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1. Introdução.............................................................................................. 13
1.1. A cidade brasileira na historiografia e nas disciplinas afins ..................... 13
1.2. Objetivos da pesquisa .............................................................................. 17
1.3. O recorte espacial e cronológico .............................................................. 21
1.4. Caracterização das fontes utilizadas ........................................................ 24
2. Perspectiva teórico metodológica e problemas conceituais................. 27
2.1. Considerações gerais ............................................................................... 27
2.2. Espaço ..................................................................................................... 33
2.2.1. O retorno do espaço................................................................................. 33
2.2.2. O que é uma cidade? ............................................................................... 45
2.2.3. O que é um arraial? ................................................................................. 49
2.3. Religião ................................................................................................... 52
2.3.1. Religião popular ...................................................................................... 62
2.3.2. Sagrado/profano ...................................................................................... 67
2.3.3. «Superstição» ........................................................................................... 70
2.4. Por uma síntese das abordagens............................................................... 71
2.4.1. A contribuição da ciência da religião ....................................................... 71
2.4.2. A contribuição da geografia da religião ................................................... 73
Agradecimentos
A realização desta pesquisa contou com o acompanhamento e o decidido apoio de
meu orientador, Prof. Dr. HansAJürgen Prien. Desde nosso primeiro contato, o
Prof. Prien demonstrou grande interesse por minha proposta de trabalho. Os reA
sultados obtidos devem muito ao construtivo diálogo que, ao longo destes anos,
se estabeleceu entre nós. Meus agradecimentos se extendem igualmente ao Prof.
Dr. Michael Zeuske e ao PD. Dr. Holger Meding, não só pela solicitude com que
sempre me receberam mas também pelos inúmeros conselhos durante o período
em que desenvolvi meus estudos no Instituto de História Ibérica e LatinoAameriA
cana da Universidade de Colônia.
Ao Prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorin Filho agradeço pelas instrutivas converA
sas e inúmeras indicações bibliográficas no campo da geografia cultural. A Profa.
Dra. Zeny Rosendahl teve a gentileza de me enviar um exemplar de seu manual
de introdução à geografia da religião. O Prof. Dr. Wolfgang Schieder honrouAme
com um convite para participar das sessões do seu colóquio de doutorandos, onde
pude aprender bastante sobre a moderna escola alemã de história social. Graças
ao Prof. Dr. Ion TaloQ deiAme conta da importância das contribuições recentes da
folclorística ao estudo da religião e da cultura popular.
Sem o decidido apoio de Daniel Hirschler, Johannes Hirschler e Ulrich EuA
mann as dificuldades impostas pelo idioma alemão certamente teriam sobreA
pujado minhas forças. Prof. Dr. Tarcísio Botelho, Dalton Andrade, Renato Alves,
Ricardo Álvares e Izabel Missagia de Mattos enviaramAme do Brasil – muitas veA
zes espontaneamente – todo o material de que eu por vezes carecia. Dra. Débora
Bendocchi Alves e Michael Faust foram muito mais que amigos. Débora e MiA
chael ajudaramAnos, a mim e minha esposa, de todas as formas possíveis, antes
mesmo de nos conhecermos pessoalmente.
A todos o meu muito obrigado.
Desnecessário dizer do quão importante foi o apoio financeiro que obtive junto
ao Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) para a realização e puA
blicação deste estudo.
Um agradecimento especial, por fim. Desde que surgiu em mim a idéia de
analisar as relações entre religião e protoAurbanização em Minas Gerais, tive em
minha esposa muito mais que uma companheira. Refletindo sobre minhas hipóteA
ses (não raro criticandoAas), auxiliandoAme na cansativa fase da pesquisa docuA
mental, dividindo comigo os frutos de seu rico aprendizado junto ao Prof. TaloQ,
relendo e corrigindo as primeiras versões dos capítulos, Giulle acabou por exerA
cer uma influência direta sobre praticamente tudo que escrevi. Creio fazerAte um
mínimo de justiça, minha preta, ao dedicarAte este livro.
Para Giulle
11
Prefácio
A fim de escrever sua tese sob minha orientação e obter o título de Doutor em
História pela Universidade de Colônia, Sérgio da Mata submeteuAse a todos os
requisitos da Faculdade de Filosofia, das provas germanicum e latinum aos semiA
nários em história e, em especial, em história ibérica e latinoAamericana.
Da Mata é um exemplo do quão frutífero pode ser o intercâmbio acadêmico a
nível internacional. Por meio deste intercâmbio ele pôde entrar em contato com a
tradição historiográfica e a literatura produzidas na Alemanha. Além do mais, foi
um feliz acaso que, para o estudo de seu objeto, a cátedra de história ibérica e laA
tinoAamericana estivesse ocupada por um especialista em história da Igreja.
É com prazer que recomendo ao prezado leitor este excelente estudo interdisA
ciplinar, no qual Da Mata oferece uma importante contribuição ao ainda pouco
pesquisado tema da protoAurbanização nas suas relações com o espaço e a religioA
sidade popular na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. Da Mata defende, de
forma decidida, uma linha de pesquisa própria. E fundamentaAa convincenteA
mente.
1. Introdução
1.1. A cidade brasileira na historiografia e nas disciplinas afins
Quase toda cidade brasileira já teve seus historiadores, ou, quando menos, seus
memorialistas. Sempre em voga, a história do urbano é fruto de uma ânsia de
(re)construir a memória de uma coletividade. Suas características fundamentais
são recorrentes, e não nos seria difícil enumerar algumas delas: o retrato de vida
dos pioneiros, a genealogia das famílias ilustres e dos beneméritos locais, a visão
harmônica das relações entre as classes sociais, a fé inabalável no «progresso» da
comunidade. Não deve surpreender o fato de que, no mais das vezes, este tipo de
literatura histórica continue pouco ou nada afeita a questões de rigor teóricoAmeA
todológico, pois o que ela procura não é explicar a história mas sim idealizar o
passado e, sobretudo, mitificáAlo. O historiador «pósAmoderno» poderá dizer, com
alguma ironia, que a historiografia acadêmica nem sempre se afasta deste moA
delo. De fato. Mas o grande problema da história tradicional do urbano reside no
fato de que, freqüentemente, o retrato que ela oferece procede a uma simples inA
versão da lógica da caricatura. Se esta realça os «defeitos», aquela simplesmente
os ignora. TemAse a impressão de que esse tipo de «historiografia» não passa de
uma tentativa de fundir o histórico, o mítico e o utópico num só gênero.1
As barreiras da memorialística foram rompidas. A cidade é hoje um campo de
pesquisa dos mais privilegiados das ciências humanas no Brasil. A produção ciA
entífica é extensa e, podeAse mesmo dizer, desfruta de uma tradição própria. O
fato de que os estudos sobre a cidade desde muito cedo atraíram a atenção não só
de historiadores mas também de sociólogos, geógrafos e urbanistas, traduziuAse
numa tendência sempre acentuada pelo diálogo interdisciplinar – aspecto que
continua aliás a ser uma das marcas das pesquisas nessa área. Fazer um amplo leA
vantamento desta literatura seria assumir uma tarefa muito além de nossas forças.
LimitaremoAnos aqui a mencionar alguns dos estudos mais significativos e as diA
ferentes perspectivas analíticas neles desenvolvidas.
A influência de um historiador como Sérgio Buarque de Holanda foi e continua
imensa. Seu grande mérito foi sem dúvida o de propor uma análise da cidade
brasileira no contexto de uma interpretação abrangente de nossa cultura e de
nossa história. Somente Oliveira Vianna parece ter tido a mesma preocupação,
embora suas conclusões tenham sido obviamente distintas das de Sérgio Buarque.
Há entretanto um evidente ponto de convergência entre estes dois clássicos. Para
o mestre paulista a cidade colonial portuguesa, ao contrário da espanhola, não se
impôs sobre a natureza, não chegou a configurar «um ato definido da vontade
humana».2 Para Vianna, nossa rede urbana foi um fruto da ação do Estado, nunca
do povo – nosso homo colonialis era, diz ele, um «amante da solidão e do deA
serto».3 Debilidade da vontade civilizadora em um, déficit de sociabilidade no
outro. Essa visão negativa e às vezes pessimista da cultura e da sociedade brasiA
leira é bem típica (com as exceções de Gilberto Freyre e Cassiano Ricardo) da
geração de intérpretes do período do entreAguerras.
O esforço de interpretação do fenômeno urbano brasileiro como parte insepaA
rável de uma teoria geral do Brasil passa a ser contrabalançado pela influência
crescente da pesquisa universitária. Dois trabalhos clássicos, escritos a partir de
uma ampla perspectiva comparada, foram publicados pelos geógrafos Rubens
Borba de Moraes (1935)4 e Pierre Deffontaines (1938).5 A antropologia social,
por sua vez, centrouAse no estudo monográfico de pequenas unidades urbanas
afastadas dos grandes centros, e teve em Emílio Willems e Donald Pierson duas
figuras de referência a partir de fins da década de 1940.6 Em 1950, um outro
cientista social, Thales de Azevedo, conclui seu Povoamento da cidade de Salva
dor.7 No mesmo ano Pierre Monbeig defende sua tese de doutorado sobre a conA
quista e urbanização do oeste paulista.8 A contribuição dos geógrafos ganha imA
portância a partir de meados daquela década com Aroldo de Azevedo. São da sua
autoria e de sua equipe alguns dos mais significativos estudos sobre a evolução e
a morfologia dos «embriões de cidades brasileiras».9 Dois outros importantes traA
balhos surgem em 1968 e 1971, respectivamente com Nestor Goulart Reis Filho e
Nelson Omegna.10 Neste período, a crescente influência da sociologia urbana
fico, eventualmente têm de melhor a oferecer. E não se pense que a balança das
interAinfluências disciplinares continua pendendo francamente a favor da história.
AfirmáAlo seria ignorar a riqueza do debate teóricoAmetodológico que, desde a
década de 1970, se desenvolve na geografia.20
DeveAse investigar a formação do arraial como um todo, ou privilegiar um faA
tor (ou conjunto de fatores) que nela desempenha um papel decisivo? DesnecesA
sário dizer que há poucos fenômenos tão multifacetados quanto o que aqui se
pretende discutir. As causas que presidem a formação de um povoado são legião:
a instalação de um posto militar avançado, a decisão solitária de um soberano anA
sioso de levar a «civilização» a regiões inóspitas, um local de encontro de comerA
ciantes, o esconderijo de escravos fugidos, a ética salvacionista de um missionáA
rio ou de um líder milenarista, a decisão coletiva de um grupo emigrado e disA
posto a «começar de novo», uma concorrida rota de comunicação que, espontaA
neamente, parece coagularAse num determinado ponto, etc. A interação com as
possibilidades oferecidas pelo meio não é menos decisiva. O caráter do povoaA
mento está em relação direta com o quadro natural do sítio escolhido. Os ascetas
optam pela montanha ou o deserto; os quilombolas buscam o refúgio das matas; a
cidadela se estabelece preferivelmente na planície, às margens de um curso
d’água. FundemAse o econômico, o político, o religioso, o ecológico. Resta saber
a qual dessas dimensões daremos prioridade.
QuerAnos parecer que, dos fatores envolvidos no nascimento de uma cidade, os
que tradicionalmente menos chamaram a atenção dos pesquisadores foram os de
ordem religiosa. Numa obra de síntese sobre a geografia do Brasil lêAse que «a
importância das cidades está na relação direta com as funções por elas abrigadas.
Entre essas funções podemos citar a comercial, a industrial, a financeira, a políA
tica, etc.»21 O autor das linhas acima resume as funções do núcleo urbano a duas
apenas: a econômica (em suas diversas modalidades) e a política. Nenhuma refeA
rência, por ligeira que seja, é feita à função religiosa. CidadesAsantuário das quais
todo brasileiro já ouviu falar, como Juazeiro ou Aparecida do Norte, não parecem
representar um fenômeno digno de nota. Cidades que nasceram e se desenvolveA
ram, somos tentados a dizer, quase que como a expressão espacializada do uniA
verso religioso popular – e elas não são poucas. Embora sempre tenha havido voA
zes na literatura especializada a ressaltar a importância decisiva da religião na
criação do espaço urbano22, não se deu atenção à questão. Em resumo podeAse diA
zer que, no que diz respeito à cidade brasileira, a geografia se ressente da ausên
cia do religioso tanto quanto a historiografia se ressente da ausência da origens.
Em boa medida, esta atitude diante do espaço e do social traduz uma projeção
inconsciente da visão de mundo contemporânea sobre fenômenos que se desenA
O fato de centrarmos nossa atenção não nos padrões de urbanização, mas sim
nos de protoAurbanização, pode ser finalmente justificado. Quantos povoados braA
sileiros não se resumem a um conjunto de casas disposto em torno de uma igreja?
O olhar do geógrafo, sempre atento às peculiaridades da paisagem, percebeAo
mais rápido e procura entender por que o espaço assume uma determinada confiA
guração e não outra. Foi assim que Deffontaines, em sentido diametralmente
oposto à tese do «antiAurbanismo» de Oliveira Vianna, observou que a formação
do embrião de cidade é fruto «de uma necessidade de vida social». A cidade nasA
cente, continua ele, «é essencialmente uma igreja e uma praça». E mais:
«O modo de criação desses burgos mostra bem a proeminência da função reA
ligiosa que serviu de ponto de concentração inicial. Em geral é um fazenA
deiro ou uma reunião de fazendeiros vizinhos que faz doação do território;
ele o constitui em patrimônio, patrimônio oferecido à igreja ou antes a um
santo. (...) Os proprietários vizinhos, desejosos de aproveitar as vantagens
deste agrupamento, obtém lotes por locação, por arrendamento muito longo
ou por perpetuidade mediante pagamento de um foro. Os benefícios realizaA
dos são destinados à construção da capela, à manutenção de um padre, cura
ou vigário, ao estabelecimento de um cemitério, à organização de festas
(festas religiosas) e também ao embelezamento da cidade, ou antes, da
praça.»27
Deffontaines constata ao fim de seu estudo que «foi sem dúvida esse processo do
patrimônio que deu ao Brasil a maioria das suas cidades, pelo menos na parte
central do país».28 Monbeig, num texto originalmente publicado em 1940, escreA
via que seria para ele motivo de alegria que «verdadeiros historiadores» se dediA
cassem «ao problema das origens das cidades brasileiras». E concluía: «é o voto
formulado por um leigo e os historiadores dirão se é possível atendêAlo».29 É surA
preendente que, mais de meio século depois, se continue a ignorar este convite. À
exceção dos geógrafos (e não foram muitos), somente o urbanista Murillo Marx
deuAse conta da importância de dar prosseguimento às pesquisas neste campo.
Dissemos há pouco: a literatura disponível sobre a cidade brasileira se ressente,
de um lado, de uma ausência das origens, e, de outro, de uma ausência do fator
religioso. Algo como uma geografia histórica da religião pode vir a ser uma
forma de contribuir para que ambas as lacunas possam ser ao menos parcialmente
preenchidas. É o desafio diante do qual nos colocamos ao iniciar este trabalho.
Ele se propõe a estudar de forma sistemática a importância das representações e
de ignorar a importância desta transição. Como e por que uma sociedade de perfil
nitidamente rural, centrada em unidades auto suficientes – as fazendas – conti
nuou a gerar cidades?
PoderAseAia perguntar ainda como se justifica um estudo das formas elementaA
res do espaço urbano num espaço de tempo tão dilatado. Em princípio, não se
trata de postular a transição de um modelo de protoAurbanização a outro, mas de
demonstrar que formas alternativas de instituição do espaço podem ser identifiA
cadas relativamente cedo na história de Minas Gerais, e que elas não só se mantiA
veram como ganharam importância ao longo do século XIX. A que será alvo
principal de nossa atenção é a que evidencia a «proeminência da função religiosa»
(Deffontaines). A formação de um arraial a partir de uma capela e do seu patriA
mônio em terras é um processo dotado de tal força e regularidade que não hesitaA
ríamos em qualificáAlo de estrutural.
Estrutural no sentido da longa duração de Braudel: processos que obedecem a
um regime de temporalidade radicalmente distinto do da variação dos ciclos ecoA
nômicos, do das reviravoltas políticas ou ainda, para tomar um exemplo contemA
porâneo, do tempo curtíssimo que rege as bolsas de valores sob o influxo da
«globalização». Quando se estuda o impacto da religião na sociogênese dos arA
raiais fica evidente a continuidade de determinados padrões por praticamente dois
séculos. Por vezes é possível identificar esta persistência mesmo nos dias de hoje,
como se vê no caso da Vila de Piedade de Gerais, um embrião de cidade em
pleno desenvolvimento a 110 km de distância de Belo Horizonte. Este embrião
deve sua origem à crença em aparições de Nossa Senhora a três crianças a partir
de setembro de 1987. Onde inicialmente havia apenas duas moradas, em 1994 viA
viam cerca de 200 pessoas distribuídas em 40 casas. O local, anteriormente deA
nominado Barro Vermelho, passou a ser chamado Vila de Piedade dos Gerais, ou
ainda Vale Santo.38 Numa sociedade dita «secularizada» fenômenos deste tipo
tendem a ser cada vez mais raros, o que evidentemente não era o caso da Minas
antiga.
Se é excessivo postular, como fez Barbosa, que «à exceção das vilas do ouro,
em todos eles [os povoados mineiros] a capela precedeu a formação do arraial»,39
há que reconhecer que os números são expressivos. Um primeiro levantamento
realizado a partir da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e do Dicionário
Histórico Geográfico de Minas Gerais mostrouAnos que cerca da metade das loA
calidades elevadas à condição de cidade em Minas Gerais até o ano de 1900 tiveA
ram sua origem em patrimônios religiosos. Quando se trata de analisar fenômeA
nos dessa espécie, capazes de manifestaremAse durante longos períodos de tempo
sem experimentar variações qualitativas de vulto, toda e qualquer tentativa de se
40 Para Simmel, se o início e o fim de uma época «se confondaient complètement sur
le plan qualitativ, je ne vois pas en quoi son plus ou moins de durée pourrait nous
intéresser». Simmel, Georg. «Le problème du temps historique». In: Revue de
Métaphysique et de Morale (3) 1995: 295A309, p. 303.
25
quais nos servimos são pedidos de provisão para a ereção de capelas e documenA
tos atestando a doação dos patrimônios das mesmas.
De modo a recolher uma amostragem representativa em termos históricos e
geográficos, utilizamoAnos de arquivos eclesiásticos nas regiões centro (Mariana
e Belo Horizonte), norte (Diamantina) e sul (Campanha) do estado. As dioceses
de Mariana e Diamantina, criadas respectivamente em 1745 e 1854, são as mais
antigas de Minas. Os arquivos de Belo Horizonte e Campanha, embora pertenA
centes a dioceses criadas no século XX, contém dados referentes ao período anteA
rior uma vez que é norma da instituição que uma nova diocese receba a docuA
mentação referente à área de sua jurisdição. Como o regime de padroado pressuA
punha que o Estado participasse ativamente das decisões relativas ao «culto púA
blico», trabalhamos também com o acervo do Arquivo Público Mineiro, em espeA
cial com os microfilmes dos papéis avulsos trazidos do Arquivo Histórico UltraA
marino de Lisboa.
Em Mariana tivemos o privilégio de localizar e vasculhar uma importante série
de documentos, ao que parece ainda inédita. São os processos de patrimônio orA
ganizados em fins de século XIX pelo então VigárioAgeral da Cúria, Monsenhor
Júlio Bicalho. TrataAse de um material de difícil acesso, uma vez que diz respeito
a propriedades da Igreja. Tais processos surgiram da necessidade de se comprovar
legalmente, após a Proclamação da República em 1889, a propriedade eclesiásA
tica sobre uma infinidade de patrimônios em terras que, desde o século XVIII,
haviam sido doados para a ereção e manutenção das capelas e igrejas. O número
relativamente baixo de processos de patrimônio disponíveis não deve causar imA
pressão, haja vista as enormes dificuldades em reunir testemunhos. Na maior
parte das capelas e igrejas mais antigas do arcebispado de Mariana, os documenA
tos relativos à doação dos patrimônios simplesmente perderamAse, e nem sempre
era possível localizar termos de doação no próprio arquivo da Cúria ou nos cartóA
rios civis. O empenho incansável de Bicalho brindouAnos entretanto com um
conjunto de fontes de enorme valor, já que tais dossiês permitem visualizar a traA
jetória de diversas localidades mineiras, desde a construção dos templos primitiA
vos e a formação dos primeiros conjuntos de casas até a virada para o século XX.
Quando se mostravam infrutíferas as tentativas de recuperar originais ou cópias
de documentos, o VigárioAgeral de Mariana orientava os párocos a realizar verdaA
deiros inquéritos e entrevistas com os moradores mais idosos de determinada
cidade ou arraial. Devemos à seriedade com a qual ele se dedicou a esta tarefa alA
guns dos mais preciosos testemunhos utilizados neste trabalho.
Os livros dos viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX são outra
importante fonte de informação. É notável que, salvo Azevedo, os geógrafos não
tenham se utilizado destes relatos, alguns deles bastante cuidadosos nas descriA
ções do fenômeno urbano em seus distintos níveis de complexidade. Por outro
lado os viajantes deixaramAnos testemunhos fundamentais sobre a religião popuA
lar mineira, em especial sobre aquelas práticas cotidianas que as fontes de tipo
oficial (tanto civis quanto eclesiásticas) normalmente desprezam.
26
41 O seu tradutor para o alemão escreve, num prefácio, que Rosa «tem algo de antroA
pólogo, ornitólogo e especialista em pedras (Gesteinsforscher)». Curt MeyerAClaA
son, «Nachwort». In: Rosa, João Guimarães. Sagarana. Köln: Kiepenheuer &
Witsch, 1982, p. 18. Impressiona como esta obra, publicada pela primeira vez em
1946, oferece quase que uma versão literária do estudo de antropologia social de
Willems (e que viria à luz somente no ano seguinte) sobre o universo social, religiA
oso e cultural de uma pequena cidade paulista próxima da divisa com Minas GeA
rais. Ver Willems, Uma vila brasileira.
42 Sobre o tema, ver o depoimento de Honigsheim, Paul. «Max Weber in Heidelberg».
In: König, R. & Winckelmann, J. (Hrsg.) Max Weber zum Gedächtnis. Köln: WestA
deutscher Verlag, 1963, pp. 234A241.
43 Schütz, Alfred. «On multiple realities». In: Schütz, A. Collected papers. The pro
blem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973, p. 244.
27
27
1 Günther, Horst. «Historiker ohne Geschichte». In: Die Neue Rundschau 105 (1)
1994: 31A40, p. 38.
2 Bourdieu, Pierre und Raphael, Lutz. «Über die Beziehungen zwischen Geschichte
und Soziologie in Frankreich und Deutschland». In: GG (22) 1996: 62A89, p. 67.
28
3 Hunt, Lynn. «History beyond social theory». In: Carroll, David (ed.). The states of
«theory». History, art, and critical discourse. New York: Columbia University
Press, 1990, p. 96.
4 Weber, Max. «Zur Auseinandersetzung mit Edward Meyer». In: Weber, M. Gesam
melte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1988 (1922), pp.
216A217.
5 Desnecessário dizer que nosso modelo de ciência histórica em nada lembra o de
Popper. Para o mais ilustre representante do «racionalismo crítico», «history is chaA
racterized by its interest in actual, singular, or specific events, rather than in laws
or generalizations». Popper, Karl. The poverty of historicism. London: RoutA
ledge/Kegan Paul, 1966 (1957), p. 143. Mesmo admitindo que Popper possa ter raA
zão em sua crítica ao componente teleológico de determinadas teorias da história e
à utopia de uma ciência da sociedade que identifique «leis», não nos parece realista
negar à história e à sociologia a capacidade de apontar determinadas regularida
des.
29
6 Augé, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997, p. 28.
7 Numa obra dedicada à discussão da «postAtheoretical condition » (sic), Fernando de
Toro reforça o coro daqueles que acreditam que «the whole epistemological edifice
[has collapsed], particulary the one based on the faith in science». Barry Rutland
advoga, no mesmo volume, que «postAtheory refers to the limits of theory and the
surpassing of those limits. (...) /Post/ implies a further effort of theorization,
within, but perhaps also against, the parameters of theory. PostAtheory is the other
of theory (...)». De Toro, Fernando (ed.) Explorations on post theory: toward a
third space. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 1999, pp. 10 e 72. Só nos
resta concordar com Luhmann quando ele escreve que «uma das características
centrais do pensamento pósAmoderno é a sua fundamentação última num paradoxo.
O paradoxo é a ortodoxia do nosso tempo ». Luhmann, Niklas. Die Gesellschaft der
Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p. 1144.
8 Conferir as oportunas críticas de Wehler, HansAUlrich. Historisches Denken am
Ende des 20. Jahrhunderts (1945 2000). Göttingen: Wallstein, 2001, pp. 71A78.
9 Rüsen, Jörn. «Narratividade e objetividade na Ciência Histórica». In: EIA 24 (2)
1998: 311A335, p. 327. Ainda sobre as polêmicas em torno do narrativistic turn,
ver Adam, A. M. «On the methods of history». In: Philosophy of the Social
Sciences 29 (2) 1999: 315A324, p. 319.
10 O extenso debate em torno do «pósAmodernismo» no âmbito da historiografia é
admiravelmente sintetizado por Lorenz, Chris. Konstruktion der Vergangenheit.
Eine Einführung in die Geschichtstheorie. Köln: Böhlau, 1997, pp. 134A187. Ver
ainda Lorenz, Chris. «Comparative historiography: problems and perspectives». In:
HT (38) 1999: 25A39; Archila, Mauricio. «Es aún posible la búsqueda de la verdad?
30
clui que a assim chamada «crise» dos paradigmas deveAse, em boa parte pelo meA
nos, à profusão de paradigmas.
16 Berger, Peter und Luckmann, Thomas. Modernität, Pluralismus und Sinnkrise. Die
Orientierung des modernen Menschen. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 1995.
17 O entusiasmo com que a obra de Clifford Geertz foi recebida nos últimos anos
provavelmente não teria sido o mesmo caso os historiadores estivessem atentos às
críticas que lhe fazem outros importantes representantes do pensamento antropolóA
gico contemporâneo, tais como Ernst Gellner, Marc Augé, Roy D’Andrade e ThoA
mas Schweizer.
18 Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften..., pp. 100A108. Para uma
síntese das discussões a respeito no âmbito da historiografia, ver Kocka, Jürgen.
Sozialgeschichte. Begriff, Entwicklung, Probleme. Göttingen: Vandenhoeck &
Ruprecht, 1986, p. 40A45; e Lorenz, Konstruktion der Vergangenheit, pp. 367A383.
19 «Freyre’s originality of approach puts him in the same class as Braudel». Burke,
Peter. History and social theory. Ithaca: Cornell University Press, 1993, p. 17.
20 Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1995 (1933), p.
lxv.
32
direito. O que torna o caso brasileiro singular é o fato de que livros como Casa
grande & Senzala (1933) ou Sobrados e Mucambos (1936), que constituíam, em
si mesmos, um programa de renovação radical da ciência histórica21, não tenham
tido este impacto no país de origem daquele que os escreveu. Por que a obra de
Gilberto Freyre não deflagrou entre nós uma reviravolta semelhante à causada
por Marc Bloch e Lucien Febvre na França, E. P. Thompson e E. Hobsbawm na
Inglaterra ou Werner Conze na Alemanha?
Para entender este fenômeno não basta nos limitarmos a constatar o «complexo
de inferioridade» que marca uma camada representativa do campo sócioAcultural
brasileiro, ou ainda as disputas regionais que marcaram a institucionalização das
ciências humanas em nossas Universidades («escola paulista» versus «escola de
Recife»). É preciso que se entenda em que medida a relação ambígüa da história
com outras disciplinas parece ser constitutiva do seu próprio ethos. Daí que peA
riodicamente surjam vozes a reclamar uma aproximação. Fernand Braudel claA
mava, há tempos, por um diálogo mais intenso entre história e ciências sociais.
Na década de 1970 HansAUlrich Wehler, Reinhardt Koselleck e Paul Veyne chaA
mavam a atenção para a «indigência teórica» e os riscos do «impressionismo» na
historiografia. Quase vinte anos depois, Peter Burke insistia ainda na importância
de os historiadores «levarem a teoria social mais a sério do que normalmente o
fazem», enquanto Roger Chartier falava da importância de se empreender uma
releitura dos clássicos da sociologia.22 A conclusão é clara. Se há tanto tempo se
insiste na importância de aproximar a história da metodologia e do aparato conA
ceitual das ciências sociais, é porque houve e continua a haver resistência. Não
sem razão, Hunt e Lorenz diagnosticam uma hostilidade à teoria entre os historiA
adores.23 As palavras de Sérgio Buarque resumem bem, ao nosso ver, um tipo de
2.2. Espaço
2.2.1. O retorno do espaço
As línguas ocidentais dão prova, por meio de expressões tão difundidas como ter
lugar, to take place, avoir lieu (no caso do alemão, um verbo: stattfinden), que a
existência de um dado fenômeno está em relação direta com a sua espacialidade.
Esquecidos da verdade desta constatação elementar, voltamos nossa atenção preA
ferivelmente para aquela dimensão que nos parece ser a única efetivamente «diA
nâmica» em se tratando da vida do homem em sociedade. O tempo constitui, no
berço da civilização judaicoAcristã, quase que um valor em si mesmo. Neste conA
texto cultural tornaAse possível afirmar que «a verdade tem um núcleo feito de
tempo» (Heidegger). Esta inclinação pela diacronia adquiriu sua expressão máA
xima com o capitalismo e o advento do mais poderoso dos mitos por ele infundiA
dos: o mito do «progresso». Talvez seja justamente a crise deste ideal um dos faA
tores que explique a redescoberta, hoje mais evidente do que nunca, do espaço.
SenteAse enfim o impacto de uma reviravolta que se processa há tempos em disA
ciplinas como a filosofia e a geografia. A década de 1990 evidenciou o que poA
deríamos chamar de retorno do espaço.
Mas afinal o que se quer dizer quando se fala em «retorno»? O uso desta noção
não será tão problemático quanto o daquela outra, igualmente disseminada nos
últimos anos, a noção de «fim»? Falar em «retorno à narrativa», «retorno do saA
grado» ou «retorno do espaço» não implica uma mera inversão da tendência em se
falar em «fim da memória» (Nora), «fim da Revolução Francesa» (Furet), «fim da
história» (Fukuyama)? Em termos. O problema surge quando se postula que feA
heit, p. 13.
24 Holanda, Raízes do Brasil, p. 117.
25 Habermas, Jürgen. Zur Logik der Sozialwissenschaften. Frankfurt: Suhrkamp,
1970, pp. 103A125; Weber, Max. «Die ‹Objektivität› sozialwissenschaftlicher und
sozialpolitischer Erkenntnis ». In: Weber, Gesammelte Aufsätze zur Wissenschafts
lehre, pp. 146A214.
34
ões e povos».40
Durkheim se opôs a esta última intenção (em sua resenha do livro de Ratzel
publicada no terceiro volume do Année), sob o argumento de que a sociologia reA
ligiosa é que deveria se ocupar com o impacto do meio natural sobre as repreA
sentações coletivas. Febvre, duas décadas mais tarde, não fez senão reproduzir a
mesma argumentação.41 Que uma disciplina possa ter a pretensão de estabelecer,
mesmo a posteriori, os limites e o objeto de uma outra, parece ser um fenômeno
típico de fases em que jovens ciências se institucionalizam. A conseqüência deste
imperialismo interAdisciplinar foi a progressiva redução da geografia à condição
de «ciência auxiliar»; assim como a perpetuação da antiga noção de que o espaço
é um simples invólucro da história.
Ratzel escreveu que a antropogeografia é uma ciência descritiva. E acrescentou
logo em seguida: «ser descritiva só representa uma censura para uma ciência se
ela nada mais é além disso». Para tanto a antropogeografia deve ser uma «ciência
comparada», uma geografia rica em idéias (vergeistigte Erdkunde) e que identifiA
que leis. Leis similares às da química, às da física? Não, nem ela nem as demais
disciplinas que lidam com o homem em sociedade poderiam alimentar tal pretenA
são; pois «um povo, tanto quanto um ser humano, demonstra ter uma vontade
livre. Mas por toda a parte em que essa vontade se converte em ações, ela tem de
levar em conta os limites que lhe são impostos pelas condições de existência».42
Parece algo superada hoje, em alguns aspectos, essa forma de analisar a dialéA
tica entre o espaço e sociedade. Ratzel elege o «povo» e a «nação» como categoA
riasAchave, o que é fácil de se entender se levarmos em conta que a historiografia
da sua época se ocupava predominantemente com a esfera da política e das relaA
ções entre os Estados Nacionais. O que surpreende é que o fundador da geografia
humana vai além, e incorpora grande quantidade de dados etnográficos às suas
reflexões. Em nenhum momento de sua análise ele separa povos «civilizados» de
povos «primitivos». Aquela idéia tão difundida no século XIX, a de que os «priA
mitivos» não teriam história, não encontra eco nas obras de Ratzel. A etnografia
era uma de suas paixões, e um dos fundadores da antropologia norteAamericana,
Franz Boas (o futuro mestre de Gilberto Freyre), tinhaAo como uma de suas maioA
res influências. Mas a abordagem da antropogeografia não é monográfica como
tende a ser a da etnologia, e isso já fora claramente admitido por seu fundador.43
Essa ampla perspectiva comparada levouAo a desenvolver a noção de «concepção
de espaço» (Raumauffassung): a forma através da qual uma coletividade concebe
a extensão em que vive.44 Caso este conceito não fosse dotado de uma coloração
cault em 1967, onde ele se propôs a fazer para os espaces autres algo semelhante
ao que Bachelard fizera para o espaço da casa.61 Foucault sugere o termo hetero
topias para aqueles espaços que, em toda sociedade, constituem como que ilhas
regidas por uma lógica à parte: hospícios, prisões, asilos de idosos, cemitérios,
jardins, museus, bibliotecas, feiras, casernas, etc. Foucault se distancia dos fenoA
menólogos ao centrar sua atenção na historicidade e no poder disciplinador que
caracteriza inúmeras heterotopias (e este é sem dúvida o aspecto mais proveitoso
da sua abordagem), mas ao mesmo tempo temAse a impressão que esta concepção
corre o risco de se autoAinvalidar à medida em que seu escopo é demasiadamente
ampliado. Se a lista das heterotopias é de fato tão extensa e variada como sugere
Foucault, podeAse então perguntar: qual é afinal o espaço do cotidiano por exceA
lência, do mundo da vida (Lebenswelt)? Pois só faz sentido invocar heterotopias
se a vida «normal» transcorre num regime «normal» de espacialidade. Ora: num
sentido estrito, só há heterotopias, uma vez que a heterogeneidade do espaço é
um dado elementar da experiência de qualquer grupo humano; ela não se limita,
como supunha Cassirer, às sociedades tradicionais. Se toda extensão é única,
tanto em termos do «feixe de relações» que comporta, quanto em termos da forma
através da qual é semantizada, a tarefa preliminar consistiria em caracterizar de
forma sistemática os espaços aos quais se adequa o termo heterotopia. É preciso
reconhecer, em todo o caso, que a morte precoce de Foucault provavelmente não
lhe permitiu dar continuidade a este trabalho.
A abordagem propriamente antropológica tomará uma direção bem diferente.
Na etnologia norteAamericana popularizouAse, entre 1930 e 1940, o uso do conA
ceito de «área cultural». Kroeber tinha utilizadoAse dele, pioneiramente, no seu
estudo das culturas indígenas da América do Sul, e Herskovits aplicouAo mais
tarde à África.62 Embora a categoria «área cultural» não rompa com a concepção
formalista de espaço (uma vez que visa identificar áreas geográficas dentro das
quais determinados traços de cultura se apresentam de forma homogênea), ela reA
presenta uma valiosa ferramenta de análise, como demonstram inúmeros estudos
no campo da etnoAlingüística. Num segundo momento esta preocupação de caráA
ter propriamente empírico dá lugar a um esforço de sistematização teórica. LéviA
seus últimos escritos: Husserl, Edmund. Die Krisis des europäischen Menschen
tums und die Philosophie. Weinheim: Beltz Athenäum, 1995 (1935). Ver ainda
Grathoff, Richard. Milieu und Lebenswelt. Frankfurt: Suhrkamp, 1995 (1989), pp.
117A118.
61 Foucault, Michel. «Des espaces autres». In: Foucault, M. Dits et écrits. 1954 1988.
Paris: Gallimard, 1994 (tome IV), pp. 752A762. Para uma análise da importância
do espaço na sua obra, ver Flynn, Thomas R. «Foucault and the spaces of history».
In: The Monist 74 (2) 1991: 165A186.
62 Herskovits, Melville. Antropologia cultural. São Paulo, Mestre Jou, 1973 (Cap.
XII: «Áreas Culturais: a dimensão espacial»). Sobre a história do conceito, ver
Ehrich, R. W. and Henderson, G. M. «Culture area». In: IESS, vol 3, pp. 563A568.
Para o caso brasileiro, ver Diégues Júnior, Manuel. Áreas culturais do Brasil. Rio
de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1960.
42
69 Lowenthal, David and Bowden, Martyn J. (ed.) Geographies of the mind. Essays in
historical geosophy. New York: Oxford University Press, 1976.
70 Tuan, YiAfu. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambi
ente. São Paulo: Difel, 1980 (1974); Tuan, YiAfu. Espaço e lugar. A perspectiva da
experiência. São Paulo: Difel, 1983 (1977).
71 Büttner, Manfred. «Von der Religionsgeographie zur Geographie der GeisteshalA
tung?» In: Die Erde (107) 1976: 300A329.
72 Malpas, J. E. Place and experience. A philosophical topography. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999, pp. 25A26.
73 Relph, Edward. Place and placelessness. London: Pion, 1976, pp. 79 e 90.
74 Augé, Marc. «Espacio y alteridad ». In: Revista de Occidente (140) 1993: 13A34, p. 31.
44
tuais, por exemplo, é um fenômeno que ainda reclama uma análise aprofundada.
Cyberion City, criada na primeira metade da década de 1990 no Massachusetts
Institute of Technology, parece hoje um simples povoado diante de Metropolis
(«fundada» na Alemanha em 1996), com sua população de mais de um milhão de
«habitantes».80
O espaço é, pois, uma realidade social e histórica a partir do momento em que
é «produzido» pela ação transformadora do homem e «preenchido» por uma deA
terminada forma de socialização. Uma visãoAsíntese dos processos discutidos
acima bem poderia ser a proposta por Löw: «espaços são arranjos e ordenações de
bens sociais e seres vivos. Todos os espaços são espaços sociais, uma vez que
não existem espaços que não sejam constituídos pela ação sintética dos homens.
Todos os espaços têm um componente simbólico e um componente material».81
Estas considerações de maneira alguma implicam no abandono do princípio seA
gundo o qual o espaço exerce um impacto considerável sobre a sociedade e a
história, especialmente quando se trata de estudar uma região do Brasil que osA
tenta em seu próprio nome («Minas») a prova desta influência. Mas vimos que há
outros aspectos que não se pode correr o risco de ignorar. Se a constituição do esA
paço é um processo social, este há de espelhar as relações de poder que se verifiA
cam no grupo que o preenche. A experiência espacial não se reduz, porém, aos
ditames das relações de poder. Ela se baseia na percepção elementar de uma exA
tensão que nunca é completamente homogênea, que nunca é totalmente racionaliA
zada. Uma análise do «espaço vivido» (Bollnow), da síntese resultante do cruzaA
mento entre o nível especificamente material e a atividade simbólica dos homens,
deve ser o complemento necessário de toda sociologia histórica do espaço.
80 Sobre cidades virtuais, ver Löw, Raumsoziologie, pp. 96A97; e Focus (15)
9.04.2001, pp. 188A190.
81 Löw, Raumsoziologie, p. 228.
82 Zimmermann, Clemens. «Dorf und Land in der Sozialgeschichte». In: Schieder, W.
& Sellin, V. (Hrsg.) Sozialgeschichte in Deutschland. Göttingen: Vandenhoeck &
Ruprecht, 1986 (Band 2), pp. 93A94.
46
de nos defrontar.
Num artigo em que examina a história dos núcleos urbanos em Westfalen a
partir do século XII, Carl Haase mostra como é difícil se chegar a uma definição
global de cidade.90 O critério econômico (a cidade, ao contrário do povoado, não
se basearia na agricultura) revela seus limites quando se sabe que a maior parte
das civitates do medievo não se diferenciavam, sob este aspecto, de um simples
vicus. O critério demográfico (cidades seriam núcleos com mais de 2.000 habiA
tantes) esbarra no fato de que inúmeras «cidades» medievais tinham uma populaA
ção inferior a este patamar. O critério morfológico (a cidade é um espaço habiA
tado, fechado e eventualmente fortificado) não é suficiente, pois muitos vici
assumiam esta mesma configuração. O critério jurídico (a cidade é uma unidade
política autônoma) também deve ser visto com cuidado: as condições a serem
preenchidas por uma localidade que pretendia ser elevada a «cidade» se flexibiliA
zaram muito no século XIX.91 SomeAse a isso a singular inversão que se obserA
vava na China, onde os povoados, e não as cidades, é que eram dotados de instiA
tuições políticas próprias.92
A alternativa oferecida por Haase é historicizar o conceito: «para cada época,
para cada estágio da formação citadina, para cada novo tipo urbano, é necessária
uma nova definição e delimitação do conceito de cidade».93 Historicizar um conA
ceito significa, entretanto, relativizáAlo de uma tal maneira que ele se vê destiA
tuído de sua eficácia. As palavras de Lutz Niethammer parecem comprováAlo: «é
fundamental, em primeiro lugar, a compreensão de que a cidade simplesmente
não existe, e sim de que trataAse, sob este conceito, de uma abstração».94 Seria
satisfatório falar simplesmente – como faz Niethammer para se referir àquilo que
ele crê ser impossível categorizar – em «a forma de vida em comum hoje domiA
nante»? É evidente que não. Uma definição satisfatória de cidade deve se basear
num mínimo denominador comum capaz de resistir, tanto quanto possível, à eroA
são do tempo e à prova da comparação interAcultural.
Em seus escritos sobre o espaço urbano brasileiro, o filósofo tcheco Vilém
Flusser sugeriu que a cidade deve ser compreendida como «um lugar no qual a
natureza foi, em alto grau, tornada habitável. (...) Cidades são natureza dominada,
e por isso elas são habitáveis. São natureza vencida, e é como um vencedor que
eu moro nelas.»95 O leitor certamente estará lembrado do que já foi dito mais
acima: o espaço é fruto da constituição de um «feixe de relações» sociais sobre
uma dada extensão e da ação transformadora (ou antes: domesticadora) do eleA
mento humano sobre a natureza. A aceitarmos a definição de Flusser, como difeA
renciar os conceitos de espaço e cidade? A resposta, para ele, reside nestas três
palavras: «em alto grau». A cidade é um espaço coletivo resultante da domestica
ção em alto grau da natureza. Que esta definição mínima não satisfaz de todo,
percebeuAo provavelmente o próprio Flusser. A distinção entre povoado e cidade
continuava obscura. Num outro ensaio, escreveu ele mais tarde: «tão logo é teoriA
zada, a vida do povoado se torna citadina. (...) Tão logo a geometria é posta em
prática, povoados tornamAse cidades».96 Esta diferenciação não corresponde à reA
alidade do arraial na Minas antiga. Os arraiais também observavam, em maior ou
menor medida, um determinado padrão de ordenação espacial. A bem da verdade,
o espaço protoAurbano nunca se desenvolve de maneira absolutamente «esA
pontânea».
Já estamos a par das dificuldades de se abordar a questão sob um ponto de
vista puramente demográfico ou jurídico. Um critério como o desenvolvido por
Simmel, baseado no estudo das distintas formas de sociabilidade, só se aplica
plenamente a partir do momento sem que, sob o influxo do capitalismo, surge a
metrópole moderna. Depois de estudar a história da cidade feudal russa e conA
frontarAse com as mesmas dificuldadades apontadas por Haase, Michail RabinoA
vič elaborou uma definição que pareceuAnos mais adequada. A cidade seria marA
cada por três traços básicos: predominância da produção para a troca e do comérA
cio, difusão e intercâmbio de bens culturais e religiosos, nível mais elevado de
complexidade social (crescente divisão do trabalho) e, eventualmente, étnica.
Para Rabinovič
«A cidade é um centro econômico e cultural, de tamanho relativamente
grande, com um perfil social e étnico mais complexo – em comparação com
povoados rurais – de sua população, a qual está majoritariamente envolvida
na produção voltada para o mercado e em atividades de troca; tudo isso reA
sulta num complexo de aspectos de vida doméstica e pública que são caracA
terísticos do modo de vida urbano.»97
95 Flusser, Vilém. «Brasilianische Städte». In: Flusser, V. Brasilien oder die Suche
nach dem neuen Menschen. Für eine Phänomenologie der Unterentwicklung.
Mannheim: Bollmann, 1994, p. 261.
96 Flusser, Vilém. «Städte entwerfen». In: Flusser, V. Vom Subjekt zum Projekt.
Menschwerdung. Mannheim: Bollmann, 1994, p. 50.
97 Rabinovič, Michail G. «On the problem of defining the concept of ‹city› for the
sake of ethnographic studies ». In: Ethnologia Slavica (16) 1984: 111A119, p. 118.
49
das, salvo, talvez, durante aquelas escaramuças que passaram à história sob o
pomposo título de Guerra dos Emboabas.
Vejamos agora como as tentativas de definição do arraial no contexto brasileiro
distanciaramAse, de forma significativa, umas das outras. Para Leloup, arraiais foA
ram «acampamentos de mineradores no século XVIII». Angela Garcez chama arA
raiais aos «vilarejos primitivos que se foram formando e fixando no decurso do
processo colonizador», enquanto que para Augusto de Lima Júnior «arraial é o
conjunto de casas que se forma em torno das igrejas e onde acorrem os fiéis para
as solenidades religiosas e encontros comerciais».104
O viajante SaintAHilaire, que percorreu a província pela primeira vez em 1817,
foi sem dúvida quem melhor descreveu aquelas povoações nascentes. Uma praça,
por vezes bastante ampla e em formato retangular, em torno da qual dispunhamA
se as habitações, e uma igreja ou capela – às vezes uma venda – compunham o
perfil básico do arraial mineiro em fins do período colonial. Muitos deles permaA
neciam praticamente vazios durante os dias de semana, e só eram «preenchidos»
em ocasiões de missa e de festa. Eis aí um aspecto a ser ressaltado, pois parece
ter contribuído para justificar a permanência da palavra «arraial» em Minas.
Como mostrou Sanchis, em Portugal «arraial» denomina o espaço ocupado ou
anexado para a realização das festas que acompanham as romarias, bem como a
própria festa em si. Designa simultaneamente um espaço e a intensa socialização
festiva que nele se desenrola.105
Antes de chegar à nossa própria definição, passemos em revista algumas forA
mas préAurbanas em outros contextos históricos e culturais. Segundo Leopold von
Wiese, na Alemanha «é sobretudo o Dorf (e, em segundo plano: a propriedade ruA
ral) o elemento de socialização no campo».106 A importância social, econômica e
simbólica dos pueblos a nível local foi claramente demonstrada por Reboredo
num estudo realizado na Galícia.107 Examinando a formação dos villages («simA
ples regroupements autour d’une chapelle ou d’un moulin») no Québec dos séA
culos XVIII e XIX, Courville consideraAos pontos de cristalização da população
no espaço.108 Encontramos mais ou menos a mesma configuração básica nos
109 Cândido, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio,
1964, p. 51.
110 Pereira de Queiróz, M. I. «O catolicismo rústico no Brasil». In: RIEB (5) 1968:
103A123, p. 110.
111 Hugger, Paul. «Volkskundliche GemeindeA und Stadtforschung». In: Brednich, Rolf
(Hrsg.) Grundriß der Volkskunde. Berlin: Dietrich Reimer, 2001, p. 291.
112 Da Silva, Danuzio G. B. (org.) Os diários de Langsdorff. Campinas/Rio de Janeiro:
Associação Internacional Langsdorff/Fiocruz, 1997, vol. I, p. 264.
113 EntendaAse aqui o termo «nãoAracionalizado» numa perspectiva weberiana: a orgaA
nização deste espaço não é formalmente regulada por uma instância ou um código
legal préAexistente.
52
2.3. Religião
Um dos erros de Max Weber foi o de ter apostado na tese do «desencantamento
do mundo». A experiência do sagrado encontrou sempre novas formas de expresA
são social, de maneira que nenhum analista atento se negaria a reconhecer que o
homem contemporâneo vive num universo tão «encantado» quanto o dos seus
antepassados. A crença generalizada na astrologia, o sucesso da chamada literaA
tura de autoAajuda, a proliferação de cursos de motivação («Motivationstraining»)
ou a revalorização da mística oriental são apenas algumas das formas por meio
das quais indivíduos ou grupos vivenciam atualmente aquilo que em outras époA
cas – a nível cognitivo, normativo, associativo ou emocional – era gerenciado
quase que exclusivamente por seitas ou Igrejas.
Isso nos leva a uma primeira observação, qual seja, a de que o estudo da reli
gião não se confunde necessariamente com o estudo da história e do funciona
mento das instituições religiosas. No início da década de 1960, Berger e LuckA
mann criticavam a sociologia da religião por ter se ocupado mais com o estudo de
instituições que com o fenômeno religioso propriamente dito.114 Que as Igrejas
sejam instituições que se estruturam e sobrevivem à custa de um dado universo
de crenças, é ponto pacífico. Mas que o estudo das mesmas seja capaz de nos dar
um retrato satisfatório do campo religioso de uma sociedade, é um absurdo. A
crítica de Berger e Luckmann vale para outras disciplinas que se ocupam com a
religião, em especial a historiografia. Durante muito tempo não houve no Brasil
uma história da religião digna deste nome. Os historiadores permaneciam presos
a uma concepção institucionalista e antiApluralista dos processos sócioAculturais.
Da mesma forma que a «história do Brasil» deveria ser uma história da evolução
política do país, nossa «história da religião» limitavaAse à história da Igreja CatóA
lica. Tudo o mais (protestantismo, espiritismo, religiões afroAbrasileiras, religiões
indígenas, catolicismo popular, etc) podia ser facilmente agregado sob os rótulos
«seita», «ignorância religiosa» ou «superstição», e assim imediatamente excluído
do campo da «religião».
A superação deste estado de coisas começou a se manifestar gradativamente a
partir das décadas de 1980A1990. Os livros de Eduardo Hoornaert e de outros
membros da CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América
Latina) demonstraram como a história da Igreja foi capaz de redirecionar o foco
de sua atenção – especialmente no que diz respeito à «religião dos pobres».115 A
história social da religião, por sua vez, viveu um momento importante em 1986
com a publicação dos livros de Caio César Boschi sobre as irmandades leigas miA
114 Berger, Peter and Luckmann, Thomas. «Sociology of religion and sociology of
knowledge». In: Social Research. (47) 1963: 417A427.
115 Beozzo, Oscar (et alii). Para uma história da Igreja na América Latina. O debate
metodológico. Petrópolis: Vozes, 1986; Hoornaert, Eduardo (org.) História da
Igreja na América na América Latina e no Caribe (1945 1995). O debate meto
dológico. Petrópolis: Vozes, 1995.
53
116 Boschi, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora
em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; Souza, Laura de Mello e. O diabo e a
terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1995 (1986).
117 Azzi, Riolando. A cristandade colonial. Mito e ideologia. Petrópolis: Vozes, 1987.
118 Reis, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991; Vainfas, Ronaldo. A heresia dos ín
dios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
119 Prien, HansAJürgen. «Consideraciones acerca de una eclesiología ecuménica como
punto de partida para una historiografía ecuménica del cristianismo en América
Latina». In: Prien, HAJ. (Hrsg.) Religiosidad e historiografía. Frankfurt: Vervuert,
1998, pp. 83A91; Alcaide, Elisa L. «El debate epistemológico sobre la historia de la
iglesia». In: EIA 2(24) 1998: 205A216; Delumeau, Jean (ed.) L’historien et la foi.
Paris: Fayard, 1996; e Sauer, Edith. «Kirchengeschichte als historische Disziplin?»
In: EngelAJanosi, F., Klingenstein, G. und Lutz, H. (Hrsg.) Denken über die Ge
schichte. Wien: Verlag für Geschichte und Politik, 1974, pp. 157A169.
54
120 Ver Da Mata, Sérgio. Resenha do livro de Hoornaert, Eduardo. Os anjos de Canu
dos. Uma revisão histórica. In: EIA 2 (24) 1998: 353A359.
121 Da Mata, Sérgio. «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas
Colonial». In: RH (136) 1997: 41A57.
122 Vainfas, A heresia dos índios, p. 159.
123 Princípio, aliás, conhecido dos folcloristas desde o início do século XX: HoffA
mannAKrayer, Eduard. «Die Volkskunde als Wissenschaft». In: Lutz, G. (Hrsg.)
Volkskunde. Ein Handbuch zur Geschichte ihrer Probleme. Berlin: Erich Schmidt,
1958, pp. 47A49. O texto de HoffmannAKrayer foi originalmente publicado em
1902.
124 Freire, Plínio Gomes. Um herege vai ao paraíso. Cosmologia de um ex colono
condenado pela Inquisição (1680 1744). São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 25A26.
125 Baroja, Julio Caro. «Sobre el sincretismo religioso». In: RDTP (34) 1978: 3A22, p. 6.
55
sincretismo foi «muito criticado por antropólogos e historiadores a partir dos anos
1980».126
Considerar que o termo sincretismo induz a uma «impressão confusa e inartiA
culada de um amálgama, na qual os diversos elementos se fundem por mero
acaso» significa admitir desconhecimento do intenso debate teóricoAmetodológico
que se desenvolve neste campo de pesquisas. Os especialistas em ciência da reliA
gião,127 antropologia128 e história da Igreja129 vêem no sincretismo um fenômeno
dinâmico, multifacetado, que se processa seja a nível dos sistemas religiosos seja
a nível de elementos isolados, e no qual interferem diretamente as relações de
força que se estabelecem entre as tradições religiosas em contato. O conceito que
Hermann crê em declínio é hoje, na verdade, cada vez mais empregado pelos esA
tudiosos.130 Quanto mais porque se têm constatado a tendência eminentemente
sincrética de algumas das principais expressões de religiosidade do homem conA
temporâneo – como por exemplo os assim chamados Novos Movimentos ReligiA
osos.131
O que causa impressão é que a idéia de que a categoria sincretismo esteja «suA
perada» possa adquirir força num país como o nosso.132 Basta lançar um olhar
atento sobre o cotidiano para se aperceber, como diz Flusser, que «o conceito de
‹síntese› tem muito a ver com o Brasil».133 Num trecho bem conhecido da obra de
Guimarães Rosa, o herói Riobaldo revela:
«Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito
de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me
chegue.»134
Os cientistas sociais confirmam a percepção dos literatos. Pierre Verger afirmou
ter conhecido na Bahia um negro que praticava, simultaneamente, catolicismo e
islamismo.135 E Sanchis demonstra, numa perspectiva históricoAcomparada, que
essa peculiaridade brasileira, que é ter desenvolvido um campo religioso domiA
nado «pela lógica da porosidade de identidades e pelo sincretismo», é fundamenA
tal para a compreensão da nossa história.136
A redescobreta de temas como o sincretismo, o milenarismo/messianismo ou o
catolicismo popular tem tido, em todo o caso, o aspecto altamente positivo de inA
crementar o diálogo entre historiografia e ciências da religião. EstranhaAnos apeA
nas o fato de que este diálogo nem sempre seja empreendido de forma conA
seqüente. O prestígio de que goza atualmente um autor como Luiz Mott, entre
inúmeros historiadores brasileiros, é um dos mais claros indícios nesse sentido.
Não há dúvida que seus estudos sobre religiosidade na Colônia baseiamAse num
140 SaintAHilaire, Augusto de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil.
São Paulo: Cia Editora Nacional, 1941, p. 118.
141 Idem, ibidem, p. 119.
142 Mott, «Santos e santas no Brasil Colonial», pp. 64A65.
143 SaintAHilaire, que esteve na presença da «santa», escreve que seu confessor «deseA
java, segundo me disse, que os homens competentes estudassem o estado de GerA
mana, e a única censura que fez ao Dr. Gomide foi de ter escrito seu opúsculo sem
se ter dado ao trabalho de vir ver a enferma». SaintAHilaire, op. cit, p. 121.
59
a confundir rigor científico com diletantismo (o que não quer dizer que o priA
meiro atestado a respeito dos transes de Germana não tenha sido vítima de proA
cedimentos igualmente questionáveis144). PoderAseAia dizer ainda que ao assumir
tão incondicionalmente as conclusões do «arguto cientista» Gomide, Mott deA
monstra que o cientificismo materialista pode ser tão acrítico em relação aos seus
pressupostos quanto a própria religião.145
As contradições e os limites do projeto intelectual (iluminista) que Mott parece
tardiamente querer representar foram exaustivamente analisados por HansAGeorg
Gadamer. Uma das contradições básicas do iluminismo foi a de, em que pese sua
tentativa de «superar todos os preconceitos», rejeitar radicalmante a possibilidade
de valerAse da produtividade hermenêutica da tradição. A exploração consciente
não só da tradição mas também da própria subjetividade – e dos próprios preconA
ceitos –, não se coloca no horizonte das preocupações do iluminismo.146 Com
isso não se pretende afirmar que um historiador crente esteja em melhores condiA
ções de analisar um sistema ou fenômeno religioso que seu colega ateu. Tanto um
quanto outro prestarão serviços à ciência desde que sejam capazes de «situaremA
se» num plano intermediário entre a intimidade e o estranhamento em relação ao
seu objeto. Desde que sejam capazes, enfim, de contempláAlo «com outros
olhos».147
Todo aquele que se ocupa com o estudo científico das religiões148 achaAse ineA
vitavelmente confrontado com tais questões. Disposição para observar de forma
rigorosa as condições mínimas de objetividade da análise149 e para refletir critiA
144 Sobre as práticas médicas na Minas oitocentista, ver Figueiredo, Betânia GonçalA
ves. «Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX». In:
História, Ciências, Saúde 6 (2) 1999: 277A291.
145 Soeffner observa que «os cientistas sociais se ocupam sempre, e de bom grado,
com as ‹ideologias› e ‹mitos do cotidiano› mas raramente se questionam em que
medida seus próprios mitos se apoiam precisamente sobre os mitos do cotidiano, se
derivam destes ou (...) se e em que medida se diferenciam, do ponto de vista esA
trutural ou analíticoAformal, do pensamento quaseAmitológico». Soeffner, HansA
Georg. «Verstehende Soziologie und sozialwissenschaftliche Hermeneutik ». In:
Hitzler, R., Reichertz, J. und Schröer, N. (Hrsg.) Hermeneutische Wissenssoziolo
gie. Konstanz: UVK, 1999, p. 43.
146 Gadamer, HansAGeorg. Wahrheit und Methode. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1960, pp.
256A261 e 267.
147 Plessner, Helmuth. Mit anderen Augen. Stuttgart: Reclam, 1982, pp. 168A171; GaA
damer, op. cit, p. 279. Conferir as esclarecedoras reflexões de Simmel, Georg.
«Vom Wesen des historischen Verstehens ». In: Geschichtliche Abende im Zentral
institut für Erziehung und Unterricht. Berlin, 1918.
148 Barker, Eileen. «The scientific study of religion? You must be joking!» In: Journal
for the Scientific Study of Religion 34 (3) 1995: 287A310.
149 Vogt, Edvard. «Über das Problem der Objektivität in der religionssoziologischen
Forschung». In: Goldschmidt, D. und Matthes, J. (Hrsg.) Probleme der Religions
soziologie. Köln: Westdeutscher Verlag, 1962, p. 220; Byrne, Peter. «The study of
religion: neutral, scientific, or neither?» In: MTSR 9 (4) 1997: 339A351.
60
camente sobre o campo de influências que afetam, de «fora», a análise das repreA
sentações e práticas religiosas:150 eis aí outros pressupostos metodológicos básiA
cos que muitas vezes têm faltado à história da religião brasileira.
Diante de tais exigências, deveAse ressaltar um outro ponto. Uma história da
religião que se orienta unicamente pelos postulados das ciências sociais não se arA
risca a oferecer uma visão estreita de seu objeto? Este risco efetivamente existe.
Por vezes, quando se lêem alguns estudos, temAse a impressão de que a experiênA
cia do sagrado não é, para o pesquisador, a base, mas sim um epifenômeno de feA
nômeno religioso. Por esta razão a teologia não deve ser, a priori, posta de lado.
A fala do crente, tanto quanto a daqueles que, como os teólogos, «racionalizam» a
crença, deve ser levada em conta (no sentido de constituir um importante subsíA
dio) pelo historiador das religiões. Na França, onde a cesura entre «ciência» e «fé»
assumiu e parece ainda manter ares de dogma, o diálogo entre ciências sociais da
religião e teologia não parece ter avançado muito. Defendendo uma posição que
está longe de ser unicamente sua, Pierre Bourdieu afirma que ao utilizar «conceiA
tos religiosos para falar sobre a religião» a ciência da religião corre o risco de torA
narAse uma «religião científica».151 Em outros países a opinião a respeito não é a
mesma. O exemplo mais notável é sem dúvida o de Weber, que – ao contrário do
que defende Bourdieu – se utilizou de categorias advindas da teologia, como é o
caso do conceito mesmo de Charisma.152 A possibilidade de um intercâmbio, que
encontrou na pessoa de Ernst Troeltsch a sua expressão mais brilhante, tem sido
encarada de forma desapaixonada nos dias de hoje.153 Teologia e ciências sociais
da religião podem dialogar entre si sem que, necessariamente, uma tenha de saA
crificar à outra o tipo de problematização que lhe é peculiar. Aquele que fala de
fora sobre o fenômeno religioso não consegue percebêAlo em toda a sua compleA
xidade se julga que os que o vivenciam por dentro nada têm a lhe dizer. A
questão foi bem resumida pelo filósofo japonês Kitaro Nishida:
«Eu não pretendo compreender a religião em termos puramente racionais e
imanentes, pois na pura imanência não há religião.»154
154 Nishida, Kitaro. «Ortlogik und religiöse Weltanschauung». In: Nishida, K. Logik
des Ortes. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999, p. 280.
155 Otto, Rudolf. Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und
sein Verhältnis zum Rationalen. München: C. H. Beck, 1997 (1917); Colpe, CarsA
ten (Hrsg.) Die Diskussion um das «Heilige». Darmstadt: Wissenschaftliche BuchA
gesellschaft, 1977.
156 Para uma exposição suscinta a respeito, ver Knoblauch, Hubert. Religionssoziolo
gie. Berlin: Walter de Gruyter, 1999, pp. 14A16. Luhmann prefere falar em «ateísA
mo metodológico ». Luhmann, Niklas. Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt:
Suhrkamp, 2000, p. 278.
157 Freyre, Gilberto. Assombrações do Recife velho. Rio de Janeiro: Condé, 1955.
62
158 Não há como concordar com Reis quando ele afirma que as irmandades foram,
«pelomenos até o BrasilAImpério, os principais veículos do catolicismo popular».
Reis, A morte é uma festa, p. 59. Num artigo que não recebeu à época de sua puA
blicação a atenção que efetivamente merecia, Beozzo mostrou que as irmandades
eram «muito mais [um] fenômeno da vila e da cidade, com estatutos aprovados
pela Mesa de Consciência e Ordens de Lisboa e pelo Bispo e, em se tratando de
Ordens Terceiras, com aprovação também de Roma. Apesar pois de leigas, estaA
vam submetidas a um poderoso controle eclesiástico e governamental». Beozzo,
José Oscar. «Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada». In: REB
37(148) 1977: 741A758, p. 756.
159 Schieder, Wolfgang. «Religionsgeschichte als Sozialgeschichte». In: GG, 3. JahrA
gang, 1977: 291A298; Schieder, W. «Religion in der Sozialgeschichte». In: Schieder
und Sellin (Hrsg.), Sozialgeschichte in Deutschland, 3. Band, pp. 9A31.
160 Vilhena, Luís Rodolfo. Projeto e missão. O movimento folclórico brasileiro. 1947
63
racionalizar sua análise sem uma visão minimamente clara do que ela poderia vir
a ser. Na medida do possível, tal definição deve resistir à tentação de se confundir
a estrutura do fenômeno «religioso» com as distintas formas sociais através das
quais ele se concretiza historicamente. Somente desta maneira se torna possível
superar algumas falsas dicotomias (sagrado/profano, religião/magia) e admitir
que manifestações de tipo extraAinstitucional ou mesmo antiAinstitucional («suA
perstições», feitiçaria) só artificialmente podem vir a ser destacadas do campo da
«religião». Nesse sentido, os estudos de Luckmann166 parecemAnos oferecer a alA
ternativa mais interessante. Por «religião» entende ele a organização social das
relações com a transcendência. Este último termo não deve ser entendido apenas
num sentido convencional (como um sinônimo de «além») uma vez que, para
Luckmann, qualquer forma de experiência extraAcotidiana constitui uma transA
cendência. Não deixaremos de falar em religio, é certo – porém o leitor deve estar
consciente de que as aspas estarão implícitas todas as vezes em que o termo for
invocado.
Se a religião pode ser definida como a organização social das relações com a
transcendência, nossa próxima tarefa será identificar como tal gerenciamento se
processa no caso da religião popular.
O tipo ideal do catolicismo popular poderia ser descrito como se segue:167 do
ponto de vista organizacional, ele se caracteriza por uma presença muito débil –
senão ausência – da mediação eclesiástica. Isso explica porque seu locus tende a
ser o meio rural ou semiArural. Quanto ao culto, ele se direciona sobretudo a MaA
166 Luckmann, Thomas. «Über die Funktion der Religion». In: Koslowski, P. (Hrsg.)
Die religiöse Dimension der Gesellschaft: Religion und ihre Theorien. Tübingen:
J. C. B. Mohr, 1985; Luckmann, T. «Religion – Gesellschaft – Transzendenz». In:
Höhn, HansAJoachim (Hrsg.) Krise der Immanenz. Religion an den Grenzen der
Moderne. Frankfurt: Fischer, 1996.
167 BaseamoAnos aqui em: Weber, Max. Wirtschaft und Gesellschaft, pp. 240A241;
Vale, Edênio. «Aspectos psicoAgrupais do comportamento religiosoApopular ». In:
Cadernos. Studium Theologicum (6) 1977: 73A96; Boglioni, Pierre. «Some meA
thodological reflections on the study of the medieval popular religion». In: JPC (3)
1977: 697A705; Süss, Günther Paulo. Catolicismo popular no Brasil. São Paulo:
Loyola, 1979; Frijhoff, W. Th. M. «Official and popular religion in Christianity.
The late MiddleAAges and Early Modern Times (13th – 18th centuries)». In: Vrijhof,
P. H. and Waardenburg, J. (ed.) Official and popular religion. The Hague: Mouton,
1979; Prien, HansAJürgen. La historia del cristianismo en America Latina. SalaA
manca: Sígueme, 1985 (1978), pp. 292A305; Schieder, Wolfgang. «Einleitung». In:
Schieder, W. (Hrsg.) Volksreligiosität in der modernen Sozialgeschichte. GötA
tingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1986; Vovelle, Michel. Ideologias e menta
lidades. São Paulo: Brasiliense, 1987; Künzel, Rudi. «Paganisme, syncrétisme et
culture religieuse populaire au haut Moyen Age». In: Annales (4A5) 1992: 1055A
1069; Schieder, W. «Volksfrömmigkeit, Volksreligiosität». In: Evangelisches Kir
chenlexikon. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996; Daxelmüller, Christoph.
«Volksfrömmigkeit ». In: Brednich, Rolf. (Hrsg.) Grundriß der Volkskunde. Berlin:
Dietrich Reimer, 2001.
65
ria e aos santos; Jesus normalmente assume uma importância secundária. A débil
presença da hierarquia eclesiástica relacionaAse dialeticamente a um outro asA
pecto, este por assim dizer próprio da lógica interna da religião popular (embora
não seja exclusivo dela): a relação direta com o sagrado. Tal relação é normalA
mente regida pelo princípio do ut des. Há um tempo social em que a fé popular
como que se adensa e dá a ver toda sua complexidade; é o tempo da festa. O reA
gime da oralidade precede o da escrita, e não necessarimente devido aos níveis de
analfabetismo. Fixar uma tradição em textos, como mostrou Gurjewitsch, «teria
significado conferirAlhe uma forma definitiva e inalterável; seria portanto um ataA
que à sua forma de existência momentânea – enquanto organismo vivo e dinâA
mico. Uma fixação por meio de escritos teria levado a uma espécie de ‹alienação›
da tradição popular em relação àqueles que são dela portadores».168 Entre os diA
versos autores há consenso quanto a um último aspecto, qual seja, o de que as
interAinfluências recíprocas («circularidade») entre catolicismo popular e catoliA
cismo oficial não devem ser subestimadas. Todavia uma categorização continua
oportuna uma vez que se trata de duas modalidades distintas de prática e, muito
possivelmente, de experiência religiosa. Para Urs Altermatt, «catolicismo popular
significa oral – em oposição a escrito; espontâneo – em oposição a prescrito;
emocional – em oposição a racional».169
Entendido nesses termos, o catolicismo popular não se confunde com os assim
chamados «catolicismo rústico» e «catolicismo patriarcal». A tese do «catolicismo
rústico» foi defendida por Pereira de Queiróz. Sua opção pelo termo latino rusti
cus (do campo, rude, inculto, grosseiro, tosco) é, em si, reveladora. Depois de
analisar o cotidiano das populações rurais do centroAsul brasileiro, Queiróz afirma
que, se a função socializadora do catolicismo pareceAlhe evidente, «é preciso um
certo esforço para se perceber objetivos morais ou espirituais, que não existem
como valores em si mesmos, e sim como valores auxiliares do valor social». Sua
conclusão: «a religião rústica brasileira tem, pois, um papel antes de mais nada
social».170
O calcanharAdeAAquiles da hipótese de Queiróz (vimos que algo semelhante
ocorre em Mott) é sem dúvida a ausência em sua análise daquela operação mental
à qual todo estudioso do social deveria se submeter – a epoché (έποχή). Tal opeA
ração implica uma suspensão do juízo em relação à realidade. O pesquisador deve
«colocar em parênteses» sua atitude natural diante do mundo a fim de se entregar
à análise dos fenômenos em si mesmos.171
Para Queiróz o catolicismo «rústico» é pura e simplesmente destituído de conA
168 Gurjewitsch, A. «Probleme der Volkskultur und der Religiosität im Mittelalter ». In:
Gurjewitsch, A. Das Weltbild des mittelterlichen Menschen, p. 357.
169 Altermatt, Urs. «Prolegomena zu einer Alltagsgeschichte der katholischen LeA
benswelt». In: ThQ 4 (173) 1993: 259A271, p. 266.
170 Pereira de Queiróz, «O catolicismo rústico no Brasil», pp. 118A119. Grifo nosso.
171 Husserl, Edmund. Die phänomenologische Methode. Ausgewählte Texte. Stuttgart:
Reclam, 1985, pp. 201A202.
66
172 EvansAPritchard, E.E. Nuer Religion. Oxford: Clarendon, 1956, pp. 313 e 320.
173 Freyre, Casa grande & senzala, pp. liii, 195 e 355.
174 Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro, pp. 76, 83, 98A99. O mesmo ponto
de vista foi posteriormente adotado por Prien, La historia del cristianismo en Ame
rica Latina, pp. 285A292.
175 Troeltsch, Ernst. Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen. TübinA
67
2.3.2. Sagrado/profano
A longa e inconclusiva discussão travada a respeito da natureza do sagrado não
nos interessa aqui. Para uns o sagrado é uma categoria a priori, enquanto que
para outros a sociedade diviniza a si mesma por meio da religião. SubstanciaA
lismo de um lado, metafísica sociológica do outro. Optar por uma das duas teoA
rias significaria abdicar do agnosticismo metodológico que defendemos há
pouco. Fundamental é a constatação de que o sagrado/numinoso é efetivamente
experimentado coletiva ou individualmente pelos homens: nihil est in fide, quod
non ante fuerit in sensu (Max Müller).177
Seria mais frutífero demonstrar como uma contraposição rígida entre sagrado e
profano é antes exceção que regra. De uma maneira geral, os historiadores partem
ainda do pressuposto de que o mundo se divide em dois campos claramente deliA
mitados e opostos entre si (sagrado/profano). No que não estão sozinhos. A exisA
tência desta dicotomia foi defendida por autores como Émile Durkheim178, RoA
bert Herz179, Ernst Cassirer180, Mircea Eliade181 e Günter Dux.182 Tendo por pano
de fundo tal dicotomia, as análises da religião popular no Brasil setecentista e
oitocentista quase sempre sustentam que o brasileiro comum «misturava» pólos
opostos e que, em tese, seriam incompatíveis um com o outro. Tomemos o exemA
plo da festa em homenagem a um santo. Tudo o que se manifesta à margem dos
seus momentos explicitamente religiosos, que aparentemente não tem qualquer
ligação com o sagrado, é imediatamente classificado como «profano». Como a
festa popular não dissocia tais momentos, concluiAse que haveria «mistura». A lóA
gica parece apoiar tal constatação, uma vez que é difícil ao pesquisador conceber
que excessos alcoólicos, danças ou jogatina possam ser colocados no mesmo
plano do sagrado. Neste ponto a visão do historiador coincide plenamente com a
da autoridade eclesiástica.
A questão merece ser analisada com mais cuidado. Utilizar as palavras «saA
grado» e «profano» nos faz tributários da tradição romana. Quando temos em
vista o sentido com que elas eram empregadas, damosAnos conta de algo surA
preendente. Ambas têm uma acepção claramente espacial: sacrum designa tudo
aquilo relacionado ao local onde se realiza um rito e que, por assim dizer, perA
tence a um deus. Já profanum se refere ao que está diante da área do templo. OriA
ginalmente, profanare significa trazer a vítima de dentro do templo para o espaço
situado diante dele (fanum).183 Significa dizer que não estamos lidando aqui com
duas dimensões absolutamente opostas, mas complementares. Há, em outras paA
lavras, um continuum entre «sagrado» e «profano».
Assim, um Tito Lívio pôde escrever, a respeito de Roma, que «não há um lugar
nesta cidade que não esteja impregnado de religião e que não esteja ocupado por
alguma divindade».184 A indistinção entre sagrado e profano também foi obserA
vada em inúmeras sociedades de tipo «arcaico» e «tradicional». É o que Vernant
constata na Grécia185, Klimkeit no Egito e na Índia186, EvansAPritchard entre os
Azande187, Goody entre os LoDagaa188, Granet na China189 e Leach na BirmâA
nia.190 Segundo Laura de Mello e Souza, no Brasil Colônia «a indistinção era (...)
mais característica do que a dicotomia».191 Desnecessário dizer que o mesmo foi
observado em estudos sobre a religiosidade camponesa. Simon ressalta, a resA
peito, que «a diferenciação entre profano e sagrado é puramente formal».192 WilA
lems insiste que nas festas em dias de santos «não há dissociação concebível
[entre sagrado e profano] na mente dos participantes».193 Em seu estudo sobre as
183 Colpe, Carsten. «Das Heilige». In: HrwG, 3. Band, pp. 80A99, p. 93.
184 Citado por Fustel de Coulanges. La cité antique, p. 160.
185 Vernant, JeanAPierre. «Para que servem as religiões».
186 Klimkeit, HansAJoachim. «Das Phänomen der Grenze im mythischen Denken». In:
Benz, E. (Hrsg.) Die Grenze der machbaren Welt. Leiden: E. J. Brill, 1975, pp.
105, 107, 109.
187 EvansAPritchard, E. E. Theories of primitive religion. Oxford: Claredon, 1965, pp.
64A65.
188 Goody, Jack. «Religion and ritual: the definitional problem». In: British Journal of
Sociology (12) 1961: 142A164, pp. 148, 155.
189 Granet, Marcel. Études sociologiques sur la Chine. Paris: Presses Universitaires de
France, 1953, p. 257.
190 Leach, Edmund. Sistemas políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Edusp, 1995
(1954), pp. 75A76.
191 Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 149.
192 Simon, Franz. «SakralAProfan ». In: Liedtke, Max (Hrsg.) Aberglaube – Magie –
Religion. Graz: Austria Medien Service, 1995, p. 109.
193 Willems, Uma vila brasileira, p. 174.
69
Conseqüentemente, podeAse dizer que duas boas palavras para definir o catoliA
cismo popular são indiferenciação e ambivalência. Indiferenciação no que diz
respeito à sua concepção de mundo, ambivalência no que concerne à sua relação
com o mundo. Resta acrescentar que o catolicismo popular não concebe a si próA
prio sem a intermediação da hierarquia eclesiástica. Suas práticas, suas crenças,
suas tradições, encontramAse numa relação dialética – e por vezes tensa – com os
termos da religião oficial. O ambiente rural/préAurbano compõe o quadro social
típico (mas não o único) que o produz e que ele contribui para reproduzir.
2.3.3. «Superstição»
PodeAse dizer que um único problema nos ocupou até agora neste estudo: o proA
blema da linguagem. Não é preciso que nos justifiquemos. A ciência só começa
onde termina o uso indiscriminado das palavras.
Na literatura, não são poucos os que qualificam determinadas práticas ou forA
mas de crença popular como «superstições». O que, afinal, significa isto? Aquele
que fala em «superstição» inevitavelmente desqualifica tais práticas como expresA
são religiosa legítima. Elas seriam uma comprovação da «ignorância religiosa»
em que vive o povo. Felizmente, nem todos utilizaram o termo num sentido tão
explicitamente pejorativo. Por «superstição» entendia Câmara Cascudo «a sobreA
vivência de um rito desaparecido».197 É louvável que o maior estudioso da cultura
popular brasileira tenha se utilizado de uma definição nãoAvalorativa, entretanto o
termo está de tal forma carregado de negatividade que o mais sensato seria sem
dúvida abandonáAlo. «Superstição», diz Baroja, é uma palavra «equívoca desde
que se comienza a usar y sigue siéndolo hoy». Mary O’Neil afirma que «o uso do
termo superstição é, inevitavelmente, antes pejorativo que descritivo e analítico».
Sanchis vai mais longe e observa que o termo em questão «é inteiramente relativo
ao veredito dos grupos que, em dada sociedade e etapa da existência social, reA
gulam a realização da ciência por um lado e, por outro, do sagrado».198 ConsA
cientes de tais problemas, os folcloristas Röhrich, Petzoldt e Blehr propuseram
que se adotasse o conceito neutro de «crença popular».199
O melhor trabalho sobre a evolução histórica da palavra superstitio é da autoria
de Dieter Harmening. Superstitiosus originalmente significava «vidente», «proA
feta», «profético». DesenvolveAse então uma interessante duplicidade: de um lado,
197 Cascudo, Luis da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: ItaA
tiaia/Edusp, 1985, p. 178.
198 Baroja, Julio Caro. De la superstición al ateísmo. Meditaciones antropológicas.
Madrid: Taurus, 1974, p. 151; O’Neil, Mary R. «Superstition». In: ER, vol. 14, p.
163; Sanchis, Pierre. Arraial: festa de um povo, p. 243.
199 Röhrich, Lutz. «Aberglaube». In: RGG³, 1. Band, p. 54; Petzoldt, «Magie und ReA
ligion», p. 477; Blehr, Otto. «FolkAbelief as a religious phenomenon». In: Moser,
DietzARüdiger (Hrsg.) Glaube im Abseits. Beiträge zur Erforschung des Aberglau
bens. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1992.
71
Müller cunhou o termo, constitui uma tradição própria. TrataAse daquela tendênA
cia representada por autores que desenvolveram estudos dos sistemas religiosos
numa perspectiva filológica, histórica e comparada.202
Mais especificamente, pretendeAse ressaltar aqui a importância de um dos conA
ceitosAchave desenvolvidos por esta escola: o de espaço sagrado. Ele permiteAnos
analisar de forma mais precisa os processos resultantes da interação entre as duas
dimensões fundamentais com as quais lidamos até agora, quais sejam, «espaço» e
«religião».
Van der Leeuw definiu espaço sagrado como um «lugar no qual o efeito do poA
der se repete e é repetido pelo homem».203 Eliade desenvolve uma argumentação
semelhante. Para ele o espaço sagrado é produto de uma hierofania, isto é, de
uma manifestação do sagrado.204 RessalteAse uma vez mais que a natureza daA
quilo que estes autores entendem por «poder» e «sagrado» – o numinoso de RuA
dolf Otto – não está em questão para nós. Importa ressaltar em que o conceito de
espaço sagrado pode ser útil ao historiador da religião. E ele o é na medida em
que confirma aquela distinção por nós observada anteriormente: a de que o esA
paço nunca é concebido pelos homens de forma homogênea. Há setores ou ponA
tos no espaço que são qualitativamente distintos dos demais. TrataAse de espaços
«superiores», com «poder» e por vezes interditos.205
Outro importante aspecto ressaltado pelos fenomenólogos é o parentesco esA
trutural entre templo, casa e cidade. Na casa realizamAse os cultos domésticos, e
ela está repleta (em alguns casos, dos alicerces ao telhado) de símbolos religioA
sos. De modo que também ela constitui um espaço sagrado. O templo obedece à
mesma lógica e, por assim dizer, apenas a radicaliza – ele é a «casa de Deus». A
cidade, já foi observado, é erigida após um rito. Após a consagração que transfiA
gura o topos em temenos. Este parentesco mais profundo entre casa, templo e
cidade não nos deve passar desapercebido. Ele será explorado em detalhes mais
tarde.
A fenomenologia da religião mostra também que não se pode conceber separaA
damente espaço e tempo sagrados. A uma dada concepção de espaço corresponde
necessariamente uma forma de representação do tempo. A existência do espaço
sagrado atesta como nossa percepção da extensão é marcada pela heterogeneiA
dade. O mesmo pode ser dito do tempo. Há, bem sabemos, um espaço matemáA
tico e um tempo cronológico; mas não são estes o espaço e o tempo da vida. Tal
como a extensão é experimentada como um «espaço vivido» (Bollnow), a duração
202 Wach, Joachim. The comparative study of religions. New York: Columbia UniverA
sity Press, 1958, pp. 3A26.
203 Van der Leeuw, Gerardus. Phänomenologie der Religion. Tübingen: J. C. B. Mohr,
1933, p. 369.
204 Eliade, Die Religionen und das Heilige, pp. 415A418.
205 Ver Bauer, Dieter R. «Heiligkeit des Landes: ein Beispiel für die Prägekraft der
Volksreligiosität». In: Dinzelbacher, P. und Bauer, D. R. (Hrsg.) Volksreligion..., pp.
41A55.
73
– todos casos por demais evidentes para serem ignorados. A lista de processos
sociais nos quais religião e espaço se articulam é contudo bem mais extensa.
PenseAse, a despeito de todos os aspectos políticoAeconômicos ou geopolíticos, no
substrato religioso subjacente à criação do estado de Israel, assim como nos graA
ves conflitos daí resultantes. PenseAse na dimensão por vezes gigantesca de alA
gumas peregrinações religiosas. Antes da descoberta do petróleo, a maior fonte de
renda da Arábia Saudita baseavaAse nos ganhos advindos do hadsch a Meca. Na
Índia, a cada 12 anos, realizaAse às margens do Ganges a grande festa do Kumbh
Mela. Em seu momento culminante, a multidão atinge a astronômica cifra de 30
milhões de pessoas. PenseAse nas implicações espaciais e econômicas de
determinadas prescrições religiosas, como aquela que faz dos mongóis um povo
particularmente avesso à agricultura.
Toda essa gama de fenômenos demandava a formação de uma nova disciplina
que se dedicasse a analisáAlos de forma sistemática. De fato, este campo de pesA
quisas já vinha tomando forma desde o fim da Segunda Grande Guerra. Num
texto de 1945, Gabriel Le Bras advogava uma géographie religieuse que se conA
centrasse no estudo dos laços entre o grupo religioso e o seu chão, descrevendo
«os aspectos religiosos da paisagem urbana e rural».210 Uma primeira tentativa de
síntese é publicada dois anos mais tarde por Deffontaines. Nessa primeira fase, a
geografia da religião é compreendida como um subAramo da geografia humana;
seu objeto limitandoAse ao estudo do impacto das idéias religiosas sobre o
meio.211 O esforço pioneiro de Le Bras e Deffontaines não teve continuidade na
França, de modo que este país ocupa hoje uma posição secundária no que diz resA
peito à geografia da religião.212
Na década de 1960, os trabalhos de Erich Isaac e David Sopher representam
uma virada importante em termos metodológicos. Isaac adota o conceito de esA
paço sagrado e insiste na necessidade do geógrafo se aprofundar no estudo dos
sistemas religiosos cuja eficácia espacial pretende mensurar.213 Em 1967 Sopher
publica seu influente Geography of Religions.214 Nesta obra, o autor americano
sugere que a geografia da religião não deve se limitar a constatar a eficácia
espacial da religião, mas deve também analisar os possíveis efeitos do meio sobre
os sistemas religiosos. VêAse que Sopher não descarta a validade do que já fora
afirmado anteriormente por Ratzel. Não por mera coincidência, surgia exataA
mente naquele momento, e em estreito diálogo com a obra de Julian Steward, a
ecologia da religião.215 Outro aspecto importante da nova agenda estabelecida
por Sopher: a dialética entre sistemas de idéias de tipo não explicitamente religiA
oso (como as ideologias) e o espaço deveria ser objeto da atenção do geógrafo da
religião.
Com Manfred Büttner e o chamado «modelo de Bochum» esta tendência se
consolida definitivamente.216 Para Büttner não é possível dissociar a influência
da religião sobre o espaço (Umweltprägungslehre) da influência do espaço sobre
a religião (Religionsprägungslehre). Ambas as dimensões influenciamAse mutuA
amente, numa dialética necessariamente intermediada pelo grupo social (Reli
gionskörper). Três níveis simultâneos de análise, portanto: representações religioA
sas, relações sociais e estruturas espaciais. Os dois últimos compõem aquilo que,
de uma forma geral, se designa com o termo «ambiente». Em seu período de forA
mação, toda religião está particularmente sensível às influências advindas do
meio. Da mesma forma, o meio sofre o impacto das representações e práticas reA
ligiosas. Num determinando momento, chegaAse a um equilíbrio e o sistema
como um todo se estabiliza. Caso novos impusos surjam, seja por inovações no
plano religioso seja por alterações no ambiente (social/espacial), alterações suA
cessivas ocorrem de lado a lado até que um novo estado de equilíbrio seja atinA
gido. Do contrário, o grupo religioso pode simplesmente dissolverAse. O modelo
foi posto à prova por Büttner num estudo sobre pequenas comunidades religiosas.
Enquanto os waldenses demonstraramAse capazes de reformular sua «atitude espiA
ritual» num ambiente cada vez mais afetado pela realidade do mundo industrialiA
zado, o rigorismo religioso dos menonitas tende a colocar a comunidade diante de
um impasse e mesmo de uma possível desagregação. Posteriormente, Kurt RuA
dolf aplicou com sucesso este modelo em suas pesquisas sobre comunidades
batistas no Irã e Iraque.217
Para Büttner os três pólos (religioso, social e espacial) devem ser tratados
como vetores dinâmicos, isto é, históricos. Esta incorporação da dinâmica tempoA
215 Hultkranz, Ǻke. «Ecology of religion: its scope and methodology». In: Honko,
Lauri (ed.). Science of Religion. Studies in methodology. The Hague: Mounton,
1979, p. 229.
216 Büttner, Manfred. «Geosophie, geographisches Denken und EntdeckungsgeA
schichte, Religionsgeographie und Geographie der Geisteshaltung». In: Die Erde
(111)1980: 37A55; Büttner, M. «On the history and philosophy of the geography of
religion in Germany ». In: Religion (10) 1980: 86A119; Büttner, M. «Zur Geschichte
und Sytematik der Religionsgeographie». In: Geographia Religionum (1) 1985: 13A
121.
217 Rudolf, Kurt. «Religionswissenschaftliche Überlegungen zur ReligionsgeograA
phie». In: Kreisel, Werner (Hrsg.) Geisteshaltung und Umwelt. Aachen: Alano,
1988, pp. 415A425.
76
ral no trabalho do geógrafo da religião também foi ressaltada por Karl HoheiA
sel.218 No limite, e como resultado da «secularização», a geografia da religião deA
veria assumir um estatuto mais amplo e tornarAse uma «geografia das atitudes
mentais» (Geographie der Geisteshaltungen).
É justamente neste ponto que reside nossa ressalva em relação a Büttner e seus
discípulos. Repercutindo uma idéia difundida tanto na sociologia quanto na teoA
logia da época em que elaborou seu modelo, Büttner acredita que o mundo conA
temporâneo seria marcado por «uma modificação ou mesmo uma dissolução das
religiões».219 A tese da «secularização» tornaraAse amplamente aceita na AlemaA
nha; a moderna geografia da religião incorporouAa como parte integrante de seu
modelo. Assim se entende por que, num mundo dito «pósAreligioso», esta disciA
plina deveria se tornar uma geografia das mentalidades ou das ideologias. Outros
pesquisadores direta ou indiretamente ligados a Büttner mantiveram posição siA
milar. Rinschede chegou a dedicar toda uma seção de sua Religionsgeographie ao
«surgimento e difusão do secularismo».220
Tomaremos uma reveladora contradição por ponto de partida. Büttner propõe
uma geografia das atitudes mentais porque, em virtude da «secularização», a geoA
grafia da religião correria o risco de tornarAse uma ciência sem objeto. Mas obA
servou que «o método de pesquisa é e continua o mesmo».221 Se é assim, é legíA
timo supor que o objeto, em última análise, continua o mesmo. Hoheisel e RinA
schede, num interessante artigo,222 demonstraram que a lógica das relações entre
religião e espaço não difere da que se observa entre ideologia e espaço. Os autoA
res fazem uma distinção entre «sistemas de orientação religiosos» e «sistemas de
orientação seculares» que, ao nosso ver, não satisfaz. O ponto fraco do modelo reA
side na sua adesão incondicional à tese da inevitabilidade da «secularização».
Não cabe aqui alongarmoAnos na análise, já desenvolvida em outro lugar,223
sobre o caráter enganador do termo «secularização». Mas é sem dúvida irônico
que, justamente na época em que o paradigma do «desencantamento do mundo»
mais fazia adeptos, Ernst Benz atestava a força do movimento pentecostal nos
Estados Unidos, América Latina, África e Indonésia. Enquanto as páginas dos peA
riódicos especializados eram preenchidas com estudos sobre a «secularização» ou
218 Hoheisel, Karl. «Religionsgeographie». In: HrwG, 1988, 1. Band, pp. 108A120.
219 Büttner, «On the history...», p. 101.
220 Rischede, Gilbert. Religionsgeographie. Braunschweig: Westermann, 1999, pp.
60A68.
221 Büttner, Manfred. «Religionsgeographie bzw. Geographie der Geisteshaltung, ein
Teilbereich der (SozialA) Geographie, und/oder...?». In: Büttner, M. (Hrsg.) Wissen
schaften und Musik unter dem Einfluß einer sich ändernden Geisteshaltung. BoA
chum: Brockmeyer, 1992, p. 339.
222 Hoheisel, K. und Rinschede, G. «Raumwirksamkeit von Religionen und IdeoloA
gien». In: Praxis Geographie 19 (9) 1989: 6A11.
223 Da Mata, Sérgio. «Passado e presente da religião civil». In: VH (23) 2000: 180A
204, pp. 185A190.
77
224 Benz, Ernst. «Norm und Heiliger Geist in der Geschichte das Christentums ». In:
Eranos Jahrbuch (43) 1977: 137A182, p. 137 e 138.
225 Prien, Historia del cristianismo en America Latina, pp. 822A839.
226 Luckmann, Thomas. The invisible religion. The problem of religion in modern so
ciety. New York: Macmillan, 1967, p. 70.
227 Luckmann, Thomas. «Säkularisierung – ein moderner Mythos». In: Luckmann, T.
Lebenswelt und Gesellschaft. Paderborn: Schöningh, 1980.
78
228 E contudo, não são poucos os que, de uma forma ou de outra, se mantém fiéis a
ela. Com todos os problemas de direito, mas sobretudo: a única forma de salvar o
termo «secularização» consiste pura e simplesmente em insistir na «utilidade» do
signo lingüístico, de vez que seu sentido não nos diz mais nada. Habermas tem
utilizado a expressão «sociedade pósAsecular». Habermas, Jürgen. «Glaube, Wissen
– Öffnung». In: Süddeutsche Zeitung, 15.10.2001. Pierucci propõe a volta ao senA
tido «original» da palavra. Pierucci, Antônio F. «Secularização em Max Weber». In:
RBCS 13 (37) 1998. A solução encontrada por Luhmann foi no mínimo curiosa:
para ele «secularização não significa perda da função ou do significado da reA
ligião». Secularização seria um fenômeno que expressa o processo de evolução
rumo a uma progressiva diferenciação e autonomização dos subAsistemas que
compõem a sociedade. Ou seja, para Luhmann a «secularização » existe desde que
compreendida nos seus termos. Luhmann, Die Religion der Gesellschaft, pp. 300A
301. Algo parecido acontece com Gauchet e sua tese sobre a «saída da religião».
Gauchet, Marcel. Le désenchantement du monde. Paris: Gallimard, 1985.
229 Sanchis, Pierre. «A profecia desmentida ». In: Folha de São Paulo, 20.04.1997.
230 Sopher, Geography of religions, pp. 112A113.
231 Marx, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano, p. 7.
79
Não: a nova visão de mundo a que aderem as elites políticas republicanas, o raciA
onalismo positivista, também pode ser considerada uma forma social de reliA
gião.232 A trajetória de Augusto Comte bem o demonstra. O termo «racionaA
lismo», acrescenteAse, não denota um tipo de procedimento mental radicalmente
alheio ao universo da fé. Um dos aspectos mais inovadores da obra de Weber foi
sabidamente o de ter demonstrado a origem religiosa do racionalismo moderA
no.233
Tais ressalvas de forma alguma representam um questionamento do modelo de
Bochum como um todo, mas apenas de um dos elementos que o compõem. A
geografia da religião abriu e continua a abrir novos horizontes para o historiador
e para o cientista social, como demonstram as considerações de Rinschede sobre
a ética ambiental (Umweltethik) dos diversos sistemas religiosos, ou ainda a tiA
pologia dos centros de peregrinação proposta por Rosendahl.234 De resto, a inA
corporação da perspectiva luckmanniana significaria uma abertura para novas
questões, tais como: qual é o tipo de interação específico que a religião invisível
estabelece com o espaço? A religião individualizada dos dias de hoje produz
efeitos espaciais necessariamente «difusos»? A «reAsacralização» da natureza nas
últimas décadas e a expansão do movimento ecológico devem ser consideradas
um tema da geografia da religião?235
DeveAse, pois, assinalar a importância da contribuição desta nova disciplina.
Ela abre perspectivas de análise que nos permitem explicar de forma mais conA
sistente o processo por meio do qual a religião se relacionou com a produção das
formas elementares do espaço urbano na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX.
Como se processou historicamente esta dialética entre dinâmica religiosa e dinâA
mica espacial, é o que se vai explorar nos próximos capítulos.
1 Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1975, pp. 295A296; Spix, Johann Baptist v. e Martius, Carl
Friedrich Philipp v. Viagem pelo Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976, vol. I, p.
218 e vol. II, p. 53. Sobre o sebastianismo em Portugal, ver Hermann, Jacqueline.
No reino do desejado. A construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e
XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
2 Ver Novinsky, Anita. «Ser marrano em Minas Colonial». In: RBH 21(40) 2001:
161A176.
3 Godinho, Vitorino Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. LisA
boa: Arcádia, 1971, pp. 44, 149A150.
82
Oliveira Vianna – serem os mineiros, dentre os vários grupos regionais das nossas
populações, talvez aquele em que mais se conservam os aspectos lusitanos da
nossa cultura».4
Como e porque Minas manteve durante tanto tempo este perfil, a despeito da
presença de brasileiros vindos de outras capitanias bem como um percentual eleA
vado de escravos e negros livres? Um primeiro marco no processo de autoAdefiA
nição da cultura mineira se deu provavelmente por ocasião das escaramuças
travadas entre paulistas e «emboabas»5 pelo controle da mineração no Rio das
Mortes em 1709. A derrota dos paulistas, cujo próprio nome era tido por seus
opositores como sinônimo de «horrendo, fero, ingente e temeroso»,6 parece assiA
nalar a afirmação do modelo civilizacional lusitano nos momentos iniciais da
história da capitania.
Quanto à proveniência dos portugueses, sabeAse que a grande maioria adveio
de províncias do norte do Reino como Douro, TrásAosAMontes e Minho – onde,
desde os primórdios da formação da nacionalidade portuguesa, desenvolveuAse
um catolicismo profundamente marcado pela experiência da guerra de Recon
quista. Um catolicismo, portanto, inclinado à rejeição de qualquer forma de alteA
ridade religiosa. Pouco permeável simbolicamente. O perfil tradicionalista do
homem mineiro deve muito a estas raízes norteAportuguesas, algo que o relativo
isolamento geográfico tendeu a reforçar e a sedimentar. No que diz respeito à
realidade dos séculos XVIII e XIX, isto significou que o espaço concedido às
manifestações religiosas africanas foi bem mais estreito que em outras regiões do
Brasil.
Um outro importante aspecto foi a proibição, em 1711, da entrada de ordens
religiosas no território de Minas. De uma forma geral a historiografia não deu a
devida atenção às implicações desta medida, mesmo sabendoAse que ela contradiA
zia o desejo expresso da Coroa em «civilizar» aquelas populações. De sua parte,
as autoridades portuguesas alegavam que os religiosos regulares «eram responsáA
veis pelo extravio de ouro, e por insuflar a população ao não pagamento de imA
postos».7 A proibição das ordens sem dúvida visava fortalecer a saúde financeira
do Estado português, mas não pelos motivos oficialmente alegados. Em Portugal
a Igreja detinha um enorme poder econômico, e que por vezes ameaçava sobreA
pujar o da própria Coroa. Numa sociedade em que a maior preocupação em vida
era (ou deveria ser) a salvação após a morte, uma gigantesca quantidade de bens
acabava por reverterAse à Igreja, administradora que é dos «bens de salvação». As
ordens religiosas eram alvo privilegiado das doações dos fiéis, de modo que ainda
4 Vianna, Oliveira. Pequenos estudos de psycologia social. São Paulo: Monteiro LoA
bato & Cia, 1923, p. 52.
5 A palavra «emboaba», cunhada pelos paulistas, designava pejorativamente tanto
«reinóis » (portugueses) quanto brasileiros oriundos de outras regiões.
6 Códice Costa Matoso (CCM). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, p.
277.
7 Boschi, Os leigos e o poder, p. 3.
83
em 1832 elas tinham rendimentos da ordem de 1.162 contos, enquanto que a arA
recadação do Estado com impostos somava 1.600 contos.8
A conseqüência da proibição da entrada das ordens é evidente: a presença ins
titucional da Igreja permaneceu extremamente débil em Minas Gerais. Mesmo a
instalação do bispado de Mariana em 1748 não alteraria substancialmente este
quadro. De uma forma geral, o perfil do clero secular não se afastava daquele
predominante no geral da população. A disciplinarização do clero e a chamada
«romanização» do catolicismo são um fenômeno deflagrado somente a partir da
segunda metade do século XIX por Dom Antônio Ferreira Viçoso, sétimo bispo
de Mariana. Isolamento, fragilidade da estrutura eclesiástica, escassez de sacerA
dotes, exígüa expansão da rede escolar: nestas condições é fácil entender que o
tipo de religiosidade predominante em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII
e XIX estava longe de corresponder aos cânones do catolicismo oficial. De forma
que o catolicismo mineiro foi forjado sobretudo pelos leigos. Todavia, isso não o
tornou mais «maleável». Em Minas o catolicismo manteve, até bem pouco tempo,
um caráter marcadamente tradicionalista.9
Curiosamente, a relação entre desenvolvimento do espaço urbano e a dinâmica
das visões de mundo assumia um caráter oposto ao que se verifica na sociedade
moderna. O desenvolvimento capitalista, a democratização do ensino, o surgiA
mento dos meios de comunicação de massa e a rápida urbanização são determiA
nantes estruturais do pluralismo.10 Nada semelhante pode ser observado em MiA
nas durante o século XVIII e maior parte do XIX. Ao invés de servir de locus
privilegiado do pluralismo, a cidade préAmoderna era um «ponto de rotação»
(Simmel) e de transmissão de um único ideal civilizatório. No período que aqui
nos ocupa, a cidade funcionava sobretudo como um pólo de disciplinarização so
cial e cultural. Ela tendia a produzir não o pluralismo, mas «monolitismo» e enA
quadramento nos termos da religião oficial. Era nas fazendas e sítios, nos arraiais
nascentes ou no sertão, longe das instâncias de poder civil e eclesiástico, que as
distintas visões de mundo e de além podiam conviver de forma um pouco mais
harmônica. Era longe dos grandes aglomerados urbanos que as expressões tradiA
cionais da religião popular brasileira adquiriram seus contornos característicos.
DeveAse, pois, relativizar as implicações das afirmações de Weber e Troeltsch a
respeito do «caráter urbano» do cristianismo, uma vez que o que está em questão
para eles é evidentemente uma das formas de cristianismo.11 Quem quiser estudar
und Gesellschaft, pp. 269A270; Troeltsch, Die Soziallehre der christlichen Kirchen
und Gruppen, pp. 250A251.
12 Holanda, Raízes do Brasil, p. 111 (grifo nosso).
13 Da Mata, «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas colonial»,
pp. 49A51.
14 Maffesoli, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996 (1990), pp.
138, 127 e 158. Ver também Maffesoli, M. «La dynamique de l’apparence». In:
L’Homme et la Société (59A62) 1981: 3A10.
15 Soeffner, HansAGeorg. Gesellschaft ohne Baldachin. Weilerswist: Velbrück, 2000,
pp. 148.
16 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 286.
85
23 Coelho, José João Teixeira. «Instrução para o governo da capitania de Minas GeA
rais (1780)». In: RIHGB 15 (7) 1852, p. 452.
24 SaintAHilaire, Auguste de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Ge
rais. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1938, vol. I, p. 177.
25 SaintAHilaire, op. cit., vol II, p. 326A327.
26 Eschwege, Wilhelm L. v. Brasil, novo mundo. Belo Horizonte: Fundação João PiA
nheiro, 1996, p. 65.
27 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 93. Grifo nosso.
87
interesse por esta obra não se justifica apenas pelo caráter pioneiro das reflexões
que contém; o que nos parece fundamental é o fato de que em O jogador o disA
curso dominante sobre os «jogos de azar» e seus adeptos é pela primeira vez conA
frontado criticamente com a lógica predominante num universo cultural situado
às margens do mundo dito «civilizado» da época. Ao darAse conta da existência de
um contraAdiscurso, a análise histórica pode então deixar de constituirAse unilateA
ralmente; isto é, apenas a partir da crítica européia à «indolência» dos brasileiA
ros.54
Com a autoridade de quem freqüentou casas de jogos no sul da Alemanha e na
Suíça por uma década, Dostoievski constata a existência de uma nítida distinção
entre os jogos da «plebe» e os da elite. Ao jogar, o aristocrata «de forma alguma
deve se interessar pelo próprio ganho». Num cassino, «um verdadeiro gentlemen
não deve demonstrar qualquer perturbação nem mesmo quando perde todos os
seus bens». Os jogos dos pobres, por sua vez, têm no ganho o seu único e verdaA
deiro fim. As palavras de Alexei Ivanovitch, personagem principal de O jogador,
bem poderiam estar na boca de qualquer aventureiro na Minas antiga (basta que,
por meio de um simples exercício de imaginação, se substitua a palavra «russo»
por «mineiro»): «Um russo não é apenas incapaz de adquirir capitais; ele os disA
sipa sem razão e desregradamente. Todavia também nós, russos, precisamos de
dinheiro, de modo que somos extremamente propensos a – e mesmo ávidos por –
métodos como a roleta, que podem fazer a alguém rico em duas horas, sem que
seja necessário se esforçar demais». Esta constatação não implica um elogio da
ética capitalista. Pelo contrário: Ivanovitch declara preferir «viver como um nôA
made numa tenda» a aderir à «forma alemã de acumular riquezas». Depois de desA
crever ironicamente a ética econômica protestante, ele conclui: «Como eu me inA
clino, antes, à forma russa, tendo preferencialmente a adquirir riqueza à custa da
roleta. Eu não quero ser Hoppe & Cia. em cinco gerações. O dinheiro, eu preciso
para mim mesmo, e longe de mim ver todo o meu Ser como um acessório do caA
pital».55
Na psicologia do mineiro, o jogo – e por decorrência a «sorte» – exercem um
papel fundamental enquanto meio de «salvação». O que evidentemente não quer
dizer que a dimensão lúdica simplesmente substitua a religiosa. Na prática, as
crenças religiosas são integradas e, por assim dizer, adaptadas às necessidades
vitais do homo ludens. Não nos esqueçamos de que um dos traços característicos
da religiosidade popular lusoAbrasileira é precisamente este colocar (e por vezes
em alto grau) a transcendência a serviço da imanência. Tal mentalidade foi partiA
cularmente bem descrita no romance O garimpeiro, de Bernardo Guimarães. O
herói Elias ambiciona casarAse com Lúcia, filha de um abastado fazendeiro, mas
só dia, por mais forçoso impedimento que se oferecesse».63 Mas nem todos
servem a um bandeirante. Entre 1703 e 1710 dois sacerdotes, com a devida autoA
rização episcopal, percorrem a região de Catas Altas, Antônio Pereira e São João
delARei «armando altar portátil onde lhes era necessário administrar os sacraA
mentos».64 Os capelães foram portanto os primeiros especialistas do sagrado
cristão a se estabelecerem em Minas Gerais. Sua contribuição à formação da reliA
giosidade mineira não deve, porém, ser superestimada: tal como o bandeirante, o
capelão é um nômade.
E havia os outros. Um aluvião de sacerdotes seculares e mesmo de religiosos
entravam indevidamente no território mineiro. Pelo menos desde 1702, as autoriA
dades não se cansam de denunciáAlos e exigir sua expulsão.65 Daqueles eclesiásA
ticos diziaAse tudo – que vieram às Minas exclusivamente movidos pela ganância,
que tomavam parte ativa em levantes e no contrabando, etc. Ao longo de toda a
primeira metade do século XVIII sucedemAse acusações de igual teor.66 Hoje
sabeAse bem quão longe estava a situação moral do clero da época de corresponA
der aos rígidos princípios tridentinos.67 Um Nuno Marques Pereira, por exemplo,
ressaltava a «pouca devoção» dos padres e a «pressa» e «distração» com que eles
celebravam o culto. Não poucos missionários «costumam ir às minas e a esses
sertões, mais levados dos interesses do ouro e cabedais, que do zelo de servir a
Deus, e ao bem das almas».68 O bispo do Rio de Janeiro, Dom Lourenço de AlA
meida, reclama em 1733 dos clérigos que «vêm parar a estas Minas, aonde muitos
vivem licenciosamente e mais destraídos do que os seculares mais perversos (...).
Parece coisa incrível a multidão que há deles, e sem embargo que o Reverendo
Bispo tem mandado suspender das Ordens a todo o clérigo que veio para estas
Minas sem licença sua, nada basta para que eles deixem de estar nelas». O mesmo
se passa com os frades, «a maior parte deles maus religiosos e para o serem basta
só o não quererem estar nos seus conventos».69 DeterminaAse, uma vez mais, sua
expulsão. Entretanto uma carta do governador Gomes Freire de Andrada, datada
‹Deus nos livre da companhia dos padres!›».75 VêAse como o caráter ambígüo do
status do sacerdote permeia estruturalmente a religião popular. A relatividade que
nela assume a noção de «poder» contraria a idéia simplista segundo a qual o hieA
rocrata exerce um controle quase absoluto sobre os fiéis. O padre é indispensável;
afinal só ele pode ministrar os sacramentos. Mas que ele pretenda extender sua
autoridade além de um determinado raio de ação, isso já é uma coisa totalmente
diferente. Para as populações rurais e semiArurais, o passar do tempo não abalou a
convicção (nem sempre explicitada) de que «a igreja é do povo»76, e de que por
vezes «são os padres que acabam com a religião».77 Na Vila de Piedade dos GeA
rais, o texto de uma das mensagens que se acredita terem sido enviadas por Nossa
Senhora é explícito: «Os padres gostam de ser os primeiros, serão os últimos. Às
vezes são grandes pecadores.»78 Um interessantíssimo episódio ocorrido na vila
de São João Nepomuceno mostra que alguns sacerdotes realmente faziam jus a
esta má fama. Em correspondência enviada às autoridades eclesiásticas em 5 de
julho de 1892, um paroquiano informa sobre «o triste espetáculo que aqui se deu
no dia 3 do corrente: às 11 horas do dia, depois de uma ausência de um mês e
tanto, aqui entrou o Sr. Pe. Antônio Teixeira, escoltado por cerca de cento e tantos
capangas todos de cor preta na maior parte, entre eles, muitos assassinos, e arA
mados dos pés à cabeça. Dando tiros e pedindo sangue; e nesse gosto insultando
as autoridades e nada respeitando; sendo a missa só assistida pelos mesmos caA
pangas, ficando grande parte deles escoltando as portas da igreja e fazendo braA
mir suas armas! Com custo pude conter o povo da freguesia que quiseram [sic]
desafrontarAse de tamanha afronta, senão fora o que, seria a nossa freguesia teatro
de cenas de mortes! Em nome de Nosso Bom Deus e de Nossa Santa Religião, eu
vos peço compadecerAse de nós, oficiando e implorando ao Exmo. Sr. Bispo a noA
meação de um outro pároco para esta freguesia».79
Na percepção popular a virtude precede sempre o status institucional. Não se
deve supor que estilo de vida nômade e virtude necessariamente contradigam um
ao outro. Um outro tipo de sacerdote desperta nas populações rurais um profundo
sentimento de admiração e respeito: são os «padres missionários», que percorrem
o interior brasileiro a partir do século XIX pregando o Evangelho. Apesar das diA
versas referências que lhes fazem os escritores mineiros80, a ação dos missionáA
rios infelizmente não foi ainda explorada pela historiografia. O melhor retrato nos
foi pintado sem dúvida por Rosa: «foi tempo de missão, e chegaram no arraial os
missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas,
bradando sermão forte, com forte voz, com fé brava. De manhã à noite, durado de
três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e
aconselhando (...). A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde
como virtude».81 O entusiasmo com que essas figuras eram recebidas é atestado
por um pedido de provisão feito por moradores de Baependi em 1899:
«Os abaixo assinados desejam construir na explanada da serra oriental desta
cidade uma capela de pedra decente para o santo sacrifício e atos do culto
divino sob a invocação do Senhor Bom Jesus do Calvário, com o fim princiA
pal de recordar a primeira procissão do aniversário da Santa Missão, na qual
cerca de 4000 fiéis carregaram a braço cerca de 25 carros de pedra para o
patamar da santa cruz deixada pelos missionários; e que realizouAse a 24 de
maio deste ano, 1° jubileu da missão.»82
86 CCM, p. 710.
87 Eschwege, Wilhelm L. Journal von Brasilien. Weimar, 1818, II, pp. 95A96.
88 SaintAHilaire, A. Viagem às nascentes..., vol. I, p. 92.
89 Citado por Aguiar, Marcos M. de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora
africana no Brasil Colonial. São Paulo: tese de doutorado em História, USP, 1999,
p. 314.
90 Gonzaga, Tomás Antônio. Cartas chilenas. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp.
108A112.
91 Guimarães, Bernardo. O ermitão do Muquém. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,
1964.
92 Alencar, José de. «O ermitão da Glória». In: Obra completa. Rio de Janeiro: José
Aguilar, 1958.
93 Não nos ocuparemos aqui com a questão das grandes procissões, por se tratar de
um dispositivo ritual típico dos espaços especificamente urbanos da época.
99
94 Carrato, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1963, p. 212.
95 Carrato, José Ferreira. «Medievalidades mineiras nos tempos da Inconfidência:
hospícios e romarias ». In: Revista do Departamento de História da UFMG (9)
1989: 121A129, p. 126.
96 Dupront, Alphonse. Du sacré. Croisades et pèlegrinages, images et langages. PaA
ris: Gallimard, 1987, p. 44.
97 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., pp. 117A123.
100
curarAse de uma doença. Para outros o protagonista foi um escravo, que teria
achado uma imagem do Cristo Cruxificado. Por ocasião de uma seca a imagem
foi levada em procissão, e com sucesso: logo depois caía a chuva. DecideAse enA
tão erguer a igrejinha do Senhor Bom Jesus, o que efetivamente acontece em 16
de junho de 1743.98 Sobre a capela de Nossa Senhora da Lapa, sabemos por meio
do testemunho de Dom Frei José da Santíssima Trindade que ela se situava «em
uma gruta debaixo de um monte» e que era «admirável, e por isso muito deA
vota».99 A capela de Senhora Santana, em Mariana, entrara em declínio em meaA
dos do setecentos. Segundo o Códice Matoso, havia ao seu redor «casas de romaA
gem, em que antigamente se recolhiam infinitos devotos, que de partes muito
distantes vinham antigamente de romaria a visitar a mesma santa».100 O arraial de
São Tomé das Letras deve sua formação à descoberta de enigmáticas inscrições
feitas nas paredes de uma gruta ali situada. Em conformidade com crença difunA
dida no Brasil Colônia, as mesmas foram atribuídas a São Tomé, apóstolo que teA
ria percorrido a América catequisando os índios nos primeiros tempos do cristiaA
nismo. Uma cópia das inscrições, feita por ordem do governador Gomes Freire de
Andrade em 1738, foi «analisada» pelo padre José Mascarenhas nove anos deA
pois. Mascarenhas confirma a versão popular da origem dos sinais e chega
mesmo a datáAlas do ano 54 da nossa era.101
A cura milagrosa por intermédio de uma promessa, as evidências da passagem
de um apóstolo, a existência de uma mulher cuja santidade ninguém ousa questiA
onar, a descoberta de uma imagem, visões da Virgem Santa: a irrupção espontâA
nea do sagrado é uma constante na religião popular. Nela o numinoso nunca está
completamente «rotinizado». Por outro lado, e como as romarias inevitavelmente
assumem uma dimensão festiva, a fronteira entre sagrado e profano está longe de
corresponder às espectativas do clero e das classes letradas. O que explica o desA
conforto e a desconfiança da autoridade eclesiástica face às romarias. Tanto
quanto possível procuraAse domesticáAlas, pois acreditaAse, como Jean Gerson
(1363A1428), que «nada há de mais perigoso do que a devoção ignorante».102 Por
vezes este esforço disciplinador assume uma forma autoritária, como se viu no
período em que Dom Frei Cipriano de São José esteve à frente do bispado de MaA
riana (1798A1817). Sobre o Caraça, afirmou ele que «é para se notar que as gentes
que sobem com tanto trabalho a Serra para lucrar indulgências, nem cuidam, nem
se apressam para entrar nas suas respectivas freguesias, onde sem maior incôA
modo, confessandoAse, e comungando podem lucrar as que os Sumos Pontífices
concedem a todos os fiéis em todos os dias do ano (...). Donde se pode inferir
sem escrúpulo que o divertimento, e a curiosidade, a romagem, e a mistura de
um, e outro sexo é todo o móvel de semelhantes devoções.»103 Se os bens de salA
vação podem ser obtidos por meio do sacrifício da missa e do sacerdote que o
celebra, por que razão, perguntaAse o bispo, empreender cansativas peregrinaA
ções? A resposta lhe parece óbvia: as causas que levam tantos romeiros aos sanA
tuários não seriam de natureza religiosa, mas «profana». O prelado marianense
critica duramente a «confusão», o «descomposto» e o «tumulto» do Santuário de
Congonhas e chega mesmo a proibir a realização de missas na Serra da Piedade
quando ali se encontrava Irmã Germana. A reação popular não tarda. Como o
bispo havia imposto sua proibição sob o pretexto de que aquele culto não tivera
autorização do rei, os fiéis solicitam e obtém a dita permissão.104
O fenômeno peregrino constitui hoje um dos mais importantes campos de pesA
quisa no âmbito das ciências das religiões, e obviamente não temos a pretensão
de analisáAlo extensamente aqui. InteressaAnos ressaltar apenas um dos seus asA
pectos, qual seja, o da relação que se estabelece entre peregrinação e «realidade».
Victor Turner julga que as peregrinações obedecem a uma lógica próxima da de
um rito de iniciação. Por seu intermédio um grupo institui um espaçoAtempo no
qual a estrutura do diaAaAdia é abolida, em que os laços sociais são reforçados por
meio do sentimento de communitas. Este desejo coletivo de contrapor uma «antiA
estrutura» à estrutura cotidiana explica, no entender de Turner, porque as peregriA
nações muitas vezes assumem uma dimensão «anárquica» e mesmo «anticleriA
cal».105 Pierre Sanchis partilha de um ponto de vista próximo, e identifica homoA
logias entre romaria e utopia.106 E Klaus Guth considera a peregrinação «uma
evasão do mundo cotidiano, geralmente sob uma forma comunitária».107
Todavia não parece factível a idéia de Turner de que o contato com uma outra
realidade só se efetiva no momento em que o peregrino atinge seu objetivo. PôrA
se a caminho já implica numa primeira ruptura com o mundo da vida.108 Bollnow
103 Citado por Carrato, José Ferreira. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais.
São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968, p. 38. Grifo nosso.
104 Carrato, As Minas Gerais..., p. 191; SaintAHilaire, Viagens pelo distrito..., pp. 119A
120.
105 Turner, Victor & Tuner, Edith. Image und pilgrimage in Christian culture. Oxford:
Blackwell, 1978, pp. 1A39.
106 Sanchis, P. Arraial: festa de um povo, p. 141.
107 Guth, Klaus. «Die Wallfahrt – Ausdruck religiöser Volkskultur. Eine vergleichende
phänomenologische Untersuchung». In: Ethnologia Europea (16) 1986: 59A82.
108 O conceito de «mundo da vida» (Lebenswelt) não deve ser entendido como um
mero sinônimo de «cotidiano» (Alltag). Ele denota não o mundo social préAconstiA
tuído com o qual nos defrontamos, mas o complexo de «províncias de significado »
(Sinnbereiche) que compõem a «realidade primordial» (ausgezeichnete Wirklich
102
mostrou como esta forma elementar de peregrinação que é o simples passeio reA
sulta de um anseio de «libertação das fadigas e preocupações do diaAaAdia». O
efeito psicológico ao fim de um passeio é o de um «rejuvenescimento».109 Não é
outra a natureza do sentimento que invade os romeiros ao fim de sua longa jorA
nada. Alphonsus de Guimarães nos fala de homens e mulheres que retornam para
casa «com os corações aliviados de culpas e de pecados» depois de terem particiA
pado do jubileu em Conceição do Mato Dentro.110 Talvez isto nos dê uma pista a
mais para entender por que o centro de peregrinação é, por definição, um lugar
distante ou de difícil acesso. As palavras romaria («ir a Roma») e peregrinus
(«estrangeiro», «que viaja no estrangeiro») dizem muito por si mesmas: há algo de
fascinante não apenas no sítio onde repousa o santuário, mas no ato mesmo de
deslocar se até ele. Para Dupront111 a peregrinação cristã se distingue da pratiA
cada em outros sistemas religiosos pelo fato de investir maior carga simbólica na
dinâmica do ato em si (aller à) que no encontro com o espaço sagrado. A distânA
cia, ou antes, a «virtude purgativa» do espaço percorrido, é que garante a obA
tenção das graças almejadas. Os versos do mais conhecido poeta mineiro bem o
mostram:
Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.112
ColocarAse em movimento significa nestes casos transportarAse para uma outra
realidade, transcender o mundo da vida. Assim se entende também porque a roA
maria/peregrinação muitas vezes se confunde com a festa. Ao contrário do que
supunha o severo Dom Cipriano, o lúdico e o sagrado eram, para a imensa maioA
ria dos mineiros do seu tempo, apenas as duas faces de uma mesma moeda. A
forte inclinação pelas «formas provisórias de existência» (Laura de Mello e
Souza) e o surgimento de diversos centros de romaria na Minas Gerais dos dois
primeiros séculos sugere, talvez, a existência de uma espécie de nostalgia coletiva
em relação ao modo de vida nômade, uma vez que a fixação num determinado
espaço se confronta com uma das duas alternativas: ou tal fixação não chega a se
efetivar (por ser conscientemente concebida como um impecílio à «salvação» na
imanência) ou, caso haja de fato uma sedentarização, sua aparente irreversibiliA
dade deve ser periodicamente amenizada pelo deslocamento a um espaço saA
grado.
Tal como a vida constitui uma trajetória cujos marcos divisores são ritos de
passagem como o batismo, matrimônio e exéquias, também um dia comum deA
compõeAse em diferentes momentos. À noite, ao deitarAse, o cristão faz suas oraA
ções. Diz Gonzaga em suas Cartas Chilenas:
E mal estendendo nos lencóis o corpo,
Dou um sopro na vela, os olhos fecho,
E pelos dedos, rezo a muitos santos,
Por ver se chega mais depressa o sono;
Conselho que me deram sábias velhas.124
O espaço não se subdividia em porções matematicamente uniformes, mas em
extensões de distinto valor. Seguindo o mesmo princípio, as horas do dia distinA
guiamAse qualitativamente umas das outras. Toda diferenciação encontra na históA
ria sagrada a sua justificativa: o meioAdia, hora em que se inicia a agonia de
Cristo – assim como seu reverso, a meiaAnoite –; as 15:00h, quando Ele expira no
Calvário («E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona»;
Mt 27, 45); as 18:00h, hora da Anunciação. Especialmente esta última, também
chamada hora da Ave Maria ou do Ângelus, despertou a atenção dos viajantes.
SaintAHilaire conta que em toda Minas «quando o sino vibra todos param, descoA
bremAse, juntam as mãos e rezam».125 Chegando ao anoitecer no Arraial do InfiA
cionado, Spix e Martius depararamAse com boa parte dos habitantes «reunidos diA
ante de imagens de Nossa Senhora iluminadas».126 Os ritos religiosos deviam reA
alizarAse sempre entre a aurora e o crepúsculo. A Igreja determinava que «nem
uma pessoa, de qualquer estado, e qualidade que seja, poderá ser enterrada antes
de nascer o sol». À exceção da procissão da QuintaAFeira de Endoenças, nenhuma
outra poderia realizarAse «das Ave Marias por diante», por ter mostrado a experiA
ência «que nas procissões de noite pode haver, e há muitas ofensas a Deus nosso
Senhor, as quais, diz o Apóstolo, são obras das trevas, de que é Príncipe o
demônio».127
Por todos os cantos, no cume de cada morro, em estradas, pontes e especialA
mente nas encruzilhadas, erguemAse cruzes. «À sombra desse símbolo – diz BerA
nardo Guimarães – toda a terra é sagrada».128 Desde muito cedo na história do
a respeito. Uma testemunha explica ao seu autor por que não lhe agradava fazer
passeios à Lagoa das Antas na companhia dos ingleses que então dirigiam a mina:
«Eu ia sempre com muito pesar, porque antes daqueles pagãos se meterem a
tomar banho na lagoa, quando ia chegando o meioAdia a gente via uma cruA
zinha de prata vir subindo do fundo da água, e ir crescendo, crescendo até fiA
car uma cruz grande e muito brilhante na flor da lagoa, quando era meioAdia
em ponto; e depois a cruz ia diminuindo e abaixando até desaparecer. Desde
o dia que os pagãos do Gongo começaram a se banhar na lagoa ninguém não
viu mais nada.»152
A tradição oral ainda guarda exemplos parecidos, como o que ouvimos na PontiA
nha (um povoado pertencente ao município de Paraopeba, composto quase que
exclusivamente de negros) alguns anos atrás. ContaAse que a bela lagoa ali exisA
tente, chamada aliás Lagoa Dourada, era encantada. «No tempo dos antigos» um
cavalo aparecia cavalgando nas águas, com parte do corpo submersa. Desde que
um homem do lugar atirou no misterioso animal este não aparecera mais.153
DigaAse de passagem que a crença em seres mágicos que habitam o fundo das
águas é uma constante em Minas. Caso contrariados, eles viram barcos, perseA
guem barqueiros ou ordenam aos peixes que fujam. Há pescadores mesmo que
lhes fazem oferendas, depositando presentes ou alimento à beira dos rios.154
As águas nunca deixam de suscitar um sentimento de mysterium tremendum
(Otto), em especial quando dotadas de poderes curativos. A fama de Lagoa Santa
era de tal ordem, na primeira metade do setecentos, que chegaramAse a embarcar
barris com sua água para Portugal.155 Em meados da década de 1820, após visitar
o arraial, Langsdorff escreveu: «Há mais de 100 anos (...) pessoas que sofriam de
gota ou pessoas entrevadas eram trazidas até da Bahia para cá e daqui saíam toA
talmente curadas». Corriam histórias de que «em seu centro, há abismos insondáA
veis; e que, nesse mesmo lugar, há um redemoinho ou turbilhão que atrai para ele
e engole tudo que dele se aproxime».156 Rios e lagoas são locais privilegiados,
superiores – neles parece haver sempre uma «terceira margem».157
Em resumo, podeAse dizer que nos arraiais mineiros setecentistas e oitocentisA
tas o extraordiário fazia parte do cotidiano. Isso de forma alguma significa que a
modalidade de pensamento vigente fosse «préAlógica», para usar os termos da
velha tese de LévyABruhl (basta dizer que ele próprio viria a renegar sua teoria no
fim da vida). Significa apenas que, numa época e num meio ainda não dominados
pela ciência e técnica modernas, a religião é o manancial fundamental de sentido.
Oposições binárias rígidas do tipo «natural»/»sobrenatural» são estranhas à visão
de mundo popular.158 Em sociedades tradicionais como a que estudamos aqui, ora
o numinoso é domesticado pela Igreja, ora escapa ao controle eclesiástico e se dá
a experimentar por intermédio de curandeiros ou feiticeiros, ora toda intermediaA
ção perde sua razão de ser e o sagrado manifestaAse anárquica e diretamente nas
suas diversas modalidades: carisma, visões, «assombrações».
Típico de sociedades onde o «sagrado selvagem» (Bastide) não foi completaA
mente marginalizado do mundo da vida é a crença em seres fantásticos. Alguns
deles limitados ao universo infantil, fruto de um esforço pedagógico que – reveA
ladoramente – só parece dotado de eficácia porque legitimado ao nível da transA
cendência. Gonzaga nos fala dos «chorosos meninos, que emudecem,/ quando as
amas lhes dizem: ‹Cala, cala/ que lá vem o tutu, que papa gente!›»159 Os adultos
tinham seus próprios fantasmas, como os que geraram pânico entre os moradores
de Vila Rica nos tempos do Conde de Assumar. Vultos sinistros, vindos das
montanhas que cercam a povoação, percorriam suas vielas durante a noite. Houve
até quem lhes atribuísse características tipicamente demoníacas, como chifres,
asas e pésAdeApato.160 A princípio a reação da população é comunicar as autoriA
dades, pois, como foi visto no capítulo anterior, até um passado não muito disA
tante a questão do além também era um «caso de polícia». O governador deterA
mina em 13 de julho de 1720 que
«para evitar todo o gênero de desassossêgo que têm com os mascarados, se
atirem contra estes e os matem, por serem perturbadores do sossêgo públiA
co... e se lhes declara que não ficarão incursos em crime algum os que mataA
rem os ditos mascarados, antes sim se lhes dará um prêmio de cem oitavas
de ouro a todo aquele quem constar que matou algum mascarado que apareça
no morro ou na Vila a qualquer hora da noite.»161
e
158 Febvre percebeu bem que «les hommes du XVI siècle ne possédaient notre notion
du naturel s’opposant au surnaturel. Ou plutôt, pour eux, la communication deA
meure normale et incessante entre le naturel et le surnaturel». Febvre, Le problème
de l’incroyance au 16e siècle, p. 407. Para uma crítica da validade da contraposição
entre «natural» e «sobrenatural», ver Luckmann, Thomas. Comment on «Malinovski
magic: the riddle of the empty cell», by Karl E. Rosengreen. In: Current Anthro
pology (17) 1976: 678A679.
159 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 121. Sobre este tema, ver as páginas notáveis de
Freyre, Casa grande & senzala, pp. 128A131, 328A330.
160 Guimarães Rosa se refere pelo menos duas vezes ao Diabo com a expressão «PéA
deAPato». Rosa, Grande sertão, pp. 37 e 282. Esta característica encontra a seA
guinte explicação popular: como a maior parte das pontes eram dotadas de cruzes,
o Diabo viaAse obrigado a evitáAlas, tendo conseqüentemente de atravessar os rios.
Daí os pésAdeApato. Dornas Filho, João. Achegas de etnografia e folclore. Belo HoA
rizonte: Imprensa Publicações, 1972, p. 189.
161 Citado por Dornas Filho, op. cit., p. 120.
111
NoteAse que Assumar, homem ilustrado, refereAse aos vultos como simples «masA
carados». Ao seu ver tudo não passa de uma ação de criminosos, quilombolas talA
vez, interessados em apavorar os crédulos vilaAriquenses. Mas as severas medidas
repressivas por ele determinadas mostramAse inócuas. A população muda então de
estratégia e pede autorização ao bispo do Rio de Janeiro para instalar altares em
lugares estratégicos como as entradas da vila e os cruzamentos. O povo passou a
ajuntarAse ali, todas as tardes, para rezar; e somente assim deuAse cabo das
demoníacas figuras.162
No verdadeiro tratado de etnografia sertaneja que é Sagarana, Rosa enumera
lugares e circunstâncias em que os seres fantásticos costumam aparecer: «todo
pauAd’óleo; todas as cruzes; todos os pontos onde os levadores de defunto, por
qualquer causa, fizeram estância, depondo o esquife no chão; todas as encruziA
lhadas – mas somente à meiaAnoite; todos os caminhos: na quaresma – com os
lobisomens e as mulasAsemAcabeça, e o cramondongue, que é um carroAdeAbois
que roda à disparada, sem precisar de boi nenhum para puxar».163 A mulaAsemA
cabeça sai em «todas as noites de sextaAfeira para sábado» por becos e cemitérios
para assombrar as pessoas.164 Outra interessante crença do período colonial, a do
João do Campo, só conhecemos por intermédio de SaintAHilaire: «‹João do
Campo› é um ser imaginário representativo das regiões descobertas. Quando se
entra nos campos é em casa de ‹João do Campo› que se entra, e, quando o viaA
jante dorme ao relento é ‹João do Campo› que o hospeda.»165 Durante sua passaA
gem pelas proximidades de Rio Manso, Tschudi ouve «fabulosas histórias da getiA
ranabóia, que mataria seres humanos e animais, à distância e num piscar de olhos,
com suas setas. ConsideramAna o mais terrível bicho do Brasil».166 A existência
de lobisomens era crença tão difundida no sertão oeste de Minas que «muitos vão
até a ponto de tratar de heréticos os que se recusam a acreditar nisso».167
O fato de que um Dom Viçoso tenha dedicado um contundente trecho do seu
Catecismo de Mariana às «superstições» evidencia, por si só, a persistência das
práticas e representações populares de que falamos acima:
162 Menezes, Furtado de. Igrejas e irmandades de Ouro Preto. Belo Horizonte: IEA
PHA, 1975, p. 111.
163 Rosa, Guimarães. «Minha gente». In: Rosa, G. Sagarana. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1983, p. 181. Ver ainda o poema «Assombramento» em Rosa, GuimaA
rães. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp. 123A124.
164 Guimarães, Bernardo. O seminarista., p. 83.
165 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., pp. 224A225.
166 Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 174.
167 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 122.
112
168 Viçoso, Dom Antônio Ferreira. Catecismo de Mariana. Paris: Garnier, sem data, p.
49
169 Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, pp. 352A357; Mott, Luiz, «O calunduAanA
gola de Luzia Pinta...», pp. 74A75; Ramos, Donald. «A ‹voz popular› e a cultura poA
pular no Brasil do século XVIII». In: Silva, Maria B. N. da. Cultura portuguesa na
Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, pp. 144A146.
170 Citado por Algranti, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Con
dição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750 1822.
Brasília/Rio de Janeiro: Edunb/José Olympio, 1999 (1993), p. 93.
171 Carrato, As Minas Gerais e os primórdios do Caraça, p. 219.
172 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos Diamantes..., pp. 105A106.
113
fetichista dos africanos, põe a carne na mesa e muitas vezes vê o ‹fantasma› pasA
sando, de aposento em aposento».173 Em Minas as assombrações se manifestam
geralmente no espaço da casa, e, mais precisamente, na cozinha.174 Veremos adiA
ante (seção 3.2.3) porquê.
Alguns têm visões daquilo que espera os homens após a morte. Nuno Marques
Pereira reproduz os elementos típicos da tradição cristã no seu retrato do inferno:
«O lugar é o mais infame, e mais baixo que pode haver, pois é o mesmo centro da
terra, e por isso ali se vão ajuntar todas as imundícies, geradas daquela putrefaA
ção, como serpentes, escorpiões, víboras, lagartos, sapos, e toda a mais casta de
bichos venenosos. Além das mais horrendas e espantosas vistas de tantos demôA
nios, e condenados.» Contudo a obra de Pereira é expressão de um um estilo de
pensamento erudito, e prova disso é sua preocupação em conferir precisão aritA
mética à sua descrição. O inferno seria um lugar «tão apertado, que dizem os au
tores, e mais peritos matemáticos, que não tem largura e circuito que de duas, ou
três léguas».175 Para que tenhamos uma idéia das representações que o homem
comum tinha a respeito, parece ser mais representativo o caso do funcionário
João Alves de Carvalho, morador da Mariana dos primeiros anos do século XIX.
Em correspondência endereçada ao então governador da Capitania de Minas, ele
requere sua manutenção no posto de porteiro. Afirma ser velho, pobre e reponsáA
vel pela esposa incapacitada para o trabalho; seu ofício é sua única fonte de
renda. Mas assegura ser «homem temente a Deus», «beato» e ter «voto jurado»,
uma vez que é casado mas «não usa do matrimônio». Por estas razões teria Deus
levado
«a alma do suplicante ao fogo do purgatório, aonde esteve dois minutos arA
dendo nele, foi levado aos céus aonde esteve dois minutos e viu tudo como
estava, foi levado ao inferno entre os condenados, e também viu lá o inferno
dos padres, e viu como o fogo abrasava neles, e a gritaria desordenada que
faziam, também foi ao purgatório das mulheres aonde viu todas assentadas
173 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 196. O renomado folclorista
finlandês Lauri Honko diz serem três as características básicas das «assombraA
ções»: elas são seres empíricos (nunca se questiona, no universo popular, a realiA
dade de uma aparição), são seres solitários e têm sempre um caráter local. Honko,
Lauri. Geisterglaube in Ingermanland. Helsinki: Academia Scientiarum Fennica,
1962, pp. 67A68.
174 Laterza Filho, Moacyr. «A plausibilidade dos fantasmas». In: Em Tese 2(2) 1998:
151A158.
175 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. II, p. 298 (grifo nosso). Colocar o saber maA
temático à serviço da fé – eis aí um recurso que foi comum às elites eclesiásticas
da era moderna. Vimos um Pe. José Mascarenhas atestando que a autoria das insA
crições de São Tomé das Letras se deviam ao referido apóstolo, e datandoAas de 54
d.c. Martinus Borrhaus, um autor protestante do século XVI, aventurouAse até a
calcular o número total de demônios existentes: 2.665.866.746.664! Ver Roskoff,
Gustav. Geschichte des Teufels. Eine kulturhistorische Satanologie von den Anfän
gen bis ins 18. Jahrhundert. Nördlingen: Greno, 1987 (1869), 2. Band, p. 380.
114
em um campo aonde conheceu várias, e teve a dita de falar com Deus cinco
vezes, aonde o Senhor lhe disse que estava nos céus e que lá era o seu lugar,
e também viu Nossa Senhora por cinco vezes, e também viu os anjos cantaA
rem e os cortezãos cantarem e dançarem, e outras coisas muito mais: e porA
que soube com certeza que Vossa Excelência ficava cego rogou a Nossa SeA
nhora para lhe dar vista. AditouAlhe a Senhora que o suplicante fizesse a noA
vena da paixão, a qual a fez (...).»176
Eduardo Paiva observa corretamente que tais descrições «não são criações de
João Alves, mas formas que povoavam o imaginário social».177 SejaAnos permiA
tido acrescentar algo ao seu comentário. Tão importante quanto o retrato que João
Alves pinta do alémAtúmulo é obviamente aquele que ele oferece de si mesmo:
vivendo na pobreza, na castidade («não usa do matrimônio»), vivendo para a reliA
gião, o autor do documento oferece um exemplo notável daquele desejo de santiA
dade no mundo que está no cerne mesmo da devotio moderna. Além do mais,
numa sociedade em que o anonimato era virtualmente impossível, como naquelas
pequenas cidades em que «todosAsabemAdeAtodos», é difícil imaginar que se puA
desse dirigir uma correspondência a uma alta autoridade distorcendo radicalA
mente a realidade dos fatos relativos à sua própria pessoa. O fato de João Alves
observar tão estreitamente a religião tende a exercer um efeito legitimador sobre
o seu relato (se aquele homem experimentou de fato tais visões, é algo que o
historiador não está em condições de sentenciar). Mas o que está em questão é
uma demanda muito terrena: a sua manutenção no posto de porteiro. Ver a Deus e
Nossa Senhora, os anjos e os condenados, para garantir um emprego? DeparamoA
nos aqui, mais uma vez, com esta típica propensão da religião popular que é a de
colocar transcendência em função da imanência. Mais: numa «sociedade relacioA
nal» (Da Matta) como a brasileira, é importante demonstrar que os laços entre as
pessoas não se limitam à vida terrena. NoteAse que, embora seja «casado com uma
mulher doente há mais de dez anos que não sai à rua por ser entrevada», é pela
saúde do governador (que «ficava cego») que João Alves roga à Virgem. Esta
contradição não implica necessariamente que nosso personagem limitaraAse a inA
ventar sua visão, guiandoAse por um tosco oportunismo. O importante é perceber
que nos termos da mentalidade da época tal relato adquiria – ou deveria adquirir
– um acento de verdade. Ao fim de seu monumental estudo sobre as visões no
interior da tradição cristã, Benz escreve que todo aquele que passa por esta expeA
riência «é tomado pela consciência irrefutável de que esta realidade do alémA
mundo por ele experimentada é a verdadeira realidade, face à qual toda realidade
terrena esvanece e perde seu valor».178 Pouco importa que o relato de João Alves
pareça inverossímil aos olhos de quem o lê hoje ou mesmo a alguns de seus conA
temporâneos. LembremoAnos da fórmula luminosa de Weber: não há vida religiA
osa plena sem «sacrifício do intelecto».179
Há, finalmente, o culto aos santos. Eles oferecem proteção, concedem graças,
servem de veículo à identidade de um grupo ou coletividade. Santos, enfim, que
os fiéis tratam como se fosse um parente próximo. Como bem mostrou Freyre,
«impossível conceberAse um cristianismo português ou lusoAbrasileiro sem essa
intimidade entre o devoto e o santo».180 Se se concebe o panteão católico como
um gradiente de forças ou entidades que se dispõem numa ordem crescente de saA
cralidade, não há dúvida que os santos situamAse no pólo oposto do da figura de
Deus pai. Enquanto a função deste último quase que se resume a dar coerência ao
modelo cosmogônico cristão, um Deus distante e que aparentemente não mais se
ocupa com o destino dos homens, o santo – é Sanchis quem observa – participa
«no mundo do ‹sagrado› e do poder, sem ter por isso abandonado todos os traços
da humana psicologia».181 Só assim se entende como um agricultor alentejano
pôde dizer:
«Deus, não sabemos se ele existe. Mas não podemos negar que esta santa
aqui faz muitos milagres.»182
Estas palavras mostram que o culto aos santos ocupa o ponto central no catoliA
cismo popular.183 O cotidiano é estruturalmente marcado pela devoção a eles. Do
indivíduo à coletividade, do espaço da casa ao do arraial, para cada doença, cada
imprevisto da vida e cada profissão há o respectivo santo. RecorreAse a São LibóA
rio (problemas renais), São Brás (problemas na garganta), São Bento (contra o
veneno de cobras), São Jerônimo e Santa Bárbara (contra perigos em tempestaA
des), Santa Luzia (pela saúde dos olhos), São Sebastião (contra pragas nas lavouA
ras e rebanhos), São Roque (contra a lepra e epidemias), São Lourenço e São
Manuel (pelo dom da paciência), São Miguel Arcanjo (contra embustes e ciladas
do demônio). Santa Cecília é protetora dos músicos, Santo Ivo dos advogados,
São José dos carpinteiros, São Jorge dos ofícios ligados ao fogo, Santa Joana
d’Arc dos militares.184 A lista poderia alongarAse indefinidamente, mas seria inA
completa se deixássemos de mencionar Santo Antônio de Pádua (ao qual se reA
corre para reaver objetos perdidos e arranjar casamento). SaintAHilaire pôde ver o
prestígio deste santo quando esteve na Serra da Ibitipoca. Num rochedo haviamA
se formado manchas pretas que o pesquisador atribuiu a líquens, e uma delas
lembrava a figura de um monge segurando um livro. «Dele fizeram um Santo
Antônio e é objeto de veneração em toda a zona. Todos quantos perderam aniA
mais na serra vão rezar o terço diante da imagem e os encontram infalivelmente.
Outros há que, em romaria e de vela em punho, visitam o rochedo onde está reA
presentado o santo e ali fazem penitência».185
A forma básica de relação entre devoto e santo é, como se vê, a oração. Existe
uma convicção generalizada de que tal relação é regida pelo princípio da troca.
No Portugal setecentista costumavaAse oferecer uma refeição a São Francisco de
Paula porque as orações não eram consideradas suficientes por si mesmas.186
Quando se almeja alcançar uma «graça» especial, lançaAse mão da promessa.
Caso atendido, o devoto deverá «pagar» ao santo. Pagar uma promessa significa,
por exemplo, imporAse um sacrifício, fazer uma romaria, submeterAse a um tabu
alimentar ou comportamental. O mecanismo da promessa lembra o do sacrifício,
com uma diferença: desta vez a situação de subordinação do fiel em relação à diA
vindade não é mais tão clara.187
Em 1828, no Caraça, uma romeira com os braços abertos, segurando uma vela
em cada mão, sobe de joelhos toda a escada do santuário, atravessa o patamar
fronteiro à igreja, entra na mesma e segue até o altar, onde finalmente deposita
sua oferenda.188 As modalidades de «pagamento» incluem ainda construir uma
184 Gaio Sobrinho, Antônio. «Devoções coloniais mineiras a partir de São João delA
Rei». Mimeografado, 1997, p. 3.
185 SaintAHilaire, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a
São Paulo. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974, pp. 33A34.
186 Mentelle, Géographie comparée, p. 193.
187 Heiler escreve a respeito: «nos primórdios, o homem faz uma oferenda quando, suA
plicante, eleva suas mãos para o deus a fim de obter dele o que deseja. Mas nem
sempre ele tem a sorte de ver seu desejo realizado. Ele fica ‹escaldado› (gewitzt); e
não mais confia totalmente na divindade. Por essa razão ele se recusa a assumir
despesas em vão; ele quer obter primeiramente a ajuda do deus e, somente então,
(...) realizar sua oferenda». Heiler, Friedrich. Das Gebet. Eine religionsgeschichtli
che und religionspsychologische Untersuchung. München: Ernst Reinhardt, 1920,
p. 78.
188 Carrato, «Medievalidades mineiras...», p. 127. Não raro a promessa é motivada por
uma doença grave ou mal tido como incurável, e no entanto seu «pagamento » enA
volve, ou tende freqüentemente a envolver, alguma forma de provação corporal.
No universo religioso popular a mortificação não visa a domesticação do (e/ou
combate ao) próprio corpo, mas sim uma compensação pelo reestabelecimento do
seu equilíbrio. Ver Hahn, Alois. «Religiöse Dimension der Leiblichkeit». In: Hahn,
A. Konstruktionen des Selbst, der Welt und der Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp,
2000, pp. 387A403.
117
Trinta e cinco anos se passam entre a primeira e a terceira promessa sem qualquer
alteração significativa a nível formal, e até mesmo a quantia a ser dada continua a
mesma. Isso indica que os devotos simplesmente seguiam um modelo préAexisA
tente, muito provavelmente colocado à disposição na própria capela ou santuário
a que recorreram. O fato de os textos estarem escritos de forma a descrever círA
culos em torno de um eixo central não é desprovido de interesse. Para a mentaliA
dade popular o movimento circular possui uma espécie de propriedade mágica
que maximiza a eficácia de inúmeros tipos de invocação.191 Mas o essencial para
nós é perceber que, numa época em que já se publicavam anúncios nas grandes
cidades do litoral prometendo recompensa a quem prendesse escravos fugidos,192
o recurso ao além com o mesmo fim continuasse comum em Minas Gerais. O uso
da escrita também chama a atenção (em outras ocasiões, os «requerimentos» ao
santo eram queimados e suas cinzas atiradas ao vento)193, e quem sabe se possa
consideráAlo uma forma mais «sofisticada» de contato com o transcendente, uma
vez que a maior parte da população era composta de analfabetos, e, portanto, só
podia fazer sua promessa verbal ou mentalmente. Outro ponto a ser ressaltado é o
perfil social dos devotos, ao que parece todos pertencentes à elite. Seria excessivo
caracterizar Santo Antônio como um «santo dos ricos», mas não há como ignorar
que as tensões sociais de alguma forma reverberavam no plano religioso. Talvez
nesse sentido se possam ler estes versos populares:
Santo Antônio é milagroso,
mas, santo traidor.
Santo Antônio amarra negro
pra levar pra seu senhor.194
Uma boa parte daquilo que nos dizem os breviários sobre o que deve ou deveria
ser o catolicismo simplesmente não se aplica ao universo popular. Um negro vê a
imagem da Virgem aproximarAse em procissão e diz: «Lá vem o meu parente».195
Uma intimidade que pode se extender à figura do próprio demônio e fazer dele,
momentaneamente, algo bem distinto do «pai da mentira» de que falam as escrituA
ras. Em Portugal, no santuário de São João de Arga, os romeiros levam esmolas
ao Senhor Diabo, o mesmo Diabo ao qual a aldeia de São Bartolomeu atribui a
sua fundação.196 Em Lavras Novas, um antigo distrito de Ouro Preto, contaAse
que a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres foi edificada num terreno onde antes
morara uma velha feiticeira que havia feito um pacto com o demônio.197
PercebeAse afinal que os princípios que regem esta modalidade de relação com
o sagrado são os da afetividade, da intimidade e da troca. Não a despeito destas
características mas justamente por causa delas é que por vezes se concebe que o
santo pode ser coagido a satisfazer a vontade do devoto. As fontes inquisitoriais
fazem referência a casos como a da negra forra Rosa Gomes, ocorrido em Sabará,
no ano de 1762. Desesperada por ver que os santos não intercediam em seu favor,
ela «partiu a facão as imagens de Nossa Senhora, Santo Antônio, inclusive o meA
nino Jesus, decepandoAlhes a cabeça e arrancandoAlhes os braços».198 Estas e
muitas outras formas cotidianas de coação do sagrado não eram contudo consideA
radas de maior gravidade pela Igreja, e prova disso é que o Santo Ofício limitouA
193 Expilly, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1935, pp. 168A169.
194 Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, p. 112.
195 Kidder, D. P. e Fletcher, J. C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Cia Editora NaA
cional, 1941, vol. I, p. 167
196 Leitão, Rubem Alfredo. «Páginas de casa». In: MourãoAFerreira, David e Seixo,
Maria Alzira (orgs). Portugal. A terra e o homem. Lisboa: Calouste Gulbekian, vol.
II, 1980, p. 149; Espírito Santo, M. A religião popular portuguesa, p. 36.
197 Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, p. 187A188.
198 Citado por Mott, Escravidão, homossexualidade e demonologia, p. 96.
119
se apenas a repreender Rosa Gomes pelo seu ato. De fato, a documentação oficial
falaAnos pouco a respeito exatamente por se tratar de uma prática bastante difunA
dida e que, desde que não se estendesse a símbolos situados num patamar mais
elevado de sacralidade, nada tinha de sacrílega. Que tais ritos eram comuns tanto
no reino quanto na colônia, mostramAno as referências a respeito nas ConstituiA
ções do Arcebispado de Évora (1534) e nas Constituições do Arcebispado da BaA
hia (1707).199
Há casos especiais, como aquele de que Alphosus de Guimarães diz ter sido
«testemunha quase ocular» no século XIX: um médico e um padre, empenhados
em vencerem as eleições num «remoto e pacato município mineiro», e dispostos a
evitar qualquer reviravolta de última hora, fizeram para os eleitores «uma enorme
panelada, e na hora em que esta fervia, atiraram o Santo [Antônio] no meio dos
legumes e das postas de carne».200 Diante deste exemplo, não há como evitar a
impressão de que um determinado «limite» foi ultrapassado. Dois fatores, porA
tanto, determinam tanto aos olhos do devoto comum quanto da hierarquia eclesiA
ástica a gravidade ou não destes procedimentos: (a) qual das figuras do panteão
católico é «castigada»; e (b) com que finalidade o rito é empregado. Todos no
Brasil sabem que Santo Antônio ainda é «castigado» por moças que desejam caA
sarAse, e a ninguém ocorre taxar tal ação de «feitiçaria».201
Como se recorre aos santos para solucionar problemas da vida cotidiana, tanto
a nível individual quanto coletivo, a «coação» pode se dar em ambos os níveis.
Em épocas de seca prolongada a população dos arraiais mineiros de Chapada e
São João da Chapada trocavam entre si seus santos padroeiros. Os santos só eram
reconduzidos às suas respectivas igrejas depois que chovesse.202 No nordeste braA
199 Silva, Rebello da. História de Portugal. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1971 (1861A1871), p. 537; CAB, livro V, título III, 901.
200 Guimarães, Alphosus de. «Bruxos e médicos». In: Obra completa, p. 466.
201 «Quando demora em atender aos pedidos, as raparigas arrancamAlhes dos braços o
Menino Jesus e deitamAno de cabeça para baixo no fundo de um poço, até que se
opere o milagre». Arinos, Affonso. Lendas e tradições brasileiras. Rio de Janeiro:
F. Briguiet & Cia, 1937, pp. 147A148. A continuidade e a força destas tradições é
mais que evidente. Um familiar nos explicava há pouco tempo que Santo Antônio
é tido como «pirracento». Quando um pedido a ele não é realizado, podeAse «pedir
por mal». AmarraAse sua imagem, em meio a orações, e enterraAse a mesma de caA
beça para baixo num vaso. Ou então trancaAse o santo, colocandoAo em lugares feA
chados, pois «santo não pode ficar em lugar fechado ». O mesmo familiar nos narA
rou o seguinte caso: em Belo Horizonte, certa mulher enterrou Santo Antônio num
vaso com o intuito de conseguir um marido. Teve sucesso; porém temeu que, uma
vez desenterrada a imagem, seu casamento se arruinasse. Dentro em pouco seu esA
poso tornouAse alcoólatra, e num dia, em meio a uma briga, deuAlhe justamente
com o tal vaso na cabeça. A mulher morreu e Santo Antônio «se vingou». Este reA
lato demonstra que no imaginário popular, embora o santo possa ser coagido, ele
nunca está completamente à mercê do devoto.
202 Machado Filho, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Rio de JaA
neiro: José Olympio, 1943, p. 47.
120
203 Fernandes, Gonçalves. Religião, crença e atitude. Recife: Instituto Joaquim NaA
buco, 1963, pp. 45A46. Ver também Cascudo, Superstição no Brasil, pp.439A440.
204 Schmitt, JeanAClaude. Heidenspaß und Höllenangst. Aberglaube im Mittelalter.
Campus: Frankfurt/Paris: Campus/Maison des Sciences de l’Homme, 1993, p. 118.
205 Geary, Patrick. «L’humiliation des saints». In. Annales (34) 1979: 27A42.
206 Mott, Luiz, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 188. A avaliação ligeira de WeA
ber, de que tais ritos são fruto de um «naturalismo préAanimista» também não
acrescenta muita coisa à discussão. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 228. O
mesmo se pode dizer de Thales de Azevedo, para quem a coação dos santos «assiA
mila esse culto a uma idolatria». Azevedo, Thales de. O catolicismo no Brasil. Rio
de Janeiro: MEC, 1955, p. 29. Igualmente etnocêntrica é a afirmativa de Lima Jr.,
de que as multidões que afluíram para Minas eram dominadas por um «falso conA
ceito da Divindade». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, p. 91.
207 Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 115. Para a França, ver Sébillot, Paul.
Le folk lore de France. Paris: E. Guilmoto, 1907, tome IVe, p. 166A169 e Burke,
Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 197.
Para a Alemanha, conferir o verbete «Bild und Bildzauber», em: HdA, 1. Band, p.
1291 e Petzoldt, «Magie und Religion», p. 481.
208 Citado por Gernet, Jacques. Primeras reacciones chinas al cristianismo. México:
Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 106.
121
214 Souza, Maria Beatriz de Mello e. «O culto mariano no Brasil Colonial. CaracteriA
zação tipológica das invocações (1500A1822)». In: Congresso Internacional Mis
sionação Portuguesa e Encontro de Culturas – Actas. Braga, 1993, tomo III, pp.
337 e 344.
215 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, p. 76.
216 Scarano, Julita. Devoção e escravidão. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Cia Editora NacioA
nal, 1978, p. 39.
217 Baumann, Hermann et Westermann, Diedrich. Les peuples et les civilizations de
l’Afrique. Paris: Payot, 1970, p. 360.
218 «A fim de imortalizar o triunfo das forças cristãs [sobre os Albigenses], Pio V insA
tituiu a festa de Nossa Senhora das Vitórias, cujo nome foi mudado para Nossa SeA
nhora do Rosário pelo seu sucessor, o papa Gregório XIII, que reconheceu no rosáA
rio a arma da vitória». Megale, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 431.
123
3.2 Casa
3.2.1 Microcosmo
Tönnies foi provavelmente o primeiro autor a ressaltar que à forma básica de soA
cialização (a família) corresponde um espaço específico: a casa. «O estudo da
casa é o estudo da comunidade, tal como o estudo da célula orgânica é o estudo
da vida», escreveu.227 Suas análises a respeito limitaramAse a considerações no
plano teórico, até porque seu empreendimento em Gemeinschaft und Gesellschaft
foi o de estabalecer o que ele considerava serem os conceitos básicos da análise
sociológica. Foi preciso esperar por um Gilberto Freyre para que os primeiros
estudos da casa numa perspectiva históricoAsociológica fossem levados a cabo.
Assim definiu Freyre o seu projeto: «o centro de interesse para o nosso estudo de
choques entre raças, entre culturas, entre idades, entre cores, entre os dois sexos,
não é nenhum campo sensacional de batalha (...). O centro de interesse para o
nosso estudo desses antagonismos e das acomodações que lhes atenuavam as duA
rezas continua a ser a casa.»228 Basta que comparemos este programa de pesquisa
com o que se escrevia em sociologia ou história naquela época para nos darmos
conta do caráter excepcional da obra de Freyre. Nada mais natural, pois, num esA
tudo que visa identificar as relações entre religião e espaço, que a casa deva ser
considerada o ponto de partida.
Qualquer análise nãoAformalista da vida social necessariamente se depara com
o fato de que a casa nunca é simplesmente um abrigo. Desde muito cedo na históA
ria da humanidade, esta função elementar foi investida de um sentido que faz da
casa um espaço distinto, superior, sagrado. A casa é o espaço primordial. Ela é «o
primeiro mundo do ser humano», «o grande berço».229 Ao mesmo tempo, toda
casa constitui um microcosmo da sociedade. Através dela é possível esquadrinhar
não só o todo das relações entre os homens mas também a forma por meio da
qual estes homens se relacionam com a transcendência. Ela reproduz, em miniaA
tura – e mesmo quando o faz de forma invertida – a lógica que predomina «lá
fora».230
243 Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais..., pp. 287A288.
244 Morgan, Lewis H. Houses and house life of the American aborigines. Chicago:
The University of Chicago Press, 1965 (1881).
245 Pereira, Compêndio narrativo, vol. I, p. 175.
246 Cunha, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d (1902), p. 119.
247 Holanda, Caminhos e fronteiras, p. 41; Rosa, Sagarana, p. 182.
248 Sartori, Paul. «Ueber das Bauopfer ». In: Zeitschrift für Ethnologie (30) 1898: 1A54,
pp. 5, 10, 28, 32 e 44. Eliade resume bem a questão: «Para durar, uma construção
(...) deve ser animada, ou seja, deve receber simultaneamente uma vida e uma
128
Gilberto Freyre faz menção a um único caso, transmitido pela tradição oral, de
um senhor de engenho que «mandou matar dois escravos e enterráAlos nos alicerA
ces da casa».249 No período colonial parece ter sido comum a bênção dos alicerA
ces por um sacerdote.250 ConcluiAse que o solo é depositário de forças a serem
vencidas ou, pelo menos, neutralizadas. Vale dizer: o espaço sobre o qual se
constrói nunca é neutro, nunca é «profano». O Bauopfer ou a bênção do alicerce
não sacralizam o espaço; o que estes ritos visam, na verdade, é operar uma subsA
tituição – por meio da qual o «sagrado fasto» se sobrepõe ao «sagrado nefasto»
preexistente.251 PodeAse também lançar mão de um outro mecanismo para se
evitar o contato direto com as forças nefastas. SaintAHilaire nota que em Minas
era «costume geral» edificar as casas de fazenda sobre estacas.252
O pólo oposto não desempenha função menos importante. É bem possível que
Flusser esteja com a razão quando considera o teto o elemento fundamental. Sua
função se confunde com a da própria casa – palavras como sem teto ou obdachlos
indicam em que medida a casa é a extensão lógica da sua cobertura.253 Quem
percorre as cidades do ciclo do ouro vê em inúmeros telhados figuras de pombas,
evidente representação do Espírito Santo. E ainda é comum que as laterais dos
telhados mineiros recebam um arremate conhecido como «peito de pombo». A
morada dos homens incorpora simbolismos estreitamente vinculados à morada
dos deuses (Tertuliano, no segundo século na nossa era, referiaAse às igrejas como
domus columbae). As homologias entre casa e templo não param aí. SaintAHilaire
e Langsdorff relatam que era bastante comum a colocação de cruzes nas áreas deA
fronte das habitações.254 Finalmente, era no espaço da casa que se realizavam os
ritos funerários sem os quais a alma do defunto não podia ser adequadamente inA
255 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 102; Willems, Uma vila brasileira, pp.
160A161; Rosa, Guimarães. «Os irmãos Dagobé». In: Primeiras estórias, pp. 26A30.
Conferir ainda o útil levantamento de Stubbe, Hannes. «Tod, Trauer und Verwitwung
in der brasilianischen Folklore». In: Staden Jahrbuch (34A35) 1986A1987: 11A29.
256 Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 372.
257 Para que o oratórioAermida não seja confundido com os pequenos altares de maA
deira portáteis, nos quais se colocavam os santos de devoção da família (também
denominados «oratórios»), usaremos para estes o termo altar doméstico. Sobre os
«quartos de santos», ver Lima Júnior, Augusto de. A capitania das Minas Gerais.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978 (1940), p. 115.
258 Mott, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 161.
259 Título dado aos sacerdotes que estavam à frente das cabeças de comarca.
260 AEDC, Livro do Tombo de Aiuruoca (1730A1822); grifo nosso.
261 Actas e constituições do primeiro sínodo diocesano fortalexiense celebrado na
respectiva igreja catedral em os dias 31 de janeiro, 1° e 2 de fevereiro de 1888;
sendo bispo desta diocese o Exmo e Rvmo Snr Dom Joaquim José Vieira, do ConA
selho de S. Magestade o Imperador, comendador da Ordem de Cristo, etc, etc.
Ceará: Typographia Economica, 1888, p. 229.
130
Como o Padre Menezes não tivera sucesso em seu litígio com Caldeira Brantes,
estaria então empenhado a anular a permissão para a construção da ermida.
Brantes vêAse sem saída, pois
«achandoAse com os perigos referidos para o poder lograr [o bem espiritual]
na igreja, e precisa de passar o ano sem missa, e com os escândalos, que
nisso necessariamente há de ter, quando a sua devoção o move a tê la à sua
custa, portanto.»
nossos súditos que ouçam missa conventual nos domingos e dias santos de
guarda (...) e a ela façam ir seus filhos, criados, escravos e todas as mais pessoas
que tiverem a seu cargo».271 Ribeyrolles assistiu uma dessas celebrações. Os saA
cerdotes, diz ele, «chegam no sábado à noite. Rezam na capela, ao passo que os
negros cantam. No outro dia, é o grande ofício, o mistério da óstia. Os escravos,
de joelhos, cantam como na véspera. Os senhores assistem com suas famílias ao
sacrifício simbólico, e por vezes, uma prática religiosa encerra o serviço diA
vino».272 Não há como negar que o lugar reservado aos escravos nas celebrações
refletia sua condição de párias. Isto ajuda a explicar por que os negros erigiam,
tão logo estivessem em condições, a sua própria capela. Porém não se deve esA
quecer que a existência de gradações no interior do espaço sagrado católico é anA
terior ao problema do status do negro, e obedecia já a outras clivagens; como as
existentes entre sacredotes/leigos e homens/mulheres.
Por outro lado: o fato de os oratórios serem construídos contigüamente às vaA
randas demonstra, por si só, o seu caráter público. Observemos que a ermida deA
veria ser separada «de todo espaço doméstico». As evidências aparentemente o
contradizem. Nas plantas de sedes de fazendas dos séculos XVIII e XIX reproduA
zidas por Helena Martins,273 vêAse claramente que a ermida é dotada não só de
uma porta principal para a varanda mas também de uma passagem para a sala de
visitas. Mas a contradição é, insistaAse, apenas aparente. Se há uma ligação direta
entre ermida e sala, é porque esta última não era percebida como um espaço «doA
méstico» stricto sensu.
Os pedidos de provisão de ermidas domésticas em nada se diferenciam, no que
têm de essencial, dos pedidos de ereção de capelas. Por detrás de ambos, a
mesma intensa demanda pelo sacrifício da missa e pelos sacramentos, as mesmas
dificuldades de deslocamento, o mesmo peso imposto pelas distâncias. E, mais
importante: o mesmo caráter coletivo e (não tenhamos medo do termo) interA
étnico do culto católico. A diferença entre o culto realizado numa ermida e um
culto celebrado numa igreja paroquial é portanto de escala, não de natureza. Nada
nos permite falar na existência de um «catolicismo patriarcal» e muito menos de
um «apartheid religioso» na Minas antiga.
* * *
A percepção do espaço se divide em dois campos básicos e, por assim dizer,
opostos: a casa e a rua. A contraposição entre estes dois planos é de tal ordem que
Freyre chegou a consideráAlos «inimigos».274 Enquanto a rua é vista como um
«domínio semidesconhecido e semicontrolado, povoado de personagens perigoA
Terminemos esta seção com duas rápidas observações. A primeira diz respeito a
uma tese defendida por Roberto da Matta. Para ele a vida social no Brasil se disA
tribui por três diferentes esferas: a casa, a rua e o «outro mundo». Esta última esA
fera seria a da transcendência, «da renúncia ritualizada deste mundo com seus soA
frimentos e suas contradições». O contato com o «outro mundo» se daria na rua,
mais precisamente nas festas religiosas por meio das quais «a sociedade se junta
pelo lado do espaço da renúncia e do abandono do mundo».278 Esta formulação já
não nos parece satisfatória. Da Matta parte do esquema de Freyre, mas deixa de
lado um aspecto que não passara desapercebido ao mestre pernambucano: o «ouA
tro mundo», o numinoso, não está destacado do espaço doméstico. De fato, este é
o refúgio primordial – é antes de tudo na casa que o indivíduo se ausenta da reaA
lidade do mundo da vida. Veremos dentro em pouco que os espaços privilegiados
de renúncia podem ser considerados meras expressões radicalizadas da casa enA
quanto temenos. A segunda observação relacionaAse intimamente com a anterior.
Será mesmo possível sustentar a idéia de que nas sociedades industriais e pósAinA
dustriais «a casa tornouAse uma instituição puramente secular»?279 Não o cremos.
A habitação moderna – mesmo depois de ter sido despojada dos antigos ritos e
simbolismos religiosos que marcavam sua construção, mesmo depois de ser reifiA
cada a ponto de aparentemente tornarAse uma «máquina de morar» – continua a
olão (...). Enquanto isso, aquelas moças, na sua atividade profissional, tentam seA
duzir os viajantes. Elas dançam danças obscenas, cantam canções de baixo calão,
deixam que se lhes sirva vinho ou cachaça, fumam tabaco, para, logo em seguida,
através de outro talento, se mostrarem simpáticas e prestativas.»284 Havia ainda
mulheres cuja atividade profissional ou poder econômico proporcionava um nível
de autonomia surpreendente. Pohl encontrou determinado dia «uma tropa de burA
ros, cujo dono era acompanhado por uma mulata, que montava garbosamente à
moda masculina e sabia fazer uso das esporas de suas grandes botas».285 Algumas
proprietárias de fazendas, por vezes velhas matriarcas, aparecem aqui e ali nos
relatos.
Contudo não foram estas as que chamaram a atenção dos viajantes. O que doA
minou o olhar do estrangeiro foi, antes de tudo, a questão da «segregação» femiA
nina. Este estranhamento não é difícil de se entender uma vez que, ao contrário
de Portugal, em vários países europeus os contatos entre os sexos já não eram
mais regidos por tantos tabus. Um escritor italiano anônimo do século XVI surA
preendeuAse ao ver que os portugueses mantinham as mulheres «na maior sujeiA
ção que pode haver, guardandoAas sem confiar nem nos parentes nem em quaisA
quer outros. (...) Jantar e cear em conjunto, como noutras partes se faz, seria aqui
considerado desonra».286 Na mais lusitana das províncias brasileiras, é natural
que a reclusão de inúmeras mulheres no espaço da casa fosse relativamente coA
mum.
A maioria dos viajantes que percorreram Minas no século XIX nunca pôs seus
olhos, senão acidentalmente, sobre as mulheres ou filhas daqueles que os acoA
lhiam. Segundo Burmeister, «é caso raríssimo» um estranho ser apresentado logo
de início às mulheres da casa. Elas «nunca se mostram; ficam fora do círculo
masculino, olhando furtivamente pelas portas ou pelas janelas».287 Langsdorff
afirma que «em Barbacena, onde reina grande degradação moral e indolência, as
mulheres e moças ficam trancadas o dia todo dentro das casas, não aparecem nem
à janela». Na fazenda do Pau de Cheiro, o mesmo autor observa que as mulheres
«não apareceram na casa, embora também não tenham se escondido, como aconA
tece em outros lugares».288 De sua experiência na fazenda dos Troncos, nas
proximidades do Arraial do Desemboque, diz Eschwege: «Para que o jantar não
chegasse frio à nossa mesa, a dona da casa e as filhas, sempre às escondidas,
aproximaramAse dos fundos do moinho para entregarem, através de um furo na
296 Spain, Daphne. «Räumliche Geschlechtersegregation und Status der Frau». In:
Ethnologica (22) 1997: 31A40; e Löw, Raumsoziologie, pp. 246A254.
297 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, pp. 118A119; Pohl, Viagem no inte
rior do Brasil, vol. I, p. 200; Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p.
166.
298 Carrato, As Minas Gerais e os primórdios do Caraça, pp. 193A204. Ver também
Algranti, Honradas e devotas: mulheres da Colônia; e Nunes, Maria J. R. «Freiras
no Brasil». In: Del Priore, Mary (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2000.
299 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol I, p. 187.
139
que a manda levar para um convento (...). A mulher não opõe resistência: o hoA
mem manda e ela obedece. Durante esse tempo, o marido atiraAse a uma vida folA
gada e de prazeres».300
Em suma, recolhimentos e conventos eram um misto de refúgio, escola e priA
são. Eles ofereciam mesmo, somos tentados a dizer, uma imagem invertida
daquela Urstiftung tão comum às sociedades tradicionais que é a «casa dos hoA
mens». E, em todo o caso: formas supremas de segregação feminina na Minas dos
séculos XVIII e XIX, eles nada mais eram que a expressão paroxística da própria
casa.
Nos fundos fica a cozinha, e, mais especificamente, o fogão. Que a mulher esA
teja diretamente associada a ele, é para nós um fato altamente significativo. Em
Roma era este o local mais sagrado da habitação, altar mesmo de Vesta, a deusa
do fogão e – por extensão – da própria casa. Aliás o nome de Vesta entre os greA
gos era Hestia, literalmente: fogão. Outras divindades e espíritos tutelares, como
os penates e os lares, tinham também no fogão o seu «altar».305 EnganaAse quem
pensa que trataAse aqui de um complexo de representações limitado à AntigüiA
dade. Em seu conhecido livro sobre a aldeia de Montaillou, Le Roy Ladurie
mostra que «a parte essencial do domus é a cozinha ou foganha», também chaA
mada «casa dentro da casa».306 Em Itaipava, segundo Willems, «no sábado de
Aleluia, o padre vai de casa em casa, benze todas elas, principalmente, porém, o
fogão».307 Há regiões de Portugal onde o fogão continua sendo chamado de
«lar».308 Reciprocamente, «fogão» foi palavra comumente usada na Minas dos séA
culos XVIIIAXIX como um sinônimo de «habitação». Em outros termos: o fogão
resume a casa tal como a casa resume o mundo.
Que nos dizem os viajantes? SaintAHilaire: «O interior das casas, reservado às
mulheres, é um santuário em que o estranho nunca penetra, e pessoas que me
demonstravam a maior confiança jamais permitiram que meu criado entrasse na
cozinha para secar o papel necessário à conservação de minhas plantas».309 BurA
ton, sobre a fazenda da Fábrica da Ilha: «Era a habitação comum do interior, um
terreiro usado pelos negros e animais, uma escada de madeira levando à ‹sala› (...)
e, por trás, o gineceu ou cozinha, que são os lugares interditos, a ‹sancta› da
Dona».310 De Courcy, em plena noite de São João: «Em uma noite explêndida (...)
todas as choupanas acenderam seu fogão, em torno do qual a família, os amigos
reunidos dançam, assam a canaAdeAacúcar e a mandioca para a refeição da
noite».311
O fogão, também na Minas Gerais antiga, é «o núcleo e a essência da casa»
(Tönnies), «o símbolo de sua força» (van der Leeuw). Não admira que a pessoa da
família que mais diretamente se associava a ele tenha sido cercada de tantos inA
terditos. Bourdieu constata o mesmíssimo fenômeno no seu estudo sobre as casas
dos bérberes na Argélia. Lá, como em Minas, podeAse dizer que à reclusão da
mulher corresponde, na mesma medida, uma exclusão do homem (ao menos duA
rante o dia) do universo da casa.312 ChegaAse assim a uma conclusão algo desA
concertante: a «segregação» da mulher no espaço doméstico e, em especial, na
cozinha, sugere que é sobretudo ela que está ligada ao sagrado.313 Eis porque
parece ser algo mais que uma bela metáfora a imagem utilizada por Bernardo
Guimarães num de seus romances: «O Major tinha contruído uma bonita e asA
seada casinha no laçante de uma colina à margem direita do ribeirão, algum tanto
isolada do resto da povoação. Era um templozinho, de que Lúcia era a deusa tuA
telar».314
Nas moradas das elites a situação é mais complexa. À primeira vista, a preA
sença e a localização da ermida colocaria por terra a supremacia do princípio
feminino na casa. Foi visto que a continuidade existente entre ermida e sala deA
monstra que se trata – principalmente no caso da última – de porções ambivalenA
tes. Projeção do mundo da rua na casa, elas compõem um espaço intermediário e,
ao menos tendencialmente, sob o raio de influência do homem. Quanto mais porA
que a ermida é a expressão de um sagrado católico oficial, estritamente definido e
regulamentado. Conseqüentemente, e haja vista a «afinidade eletiva» entre amA
bos: expressão de um sagrado dominado pelo princípio masculino. A existência
da ermida seria então a evidência da vitória final de Janus sobre Vesta? ConquisA
tado, enfim, o último bastião? A linguagem utilizada nos documentos eclesiástiA
cos é reveladora. Em hipótese alguma a ermida deve misturarAse com o espaço
«doméstico». De modo que o domínio público (ermida) e semiApúblico (sala)
contrapõeAse ao «resto». Paradoxalmente, é no «doméstico» que se esconde aquilo
que o domus tem de mais valioso. E é precisamente neste domínio que a mulher,
mesmo aquela pertecente às elites rurais, continua a gozar de preeminência.
3.3 Arraial
Recapitulemos: o arraial é um ponto de cristalização, um espaço não racionali
zado de convívio coletivo. Ele é a expressão das necessidades econômicas, reli
giosas e lúdicas de um grupo de vizinhança. Primeiramente examinaremos o
arraial mineiro numa perspectiva morfológica. É preciso saber, afinal, como eram
312 Bourdieu, Pierre. «La maison ou le monde renversé». In: Bourdieu, P. Le sens
pratique. Paris: Minuit, 1980, pp. 448A451. Claro está que não compartilhamos da
posição de Lemos, segundo a qual no Brasil o fogão não teria ocupado o centro
simbólico da casa. Lemos, História da casa brasileira, p. 13.
313 Para Luhmann «o sagrado é representado como mistério, portanto como proibição
ou impossibilidade de comunicação ». Luhmann, Die Religion der Gesellschaft, p.
81.
314 Guimarães, Bernardo, O garimpeiro, p. 57.
142
aqueles embriões de cidades. Apesar de ainda não ser a hora de nos ocuparmos a
fundo com a questão das origens, será necessário introduzir alguns exemplos
preliminares para que possamos visualizar o processo de protoAurbanização como
um todo. Poderemos assim identificar os seus componentes básicos e, em espeA
cial, mostrar de que forma a religião esteve presente em cada um deles.
Uma diferenciação clara se impõe entre os arraiais que cresceram à margem da
mineração e os que se formaram em áreas ou fases em que predominou a agropeA
cuária. O primeiro tipo teve normalmente por origem um ou mais acampamentos
de mineradores, e era marcado nos seus primórdios por um rápido aumento do
efetivo populacional. ProcediaAse então à construção de uma tosca capela. Ela
podia, eventualmente, conferir alguma estabilidade ao assentamento, mas a sorte
do arraial minerador era obviamente determinada pelas perspectivas de ganho na
mineração. O segundo tipo de arraial não tinha por centelha um local onde se exA
plorava ouro («descoberto»), mas pura e simplesmente a capela. O processo de
protoAurbanização processavaAse aí muito mais lentamente.
Uma das dificuldades com as quais lidamos reside na polissemia do termo «arA
raial», aspecto para o qual já se chamou a atenção. A palavra denotava no seu uso
cotidiano: (a) o simples acampamento, e (b) pequenos agregados de casas que se
formavam seja (b.1) ao longo do leito dos riachos e grupiaras315 – por vezes utiliA
zavaAse o termo «bairro» –, seja (b.2) em torno de uma capela. Quando se lê em
antigos relatos que os primeiros descobridores das minas «levantaram arraial» ou
«fizeram arraial», isso significa basicamente o estabelecimento de acampamentos.
Num momento posterior, especialmente a partir de meados do setecentos, «fazer
um arraial» significa levantar casas em torno de uma capela préAexistente. ConA
tudo não se pode dizer que tenha havido uma solução de continuidade histórica
entre estes dois modelos. Eles coexistiram tanto no século XVIII quanto no seA
guinte.
Em parte por terem estado pouco atentos a esta variação semântica e tipológica
é que vários autores defenderam a hipótese de que os povoados de Minas Gerais
nasceram, via de regra, como fruto direto do gold rush e do comércio.316 Dois
exemplos nos darão uma idéia mais precisa dos dois tipos de embrião de cidade.
Situada na Zona da Mata, a atual cidade de Guaraciaba começou a formarAse
por volta da metade do século XVIII. A provisão para a construção da capela de
Santana dos Ferros data de 28 de novembro de 1749.317 Eschwege, escrevendo
pouco mais de cinqüenta anos depois, usa precisamente o exemplo do então arA
315 Grupiara: «Ocorrência de ouro ou diamantes em camadas argilosas sob o solo, nas
encostas dos morros, junto a rios e córregos» (Maria Verônica Campos).
316 Em especial: D’Assumpção, Lívia Romanelli. «Considerações sobre a formação do
espaço urbano setecentista nas Minas». In: Revista do Departamento de História
da UFMG (9) 1989: 130A140. Em Lima Jr. o problema é formulado ambigüamente.
Ora ele atribui – sem apresentar exemplos – a formação dos arraiais ao comércio,
ora ao «motivo religioso». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, pp. 38 e 90.
317 DHGMG, p. 144.
143
raial de Santana dos Ferros para dar sua explicação do processo de urbanização
em Minas: «A origem destes arraiais, assim como das vilas em Minas, foram as
escavações de ouro. (...) A primeira coisa que se fazia era erigir uma pequena caA
pela para o serviço religioso, e cercas; aquele que tinha meios, construía uma
grande casa a partir de uma frágil cabana inicial. Conforme se achava mais ou
menos ouro, crescia ou decrescia o bemAestar e o luxo nestes lugares. (...) TamA
bém o arraial aqui citado [Santana dos Ferros] deve sua origem à exploração de
ouro nas margens do rio Piranga.»318
Algo totalmente diferente ocorreu na gênese de Nazareno, um exAdistrito de
São João delARei. Embora a capela de Nossa Senhora do Nazaré existisse desde
1734, até princípios do século XIX o arraial ainda não surgira. Como se explica
isso? Uma carta dos moradores do lugar ao rei de Portugal, datada de 3 de março
de 1802, esclarece a questão:
«Ela [a capela] é situada em uma larga e dilatada campina e é bastantemente
grande e suntuosa, bem aparamentada e suprida à custa dos povos da aplicaA
ção, mas sofrendo estes o desgosto de que o terreno da mesma está situado
em terras de terceiro, o qual não consente que se façam casas, cômodos ou
ranchos de que tanto se precisam para os suplicantes que das suas fazendas e
lavras vem distantes léguas a satisfazerem os divinos preceitos, não tendo
onde mudem os vestuários para decentemente assistirem no templo homens,
mulheres, nem parte onde possam recolher suas montadas.
Esta falta (...) reconhecem que a ser aquele terreno livre aos suplicantes com
os seus logradouros, avaliado tudo (...) e satisfazendo os suplicantes o seu
valor ao dono das terras, se faria um perfeito arraial e dos melhores da coA
marca, não só pelos muitos e nobres edifícios como pelo comércio iria em
aumento a população e os direitos régios (...).
As distâncias, soberano senhor, de muitos dos suplicantes, os campos e o
mais justificam o indigente estado em que chegam para a indispensável obriA
gação da lei, e entram na casa de oração. Logo é justa a graça que os supliA
cantes imploram, as suas cavalgaduras, posses ou dispensas, que perturbação
não causam, exposto tudo aos acasos e à inconstância dos tempos.»319
gens dos córregos.322 Nas datas, portanto, e não ao redor das primeiras capelas.
Diogo de Vasconcellos foi bastante claro a respeito: «O chão, as casas, as benfeiA
torias compreenderamAse nestas datas».323 ComprovaAo ainda o caso de São João
delARei, e isso quatro anos após a criação da vila, onde os mineiros ainda têm
quase todas as casas de palha, e umas mui separadas das outras e junta
mente pelas lavras de ouro, que ficam tão perto delas, que hoje se fazem,
amanhã as botam em terra para trabalhar.324
No que diz respeito à ocupação do solo, não se deve ignorar o fato de que havia
pelo menos uma alternativa para a multidão de aventureiros recémAchegados às
minas. As margens das estradas e dos cursos d’água não podiam ser apropriados
por particulares; o detentor de uma data ou sesmaria não tinha como vedar o
acesso a estes espaços tidos como públicos.325 Tudo indica – e o caso de Mariana
pareceAnos exemplar – que a ocupação irregular destes terrenos garantiu um chão
a boa parte dos pioneiros antes mesmo da formação das vilas.326
Se nosso interesse está centrado no papel «urbanizador» exercido pela religião,
em todo o caso é essencial perceber que existiram modelos alternativos e mesmo
concorrentes de protoAurbanização. Deixemos de lado, momentaneamente, o arA
raial minerador e o tipo humano (o homo ludens) que ele espelha. É hora de nos
debruçarmos sobre a questão dos patrimônios a fim de entender como e onde se
formavam os outros arraiais de Minas.
3.3.1 Patrimônio
Logo nas primeiras linhas de sua obra sobre a história de Sabará, Zoroastro PasA
sos escreve que «o alto espírito de religiosidade portuguesa adotava, como norma
invariável de conduta nas suas descobertas, ter, como núcleo da povoação que se
devia formar, uma capela. Em torno dessa capela (...) se iam construindo as moA
radas de que a capela cobrava foros».327 Assim, conclui ele, a história das capelas
permitiria conhecer a história de nossas cidades. O que é certo, até certo ponto.
Porque a pergunta seguinte naturalmente é a de saber por que se deveriam pagar
foros a uma capela.
Isso ocorria pelo fato de que o terreno sobre o qual se levantavam as casas
pertencia ao templo, ou antes, era «patrimônio do santo».328 Os geógrafos perceA
beram que era preciso identificar a origem deste chão em que surgia o arraial. A
eles devemos a descoberta da importância dos patrimônios enquanto espaço priA
mordial onde se formou uma parcela significativa dos embriões de cidades brasiA
leiros.
As Constituições do Arcebispado da Bahia determinavam que todo templo que
se quisesse edificar deveria ser dotado de uma renda mínima capaz de garantir
sua conservação. Tal quantia era estipulada em 6.000 réis anuais.329 Este «fundo»
era o patrimônio da capela. Porém, e na maioria dos casos, prevaleceu uma outra
modalidade: a doação de uma porção de terra (igualmente chamada patrimônio)
«ao santo». Via de regra, a capela era ali erigida. Quem pretendesse construir uma
casa no referido patrimônio estava obrigado a pagar uma taxa anual (foro) a um
administrador (fabriqueiro).330 Em tese, este sistema garantia a consecução dos
mesmos objetivos que a doação em dinheiro. O predomínio dos patrimônios em
terras demonstra que os doadores estavam certos de que em torno da capela surgiA
riam casas. Do contrário é difícil imaginar que a autoridade eclesiástica aceitasse
tal prática.
PercebeAse que a separação entre patrimônio e templo é artificial, já que um
existe em função do outro. Apenas por razões de ordem puramente metodológica
é que nossa análise momentaneamente procede a esta separação. TrataAse de veriA
ficar em que medida a incorporação pela historiografia dos avanços feitos nos
estudos de Moraes, Deffontaines, Monbeig e Azevedo331 nos fornece um meio
privilegiado de compreender as íntimas relações entre religião e produção do esA
paço na história do Brasil.
Waldemar Barbosa pode ser considerado o único historiador que se debruçou
com seriedade sobre este tema, e praticamente todos os verbetes do seu Dicioná
327 Passos, Zoroastro Vianna. Em torno da história de Sabará. Rio de Janeiro, 1940, p. 1.
328 Dorn observa que desde a Antigüidade tardia o santo escolhido para orago dos
mosteiros ou capelas era considerado o legítimo «proprietário » dos mesmos. Dorn,
Johann. «Beiträge zur Patrozinienforschung». In: AfKG (13) 1917: 9A49, p. 36.
329 CAB, livro IV, título XIX, 692.
330 A cobrança de taxas àqueles desejosos de construir nas terras pertencentes a um
templo também era prática comum nos antigos povoados chineses. Weber, Ge
sammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 382.
331 Moraes, «Contribuição para a história do povoamento em São Paulo até fins do séA
culo XVIII» (1935); Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidaA
des» (1938); Monbeig, «O estudo geográfico das cidades » (1940); Monbeig, Pio
neiros e fazendeiros de São Paulo (1952); Azevedo, «Embriões de cidades brasileiA
ras» (1956).
147
rio dão prova da importância dos patrimônios. O que temos a fazer é aprofundar
este esforço, e isso num sentido qualitativo. Para tanto, é preciso enfocar a quesA
tão sob uma perspectiva ligeiramente distinta. Barbosa limitouAse a citar o nome
dos doadores, a data de constituição do patrimônio da primeira capela, e, quando
muito, a extensão do mesmo. Ele deixa de lado um tipo de documento que vimos
ser fundamental: os pedidos de provisão à autoridade eclesiástica ou civil. Tais
documentos geralmente dãoAnos um retrato da «préAhistória» do povoado, e perA
mitem às vezes visualizar se, além das motivações especificamente religiosas,
havia razões de ordem prática para se dar início a um arraial. Além disso, BarA
bosa peca ao nosso ver por desprezar a tradição oral. A Enciclopédia dos Municí
pios Brasileiros felizmente não se prendeu a este rigorismo objetivista. Seus
verbetes muitas vezes reproduzem sagas e mitos de origem que, evidentemente,
são para nós de grande interesse.
A dimensão dos patrimônios variava muito. Em São João Evangelista o patriA
mônio da capela media 2 alqueires (9,68 ha).332 Em Marliéria e Matipó, 3 alqueiA
res (14,4 ha). Em Pains e Estiva, respectivamente 12 e 14 ha. Em Mosenhor
Paulo, 60 alqueires (288 ha). Alguns eram enormes, como o doado à primitiva
capela de Alpinópolis: meia légua quadrada, ou seja, 1.905 ha. O de Campo FloA
rido tinha uma légua quadrada (3.810 ha).333 De forma geral, podeAse dizer que o
tamanho dos patrimônios tendia a variar na razão inversa do grau de ocupação e
povoamento de uma dada região. No Vale do Rio Doce e na Zona da Mata, seja
devido à topografia, seja por causa das densas florestas e da presença de tribos
indígenas hostis à presença do «civilizado», a ocupação do território não foi tão
simples quanto no oeste mineiro. Na comarca de Paracatu, apesar dos inúmeros
quilombos, o perfil geográfico favorecia uma ocupação mais «espalhada», e o taA
manho médio das propriedades – portanto dos patrimônios – sempre foi maior. As
doações eram feitas por indivíduos isolados, casais ou mesmo um conjunto de
moradores. Em Miraí nada menos que 53 pessoas adquiriram em 1852 uma parte
da fazenda de Salustiano José Fernandes a fim de constituir o patrimônio de uma
capela a ser erigida em honra a Santo Antônio.334 Casos como os de Andradas e
de Santo Antônio do Grama mostram ainda que doações iniciais de dimensões
consideradas insuficientes podiam ser complementadas por doações posteriores,
feitas por outros proprietários.335
A importância deste sistema de produção do espaço coletivo pode ser atestada
pelo fato de que a criação das vilas funcionava segundo o mesmo princípio. TamA
bém elas deveriam ter seu patrimônio. Este patrimônio fundiário era dividido em
duas partes. Uma, chamada logradouro público ou rossio, era reservada ao uso
comum dos habitantes, especialmente à pastagem de animais e à extração de maA
deira. A outra parte, destinada às novas edificações, era aforada a fim de dotar a
Câmara de recursos.336 O patrimônio da Câmara de Mariana media meia légua
quadrada, o da de Vila Rica uma, e o da de São João delARei duas léguas quadraA
das.337 Para que se tenha uma idéia da importância para a municipalidade dos terA
renos aforáveis, basta dizer que a cobrança de foros das casas perfazia, em 1777,
a segunda maior fonte de renda das Câmaras de Vila Rica, Mariana, Sabará e PiA
tangui, e a terceira da Câmara de São João delARei.338
Um útil documento para que se possa visualizar as fases iniciais deste processo
é o da constituição do patrimônio da Vila de Barbacena. Em 1792, ano seguinte à
sua elevação a vila, escrevia o então governador da Capitania de Minas, Visconde
de Barbacena: «(...) me foi apresentado que para o estabelecimento da mesma
vila, necessitam que eu, em nome de Sua Majestade, lhe concedesse uma légua
de terra em quadra, para seu patrimônio». O terreno da vila situavaAse na fazenda
da Caveira, que pertencera a nada mais nada menos que Joaquim Silvério dos
Reis e José Alves de Freitas Bello. Segundo o governador, «a dita fazenda fora
seqüestrada com os bens daqueles devedores fiscais». No ato da demarcação,
continua ele, «devem ser ouvidos os interessados e confrontantes, examinados
seus títulos, e acautelado todo o prejuízo injusto de terceiro». O patrimônio deA
verá ter «uma légua em quadra, fazendo pião na mesma vila onde mais conviniA
ente for, (...) a qual sesmaria ficará servindo de patrimônio e rendimento da dita
Câmara com os aforamentos que tiverem lugar na forma que serem concedidos
[sic]; e costumado a respeito das vilas mais velhas, e para logradouros e usos coA
muns dos seus moradores, com declaração porém que serão os ditos oficiais da
Câmara obrigados a demarcar judicialmente a referida sesmaria dentro em um
ano que se contará da data desta [17 de março], sendo para esse efeito notificados
os vizinhos interessados e ditos sesmeiros confrontantes (...) e não poderão [os
oficiais] por virtude dela proibir a repartição dos descobrimentos de terras e miA
nerais que no tal sítio hajam ou possam haver, nem os caminhos e serventias púA
blicas que houver (...) nem farão aforamento algum das terras desta sesmaria a
religiões, igrejas ou eclesiásticos, e acontecendo fazêAlos será com encargo de
336 A confusão que reina na literatura a respeito é grande. Tanto Caio Prado Júnior
(Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1957, pp. 314A315)
quanto Reis Filho (Evolução urbana do Brasil, pp. 112A113) e Marx (Cidade no
Brasil, p. 68) enganaramAse ao dizer que rossio e patrimônio da câmara são, basiA
camente, a mesma coisa. Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol.
XXVI, p. 265) lêAse que o rossio é um «terreno que era rocado ou usufruído em
comum pelo povo; logradouro público ». A bipartição do patrimônio das Câmaras
em terras comunais (o rossio) e terras aforáveis foi claramente demonstrada em
Porto, O sistema sesmarial no Brasil, pp. 128A129 e Ramos, A social history of
Ouro Preto, pp. 134A135.
337 CCM, p. 253; Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 134A135; AEAM, pasta
33, gaveta 2, arq. 1.
338 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», pp. 262A278.
149
reduz simplesmente ao culto doméstico. (...) Para entender esta religião, não poA
demos buscar o seu cerne na matriz das vilas e cidades, com seu vigário e conA
ventos. Ela se enraíza longe da matriz, em torno de capelas, pequenas igrejas e
cruzeiros, mui raramente servidas por um padre.»345 Se as festas podem ser conA
sideradas os nódulos temporais em que a fé do povo periodicamente se «conA
densa», não resta dúvida que as capelas, muito mais freqüentemente que os santuA
ários, «foram o repositório apropriado para a religiosidade popular»346 dos antigos
mineiros.
Das primeiras rústicas capelas, feitas para durar tão pouco quanto as choças
dos bandeirantes, passouAse, num segundo momento, a erigir construções mais
estáveis. Sinal evidente de que os arraiais criavam raízes. UsavamAse então a maA
deira, o adobe, por vezes a pedra. Por si só, uma capela feita para durar não signiA
ficava que o instinto de segregação e as necessidades religiosas inevitavelmente
subjulgavam o habitus nômade, mas ela era sempre um primeiro passo.
Havia normas rígidas quanto à orientação do templo. Ele devia ser construído
de forma tal que «o sacerdote no altar fique com o rosto no oriente, e não poA
dendo ser, fique para o meio dia, mas nunca para o norte, nem para o ociA
dente».347 A fachada da capela deveria, portanto, ser voltada para o leste ou sul.
Como se pode notar, os pontos cardeais não eram percebidos como meras refeA
rências destituídas de valor. Para entendermos a razão disto, temos de insistir noA
vamente no seguinte aspecto: uma coisa é o espaço matemático representado (e,
em larga medida, construído) por uma visão racionalista do mundo; outra, bem
diferente, é o espaço vivido no cotidiano. Desde a Antigüidade o oriente é tido
como a direção sagrada por excelência. Do leste vem a luz, fonte de toda vida.
VerificaAse aqui uma lógica binária simples determinada pela associação primária
entre luz e sagrado. Se nos orientamos para o nascer do sol, o sul fica à nossa di
reita. É bem sabido como a valorização da direita em detrimento da esquerda é
um fenômeno presente num grande número de culturas.348 DefinemAse assim os
dois pólos positivos (leste e sul); e, por oposição, os negativos (oeste e norte). Já
presentes entre egípcios, gregos e romanos,349 estas representações foram incorA
poradas pelo cristianismo antigo –– com a associação do sul ao Espírito Santo, e
do norte à renúncia de Deus, da luz e da fé. A criança a ser batizada é voltada
para o ocidente, para renunciar ao diabo e suas obras (renuntiatio satanae), e enA
350 Jungmann, Symbolik der Katholischen Kirche, pp. 57A58; Cassirer, Philosophie der
symbolischen Formen, 2. Band, p. 126.
351 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 290A291.
352 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., p. 74.
353 Idem, ibidem, p. 141.
354 Burmeister, Viagem ao Brasil, p. 169.
355 Idem, ibidem, p. 271.
356 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. I, p. 219.
153
rua e ficam situadas na encosta de uma grande colina. No meio da praça achaAse a
igreja bastante grande, com duas torres baixas».357 Em Barreiras (Carbonita) haA
via algo em torno de quarenta fogos, que «formam uma rua que se estende rio
acima, na direção de oeste para leste e se abre, no alto, numa praça bastante
grande, em cujo centro se acha a igreja ainda não inteiramente construída do
Santíssimo Coração de Jesus».358 Em Camargos havia aproximadamente 60 moA
radas «mal construídas e muito mal conservadas, distribuídas numa rua torta, em
solo muito desigual. O melhor edifício do lugar é a igreja, construída de pedra e
que fica numa elevação a que conduz uma larga escada, na qual se acha um
grande cruzeiro de pedra sabão.»359
Após uma apreciação ligeira dos relatos dos viajantes seríamos tentados a crer
que todo arraial tinha a sua capela ou igreja; porém o estudo da relação entre pa
trimônio religioso e proto urbanização demonstra que, para um número não des
prezível de casos, o contrário parece estar mais próximo da verdade. É a capela
que «tem» um arraial.
Dom Frei José da Santíssima Trindade foi aliás explícito a esse respeito, como
demonstram os casos de diversos templos do arcebispado de Mariana por ele ciA
tados em seu livro de visitas pastorais: a capela de Santo Amaro do Brumado,
filial da freguesia de Santa Bárbara («no arraial da capela...»); a capela de Nossa
Senhora do Rosário da Itabira, na mesma freguesia («tem arraial público e popuA
loso»); a freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Congonhas de Sabará («no
arraial da matriz...»); em Conceição do Airuoca («a igreja matriz... tem pequeno
arraial»); a capela do Carmo em Pouso Alto («está a capela em bom lugar com
seu arraial vistoso»); a capela dos Santíssimos Corações do Rio Verde, filial da
matriz de Campanha («esta capela é de madeira e está colocada em bom local,
com seu arraial que se vai povoando»); a freguesia de Nossa Senhora das Dores
(«a igreja é de madeira e pequena... Tem bom adro e bom arraial»).360 A gênese de
Ubá foi praticamente antecipada por Dom Frei José, que escreveu ainda: «A
capela do Ubá está por acabar e tem uma boa imagem de São Januário, bispo e
mártir; o seu local é muito melhor que o da igreja matriz e com proporções para
se fazer um bonito arraial». O mesmo vale para a capela de Santa Rita, filial do
Pomba. TrataAse do embrião da atual cidade de Viçosa: «[a capela] está em um
bom local erigida e pode ter um bonito arraial, fazendoAlhe os moradores e freA
gueses suas casas, o que ficou providenciado».361
Um dos aspectos mais interessantes do padrão de organização espacial dos
nossos antigos povoados diz respeito aos seus limites. Se a capela é o centro simA
bólico do arraial, e o patrimônio no qual ela está construída pode ser definido
como um espaço sagrado sobre o qual se desenvolve o embrião de cidade, como
o homem mineiro dos séculos XVIII e XIX concebe a fronteira além da qual o
espaço deixa de manifestar este caráter numinoso? Não houve em Minas arraiais
cercados por muros ou paliçadas. Paliçadas ou muros, que no plano estritamente
funcional visam garantir a segurança dos moradores, adquirem no plano simbóA
licoAreligioso uma dimensão fundamental: eles impedem que substâncias ou pesA
soas de qualidade distintas se misturem. A dimensão sagrada da muralha fica
evidente quando se sabe que inúmeras vezes ela só é considerada concluída após
a realização de um rito de construção.362 Diz o mito da criação de Roma que
Rômulo, após fundar o mundus e erigir o altar, traçou o sulco que definia os liA
mites da cidade. Sobre o mesmo se construíram as muralhas sagradas (ninguém
podia tocáAlas sem a permissão dos sacerdotes). Na China o caminho é oposto. A
construção da cidade começa pelas muralhas sagradas; só depois é erigido o temA
plo dos antepassados. Ambas, a cidade chinesa e a romana, são pensadas simultaA
neamente a partir do centro irradiador e de um nítido limite em relação ao espaço
exterior.
Ora, no patrimônio religioso encontramos apenas o ponto de rotação central –
a capela. Daí que mais de uma vez se tenha observado que o povoado brasileiro
não estabelece uma demarcação nítida em relação ao mundo «lá fora», ou de que
ele seria uma mera «extensão do campo». Caio Prado Júnior afirmou em Forma
ção do Brasil contemporâneo que nossos antigos centros urbanos eram um mero
«apêndice rural, um puro reflexo do campo».363 Um amplo levantamento geográA
fico do Vale do Jequitinhonha chegou à conclusão de que «senteAse mais a preA
sença da atividade agrária, na paisagem das cidades, que os reflexos de funções
urbanas no meio rural. (...) Por tudo isso, as cidades são um prolongamento do
campo».364 Leloup constata o mesmo: «fora de uma pequena zona central, o asA
pecto da cidade é muito pouco ‹urbano›».365
Evidente que o arraial – este espaço nãoAracionalizado de convívio gerado peA
las necessidades econômicas, religiosas e lúdicas de um grupo de vizinhança –
não se diferenciava de forma radical do «campo», e a ausência de um muro sem
dúvida contribuiu para isso. Tal como nos bairros rurais paulistas, o espaço do arA
raial «tende a parecer ‹difuso›, sem contornos precisos».366 PodeAse dizer que a
percepção de uma rígida dicotomia cidadeAcampo é muito mais expressão de uma
visão racionalista do espaço que um fenômeno que possa ser observado no uniA
verso mental da maioria dos mineiros do setecentos e oitocentos.367 O que gostaA
362 Sartori, «Ueber das Bauopfer »; Eliade, Die Religionen und das Heilige, p. 420;
Eliade, The sacred and the profane, p. 49.
363 Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo, p. 290.
364 Guimarães, Alisson (coord.) Estudo geográfico do Vale do Jequitinhonha. Belo
Horizonte: Grupo de Trabalho para a Pecuária, 1960, p. 86.
365 Leloup, Les villes du Minas Gerais, p. 35.
366 Pereira de Queiróz, M. I. «O sitiante tradicional e a percepção do espaço». In:
RIEB (15) 1974: 79A96, p. 90.
367 Para uma crítica do esquematismo cidadeAcampo, ver Baroja, Júlio Caro. «La ciuA
155
dad y el campo, o una discusión sobre viejos lugares comunes». In: RDTP (15)
1959: 381A400, p. 387; e Tuan, Topofilia, p. 125.
368 Ver Leach, Edmund. Cultura e comunicação. A lógica pela qual os símbolos estão
ligados. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pp. 104A105.
369 CAB, livro IV, título XXXII, 751. É interessante notar que a desclericalização em
algumas sociedades contemporâneas chegou a um ponto tal que mesmo uma instiA
tuição milenar como esta seja considerada hoje anacrônica e mesmo ilegal. Para
um jornalista do Frankfurter Allgemeine Zeitung, «‹O direito de asilo› é uma infraA
ção da lei, e todos os envolvidos o sabem». Pergande, Frank. «Ein zu großer NaA
me». In: FAZ, 12.09.2001.
370 CAB, livro IV, título XXIX, 738.
156
3.3.3 Cemitério
Nas formas elementares do espaço urbano mineiro o espaço do cemitério freA
qüentemente se confundia com o da capela. A casa de Deus era, simultaneamente,
casa dos mortos. Quem entra nas antigas igrejas vê ainda nos assoalhos os
números das covas de membros das irmandades e beneméritos que contribuíram
para sua construção. Tal prática era considerada um «costume pio, antigo e louA
vável».372 Sucessivas tentativas de se coibíAla esbarraram na resignada resistência
popular,373 e isso a tal ponto que somente na segunda metade do século XIX o
sepultamento nos templos viria a ser formalmente proibido pelas autoridades imA
periais. Tal superposição demonstra que «os vivos e os mortos estão unidos em
Cristo e não podem ser separados pela morte».374
A existência do cemitério era tão vital quanto a da capela. A rigor, uma das
funções principais do adro é exatamente a de servir como campo santo. As norA
mas vigentes determinavam que «haverá no âmbito, e circunferência delas [das
capelas] adros, e cemitérios capazes para nelas se enterrarem os defuntos; os
quais adros serão demarcados por nosso provisor, ou vigárioAgeral».375 No ano de
1750, o ponto de rotação da povoação de Piranga tinha o seguinte aspecto: «Está
esta igreja [matriz de Nossa Senhora da Conceição] em um nobre terreiro, com o
cemitério à roda, no meio do arraial».376 Em outros núcleos formados no período
colonial, como Lavras Novas e Cocais, estes adrosAcemitérios ainda podem ser
vistos. Em fins do século XVIII, alguns moradores de Campanha pedem autoriA
zação para levantarem uma capela de Nossa Senhora das Dores «onde seja proA
movido o seu culto (...) e onde possam enterrar os seus irmãos».377 Conhecedor
do sertão leste mineiro, Bernardo Guimarães também fez menção a estes espaços:
«a capelinha (...) tinha também junto a si o seu terreno sagrado, cercado de muro
de pedra, e com uma cruz no meio, e era ali, que os fazendeiros daqueles contorA
nos mandavam enterrar os seus defuntos».378 Num pedido de provisão feito em
1900, Maria Carlota, moradora da freguesia de São Gonçalo da Contagem, dá
conta que «tendo edificado uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Remédios
(...) e estando defendida por um muro bem construído ao redor e entregue ao
culto público, deseja aproveitar o espaço murado para um cemitério onde aspira
ser sepultada quando morrer».379
A autoridade eclesiástica dava ordens expressas para que adros e capelas fosA
sem cercados. LêAse num regimento de 1757 feito por Dom Frei Manoel da Cruz:
«Encomendamos muito aos ditos vigários da vara trabalhem todo o possível para
que os adros das igrejas estejam demarcados, e valados com cercas, e os cemitéA
rios com cruzes levantadas, não só para a reverência, mas também para evitar dúA
vidas sobre a imunidade [do terreno]».380 Dom Frei José, ao passar em 1824 pela
vila de Barbacena, fez a seguinte advertência: «recomendamos muito o cerco do
cemitério para que não se profane o lugar destinado para recolher os restos dos
fiéis, que em vida foram templos do Espírito Santo e por muitas vezes receberam
o sagrado corpo e sangue de Jesus Cristo nosso Redentor». Na capela de Nossa
Senhora das Mercês, filial de São Manuel do Pomba, o mesmo prelado ordena
que se faça o cemitério «ao redor da igreja ou, ao menos, interinamente, por deA
trás dela se faça um [cercado] de madeira de lei, com porta fechada e cruz». Ao
fabriqueiro da matriz de Conceição de Guarapiranga, manda ele «que, sem deA
mora, se proporcione terreno pela parte posterior da igreja para cemitério cercado
de muro de pedra, de altura suficiente, ou ao menos de medeira de lei, com porta
e cruz». Na capela do Espírito Santo, filial da freguesia de Nossa Senhora das DoA
res (atual Boa Esperança), o bispo de Mariana observa «a falta de cerco indispenA
sável do adro para não se profanar, como de fato está este lugar destinado para se
sepultarem os cadáveres dos fiéis, que pelos princípios bem sabidos deve ser saA
grado».381 Neste sentido, um caso que se poderia classificar de extremo é o dos
cemitérios clandestinos. Em relatório datado de 26 de outubro de 1838, o vigário
de Santa Rita do Turvo queixaAse de que «há dois cemitérios nesta freguesia; e
um na de Arrepiados [hoje Araponga] na extrema desta. Estes cemitérios estão no
mato sem formalidade alguma de lugar sagrado, e neles sepultaAse os corpos sem
no participarem para evadiremAse os seus donos de satisfazer os emolumentos
377 APM (AHU), cx. 149, doc. 64. O despacho do Conselho Ultramarino é datado em
3 de setembro de 1799.
378 Guimarães, Bernardo, «A filha do fazendeiro». In: Guimarães, B., História e tra
dições da província de Minas Gerais, p. 16.
379 AEABH, cx. 037.
380 AEDC, Livro do tombo de Aiuruoca (1730A1822).
381 Trindade, Visitas pastorais (1821 1825), pp. 198, 180, 183 e 272.
158
eclesiásticos».382
As visitas pastorais de Dom Frei José estão repletas de exemplos que atestam
como a população estava longe de ter as mesmas preocupações que a hierarquia
no que diz respeito à clara delimitação dos terrenos de adros e cemitérios.383 Que
as pessoas não estivessem preocupadas em estabelecer fronteiras claras entre o
eixo simbólico do arraial e os chãos à sua volta, só pode significar que no catoliA
cismo praticado pela maioria o sagrado não é percebido como uma realidade cuA
jos «limites» possam ser claramente (no caso: espacialmente) definidos. O patriA
mônio no qual situaAse capela e seu adro também é um espaço sagrado, de forma
que levantar muros ou cercas separando o «mais sagrado» do «menos sagrado» diA
ficilmente faz sentido no universo religioso popular. O que não quer dizer que os
antigos mineiros não tivessem consciência das gradações existentes, ou que eles
fossem indiferentes em relação à questão do seu local de sepultamento. Em abA
soluto. Apesar de possuírem uma capelinha, os moradores da parte oriental da
Serra da Canastra não obtiveram do vigário de Piũí permissão para enterrar ali
seus mortos. SaintAHilaire relata: «Como os brasileiros fazem muita questão de
ser enterrados em igrejas, (...) transportavamAse os corpos nas costas de homens,
da serra até a vila, e, para me servir da expressão do lavrador em cuja casa dorA
mira a duas léguas da cachoeira, os carregadores chegavam quase no mesmo esA
tado daqueles que levavam a enterrar».384 Como diz aquele personagem de Rosa,
um moribundo vitimado pela malária: «quando for a minha hora (...) quero ir mas
é pr’a o cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda é chão de Deus».385
O geógrafo Wilbur Zelinsky define o cemitério como uma espécie de «vestíA
bulo» da terra dos mortos, um ponto de interligação entre esta vida e o além.386
Ele divide com santuários e templos este status privilegiado de espaços onde
imanência e transcendência se tocam. No Québec, onde o padrão de protoAurbaA
nização foi em vários aspectos similar ao nosso, os povoados só eram tidos como
consolidados depois que o número de sepulturas do cemitério local superasse o
de habitantes.387 Em determinadas circunstâncias foi exatamente a «cidade dos
mortos» e não a «casa de Deus» o fator deflagrador da gênese urbana. Em Estrela
do Indaiá e em Guarani o cemitério antecedeu a ereção da primeira capela; do
que, aliás, os antigos topônimos dão prova («Cemitério da Estrela» e «Divino EsA
pírito Santo do Cemitério»). De Guiricema sabeAse algo mais. Em 1825 faleceu a
esposa do português José Lucas Pereira, que havia se estabelecido naquela região
da Zona da Mata. Após enterráAla, Pereira decidiu construir uma capela para
trasladar os restos para o interior do recinto sagrado. Assim se fez, e, uma vez
doado o patrimônio, cresceu o arraial. Em São Sebastião do Rio Preto, quando a
capela foi erigida, já havia diversas casas nas imediações de um cemitério que ali
fora construído em 1814. A antiga denominação de Virginópolis, «Nossa Senhora
do Patrocínio», adveio do cemitério feito por Félix Gomes de Brito em meados do
século XIX. No sítio hoje ocupado pela cidade de Água Boa, em meados do séA
culo XIX, teria ocorrido um assassinato. Como o cemitério mais próximo distava
dali duas léguas, resolveram os moradores enterrar o cadáver ao pé de uma árA
vore. A proprietária do terreno, Ana Felícia da Silva, decidiu mais tarde fazer um
cemitério no mesmo lugar, o qual foi bento por frei Bernardino do Lago Negro.
Pouco depois faziaAse a capela, e, ao seu redor, levantaramAse as primeiras casas.
Surgindo a idéia de fundar um arraial, Ana Felícia e seu marido, José Joaquim
Carneiro, doaram dois alqueires para patrimônio da capela. A partir de então,
formouAse Água Boa.388
388 EMB, vol. 25, pp. 106, 201, 182; DHGMG, pp. 144A145, 147, 330, 370; AHCMG,
pp. 656A657.
a
389 Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades», 2 parte, p. 299.
390 Deffontaines, Géographie et religions, p. 124.
391 Deffontaines, Pierre. «Le stade initial de la géographie urbaine est un stade reliA
gieux». In: XVIIIe Congrès International de Géographie. Rio de Janeiro, 1965
(tome III), pp. 163A166, p. 165.
160
Por sorte o fenômeno destes núcleos que «pulsam» ao sabor dos cultos dominiA
cais e das festas religiosas chamou a atenção dos viajantes europeus, de forma
que seus relatos podem darAnos boas pistas para analisar este caso particularA
mente interessante de relação entre o sagrado e o espaço. A quase totalidade das
cidades citadas a seguir tiveram uma trajetória semelhante à de Santana dos FerA
ros.
No Vale do Jequitinhonha encontramos o maior número de casos, cuja descriA
ção devemos de forma especial a SaintAHilaire, que por ali passou em 1817.
Nossa Senhora da Penha (Penha de França) tinha então algo em torno de 50 caA
sas, das quais 18 dispunhamAse em torno de uma pequena praça no meio da qual
elevavaAse a capela. «As casas pertencem a agricultores, dos quais a maioria só
vem à povoação aos domingos, e, em grande parte, ficam fechadas durante os
dias úteis». São João Batista (Itamarandiba) compunhaAse de cerca de 60 casas.
Sua matriz «é grande, bem conservada, e elevaAse no meio de uma praça irregular
e mais ou menos elíptica, que se extende por um plano inclinado. As casas que,
na maior parte, rodeiam a praça, foram construídas recentemente (...). Vi em São
João ainda menos gente que em Penha. Colonos que habitam os trechos de matas
dos arredores são os proprietários de quase toda essa povoação, e ali não vão seA
não aos domingos, para ouvir missa». O mesmo verificaAse em Chapada, porém
nesta localidade a igreja não ocupa o centro da praça. Os «moradores», aproximaA
damente 500 pessoas, «só vêm à povoação aos domingos». O mesmo se dá em
Água Suja (Berilo), Piedade (Turmalina), e Bonfim (Bocaiúva). Em Araçuaí a
organização do espaço obedece ao mesmo padrão básico. Suas casas «formam
dois lados opostos de um quadrilátero alongado», enquanto que a capela «achaAse
colocada a uma distância aproximadamente igual das duas ordens de casas, e diA
ante dela existe um pequeno terraço rodeado por uma balaustrada de madeira.
Quase todas as casas de Araçuaí pertencem a lavradores que ali só vêm aos doA
mingos e dias de festa».395
No sul de Minas encontramos outros casos. Madre de Deus, continua SaintA
Hilaire, resumiaAse a 12 casas em torno de uma capela. «Todas, sem exceção, esA
tavam fechadas, e o meu tropeiro, José Mariano, que conhecia perfeitamente a
zona, disseAme que a maior parte não tinha habitantes a não ser quando algum
padre vinha de São João [delARei] celebrar missa na pequena igreja.» Em Oliveira
o fenômeno se repete: a maioria de suas casas «e mesmo das mais bonitas, só são
habitadas no domingo».396 São Tomé das Letras foi assim descrita por um autor
anônimo em fins do século XIX: «São Tomé é um arraial decadente (...), com 400
habitantes, aproximadamente sem indústria e sem vida própria. Um largo central
de fórmula retangular contém o cemitério e a igreja. Este largo é a parte mais imA
portante do arraial; outras ruas estreitas e pequenas correm paralelas aos lados
395 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 20, 32, 78, 211, 225, 287,
234A235.
396 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 90A91, 137.
162
397 RAPM (IV) 1899, p. 506. O patrimônio da capela era composto, segundo corresA
pondência do vigário datada de 20 de fevereiro de 1870, de apólices da dívida púA
blica, «que dáAlhe a renda anual de 540 mil réis», e de 30 alqueires de terra. APM,
SP 1381.
398 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 141, 160A162.
399 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 92.
400 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 240, 226; Eschwege, Brasil, novo
mundo, p. 103.
163
3.4 Sertão
O sertão é a mais interessante categoria espacial do Brasil dos séculos XVIIIA
XIX. O sertão transpira ameaça e mistério; espaço polissêmico em que as noções
de fronteira, esconderijo e deserto se confundem. É verdade que ele pode ser conA
siderado, e ainda o é, uma categoria geográfica. O que não significa que seja posA
sível reduzíAlo a um espaço fixo, claramente delimitado. Se existe uma forma de
contempláAlo numa perspectiva próxima da que dele tinham os mineiros antigos,
esta certamente não será a do formalismo racionalista, mas sim algo que se aproA
xime daquela «geografia mítica» que propunha Cassirer.
Foram poucos os historiadores que se detiveram sobre este tema, a despeito do
«retorno do espaço» à agenda das ciências humanas nos anos recentes. A força da
perspectiva formalista é exemplificada pelo estudo de história regional de MataA
Machado406 sobre o sertão noroeste de Minas Gerais e pelo amplo balanço feito
por Emanuel Araújo. Um importante salto qualitativo deuAse com os estudos de
Carrara, que aborda o sertão não apenas enquanto espaço econômico e social,
mas também como uma das «categorias primeiras da percepção geográfica» dos
antigos mineiros.407 Porém, ao se ocupar com o sentido da palavra sertão, CarA
rara não destoa das definições correntes. Para ele foi a baixa densidade demográA
fica «a característica dominante» da percepção sobre o sertão nos dois primeiros
séculos da história de Minas408, tal como para Araújo a idéia de «grandes vazios
409 Araújo, «Tão vasto, tão ermo, tão longe. O sertão e o sertanejo nos tempos coloniA
ais», p. 80.
410 Eschwege, Journal von Brasilien, 1. Band, p. 10.
411 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 247A248.
412 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 65.
413 Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 224. Grifo nosso.
414 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 220.
415 Carrara, «O ‹sertão› no espaço econômico da mineração», p. 42.
166
julgar que esta zona não pertencia ao sertão; o deserto, diziam, só começa além
de certas monhanhas que se encontram entre esta região e o São Francisco».416 O
caráter relativo da categoria pode ser claramente observado no caso de Itaipava.
Após o declínio da produção cafeeira nas primeiras décadas do século XX, WilA
lems constata uma «inversão ocorrida na localização do ‹sertão›, que passou de
oeste a leste. A princípio, Itaipava era um posto avançado à ‹boca do sertão›. OuA
trora, o sertão era Minas e São Paulo. Atualmente, os moradores de Itaipava
chamam de ‹sertão› as áreas cobertas de mata virgem da Serra do Mar».417 FinalA
mente, mudanças a nível estrutural, por exemplo as acarretadas pelo avanço da
urbanização, evidentemente têm um impacto imediato sobre a percepção coletiva
a respeito do espaço sertanejo. Há uma boa dose de verdade na afirmação de
Guimarães Rosa de que a cidade «acaba com o sertão».418
Em que pese esta fluidez, a imagem que se fazia destes espaços era, via de reA
gra, negativa. Impossível, diz Bento Fernandes Furtado, o exercício da justiça
«em um sertão onde, sem controvérsia, campeava a liberdade sem sujeição a neA
nhuma lei».419 Teixeira Coelho afirma que um certo Manuel Nunes Viana, moraA
dor «nos sertões da comarca do Sabará», e outros que a ele tinhamAse aliado anA
davam «fazendoAse, pelas mortes e violências que tinham executado, o terror dos
povos». O mesmo autor narra ainda o esforço de colonização promovido por
Dom Antônio de Noronha, empenhado que estava em conquistar os «vastos serA
tões que ficam ao lado do sul do Rio Doce», que eram então cheios de cachoeiras
«e infestado[s] de índios».420 A abertura do caminho novo entre as minas e o Rio
de Janeiro no início do século XVIII fez com que a Coroa portuguesa decretasse
a proibição da colonização dos sertões da Mantiqueira. Foi precisamente esta
proibição, segundo Carla Anastasia, que permitiu o alastramento dos grupos de
bandidos naquela região.421 Somente quando a produção de ouro entrou em
franco declínio é que surgiram iniciativas oficiais no sentido de ocupar aquela
área. Dom Rodrigo José de Menezes manda então que «se penetrassem os sertões
incultos, e juntamente os da Mantiqueira, abaixo proibidos a título de servirem de
barreira, ou de impedimento aos descaminhos do ouro».422 Do lado oposto da caA
416 SaintAHilaire, Viagem às nascentes, vol. I, p. 279. Esta relativização também é inA
vocada por Rosa logo nas primeiras linhas de seu opus magnus: «O senhor tolere, isto é
o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os camposAgerais a fora a
dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de
Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão?». Rosa, Grande sertão, p. 7.
417 Willems, Uma vila brasileira, p. 27.
418 Rosa, Grande sertão, p. 156.
419 CCM, p. 193.
420 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», pp. 348A349,
358. Grifo nosso.
421 Anastasia, Carla. «Salteadores, bandoleiros e desbravadores nas Matas Gerais da
Mantiqueira (1783A1786)». In: Del Priore, M. (org.) Revisão do paraíso. Rio de
Janeiro: Campus, 2000, p. 124.
422 «Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da capitania de Minas GeA
167
pitania as ameaças à ordem colonial não eram menores. Além da busca do ouro,
um dos motivos que levou Inácio Correia Pamplona a percorrer o oeste de Minas
foi o combate aos quilombos ali estabelecidos. LêAse no diário de uma de suas
expedições que, em 6 de novembro de 1769, foram avistadas algumas casas que
se julgaram pertencer a quilombolas, pois «no sertão não mora mais ninguém».423
Século XIX adentro, os viajantes fazem referência a vários arraiais e vilas do
sertão que deviam sua origem a delinqüentes de toda espécie. Araxá teria sido
formada «na maior parte, (...) de malfeitores, fugitivos de outras partes de Minas
e de Goiás». De Formiga, dizAse que «criminosos perseguidos pela justiça se vieA
ram refugiar neste lugar remoto e contribuíram para aumentarAlhe a população; os
habitantes não gozam de boa fama». A vila do Tamanduá tivera, segundo consta, a
mesma origem: ela «deve os seus fundamentos a criminosos que vieram, há uma
centena de anos, procurar um asilo no seio das florestas de que a região é
coberta». Os moradores do Arraial de Formigas eram «como filhos do sertão, mal
afamados como brigões e por seu banditismo».424
A idéia generalizada de que o sertão é antes de tudo um espaço escassamente
povoado não corresponde ao sentido de que era investido o termo. Um dos doA
cumentos do Códice Matoso revela que os primeiros exploradores das minas vieA
ram das regiões mais populosas do Brasil «e também do sertão, que é muito exA
tenso e tem muita gente».425 Boa parte da banda oriental de Minas, à época
povoada por diversas nações indígenas e coberta por densas florestas, também reA
cebia a denominação de sertão. O pontoAchave a elucidar é: por que paisagens
tão radicalmente distintas entre si, como são o oeste e o leste de Minas Gerais426,
puderam um dia ser designadas pelo mesmo termo?
Primeiramente, porque ambos eram espaços cercados de interdições – por veA
zes interdições de ordem legal, como vimos –, nos quais prevalecem forças que o
homem comum prefere evitar. Não se trata de espaços vazios (no sentido de
Simmel) e muito menos de espaços «profanos». Na verdade o sertão é um espaço
sagrado; mas um espaço sagrado que se coloca num plano oposto ao dos santuáA
rios e patrimônios religiosos. O princípio que nele domina é sobretudo o do sa
grado nefasto. Uma extensão, enfim, dominada pelas «trevas exteriores, o mundo
das ciladas e das armadilhas, que não conhece lei nem autoridade, e donde sopra
uma ameaça permanente de mácula, de doença e de perdição».427 A existência de
rais. Seu descobrimento, estado civil, político e das rendas reais (1781)». In:
RIHGB (71) 1908: 117A184, p. 174.
423 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...», p. 79. Grifo nosso.
424 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 106; SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol.
I, pp. 150A151, 140; Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 68.
425 CCM, p. 197.
426 Uma bela síntese descritiva desta verdadeira «encruzilhada de paisagens» que é
Minas Gerais foi feita por Bernardes, Nilo. «Fisionomia da terra». In: Cesar, G.
(org.) Minas Gerais – Terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1970, pp. 1A10.
427 Caillois, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988 (1939), p. 52.
168
O testemunho de Pohl atesta o misto de fascínio e temor suscitados por uma floA
resta no Campo das Vertentes:
«Penetramos imediatamente num corte de selva, cujas grossas árvores de
formas para mim completamente desconhecidas, eram entrelaçadas, em esA
tranhas voltas, por parasitas arbóreas; as quais (...) formavam, por assim
dizer, um tecido impermeável aos raios solares e que, como cordoalha de naA
vio, se movia ao mais leve impulso. Essa imagem agiu poderosamente em
meu espírito. Com temeroso respeito atravessei essa abóboda da selva, o esA
curo dessa floresta, que, com as figuras indefinidas, me apareceu como um
grande segredo da natureza.»433
Os riscos, imaginados ou reais, que cercavam os sertões de matos incultos mon
tanhosos e penhascosos434 ajudam a explicar por que a política de colonização do
leste mineiro na segunda metade do século XVIII privilegiou, antes de mais nada,
os delinqüentes e vadios. Em 1768 o governador Luís Diogo Lobo da Silva
afirma que somente pessoas com este perfil se sujeitariam à «calamitosa e miseA
rável vida e riscos» necessários à colonização.435 O Conde de Valadares, por sua
vez, determina o envio dos vadios à conquista do Cuité «porque como a conserA
vação desta conquista era necessária, e se não podia conseguir sem que nela houA
vesse um corpo de tropas da dita qualidade, mais conforme à razão o ser a mesma
tropa composta de homens vadios e facinorosos, do que de homens bem morigeA
rados e precisos para a cultura de terras».436 A estratégia tem continuidade com
Dom Rodrigo de Menezes em 1783, quando se chega a apoiar com víveres, ferA
ramentas e roupas o estabelecimento daquelas «pessoas insignificantes» no sertão
do Caeté.437 As conseqüências que poderiam advir do contato entre delinqüentes
(sem dúvida numerosos) e os diversos povos indígenas que ali habitavam não paA
reciam tirar o sono das autoridades coloniais.
Aos olhos de muitos dos moradores das vilas de Minas Gerais, há dois tipos
básicos de habitantes do sertão: delinqüentes (criminosos foragidos, vadios, salA
teadores, quilombolas) e índios. RusselAWood percebeuAo bem, e se aproximou
de uma caracterização adequada do conjunto de imagens e sensações suscitados
pelo espaço sertanejo quando sugeriu que «civilização e ortodoxia terminavam
433 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. I, p. 223. Grifos nossos. O fato de que esA
ses três relatos advém de autores alemães está longe de ser mera coincidência.
Röhrich mostrou que a floresta ocupa no imaginário popular alemão um lugar
muito mais destacado que em mitos de sociedades indígenas latinoAamericanas.
Röhrich, Lutz. Märchen und Wirklichkeit. Wiesbaden: Steiner, 1974, pp. 201A202.
Parece plausível que os naturalistas citados não estivessem tão distantes deste pano
de fundo popular quanto se poderia crer.
434 CCM, p. 171.
435 Citado por Anastasia, «Salteadores, bandoleiros e desbravadores...», p. 123. Ver
ainda Souza, Desclassificados do ouro, pp. 71A90.
436 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», p. 348.
437 «Descrição geográfica... », p. 181A182.
170
está longe de ser tão bem conhecido como o do famoso quilombo dos Palmares,
em razão da grande dificuldade de se obter dados confiáveis sobre a sua estrutura
interna.
Depois de se debruçar sobre as comunidades quilombolas mineiras, Donald
Ramos afirmou que o quilombo não significava uma ruptura mas sim uma mera
«rejeição» do sistema escravocrata. Para ele as comunidades de fugitivos funcioA
navam como uma «válvula de escape que ajudava a impedir que o sistema imploA
disse».448 A «implosão» só apresentarAseAia, ao seu ver, sob a forma de rebelião.
Curiosa inversão: o ato de rebelarAse é colocado por Ramos num patamar mais
elevado de complexidade e radicalidade, sendo que, na verdade, ele configura um
evidente pressuposto (mesmo quando «atomizado» sob a forma de simples fuga
individual) para a formação dos quilombos. O fato de que os quilombos continuA
avam a manter relações mais ou menos estreitas com a sociedade escravista não
significa que eles não se colocassem como uma alternativa para a massa de opriA
midos que constituía a base do sistema – alternativa que a revolta, por si só, não
era capaz de oferecer.449
Preferimos ver no quilombo uma utopia vivida. São três os aspectos que fazem
dele um empreendimento utópico: (1) a objetivação coletiva do ideal de liberA
dade; (2) a organização dos fugitivos numa comunidade cujos princípios fundaA
mentais tendem a contradizer os que vigoram fora dela; e, finalmente, (3) o estaA
belecimento desta comunidade num espaço à parte. ObserveAse que, a despeito da
etimologia do termo, as utopias freqüentemente criam lugares. Um projeto alterA
nativo de organização social «exige», por assim dizer, se pretende adquirir uma
aparência de exeqüibilidade para aqueles que o abraçam, a sua expressão espaA
cial.450
Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988; Guimarães, Carlos Magno. «O
quilombo do Ambrósio: lenda, documentos e arqueologia». In: EIA 16 (1A2) 1990:
161A174; Gomes, Flávio dos Santos. «Seguindo o mapa das minas: plantas e
quilombos mineiros setecentistas». In: Estudos Afro Asiáticos (29) 1996: 113A142;
Reis, J. J. e Gomes, F. S. (org.) Liberdade por um fio. História dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996; Souza, Laura de Mello e. Norma e conflito.
Aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte, UFMG, 1999.
448 Ramos, Donald. «O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do século
XVIII». In: Reis e Gomes, Liberdade por um fio, pp. 167 e 174.
449 Para uma análise das revoltas na Minas Colonial, ver Anastasia, Carla. Vassalos
rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo
Horizonte: C/Arte, 1998.
450 Sobre o conceito de utopia ver Mannheim, Karl. Ideologie und Utopie. Bonn:
Friedrich Cohen, 1929, pp. 169A191; Doren, Alfred. «Wunschräume und WunschA
zeiten». In: Neusüss, A. (Hrsg.) Utopie. Begriff und Phänomen des Utopischen.
Neuwied/Berlin: Luchterhand, 1968, pp. 123A177; Baczko, Bronislaw. Lumières de
l’utopie. Paris: Payot, 1978, pp. 29A38; Hölscher, Lucien. «Utopie». In: Brunner,
O., Conze, W. und Koselleck, R. (Hrsg.) Geschichtliche Grundbegriffe. Stuttgart:
KlettACotta, 1990 (6. Band).
173
do nosso homo ludens. Basta pensar em Ouro Preto e seu «sítio impossível» (Le
Loup). Por esta razão eram comuns as «ruas tortuosas, vencendo com dificuldade
o abrupto das encostas, e o casario como que agarrado sobre os morros, num miA
lagre de equilíbrio».2
Os embriões de cidade cuja origem se associa diretamente ao gold rush não
apresentaram sempre o padrão de desenvolvimento concêntrico que vimos ter
sido o predominante nas cidades que se formaram a partir de um patrimônio reliA
gioso. Não era raro que, naqueles lugares nos quais as descobertas auríferas reA
velavamAse mais promissoras, a ocupação dos terrenos se polarizasse em torno de
dois ou mais subAnúcleos dispostos nas proximidades das áreas de exploração.
Algumas das primeiras vilas de Minas surgiram da fusão destes subAnúcleos, os
quais recebiam os nomes de bairros ou arraiais (sobre a polissemia do termo «arA
raial», ver seção 3.3). Esta tendência à aglutinação decorria do aumento vertigiA
noso da população e, conseqüentemente, da progressiva ocupação dos interstícios
entre os distintos bairros.
Nos primórdios de Mariana,3 o primeiro núcleo a formarAse foi o de Mata CaA
valos. Porém, devido aos surtos de fome que assolaram a região em 1697A1698 e
1701A1702, Mata Cavalos entra em decadência. Em 1703, Antônio Pereira consA
trói nas proximidades do ribeirão ali existente uma ermida dedicada a Nossa SeA
nhora da Conceição («que era tão pequena que só cabiam o altar dentro dela e o
acólito para ajudar a missa»).4 Com a invasão da sua sesmaria por um grande
contingente de mineiros, cresce aos poucos o «Arraial de Baixo». O afluxo de
aventureiros é de tal ordem que, no ano seguinte à sua ereção, a ermida da ConA
ceição era elevada a freguesia.5 Um segundo bairro, com o nome de São Gonçalo,
formaAse posteriormente na parte dita «de cima», ao longo da estrada que seguia
para Ouro Preto.
Em Ouro Preto observaAse a existência deste mesmo modelo «multipolar».
Com o passar dos anos, subAnúcleos como o Caquende e o Arraial dos Paulistas
foram pouco a pouco absorvidos pelo de Ouro Preto. A organização espacial
destes bairros dependia das características do sítio. Enquanto em Antônio Dias
desenvolveuAse um padrão linear, em Padre Faria o perfil era «caótico». Ademais,
a instabilidade era muito alta. Alguns bairros prosperavam e fundiamAse com asA
sentamentos vizinhos, enquanto que outros simplesmente desapareciam.6 Em SaA
bará, os dois subAnúcleos principais teriam sido os de Barra e Igreja Grande, mas
havia uma infinidade de outros de menores dimensões.7 Sylvio de Vasconcellos
acusa o mesmo fenômeno em Diamantina, e afirma ser «provável que a povoação
tenha nascido da polarização de pequenos núcleos isolados».8
Em resumo: a ocupação do sítio, em que pese o sistema de concessão de datas,
é abrupta e desordenada. ConstroemAse ranchos nas próprias datas, ao longo dos
leitos dos córregos e dos caminhos. A população é composta por mineradores,
gente desocupada e criminosos; o comércio (inclusive na sua modalidade sexual)
é intenso; a prodigalidade e a jogatina estão na ordem do dia. Enfim, o arraial miA
nerador é o hábitat por excelência do homo ludens.
Um excelente retrato do que é o cotidiano deste tipo de aglomerado foiAnos
dado por Langsdorff, que visitou Descoberta Nova (atual cidade de Descoberto,
na Zona da Mata) em 1824, poucos meses após seu surgimento. Face à riqueza de
seu relato, vale a pena reproduziAlo um pouco mais extensamente:
«(...) alcançamos Descoberta Nova. A gritaria, os estrondos, a barulheira fezA
nos perceber de longe que havia lá grande quantidade de pessoas. InicialA
mente, vimos a fazenda do verdadeiro proprietário e, depois, uma longa
fileira de palhoças. São as casas dos mineiros (se é que posso usar essa deA
nominação) e de pessoas que para cá vieram para praticar o comércio e aproA
veitar a oportunidade favorável. Pedimos abrigo na primeira e na segunda
casa, mas em vão. Depois passamos por entre as cabanas e vimos mercadoA
rias jogadas entre estalagens, vendas e casas de jogos. Toda a aldeia tinha o
aspecto de uma feira com suas carrocinhas de comidas. Aqui, os homens
deitados em estacas fincadas na terra, em esteiras de palha; lá uma mulher ou
uma moça. Um tinha um prato de feijão com toucinho. Mais adiante, rodavaA
se uma agulha para decidir quem ganha e quem perde. Mágicos mostram sua
arte; vinho, aguardente de cabeça, restilo e prazeres eram vendidos por toda
parte. Comerciantes e, principalmente, vendedores estavam alojados no bosA
que. (...) Logo que a fama da descoberta se espalhou pela terra, vieram pesA
soas de todas as partes, de forma que hoje (após cerca de dois a quatro me
ses da descoberta) já se reuniram aqui quase 3000 almas. Nem todos vieram
para lavrar ouro: alguns vieram para se divertir. Jogadores e beberrões,
prostitutas e muitas outras pessoas que, de uma forma ou de outra, tentam
ludibriar uns aos outros. Alguns vivem miserável e deploravelmente; outros
gastam tudo ou perdem no jogo o que ganharam com a lavação. Foi realA
mente muito estranho ver aqui pessoas que, há poucas semanas, talvez não
possuíssem sequer um tostão e que agora lidam com táleres de prata como se
fossem moedas de cobre. Nem mesmo o ouro tem valor. Pode se dizer: como
foi ganho, será desperdiçado. É como uma loteria; ninguém sabe avaliar o
Ouro Preto». In: RPHAN (5) 1941: 241A257; Ramos, A social history of Ouro
Preto, pp. 142A152; Menezes, Igrejas e irmandades de Ouro Preto, p. 27.
7 Passos, Em torno da história de Sabará, pp. 2A3.
8 Vasconcellos, Sylvio. «Formação urbana do Arraial do Tejuco». In: RPHAN (4)
1959: 121A134, p. 127.
178
valor do ganho. O que chama a atenção é que tantas pessoas de repente teA
nham se aglomerado aqui, e o governo parece não ter tomado conhecimento
disso (...). Um chega, lava o ouro e vai embora; o outro, da mesma forma, e
assim podeAse dizer que, aqui, mudam as pessoas diariamente.»9
Se confrontamos Descoberta Nova com outros exemplos de protoAurbanização
em contextos marcados pela mineração tradicional, algumas similitudes tornamA
se evidentes. É interessante notar que a simples rua ladeada por rústicas moradias
e casas de comércio era também a configuração de Nevada City, uma típica poA
voação gerada pela exploração de ouro na Califórnia.10 Mas enquanto nos EUA
as novas cidades se adequavam rapidamente ao padrão geométrico determinado
pela Land Ordinance de 1785,11 o núcleo minerador latinoAamericano tendia – até
(mas não apenas) por força das particularidades do seu quadro topográfico – a
desenvolverAse desordenada e espontaneamente.12 Aroldo de Azevedo afirma,
quanto ao Brasil, que «a impropriedade do sítio urbano constituiu a regra».13 A
racionalidade econômica limitaAse à esfera das trocas comerciais; e no entanto,
dentro deste universo que visivelmente obedece a leis próprias, perdeAse a noção
do valor relativo das mercadorias. «O dinheiro aqui parece ser de pouco valor, e
qualquer pessoa tem o bastante», escreveu uma testemunha do gold rush norteA
americano.14
Quanto ao mais, é como se a dimensão lúdica se apossasse completamente do
mundo da vida. Pois a vida se resume a dois princípios: o da diversão e o da
aposta. Até que ponto é difícil separar uma coisa da outra, comprovaAo não só o
caso de Descoberta Nova. Assim se expressa um aventureiro americano oitocenA
tista, ouvido numa casa de jogos: «I came here not to gamble, but to find amuseA
ment».15 O jogo é uma «tentação a que não se pode furtar um verdadeiro garimA
peiro».16 O termo «loteria» para definir a lógica segundo a qual se orienta o
mundo do garimpo, digaAse de passagem, não foi empregado apenas por LangsA
dorff. Também nos EUA a corrida do ouro foi vista como uma great lottery.17 A
18 Esta estrofe faz parte de um poema popular (do tipo poema em abc) com o título
«Mergulho do garimpeiro blefado», da autoria de José Lopes de Araújo. ReproduA
zido na íntegra em Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, pp. 208A211.
19 Gakenheimer, «The early colonial mining town», p. 367.
20 Azevedo, «Arraiais e corrutelas», p. 20.
21 Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 150A151.
180
Santa Isabel de Sincorá e muitas pequenas localidades nas terras ricas em diA
amantes.»22
Os pontos de parada ao longo das estradas (como os que, em grande quantidade,
distribuíamAse no percurso do «caminho novo» entre Minas e o Rio de Janeiro)
exerciam uma força aglutinadora que, sob determinadas circunstâncias, podia dar
origem a um embrião de cidade. Os tipos de pontos de parada foram bem caracteA
rizados por Burton: há o pouso, «mero terreno de acampamento, cujo proprietário
não se importa que os tropeiros ali dêem água aos seus animais e os amarrem em
estacas»; o rancho, composto de «um telheiro comprido, tendo, às vezes, na
frente, uma varanda»; e a venda, onde se «vende de tudo, desde alho e livro de
missa, até cachaça, doces e velas».23
A origem de diversas cidades, como se vê, nada teve de idílica ou devota. Por
vezes a autoridade religiosa é impotente diante das outras necessidades, bem mais
concretas, das pessoas comuns. Araçuaí oferece um exemplo interessante. Na
primeira metade do oitocentos, o padre Carlos Pereira Freire de Moura fundou
uma povoação chamada Pontal na confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha.
Rigoroso (o que não era necessariamente comum naquele tempo), ele proibiu a
presença de prostitutas e o consumo de álcool no Pontal. Uma fazendeira da reA
gião, Luciana Teixeira, acolheu então aquelas mulheres e seus «clientes», e no
novo local de seu estabelecimento cresceu o arraial que deu origem a Araçuaí.24
Serrania, localizada no sul de Minas, formouAse a partir de um pouso de tropeiA
ros. O local tornouAse ponto de encontro de «malfeitores e boêmios», e pouco a
pouco surgiram casas em seu redor. Por volta de 1898, por iniciativa do vigário
de Alfenas, particulares fizeram a doação do patrimônio a uma capela a ser eriA
gida no lugar.25
É bem sabido o quanto importantes centros regionais dos dias de hoje deveram
seu crescimento e prosperidade ao comércio na confluência ou à margem das esA
tradas. Tal o foram Formiga, Barbacena e Juiz de Fora. Goodwin Jr. observou,
quanto a esta última: «nascida às margens de um caminho, a cidade continuou a
ter nas estradas um importante elemento do seu desenvolvimento».26 O que se
confirmaria principalmente a partir da segunda metade do século XIX, com o
surto da cafeicultura e o início da espansão da malha ferroviária na Zona da
Mata.27
31 DHGMG, p. 349.
32 Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, p. 238.
33 Sobre Caxambu: ANEDC (15) 1953: 18A20; DHGMG, pp. 86A87. Sobre Poços de
Caldas: RAPM, ano I, fascículo 2, 1896, pp. 198A201; DHGMG, pp. 261A262.
34 ANEDC (12) 1950: 8A10; EMB, vol. 27, p. 253; DHGMG, pp. 324A325.
35 Espírito Santo, A religião popular portuguesa, pp. 35A37.
183
Eschwege explica que «dáAse aqui [em Minas Gerais] o nome de presídio aos
lugares onde se estabelecem as forças militares destinadas à defesa ou civilização
dos índios, bem como à prevenção do contrabando».36 O presídio representava
portanto um tipo de posto avançado. Alguns chegaram a ser fundados pelos banA
deirantes, mas a grande maioria surgiu da iniciativa estatal. Os colonos para lá
encaminhados, como foi visto no capítulo anterior, eram considerados a escória
da sociedade. Quando se lê os documentos da época, percebeAse claramente que a
imagem dos responsáveis diretos pelo empreendimento «civilizatório» pratica
mente não se distinguia, aos olhos das autoridades, da imagem daqueles a serem
«civilizados». Justamente os homens persuadidos ou coagidos a partirem rumo
aos sertões de matos (e que antes viviam «como feras nos arraiais, nos sertões e
nos lugares inacessíveis») é que tomam para si a tarefa de defender os presídios
do Cuité e dos Arrependidos «da irrupção do gentio bárbaro, e que penetram
como feras os matos virgens no seguimento do mesmo gentio».37 Só por ingenuiA
dade poderíamos supor que os governadores não estavam conscientes das trágicas
conseqüências que o contato entre colonos e indígenas, estabelecido nestas conA
dições, haveria de gerar. Uma carta régia em maio de 1798 autorizava a introduA
ção do trabalho compulsório dos indígenas. LegitimavaAse assim as violências e
as expropriações cometidas pelos fazendeiros.38
Além dos presídios do Cuité e dos Arrepiados, há referências a outros, como os
de Peçanha, Abre Campo e São João Batista. Numa zona de fronteira e de difícil
acesso, estes postos nem sempre resistiam por muito tempo. Em sua viagem aos
sertões do Rio Doce, Dom Antônio de Noronha determinou que «se fizesse uma
povoação nova, por se achar o pequeno presídio que [ali] existia em sítio baixo e
pantanoso».39 Além disso havia a compreensível reação de algumas tribos à
progressiva conquista do seu espaço vital. Os bispos criavam paróquias sem que
se soubesse ao certo até que ponto os novos núcleos resistiriam às dificuldades
impostas pelo meio e pelos índios. O presídio de Abre Campo, por exemplo, teve
de enfrentar inúmeros revezes até estabilizarAse e tornarAse povoação nas últimas
décadas do setecentos.40
cio e Navegação do Rio Doce. Alguns números falam por si sós: a carta régia que
constituiu a Junta determinou a criação de 6 divisões de soldados, num total de
aproximadamente 600 homens. Em correspondência datada de 20 de março de
1809, o alferes Antônio Roiz Taborda determina ao comandante da primeira diviA
são «até o mês de maio entrar com a gente de sua divisão a atacar os botocudos
nas suas aldeias». Taborda diz esperar avanços significativos daquele comandante
por ser este um «oficial antigo, e de tropa de linha», e que, como tal, haveria de
demonstrar sua energia «em debelar esta massa antropófoga, que tantos prejuízos
tem causado aos fazendeiros desta capitania».47 O resultado prático destas mediA
das não correspondeu de todo às intenções expressas pela Coroa. Eschwege falaA
nos do estado de coisas em 1815:
«Nem o território dos botocudos – que compreende um distrito de boas 1200
léguas quadradas (...) – foi conquistado, nem os botocudos curvaramAse sob
o brando jugo da lei, nem se abriram estradas, nem foi incentivada a navegaA
bilidade do Rio Doce.»48
Somente na primeira metade do oitocentos criaramAse em Minas 87 quartéis e 73
aldeamentos.49 Cidades como Aimorés e Jequitinhonha são alguns dos frutos
deste esforço. Se nos arraiais formados a partir de patrimônios religiosos o ponto
de cristalização em torno do qual se adensa o arraial nascente foram as capelas,
nos casos de que se trata aqui é evidentemente o quartel que desempenha esse
papel. Isso fica claro no caso de São Miguel (atual Jequitinhonha). Fundado pelo
alferes Julião Fernandes Leão por volta de 1804 e sede da 7a Divisão Militar, este
embrião de cidade sequer tinha uma capela quando por ele passou SaintAHilaire.
Possível, no quadro mental da Minas antiga, a criação de um espaço em áreas de
fronteira sem o recurso ao sagrado? A presença de um cruzeiro diante do quartel
bem mostra em que medida a transformação racional do espaço nem sempre exA
cluiu o recurso ao numinoso. Anos depois, Pohl visitou São Miguel. A igreja esA
tava em construção e já havia 40 casas de telha no arraial.50
Segundo um relatório feito em 1813 pelo futuro diretor dos distritos dos índios
no alto Rio Doce, Guido Tomás Marlière, existiam então 150 aldeias de coroados,
num total de 1.900 indígenas.51 Os coropós eram bem menos numerosos. Mais ou
menos na mesma época, contavamAse 292 pessoas divididas por 29 aldeias. O esA
forço da Coroa visava, explicitamente, «civilizar» e «pacificar» os índios por meio
da catequese, da introdução da agricultura e da sedentarização. A abertura de esA
tradas, criação de quartéis e presídios garantiria as condições mínimas para a
47 APM, SCA334.
48 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 81.
49 Paraíso, «Os botocudos...», p. 418.
50 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., II, p. 121; Pohl, Viagem no interior do
Brasil, II, p. 315; DHGMG, p. 174.
51 Cada uma destas aldeias era composta de uma ou no máximo duas famílias «extenA
sas ». Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 120A121.
186
60 DHGMG, p. 262.
61 EMB, vol. 27, p. 235; DHGMG, p. 321. O tamanho do patrimônio difere nas duas
fontes. O DHGMG fala em dois alqueires (96.400 m²), e a EMB em 9,68 ha
(96.800 m²).
62 EMB, vol. 25, p. 278.
63 Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América, II, p. 58.
64 Pereira, op. cit., II, p. 60.
65 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 213.
188
E mais:
«Um rico proprietário das redondezas onde os puris recentemente se estabeA
leceram sugeriu ao diretor que se poderia misturar azinhavre à sua comida a
fim de dar cabo deles. O comandante do distrito de Santana dos Ferros me
disse abertamente, numa oportunidade em que eu conversava com ele sobre
aqueles puris, que agora seria a melhor oportunidade para extinguir tal povo
de uma só vez (...). Eu conheço até mesmo alguns sacerdotes que apoiam
esta idéia.»67
A resistência inicial ao modelo civilizacional europeu era uma reação compreenA
sível.68 Ademais, a imensa maioria dos coroados e coropós não chegara a adquirir
conhecimentos básicos da língua portuguesa. Nestas condições, a conversão ao
catolicismo seria ainda impensável. Os batismos e a assistência ao culto não imA
plicavam o abandono do antigo cosmos sagrado mas inseriaAse, para muitos dos
«pacificados», numa espécie de «política de boa vizinhança» e, por que não dizêA
lo, numa estratégia de sobrevivência. Nos domingos e dias santos os subAdiretores
os levavam às capelas, onde os vigários procuravam ensináAlos a rezar. Logo em
seguida, porém, cuidavam os índios de visitar Marlière e dizerAlhe: «Capitão, teA
nho fome. Eu estava na igreja».69 Diferentemente dos africanos, cujos complexos
sistemas politeístas ofereceram as condições para uma rápida incorporação criaA
tiva dos cânones católicos, nos xamanismos ameríndios não havia «afinidades
eletivas» capazes de facilitar o processo de aculturação religiosa.70 Ao visitar a
aldeia de Santo Antônio, SaintAHilaire espantouAse ao perceber que um índio vaA
liaAse da palavra tupã para designar tanto Deus quanto o santo da capela.71 Dois
representativos exemplos são dados por Freireyss, que esteve no presídio de São
João Batista em 1814. Marlière deixou seu cãozinho com um coroado para que
este o curasse dos ferimentos que sofrera devido a um ataque de porcos famintos.
Dois dias depois o índio se apresentou ao Diretor dos Índios com a notícia da
morte do pobre animal, não sem deixar de acrescentar: «como o cão era de um
amigo, enterreiAo e pus uma cruz no túmulo».72
E continua o mesmo viajante: «TinhaAse contado aos índios batizados há pouco
a história de São Manuel, não poupando as narrações de seus milagres. Ao
mesmo tempo estavaAse construindo uma igreja no presídio e no dia da inauguraA
ção da capela provisória a imagem de São Manuel devia ser ali depositada. CuriA
osos por conhecer o milagroso santo, muitos índios tinham chegado, mas, quando
viram que a imagem era de madeira, voltaram todos para as suas matas. AcrediA
tavam que se fazia caçoada deles e diziam que o santo era de pau e que pau só era
pau e não tinha ação nenhuma».73 Em Mercês, reza a tradição local, a primeira
capela foi destruída pelos índios, que lhe atribuíram um violento surto epidêmico
que grassava naquela região.74 O mesmo fenômeno deuAse em Itambacuri, onde
uma epidemia de sarampo fez com que os índios acusassem os padres de feitiçaA
ria e queimassem o aldeamento.75 Esta atribuição de epidemias ao sagrado cristão
é tão mais interessante quando se sabe que, para o catolicismo popular lusoAbraA
sileiro, a relação é exatamente inversa. Segundo o Códice Matoso, o sítio de GuaA
rapiranga (atual cidade de Piranga) era, em seus primórdios, «muito infestado de
sezões». Em 1695 construiuAse a capela de Nossa Senhora da Conceição. Com a
vinda do vigário nomeado, padre Roque Pinto de Almeida, «foi o caso milagroso
que logo que foi benzida e os ares cessaram as sezões, sarando os que as tinham,
e ficou este distrito [o] mais sadio das Minas».76
Itambacuri foi o primeiro aldeamento mineiro dirigido por uma ordem religiA
osa. Os responsáveis por este projeto «heterotópico», os capuchinhos Serafim de
Gorizia e Ângelo de Sassoferrato, foram nomeados pelo governo em 1872 e iniA
ciaram suas atividades no ano seguinte. Sua missão era aldear os botocudos e
evitar os conflitos entre estes e os colonos no Vale do Mucuri, os quais vinham se
agravando desde a falência da Companhia de Comércio de Teófilo Otoni. «CiviliA
zação», catequese e urbanização eram ainda os três princípios que norteavam a
política indigenista no Brasil, como demonstram as palavras de Frei Ângelo ao
referirAse ao local onde deveriam se estabelecer: «Devia ser quanto possível um
ponto central, que deparasse belo horizonte visual, e onde se pudesse formar uma
aldeia, uma freguesia e até uma cidade».77 Izabel Missagia de Mattos, que tem se
dedicado à análise sistemática da história de Itambacuri, caracteriza esta iniciaA
tiva como «empreendimento missionárioAcivilizador».78
Em 1902 o bispo coadjuntor de Mariana visita Itambacuri, e afirma ser «ótima»
a sua igreja. O mestre dos índios era então João Alves Correia, «bisneto duma ínA
dia de São Miguel do Jequitinhonha, pegada a dente de cães». Para o prelado a
morte dos «heróis» fundadores do aldeamento (ocorrida em 24 de maio de 1893)
fora fruto da «traição dos índios». Existia ainda no lugar um recolhimento com 14
meninas, «a quem uma índia aranã ensina a ler».79 O aldeamento não resistiu às
hostilidades e massacres cometidos ora pelos moradores da região, ora pelos próA
prios índios. O núcleo, porém, firmouAse e em 1911 foi finalmente elevado a disA
trito.80
77 Citado por Palazzolo, Frei Jacinto de. Nas selvas dos Vales do Mucurí e do Rio
Doce. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1954, p. 61.
78 Mattos, Izabel Missagia. ‹Civilização› e resistência: revolta indígena no aldea
mento missionário de Itambacuri – 1893. Relatório científico apresentado ao douA
torado em Ciências Sociais da Universidade de Campinas, 2001, p. 26.
79 AEAD, cx. 49 (Livro de visita pastoral de Dom Joaquim Silvério de Souza).
80 Paraíso, «Os botocudos...», pp. 419A420; DHGMH, pp. 160A161.
81 Holanda, Raízes do Brasil, p. 60.
82 Vianna, Instituições políticas brasileiras, vol. I, p. 102.
83 A solução de Freyre demonstra ser bem mais factível: «Talvez não haja exagero em
191
uma das mais importantes destas forças. A ponto de podermos afirmar, sem qualA
quer receio de violentar os fatos: ela produziu cidades.84
Por meio da análise da história das primitivas capelas e seus patrimônios veA
remos como isso foi possível. É necessário estabelecer aqui, de antemão, uma
distinção importante. Não se trata simplesmente de reconstituir a trajetória deste
ou daquele município, mas sim de demonstrar como o universo das representaA
ções religiosas deu vida aos arraiais mineiros. No seu Dicionário Histórico Geo
gráfico de Minas Gerais, Waldemar Barbosa contribuiu, e muito, para que o emA
penho inicial dos geógrafos recebesse o devido tratamento historiográfico. TodaA
via, apesar de ter tido em mãos muitas das fontes das quais nos utilizaremos
(pedidos de provisão, escrituras de doação de terras, relatórios enviados às autoA
ridades civis e eclesiásticas), Barbosa não as explorou a fundo. É compreensível
que um trabalho nas dimensões do que ele empreendeu não pudesse aprofundarA
se no estudo dos casos; a tarefa deveria ser levada a cabo pelas novas gerações de
historiadores. O presente estudo deve ser entendido nesta perspectiva. Por outro
lado, não nos interessa apenas a gênese das formas elementares do espaço urbano
mineiro, mas também identificar as formas de religiosidade popular que permeaA
ram – e em grande medida presidiram – este processo. A documentação em
questão tem muito a dizer a este respeito.
No capítulo precedente, ao fim de nossa discussão sobre o problema das ermiA
das domésticas, concluímos que elas eram, antes de mais nada, fruto da intensa
demanda pelo sacrifício da missa. SomeAse a isto as dificuldades impostas pelas
distâncias e/ou pela precariedade das vias de acesso à sede paroquial mais próA
xima. Afirmamos que o culto realizado numa ermida só se diferenciava daquele
celebrado em qualquer outro templo por sua «escala», mas não pela sua natureza.
Como veremos a seguir (seção 4.3.1), a ereção de capelas e a constituição de seus
respectivos patrimônios em terras – embrião de tantas de nossas vilas e cidades –
se assentou sobre as mesmas bases. Mas se no caso das ermidas domésticas a iniA
ciativa parte de um único proprietário que arca com todos os gastos, no caso das
capelas isso se dá bem mais raramente. Em razão dos altos custos envolvidos, são
quase sempre grupos de moradores que se organizam para construir um templo
onde possam receber de um sacerdote o indispensável «pasto espiritual». Mesmo
quando a constituição do patrimônio «do santo» é feita por um único doador, o
processo como um todo tem um caráter nitidamente coletivo. Diante disso, há
que matizar a afirmativa de Julita Scarano, de que o grande número de templos
oficial de Alfaiate, mui porco e muito sujo, que dizem era o homem que encoA
mendava os defuntos».93 De uma maneira geral, os baixos níveis de sacramentaA
ção são uma constante nos séculos XVIIIAXIX. Uma história dos sacramentos
provavelmente tem menos a nos dizer sobre o cotidiano da religião da gente coA
mum na Minas antiga que uma história do culto.94
Adalgisa Campos observa, a respeito da Minas colonial, que «mais do que a
participação na eucaristia, (...) é importante estar presente à celebração».95 EmA
bora a vida religiosa se expressasse por meio de inúmeros atos de devoção, como
as invocações e orações nos momentos «críticos» do diaAaAdia (antes de levantarA
se e de dormir, ao sair de casa, antes das refeições, na hora do Ângelus) ou na
reza do terço, o seu ponto alto davaAse sem dúvida na assistência ao culto domiA
nical. Estamos aqui diante de um estilo de religiosidade, como bem mostrou José
Comblin, no qual «a forma é o suporte da devoção».96
Este ponto merece aprofundamento. A religião configura um campo da vida
coletiva por meio do qual se dá a ler a lógica do edifício social, e a Minas antiga
certamente não faz exceção à regra. Affonso Ávila mostrou que a civilização barA
roca mineira era marcada pela «busca deliberada da sugestão ótica». O prazer
«quase sensual diante das cores e formas», a empolgação «pelo rito da religião e
pela magia do ouro» condicionavaAlhe os hábitos e maneiras como um todo.97
Esta mentalidade não se limitou aos principais centros urbanos da época, e muito
menos se confinou ao setecentos. Obviamente, o esplendor das grandes matrizes,
festas e procissões urbanas só pôde se maximizar tanto em virtude da mineração.
Com a diminuição da produção de ouro e a subseqüente ruralização, nada mais
natural que também o barroco entrasse em «declínio». Mas a progressiva superaA
ção de um estilo artístico não significa que a visão de mundo que lhe serviu de
base tenha se desagregado com a mesma velocidade. Nosso catolicismo popular
permaneceu profundamente marcado por este «primado do visual» (Ávila). É preA
cisamente a missa o momento da vida social em que esses componentes estrutuA
rais da religião e da cultura mineira antiga podem ser melhor percebidos.
PoderAseAia dizer, em contraposição a esta tese, que dificilmente terá havido
eventos que sintetizassem melhor a visão de mundo barroca que os ritos fúnebres.
É possível. Mesmo a frenética atividade das confrarias e ordens terceiras girava,
em larga medida, em torno da garantia de sepultamento e da realização de um fuA
neral adequado («verdadeira obcessão» dos tempos coloniais, diz Boschi).98 Que
os ritos funerários sejam investidos de uma dramaticidade infinitamente superior
à de uma celebração dominical, não deveria mesmo causarAnos surpresa. Afinal,
para o cristão, só é possível morrer uma vez. Porém o que torna o sacrifício da
missa tão interessante é o fato de que ele – como todo rito – é dotado de um caA
ráter extraAcotidiano sem com isso distanciarAse de forma radical do cotidiano da
vida. E reciprocamente: ele é rito periódico sem com isso reduzirAse a uma mera
rotina.
Seria ingênuo imaginar que tamanha ênfase no culto se deveu apenas a consA
trangimentos eclesiásticos. Como se sabe, o ritualismo era um traço marcante da
cultura portuguesa que manteveAse intocado entre nós.99 Ele impregnava todas as
expressões, todos os campos da vida. As vozes dissonantes só faziam confirmar a
regra. Em meados do setecentos, Mathias da Silva Eça lamentava: «a vida civil se
reduz a um cerimonial composto de genuflexões, e de palavras».100 O serviço reA
ligioso era o momento onde este ritualismo assumia uma expressão particularA
mente nítida, como se pode perceber nesse conselho de Eschwege aos futuros
viajantes interessados em percorrer Minas Gerais:
«Tudo o que tem a ver com as boas maneiras e o cerimonial deve ser aqui riA
gorosamente observado, do contrário perdeAse muito facilmente o respeito.
Um homem inteligente nunca se omitirá com relação a assuntos religiosos,
mas visitará as igrejas do país mesmo quando declararAse adepto de outra reA
ligião. Com isto ele ficará livre de muitas observações desagradáveis, tanto
por parte das pessoas de melhor condição quanto da plebe.»101
Meio século mais tarde, Burton reclamava ainda do «penoso desdobrar de ceriA
mônias» de que se cercavam os mineiros.102
Ao se dirigir ao templo, a mãe de família sai processionalmente com as filhas
em fila indiana, dispostas por ordem de idade. Ao fim, caminha seu vigilante maA
rido.103 Este procedimento demonstra não só a solenidade de que se reveste o dia
do culto, mas também que o espaço é percebido pelos atores sociais como uma
dimensão heterogênea. O que é uma procissão? Ela é uma «oração pública feita a
Deus por um comum ajuntamento de fiéis disposto com certa ordem, que vai de
um lugar sagrado a outro lugar sagrado».104 O mesmo formalismo e a mesma disA
ciplina podem ser observados no cortejo das devotas famílias mineiras. A casa é o
espaço sagrado do qual parte esta procissão em miniatura, e a igreja o espaço
sagrado para onde ela se dirige.
Aos domingos a indumentária assume uma importância capital. O sacrifício da
missa é um evento sagrado, de modo que a ninguém ocorre a idéia de assistiAlo
com as vestes do diaAaAdia. A íntima relação entre o dispositivo ritual e essas
«máquinas de comunicar» que são as roupas sempre foi, de resto, ressaltada pelos
antropólogos.105 O caso de Nossa Senhora de Nazaré (ver seção 3.3) mostra que
as primeiras casas levantadas ao redor da capela não são «residências». Elas são –
inicialmente, pelo menos – um mero abrigo onde as pessoas vindas de longe para
a celebração recolhem seus pertences e onde podem trocar de roupa «para decenA
temente assistirem no templo».106 Esta preocupação era generalizada entre os caA
tólicos, independente de etnia ou condição social. Em princípios da década de
1720, um certo capitão Matias Barbosa ia à missa com sua consorte índia «calA
çada, bem vestida de manto e com outras escravas que os acompanham».107 Nuno
Marques Pereira narra as dificuldades da esposa de um fazendeiro em fazer com
que suas escravas assistissem às celebrações. Elas recusavamAse a fazêAlo sem
sua senhora, e, «chegando a irem, há de ser com todo o preparo e roupas, como as
mais escravas de suas vizinhas».108 Burmeister nota que, no dia do Senhor, em
Congonhas, «o grande número de pessoas elegantemente vestidas surpreende, e
pensamos encontrarAnos numa feira européia. Mas a ilusão não dura. No dia seA
guinte tudo muda: calças rôtas, sapatos gastos, saias sujas e remendadas e chaA
117 Maffesoli, Michel. «Le rituel dans la vie sociale». In: Lambert, JeanAClarence (dir.).
Roger Caillois. Témoignages, études et analyses. Paris: De la Différence, 1991, pp.
366A372.
118 Para Roberto da Matta o rito é «veículo da permanência e da mudança. Do retorno
à ordem ou da criação de uma nova ordem, uma nova alternativa». Da Matta, Car
navais, malandros e heróis, p. 33.
119 A expressão é de Luckmann, Thomas. «Riten als Bewältigung lebensweltlicher
Grenzen». In: Schweizerische Zeitschrift für Soziologie (3) 1985: 535A550, p. 544.
120 DHGMG, p. 44.
121 Chamon, Carla Simone. «O bem da alma: a terça e a tercinha do defunto nos inA
ventários do século XVIII da comarca do Rio das Velhas». In: VH (12) 1993: 58A
65.
198
4.3.1 CapelaApatrimônioAarraial
Os pedidos de autorização para a construção de capelas permitemAnos visualizar
alguns aspectos da religião popular da Minas antiga que nem sempre podem ser
percebidos por meio de fontes como visitas pastorais, testamentos, devassas ou
processos inquisitoriais. DeveAse ter em mente que os autores destes pedidos haA
bitam regiões afastadas das sedes paroquiais. Neste estágio a sua vida religiosa é,
por assim dizer, «livre». Claro está que o próprio fato de terem de se submeter aos
mecanismos de controle oficiais mostra que esta autonomia não tem como se
manter indefinidamente. A religião popular vive, pois, num equilíbrio dinâmico
entre os constrangimentos institucionais e a fidelidade às suas próprias práticas e
representações. Com a realização mais ou menos freqüente de missas na capela
essa relação de forças ainda não será substancialmente alterada.
Mesmo quando o arraial cresce e se torna sede paroquial, novas capelas contiA
nuam a surgir. Este aumento do número de templos se deve basicamente a dois
fatores. O orago da matriz, que na gênese do arraial simbolizava a unidade de
126 Citemos apenas um exemplo entre muitos. Tinhorão, referindoAse aos negros braA
sileiros, afirma existir entre eles uma «tendência para a integração no catolicismo,
levada sempre mais pelas exterioridades do culto do que pela assimilação dos
conceitos teóricos da fé (...)». Tinhorão, José Ramos. Os negros em Portugal. LisA
boa: Caminho, 1988, p. 139 (grifo nosso).
127 Para uma discussão mais detalhada, ver Da Mata, «Religionswissenschaften e críA
tica da historiografia da Minas Colonial», pp. 50A51; Soeffner, Gesellschaft ohne
Baldachin, p. 30; e Maffesoli, «Le rituel dans la vie sociale», pp. 369A370.
128 Gehlen, Arnold. Urmensch und Spätkultur. Bonn: Athenäum, 1956, p. 27. Esta
tendência, típica de sociedades tradicionais, parece ter sido levada à sua expressão
máxima na China antiga. Os chineses, diz Granet, «não crêem que a alma dê vida
ao corpo; antes, diríamos, acreditam que a alma só aparece após um enriqueciA
mento da vida corporal». Granet, O pensamento chinês, pp. 243A244.
200
todo o grupo, tem de dividir esta função com outros oragos à medida em que o
núcleo se estabiliza e cresce em população. O que está em questão, neste caso, é
menos um processo de polarização que o reflexo do caráter multifacetado da próA
pria devoção popular. Ao mesmo tempo, a complexidade crescente da estrutura
social do embrião de cidade pode também se manifestar por meio da progressiva
organização de distintos grupos organizados segundo critérios sociais, étnicos e –
last but not least – religiosos: as irmandades. Não nos ocuparemos com elas neste
trabalho, haja vista os inúmeros estudos feitos a respeito nas últimas décadas. O
que importa perceber é que a expansão da rede de templos mantém íntima relação
com a formação de novos bairros (muitas vezes por meio de um mecanismo
idêntico ao que deu origem à povoação) e o nível crescente de complexidade
morfológica do arraial. Uma vez atingido este estágio, a presença institucional da
Igreja começa a exercer uma influência cada vez maior sobre os distintos grupos,
o que significa que o espaço ocupado pela religião popular tende a diminuir numa
relação inversa à do avanço do processo de urbanização. Esta interessante dialéA
tica entre sagrado e produção do espaço vai de encontro ao modelo desenvolvido
pela geografia da religião. Dinâmica religiosa e dinâmica ambiental condicioA
namAse reciprocamente.129
Resumido o processo em suas linhas gerais, passemos agora à apreciação dos
casos concretos. Para tanto, nos utilizaremos de fontes eclesiásticas e nãoAeclesiA
ásticas. Como todas as terras do Brasil pertenciam ao padroado da Ordem de
Cristo, da qual o soberano português era o grãoAmestre, os pedidos de ereção de
capelas deveriam obter autorização não só junto à autoridade diocesana, mas
também junto à Coroa.130
Vejamos um caso típico. Em 29 de março de 1742, Alexandre Gomes de Souza
e o alferes João Ferreira da Silva escrevem ao bispo do Rio de Janeiro afirmando
ter «suas fazendas de roçar e minerar na freguesia da Conceição de Guarapiranga
(...) em distância da matriz quinze ou dezesseis léguas pouco mais ou menos, para
a qual não podem vir senão embarcados em canoa com grande risco de vida pelo
rio caudaloso, e nas ditas fazendas têm feitores e escravos (...) e os suplicantes
são homens casados e com grandes famílias que entre ambos têm perto de duA
zentas pessoas e também na dita paragem e sertão estão já situados muitos moraA
dores, e outros que de novo se vão situando, onde não podem comodamente ser
socorridos com os sacramentos nem satisfazer ao preceito de ouvir missa, e atenA
dendo os suplicantes aos ditos inconvinientes querem erigir uma capela no sítio
chamado São João com a invocação do mesmo santo [São João Batista] para o
que apresentam a escritura de patrimônio para a sustentação da capela e certidão
do reverendo pároco da sobredita freguesia».131
O fazendeiro Hipólito Gonçalves Barbosa, morador do caminho novo para o
Rio de Janeiro (comarca de São João delARei), requereu em 1787 ou 1788 autoriA
zação para fazer uma capela. Ele afirmava «ter família numerosa, muitos filhos e
escravos para cultivarem as terras que por sesmaria alcançou». Era sua intenção
pagar uma promessa a Nossa Senhora do Monte do Carmo por terAse curado de
uma «doença mortal». A promessa em questão consistia em «mandar fazer uma
capela de pedra e cal com seu patrimônio para um capelão».132
Depois de obter provisão em 1793 junto à Sé de Mariana, o capitão Manoel
Pereira Brandão, comandante das ordenanças em Queluz, pede permissão para
poder «celebrar e administrar os sacramentos necessários à sua numerosa família
em um passo, ou ermida adjacente às casas da sua residência». Feita de pedra e
cal, a ermida situavaAse em «lugar muito cômodo donde a sua família e outros
mais podem ouvir missa sem que saiam a lugar muito público». Brandão consiA
dera justo o seu pedido, uma vez que «no tempo de águas especialmente se faz
difícil à sua família e vizinhança satisfazerem ao preceito na matriz por ficar disA
tante».133
José Ferreira Santiago e outras pessoas dedicavamAse à mineração nas margens
do rio Santo Antônio (comarca do Serro Frio). Surgia assim, em fins da década de
1780, uma «nova povoação» desprovida porém do «pasto espiritual, pois que não
têm sacerdote nem altar». Os suplicantes afirmam terem filhos ainda por batizar,
«tudo isso pela grande distância em que ficam da igreja, tendo de atravessar os
caudalosos rios». Requeriam assim licença para erigirem uma ermida «à sua custa
na qual se dissesse missa e se administrassem os sacramentos». Sem o que
estariam «na triste situação de abandonarem os seus trabalhos».134 Em outra carta
enviada à Coroa (em 1786 ou 1787) lêAse o seguinte: «Dizem os devotos de São
Francisco de Paula que eles suplicantes erigiram ao mesmo glorioso santo uma
ermida na freguesia de Santo Antônio da Vila de São José (...), na qual se ajunta
concursos de povo [sic] ao santo sacrifício da missa; e porque os suplicantes deA
sejam muito fazerAlhe patrimônio e bonita capela», requerem autorização real.135
Estes casos retratam aspectos que se revelam recorrentes nas fontes pesquisaA
das, como a necessidade premente do sacrifício da missa e dos sacramentos, a caA
pela erigida individualmente como fruto de uma «graça» alcançada, a dimensão
coletiva da devoção popular e sua expressão a nível material/espacial por meio do
131 AEAM, pasta 54, gav. 1, arq. 1. TratarAseAia da primitiva capela de São João BaA
tista do Presídio? A distância entre Guarapiranga (atual Piranga) e Visconde do Rio
Branco sugere que sim.
132 APM (AHU), cx. 128, doc. 13 [20.01.1788].
133 APM (AHU), cx. 140, doc. 26 [27.06.1795].
134 APM (AHU), cx. 128, doc. 28 [06.03.1788].
135 APM (AHU), cx. 127, doc. 34 [29.10.1787].
202
vida, pois uma carta dos membros da Câmara do Tamanduá, com data de 1° de
junho de 1791, mostra que a capela do Senhor Bom Jesus de Matosinhos recebera
de Antônio Joaquim de Ávilla uma chácara «que renderá muito acima de vinte
mil réis». No que diz respeito a Ribeiro, os vereadores escrevem: «por vermos
que a sua vida exemplar se faz digna dãoAlhe a graça que implora para aquele
louvável voto, que é constante, e verdadeiro».144 Movida por sua «particular deA
voção à Virgem Santíssima», Tereza de Jesus prometeu alguns anos mais tarde
levantar uma capela dedicada a Nossa Senhora da Luz nos subúrbios do Arraial
do Tejuco «e fazerAlhe um decente patrimônio para sustentação do culto divino».
E isso, acrescenta ela, «não só em obséquio à Senhora, mas também em benefício
da suplicante e mais vizinhos, que nela muito desejam afervorar o culto».145
Fora do espaço das vilas e dos grandes arraiais, a razão principal para o apareA
cimento de uma casa de oração é a demanda pelo culto e pelos sacramentos. Por
vezes o inesperado torna premente uma necessidade religiosa que até então só
gozara de importância secundária na vida de um ou outro. A teodicéia do sofri
mento (Weber) é acionada. Uma desgraça a nível pessoal, uma doença, tudo pode
ser suportado – desde que o indivíduo não esteja privado dos meios de salvação.
Parece ser este o pano de fundo do requerimento feito em 8 de maio de 1804 por
Antônio Leite Ribeiro. Morador na sua fazenda do Ribeiro Fundo, na freguesia
de São João delARei, ele tem em mente fazer ali uma ermida por estar distante da
capela de Nossa Senhora de Nazaré, e além disso ter «numerosa família». Consta
de um dos documentos anexos que ele empregava em sua propriedade mais de 60
«agregados pobres». Em relatório feito em 12 de maio de 1804 pelo vigário resA
ponsável pela inspeção da ermida, lêAse que Ribeiro estava enfermo. O que indica
tanto a dificuldade de deslocamento até a capela mais próxima quanto o terror
causado pela perspectiva de uma morte sem os sacramentos.146
Os pedidos feitos coletivamente apenas confirmam em que medida o universo
das representações religiosas levava a uma progressiva transformação da paisaA
gem cultural da Minas antiga. Em 1805 ou 1806 Francisco Vieira Carneiro, João
Fernandes da Silva e outros moradores da freguesia de Pouso Alto, termo de
Campanha, informam que «com zelo católico» começaram a erigir uma capela
dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo numa paragem denominada RiA
beirão do Carmo. Os motivos «que os moviam a tão piedosa obra eram tão urA
gentes e fatais, quais as constantes inundações consecutivas à rigorosa inturmesA
cência e enchente do Rio Verde, por efeitos da qual não podem os suplicantes
senão em manifesto risco de vida congregarAse na igreja matriz, sendo essa a
razão porque o seu pároco lhes não pode administrar os sacramentos nas ocasiões
oportunas, e de última precisão, maiormente naquelas povoações que lhe ficam
na longa distância de mais de oito léguas, resultando daqui as lamentáveis conseA
qüências de morrer muitos daquela gente sem sacramentos, e ser enterrada em luA
gares profanos».147
A formação dessa rede de ermidas domésticas e capelas nem sempre era a gaA
rantia de que a população espalhada por fazendas ou arraiais passasse a gozar de
adequada assistência religiosa. É o que se pode notar de uma representação apreA
sentada em fins dos anos 1740 pelos aplicados das capelas de Nossa Senhora de
Conceição da Barra, São Gonçalo do Ibituruna, Nossa Senhora de Nazaré, São
Gonçalo do Brumado e Santo Antônio do Rio das Mortes pequeno148, todas filiais
da matriz de São João delARei. Devido à distância que os separava da sede
paroquial, «têm falecido muitas pessoas sem sacramentos sem que seja suficiente
o pagarem os suplicantes a capelães, porque estes não satisfazem a tudo, pela
parca conviniência que os suplicantes lhe[s] podem fazer, por também pagarem
ao seu reverendo pároco». Este, porém, «é pároco só no nome, e não no exercício;
vendoAse os suplicantes neste extremo, sem poderem possuir o bem e consolação
de suas almas».149 Os fiéis pedem então pela criação de uma freguesia no arraial
de Conceição da Barra, por ser o mesmo eqüidistante das demais capelas. Isso
somente viria a concretizarAse em 1825.
De que maneira a história do templo reflete a dinâmica de uma povoação,
mostraAo Catas Altas. O arraial teria surgido em 1703, e já em 1710 dispunha de
um vigário.150 No início da década de 1730, os seus moradores resolveram pedir
auxílio financeiro à Coroa a fim de concluir a construção da nova matriz. JustifiA
camAse com o argumento de que as duas primeiras igrejas paroquiais tinham sido
feitas exclusivamente às suas custas. A primeira em breve espaço de tempo reA
velouAse imprópria por ser muito pequena. A segunda, feita de madeira, enconA
travaAse de tal modo arruinada que os próprios fregueses receavam adentráAla. A
comunidade inicia em 1731 construção de uma terceira matriz, desta vez feita de
materiais duráveis. O novo templo ficou orçado em 54.000 cruzados. Todavia os
moradores não se vêem em condições de arcar com todos os gastos «pela miséria
em que se acham de falta de ouro, várias contribuições, real donativo, várias irA
mandades,151 e despesas com capitãesAdoAmato para o seu sossego». O Conselho
Ultramarino determina que o provedor da fazenda verifique (por meio de uma viA
Testemunhos como este nos mostram até que ponto nossa história da religião tem
ignorado estas formas de religiosidade popular setecentistas. As inúmeras pesquiA
sas dedicadas às irmandades ou às práticas religiosas periféricas ou «desviantes»
pouco ou nada nos dizem a respeito do culto comunitário, cotidiano, espontâneo,
não enquadrado em termos institucionais, que se dava longe ou simplesmente à
margem das sedes paroquiais.
O direito à prática e à assistência religiosa é algo absolutamente evidente para
os homens da época. Nem mesmo os criminosos poderiam ser dele privados. Isso
fica claro numa representação enviada pela Câmara de São João delARei à Coroa
em 8 de julho de 1741. A construção da nova cadeia da vila fora concluída, porém
os presos encontravamAse impedidos de cumprirem com o preceito da missa. Em
vista disso, «alguns devotos se ofereceram para a ereção de uma capela, ou
oratório em lugar acomodado, para satisfazerem os presos o mesmo preceito». A
única condição imposta pelos doadores era de que o patrimônio em dinheiro
(6.000 réis anuais) da capela fosse constituído pela própria Câmara. Os oficiais
acham razoável a proposta: «Nós ascendendo a que a obra era pia, e proveitosa ao
bem das Almas, como também praticada na maior parte onde há cadeias, fizeA
mos o patrimônio debaixo da condição se Vossa Majestade o confirmasse, e por
bem houvesse».156 O Conselho Ultramarino aprova o pedido em 9 de maio de
1742.
157 Scarano mostra que as irmandades de Nossa Senhora do Rosário do Distrito DiaA
mantino tinham «nas casas para alugar a sua maior fonte de renda». Scarano, Devo
ção e escravidão, p. 70.
158 AEAM, arm. 24, cx. 5.
159 AEABH, cx. 502 (grifo nosso); DHGMG, p. 281.
160 AEAM, arm. 24, cx. 4.
161 DHGMG, p. 303.
208
sobredita fazenda (...) se acha uma capela onde está colocada a imagem da
Senhora Santana e sua sustentação lhe faz ele outorgante como com efeito
(...) lhe nomeava e dava em dote as terras compreendidas na sobredita faA
zenda (...) as quais terras entre capoeiras e matas virgens levarão de planta
quarenta e tantos alqueires (...) e que nas referidas terras faz ele outorgante,
certo a quantia de seis mil réis em cada um ano para adjutório dos paramenA
tos em o mais pertences à dita capela (...) para ele outorgante e seus sucessoA
res a entrarem em cada um ano com a sobredita quantia dos referidos seis
mil réis sem falta alguma para o que dito fica, cujo encargo passará de uns
para outros ditos sucessores que houverem a possuir a sobredita fazenda
onde se compreendem as terras acima doadas.»162
Em 21 de março de 1752 fezAse uma segunda escritura, provavelmente devido a
erros no estabelecimento dos limites das terras cujo rendimento deveria reverterA
se em benefício da capela. Além de Corrêa, assinam o documento Manoel André
Pinto e sua mulher Luíza Rodrigues Graça. A extensão do terreno é desta vez um
pouco menor, «30 alqueires pouco mais ou menos, entre matas virgens e capoeiA
ras». A efetiva doação de um terreno à capela com certeza se deu mais tarde; toA
davia ignoramos quando. Morro do Chapéu somente viria a adquirir o status de
distrito (de Queluz) em 1840 e de freguesia em 1874. Em 1897, segundo inforA
mação do vigário José Januário Carneiro, a matriz recebeu doação da terça parte
dos bens de Herculano Teixeira: 60 alqueires de terras no valor de 5 contos de
réis, entre as freguesias de Santo Amaro e Queluz.
Não sabemos quando surgiu o arraial do Redondo (hoje Alto Maranhão), mas é
certo que a constituição do patrimônio de sua capela deuAse em 14 de março de
1754. Nesta data Domingos de Magalhães e sua esposa, Rosa Perpétua do SaA
cramento, moradores daquele arraial, declaram «que para haver de se celebrar o
sacrossanto sacrifício da missa na capela de Nossa Senhora da Ajuda (...) lhe era
preciso consignarAlhe dote para guisamento e preparos à mesma». Pelo que comA
prometiamAse a dotáAla de «9.000 réis a cada ano para sua segurança da qual
quantia hipotecavam uma fazenda de lavouras com casas de vivenda e engenho
sito no rio do Jequeri».163
O quadro descrito num pedido enviado ao bispo de Mariana em 27 de março
de 1761 já nos é de certa forma familiar: o padre Domingos de Araújo e outros
moradores da freguesia da Barra Longa dizem viver com «suas famílias e agregaA
dos», «fábricas e escravaturas» a sete léguas de distância da sede paroquial e a
outros sete da freguesia de São Caetano. Por isso «passam os suplicantes com
suas famílias em contínua desolação da falta de pasto espiritual e [do] Santo SaA
crifício da Missa, [e] com excessivo trabalho saem a desobrigarAse na quaresma
de cada ano à dita capela mais vizinha, e com notório risco da salvação de suas
almas, e que para aliviarAlhes é necessário mandar carregar para fora dos ditos síA
tios os enfermos em redes para serem sacramentados e pelo (...) perigo de suas
169 A tese da «espontaneidade» foi defendida por Costa Porto: «A ‹povoação›, na ColôA
nia, se apresenta como fenômeno espontâneo, o fato material de se agruparem alA
gumas famílias em residências – fogos – com certa contigüidade e unidade formal,
mas sem nenhuma interferência do Estado». Porto, O sistema sesmarial no Brasil,
p. 127.
170 AEAM, arm. 24, cx. 3; grifos nossos. A autorização do cônego da Câmara EclesiA
ástica de Mariana data de 20 de março de 1765.
211
181 AEAD, cx. 102. Tanto o DHGMG (p. 76) quanto a EMB (vol. 24, p. 342) baseiamA
se nesta mesma fonte, sem contudo mencionáAla.
182 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., II, pp. 39A40.
183 Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, pp. 193A194.
184 DHGMG, p. 321.
185 AEAM, pasta 11AA/G. 1/A.2
216
foros anuais voltaria a ser posta em prática – o que demonstra que o patrimônio
rendera durante um período relativamente curto de tempo. Em carta de 31 de deA
zembro de 1895, o vigário Lourenço de Lucas esclarece à Cúria que «não é verA
dade que alguns dos meus paroquianos repugnam a se reconhecer foreiros; pelo
contrário, estão prontos a pagar». DigaAse de passagem que entre os foreiros enA
contavaAse Crispim Bias Fortes (governador de Minas entre 1894 e 1898). O terA
reno da capela foi medido no ano seguinte, e contaramAse então 108 foreiros.186
Às vezes o terreno do patrimônio era doado de uma só vez, por um ou mais
proprietários. Do contrário eram feitas doações sucessivas até que o «santo» detiA
vesse bens suficientes. É o caso da capela de Nossa Senhora das Mercês, na freA
guesia de Santa Cruz do Escalvado. A provisão para sua construção foi dada em
26 de janeiro de 1846, porém o patrimônio original (cuja extensão ignoramos) foi
posteriormente acrescido de um terreno doado pelos devotos. Este terreno origiA
nalmente pertencera a um escravo, de nome Ciríaco Martins Valadão, que o comA
prara em 1848 da mãe de seu senhor pela quantia de 40.000 réis. Em 11 de feveA
reiro de 1862, Valadão vendeu seu terreno (por 50.000 réis) a Felícia Clara de
Oliveira, que por sua vez o doou à capela das Mercês. Na mesma freguesia, em
18 de março de 1885, a capela de São Sebastião teve aumentado o seu patrimônio
em quatro alqueires, os quais estavam estimados em 200.000 réis.187 A capela de
São Sebastião do Grota (atual Grota, distrito de Jequeri) obteve seu patrimônio
em terras antes mesmo de dispor da provisão episcopal. Há referência a um alA
queire doado por Eliseu Fernandes da Silva e sua esposa, e a uma segunda doação
em 30 de setembro de 1877: «Digo eu abaixo assinada Dorselina Brás Batista que
entre (...) uma parte de terra que me cabe por herança de minha falecida mãe (...)
de cuja parte de terra dou ao mártir São Sebastião terreno de uma quarta no lugar
denominado Grota».188
A formação de São Sebastião da Mata (atual Eugenópolis) foi singular. O pioA
neiro na região teria sido Antônio Rodrigues dos Santos, que levantou em sua faA
zenda de São Manoel uma capelinha com esta mesma invocação. Consta que
chegaram a surgir casas ao seu redor, mas após a morte de Antônio dos Santos a
propriedade foi dividida entre seus herdeiros, e o núcleo retrocedeu. Em 1848, a
fazenda de São Manoel foi comprada por Luíza Maria de Jesus. DecidiuAse mais
tarde levantar nova capela no mesmo lugar da anterior, desta vez tendo São SeA
bastião por orago. O procedimento, em si, nada tem de excepcional: quando uma
igreja passava a desfrutar de um novo benfeitor podia realizarAse a mudança de
orago.189 Aos poucos o núcleo retomou fôlego, com novas casas surgindo ao reA
dor da igrejinha. Em 1865, finalmente, Joaquim Batista de Figueiredo e outros
proprietários doaram um terreno de 12 alqueires para patrimônio de São SebasA
190 AEAM, arm. 24, cx. 3; EMB, vol. 25, pp. 114A115. Não nos foi possível identificar
ao certo quem foi o responsável (ou responsáveis) pela reconstrução da capela. Na
EMB sugereAse que tenha sido a própria Luíza Maria de Jesus, enquanto que numa
carta do vigário de São Miguel, datada de 10 de maio de 1893, aparecem os nomes
de Manuel Luiz Pereira Grugel e Feliciano Mariano dos Prazeres.
191 AEAM, arm. 24, cx. 2.
192 AEAM, arm. 24, cx. 4; EMB, vol. 27, p. 176.
218
ter tido aquela data como ponto de partida, já que não se faz qualquer menção a
ele nas duas escrituras. Treze anos mais tarde o arraial estava formado, e o patriA
mônio foi aumentado: o casal Simplício José de Almeida e Sebastiana Maria de
Alcântara vendeu ao vigário um «pedaço de terras nas vertentes deste arraial que
divisam por um lado com as terras do patrimônio e pelo outro com terra dos venA
dedores (...) para o patrimônio de Nossa Senhora do Amparo e cujo rendimento
será aplicado à igreja da mesma santa».193
Na análise dos dados acima o pesquisador pode pode ser levado a crer que a
tríade capelaApatrimônioAarraial desfrutava de uma espécie de autonomia em relaA
ção à percepção e às intenções dos atores sociais. Como se necessidades espirituA
ais e normas eclesiásticas simplesmente guiassem os indivíduos. Um grupo de
fiéis precisava de uma capela a fim de assistir ao culto, receber o «pasto espiriA
tual» e os meios de salvação. A constituição do patrimônio seria uma mera conA
seqüência de exigências eclesiásticas; e a formação do arraial, por seu turno, uma
conseqüência da conseqüência. Na verdade as coisas não eram assim tão simples.
Não nos esqueçamos de que o patrimônio sempre pôde ser constituído em diA
nheiro. Se quase sempre ele o era em terras é porque os fazendeiros preferiam
esta segunda modalidade. Se o instituidor de uma capela pretendesse evitar que a
mesma deflagrasse o processo de protoAurbanização, bastava dotáAla de 6.000 réis
anuais. De maneira que, fora das circunstâncias onde predominou a mineração ou
a ação policialAmilitar do Estado, não houve arraial possível sem patrimônio em
terras – sem um espaço sagrado associado ao templo.
Neste ponto, é preciso fazer um reparo importante a Sérgio Buarque de HoA
landa. Para ele, «a cidade que os portugueses construíram na América não é proA
duto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza»; nossas cidades não
seriam fruto de um «ato definido da vontade humana».194 Este juízo se amparava
numa contraposição dicotômica do modelo das cidades coloniais espanholas e
portuguesas, já convinientemente criticada por Roberta Marx Delson em seu esA
tudo sobre cidades planejadas no Brasil Colonial.195 Mas não é necessário que se
chegue tão longe. Mesmo os arraiais nunca foram estruturas totalmente «espontâA
neas», seja no que se refere à sua gênese seja no que se refere à sua organização
espacial.
O problema para o historiador reside no fato de que o desejo de se promover a
protoAurbanização por meio de capelas e patrimônios dificilmente se manifesta
nas fontes. Afinal, não havia razões para isso: ao dirigirAse a um bispo ou à CoA
roa, um indivíduo ou grupo de moradores deveria pedir permissão para levantar
um templo, mas não para dar início a uma povoação. Ainda assim alguns pedidos
de provisão ou escrituras de patrimônios permitem perceber que a formação de
193 AEAM, arm. 24, cx. 1. Baseado no Cônego Trindade, Barbosa atribui a primeira
doação a Domiciano José da Fonseca (DHGMG, p. 24). Este fora, na verdade, um
mero arrendatário das terras pertencentes aos doadores.
194 Holanda, Raízes do Brasil, pp. 76, 62.
195 Delson, New towns for Colonial Brazil.
219
uma povoação sempre foi um «ato definido da vontade humana». Foi o que puA
demos observar no caso do arraial setecentista de São José do Chopotó. Vejamos
outros exemplos.
O primeiro deles diz respeito à gênese da atual cidade de Matipó. Depois de
obter uma graça de São João Batista, João Fernandes dos Santos decidiu «pagar a
promessa» que assumira perante o santo de sua devoção: erigirAlhe uma capela. O
termo de doação do patrimônio, datado de 28 de outubro de 1876, é assinado por
ele e sua mulher Antônia Valeriana da Silva:
«(...) doamos de nossa livre e espontânea vontade para fundação de um ar
raial, cinco e meio alqueires de terras de cultura, (...) dentro desta minha faA
zenda no lugar denominado São João Batista declarando que destes cinco
alqueires e meio um é grátis para os povos e quatro e meio [para] quem quiA
ser edificar dentro deste terreno.»196
O segundo exemplo trata da formação do embrião de São Domingos (atual MisA
sionário). Em carta ao bispado de Mariana em 1° de outubro de 1884, Francisco
Antônio de Souza Barros informa que concluíra uma capela dedicada a São DoA
mingos de Gusmão em sua fazenda. Junto dela, o fazendeiro fizera também um
«cemitério murado de pedra». A capela estava dotada, assegura ele, de «algum
terreno» para patrimônio. Ao que parece, a dimensão deste patrimônio não era das
mais avantajadas, pois numa escritura de 20 de novembro de 1891 lêAse que
Francisco da Costa Barros comprou um alqueire e meio de «terra de cultura» a
fim de doáAlo à capela, assim como para a «criação do arraial de São Domin
gos».197
O terceiro exemplo é o da capela do Senhor Bom Jesus do VauAAçu, ponto de
rotação em torno do qual formouAse o arraial de Alto VauAAçu (atual Padre FelisA
berto). Curiosamente, a doação do patrimônio antecedeu ali a construção da
capela. A escritura demonstra o desejo explícito de Antônio Luiz Martins de CarA
valho em deflagrar o processo de protoAurbanização. Em 22 de junho de 1898,
cedeu ele três alqueires
«ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos a cujo santo fica de hoje em diante
pertencendo esse terreno para seu patrimônio onde o povo poderá erigir
igreja, fundar qualquer estabelecimento de caridade, de instrução pública asA
sim como casas particulares e todo edifício necessário para um bom arraial
(...).»198
A capela foi construída, mas por algum motivo o arraial não se desenvolveu de
imediato. Uma segunda escritura, com data de 21 de novembro de 1914, estipuA
lou a doação de mais um alqueire e três quartos de terras «ao Senhor Bom Jesus e
sua capela». Os doadores, Maria Luiza Fialho, José Antônio de Miranda e sua
mulher, declaram que nas ditas terras «se poderá erigir igrejas, estabelecimentos e
instituições fiéis, fundar hospitais, casas de instrução, casas particulares, fábricas,
maquinismos, ruas, praças e outros melhoramentos indispensáveis a uma boa
vila».
São Sebastião do Pirapitinga (hoje Pirapitinga, distrito de Catas Altas da NoA
ruega) deve sua formação à ereção de uma capela por José Gomes da Silva. O
patrimônio foi doado em 31 de julho de 1888, e media «um alqueire e meia quarta
de terras» localizadas «no centro da pequena povoação denominada Pirapetinga,
onde já vários têm feito suas casas». NoteAse que a formação do grupo de casas
em torno da capela iniciouAse antes da doação do patrimônio. Mas isso só pôde
ocorrer porque o proprietário do terreno não se opôs. De toda forma, trataAse de
uma situação transitória. Somente a constituição do patrimônio em terras garante
o direito dos foreiros de se instalarem nas proximidades da capela e ali fixarem
residência.199
Um pedido de ereção de capela permiteAnos rastrear a préAhistória de Santa
Filomena (distrito de Santana do Manhuaçu). Em 24 de abril de 1898, enviouAse a
Dom Silvério Gomes Pimenta, bispo de Mariana, a seguinte carta: «Desejando os
habitantes do córrego Taquaruçu nesta freguesia de São José do Barroso [atual
Paula Cândido], edificar uma capela à gloriosa Santa Filomena em um patrimôA
nio de seis alqueires de terras, doado à mesma santa na fazenda pertencente ao
finado Padre Francisco Valente, vêm por esta requerer a Va. Exa. a competente
licença e bem assim autorização ao vigário desta freguesia para benzer a dita caA
pela depois de ultimada. O referido patrimônio dista mais de duas léguas da sede
da freguesia (...)».200
Como se pode notar, a tríade capelaApatrimônioAarraial é de fundamental imA
portância para a compreensão da formação da rede urbana mineira. Quanto mais
porque este tipo de interação entre sagrado e protoAurbanização foi um processo
de longa duração, tendo se extendido do setecentos até o século XX adentro.
Mencionemos, a título de ilustração, o caso de São Sebastião de Santa Rosa,
germe da atual cidade de Paiva. Por volta de 1906 uma violenta epidemia atingia
aquela porção da Zona da Mata. João Ferreira de Paiva, rico fazendeiro da região,
prometeu então a São Sebastião que fundaria um arraial caso a sezão fosse debeA
lada. A graça foi obtida, e Paiva mandou levantar um grande cruzeiro que, posteA
riormente, se mandou transladar a um local chamado Santa Rosa, onde o fazenA
deiro havia adquirido um terreno para patrimônio e início do arraial. Em 8 de
julho de 1907 realizouAse a primeira missa ao ar livre no sítio onde ergueuAse,
mais tarde, a capela de São Sebastião.201 Em 1909, seu patrimônio media cerca
de oito alqueires. A capela era feita em madeira, e media 80 palmos de compriA
mento por 30 de largura e 28 de altura. Havia ainda no lugar o cruzeiro «com toA
210 Röhrich, Lutz. Sage. Stuttgart: Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1966, pp. 1A4.
211 Tillhagen, CarlAHerman. «Was ist eine Sage? Eine Definition und ein Vorschlag für
ein europäisches Sagensystem». In: Petzoldt, L. (Hrsg.) Vergleichende Sagenfor
schung. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969, pp. 307A318.
212 Bausinger, Hermann. Formen der «Volkspoesie». Berlin: Erich Schmidt, 1980, pp.
179A187; Röhrich, Lutz. «Erzählforschung». In: Brednich, R. W. (Hrsg.) Grundriß
der Volkskunde. Berlin: Reimer, 2001, pp. 527A531.
213 Costa, Alexandre de Carvalho. Lendas – historietas – etimologias populares e ou
tras etimologias respeitantes às cidades, vilas, aldeias e lugares de Portugal Con
tinental. Porto: Civilização, 1959, p. 21.
214 Flusser, «Brasilianische Städte», p. 262.
224
220 Sébillot, Le folk lore de France, pp. 123A124; HdA, 4. Band, p. 969.
221 Cunha, Os sertões, p. 95.
222 EMB, vol. 24, pp. 219A220.
223 EMB, vol. 25, p. 58.
224 EMB, vol. 27, p. 189A190.
225 EMB, vol. 26, p. 268.
226
costas, no qual trazia uma imagem de Santa Rita. Certa ocasião, ao verAse enA
fermo, ele fez promessa de doar a Santa Rita de Cássia um terreno e contruirAlhe
uma capela se recuperasse a saúde. Após sua morte (a variante de que dispomos
não esclarece se a «graça» foi efetivamente atingida), sua esposa, Genoveva da
Fonseca, doou em 1825 cerca de oito alqueires à santa – embrião da cidade de
Santa Rita do Sapucaí.226
Atraídos pela qualidade das terras, dois irmãos, Daniel e Joaquim Goulart, se
estabeleceram no sul de Minas. Isso por volta de 1820. Tempos depois um deles
ficou gravemente doente, e ambos fizeram promessa de doar a São João Batista
uma porção de terras entre os córregos do Lava Pés e da Chácara. Obtida a cura,
doaram os irmãos Goulart nada menos que 70 alqueires nos quais logo foi erigida
uma capela de São João Batista. Em 1825 um pequeno grupo de casas já se forA
mara ao redor do templo.227 Bom Jesus do Galho teria sido fruto de uma proA
messa feita por Adão Coelho por volta de 1880. Devido a uma grave moléstia, «e
não conseguindo cura na medicina», resolveu apelar para o Senhor Bom Jesus.
Depois de restabelecerAse, Coelho doou terras «para que se construísse o poA
voado».228 Não é outro o motivo central na saga de origem de Monte Alegre de
Minas. A família de Martins Pereira, a caminho de Goiás, teve um de seus memA
bros acometido por uma enfermidade. Tiveram, por esta razão, de fazer pouso
naquela parte do Triângulo Mineiro. Como devotos de São Francisco das Chagas,
fizeram o voto de doar uma gleba de terras e construir uma capela para este santo,
no caso de cura daquele familiar adoecido. Assim se deu, e com auxílio de outras
famílias – os Gonçalves Costa e os Martins de Sá – a promessa foi cumprida:
nasceu assim a povoação de São Francisco das Chagas do Monte Alegre.229
A epidemia volta a aparecer, relacionada à promessa, na saga da cidade de TeiA
xeiras. Em torno de 1840, encontravaAse Antônio Serafim Teixeira a caminho de
Ouro Preto para ali vender o produto de suas lavouras. No percurso, Teixeira foi
tomado pelo medo de contrair uma moléstia que então grassava na região. VendoA
se nestas circunstâncias, fez promessa a Santo Antônio de que lhe construiria uma
capela próxima ao local de sua residência. Tempos depois, a capela era erigida. O
povoado cresceu lentamente.230 O mesmo teria se dado em Raul Soares. Duas irA
mãs, depois de rogarem a São Sebastião pelo abrandamento de sezões, doaram
terras para patrimônio de uma igreja a ser construída em honra ao dito santo.231
Narrativas de estrutura semelhante (promessa → patrimônio/capela → arraial)
encontramAse ainda nas cidades de Botelhos, Conceição de Aparecida, Guapé e
Elói Mendes.232 Podemos consideráAlas uma mistura de sagas históricas e mitos
233 Goody («Religion and ritual», p. 151) critica este termo de Eliade, considerandoAo
inadequado para fins de sociologia religiosa comparada. Mas a recíproca não nos
parece menos verdadeira: pode o método sociológico ser de alguma valia na anáA
lise das sagas e mitos de origem? Como já apontava LéviAStrauss (Antropologia
estrutural, p. 239), estes relatos apresentam notáveis semelhanças apesar de se oriA
ginarem nos mais diversos contextos culturais e geográficos. Há fenômenos, como
a crença em milagres e visões, que não se prestam a uma explicação de tipo soA
ciológico tradicional (Benz, Die Vision, p. 642). A alternativa poderia estar num
diálogo mais intenso com a fenomenologia. Nesta perspectiva: Dupront, Du sacré,
pp. 44, 221; e Knoblauch, Religionssoziologie, pp. 35A38.
234 Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 375.
235 Pierson, Cruz das Almas, p. 147.
236 EMB, vol. 24, p. 202.
237 EMB, vol. 26, p. 75.
238 EMB, vol. 26, p. 199.
239 EMB, vol. 27, p. 387.
228
em regime de mutirão, uma capela no local em que o santo preferia ficar.248 Juiz
de Fora dáAnos outro exemplo. Quando se concluiu a nova capela (atual matriz da
cidade), em terras doadas por José Ribeiro de Resende, a imagem de Santo AntôA
nio deveria ser trazida da antiga capela do Caminho Novo. Assim se fez, procesA
sionalmente, «com grandes manifestações de fé e civismo». Durante a noite, poA
rém, a imagem voltou para seu antigo templo. DandoAse conta do ocorrido, os
fiéis realizaram nova procissão, trasladando o santo para a capela nova. Mais uma
vez, na noite seguinte, voltou a imagem para sua antiga capela. A solução enconA
trada foi original. Enquanto a reação comum consiste em submeterAse à vontade
do santo, os moradores de Juiz de Fora passaram a procurar a imagem em romaA
ria «até que, vigiada, custodiada dia e noite, adaptouAse à nova situação».249 Santo
Antônio foi coagido a aceitar a sua nova morada.
Na sua interessante análise comparada das sagas associadas a Nossa Senhora
na América Latina Colonial, Juliana Beatriz de Souza sugere que por meio destas
narrativas «a Igreja encontrava um meio de transformar o colonizado, potencialA
mente rebelde, em aliado, no fortalecimento da sua presença nas colônias ameriA
canas».250 Reduzir tais crenças ao produto de uma manipulação, da parte de quem
quer que seja, significaria ao nosso ver assumir uma atitude incompatível com a
lógica que parece mover o fenômeno religioso popular. Uma lógica à qual os cléA
rigos, em maior ou menor grau, têm de obedecer.251 Por outro lado, seria igualA
mente apressado excluir qualquer possibilidade de «manipulação».
Para Dupront, se as sagas são «cristalizações do imaginário coletivo, lentaA
mente elaboradas, ou ficções produzidas por eruditos com a finalidade de condiA
cionar ou excitar, não importa».252 De fato: a origem das sagas importa menos
que seu dinamismo próprio.253 Para a gente simples do campo, elas cumprem o
papel fundamental de (se assim podemos nos expressar) explicar o inexplicável.
Ao mesmo tempo, tais narrativas revelam algo da ambivalência que marca as reA
lações entre religião popular e religião oficial. As sagas «demonológicas» expriA
mem uma (ânsia de) comunicação direta com o sagrado, sem a intermediação
institucional da Igreja.254 Eis que, num segundo momento, constróiAse a capela. A
médio ou longo prazo, isso implica numa rotinização – ao menos relativa – do caA
risma. Esta curiosa dialética também se dá a ler numa perspectiva geográfica. As
transformações que as representações coletivas geram no espaço reincidem sobre
o campo religioso, alterando parcialmente a sua lógica inicial (sagrado «selvaA
gem» → capela/sacerdote → domesticação do sagrado). Ou seja: «à medida em
que utilizam e moldam espaços, os grupos religiosos também moldamAse a si
mesmos».255
Os eventos que se relacionam à origem de uma povoação podem assumir um
grau de sacralidade ainda mais elevado, como as visões e os milagres. Em Santa
Bárbara de Canoas (atual Guaranésia), embora a capela primitiva tenha sido feita
à custa da devoção de José Maria Uchoa, consideraAse que o que influiu decisiA
vamente na formação do arraial foi a providência divina. Na véspera da inauguraA
ção do templo, um grupo de homens trabalhava na derrubada da mata onde hoje
se localiza a cidade. Ao tentar escapar da queda de um tronco, um dos trabalhaA
dores caiu ao solo e, aterrorizado, gritou por Santa Bárbara. Eis que a árvore, arA
rastada na queda, teve sua raiz violentamente projetada para fora, atirando para
longe o pobre homem e salvandoAo da morte certa. «Seus companheiros então se
prosternaram e murmuraram: Milagre! Milagre! de Santa Bárbara!» Celebrada a
primeira missa no dia seguinte, José Martins e Manoel Fernandes Varanda decidiA
ram doar patrimônio a Santa Bárbara, a fim de nele fazer um arraial.256 A narraA
tiva comprova algo que nossa documentação já havia mostrado. Longe das áreas
mineradoras, da ação colonizadora do Estado ou das concorridas rotas de comérA
cio, o arraial só se forma após a doação do patrimônio que compõe o espaço (saA
grado) da futura povoação.
A saga de origem de Lambari tem uma trama um pouco mais complexa. Em
meados do século XIX, a área atualmente ocupada pela cidade era coberta por
uma floresta. Sua vegetação era tão densa que nem mesmo os raios solares conA
seguiam ali penetrar.257 Perdida na imensidão da mata existia uma fonte de águas
milagrosas, conhecida somente por um velho escravo mina de propriedade de um
fazendeiro de Campanha. Antônio Dantas era o seu nome. Naquela época, chegou
a Campanha um rico fazendeiro e criador, Antônio Alves Troncoso. Vinha ele
254 Ver Espírito Santo, Moisés. Origens orientais da religião popular portuguesa. LisA
boa: Assírio & Alvin, 1988, p. 26; e Dupront, Du sacré, p. 430.
255 Hoheisel, Karl. «Religionsgeographie und Religionsgeschichte». In: Zinser, H.
(Hrsg.) Religionswissenschaft. Eine Einführung. Berlin: Dietrich Reimer, 1988.p.
125.
256 EMB, vol. 25, p. 178.
257 «A floresta escura tem um caráter numinoso», lembra van der Leeuw, Phänomeno
logie der Religion, p. 370.
231
com sua filha Cecília à vila, para que um famoso médico ali residente pudesse
curáAla de uma grave enfermidade. Mas as luzes da ciência não reestabeleceram a
saúde da jovem. Numa venda de Campanha, Tancredo – noivo de Cecília – conA
tava a pessoas ali presentes sobre os sofrimentos de que ela era vítima, até que o
escravo Dantas, aproximandoAse, falouAlhe da fonte milagrosa. Decidiram todos
seguir até o local designado, onde, depois de tratarAse com a água durante 20 dias,
Cecília recuperouAse totalmente. Seu pai, em agradecimento pela graça obtida,
fez construir ali uma capela dedicada a Nossa Senhora da Saúde. Nesta singela
casa de oração celebrouAse, pouco tempo depois, o casamento de Tancredo e CeA
cília. Ao seu redor, nasceu a povoação de Lambari.258
Estas narrativas apresentam uma visível semelhança com as sagas de origem
dos mais importantes centros de romarias da Minas antiga. A gruta de Nossa SeA
nhora da Lapa, que Carrato diz ter sido o mais antigo santuário de Minas, foi desA
coberta por um garoto que ali penetrara à procura de um coelho. Dentro da gruta,
encontrou ele uma imagem da Virgem. O povo, ao saber do ocorrido, para lá se
dirigiu e, colocandoAa num andor, transportou a imagem até a matriz. À noite,
Nossa Senhora voltou à sua gruta, e o fato foi interpretado como sinal de que ali
deveria ser ela venerada.259 Foi depois de curarAse de uma doença que Feliciano
Mendes se dispôs a erigir o santuário do Senhor Bom Jesus em Congonhas do
Campo. A visão da Virgem onde haveria de se construir o eremitério da Serra da
Piedade; as marcas deixadas por São Tomé em pessoa numa gruta do sul de MiA
nas; a imagem encontrada por um escravo em Conceição do Mato Dentro: a
identidade entre o elemento popular e este tipo de manifestação do sagrado é eviA
dente. O parentesco entre os grandes centros de romarias e inúmeros de nossos
embriões de cidade, assentados em seus patrimônios, é flagrante. Concebidos
como espaços sagrados, eles devem sua origem a um transbordamento da transA
cendência.260 Santuário e arraial «pulsam» regularmente; um por ocasião das
grandes festas que são os jubileus, o outro por ocasião do culto dominical. Uma
vez mais podeAse dizer que a diferença aqui é de grandeza, não de natureza.
Se estes aspectos da religião popular escapam a toda e qualquer tentativa de
interpretação pautada por aquilo que EvansAPritchard ironicamente chamou me
tafísica sociológica, é preciso reconhecer que nem tudo nas sagas está desconecA
tado da realidade social.261 Basta dizer que são quase sempre indivíduos socialA
mente marginalizados (pescadores, lavradores, escravos) os que estabelecem a
ponte entre o cotidiano e o transcendente. Dificilmente aquele que encontra a
imagem santa, que tem a visão, que desfruta de um acesso privilegiado ao numiA
noso, é o membro das camadas privilegiadas. Para o imaginário popular existe
uma «afinidade eletiva» entre a(s) divindade(s) e os excluídos deste mundo.
Como disse Antônio Xavier, pai de duas das moças que afirmam receber mensaA
gens da Virgem na Vila de Piedade dos Gerais: «Deus é sempre dos pobres e é por
isso que ele, junto com sua mãe, escolheu este lugar».262
atentar para o fato de que a certidão do arruador não tem por objetivo explicar
minuciosamente qual é o procedimento adotado. Ela é um mero registro.
Que o processo podia eventualmente atingir um considerável grau de compleA
xidade, mostraAo o próximo exemplo. Erigida em fins da década de 1760, a caA
pela de Nossa Senhora da Ajuda de Três Pontas seguramente teve seu primeiro
patrimônio constituído em dinheiro. Uma sesmaria de meia légua quadrada, abarA
cando toda aquela redondeza, foi obtida por Bento Ferreira de Brito junto ao
governador da Capitania em 24 de setembro de 1793. A demarcação da área reA
servada para «logradouro da capela» (o que significa que se trata de um daqueles
casos em que se doa não o terreno em si, mas seu rendimento) fezAse simultaneA
amente à delimitação da sesmaria, em 3 de outubro de 1794.
Joaquim Nunes Corrêa e Manuel Fernandes Teixeira foram os medidores noA
meados. De comum acordo, decidiuAse colocar o eixo de referência (o pião)
numa serra, a certa distância da capela. Feito de pedra, este pião tinha quatro cruA
zes, cada uma delas voltada para a direção na qual deveriam seguir os medidores.
UtilizouAse uma corda de linho fino com extensão de 15 braças (33 m.). Uma vez
instalado o pião, partiram os medidores rumo sudeste, e contaram 25 cordas «para
logradouro do arraial» (que já existia num declive próximo ao córrego da Ortiga).
Neste local foi instalado um marco de pedra com uma cruz voltada para o pião.
Seguiram adiante mais nove cordas, até as margens do córrego da Ortiga, onde
colocaram um marco de madeira «em que lavraram uma cruz virada para o pião».
Retornando ao ponto de partida, caminharam rumo noroeste e mediram 25 cordas
«para logradouro da dita capela». Assentaram o marco de pedra com uma cruz
voltada para o pião, e, depois de percorrer mais 91 cordas na mesma direção, finA
caram um marco de «pau de jacarandá». Voltaram ao pião e de lá seguiram 25
cordas rumo sudoeste «para logradouros» da capela. Este terceiro marco de pedra
foi colocado no alto da serra, pouco atrás do templo. Continuando a medição,
percorreram 50 cordas, ao fim dos quais colocouAse um marco «de pau nativo».
Voltaram mais uma vez ao pião e tomaram direção nordeste. Ao fim das primeiA
ras 25 cordas «para logradouro da capela» colocaram o marco de pedra. Depois,
outras 50 cordas foram contadas e o último marco de «pau nativo de jacarandá»
foi instalado.268 Portanto o quadrilátero central ocupava uma área de 50 x 50 corA
das (272,25 hectares), dividida em quatro partes. Dos três quartos destinados à
capela, um quarto ficou reservado para o doador. O restante (25 x 25 cordas ou
68,06 ha.) foi destinado ao arraial. A sentença do juiz de sesmarias, datada de 14
de outubro de 1794, dava a Bento Ferreira de Brito direito de posse sobre a sesA
maria (área total: 2.597,265 ha.), «salvo as do quarto também medido e demarA
cado reservado para logradouros do Arraial».269
Van der Leeuw insistiu, e com razão, que a agricultura e a fundação de uma ciA
dade estão intimamente relacionadas entre si no plano simbólico.273 O costume
do uso do arado para delimitar a área do bastide medieval também parece ter se
transmitido à Minas antiga, onde ele aparece de forma evidentemente mais tosca.
A rigor, tanto o patrimônio quanto o bastide são «plantados».274 Ao estender o
olhar sobre a área do patrimônio, a pessoa que dele se apossa faz lembrar o proA
cedimento dos áugures romanos. O sacerdote sobe a um ponto alto do terreno (o
templum), voltaAse para o oriente e divide seu campo de visão em quatro partes.
As manifestações que aí se verificarem (raios, vôo de passaros, etc) fornecerão
elementos para o oráculo.275 Toda a realidade circunscreveAse ao que se situa
vado a crer que toda a sesmaria tinha sido doada à capela, o que é desmentido pelo
próprio atestado de medição. A configuração «anômala» do embrião de Três Pontas
– o arraial se desenvolveu a certa distância da capela – provavelmente foi causada
pelo fato de que esta última estava num sítio elevado e sem espaço suficiente ao
seu redor. O mesmo ocorreu com o arraial da capela de Santana de São João
Acima, filial da matriz de Pitangui. Trindade, Visitas pastorais, p. 142.
270 «A sacralidade dos marcos e sua irremovibilidade (termini em Roma, kudurru na
Babilônia) é conhecida e se prolonga até a era moderna». Van der Leeuw, Phäno
menologie der Religion, p. 377.
271 Omegna, A cidade colonial, p. 71.
272 ANEDC (19) 1957: 12. Grifo nosso.
273 Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 376.
274 Heers, Jacques. La ville au Moyen Âge. Paisages, pouvoirs et conflits. Paris:
Fayard, 1990, p. 130.
275 Müller, Die heilige Stadt, p. 45.
236
dentro deste horizonte visual – no interior do qual ela é, por assim dizer, fenomeA
nologicamente «reduzida».
Inácio Correia Pamplona escolheu, em 1769, «um lugar delicioso e aprazível»
para fundar um arraial. Mas para o ato de posse pareceuAlhe melhor subir uma
serra, para «apreender tudo quanto a vista alcançasse do alto dela». Ali chegando
com sua comitiva, mandou tocar os tambores e reunir todos os interessados. Em
seguida,
«fizeram em um pau de sucupira do campo quatro cruzes e mandou o Senhor
Mestre de Campo armar um altar ao pé do dito pau, e depois de postas nele
as Santíssimas Imagens de Nosso Senhor e Nossa Senhora, o reverendo caA
pelão mandou por a todos de joelhos, e que rezassem uma Ave Maria e uma
Salve Rainha a Nossa Senhora para que prometesse que, desfeito aquele ato,
se nos seguisse a todos em bom sucesso, o que assim se fez com toda a deA
voção. Depois disto acabado, mandou o Senhor Mestre de Campo tocar
trompas, flautas, violas e rebecas (...), acabado isso disse ao soldado José
Francisco Serra, em voz alta, que o Senhor Mestre de Campo estava em ato
de posse naquele lugar (...).»276
276 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...». In: Anais da Bibli
oteca Nacional (108) 1988, pp. 77A78.
277 Sobre o papel das cruzes, ver Martin, Hervé et Martin, Louis. «Croix rurales et saA
cralisation de l’espace». In: Archives de Sciences Sociales des Religions 43(1)
1977: 23A38.
278 EMB, vol. 24, pp. 61A62.
279 EMB, vol. 24, p. 390.
237
A existência desta prática é confirmada por uma provisão de Dom Frei Manoel da
Cruz, datada de 3 de novembro de 1753:
«Fazemos saber que (...) nos convém a dizer o Coronel Miguel Alves Pereira,
administrador da Capela de Nossa Senhora da Conceição do Suassuaí da
Matriz do Santo Antônio do Ribeirão de Santa Bárbara, havemos por bem de
lhe mandar passar a presente nossa provisão, pela qual gozará do privilégio
de padroeiro e lhe concedemos a si e a seus sucessores, sendo brancos
legítimos, o jus de nomear para capelão de sua capela sacerdote secular,
sendo por nós aprovado; com a cláusula, porém, se fazer à sua custa todas as
obras que forem necessárias na dita capela.»289
Outros desfrutaram do mesmo privilégio. Antônio José de Abranches decidira leA
vantar uma capela dedicada a Nossa Senhora Mãe dos Homens na sua Fazenda da
Costa da Mina, situada a quatro léguas da matriz da Borda do Campo. A capela,
diz ele numa carta de 27 de novembro de 1789, seria dotada de fábrica e patrimoA
niada «à sua própria conta, sem que alguns paroquianos, que ficavam meus viziA
nhos, para as despesas concorressem». Depois de concluídas as obras, Abranches
estabeleceu um capelão com 120.000 réis de côngrua para celebrar para sua faA
mília, além de colocar à sua disposição um cavalo «para o mesmo igualmente
acudir aos paroquianos mais vizinhos». O fazendeiro tinha plena consciência da
estreita relação entre a necessidade de assitência religiosa e o efetivo povoamento
naquelas regiões não diretamente afetadas pela lógica do extrativismo mineral:
«bem visível é a urgência que havia de capelão cura naquele sítio, sem o qual seA
ria o mesmo despovoado e ermo». De fato, ali se formou um arraial, hoje localiA
dade de Correia de Almeida. Ao fim de sua longa carta, Abranches fazia seu
requerimento à Coroa:
«E como a vós do ponderado pareça justo, que as providências internas têm
confirmação, e que o suplicante deve gozar do privilégio de padroeiro da caA
pela e oratório independente do pároco da matriz, assim como se tem conceA
dido a outros padroeiros.»290
Manoel Pereira Guimarães foi padroeiro da capela de Nossa Senhora da ConceiA
ção de Catas Altas da Noruega, erigida em 1727.291 A capela de Santo Antônio do
Calambau, em torno da qual cresceu a cidade de Presidente Bernardes, foi benta
em 10 de janeiro de 1775. O patrimônio foi doado por João Cabral da Silva, mas
Ana Cabral da Câmara é que se tornou a padroeira da capela. Em Cocais, a capela
de Nossa Senhora do Rosário foi fundada pelos irmãos Antônio Furtado Leite e
João Furtado Leite, que tornaramAse seus padroeiros. Em 1° de fevereiro de 1755,
obteve Ana Maria do Nascimento provisão para erigir uma capela a Nossa
Senhora da Conceição na sua fazenda do Rio Grande. E obteve também o
privilégio de tornarAse padroeira da mesma. Na freguesia de Sabará, José RodriA
gues Soares e sua esposa Teodora Teixeira de Souza doaram o patrimônio da caA
pela do Rosário em 1765 e 1766. José Rodrigues foi o padroeiro. A prática se
extendeu até princípios do século XX. Em Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto,
Carlos Wigg e sua mulher tornaramAse padroeiros da paróquia de Nossa Senhora
de Calastróis – isso em 1918.292
A possibilidade de um fazendeiro tornarAse padroeiro aparentemente dá força à
tese segundo a qual houve um «catolicismo patriarcal» no Brasil colonial. O amA
biente típico deste subAtipo de catolicismo seria o engenho de açúcar. Mas a julA
gar pela exposição de Hoornaert, onde há uma capela associada a uma casaA
grande e um capelão dependente do seu proprietário, aí existe «catolicismo paA
triarcal». Nestas circunstâncias, o espírito da religião cristã sofreria uma espécie
de deturpação (Hoornaert chega a usar o termo «patológico»). Em resumo, no
«catolicismo patriarcal» o sacerdote é um mero funcionário a serviço dos interesA
ses do fazendeiro. O objetivo básico é sacralizar a ordem social estabelecida e
«impedir o nascimento de uma consciência de comunidade» entre os mais poA
bres.293 Em Minas, ainda segundo o mesmo autor, terAseAia desenvolvido uma
modalidade à parte: o «catolicismo mineiro». Ao invés de ser o produto da ativiA
dade dos missionários portugueses, o «catolicismo mineiro» representava os inA
teresses de comerciantes e funcionários da Coroa. Uma forma de religiosidade,
pois, «fundamentalmente colonialista».294
Ora, como distinguir um outro «tipo» de catolicismo apenas a partir da suposta
dependência financeira do capelão e dos privilégios obtidos pelo padroeiro? É um
erro pressupor que o catolicismo popular não possa ter florescido nesse ambiente.
Um segundo ponto a questionar é o panoAdeAfundo epistemológico da análise de
Hoornaert. De uma maneira geral, ele coincide com a leitura marxista da categoA
ria ideologia: de um lado, a «legítima» visão de mundo dos oprimidos; de outro, a
«falsa consciência» imposta pelas elites. Outras obras de peso escritas no período
em que apareceu Formação do catolicismo brasileiro trazem as mesmas marcas.
Para Bastide, por exemplo, somente as religiões afroAbrasileiras estavam em conA
dições de expressar a resistência do negro na história do Brasil.295 A aceitar estes
pressupostos, o catolicismo se apresentaria aos escravos como uma forma de
«falsa consciência». Os limites deste tipo de análise são hoje evidentes. Uma
coisa é o que a elite eclesiástica ou social têm a pretensão de impor através de um
sistema religioso; outra, bem diferente, a forma como este sistema é (re)interpreA
tado e vivenciado pelos seus adeptos.
Não se trata de negar que os padroeiros das capelas pudessem se valer de sua
posição frente ao capelão e à comunidade como forma de reforçar seu poder soA
bre seus escravos, sua clientela e, eventualmente, sua vizinhança. Mas uma visão
mais próxima da realidade certamente reconheceria no campo religioso um jogo
de forças entre hierocracia/elites de um lado e a massa de adeptos do outro, e não
292 Trindade, Instituições de igrejas no bispado de Mariana, pp. 72, 93, 250, 259 e
315.
293 Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro, p. 74.
294 Hoornaert, idem, p. 97.
295 Bastide, As religiões africanas no Brasil, pp. 113A140.
241
uma simples imposição de uns sobre outros. O historiador, em todo o caso, não
tem como se esquivar ao peso das evidências. E estas demonstram que o campo
religioso na Minas antiga é profundamente marcado pela consciência de que o
sagrado, em grande parte, é algo que «pertence» ao povo. As sagas e mitos de oriA
gem analisados neste capítulo demonstraramAno claramente.
Curiosamente, podia ocorrer de um capelão atuar menos como um instrumento
de «domesticação das massas» (Weber) que de domesticação das elites. Tschudi
descreve o capelão do Barão de Diamantina como «um homem culto, solícito». E
acrescenta: «Não foi difícil perceber que padre José era o princípio dominante na
[sua] casa».296 Na verdade, e na imensa maioria dos casos, os sacerdotes de forma
alguma podiam ser considerados funcionários do fazendeiro. Diferentemente de
um capataz, vaqueiro ou administrador, o capelão não reside na fazenda. Ele se
desloca até ela, geralmente aos sábados à noite, e conduz as orações na ermida.297
No dia seguinte, celebra a missa e certamente fica para o almoço. Os vizinhos
que acorrem para o culto também almoçam e jantam às custas do anfitrião.298 O
que significa que os gastos do padroeiro são consideráveis. Por ocasião de granA
des comemorações chegavaAse a gastar entre 3.000 e 4.000 réis.299
Uma vez que todo local de culto é público, possuir uma ermida doméstica, ter
uma capela encravada em suas terras ou mesmo na sua vizinhança significa para
o proprietário ter de conviver com o afluxo periódico de fiéis. Nem sempre as
conseqüências deste afluxo eram de interesse dos fazendeiros. Diversos deles neA
gavamAse a permitir que se construíssem casas ao redor das capelas por eles eriA
gidas. Para tanto, constituíam o patrimônio em dinheiro, de modo que a capela
não gozasse de terras próprias e a formação do arraial se tornasse inviável. Caso
necessário lançavaAse mão de estratagemas, como ocorreu nos primórios de BarA
bacena.
A capela de Nossa Senhora da Piedade era de construção antiga. Já em 1726,
com a abertura do Caminho Novo, era elevada a sede de freguesia. Mais tarde,
face ao mau estado da capela, os moradores da região sentiramAse compelidos a
construir novo templo. Quase concluídas as obras, e sabendo ser inevitável a
formação do arraial, um fazendeiro das redondezas, Estevão dos Reis Motta, reA
quisitou em segredo (e obteve) uma sesmaria cujas terras abarcavam o sítio da
matriz. Os moradores, alheios ao que se passava, pediram ao Rei autorização para
fundarem o arraial, o que foi concedido em 9 de maio de 1747.300 Seguindo as
301 APM, SCA45, fls. 106A106v. (carta de Gomes Freire de Andrada à Coroa, 15 de
março de 1749).
302 APM (AHU), cx. 162, doc. 30.
303 Ibidem. Barbosa, que menciona en passant este documento, se engana ao afirmar
que ele tem data de 15.05.1753. DHGMG, p. 42.
243
A autorização de Dom Silvério Gomes Pimenta é dada apenas três dias depois,
com a ressalva de que «ao redor da capela fique uma área capaz para a mesma na
qual não se edifique».
A história de Santa Rita do Turvo (atual Viçosa) foi marcada pela mesma proA
blemática. Por volta de 1781, Ignácio Vieira de Andrade e outros, «moradores do
Turvo», pedem autorização para fazer uma «capela ou ermida» com a invocação
de Santa Rita. A dificuldade de cumprirem com suas obrigações religiosas deviaA
se ao fato de morarem em lugar de «conquista nova». Não lhes fora possível preA
cisar a que distância estavam da matriz «por não estarem aqueles matos penetraA
dos de moradores, sendo mais por onde deve ser o caminho habitado de índios,
dos quais [a]inda que de paz sempre os povoadores temem a sua inconstância».
Em 1788 ou 1789 o vigário do Pomba, padre Manoel de Jesus Maria, pede perA
missão para fazer da ermida uma capela, por ser aquele templo «muito conveniA
ente aos novos povoadores e aos (...) índios que se estão reduzindo ao cristiaA
nismo».307 Tais evidências vão de encontro à suspeita, levantada por Waldemar
Barbosa, que a primeira casa de oração da futura cidade de Viçosa existira antes
mesmo da virada para o século XIX.308 Muito provavelmente as terras do patriA
309 AEAM, arm. 24, cx. 5. Num relatório escrito em 26 de outubro de 1838, o vigário
de Santa Rita do Turvo informa que o patrimônio «consta de terras e casas aforaA
das».
310 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 104.
311 Trindade, Visitas pastorais, p. 176. Grifo nosso.
312 Numa carta sem identificação, enviada ao vigário geral da Cúria de Mariana em 26
de julho de 1913, afirmaAse que segundo a tradição corrente em Viçosa «o patriA
mônio foi doado pelo falecido padre Manoel Ignácio de Castro, cujo título de doaA
ção foi entregue pelo mesmo (...) ao falecido bispo de Mariana, Dom Frei José da
Santíssima Trindade, na ocasião em que este bispo esteve aqui em visita». AEAM,
arm. 24, cx. 5.
313 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 104.
245
herdeiro do padre Rocha a constituir novo patrimônio. Num outro sítio da mesma
fazenda doaramAse cerca de 200 hectares para nova capela, no dia 2 de outubro de
1832. O templo foi sagrado em 20 de setembro de 1835, e aos poucos formouAse
o arraial e futura cidade de Maravilhas.314
Mas muitas vezes prevaleciam os interesses dos fazendeiros. Em meados da
década de 1880, Joaquim Gomes de Resende doou 5 alqueires de sua Fazenda da
Boceta para patrimônio de uma capela, a ser construída no local, sob a invocação
de Nossa Senhora da Conceição. A história por detrás desta doação é sem dúvida
original. Ao contrário do que normalmente poderia se esperar, a iniciativa de ReA
sende provocou profunda irritação entre seus vizinhos. Um deles, José Martins de
Oliveira, deu a sua versão dos fatos em uma carta (escrita muito provavelmente
em 1887) à autoridade eclesiástica. Segundo ele, Joaquim Gomes de Resende era
um «homem idiota e caprichoso», e sua doação não fora motivada por devoção à
Santa, mas sim «para fazer mal às propriedades do suplicante, imundar a água que
é pequena e devassar os fundos de suas fazendas». Oliveira afirma não poder conA
sentir com aquela doação «porque é pai de numerosa família, [e] não pode ter
suas fazendas devassadas e com a povoação sobre os fundos de suas fazendas e
agoada em cujo lugar não pode ser admitido patrimônio senão por caprichosos e
malfeitores». A referida doação nada mais era que um «verdadeiro capricho odiA
oso filho da ingratidão e é tudo porque quis [este] picareta casarAse com uma filha
do suplicante e esse mostrouAlhe um espelho». Oliveira se dispõe a comprar um
terreno em outro lugar e fazer doação dele ou mesmo destinar recursos à Santa. E
pede a intervenção da Igreja no litígio, a fim de que «se evite alguma desgraça».
O vigário de Jequeri, convencido ou persuadido por Oliveira, sugeriu à Cúria de
Mariana que o patrimônio doado fosse trocado por outro em benefício da matriz,
porém a operação não se completou. Em 1910, o novo vigário de Santana do JeA
queri propunha ao bispo a venda do antigo patrimônio da Fazenda da Boceta.
Dentre as causas enumeradas, diz ele que aquelas terras «não se prestam para a
formação de um povoado por falta d’água no lugar onde se acham e por serem
montanhosas». Além disso, «estando anexas a fazendeiros, estes não fazem perA
muta por terreno mais próprio para se formar um povoado, e nem desejam que
isto se faça, opondoAse com energia por prejudicarAlhes os interesses».315
VêAse que nos séculos XVIIIAXIX a afirmação do poder das elites rurais não
passava necessariamente por uma (suposta) instrumentalização da religião, como
a instituição dos patroni poderia fazer crer. Para muitos fazendeiros a formação
de um povoado não era desejável porque isso significaria ter de abrir mão da exA
clusividade sobre alguns dos seus recursos, como a água. A maior parte da popuA
lação, por outro lado, não concebia a capela sem o respectivo arraial. Em face da
oposição dos fazendeiros o povo se organizava e os pressionava por intermédio
da autoridade civil e/ou eclesiástica, e mesmo de invasões. Quem pretende analiA
sar o campo religioso certamente pode fazêAlo sob o prisma das relações de poder
entre diferentes estratos sociais, entre hierocracia e «leigos», etc. Todavia o histoA
riador da religião não deve se esquecer de que a relação de poder nada mais é que
uma forma particular de relação social. Significa dizer: ela obedece, tal como
qualquer outra relação social, ao princípio da reciprocidade. Os atores sempre
dispõem de algum poder. Mesmo quando a vida religiosa é institucionalmente
controlada por fazendeiros e sacerdotes, a massa de fiéis nunca está completaA
mente à deriva dos interesses e prioridades daqueles grupos. Mesmo quando têm
a pretensão de se servir da religião enquanto mecanismo de «domesticação das
massas», as elites rurais podem vir a depararAse com a decidida resistência popuA
lar. Seja no plano das representações religiosas (sagas e mitos de origem), seja no
plano da praxis propriamente dita. Para a grande maioria na Minas antiga, o arA
raial é imprescindível. Ele é bem mais que um aglomerado de casas, nas quais as
pessoas depositam seus pertences e se vestem adequadamente para assistir ao
culto. Ele representa a estreita ligação entre os devotos e o seu santo – uma ligaA
ção que, por seu intermédio, se expressa espacialmente. O arraial garante que a
religião nunca venha a ser completamente «privatizada».
316 Marx, Nosso chão: do sagrado ao profano, pp. 17, 144, 200.
247
mente de Pierucci317, não acreditamos que faça sentido resgatar a sua acepção
políticoAjurídica «original». Além do mais, o uso moderno deste conceito (dentro
e fora da sociologia) traduz apenas o mito da dissolução da religião. Ora, a reliA
gião não pode se dissolver: ela é uma constante antropológica.318 Existem, isso
sim, novas formas sociais de religião – que, todavia, o estudioso da sociedade
nem sempre está em condições (em virtude dos seus pressupostos teóricos) de reA
conhecer como tais. Optamos assim por adotar o termo neutro desclericalização.
Ao contrário do que se poderia imaginar, a desclericalização dos patrimônios
não começou com a Proclamação da República e a conseqüente separação entre
Igreja e Estado. É anterior a ela. Isso demonstra que a apropriação das terras «dos
santos» se iniciou num contexto ainda profundamente marcado pela religião caA
tólica tradicional. Antes de nos indagarmos se esta prática constituiu ou não um
paradoxo, é preciso voltar aos documentos.
fabriqueiros passavam a ter direito a 25% do valor por eles arrecadado (30% no
caso das dívidas anteriores à vigência da lei).330 O efeito desta medida pode ter
sido o oposto do pretendido. Em 21 de janeiro de 1870, Domingos Cândido da
Silveira, vigário de Betim, afirmava ser «de urgente necessidade uma lei que reA
gule melhor os negócios da fábrica». Os rendimentos das igrejas não seriam sufiA
cientes, diz ele, sequer para «reparos no material da matriz e compra de paraA
mentos necessários».331
A capela de Nossa Senhora da Conceição do arraial de Campina no Rio Verde
(hoje cidade de Conceição do Rio Verde) teve constituído seu patrimônio em
1778, por Damião Rodrigues Gomes e sua mulher Isabel Maria de Jesus. Depois
de sucessivos acréscimos, os terrenos da capela somavam 373 braças. Entre 1789
e 1801 os foros foram pagos regularmente. Mas em 1895 a situação se alterera
totalmente: a matriz encontravaAse, segundo palavras do vigário, «paupérrima». A
despeito de seus esforços para convencer os moradores «do dever que lhes corria
ao pagarem os foros do patrimônio que ocupam», nenhum resultado se obtinha.
Um dos moradores estaria a insuflar os demais ao não pagamento, chegando
mesmo a ameaçar o vigário: «à minha pessoa declarou que minha estada aqui deA
pendia de não falar no patrimônio». Os foreiros de uma chácara pertencente à caA
pela negavamAse desde 1879 a pagar suas obrigações. Naquele mesmo ano, tendo
o padre José Pedro de Souza decidido reivindicar os direitos do patrimônio,
houve «forte oposição do povo, que protestou veementemente».332
Em 1838 a matriz de Três Corações tinha um «tênue patrimônio». Como o proA
curador da matriz administravaAo de forma «pouco ativa» e «invigilante», seu renA
dimento montava em 9.000 a 10.000 réis. Segundo o pároco ele poderia, bem
administrado, render praticamente o dobro. Quarenta e sete anos mais tarde, poA
rém, lêAse num relatório que o patrimônio da matriz (16 alqueires e mais «alguA
mas propriedades») estavam «em poder de particulares, sem que se saiba quais os
títulos que lhes asseguram a posse delas».333 Em Alto Rio Doce, no ano de 1895,
estimavaAse que metade do patrimônio em 50 alqueires fora já assenhorada.334
Algumas vezes, sucessivas doações eram vítimas de sucessivas usurpações.
Constituído em 26 de agosto de 1754, o primeiro patrimônio da capela de Nossa
Senhora do Rosário de Paulo Moreira (hoje Alvinópolis) praticamente «desapareA
cera» ao fim do setecentos, de modo que nova doação acabou sendo feita em 2 de
novembro de 1801.335 Uma carta escrita pelos moradores do povoado em 1886
afirma que uma sesmaria de terras fora doada à igreja de Nossa Senhora do RosáA
rio. Entretanto,
330 APM, SP 1061. Carta de João Crispiano Soares, conselheiro do Presidente da ProA
víncia, ao bispo de Mariana. Datada de 18.02.1864.
331 APM, SP 1381.
332 ANEDC (14) 1952: 22A24.
333 AEDC, cx. 4, pasta «Três Corações».
334 AEAM, arm. 24, cx. 1.
335 DHGMG, p. 23.
251
Por volta de 1893, João Antônio Ferreira doou 50 litros de terra (4,8 ha) a São
José, padroeiro do arraial de São José do Passa Bem (atual Passabém). O doador
colocou como condição que ele próprio encabeçasse uma comissão responsável
pela venda dos lotes do patrimônio. Com o falecimento de quase todos os memA
bros dessa comissão, o terreno passou a ser fechado por particulares que ali
construíam suas casas «não tendo pago quantia alguma a benefício da capela de
São José». FormouAse então uma nova comissão, que, em vista do que se passava,
dirigiuAse em 16 de outubro de 1923 ao bispo de Mariana para saber se deveria
medir os terrenos ocupados e cobrar o necessário dos responsáveis. Informam
ainda ao bispo que «alguns proprietários venderam casas com terreno, [e] passaA
ram documento sem terem comprado os terrenos». Em visita a Passabém, o bispo
auxiliar, Dom Antônio José dos Santos, conseguiu que os herdeiros de João AnA
tônio Ferreira ratificassem a doação. Ainda assim, continuam os membros da coA
missão, «alguns proprietários que têm terreno fechado (...) responderam que não
pagavam nada».345
De uma maneira geral, a Igreja não teve como reverter a privatização dos paA
trimônios. No período compreendido entre o decreto de separação entre Igreja e
Estado (7 de janeiro de 1890) e o início de vigência do Código Civil (1° de jaA
neiro de 1917) ela não dispôs de instrumentos legais capazes de garantir as terras
das matrizes e capelas. Antes de 1917, quando um particular construía uma casa
em terras do patrimônio – e partindo do pressuposto que as construções tinham
geralmente maior valor que os terrenos por elas ocupadas – as decisões judiciais
tendiam a favorecer o dono da casa em caso de litígio entre as partes. Segundo
parecer do advogado Agripino Gomes Veado, dado em 7 de março de 1921, os
proprietários das casas feitas em terras da igreja de Nossa Senhora do Patrocínio
antes da vigência do Código Civil tornavamAse legalmente senhores dos terrenos,
tendo apenas de indenizar à igreja o valor da terra ocupada.346
Como reagiam os católicos à privatização dos patrimônios «dos santos»? Numa
época em que a maior parte dos moradores de distritos habitavam as áreas adjaA
centes aos arraiais propriamente ditos, podeAse imaginar que nem todos os apliA
cados de uma capela se davam conta de ocupações irregulares ou do não pagaA
mento dos foros, quanto mais porque muitas vezes os vigários e fabriqueiros
eram os responsáveis diretos ou indiretos pelos descaminhos dos patrimônios. As
relações de dominação no campo impunham, por sua vez, o silêncio àqueles que
eventualmente poderiam se opor à usurpação dos direitos das capelas. Mas não se
deve pensar que este fenômeno fosse estranho ao cotidiano da maior parte das
pessoas na Minas antiga. A apropriação dos patrimônios por particulares apenas
seguia uma tradição já antiga no Brasil. Analisando a questão da posse da terra na
Colônia, Carrara constata um «descumprimento usual e generalizado da legislaA
ção agrária». Do ponto de vista econômico, diz ele, «a propriedade sempre funciA
347 Carrara, Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674 1807), pp.
135, 141.
348 Reis Filho, Evolução urbana do Brasil, pp. 114A115.
349 AEAM, arm. 24, cx. 1.
350 AEAM, arm. 24, cx. 2.
351 AEAM, arm. 24, cx. 2. Carta do padre Guilherme Coelho Neto, datada de 23 de
agosto de 1895.
352 Willems, Uma vila brasileira, p. 137. Até 1995, ano em que Amauri Ferreira deA
fendeu sua dissertação de mestrado sobre as «aparições » de Nossa Senhora na Vila
256
de Piedade dos Gerais, o comércio ainda era proibido no local. Ferreira, As apari
ções em Piedade dos Gerais, p. 13.
353 AEABH, cx. 507.
257
«O Sr. agente executivo deste município (...) com seu procedimento capriA
choso e cheio de vingancinhas veio preciptar a questão que já fez eco neste
município e reboará estrondosamente em todos os outros da confedereção
brasileira (...). O Sr. Leite de Castro, porém, altivo, enérgico e inteligente
como é, acaba de esmagar, como a montanha ao sapo, ao Sr. agente executivo
municipal recorrendo a quem (...) competia arrendar os terrenos do patrimôA
nio.»354
Esta «dualidade de poderes» só poderia intensificar ainda mais o atrito entre EsA
tado e Igreja. Ao tentar assegurar a posse das terras das antigas capelas, a Igreja
desautorizava, aos olhos da população, a ação do poder público. Em 19 de deA
zembro de 1906, o pároco de São Miguel do Anta escrevia uma carta ao bispo de
Mariana informamdoAo que ocorria então «uma veemente questão sobre o patriA
mônio» do qual estava de posse a Câmara Municipal. Rogava ainda que se lhe
enviasse, o mais rápido possível, cópia do título de doação dos terrenos. E justifiA
cavaAse, dizendo que
«estando a matriz desta freguesia em completa pobreza, e distituída de todo o
necessário para o culto externo, e estando todos os fregueses a reclamarem
sobre a injusta usurpação que está praticando a Câmara, a ponto de quereA
remAse revolucionar (...).»361
359 AEAD, cx. 101, pasta «Paróquia Santo Antônio – Curvelo» (cartas escritas, resA
pectivamente, em 30 de setembro de 1903 e 29 de dezembro de 1902).
360 AEAM, arm. 24, cx. 1.
361 AEAM, arm. 24, cx. 4.
260
365 Dias, Francisco Martins. Traços históricos e descriptivos de Bello Horizonte. Bello
Horizonte: Typographia Bello Horizonte, 1897, pp. 43A44.
366 Almeida, Marcelina das Graças de. Fé na modernidade e tradição na fé: a catedral
da Boa Viagem e a capital. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em história,
UFMG, 1993, p. 75.
367 A lei n° 843 de 7 de setembro de 1923 alterou os nomes de 324 localidades mineiA
ras, das quais 177 tinham anteriormente uma denominação de caráter explicitaA
mente religioso (DHGMG, pp. 10A14). Lima Jr. chamou estas mudanças de «deA
predação toponímica». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, p. 87.
368 Rosa, Grande sertão, p. 39.
369 Da Mata, «Passado e presente da religião civil», pp. 196A200.
262
263
O mito foi mobilizado, mais tarde, pelos defensores da construção da nova capital
brasileira no estado de Goiás. Políticos como Juscelino Kubitschek invocaramA
no. O que é compreensível, já que poucas experiências religiosas fascinam tanto
quanto a visão.6 Que ver neste caso senão uma evidência da ligação estrutural
entre o fenômeno religioso e o fenômeno urbano? A jovem Brasília só fez seguir
os exemplos de Roma, Lisboa e tantas outras. O que sugere, num certo sentido,
que a cidade, também para o homem moderno, continua sendo um «mistério». O
mito vem em seu socorro: ele torna a cidade inteligível na medida em que a justi
fica.
A análise da nossa «geografia mítica» nos termos propostos por Cassirer deA
monstraria, ainda, a existência de uma reveladora homologia entre Brasília e CaA
nudos. Segundo depoimento de um clérigo anotado por Euclides da Cunha, corria
no sertão baiano a crença de que em Canudos «nem é preciso trabalhar, é a terra
da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas».7
O mesmo motivo – cuja antigüidade é evidente (Ex 3: 8) – pode ser observado na
visão de Dom Bosco.
Não seria excessivo acrescentar que este tipo de representação mítica muito
provavelmente se mantém nos dias de hoje, apenas sob novas roupagens. É coA
* * *
Este trabalho procurou demonstrar, numa perspectiva que nos arriscaríamos a caA
racterizar como históricoAfenomenológica, de que maneira religião e espaço inA
teragem nos dois primeiros séculos da história de Minas Gerais. Primeiramente
mostrouAse como a religião estava profundamente imbricada no mundo da vida.
Em seguida, empreendemos uma análise do espaço vivido – do mais íntimo da
casa aos confins do sertão. Finalmente, centramos nossa atenção nas formas eleA
mentares do espaço urbano, onde o jogo de interAinfluências entre representações
religiosas, concepções espaciais (Raumauffassungen) e organização do espaço se
apresentam de maneira particularmente nítida.
O espaço reflete sempre a visão de mundo do grupo que o «preenche». De que
forma o arraial na Minas antiga permite saber um pouco mais a respeito da menA
talidade daqueles que o criaram e que o habitaram? Num ambiente ainda domiA
nado pelo catolicismo popular, é a capela que «tem» um arraial, não o contrário.
Para se entender por quê o embrião de cidade se forma, é preciso entender o que
esta capela efetivamente representa: ela é a expressão material e espacial de uma
necessidade de comunicação periódica com o sagrado. Ela configura um espaço
qualitativamente distinto daquele que se situa ao seu redor, e esta qualidade se
extende ao terreno que lhe é doado: o patrimônio. É a partir deste binômio caA
pelaApatrimônio que o arraial se forma. As primeiras casas que nele se levantam
não são propriamente residências, mas simples pousos nos quais as pessoas se
preparam para o rito da missa. Estes pousos têm originalmente, portanto, uma
função ritual. Ali os fazendeiros e suas famílias, vindos muitas vezes de longe, se
vestem adequadamente para a celebração. Simultaneamente, surgem os primeiros
estabelecimentos comercias, as primeiras «vendas». Elas são aceitas de bom
grado, afinal o arraial não é (nem pode ser) um espaço exclusivamente devotado
à religião. Caso as condições oferecidas pelo meio e as perspectivas econômicas
sejam favoráveis, o núcleo se desenvolve. Do contrário o arraial cai em estagnaA
ção ou é simplesmente abandonado. E, no entanto: a «fagulha» que desencadeia
todo o processo é de natureza religiosa.
O arraial que se forma a partir de uma capela e seu patrimônio em terras ofeA
rece um modelo diferente do arraial surgido às margens de um local de mineraA
8 Para uma visão mais abrangente, ver Haufe, Hans. «Die historische Stadt: RaumA
identität und kulturelles Erbe in Lateinamerika». In: Riekenberg, M., Rinke, S. u.
Schmidt, P. (Hrsg.) Kultur Diskurs: Kontinuität und Wandel der Diskussion um
Identitäten in Lateinamerika im 19. und 20. Jahrhundert. Stuttgart: HansADieter
Heinz, 2001, pp. 103A129.
266
ção. Grosso modo, poderíamos dizer que o tipo humano predominante no priA
meiro é o «homo religiosus», enquanto que o tipo que prevalece no segundo é o
«homo ludens». O arraial minerador vive em função das lavras; o arraial surgido
num patrimônio tem na capela o seu ponto de rotação.
Outro interessante aspecto se dá a ler por meio do complexo capelaApatrimôA
nioAarraial. Ele é concebido sem fronteiras. Nada existe ao seu redor que denote a
necessidade de separar de maneira clara e indubitável o «dentro» do «fora». Os
inúmeros casos de adros e cemitérios destituídos de muros revelam a mesma lóA
gica, qual seja: no universo religioso popular da Minas antiga não há uma clara
diferenciação entre sagrado e profano. A organização do espaço do arraial permite
visualizar este aspecto fundamental da religião popular. Em outros termos, o
extraAcotidiano faz parte do cotidiano. A festa, o lúdico, não estão em «oposição»
ao sagrado. As representações e práticas religiosas não se voltam exclusivamente
para o post mortem, uma vez que elas estão indissociavelmente integradas à
trama da vida.
O estudo do arraial mineiro não exclui, de certo, o fato de que na sua constituiA
ção entram em jogo determinadas relações de poder. A capela podia perfeitaA
mente ser encarada, da parte de um grande fazendeiro, como um instrumento. ArA
cando com os custos de sua construção, ele pode vir a obter o título de «padroeiA
ro». A indicação e o sustento de um capelão reforçam sua autoridade. De modo
que se a religião não pode ser reduzida à sua função de sacralizadora da ordem
social, não há como negar que ela também se presta a este papel.
Todavia o estudo das sagas e mitos de origem dos arraiais demonstra que a
idéia de que o campo religioso seria dominado pela lógica ditada pelas elites ruA
rais e/ou pelo clero deve ser posta de lado. No âmbito do catolicismo popular são
muitas vezes os oprimidos deste mundo que estabelecem a ligação entre deuses e
homens. No mundo da vida (Lebenswelt) da Minas antiga, o carisma é patrimônio
comum.
A geografia da religião nos ajuda a perceber, finalmente, que o complexo caA
pelaApatrimônioAarraial é marcado por um paradoxo: a evolução do núcleo imA
plica, ao menos tendencialmente, num enfraquecimento progressivo da modaliA
dade de vida religiosa que presidira a sua própria gênese. Uma população
vivendo à margem de todo tipo de «assistência religiosa» formal se decide pela
construção de uma capela. Neste estágio, a comunidade não está submetida a
qualquer espécie de constrangimento institucional. Como vimos, é exatamente
esta relação ambivalente das massas rurais com o aparato eclesiástico que parece
ser um dos principais elementos daquilo que chamamos catolicismo popular. EriA
gida a capela, doado o patrimônio, o embrião de cidade começa a se desenvolver.
Com o tempo, aquela rústica capela inicial já não consegue abrigar o número
crescente de fiéis. FazAse um templo de maiores dimensões, e a estabilização do
núcleo tornaAo digno de ser elevado à condição de freguesia. Com a presença do
vigário, o controle sobre a vida religiosa da população se torna cada vez mais inA
tenso. Criadas as primeiras escolas, o advento da educação formal reforça ainda
mais a tendência à marginalização das concepções religiosas iniciais. Com isso
267
não se pretende dizer que o catolicismo popular seja sufocado por um processo
que ele mesmo deflagra, mas apenas que seu espaço efetivamente tende a se reA
duzir.
A história de todo núcleo urbano é a história da dialética entre espaço e repreA
sentações. O espaço é «produzido» – isto é, ele adquire significado – a partir de
determinadas concepções préAexistentes. Entretanto, os arraiais são algo mais que
espelhos da mentalidade predominante na Minas Gerais dos séculos XVIIIAXIX.
À medida em que evoluem, estes embriões de cidades contribuem para que o caA
tolicismo popular seja substituído por formas cada vez mais «enquadradas» de reA
ligiosidade.
269
Fontes e Bibliografia
Abreviaturas
AEABH – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte
AEAD – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina
AEAM – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana
AEDC – Arquivo Eclesiástico da Diocese de Campanha
AfKG – Archiv für Kulturgeschichte
AHCMG – Annuario HistoricoAChorografico de Minas Gerais
ANEDC – Anuário Eclesiástico da Diocese de Campanha
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CAB – Constituições do Arcebispado da Bahia
CCM – Códice Costa Matoso
DHGMG – Dicionário HistóricoAGeográfico de Minas Gerais
EIA – Estudos IberoAAmericanos
EM – Enzyklopädie des Märchens
EMB – Enciclopédia dos Municípios Brasileiros
ER – The Encyclopedia of Religion
GG – Geschichte und Gesellschaft
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RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro
RBCS – Revista Brasileira de Ciências Sociais
RBEP – Revista Brasileira de Estudos Políticos
RBG – Revista Brasileira de Geografia
RBH – Revista Brasileira de História
RDTP – Revista de Dialectología y Tradiciones Populares
REB – Revista Eclesiástica Brasileira
RGG – Die Religion in Geschichte und Gegenwart
RH – Revista de História (São Paulo)
RHR – Revista de História Regional
RIEB – Revista do Instituto de Estudos Brasileiros
RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil
RIHGMG – Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
270
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I. Arquivo Público Mineiro
Códices da Seção Colonial: SC 19; SC 32; SC 35; SC 45.
Códices da Seção Provincial: SP 508; SP 546; SP 565; SP 602; SP 657; SP 779;
SP 897; SP 952; SP 1061; SP 1159; SP 1381.
Documentos avulsos Seção Provincial: PP 1/9, cx.7; PP 1/9, cx. 8; PP 1/9, cx. 9;
PP 1/9, cx. 12; PP 1/9, cx. 13; PP 1/9, cx. 16; PP 1/9, cx. 18; PP 1/9, cx. 19; PP
1/9, cx. 20; PP 1/9, cx. 21.
Microfilmes do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU): Cx. 29, doc. 28; cx. 41,
doc. 70; cx. 54, doc. 31; cx. 62, doc. 30; cx. 64, doc. 24; cx. 119, doc. 44; cx. 122,
docs. 23 e 38; cx. 127, doc. 34; cx. 128, docs. 13 e 28; cx. 131, doc. 25; cx. 136,
doc. 14; cx. 137, doc. 16; cx. 140, doc. 26; cx. 142, doc. 34; cx. 149, doc. 64; cx.
162, doc. 9; cx. 165, doc. 68; cx. 169, doc. 21; cx. 181, doc. 53.
b) Documentos impressos
Actas e constituições do primeiro sínodo diocesano fortalexiense celebrado na
respectiva igreja catedral em os dias 31 de janeiro, 1° e 2 de fevereiro de
1888; sendo bispo desta diocese o Exmo e Rvmo Snr Dom Joaquim José ViA
eira, do Conselho de S. Magestade o Imperador, comendador da Ordem de
Cristo, etc, etc. Ceará: Typographia Economica, 1888.
Castro, Martinho de Mello e. «Instrução para o Visconde de Barbacena». In:
RIHGB (21) 1844: 3A59.
Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das
minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvi
dor geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, &
vários papéis. Coordenação de Luciano Figueiredo e Mônica Campos. Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999.
Coelho, José João Teixeira. «Instrução para o governo da capitania de Minas GeA
rais (1780)». In: RIHGB 15 (7) 1852: 255A481.
Da Vide, Dom Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arbebispado da
Bahia. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro, 1853 (1719A1720).
«Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da capitania de Minas GeA
rais. Seu descobrimento, estado civil, político e das rendas reais (1781)». In:
RIHGB (71) 1908: 117A184
«Diário da jornada, que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janeiro
até a cidade de São Paulo, e desta até as Minas no ano 1717». In: RPHAN
(3) 1939: 295A316.
«Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jorA
nada que fez o Senhor Mestre de Campo, Regente e GuardaAmor Inácio CorA
reia Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do Capote às conquistas
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etc. etc.». In: Anais da Biblioteca Nacional (108) 1988: 53A113.
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Anexos
303
Igreja
Procurado pela Folha, o padre Antônio de Oliveira, que tomou conta das terras de
Cruz das Posses por mais 50 anos, não quis falar sobre o caso.
O arcebispo de Ribeirão Preto, D. Arnaldo Ribeiro, também se negou a falar
sobre o assunto.
304
O atual pároco de Cruz das Posses, Ilson Montanari, disse que a igreja está
tentanto encontrar uma solução para resolver o problema, mas ainda não conseA
guiu.
«É uma questão difícil. Pensamos em iniciar ações por usucapião, já que todas
as pessoas estão lá há várias décadas, mas isso não é viável porque fica muito
caro. Ainda estamos estudando uma medida legal», afirmou o padre.
O padre Sérgio Carmona, que também trabalha em Cruz as Posses, afirmou
que o foro e o laudêmio não estão mais sendo cobrados. Segundo ele, o foro não
é cobrado pela igreja há mais de dez anos e o laudêmio deixou de ser cobrado há
cerca de dois anos.
(Folha de São Paulo, 11.01.1998)
Arraial de Matozinhos em 1887
Lavras Novas
307
309
310
311
Planta da cidade de Chiador (anos 1950). Fonte: Valverde, Orlando. «Estudo regional da
Zona da Mata, de Minas Gerais». In: RBG 1 (20) 1958, p. 70. Sobre a origem do arraial,
lêAse na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros: «Diz a tradição que [o português
Antônio Joaquim dos Santos] se instalou no local onde hoje existe a fazenda Serra da
Arriba, deliberando, pouco depois, a construção, por ele próprio e seus escravos, de
uma capela em honra a Santo Antônio. Concluída a capela, (...) deu carta de liberdade
aos escravos que trabalharam na construção, ao mesmo tempo que lhes permitiu consA
truírem ranchos e cultivar terras ao redor da capela. IniciouAse, desta forma, o poA
voado». EMB, v. 24, p. 440.