.
Campinas e aos demais estudantes que cruzaram meu caminho, me permitiram estabelecer um
colegas de sala dos professores e de corredores escolares nesses últimos anos, em especial
Carolina Medeiros, Eduardo De Biase, Luna Campos, Pedro Cazes, Luiza Aguiar e André
Pasti. Minhas experiências preciosas no chão da escola também integram este trabalho.
Por fim, agradeço ao Juca, que entrou na minha vida no último semestre do doutorado
ensinar cada dia uma coisa nova sobre mim, sobre a vida, sobre as relações e sobre amor. E ao
Renato, meu companheiro de vida, meu amor, de quem eu escolhi andar ao lado na resistência
e nos – cada vez mais raros – dias de paz. Muito mais que apoio e incentivo, você foi desde o
responsável logístico até o interlocutor acadêmico preferencial desta tese. Sem você, nem sei.
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RESUMO
Esta tese tem como tema a formação do movimento de mulheres negras no Brasil entre fins da
década de 1970 e os anos 1990. Seu objetivo geral é compreender a experiência das mulheres
que integraram as primeiras organizações específicas do movimento de mulheres negras como
parte da experiência da classe trabalhadora e, portanto, como parte do processo da formação
de classe. Essa proposição depende de um entendimento de classe social como unidade
contraditória, constituída por relações raciais, de gênero e sexualidade, conforme propõe a
Teoria da Reprodução Social (TRS). A tese se debruça sobre a dinâmica histórica de
formação do movimento de mulheres negras: as experiências de suas intelectuais orgânicas
em organizações mistas, a construção de seus primeiros espaços políticos específicos, suas
estratégias de organização e suas pautas políticas nas décadas de 1980 e 1990, observando as
transformações ocorridas nesse período.
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ABSTRACT
The current thesis addresses the making of Black Women’s Movement in Brazil between the
decades of 1970s and 1990s. The main goal of the thesis is to understand the experience of the
women who organized the first specific black women’s organizations as a part of the working
class experience. Therefore, the making of those movements are also part of the making of a
social class. Such proposition is based on the comprehension of social class as a contradictory
unity, built by racial, gender and sexuality relations, as proposed by the Social Reproduction
Theory (SRT). The thesis addresses the dynamics of the making of black women’s movement
by analysing: 1) the experiences of its organic intellectuals in mixed organizations; 2) the
construction of their first politically specific spaces; 3) its organization tactics and the political
agenda through the decades of 1980s and 1990s, observing the transformations throughout
this period.
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ÍNDICE
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 14
CAPÍTULO I - Repensando o capitalismo no Brasil como uma totalidade contraditória ....... 23
1. Relações raciais, de gênero e capitalismo no pensamento social brasileiro .................. 23
2. O pensamento feminista negro e a ideia de articulação................................................. 47
2.1 Articulação no feminismo amefricano ................................................................... 47
2.2 O pensamento de Lélia Gonzalez ................................................................................ 60
3. Repensando o capitalismo brasileiro como totalidade contraditória: uma proposta de
síntese.................................................................................................................................... 78
3.1 Modo de produção como totalidade contraditória...................................................... 78
3.2 Exploração, alienação, opressão................................................................................. 91
4.Conclusão: Brasil: Uma totalidade capitalista, racista, (hetero)sexista e dependente ....... 96
CAPÍTULO II - Experiência de mulheres negras como experiência de uma classe
trabalhadora contraditória (1970-1990) .................................................................................... 99
1. “Nossos passos vem de longe” : breve comentário sobre a origem do movimento de
mulheres negras .................................................................................................................. 116
2. Biografias das entrevistadas ........................................................................................ 122
3. Experiência organizativa ............................................................................................. 141
3.1 Resistência à Ditadura Empresarial-Militar .............................................................. 141
3.2 Movimento negro contemporâneo ............................................................................ 156
3.3 Feminismo ................................................................................................................. 168
4. Conclusão: A unidade contraditória como experiência: experiência de mulheres negras
como experiência de classe ................................................................................................. 178
CAPÍTULO III - Organizações de mulheres negras: espaços específicos, pautas contra-
hegemônicas (década de 1980) ............................................................................................... 181
1. A construção de espaços políticos específicos ............................................................ 185
1.1 Primeiros coletivos específicos de mulheres negras ............................................ 189
1.2 Grupos de mulheres negras dentro de organizações mistas ................................. 197
1.3 Encontros de mulheres negras .............................................................................. 201
2. Pautas contra-hegemônicas.......................................................................................... 219
2.1 Saúde .................................................................................................................... 220
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2.2 Trabalho ............................................................................................................... 242
2.3 Subjetividade ........................................................................................................ 249
3. Conclusão .................................................................................................................... 258
CAPÍTULO IV - Organizações de mulheres negras no Estado Ampliado (década de 1990) 260
1. O conceito de Estado Ampliado .................................................................................. 260
2. O processo de institucionalização do movimento de mulheres negras ....................... 270
2.1 Contexto ............................................................................................................... 270
2.2 ONGs de Mulheres negras: casos analisados ....................................................... 276
2.3 Política transnacional: atuação das organizações de mulheres negras em
Conferências Internacionais ............................................................................................ 301
3. Relação do movimento de mulheres negras com o Estado restrito ............................. 309
3.1 Atuação em conselhos .......................................................................................... 312
4. Conclusão........................................................................................................................ 323
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 325
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 330
Fontes orais ......................................................................................................................... 330
Fontes escritas ..................................................................................................................... 330
Referências bibliográficas................................................................................................... 333
ANEXO A - Quadro: Elementos biográficos das entrevistadas ............................................. 355
ANEXO B - Quadro: Cronologia - Eventos significativos para o movimento de mulheres
negras ...................................................................................................................................... 357
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INTRODUÇÃO
Esta tese tem como tema a formação do movimento de mulheres negras no Brasil entre
fins da década de 1970 e os anos 1990. Seu objetivo geral é compreender a experiência das
negras como parte da experiência da classe trabalhadora e, portanto, como parte do processo
da formação de classe. A palavra “formação”, aqui, se trata da categoria proposta por Edward
Palmer Thompson (2015), que, conforme sugere o original em inglês the making, se refere ao
processo histórico de fazer-se da classe trabalhadora. Propor que a experiência das mulheres
negras desse movimento é uma experiência de classe não significa reduzir à classe as
social como uma unidade contraditória, constituída por relações raciais, de gênero e
sexualidade, conforme propõe a Teoria da Reprodução Social (TRS). A tese se debruça sobre
específicos, suas estratégias de organização e suas pautas políticas nas décadas de 1980 e
Petrônio Domingues (2007) e Amílcar Pereira (2013) consideram como a fase contemporânea
do movimento negro, que tem início no ano de 1978, com a fundação do Movimento Negro
Unificado (MNU). Muitas das militantes do movimento de mulheres negras aqui estudado
atuaram também no âmbito do movimento negro, havendo uma relação significativa entre os
1
A palavra “intelectuais” aqui e ao longo de toda a tese se refere ao conceito de “intelectual orgânico” de
Antonio Gramsci, que caracteriza o intelectual como sujeito vinculado orgânicamente a um dos grupos sociais
em disputa na sociedade – afastando-se, assim, da concepção tradicional de intelectual como alguém que está
acima dos conflitos sociais – e responsável pela organização da vontade coletiva do grupo a que se vincula
(GRAMSCI, 2001). O adjetivo “orgânico”, portanto, se remete tanto à organicidade quanto à organização.
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respectivamente à data de fundação daquela que provavelmente é a primeira organização
Brasileiras (AMNB), entidade que marca o estabelecimento de uma importante rede nacional
político atual, vale demarcar sua diferença com relação ao que Flávia Rios e Regimeire
relações com o feminismo negro “clássico”, como chamam as autoras, tem características que
político e; o uso das redes sociais como espaço de formação de grupos cuja atuação não se
Cabe ainda fazer a ressalva de que, embora a tese se refira ao movimento de mulheres
negras brasileiras, não pretendo de dar conta da ampla diversidade regional desse movimento
no Rio de Janeiro e em São Paulo, limitação que deve ser reconhecida, embora creia que não
comprometa uma análise que tem como objetivo observar processos e relações sociais mais
amplos.
O tema “movimento de mulheres negras”, com o recorte designado nesta tese, tem
recebido alguma atenção – ainda que insuficiente – na área das ciências humanas no Brasil
desde meados dos anos 1990, mas essa atenção esteve concentrada em áreas como ciências
debruçar sobre o Feminismo Negro brasileiro. Pode-se apontar ainda a importante pesquisa de
15
Núbia Moreira (2018, 2ª ed.), finalizada em 2007 e publicada como livro pela primeira vez
em 2011, bem como as subsequentes pesquisas de Cristiano Rodrigues (2006), Ana Angélica
Sebastião (2007), Marjorie Nogueira Chaves (2008), Mariana Damasco (2009), Lady
Christina de Almeida (2010), Silvana Bispo (2011), Claudia Pons Cardoso (2012) e Mariana
Cestari (2015). Destaco ainda, no âmbito internacional, a obra de Kia Lilly Caldwell, com
resultados importantes como seu livro Negras in Brazil (2007). Destes, apenas as pesquisas de
Chaves, Damasco e Cardoso são trabalhos feitos por historiadoras; os demais vem de áreas
tímida no âmbito da historiografia, dada a relevância do tema, a presente tese se destaca por
através de lentes que buscam combinar importantes contribuições de feministas negras à uma
partir de uma perspectiva totalizante, mas não menos preocupada com agência dos sujeitos
O projeto de pesquisa que deu origem a esta tese foi intitulado “Entre raça, gênero e
um processo longo, que leva o mesmo tempo, em termos quantitativos, que uma graduação
pode levar. Mas qualitativamente é muito diferente: são quatro anos com a mesma pesquisa, o
mesmo tema. Ocorre que, se uma pesquisa caminha, ela não pode ser a mesma durante quatro
anos. A minha se transformou quando ganhei novas lentes de observação. Meu problema
inicial tinha a ver com a forma como gênero, classe e raça interagem, se entrelaçam e criam as
condições de nossas vidas. Diante da afirmação frequente de militantes negras sobre sua
16
preferencial para entender a relação entre racismo, sexismo e capitalismo, no sentido do
inovador (apesar de circular no Brasil pelo menos desde 2002, com a publicação do texto de
Kimberlé Crenshaw na Revista Estudos Feministas). Ele ajudava a compreender aquilo que
Conceição chamava de “escre(vivência) de dupla face” e que eu, marxista iniciante àquela
altura, desdobrei em uma escre(vivência) de tripla face, para incluir a classe social, relação
que me parecia igualmente importante na obra da autora, ainda que ela não se referisse
espaços onde se discutia gênero e raça, mas em que “classe” era tida ora com desconfiança,
ora de maneira descritiva, liberal, como um adjetivo agravante, o“ser pobre”. Trazer a classe
como relação social em termos marxistas me parecia solucionar o que ficava em aberto na
abordagem interseccional.
Me aprofundando nos debates sobre o conceito, conheci outras matrizes teóricas para
pensar as relações sociais de gênero, raça e classe, como o feminismo materialista francês.
Angela Davis, que se tornou sucesso no Brasil depois de constrangedoras décadas com a
publicação de seu Mulheres, Raça e Classe pela editora Boitempo, encorporou diante dos
como relações sociais manifestas na realidade social de maneira una, ainda que contraditória.
Se aquilo era interseccionalidade, era aquela a que eu queria: uma perspectiva materialista, de
17
base marxista, que compreendesse o papel sócio-histórico do racismo e do sexismo na
também objeto. Como produção intelectual do feminismo negro, era uma contribuição
original que as intelectuais negras (no sentido gramsciano) trouxeram para o debate sobre
desigualdade e resistência.
Em meio aos estudos sobre tais questões, eu ouvia dizer de uma Teoria da Reprodução
Social, que se estabelecia no meio acadêmico do norte global, mas que pouco – pouquíssimo
– espaço ocupava nos meios marxistas brasileiros. Meios marxistas, porque era uma teoria
marxista e feminista que, em sua mais recente versão, incorporava o debate sobre relações
raciais de maneira bastante interessante a suas formulações. Entrando no campo da TRS, uma
luz acendeu na minha cabeça. A mesma que acende quando leio ou ouço Angela Davis falar.
Aquela que acende diante da análise das relações de gênero, raça e classe sociais sob uma
perspectiva materialista, marxista, mas jamais reducionista em relação à dimensão dos dois
primeiros elementos.
A teoria da reprodução social passou a orientar meu olhar, não tanto para o objeto de
pesquisa, mas para a realidade social como um todo, ao trazer para a reflexão sobre relações
quando tomado em conjunto com as discussões marxistas sobre dependência, de Ruy Mauro
Marini e outros. Embora isso estivesse claro para mim, a nova lente se embaçava ao observar
a estrutura da tese e meu objeto de pesquisa. Mulheres que estavam “entre raça, gênero e
classe”, uma imagem topográfica típica da metáfora interseccional conforme sua formulação
original – a mesma metáfora que passei a considerar a partir de uma perspectiva bastante
crítica. Se a Teoria da Reprodução Social propunha que classe, raça e gênero são relações que
18
se constituem umas às outras, que integram umas as outras, sendo todas determinantes de uma
totalidade social contraditória, o título da pesquisa perdia seu sentido, tendo sido necessário
Há ainda que se considerar que esta pesquisa, como todas as produções acadêmicas, é
fruto de uma conjuntura histórica específica. No seu caso, essa conjuntura marcou
em 2016, ano em que a então presidenta Dilma Rousseff sofreu um impeachment – um golpe
democráticas que pareciam ter se consolidado em 1988 sob a Constituição Cidadã. O material
eleitoral e os primeiros meses após o resultado das eleições de 2018. No dia da banca de
Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), cujo
Esse período foi marcado por grande desgaste físico e emocional para todas e todos
debate são direitos inalienáveis. Para os socialistas, se tornou um momento de defesa daquelas
batalha contra genocídios e mordaças. Uma batalha perdida. Foi difícil, nesse período,
trabalhar nesta tese. Mesmo porque sua matéria é indissociável da realidade que se apresenta
atualmente no Brasil. Nos últimos tempos, a cada notícia, a cada hectare queimado, a cada
criança favelada assassinada, ressoam as perguntas: Como chegamos até aqui? Há saída? Essa
tese constitui, de certa forma, um reverberar de tais perguntas e uma tentativa de contribuição
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O recorte cronológico da presente pesquisa envolve nosso passado recente. Nela, o
terreno não tão sólido – como fica evidente hoje, diante da ascensão neoconservadora ao
governo por via eleitoral e das inúmeras manifestações de ódio e de aversão a políticas de
inclusão social. Refletir sobre um movimento social formado quando da construção dessa
frágil democracia é refletir também sobre como chegamos até aqui. O movimento de
passando por uma década de 1990 marcada pelo avanço neoliberal e chega fortalecido aos
governos do Partido dos Trabalhadores, com sua política de inclusão social associada à
conciliação de classes e abertura para diversos setores da burguesia. Quando vimos, desde os
últimos anos de governo petista, com acentuação no golpe de 2016 e aprofundamento sem
precedentes com as eleições de 2018, tantas conquistas dos movimentos sociais e da classe
social que representa de maneira exemplar a unidade contraditória das relações de classe,
raça, gênero e sexualidade ganha ainda mais gravidade e urgência. Quais foram as relações
sociais determinantes para a experiência das mulheres negras que viriam a formar suas
por hegemonia e de que maneiras procuraram se inserir no Estado Restrito2? Quais as relações
de seus aparelhos privados de hegemonia3 com outros aparelhos? Quais, enfim, os limites
encontrados por esse movimento e o alcance de seu potencial emancipatório? O que temos a
atual?
autores que buscaram articular as relações sociais de classe, raça, gênero e sexualidade. Essa
o auxílio da teoria marxista da dependência, das considerações sobre classe de E.P. Thompson
questões relativas a demografia e trabalho e, depois, com o olhar voltado para as experiências
de algumas lideranças do que virá a se constituir como o movimento de mulheres negras nos
negras nos anos 1980 e, principalmente, os temas que embasaram suas pautas de luta política.
observar em que medida suas pautas são específicas, mas também contra-hegemônicas em
sentido mais amplo, estando conectadas com dinâmicas que influenciam outros grupos
subalternizados.
21
O último capítulo analisa as transformações vividas pelo movimento na década de
extremamente rico e amplo, aparecendo aqui não apenas para caracterizar o movimento na
década de 1990, mas também para levantar questões para um debate que me parece
22
CAPÍTULO I - Repensando o capitalismo no Brasil como uma totalidade contraditória
"'Capitalismo' como uma simples abstração não existe 'realmente'. Há apenas o capitalismo racializado,
patriarcal, no qual a classe é concebida como uma unidade de relações diversas que produzem não apenas lucro
ou capital, mas o capitalismo."
(Susan Ferguson, Feminismos interseccional e da reprodução social, p. 23)
"Reconhecemos que a libertação de todas as pessoas oprimidas requer a destruição dos sistemas político-
econômicos do capitalismo e do imperialismo, tanto como a do patriarcado. [...] Não estamos convencidas,
entretanto, que uma revolução socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista nos
garantirá nossa libertação. [...] Precisamos verbalizar a situação real de classe de pessoas que não são
simplesmente trabalhadoras sem raça, sem sexo, mas para quem as opressões raciais são significantes
determinantes em suas vidas de trabalho/econômicas."
(Combahee River Collective,Una declaración feminista negra, p. 176)
Este capítulo tem como objetivo específico analisar as relações sociais em que as
(hetero)sexismo conformaram uma totalidade capitalista que não pode ser verdadeiramente
ligadas ao feminismo da reprodução social. A partir desses debates, será proposta uma síntese
A importância da questão racial para compreender a sociedade brasileira tem sido uma
escravidão, como não poderia deixar de ser em uma sociedade que viveu institucionalmente
23
relações escravistas por quase quatro séculos, esteve substancialmente presente nas reflexões
desse campo, bem como seus desdobramentos nas relações sociais pós-abolição. Pode-se
considerar, assim, que a própria tradição intelectual que se dedicou a compreender a (ou,
antes, a viabilizar a criação da ideia de) nação brasileira se confunde com uma tradição de
república, até 1930. O esforço dos teóricos racialistas consistiu não apenas em classificar, mas
culturais de cada “raça” (MUNANGA, 2000, p. 21). Não à toa esse conjunto de pensamento
naturalistas que visitavam o Brasil no século XIX ao projeto UNESCO dos anos 1950, o
Brasil era, aos olhos do mundo, um caso único de miscigenação racial – apontada ora como
ruína e impedimento à viabilidade na nação, no caso dos racialistas, ora como riqueza e
Até os anos 1930, a apropriação das teorias raciais europeias no Brasil “incorporou o
que serviu e esqueceu o que não se ajustava” ao projeto de nação almejado, combinando
4
É importante frisar que o pensamento racialista teve críticos mesmo em seu período de hegemonia. Exemplo
disso é Machado de Assis, cuja literatura “recusou o estatuto científico das teorias racistas, ao qual destinou
tenaz silêncio, só quebrado com mordazes ironias” (SCHNEIDER, 2018, p. 459).
24
evolucionismo com darwinismo social “como se fosse possível negar a civilização aos negros
miscigenação ainda era ponto central, mas passa a ser tratada através de uma perspectiva
culturalista, com as teses de Gilberto Freyre, ficando para trás a abordagem naturalista. De
acordo com Lília Schwarcz, embora as ideias de Freyre tenham enfraquecido os modelos
raciais de análise social, as associações feitas pelas teorias racialistas entre “raça” biológica e
consigo um novo projeto de país. Caracterizado pela sobreposição da unidade às partes, esse
combinada à formulação de uma identidade nacional uma e positiva, que “inspirasse otimismo
à nação” (PESAVENTO, 2006, p. 41). A obra de Freyre foi ao encontro dessa demanda,
oferecendo uma nova abordagem da formação nacional que se voltava “para o passado na
da matriz africana por uma chave de valorização cultural, ao conferir à contribuição africana
para o Brasil como tendo dotado ao país valores civilizatórios (FREYRE, 2006). Assim,
Freyre redimia “a alma nacional do estigma racial herdado do século XIX e que comprometia
25
A imagem subsequente do Brasil como paraíso da democracia racial tem, nessa obra,
compadrio entre escravizados e as classes dominantes. Se Freyre foi acusado nas décadas
posteriores de eliminar o conflito da análise da sociedade brasileira, foi justamente essa ênfase
na harmonia social entre as raças a saída ideológica do “entrave” racial do projeto nacional
brasileiro, apontado por Schwarcz. A mestiçagem deixava de configurar estigma e atraso: nos
versos jocosos de Manuel Bandeira, “A mania ariana / de Oliveira Viana / Leva aqui sua
político-econômico no Brasil a partir de 1930 geraram intensos debates entre cientistas sociais
e historiadores que não cabem no espaço desta tese. O que interessa particularmente aqui, no
âmbito das reflexões sobre relações raciais no pensamento social brasileiro, é uma obra
posterior a essa: a de Florestan Fernandes. Esse autor for responsável pela primeira
formulação intelectual consistente a relacionar relações raciais e capitalismo, ainda que não
Um dos mais importantes textos produzidos por Florestan Fernandes foi, sem dúvida,
hegemônica do Brasil como uma democracia racial, tomada pelo autor como um mito. Essa
caracterização fazia ressoar, no âmbito do pensamento social, a denúncia feita pela militância
5
Oliveira Viana (1883-1951) foi um historiador, sociólogo e jurista brasileiro, cuja obra foi marcada por
posições conservadoras em seu objetivo de interpretação da realidade brasileira. Era anti-liberal e defensor de
um Poder Executivo forte, por acreditar na incapacidade das massas populares para conduzir a si mesmas e à
nação. Tal posição se baseava em concepções do determinismo geográfico e biológico, sendo particularmente
afiliado às teorias racialistas de autores como Arthur de Gobineau e Vacher de Lapouge. Nesse sentido, defendia
a necessidade de que a elite dirigente do país pertencesse à raça superior, ariana, para incutir seus padrões morais
civilizatórios nas massas,compostas por mestiços e negros (Cf.
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/francisco-jose-de-oliveira-viana>. Acesso em
20 nov. 2018).
26
negra paulistana, com a qual Florestan pode dialogar diretamente em um amplo esforço de
pesquisa sobre relações raciais no Brasil sob sua coordenação e de Roger Bastide, a pedido da
UNESCO, no início dos anos 1950 (FERNANDES, 2017, p. 10-12, 32). O Projeto UNESCO
tinha como objetivo "apresentar ao mundo os detalhes de uma experiência no campo das
interações raciais julgada, na época, singular e bem-sucedida" (MAIO, 1999, p. 141). Embora
como um paraíso racial miscigenado onde inexistem tensões raciais permaneceu viva, sendo
no ano do golpe, 1964. Segundo o autor, ela se trata de um "estudo da formação, consolidação
(FERNANDES, 2008, p. 14). Seu objetivo, ao estudar particularmente a cidade de São Paulo,
era analisar "as conexões existentes entre a revolução burguesa, a desagregação do regime
15).
subterrâneo' que sempre correu nos escritos de Florestan" (GUIMARÃES, 2008, p. 9). Ainda
6
O uso da expressão “ditadura empresarial-militar” indica uma tomada de posição em um importante debate
historiográfico a respeito do golpe de 1964 no Brasil. Nesse debate, me oponho à corrente que sustenta uma
narrativa sobre o golpe alinhada ao discurso dos vencedores, ao argumentar que “esquerda e direita foram
igualmente responsáveis”, fazendo ecoar a própria justificativa dos golpistas quanto à existência de uma ameaça
iminente de revolução comunista no Brasil naquele período (MELO, 2014, p. 158). A crítica a essa perspectiva
revisionista resgata trabalhos fundamentais como a tese de René Dreyfuss, que demonstra não apenas a
ingerência dos Estados Unidos no processo do golpe, como também que “uma articulação de interesses do
capital multinacional e associado, [...] que se tornou a fração das classes dominantes mais beneficiada pela
ditadura” (MELO, 2014, p. 160). Destaca-se, assim, a ação do empresariado, além do oficialato militar, na
articulação do golpe, o que não acontece no caso da expressão “ditadura civil-militar”. Esta última tem sido
usada na defesa de uma “cumplicidade da ‘sociedade brasileira’ com a ditadura” – sociedade aqui entendida de
forma reificada, como um ente homogêneo “capaz de ‘assumir responsabilidades’ ou ‘esquecer’”, deixando de
lado o importante viés classista da parte “civil” do golpe (MELO, 2014, p. 168).
27
assim a concepção de classe social de Fernandes aqui é predominantemente weberiana. A
despeito de sua importância, a obra traz teses controversas, refutadas por estudos posteriores,
tais como “a tese da auto-exclusão do negro e do mulato do mercado de trabalho paulista, nos
anos que se seguiram à Abolição; e a tese complementar de que os imigrantes europeus não
de transição capitalista indica um caráter democrático para o que ele chama de “ordem social
essa lógica, ser de ordem estritamente econômica. A resposta estaria em uma sobrevivência
que qualifica como demasiadamente "otimista" (HASENBALG, 1979, p. 76).8 O autor afirma
7
A obra de Clóvis Moura, historiador, sociólogo, jornalista, escritor e militante comunista, foi fundamental na
refutação desses aspectos problemáticos apontados nas primeiras obras de Fernandes, ligadas ao projeto
UNESCO, bem como das teses freyreanas. Moura, ao buscar desenvolver uma sociologia da práxis negra e uma
análise histórica da resistência negra à escravidão, desconstruiu as teses da passividade da população negra,
reinterpretando a história através de uma “tradução do marxismo a partir de uma perspectiva do negro”
(OLIVEIRA, 2011, p. 45).
8
A crítica ao dualismo da oposição entre “atraso” e “modernidade” não surge pela primeira vez na obra de
Hasenbalg; há uma intensa discussão sobre essa questão no campo da sociologia que não cabe nesse espaço. Para
relevantes contribuições, conferir: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres em uma Sociedade
Escravocrata. São Paulo: Editora Unesp, 1997; SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas
Cidades, 1992; OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
28
"A sociedade capitalista transforma o significado da raça como dimensão adscritiva
dentro de um sistema de estratificação e mobilidade social em que a competição e
atributos adquiridos são enfatizados. A sociedade de classes confere uma nova
função ao preconceito e discriminação raciais: as práticas racistas [...] tendem a
desqualificar os não-brancos da competição pelas posições mais almejadas que
resultam do desenvolvimento capitalista e da diferenciação da estrutura de classes"
(HASENBALG, 1979, p. 77)
de que essa função social está ligada à manutenção das “castas” de senhor e escravo:
social e cultural existente entre senhor e escravo" (FERNANDES, 2018, p. 182). Nessa
princípios de integração social” e também uma faceta racial, "menos aparente e dissimulada",
na medida em que os senhores eram "extraídos de um estoque racial branco" e exerciam uma
"dominação social que era, ao mesmo tempo, uma dominação racial" (FERNANDES, 2018,
p. 183). Desse modo, "a estratificação social pressupunha [...] uma estratificação racial e a
ocultava" (FERNANDES, 2018, p. 183), havendo aí “um paralelismo fundamental entre 'cor'
Uma perspectiva marxista permite ir além dessa análise, evidenciando a função social
capitalismo. Abigail Bakan (2016) explica que essas relações não apenas pertencem ao
29
capitalismo, mas que ele depende dessas relações e as reproduz. Segundo a autora, embora o
humanos como trabalhadores mercantilizados, eles interagem em uma relação competitiva por
trabalhadores negros e brancos (inclusive imigrantes) atua como uma forma opor sujeitos
explorados e enevoa distinções de classe, ao mesmo tempo em que cultiva diferenças que
isolam indivíduos de aliados potenciais dentro da mesma classe. Além disso, causa impacto
"A 'revolução burguesa' praticamente baniu o 'negro' da cena da história. [...] o negro
não ficou apenas à margem dessa revolução. Foi selecionado negativamente,
precisando contentar-se com aquilo que, daí por diante, seria conhecido como
'serviços de negro': trabalhos incertos ou brutos, tão penosos quanto mal
remunerados" (FERNANDES, 2018, p. 171).
respeito à manutenção das castas senhor e escravo, sobrevivência de uma ordem social
opressão no capitalismo, discussão que será desenvolvida mais adiante, na conclusão deste
capítulo. As formulações de Bakan (2016) sobre tais relações indicam que a alienação
contribui para uma “boa” recepção das relações historicamente específicas de opressão – o
estranhamento entre os sujeitos humanos. Nesse sentido, a exclusão da população negra não é
nem uma sobrevivência nem o resultado de uma auto-exclusão, como chega a sugerir
Florestan em dado momento. Ela é resultado das dinâmicas contraditórias, mas concretas, do
30
capitalismo. Assim, embora Florestan identifique corretamente a não integração do negro, o
“dilema racial brasileiro” por ele identificado, que imiscuiu “traços do passado” à gênese da
ou um paradoxo, mas faz parte do jogo do capitalismo no Brasil e de seu lugar na dinâmica
capitalista global.
partir de O Negro no Mundo dos Brancos, de 1972, o autor se aproxima de uma visão
(COSTA, 2017, p. 14). De acordo com Diogo Costa, é nessa obra que “a questão racial
emerge como uma das questões fundamentais para compreendermos a construção política da
categoria de capitalismo dependente” formulada pelo autor em suas próximas obras (COSTA,
2017, p. 14).
relação com as nações capitalistas centrais e hegemônicas são analisadas por Florestan em A
Revolução Burguesa no Brasil. Nessa obra, publicada em 1975 mas redigida desde meados
dos anos 60, Florestan reflete sobre"como e por que a Revolução Burguesa constitui uma
(FERNANDES, 2006, p. 340), focando-se particularmente no caso brasileiro. Ele dialoga com
brasileiro, como requisito para uma revolução socialista, dados os resquícios pré-capitalistas
como marco de um viés autoritário no capitalismo brasileiro, aparece também como questão a
ser compreendida.
31
Em A Revolução Burguesa, Florestan desenvolve sua mudança de perspectiva quanto
à peculiaridade da transição capitalista no Brasil: ela não aparece mais como atrasada por
conter “sobrevivências” de sistemas anteriores, que poderiam ser superadas pela continuidade
do desenvolvimento capitalista; seu “atraso” tem relação direta com os interesses tanto das
burguesias dos países centrais como da burguesia nacional. Aqui, a burguesia nacional é
retirada do lugar de vítima do imperialismo para uma compreensão mais profunda de seu
Assim, ele sublinha a presença de interesses comuns entre as frações burguesas, que se
periféricos como o Brasil. Essa configuração demanda, aqui, uma “dissociação pragmática
Marcelo Badaró Mattos destaca a importância da “superação das teses que procuravam
entender o passado brasileiro a partir do modelo rígido de evolução dos modos de produção
1960 – inclui-se aqui. Mattos destaca que, politicamente, críticas a tal concepção existiam
desde os anos 1930, mas foram aprofundadas no início dos anos 1960, por organizações como
dependência (TMD) no Brasil por intelectuais orgânicos que atuavam como dirigentes na
organização: Ruy Mauro Marini, Vania Bambirra e Theotonio dos Santos (LUCE, 2018, p. 9).
Mathias Luce explica que a TMD foi “a síntese do encontro profícuo entre a teoria do valor
discussão feita em O Capital sobre a lei de tendência à queda da taxa de lucros.9 Marx
embora a ampliação do capital leve à incorporação de uma quantidade cada vez maior de
investimento cada vez maior nos meios de produção como máquinas, tecnologia e matérias-
primas, diminuindo a proporção entre esses últimos, chamados “trabalho morto” e a massa de
trabalhadores, o “trabalho vivo”. Como a mais valia é extraída dos trabalhadores e não do
trabalho morto, há uma tendência à queda na taxa de lucro, que é justamente relacionada à
9
A teoria marxista da dependência, assim como as formulações de Florestan Fernandes, não se confunde com a
teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso, mencionada anteriormente.
33
Essa tendência à queda na taxa de lucros é importante para entender economias
capitalistas dependentes na medida em que existem “contratendências” para tentar frear esse
aumento de lucro com o comércio exterior. Quanto a esse último ponto, Marx indica que os
países centrais conseguiriam vender mais caro para os dependentes por conta do
“desenvolvimento industrial mais atrasado dos países compradores” e pelo fato de as relações
colonial” (MATTOS, 2017, p. 22). De acordo com Mattos, dessa forma “Marx demonstrava
como a acumulação capitalista tendia a conectar parcelas cada vez mais amplas do planeta”,
em um
Embora não se filiasse diretamente a esse ramo político e teórico, Florestan Fernandes
também desenvolveu sua análise sobre o capitalismo dependente com bases no marxismo,
34
“a corporeidade viva da força de trabalho é submetida a um desgaste prematuro;
e/ou a reposição de seu desgaste acontece de tal maneira em que a substância viva
do valor não é restaurada em condições normais (isto é, nas condições sociais
dadas), ocorrendo o rebaixamento de seu valor (LUCE, 2018, p. 135).
Para entender esse conceito de forma mais concreta, Luce elenca e explica as formas
trabalho e o pagamento da força de trabalho abaixo de seu valor. Essas formas viabilizam uma
em que associa organicamente as questões raciais e de classe – aqui em uma abordagem não
apenas teórica, mas abertamente política.10 Nessa obra, que reúne publicações de momentos
diversos da vida do autor, vale destacar suas elaborações mais recentes, como em “Luta de
raças e classes”, de 1988. Nesse artigo, Florestan trata raça e classe como “duas polaridades,
10
O autor chega a classificar essa obra como um “panfleto de estímulo à consciência crítica e à pugna política
libertária” (FERNANDES, 2017, p. 27).
35
que não se contrapõem mas se interpenetram como elementos explosivos”, isto é, de potencial
Essa argumentação é a base para sua intervenção do intelectual junto ao Partido dos
demandas da população negra, que não deveriam ser subsumidas nas reivindicações mais
amplas da classe, mas também em perceber a história de luta da população negra desde a luta
pela libertação dos grilhões da escravidão, contra a exclusão que lhe foi imposta do pós-
abolição até o centenário da “abolição”, cujo significado oficial confronta em seu texto, em
consonância com o movimento negro à época. Chama atenção, ainda, o uso da expressão
As reflexões que permeiam toda obra de Florestan, assim, articulam relações de classe
compreender como as dinâmicas do capital mundial entram nessa equação. Nesse sentido,
11
Nessa passagem, Florestan parece dialogar com uma importante colocação de Marx na Introdução à
Contribuição para a Crítica da Economia Política, em que afirma que “o concreto é concreto porque é a síntese
de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso” (MARX, 1859, s.p.).
36
As dinâmicas de gênero nas relações sócio-históricas brasileiras ficaram à margem da
análise de Florestan, salvo menções muito pontuais à situação das mulheres negras, por
do gênero no capitalismo ficou a cargo de Heleieth Saffioti, sua orientanda e uma das maiores
referências dos estudos sobre gênero e mulheres no Brasil. Como ocorreu com Florestan, a
caminho intelectual, me debruçarei aqui sobre alguns aspectos que nos parecem
docência, é considerado como o primeiro grande avanço teórico do novo feminismo pós-
Brasil, enfrentando também significativa ausência de obras que se dedicassem à inserção das
mulheres no capitalismo. Esses limites não impediram a concretização de uma obra de grande
fôlego, cujo objetivo era explicar como e por que "o fator sexo opera nas sociedades de classe
fundamental para a presente reflexão. Essas definições foram sofisticadas pela autora no
artigo "A mulher no modo de produção capitalista", de 1976, ao qual também nos referiremos
a seguir.
37
Brasil através das seguintes posições: 1) O preconceito contra esses contingentes
não resultará ulteriormente nessa integração.12 Sobre isso, a autora explica que
na verdade constitui uma simbiose positiva para o capitalismo. Como essa operação acontece?
potencialidades humanas", fato que demanda uma constante renovação na crença de que a
origem dessas limitações se localiza não no sistema, mas nos "caracteres naturais de certo
que a liberdade formal dos sujeitos no capitalismo só não se efetiva na realidade em virtude
das "desvantagens maiores ou menores com que cada um joga no processo de luta pela
12
Na obra de 1969, a análise de Saffioti revela um alijamento das mulheres do setor produtivo no capitalismo,
isto é, uma não integração. Pesquisas posteriores indicam um crescimento na participação feminina no setor
produtivo, mas a autora percebe que tal integração se dá de maneira desigual e principalmente em atividades
precarizadas (mercado informal, setor terciário, etc.) (SAFFIOTI, 1985).
38
"Do ponto de vista da aparência, portanto, não é a estrutura das classes que limita a
atualização das potencialidades humanas, mas, ao contrário, a ausência de
potencialidades de determinadas categorias sociais que dificulta e mesmo impede a
realização plena da ordem competitiva" (SAFFIOTI, 2013, p. 59)
Conforme a citação de Marx retirada de O Capital por Saffioti para servir de epígrafe
em seu artigo, "toda a ciência seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente
com sua essência" (MARX apud SAFFIOTI, 1976, p. 1). O capitalismo veicula a aparência de
que os caracteres "naturais" são os limitadores das capacidades humanas, quando na verdade
são as próprias relações capitalistas os responsáveis por essas limitações. É preciso então ir à
sexo para operarem como marcas sociais que permitem hierarquizar [...] os membros de uma
Cabe, portanto, atentar para uma segunda questão: o lugar das mulheres e do trabalho
Sua concepção dialoga com o debate a que me referi anteriormente, presente na obra
de Florestan Fernandes, sobre a forma como relações sociais de modos de produção anteriores
diferentes, mas uma redefinição de antigas relações sociais que se incorporam ao modo de
produção capitalista para servir à sua reprodução. Mais que isso, a sobrevivência do
especialmente importante para a presente discussão. Nesta tese, quando tratar do modo de
produção capitalista e suas relações sociais típicas, me remeto tanto às relações de produção
integração desse segundo sentido à análise da totalidade capitalista tem sido defendida por
importante frisar que trabalho reprodutivo não é sinônimo de trabalho doméstico, sendo mais
amplo que este último. Ainda assim, é relevante que grande parte desse trabalho social recaia
13
Dados do IPEA entre 2001 e 2015 indicam que mulheres trabalham 18 horas a mais que os homens nos
chamados "afazeres domésticos". A proporção de mulheres que realizam esse trabalho ficou acima de 91%,
enquanto entre os homens, variou entre 45% e 55%. (Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34450&Itemid=9>. Acesso
em 28 mai. 2019). Gráficos comparativos interessantes baseados no censo de 2017 do IBGE podem ser
40
A conceituação de modo de produção da autora, ao menos até o texto de 1976, faz uso
mulheres e lucra com suas atividades. Para ela, as capacidades femininas são subvalorizadas
no sistema produtivo. Em outras palavras, para lucrar com o trabalho doméstico feminino,
participação nas atividades produtivas, por exemplo, na indústria. Assim, há uma separação
sociedade" (SAFFIOTI, 1976, p. 8). Essa separação analítica não impede a autora de formular
uma concepção integral da "elaboração social do fator sexo", que, como defende, "não pode
ser tomada simplesmente enquanto variável ideológica sem eficácia na produção, mas, ao
produção capitalista e, neste sentido, como parte constitutiva deste" (SAFFIOTI, 1976, p.9).
Essa separação entre base econômica e superestrutura ideológica será matizada nas
em meados dos anos 1980. Um conceito chave para a superação dessa concepção estanque é o
Saffioti veicula de maneira bastante didática uma série de noções que se tornarão básicos para
sua obra a partir de então. Ela passa a adotar o conceito de "patriarcado", muito presente no
debate feminista da época, definindo-o como um "sistema de relações sociais que garante a
1987, que "o patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia
machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração (SAFFIOTI, 1987, p. 50).
reprodutiva das mulheres (SAFFIOTTI, 2015, p. 113). Por outro lado, procura superar uma
2015, p. 113).
sexo, raça e classe social. Em A Mulher na sociedade de classes, as duas primeiras são tidas
Macho, Saffioti passa a tratar a questão sob outro ponto de vista. Ela afirma que os "três
"preconceito racial" e "classes sociais" – não podem ser tomados isoladamente exceto para
fins analíticos, pois operam juntos na realidade. Assim, não podem hierarquizados na análise
Buscando evidenciar essa unidade das relações sociais, a autora cunha o conceito de
acabadas no livro Gênero patriarcado violência, publicado em 2004. Com esse conceito, a
42
autora pretende afirmar que o capitalismo não deve ser adjetivado como "patriarcal" ou
realidade social. A esse entrelaçamento Saffioti denomina "nó", outra categoria fundamental
Antes de nos determos em tais conceitos, vale comentar que a autora passa também a
significativo de sua aproximação com o movimento feminista a partir dos anos 1980,
"gênero" é adotado por Saffioti com algumas ressalvas, mais tardia e progressivamente. De
fato, a história do feminismo na academia é marcada por um embate entre aquelas que
acreditam que o gênero é útil como categoria história, analítica e relacional, e outras que
ameaçador para o status quo e, por isso, menos combativo.14 Ao combinar o uso de gênero e
patriarcado, Saffioti parece considerar ambos os aspectos, argumentando que o primeiro “não
é apenas presumida” (SAFFIOTI, 2015, p. 15). Defende, por isso, que não se abandone o
patriarcado, por ser “o único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher” e
“singulariza a forma de direito político que todos os homens exercem por serem homens”
(PATEMAN apud SAFFIOTI, 2015, p. 58). Ela não se furta, ainda assim, de usufruir das
concepção binária que o predominante uso da categoria "sexo" até então poderia indicar,
gênero" de Butler para argumentar que há, na realidade, "múltiplas matrizes de gênero: uma
dominante e as demais competindo por hegemonia" (SAFFIOTI, 2001, p. 124). Nessa leitura,
14
Conferir discussão de Cisne (2014) sobre as críticas do feminismo materialista ao conceito de gênero.
43
ao performarem o gênero, os sujeitos transitariam entre essas matrizes, comportando-se
segundo várias delas - sejam dominantes ou alternativas (sendo estas últimas as que
Como vimos, para Saffioti, nem o gênero nem o patriarcado operam isoladamente.
Segundo ela,
O nó, portanto, não representa a soma desses eixos, mas "uma condensação, uma
(SAFFIOTI, 2015, p. 83). É interessante a observação pela autora de que a imagem do nó não
indica uma relação rígida, mas frouxa, entre os “eixos estruturantes da sociedade”, deixando
“as classes sociais são, desde sua gênese, um fenômeno gendrado. Por sua vez, uma
série de transformações no gênero são introduzidas pela emergência da classe. Para
amarrar melhor essa questão, precisa-se juntar o racismo. O nó formado por estas
três contradições apresenta uma qualidade distinta das determinações que o
integram. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a
realidade compósita e nova que resulta desta fusão” (SAFFIOTI, 2015, p. 122).
desenvolvimento e crise por qual passa o capitalismo desde sua gênese. Portanto, “não há de
44
racismo-capitalismo" (por vezes, a autora refere-se apenas a "patriarcado-capitalismo"),
Os dois últimos trechos citados revelam, a meu ver, uma tensão latente nas
formulações de Saffioti. Por um lado, a autora busca sempre apontar para o caráter indiviso da
"unidade contraditória" que configura a realidade social, argumentando para o fato que ela é
algo novo, além da soma dos "eixos estruturantes da sociedade" e dos "sistemas de dominação
certa autonomia não deixa de indicar algum nível de partição. Afinal, a realidade resultante do
de uma tentativa de superar uma perspectiva aditiva das relações sociais, mas ainda
analítico da obra de Heleieth Saffioti, cujo esforço fez avançar nossa compreensão sobre a
natureza simbiótica das relações entre raça, gênero e classe social, particularmente na
realidade brasileira. É bastante significativo, nesse sentido, que a autora utilize a expressão
“unidade contraditória” para se referir à realidade social. Seu marxismo de não permite o
45
abandono de uma perspectiva dialética, que olha para as contradições sem perder de vista sua
síntese:
“Há uma estrutura de poder que unifica as três ordens – de gênero, de raça/etnia e
de classe social –, embora as análises tendam a separá-las. Aliás, o prejuízo
científico e político não advém da separação para fins analíticos, mas sim da
ausência do caminho reverso: a síntese. [...] o patriarcado [...] penetrou em todas as
esferas da vida social [...]. De outra parte, o capitalismo também mercantilizou todas
as relações sociais, nelas incluídas as chamadas específicas de gênero [...]. Da
mesma forma, a raça/etnia [...] imprimiu sua marca no corpo social por inteiro. A
análise das relações de gênero não pode, assim, prescindir, de um lado, das análises
das demais, e, de outro, da recomposição da realidade de acordo com a posição que,
nesta nova realidade, ocupam as três contradições sociais básicas.” (SAFFIOTI,
2015, p. 134).
análise das relações de classe, raça e gênero na sociedade brasileira. Contudo, a ideia de que
tais relações não podem ser analisadas separadamente por encontrarem-se imbricadas na
social brasileiro, a despeito das renovações temáticas e de abordagens nas últimas décadas
brasileira, ainda que eventualmente alguns deles "furem o cerco" (BARRETO, 2018, p. 15).
Dentre os que não ultrapassaram as barreiras do cânone está Lélia Gonzalez, historiadora,
geógrafa e filósofa negra, cuja obra tem sido considerada como uma "contribuição teórica
original para o desenvolvimento do feminismo negro brasileiro", mas cujo significado pode ir
além (BARRETO, 2018, p. 15). Raquel Barreto, estudiosa da obra de Gonzalez, afirma que a
autora deve ser considerada também como "uma intérprete negra do Brasil", na medida em
perspectiva negra" (BARRETO, 2018, p. 16). Concordo com Barreto quanto à justeza e à
negras amefricanas, para usar o conceito da autora, focando-nos por fim em algumas de suas
contribuições originais.15
A ideia de que é fundamental pensar as relações de desigualdade social sob mais que
um único prisma (apenas de gênero ou apenas racial, por exemplo) tem se tornado cada vez
mais estabelecida, não apenas entre os meios intelectuais, mas também nos meios políticos
progressistas em geral. Essa ideia tem ganhado terreno dentro e a partir de discussões
Crenshaw (1989, 1993) na virada dos anos 1980 para os 1990, mas o entendimento de que
gênero, classe, raça e sexualidade devem ser entendidos de maneira articulada remonta aos
15
A categoria de “amefricanidade” se refere à experiência de afrodescendentes nas “América como um todo
(austral, central, insular e setentrional)”, designando, para além do caráter geográfico, “todo um processo
histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodação, reinterpretação, criação de novas formas)
referenciada em modelos africanos e que remete à construção de toda uma identidade étnica” (GONZALEZ,
2018f, p. 336).
47
movimentos de mulheres negras e mulheres de cor16 norte-americanas da década de 1970.17 O
classista", tendo como tarefa "o desenvolvimento de uma análise e uma prática integradas,
"síntese dessas opressões [que] criam as condições de nossas vidas." (LA COLECTIVA DEL
ser sistematizado no conceito de interseccionalidade. Nos anos 1980, obras de autoras negras
fundamentais, como Sister outsider, de Audre Lorde, e Feminist Theory: from margin to
complexa realidade das experiências vividas por mulheres negras, trabalhadoras, lésbicas etc.
(HOOKS, 1984; LORDE, 2007). Em Feminist Theory, hooks denunciou o caráter branco,
consideradas como universais a todas as mulheres, ora como prioritárias (HOOKS, 1984).
Com isso em vista, a autora apontou para a "necessidade de desenvolver ideias e análises que
16
A expressão "mulheres de cor" aqui é uma tradução de "women of color", usada no contexto norte-americano
em referência não apenas a mulheres negras, mas também latinas ou de algum pertencimento étnico não-branco.
Há, no mesmo sentido, a expressão "people of color" em referência a populações racializadas de alguma forma.
17
O chamado feminismo materialista francês também tem sido considerado como uma matriz teórica pioneira
quanto à abordagem da articulação. Essa vertente, contudo, em seus primórdios, buscou articular relações de
sexo e classe social, vindo a considerar sistematicamente as relações étnico-raciais posteriormente. Assim,
considero ainda o feminismo negro norte-americano como precursor da ideia, cujo marco pode ser localizado no
manifesto do Combahee River Colective.
18
Um importante trabalho realizado sobre o Combahee River Collective, contendo entrevistas com suas
integrantes originais, é o de Keeanga-Yamahtta Taylor (2017). Segundo a autora, “o manifesto do Combahee
River Collective se destaca dentre muitos manifestos, declarações e outras declarações públicas do período por
sua clareza, rigor e alcance político. É um documento importante, não apenas como uma declaração do
feminismo negro radical, mas também em sua contribuição para a esquerda revolucionária nos Estados Unidos”
(TAYLOR, 2017, p. 10)
19
“bell hooks” é o pseudônimo da feminista negra norte-americana Gloria Jean Watkins, que o adota grafado em
letras minúsculas – grafia que adoto também aqui.
48
englobem um maior número de experiências, que sirvam para unificar em vez de polarizar"
(HOOKS, 1984, p. x, tradução minha). Reivindicação similar foi feita por Audre Lorde que,
em afirmação didática e sintética, concluiu que “não há algo como uma luta envolvendo uma
só questão porque nós não vivemos vidas de uma só questão” (LORDE, 2007, p. 139,
tradução minha).
Na virada dos anos 1980 para os 1990, Kimberlé Crenshaw sistematizou algumas
dessas questões no conceito de interseccionalidade, definido por ela como uma analogia,
segundo a qual
"vários eixos de poder [...] constituem avenidas que estruturam terrenos sociais,
econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas do desempoderamento de
movem. [...] Tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando
intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As
mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o
racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão
sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias"
(CRENSHAW, 2002, p. 177).
norte-americano e europeu, atingindo franco sucesso a partir dos anos 2000 (PISCITELLI,
2008; CARBIN; EDENHEIM, 2013; HIRATA, 2014; KERNER, 2016). No Brasil, o termo
vem crescendo cada vez mais, ocupando prateleiras em livrarias (AKOTIRENE, 2018;
acadêmicos.
Esse sucesso, contudo, se deu à custa de um afastamento entre o conceito e seu sentido
original (e radical), ligado ao feminismo negro norte-americano. É o que apontam Sara Carbin
europeia e norte-americana, trazem uma análise que consideramos bastante instigante. Elas
49
argumentam que a "vitória" do termo tem relação com seu caráter "aberto", o que resultou na
falta de discussões ontológicas importantes e permitiu que fosse adotado como uma espécie
[...] não preenche os requerimentos de uma teoria e consequentemente 'todo mundo' sente que
ela se adéqua ao 'seu modo de pesquisar'" (CARBIN; EDENHEIM, 2013, p.13, tradução
minha).
medida que foi ganhando espaço nos meios acadêmicos, deslocando-se das margens dos
estudos feministas para seu centro. Segundo ela, o termo tem cada vez mais transcendido a
orientação dada por sua origem, ligada às mulheres negras e "de cor", e se expandido como
a atenção à proposta original de Kimberlé Crenshaw. A autora utiliza pela primeira vez o
conceito no artigo "Demarginalizing the intersection of race and sex" (CRENSHAW, 1989),
emblemático caso DeGraffernreid v. General Motors, esse grupo social se viu privado da
garantia de seus direitos na medida em que o judiciário considerou que uma situação
50
trabalhista que contemplou homens negros e mulheres brancas teria, consequentemente,
não garantia os direitos de um grupo social atingido pela interseção de racismo e sexismo.
Diante desse quadro, Crenshaw advoga por uma perspectiva interseccional (CRENSHAW,
jurídica bastante prática: a exclusão de dado grupo social de direitos que deveriam estar
garantidos a ele.
politics, and violence against women of color" (CRENSHAW, 1993), em que Crenshaw
p.1242, tradução minha). Nesse texto, ela retoma e aprofunda alguns aspectos de seu trabalho
direitos humanos. Nesse texto, Crenshaw estabelece uma crítica ao universalismo que
caracteriza a proteção dos direitos humanos das mulheres via Declaração Universal dos
51
Direitos Humanos, argumentando que ele "fundamentava-se firmemente nas experiências dos
homens" e que, por isso, não dava conta das experiências específicas e das violências sofridas
por mulheres, escamoteadas como abusos "periféricos" (CRENSHAW, 2002 p.171-172). Ela
assinala que um processo similar ocorre em torno da questão racial, já que a discriminação
que não se enquadra em um modelo-padrão pode ser "tratada como 'excessivamente diferente'
das experiências formais do tipo apartheid para que possa constituir abuso de direitos
humanos" (CRENSHAW, 2002, p.172). Para alterar esse cenário, a autora propõe "um
modelo provisório para a identificação das várias formas de subordinação que refletem os
efeitos interativos das discriminações de raça e de gênero", além de sugerir "um protocolo
provisório a ser seguido, a fim de melhor identificar as situações em que tal discriminação
metodologia que irá, em última instância, interromper as tendências a ver raça e gênero como
1993, p.244, tradução minha, grifos meus). Ela divide a "metodologia" em três aspectos:
"interseccionalidade estrutural", isto é, "as formas com que a localização das mulheres de cor
52
Nesse mesmo texto, Crenshaw elabora uma definição que resume bem sua proposta:
Essa definição é precedida por um subtítulo que a apresenta como uma "conceituação
reafirmado aspecto provisório, pode ser relacionada ao caráter aberto que Carbin e Edenheim
identificaram como tendo sido, por um lado, fonte de sucesso do conceito e, por outro, motivo
suscitam debates teóricos extensos e profundos, tais como raça, classe social, gênero e
sexualidade, pode ter dado origem a um salto de compreensão que transforma a própria
raça e gênero. Em "Mapping the margins", ela procura demonstrar como as mulheres de cor
não têm sido representadas pelo feminismo nem pelo antirracismo, sendo marginalizadas em
ambos, e afirma que "as experiências das mulheres [que sofrem violência doméstica] são
1993, p. 1243, tradução minha). Uma nota de rodapé traz uma breve ressalva em relação à sua
priorização. Nela, a autora explica que "o conceito pode e deve ser expandido ao trazer para a
equação questões como classe, orientação sexual, idade e cor" (CRENSHAW, 1993, p.1244-
53
Essa priorização de raça e gênero, em detrimento de classe e sexualidade, por
exemplo, tem sido apontada por críticos da interseccionalidade como um de seus grandes
p.1245-46, tradução minha), ponto que não chega a desenvolver além da menção.20 Vale
observar que o termo "pobres", usado para qualificar mulheres, revela uma abordagem
quantitativa da classe – pobre sendo aquela que não possui dinheiro e acesso ao consumo –
interseccionalidade como pressuposto é um elemento da crítica que tem sido feita por autoras
sistematiza alguma dessas críticas, em especial as feitas pela feminista materialista francesa
Danièle Kergoat:
"1) a multiplicidade de pontos de entrada (casta, religião, etnia, nação etc., e não
apenas raça, gênero e classe) leva a um perigo de fragmentação das práticas sociais e
à dissolução da violência das relações sociais, com o risco de contribuir à sua
reprodução; 2) não é certo que todos esses pontos remetem a relações sociais e
talvez não seja o caso de colocá-los todos num mesmo plano; 3) os teóricos da
interseccionalidade continuam a raciocinar em termos de categorias e não de
relações sociais, privilegiando uma ou outra categoria, como por exemplo a nação, a
classe, a religião, o sexo, a casta etc., sem historicizá-las e por vezes não levando em
conta as dimensões materiais da dominação.” (HIRATA, 2014, p.65)
Nesse mesmo sentido, Heleieth Saffioti defendia que "nem todos os fenômenos são da
20
A palavra classe ("class") aparece também no início do texto, quando Crenshaw afirma que questões como a
violência doméstica afetam as "mulheres enquanto classe" ("women as a class") (CRENSHAW, 1993, p.1241,
tradução minha). Acredito que aqui a autora não utilize a palavra para se referir à classe social no sentido a que
temos nos referido, mas provavelmente como grupo social de certo tipo.
21
Para uma discussão crítica da divisão de classes baseada no acesso ao consumo e no poder de compra, ver
POCHMANN, 2012 e LUCE, 2013.
54
Para melhor compreender tais questões, pode-se considerar a crítica que muitas autoras e
argumenta que
"O problema surge, contudo, quando todas as identidades são tratadas como
equivalentes, de modo tal que preferências pessoais em estilo de vida, como os
'estilos musicais', recebem o mesmo peso e importância que atributos físicos, tais
como 'deficiência física' ou alguns produtos sociais como raça e classe [...]. Na
verdade, para começar, já há um problema quando se concebe raça ou classe como
uma 'identidade'. Relações sociais, tal como opressão racial, não se transformam
absolutamente em relações sociais, mas em atributos pessoais ou mesmo em opções
de estilo de vida. Quando raça é considerada equivalente a 'estilos musicais' ou a
códigos de vestuário', aparentemente o 'social' não significa nada mais que uma
decisão particular que qualquer indivíduo pode tomar, e a 'sociedade' é reduzida ao
agregado de identidades individuais" (MALIK, 1999, p.127).
individual um tipo de relação que é social, histórico e efetivamente material. O que Malik e
há possibilidades de estilos de vida disponíveis para escolha de cada indivíduo. Não é isso que
está em jogo quando se pensa sistemas estruturantes das relações sociais. Embora a crítica de
Kergoat se volte especificamente para a interseccionalidade, não acredito que essa posição
seja inerente ao conceito, mesmo porque a própria Kimberlé Crenshaw assinalou como parte
de sua proposta o "processo de reconhecer como social e sistêmico o que foi anteriormente
uma pluralidade terminológica para se referir a gênero, raça, classe etc., como "categorias
55
(CRENSHAW, 1993, p.1249, tradução minha), "múltiplas dimensões da identidade"
(CRENSHAW, 2002, p.177), entre outros. Ela se refere a "grupos identitários" e "políticas
identitárias" (CRENSHAW, 1993, p.1299, tradução minha), mas também fala em "sistemas
sua proposta original, não constituir uma teoria não significa que não carregue consigo
categorias que têm, por si só, carga teórica (gênero, classe, raça, etc.). Seria fundamental,
então, explicitar a partir de que matriz teórica se abordam tais categorias, já que mencioná-las
sem identificar esse aspecto fundamental tem gerado a falsa percepção da interseccionalidade
conflitantes em jogo.
debate teórico-metodológico, mas é ele mesmo objeto de investigação, sendo ele mesmo
expressão e instrumento das lutas travadas por intelectuais negras dentro e fora dos meios
acadêmicos. A importância que o termo atingiu nos debates feministas no Brasil também faz
dele um conceito a ser considerado, ainda que a partir de uma abordagem crítica, dada através
de um diálogo com as demais abordagens que discutimos no presente capítulo. Além disso,
creio que a chave para um possível uso crítico do termo parece estar na retomada da origem
potencial da luta feminista (HOOKS, 1984, p. 7, tradução minha). Ela explica que
hooks assinala, assim, que "a ordem burguesa, o capitalismo e o falocentrismo estão
prontos para integrar quantas feministas forem necessárias" (FOUQUE apud HOOKS, 1984,
p. 7, tradução minha). Nesse sentido, pode-se considerar que a análise interseccional que
considera racismo e sexismo, mas que não desenvolve uma crítica do capitalismo, não
representa uma ameaça real aos sistemas integrados que produzem desigualdade, já que as
demandas individuais podem ser tragadas por ele sem custos significativos, mas as lutas
57
nesse sentido que Ochy Curiel, teórica feminista negra dominicana, argumenta que pensar
"nos dá ferramentas para entender por exemplo como a mestiçagem como ideologia
nacionalista e homogeneizante teve como base fundamental a violação das mulheres
indígenas e negras por parte dos colonizadores, a partir de uma lógica heterossexual
que faz com que os homens se apropriem do corpo das mulheres, sobretudo aquelas
cujos corpos são valorizados ou como mercadoria, ou como meros objetos referidos
à natureza" (CURIEL, 2008, p. 20, tradução minha).
p. 29, tradução minha), ou seja, um "contrato heterossexual" (CURIEL, 2013, p. 42, tradução
minha). De acordo com Curiel, a heterossexualidade "não se trata de uma prática social dentro
de uma diversidade [de práticas]", mas de "uma instituição e um regime político que atravessa
28, tradução minha). Apesar de não partilhar da maior parte das orientações teóricas da
já travada anteriormente para o caso brasileiro. Curiel cita a autora hondurenha Breny
22
Curiel apresenta uma gama de influências teóricas, mas sua aproximação particular com o feminismo
materialista francófono é nosso principal ponto de discordância. Esse campo de pensamento, ainda que englobe
perspectivas variadas e não unissonantes, faz uma transposição de conceitos marxistas para um conformar um
corpus teórico, em nossa visão, não marxista – como é o caso dos conceitos de “classes de sexo” e “relações
sociais de sexo” (cf. MACHADO, 2017 e ARRUZZA, 2010, p. 102-105).
58
foi construído como uma categoria heterossexual, pois implicou o produto híbrido da relação
sexualidade e de sua força de trabalho" (BRENY apud CURIEL, 2013, p. 146, tradução
minha). Essa relação pode, sem dúvida, ser pensada para o caso brasileiro, principalmente os
seguintes aspectos abordados por Mendoza: "a vinculação entre conquista, racismo e
sexualidade, a partir da qual se explica a invasão dos corpos das mulheres, fundamentalmente
através de atos de violação sexual" pelos colonizadores e seus descendentes; "o caráter
mulheres negras no “discurso clássico sobre a opressão da mulher” (CARNEIRO, 2011, s.p.).
Ela observa o processo descrito por Curiel, acentuando o lugar da violência sexual como
No caso do Brasil, "o estupro colonial da mulher negra pelo homem branco no passado
e a miscigenação daí decorrente” não apenas constituíram base para o mito da democracia
expressão do racismo que tem na negação uma de suas armas mais poderosas (CARNEIRO,
59
1995, p. 546). Uma pesquisa realizada no Brasil em 1988, citada por Lília Schwarcz em Nem
preto, nem branco, muito pelo contrário (SCHWARCZ, 2013), indicou que 97% dos
entrevistados disseram não serem racistas e 98% afirmaram conhecer quem fosse racista. O
Uma das principais intelectuais a formular uma análise sobre essas relações no caso
Nos textos produzidos por Lélia na década de 1970 e no início dos anos 1980, a autora
demonstra uma significativa influência marxista, ainda que estabelecendo com essa matriz de
pensamento um diálogo bastante crítico. Segundo Raquel Barreto, nesse momento ela “estava
racial” (BARRETO, 2018, p. 16). No decorrer dos anos 1980, as categorias marxistas de
análise vão dando lugar a um diálogo com a psicanálise, com o feminismo e, principalmente,
original do Movimento Negro Unificado (MNU), do qual Lélia participou desde seus
23
Segundo Bussotti e Nhaueleque, o afrocentrismo é uma corrente filosófica que “pretende edificar um novo
paradigma alternativo ao eurocêntrico dominante”, propondo que a África não apenas é o “berço da
humanidade”, mas o “berço da civilização” a partir do Egito Antigo, tendo primazia nos “diferentes aspetos do
saber: filosofia, ciência, religião, política, arte, comunicação” (BUSSOTTI; NHAUELEQUE, 2018, p. 1). Paulo
Farias ressalta, contudo, que não é “uma doutrina monolítica, mas um rótulo que cobre um leque de posturas e
propostas” (FARIAS, 2003, p. 317), um conjunto de ideias que possui uma longa genealogia e que “inclui
tradições que reconciliam, de maneira aparentemente paradoxal, assimilação à chamada cultura ocidental com
separação em relação a esta” (FARIAS, 2003, p. 318).
60
solidariedade entre os grupos sociais oprimidos. Nos textos escritos nos anos seguintes à
dia do pensamento social brasileiro àquela altura, como os debates sobre desenvolvimento e
que escrevia, Lélia identificou três tendências dominantes no âmbito da sociologia acadêmica.
A primeira tendência seria aquela que trata a integração do negro como algo que viria a
analisaria o processo abolicionista sob uma ótica que vê no despreparo dos negros a
justificativa para não terem assumido o papel de trabalhadores livres: “cultura da pobreza,
(GONZALEZ, 2018e [1979], p. 62). Citando autores como Florestan Fernandes e Otávio
Ianni como pertencentes a tal tendência, Lélia critica o fato de ela “deslocar para o negro as
razões de sua mobilidade social”, desconsiderar “o fato de que a grande maioria da população
de cor (90%) já se encontra livre e economicamente ativa antes de 1888” e, finalmente, liberar
discriminação não passa de um instrumento manipulado pelo capitalista que visa [...] dividir o
2018e [1979], p. 62). Na crítica a essa tendência, a autora lembra a situação extrema da
61
relação entre o operariado na África do Sul do apartheid, além de sublinhar a peculiaridade da
[1979], p. 62).
A terceira abordagem identificada por Lélia “é aquela que [a]firma serem os grupos
(GONZALEZ, 2018e [1979], p. 63). O grande exemplo disso, segundo ela, é Oliveira Viana,
Sua perspectiva particular diferencia-se dessas três tendências, mas, segundo ela, leva
Heleieth Saffioti. Lélia se baseia largamente nas formulações do intelectual argentino José
Nun e sua tese da “massa marginal” para argumentar quanto à existência, no Brasil, de um
hegemônico. Essa coexistência teria consequencia direta nas relações de trabalho, ponto
crucial para a autora, como será exposto adiante. Para melhor compreender essa densa análise,
vale nos determos brevemente nas considerações de Jose Nun sobre o desenvolvimento do
24
Embora traga uma breve explicação sobre as formulações de Nun, importantes para a obra de Lélia Gonzalez,
acredito que a perspectiva desenvolvida pela teoria marxista da dependência dê conta da questão da dependência
com mais sucesso que à ligada à noção de “massa marginal”, visto que a primeira não trabalha com a noção de
62
De acordo com esse autor, muitos intelectuais tratam dois conceitos de Marx,
ela tem no sistema em que ascende” (NUN, 2000, p. 8, tradução minha). Baseando-se nos
da sociedade e que, portanto, “em diferentes modos de produção social há diferentes leis de
minha).
média, produção a todo vapor, crise e estagnação”, “além do lançamento do capital em novas
áreas”. Nesse contexto, a superpopulação possui “a função de disponibilizar mão de obra para
cada momento da produção” (FILHO; OLIVEIRA, 2012, p. 2), configurando “uma ‘reserva’
2012, p. 24, tradução minha). Esse exército industrial de reserva, portanto, é sempre funcional
marginal, adotada por Lélia em diversos textos produzidos na virada dos anos 1970 para os
não cíclico, e a mão de obra se qualifica e se especializa mais, sendo menor a possibilidade de
“marginalidade” trazida à baile pela última, mas percebe de que forma o trabalho superexplorado se integra ao à
dinâmica capitalista global.
63
transferência de trabalhadores entre diferentes ramos. Há, portanto, uma “massa marginal”
que “não estabelece relações funcionais com o sistema integrado das grandes empresas
forma como essas empresas tendem a combinar os fatores produtivos” (NUN apud
DELFINO, 2012, p. 24, tradução minha). Por isso, a massa marginal “baseia-se na
baixa renda, etc. (FILHO; OLIVEIRA, 2012, p. 3; DELFINA, 2012, p. 25, tradução minha).
p. 3).
64
Em termos de impactos desses processos no mercado de trabalho, Lélia caracteriza da
a) Capitalismo monopolista:
b) Capitalismo competitivo:
impacto dessa configuração nas relações de trabalho no que concerne à população negra – e
“o gênero e a etnicidade são manipulados de tal modo que, no caso brasileiro, os mais baixos
que a população negra ocupou o lugar de “massa marginal”. Ela argumenta que o processo de
formação da figura do trabalhador livre típico do capitalismo no Brasil passou por “fatores
se mantinham em grande parte no setor rural. Essas formas de trabalho articulam-se “(em
65
graus de maior ou menor complexidade) com o setor hegemônico da economia e de maneira
proveitosa para este último” (GONZALEZ, 2018e [1980], p. 55). Dessa forma, Lélia se
de Nun o impacto das relações raciais e de gênero, como esses fatores integram o capitalismo
compensa a tendência à queda na margem de lucro ao remunerar abaixo do custo social de sua
salarial.
existência de uma “divisão racial do trabalho” no Brasil. Com isso, ela pretende destacar a
forma como a discriminação racial atravessa as diferentes classes sociais, fazendo com que o
racismo beneficie não apenas a burguesia branca (a que ela se refere no trecho a seguir como
A questão colocada por Lélia é extremamente relevante e guarda relação direta com o
debate que buscamos estabelecer aqui quanto às formas com que o capitalismo se beneficia,
66
na expressão de Lélia, mas também depende da discriminação racial – e, por isso, reproduz o
racismo”, Lélia sublinha a questão abordada por Florestan Fernandes e por Abigail Bakan: a
competição por recursos e posições escassos no capitalismo com a qual a classe trabalhadora
reprodução das condições de exploração da classe trabalhadora. É nesse sentido que a autora
afirma que
“O racismo [...] denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma
divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações capitalistas e
multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema
como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos
mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de
estratificação social” (GONZALEZ, 2018d [1979], p. 98)
amplo, as condições objetivas impostas pelo racismo agravam em particular as vidas dos
sujeitos negros. Lélia chama atenção para o lugar de tais sujeitos, em especial o das mulheres
25
O uso da expressão “dividendos do racismo” dialoga com a formulação do célebre intelectual negro
estadunidense W.E.B. Du Bois de que a branquitude conferia aos trabalhadores brancos compensação pelas
relações de classe de alienação e exploração. Du Bois fala em um “tipo de remuneração [wage] pública e
psicológica”, ideia que David Roediger vem a desenvolver em seu livro The Wages of Whiteness (DU BOIS
apud ROEDIGER, 2007, p. xx).
26
O censo dos anos 1970 excluiu o quesito “cor” e o de 1980 o incluiu como amostra, invisibilizando o fator
racial nas informações demográficas do período (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 43). Não por acaso, o período
apontado pela autora é o do regime militar, que negava oficialmente a existência de racismo no Brasil e
perseguia qualquer tipo de prática ou discurso que indicasse o contrário (KÖSSLING, 2007).
67
justamente as atividades ocupadas pela “massa marginal”, de Nun. Um dos argumentos
monopolista.
consequência das relações de gênero, além das de raça: atuavam “na prestação de serviços
domésticos junto às famílias das classes média e alta” e “na prestação de serviços de baixa
remuneração (‘refúgios’) nos supermercados, nas escolas ou nos hospitais, sob a denominação
genérica de “servente” (que se atente para as significações que tal significante nos remete)”
(GONZALEZ, 2018c [1981], p. 44-45). Embora Lélia tenha escrito em 1981, essa
zonas urbanas.
“profissão” (gravada por ela entre aspas) de “mulata”, em seus textos referindo-se a mulheres
atividade, segundo a autora, jovens negras “submetem-se à exposição de seus corpos (com o
mínimo de roupas possíveis), através do ‘rebolado’, para o deleite e voyeurismo dos turistas e
dos representantes da burguesia nacional” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 46). Ela considera
que essa profissão só pode ser exercida “num processo extremo de alienação imposto pelo
“sem se aperceberem, elas são manipuladas, não só como objetos sexuais, mas como
provas concretas da ‘democracia racial’ brasileira; afinal, são tão bonitas e
admiradas! Não se apercebem que constituem uma nova interpretação do velho
ditado racista: “preta pra cozinhar/ mulata pra fornicar/ e branca pra casar”. Em
outros termos, são sutilmente cooptadas pelo sistema sem se aperceberem do alto
preço a pagar: o da própria dignidade” (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 45-46)
68
Essa leitura tira o foco da agência27 das mulheres negras que atuam na profissão de
trabalho aparece como meio de ascensão social individual, como saída da pobreza, mas que
Sua interpretação quanto à mulata pode ser relacionada com sua concepção de racismo
Althusser, significando
Entender o racismo como ideologia no sentido althusseriano pode ser o que levou
Lélia a usar noções de “manipulação” e “lavagem cerebral” para se referir a sujeitos negros
que, de alguma forma, fizeram o jogo do racismo, em sua visão. Essa perspectiva acaba por
Althusser (THOMPSON, 1981). Quando Lélia afirma que à profissão da mulata como um
“processo extremo de alienação”, ela se refere muito mais à imposição de uma falsa
27
Agência aqui se apresenta no sentido marxista, em particular conforme usado por E. P. Thompson: traduzido
do inglês “agency”, o termo é “associado à noção de que os homens [e mulheres] são sujeitos de sua própria
história, embora em condições que não escolhem” (MATTOS, 2012, p. 27).
69
para caracterizar o racismo é mais proveitoso, concordando com a explicação de Marcelo
Essa discussão será aprofundada no item seguinte desse capítulo, que reunirá nosso
Além de ter como base a discussão de José Nun para compreender a relação entre
capitalismo e racismo no Brasil, Lélia traz também uma proposição de Carlos Hasenbalg,
baseada em Nikos Poulantzas, para compreender de que forma raça e classe se relacionariam
“distinção estabelecida por Poulantzas entre os dois aspectos da reprodução ampliada das
classes sociais”: primeiro, a reprodução dos lugares das classes (o aspecto principal) e,
segundo, a reprodução dos atores e sua distribuição entre esses lugares (o aspecto
subordinado) (GONZALEZ, 2018c [1981], p. 41). Para Hasenbalg, a raça se relacionaria com
28
Embora não caiba neste espaço um aprofundamento a discussão sobre sua obra por conta das especificidades
dos objetivos desta tese, não se pode deixar de ressaltar a importância da contribuição de Carlos Hasenbalg para
os estudos sobre relações raciais no Brasil. Segundo Angela Figueiredo, Hasenbalg foi pioneiro ao “demonstrar,
já na década de 1970, a existência das desigualdades raciais na configuração do mercado de trabalho e de seus
desdobramentos em períodos posteriores, através de pesquisas sobre as desigualdades no acesso à educação e
nos desníveis de renda entre negros e brancos”. Sua contribuição foi fundamental, entre outros motivos, “por
operar um deslocamento na ênfase dos estudos de relações raciais para os estudos sobre as desigualdades raciais
no Brasil” (FIGUEIREDO, 2015, p. 13). O autor não apenas foi base para algumas das formulações de Lélia
Gonzalez, mas a parceria dos dois chegou a materializar-se no importante livro Lugar de Negro, publicado em
1982.
70
“implica em que as minorias raciais não estão excluídas da estrutura de classes das
sociedades multirraciais onde as relações de produção capitalistas [...] são as
dominantes. Mais ainda, o racismo [...] é um dos principais determinantes da
posição dos negros e não-brancos dentro das relações de produção e distribuição”
(HASENBALG apud GONZALEZ, 2018c [1981], p. 42)
trabalho” (HASENBALG apud GONZALEZ, 2018c [1981], p. 42). Essa interpretação quanto
que aborda essas relações estruturalmente, mas ainda de forma “subordinada”. A abordagem
de Lélia, de fato, apresenta uma divisão entre o que é econômico (domínio para qual utiliza as
formulações de Jose Nun) e o que é político e ideológico, o que pode ser lido como uma
acadêmico em que escrevia. Isso não significa, contudo, que a autora recaísse de forma
alguma em um determinismo econômico, pois em seus textos fez fortes críticas a perspectivas
produção, não indicando uma relação de via única de determinação da superestrutura pela
base.
Como nos referimos anteriormente, no desenrolar dos anos 1980 os escritos de Lélia
vão revelando uma maior aproximação com o afrocentrismo, a psicanálise e com o feminismo
– este último, em diálogo crítico. Ela passa progressivamente de uma análise do capitalismo
centrada na questão racial para uma preocupação com a compreensão da relação entre racismo
mulheres negras no Brasil, bem como da discriminação por elas sofrida. Já na primeira fase de
sua obra, a autora conclui que se trata de um “processo de tríplice discriminação [...]
71
Lélia apresenta uma visão qualitativamente diferente em “Racismo e sexismo na
cultura brasileira”, ainda que o texto tenha sido apresentado em 1980, época em que publicou
os textos com que trabalhamos até aqui. Nesse artigo, a autora aborda o racismo e o sexismo
como um “duplo fenômeno”, afirmando que “o racismo se constitui como a sintomática que
textos de Freud e Lacan. O objetivo desse artigo, segundo a autora, é compreender quais
processos determinaram o “discurso” do mito da democracia racial, por que teve tanta
aceitação e divulgação, o que ele “oculta” e como a mulher negra é situada nele
A mudança na forma dos textos também é sensível: Lélia adota uma linguagem muito
mais informal, carregada de gírias, expressões populares e um humor mordaz, o que torna a
leitura do texto fluida e agradável. Ela explica brevemente que sua experiência em eventos
delinear, para nós, aquilo que se poderia chamar de contradições internas” (GONZALEZ,
2018h [1980], p. 192). Assim, “enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar
nessa (sic) reflexão, em vez de continuarmos na reprodução e repetição de modelos que nos
eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais” (GONZALEZ, 2018h
[1980], p. 192). Dessa forma, Lélia se afasta de modelos explicativos como o de Jose Nun
para, com base no “suporte epistemológico” da psicanálise, buscar uma interpretação original
sobre a articulação entre racismo e sexismo no Brasil que fosse além da “perspectiva sócio-
72
Para situar a mulher negra no “discurso” da democracia racial e entender os “efeitos
violentos que a “articulação” entre racismo e sexismo produz sobre ela (GONZALEZ, 2018h
[1980], p. 191), Lélia aprofunda uma discussão estabelecida nos textos anteriores sobre as
representações da mulher negra como mulata, doméstica e “mãe preta”. Essa discussão aqui
sentido que se pode relacionar com o de ideologia, conforme apareceu nos textos discutidos
ideológico se faz presente” (GONZALEZ, 2018h [1980], p. 194). Já a memória seria “o lugar
do não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi
escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”
(GONZALEZ, 2018h [1980], p. 194). Considerando que Lélia tem como suporte
freudianas de ego e id, sendo este último próximo a percepção de memória como um nível
mais profundo, não consciente mas portador de algum tipo de verdade. O ego, a consciência,
se relaciona ainda com o sentido althusseriano de ideologia como falsa consciência (FREUD,
Freud, são os “atos falhos” (FREUD, 2014). Assim, o “jogo” da linguagem, que revela a
“verdade” por meio dessas “mancadas” da consciência, é a chave para desvendar o que a
73
ideologia (ou consciência) do racismo oculta através da reprodução do discurso do mito da
“Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem
diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é
bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça,
ele sobre na vida como qualquer um. Conheço um que é médico. Educadíssimo,
culto, elegante e com umas feições tão finas... nem parece que é preto”
(GONZALEZ, 2018h [1980], p. 194)
Esse mito, como foi dito, produz efeitos específicos sobre as mulheres negras,
apreendidos por Lélia através da análise da linguagem e das representações. Seu argumento se
centra na ideia de que “os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito”
que o mito da democracia racial “é atualizado com toda sua força simbólica”, quando a
príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la” (GONZALEZ, 2018h [1980],
p. 196). Por outro lado, no avesso do endeusamento está o “cotidiano dessa mulher, no
p. 196).
da empregada doméstica. No dicionário Aurélio, a autora verifica que mucama consta com
parênteses fora da definição oficial do verbete. Há, segundo a autora, uma “neutralização”,
trabalho, ao definir mucama como “a escrava negra moça e de estimação que era escolhida
para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família e que, por vezes era
74
ama-de-leite” (DICIONÁRIO AURÉLIO apud GONZALEZ, 2018h [1980], p. 197). Essa
descoberta feita por Lélia tem relação direta com a discussão que estabelecemos
colonial da mulher negra, para usar a expressão de Sueli Carneiro, que tem papel primordial
na fundação do discurso da mestiçagem por toda América Latina, no caso brasileiro tem
amante – não explicita a real dimensão de violência e agressão sofrida por essas mulheres.
A filósofa marxista Angela Davis, um dos maiores nomes do feminismo negro norte-
americano, também voltou seu olhar para a escravidão em "O legado da escravidão:
parâmetros para uma nova condição da mulher". Nesse magistral texto de 1981, Davis critica
a ausência de um estudo historiográfico que analise com seriedade a experiência das mulheres
negras escravizadas nos Estados Unidos, apontando para a importância desse tipo de estudo
não apenas "pela precisão histórica", mas porque trariam "esclarecimentos sobre a luta atual
das mulheres negras e de todas as mulheres em busca de emancipação" (DAVIS, 2016 [1981]:
17). A partir de então, a autora desenvolve uma delicada análise, baseada em fontes históricas
aspectos abordados por Davis é a violência sexual sofrida pelas escravas, analisada até então
"dificilmente havia uma base para 'prazer, afeto e amor' quando os homens brancos, por sua
posição econômica, tinham acesso ilimitado ao corpo das mulheres negras" (DAVIS, 2016
[1981]: 38). Crítica similar é feita por Lélia a Caio Prado Jr., que objetificou e animalizou as
75
mulheres escravizadas ao afirmar, por exemplo, que o "fator sexual" relativo a elas foi
incapaz de realizar "o milagre do amor humano", que "constrói os edifícios de sentimentos os
mais complexos e delicados" (PRADO JR. apud GONZALEZ, 2018h [1980]: 199, 204).
Lélia encontra na figura da “mãe preta” a “única colher de chá” que Caio Prado Jr. dá
na caracterização da população negra. Mas justamente essa questão “vai dar rasteira na raça
preta uma das responsáveis pelo fato de a cultura brasileira ser “eminentemente negra”
(GONZALEZ, 2018c [1981], p. 41). A autora explica que a “figura da boa ama negra”
(FREYRE apud GONZALEZ, 2018h [1981], p. 204) que consta em Caio Prado e Gilberto
Freyre
A questão de Lélia, com essa afirmação, é apontar que a mãe preta, ao exercer a
“Ao nosso ver, a ‘Mãe Preta’ e o ‘Pai João’, com suas estórias, criaram uma espécie
de ‘romance familiar’ que teve uma importância fundamental na formação dos
valores e crenças do nosso povo, do nosso ‘Volksgeist’. Conscientemente ou não,
passaram para o brasileiro ‘branco’ as categorias das culturas africanas de quem
eram representantes. Mais precisamente, coube à ‘Mãe Preta’ [...] a africanização do
português falado no Brasil (o ‘pretuguês’, como dizem os africanos lusófonos) e,
consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira” (GONZALEZ,
2018c [1981], p. 40).
caracterizar principalmente a América Latina, renomeada por M.D. Magno, autor no qual se
baseia, como “Améfrica Ladina”. Essa nomeação procura negar a latinidade de matriz
76
europeia e branca e, em contraponto, evidenciar a presença negra e a circularidade cultural de
e cultural, com foco na dominação colonial. Afasta-se, portanto, de sua abordagem nos textos
de fins dos anos 1970 e início dos 1980, quando sua abordagem se dava mais no sentido de
relações com o racismo e o sexismo. Aproxima-se, por outro lado, de autores como Franz
Fanon, Molefi Asante e Walter Rodney, lembrando ainda com admiração de Marcus Garvey –
questão racial nesse movimento, que ela considera como configurando “racismo por
omissão”, cujas raízes estão “em uma cosmovisão eurocêntrica e neocolonialista da realidade”
Nesse texto, Lélia delineia o que ela vem chamando de “tripla discriminação”,
sintetizando as diversas discussões que estabeleceu em sua obra, inclusive quanto à questão
Trabalhadores (PT) e depois ao Partido Democrático Trabalhista (PDT). Sua trajetória, tanto
intelectual quanto pessoal, permitiu o desenvolvimento de uma obra original que se nutriu dos
mais diversos debates políticos presentes dentro e fora do meio acadêmico. A partir desse
breve panorama sobre alguns aspectos de sua obra, bem como da questão da articulação entre
autores do pensamento social brasileiro, buscaremos a seguir propor uma síntese analítica
síntese
tornado cada vez mais importante no âmbito acadêmico e na militância feminista e antirracista
das desigualdades que não seja parcial – no caso do feminismo, que considere a
questão racial e de gênero estejam presente tem sido, frequentemente, olhar para uma situação
específica, identificar quais “eixos de subordinação” se aplicam a ela e de que maneira esses
eixos se “intersectam” em determinado cenário. Por mais que possa ser útil para resolver
interseccional dificulta uma análise mais global – na realidade, uma análise total, sistêmica,
significa deixar de lado ou em segundo plano a ação dos sujeitos ou as relações interpessoais.
“fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado” (MARX, 2011, p. 25). Pretendo, então, compreender, de um lado,
a agência dos sujeitos históricos e, de outro, as condições em que esses sujeitos se inserem,
vivem suas experiências e elaboram consciência e ação. Para tanto, uma abordagem da
categoria de modo de produção como uma totalidade contraditória nos parece ser uma das
A forma como Thompson aborda o modo de produção se relaciona com sua crítica à
metáfora da base e superestrutura, que aparece em alguns momentos nas obras de Heleieth
Saffioti e de Lélia Gonzalez, como vimos. Para o historiador inglês, a metáfora se trata de
uma analogia “mecânica e insatisfatória”, segundo a qual “a ‘base’ vem identificada com o
Essa “analogia espacial” “petrificada em conceito” (THOMPSON, 1981, p. 119; 175) levou,
79
com alguma freqüência, a um determinismo economicista de tudo aquilo que estava “alocado”
de uma múltipla determinação, afirmando que “há uma interação de todos esses elementos,
em meio a uma série infindável de elementos extemporâneos [que não se percebe], (...) [de
modo que] o elemento econômico por fim se afirma como fator necessário”. (WILLIAMS,
1969, p. 278).
Thompson, por sua vez, retoma uma analogia do processo histórico feita por Marx nos
2001a, p. 259-260):
“em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas relações que
atribuem posição e influência a qualquer outra produção e suas relações. É uma
iluminação geral, em que são imersas todas as cores e que modifica suas tonalidades
particulares. É um éter especial a definir a gravidade específica de tudo o que dele se
destaca” (MARX apud THOMPSON, 2001a, p. 254)
Com essa passagem, Thompson quer enfatizar, “no lugar da noção de primazia do
os sistemas e áreas da vida social” (THOMPSON, 2001a, p. 254). Assim, se aproxima mais
instância. Thompson propõe, então, uma conceituação de modo de produção “no qual as
relações de produção e seus correspondentes conceitos, normas e formas de poder devem ser
tomados como um todo” (THOMPSON, 2001a, p. 259, grifo meu). Essa conceituação
80
“nos oferece as consequentes relações de produção (que também são relações de
dominação e subordinação) nas quais homens e mulheres nascem ou
voluntariamente ingressam. Isso fornece a ‘iluminação geral, em que são imersas
todas as cores e que modifica suas tonalidades particulares’” (THOMPSON, 2001a,
p. 259-260)
áreas da vida social” (THOMPSON apud MATTOS, 2012, p. 86). Assim, não há como
superestruturais, mas sim a presença de limites e pressões em todas as áreas da vida social
apresenta com suas contribuições originais, que superam, a nosso ver, alguns dos impasses e
limites que encontramos nas tentativas de explicar a relação entre essas relações que
abordamos até aqui. Algumas autoras marxistas, principalmente aquelas ligadas à TRS, têm
suas partes, mesmo se essas partes não são necessariamente ou puramente funcionais ou
Essa forma de conceber o modo de produção guarda relação direta com as observações
81
ser entendida dialeticamente. Isso significa não ocupar-se “da identificação de uma
“as maneiras pelas quais aspectos do social (que são, eles mesmos, reciprocamente
determinados ou co-constituídos) relacionam-se no interior de um contexto
historicamente dado, com o objetivo de revelar a lógica subjacente que estrutura
essas relações. Essa é a lógica que reside no todo" (FERGUSON, 2017, p. 22).
Segundo essa perspectiva, na totalidade social concreta “cada aspecto pode ser
distintas partes da totalidade social são, portanto, internamente relacionadas; elas mediam
umas as outras e, fazendo isso, constituem umas às outras” (BANNERJI apud MCNALLY,
2017, p. 118, tradução minha). Essa formulação supera alguns do limites enfrentados tanto
Nela, concebe-se que as relações de classe, gênero e raça “determinam ou constituem umas às
outras e a totalidade social, essa última, por sua vez, exibe sua própria lógica de reprodução”
Esse trecho nos remete às citações de Florestan Fernandes e Heleieth Saffioti que
uma “síntese no diverso” e o sistema social como uma “unidade contraditória”. Vê-se,
portanto, que o entendimento de classe social como uma categoria história e dialética é
essencial para qualificar o debate sobre a articulação entre raça, gênero, sexualidade e classe –
82
e, logo, entre racismo, (hetero)sexismo e capitalismo. Segundo a TRS, a classe não interage
ou “se intersecta” com a raça e o gênero ou quaisquer outros elementos. A classe contém raça
e gênero, assim como o gênero contem raça e classe e assim sucessivamente. Essa ampliação
classe é vivida, como ela se apresenta na realidade e é experimentada pelos sujeitos. Pensar a
classe como unidade de relações diversas é pensá-la efetivamente como “categoria histórica”
da forma defendida por Thompson, isto é, uma categoria que descreve as “pessoas numa
relação no decurso do tempo e das maneiras pelas quais se tornam conscientes de suas
forma, decorre de um processo (a luta de classes), ela acontece (THOMPSON, 2015, p. 10) de
“as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de
relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter
poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-
se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si
mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de
classe.” (THOMPSON, 2001b, p. 274).
relações de trabalho tem sido ponto fulcral para o pensamento marxista (e marxiano,
da crítica feminista marxista. Desde o final dos anos 1960, o debate do trabalho doméstico
2017, p. 27). Esse complexo debate envolveu diferentes correntes feministas em torno da
83
discussão tem em seu cerne uma confusão entre trabalho produtivo, aquele que produz valor e
que, portanto, pode ser explorado, e trabalho reprodutivo, o trabalho de alimentar, limpar,
vestir, entre outras tarefas, realizadas via de regra por mulheres no âmbito doméstico e que
garantiam a reprodução da mão de obra operária. Para a corrente do feminismo operário, esse
trabalho reprodutivo era apropriado pelo capitalismo na medida em que as mulheres não
recebiam salário por seu trabalho. Já para as feministas materialistas, o trabalho reprodutivo
era explorado pelos homens operários. Cinzia Arruzza, filósofa feminista e marxista,
"Afirmar que o trabalho doméstico produz valor [e que, portanto, é produtivo e pode
ser explorado] equivale a depreciar aquele que deveria ser o aspecto essencial para
compreender a natureza e a forma pela qual o capitalismo transformou a família. De
facto, o ponto fundamental é que este trabalho reprodutivo acontece fora do
mercado, não é produção de mercadoria, não é uma produção destinada à troca. E
não o é precisamente porque o capitalismo, por um lado, subtraiu à família o papel
de unidade reprodutiva e, por outro, levou a que o trabalho de reprodução da força
de trabalho tivesse lugar majoritariamente no espaço da família, separando-o do
processo de produção e circulação de mercadorias. [...] Este aspecto é
substancialmente ignorado por Christine Delphy, como se a questão se referisse à
natureza dos serviços oferecidos pelo trabalho doméstico, e não à sua inserção (ou
não) no processo de produção e circulação das mercadorias" (ARRUZZA, 2010, p.
102).
feminismo materialista francês, que procurava provar que os homens se apropriam do trabalho
das mulheres, produtivo por natureza. Isso porque, quando feito externamente ao âmbito do
reprodutivo seria produtivo. O que Arruzza questiona é justamente essa ideia de uma
acordo com a concepção marxiana, dependeria de sua inserção nas relações sociais.
Uma questão que surge a partir desse debate é o lugar do trabalho doméstico e da
em relação ao capitalismo? Nesse debate, muitas feministas adotaram uma perspectiva que
Cinzia Arruzza nomeia como “teoria dos sistemas duplos ou triplos”, segundo a qual
É difícil não identificar, nessa passagem, alguns aspectos da obra de Heleieth Saffioti,
presente neste. Junta-se a essa dinâmica o racismo (SAFFIOTI, 2015, p. 122). Vimos,
contudo, que, ainda que Saffioti recaia no atomismo ontológico da teoria de sistemas triplos,
ela procura ir além, apontando para a necessidade de entender esses sistemas como “unidade
Arruzza prossegue a caracterização das teorias dos sistemas duplos ou triplos: “No
geral, estas teses têm uma compreensão das relações de classe como definidas unicamente em
termos econômicos. É apenas via interação com o patriarcado e com o sistema de dominação
racial que elas adquirem um caráter extra-econômico” (ARRUZZA, 2015, p. 37). Essa
separação entre econômico e ideológico, sendo o segundo o domínio do racismo, está presente
nas primeiras obras de Lélia Gonzalez, como vimos. É possível superar esse tipo de
reprodução em uma teoria unitária. Para tanto, buscou-se considerar a relação entre o trabalho
dispensado para produzir mercadoria e o trabalho dispensado para produzir pessoas como
está na base da Teoria da Reprodução Social. Susan Ferguson observa que as feministas da
classe acima das outras" (como raça, colonização e "queerness"). Mas, a partir dos anos 2000,
novos esforços foram feitos no sentido de superar essas “limitações herdadas” (FERGUSON,
"única", é singular no sentido de que não é produzida capitalistamente, mas ele não
reconhece o trabalho produtivo para o mercado como a única forma de trabalho legítimo,
"Se o trabalho do trabalhador produz toda a riqueza em nossa sociedade, quem então produz o
configurando-se em
“uma abordagem que não se contenta em aceitar o que parece ser uma entidade
visível e acabada – nesse caso, nossa trabalhadora nos portões de seu local de
trabalho – mas interroga a complexa rede dos processos sociais e relações humanas
que produzem as condições de existência dessa entidade" (BHATTACHARYA,
2017, p. 15).
86
Assim, o trabalho de reprodução é incluído no conceito mais amplo de trabalho, mas é
entendido como uma forma social específica, cujo “conjunto específico de relações sociais no
interior do qual ele se realiza (como, por exemplo, as relações de parentesco) [...] pode ser
então, uma concepção de trabalho como "amplamente produtivo - criador não apenas de
valores econômicos, mas da sociedade (e, portanto, da vida) mesma"; como uma "'atividade
humana prática' que cria todas as coisas, práticas, pessoas, relações e ideias que constituem a
essencial que sustenta a dinâmica do sistema capitalista" explica a opressão às mulheres sob o
particular" (FERGUSON, 2017, p. 25). É nesse sentido que há uma estrita relação interna
capitalismo, outras formas de reprodução social (como campos de trabalho forçado, etc.),
"a existência das necessidades do capital explica porque uma instituição altamente
efetiva - o âmbito doméstico privatizado - é alardeada e reforçada (através de uma
legislação machista, sistemas educacionais, práticas de seguridade social, por
exemplo) e, desse modo, enraizada nas sociedades capitalistas. É essa relação
essencial entre as necessidades produtivas e reprodutivas da formação social
capitalista, e não um impulso patriarcal trans-histórico, portanto, que torna a
opressão das mulheres possível e provável sob o capitalismo" (FERGUSON, 2017,
p. 26).
diversidade dos corpos que trabalham, na medida em que "o trabalho é uma experiência
87
generificação, [a racialização] não pode ser nem mesmo parcialmente explicada em termos de
diferenças biológicas ou genéticas” (FERGUSON, 2017, p. 28). Nesse sentido, ela afirma que
"os corpos que trabalham não são apenas diferentemente sexuados, eles também são
diferentemente especializados em sentido tanto geográfico como social. Todos nós
nascemos e trabalhamos para reproduzir o mundo em locais sócio-históricos e
geográficos específicos. (...) esses locais são alcançados de maneira desigual pela
desigual dinâmica sempre expansiva do capitalismo. Dependendo de quais espaços
os diferentes corpos ocupam no interior desse sistema mundial hierárquico (...) o
trabalho e as vidas das pessoas são valorados de maneira diferente" (FERGUSON,
2017, p. 28-29)
na porta de seu local de trabalho, interrogando as relações que constituem essa entidade
social, podemos, no sentido proposto por Ferguson e com a ajuda de Angela Davis, racializar
ou da lavanderia”, sendo que apenas 2,8% delas ocupavam postos em manufaturas de acordo
Assim, a maioria das mulheres negras trabalhadoras que não estava no setor agrícola
exercia trabalho doméstico, que, segundo a autora, “trazia o familiar selo da escravidão” na
visão dos ex-proprietários de escravos (DAVIS, 2016, p. 98). Essa afirmação ressoa na
“A pessoa, quando tinha uma senzala, os senhores tinham o cuidado de cuidar dos
seus escravos, e agora, só porque tinha que pagar, dizia que era livre, então você não
me interessa mais, não faz as coisas, como eu quero, escravatoriamente, então vai
[pra rua]” (VIEIRA, 1987, p. 144).
Esse trecho indica que, embora houvesse certa continuidade da escravidão, havia uma
88
escravidão continuava na subserviência esperada, mas limitava-se na obrigação de cuidados
cometido pelo ‘homem da casa’”, considerado, conforme Angela Davis, como um risco
inerente à profissão de empregada doméstica nos EUA. No Brasil, esse fator sem dúvida
também se apresenta, como fica claro nas entrevistas realizadas por Celma Vieira (1987, p.
150).
termos de racialização dos sujeitos. Angela Davis marca a distinção entre as donas de casa
brancas e as trabalhadoras domésticas negras nos Estados Unidos (DAVIS, 2016, p. 104-105).
Ela indica, contudo, que a Segunda Guerra Mundial mudou esse quadro: “no auge da guerra,
o número de mulheres negras na indústria havia mais que dobrado”, ainda que pelo menos um
terço das trabalhadoras negras permanecesse no emprego doméstico (DAVIS, 2016, p. 106).
Brasil. Embora os censos de 1970 e 1980 não permitam fazer um diagnóstico em relação à
período.29 Segundo ela, nos anos 1970 “a incapacidade relativa dos setores primário e
secundário de absorver maior quantidade de força de trabalho faz crescer a oferta de mão de
a autora afirma que também “é possível inferir que grande parte destes elementos femininos
29
Como indicado anteriormente, o censo dos anos 1970 excluiu o quesito “cor” e o de 1980 o incluiu como
amostra, invisibilizando o fator racial nas informações demográficas do período (GONZALEZ, 2018c [1981], p.
43).
89
estivesse, em 1960 como em 1970, empregado no setor de serviços domésticos” (SAFFIOTI,
1978, p. 13). Apesar da dificuldade de acesso aos dados, Saffioti afirma que “pode-se
pois, esta ocupação aquela que maior número de mulheres absorve” (SAFFIOTI, 1978, p. 14).
alta concentração de renda e baixo grau de escolarização das classes subalternas “não apenas
não traz benefícios materiais as mulheres, como também impele-as a aceitar, a fim de
ponto de vista social” (SAFFIOTI, 1978, p. 17-18). A título de ilustração, pode-se considerar
o dado de que quase 90% das empregadas domésticas ganhavam menos de 75% do valor do
pensar o emprego doméstico no Brasil, a questão racial fica escamoteada nesta obra. Já o
trabalho de Celma Rosa Vieira (1987) traz, em uma abordagem qualitativa, considerações
Domésticos do Rio de Janeiro em meados da década de 1980. Vieira afirma que, embora a
grande maioria das associadas fosse constituída por mulheres negras, a questão racial era
secundarizada por elas. As acusações de exploração pelos patrões, de falta de garantias legais
doméstica, e não pela influência de racismo ou sexismo na dinâmica capitalista que rege seus
trabalhos e suas vidas. Vieira aponta que suas entrevistadas consideram a discriminação como
uma questão de classe, existindo “para todos aqueles que são pobres” (VIEIRA, 1987, p. 146).
(GRAMSCI, 2000, p. 36-46), para compreender esse entendimento, visto que o sindicato se
90
organizava de acordo com o setor profissional e tinha como objetivo principalmente suas
demandas materiais mais objetivas. Segundo Vieira, “admitem o racismo de modo geral, mas
é muito doloroso. Nesse fato reside a resistência em não perceber o problema enquanto étnico.
Preferem acreditar que é uma questão de categoria profissional” (VIEIRA, 1987, p. 146).
Assim como a pesquisa de Saffioti, o trabalho de Vieira aponta para o grande número
emprego doméstico – no Brasil não apenas é feito por mulheres, mas por mulheres negras ou
racializadas de distintas formas, como as nordestinas que migram para o sudeste para
trabalhar.
Diante desse quadro, cabe analisar mais detalhadamente as formas de relações sociais
O livro Theorizing Racism, organizado por Abigail Bakan e Enakshi Dua (2014) é um
críticas sobre raça. Um dos artigos que compõem o livro, citado anteriormente, foi traduzido
(BAKAN, 2016). Nele, Bakan procura delinear a presença de uma “política da diferença” na
obra de Marx, expressão usada em referência ao fato de que muitos teóricos anti-opressões
procedimento visto como “uma bem vinda correção a um reducionismo econômico associado
ao marxismo” (BAKAN, 2016, p. 47). Todavia, a questão da diferença em Marx não aparece
91
no sentido pós-moderno, dada sua concepção centralizada de poder, mas como “várias formas
de relações sociais conflituosas que ocorrem dentro da sociedade capitalista” (BAKAN, 2016,
p. 47).
Em sua análise, Bakan responde a uma questão colocada por Tithi Bhattacharya
(BHATTACHARYA, 2017, p. 16). Para Bakan, a exploração é apenas uma das relações
sociais conflituosas identificadas por Marx, sendo comumente vista como a única relevante
para as análises marxistas. Contudo, ela traz os conceitos de alienação e opressão para
relações imutáveis, caóticas e inexplicáveis que fragmentam a sociedade, mas como processos
de conflitos sociais frutos de uma ordem competitiva – o capitalismo (BAKAN, 2016, p. 48).
opressão e alienação, Bakan sublinha que a exploração é uma "relação social que é mediada
humana" (BAKAN, 2016, p. 53). É central para sua argumentação o entendimento de que a
sistema enfatiza as diferenças entre os seres humanos e se baseia “na atomização como parte
da forma através da qual relações sistêmicas de exploração, assim como alienação e opressão,
são invisibilizadas e reificadas” (BAKAN, 2016, p. 54). Essa atomização apareceu em nossa
atomização acontece.
92
A alienação se refere “à distância geral da humanidade de seu real potencial” e,
humanidade em relação aos produtos do trabalho humano (e ao processo trabalho em si); aos
outros seres humanos; e àquilo que faz os seres humanos únicos (BAKAN, 2016, p. 55). A
experiência universalizada de competição com outros seres humanos", não estando, portanto,
contraposta à exploração (BAKAN, 2016, p. 55). Ela explica, ainda, a “criação ativa de seu
2016, p. 55). Diante dessa caracterização, Bakan afirma que o racismo pode ser entendido, em
parte,
Lélia Gonzalez sobre a forma como opera o racismo, mas as complementa com a categoria de
alienação em Marx, que havíamos indicado como relevante para entender a questão.
93
extrema de alienação no caso do racismo atlântico, que procurou compatibilizar os “direitos
universais do homem” com a ideia de que “certos humanos, definidos por características
raciais determinadas, deveriam não ser considerados humanos de forma alguma”, sendo
identificados como propriedade privada (BAKAN, 2016, p. 58). Ela aponta ainda para esse
processo de alienação via racismo como “um componente no fazer-se da classe dominante”,
[whiteness]” (BAKAN, 2016, p. 58). Esse aspecto relacional da alienação é, portanto, muito
relevante quando pensado em termos da formação de classe, tanto dos grupos dominantes
2005) e fazer isso considerando a classe como unidade de relações diversas parece uma via
que Lélia Gonzalez propõe ao apontar para uma divisão racial do trabalho na qual os
branca nas Américas (como casamento, posse de armas e presunção de liberdade). Assim,
alguns trabalhadores eram “promovidos” à raça branca sem serem “promovidos” à classe
segundo essa análise, “contribui para a criação de uma forma americana de supremacia branca
94
Por fim, Bakan se refere ao conceito de opressão, amplamente usado para qualificar as
questões de gênero e raça, mas tratada por ela a partir da concepção de Marx da categoria. A
autora afirma que, embora a opressão seja a relação menos estudada dentre as trabalhadas por
no método desenvolvido por ele (BAKAN, 2016, p. 61). De modo geral, a opressão em Marx
não pode ser quantificada, mas é uma categoria historicamente específica e só pode ser
entendida em condições concretas específicas. Bakan faz uma divisão entre opressão de classe
e “opressão específica de setores das classes”, estas últimas que “dividem a classe
trabalhadora ou qualquer outra classe oprimida contra ela mesma e [...] obscurece as
diferenças de classe ao criar novas linhas de demarcação que são usadas como formas de
subordinação” (BAKAN, 2016, p. 62). Nesse ponto, é preciso ter cuidado com uma possível
costura formas de alienação, exploração e opressão que dividem os seres humanos de modo
que não reconheçam humanidade uns nos outros. Essas relações estão integradas na totalidade
contraditória do capitalismo e devem ser enfrentadas sob uma perspectiva integrada. Assim,
entendimento de que de alguma forma são procedimentos separados das relações de classe em
95
diferença e forjar elos de solidariedade” (BAKAN, 2016, p. 62). Ao relacionar a opressão de
classe com as formulações de Marx de “classe em si” e “classe para si”, Bakan nos fornece a
Nesse sentido, a opressão pode ser entendida como a forma com que os setores do
grupo opressor dentro da classe trabalhadora podem explicar seu sentimento de alienação em
relação aos demais. A alienação, segundo Bakan, é o pano de fundo das opressões na medida
em que ajuda em uma “boa recepção” destas. A opressão, assim, opera como expressão
“tanto o opressor quanto o oprimido sofrem alienação, mas a condição de opressor garante
que eles não experimentem sua alienação como uma condição humana comum” (BAKAN,
2016, p. 70).
Esse capítulo teve como objetivo estabelecer as bases para análise das relações de
produção e de reprodução social nas quais os sujeitos desta tese – mulheres negras que, de
fins dos anos 1970 ao início dos 1990 fundaram e compuseram suas organizações específicas
conhecimento via dialética não significa o abandono das formulações antigas, mas o
confronto de suas teses com novas perspectivas críticas para a formulação de uma síntese.
96
Assim, foram retomadas algumas de reflexões de autoras e autores significativos para o
antirracistas, além da obra mais antiga mas ainda extremamente relevante de Edward Palmer
como uma totalidade contraditória, em que as relações de classe, raça, gênero e sexualidade se
um todo, sendo ainda fundamentais para a sua reprodução. A experiência da escravidão e seu
exploração e alienação dos grupos dominados, manifesta em práticas de opressão que são
Procuraremos, nos capítulos que se seguem, focarmo-nos na agência de mulheres negras que,
vivendo nessas “condições que não escolhem”, viveram e experimentaram essas opressões e
para melhor delinear nosso propósito, o tão citado trecho de Thompson com que abre seu A
diferem dos seus pode ocorrer internamente à classe, na medida em que os processos de
alienação, exploração e opressão atuam. Isso não significa, contudo, uma cisão definitiva na
classe trabalhadora, pois, como visto, esses processos também engendram resistência e
solidariedade.
aparelhos de hegemonia dos subalternos, mas ainda não específicos para essas mulheres,
serão objeto de análise de nosso próximo capítulo. A forma como experimentaram o racismo,
o sexismo, a LBTfobia30 nos movimentos dos quais participavam nos ajuda a entender o que
30
“LBT” é uma sigla utilizada em movimentos de mulheres para designar as denominações que se referem a
mulheres: lésbicas, bissexuais e transgêneros (os dois últimos incluindo mulheres e homens).
98
CAPÍTULO II - Experiência de mulheres negras como experiência de uma classe
trabalhadora contraditória (1970-1990)
concentra no sujeito social que se constitui como agente no objeto de análise desta tese:
as mulheres negras, notadamente entre os anos 1970 e 1990, período crucial para a
mulheres negras, não as considero como um grupo social à parte da classe trabalhadora.
classe como “unidade no diverso” (MARX, 1859, s.p.). Com as contribuições da teoria
de mulheres negras, na medida em que elas são parte integrante da classe trabalhadora,
99
formam suas organizações específicas fazem parte da classe trabalhadora, mas
ampliado.
movimento de mulheres negras nos anos 1980 e 1990. Com isso, busco estabelecer uma
caracterização geral sobre a base desse movimento, bem como entender a experiência
1. A classe trabalhadora entre os anos 1970 e 1990: o caso das mulheres negras
entre os anos 1970 e 1990. A discussão de Marcel Van der Linden sobre a categoria
constituem a classe.
100
capitalismo, que apresenta “uma variedade quase infinita de tipos de produtores” e
“formas intermediárias” de trabalho bastante fluidas entre essas semiclasses (VAN DER
nas quais os trabalhadores são “menos ‘livres’ do que a versão clássica sugere” e os
empregados se veem presos a seu trabalho por conta de mecanismos diversos (VAN
DER LINDEN, 2013, p. 31-32). Nessas formas, destacam-se “as ligações sociais ou
[que] poderiam ter como efeito manter este último preso ao emprego” (VAN DER
LINDEN, 2013, p. 33). Com isso, Van der Linden se refere ao fato de que o grau de
menor for o poder que ele tem sobre “(i) sua capacidade de trabalho, (ii) seus meios de
trabalho, (iii) o produto de seu trabalho, (iv) os demais membros de sua família, (v) sua
relação com o empregador fora do processo de trabalho imediato e (iv) com seus
43). Assim, “as mulheres, de modo geral, têm menos autonomia que os homens, e a
autonomia dos trabalhadores assalariados é maior do que a dos escravos, mas menor do
32
Seriam as cinco semiclasses subalternas: “trabalhadores assalariados livres, eu possuem apenas sua
própria força de trabalho e a vendem; a pequena burguesia, formada por pequenos produtores e
distribuidores de bens que empregam um número reduzido de trabalhadores; os trabalhadores
autônomos, que são proprietários de sua força de trabalho e de seus meios de produção e vendem os
produtos ou serviços resultantes de seu trabalho [...]; os escravos, que não possuem nem força de trabalho
nem suas ferramentas e são vendidos; e o lumpemproletariado, que é totalmente excluído do mercado de
trabalho legalizado” (VAN DER LINDEN, 2013, p. 30).
101
brasileira, uma sociedade “onde a mera subsistência é a norma para grande parte da
classe trabalhadora, e onde homens, mulheres e crianças são obrigados a buscar meios
alternativos de subsistência além dos seus meios tradicionais” (ALLEN apud VAN
DER LINDEN, 2013, p. 35). Van der Linden exemplifica essas formas como situações
em que a miséria leva os trabalhadores a roubos, furtos e à cata de lixo, por exemplo
“multidão” (VAN DER LINDEN, 2013, p. 40). O que demarca esse grupo, segundo sua
classe trabalhadora brasileira a partir dos anos 1970, período que engloba a ditadura
tinha diante de si a tarefa de combater uma crise econômica instalada desde o fim do
governo Juscelino Kubitschek, o que foi feito através de “uma receita cujo principal
remédio seria o arrocho salarial” (MATTOS, 2008, p. 101). Esse arrocho foi combinado
com uma política de repressão aos sindicatos, que passaram a ser tutelados pelo Estado
alguma ação sindical autônoma no período (MATTOS, 2008, p. 102). Segundo Virginia
102
Fontes, essa “truculência seletiva permanente e naturalizada” pelo Estado favorecia “a
Na década seguinte, contudo, esse quadro mudou. Mattos e Terra apontam para
século XX, o que resultou em “todo o tipo de contradições sociais decorrentes desse
verificam que o percentual de assalariados no total da força de trabalho cresceu, mas “os
ocupações de baixa remuração” (MATTOS; TERRA, 2017, p. 197). Sua análise aponta
trabalho entre 1970 e 2010. Em relação a esse último aspecto, os autores afirmam que
103
mercado de trabalho”, principalmente na periferia do capitalismo (MATTOS; TERRA,
de serviços ganha força. Em 1991, o setor terciário passa pela primeira vez a concentrar
a maior parte da força de trabalho, enquanto o percentual que ocupa o setor secundário
(indústrias), que cresceu continuamente até 1980, passa a retroceder a partir da década
seguinte. O PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar – IBGE) de 2015 indica
TERRA, 2017).
33
Esse texto foi originalmente publicado em CARNEIRO, Sueli; SANTOS, Thereza. Mulher negra:
política governamental e a mulher. São Paulo: Ed. Nobel/Conselho Estadual da Condição Feminina de
São Paulo, 1985.
104
Desagregando dados obtidos pelo IBGE no Censo de 1980, Carneiro conseguiu
brasileiras naquele ano. Em relação à escolaridade, Carneiro mostra que quase 90% das
mulheres negras tinham apenas 4 anos de instrução, enquanto esse mesmo nível de
escolaridade era atingido por 69,8% das mulheres brancas e por 51% das amarelas
(CARNEIRO, 2019, p. 21).34 Em relação ao ensino superior, tanto em São Paulo como
desigualdade entre mulheres no ensino superior cresce entre 1960 e 2010, período
pobres, das mulheres e dos pardos e pretos na vida universitária”, mas esse crescimento
foi paralelo ao das mulheres brancas nesse nível de escolaridade, com taxas de ingresso
dessas mulheres, bem como as condições materiais de existência a que estão submetidas
renda operam em “duas direções, isto é, a origem social afeta o acesso à educação e o
p. 10).
34
Sueli Carneiro usa as classificações padrão do IBGE, porém agrega “pretas” e “pardas” como “negras”,
mantendo “brancas” e “amarelas”.
105
O melhor acesso das mulheres a níveis superiores de educação se combina com
Cabe lembrar, nesse ponto, a colocação de Lélia Gonzalez, no início dos anos
1980, quanto à presença massiva de mulheres negras nesse tipo de atividade “sob a
106
observou, nesse grupo profissional, que “a cor funciona, em relação às mulheres negras,
como fator não somente de expulsão da população feminina negra para as piores
é crucial para pensar a situação das mulheres negras nas relações de trabalho no Brasil.
Carneiro afirma que não pôde obter os dados específicos em relação a esse tipo de
afirmando que
No ano 2000, o emprego doméstico era ocupado por 90% de mulheres – dentre
origem nordestina ou nortista –, sendo que, do contingente total, dois em cada três
2017, p. 198). Fazendo ecoar a colocação de Carneiro, vale assinalar que informalidade
significa, antes de mais nada, a negação do acesso aos direitos garantidos pela
107
Cabe, nesse ponto, retomar as considerações de Marcel Van der Linden sobre os
poder do trabalhador sobre elementos como sua relação com o empregador fora do
processo de trabalho imediato, menor seu grau de autonomia. Essa caracterização pode
direitos trabalhistas, fica mais uma vez patente, mas destaca-se ainda o importante
alheio. Segundo Hopkins, essa ligação entre lar e trabalho “fez do emprego doméstico
(HOPKINS, 2017, p. 152, tradução minha). Ela argumenta que, particularmente no caso
108
fundamental considerar o tempo de cuidado não-pago exercido por longas horas, o que
reprodução social (HOPKINS, 2017, p. 160, tradução minha) – ou, dito de maneira
simples, o cuidado consigo e com os seus. Assim, enquanto o trabalho dessas mulheres
permite que seus empregadores equilibrem seu trabalho (inclusive o produtivo) e suas
obrigações familiares, elas são tratadas como se não tivessem suas próprias
responsabilidades relativas a esse cuidado não pago (HOPKINS, 2017, p. 160, tradução
minha).
rendimento entre homens e mulheres negras nos diversos grupos ocupacionais, sendo
Comparando os dados do Brasil e de São Paulo em 1980, ela percebe que: 1) mulheres e
homens negros de São Paulo aparecem melhor distribuídos nas faixas de rendimento em
diferenças de renda auferida entre homens e mulheres negras são mais acentuadas em
São Paulo do que no Brasil (CARNEIRO, 2019, p. 41). Esses dados levam a autora à
suposição de que
feita por Sueli Carneiro de dados do Censo de 1980. O quadro apresentado revela que as
109
mulheres negras, no período considerado, não apenas são integrantes da classe
Van der Linden, tanto no contexto nacional quanto em uma região de maior
base social que o movimento de mulheres negras, com as organizações que surgem a
partir dos anos 1980, se propõe a representar. Entender essa composição social é
atuação, como será feito mais adiante nesta tese. No presente ponto, me voltarei para
sociais. A partir disso, poderá ser estabelecida uma comparação entre a base do
movimento e suas lideranças, bem como uma análise das narrativas sobre a formação do
1960 a 1980
fundação daquelas organizações nos anos 1980 e 1990. Embora essas relações se
110
sexismo etc., quando o aspecto integrado (co-constituído) de tais relações. A
dos anos 1980. O material que baseia esta parte da tese, então, tem relação com duas
categoria “experiência” é entendida conforme formulada por E.P. Thompson, tal qual
apontado no capítulo anterior. Isso significa que a experiência aparece aqui como um
social, ou seja, ela está envolvida no processo através do qual sujeitos “experimentam
cultura [...] das mais complexas maneiras [...] e em seguida [...] agem, por sua vez,
sobre sua situação determinada” (THOMPSON, 1981, p. 182). O trabalho com fontes
orais não nos revela a experiência diretamente, mas um aspecto do seu “tratamento”:
social. Assim, minha análise busca menos os “fatos” do que as formas com que as
experiência.
35
Referência ao conceito de “trabalho de enquadramento da memória”, de Michel Pollak (1989).
111
estudos históricos, mas precisamente de uma riqueza passível de ser analisada
(PORTELLI, 1996, p. 4). Segundo o autor, trabalhando com fontes orais “não dispomos
de fatos, mas dispomos de textos; e estes, a seu modo, são também fatos, ou o que é o
mesmo: dados de algum modo objetivos, que podem ser analisados e estudados com
ideia de que a história oral “nos conta menos sobre eventos que sobre seus
significados”, de acordo com Portelli, “não significa que [...] não tenha validade factual.
de eventos conhecidos” (PORTELLI, 1991, p. 67). A dimensão relativa aos eventos está
presente, mas não é predominante, na medida em que as “fontes orais nos contam não
apenas o que as pessoas fizeram, mas o que elas queriam fazer, o que elas acreditavam
estar fazendo e o que elas agora acham que fizeram” (PORTELLI, 1991, p. 67).
Michel Pollak, por sua vez, se debruçou sobre a relação entre memória e a
grupo de seus interesses em comum e dos interesses opostos que têm com relação a
reflexões. Pollak ressalta a dimensão política expressa em narrativas com esse tipo de
tempo, todo o trabalho necessário para dar a cada membro do grupo [...] o sentimento de
pertencimentos políticos das entrevistadas nas narrativas orais aqui destrinchadas são
entrevistas
112
“saber quem é o entrevistador e como ele se apresentou, para entendermos a
relação de entrevista que ali se estabeleceu e, por extensão, entendermos (ou
procurarmos entender) por que o entrevistado disse o que disse. O
entrevistado também fala para nossas instituições, depositárias das entrevistas
e, muitas vezes, vistas como depositárias da própria ‘História’. [...] Em
alguns casos, o entrevistado também fala para a comunidade acadêmica, para
aqueles que vão escrever a história daquele acontecimento ou período. E,
finalmente, ele fala para os pares – tanto os que participaram do mesmo
movimento ou ação como os opositores” (ALBERTI, 2012, p. 162-163)
Das entrevistas analisadas neste e nos demais capítulos, duas foram conduzidas
por mim (Neusa das Dores Pereira e Vanda de Souza Ferreira, em 2017), uma pela
equipe coordenada por Márcia Contins que realizou uma pesquisa sobre raça e gênero
no Brasil na CIEC/UFRJ entre 1996 e 1998 (Joselina da Silva, sem data registrada), e as
alcance, enquanto as entrevistas realizadas por mim se deram num cenário mais
movimento de mulheres negras. Meu caminho até as entrevistadas foi percorrido através
de relações pessoais: no caso de Vanda Ferreira, sua sobrinha Djamila, para quem dei
aulas durante um período, viabilizou nosso contato; no caso de Neusa Pereira, fiz uma
disciplina da pós-graduação com Edmeire Exaltação, vinculada à Casa das Pretas, que
me apresentou à Neusa.
representar a íntegra das experiências das mulheres negras como sujeito coletivo –
113
mesmo porque, como disse Jurema Werneck, “as mulheres negras não existem”.36 Em
individual? O que nos autoriza” a pensar que alguns entrevistados “são, como se
costuma dizer, representativos?” (PORTELLI, 1996, p. 3). O autor traz respostas que
orais. Mas avança no entendimento quanto à memória para além do seu aspecto
individual. Portelli é crítico da ideia de uma “memória coletiva”, mas entende que
sujeitos sociais (PORTELLI, 1996, p. 9). Mais que coletiva, a memória é social. É com
isso em vista que me proponho a realizar uma análise qualitativa de trajetórias diversas
36 “Ou, falando de outra forma, as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado
de uma articulação de heterogeneidades”. A autora se refere aos processos históricos de colonização,
racismo, sexismo, capitalismo e seu vigor contemporâneo, bem como à resistência a esses processos, sem
os quais “talvez não houvesse mulheres negras” (WERNECK, 2010, p. 10-11).
37
O esforço de catalogação de organizações pelo Brasil e de estabelecimento da miríade de intelectuais
negras atuantes no período em questão é, também, trabalho fundamental, mas difere do objetivo da
presente tese. Um interessante esforço nesse sentido consiste no livro Mulheres Negras do Brasil,
organizado por Schumaher e Vital Brazil (2007).
114
Além de abrangerem a totalidade do recorte cronológico abordado nesta
pesquisa (exceto o de Joselina, que vai até meados da década de 1990), ainda que de
abordagem similar, ainda que com o olhar orientado para as relações sociais co-
pela equipe do CIEC/UFRJ buscou também abordar história de vida, assim como a
redação da tese, o que muitas vezes significou dificuldade de acesso para realização de
entrevistas por mim. Felizmente o acervo do CPDOC foi uma fonte de depoimentos
38
O livro Histórias do Movimento Negro (ALBERTI; PEREIRA, 2007) reúne esses depoimentos em
versão editada e ordenada conforme um roteiro temático. Foi importante ter acesso às versões integrais
das entrevistas, que constam no acervo da instituição e podem ser consultadas, no formato de áudio, no
CPDOC-FGV.
115
enfoca diante de uma perspectiva, presente em alguns depoimentos e na literatura sobre
o assunto, de que esta origem coincide com a chegada das mulheres africanas
1. “Nossos passos vem de longe” 39: breve comentário sobre a origem do movimento
de mulheres negras
“Quer dizer, isso aí é uma fala muito perigosa... O que eu tenho pra dizer pra
você é que mulheres negras se organizaram no Brasil desde que aqui
40
chegaram. Tem a Irmandade da Boa Morte , você tem as mulheres nas
confrarias, entendeu? Eu tô falando dessa forma como a gente está hoje”
(PEREIRA, 2017, s.p.).
39
WERNECK, 2010.
40
As irmandades religiosas foram uma tradicional forma de associativismo entre africanos e afro-
descendentes escravizados, libertos e livres no Brasil desde o período colonial, tendo como funções
principais a realização de ritos religiosos, de caridade e, em alguns casos, esforços para libertar do
cativeiro seus membros (KARASCH, 2012, p. 53). Neusa Pereira aqui provavelmente se refere à
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, confraria secular criada em Salvador, Bahia, no início do
século XIX, transferindo-se para a cidade de Cachoeira posteriormente. A marcante especificidade dessa
Irmandade foi ter sido criada e mantida exclusivamente por mulheres negras, vindo ainda a dar origem ao
terreiro de candomblé Iyá Omi Axé Intilá e, a partir desse, a outros terreiros (SILVA, 2005).
116
Gênero 11, realizado entre 30 de julho e 04 de agosto de 2017 na Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), no qual apresentei parte da presente pesquisa. Joselina, que
Por um lado, o recorte cronológico desta pesquisa se refere, como aponta a fala
com o devido cuidado. Por outro lado, a afirmação por parte de mulheres que
mulheres negras coincide com a própria presença delas no Brasil, inaugurada pelo
por “nós” e esse mesmo movimento existe desde que as mulheres negras “aqui
chegaram”, então esse “nós” apresenta uma continuidade entre as que chegaram do
117
“vividos por tabela”, ou seja, “pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente
“dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram
tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga
saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos
vividos por tabela vêm a se juntar todos os eventos que não se situam dentro
do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível
que, no meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um
fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão
forte que podemos falar numa memória quase que herdada” (POLLAK,
1992, p. 2).
possível considerar como experiências “herdadas” toda uma tradição de luta, resistência
mulheres negras que aparecem como sujeitos no recorte cronológico nesse trabalho,
movimento como coincidente com a chegada das mulheres africanas ao Brasil revela
118
b) confere bases simbólicas e constrói uma identidade sólida para o movimento
Vital Brazil (2007), que contou com a participação de intelectuais negras/os na sua
(ALMEIDA, 2014, p. 108). Essa premissa, de acordo com Lady Christina Almeida, “é
mulheres negras “sempre se organizaram” (ANA apud ALMEIDA, 2014, p. 108, grifo
meu).
119
Ampliando o escopo da análise, a ideia de que a origem da resistência da
população negra do Brasil coincide com seu momento de chegada a estas terras – ou
foi um organizador” (MOURA, 1983, p. 143, grifo meu). Ele sistematiza a ideia de que
entendimento de que “em toda a nossa história social vemos os negros se organizando”,
sua chegada no Brasil como escravizados não se dá um passo assim tão largo. Isso, sem
dúvida, envolve uma dimensão de intervenção política com vistas a enfrentar a noção,
Brasil, coincidente à sua chegada nesse país, tem sentido político de enfrentamento e de
Com isso, não pretendo ler como incorretos tais entendimentos, mas os tomo
120
conceitos históricos que, ressignificados, se expressam de diversas formas na sua
artigo “Nossos passos vêm de longe”, frase que se tornou uma espécie de lema no
iorubá e dos povos bantu até os dias atuais, retomando tanto figuras simbólicas e
ela, entre os
constitui essa experiência o modo com que viveram, lidaram – enfim, experimentaram –
41
Cf. GÓES, Emanuelle. Mulheres negras em marcha, esses passos vêm de longe. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/mulheres-negras-em-marcha-esses-passos-vem-de-longe/>. Acesso em: 16
jan. 2019.
121
como protagonista político específico. Nesse sentido, os limites encontrados nas
organizações mistas nas quais muitas mulheres negras que viriam a fundar organizações
negras a esses limites e dificuldades, conforme a crítica apontada por Lady Christina
Neusa das Dores Pereira conta que nasceu no Rio de Janeiro em 1945, embora
conste o ano de 1943 em sua certidão de nascimento. Com pai ausente, é filha “só de
mãe” (PEREIRA, 2017, s.p.), uma trabalhadora doméstica que a levava consigo para as
casas onde trabalhava. Neusa conta que sua mãe desempenhava “um papel de liderança”
no morro onde moravam, alimentando muitas das mulheres vizinhas com a comida que
as “pessoas abastadas” para quem trabalhava jogavam fora: “Ela era chamada ‘mãe do
morro’ por causa disso”. Além de alimentar essas mulheres, a “mãe do morro” exercia
122
barraco, que ela deixava a chave com alguém. E lá eles não iam. Aquele lugar
era um lugar seguro. E eu venho resgatar esse espaço agora, na minha
militância. Safe space... Não sei porque eles não entravam na minha casa.
Mas as mulheres pegavam a chave com a vizinha, que ela deixava, e ficavam
na minha casa”(PEREIRA, 2017, s.p.).
Educação do Rio de Janeiro: “foi uma festa na minha rua! Quando eu botava o
uniforme, não é exagero não, tinha gente que aplaudia” (PEREIRA, 2017, s.p.). Estudou
parte do grupo que fundou a ONG Criola em 1992, organização da qual saiu em 1994,
conta que seu pai foi “menino de rua”, “moleque de recado de Madame Satã”42 e que,
tendo vivido na região do Saara, um centro comercial da cidade do Rio de Janeiro, teve
apoio dos comerciantes portugueses e árabes da região para constituir a vida, vindo a
tornar-se, quando adulto, motorista de táxi (FERREIRA, 2017, s.p.). Em uma breve
biografia cedida por ela, consta que foi politicamente influenciada pelo trabalhismo, por
42
Madame Satã (1900-1976), epíteto de João Francisco dos Santos, foi um capoeirista, folião, boêmio e
"malandro" pernambucano radicado no Rio de Janeiro. Negro e homossexual, Madame Satã ficou assim
conhecido por travestir-se no carnaval, entre 1938 e 1941, batizando sua fantasia de "Madame Satã",
inspirado em filme homônimo de Cecil B. DeMille. Cf. “Madame Satã: o arquétipo da malandragem”.
Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?p=40727>. Acesso em: 11 out. 2019.
123
conta da participação de seu pai no sindicato dos motoristas de táxi.43 Como no caso de
Neusa, Vanda conta também que sua mãe foi empregada doméstica e exerceu um papel
Unidos:
“Porque, aos 12 anos de idade, ela se apaixona pelo inquilino do meu avô,
que tinha 22 anos. E meu avô trabalhava no arsenal de Marinha, analfabeto.
Fazia navios olhando nuns livros todos escritos em inglês, só decodificando
os desenhos. [...] E aí todo dia a minha avó fazendo queixa da minha mãe. O
chefe dele, que era oficial da Marinha, fecha um contrato nos Estados Unidos
de uma capacitação para os nossos oficiais brasileiros para ir para os Estados
Unidos fazer um curso de três anos. De castigo, meu avô manda minha mãe ir
para os Estados Unidos ser empregada doméstica nessa família. E aí ela já
disse para o que veio. Ela começou a observar que as empregadas domésticas
aqui no Brasil bebiam leite e lá não tinha... Então dentro da forma dela e do
jeito dela, ela fazia encontro das empregadas domésticas no Bronx e no
Brooklyn, sobre a forma de viver. Como ela foi sob autorização do juizado de
menores, quando acabou o curso, ela teve que voltar. Mas você imagina:
hoje, qualquer brasileiro ou brasileira que vá para os Estados Unidos três
anos para estudar, para fazer alguma coisa, já dá um status, ainda, para nossa
sociedade. Você imagina isso na época da Segunda Guerra Mundial, essa
semi-analfabeta voltar falando inglês à moda caipora, mas que se
comunicava!” (FERREIRA, 2017, s.p.)
A forma como Vanda lembra da história de sua mãe, como alguém que, desde
muito jovem “já disse para o que veio”, dialoga com uma observação interessante
elaborada pela historiadora Claudia Pons Cardoso em sua pesquisa sobre ativistas
Segundo Cardoso,
43
FERREIRA, Vanda. Trajetória de Vanda Maria de Souza Ferreira. Cópia cedida pela autora, s.d. As
fontes escritas, diferentemente das orais, cuja referência consta no corpo do texto, ficarão designadas por
completo em notas de rodapé e na bibliografia final da tese.
124
Também ecoa nesse trecho a história narrada por Neusa Pereira sobre a atuação
de sua mãe em defesa das mulheres que sofriam violência doméstica no morro em que
moravam. Como essas, outras mulheres aparecem nas entrevistas aqui analisadas como
Educação com o apoio da família e dos comerciantes do Saara, que lhe providenciaram
o uniforme e o material escolar “porque eles sentiam muito orgulho de mim, em função
do que eles viveram com meu pai” (FERREIRA, 2017, s.p.). Trabalhou como
professora nas redes municipal e estadual do Rio de Janeiro. Iniciou uma graduação em
1973, interrompida pela rotina de trabalho, mas veio a formar-se pedagoga em 2006
de Janeiro e fundou, junto com José Carlos Brasileiro, à época interno da penitenciária
isso, conta:
anos de 1986 e 1987. Vanda teve uma extensa atuação institucional ao longo da vida.
44
16 anos, segundo José Carlos Brasileiro em entrevista (cf. <
https://www.youtube.com/watch?v=YYNEaT384JA>. Acesso em: 17 jan. 2019).
125
Atua desde 1992 no Instituto Palmares de Direitos Humanos e no Conselho Consultivo
Violência Sexual na Região da Leopoldina - Ramos, Olaria e Penha e, junto com Neusa
mineira, veio para a cidade em busca de uma vida melhor, tendo se estabelecido no
morro do Andaraí, “nas primeiras ocupações de favelas ali naquela área da grande
Tijuca” (BATISTA, 2004, s.p.). Seu pai sofria de alcoolismo e tornou-se ausente. A
mãe era empregada doméstica e sustentava duas filhas (outra irmã de Jurema faleceu na
infância e um irmão foi criado por outra família) com esse trabalho:
“E era um trabalho escravo. Porque, como é que era o trabalho? [...] Minha
mãe saía de casa geralmente às seis horas da manhã e voltava depois das dez
da noite. Então, ela voltava assim, e a gente ficava... parte minha irmã
tomava conta de mim, mas logo depois ela também foi trabalhar fora para
ajudar, e aí, com 17 anos ela casou e caiu fora. Eu digo que ela fugiu da
pobreza” (BATISTA, 2004, s.p.)
Jurema conta que “as madames gostavam de mulheres que dormiam na casa”,
então era comum que sua mãe a levasse consigo para dormirem na casa onde
126
“e aí, a coisa ficou complicada porque ela bebia muito e não tinha muito... A
vida não era assim muito certinha: Ela bebia, ficava mal, aí mudava de
emprego... E nessa história, eu acho que eu morei em umas dez ou quinze
casas no Grajaú” (BATISTA, 2004, s.p.).
Ela conta que, por ter sido uma criança bastante estudiosa, algumas dessas
famílias que empregavam sua mãe lhe compravam uniforme e material escolar. No fim
do ensino básico, Jurema engravidou de sua primeira filha e, após seu nascimento,
uma das primeiras filiadas do Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio de Janeiro. Foi
extensa carreira política: foi assessora parlamentar de Benedita da Silva entre 1983 e
pelo Rio de Janeiro. Passou a integrar o Movimento Negro Unificado no fim da década
presidiu por duas vezes a comissão de direitos humanos da Câmara dos Vereadores e as
do Rio de Janeiro. Seu pai foi operador de som e morreu jovem, aos 30 anos. Sua mãe
foi dada quando criança aos cuidados de uma família que tinha um terreiro de
Candomblé, religião na qual foi formada. Tendo trabalhado como doméstica ao longo
da infância de Lúcia, sua mãe passou a trabalhar no comércio, em uma loja de artigos
religiosos, a partir da influência de uma ex-patroa que se tornara amiga da família. Essa
127
mulher, branca, também incentiva Lúcia em seus estudos e a auxilia na entrada no
mercado de trabalho.
Lúcia conta que se iniciou no Candomblé apenas a partir de seu contato com o
movimento negro, nos anos 1980, apesar de sua mãe ser praticante da religião. Isso
porque seu ambiente familiar – ela era próxima e chegou a morar com a família do pai –
era fortemente católico. Lúcia foi incentivada a cursar vestibular para o curso de
Direito, mas acaba ingressando no de Serviço Social, apresentado a ela pela filha da ex-
patroa de sua mãe: “Cheguei lá, abri a ementa do curso, era: Política, Antropologia,
Ciências Sociais, Direito... Eu falei: ‘Adoro isso aqui. Isso é a minha cara’.” (CASTRO,
Acorda Crioulo, da Cidade de Deus, que se caracterizava por uma atuação social local,
1984 se filia ao IPCN. Ela participa do Movimento pelos Direitos da Criança e entra na
Fortaleza, Ceará, ainda na infância, depois da morte prematura de sua mãe. Ela conta
que seu avô era filho de um francês, de possível origem judaica, com uma mulher negra.
formação de Edna, que chegou a fazer intercâmbio nos Estados Unidos por um ano, na
128
eu entrei no primeiro ano do ginásio, ele fez duas coisas: ele me colocou no
curso de inglês, no Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, e na aula de
datilografia, que era o correspondente ao computador de hoje. Então ele tinha
uma preocupação de que nós tivéssemos habilidades, condições de trabalho e
de sobrevivência, então, aos onze anos eu entrei nas duas coisas, na aula de
datilografia e no curso de inglês.” (ROLAND, 2004, s.p.).
partido, e se muda para São Paulo. Nesse movimento, conta que passa por um “processo
2004, s.p.). Em São Paulo, trabalha como datilógrafa, livreira e se estabelece como
Conhece Sueli Carneiro no início dos anos 1980 e, após algumas iniciativas de
Afro Alafiá. Participa, com Sueli, do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo,
129
Reprodutivos e o Grupo Internacional de Trabalho e Consultoria da Iniciativa
Sueli Carneiro nasceu na cidade de São Paulo em 1950. Sua mãe foi costureira
e, após o casamento, tornou-se dona-de-casa. Seu pai era trabalhador rural em Minas
Gerais e migrou para São Paulo em busca de melhoria de vida. Na cidade, veio a tornar-
se ferroviário. Em relação a isso, Sueli comenta que sua família “tem uma forte cultura
proletária, herança dessa condição de operário do meu pai” (CARNEIRO, 2004, s.p.):
“Ele vivia, enquanto ferroviário, dentro de uma categoria que era muito
solidária, que era muito combativa, na época, muito gregária. E eu acho que
ele transferiu esses valores mesmo para os filhos. Então, nós somos
culturalmente muito proletários dessa forma: gregários, comunitários;
vivemos em uma estrutura de família extensa mesmo, muito próximos uns
dos outros, em um sistema autoajuda, de compadrio. Então, eu me sinto
culturalmente proletária.” (CARNEIRO, 2004, s.p.)
graduação em Filosofia pela USP e estabelece contato com os negros universitários, que
Lélia Gonzalez, passa a pensar a questão de gênero conjugada à racial. É uma das
130
Participou, ainda, como conselheira, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e
que seus pais tinham pouca instrução do ponto de vista formal, “mas ambos muito
sociedade com o negro” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 53). Conta que foi criada
dentro de uma casa de Candomblé e que seu pai tinha “filhos de santo” de diversos
níveis econômicos.
dos anos 1970, passou a frequentar reuniões do CEBA (Centro de Estudos Brasil-
África), vindo posteriormente a frequentar o IPCN como participante ativa, mas não
Agbara Dudu ao longo dessa década, mas se afastou dele, aproximando-se cada vez
(2005) em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi
(N’BLAC).
131
Alguns elementos da biografia das entrevistadas, em seus anos formativos,
relaciona com a questão do trabalho doméstico na maior parte dos depoimentos. Quase
como Edna Roland e Vanda Ferreira. Mas esse incentivo ganha contornos específicos
nos casos em que as mães das entrevistadas trabalharam como empregadas domésticas:
elas ativamente retiravam suas filhas do alcance do emprego doméstico. É o que revela
“Ela dizia assim: ‘A senhora está contratando a mim, a minha filha não. A
senhora não está pagando uma pra levar duas’. [...] Se ela chegasse na casa de
família e o salário fosse 1500, ela dizia: ‘A senhora vai me pagar 1000, e 500
é a pensão da minha filha. Não mande ela fazer nada porque minha filha só
estuda’.” (PEREIRA, 2017, s.p.)
Essa fala revela não apenas o ato da mãe de Neusa, ao colocá-la fora do alcance
da patroa como adendo da empregada contratada, mas também que esse tipo de atitude
sua mãe separava uma parcela significativa do salário para suprir suas necessidades. O
132
uniforme... Mas, precisamente a partir da quinta série, eu tive uma família
que começou a bancar o material escolar para mim, mesmo. Então, cada ano,
quando eu recebia a lista, eu levava nessa casa e a moça falava: ‘Volta...’
geralmente eu levava na segunda-feira, ela falava: ‘Volta na quinta-feira.’ Aí
chegava aquele monte de material, aquelas caixas de material escolar, de
livrarias. Eu ficava muito feliz.” (BATISTA, 2004, s.p., grifo meu)
Jurema nomeia a atitude de sua mãe: preservação. O medo de que Jurema viesse
a ter o mesmo tipo de trabalho que a mãe fez com que a proibição se desse ao ponto de
vida pessoal de sua filha, como fazer arroz. Como no caso de Neusa, sua ocupação
única deveria ser o estudo, e apenas nessa atividade os patrões poderiam se envolver,
contornos na medida em que a patroa que contratava sua mãe tornou-se amiga da
“Essa mulher, então, resolve que a minha mãe não vai ser mais empregada
doméstica, que ela vai arrumar um emprego no comércio, porque como
empregada doméstica ela não conseguia conciliar, viver a família e o
trabalho. Aí, ela pega e aluga um quarto na Tijuca, e aí, minha mãe vem,
pega a gente e leva para esse quarto na Tijuca.” (CASTRO, 2003, s.p.)
Essa mulher branca, chamada Maria Regina, arruma um emprego para a mãe de
Lúcia e, segundo o depoimento, é ela, e não sua mãe (como nos casos anteriores) que
“Ela então arruma esse emprego, e, depois ela decide, no meu caso foi ela
que decidiu, que eu não podia seguir o mesmo caminho da minha mãe. Ela
disse: ‘Não. A gente tem encontrar uma forma de você estudar.’ Então, ela
pediu a um afilhado de casamento que me arrumasse um emprego no
escritório. Porque primeiro ela pediu para esse casal que arrumou esse
trabalho para minha mãe, para arrumar um para mim. Aí eu comecei a
trabalhar nessa loja, na fábrica. E aí ela via que não ia conciliar o tempo de
estudo e a fábrica. Então eu comecei a trabalhar na fábrica, e quando
começou o ano letivo ela achou que não ia dar certo, aí convocou um outro
parente, um afilhado de casamento que tinha um escritório, que era corretor
de imóveis. Então eu trabalhei, aí eu saí da fábrica e fui trabalhar com ele.
133
Tem um período de meio ano, que eu saio daqui para lá e a situação fica
difícil pra caramba, porque mesmo a gente trabalhando, a situação econômica
era muito difícil, e aí ela resolve que para minha mãe não me ocupar com
outro trabalho, ela me bota para fazer um curso de corte e costura, no
Sindicato dos Telefônicos, que era na Moraes e Silva, que é até hoje. E aí, eu
aprendo corte e costura, mas raramente eu costuro, até costuro, mas
raramente. Aí eu vou trabalhar nesse período, e ela obriga o cara a me dar o
tempo para terminar o curso, porque se um dia acontecesse alguma coisa eu
saberia costurar, e aí eu vou trabalhar com esse cara e trabalho com ele um
bom tempo.” (CASTRO, 2003, s.p.).
garantir a subsistência de forma autônoma – em seu caso, o curso de costura faz esse
papel, como um plano de emergência para além dos estudos. É possível compreender
nessa chave também o fato de que muitas das entrevistadas estudaram em escolas
normais, em que as estudantes saíam formadas professoras. Além de ser uma ocupação
feminina comum nas décadas de 1950 e 1960, era particularmente ocupada por
mulheres de camadas médias, em sua maioria brancas, sendo assim, uma ocupação de
empregada doméstica.
emprego doméstico, mas ao trabalho doméstico mais geral, exercido pela figura da
dona-de-casa:
134
Novamente, a autonomia financeira aparece como uma preocupação materna,
vista como incompatível com o trabalho doméstico. Cabe relembrar, nesse ponto, a
trabalho reprodutivo feito no âmbito doméstico por mulheres ora é trabalho não pago
feito pelas donas-de-casa, ora é remunerado, feito pelas domésticas. Essas últimas, no
Brasil é um objeto que revela com clareza a dinâmica co-constituída das relações de
classe, gênero e raça. A especificidade engendrada por essas relações foi analisada de
forma brilhante por Lélia Gonzalez, que viu na figura da mucama a articulação entre
Como o abuso sexual das mulheres negras de modo algum ficou restrito ao período
bell hooks, em artigo sobre intelectuais negras, afirma que o corpo da mulher
negra, desde a escravidão, “tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo
animalística e primitiva” (HOOKS, 1995, p. 468). Essa formulação discursiva atua para
tornar o domínio intelectual um lugar interdito, já que “mais do que qualquer grupo de
mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’”
(HOOKS, 1995, p. 469). Nesse sentido, o incentivo aos estudos dados às intelectuais
135
interdição. Para suas mães, interdito é o lugar do trabalho doméstico, que algumas delas
já ocupavam.
passaram por cursos universitários, algumas das quais chegando ao nível de pós-
notadamente a partir dos anos 1980 (SANTOS, 2011, p. 103). Ele deve esse movimento
a uma busca por “novos ou outros métodos [...] para estudar, pesquisar e compreender
as relações raciais brasileiras, assim como por apresentar propostas para promover a
Neusa Santos Souza (1983) chama de “tornar-se negro” – também é destacado nos
escola ou na família. Lúcia conta que a avó instruía a ela e aos primos quanto à
necessidade de enfrentar o racismo que, de fato, se expressou desde o início de sua vida
escolar:
“No primário ainda, na Tijuca. Éramos os dois negros. O Francisco era classe
média, eu não. Nós éramos os únicos dois negros da sala. Tudo de errado era
o Francisco. O Francisco tinha lápis, tinha borracha, tinha caneta, tinha
hidrocor, tinha tudo isso, mas se sumisse alguma coisa, era o Francisco. Já
havia uma clara diferença. Eu podia não dar o nome de racismo, mas já sabia
que essa diferença era grande. E lógico, você vai sendo rechaçada, vai
criando os conflitos, os problemas... Por exemplo: Eu tinha uma vizinha de
origem alemã. Minha primeira briga na escola foi por causa dela, que
45
Para uma visão comparada das trajetórias das entrevistadas, conferir anexo A, ao fim deste material.
136
resolveu que eu deveria sair da cadeira onde estava sentada para ela sentar.
Eu disse: ‘Não’. E ela disse: ‘Porque você já comeu lá em casa, você mora na
casa de cômodo, porque você é preta, porque você é isso...’ Peguei a cadeira
e joguei nela. Só isso que eu fiz. Era o mínimo que eu podia fazer. Depois
peguei a cadeira de volta e sentei.” (CASTRO, 2003, s.p.)
“Meus pais sempre nos alertaram aos filhos que seriam discriminados, que
sofreriam processos de discriminação. Então eles não tinham grandes
elaborações de como, o que fazer com isso. Mas nós sabíamos que não
poderíamos nos deixar ser humilhados. Então, em geral, uma agressão racial
a gente deveria responder de qualquer maneira, fosse inclusive de forma
violenta. Então a minha mãe dizia: ‘Se chegar chorando em casa vai apanhar
de novo’. Então tinha que reagir. Cada um que fizesse como pudesse, mas
tinha que reagir. E em função disso eu me tornei uma menina bastante braba,
porque eu tinha mais medo da minha mãe que do racismo. [riso] Minha mãe
era terrível, e ela batia sem piedade. Então a instrução era mais ou menos
essa: ‘Tem que responder, tem que reagir. Não pode se deixar ser humilhado.
Então se não der para responder na palavra, resolve no braço.’ Era mais ou
menos esse tipo de pedagogia. As agressões eram constantes. A partir do
momento que a gente entra para a escola, a gente começa a viver. Eu me
lembro que a partir dos seis anos de idade, que eu entrei para a escola que
começa a aparecer: ‘Negrinha! Cabelo de bombril! Pelezinho!’ Todo o tipo
de agressão, e eu não tinha dúvida: quando não tinha argumento eu descia o
braço, numa boa. [riso] Numa boa. Essa coisa de: ‘Somos negros e nós temos
que...’ também tinha um outro tipo de instrução, que é muito comum nas
famílias negras quer dizer: ‘Nós somos negros, nós somos visados, então nós
temos que fazer tudo melhor, temos que fazer tudo muito bem feito para não
dar elementos para que nos discriminem.’ Então também essa exigência de
que tínhamos que fazer as coisas muito bem feitas, porque “somos negros e
se não fizermos, seremos discriminados”. (CARNEIRO, 2004, s.p.)
outra forma na fala de Neusa Pereira. Ela conta que era muito aplicada e empolgada
com as atividades escolares, mas que viveu um episódio de racismo por parte de uma
professora de história:
“E ela era nordestina! Nordestino não vê sua cor, ele só é nordestino, né? Não
vê sua origem... E muito racista! Ela parou perto de mim uma vez, foi na
minha mesa... Ela estava dando aula de formação do povo brasileiro, pra você
ver como marca. Aí ela diz: ‘Para o Rio de Janeiro vieram os bantos. Pretos,
muito pretos!’ Eu nem era preta, muito preta, nem tinha consciência disso
ainda. Aí ela dizia pra mim: ‘Pretos, muito pretos, muito feios! Nariz
atarracado, testas enormes!’ E a gente tinha que decorar isso pra escrever na
137
prova depois. ‘Burros!’ Eu era a primeira aluna da turma, ela não estava
falando nada comigo... (tom irônico) Quando eu saí da sala para alguma
coisa, tinha uma menina judia, que ficou minha amiga muito anos, ela falou
assim: ‘Neusa, ela falou contigo...’ Eu era a única preta da sala! ‘Comigo?’
(risada) Ela disse: ‘É, ela falou contigo... Presta atenção’. Aí ela me alertou,
porque ela estava acostumada a sofrer. E ela vinha de uma família onde isso
era bem explicitado... Pra mim, a minha mãe sempre me dizia ‘Cuidado para
não ser expulsa da escola’. Porque se você era expulsa de uma boa escola,
desse nível, diziam: ‘Vai sujar sua caderneta’. Você não conseguia vaga em
mais lugar nenhum. Não podia pagar! (PEREIRA, 2017, s.p.)
escola. Era necessário, segundo a orientação da mãe de Neusa, preservar a vaga naquela
uma consciência racial mais tarde, também no ambiente escolar, mas onde ela atuava
como professora:
“E [eu] era toda embranquecida, cabelo de henê até aqui, essas coisas todas...
Quando eu conheço um engenheiro da Petrobrás, era o período da ditadura e
com dois meses de namoro ele diz pra mim assim: ‘se eu quisesse namorar
alguém de cabelo liso, eu não ia procurar uma negra’. E eu não entendi o
quanto esse homem era importante, o quanto esse homem queria a equidade
de gênero e raça. Eu me afastei dele. Porque a escola que eu dava aula em
Rocha Miranda éramos 70 professoras. Nenhuma solteira tinha namorado que
tinha carro. E eu apareci na escola com um homem de carro! Fusca, que era a
grande... era o carro do ano naquela época! (risos) Então as abordagens eram
sempre preconceituosas. [Diziam:] ‘Você não tá vendo que ele não quer nada
com você?’ E quando ocorre isso, eu não tive coragem de contar e todo
mundo começou de tititi na escola. ‘Vai ver que ela já está grávida! Também,
como pode?’ Essas coisas todas. Mas aí minha irmã do meio estudava no
(inaudível) e o professor dela de história estava dando o movimento Black
Power nos Estados Unidos e os povos de libertação de Angola. [...] Quanto
mais ele tentava abordar mais eu me afastava, pulava muro... [...] E a minha
irmã que vai e fala, e eu gostava muito dele, muito, muito, e o retorno ao
namoro foi eu ficar Black Power. Então eu fico Black Power em 1970. E ele
traduzia muito os livros, que a maioria tudo era em inglês. E eu começo a
ressignificar tudo que eu tinha passado. Que ele me ouvia muito, né? E ele
dizia assim: ‘Você tem um papel muito importante. Você é uma educadora. E
como você tem o dom de passar as informações, você tem que passar
correto’. E aí eu começo a mudar as minhas aulas lá em Rocha Miranda, com
meus alunos, trabalhando só os sambas-enredo, pegando só as turmas
renitentes, aquela que ficava três, quatro, cinco anos... e no final do ano todo
mundo feliz, porque já sabiam escrever.” (FERREIRA, 2017, s.p.)
138
Na experiência de Vanda, os relacionamentos amorosos têm um papel
importante: eles passam pela questão afetiva, por sua concepção de beleza e sua
autoimagem, mas também pelas representações projetadas sobre ela, enquanto mulher
autoimagem, mas de seu papel como educadora, como parte de uma geração nova de
professoras que atuariam no avesso das práticas racistas relatadas pelas outras
entrevistadas.
Cabe ainda observar o relato de Jurema Batista, para quem a valorização de uma
formação escolar e acadêmica foi acompanhada de uma visão que ignorava o racismo
139
pertencimento comunitário e, muitas vezes, estimulando o envolvimento ativo na vida
Vale considerar os elementos biográficos observados até aqui à luz das questões
termos de educação, tanto em São Paulo como no Brasil, em 1980 as mulheres negras
significativo: as mães de Neusa Pereira, Vanda Ferreira, Jurema Batista e Lúcia Xavier
como domésticas e as famílias que as empregavam aparece com destaque nas narrativas
das entrevistadas, seja no sentido de impor limites quanto à ingerência destas últimas
sobre as filhas das trabalhadoras, seja na interferência das famílias em algum grau sobre
a educação e o trabalho dessas filhas. Como visto, Van der Linden (2013) argumenta
140
de gênero, sexualidade, raça e classe. Essa questão se agrava quando consideramos que,
muito provavelmente, essas trabalhadoras atuavam por fora das garantias celetistas.
período considerado. Todas elas passaram pela universidade, uma delas tendo tido os
estudos interrompidos pelo trabalho como professora no fim dos anos 1970 (Vanda
Joselina da Silva avançou pelo campo acadêmico, tendo adquirido extensa formação
dúvida significativo que as mulheres que atuaram nas organizações aqui analisadas
tenham constituído essa minoria. Há, assim, algum grau de distância – a formação
anterior, como domésticas – entre as lideranças do movimento e suas bases sociais. Esse
3. Experiência organizativa
141
marcas na forma como irão atuar politicamente mais tarde. Edna Roland e Neusa
Pereira abordaram essa experiência em suas entrevistas. Para melhor analisar esse
na resistência à ditadura.
uma fatia modesta de tais estudos. Segundo Maria Cláudia Ribeiro, “dentro e fora das
16) Com isso, a autora se remete não apenas às mulheres que se engajaram na luta
armada no sentido direto do termo, mas à toda uma rede de apoio e logística tecida por
OLIVEIRA, 2014; RIOS, 2014a e 2014b), bem como a repressão sofrida pelas
Petrônio Domingues consideram o golpe de 1964 como uma “derrota, ainda que
temporária, para a luta política dos negros”, na medida em que “o Movimento Negro
ferrenhamente a ideia do Brasil como uma democracia racial, o regime considerava que
46
Karin Kössling sinaliza que essa visão das associações negras como “introdutoras’ da questão racial no
Brasil e, por consequência, geradoras de conflitos que poderiam desestabilizar a ‘democracia racial
brasileira’” não se inaugura no regime militar, mas se faz presente desde a década de 1930 na perspectiva
de órgãos policiais (KÖSSLING, 2007, p. 9)
142
políticas e acadêmicos envolvidos com o antirracismo no Brasil foram perseguidos,
A perseguição política não evitou que algumas ações tenham sido realizadas,
Janeiro, onde também floresceu o movimento Soul47 ao longo dos anos 1970, com seus
(DOMINGUES, 2007, p. 12). Por outro lado, negros e negras se engajaram na luta
armada, embora isso não tenha significado uma presença contundente da pauta sobre
na vida de todas/os aquelas/es que nela bravamente se engajaram, questão que aparece
no depoimento das entrevistadas desta pesquisa. Quando Neusa Pereira fala sobre seu
deram a entrada, eu era persona non grata e esse título me acompanhou um certo
tempo, depois eles esqueceram de mim...” (PEREIRA, 2017, s.p.). Questionada sobre
“Do DOPS! Depois esse título me largou um pouco. Por causa disso eu vou
também para a universidade particular, porque era mais fácil. Também não
tinha dinheiro pra pagar, e as universidades particulares naquela época davam
bolsas de estudo para a gente. Aí eu faço uma parte na Gama Filho, uma
parte na São Judas Tadeu e vou pulando assim, até que terminei de me
formar.” (PEREIRA, 2017, s.p.)
47
Na entrevista de Lúcia Xavier, ela diferencia o movimento soul do movimento negro, considerando
que o primeiro se limitava a uma questão de valorização estética da negritude: “Nos bailes não se tinha
discussão, se vivia a dimensão da condição racial em um patamar superior, de... Somos negros, somos
bonitos, somos isso, somos aquilo... Acabou. Dali,é evidente que a gente circula nas atividades do
Movimento Negro, mas não com essa dimensão organizacional, institucional” (CASTRO, 2003, s.p.).
143
Embora não aprofunde seu relato, Neusa conta: “Participei de luta política,
participei de aparelhos ideológicos, dei tiro de bola de gude na cara de cavalo...”. Ela
afirma que chegou a ser integrante do PCdoB antes de 1970. Neusa conta também que
chegou a fazer prova para ingressar no curso de sociologia da UFRJ, mas que, por conta
“Quando cheguei lá um dia não tinha mais a minha turma. [...] E nós éramos
nove, nós tínhamos passado nove. Que era muita gente. Mas nós não
sabíamos que, desses nove, quatro não eram alunos. E aí nossos nomes foram
substituídos e nós perdemos a matrícula. Alguns ficaram lá brigando e eu
falei: ‘Não vou’. Porque eu também continuava entrando na renda de família,
tinha minha mãe... Eu tinha uma filha... Pouca gente sabe, mas ela é minha
filha adotiva e criava o meu primo, que morreu em novembro. E a minha mãe
já tinha tido um derrame. Eu tinha muita gente pra cuidar na minha vida. Aí
eu parei de correr atrás. Muita gente correu. ‘Muita gente’ não, nós éramos só
cinco. Alguns conseguiram reintegração... Estão brigando até hoje por algum
dinheiro aí. Mas eu vi uma coisa muito feia... Aí desisti, saí de tudo. Eles
destruíram um aparelho que tinha em frente à minha casa. Eu morava no
Lins. Eu nunca ouvi tanto tiro na minha vida. E eu tinha certeza que uma das
pessoas que eles estavam procurando era eu. Só que eu estava em frente!
Morava numa vila muito pobre, acho que eles nunca pensaram que eu estava
naquela vila. E o aparelho que tinha em frente à minha casa foi destruído. Aí
eu desisti de tudo... Mas a gente nunca desiste, né? Nunca desiste. Eu tinha
um namoradinho na época que era... ‘Namoradinho’ eu digo não é diminutivo
não... É que éramos jovens, né? Já fui jovem! (risos) E ele era liderança
política em duas universidades: na UERJ, que a ainda era na Haddock Lobo,
e na UFRJ... Também que tinha que ser preservado. Ah, eu tinha que
trabalhar, tinha que fazer outras coisas, sabe? Aí em 70 eu saí de tudo.”
(PEREIRA, 2017, s.p.)
casa, a ameaça sobre sua vida se revela como uma ameaça ao cuidado da mãe e da filha.
144
Nesse trecho, explicita-se o aspecto integrado da classe ao gênero e à raça. Além
em expressão mais precisa, pelo trabalho reprodutivo e afetivo junto à família. Ela
completa:
“E também foi ficando muito pior! Que aí já pegava 1968, 1972... E eu era
muito jovem. Não quis mais. Fui fazer a luta de outra forma. Nas instituições,
nas organizações partidárias... Nunca deixei de lutar até hoje. Até hoje tá na
minha página: Fora Temer! (risos)” (PEREIRA, 2017, s.p.)
Edna, significou o primeiro contato com a luta política de resistência à ditadura. Ela
conta que ingressou na Universidade em 1969, “uma época em que não se podia colocar
altura, estudante de psicologia – propôs que cada turma tirasse uma representação
estudantil para que se compusesse uma chapa para a reabertura do Centro de Estudos de
Psicologia. Nesse processo, Edna foi eleita e passou a integrar a organização estudantil
(ROLAND, 2004, s.p.). Sobre sua atuação nesse contexto, diz ter poucas lembranças:
145
lá, avaliamos que não havia condições de segurança para distribuir os
panfletos, desistimos. Tudo era proibido, você era preso pelos livros que você
tinha em casa. Era uma situação de muito medo. Professores denunciavam
alunos, denunciavam colegas.” (ROLAND, 2004, s.p.).
muito mais severas quando Edna se aproxima da POLOP, tendo sido recrutada por um
colega de suas aulas de francês que veio, mais tarde, a se tornar seu marido. A POLOP
foi uma organização criada em 1961 por militantes que buscavam espaço entre a linha
dos integrantes se une a uma dissidência do PCB no Rio Grande do Sul para formar o
POC (Partido Operário Comunista). Em 1970, uma divisão no POC dá origem à outra
nova sigla já não poderia guardar senão alguns paralelos com a POLOP original”
(ROLAND, 2004, s.p.). Ela conta que foi recrutada pelo futuro marido “no terceiro ano
48
Os fundadores da POLOP, dentre os quais “jovens intelectuais dos meios universitário e jornalístico”
como Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Emir e Eder Sader, criticavam em particular a
perspectiva etapista do PCB, defendendo que a realidade brasileira era plenamente capitalista e, portanto,
não precisaria passar ainda por uma revolução democrático-burguesa, mas imediatamente por uma
revolução socialista.
146
Lênin, ou textos de Emir Sader, os irmãos Sader eram da POLOP. E aí a
gente se reunia em casa, essa coisa toda... Quando chegou em 1973, nós
[Edna e o marido] já morávamos juntos, e aí um dia, voltando para casa, nós
chegamos em casa e a porta tinha sido aberta, arrombada creio. Nossa casa
funcionava como um arquivo da organização, nós tínhamos uma mala com
quilos de documentos considerados clandestinos. E essa mala tinha sido
revirada, tinha coisas que tinham sido reviradas na casa, e nós informamos
então aos companheiros e isso foi considerado como tendo sido a repressão.
A repressão teria entrado na nossa casa. E teve outros companheiros, mais ou
menos na mesma época, se julgou que eram situações semelhantes também.
Teve o Alemão, que hoje é líder sindical, ele era meu companheiro de
organização. Ele julgou que chegou em casa, ele deixava a chave em uma
determinada posição e a chave estava não sei de que jeito. Tudo era muito
assim...” (ROLAND, 2004, s.p.).
A forma como Edna relata a invasão a sua casa e situações semelhantes vividas
por seus companheiros de organização deixa entrever a visão que ela atribui, desde o
presente, à leitura que foi feita dos fatos no passado. “Isso foi considerado como tendo
sido a repressão”, “A repressão teria entrado na nossa casa”, “se julgou” que a chave do
apartamento teria sido movida... Essas escolhas de verbos e tempos verbais demarcam o
caráter suposto de que a repressão tenha de fato executado aquelas incursões, sendo
possível que todos os acontecimentos não tenham tido relação direta com isso. Assim,
organização em si:
“Enfim, a organização achou que pelo menos três diferentes grupos, casais,
estavam sendo vigiados pela repressão e considerou que havia riscos de
prisão. Nesse momento a POLOP vivia um momento que se chamava o
momento do recuo organizado provisório. A avaliação política se fazia era
que a Ditadura Militar tinha condições de eliminar fisicamente a esquerda no
Brasil. E nesse sentido, a tarefa prioritária de todos os militantes era
permanecer vivo. E havendo risco de repressão, havendo risco de prisão, era
um momento que havia muitas torturas, as pessoas quando eram presas... A
POLOP então decidiu, a direção decidiu que não havia condições da nossa
permanência em Belo Horizonte, e que nós devíamos entrar para a
clandestinidade.” (ROLAND, 2004, s.p.)
147
“Eu na época não acreditei muito nessa interpretação dos fatos, eu falei:
‘Poxa, mas se a repressão quer nos pegar, por que não ficou nos esperando?
Se não queria pegar, por que deixou sinais da sua presença?’ Eu achava que
não era muito coerente essa interpretação. Mas os companheiros diziam
assim: ‘Você não tem que ficar cobrando coerência da repressão. Os fatos
estão aí. Há elementos que indicam que há riscos’. Parece que o pessoal da
AP também tinha indícios de que havia movimentações, de que haveria
quedas, como se falava. Enfim, nós ainda permanecemos, eu e meu
companheiro que se chama Antônio Maurício Fonseca de Oliveira – foi meu
primeiro marido –, nós permanecemos ainda cerca de, não sei se um mês ou
dois em Belo Horizonte, já escondidos, não mais morando em nossa casa,
mas eu morando na casa de alguns amigos e ele morando na casa de outras
pessoas, aguardando que a direção da POLOP definisse para onde que a
gente ia. Eu nessa época, na verdade, eu era de uma OPP, Organismo Pára-
Partidário, eu nem era propriamente militante da própria organização, eu
estava na periferia da POLOP. Ele era o meu assistente, ele era o responsável
pelas reuniões. E aí, finalmente a POLOP definiu que nós deveríamos ir para
São Paulo, e que nós teríamos que romper todos os laços com nossa vida
anterior. Isso significava romper relações com a família, com o trabalho, com
os amigos etc. Estabelecer um corte de tal forma que, vivendo em São Paulo,
ninguém pudesse nos localizar e a repressão não nos pudesse atingir.”
(ROLAND, 2004, s.p.)
Popular), ela parece ponderar a possibilidade de haver, de fato, algum risco. Um pouco
mais à frente no depoimento, ela afirma: “Agora, digamos assim, eu posso ter passado a
ser observada e seguida, porque eles seguiam as pessoas durante um certo tempo... Eu
não sei direito, eu nunca soube direito essa história” (ROLAND, 2004, s.p.). Essa
dúvida, esse não saber direito e ter que acatar ordens ainda assim pode indicar um
incômodo com o centralismo no partido, que a levou a cumprir a decisão de deixar sua
casa. Isso aparece quando ela relembra que “nem era propriamente militante da própria
do partido se traduz, enfim, no fato de que “finalmente [...] definiu” sua ida a São Paulo
era a entrada na clandestinidade. Essas relações, que levaram Neusa Pereira a afastar-se
148
definitivamente da luta contra a ditadura, foram postas novamente em jogo no caso de
Edna. Ela conta sobre como se deu esse rompimento com a família:
Nesse trecho, fica claro a forma como o olhar do presente caracteriza o passado:
São Paulo:
149
perdemos todas as relações sociais, todos os laços sociais que a gente tinha.
A única coisa e pessoa que cada um tinha era o outro, e as relações com a
organização, que a gente chegou em São Paulo já tendo pontos para encontrar
com os companheiros.” (ROLAND, 2004, s.p.).
nesse trecho. Eram perdas materiais, inclusive de capital simbólico (Edna deixa o cargo
referentes ao partido. Ela explica que sua situação não era de “clandestinidade
absoluta”, pois não teve que abandonar sua identidade no sentido de mudança de nome,
mas um abandono de aspectos de sua identidade foi demandado, pois não poderia ser
identificada por pessoas com quem tinha quaisquer tipos de relações anteriormente
Edna conta que trabalhou como datilógrafa e livreira até conseguir um emprego
como secretária bilíngue em uma multinacional, apesar de não ter ideia de como realizar
a função e ter aprendido na prática. Mesmo vivendo como secretária, seu compromisso
“E como era uma época de muito emprego, década de 1970, os salários eram
bons, e aí o meu salário passou a ser considerado muito importante para a
organização. Eu tinha ido para São Paulo para me integrar na produção,
porque eu estava vinculada à Frente de Trabalho Operário, e meu sonho era ir
trabalhar na fábrica. Mas como eu consegui um bom emprego e um bom
salário, a organização não me liberava e não me encaminhava para trabalhar
na produção, era o que eu queria. E eles foram me mantendo no trabalho
burocrático. E eu então, entregava à organização praticamente todo o meu
salário. Era só o essencial para sobreviver, a gente anotava o cafezinho, os
cruzeiros que a gente gastava com cada coisinha, apresentava o meu relatório
dos gastos mensais e o restante do meu salário era todo entregue para a
organização.” (ROLAND, 2004, s.p.)
por cerca de um ano, quando resolveu contrariar o partido alugando uma casa para
150
morar. Comentando sobre suas atividades de militância em São Paulo, ela lembra que
Edna de uma noite que ela e o companheiro passaram em claro, após ver a polícia
entrando na casa de um vizinho, de que “a polícia estava nos cercando, ia nos prender, e
nós íamos ter que enfrentar metralhadoras e torturas, e tudo mais.”. Na manhã seguinte,
violência doméstica. Segundo Edna, “essa foi a situação de maior medo que eu passei
na minha vida e que tudo foi fruto da nossa imaginação, embora naquelas circunstâncias
poderia sem dúvida ser verdade” (ROLAND, 2004, s.p.). Mais uma vez, seu
depoimento revela descrença no real perigo que corria, combinada à ponderação de que
com a repressão fez com que, na visão de Edna, o momento de saída de clandestinidade
2004, s.p.).
como sobreviver, ao que fazer nessa nova fase da vida. Eventualmente, Edna abandona
151
vestibular para o curso de Ciências Sociais na USP, não concluído, e posteriormente
“Aí então, para realizar essa pesquisa que eu começo a buscar o pessoal do
movimento negro. Porque eu queria encontrar sujeitos da minha pesquisa, eu
queria entrevistar, eu queria procurar mulheres negras empregadas
domésticas. E o caminho como eu achei que deveria fazer isso, era através do
movimento negro. Então eu começo a buscar contatos com o movimento
negro, pessoas do movimento negro, começo a fazer minhas entrevistas”.
(ROLAND, 2004, s.p.)
quanto à real necessidade das medidas de segurança contra a repressão, teve impactos
nessa sua aproximação do movimento negro. Ela conta que a pesquisa sobre a temática
racial leva a uma “identificação minha com o movimento, com a temática”, a partir da
152
que começam a lutar por saneamento, por água encanada”, porque “nós, eu e meu
companheiro, a gente não conseguia viver sem ter uma atuação política. Tinha que
encontrar alguma coisa para se sentir vivo, se sentir contribuindo” (ROLAND, 2004,
s.p.). Nessa época, também participou de comitês de apoio às grandes greves do ABC
sindicalistas levou Edna a afastar-se de ambos, “porque eu achei que eticamente era
da década de 1970 resultou em certos critérios éticos e políticos, bem como na definição
a desistir de entrar no MNU, após a conversa supracitada com Miltão: “Porque eu falei:
‘Não. Não quero mais essa prática das organizações dos partidos marxistas, leninistas,
de esquerda... Não quero mais isso. Eu quero outra coisa’” (ROLAND, 2004, s.p.). De
fato, o movimento negro no fim dos anos 1970 havia se aproximado bastante dessa
racial na pauta das discussões” (RIOS; OLIVEIRA, 2014, p. 508). Uma dessas
núcleos em São Paulo e, a partir de 1973, se ligou ao jornal Versus (RIOS; OLIVEIRA,
153
“foi a escola de formação política e ideológica de várias lideranças
importantes dessa nova fase do movimento negro. Havia, na Convergência
Socialista, um grupo de militantes negros que entendia que a luta antirracista
tinha que ser combinada com a luta revolucionária anticapitalista. Na
concepção desses militantes, o capitalismo era o sistema que alimentava e se
beneficiava do racismo; assim, só com a derrubada desse sistema e a
consequente construção de uma sociedade igualitária era possível superar o
racismo” (DOMINGUES, 2007: 113).
afirma que “pela primeira vez no Brasil, a defesa de uma posição quanto à raça e à
construção de ‘uma nova sociedade onde todos realmente participem’, [que] está
Carta:
relações com o que havia vivido na resistência à ditadura e foi motivo de afastamento
154
Embora a proximidade do MNU com uma perspectiva política socialista, em sua
origem, possa ter representado uma situação difícil na trajetória de Edna Roland, a
verificava, por exemplo, em debates ocorridos no IPCN (CASTRO, 2004, p. 2-3). Sueli
Carneiro, em seu depoimento, afirma que a perspectiva do MNU que articulava raça e
classe “situa, traz um nível de politização maior para o debate racial e situa o
movimento negro em uma perspectiva mais à esquerda, em uma visão mais de esquerda,
que eu acho que foi a influência fundamental de toda a militância da minha geração”
(CARNEIRO, 2004, p. 7)
e alguns partidos no processo de abertura política”, mas estava “longe de ser dominante
na esquerda nacional” (RIOS, 2014b, p. 51). Flávia Rios identifica uma “baixa
caráter não-classista” – tendo classe aqui um sentido mais restrito do que aquele que
nunca deu apoio ao Movimento Negro. Nunca. Não teve ninguém da esquerda que
dissesse: ‘Esse é um movimento que nós devemos apoiar’.” (CASTRO, 2004, p. 7).
155
“o que eu tenho percebido é uma tentativa por parte da esquerda em geral de
reduzir a questão do negro a uma questão meramente econômico-social. Na
medida em que se liquida o problema da luta de classes, na medida em que
entramos numa sociedade socialista, o problema da discriminação racial está
resolvido. [...] As chamadas correntes progressistas brasileiras, elas
minimizam da forma mais incrível as nossas reivindicações. Eu posso dar
exemplo: há pouco tempo, em dezembro de 78, no Encontro Nacional pela
Democracia, promovido pelo Centro Brasil Democrático, eu estava ouvindo
um dos deputados mais votados, uma das esperanças das jovens esquerdas
brasileiras falando etc. e tal, e essa esperança de um pensamento de esquerda
brasileiro colocou o seguinte: todos os regimes políticos brasileiros se
caracterizam pela institucionalização da repressão social e esta repressão, no
passado, se dera conta o índio e contra o negro, e no presente se dava contra a
mulher e os pobres. Bom, eu me inscrevi evidentemente, [...] perguntei pro
tal deputado como ele explicava que no dia 7 de julho daquele mesmo ano
nós, os negros, estivéssemos reunidos nas escadarias do Teatro Municipal de
São Paulo fazendo um ato público contra a discriminação racial e por que
determinados setores da sociedade brasileira estavam aí brigando em função
das leis que o governo pretendia impingir ao índio, no sentido de jogá-lo na
mesma situação que jogou a nós negros com o 13 de maio. [...] Nós
constituímos a maioria da população. No entanto, ninguém levantava a
questão do negro”. (GONZALEZ, 2018i, p. 84-85).
relação à dimensão econômica, traduzida imediatamente como “de classe”. Por isso,
em que participaram (conferir anexo A), destacarei aqui alguns aspectos dessa
156
contrários em relação a outro grupo social, caracterizando-se a formação da consciência
Como afirma Joselina da Silva em entrevista de meados dos anos 1990, “às vezes fica
depoimentos se dá não apenas pelo impacto que exercem subjetivamente nas mulheres,
Pereira traz uma série de questões importantes nesse sentido. Ela conta que,
negro, porque:
“Eu fui educada de uma forma e ali eu vi algumas coisas que eu não gostava.
Muitos homens... As mulheres sempre em papéis... colar cartaz, fazer café...
E muito palavrão! Eu tinha pavor de palavrão. [...] Eu tinha pavor, eu fui
educada assim. Eu fui educada pra ser uma mocinha de bem, professora,
educadinha... E era muito palavrão, muita coisa, eu levava cada susto! Mas
depois não era nada disso, não era o palavrão, era a postura masculina mesmo
que me incomodava. Eu vi mulheres sendo sentadas à força: "Senta aí, cala a
boca!" [...] Eu vi umas coisas que eu... Não é o meu lugar. Sempre passei por
ali e até hoje minhas lembranças não são muito boas”. (PEREIRA, 2017, s.p.)
49
Me refiro especificamente à lesbofobia porque nenhuma das entrevistas referiu-se à bissexualidade.
157
Em “Gênero, Raça e Ascensão Social”, Sueli Carneiro responde a um texto
bastante ofensivo de Joel Rufino dos Santos, em que compara mulheres negras a Fuscas
e brancas a Monzas – como se estas últimas fossem um objeto que evidenciasse status
Sueli aponta que “o texto explode também em ódio pelas mulheres brancas”,
Vale frisar que, embora a masculinidade não seja “uma entidade fixa encarnada
que são realizadas na ação social”, conforme Raewyn Connell e James Messerschmidt
(2013). Essa autora lembra que o conceito de “masculinidade hegemônica” não pode ser
masculina” exaltados – pela igreja, pelo Estado, pela mídia – em contextos sociais
158
ocorrem negociação, tradução e reconfiguração” (CONNELL; MESSERSCHMIDT,
Santana, chega a afirmar que o motivo de não ter permanecido no movimento negro foi
que “o assédio sexual era um problema gravíssimo” (SANTANA apud LEMOS, 1997,
p. 52). Ela completa com o seguinte: “Aí você ajeita a mesa, você põe o microfone e
alguém vai falar. [...] achava isso uma prática inconcebível [...], quer dizer, qual é a
52).
Essa divisão de tarefas por gênero no interior das organizações é outro ponto que
aparece em muitos relatos. Em relação a isso, Joselina da Silva afirmou que as mulheres
negras
“entendem que passar um pano sobre uma mesa para organizar uma reunião é
um ato tão político quanto sentar e fazer um discurso. Só que como vivemos
159
numa sociedade machista o que é entendido é o seguinte: as mulheres limpam
a mesa e os homens fazem o discurso. A nossa tendência, a nossa postura é
mudar isso e estar o tempo todo atentas para mudar, porque senão você acaba
reproduzindo isso de uma forma, sem perceber você acaba arrumando a casa
para as pessoas dançarem” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 57).
muito no movimento negro”, porque “há uma tendência muito grande a que os
oprimidos oprimam os mais oprimidos.” (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 57). Essa
“tendência” foi explicada por Angela Davis de maneira muito instigante em conferência
a reprodução da violência contra as mulheres por parte dos homens negros, é necessário
constituídas de gênero, raça e classe – o que fica patente no Brasil à luz das estatísticas
sobre o genocídio de jovens negros, em sua maioria homens, pelo Estado. Nesse
de punição.
dominantes. Lúcia Xavier conta que, em sua experiência no movimento negro, esse
50
A tradução da conferência transcrita está disponível em: <https://lucianagenro.com.br/2017/07/o-
discurso-completo-de-angela-davis-na-ufba/>. O vídeo da conferência está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=2vYZ4IJtgD0&feature=youtu.be>. Acesso em 22 jan. 2019.
160
aquela célebre piada, de que já é negro e ainda por cima homossexual, para
não dizer que era negro e ainda por cima veado. A gente ficava todo mundo
chateado com a história, mas a discussão sobre a homossexualidade nunca
entrou.” (CASTRO, 2003, s.p.)
impactante no relato de Neusa Pereira, quando conta sobre sua atuação no CEAP:
“Eu tava no CEAP e minha namorada ia junto, participava. Ela não era do
CEAP mas ela participava de algumas discussões, dos encontros, etc. E era
uma mulher bonita. Os caras chegavam em cima, na maior cara de pau! ‘E aí,
Neusa, rola alguma coisa com a Fulana?’ Eu dizia: ‘Pergunta pra ela. Ela que
tem que te responder’. Eles tinham a cara de pau de ir lá mexer com ela,
entendeu? Então sempre foi uma relação de profundo... De muito desrespeito
com a gente. Nós sempre tivemos muito embate, mesmo dentro do CEAP.
Muitos! Por sermos mulheres, pelo grupo [de mulheres do CEAP], na época,
ter uma, duas, três lésbicas. Uma era meio enrustida [...] Agora que ela fala
mais de peito aberto, mas tinha lá seus motivos pra... Dentro, com a gente
não, entendeu? Dentro do CEAP não, mas pra fora ela mostrava muito pouco.
Mas eu e Joselina [da Silva] sempre fomos de dizer: ó, o caso é esse! ‘Ah, é
sua irmã?’ Não, é minha namorada! Naquela época tinha a tal da prima...
Todo mundo tinha uma prima que não desgrudava da prima! ‘Ah, é sua
prima?’ Não, é minha... Eles já sabiam que era namorada! ‘Ah, aquela sua
prima...’ Não é minha prima não, é minha namorada! Dizer isso era um soco
na cara deles, eles não aturavam, mas muito duro mesmo! (risos) A misoginia
era... é um negócio muito sério. Eu te juro: eu queria ser homem por um dia
pra entender a misoginia. Não queria ser homem pra mais nada não! (risos)
Mas só pra entender a misoginia, eu queria.” (PEREIRA, 2017, s.p.)
trazendo, por um lado, uma perspectiva articulada entre ambas, mas não chegando a
interessante, ainda, a forma diversa como Joselina da Silva relembra como era tratada a
“Do grupo de cinco, três mulheres são lésbicas e toda a entidade sempre
soube que elas são lésbicas e que traziam as namoradas. Nunca ninguém
falou nenhuma piada pra elas. É claro que a gente sabe que por trás devem ter
os mais incríveis comentários, porque infelizmente vivemos numa sociedade
extremamente discriminatória. Mas, presentemente, o que se normalmente
ouviria numa outra entidade não se ouve aqui. Quer dizer, as namoradas
sempre foram respeitadas da mesma forma como eram as pessoas que
trabalhavam na equipe. [...] Não é que viessem namorar aqui, mas assim
como a esposa do Fulano vem, ou marido de Fulana vinha, a namorada de
Fulana vem, e sempre foi tranquilamente respeitada, como grande ganho na
161
sociedade que a gente vive. Acho que dentro do movimento negro, de um
modo geral, hoje a gente vai ver alguns homens que quando querem atacar o
movimento de mulheres negras atacam por aí: ‘aquilo lá é um bando de
lésbicas, sapatão!’. Mas jamais dizem pessoalmente” (SILVA apud
51
CONTINS, 2003, p. 62).
Joselina traz uma visão diferente, segundo a qual nenhum comentário preconceituoso
jamais fora feito – abertamente. Ao mesmo tempo em que afirma que as mulheres
lésbicas eram respeitadas no CEAP, ela pondera que no âmbito do privado esse mesmo
recurso para “atacar” o movimento de mulheres negras. Vale lembrar que a entrevista de
2017 e a segunda em meados dos anos 1990, quando Joselina ainda atuava no CEAP.
se pode ver, constantes embates. Sobre a forma de lidar com isso, Joselina comenta que,
no CEAP
51
O trabalho de Rosália Lemos menciona um caso sobre o qual não encontrei evidências em outras
fontes, mas que ainda assim cabe mencionar: Ela afirma que foi criada em 1988 a Sociedade Ogboni – em
referência a uma sociedade secreta masculina no contexto da Revolta dos Malês –, grupo formado apenas
por homens negros, em reação à ocorrência do I Encontro Nacional de Mulheres Negras. Reproduzindo
uma visão estereotipada do feminismo, membros da Ogboni teriam classificado o Encontro como “uma
reunião de 'sapatonas'”, numa tentativa de desqualificação e esvaziamento de seu significado político
(LEMOS, 1997, p. 49).
162
Assim, a estratégia adotada, ao menos no caso do CEAP, foi a de “se impor”,
como Joselina como um dos elementos que levaram as mulheres a priorizarem outras
formas de organização, pois, “no caso do Rio de Janeiro, por exemplo, as mulheres
complicações por parte de alguns homens negros. Joselina da Silva conta que, embora
tenha havido encontros de mulheres nos quais homens negros e mulheres brancas
participaram,
ingerência. Esse não conceber se transmuta em não aceitar e invisibilizar esse tipo de
dezembro de 1988 em Valença, estado do Rio de Janeiro, contou com mais de 400
163
mulheres de 19 estados diferentes (SILVA apud CONTINS, 2003, p. 62). Em abril do
ano seguinte, teria sido realizado “pela maioria de homens” o Encontro Estadual do
Movimento Negro do Rio de Janeiro, no qual não se reconhece “este encontro que
acabou de acontecer, organizado pelas mulheres do Rio de Janeiro. Não percebem isso!”
“No segundo encontro, eles já foram com outro diálogo, que era de implodir
o encontro. E eles fizeram – inclusive, do PCdoB, com nome, CPF: Juarez.
Era uma liderança do PCdoB, foi pro segundo encontro, porque lá era aberto!
Era uma colônia enorme e a colônia tava funcionando, ele podia entrar, né?
Entrou na reunião com algumas mulheres, que eram do PCdoB e outras
simpatizantes, dizendo que era pra implodir o encontro mesmo! Combinando
com algumas mulheres que as mulheres tinham que abrir aquele encontro
para as mulheres brancas participarem e pros homens, porque o encontro era
fechado. E que elas votassem em massa nessa hora. Conseguiu até algumas
loucas que foram pra lá e fizeram essa defesa. Uma das defesas era essa: que
a gente ia com as nossas namoradas, por que elas não podiam ir com os
namorados delas? Porra! Simplesmente nossas namoradas era mulheres
negras, eles não! Coisa mais simples de responder, né? E eles queriam estar.
E até de vez em quando a gente deixou eles estarem. Eles e as mulheres
164
brancas. Aí nós começamos a convidá-los e a convidá-las [...] Aí nós
convidamos algum pra tomar conta da creche... (sorri) Pra cuidar das nossas
crianças... Alguns e algumas. Ninguém quis! ‘Você quer mesmo ajudar?
Você é amiga das mulheres negras? Paga a inscrição pra sua empregada’.
Falávamos assim pras mulheres brancas. ‘Libera sua empregada três dias pra
participar do encontro’. Quem liberou? Nenhuma! [...] Isso seria
solidariedade. Isso é sororidade. Nós conseguimos em um pré encontro que
nós fizemos em Moquetá (Nova Iguaçu) que alguns companheiros cara de
pau fossem. “Eu fico com a creche! Eu também fico!” Quando a gente olhava
eles estavam assim na porta (gesto de espionar). E as crianças pulando em
cima da cama. Nunca deu certo. Faz a comida das crianças, prepara um
lanche pras crianças. Isso tudo é forma de estar no encontro. Agora, na
discussão não. [...] Mas tinha um, que ele ficava assim: a gente tava numa
roda aqui e ele ficava em volta. Como se fosse um cão de guarda em volta da
roda! (risos) Em volta da Mandala! [Dizíamos:] ‘O que você ta fazendo aí??’
[Ele:] ‘Não, não! Nada não!’” (PEREIRA, 2017, s.p.)
O homem que fica ao redor das mulheres como “cão de guarda” é a imagem
e/ou pagando-lhes a inscrição do evento. Ela sinaliza que, em ambos os casos, homens
desrespeitar a opção sexual das pessoas, mas acabam pegando por aí para diminuir a
Lúcia Xavier, por sua vez, fala sobre sua experiência no IPCN, afirmando que,
Movimento Negro” (CASTRO, 2003, s.p.). Ela comenta que o impedimento a atuação
das mulheres negras era mais amplo do que a negação dos espaços específicos, mas
165
configurava dentro das próprias organizações mistas um impedimento às mulheres de
“O IPCN sempre teve figuras fantásticas, você convivia com a Lélia o tempo
inteiro, nas discussões políticas, nos encaminhamentos... Mas era
basicamente dirigido por homens [...] Pode ser que hoje seja fácil fazer essa
análise, mas a gente já sabia que não era possível que a direção sempre
estivesse só nas mãos dos homens. Na verdade, quem conduzia a ação eram
as mulheres. Eram elas que estavam lá o tempo inteiro para carregar a
bandeira, para fazer o panfleto... Para organizar os encontros, porque, no caso
do Rio, a gente ainda tinha os encontros estaduais, os encontros de Sul-
Sudeste, depois o encontro nacional... Mas tinha toda essa movimentação
interna que fazia do Movimento essa... Mostrava que o Movimento não
conseguia incorporar a discussão de gênero”. (CASTRO, 2003, s.p.)
Esse teto de vidro das mulheres nas organizações tem grande importância no
“[O CEAP era] uma organização muito grande e com lideranças. E o chefe
maior, presidente, era o Ivanir dos Santos. Criatura controversa... Muito, até
hoje... Mas à época ele juntou muita gente legal. Depois ele mesmo desfez
tudo![...] Mas a gente tinha uma coisa muito legal, ele fazia projetos, não sei
como ele negociava isso – e isso foi uma coisa que nunca ficou cuidado pelas
mulheres negras em lugar nenhum. Você não tinha acesso aos projetos, não
tinha acesso às planilhas... Ou melhor, tinha, numa reunião, te davam uma
folha de papel, não sabia... o que rolava, né? Você não tinha poder financeiro.
Tinha poder político! Mas financeiro, nenhum”. (PEREIRA, 2017, s.p.)
Lúcia Xavier do IPCN. Ela conta que houve uma divergência sobre as contas da
demanda, por parte dos integrantes, de uma auditoria. As lideranças do IPCN, à época
Amauri Mendes e Yedo Ferreira “não concordaram que a gente levasse essa discussão
até o final, porque era irmão brigando com irmão, irmãos agindo contra irmãos”
166
(CASTRO, 2003, s.p.). Ela coloca em questão, então, essa ideia de irmandade à toda
prova:
“a nossa oposição, passou a ser uma oposição ética, uma oposição de que não
bastava só ser negro sofrendo racismo, que nós éramos todos irmãos, mas não
éramos todos tão irmãos assim. Que o nosso compromisso com a nossa
comunidade não podia nos deixar fazer com que aquele espaço, que era um
espaço de recuperação da nossa identidade, da nossa força... Fosse também,
um espaço permissivo. O que eu chamo de permissivo? Qualquer coisa pode
acontecer, porque é meu irmão. [...] Não é porque Fulano era nosso irmão,
porque era muito legal... Que a gente não ia criticar a maneira com que ele se
comportava diante de um processo político e de organização. [...] Somos
todos negros, temos que denunciar o racismo sim, mesmo em situações em
que a pessoa esteja errada, há racismo, a gente tem que denunciar. Mas se ela
está errada, a responsabilidade dela precisa ser levada em consideração. A
gente não pode dizer: ‘Ah, porque todo mundo é negro, então vamos
desculpar...’ Para mim, isso foi crucial para romper com essa fase.
(CASTRO, 2003, s.p.)
década de 1980. Edna Roland conta que essa foi uma das principais polêmicas
enfrentadas pelo Bloco Afro Alafiá, fundado em 1984, do qual ela fez parte ao lado de
167
o acúmulo de experiência organizativa anterior direcionou algumas das grandes
2013, p. 309). Essa questão será detidamente trabalhada no capítulo 3 desta tese.
3.3 Feminismo
que “costuma eleger marcos tidos como hegemônicos em cada período” (FRACCARO,
52
Uma contribuição instigante para esse debate está no livro editado por Cherríe Moraga e Ana Castillo
(1988), intitulado Esta puenta, mi espalda (“Esta ponte, minhas costas”), coletânea que conta com textos
sobre experiências diversas de grupos sociais de mulheres que não se conformavam ao padrão do
feminismo norte-americano hegemônico.
168
2018, p. 10). Nessa lógica, a primeira “onda” feminista no Brasil consistiria na fundação
por Bertha Lutz. Essa organização tinha como demanda central a conquista do sufrágio
feminino no Brasil e seu “núcleo duro” era composto por um grupo “altamente elitista”
(PINTO, 2003, p. 25). A “segunda onda” dataria dos anos 1960, com a problematização
dos papéis públicos e privados das mulheres, e uma “terceira onda” consistiria no
minha). A historiadora Glaucia Fraccaro aponta para o fato de que, no caso brasileiro, a
das financeiras” (FRACCARO, 2018, p. 9). Essa ressalva é importante para superar a
sufragista, além de sua composição social restrita, tinha uma pauta igualmente restrita,
“na medida em que agia no limite da pressão intraclasse, não buscando agregar nenhum
169
tipo de tema que pudesse pôr em xeque as bases da organização das relações
envoltas por certa tensão. Havia uma concepção majoritária de que o feminismo
constituía “uma dupla ameaça: à unidade da luta do proletariado [...] e ao próprio poder
(PINTO, 2003, p. 53). Era comum a reprodução de uma visão estereotipada das
42). O uso desse tipo de adjetivos para a deslegitimação de mulheres também foi prática
movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social consolidada” (SARTI,
2004, p. 42). Segundo Cynthia Sarti, nesse período os grupos feministas alastraram-se
(SARTI, 2004, p. 42). Esse movimento de “onguização” (FONTES, 2010: 236) não se
170
passam também por tal processo, questão que analisaremos detidamente no capítulo
posterior.
Estado restrito. Céli Pinto destaca a criação de Conselhos da Mulher como “a forma
federal, estadual e municipal (SARTI, 2004, p. 42). O primeiro deles foi o Conselho
Estadual da Condição Feminina (SP), criado em 1983. Seguindo Céli Pinto, o CECF
“tinha caráter consultivo e propositivo, não possuía orçamento próprio e era composto
por mulheres do partido vencedor [das eleições para o governo do estado, em 1982].
Desde sua criação enfrentou uma forte oposição de feministas ligadas ao PT e de grupos
Essa forte oposição ocorreu porque o Conselho era visto como uma ameaça à
indicadas pelo partido do governo, o MDB de Franco Montoro, e não a partir dos
movimentos. Edna Roland conta que a composição inicial do conselho, com trinta
mulheres brancas, causou revolta também nas mulheres negras. Contudo, a oposição
Arruda,
171
53
Thereza Santos , que é uma militante histórica, antiga, muito vinculada à
área de cultura, e se considerou que Thereza Santos era o nome que reuniria
todo mundo, teria força suficiente para ser indicada, poderia ser aceita pela
Marta Arruda e teria um perfil político mais adequado. E se conseguiu, então
nesse processo, a indicação da Thereza Santos como titular, e Vera Saraiva,
creio que, assistente social que trabalhava no Hospital do Servidor Público
Estadual de São Paulo, como suplente”. (ROLAND, 2004, s.p.).
Edna conta ainda que, para articular a indicação Thereza Santos e Vera Saraiva
“Porque uma das coisas que as mulheres brancas diziam era: ‘O problema é
que vocês são desorganizadas’. Então nós juntamos várias militantes que
estavam dispersas, individuais ou em vários grupos, e constituímos o
Coletivo de Mulheres Negras. Ele nasce então, muito acoplado, muito
próximo ao Conselho da condição Feminina de São Paulo. Inicialmente
então, ele funcionava no espaço do Conselho inclusive, até fisicamente.
(ROLAND, 2004, s.p.)
por não estarem organizadas. Ora, vimos que as mulheres entrevistadas que figuram
Cláudia Pons Cardoso, em sua tese sobre feministas negras brasileiras, afirma
que a relação das mulheres negras com o feminismo “foi permeada, inicialmente, pelo
53
Thereza Santos nasceu Jaci dos Santos, em 7 de julho de 1938, na cidade do Rio de Janeiro. Atriz e
militante comunista, foi para São Paulo fugindo da repressão da ditadura militar. Na cidade, fundou o
Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) em 1971. Envolveu-se ainda com as lutas de libertação de
países como Moçambique e Guiné-Bissau, onde teria sido treinada guerrilheira. Passou por uma Angola
recém-independente, onde atuou no campo da cultura e de onde saiu, de maneira conflituosa, por motivos
políticos. De volta ao Brasil, reaproximou-se do movimento negro e do nascente movimento de mulheres
negras, tendo atuado como conselheira no CECF-SP para representar esse segmento (RIOS, 2014a).
172
2012, p. 253), de mulheres “louras, sociólogas, ‘doutorólogas’, cabelo vermelho”
também para tal aspecto, citando uma entrevista de Jurema Wernerck, em que afirma
que
de que uma reunião política de mulheres era “coisa de lésbicas”, modo como homens
negros rotulavam espaços exclusivos das próprias mulheres negras, conforme vimos
54
“Para a direita era um movimento imoral, portanto perigoso. Para a esquerda, reformismo burguês, e
para muitos homens e mulheres, independentemente de sua ideologia, feminismo tinha uma conotação
antifeminina” (SARTI, 2004, p. 40).
173
feminista. Que ser feminista era aquilo. Era falar sobre coisas mais da vida
delas, da realidade delas” (BATISTA apud CONTINS, 2003, p. 70).
“A questão da sexualidade tem que ser discutida num nível muito mais amplo
e não no nível do orgasmo, pura e simplesmente. Estou propondo um
orgasmo muito maior, um prazer e uma felicidade muito maiores”
(GONZALEZ, 2018j, p. 388).
brasileiro na época” consistia em uma “tensão entre aquelas que pensavam que o
feminismo tinha que estar associado à luta de classes e aquelas que associavam o
prazer” (PINTO, 2003, p. 55). Embora Jurema Batista atuasse no campo da esquerda,
sendo filiada ao PT, é possível matizar essa tensão fundamental através da consideração
da tensão racial, que Céli Pinto não aborda significativamente em sua obra. A acusação
(GONZALEZ, 2018c, p. 47, 48). Em entrevista ao Jornal do MNU, em 1991, ela conta
que “no meio do movimento das mulheres brancas, eu sou a criadora de caso, porque
174
elas não conseguiram me cooptar” (GONZALEZ, 2018j, p. 386). É interessante aqui ela
negro – em que pese a entrevista ter sido dada justamente para o Jornal do MNU. Ela
prossegue:
ocorrido no Rio de Janeiro em 1979, que traz à luz um aspecto diferente daquele
colocado por Jurema Batista em relação aos espaços feministas. Jurema ressaltou um
Fica aparente, pelo exposto, que as relações de raça, gênero, sexualidade e raça
pautavam por um eixo prioritário, tendo dificuldades de lidar com a pluralidade que
175
constitui a realidade – isto é, com a realidade de uma totalidade contraditória e com as
político em que se encontravam os movimentos sociais nos anos 1970 e 1980. Além da
importante produção intelectual abordada nesta tese no primeiro capítulo, Lélia foi uma
que seu pai era operário, negro e sua mãe “uma índia analfabeta” (GONZALEZ, 2018i,
p. 82). Lélia foi membro do MNU, onde integrou o Comitê Executivo Nacional;
Quilombo, escola fundada por Candeia que reuniu diversos intelectuais do movimento
como deputada pelos dois partidos. Foi ainda fundadora do Nzinga, coletivo de
machismo no interior do movimento negro, Lélia foi uma das poucas mulheres que
Rios, o fato de ser a mais velha do grupo e já ter um currículo profissional prestigioso
ativistas, que eram mais jovens, mães de família e/ou estudantes sem destino
profissional definido” (RATTS; RIOS, 2010, p. 96). Além disso, sua forma de se
Bairros,
176
“a todos surpreendia pelo comportamento ousado, a risada de corpo inteiro, o
linguajar popular, bem ao modo do falar carioca, salpicado de expressões
acadêmicas, que até permitia que nós, os militantes mais novos,
entendêssemos o que é epistemologia! Na época, não havia ninguém com a
capacidade dela de pulverizar os argumentos racistas nos debates de que
participávamos, de defender a legitimidade e a necessidade do movimento
negro, quando todos os setores auto-intitulados progressistas nos acusavam
de divisionistas da luta popular. Quando a maioria das militantes do MNU
ainda não tinha uma elaboração mais aprofundada sobre a mulher negra, era
Lélia que servia como nossa porta-voz contra o sexismo que ameaçava
subordinar a participação de mulheres no interior do MNU, e o racismo que
impedia nossa inserção plena no movimento de mulheres. Mas através de
muitas e longas conversas e dos textos dela, aprendemos como incorporar um
certo modo de ser feminista às nossas vidas e à nossa militância, articulamos
nossos próprios interesses e criamos condições para valorizar a ação política
das mulheres negras.” (BAIRROS, 2000, p. 342)
águas na trajetória de mulheres negras. Jurema Batista conta que sua tomada de
consciência racial, seu “tornar-se negra” (SOUSA, 1983) se deu a partir um debate
sobre racismo, realizado na universidade em que estudava, que contou com Lélia no
painel:
“Aquela forma contundente com que ela falava, apaixonada. Mas eu briguei
emocionalmente com ela. Eu falei: ‘Essa mulher está ficando doida. Onde é
que essa mulher arrumou isso?’ Foi muita resistência, mas, ao mesmo tempo,
alguma coisa ela falou que tocou tão profundamente, que eu lia muito o
Jornal do Brasil, e eu sabia assim: ‘A Lélia Gonzáles vai estar fazendo uma
palestra na Fundação Getúlio Vargas...’ Eu vinha. ‘Lélia Gonzáles vai estar
fazendo palestra não sei onde...’ Eu ia. Comecei a ir onde eu sabia que ela
estava e ficava ouvindo, aí entendi tudo. Foi exatamente nesse momento que
eu tomei consciência da questão racial. Eu fiquei muito brava, muito brava...
Era uma ‘militante pitbull’, entendeu? Porque eu fiquei com muita raiva.
Depois que eu entendi isso, no processo psicanalítico, inclusive. Porque eu
fui enganada a vida inteira. A vida inteira eu bebi na tal estória de que no
Brasil não tinha racismo. Quando eu descobri que existia, e quais eram os
índices, que naquela época nem tinha muito, não tinha muitas pesquisas com
item cor. Mas quando as pessoas faziam as denúncias e eu comecei a ver,
realmente eu morava, e quantas pessoas que moravam lá, como a polícia
tratava essas pessoas, qual era o nível de escolaridade daquelas pessoas... Eu
via empiricamente. Eu comecei a perceber: ‘Realmente, aquele pessoal está
falando aquilo e é tudo verdade’. E eu vivia ali no caldeirão, sabia que aquilo
era verdade. (BATISTA, 2004, s.p.)
177
Na trajetória de Jurema, Lélia cumpriu um papel de fazer desmoronar o mito da
democracia racial, processo que subjetivamente foi traumático, como conta. No caso de
Sueli Carneiro, a fala de Lélia aparece como uma solução para suas inquietações
políticas:
2010, p. 100). A fala de Sueli Carneiro traz a dimensão política desse impacto: a
de mulheres negras, tendo ela mesma participado de uma das primeiras organizações
178
Esse capítulo se abriu com o esclarecimento de que mulheres negras, nesta tese,
são entendidas como parte integrante de uma classe trabalhadora contraditória, uma
“unidade no diverso” e que, por isso, a experiência dessas mulheres é uma experiência
tese era justamente a de que as mulheres negras fundaram suas organizações específicas
narrativas que remontam o início desse movimento à chegada das primeiras mulheres
feminista e no movimento negro (ALMEIDA, 2014, p. 108). Para além do debate sobre
tipo misto revelam o próprio caráter contraditório da classe, que de modo algum pode
179
analisado foram sujeitos em um processo de extrema disputa no interior da classe
como dimensões separadas (e, portanto, hierarquizáveis) era uma realidade histórica dos
movimentos sociais no período analisado. Foram as mulheres negras – para ser exata, as
formulações sobre sua verdadeira natureza integrada. É o que se viu na obra de Lélia
Gonzalez, assim como nas colocações pioneiras do Combahee River Collective, nos
Estados Unidos.
mulheres negras, em especial aquelas que adotaram o formato de ONGs, sendo ainda
social continua guiando a análise, assim como o aparato conceitual gramsciano, que
180
CAPÍTULO III - Organizações de mulheres negras: espaços específicos, pautas
contra-hegemônicas (década de 1980)
luta política para atender às demandas do grupo social que buscavam representar.
Argumento que essas pautas são específicas, mas também são pautas de classe, ou seja,
que as pautas políticas do movimento de mulheres negras são apenas “específicas”, pois
elas o são apenas na medida em que dizem respeito a um grupo intraclasse, com suas
própria subjetividade dessas pessoas são aspectos da vida conformados por um sistema
capitalista racista e (hetero)sexista, conforme a discussão do capítulo que abre esta tese.
Isso não significa dizer que toda atuação de organizações de mulheres negras é
uma vitória, essas organizações também podem apresentar formas de atuação alinhadas
com uma perspectiva liberal. Ainda assim, considerar as mulheres negras como parte
181
É importante, nesse ponto, retomar Thompson para frisar que classe, aqui, é
pensada como um processo histórico, e não uma categoria estática na qual se pode
pretender “enquadrar” um sujeito social (nesse caso, as mulheres negras). Como lembra
Cinzia Arruzza,
co-constituída por gênero, raça e sexualidade, inclui relações que não apenas as de
exploração (que também são atravessadas pelas relações mencionadas), mas também de
nesse sentido que argumento que as pautas do movimento de mulheres negras são ao
Para compreender como se deu esse processo, este capítulo aborda a construção
dos primeiros espaços específicos de mulheres negras nos anos 1980 e, principalmente,
os temas que embasaram suas pautas de luta política. Assim, as fontes analisadas nesse
182
Brasil contemporâneo, têm identificado diferentes acontecimentos históricos como o
“início” desse movimento: para Edna Roland, o Coletivo de Mulheres Negras de São
(CECF) sem a devida participação de mulheres negras (ROLAND, 2000); para Sueli
1983, que teria inspirado a fundação do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo
(ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 184); para Jurema Batista, o embate entre mulheres
Bertioga, São Paulo, em 1985 (CONTINS apud CARDOSO, 2012, p. 186).55 Kia
perspectivas analíticas, tem a ver com o fato de que as intelectuais negras que os
defendem “falam a partir de distintas posições tecidas por suas histórias e experiências
Caldwell, todas essas intelectuais tiveram participação direta nesse processo histórico, e
55
Em 1985, ocorreu em Bertioga, São Paulo, o III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe
(EFLAC), no qual um episódio envolvendo um grupo de mulheres que não pôde participar do evento
dividiu opiniões entre feministas. Jurema Batista conta que um grupo de mulheres, em maioria negras,
vindo do Rio de Janeiro, foi impedido de participar do encontro por não ter conseguido juntas dinheiro o
suficiente para pagar a taxa de participação, que era muito cara, e acabou realizando um evento paralelo
do lado de fora do Encontro (BATISTA apud CARDOSO, 2012, p. 189-190). Núbia Moreira percebe que
esse acontecimento aparece em todas as entrevistas que realizou com militantes negras (MOREIRA,
2018, p. 72). Para a autora, “a partir do encontro ocorrido em Bertioga, se consolida entre as mulheres
negras um discurso feminista (MOREIRA, 2018, p. 73), que considero, pelos depoimentos realizados, ser
um discurso feminista negro, já consciente das questões de raça e classe envolvidas nessas relações.
Voltarei a falar desse acontecimento no tópico sobre encontros de mulheres negras.
183
suas realidades regionais, organizativas etc. influenciam seu olhar para a eleição de um
“marco fundador”.
cronológico, mesmo porque não é seu objetivo escrever uma história do movimento de
“engajamento das mulheres negras nas lutas gerais dos movimentos populares e nas
e internacional” (CARNEIRO, 2003, p. 120). Segundo ela, foi esse processo que
mulheres negras que hoje se espalham em nível nacional” (CARNEIRO, 2003, p. 120).
Assim, a autora aponta para os seguintes elementos como principais norteadores das
de trabalho;
184
estigmas seculares”, o cerceamento do acesso ao trabalho, o arrefecimento
destacando-se aí: a luta pela inclusão do quesito “cor” nas pesquisas sobre
mulheres negras.
serão os grandes temas analisados neste capítulo, tendo sido elencados a partir do
panorama traçado por Sueli Carneiro e da análise mais ampla da bibliografia e das
tipos de espaço específico estabelecidos por mulheres negras, sendo eles: alguns dos
185
Colin Barker sugere pensar no “movimento social em geral” ao invés de tratar
8). Para a presente tese, é importante diferenciar os movimentos para analisar suas
ainda que em constante relações com outros movimentos. Ainda assim, o exercício de
constituem. Ele ressalta, ainda, que “essa diversidade não significa necessariamente, de
56
Em relação a essa questão, Cinzia Arruzza afirma que nessa lógica de “movimentos paralelos”, “na
melhor das hipóteses, pensava-se em como unir esses movimentos; na pior, os vários movimentos
‘parciais’ eram acusados de dividir a unidade da classe, de expressar tendências liberais ou de distrair a
atenção da questão realmetne central: a exploração” (ARRUZZA, 2018, s.p., tradução minha). A autora
defende que uma “nova onda feminista” na atualidade traz consigo a possibilidade de superar o impasse
dessa abordagem, pois "o movimento feminista está se tornando cada vez mais um processo de
subjetividade de classe com características específicas: antiliberal, internacionalista, antirracista,
obviamente feminista e tendencialmente anticapitalista”, processo que tem variações dependendo dos
contextos nacionais (ARRUZZA, 2018, s.p., tradução minha).
186
Retomando Rosa Luxemburgo, Barker explica que a diversidade de interesses e
como um todo. Assim como uma seção mais “avançada” pode desafiar o status quo,
encorajando seções mais “atrasadas” (aspas usadas pelo autor), “um passo atrás de uma
seção pode também empurrar outras para trás, gerando um movimento de fragmentação
e retiradas” (BARKER, 2014, p. 10). Essa ideia de avanços e retrocessos coletivos faz
1980, a clássica obra de Eder Sader, Quando novos personagens entram em cena
1970 e 1980, Sader identifica e analisa as “novas configurações sociais assumidas” pela
parcela dos trabalhadores que constitui os movimentos sociais, “com novos padrões de
ação coletiva, que nos permitem falar na emergência de novos sujeitos políticos”
(SADER, 1988, p. 17). As derrotas sofridas pelo movimento operário em 1964 e 1968,
no contexto da repressão pela ditadura empresarial militar (MELO, 2014) fizeram com
que o Estado deixasse “de ser visto como parâmetro no qual se media a relevância de
1988, p. 32-33). Desse processo, surgem novos personagens, ou “um novo sujeito social
57
EL PAÍS. Angela Davis: ‘Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se
movimento com ela. 27 jul. 2017. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html>. Acesso em: 18 dez.
2019.
187
e histórico” (CHAUÍ, 1988, p. 10) que, “embora coletivo, não se apresenta como
operaria como centro” (CHAUÍ, 1988, p. 11). Nesse processo, tornou-se central a defesa
tutela e da cooptação e, por isso mesmo, fazendo a política criar novos lugares para
1988, p. 11).
realidade, que implicam diversas atribuições de significado”, que “não são simples
o “novo sindicalismo”.
188
A necessidade de criar novas referências, apontada por Sader, ao contrário de ser
imobilizante, deu origem a novas formas de organização, nas quais o “cotidiano” passou
a ser entendido enquanto lugar de resistência, “base desde onde se gesta um projeto
Assim,
construção política a partir da base são pontos bastante significativos na construção dos
primeiros espaços específicos de mulheres negras. A seguir veremos de que forma esses
1970 parece ter sido o Aqualtune59, fundado em 1978 no Rio de Janeiro.60 Teve entre
58
Eder Sader ressalta a importância de não reduzir o cotidiano a um “lugar mítico” e puro, sendo “melhor
vê-lo em sua ambiguidade de ‘conformismo e resistência’, expresso na ‘consciência fragmentada’ da
cultura popular” (SADER, 1988, p. 141).
59
Sobre a escolha do nome do grupo, Pedrina de Deus conta que “Aqualtune foi a avó de Zumbi. Trazida
como escrava, desembarcou num navio em Recife e foi obrigada a manter relações sexuais com um negro
para reproduzir escravos. Ela, que já ouvira falar em Palmares, fugiu da fazenda em que trabalhava e foi
pra lá, para que o filho não nascesse escravo. Teve uma filha, que é a mãe de Zumbi. Ela trabalhou na
organização política do quilombo de Palmares” (Nzinga Informativo, n. 3, ano I, fevereiro/março, 1986, p.
4). Segundo a pesquisadora da USP Sandra Santos, Aqualtune foi “uma princesa africana, filha do rei do
Congo”, tendo ido para a frente de batalha quando sua nação foi invadida por mercenários. Nesse
conflito, foi derrotada e vendida como escrava, desembarcando em Recife em 1597. Lá, comendou uma
fuga de escravos e ajudou a erguer o Quilombo dos Palmares. Deu à luz três filhos, dentre os quais
Sabina, mãe de Zumbi (SANTOS, 2007, p. 49).
189
suas participantes Azoilda Trindade, Cristina Daniel Cruz, Édila Silva das Virgens,
Estela da Costa Monteiro, Irani Maia Pereira, Léa Garcia, Jurema Gomes da Silva, Oir
Aqualtune, os anos 1980 e 1990 vêem surgirem uma série de organizações de mulheres
Coletivo de Mulheres negras. Esse grupo tinha entre suas fundadoras mulheres negras
(FREITAS, 2017, p. 106), dentre as quais Jurema Batista, Lelia Gonzalez, Geralda
Alcântara, Helena Maria de Souza, Rosália Lemos, Elizabeth Viana, Jurema Gomes,
acordo com Flávia Rios e Alex Ratts, o Nzinga alcançou “algo singular”:
60
O trabalho de Rosália Lemos se refere ao grupo como REUNIMA – Reunião de Mulheres Aqualtune,
conforme depoimento de Suzete Paiva (LEMOS, 1997, p. 71).
61
O primeiro volume do Nzinga Informativo traz um texto intitulado Mulheres negras e guerreira –
NZINGA (1582-1663) com uma breve biografia da rainha Nzinga, de Ndongo (“uma região de Angola”),
afirmando que “seu carisma, independência e inteligência brilhante incentivaram outros vizinhos a
combateres lado a lado com seu povo contra o domínio dos invasores [portugueses]” (p. 2), tendo
sustentato “uma guerra desigual durante 35 anos em defesa da preservação do reino e da liberdade de seu
povo” (Nzinga Informativo, n. 1, ano I, 1985, p.3). Segundo Sandra Santos, Nzinga Mbandi Ngola, a
“Rainha Jinga”, subiu ao trono em 1622 e “declarou que bastava de escravidão para seu povo e chegou a
exigir que fossem repatriados”. Lutou contra a escravidão de seu povo por meios diplomáticos e por meio
de guerra, tendo se tornado uma “figura mítica”, ainda que diversos documentos comprovem sua
existência histórica (SANTOS, 2007, p. 50-51).
62
No item “um pouquinho da nossa caminhada” do texto “O que é o NZINGA? Um coletivo de mulheres
negras, no primeiro volume do Nzinga Informativo, lê-se: “O 1º encontro foi na Sede da Associação dos
Moradores do Morro dos Cabritos, na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Rio de Janeiro. Éramos 8
mulheres: do Movimento de Favelas, do Movimento Negro e do Movimento de Bairros” (Nzinga
Informativo, op. cit., p. 2-3).
190
Rosália Lemos afirma que “o NZINGA alcançou uma enorme expressão,
coletivo de mulheres negras”, um item que diz que enumera alguns dos objetivos
Há alguns trabalhos bastante cuidadosos que buscam elencar a maior parte (se
não todas) das organizações de mulheres negras surgidas no Brasil a partir de fins dos
anos 1970, como o de Schumaher e Vital Brazil (2007). Diferentemente, o objetivo aqui
tanto, há uma fonte bastante interessante, que coloca em diálogo direto mulheres do
63
Ibidem.
64
Ibidem.
65
Nzinga Informativo, n. 3, ano I, fevereiro/março, 1986, p. 3-6. Todas as citações entre aspas a seguir,
até indicação em nota de rodapé, foram retiradas dessa fonte.
191
Lúcia (Nzinga), Pedrina, Vera Lúcia, Suzete (Aqualtune) e Joana Angélica (CEMUFP –
reuniões: “as meninas que apareciam eram todas cantadas...”. Ela diz que a participação
assunto, porque
participavam ou tinham participado de várias entidades para discutir, sem formar mais
mais ser um espaço de reunião de mulheres negras de diversas organizações do que uma
organização política de mulheres negras em termos formais. Por outro lado, Pedrina
“Fomos para a nossa reunião [...] e o Paulo Roberto, Pres. do IPCN na época,
nos disse: vocês se reúnam em outro lugar, porque nós temos uma reunião
muito importante”. Em 1979, reunião de mulheres negras era uma coisa nova,
eles não nos tratavam com a devida importância. O incidente gerou uma crise
66
Ibidem, p. 3.
192
interna. A Suzete, que era uma das que achavam que devíamos brigar pelo
espaço do IPCN, ficou lá, e nós saímos e passamos a nos reunir na casa de
alguém.”
de Suzete, por exemplo, quanto fora dele. Suzete diz que “as pessoas não estavam
entendendo o que era ser Aqualtune – não era fazer parte de outro grupo”. Em
depoimento a Rosália Lemos, ela chega afirmar que “não era grupo, era uma
Suzete afirma que as Aqualtunes ligadas ao IPCN se definiam como “um grupo
de agitação”, mas num formato diferente do tradicional, baseado nas técnicas de Paulo
Freire:
“a todas as mulheres que quizessem (sic) participar sem ter que optar por um
grupo. Elas poderiam se reunir conosco, não como representantes de
entidades, mas como mulheres discutindo a questão da mulher negra.
Passamos a ser um Grupo de Reflexão. Neste momento, nós tiramos uma
Carta de Princípios que definia nossa situação. Formaríamos a REMUNEA –
Reunião de Mulheres Negras Aqualtune –, um grupo de combate ao racismo
e ao machismo, com objetivo de preparar suas participantes para a ação
política, cuja atuação fosse voltada para o fim dessas duas ideologias.
Dispensaríamos o registro oficial como entidade e não seríamos uma
organização negra a mais”.
193
É curioso notar que a “REMUNEA – Reunião de Mulheres Negras” aparece em
trabalhos como o de Sebastião (2007) e Schumaher e Vital Brazil (2007) como sendo a
primeira organização específica de mulheres negras, sendo que esse grupo rejeitou o
Pedrina afirma na entrevista, não se considerava como organização, mas como uma
REMUNEA foi um grupo que formou-se a partir de Aqualtune, grupo mais amplo que
dividiu-se em outros.
objetivo do grupo, que era criar um espaço de reflexão para que “cada mulher que
formiguinha”.
contribuição do Aqualtune foi a organização das mulheres negras, que até então [...] não
194
discussões feitas anteriormente neste capítulo em relação ao “movimento social como
movimento social:
IPCN, e, por outro, o entendimento que era preciso deixar esses espaços para construir
como organizações de movimento negro, vale observar que a experiência das mulheres
processo, parte da experiência de São Paulo não apenas por ser este o lugar em que se
situa, mas também “pelo impacto que os acontecimentos de São Paulo têm tido na
A experiência de São Paulo tem uma relação muito próxima com o Estado,
diferentemente do que foi visto até agora. Em 1982, ocorriam as primeiras eleições
estaduais diretas desde o golpe empresarial-militar de 1964 (MELO, 2014), com vitória
de Franco Montoro, do MDB. Segundo Roland, Montoro “tinha como um dos seus
sociedade” (ROLAND, 2000, p. 238). A criação desse tipo de conselho foi abordada no
capítulo II desta tese, em que se colocou que conselhos da condição feminina foram
criados em todos os níveis, federal, estadual e municipal (SARTI, 2004, p. 42). Dentre
unicamente por mulheres brancas, indicadas pelo estado. Essa configuração levou à
Conselho, e foi nesse processo que se constituiu o Coletivo de Mulheres Negras de São
Paulo, que indicou Thereza Santos e Vera Saraiva para ocupar cadeiras no CECF-SP.
196
No próximo capítulo, será discutida essa relação mais próxima do movimento de
trajetória.
início dos anos 1980, a militante Valdecir Nascimento falou para Cláudia Cardoso sobre
ação foi: denunciar os caras do MNU que se apropriavam das coisas do MNU”
fortalecendo as outras.
197
No contexto do Maranhão, Marta Andrade contou à Cláudia Cardoso sobre
mista do movimento negro, o Centro de Cultura Negra (CCN). Segundo Cardoso, esse
grupo “não foi bem aceito por parte dos militantes”, dizendo, conforme o depoimento
de Marta, que “Se tinha o grupo de mulheres deveria ter o grupo de homens... na cabeça
deles era: ‘Minha mulher não vai ficar nesse grupo. Se quer namorar comigo tem de
largar essas meninas. Essas meninas são mal-amadas, são sapatão’” (CARDOSO, 2012,
p. 174). O grupo de mulheres negras do CCN foi nomeado Grupo de Mulheres Negras
organizações negras mistas. Na entrevista que concedeu a mim, Neusa Pereira fala de
“Eu, em 1989, fui trabalhar no CEAP e fiquei lá por três anos [...]. Foi um
projeto que eu acreditei, de uma ONG em que eu acreditei. Era uma ONG
que tinha tudo pra dar certo e tinha um grupo de mulheres negras que me
atraiu e tinha um grupo de... uma comissão pra trabalhar com crianças. Com
meninas, outra com crianças, outra com negro, outra com a religião dos
orixás, outra com jornalistas, aliado ao jornal Maioria Falante67... Enfim,
uma organização muito grande” (PEREIRA, 2017, s.p.)
Pela fala de Neusa, percebe-se que o grupo de mulheres do CEAP era um dentre
tantos outros grupos – ou comissões, como ela diz – com temáticas específicas. Como
67
O jornal Maioria Falante foi um veículo de imprensa alternativa com linha editorial voltada para o
combate ao racismo e à discriminação que circulou entre 1987 e 1996, com sede no Rio de Janeiro. Cf.
<http://culturadigital.br/mnupe/2017/04/27/jornal-maioria-falante/>. Acesso em 20 dez. 2019.
198
abordado no capítulo II, Neusa identificava limitações no acesso a decisões e
publicado pelo CEAP, o Programa de Mulheres era composto por cinco integrantes:
Geni de Oliveira Mattos Silva, Jurema Pinto Werneck, Neusa das Dores Pereira,
Joselina da Silva e Josina Maria da Cunha.68 O folheto sobre Esterilização é aberto com
negro.
Vale notar ainda que as cinco mulheres que compunham o Programa não eram
68
CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES MARGINALIZADAS. Esterilização – Do
controle da natalidade ao genocídio do povo negro. [Folheto] Rio de Janeiro: CEAP, 1990.
199
“P: Ah, tá, então tinham outras mulheres que não estavam no projeto...
R: Tinham. Mas não se reconheciam como mulheres. Até atendiam o
telefone: ‘Alô? É pro grupo de mulheres? Mulheres, estão chamando vocês!’
(risada) É muito interessante isso.” (PEREIRA, 2017, s.p.)
movimento negro, mas não se engajavam diretamente com as questões específicas das
mulheres negras, o que se dava, na análise de Neusa, porque “não se reconheciam como
ou uma perspectiva feminista não era absoluta entre as mulheres do movimento negro
Além desse distanciamento de algumas mulheres, havia ainda outra questão que
as militantes negras em grupos mistos tiveram que enfrentar. Segundo Luiza Bairros,
torno dos limites de atuação delas em organizações mistas. Segundo Bairros, “as
200
fortalecer ainda mais se contasse com a participação das mulheres que
estavam no movimento negro” (CARDOSO, 2012, p. 198).
organizações específicas de mulheres negras que surgiram desde fins da década de 1970
no Rio de Janeiro, mas antes disso outros houve encontros regionais, como o I Encontro
perspectiva de quem a conta, e a questão local tem impacto importante aí. Nesta tese,
São Paulo, assim serão essas as perspectiva com maior destaque aqui.69
Ainda que não tenha tido acesso aos relatórios finais do I e II Encontro Nacional
do Fórum Permanente de Mulheres Negras no 13º Fórum Social Mundial, que ocorreu
69
O trabalho de Cláudia Pons Cardoso (2012) traz perspectivas de intelectuais envolvidas no movimento
de mulheres negras com um recorte regional mais diverso. Também aparecem depoimentos com boa
diversidade regional no livro Histórias do Movimento Negro (PEREIRA, 2013). Um número cada vez
maior de trabalhos de pós-graduação têm se dedicado aos movimentos de mulheres negras com recortes
regionais diversos, com destaque para trabalhos sobre o movimento de mulheres negras da Bahia, do qual
o trabalho de Silvana Bispo (2011) é um bom exemplo.
201
em 14 15 de março de 2018 em Salvador, na Bahia.70 O Fórum é realizado pela
compõem o Comitê Mulheres Negras Rumo ao Planeta 50-50 em 2030.71 Além disso,
uso diferentes fontes secundárias que analisam documentos ligados ao encontro, citados
adiante.
movimento de mulheres negras e sua relação com o feminismo: o III Encontro Latino-
Mesmo que reconhecê-lo como marco fundador não seja consenso, sua importância na
história desse movimento é sem dúvida uma afirmativa compartilhada por muitas.
Vivian Silva classifica o episódio como “o maior dos embates entre o MMN em
70
FÓRUM PERMANENTE DE MULHERES NEGRAS. Avaliação dos 30 anos do I Encontro Nacional
de Mulheres Negras.[Relatoria] Salvador, 13º Fórum Social Mundial, 14 e 15 mar. 2018. Disponível em:
<http://blogueirasnegras.org/wp-content/uploads/2018/03/Relatorio_Final_FPermanente_30-
anos_e_Anexos.pdf>. Acesso em 15 dez. 2019.
71
Segundo a ONU Mulheres, o Comitê Mulheres Negras Rumo ao Planeta 50-50 em 2030 integra uma
parceria de “desenvolvimento de estratégia de comunicação e advocacy público para a priorização das
mulheres negras na resposta do Brasil aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e à Década
Internacional de Afrodescendentes, tendo como referência o Marco de Parceria para o Desenvolvimento
Sustentável 2017-2021”. Integram o Comitê: Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras
(AMNB), Agentes da Pastoral Negra (APNs), Coordenação Nacional de Quilombos, Federação Nacional
de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Fórum Nacional de Mulheres Negras, Movimento Negro
Unificado (MNU) -, entidades negras do Grupo de Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres,
Articulação Nacional de Negras Jovens Feministas (ANJF), Criola, Geledés – Instituto da Mulher Negra e
Ìrohìn. Cf. <http://www.onumulheres.org.br/mulheresnegras/comite-mulheres-negras/>. Acesso em 15
dez. 2019.
202
Jurema Batista conta que o coletivo tentou angariar fundos para pagar as
inscrições de todas, mas que não conseguiu juntar o valor necessário, que era muito alto
Mariana Cestari:
A polêmica, que chegou a ser noticiada pelo jornal O Estado de São Paulo,
em um espaço mais amplo do que o encontro (CESTARI apud SILVA, 2015, p. 158).
Para além dessa questão, a participação das mulheres negras internamente ao encontro
negras e o feminismo, como se pode notar na fala de Luiza Bairros na plenária final do
evento:
203
na sociedade determinada por essa condição” (BAIRROS apud SILVA,
2015, p. 159).
Essa fala de Luiza Bairros dialoga com uma questão bastante importante para
esta tese, quando ela se refere à importância de olhar “o que existe de aparentemente
Caribe é um exemplo vivo das relações sociais contraditórias que constituem-se umas as
outras, criando uma realidade social que não pode ser fatiada, porque é múltipla em si
mesma.
partir de uma perspectiva das mulheres negras do Rio de Janeiro [...] é, antes de tudo,
A análise de Joselina tem um caráter ambivalente: ela fala tanto como intelectual
72
Entre as organizadoras do I Encontro Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro estavam Sandra
Belo, Joana Angélica, Antonia Nolasco, Joselina da Silva, Maria José da Silva e Neusa das Dores Pereira.
O encontro ocorreu no Centro de Formação de Líderes, em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro (SILVA, 2014,
p. 19).
204
Organizadora do I Encontro Nacional de Mulheres Negras. Ela afirma que, apesar das
Como visto anteriormente com Eder Sader (1988), autonomia era uma questão chave
para os “novos personagens” que entravam na cena pública brasileira a partir da década
de 1970; não apenas autonomia em relação aos mecanismos do Estado, mas, no caso
das mulheres negras, autonomia política em relação a outros sujeitos que compunham
anos 1970, esses encontros ocorrem já em fins dos anos 1980, quando, de fato, o cenário
inclusive uma liderança sindical do ABC Paulista concorrendo às eleições diretas para
1988).
73
Luís Inácio “Lula” da Silva, torneiro mecânico e liderança sindical nas greves de 1978-80 concorreu à
presidência nas eleições de 1989, tendo passado ao segundo turno e ficado em segundo lugar, perdendo
para Fernando Collor de Mello, do Partido da Renovação Nacional (PRN).
205
“a preparação do encontro, que durou quase um ano, realizou reuniões,
debates, seminários, festas, oficinas, mesas redondas e minicursos em
diferentes bairros da cidade e em municípios diversos do Estado do Rio de
Janeiro. Por vários meses, em comunidades e cidades periféricas da Capital,
as integrantes foram sendo inseridas no decorrer de reflexões e grupos de
estudos [...]. Essa performance fez alargar, consideravelmente, o número de
integrantes nas várias comissões, garantindo mais de duas centenas de
participantes durante o conclave”.
“tradicionais”, mas festas e oficinas foram a fonte a partir da qual as próprias comissões
Joselina, sobre a importância de uma experiência vivida por mulheres negras que
ocorreu no mesmo ano de 1987. De acordo com ela, de início foi perceptível a ausência
de debates sobre raça e racismo na pauta do evento, o que acabou levando a que Sandra
Belo, por sugestão de Joselina, organizasse uma oficina com a técnica da Linha da Vida,
“muito utilizada pelo movimento feminista” (SILVA, 2014, p. 21), para reunir as
206
possibilidades de análise distintas para o processo histórico que essas mulheres viviam.
operária inglesa, Thompson diz que “a classe acontece quando alguns homens [...]
sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos
interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”, é possível fazer uma analogia
mais ou menos direta com o que acontece no processo histórico aqui analisado. Assim,
as mulheres negras teriam identificado seus interesses em comum enquanto grupo e, por
outro lado, teriam percebido a divergência de seus interesses em relação, por exemplo,
por mulheres negras que atuavam como intelectuais orgânicas em movimentos sociais
construção de espaços e organizações específicas. Contudo, isso não significa dizer que
essa consciência constitui-se em uma consciência “fechada”, como se esse grupo social
classe. É uma experiência específica, mas que faz parte de um todo complexo, dinâmico
e contraditório.
207
Essa questão pode ser melhor compreendida se analisarmos a forma como a
relacionadas aos encontros. Segundo uma militante negra entrevistada por Núbia
Moreira,
e negro, que não participaram do evento, ela ressalta que “autonomia era a palavra de
ordem” (SILVA, 2014, p. 19), Há, portanto, nesses primeiros encontros, decididamente
organizações políticas mistas. Contudo, esse movimento não significa que o sujeito
“mulheres negras” seja um grupo homogêneo, nem que escape ao caráter contraditório
208
Núbia Moreira analisa esse depoimento dando ênfase às “demandas de
localização da zona de moradia” (MOREIRA, 2018, p. 84). Minha análise, por outro
caráter contraditório da classe social. Cabe retomar, aqui, algumas questões trabalhadas
das mulheres negras se explica pela diversidade de formas de trabalho, tanto no sentido
das “formas intermediárias” analisadas por Marcel van der Linden (2013) quanto no
tanto sujeito social “mulheres negras” guarda particularidades como grupo intraclasse
sujeito social “mulheres negras” é fundamental para uma análise aprofundada e acertada
Colin Barker.
209
1.3.2 Os primeiros Encontros Nacionais de Mulheres Negras
abolição:
indicando as diversas visões que as mulheres negras brasileiras têm em relação ao seu
74
Um dos principais eventos realizados no país foi a “Marcha contra a farsa da abolição”, no Rio de
Janeiro, em 11 de maio de 1988: “essa Marcha do Rio de Janeiro acabou ganhando repercussão nacional e
internacional, em função do grande aparato militar disponibilizado pelo Exército brasileiro para impedir a
passagem dos militantes negros pelo busto de Duque de Caxias” (PEREIRA, 2013, p. 305-306).
210
alternativa de desenvolvimento; d) encaminhar uma perspectiva unitária de luta dentro
g) elaborar propostas políticas que façam avançar a organização das mulheres negras,
Torres Belo, Jurema Gomes, Hildésia Alves Medeiros, Helena Maria de Souza, Maria
Lúcia de Carvalho (Malu), Maria José Lopes da Silva (Zezé), Neli Adelaide Gonçalves,
Maria Helena Fuzer, Neusa das Dores Pereira, Agnes Consula Joseph Rodrigues,
Jurema dos Santos Baptista, Judith dos Santos Rosário e Joselina da Silva.75
Melo,
movimento de mulheres negras na cena pública brasileira – como fundamental para uma
211
“Lúcia Dutra afirmou que a autonomia e a estrutura política do movimento de
mulheres negras brasileiras nasceu, de fato, com a realização do I Encontro
em 1988, [...] sob o tema ‘A mulher negra e a sua organização’”.77
razão de ser desse evento.78 Segundo seu relatório, o evento “constituiu-se em momento
debates apontaram que, parcialmente, sim, mas que ainda tem-se muito a percorrer”.80
Cláudia Cardoso. Neusa das Dores Pereira, intelectual que também pude entrevistar,
contou à historiadora que o rumo organizativo que o I Encontro tomou divergiu do que
77
Ibidem, p. 11
78
Cabe ressaltar que o evento de 2018 contou com o apoio da ONU Mulheres Brasil, da Embaixada do
Reino dos Países Baixos, da Fundação Ford e do Heinrich Böll Stiffung (Ibidem, p. 3). O apoio dessas
organizações também pode influenciar de alguma forma o teor das discussões e do material de avaliação
produzido. A discussão sobre financiamentos e apoios financeiros às organizações será analisada no
próximo capítulo.
79
Ibidem, p. 3
80
Ibidem, p. 4.
212
proposta da Comissão era uma metodologia de “discussões em pequenos grupos para
Neusa, “Qual não foi a nossa surpresa que, quando chegamos ao Encontro, a primeira
discussão foi regimento interno. E a gente perdeu um dia discutindo regimento interno e
nós não estávamos preparadas para aquilo, justamente porque éramos feministas. E
dentro do feminismo não tinha essa discussão” (PEREIRA apud CARDOSO, 2012, p.
com uma recusa ao feminismo branco e seus procedimentos. Contudo, Fátima Oliveira,
negras e suas diferentes formas de organização política, realidade que, até então, ainda
era percebida como problema. Por outro lado, diferentes concepções de feminismo”
213
O fato de que o I Encontro tenha sido considerado um marco do movimento de
mulheres negras não significa que as discussões nele travadas não tenham tido seus
termos de contexto:
81
Ibidem, p. 11.
214
1986), Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras (Rio Grande do Sul, 1987), o
Gedelés - Instituto da Mulher Negra (São Paulo, 1988), o Coletivo de Mulheres Negras
A fala de Kátia Melo aponta para alguns pontos interessantes. Sua fala é
racismo. O primeiro ponto será trabalhado no próximo capítulo da tese. Com relação ao
82
Ibidem, p. 18.
215
Esse trecho faz lembrar a discussão que Stuart Hall propõe sobre a presença de
um momento de “essencialismo” por que passou o movimento negro em sua luta contra-
hegemônica frente à “cultura dominante” (HALL, 2003, p. 326). Para o autor, é preciso
ter cuidado com esse “toque de essencialismo”, na medida em que ele naturaliza o que é
britânico, "é para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra que
devemos dirigir inteiramente nossa atenção criativa " (HALL, 2003, p. 327-328).
relação à dimensão racial, mas como uma busca de “unicidade” das mulheres negras, na
análise de Núbia Moreira (2018, p. 82). Uma visão homogeneizadora das mulheres
negras, mesmo que se dê com o propósito de criar unidade política e pautas unificadas,
sujeito político “mulheres negras” será uma pauta cada vez mais relevante para o
movimento.
havia sido deliberada no Encontro de 1991. Segundo Núbia Moreira, a plenária presente
no II Encontro propusera “‘um tempo para pensar’ antes da preparação do III Encontro
acerca da organização política das mulheres negras”, com ênfase na discussão em torno
216
“da questão da autonomia do movimento de mulheres negras, quer em relação aos
Uma questão bastante relevante na virada dos anos 1980 para os 1990 no
movimento social em geral foi a adoção, por muitas organizações, do formato de ONG.
Essa questão será tratada no capítulo IV desta tese, no qual serão analisadas
as ONGs Geledés e Criola. Ainda assim, cabe fazer, nesse ponto, uma apresentação em
linhas gerais dessas organizações, na medida em que são citadas no próximo item desta
capítulo.
217
Cardoso, Lucia Regina Brito Pereira, Saionara Santos, Sandra Silveira, Vera Lúcia
Maria Mulher, de 1987, afirma que o objetivo dessas mulheres naquele momento era
“refletir, discutir e até formar um grupo que desse continuidade a uma ação política
grupo tem em cinco linhas de ação: “promoção da igualdade racial; defesa dos direitos
Paulo e teve como membros mulheres como Edna Roland, Maria Lucia Silva, Nilza
Iraci, Sonia Maria Pereira, Solimar Carneiro, Sueli Carneiro e Vanderli Salatiel
com o processo de organização das mulheres negras de São Paulo em torno do Coletivo
Feminina de São Paulo. A organização desde sua fundação se estabeleceu como ONG,
tendo obtido recursos junto a Fundação Ford para estabelecer-se como entidade.
83
Cf. <https://www.fundobrasil.org.br/projeto/maria-mulher-organizacao-de-mulheres-negras/>. Acesso
em 28 dez. 2019.
84
Cf. <https://www.geledes.org.br/geledes-missao-institucional/>. Acesso em 28 dez. 2019.
218
“foi o primeiro grupo de mulheres negras no Brasil a criar um programa de
saúde, que desenvolveu atividades no campo da saúde reprodutiva e
prevenção de AIDS, influenciando diversos grupos a assumirem a temática
da saúde” (ROLAND, 2000, p. 241-242).
O Criola foi fundado em 1992 no Rio de Janeiro a partir do grupo que compunha
o Programa de Mulheres Negras do CEAP, tendo tido como membros Jurema Werneck,
Lúcia Xavier, Geni de Oliveira Matos, Maria Josina da Cunha, Neusa das Dores Pereira,
etc. (SCHUMAHER, VITAL BRAZIL, 2007). Trabalha nas seguintes áreas de atuação:
negras.85
2. Pautas contra-hegemônicas
agora sobre três temas que considerei centrais para o movimento de mulheres negras
força de trabalho via indivíduos e instituições que executam o trabalho de cuidado pago
negras passam profundamente pelo âmbito da reprodução social, da mesma forma como
85
Cf. <https://criola.org.br/?onepage=quem-somos>. Acesso em 28 dez. 2019.
219
os problemas ligados à subjetividade, a serem discutidos, atravessam a construção
dessas relações.
2.1 Saúde
reflexões são escassas, mas deve ser salientado que, nos últimos anos, este tema tem
O tema não tem sido apenas importante no âmbito acadêmico, mas também para
afirmam que a maior parte da publicações sobre saúde da população negra foi
produzida, pelo menos até 2005, por ativistas, destacando o papel das intelectuais
86
O envolvimento dessas “instituições intergovernamentais” e “fundações filantrópicas norte-
americanas” na produção sobre saúde da mulher negra e outras temáticas ligadas ao movimento de
mulheres negras será abordado no próximo capítulo.
87
Uma abordagem panorâmica sobre a saúde da população negra brasileira, com ênfase na saúde
reprodutiva da mulher negra, é apresentada por Fátima Oliveira (2004). Nesse texto, a autora descreve
doenças prevalentes nessa população e analisa a atuação do governo brasileiro, assim como as pesquisas e
propostas sobre o tema.
88
Essa produção procura demonstrar “a importância da variável raça na prevalência entre a população
feminina negra de diabetes tipo II, miomas, hipertensão arterial e anemia falciforme, que podem
promover abortamento espontâneo e maior suscetibilidade a infecções, entre outros problemas” (MAIO;
MONTEIRO, 2005, p. 424).
220
racial nas pesquisas da área de saúde pública decorre do não-reconhecimento do
econômicas pode ser relacionada com o embate entre raça e classe nos movimentos
Segundo Maio e Monteiro (2005), a proposta de uma política com recorte racial
89
Esse quadro muda a partir da segunda metade dos anos 1990, com uma mais ampla aceitação do
entendimento de que políticas públicas racializadas deveriam ser o norte para se atingir justiça social, em
contraposição às de perfil universalista” (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 427). Nesse contexto, agências
do Estado brasileiro como o Ipea e o Itamaraty, jornalistas, economistas, acadêmicos e parlamentares se
envolvem na defesa desse tipo de demana social (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 427). A atuação das
intelectuais negras nesses debates em âmbito internacional será abordada no próximo capítulo.
221
entre os anos 1975 a 1993” (DAMASCO et al., 2012, p. 133). Segundo os autores, as
A pauta da saúde e dos direitos reprodutivos, ainda que possa ser pensada como
específica à luta feminista, ou mesmo com ainda mais especificidades enquanto pauta
2017, p. 41).
Considerar isso não significa adotar uma visão biologizante, que atrele as
entender que se trata de “um fato central da vida humana, [...] sempre socialmente
organizado” (ARRUZZA, 2017, p. 52), isto é, que ocorre dentro de fronteiras colocadas
pelas relações sociais de classe (em sentido amplo). Segundo Arruzza, “os limites
das mulheres negras. Essa subordinação, contudo, não é apenas uma “especificidade”,
mas integra uma organização mais ampla da reprodução social e societal, dizendo
222
Cabe destacar ainda que a questão da saúde reprodutiva era uma agenda
particularmente importante para o movimento feminista desde meados dos anos 1970, o
feminista para atenção à saúde, com ênfase em aspectos de saúde reprodutiva, mas com
Em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM),
em caso de estupro e risco de vida, o direito da mulher optar ou não pela maternidade e
a liberdade sexual” (DAMASCO, 2009, p. 86). Segundo Mariana Damasco, essa pauta
qual o conselho era vinculado, entrando por isso em crise o CNDM na década de 1990.
A temática dos direitos e da saúde sexual e reprodutiva, então, passa a ser discutida
223
Na imprensa feminista, a questão da saúde também aparece como
pesquisa de Viviane Freitas, aparece como o terceiro mais abordado pelo jornal
Mulherio, o mais duradouro veículo da imprensa feminista nas décadas de 1970 e 1980
internacional.
Chagas (FREITAS, 2017, p. 93). O jornal contou com financiamento da Fundação Ford
até 1988, tendo estado vinculado à Fundação Carlos Chagas até 1983, a partir de
época. O jornal “não era ligado a nenhum grupo feminista em particular – essa era a
90
Mulherio, março/abril 1981, ano I, n. 0.
91
Ibidem, “Saúde em debate”, p. 2.
224
linha editorial do jornal” (FREITAS, 2017, p. 95). Na primeira página da primeira
“A pauta do jornal e seus rumos são definidos pelo nosso Conselho Editorial,
composto por 16 mulheres, que têm batalhado pela melhoria da condição
feminina no Brasil, como profissionais e como militantes [...]. Em sua
primeira reunião, [...] o Conselho decidiu que Mulherio não terá uma posição
pré-estabelecida sobre este ou aquele assunto – seja planejamento familiar ou
tendências no movimento feminista. Pretendemos, sim, debater todos os
problemas que afetam a mulher, abrindo espaço para a discussão ampla das
92
diferentes posições”.
Saffioti, Eva Blay, Ruth Cardoso e Lélia Gonzalez – esta última, que conta com uma
coluna sob sua assinatura nos primeiros dois anos de existência do jornal.93
Viviane Freitas, que teve acesso apenas aos primeiros quatro dos 5 volumes publicados
do Nzinga Informativo (assim como foi meu caso), afirma que os principais temas
abordados, segundo sua categorização, foram “comunidade negra”, com mais de 60%
sexuais e produtivos” o sexto tema, com 6% do total, e “saúde” o nono, com 2% dos
Esse quadro, contudo, vai sofrer uma alteração contundente a partir do debate
92
Ibidem, “Nossa pauta”, p. 1.
93
O conselho editorial do número 0 do Mulherio era composto por: Carmem Barroso, Carmen da Silva,
Cristina Bruschini, Elizabeth Souza Lobo, Eva Blay, Fúlvia Rosemberg, Heleieth Saffioti, Lélia
Gonzalez, Maria Carneiro da Cunha, Maria Moraes, Maria Malta Campos, Maria Rita Kehl, Maria
Valéria Junho Pena, Marília de Andrade, Maria Correa e Ruth Cardoso (Mulherio, op. cit.).
225
que marca a virada da década de 1980 para a de 1990. O debate sobre saúde
reprodutiva, que já era central para o movimento feminista, passa a ser lido de forma
volumes I e II, publicados em 1991. O tema saúde constitui uma das linhas de atuação
Brasil’”95, presidida pela então deputada federal Benedita da Silva, que esteve envolvida
Reprodutivos das Mulheres Negras, “para estimular a participação das mulheres negras
1994.96
94
Cf. <https://criola.org.br/?onepage=quem-somos>. Acesso em: 11 dez. 2019.
95
CONGRESSO NACIONAL. Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – criada
através de requerimento n. 796/91-CN. Relatório n. 2, Brasília, 1993, p.1.
96
GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres
Negras Brasileiras. [Folheto] 17 p.
226
2.1.1 A questão da esterilização
específicas de mulheres negras, como a Criola e o Geledés. Jurema Werneck conta que
sua entrada no CEAP se deu por conta de sua militância na área da saúde, tendo a
questão da esterilização importância central nesse processo. Ela atuava como médica em
favelas do Rio de Janeiro pela Secretaria Municipal de Saúde, quando passa a ter
“eu faço uma proposta, faço um projeto que era pra trabalhar contra a
esterilização em massa das mulheres negras e proponho para diferentes
organizações aqui do Rio de Janeiro. Aí o programa de mulheres do CEAP
concorda em desenvolver este projeto e me convida para trabalhar lá.”
(WERNECK apud CARDOSO, 2012, p. 216).
distribuído entre os GAPs e tornado público quando o deputado Luiz Carlos Santos, do
97
Segundo o verbete biográfico de Paulo Maluf elaborada pelo CPDOC-FGV, os GAPs visavam
“integrar estado e comunidade” *Cf. <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/paulo-salim-maluf >. Acesso em: 11 dez. 2019). De acordo com o Decreto nº 13.431, de
21/03/1979, que instituiu os GAPs, cada um desses grupos vinculava-se a uma instituição ligada ao
estado de São Paulo, tais como GAPs de secretarias, de bancos estaduais, de companhias estaduais, etc.
Disponível em:< https://www.al.sp.gov.br/legislacao/norma.do?id=77406 >. Acesso em: 11 dez. 2019).
227
“A população branca corresponde a 55%, a parda a 38%, a negra a 6% e a
amarela a 1%. De 1970 para 1980 a população branca reduziu-se de 61%
para 55% e a parda aumentou de 29% para 38% [...] Enquanto a população
branca praticamente já se conscientizou da necessidade de controlar a
natalidade, principalmente nas classes médias e altas, a negra e a parda
elevaram seu índices de expansão em 10 anos, de 29% para 38%. Assim,
temos 65 milhões de brancos, 45 milhões de pardos e um milhão de negros.
A manter essa tendência no ano 2000 a população parda e negra será de
ordem de 60%, portanto muito superior à branca, e eleitoralmente poderá
mandar na política e dominar postos chaves. A não ser que façamos como em
Washington, capital dos Estados Unidos, que devido ao fato da população
negra ser da ordem de 63% não há eleições” (SÃO PAULO apud
DAMASCO ET AL. , 2012, p. 137-138).
era membro tinha como objetivo “encontrar mecanismos para impedir que a natalidade
138). Apesar de afirmarem que sua preocupação central era “o aumento da miséria do
país”, o receio dos membros do GAP era “a ascensão dos negros e pardos aos mais
outdoors com imagens de uma criança negra ao lado de um cadáver de uma mulher
à questão racial levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
98
As chamadas Leis Jim Crow, vigentes no Sul dos Estados Unidos até 1965, instituíram normas de
segregação racial que incluíam a cassação dos direitos políticos da população negra, além de proibir
casamentos interraciais, segragar transportes públicos, restaurantes, escolas etc. (SOUSA, 2014).
228
e pelo Núcleo de Estudos de População da Unicamp (NEPO) trouxeram dados que
apoiaram as denúncias das militantes negras sobre “planos e práticas controlistas sobre a
“os ‘antinatalistas’ (setores liberais das forças armadas liderados pela Escola
Superior de Guerra, agências do governo norte-americano [...] e economistas)
e os ‘anticontrolistas’ (militares nacionalistas, Igreja Católica e partidos de
esquerda)” (DAMASCO, 2009, p. 97).
antinatalistas e anticontrolistas fez com que o Estado Brasileiro não elaborasse, nos anos
1960 e 1970, políticas públicas de planejamento familiar – o que só foi feito a partir da
antinatalista, que chega ao Brasil nos anos 1960, foi influenciada significativamente
99
Alguns dados relevantes nesse sentido foram que, em 1986, mulheres pretas e pardas recorriam à
esterilização cirúrgica aproximadamente 5 anos mais cedo do que as mulheres brancas; no mesmo ano, os
maiores índices de esterilização do país se encontravam nos estados do Maranhão e Pernambuco, onde a
população preta e parda era majoritária. Damasco afirma que os argumentos das mulheres negras se
basearam em dados como esses, defendendo que as mulheres não-brancas eram mais esterilizadas que as
brancs na época (DAMASCO, 2009, p. 115).
100
O arrefecimento do debate tem relação com a mudança de posição de instituições como a Igreja
Católica “que passou a admitir o planejamento familiar através de métodos naturais” (DAMASCO, 2009,
p. 100).
101
É o caso da Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar (BEMFAM), criada em 1966, cujas políticas
baseavam-se no combate ao aborto através do estabelecimento de convênios com servios de saúde
privado e públicos pelo país. Uma das ações da BEMFAM era o financiamento de cirurgias de
esterilização (DAMASCO, 2009, p. 99). O folheto sobre Esterilização produzido pelo grupo de mulheres
do CEAP afirma que “A BEMFAM [...] teve entre seus quadros o sociólogo Gilberto Freyre, criador da
teoria da democracia racial brasileira” (CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES
MARGINALIZADAS, op. cit., p. 11).
229
pelas políticas controlistas empreendidas pelo governo norte-americano. Vale, então,
olhar atento ao Estado restrito e às motivações dessa política. O autor cita alguns grupos
de assistência para o exterior. São eles: International Union for the Scientific Study of
Population e United Nations Population Division, “que proporcionou fóruns para a troca
mundo livre por ditaduras comunistas” – ameaça essa “mais forte do que nunca”
desenvolvimento se torna uma política de Estado. Foi então que a burocracia estatal
juntou-se aos esforços das fundações e ONGs já ativas nesse campo. Foi também no
230
governo Kennedy que o USAID foi criado (United States Agency for International
de que era vontade das mulheres em todo mundo limitar sua fertilidade; 2) o de que o
argumento de que o controle populacional em países pobres era o primeiro passo para a
396).
controle populacional nos países em desenvolvimento podem ser aplicáveis para outras
1990, p. 386). Segundo o autor, “um racismo feio” era motivação para uma minoria
daqueles envolvidos com controle populacional. Entre os motivos mais gerais estariam:
1990, p. 390).
231
“desenvolvimento” para os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria: manutenção do
desenvolvimento.
102
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP). Mulher negra: dossiê sobre a
discriminação racial. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, dez. 1986. A “Comissão para assuntos
da mulher negra” responsável pela produção do documento era composta por: Conceição Mendes de
Alemeida, Deise Benedito, Elza Maria de Jesus, Ilma Fátima de Jesus, Maria Lucia da Silva, Marly de
Sousa Correa, Solimar Carneiro, Sueli Carneiro, Vera Lucia Benedito.
103
Ibidem, p. 14.
104
Ibidem.
232
É ressaltado ainda que o aspecto da falta de informação, associado à falta de
afirma que “isto não elimina a necessidade de uma vigilância constante sobre as
atividades desenvolvidas, uma vez que a clientela que demanda os serviços é formada,
produzido pelo CECF-SP, e parece ter como objetivo informar um público mais geral
105
Ibidem.
106
ASSIS PACHECO apud CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op.
cit., p. 14.
107
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op. cit., p. 17.
108
CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES MARGINALIZADAS. op. cit., 1990.
233
sobre o problema da esterilização. Um dos primeiros tópicos do folheto tem o título “O
Após advertir que “pouco se conhece ainda hoje as alterações produzidas pela
uma perspectiva de que as mulheres negras são “triplamente discriminadas: por serem
do CEAP, que afirma que a mulher desinformada é muitas vezes utilizada “enquanto
questões como: “É possível afirmar que mulheres de 15, 18, 20 anos, esterilizadas
direito?”.113
109
Ibidem, p. 5.
110
Ibidem.
111
Ibidem, p; 8-10.
112
Ibidem, p. 8.
113
Ibidem, p. 14.
234
“Diferentemente do planejamento familiar, que reconhece o direito da
mulher, do casal, ou da família em decidir quantos filhos quer ter, o controle
da natalidade é uma política que decide diminuir ou controlar os nascimentos
numa determinada população, sem levar em consideração a vontade destas
pessoas.
Assim, o controle da natalidade tem sido usado de forma a limitar o
nascimento de crianças nas classes dominadas de modo a mantê-las dentro de
limites apenas necessários à manutenção e reprodução do sistema
114
capitalista”.
internacionais”.115 Segundo Damasco, Monteiro e Maio, “na década de 1990, [...] havia
parte das esterilizações é paga pelo Estado”, o folheto cita que “técnicos do IBGE
afirmaram: ‘Somos assim levados a interpretar que há, até certo ponto, uma política
implícita por parte do Governo através de suas instituições públicas de saúde, de utilizar
a esterilização como método mais radical para limitar o número de filhos, em especial
114
Ibidem, p. 9.
115
Ibidem.
116
Ibidem, p. 10.
235
naquelas áreas onde os níveis de fecundidade ainda se encontram em patamares
relativamente elevados”.117
violência policial e violência obstétrica.118 Embora a forma como essa relação se dá não
seja explicada de modo explícito, o texto do folheto se encerra com as seguintes frases:
“NEGROS E MESTIÇOS!
É PRECISO DENUNCIAR O GENOCÍDIO!
É PRECISO ACABAR COM A ESTERILIZAÇÃO EM MASSA DE
MULHERES NEGRAS E MESTIÇAS NO BRASIL!!”119
internamente. Petrônio Domingues afirma que esse discurso esteve ligado a setores do
fenômeno da mestiçagem que, por sua vez, redundariam, a longo prazo, em etnocídio. O
discurso nacional pró-mestiçagem era, assim, concebido como uma estratégia da classe
117
Ibidem, p. 11. Esse trecho faz referência a OLIVEIRA, Luiz Antonio P.; SIMÕES, Celso Cardoso da
S. As informações sobre a Fecundidade, Mortalidade e Anticoncepção nas PNADS. IBGE, 1989.
118
CENTRO DE ARTICULAÇÃO DE POPULAÇÕES MARGINALIZADAS, op. cit., p. 11-12.
119
Idem, Ibidem, p. 16.
236
dominante para provocar o ‘genocídio’ do negro no país” (DOMINGUES, 2007, p.
117).
mulheres negras, conforme as análises aqui realizadas, guardam pouca relação com essa
visão, questão exemplificada no primeiro volume dos Cadernos Geledés, com o tema
mulheres negras: o fato de que a fecundidade dessas mulheres caiu acentuadamente nos
anos 1980 seria explicado por “autores conservadores” através da relação entre
237
subtítulo: “Impunidade ou Regulamentação?”.123 Os Cadernos trazem a reprodução de
criação de uma lei federal específica que regulamente a prática, elaborada com
123
GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Cadernos Geledés – Esterilização: Impunidade ou
Regulamentação? Caderno II. São Paulo, 1991.
124
Ibidem, p. 9.
125
Ibidem, p. 11-12.
238
participação de “setores organizados da Sociedade Civil”.126 Apesar do “consenso” que
observado nos movimentos sociais, o texto revela que há divergências quanto à questão
esterilização massiva das mulheres”.127 Sobre esse ponto, Mariana Damasco afirma que
Pode-se inferir, a partir disso, que o sentido com que as mulheres do movimento
negro denunciavam um “genocídio” negro diverge do sentido com que alguns homens
negros abordavam a questão: para elas, era preciso garantir informação para a
pode ser admitada: “situações em que há condições clínicas que indicam a realização da
126
Ibidem, p. 12.
127
Ibidem, p. 13.
239
[...] e a mulher está segura de que mesmo que mudem suas condições de vida
[...] nunca mais desejará ter filhos”.128
da Serra, São Paulo. O Seminário tinha como objetivo elaborar um documento que
Brasil. Com requerimento apresentado por Benedita da Silva e Eduardo Suplicy, essa
128
Ibidem, p. 18.
240
país”, além de apontar “a ausência de dados estatísticos confiáveis sobre a prática da
esterilização nas mulheres negras”, tendo havido “um erro quantitativo no PNAD [de
1986] pelo fato de o documento não ter incluído nas estatísticas oficiais a esterilização
negras “não confirmaram a tese defendida [...] de que a esterilização cirúrgica foi
natalidade desse grupo populacional no Brasil”, mas “concordaram com o fato de que
não havia até aquele período estatísticas oficiais satisfatórias que desagregassem por
2012, p. 146).
241
2.2 Trabalho
Visto que uma discussão sobre mulheres negras enquanto trabalhadoras foi
desenvolvida nos capítulos anteriores, o objetivo deste tópico é analisar de que maneira
negras nos anos 1980 e 1990. Para tanto, sigo utilizando fontes como documentos
discriminação racial”, editado pela Comissão para assuntos da Mulher Negra do CECF-
SP, é o trabalho. Antes de tabelas, dados e estatísticas, o primeiro elemento que aparece
“Secretária p/ diretoria
C/ boa aparência, alta, branca, solteira de 20 a 29 anos, datilografia IBM, c/
conhecimento em inglês, redação própria em Português, excelente salário.
Comparecer x/ Curriculum e foto, Av. Senador Feijó, 144 Santos. (X13.
(Anúncio publicado no jornal “A TRIBUNA”, de Santos, no dia 13 de abril
129
de 1986)”
mesma pesquisa foi revisitada por Caetana Damasceno (2000), que faz uma história dos
questão que aparece em diversos textos produzidos por mulheres negras discutindo
129
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op. cit., p. 4.
130
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco. São Paulo: T.A. Queiroz, 1941.
242
mercado de trabalho.131 Além de Nogueira, Carlos Hasenbalg também abordou o tema.
O autor identificou entre 1968 e 1977 três anúncios de trabalho em que o anunciante
9 anos pode parecer um número baixo, o autor lembra que, no período analisado, “já se
que ainda existam anúncios que façam exigências explícitas em termos de raça.
administrativos, em que pessoas negras tendem a não ser contratadas “sob a alegação de
2000, p. 172). Traz também a leitura de um observador estrangeiro, Robert Eccles, que
no Brasil como ‘só para brancos’ e pode ser encontrada entre as qualificações para
décadas de 1940 e 1950, vê-se que, ainda nos anos 1970 e 1980, a exigência de “boa
131
Um exemplo é o texto de Sueli Carneiro no jornal Mulherio, n. 21, que será abordado mais adiante
nesse item.
243
aparência” se apresenta como um entrave para a população negra, mas em especial para
do trabalho, mas faz um panorama da situação das mulheres negras como trabalhadoras
em áreas diversas lançando mão de estatísticas e depoimentos para tal. Abordei alguns
desses dados nos capítulos anteriores, mas retomo rapidamente alguns pontos aqui. O
trabalho de Celma Vieira (1987) apontou para o fato de que, em meados da década de
era secundarizada por elas, que tomavam os problemas enfrentados como resultado da
doméstico.
representações das mulheres negras, da qual tratarei no próximo item. Após um trecho
domésticas entrem “pela garagem dos prédios”, o texto do documento do CECF-SP traz
a humilhações do tipo:”132
132
CONSELHO ESTADUAL DA CONDIÇÃO FEMININA (CECF-SP), op. cit., p. 9.
244
Figura 1 - Propaganda da empresa Safira
O texto segue:
“Este anúncio nos leva a pensar que a única aspiração (meta) da mulher
negra, em especial aquelas que são empregadas domésticas, é uma roupa de
passista e quatro dias de folia. É misturado – propositadamente – o prazer
lúdico do Carnaval com aspirações e expectativas profissionais, educacionais,
133
culturais, etc., que ela venha a ter”.
na cultura brasileira” em que ela afirma que os termos mulata e doméstica são
discutida no primeiro capítulo desta tese. Lélia destrincha de modo instigante a palavra
133
Ibidem, p. 10.
245
documento do CECF-SP, com o agravante de que a figura da mulata é explicitamente
apontada como o horizonte máximo da doméstica. Ainda por cima, o verniz senhorial e
paternal da propaganda é sentido na “benevolência” que ela convida o patrão a ter pela
patronal/senhorial: o de doméstica.
negras nos anos 1970 e 1980, o artigo de Márcia Lima (1995), que relaciona educação e
dados estatísticos de 1980 e 1990, a autora observa que já nesse período as mulheres
dos trabalhadores brasileiros desde a década de 1970 (LIMA, 1995, p. 491). A autora
observa, contudo, que essas mudanças são marcadas por especificidades para o grupo
“O fato de 48% das mulheres pretas e 30,5% das mulheres pardas estarem no
serviço doméstico é sinal de que a expansão do mercado de trabalho para
essas mulheres não significou ganhos significativos. E quando esta barreira
246
social é rompida, ou seja, quando as mulheres negras conseguem investir em
educação numa tentativa de mobilidade social, elas se dirigem para empregos
com menores rendimentos e menos reconhecidos no mercado de trabalho.”
(LIMA, 1995, p. 495)
recuperar o trecho do texto “Enegrecer o feminismo”, de Sueli Carneiro, em que ela diz:
intelectuais negras. Isso fica nítido no texto de Dulce Pereira Cardoso no jornal
que nos impõe o capital branco europeu” atinge as vidas das mulheres negras.134
134
CARDOSO, Dulce Pereira. Mulher Negra: e nós, aonde vamos? Mulherio, ano III, n. 14, p. 8-9,
jul./ago. 1983.
247
sem a conquista, em sua integridade, do estatuto de membros da classe
135
trabalhadora.”
no capítulo anterior, que a população negra, nos anos 1980 e 1990, ocupava faixa
marxista da dependência e Marcel Van der Linden, apontou para a presença de “formas
formal assalariado, que integram a dinâmica do capital sem, contudo, estar “integrado”
135
Ibidem, p. 8.
136
CARNEIRO, Sueli. Trazer a negritude ao novo feminismo. Mulherio, ano V, n. 21, p. 17,
abr./mai./jun. 1985.
248
como executivos e mulheres brancas como suas secretárias. As sobras são
dadas para o homem negro, e só depois entra a mulher negra.”.137
Sueli Carneiro evoca uma hierarquia social muito rígida (homem branco >
mulher branca> homem negro> mulher negra), visão que pode ser complexificada com
noção de classe social como unidade no diverso. Ainda assim, sua visão condiz com as
trabalho desde os anos 1970.138 As reflexões de Abigail Bakan (2016) sobre exploração,
“hierarquia” de que fala Sueli Carneiro no texto para o Mulherio é a expressão de uma
que, na realidade, eram direitos (BAKAN, 2016, p. 59-60) – como é o caso da questão
Mulherio n. 14.
2.3 Subjetividade
mulheres negras. São questões como as representações sociais estereotípicas feitas sobre
essas mulheres e suas implicações no campo afetivo, sexual, na sua autoimagem e nas
137
Ibidem, p. 17.
138
Esse recorte temporal se dá por efeito do recorte mais amplo desta pesquisa, não querendo implicar
que a situação das mulheres negras fosse mais vantajosa em períodos anteriores.
249
experiências vividas por elas. Tais aspectos aparecem nos mais diversos tipos de fonte –
transversalmente nos temas tratados nos itens anteriores deste capítulo. Longe de
pautas políticas do movimento de mulheres negras que toma forma a partir de fins dos
anos 1970. Vale ressaltar que muito do que será tratado aqui dialoga com discussões
ideia de articulação.
uma questão que tem implicações bastante materiais. Não é por tratar de representações,
concreto, como parte da realidade social. Na visão do próprio Marx, a realidade precisa
racista e (hetero)sexista sobre a construção dessas é exigência mínima para uma análise
adequada.
especificidades”:
250
não estão no mapa’), que são utilizadas para saciar os apetites, recalques e as
taras sexuais masculinas.
Faz-se necessário que a Mulher Negra entenda que a opressão racial e sexual,
fazem parte de um contexto maior que é a opressão social. Daí, acreditamos
que a compreensão das questões fundamentais do racismo e do sexismo,
levarão a MULHER NEGRA a um mais fácil entendimento dos problemas
sociais mais amplos”.139
No primeiro parágrafo citado, é possível observar mais uma vez a díade evocada
integrada a “um contexto maior que é a opressão social”. Essa colocação é muito
interessante ao ser pensada pelo olhar totalizante desta tese, pois propõe que o racismo e
o sexismo que oprimem esses sujeitos sociais fazem parte de uma “opressão social”
mais ampla, que envolve diversos “problemas sociais” – o que, na minha proposta
analística, tem a ver com um entendimento dos efeitos de um sistema capitalista racista,
A díade mulata/doméstica merece ser abordada com mais calma, visto que
brasileira. O Caderno IV dos Geledés, com o tema “Mulher Negra” coloca que:
251
que, “além de cheirosa e gostosa, a mulata” é representada na literatura e na música
(CORRÊA, 1996, p. 39). Corrêa sinaliza que “tal estatuto simbólico [...] firmou-se no
mesmo campo semântico do qual faziam parte uma série de outros discursos [...] nos
quais as palavras chave” foram utilizadas para classificar a figura da mulata como
indesejada. São designações que a vinculam diretamente “ao universo da pura sensação
questão que tem ganho cada vez mais espaço nas reflexões dos movimentos de
muitos intelectuais negros (SOUZA, 1983; FANON, 2008), o volume se torna menos
especificamente aos impactos dessas relações sobre a afetividade, Ana Cláudia Pacheco
afirma que o tema surge na academia brasileira nos anos 1980, com as pesquisas o
“i) A miscigenação vem sendo realizada muito mais pela preferência afetiva
de homens negros por mulheres brancas ou mulheres de pele clara do que de
mulheres negras por homens brancos; ii) as mulheres negras (pardas e pretas)
são as menos preferidas para uma união afetiva estável pelos homens negros
e brancos, perdendo na disputa matrimonial-afetiva para as mulheres brancas;
iii) como resultante dessa disputa haveria um excedente de mulheres negras
solitárias, sem parceiros para contraírem uma união; iv) por outro lado, as
negras perfazem a maioria (mais de 50%) entre as mulheres solteiras, viúvas
e separadas” (PACHECO, 2006, p. 154).
afetivas dos grupos raciais, ainda que sejam contribuições importantes, se focam
“muitos mais nos fatores de ordem populacional em detrimento dos fatores sócio-
252
culturais” (PACHECO, 2006, p. 156). A autora, então, faz uma revisão bibliográfica
dos estudos sobre o tema nas Ciências Sociais para tentar “explicar a solidão afetiva das
mulheres negras (pardas e pretas) do Brasil” (PACHECO, 2006, p. 158). Ao cabo dessa
revisão, Pacheco sugere que “a afetividade produz muitas mais hierarquias do que
afetivo-sexuais de mulheres negras”. A autora afirma que “na união com homens
brancos, o lugar adequado para as mulheres negras parece ser o de amantes, ou para
sacanagem” (PEREIRA, 2018, p. 183). Pereira ressalta ainda, citando Lélia Gonzalez, a
“mais valia racial” representada pela branquitude no âmbito dos relacionamentos afetivo
sexuais. Ela recupera Frantz Fanon e Joel Rufino dos Santos para afirmar que
homens, ao mesmo tempo em que “é vista como inadequada, e que deve ser silenciada”
253
subalternidade; para a circulação de bens materiais e simbólicos” (PEREIRA,
2018, p. 186).
materiais. Não apenas no campo afetivo, mas pensando a construção subjetiva como um
todo, essa questão amarra os diversos temas que são fundamentais para a construção das
década de 1980.
brasileiras:
“A mulher negra, ainda que reconhecida como ‘mãe’ da cultura brasileira [...]
ou quando pensada preconceituosamente como ‘a boa de cama’, ou,
objetivamente, como a mão-de-obra mais barata [...] tem sido confinada a um
gueto histórico. Desta forma, atrelada por sua condição subumana de
existência, é pressionada ideologicamente a ficar incapacitada de mover-se a
partir de ‘sua própria alienação’ e condenada a atuar dentro dos limites que
convêm aos diversos níveis da ordem estabelecida”141
mulheres em seu pleno potencial. Isso porque a experiência dessas mulheres “é única e
141
CARDOSO, op. cit., p. 8
254
determinada classe [...] tem o privilégio de admirar a história e a sociedade de vários
vivido como locus de ação quando superada a “alienação” a qual são submetidas as
texto que aborda essa “alienação” de modo bastante interessante, tendo como o objetivo
Nesse texto, de 1986, Pedrina de Deus traz uma proposta analítica e explicativa
que está em conformidade com as análises que embasam esta tese, como quando
Abigail Bakan, em 2014, argumenta que o capitalismo depende de tais relações sociais
142
Ibidem.
143
DE DEUS, Pedrina. Racismo e Machismo. Nzinga Informativo, ano III, n. 4, jul./ago. 1988.
144
Ibidem, p. 4.
145
O artigo de Bakan de 2016 é uma tradução do texto original, publicado em 2014 na obra de BAKAN;
DUA, 2014.
146
O uso dessa categoria indica uma influência da obra de Althusser nas reflexões de Pedrina de Deus.
255
e no sexismo. Os trabalhadores, em competição por recursos de sobrevivência escassos,
explorados entre si, causando baixas de salário e criando exércitos de mão de obra
Esse trecho chama atenção pelo diálogo claro que estabelece com as discussões
reprodução social, é possível estabelecer uma relação bastante clara com sua proposta
147
Ibidem.
148
Ibidem.
256
“Porque nasceu mulher, a mulher negra [...] vai recebendo desde pequena a
informação de que a servidão está na sua natureza de mulher e de negra. E, à
medida que ela vai se convencendo de que sua posição é de dependência em
relação ao homem e em relação aos brancos, ela se torna um ser passivo
diante da sociedade. [...] E enquanto os homens negros avançam na luta
contra o racismo, nós mulheres negras estamos dentro de casa passando para
nossos filhos as superstições e concepções racistas e machistas, porque
permanecemos na ignorância e somos alvos fáceis dessa ideologia que vai
nos atacar dentro das nossas casas”.149
filhos, o que destoa da maior parte dos discursos das militante negras, que identificam
como diferença marcante entre mulheres brancas e negras o fato de que as negras
lar, “saindo” para inserir-se no mercado de trabalho.150 Ainda assim, essa perspectiva
traz um outro olhar sobre a situação das mulheres negras diante dos movimentos
sentido que o texto se encerra, trazendo uma série de propostas concretas para promoção
interiorizamos”;151
149
Ibidem, p. 4-5.
150
“Quando falamos em romper com o mito da r[a]inha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que
mulheres estamos falando? As mulhers negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são
rainhas de nada, que são retratadas como as anti-musas da sociedade brasileira, porque o modelo estético
de mulher é a mulher branca” (GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. op. cit., 1993, p. 11).
151
Ibidem, p. 5
152
Ibidem.
257
c) Ir além da demanda por mudanças na legislação, tendo como objetivo último
explorada”.153
3. Conclusão
específicos de mulheres negras e suas pautas principais, que englobei em três grandes
temas: saúde, trabalho e subjetividade. A partir desse panorama, foi possível identificar
movimento feminista);154
153
Ibidem.
154
Segundo Flávia Rios e Regimeire Maciel, “sustentaram forte interdependência em relação às
organizações feministas e antirracistas, além de outras bases como as eclesiais, as sindicais e as
comunitárias” (RIOS; MACIEL, 2018, s.p.)
258
e) Aproximação gradativa com instituições privadas e com o Estado
grupo social que busca representar, mas consciente de seu papel político no movimento
social “como um todo” e na luta por uma transformação social ampla, que supere a
como prefiro colocar. É nesse sentido que afirmo que esse movimento tem pautas
ela”, mas porque, como visto, as demandas “específicas” estão ligadas às dinâmicas de
Dulce Cardoso de que as mulheres negras são um grupo social cujas possibilidades de
transformação social são fundamentais – não apenas para elas, mas para os grupos
259
CAPÍTULO IV - Organizações de mulheres negras no Estado Ampliado (década
de 1990)
estratégias de luta na década de 1990 serão questões abordadas neste capítulo. Utilizarei
a dinâmica dos financiamentos internacionais recebidos por ela. Esse processo, pensado
diferente daquele que surgiu na virada dos anos 1970 para os 1980, conforme se
discutirá.
qual ainda não foi mobilizado extensamente nesta tese: o conceito de Estado Ampliado
e outras categorias desenvolvidas pelo marxista italiano Antonio Gramsci. Desse modo,
260
farei um breve interlúdio teórico para estabelecer o sentido de alguns conceitos
teórico mais denso" de sua obra (LIGUORI apud FONTES, 2010, p. 132), visto que
Estado, presente no senso comum, na qual ele é "identificado ora a um organismo bu-
2014, p. 28).
Para Sônia Mendonça, essa reificação tem origem em uma perspectiva liberal de
2014: 29). Esse mito de origem do Estado liberal seria o responsável, de acordo com
261
"acima dos homens e da sociedade em seu conjunto, dotada de vontade
própria, de autoiniciativa, sem correspondência com os indivíduos e grupos
sociais distintos e, por isso mesmo, dotada de total pode de (co)mando sobre
os homens em sociedade" (MENDONÇA, 2014, p. 30).
A matriz liberal criou, assim, uma acepção de Estado descolada da história e das
"sociedade civil" como a contraparte do Estado, como aquilo que "se centra no terreno
"Se existe uma natureza no homem, ela possui um cunho social e é, portanto,
passível de transformação. Os homens teriam uma sociabilidade própria, que
lhes era conferida não por um “contrato”, mas, sim, pelo lugar por eles
ocupado no processo de produção e de trabalho. [...] A origem do Estado,
nessa concepção residiu, justamente, na emergência da propriedade privada,
no momento em que uma dada coletividade – ou grupo social – apropriou-se
privadamente daquilo que pertencia a todos, subordinando os demais,
transformados em força de trabalho" (MENDONÇA, 2014, p. 31).
"sociedade civil" pelo par "sociedade política" versus "sociedade civil”, persistindo,
155
No caso brasileiro, Virgínia Fontes explica a “extensão acrítica do termo ‘sociedade civil’”
considerando a peculiaridade da forma como, no país, “a organização e a difusão de aparelhos privados
de hegemonia [...] concentrara-se nos setores burgueses dominantes, em função da truculência social
predominante no trato da questão social” (FONTES, 2010, p. 226-227). Assim, houve uma
“simultaneidade da emergência de múlltiplas organizações populares [...] em luta contra a ditadura
militar”, que resultou em uma “identificação entre forma de governo e Estado, na qual a recusa da
ditadura passava a se constituir, simultaneamente, numa negação da luta no âmbito do Estado” (FONTES,
2010, p. 227). Essa peculiaridade histórica contribuiu para um entendimento que opõe sociedade civil ao
Estado. Cf. também FONTES, 2018.
262
contribuição marxiana156 deu origem a uma variante adotada por alguns marxistas que
tomou o Estado não mais como Sujeito, como fez a matriz liberal, mas como "Estado
Objeto", "cuja existência devia-se, tão somente, para garantir e fazer valer os interesses
adverte que
"o Estado em Gramsci não deve e nem pode ser pensado como organismo
próprio de um grupo ou fração de classe, como no caso de outras vertentes
marxistas. Ele deve representar uma expressão universal de toda a sociedade"
(MENDONÇA, 2014, p. 34).
sentido bastante claro na obra de Gramsci, a "sociedade civil" traz uma definição mais
complexa,
156
Como Mendonça (2014), uso o termo “marxiana” para me referir à produção de Karl Marx, enquanto
“marxistas” são outros sujeitos que se apropriaram, de diferentes formas, de sua obra.
157
Em O Laboratório de Gramsci, Álvaro Bianchi elabora uma leitura transversal dos conceitos de
"Estado" e "sociedade civil" nos escritos de Gramsci (BIANCHI, 2008). Bianchi revela que o ponto de
partida do autor foi considerar o Estado como expressão superestrutural de uma determinada forma de
organização da produção, já no Caderno 1. Essa visão, bastante simplificada em comparação com aquilo
que se seguiria, é retomada no Caderno 10 com a ressalva de que, embora haja uma relação entre o Estado
e a produção, essa relação não é simples ou imediata. Bianchi esclarece que essa reelaboração está
relacionada com o projeto de Gramsci, ao longo do tempo, de depurar o marxismo do economicismo.
Para isso, era fundamental evitar uma leitura mecânica e automática da noção de Estado.
263
incorporado fazendo, muitas vezes, referências ao próprio Gramsci, embora
com um sentido diferente" (BIANCHI, 2008, p. 178).
2001, p. 20). Observar essa definição pode ser um passo inicial interessante para sua
compreensão, entretanto é preciso ter algum cuidado. Isso porque há leituras – como a
que
"a sociedade civil nada tem de ‘idílica’ ou ilusória, uma vez que é em seu
seio que se elaboram e se confrontam projetos distintos e até mesmo
antagônicos, ficando claro, no pensamento gramsciano, que ela é a arena da
luta de classes e da afirmação de projetos em disputa, derivados de aparelhos
de hegemonia distintos, ainda que, em muitos casos, pertençam a uma mesma
classe ou fração dela" (MENDONÇA, 2014, p. 36).
Fontes delineia esses conflitos intra e entre classes, abordando não apenas a
264
"O fulcro do conceito gramsciano de sociedade civil - e dos aparelhos
privados de hegemonia - remete para a (...) produção coletiva de visões de
mundo, da consciência social, de formas de ser adequadas aos interesses do
mundo burguês (a hegemonia) ou, ao contrário, capazes de opor-se
resolutamente a este terreno dos interesses (corporativo), em direção a uma
sociedade igualitária ('regulada') na qual a eticidade prevaleceria, como o
momento eticopolítico da contra-hegemonia)" (FONTES, 2010, p. 133).
soma de dois elementos opostos. Para deixar claro o tipo de vinculação entre sociedade
humano, parte cavalo – partes essas organicamente ligadas (GRAMSCI, 2000, p. 33).
autor, ao ampliar a noção de Estado, era afirmar que ele não se limita ao exercício da
gramsciana, na qual não existe uma rígida divisão de tarefas entre as duas esferas"
158
A relação de "unidade-distinção" é uma reformulação feita por Gramsci da concepção de "nexo dos
distintos" presente em Croce, segundo a qual "não existia relação de oposição, mas apenas de unidade e
distinção". Para Gramsci, a distinção é "uma forma de oposição não antagonista na qual cada distinto se
encontra em uma relação de 'tensão (dialética) com o outro" (BIANCHI, 2008, p. 184).
265
(PRESTIPINO apud BIANCHI, 2008, p. 178). Sobre essa questão, Bianchi aponta para
formulações anteriores, mas sim as sofisticou, na medida em que explicita que "na
como aparelhos privados de hegemonia (APHs), que, nas palavras de Virgínia Fontes,
são a "vertebração da sociedade civil" (FONTES, 2010, p. 133). Os APHs são uma das
vontade coletiva", ou seja, aquele que "atua sobre um povo disperso e pulverizado para
despertar e organizar sua vontade coletiva" (GRAMSCI, 2000, p. 14). Para ele, o
realização máxima dessa ação prática, para Sorel, seria a greve geral, cujo caráter, na
materiais imediatas (GRAMSCI, 2000, p. 14). O autor adverte que atividades desse tipo
formam uma vontade coletiva demasiado elementar, podendo vir a deixar de existir,
266
apenas reage diante de um perigo iminente não pode ser ampla ou ter caráter orgânico;
ela “será quase sempre do tipo restauração e reorganização, não do tipo peculiar à
fundação de novos Estados e de novas estruturas nacionais e sociais […], será de tipo
criação de uma vontade coletiva original e orgânica (GRAMSCI, 2000, p. 17). É tarefa
desse organismo promover uma reforma intelectual e moral, isto é, uma transformação
na concepção de mundo cujo objetivo é criar terreno para a fundação de uma vontade
caráter material dos aparelhos privados de hegemonia ao afirmar que "a luta de
hegemonias não é apenas luta entre 'concepções de mundo', [...] ela é também luta dos
Gramsci, “todo grupo social (...) cria para si (...) uma ou mais camadas de intelectuais
que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo
econômico, mas também no social e político” (GRAMSCI, 2001, p. 15). Ser intelectual,
isso, o autor rejeita a ideia de uma neutralidade política dos intelectuais, afirmando seu
papel ativo na luta de classes. Gramsci chama atenção para o fato de que “todos os
homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de
intelectuais” (GRAMSCI, 2001, p. 18). Com isso, ele se refere ao fato de que “em
267
qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe um mínimo de
de uma classe – ou fração – depende de sua capacidade de gerar seu próprio quadro de
pesquisa” (MENDONÇA, 2014, p. 27). Esse roteiro, de acordo com a autora, parte de
uma “extensa investigação junto aos aparelhos de hegemonia [...] visando detalhar suas
formas organizacionais, suas bases sociais, seus intelectuais orgânicos, bem como as
268
dinâmica interna de um APH específico, “privilegiando as divergências de projetos
(MENDONÇA, 2014, p. 39). Ela ressalta que, em ambos os casos, é necessário ir além
A partir disso, partir-se-ia para um “estudo minucioso não apenas de suas ações
âmbito do Estado Ampliado.159 A presente tese não tem tal metodologia como “roteiro”,
Por um lado, não está entre os objetivos desta tese fazer um mapeamento de
intelectuais orgânicas a eles vinculados, suas vinculações com outros APHs, etc. – essa
seria uma tese em si. Por outro, me baseio na metodologia do Estado Ampliado para:
movimento de mulheres negras brasileiro na virada dos anos 1980 para os 1990 (em
especial sob a forma ONG); a relação dessas organizações com o Estado restrito e com
159
Exemplos podem ser encontrados na coletânea Gramsci e a pesquisa histórica, organizada por Sônia
Mendonça e Rodrigo Lamosa (MENDONÇA; LAMOSA, 2018).
269
outros aparelhos privados de hegemonia; as possibilidades e limites de atuação política,
2.1 Contexto
mulheres negras, ainda que específicas à base que procura representar, são também
considerando os impactos nos salários e as lutas por direitos trabalhistas por exemplo,
mas têm um potencial de transformação social que se refere a fases posteriores das
Como foi visto anteriormente, o movimento de mulheres negras dos anos 1980
tinha entre suas reflexões uma perspectiva de aproximação não apenas de suas bases
270
exploração da classe trabalhadora. Nesse ponto, vale lembrar que se está trabalhando
mulheres negras não constitui uma característica fixa que marcou o movimento
perspectiva presente, mas não única, e que tem maior ou menor força em diferentes
movimento quando se compara os anos 1970 e início dos 1980 com a década de 1990
sentido de que se insere nos conflitos sociais no sentido de construir uma propondo uma
anticapitalista.
271
das militantes, a atuação por meio de “projetos”, o estabelecimento de parcerias com
necessárias às dinâmicas ligadas ao universo das ONGs. Essa mudança não foi um
“já vem sendo gestado desde os anos 1980 com a abertura democrática do
país, que, em certa medida, possibilitou a profissionalização e a
especialização dos ativistas, bem como a formalização e a burocratização dos
coletivos e das entidades. Muitas destas tornaram-se, aos poucos, associações
civis formalmente mais complexas, cujo modelo exemplar é o de organização
160
não-governamental (ONG)” (RIOS, 2008, p. 145).
mulheres negras. Essa questão é abordada por Cristiano Rodrigues e Marco Aurélio
Esses autores afirmam que os anos 1980 e 1990 marcam uma inflexão na
272
“inimigo” a “interlocutor” (RODRIGUES; PRADO, 2010, p. 447). Para Rodrigues e
Prado, no caso do Brasil, a política neoliberal adotada pelo governo contribuiu para que
Daniela Feijó, ao estudar algumas ONGs brasileiras cuja atuação se baseava nas
questões de gênero e raça, também observou essa mudança de postura nas organizações:
outras instituições, abandonando uma postura “de cunho mais opositor”. Segundo Feijó,
há então “uma maior inserção das ONGs na esfera pública oficial, conduzindo para
dentro do Estado suas demandas” (FEIJÓ, 2006, p. 9). Esse movimento se daria pelo
Estado, às igrejas, partidos, etc., bem como “pela atitude da nova geração de integrantes
que ingressam nas ONGs, oriundos de uma postura mais profissional e menos militante
um boom das ONGs no fim dos anos 1980 e nos 1990. Tal processo integra a
273
“institucionalização” analisada por Flávia Rios. Essa autora explica a mudança de
dos governos”, expressa no fato de que “os ativistas podem acessar os órgãos decisórios
e mover-se com certa liberdade pelos espaços públicos, como os órgãos judiciários de
defesa dos direitos humanos, conselhos e secretarias especiais” (RIOS, 2008, p. 141).
2008, p. 141). Assim, o momento de boom das ONGs teria como contexto justamente o
Brasil nos anos 1970 e 1980, caracterizada por uma forte oposição ao Estado,
identificado com a repressão da ditadura militar, gerou uma recusa da luta no âmbito do
Estado por muitas organizações, enaltecendo-se “uma atuação ‘de costas’ para o Estado,
Fontes caracteriza esse contexto, que daria origem ao boom de ONGs no Brasil,
e 1979, que levaram a uma disputa dos agora escassos recursos públicos pelos
voltaram a [...] demandar maior espaço de atuação privada”, o que também expressava
não apenas sua disputa por recursos públicos, como “a tentativa do empresariado de
274
precaver-se perante as lutas populares, que reivindicavam a extensão dos serviços
públicos (FONTES, 2010, p. 228). Outro elemento importante, para Fontes, foi o que se
deu a partir da ampliação das universidades e do retorno dos exilados nos anos 1980.
disso, consolidava-se uma “visão imediatista dos setores populares” e difundia-se “uma
(FONTES, 2010, p. 230). Considerar esse contexto não significa dizer que era essa
mulheres negras. Contudo, o contexto geral deve ser levado em consideração, vistas as
supera a separação entre Estado e organizações, que ora se afastam e ora se aproximam.
Isso porque permite analisar a relação entre sociedade civil e instituições do Estado
275
“para Gramsci, o Estado não está apenas numa ‘cúpula’, ainda que assim
procure se apresentar. Ao contrário, o Estado capitalista ampliado integra e
penetra espaços crescentes da vida social, da mesma maneira que as
entidades organizativas – ligadas aos grupos dominantes e/ou aos subalternos
– não estão apenas do lado de fora, mas também são incorporadas às
definições políticas (e de políticas públicas). Com isso pode conter os
impulsos revolucionários dos subalternos (modificando-os e conformando-os
através de revoluções passivas) e assegurar as condições de reprodução de
uma acumulação capitalista a cada dia mais dinâmica, mais extensa e mais
complexa.” (FONTES, 2018, p. 221)
do Estado na vida social. A questão que se levanta com esse elemento tem a ver com os
gaúcho Maria Mulher (SEBASTIÃO, 2007, p. 32). Seus projetos iniciais, com temas
que abarcavam discriminação racial e violência doméstica, eram voltados para meninas
e mulheres negras da Vila Cruzeiro, em Porto Alegre (FEIJÓ, 2006, p. 17). Vale notar,
276
em 1999, passando a denominar-se Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras
hoje, além de terem sido objeto de análise frequentes em estudos sobre o movimento de
Mesmo que possa não ter sido a primeira ONG de mulheres negras no Brasil, o
Geledés – Instituto da Mulher Negra tem, sem dúvida, uma importância singular. A
trajetória dessa organização traz diversos elementos interessantes para esta pesquisa,
formam um corpus rico para análise. Assim, nosso foco se voltará, neste capítulo,
Rio de Janeiro. Destaco, entretanto, que as publicações analisadas – as únicas a que foi
possível obter acesso – datam da segunda metade da década de 1990 até o início dos
pesquisa (décadas de 1980 e 1990), penso que desconsiderar essa documentação seria
um erro.
bastante diversos. O Geledés foi criado a partir do Coletivo de Mulheres Negras, que
havia surgido, por sua vez, da organização das mulheres negras envolvidas no Conselho
161
Ambas disponibilizam muitas publicações online, em seus respectivos sites.
277
anteriores, a falta de representação de mulheres negras nesse Conselho fez com que
Edna Roland conta que a decisão de criar o Geledés não se deu em uníssono no
que, nos anos 1990, o espaço de atuação “dentro do Estado” diminuiria, em particular
nos conselhos da condição feminina (estadual e nacional) – o que de fato ocorreu com o
ascenso do neoliberalismo no país –, e, por isso, era necessário criar uma organização
162
Fundação criada em 1936 a partir da empresa automobilística Ford Motor Company. Durante a Guerra
Fria, a Fundação Ford teve importante atuação nos espaços universitários brasileiros, em especial nas
ciências sociais, tendo um papel no surgimento e na difusão de teorias baseadas em "valores americanos"
(CANEDO, 2017). Segundo Letícia Canedo, o interesse da Ford era assegurar "a hegemonia americana
em ciência política em escala mundial" (CANEDO, 2017, p. 19). A partir dos anos 1980 e,
principalmente, dos 1990, a Fundação passa a ter como foco o financiamento de organizações privadas,
como ONGs.
278
“E aí, o que tinha acontecido com a nossa passagem no Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher e no Conselho Estadual da condição Feminina? Nós
tínhamos aprendido certas coisas. Primeiro, nós tínhamos aprendido certas
práticas administrativas, como é que você organiza uma instituição,
comissões, grupos de trabalho... E tínhamos entrado em contato com algumas
agências financiadoras. Então quando há esse processo de fechamento do
Conselho Nacional, a Sueli estava em Brasília negociando um projeto, que
era justamente um projeto do SOS Racismo, que ia ser um projeto do
Conselho Nacional com a OAB, acho que a OAB de São Paulo. Quando o
Conselho praticamente fecha, ela então negocia com a Fundação Ford a
transferência desse projeto, que seria do Conselho Nacional, para ser um
projeto em parceria OAB com o Geledés, o nascente Geledés. Ela negocia
isso e entra, a pedido da Ford, entra um terceiro parceiro, que é o Núcleo de
Estudos de violência da USP. Então aí ela está nesse processo de negociação,
mas o primeiro financiamento que nós tivemos no Geledés, foi um
financiamento da International Women’s Health Coalition” (ROLAND,
2004, s.p.).163
direta apenas em 1996, por meio de parceria com o Ministério da Justiça (FEIJÓ, 2006,
p. 57).
Criola, por sua vez, foi uma organização criada em 1992 por iniciativa das
mulheres que compunham o Programa de Mulheres do CEAP: Neusa das Dores Pereira,
Joselina da Silva, Jurema Werneck, Geni Guimarães e Josina Maria da Cunha. Lúcia
Xavier Castro foi convidada para integrar a organização no mesmo ano (CASTRO,
2003, s.p.). Neusa Pereira relata que as viagens realizadas pelas mulheres do CEAP para
experiências que as estimularam para criar o Criola, “que era o grande sonho. Era o
grande sonho das cinco” (PEREIRA, 2017, s.p.). Ela comenta que, por conta de
163
A International Women’s Health Coalition é uma ONG feminista baseada em Nova York (EUA)
fundada em 1984, com o objetivo de apoiar organizações feministas locais e influencias políticas
nacionais em favor dos direitos das mulheres. Suas fundadoras, Joan Dunlop e Adrianne German, haviam
trabalhado junto à Fundação Ford antes de fundarem a IWHC. Inicialmente com foco em campanhas
nacionais pelo direito ao aborto, ainda com alcance restrito, a organização tomou proporções globais na
década de 1990. Cf. <https://www.britannica.com/biography/Joan-Dunlop> e <https://iwhc.org/about-
us/history/>. Acesso em: 05 fev. 2020.
279
permanece à frente da organização Lúcia Xavier e, das mulheres do CEAP, Jurema
Werneck teve a participação mais longeva, tendo saído de Criola para integrar a Anistia
Internacional em 2017.
Também foi por intermédio de uma feminista negra estrangeira que morava na
uma instituição ligada ao Partido Verde Alemão, que veio a constituir a Fundação
Heirich Böll (CASTRO, 2003, s.p.). Segundo Lúcia, “ essa fundação ofereceu todos os
recursos para a nossa estruturação, estruturação física. Desde comprar a cadeira até o
computador, e nos ajudou nas primeiras atividades que nós desenvolvemos” (CASTRO,
2003, s.p.). Diferentemente do Geledés, a Criola nunca teve apoio da Fundação Ford – é
Conferência de Durban, de 2001 (CASTRO, 2003, s.p.). Ela não comenta, no entanto,
porque não houve esse apoio, se por desinteresse da Fundação ou por restrições da
mais provável, considerando que Lúcia Xavier comenta que Criola deixou de participar
financiadora:
“Nós da Criola não tínhamos ido a Cairo ou Beijim, se não me engano, por
uma questão política. [...] Nós discordávamos do financiamento, que era feito
pela USAID. Então como a maior parte do financiamento era USAID, nós
280
resolvemos não ir. Porque o que funda a Criola é uma ação política contra a
esterilização de mulheres negras, foi uma forte campanha que inicia no
CEAP a contextualização, e que toma o Brasil inteiro. Então a USAID sendo
a base dessa ação de esterilização, a gente não tinha como aceitar recurso da
USAID para ação em Beijim. Aí nós não fomos, ficamos fora da
conferência” (CASTRO, 2003, s.p.).
Nas palavras de Neusa Pereira: “Nosso problema é e sempre foi um: falta de
sobre autonomia financeira tem sido importante (e difícil) nas discussões entre
fato de que, com frequência, um mesmo sujeito tem ambas as atribuições. Esse debate
desta tese, e ainda que guarde a diferença regional, tem em comum o tema dos
movimentos sociais de mulheres. A SOS Corpo chegou a realizar projetos sobre saúde
reprodutiva, tendo assim alguns pontos de contato com Criola e Geledés, cuja
preocupação com a saúde das mulheres negras foi um tema definidor de suas agendas
políticas.
281
Thayer observa o aumento do influxo de financiamentos, a partir da década de
contexto, ela ressalta o papel das feministas do Norte global em pressionar tais agências
mudança coincide com o boom de ONGs no Brasil e com o surgimento desse tipo de
mulheres negras. Assim, é possível considerar que a oferta de recursos foi um elemento
significativo para a opção pelo formato de ONG por organizações como Criola e
relação a seu orçamento total, “esses fundos eram condição indispensável para a
164
O termo “Norte global”, utilizado pela autora, tem figurado em estudos pós-coloniais e transnacionais
(sua pesquisa se enquadra nesse último tipo) para se referir aos países que historicamente exerceram um
papel de dominação colonial, econômica, cultural e/ou politicamente, em relação aos chamados países do
“Sul global”.
282
financiadas com a literatura acadêmica. A utiliza termos como “parceria” e “cooperação
complexas de negociação através das quais ‘beneficiários’ trabalham para impor suas
agendas” (THAYER, 2010, p. 132, tradução minha). Sua pesquisa mostrou um quadro
política dessas organizações de várias maneiras, além de terem efeitos negativos nas
forma de movimento social de base quanto as ONGs têm algum grau de força em face
283
A profissionalização dos quadros e a captação de recursos de agências de
Thayer, a virada dos anos 1980 para os 1990 foi marcada por “uma sujeição mais ampla
tradução minha). Na leitura de uma integrante da SOS corpo, “se os anos 1970 foram a
nos Estados Unidos, onde grande parte das agências financiadoras se baseavam, como
no Brasil, o acirramento da disputa por recursos privados para demandas sociais, diante
do sucateamento crescente do setor público, ajuda a explicar esse quadro. Thayer afirma
condições para envio de dinheiro para o exterior foram dificultadas, crescendo nas
para lidar com certos assuntos (como contabilidade e administração). Nesse sentido,
284
“Há uma necessidade de profissionalização, há necessidade de capacitação,
há necessidade de você ter quadros de gerenciamento na sua organização e há
necessidade de você ter a militância porque também sem militância você não
faz ONG” (Solimar Carneiro, do Geledés, apud FEIJÓ, 2006, p. 35).
direitos sociais e à filiação sindical” nos anos 1990 (MOREIRA, 2018, p. 104).
cenário.
Ford, já em 1982, teve impacto particular nesse processo, pois previa algumas posições
Thayer caracteriza esse movimento como uma mudança “do voluntarismo para a
de movimentos sociais. Embora continuassem a manter sua linha política feminista e/ou
antirracista, suas ações políticas não eram mais estritamente fruto das demandas
285
populares, passando a ter como critério a capacidade de captação de recursos sob forma
O caso da SOS Corpo ilustra outro aspecto dessa mudança nas formas de
Estado, o que, por sua vez, gerou maior interesse das agências de fomento, “ávidas por
porquê desse interesse por parte das agências de fomento será abordado adiante.
“Eu acho que a maioria das ONGS não têm um atendimento, não têm um
contato direto com o público, ficam mais mesmo é na construção, na
elaboração e no acompanhamento de políticas públicas, mas para isso precisa
ter essa base que é o contato direto com as pessoas (...) mas são muito poucas
as organizações que têm o contato direto com o público” (FEIJÓ, 2006, p.
34)
das ONGs incluem uma consequência mais ampla: a mercantilização das relações no
286
Antes de entrar nessa questão, vale ressaltar que não tenho a intenção de fazer
uma análise profunda sobre a dinâmica dos financiamentos das organizações aqui
sem dúvida resultaria em uma tese a parte. Ainda assim, não poderia me furtar a abordar
essa questão, ainda que de maneira panorâmica e superficial, dada a importância que
acredito que essa análise tenha para pensar a autonomia dos movimentos sociais e suas
estratégias organizativas. Acredito, ainda, que uma pesquisa dedicada sobre as relações
Geledés foram obtidas na biblioteca do Geledés e na internet, que varri com afinco para
encontrar tudo que pudesse estar em algum lugar na rede. Não consegui ter acesso aos
arquivos do Geledés, ainda que tenha ido pessoalmente à sede da organização. Assim,
minha amostragem não cobre todo o recorte cronológico da pesquisa, tendo alguns
lapsos e intervalos. Além das publicações oficiais, teria sido muito importante ter acesso
recebidas e as ações com elas empreendidas, mas também aqueles que estabelecessem
os termos dos financiamentos, como editais e contratos. Acredito que uma pesquisadora
287
No site de Criola, na aba “Quem Somos”, há uma lista intitulada “instituições
que apoiaram o trabalho de Criola ao longo de sua história”. Essa lista, que não
discrimina as instituições que atuaram como financiadoras das que apoiaram de outras
formas a ONG, ou traz valores ou períodos em que o apoio ocorreu, lista as seguintes
Palmares, Fundação Heinrich Böll, Fundo Angela Borba (Fundo Elas de Investimento
Social), Fundo Fiduciário das Nações Unidas Contra a Violência Contra a Mulher,
Fundo Nacional de Saúde, Global Exchange, Global Fund for Women, ICCO
(BID e ONU), 8 são baseadas nos Estados Unidos, 8 na Europa e apenas 1 na América
165
O Frauen Stiftung tem relação com o Heirich Böll Stiftung, como consta no site da Fundação Heinrich
Böll. As cartilhas Toques de Criola de 1997 tratam a primeira como se fosse o antigo nome da Heinrich
Böll. Cf. <https://www.boell.de/de/geschichte-der-stiftung>. Acesso em 23 jan. 2020.
166
Cf. <https://criola.org.br/?onepage=quem-somos>. Acesso em 23 jan. 2020.
167
Não consegui identifcar a sigla CMC-PSO, que consta no site de Criola, ou associá-la a nenhuma
instituição.
288
Latina. O “tipo” de instituição que consta na tabela está alinhado com a própria
168
Informações encontradas sobre vinculações das organizações com entidades religiosas, empresas e/ou
partidos.
169
Cf. <https://en.wikipedia.org/wiki/Bill_Drayton>. Acesso em: 05 fev. 2020.
170
Cf. <https://gruponueva.com/?page_id=218&lang=pt>. Acesso em: 05 fev. 2020.
289
Das publicações de Criola a que tive acesso, as mais antigas datam de 1997: são
Todas trazem na contracapa uma ficha técnica com informações sobre o financiamento
do material, além dos responsáveis pela elaboração, projeto gráfico, etc. Ministério da
Saúde e Heinrich Böll Stiftung. Nos anos 2000, os boletins Toques – com o mesmo
nome, mas com outro formato e proposta, também traz ficha técnica semelhante ao fim
boletins entre 2001 e 2003, todos com tiragem de 5000 exemplares. Em 2004 e 2005, a
exemplares e passa a ser financiado pelo Heinrich Böll Stiftung, com apoio do Global
Fund For Women. Em 2010, o Global Fund prossegue figurando como “apoio” e o
levantar dados relativos ao ano de 2006, em que a organização teria registrado uma
“sendo 611 mil destinados para a área da saúde, 345 mil para projetos
dedicados aos direitos humanos e 30 mil para o setor de geração de renda. O
programa de difusão de informação (publicação de livros, boletins, folders,
entre outros) é financiado com os recursos dos projetos específicos. A
articulação política (encontros políticos, palestras, eventos, entre outros) e o
desenvolvimento institucional (metodologia, transparência, captação de
recursos, etc) não recebem nenhum tipo de financiamento” (SEBASTIÃO,
2007, p. 53).
Naquele ano, esse valor foi distribuído da seguinte forma: 5% para despesas
com prestadoras de serviço público (água, luz, telefone, etc.); 10% para quadro pessoal;
10% para encargos; 8% para material de escritório e pedagógico; 10% para publicações
290
equipamentos); 3% para suporte para geração de renda; 0,1% para advocacy, 5% para
Com relação ao Geledés, seu portal online contem uma aba “parcerias”, em que
traz os logos de instituições que apoiam suas iniciativas, conforme o próprio site coloca.
Não fica claro, mas é provável, pelo número reduzido de instituições, que sejam apenas
(IBCCRIM).
comissão organizadora foi a Carta produzida por ocasião do Encontro Nacional Mulher
e População – Nossos Direitos para Cairo 94. Além do Geledés, organizaram esse
291
A entrevista de Sueli Carneiro para Amílcar Pereira e Verena Alberti apresenta
saída sobre essa questão que “Nós temos tido apoio institucional da Fundação Ford
financiamentos prosseguem por toda a década de 1990. No relatório anual de 1991, nas
mesmas categoria e subcategoria, a doação para o Instituto sobe para US$200 mil.172
Em 1993, é feita uma nova doação de US$200 mil.173 No relatório de 1994, ano em que
recebeu US$25 mil, o Geledés figura no corpo de texto que apresenta as doações da
171
FORD FOUNDATION. 1990 Annual Report, p. 79. Disponível em:
<https://www.fordfoundation.org/media/2430/1990-annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
172
Idem. 1991 Annual Report, p. 68. Disponível em: <
https://www.fordfoundation.org/about/library/annual-reports/1991-annual-report/> Acesso em 24 jan.
2020.
173
Idem. 1993 Annual Report, p. 41. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2427/1993-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
174
Idem. 1994 Annual Report, p. 41. Disponível em: <
https://www.fordfoundation.org/media/2426/1994-annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
175
Ibidem, p. 33.
292
US$30 mil.176 Em 1998, na categoria “Direitos Humanos e Cooperação Internacional”,
contra o racismo”.180
176
Idem. 1996 Annual Report, p. 34. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2424/1996-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
177
Idem. 1997 Annual Report, p. 98. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2423/1997-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
178
Idem. 1998 Annual Report, p. 86. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2422/1998-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
179
Idem. 1999 Annual Report, p. 93. Disponível em: <https://www.fordfoundation.org/media/2410/1999-
annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
180
Idem. 2000 Annual Report, p. 120. Disponível em:
<https://www.fordfoundation.org/media/2410/1999-annual-report.pdf>. Acesso em 24 jan. 2020.
293
Edna também comenta sobre o impacto do financiamento no Seminário de
Geledés no início dos anos 1990. O matemático Vipul Naik formulou um portal com
compartilhadas com permissão pelas partes envolvidas.181 Ele ressalta que o repositório
US$230 mil em 1991, US$100 mil em 1993 e US$333.500 em 1994. O repositório traz
instituições mencionadas, opto por observar mais detidamente algumas delas, focando-
181
Disponível em: <https://donations.vipulnaik.com/>. Acesso em 23 jan. 2020.
182
Todos os dados sobre o Geledés citados estão disponíveis em:
<https://donations.vipulnaik.com/donee.php?donee=Geledes+Instituto+da+Mulher+Negra>. Acesso em
23 jan. 2020.
294
a análise de Millie Thayer dos financiamentos do Norte global para o Sul global.
a que mais extensamente tem sido estudada em diferentes campos acadêmicos, dada a
Fundação Ford foi criada em 1936, como consequência de uma reforma fiscal do
imposto a ser pago por patrimônio ou rena superior a cinquenta milhões de dólares:
“Mirando as isenções fiscais, [...] 90% das ações da Ford Motor Company foram
expectativa [...] era de que a Fundação Ford utilizasse seu imenso potencial de recursos
comunista”, através de uma orientação voltada para o âmbito interno e para o exterior
posições, tais como: “que a pobreza era o repositório e o principal estímulo das formas
autoritárias de vida política; que o ‘progresso econômico’ era a expressão ampla e acaba
do amadurecimento das sociedades [...]”, etc (CHAVES, 2015 p. 234). Assim, a defesa
295
capitalismo enquanto sistema promotor de estabilidade social. O chamado Relatório
Gaither, que estabelece tais posições, continua sendo a carta de princípios da Fundação
contornos na virada dos anos 1980 para os 1990, com o advento da política econômica
Fundação Ford voltou sua atenção para organizações privadas (HOLMES, 2013, p. 76)
1990 a Fundação acreditava que o Estado de Bem Estar Social não era mais necessário,
que, “ao apoiar esses grupos, [...] acreditava que poderia se aproximar do reforço do
tipo de democracia definida em sua missão” (HOLMES, 2013, p. 88) – democracia essa
Fundada em 1970, se estabeleceu como fundação consolidada apenas no fim dos anos
1980, sendo assim uma organização comparativamente recente (ELKIND, 2015, p. 48).
das mulheres (ELKIND, 2015, p 52). Perrin Elkind atribui essa compreensão, presente
296
Elkind ressalta que a MacArthur teve uma abordagem mais “ousada” do que as
fundações mais antigas ao investir pesadamente nas novas organizações dos países em
privados de hegemonia significa que elas são entendidas como espaços de atuação de
intelectuais orgânicos. Como explica Gramsci, não existe intelectual que paire acima
enquanto as ONGs de mulheres negras são APHs da classe trabalhadora como unidade
183
THE JOHN D. AND CATHERINE T. MACARTHUR FOUNDATION. The Population and
Reproductive Health Program in Brazil: Lessons Learned (1990-2002). Chicago: MacArthur Foundation,
2003.
297
Segundo Virgínia Fontes, além das entidades organizativas empresariais que
em “uma visão demoníaca da sociedade civil, como o local de controle quase absoluto
de todas as instâncias de vida social pelo capital”, perspectiva essa que “hipostasia a
hegemônico nas décadas posteriores. Essa abordagem, segundo Watkins, deixa de ter
medidas que promovam “oportunidades iguais” para mulheres: “mais mulheres no topo
das 500 empresas da Forbes”, mais mulheres CEOs, etc. (WATKINS, 2018, p. 15).
norte-americanos
298
“estavam ávidos para se posicionar ao lado do progresso, contra “obstáculos”
ultrapassados – sindicatos e burocracia, claro, mas também intolerância e
preconceito racista, sexista ou homofóbico – para amaciar o funcionamento
de um livre mercado” (WATKINS, 2018, p. 13).
de mulheres e minorias”, que trouxe “uma aparência progressista para a imagem das
financiadora das organizações feministas, “com US$200 milhões por ano para gastar em
reforma social e um time de 400 pessoas para varrer o país buscando beneficiários
vantagem em relação aos ramos mais radicais”, dentro e fora do país (WATKINS, 2018,
p. 23).
organizações a elas ligadas, esse quadro torna-se ainda mais crítico (FONTES, 2018, p.
299
“Foi sobre essas lutas populares que as estratégias burguesas da filantropia
procuraram agir, numa verdadeira operação de conversão. No plano interno,
nos diversos âmbitos nacionais, tratava-se de converter reivindicações
emergentes em ajuda emergencial, esvaziando um provável sentido de
enfrentamento ao capital. No plano externo, tratava-se de assegurar uma
distância segura entre ativismo internacional e conexões políticas
internacionais. Forneciam recursos – escassos e insuficientes – para
problemas variados, sustentando um ativismo limitado em seu alcance.
Tratava-se de gerir diferentes lutas específicas, especializadas. Em todos os
casos, uma condição fundamental para o acesso a recursos: a de se manterem
estritamente na atuação imediata, pragmática, ‘apolítica’” (FONTES, 2018,
p. 230)
contradições. Uma das entrevistadas por Núbia Moreira em sua pesquisa comentou o
300
impacto da institucionalização do movimento de mulheres negras, ilustrando muito bem
“Não é mais uma reunião no final da tarde, depois que você deu 500 aulas ou
cuidou de filhos e marido, você é financiado para poder se organizar. Então
isso dá uma diferença nos anos 90, pois a partir do momento que você tem
uma ONG, você começa a ter também a sua linha de atuação e muitas
pessoas não gostam que se diga isso: agora em muitos momentos você vai ter
que agir de acordo com agendas das financiadoras. Isso fortalece do ponto de
vista de uma organização, mas muitas vezes não ajuda ao movimento
enquanto tal, porque o movimento quer fazer revolução. Ninguém financia
revolução!” (MOREIRA, 2018, p. 117, grifo meu).
O relatório anual da Fundação Ford de 1990 estabelece que “provê apoio para
desafiam barreiras legais e de costumes para o avança econômico, político e social, que
burguesa.
em Conferências Internacionais
(ZAMBRAMO, 2017, p. 131) Ela destaca a importância dos eventos internacionais para
“espaços transnacionais” nos quais “se traçaram alianças e propostas de ação entre as
184
FORD FOUNDATION. 1990 Annual Report, p. 54.
301
ativistas de movimentos de mulheres negras na América Latina” (ZAMBRAMO, 2017,
p. 128).
Intolerância (Durban, 2001). Meu objetivo aqui não é me aprofundar nos pormenores
que atuaram as ONGs de mulheres negras, como Geledés e Criola. Se, por um lado, a
americanas, caribenhas e de outros lugares do globo. Cabe lembrar que, como revelaram
em Itapecerica da Serra em agosto de 1993 pelo Geledés, fez parte de uma série de
Desenvolvimento, que ocorreria no Cairo em 1994. Esse evento recebeu apoio (e,
302
Fundação MacArthur, da Medische hulp aan de derde Wereid (MEMISA) e do Banco
documento afirma que “pela primeira vez no Brasil, as mulheres negras pertencentes às
movimento feminista, centros de pesquisa e rede de saúde se reuniram para definir a sua
oficial do Brasil” (ROLAND, 2004, s.p.). Para Catalina Zambramo,o Cairo representou
da América Latina que, ao longo dos anos 1990, reclamavam “o direito à sexualidade e
tendo constituído alguns dos eixos centrais que orientaram a atuação de organizações
185
GELEDÉS-INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Declararação de Itapecerica da Serra das
Mulheres Negras Brasileiras. [Folheto] 1993, s.p.
186
Ibidem.
187
Ibidem.
188
Ibidem, p. 1.
303
militantes negras dominicanas, costarriquenhas e da Rede de Mulheres Afro Latino-
Zambramo afirma ainda que “diversos itens pautados pelas mulheres negras
Cairo” e que elas foram responsáveis por organizar um painel internacional sobre saúde
2017, p. 181).
Mundial sobre a Mulher, que ocorreu em Beijing, 1995, começaram já no ano de 1994,
intervenção na sociedade civil mundial” por parte das organizações de mulheres negras
Segundo Alvarez,
304
“as mulheres afro-latino-americanas [...] participaram do processo de Beijing
em números expressivos, proclamando que ‘qualquer estratégia para o
desenvolvimento, a paz e a igualdade deve necessariamente levar em conta as
particularidades das mulheres negras’” (ALVAREZ apud RODRIGUES,
2006, p. 187).
de Beijing, que
ativismo negro na América Latina, pois ali se mostrou a relação entre a questão racial e
medida em que “cresce o interesse pela temática da mulher negra com um discurso de
Beijing, mas não como decorrência dele”, há um “amadurecimento das mulheres negras
305
ponto de vista (standpoint) e/ou do feminismo norte-americano” (RODRIGUES, 2006,
p. 187-188).
que “gerou longa e dura divergência sobre a qual o Brasil e os Estados Unidos se
manifestaram a favor da menção de ambos para fins de dados estatísticos que pudessem
organizações negras, processo que “teve início em abril de 2000, com a constituição de
responsável pela criação do Fórum Nacional de Entidades Negras para a III Conferência
e visibilidade política das mulheres negras que se iniciou no início dos anos 90”
(RODRIGUES, 2006, p. 192-193). Ao longo do ano 2000, houve reuniões ligadas aos
de 2000. Carneiro conta que a presença das mulheres negras na Conferência das
“das barreiras por origem social, situação econômica, nascimento ou outra condição”
sido “fundamental para o debate de gênero e políticas anti-racismo não só para o Brasil,
307
Cristiano Rodrigues aponta que a criação da Articulação Nacional de
preparação para Durban, os recursos para ONGs foram “centralizados nas mãos de
“Eu considero que o que nós estamos vivendo hoje no Brasil não teria
acontecido, pelo menos no prazo em que as coisas estão se dando, se não
tivesse havido a Conferência de Durban. E eu acredito que os historiadores
do futuro contarão a história das relações raciais no Brasil colocando um
marco fundamental: antes e depois de Durban. Há outros marcos também.
Não é um marco único, mas é um marco fundamental. E Durban no Brasil
não é a mesma coisa que Durban em outros lugares do mundo. Porque a
Conferência de Durban impactou de formas diversas dependendo das
circunstâncias políticas existentes em cada sociedade. E como você tinha
todo um processo de acumulação de forças do movimento negro no Brasil
que vem aí desde a década de 1970, 80 e 90... A Conferência vem em um
momento em que você já tem uma maturação de crescimento político, de
compreensão da realidade, de relacionamento entre o movimento social e o
Estado, de compreensão do Estado... Tem uma série de coisas que vão
acontecendo que fazem com que naquele momento específico pudesse ter o
impacto que teve e que está tendo” (ROLAND, 2004, s.p.).
sua institucionalização. Sua agenda política, que guardava certas limitações dentro da
significativo, tanto nos espaços transnacionais dos eventos da ONU como junto ao
308
próprio governo brasileiro. A ampliação da mobilização em favor de políticas
afirmativas antirracistas, como a política de cotas, pode ser tida como uma das
que as provém com financiamentos e que, como visto, esperam alguma coisa em troca.
hegemonia e o Estado restrito segue uma lógica que tem a ver com a manutenção do
hegemônicas dos grupos subalternos. Sônia Mendonça lembra Gramsci ao afirmar que,
segundo ele,
309
classe, organizado neste ou naquele aparelho de hegemonia, atue no sentido
de inserir alguns de seus representantes – ou intelectuais – junto ao Estado
restrito" (MENDONÇA, 2014, p. 38).
A inserção dos APHs dos grupos subalternos, como é o caso das organizações de
seja,
"o Estado podia agregar em sua própria estrutura elementos oriundos das
reivindicações das classes dominadas, ampliando-se também na direção de
incorporação de demandas dos grupos subalternos e em peculiar
democratização, na qual a incorporação ampliava a política, mas mantinha a
subalternização de classes" (FONTES, 2010, p. 139).
hegemônicas no Estado restrito em cada período das últimas décadas, a inserção das
Esse avanço um tanto quanto limitado das demandas do movimento negro pode
ser relacionado ao que representaram para as classes subalternas os oito anos de gestão
310
do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), caracterizado por André Guiot
(GUIOT, 2006). Diante disso, não surpreende que tenham havido resistências e tensões
Presidência da República, tendo contado com três militantes negras em sua presidência:
Matilde Ribeiro entre março de 2003 e fevereiro de 2008, Luiza Bairros entre janeiro de
2011 e janeiro de 2015 e Nilma Lino Gomes entre janeiro e outubro de 2015. Esta
Direitos Humanos, ministério que fundiu três pastas anteriormente distintas (Direitos
311
994).189 A SEPPIR sofreu duro golpe em maio de 2016, quando da reforma ministerial
realizada pelo então presidente interino Michel Temer (PMDB), levado à presidência
Ministério da Justiça, chefiada por Alexandre de Morais. Passou a atuar como secretária
pontuar a carga simbólica contida em ter uma mulher negra no cargo de "secretária",
ainda mais se considerarmos a luta das mulheres negras no interior das organizações
mistas de que participavam para superar as limitações em termos das funções que lhes
eram delegadas.
algumas experiências para perceber de que forma se deu a relação com o Estado restrito:
importante desse movimento de inserção no Estado restrito. Ainda que tenha sido
189
Vale mencionar o aprofundamento da implementação das políticas de cotas. Para Alberti e Pereira, o
debate em relação às cotas raciais teria provocado “aquilo que as lideranças do movimento procuravam
suscitar há décadas: uma discussão ampla sobre a questão racial no Brasil, envolvendo diferentes setores
da sociedade” (ALBERTI; PEREIRA, 2006, p. 145).
312
O Conselho Estadual da Condição Feminina conta com a participação de
acompanhar políticas públicas referentes aos direitos das mulheres.190 Ocorre que a
negras, o que gerou forte reação das intelectuais integrantes do CMN. Organizadas
Thereza Santos (titular) e Vera Lúcia Saraiva (suplente) (ALMEIDA, 2010, p. 128-129;
"incentivou o debate sobre a realidade das mulheres negras e contribuiu para que a luta
presidenta negra na figura de Maria Aparecida de Laia, que, em 1995, foi nomeada para
e Social (CDES), é um caso que permite ver bem as contradições envolvidas nas
190
Informação retirada do site do Conselho da Condição Feminina de São Paulo. Disponível em
<http://www.condicaofeminina.sp.gov.br/portal.php/hist>. Acesso em 31 de agosto de 2016. Em 2020,
informações sobre o conselho constavam no seguinte endereço: <
http://justica.sp.gov.br/index.php/conselhos/condicao_feminina/historico-e-composicao/>. Acesso em 26
jan. 2020.
313
funções deliberar, fiscalizar e acompanhar políticas públicas de saúde.191 A partir de
2006, quando o Conselho passou a eleger seus membros e sua Presidência (cargo até
então ocupado pelo ministro da Saúde), Jurema Werneck, que é médica, tornou-se uma
tese de doutorado sobre o órgão (GUIOT, 2015). Esse Conselho, criado em 2003,
diferentemente dos outros conselhos mencionados, não elege seus membros; estes são
designados pelo/a Presidente da República, que, por sua vez, preside o Conselho.
2015, p. 53), que podem ser observadas em seu pronunciamento fortemente militante
191
Conferir o site do Conselho Nacional de Saúde, disponível em <http://conselho.saude.gov.br/>, acesso
em 31 de agosto de 2016.
192
Conferir Carta de Apoio a Candidatura de Jurema Werneck á Presidência do Conselho Nacional de
Saúde, disponível em <http://www.geledes.org.br/carta-de-apoio-candidatura-de-jurema-werneck-
presidencia-conselho-nacional-de-saude/>, acesso em 31 de agosto de 2016.
193
Conferir o site do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, disponível em
<http://www.cdes.gov.br/conteudo/43/composicao-do-conselho.html>, acesso em 31 de agosto de 2016.
314
tempo, de forma isolada. Passamos grande parte do tempo sem sentar à mesa
do debate do desenvolvimento. Agora estamos aqui, e para estar aqui custou
muita luta, custou muita gente que ficou para trás. Mas estamos aqui e é
preciso considerar que temos de continuar aqui e cada vez mais. Eu
represento uma legião de pessoas. Represento as mulheres organizadas,
represento os negros organizados, de alguma forma represento os indígenas
que não estão nos Conselhos, represento as ONGs que são minoria,
represento uma legião de tantos que vieram de favelas (...). Então, é preciso
ampliar e reconhecer que necessitamos participar mais efetivamente, ter
ressonância da luta que temos travado ao longo dos 500 anos até aqui"
(WERNECK apud GUIOT, 2015, p. 53-54).
pactuação ou parceria com largos setores do capital" (GUIOT, 2015: 83), por
"Todas as substituições [de um conselheiro por outro] são políticas. [...] Não
há critério definido para a substituição. A Jurema Werneck, do grupo Criola,
foi eliminada sem que se negociasse para que deixasse de ser suplente e
passasse a titular. Ela incomodava, falava das mulheres negras e pobres, de
um lugar na sociedade que incomoda" (FLEURY apud GUIOT, 2015, p. 72).
Segundo Luiza Bairros, Lélia Gonzalez foi uma das primeiras dentre os
pelo PT do Rio de Janeiro, em 1982. Bairros considera que essa atitude tenha sido “o
de Lélia da entidade”, por conta de uma política de que pessoas que se candidatassem a
(BAIRROS, p. 347).
De acordo com Bairros, apesar de ter críticas aos setores de esquerda na época,
315
palavras: “o quadro da classe política: é a mesma coisa desde que o Brasil é Brasil. É o
cara, daqui a pouco é o filho dele, daqui a pouco é o neto dele, e o poder rola nas
mesmas mãos e nós ficamos de fora, nós que somos o povo” (GONZALEZ apud
PDT, que colocava “a questão racial entre as prioridades do partido – junto com
Bairros,
Jurema Batista, por sua vez, se aproximou do PT porque quis começar a atuar
Educação” segundo ela, fazia reuniões de preparação para alfabetização de adultos. Ela
316
No mesmo ano, Jurema ajudou a fundar e tornou-se presidente da Associação de
Moradores do Morro do Andaraí, que foi fundada com auxílio de militantes do PT. Sua
“Aí eu fui eleita. No meu primeiro mandato a gente dizia que a gente seria o
porta-voz dos excluídos na Câmara Municipal, em 1992 eu fui eleita,
primeiro mandato. Fui eleita, acho que, como a sexta do PT, fiquei em sexto
lugar no Partido. Aí, quando eu assumi a vereança, eu levei essas questões
todas para lá. A questão racial, a questão da mulher, a questão das
comunidades... Mas as pessoas começaram a identificar no mandato a
possibilidade de trazer várias demandas. E aí começou a vir pessoas de todos
os lados, de outras comunidades, Zona Sul, Zona Oeste, eu comecei a fazer
debates no rádio, era convidada para falar na Manchete na época, eu fazia o
programa do Roberto Canazi toda terça-feira na Manchete... E aí fui ficando
famosa. E aí em 1996 teve uma outra eleição e eu tripliquei a votação. Foi
uma votação belíssima. Na primeira eleição eu tive 5 mil votos, na última eu
tive 17 mil, na segunda aliás. Na última eu repeti a votação, mas fui a mais
votada do PT. Aí depois disso o pessoal decidiu, então, que ia me lançar
deputada. Aí, agora, eu fui eleita deputada.” (BATISTA, 2003, s.p.).
Ela ressalta que o caráter popular e orgânico de seu mandato se destacava dentre
317
tinha ônibus, outro tinha não sei o quê lá, outro tinha uma frota; aí me
perguntaram o que eu tinha. Aí deu até uma matéria grandona no jornal O
Globo, eu falei que eu tinha um quilombomóvel. Aí o pessoal falou: “Mas
por quê?” “Meu carro não é um automóvel, é um quilombomóvel. Só anda
cheio de crioulos. Um trepado em cima do outro, um sentado em cima do
outro, um quase cuspido pela janela...” [riso] Era um quilombomóvel mesmo,
não é? Que foi já o que deu a cara do mandato. A cara do mandato foi
construída exatamente com quem abraçou a candidatura. Aí também foi uma
coisa legal, que nós pedimos que cada setor indicasse o seu representante
para compor o mandato.
[...] tinha o movimento negro, aí o movimento negro indicou. Tinha o
movimento de mulheres...
[...] Então o mandato era muito legal. [...] A gente fez uma coisa legal assim:
Os salários eram todos iguais. Na Câmara tinha salário de, hoje por exemplo,
acho que seria de quatro mil a mil e poucos. A gente fazia um caixa só e
depois distribuía igual para todo mundo. Aí depois a gente provou que isso
também não funciona. A gente queria criar o socialismo ali dentro.”
(BATISTA, 2003, s.p.).
socialismo ali dentro” – não teve sucesso, mas que foi uma experiência muito valiosa de
horizontalização política:
“As pessoas são diferentes, têm expectativas diferentes. A gente fez uma
avaliação... Um só queria ser assessor, o outro queria ser assessor mas queria
ter uma vida na universidade... A gente foi vendo que não funcionou
direitinho. Mas a gente fez um laboratório. Aquele mandato foi um
laboratório mesmo, de tentar implementar algumas coisas na política. Muitas
coisas deram certo. A gente discutia tudo à exaustão: “Vamos trocar essa
cadeira de lugar: reunião.” “Essa cadeira fica não bem aqui.” “Ela ficou bem
ali” [riso] Era uma coisas assim. A gente chamava de “mandato popular e
democrático Jurema Batista”. E aí era tudo assim muito discutido. Eu nunca
tomava decisão nenhuma. Perdia, ficava irada quando eu perdia. O pessoal às
vezes fazia até reuniões para ir: “A gente vai discutir isso...” Aí reunia
aqueles grupinhos lá, cada um se defendia... “Estão formando uma tendência
dentro do gabinete.” Aí chegavam, às vezes com posições fechadas, eu perdia
na votação e ficava irada. E tinha que implementar o que realmente as
pessoas decidiram. Esse foi o primeiro mandato.” (BATISTA, 2003, s.p.).
Então, tem umas comissões que todo mundo quer, por exemplo, Transporte,
de Orçamento, comissão de Justiça e Redação, que é a que dá parecer, ou
seja, quando você dá um parecer, você pode negociar com o empresário de
transportes; quando você dá parecer de um projeto, você pode negociar com
o empresário da construção civil. Então, geralmente, as pessoas no
parlamento, infelizmente, as pessoas que estão à frente dessas comissões têm
318
muito poder de fogo, inclusive poder econômico. Então sempre tiveram essas
comissões que a esquerda não tinha de jeito nenhum. A comissão de Direitos
Humanos, historicamente no Brasil pós-Ditadura Militar, sempre esteve na
mão do PT ou do PCdoB, da chamada esquerda. Direitos Humanos não dá
dinheiro, Direitos Humanos dá muito trabalho.
[...]
Eu era chamada para resolver problema de baile funk porque a polícia
resolveu entrar na comunidade, bater nas pessoas. Então de madrugada, no
mesmo dia, era até com o Rômulo Costa, estava no Chapéu Mangueira, a
polícia deu ordem de prisão para ele: fui parar na delegacia. Ou seja, a
comissão de Direitos Humano tira a individualidade de quem está à frente
dela, mas por outro lado também dá uma visibilidade positiva e negativa. A
sociedade, de uma forma geral, acha que defender Direitos Humanos é
defender bandidos, entendeu? Então é uma coisa dúbia, você pode ganhar e
perder. Tanto que naquela época eu fiquei meio marcada: “Ela só defende
bandido!” E não era. A gente defendia a comunidade quando a polícia
invadia e matava as pessoas.
[..]
E como é que eu consegui? Porque ninguém queria. Mas depois, aí já no
primeiro ano, no segundo, aí começou a incomodar. Nós começamos a
incomodar, a comissão. Porque a gente começou a botar o dedo na ferida de
governos, de omissão, em congressos... Eu fui em um congresso na
Dinamarca, onde estavam fazendo avaliação sobre o governo e direitos das
crianças – tinha acabado de acontecer a chacina da Candelária. Eu levei um
monte de dados para lá. Aí eles ficaram: “Está falando mal do Rio...” Eles
entendiam assim. “Está falando mal do Rio, não pode!” E aí, assim que eles
puderam, colocaram uma pessoa só para ser presidente da comissão, e
desmontaram a comissão.” (BATISTA, 2003, s.p.).
avanços.
“V.A. – Você disse assim: Que você começou no Movimento Negro muito
brava, muito radical, com muita raiva, e que você agora está mais moderada.
Como é que foi essa transformação?
J.B. – Acho que foi a idade. [risos] A idade, eu estar no parlamento, a gente
ver que nem tudo é possível, ver que você tem que fazer algumas alianças
para conseguir alguma coisa...
319
V.A. – Porque a sua atuação agora é política mesmo, política partidária.
Deixou de ser...
J.B. – Uma militante... Hoje eu sou... Eu vou em tudo que o Movimento
Negro me chama, mas muito mais como palestrante. Mudei, o espaço de
ocupação no Movimento hoje é outro. Eu tenho que ter essa clareza, inclusive
para não atropelar quem está na militância, respeitar os militantes. Eu
respeito isso.” (BATISTA, 2003, s.p.).
partir da atuação como parlamentar. Ainda que atue organicamente junto ao movimento
Ferreira é bastante interessante. Embora tenha atuado lado a lado com o movimento de
da “militante”:
Em relação à sua postura e estratégia política nos espaços em que atuou, Vanda
afirma:
“Então a minha forma sempre foi essa. Ser proativa, mas através da
pedagogia e da didática. Não batia de frente. Querendo sempre que em algum
momento, alguns externaram, outros não, pudessem dizer pra mim a
constatação da realidade. Eu não convenci: eles se convenceram. É essa
minha forma de trabalhar, é nisso que eu acredito.” (FERREIRA, 2017, s.p.)
320
A atuação de Vanda Ferreira na defesa de pautas antirracistas e feministas se deu
dessas pautas nos espaços em que atuou esteve sempre combinado a essa postura
Ela ressalta que o impacto de sua agenda política diminuiu quando deixou de
ocupar os espaços institucionais em que atuou, como se esse impacto fosse uma
concessão dada a ela por “não atrapalhar”, por ser “boazinha” e “simpática”. Além de
enquanto Vanda está, o espaço pode ser antirracista e antissexista, mas quando não se
faz mais presente, não é mais necessário atuar nesse sentido. É interessante, ainda,
considerar sua fala de que, “no sistema vigente”, políticas públicas contra-hegemônicas
que sejam profundas e duradouras não são possíveis de fato. Essa impossibilidade,
“Mas por enquanto... Não é pra deixar de aceitar os cargos. O mínimo que se
possa fazer já é muito. Mas não [se deve] acreditar que aquilo vai virar
verdade, vai virar políticas públicas. A máxima de sempre: para inglês ver. O
tempo todo a gente está perpetuando, nos avanços sociais de inclusão, uma
tática pra inglês ver. Você implanta uma lei e durante 13 anos ela não
aconteceu nada, vamos acabar com essa lei porque ela realmente não valeu de
nada. Então o tempo todo eles querem provar que não pode, que não é isso.”
(FERREIRA, 2017, s.p.)
321
conceito de Estado Ampliado e mesmo seu próprio autor sublinharam que a inserção
Essa limitação não significa que esse tipo de estratégia seja desimportante ou
momento de enfrentamento do próprio Estado. A autora ressalta que não se pode perder
do “conjunto das relações sociais burguesas, inclusive seu Estado” (FONTES, 2018, p.
223).
eleições de 2018, vêm evidenciando essas perdas. Com relação a esses processos mais
322
4. Conclusão
sem realizar uma “reforma intelectual e moral” que unifique os grupos subalternizados
em luta para sua emancipação. Ainda assim, não se pode desconsiderar que a atuação do
323
a) Institucionalização do movimento via adoção do formato de ONGs;
324
CONCLUSÃO
estadunidense dos anos 1970, Keeanga-Yamahtta Taylor afirma que o termo “política
de identidade” [identity politics] foi usado pela primeira vez em um texto no manifesto
do Coletivo, em 1977. Taylor explica que o termo não se referia “apenas a quem você
era, mas era também sobre o que você poderia fazer para confrontar a opressão que
Coletivo, se referia à “forma como as experiências nas vidas das mulheres negras
das mulheres negras estadunidenses não se deu por “questões abstratas de doutrina”,
mas pelo fato de que o lugar que ocupavam na sociedade “as fazia
violência, agressão sexual, saúde e habitação inadequadas, para nomear apenas os mais
indignidades criadas pela pobreza, pelo racismo e pelo sexismo” que “levavam as
p. 11).
média na política negra que estava em ascensão na década de 1970” (TAYLOR, 2017,
p. 11) – ou, em outros termos, de um movimento negro de atuação liberal. Como afirma
Taylor, elas não estavam agindo “contra o marxismo”, mas buscando estender sua
325
fundamentais, por outro lado, seu engajamento político significava não apenas uma luta
pela emancipação de todos, mas uma luta pela própria liberdade das mulheres negras.
contribuição ímpar para pensar as estratégias políticas dos grupos subalternos. Nesta
tese, busquei argumentar algo semelhante ao que o Coletivo propôs em seu manifesto,
dessas mulheres também é experiência de classe. Isso não significa que não tenha
O que me levou a escrever esta tese foi o desejo de entender as relações entre
classe social, raça, gênero e sexualidade, como elas configuram as condições nas quais
debate ainda presente na esquerda, que isola e cria hierarquias entre esses aspectos.
falta a ele uma teoria do capitalismo. Em geral, autoras e autores que trabalham com
trazem uma perspectiva descritiva de classe, e não uma categoria que efetivamente se
remeta a relações sociais históricas e concretas. A teoria da reprodução social, por sua
vez, fornece a base teórica para compreender a configuração das relações sociais que
326
forjam a exploração e a opressão sob o capitalismo. Diante disso, me pareceu que
marxista, baseada na teoria da reprodução social, poderia não apenas me trazer um olhar
privilegiado sobre como essas relações moldam nossa realidade social, mas também
A primeira parte da tese, que engloba os primeiros dois capítulos, tem como
uma teoria do capitalismo bem fundamentada que observasse o peso das relações de
gênero, sexualidade e raça em sua configuração, abri a tese com uma análise do
sentido proposto por E.P. Thompson. Mas essa afirmação só é verdadeira na medida em
que classe for entendida como uma unidade contraditória de determinações co-
negras é determinada pelo racismo e pelo (hetero)sexismo, o que faz com que elas
ocupem um lugar subalterno nas relações sociais. Sua experiência, assim, integra a
estudado. A experiência das mulheres negras nos anos 1960 e 1970 as levou a fundarem
327
essas pautas são também demandas de classe, no sentido de que são demandas contra-
demandas mais amplas da classe, pois têm impactos sobre a classe trabalhadora como
um todo.
organizações de mulheres negras tinham uma relação próxima com sua base social e
com o movimento social em geral. Essas organizações tinham como foco a educação
grupo social que se propunha a representar, mas também se apresentava como tendo um
papel político no movimento social em geral e na luta por uma transformação social
movimento organizaram-se sob forma de ONGs. O contexto dos anos 1990 favoreceu
328
Desde a década de 1980, as intelectuais negras buscaram se inserir no Estado
impacto político dessa inserção foi limitado, já que o Estado nunca incorpora
dominantes. Apesar dos limites dessa atuação, essa inserção no Estado restrito
muito além de um problema teórico. Trata-se de um problema político que tem a ver
eles experimentam essas relações de formas diferentes, tendo conflitos intraclasse por
envolvem as dimensões de de classe social, raça, gênero e sexualidade, que devem ser
outras. A preocupação com uma compreensão profunda da totalidade social não implica
329
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354
ANEXO A - Quadro: Elementos biográficos das entrevistadas194
Nome Naturalidade Origem familiar Formação/Escolaridade Organizações em que atuou
Neusa Pereira Rio de Janeiro, Mãe era cozinheira e Curso normal no Instituto de CEP/RJ - Centro Estadual de Professores; Grupo de Mulheres Negras de
RJ, 1945 lavadeira, empregada Educação do Rio de Janeiro. Jacarepaguá (fundadora); Centro de Articulação de Populações
doméstica. Pai ausente. Graduação em Psicologia Marginalizadas - CEAP; Criola (fundadora); Centro de Informação e
Moravam em favela. interrompida (Universidade Documentação Coisa de Mulher (fundadora); Casa das Pretas.
Gama Filho); Graduação em
Letras-Português (Faculdade
São Judas Tadeu)
Vanda Ferreira Niterói, RJ, Pai foi menino de rua na Curso normal no Instituto de ONG Instituto de Pesquisas e Estudos da Língua e Cultura Yorubá –
1947 infância, tornou-se motorista Educação do Rio de Janeiro. IPELCY (diretora cultural); Instituto de Cultura e Consciência Negra
de táxi, participando do Graduação em Pedagogia Nelson Mandela (fundadora); Instituto Palmares de Direitos Humanos;
sindicato da categoria. Mãe (UNISUAM), pós-graduada Fórum de Solidariedade às Vítimas de Violência Sexual na Região da
foi empregada doméstica. Lato-Sensu em História da Leopoldina (Ramos, Olaria e Penha); Conselho Consultivo do Grupo
África e do Negro no Brasil. Cultural OLODUM; Centro de Informação e Documentação Coisa de
Mulher (fundadora); Conselheira do ELAS - Fundo de Investimento
Social; Instituto de Estudo e Pesquisa de Populações Afro-brasileiras
(IPEAFRO); Diretoria de Intercâmbio da Associação dos Naturais e
Amigos de Angola; Membro do Conselho do Prêmio Camélia da
Liberdade do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas –
CEAP, Griot do Programa ReConhecer da ONG Estimativa; Conselho de
Amigos do Centro Afro-Carioca de Cinema Zózimo Bubul.
Jurema Batista Rio de Janeiro, Mãe empregada doméstica; Graduação em Letras Associação de Moradores do Morro do Andaraí (fundadora e
RJ, 1957 moravam no morro do (Universidade Santa Úrsula) presidente); Partido dos Trabalhadores; IPCN; N’zinga - Coletivo de
Andaraí. Pai ausente. Duas Mulheres Negras (fundadora); Movimento Negro Unificado - MNU;
irmãs e um irmão (criado Assessora parlamentar de Benedita da Silva (1983-85); Funcionária
por outra família) por parte pública da Secretaria Municipal – supervisão de creches comunitárias;
de mãe. Uma terceira irmã Vereadora (1993-1996, 1997-2000, 2001-2002) e deputada estadual
falecida na infância. (2003-2006); presidente do Diretório Municipal do PT; Presidente das
CPIs sobre as chacinas da Candelária e de Vigário Geral.
Lúcia Xavier Rio de Janeiro, Mãe empregada doméstica e Graduação em Serviço Acorda Crioulo; IPCN; Movimento pelos Direitos da Criança; Criola.
RJ, 1959 depois trabalhadora de Social (UFRJ)
comércio. Pai operador de
194
De acordo com informações cedidas pelas entrevistadas.
355
som, morreu aos 30 anos.
Duas irmãs.
Edna Roland Codó, MA, 1951 Trisavô paterno francês Graduação em Psicologia Centro Acadêmico de Psicologia da UFMG; POLOP; movimento da
(possível origem judaica), pela UFMG (1972); água (luta por saneamento na zona sul de SP), comitês de apoio às greves
que teve filho com uma Graduação em Ciências do ABC; Bloco Afro Alafiá; Coletivo de Mulheres Negras (ligado ao
mulher negra. Avô paterno Sociais interrompida (USP); Conselho); Comissão de Saúde do Conselho Estadual da Condição
teria sido rábula. Pai mestrado/pós-graduação em Feminina (coordenadora); Comissão de Mulheres Negras no Conselho
comerciante, “guarda- Psicologia Social (PUC); Estadual da Condição Feminina; Programa de Saúde da Mulher na
livros”. Mãe dona-de-casa. Especialização em prefeitura de São Paulo (coordenadora); Geledés (fundadora); Rede
Psicanálise (Instituto Sedes Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; Grupo
Sapientiae) Internacional de Trabalho e Consultoria da Iniciativa Comparativa de
Relações Humanas;
Coordenadora de combate ao racismo e à discriminação da Unesco.
Sueli Carneiro São Paulo, SP, Pai ferroviário e mãe Graduação em Filosofia CECAN; Coletivo de Mulheres Negras; Conselho Estadual da Condição
1950 costureira (após casar, torna- (USP) Feminina (conselheira, secretária-geral); Programa da mulher negra do
se dona de casa) Mestrado inconcluso em Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (coordenadora); Geledés
Filosofia (fundadora); Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
Joselina da Pai baiano (pai-de-santo) e Escola Normal. Graduação CEBA (Centro de Estudos Brasil-África); IPCN (participante ativa mas
Silva mãe mineira, pouca em Letras português-inglês. não sócia); Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro; Bloco Afro
instrução formal. Mestrado e Doutorado em Agbara Dudu; Centro de Articulação de Populações Marginalizadas –
Ciências Sociais (UERJ). CEAP.
356
ANEXO B - Quadro: Cronologia - Eventos significativos para o movimento de
mulheres negras
Ano Evento
1975 Início da Década da Mulher (ONU)
357
Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas (Brasília)
2007 II Conferência Nacional dos Direitos da Mulher
2008 Fórum da Sociedade Civil das Américas para Avaliação dos
Resultados de Durban
Conferência da América Latina e do Caribe, Preparatória à
Conferência de Exame de Durban
358