Você está na página 1de 92

Yoshi Oida

Yoshi üida
shi Oida
Yoshi üida

o
Ator II1visível
1 74 O Ator Invisível

Havia um famoso ator de kabuqui, que morreu 11.1


cerca de 50 anos, que dizia:
"Posso ensinar-lhe o padrão gestual que indica (I/h/li
para a lua. Posso ensinar-lhe como fazer o movinu-nro
da ponta do dedo que mostra a lua no céu. Mas d.1
ponta do seu dedo até a lua, a responsabilidade é inu-i
rarnente sua ."
.Be~a
Copyright © Yoshi üida com t.orna Marshall , 2001
Título do original: The Invisible Actor

Direitos de edição adqu iridos de Methuen London


por .Beca Produ ções Culturais LIda.
Rua Capote Valente, 779
ce p 05409-002 Pinheiros São Paulo SP
fone (11) 3082-5467 fax (11) 3081-8829
e-ma il: beca@netpoint.com.br

revisão
Silvana Vieira
Yoshi üida
projeto gráfico
mercury digital

capa

I ",
Ricardo Serraino

foto da capa
David Brandt
O
Ator nvísíve1
tt.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Cãmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Oida, Yoshi
O ator invisível / Yoshi Oida e Lorna Marshall;
prefácio Peter Brook; tradução Marcelo Gomes. - São Paulo : Tradu ção
Beca Produções Culturais, 2001. Ma rce lo Gomes
ISBN 85-87256 -21-1

Titulo original: The Invisible Man

1. Arte dramática 2. Oida, Yoshi 3. Representação


teatral I. Título.

01-3093 COO-792.028

Índices para catá logo sist emáti co:

1. Técnica da rep resenta ção : Teatro 792.028


.Be@a
Sumário

Apresentação 9
Peter Brook

Prefácio 11
Lorna Marshall

Introdução 18

1 O começo 23

2 O movimento 39

3 A interpretação 59

4 A fala ···· ·· 127

5 O aprendizado 157
9

Apresentação

Peter Bro ok

Está va mos n os últimos dias de trabalho em Paris.


Nosso gr upo tinha sido convidado p ar a assistir à apre-
sentação de uns músicos num a casa d e jazz em Les
Halles , Yoshi e stava atrás de mim e no s espremíamos
para p assar p ela única porta d a pequena sala, que esta-
va s ufoca nte e abarrotada . Nó s no s a pertá va mo s e nos
acotove lávamos e m direção ao p alc o , o nd e os únicos
luga res d isponíve is ficav am e nt re os mú sico s e a pare-
de d o fundo . A mú sic a não estava m uito interessa nte,
fazia um ca lo r ins uportável e e ra e vidente que , expos-
tos como estávamos, na condiç ão de co nv idados, à
frente d o público , n ão p odíam os ir e mb ora a ntes d o
término . Muito tarde , quando fin alm ente te rm ino u a
a p rese ntação - n ão suportáva mos ma is o ca lo r, nem
n ossos corpos moídos d e tanto fica r d e p é - , percebe-
mo s q ue Yos hi não est ava ma is conosco . Co mo e sca-
po u, perma nece até hoje um m ist é rio ; sa bía mo s que
ele era um a cr iatu ra feita de ca rne e osso co mo n ós ,
p ortanto , se tinha sumido, não fo ra p or nenhum p asse
d e m ágica, ma s sim por a rte .
Meu p ai costumava citar seu ve lho professor de Físi-
ca q u e se mp re repetia: "Não existem fenômenos que
n ão possam se r reduzidos a números". Em nossos dias ,
a tragédia d a arte é que nela não há ciên cia e a tragédia
d a ciência é que nela não há e moção. Quando lemos o
livro d o g ran de mestre zen Ze ami , Segredos do nó , per-
ce be mos que a m ente ocidental pensa , imediatame n te,
10
Yoshi Oida I I

~~~ ~riente visto através da densa fumaça dos covis


, ~plO. Na verdade, tanto segredos quanto mistérios
s~ sao vagos e românticos quando inexplorados. Yoshi
OIda ~ost~a ~omo os segredos e os mistérios da inter-
pretaçao sao lllseparáveis de uma ciência precisa con- Prefácio
creta e .detalhada, aprendida no calor da experiê~cia
d As ltções vitais que ele nos passa são apresentad~s
Lorna Marshall
e mane~.ra tão luminosa e graciosa que as dificulda-
des,_ fre~uentemente, tornam-se invisíveis. Tudo pare-
ce tao .sImples, mas é justamente aí que está a armadi-
lha: seja no Oriente, seja no Ocidente, nada é fácil.
Yoshi Oida é único.
Paris, 1997 Sua carreira profissional começou cedo, há cerca
de 50 anos, no Japão. Como ator mirim, explorou tan-
to o clássico teatro nó quanto formas modernas de
expressão, incluindo a televisão. Conforme foi cres-
cendo, não só continuava a estudar e a interpretar em
vários estilos do teatro japonês tradicional (nó,
habuqui e o contador de histórias, gidaiyu), como
também atuava em peças de estilo ocidental. Também
se envolveu no trabalho experimental do dramaturgo
Yukio Mishima.
Quando estava com mais de 30 anos, deixou o Ja-
pão e foi para a Europa. Lá chegando, logo entrou em
contato com um diretor estrangeiro chamado Peter
Brook, cujas idéias sobre teatro pareciam intrigantes e
inovadoras. Embora não falasse nenhum idioma euro-
peu, Yoshi arrumou as malas e tomou o avião com des-
tino a Paris. Apesar do estranhamento causado por
aquela cultura "exótica" e sua abordagem nada familiar
do fazer teatral, ficou na França, exercendo sua profis-
são. Com o passar dos anos, Yoshi tornou-se um dos
expoentes do trabalho do Centro Internacional de Cria-
ções Teatrais, participando da maioria de suas
marcantes produções, como Os íks, A conferência dos
pássaros, O Mahabharata, The Man Who. Também
atuou em filmes, dirigiu espetáculos e organizou
workshops para atores no mundo inteiro.
12 o Ator Invisível Yoshi Oida 13

Não co n heço ningu ém que tenha tam anha ampl itu- O ky ôgen , ao co ntrario, é b em pé-na-ch ão : fars as
de e profundidade na exp e riência da representação , curtas qu e explo ram as trapaças de se rvos infié is, figu-
não só do O rie nt e e d o Ocidente, mas também do tra- ras hipocondríacas e o grande prazer existente no jogo
dicional e do experimental, do texto escrito e do im- da vida co tidiana . Numa ap rese ntação tradicio nal de
provisado , do cinema e do palco, do co rpo e da voz , tea tro n ô, serão e mp regad os os dois estilos, no mesmo
co mo ator, professor e d iretor. É esse extraordinár io palco , co m as peças de n ô e de kyôgen alternando-se
alcance de habilidades qu e o torna úni co e esp ecial- ao longo do program a.
mente qu alificado p ara fala r so bre o ofício do ato r. No passado, ca da programa acontecia apenas uma
vez num determin ado a n o . Se m temporad a , se m
Como o início do treinamento de Yosh i se deu den- re apresentações. O program a normalmente co ns istia
tro das trad ições do teat ro clássico japonês, ele sempre em ci nco peças de n ô - sisudas - e qu atro de ky ôgen-
se reporta a essas técnicas, abordagens e métodos de cô micas - , alternando-se umas co m as outras ao longo
ensino. Algumas pitadas de informaçã o servirão de de um único dia . Embora esses eventos que ocupavam
background para q ue se dê uma idéia mais clara do um dia inte iro tenham-se torn ado raros hoje e m dia ,
contexto em que Yoshi faz seus comentários . sua est rutura ainda determina o motivo das peças . Tra-
São dois os principa is estilos d o te at ro japonês: n ô d icionalmente a primeira peça , de n ô, é sobre deuses,
e kabuqu i. Surgiram séculos atrás e mantiveram seu a segunda co nta a história de um gu erreiro, e a terceira
encanto até os dias de h oje , apesar da influê ncia do tem um a mulher co mo personagem pr incipal. O quarto
teatro ocide ntal e da televisão . Embora retratem suas gru po ap resenta personagens (freq üenteme nte mulhe-
épocas, esses estilos não são peças de museu ou re- res) co m maior g rau de com plexida de psicológi ca do
criações de uma tradição p erdida. São formas te atra is que os anteriores. Po r esta raz ão , essas peças sã o regu-
vivas que contam com a participação de um público larmente descritas co mo as das "mulheres lou cas", em-
devoto. bora a atual gama de perso nagens que foi incorporad a
O nô surgiu no come ço do século XIV e foi sistema- seja mais ampla do que sugere esse nome . O quinto e
tizado por se u grande mestre, Zeami. Dentro do teatro último grupo con ta histórias so b re demônio s. (No
n ô, existem dois sub estilos . n ô ele mesmo e o kyôgen . ky ôgen , as mesmas ca te gorias são utiliz adas, à exceção
O n ô é um teatro de má scaras altamente estilizado, qu e do grupo de "m ulheres", que nã o ex iste .) As pe ças que
emp rega mo vimentos de danças ritualística s, acompa- tratam dos deuses tendem a se r mai s lentas e imponen-
nhamento mu sical e um int enso uso da voz. Seus temas tes enquanto as de g ue rre iros, mesm o sendo fisicamen-
tendem a ser melancóli cos, ligados às p erdas , sa uda des te ma is ativas , não traz em muita profundidade dramáti-
e incertezas do amor e da vid a. Apes ar de o figurin o se r ca . Co nfo rme nos ap ro fundamos na s catego rias das
suntuoso, o n ô é minimalista no estilo . Utiliza-se um mulh eres e d as loucas, perc ebemos o a u m e n to
palco vazio, os gestos são formais e o uso de másca ras gradativo de uma co mp lexidad e dramática e de uma
se rve para criar um sentido distanciado de atmosfe ra agitação emocional , e a peça final, a dos demônios , é
trágica (em vez da ação dr amática) . No n ô a emoção é vio le nta , rápida e relat ivamente esp etacular. Hoje em
muito pouco expressada, há p ouco conflito d ireto, pou- dia, um programa de n ô co nta co m uma o u du as peças
cos efeitos esp etaculares . de cada ca te go ria .
14 o Ator Invisível Yoshi Oida 15

o teatro kabuqui apareceu no século XVII e , assim muitas vezes tecnicamente fascinante , incluindo efeitos
como o nô, utiliza a dança, o canto, a música e figuri- espetaculares de palco.
nos grandiosos. No entanto, ao contrário do n ô, o obje- Também nos teatros nô ou kabuqui há um estilo tra -
tivo do kabuqui é criar um vívido espetáculo que des- dicional de se contar histórias chamado gidaiyu, que se
lumbre o público. O texto está centrado em eventos desenvolveu no século XVI. Embora exista de maneira
dramáticos e sentimentais, como os de amantes que independente, ele também aparece como um acompa-
cometem suicídio, samurais destemidos - porém desa- nhamento para o teatro de bonecos bunraku , sendo al-
pegados - que lutam por seus direitos e manipulações gumas vezes incorporado em certas peças de kabuqui.
de elegantes cortesãs. Situações chocantes, beleza eró- Quando aí é usado, explica e reforça a ação dramática.
tica, horror, perdas, dor... tudo isso é passado através Nesse caso, o contador de histórias senta-se em um dos
da suprema habilidade do ator. E a destreza do ator é lados do palco e narra os acontecimentos com extraordi-
"ap re sen tad a" justamente para ser admirada pelo pú- nária técnica vocal e arrebatamento da emoção. Um
blico. Desse modo sua abordagem é completamente tocador de samisém põe-se ao seu lado acompanhando
diferente daquela do nô. Em vez da sutileza e das su- suas palavras, para expandir a atmosfera. O samisém é
gestões de sentimento que estão no teatro n ô, as peças um instrumento sobre cujo braço, longo e fino, se esti-
kabuqui são concebidas para exibir as proezas físicas, cam três cordas que são tangidas para produzir sons que
vocais e emocionais dos atores. ecoem a extensão da voz humana.
Uma temporada de kabuqui dura um mês, com um Nessas formas de teatro japonês, "interpretação" não
programa que reflete a qualidade particular da época existe como uma aptidão separada; toda atuação pode
do ano - por exemplo, no verão, peças com fantasmas ainda ser chamada de "dança" , "canto" ou "récita". A
(histórias de dar calafrios) ou água espirrando são re- somatória dessas habilidades é o que os ocidentais de-
gularmente oferecidas como algo refrescante para ate- veriam chamar de "interpretação". Este é um reflexo da
nuar o calor sufocante. Normalmente, as encenações natureza do teatro tradicional japonês, um tipo de "tea-
de kabuqui começam no período da manhã e se esten- tro total", que integra movimento, interpretação e in-
dem até a noite, sendo apresentadas em partes, separa- tensa produção vocal. No Ocidente, o teatro tornou-se
damente. Pode-se ficar sentado ali o dia inteiro ou dar especializado: atores interpretam, bailarinos dançam e
uma saída e depois voltar, à vontade. Pode-se até levar cantores ocupam-se das vozes quando cantam. Com
o almoço ao teatro e ficar mastigando ruidosamente exceção do teatro musical, pouquíssimos artistas são
durante a apresentação. Dentro da programação de um levados a desenvolver habilidades de outras linguagens
dia não há repetições. Não existe uma matinée seguida teatrais. Como existem alguns raros indivíduos capazes
de uma mesma exibição noturna, mas sim uma seqüên- de se sobressair no canto, na dança e no desempenho
cia de partes, uma após a outra. Pode ser uma peça vocal , são considerados excepcionais e acabam sendo
histórica baseada nas guerras de uma época remota, aplaudidos pela versatilidade. De um ator japonês, ao
em três atos diferentes, ou uma comédia, ou algo mais contrário, espera-se que tenha proficiência nas três
"psicológico", envolvendo os conflitos dos deveres, as áreas . Isto não significa que o artista japonês possa fa-
dores de amores, os sacrifícios pessoais. Bem no final , zer um papel no Royal Opera House de Londres; a
há uma dança de estilo mais leve , embora seja algo ópera e o balé têm-se desenvolvido em seus campos
16 o Ator Invisível Yoshi Oida 17

especializados há muitos sé culos, e os estilos de pro- n qu e e u pare e reveja minhas idéias e respostas
, '( li

dução vocal e de mo vimentos são bem diferentes no lI;i1)ituais. E, finalmente, encontro minhas próprias res -
Japão . O mais importante e que se deve ter e m mente é 1)( ista s para os aspectos que ele abo rdo u. É assim que
qu e se es p era do int érprete tradicional no Japão que Yoshi traba lha. Ele nunca irá dizer "se você fizer A, o
se ja ca p az de e mpregar uma técni ca vocal e corp o ral resultado se rá B". Simp lesme nte ele fará a pergunta, ou
bem mai s ampla do que a do ato r ocidental; e que a sugerirá o ex e rcíci o e deixará que você descubra o que
palavra "dança " se apliq ue igu almente ao "ato r". No pode aco ntec er.
teat ro jap onês , "dança" é a expressão visua l do pers o- Trabalhando neste livro , tentei passar o sabor da qua-
nagem, o co ntexto, suas relações, sua e mo ção , mais d o lidade das conv ersas e dos momentos qu e tive o privilé-
que puro movimento . gio de passar com Yosh i. N1.o há nenhuma receita infalí-
vel para que se tenha sucesso imediato, mas apenas
As pessoas muitas vezes perguntam co mo foi qu e questões, sug es tões, históri as e exercícios . Boa sorte .
me e nv o lvi ne sse trabalho com Yoshi. Na ve rda de , isso
foi de algum modo inevitável, na medida e m qu e m eu
trabalho no te atro ocupava parte desse me smo territó-
rio . Eu tinha estudado com uma vari edad e de p rofesso-
res tanto no Ocidente qu an to no Japão, e me via levan-
tando os mesmos tipos de questões sobre a nature za
da interpretação. Finalm ente, fomos ap res e ntad o s, e
após muitas conversas sobre "inte rp retação " e "p rá tica"
(e "esco lhas"" . e "vida".., etc.) , Yosh i me pediu para
que colab o rasse com e le em su a a uto biografia Um ator
errante (São Paulo, .Beca ,1999). Assim decidimos es-
creve r este livro .
Depois de anos de col aboraçã o , Yoshi e eu te mos
passado muitas horas co nve rsando. Para mim, pessoal-
mente , essas conversas têm sido de um va lor inestimá-
vel, pois me oferecem novos mei os de observar a mim
me sma e a meu tra balho , muito emb o ra não se ja m
"bate-pap os agradáveis". Yoshi muito raramente se sa i
com alguma declaração direta. Em ve z disso e le faz
perguntas, ou exa m ina, ou co nta um a história apare n -
temente irrelevante sob re uma luta co m esp ada s, Con- Nota: as seções em itáli co são
tudo, me smo quando dis cordo dele, ou não co nsigo meus próprios comen tários, que
entender o ponto de vista de seu s comentários, as ques- normalmente ampliam ou tor-
tões que sã o levantadas me le vam a pensar mais p ro - nam mais claras algumas coisas
fundamente sobre aquilo q u e es to u fazendo. Ele faz qu e Yoshi d iz. L.M.
18 Yoshi Oida 19

os, capazes de a pa recer e desapar ecer à vontade. Sen-


do ass im, e les fascina vam o público infantil.
Mesm o q uando e u já tinha idad e suficie nte par a ir à
Introdução esco la, co ntinuava enfeitiçado por aqueles filme s, de
man e ira que cheguei a dizer a minha mãe qu e eu que-
ria se r um nin ja . Na realidade, eu qu e ria era desapare-
No Japão, quando eu era crian ça, os filmes de ninja ce r de mane ira mág ica . Insisti tanto naquilo qu e, final-
eram extremamente populares, sobretudo entre as crian - mente, minha mã e sai u com um a solu ção . Ela fez um
ças . Como muitos de meus colegas, e u adorava aqueles saco de te cid o preto, que me deu , diz endo : "Este é um
filme s e ia assisti-los quantas ve zes fosse possível. segredo mágico d os ninjas!"
Uma das coisas que faziam co m que atraíssem tanto Imediatam ente me cobri com o saco e agache i no
as crianças era o poder "mágico" do personagem prin- chão. Minh a mãe exclamou: "Cadê o Yoshi? Para que
cip al. Guerreiros ninja podiam escalar uma pedra es- lado ele foi?"
ca rpada ou engatinhar, no tet o , de cabeça para baixo. Eu estava abs olutamente extasiado com a minha
Eles andavam sobre as águas e , se mp re que quisessem, habilidade e m to rnar-me invisível e pensei : "Agora sou
ficavam invisíveis . Seu tre ina mento secre to capacitava- um ninja de ve rdade !"
os a realiz ar centenas de coisas perigosa s, como ser um Então livrei-me daquele engenho pret o e de repen-
agente secreto no campo in imigo es p io nando alguma te "re ap a reci". Minha mãe boquiaberta d isse: "O h,
co isa, o u escapar do siste ma de defesa de um castelo Yoshi ! Voc ê es tá aqui! Como é que não te vi?"
para libertar os amigos do cativei ro. E ass im co nt in ua mos com essa brincad eira durante
No J apão medieval, gu erreiro s ninj a existiram de um tempo.
fato , e mbora seus poderes não fossem mági cos. Eles Algumas semanas depois , um a das am igas de minha
era m lut adores especializad os e m espionagem , sabo- mãe deu um pulinho em casa par a fazer uma visita.
tagem, sa b iam co mo se infiltrar , se rvindo -se de tru - Imediatam ente me esco ndi no saco mágico de ninj a, de
ques e té cnicas incomuns que lhes permitiam fazer modo qu e minha mãe bradou , como fazia, "Yoshi su -
coisas ap are nte mente impossívei s. Por e xe mp lo, quan- miu! Cadê e le?"
do esca lav am um muro , usavam ga nc h os presos às Sua ami ga aponto u para o saco: "Está ali dentro!"
m ã o s , e também utiliza vam pequenos "s a p a tos" Naquele instante entendi o que vinh a aconte ce ndo
infláveis quando corriam so b re as ág uas. Vestiam rou - e explodi em lágrimas, berrando: "Esse sac o mágico é
p as pretas para se camuflar e atirav am pó nos olhos uma porcaria!"
dos inimigos quando queriam desaparecer rapidamen- Depois d isso desisti do sonho de um dia me tornar
te. Eram necessários muitos anos par a aprender e do- ninja.
min ar aquelas técnicas. A fase seguinte foi a das perucas e maquiagem.
Evidentemente, nenhuma das e xplicações lógicas Quando são re alizadas celebrações es pecia is nos
para essas proezas aparecia nos filmes. Co m o auxílio santuár io s xinto ístas, arma m-se barracas em que uma
da tecnol ogia cinematográfic a , os ninj as eram mágicos variedade de coisas são ve nd idas aos p articipantes,
e sobre-humanos , imbuídos de p ode res extraordinári - dentre as qu a is máscaras simples e perucas para crian-
20 o Ator Invisível Yoshi üida 21

ças. Inútil dizer que fiquei fascinado por elas, implo- velar, através da atuação, "algo mais", alguma coisa que
rando a minha mãe que me comprasse uma peruca de o público não encontra na vida cotidiana. O ator não
samurai feita de papel, pintada de preto com uma es- demonstra isso. Não é visivelmente físico mas, através
pécie de tinta que servia também para desenhar na tes- do comprometimento da imaginação do espectador,
ta sobrancelhas afiadas, furiosas. Para ampliar a impres- "algo mais" irá surgir na sua mente. Para que isso ocor-
são heróica, corajosa, acrescentei barba e bigodes. Ex- ra, o público não deve ter a mínima percepção do que
perimentei também como se fosse uma peruca de pa- o ator estiver fazendo. Os espectadores têm de esque-
pel de "gueixa", com a ajuda dos cosméticos da minha cer o ator. O ator deve desaparecer.
mãe. Abarrotei o rosto com camadas e camadas de pó No teatro kabuqui, há um gesto que indica "olhar
branco até ficar completamente irreconhecível. Era um para a lua", quando o ator aponta o dedo indicador
efeito bem mais satisfatório. para o céu. Certa vez, um ator, que era muito talentoso,
Em seguida, importunei minha mãe para que com- interpretou tal gesto com graça e elegância. O público
prasse algumas daquelas máscaras simples, de plástico pensou: "Oh, ele fez um belo movimento!" Apreciaram
ou de papel, que estavam à venda nos templos. Tomei a beleza de sua interpretação e a exibição de seu
de assalto o armário de meus pais para escolher algu- virtuosismo técnico.
mas roupas. Usando minhas perucas, máscaras e algu- Um outro ator fez o mesmo gesto; apontou para a
mas roupas, eu brincava de ser uma centena de pes- lua. O público não percebeu se ele tinha ou não reali-
soas diferentes: um lorde, um samurai valente, uma zado um movimento elegante; simplesmente viu a lua.
gueixa bela, porém trágica, e assim por diante. Ficava Eu prefiro este tipo de ator: o que mostra a lua ao pú-
desfilando durante horas na frente do espelho, fingin- blico. O ator capaz de se tornar invisível.
do ser todos aqueles personagens. Figurino, perucas, maquiagem e máscaras não são
Agora posso ver que aquelas perucas e aquela suficientes para que se alcance esse nível de "desapa-
maquiagem com as quais eu brincava eram apenas ver- recimento". Ninjas tinham de treinar por muitos anos
sões, diferentes do inusitado saco preto que minha mãe seus corpos a fim de aprender a tornar-se invisíveis. Do
tinha feito para mim. Eram um meio de sumir. Um jeito mesmo modo, os atores devem trabalhar duro para se
de me esconder. Desaparecer na frente das pessoas, desenvolverem fisicamente, não com a simples finali-
em vez de representar para elas. É evidente que eu não dade de adquirir habilidades que possam ser exibidas
era invisível de verdade, mas o "eu" que os outros viam ao público, mas com a finalidade de serem capazes de
não era o "verdadeiro eu". Através das máscaras e sumir.
maquiagens, o "eu" se tornava invisível. Mestre Okura, um famoso professor de kyôgen,
Considerando essa preferência por ser "invisível", uma vez explicou qual a conexão entre o corpo e o
por que diabos quis eu ser logo ator, alguém que, justa- palco. Palco, em japonês, se diz bufai. A sílaba bu sig-
mente, tem de se revelar em público? Perguntei-me isso nifica "dança" ou "movimento" e tai, "palco". Literal-
durante muitos anos e só agora, pouco a pouco, estou mente, "tablado/lugar da dança". Entretanto, a palavra
conseguindo entender o porquê. tai significa também "corpo", o que sugere uma outra
Interpretar, para mim, não é algo que está ligado a possibilidade de leitura: "corpo da dança". Se empre-
me exibir ou exibir minha técnica. Em vez disso, é re- garmos esses sentidos da palavra butai, o que é o artis-
22 oAtor Invisível 23

ta? Okura dizia q ue o corpo humano é o "sangue do


corpo da da nça ". Sem isso , o palco está morto . Assi m
que o artista e ntra no p alco , o espaço começa a ganha r
vida; o "corp o da dança" co me ça a "da nçar". Enfim ,
n ão é o artista que es tá "dança ndo", mas, através de
se u mo vimento , o palco "danç a". Nosso trabalh o , en-
q ua nto ato res , não é o de ex ibir virtuosismo técn ico
ma s, ao contrário , o de fazer co m que o palc o ga nhe
vida . Q ua ndo isso acontece , o públ ico é levad o junto
com o a rtista e entra no mu ndo q ue o p alco cria. As
p esso as se se nt em como se estives se m num desfilad ei-
ro , o u no me io de um ca mpo de batalh a, ou em qual--
que r o utro lugar que possa existir no mundo. O palco
contém todas essas possibilidades. É responsabilidade
do ato r fazer com que elas apareça m .
1 o começo

Yoshi Oi da
Paris , 1997
-------------_········.IlII1··· II
!!!:m:li!:;
I

24 o AtorInvisível o começo 25

p ano , limpando cuidadosamente . Não devemos nos


apressar, ficar distraídos ou pensar em outras coisas.
Não devemos papear com outro cole ga . Tudo isso é
ex tre mame nte difícil , mas é a lgo muito bom para trei-
nar a concentração de que um ator necessita .
Existe um conceito que se en contra na antiga filoso-
fia budista india na, o sa m a dbi, que se refere a um ní-
LIMPEZA
vel particular de concentração profunda . De certo
Antes de começar qualquer coi sa , é importante lim- modo , é absoluta mente sim ples: quando lemos um li-
par o espaço de trabalho. Esvaziá-lo, desfa zer-se de vro , ape nas nos co nc entramos na leitura do livro ; quan-
tudo o que é inútil e ordenar apenas algumas cade iras do pescamos, pomos nossa atenção somente nos mo vi-
necessária s ou ce rto s ac e ssórios, cuidadosamente, pró- mentos e na vibração da própria linha; quando limpa-
ximos às p aredes do ambiente. Depois limpa-se o chão . mos o ch ão, é tudo o que fazemos.
Se os ato res se derem esse tempo e se e ntrega rem a Na vid a co tidi a na, quando nos encarregamos de
isso no começo do dia de ensaio , o trabalho tende a ser um a tarefa s imp les, d e vemos tentar pôr a ate nç ão intei -
bom. No Japão, todas as tradições teatrais , religiosas e ramente naquilo que estamos fazendo . Sentirmo-nos
da s art es marciais seg uem essa prática . como se estivéssemos cobertos e apoiados pela en er-
Mas es sa limpeza não é feita de q ualquer jeito, só gia do universo int e iro. Normalmente nossos pensa-
para se livrar da sujeira, us ando d etergente ou at é al- mentos escapam para todos os lados: estamos limpan-
guns aparelhos . Todas as disciplinas tradicionais têm do o chã o , mas nos "e sq ue ce mos" do que e stamos fa-
um estilo particular de limpar o chã o, em que se usa ze ndo e acabamos pensando no que ac onteceu no dia
ág ua fria com panos de algodão , ficando-se num esta - anterior, no barulho irritante que faz em nossos vizin hos
do desperto de consci ência e so licita ndo do co rpo um a o u na conta de luz que precisamos pagar. Nes se e stad o
posição específica. O pano deve ser umedecido em é impossível ser envolvido pela energi a do universo.
ág ua fria (sem detergente) e depois torcido . Abre-se o Não importa , realmente, n o que nos co nc e ntra mos,
pano úmido no ch ão, pondo-se as duas palmas das desde que nos co ncentre mos tot almente. Desenvol ver
mã o s sobre ele. Os joelhos não tocam o chão, somente e ssa co nce nt ração ajuda a entrar no estado de samadhi.
as mãos e os pés, de m odo que o co rpo fica p arecido Uma ve z ne ste es tado, começamos a perceber a ex is-
com um V invertido. Ent ão a nda mos para a frente , len- tência de algo alé m de nossa energia pessoal. Existi-
tamente, empurrando o pano pelo chão. Normalmente mos em dois nív eis. Por exe m plo, ag ora e sta mos lendo
co me çamos por um lad o do ambiente e atravessamos e ste livro. Enquanto nos concentramos na "leitu ra" das
se m parar em direção a um o utro . Quando ch egamos palavras, estamos também despertos p ara tudo o que
na p arede oposta, ficamos em p é , umedecemos o pano es tá a nossa volta; mas a consci ê nci a disso não nos
e rec omeçamos por um a outra "p ista". Ne sta posição , perturba .
nossos quadris estão firmes, e trabalhamos o co rpo à Eu tento estender esse exercício na minha vida co-
medida que limpamos o chão. Enq ua n to fazemos esse tidi ana. Qu ando me le vanto pela manhã e vou e sco-
exe rcício , temos d e pensar somente e m esfrega r o va r os d entes , p rocuro m e concentra r apenas no esco-
26 oAtor Invisível o começo 27

var os dentes. Infelizm ente, sempre me distraio . Co- mundo inteiro, mas no japão há um fator adicional. A
meço cui da dosame nte a pôr minha aten ção na ati vi- ação de limpar não só o corpo ma s também o ambiente
dade da esco vação, mas freqüentemente m e p ego em qu e se está tem uma di mensão espiritual, enraizada
pensando: "Não posso me esquecer de ir ao ban co ... nas origens da religião xintoísta . De acordo com esta
tenho de telefonar para fula no, beltran o ... se rá que o tradição, o deus Isanagi lavava seu corpo para se puri-
metrô vai es ta r mu ito cheio hoj e?" É ex tre ma mente f ica r após urna j ornada n o submundo da morte. Con-
difícil concentrar-se apenas na ação de limpar; é fácil f orm e limpava sua pele divina, removendo as conta mi-
distrair- se. No entanto , os ato res de vem se r ca pazes na ções do submundo, várias entidades, deuses, e multi-
de re alizar qu alquer atividade co m 100% de si mes- dões era m criadas. Nessa cosm ologia, a limpeza está li-
mos e de co nce ntração. gada à criação. Trata-s e de uma ação positiva, p odero -
Se co nsi derarmos esse ponto de vista, limpar não é sa, e não simplesmente algo qu e sign if ique apenas li-
simplesmente uma "p re paração " p ar a trabalhar. A pala- vrar-se da sujeira .
vra "preparação" tende a sugerir que a etapa seguinte é Em algu mas seitas xintoístas, o ritu al da purifica -
que é importante. Não é esse o caso . A aç ão de limpar ção do corpo toma a f orma de um banho de mar, mes-
já é útil por si mesma. mo qu e se esteja em pleno in vern o. Esta prática é cha-
Essa aborda ge m da limpeza não es tá limitada ao mada misogi. Se não f or f eita no mar; pode ser realiza-
ambien te o nde se irá trabalhar. Tem os igualmente de da em qualquer lugar em qu e haja água fria corrente,
nos asse gurar de que nossos corpos es tão no mesm o com o num rio, cachoe ira, ou até mesmo deba ixo do
es tado de prontidão. No J apão , nas artes marciais, a n- ch uve iro. Uma vez imerso, o partictpante faz exe rcícios
tes de um g rande torneio o u nos momentos qu e ante- especificos, que en volvem câ nticos e con centraçã o.
cedem um a apresentação de n ô particularmente impor- Em termos de vida cotidiana, limpeza implica um
tante, os lutadores/intérpretes de rramam ág ua fria so - respeito apropriado por si mesmo, sen do também u ma
bre a cabeç a. Não apenas para se livrarem de alguma maneira ativa de preparar a mente e o corpo para um
sujeira , mas para se purificarem simboli camente. Do trabalho disciplinado. Praticamente todas as artes mar-
mesmo modo , é interessante notar qu e muitas culturas ciais e práticas religiosas ressaltam a imp ortância da
pelo mundo int eiro ressaltam a im p o rtância do ritua l limpez a, não corno algo prelim inar ati vidade, mas
ã

de purificação . No Islã lavam-se os p és antes de entrar como algo que faz part e integral do próprio treinamen-
na me squita, e no xintoísmo lavam-se a bo ca e as mãos to. Sendo assim , começ a-se o d ia de trabalho com uma
ant es de e nt rar no templo ; no cristi ani sm o , o batism o limpeza comp leta dos ambientes e do corpo. L.M.
tem um significado simbólico e cerimonial. Talve z es -
sas crenças tenham su as o rige ns na necessidade de se n- OS NOVE ORIFíCIOS
sibilizar as pessoas para as q uestões de higiene, mas A preparação do corpo vai a lém de to rná-lo limpo;
todas enfatizam a importância da limpeza como uma temos também de cuida r dele . Sob retudo dos no ve ori-
parte do culto . fícios. Seg undo a trad ição jap onesa , o corpo tem no ve
O valor da limpez a e da pureza é central na cultu ra o rifícios: dois olhos , du as narinas , duas or elhas, uma
japonesa . Evidentemente, a importância de lavar e lim- boca , um o rifício p ara a passagem de água e um o utro
par, na preven ção contra doen ças, é reconhecida no para defeca ção . Todo s precisam de atenção .
o AtorInvisível
o começo 29
28

pintura valiosa, uma preciosidade que foi herdad~ , ten-


OLHOS
do pas sado de geração a geração. Sinceramente, nao sou
Como o público está sempre muito atento aos olhos
um grande conhecedor de quadros, então, em vez de
do ator, devemos cuidar bem deles. Por exemplo, é bom
ficar guardando, acho que seria melhor dá-lo ao senhor.
lavar os olhos com água morna. Colocamos o rosto na
O senhor poderia pendurá-lo na parede da sua casa, de
água, piscamos os olhos várias vezes, olhamos para cima ,
mod o que isso lhe trouxesse alguma satisfação.
para baixo, para a direita, para a esquerda, e em seguida
O mestre aceitou o quadro e o pendurou na parede
fazemos movimentos circulares. Depois de ter lavado os
de sua casa. Sentou-se para olhá-lo e, depois de algum
olhos, podemos rnassage á-los calmamente. Com os olhos
fechados, repousamos as palmas das mãos sobre eles e tempo , virou-se para o discípulo e disse:
_ Muito obrigado. Você me deu uma jóia delicada.
empurramos os globos oculares suavemente para dentro.
Como retribuição , gostaria de lhe dar uma soma em
No teatro leabuqui, olhos expressivos sempre foram
considerados como uma vantagem essencial (chegam até dinheiro.
a ser chamados de "olhos de um milhão de dólares") . O discípulo recuou , exclamando:
_ Não , não! Não lhe dei o quadro em troca de di-
Através dos séculos, foram desenvolvidas numerosas
nheiro. Apenas achei que seria bom para o senhor ter
convenções nas quais os olhos são usados para sugerir
emoções diferentes; por exemplo, para expressar sedu- essa preciosidade.
ção, usamos um olhar de soslaio, em vez de um olhar O mestre tranqüilizou o rapaz:
_ Não se preocupe. Eu também gostaria de agrade-
fixo. Como essas convenções são uma parte importante
cer-lhe e demonstrar minha gratidão. Ficaria realmente
da tradição do leabuqui, o ator deve ser capaz de empre-
gar totalmente os olhos quando interpreta. satisfeito se você aceitasse o dinheiro.
O discípulo refletiu um instante e pegou o dinheiro.
Mesmo fora do leabuqui, olhos despertos são necessá-
rios para uma boa atuação. Por exemplo, precisamos sa- Quando estava indo embora, disse:
_ Estou muito feliz por saber que um objeto importan-
ber escolher o me-sen C'linha d'água"). Isso inclui foco
te de herança de minha família está guardado na sua casa .
(desfocado, nitidamente focado , próximo ao foco, longe
Poucos dias depois , um marcband apareceu em vi-
do foco) e também direção. Existem outros truques, como
sita ao mestre. Ele observou o quadro e comentou:
o da convenção "olhando para a lua". Embora a sensação
_ Acho que você foi trapaceado. Isso não passa de
para o público seja a de que nossos olhos estão focados
na lua estamos, na realidade, usando o queixo para uma cópia.
O mestre apenas sorriu e respondeu:
olhá-la . Isso torna a ação maior e mais verdadeira.
_ Eu já imaginava. Não pendurei na parede a obra
Sendo capazes de usar bem os olhos não ficamos
de um artista famoso , mas sim o bom coração de meu
confinados ao mundo físico. O olhos podem ver tanto
discípulo. Não interessa se o que de me deu é uma
as coisas concre tas quanto as invis íveis.
falsificação , o coração é o que importa .
Era uma vez um mestre e seu discípulo. Um dia o
Se apenas "olharmo s" para o quadro , veremos que
discípulo aproximou-se do mestre e disse:
é uma fraude. Mas quando realmente "ve mo s" o qua-
- O senhor tem sido um professor excelente e me
dro, temos a possibilidade de apreciar o coração gene-
ensinou muitas coisas úteis . Eu gostaria de demonstrar
minha gratidão por sua ajuda. Na minha casa tenho uma roso do discípulo.
/

30 o Ator Invisível
o começo 31

Existem dois lados: o visível e o in visível. Qu ando pro curam o s o pedacinho de cartilagem na frente da
lid amos com o material , só podemo s obse rvar isso orelha , no p onto onde ela encontra o contorno do ros-
til . Apertamo-lo su ave me nte . Então segu ramos o lobo
como se ndo material. Por outro lado, podemos tentar
trabalhar o material co mo se houvesse uma o utra di- da or elha com o polegar e o dedo indicador, realizan-
mensão ou significado , algo que es tá antes ou depois do um movimento circular. Depois, tentamos "expan-
da forma material. dir" a orelha, puxando-a lev emente p ara fora - descen-
do , a p artir do lobo, subi ndo a partir do contorno do
N A RIZ rost o e para trás, a partir da lateral do co nto rno do
É muito importante tomar uma quantidade suficiente ro sto . Em se guida , continuamos segurando o lob o , efe-
de ar. Se noss as narin as estiverem entupidas, pod emos tuando mo vimentos livre s. No Japão , acredita-se que
dar um jeito de inspirar e expir ar apenas com a boca, quem tem um lobo grande, terá mu ita saúde e dinhei-
mas é melhor inspirarm os através do nariz . Aliás, há um a ro ... portanto , continuemos puxando .
antiga tradi ção japonesa que conecta as nar inas à tercei- Próximo passo : pr essionamos levemente a palma das
ra visão . Não conhecemos a importânci a ex ata da tercei- mãos sobre as orelhas, de mo do a cob ri-las completa -
ra visão , mas , segundo a crença tradi cional, ficar com o mente . Mantemos esta posi ção por ce rca de três segu n-
nar iz entupido afeta a ca pacida de de perceber com cla- dos para, depois, afasta r as mãos bruscamente. Fazemos
reza e de pensar com inte ligê ncia. Por isso , se quiser- isso com um a orelha de cada vez , rep etindo o processo
mos nos assegurar de que estamos com todos os se nti- duas vezes. Daí, usando as palmas das mão s, dobramos
do s completamente alertas, temos de manter o nariz as bordas externas das orelhas para dentro. Como são as
de sobstruído, de modo que o ar possa circul ar livremen- palmas das mãos qu e est ão segurando as orelhas "fecha-
te. (Talvez seja por isso que, qu ando estam os gripados e das ", podemos usar os dedos (q ue estão apontados para
com o nari z entupido, nos sentimos me io aboba dos .) trás) para bater bem de leve na base da cabeça.
Algo que também ajuda a manter limpas as na rinas
(p ode mos enxagüá-Ias) é massagear as laterai s do na- BOCA
riz . Colocamos os dedos em cada lado do nariz sobre Agora é a vez da b oca . Assim como es covamos os
as narinas e calmamente os movimentam os para cima, dentes, de vemo s pr estar especial atenção às gengi vas ,
em direção ao cavalete do nariz . Continuam os mo vi- um a vez qu e gengivas sa udá ve is mantêm os dentes no
mentando-os para cima e para b aixo. É interessante lugar. Aqui , novamente , a massagem é út il para
notar que , qu ando estamos cansados, freqüentem ente, es timu lá-las. Com a b oca fechada , posicionam-se as
de maneira instintiva, esfre gamos as faces e, faz endo pontas dos dedos na reg ião do lábio su pe rio r, logo ab ai-
isso , movimentamos nossas mãos p ara cima e para bai- xo do nariz . Suave me nte, damos um as b atidinhas nessa
xo bem ao lad o do nariz. parte (bas e da s ge ngivas) com as pontas d os dedos e
co ntin ua mos o movimento, qu e será circular, num ca-
ORELHAS minho entre a boca e o osso da face . Vamos então co m
A próxima dupla de orifícios é a das orelha s, que os dedos em dir eção ao queixo , continuando a massa-
também se beneficiam com um a mass agem de ve z em gear as geng ivas - atingindo o maxilar inferior, cio mes-
qu ando . Qu ando começamos a massagear as orelhas , mo jeit o .
32 o AtorInvisível
o começo 33

Em algumas pinturas sa gradas do Tibete (Tantra),


Dentro da boca , os seres humanos têm três tip os de
dentes: cani nos, incisivos e molares. Os caninos são uma cob ra se mp re é mo strad a na região do ânus. Uma
herança dos animais carnívoros. Os incisivos, dos he r- idéia similar também existe num antigo qu adro chin ês
bívoros. E os mol ares têm a fun ção predomin ante de taoista, d e um a pesso a se n tada no chão. Junto à base
triturar grão s. A porcentagem de cad a tip o de dente na da co luna, há um desenho de uma roda d 'águ a . Essa
boca nos dá um a noção do tip o d e dieta para a qu al o rod a lembra as rodas de alguns moinhos hidr áuli cos,
co rpo es tá ada p tad o . Um cé lebre mestre de aikidô cha- co m suas caçamb as vazias descendo , mergulhando na
mou a ate nção p ara o fato de q ue , num total de trinta e ág ua, e depois sub indo cheias. Temos aí a ág ua co mo
dois dentes, qu atro são ca n inos , resultando um a p ro - u m símbolo de e ne rgia física , que faz com que a colu-
porção de u m par a o ito . Como apenas um oi tavo de na fiqu e e re ta, traz endo b em -estar inte rio r. Da mesma
nossos dentes serve para come r ca rne, so me nte um o i- man eira , na ioga indian a existe o conceito de "serpe nte
tavo de nos sa comida de veria ser de ca rne . de e ne rgia" - kunda lin i -, cuja fu nç ão tamhém é a de
e ndireita r a coluna, co m a finalida de de intensificar a
ÂNUS e nergia es p iritua l.
Em term os de limpeza, não há nad a es pecial pa ra Paralelamente , nas dan ças africanas, a regi ão em tor -
dizer a res peito dos dois orifícios pa ra passagem de ág ua no do ânus é mu ito ativa. Os dan ça rinos são capa zes de
e para defec ação . Entretanto, a região em vo lta do ânus ondular a coluna co mo se fossem co hras, tendo co mo
é imp ortante por outros mot ivos. No Japão, toda s as ar- ponto de partida para ess e mo vimento a ponta do osso
tes marciais e as tradições teatrais ressaltam vivame nte a sacro, que fica próximo ao ân us. O sac ro movimenta-se
importância de manter o ân us contraído qua ndo se es tá para frente e para trás, de modo qu e o res tante da colu-
traba lha ndo. É ev ide nte q ue , na vida cotidia na , nós o na se d irige para cima . Embora essa se ja uma açào pura-
mantemos relaxad o. Mesm o q uando inte rp reta mos , não mente física , acho qu e existe aí um a ou tra dim en são ,
é necessári o mantê-lo cer rado o tempo todo . Poré m, nos qu e pode a umentar o fluxo de e ne rgia interna .
momentos mais importantes , quando algué m precisa dar
um soco mu ito forte , ou te m de usar muita potência de Uma vez qu e tratamos de nossos "nove orifícios", po-
voz, o ânus deve ficar inte nsa me nte ce rrado. Isso dá dem os passar a outras partes importantes do nosso corpo.
ene rgia ao co rpo e à voz , proporcion ando mais fo rça e
mais foco na ação. No dia-a-di a, a co ntração an al nos
OUTRAS PARTES DO CORPO
prot ege contra um possível mau jeito qu ando ne cessita-
mos carre ga r ou empurrar ob jetos pesados .
Quando apertamos o ânus , levamos o foco par a essa COLUNA VERTEBRAL
á rea do co rpo . Per cebo isso quando faço esse exercí- Todo tipo d e movimento da co luna (como as ondu-
cio, co mo se fosse uma se nsação de "cho q ue ". Talvez laçõ es nas d an ças africa nas) e nvolve o siste ma nervosa
algum tip o de "cana l" tenha sido aberto no meu corpo, do co rpo inteiro. A maio ria dos ner vos do co rpo passa
permitindo a entrada de uma ene rgia externa . De certa do cérebro p ara os me mbro s através da co luna . Se a
for ma, ess a área é um ponto de part ida para a e nergia co luna estiver ativa, e cada vérte b ra puder se mover
do co rpo. livremente , então os ner vo s pode rào fun cionar melhor .
34 o Ator Invisível o começo 35

Sendo assim, nos tornamos mais sensíveis e despertos. mos imaginar que sentimos a energia subir pela coluna à
Resumindo: certos movimentos de coluna funcionam medida que nos movimentamos. Quando estamos sim-
como um tipo de massagem que serve para todo o sis- plesmente parados, em pé, é interessante tentar perce-
tema nervoso. ber algo como se a energia da Terra estivesse invadindo
Por essa razão é muito importante trabalhar a colu- nosso corpo através das solas dos pés. O que quer que
na, para que cada vértebra se torne livre e independen- façamos, devemos tentar impedir que isso se torne me-
te e os nervos não fiquem bloqueados pelos músculos. cânico. Trabalhemos com nossa imaginação.
Quase todos os exercícios que incluem movimentos
cuidadosos e alongamento da coluna são bons. o HARA
Sentemo-nos confortavelmente no chão com as per- Quando as pessoas no Japão falam no hara, estão se
nas para a frente, relaxadas, abertas, como se fôssemos referindo à parte do corpo quefica uns poucos centíme-
um bebê. Vamos tentar levar o cóccix para baixo do tros abaixo do umbigo. Esse é o centro de gravidade do
corpo. A pelve se deslocará para trás. Agora vamos in- corpo humano, e, tramportando para o Ocidente, cor-
verter o movimento, deixando o cóccix para cima em responde ao termo "barriga ", Porém o conceito japonês
direção ao céu. A pelve responderá inclinando-se para de hara é algo que ultrapassa a noção de um lugar físi-
a frente. co; é o núcleo de todo o seIf. É o centro da força da
Assim, vamos apenas manter por uns instantes os personalidade, da saúde, da energia, da integridade, e
movimentos do cóccix para dentro e para fora . De vez () sentido de conexão com o mundo e o universo. O hara
em quando, ajuda pensarmos: "pra frente ... pra trás ... não é necessário apenas para que se tenha uma vida
frente ... trás ... ". Gradualmente, deixemos que o movi- saudável: é impossível praticar qualquer tipo de disci-
mento viaje para cima da coluna até encontrar o plina física ou espiritual (como artes marciais, medita-
esterno. Será então "p ra fora ... pra baixo... pra fora ... ção, teatro) sem considerar essa região . Conseqüente-
pra baixo" . O mais importante quando estamos fazen- mente, essas práticas sempre incluem exercícios que
do esse exercício é manter a coluna bem solta e relaxa- desenvolvem e fortalecem o hara. L.M.
da. Não se trata de um movimento enérgico, grande , Uma maneira de preparar e fortalecer o bara é
mas devemos ser precisos quanto ao começo da ação massage á-io , pois, paradoxalmente, um bara "forte" é
bem na ponta do cóccix, que depois se estende até o macio e maleável. Se, quando começarmos a massa-
esterno, para que toda a coluna seja envolvida. gem, ele estiver duro e tenso, ou se houver regiões
Observem um cachorro. Quando está com medo, sensíveis ao toque, temos de trabalhar de modo bem
dobra a cauda o máximo possível. Quando está alerta , cuidadoso até que se comece a relaxar. Para começar,
a cauda fica ereta. De certo modo, o cão mostra suas devemos aproximar bem os dedos de uma das mãos,
emoçôes através dos movimentos do cóccix. Inclinar o fazendo o desenho de uma pequena pá. Usando as
cóccix e daí transferir a ondulação para a coluna, para pontas dos dedos, exceto o polegar, pressionamos toda
cima, até o pescoço e a cabeça, de alguma maneira faz a região em torno do umbigo , trabalhando no sentido
com que nos sintamos mais despertos. horário O.e. começamos com as mãos a partir da es-
Quando trabalhamos a coluna, podemos imaginar querda, indo para baixo, sob o umbigo , depois subin-
que somos uma imensa e sinuosa cobra. Ou então pode- do para a direita, e contiuamos o círculo até que a mão
36 () Ator Invi sível o começo 37

atinja a região da cintura). Mantemos a massagem até e ntemente leva mo s a mão à barriga . Ou se es tivermos
termos co berto toda a região abdominal, d e modo a com dor d e d ente , ire mos segurar o maxilar co m a mão .
se nt ir tudo mu ito suave e macio co mo uma massa fres - Na verd ade, qualque r d or causa um q ua se au to má tic o
ca d e p ã o. Se algum a região e m p a rt icular estiver "po sicio namento de mão s". In conscientemente , sa be -
in devidamente tensa , m ante m o s cuidadosamente a mo s q ue há uma re lação entre o contato d as mão s e o
pressão até que e la rel axe. a lívio da d o r o u d o d esconfo rto . Acredito qu e exista
u m tip o d e e nergia irradiada pelas mãos q ue p ode d i-
MÃos
min ui r a do r ou aten ua r a enfe rm idade . Bate r palmas
Especialis tas e m ac up u ntura di zem q ue existem o u juntar as mão s serve para no s estim ular, reca rre ga r
pontos lo calizado s nas lat erais d os dedos da s mãos e no ssa e nergia . É devido a isso que e ncontra mos essas
dos pés que estão d iret ame nte re lacionados com o ce n- práticas d entro d e vá rias tradiçõ es religiosas.
tro d o corpo. São como "canais" q ue co ne ctam o ce n- Tra ba lhar co m as mãos ainda é importante para uma
tro e nergético ao mundo exterio r. Se massagearmos outra região do corpo. Como sabemo s, a te rcei ra idade
essas partes ou dermos a e las certos "choques", estare- está fre q üentemente associada ao esquecim ento e à se-
mos fazendo o mesmo com o siste ma de energia in te - nilidade. Algu ns pesquisadores japonese s ac red itam que
rio r. Assim, quando pi samo s forte ou bate m os palmas parte d este prob lema se ja devido à falta de "exercício s"
p or um período mai s lo ng o , esses pon tos e partes são par a o cé rebro, e não apenas ao processo de env elhe ci-
estimulados. Os "ca nais" se ab rem, e ntra ndo um a ener- me nto natural. Para re mediar essa sit uaç ão , e les cria ram
gia no va vinda de fo ra. variad os exercícios físicos sim p les . Um d eles inclui fazer
Existe uma se ita no Japão em que se ba te m palmas movimentos com a mão , foca ndo os dedos. Mas ficar
d ura nte meia hora todas as ma nhãs e todos o s finais de mexend o os d edo s ao léu não pode le var a nad a ; a ima-
tard e , pa ra garantir uma bo a saúde. Também os chine- gi nação d e ve também e star envolvida. Por exem p lo ,
ses ac reditam que haja um a co nexão e ntre o uso da s podemo s imagina r qu e estamo s fazendo uma fileir a de
mãos e o bem-estar físico . Na ver da de , movimentos q ue ervi lhas ou arra njando fl ores, São mo vimento s sim p les,
incl uem co ntatos entre as duas mão s apa recem em mu i- mas como traba lham junto co m a ima gin ação , ligando-a
tas tradições re ligiosas. No xi ntoísmo, bat em-se palm as ao corpo, essas ações es tim ulam o céreb ro . É ineficaz
para chamar os es pí ritos. No cristianismo e no budismo , fazer esse ex e rcício sem usar a imagin ação .
posicionam -se as palmas das mãos juntas para o rar.
Po sicionemos nossas mãos dista n tes cerca d e dez TOQUES FINAIS
c e n tím e tro s um a d a o u tra e , ca lmam e n te, va mos Nos tre in a mento s es p iritu a is ja p onese s , ex iste m
a p ro xi má -Ias um pouco até u ma distância de cinco ce n- "ro upas" especiais que são us adas para faze r os e xercí-
tíme tros . Ent ão, lentamente , de ve mo s voltá-las à posi- cios. No xintoísmo , as vestimentas são b ra ncas, e nq ua n-
ção in icia l. Talvez sintamos um tipo d e tensâo entre as to no budismo, normalme n te , são vermel has ou amare-
duas palmas, algo elástico o u sim ilar a uma força mag- las . Assim se ndo, também acho int eressante que se vis-
nét ica . Par e ce que existe algu m a co isa ali. tam trajes d iferentes quando se es tá tra ba lha ndo . No s-
Tal vez vo cês já tenha m igu almente perc eb id o que , so tre in a me nto não é uma continuação d a vida cotid ia-
q ua ndo estamos co m uma d or d e estô mago, in consci- na , e sim algo d iferente. Pôr uma "ro upa " ajuda a fazer
••-----··'"il:i
i"" " i ' H ; l! m :;T! ~ ~!lfl~ lll """"""' _ _ """ l

38 o AtorInvisível 39

essa distinção . Do mesmo modo, é uma boa idéia te r


um es paço diferenciado , reservad o p ara o treinament o
pessoal.
Então , q uand o form os trab alhar, de vemos estar num
lugar esp e cial - que devemos ter limp ad o antes -, p u-
rificam os nosso corpo , imergindo-o na água fria, e ves-
timos um traje d iferente . Feit o isso, esta re mos p ron tos
para in iciar o trabalh o.

2 o movimento
40 oAtor Invisível o movimento 41

Depois, coloquemos os pés alinhados abaixo do en-


caixe d o quadril. Vamos sentir onde os osso s das coxas
entram no encaixe do quadril, no topo das pernas, e
como e ntão de scem diretamente em direção ao chão. Se
fizermos isso , iremos perceber que nosso s pés estão se-

A primein coisa que o ator precisa aprender é a


geog~afia do corpo. Com eça-se exp lo rando a espinha ,
parados entre cinco e sete centímetros no caso dos ho-
mens e entre se is e nove no caso da s mulheres. (As pes-
soas geralmente se enganam quanto a isso, imaginando
que seus quadris são muito mais largos do que realmente
depois as pernas e finalmente os bra ços. Em termos ele são ou usando como medida os protuberantes ossos late-
ativida de , isso significa que pr ecisamos começar a traba- rais da parte superior da pélvis, em vez do lugar onde o
lhar na posição em pé, para depois desdobrá~la em mo- osso da perna encontra a pélvis . L.M.) Uma vez encon-
vimentos descendentes e ascen de nte s. Na seqüência, trada a posição, vejamos o que sentimos.
exploramos a posição sentad a , seg uida do caminhar, () A próxima posição para os pés será aquela tomada
qual , sucessivamente, nos p ermite ir para qualquer lado. a partir da largura dos ombros. Isso faz com que fique-
Aprender a geografia do co rpo não é uma simples mos quadrados no espaço.
questão de fazer exercícios ou ad q uirir novos e interes- A posição final é maior do que a da largura dos
santes padrões de movimentos. Isso exige uma cons- ombros. Ess a posição é regularmente encontrada nas
ciência desperta. Percebam o modo co mo ficamos de artes marciais, já que se trata de um postura equilibra-
p é normalmente. As pequeninas regiões de tensão ou da e ativa.
desequilíbrio afetam não só nossa facilidade de movi- Uma vez descobertas essas quatro posições diferen-
mento e nossa expressão externa, mas também a forma te s, vamo,'; decidir se deixaremos os pés paralelos ou
como estamos nos sentindo emocionalmente. Cada num ângulo de 45 graus. Sejamos precisos.
minúsculo detalhe do co rp o co rres p o nde a uma dife- Praticamente em todo,'; os estilos teatrais do mundo ,
rente realidade interior.
a ênfa se e stá colocada na manuten ção da coluna
alongada , ereta (mas não rígida). Existem várias manei-
EM PÉ ras de se atingir esse equilíbrio. Um jeito é projetar nossa
emoçào interior para baixo da terra , enquanto que, si-
Para que Se possa sentir essas mudanças tão sutis, multaneamente, sentimos que a parte de trás do pesco-
precisamos saber exatamente o nde está nosso corpo a ço está bem alongada, quase como se nosso crânio fosse
ca da momento. Por exemplo, o nde estão os pés? É cla - puxado para cima , em direção ao céu . Além disso, a
ro, e les Se encontram na ponta das pernas, mas de que parte inferior do esterno fica levemente solta, para bai-
maneira exatamente se relacionam co m o resto de nos- xo, porém não tão tanto que faça o tórax murchar.
sa anatomia e com as sensações interiores? Quando estive na África com Peter Brook, levamo,';
Eu uso quatro posições bá sica s dos pés como uma muitos dia s atravessando o deserto do Saara. Numa
m edida de onde eles se encontram . Primeiro, fiquemos certa região , não havia árvores, nem montanhas, nem
d e pé co m os pés se tocando . Qu al a sensação? prédios, nem postes telegráficos , nem seres humanos .
o movimento 43
42 o Ator Invisível

. . m que existem três fios que ligam


I,-ntao,
- Imagme
Apenas céu, terra pl ana e a linha do horizonte em to- , des fios está preso no
. com o ceu . Um esses
das a s direções . Comecei a me sentir perdido na til ISSO corpo s d .s estão conectados
A ia e os outros OI
ime nsidão daquele mundo à minha volta. II IpO de noSSO cran , a nos puxar para
l E ses três fios começam
Passei a experimentar maneiras de posicionar meu :ll >s pu SOS. S " ' ue noS sintamos eretos,
cima, na direção do ceu , ate q ar
corpo, de modo que pudesse estar naquele imenso va- , nte com os braços suspensos no .
vame
zio . Ficar de pé não era bom. Algo me dizia que não em p e no , " . ' ua estivesse pairando no ar.
estava certo. Então tentei me deitar na planície, que Como se esse saco d.e a~ os o uxar da gravidade da
estava coberta de minúsculos seixos, e olhar para cima , Entã o mai~ uma ~ez se~tim e no~sos braços e a cabeça
em direção ao céu. Tendo me deitado dessa maneira , Terra , os fios desaparecem, de to do corpo.
, 'dos por to o ores
senti como se me tornasse parte do solo do deserto, abaixam, sendo segui , . . movimentando cons-
sendo absorvido pela terra como um cadáver. Eu não Continuamos esse exerCICIO, no~ enquanto o corpo
, e a terra
tinha uma existência individual. Finalmente, tentei me tantemente entre o cefu pe~imos o movimento
. água Con arme re ,
sentar no ch ão com a coluna ereta e concentrei minha permanece . , '. ;' .do Para terminar, es-
r'ldualmente se torna mais rap! . há a e-
energia no bara. Naquele momento, repentinamente g , . fios conectados aos pulsos; agora p
senti como se tivesse um novo tipo de existência , queçamo os s .' 't' preso ao topo da cabeça.
fio aquele que <::s a
suspenso entre o cé u e a terra , conectando céu e terra nas um I , . d ' bi da e descida por
movlm<::nto e su I
como se fosse uma ponte. Por tentativa e erro, descobri Vamos manter o ual uer esforço , e depois diminuir
a posição que me capacitava a estar plenamente na - um momento, sem q q . - t' ai Sentimo-
. , " rar na pos!çao ver IC .
quele espaço p articular. gradativamente ate p a . ' . quilibrados
e estivéssemos suspensos e e
Vamos ficar em pé, com os pés afastados, mantendo nos co mo .S .
do céu e da terra.
entre as duas forças
a mesma distância da largura dos ombros. Vamos então
tentar imaginar que nossa pele é como um saco plástico.
Dentro deste saco, há somente água . Nada de cérebro, PRÁTICA
nem coração, nem estô mago , apenas água ... transparen- , arou seres humanos a
Um mestre zen uma vez comp ritos do nas-
te , cristalina. Sem fechar os olhos, olhamos a água. Por . d: s por fios , Nos mame
fim, começa a haver um movimento. Para a frente , para marionetes sustenta a . _ fortemente sustenta-
d, te os fios estao
a direita , para a esquerda , para trá s. Trata-se de um belo cimento e a mor . brusca Quando as pes-
m de maneira .
e suave movimento, apenas como a água é . Num deter- dos ou se rompe . pem e com um
soas morrem, izradi " ele , os fios se rom ,
minado momento , quando já tivermos estabelecido um
a marionete tomba . -
som a mesma coisa para os atores qua.np~~a~:~~e~:
sentido claro de como é o corpo se nd o água, tentemos
sentir a gravidade da Terra . Uma for ça vem do centro da i _ . tes sustentadas e mam
Terra e nos convida a descer; para baixo, para baixo, cena . Sao manone ' b.l' vê. os fios a atuação
porém nossa carne permanece água . Nossa cabeça fica "fios" da sua mente.• Se o pu lCO' nto temos ' d e Inanter
_ . . teressante . Entre t <1
pesada, nossos ombros, pesados, e nossos braços se tor- nao se torna in d ' momentoS , du-
tração em to os os
nam pesados devido à força da gravidade. Gradualmen- o poder de concen .. unca poderá ser visível.
rante as ações e pausas, e IstO riuru.; 7
te baixamos na direção do chão até ficarmos de có coras, , . a concentraçao.
O público nunca deve ver noss
com a cabeça e os braços relaxados.
o movimento 45
44 o Atoe Invi~ível

.t1g11l11 , nos dar ao luxo de cometer erros. Atores tradi-


Por outro lado, se nossa concentração oscila , é como
\ I( .nais que constantemente "testam" seu trabalho na
se os fios da marionete ficassem frouxos. As ações se
lrcnte de um público de verdade estão acostumados
tornam espasmódicas, e o público desperta para o fato
, '( un esse tipo de problema, e seu trabalho tem um foco
de que estão assistindo a marionetes, e m vez de se
,Idinido e imediato, mesmo quando estão apenas trei-
convencerem de que estão vendo seres vivos reais. Do
11ando. Todos os atores deveriam pensar desse modo
mesmo modo, se o fio da concentração do ator fica
frouxo, a atu ação não funciona. Se os fios estiverem (Illando se exercitam.
Quando praticamos, é bom imaginarmos que
bem esticados e ainda invisíveis, a atuação parecerá
estamos fazendo os exercícios na frente de um público.
convincente e não-mecânica: completamente viva .
\{apidamente isso se torna importante, de modo que
Este tipo de "tensão dos fios" não é apenas usado
nos co mpro mete mo s totalmente , escapando de um cer-
no palco; isso também existe conforme "atua mos" na to desleixo. Desse jeito, a qualidade de nosso trabalho
vida cotidiana. Sempre que fôssemos para nossas ativi-
irá aumentar, e o treinamento será verdadeiramente útil.
dades cotidianas, deveríamos tentar manter um profun- Se pensarmos que estamos apenas "fazendo um exercí-
do estado desperto em nossas mentes, uma espécie de cio " o trabalho será de pequeno valor, independente-
tensão da alma . Cad a ato na vida diária deve estar com-
mente de quão bom for o rendimento.
prometido com um "fio esticado", trazendo uma ampla Podemos igualmente utilizar essa técnica no dia -a-
consciência de todo o nosso ser para cada momento dia. Vamos imaginar que estamos no palco e pessoas
para cada hora. '
estão nos observando. É claro que não precisamos in-
Como atores, é essencial que ocupemos e exercite- terpretar nenhum personagem, ou fazer algo absoluta-
mos nossa imaginação sempre que possível. Em tese, mente fantástico. Sejamos ape nas nós mesmos, natu-
qualquer exercício físico que fazemos deveria também rais. Conforme formos nos habituando a isso, provavel-
ser um. exercício para a imaginação, em vez de ser algo mente iremos perceber que nossa consciência começa-
exclUSIVO para o corpo. Existe também uma outra van- rá a mudar. Permaneceremos despertoS para o mundo
tagem. Se fizermos um simples exercício como o de exterior, e não ficaremos totalmente perdidos em nos-
dobrar os joelhos e pensarmos unicamente nos múscu- sas atividades. Quando "atuamos" desse jeito , somos
los envolvidos, no ssas pernas irão rapidamente ficar completamente nós mesmos e, ao mesmo tempo ,
pesadas e doloridas, de modo que o movimento se tor- estamos atentos para nossa auto-observação. Mantemos
na um trabalho pesado. No entanto , se usarmos as ima- dois estados: o eu subjetivo e o eu objetivo. Imaginar
gens dos fios e nos movermos entre céu e terra , a a ção que estamos sendo observados por um público produz
se tornará mais fácil e conseguiremos foco para nossa esse tipo de divisão da atenção, e , além disso, o corpo
concentração interior. aprende alguma coisa quando percebe que está sendo
Quando estamos fazendo um exercício, tendemos a "observado". Isso não é narcisismo ou exibicionismo, e
pensar "ah , isso é só um exercício; se eu cometer um nosso próprio corpo simplesmente fica acostumado a
erro, não tem a menor importância ". se r observado. Sendo assim, quando estamos realmen-
Entretanto, se comete rmos um erro no palco, temos te de frente a um público real, no sso corpo já está ha -
de seguir adiante e tentar compensá-lo . Não podemos bituado a isso , de modo que nào se remos surpreendi-
parar e recomeçar. Na verdade, não podemos, de modo
46 o Ator Invisível
o movimento 47

dos p o r situações inesperadas e aterrorizantes. Se não


~ , ) um padrão claro: um gabarito básico para as ações,
estivermos acostu ma dos a ser o bservados, no momen-
"l llhor a o utros padrões geomé tricos , co mo o círculo,
to em q ue nos e ncon trarmos no p alco se remos afet a-
pos sam se r usado s. Além de ajuda r o ator ~ con~ u istar
dos q ua ndo sentirm os os olhos do público vo ltados
() sentido do corpo no espaço, ele tambem cria um
para n ós. Nosso corpo irá reagir difere ntemente, e nos-
qu adr o muito n ítid o do ponto de vista da pl atéia.
sos sentime ntos p ro vavelm ente não estarão muito sol-
Existe um exercício qu e nos aju da a experimentar a
tos. Mas se imaginarmos a presença de um público me s-
"estrela de o ito d ireções". Fiquemos em pé em frente à
mo na vida cotidian a, ou qu ando est amos fazendo exer-
platéia, co m os pés paralelo s, se parados, tomando com~
cícios, vamos nos habiutar a essa sensação , de man eira
base a largura do q uadril. O pé d ireito dá um p asso a
qu e isso se tornará a lgo famili ar e, porta n to, me nos
frente numa só investid a , e o co rpo to do o acompanha .
ameaçado r qu ando estivermos diante de uma sit uação
rea l. Nesse caso, a imaginação nos ajuda . Conforme dam os o passo , os braço s também balan çam
para a frente até qu e alcancem a altu ra dos o mbro s.
Qu ando chegamos, nossa perna d ireita estará dobrada,
DIREÇÕES DO MOVIMENTO enqu anto que a esq ue rd a e st ará quase totalmente
esticada . O peso ficará principalmente na perna da fren-
Na vid a co tidiana , nossa ten dência é a de pôr nossa
te, enquanto a co luna perman ece estirada e reta.
a te nção so mente sob no ssa p ele . Movimenta mos nos-
Então o co rpo inteiro gir a 180 gra us em d ireção às
sos corpos a q ui e a li, pegamo s o bje tos, evitamos
costas, se m alt e rar a posiçào dos pés. Apenas giramos,
encontrões co m ca deiras, abrimos à nossa man eira ca-
no lugar, em to rno de nosso próprio eixo, virando o
minho p elas ruas a ba rro ta das de gente. E d uran te to das
corpo inteiro, se m tira r nenhum dos pés. Acabam os fi-
essas ações, raram ente pensam os o nde, na verdade,
nosso co rp o se situa no es paço q ue nos cerca . cando vo ltados par a o fu ndo do palc o , de costas p ara a
pl até ia , co m o pé es q uerdo virado para a "fre nte" . Con-
, .No e nta nto , o co rpo do ator exi ste dentro do espaço
forme giramos, transferimos o p eso para a perna es-
U01CO do teatro, e ne cessita expandir-se para qu e p ossa
qu erda , terminando numa posição de ataque, co m o
preench ê-l o. Do mesm o modo qu e estam os atemos a
nossa pele e ossos, devemos ser ca pazes de sentir [ 0 - joe lho esque rdo dobra do . Durante es sa volt~,. os bra-
das a~ direções q ue ce rca m nossos co rpos. Vamos ape-
ços ba la nça m p ara trás e p ara a fre nte se posicionando
- novo p ar a essa no va "f re n te ».
de
nas ficar de pé no es pa ço de ação e n os fazer as se-
Então a se q üê ncia inteira reco meça a partir d esta
guintes q uestões: o nde está a frente , atrás, lad os, em
posição : o p é direito ma rca o p asso de nov~ , agora se
cim a , em baixo? Com relação à pl atéia, es tamos olha n-
d irig indo ao no sso lado di reit o . Há um movim ento do
do. diretamente na di re çã o dela o u es tamos em pé, li-
ge ira me nte na diagonal? "de trás" da p e rn a esque rda, direta mente p ara a nova
posição , tornando- se a nova p erna da "frente", em fren-
Este se nt ido de esp aço pode ser co di fica do em o ito
te ao lado direito do p alco. Daí seg uimo s para um ou-
direções. Com rela ção à pl atéia são e las: diretamente à
tro giro de 180 gra us e m direção ao lado oposto , termi-
frente , diretamente atrás, para os lados d ire ito e es-
nando por fica r em fre nte ao lad o es qu erdo do palco.
q ue rdo, e q ua tro diago nais e ntre cada uma del as. Isso
Assim rracejarnos fre nte, trás, lado di reito , lado esquer-
cria um tipo de es tre la de oito p ontas, qu e dá ao esp a-
do dos br aço s da estrela .
o movimento 49
48 o Ator Invisível

a tradição japonesa, quando os corpos das pessoas estão


Dessa forma o padrão continua nas quatro di ago-
. do preparados para os funerai s , são sempre
na is . Avan çamos o pé d ireito para a frente , para a mão sen ' d
posicionados com suas cabeças para o norte . Estatuas e
direita diagonal, distanciando-nos da platéia (em lin-
Buda deitado sem p re trazem o corpo repousando no
guagem teatral: no plano direito do palco). Giramos
lado d ireito enquanto que a caheça aponta para o norte.
180 graus, então ficamos de frente para a platéia, na
Existe também uma crença no Japão de que não pode-
diagonal esquerda da boca de cena. Agora, avançamos
mos dormir bem se nossa cabeça estiver voltada para_o
o pé direito para a frente da diagonal direita da boca de
oeste. A lógica disso está baseada na direção da rotaçao
cena , ficando de frente para a platéia, e então giramos
da Terra . Se dormirmos com a cabeça girando na mesma
de modo a ficar de costas para a platéia , na diagonal
dire ção da rotação terrestre (ou seja, para o lest~) , ~ sen-
esquerda do fundo do palco. Agora estamos prontos
sação é diferente daquela em que a cabeç.a e~ta onenta~
para começar novamente a "estrela" inteira , avan çando
da para oeste , na qual se está girando pnmelro com os
diretamente em direção à platéia com o pé direito. A
pé s. Então , se tivermos de dormir com a cama paralela
seqüência é sempre "p é direito à frente , girar, p é direi-
ao equador, devemos posicionar a cabeça para o leste.
to à frente, girar".
No enta nto , a melhor posição para dormir é com a cabe-
Cada vez que mudamos de dire ção , o corpo inteiro
. a em d ireção ao pólo mais próximo, em outras pala-
. f' .
vira para a nova "frente , e não apenas o s p és. Isso nos ç .
ra ouem vive no hemls eno no rte .
ajuda a ganhar um sentido real do espaço do palco vras, para O norte , pa 1 .
. I ' ·f ', . ) sul deve dormir com a
com relação à platéia. Para quem Vive no 1emlS efl< . ,
Numa atuação estilizada , esse padrão em forma de cabe<:a voltada para o sul. . .
Realmente n ão sei se todas essas crenças tradIC.lo-
estrela está muito claramente indicado, mas não precisa
fiais são verdadeiras ou úteis , mas está claro que de~tar
ser tão óbvio quando se está trabalhando realistamente. es
em diferentes posições produz diferentes sensaço .
Podemos estar atentos às oito direções e basearmos nos-
interiores. Todos nós sabemos que dormir do lado di-
sa atuaç ão nelas sem que isso se torne me cânico. Nossas
reito é bem diferente de dormir do esquer,do, e .c~da,
ações continuarão ainda muito naturais, ao mesmo tem-
um de nós tem nítidas preferências quanto as posíçoes
po que mantemos uma qualidade muito nítida com rela-
ção ao espaço . Além do mais , movimentos que envol- para dormir.
De ce rta forma , existimos numa rede de tempo e
vem o plano espacial trabalham o corpo num nível mais
e spaço. NossoS corpos estão situados ~o centro do ~or­
fundamental. Eles nos ajudam a sensibilizar nossa cone-
te do sul, do leste , do oeste, do em CIma, do embaíxo .
xão humana básica com o mundo que está à nossa volta.
da direita, da esquerda , do passado, do futuro , do nas-
Em termos de relação com a terra , sabemos que
prostrar o corpo no chão produz um efeito profundo. cimento e da morte.
Isso pode nos levar a um estado de profund a calma e
equilíbrio int erior. Não sei como isso se dá , mas é mui-
to poderoso. Talvez se ja por isso que tantas religiões
SENTAR
A próxima posição a considerar é sentado. N~ Oci-
têm essa prática.
dente os atores normalmente b aseiam seus movimen-
Mesmo na vida cotidiana, torna-se útil pensar so b re
tos na posiç ão em pé, aLI sentados em cadeiras, rara-
co mo e onde posicionam os nosso corpo. De acordo com
50 o A tor Invisível o movimento 51

mente descendo até o chão. Mas, no teatro japonês,


se ntar-se no chão é comum nas apresentações. Usa r o RELAXAR
chão amplia o campo vis ua l do púb lico, embora o Como parte da comp reensão do próprio corpo, pre-
modo co mo passamos da posição se ntada para a posi- .isarnos sa be r a difer ença entre es ta r relaxado e es ta r
ção em p é seja importante. Algo simples a ser conside- tens o e co mo control ar cada estad o . Na prática, isso é
rado é que , qua ndo se nta mos no chão, temos de esco- muit o d ifícil de realiza r, es p ec ialme nte se algu ém no s
lher um a p osição q ue ofereça a maior mobilidade pos- diz : "Ape nas relaxe! Vamos, re laxe!" Não sabemos por
sível, de modo que rapidamente se po ssa ficar e m pé . onde co meçar.
Uma posição com um é se ntar com as pernas cruza das , Uma ma neira é co ntra ir co mp leta me nte os múscu-
ma s é mu ito limitada. É difícil fazer o próximo movimen to los do co rpo - essa te nsão máxima per mite qu e ava lie-
pa ra levan tar ou se deslocar para a frente com algum gra u mos o sig n ificado de "te nso" - e e m seguida , subita-
de tranqüilidade. Essa posição é m uito "usual"; pod em os mente , so ltar os m úsculos. Nesse momento ter e mo s
nos senta r assim por um lo ngo tem po, mas isso não tem um a no ção do que é o o p osto de "te nso ".
nada qu e ver com mobilidade. Outras posições, como a A idé ia de opostos pode ser válida em outras áreas.
de sentar sobre os calcanhares com os de dos dos pés Por exemp lo, para p ular alto , precisam os dobrar bem os
estendidos (no estilo japonês) ou enrolad os para baixo joelhos. Para bate r num tambor co m a mão , precisamos
(como freqüente me nte vemos pintad o em vasos gregos), primeiro distan ciar o braço do inst rume nto. E quanto
oferecem mais liberdad e . Nessas p osições, nosso corpo mais afasta rmos o braço do instrumento , mais forte se rá
está mais dispon ível para a ação , pod endo deslocar-se a pa ncada no co uro e mais fort e se rá seu so m .
rapidamen te para frente. Se quisermos mant er a liberdad e Hav ia certa vez um homem que tin ha estudad o tea-
para nos ativarm os a pa rtir do chão, será mais fácil se tro n ô po r mu itos a nos. Finalm ente se u p rofessor lhe
começa rmos por uma de ssas posições. disse : "Você tem traba lha d o du ro por mu ito tempo .
Um ex e rcício útil é e mp regar um ce rto tempo sim - Acho qu e você ap rendeu o sufi ciente e merece receber
plesmente exp lorando co mo nosso corpo funciona no as trad ições ocultas da interpretação no teatro n ô. Aqui
ato do movimento ent re o sentar-se e o levantar-se . es tá uma có p ia de nosso livro secreto ,"
Particularme nte, p ode mos tentar fazer esses exercícios O a luno es tava mara vilh ad o com aq uele privilégio ,
e m extrema câme ra lenta, p o r exemp lo, le vando cinco agrade ceu humild em ente a se u mestre e imediatam en-
minutos para se ntar. Desse modo , iremos desco brir o te co rre u para e ncontrar um lugar ca lmo onde pudesse
meio mais prático d e realizar o movimento: co mo sus- ler o p recioso livro . Ele o ab riu. A primeira p ágina es ta -
tentar a cabeça , o equ ilíbrio do corpo, q uando muda r o va e m b ran co . A segun da ta mbém, a te rce ira, e assi m
peso do corpo, qual perna utilizar mais, e ass im por po r dia nte até o final do livro . Poré m na última página
d iante . Devemos tam bé m e nvolver no ssa imaginação esta va escrito:
como p art e desse exercício. Ao ab aixar, p od emos logo Ponha a energia em seu dedo mínimo.
utilizar a imagem da gra vidade terrestre puxando o cor- O aluno ficou co mpletame nte per plexo. Não e nte n-
p o p ara o chão, e , ao levant ar, podemos imaginar que d ia o que aq uilo q ue ria di zer.
so mos co mo um a ma rionete sus pensa por um fio qu e Acontece que o mesmo co nselho é dad o nas artes
es tá no cé u. Podem-se também cria r outras imagens. marciais. Q ua ndo um sam urai segura uma es pa da, ele
,:"!'i\ifnm;nllU .......... _
liLSGLL4iIilIMllI!ll;;;;;tffiIfl!lllfllll!"'·" ·

52 oAtor Invisível o movimento 53

não a sustenta com a mão , nem com o braço , ne m uuo bilid ade d e rigidez o u esforço m uscular; é u ma imo-
mesmo com o p ol egar. Sua concentração es tá no dedo hilid ad e d a liberdad e trazida pel o rel axamento . O co r-
mínim o . Des te modo , seus movimento s sã o fo rtes e le- po está tra nq üilo; mesmo os ó rgãos intern os es tão cal-
ves ao mesmo tempo . I\lOS. Des se modo , pod e -se facilm ente caminhar uma
Se nós mesmos tentarmos proceder ass im em q ua l- lon ga distância sem que se fiqu e ca ns ad o.
quer tipo de ativida de , descob riremos q ue isso é efi- Po d emos cons tatar essa ação no tea tro n ô. O pró -
ca z. Peg uemo s uma xícara como fazemos d e háb ito , pr io corpo d o s atores não se mexe, ao co n trá rio , pa re -
usando a mão e os dedos , po rém no s conc e nt ra ndo em ce se r trans porta do pe los pé s, através d o pa lco , com o
p ô r fo rça no d edo mín im o . Na ve rdade, é n osso d ed o mínimo esforço. É como se os atores es tivessem "se nta-
mínimo que segu ra a xícara; os o utros d edos estão lá dos " co nfo rtave lme nt e sob re se us corpos, o que resulta
sim plesmente p ara dar equilíb rio e di reção. Isso to rn a em mo vim ento s bem e q uilib rados. Os mú sculos traba-
as coisas d iferente s. Por a lgu m mot ivo , trab alhar co m o lham de um modo rel ax ado mas muito potente ; p o rém,
dedo m ínimo faz com q ue a energia circ u le de man ei ra par te d a facilidade d a aç ào é conse qüência do qu e está
mais e ficiente. Além d o mais, se, q ua nd o pegarmo s a ac ontecendo internam ente.
xícara , pusermos nossa fo rça no b raço , o o mb ro tende- Q uando estudam o s n ô, somos cons ta nte mente lem-
rá a retesar-se , e iss o parecerá muito te nso no pa lco . Se brad os da im portância d o b a ra , e es ta á rea é mantida
pusermo s nossa força em o u tro lugar , ningu ém pode rá aberta. Co mo resu lta do, po de-se ac um ular e ne rgia in-
ver isso se o pe rando, de modo que no sso s mo vimentos ter na que , p or s ua vez, n o s m anté m fisic am ente
p ar ecerão men os for çad o s. ce ntrados e bem equilib rados . Um bom ator d eve ser
Um o utro mest re d e n ô abordou isso d e um modo fisicamente es tável; não rígido como uma árvore , ma s
ligeiram ente d iferente . Ele disse: "O seg re do está no flexível como ág ua .
dedo míni mo e no arco d o pé. Ponhamos nossa fo rça Te nte mos um exercíci o. Fiquemo s de pé, ca lma men-
ali. Não tenho como exp licar qual a razão disso , mas te, d e frente a um par ceiro. Estamo s relaxados e rec ep -
esse é o segre d o. " tivo s. O parce iro te nta nos d esequilibrar, empurrando
Na realidade, é imposs ível forçar os m úscul os inten- su bi ta mente o ra no sso o mbro dire ito , ora o esquerd o ,
sa mente nessas reg iõ es , mas, pensand o nelas, reti ra- o u o quadril d ire ito ou o esq uerdo (p rimeiro um a par-
mos no ssa ate nção da ca beça, d o p esco ço o u das per- te , de po is a o ut ra ; não to d as ao me smo tempo ) . Nosso
nas , o nd e a tensão muscul ar visivelmente cria p ro ble- parce iro tenta no s pe gar com a g ua rda abe rta, portanto
mas par a o ato r. não podemos preve r q ua l part e se rá atingi da. Se es ti-
vermos bem ce ntrados, não há nada q ue no sso par cei-
ro possa fazer para no s derruba r. Não importa com que
CAMINHAR
for ça e le nos empurre, nós simplesmente abso rvemos
Quando ob serva mos p essoas que naturalmente ca- o impacto e voltam o s tranq üilamente à posição inicial.
minham bem, elas p ar ecem nã o se movime nta r dos Não se pode resisti r aos e m p urrões com tensão m uscu -
q ua d ris à cabeça. Temos a sensação de que as únicas la r. Ao cont rário, es ta ndo a p rumados e re ceptivo s, se-
coisas q ue estão e m ação são as p ernas, enquanto a remo s ca pazes de simplesmente absorver qu alque r coi-
p arte superior do corpo está "imóvel". Essa não é uma sa que aconteça .
54 o Ator Invisível o movimento 55

Quando o hara es tá abe rto, nossa energia interna Para q ue esse pro cesso se torne mais fácil , é inte res -
au me nta , tornando-nos mais b em e q uilibrados. Alé m sante q ue se co mece por um co rpo "neutro" : alguém
disso , uma ve z que o foco da vo z fica abaixo do umbi- q ue seja simp lesmente "hu mano" e não reflita sua his-
go, o hara aberto é mu ito importante . Contrariament e, tór ia individ ual. Esse é o corpo no qua l nascemos, co m
se "abrirmos" o peito , fica mos dese q uilibrados. nada extra. Não é n ada fácil co rrigi-lo , mas, uma vez
Mesmo na vida co tid iana , se ca minha rmos co m n os- que sintamos esse corpo, p oderemos come çar a nos
sa e ne rgia focaliz ada na me ta de superio r do corpo, fi- movimentar e desco br ir como se anda "natura lme nte ".
ca re mos ca nsados rap idame nte. No nível ma is s im p les , ao caminha r, te ntare mos
Se dei xa rm os nossa e ne rgia re cair so bre o bara, se- manter os pés p aralelos. Pé direito , esque rdo, dando a
remos ca pazes de co ntinuar p or mu ito ma is e nos se n- cada pé o mesmo peso e ritm o e assegurando-nos de
tiremos menos ca nsados. q ue o corpo es tá ereto e tranqüilam ente em equilíb rio .
Te ntemos "ca min har natural mente ". Cami nhemos Tent emos apenas desco brir a essência do caminha r.
sem acrescentar nad a ex tra ao nosso ca minha r. Nota re- Uma tradição japonesa diz qu e os pais devem che-
mos qu e o caminha r é ún ico , absolu tam ente ind ividu al. car as so las dos sapatos dos genros pretendentes antes
Todas as pessoas tentam se r "naturais", mas essa ma nei- de p ermitir que suas filhas se casem. Se o solado esti-
ra "natural " de caminh ar é muito co mplexa e reflete se u ver gasto na parte do ca lca nha r, isso não é nad a bom,
ca ráter. Uma pessoa pode balançar o braço d ireito ma is pois sig nifica qu e o pretendente é pregui çoso . Nes te
do qu e o esq ue rdo. O utra tem o ombro es querdo mais caso, o jove m é p osto da p o rta para for a. Se o futuro
alto do q ue o direito , o u pende a ca beça ligeirame nte noivo tiver o so lado dos sa patos gasto na p arte da fre n-
para um lado. Essas pequenas difer enças fazem co m que te , isso sim é um bo m sin al. Ele pode até se r a lgué m
ca da pessoa se ja única . Algumas vezes essas idiossin- impaciente, mas se u corpo é sa udável e vigo roso, de-
crasias são cha rmosas, o utras ve zes podem parecer me- mo nstrand o uma forte te ndência à prosperidad e no fu-
nos atraentes. Porém se observarmos os animais, vere- turo. Nes te caso, a p erm issão ao casame nto es tará mui-
mos qu e essas diferenças particulares não acontecem. to p ró xima.
Um gato japonês movimenta-se p raticamente do mes mo Esse mesmo co nceito també m es tá presente nas ar-
jeito q ue um gato europeu ou africa no . tes marciais, e m q ue o peso é suste nt ado a part ir d a
O co rpo de ca da p esso a é p ro fun d amente influenci- ponta dos pés. Acontece o mesmo no te atro nó. Isso
ado por sua c ultura ( país , classe so cial e tc .) , A his tória n ào qu er dize r que se dança com a ponta dos p és o
pessoal do indivíduo também lhe det er mina o físico . E te mp o to do; n ão se trata tampo uco de um ca minhar no
ao mesmo tempo q ue é interessante ter um corpo que est ilo do balé ( ponta dos pés no chão seguida pel os
se ja absolutame nte único, os atores tê m de ser ca pazes calca nhares) . Em vez disso, co mo n um ca minhar nor-
de representar um a ampla ga ma de d iferentes persona- mal , o ca lcanhar faz o primeiro co ntato co m o so lo ,
gens; tê m de ser cap azes de "se livrar" de seus corpos mas o p eso é rapidamente transfe rido para a ponta do
pessoais para desco brir e personificar o corpo da per- p é . É impo rtante manter o peso do cor p o para a frente ,
so nagem. Cada p er so nagem qu e se representa é un ica- em vez de deixar que ele re caia sobre o s ca lcanhar es.
me nte indiv id ua l, de ma neira q ue temos de ir em busca Embora o peso seja suste nta do na parte da fre nte do
de se u co rpo es pecífico. pé, a a ção do caminhar inicia-se no b a ra . Cami n ha mos
56 o Ator Invisível o movimento 57

a pa rtir d o centro , e as p o n tas dos pés "agarram a te rra " Qual é a d ife rença exata e n tre os braço s pendentes na
impulsionando-nos vigorosame nte para ad ia nte. Se ve rtical e quando es tão na hori zontal? E não sào ape-
usarmo s essa p o sição lige iramente inclinada p ara a nas os mo vim ento s gra nd es q ue temo s de pe squisar
frente quand o estam os em pé, se re mos ca p azes de re- d esse jeito . Por exe m plo, vamos pegar apenas um a das
agir de modo ma is rá p id o e de no s mo ver mais livre- mào s. Man tê-Ia abe rta e d epois fechá-la : a se nsação não
mente . é a mesma . Em seg uida, podemo s movimentá-Ia um
Um dia um grande samurai foi ass istir a uma ap resen- pouco, vo lta ndo a palma p ara nós, e d epoi s afasta ndo-
tação de teat ro n ô interpre tad a por um ator de alta rep u- a do corpo. Fec hamos a mão , daí co meça mos a abri-Ia
tação. Quando ele vo ltou d o teatro um am igo lhe pergun- p elo dedo mínimo. A se nsação é difer ente d a de come-
to u o q ue tinha ach ad o d o ato r. O samurai respo nd e u: çar a ab rir a partir d o p olegar . Esses sã o mo vimento s
"Ele é realmente mu ito bo m. Sua atuação foi perfei ta ; mínimos, mas todos e les ag em d e d ifer entes modos
em nenhum momento su a guarda es tev e aberta." d entro d e nó s. Co nfo rme trab alhamo s, devemos nos
Uma vez q ue nos d amos conta d a simp les ação d e le mb rar de q ue não somos máqu inas e que p recisamos
cam in ha r, p odemos co meçar a pensar so bre o que seja d escobrir exatamente co mo ca d a mudança no cor~o
mo vimenta r-se em di ferentes di reçõe s. Cu riosamente age e m no sso inte rior.
d obrar à dire ita e d obrar à es q uerda não são a me sma Poré m quando falo dessas mudanças e m termo s de
co isa . Teoricamente deve riam se r idênticas já que a se nsações, não estou me referindo a nenhum as pecto
ação é a mes ma, mas d e a lgu ma fo rma a se nsa ção in - emoc io na l ou psicológ ico; trat a-se de algo ma is funda-
te rn a é diferente. (É também int eressante notar q ue a me ntal: a respo sta direta do corpo. É importante co m-
ma io ria d as pe sso as se desvia lige iramente para a es - preender que atua r não é apenas e mo ção, o u mo vi-
querd a quando camin ha com os ol hos fechado s.) Não me nto , o u ações que com u mente reconhecemo s co mo
se i p or que cad a d ireção p rodu z um es ta do inte rior "a tua ção". Atua r e nvolve també m um nível fundam en-
d ifere nte , mas esse fenômeno realmente ex iste . No te a- ta i: o d as sensa ções básicas do corpo.
tro n ô, esse fato é reconhecido e levou à criação de Um d os me us mestre s me disse : "Na co ndição de
um a convenç ão p articular. Q ua ndo o ator tem de inici- ator você não d e ve ser teórico . Não se ja tão ló gico
ar alguma ativ ida de, co mo parti r pa ra um comba te , e le nel~ confie na sua co m p ree nsã o intel ectua l. Aprenda
se vira para a d ireit a . Se e le es tiver vo ltando para casa , at ravés do corpo."
o u se se n tindo triste , ele se vira p ar a a es qu erda . Para Talve z ter es cr ito este livro tenha sido uma má idéia,
vo cês o sen timen to interior ta lvez se ja tot almente di fe- já q ue se tra ta de um exercício intelectual. A co isa mais
re n te. Vamos exp eri men tar e ver o que acontece . importa nte a se r lembrada é qu e precisamo s compreen-
d er que a at ua ção se d á através do corpo e não do
cé re bro. Atuar não é o mesmo que com p re end er teóri-
EXPERIMENTAR
ca ou in telectualmente .
Ao exec u ta r esses ex e rcícios, é im portante que no s
lembremos d e "exp e rimen ta r" os mo vimento s. Fazê-los Todo o trabalh o de Yosbi tem grande ênf ase no cor-
de manei ra mecânica não significa rá m uito . Te mo s d e po. Quando dá a ulas, ele começa o d ia com exercícios
tentar no tar as di ferentes sensações d ent ro d o co rpo. físicos puxados qu e têm uma longa duração, às vezes
158 () A tor Invisível 59

mais de du as ou três horas. Emb ora muitos outros pra-


ticantespareçamfazera mesma coisa, a abordagem de
Yoshi é diferente. Para Yoshi, o propósito do trabalho
f ísico não está em ser um aq uecimento, n em a umenta r
a força e a flexibilidade ou mesm o ensina r com o movi-
mentar-se "bem " (essas são conseqü ências paralelas),
Não se trata de uma preparação para atuar. Para ele,
trabalhar fisicamente cap acita o ator a ganhar uma
comp reensão mais profunda de um processo fun da -
mentai: através do corpo, aprender algo que vai além
do próprio corpo.

3
Para alcançar isso, é preciso estar completamente A interpretação
"p resente" dentro da própria p ele, o tempo todo, ainda
que se esteja fazendo ex ercícios que não são relaciona-
dos com o trabalho de Yoshi. L.M.
60 o Ator Invisível A Interpretação 61

atro nô. Apenas em 1908, quando uma coleçã o destes


escritos apa receu acidentalmente num sebo, as infor-
maç ões se tornaram acessíveis ao público. Apesar de o
livro de Zeami ter sido escrito centenas de anos atrás,
suas idé ias são fascinantes e absolutamente relevantes
para os atores modernos, não só do Oriente.
Em bora o teatro japo nês seja fortem ente estilizado
JO-HA-KYU em term os de int erpretação , muitas das con venções es-
Sempre peço a um grupo de ato res q ue se se n te m tão, na verdade, baseadas numa observação apurada
em círc ulo, fechem os o lhos e batam p almas junto s, dos padrões naturais. Zeami notou um desses padrões,
tentando faz er isso em uníssono. Sem ninguém "p u- lima estrutura rítmica chamada jo-ha-kyu. (A palavra
xando ", se m um ritmo predetermin ado. Sem p re , um a jo sign ifica literalmente "começo" ou "abertu ra ", ha sig-
~ez que todo s estejam juntos, as palmas irão impercep- nifica "int ervalo " ou "desenvolvimento", e kyu gua rda
tivelmente ganhar aceleração at é que se atinja o clí- o sentido de "ráp ido" ou "clímax") Nessa estrutura, co-
~ax . ~n tã~ haverá no vamente dim inuição do ritmo (po- meça-se lentamente, da í grad ua l e suavemente acelera:
rem nao tao lento quanto d o ponto d e p artida ) e, mais se em direç ão ao pi co. Depois do pico, ocorre geralmen-
u~a vez, aceleração, até que cheguem num segundo te uma pausa para dep ois reiniciar-se o ciclo de acele-
clíma x , e ass im p or di ante . raç ão; um outro jo-ha-k yu. Este é um ritm o orgâ n ico
Sei scent os anos at rás, o me stre japonê s d e n ô, qu e pode ser fa cilmente obseruado nas mudanças do
Zeami , d isse : "To d o fenômeno no universo se d e sen- corpo ou no ato sex ual, em bus ca do orgasmo. Quase
volve através de uma ce rta progressão . Me smo o ca nto todo ritmo das atividades fís icas tenderá a segu ir esse
de um p ássaro ou o zunido de um inseto seg uem es sa padrão se deixadas à sua sorte .
progressão . Isto se cha ma j o-ha -kyu." Este ritm o [o-ha-k yu é comp leta mente difer ente da
idéia ocidental de "começo, meio e fim ",já que este ten-
. M~tokiYo Zeami (1363-1443)/oi o responsável pela de a produzir uma série de "degraus" em vez de uma
crtaçao do teatro n ô, Ele uniu dois estilos a nteriores de sutil aceleração. Além do mais, a no ção de "começo.
interpretação: saru gak u e dengaku . Sarugaku (literal- meio e fim " normalmente se refere apenas à estrutura
mente "música do macaco ") era uma f orma p opular de global da p eça , enquanto qu e [o-ha-kyu é utilizado
en treten imento, que se serv ia de brin cadeiras, humor e como base n ão só para todos os momentos de uma apre-
acroba cia . Dengaku (m úsica do ca mpo) tinha su a ori- sentação, como tamb ém para sua estrutu ra como um
gem nas canções e dan ças qu e eram execu tadas como todo. No teatro japo nês, toda p eça tem jo-ha-kyu , todo
parte de um ritual agrícola . ato e toda cena tem [o-ha-kyu, e toda fala individ ual
à medida que essa no va arte emergiu, Zeami refi- terá seu próprio jo-ha-kyu interno. Até o gesto mais sim-
nou seu tema, estilo e técnicas de atuação . Para p oder ples como levantar um braço começa rá com uma certa
transmitir suas descobertas a p osteriores gerações de velocidade e terminará num ritm o ligeiramente mais
atores, escreveu diversos tratados, os quais/oram p as- rápido . O grau de aceleração irá variar; algumas vezes
sados em segredo, dentro de famílias praticantes do te- fica muito cla ro para o espectadm~ outras, a mudança
e2 o Ator Invisível
A Interpretação 63

no tempo é praticamente imperceptível, mas está sem-


do p úblico. Pode-se fazer a produção inteira de maneira
pre lá. A noção de progressão nunca está a usente. Oca -
mu ito lenta, ou muito ace le rada o tempo todo. Isso cer-
sionalmente a superfície da ação ralenta, ou pâra Com-
tam ente irá tirar o público de seu ritmo natural, fazendo-
pletamente, de modo que não há um jo-ha-kyu visível;
o apreender o espet áculo como algo m uito " ar~ísti~o:' .
entretanto, o desenvolvimento do jo-ha-kyu está a inda
acontecendo, dessa vez internamente. Ness e caso, a apreciação é intelectual em vez de tnstmti-
va. Pe sso almente , prefiro o teatro que me envolva de
Do p onto de vista d o público , há uma sensaçào real
modo físico e o rgâ nico, em vez de apela r apenas ao
de estar se nd o consta n te ment e le vado ad iante. Pode
meu lado intelectual.
ser que haja um a enorme varied ade de ritmos na s u-
É prat icamente impossível ser natural no palco o tem-
perfície d e uma dada ap res e ntação , mas o público nun-
po todo . Entretanto , é esse ncial par ec er natura l (d~ pon-
ca terá a se ns aç ão de qu e as ações estejam "fro uxa s" .
to de vista do p úblico ) a cada momento do esp etaculo.
Existe um outro fator. Uma vez que o padrão jo-ha -
Uma vez que jo -ha-kyu é um padrão fundamental qu.e o
kyu também está presente no co1po do espectador. o
público inconscientemente reconhece com~ verd~d~lro,
público e>..perimenta uma orgânica sensação de ex~ti­
sua utilização ajud a a atu ação a par ecer mai s organica ~~
dão quando os atores empregam este ritmo. Os corpos
natural. Além do ma is, trabalhar num ritmo real , que se
dos atores e dos espectadores entram em conex ão su r-
e nc aixe naquilo que se está fazendo , de alguma maneira
gindo o sentimento de qu e se está comp a n ilhando da
mesma j ornada. facilita o surgimento espontâneo d e sentime ntos a utên ti-
cos . Desse modo a ação se torna mai s verdadeira tanto
Vários dos atores ocidentais utilizam o ritm o [o-h a-
para o público qu an to par a os atores.
kyu subconscientemente. Conseguem sen tir quando a
in te1pretação começa a decair, quando é preciso
TEMPO
"leva ntá-la " e pô-la em movimento. Sabem qu e ativá-la
O momento inicial de uma pe ça é muito importante.
é o correto. O que o teatro clássico japon ês fez ( e faz ) é
Para os diretores, () problema é como começar um espe-
reconhecer e codificar esse p adrão e conscientemente
táculo. Para o ator, a dific uldade é co locar-se na frente
aplicá- lo em todos os aspectos da inte1pretação. Não se
do público logo no início. Este é um momento ~uit~
trata de nada "ex ótico " ou aplicável apenas no teatro
difícil. Em bora se ja ve rd ad e que sa ir do palco tambem e
j ap onês; trata-se de uma f erramenta muito útil a qual-
quer interpretação. L.M. a lgo qu e ex ige astúcia, a aparição inicial é ma is i~p~r­
tante . Quando diri gimos um carro, co locamos primeira
marcha e depois pisamos no ace le rad or. Do mesmo
jo-ha-kyu não é apenas um conceito teatral esotérico
modo , precisamos de muita energia para co meçar um
mas um ritmo que o público sente tan to na pele qu anto
espetác ulo . Encontrar um começo forte permit: ao. jo -
nos ossos. Se o ator ou o diretor não estiverem atentos a
ha-k yu de toda a peça se desenvolver de manei ra vigo-
es~e fato, pode-se acabar com uma p rodução em qu e
ro sa . (Po r es tranho que pa reça, descobri que encontrar
exista uma con tradição e nt re se us ritm os internos e os
um bom fina l nos ajuda a encontrar um bom come ço. )
do público . Ne sse caso, o es p ectador não co nseg ue rela-
Arte s plásticas co mo pintura e escultu ra expressam-
xar p ara de ixar-se le var pelo espetácul o . É claro qu e se
se no es paço , e nq ua n to o teatro se utiliza do tempo e
pode deliber ad amente tra balhar Contra o ritmo orgân ico
d o espaço . Um espetáculo (cont ra riamen te ao texto)
64 oAtor Invisível
A Interpretação 65

existe ap ena s no momento em que é visto . E a natureza


daquele exat o momento es tá co ns ta ntemente mudan- Outra maneira de desenvolver o trabalho no tempo é
do, conforme a peça se desenvolve, de um novo mo- .urav és da transformação. A ação física de repente muda
mento a Outro. Mesmo que voltemos p ara rever a p eça , IIara um padrão co mpletamente diferente. Novamente,
n úo estamos tratando de uma deci são inte lect ual na qual
nunca as apresentações serão idênticas. O momento
;I cabeça inicia a mudança dizendo alguma coisa c~mo
preciso que testemunham os jamais se repe tirá.
Como a dimensão do tempo é crucial no trabalh o "esto u movimentando minha mão para cima e para ba,~o,
teatral , é imp o rta nte que se est eja alerta para es se "mo- agora vou dar um tapa na minha perna". Ao contran~ ,
vimento". Por ex emp lo, realiz amos uma aç ão, como estamos com o corpo numa posi ção particular, ou reah:
mexer o dedo mindinho. Essa é a ação, mas como zando alguma ação , e aí perguntamos ao COrpO:A"Voce
desenvolvê-Ia no tempo? Um jeito de "desenvolvê-Ia " é quer ir para uma outra po sição ou ação? Onde v~ce se~te
repeti-Ia. Mas esta repeti ção é um "d ese nvolvime nt o" que poderia se r bom? " É uma deci são do corpo '.E prec~so
ou simp lesm e nt e Uma continuação? Outra maneira de enc ontrar a resposta do co rpo. Se não for feito aSSIm,
prosseguir é pergUntar ao corpo como e le quer desen- tudo pode parecer muito artificial e inventad~. , .
vo lve r a açã o . Talvez o mo vimento gradualmente a u- Em todos os as pec tos da interpretação e necessano
mente, ou se dirija a uma Outra parte do corpo. O im- esse proces so de desenvolvimento no tempo. Começa-
portante aqui é perguntar ao co rp o aonde ele quer ir mos com algo específico e depois precisamos encontrar
de~ois. Nã~ se trata de uma decisão intelectual na qual maneiras de deixar que isso cresça um instante após o
o cerebro dIZ ao co rp o a onde ele tem de ir, mas é uma outro. O processo de desenvolvimento talvez tom: a
questão de Ouvir a noção de tempo do próprio co rpo. forma da expansão , da redução ou da tran sforma ção ,
Ao tentar fazer esse exercício , p odemos Usar qual- mas é sempre desenvolvimento. Não apenas mudança .
q~e~ parte d o corpo (dedos, quadril , cabeça, joelh os , Quando se imp õe uma mudança no palco, ~sso é ~nt~r­
nao Importa) desde que comec em os co m um movimen - preta ção vinda da cabeça e não de uma n~çao ~rgaOlca
t~ diminuto num ponto isol ado . Começamos por repe- de tempo e esp aço. E o público pode sentir a diferença.
tír a aç ão várias vezes. Mantemos a repetiçã o e en tão Co mo se pôde perceber no j o-ha-kyu , o corpo quer
p erguntamos ao corpo d e qu e man eira ele quer desen- desenvolver a aç âo (q u a nd o batemos palmas, por
vol ver aq uele padrão. Talvez todos os dedos entrem no ex em plo) através da ac eleração gradual. Então, u~a
ritmo, depois o bra ço . Ou talvez a outra mão se envol- vez que o som atingiu certo ponto (quando as ma os
va, e depois a p erna . Estamos mantendo a qualidade es tão aplaudindo muito rapidamente) , o c~rpo quer
da dinâmi ca o riginal do movimento, porém em desen- ralentar um pouco, para então retomar velocidade no-
volvimento, tornando-o cada vez maior e mai s extenso vamente. E assim por di ante. fo-ba -eyu é um ritmo que
por todo o corpo. Nesse caso , o desen vol vim ento se dá o corpo conhece e gosta . Não se trata de um padrão
por ampliação. imposto . Sempre que estive rmos numa certa posição
Ou podemos começar por um movimento mai s am - o u padrão de movimento , o corpo vai querer fazer al-
pl o , e desenvol vê-lo, deix ando-o tornar-se cada vez guma co isa em resposta . É preciso ap re nder a ouvir o
menor e mais focado . Esse seri a um desenvolvimento que o corpo quer fa z e r . . " .
por redução . Escutar o co rpo requer treinam ento, ': que não é u
me sma coisa qu e fazer o que quisermos. E algo específl-
86 oAtor Invisível
A Interpretação 67

co e muito su til. O cor o


vivo U _ P que es cu tamos p recisa es tar IHirt ão d o jardim . Mas ao entrar ficou cho cad o ao ver
. m corp o que na o es teja vivo n ão pode nos di
o que qu er. Fazemos a er izer que não havia se q ue r uma flor que es tivesse visív el.
-
Ele nao b P gunta , ma s n ão há resposta
sa e o que q - . Rikyu tinha corta d o todas as flores. Hideyosh i pergun-
uer, entao es te é um corpo "m rt "

~::::~:~~;~::~j:~~~;~o~n:e:~o:;;';~:-~~~~;,
tou: "Por q ue você fez isso? Vim e specialmente para
ve r as flores!" Rikyu respondeu : "Não se preocupe, va-
mos ao jardim interno."
para a noite _ mUIta energIa , avanç a nd o Os doi s entraram no jardim interno, o nde , novamente,
, quando ent ão vo lta mos a dorm í P
mos pelo ciclo pro _ 111'. ass a- cad a um a das flores havia sid o removida. O xogum co-
Ima vera, verao, outono e in ver
~::~~~%~~::ssa~ ~a~reiras iniciant:~,'
me çava a ficar cada vez mai s irritad o com aquil o q ue mais
como lentos parecia uma recusa deliberada à sua solicitação . Ele se
para d . g ra d a tIva me n te nossa
. s hab ílíd d
I a es
. epol S nos to rn armos "m ed alhõ e s" N' " ' viro u para Rikyu e perguntou: "Por que voc ê fez isso?"
VIvemos, m orremo s. ' . j ascemos , Ao q ue Rikyu ca lma me nte respondeu : "Po r favor,
n ão se preocupe . Vamos entrar na minha sala de ceri-
ESPAÇO mônia d o chá ."
Conforme trabalham o s h O xo gum e o mestre entra ram numa caba na minúscu-
dez d ' gan amos um a ma ior luc í- la localizada no centro do jardim. No canto do pequeno
o corpo , passamos a co n he
co meç'amos a cer Suas preferência s e ambie nte havia uma flor so litária. Era uma flor extrema-
. notar co mo a rní . .
pode ín te rf . mima mudan ça tís ica mente bonita, e logo qu e Hideyoshi a viu pôde entender
lenr em nosso estado .
mos a realmente habitar nossos C(;~t::no. Se começar- as atitudes de Rikyu. Em res um o , aquela solitária flo r per-
a mais sutil d p , ve re mos como feita era mais bonita do que as centen as d e outras que
mu an ça no corpo ar, t. .
rior, Perceber essa co n _ . .e a a paIsagem int e- estavam no jardim. Era uma úni ca flor, mas que sugeria
ex ao mlst eno sa a tod
to , enquanto at ua . ' , o rnomen. algo mais: ela representava a totalid ad e do qu e se enten-
Essa d " b mos , e comp le ta me nte maravilhoso
esco erta a ca da mome ' . de por Flor. Tornara-se a essê ncia de todas as flore s, e não
co mo ato nto e fascmante mas ap enas das flores do jard im de Ríkyu daquela primavera,
re s queremos ir mais lo > "
tal' no públic . _ nge. Queremos sus cí - mas de todas as flores , de todas as partes.
o uma p ercepçao d . .
atrás de d . e que existe algo mais Quando esti ve num mo steiro ze n , o sace rd ote s uge -
ca a um d esses momento s ' .
es ta mos fa ze ndo é d > 1 ' que aquílo que riu q ue qu ando eu pegasse um prato, ou uma xíc ara de
d e um período d >' e a gum.a forma, um a destilação ch á , d everia tentar imaginar que pesasse q uatro ou cin-
e tempo mais lon d
mais p rofundo da experiêncl'a 'h go ou e um nível co quilos . Não sei por quê, ma s se imaginarmos que o
_ . ' umana .
Ha multo tempo . ob je to é mu ito pesado , a re lação entre nós e ele toma-
um grande mestre d' o .X ~gu~l .Hlde yo shi e ra cliente d e se muito im po rta nte d o ponto de vista do público. Na
e cen monla d o chá
va Rikyu . Um dia H íd h" qu e se cha ma- vida cotidiana não nos preocupamos muito com as coi-
I eyos 1 dIsse a Riky . "O . d í
que se u jardim está com lindas fl u: ~VI Izer sas q ue e stão à nossa volta; preocupamo-nos apenas
Gostaria de vê -Ias." ores nesta prima vera . co m nós mesmos . Nossas relações com xícaras e prato s
Rik yu concordou e co nvido u o xo u . . _ são muito banais. Porém se pegamos o objeto como se
no dia seguint e A . g m para VIsita-lo fosse ext remamente pesado , somo s forçado s a tornar
. nSlQsam ente ' Hid eyoshl' c'h eg ou ao
desperta nossa relação particular com ele. Send o as-
68 o Ator Invisível A Interpretação 69

sim, a relação deixa de ser corriqueira, passando a su- importante lembrar que estamos treinando o "corpo do
gerir "algo mais". ator", o qual é "maior" e tem mais ressonância do que o
Existem algumas técnicas que nos ajudam a manifes- "corpo cotidiano".
tar essa qualidade, sem precisar entrar na grosseria de Um grande mestre de cerimônia do chá foi enviado
uma interpretação exagerada. Por exemplo, a cena re- a Tóquio por seu senhor, para visitar o xogum. Para
quer que se caminhe dois metros; muito bem, é o que se que ele viajasse em segurança, seu senhor o instruiu
deve fazer. Mas, como ator, minha intenção interior deve para que usasse uma espada. Normalmente, apenas a
ser a de me movimentar em direção ao horizonte. Se guerreiros samurais era permitido usar uma espada,
vou me sentar, sinto como se estivesse baixando meu mas, já que as vestes de um samurai e de um mestre de
corpo em direção ao centro da Terra. Quando fico de cerimônia do chá eram iguais, o senhor esperava pro-
pé, imagino que estou emergindo do centro do univer- teger seu servo, fazendo-o passar por um guerreiro
so. Na vida cotidiana, trabalhamos com distâncias reais. perigoso que ninguém, em sã consciência, iria escolher
A cadeira está a dois metros de distância, então nossa para perturbar. Naturalmente, o mestre não tinha a me-
intenção é simplesmente caminhar dois metros. Quando nor idéia de como lutar, mas seu senhor tinha esperan-,
nos sentamos, nós o fazemos da maneira mais fácil. No ças de que sua aparência marcial seria suficiente para
palco, entretanto, está-se trabalhando com uma vida deter quem quer que o atacasse.
cheia de amplitude, de modo que nossas ações têm de Então o mestre de cerimômia do chá tomou a espa-
ter algo mais do que o simples "caminhar dois metros" da e iniciou sua caminhada em direção a Tóquio. No
ou "sentar-se". Não se trata de "demonstrar" ou de tentar caminho, ele se chocou acidentalmente com outro (ver-
fazer com que o público veja essas ações de "profunda dadeiro) samurai. Enfurecido com a ocorrência, o
significação". Basta imaginar que o espaço em que se samurai verdadeiro imediatamente o desafiou para um
está trabalhando é maior. Quando atravessamos o palco, duelo. O mestre do chá desculpou-se profusamente e
o que temos em nossa imaginação é o horizonte. explicou que não era de fato um samuraí e que estava
Igualmente, se pensarmos o objeto do mesmo apenas fazendo-se passar por um, conforme instruções
modo, tenderemos automaticamente a envolver o cor- de seu senhor. O samurai recusou-se a acreditar na his-
po inteiro numa ação de levantar algo. No palco, é tória, declarando: "Não faz a menor diferença. Você está
muito importante que o corpo inteiro seja envolvido carregando uma espada, então tem a obrigação de acei-
em qualquer coisa que se vá fazer, mesmo que o movi- tar o desafio."
mento visível seja absolutamente pequeno. Não preci- O mestre de cerimônia do chá se deu conta de que
samos demonstrar que o objeto é pesado (como na estava encarando sua morte e respondeu: "Não sei como
mímica), mas em nossa imaginação ele pesa bastante. lutar, então se você quer me matar, vá em frente."
Do mesmo jeito, o corpo do ator é um "objeto" que O samurai recusou fazer isso, já que seria uma de-
pode se fazer mais ressonante e significativo. Temos sonra para ele matar um homem que nunca tinha de-
um corpo cotidiano que faz compras pela manhã e fica sembainhado uma espada. Trataram do problema e
meio largado depois de uma refeição. Temos também concordaram em prorrogar o duelo para dali a uma
um "objeto" de representação que pode falar de outros hora. Isso faria com que o mestre de cerimônia do chá
níveis da experiência humana. Ao treinar o corpo, é tivesse tempo para se preparar. Ele queria morrer com
70 o Ator Invisível
A Interpretação 71

um pouco de es tilo e dignidade se d


de maneira apro p riada Q . ' guran o a es pada
. uena a pre nde r ao meno INTERNO/EXTERNO
pouco de técnica . , s , um
Então o mestre fo í , Ser capa z de de scobrir constantemente novas manei-
nas proximl'dades OI a te uma escola de artes ma rciais I.I.~ de fazer co m que no ssa interpreta ção seja viva re-
e co n to u ao . . 1
a história N pnnClpa professor toda I fllcr grande habilidade e p rontidão . De certo modo,

de como ~ti~z:~~~~o'a~: vez de ensina r-lhe uma lição e-xistem dois elementos que co ncorrem para uma boa
que re I' p aua, o profes sor p ediu ao mestre
a Izasse uma cerimônia do chá El ' , :11 Ilação: domínio técnico e fluidez mental. Em termos
pensand " . e conco rdou de trein amento, trab alha- se para d esen vo lver e
o, esta será a últim'l cerí • . . '
minha vida " c monta qu e farer na :1profundar esses dois elementos ao longo de toda a vida.

Quando a cerimônia terminou ' Quando Yosbi usa a palavra mental ele não está se
marcia is disse ' "M 't b . ' o mestre de a rtes referin do ao cérebro ou ao intelecto. Existe uma pala-
. UI o em. Voce é ó ti ;- .
aprender técnicas d b mo e nao precisa fira p articular em japonês, kokoro, que pode ser
e com a te uma vez q ,
pletamente preparado p ara o', b ue es ta co m- traduzida não só como mente mas tamb ém como cora -
com ate Se u .
mento como samurai é perfeito de mou co mp o rta- ção. Provavelmente seria melhor pensar, com relação a
que tem a fazer e' s ' o qu e tudo o isso, em termos de nossa parte interna ou espírito . L.M.
egurar a es pada
seg urand ' co mo se es tivess e Nós também usamos esse s dois asp ectos dessa ma-
o uma xicara d h' N
mesma coisa." e c a. a verdade, trata-se da ne ira de ser do ator todos os dias, co mo parte de nosso
O mestre de cerimônia do 'h-- foi trab alh o profissional. Fluidez mental e domínio técnico
c a OI ent _ão enf
se u adversário e lhe dis . " . remar do co rpo estão tot almente presentes qu ando se atua.
e estou isse: Aprendi a utilizar a espada Nessa situaçã o, eles se manifestam nas expressões in-
pronto p ara morrer. Agora vo cê pode .
frente e me ma tar " E Ir e m terna e externa.
~spada e ficou em ~Osiç~:~e~t:a~u~.a~::a~~;a~ooub::ra Equilibrar o movimento interno com a atividade ex-
o~ a p ostura do mestre de cerimôn ia do chá e - te rna é um a tarefa delicada , porém, se realizada habil-
de Invest ir contra e le para matá-lo I , ' e~ vez mente, dará um rumo incomum e interessante a nosso
sua arm a, dize ndo ' " _ . ' entameme baIXOU trab alho . Po r exemplo, digamos que a ação no p alco
/idade é e vi . Nao: eu retiro o desafio. Sua habi- se ja muito violenta e apaixonada . Se internamente o es-
cu l as idente. Eu na o poderia matá-lo . Pe ço des-
p p or meu comportamemo grosseiro." tado for o mesmo, a atuação poder á parecer tensa de-
ma is. Nes te cas o, mantemos a parte interna bem tranqüi-
Se se trabalhar fisicamente todos os dias la. Se, ao co ntrário , estivermos interpretando um sujeito
. :os níveis de prontidão, clareza e coerênc~afooc~c~odro ca lmo o u entediante , e nosso inte rio r estiver no me smo
o o at or : - fi ' I s - estado , corre re mos um alto risco de que a interpretação
tural u Ira, ma mente, tran:>j'o rmar-se em algo na-
. m esmo que nospeçam u fi seja ex trema me nte insípida . Neste caso , o interno tem
comot t q e açamos alg uma coisa de trabalhar fortemente com intensa concentraçã o e
y e amente nova e desconhecida . ,
," d. ' nosso corpo Ira e ne rgia . Isso dará ap oio à calma do personagem ou da
respon er de maneira aprO"ríada E'I . ,
t ' . '.Y . te encontrara au situa ção , ao me sm o tempo qu e evitará que a interpreta-
Omatlcamente o caminho mais fácil e correto a -
zer quase qualquer coisa . L.M. p ra fa - ção se to rne ted ios a para o p úblico, Ide almente, o inter-
no e o externo devem se r contraditórios.
72 o AtorInvisível
A Interpretação 73

Tomemos um p ião girando: q ua ndo e le se d esl oc a nad a poderá mudar. Então precisamos jogar a raiva fora
oscilante, pelo chão, se u mo vimento é mu ito lento . Está para poder criar um espaço vazio em nossa mente.
prestes a parar e tombar. Qu ando el e está re to e fixo E uma vez q ue tenhamos aberto este espaço, tere-
num único p onto, está girando extre ma me nte rápido. 11l0 S a liberdade de re agir e de responder ao que vier
No p alco, nosso corp o é a mesm a co isa: qu ando se no aq ui-ago ra.
p ede para que fiquemos ca lmos ou imóvei s, há uma De certo modo, o problema não está no fato de sentir
enorme din âmica interna . Giramos muito rápido int er- raiva, mas no fato de cair na armadilha do sentimento
namente. Se es sa "usina " interna não existir, ações si- de raiva . Depois que o momento genuíno de raiva foi
lenciosas o u m omentos d e se re nidade não terão ne - embora, é preciso abandoná-lo . O ambiente ex tern o
nhum impacto.
está constanteme nte mudando, e temos de ser capazes
O inverso também é verdadeiro . Quando empreen- de reagir a cada momento confo rme vem em nossa di -
demos ações física s fortes ou vio lentas , devemos reter reção. Como os atores bem sabem, no instante em que
um núcleo de tranqüilidade. Como o pi ão , se começar- se está emoc ionalmen te preso num estado fixo, a inter-
mos a oscilar aqui e ali, sairemos de nosso p onto' de pretaçã o nos escapa .
equilíbri o e não poderemos continuar "gira ndo ". Mes- Algumas pessoas estão acostumadas a um constante
mo quando se está interpret ando violentamente p or estado de turbulência emocional. As próprias emoções
todo o palco, deve ha ver aí uma qualidade de relaxa- podem mudar de alegria para tristeza ou raiva, mas
~ent~. Isso é um paradox o ; um aspecto da int erpreta- não existe um instante de vazio ou calma entre elas.
çao e calmo , o o utro , dinâmi co . Os a to res precisam Nesse caso, tornaram-se viciadas num estado de "inten -
experimentar es sa dualidade. Quand o descobrim os sidade emocional" qu e nada mais é do que algo rígido
man~i~ão física, não se trata de uma mansidão comple- e limitado. L.M.
ta; ha Igualmente um dinamismo interno. Quando des- Equil íbrio interno e exte rno . Movimento sem movi-
cobrimos dinami sm o físico , de vemos equilibrar co m mento. Silêncio sem silêncio . É co mo andar a cava lo.
ca lma int eri or.
Um bom ca valeiro pode andar muito rápi do, cobrindo
O que se quer dize r exa ta me nte com "ca lma inte - um extenso território, se m nunca parecer agitado . O ca-
rior"? Signifi ca qu e não se está pri sioneiro de emoções valo pode pa ssar por terrenos lisos ou esburacados, cam-
turbulentas . Dentro está va zio ; nada nos incomoda. pos abertos ou densas flo restas, rios, e mesmo assim o
Entretanto , essa "calma " não é morte do sent ime nto ou cavaleiro permanece tra nqüilo e quase imóvel. A mente
um estado rígido de "tra nq üilidade " imutável, m as um a dos ato res é como o ca valei ro, o corpo, como o cavalo .
prontidão fluid a que nos permite responder às mudan- Um bom cavaleiro se esforça conscientemente para
ças do mundo à nossa volta.
unir-se a seu cavalo, deixando-o mover-se livremente,
Se já estivermos tomados por um a fort e emoçã o , é ao mesmo tempo que está no con trole de cada ação .
co mo se isso nos Oc up asse totalmente. Nã o há es p aço Dam os ordens ao cavalo, estamos no comando . O ca-
para que entre nenhuma o utra se ns ação ou sentime n- valo segue nossa vontade, mas quando estamos mon-
to. Estamos prisioneiros daquele sentimento. Por exem- tando bem o cavalo se esquece de nós, e nós nos esque-
pl o , se es tive rmos dominados p ela raiv a, é impossível cem os do cavalo. O impulso do ca valo e o impulso do
que su rja espontane amente qu alquer o utra emoção; cavaleiro unem-se até que não haja mais separação .
74 o AtorInvisível
A Interpretação 75

Se, no entanto, não soubermos montar, estaremos


.1.1 t'11Ivez d e esfo rço, o que irá ca pacitar o pú bli co a se
trabalhando contra a natureza do cavalo. Ficaremos
I Ill\t"cntrar na vida interior.
neroosos e talvez um pouco ap reensivos. Sob tais condi-
Mesmo se cons ide ra rm os a p e nas a interp re tação
ções não p ode existir calma, e o cavalo ficará impaci-
.-xtcrna , ainda existe uma necessidad e maior de que
ente. Haverá conflito entre nós e o animal, até qu e am-
Ilaia contraste na ex p ressão. .
bos nos tornarem os cansados e irritados, sendo que nem
Zea mi suge riu q ue , se o co rpo e stá trab alhando In-
a von tade será capaz de fazer com que se avance pa ra
muito longe. u-nsame nte co m grande força e e nergia, as pernas de-
vem p erman ecer le ves e delicadas . Se estivermos for-
Não basta apen as adquirir u ma dinâmica do corpo
"a ndo as pern as , o torso deve permanece r ca lmo. e se-
(cavalo) e u ma mente tra nqü ila e alerta (ca valeiro) . É
rc no, Se cada pa rte do corp o es tiver trabalhando Igual-
preciso também encontrar meios de reuni-las, para que
mente de ma nei ra for te , a atuação pode p arecer rudi-
esses dois opostos p ossam fa cilme nte trabalhar n uma
harm onia relaxada. L.M. mentar e grosseira . Uma interpretação fo rte não deve
~eami disse: "O co rpo se m ove se te décimos, o co- levar a um a inte rp retação rude . Um el emento de con-
raça o se move dez dé cimos." trole e co ntraste no uso do corpo cria um a ap re se nta-
ção muito mais intrigante e refinada.
. Qu ando estamos es tudan do um papel, devemos
faz ê-l o cem por cento, usando tanto a vida interi o r
quanto a ex p ressão físic a ao máximo. Porém, se co nt i- REPETiÇÃO
nu~rmos a trabalhar a ex p ress ão física ao máximo quan -
d o In~erpretamos, impedi mos q ue a vida interior es teja
No Japão , existe uma tradição xintoísta de ca min ha r
nas montanhas durante um a sema na co m a penas um
acess lve l ao público. Se rel axarmos discretamente a
ex pre ssão externa, aí e nt ão o que es tá acontece nd o pouco de arro z integral como s u primento . Uma o utra
i~~e~~rmente pode rá ser se ntido p elo p úblico . A p la- tradição é a de caminha r ce m vezes e m vo lta de um
sa ntuá rio. Acredita-se que se e m p reendermos e cum-
te ia Ira p erceber que e stá d iante de a lg uma co isa mu ito
int eressante e envol vente . prirmos es sas ações nossa s preces serão ate ~d~das~ A
b ase de ssas ce rimônias está no ato da repet íçao: e a
No e nta nto, temos de to ma r c uida do co m o mod o
de utili zar ess a idéi a de Zeami, já que isso pode levar a atitude de repetir q ue nos faz mudar. ..
Em bora sinta mos a vida coti dia na como repetiti va ,
uma interp retação care nte de e nergia, se mal ap lica da .
sem p re há uma d iscre ta va riação. Real mente , nu~ca
Isto não significa qu e a forma da exp ressão ex terna
re p etimos as coisas no dia- a-d ia . Usa mos rou pas dlf~ ­
p assa a se r desleixada o u m en os q ua lifica da, mera men -
rentes , comemo s a lgo lige iramente d iferente , exp e n -
te p orque a expressão interio r e stá se nd o enfat izad a
pela a tuação. Além do que , se tivermos ensaiado o as - mentarn os diferentes int e resses . Não esto u di zendo que
ter u ma vid a imutável , monótona , se ja bom , mas algu-
p e cto externo do papel, n a s ua máxim a ex te nsão , ante s
da ap re sentação , a técnica já de ve rá estar absolutamen_ mas ações repetidas podem ter um efeito muito forte.
te integrada pelo corpo. Ne sse caso , so ltar a expressão Elas podem nos m udar. .
ext~rna deverá ser muito fácil, se m p erda de qualidade Quando meditamos, sentamo-nos na mesma ~os~­
na Interpret ação. Haverá uma qualid ad e técnica cômo- çã o , d ia ap ós di a. Na dança africana , mo ve mo s a pel~ls
para fren te e para trás , criando um a re petida pulsa ção
78 () Ator Invisível
A Interpretação 77

da coluna ve rte b ral. A coluna on d ula , e, se continuar-


mos co m esse movimento, nosso estado interno se al- I. ' 111 () efeito de estimular nossa energia interna, tornan-

tera . Do mesmo modo, os dervixes do Oriente Médio ,I, ). nos mais sensíveis e despertos como pessoa~. No
usam o giro ininterrupto para entrar em estado de tran- p.iss adc, os monges cristãos gastavam parte.do dIa, ~n­
se . Cada cultura tem uma versão diferente sobre como dando em círculo nos claustros dos moste~ros, aSSIm
fazer es ses tipos de exercícios, mas todos empregam a ,',JlllO e, fe ito nos santuários japoneses xintoístas.
repetição. Por quê? Já mencionei a importância da coluna vertebral ~~mo
Uma maneira de pensar a esse respeito é imaginar condutor de energia interna, e movimentos repetítívos
que o ser humano tem uma espécie de energia central que envolvam a coluna vertebral são ~spec!almente
que exi ste paralelamente à sua energia física. Alimenta- úteis, Mesmo quando a coluna vertebral nao esta no foco
mos nosso físico prestando atenção ao que com emos, da ação, o efeito da repetição é mUi,to poderoso. , _
tomando vitaminas, dormindo o suficiente e assim por Esse poder também foi reconhecido em,s~tores,~ao­
diante. Acontece que é igualmente importante alimen- esp irituais, Vejam por exemplo os padrões físicos u~Ih~a­
tar nossa energia interna, No ssa sensibilidade e pronti- dos nos movimentos políticos de massa, como o faSCIS-
dão internas são tão necessárias para a vida quanto o mo, Os seguidores dessas ideologias polític~s usualmen~
bem-estar físico, A impressão que temos é que os exer- te apren d em modos,"e .specia is" de se movimentar,
" nos
_
cícios que envolvem repetição de a lg um modo sati sfa- quais está presente a repetição, Esses mO,v~mentos sao
zem essa função nutridora, Esses exercícios e nco nt ram- regularmente praticados e , por sua vez , ratificam o com-
se normalmente nas práticas espirituais de várias tradi- promisso to( . I'IVIid ua I para
. . com o grupo , De . certa forma,.
ções, Mas Suspeito que eles, na verdade, sejam mais esse tipo de atividade física é muito peng~sa.' .uma ~~z
velhos do que as religiões a que p ertencem. Provavel- que serve para unir os seguid o res numa ~ntca massa ,
mente foram descobertos por tentativa e erro, para es- facada apenas num único objetivo compartll~ado,
timular a energia interna, Tendo percebido sua eficá- Quando corpo e mente estão proximamente
cia , várias tradições espirituais decidiram incluir essas co ne cta d o s, açoes - fírsicas rtgi
, íd as' podem
. provocar a
ações em su as práticas religiosas . Do mesmo modo, mesma 10 e , fi xibilidade de pensamento. Não devemos,
exercícios que se servem da repetição dos sons for am s u po r que uma tradição ou filosofia que inclua, movi-
encontrados em várias religiões, na forma de mantras mentos repetitivos seja automaticamente maravI1~~sa,
ou cantos. A diferença reside no fato de que as tradições espmtu-
Atra vés dos sé culo s, nos esquecemos da importân- ais usam a repetição para libertar a mente, enq~anto
cia de alimentar as p ercepções internas, d e m odo que que movimentos como o fascismo usam-na para fixar a
perdemos Contato Com as atividades físicas que origi- mente num objetivo fechado ,
nalmente faziam esse trabalho , Como resultado, só po- Uma vez que nosso propósito é adquirir liberdade
demos encontrar exercícios interiores dentro das tradi- de pensamento, é preciso ter cuid ad o em escolher ex~r­
ções espirituais que preservaram e transmitiram es se cícios que não tenham rigidez física. Vejam que a cl ãs-
conhecimento, Entretanto, todos deveriam alimentar sica postura fascista, ereta, pressupõe um corpo duro,
suas energias internas, mesmo que não sejam seguido- como o próprio movimento de sua marcha. .
res de uma tradição religiosa . Movimentos repetidos Mesmo nas artes marciais , devemos ter CUIdado na
escolha de um bom pro fessor, " I'á que os exercícios
. são
78 oAtor In visível j\ Interpretação 79

muito poderosos. Se forem ensina dos de maneira e rra- poderão até es ta r cansados, mas estarão co m a sensa-
da, pod em se to rnar rígidos ou su per mecânicos, poden- ção de um ce rto co nte ntamento. Quando trabalhamos
do co ntribuir para uma inflexibilidad e mental. Do mes - sozinho s e se nt imos que algo já está suficiente, ou que
mo modo , qu ando faz e mos os exercícios , de ve mos tra- o tédio está q uere nd o se instal ar, será o momento de
ba lha r mantendo nossa co ncentração fluida e aberta, em mu dar para um o utro exercíc io.
vez de tesa e estreita . O o bje tivo de todo esse treina- Entretanto, alguma s vezes pode se r interessante con-
mento deve ser o de enc oraja r a liberdade do corpo e da tinuar deliberadamente com um ex ercício sem parar.
mente , e tud o o que se opuser a isso de ve se r evitado. Po demos fica r en te d iados, mas num certo ponto des-
A repeti ção é uma té cn ica útil, mas na vid a re a l te- cobrimos q ue fomo s a lé m d o aborreci me nt o , tendo
mos de ava nçar. Não podemos a penas ficar faze ndo a atingido um o utro domín io . Desco brimos a lgo comple-
mesma coi sa dia após d ia : p ara manter o intere sse e tam e nte no vo, alg uma cois a que n un ca enc o ntraríam os
nos desenvolver a nó s me sm os, precisamos ava nçar de na vida corriq ue ira.
alg uma maneira. Sentamo-nos para meditar, trabalha- Em nossa existê ncia cotidiana , nunca quebramos as
mos, comemos, dormi mos . Mesmo que isso seja um a barr eiras d o tédio. Se alguma co isa se torna muito difícil
forma efetiva de treinamento e spiritual, atores não são o u tediosa , nós simplesmente deixamos de fazê-la. Sen-
monges . Como at ores, temos de trabalhar diferente - do forçad os a insistir num determinado exercício até um
mente para mudarmo s e crescermos . Uma man e ira d e p on to de esgotame nto, terem os a cha nce de descobrir
ev ita r que a repetiçã o cause rigidez é incorporar um um novo es paço. Isso ajuda em nosso desenv o lvime nto .
e le mento de contraste e va riação n o tr abalho . No No d ia-a-di a do s japonese s existe muita repetição.
xintoísmo e ssa idéi a é aplicada alte rn and o-se p e ríodos Curvam-se muito. Os sentimentos co m rel ação às pes-
de int e ns idade e atividade d inâmica co m momentos de soas está ex presso numa cl ara expressão corporal:
ca lma. Na ve rdade, p ara que se tornem úteis, os exe rcí- q ua nto mais se respeita algué m , maior se rá a reverên-
cios físic os devem e m p regar esse co nt raste. cia . Isso ta lvez se dê porque d iferente s tradições em-
Quan do alte rnamos exe rcícios mais d inâmico s co m p regar am a re verência (c urva r-se d iante de alguém)
os mais calmos um fator im porta nt e é a duração : por co mo uma marca de respeito; aí está um indicativo que
q uanto tempo de vemos praticar um antes de m udar reforça a co nexão entre ação e emoção .
p ara o o utro . Um b om p ro fe sso r será ca paz de d ecid ir Através da realização desses movimentos, começa-
q uanto tempo se de ve conti n ua r co m um exercíc io for- mos a e nte nder uma coisa que não pode ser explicada
te antes de pa ssar a um ma is ca lmo. Este temp o não e m te rmos ló gicos. Tra ta-se de um tipo de entendimen-
pode ser predetermin ad o . Não podemos diz er que os to que não se p ode encontrar ne m nos livro s, nem atra-
ex e rcício s mais puxados de vem levar vinte minutos, vés de co nve rsas, mas apenas no co rpo. Talvez seja
e nq uanto os mais leve s, dez minutos. A duração corre - um a co mp reensão do que so mos co mo simp les seres
ta de um exercício dependerá de uma série de fatore s, hu man os.
Como o dia, as pessoas e o gra u de experiência. O p ro- Em mu itas religiões do mundo int eiro, senta-se por
fesso r tem de ser mu ito se nsível a esse s fatores qu ando um lon go tem po , ou caminha-se por um bom tempo, até
estive r dosando o temp o . Se o p rofessor fizer uma boa que se ganha a lgu m tip o de co m p reensão transcen-
escolha , o s alunos serão afetados de maneira positiva ; dental. O q ue ac ho interessante com rel ação a isso é o
80 oAtor Invisível A Interpretação 81

modo co mo essa co mp reens ão é ajuda da p or algum tip o Vamos ficar firmemente de pé , com os pés afastados
de atividade física. Uma boa ação física é aquela que mais o u men os à largura dos ombros. Vamos inclina r a
provoca alguma mudan ça o u nos leva a uma maior co m- cabeça para trás de modo que nosso rosto se volte para
pr een são . Sendo assim , q ua ndo em pregamos o tipo ce r- cima , em d ireção ao cé u. Vamos abrir a hoc a ao máxi-
to de voz o u movimento físico, podemos se nt ir que nos- mo . Agu cem os os o lhos , nari z e ouvidos o máximo que
sa vida está mais aleg re , o u nossa mente e stá mais pudermos. Estiq ue mos os braços aci ma da cabeça e va-
límpida, o u nossa prontidão se torna mais se nsível. De mo s abrir as mãos de modo que as palm as fiq ue m tam -
algum modo nos tornamos mais fortes. bém voltadas para o cé u. Estendam os a língu a , fazendo
co m q ue e la sa ia da boca. Nessa posição , co m tud o lar-
gam ente aberto e d irigido para cima em dir eção ao cé u,
ENERGIA HUMANA vamos emitir o so m aaaa. Vamos suste ntá-lo o máx imo
Uma cria nça enche de cores uma folha de papel, possível e depois, ca lmamente , trazer os br a ços para
realizando u ma pintura que é vib rante e colorida. É haixo, a cabeça de volta à sua posi ção normal, e fechar
muito bonit o , mas é só. Artistas podem utilizar as mes- os olhos e a boca. Agora respiramos tranqüilamente.
mas co res d e um jeito igualmente espontâ neo , mas de Existe m o utros e xercícios similares qu e ajuda m a
alguma ma neira temos um se ntimento d ife rente quan- desenvolver a e ne rgia humana. Conforme nos habitua-
do ol hamos se us trabalhos ; há uma se nsação forte que mo s a traba lhar dessa maneira, começ amos a sa ber exa -
par ece nos penetrar pro fun d amente . É um a p intura tão tamente quais elementos nos levam a e ssa e ne rg ia. E
bonita quanto a d as crianças , mas há um a re ssonânc ia descobrimos qu e o praze r não es tá em "pega r e nergia",
e um a profundi da d e ex tras. Po r q ue isso acontece? Sin- mas na compree nsão gradua l da o rige m desta energia
to q ue de ce rto modo a energia do artista é transmitida e e m nossa rela ção co m ela. À medi da qu e co meçam os
ao es pectador através das co res, texturas e for mas. a se ntir s ua o rige m, isso se torna um a q ues tão menos
Para o ator, o problem a se melha nte é o de mant er a de "pe gar en ergia" e mais uma quest ão de no s "unifi-
presen ça q uando se está diante de um p úblico . Embora o ca r" co m sua o rige m . Come çamos a descob rir um pra-
público não possa explicar com pa lavras, ele sente a ener- ze r real nesse ato de "u n ifica ção", e , co mo co nse q üê n-
gia do ato r e , para as pessoas, esse é um dos principa is cia, recebemos ai nda ma is en erg ia . Desse mod o nossa
prazeres do acontecime nto teatral. Q ualquer co isa q ue co mp reens ão se aprofu nda ainda mais.
faça aumenta r nossa energia irá nos ajuda r na atuação. No teatro n ô o te xto é muito arcaico, datand o do
Qua ndo ve mos um b om ator no p alc o ele parece século XlII ou XIV, e freq üent em ente se se rve do plan o
maior: maio r 'do que su a verdadeira realidade física . A est ilístico ligad o ao imaginário da natureza. Se uma pe s-
mesm a coisa aco ntece com o poder de encanta r. Uma soa está triste, não é d ito o que ela está se ntindo, mas
vez, quando e u era mais jovem , vi um a atriz que pare- simplesm ente algo como: "O verão passou. O inverno
cia inc rivel me nte bonita no p alc o . Após o espetáculo logo vai chegar. As folhas do outono estão caindo." A
fui até a porta do camarim e es perei que ela saísse. emoç ão é descrita através dos fenômen os da natureza .
Mas, quando fin almente apar eceu , era uma mulher co - O que essa tradi ção reconhece é que o se r humano
mum , co mo q ua lqu er o utra . Nada tin ha a ve r com a é par te da nature za. Se ntir triste za o u a leg ria tem um
bel a criatura que tinha sido enq uanto interp retava . equivalente no mundo natur al, e a e nergia human a está
82 o Ator Invisível
A Interpretação 83

conectada à energia do meio ambiente. Hoje em dia as


publico, Poderia ser sobre amor, família, ~or~e, políti-
pessoas acham que são independentes da natureza , e o
,';'. mas tinha de ser alguma coisa que o p úblico reco-
que acontece no meio ambiente não as influencia.
uhccesse em sua própria vida. Mas ... neurologia? Se
Como resultado, quando vemos um ser humano repre-
I< lsse psi cologia, talvez eu pudesse me identificar com
sentado no palco, não há ligação com a natureza. Mas
isso, já que talvez eu tenha experimentado o mesmo
qualquer um que more numa região s ujeita a terremo-
I ipo de perturbação emocional. Mas distúrbios neuro-
tos sabe muito bem que somos parte da natureza. Nem
l ógicos são fenômenos muito específicos, que não se
a mais alta das tecnologias pode nos proteger se a terra
decide fazer um pequ eno movimento. en contram regularmente na vida da maioria das pes-
soas, De modo que para mim havia um problema com
Na verdade, os seres humanos estão totalmente
() material que Brook tinha usado para trabalharmos.
conectados e são dependentes da natureza . Ar, ág ua ,
Eu não conseguia me identificar com aquilo e , franca-
fogo e mesmo a terra estão em constante movimento e
mente , por que diabos estávamos fazendo aquilo?
s ão parte desta mesma noção. Deveríamos reconhecer
Então os atores começaram a improvisar. Eu os ob-
essa conexão quando fazemos teatro. Quando construí-
servava e de repente percebi : "Mas eu sou aquela pes-
mos um ser humano no palco, deveríamos nos lembrar
soa !" Era completamente ilógico, mas me senti como se
de que ele está ligado a todos os fenômenos da nature-
fosse aquel e mesmo sujeito incapacitado. Fiquei apa-
za. Se esquecermos disso, uma dimensão ma is ampla
do que é o ser humano estará perdida. vorado. Num certo nível , as ce nas eram realmente bem
cômicas : um homem que não consegue sentir seu lado
Por exemplo, quando digo a frase "Esto u com raiva!"
., esquerdo é algo engraçado de se ver . Mas eu estava
se eu pensar em mim mesmo como uma unidade isola-
apavorado. Não era nada engraçado . Aquilo bem que
da e focar apenas minha experiência pessoal , a raiva
poderia se r co migo , incapacitado mas inconsciente da
será muito pequena. Mas se eu pensar no fogo poderoso
incapacitação. Não tinha como saber. Naquele momen-
que ferve no centro da Terra, a raiva se torna ma is forte
to me surpreendi me dando conta do quanto eu pode-
e mais rica. É claro que o próprio fogo não é a raiva,
ria compartilhar daquele projeto. Na verdade, tendo
mas o correspondente da minha emoçào na natureza.
começado a trabalhar com Peter Brook quase trinta
Do mesmo modo, se eu quiser encarnar a alegria , posso
anos antes, aquilo iria se transformar, para mim, no
pensar que sou parte do ar que está ao meu redor. Sen-
melhor projeto até então realizado. .
do assim, a emoção não aconte ce apenas dentro de mim,
mas torna-se um reflexo da natureza. Por volta daquele tempo, eu estava pensando muito
em pintura , especialmente em representações de ~~res
Quando começamos a trabalhar no espetáculo The
humanos. Ant es da invenção da máquina fotogr áfica ,
Man Who, Peter Brook chamou-nos todos para expli-
uma das principais funções da pintura era registrar fa-
car que ele queria montar uma peça baseada no livro
tos e personalidades. Hoje em dia isso nã o é mais ne-
de Oliver Sacks O homem que confundiu sua mulher
cessário, já que os fotógrafos fazem o mesmo trabalho .
Com um chapéu. Começamos o processo improvisando
Ao contrário, artistas modernos quando pintam formas
certas cenas do livro. Até ali, e u sempre tinha achado
humanas utilizam-se disso para dizer alguma coisa so-
qu~ os ten~as teatrais tinham de ser alg um a coisa que
br e como eles vêem as pessoas. Trata-se de uma visão
estivesse dIretamente conectada com a experiência do
pessoal dos seres humanos que está sendo comunica-
A Interpretação 85
84 oAtor Invisível

da. Então decidi fazer o mesmo tipo de coisa com mi- se mú sica. Daí então ele conseguia dançar. Dei-me con-
nha interpretação: apresentar meu jeito próprio de ver la do mistério que é o ser humano. Os neurologistas

o ser humano. Entretanto, eu não estava tão seguro de podem explicar um fenômeno ou outro, mas ainda sin-
como fazer isso na prática. to que há alguma co isa muito misteriosa no ser huma-
Quando começamos a ensaiar, não sabíamos que 110 . Até o corpo é um mistério. Não podemos explicá-lo

estilo iríamos utilizar para interpretar a peça. Decidi- completamente.


mos que o primeiro passo seria pesquisar o quanto fos- Assim , quando fui para o espetáculo Tbe Man Wbo,
se possível sobre os próprios problemas neurológicos, decidi que tentaria transmitir quão belo e misterioso é o
de modo que visitamos durante quatro meses o hospi- ser humano. Por conseguinte, quando estava trabalhando
tal neurológico Salp êtriêre, em Paris, para encontrar e nos vários papéis da peça, não me preocupava em retra-
conversar com pacientes. Lemos estudos de caso e re- tar personagens específicos. Problemas neurológicos e
latórios enviados da Inglaterra. Conseguimos mais in- energia humana básica não estão ligados a nenhuma situ-
formações através do próprio Oliver Sacks. Assistimos açâo pessoal. Simplesmente me concentrei em construir
a documentários de televisão. cenas detalhe por detalhe, ação por ação. E, pouco a pou-
Quando estávamos no hospital observando, certas co , um ser humano surgiu. Achei esse processo interes-
coisas me chocaram violentamente. Havia um paciente sante. Ao mesmo tempo, tentei usar um número míni-
que lutava para sair do coma. Havia um outro que ti- mo de ações necessárias para comunicar a realidade da
nha apenas duas semanas de vida. O que eu vi nesses situaç ão ' do personagem. Detalhes em demasia teriam
pacientes foi simplesmente a força da energia humana. sufocado a realidade interna. Não teríamos sido capa-
O tipo de energia que empurrava o corpo p ara fora do zes de ver a incrível beleza da essência do ser humano.
coma. A energia que continua a viver quando o corpo
está tão perto da morte. É óbvio que o paciente em
AUTO-OBSERVAÇÃO
coma não estava consciente; mesmo assim alguma coi-
sa dentro dele fazia com que o corpo fizesse o possível Ao explorar o movimento , tentemos incluir uma
para acordar. Esse tipo de energia humana é incrivel- busca de aç ões que sejam totalmente simétricas. Isso
mente forte. Não importa o quanto a pessoa esteja imó- faz com que re almente pensemos no que estamos fa-
vel , ou próxima da morte, alguma coisa permanece lu- zendo com o corpo. A forma humana tem um eixo cen-
tando para manter a vid a. tral que passa pelo meio do corpo, deixando um olho,
Percebi então que, em comparação com essa ener- uma narina , um ouvido, um braço e uma perna de cada
gia, estar com o lado esquerdo paralisado é apenas um lado. É como se o lado direito fosse uma imagem
detalhe externo. É evidente que estar paralisado é algo espelhada do esquerdo. No entanto, raramente estamos
importante, mas em comparação com a urgência feroz co nscie ntes dessa estrutura fundamental , de modo que
de continuar a viver aquilo fica reduzido a um detalhe. nossas ações quase nunca são verdadeiramente simé-
Era uma energia impressionante de se ver. Foi também tricas. Para experimentar esse tipo de movimento, va-
muito bonito. mos tentar movimentar os lados direito e esquerdo do
Havia um outro paciente que não podia se movi- corpo do mesmo jeito ao mesmo tempo. Por exemplo,
mentar de jeito nenhum , exceto quando alguém toc as- levantemos ambo s os braços, ou abramos os olhos ao
r-
88 o Ator Invisível A Interpretação 87

máx imo , ou vire mos ambos os p és para dentro· não gllllla coisa a um colega e então ele fica irritado. Obser-
~mporta o que façamos, ou com que isso se pare ça, o vc-i esse padrão e m muitas ocasiões, se ja eu ou não o
Interessante é descobrir todas as possibilidad es de si- unico a faze r co me ntários. Talvez o ato r tenha razão
metria e ver como isso se processa int e riormente, e m ficar nervoso , Talvez seja errado criticar, já qu e se
É extremamente difícil verificar nosso próprio traba- lala rrno s demais poderemos terminar por confundi-lo.
lho. Quando estive rem praticando um a variedade de Pes soalmente , go sto de ou vir qu alquer crítica. Para
ex~rcícios , peçam a outra pes soa para o bservar o que mim , o problema bá sico é que não posso me ver na
estao fazendo . Assim, quando estive rem tent ando colo- ação . Mesmo um a grav ação em vídeo não a juda, já que
car o corpo numa posição específica (p or ex emplo n ão pode refletir todos os detalhes e nuanças de uma
posicionar os braços abso lutamente paralelos ao chão): interpretação ao vivo . Não se pode atuar em frente a
pode ser que fiquem ligei ramente fora da p osição . Pe- um es pelho. Não temos aí um verdad eiro reflexo. Por
çam a algué m para corrigi-l os, já que é muito importante isso o s co me ntários qu e o utr as pessoas fazem são úteis;
a pre nder a ser muito cuidadoso e preciso com qualque r elas cumprem a funçã o de espelho. Mas um crítico (de
coisa que se faça . Uma vez que tenhamos aprendido qualquer tip o, incl uindo qualq uer um de nossos co le-
onde está a verdadeira posição horizontal para os bra- gas ato res) é como um esp el ho distorcido que sempre
ços, devemos praticá-la sempre , d e modo que o corpo modifica a form a a seu próprio go sto. Se acreditarmos
possa finalm ente atingi-la facilmente de maneira auto- liter almente naquilo que ele es tá "refle tindo" , podemos
mática . Mas precisamos encontrar onde es tá a p osiçã o sair com uma falsa impressão . As palavras de um críti-
co rreta an tes de ficar co nfiantes. Do mesmo jeito, peçam co não são o verdadeiro reflexo do que estamos fazen-
a alguém para ouvir sua voz , sua fala e checa r como do . Temos de lev ar em co nta a distorção.
estão . Se conseguirmos algu ém que nos ajude desde o Entr etanto toda informação é úti l. Não importa se
começo do treinamento , aprenderemos a fazer os exer- não ouvimos ou não se guimos todas as sugestões. Acho
cícios corretamente se m precisar checar todas as vezes , válidas as percepções de outras pessoas, de maneira
Aliás, o melhor é pedir a uma o utra pessoa para no s qu e sempre quero tê- las ao máximo. Algumas vezes ,
ajud a r nesse se ntid o , p oi s espelhos, g ravadores e a migos me dizem que ouço demais os outros. Acham
videocassetes não "refletem " de man eira real aquilo qu e que talvez me falte confiança. Pode até ser verdade ,
es tamos fazendo . mas não é essa a raz ão pela qual gosto de ou vir críti-
Esse tipo de checagem é apenas empregado nos cas . Não me sinto o brigad o a seguir ne nhum comentá-
primeiros estágios do aprendizado . Num espetáculo rio , ma s, através do que as pe ssoas dizem, posso obter
não se pode "da r um a olhad a" p ar a ver se o m o virnen- informações sobre meu trabalho, e isso me ajuda a ver
to es tá sendo ou não realizado corretamente. De vemos o que está se passando naque le momento. Mesmo um
se r capazes de posicionar o co rp o de maneira indepen- esp elho distorcido é melhor do qu e não ter nenhum
dente. Como atores, temos de saber exatamente onde espelho. Os comentários podem n ão ser ver dadeiros,
o corpo está o tempo todo , e cada movimento tem de mas sã o úteis.
se r esc olhido, e não ac idental. Um ator habuqui disse um a vez : "Se vo cê achar que
Muitos atores não gos tam de ser critica dos . Quando alguém é um ator melhor do que você , ele é muito ,
es to u tra balha ndo e m algu m proj et o , às vez es dig o al- m uito superio r a você . Se ac ha r que vocês dois têm
A Interpretação 89
88 (l A IOf Invisível

('\l 'mplo, vamos fazer o papel de Hamlet, em toda a


mai s ou menos o mesmo nível , ele é nitidamente me- ~, 1 1 ; 1 complexidade, usando apenas uma das mãos. E
lhor do que você. Se voc ê sente que ele é inferior aí V;IIllOS tentar usar a outra mão para dar vida ao perso-
então ambos têm , na verdade, o mesmo nível. " , Il;lgem de Ofélia. É como teatro de bonecos , só que
Na realidade, o público é o verdadeiro espelho. Não ness e caso o boneco é parte de nosso próprio corpo.
sei realmente como interpretar meu papel até o mo- ()uando fazemos isso , estamos atuando através da ma -
m~nto em que esteja em frente a uma platéia. É naque-
nipulação de nossas mãos . Passemos então a fazer a
le instante que o descubro. A sala de ensaio é apenas a mesma coisa usando o corpo todo em vez de apenas as
preparação qu e leva à descoberta. O público é quem mãos. Simplesmente vamos manipular o corpo inteiro
me diz como devo atuar. do mesmo jeito que estávamos manipulando as mãos.
Não acredito que o trabalho do ator seja o de mos- Como atores , vemos e manipulamos nosso corpo, e,
trar o que ele (ou ela) é capaz de fazer, mas o de levar como conseqüência de nossa manipulação, alguma coi-
o p~lbl~co a _um outro tempo e espaço; a um lugar que sa muda e uma nova emoção vem até nós. Ainda ao
o publico nao encontra na vida diária. O ator é como o mesmo tempo, observamos essa nova emoção surgir,
motorista de um carro que transporta o público para quase como se fosse algo estranho e surpreendente.
algum lugar além , algum lugar extraordinário. Esse é o
Mas quem é que está vendo?
meu interesse em serv ir ao público. Vou contar uma história chinesa . Era uma vez um
Quando atuamos, estamos totalmente envolvidos com homem rico que tinha quatro esposas . A primeira era
o personagem que estamos interpretando. Se o persona- extremamente bonita, e ele a levava junto aonde quer
gem está triste, nosso corpo e emoções se movimentam que fosse, exibindo-a orgulhosamente a qualquer um
de acordo com a tristeza. Ao mesmo tempo, existe um que encontrasse. Tudo o que ela pedia ele comprava:
out~o eu que está comandando a interpretação, que não
jóias , sedas finas, presentes raros . Ele sempre se ba-
esta de maneira nenhuma triste. Podemos sentir a rela - nhava com ela e a lavava humildemente dos pés à ca-
ção entre o eu que está completamente engajado na - b eça. Finalmente ela tornou-se extremamente fútil e
quele momento e o eu que fica de fora e observa.
convencida e começou a mandar no marido.
O "obse rvador" dá as ordens; por exemplo, ele de- A segunda tinha sido conquistada depois de um es-
cide iniciar uma mudança no desenho do corpo que irá forço violento. O homem tinha trabalhado duro, negoci-
alterar, por sua vez , os se ntime ntos. Esse processo é ado e lutado para ganhar aquela noiva, e o casamento
muito interessante de ser observado, pois desperta nos- consolidara sua posição na comunidade. Ele a amava
so eu-mesmo que olha nosso outro eu-mesmo. Ao mes- muito e estava muito satisfeito com esse segundo casa-
mo tempo, não sabemos como se opera a rela ção entre mento, já que lhe tinha trazido uma sensação de segu-
o corpo e as emoções. Começamos com uma forma ran ça . Embora se u sentimento de amor real fosse menor
~ísica emocional que altera o corpo, algo muda , vemos
com relação a ela (uma vez que tinha sido forçado a
ISSO acontecer, mas não entendemos como ocorre. Aí
trabalhar tão pesado para conquistá-la), jurou que faria
então começamos a procurar por um outro eu, que está
qualquer coisa por ela. Disse-lhe que estava disposto a
fazendo com que isso aconteça.
trapacear, a matar, enfim, fazer tudo o que fosse preciso
Como um exercício, vamos tentar interpretar um
para se assegurar de que ela ficaria ao seu lado.
personagem us ando apenas uma parte do corpo . Por
80 IJ Aror Invisível
A lnlcrp rclll~nll e,
Sua terceira esposa não lhe era particularm ente impor-
Ele ficou chocado com sua friez a e decidiu abordar
tante. Sentia uma leve afeição por ela; quando se casa-
;1 terceira mulher. Era a úni ca que organizava a corre ria
ram, ela era muito jovem , atra ente e o aco mpa nhava em
do dia-a-dia doméstico e cuida va dele quando es tava
suas cons tantes viage ns , principalmente porqu e desse
doente ; p ortanto achou qu e se ria a mais qualificada
modo ele podia Continuar a desfrutar de relações sexuais
para acompanhá-lo em sua á rd ua e longa jornada.
mesmo estando longe de casa . Mas, conforme o tempo
Qu ando pediu que o acompanhasse, ela se de sm an-
foi pa ssando, ele começou a ver suas fraquezas e defei-
chou em lágrimas , dizendo: "Realmente gostaria de ir
tos. Começou a acusá-la de que no co meço tudo era dife-
com vo cê , mas tenho de ficar para olhar o bebê. Além
rent e, e isso levo u-os a muita gritaria e discussões. Ele a
do mais, tenho medo de ir a um lugar tão estranho. Na
chamava de estúpida, insensível , mal-educada e imbecil.
ver dade, isso me apa vo ra. O mais lo nge que irei co m
Já estavam quase se sepa rando quando de repente ela
você se rá até a fronteira , ma s qu ando chegarmos lá,
teve um bebê; então ele decidiu manter o casamento .
por favor me esqueça, não poderei ir adiante."
A quarta es posa er a tratada como um a serv a. O
Ele concordo u com aquela justificativa e foi procurar
marido mandava nel a, batia-lhe, sem nunca lhe ter dado
pel a quarta esposa . Já que nunca a tratara bem, estava
nenhum tipo de presente ou lh e feit o e logios . Nem
du vidoso qu anto à sua resp osta. Mas ela respondeu que
me smo pal avras gentis. A pobre mulhe r est ava comple-
seu trab alho e ra o de estar ao lado de seu marido e
tamente atormentada , já qu e seu marido a ama va tão
decl arou que estava pronta para acompanhá-lo a qual-
pouco. Finalm ente ficou fraca e deprimida, obcecada
qu er parte mesm o qu e fosse ao inferno . O homem ficou
com seu comp orta mento, e desesperadamente tentava
ao mesmo tempo surpreso e tocado com sua disposição.
agrada r o marido. Ela andava e m vo lta da cas a, toda
Chegou o dia da p artida. A primeira esposa ficou na
enco lhida, com medo de que viesse alguma repreen-
são severa o u algum outro revés . cama, recusando-se a falar, sem sequer alte rar a frieza
de sua expressã o . A segu nda reag iu do mesmo modo,
Um dia o governo pediu a esse homem qu e empre-
não mencionando nenhuma p alavra, nem para se des-
endesse uma longa jornada para além d as fronteiras do
pedir. A terc eira esta va ocupada organ izando todos os
império. Como ag ora já estava muito velho, não queria
detalh es da viage m. Manteve sua palavra e viajou até a
viajar sozinho e decidiu pedir a uma de suas esposas
fronteira. Qu ando ali chegaram , ela teve um acesso de
que o acompanhasse. Ele amava a primeira ma is do
choro, beijou o marido e voltou para cas a. O homem
que todas, de modo que se dirigiu a ela com se u pedi-
viajo u até aquele estranho p aís aco mpa nha do unica-
do. Quando lhe pediu que o acompa nhasse na viag em,
mente de sua qu arta esposa.
ela simp lesmente lan çou-lhe um olha r gelado e respon-
deu: "Não . Nunca, nunca, nunca ." Bem , o que representam essas quatro es pos as . A
~, tI ')

primeira é o corp o, a segunda , as posses, a terc eira é o


Com essas palavras, viro u-lhe as cos tas e saiu. O
cô njuge, ou o relacionam ento que temos com as pes-
marido ficou furioso , mas nada do qu e dissesse seria
so as. E a quarta? É nosso real e u-mesmo . A fronteira é a
capaz de demovê-Ia. Então ele foi até a segunda esposa
morte ; nosso corpo e posse s não viajarão conosco.
e fez o mesmo pedido. A expressão del a nem se alterou
Nos so cônjuge só pode ir no máximo até a fronteira . O
e ela simp lesmente contin uou a pentear o ca belo . Final-
único qu e fica a nosso lado é o único de quem tanto
mente respondeu co m uma única pal avra: "Não ."
ab usamos : nosso eu-mesmo.
92 () Ator Invisível
A Interpretação 93

Tendemos a considerar nosso corpo como se fosse


n-pentinas, a força e a velocidade da água também irão
nosso. É verdade , podemos usar o co rp o, mas não é
SI' alterar. Nu m lago ela assumirá a complexidade das
nossa propriedade. A única coisa qu e realmente possuí-
mos é nossa mente e alma. liirmas dos estreitos e ilhas; e sob influência do calor do
s ul, ela pode se transformar em vapor. A água tem cen-
Observemos uma flor ; a primeira coisa que vemos
tcnas de formas, mas qualquer que seja a forma pode-
são as delicadas pétalas. Mas se olharmos por trás dela
mos sempre reconhecê-la como "água ". L.M.
podemos ver o ca ule. A beleza frágil é real , mas alguma
Com os humanos dá-se o mesmo. Assim como sa-
coisa mais a Sustenta. Esta é uma verd ade que serve para
hemos qu e a "água" existe, mesmo que só possamos
tudo: existe uma superfície que se pode ver, mas existe
vê-la quando assume a forma daquilo onde está conti-
sempre algo mais p or detrás . Mesmo uma montanha
da o se r humano existe além das formas que vemos.
enorme terá correntes de água fluindo embaixo clela.
' Mesmo uma simplespessoa tem muitas 'formas". Algu-
Nos seres humanos existe uma sup erfície visível e
mas vezes nossasformas vêm daquilo quefazemos: somos
uma grande porção esco ndida p or dentro. Aquil o que
estudantes, filósofos, trabalhadores. Essassão nossas rou-
vemos é sustentado por aquilo que não vemos. Por essa
pagens . Às vezes assumimos formas a partir da idade ou
razão, não devemos co me te r o erro de treinar somente o
das responsabilidades: quando somos crianças, país ou
que é visível na supe rfície . Isso simplesme nte n ão fun-
quando estamos idosos. Um simples individuopode apare-
ciona. Se quisermos ter uma bela flor, temos de nos con-
cer de diversasformas no espaço de uma tarde, mudando
centrar em regar as ra ízes da planta e sustent ar o caule
de um chefe inflexiuel para um amigo afável, depois
enquanto ele cresce. Do mesmo jeito , se quisermos ter
para um pai responsável e ainda para um amante in-
um belo corpo e presença cênica, é preciso cuidar do eu
gênuo e romântico. Todos esses papéis são verdadeiros,
interior. Se o interior estiver p obremente nutrido, n ão há
mas não são completos. Trata -se apenas dasformas nas
beleza externa, ge stual , técnica vocal extraordinária, rou-
quais a essência do ser humano se manifesta. L.M.
pas elegantes, ou maquiagens fantásticas que ajudem.
Uma vez um mestre zen descreveu o corpo como
Sem trabalho interior, nada funciona.
uma massa de carne vermelha na qual o ser humano
Se perguntar: "O que é água?" , vocês talvez respon-
entra e sai continuamente. Muitas pessoas acham que o
dam dando exemplos co mo mar, rio , aq uilo que sa i da
corpo que vêem é a totalidade daquilo que são . Sendo
torneira , mas nada dis so é água . Essas sã o formas na s
es sa massa de carne vermelha certamente um ser hu-
quais a água aparece. Pensando bem, não há nada
mano, dentro do corpo existe um outro tipo de ser
como a própria água. Nada que seja tão fundamental
quanto a própria água . humano; alguma coisa que nã o depende do conglome-
rado de sangue e tecido. Esse outro ser está solto e
Quando vemos a água ela está contida numa ou
muda constantemente. É nosso verdadeiro eu.
noutra forma: num balde, no oceano, numa gota de
Qu ando estamos atuando, o objetivo não é o de
chuva. Se a água for colocada dentro de uma xicara
mostrar o personagem que interpretamos. Para além
redonda, ela assumirá a forma da xicara, e seu movi-
do personagem, ex iste um ser humano mais fundamen-
mento será limitado por aquela forma. Se surge em for-
tal , e é esse ser humano fundamental que faz com que
ma de rio, ela segue o cu rso do seu leito e, conforme a
o palco seja vivo . Apenas construir o personagem não
paisagem muda, com garga ntas estreitas ou descidas
é o suficiente.
=u

94 () AtorInvisível A Interpretação 95

Como ator, é muito difícil produzir um som espon-


CORPO E EMOÇÃO
tâneo de gargalhada. Ainda que tentemos nos lembrar
OS atores tentam parecer "natur ais" no palco. Isso é de momentos hilários pelos quais passamos, raramente
verdade para todos os tipos de teatro. Mesmo que o isso funciona . A razão é que normalmente é muito difí-
ator esteja trabalhando numa produção estilizada, seu cil mudar nosso estado emocional só pela força de von-
objetivo é o de estar naturalmente no palco. Por natu- tade. Podemos tentar dizer a nós mesmos para nos sen-
ral quero dizer humano: algo real é gerado pelo ator e tirmos alegres ou tristes, mas o eu- mesm o normalmen-
sentido pelo público. te não escuta. Mas se mudarmos aquilo que o corpo
Algumas vezes descobrimos essa atu ação natural atra- está fazendo , isso começa a afetar nossas emoções, fa-
vés de uma investigação psicológica. E podemos até pro- cilita nd o a execução de uma atuação na qual se pode
duzir algo que seja verdadeiramente natural e organica- acre d itar. Igualmente, na vida real nunca decidimos
mente humano. Mas isso nem sempre funciona , já que a quando rir, isso simplesmente acontece. Nunca pensa-
trajetória emocional da pesquisa é dificultosa e às vezes mos "o que existe no meu passado que seja engraça-
e nganosa. Um ator precisa de métodos que produzam do? " para depois cairmos na risada. Se pensarmos nis-
uma interpretação humana convincente todas as noites so, será muito tarde , o momento terá passado. O riso é
independentemente do que esteja sentindo. ' e spo ntâ ne o e não é fácil trabalhar a espontaneidade
Sabemos que a mente, o co rp o e a emoção estão sob e nco me nd a .
inextrincavelmente ligados uns aos outros. Quando Entretanto, existem duas coisas de que precisamos
estamos tristes, nossos ombros afundam, a cabeça tom- nos lembrar ao construir um personagem começando
ba para a frente, o s pensamentos ficam pessimistas e por fora . Primeiramente, conforme mencionei antes,
sentimos que nada está dando certo em nossa vida . uma interpreta ção sempre requer total comprometi-
Quando e stamos alegres, o corpo se abre, o peito se mento e concentração . O ator pode se concentrar tanto
expande, a cabeça fica levantada, e de algum modo nos sentimentos internos (se estiver trabalhando de
sentimos que é possível atingir tudo aquilo que dese- dentro para fora) quanto nas ações físicas (se estiver
jarmos. A posição do corpo, os pensamentos e as emo- trabalhando de fora para dentro), porém a concentra-
ções sempre mudam juntos. ção é fundamental. Alguma coisa sempre está aconte-
Como atores, normalmente começamos a trabalhar cendo por dentro. Não podemos apenas construir o
a partir da mente ou das emoções, achand o que essa externo e esquecer do interno. Em segundo lugar, a
disposição interior virá à tona se manifestando através forma externa que o ator está usando deve se basear na
do corpo. No entanto, o contrário também funciona : realidade humana. Não se pode simplesmente usar
começando de fora em direção ao interior. qualquer padrão de movimento e achar que isso vai
Podemos us ar a gargalhada para explorar essa idéia. funcionar. Precisamos utilizar um padrão que seja natu-
Vamos emitir o som "Ha , ha, ha, ha, ha ", Bem alto. Não ral e preciso.
vamos nos preocupar se estamos ou não nos sentindo Uma vez assisti a um espetáculo de n ô chamado
contentes, apenas fazemos . Sempre que um grupo gran- Fujito que realmente me sensibilizou. O ator tinha de
de faz isso junto, todos sempre ac abam caindo em gar- retratar uma mulher velha , cheia de desgosto por causa
galhadas autênticas . Isso é natural. da morte do seu filho .
11A ror Invisível A Interpretação 95

Como ator, é muito difícil produ zir um som es po n-


CORPO E EMOÇÃO
tâne o de ga rga lha da. Ainda q ue tentemos nos lembrar
Os atores te ntam p ar e cer "naturais" no palco . Isso é de m omentos hilários pelos qu ais passamos, rarame nte
verdade p ara todos os tipos de te at ro. Mesmo qu e o isso funci o na . A razão é que normalmente é mu ito difí-
ator esteja trab alhan do numa produção estilizada, se u cil mudar nosso estado e mo cio na l só pela força de von-
objetivo é o de estar naturalmente no p alco . Por natu- tad e . Po demos tentar di zer a nós mesmos p ara nos se n-
ral quero dizer humano : a lgo real é gerado pelo ator e tirmos a leg res ou tristes, mas o e u-mesmo normalmen-
se nti do pelo público. te nã o escuta . Mas se mudarmos aq uilo qu e o co rp o
Algumas vezes descobrimos essa atuação natural atra- es tá faze ndo, isso começa a afet ar nossas emoções, fa-
vés de uma investigação psicológ ica. E p odemos até p ro- cilitando a execução de uma at uação na qual se pode
duzir algo q ue se ja ve rda deiramente natu ral e o rganica- acredita r. Igu alm ente , na vida re al nunca de cidimos
mente hu mano. Mas isso nem semp re funciona, já qu e a qu a ndo rir, isso simples me nte acontec e . Nunca p ensa-
trajet ór ia emo cio nal da pesqu isa é dificul tosa e às vezes mos "o que exi ste no meu p assado que sej a e ngraça-
enganosa . Um ator precisa de métodos que produzam do? " para depois ca irmos na risada. Se pensarmos nis-
uma interpretação human a convincente todas as noites, so, se rá m uito tarde , o momento te rá passado. O riso é
independe nte me nte do q ue esteja senti ndo. es pontâ neo e não é fáci l trabalh ar a esp ontaneidade
Sabemos que a mente , o co rp o e a emoção es tão sob e ncome nda .
in extrincavelm e nt e liga d os uns aos o utros . Quando Entre tanto, existem duas coisas de qu e precisamos
es tamos tristes, nossos o mbros afu nda m, a ca beça to m- nos lembrar ao co nst ru ir um personagem co meçando
ba para a fre nte, o s p ensamentos ficam p essim istas e po r for a . Primeiram ente, conforme mencionei a ntes ,
se nti mos q ue nada está dando certo em nossa vida . um a interp re tação sem p re requer to ta l comprome ti-
Quando es tamos alegres , o corpo se abre, o p eito se mento e co nc entração. O ator pode se concentrar tanto
exp ande, a ca beça fica le vantada, e de alg um modo nos sentimentos internos (se estiver trabalhando de
sentimos q ue é possível atingir tudo aq uilo que dese- dentro para fora) q ua nto nas ações físicas (se es tiver
jarmos . A posição do corpo , os pensam e nto s e as emo- trabalhando de fora p a ra dentro) , por é m a co ncentra-
çõ es se mpre mudam juntos. ção é fun dam enta l. Algu ma coisa semp re está aconte-
Co mo atores, no rm alm ente come çam os a trabalhar ce ndo por dentro . Não p odemos apenas co nst ru ir o
a p artir da mente o u d as emoções, ac ha ndo qu e essa exte rno e esquece r do int erno . Em se g undo lugar, a
disposição interio r virá à tona se ma nifestando através fo rma externa que o ator está usando deve se basear na
do co rpo . No entanto, o co nt rário também fun ciona: re alidad e humana . Não se p ode si mp lesment e usar
co meçando de fora em direção ao interior. qu alq uer padrão de movimento e ac ha r q ue isso va i
Podemos usar a ga rgalh ada para ex p lorar es sa idéia. fun cionar. Precisamos utilizar um p adrão qu e seja natu-
Vamos emitir o som "Ha , ha , ha, ha, h a", Bem alto. Não ral e preciso.
vam os nos preocupar se es ta mos ou não nos sentindo Uma vez ass isti a um espetácul o de n ô cha mado
co ntentes, apenas fazemos. Sempre que um g rupo gra n- Fujito q ue re alm ente me sensibilizou . O ator tinha de
de faz isso junto , todos sempre acabam ca indo em gar- retratar uma mulhe r vel ha, cheia de desgosto po r ca usa
ga lhadas aut ê nticas. Isso é natu ral. da mo rte do seu filho .
96 ()Ator Invisível A Interpretação 97

o ator que interpretava a m ulher velha era u m ho- e xpe riências universais e não d e respostas pessoais. A
mem . Em a m bas as tradições n ô e kabuqui, todos os experiência d aquela mulher velha sugeria a complexi-
papéis são representados p or homens. Não há mulheres dade de to da a d esol ação e solid ão humanas e não
no palco. No n ô, o ator usa uma másca ra feminina e merame nte o p roblema individua l de alguém. Por ca u-
encarn a a essência daquele personagem fe minino. No sa d isso, o n ô solicita um nível de com prometimen to
kabuq ui, o ator usa uma p esada maqu iagem , uma pe- diferen te d o d a maio ria d o teatro o cidental. Naquele
ruca, e um fig u rino elaborado para ap resentar uma espetáculo, o ato r se conce n trava inteiro p recisamente
hábil e elegante representação: uma visão idealiz ada naquilo que el e tinha d e fazer com o se u co rpo . Dava
da fe m in ilida de . L.M. tudo de si para realizar a tarefa e se conce n tra va inte i-
Aq uela m ulher ve lha d e cid iu confronta r-se com o ram ente naq uilo.
ass assin o de se u filh o . Ela ca mi n hou lentamente d as Aq ui está um exercício n o q ua l us amo s d oi s pedaci-
coxias ao long o da "p o nt e " q ue le va vam até o palco nhos de texto q ue são:
o nde o assassi no estava e spe rando. Co nforme o at o r "Não tenho d inhe iro. Não tenho o que co mer. Estou
ca mi nha va , e u realmente senti o pesar, o ó dio , o d eses- co m fome. "
p ero e a d et erminação daquel a mulher. Fui aos b asti- E:
do res a pós a apresentação, q uerendo e ntender como "Ta lve z ama n hã e u te n ha algu m dinhei ro . Então po -
ele tinha sido ca paz de dar vid a à extrema comp lexi d a- dere i com p ra r com ida . Po derei come r o que quiser. "
d e daquel e p e rsonagem. Pergunte i-lh e no q ue e le es ta- No rma lme nte , no momento em q ue são dadas essas
va pensando o u o q ue es tava se ntind o a ntes de entrar fa las , no s preo cupamo s em saber como devem ser di-
no palco. O ato r respondeu: "Tra ta-se d e uma mu lhe r tas. Ta lvez a primeira fala numa voz baixa e o bscura.
velha , então , quando e u ca minho , tenh o de m e con- Ta lve z lentam ente. A segunda com mais energia vo cal,
centrar e m fa zer os passos um p o uc o mais curtos do ou mais a lto . Esses seriam padrõ es norma is , mas o inte-
que o hab itual. E tenho de par ar no primeiro p in he iro ." ressante é tentar um o utro ca min ho , que use a conexão
No teatro n ô, a p on te que liga as coxias ao palco é e nt re corpo e emoção.
totalmen te visível ao público, e existem três p inheiros Q ua ndo dissermos a p rime ira fala, va mos tentar ac ha r
distribu ídos em toda a sua extens ão. L.M. lim a p osi ção a p ro p riada do corpo, tal ve z arq ueados, ou
No Ocidente, o ator talv e z te nte se aba stecer co m ca ído s. Alguma coisa que traga um sentimento ab soluta-
se nt imentos de triste za, ó d io o u q ua lqu er outro a nt es men te ade q ua do para aq uilo q ue estamos d izendo. E
de pisar no palco . Mas no caso d aquele ato r de teatro vam o s fixar essa forma física em nossa mente. Daí, va-
n ô, não ha via ne nhum es fo rço para criar um a vid a inte- mos ac ha r lima no va forma física adeq ua da à segu nda
rio r; mesmo assim, de a lguma maneira , a mulhe r ve lha fala . Talvez ficar e re tos , e m p é, o u desco brir uma forma
e ra to ta lment e crível. Em bora te n ha s uste nta do q ue mais abe rta . Vamos memorizar essas p osições.
ap enas s e g uiu a co re o g rafi a, susp e ito qu e e le Ago ra tomemos d e novo a primeira po sição, vamos
su bconscientemente estava em co ntato co m o s sen ti- re almente ass umi-la, e então di zer a frase . Mudamos
mento s requ erid os p ela ce na . Uma coisa m uito impor- ag o ra pa ra a segu nda posição, o bserva ndo o p rocesso
tante foi que e le não tentou faze r d as emoções a lgo d e transformação. Não é p ara sim ple sme nte sair da po-
pesso al. Não e ntro u em deta lhes . O teatro n ô trata de sição A e fazer a p osição B. Vamos sen tir co mo o corp o
98 o Ator Invisível A Interpretação 99

p reci sa se me xer para no s levar da posição A à B e ped iu que olhasse para a tela do vídeo . Então eu sim-
como, ao mesmo tempo , a dinâmica interior vai mu - ple smente girava minha cabeça . A segunda ve z, como
dando. Quando chegarmos à posição B, dizemos a se- o homem não compreendia o que tinha visto, era pre-
gunda fala. ciso verificar a imagem na tela . A terceira ve z era o
A próxima etapa é fazer o exercício co m apenas um desespero. Três degraus. Para criar o de senvolvimento
movimento minúsculo do corpo, alguma coisa que o apro priado , mudei o andamento cada vez que mudava
espectador não note: por exemplo , deixando ap ena s o a p osição da cabeça . Parece mecânico, mas, na ve rda-
esterno (o sso do peito) ir de A a B. Vocês já devem ter de, cada ve z que interpretei isso , percebi qu e se ntia
observado como a dim ensão interna muda conforme o uma genuína tristeza. Não sei por quê. Eu não estava
corpo altera sua posição. Lembrem-se de como a tran s- procurando pela emoção . Mas por ca usa do ritmo e da
formação interior aconteceu. Agora digam as frases e conexão interna , percebi que algumas lágrimas escorri-
mantenham o movimento inte rno da p osi ção A p osi-
à
a m no meu rosto.
ção B. Nada acontece por for a . Apenas as falas. De fato , o todo d a minha interpretação for a
O externo não está mudando p or ca usa do texto. O co nstruído através de detalhes físicos minúsculos: virar
corpo se lembra do caminho físico e a dinâmica inte- para a tela num "ce rto " andamento ; d epois parar um
rior muda. O texto segue. pouquinho no mei o; inclinar a cabeça muito ligeira-
Na peça Tbe Man Who , eu fazia o papel de um pa- mente para a direita ... e a emoção surgiu.
ciente que tinha perdido a percepção do lado es que rdo Co mo ator, se eu procurar primeiro pela emoção,
do corpo. Numa cena os médicos lhe pediam que se tenderei ao pânico. Po sso pensar: "O nte m , senti uma
barbeasse inteiramente, de modo c uida doso, em frente triste za genuína . Ent ão , hoje, eu tenho de achar a mes-
a um es p elho. Então ele o fez. Mas como não tinha ma tristeza no vamente."
percepção do seu lad o esquerdo, se barbeou apenas Mas quando tento pensar "esto u me sentindo triste ",
do lad o direito do rosto . Estava absolutamente co nve n- a tristeza nunca vem .
cido de que tinha se barbeado inteiramente . Durante o É extremamente difícil repetir a mesma emoção uma
teste ele tinha sido filmado em vídeo. Os médicos en- ve z atrás da outra. Corre-se um grande risco qu ando se
tão pediram que se virasse e se olhasse no monitor do d epende das p róprias e mo ções como base para repro-
vídeo . Enquanto no reflexo d o espelho o lado esquer- duzir um a ce na num espetácu lo que de ve ficar muito
do do paciente aparecia à su a esquerda, na tela do tempo em carta z. Por o utro lado, podem-se repetir os
vídeo ele aparecia sua direita , e então ele pôde ver
à
detalh es do corp o exatamente do mesmo jeito todos os
qu e metade de seu rosto ainda est ava cobe rto de espu- dia s. Trabalhar com as formas físicas é muito útil aos
ma . Naquele momento ele co m pree ndeu que se u cé re- atores.
bro estava danificado. No teatro clássico japonês , a interpretação é
Em termos de palco, eu tinha de olhar para a tela do construída totalmente de f ora. O ator aprende os movi-
vídeo e de volt a para o espelho três vezes, para co mpa - mentos da peça co mo se f osse a coreografia de uma
rar as duas imagens no meu rosto. Cada virada repetida dança . Cada passo, movimento de ca beça e gestos emo-
da cabe ça tinh a de de senvolver a situaç ão. A primeira cionais estão fixados pela tradição. Até as entonações
vez que o homem se viro u foi qu ando o médico lhe voca is exa tas sã o prescritas e d evem ser aprendidas
100 vAtor Invisível A Interpretação 1O1

como p ane do roteiro. As f ormas f ísicas e vocais são Na ce na do suicídio, Drona se de spe de todas as
cha mados de katá. ves timentas e então despeja um grande jarro de ág ua
Não há improvisaçã o; um jovem a tor cop ia exata- ver melho-sangue sobre a cabeça , como um tipo de pu-
mente seu mestre, para que aprenda o katá de qual- rifica çào , O líquido escorre por todo o seu co rp o e é
quer papel. Um a vez que isto esteja p erfeitamente do- abs orvido pela terra. O púb lico sente o pesar, o amor e
minado (e só nessa condição), talvez sej a permitido () de sespero do p ai de maneira muito intensa. Mas eu
ao ator da r seu toque p essoal à interp reta ção . Ma s isso co migo mesmo não pensei: "O que deveria apare ce r
se ria apenas um detalhe, ou sutileza para o kat á j á ne sse momento?" o u "Q ua l estado psicológico tenho
ex isten te, e n ão a criaçã o inteiramente n ova de uma de usar?"
interpretação. L.M. Quando a cena se iniciava , Toshi Tsu chitori ( um
Espetáculos n ô normalmente são d ivid idos em duas mú sico japonês que fa zia parte da produção ) começa -
part es . Existe um pequeno "intervalo " entre os atos, o va um a batida firme no tambor. Eu usav a isso co mo
que permite ao protagonista ir para as co xias e mudar fo co e sim p le sme nte me concentrava em relacionar
de roupa . Durante esse int ervalo, geralmente um ator meus movimentos à batida do tambor. Para mim, nã o
cômico de kyôgen vem ao palco e explica toda a histó- havia nada mais. Apenas a ligação entre o som e as
ria ao público. Uma vez , um ato r mui to bom de teat ro ações d o meu corpo. É claro que me mantive at ento ao
n ô ouviu um a d es sas inte rve nções e nq ua nt o est ava jo-ba-leyu e me lembrei da natureza da situação . Era
mudando de roupa e d isse a si me sm o : "Ah l Então qu er um momento frio , nada alegre , portanto tinha de man-
dizer que é disso que trata a peça?" ter minha atenção na qualidade trist e da cena . Não in-
Foi a primeira vez que o uv iu a históri a inte ira. Em- terpret ei a tristeza . Ela era simp lesme nte reconhecida
bora tives se apre nd ido s ua p arte perfeitamente e fosse co mo a lgo presente . Para mim o trabalho era criar uma
ca p az de re alizar um a int erpretação fa ntástica, não ti- rel ação com o tambor e , ao mesm o tempo, desenvolver
nha nenh um a dica sobre o que devia aconte cer na se- o jo-ba-hyu.
qüência. Ele havia criado o pa pel externamente, se - Pensando bem, e u percebia que aq uele momento
guindo o katá legitimado pela tradição. Contudo, o funci onava , porque e u tinha me co nce ntrado de ma-
público er a tocado pela int e rp retação e podia se ntir a ne ira mu ito firme numa única coisa. Como co nse qüê n-
total realidade da história. cia , ha via mu ito es paço dentro de mim; espaço que
Na produção de O Mababbarata de Peter Brook e u permitia entrar a imagina ção do público . Não havia em
fazia o p apel de Drena , um mestre g ue rre iro que n ão meu int erior material psicoló gic o demais. Eu sim p les-
podia ser aba tido em co mba te . Na p eça , os in imigos de mente respeita va a si tua ção e e ntão me concentrava na
Drona es tavam desesperados para eliminá -lo antes da mú sica . Co mo retorno, essa co nc e ntração criou um tipo
batalha fin al , já que, se dela participasse , imporia a el es de vaz io interior. Dentro deste va zio o público pôde
uma de rro ta ce rta. Então , trapacearam. Para fazer com projet ar sua própria ima ginação. Pôde contar todo o
que Dro na perdesse a vontade de luta r, mentiram-lhe , tip o de histórias a p artir d o que eu estava sentindo.
co ntando que seu filho fora as sassina do. A trapaça o b - O es paço va zio do teatro exi ste dentro do ato r, as-
te ve sucesso . Desesperado por ter perd id o o filh o , sim co mo no próprio palco. Meu professor de n ô uma
Drona se s uicido u. vez me disse que e u nào d e veri a interpret ar cio meu
102 O Ator Iftvisível
A InlCr"rl!lllçftll t 0.1

próprio jeito . EJ11vez dis so, de veria tentar fazer exata- Infelizmente, isso me desapontava um poucx) . SlIll 111
mente o que o professor mostra. A maneira como a u-rpreta ção er a excelente, mas a história era l'llnladll dt'
mão é levantada o modo de dizer o texto, tudo deve maneira tão óbvia , qu e eu sentia como se estívessc ali ·
ser feito exatanlente como e le diz. Mesmo que ache- sistindo a um mel odrama na televisão. Então uma vez
mos que n ão está certo. Não se d eve a lte ra r o u ele ve io a Par is e apresentou a mesma peça . Era abso-
reinterpretar o que se aprendeu até que se atinja os 60 lutam ente maravilhosa.
anos . Depois diSSO podemos se r livres. Mas uma vez Após o espetáculo, fui até os bastidores falar com
que se tenha iniciado um tre inamento de nô, com ida- ele . Explicou-me que quando interpretava no]ap ão , con-
de entre 5 e 6 a~OS , estamos na verdade falando sobre centrava-se na história e na situação dramática. Como a
mais de 50 anosde estudo. Nes te p onto , teremos ab- língua usada no teatro n ô é extremamente arcaíca, a
sorvido completJmente nosso estilo e, mesmo que im- maiori a dos japoneses tem dificuldade para entender o
provisemos ou rdap ternos o trabalho, nunca ire mos Significado ex ato do texto. Por isso ele sentia que era
traí-lo. Tudo o que se aprendeu nos 50 anos preceden- importante ressaltar o encadeamento das ações.
tes nos dá uma base firme, a qual, por su a vez , nos Na Europa, não havia nenhuma possibilidade de o
cap acita a sa b er o que é a liberdade real. p úbli co acompanhar o texto, de modo que teve um
Encontrei meu me stre anos depois de ter me dito objeti vo diferente. Em vez de tentar contar a história
isso , qu ando eleestava com mai s ou menos 75 an os. tão claramente , p ôs seu foco em cada gesto, em cada
Perguntei-lhe sesentia algo diferente agora qu e tinha so m, e m cada detalhe de cada mo vimento. Era hipnóti-
atingido a idade da liberdade. Ele respondeu: "Não . co assisti-lo, e causava impacto emocional apesar da
Aquilo que eu d~se a você aplica-se somente aos gê ni- ininteligibílidade da história . ,I

I
os. Co mo SOU uiJl ator comum, não posso atingir a li- Uma crítica francesa viu esse espetáculo e escreveu
berdade. Na ve~ade , é justamente o contrário. Agora sobre sua experiência. Primeiro, estava apenas sentada e
não tenho ab solutamente nenhuma liberdade. Estou fi- ass istia relaxadamente, mas aos poucos começou a acer- ,i
cando velho e ~gu mas vezes acho que vou perder o
brilho ou que vJi me dar um branco . Fico tão preocu-
tar sua postura, de modo que a coluna tomou uma posi-
ção mais equilibrada (como numa posição para medita-
'~
p ad o com esse ~egócio de esquecer o texto qu e não ção). Embora não fosse capaz de entender as ações, ela
tenho tempo de ll1e concentrar em atingir a liberdade . sentiu alguma coisa muito poderosa vinda do palco.
Minha tarefa pri~cipal é a de simplesmente fazer meu Acho que o fato de Hisao Kanze nã o se ter mai s
trabalho de fX1anôra correta. É isso. " preocupado em conta r a história do ponto de vista da
Alguns anOS atrás fui ver um espetáculo com um emoção, do sentido , o u d a psicologia , p ossibilitou-lhe
brilhante ator j3ponês ch amado Hisao Kanz e , que já alcançar o utro nível de interpretação . A neces sidade de
morreu . Muit os críticos sugeriam qu e er a a qualid ad e se conc e ntrar em cada momento com seu ser inteiro ,
de seu trabal ho que encorajava toda um a geração de em vez de se preocupar e m viajar pelo texto, obrigou-
jovens a se i.l1teiCSsar pelo teatro nô. Uma coisa que o a se afastar da forma convencio nal da narração te a-
notei na sua i nterpreta ção foi que a narrati va era extre- tral. Foi le vad o a descobrir um nível ma is universal de
mamente clara. lisa e ra provavelmente uma d as razõ es comunicação - de ser humano para ser humano - qu e
pel as quais ele t'f.l tão p opular entre o público jovem . até mesm o um crítico estrangeiro p ôde p erc eber.
t 04 (I Aror Í nvísível A Interpretação 105

No entanto , a abordagem tradicional pode se tornar o co rp o pode mu dar o resto. Da próxima vez que você
problemática. Se trabalharmos a penas co m o exteri or, se se ntir sob o peso d o desespero, comece a movimen-
iss o se torna mu ito a rtificia l. Nada s urge de nossa inter- tar o co rpo, procurando parti cularmente prestar ate n-
pret ação. Está se mp re vaz ia . ção e m so ltar a coluna vertebral e abrir o peito e a
Se cuidarmos demais da parte exte rio r da inte rp re- região dos o mbros. Vá ab rindo, olhando para cim a e
tação - os gesto s , o figurino, a maquiage m , a ex pres- e m torno, re spirando forte e profundamente, relaxan-
são - , a dimensão int eri or ficará frouxa . É co mo se ti- do o pescoço e achando uma imagem positiva para
véssemos feit o uma bela embalagem mas sem nada estimu lar os mov imentos. Logo perceberá q ue o humor
dentro . Quando se abre , está vazia. O público nã o se rá come ça a melhorar, e os pensamentos param de ficar
mobilizado, um a ve z que a embalagem não co ntém co rre ndo em torno dos mesmos círculos es treitos.
nada que interes se . Se , contudo, nos co ncentrarmo s Trabalhar co m o co rpo não é algo que os atores fa-
apenas na parte inte rn a, teremos o utro p roblema . Uma zem só pa ra a saúde o u para melhorar o desempenho.
ve z que não exista uma es tru tura ou té cni ca (a embala - Se criarmos o hábito de explorar regularmente o co rpo,
gem) que contenha a vida interior, não se po de ver de modo qu e ele se torne livre e desperto, nossos pro-
nada. Torna-se algo tedioso e desorganizado . É pr eci so cessos mentais se tornarão igualmente flexíveis. Além
fazer uma embalagem interessante e nos assegurarmos d o mais, no ssa vida e mo cio nal se tornará mais rica .
de que existe a li dentro algo igu almente interessante .
O "vaz io " a que Yoshi está se referindo é o da ausên- DETALHES
cia de vida interior. O "vaz io positivo " do qual ele falou Eu estava trabalhando co m alguns estu da ntes na
nas páginas anteriores é diferente: trata-se de um esta- montagem de Esperando Godot de Beckett, Nessa peça,
do repleto de comp rometimen to interior, é o tipo de va- o personagem Lucky faz um longo e tedioso monólo-
z io em que o público percebe qu e o ator está totalmente go . O estudante estava dizendo o texto, quando o in-
presente e qu e qualquer coisa p ode acontecer. Este é o terrompi e perguntei : "O que você está procurando?"
tipo de "vaz io" que p ode ser usado para "p reenc her a O es tuda nte re spondeu : "Esto u procurando o tédio. "
embalagem ". L.M. Co mo ato res , não podemos inte rp reta r uma filo so-
Na vida real, é impossível isol ar nossos hábitos men- fia , o u um a idéia, ou um estado. É impossível. Um dire-
tais. Como a mente não tem um a realidade tang ível , to r pode no s diz e r: "Agora sua e xistência está fria , você
não p odemos travar uma batalha co m os hábitos men- não tem energia , você está am p utad o da sociedade.
tais para mudar nossa maneira de pensar ou nossa vi- Fale isso." Mas não se interpreta esta situaçã o. O ator
são de mundo. Do me smo jeito, tentar ignorar um a pode falar co isa s muito co nc retas: tal vez su ssu rrando,
emo ção forte (c o mo o medo ou o desespero) ou d imi- descobrindo palavra por palavra . Mais tarde talvez o
nuir s ua importância é muito difícil. Existem coisas que público venha a dizer, a tra vés de sua própria interpre-
n ão mudam assim facilmente. Mas o corpo p o de se r tação, algo como "aq ue le homem se perdeu". Tudo
alterado instantaneamente. Po demos vê-lo, tocá-lo , tra- bem, mas um ato r não pode interpretar o "perder-se a
ta-se de uma realidade tangível que nossas e moções e si mesmo".
pensamentos não têm. E uma vez que o co rp o est eja Além d o mais , se es ta m os tentando co m unicar o té-
co nectado co m o utros aspectos de nós mesmos, mudar di o , temos de interpret ar uma ve rsã o muito interessan-
t 06 v Ator Invisível A Interpretação t 07

te do tédio. Se o público perceber qu e es tamos nos dram ático s. E só p odemos fazer isso quando j:í tiver
desviando d ele, isso não é tédio no teatro, é teatro mos u ma no ção muito se d ime nta d a da conexão entre ()
entediante. Como atores, não podemos dizer o texto corpo e a dimensão inte rior.
de uma maneira tediosa, do contrário o público ca irá Quando nosso corpo está bem ligado ao ser ínte-
no sono. rior, a mínima mudança física evoca diferentes sensa-
Em ve z de interpretar um estado, de vemos procurar ções internas . Podemos perceber qual é a diferença
por detalhes muito concretos, e , quando tiverem sido entre ficar com o dedo indicador enrolado dentro da
todos reunidos , o público p oderá perceber quem você palma da mão e mantê-lo estic ado . E temos clareza
é . Na vida cotidiana, não faze mos o p ersonagem "nós quanto aos se ntime ntos que estão ligados ao s vários
mesmos". Num minuto fazemos essa ação, em seguida detalhes. Podemos perc eber que manter o polegar nes-
fazemos aq ue la e depois uma outra. Posteriormente , ta posição evoca um a se nsação afirmativa, ao passo
podemos olhar aquilo qu e fizemos e reconhecer que qu e , naquela outra , se ntimo -nos mais reticentes.
tipo de personagem somos, mas não d ecidimos faz er Para criar um p ap el usando ess a abordagem, preci-
essa ação porque o personagem pede. E talvez amanhã samos gastar tempo e xp erimentando o limite da s possi-
estaremos fazendo alguma coisa totalmente diferente. bilidades físicas. Temo s também de ser muito ex atos e
Não é o caso de "porque meu personagem é assim, honestos com o que estamos sentindo. Não é bom en-
tenho de fazer isto". Nunca. A cada momento escolhe- contrar um a posição do co rp o que pareça ser a ce rta.
mos uma ação , uma pala vra , lima frase. De vemos achar o detalhe físico preciso que esteja clara
Quando es tamos preparando um p apel, é fácil ca- e fort emente ligado à emoção do momento. Uma ve z
racterizar amplamente a pessoa que estamos interpre- que tivermos encontrado todas as formas essenciais,
tando e d izer: "Ele é cínico", ou "Ela é otimista". Mas podem os ligá-las p ara formar um tipo de "mapa" da
como podemos interpretar uma pessoa de sse jeito? Não viagem e mocio nal. Então simplesmente seguimos o
podemos interpretar um a descrição. O que podemos mapa físico toda vez que atuamos. Mas precisamos de
fazer é descobrir uma séri e de pequenos detalhes. Nes- tempo para achar o s detalhes corretos, para criar o
se instante nossa cabeça se levanta. Nesse momento mapa certo .
nossa voz se torna ma is possante. E conforme esses Quando estamos buscando encontrar os detalhes fí-
detalhes se ac um ula m, o público terá a imp ress ão do sicos, podemos algumas vezes conduzir os experimen-
indivíduo. A platéia finalmente decide se o persona- to s em miniatura . Por exem p lo , talvez o mo vimento de
ge m é cín ico o u otimista. É preciso co meç ar com o que nece ssitamos se ja um salto , mas pode ser algo
desenvolvimento dos pequenos detalhes. mu ito d ifícil (e cansati vo) de explorar. Então começa-
No entanto , existem vários itens a se r ca ute losame n- mos a nos concentrar nos mo vimentos de um a das
te observad os nesse tipo de trabalho. Primeiro, precisa- mãos. Como já foi dito na parte "Exp e rime ntar" (final
mos nos certificar de que descobrimos os detalhes cor- do capo 2), a mão tem muitas possibilidades: os cinco
re tos. Segundo, nossos movimentos físic os e nossa d i- dedos , a palma, ân gulos diferentes, ficar fechada, ficar
nâmica interior devem estar firmemente conectados . relaxada etc. Então vamos brincar com isso. Num ce rto
Temos de gastar muito tempo procurando pelo detalhe momento nos se ntimos alegres e a mão de repente se
absolutamente correto p ara cada um dos momentos ab re . Esse é o se ntime nto certo, o de que precisamos, e
108 o Ator Invisível A lnterpretaçàn , O.

o movimento está fortemente conectado a isso. Porém, te m uma express ão de ódio, então acho que vou lcvun -
no palco iremos precisar de um a de scrição mai or , en- tar meu braço e cerrar os punhos." Ao contrário, o corpo
tão amplia-se para um salto a ação de subitamente abrir percebe qual expressão está sendo oferecida, e se por si
a mã o. Mas chegar até o sa lto é um p ro cesso delicado . só se une ao rosto. Uma vez que essa união tenha se
Começo pela mão . O se ntimento co rre to está ali. esta belecido , vamos tentar perceber qual voz pertence a
Então permito ao corpo todo que se torne igual à mão. est e ser, começando a usar sons (em vez de palavras)
(Na ve rdade, usar a mão não é realmente uma ve rsão para achar a voz . Criamos assim um tipo de escultura
em miniatura; o todo do se nt ime nto está ali. Só que viva, usando o rosto , o co rp o e finalmente a voz. Agora
algumas ve zes o corpo todo se torna o mesmo q ue a a escultura começa a se movimentar e por fim interage
mão. ) Como atores, decidimos que tamanho queremos com outros personagens.
dar àquela mão; ela p ode ficar pequena ou envolver o Agora um a outra série. Em vez de começar com o
corpo inteiro. Num ce rto se nt ido , realmente não im- movimento para descobrir a co ne xão interna , podemos
porta o tamanho do movimento. O que interessa é des- ca ptura r um a imagem específica em nossa mente e dei-
cobrir o movimento do corpo qu e corresponda ao mo- xar que ela gere o movimento do corpo. Estamos dan-
vimento interno. Uma vez que tenhamos encontrado do ao corpo permissão para que se me xa livremente,
isso , a es cala é uma questão de es colha. Podemos co - levado pela imagem. No entanto, para que ess e exercí-
me çar pequeno para depois ampliar o padrão , o u po- cio seja realmente ef icie nte, precisamos ter um a imagi-
demos começar grande para depois reduzir o tam anho. n ação rica e poderosa, para fazer com que o corpo se
Podemos observar algu ns dos exercícios físicos ge - mexa de muitos modos e nã o fiqu e estancado em pa-
rais de interpretação. Prim eiro, vamos relax ar o ro sto, drões estereotipados.
bu scando um tipo neutro de expressão . Todos os mú s- Também é interessante utilizar idéias para relatar a
culos estão relaxados (inclusive boca e olhos) , de modo es sência da experiência humana, em vez de imagens
que pareçam calmos e se m emoção. Vamos tentar man- distantes ou sup e rficiais. Por exemplo, vamos imaginar
ter esse estado e nq ua nto mexemos o restante do cor- que estamos vivendo dentro do útero de nossas mãe s,
po. Tentemos exp lo rar todas as possibilidades físicas num movimento da jornada em dir eção ao nascimento.
dos músculos e , confo rme fazemos isso , vamos experi- Para isso , é preciso pesquisar quem éramos antes de
mentar o que está ac ontecendo (ver final do cap o 2). termos chega do ao mundo externo. Ou podemos tor-
Desse jeito , podemos realmente se nt ir a fun ção do cor- nar visíveis, através do mo vimento, os aspec tos horrí-
po e seu efeito. veis de nosso próprio caráter. De ce rta forma , explorar
Vamos agora fazer o contrá rio. Vamos esculpir o ros- essas imagens potentes funci ona igualmente como um
to com um tipo extremo de máscara expressiva, enquan- tipo de auto terapia , ajudando a nos limpar p or dentro .
to mantemos o co rpo calmo. Rapidamente perceber e- No ssa imaginação pode sutilmente afetar nosso co r-
mos que o corpo quer atender ao que está sugerido no po me smo que não haj a movimento ou contato físico.
rosto. Vamos avançar um passo no ex ercício e permitir Pensemos numa co r como ve rmelho ou am arelo. Va-
ao corpo que ele me smo tome a forma em consonânci a mos realm ente nos conc e ntrar e unir todo nosso se r
com o rosto . Estejamos certos de que essa é uma respos- com essa co r se m tentar demonstrar isso exteriormen-
ta instintiva, e não um a decisão cerebral: "Ah, meu rosto te . Tod a a nossa e xistê ncia se torna vermelha. Vamos
1 1O () Ator Invisível A Interpretação 111

pedir então aos espectadores para adivinhar qual cor temente vemos estereótipos de senilidade em vez de uma
estávamos usando. É claro que isso não funciona o tem- real e verdadeira representação de uma pessoa em par-
po todo, mas em grande número de casos o público ticular numa idade especifica . Se tentarmos mostrar a
escolherá a cor certa. Isso significa que, se tivermos idade copiando seu fenômeno externo, com mãos trê-
uma imaginação forte , o público pode perceber o que mulas, em vez de comp reen der a estrutura fundamen-
está acontecendo. Não é preciso demonstrar. A comu- tal do esforço emocional vindo de um corpo debilitado,
nicação acontece quando estamos inteiramente unidos estarem os apenas produzindo um clichê. L.M.
com nossas próprias intenções. Nossa imaginação alte- Lidando com os conceitos de tai e yu , é importante
rará sutilmente nosso ser e nossas ações, e o público lembrar que ambos são igualmente necessários numa
poderá sentir isso. Ele comp ree nd erá. situação de interpretação. Se não tivermos estrutura
fundamental atrás de nossa ação, os detalhes de ex-
TAl E YU pressão não poderão aparecer em nenhum tipo de in-
Quando Yoshi descreve a construção de uma inter- terpretação por mais que ela esteja na moda. O contrá-
pretação através do acúmulo dos detalhes "superfici- rio também é verdadeiro: se não soubermos fazer com
ais ", ele não está insistindo que este seja o único cami- que a estrutura profunda se torne visível ao público,
nho. Algumas vezes trabalha-se do externo para o in- não acontece nenhuma comunicação.
terno . Algumas vezes, do modo contrário. L.M. Voltant o ao exemplo da representação de uma pes-
Uma das idéias mais difíceis e úteis de Zeami era a soa idosa, podemos notar que, a menos que o ator te-
da divi são do aprendizado em "estrutura fundamental " nha a técnica e a habilidade de encarnar todos os efei-
e "fe nô me no". No teatro nô essas noções são conheci- tos do envelhecimento (nos membros, na respiração, no
das como tai e yu . Em termos poéticos, tai é a flor, olhar, na tensão muscular e assim por diante), uma
enquanto yu é a essência; tai é a lua, enquanto yu é o compreensão exata da realidade física provocada pela
luar. Se , quando estudamos int erpretação, nos concen- idade não poderá ser percebida pelo público. O yu aju-
tramos na estrutura fundamental (o interno), o fenôme- da o tai a se tornar visível. Eles são interdependentes.
no (a expressão externa) s urg irá automaticamente. L.M.
Muito freqüentemente , os atores constatam um "efeito" Quando e nsai amos, devemos procurar estar atentos
e decidem imitá-lo, mas isso não irá resultar numa boa ao diálogo constante entre esses dois aspectos. Pode
atuação. Ao contrário, precisamos entender onde se ser que haja um momento em que instintivamente al-
origina aquele "efeito" e o que faz com que aquilo ve- cancemos alguma coisa fundamental do personagem
nha a ser o que é . Se copiarmos a expressão externa de ou da situação . Devemos nos assegurar de que essa
alguma coisa sem compreender sua estrutura funda- compreensão se manifesta por ela mesma como uma
mental, nosso trabalho não terá nenhum sentido. influência real daquilo que estamos fazendo, minuto
Por exemplo, se estivermos interpretando um velho após minuto. Isso não deveria ser difícil, uma vez que
ou uma velha, temos de compreender verdadeiramente como atores estamos sempre conscientes de nossas
qual o efeito da idade avançada no corpo e na mente e aç ões exteriores, de modo que adaptar as ações ex-
como cada personagem age de um único jeito segundo pressivas deveria acontecer sem esforço . Igualmente,
sua experiência de vida e personalidade. Muito freqúen - se co meçarmo s nossa pesquisa pela cópia dos fenôme-
1 12 O Ator Invisível A Interpretação 1 13

nos externos, devemos olhar por trás das su perfícies i.uulo um a o utra vantagem: se, por exemplo, estiver-
para descobrir a estrutura profunda que dá vida a uma I II O S improvisando so zin hos, é muito difí cil manter a
ação particular.
ni atividade por ma is do que a lguns minutos; mas junto
Zeami reforça a im po rtâ ncia de o ato r co m pre ender ( 1111 algu ém é mu ito mais fácil. Meu parceiro faz algu-
o tai como um papel, permitindo que o yu apareça . Illa co isa e , porque ele realizou essa a ção , so u levad o a
Isso faz sentido no teatro tradicional japonês , o n de o laz er outra co isa . E, já q ue fiz isso, meu p arceiro pode
ap re nd iza do de um método é uma iniciação estrita da me responder co m aquilo . No ssas aç ões emerge m do
exp res são exte rna d o mestre , se m qu e ~o estudante qu e o parceiro propõe. Trabalhar assim torna mais fácil
se ja dito o que repousa atrás da s escolhas . Dada essa suste nta r uma improvisação.
situação , o co nselho de Zeami é o da necessidade de Se es tamos d ividindo uma improvi sação (tal vez algo
co ntra ba lançar aquilo que p oderia se transformar num simples como caminhar no mesmo espaço) e não
estilo de interpret aç ão e xteriorizado e m demasi a . estamos alentos à outra pessoa , isso fica muito estra-
No Ocidentep ode acontecer uma situação diferente. nh o para o público . É co mo se foss em dois vídeos co m-
Freqüentemente, os atores se concentram apenas na es- pl etamente diferentes se ndo mostrados ao mesmo tem-
trutura profunda do personagem ou da situação, dei- po . Não há rel ação entre as duas pessoas. Mas quando
x a ndo de atentar para o qu e Ocorre com seus C01pOS a olhamos o outro em todos os se nti dos, aí então temos
cada momento. Nesse caso, é n ecessári o um esforçopara uma troca h umana real. II
captar melhor os meios de expressão . De qualquer f or- Ser capaz de responder a outros atores e ao público II
ma, tanto o estilo de teatro japonês quanto o ociden tal é ° centro do trabalho de Yoshi. Não se espera do ator
exigem um diálogo constante entre o tai e o yu . L.M. qu e ap enas "respond a " a os impu lsos internos e os
conecte ao seu corpo, mas qu e estej a completamente
ah erto ao qu e os ou tros estão fazendo. Não se trata
RELAÇÃO COM OUTROS ATORES
ap enas de cria r uma relação prazerosa, mas é preciso
O próximo passo é traba lhar co m outras pessoas, ser cap az de conta r uma história, minuto após minu-
p ara exp lo rar rela ção e reação. Podemos tomar qual- to, em conjunto.
quer um dos exercícios individuais, co mo o de mo vi- Como resultado, quando Yoshi dá aula, muitos de
mentos simétri co s, e fazê-lo int e rca m biand o co m o utra seus exercício s são f eitos em duplas. Não utiliza ne-
pessoa. Os movimentos das artes marciai s também são nhum text o planejado ou escolh ido, mas improvisações
útei s a es se p ropósito, já q ue todo combate está base a- livres na s quais ningu ém é líder. Ao contrário, ambos se
do na resposta que temos de dar a o utra pessoa. No acompanham, um respondendo ao quefoiproposto pelo
entant o , existe uma d iferença : as artes marciais são ba- outro. Normalmente, é como uma conversa, em qu efala
seadas na necessidade de atacar ou defender, e nq ua n- uma p essoa de cada vez. As "conversas" p odem ser físi-
to a relação entre os atores não se baseia no conflito. É cas ou vocais, ou ambas. L.M.
justamente o co ntrário : o co n tato en tre atores é um a Vamos ag ora ca m inhar percebendo o próprio cor-
tro ca equilibrada e se ns íve l.
po , como se es tivesse co nectado co m a terra e com o
Trabalhar com o utra p e sso a é uma boa maneira de céu. Vamos nos movimentar por toda a sala. Conforme
desenvol ver contato human o real no palco, a p resen- ca min ha mos , tentemos sentir as outras p essoas no e s-
1 14 O Ator Invisível
A Interpretação 1 1 !5

p aço. Na verdade, estamos fazendo simultaneamente


Esse é o nível de atua ção mai s fundamental: a troca
duas coisas: mantendo a atenção de nosso corp o no
viva entre duas pessoas . Quando estão ensaiando, os
espaço e também fazendo contato com outros atores.
.uores freqüentemente se concentram em interpretar a
Estamos usando trê s direções ao mesmo tempo: acima,
situação individual de seus próprios personagens e se
ab aixo e para fora . Agora vamos imaginar que um exis-
esquecem dos outros atores. Quando isso acontec e, é
te um outro eu no mundo, e que este eu simp lesme nte
muito difícil descobrir como mudar e desenvolver a
observa o que está acontecendo. Ele observa nossa si-
ce na em qualquer perspectiva que seja real. O que está
tuação física e observa como es tamos entrando em con-
faltando é a tro ca essencial entre seu personagem e os
tato com outras p essoas. Agora estamos com três níveis
outros personagens. Na vida cotid ia na , estamos co ns-
de atividade e atenção: nosso corpo no espaço, nossa
tantemente trocando palavras e aç ões com outras pes-
relação uns com os outros e o observador silencioso.
so a s . Ess a é a realidad e hum ana , e precisamos
Du as pessoas estão "conve rsando", cada uma usan-
incorporá-la em no ssa atuação . É através desse inter-
do apenas uma das m ãos. Como numa co nve rsa nor-
câ mb io vivo de som e mo vimento qu e a históri a e as
mal, os parceiros escutam e respondem ao, que a outra
emoções p odem se tornar visíveis.
pessoa está dizendo . Não se trata d e linguagem de si-
Normalmente , qu ando estamos interpretando uma
nai s ou brincadeiras de ad ivinha r. Ao contrário, vam os
situ ação p articular, tentam os envolver nossa totalidade
tentar nos con centrar na total exi stência daquela outra
(co rp o , mente e emoção) naquele momento, mas às
mão. É como se fosse um tipo estranho de animal co-
vezes o int eressante é apenas jog ar com esses trê s ele-
municando-se com o utro animal estranho . Quando en-
men tos. Primeiro, vam os interpretar uma dada situação
co nt ramos vida autêntica para essa criatura, tornando
com nosso parceiro, trabalhando com rea ções e pala-
possível desenvolver um a rela ção real e variada com o
vras . Daí vamos sup rimir as expressões do co rp o e do
outro animal, é algo fascinante de se ver.
rosto e tentar interpretar a cena exatamente do mesmo
Mas se considerarmos realmente o que está acon te-
jeito . Inicialmente, va mos nos sentir como se estivésse-
cendo neste momento, não há nada de mais. Apenas
mo s simp les me nte trocando reações psicológicas com
du as mãos que se torcem , se a pertam e agitam os de-
nosso parceiro, uma vez que o co rp o está sem "dese-
dos uma para outra . O que torna isso interessante é
nho". Contudo, nossos mú sculos irão reter a memória
observar a rela ção entre os dois minúsculos "ato res".
daquele comprometimento físico , e o corpo se sentirá
Uma primeira mão sa lta p ara o lado, a outra responde
vivo e alerta . Isso é mu ito im portant e de vivenciar en-
com uma lenta tor ção, o que faz com que a primeira
quanto atores. Mesmo quando não estivermos em mo-
mã o trema por uns poucos segundos. E assim vai. O
vime nto, o u com o co rp o e nvolvido com algu ma ex-
que vale é a troca: A atuação não está na mão de cada
pressão particular, ele (o corp o) não pode ficar ador-
ator, mas no espaço vazio entre as duas m ão s. Este tip o
me cid o. Em termos de ex e rcício, devemos tentar se ntir
de atuação não é narrativa, nem psicológica, nem emo-
que estamos em movimento d e maneira tão intensa
cional, mas algo mais, alg o mai s básico. É muito difícil
co mo quando estamos representando a cena, com in -
descrever exatamente o que é. Mas quando se obs erva
tensa ação mu scular.
a troca entre duas mãos, uma coisa muito interessante
Talvez "nad a" esteja acontecendo com o corpo,
acontece. Uma coisa viva .
"nada" ac ontecendo com a voz. Mas existe uma grande
,I

A Interpretação 1 17
1 1e o Ator Invisível

ITive! e natural em termos de contexto da peça. As pala-


quantidade de movimento interno. Isso não é a mesma
vras têm de fazer se ntido lógica e emocionalmente. E
coisa que pensar a trajetória da cena. Se fosse o caso,
lima vez que não é fácil fazer as palavras de um texto
apenas pensamentos e processos psicológicos estariam parecer completamente naturais e imprescindíveis, os
envolvidos, enquanto o corpo permaneceria morto. O
;llores gastam muito tempo compreendendo as raízes
que o exercício acima nos proporciona é a experiência
psicológicas de uma cena ou personagem. Mas se ape-
de um tipo de comprometimento físico invisível, em nas observarem esse aspecto do trabalho e ignorarem a
que o corpo se movimenta internamente. Nesse caso o alegria de atuar em grupo, não haverá nenhum prazer
corpo está completamente envolvido na cena que está profundo para o público. Se quisermos que os elemen-
sendo apresentada. tos de uma platéia desfrutem não só em seu nível huma-
Vamos tentar trabalhar um diálogo de um texto clás- no comum mas também no nível intel ectual, os atores
sico. Normalmente, os atores vão querer decidir anteci- devem encontrar meios de desfrutar do contato e da tro-
padamente o que é "esperad o" que aconteça na cena ca com seus outros colegas de palco. Ambos os níveis
para descobrir o caminho psicológico apropriado que o da interpretação precisam ser incorporados: precisão psi-
texto fornece. Ao contrário, tentemos esquecer o "signi- cológica e desfrute dos atores. E isso tem de ser feito
ficado" e o contexto emocional e concentremo-nos em
através do texto ou da estrutura da peça.
apenas duas coisas: primeiro, em "cantar" o texto, crian- Naturalmente, não se pode fazer qualquer coisa no
do uma melodia fora das palavras; e depois brincar de palco. Precisamos ser muito claros sobre exatamente
trocar a melodia com o outro ator que está na cena. que tipo de história estamos contando para o público e
Não importa aonde vá a melodia, algumas vezes respeitar a fábula e o universo da peça. Não podemos
para cima, outras para baixo. Vamos apenas desfrutar perder de vista a natureza essencial de nosso persona-
da troca. Não se trata de criar uma atmosfera sonora gem ou nos esquecer da re alidade de seu contexto.
int~ressante, ou uma boa música . O que conta é que os
Apesar disso tudo, ainda podemos desfrutar da liberda-
dois atores realmente descubram o deleite de uma tro- de de troca com outros atore s. A vida real está cheia de
ca humana. E o prazer dos atores, por sua vez , cria acontecimentos inesperados e constantemente nos leva
prazer no público. a direções incomuns. Nos sa interpretação deve ter o
Atores se m p re desfrutam estar no palco. Mesmo
mesmo frescor.
quando estão querendo matar uns aos outros, ou estão Quando falo em troca, não sei exatamente o que é
profundamente tristes, apreciam o fato de estar no p al- trocado entre os atores , ou de onde isso vem. Estou
co . Isso por sua vez permite ao público apreciar a apre- seguro de que não é a mesma coisa que compreensào
sentação, ainda que possa desmanchar-se em lágrimas. emocional ou psicológica . Por exemplo, quando troca-
Os atores se deliciam com suas relações com outros mos sons, é evidente que alguma coisa mais do que
atores, mesmo quando seus personagens estão se od i- som é trocada. Tendo em vista que o exercício acima
ando mutuamente. E porque os atores estão realmente requer de nós responder diretamente àquilo que nosso
apreciando suas trocas mútuas, o público começa a sen- parceiro propõe, sem negociação preliminar (naquele
tir o mesmo prazer em observá-los e escutá-los. estilo: só faço isto , se você fizer aquilo), precisamos
Frente ao público, os atores devem encontrar manei- trabalhar nU;11 nível mai s profundo que o do intelecto.
ras de realizar sua troca de palavras de modo a parecer
1 18 O Ator Invisível
A Interpretação 1 1"

Como resultado, cada vez que trocamos conseqüente-


('( urespondia a uma jornada de no mmirno três dias .
m~nte alguma coisa dentro de nó s muda . Minuto após
Percebi que seri a muito tarde . Então estive pensando
rninu to, alteramos e reagimos. Desse jeito, conforme
(Iue o espírito poderia viajar mais rápido do que o cor-
haja um intercâmbio entre sons e movimentos, nosso
interior muda constantemente. po , de modo que matei meu corpo. Desse jeito, espero
chegar a nosso encontro na hora certa para vê-lo con-
Existe uma história sobre dois samurais que viveram
forme prometido."
muitos séculos atrás. Eram grandes amigos, ma s seu
O samurai então se deu conta de que fora o espírito
senhor feudal mandou-os a duas regiões diferentes. Eles
sabiam que difícilmente se encontrariam novamente e de se u amigo que tinha vindo e partido tão repentina-
ficaram entristecidos com a partida. Para preservar a mente. E o espírito de seu amigo encontrara um meio
de cumprir aquilo que era impossível para o corpo.
amizade fizeram um pacto. Num determinado momen-
to do ano eles se encontrariam de novo , no mesmo Algumas vezes, qu ando fazemos um exercício de
relação ou improvisação, alguns atores interrompem o
lugar, exatamente à mesma hora . E assim Se sep araram. .
exercício e acusam alguém de ter bloqueado o traba-
Trabalharam pesado, de modo que o ano pa ssou
rapidamente. Um dos samurais foi até o lugar combina- lho. Dizem que se o ex ercício desmorona ou não avan-
ça, a culpa é do colega . Esse tipo de pensamento não
do na data e hora marcadas. Esperou um pouquinho e
ajuda em nada. O problema não está na outra pessoa ;
depois começo u a ficar preocupado. O que poderia ter
acontecido? Será que seu amigo teria se esquecido da se um exercício não vai para frente a culpa é de ambos,
promessa? Mas depois de alguns minutos, alguém ba- Mas é sempre difícil ver nossas próprias fraquezas.
teu na porta. Ele abriu e encontrou o amigo . É melhor olhar as coisas de outra maneira. Deve-
mos nos esquecer completamente de julgar se alguém
O amigo estava muito pálido e começou a se justifi-
car, explicando que tinha estado muito ocupado, e não é melhor ou pior do que nós. Essa opção é equivocada
conseguira chegar na hora certa. Continuou a se des- e não colabo ra com o processo. Admita que os outros
culpar, dizendo que ainda tinha muito por fazer e não são co mo você, faç a contato com eles, e algo irá acon-
poderia ficar mais tempo. Explicou que não queria que- tecer. Assim podemos avançar juntos sem julgamento.
brar Sua promessa, de modo que tinha vindo, mas ape- Zeami acentua a importância de considerar nosso
próprio trabalho de maneira objetiva e de aprender com
nas por uns poucos minutos. Com uma justificativa fi-
nal para a brevidade da visita , partiu . outros atores. Mesmo um excelente ator terá seus pon-
tos fraco s, mas deverá estar atento a eles. Temos de
O outro samurai ficou muito desapontado e voltou
para casa sozinho. Uma semana mais tarde , recebeu buscar estar atentos tanto a nossas for ças quanto a nos-
uma carta do amigo, que dizia : sa s fraquezas. Se não pudermos perceber nossas pró-
"Gostaria de lhe pedir desculpas . Tenho trabalhado prias fraquezas, anularemos as possibilidades de cres-
muito e, como conseqüência, perdi completamente a cer como atores . Além do mai s, devemos sempre ob-
noção do tempo. De repente me dei conta de que hoje servar outros atores , mesmo aqueles que sejam menos
e ra o dia que tínhamos marcado de nos encontrar para habilidosos do que nós, porque mesmo um ator "infe-
renovar nossa amizade. Mas a distância entre nosso rior " terá alguns pontos interessantes em seu trabalho.
POnto de encontro e o lugar e m que eu e stava Aprender com outros ato res nos ajudará a desenvolver
novas habilidades e abordagens.
IIl
r

!II,
12 O o Ator Invisível
A Interpretação 12 1

Um dia disse a meu professor d e ky ôg en que e u


por isso se preocupam com a opinião de outras pes-
tinha um amigo q ue qu eria vir es tuda r com ele . Expli-
quei-lhe qu e tinha tentado d issuadi-lo da idéia , de soas e com as críti cas. Não querem se r vist as como
pessoas difíceis e es tão constantemente pensando em
modo que meu professor ime d ia ta me nte me perguntou
como são vistas. E porque estão sem p re concentradas
por quê. "Po rq ue ele é preguiçoso e tenho ce rte za de
que ele nã o cons eguirá ac o mpanhar", respondi. nas imp ressões que causam a outras pessoas, não p o-
dem dar total atenção ao que realmente es tá se passan- I,
Meu professor ficou furioso e disse: "Vo cê é um ego- i.
do ao se u redor. No nível da interpretação, esse s indi-
ísta! Mesmo se o se u amigo viess e só um a vez, ele p o-
víd uos não são capazes de se concentrar no que deve-
deria trazer algo valioso para a experiência. Está ten-
ria acontecer durante a apresentação. Ao contrário, e s-
tando pensar por ele! Vo cê é um egoísta e é por isso
qu e não é um bom ator!" tão sempre preocupados co m asp ectos externos. E isto
afeta a qualidade d a inte rp re taç ão.
Não tinha me dado conta d e que era ego ísta, ou que
minha habilidade int e rp reta tiva estive ss e relacionada No entanto, acho que o primeiro tipo de ator (o
"e go ísta" ) não p ode se tornar verdadeiramente um
com esse fato. Eu ac hava que se ficasse ap en as treinan-
do, num determinado momento me tornaria um bom grande arti sta. Num determinado momento torna-se
evidente qu e alguma coi sa precisa mudar.
li!
, ,
ator. Naquele momento acabara de ouvir que meu ca -
De alg uma forma , para se r um grande ator, é preci-
ráter egoísta estava impedindo meu desen vol vimento
profissional. Então decidi mudar. Passe i a ser extrema- so desenvol ver um equilíbrio e ntre nós mesmos e o li!
mente cuidadoso com aquilo que dizia e fazia . Esfor- mundo externo. Precisamos nos concentrar totalmente II',' !

cei-me para me desviar d as ações eg oístas . em nós mesmos e naquilo que estamos fazendo mas ,
,
Mas também percebi que ha via muitos atores que eram ao mesmo tempo , não de vemos nos alienar d o mundo
extremamente egoístas e mesmo ass im eram muito bons. que no s ce rca. Precisamos desenvolver uma prontidão .1
Ao mesmo tempo, havia pessoas que eram afáveis e ge- qu e vá a lé m de nós mesmos. Mas essa prontidão para
nerosas ma s que nã o conseguiam atuar. Achei ess a situ a- com o mundo externo, para co m as o utras pessoas,
ção muito co nfusa e comecei a pensar no problem a. não é o mesmo que depender da sua opinião favorá- I
As pessoas podem p arecer egoístas, quando na ve r- ve l. Não podemos nos perturbar com as crít icas e nem
tentar faz er co isas para tornar as pesso as igu ais a nós.
dade não o sã o . Uma p essoa p ode sim plesmente est ar I,
tão com p le ta me nte co ncentrada naquilo que está fa- Ao co ntrário, devemos tentar encontrar um a harmo-
zendo, que se esquece do mundo exterior. Não está nia entre nossa concentração interna e a disponibilida-
nem aí para os pequenos detalhes e ritu ais da existê n- de p ara o mundo externo. Fazemos o que tivermos de
cia diária. Para quem está de fora , isso pode p arecer fazer para nós me smos, ao mesmo tempo em que ~os
egocêntrico. Mas p orque essas pessoas estão tot almen- juntam os às outras pessoas . Esse é um proc~s so su~­
te co nc entradas em suas próprias interpretações, to r- ples e inconsciente ; não precisamos pensar russo. Nos
nam-se bons atores . nos co nce ntramos totalmente na nossa tarefa, enquan-
Por o utro lado, pessoas que p arecem gent is e so líci- to inconscie nte mente respondemos às pessoas à nossa
tas podem es ta r co mp leta mente apaixo nadas p or e las volta. Há um equil íbrio entre nós mesmos e os outros.
mesm as. Querem desespe radamente ser ap reciadas e Nas artes marciais, o intuito principal é o de prote-
ger o eu-mesmo. Se e stivermos em combate, a única
1 22 o A tor Invisível A Interpretação 1 23

maneira de no s defender é derrotando nosso opon en- o utro . Isso é mais difícil de avaliar hoje em dia , por
te . Em alguns cas os, o único jeito de der rot á-lo é ma- cau sa dos designs modernos dos teatros e das largas
tando-o. Se, num du elo, estivermos pensando na nossa dim ensões das platéias. No entanto, ainda ass im deve-
sobrevivência, é provável que iremos perder, já que mos tentar se ntir par a q ue m vamos atuar. Alguns dias
estaremos nos concentrando em alguma coisa qu e não pensam os "Hoje ser á um d ia p enoso", en quanto em
o fluxo-refluxo do combate. Ao contrário , devemos nos ou tro s dia s sabemos que o público nos ajudará a atuar
co nce ntra r a penas na relação co m nosso oponente e bem . Essa habilidad e de se ntir o público é algo que se
nas simples ações e re ações , alguma coisa como: "ele adq u ire com a experiência .
es tá vindo de cima , devo virar para o outro lad o ; ele Uma ve z qu e tenhamos aprendido a perceber o que
está atacando de lá , p ar a on de posso ir?" o público está se ntindo, temos e ntão de ajustar nossa
Se, contudo , estive rmos pensando "Q ue ro so brev i- atu ação a isso . Se , por exemp lo, estamos diante de um a
ver!", não se remos capazes de ach ar essa qualidad e de platéia lotada , excitad a e barulhenta , a atmosfera do
concentração. Não seremos capazes de administra r as teatro não está calma . Nesse caso, devemos esperar um
trocas no combate . O segredo é simples: só podemos po uco , até q ue comecem a se perguntar qu ando o es-
vencer qu ando estamos prontos para morrer. petácu lo vai começar. Minuto após min uto, su a ate n-
No teatro aco ntec e a mesma co isa . Muitos de nós çâo vai se tornar ma is co nce ntrada no palco (e m vez de
nos tornamos ato res p orque queremos fazer sucesso, em suas p róprias conversas) e assim irão ficar incrivel-
o u precisamos dos apl au sos do público . Mas se quiser- mente ansiosos para que o espet ácul o comece . Nesse
mos receber ap lausos , tem o s de desistir de ssa idéia . exato momento, come çamo s a a p resentaçào .
Isso é incrivelmente difícil, já que o ap lauso faz par te Obviamente exi stem ocasiões em que não podemos
do querer se r ato r. esperar para começar, mesmo qu e o público es te ja ex-
tremamente excitado . O momento chega e tem os de
começar. Nesse cas o , devemos atua r de maneira muito
NOSSA RELAÇÃO COM O PÚBLICO forte: 'fala r o texto intensamente e fazer as ações e os
Existe um a outra troca importante: entre o ator e o movimentos de maneira muito clar a e definida. Isso
público. Isso fica evidente quando estamos apresen- fará co m que o público se acalme e co nce ntre a ate n-
tando um so lo. Na au sência de outros ato res, a tro ca ção no es p etáculo .
ocorre diretamente entre público e ato r. Como co nta- De acord o com Zeami , esse tipo de reação do pú-
dor de históri as, o solista de sfruta da relação com os blico es tá ligado às id éi as do Yin/Yang. Até o horário
es pectadores e reage às mu d an ças de suas e moções . do di a em que no s a p rese n ta mos interfere na nossa
Por exemplo , se o p úblico começ a a se se ntir triste, () man eira de atuar ; uma vez que o d ia é Yang , nosso
ato r pode se deixar levar a uma tristeza ainda maior, o u mod o de atuaç ão deve ser Yin , para que se mante-
reverte r o ânimo. n h a um equ ilíbrio a p ro p riado . Ao contrário, a noite é
Zeami também ofereceu alguns conselhos aos ato- Yin , d e modo que se requer uma atuação mais Yang.
res de como reagir ao público. Ele recomendava q ue Par a a inte rp re ta ção Ya ng , precisamos atuar de ma-
todos os di as, antes de subi r ao palco, os atores deviam ne ira mai s intensa , tomando decisões mais claras que
tentar se ntir o público , já que um dia é diferente do seja m co m u n ica das co m pod er e e ne rgi a . Já a inter-
124 IJAlor Invisível
A Interpretação 1 25

pretação Yin é mais interior


e tem uma exp ã
menos extravagante. ress O entre o começo da peça e nossa entrada. Tento sempre
O ritmo da interpretação também muda À . assistir à peça das coxias ou do fundo da platéia para
devemos atuar ligeiramente mais rápid . nOIte, licar em contato com o que está se passando.
durante o dia podemos I . o, ao passo que Peter Brook diz que interpretar é como contar histó-
de Yin ~ . : a entar um pouco. Essas idéias
deve~~~:~::oc:~~~ pa~a
rias, com muitas pessoas dividindo essa responsabili-
uteis os atores; no entanto, dade. Entendo o que ele quer dizer, pois a tradição de
muito rígida. Se consíd, para nao aplicá-las de maneira contar histórias é muito forte no Japão Ce foi uma das
Yi erarmos que a noite é se
in, pode nos escapar o fato de ue . mpre atividades que pratiquei). No Japão, normalmente exis-
lar esteja extrem . q uma noite partícu. te apenas um contador de histórias, que tem de estar
amente ativa Cisto é Ya) .
~o.ssa int~r~retação será completamen~ein:~~q:a~~lmA sempre atento ao público e ajustar sua atuação apro-
COIsa mais lmportant ' . priadamente para manter a história viva e interessante.
e e estar alerta para perceb
ta mente como o 'bl" er exa- Ele controla o público. Quando o público fica Yin, ele
pecífica e cOnstr~i~ alCi~t:~tár:~aa~indo na ocasião es- imprime um estilo mais Yang, e vice-versa. Um estilo
manter o equilíbrio correto. p çao de acordo, para ocidental requer a mesma habilidade, mas a responsa-
Quando estava atuando n 'o M h bb bilidade de contar a história está dividida entre um cer-
de p star rnu: a a arata, eu tinha to número de atores.
res ar muna atenção ao estado do rbl«: "
uma das rní h, , . pu lCO, ja que Muito freqüentemente os atores sentam-se nos ca-
d .uíd In as malOres cenas seria arruinada se me
esc UI asse. Naquela cena m marins ou nos bastidores e ficam esperando o sinal de
se suo id: . d " , e u personagem, Drona suas deixas. Quando escutam o gerente de palco cha-
lCl ava e um JeIto muito calmo ' .. '
cena anterio e consCIente. A mar seu nome, dirigem-se às coxias, prontos para en-
r era uma comédia rasgad S
público ainda estivesse rindo (ist ,a. e, ao entrar, o trar. Essa prática não só dificulta a percepção do públi-
comédia) . o e, embalado pela co, mas também é completamente nociva quando se
eu começana a cena de ' " .
para acalmá-lo d maneira mUlto lenta trata de contar bem uma história. Há apenas uma histó-
e rnu ar o foco de suas emo'~ ,
volume de risadas variava de noíte r» . çoes. O ria que está sendo contada por um time de atores; não
que o jeito como eu come" " .. para noIte, de modo são 10 histórias diferentes que estão sendo contadas
va. Não ds çava a cena sempre se altera- por 10 atores. Por isso, precisamos estar lá nas coxias
mu ava o que eu estava fazendo ' "
mente ajustava o ritmo e a for 'a da' ' mas s!mples- desde o começo, para ver como os outros atores estão
trazer o público a u '. .ç lOterpretaçao para contando a história. Desse modo, podemos ver o que
Desse modo a pk t'~ mal.or estado de disponibilidade. teremos de fazer para pegar a história e encaminhá-Ia
a
atmosfera d;quela ela ~ena ~apaz de reagir ao tema e à quando chegar nossa vez de contar. Talvez seja preciso
cena partIcular.
Pela minha experiên '. I . ter o cuidado de captar um certo "clima" e continuar
ficar gastando te cia, ac 10 murto importante não com ele sem mudar sua fluidez. Igualmente, talvez seja
mpo antes do começo d
culo, sentado no ca . . . e um espetá- preciso quebrar totalmente o clima para que se retome
. . manm. Devemos sair e "farei, "
tipo de público teremos naquela noite A " jar que a atenção do público. Não existem regras muito claras
reagir de maneira adequada M' .' ssrm podemos para isso, exceto que temos de nos assegurar que a
'. . esmo antes de entrar
cena, devemos tentar sentir o que está acontecen~~ história seja contada de maneira boa e adequada, e,
como atores, devemos ser capazes de ajustar nossa atu-
127
1 26 o A toe Invisível

ação para nos assegurarmo s de que isso aconteça . So-


mente atra vés da observação e da escuta é que se pode
trabalhar aquilo qu e é preciso faze r todas as noites.
Há uma "regra " no teatro nô que diz o se gui nte:
"De vemos reunir" mil olhos". Isso sign ifica qu e os pon-
tos fundam entais de nossa interpretaçã o dev em causar
o me smo impacto em todos os es pectadores . Todos eles
devem, e m princípio, estar em conson ância co m aquilo

4
qu e estão ve nd o.

Afala
128 o Ator Invisível
A fala 129

guns seg undos , e d epois expirar. Agora vamos fazer o


co ntrá rio : ex pirar, p arar e daí inspirar. Iremos provavel- , ,
mente notar que a se nsação física ou e moci o nal será
ligeiramente diferente.
Ao caminhar, vamos tentar manter o corpo neutro e
pensar em ligá-lo à respiraç ão ; por exem plo , inspirar
RESPIRAÇÃO antes de caminhar, expirar enquanto caminhamos. Ou
expirar antes de começar, inspirar enquanto caminha-
Na vida co tid ia na, a respiração é uma atividade in-
mos, parar e segurar a respiração enquanto es ta mos
co nsciente ; res p ira mos sem pensar. Algumas partes do
qu ietos, e da í deixar sair todo o ar quando ret omamos
co rp o s ão movidas por nos sa própria vo n tade, ao pas-
a ca mi nha da . Vamos experimentar e ssas vári as possibi-
so que o utras trabalham sem nosso co nt ro le mental.
lidades . Des cobriremos que cada padrão corresponde
~ormalmente, respirar é um a das aç ões involuntária s, a um sent ime nto ou ânimo d iferentes.
ai nda que , ao me smo tempo , sai ba mos que p od em os
Uma das técnicas secretas do n ô diz respeito ao co-
contro lar o m ecanism o da respira ção quando quiser-
nhecimento de quando parar a respiração. Por exemp lo,
mos. Atrav és d o uso co nscie nte de exe rcícios de respi-
quando esta mos se ntados e nos levantamos: inspiramos
raçã o, p odem os nos ligar à a tividade inconsciente a
enquanto sentados, retemos a respira ç.ão , e levantamos
qual , por su a vez , nos co necta com o mundo inconscl-
expirando . Algumas vezes, no pa ssado, vel hos atores de
ente da mente. Talvez se ja p or isso que o respirar pr o -
nó morri am no palco devido ao uso desta técnica , por-
fundo e lento faz com que nos sintamos bem, de ce rta
tanto temos de tomar cuidado quando a e stivermos em- I
forma mais vivos. No dia-a-dia rar amente utilizam os
pr egando. Mas isso ilustra o fato de que atuar não re- ,li
toda a extensã o pulmonar, por isso devemos exp lora r
quer apenas ins piração e expira ção; requer também o I'
toda a capa cidade dos pulm ões quando estamos fazen- i
d o exercício s. uso da respiração presa . O truque é sa be r e xatame nte ()
momento de seg urá -Ia e m termos de aç ão dramátic a.
Quando e stamos dormindo inspiramos e ex piramos
co ntin ua me nt e . Quando morremos, a respiração p ára .
Vamos pegar uma pequena pa rte de um texto, tal- II
vez uma ou duas linhas , e experimentá-Ia com alguns
Esses três padrões bási cos de respiração (ins p irar, ex p i-
rar e p arar de respirar) são o que temos na vida d iária ,
d os seguintes p adrões: inspiram os, daí diz emos as pa-
lavras lentamente e nq ua nto expiram os. Co nfo rme alte -
!i
e um a ve z que o Propós ito d o tea tro é evocar um a li
ramos a rel açã o entre a fala e a re sp iraç ão, ver emos
experiência genuína da vida real , esses sã o os pad rões I
que se ntime ntos diferentes s urg irão de maneira com-
que emp rega m os no p alc o . Temos de p ensar quando
ins piramos, quando expiramos e quando p aramos de
pletamente natural. A re spiração está estreitamente li- I
re spirar. gada à emoção, e mudar o padrão de re spiração irá
alterar a rea ção emocional.
Isso não é sim ples ment e para nos ajudar a di zer lon-
No nível da inte rpre taçã o , podemos usar e sse achado
gos tre ch os sem perder o fôlego ; mudanças de re spira-
para no s ajudar a criar reações ve rdadeiras . Por exem-
ção ca usam impa cto interno . Para ve r como isso fun-
plo, se tivermos de representar a a ção de apunhalar al-
ciona, vamos tentar inspirar, reter a respiração p o r al-
gu ém , então o padrão adeq uado a es sa aç ão é: inspirar,
13 O Q Atoe Invisível A fala '-31

depois desferir o golpe . Se reproduzirmos esse pad rão a respiração deixando o corpo pelo tan-den (o ponto
de resp iração o público .e stará mais próxim o de acredi- ce ntral do ha ra , cer ca de três ce ntíme tros abaixo do
tar na ação (e uma emoção ver dadeira pode aparecer umbigo) e via jando a longa d istância no horizonte .
devido a essa consonânc ia). É claro qu e , se usarmos essa Novamente , es tamos trahalhando em dois níveis: a en-
técnic a, tem os de descobrir o padrão corre to e exato trada e sa ída física do ar através d os pulmões e a ima-
para cada atividade. Do contrár io , não irá fun cionar. gem'utilizad a p ara conc e ntrar a respiração.
Para nos ajudar a desenvol ver a respiração , e xiste Um o utro exercício se se rve de sons co muns . Qu an-
um se m-nú mero de exe rcícios. Ge ralme nte es tão liga- do inspiramos, vamos imaginar qu e es tamos dizendo
dos a alguma prática tradi cional e mu itas ve zes se se r- aaaah , e quando exp iramos usam os o so m aawm (o u
ve m de ima ge ns. Um d eles pede que se pense na pró- obm) , Podemos invert er os so ns , aa aah para ex pi raçã o,
p ria pele . e aawm p ara ins p iração .
Vam os ficar em pé ou se ntados co nfo rtavelmente Pode mos co mbi nar os exercícios: por exe mp lo, ins-
co m a coluna reta, inspirando lentam ente pelo nariz, pirar pel o umbigo , enquanto fazemos o so m imaginá-
expirando pela boca, mas, conforme expiramos, imagi- rio aaaah , e e xpi rar pelos poros, com o so m imaginá-
nem os que o ar sai através dos p oros da pele. Sustenta- rio aawm .
mos esse exercício por vário s minutos. Par a ir além, Podemos e ntão começar a experimentar pondo som
vamos imaginar qu e o ar entra no co rp o pelo umbigo e na expiração , usando essas várias com binações. Por
sai pel os p o ros. exemplo , ins pi ra r imagina ndo o som aawm pelo umbi-
Podemos ag ora juntar um a o ut ra imagem ao exercí- go e ex pi ra r faze ndo o so m aaaah ta mbém pelo
cio : co nforme o ar deix a o corpo, ele sai pel os p oros umbigo. (Nesse exercício, a boca obvia me nte produz o
e m fo rma de va po r. Obviamente , es tamos se mp re res- som aa wm, mas em nossa imaginação ele emerge do um-
p irando pelo nariz e boca , mas visualiza r a respiração bigo. L.M.) . Há mu itas pos sibil idad es: rese rvem um tem-
e m diferentes p artes do co rpo parece ab rir o utras p os- po p ara ex plora r cada uma delas tot alm ente e perce-
sibilidades . b am as sutis d ifer enças que exi stem.
Existe um out ro ditad o : "Pessoas co muns respiram Assim como o umbigo e o tan-den , ex iste m out ros
pelo peito , pessoas sá bias, p elo hara, e pessoas treina- pontos no co rpo qu e podemos ut ilizar p ara co ncent rar
das, pelos pés." a respiração . Po r exemplo , um ponto no ester no, Acha-
As pessoas sábias são aq uelas que p raticam medita- mos es te ponto no peit o , posicionando o dedo mínimo
ção; par a faze r isso , concentre mos a respi ração no no um bigo e esticand o a palm a da mão até onde o
hara , o u se ja, na área bem abaixo do umbigo. As pes- polegar toca o estern o. O luga r em qu e o p olegar está
soas treinadas são aquelas que utilizam o corp o de um é o p onto onde d evemos concentra r nossa respiração.
jeit o altamente desenvolvido, como os atores ou os pra- Um o utro exe rcício se localiza nas narinas . Vamos
tican tes de a rtes marciais. As pessoas nessa esfera de inspirar p ela narina esquerda e expira r pela direita.
atividade usam a imagem de tomar e ne rgia da terra para Então vam o s reverte r o processo: inspirando pela direi-
ajudá-las. ta, expi rando pel a es q ue rd a . Isso pode se r feito através
Imagin emos que o ar esteja entran do no corp o atra- da visu alização ou pressionando-se o dedo contra a
vés dos p és, in do até o hara. Vamos expirar e visua lizar narina o posta para mantê-la tapada.
132 oAtor Invisível
A fala 133

A sé rie seguinte de ex e rcícios utiliza imagens mais metr ônomo, ou das ondas do mar, ou um som p uro
a bstratas p ara enfatizar a conex ão inte rna. como um a no ta sustentada por uma flauta . Imaginemos
Inspiramos e, quando tivermos enchido co mp leta- então qu e esse so m entra no nosso corpo pelos poros,
mente os pulmões, prendemos a re spiração e ce rramos conforme ins pi ramos , e da í o ar sai pela boca ou pelo
o ân us . Nest e momento , imaginamos qu e o a r qu e to - tan-den quando expiramos. Ou podemos fazer o con- ir
mamos está se misturando co m o ar ante rior qu e já I ;
trário, d e modo q ue o ar e ntre pela inspiração e o som
1'.,
es tava no nosso corpo. Entã o expiramos e visu alizamos sai a na expiração. Podemos faz er isso ao co ntrário, do II
1

o ar misturado indo embora . Vamos suste ntar esse exer- jeito qu e quisermos. Cada maneira é diferente, mas to-
"

i l

cício até sentirmos que todo o ar velho fo i substitu ído das sã o igualmente úte is. Va mos apenas experimentar l
pelo novo. Outra cois a , qu ando pusermos es te ar em e ver o que acontece .
todo o nosso co rpo, não vamos imaginar que o est amos Estes sã o exercícios de re spiração bem complica-
as p irando ou capturando. Em vez disso , im aginemos dos; um o utro ma is fácil é o de respirar normalmente e
que exi ste um vas to e generoso mundo de energia lá simplesmente o bse rva r-nos re spirando. Também re co-
fora, o qual nos dá esse ar de gra ça. Recebemos o ar, mendo que observemos os bebês resp irando . Respiram
não o pegamos. Isso p ode parecer um pequeno capri- lenta e profundamente e o seu ab do me inteiro parece
cho de linguagem, mas existe um a enorme diferença se expandir totalmente qu ando inspiram. Eles nos dão
em termos de efeit o.
mostra de um exemplo muito bom a ser se gu ido .
O próximo conjunto de exercícios vem d o tai ch io Agora vamos a um e xe rcício de respiração mais
Ficando em pé com os p és abertos na largura dos o m- complicado . Esse requer deixar as mãos em certas po-
bros, com as pernas lige iramente dobradas, co m a co- sições co nfor me o exe rcício se desenvolve . De pé ou
luna ret a , vamos insp ira r e expirar lentamente. Confor- sentados , vam os estender os braços horizontalmente à
me inspiramos, imaginemos que o ar sobe da terra atra - nossa frente, de modo que as palma s das mãos fiq uem
vés da s pernas. Qu ando expiram os, vamos imaginar um a de frente à outra e se parad as mais ou menos dois I

q ue o ar volta à terra (também pelas pernas). Um exe r- centí me tros. Os p olegares ficam voltados para cima. I,
cício similar pede que visualize mos o ar viajando pela Quando inspiramos, o ar entra peJa ponta dos dedos e
coluna vertebral na inspiração . Quando inspiramos, o vai até a parte de cima dos braços, por dentro do cor- I
ar so be pela coluna, cont in ua até o topo do crâni o , po . Quando expira mos, o proces so se inverte. Vamos
chegando num ponto entre as s ob rancelhas . Entã o ex- também fixar o olha r num ponto entre as duas pa lma s
piramos , enquanto imaginamos qu e o ar está descen- e, co nfo rme co ntin uamos a in spirar e expirar, p odemos ,I
do, passando pela boca, estern o, umbigo e fin almente p erceber que as mãos até ac ompanham a respiração . I
se dissipando . Quando inspirarmos no vamente , o ciclo Depoi s di sso fecham os os o lhos e continuamos a re spi -
re começa . No próximo exercício , o me sm o cicl o co me- rar do mesm o jeito . Para terminar o exercício , inspira-
I
ça e termina n os p és: o ar vem da terra, viaja p ela p arte mos profundamente, prendemos a res piração por uns
de trás do corpo, vai até a co roa da ca beça, desce até o se gundos , rel ax am os e deixamos as mã os se sep arar,
tart-den e desaparece . vo ltamos as p alm as para cima , depois trazemo-Ias para
Podemos também usar so ns para estimular a respi - as laterais do co rpo. Então abrimos os olhos e respira-
ração. Vam os escolhe r um som repetitivo , como o do mos para terminar.
A fala 135
134 oAtor Invisível

Sem p re temos medo quando estamos no palco. Mi-


Em todos esses exe rcício s, é importante que es teja-
nha longa história co m o medo começou muito cedo.
mo s eretos e rel axados , mesmo se estivermos sentados.
Qu ando comecei a atuar, na idade de mais ou menos
A coluna e o pescoço ficam suavemente estirados, e
15 anos, nunca se ntia a menor ponta de nervosismo.
devemos tentar manter o corpo numa posição vertical
Mas conforme decidi fazer uma carreira séria como ar-
com relação ao chão. Fica mais fácil se fecharmos os
tista , o medo chegou . O primeiro ataque foi quando
olhos, para não correr o risco de nos distrair com as
uma apresentação já tinha acabado. Na verdade, en-
coisas externas. Pro cedendo assim podemos nos man-
quanto eu estava no palco, não me lembro de nada em
ter concentrados na imaginação e na respiração . Ou , se
especial que pudesse ter me deixado nervosa, mas de-
preferirmos manter os olhos abertos, podemos baixar o
pois , entre o término da apresenta~'ão e o momento de
olhar, de modo a foc alizar um ponto projetado a qua-
ir para a cama, estava com o corpo todo tremendo.
renta e cinco graus no chão. Isso também ajuda a cor-
Um medo extremo é um problema, pois nos deixa
tar nossas distrações. Esses exercícios podem ser feitos
completamente impotentes . Dificilmente podemos nos
em várias posições: de pé, sentados numa cadeira, sen-
mexer, quanto mais atuar bem. Para quem sofre disso e
tados no chão, porém, qualquer que se ja o modo que
não consegue administrar seu medo, talvez seja melhor
escolhermos, lemos de prestar atenção na postura da
desistir do teatro e achar uma profissão menos "perigo-
parte superior do corpo. Já mencionei que é preciso
sa ". Mas acho que, na realidade , o medo está muito
ficar não só na vertical (não se deixem despencar) , mas
próximo da excitação. Algumas pessoas dizem que se
também sim étricos (não se deixem torcer ou pender
não sentirmos medo , atuaremos melhor. Eu não con-
para um dos lados) . Algumas tradições sustentam que
cordo . Tenho visto muitos atores que nunca se sentem
através de sses tipos de exercícios de respiração coloca-
nervosos , porém se tornam incrivelmente tediosos: a
mos nosso corpo em contato com fontes externas de
interpretação parece mecânica, e não há energia no
energia, e para isso devemos ter uma posição física
palco. Outros atores , tão dominados pelo medo que
apropriada. Em qualquer situ ação, o corpo relaxado na
mal conseguem chegar a subir no palco, são absoluta-
vertical ainda é uma forma comum útil para todas as
mente fascinantes. Eles prendem completamente nossa
pessoas, mas é especialmente válido para os atores.
atenção . O medo não é necessariamente um elemento
Gostaria de fazer uma observação final com rela ção
negativo. Precisamos lidar com o medo , embora tenha-
ao uso da respiração. Nos exercícios gerais, inspiramos
mos de suportar muitas dores no estômago.
pelo nariz e expiramos pela boca. Mas na prática da
É interessante considerar por que sentimos medo.
ioga e de certas danças africanas , a boca deve ser
Qu ando eu era um jovem ator, achava que sempre es-
mantida fechada o tempo todo, de modo que o ar se m-
tava cometendo erros , e isso me deixava particularmen-
pre circule pelo nariz. No Benin, mesmo quando o dan-
te nervoso. Outras pessoas têm um desejo intenso de
çarino está atuando com enorme força e velocidade, a
obter su ce sso . Mas obter sucesso depende da percep-
boca é mantida firmemente fechada. Trata-se de um \
ção do nosso trabalho vinda de outras pessoas, de
uso diferente da respiração, qu e traz ao espetáculo uma I

modo que começamos a nos preocupar com o que elas


qualidade particular.
estão pensando. Todos sabemos que realmente não
Outra vantagem dos exercícios respiratórios é que eles
devemos nos preocupar com aquilo que as pessoas
nos acalmam, mesmo quando estamos sentindo medo.
\
l
A fala '37
1 36 DAtor Invisível

estão pensando, mas infelizmente nós o fazemos . E isso


nos traz medo. SOM
Então, o que podemos fazer para nos prevenir do Agora vamos começar a explorar nossa voz.
medo ameaçador? Antes de uma apresentação, toma- Escolham uma posição que seja confortável. De pé ou
mos um copo de água , vamos ao banheiro, fazemos sentados, não importa, desde que não se deitem. Devem
alguns exercícios de respiração, daí ficamos de pé em ter sempre a sensação de qu e a coluna esteja alinhada em
frente a um espelho e dizemos: "So u um bom ator. Sou conexão com o céu e o centro da Terra. Então fechem os
um ator muito bom. Sou um Grande Ator!" olhos e tentem imaginar que acabaram de nascer, apenas
O medo pode nos trazer uma energia extraordiná- acabaram de sair de dentro do útero da mãe. São inocen-
ria. Não a refutemos, aprendamos a empregá-Ia. Vamos tes e ainda não têm consciência das coisas. São como
tentar transformá-Ia em algo positivo: excitação teatral. água . Vocês são como bebês, e bebês dormem, têm um
A casa ao lado está pegando fogo. Entramos corren- padrão de respiraç ão lento e profundo. Notamos q~e ~
do no fogaréu do edifício para salvar os móveis (já sal- mesmo padrão de respiração está no nosso corpo. Nao e
vamos as crianças e o cachorro). Carregamos para fora para imitar uma criança, ou tentar atuar como se :âss,:- I'
o armário e um valioso aparador. Duas horas mais tar- mos um bebê: somos nó s mesmos, mas com a resp íraçac
de , quando o fogo se extinguiu, decidimos mudar os de um bebê. Em seguida, vamos desenvolver a respiração
móveis para um local mais conveniente. Porém não com uma delicada sonoridade. Cada vez que expiramos,
conseguimos levantar nem uma cadeira: de repente ela deixamos o som ssss sair. Daí, depois de mais ou menos
se tornou absurdamente pesada. Sob o estresse e o um minuto, o som ssss se transforma em mmmm. Este
pânico de uma situação grave, um poder espantoso ainda é um som relaxado e inocente.
surge em nosso corpo. O pânico, assim como a imagi- Depois de gastar um tempo apenas fazendo o som
nação, pode mudar nosso corpo. mmmm vamos suavemente deixar a cabeça tombar
Quando eu estava na África , tive uma experiência para tr ás, até que nosso rosto esteja voltado para o céu .
semelhante. Peter Brook levava um grupo de atores Conforme a cabeça se inclina para trás , a boca natural-
numa jornada pelo Saara para estudar como funciona- mente abre, e o som irá se transformar em aaah . Quan-
va o teatro fora da moderna sociedade ocidentalizada. do inspiramos, voltamos a cabeç a à frente .
Como parte dessa pesquisa, iríamos apresentar cenas Agora, vamos evocar a imaginação. Vamos tentar
improvisadas em cidades remotas, para pessoas com as se ntir como se o som aaah não surgisse do nosso cor-
quais não teríamos uma língua em co m um . Um dia, eu po. Ao contrário, imaginemos que o som aaah já exis~
estava completamente embalado pela improvisação e em algum lugar muito distante , lá em cima no céu. E
de repente dei um salto mortal. Mas eu não sabia dar um som enorme que já tem existido há séculos. Pode-
um salto mortal! Não era (e nunca foi) uma habilidade mos então imaginar que o nosso próprio som pessoal
minha. Porém de alguma maneira eu o fiz. Lembro-me aaab viaja pelo céu e se junta com o já existente aaab.
do que pensei quando saltitava em frente aos nativos: Nã o é para tentar projetar nosso aaab com esforço
"Ten ho de fazer alguma coisa!" E inconscientemente muscular; é a nossa imaginação que está trabalhando.
meu corpo achou um meio de realizar uma açã o que Força física tem limitações , portanto é melhor usar a
estava muito a lé m de mim. vontade e a imaginação , que não têm limites.
1 38 o Aror Invisível A fala 13&

Agora vamos na direção oposta . Vamos fazer mmmm muito difícil tirar o s pés do chão. Ao contrário, nosso
na p osição básica (com o ro sto olhando para frente), corpo fica mais leve que o normal com o som aaah.
entã o deixemos a cabeça se inclinar da posição frontal Não há uma lógica para esse fenômeno , mas alguma
para uma inclinação em direção à terra. A boca precisará co isa parece mudar segundo o som que produzimos, e
se alargar devido à compress ão do maxilar, e o som irá essa mudan ça e stá ligada a certas direções no espaço.
se transformar em iiii. Quando faz emos o som iiii , ima- Na vid a diária , podemos usar esses sons para nos
ginemos que estamos unindo nosso iiii pessoal ao gi- ajud ar a ca rrega r pesos. Quando lev antar alguma coisa
gantesco iiii que existe no centro d a Terra. do chão, faça o som iiiuaab. O som vai da terra para o
De certo modo, iiii é um som artificial: ele não acon- cé u , e isso acontece em consonância com a ação que
tece se m um certo esforço consci ente, diferente de estamos empreendendo. Se usarmos o som para nos
aaab. Aaab é muito na tural: os bebês no mundo intei- ajudar, a tarefa fica mais fácil. Quando estivermos em-
ro produzem este som instintivamente. É interessante purrando alguma coisa para baixo, o som aauaiii é
também notar que muitas culturas associam significa- útil. Se tentarmos fazer o contrário, iremos notar a dife-
dos semelhantes relativos ao som ma ma dos bebês. rença. Fazer aauaiii enquanto tentamos levantar algu-
Na Europa, está ligado à idéia de mãe, enquanto no ma coisa parece contrário à natureza, e é difícil cumprir
Japão ma ma quer dizer comida. O s bebês sempre co- a tarefa . De certa forma, o som muda a nós e nosso
me çam com aaab e não iiii, pois aaab é um som mui- corpo.
to mai s fácil para o corpo produzir. Observando o padrão total dos sons e d ire ções, te-
Agora temos dois sons: aaab em direção ao céu e mos aaab ligado à parte de cima, e iiii, à parte de
iii em direção à terra . E por que nã o o co n trário? Para baixo. O som inicial mmmm (ou um tipo de 0000 feito
encontrar a resposta, podemos tentar uma experiência. com os lábios relaxados) situa-se dentro de nós mes-
Vamos ficar em pé naturalmente. Pedimos a uma ou mos; é interno e pessoal, como um bebê dormindo.
duas pessoas para segurar firmemente nosso corpo e Mas existem ainda dois outros sons a serem considera-
nos levantar, fazendo com que nossos pés saiam do dos: óóó (como o "ó" de porta) e é (co mo o "é" de
é é

chão. Primeiro, vamos fazer iss o normalmente , de ma - eco) . A posição do óóó está a 45 graus abaixo da posi-
neira que possamos até sentir qual é nosso peso atual. ção do aaab . Se nd o assim , o som ÓÓÓ corta o ar, no
Na seg u nd a vez, quando estivermos alçados, vamos meio do ca m in ho entre o horizonte e o céu. O próximo
fazer o so m aaab (não é preciso tombar a cabeça para som está posicionado cerca de 10 graus abaixo da
é é é

trás ; ape nas fazer o som já é suficiente). Quando fizer- horizontal. Ago ra temos quatro posições ou direções;
mos o som aaab, vamos imaginar que estamos nos descendo d o céu para a terra , elas são: aaab, óóó, ééé,
unindo ao enorme som aaab que existe no céu. e iiii.
Com os pés de novo no ch ão , fazemos a mesma Quando observamos as palavras usadas nos rituais
coisa, agora emitindo o som iiii. Quando emitimos o religiosos , elas normalmente parecem incorporar esses
iiii, vamos projetá-lo profundamente para dentro da sons-chave e direções. Em japonês, a palavra usada
terra . para Deus é Kami. Por isso o som vem do céu para o
Nós (e nossos levantadores) provavelmente iremos interior de quem fala , descendo para a terra (K-aaab-
ach ar que somos mais pesados com o so m iiii, já que é mmm-iii). A palavra hebraica jeová CIé-ó-vaab) come-
A fala 141
14 O ()Ator Invisível

humana . Desse modo, a expressão vocal do ator é


ça logo abaixo do horizonte e daí so be em diagonal
realçada e reforçada pelos instrumentos, criando um
para o cé u. O amém latino (A a b -m m - én) vem do céu
tipo'de paisagem son ora; não se trata apenas de música
entra em quem est á falando e volta novamente ao rnun-
do. Um dos nomes do planeta, Gaia, tem um padrão e tampouco de uma fala normal.
O conceito japon ês de bela voz é também ligeira-
se me lha nte . Pronunciando Gaia CG-aah-ii-aah ), o som
mente diferente do padrão ocidental. Não é a limpídez ,
viaja do céu para a terra e é devolvido no vamente para
nem a musicalidade que sã o altamente valorizadas,
o cé u.
mas a habilidade em sugerir e aumentar a extensão das
Mesmo na vida cotidiana, empregamos esse princí-
pio . Muitas culturas têm canções ou cânticos q ue aju- emoções, ânimos e atmosferas.
Dentro das religiões japonesas esotéricas, sons e
dam as p essoas a cavar, remar ou arrastar red es de pes-
cânticos têm um papel importante no desenvolvimento
ca . Essa função, para um gru p o, significa coordenação
espiritual. Parte disso está relacionado com a rep:tição
rít~ica do esforço , e os so ns esco lhidos para esse pro-
qu e Yosbi já mencionou, mas há uma outra razao. De
pos íto tendem a incorporar as direções que mencionei
acordo com certas tradições religiosas (como o budismo
acima . A título de ilustração, vamos pensar no verbo
shingo n.', algumas son oridades têm qualidades especi-
içar, que significa levantar, sus pe nder. Poderíamos usar
ais, e através da repetição dos sons ocorre uma trans-
icem (i - iiiiiiicem ) no momento em qu e precisássemos
f ormação interna . Algumas vezes, trata-se de um som
realizar uma aç ão de grande esforço físico . Neste caso,
simples, outras vezes de uma palavra ou de um mantra.
concentrar a força na direção da terra através do som iiii
Quando o trabalho vocal deriva de qualquer uma
parece facilitar o trabalho . Uma vez qu e esses so ns fo-
das tradições japonesas, é preciso se lembrar que as vo-
ram esco lhidos para ajudar na atividade física, deve exi s-
gai s são todas puras (i.e . não há ditongos) . Existem. cin-
tir algum tipo de e ne rgia e ntre a sono ridade e a aç ão .
co ou seis sons vocálicos: A, E, T, O, todos prollullczados
como em p ortuguês, à exc eção do U, que é articulado
No teatro japonês tradicional, a voz é criada e usa-
da de maneira diferente da que ocorre no Ocidente. com os lábi os relaxados. L.M.
Quando o texto é dito, sej a n o nô seja no kabuqu í, am- Podemos tamhém improvisar esses exercícios. Ten-
bos se servem de padrões vocais muito elevados e de uma
temos imag inar uma posição para o co rpo em aab,
língua arcaica. No teatro n ô, a língua é tão ultrapassa-
Podemos cria r essa forma usando o corpo inteiro, ou
da qu e pouqu íssimos j apo neses conseguem entende r as
ape nas um a parte, co mo a mão. Ou até mesmo um
palavras ou o significado. Além do mais, os sons são ded o. Vamos então mudar a forma para uma outra que
prolongados ou ganha m entonações in comuns. O qu e co rres po nda ao iii, e depois ao óóó. Perceberemos que
no Ocidente é conh ecido como fala naturalista não se a qualidade de cada som pede uma forma específica,
aplica na tradição daqueles teatros. ' que é diferente das o utras. As formas que os sons pro-
Algumas partes de uma p eça p odem ser ca ntadas, duzem irão variar de pessoa para pessoa. Não há urna
embora isso se pareça com ca n tigas, e não com a ab or- forma padronizada, e a resposta de cada um aos SO~S
dagem operistica ocidenta l. Ambos nô e kabuqui tra - se rá pesso al e úni ca . Cad a so m/ forma será sentido dlle-
z em acompanhamento musical ao espetáculo, e a ex-
rentemente dentro de nó s.
tensão tonal dos instrumentos é a mesma que a da voz
1 42 o Ator Invisível A fala 14 3

Quando digo sentir, esto u me re ferindo à sensação em vez de uma resposta f ísica di reta a uma ene rgia
do corpo, e não simplesmente à emoção . To da sonori- particular. É mais simp les. L.M,)
dade que é e mitida tem se u sabor próprio e distinto, e
: sse sabor não é o mesmo que emoçâo ou psicologia . Segundo o budismo es o térico japonês, quando nas-
E o eco int erno do que o corpo está fazendo. E ca da cemo s, fazemos o simp les som aaab como um deus.
vez que o co rpo muda o que está fazendo, o sa bor Conforme o tempo passa , e nos tornamos "ed ucados" e
interior também muda . adestrad os para re sponder à d emanda da socie dad e,
Embora esse fenômeno sej a int eressante de ser es - tornamo-nos um per sonagem com um estilo vo ca l ap ro-
tudado , é mais importante , p ara nó s e nq ua nto at ores, priado. O claro e aberto som aaab se foi. Ent ão gasta-
d escobrir se u uso prático. Por exemplo , uma vez que mos o resto de nossas vid a s trabalhando para recupe-
os so ns aaab e iiii têm qualidades d ife rente s, eles nos ra r o primordial e puro aaab , na expectativa d e reen-
trarão sensa çôes física s diferentes. Quando emitirmo s contrar nossa divindade inata.
os sons, vamos degustá-l o s e observar como muda a
dimensão int erna. Notem o caráter particular de cada
so no rid ad e . Então podemo s juntar outros sons como t TEXTO
s, k, para cr iar ka , kii, ma, e assim p or di ante. Depen- Um lingüista di sse uma vez que , no co meç o, todo o
d endo da consoante esc olhida , o sentimen to de aaab mundo na Terra falava a mesma língua . Tempos de-
irá mudar: ta, ka, ma, sa . pois , à medida que as cultu ras se de senvolviam , as lín -
Mais um a vez , podemo s ve r as muitas líng uas incor- gu as se separaram . De ce rta forma , sinto que isso é
porar esses ele me nto s sonoro s na es colha de s ua s p ala- ve rda de, porque o se ntid o so noro básico d e uma lín-
vras, sobretudo dos ve rb os . Vamos faze r um exercício : gu a p ode , freqü entemente , se r a p re e n d id o m esmo
vamos falar as seguintes p alavras repetidas vezes, real- quando não conseguimos entende r o se ntido literal das
mente d egustando as sensações físicas: õõô-su u e biii- palav ras.
kuu. Vamos su stentá-las um pouco. Na ve rdade , trata- O s so ns têm su as próprias ressonâncias ou "senti-
se de verbos japoneses . Um quer dizer emp u rra r e o u- dos". Um bom escritor, co nsci e nte o u inconscientemen-
tro quer dizer puxar. Vamos tentar adiv in har qual é te , escrev e mais d o que uma históri a , mais do qu e sim-
qual. A ma iori a da s pessoas acha que osu é e m p urrar e pl es falas ou d iálo gos. Um bom escrito r escolhe os so ns.
biku , puxar. Está certo. Existe uma co nexão entre o Quando pronunciam o s as palavras d e um grande e scri-
"sabo r" d a sonoridade e o se ntid o . tor (como Shakespeare) , mesmo se m compreender a
É preciso tomar cuidado com uma coisa quando fa- língua , se ntimos algo, porque el e es co lheu a sonorida-
zemos es se exercício. Precisamos saborear a qualidad e de ce lta . Quando atuam o s, precisamos incorporar o
do som através dos músculos do corpo e através do respeito pelos sons como p arte de nosso trabalho com
eco das emoções. Não se trata d e uma idéia d o que o texto . Da p róx ima vez q ue estiv erem dian te de u m
talvez signifique o som. (Se dissermos a n ós mesmos te xto , te nte m essa ex pe riê n cia . An tes de explorar o sen-
alguma coisa como "é o tipo d e som qu e alguém talvez tido d e ca da frase , o u o co n te údo e mo cio na l, o contex-
p roduza qu ando está empurrando ", esta mos na p ista to social, tentem sim p les me nte "sab o rear" os sons . Se o
errada. Essa seria uma idé ia intelectual sobre o som, au tor escolhe u aq ue les son s, d evemo s respeitá-lo s. Mas
1 44 () Ator Invisível A fala 145

se estivermos muito preocupados com a emoção, tal- isso qu e eu sinto com rel ação a Sha kesp e a re, então é
vez nos esqueçamos d e pensar na dimensão sonora. as sim que vou falar o texto." Ou então: "É um autor
Vou dar um exemplo simp les da p otencialidade dos ruim , então vou fazer 'assim', para que fique mais in-
sons. Lembram-se do exercício recente em que fizemos teressante." Se pensarmos desse modo, não estaremos
o som ha ha ha? Se o sustentarmos o suficiente, come- respeitando o texto. Temos de seguir as intenções do
çarem os a nos sentir alegres. Na verdade , no kyôgen, é autor e devemos também respeitar a sonoridade das
assim que se ensina a apresentar o riso num espetácu- palav'ras que foram escolhidas . Aí sim podemos des-
lo. Basta fazer o som ha ha ha, e passamos a nos sentir cobrir alguma coisa além da simples história qu e está
animados. Os so ns cbei, cbei, chei são usados do mes- se ndo contada.
mo jeito só que para a tristeza. Tendo em vista que a sonoridade das palavras tem
Também notei que o so m iiii provoca uma dor aper- fortes qualidades emocionais, interpretar a mesma pas-
tada , estrangulada, no fundo do sentimento. sage m em diferentes línguas torna tudo diferente. Al-
Estes exemplos são completamente simp les, e nem gumas das produ ções de Peter Brook, como O
todas as palavras seguem es se padrão. Muitas das pala- Mababbarata e The Man W1Jo, eram apresentadas em
vras que usamos na vida di ária são "técnicas" e não têm francês e inglês, e eu fazia o mesmo papel em ambas.
co rrespo ndência emocional. Igualmente , muitas pala- As p alavras do texto tinham o mesmo significado, mas
vras mudaram de sentido atra vés do tempo, de modo qualidades sonoras muito diferentes, de modo qu e ine-
que toda e qualquer conexão entre o so m e seu eco vitavelmente minha atuação se alterava. A qualidade
interior foi perdida. Entretanto , existem ain da centenas do som nos limita e muda a interpretação. Por exem-
de palavras que carregam um a ressonância emocional plo, em Hamlet a palavra vingança é muito usada . Em
em suas sonoridades, e , como disse anteriormente, um japonês, a mesma palavra é bukusbu, mas o so m é
bom escritor irá incorporar essa dimensão ao texto. Por muito diferente. Não podemos interpretar buleusbu do
essa razão, devemos sempre tentar "saborear" os sons mesmo modo que vingança. Sonoridades diferentes
das palavras dos escritores, já que isso pode nos ajudar evocam respostas int eriores diferentes, e nossa inter-
a nos ligar com a qualidade em ocio na l do roteiro. pretação se altera de aco rdo .
Quando a companhia de Peter Brook estava ensai-
a ndo O Mahabharata , gast ávamos um b om tempo tra- Por isso, a qualidade de uma tradução afeta toda a
balhando na pronúncia da língua inglesa co m um a to r produ çã o . Um a má tradução não só confunde ou
inglês . Ele e scolheu a lg u m a s p a s sagens de dist orc e a história, e produz frases que são difíceis de
Shakespeare como base do exercício. Eu não co mp re- ser ditas p elos atores, mas também as palavras escolhi-
endia o sentido daquelas palavras, mas, apenas pro- das para a tradução irão afetar a paisagem interior do
nunciando-as, co m e ce i a e ntra r no mundo da peça e ator.
d os personagens.
Existe um outro elemento: a sonoridade das pala-
Mesmo com um autor ruim , ainda devemos traba- vras irá alterar a percepção do público com relação ao
lhar dessa maneira. Devemos respeitar o som e o tex- personagem.
to , e m vez de tomar decisões prévias so b re como De certo modo, Hão ex iste uma coisa chamada perso-
inte rp re tá ·lo . Muitas pessoas dizem a si me smas: "É nagem; existe apenas o acúmulo de detalhes, que o pú-
1 46 O A tor Invisível A fala 147

blico interpreta como traços de uma p ersonalidadeparti- aproximo de um texto . Quando falo ce rtas passagens
cular. Esses "detalhes " incluem o modo como a pessoa em língua es tra ngeira, tenho de prestar muita atenção
fica em pé e se movimenta, que palavras ela escolhe para na lógic a da s frases , do contrári o não consigo
se comunicar, quão rápido ela responde às situações que com p ree ndê-Ias. Tenho de observar a gramática , e pre-
se apresentam, e assim por diante. Usa ndo esses elemen- ciso ver como a sentença está construída. Mas quando
tos, o público gradativamente pinta um retrato, que fi- falo japonês, não penso na gramática ou na lógica da
nalmente revela por si só ser aquela pessoa . Quando os frase , simplesmente falo . E as frases normalmente saem
detalhes mudam, a interpretação do público automati- como um tipo de melodia que incorpora todos os pio-
camente muda. Se a tradução é ruim e não leva em con- res clichês e maneirisrnos de um teatro ruim . Torna-se
ta a importância da sonoridade, as palavras terão uma um tipo de "imitação " em vez de alguma coisa que seja
ressonância completamente difer ente, e o público terá a minha própria e genuína reação humana . Estou sim-
impressão de uma outra personalidade. plesmente imitando a melodia de alguém que ouvi na
Mesmo no caso de uma história (ou produção) idên- vida cotidiana , ou reproduzindo uma tradição teatral.
tica em inglês efrancês, existe um sentimento completa- Se tivermos apenas a melodia sem acompanhamento
mente diferente na apresentação . Até o sotaque cria da lógica que repousa sob o texto, talvez possamos
uma impressão diferente. Quando vemos atores em seduzir o público mas não seremos capa zes de criar o
cena que falam igualmente bem franc ês e inglês, temos sentido de um ser humano real.
a impressão de que a personalidade toda mudou de Alguns a nos atr ás voltei ao Japão para fazer um fil-
uma versão para a outra. Obviamente, a personalidade me no qu al eu fazia o papel de um velho guerreiro
não mudou, mas é como se os "detalhes " tivessem sido sarnura í. Tão logo recebi o roteiro, pude ouvir todos os
alterados. L.M. macios de falar repletos de clichês que são encontrados
na maioria dos filmes de sarnura í. Esse modo convenci-
Qu ando experimentamos so no ridades e sentimen- onal de falar é muito difícil de se r evitado. Ning uém
to s no trabalho com o texto, não podemos perder de sabe ainda como aqueles guerreiros falavam 300 anos
vista a estrutura lógica de cada se ntença . As palavras atrás . Tudo o que temos são estereótipos que vemos
devem fazer se ntido , não importa o que venhamos a nos filme s e na tele visão , os quais não têm uma cone-
fazer com a voz ou com a emoção. Eu jogo com um xão direta com a ve rdade do contexto. Tive de me es-
largo número de possibilidades vo cais, mas ao mesmo forçar um bocado para me desviar dos clichês e fazer
tempo tomo o cuidado de seguir a gramática, para me com que aquelas passagens tivessem vida para mim.
assegurar de que estou comunicando alguma coisa Quando estivermos trabalhando com um trecho es-
muito específica. Dessa maneira, as palavras se tornam pecífico de um texto, vamos tentar jogar com mudanças
minhas, e não meros clichês de respostas. de respiração, intensidade, volume, no momento em que
Pelo fato de eu ser um péssimo falante de inglês e falamos o texto. Iremos descobrir, segundo o que fizer-
francês , não posso fazer grandes papéis nas produções mos com a voz (falar suavemente, lentamente, ou com
de Peter Brook. Ser tão pobre em dominar línguas es- variações de respiração), situações diferentes que pro-
trangeiras me aborrece de tempos em tempos, mas te- vocarão reações. Podemos jogar com o se ntimento do
nho certas vantagens como estrangeiro quando me mesmo jeito . Por exem p lo, dizemos o texto co mo se os
1 48 o Ator Invisível A fala 149

acontecimentos que estamos narrando nos fizessem fi- espetáculo se ele se limitar a um só nível. Porém, a
car tristes. Então repetimos a mesma passagem como se necessidade de contraste vai além da mera questão de
ela nos provocasse ódio. Ou podemos dizê-la como se a manter o público entretido. É essencial para a criação
coisa toda fosse hilária, engraçada. Não se trata de "colo- teatral ser verdadeira para a vida humana.
rir" o texto, banhando-o de emoção, mas, ao contrário, No dia-a-dia existem muitas mudanças de ritmo, an-
de encontrar uma reação emocional diferente para os damento e direção. Podemos, por exemplo, ficar senta-
acontecimentos que o texto traz. Normalmente, os ato- dos por vários minutos e subitamente saltar e ficar em
res exploram apenas um possibilidade emocional quan- pé, ou então perambular pela cozinha para fazer um
do estão estudando as passagens: aquela que está café. Mesmo num curto período de tempo haverá uma
sugerida pela compreensão da psicologia da cena. Mas grande variedade de ações e reações. O teatro tem de
em vez de pré-selecionar nossa resposta emocional des- refletir isso constantemente variando da mesma forma,
se jeito, tentemos experimentar com escolhas arbitrárias de modo que pareça verdadeiro. Além disso, todo tea-
e então ver o que cada uma oferece. tro condensa o tempo. Acontecimentos que ocorreram
No Japão, diz-se que um bom contador de histórias há mais de dez anos, dez meses, ou há poucos dias são
não deve ter uma voz particularmente bela. Se tiver- espremidos numa apresentação que dura no máximo
mos uma bela voz, nos sentiremos seguros e, como poucas horas. No palco, é a essência dos acontecimen-
conseqüência, não trabalharemos duro o suficiente para tos que é reproduzida, e não todos os detalhes. Até
dominar a narrativa. mesmo uma suposta peça "naturalista" de Tchecov não
Há uma história de um narrador de bunraku que se passa no tempo real, o autor meramente cria essa
viveu no Japão há cem anos. Naquele tempo, algumas ilusão.
idéias do teatro naturalista ocidental estavam infiltradas Subconscientemente o público sabe que está assis-
nos espetáculos japoneses. Segundo a prática tradicio- tindo a uma destilação dos acontecimentos em vez de
nal de contar histórias, os narradores simplesmente ten- uma reprodução exata. Na medida em que até a passa-
tam dizer o texto com uma voz alta e bonita. Mas aque- gem de um simples dia traz uma variedade de ações,
le homem tinha, ao contrário, uma pobre voz, e os con- uma produção precisa manter uma extensão similar de
ceitos ocidentais ajudaram-no a descobrir um meio de ritmos contrastantes. Isso cria um espetáculo que é uma
resolver o problema. Em vez de falar com elegância e reflexão crível e palpável da vida real.
sonoridade, ele tentou reproduzir cada personagem, Mesmo se na vida cotidiana nos movimentamos
dando sentido às suas psicologias pessoais de um modo lentamente, depois fazemos longas pausas e nos mo-
mais realista. Rapidamente tornou-se uma estrela, uma vimentamos novamente, isso não aparece como ver-
vez que a intelligentsia japonesa daquele período se dadeiro no palco, pois contradiz as mudanças e alte-
identificou com aquela abordagem. rações que o público reconhece como sendo da vida
real. É por isso que os atores precisam compreender a
importância do ritmo e andamento quando constroem
REFLETINDO A REALIDADE seus papéis. Uma reprodução apurada de uma situa-
Contraste e variação são necessários ao público, ção emocional pode parecer muito verdadeira para o
uma vez que não é possível manter-se interessado num ator, mas não necessariamente para o espectador. An-
15 O o Ator Invisível A fala 151

te s de p ensar sobre produzir uma e moção , devemos Temo s a lg u ma coisa d entro , resu lta n do que a inter-
examina r o q ue p re cisamo s fazer em termos de ritm o p retaçào se p ar e ce m ais com u m a impro visação . É cla-
e andamento. Na ve rdade , se traba lharmos no sso a n - ro que sem p re segui mos o te xto e re spe itamo s as m ar-
dam e nto de m ane ira adequ ada, a emo ção surgir á mu i- caçõ e s d e p alco , mas ao mesm o tempo sentimos q u e
to faci lmente. re almente sa b emos o q u e está aco ntece n do .
É im portante que o teatro tra balhe com o te m p o Q ua ndo esta mos p re p a rando um papel , e m vez d e
co nde nsado. Do co nt rário, tería mo s sim p lesme nte uma no s p reocu parmos e m como falar o te xto , ou para o nde
parte d a vida cortada e posta diante do es pecta dor. As ir, é melhor imergi rmos no uni verso d a p eça e do per-
p essoas vêem a vida cotidiana o tempo todo ; não p re - sonagem. Tomemo s o m áximo de informação possível:
cisam ir ao teatro para isso . Elas vão ao teatro em busca não só ler livro s, m as também conversa r com as p es-
d e algo mais . soas, o lhar fotografias o u quadros , v isitar o ce ná rio (o u
Como ator, te nho de e sta r livre d o te xto . Não po sso a p aisag em) d a p e ça , e assim por d iante . Se tra balhar-
me preocupar com o que virá na seqüência q ua ndo mo s iso ladame nte com o texto , isso não significa n ada .
es tou atua ndo. Se for um texto longo, é necessá rio com- As p alavras do texto sã o a p e n as uma p equena parte do
preender sua estrutura básica. O nd e com eça? Q ua l é a personage m qu e esta mos fazendo o u d a história q ue
p a rte prin cipal? O nd e é o final? Não se pode ir lendo , está sen do co ntada . O texto é como a p onta de um
lendo , lend o o texto como se fosse se m pre a m esma iceberg : ve mos a penas a p onta , e n q ua nto que abaixo
coisa. Co m o um livro de s usp e nse , há se m pre urna es- d a su p e rfície existe urn a m as sa e n o rme que p assa d es-
trutura. E, co m o livro d e suspens e , às vezes p ode ser percebida . Se tentarmos atin gir o sentido de nosso p a-
útil da r u ma o lha da no fina l para poder trabalhar o pel so mente atra vés d o texto , veremos q ue isso é mu ito
começo. Se o fina l é "assim ", então o começo precisa lim itado . Nào b asta. Pre cisamo s d e scobrir todo o resto
ser "assad o ", e assi m vai. É como um queb ra-cabe ça . d o mate rial que não está d is ponív e l no te xto . Se fizer-
Mas não p odemos trapacear, o lha ndo o fin al p ara de s- m o s isso p rimeiro , então o te xto irá simp lesmente sur-
cobrir como res ol ver o p roblema . Do fin al p ara o co- gir q uan do for o m omento de e ns aia r.
meço e d epo is pa ra o me io é u m bom cam in ho . Po demos achar q ue é im porta n te p rende r a a te nção
De ce rta forma , p ara mi m é mu ito fáci l tra ba lhar to tal do púb lico a ca da momento , m as não é assim.
nas p ro d uções d e Peter Bro ok, p o is ele fo rne ce aos Não é possíve l p a ra as pessoas suste nta r um a lto n ível
atores muito mate rial qu e es tim u la a im aginação. Todo d e conce ntração por uma hora o u m ais, de modo que
o tip o de mate ria l: fot o g rafias, músicas , hi st ó rias , es- temo s d e d esc obrir meio s de d ar ao p úblico um d es-
tudo s de caso, ex periê ncias d ire tas , e a té comida . Atra- canso de vez em q ua nd o . O s ato res tê m de ofe recer
vés dessas info rmações começa-se, in co nscientem e n - aos espectadores momentos par a resp irar mesmo no
te, a digerir o universo da peça. Então, quando se me io d a mais inte nsa das p rod uções .
com eça a trabalhar as cenas específic as, o m at erial qu e De scobri isso q ua ndo estava ap rend e n do a técnica
tive rmos e stud ado de algum a m aneira ress urge sem trad icional d e conta r histórias. Meu professor nunca me
pre cisarmo s pensar nele . Sabemos o que e stá se pas- d ava co nselhos de como interpretar bem , mas às ve zes
sa ndo, d e modo que n ão é pre ciso p e nsar e m com o dizia: "Ne sse p onto d a recitação você precisa interpre -
se deve interp re ta r a cena: s im p lesmen te esta mos lã . ta r ma l."

;~
I
'"

152 o Ator Invisível A fala 153

Na verda de, não p reci samo s pensar em co mo inter- tentar falar essas passagens d e maneira comum. Do con-
pretar bem. Isso aca ba ac o n tecend o no d ecorrer d o trá rio , o público não será ca pa z d e se movimentar
tempo . Mas algumas vezes temos de descobrir quando conosco através d o que estiver sendo dito e não reagirá
precisamos atua r de modo corriqu eiro. aos momentos im po rta ntes .
Se formos sempre bons, o público será con sta nte - Em japonês, existe uma palavra, ma , que se refere
mente for çado a se co nc e n trar e m nossas pala vra s. ao vazio do tempo e do es p aç o. Ma contém o nada; é
Depois d e um certo tempo estará cansado e terá di fi- o momento e m que nos abste mos de fazer qualquer
culdades em reagir. coisa. Esse conceito é extremamente útil no teatro, na
Além d isso , se tudo e st iver igualmente bom, o pú- medida e m que a a us ê ncia de ativida d e pode ser em-
blico rapidamente ficar á acostumado com isso, e os pregada para criar um tipo de "mo ld u ra " para o s mo-
momentos-chave do es petácu lo não ficar ão sublinha - mentos grandiosamente importantes. Essas "ausências"
d o s. Perderão seu impacto. Essa mesm a p erda de ca pa- d e ação devem parecer co mo uma parte integral d a
cidade reati va aconte ce na c uliná ria . Se um anfitrião peça , e não ap enas momento s em que nada está acon-
preparar sempre uma refeição refinada para se us con- tecendo. Assim como a música é feita tanto d e som
vid ados, eles co meça rão di zendo "Está maravilhos a- quanto d e silêncio, com teatro é a mesm a coisa.
mente deliciosa!". Mas se a cada refeição o cozin heiro Ma tamhém implica rela ção adequada entre obje-
fizer tudo co m p lexo e refinado, depoi s d e um tempo to s ou acon te ci me ntos. Um bom ator pode manipular
será di fícil di stinguir. Um cozin he iro es p e rto irá alter- ma co m s ucesso. Ele pode se ntir a relação ap ro p riad a
nar uma refeição rica e exóti ca com alguma coisa sim- e ntre dois momentos , duas pessoas, duas ações , duas
ples e cotidiana, para "limp ar" o palad ar e de sperta r se n te nças , duas cenas , e entre () público e o palco.
nov amente o sa bo r. Da mesma man eira, o ato r não deve Ma n à~) é a lgo e státic o, mas uma co isa que trata de
sobrecarregar o público com uma atuação consistente co ne xõ es .
e b rilhante. Há momentos em qu e temos de interpretar Essa prontidão em o pe ra r ta is contraste s funciona
"mal", para despe rtar novamente a habilidade d o pú- também quando utilizamos pausas em nossas falas . Se
blico em apreciar e re agir. suste ntarmos um a pausa longa , as passagens seguintes
Obviamente , quando digo interpretar mal, não estou d o texto não poderão ser ditas de maneira lenta; devem
querendo diz e r com isso que devemos atu ar de maneira ser interpretadas muito rapidamente. Do contrário per-
horrível, egoí sta ou vulgar. Digo apenas que alg uns mo- deremos o público. (I mag inemos o se guinte : uma longa
mentos precisam ser mais trivi ais e "desca rtáveis". Por e len ta fala , se g uida de uma pesada pau sa , se guida ain-
ex emplo, se formos entrar num tre cho de grande monó- da de uma outra lenta e ponderada série de palavras...)
logo, co meçamos a nos preparar, descobrindo como Em to d o o meu trahalho se m p re es to u tentando
começa , como se desenvol ve e co mo va i para o final. O descobrir a lgu ma coisa rara e única (c o nfo rme d e s-
próximo passo é decidir quais são as falas fundamentais. cre ve u Zearni) . A convenção é inimiga do ator, e te-
Essas sã o importantes e têm d e ser int erpretadas muito mos de tr ab alhar duro para nos d es viarmos de ca ir
bem. Então observamos as falas que vêm an tes das prin- nos clichês de interpretação. Se isto aco nte cer, não
cip ais . Essas não devem ser enfatizad as d emais, senão e sta remo s cria nd o um se r humano cr ível. Temos de
irão reduzir o imp acto do que ve m a se guir. Devemos buscar as sutilezas e contradi ções que dão o se ntid o
1 54 () AtorInvisível A fala 155

d e realidade a nosso trabalho. Pe rsonagens co nven- ve rda de da p eça ganhar vida . Noss o intu ito não é o de
cionais ap res e nta m ape nas uma di me nsão . Pessoas a presentar um a produção q ue seja rara e única, mas
re ais são co mp lexas e verdadeiros e nigmas cheios de utilizar um a abordagem q ue seja rara e única p ara ilu-
contradições . Igualmente , não devemos fazer algo to- minar a produção. Raro e único são os meios para se
talmente escandaloso só para se r difer ente. Não se co nta r a história e não os fins.
trata da variação só pela variaç ão . Zeami ide ntifico u a im portância da n ovida de. Pe r-
Muitos anos atrás, interpretei Go n zalo na produção ce beu qu e , na natureza , as coisas nunca perman ecem
de Pet er Brook de A tempestade. Q uando lemos o tex- exatame nte as me smas . Uma árv ore produz flores, fo -
to , nos da mos co nta de qu e todos os personagens na lhas, frutos e depois p arece ficar um tem po "mo rta" ,
peça descre vem Gonzalo co mo se ndo um a figura ge n- até que as flores reapar eçam na pr óxima pr imaver a. O
til e sensata. Então aí temos uma image m muito con- surgimento de um a flor nos toca com sua bel e za por-
ve nc iona l do "velho home m sensato ". Eu tinha de de s- qu e é nova todas as ve zes. Se a árvo re estivesse na
cobrir uma ma neira de retrata r Gonzalo q ue fosse ve r- flor escência o a no inteiro , nosso inter esse cessaria, ape-
da deira , e não simplesmente estampa r o clichê de um a sa r de to da a beleza das flores. No teatro é a me sma
imagem. No começo , e u o fazia reagindo com modos coisa . Como atores, se nos se rvirmos se mp re do s mes-
que n ão fossem obviame nte ge ntis e se nsa tos . Confor- mos me ios de ex p ressào (aind a que virtu osos), perde-
me a peça avan çava, e o p úblico via as ações e reações re mos a possibilida de d e d ele itar o p úblico. Não deve-
de Gonzalo , as pessoas pude ram tirar suas próprias mos perma ne ce r estacado s em velhos pa d rões ; de-
concl usões so bre que tip o de home m ele e ra. No fina l, vemos nos man ter na busca de no vos meios pa ra entrar
concluíram q ue se tratava de um "velho homem se nsa - em conta to co m o pú blico.
to ", ma s chegaram até aí p or elas mesm as. Obviam e n- Go sta ria de dei xar cla ro q ue o conceit o de novida -
te , to dos nós tem os idéias sob re como um home m ve- de não significa q ue temos de bu scar interpretações
lho e se nsa to iria o lhar e falar, de modo que e u delibe- sobre na tura is, choca ntes e bizarras . Não se trata da
radamente tentei me desviar d aquelas imagens conven- mudança pel a mu dan ça . Ao contrário , trata-s e de e n-
cio nais. Se eu tivesse ret ratado Go nzalo de man ei ra co ntra r meios de ma nter n osso trab alho fresco e vivo .
convencio na l desde o começo , o p úblico teri a dito sim- Do ponto de vista d o p úbli co , uma peça q ue traz um a
plesmente: "Oh, aí está um velho homem sensato ." E verda deira no vida de não irá necessariamente parecer
teri a perdido a curiosida de co m relação ao persona- estra nha e chocante. Em vez dis so, o púb lico ficará tão
ge m e suas ações . absorto e toc ado pelo q ue estiver ve ndo , qu e não aten-
Cada simples asp ecto d o te atro deve ter p or objeti- tará pa ra o fato de q ue p res e nciou um bom espetáculo.
vo se r raro e único, e não apenas a inte rpre tação . A Zeami foi lo nge qua ndo disse q ue se o público per-
própria p ro dução precisa ter uma variedade de co n- ce be r q ue está dian te de um es petáculo "inov ador", isso
trastes in esp er ad os. É p reciso que haja surp resas, m u- é sina l de que o ator não está verdadeiramente q ualifi -
dan ças rápidas de dire çã o e momentos únicos. Mais cado . A "flor" do traba lho de um ator de ve se man te r
uma vez , não se trata de simp les mente usa r artifício s e m se gred o, e a habilida de em criar ess a novidad e é
de fantasia com a fina lidade d e chocar o pú blico , mas pa rte daq uela "fl or" , Ningué m de ver ia ver o qu e real-
descob rir ve rdad eiro s ca minhos , o riginais, de fazer a me nte está acontece ndo . Se os es pectadores começ a-
157
1 56 O Ator Invisível

rem a pensar "Isso é realmente original" ou "Q ue ato r


virtuoso!" não se está diante de um ator de primeira
linha.
Um mestre zen foi um a vez assistir a um es petáculo
estrelado por um famoso co nta dor de histó rias, pois
to dos co me ntava m sobre suas qu alidades. Depois da
apresentação, como o contador ouviu dizer que o mes-
tre zen tinha estado na pl atéia, foi procurá-lo para sa-
ber sua o p inião so b re o es petáculo . O me stre zen dis-
se : "Estava muito bom, mas voc ê es tá falando com a
hoca ."
O contador de histó rias respondeu: "Muito o b riga-
do por sua observação. Eu gostaria de ir estudar com o
se nhor."
Depoi s de ter trabalhado com o mestre ze n por al-
gum tempo, o contad o r quis sa ber novam ente sua opi-
5
o aprendizado

niào so bre o esp etáculo. E o mestre disse : "Muito bom,


ago ra voc ê está co ntando a históri a usando sua líng ua ."

;..i' .
í
~
158 oAtor Invisível o aprendizado 1 59

Segundo Zeami, é útil começar a praticar canto e


dança aos sete anos (o que corresponderia à idade de
seis anos no Ocidente), uma vez que nesta idade as
crianças não têm consciência de si mesmas; não têm
ambição, nem um sentido exibicionista ainda definido:
não querem ser famosos. Também não se sentem pres-
sionadas de modo que, quando atuam, alguma coisa
interessante acontece, uma certa beleza.
N o Japão há um ditado que diz que é melhor
gastar três anos procurando por um bom professor do Zeami chamava essa qualidade de hana, a "flor" de
que ocupar o mesmo período de tempo fazendo exer- um artista, e incluiu o sentido de "encanto" e "novida-
cícios com alguém inferior. de" nesse conceito. O "encanto" não é o mesmo encanto
Temos de praticar para nos desenvolver, mas não que observamos na vida cotidiana, que está mais para
podemos estudar com qualquer um. Temos de encon- um tipo de bem-estar social. Tampouco quer dizer bele-
trar o professor certo. Realmente não importa o estilo za física. Refere-se especificamente a uma qualidade
ou a técnica que estamos estudando. Na verdade, po- particular do artista no palco. L.M.
demos praticar diferentes disciplinas tais como aikidô,
judô, balé ou mímica e obter o mesmo benefício. Isso Há uma velha idéia com relação ao trabalho do ator
porque estaremos aprendendo alguma coisa que vai que diz o seguinte: "Não devemos nunca contracenar
além da técnica. Quando estudamos com nosso mestre, com animais ou crianças, porque eles irão sempre nos
as habilidades fazem apenas parte da linguagem, mas su perar." Eles são certamente fascinantes de serem ob-
não são o objetivo. Já que se está aprendendo alguma servados, mas por que capturam desse jeito nosso
coisa que ultrapassa a técnica, aquilo que se está prati- olhar? Há uma ponta de mistério.
cando é menos importante. Zeami percebeu que, durante a adolescência, um
Nas artes marciais, o objetivo fundamental é o de ator pode provavelmente demonstrar um certo nível de
praticar a liberdade. No entanto, isto não quer dizer domínio técnico (caso tenha começado a praticar aos
que as artes marciais sejam automaticamente o melhor cinco ou seis anos), e isto, combinado com sua "flor"
meio de aprender "como encontrar liberdade". natural, faz com que seja apreciável. Quando somos
Na verdade, qualquer sistema de treinamento físico jovens, nosso "encanto" disfarça os pontos fracos numa
pode funcionar. Todos eles são concebidos para que apresentação. No entanto, temos de tomar cuidado de
possamos experimentar como o corpo e a voz funcio- não levar isto muito a sério caso alguém elogie a bele-
nam, o que, por sua vez, nos possibilita encontrar li- za de nossa atuação, uma vez que todos os atores jo-
berdade através da atividade física. vens têm esse encanto. Não podemos nos deixar sedu-
É claro que fazer psicanálise ou desenvolver destre- zir pela idéia de que somos um presente de Deus ao
za intelectual também nos ajuda a nos tornar livres no teatro. Ao contrário, precisamos realmente nos concen-
pensamento. O movimento não é o único caminho para trar no desenvolvimento da técnica: como fortalecer e
que nos tornemos mentalmente livres. estender a voz, como usar o corpo, já que o encanto do
1 60 O Ator Invisível o aprendizado 16 1

qual dependemos por tanto tempo co meça , aos pou- objetivamente. Se e mbarca rmos na idéia de qu e somos
co s, a desapar ec er. um gê nio do teatro , perderemos qualquer que se ja o
Qu ando atingimos a idade de mais ou menos 16 talento qu e tenhamos. Temos de observar ob jetivamen-
an os, temos de encarar um período difícil tea tralme nte . te o que fizemos, e m ve z de subjetivamente . Se fizer-
Visua lmente e vocalmente par e cemos ad u ltos : nosso mos isto , rapidam ente co mp ree nde remos por que nos-
co rpo se alte ro u e a vo z também mudou, o u está mu- so su cesso p recoce é um tipo de co inc idência , e que
dando. Paralel amente, nossos p adrões de p ensamento não ex iste nenhuma garantia de que ele irá co ntin uar.
estão ma is maduros. Por consegu int e , o público nos Zeami co nside ro u a idade de 33 ou 34 anos como
perceberá como ad ultos e julga rá nosso trabalho se- sendo a fase ma is rica da vid a de um at or. Podemos
gundo aque le padrão. Ha verá a expectat iva de assistir notar os resultad os de todo o nosso treinamento, e , se
a uma int erpretação afinada , e não se re mos tecnica- tivermos atingido um certo padrão de reconhecimento
mente capazes de dar-lhe isso. Ter emos perdido a "flo r" do nosso trabalho, isso será permanente . É igualmente
da infân cia, ao mesmo tempo que ainda não teremos o verdade que se es tive rmos trabalhando como atores
domínio total de nossa capacidade profissional. É um secundários ne ssa fase, é improvável que isto mude no
período muito embaraçoso, e a co isa mais útil a fazer futuro. Aos 24 a nos tudo é possível : podemos de re-
nesse caso é simplesmente nos co nc ent rar no treina- pente nos transformar de medíocres em exce le ntes ato-
mento . Se ac aso nos ocorrer de atuarmos mal, não de- res ; mas depois dos 34... milagres podem acontecer.
vemos no s pr eocupar muito e a penas nos manter tra- Temos de ser muito honestos e analisar o bjetivamente
balhando . nossas habilidades . Além do mais, se não tivermos al-
Esse di ficultoso período acab a mais o u menos aos cançado domín io técnico de nossa art e nessa idade ,
23 anos , quando entramos na fa se mais imp o rtante de teremos um problema. Em mais ou men os 10 anos no s-
no ssa vida profissional. Agora o corpo praticamente sas co m petê ncias físicas começarão a decl inar (pe rto
p arou de cresce r e mudar, de modo que so mos cap azes da idade de 45 anos) , de modo que se não tivermos
de "d ige rir" fisicamente qualquer coisa que tivermos nossa té cni ca o rga nicame nt e instalada aos 35, teremos
ap re nd ido . Nosso treinamento e desenvol vimento físi- muito pouco a fazer. Se, aos 35, formos capa zes de
co vêm juntos, co mo um frut o que amad ure ce u. Nessa "e ncant ar" o p úbli co , esta é a tlor re al de no ssa a rte .
fase , se fizermos um papel jovem, co mo em Romeu e Não a flor da juventude agracia da por um a coi nc id ê n-
[ulieta , muitas pessoas ficarão impressionadas e acre- cia, mas um artigo genu íno.
d ita rão que so mos atores muito bons . É verdade que Entretan to , se não pudermos encontrar esse "e ncan-
parecer emos melhores e talvez mais convincentes na - to " na idade de 35 anos, devemos p ensar sobre nosso
quele jovem papel do que um ator ma is velho, mas não futuro co m muito cuidado. Ou nos co ncent ramos em
devemo s nos deixar levar demais p elo provável suces- nosso trabalh o com esforço dobrado, o u dev emos de-
so. É meramente um tipo de coincidência: estar no pa- sistir. Afora qu alquer outra coisa, temos de examinar
pel certo, no momento certo. Não se trata de avaliar o de maneira re alista onde e como podemos se r escolhi-
virtuosismo da atuação. Quando nos d izem que somos dos para co ntin ua r a trabalhar com teatro.
bons aos 24 anos, é possível que seja verdade que te- Zeami p ercebeu que em volta de 43 o u 44 anos so-
nh amos talento , mas devemos apre nd e r a o lha r isso fremos um a o utra mudança . Nossa beleza física está
162 oAtar Invisível o aprendizado 1 63

' ,J

começando a declinar, e nossa energia física começa a sante , compulsiva, encantadora e tocante com relação
ir embora. Enquanto so mos capazes de realizar extra- a seu trabalho. Nesse caso a interpretação é quase que
vagantes e extraordinárias façanhas virtuosas aos 34 totalmente interior.
anos, não podemos realizar as me sma s ações, do me s- Com rela ção a isso , devo lembrar que essa maneira
mo jeito, na idade de 44. Isso não quer dizer que não de "le r" o teatro foi expressa por Zeami há mais de 500
temos nada a oferecer ao público. Em vez de demons- anos e se refere apenas a atores e não a atrizes (uma
trar nossa perícia técnica, devemos nos concentrar exa- vez que as mulheres eram proibidas de atuar no Japão
tamente naquilo que estive rm os fazendo ou diz endo. daquela época). As idéias de Zeami obviamente ainda
Reduzimos a expressão externa, mas mantemos a inte- hoje são relevantes , com algumas exceções. Segundo
gridade de nossas aç ões. Não mais dependemos de minha própria observação, os pontos de transição para
no ssa beleza física , mas o público ainda percebe algu- as mulheres tendem a ocorrer ligeiramente mais cedo
ma coi sa deli cada cujo movimento vem de dentro. Aí do que para os homens. É também útil que nos lembre-
está novamente a "flo r" ve rd ad eira da arte do ato r. mos que o teatro que ele descreveu era muito físico ,
Ze ami também comentou que nessa idade é importan- em alguns casos se parecendo mais com a dança do
te analisar cuidadosamente aquilo que podemos e não que propriamente com o teatro convencional baseado
podemos fazer. E começar a ensinar. Essa combinação no texto .
entre se auto-analisar e alimentar atores mais jovens (c Além disso, a saúde e a nutrição modernas , de um
o diálogo ine vitável que ocorre entre essas du as ativi- modo geral, aumentaram a duração e a qualidade da
dades) nos ajuda a nos manter em desenvolvimento vida humana desde então, e isso precisa ser levado em
como atores, até atingir a terceira idade. conta ; 50 anos era uma idade realmente avançada na
Depois dos 50 anos, Zeami sentiu que era quase época em qu e ele escrevia, e agora não é mais assim . A
impossível para um ator reproduzir fisicamente tudo observação sugere que as fases mais tardias da vida , às
aquilo que tinha feito no passado. Agora , a habilidade quais ele se refere, precisam ser aju stadas em mais ou
em prender a atenção do público não depende de menos 10 anos . Os primeiros anos (da adolescência até
virtuosismos exteriores. Ao contrário, devemos basear os 40) parecem ser mais ou menos os mesmos hoje em
nossa interpretação em alguma coisa que seja interna: dia . Talvez essas idades devessem ser ajustadas em cer-
a parte invisível da atuação. Se isto existir, a atenção do ca de um ano, para baixo (}6 anos significam os atuais
público permanecerá concentrada em nossa interpreta- l li ou 15). Isto também se dá por causa do efeito da
ção . Se um ator tiver aprendido como atuar re al e ver- melhor nutrição que produz uma maturidade física pre-
dadeiramente através de todos os anos antes dos 50, coce. Mas essa diferença é mínima, pois a abrangência
então, mesmo que a árvore esteja velha , um p ouco da observação de Zeami ainda perrnance tão relevante
retorcida e arqueada , ainda será capaz de produzir uma quanto na época em que escreveu.
flor. Não estaremos diante de um encanto extravagan- Uma vez ouvi lima história sobre um brilhante artis-
te , ma s de uma profunda e permanente beleza . Num ta da corda bamba que trabalhava num circo. Depois
velho ato r que esteja verdadeiramente habilitado, a voz de uma de suas habituais espetaculares apresentações
pode estar fraca, o corpo incapaz de su stentar uma ati- e le se virou para o público e disse: "Tenho um filho de
vidade intensa, ma s ainda haverá alguma coisa int eres- se is ano s. Nos dois últimos anos ele esteve aprendendo
'84 li Ator Invisívd
·.,:
T,~ "

;~~ o aprendizado 165

a andar na corda bamba . Gost ar ia de ap resentá- lo a na sça da ab ertura do coração. Devemos descobrir como
vr )c0~ esta noite, pois ele vai fazer sua e stré ia diante do isso se dá , uma vez que a qualidade de nossa atuação
público . É evi de nte que não se trata de algué m alta- reflete isto . Mesm o que o corpo e stej a velho e deca-
mente habilidoso , mas por favor façam com que se sin- dente , alg uma coi sa muito especial e límpida p ode sur-
ta bem-vindo. " gir se tivermos cultivado um coração forte e abe rto .
Então a crianç a apareceu e co meço u s ua pequena Isso ultrapassa a té cnica.
caminhada pel a corda. Ele tinha mui ta d ificuldade de Zeami nos ofe rece três conceitos que definem o tra -
equilíbrio ; num momento qu ase chegou a ca ir, mas de balho do ator. Ele os descreve na fo rma de ele me nto s
algum modo conseguiu se recuperar. Finalmente atingiu como pele, ca rne e osso. A pele é a beleza externa do
a outra ponta da co rda e foi sa udado co m um a chuva de ator, a carne é a beleza que vem com o tre inamento, e
ap la usos . Era uma genuína o vaçã o não ape nas pelo bem- o osso é a na tureza essencial da pessoa , é um tipo de
sucedido cumprimento da tarefa , mas porque conseguiu beleza esp iritual. Alguns atores nas cem com Lima qua-
capturar e sustentar a atenção do público durante sua lidade inata , qu e é o esqueleto de seu trabalho. Aí o
intervenção . Na verdade, num certo se ntido , sua atuação treinamento resulta na carne, e o que finalmente surge
era mai s interessante do que a de seu pai. Obviamente externamente, para o público, é a pele .
tudo o qu e fez com que fosse fascin ante de se ver não Uma outra maneira de apresentar ess a noção é ver,
era o domínio técnico ou a cria ção de um "novo estilo" ouvir e sentir. Primeiro, o público vê o ator: a beleza
de andar na corda bamba. Era alg o mais: a criança tinh a que enxergam os é a pele. Segundo, a mu sicalidade da
posto sua vida inteira na ap resentação; o pai tinha ape- interpreta ção . o ritmo e a harmonia da expressão que
nas um a excele nte técnica. ou vimos é a carne. Finalmente, a interpretação no s le va
Um mestre zen uma vez observou que , no momen- a um ní vel mais fundo , quase metafísico ; se ntimos a l-
to do nascimento, cada se r humano co nt é m uma se - guma coisa muito profunda. Esse é o osso do trabalho
mente, a qual pode crescer e se transformar na "flo r" do arti sta. No palc o e stá a beleza do co rp o , a beleza do
da divindade . Pensar nas atitudes div inas como se fos- e spetácul o , e a beleza da mente que crio u a inte rpreta-
se m um tip o de "ch uva " faz com que a se me nte germi- çã o . Para se r um bo m ator, cada um desses elementos
ne e cresça. A compreensão da div indade é a "flo r", precisa se r mantido no mais alto nível.
que p or s ua ve z produz o "fruto " da iluminação. Essa Quando falo da beleza, não me refiro à atração ou
"flo r" é a mesma que aquela do ator. Uma ve z que ti- à beleza da moda. Se nosso espírito (osso) é bonito, é
vermos começado a estudar na infân cia , ca da idade nos isso que e stará na su pe rfície.
trar á um a co mpre e nsão nova e ap rofund ada do que Havia um a ve z um jovem samura í que estudava com
significa se r ator. Olhamos para nós mesmos objetiva- muito afinco e as pessoas começaram a comentar quão
mente, ana lisamos nossa habilidade, treinamos, busca- bom ele era. Notaram que ele era altamente habilidoso,
mos nós mesmos, estudamos, e então, quando a "flor" já que tinha claramente adquirido muita técnica. Um dia,
se abre, b atalhamos para mantê-la. E co ntin uamos a depois de pr aticar no dojo, foi a um rest aurante, ali co-
alimentá-la , de maneira que não murch e e morra. meu e to mou um a taça de vinho de arr oz. Finalmente se
Mas , para produzir uma bela flor , temos de saber no levantou para ir para casa, mas naquele horário estava
que co nsiste a semente. Acredito que essa b ela "flo r" mu ito escu ro e ele não via um palmo ad iante do nariz.
1 66 O Ator Invisível

No entanto, já que tinha desenvolvido sua prontidão e


rt
(f,'
o aprendizado 1 67

d em nos aju dar a criar um a int erpre tação so b circuns-


se nsibilidade como parte do trei na mento de sa murai , tân cias es pecíficas , por ex e mplo, co mo ser bom na te-
estava apto a camin har pela estra da. Acab o u chega ndo a levi são o u co mo interpreta r nu m es tilo altamente co di-
um rio e, qu ando es tava atravessando a ponte , choco u- ficad o co mo o kabuqu í, ou a ópe ra de Pequim, q ue na
se co ntra algu ém. Imediatamente sacou da espada, ma s verdade funcio nam a penas nesse s co ntextos p art ícula-
já era tarde ; uma o utra espada já estava posta na sua re s. De fat o , to da p rodução reque r seu próprio método
garganta. Não havia nada que pudesse faze r. de interpretação. Aco ntece també m de es tar mos envol-
O o utro ho mem d isse: "O uvi d ize r q ue você é um vidos na criação de um a peça totalmente nova ; aí te re -
g uerreiro famoso , mas não p ode ser verdade. Você não mos de criar um novo tipo de inter p re tação q ue possa
é forte o s uficiente . Você não é capaz d e se defender se adaptar a ela .
co ntra minha espada. Você ad q uiriu muita té cnica e es tá Na medida e m que ca d a p rodução p ede seu pró p rio
satisfeito co m isto . Você é co mp letame nte inútil. Seria méto do de at ua ção , fica d ifícil ensinar um método de
melhor se eu o matasse agora. " inte rpretação como algo genér ico . Além do mais, co mo
A espada es prem eu -lhe um pouco mais a garganta . artistas , temos de es ta r dispostos a destruir mé to d os
Então, num mo vimento totalmente inesperad o , o jo- anteri ores de interpret ação para criar o que é nece ssá-
ve m sa murai ameaçado sa ltou no rio . Era inverno , e a rio que seja feito aq ui e agora . Na ve rdade, quando
ág ua es tava co ngelando, mas ele deu um jeito de se es tamos no palc o , de vemos esque cer toda e qu alquer
salva r. Então grito u ao seu o ponente: "Vo cê é mu ito teo ria , to das as filosofias, todas as té cnicas inte ressan-
fo rte , p o r favor me diga seu nome !" tes . Devemos e nt rar e faz e r.
O es tra nho repondeu : "Não , não quero d ize r-lhe Antes de co me çar minha ca rrei ra , e u pensa va q ue
meu nome . Mas se você se se n tir envergo nha do por fosse incriv el mente tal entoso . Acre ditava q ue pu desse
ca usa deste e ncontro, vou lhe da r um conselho. Tre ine me tornar o melh o r ator do Japão . Infelizmente , con-
o se u ser int e rior. Técnica não é suficiente . Se você forme co mece i regul armente a trabalhar no te atro , as
puder dar um jeito de ir a lém da técnica , você será pessoas co meçaram a me dizer que realmente eu não
muito forte ; aconte ce que agora você está sat isfe ito co m er a muito bo m . De fato , e u era horrível. Fo i um choque
W
se u domínio técnico e ac ha que isso o faz compete nte . :li terrível descobr ir q ue eu não era o gê nio d os me us
Está er rado . Você tem de ir a lém da té cn ica." 1 sonhos, mas, já qu e eu tinha começa do a trabalhar co m
Então o samur ai perguntou: "O que é ir além da te atro , achei que devia co nt in ua r a li. Isso er a em parte
técn ica?" devido a um ce rto orgu lho: não que ria admitir q ue ti-
E a res posta : "Uma outra existência . De nt ro de sua 11
:' nh a co metido um erro na escolha da ca rrei ra . Ao mes-
existê ncia física há um a o utra existência. Quando você mo te m po, senti um grande desespero quan d o me dei
e ncontrá-la, irá co mp re ender." "~, O
co nt a de que, de verdade, não era particu lar m ente
E assim o estra nho partiu . O jovem samurai saiu do
i talentoso. No entanto , co ntin uei. E co me ce i a p e ns ar:
rio rastejando e tomou a decisão de estudar num mo - I se não tenho talento , o que mais me resta?
nasté rio zen. Eu não tinha co mo consegu ir genialidade, mas ti-
Realmente não acred ito que se possa apre nder in- nh a como co nsegui r prática. Comecei a trabal har d uro
/e/prelaç ão. Tal ve z ex ista m algumas té cn icas q ue po- e tentava me tornar o mais hab ilid oso possível. Depois
1 68 O Ator In visível o aprendizado 1 69

de um certo tempo, as p essoas vinham até mim e dizi- não me d ive rtindo . Não me im portava com o fato de
am que eu ai nda não era muito bom e que devia consi- que es tive sse repetindo a me sm a coisa d ia após d ia. Na
derar a hipótese de sair do teatro . É claro , elas reco- verda de , não me im portava co m nada . Ao co nt rário, eu
nheciam que e u estava trabalhando d uro e me dedi- me co ncentrava nos detalhe s: mão di re ita para cima,
ca ndo , mas infe lizmente eu não er a tão interessante de ca beça vira , digo um a fras e , e depois a próxima... Como
ser visto. n um ritu al. Um ritua l da vida co tid iana .
Po ucos anos mais tarde, estive q uase pa ra desistir. Achei aquilo comp letam e nte semelha nte à tradicio-
Aceitei o fato de que não era um bom ator e me de i nal ce rimô nia do chá. Na ce rimônia do chá , há muitos
co nta de que tinha pouca chance de su cesso. E, é ló gi- detalhes comp lexos. Toda ação tem um pad rão pr escri-
co, este fo i o mo mento em q ue as pessoas fina lmente to . Co mo lim pamos a xícara , co mo acendemos o fogo ,
co meçaram a di zer que o me u trabal ho afinal não e ra co mo verte m os a ág ua : tud o é c u id a d o sa m e n te
tão ru im ass im . core ografado. Seg uimos essa complicad a o rde m para
O Mab abbarata foi o grande projeto de Peter Brook, produzir um a xíca ra de chá que vam os ofe recer a nos-
tendo durado mais de quatro anos. Eu realmente estava sos convidado s. Na verdade não fazemos nada de es-
interessad o naquilo e queria ver co mo Bro ok iria trazer pecial; ap enas fazemos uma xícara de chá . Não é nada
a co m plex ida de do universo daquela históri a para o tea- fantástico , mas no s dá um grande pr aze r em pr eparar e
tro . Mais uma vez decidi que o mel hor seria co ntin uar servir.
atua ndo, d o co ntrário não me se ria possível testemu nhar Uma vez executei um a ce rimônia do chá para um
o modo como o projeto iria se d esenvol ve r. gra nde mestre . Po r a lg uma razão, de re pente se nti um a
Para mim o p roc e sso foi mara vilhoso . Era fascinante afeição e norme pelo pó ve rde do chá , d e mo do que o
observar co mo um grande d ire to r trabalhava um a peça esmaguei mu ito ca lmament e , com m uito amo r. Este
daq uel a magni tude . Eu desfruta va de ca da um do s se nt imento de amor e afeição ficou co migo durante
momentos d os ensaios. In feli zme nte , de po is de dez todo o resto da cerimô nia. Eu escutava o so m da ág ua
meses, aquela fase terminou , a produção estava p ron- fer vendo. Perce bi a mudança no to m quando acrescen-
ta , e ago ra eu tinha de m e lan çar no traba lho de inte r- tei ág ua fria. Fina lmente dei a xícara ao mestre , que
pretação . De pois dos bons tempos vie ram os ruin s: do is disse: "Este chá deve esta r delicioso ."
anos in ter pretando a mesm a coisa, dia após dia . Um a luno de espada es tava pra ticando um d ia ,
Se e u tivesse atua do do me smo je ito to dos os dias, quando se u p ro fessor ve io a té el e e comentou: "Vo cê é
teria fica do lo uco co m o té d io . Pa ra d riblar esse p rob le- mu ito bom, mas a lg uma coisa ainda não está 'afinada'.
ma , decidi tentar um outro jeito de atuar. Decid i que Está faltando alg uma co isa. "
não pensaria se e u era bom o u ru im , sim ples me nte ten- O es tuda nte refletiu profundamente so bre o que o
taria me d ivertir no palco. Todos os di as, num sentido mestre tin ha observado , mas não cons eg uia e nco ntrar
egoísta , tentava encontrar praz e r na minha interpreta- nenhum sent ido para a observação. Alguns dias depois
çã o . E as pesso as de repente diz iam q ue eu estava ele se aproximo u do professor e di sse : "Não co nsegu i
muito m el hor d o que antes. descobrir o q ue es tava faltando . Obviamente ex iste al-
Então fui tra ba lha r em Tbe Man Wbo . Nessa peça, gum grande se gre do sob re a arte da es pada que e u não
mudei no vamente. Não m e importav a se eu es tava ou sou capaz de compreender."
, .,0 "AIur 11I\'1~1Vl'1 o aprendizado 17 1

( :. II11 aquilo, e le concluiu que não ha via nenhum O sáb io respondeu : "Vo cê é uma bandeja."
;lsP('('lo com que se pre ocupar rel ati vo a como mani- Nas cerimôn ias religiosas do Ocidente uma bandeja
pular a espada. Livrou-se dos pensamentos ligados à especial é usada para oferendas qu e são feitas aos deu-
espada e apenas ficou a li, di ante do mestre . Normal- ses. A ba ndeja co nté m o bje tos preciosos. O sáb io esco-
mente no J apão , quando enca ram os um gra nd e mes- lhe os símbolos da bandeja e das oferendas para distin-
tre, ele se p ar ece muito g rande , enquanto nós nos se n- guir Yu (a existência) e Mu (o nada). Yu é como o f enô-
timos pequeninos . Mas, naquele caso, o jovem de re- meno ; é o efeito visível da ação . Vemos, o uvimos, reco-
p ente se n tiu co mo se o se u própri o corpo fo sse enor - nhecemos. É co mo as oferendas qu e são feita s aos deu-
me , enquanto que o d o mestre parecia encolh id o . ses. Mu é como «forma , é difícil de detectar, ainda que
Naq uele m omento, o mestre sorriu e disse : "Agora esteja diretamente re lacio nada com o fenômeno . Des-
você compre endeu! Agora vo cê d escobriu o se g re do cre ve ndo o es tuda nte como a bandeja, o sáb io o estava
de lutar." lembrando desse nível profundo da existência. Do mes-
Isto só pode acontecer qu ando "joga mos a espad a mo modo , a parte invisível do ator é a bandeja que dá
fora ". Esse vazio interior é um o bjetivo interessante, or igem e sustenta a ação visível da interpretaçã o. Não
mas como chegar lá? Infelizmente, não existe mapa o u se nota s ua presença. Apenas s ua a usê nci a.
g uia, e só p odemos ver co mo chegamos lá depois de Consideremos o sutra do co raçã o no budismo. Reza
ter chegad o. o seg uinte : "o fen ômeno é o vazi o e o vazio é o fenô-
meno". De certa ma neira, tudo surge do vazio e d o
Quando olha mos para trás podem os diz er "Ab, era nada. Ad miramos a bel eza das flo res numa á rvor e . Mas
realmente um momento decisivo; aquelas foram as pa- se a ab rirmos para d escobrir o que cria a beleza , não
lavras que de repente alteraram m inhas prioridades ", e nc ontrare mo s nada: nem brotos de flores, nem códi-
ou "Eu achava que estivesse fazendo 'isto', mas na rea- gos se creto s , ma s apenas madeira. Se pensarmos na
lidade esta va fa z endo 'aqu ilo "', e até mesmo "Qu a ntos natureza em toda sua gló ria e diversidade , ficaremos
acontecimentos tão pequen os se articularam para me espa ntados. Árvo res , flor es , neve , mar, grama... A todas
trazer até aqui. Nunca tinha percebido isto naqueles essas manifestaç ões chamamos natureza , mas o qu e é a
tempos ". E é assim que acontece; enquanto estamos tri- natureza? Onde ela está? Não pode se r e nco ntrada . Isso
lhando o ca min ho, não p odemos vê-lo. E<só tardiamen- é o nada qu e dá orige m a inc o ntá veis fen ômenos. Po-
te que tudo começa a ficar claro. L.M. demos o lhar a inte rpretaçã o sob esse me sm o ângulo .
Como a nature za , o coraç ão do ator p ode dar vida a
Quando falo sobre auto-aprendizado , não es to u fa- pratic amente qua lquer co isa. Como na natureza, há um
lando sob re um p rograma int electual de treinam ento tip o de nada qu e fertili za.
mas, em ve z d isso, de um a abertura e disposi ção ger al Como atores, devemos ter um pouco de cuidado
para se guirmos ad iante. Trata-se de prontidão e não quando estivermos tratando com esses conceitos de
rigidez. nada e fen ôm en os. São co nceitos intelectuais, e se nos
Um sá b io chinês estava re spondendo a p erguntas ape garmos d emais a eles isso p ode nos dei xar perdi-
do se u estuda nte . Uma das questões era: "O que e u dos. Se estive rmos co nsc ie nte me nte pensando sobre o
sou? " vazio, e ntão n ão se trata de um vazio real, ma s de uma
1 72 ()A tor Invisível
o aprendizado 1 73

id éia rotulada do vazio. Do mesmo jeito, com o fen ô-


interior te ve de estar realmente co ncentrad o e forte .
meno acontece a mesma co isa , es ta remos tratando ape-
Foi por isso que preferi assim ." .
nas de um outro tip o de fen ômeno. O vazio real está
Com o ca b ia a um lutador refin ado , Musa s hi
a lém do pensam ento e é infinitamente livr e. Ficar limi-
Miyamoto p assou anos a fio e studando os p rincípi os ~
tado ao conceito de va zio, ou pensar constantemente
a filosofia d as artes marciais. Depois de um longo pe n-
em apreender o nada , é mais uma man eira de aprisio-
0(1 0 , co ncl uiu que "todo siste ma, todo pensamento,
nar ou coagir no ssa interpreta ção .
toda té cnica e todo con ceito filosófico apo nta para o
Tudo isso é difícil de co m p re e nder e complicado de
mesm o va zio . Tudo é um va zio. "
p ôr em prática. O nada está além do pensamento, mas
Evidentemente , ni nguém conseguia e ntender so-
como podemos apreendê-lo sem pensar nele? Talvez
bre o que e le estav a fal ando . O vazio é muito difíci l
dev êssemos apenas nos concentrar numa coisa que
de ex p licar. É o mesmo da meditação ze n . O s prati-
Zeami disse: "Yuu raku sh u do fu ken ", que podemos
ca ntes o ca si onalm ente têm a e xperiência de algu ma
traduzir co mo: "Divirta-se livremente , estude o ca mi-
co isa chamada sa tori, que é igualmente impossível
nho , e assim verá o vento."
d e descrever.
Esforço, treinamento , estudo e trabalho sã o as coi-
Quando falamo s de e ns in o , estamos sim p lesme nt e
sas nas quais de vemos nos conc e nt ra r. Depois de um
tratando da e xperiênci a de alguém . Nosso professor
lo ngo período de se rvidão , s urge um tipo de liberdade .
percorreu o caminho a ntes de nós, e ve mos suas pega-
Não pensamos mais naquilo que estamos faz endo. Essa
das no pó da estrada . Elas podem nos fornece r algu-
liberdade é o nada d o ator. No nível mais elevado é
mas indica ções sobre q ue direção to mar. Mas e ssas pi s-
como ser um bebê; nada é pl anejado ou co nstruído
tas fa zem parte do passado de alguém , não são o nosso
co ns cíente mente , mas nossos pensamentos e se ntimen-
futuro . Todos os mapas e rotas são apenas mapas do
to s eme rge m com vitalidade e tot al claridade.
pa ssado de o utras pessoas . Devemos absorv ê-los e
No Japão medieval, ha via um guerreiro famoso cha-
utiliz á-los, mas sempre le mbra r que nosso próprio ca-
mad o Musashi Miyamoto . Ele era co n heci do por usar
minho será diferente, e é esta trilha pessoal que de ve -
uma espada de treinamento (q ue era feita de madeira,
mo s percorrer. Não tentem copiar exat amente o per-
em vez de lâmina verda de ira) mesmo quando se us o po-
curso de outra pessoa; sirvam-se de seus conhecimen-
nentes o atac ava m com armas de aço . Sua fama a u-
tos mas mantenham-se ale rtas de que a "pa isagem" par-
mentava à medida q ue ve ncia se us adversários sob tais
ticular de nosso pr óprio ca minho é única. Ent retanto , o
circ un stâncias . Depois de um dos famosos duelos, al-
paradoxo co ntin ua : devemos descobrir nosso próprio
g uém lhe perguntou p or que el e tinha es colhid o usar
caminho , ma s nã o podemos percebê-lo enquanto
uma espada de madeira e m vez de um a de ve rdade .
estamos nel e , so mente depois d e tê- lo percorrido.
Musashi respondeu: "Se eu tivesse usado uma arma
re al, não teria encarado o d uelo de maneira s uficien te-
Neste livro, eu disse muitas co isas que outro s já dis-
mente séria . Teria dependido da lâm ina para faze r o
seram. Mas voc ês não devem simplesmente aceitar tudo
meu trabalho. De fato , minha presença não teria sido
o q ue e stá escrito aq ui se m que stionamento. Na verda-
muito importante. Seria como se e u não es tivesse ali o u
de , se acreditarem em ca da coi sa que lerem, é melhor
não existisse . Mas com uma espada de madeira, meu
não ler nada nunca .
flavia um Iamoso ator de kabuqui, que morreu há
ccrca de 50 anos, que dizia:
"Posso ensinar-lhe o padrão gestual que indica olhar
para a lua. Posso ensinar-lhe como fazer o movimento
da ponta do dedo que mostra a lua no céu. Mas da
ponta do seu dedo até a lua, a responsabilidade é intei-
ramente sua."

Você também pode gostar