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Instituição: Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora

Licenciatura em História
Unidade Curricular: História de Portugal Medieval
Docente: Professora Doutora Hermínia Vilar
Discentes: Bernardo Barreiros, Bruno Cesário, Gonçalo Mendes e Joana Vitorino
Nº: ex. 16217, 48506, 49542, 49095

MILAGRE D’OURIQUE: ENTRE A FÉ E A POLÍTICA


- As origens e a formação da base da Monarquia Portuguesa -
Imagem de capa:

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(consultado a 18 de Maio de 2021. Fotografia de Miguel Vigil)

2
Escola de Ciências Sociais
Milagre d’Ourique: entre a fé e a política
- As origens e a formação da Monarquia Portuguesa -

“A matina luz, serena e fria,


As estrelas do Pólo já apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso, o animava.

Ele, adorando Quem lhe aparecia,


Na Fé todo inflamado, assi gritava: “Aos infiéis, Senhor, aos Infiéis
E não a mi, que creio o que podeis!”1

1
L. de Camões, Os Lusíadas, Canto III, Porto Editora, Porto, 1969, 28 – 84.

3
Índice

Introdução……………………………………………………………………………………….. 7

1. Contextualização histórica da Batalha de Ourique……………………………. ……… 8


2. Relação entre o rei-fundador e os monges crúzios numa sociedade em construção…... 9
3. A busca pela consagração da dinastia de Avis……………………………………….... 10
3.1. Aljubarrota e Ourique em tempos diferentes e com propósitos idênticos………… 12
3.2. Conquista de Ceuta e a continuação de um legado……………………………….. 13
3.3. Um novo olhar para Lisboa……………………………………………………….. 14
3.4. Simbologias e formas de aparição………………………………………………… 15
3.5. A tentativa de santidade para a sobrevivência da Monarquia…………………….. 17
3.6. Importância do milagre para um herdeiro improvável……………………………. 19
3.7. Interpretações, mentalidades e transformações no século XVI…………………… 20
3.8. Apogeu da Historiografia-Profética na crença sebastianista……………………… 21
4. Perda da independência (1580 – 1640): “o castigo divino”…………………………… 23
4.1. Estratégia alcobacense e oposição da União Ibérica……………………………… 25
5. Restauração, Origens e Sacralidade…………………………………………………… 26
5.1. Restauração dos princípios da soberania………………………………………….. 26
5.2. Origens de um passado na edificação do “Quinto Império”…………………….... 27
5.3. Da política à sacralidade: a fé nas Cinco Chagas…………………………………. 28
6. No interior da devoção e desconfiança………………………………………………… 29
6.1. Curas e representação barroca…………………………………………………….. 29
6.2. Verney e os critérios do Santo Ofício……………………………………………… 30
6.3. A racionalidade portuguesa no século XIX……………………………………….. 31

Conclusão……………………………………………………………………………………… 33

Fontes e referências bibliográficas…………………………………………………………….. 34

Anexos…………………………………………………………………………………………. 35

4
Resumo
O presente trabalho tem como objectivo, partindo do princípio que se trata de
saber interpretar, questionar e confrontar as fontes, quer sejam elas escritas, iconográficas
e bibliográficas, de modo apresentar um tema de carácter histórico que até os dias actuais
é alvo de controvérsia e de alguma incompreensão.

Um dos nossos focos incide sobre a caracterização do conceito do milagre de


Ourique e entender os aspectos essenciais para ser considerado uma justificação política,
religiosa e social numa perspectiva histórica, ideológica e das próprias mentalidades que
são fundamentadas por diversas visões, nomeadamente alteradas consoante o tempo e as
situações.

Sabendo da importância da autoridade régia e eclesiástica na sociedade


portuguesa, serão estes dois poderes basilares para a proficiência na questão miraculosa
que supostamente ocorrera durante a Batalha de Ourique, e que engloba o aparecimento
de Cristo a D. Afonso Henriques, considerado o fundador do Reino de Portugal.
Pretendemos abordar este episódio sobrenatural em várias vertentes: relação do Milagre
de Ourique com os monges de Santa Cruz; ponte fundamental para a legitimação dos reis
portugueses; influências das interpretações racionais face às tradicionais; e, por fim,
relacionar/confrontar a edificação e a glorificação de uma identidade nacional que nascera
a partir deste acontecimento.

Por conseguinte, numa primeira abordagem ao tema, dedicamos a ligação de D.


Afonso Henriques com os monges crúzios e a importância dos mesmos na preservação
da memória, sendo que o Milagre no Campo de Ourique desenvolver-se-á através dos
testemunhos, relatos e documentos pertencentes ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra,
constituindo assim o pilar mítico em torno deste evento. A partir desta fase, as análises
posteriores são essenciais para compreender as mutações na sua descrição, sendo estas
adaptadas aos situacionismos políticos e sociais ao longo dos séculos. Através deste
propósito procura-se perscrutar as mentalidades, entre elas pontos-de-vista mergulhados
na devoção religiosa, política e meio-social.

PALAVRAS-CHAVES: Milagre, Fé, Política, Legitimação, D. Afonso Henriques, Jesus


Cristo, Identidade, Independência, Messianismo.

5
Abstract

The present work aims, starting from the principle that it is about knowing how to
interpret, question and confront the sources, whether they are written, iconographic and
bibliographic, in order to present a theme of historical character that even today is the
target of controversy and some misunderstanding.

One of our focuses on the characterization of the concept of the miracle of Ourique
and understand the essential aspects to be considered a political, religious and social
justification in a historical perspective, ideological and the mentalities themselves that are
based on various visions, namely changed depending on the time and situations.

Knowing the importance of royal and ecclesiastical authority in Portuguese


society, these two powers are the basis for the proficiency in the miraculous issue that
supposedly occurred during the Battle of Ourique, and that encompasses the appearance
of Christ to D. Afonso Henriques, considered the founder of the Kingdom of Portugal.
We intend to approach this supernatural episode from several angles: the relationship
between the Miracle of Ourique and the monks of Santa Cruz; a fundamental bridge for
the legitimization of the Portuguese kings; the influence of rational interpretations versus
traditional ones; and, finally, to relate/confront the building and glorification of a national
identity that was born from this event.

Therefore, in a first approach to the subject, we dedicate the connection of D.


Afonso Henriques with the crusading monks and their importance in the preservation of
memory, and the Miracle at Campo de Ourique will be developed through the testimonies,
accounts and documents belonging to the Monastery of Santa Cruz de Coimbra, thus
constituting the mythical pillar around this event. From this stage on, further analysis is
essential to understand the mutations in its description, which are adapted to political and
social situations over the centuries. Through this purpose, it is sought to scrutinize
mentalities, among them points-of-view steeped in religious, political and middle-social
devotion.

KEY-WORDS: Miracle, Faith, Politics, Legitimation, D. Afonso Henriques, Jesus Christ,


Identity, Independence, Messianism.

6
Introdução

O trabalho que aqui apresentamos trata-se de uma actividade de interpretação e de


análise das fontes escolhidas, cujo intento é colocar em prática os conhecimentos
adquiridos ao longo das aulas referentes à unidade curricular em questão – História de
Portugal Medieval – de forma a demonstrar o desenvolvimento do Milagre de Ourique
num espaço cronológico. Tendo em conta o aspecto antecedentemente mencionado,
propomo-nos a elaborar o tema sobre o Milagre durante a Batalha de Ourique no ano de
1139, intitulando o trabalho “Milagre d’Ourique: entre a fé e a política”.

O tema seleccionado surgiu no interesse sobre a questão miraculosa e a sua


controvérsia no mundo da História, mas também acerca do impacto que esta crença teve
na independência do Condado Portucalense, originando a Monarquia Portuguesa e a
difusão de uma identidade nacional e singular, paramentada por uma devoção comum
entre os portugueses, defendida pelas instituições tradicionais e morais. Buscamos
compreender a razão que levou a legitimação régia ser fundamentada e movida por este
evento sobrenatural, que de um momento para o outro principiou uma convicção religiosa
em derredor da personagem de D. Afonso Henriques, crendo e apostando no possível grau
de santidade que protegia a continuação da política monárquica e a consagração das
diferentes dinastias, de modo que soberania real e a figura de Sua Majestade são
invioláveis, eternas e escolhidas por Deus.

Dito isto, o nosso objecto de estudo divide-se em dois ramos:

No primeiro ramo, incorporamos a vertente política, dividindo-a em diferentes


cenários. Relativamente à esfera política, é importante destacar a questão da legitimidade
dos reis portugueses, principalmente D. João I e D. Manuel I (Dinastia de Avis), assim
como D. João IV, fundador da Dinastia dos Bragança; conhecer e inferir o papel
indispensável das crónicas como instrumento proteccionista da autoridade real, mas
também o método na preservação e utilização de uma justificativa perante a
independência do reino; exposição dos valores simbólicos nacionais; e o argumento
messiânico em torno de um provável “Quinto Império”.

Segundamente, englobando a religiosidade, será relevante destacar a função dos


monges crúzios e da historiografia alcobacense como meio na guarida, leitura e
manutenção do episódio sobrenatural (Milagre de Ourique). Inclusive, gerará a tentativa
de canonizar o rei-fundador de maneira com que se evidencie as suas virtudes
7
taumatúrgicas, mas também as diversas concepções das ordens religiosas (destacamos a
franciscana) diante do acontecimento, em que estabelecem uma ligação com outros
aparecimentos de Cristo, tal como a São Francisco de Assis. Por último, e de uma maneira
mais lacónica, apresentaremos a problemática da inexistência oficial da santidade de
Afonso Henriques.

No segundo ramo do nosso trabalho, tentámos explorar e questionar os factores


associados ao campo das mentalidades, quer seja no pensamento e na própria sociedade
portuguesa. Para este ponto crucial, a perspectiva do clero torna-se imperativa, uma vez
que, é através dos servidores da fé que nos oferecem suportes informativos sobre as
crenças que são incutidas no ambiente social e quotidiano português; apreender as noções
que conceberam o conceito de identidade nacional, e, posteriormente, a eflorescência dos
nacionalismos ou da orgulhosidade em “ser português”. Desta forma, uma das nossas
fontes iconográficas, ou seja, “O Milagre de Ourique – Salvatore Nobilii”, na Igreja de
Santo António dos Portugueses em Roma, disponibiliza-nos simbologias pertinentes quer
seja numa perspectiva política, histórica e mitológica, sendo observável arquitectar uma
comparação e conjugação diante das fontes escritas.

Por último, o surgimento das primeiras desconfianças e questionações das origens


e do sustentáculo da Monarquia Portuguesa nas ópticas de António Verney e de
Alexandre Herculano, produzirá e promoverá a racionalidade dos factos ocasionados por
épocas de maior interferência iluminista e, a posteriori, no século XIX, o espírito
republicano.

8
1. Contextualização histórica da Batalha de Ourique

Conforme o relato tradicional e cronológico da Batalha de Ourique que ocorreu


no dia 25 de Julho de 1139, dia esse dedicado liturgicamente a São Tiago cognominado
“o Mata-Mouros”, em que as tropas, juntamente com o Conde D. Afonso Henriques,
decidiram afirmar o poder cristão, tendo como objectivo a diminuição da presença, assim
como a influência muçulmana em território peninsular, mas sobretudo, indirectamente,
proclamar o prestígio do Condado Portucalense – o princípio do espírito independentista.

Na verdade, para ter uma noção minimamente entendível, é necessário que


saibamos avaliar e ter em conta o situacionismo político vivido na Península Ibérica, ou
seja, estamos diante de uma região dividida em duas forças religiosas distintas e em
constante disputa (cristianismo e islamismo). Sendo o Condado Portucalense vassalo do
rei Afonso VII de Leão e Castela, primo de D. Afonso Henriques, naturalmente houve o
dever de contribuir para o processo da conhecida “Reconquista Cristã” que buscava a
conversão, a expansão territorial para sul e a obtenção de riquezas, em que precipuamente
os nobres colaborarão para acumular património familiar. Podemos constatar um
interesse movido pelo poder político, mas também pessoal.

Evidentemente, por meio deste conflito e atendendo a uma certa autonomia já


adquirida pelo Condado Portucalense, sabendo que D. Afonso Henriques apesar de ser
vassalo do seu primo, prestou e autodenominou-se ao mesmo tempo, vassalo do
Papa/Santa Sé do qual verificamos o nascimento ou a afirmação estratégica para o
desenvolvimento dos princípios da independência e o possível reconhecimento pela
autoridade pontifícia.

Daquilo que nos contam e que é transmitido de geração em geração, Afonso


Henriques viu-se como uma minoria face às tropas árabes, que apesar de não haver dados
sobre o número de elementos integrantes em ambos os exércitos, sabemos que a vitória
seria praticamente impossível. Todavia, aconteceu uma vitória misteriosa e inesperada,
rodeada num suposto milagre em torno de uma aparição de Cristo ao Conde de Portucale,
dando a garantia e o presságio da independência nacional, cujos nobres/cavaleiros
começaram a apelidar o “chefe guerreiro” com o título de “REX”.

Em síntese, neste contexto histórico, deduzimos uma introdução e declaração do


conceito de Portugalidade, de que a memória e o orgulho em ser português é sinónimo de
uma devoção nacional e unitária.
9
2. Relação entre o rei-fundador e os monges crúzios numa sociedade
em construção2

No ano de 1131, oito anos antes da Batalha de Ourique, ocorrereu a fundação de


uma das mais importantes casas religiosas localizadas na Cidade de Coimbra, cidade
pioneira na expansão territorial. É importante ressaltar que houve o apoio do então D.
Afonso Henriques, outrora Conde de Portucale, para o aumento do prestígio do Mosteiro
em que o mesmo frequentava com bastante assiduidade.

Inicialmente, integraram-se cerca de doze cónegos seguidores da regra de Santo


Agostino de Hipona, uma vertente da Ordem Agostiniana. De facto, estes monges crúzios
pertencentes ao clero regular foram importantes na construção da Monarquia Portuguesa,
ou seja, auxiliadores para a consolidação do poder régio, que segundo José Mattoso, os
monges reconheceram-no como um “escolhido de Deus”, mas sobretudo frisaram a
distinção do seu carácter de autêntica bravura, e por um dos mais importantes
responsáveis na difusão/protecção da fé cristã (valorização do espírito guerreiro)3.
Através destas acções vultosas para Portugal, alcançaram várias recompensas ou
reconhecimentos papais e doações recebidas pelos monarcas portugueses. Tudo isto fez
com que houvesse uma acumulação de bens materiais significativos que os levaram a
ascender politicamente, culturalmente e socialmente em território nacional.

Com o tempo, o Mosteiro de Santa Cruz foi um exemplo no desenvolvimento do


ensino, que apesar de ser destino às honrosas e notáveis elites, tornou-se um centro de
especialização na ideologia firmada na lealdade, recognição e afectuosidade para com D.
Afonso Henriques, e, futuramente, nas restantes dinastias. Logo, por ser uma ponte
substancial na propaganda político-ideológica da independência nacional e de um
governante singular, Afonso Henriques decidiu sepultar-se neste edifício religioso, como
reflexo de gratidão e serviço para com Sua Majestade.

Resumidamente, o Mosteiro dos monges crúzios foi conhecido por ser um ponto
de devoção do povo português, imagem das origens, continuidade de uma memória “post-
mortem”, e, por fim, a iniciação e a extensão do mito do Milagre de Ourique.

2
A informação consta nos seguintes sites: https://www.centerofportugal.com/pt/poi/mosteiro-de-santa-
cruz-de-coimbra/; http://www.patrimoniocultural.gov.pt
3
Informação retirada em Mattoso, José – “A realeza de Afonso Henriques”, Publicado in História &
Crónica, nº13.

10
3. A busca pela consagração da Dinastia de Avis4
D. Fernando, último rei da dinastia Afonsina, quando faleceu, não deixou qualquer
herdeiro do sexo masculino para tomar o trono de Portugal, o que originou uma disputa
com Castela, dado que a independência nacional foi colocada em causa, uma vez que, a
sua filha D. Beatriz constituiu laços matrimoniais com D. João I de Castela. Na verdade,
esta época foi marcada por uma espécie de anarquia e guerra civil que durou cerca de dois
anos (1383 – 1385).

O desejo pela continuação da soberania portuguesa invocou diariamente, um sentido


activo na colaboração do povo português que decidiu revoltar-se contra as pretensões do
reino vizinho, através do auxílio distinto e admirável do Mestre de Avis, futuro D. João I
na tabela real. Portanto, com esta vivacidade revoltosa, D. João I tornou-se o fundador da
nova dinastia – AVIS. Vale notabilizar que este novo monarca buscou pela sua
legitimação por meio das mesmas noções tradicionais e tidas em plena Idade Média; isto
é, evidenciou-se pela sua célebre heroicidade no campo militar; eleição e reconhecimento
por parte do povo português, e mormente pela autoridade pontifícia devido à sua lealdade
para com o Vigário de Cristo em Roma, cujo período, na História da Igreja, atravessou
por imensas instabilidades como era o caso do Papado de Avinhão apoiado pelo Reino de
Castela.

Os tempos permaneceram ncertos, surgindo a necessidade de comprovar a


independência de Portugal face ao território castelhano, em que os portugueses de todas
as classes, movidos por uma fé ardente, recorreram a uma suposta amparação e construção
de justificações firmadas numa actuação divina, de modo a interpretar uma guerra como
elemento improvável de vitória, mas também aproveitaram o situacionismo político para
autenticar a subida de filhos ilegítimos ao comando nacional.

O surgimento de Fernão Lopes encarregou-se de assumir as funções de cronista real


de D. João I, levando à transmissão e à instituição do messianismo, que acabou por criar
uma ligação na sustentação política conectada com a vontade de Deus. Iniciou-se assim
os três novos pilares na consagração da Dinastia de Avis: profecia, sonho e milagre. Não
esquecendo que o Mosteiro de Santa Cruz desempenhou o compromisso em

4
TAVARES, Maria José Ferro, “Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de
Portugal”, Universidade Aberta, pp. 4 – 5.

11
relatar/interpretar a autonomia régia de igual forma a Fernão Lopes, ou seja, a relação
com Deus e o vínculo com o Milagre de Ourique. ~

3.1. Aljubarrota e Ourique em tempos diferentes e com propósitos


idênticos5

No decurso das narrativas elaboradas pelos monges crúzios, focamo-nos no “Livro


das Lembranças” ante as grandes Batalhas que marcaram as duas primeiras dinastias, em
especial a existência de um conjunto de informação colectiva da qual enumeramos da
seguinte forma: a presença de uma pequena força militar, neste caso Portugal, diante de
tropas de número considerável, que apesar de estarem em desvantagem conseguem
muitas das vezes sair vitoriosos. Neste panorama há uma rivalidade com os infiéis, quer
sejam muçulmanos ou castelhanos.

A questão governativa poder-se-á testemunhar que em ambas a situações intercorre a


aclamação de um novo rei admitido e acolhido pelos seus apoiantes, englobando nobres
e cavaleiros que conferem um carácter fundador (salvaguarda da liberdade face a Leão e
Castela) e refundador (vinda de uma nova dinastia), comparando D. João I ao
conquistador, D. Afonso Henriques, utilizando epítetos de “reis-fundadores” e heróis de
guerra.

Relativamente à vertente religiosa, embasando nos feitos heróicos e vencedores, uma


protecção ao Rei e ao seu território teve como índole divina, que, de facto, segundo os
relatos cronísticos, intencionavam tornar legítimo o novo monarca e também a sua
família, consagrando-a de maneira sacra e inviolável em virtude de uma vitória militar
como recompensa do Altíssimo. Logo, para compreender esta correlação do sagrado, os
acontecimentos miraculosos, para além de terem um grau destacável neste tipo de
manifestações legitimadoras, foi estabelecida uma correspondência aos três pilares
defendidos por Fernão Lopes.

Por fim, D. João I, aclamado por todas as classes sociais, em que o povo de certa
forma respeita o desejo do Todo-poderoso, originando a sua exaltação. Por conseguinte,

5
Todos os aspectos informativos mencionados neste tópico encontra-se em: TAVARES, Maria José Ferro,
“Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de Portugal”, Universidade Aberta, pp. 6 –
7.

12
esta dinastia germinou um contexto valorativo do Milagre de Ourique, preservando-o de
geração em geração, incontestavelmente.

3.2. Conquista de Ceuta e a continuação de um legado6

No tópico antecedente, foi visível constatar que a nova dinastia teve de arranjar de
qualquer forma uma justificação para a sua ascensão. Diante do exposto, a Batalha de
Ourique, outrora resguardada nos arquivos e no ambiente do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, teve uma espécie de obrigação em sair e ir ao encontro dos membros da Corte
Portuguesa.

Evidentemente, com a chegada desta novidade, deu-se o início da edificação de um


discurso político-ideológico para novamente afrontar o Reino de Castela, sendo que se
coloca a possível hipótese deste conhecimento de Ourique estar associado a uma das
razões para o começo da expansão portuguesa, especialmente a Conquista de Ceuta e a
sua continuação na missão de converter e aniquilar a influência muçulmânica, fomentada
pelas várias interpretações e referências escritas durante o reinado de D. João I.

Mediante os relatos que apareceram e que influenciaram as mentalidades da sociedade


portuguesa, não esquecendo a existência de forjamentos, D. Afonso Henriques surge
nesta altura como um “santo rei”, em que muitos introduziram o aspecto taumatúrgico na
realização de milagres e curas. Tudo isto contribuiu para que o rei-fundador fosse
comparado a São Tiago “Mata-Mouros”, devido à vitória e à apropriação do território de
Ceuta que levou à sua anexação ao Reino de Portugal. Portanto, a crença e o princípio do
processo de canonização de D. Afonso I fortaleceram a Família Real de Avis, que mesmo
não sendo concluído no século XIV, deixou a missão para que os monarcas sucessores
pudessem retomar e cuidar desta devoção. Sublinha-se, inevitavelmente e novamente, o
valor dos monges crúzios neste novo acontecimento, ganhando cada vez mais prestígio,
do qual o Milagre acrescentou o sentido de esperança, protecção e esforço baseados no
escudo e na espada de Afonso Henriques, força que “advém do destino conferido por
Deus” (alusão à visão de Cristo) localizados no mesmo Mosteiro.

6
Todos os aspectos informativos mencionados neste tópico encontra-se em: TAVARES, Maria José Ferro,
“Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de Portugal”, Universidade Aberta, pp. 10
– 12.

13
3.3. Um novo olhar para Lisboa7

No decorrer do nosso trabalho, é observável a sucessiva e forte actuação dos cónegos


de Santa Cruz na expansão e no relato do Milagre de Ourique. Porém, com o aumento da
preponderância e da centralização dada a esta Ordem pela autoridade régia, aconteceu o
início de um confronto entre duas ordens religiosas que disputavam a forma de como
Cristo aparecera a D. Afonso Henriques.

Para atingir a percepção destes desentendimentos, destaca-se o Livros dos Arautos,


contribuidor para o desenvolvimento de novas narrações relativamente à aparição, da qual
não menciona Jesus Cristo crucificado, cuja visão foca-se nas cinco chagas
completamente ostensíveis e explícitas, levando a um cotejo perante a figura de São
Francisco de Assis. Formou-se assim uma nova versão do milagre alimentando ainda
mais a controvérsia interpretativa.

Consequentemente, nesta nova versão, fica claro uma distanciação da exegese


cruziana, pondo a hipótese de que a mesma fora obrada pelos frades franciscanos,
havendo uma suposta relação na leitura e iconografia com o padroeiro, mas também pelos
adeptos de Lisboa, em que a finalidade era tentar lograr uma maior atenção e estima por
parte do rei. Por certo, é no reinado de D. João I que o local da batalha, no passado um
campo militar, agora um local santificado, foi da mesma forma, indirectamente, alvo de
discórdias religiosas, ou seja, inicialmente eram os monges de Coimbra que detinham a
posse da “verdade” miraculosa, em que posteriormente surgem os franciscanos para
enfrentá-los com dois pormenores essenciais:

1. Introduziu-se a notoriedade e a magnitude religiosa e simbólica em torno das


cinco chagas de Nosso Senhor;
2. Aparecimento de um ermita, mensageiro do Milagre em contexto de batalha,
possuidor de traços franciscanos (hábito) conforme a nossa fonte iconográfica.
Sendo assim, a Ordem Franciscana rompeu com o antigo prestígio do Mosteiro de
Santa Cruz de Coimbra, sendo vítima de maior credibilidade através de uma conversa e
explicação entre o Frei João da Barroca de São Francisco e o Mestre de Avis,
convencendo-o do novo relato da manifestação divina, igualmente acreditada pelo povo

7
Todos os aspectos informativos mencionados neste tópico encontra-se em: TAVARES, Maria José Ferro,
“Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de Portugal”, Universidade Aberta, pp. 12
– 13.

14
lisboeta. Fernão Lopes, na sua Crónica de Portugal de 1419, mencionou que este facto
enalteceu Lisboa e fomentou o messianismo em torno de D. João I.

3.4. Simbologias e formas de aparição

Através das várias e novas interpretações que começaram a surgir fora do Mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra, foi possível notar a questão da introdução de um novo agente
na história em torno do Milagre, isto é, a existência de um ermitão que é mencionado a
partir do reinado de D. João I em pleno século XV, desempenhando a função de
mensageiro divino.

Inicialmente, o relato deste acontecimento introduziu-se a partir de um aviso dado a


Afonso Henriques pelo ermitão no campo de batalha em plena noite quando o chefe
guerreiro estava na sua tenda destinada ao recolhimento, reflexão e oração. Após o
ermitão ter notificado acerca da aparição que ocorreria ao sair da dita tenda, D. Afonso
assimila cepticamente a mensagem pelo facto deste indivíduo não se integrar no ambiente
eclesiástico, nomeadamente não tendo um cargo devidamente prestigiante e com
influência8. Sendo assim, surge a questão: O porquê de ter sido um ermita o mensageiro
de Cristo e não um clérigo? Para responder de uma forma próxima da verdade, criamos
algumas hipóteses/simbologias:

1. Uma vez que o filho de D. Teresa não era ainda reconhecido oficialmente pelo
Chefe da Igreja Romana, implementa-se um obstáculo para que não fosse um
padre ou um bispo, preservando a posição pontifícia;
2. O ermita exterioriza-se com características pariformes a Jesus Cristo num
contexto bíblico; um homem dedicado à pobreza e ao despojamento material;
não é acreditado à primeira impressão; e, por fim, afeiçoado à prática da oração
e do silêncio;
3. Posteriormente, a leitura e o escólio dado pelo Padre António Vieira no século
XVII, configura esta pessoa como um anjo enviado por Deus.

No que concerne aquando dá-se a visão do Salvador ao futuro rei português,


segundo a estrofe de Luís de Camões no Canto III dos Lusíadas, numa posição

8
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 3.

15
comparável à Virgem Maria no Calvário, ou seja, D. Afonso Henriques aparece a adorar
com devoção, a chorar com humildade, e ajoelha-se com submissão9:

“A matutina luz, serena e fria,/As estrelas do Pólo já apartava,/Quando na Cruz


o Filho de Maria,/Amostrando-se a Afonso, o animava./Ele, adorando Quem lhe
aparecia,/Na Fé todo inflamado, assi gritava: “Aos infiéis, Senhor, aos infiéis,/E não a
mi, que creio o que podeis!” (ibid: 45, 1969:122).

O tempo é sinónimo de mudança e a mudança aparece com o tempo, e o caso do


ermita não foi excepção, ornamentando-se com uma das qualidades comuns do ser-
humano: a esperança10. Em outras palavras, quando as tropas de Afonso Henriques
receavam combater, porque observaram que o inimigo se apresentava em maior número,
houve a adopção de uma construção na base do discurso com o propósito de defender a
Fé, já que Afonso tinha a promessa de Cristo em que os mesmos sairiam vitoriosos, sendo
entregues e formadas as armas reais.

Partindo da óptica de Acenheiro, autor da Crónica do Primeiro Rei de Portugal,


continuou a crer que o ermita fosse o devido mensageiro. Contudo, o Filho de Maria não
apareceu à noite, mas de dia, momentos antes da iniciação da batalha, inserindo a data da
mesma no dia da veneração dedicado a São Tiago, como referimos num dos tópicos
iniciais. Aponta-se ao mesmo tempo a perspectiva descritiva de Damião Góis, explícita
na obra “Lisboa de Quinhentos”, um diálogo entre Deus e Afonso Henriques.

Desenvolvendo a temática das simbologias, veremos que a ermida, local onde


reside e ora o ermitão, servindo até como uma razão para que o mesmo fosse o mensageiro
de Deus, esta infraestrutura ou capela menor dá-nos a sensação de um ambiente
paradisíaco-cristão, do qual possui as seguintes particularidades: reclusão face ao mundo
exterior, quietude, calor e prática constante de rezar11 - formação simbólica da ermida.

Relativamente a Duarte Galvão, escritor da Crónica de D. Afonso Henriques,


marcada no século XV – XVI, conferiu um maior valor simbólico à Cruz, porque ela

9
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 5.
10
TAVARES, Maria José Ferro, “Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de
Portugal”, Universidade Aberta, pág. 15.
11
SILVA, ARAÚJO, ARMANDO E ALBERTO, “Para mitanálise da fundação sagrada do reino de
Portugal em Ourique, Faculdade de Letras do Porto e Universidade do Minho, pág. 198.

16
representava a ascensão e a purificação12. Neste caso, o significado da palavra “ascensão”
remete-nos à elevação de Afonso Henriques ao trono do novo reino de Portugal, mas
sobretudo a “purificação” revela-nos a importância da conquista de terras islâmicas na
Península Ibérica, de modo a derrotar o inimigo (muçulmanos) purificando-os
(conversão) com a Doutrina Cristã. Assim sendo, as terras conquistadas pelas tropas
cristãs tornaram-se puras com a verdadeira fé.

A espada na Idade Média, e no caso em concreto do qual abordamos detém de


uma ideia de distinção, indicando aqueles que lutam contra o infiel referido como
“monstro”, cujo intento é proteger a liberdade por intervenção da força. Seja dito de
passagem, a espada assume uma forma de cruz da qual está relacionada à palavra de Deus
como elemento unitivo, sendo que as batalhas contra os inimigos da fé são acções que
buscavam a conversão e que ocorreram em regime diurno, manifestando as noções de
poder e de pureza – HEROICIDADE13.

Resumidamente, Afonso Henriques na Batalha de Ourique, acontecida


supostamente durante o dia, glorifica-o como herói sagrado escolhido por Deus, e distinto
pela posse da sua espada como sinal de unidade, força e liberdade.

3.5. A tentativa de santidade para a sobrevivência da


Monarquia

O pretexto do nascimento e da consolidação da noção de nacionalidade portuguesa


surgiu nos finais do século XV, alimentada pela lenda do Milagre de Ourique. Na verdade,
as formações das possíveis origens são apresentadas mediante uma causa sagrada
utilizada num contexto político e histórico.

É possível averiguar que o embaixador Vasco Fernandes de Lucena, prestador de


serviço do Rei D. João II, ao levar um documento intitulado “Oração da Obediência”,
sendo que o intento era exibi-lo ao Papa Inocêncio VIII, de modo a destacar e dar a
conhecer acerca da importância do acontecimento sobrenatural que ocorrera no ano de
1139, para que fosse relembrado e salvaguardado como memória nacional atingindo o

12
SILVA, ARAÚJO, ARMANDO E ALBERTO, “Para mitanálise da fundação sagrada do reino de
Portugal em Ourique, Faculdade de Letras do Porto e Universidade do Minho, pág. 198.
13
SILVA, ARAÚJO, ARMANDO E ALBERTO, “Para mitanálise da fundação sagrada do reino de
Portugal em Ourique, Faculdade de Letras do Porto e Universidade do Minho, pág. 199.

17
seu apogeu no século XVI. Todavia, esta visita à Santa Sé não teve somente motivos
religiosos, mas de carácter e de interesse político, ou seja, com este testemunho escrito
seria um argumento vantajoso para que os portugueses pudessem avançar na expansão
em território africano, provando que Portugal ainda continuava a ser um instrumento
fundamental e fiel perante a missão na conversão do inimigo da fé14.

Com a notoriedade do Milagre de Ourique e a consideração pela nova memória


nacional, concebeu-se três características que fomentaram a conservação e a origem de
um novo status na sociedade portuguesa15. Enumeramos as seguintes:

1. A busca e a justificação das origens;


2. Sacralização da imagem do rei-fundador;
3. Incorporação do mito na Historiografia Portuguesa;

A partir destes pontos referidos, ergueu-se a primeira tentativa de canonização de


D. Afonso Henriques no reinado de D. João III16, sendo que teve o apoio incansável dos
cónegos de Santa Cruz, orientado pelo Frei Nicolau de Santa Maria, e também pelos
monges de Alcobaça. Esta pretensão de ascender oficialmente a figura de D. Afonso como
santo, que para além de ter uma vertente religiosa, é legítimo incluir um proveito com
objectivo de sobressair o papel do reino no mundo cristão, dado que a sacralização das
origens e a suposta promessa da criação e distinção meritória da nacionalidade do povo
português17 fora conferida por Deus, cognominando-os de “povo eleito”.

Posto isto, temos o resultado do que será o messianismo e o milenarismo na crença


medieval e moderna portuguesa, que por acção do imaginário histórico e simbólico,
concebe um pensamento social utópico e totalmente incerto, de forma que haja um
controlo do futuro que advém das “promessas divinas”, adaptações essas para a protecção
do legado e da sobrevivência do regime monárquico18.

14
TAVARES, Maria José Ferro, “Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de
Portugal”, Universidade Aberta, pág. 15
15
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 199.
16
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 200.
17
SILVA, ARAÚJO, ARMANDO E ALBERTO, “Para mitanálise da fundação sagrada do reino de
Portugal em Ourique, Faculdade de Letras do Porto e Universidade do Minho, pág. 186.
18
SILVA, ARAÚJO, ARMANDO E ALBERTO, “Para mitanálise da fundação sagrada do reino de
Portugal em Ourique, Faculdade de Letras do Porto e Universidade do Minho, pág. 189.

18
3.6. Importância do milagre para um herdeiro improvável

No panorama político dos finais do século XV e inícios do século XVI, o recém-


monarca D. Manuel I teve como missão conseguir uma justificação que convencesse o
meio nacional e europeu acerca da sua ascensão ao trono português. Como já esperado,
neste período renascentista houve uma continuidade recorrente ao divino, tal como
intervém Garcia de Resende:

“he myuto para espantar, / que por elle vir herdar/ seis herdeiros fallesceram,/ hos
quaes todos ouueram/ antes delle reynar”.19 Deste modo, inferimos uma espécie de
iniciativa em sacralizar a sucessão, interpretada como um destino previamente definido
por Deus20. Inclusive, os cognomes atribuídos a este novo rei possivelmente , seriam uma
estratégia para elucidar a sua virtude régia, utilizando “Venturoso” e “Felicíssimo”.

A consolidação da autoridade régia por parte de D. Manuel, levou o mesmo a


visitar o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em 1502, mantendo a tradição na valorização
deste local, sendo este prógono no auxílio para com os seus antecessores. Na realidade,
esta ida abrange dois princípios: enobrecer a lembrança do fundador e renovar de uma
forma mais sumptuosa o seu túmulo, acrescentando na decoração tumular a alusão
iconográfica referente ao Milagre de Ourique, para que houvesse a compreensão e a
eternização visual e memorialística a partir da devoção ou do culto 21. É presumível que
esta visitação tivesse uma natureza política, que mesmo indirecta, o reconhecimento da
santidade perante o corpo incorrupto de D. Afonso Henriques, levaria com que se
acreditasse que a descendência dos monarcas fosse sagrada, mas ao mesmo tempo,
serviria como um pretexto para autenticar D. Manuel I na governação.

19
Garcia de Resende, Miscelânea, p. 343.
20
TAVARES, Maria José Ferro, “Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de
Portugal”, Universidade Aberta, pág. 14.
21
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 200.

19
3.7. Interpretações, mentalidades e transformações do século XVI

Anterior ao século XVI, as mentalidades baseavam-se no combate e no


enaltecimento das vitórias quer seja contra o inimigo ou na pretensão de conquistar novas
terras; isto é, a personalidade guerreira era a chave-de-ouro para alcançar uma imagem
honrosa diante da sociedade medieval, sendo esta pregada, cantada e escrita pela literatura
portuguesa dos séculos XIII ao XV. Logo, no século XVI, houve uma evolução a nível
social e mental que permitiu a formação de um pensamento derivado de crenças
mitológicas na perspectiva cristã22.

Uma figura emblemática para demonstrar a evolução e o contexto do Milagre de


Ourique no século XVI foi Duarte Galvão, autor da Crónica de D. Afonso Henriques, já
mencionado precedentemente. Segundo este cronista, D. Afonso Henriques, em criança,
detinha de uma deficiência motora, especialmente nos membros inferiores. Contudo, após
a suposta manifestação da Virgem Maria durante um sonho de Egas Moniz, em que a
mensagem se destinava a revelar o lugar do acontecimento miraculoso e curativo, de
modo a acabar com o defeito de Afonso, uma vez que, a sua recuperação era fundamental
para cumprir o destino ordenado por Deus, destino esse relacionado na luta contra o infiel
(Batalha de Ourique) e na difusão dos princípios cristãos (Conquista Cristã na Península
Ibérica). Leva-nos a crer que Afonso Henriques teria o apoio divino e agiria como
representante de Cristo e servidor da Igreja23.

A importância do desenvolvimento do Milagre de Ourique retratado na Crónica


de Duarte Galvão, teve repercussões no crescimento da Historiografia Alcobacense que
originaram a Crónica de Cister (1602) de Frei Bernardo de Brito, e a III Parte da
Monarquia Lusitana durante a dinastia filipina. Aliás, resumidamente o milagre é descrito
da seguinte forma:

D. Afonso Henriques, no campo de batalha, estando na sua tenda, recebe a visita


do ermitão (mensageiro), que logo diz que Cristo promete a vitória face às tropas
muçulmânicas, e o surgimento de Jesus Crucificado posteriormente ao toque do sino da
ermida. Ao contrário das versões predecessoras, neste caso, o infante reza a Deus, mas

22
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 5.
23
TAVARES, Maria José Ferro, “Milagres, sonhos e profecias na legitimação da independência de
Portugal”, Universidade Aberta, pág. 15

20
também pede protecção e intercessão da Virgem Santíssima, e adormece. Tudo ocorre em
plena noite. Na manhã seguinte, como prometido ouve-se o sino, o que faz com que o
príncipe saia da sua tenda e depara-se com a exposição do Filho de Maria24.
Supostamente, foi neste dia que todos os apoiantes de Afonso Henriques o aclamaram
como rei cumprindo-se o prometimento divino, constando duas bases medulares: a tão
esperada vitória sob os mouros e a independência do Condado Portucalense.

Em conclusão, os séculos XVI - XVII foram arquitectados e idealizados pelos


monges crúzios e pelos historiógrafos de Alcobaça que contavam com o apoio do regime
monárquico, fazendo com que esta união de conhecimento herdado pelos clérigos
transforma-se toda atmosfera política, social e cultural num testemunho simbólico
credível para a consagração das origens portuguesas25.

3.8. Apogeu da Historiografia-profética na crença sebastianista

O aparecimento do Sebastianismo fora conjugado com a crença do Milagre de


Ourique, em que estes modelos de mentalidade aparecem e são reforçados sempre que o
situacionismo político português é ameaçado, nomeadamente pelo reino vizinho que ao
longo do tempo formou o seu movimento patriota – goticismo castelhano26. De facto,
estamos perante um novo método de execução de discursos ideológicos que fomentaram,
naturalmente, o espírito messiânico e profético nos séculos XVI-XVII27, ou seja, com a
introdução da convicção sebástica, fortificou-se o chamado “mito fundacional” outrora
alicerçado na Lenda de Ourique, para a continuação da autonomia governativa de
Portugal. Igualmente, desabrochou um tipo de exortação na busca pela luta da
independência nacional por intermédio da doutrinação das mentalidades, apoiadas nos
aspectos de teor incerto e religioso28.

24
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 197.
25
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 210.
26
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 13.
27
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 201.
28
SILVA, ARAÚJO, ARMANDO E ALBERTO, “Para mitanálise da fundação sagrada do reino de
Portugal em Ourique, Faculdade de Letras do Porto e Universidade do Minho, pág. 205.

21
Para entender verdadeiramente a relação de D. Sebastião e o zelo pela “doutrina”
do Milagre de Ourique, é necessário termos em mente a seguinte data: 14 de Março de
1578. Nesta data, o monarca redigiu uma Carta Régia destinada ao Padre-Geral do
Mosteiro de Santa Cruz, onde apresentou o pedido na utilização das “armas sagradas” de
D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, de modo a depositar a esperança e a
confiança nestes objectos de combate “sagrados por Deus”, a fim de conseguir sair
vitorioso em Alcácer-Quibir. Aliás, é observável uma comparação entre os dois conflitos,
dado que ambos lutaram contra os sarracenos – missão de conversão29. Por ironia ou
destino, o desaparecimento do rei fez com que, futuramente, se começasse a questionar a
fidedignidade do episódio de carácter milagroso em 1139.

29
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 200.

22
4. Perda da independência (1580 – 1640): “o castigo divino”
Com o término da Batalha em Alcácer-Quibir, uma nova crise debateu-se na
História de Portugal, principalmente na ausência de descendência directa para assumir a
Coroa Portuguesa, uma vez que, D. Sebastião, participante deste evento militar,
desapareceu sem deixar um herdeiro. Para encontrar uma solução na preservação da
independência portuguesa, o tio-avô, D. Henrique, membro do Colégio Cardinalício,
ascendeu ao Trono de Portugal. Todavia, pelos votos de castidade que o obrigavam à não
concretização do sacramento do matrimónio e, logicamente, a impossibilidade de deixar
filhos para substituí-lo após o seu falecimento. Consequentemente, estamos perante uma
nova problemática que coloca a Dinastia de Avis em risco proeminente.

Existia, no entanto, uma forma de contornar esta situação de alguma insegurança


sentida a nível nacional; isto é, havia a possibilidade de suceder D. António, Prior do
Crato (superior da Ordem dos Hospitalários), sobrinho do Cardeal-Rei. Porém, o seu tio
não reconheceu nem aprovou a legítima sucessão. Ainda assim, depois da morte de D.
Henrique, D. António sobe ao trono, mas não consegue consolidar e manter o poder régio.
Pairava um ambiente ambíguo e infirme, o que levou com que em 1580, Filipe II de
Espanha, com o auxílio do Duque de Alba, invadissem através da força, precisamente a
Cidade de Lisboa, do qual lograram e obtiveram o reconhecimento de Filipe como novo
Rei de Portugal, intitulado por Filipe I – INÍCIO DE UMA NOVA DINASTIA.

No ano de 1600, com a influência de todos os acontecimentos anteriores, começo-


se a criar uma perspectiva duvidosa em torno da imagem “santa” de D. Afonso Henriques,
que componha uma devoção tradicional no meio do povo português. Todos estes
questionamentos surgem com Duarte Nunes de Leão, defendendo o acabamento da
veneração do rei-fundador, que segundo o mesmo era ilícito a realização do culto, porque
não existia qualquer autorização ou canonização por parte da Igreja. Salienta-se também
a negação da representação e caracterização do filho de D. Teresa nas descrições
tradicionais, desconfiando reiteradamente das fontes antigas; não rejeitando a realidade
da aparição em Ourique. Estrutura-se uma nova corrente do pensamento - pré-
racionalismo renascentista – que põe em causa a veracidade da personalidade do
fundador, construindo um caminho para o mito30. Podemos relacionar esta época com o

30
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 6.

23
zénite da chamada “Monarquia Lusitana”, nomeadamente a busca pela defesa da dinastia
filipina.

Durante o final do primeiro período dos Filipes, inícios do século XVII, sobreveio
os princípios da desvalorização guerreira de Afonso Henriques, tendo agora como ponto
fulcral o episódio mítico, com a especial atenção no diálogo com Cristo, susceptível a
mudanças no conteúdo da conversação, que, indirectamente, se esforçaram para uma nova
exaltação identitária31 recorrendo à Historiografia-Profética, hábito integrante dos séculos
anteriores. À vista disso, formulamos uma questão: Qual fora o propósito de querer
recuperar o acontecimento miraculoso? De facto, por meio das nossas interpretações o
aspecto político ocupa uma posição valorosa, que mesmo discreta, sugestionou a criação
dos primeiros movimentos restauracionistas, pioneiros na reinvenção e utilização de um
novo contexto historiográfico e social do Milagre de Ourique32.

Frei António Brandão, historiador alcobacense, ao prosseguir com a tese sobre a


Monarchia Lusitana, trouxe ao de cima a crença do Milagre de Ourique, que conforme a
sua conclusão, acredita que até à décima sexta geração real, ou seja, de D. Afonso I a D.
Sebastião I, a protecção divina foi bastante consistente e contínua33. Não obstante, a
diminuição na vivência da fé conduziria a um “castigo divino” que abarcaria a queda da
Dinastia de Avis, originadora da perda da autonomia nacional:
“[…] Conservai livre do perigo a gente portuguesa, e se contra ela tendes algum castigo
ordenado, peço-vos o deis antes a mim, e a meus descendentes, e fique salvo este povo a
quem amo como único filho”34. Este infortúnio na História Portuguesa deu-nos um
entendimento possível como um tempo de reflexão e de aprendizagem, melhor dizendo,
o repensar do significado de “ser português” com vista na valorização do passado heroico,
devoto e singular. Entretanto, a punição não teve apenas uma índole negativa, “mas nela
ainda nesse estado poria o Senhor os olhos”35.

31
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 7.
32
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 12.
33
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 14.
34
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 14.
35
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 14.

24
4.1. Estratégia alcobacense e oposição da União Ibérica

A Historiografia Alcobacense exerceu uma grande influência na Dinastia Filipina,


adoptando uma estratégia inteligente e camuflada no favorecimento do espírito
independentista. Para conseguirem alcançar e provar a legitimação dos reis portugueses,
apoiando-se no mito-fundador, sacralizaram a memória do Milagre de Ourique.

Das notáveis metodologias executadas pelos historiógrafos do Mosteiro de


Alcobaça, destacou-se Frei Brandão, convidado de Filipe III para assumir a função de
cronista-mor. Com a sua capacidade intelectual, e de um modo discreto, empenhou-se em
instruir o filho d’El-Rei, Carlos, herdeiro de Espanha e Portugal, explicando que a
independência do território português surgiu com a intervenção divina, logo urge a
restauração da Coroa Portuguesa. Para ter uma ideia minimamente entendível do processo
doutrinário de Brandão, o mesmo aplicou três critérios36:

1. Demonstrar que as origens portuguesas se diferenciavam das espanholas,


rejeitando a sua conjugação – REFUTAÇÃO DA UNIÃO IBÉRICA;
2. Afirmação do princípio de uma nacionalidade apartada do Reino Espanhol –
ASPECTO SÓCIO-CULTURAL;
3. Anuência da independência – ASPECTO POLÍTICO-IDEOLÓGICO E
CONCEPÇÃO DE NOVOS MEIOS DISCURSIVOS;

Em conclusão, a historiografia praticada pelos clérigos regulares integrantes do


Mosteiro de Alcobaça, tinha a finalidade de criar metodologias para ilegitimar o centro
político de uma Península Ibérica unida, recorrendo ao profetismo e aos aspectos
religiosos, nomeadamente o regresso da lenda de Ourique, para formar novos discursos e
incentivar a movimentação das massas, neste caso os portugueses, na luta contra o poder
vizinho sob território nacional. Logo, há evidentemente, uma nova corrente
historiográfica com teor nacionalista.

36
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 202.

25
5. Restauração, Origens e Sacralidade

5.1. Restauração dos princípios da soberania

No dia 1 de Dezembro de 1640, deu-se a Restauração da Independência de


Portugal e a queda definitiva da Monarquia Lusitana. Recuperou-se, portanto, a
identidade portuguesa. No entanto, surgiu uma nova dinastia (Os Bragança) aclamada por
todas as classes sociais, que igualmente à Dinastia de Avis, teve como intenção provar a
sua lidimidade perante o novo contexto político.

Para compreender o processo de autenticidade da recém-Casa Real, António Pais


Viegas, secretário de D. João IV, foi fundamental derivado às suas duas publicações em
1641, cuja função era perpetuar a noção da soberania: “Manifesto do Reyno de Portugal”
e “Principios del Reyno de Portugal”. Explicamos, de forma sucinta as razões da
execução de cada um destes documentos37:

1. “Manifesto do Reyno de Portugal” – elaborado através de argumentos mais


concretos e racionais, quer seja a nível político, económico e jurídico. De certa
forma, indica as motivações que levaram ao Golpe de Estado de 1640, e a
necessidade de disputar o desejo pela independência e a resistência ao poder
espanhol.
2. “Principios del Reyno de Portugal” – aproveita as razões referidas no Manifesto,
conjugando-as com as premissas de índole sobrenatural. Em outras palavras,
também procura a legitimidade, mas com motivos mais fiéis à devoção popular.
De facto, nota-se que se utiliza novamente a figura de Afonso Henriques para
justificar a fundação do reino, sendo que se centraliza e dá-se um maior grau de
importância à aparição de Cristo em Ourique - menção do juramento do
primeiro monarca.

Posto isto, esta documentação foi introduzida na História Portuguesa,


historiografia essa que viria a ser impulsionadora na construção da nacionalidade e
fomentadora de uma ideia que em 1640, fora um ano de reverter e restituir as promessas
de Deus em Ourique, de modo a honrar o destino designado por Ele38. Este modo de agir

37
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 203.
38
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 204.

26
e de pensar foi retratado na chamada literatura restauracionista que, de certa forma, entra
no âmbito historiográfico, mas não é revestido de imparcialidade, pois, a sua função era
servir o Estado como meio de propaganda, fazendo acreditar novamente no Milagre como
acção defensora das origens, noção do “povo eleito”, e, por fim, a necessidade de pregar
o comportamento heróico de 164039; isto é, a literatura da Restauração revigorou os ideais
da História Alcobacense, dos Monges Crúzios e dos antigos cronistas, dando uma nova
roupagem a um tipo de discurso político-ideológico moldado ao raciocínio português na
metade do século XVII.

O novo procedimento na legitimação de D. João IV, marcado por momentos de


instabilidade política e social, teve como consequência e ânsia de propôr à Santa Sé a
canonização de D. Afonso Henriques, e, logicamente, aproveitaram o situacionismo
vivido para santificar Nuno Álvares Pereira40, suposto fundador da Casa de Bragança,
tornando-a santa e predestinada.

5.2. Origens de um passado na edificação do “Quinto Império”

Nos finais do século XVI e no decorrer do XVII, o aspecto cultural do povo


português foi assinalado “entre o mito fundador e o messianismo sebástico”41, tanto que,
o Padre António Vieira, integrante da Companhia de Jesus em missão além-mar, detentor
de uma imagem pioneira na junção da aparição de Cristo com a fundação do Reino de
Portugal, o que fez criar a concepção do conhecido “Quinto Império”, que no fundo é
composto por duas formas de pensamento presente em toda a história política, religiosa,
cultural e social: o messianismo e o milenarismo. Mas, sendo assim, o que caracteriza
este “Quinto Império”?

Segundo o jesuíta António Vieira, este sistema imperial baseava-se nas palavras
de Cristo a Afonso Henriques, cuja responsabilidade era fundar um império universal e
cristão (elevar o Catolicismo), em que o imperador seria um descendente do rei-fundador.
Logo, leva-nos a constatar uma relação próxima com o sentido do “povo eleito”, missão
que pertencia exclusivamente aos portugueses (noção de superioridade).

39
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 204.
40
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 204.
41
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 201.

27
5.3. Da política à sacralidade: a fé nas Cinco Chagas
Com a pós-restauração da independência de 1640, os anos seguintes foram
marcados pela pacificação interna do reino, ou seja, a autoridade régia, agora autónoma
e totalmente portuguesa, encontrou a sua perfeita consolidação. Na verdade, a
harmonização do ambiente social e governativo, fez com que o Milagre de Ourique
renunciasse ao seu carácter político revestindo-se de pura sacralidade, sendo visível no
decorrer do século XVIII, essencialmente nos reinados de D. João V e do seu filho, D.
José I, através das regalias e reconhecimentos dados pela Santa Sé42.

No período joanino, o mundo intelectual português setecentista utilizou o


acontecimento sobrenatural em Ourique, de forma a torná-lo “monumento nacional” e
uma ponte entre o poder eclesiástico e o poder régio, que resultou numa maior fomentação
da esperança em gerar um novo santo: D. Afonso Henriques. Portanto, os cónegos de
Santa Cruz voltaram a desempenhar a missão de construir um novo processo de
canonização tendo como base o processo de 155643, a pedido de D. João V e de D. José,
destacando-se D. João de Santa Maria de Jesus, que fora um elemento de ligação entre
Portugal e Santa Sé44, no que se refere aos avanços deste pedido de santidade. Inclusive,
para além do que mencionamos, a fé nas Cinco Chagas de Jesus Cristo nasce com o
conhecimento da aparição, que, aliás, D. Tomás de Almeida, primeiro Patriarca da Sé de
Lisboa, junto com a aprovação do clero português, decidiram insistir que no Reino de
Portugal e Algarves, houvesse uma devoção pelos ferimentos ocorridos na cruz, para que
fossem objecto/imagem central da fé do povo português45, quer no âmbito litúrgico
(Missa) ou em cerimónias e dias específicos para a prática da oração por essa intenção.

Em 1753, com a aprovação de Roma, os cincos escudos presentes no brasão


nacional, deixaram de ser alusivos aos cinco reis mouros combatidos na Batalha de
Ourique, mas adaptaram-se ao contexto religioso no século XVIII; isto é, os cinco escudos
passaram a ter uma simbologia referente às Cinco Chagas de Cristo46. Logo, o Milagre
de Ourique paramenta-se de uma justificação totalmente devocional, e não como outrora.

42
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 209.
43
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 209.
44
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 205.
45
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 205.
46
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 205.

28
6. No interior da devoção e da desconfiança

6.1. Curas e representação barroca

Havemos de notar que esta devoção em torno da figura de D. Afonso Henriques e


da aparição de Cristo ganhou relevo com a visão literária47; isto é, a Crónica de 1419,
apesar de vangloriar novamente os feitos heróicos do fundador em campo de batalha,
deu extrema importância à herança caracterizadora realizada pelos monges crúzios,
fundamentando-se numa personalidade piedosa e “quase monástica”. Sendo assim,
esta retratação é reflexo da regra praticada pelos religiosos de Santa Cruz.

Fernão Lopes baseou-se nos relatos vindos de Coimbra, que constava que o
túmulo do primeiro monarca seria um local de devoção por parte dos portugueses,
que tinham o objectivo de prestar veneração em busca de curas, agradecimentos e
intercessões48; é curioso que esta estima tenha sido dada a Afonso Henriques sem o
mesmo ter sido canonizado pela Igreja. Visto isto, com o crescimento desta fé, D.
João III sente-se na obrigação de iniciar a primeira tentativa de canonização49.

Para comprovar que este “interior de devoção” não ficou somente em terras
portuguesas, a nossa fonte iconográfica "O Milagre de Ourique - Salvatore Nobili",
Igreja de Sant'Antonio in Campo Marzio, na Cidade de Roma, dá-nos uma visão
alargada do Milagre de Ourique. Através da leitura das nossas fontes/estudos
tentamos interpretar e conjugar as interpretações face a esta pintura:

Na parte superior, a cruz é um símbolo de destaque do qual valoriza-se


visivelmente as cinco chagas (representação tipicamente franciscana), que apesar de
interrogarem “cristo crucificado” vão de alguma forma conjugar as duas versões.
Logo, como vimos anteriormente, Duarte Galvão interpreta com dois conceitos o
Cristo pregado à Cruz, ou seja, a purificação (conversão dos islâmicos por meio da
batalha) e a ascensão (Afonso Henriques com a vitória ascende a Rei). No fundo, a

47
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 4.
48
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 5.
49
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 200.

29
luz em volta da cruz, segundo o tópico das simbologias, faz alusão ao dia, sinónimo
da prática do poder.

No meio há a presença de dois anjos. O primeiro anjo incorpora uma visão de


protecção à autoridade régia e ao futuro reino, uma vez que, este entrega a coroa dada
por Deus a Afonso Henriques, e um novo escudo com cinco símbolos representativos
dos cinco reis mouros derrotados. Já o segundo anjo paramenta-se como uma imagem
de esperança, que carrega numa das suas mãos um documento em pergaminho,
documento esse que legitima o poder régio e a sucessão. Inclusive, esta figura
angelical está vestida com uma capa cor-de-rosa com a seguinte inscrição: “IN HOC
SIGNO” (“Com este símbolo vencerás”) – SENTIMENTO DE ESPERANÇA E
VITÓRIA.

Por fim, na parte inferior, podemos ver o infante D. Afonso ajoelhado,


simbolizando a submissão e a adoração ao Altíssimo, que podemos fazer corresponder
a uma representação iconográfica da Virgem Maria aos pés da Cruz no Calvário. O
manto vermelho sobre os ombros, supõem-se estar interligado com o antigo poder
imperial romano, e a armadura que o mesmo veste reflecte a missão de um chefe-
guerreiro. O ambiente nocturno, caracterizado pelas narrações dos crúzios, é
mergulhado num espaço de extrema calmaria, oração e reflexão (campo de batalha –
tópico das simbologias); é observável que Afonso abandona o seu arsenal (escudo e
capacete) renunciado ao antigo estado (infante), de modo a recolher os privilégios
concedidos por Deus, significando uma subida de grau (rei). Não menos importante,
e numa parte pouco visível e profunda, a existência do ermitão (perspectiva da Ordem
dos Franciscanos defendida pelo Frei João da Barroca) com o hábito dos frades de
São Francisco de Assis.

6.2. Verney e os critérios do Santo Ofício

Padre António Verney surge num século onde tudo começou a ser questionado,
principalmente pelos intelectuais setecentistas, de modo a buscar a racionalização,
sendo que muitos acreditaram que este sacerdote pertencia à corrente iluminista. E,
de facto, na sua obra intitulada “O Verdadeiro Método de Estudar”, colocou em causa

30
o não acontecimento da aparição de Cristo ao rei-fundador, mas sobretudo questionou
reiteradamente as crenças e os aproveitamentos que desse milagre provieram.

Evidentemente, estamos num período marcado pela forte presença do Tribunal do


Santo Ofício no ambiente cultural, social, intelectual e político, que ao ter
conhecimento das alegações de Verney, que na perspectiva da Inquisição tratava-se
de uma afronta para com a História e a Devoção do povo português. Logo, esta vê a
necessidade de publicar um documento em 1753, “Relaçam verdadeira da appariçam
de Christo Senhor Nosso, no Campo de Ourique, ao Santo Rey Dom Affonso
Henriques, e da Batalha, em que venceo cinco Reis, e quatrocentos mil Mouros”,
com intuito de refutar todas as alegações e evidências elaboradas por António Verney.
Dionísio Teixeira, familiar e autor do documento pertencente ao Santo Ofício,
também aproveitou esta desconfiança para adaptar o milagre às visões do século
XVIII50, afirmando que os portugueses ao acreditarem neste evento miraculoso não
feriam a fé católica51, conservando uma memória nacional.

6.3. A racionalidade portuguesa no século XIX

Alexandre Herculano constituiu grande parte dos questionamentos diante da


controvérsia do Milagre de Ourique, cujo século XIX é marcado por um novo
movimento de progresso em todos os aspectos, precipuamente no campo das
mentalidades. Portanto, Herculano define dois princípios: a problemática pelos
documentos forjados que relatavam a aparição52, mas que Ourique incorporou um
símbolo de tradição portuguesa. Isto levou à criação de um debate aceso.

Conforme o mesmo, a junção da História e da Tradição de Ourique, foi um


pretexto para o nascimento e o crescimento dos movimentos nacionalistas, tendo uma
utilidade a nível social, ou seja, esta posição de desconfiança cada vez mais ferrenha

50
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 204.
51
BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na cultura portuguesa
(séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães, Volume III, pág. 205.
52
BUESCU, Ana Isabel, “Alexandre Herculano e a polémica de Ourique – Anticlericalismo e Iconoclastia”,
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de História, pág.
42

31
de Herculano conduziu a uma desavença com o clero português53, já que o mesmo
tirava a conclusão de que os eclesiásticos usavam esta crença incerta e mítica para
doutrinar os pensamentos do povo português ao longo dos séculos. Aliás, Herculano
assumia-se anti-clerical, porém não anti-religioso, que muitas das vezes tendeu-se a
confundir os seus conceitos54. O que este historiador e pensador defendia era a
liberdade de expressão e religiosa, de modo a retirar a grande influência que o clero
tinha na sociedade de Portugal.

No seu desenvolvimento historiográfico, houve uma análise da aparição de Cristo


a Afonso Henriques, tentando sempre ser imparcial, confrontando-se com a luz dos
factos, todavia, não apagando a importância, tradição e memória em volta desta55, ou
seja, não escondeu o seu espírito republicano, reconhecendo que este milagre foi o
sustentáculo para a manutenção da Monarquia Portuguesa56.

53
BUESCU, Ana Isabel, “Alexandre Herculano e a polémica de Ourique – Anticlericalismo e Iconoclastia”,
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de História, pág.
43.
54
BUESCU, Ana Isabel, “Alexandre Herculano e a polémica de Ourique – Anticlericalismo e Iconoclastia”,
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de História, pág.
44.
55
BUESCU, Ana Isabel, “Alexandre Herculano e a polémica de Ourique – Anticlericalismo e Iconoclastia”,
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de História, pág.
45.
56
BUESCU, Ana Isabel, “Alexandre Herculano e a polémica de Ourique – Anticlericalismo e Iconoclastia”,
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de História, pág.
49.

32
Conclusão
Aquilo que norteou o nosso trabalho foi o objectivo de construir uma síntese fiável
daquilo que foi a construção da Monarquia Portuguesa e o processo da própria
legitimidade régia mergulhada na controvérsia do Milagre de Ourique, tentando, depois,
transpor esses conteúdos de uma forma minimamente compreensível.

Com a leitura das fontes apresentadas no decorrer dos diversos temas, foi possível
reunir um conjunto de informações dispersas de vários estudos, construindo assim uma
continuidade, mas também uma confrontação visível acerca da devoção e da desconfiança
em torno do nosso objecto de estudo. Por sua vez, estas permitiram conhecer e reconhecer
as características da importância das mentalidades e do situacionismo político a nível
histórico, social e na construção da própria memória. De facto, foi fundamental uma
relação e entendimento da perspectiva eclesiástica desta pequena investigação e
interpretação das fontes, que contribuiu convictamente para o conhecimento.

No decorrer do exercício de interpretação, desenrolou-se um processo de


aprendizagem e crescimento. Ao aprofundar os conhecimentos, ao compreender as
mentes e a questão supostamente miraculosa, foi possível observar que as origens da
identidade portuguesa e a consagração dos monarcas são conteúdos que apresentam uma
grande susceptibilidade de reunir imensas perspectivas, identificados na problemática da
controvérsia “no interior da devoção e da desconfiança”.

Em suma, podemos concluir que o processo político no regime monárquico entre os


séculos XIV – XVII é um assunto difícil, no entanto, possível. Leva-nos a crer que esta
edificação e esta busca pela autenticação do poder régio não é algo constante ou imutável.
Aliás, é um desenvolvimento feito de altos e baixos, cujo “credo” teve que ser adaptado
aos tempos e às vontades. Com toda a certeza este assunto construirá novas perguntas,
visões, interesses, críticas e desmitificação de narrações ou fontes que ainda estejam
envolvidas na ambiguidade. No entanto, para alcançarmos uma resposta, que nunca será
absoluta, é fundamental colocar pontos de interrogação e vestir de imparcialidades. Tal
como escreveu Garrett: “[…] Portugal é, foi sempre, uma nação de milagre, de poesia”57.

57
CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência”, Universidade
Autónoma de Lisboa, pág. 18

33
Fontes e referências bibliográficas

1. Estudos
a) CARMELO, Luís, “O Milagre de Ourique ou um mito nacional de
sobrevivência”, Universidade Autónoma de Lisboa;
b) BUESCU, Ana Isabel, “Alexandre Herculano e a polémica de Ourique –
Anticlericalismo e Iconoclastia”, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas, Departamento de História;
c) BUESCU, Ana Isabel, “A profecia que nos deu pátria: o milagre de Ourique na
cultura portuguesa (séculos XV-XVIII)”, 2º Congresso Histórico de Guimarães,
Volume III;
d) SILVA, ARAÚJO, ARMANDO E ALBERTO, “Para mitanálise da fundação
sagrada do reino de Portugal em Ourique, Faculdade de Letras do Porto e
Universidade do Minho;
e) TAVARES, Maria José Ferro, “Milagres, sonhos e profecias na legitimação da
independência de Portugal”, Universidade Aberta.

2. Fonte iconográfica
a) "O Milagre de Ourique - Salvatore Nobili", Igreja de Sant'Antonio in Campo
Marzio, Roma.

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Anexos

Figura 1 - "O Milagre de Ourique - Salvatore Nobili", Igreja de


Sant'Antonio in Campo Marzio, Roma. (Fonte iconográfica)

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