Você está na página 1de 19

STEPHEN GREENBLATT

Como Shakespeare
se tornou Shakespeare
Tradução
Donaldson M. Garschagen
Renata Guerra

D
FSC
_'KOI'g
MISTO A marca FSt r. a garantia de quc=a madetr a utilizada na fabricação do
provem de [lorc stas que foram geecnctadas de maneira
papel deste livro
ambientalmente correta, socialmente ju sta c economícarncnte vtével.
----~~
além de outras fontes de origem controlada COMPANHIA AS LETRAS
10. Falando com os mortos alguns membros da companhia de Shakespeare estavam em turnê naquele ve-
rão, atuando em Faversham (condado de Kent) e em outros lugares.
É possível que Shakespeare tenha acompanhadoseus companheiros atores
na turnê, ou bem pode ter ficado em Londres para trabalhar em alguma das
peças que estava escrevendo para a companhia nessa época: Rei loão, Henrique í
II' parte I ou () mercador de Vcncza. Estivesse em Londres ou em turné, na J'.,
melhor das hipóteses só receberia notícias de Stratford de tempos em tempos,
mas cm algum momento daquele verão deve ter tornado conhecimento de que
o estado de Ham nct tinha piorado e que era preciso largar tudo e voltar para
casa .•Mas, quando chegou a Stratford, o menino de onze anos - que Shake-
speare, sem contar breves visitas, tinha abandonado na infância - já devia
estar morto. Em 11 de agosto, o pai deve ter assistido ao serviço fúnebre do
filho na igreja da Santíssima Trindade: o diácono anotou devidamente no re-
gistro de falecimentos "Hamnet filius William Shakspere",
Ao contrário de Ben Ionson e outros que escreveram poemas pesarosos
sobre a perda de filhos queridos, Shakespeare não publicou elegias nem deixou
Em algum momento da primavera ou do verão de 1596, Shakesreare de-
_ye ter recebido o recado de que seu único filho varão, Harnnet, de onze anos,
estava doente. É possível que tenha compreendido e respondido de imediato,
registro algum de seus sentimentos paternais. Todo o empenho na aquisição
da cota de armas em algum momento deve ter tido relação com as expectativas
que ele alimentava a respeito do filho e herdeiro, e seu testamento mostra um
I
ou pode ter se distraído com negócios em Londres. Tinha muita coisa a preo-
cupá-lo. Em 22 doejulho, morreu o lorde camerlengo Henry Carey, o mais
forte interesse em transmitir suas propriedades aos descendentes do sexo mas-
culino. Mas talvez essas sejam indicações demasiado formais e convencionais
para que nos informem alguma coisa sobre seus sentimentos Íntimos. Às vezes
,
~

poderoso dosprimos da rainha e patrono da companhia teatral de Shakespeare.


O cargo passou a ser ocupado por lorde Cobham, mas a companhia de atores se diz que os pais da época de Shakespeare não podiam pretender investir
foi assumida pelo irmão de Carey, lorde Hunsdon. Em menos de um ano, muito amor e esperança numa criança. Uma de cada três morria até os dez
anos, e as taxas gerais de mortalidade eram excepcionalmente elevadas para os
Cobham morreu e foi substituído por lorde Carey, de modo que a companhia,
padrões atuais.
após um breve intervalo em que foi chamada de Homens de Lorde Hunsdon,
A morte era um espetáculo familiar; ocorria em casa, e não longe da vista.
voltou a ser Homens do Lorde Camerlengo. A morte do patrono e a maré de
Quando Shakespeare tinha quinze anos, morreu sua irmã Anne, de sete, e ele
-incertezas_._~ devem ter sido desconcertante
.. para os ateres, cuja inquietação sem
deve ter tido muitas outras ocasiões para presenciar a morte de crianças, Mas
dúvida se agravava com os constantes apelos de pregadores e funcionários do
porventura a familiaridade trazia distanciamento? O diário particular de um
governo em favor do fechamento dos teatros para proteger a saúde física e
médico da época, recentemente descoberto, afirma que cônjuges e pais incon-
moral de Londres. Os espetáculos foram proibidos em todas as estalagens da
soláveis estavam sempre recorrendo a ele para tratamento, As emoções huma-
cidade, e é possível que no verão de 1596 as autoridades municipais tenham
nas não têm relação racional com estatísticas. Alguns pais da era elisabetana
conseguido obter uma ordem de fechamento temporário de todos os teatros. podem ter aprendido a refrear seu afeto e se proteger contra a dor, mas nào
Esse fechamento - conhecido como restrição - ajudaria a explicar por que eram absolutamente todos.

294
Nos quatro anos que se seguiram à morte de Hamnet, o dramaturgo, como "Sois tão apegado a vosso pequeno príncipe/ Como nós ao nosso?", pergunta

muitos já indicaram, escreveu algumas de suas comédias mais bem-humoradas: um homem ao amigo. "Se estou em casa, senhor", ele responde,

As alegres comadres de Windsor, Muito barulho por nada, Como gostais. Mas a
Ele é minha ocupação, minha alegria, meu interesse;
alegria dessas pe~as não era uniforme, e em alguns momentos elas parecem
refletir uma experiência pessoal de profunda perda. Em Rei João, escrita pro-
vavelmente em 1596, pouco depois da morte do menino, Shakespeare criou
Ora somos diletos amigos, ora inimigos jurados;
Meu bajulador, meu soldado, meu estadista, tudo, f:
"
r"
Ele faz um longo dia de verão parecer curto,
uma mãe tão desesperada com a perda do filho que é levada a ter pensamentos
E com sua infantilidade inconstante me cura
sulddas. Ao vê-la assim, um observador diz que ela está louca, mas ela insiste
De pensamentos que teriam espessado' meu sangue, \
que está perfeitamente lúcida: "Não estou louca; quisera Deus que estivesse".'
Foi a razão, e não a loucura, diz ela, que lhe pôs pensamentos suicidas na ca- "Se estou em casa, senhor": as palavras servem para a peça, mas servem
beça, porque é a razão que insiste em manter presente a imagem de seu filho. também para o autor. Talvez, retletindo sobre o que poderia torná-lo melan-
Quando é acusada de se apegar de modo doentio ao luto, ela responde com cólico, retraído, Shakespeare deu por si pensando no filho. A peça em que esses
uma simplicidade tão eloquente que se liberta do enredo complicado: versos aparecem, COl1to de iIlI'CI'IIO, fala de um menino precoce que definha e
morre quando seu pai, doente de ciúmes, se volta contra a mãe dele.
o pesar ocupa o vazio deixado por meu filho, Tenha tido pensamentos suicidas ou permanecido sereno com a 111(~rtede
Repousa em sua cama, anda comigo de cá para lá, Hamnet. Shakespeare atirou-se ao trabalho. O fim da década de 1590 tOI um
Assume seus traços delicados, repete suas palavras, período extraordinariamente movimentado e produtivo em sua vida, com un~a
Lembra-me todos os seus gestos graciosos, sequência de peças brilhantes, muitas apresentações na corte e nos teatros p~-
Preenche com sua forma as roupas abandonadas.' blicos, o que redundava em cada vez mais fama e mais dinheiro. Como pareei-
ro d e sua campa, nhia e' prova' vel que 'Shakespeare se envolvesse pessoalmente
Se não existe vínculo comprovado entre esses versos e a morte de Hamnet, em todos os aspectos de seu funcionamento diário, inclusive o conflito cada
tampouco há razão para supor que Shakespeare simplesmente enterrou o filho vez mais agudo com Giles Allen, dono do terreno em Shoreditch em que tinha
e foi embora sem nenhum sofrimento. Ele pode ter guardado isso para si, ob- sido edificado o Theater, palco principal das apresentações dos Homens do
sessivamente, mesmo quando fazia rir as plateias com Falstaff apaixonado ou Lorde Camerlengo. O contrato de arrendamento que James Burbage e seu só-
com as espirituosas discussões de Beatrice e Benedick. Não é impossível que cio tinham firmado em 1576 estava prestes a expirar, e Allen se recusava a re-
: tenham se passado anos até que o trauma da perda do filho eclodisse na obra nová-lo, pelo menos em termos aceitúvcis para os filhos de Burbagc, que ha-
de Shakespeare. viam assumido as negociaçôes sobre a prorrogação depois da morte do paI.
-_.' Numa peça muito mais tardia, talvez haja um resquício das visitas perió- Por fim, as negociações se interromperam e o Theater foi fechad~,' Em
dicas que Shakespeare fazia a Stratford na época em que o filho ainda vivia. desespero de causa, a companhia passou a se apresentar no Curtain, que ficava

3, "Are vou 50 fond of )'our )'ollng prin.:t' as v.c] Do sccrn to be of ol!fs?/lf at hurnc, sir.! 11c\
1. "I arn not mad: I would to God I were" (3.4.48)_
' " 11" mirth 'i 111"mattcr I '.;0,," mv <wor n friend, und then mine encmyJ,My pa,ra-
a11ln\' exerCIse, t
2. "Grief fills the room up of my absent child.! Lies in his bed, walks IIp and do",,, with me.! < .,' • •

sitc 1;11'soldier, st:llcsman, "lU He Inakes a JulI'O,d.iv short as Dcccmber.l Anel with illS var vuu;
Puts on his pretty looks, repeats his words.! Remembers me of ali his gracious p"rts'/ Stutfs out
his vacant garments ",ith his form" (3..!_93 7l. childncs-. cure, in mel Thoughts tilat ",oulel tiliá 1111' hl"od" (1.2,165-72),
----------_._---_ ...._ ..

tudo indica, o símbolo do teatro era a imagem de Hércules carregando o mun-


nas proximidades, mas naquele local não teve o mesmo sucesso obtido no
do nos ombros. Essa nova casa recebeu o nome de Globe.
Theater e as receitas começaram a cair. Para levantar dinheiro, eles fizeram o
Por força de seu investimento, Shakespeare era agora mais que um parcei-
que as companhias resistiam a fazer: venderam quatro de seus textos mais po-
pulares, Ricardo III, Ricardo II, Henrique IV parte I e Trabalhos de amor perdi-
dos, a um editor que os publicou em edições ln-quarto. É claro que o dinheiro
ro da companhia teatral. Pelos termos do contrato assinado em 21 de fevereiro
de 1599, ele era dono de um décimo do Globe, assim como outros quatro ateres
da companhia, John Heminges, Thomas Pope, Augustine Phillips e Will Kern-
,.
,J
ajudou um pouco, mas essa solução deve ter repercutido como um passo peri-
pe. Este último, bufão da companhia famoso por suas danças cómicas e canções
goso numa direção que acabaria levando à venda de seus figurinos e à dispersão.
obscenas, em pouco tempo desentendeu- se com os parceiros, vendeu sua parte
A verdadeira solução foi ousada. Sob a neve da noite de 2H de dezembro
e foi embora, fazendo gracejos mordazes sobre os membros da trupe. Por algum
de 1598, época em que o frio chegava a congelar o Tàmisa, os ateres chegaram
tempo, a companhia ficou sem bufão - levou algum tempo para encontrar um
juntos a Shoreditch. Levavam consigo lampiões e armas - nas palavras de um
substituto, o anão Robert Armin -, e a peça seguinte de Shakespeare, JlÍlio
depoente, "espadas, adagas, foices, machados e coisas desse tipo". A pequena
César, chamou a atenção por não ter um papel importante para o bufão.
companhia, talvez com a ajuda de uns poucos capangas contratados, podia não
Shakespeare mudou-se para Southwark a fim de morar perto do Globe,
ser uma força impressionante de meter medo, mas, como todos os atares eram
que ficou pronto em junho, num prazo excepcionalmente curto. Seria de espe-
treinados para manipular armas e Londres não tinha uma força policial regular,
rar que fosse inaugurado com uma peça leve de apelo popular, mas os Homens
era o quanto bastava para o que pretendiam. Postaram vigias em volta da área
do Lorde Camerlengo preferiram inaugurar seu novo teatro com Júlio César,
e então, junto com uma dezena de trabalhadores, começaram a desmontar o
uma tragédia sob medida para um público ainda intensamente mobilizado
Theater. Ao amanhecer, puseram os pesados troncos de madeira em carroças
pela ameaça representada pelo atentado malogrado contra a rainha. Um turis-
e começaram o trabalho de transportá-los para o outro lado do rio, um lugar
ta suíço que estava em Londres, Thomas Platter, foi vê-la e escreveu, numa
que tinham reservado perto do Rose Theatre, em Southwark. Allen, o senhorio,
carta para a família, um dos poucos relatos da época produzidos por testemu-
ficou apalermado e pediu reintegração de posse, mas a situação legal era com-
nhas oculares de uma peça de Shakespeare: "No dia 21 de setembro depois do
plicada. O contrato estipulava que os Burbage tinham o direito de recuperar
almoço, lá pelas duas horas, atravessei o rio com meu grupo e fomos assistir à
todas as estruturas construídas no terreno de Allen. De qualquer forma, a coi-
tragédia do primeiro imperador Júlio César, muito bem encenada, na sala com
sa estava feita, embora fosse difícil entender como tinha sido possível realizá-la
cobertura de sapé, com cerca de quinze personagens". No fim da peça, diz
numa única noite e na escuridão.
Platter, "segundo o costume deles, dançaram com muita elegância, dois deles
Ao longo dos meses seguintes, reaproveitando o madeirarne da antiga
vestidos de homem e dois de mulher, muito bem sincronizados". Com Júlio
casa de espetáculos, o talentoso carpinteiro Peter Streete construiu um novo e
César e as outras peças fortes do repertório da companhia, o Globe foi inaugu-
esplêndido teatro. Era um polígono de madeira com cerca de trinta metros de
rado com tanto sucesso que em seis meses seus rivais do Rose Theatre fizeram
um extremo a outro, com uma grande plataforma, que fazia as vezes de palco,
as malas e cruzaram o rio para aportar num novo teatro em Cripplegate cha-
projetando-se em direção à plateia e três galerias, com capacidade para 3 mil
espectadores, número assombroso para uma cidade do tamanho de Londres e mado Fortune.
Levar a concorrência para longe não significou pôr fim à concorrência
um tributo ao imenso poder dos atores de projetar palavras e emoções com-
comercial. Pelo contrário, no fim de 1599, os Homens do Lorde Camerlengo
plexas. (O Globe atual, no Bankside, tem metade dessa capacidade.) Um pe-
estavam envolvidos numa competição cada vez mais acirrada com uma com-
queno grupo de investidores, entre eles Shakespeare, financiou o ambicioso
panhia privada recém-recriada, Os Filhos de Paulo, a que no ano seguinte so-
empreendimento. Como lema, escolheram a frase Tot us mundus agit histrio-
mou-se outra companhia de repertório, a dos Filhos da Capela em Blackfriars.
nem, que significa mais ou menos "O mundo todo interpreta o ator", Ao que
o fato de os atores serem meninos não enfraquecia a gravidade do desafio: londrinas. e nessa época já tinha bastante experiência em espanar a poeira de
eram companhias sofisticadas, inteligentes e muito bcm-sucedidas, com um peças antigas a torná-Ias surpreendentemente atuais. () provável autor da peça
forte apelo ju~to. ao público. Em sua peça seguinte, Shakespeare faz menção a original, Thomas Kyd, não era empecilho: talvez vitimado pelas torturas que
essa concorrencra. Por que motivo a companhia de ateres teria vindo toda sofrera na investigação sobre a morte de seu companheiro de quarto. Marlowe,
par~ ElsinOr~?, pergunta Hamlet. Com certeza sua fama e seus ganhos seriam ele morreu em 1594. aos 36 anos. Seja como for. nem Shakespeare nem seus
maiores na cidade. Rosencrantz explica que o público da companhia tinha se contemporâneos tinham escrúpulos quanto a roubos recíprocos.
re~uzido ~rasticamente: "Existe, senhor, um ninho de pimpolhos, aguietas ain- Shakespeare com certeza deve ter visto a antiga peça, talvez várias vezes.
da , ou seja, filhotes de águia; "Essa é a moda agora". 1 Quando começou a es- Pode até ter atuado nela. e nesse caso poderia ter cm seu poder os rolos de tiras
crever Hamlet, Shakespeare estava atento às companhias de crianças e fingindo de papel, coladas umas às outras, em que suas falas e as deixas para suas entra-
preocupação - não de forma totalmente humorística - com a possibilidade das e saídas estariam anotadas. Geralmente, o ator elisabctano só tinha acesso
de que elas tirassem o público de sua própria companhia. ao rolo que lhe cabia - daí a palavra inglesa role para "papel", no sentido cé-
Escrever uma peça sobre Hamlet por volta de 1600 pode não ter sido uma nico -, e não ao texto da peça como UI11 todo. Seria muito dispendioso copiar
o texto completo várias vezes, e as companhias teatrais procuravam fazer com
id~ia de Shakesp~are. Pelo menos uma peça, hoje perdida, sobre o príncipe da
que seus textos não circulassem livremente. Em ocasiões especiais. podiam
I?1_~~~arcaque vmga o assassinato do pai já tinha sido apresentada em palcos
fazer cópias para presentear patronos, e em tempos de penúria às vezes ven-
londnnos, C?~ ~~~esso bastante para ser citada por escritores da época, co~~
diam seus textos a editores. Mas pretendiam que o público tomasse contato
se tod~ mundo a tivesse visto ou pelo menos ouvido falar dela. Já em 1589 Nashe
mencionou uma peça sobre Hamlet quando ridicularizou um tosco iniciante
com as peças nas casas de espetáculos, não nos gabinetes. r~claro que o hábito
de não imprimir os textos aumentava muito a probabilidade de que se perdes-
(provavelmente Thomas Kyd) que sem ter nunca frequentado a universidade
sem - como aconteceu com a antiga versão da peça sobre Hamlet e muitas
teve o despudor de se estabelecer como dramaturgo: "Se lhe pedires com jeito
outras -. mas isso não preocupava as companhias.
numa m~nh~ gelada, ele te entregará Hamlets inteiros, quero dizer, pilhas de
Mesmo que não tenha tido acesso ao texto da peça anterior sobre Hamlet.
falas trágicas. Sete an,os ~epois, outro dos gênios universitários, Thomas Lodge,
Shakespeare era excepcionalmente dotado de uma qualidade obrigatória para
fez eco ao tom de escarruo ao se referir ao diabo que se mostrava "pálido como
todo ator de seu tempo: excelente memória. Tudo o que via, mesmo tangeu-
a máscara do fantasma que gritava horrivelmente no Theatre, como uma ven-
cialmente ou de passagem. parecia permanecer com ele e continuava a sua
dedora de ostras, 'Hamlet, vinga-te!". A peça poderia ainda estar em cartaz - o
disposição anos mais tarde. Fragmentos de conversas, declarações oficiais. ser-
que teria sido uma carreira longuíssima no teatro elisabetano - ou t-ora reen-
mões intermináveis. observações entreouvidas nas tabernas ou nas ruas, insul-
cenada, ou s~mplesmente tornara-se sinônimo de teatralidade vulgar. Lodge e
tos trocados por peixeiras e carregadores. umas poucas páginas que por acaso
Nashe acreditavam que seus leitores se lembrariam do caso sem dificuldade.
pudesse ter visto de relance numa livraria - tudo estava de alguma forma ar-
Alg~m integrante da companhia dos Homens do Lorde Camerlengo, de mazenado em seu cérebro, em arquivos que sua imaginação podia abrir à von-
olh~ na bilheteria, pode simplesmente ter sugerido a Shakespeare que os tempos tade. Sua memória não era perfeita - ele cometia erros, trocava um lugar por
podiam estar maduros para uma versão nova e melhorada da história de Ham- outro, confundia nomes e coisas desse tipo -, mas as Imperfeições provam
let. No que lhe dizia respeito. com sua alta participação nos lucros da compa- apenas que ele não era compulsivo ou mecânico quanto a esse dom. Sua me
nhia, Shakespeare estava atento a qualquer coisa que pudesse atrair multidões mória era uma imensa fonte de recursos criativos.
Quando se pôs a trabalhar e m sua nova tragédia. portanto, Shakespeare
4. "there is, sir, an evrie of children, little eyases.] .. 11 These are now lhe lasl1l(\I1" (2.2.32h, 328). provavelmente sabia de cor a antiga peça sobre Hamlet, ou lembrava do que

300
lhe interessava. É impossível determinar se, neste caso, ele trabalhou com livros suas únicas tragédias. Três peças que os editores modernos (acompanhando os
abertos diante de si - como fez sem dúvida com Antônio e Cleópatra - ou se editores do primeiro in-fólio) classificam como históricas - a terceira parte
confiou só na memória, mas certamente também leu uma ou mais versões da de He/lrique \,/, Ricardo III e Ricardo II - foram publicadas em vida de Shake-
antiga lenda dinamarquesa ~obre .crime e vingança. Pelo menos, a julgar pela speare C0l110 tragédias.
peça que ele escreveu, leu a hi~tÓria em detalhes da forma como foi narrada em A distinção entre tragédia e peça histórica não era importante para Shake-
francês por François -de Belleforest, cuja coletânea de contos trágicos foi um speare e talvez para muitos dos dramaturgos que lhe foram contemporâneos:
.fenôme~~'~~Út~rial no fim do século XVI (teve pelo menos dez edições). Belle~ a estrutura subjacente ,I maior parte da história humana, COI11 scus interrniná-
forest tirou a história de Hamlet de uma crónica da Dinamarca compilada em veis altos e baixos, parecia-lhe trágica, c rcclprocamcnte, a tragédia como ele a
latim por um dinamarquês conhecido C0l110 Saxc, o Gramático. quc, por sua entendia tinha raizcs historica«. Por sinal, como () IIlc'1'CtIt/or de \'ellt'ZUlllostra
vez, reciclou lendas escritas e orais que remontavam a vários séculos antes. à saciedade, sua concepção de comédia estava enlaçada com a de dor, perda e
Aqui, portanto, como foi frequente ao longo de toda a sua carreira, Shakespeare ameaça de morte, e sua concepção de tragédia tinha espaço para o gracejo e o
trabalhou com materiais conhecidos - uma história pronta, um grupo de per- riso. Os teóricos literários da época exigiam uma adesão rigorosa às convenções
sonagens conhecidos, um conjunto de emoções previsíveis. que vinham de Aristóteles e rejeitavam com veemência aquilo quc sir Philip
O próprio Shakespeare era uma variável conhecida. Seria razoável para Sidney chamava de promiscuidade entre reis c palhaços. Sidney escreveu em
qualquer pessoa que tivesse acompanhado sua carreira concluir que em 1600 1579, quando Shakespeare ainda era um colegial, uma descrição jocosa da tí-
ele já teria explorado todos os limites do imenso reino de sua imaginação. É pica peça inglesa, com sua forma frouxa e bastante livre. A descrição, feita
como se fosse provável que ele continuasse a ser um dramaturgo profissional, para incitar o leitor à desaprovação, acabou antecipando exatamcnte o quc
repetindo de maneiras criativas o que já tinha realizado com brilho, mas pare- Shakespeare faria ao longo de toda a sua carreira. Em dado momento, caçoa
ceria pouco provável que encontrasse novos continentes a explorar. Ninguém, Sidney, três moças atravessam o palco e o espectador deve imaginar que estão
provavelmente nem o próprio Shakespeare, poderia prever que uma coisa ex- colhendo flores; logo depois, quatro atores aparecem com espadas e escudos,
traordinária estava para acontecer. e ele deve imaginar que vê o embate de dois grandes exércitos; chegam então
Embora ainda fosse jovem (só 36 anos), no decorrer de uma década tinha notícias de um naufrágio, e () espectador será o culpado se não tomar o palco
realizado coisas fora do comum em três dos principais gêneros - comédia, por um perigoso rochedo. "Tereis de um lado a Ásia, do outro a África c tantos
dramas históricos e tragédias - com peças, cada uma a seu modo, tão perfeitas outros sub-reinos que o atar, ao entrar, deve começar semprc por explicar
que seria difícil imaginar como ir além. Com efeito, nos anos seguintes, ele não onde se encontra, pois de outro modo é impossível entender a história."
fez tentativa alguma de superar as duas partes de Henrique IV e Henrique V, O que Sidney e outros pretendiam era algo mais organizado. O palco,
como se entendesse que tinha realizado tudo o que podia no que se refere a diziam eles, só pode representar um único lugar; o tempo da ação não deve
peças históricas. E na comédia, embora em breve viesse a escrever a estupenda ultrapassar a duração de um dia, e as emoções ardentes suscitadas pela tragédia
Noite de Reis, na verdade não foi além do que criara em Sonho de IImil noite de nunca devem se contaminar com "as cócegas zombeteiras" c o riso vulgar da
verão, Muito barulho por nada e Como gostais. Hamlet inaugurou um surto comédia. Essas eram regras derivadas de Aristóteles que Shakespeare, com os
criativo que também trouxe à luz Otelo, Rei Lear, Macbeth, Al1tôllio e Cleópatra demais dramaturgos de sua época, violavam o tempo todo.
c Ccriolano, mas um frequentador de teatro bem informado de 1600 não teria A indiferença para com as convenções que obcecavam os críticos letrados
motivos para esperar que Shakespeare já não tivesse demonstrado o que podia na Inglaterra e no continente ajuda a explicar algo desconcertante sobre toda
fazer também na tragédia. Entre as mais de vinte peças que tinha escrito esta- a carreira de Shakespeare, em especial sua primeira década: a ausência de um
vam Tito Andrànico, ROnlw e [ulieta e Júlio César. Na verdade, essas não foram padrão claro e lógico de desenvolvimento art ístico. As edições das obras com-

3°2 3D"
pletas que as organizam em grupos - primeiro as comédias, uma atrás da habilidade técnica especial. Esse desenvolvimento pode ter sido totalmente
outra, depois as peças históricas, as tragédias e por fim os poemas - desvir- deliberado, decorrente de um projeto profissional claro e contínuo, ou casual e
tuam por completo o que realmente aconteceu. As tentativas de organizar as fortuito. Sua realização, de qualquer modo, foi gradual: não uma descoberta
obras segundo uma progressão ordenada da alma de Shakespeare - da juven- súbita e definitiva, ou uma invenção grandiosa, mas o refinamento sutil de um
tude despreocupada a um compromisso sério com o poder, depois à melancó- conjunto especial de técnicas de representação. Na virada do século, Shake-
lica reflexão sobre a mortalidade e por fim à sábia serenidade da velhice - são -speare estava preparado para uma ruptura sem paralelo. Ele tinha aperfei-
igualmente equivocadas. Shakespeare foi um dramaturgo que teve em sua me- çoado os meios de representar a subjetividade.
_~~_detrabalho e em sua imaginação, num mesmo momento, Sonho de um~._ O que o público vê e ouve é sempre, num sentido ou noutro, uma verba-
noite de verão e Romeu e Julieta, e percebeu que o riso alegre de uma podia, lização - as palavras que os personagens dizem uns aos outros ou, em ocasio-
quase sem esforço, transformar-se nas lágrimas da outra. Que faz Trabalhos de nais apartes ou solilóquios, diretarnente para a plateia. Os dramaturgos podem
amor perdidos, comédia espirituosa e despreocupada sobre o amor cortesão, fingir, é claro, que a plateia entreouve uma espécie de monólogo interior, mas
culminar com a notícia da morte repentina do pai da princesa, de modo que é difícil impedir que esses monólogos pareçam exagerados. Ricardo III, escrita
todos os casamentos marcados deviam ser postergados. É alguém que faz a por volta de 1592, é altamente enérgica e forte, com um personagem principal
plateia rir quando o sinistro Ricardo III avalia o grupo de assassinos que con- magnífico e inesquecível, porém quando esse personagem, sozinho à noite,
tratou para matar seu irmão: revela o que está ocorrendo dentro dele, sua fala soa inexpressiva e artificial:

Vossosolhos derramam mós quando os olhos dos tolos vertem lagrirnas. r. quase meia- noite.
Gostode vós, rapazes.' Gotas frias de terror cobrem minha carne trémula.
O que temo? A mim mesmo? lá se foram todos.
E, finalmente, é um dramaturgo que em peças sucessivas, escritas pouco Ricardo ama Ricardo, ou seja, eu sou cu.
tempo antes de Hamlet, muda o ambiente das guerras civis na Inglaterra no Há aqui um assassino? Não' Sim, sou eu!
fim da Idade Média para a corte siciliana de Beatrice e Benedick, para a batalha Entào foge! De mim mesmo' Bom motivo. Por quê?
de Aglncourt, para o assassinato de Júlio César, para uma rornança pastoral na Por temer a vingança. De mim contra mim?
floresta de Arden. Cada uma dessas obras tem sua visão específica, e ainda Pobre de mim, eu me amo. Por quê? Por algum bem
assim, estranhamente, cada uma tem também espaço para aquilo que à primei- Que eu tenha feito a mim mesmo?
ra vista parecia excluir. Oh, não, pobre de mim, cu me odeio
Pelas açôes odiosas que sozinho cometi,
Sou perverso... Mas minto. nào o sou!'
Se Shakespeare tivesse morrido em 1600, teria sido difícil pensar que al-
guma coisa faltava em sua obra, e ainda mais difícil imaginar que algo ainda ó. "II is no, dcad midnight.l Cold f"arful drops ,tand on mv trcmbling llesh./ wha: do 1 !'ear'
não realizado estivesse fermentando em seu trabalho. Mas Hamlet torna claro ~tl'sdf1 Thcre's none cise bl'.I Richard loves Richard: that is. 1 H111 1./ Is t here a murdcrcr hcrc?

que Shakespeare vinha desenvolvendo em silêncio, porém com firmeza, lima :s:~.Yes, 1 .1111.1 Thcn tly' \\'i'Ht. trom mvsclf: Crcat rcason. \\'h)"1 l.est , rcvc'nge, Myscl: UI'(1I1

myself'l -vl.ick, I love mvself \,'herdore' lor ,1IlY !,oodl That 1 mvselfhave done unto IIll'SclPI
O no, aias, , rather hate l11)'selt'l For halt'fuldeeds commiucd by l1lysclU , am a vill.un. Yl'I 111l'
5. "Your eyesdrop millstoncs whcn 1'0015' cyesfali tears.! , likeyou,lad." (1 3.151 2). I Hill not:" 10;.).13·1·,15).

304
\
J

Shakespeare acompanha sua fonte, a crônica, segundo a qual Ricardo não tivo pelo qual ele imagina um acasalamento entre a alma e o cérebro - uma
conseguiu dormir na véspera de sua morte porque sentia insólitas aguilhoadas população imaginária. A ideia que ele martela na cabeça é uma espécie de
na consciência. Mas, apesar do vigor abrupto, o solilóquio, C0l110 recurso para teatro íntimo, semelhante ao que vimos no solilóquio de Ricardo III,mas com
mostrar um conflito interior, é esquemático e mecânico, C0l110 se dentro do muito mais complexidade, sutileza e, acima de tudo, autoconsciência. Agora
personagem que está no palco houvesse simplesmente outro pequeno palco em o próprio personagem está plenamente consciente de que construiu esse tea-
que se desenrola um espetáculo de marionetes. tro, e traz ii tona as implicações sombrias do Inundo imaginário que lutou
Em Ricardo II, escrita uns três anos depois, há UI11 momen to semelhante para criar:
que demonstra o progresso da técnica de Shakespeare. Deposto e aprisionado
por seu primo Bolingbroke, o rei arruinado, pouco antes de ser morto, olha Numa pessoa represento muita gente,
para dentro de si: Todas descontentes, Sou rei, às vezes.
A traição me faz querer ser mendigo,
Venho pensando em como posso comparar E me faço tal. Mas o peso da miséria
Esta prisão em que estou com o mundo; Me convence que estava melhor como rei,
Mas, como este mundo é tão populoso Volto a ser rei, mas pouco a pouco creio
Estar sendo destronado por Bollngbroke,
E não há aqui outro ser além de mim,
E logo nada sou, Mas seja eu o que for,
Não posso fazê-lo.Mas martelarei essa ideia,
Nem eu, n<'111homem algum neste mundo
Farei de meu cérebro o consorte de minh'alma,
Se sausfará com coisa alguma até se contentar
E agindo a alma como genitor, juntos gerarão
Com nada ser.'
Uma prole de pensamentos inda em botão.'

Como era típico dele, Ricardo II ensaia o drama da derrocada que o trans-
Muitas das diferenças entre as duas falas têm a ver com a diferença entre
forma de monarca em nada, e então converte sua experiência de perda de
os personagens: o primeiro, um tirano assassino cheio de manias; o outro, um
identidade - "Mas seja eu o que for" - num intrincado poema de desespero.
poeta mimado, narcisista e autodestrutivo, Mas a passagem de um personagem
Escrita em 1595, Ricardo II representou um importante progres~o na ha-
para outro é em si mesma significativa; o que mostra é o crescente interesse
bilidade do dramaturgo para representar sentimentos internos, mas Júlio César,
_de Shakespear~.l'e!os processos interiores ocultos. Trancado n um aposento
de quatro anos depois, mostra que, não contente com seu aperfeiçoamento,
s~a-nêfas: Ricardo n observa a si mesmo a pensar, esforçando-se por esta-
Shakespeare experimentava sutilmente novas técnicas. Sozinho, caminhando
belecer um elo entre sua prisão e o mundo, chegando a um beco sem saída e
em seu pomar no meio da noite, Brutus começa a falar:
forçando a imaginação a renovar o esforço: "Mas martelarei essa ideia", O
mundo, abarrotado de pessoas, não é, como ele mesmo reconhece, nem re-
motamente comparável à solidão de sua cela, mas Ricardo deseja gerar - mo-
8. "Thus pl,l}' I in one perso!1 IllJn)' people.z AnJ none contcntcd: sometimes am I king;/ The n
7, "I have been studying how I may comparei This prison where I live unto the ",orld:1 And trcason rnakc me wish myself a bcggar.! Anel so Iam: then crushing penury/ l'crsuadcs me I was
for because the world is populousl And here is not a creature but myself.,' I cannot do it; vet 1'11 better when a king;1 Then am I kinged agam, and b)' and byl Think that I arn unk ingcd by
hammer it out./ My brain 1'11prove the fcmale to m)' soul.,' My sou I the (ather ; anel these two Bolingbroke,/ And straíght am nothing: but whateer I beJ Nor I nor ally rnan that huI mail is.!
beget! A gencration Df still·breeding thoughts" (S,5.1·S). With l1othill[( shall be pleased, till he b.: easedl With being nothing" (55.31·41 I,

.\07
.306
timentos. descren: para si mesmo o cstado de diluição em que se encontra sua
Ê preciso que ele morra, E de minha parte
Nãotenho motivo algum para agredi-lo consciência:
A não ser o bem comum. Ele quer ser coroado.
Entre a execução de um ato pavoroso
A questão é como isso pode mudar sua natureza.
E a primeira ideia que se tem dele, medeia
e. nos dias de sol que a víbora se mostra. Uma fantasmagoria. um sonho monstruoso.
Exigindoandar com cuidado. Coroem-no: isso!"
A inteligência e os órgãos físicos
Aliam-se cm conselho. e o estado do homem,
Este solilóquio é muito menos fluente. menos uma meditação poética de-
Como o de um pequeno reino, sofre
licada e auto consciente que o solilóquio da prisão de Ricardo II. Mas tem algu-
As consequências de uma insurreiçào, tu
ma coisa nova: as marcas inequívocas do pensamento real. Ricardo fala de
martelar uma ideia. mas as palavras que pronuncia já estão muito bem -polidas.
Teria sido nesse momento, em 1599. que Shakespeare pensou pela primei-
As palavras d~ B.ru.t~. em comparação, parecem sair diretamente do ainda
_._.- .~ ra vez na possibilidade de escre\'er sobre um personagem que permaneça du-
incipiente vaivém de sua mente errática, enquanto ele se confronta com per-
rante quase toda peça nesse estranho estado de suspensão? Não é Brutus esse
guntas da maior gravidade: Como devia reagir ante o desejo de Marco Antônio
personagem; na metade da peça, ele executou o ato pavoroso. a morte de seu
de coroar o ambicioso César? Como poderia equilibrar sua amizade pessoal
mentor e amigo _ talvez seu pai -, e o que resta da peça traz ii tona as conse-
com César estando este contra tudo o que ele acredita ser o bem comum? Co-
quências fatais de seu ato.
mo César, que até então servia ao bem comum, poderia mudar sua natureza e
Se Shakespeare não percebeu isso naquela oportunidade, com certeza no
tornar-se perigoso uma vez coroado? "É preciso que ele morra '': sem preâm-
ano seguinte compreendeu perfeitamente que havia um personagem. já conhe-
bulos. a plateia é lançada às maquinações obsessivas de Brutus. É impossível
cido no palco elisabetano, cuja vida podia ser narrada como longa fantasma-
saber se ele está avaliando uma proposta, ensaiando uma decisão ou repetindo
goria ou sonho monstruoso, Esse personagem, () príncipe da insurreição inte-
palavras ditas por alguma outra pessoa. Ele não precisa mencionar de quem é
a morte que está considerando, nem precisa esclarecer - porque já faz parte rior, era Hamlet.
Já em sua primeira versão medieval conhecida, a saga de Hamlet era a
de seu pensamento - que será por assassinato.
história do longo intervalo entre a primeira ideia - o impulso ou o projeto
Brutus fala consigo mesmo, e suas palavras têm a marca do pensamento
inicial _ e a realização do ato pavoroso. No relato de Saxo, o Gramático, o rei
em curso. "Coroem-no, isso!" - a exclamação é dificilmente compreensível,
Horwendil (o correspondente ao velho rei Hamlet de Shakespearc) é assassi-
exceto como uma explosão de raiva provocada por uma imagem fantasmagó-
nado por seu irmão invejoso, Feng (correspondente a Cláudio) não em segre-
rica que passa naquele instante pela cabeça de quem fala. Os espectadores são
do, mas abertamcnte. O irmão tinha uma justificativa - ele diz quc Horwendil
puxados para um dose inquietante, observando em primeira mão a formação
tinha maltratado de forma brutal sua delicada esposa. Gcrutha --, mas a ver-
de uma decisão fatal- a determinação de assassinar César -, que vai mudar dade é que o impiedoso Feng é poderoso o bastante para se apossar da coroa
o rumos do mundo. Instantes depois, Brutus. com total domínio de seus sen-

10, "Ilet",ecn the acting 01,) dreadful thing/ And rhe fírst motion, ali thc intcrun is/ l.ikc a
9. "It must be by his death, and for my partI I know no personal cause to spur n at him,! But for phantasma or a hideollS drcam.' The ~enills anel thc mortal instrlltnents/ Are ihen in (()lInsel,:
the general. He would be crowned.! How that rníght change his nature, there's the qucstion.llt anel ihc st atc 01 mal1'/ I.ik" t,) <I litlk kingdon1. suffe rs then/ lhe nature 01 an ínsurrccuon
is the bright day that brings forth the adder,! And that craves warv walk inu. (.ro",n hirn: that!"
(2.1,6)-9).
(2,1.10-5). . ,
.,\09

308
l'

r '(1~
,~quele
{
do irmão, de seu reino e de sua mulher, e ficar com tudo. O único obstáculo
potencial é o filho de Horwendil, o jovem Arnleth, já que qualquer pessoa na-
mundo pré-cristão de traição e vingança entendia que um filho devia
(, ,.\ vingar a morte do pai. Amleth ainda era criança e não ameaçava ninguém, mas
quando crescesse sua obrigação seria clara. O criminoso Feng conhece muito
A traRédia espallhola -, mas também é possível que Kyd (ou quem quer que
tenha sido o autor do Hamlet perdido), e não Shakespeare, tenha introduzido
uma mudança radical no enredo que tornou a aparição do fantasma muito mais
do que decorativa. Na versão de Saxo, o Gramático, como na lend~ popular
compilada por Belleforest, não há fantasma. Não há necessidade de ta~tasma, f;
I
_, . ),bem esse código social, é claro, e se o menino não imaginar logo algum estra-
-c};' I ~agema seu assassinato será certo. Para sobreviver por um período que lhe
já que o crime é de conhecimento público, tanto quanto o dever de vI~gança
do filho. Mas quando começou a escrever sua própria versão da história de
.'
,

, I. I ~,~.lpermita executar sua justa vingança, Amleth se tinge de louco, convencendo o Hamlet, aceitando a mudança de Kyd ou segundo sua própria concepção,
..
tio de que nunca representaria uma ameaça. Cobrindo-se de sujeira e lama, ele Shakespeare tornou secreto o assassinato. Toda a Dinamarca acredita que ()
se senta ao lado da lareira, apaticamente, desbastando palitinhos e transfor- velho Hamlet foi picado de morte por uma serpente. () fantasma aparece para
mando-os em ganchos pontudos. Embora Feng, sempre alerta, lhe preparasse revelar a terrível verdade:
armadilhas para descobrir algum lampejo de inteligência por detrás da aparen-
te idiotia do sobrinho, Amleth astutamente consegue evitá-Ias. Ele espera o dia A serpente que picou teu pai
certo e faz planos. Escarnecido como bobo, tratado com desprezo e ridiculari- Agora cinge a sua coroa."
zado, acaba conseguindo matar pelo fogo todo o séquito de Feng e transpassar
o tio com uma espada. Reúne uma assembleia de nobres, explica por que tinha A peça de Shakespeare começa pouco antes que o fantasmarevele o ass<~s-
feito aquilo e é entusiasticamente aclamado rei. "Muitos estavam maravilhados sinato a Hamlet e termina pouco depois que ele executa sua vingança. Dai a
com sua capacidade de ocultar um plano tão engenhoso durante tanto tempo." mudança decisiva no enredo - de um assassinato público conhecido de todos
_Amleth, porta~to, passa anos no estado de suspensão que Brutus mal pô- para um crime secreto revelado apenas a Hamlet pelo fantasma do h,0l~1elll
de suportar por poucos _dl~~:_Shakespearedesenvolveu os meios de representar . , _.. J _ II que nermitiu ao dramaturgo centrar quase toda a tragédia na
aSS.lSSI n.lllO, r
a realidade psicológica desse estado - algo que nem Saxo nem seus sucessores consciência do herói suspensa entre a "primeira ideia" e a "execução de um ato
jamais sonharam ser capazes de fazer. Ele viu que a história de Hamlet, madu- pavoroso". Mas alguma coisa no enredo deve explicar essa suspensão. Afinal
r.a.l?a.rauma revisão, permitiria que ele escrevesse uma peça sobre () que é viver de contas, nessa versão revista, Hamlet já não é uma criança que preCIsa ganhar
interiormente o inquietante intervalo entre a decisão de cometer o crime e sua tempo, e o assassino não tem motivo para suspeitar que o príncipe já tenha
realização. o problema, no entanto, é que o teatro não é lá muito tolerante com tornado ou que um dia venha a tomar conhecimento de seu crime. Longe de
longos períodos de gestação: seria muito difícil tornar atraente, em termos querer guardar distância em relação ao sobrinho (ou submetê-lo a um"teste
dramáticos, a espera do menino Amleth, tingindo-se de idiota durante anos sutil), Cláudio se nega a deixar Hamlet voltar à universidade, chama-o de nos-
para chegar a idade de agir. A solução óbvia, provavelmente já encontrada na so principal cortesão, meu parente e nosso filho'": e declara que ele é o primei-
peça perdida, é iniciar a ação no ponto em que Hamlet chega à idade apropria- ro na sucessão do trono. Depois que () fantasma do pai revela a causa real da
da e está pronto para empreeender seu ato de vingança. morte _ "Assassinato, sim, sempre covarde/ Mas desta vez mais torpe e mais
A alusão de Thomas Lodge ao fantasma que grita horrivelmente, como covarde"! --, Hamlet, que tinha pleno acesso ao despreocupado Cláudio. está
uma vendedora de ostras, "Hamlet, vinga-te!", indica que a essa peça perdida
também acrescentou um personagem fundamental: o espírito do pai de Ham- tI. "The serpenllhat did sting thv íathcr's !ifel Now wears his cr own" (1.5.39 ..10).
let. Talvez aquele fantasma só aparecesse para causar na plateia um frémito de I'. "Our chicles! courtier, cousin, anel our son" (1.2.\\7 l·
;'"-"'.
L medo - foi assim que Thomas Kyd usou um fantasma cm seu maior sucesso, \; "\\tlllkr mo-t toul, 8\ III tl1<'bcsl it ".lI\ul t h is mmt \oul. strclnge anel unnaturu]" (\S ~7 H:
f' __.

l' I
em perfeitas condições de agir imediatamente. E uma reacào imediata é exata-
que esta magnífica estrutura, a Terra, se me apresenta corno um promontório es-

mente o que o próprio Hamlet prevê:


téril. Este magnifico dossel, que é, como vedes, a firmamento que nos cobre, este
majestoso teto, decorado com um fogo de ouro, tudo isso para mim não passa de
um amontoado de vapores pestilentos, Que obra-prima, o homem! Como é no-
1ti
Conta-me logo, para que eu, como se tivesse asas,
Como o pensamento, como os sonhos de amor,
Possa lançar-me a minha vingança."
bre por sua razão! Como é infinito por suas faculdades! Como é expressivo e
admirável na forma e nos movimentos! Em seus aros, se equipara aos anjos; na
r
~I

"
!'
apreensão, como se parece aos deuses, beleza do mundo, modelo do que é ani-
mado! No entanto, o que significa para mim essa quintessência de pM'h
._Apeça poderia acabar no fim do primeiro ato. Mas Hamlet não se lançou
imediatamente a sua vingança. Assim que o fantasma desaparece, diz aos sen-
"Por motivos que desconheço" - Hamlet, sabendo perfeitamente que
tinelas e ao amigo Horácio que pretende "assumir um ar de palhaço" ,15 ou seja,
fala a espiões da corte, não diz uma só palavra sobre o fantasma do pai, e por
~l1g!r-se de louco. .Esse comportamento faz total sentido na antiga versão da
isso não fica claro se o fantasma é o verdadeiro responsável por sua profunda
história, em que serve de subterfúgio para desviar suspeitas e ganhar tempo. O
depressão. Já na primeira cena em que aparece, antes de ter visto o fantasma,
símbolo desse tempo e a prova do projeto brilhante e de longo prazo do vinga-
ele menciona para si mesmo, como se fosse o mais profundo segredo de seu
dor são os ganchos de madeira que o menino Amleth, aparentemente trans-
coração, quase a mesma desilusão que revela aos untuosos Rosencrantz e Guil-
tornado, desbasta sem cessar com seu canivete. Esses são os objetos que, no
clímax da história, Amleth usa para prender uma rede sobre os cortesãos ador- derstern:
mecidos antes de atear fogo ao palácio. O que antes parecia mera distração
Ó Deus! Ó Deus!
transforma-se em brilhante estratégia. Mas, na versão de Shakespeare, a lou-
Exauridas, murchas, insossas e vãs
cura fingida de Hamlet não constitui uma tática. Shakespeare na verdade de-
Me parecem as coisas deste mundo'
moliu o enredo interessante e coerente que suas fontes oportunamente lhe
Que horror! É um jardim descuidado,
serviram. E sobre essas ruínas construiu o que a maior parte das plateias mo-
Que so apresenta ervas daninhas,
dernas veria como a melhor peça que ele escreveu.
Coisas rudes e grosseiras, simplesmente."
Longe de proporcionar uma proteção, a simulação de loucura leva o as-
sassino a mandar vigiar Hamlet de perto, procurar o conselho de Polônio,
discutir o problema com Gertrudes, observar Ofélia com 'cautela e convocar
Rosencrantz e Guildenstern para espionar o amigo. Em vez de levar a corte a
16, "I have 01' late. , but wherefore I k novv not .. 1"'1 <111m)' mirth, íorgone ali ClIstOI11 of exer
ignorá-lo, Hamlet com sua loucura torna-se objeto de intermináveis especula-
cise, and indecd it goc" so hcavilv with 111\' dísposition that t his goodl)' trame, the carth, SCCI11S
ções generalizadas. E, estranhamente, o próprio Hamlet se entrega a elas: to me a stcrilc prornontorv. This most exccllcnt cano!')', thc air,look vou, this brave o'crhanging,
this majestical roof trettcd with goldcn Iire _ .. \\'1\1'. tt apl'cars no othcr thing to I11Cthan a Ioul
De um tempo para cá... por motivos que desconheço ... perdi toda a alegria e aud pest ile nt (ongregatiol1 otvapors \\'hat a pil'(l' ofwork is a man' How noble in rCilSOI1, IHl\\'
infinite in facultv. in torm and l11o\'ing h,,\\, rxl'l'c" anel admirablc, in adion how likc .111 angcl,
abandonei as minhas práticas habituais. Isso me acomete com tanta gravidade
il1 appl't'ht'lbi<ln hnw likc a god' thc he.lul\· "Ilhe worlc], thc I'ar.lgon (lI u 111111 alv, 1\l1d )'l'I lo
me what is tIli, qllll1tt'sscnét' <lI ,,"st?" (2,2,cX7-'JX),
14. "Haste, haste me to know it, that with wings as swiftl As mcditation or lhc thoughts oflm'cl 17, "O C;od. Coei'! liow \\'cary, 'Iale, tÜI, anel unprofilahlel SecJ11 lo mc .III Ilre uses ui ti,,,

May sweep to my revenge" (1.5.29- 31). world!/l'ie <11\ 't, ,\h iic! 'Tis <ln ulJ\\'ccdt'd galllcn/ ['h,\t W"I\'S lo sced; things lal1k and gn,,\ "'
15."To put an antie disposition on" (1.5.173), l1atllre/l'osst's\ It l11<'rcl)''' I 1.2.1-'2· 7!.

\ I .'
,\12
\ I'"

A morte do pai e o apressado casamento da mãe, acontecimentos públicos oculto de cujas fronteiras/ Nenhum viajante retorna'?" -_ e sim com uma
\
e não revelações secretas, levaram-no a pensamentos de "autoeliminação". doença da alma causada por um dos "mil abalos/ De que a carne é herdeira","
A simulação de loucura, portanto, parece encobrir algo semelhante à lou- Hamlet assinala na carreira de Shakespeare uma ruptura que permite su- J
cura. Com efeito, ele nunca parece mais autenticamente insano do que quando,
nos aposentos de sua mãe, insiste em dizer que está lúcido e avisa à mãe que
por que existiu alguma causa mais pessoal para a ousada transformação tanto
em suas fontes quanto em toda a sua maneira de escrever. Um indício dessa
f
fi
não deve revelar sua estratégia. "O que devo fazer?", grita a rainha assustada. transformação e a impressionante enxurrada de palavras novas, palavras que
"Nada do que acabo de dizer", responde Hamlet, confundindo sua ordem com ele nunca usara em nenhuma das 2 I peças e dois poemas longos. Os especia-
listas calculam em mais de seiscentas essas palavras, muitas delas novas não 'sú
suas fantasias obsessivas:
em Shakespeare, mas no registro escrito da língua inglesa, Essa explosão lin-
guística parece vir não de uma visão de mundo mais ampla, porém de um
Que o rei gorducho te leveoutra vez ao leito,
choque. ou de uma série de choques em sua vida, Se Hamlet foi escrita não em
Te belisque o rosto, e te chame de ratinha,
1600, e sim no início de 160 I, então, como acreditam alguns especialistas, um
E que te dê beijos infectos
desses choques pode ter sido a insu rreiçâo - para usar a palavra empregada
Te acaricie o pescoço com seus dedos malditos, por Brutus em lúlio César -- que levou à execução do conde de Esscx e, mais
E assim te faça revelar-lhe tudo isto, importante, à prisão do patrono de Shakespeare, amigo e talvez amante, o
Que na verdade não estou nada louco, conde de Southampton. Com Southampton, Essex, que durante muito tempo
Mas finjo loucura." fora o mimado favorito da rainha, tinha ido para a Irlanda em 1599 como ge-
neral de uma força expedicionária enviada para esmagar urna rebelião liderada
Portanto, Gertrudes pode dizer exatamente o que supõe ser verdade quan- pelo conde de Tyrone, A missão, como ocorrera com muitas outras enviadas
do afirma a Cláudio, pouco depois, que Hamlet está "Louco como o mar e o à Irlanda, fracassou redondamente em virtude da firme resistência dos irlan-
deses, e no mesmo ano, repentinamente e sem permissão da rainha, Esscx
vento quando disputam/ Qual é o mais forte"."
voltou a Londres. Posto em prisão domiciliar e enfurecido pela recusa da rainha
Extirpando o fundamento da loucura de Hamlet, Shakespeare iaz dela o
em readmiti-lo como favorito, o orgulhoso e impetuoso conde reuniu seus
foco central da tragédia. O momento principal de revelação psicológica da
amigos e tentou encenar um levante armado - cujo propósito oficial era de-
peça - o momento que praticamente todo mundo lembra - não é o plano de fender sua vida e salvar a rainha de maus conselheiros, Cecil e Ralegh. As
vingança do herói, nem mesmo sua reiterada e apaixonada autocondenação massas londrinas recusaram-se a apoiar o movimento, que foi prontamente
pela mação, mas sua cogitação do suicídio: "Ser ou não ser, eis a questão". neutralizado, O julgamento terminou com o resultado previsível. Em 25 de
Esse impulso suicida nada tem a ver com o fantasma - com efeito, Hamlet já fevereiro de 160 I, três golpes de machado separaram a cabeça de Essex de seus
esqueceu completamente a aparição, a ponto de falar da morte como "O reino orn bros. Segu iII- se sem demora a execução de seus principais defensores e ami-
gos,
Shakespeare tinha todas as razóes do mundo para ficar chocado COI1l o
18, "What shall I do?1 Nol this, by no means, that I bid you doI Let the blo.it king ternpt )'OU
again lo bed.z Pinch wanlon on yOllr cheek, (ali you his 1110use,!And let him lell' a pai r 01 rcechy
kisses, Or paddling in your neek with his darnned fingers,/ Make you to r.ivcl <111this rnatter 20, "To be. UI' not to be; that is th« questiono I ..II The undiscover cd country frorn whose bourn/
out,! That 1essentially am nol in madness.l Rut mad in craft" (3,4, lti4-7 2) ~() traveler returns" (3.1,5R, Rl-~).
19. "Mad as lhe se" and wind whcn both contendi Which is the mighticr" (·1-1/1-7) 21, "the thous.md natural shocbl T1l<11tlc-h " hcir to" (J, 1,6.'-4 I,

_l15
Augustine Phillíps, estava entre eles - responderam que a peça era velha de-
fato. Não se tratava apenas da possível perda de Southampton, que, embora
mais para dar lucro. Os conspiradores se dispuseram a subsidiar o espetáculo
tenha sido poupado no final das contas, no começo de 1601 esteve a ponto de
com um pagamento extra de quarenta xelins, uma quantia significativa, e a
ser executado com Essex. Para o dramaturgo e para sua companhia, uma série
peça foi encenada.
de decisões tomadas nos anos que precederam o levante poderia ter levado ao
A estratégia, ao que parece, era plantar a ideia de uma rebelião vitoriosa
desastre. N o fim de 1596 ou começo de 1597, Shakespeare co rreu o risco de
no espírito da população londrina e talvez fortalecer a coragem dos próprios
ofender William Brook, o sétimo lorde Cobharn, cuja origem remontava ao
conspiradores. Pelo menos foi assim que as autoridades encararam aquele es-
histórico Oldcastle: usou o nome Oldcastle para o gordo cavalheiro da peça
petáculo especial, depois de efetuadas as prisões, e foi assim que a rainha pare-
Henrique IV, personagem que, ao fim e ao cabo, sob pressão, rebatizou com o
ce ter entendido. "Ricardo 11 sou eu", esbravejou a rainha, "Não sabeis disso?"
nome de Falstaff. Brook não era a melhor pessoa para ter como antagonista, já
Os Homens do Lorde Camerlengo tinham se aventurado num terreno perigo-
que pouco tempo depois foi nomeado lorde carnerlengo, responsável também
síssimo - dois dos principais conspiradores foram interrogados a respeito do
por supervisionar a censura de peças. Era inimigo declarado de Essex e Sou-
espetáculo, como se ele fizesse parte cabal do complô -, mas de alguma forma
thampton, e foi talvez por essa razão que Shakespeare sentiu-se livre, como o
Augustine Phillips, que falou em nome da companhia, conseguiu convencer
bufão de uma de suas peças, para fazer um gracejo com ele.
os magistrados de que os atores nada sabiam acerca do levante. "Eles ganharam
Então, em 1599, de forma bastante inusitada, Shakespeare introduziu uma
quarenta xelins a mais que o normal", declarou, "e por isso encenaram a peça."
referência tópica direta numa de suas peças. Perto do fim de Henrique V, o
Esses acontecimentos de fevereiro de 1601 com certeza deram um susto em
coro, invocando a cena da volta triunfal do rei a Londres após a batalha de
Shakespeare. A catástrofe evitada por um triz talvez tivesse levado um poeta mais
Agincourt, de repente se refere a acontecimentos de sua própria época. "Os
tímido a agir com cautela: ele podia deixar de lado a tragédia e dedicar-se a outro
cidadãos de Londres enchem-lhe as ruas", diz o coro.
projeto, mais inócuo. Mas, em vez disso, de olho na bilheteria, como acontecera
no caso das negociações envolvendo Ricardo lI, a companhia encenou Hamlet,
Como se, por uma pequena mas desejada probabilidade,
uma peça de conteúdo político sobre traição e assassinato, que inclui uma cena
O general de nossa amada rainha estivesse
memorável em que uma insurreição armada popular irrompe no real santuário,
Anunciando ter posto fim à rebelião com sua espada,
passando sobre a guarda, e ameaça a vida do rei. É claro que a insurreição, lide-
Quanta gente deixaria a cidade em paz
rada por Laertes, não tem sucesso, e a notável demonstração da hipocrisia sinis-
Para recebê-lo!" tra de Cláudio parodia a fala oficial atribuída à rainha Elizabeth:

"Uma pequena mas desejada probabilidade": mesmo com a observação


É tamanha a proteção divina sobre um rei
cautelosa, as palavras do coro são um manifesto de apoio a Essex, e foi seguido
Que a traição só faz espiar o que pretende
de algo muito mais perigoso. Dias depois do levante, alguns conspiradores
E pouco faz do que deseja."
pediram à companhia de Shakespeare, os Homens do Lorde Camerlengo, que
encenassem a peça sobre a deposição e o assassinato do rei Ricardo 11 no sába-
Essas cenas seriam capazes de excitar uma plateia londrina abalada pelos
do seguinte. Os representantes da companhia - e parece que Shakespeare, com
acontecimentos de 160I, mas na verdade não faziam referência direta a eles, e

22. "How London doth pour out her citizens, [... JI As, by a lower but high-Ioving likelihood'/
23. "There's such a divinity doth hedge a kingl That rrcason can hui perp lo wha: rt would.z Act«
Were now lhe general of our gracious Ernpress -I Bringing rehcllinn broached ou his swnrd,/
little ofhis "iii" (45.120-2).
How many would the peaceful city quit! To wek omc him!" (s.1) >\, 2('-\1)
podiam facilmente ser explicadas. Afinal, crises políticas, traições e assassinatos speare - se for possível relacioná-lu à morte de Hamnet -, alguma coisa deve
eram a matéria-prima teatral de Shakespeare - vejam-se Ricardo III, Júlio ter levado o dramaturgo a vincular a perda de seu filho à perda imaginária de
César, Ricardo II, Henrique Ve assim por diante. A morte de Essex e a prisão seu pai. Digo "imaginária" porque () pai de Shakespeare foi sepultado no cemi-
~e S~ut~ampto,: podem ter deixado marcas na mente de Shakespeare, mas é tério da igreja da Santíssima Trindade em 8 de setembro de 1601: ele talvez
difícil atribuir qualquer fala presente em Hamlet a esses episódios, e mais difí- estivesse doente e sua morte poderia ser prevista, mas quase com certeza ainda
cil ainda é atribuir a eles o que há de surpreendente e inovador nessa peça. estava vivo quando a tragédia foi escrita e encenada pela primeira vez. Como
Embora o vínculo com a insurreição seja intrigante, alguma versão do Hamlet foi que na imaginação de Shakespeare a morte do pai tornou-se tão ligada à do
de Shakespeare tinha sido, com toda probabilidade, encenada antes que Essex filho?
tomasse sua decisão fatal. Shakespeare pode ter arriscado acrescentar algumas Shakespeare, sem sombra de dúvida, voltou a Stratford em 1596 para o
falas ou cenas para aprofundar a ligação da peça com os acontecimentos da funeral do filho. O ministro, como mandavam as normas da época, devia en-
época, mas os elementos essenciais da peça já deviam estar lá, como indica uma contrar o corpo à entrada do cemitério e acompanhá-lo até a sepultura. Shake-
anotação à margem que Gabriel Harvey (o estudante de Cambridge envolvido
speare devia estar lá, ouvindo as palavras do serviço fúnebre protestante pres-
em disputas com Nashe e Greene) fez em seu exemplar de Chaucer. "O conde
crito. Enquanto a terra era atirada sobre o corpo - talvez pelo próprio pai,
de Essex muito recomenda Albioll's England", diz Harvey, num relato das mo-
talvez por amigos -, o ministro pronunciava as palavras "Por ter sido da von-
das literárias de seu tempo, e continua: "Os jovens se deleitam com \:êIlLlS e
tade do Deus Todo- Poderoso, em sua infinita providência, levar para si a alma
Adónis, de Shakespeare, mas seu Lucrécia e sua Tragédia de Hamlet, principe
de nosso querido irmão, nós entregamos o seu corpo à terra. Terra à terra,
da Dinamarca têm o dom de agradar aos mais sábios". O verbo no presente
cinza à cinza, pó ao pó, na certeza da Ressurreição para a vida eterna".
indica que Essex devia estar vivo quando Harvey escreveu a primeira referên-
Teria Shakespeare ficado satisfeito com esse culto simples e eloquente, ou
cia inequívoca à tragédia de Shakespeare.
Alguma coisa mais profunda devia estar acontecendo com Shakespeare, se atormentou com a ideia de que faltava algo' "Que outra cerimônia?", chora
alguma coisa poderosa o bastante para evocar a representação sem precedentes Laertes, ao lado da tumba da filha Ofélia, "Que outra cerimônia?"." O rito
de tormento interior. "Ser ou não ser": como a plateia e os leitores sempre fúnebre de Ofélia foi abreviado porque ela era suspeita do pecado de suicídio,
entenderam por instinto, esses pensamentos suicidas, provocados pela morte e l.aertes é ao mesmo tempo superficial e temerário. Mas a pergunta que ele faz
de um ser querido, se acham no cerne da tragédia de Shakespeare. Eles bem e repete ecoa ao longo de todo o texto de Hamlet, e articula uma preocupação
podem ter estado no cerne da perturbação interna do próprio dramaturgo. Os que extrapola os limites da peça. Na memória coletiva, toda a relação entre
Shakespeare tinham dado aos gêmeos os nomes de Judith e Hamnet em home- vida e morte tinha mudado. Em I.ancashire, senão mais perto de sua cidade.
nagem a Judith e Hamnet Sadler, seus vizinhos de Stratford. O nome deste Shakespeare talvez tenha visto reminiscências das antigas práticas católicas:
último aparece, nos registros da cidade, ora como Hamnet, ora como Hamlet; velas ardendo noite e dia, cruzes por toda parte, sinos tocando a toda hora.
na mal definida ortografia daquela época, os nomes eram praticamente inter- parentes lamentando-se e entrecruzando-se, vizinhos visitando o corpo para
cambiáveis. Mesmo que a decisão de refazer a velha tragédia tenha decorrido rezar um pai-nosso ou um salmo, distribuição de esmolas e alimentos em me-
de motivos apenas comerciais, a coincidência dos nomes - o ato de escrever
mória do morto. padres pagos para rezar missas e assim amenizar a penosa
o nome do próprio filho repetidas vezes - pode ter reaberto uma ferida pro-
passagem da alma pelo purgatúrIo. Tudo isso tinha sido atacado; tudo tinha
funda, que, na verdade, talvez nunca tivesse cicatrizado.
Mas, é claro, em Hamlet é a morte de um pai, nào a de um filho, que de-
sencadeia a crise espiritua! do herói. Se essa tragédia nasceu da vida de Shelkc- 2-\. "\\'11,11cercl11llny cise'! I [/ \\'11.,1 (t'fl'l1lOny "",,'" (5.1.21l5. 21171.
te a vida, ou presenteá-las aos que jú tinham partido. Os ricos e poderosos
sido reduzido

.pêlosmortos ',
ou eliminado sem reservas. Acima de tudo, agor.l era ilegalrez~r doavam capelas ondc os padres fariam orações pelos mortos para todo o sempre,
e fundavam ínstituições cívicas - abrigos, hospitais, escolas - que pudessem
.l
·_----Ó~primeiros livros de oração protestantes tinham conservado a velha
fórmula "Entrego tua alma a Deus Pai Todo-Poderoso e teu corpo à terra,
gerar muitas oraçôes pelo fundador. Os mais pobres poupavam seus tostões
para pagar por um conjunto de missas, disponíveis em diferentes pacotes. Dizia-
li
ti
terra à terra, cinzas às cinzas, o pó ao pó". Mas reformadores vigilantes acharam -se que o mais eficaz era a trintena, scquência de Irinta missas, mas até uma ou ~.
,que essas palavras escondiam atrás de si muito da antiga fé católica, e fez-se
duas ajudavam.
uma pequena mudança: "Entregamos seu corpo à terra ...". As palavras já não Que indício havia da eficácia dessas providências? Além da doutrina da
se dirigem ao morto, como se ele conservasse algum contato com os vivos. A Igreja, havia o testemunho dos próprios mortos. Contavam-se muitas histórias
\. sutil revisão faz uma grande diferença: os mortos estão completamente mortos. de iantasmas que retornavam do purgatório pedindo ajuda dcscsperadamente.
..l. Nenhuma oração pode ajudá-los; nenhuma mensagem pode ser enviada a eles Depois que a ajuda era dada, os mesmos iantasmas costumavam voltar para
ou recebida deles. Hamnet estava fora do alcance. agradecer ao doador e prestar testemunho do imenso conforto que suas cari-
Os católicos acreditavam que depois da morte - enquanto as almas dos dosas doações tinham proporcionado. As apariçües que as pessoas viam eram
maus iam diretamente para o inferno e as dos bons para o céu - a grande quase sempre aterrorizantes. Podiam ser o prenúncio de catástrofes, sinais de
maioria dos fiéis, nem absolutamente bons ou totalmente maus, ia para o pur- loucura ou maniiestaçües do mal, já que o diabo às vezes assumia a forma de
gatório. Esse lugar era como uma grande prisão subterrânea onde as almas um morto para incutir ideias perversas na cabeça dos desavisados. Mas os
sofreriam tormentos até pagar pelos pecados que tinham cometido em vida. ensinamentos da Igreja ajudavam a dar sentido ao que estava acontecend()
(Havia quem acreditasse que na Irlanda existia uma entrada para o purgatório, quando as pessoas eram assediadas por eSl)íritos de pessoas queridas: o morto.
através de uma caverna descoberta por são Patrício no condado de Donega!.) em seu sofrimento no purgatório, estava apenas pedindo para ser lembrado. ()
Esses pecados não eram tão graves a ponto de acarretar uma eternidade de católico Th0ll1.1S More ouvia os brados dos mortos: "Lembra-te de nossa sede
castigo, mas tinham deixado uma mancha que devia ser lavada antes que a quando te sentares para beber", lembra "nossa fome quando te banqueteias;
alma pudesse entrar no céu. Todas as almas do purgatório, sem exceção, esta- nosso desassossego quando estás domindo; nossa profunda e dolorida pena
vam salvas e acabariam subindo para a glória. Essa era a parte boa. A má era quando brincas; o fogo em que queimamos enquanto tens prazer e te divertes.
que os sofrimentos no purgatório, pintados nas paredes das igrejas e descritos Da mesma forma queira Deus que mais tarde tua descendência lembre de ti".
em detalhes enlouquecedores pelos pregadores, eram terríveis. Um instante de E com a lembrança, sob a iorma dos rituais adequados, vinha o alívio.
dor lancinante depois da morte era pior, ensinavam os padres, que a pior dor Os zelosos protestantes viam esse conjunto de crenças e prúticas institu-
que uma pessoa pudesse sofrer em vida. Na verdade, os tormentos das almas cionais como uma enorme fraude, uma vigarice projetada para cxtrair dinhei-
aprisionadas no purgatório eram idênticos, exceto em duração, aos que sofriam ro dos crédulos. O purgatório, diziam eles, era "a fábula de um poeta", uma
as almas em danação no inferno. E essa duração, embora finita, não era insig- iantasia elaborada que tinha sido impingida a toda a sociedade, de cima a bai
nificante. Um teólogo espanhol calculava que em média um cristão deveria xo, de forrnu que do rei ii peixeira eram todos explorados sem piedade. Con-
passar mais ou menos entre mil e 2 mil anos no purgatório. vencido por esscs argumentos ou, mais plausivelmente. ansioso para confiscar
Felizmente, ensinava a Igreja Católica, havia um meio de ajudar os seres as riquczas da Igreja, Henriquc VIII dissolveu mosteiros c capelas que tinham
queridos e a si mesmo. Algumas boas ações - orações, esmolas e, sobretudo, sido os centros ritualísticos do culto cat(')lico dos mortos. No reinado de SClIS
missas _ poderiam aliviar consideravelmente o sofrimento e reduzir a scnten ,uceSS(HCSprotestantes, Eduardo \'1 c Elii'.abeth I, os reformadores do Parla
ça de prisão no purgatório e apressar o trânsito da alma pena o céu. A pessoa menio aboliram por complct» o sistema de organii'.aç'-)cs cri'ldas par" ()!crc(l'!'
podia ter a prudência de praticar essas boas açóes em hencficio próprio, duran
\~I

,\20
orações pelas almas do purgatório. As autoridades mantiveram muitos hospi- sobre as crenças de seu pai, há alguns indícios. Esses indícios levam a crer, com
tais, abrigos e escolas, é claro, mas retiraram-lhes as funções ritualisticas. E, por fundamento. que John Shakespeare teria querido fazer algo pela alma de Harn-
meio de sermões, homilias e do próprio serviço religioso, o clero iez um esfor- net, alguma coisa que ele talvez tenha pedido insistentemente ao filho que fi-
ço sistemático de reeducação da população, induzindo seu rebanho a reirnagi- zesse ou que tenha resolvido fazer por sua conta. Os argumentos, ou a súplica,
nar toda a relação que havia entre esta vida e o além. ou as lágrimas que podem ter acompanhado esses apelos se perderam de forma
Não foi tarefa fácil. A crença no purgatório bem pode ter sido exagerada definitiva. Mas resta pelo menos um traço daquilo que () pai de Shakespeare (e
- muitos católicos fervorosos eram dessa opinião -. mas se ligava a temores supostamente também sua mãe) teriam achado necessário, adequado. carido-
e carências que não desapareciam como que por encanto quando os represen- so, amoroso e, numa palavra. cristão.
tantes da Igreja e do Estado diziam que os mortos estavam iora do alcance dos N a década de 1580, enquanto Thomas Lucy vasculhava as vizinhanças de
vivos. A cerimônia não era o único problema, nem o principal. O que impor- Stratford em busca de católicos subversivos e católicos que. segundo se dizia.
tava era se os mortos continuariam a falar com os vivos, pelo menos por algum estavam escondendo as provas de suas arriscadas lealdades. John Shakespeare
tempo, se os vivos poderiam ajudar os mortos, se um elo recíproco subsistia. (se os documentos descobertos no século XVIII forem autênticos) pôs seu nome
No cemitério, vendo a terra cair sobre o corpo do filho, Shakespeare terá pen- em algo altamente comprometedor: o "testamento espiritual" que os jesuítas
sado que sua relação com Hamnet desaparecia sem deixar rasto? fizeram circular entre os fiéis. Na época. William não deve ter sabido nada
Talvez. Mas também é possível que ele tenha achado o serviço fúnebre disso - seu pai provavelmente enfiava em segredo os documentos entre os
dolorosamente inadequado, por sua recusa deliberada de dirigir-se à criança caibros das telhas da casa da Henley Street-. mas a fé e a ansiedade que o le-
morta como "tu", pela abreviação do ritual, pela negação de qualquer possibi- varam a assinar o documento devem ter vindo à tona no funeral de Harnnet.
lidade de comunicação. E, se conseguiu fazer as pazes com a concepção pro- Aquilo que John Shakespeare escondera tinha tudo a ver com a morte.
testante dessas coisas, outros próximos a ele não conseguiram. Nada se sabe O "testamento espiritual" era uma espécie de política de segurança para a
acerca das convicções de sua mulher, Anne, sobre a morte. embora talvez exis- alma católica. e deve ter sido particularmente importante para os que não po-
ta uma mínima pista a respeito disso na estranha inscrição que ioi posta em diam praticar sua fé ou estavam sendo pressionados a colaborar com os pro-
sua lápide por sua filha Susanna em 1623. "Deste um seio maternal, leite e vi- testantes. O signatário declara que é católico, mas acrescenta que. se "por su-
da", diz a inscrição; "a tal generosidade, que pena, só posso retribuir com pe- gestào do diabo. fizer, disser ou pensar qualquer coisa" contra sua fé, ele
dras!" As linhas seguintes trazem implícita a ideia radical de que a alma da renuncia formalmente a seu pecado e manifesta ii vontade de que "não seF'
morta, assim como seu corpo, está presa no túmulo: "Que bom seria se eu tomada como algo dito ou feito por mim". Da mesma forma. se acontecesse de
pudesse pedir aos anjos que removessem a pedra da boca da tumba. que teu não receber os últimos sacramentos católicos - confissão. extrema-unção.
espírito, como o corpo de Cristo, pudesse partir". Mas essa podia ser a opinião comunhão -, ele descia que estes lhe sejam ministrados "espiritualmente".
heterodoxa de Susanna e não a de Anne Hathaway Shakespeare, sem falar nas Sabe que "nasceu para morrer, sem saber a hora. onde, quando ou como" e
que ela pode ter reprimido em 1596, ano da morte de Hamnet. teme que possa ser "tomado de surpresa". Daí que seja grato. declara, pela
Os pais de Shakespeare, John e Mary, também devem ter estado ao pé do oportunidade de experimentar a penitência agora, porque sabe que pode ser
túmulo de Hamnet. Com efeito, eles tinham passado muito mais tempo com levado desta vida "quando menos pensar: com efeito, mesmo então, quando
o menino do que o próprio pai, pois enquanto Shakespeare estava em Londres. eu estiver mergulhado no pântano imundo de meus pecados".
eles continuavam morando na mesma casa, com a nora e os três netos. Ajuda- Naquela época, os católicos eram ensinados a temer a morte súbita, ()
ram a criar Harnnet e cuidaram dele durante a doença que o matou. E. sobre que impediria o acerto de contas ritual do pecador com Deus e a demonstra-
as crenças de seus pais em relação à vida depois da morte. especificamente ção adequada de arrependimento. Toda mancha que não tenha sido removi-

322
morte do pai _ uma crise de luto e lembranças - constituem uma perturba-
da nesta vida terá de ser purgada depois da morte. O "testamento espiritual"
ção psíquica que pode contribuir para explicar o poder explosivo e a intros-
era uma tentativa de lidar com esse medo, e arrolava parentes e amigos como
pecçào de Handel.
aliados:
Urn fantasma volta ao mundo par.] exigir vingança: esse é o impactante
instrumento teatral que todo mundo recordava da peça clisabetana sobre Ham-
Eu, John Shakespeare, [... 1 suplico a todos os meus queridos .uuigos, parentes e
let, e Shakespeare investiu a cena de uma força incomparável. "Se algum dia
familiares, em nome do coração de nosso Salvador jesus Cristo, que, uma vez
tiveste amor por teu pai", diz o fantasma ao filho ansioso, "vinga-lhe a morte
que é incerta a sorte que me hú de caber, e temendo, em ruzáo de meus pecados,
horrivcl c l1lonstru()sa,"~-- Mas muito estranhamente a ordem dada pelo fan-
ficar um longo termo no Purgatório, que se dignem 'I assistir-me e socorrer-me
tasma de que o Hamlet de Shakespeare fala não é um ativo chamado ú açào,
com suas santas orações e obras meritórias, principalmente com o santo sacrifí-
mas algo bem diverso: "Adicu, adicu, Hamlet. Lembra-te de mim", "Lembrar,
cio da missa, o meio mais eficaz de livrar as almas de dores e tormentos,
-me de ti?", repete Hamlet, levando as mãos à cabeça.
Os que puseram seu nome nesse documento (é pelo menos plausível que
John Shakespeare estivesse entre eles, e provável que compartilhasse suas preo- Sim, pobre espectro, enquanto a memória tiver lugar
cupações) não falavam apenas por si mesmos; estavam pedindo àqueles que os :\esta cabeça confusa, I.embrar,me de ti?'"
amavam que fizesse algo de importância crucial para eles, algo que o Estado
À primeira vista, como indica o tom de incredulidade de Hamlet, o pedi-
tinha declarado ilegal.
do é absurdo: um filho dificilmente esqueceria o retorno do pai da sepultura,
Em 1596, no funeral de Harnnet, quase com certeza a questão deve ter
Mas na \"Crdade Hamlet não se lança a sua vingança, e lembrar o pai - lembrú-
vindo à tona. A alma do menino precisava da ajuda dos que o amavam e se
preocupavam com ele. John Shakespeare, que praticamente tinha criado o ne- -Io do ieito certo, lembrá-lo por inteiro - é muito mais difícil do que ele ima-
to, deve ter exortado seu próspero filho William a pagar missas pela alma da gina\'a, Alguma coisa interfere no plano, e é uma interferência cujo símbolo l'
c~iança morta, da mesma forma como gostaria que rezassem missas por sua ~ loucura fingida que não faz sentido na trama, E ocorre que essa interferência
própria _a.lma.Ele estava ficando velho e em breve precisaria de "obras meritó- brota das mesmas Io ntcs que podcm ter levado o pai de Sh.lkespeare a assinar
o "testamento espiritual" católico, (0111 sua súplica desesperada ,i família l' <I()S
rias" que abreviassem sua agonia depois da morte,
Se esse delicado assunto foi ventilado, teria William se negado, com irri- amigos: lembrai-vos de mim,
tação, ou teria pagado em segredo por missas clandestinas pela alma de Harn- "Sou o espírito de teu pai", diz () fantasma ao filho,
net? Teria ele dito ao pai que não poderia dar ao filho - ou, futuramente, que
não daria ao pai - o que ele tanto desejava? Teria dito que já não acreditava Condenado por algum tempo a \'agar pela noite,
em absoluto na história da terrível prisão, situada entre o céu e o inferno, onde E de dia obrigado a jejuar no fogo
os pecados cometidos em vida eram lavados e purgados? Até que os horrendos crimes que comct i em vida
Seja o que for que tenha decidido na ocasião, Shakespeare devia estar Estejam purificados e purgados, Se não cstivesse proibido
ainda refletindo sobre o assunto no fim de 1600 e começo de 160 I, quando
escrevia uma tragédia cujo herói condenado levava o nome de seu filho mor- 2,. "lf thou di dst evcr t hv dear !,.,ther ItlH' ,.I RnTI1!,\c his lou] .,"t1 m",t ul1llatura! murd rr "
to. Seus pensamentos podem ter sido afetados pela notícia de que seu pai já (1,23 :;).
26, "..\diéu, .idicu. Hamlet. RCl11éll1ber mé) Réll1él1lbcr Ihéc'l Ay_ thou pDm ~IH"t. "h,k
ancião estava gravemente doente em Stratford, porque a ideia da morte do pai
l11eIlHH\' 11,)1,1\ a St",t/ln Il1is dl'lra([('d g!"bc !kl11cl11ber rhcc!" (J .C,')I, <J"-~).
está inserida de maneira profunda na peça, E a morte do filho e a iminente
.\ -",
De revelar os segredos de minha prisão agora não se preocupam necessariamente com isso - a peça não é, afinal, uma
Poderia contar-te casos cuja menor palavra aula de teologia. Mas Hamlet, sim, se preocupa com isso, e suas dúvidas e an-
Dilaceraria tua alma." siedades paralisantes levam a vingança para o centro de interesse da peça.
A orientação protestante da época de Shakespeare afirmava que não exis-
Shakespeare tinha de ter cuidado: as peças eram censuradas. e não teria tiam fantasmas. As aparições que homens e mulheres viam de tempos em tem-
sido permitido referir-se ao purgatório como um lugar que realmente existisse. pos - aparições que misteriosamente tinham a aparência de seres queridos ou
Portanto, há uma astuta Iiteralidade na observação do fantasma de que está amigos - eram meras ilusões, ou, pior ainda, demónios disfarçados que vi-
proibido "de revelar os segredos de minha prisão". Mas praticamente todo o nham induzir as vítimas ao pecado. Hamlet em primeiro lugar declara que ti-
público de Shakespeare entenderia o que era essa prisão, um lugar a que o nha visto um "fantasma honesto"." mas a certeza inicial dá lugar ii descon-
próprio Hamlet se refere quando, poucos momentos depois, jura "por são fiança:
Patrício"," o padroeiro do purgatório.
O fantasma estava sofrendo o destino tão temido pelos católicos fervoro- o espírito que vi
sos. Tinha sido privado de vida repentinamente, sem tempo de se preparar Pode ser o diabo, pois o diabo tem o poder
para o fim por meio de rituais. "Tirou-me a vida cheia de pecados", diz ele ao De assumir uma forma agradável. e talvez
filho, acrescentando um dos versos mais estranhos da peça: "Sem a eucaristia, Aproveitando-se de minha fraqueza e de minha tristeza...
inconfesso, sem os óleos"." Não tomou a comunhão, não pôde fazer a confis- Como é muito poderoso WI11 tais espíritos...
são, não recebeu a extrema-unção, sacramento ministrado aos moribundos. Esteja buscando a minha danação.'
7 •• /;.. Foi para a outra vida sem nenhuma penitência preparatória. e agora paga o
I .,preço disso: "Horrível, horrível, mais que horrível".'? Esses pensamentos levam a um círculo de postcrgaçào, autorrecr iminaçâo,
.'" O que pode significar que uma alma do purgatório apareça no mundo de mais inaçào, mais autorrccr iminaçào, sentimentos que são responsáveis pela
," Hamlet pedindo para ser lembrado? Mesmo deixando de lado por um instan- peça dentro da peça - recurso empregado por Hamlet para obter alguma in-
'í (
.e I ", te o fato de que não existe purgatório de acordo com a Igreja Protestante, as forrnaçào independente das alegações do fantasma - e pela desconfortável
'" -, alusões a ele aqui são um enigma, já que os espíritos que estão na grande peni- sensação experimentada por ele de estar rateando no escuro. Estão ligados
tenciária de Deus não poderiam, por definição, pedir a alguém que cometesse ainda a um sentimento mais amplo de dúvida e desorientação numa peça em
um crime. Afinal, eles estão pagando seus pecados para poder subir aos céus. que toda a estrutura ritualística que ajudava homens e mulheres a lidar com a
Com efeito, esse espírito não veio pedir missas ou esmolas, ele está se apro- perda tinha sido fatalmente prejudicada.
priando do monopólio divino da vingança pedindo ao filho que mate o homem Shakespeare pode ter experimentado as consequências desse prejuízo
que o assassinou, roubou sua coroa e sua viúva. As plateias da época e as de quando esteve diante da sepultura do filho, ou quando tentou conviver com os
pedidos de ajuda de seu pai para quando morresse. As autoridades protestan-
27. "I am thy father's spirit,/ Doomed for a certain terrn to walk the night.l AnJ for the da)' con- tes atacaram as crenças c criminalizaram as práticas que a Igreja Católica otc-
fined to fast [n fires/ TiIl the foul crimes dane in m)' days of nature/ Are burnt and purgcd awa)'.
But that I am forbid/ To tell the secrets of my príson-house., I could a tale li11fold whose lightcst
word/ Would harrow up thy soul" (1.5.9-16). .1]. "honc-t ~h("t" 11.~.1·12I,

28. "by Saint Patrick" (1.5.140). -'2. "Thc 'pint thut I h.,,",,sccn' .\Ial· bc thr cll'I·11. anel the dl'l'il h.ul: plllferl ']',,,.""11l· a I'lea,illg
29. "Cut off even in the blossorns of m)' sin.l Unhouseled, dis-uppointed, unanelcd" (I.S.lh· 7) shape: ve.i. anel pcrhups, Out "II\\\' II'l',1I,l1l'" .ind 1\\\' 1l\~I;,nl'IHlI\' - / :Is hc " ver v I'0t<,nl wul:
30. "O. horrible. o. horrible, most horrible!" (15.80). such ~pirit" : Abuses me 111 daJl)ll 111\''' (2 ~,,:-,7~-S())'

326
recia como meio de negociar com os mortos. Diziam que a própria ideia de No começo do século XVIII, o editor e biógrafo Nicholas Rowe, tentando
purgatório era mentira e que tudo o que se precisava era de uma fé vigorosa no encontrar alguma coisa sobre a carreira de Shakespeare como ator, fez pesqui-
poder salvador do sacrifício de Cristo. Havia os que tinham essa fé, mas nada sas, mas as lembranças tinham murchado. "Nunca pude encontrar nenhum
na obra de Shakespeare leva a crer que ele fosse um deles. Ele fazia parte de um outro relato sobre ele por esse meio", escreveu Rowe, "a não ser que o ponto
grande grupo, provavelmente o grosso da população, que ainda lutava com alto de seu desempenho foi como o fantasma em sua peça Hamlet." Para re-
temores e carências que os antigos recursos da Igreja Católica tinham servido presentar o espírito penitente que pede aos vivos que ouçam muito bem o que
para direcionar. Era por causa dessas nostalgias e desses medos que gente como ele vai dizer - "presta muita atenção! Ao que vou revelar"" -, Shakespeare
John Shakespeare assinava "testamentos espirituais" secretos. deve ter buscado dentro de si a voz do filho morto, a voz do pai moribundo c
Qualquer funeral convida os presentes a pensar nas coisas em que real- talvez até sua própria voz, do jeito que ela seria quando voltasse da tumba. Não
mente acreditam, se houver alguma. Mas o funeral do próprio filho faz mais surprenderia que tivesse sido seu melhor papel.
do que isso: leva os pais a dirigir perguntas a Deus e a questionar sua própria
fé. Shakespeare devia frequentar regularmente os serviços religiosos em sua
paróquia protestante; de outra forma, seu nome teria ido parar nas listas de não
conformistas. Mas será que ele acreditava no que ouvia e recitava? Suas obras
mostram que ele tinha algum tipo de fé, porém certamente não era uma fé li-
gada à Igreja Católica ou à Igreja Anglicana. No fim da década de 1590, na
medida em que sua fé pudesse ser depositada em alguma instituição, esta era
o teatro, e não apenas no sentido de que suas maiores energias e expectativas
estavam voltadas para ele.
Shakespeare entendeu que os principais rituais fúnebres em sua cultura
tinham sido esvaziados. Deve ter sentido isso com enorme dor ao lado da se-
pultura do filho. Mas ele também acreditava que o teatro - e sua arte teatral
em particular - podia se conectar ao grande reservatório de sentimentos apai-
xonados que, para ele e para milhares de seus contemporâneos, já não tinham
onde desembocar.
1 A Reforma, com efeito, estava lhe oferecendo um presente extraordinário
t! - os fragmentos do que tinha sido um edifício rico e complexo -, e ele sabia
I
\ exatamente como aceitar e usar esse presente. Dificilmente ele seria indiferen-
1-
te ao sucesso que conseguiu obter, mas não se tratava apenas de dinheiro.
Shakespeare explorou a piedade, a confusão e o pavor da morte num mundo
de ritos danificados (o mundo em que a maior parte de nós continua vivendo)
porque ele próprio sentia essas emoções no fundo de seu coração. Sentiu-as em
1596, no funeral do filho, e sentiu-as com força redobrada antecipando-se ii
morte do pai. Reagiu não com orações, mas com a mais profunda expressão de
seu ser: Hamlet. .,3. "knd th,. SCrlOUS hearing/ To II'h,1I I -h.ill unfold" (1.5.5-(»).

Você também pode gostar