Você está na página 1de 312

Pero el que teme el gobierno de los dioses

como a una tiranía sombría e inexorable,


¿a donde se trasladará, a donde huirá,
que tierra sin dioses, qué mar?
Plutarco
Índice

1. Introdução.............................................................................................. 13
1.1. A cidade brasileira na historiografia e nas disciplinas afins ..................... 13
1.2. Objetivos da pesquisa .............................................................................. 17
1.3. O recorte espacial e cronológico .............................................................. 21
1.4. Caracterização das fontes utilizadas ........................................................ 24
2. Perspectiva teórico metodológica e problemas conceituais................. 27
2.1. Considerações gerais ............................................................................... 27
2.2. Espaço ..................................................................................................... 33
2.2.1. O retorno do espaço................................................................................. 33
2.2.2. O que é uma cidade? ............................................................................... 45
2.2.3. O que é um arraial? ................................................................................. 49
2.3. Religião ................................................................................................... 52
2.3.1. Religião popular ...................................................................................... 62
2.3.2. Sagrado/profano ...................................................................................... 67
2.3.3. «Superstição» ........................................................................................... 70
2.4. Por uma síntese das abordagens............................................................... 71
2.4.1. A contribuição da ciência da religião ....................................................... 71
2.4.2. A contribuição da geografia da religião ................................................... 73

3. O sagrado e as formas elementares do espaço ..................................... 81


3.1 Religião popular em Minas nos séculos XVIII e XIX .............................. 81
3.1.1 Homo ludens, habitus nômade e religião ................................................. 85
3.1.2 A religião e o mundo da vida ................................................................. 103
3.2 Casa....................................................................................................... 124
3.2.1 Microcosmo .......................................................................................... 124
3.2.2 «Segregação» da mulher ........................................................................ 135
3.2.3 Janus e Vesta ......................................................................................... 139
3.3 Arraial ................................................................................................... 141
3.3.1 Patrimônio ............................................................................................. 145
3.3.2 Capela e praça ....................................................................................... 150
3.3.3 Cemitério .............................................................................................. 156
3.3.4 As «vilas de domingo» existiram? .......................................................... 159
3.4 Sertão .................................................................................................... 164
3.5 Espaços utópicos ................................................................................... 171

4. Sociogênese e dinâmica do arraial ...................................................... 175


4.1 ProtoAurbanização e atividade econômica .............................................. 175
4.2 ProtoAurbanização e política indigenista ................................................ 182
4.3 ProtoAurbanização e cosmos sagrado ..................................................... 190
4.3.1 CapelaApatrimônioAarraial ...................................................................... 199
4.3.2 Sagas e mitos de origem ........................................................................ 221
4.3.3 Ritos de fundação .................................................................................. 232
4.3.4 Relações de poder.................................................................................. 237
4.4 A desclericalização do espaço ................................................................ 246
4.4.1 Interesses privados e desclericalização .................................................. 247
4.4.2. Poder público e desclericalização .......................................................... 256

5. Derrota da «cidade selvagem»? ............................................................... 263


Fontes e Bibliografia ....................................................................................... 269
Anexos .............................................................................................................. 301
9

Agradecimentos
A realização desta pesquisa contou com o acompanhamento e o decidido apoio de
meu orientador, Prof. Dr. HansAJürgen Prien. Desde nosso primeiro contato, o
Prof. Prien demonstrou grande interesse por minha proposta de trabalho. Os reA
sultados obtidos devem muito ao construtivo diálogo que, ao longo destes anos,
se estabeleceu entre nós. Meus agradecimentos se extendem igualmente ao Prof.
Dr. Michael Zeuske e ao PD. Dr. Holger Meding, não só pela solicitude com que
sempre me receberam mas também pelos inúmeros conselhos durante o período
em que desenvolvi meus estudos no Instituto de História Ibérica e LatinoAameriA
cana da Universidade de Colônia.
Ao Prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorin Filho agradeço pelas instrutivas converA
sas e inúmeras indicações bibliográficas no campo da geografia cultural. A Profa.
Dra. Zeny Rosendahl teve a gentileza de me enviar um exemplar de seu manual
de introdução à geografia da religião. O Prof. Dr. Wolfgang Schieder honrouAme
com um convite para participar das sessões do seu colóquio de doutorandos, onde
pude aprender bastante sobre a moderna escola alemã de história social. Graças
ao Prof. Dr. Ion TaloQ deiAme conta da importância das contribuições recentes da
folclorística ao estudo da religião e da cultura popular.
Sem o decidido apoio de Daniel Hirschler, Johannes Hirschler e Ulrich EuA
mann as dificuldades impostas pelo idioma alemão certamente teriam sobreA
pujado minhas forças. Prof. Dr. Tarcísio Botelho, Dalton Andrade, Renato Alves,
Ricardo Álvares e Izabel Missagia de Mattos enviaramAme do Brasil – muitas veA
zes espontaneamente – todo o material de que eu por vezes carecia. Dra. Débora
Bendocchi Alves e Michael Faust foram muito mais que amigos. Débora e MiA
chael ajudaramAnos, a mim e minha esposa, de todas as formas possíveis, antes
mesmo de nos conhecermos pessoalmente.
A todos o meu muito obrigado.
Desnecessário dizer do quão importante foi o apoio financeiro que obtive junto
ao Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) para a realização e puA
blicação deste estudo.
Um agradecimento especial, por fim. Desde que surgiu em mim a idéia de
analisar as relações entre religião e protoAurbanização em Minas Gerais, tive em
minha esposa muito mais que uma companheira. Refletindo sobre minhas hipóteA
ses (não raro criticandoAas), auxiliandoAme na cansativa fase da pesquisa docuA
mental, dividindo comigo os frutos de seu rico aprendizado junto ao Prof. TaloQ,
relendo e corrigindo as primeiras versões dos capítulos, Giulle acabou por exerA
cer uma influência direta sobre praticamente tudo que escrevi. Creio fazerAte um
mínimo de justiça, minha preta, ao dedicarAte este livro.
Para Giulle
11

Prefácio
A fim de escrever sua tese sob minha orientação e obter o título de Doutor em
História pela Universidade de Colônia, Sérgio da Mata submeteuAse a todos os
requisitos da Faculdade de Filosofia, das provas germanicum e latinum aos semiA
nários em história e, em especial, em história ibérica e latinoAamericana.
Da Mata é um exemplo do quão frutífero pode ser o intercâmbio acadêmico a
nível internacional. Por meio deste intercâmbio ele pôde entrar em contato com a
tradição historiográfica e a literatura produzidas na Alemanha. Além do mais, foi
um feliz acaso que, para o estudo de seu objeto, a cátedra de história ibérica e laA
tinoAamericana estivesse ocupada por um especialista em história da Igreja.
É com prazer que recomendo ao prezado leitor este excelente estudo interdisA
ciplinar, no qual Da Mata oferece uma importante contribuição ao ainda pouco
pesquisado tema da protoAurbanização nas suas relações com o espaço e a religioA
sidade popular na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. Da Mata defende, de
forma decidida, uma linha de pesquisa própria. E fundamentaAa convincenteA
mente.

Prof. Dr. HansAJürgen Prien


Colônia/Lübeck, junho de 2002
13

1. Introdução
1.1. A cidade brasileira na historiografia e nas disciplinas afins
Quase toda cidade brasileira já teve seus historiadores, ou, quando menos, seus
memorialistas. Sempre em voga, a história do urbano é fruto de uma ânsia de
(re)construir a memória de uma coletividade. Suas características fundamentais
são recorrentes, e não nos seria difícil enumerar algumas delas: o retrato de vida
dos pioneiros, a genealogia das famílias ilustres e dos beneméritos locais, a visão
harmônica das relações entre as classes sociais, a fé inabalável no «progresso» da
comunidade. Não deve surpreender o fato de que, no mais das vezes, este tipo de
literatura histórica continue pouco ou nada afeita a questões de rigor teóricoAmeA
todológico, pois o que ela procura não é explicar a história mas sim idealizar o
passado e, sobretudo, mitificáAlo. O historiador «pósAmoderno» poderá dizer, com
alguma ironia, que a historiografia acadêmica nem sempre se afasta deste moA
delo. De fato. Mas o grande problema da história tradicional do urbano reside no
fato de que, freqüentemente, o retrato que ela oferece procede a uma simples inA
versão da lógica da caricatura. Se esta realça os «defeitos», aquela simplesmente
os ignora. TemAse a impressão de que esse tipo de «historiografia» não passa de
uma tentativa de fundir o histórico, o mítico e o utópico num só gênero.1
As barreiras da memorialística foram rompidas. A cidade é hoje um campo de
pesquisa dos mais privilegiados das ciências humanas no Brasil. A produção ciA
entífica é extensa e, podeAse mesmo dizer, desfruta de uma tradição própria. O
fato de que os estudos sobre a cidade desde muito cedo atraíram a atenção não só
de historiadores mas também de sociólogos, geógrafos e urbanistas, traduziuAse
numa tendência sempre acentuada pelo diálogo interdisciplinar – aspecto que
continua aliás a ser uma das marcas das pesquisas nessa área. Fazer um amplo leA
vantamento desta literatura seria assumir uma tarefa muito além de nossas forças.
LimitaremoAnos aqui a mencionar alguns dos estudos mais significativos e as diA
ferentes perspectivas analíticas neles desenvolvidas.
A influência de um historiador como Sérgio Buarque de Holanda foi e continua
imensa. Seu grande mérito foi sem dúvida o de propor uma análise da cidade
brasileira no contexto de uma interpretação abrangente de nossa cultura e de
nossa história. Somente Oliveira Vianna parece ter tido a mesma preocupação,
embora suas conclusões tenham sido obviamente distintas das de Sérgio Buarque.
Há entretanto um evidente ponto de convergência entre estes dois clássicos. Para
o mestre paulista a cidade colonial portuguesa, ao contrário da espanhola, não se
impôs sobre a natureza, não chegou a configurar «um ato definido da vontade
humana».2 Para Vianna, nossa rede urbana foi um fruto da ação do Estado, nunca

1 Um caso exemplar: Salgado, Plínio. Como nasceram as cidades do Brasil. Lisboa:


Ática, 1946.
2 Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1984, p. 62.
14

do povo – nosso homo colonialis era, diz ele, um «amante da solidão e do deA
serto».3 Debilidade da vontade civilizadora em um, déficit de sociabilidade no
outro. Essa visão negativa e às vezes pessimista da cultura e da sociedade brasiA
leira é bem típica (com as exceções de Gilberto Freyre e Cassiano Ricardo) da
geração de intérpretes do período do entreAguerras.
O esforço de interpretação do fenômeno urbano brasileiro como parte insepaA
rável de uma teoria geral do Brasil passa a ser contrabalançado pela influência
crescente da pesquisa universitária. Dois trabalhos clássicos, escritos a partir de
uma ampla perspectiva comparada, foram publicados pelos geógrafos Rubens
Borba de Moraes (1935)4 e Pierre Deffontaines (1938).5 A antropologia social,
por sua vez, centrouAse no estudo monográfico de pequenas unidades urbanas
afastadas dos grandes centros, e teve em Emílio Willems e Donald Pierson duas
figuras de referência a partir de fins da década de 1940.6 Em 1950, um outro
cientista social, Thales de Azevedo, conclui seu Povoamento da cidade de Salva
dor.7 No mesmo ano Pierre Monbeig defende sua tese de doutorado sobre a conA
quista e urbanização do oeste paulista.8 A contribuição dos geógrafos ganha imA
portância a partir de meados daquela década com Aroldo de Azevedo. São da sua
autoria e de sua equipe alguns dos mais significativos estudos sobre a evolução e
a morfologia dos «embriões de cidades brasileiras».9 Dois outros importantes traA
balhos surgem em 1968 e 1971, respectivamente com Nestor Goulart Reis Filho e
Nelson Omegna.10 Neste período, a crescente influência da sociologia urbana

3 Vianna, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987,


vol. I, p. 102.
4 Moraes, Rubens Borba de. «Contribuição para a história do povoamento em São
Paulo até fins do século XVIII». In: Geografia (1) 1935: 69A87.
5 O texto de Deffontaines aparece um julho de 1938 na Geographical Review e em
dezembro do mesmo ano no Bulletin de la Societé de Géographie de Lille. UtiliA
zamoAnos aqui da tradução brasileira: Deffontaines, Pierre. «Como se constituiu no
Brasil a rede de cidades ». In: Boletim Geográfico (14) 1944: 141A148; (15) 1944:
299A308.
6 Willems, Emílio. Uma vila brasileira. Tradição e transição. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1961 (1947); Pierson, Donald. Cruz das Almas. A Brazilian
village. Washinton: United States Government Printing Office, 1951.
7 Azevedo, Thales de. Povoamento da cidade de Salvador. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1955.
8 Monbeig, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: HucitecAPolis,
1984.
9 Azevedo, Aroldo de. «Embriões de cidades brasileiras». In: XVIIIe Congrès Inter
national de Géographie [1956]. Rio de Janeiro, 1965 (tomo III); idem, «Arraiais e
corrutelas». In: Boletim Paulista de Geografia (27) 1957: 3A26; idem. «Vilas e ciA
dades do Brasil Colonial». In: Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros 9(1)
1957: 83A168; idem (org.) Brasil. A terra e o homem. São Paulo: Cia. Editora
NacionalAEdusp, 1970.
10 Reis Filho, Nestor G. Evolução urbana do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1968;
Omegna, Nelson. A cidade colonial. INLAIbrasa: Brasília, 1971.
15

norteAamericana é atestada por autores como Richard Morse, Donald Ramos e


Otávio Velho.11
Outros autores ocuparamAse principalmente com as relações entre moderniA
dade, disciplinarização do corpo social e transformação do espaço urbano. Foi o
caso dos estudos de José Murilo de Carvalho sobre os conflitos que marcaram a
reforma urbana no Rio de Janeiro no início do século XX, bem como da grande
quantidade de pesquisas realizadas sobre a primeira capital brasileira planejada,
Belo Horizonte.12 Duas outras marcas das publicações recentes são, de um lado,
uma revisão crítica do modelo bipolar que, desde Sérgio Buarque, contrapunha
rigidamente a cidade hispanoAamericana à lusoAbrasileira,13 e, de outro, uma
abertura para abordagens fortemente marcadas pela «nova história cultural».14
Nesse contexto inseremAse também as contribuições do urbanista Murillo Marx e
da geógrafa Cláudia Damasceno Fonseca.15
QuerAnos paracer, porém, que a historiografia das cidades brasileiras continua a
ser a história de uma ausência – a ausência das origens. No que diz respeito aos
livros e teses sobre nossos núcleos setecentistas e oitocentistas, a fase «préAurA
bana» tende a ocupar um lugar secundário. Somente a partir da emancipação poA
lítica, com a instalação da Câmara Municipal e do símbolo da autonomia recémA
conquistada, o pelourinho, é que o historiador se sente à vontade para reconstruir
a trajetória do espaço urbano. Toda a história pregressa do lugar é apresentada um
tanto sumariamente. Certamente esta ausência se relaciona com o fato de que a
documentação escrita sobre uma cidade é, num primeiro momento e quase semA
pre, de caráter políticoAadministrativo – a qual, por sua vez, só passa a ser produA
zida de forma contínua a partir da emancipação. Mas não parece ser menos verA
dadeira a impressão de que a historiografia brasileira foi e continua vítima de
uma concepção segundo a qual a história do urbano em nada é tributária da históA
ria do préAurbano. Nossa história das cidades tem sido, antes de mais nada, a hisA

11 Morse, Richard M. «Some characteristics of Latin American urban history». In:


The American Historical Review. 17(2) 1962: 317A338; Morse, Richard M. A evo
lução das cidades Latino Americanas. São Paulo: Cebrap, 1975; Ramos, Donald.
A social history of Ouro Preto: stresses of dynamic urbanization in Colonial Bra
zil. 1695 1726. Phd dissertation, The University of Florida, 1972; Velho, Otávio. O
fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
12 Carvalho, José M. de. Os bestializados. São Paulo: Cia. das Letras, 1987; Almeida,
Marcelina das Graças de. «Belo Horizonte: 100 anos – história e historiografia». In:
LPH, Revista de História (6) 1996: 230A234.
13 Delson, Roberta Marx. New towns for colonial Brazil. Spatial and social planning
in the Eighteenth century. Ann Arbor: University Microfilms International, 1979.
14 Ver o número especial sobre história urbana em EIA 24 (1) 1998.
15 Marx, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Edusp, 1989;
Marx, Murillo. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: EduspANobel, 1991;
Fonseca, Cláudia D. Mariana: gênese e transformação de uma paisagem cultural.
Dissertação de mestrado em geografia, UFMG, 1995.
16

tória do «município».16 É revelador que os únicos estudos sobre os embriões das


cidades brasileiras tenham sido escritos não por historiadores, mas por geógrafos
e cientistas sociais.
Refletindo uma concepção provavelmente tão antiga quanto a sua própria disA
ciplina, o historiador centra sua atenção nos espaços que, ao seu ver, são o
«palco» da história. Ele parece querer confirmar a tese de Oswald Spengler seA
gundo a qual «a história do mundo é a história do homem urbano. Estados, povos,
política e religião, todas as artes, todas as ciências baseiamAse em um fenômeno
primevo: a cidade».17 É forçoso admitir que a identificação da cidade com o pro
cesso civilizatório é um mito que a historiografia nunca se preocupou seriamente
em combater.
Na linguagem cotidiana do nosso país há uma expressão que revela muito a
respeito da relação que estabelecemos com o fenômeno urbano. Os livros escolaA
res, a imprensa e os guias turísticos costumam se referir às antigas cidades mineiA
ras setecentistas que se formaram em torno da exploração do ouro com a expresA
são cidades históricas. Esta adjetivação deveria causar surpresa. Haverá mesmo
aglomerados humanos «sem história»? Precisamente neste ponto o senso comum
e a historiografia se tocam: o povoado e a pequena cidade são deixados de lado
porque eles são percebidos (não raro por seus próprios habitantes) como lugares
«onde o tempo não passa», onde «nada de interessante acontece». Um único poA
voado brasileiro parece ter rompido esta lógica – o arraial de Canudos. O que diA
zer, contudo, da infinidade de embriões de cidade que não tiveram o seu Euclides
da Cunha?
Menos preocupados com a singularidade do evento que com a dinâmica do soA
cial, do cultural e do espacial, os cientistas sociais, os folcloristas e os geógrafos
dedicamAse há tempos ao estudo dos povoados. Nada impede que a historiografia
possa dar uma valiosa contribuição a esse campo de estudos.
Influenciada por nomes como Deffontaines e Monbeig, a primeira geração de
geógrafos profissionais brasileiros sempre considerou artificial a separação entre
história e geografia. Isso tornouAa, desde cedo, sensível à necessidade de historiA
cizar a produção das diversas modalidades do espaço urbano. É chegada a hora
de retomar este diálogo.

16 Boschi, Caio César et alii. Evolução Urbana e municipalismo em Portugal e no


Brasil. Anais do Primeiro Colóquio de Estudos Históricos Brasil Portugal. Belo
Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994.
17 Spengler, Oswald. Der Untergang des Abendlandes. München: C. H. Beck, 1922,
2. Band, p. 106. A força deste mito pode ser observada no entusiasmo com que
Oliveira Vianna encarava o «grande milagre paulista» que foi «a conquista do serA
tão, a fundação da riqueza agrícola sobre bases modernas, a germinação e a consoA
lidação dos núcleos urbanos no interior». Vianna, Oliveira. «A formação das cidaA
des». In: Revista do Brasil 25 (95) 1923: 225A226, p. 225.
17

1.2. Objetivos da pesquisa


A intenção primeira de nosso trabalho é debruçarAse justamente sobre o que, até o
presente momento, foi posto de lado pela historiografia: a história das formas
elementares do espaço urbano. Uma história, enfim, dos nossos arraiais. A exígüa
atenção que tem sido dispensada ao tema pode ser medida através dos dois dicioA
nários existentes sobre o Brasil no período colonial. O verbete «arraial» do Dicio
nário da História da Colonização Portuguesa no Brasil resumeAse às seguintes
considerações:
«Pequeno povoado. Feira de bois ao longo da rota dos currais na fase de exA
pansão e penetração de pecuária pelos sertões. De um modo geral, vilarejos
primitivos que se foram formando e fixando no decurso do processo coloniA
zador.»18
No Dicionário do Brasil Colonial19 a temática foi simplesmente suprimida.
Estes dois exemplos demonstram que, para uma parcela significativa da comuniA
dade de historiadores, o estudo dos nossos arraiais não é um tema relevante. Esta
ausência revela algo mais que a escassez de pesquisas sobre nossos embriões de
cidades. Ela revela o desinteresse com o qual a obra pioneira de Deffontaines e
Azevedo é tratada. Muito provavelmente este descaso se deve à relação desigual,
hierárquica mesmo, que se instalou entre história e geografia, tema ao qual ainda
voltaremos.
Nossa pesquisa se inscreve numa linha cujos fundadores foram geógrafos, não
historiadores. Isso não quer dizer que o objetivo fundamental a ser perseguido
seja a descrição da evolução do préAurbano ao urbano no seu aspecto puramente
espacial ou demográfico. De fato, um elemento importante do legado de DeffonA
taines e Azevedo, e que se procurou aqui preservar, é o estudo morfológico e
comparado da protoAurbanização. As características básicas do processo de forA
mação e evolução de um arraial só se dão a conhecer se o número de casos analiA
sados permite apontar regularidades. Acreditamos ter identificado algumas delas.
Para tanto, fezAse necessário enriquecer a perspectiva desenvolvida pelos pioneiA
ros com a contribuição de outras disciplinas. Nas suas origens, a geografia históA
rica da cidade brasileira concedeu pouco ou nenhum espaço a questões como a
relação entre mito e instituição do espaço, o peso das relações de poder ou a diA
nâmica do cotidiano nas comunidades nascentes. Como seria de se esperar, só exA
cepcionalmente os estudos desenvolvidos pelos geógrafos lançaram mão de fonA
tes arquivísticas, de forma que as especificidades das transformações em curso
dificilmente pôde ser adequadamente visualizada. O que procuramos foi, simA
plesmente, intercambiar aquilo que ambos os enfoques, o histórico e o geográA

18 Silva, Maria B. Nizza da (org.) Dicionário da história da colonização portuguesa


no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 71.
19 Vainfas, Ronaldo (dir.) Dicionário do Brasil Colonial (1500 1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000.
18

fico, eventualmente têm de melhor a oferecer. E não se pense que a balança das
interAinfluências disciplinares continua pendendo francamente a favor da história.
AfirmáAlo seria ignorar a riqueza do debate teóricoAmetodológico que, desde a
década de 1970, se desenvolve na geografia.20
DeveAse investigar a formação do arraial como um todo, ou privilegiar um faA
tor (ou conjunto de fatores) que nela desempenha um papel decisivo? DesnecesA
sário dizer que há poucos fenômenos tão multifacetados quanto o que aqui se
pretende discutir. As causas que presidem a formação de um povoado são legião:
a instalação de um posto militar avançado, a decisão solitária de um soberano anA
sioso de levar a «civilização» a regiões inóspitas, um local de encontro de comerA
ciantes, o esconderijo de escravos fugidos, a ética salvacionista de um missionáA
rio ou de um líder milenarista, a decisão coletiva de um grupo emigrado e disA
posto a «começar de novo», uma concorrida rota de comunicação que, espontaA
neamente, parece coagularAse num determinado ponto, etc. A interação com as
possibilidades oferecidas pelo meio não é menos decisiva. O caráter do povoaA
mento está em relação direta com o quadro natural do sítio escolhido. Os ascetas
optam pela montanha ou o deserto; os quilombolas buscam o refúgio das matas; a
cidadela se estabelece preferivelmente na planície, às margens de um curso
d’água. FundemAse o econômico, o político, o religioso, o ecológico. Resta saber
a qual dessas dimensões daremos prioridade.
QuerAnos parecer que, dos fatores envolvidos no nascimento de uma cidade, os
que tradicionalmente menos chamaram a atenção dos pesquisadores foram os de
ordem religiosa. Numa obra de síntese sobre a geografia do Brasil lêAse que «a
importância das cidades está na relação direta com as funções por elas abrigadas.
Entre essas funções podemos citar a comercial, a industrial, a financeira, a políA
tica, etc.»21 O autor das linhas acima resume as funções do núcleo urbano a duas
apenas: a econômica (em suas diversas modalidades) e a política. Nenhuma refeA
rência, por ligeira que seja, é feita à função religiosa. CidadesAsantuário das quais
todo brasileiro já ouviu falar, como Juazeiro ou Aparecida do Norte, não parecem
representar um fenômeno digno de nota. Cidades que nasceram e se desenvolveA
ram, somos tentados a dizer, quase que como a expressão espacializada do uniA
verso religioso popular – e elas não são poucas. Embora sempre tenha havido voA
zes na literatura especializada a ressaltar a importância decisiva da religião na
criação do espaço urbano22, não se deu atenção à questão. Em resumo podeAse diA
zer que, no que diz respeito à cidade brasileira, a geografia se ressente da ausên
cia do religioso tanto quanto a historiografia se ressente da ausência da origens.
Em boa medida, esta atitude diante do espaço e do social traduz uma projeção
inconsciente da visão de mundo contemporânea sobre fenômenos que se desenA

20 Estas questões serão analisadas nas seções 2.2 e 2.4.2.


21 Scarlato, Francisco C. «População e urbanização brasileira». In: Ross, Jurandir
(org). Geografia do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995, pp. 404A405.
22 Munford, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
19

volveram num contexto cultural completamente distinto. Traduz, para usar o


termo tão caro a Lucien Febvre, um anacronismo. Eis o raciocínio que parece
guiar o pesquisador moderno: «Não se trata aqui de crença ou submissão às ‹forA
ças do além›, mas de simples cálculo racional. É natural ao homem que ele busA
que o melhor para si. Ele se estabelece onde as possibilidades de sobrevivência
e/ou de acumulação de riqueza se mostram mais promissoras. Ele traz sua fé conA
sigo, não o contrário». O que é verdade, mas não toda a verdade.
Para nossos antepassados, o urbano e o religioso são a expressão de uma
mesma e indissociável realidade. Do oriente próximo à China, da Grécia à Índia,
na África, os exemplos se repetem. Os casos de Roma ou Lisboa demonstram
como a origem mesma da cidade muitas vezes se confunde com o mito. Essa reA
lação estreita entre religião e gênese urbana fica particularmente visível no fato,
por toda a parte comprovado, de que o ato de fundação assume a forma de um
rito religioso. O gesto que tranforma a natureza bruta em espaço habitável não se
consubstancia sem a condescendência dos deuses. O espaço selvagem deve ser
«domesticado». O topos só se dá a habitar depois de ter assumido uma dimensão
inteiramente nova: depois de ter se tornado um temenos. É o rito religioso que deA
sencadeia esta metamorfose. Nas suas origens, o espaço urbano se define como
espaço sagrado.
Frobenius identificou no norte do Sudão um complexo de ritos cujo prólogo se
desenvolve da seguinte maneira. O oráculo que permitia prever se o local escoA
lhido para a nova cidade prometia um futuro feliz determinava que os ferreiros da
tribo soltassem galos no terreno. Se os mesmos fossem comidos por chacais ou
hienas, as perspectivas eram sombrias. Caso os galos sobrevivessem à primeira
noite, então tratavaAse de erigir a cidade.23 Ao determinar a localização da cidade,
diz Granet em seu clássico sobre a China, «o Fundador, vestindo seus adornos saA
grados, começava por proceder a uma inspeção dos locais, à qual se sucediam
operações divinatórias». E acrescenta: «é traçando um templum que se constroem
os acampamentos e as cidades».24 A fundação de uma cidade grega só se faz após
uma peregrinação a Delfos. Somente então, «e qualquer que seja a ambigüidade
do oráculo de Apolo, o fundador se certifica da legitimidade de sua empresa».25
Reza a tradição que Rômulo, conhecedor das técnicas oraculares, definiu o local
de Roma através da observação do vôo dos pássaros. Segundo Fustel de CoulanA
ges, a escolha do local, «coisa grave e da qual se crê depender o destino do povo,
sempre é deixada à decisão dos deuses».26

23 Frobenius, Leo. Kulturgeschichte Afrikas. Wuppertal: Peter Hammer, 1998, p. 176.


24 Granet, Marcel. O pensamento chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, pp. 84,
196.
25 Detienne, Marcel. Apollon – Le couteau à la main. Une approche expérimentale
du polythéisme grec. Paris: Gallimard, 1998, p. 106A107.
26 Fustel de Coulanges, Numa Denis. La cité antique. Paris: Hachette, s/d (1898), p.
153.
20

O fato de centrarmos nossa atenção não nos padrões de urbanização, mas sim
nos de protoAurbanização, pode ser finalmente justificado. Quantos povoados braA
sileiros não se resumem a um conjunto de casas disposto em torno de uma igreja?
O olhar do geógrafo, sempre atento às peculiaridades da paisagem, percebeAo
mais rápido e procura entender por que o espaço assume uma determinada confiA
guração e não outra. Foi assim que Deffontaines, em sentido diametralmente
oposto à tese do «antiAurbanismo» de Oliveira Vianna, observou que a formação
do embrião de cidade é fruto «de uma necessidade de vida social». A cidade nasA
cente, continua ele, «é essencialmente uma igreja e uma praça». E mais:
«O modo de criação desses burgos mostra bem a proeminência da função reA
ligiosa que serviu de ponto de concentração inicial. Em geral é um fazenA
deiro ou uma reunião de fazendeiros vizinhos que faz doação do território;
ele o constitui em patrimônio, patrimônio oferecido à igreja ou antes a um
santo. (...) Os proprietários vizinhos, desejosos de aproveitar as vantagens
deste agrupamento, obtém lotes por locação, por arrendamento muito longo
ou por perpetuidade mediante pagamento de um foro. Os benefícios realizaA
dos são destinados à construção da capela, à manutenção de um padre, cura
ou vigário, ao estabelecimento de um cemitério, à organização de festas
(festas religiosas) e também ao embelezamento da cidade, ou antes, da
praça.»27
Deffontaines constata ao fim de seu estudo que «foi sem dúvida esse processo do
patrimônio que deu ao Brasil a maioria das suas cidades, pelo menos na parte
central do país».28 Monbeig, num texto originalmente publicado em 1940, escreA
via que seria para ele motivo de alegria que «verdadeiros historiadores» se dediA
cassem «ao problema das origens das cidades brasileiras». E concluía: «é o voto
formulado por um leigo e os historiadores dirão se é possível atendêAlo».29 É surA
preendente que, mais de meio século depois, se continue a ignorar este convite. À
exceção dos geógrafos (e não foram muitos), somente o urbanista Murillo Marx
deuAse conta da importância de dar prosseguimento às pesquisas neste campo.
Dissemos há pouco: a literatura disponível sobre a cidade brasileira se ressente,
de um lado, de uma ausência das origens, e, de outro, de uma ausência do fator
religioso. Algo como uma geografia histórica da religião pode vir a ser uma
forma de contribuir para que ambas as lacunas possam ser ao menos parcialmente
preenchidas. É o desafio diante do qual nos colocamos ao iniciar este trabalho.
Ele se propõe a estudar de forma sistemática a importância das representações e

27 Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades», (15), pp. 299A300.


28 Idem, ibidem, p. 301. A importância dos patrimônios em Minas foi posteriormente
ressaltada por Valverde, Orlando. «Estudo regional da Zona da Mata, de Minas GeA
rais». In: Revista Brasileira de Geografia 1 (20) 1958: 3A82, p. 69.
29 Monbeig, Pierre. «O estudo geográfico das cidades ». In: Monbeig, P. Novos estu
dos de geografia humana brasileira. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1957,
p. 44.
21

práticas religiosas na gênese das cidades e embriões de cidades em Minas Gerais


ao longo dos séculos XVIII e XIX.

1.3. O recorte espacial e cronológico


Os estudos de «geografia urbana retrospectiva» realizados pela escola paulista
centraramAse, por motivos óbvios, no estado de São Paulo. Pouco ou quase nada
de semelhante foi feito pelos pesquisadores interessados pela história do fenôA
meno urbano em Minas. Livros como os de Mário Leite e Augusto de Lima JúA
nior,30 publicados no início da década de 1960, não representaram avanços signiA
ficativos nesse sentido. Somente dez anos depois vieram à luz duas obras que,
ainda hoje, são referências básicas para aquele que pretende se aprofundar no esA
tudo da temática que aqui nos ocupa. ReferimoAnos à tese de Yves Leloup, Les
villes du Minas Gerais, e ao indispensável Dicionário Histórico Geográfico de
Minas Gerais, de Waldemar Barbosa.31 A partir de então predominaram estudos
de caso, seja entre historiadores seja entre geógrafos.
Nossa investigação parte do princípio de que Minas, estado que durante muito
tempo foi tido como o «mais católico do Brasil», constitui um campo de testes
privilegiado para a análise da dialética entre religião e espaço; e de que é possível
demonstráAlo por meio de um esforço de síntese. Como se sabe, o desencadeaA
mento do processo de povoamento em Minas, em seus primórdios decorrente do
gold rush iniciado na passagem dos séculos XVIIAXVIII, representou algo inteiA
ramente novo na história do Brasil. Se antes das primeiras descobertas minerais
todo aquele imenso território não era dotado de um povoado sequer, ao fim do
ano de 1789 já havia ali nada menos que quatorze vilas: Vila do Carmo (MaA
riana), Vila Rica (Ouro Preto), Sabará, São João delARei, Vila Nova da Rainha
(Caeté), Vila do Príncipe (Serro), Pitangui, São José delARei (Tiradentes), Minas
Novas, Vila do Tamanduá (Itapecerica), Barbacena, Queluz (Conselheiro LaA
faiete), Paracatu e Campanha.32 Tudo conspirou para que a historiografia, ao se
referir à formação da rede urbana mineira, se centrasse nas chamadas vilas do
ouro. O que parece indicar que nos encontramos diante de uma região e de um
período pouco ou nada propícios ao estudo da relação entre religião e gênese urA
bana. A avidez de riquezas sem dúvida explica o enorme afluxo de aventureiros
para a região das Minas;33 enquanto que a criação das vilas corresponde a um deA

30 Leite, Mário. Paulistas e mineiros: plantadores de cidades. São Paulo: EdArt,


1961; Lima Júnior, Augusto de. As primeiras vilas do ouro. Belo Horizonte: Santa
Maria, 1962.
31 Leloup, Yves. Les villes du Minas Gerais. Paris: Université de Paris, 1970; BarA
bosa, Waldemar. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo HoriA
zonte: Itatiaia, 1995 (1a edição: 1971).
32 Paula, Floriano Peixoto de. «Vilas de Minas Gerais no período colonial». In: RBEP
(19) 1965: 275A284.
33 Costa, Iraci Del Nero da. «Fundamentos econômicos da ocupação e povoamento de
22

sejo explícito da Coroa portuguesa em manter a crescente população sob conA


trole.34
Mas a singularidade de Minas não se limita ao século XVIII. Os estudos pioA
neiros de Roberto Martins mostraram que a passagem para o século seguinte de
forma alguma correspondeu ao mito da «decadência» que uma certa historiograA
fia, concedendo excessiva importância ao declínio da produção de ouro, ajudou a
propagar. A sociedade pósAmineradora não experimentou refluxo econômico e
muito menos demográfico. Impossibilitada de se sustentar com base no extratiA
vismo mineral ou no abastecimento das áreas que em torno dele giravam, ela deA
monstrou ser capaz de desenvolver um perfil alternativo ao da típica economia de
plantation. A manutenção do ritmo de crescimento populacional e o isolamento
geográfico de Minas garantiam a manutenção do maior plantel de escravos da
época e o desenvolvimento de uma economia baseada na agricultura para o merA
cado interno e nas atividades de transformação.35
Todavia continua comum a idéia segundo a qual processouAse então um refluxo
do fenômeno urbano. Mesmo Martins afirma que, nesta fase, «as aglomerações
urbanas perderam importância e a população se dispersou pelo vasto território da
província».36 Século XIX, século da «ruralização» – a nossa Idade Média? Um peA
ríodo de letargia urbana que só teria tido fim em 1897, com a fundação de Belo
Horizonte? Esse espaço em branco na literatura é particularmente difícil de expliA
car quando se sabe que, entre 1801 e 1850, 52 localidades mineiras são elevadas
à condição de município. Significa dizer: um crescimento de 300% em relação ao
período 1751A1800.37 O surto urbano não só não declinara, mas na verdade seA
guira de perto a evolução demográfica mineira.
A progressiva expansão da rede urbana torna, desde já, algo evidente aos nosA
sos olhos. A formação de novos núcleos teve continuidade a partir de condicioA
nantes distintos dos que predominaram na primeira metade do século XVIII. O
novo perfil da economia mineira conferiu um papel cada vez mais importante a
estruturas sociais que, ao longo do período anterior, aparentemente só tinham tido
uma importância secundária. O fenômeno urbano oitocentista reflete este novo
momento. Sua formação acompanha agora o ritmo lento da vida das fazendas, e
não a atividade febril que fora a marca das vilas do ouro. Não estamos no direito

Minas Gerais». In: RIEB (24) 1982: 41A52.


34 Boxer, C. R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1963, p.
140; Delson, New towns for Colonial Brazil, pp. 24A26.
35 Martins Filho, Amilcar e Martins, Roberto B. «Slavery in a nonexport economy:
nineteenthAcentury Minas Gerais revisited». In: HAHR 63 (3) 1983: 537A568;
Botelho, Tarcísio Rodrigues. População e nação no Brasil do século XIX. São
Paulo: tese de doutorado em História, USP, 1998.
36 Martins, Roberto B. e Martins, Maria do Carmo S. «As exportações de Minas GeA
rais no século XIX ». In: RBEP (58) 1984, p. 106.
37 Carvalho, Orlando. A multiplicação dos municípios em Minas Gerais. Rio de JaA
neiro: Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 1957, p. 16.
23

de ignorar a importância desta transição. Como e por que uma sociedade de perfil
nitidamente rural, centrada em unidades auto suficientes – as fazendas – conti
nuou a gerar cidades?
PoderAseAia perguntar ainda como se justifica um estudo das formas elementaA
res do espaço urbano num espaço de tempo tão dilatado. Em princípio, não se
trata de postular a transição de um modelo de protoAurbanização a outro, mas de
demonstrar que formas alternativas de instituição do espaço podem ser identifiA
cadas relativamente cedo na história de Minas Gerais, e que elas não só se mantiA
veram como ganharam importância ao longo do século XIX. A que será alvo
principal de nossa atenção é a que evidencia a «proeminência da função religiosa»
(Deffontaines). A formação de um arraial a partir de uma capela e do seu patriA
mônio em terras é um processo dotado de tal força e regularidade que não hesitaA
ríamos em qualificáAlo de estrutural.
Estrutural no sentido da longa duração de Braudel: processos que obedecem a
um regime de temporalidade radicalmente distinto do da variação dos ciclos ecoA
nômicos, do das reviravoltas políticas ou ainda, para tomar um exemplo contemA
porâneo, do tempo curtíssimo que rege as bolsas de valores sob o influxo da
«globalização». Quando se estuda o impacto da religião na sociogênese dos arA
raiais fica evidente a continuidade de determinados padrões por praticamente dois
séculos. Por vezes é possível identificar esta persistência mesmo nos dias de hoje,
como se vê no caso da Vila de Piedade de Gerais, um embrião de cidade em
pleno desenvolvimento a 110 km de distância de Belo Horizonte. Este embrião
deve sua origem à crença em aparições de Nossa Senhora a três crianças a partir
de setembro de 1987. Onde inicialmente havia apenas duas moradas, em 1994 viA
viam cerca de 200 pessoas distribuídas em 40 casas. O local, anteriormente deA
nominado Barro Vermelho, passou a ser chamado Vila de Piedade dos Gerais, ou
ainda Vale Santo.38 Numa sociedade dita «secularizada» fenômenos deste tipo
tendem a ser cada vez mais raros, o que evidentemente não era o caso da Minas
antiga.
Se é excessivo postular, como fez Barbosa, que «à exceção das vilas do ouro,
em todos eles [os povoados mineiros] a capela precedeu a formação do arraial»,39
há que reconhecer que os números são expressivos. Um primeiro levantamento
realizado a partir da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e do Dicionário
Histórico Geográfico de Minas Gerais mostrouAnos que cerca da metade das loA
calidades elevadas à condição de cidade em Minas Gerais até o ano de 1900 tiveA
ram sua origem em patrimônios religiosos. Quando se trata de analisar fenômeA
nos dessa espécie, capazes de manifestaremAse durante longos períodos de tempo
sem experimentar variações qualitativas de vulto, toda e qualquer tentativa de se

38 Ferreira, Amauri Carlos. As aparições em Piedade dos Gerais e a construção do


sujeito religioso. São Paulo: dissertação de mestrado em Ciência da Religião,
PUCASP, 1995.
39 DHGMG, p. 264.
24

estabelecer marcos cronológicos rígidos deixa de fazer sentido.40


Em todo o caso, e não apenas por motivos operacionais, toda pesquisa histórica
deve limitarAse a um espaço de tempo determinado. Nosso ponto de partida coinA
cide com a formação das primeiras vilas do ouro, vale dizer, as primeiras décadas
do século XVIII. O ponto de chegada compreende o final do século XIX, no qual
sobressaem dois momentos decisivos: a Proclamação da República e a inauguraA
ção de Belo Horizonte. A queda do regime imperial em 1889 marca a ascenção
política de grupos civis e militares profundamente influenciados pela ideologia
positivista, sabidamente hostil à tradicional aliança entre Estado e Igreja. PodeAse
dizer que a primeira grande expressão urbanística da visão de mundo destas elites
concretizaAse em 1897 com a nova capital de Minas. A oposição em relação à anA
tiga capital, a velha Ouro Preto, é evidente: de um lado, o traçado intrincado da
cidade barroca; de outro, o plano urbano retilíneo, racionalizado. Belo Horizonte
pretende simbolizar o triunfo da «razão» e do «progresso». Como Brasília, mais
tarde, ela é a expressão de um ato da vontade e não de um longo e intrincado proA
cesso evolutivo.

1.4. Caracterização das fontes utilizadas


Minas Gerais conta atualmente com 853 cidades, distribuídas por uma área de
593.000 km² (França: 551.000 km²). Impensável, dentro dos limites de uma pesA
quisa levada a cabo quase que individualmente, cobrir todo esse território, todos
ou mesmo a maior parte destes núcleos de povoamento e sua história. O que se
pode fazer é trabalhar um número representativo de casos e, assim, tentar
identificar padrões de continuidade. O enfoque a ser desenvolvido buscará o meio
termo entre as perspectivas morfológica e histórica.
Como reconstruir a trajetória de núcleos nascentes? Com efeito, o primeiro
grande problema a resolver foi o de identificar fontes capazes de fornecer dados
referentes àqueles instantes iniciais do espaço urbano. A resposta já fora, de certa
forma, encontrada por Waldemar Barbosa. Se, como postulou Deffontaines, a
ereção de uma igreja e a constituição de seu patrimônio (em terras) representaram
o ponto de partida de um imenso número de cidades brasileiras, daí se conclui
que a história do templo e seu respectivo patrimônio forneceriam a chave para a
solução da questão. Uma parcela significativa da documentação básica é, porA
tanto, de tipo eclesiástico. Os pedidos de ereção de capelas e ermidas domésticas
feitos aos bispos traziam quase sempre um relato do isolamento geográfico à qual
determinado grupo humano estava submetido, assim como as dificuldades enA
frentadas nas viajens até as paróquias mas próximas. As fontes principais das

40 Para Simmel, se o início e o fim de uma época «se confondaient complètement sur
le plan qualitativ, je ne vois pas en quoi son plus ou moins de durée pourrait nous
intéresser». Simmel, Georg. «Le problème du temps historique». In: Revue de
Métaphysique et de Morale (3) 1995: 295A309, p. 303.
25

quais nos servimos são pedidos de provisão para a ereção de capelas e documenA
tos atestando a doação dos patrimônios das mesmas.
De modo a recolher uma amostragem representativa em termos históricos e
geográficos, utilizamoAnos de arquivos eclesiásticos nas regiões centro (Mariana
e Belo Horizonte), norte (Diamantina) e sul (Campanha) do estado. As dioceses
de Mariana e Diamantina, criadas respectivamente em 1745 e 1854, são as mais
antigas de Minas. Os arquivos de Belo Horizonte e Campanha, embora pertenA
centes a dioceses criadas no século XX, contém dados referentes ao período anteA
rior uma vez que é norma da instituição que uma nova diocese receba a docuA
mentação referente à área de sua jurisdição. Como o regime de padroado pressuA
punha que o Estado participasse ativamente das decisões relativas ao «culto púA
blico», trabalhamos também com o acervo do Arquivo Público Mineiro, em espeA
cial com os microfilmes dos papéis avulsos trazidos do Arquivo Histórico UltraA
marino de Lisboa.
Em Mariana tivemos o privilégio de localizar e vasculhar uma importante série
de documentos, ao que parece ainda inédita. São os processos de patrimônio orA
ganizados em fins de século XIX pelo então VigárioAgeral da Cúria, Monsenhor
Júlio Bicalho. TrataAse de um material de difícil acesso, uma vez que diz respeito
a propriedades da Igreja. Tais processos surgiram da necessidade de se comprovar
legalmente, após a Proclamação da República em 1889, a propriedade eclesiásA
tica sobre uma infinidade de patrimônios em terras que, desde o século XVIII,
haviam sido doados para a ereção e manutenção das capelas e igrejas. O número
relativamente baixo de processos de patrimônio disponíveis não deve causar imA
pressão, haja vista as enormes dificuldades em reunir testemunhos. Na maior
parte das capelas e igrejas mais antigas do arcebispado de Mariana, os documenA
tos relativos à doação dos patrimônios simplesmente perderamAse, e nem sempre
era possível localizar termos de doação no próprio arquivo da Cúria ou nos cartóA
rios civis. O empenho incansável de Bicalho brindouAnos entretanto com um
conjunto de fontes de enorme valor, já que tais dossiês permitem visualizar a traA
jetória de diversas localidades mineiras, desde a construção dos templos primitiA
vos e a formação dos primeiros conjuntos de casas até a virada para o século XX.
Quando se mostravam infrutíferas as tentativas de recuperar originais ou cópias
de documentos, o VigárioAgeral de Mariana orientava os párocos a realizar verdaA
deiros inquéritos e entrevistas com os moradores mais idosos de determinada
cidade ou arraial. Devemos à seriedade com a qual ele se dedicou a esta tarefa alA
guns dos mais preciosos testemunhos utilizados neste trabalho.
Os livros dos viajantes que percorreram Minas Gerais no século XIX são outra
importante fonte de informação. É notável que, salvo Azevedo, os geógrafos não
tenham se utilizado destes relatos, alguns deles bastante cuidadosos nas descriA
ções do fenômeno urbano em seus distintos níveis de complexidade. Por outro
lado os viajantes deixaramAnos testemunhos fundamentais sobre a religião popuA
lar mineira, em especial sobre aquelas práticas cotidianas que as fontes de tipo
oficial (tanto civis quanto eclesiásticas) normalmente desprezam.
26

Dois importantes instrumentos de pesquisa já citados anteriormente devem


ainda ser mencionados: a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (EMB) e o
Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais (DHGMG). O que faz dos três
volumes da EMB dedicados a Minas uma fonte particularmente interessante é o
fato de que nela se reproduzem sagas e mitos de origem relativos aos primórdios
de um grande número das cidades do estado. Postas de lado por Barbosa e mesmo
por sacerdotes que se interessaram pela evolução urbana mineira, como MonA
senhor Lefort, tais sagas e mitos (seguramente recolhidas da tradição oral) permiA
temAnos analisar em que medida o universo religioso popular concebe a origem
da cidade. Em outras palavras, como representações religiosas e instituição do
espaço se condicionam mutuamente.
Um último e ainda pouco explorado recurso são as obras de alguns escritores
mineiros, em especial as de Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimarães e João
Guimarães Rosa. Aspectos da vida cotidiana dos nossos embriões de cidades,
difíceis de serem identificados através das fontes tradicionais, recebem norA
malmente maior atenção por parte do romancista. Desde que utilizada com o deA
vido cuidado, a literatura enriquece o retrato que os viajantes fizeram de Minas,
de seus arraiais e especialmente da visão de mundo de seus habitantes. O fato da
obra de Guimarães Rosa ter sido escrita no século XX não diminui a importância
de sua contribuição. Tendo nascido e trabalhado por anos no Hinterland, em luA
garejos só muito incidentalmente afetados pela lógica do mundo propriamente
«urbano», Rosa tornouAse um exímio conhecedor da cultura popular e da paisaA
gem mineira.41 Sua extraordinária sensibilidade psicológica e sociológica convida
a servirmoAnos do seu gênio literário da mesma forma que um Weber serviuAse do
gênio de Tolstoi e Dostoievski.42 Mais que válido, trataAse de um procedimento
fundamental para que possamos penetrar no universo mental dos mineiros de ouA
trora, de vez que, como notou Alfred Schütz, «o poeta e o artista estão muito mais
próximos de uma interpretação adequada dos mundos dos sonhos e dos fantasmas
que o cientista e o filósofo, pois suas categorias de comunicação se referem, em
si mesmas, ao campo do imaginário».43

41 O seu tradutor para o alemão escreve, num prefácio, que Rosa «tem algo de antroA
pólogo, ornitólogo e especialista em pedras (Gesteinsforscher)». Curt MeyerAClaA
son, «Nachwort». In: Rosa, João Guimarães. Sagarana. Köln: Kiepenheuer &
Witsch, 1982, p. 18. Impressiona como esta obra, publicada pela primeira vez em
1946, oferece quase que uma versão literária do estudo de antropologia social de
Willems (e que viria à luz somente no ano seguinte) sobre o universo social, religiA
oso e cultural de uma pequena cidade paulista próxima da divisa com Minas GeA
rais. Ver Willems, Uma vila brasileira.
42 Sobre o tema, ver o depoimento de Honigsheim, Paul. «Max Weber in Heidelberg».
In: König, R. & Winckelmann, J. (Hrsg.) Max Weber zum Gedächtnis. Köln: WestA
deutscher Verlag, 1963, pp. 234A241.
43 Schütz, Alfred. «On multiple realities». In: Schütz, A. Collected papers. The pro
blem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973, p. 244.
27
27

2. Perspectiva teórico metodológica e problemas con


ceituais
2.1. Considerações gerais
Tem crescido, nos últimos anos, o número de pesquisadores insatisfeitos com os
rumos que alguns setores da historiografia vem tomando. Há uma sensação cresA
cente de que a superação do paradigma dominante até meados da década de 1980
– de uma história das estruturas sócioAeconômicas, quantitativa ou de perfil marA
xista para uma história da cultura e das mentalidades – se faz muito mais a nível
temático que teóricoAmetodológico. Formalmente, é verdade, nunca se deixa de
falar em «teoria». Os problemas surgem quando se trata de averiguar a eficácia
dos conceitos empregados, ou mesmo em saber se sua aplicação é adequada. Tais
deficiências exprimem duas ordens distintas de problemas. De um lado elas apeA
nas reproduzem as contradições do paradigma ora dominante; de outro, elas dão a
pensar o dilema da autoAcompreensão da história enquanto disciplina científica.
Não parece ser uma mera coincidência que, precisamente num tal contexto, ela
tenha assumido, e em proporções antes impensáveis, o status de gênero «vendáA
vel». A historiografia tornouAse, no entender do filósofo Horst Günther, um gêA
nero «estimado mais pela mídia que pela ciência».1
O que impressiona quando se acompanha a produção atual de setores da coA
munidade historiográfica é menos a massiva filiação à história das mentalidades
ou à história cultural que a forma por meio da qual esta filiação tem se procesA
sado. Se as novas tendências contribuíram de forma inequívoca para a superação
dos limites da historiografia, não é menos verdade que essa nova tradição tem
sido marcada por um visível déficit no plano epistemológico. Numa longa entreA
vista publicada em Geschichte und Gesellschaft sobre as relações entre história e
sociologia, Pierre Bourdieu afirmou que «apesar de certos aggiornamentos técniA
cos nos anos 1960, a história permanece centrada, na sua definição dominante,
numa espécie de contato sagrado com os arquivos».2 O «culto do estilo elegante»
e a «desconfiança» em relação aos conceitos seriam ainda, para Bourdieu, traços
típicos do trabalho dos historiadores franceses. De fato, não se pode dizer que
autores que se preocuparam em dar uma densa fundamentação teórica às suas
pesquisas – como Marc Bloch, Marcel Granet, Fernand Braudel, JeanAPierre VerA
nant, Paul Veyne ou Roger Chartier – tenham constituído uma maioria. Na InA
glaterra o quadro não é diferente. Lynn Hunt observou como os trabalhos pioneiA
ros de Edward Thompson e Charles Tilly abriram todo um novo campo de pesA
quisas sem que muitos dos que se diziam por eles inspirados mantivessem o
mesmo rigor científico: «quanto mais a história social avançava, menos ela estava

1 Günther, Horst. «Historiker ohne Geschichte». In: Die Neue Rundschau 105 (1)
1994: 31A40, p. 38.
2 Bourdieu, Pierre und Raphael, Lutz. «Über die Beziehungen zwischen Geschichte
und Soziologie in Frankreich und Deutschland». In: GG (22) 1996: 62A89, p. 67.
28

ligada a um projeto teórico qualquer».3


Sacralização do levantamento documental e escassa preocupação a nível proA
priamente teórico. Um sinal evidente da pregnância deste habitus é a recorrente
advertência quanto ao «perigo» do uso de modelos estabalecidos a priori (para
usar uma fórmula consagrada: quanto ao «risco de se ajustar os fatos aos modeA
los, e não o contrário»). Nada perdeu em atualidade a observação feita por Max
Weber em 1906, de que «justamente os historiadores – através da forma através
da qual eles tentaram fundamentar a particularidade da ‹história› no sentido téc
nico da palavra – contribuíram não menos para a consolidação do preconceito de
que o trabalho ‹histórico› seria algo qualitativamente distinto de um trabalho
‹científico›».4 Ora, nenhum empreendimento científico pode prescindir do uso de
hipóteses, categorias e, eventualmente, esquemas interpretativos («teorias») anteA
cipadamente definidos – mesmo e principalmente quando se pretende refutáAlos.
Os conceitos funcionam como marcos a partir dos quais o cientista delineia seu
objeto e estabelece seus objetivos. O exame cuidadoso dos dados atestará a valiA
dade das hipóteses e do aparato teórico utilizado, permitirá reelaborar alguns dos
seus postulados ou, no limite, demonstrará a inadequação do modelo. Para o
cientista os seus dados constituem um meio, nunca um fim em si mesmo. DescoA
brir «regularidades» e «relações» é o seu maior intento, e o modo mais eficaz (talA
vez mesmo o único) de atingíAlo é fazer uso de conceitos e teorias.5 Que se pode
esperar de um campo do conhecimento marcado pela resistência a se entregar a
tais tarefas? Em outros termos: de uma disciplina na qual está difundida a crença
de que a estrutura narrativa é dotada de eficácia explicativa? No mais das vezes a
história se contenta, na sua praxis – embora isso raramente seja admitido a nível
do discurso –, em ser aquilo que Husserl chamava de Tatsachenwissenschaft, uma
disciplina meramente descritiva. Basta observar, e isso na grande maioria dos
estudos, a discrepância entre a cuidadosa análise do corpus documental e o exíA
guo espaço dedicado à discussão das categorias de análise a serem empregadas.

3 Hunt, Lynn. «History beyond social theory». In: Carroll, David (ed.). The states of
«theory». History, art, and critical discourse. New York: Columbia University
Press, 1990, p. 96.
4 Weber, Max. «Zur Auseinandersetzung mit Edward Meyer». In: Weber, M. Gesam
melte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1988 (1922), pp.
216A217.
5 Desnecessário dizer que nosso modelo de ciência histórica em nada lembra o de
Popper. Para o mais ilustre representante do «racionalismo crítico», «history is chaA
racterized by its interest in actual, singular, or specific events, rather than in laws
or generalizations». Popper, Karl. The poverty of historicism. London: RoutA
ledge/Kegan Paul, 1966 (1957), p. 143. Mesmo admitindo que Popper possa ter raA
zão em sua crítica ao componente teleológico de determinadas teorias da história e
à utopia de uma ciência da sociedade que identifique «leis», não nos parece realista
negar à história e à sociologia a capacidade de apontar determinadas regularida
des.
29

O momento atual da epistemologia certamente reforça tal atitude. Se bem que


por vezes justificada, a crítica dita «pósAmoderna» demonstra o impasse vivido
nas ciências humanas como um todo, de modo que a abertura de novos campos
de pesquisa se faz numa espécie de vácuo teórico, ou, na melhor das hipóteses,
como ironiza Marc Augé, num contexto em que «teorias da nãoAteorização» gaA
nham terreno.6 O que infelizmente está longe de ser mera força de expressão. Há,
nos dias de hoje, quem chegue a falar em «pósAteoria».7 O impacto desse estado
de coisas sobre a disciplina histórica é imediato, sobretudo no campo da «nova»
história cultural.8
Jörn Rüsen mostrou como o «retorno à narrativa» nos últimos decênios temAse
desenvolvido, de um lado, em prejuízo do ideal de objetividade, e, de outro,
numa sobreAvalorização da «ficcionalidade» no trabalho do historiador. Rüsen
considera que «essa poetização do conhecimento histórico está intimamente relaA
cionada com a falta de uma metodologia da interpretação histórica».9 O holandês
Chris Lorenz, em seu excelente manual de introdução à teoria da história, observa
que iniciativas como a de Hayden White implicaram numa substituição de proA
blemas relativos à epistemologia por questões de ordem estética e estilística. O
momento da pesquisa é artificialmente separado do da escrita da história, mas é
sobretudo por este último que a perspectiva «pósAmoderna» se interessa.10

6 Augé, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997, p. 28.
7 Numa obra dedicada à discussão da «postAtheoretical condition » (sic), Fernando de
Toro reforça o coro daqueles que acreditam que «the whole epistemological edifice
[has collapsed], particulary the one based on the faith in science». Barry Rutland
advoga, no mesmo volume, que «postAtheory refers to the limits of theory and the
surpassing of those limits. (...) /Post/ implies a further effort of theorization,
within, but perhaps also against, the parameters of theory. PostAtheory is the other
of theory (...)». De Toro, Fernando (ed.) Explorations on post theory: toward a
third space. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 1999, pp. 10 e 72. Só nos
resta concordar com Luhmann quando ele escreve que «uma das características
centrais do pensamento pósAmoderno é a sua fundamentação última num paradoxo.
O paradoxo é a ortodoxia do nosso tempo ». Luhmann, Niklas. Die Gesellschaft der
Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p. 1144.
8 Conferir as oportunas críticas de Wehler, HansAUlrich. Historisches Denken am
Ende des 20. Jahrhunderts (1945 2000). Göttingen: Wallstein, 2001, pp. 71A78.
9 Rüsen, Jörn. «Narratividade e objetividade na Ciência Histórica». In: EIA 24 (2)
1998: 311A335, p. 327. Ainda sobre as polêmicas em torno do narrativistic turn,
ver Adam, A. M. «On the methods of history». In: Philosophy of the Social
Sciences 29 (2) 1999: 315A324, p. 319.
10 O extenso debate em torno do «pósAmodernismo» no âmbito da historiografia é
admiravelmente sintetizado por Lorenz, Chris. Konstruktion der Vergangenheit.
Eine Einführung in die Geschichtstheorie. Köln: Böhlau, 1997, pp. 134A187. Ver
ainda Lorenz, Chris. «Comparative historiography: problems and perspectives». In:
HT (38) 1999: 25A39; Archila, Mauricio. «Es aún posible la búsqueda de la verdad?
30

É notório que tais dilemas não se limitam à historiografia. O linguistical turn


de um Richard Rorty está intimamente ligado ao «clima» hoje dominante nas
ciências humanas.11 TomeAse ainda a figura de um Paul Feyerabend, o qual proA
põe um modelo de construção do conhecimento que se aproxima perigosamente
de uma legitimação do subjetivismo. Seu mote (anything goes) lembra o do perA
sonagem trágico de Dostoievski, o intelectual Ivan Karamázov: «tudo é permiA
tido». Feyerabend chega a propor que o avanço da ciência não se realiza apenas
pela formulação de teorias alternativas às teorias já consolidadas, mas também
pelo desenvolvimento de teorias incompatíveis com fatos comprovados.12 O reA
lativismo tende assim a atingir assim sua forma paroxística, há muito denunciada
por Husserl: ele culmina com «a bancarrota do conhecimento objetivo».13 Os
efeitos colaterais desse Feierabend der Erkenntnis não são difíceis de perceber à
nossa volta. Se «tudo vale», até mesmo sustentar hipóteses não amparadas em faA
tos, um Luiz Mott pode especular sobre as preferências sexuais de Zumbi, líder
do Quilombo de Palmares; da mesma forma que historiadores (ditos «revisionisA
tas») como David Irving contestam que o extermínio dos judeus tenha acontecido
ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Um diagnóstico de curto espectro, como o oferecido por Rüsen, limitaAse aos
quadros da nossa própria disciplina e mostra como os debates em torno do neoA
historicismo refletem um problema (ou antes: um dilema) estrutural da ciência
histórica.14 Rapidamente nos damos conta, ao adotarmos uma perspectiva «esA
trutural», de que os impasses da historiografia refletem a crise das ciências humaA
nas e mesmo da autoAcompreensão do Ocidente como um todo. Numa análise que
deve muito aos brilhantes estudos de Arnold Gehlen15, Peter Berger e Thomas

Notas sobre la (nueva) historia cultural». In: Anuario Colombiano de Historia


Social y de la Cultura (26) 1999: 251A285.
11 Ver Rorty, Richard. «Method, social science, and social hope». In: Seidman, Steven
(ed.) The postmodern turn. New perspectives on social theory. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994.
12 Coutinho, Francisco A. «O modelo epistemológico de Paul Feyerabend e os eleA
mentos irracionais do progresso científico ». In: Revista da Fundação Educacional
Monsenhor Messias (5) 1998: 19A44, p. 30.
13 Husserl, Edmund. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzen
dentale Phänomenologie. Hamburg: Felix Meiner, 1996 (1936), p. 97.
14 Rüsen, Jörn. «Historismus als Wissenschaftsparadigma. Leistung und Grenzen eiA
nes strukturgeschichtlichen Ansatzes der Historiographiegeschichte». In: Oexle, O.
G. & Rüsen, J. (Hrsg.) Historismus in den Kulturwissenschaften. Köln: Böhlau,
1996, p. 126A127.
15 Gehlen, Arnold. «Über kulturelle Kristallisation». In: Gehlen, A. Studien zur An
thropologie und Soziologie. Neuwied: Luchterhand, 1963. O autor argumenta que
o nível crescente de complexidade das sociedades contemporâneas exprimeAse,
tanto no plano da arte como no da ciência, por meio da especialização, da pluraliA
zação e da conseqüente impossibilidade de surgimento de novas Weltanschauun
gen (para usar a terminologia de Augé: «retóricas intermediárias »). Donde se conA
31

Luckmann mostram como o processo de modernização, assentado em meios técA


nicoAcientíficos, levou à constituição de um tipo de pluralismo cujas formas mais
recentes têm implicado numa pulverização das instâncias produtoras de sentido.
A nível individual o pluralismo contemporâneo é experimentado por meio de uma
sensação permanente de desorientação; e, a nível coletivo, por crises de sentido
intersubjetivas.16 PoderAseAia acrescentar que, no âmbito das ciências humanas, e
especialmente em disciplinas como filosofia, antropologia, sociologia e história,
as crises de sentido têm se exprimido por meio do ultraArelativismo, do ceticismo
teórico e do conformismo prático.
Para fazer frente a este momento de refluxo do ideal de objetividade na disciA
plina histórica, é absolutamente fundamental concentrar esforços a nível teórico.
Numa palavra: precisamos menos de «descrições densas» que de explicações denA
sas.17 Isso não significa que o historiador desconheça o quanto a subjetividade é
parte constitutiva do processo através do qual um determinado objeto é eleito, reA
construído empiricamente e analisado. SabeAse, e isso bem antes do advento do
«pósAmodernismo», que uma visão radicalmente dicotômica da oposição entre
objetividade e subjetividade não responde às necessidades de um investigador
interessado em zelar pelo rigor de seu trabalho. A ciência também nasce de um
diálogo com a (e mesmo uma utilização consciente da) própria subjetividade.18
A este respeito, é revelador que a obra revolucionária de um Gilberto Freyre –
e há quem a considere tão importante e original quanto a de Braudel19 – tenha
sido ignorada pelos historiadores brasileiros durante praticamente meio século.
Para Freyre a concepção rankeana de objetividade era, antes, um entrave a ser suA
perado. Ele se propusera a escrever uma história que fosse «uma aventura de senA
sibilidade, [e] não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos».20 Somente
depois de incorporada entre nós a noção de nova história emanada dos Annales, o
sociólogo e historiador pernambucano passou a receber a atenção que lhe é de

clui que a assim chamada «crise» dos paradigmas deveAse, em boa parte pelo meA
nos, à profusão de paradigmas.
16 Berger, Peter und Luckmann, Thomas. Modernität, Pluralismus und Sinnkrise. Die
Orientierung des modernen Menschen. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 1995.
17 O entusiasmo com que a obra de Clifford Geertz foi recebida nos últimos anos
provavelmente não teria sido o mesmo caso os historiadores estivessem atentos às
críticas que lhe fazem outros importantes representantes do pensamento antropolóA
gico contemporâneo, tais como Ernst Gellner, Marc Augé, Roy D’Andrade e ThoA
mas Schweizer.
18 Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften..., pp. 100A108. Para uma
síntese das discussões a respeito no âmbito da historiografia, ver Kocka, Jürgen.
Sozialgeschichte. Begriff, Entwicklung, Probleme. Göttingen: Vandenhoeck &
Ruprecht, 1986, p. 40A45; e Lorenz, Konstruktion der Vergangenheit, pp. 367A383.
19 «Freyre’s originality of approach puts him in the same class as Braudel». Burke,
Peter. History and social theory. Ithaca: Cornell University Press, 1993, p. 17.
20 Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1995 (1933), p.
lxv.
32

direito. O que torna o caso brasileiro singular é o fato de que livros como Casa
grande & Senzala (1933) ou Sobrados e Mucambos (1936), que constituíam, em
si mesmos, um programa de renovação radical da ciência histórica21, não tenham
tido este impacto no país de origem daquele que os escreveu. Por que a obra de
Gilberto Freyre não deflagrou entre nós uma reviravolta semelhante à causada
por Marc Bloch e Lucien Febvre na França, E. P. Thompson e E. Hobsbawm na
Inglaterra ou Werner Conze na Alemanha?
Para entender este fenômeno não basta nos limitarmos a constatar o «complexo
de inferioridade» que marca uma camada representativa do campo sócioAcultural
brasileiro, ou ainda as disputas regionais que marcaram a institucionalização das
ciências humanas em nossas Universidades («escola paulista» versus «escola de
Recife»). É preciso que se entenda em que medida a relação ambígüa da história
com outras disciplinas parece ser constitutiva do seu próprio ethos. Daí que peA
riodicamente surjam vozes a reclamar uma aproximação. Fernand Braudel claA
mava, há tempos, por um diálogo mais intenso entre história e ciências sociais.
Na década de 1970 HansAUlrich Wehler, Reinhardt Koselleck e Paul Veyne chaA
mavam a atenção para a «indigência teórica» e os riscos do «impressionismo» na
historiografia. Quase vinte anos depois, Peter Burke insistia ainda na importância
de os historiadores «levarem a teoria social mais a sério do que normalmente o
fazem», enquanto Roger Chartier falava da importância de se empreender uma
releitura dos clássicos da sociologia.22 A conclusão é clara. Se há tanto tempo se
insiste na importância de aproximar a história da metodologia e do aparato conA
ceitual das ciências sociais, é porque houve e continua a haver resistência. Não
sem razão, Hunt e Lorenz diagnosticam uma hostilidade à teoria entre os historiA
adores.23 As palavras de Sérgio Buarque resumem bem, ao nosso ver, um tipo de

21 Quando do aparecimento da edição francesa de Casa grande & Senzala, Roland


Barthes escreveu: «C’est la quadrature du cercle des historiens, presque réalisé ici,
le point ultime de la recherche historique». Barthes, Roland. Oeuvres complètes
(1942 1965). Paris: Du Seuil, 1993, p. 210.
22 Braudel, Fernand. «Historia e sociología». In: Gurvich, Georges (org.) Tratado de
sociología. Buenos Aires: Kapelusz, 1962; Braudel, F. História e ciências sociais.
Lisboa: Presença, 1972; Wehler, HansAUlrich. «Soziologie und Geschichte aus der
Sicht des Sozialhistorikers». In: Ludz, P. C. (Hrsg.) Soziologie und Sozialge
schichte. Aspekte und Probleme. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1972, p. 60, 67A
70; Koselleck, Reinhardt. «Über die Theoriebedürftigkeit der GeschichtswissenA
schaft». In: Schieder, T. & Graübig, K. (Hrsg.) Theorieprobleme der Geschichts
wissenschaft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1977, p. 48; Veyne,
Paul. «L’histoire conceptualisante». In: Le Goff, Jacques & Nora, Pierre (ed). Faire
de l’Histoire. Paris: Gallimard, 1974 (vol I), p. 71; Burke, History and social
theory, p. 164; Chartier, Roger. «Zeit der Zweifel. Zum Verständnis gegenwärtiger
Geschichtsschreibung». In: Conrad, C. und Kessel, M. (Hrsg.) Geschichte schrei
ben in der Postmoderne. Beiträge zur aktuellen Diskussion. Stuttgart: Reclam,
1994, p. 91.
23 Hunt, «History beyond social theory», p. 95; Lorenz, Konstruktion der Vergangen
33

atitude que continua comum entre nós:


«Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental apurado e fatigante, as
idéias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da
inteligência, parecemAnos constituir a verdadeira essência da sabedoria.»24
Uma historiografia que insiste em reservar um papel secundário à teoria, ou (o
que é igualmente grave) que se relaciona com ela de forma passiva, não está em
condições de fazer frente à tentação do impressionismo ou ao ceticismo «pósAmoA
derno». Sem rigor lógico, sem precisão conceitual, sem a constituição de tipos
ideais,25 não há como lançar as bases para a superação do estado de indigência
epistemológica que ainda dá o tom em amplos setores da pesquisa histórica.

2.2. Espaço
2.2.1. O retorno do espaço
As línguas ocidentais dão prova, por meio de expressões tão difundidas como ter
lugar, to take place, avoir lieu (no caso do alemão, um verbo: stattfinden), que a
existência de um dado fenômeno está em relação direta com a sua espacialidade.
Esquecidos da verdade desta constatação elementar, voltamos nossa atenção preA
ferivelmente para aquela dimensão que nos parece ser a única efetivamente «diA
nâmica» em se tratando da vida do homem em sociedade. O tempo constitui, no
berço da civilização judaicoAcristã, quase que um valor em si mesmo. Neste conA
texto cultural tornaAse possível afirmar que «a verdade tem um núcleo feito de
tempo» (Heidegger). Esta inclinação pela diacronia adquiriu sua expressão máA
xima com o capitalismo e o advento do mais poderoso dos mitos por ele infundiA
dos: o mito do «progresso». Talvez seja justamente a crise deste ideal um dos faA
tores que explique a redescoberta, hoje mais evidente do que nunca, do espaço.
SenteAse enfim o impacto de uma reviravolta que se processa há tempos em disA
ciplinas como a filosofia e a geografia. A década de 1990 evidenciou o que poA
deríamos chamar de retorno do espaço.
Mas afinal o que se quer dizer quando se fala em «retorno»? O uso desta noção
não será tão problemático quanto o daquela outra, igualmente disseminada nos
últimos anos, a noção de «fim»? Falar em «retorno à narrativa», «retorno do saA
grado» ou «retorno do espaço» não implica uma mera inversão da tendência em se
falar em «fim da memória» (Nora), «fim da Revolução Francesa» (Furet), «fim da
história» (Fukuyama)? Em termos. O problema surge quando se postula que feA

heit, p. 13.
24 Holanda, Raízes do Brasil, p. 117.
25 Habermas, Jürgen. Zur Logik der Sozialwissenschaften. Frankfurt: Suhrkamp,
1970, pp. 103A125; Weber, Max. «Die ‹Objektivität› sozialwissenschaftlicher und
sozialpolitischer Erkenntnis ». In: Weber, Gesammelte Aufsätze zur Wissenschafts
lehre, pp. 146A214.
34

nômenos inerentes à vida social, como o são a memória ou a religião, possam


«acabar». Por outro lado, é perfeitamente legítimo falar em «fim» ou «retorno»
quando se trata de determinadas temáticas ou perspectivas analíticas (sejam elas
tidas como frutíferas ou não). Nosso uso da expressão «retorno do espaço» deve
ser assim compreendido: ela apenas diagnostica um fato; o fato de que a categoria
espaço voltou a ocupar nos dias de hoje um lugar de destaque nas ciências humaA
nas.
Esse retorno se faz sentir um pouco por toda a parte. Da sociologia à teoria da
história, da antropologia à ciência da religião.26
Este movimento pode ser igualmente constatado na historiografia. VoltaAse a
dar grande atenção à questão da fronteira. De um lado, a perspectiva de um LuA
cien Febvre27 ou um Sérgio Buarque de Holanda28 demonstra influenciar ou
coincidir com alguns estudos recentes, como o de Laura de Mello e Souza.29 Uma
outra leitura enfatiza não o espaço em si, mas as representações construídas a seu
respeito. Os precursores desta linha (tomaremos a liberdade de chamáAla culturaA
lista) parecem ter sido Aaron Gurjewitsch, Julio Caro Baroja e Jacques Le Goff.
No seu clássico sobre as categorias de pensamento do homem medieval, GurjeA
witsch dedicou um longo capítulo à análise das concepções espaciais.30 Sob a viA
sível influência de Simmel, Baroja publicou alguns estudos notáveis sobre as
formas de percepção da paisagem,31 enquanto que Le Goff dedicouAse à análise

26 Augé, Marc. Não lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade.


Campinas: Papirus, 1994 (1992); Luchiari, Maria T. «A categoria espaço na teoria
social». In: Temáticas 4 (7) 1996: 191A239; Hirsch, Eric & O’Hanlon, Michael
(eds.) The anthropology of landscape: perspectives on place and space. Oxford:
Claredon Press, 1996; Sanchis, Pierre. «Topos, raízes, identidade: um enfoque soA
bre o Brasil», mimeografado, 1997; Guelke, Leonard. «The relations between geoA
graphy and history reconsidered». In: HT 36 (2) 1997: 216A234; Gehlen, Rolf.
«Raum». In: HrwG, 3. Band (1998), pp. 377A398; Gieryn, Thomas F. «A space for
place in sociology». In: Annual Review of Sociology (26) 2000: 463A496; Löw,
Martina. Raumsoziologie. Frankfurt: Suhrkamp, 2001.
27 Febvre, Lucien. «Frontière – Wort und Bedeutung». In: Raulff, Ulrich (Hrsg.) Lu
cien Febvre. Das Gewissen des Historikers. Berlin: Klaus Wagenbach, 1988;
Febvre, Lucien. Der Rhein und seine Geschichte. Frankfurt: Campus, 1995 (1925).
28 Holanda, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Cia das Letras,
1994 (1957).
29 Souza, Laura de Mello e. «Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos
caminhos, nas fronteiras e nas fortificações ». In: Souza, L. de M. e (org.) História
da Vida Privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São
Paulo: Cia das Letras, 1997, pp. 41A81. Ver também Potthast, B., Kohut, K. und
Kohlhepp, G. (eds.) El espacio interior de América del Sur. Frankfurt: Vervuert,
1999.
30 Gurjewitsch, Aaron. J. Das Weltbild des mittelalterlichen Menschen. München: C.
H. Beck, 1986 (1972).
31 Baroja, Julio Caro. «La interpretación históricoAcultural del paisage». In: RDTP
(37) 1982: 3A55; Baroja, J. C. «Arte visoria». In: RDTP (48) 1987: 7A48.
35

do deserto, da floresta e do purgatório no imaginário cristão.32 EnquadramAse


aqui ainda as iniciativas de David J. Robinson e RusselAWood em estudar, resA
pectivamente, o significado do «lugar» na América Latina e o caráter «metafórico»
da fronteira no Brasil Colônia.33 As relações entre espaço e mentalidade,
paisagem e memória, também têm chamado a atenção dos pesquisadores; da
mesma forma que a história de um espaço liminar tão especificamente brasileiro
como o sertão.34 VêAse, enfim, – e o amplo balanço feito por Bernd Schröter o
comprova35 – que o retorno do espaço consolidouAse como uma das tendências
principais da historiografia na passagem para o século XXI.
A questão dos limites da visão formalista do espaço, entretanto, não tem sido
discutida a fundo – com as honrosas exceções de Francisco Carlos T. da Silva e
Ciro Flammarion Cardoso36 – pelos historiadores brasileiros. Como domina ainda
a temática do espaço urbano, só aos poucos outras formas de experiência e perA
cepção espacial têm sido exploradas. A concepção tradicional de espaço, ainda
hoje majoritária entre historiadores, é a de que ele se reduz a um «palco». Seja
dito: autores como Lucien Febvre e Fernand Braudel deram uma esplêndida
contribuição à difusão desta concepção empobrecida do espaço.
As posições de Febvre foram sistematicamente apresentadas num livro publiA
cado em 1922, La terre et l’evolution humaine. Toda a primeira parte desta obra é
dedicada à crítica daquilo que o próprio autor celebrizou com a expressão «deA
terminismo geográfico». Para Febvre a expressão mais elaborada do determiA

32 Le Goff, Jacques. La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1981; Le Goff, J.


«Le désertAforêt dans l’Occident médiéval». In: Le Goff, J. L’Imaginaire Médiéval.
Paris: Gallimard, 1985.
33 Robinson, David J. «A linguagem e o significado de lugar na América Latina». In:
RH (121) 1989: 67A110; RusselAWood, A. J. R «Frontiers in Colonial Brazil:
reality, myth, and metaphor». In: Covington, P. (ed.) Latin American frontiers,
borders and hinterlands. University of New Mexico, 1990.
34 Lecouteux, Claude. Démons et génies du terroir au Moyen Âge. Paris: Imago,
1995; Brunner, Karl. «Virtuelle und wirkliche Welt. Umweltgeschichte und MenA
talitätsgeschichte». In: Spindler, Konrad (Hrsg.) Mensch und Natur im mittel
alterlichen Europa. Flagenfurt: Wieser, 1998; Schama, Simon. «Landschaft und
Erinnerung». In: Conrad, C. und Hessel, M. (Hrsg.) Kultur und Geschichte. Neue
Einblicke in eine alte Beziehung. Stuttgart: Reclam, 1998; Carrara, Ângelo Alves.
«O ‹sertão› no espaço econômico da mineração». In: LPH – Revista de História (6)
1996: 40A48; Araújo, Emanuel. «Tão vasto, tão ermo, tão longe: o sertão e o
sertanejo nos tempos coloniais». In: Del Priore, M. (org.) Revisão do paraíso. Rio
de Janeiro: Campus, 2000; Carrara, Ângelo Alves. «Paisagens de um grande sertão:
a margem esquerda do médioASão Francisco nos séculos XVIII a XX». In: Ciência
e Trópico 29 (1) 2001: 61A123.
35 Schröter, Bernd. «Bemerkungen zu einer Historiographie der Grenze». In: JbLA
(31) 1994: 329A360.
36 Silva, Francisco Carlos T. da. «História das paisagens». In: Cardoso, Ciro F. e
Vainfas, R. (org.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997; Cardoso,
Ciro F. «Repensando a construção do espaço». In: RHR 3 (1) 1998: 7A23.
36

nismo se encontra na concepção de geografia desenvolvida por Friedrich Ratzel


em seus Anthropogeographie e Politische Geographie. Curiosamente, boa parte
de suas ressalvas a Ratzel são tomadas das páginas do órgão oficial da escola soA
ciológica francesa, o Année Sociologique. Durkheim havia sugerido, em lugar da
geografia do homem, uma disciplina denominada «morfologia social», entendida
enquanto subAárea da sociologia.37 Febvre se agarra a esta proposta, e sentencia
no seu livro: «renasce assim das cinzas, mas sob uma denominação distinta, a anA
tropogeografia anteriormente imolada sobre o altar do confusionismo». Fatos
históricos e fatos geográficos, diz ele, são coisas distintas. Pretender intercaláAlos
«é impossível, é absurdo». Ao invés da ciência «confusa», «ambiciosa», «determiA
nista» que seria a geografia humana de Ratzel, Febvre defende a adesão dos geóA
grafos ao programa estipulado pela sociologia. A geografia, diz o historiador
Febvre, deve ser «modesta». Ela deve ser «a ciência dos lugares».38
A veemência destes ataques é surpreendente quando se sabe que nada há de
confuso na concepção de geografia humana elaborada por Ratzel. Segundo este a
geografia deve estar intimamente associada à história, mas nunca numa condição
de «ciência auxiliar», rótulo que ele repudiava vigorosamente. Essa proximidade
entre ambas advém do fato que há uma evidente interArelação entre espaço e hisA
tória. Se «a história não pode ser entendida sem seu chão», é igualmente verdade
que «a geografia de qualquer lugar da terra não pode ser apresentada sem o coA
nhecimento da história que nele deixou suas marcas».39
Num ponto Febvre tem razão. Ratzel havia estabelecido um programa ambiciA
oso, talvez tão ambicioso quanto o dos Annales. Obviamente o olhar do geógrafo
tende a se deslocar para «as relações dos homens com o seu chão», mas há aqui
duas inovações fundamentais (não nos esqueçamos que o primeiro volume da
Anthropogeographie foi publicado em 1882). Ratzel diz que a antropogeografia
deve se ocupar tanto com o «onde» quanto com o «para onde». Ela é bem mais
que uma modesta «ciência dos lugares», ela é uma ciência do movimento, da diA
nâmica do elemento humano sobre a terra. Basta pensar em contextos históricos
profundamente marcados pelo desenraizamento, como é o caso da Minas Gerais
dos séculos XVIII e XIX, para nos darmos conta da importância deste enfoque.
Por outro lado, a dialética entre espaço e história não se processa apenas num
nível puramente formal. O espaço influencia a constituição física e mesmo a
mentalidade (o «espírito») de um grupo. TrataAse de processos – admite ele – traA
dicionalmente estudados pela fisiologia e pela psicologia, «todavia a antropogeoA
grafia não passará à margem dos conhecimentos adquiridos na descrição de regiA

37 Durkheim e Mauss não chegaram a redigir uma apresentação sistemática da nova


disciplina. Este trabalho foi levado a cabo por Halbwachs, Maurice. Morphologie
sociale. Paris: Armand Colin, 1970 (1938).
38 Febvre, Lucien. La terre et l’évolution humaine. Paris: Albin Michel, 1970 (1922),
pp. 47, 49, 73, 76. O grifo é nosso.
39 Ratzel, Friedrich. Anthropogeographie. Grundzüge der Anwendung der Erdkunde
auf die Geschichte. Stuttgart: J. Engelhorn, 1909 (1882), pp. 50, 55.
37

ões e povos».40
Durkheim se opôs a esta última intenção (em sua resenha do livro de Ratzel
publicada no terceiro volume do Année), sob o argumento de que a sociologia reA
ligiosa é que deveria se ocupar com o impacto do meio natural sobre as repreA
sentações coletivas. Febvre, duas décadas mais tarde, não fez senão reproduzir a
mesma argumentação.41 Que uma disciplina possa ter a pretensão de estabelecer,
mesmo a posteriori, os limites e o objeto de uma outra, parece ser um fenômeno
típico de fases em que jovens ciências se institucionalizam. A conseqüência deste
imperialismo interAdisciplinar foi a progressiva redução da geografia à condição
de «ciência auxiliar»; assim como a perpetuação da antiga noção de que o espaço
é um simples invólucro da história.
Ratzel escreveu que a antropogeografia é uma ciência descritiva. E acrescentou
logo em seguida: «ser descritiva só representa uma censura para uma ciência se
ela nada mais é além disso». Para tanto a antropogeografia deve ser uma «ciência
comparada», uma geografia rica em idéias (vergeistigte Erdkunde) e que identifiA
que leis. Leis similares às da química, às da física? Não, nem ela nem as demais
disciplinas que lidam com o homem em sociedade poderiam alimentar tal pretenA
são; pois «um povo, tanto quanto um ser humano, demonstra ter uma vontade
livre. Mas por toda a parte em que essa vontade se converte em ações, ela tem de
levar em conta os limites que lhe são impostos pelas condições de existência».42
Parece algo superada hoje, em alguns aspectos, essa forma de analisar a dialéA
tica entre o espaço e sociedade. Ratzel elege o «povo» e a «nação» como categoA
riasAchave, o que é fácil de se entender se levarmos em conta que a historiografia
da sua época se ocupava predominantemente com a esfera da política e das relaA
ções entre os Estados Nacionais. O que surpreende é que o fundador da geografia
humana vai além, e incorpora grande quantidade de dados etnográficos às suas
reflexões. Em nenhum momento de sua análise ele separa povos «civilizados» de
povos «primitivos». Aquela idéia tão difundida no século XIX, a de que os «priA
mitivos» não teriam história, não encontra eco nas obras de Ratzel. A etnografia
era uma de suas paixões, e um dos fundadores da antropologia norteAamericana,
Franz Boas (o futuro mestre de Gilberto Freyre), tinhaAo como uma de suas maioA
res influências. Mas a abordagem da antropogeografia não é monográfica como
tende a ser a da etnologia, e isso já fora claramente admitido por seu fundador.43
Essa ampla perspectiva comparada levouAo a desenvolver a noção de «concepção
de espaço» (Raumauffassung): a forma através da qual uma coletividade concebe
a extensão em que vive.44 Caso este conceito não fosse dotado de uma coloração

40 Ratzel, Anthropogeographie, pp. 49A50.


41 Febvre, La terre..., pp. 45A46.
42 Ratzel, Anthropogeographie, pp. 59, 63. O grifo é nosso.
43 A antropogeografia ambiciona «die Völker als ganze, als zusammenhängende KörA
per sich vorzustellen; sie ist wesentlich einheitlich, die Ethnographie dagegen weA
sentlich auf das Trennende gerichtet». Ratzel, Anthropogeographie, p. 59.
44 Ratzel, Friedrich. Politische Geographie. München: Oldenbourg, 1897, pp. 334A341.
38

tão marcadamente materialista, dirAseAia que ele poderia ter desempenhado um


papel tão frutífero quanto o da noção durkheimiana de «representação coletiva»,
da qual, num certo sentido, está muito próximo.
Não se pode dizer que o empenho de Febvre em desqualificar a contribuição
de Ratzel não tenha dado frutos. O historiador Nelson Werneck Sodré foi outro a
assumir para si a tarefa de redigir uma «Introdução à Geografia»; obviamente com
todas as críticas de direito ao «determinismo».45 Embora um Max Sorre tenha
chamado a atenção para o fato de que «seria bem pueril afastar com desprezo
tudo o que se chamou, às vezes, determinismo ratzeliano»,46 ou Yves Lacoste teA
nha demonstrado como Febvre manipulou cuidadosamente suas citações dos
clássicos da geografia francesa de modo a legitimar o seu projeto para esta disciA
plina,47 só muito recentemente passouAse a reavaliar com seriedade a importância
do legado ratzeliano.48
Com Fernand Braudel, o pai da assim chamada geoAhistória, verificaAse uma
reviravolta nesse quadro? De fato não. Se Braudel se interessa pelas grandes esA
truturas espaciais, como o Mediterrâneo, ele o faz antes de tudo para ressaltar a
existência de um outro regime de temporalidade, a longa duração (também idenA
tificada num outro plano, o do mito). A geografia mereceu de sua parte, numa
entrevista, o pouco honroso título de «ciência subjugada».49 A ascenção dos méA
todos quantitativos na década de 1970 pareceu acentuar ainda mais a concepção
formalista de espaço associada a esta visão empobrecida da geografia.50 Por tudo
isso tem razão Edward Soja ao afirmar que o historicismo, na sua supervalorizaA
ção da contextualização cronológica, implica, necessariamente, numa «subordiA
nação implícita do espaço ao tempo».51
A despeito de iniciativas como a de Koselleck52, a ciência histórica não deA
monstrou maior interesse em acompanhar a discussão desenvolvida em torno da

45 Sodré, Nelson Werneck. Introdução à Geografia. Petrópolis: Vozes, 1992.


46 Megale, Januário Francisco (org.) Max Sorre. São Paulo: Ática, 1984, p. 73.
47 Lacoste, Yves. A geografia. Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.
Campinas: Papirus, 1993, pp. 121A124.
48 Carvalho, Marcos B. de. «Ratzel: releituras contemporâneas. Uma reabilitação?».
In: Biblio 3w. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales (25) 1997
(www.ub.es/geocrit/bwAig.htm); Carvalho, Marcos B. de. «Diálogos entre as CiênA
cias Sociais: um legado intelectual de Friedrich Ratzel (1844A1904) ». In: Biblio 3w
(34) 1997.
49 A citação é feita por Lacoste, A geografia, p. 125.
50 É o caso do livro de Chaunu, Pierre. Histoire, Science Sociale. La durée, l’espace
et l’homme a l’époque moderne. Paris: Société d’Édition d’Enseignement SupéA
rieur, 1974.
51 Soja, Edward. «History: geography: modernity». In: During, Simon (ed.) The cultu
ral studies reader. London: Routledge, 1993, p. 140.
52 Koselleck, Reinhart. «Raum und Geschichte». In: Koselleck, R. Zeitschichten.
Studien zur Historik. Frankfurt: Suhrkamp, 2000, pp. 78A96. Este estudo, originalA
mente apresentado num congresso em 1986, faz justiça à contribuição de Ratzel
39

categoria espaço. Um nome a ser relembrado, e não só pelo seu pioneirismo, é o


de Georg Simmel. Publicada em 1908, sua Soziologie contém um extenso e rico
capítulo sobre as relações entre espaço e sociedade. Ratzel não é citado, mas a
alusão e a contraposição às suas teses é clara. Simmel afirma que nem tempo nem
espaço podem ser tidos, em si mesmos, como causas de fenômenos sociais.
Tempo e espaço configurariam meras coordenadas em que tais fenômenos se veA
rificam. Para ele, «em si mesmo, o espaço é uma forma destituída de eficácia,
onde, na verdade, as energias reais se manifestam». Que energias são estas e de
onde provêm? Formado na escola de pensamento kantiana, sua resposta não poA
deria ser outra: «o espaço é apenas uma expressão da alma».53 Nenhuma teoria é
elaborada, nenhum programa disciplinar é estipulado. Simmel prefere definir alA
guns problemas a serem explorados – como a relação que distintas formas de soA
cialização têm com o espaço ou a importância do que ele denominou «pontos de
rotação» (focos a partir dos quais irradiam forças de coesão e/ou subordinação).
Outro tema que Simmel explorou pioneiramente, e que o tornou conhecido entre
os historiadores brasileiros é o efeito da vida nas metrópoles sobre a vida espiriA
tual dos homens. A grande cidade é o locus por excelência da mentalidade moA
derna. Neste espaço gigantesco e racionalizado, dominado pela lógica econômica
capitalista, as relações entre os homens se automatizam e perdem o caráter pleno
que é comum nas pequenas cidades.54 Sua oposição entre metrópole e pequena
cidade é análoga à que Tönnies havia identificado entre sociedade e comunidade.
A atualidade da sociologia do espaço de Simmel é ainda mais flagrante quando
se sabe que ela se ocupa longamente com o problema da constituição e signifiA
cado dos limites e fronteiras. Há assim uma dialética entre coesão de um grupo e
os limites espaciais que ele ocupa. A unidade do grupo e a do seu espaço são inA
dissociáveis uma da outra. Esta questão aparece aqui sob uma ótica radicalmente
distinta da de um Ratzel ou de um Febvre. «A fronteira – diz Simmel – não é um
fato espacial que gera efeitos sociológicos, mas um fato sociológico que adquire
forma espacial. (...) Toda fronteira é um fenômeno espiritual, ou antes, sociolóA
gico».55 É fácil entender o caráter inovador desta visão da fronteira se se leva em
conta o domínio absoluto exercido até então pela perspectiva formalista.
Outra contribuição a ser ressaltada é a análise do «espaço mítico» proposta por
Ernst Cassirer. O espaço mítico é aquele espaço carregado de sentido, em oposiA
ção ao espaço que se apresenta aos nossos órgãos sensoriais (o «espaço geoméA

sem responsabilizáAlo (como se tornou lugar comum) pelos descaminhos da GeoA


política. Koselleck não deixa porém de chamar nossa atenção para «inúmeras pasA
sagens dubiosamente formuladas » nas obras de Ratzel (p. 88).
53 Simmel, Georg. «Der Raum und die räumlichen Ordnungen der Gesellschaft». In:
Simmel, G. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung.
Frankfurt: Suhrkamp, 1999 (1908), pp. 687A689.
54 Simmel, Georg. «Die Großstädte und das Geistesleben». In: Simmel, G. Aufsätze
und Abhandlungen (1901 1908). Frankfurt: Suhrkamp, 1995.
55 Simmel, «Der Raum...», pp. 697, 699.
40

trico»). Este é homogêneo, puramente funcional; enquanto que aquele é um esA


paço diferenciado, heterogêneo. Da mesma forma que Ratzel, Cassirer se utiliza
amplamente de material histórico e etnográfico. Mas como o centro de sua atenA
ção é a forma através da qual o espaço é vivenciado em sociedades ainda não
dominadas pelo pensamento racionalista, podeAse dizer que ele oferece as bases
para a constituição de uma antropologia do espaço que, àquela época, mal se deA
lineava. Cassirer portula que, «inversamente à homogeneidade que reina no conA
ceito geométrico de espaço, na concepção mítica cada lugar e direção são dotados
quase que de um acento próprio».56 A experiência básica do espaço se resumiria à
percepção de duas regiões qualitativamente opostas: uma cotidiana («profana») e
outra extraAcotidiana («sagrada»). Mesmo sistemas de orientação altamente comA
plexos, como o dos zuni, dos iorubás ou dos chineses se baseariam para ele na
mesma dicotomia primordial entre sagrado e profano. O fundamental para nós, no
momento, é perceber que em Cassirer a peculiaridade de um espaço é sobretudo
expressão da atividade simbolizante dos homens.57 O pensamento racionalista
moderno conseguiria perceber e classificar espaços segundo sua forma, mas não
mais – como no pensamento mítico – segundo sua qualidade.
A contribuição dos filósofos à análise do espaço readquire importância no iníA
cio da segunda metade do século XX com Gaston Bachelard e Otto Friedrich
Bollnow.58 O neoAkantismo de Simmel e Cassirer dá lugar ao método fenomenoA
lógico. O objetivo fundamental passa a ser identificar as formas básicas através
das quais o espaço se constitui na consciência. Martina Löw criticou neste méA
todo a sua pouca sensibilidade para com disparidades sociais e mesmo a sua «aA
historicidade».59 Sem dúvida: relações de poder e tensões entre classes ou grupos
não têm lugar nos estudos desses autores, mas apenas pelo fato de que o foco de
suas preocupações é outro. Não se trata de ignorar a dinâmica do espaço, mas de
perceber como a forma de nos relacionarmos com ele muitas vezes reproduz deA
terminadas estruturas do espírito humano. O princípio post hoc, propter hoc não
explica por que determinados elementos próprios à construção do espaço sagrado
se verificam de forma idêntica em contextos históricos e culturais radicalmente
distintos entre si. Nada seria mais contrário à lógica que pressupor que tudo
aquilo que se refere ao espaço só possa ser explicado no tempo. Os métodos hisA
tórico e fenomenológico não são entretanto excludentes entre si como muitas
vezes se afirma.60 Uma prova disso é a famosa conferência feita por Michel FouA

56 Cassirer, Ernst. Philosophie der symbolischen Formen. Das mythische Denken.


Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1958 (1923), p. 106.
57 «Die Sinnfunktion ist das primäre und bestimmende, die Raumstruktur das sekunA
däre und abhängige Moment». Cassirer, Ernst. Symbol, Technik, Sprache. Aufsätze
aus den Jahren 1927 1933. Hamburg: Felix Meiner, 1985, p. 102.
58 Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (1957);
Bollnow, Otto F. Mensch und Raum. Stuttgart: Kohlhammer, 1997 (1963).
59 Löw, Raumsoziologie, pp. 19A20.
60 O próprio Husserl parece ter sentido a necessidade de ressaltáAlo em alguns dos
41

cault em 1967, onde ele se propôs a fazer para os espaces autres algo semelhante
ao que Bachelard fizera para o espaço da casa.61 Foucault sugere o termo hetero
topias para aqueles espaços que, em toda sociedade, constituem como que ilhas
regidas por uma lógica à parte: hospícios, prisões, asilos de idosos, cemitérios,
jardins, museus, bibliotecas, feiras, casernas, etc. Foucault se distancia dos fenoA
menólogos ao centrar sua atenção na historicidade e no poder disciplinador que
caracteriza inúmeras heterotopias (e este é sem dúvida o aspecto mais proveitoso
da sua abordagem), mas ao mesmo tempo temAse a impressão que esta concepção
corre o risco de se autoAinvalidar à medida em que seu escopo é demasiadamente
ampliado. Se a lista das heterotopias é de fato tão extensa e variada como sugere
Foucault, podeAse então perguntar: qual é afinal o espaço do cotidiano por exceA
lência, do mundo da vida (Lebenswelt)? Pois só faz sentido invocar heterotopias
se a vida «normal» transcorre num regime «normal» de espacialidade. Ora: num
sentido estrito, só há heterotopias, uma vez que a heterogeneidade do espaço é
um dado elementar da experiência de qualquer grupo humano; ela não se limita,
como supunha Cassirer, às sociedades tradicionais. Se toda extensão é única,
tanto em termos do «feixe de relações» que comporta, quanto em termos da forma
através da qual é semantizada, a tarefa preliminar consistiria em caracterizar de
forma sistemática os espaços aos quais se adequa o termo heterotopia. É preciso
reconhecer, em todo o caso, que a morte precoce de Foucault provavelmente não
lhe permitiu dar continuidade a este trabalho.
A abordagem propriamente antropológica tomará uma direção bem diferente.
Na etnologia norteAamericana popularizouAse, entre 1930 e 1940, o uso do conA
ceito de «área cultural». Kroeber tinha utilizadoAse dele, pioneiramente, no seu
estudo das culturas indígenas da América do Sul, e Herskovits aplicouAo mais
tarde à África.62 Embora a categoria «área cultural» não rompa com a concepção
formalista de espaço (uma vez que visa identificar áreas geográficas dentro das
quais determinados traços de cultura se apresentam de forma homogênea), ela reA
presenta uma valiosa ferramenta de análise, como demonstram inúmeros estudos
no campo da etnoAlingüística. Num segundo momento esta preocupação de caráA
ter propriamente empírico dá lugar a um esforço de sistematização teórica. LéviA

seus últimos escritos: Husserl, Edmund. Die Krisis des europäischen Menschen
tums und die Philosophie. Weinheim: Beltz Athenäum, 1995 (1935). Ver ainda
Grathoff, Richard. Milieu und Lebenswelt. Frankfurt: Suhrkamp, 1995 (1989), pp.
117A118.
61 Foucault, Michel. «Des espaces autres». In: Foucault, M. Dits et écrits. 1954 1988.
Paris: Gallimard, 1994 (tome IV), pp. 752A762. Para uma análise da importância
do espaço na sua obra, ver Flynn, Thomas R. «Foucault and the spaces of history».
In: The Monist 74 (2) 1991: 165A186.
62 Herskovits, Melville. Antropologia cultural. São Paulo, Mestre Jou, 1973 (Cap.
XII: «Áreas Culturais: a dimensão espacial»). Sobre a história do conceito, ver
Ehrich, R. W. and Henderson, G. M. «Culture area». In: IESS, vol 3, pp. 563A568.
Para o caso brasileiro, ver Diégues Júnior, Manuel. Áreas culturais do Brasil. Rio
de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1960.
42

Strauss – dando continuidade a um projeto explicitado no famoso estudo de


Durkheim e Mauss sobre as «Formas primitivas de classificação» – defendeu a
tese de que existe «uma relação (...) entre a configuração espacial e a estrutura soA
cial» de um grupo.63 Sua própria concepção de morfologia social foi apresentada
num sofisticado estudo sobre o problema das «organizações dualistas» em grupos
indígenas da América do Norte, Melanésia e Brasil. Mais ou menos na mesma
época, Julian Steward desenvolveu as bases da «ecologia cultural», cuja proximiA
dade em relação às teses de Ratzel é evidente. Para Steward a ecologia cultural «é
o estudo dos processos através dos quais uma sociedade se adapta ao seu meio».
O pontoAchave é tentar entender em que medida «estas adaptações deflagram
transformações sociais internas ou transformações evolutivas».64 A proposta paA
receu não fazer muitos adeptos, possivelmente devido à influência crescente do
funcionalismo e a recusa deste último em incorporar a historicidade ao estudo das
«sociedades primitivas». A obra de Steward parecia ser vítima, aos olhos do paraA
digma funcionalista, de dois pecados capitais: «determinismo» e «evolucionismo».
Com o retorno do espaço dos últimos anos, ela tem servido de ponto de partida
para iniciativas como a de Morán.65
Não se deve deixar de mencionar a reviravolta experimentada pela geografia
na década de 1970 e a diversidade de orientações daí resultante. Na França, em
estreito diálogo com a tradição marxista, surge a geografia crítica. O espaço deixa
de ser o «palco» da vida social e da história para tornarAse o «locus da reprodução
das relações sociais de produção».66 Não seria de todo absurdo caracterizar a obra
de Henri Lefebvre, referência teórica fundamental dessa escola, como uma reação
marxista à perspectiva de Bachelard e dos antropólogos.67 A contribuição de
Foucault pode e deve ser inserida neste contexto de valorização das relações entre
espaço e poder («space is fundamental in any exercise of power»).68 Nos Estados
Unidos, os geógrafos tomaram uma direção diametralmente oposta – justamente a
criticada por Lefebvre. O excelente volume organizado por Lowenthal e BowA

63 LéviAStrauss, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1973 (1958), pp. 155A189; 331.
64 Steward, Julian. «Cultural ecology». In: IESS, vol. 4, p. 337. Ver ainda: Helm,
June. «The ecological approach in anthropology». In: American Journal of So
ciology (67) 1962: 630A639; e os artigos de Paul Baker, Marshall Newman e
Charles Frake em «Ecology and Anthropology: a symposium». In: American An
thropologist (64) 1962: 15A59.
65 Morán, Emilio F. Adaptabilidade humana. Uma introdução à antropologia ecoló
gica. São Paulo: Edusp, 1994.
66 Corrêa, Roberto L. «Espaço, um conceitoAchave da geografia». In: Castro, I. E.,
Gomes, P. C. e Corrêa, R. L. (orgs.) Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995, p. 25.
67 Lefebvre, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 1991 (1974).
68 Foucault, Michel. «Space, power and knowlegde». In: During, S. The cultural
studies reader, p. 168.
43

den,69 ou ainda os conhecidos trabalhos de YiAfu Tuan70 dão prova da originaliA


dade dos estudos produzidos pela geografia culturalista. Simultaneamente, orgaA
nizavaAse na Alemanha um grupo de pesquisadores interessados em conferir um
caráter sistemático à geografia da religião. O modelo desenvolvido pela «Escola
de Bochum» – voltaremos a ele adiante – abriu perspectivas para todo um novo
campo de pesquisas: a geografia das atitudes mentais (Geographie der Geistes
haltungen).71
Tendo em vista melhor entender a interação entre espaço e sociedade, alguns
autores dedicaramAse à análise das formas antitéticas de espaço e lugar (toda tenA
tativa de se estabelecer uma distinção rígida entre estas duas últimas noções,
como observou corretamente J. E. Malpas, não acrescenta muita coisa à discusA
são).72 Uma iniciativa pioneira nesse sentido foi empreendida pelo geógrafo caA
nadense Edward Relph em seu livro Place and placelessness. Para Relph, lugares
são extensões carregadas de sentido, profundamente ligadas à existência indiviA
dual e coletiva. Por placelessness entende ele um processo de uniformização e
massificação (cultural e, conseqüentemente, espacial) que levaria a uma progresA
siva perda da identidade associada aos lugares.73 Não é outro o sentido das refleA
xões de Augé a respeito dos «nãoAlugares». Augé postula que a experiência tradiA
cional do lugar – entendido como uma das realidades através das quais os homens
estabelecem relações entre si, onde eles constroem sua identidade coletiva e
vivenciam sua história – encontra seu oposto nos «nãoAlugares» típicos do mundo
contemporâneo, como caixas automáticos, aeroportos ou grandes centros comerA
ciais. O nãoAlugar em nada contribuiria para a construção da identidade ou
reforço da sociabilidade de um determinado grupo. Ele não constituiria uma refeA
rência, mas sim uma mera condição de transitoriedade: o nãoAlugar representaria
uma «perda da vinculação social que era inerente ao lugar».74 Os termos place
lessness e non lieux têm um sentido preciso em Relph e Augé, não há dúvida. O
que não parece isentáAlos de alguns problemas.
De um ponto de vista mais amplo, não há como negar que ambos estão imbuíA
dos de um ideal romântico – nem tanto na constatação empírica de que novas
formas de produção e de experiência do espaço emergem com a sociedade conA
temporânea, mas sim no pressuposto nãoAdeclarado de que elas seriam inferiores

69 Lowenthal, David and Bowden, Martyn J. (ed.) Geographies of the mind. Essays in
historical geosophy. New York: Oxford University Press, 1976.
70 Tuan, YiAfu. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambi
ente. São Paulo: Difel, 1980 (1974); Tuan, YiAfu. Espaço e lugar. A perspectiva da
experiência. São Paulo: Difel, 1983 (1977).
71 Büttner, Manfred. «Von der Religionsgeographie zur Geographie der GeisteshalA
tung?» In: Die Erde (107) 1976: 300A329.
72 Malpas, J. E. Place and experience. A philosophical topography. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999, pp. 25A26.
73 Relph, Edward. Place and placelessness. London: Pion, 1976, pp. 79 e 90.
74 Augé, Marc. «Espacio y alteridad ». In: Revista de Occidente (140) 1993: 13A34, p. 31.
44

às que lhes precederam. Em termos estritamente lógicos, a expressão «nãoAlugar»


é, em si mesma, um contrasenso. Se ter lugar (avoir lieu, to take place, stattfin
den) significa «acontecer», «passar a existir», o nãoAlugar denota um paradoxo.
NãoAlugar significa não ser; e era obviamente isso que Thomas Morus tinha em
mente quando cunhou o termo utopia. PodeAse igualmente perguntar (no caso de
a tomarmos como válida) se tal concepção se sustenta quando tentamos aplicáAla
em outros contextos culturais. Ciro Flammarion Cardoso observou que em socieA
dades como a brasileira, supostos nãoAlugares como os aeroportos ou caixas eleA
trônicos podem se transformar naquilo que Augé chama de «lugares antropológiA
cos».75 Para Simmel, a extensão onde não se desenrolam relações sociais de
forma constante (o «nãoAlugar» de Augé) deve ser definida como «espaço vazio».
Sua expressão paradigmática seria o espaço nãoAhabitado. Nestas condições o esA
paço é experimentado como «pura distância, como extensão destituída de qualiA
dade». Vale dizer: «o terreno nãoAhabitado e que a ninguém pertence é, por assim
dizer, mero espaço e nada mais».76
A trajetória tumultuada do termo nãoAlugar, por outro lado, deixa entrever a diA
ficuldade de conferirAlhe um sentido homogêneo. O termo foi utilizado por LeA
febvre e posteriormente aparece no título de uma obra de Jean Duvignaud; porém
em ambas as oportunidades não se elabora qualquer difinição satisfatória de non
lieux.77 Para Paul Zumthor o «nãoAlugar» é mais uma metáfora que um conceito,
empregada para se referir aos lugares típicos dos penitentes, dos criminosos e dos
foragidos na Idade Média: o deserto, a montanha e a floresta.78 Bollnow acresA
centa um dado que aparentemente reforça esta perspectiva ao mostrar que o senA
tido primitivo da palavra «espaço», em alemão, diz respeito à derrubada de uma
mata com o objetivo de erigir ali uma morada.79 Se o espaço é produto da ação
transformadora do homem sobre a natureza, então – e somente então – a natureza
em estado selvagem poderia ser entendida como um «nãoAespaço» (nicht Raum).
O caráter ambivalente de algumas formas de extensão ou de experiência espaA
cial encontra no mundo contemporâneo a sua expressão mais complexa no «esA
paço virtual» ou cyberspace. Não é sem alguma dificuldade que os dois critérios
que até agora nos permitiram falar no espaço enquanto eixo fundamental da vida
social se aplicam a ele. A Internet ou a realidade virtual são um produto do inteA
lecto e do trabalho humano, onde aliás as pessoas se deslocam («surfar», «naveA
gar»). Neste sentido, constituem um espaço. É claro que a sociabilidade virtual
não se concretiza como nas relações faceAaAface que se dão no mundo da vida,
mas este potencial efetivamente existe. O surgimento e a difusão de cidades virA

75 Cardoso, «Repensando a construção do espaço».


76 Simmel, «Der Raum...», pp. 785 e 788.
77 Lefebvre, The production of space, p. 35; Duvignaud, Jean. Lieux et non lieux. PaA
ris: Galilée, 1977.
78 Zumthor, Paul. La mesure du monde. Représentation de l’espace au Moyen Âge.
Paris: Seuil, 1993, pp. 62A68.
79 Bollnow, Mensch und Raum, p. 33.
45

tuais, por exemplo, é um fenômeno que ainda reclama uma análise aprofundada.
Cyberion City, criada na primeira metade da década de 1990 no Massachusetts
Institute of Technology, parece hoje um simples povoado diante de Metropolis
(«fundada» na Alemanha em 1996), com sua população de mais de um milhão de
«habitantes».80
O espaço é, pois, uma realidade social e histórica a partir do momento em que
é «produzido» pela ação transformadora do homem e «preenchido» por uma deA
terminada forma de socialização. Uma visãoAsíntese dos processos discutidos
acima bem poderia ser a proposta por Löw: «espaços são arranjos e ordenações de
bens sociais e seres vivos. Todos os espaços são espaços sociais, uma vez que
não existem espaços que não sejam constituídos pela ação sintética dos homens.
Todos os espaços têm um componente simbólico e um componente material».81
Estas considerações de maneira alguma implicam no abandono do princípio seA
gundo o qual o espaço exerce um impacto considerável sobre a sociedade e a
história, especialmente quando se trata de estudar uma região do Brasil que osA
tenta em seu próprio nome («Minas») a prova desta influência. Mas vimos que há
outros aspectos que não se pode correr o risco de ignorar. Se a constituição do esA
paço é um processo social, este há de espelhar as relações de poder que se verifiA
cam no grupo que o preenche. A experiência espacial não se reduz, porém, aos
ditames das relações de poder. Ela se baseia na percepção elementar de uma exA
tensão que nunca é completamente homogênea, que nunca é totalmente racionaliA
zada. Uma análise do «espaço vivido» (Bollnow), da síntese resultante do cruzaA
mento entre o nível especificamente material e a atividade simbólica dos homens,
deve ser o complemento necessário de toda sociologia histórica do espaço.

2.2.2. O que é uma cidade?


É preciso definir o objeto do nosso estudo: o arraial. Sabemos, de antemão, que
ele constitui uma estrutura situada a meio caminho entre o rural e o urbano. EviA
dentemente, só poderemos fazêAlo a contento se formos capazes de caracterizar
minimamente os «pólos» entre os quais ele se situa. A tarefa é mais complexa do
que poderia parecer à primeira vista. Pois o campo, como bem observou ZimmerA
mann, é um «conceito relacional».82 Ele se define negativamente: onde não há
cidade. E o que é uma cidade?
Para Ratzel «o espírito da cidade baseiaAse, essencialmente, no seu maior núA
mero de habitantes». Enquanto que para o fundador da antropogeografia a cidade

80 Sobre cidades virtuais, ver Löw, Raumsoziologie, pp. 96A97; e Focus (15)
9.04.2001, pp. 188A190.
81 Löw, Raumsoziologie, p. 228.
82 Zimmermann, Clemens. «Dorf und Land in der Sozialgeschichte». In: Schieder, W.
& Sellin, V. (Hrsg.) Sozialgeschichte in Deutschland. Göttingen: Vandenhoeck &
Ruprecht, 1986 (Band 2), pp. 93A94.
46

seria o assentamento humano dotado de mais de 2.000 habitantes,83 para Aroldo


de Azevedo este patamar mínimo é substancialmente mais elevado: 10.000 habiA
tantes.84 Uma definição geográfica bem mais sofisticada é oferecida por Klöpper:
«Cidades são povoações com grande número de moradores e alta densidade poA
pulacional, [e] que para a concretização de sua existência efetuaram uma intensa
transformação do espaço natural nas suas redondezas».85
Weber optou – depois de reiteradamente advertir de que se tratava de uma opA
ção entre várias possíveis – por analisar o fenômeno urbano baseandoAse nos criA
térios econômico e políticoAadministrativo. Para ele a cidade é uma povoação
dotada de um mercado e de uma estrutura política autônoma.86 A despeito do exA
tremo cuidado e da sofisticação com que construiu suas análises, houve quem
quisesse ver uma espécie de reducionismo econômico na sua sociologia do urA
bano. Segundo Ronald Raminelli, a cidade, em Weber, não passa de «um aglomeA
rado onde as pessoas faziam trocas comerciais».87 Desnecessário dizer que se
trata de uma avaliação reducionista do pensamento, de resto claríssimo, exposto
em Die Stadt.88
De uma forma geral, os historiadores brasileiros que se ocupam com os séculos
XVIIIAXIX orientamAse por critérios puramente formais, ou seja, critérios políA
ticoAjurídicos. A história do espaço urbano se «inicia» com a criação da vila.89 É
importante observar que, seguindo uma tradição oriunda da Idade Média, o título
de «cidade» só era atribuído às povoações dotadas de sede episcopal (o mesmo
vale para o uso antigo dos termos city e Stadt). Daí porque a primeira vila de MiA
nas, a Vila de Nossa Senhora do Carmo (1711), só ascendeu à condição de
«Cidade Mariana» com a criação do bispado em 1745. O que o historiador conA
temporâneo pretende invocar ao falar em cidade não corresponde portanto àquilo
que o homem setecentista entendia pelo termo. Mas a variação da terminologia
no tempo não é o único nem o mais simples dos problemas com os quais temos

83 Ratzel, F. Anthropogeographie. Die geographische Verbreitung des Menschen.


Stuttgart: J. Engelhorns, 1912 (1891), p. 265.
84 Azevedo, Aroldo de. «Vilas e cidades do Brasil Colonial», p. 86.
85 Klöpper, Rudolf. «Der geographische Stadtbegriff». In: Schöller, Peter (Hrsg.) All
gemeine Stadtgeographie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969,
pp. 254A255.
86 Weber, Max. «Die Stadt». In: Weber, M. Wirtschaft und Gesellschaft. Tübingen: J.
C. B. Mohr, 1925, pp. 514A515, 518A519.
87 Raminelli, Ronald. «História urbana». In: Cardoso, C. F. e Vainfas, R. (orgs.) Do
mínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 195.
88 Para uma análise aprofundada da sociologia weberiana do espaço urbano, ver
Breuer, Stefan. «Herrschaftsstruktur und städtischer Raum». In: AfKG (77) 1995:
135A164; Breuer, Stefan. «Nichtlegitime Herrschaft». In: Nippel, W. (Hrsg.) Max
Weber und die Stadt im Kulturvergleich. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
2000.
89 Ver Soares, Maria T. de Segadas. «A primeira vila portuguesa no Brasil». In: Actas
do III Colóquio Internacional de Estudos Luso Brasileiros. Lisboa, 1959, p. 79.
47

de nos defrontar.
Num artigo em que examina a história dos núcleos urbanos em Westfalen a
partir do século XII, Carl Haase mostra como é difícil se chegar a uma definição
global de cidade.90 O critério econômico (a cidade, ao contrário do povoado, não
se basearia na agricultura) revela seus limites quando se sabe que a maior parte
das civitates do medievo não se diferenciavam, sob este aspecto, de um simples
vicus. O critério demográfico (cidades seriam núcleos com mais de 2.000 habiA
tantes) esbarra no fato de que inúmeras «cidades» medievais tinham uma populaA
ção inferior a este patamar. O critério morfológico (a cidade é um espaço habiA
tado, fechado e eventualmente fortificado) não é suficiente, pois muitos vici
assumiam esta mesma configuração. O critério jurídico (a cidade é uma unidade
política autônoma) também deve ser visto com cuidado: as condições a serem
preenchidas por uma localidade que pretendia ser elevada a «cidade» se flexibiliA
zaram muito no século XIX.91 SomeAse a isso a singular inversão que se obserA
vava na China, onde os povoados, e não as cidades, é que eram dotados de instiA
tuições políticas próprias.92
A alternativa oferecida por Haase é historicizar o conceito: «para cada época,
para cada estágio da formação citadina, para cada novo tipo urbano, é necessária
uma nova definição e delimitação do conceito de cidade».93 Historicizar um conA
ceito significa, entretanto, relativizáAlo de uma tal maneira que ele se vê destiA
tuído de sua eficácia. As palavras de Lutz Niethammer parecem comprováAlo: «é
fundamental, em primeiro lugar, a compreensão de que a cidade simplesmente
não existe, e sim de que trataAse, sob este conceito, de uma abstração».94 Seria
satisfatório falar simplesmente – como faz Niethammer para se referir àquilo que
ele crê ser impossível categorizar – em «a forma de vida em comum hoje domiA
nante»? É evidente que não. Uma definição satisfatória de cidade deve se basear
num mínimo denominador comum capaz de resistir, tanto quanto possível, à eroA
são do tempo e à prova da comparação interAcultural.
Em seus escritos sobre o espaço urbano brasileiro, o filósofo tcheco Vilém
Flusser sugeriu que a cidade deve ser compreendida como «um lugar no qual a

90 Haase, Carl. «Stadtbegriff und Stadtentstehungsschichten in Westfalen». In: Haase,


C. (Hrsg.) Die Stadt des Mittelalters. Darmstadt: Wissenschaftliche BuchgesellA
schaft, 1978 (1. Band).
91 A «febre de emancipações» de municípios no Brasil, em meio à década de 1990,
oferece um exemplo recente da volatilidade do princípio jurídico, assim como a inA
fluência de interesses políticos locais no surgimento de novas «cidades». Ver
«Mapa em mutação – numa febre de emancipações, o Brasil ganhou 800 prefeituA
ras em quatro anos e há centenas de plebiscitos engatilhados para este ano». In:
Veja, 16.08.1995, pp. 68A73.
92 Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: J. C. B.
Mohr, 1988 (1920), 1. Band, pp. 291A293; 380A383.
93 Haase, «Stadtbegriff...», p. 86.
94 Niethammer, Lutz. «Stadtgeschichte in einer urbanisierten Gesellschaft». In: SchieA
der, W. & Sellin, V. (Hrsg.). Sozialgeschichte, pp. 113 e 127.
48

natureza foi, em alto grau, tornada habitável. (...) Cidades são natureza dominada,
e por isso elas são habitáveis. São natureza vencida, e é como um vencedor que
eu moro nelas.»95 O leitor certamente estará lembrado do que já foi dito mais
acima: o espaço é fruto da constituição de um «feixe de relações» sociais sobre
uma dada extensão e da ação transformadora (ou antes: domesticadora) do eleA
mento humano sobre a natureza. A aceitarmos a definição de Flusser, como difeA
renciar os conceitos de espaço e cidade? A resposta, para ele, reside nestas três
palavras: «em alto grau». A cidade é um espaço coletivo resultante da domestica
ção em alto grau da natureza. Que esta definição mínima não satisfaz de todo,
percebeuAo provavelmente o próprio Flusser. A distinção entre povoado e cidade
continuava obscura. Num outro ensaio, escreveu ele mais tarde: «tão logo é teoriA
zada, a vida do povoado se torna citadina. (...) Tão logo a geometria é posta em
prática, povoados tornamAse cidades».96 Esta diferenciação não corresponde à reA
alidade do arraial na Minas antiga. Os arraiais também observavam, em maior ou
menor medida, um determinado padrão de ordenação espacial. A bem da verdade,
o espaço protoAurbano nunca se desenvolve de maneira absolutamente «esA
pontânea».
Já estamos a par das dificuldades de se abordar a questão sob um ponto de
vista puramente demográfico ou jurídico. Um critério como o desenvolvido por
Simmel, baseado no estudo das distintas formas de sociabilidade, só se aplica
plenamente a partir do momento sem que, sob o influxo do capitalismo, surge a
metrópole moderna. Depois de estudar a história da cidade feudal russa e conA
frontarAse com as mesmas dificuldadades apontadas por Haase, Michail RabinoA
vič elaborou uma definição que pareceuAnos mais adequada. A cidade seria marA
cada por três traços básicos: predominância da produção para a troca e do comérA
cio, difusão e intercâmbio de bens culturais e religiosos, nível mais elevado de
complexidade social (crescente divisão do trabalho) e, eventualmente, étnica.
Para Rabinovič
«A cidade é um centro econômico e cultural, de tamanho relativamente
grande, com um perfil social e étnico mais complexo – em comparação com
povoados rurais – de sua população, a qual está majoritariamente envolvida
na produção voltada para o mercado e em atividades de troca; tudo isso reA
sulta num complexo de aspectos de vida doméstica e pública que são caracA
terísticos do modo de vida urbano.»97

95 Flusser, Vilém. «Brasilianische Städte». In: Flusser, V. Brasilien oder die Suche
nach dem neuen Menschen. Für eine Phänomenologie der Unterentwicklung.
Mannheim: Bollmann, 1994, p. 261.
96 Flusser, Vilém. «Städte entwerfen». In: Flusser, V. Vom Subjekt zum Projekt.
Menschwerdung. Mannheim: Bollmann, 1994, p. 50.
97 Rabinovič, Michail G. «On the problem of defining the concept of ‹city› for the
sake of ethnographic studies ». In: Ethnologia Slavica (16) 1984: 111A119, p. 118.
49

2.2.3. O que é um arraial?


O espaço préAurbano mineiro setecentista e oitocentista é, por excelência, o arA
raial. O uso desta palavra para designar aquelas primeiras povoações não deixa de
ser curioso, se observarmos que em Portugal predominam os termos «povoado» e
«aldeia», este último advindo do árabe (ad dai’a) e por isso mais comum ao sul
do Tejo. É interessante observar que, ao contrário de «povoado» ou «aldeia», o
vocábulo «arraial» adquiriu um caráter polissêmico. Morais e Silva apresentaAnos
as seguintes definições: acampamento militar; lugar de povoação temporária,
mais ou menos densa; ajuntamento festivo de povo; lugar onde há música, dança
e descantes de povo em véspera de festividade; reunião de pequenas casas, à
beira do rio ou do mar, onde se guardam aprestos de pesca; pequena aldeia.98
O sentido primitivo corresponde, segundo Machado, ao de «acampamento». A
evolução da palavra provavelmente se deu no sentido real > arraial. A forma real
se originou na tradição segundo a qual o soberano deveria acompanhar seu exérA
cito nas campanhas.99 De fato, arraial não não guarda qualquer relação (etimolóA
gica ou morfológica) com o latim castrum. Só tardiamente «arraial» passou a deA
nominar povoações temporárias e espaços festivos.
Testemunhos dos séculos XVI e XVII mostram bem a predominância, à época,
da conotação militar. Nos diversos relatos seiscentistas recolhidos por Gomes de
Brito, «arraial» surge sempre como sinônimo de acampamento.100 Em documenA
tos relativos à guerra movida contra o Quilombo de Palmares, falaAse da estratéA
gia dos portugueses de «fazer arraial no meio d’elles [dos quilombos]».101 Um
outro interessante documento relativo a Palmares, datado de 1697, demonstra que
o simples acampamento militar pode «evoluir» e chegar a vila:
«q.to a assistencia do arrayal na frontr.a, he couza indubitavel, que não só não
se hade largar, mas se hade perpetuár povoação nella, e fundar Villa.»102
Nada nos autoriza a concordar com o viajante inglês Richard Burton, segundo o
qual em Minas Gerais a palavra arraial foi aplicada às aldeias porque estas eram,
nos primórdios da capitania, «fortificada[s] e, em geral, situada[s] perto do terriA
tório ocupado pelos índios».103 Não existiram em Minas tais povoações fortificaA

98 Morais e Silva, Antônio. Grande dicionário da língua portuguesa. Lisboa: ConfluA


ência, 1950 (vol. II), p. 27.
99 Machado, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: ConA
fluência, 1967, pp. 313A314.
100 Gomes de Brito, Bernardo (org.) História trágico marítima. Rio de Janeiro: ConA
traponto, 1998 (1735A1736).
101 «Memória dos acontecimentos havidos nos primeiros annos de guerra contra os
negros das Palmeiras, e dos sucessos obtidos, até a paz feita com o rei Gangasuma,
em junho de 1678». In: RIHGB (38) 1876: 293A322, p. 301.
102 Reproduzido em Ennes, Ernesto. As guerras nos Palmares. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1938, p. 325.
103 Burton, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Belo Horizonte: ItaA
50

das, salvo, talvez, durante aquelas escaramuças que passaram à história sob o
pomposo título de Guerra dos Emboabas.
Vejamos agora como as tentativas de definição do arraial no contexto brasileiro
distanciaramAse, de forma significativa, umas das outras. Para Leloup, arraiais foA
ram «acampamentos de mineradores no século XVIII». Angela Garcez chama arA
raiais aos «vilarejos primitivos que se foram formando e fixando no decurso do
processo colonizador», enquanto que para Augusto de Lima Júnior «arraial é o
conjunto de casas que se forma em torno das igrejas e onde acorrem os fiéis para
as solenidades religiosas e encontros comerciais».104
O viajante SaintAHilaire, que percorreu a província pela primeira vez em 1817,
foi sem dúvida quem melhor descreveu aquelas povoações nascentes. Uma praça,
por vezes bastante ampla e em formato retangular, em torno da qual dispunhamA
se as habitações, e uma igreja ou capela – às vezes uma venda – compunham o
perfil básico do arraial mineiro em fins do período colonial. Muitos deles permaA
neciam praticamente vazios durante os dias de semana, e só eram «preenchidos»
em ocasiões de missa e de festa. Eis aí um aspecto a ser ressaltado, pois parece
ter contribuído para justificar a permanência da palavra «arraial» em Minas.
Como mostrou Sanchis, em Portugal «arraial» denomina o espaço ocupado ou
anexado para a realização das festas que acompanham as romarias, bem como a
própria festa em si. Designa simultaneamente um espaço e a intensa socialização
festiva que nele se desenrola.105
Antes de chegar à nossa própria definição, passemos em revista algumas forA
mas préAurbanas em outros contextos históricos e culturais. Segundo Leopold von
Wiese, na Alemanha «é sobretudo o Dorf (e, em segundo plano: a propriedade ruA
ral) o elemento de socialização no campo».106 A importância social, econômica e
simbólica dos pueblos a nível local foi claramente demonstrada por Reboredo
num estudo realizado na Galícia.107 Examinando a formação dos villages («simA
ples regroupements autour d’une chapelle ou d’un moulin») no Québec dos séA
culos XVIII e XIX, Courville consideraAos pontos de cristalização da população
no espaço.108 Encontramos mais ou menos a mesma configuração básica nos

tiaia, 1976, p. 110.


104 Leloup, Les villes du Minas Gerais, p. 205; Garcez, «Arraial». In: Silva, M. B. N.
da (org.) Dicionário da História..., p. 71; Lima Júnior, As primeiras vilas do ouro,
p. 34.
105 Sanchis, Pierre. Arraial: festa de um povo. As romarias portuguesas. Lisboa: Dom
Quixote, 1992 (1983), pp. 142A143.
106 Wiese, Leopold von. «Die Problematik einer Soziologie des Dorfes». In: Wiese, L. v.
(Hrsg.) Das Dorf als soziales Gebilde. München: Duncker & Humblot, 1928, p. 3.
107 Reboredo, Jose M. G. «Notas antropologicas sobre la importancia del ‹pueblo› en la
Galicia oriental». In: Cuadernos de Estudios Gallegos 35 (100) 1984A1985: 529A
546, p. 532.
108 Courville, Serge. «Esquisse du développement villageois au Québec: le cas de
l’aire seigneuriale entre 1760 et 1854». In: Cahiers de Géographie du Québec 28
(73A74) 1984: 9A46, p. 12A13.
51

«bairros rurais» pioneiramente estudados por Antônio Cândido. Segundo ele, o


bairro rural é «o agrupamento mais ou menos disperso de vizinhança, cujos limiA
tes se definem pela participação dos moradores nos festejos religiosos locais».109
Pereira de Queiróz observa que o bairro rural costuma ter como centro uma caA
pela, e que no Paraná ele recebe as denominações «capela» ou «patrimônio»,110
esta última também comum no leste mineiro. A partir de uma extensa literatura
no campo da Europäische Ethnologie, Paul Hugger propõe o seguinte tipo ideal
do povoado: «o povoado é um assentamento rural formado de alguns estabeleciA
mentos de camponeses e artesãos que proporcionam uma manutenção solidária
da existência (...). Na maior parte dos casos, o povoado possui instituições comuA
nitárias como igreja, escola, etc. A estrutura interna é simples, a delimitação em
relação ao mundo exterior é clara. Um sistema normativo regula a vida pública e
[se extende] à vida privada. Isso gera um forte controle mútuo, sobretudo na viA
zinhança – que, como elemento estrutural básico, é, ao mesmo tempo, grupo de
apoio».111
Em face dos dados referentes aos nossos arraiais (a serem analisados de forma
pormenorizada na seção 3.3), a definição acima está longe de ser aplicável à MiA
nas antiga. Nem sempre o arraial é o palco principal da vida cotidiana. Via de reA
gra, a igreja se faz presente; mas a escola é uma instituição rara. Ao contrário dos
seus congêneres europeus, o arraial não estabelece uma separação nítida entre o
espaço interno e o «exterior». Finalmente, nele não existe qualquer instância políA
tica comunal. Ao percorrer o território de Minas em meados da década de 1820, o
cônsul russo Grigorij Ivanovič Langsdorff escreveu que «a explicação para a
forma incompreensível com que se administra aqui um arraial ou aldeia é a total
inexistência de governo e de assistência jurídica ou policial».112
A partir do exposto acima, e como ainda teremos a oportunidade de demonsA
trar, o típico embrião de cidade mineiro pode ser definido como um ponto de
cristalização, um espaço não racionalizado de convívio coletivo.113 O arraial é a
expressão das necessidades econômicas, religiosas e lúdicas de um grupo de vi
zinhança.

109 Cândido, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio,
1964, p. 51.
110 Pereira de Queiróz, M. I. «O catolicismo rústico no Brasil». In: RIEB (5) 1968:
103A123, p. 110.
111 Hugger, Paul. «Volkskundliche GemeindeA und Stadtforschung». In: Brednich, Rolf
(Hrsg.) Grundriß der Volkskunde. Berlin: Dietrich Reimer, 2001, p. 291.
112 Da Silva, Danuzio G. B. (org.) Os diários de Langsdorff. Campinas/Rio de Janeiro:
Associação Internacional Langsdorff/Fiocruz, 1997, vol. I, p. 264.
113 EntendaAse aqui o termo «nãoAracionalizado» numa perspectiva weberiana: a orgaA
nização deste espaço não é formalmente regulada por uma instância ou um código
legal préAexistente.
52

2.3. Religião
Um dos erros de Max Weber foi o de ter apostado na tese do «desencantamento
do mundo». A experiência do sagrado encontrou sempre novas formas de expresA
são social, de maneira que nenhum analista atento se negaria a reconhecer que o
homem contemporâneo vive num universo tão «encantado» quanto o dos seus
antepassados. A crença generalizada na astrologia, o sucesso da chamada literaA
tura de autoAajuda, a proliferação de cursos de motivação («Motivationstraining»)
ou a revalorização da mística oriental são apenas algumas das formas por meio
das quais indivíduos ou grupos vivenciam atualmente aquilo que em outras époA
cas – a nível cognitivo, normativo, associativo ou emocional – era gerenciado
quase que exclusivamente por seitas ou Igrejas.
Isso nos leva a uma primeira observação, qual seja, a de que o estudo da reli
gião não se confunde necessariamente com o estudo da história e do funciona
mento das instituições religiosas. No início da década de 1960, Berger e LuckA
mann criticavam a sociologia da religião por ter se ocupado mais com o estudo de
instituições que com o fenômeno religioso propriamente dito.114 Que as Igrejas
sejam instituições que se estruturam e sobrevivem à custa de um dado universo
de crenças, é ponto pacífico. Mas que o estudo das mesmas seja capaz de nos dar
um retrato satisfatório do campo religioso de uma sociedade, é um absurdo. A
crítica de Berger e Luckmann vale para outras disciplinas que se ocupam com a
religião, em especial a historiografia. Durante muito tempo não houve no Brasil
uma história da religião digna deste nome. Os historiadores permaneciam presos
a uma concepção institucionalista e antiApluralista dos processos sócioAculturais.
Da mesma forma que a «história do Brasil» deveria ser uma história da evolução
política do país, nossa «história da religião» limitavaAse à história da Igreja CatóA
lica. Tudo o mais (protestantismo, espiritismo, religiões afroAbrasileiras, religiões
indígenas, catolicismo popular, etc) podia ser facilmente agregado sob os rótulos
«seita», «ignorância religiosa» ou «superstição», e assim imediatamente excluído
do campo da «religião».
A superação deste estado de coisas começou a se manifestar gradativamente a
partir das décadas de 1980A1990. Os livros de Eduardo Hoornaert e de outros
membros da CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América
Latina) demonstraram como a história da Igreja foi capaz de redirecionar o foco
de sua atenção – especialmente no que diz respeito à «religião dos pobres».115 A
história social da religião, por sua vez, viveu um momento importante em 1986
com a publicação dos livros de Caio César Boschi sobre as irmandades leigas miA

114 Berger, Peter and Luckmann, Thomas. «Sociology of religion and sociology of
knowledge». In: Social Research. (47) 1963: 417A427.
115 Beozzo, Oscar (et alii). Para uma história da Igreja na América Latina. O debate
metodológico. Petrópolis: Vozes, 1986; Hoornaert, Eduardo (org.) História da
Igreja na América na América Latina e no Caribe (1945 1995). O debate meto
dológico. Petrópolis: Vozes, 1995.
53

neiras e de Laura de Mello e Souza sobre feitiçaria e práticas mágicas no Brasil


Colônia.116 Enquanto Boschi estudou minuciosamente a religiosidade leiga e a
rede de sociabilidades e solidariedades consubstanciada nas irmandades e ordens
terceiras, Mello e Souza utilizouAse de documentos inquisitoriais de forma a lanA
çar luz sobre formas heterodoxas de religiosidade às quais até então pouquíssima
atenção tinha sido dada. Em 1987 aparece o ensaio de fenomenologia histórica da
«cristandade colonial» feito por Riolando Azzi.117 Obras sob temas pouco exploA
rados vieram à luz nos anos seguintes, como foi o caso dos ritos fúnebres em A
morte é uma festa, de Reis, e do milenarismo em A heresia dos índios, de VainA
fas.118
Esse movimento de renovação não implica que determinados problemas teA
nham sido completamente superados. Tomemos o caso da nova história da Igreja,
tal como a praticada pelo grupo da CEHILA. Seu viés epistemológico tende a exA
pressar, ao nível historiográfico, os princípios da Teologia da Libertação. SigniA
fica dizer – embora seja esta a sua grande originalidade – que se trata de uma
história da Igreja que se autoAcompreende como uma disciplina auxiliar da teoloA
gia, e que num certo sentido não deixou de ser uma ciência legitimante desta úlA
tima. A discussão promovida por autores como HansAJürgen Prien, Elisa Alcaide,
Jean Delumeau e Edith Sauer a respeito do caráter «teológico» ou «secular» da
história da Igreja ainda parece longe de produzir algum consenso.119 Porém não
se deve exagerar os efeitos da existência de um pano de fundo teológico. Este,
por si só, não implica que se deva manter o historiador da Igreja sob suspeita.
Afirmar que o laço umbilical entre teologia e história da Igreja coloca em questão
a validade dos resultados obtidos seria o mesmo que dizer que a inclinação natuA
ral de historiadores marxistas por temas como o banditismo social, resistência esA
crava ou a formação da classe operária implica, necessariamente, numa perda do
nível de cientificidade da pesquisa. Os dilemas fundamentais situamAse num ouA
tro plano: o fato da história da Igreja se ocupar, predominantemente, com o esA
tudo das estruturas eclesiásticas ou paraAeclesiásticas (demonstrando como o

116 Boschi, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora
em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; Souza, Laura de Mello e. O diabo e a
terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1995 (1986).
117 Azzi, Riolando. A cristandade colonial. Mito e ideologia. Petrópolis: Vozes, 1987.
118 Reis, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991; Vainfas, Ronaldo. A heresia dos ín
dios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
119 Prien, HansAJürgen. «Consideraciones acerca de una eclesiología ecuménica como
punto de partida para una historiografía ecuménica del cristianismo en América
Latina». In: Prien, HAJ. (Hrsg.) Religiosidad e historiografía. Frankfurt: Vervuert,
1998, pp. 83A91; Alcaide, Elisa L. «El debate epistemológico sobre la historia de la
iglesia». In: EIA 2(24) 1998: 205A216; Delumeau, Jean (ed.) L’historien et la foi.
Paris: Fayard, 1996; e Sauer, Edith. «Kirchengeschichte als historische Disziplin?»
In: EngelAJanosi, F., Klingenstein, G. und Lutz, H. (Hrsg.) Denken über die Ge
schichte. Wien: Verlag für Geschichte und Politik, 1974, pp. 157A169.
54

modelo eclesiológico do «corpo místico» continua majoritário em relação ao do


«povo de Deus»); ou ainda sua posição pouco clara em relação à metodologia e ao
aparato conceitual desenvolvidos por outras disciplinas.120
Voltemos agora nosso olhar para a outra linha de pesquisa a que nos referimos
acima. O entusiasmo com o boom da história da religião/das mentalidades nos
últimos anos deve ser avaliado com um pouco mais de cuidado. Não resta dúvida
que o diálogo com as ciências sociais da religião aumentou a olhos vistos. O proA
blema reside, ao nosso ver, no fato de que este diálogo não tem sido instaurado
com a radicalidade necessária.121 Este déficit se manifesta, por exemplo, na reA
sistência de alguns representantes da nossa história das mentalidades a uma noA
çãoAchave como a de sincretismo. A crítica a esta noção tomou forma a partir de
meados da década de 1990. Vainfas122 acreditou ser possível substituíAla pelo
conceito de circularidade cultural, sem se aperceber que tais conceitos designam
processos aparentados mas de forma alguma idênticos entre si. O sincretismo se
refere a sínteses resultantes do contato entre culturas de diferentes matrizes, enA
quanto que a categoria de circularidade cultural123 privilegia o jogo de influências
recíprocas entre diferentes estratos sociais no interior de uma mesma sociedade.
Esse malAentendido parece ter encontrado sua expressão máxima em Plínio Freire
Gomes, que escreve:
«Refletir a questão das trocas simbólicas numa perspectiva sincrética (...)
acaba por invalidar a hipótese segundo a qual os diferentes sistemas cognitiA
vos correspodem a totalidades dotadas de características próprias em favor
da impressão confusa e inarticulada de um amálgama, na qual os diversos
elementos se fundem por mero acaso.»124
Diante destas palavras, há que dar razão a Baroja quando ele afirma que o proA
blema do sincretismo «se plantea en las obras de grandes historiadores de las reliA
giones desde hace muchos anos, con perdón de algún flamante professor moA
derno que declara no saber qué uso se puede dar a la palabra ‹sincretismo›, porA
que la encuentra falta de rigor».125 Ainda assim, Jacqueline Hermann reforçou
recentemente a crítica de Vainfas e Gomes, sob o argumento que o conceito de

120 Ver Da Mata, Sérgio. Resenha do livro de Hoornaert, Eduardo. Os anjos de Canu
dos. Uma revisão histórica. In: EIA 2 (24) 1998: 353A359.
121 Da Mata, Sérgio. «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas
Colonial». In: RH (136) 1997: 41A57.
122 Vainfas, A heresia dos índios, p. 159.
123 Princípio, aliás, conhecido dos folcloristas desde o início do século XX: HoffA
mannAKrayer, Eduard. «Die Volkskunde als Wissenschaft». In: Lutz, G. (Hrsg.)
Volkskunde. Ein Handbuch zur Geschichte ihrer Probleme. Berlin: Erich Schmidt,
1958, pp. 47A49. O texto de HoffmannAKrayer foi originalmente publicado em
1902.
124 Freire, Plínio Gomes. Um herege vai ao paraíso. Cosmologia de um ex colono
condenado pela Inquisição (1680 1744). São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 25A26.
125 Baroja, Julio Caro. «Sobre el sincretismo religioso». In: RDTP (34) 1978: 3A22, p. 6.
55

sincretismo foi «muito criticado por antropólogos e historiadores a partir dos anos
1980».126
Considerar que o termo sincretismo induz a uma «impressão confusa e inartiA
culada de um amálgama, na qual os diversos elementos se fundem por mero
acaso» significa admitir desconhecimento do intenso debate teóricoAmetodológico
que se desenvolve neste campo de pesquisas. Os especialistas em ciência da reliA
gião,127 antropologia128 e história da Igreja129 vêem no sincretismo um fenômeno
dinâmico, multifacetado, que se processa seja a nível dos sistemas religiosos seja
a nível de elementos isolados, e no qual interferem diretamente as relações de
força que se estabelecem entre as tradições religiosas em contato. O conceito que
Hermann crê em declínio é hoje, na verdade, cada vez mais empregado pelos esA
tudiosos.130 Quanto mais porque se têm constatado a tendência eminentemente
sincrética de algumas das principais expressões de religiosidade do homem conA
temporâneo – como por exemplo os assim chamados Novos Movimentos ReligiA
osos.131
O que causa impressão é que a idéia de que a categoria sincretismo esteja «suA
perada» possa adquirir força num país como o nosso.132 Basta lançar um olhar

126 Hermann, Jacqueline. «Sincretismo». In: Vainfas, R. (dir.) Dicionário do Brasil


Colonial, p. 534.
127 Mensching, Gustav. «Syncretismus ». In: RGG³, 6. Band, pp. 563A564; Berner, UlA
rich. «Der Begriff ‹Synkretismus› – ein Instrument historischer Erkenntnis?». In:
Saeculum (30) 1979: 68A85.
128 Bastide, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1971, pp.
374, 376, 390A391; Ferreti, Sérgio F. Repensando o sincretismo. São Paulo/São
Luís: Edusp/Fapema, 1995; Ferreti, Sérgio F. «Notas sobre o sincretismo religioso
no Brasil – modelos, limitações, possibilidades». In: Tempo 6 (11) 2001: 13A26.
129 Hoornaert, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro. 1500 1800. Petrópolis:
Vozes, 1991 (1974), pp. 22A30; Prien, HansAJürgen. «Von der Alten Kirche bis zur
Kirche in Lateinamerika heute. Synkretismus als kirchengeschichtliches Problem».
In: Prien, H.AJ. Das Evangelium im Abendland und in der Neuen Welt. Frankfurt:
Vervuert, 2000.
130 Otávio Velho constata um «reaparecimento de noções como hibridismo e sincre
tismo (...) até há pouco banidas por uma espécie de padrão estético naturalizado da
antropologia mais prestigiada». Velho, Otávio. «Globalização: antropologia e reA
ligião». In: Mana 3 (1) 1997: 133A154, p. 140. O mesmo ocorre no campo dos
estudos literários: Balme, Christopher. «Inventive syncretism. The concept of the
syncretic in intercultural discourse». In: Stummer, P. O. and Balme, C. (eds.) Fu
sion of cultures? Amsterdam: Rodopi, 1996, pp. 9A18.
131 Berger und Luckmann, Modernität, Pluralismus und Sinnkrise, pp. 57A58.
132 Perguntado recentemente numa entrevista se considera viável o uso da noção de
«catolicismo africano » para a melhor compreensão das sínteses religiosas afroAbraA
sileiras, João José Reis afirmou: «(...) Não vejo problema. Representava o modo
negro de ser católico. Isso não significa dizer que se tratasse de sincretismo no
sentido de representar uma terceira via. (...) Há no entanto certas formações religiA
osas que institucionalizaram ritualmente as aproximações entre as tradições católiA
cas, africanas e o espiritismo, como em certas expressões da Umbanda. Neste caso,
56

atento sobre o cotidiano para se aperceber, como diz Flusser, que «o conceito de
‹síntese› tem muito a ver com o Brasil».133 Num trecho bem conhecido da obra de
Guimarães Rosa, o herói Riobaldo revela:
«Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito
de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me
chegue.»134
Os cientistas sociais confirmam a percepção dos literatos. Pierre Verger afirmou
ter conhecido na Bahia um negro que praticava, simultaneamente, catolicismo e
islamismo.135 E Sanchis demonstra, numa perspectiva históricoAcomparada, que
essa peculiaridade brasileira, que é ter desenvolvido um campo religioso domiA
nado «pela lógica da porosidade de identidades e pelo sincretismo», é fundamenA
tal para a compreensão da nossa história.136
A redescobreta de temas como o sincretismo, o milenarismo/messianismo ou o
catolicismo popular tem tido, em todo o caso, o aspecto altamente positivo de inA
crementar o diálogo entre historiografia e ciências da religião. EstranhaAnos apeA
nas o fato de que este diálogo nem sempre seja empreendido de forma conA
seqüente. O prestígio de que goza atualmente um autor como Luiz Mott, entre
inúmeros historiadores brasileiros, é um dos mais claros indícios nesse sentido.
Não há dúvida que seus estudos sobre religiosidade na Colônia baseiamAse num

talvez possamos falar de sincretismo, ou pelo menos de hibridismo, no centro nerA


voso da religião». [Tempo 6 (11) 2001: 257A258; grifos nossos]. NotaAse, entre os
historiadores, uma dificuldade em se perceber o sincretismo como um processo
com distintos níveis de concretização. Sem sentido nos parece, ademais, a oposição
entre «sincretismo » e «hibridismo», uma vez que ambas as palavras têm, basicaA
mente, o mesmo significado. Ver Canevacci, Massimo. Sincretismos. Uma explo
ração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996.
133 Flusser, Brasilien oder die Suche..., p. 35. Esta «inclinação» pela síntese pode ser
bem percebida no microcosmo das práticas culinárias brasileiras, como mostra Da
Matta, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2000 (1984),
pp. 56 e 63.
134 Rosa, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
(1956), p. 15.
135 «J’ai fort bien connu un certain Manuel Nascimento do Santo Silva, descendant de
Yoruba de Ifé, qui faisait partie de la confrérie, portant un cierge à la main et allant
régulièrement à la messe. Son père avait été iman à Bahia, aussi étaitAil également
mulsuman, il faisait ses salam et récitait ses prières en arabe». Verger, Pierre. «Les
religions traditionnelles africaines sontAelles compatibles avec les formes actuelles
de l’existence?». In: Paulme, Denise et alii. Les religions africaines traditionnelles.
Paris: Éditions du Seuil, 1965, p. 101.
136 Sanchis, Pierre. «Sincretismo e jogo das categorias: a propósito do Brasil, de PorA
tugal e do Catolicismo». In: Textos de Sociologia e Antropologia (44) Mestrado em
Sociologia da UFMG, 1993; Sanchis, P. «Pra não dizer que não falei de sincreA
tismo». In: Comunicações do ISER (13) 1994: 4A11; Sanchis, P. «As tramas sinA
créticas da história». In: RBCS (28) 1995:123A138.
57

trabalho empírico vigoroso e numa documentação bastante original. Entretanto, a


ninguém parece ter incomodado – ao menos publicamente – que Mott se dedique
ao estudo das mentalidades e da religiosidade popular por meio de um esquema
interpretativo absolutamente superado. A ininterrupta militância antiAreligiosa e o
retorno a uma concepção positivista de história são as características básicas dos
seus escritos.137 Mott vê a si mesmo como um Aufklärer: «crendeirice do povo»,
«paranóia», «obcessão generalizada», «comportamento sacrílego», «religiosidade
acrítica e emocional», «engodo» e «primarismo acrítico» são alguns dos termos
dos quais ele volta e meia lança mão para se referir ao universo religioso popular.
Para qualquer pesquisador familiarizado com o estudo científico das religiões é
difícil saber onde termina o historiador e onde começa o inquisidor. Mott consiA
dera a religião nos termos de Marx e Freud – ela se basearia na «ilusão», e sua
função social seria o entorpecimento das massas. Daí que os especialistas do saA
grado (feiticeiros, advinhos, sacerdotes) mereçam de sua pena qualificações como
«lobos travestidos de carneiros» e «charlatães». Para Mott, o cristianismo, os culA
tos afroAbrasileiros setecentistas «e suas congêneres contemporâneas baseiamAse e
se fundam na mistificação, no autoritarismo, nos falsos milagres e profecias
mentirosas».138
A linha de pensamento que lhe serve de guia foi claramente assumida. Mais de
uma vez, Mott cita a seguinte frase de Buffon em seus estudos: La seule et vrai
science est la connaissance des faits. Nada poderia resumir melhor a persistência
do (ou o retorno ao) «realismo ingênuo» que Weber diagnosticava em amplos seA
tores da comunidade científica.139
Mas a tentação do positivismo está longe de ser o aspecto mais questionável
em Mott. Como imaginar que um pesquisador tão comprometido com o discurso

137 Alguns exemplos: Mott, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São


Paulo: Ícone, 1988; Mott, L. «Santos e santas no Brasil Colonial». In: VH (13)
1994: 44A66; Mott, L. «O calunduAangola de Luzia Pinta: Sabará, 1739». In: Re
vista do IFAC 2(1A2) 1994: 73A82; Mott, L. «Cotidiano e vivência religiosa: entre a
capela e o calundu». In: Souza, L. de M. e. História da vida privada no Brasil, pp.
155A220.
138 Mott, L. Escravidão, homossexualidade..., p. 114. VemAnos à mente a oportuna obA
servação de Vernant, de que «existe muitas vezes, no próprio ateísmo, uma dimenA
são polêmica e sacrílega que não é o contrário da atitude religiosa. (...) É preciso
tanta crença para combater uma religião quanto para servíAla». Vernant, JeanAPierre.
«Para que servem as religiões ». In: Religião e Sociedade (9) 1983: 65A70, p. 65.
139 Weber, Max. «Ueber einige Kategorien der verstehenden Soziologie». In: Gesam
melte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, p. 437. Cassirer mostrou que «não existem
fatos ‹puros› (‹nackte› Fakten), fatos que não levem em consideração determinados
pressupostos conceituais e que sejam comprováveis sem o auxílio destes pressuA
postos». Cassirer, Ernst. Zur Logik der Kulturwissenschaften. Darmstadt: WissenA
schaftliche Buchgesellschaft, 1994 (1942), p. 17. Como bem assinalou Habermas,
há algo de fetichismo na relação que o positivista estabelece com os «fatos». HaA
bermas, Zur Logik der Sozialwissenschaften, p. 45.
58

antiAreligioso – quase íamos dizendo: com o proselitismo anti religioso – possa


realizar uma análise equilibrada do papel da religião na história? Fiquemos, por
hora, num único exemplo. A Serra da Piedade viria a ser marcada no início do séA
culo XIX pela figura da famosa Irmã Germana, cujos prolongados e repetidos
êxtases tornariam o eremitério ali situado um dos mais concorridos centros de peA
regrinação de Minas Gerais. Germana alimentavaAse com extrema frugalidade e
vivia um estilo «heróico» de religiosidade. Depois de obter permissão para morar
no referido eremitério, ela manifesta uma forma peculiar de êxtase, assim descrito
por SaintAHilaire: «seus braços endureceram e estenderamAse em forma de cruz;
seus pés cruzaramAse igualmente e ela se manteve nessa atitude durante 48 horas.
À época de minha viagem havia 4 anos que esse fenômeno se dera pela primeira
vez e daí por diante ele se repetira semanalmente».140 A notícia se espalhou, e
logo Germana passou a ser considerada «santa». Uma declaração feita por dois ciA
rurgiões locais, atestando a causa «sobrenatural» do estado de Germana contribuiu
para reforçar a crença em sua santidade. Entretanto, continua SaintAHilaire, este
primeiro atestado foi contestado por Antônio Gonçalves Gomide, um médico
«muito culto» que «achouAse no dever de refutar a declaração dos dois cirurgiões».
Gomide publica em 1814, anonimamente, uma brochura «cheia de ciência e lóA
gica» na qual sustenta que Germana sofria de catalepsia.141 ReferindoAse ao caso
em questão, Mott afirma ter sido aquela
«a primeira vez que um cientista brasileiro, lançando mão de erudita biblioA
grafia e argumentação impecável, desmascara senão o engodo, quando meA
nos o primarismo acrítico dos místicos e fabricadores de pseudoAsantos e
pseudoAmilagres. É um caso exemplar de como as luzes da Ciência descoA
brem a verdade e explicam acertadamente os pretensos fenômenos preterA
naturais, substituindo a alienação e fantasmagorias místicas por interpretaA
ções baseadas tão somente em fatos naturais.»142

O diagnóstico da catalepsia seria, ao seu ver, «cabalmente justificado». O que


causa estranheza é que Mott, mesmo tendo se baseado parcialmente em SaintA
Hilaire, deixe de mencionar um dado fundamental: Gomide refutou o primeiro
diagnóstico sem se dar ao trabalho de examinar a paciente.143
Impossível falar, nessas condições, em «argumentação impecável» ou em «luA
zes da ciência». Quando se omitem deficiências metodológicas dessa magnitude
num estudo que se apresenta ao leitor como exemplar, correAse o risco de leváAlo

140 SaintAHilaire, Augusto de. Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil.
São Paulo: Cia Editora Nacional, 1941, p. 118.
141 Idem, ibidem, p. 119.
142 Mott, «Santos e santas no Brasil Colonial», pp. 64A65.
143 SaintAHilaire, que esteve na presença da «santa», escreve que seu confessor «deseA
java, segundo me disse, que os homens competentes estudassem o estado de GerA
mana, e a única censura que fez ao Dr. Gomide foi de ter escrito seu opúsculo sem
se ter dado ao trabalho de vir ver a enferma». SaintAHilaire, op. cit, p. 121.
59

a confundir rigor científico com diletantismo (o que não quer dizer que o priA
meiro atestado a respeito dos transes de Germana não tenha sido vítima de proA
cedimentos igualmente questionáveis144). PoderAseAia dizer ainda que ao assumir
tão incondicionalmente as conclusões do «arguto cientista» Gomide, Mott deA
monstra que o cientificismo materialista pode ser tão acrítico em relação aos seus
pressupostos quanto a própria religião.145
As contradições e os limites do projeto intelectual (iluminista) que Mott parece
tardiamente querer representar foram exaustivamente analisados por HansAGeorg
Gadamer. Uma das contradições básicas do iluminismo foi a de, em que pese sua
tentativa de «superar todos os preconceitos», rejeitar radicalmante a possibilidade
de valerAse da produtividade hermenêutica da tradição. A exploração consciente
não só da tradição mas também da própria subjetividade – e dos próprios preconA
ceitos –, não se coloca no horizonte das preocupações do iluminismo.146 Com
isso não se pretende afirmar que um historiador crente esteja em melhores condiA
ções de analisar um sistema ou fenômeno religioso que seu colega ateu. Tanto um
quanto outro prestarão serviços à ciência desde que sejam capazes de «situaremA
se» num plano intermediário entre a intimidade e o estranhamento em relação ao
seu objeto. Desde que sejam capazes, enfim, de contempláAlo «com outros
olhos».147
Todo aquele que se ocupa com o estudo científico das religiões148 achaAse ineA
vitavelmente confrontado com tais questões. Disposição para observar de forma
rigorosa as condições mínimas de objetividade da análise149 e para refletir critiA

144 Sobre as práticas médicas na Minas oitocentista, ver Figueiredo, Betânia GonçalA
ves. «Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX». In:
História, Ciências, Saúde 6 (2) 1999: 277A291.
145 Soeffner observa que «os cientistas sociais se ocupam sempre, e de bom grado,
com as ‹ideologias› e ‹mitos do cotidiano› mas raramente se questionam em que
medida seus próprios mitos se apoiam precisamente sobre os mitos do cotidiano, se
derivam destes ou (...) se e em que medida se diferenciam, do ponto de vista esA
trutural ou analíticoAformal, do pensamento quaseAmitológico». Soeffner, HansA
Georg. «Verstehende Soziologie und sozialwissenschaftliche Hermeneutik ». In:
Hitzler, R., Reichertz, J. und Schröer, N. (Hrsg.) Hermeneutische Wissenssoziolo
gie. Konstanz: UVK, 1999, p. 43.
146 Gadamer, HansAGeorg. Wahrheit und Methode. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1960, pp.
256A261 e 267.
147 Plessner, Helmuth. Mit anderen Augen. Stuttgart: Reclam, 1982, pp. 168A171; GaA
damer, op. cit, p. 279. Conferir as esclarecedoras reflexões de Simmel, Georg.
«Vom Wesen des historischen Verstehens ». In: Geschichtliche Abende im Zentral
institut für Erziehung und Unterricht. Berlin, 1918.
148 Barker, Eileen. «The scientific study of religion? You must be joking!» In: Journal
for the Scientific Study of Religion 34 (3) 1995: 287A310.
149 Vogt, Edvard. «Über das Problem der Objektivität in der religionssoziologischen
Forschung». In: Goldschmidt, D. und Matthes, J. (Hrsg.) Probleme der Religions
soziologie. Köln: Westdeutscher Verlag, 1962, p. 220; Byrne, Peter. «The study of
religion: neutral, scientific, or neither?» In: MTSR 9 (4) 1997: 339A351.
60

camente sobre o campo de influências que afetam, de «fora», a análise das repreA
sentações e práticas religiosas:150 eis aí outros pressupostos metodológicos básiA
cos que muitas vezes têm faltado à história da religião brasileira.
Diante de tais exigências, deveAse ressaltar um outro ponto. Uma história da
religião que se orienta unicamente pelos postulados das ciências sociais não se arA
risca a oferecer uma visão estreita de seu objeto? Este risco efetivamente existe.
Por vezes, quando se lêem alguns estudos, temAse a impressão de que a experiênA
cia do sagrado não é, para o pesquisador, a base, mas sim um epifenômeno de feA
nômeno religioso. Por esta razão a teologia não deve ser, a priori, posta de lado.
A fala do crente, tanto quanto a daqueles que, como os teólogos, «racionalizam» a
crença, deve ser levada em conta (no sentido de constituir um importante subsíA
dio) pelo historiador das religiões. Na França, onde a cesura entre «ciência» e «fé»
assumiu e parece ainda manter ares de dogma, o diálogo entre ciências sociais da
religião e teologia não parece ter avançado muito. Defendendo uma posição que
está longe de ser unicamente sua, Pierre Bourdieu afirma que ao utilizar «conceiA
tos religiosos para falar sobre a religião» a ciência da religião corre o risco de torA
narAse uma «religião científica».151 Em outros países a opinião a respeito não é a
mesma. O exemplo mais notável é sem dúvida o de Weber, que – ao contrário do
que defende Bourdieu – se utilizou de categorias advindas da teologia, como é o
caso do conceito mesmo de Charisma.152 A possibilidade de um intercâmbio, que
encontrou na pessoa de Ernst Troeltsch a sua expressão mais brilhante, tem sido
encarada de forma desapaixonada nos dias de hoje.153 Teologia e ciências sociais
da religião podem dialogar entre si sem que, necessariamente, uma tenha de saA

150 Bourdieu, Pierre. «Sociologues de la croyance et croyances de sociologues ». In:


Bourdieu, P. Choses dites. Paris: Minuit, 1987, pp. 106A111.
151 Bourdieu und Raphael, «Über die Beziehungen zwischen Geschichte und SozioloA
gie...», p.
77. Posição idêntica é defendida por Fitzgerald, Timothy. «A critique of
‹religion›as a crossAcultural category». In: MTSR 9 (2) 1997: 91A110. As dificulA
dades neste campo, como bem apontou Tenbruck, não se devem apenas a diferenA
ças de método e de pressupostos, mas também ao fato de que sociologia da religião
e teologia são construções secundárias da realidade concorrentes entre si. TenA
bruck, Friedrich. «Die Theologie aus der Sicht der Soziologie». In: ThQ (157)
1977: 217A218. Esta concorrência atesta, por outro lado, a existência de uma hoA
mologia entre ambas. Daí o fato paradoxal de que, em alguns casos específicos
(como o das religiões afroAbrasileiras ou dos Novos Movimentos Religiosos) a soA
ciologia da religião possa assumir uma função análoga à da teologia. Ver Barker,
«The scientific study of religion? »; e Motta, Roberto. «La gestion sociologique du
religieux: la formation de la théologie afroAbrésilienne». In: Most. Journal on
Multicultural Societies 1(2) 1999 (www.unesco.org/most/v11n2mot.htm).
152 Seu primeiro sistematizador foi Rudolf Sohm. Sobre as relações de Weber com a
teologia liberal alemã, ver Honigsheim, Paul. «Max Weber in Heidelberg», pp. 261A
263.
153 Gadamer, HansAGeorg. «Reflexionen über das Verhältnis von Religion und WisA
senschaft». In: Gadamer, HAG. Gesammelte Werke. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1993
(Band 8), pp. 156A162.
61

crificar à outra o tipo de problematização que lhe é peculiar. Aquele que fala de
fora sobre o fenômeno religioso não consegue percebêAlo em toda a sua compleA
xidade se julga que os que o vivenciam por dentro nada têm a lhe dizer. A
questão foi bem resumida pelo filósofo japonês Kitaro Nishida:
«Eu não pretendo compreender a religião em termos puramente racionais e
imanentes, pois na pura imanência não há religião.»154

O historiador, portanto, deverá estar atento tanto às diversas expressões possíveis


dos fenômenos religiosos quanto ao imponderável psicológico – e em certa meA
dida «anárquico» e nãoAinstrumentalizável – que é a experiência do numinoso.155
Por outro lado, dar a devida importância à contribuição de disciplinas como a ciA
ência/fenomenologia da religião ou a teologia não implica que a história da reliA
gião (tal como a concebemos) não se distancie delas num ponto fundamental.
Para o historiador a questão da existência ou não de uma dimensão extraAhumana
subjacente ao seu objeto de estudo não se coloca. Não é sua tarefa tentar responA
der tal questão. O historiador da religião se ocupa com as manifestações psicolóA
gicas, sociais e espaciais dos fenômenos religiosos. Para tanto ele adota uma
postura que diversos pesquisadores classificam como agnosticismo metodoló
gico.156
Um último exemplo, à guisa de conclusão. Gilberto Freyre conta no prefácio
de um de seus livros que, em 1929, época em que dirigia um jornal de Recife, foi
procurado por um dos mais distintos assinantes daquela publicação. Um homem
que lhe fazia um pedido singular: que Freyre intercedesse junto ao chefe de políA
cia para que se desse cabo das «assombrações» que existiam em sua casa.157 O
mestre pernambucano se permite uma pequena ironia, ao lembrar que eram os
tempos em que se dizia, no Brasil, que «a questão social é um caso de polícia». O
que lhe causara espanto não fora a simples possibilidade da crença em espíritos,
mas sim que «a questão do sobrenatural» também pudesse ser vista como um caso
de polícia. Diante de fenômenos como este, a problemática que se coloca diante
do historiador não é emitir um juízo qualquer sobre a «validade» de tal crença,
mas sim mostrar de que forma ela pode adquirir um tal nível de inquestionabiliA

154 Nishida, Kitaro. «Ortlogik und religiöse Weltanschauung». In: Nishida, K. Logik
des Ortes. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999, p. 280.
155 Otto, Rudolf. Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und
sein Verhältnis zum Rationalen. München: C. H. Beck, 1997 (1917); Colpe, CarsA
ten (Hrsg.) Die Diskussion um das «Heilige». Darmstadt: Wissenschaftliche BuchA
gesellschaft, 1977.
156 Para uma exposição suscinta a respeito, ver Knoblauch, Hubert. Religionssoziolo
gie. Berlin: Walter de Gruyter, 1999, pp. 14A16. Luhmann prefere falar em «ateísA
mo metodológico ». Luhmann, Niklas. Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt:
Suhrkamp, 2000, p. 278.
157 Freyre, Gilberto. Assombrações do Recife velho. Rio de Janeiro: Condé, 1955.
62

dade para os indivíduos e, antes de tudo, como chega a condicionar determinadas


ações sociais.

2.3.1. Religião popular


O problema da religião popular está no cerne das nossas preocupações neste traA
balho. Não por se tratar de uma temática retomada pela historiografia, mas pura e
simplesmente porque o estudo sistemático do nosso objeto assim o exige. Quase
sempre a formação de um arraial a partir de um patrimônio doado a um santo esA
teve regida por concepções religiosas cuja lógica era muito distinta da dos repreA
sentantes da «religião oficial». Não seria um exagero afirmar que o estudo das
formas elementares do espaço urbano pode abrir uma outra perspectiva para a
análise históricoAsociológica da religião popular. Muito pouco se sabe ainda das
formas de religiosidade «rurais» ou «semiArurais» nos séculos XVIII e XIX. Se
pesquisas sobre irmandades (estas formas paraAinstitucionais de organização reliA
giosa/mutualista) nos dizem relativamente pouco a respeito da religião popular,
pareceAnos igualmente duvidoso que os trabalhos que lançam mão de fontes inA
quisitoriais sejam capazes de fazêAlo. No primeiro caso o historiador se limita às
formas «enquadradas» e oficialmente sancionadas de religiosidade leiga158; no
segundo tomaAse o extremo oposto – religiosidades periféricas ou explicitamente
heterodoxas. Uma larga faixa da população, provavelmente a grande maioria,
ocupava um amplo gradiente de posições entre esses dois pólos. Como chegar a
elas, às suas expressões religiosas próprias? Uma história da produção do espaço
préAurbano em torno das capelas primitivas pode vir a ser uma contribuição neste
sentido.
DeveAse também ressaltar – como fez Wolfgang Schieder em mais de uma
oportunidade159 – a necessidade de se integrar à história da religião os avanços
realizados no âmbito da folclorística. Completamente marginalizada no Brasil,
onde se viu excluída do conjunto das ciências «sérias» com direito a cadeiras uniA
versitárias,160 a folclorística teve destino bem diferente na Espanha, nos Estados

158 Não há como concordar com Reis quando ele afirma que as irmandades foram,
«pelomenos até o BrasilAImpério, os principais veículos do catolicismo popular».
Reis, A morte é uma festa, p. 59. Num artigo que não recebeu à época de sua puA
blicação a atenção que efetivamente merecia, Beozzo mostrou que as irmandades
eram «muito mais [um] fenômeno da vila e da cidade, com estatutos aprovados
pela Mesa de Consciência e Ordens de Lisboa e pelo Bispo e, em se tratando de
Ordens Terceiras, com aprovação também de Roma. Apesar pois de leigas, estaA
vam submetidas a um poderoso controle eclesiástico e governamental». Beozzo,
José Oscar. «Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada». In: REB
37(148) 1977: 741A758, p. 756.
159 Schieder, Wolfgang. «Religionsgeschichte als Sozialgeschichte». In: GG, 3. JahrA
gang, 1977: 291A298; Schieder, W. «Religion in der Sozialgeschichte». In: Schieder
und Sellin (Hrsg.), Sozialgeschichte in Deutschland, 3. Band, pp. 9A31.
160 Vilhena, Luís Rodolfo. Projeto e missão. O movimento folclórico brasileiro. 1947
63

Unidos, na Alemanha, na Romênia e nos países escandinavos. Que um contato


mais intenso entre folclorística e história social/religiosa pode dar bons frutos,
provamAno de forma cabal os trabalhos de JeanAClaude Schmitt e Julio Caro BaA
roja. No Brasil há sinais de que este intercâmbio vem sendo retomado, como deA
monstra o livro de Martha Abreu sobre as festas do Divino Espírito Santo no Rio
de Janeiro do século XIX.161
A essa altura o leitor provavelmente se perguntará se, uma vez que resolvemos,
por nossa própria conta e risco, abrir a caixa de Pandora dos problemas metodoA
lógicos, não seria preciso que nos defrontássemos com o(s) conceito(s) de reliA
gião. Neste ponto o historiador se vê diante de um problema tão ou mais
complexo que o da formulação do conceito de «cidade». As tentativas de se defiA
nir «religião» foram tão numerosas quanto divergentes entre si; a ponto de se poA
der afirmar com relativa tranqüilidade que um consenso a respeito é virtualmente
impossível de ser atingido.162
Ao longo da primeira metade da década de 1990, os especialistas deramAse
conta de um aspecto que até então não despertara maior discussão: até que ponto
a palavra latina religio pode servir de base ao estudo científico das «religiões»? O
folclorista Petzoldt,163 os historiadores Pye e Rudolph164 e os sociólogos Matthes,
Tenbruck e Knoblauch165 foram unânimes em ressaltar o caráter etnocêntrico do
termo «religião», bem como a necessidade de se adotar um conceito mais amplo,
capaz de integrar as experiências «religiosas» de diferentes estratos sociais, cultuA
ras e períodos históricos.
Ao mesmo tempo, e pelos motivos já expostos no início deste capítulo, não há
como deixarmos de adotar uma determinada definição de «religião» como ponto
de partida. Eis aí o inevitável paradoxo com que se defronta o pesquisador: emA
bora esteja consciente dos limites da categoria «religião», ele não tem como opeA

1964. Rio de Janeiro: FGV/Funarte, 1997.


161 Abreu, Martha. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de
Janeiro. 1830 1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
162 Wagner, Falk. Was ist Religion? Studien zu ihrem Begriff und Thema in Geschichte
und Gegenwart. Gütersloh: Mohn, 1991; Lambert, Yves. «La ‹Tour de Babel› des
définitions de la religion». In: Social Compass 38 (1) 1991: 73A85.
163 Petzoldt, Leander. «Magie und Religion». In: Dinzelbacher, P. und Bauer, D. R.
(Hrsg.) Volksreligion im hohen und späten Mittelalter. Paderborn: Ferdinand
Schöningh, 1990, pp. 467A485.
164 Pye, Michael. «What is ‹religion› in east Asia?» e Rudolph, Kurt. «Inwieweit ist der
Begriff ‹Religion› eurozentrisch?» In: Bianchi, Ugo (ed.) The notion of «Religion»
in comparative research. Roma: «L’Erma» di Bretschneider, 1994, pp. 115A122;
131A139.
165 Matthes, Joachim. «Was ist anders an anderen Religionen? » e Tenbruck, Friedrich.
«Die Religion im Maelstrom der Reflexion». In: Bergmann, J., Hahn, A. und LuckA
mann, T. (Hrsg.) Religion und Kultur. Köln: Westdeutscher Verlag, 1993, pp. 16A
67; Knoblauch, Hubert. «Für einen weiten Religionsbegriff». In: Ethik und So
zialwissenschaften 6 (4) 1995: 468A470.
64

racionalizar sua análise sem uma visão minimamente clara do que ela poderia vir
a ser. Na medida do possível, tal definição deve resistir à tentação de se confundir
a estrutura do fenômeno «religioso» com as distintas formas sociais através das
quais ele se concretiza historicamente. Somente desta maneira se torna possível
superar algumas falsas dicotomias (sagrado/profano, religião/magia) e admitir
que manifestações de tipo extraAinstitucional ou mesmo antiAinstitucional («suA
perstições», feitiçaria) só artificialmente podem vir a ser destacadas do campo da
«religião». Nesse sentido, os estudos de Luckmann166 parecemAnos oferecer a alA
ternativa mais interessante. Por «religião» entende ele a organização social das
relações com a transcendência. Este último termo não deve ser entendido apenas
num sentido convencional (como um sinônimo de «além») uma vez que, para
Luckmann, qualquer forma de experiência extraAcotidiana constitui uma transA
cendência. Não deixaremos de falar em religio, é certo – porém o leitor deve estar
consciente de que as aspas estarão implícitas todas as vezes em que o termo for
invocado.
Se a religião pode ser definida como a organização social das relações com a
transcendência, nossa próxima tarefa será identificar como tal gerenciamento se
processa no caso da religião popular.
O tipo ideal do catolicismo popular poderia ser descrito como se segue:167 do
ponto de vista organizacional, ele se caracteriza por uma presença muito débil –
senão ausência – da mediação eclesiástica. Isso explica porque seu locus tende a
ser o meio rural ou semiArural. Quanto ao culto, ele se direciona sobretudo a MaA

166 Luckmann, Thomas. «Über die Funktion der Religion». In: Koslowski, P. (Hrsg.)
Die religiöse Dimension der Gesellschaft: Religion und ihre Theorien. Tübingen:
J. C. B. Mohr, 1985; Luckmann, T. «Religion – Gesellschaft – Transzendenz». In:
Höhn, HansAJoachim (Hrsg.) Krise der Immanenz. Religion an den Grenzen der
Moderne. Frankfurt: Fischer, 1996.
167 BaseamoAnos aqui em: Weber, Max. Wirtschaft und Gesellschaft, pp. 240A241;
Vale, Edênio. «Aspectos psicoAgrupais do comportamento religiosoApopular ». In:
Cadernos. Studium Theologicum (6) 1977: 73A96; Boglioni, Pierre. «Some meA
thodological reflections on the study of the medieval popular religion». In: JPC (3)
1977: 697A705; Süss, Günther Paulo. Catolicismo popular no Brasil. São Paulo:
Loyola, 1979; Frijhoff, W. Th. M. «Official and popular religion in Christianity.
The late MiddleAAges and Early Modern Times (13th – 18th centuries)». In: Vrijhof,
P. H. and Waardenburg, J. (ed.) Official and popular religion. The Hague: Mouton,
1979; Prien, HansAJürgen. La historia del cristianismo en America Latina. SalaA
manca: Sígueme, 1985 (1978), pp. 292A305; Schieder, Wolfgang. «Einleitung». In:
Schieder, W. (Hrsg.) Volksreligiosität in der modernen Sozialgeschichte. GötA
tingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1986; Vovelle, Michel. Ideologias e menta
lidades. São Paulo: Brasiliense, 1987; Künzel, Rudi. «Paganisme, syncrétisme et
culture religieuse populaire au haut Moyen Age». In: Annales (4A5) 1992: 1055A
1069; Schieder, W. «Volksfrömmigkeit, Volksreligiosität». In: Evangelisches Kir
chenlexikon. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996; Daxelmüller, Christoph.
«Volksfrömmigkeit ». In: Brednich, Rolf. (Hrsg.) Grundriß der Volkskunde. Berlin:
Dietrich Reimer, 2001.
65

ria e aos santos; Jesus normalmente assume uma importância secundária. A débil
presença da hierarquia eclesiástica relacionaAse dialeticamente a um outro asA
pecto, este por assim dizer próprio da lógica interna da religião popular (embora
não seja exclusivo dela): a relação direta com o sagrado. Tal relação é normalA
mente regida pelo princípio do ut des. Há um tempo social em que a fé popular
como que se adensa e dá a ver toda sua complexidade; é o tempo da festa. O reA
gime da oralidade precede o da escrita, e não necessarimente devido aos níveis de
analfabetismo. Fixar uma tradição em textos, como mostrou Gurjewitsch, «teria
significado conferirAlhe uma forma definitiva e inalterável; seria portanto um ataA
que à sua forma de existência momentânea – enquanto organismo vivo e dinâA
mico. Uma fixação por meio de escritos teria levado a uma espécie de ‹alienação›
da tradição popular em relação àqueles que são dela portadores».168 Entre os diA
versos autores há consenso quanto a um último aspecto, qual seja, o de que as
interAinfluências recíprocas («circularidade») entre catolicismo popular e catoliA
cismo oficial não devem ser subestimadas. Todavia uma categorização continua
oportuna uma vez que se trata de duas modalidades distintas de prática e, muito
possivelmente, de experiência religiosa. Para Urs Altermatt, «catolicismo popular
significa oral – em oposição a escrito; espontâneo – em oposição a prescrito;
emocional – em oposição a racional».169
Entendido nesses termos, o catolicismo popular não se confunde com os assim
chamados «catolicismo rústico» e «catolicismo patriarcal». A tese do «catolicismo
rústico» foi defendida por Pereira de Queiróz. Sua opção pelo termo latino rusti
cus (do campo, rude, inculto, grosseiro, tosco) é, em si, reveladora. Depois de
analisar o cotidiano das populações rurais do centroAsul brasileiro, Queiróz afirma
que, se a função socializadora do catolicismo pareceAlhe evidente, «é preciso um
certo esforço para se perceber objetivos morais ou espirituais, que não existem
como valores em si mesmos, e sim como valores auxiliares do valor social». Sua
conclusão: «a religião rústica brasileira tem, pois, um papel antes de mais nada
social».170
O calcanharAdeAAquiles da hipótese de Queiróz (vimos que algo semelhante
ocorre em Mott) é sem dúvida a ausência em sua análise daquela operação mental
à qual todo estudioso do social deveria se submeter – a epoché (έποχή). Tal opeA
ração implica uma suspensão do juízo em relação à realidade. O pesquisador deve
«colocar em parênteses» sua atitude natural diante do mundo a fim de se entregar
à análise dos fenômenos em si mesmos.171
Para Queiróz o catolicismo «rústico» é pura e simplesmente destituído de conA

168 Gurjewitsch, A. «Probleme der Volkskultur und der Religiosität im Mittelalter ». In:
Gurjewitsch, A. Das Weltbild des mittelterlichen Menschen, p. 357.
169 Altermatt, Urs. «Prolegomena zu einer Alltagsgeschichte der katholischen LeA
benswelt». In: ThQ 4 (173) 1993: 259A271, p. 266.
170 Pereira de Queiróz, «O catolicismo rústico no Brasil», pp. 118A119. Grifo nosso.
171 Husserl, Edmund. Die phänomenologische Methode. Ausgewählte Texte. Stuttgart:
Reclam, 1985, pp. 201A202.
66

teúdo éticoAreligioso. Numa palavra: ele se resume a um ateísmo prático. Eis aí a


conseqüência direta daquilo que EvansAPritchard criticava com a expressão me
tafísica sociológica. Segundo o antropólogo britânico, «os sociólogos (...) freA
qüentemente trataram as concepções religiosas como uma projeção da ordem soA
cial, uma vez que elas se referem àquilo que não pode ser experimentado pelos
sentidos. Isso é inadmissível».172
Já a tese segundo a qual teria havido um «catolicismo patriarcal» no Brasil se
inspira na obra de Gilberto Freyre, muito embora ele de forma alguma a tenha
apresentado de forma sistemática. O «catolicismo de família», para Freyre, teria
como traços básicos um caráter doméstico e a subordinação do capelão à figura
do pai de família.173 A tese do «catolicismo patriarcal» encontrou, em meados da
década de 1970, o seu principal sistematizador em Eduardo Hoornaert. Em seu
Formação do Catolicismo Brasileiro, Hoornaert afirma que «o catolicismo paA
triarcal se baseia (...) na exploração da religiosidade popular a serviço da manuA
tenção de uma sociedade de ordens».174 Ele diagnostica ainda a existência de uma
«dupla moral»: este catolicismo deveria simultaneamente legitimar o assistenciaA
lismo dos senhores e a submissão dos escravos. Só se poderia falar em catoliA
cismo popular como um sinônimo de catolicismo «dos pobres».
As posições Queiroz e Hoornaert são algo próximas uma da outra. Se para a
primeira o catolicismo do povo é reduzido à sua dimensão social global (melhor
dizendo: às necessidades objetivas imediatas dos grupos de vizinhança rurais),
em Hoornaert ele é subordinado aos interesses de uma determinada classe. É poA
rém questionável que o catolicismo «doméstico» ou «patriarcal» tenha constituído
um outro tipo sociológico, como teremos oportunidade de demonstrar neste traA
balho (ver seção 4.3.4). A documentação pesquisada revela, de fato, que as relaA
ções de classe permeiam a vivência da religião nos arraiais nascentes; o que não
significa que seja possível traçar uma linha delimitando religião dos senhores
(catolicismo «patriarcal») e religião dos pobres (catolicismo «popular», na acepA
ção de Hoornaert). Tudo indica que se trata aqui de uma categorização que corA
responde ao modelo eclesiológico/teológico do pesquisador e não à autoAcompreA
ensão dos atores históricos. Na Minas Gerais dos séculos XVIIIAXIX não se pode
falar numa polarização religiosa entre elite e massa, mas no máximo numa oposiA
ção entre religião oficial e religião popular. Por fim, deve ser lembrado que o
mesmo sistema religioso pode desenvolver tendências antagônicas em relação ao
mundo. Esta ambigüidade «política» que Troeltsch demonstrou ser uma constante
na história do cristianismo175, não teria como estar ausente no catolicismo popuA
lar.176

172 EvansAPritchard, E.E. Nuer Religion. Oxford: Clarendon, 1956, pp. 313 e 320.
173 Freyre, Casa grande & senzala, pp. liii, 195 e 355.
174 Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro, pp. 76, 83, 98A99. O mesmo ponto
de vista foi posteriormente adotado por Prien, La historia del cristianismo en Ame
rica Latina, pp. 285A292.
175 Troeltsch, Ernst. Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen. TübinA
67

2.3.2. Sagrado/profano
A longa e inconclusiva discussão travada a respeito da natureza do sagrado não
nos interessa aqui. Para uns o sagrado é uma categoria a priori, enquanto que
para outros a sociedade diviniza a si mesma por meio da religião. SubstanciaA
lismo de um lado, metafísica sociológica do outro. Optar por uma das duas teoA
rias significaria abdicar do agnosticismo metodológico que defendemos há
pouco. Fundamental é a constatação de que o sagrado/numinoso é efetivamente
experimentado coletiva ou individualmente pelos homens: nihil est in fide, quod
non ante fuerit in sensu (Max Müller).177
Seria mais frutífero demonstrar como uma contraposição rígida entre sagrado e
profano é antes exceção que regra. De uma maneira geral, os historiadores partem
ainda do pressuposto de que o mundo se divide em dois campos claramente deliA
mitados e opostos entre si (sagrado/profano). No que não estão sozinhos. A exisA
tência desta dicotomia foi defendida por autores como Émile Durkheim178, RoA
bert Herz179, Ernst Cassirer180, Mircea Eliade181 e Günter Dux.182 Tendo por pano
de fundo tal dicotomia, as análises da religião popular no Brasil setecentista e
oitocentista quase sempre sustentam que o brasileiro comum «misturava» pólos
opostos e que, em tese, seriam incompatíveis um com o outro. Tomemos o exemA
plo da festa em homenagem a um santo. Tudo o que se manifesta à margem dos
seus momentos explicitamente religiosos, que aparentemente não tem qualquer
ligação com o sagrado, é imediatamente classificado como «profano». Como a
festa popular não dissocia tais momentos, concluiAse que haveria «mistura». A lóA

gen: J. C. B. Mohr, 1994 (1912). Abordamos esta questão em Da Mata, Sérgio.


«Sacralização da política, politização do sagrado (quando a Igreja se descortina)».
In: VH (16) 1996: 142A157.
176 Oliveira, Pedro A. Ribeiro de. «A ambivalência política da religião popular». In:
REB (54) 1994: 413A426; Droogers, André and Siebers, Hans. «Popular religion
and power in Latin America: an introduction». In: Droogers, A., Huizer, G. and
Siebers, H. (eds.) Popular power in Latin American religions. Saarbrücken: BreiA
tenbach, 1991, pp. 1A25.
177 Nos termos de Balandier: «Le sacré ne se laisse pas facilement saisir par la pensée,
et encore moins par le savoir positiv – il se ‹vit› plus qu’il ne se laisse définir».
Balandier, Georges. «Le sacré par le détour des sociétés de la tradition». In: Ca
hiers Internationaux de Sociologie (100) 1996: 5A12, p. 5.
178 Durkheim, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas,
1989 (1912).
179 Hertz, Robert. «Prééminence de la main droite». In: Hertz, R. Mélanges de so
ciologie religieuse et folklore. Paris: Félix Alcan, 1928.
180 Cassirer, Ernst. Philosophie der symbolischen Formen, 2. Band, pp. 106, 118.
181 Eliade, Mircea. The sacred and the profane. New York: Harper, 1961; Eliade, M.
Die Religionen und das Heilige. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
1976.
182 Dux, Günther. «Ursprung, Funktion und Gehalt der Religion». In: IJRS (8) 1973,
pp. 6A67.
68

gica parece apoiar tal constatação, uma vez que é difícil ao pesquisador conceber
que excessos alcoólicos, danças ou jogatina possam ser colocados no mesmo
plano do sagrado. Neste ponto a visão do historiador coincide plenamente com a
da autoridade eclesiástica.
A questão merece ser analisada com mais cuidado. Utilizar as palavras «saA
grado» e «profano» nos faz tributários da tradição romana. Quando temos em
vista o sentido com que elas eram empregadas, damosAnos conta de algo surA
preendente. Ambas têm uma acepção claramente espacial: sacrum designa tudo
aquilo relacionado ao local onde se realiza um rito e que, por assim dizer, perA
tence a um deus. Já profanum se refere ao que está diante da área do templo. OriA
ginalmente, profanare significa trazer a vítima de dentro do templo para o espaço
situado diante dele (fanum).183 Significa dizer que não estamos lidando aqui com
duas dimensões absolutamente opostas, mas complementares. Há, em outras paA
lavras, um continuum entre «sagrado» e «profano».
Assim, um Tito Lívio pôde escrever, a respeito de Roma, que «não há um lugar
nesta cidade que não esteja impregnado de religião e que não esteja ocupado por
alguma divindade».184 A indistinção entre sagrado e profano também foi obserA
vada em inúmeras sociedades de tipo «arcaico» e «tradicional». É o que Vernant
constata na Grécia185, Klimkeit no Egito e na Índia186, EvansAPritchard entre os
Azande187, Goody entre os LoDagaa188, Granet na China189 e Leach na BirmâA
nia.190 Segundo Laura de Mello e Souza, no Brasil Colônia «a indistinção era (...)
mais característica do que a dicotomia».191 Desnecessário dizer que o mesmo foi
observado em estudos sobre a religiosidade camponesa. Simon ressalta, a resA
peito, que «a diferenciação entre profano e sagrado é puramente formal».192 WilA
lems insiste que nas festas em dias de santos «não há dissociação concebível
[entre sagrado e profano] na mente dos participantes».193 Em seu estudo sobre as

183 Colpe, Carsten. «Das Heilige». In: HrwG, 3. Band, pp. 80A99, p. 93.
184 Citado por Fustel de Coulanges. La cité antique, p. 160.
185 Vernant, JeanAPierre. «Para que servem as religiões».
186 Klimkeit, HansAJoachim. «Das Phänomen der Grenze im mythischen Denken». In:
Benz, E. (Hrsg.) Die Grenze der machbaren Welt. Leiden: E. J. Brill, 1975, pp.
105, 107, 109.
187 EvansAPritchard, E. E. Theories of primitive religion. Oxford: Claredon, 1965, pp.
64A65.
188 Goody, Jack. «Religion and ritual: the definitional problem». In: British Journal of
Sociology (12) 1961: 142A164, pp. 148, 155.
189 Granet, Marcel. Études sociologiques sur la Chine. Paris: Presses Universitaires de
France, 1953, p. 257.
190 Leach, Edmund. Sistemas políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Edusp, 1995
(1954), pp. 75A76.
191 Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 149.
192 Simon, Franz. «SakralAProfan ». In: Liedtke, Max (Hrsg.) Aberglaube – Magie –
Religion. Graz: Austria Medien Service, 1995, p. 109.
193 Willems, Uma vila brasileira, p. 174.
69

romarias em Portugal, Sanchis chega à conclusão que


«Isolar alguns dos elementos que a compõem [a romaria] e declaráAlos excluA
sivos uns em relação aos outros, indica uma problemática imposta, uma anáA
lise desagregadora do vivido, a criação de um sentido exógeno. (...) Ora, é
forçoso aqui constatar – e todas as entrevistas de romeiros o confirmam –
que quanto mais nos afastamos das gerações jovens e das categorias marcaA
das seja por uma instrução escolar seja pela freqüência assídua da igreja,
menos repercussão suscita a distinção entre ‹religioso› e ‹profano› no seio da
romaria.»194
Uma contraposição clara entre sacrum e profanum não constitui regra, mas exceA
ção. Ela corresponde a uma rigidificação tipicamente cristã, ou, mais especificaA
mente, a uma rigidificação típica do cristianismo das elites eclesiásticas, dos teóA
logos e das classes letradas. A religião popular permaneceu e permanece alheia a
tal dicotomia – não por ignoráAla, mas simplesmente porque ela não corresponde
à sua visão de mundo e de alémAmundo. Não nos parece que devamos com isso
abandonar tais categorias em nome de uma outra, como quis Marcel Mauss ao
propor o uso da noção melanésia de mana. Substituir a noção ocidental por uma
oriental implicaria uma mera inversão, não uma superação do problema (se é que
se pode superáAlo completamente). Desde que se tenha em mente o continuum
entre sagrado e profano, desde que estejamos conscientes da impossibilidade de
se estender indiscriminadamente o seu uso a culturas alheias ao universo judaicoA
cristão, não há porque abandonar estes conceitos.
O nível crescente de complexidade de uma sociedade relacionaAse diretamente
com a forma por meio da qual ela gerencia suas relações com a transcendência.
Em sociedades arcaicas toda a vida do grupo está indissociavelmente ligada à reA
ligião (Frobenius sobre a África: «tudo era sagrado»). O extraAcotidiano e o cotiA
diano não constituem campos distintos: um está imerso no outro. TrataAse daquilo
que Max Lüthi, em seu clássico sobre o conto popular europeu, denominou «uniA
dimensionalidade».195 A emergência de formações sociais cada vez mais segA
mentadas e hierarquizadas leva a uma progressiva diferenciação entre as duas esA
feras. O mundo da natureza tende a ser desencantado, e as relações com o «além»
passam a ser rigidamente normatizadas e monopolizadas por um corpo de especiA
alistas. Por fim, o campo religioso apresentaAse como claramente delimitado.196
Porém a normatização, especialização e burocratização das relações com a transA
cendência não se processa historicamente de maneira uniforme. A religião popu
lar parece ser fruto da incapacidade desse novo modelo se extender de forma
homogênea por todo o corpo social; ela existe precisamente ali onde o modelo
«oficial» não pôde ou não conseguiu se impor.

194 Sanchis, Arraial: festa de um povo, p. 142.


195 Lüthi, Max. Das europäische Volksmärchen. Tübingen: Francke, 1997 (1947), pp.
11A12.
196 Luckmann, «Über die Funktion der Religion», pp. 36A37.
70

Conseqüentemente, podeAse dizer que duas boas palavras para definir o catoliA
cismo popular são indiferenciação e ambivalência. Indiferenciação no que diz
respeito à sua concepção de mundo, ambivalência no que concerne à sua relação
com o mundo. Resta acrescentar que o catolicismo popular não concebe a si próA
prio sem a intermediação da hierarquia eclesiástica. Suas práticas, suas crenças,
suas tradições, encontramAse numa relação dialética – e por vezes tensa – com os
termos da religião oficial. O ambiente rural/préAurbano compõe o quadro social
típico (mas não o único) que o produz e que ele contribui para reproduzir.

2.3.3. «Superstição»
PodeAse dizer que um único problema nos ocupou até agora neste estudo: o proA
blema da linguagem. Não é preciso que nos justifiquemos. A ciência só começa
onde termina o uso indiscriminado das palavras.
Na literatura, não são poucos os que qualificam determinadas práticas ou forA
mas de crença popular como «superstições». O que, afinal, significa isto? Aquele
que fala em «superstição» inevitavelmente desqualifica tais práticas como expresA
são religiosa legítima. Elas seriam uma comprovação da «ignorância religiosa»
em que vive o povo. Felizmente, nem todos utilizaram o termo num sentido tão
explicitamente pejorativo. Por «superstição» entendia Câmara Cascudo «a sobreA
vivência de um rito desaparecido».197 É louvável que o maior estudioso da cultura
popular brasileira tenha se utilizado de uma definição nãoAvalorativa, entretanto o
termo está de tal forma carregado de negatividade que o mais sensato seria sem
dúvida abandonáAlo. «Superstição», diz Baroja, é uma palavra «equívoca desde
que se comienza a usar y sigue siéndolo hoy». Mary O’Neil afirma que «o uso do
termo superstição é, inevitavelmente, antes pejorativo que descritivo e analítico».
Sanchis vai mais longe e observa que o termo em questão «é inteiramente relativo
ao veredito dos grupos que, em dada sociedade e etapa da existência social, reA
gulam a realização da ciência por um lado e, por outro, do sagrado».198 ConsA
cientes de tais problemas, os folcloristas Röhrich, Petzoldt e Blehr propuseram
que se adotasse o conceito neutro de «crença popular».199
O melhor trabalho sobre a evolução histórica da palavra superstitio é da autoria
de Dieter Harmening. Superstitiosus originalmente significava «vidente», «proA
feta», «profético». DesenvolveAse então uma interessante duplicidade: de um lado,

197 Cascudo, Luis da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: ItaA
tiaia/Edusp, 1985, p. 178.
198 Baroja, Julio Caro. De la superstición al ateísmo. Meditaciones antropológicas.
Madrid: Taurus, 1974, p. 151; O’Neil, Mary R. «Superstition». In: ER, vol. 14, p.
163; Sanchis, Pierre. Arraial: festa de um povo, p. 243.
199 Röhrich, Lutz. «Aberglaube». In: RGG³, 1. Band, p. 54; Petzoldt, «Magie und ReA
ligion», p. 477; Blehr, Otto. «FolkAbelief as a religious phenomenon». In: Moser,
DietzARüdiger (Hrsg.) Glaube im Abseits. Beiträge zur Erforschung des Aberglau
bens. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1992.
71

superstitio denota uma elogiável observância das prescrições rituais. De outro, e


já numa acepção negativa, superstitio se liga ao sentido do grego deisidaimonía –
«temor exagerado» e mesquinho diante dos Deuses; assim como passa a ser utiliA
zado para se referir a toda forma de religiosidade «vulgar» e nãoAromana. Com a
consolidação do cristianismo a palavra é empregada, e cada vez mais, na sua
vertente negativa: superstitiosi ergo qui multos ac falsos deos colunt, nos autem
religiosi qui uni et uero deo supplicamus (Lactâncio). A teologia cristã se aproA
pria da palavra, e dáAlhe finalmente seus contornos definitivos. Harmening conA
clui:
«Na medida em que o conceito de superstitio é explicitado, (...) ele não deA
signa características objetivas de objetos ou relações, mas um valor, ou meA
lhor dizendo uma ausência de valor, que se atribui a uma manifestação da
vida religiosa. Onde o fervor está em ação, tal como em nossa palavra ‹Aber
glaube› [‹superstição›], ela expressa indignação, ou, onde a mesma não se
manifesta, uma crítica à desrazão e à tolice.»200
Não chega a causar surpresa que representantes tanto do proselitismo religioso
quanto do antiAreligioso falem uma mesma e única linguagem quando o tema em
questão são essas formas difusas, não oficialmente sancionadas, de crença popuA
lar. Dos dois lados continuaAse a condenar, ou pelo menos a ironizar, o «ignorânA
cia religiosa» e a «crendeirice do povo». Ambos os lados lançam mão de uma linA
guagem que, no fundo, é a da intolerância, não a da ciência. Os historiadores que
relutam em renunciar ao termo «superstição» (e a lista é extensa), não fazem seA
não contribuir para a perpetuação de um equívoco.

2.4. Por uma síntese das abordagens


2.4.1. A contribuição da ciência da religião
Ao contrário do que se verifica em outras disciplinas, a ciência da religião coloca
o pesquisador diante de uma desconfortável diversidade terminológica. Enquanto
que em português optouAse por uma tradução literal do alemão Religionswissen
schaft, em francês falaAse em histoire des religions, e, em inglês, comparative
study of religions ou religious studies. Quando empregamos, mais acima, a exA
pressão «ciências da religião», no plural, nossa intenção obviamente não era a de
contribuir para que a confusão aumentasse ainda mais. Nossa distinção entre «ciA
ência» e «ciências» da religião é simples. Em outra oportunidade, já havíamos
adiantado que o uso do plural designa todo o conjunto de disciplinas que têm o
fenômeno religioso por objeto de estudo.201 A ciência da religião, desde que Max

200 Harmening, Dieter. Superstitio. Überlieferungs und theoriegeschichtliche Unter


suchungen zur kirchlich theologischen Aberglaubensliteratur des Mittelalters.
Berlin: Erich Schmidt, 1979, pp. 40A41.
201 Da Mata, «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial», p.
42.
72

Müller cunhou o termo, constitui uma tradição própria. TrataAse daquela tendênA
cia representada por autores que desenvolveram estudos dos sistemas religiosos
numa perspectiva filológica, histórica e comparada.202
Mais especificamente, pretendeAse ressaltar aqui a importância de um dos conA
ceitosAchave desenvolvidos por esta escola: o de espaço sagrado. Ele permiteAnos
analisar de forma mais precisa os processos resultantes da interação entre as duas
dimensões fundamentais com as quais lidamos até agora, quais sejam, «espaço» e
«religião».
Van der Leeuw definiu espaço sagrado como um «lugar no qual o efeito do poA
der se repete e é repetido pelo homem».203 Eliade desenvolve uma argumentação
semelhante. Para ele o espaço sagrado é produto de uma hierofania, isto é, de
uma manifestação do sagrado.204 RessalteAse uma vez mais que a natureza daA
quilo que estes autores entendem por «poder» e «sagrado» – o numinoso de RuA
dolf Otto – não está em questão para nós. Importa ressaltar em que o conceito de
espaço sagrado pode ser útil ao historiador da religião. E ele o é na medida em
que confirma aquela distinção por nós observada anteriormente: a de que o esA
paço nunca é concebido pelos homens de forma homogênea. Há setores ou ponA
tos no espaço que são qualitativamente distintos dos demais. TrataAse de espaços
«superiores», com «poder» e por vezes interditos.205
Outro importante aspecto ressaltado pelos fenomenólogos é o parentesco esA
trutural entre templo, casa e cidade. Na casa realizamAse os cultos domésticos, e
ela está repleta (em alguns casos, dos alicerces ao telhado) de símbolos religioA
sos. De modo que também ela constitui um espaço sagrado. O templo obedece à
mesma lógica e, por assim dizer, apenas a radicaliza – ele é a «casa de Deus». A
cidade, já foi observado, é erigida após um rito. Após a consagração que transfiA
gura o topos em temenos. Este parentesco mais profundo entre casa, templo e
cidade não nos deve passar desapercebido. Ele será explorado em detalhes mais
tarde.
A fenomenologia da religião mostra também que não se pode conceber separaA
damente espaço e tempo sagrados. A uma dada concepção de espaço corresponde
necessariamente uma forma de representação do tempo. A existência do espaço
sagrado atesta como nossa percepção da extensão é marcada pela heterogeneiA
dade. O mesmo pode ser dito do tempo. Há, bem sabemos, um espaço matemáA
tico e um tempo cronológico; mas não são estes o espaço e o tempo da vida. Tal
como a extensão é experimentada como um «espaço vivido» (Bollnow), a duração

202 Wach, Joachim. The comparative study of religions. New York: Columbia UniverA
sity Press, 1958, pp. 3A26.
203 Van der Leeuw, Gerardus. Phänomenologie der Religion. Tübingen: J. C. B. Mohr,
1933, p. 369.
204 Eliade, Die Religionen und das Heilige, pp. 415A418.
205 Ver Bauer, Dieter R. «Heiligkeit des Landes: ein Beispiel für die Prägekraft der
Volksreligiosität». In: Dinzelbacher, P. und Bauer, D. R. (Hrsg.) Volksreligion..., pp.
41A55.
73

se decompõe em porções distintas entre si. O tempo da festa se distingue por


constituir uma espécie de nódulo, de adensamento, de foco qualitativamente disA
tinto e «superior».
Mas em um ponto a contribuição de Eliade merece ser questionada. Como ele
entende a oposição entre sagrado e profano em termos rígidos, a dicotomia entre
espaço sagrado e espaço profano pareceAlhe igualmente clara e bem definida.
Esta delimitação assumiria, por exemplo, a forma material da muralha que enA
volve a cidade ou da cerca que delimita o túmulo de um santo.206 No entanto viA
mos que a concepção dicotômica do par sagrado/profano é típica do cristianismo
dos hierocratas e das classes letradas. Nada de semelhante se passa na mentaliA
dade popular, na qual a solução de continuidade é a mais freqüente. Portanto, a
idéia de Eliade segundo a qual o espaço é sagrado ou profano, é percebido como
Cosmos ou como Caos, deve ser posta de lado. Embora Durkheim tenha desenA
volvido uma teoria do sagrado igualmente dicotômica, ele percebeu que «não se
pode perder de vista que há coisas sagradas de todo grau».207 O que equivale a diA
zer que também o espaço comporta diferentes níveis de sacralidade.
O grande interesse que o estudo das peregrinações despertou nos últimos anos
demonstra o quanto os pesquisadores têm centrado sua atenção nas formas mais
«espetaculares» de espaço sagrado.208 Outras, menos impressionantes, não têm
recebido o mesmo tratamento. O estudo histórico da constituição e dinâmica dos
arraiais mineiros será uma maneira de contribuir para o melhor conhecimento das
formas menos radicais (diríamos: mais cotidianas) de espaço sagrado. Por hora, é
preciso que tenhamos em vista um aspecto fundamental e que se poderia formular
da seguinte maneira: a religião, numa sociedade tradicional, não constitui apenas
– como sugeriu Febvre – «o ar mesmo que se respira».209 Ela é o próprio chão que
se pisa.

2.4.2. A contribuição da geografia da religião


Sabemos da importância da religião no surgimento da cidade. A polis antiga, a
cidade africana ou oriental, a «Nova Zion» dos Mórmons no oeste dos EUA, as
«Vilas Santas» do movimento messiânico do Contestado ou o Arraial de Canudos

206 Eliade, Die Religionen und das Heilige, p. 419.


207 Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 69.
208 Alguns exemplos: Ranger, Terence. «Taking places of the land: holy places and
pilgrimages in twentiethAcentury Zimbabwe». In: Past and Present (117) 1987:
158A194; Theilmann, John. «Medieval pilgrims and the origins of tourism». In: JPC
(4) 1987: 93A102; Schieder, Wolfgang. Religion und Revolution. Die Trierer
Wallfahrt von 1844. Vierow: SHAVerlag, 1996; Moerman, David. «The ideology of
landscape and the theather of the state. Insei pilgrimage to Kumano (1090A1220)».
In: Japanese Journal of Religious Studies 24(3A4) 1997: 347A374.
e
209 Febvre, Lucien. Le problème de l’incroyance au 16 siècle. Paris: Albin Michel,
1988 (1942), p. 308.
74

– todos casos por demais evidentes para serem ignorados. A lista de processos
sociais nos quais religião e espaço se articulam é contudo bem mais extensa.
PenseAse, a despeito de todos os aspectos políticoAeconômicos ou geopolíticos, no
substrato religioso subjacente à criação do estado de Israel, assim como nos graA
ves conflitos daí resultantes. PenseAse na dimensão por vezes gigantesca de alA
gumas peregrinações religiosas. Antes da descoberta do petróleo, a maior fonte de
renda da Arábia Saudita baseavaAse nos ganhos advindos do hadsch a Meca. Na
Índia, a cada 12 anos, realizaAse às margens do Ganges a grande festa do Kumbh
Mela. Em seu momento culminante, a multidão atinge a astronômica cifra de 30
milhões de pessoas. PenseAse nas implicações espaciais e econômicas de
determinadas prescrições religiosas, como aquela que faz dos mongóis um povo
particularmente avesso à agricultura.
Toda essa gama de fenômenos demandava a formação de uma nova disciplina
que se dedicasse a analisáAlos de forma sistemática. De fato, este campo de pesA
quisas já vinha tomando forma desde o fim da Segunda Grande Guerra. Num
texto de 1945, Gabriel Le Bras advogava uma géographie religieuse que se conA
centrasse no estudo dos laços entre o grupo religioso e o seu chão, descrevendo
«os aspectos religiosos da paisagem urbana e rural».210 Uma primeira tentativa de
síntese é publicada dois anos mais tarde por Deffontaines. Nessa primeira fase, a
geografia da religião é compreendida como um subAramo da geografia humana;
seu objeto limitandoAse ao estudo do impacto das idéias religiosas sobre o
meio.211 O esforço pioneiro de Le Bras e Deffontaines não teve continuidade na
França, de modo que este país ocupa hoje uma posição secundária no que diz resA
peito à geografia da religião.212
Na década de 1960, os trabalhos de Erich Isaac e David Sopher representam
uma virada importante em termos metodológicos. Isaac adota o conceito de esA
paço sagrado e insiste na necessidade do geógrafo se aprofundar no estudo dos
sistemas religiosos cuja eficácia espacial pretende mensurar.213 Em 1967 Sopher
publica seu influente Geography of Religions.214 Nesta obra, o autor americano
sugere que a geografia da religião não deve se limitar a constatar a eficácia
espacial da religião, mas deve também analisar os possíveis efeitos do meio sobre

210 Le Bras, Gabriel. «Un programme. La géographie religieuse». In: Le Bras, G.


Études de sociologie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France, 1956
(tome II), pp. 491 e 523.
211 Deffontaines, Pierre. Géographie et Religions. Paris: Gallimard, 1948 (1947), pp.
8A10; Deffontaines, P. «Wert und Grenzen der religiösen Erklärung in der GeograA
phie des Menschen». In: Diogène (2) 1953: 199A213.
212 Ver os números especiais de Social Compass 40 (2) 1993 e dos Annales de Géo
graphie (588) 1996, ambos dedicados à nova disciplina.
213 Sobre a importância de Isaac, ver Sopher, David. «Geography and religions». In:
PHG (5) 1981: 510A524, p. 512; Kong, Lily. «Geography and religion: trends and
prospects». In: PHG 14 (3) 1990: 355A371, p. 360.
214 Sopher, David. Geography of religions. PrenticeAHall: Englewood Cliffs, 1967.
75

os sistemas religiosos. VêAse que Sopher não descarta a validade do que já fora
afirmado anteriormente por Ratzel. Não por mera coincidência, surgia exataA
mente naquele momento, e em estreito diálogo com a obra de Julian Steward, a
ecologia da religião.215 Outro aspecto importante da nova agenda estabelecida
por Sopher: a dialética entre sistemas de idéias de tipo não explicitamente religiA
oso (como as ideologias) e o espaço deveria ser objeto da atenção do geógrafo da
religião.
Com Manfred Büttner e o chamado «modelo de Bochum» esta tendência se
consolida definitivamente.216 Para Büttner não é possível dissociar a influência
da religião sobre o espaço (Umweltprägungslehre) da influência do espaço sobre
a religião (Religionsprägungslehre). Ambas as dimensões influenciamAse mutuA
amente, numa dialética necessariamente intermediada pelo grupo social (Reli
gionskörper). Três níveis simultâneos de análise, portanto: representações religioA
sas, relações sociais e estruturas espaciais. Os dois últimos compõem aquilo que,
de uma forma geral, se designa com o termo «ambiente». Em seu período de forA
mação, toda religião está particularmente sensível às influências advindas do
meio. Da mesma forma, o meio sofre o impacto das representações e práticas reA
ligiosas. Num determinando momento, chegaAse a um equilíbrio e o sistema
como um todo se estabiliza. Caso novos impusos surjam, seja por inovações no
plano religioso seja por alterações no ambiente (social/espacial), alterações suA
cessivas ocorrem de lado a lado até que um novo estado de equilíbrio seja atinA
gido. Do contrário, o grupo religioso pode simplesmente dissolverAse. O modelo
foi posto à prova por Büttner num estudo sobre pequenas comunidades religiosas.
Enquanto os waldenses demonstraramAse capazes de reformular sua «atitude espiA
ritual» num ambiente cada vez mais afetado pela realidade do mundo industrialiA
zado, o rigorismo religioso dos menonitas tende a colocar a comunidade diante de
um impasse e mesmo de uma possível desagregação. Posteriormente, Kurt RuA
dolf aplicou com sucesso este modelo em suas pesquisas sobre comunidades
batistas no Irã e Iraque.217
Para Büttner os três pólos (religioso, social e espacial) devem ser tratados
como vetores dinâmicos, isto é, históricos. Esta incorporação da dinâmica tempoA

215 Hultkranz, Ǻke. «Ecology of religion: its scope and methodology». In: Honko,
Lauri (ed.). Science of Religion. Studies in methodology. The Hague: Mounton,
1979, p. 229.
216 Büttner, Manfred. «Geosophie, geographisches Denken und EntdeckungsgeA
schichte, Religionsgeographie und Geographie der Geisteshaltung». In: Die Erde
(111)1980: 37A55; Büttner, M. «On the history and philosophy of the geography of
religion in Germany ». In: Religion (10) 1980: 86A119; Büttner, M. «Zur Geschichte
und Sytematik der Religionsgeographie». In: Geographia Religionum (1) 1985: 13A
121.
217 Rudolf, Kurt. «Religionswissenschaftliche Überlegungen zur ReligionsgeograA
phie». In: Kreisel, Werner (Hrsg.) Geisteshaltung und Umwelt. Aachen: Alano,
1988, pp. 415A425.
76

ral no trabalho do geógrafo da religião também foi ressaltada por Karl HoheiA
sel.218 No limite, e como resultado da «secularização», a geografia da religião deA
veria assumir um estatuto mais amplo e tornarAse uma «geografia das atitudes
mentais» (Geographie der Geisteshaltungen).
É justamente neste ponto que reside nossa ressalva em relação a Büttner e seus
discípulos. Repercutindo uma idéia difundida tanto na sociologia quanto na teoA
logia da época em que elaborou seu modelo, Büttner acredita que o mundo conA
temporâneo seria marcado por «uma modificação ou mesmo uma dissolução das
religiões».219 A tese da «secularização» tornaraAse amplamente aceita na AlemaA
nha; a moderna geografia da religião incorporouAa como parte integrante de seu
modelo. Assim se entende por que, num mundo dito «pósAreligioso», esta disciA
plina deveria se tornar uma geografia das mentalidades ou das ideologias. Outros
pesquisadores direta ou indiretamente ligados a Büttner mantiveram posição siA
milar. Rinschede chegou a dedicar toda uma seção de sua Religionsgeographie ao
«surgimento e difusão do secularismo».220
Tomaremos uma reveladora contradição por ponto de partida. Büttner propõe
uma geografia das atitudes mentais porque, em virtude da «secularização», a geoA
grafia da religião correria o risco de tornarAse uma ciência sem objeto. Mas obA
servou que «o método de pesquisa é e continua o mesmo».221 Se é assim, é legíA
timo supor que o objeto, em última análise, continua o mesmo. Hoheisel e RinA
schede, num interessante artigo,222 demonstraram que a lógica das relações entre
religião e espaço não difere da que se observa entre ideologia e espaço. Os autoA
res fazem uma distinção entre «sistemas de orientação religiosos» e «sistemas de
orientação seculares» que, ao nosso ver, não satisfaz. O ponto fraco do modelo reA
side na sua adesão incondicional à tese da inevitabilidade da «secularização».
Não cabe aqui alongarmoAnos na análise, já desenvolvida em outro lugar,223
sobre o caráter enganador do termo «secularização». Mas é sem dúvida irônico
que, justamente na época em que o paradigma do «desencantamento do mundo»
mais fazia adeptos, Ernst Benz atestava a força do movimento pentecostal nos
Estados Unidos, América Latina, África e Indonésia. Enquanto as páginas dos peA
riódicos especializados eram preenchidas com estudos sobre a «secularização» ou

218 Hoheisel, Karl. «Religionsgeographie». In: HrwG, 1988, 1. Band, pp. 108A120.
219 Büttner, «On the history...», p. 101.
220 Rischede, Gilbert. Religionsgeographie. Braunschweig: Westermann, 1999, pp.
60A68.
221 Büttner, Manfred. «Religionsgeographie bzw. Geographie der Geisteshaltung, ein
Teilbereich der (SozialA) Geographie, und/oder...?». In: Büttner, M. (Hrsg.) Wissen
schaften und Musik unter dem Einfluß einer sich ändernden Geisteshaltung. BoA
chum: Brockmeyer, 1992, p. 339.
222 Hoheisel, K. und Rinschede, G. «Raumwirksamkeit von Religionen und IdeoloA
gien». In: Praxis Geographie 19 (9) 1989: 6A11.
223 Da Mata, Sérgio. «Passado e presente da religião civil». In: VH (23) 2000: 180A
204, pp. 185A190.
77

sobre o crescente engajamento político da Igreja Católica na América Latina, uma


impressionante renovação religiosa se processava fora do campo de preocupação
dos especialistas. Em 1974, cinco anos antes da Revolução Islâmica no Irã (que
suscitou entre alguns sociólogos a idéia, igualmente enganosa, de um «retorno do
sagrado»), escrevia Benz:
«Esta tese [da ‹secularização›] não é correta, e estou convicto do contrário
não por motivos apologéticos, mas porque a coisa simplesmente não confere.
(...) Tal fenômeno [pentecostal] praticamente não chegou ao conhecimento
dos estudos de história eclesiástica, sobretudo porque esta nova onda carisA
mática se propagou primeiramente em camadas às quais a pesquisa acadêA
mica quase não deu atenção – nas camadas sociais mais baixas, entre os poA
bres do Terceiro Mundo, junto aos trabalhadores dos centros industriais.»224
Em 1978, HansAJürgen Prien dedicava nada menos que 18 páginas de sua Histó
ria do cristianismo na América Latina ao fenômeno pentecostal.225 AparenteA
mente, em vão. A grande maioria dos analistas continuava ainda convencida da
irreversibilidade da «eclipse do sagrado».
Num ensaio considerado hoje um clássico, Luckmann demonstrou que a reliA
gião não pode simplesmente «acabar». Pois as visões de mundo seriam, ao seu
ver, uma forma elementar de religião. Na medida em que a identidade passa a exA
pressar (em virtude do processo de socialização) a visão de mundo a nível pesA
soal, daí se conclui que a identidade pessoal seria «uma forma universal de reliA
giosidade individual».226 Este estrato individual constituiria uma constante
antropológica subjacente a toda forma histórica de religião. Para Luckmann a tese
da «secularização» não passaria de um mito moderno.227 Uma forma específica de
religião, a religião de Igreja, tende a tornarAse incompatível com as complexas
estruturas do mundo contemporâneo. O que está em declínio são as grandes orgaA
nizações religiosas tradicionais, diz ele, não a religião. Liberta dos constrangiA
mentos institucionais aos quais estava submetida, a religião adquire uma feição
cada vez mais individualizada. A transformação pela qual passa o homem reliA
gioso caracterizaAse por uma desclericalização (Entkirchlichung) de um lado, e
pela individualização do outro.
Se de fato Luckmann retrata com precisão a transformação do campo religioso
da Europa ocidental, é importante relativizar suas conclusões quando nosso olhar
se dirige para outros contextos. Em países marcados por uma maior estratificação
sócioAeconômica, como o Brasil, individualização religiosa e eclesiogênese poA

224 Benz, Ernst. «Norm und Heiliger Geist in der Geschichte das Christentums ». In:
Eranos Jahrbuch (43) 1977: 137A182, p. 137 e 138.
225 Prien, Historia del cristianismo en America Latina, pp. 822A839.
226 Luckmann, Thomas. The invisible religion. The problem of religion in modern so
ciety. New York: Macmillan, 1967, p. 70.
227 Luckmann, Thomas. «Säkularisierung – ein moderner Mythos». In: Luckmann, T.
Lebenswelt und Gesellschaft. Paderborn: Schöningh, 1980.
78

dem ocorrer simultaneamente – a depender da camada social em questão. Grosso


modo, lógicas opostas se verificam nos pólos opostos da pirâmide social: entre as
camadas sociais médias e elevadas, individualização; junto aos mais pobres, esA
fervescência religiosa e eclesiogênese.
Em que pesem tais diferenças entre Luckmann e Benz, o que nos cabe apreenA
der a partir de seus estudos é que a tese da «secularização» há muito se inviabiliA
zou.228 TrataAse, enfim, de uma «profecia desmentida».229
Voltando ao nosso tema, concluiAse que ao propor a passagem a uma geografia
das atitudes mentais, Büttner não estava de fato mudando de objeto. Quer se fale,
como Sopher,230 numa geografia das «quaseAreligiões» (expressão que, francaA
mente, não nos diz nada), ou, como Hoheisel e Rinschede, numa geografia das
ideologias, o tema de estudo continua sendo – é preciso que se insista – «reliA
gião». Pois vemoAnos diante de duas alternativas. A primeira implica em admitir a
unidade antropológica do gênero humano (e, por conseguinte, todos têm alguma
forma de religião). A segunda alternativa nos induz a um duplo equívoco: supor
que o homem «primitivo» não tinha ainda religião, e que o homem contemporâA
neo não a tem mais.
Por quê afinal o historiador interessado em geografia da religião deve se preA
caver contra a tentação de se confundir desclericalização com «secularização»? O
motivo relacionaAse diretamente com a trajetória do espaço préAurbano e urbano
mineiro. Em princípio, a inauguração de Belo Horizonte em 1897 corresponderia
à tese do progressivo declínio da religião. Nada parece mais oposto à relativa esA
pontaneidade da organização espacial de um arraial que a racionalidade do plano
da nova capital do estado. Dois modelos distintos, não há dúvida. Mas este
exemplo servirá mesmo de apoio à tese de Murillo Marx, segundo a qual «o esA
paço urbano público no Brasil evoluiu lentamente do sagrado ao profano»?231

228 E contudo, não são poucos os que, de uma forma ou de outra, se mantém fiéis a
ela. Com todos os problemas de direito, mas sobretudo: a única forma de salvar o
termo «secularização» consiste pura e simplesmente em insistir na «utilidade» do
signo lingüístico, de vez que seu sentido não nos diz mais nada. Habermas tem
utilizado a expressão «sociedade pósAsecular». Habermas, Jürgen. «Glaube, Wissen
– Öffnung». In: Süddeutsche Zeitung, 15.10.2001. Pierucci propõe a volta ao senA
tido «original» da palavra. Pierucci, Antônio F. «Secularização em Max Weber». In:
RBCS 13 (37) 1998. A solução encontrada por Luhmann foi no mínimo curiosa:
para ele «secularização não significa perda da função ou do significado da reA
ligião». Secularização seria um fenômeno que expressa o processo de evolução
rumo a uma progressiva diferenciação e autonomização dos subAsistemas que
compõem a sociedade. Ou seja, para Luhmann a «secularização » existe desde que
compreendida nos seus termos. Luhmann, Die Religion der Gesellschaft, pp. 300A
301. Algo parecido acontece com Gauchet e sua tese sobre a «saída da religião».
Gauchet, Marcel. Le désenchantement du monde. Paris: Gallimard, 1985.
229 Sanchis, Pierre. «A profecia desmentida ». In: Folha de São Paulo, 20.04.1997.
230 Sopher, Geography of religions, pp. 112A113.
231 Marx, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano, p. 7.
79

Não: a nova visão de mundo a que aderem as elites políticas republicanas, o raciA
onalismo positivista, também pode ser considerada uma forma social de reliA
gião.232 A trajetória de Augusto Comte bem o demonstra. O termo «racionaA
lismo», acrescenteAse, não denota um tipo de procedimento mental radicalmente
alheio ao universo da fé. Um dos aspectos mais inovadores da obra de Weber foi
sabidamente o de ter demonstrado a origem religiosa do racionalismo moderA
no.233
Tais ressalvas de forma alguma representam um questionamento do modelo de
Bochum como um todo, mas apenas de um dos elementos que o compõem. A
geografia da religião abriu e continua a abrir novos horizontes para o historiador
e para o cientista social, como demonstram as considerações de Rinschede sobre
a ética ambiental (Umweltethik) dos diversos sistemas religiosos, ou ainda a tiA
pologia dos centros de peregrinação proposta por Rosendahl.234 De resto, a inA
corporação da perspectiva luckmanniana significaria uma abertura para novas
questões, tais como: qual é o tipo de interação específico que a religião invisível
estabelece com o espaço? A religião individualizada dos dias de hoje produz
efeitos espaciais necessariamente «difusos»? A «reAsacralização» da natureza nas
últimas décadas e a expansão do movimento ecológico devem ser consideradas
um tema da geografia da religião?235
DeveAse, pois, assinalar a importância da contribuição desta nova disciplina.
Ela abre perspectivas de análise que nos permitem explicar de forma mais conA
sistente o processo por meio do qual a religião se relacionou com a produção das
formas elementares do espaço urbano na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX.
Como se processou historicamente esta dialética entre dinâmica religiosa e dinâA
mica espacial, é o que se vai explorar nos próximos capítulos.

232 Partindo da conhecida definição de religião de Tylor («crença em seres espirituA


ais»), Firth argumenta que o que permite diferenciar religião e ideologia é que a
primeira se orienta para o «transcendente», enquanto que a segunda se orienta para
a «imanência». Firth, Raymond. Religion. A humanist interpretation. London:
Routledge, 1996, p. 158A159. Veremos adiante como a análise histórica do catoliA
cismo popular permite colocar em questão o simplismo dualista que é o pano de
fundo de tais concepções a respeito do fenômeno religioso.
233 Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, 1. Band, pp. 11A12, 265A267,
270A273.
234 Rinschede, Religionsgeographie, pp. 91A102; Rosendahl, Zeny. Espaço e religião.
Uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, pp. 71A80. Para uma
visão geral das tendências de pesquisa na última década, ver Kong, Lily. «Mapping
‹new› geographies of religion: politics and poetics in modernity». In: PHG 25 (2)
2001: 211A233.
235 Ver Soares, Luiz E. «Religioso por natureza». In: Soares, L. E. O rigor da indisci
plina. Ensaios de antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1994.
80
81

3. O sagrado e as formas elementares do espaço


3.1 Religião popular em Minas nos séculos XVIII e XIX
Qualquer tentativa de oferecer um painel monolítico da vida religiosa em Minas
ao longo do setecentos e do oitocentos seria sem dúvida inaceitável. Durante
muito tempo o mito da «Minas católica» encobriu o papel que ali tiveram as exA
pressões religiosas indígenas, de origem africana e mesmo protestante. Não é
nossa intenção reforçar esta imagem, mas não há como negar que nos encontraA
mos diante de um caso singular. O nível de pluralização verificado no campo
religioso mineiro foi, pelo menos até meados do século XX, bem menor que o de
outros estados brasileiros. O sincretismo (afroAcatólico ou católicoAindígena)
nunca se desenvolveu em Minas no mesmo nível e com a mesma intensidade que
– para citar um exemplo cômodo – na Bahia. De grandes surtos messiânicos
como os de Canudos e do Contestado não se tem notícia, apesar da presença
comprovada de muitos sebastianistas no seu território.1 Era de se esperar também
que um grupo com características tão especiais como o dos cristãosAnovos não
tivesse contribuído de forma significativa na constituição do universo religioso
mineiro.2 Neste sentido, o mito de Minas como «o estado mais católico do Brasil»
teve a sua dose de verdade.
São diversas as razões desta especificidade. De um lado, o caráter «insular» da
região onde se fizeram as primeiras descobertas de ouro. A virtual inexistência de
um sistema viário adequado, carência que sabidamente se estenderia ao longo do
século XIX, tornava o acesso às Minas um empreendimento dos mais penosos.
De outro lado, o controle imposto pela Coroa portuguesa aos que pretendiam ali
chegar acentuava este isolamento relativo. Se não se pode superestimar a força de
tais obstáculos, dada a dimensão atingida pela imigração desencadeada após as
primeiras descobertas de ouro em fins do século XVII, não se deve esquecer de
que o gold rush teria atingido proporções bem maiores caso as dificuldades de
acesso (topográficas e administrativas) não tivessem sido as mesmas.
O caráter marcadamente lusitano da religião e da cultura do povo mineiro tem
suas raízes na corrida do ouro setecentista. CalculaAse entre 8.000 e 10.000 o núA
mero de aventureiros que embarcavam anualmente do Reino para as Minas, razão
pela qual medidas restrivas foram tomadas já a partir de 1709.3 «Daí – constata

1 Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1975, pp. 295A296; Spix, Johann Baptist v. e Martius, Carl
Friedrich Philipp v. Viagem pelo Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976, vol. I, p.
218 e vol. II, p. 53. Sobre o sebastianismo em Portugal, ver Hermann, Jacqueline.
No reino do desejado. A construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e
XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
2 Ver Novinsky, Anita. «Ser marrano em Minas Colonial». In: RBH 21(40) 2001:
161A176.
3 Godinho, Vitorino Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. LisA
boa: Arcádia, 1971, pp. 44, 149A150.
82

Oliveira Vianna – serem os mineiros, dentre os vários grupos regionais das nossas
populações, talvez aquele em que mais se conservam os aspectos lusitanos da
nossa cultura».4
Como e porque Minas manteve durante tanto tempo este perfil, a despeito da
presença de brasileiros vindos de outras capitanias bem como um percentual eleA
vado de escravos e negros livres? Um primeiro marco no processo de autoAdefiA
nição da cultura mineira se deu provavelmente por ocasião das escaramuças
travadas entre paulistas e «emboabas»5 pelo controle da mineração no Rio das
Mortes em 1709. A derrota dos paulistas, cujo próprio nome era tido por seus
opositores como sinônimo de «horrendo, fero, ingente e temeroso»,6 parece assiA
nalar a afirmação do modelo civilizacional lusitano nos momentos iniciais da
história da capitania.
Quanto à proveniência dos portugueses, sabeAse que a grande maioria adveio
de províncias do norte do Reino como Douro, TrásAosAMontes e Minho – onde,
desde os primórdios da formação da nacionalidade portuguesa, desenvolveuAse
um catolicismo profundamente marcado pela experiência da guerra de Recon
quista. Um catolicismo, portanto, inclinado à rejeição de qualquer forma de alteA
ridade religiosa. Pouco permeável simbolicamente. O perfil tradicionalista do
homem mineiro deve muito a estas raízes norteAportuguesas, algo que o relativo
isolamento geográfico tendeu a reforçar e a sedimentar. No que diz respeito à
realidade dos séculos XVIII e XIX, isto significou que o espaço concedido às
manifestações religiosas africanas foi bem mais estreito que em outras regiões do
Brasil.
Um outro importante aspecto foi a proibição, em 1711, da entrada de ordens
religiosas no território de Minas. De uma forma geral a historiografia não deu a
devida atenção às implicações desta medida, mesmo sabendoAse que ela contradiA
zia o desejo expresso da Coroa em «civilizar» aquelas populações. De sua parte,
as autoridades portuguesas alegavam que os religiosos regulares «eram responsáA
veis pelo extravio de ouro, e por insuflar a população ao não pagamento de imA
postos».7 A proibição das ordens sem dúvida visava fortalecer a saúde financeira
do Estado português, mas não pelos motivos oficialmente alegados. Em Portugal
a Igreja detinha um enorme poder econômico, e que por vezes ameaçava sobreA
pujar o da própria Coroa. Numa sociedade em que a maior preocupação em vida
era (ou deveria ser) a salvação após a morte, uma gigantesca quantidade de bens
acabava por reverterAse à Igreja, administradora que é dos «bens de salvação». As
ordens religiosas eram alvo privilegiado das doações dos fiéis, de modo que ainda

4 Vianna, Oliveira. Pequenos estudos de psycologia social. São Paulo: Monteiro LoA
bato & Cia, 1923, p. 52.
5 A palavra «emboaba», cunhada pelos paulistas, designava pejorativamente tanto
«reinóis » (portugueses) quanto brasileiros oriundos de outras regiões.
6 Códice Costa Matoso (CCM). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, p.
277.
7 Boschi, Os leigos e o poder, p. 3.
83

em 1832 elas tinham rendimentos da ordem de 1.162 contos, enquanto que a arA
recadação do Estado com impostos somava 1.600 contos.8
A conseqüência da proibição da entrada das ordens é evidente: a presença ins
titucional da Igreja permaneceu extremamente débil em Minas Gerais. Mesmo a
instalação do bispado de Mariana em 1748 não alteraria substancialmente este
quadro. De uma forma geral, o perfil do clero secular não se afastava daquele
predominante no geral da população. A disciplinarização do clero e a chamada
«romanização» do catolicismo são um fenômeno deflagrado somente a partir da
segunda metade do século XIX por Dom Antônio Ferreira Viçoso, sétimo bispo
de Mariana. Isolamento, fragilidade da estrutura eclesiástica, escassez de sacerA
dotes, exígüa expansão da rede escolar: nestas condições é fácil entender que o
tipo de religiosidade predominante em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII
e XIX estava longe de corresponder aos cânones do catolicismo oficial. De forma
que o catolicismo mineiro foi forjado sobretudo pelos leigos. Todavia, isso não o
tornou mais «maleável». Em Minas o catolicismo manteve, até bem pouco tempo,
um caráter marcadamente tradicionalista.9
Curiosamente, a relação entre desenvolvimento do espaço urbano e a dinâmica
das visões de mundo assumia um caráter oposto ao que se verifica na sociedade
moderna. O desenvolvimento capitalista, a democratização do ensino, o surgiA
mento dos meios de comunicação de massa e a rápida urbanização são determiA
nantes estruturais do pluralismo.10 Nada semelhante pode ser observado em MiA
nas durante o século XVIII e maior parte do XIX. Ao invés de servir de locus
privilegiado do pluralismo, a cidade préAmoderna era um «ponto de rotação»
(Simmel) e de transmissão de um único ideal civilizatório. No período que aqui
nos ocupa, a cidade funcionava sobretudo como um pólo de disciplinarização so
cial e cultural. Ela tendia a produzir não o pluralismo, mas «monolitismo» e enA
quadramento nos termos da religião oficial. Era nas fazendas e sítios, nos arraiais
nascentes ou no sertão, longe das instâncias de poder civil e eclesiástico, que as
distintas visões de mundo e de além podiam conviver de forma um pouco mais
harmônica. Era longe dos grandes aglomerados urbanos que as expressões tradiA
cionais da religião popular brasileira adquiriram seus contornos característicos.
DeveAse, pois, relativizar as implicações das afirmações de Weber e Troeltsch a
respeito do «caráter urbano» do cristianismo, uma vez que o que está em questão
para eles é evidentemente uma das formas de cristianismo.11 Quem quiser estudar

8 Godinho, A estrutura na antiga..., p. 71.


9 Na acepção de Mauss: a «potência e a impotência de uma tradição» pode ser meA
dida, diz ele, pelo nível de facilidade (ou dificuldade) de estabelecer empréstimos
culturais, pelo nível de permeabilidade (ou impermeabilidade) de um dado uniA
verso mental. Mauss, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981,
p. 117.
10 Berger, Peter, Berger, Brigitte and Kellner, Hansfried. The homeless mind. HarA
mondsworth: Penguin Books, 1974, pp. 64A65.
11 Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 240; Weber, Wirtschaft
84

a história do catolicismo popular brasileiro deve procuráAlo no seu próprio espaço


vital.
Contudo é preciso algo mais. É hora de se abandonar algumas idéias correntes
em nossa historiografia, como a que caracteriza a religião lusoAbrasileira (e partiA
cularmente a mineira) como «exteriorista». Mais uma vez, não se trata de uma
mera questão de vocabulário. Tal como «superstição», o termo «exteriorismo»
nem sequer chega a ser um conceito: ele é a expressão de um anacronismo, de um
etnocentrismo e, em última análise, de uma ilusão. Um equívoco que, no âmbito
da historiografia brasileira, remonta pelo menos a Sérgio Buarque de Holanda.
Para ele o brasileiro vive uma «religiosidade de superfície, menos atenta ao senA
tido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal
em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira
espiritualidade».12 Ninguém parece ter se dado conta de que a palavra «exterioA
rismo» só aparece no discurso elaborado pelas elites (eclesiásticas, intelectuais)
sobre a religião do povo, mas nunca na fala do próprio povo. Como demonstraA
mos em outra ocasião, a tese do «exteriorismo» não se sustenta porque toma por
pressuposto a idéia de que determinadas práticas religiosas são marcadas pela esA
cassez e mesmo ausência de conteúdo.13 Maffesoli escreveu nos últimos anos
verdadeiros libelos contra esta desconfiança generalizada em relação ao signo, ao
«exterior», como se este constituísse uma dimensão de segunda classe em tudo o
que diz respeito à vida social. «Não parece mais pertinente manter uma dicotomia
radical entre a forma e o fundo». Pois «a forma é formadora» – ela é dotada de
«caráter ontológico».14 Uma leitura crítica da crítica à «exterioridade» revelaria,
ademais, seu verdadeiro panoAdeAfundo: a tendência antiAritualista que marca o
pensamento moderno. Tal tendência se confronta com um dilema revelador. PreA
cisamente em algumas das expressões religiosas onde o antiAritualismo foi levado
mais longe (por exemplo no pietismo) produziuAse um imenso vazio no plano
emocional, cuja contraface é uma «ânsia por segurança e calor» à qual estes mesA
mos cultos não se mostram capazes de responder de forma eficaz.15 DemonstraAo
a observação preciosa de Burton, após assistir ao enterro de uma compatriota em
Minas: «Depois de passar muitos anos sem ouvir os serviços religiosos da Igreja
da Inglaterra, fiquei impressionado com a frieza e insensibilidade do rito».16 Mas

und Gesellschaft, pp. 269A270; Troeltsch, Die Soziallehre der christlichen Kirchen
und Gruppen, pp. 250A251.
12 Holanda, Raízes do Brasil, p. 111 (grifo nosso).
13 Da Mata, «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas colonial»,
pp. 49A51.
14 Maffesoli, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996 (1990), pp.
138, 127 e 158. Ver também Maffesoli, M. «La dynamique de l’apparence». In:
L’Homme et la Société (59A62) 1981: 3A10.
15 Soeffner, HansAGeorg. Gesellschaft ohne Baldachin. Weilerswist: Velbrück, 2000,
pp. 148.
16 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 286.
85

o antiAritualismo é, em si mesmo, também uma ilusão. Basta olhar com atenção à


nossa volta para nos apercebermos que nosso tempo não expulsou o ritualismo –
deuAseAlhe apenas uma nova face. Esta paradoxal inclinação pela negação de um
aspecto fundamental da vida social foi classificada por Soeffner como «ritualismo
nãoAassumido».17

3.1.1 Homo ludens, habitus nômade e religião


A relação básica que se estabelecia entre o homem e o espaço nem sempre era
a do enraizamento. A bem da verdade, a lógica do movimento constituiu um dos
elementos definidores do estilo de vida do homem mineiro. Os testemunhos que
chegaram até nós atestam a força daquilo que Sérgio Buarque considerou ser uma
«concepção espaçosa do mundo», e que Pierre Sanchis prefere chamar habitus
nômade.18 A expressão por assim dizer paradigmática desta inclinação pelo moA
vimento foi por certo o bandeirante, mas é possível detectáAla por toda a parte.
Em 1677 se dizia dos lavradores paulistas que «os fregueses de Cutia que dista
desta cidade [de São Paulo] sete léguas, são já hoje fregueses de Sorocaba que
dista da dita Cutia vinte léguas». Populações inteiras que, tal como o indígena, só
sabiam «correr trás do mato virgem, mudando e estabelecendo o seu domicílio
por onde o há».19 Com o surto da mineração e mesmo com a formação das priA
meiras vilas esta tendência não se altera. São conhecidas as palavras de Antonil a
respeito daquelas «freguesias móveis de um lugar para o outro, como os filhos de
Israel no deserto».20 O Conde de Assumar decidiu, em 1720, povoar Pitangui com
reinóis pois até então só moravam ali paulistas «cujas habitações sempre têm
pouca forma, porque a sua vida e a natural propensão que têm de andarem pelos
matos faz que as suas povoações não sejam persistentes».21 Em 1747, um funcioA
nário da Coroa chamava a atenção do Conselho Ultramarino para o «modo de
vida do dilatado terreno das Minas», marcado pelas
«repetidas mudanças dos moradores, que hoje se achavam naquela vila,
amanhã no Sabará e no outro dia não apareciam; hoje eram mineiros e lavraA
vam nesta paragem, amanhã em outra, e no outro dia iam para a roça, e no
outro para o povoado (...)».22

17 Soeffner, HansAGeorg. Die Ordnung der Rituale. Frankfurt: Suhrkamp, 1995


(1992), p. 103.
18 Holanda, Raízes do Brasil, p. 13; Sanchis, Pierre. «Topos, raízes, identidade. Um
enfoque sobre o Brasil». Mimeografado, 1997.
19 Citado por Sanchis, «Topos, raízes...», p. 7A8.
20 Antonil, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São
Paulo: Melhoramentos, 1976 (1711), p. 168.
21 Citado por Freyre, Gilberto. Sobrados e mucambos. Lisboa: Livros do Brasil, s/d
[1936], vol. I, p. 93.
22 CCM, p. 437.
86

Em sua «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», datada de 1780,


José João Teixeira Coelho atribui o pouco desenvolvimento da produção de gêneA
ros alimentícios à facilidade com que se obtinham novas sesmarias da Coroa. E
conclui:
«Aquela facilidade faz com que os bens da capitania de Minas não sejam esA
táveis; porque os roceiros, como se lhes não dificulta a concessão de novas
terras, não fazem benfeitorias atendíveis nas que possuem, e as abandonam
por quaisquer motivos de conveniências fantásticas».23
A mesma lógica continua a vigorar no século XIX. Depois de falar a um lavrador
da fertilidade das terras no Vale do Jequitinhonha, SaintAHilaire se espanta com o
fato de vêAlo imediatamente disposto a mudarAse para aquela região da provínA
cia.24 Ao depararAse com o arraial de Pedras de Baixo, que, a despeito das condiA
ções privilegiadas de seu sítio encontravaAse praticamente vazio, escreve o
mesmo autor: «Como é possível que se tenha abandonado esse local encantaA
dor?». Para ele o habitante de Minas «jamais está contente em sua terra».25 EschA
wege, outro a constatar a força deste habitus nômade, não esconde sua perplexiA
dade diante de «arraiais em ruínas sem que pessoa alguma se proponha a reconsA
truíAlos, ou, pelo menos, a reparar os estragos».26 E prossegue, referindoAse ao
arraial de Bambuí:
«EntristeçoAme em conhecer locais em que as casas parecem apenas coladas
no solo nu, inculto, sem uma árvore sequer, plantada pelos moços, que possa
recordar aos velhos a sua mocidade perdida, sem uma praça enfeitada que os
faça amar o torrão natal. Daí a ausência de sentimentos, o pouco relacionaA
mento entre as famílias, as emigrações contínuas que lembram os nômades.
Nada os liga à terra natal, a não ser os interesses materiais. Tão logo estes
não possam mais ser satisfeitos de maneira fácil, abandonam os lares em ruíA
nas, para recomeçar a vida em outras bandas.»27
É fácil entender que ao observador alemão – tão marcado à época por este proA
fundo senso de pertencimento ao seu «lugar antropológico» de origem (a Heimat)
– o tipo de comportamento acima descrito tenha parecido exótico. Mas o habitus
nômade não passou desapercebido a outros viajantes. Ao chegar à povoação do
Pomba, Langsdorff encontrouAa «em franca decadência». As poucas e miseráveis
casas estavam «quase todas abandonadas pelos seus habitantes, que estão todos
em Descoberta Nova», um arraial nascente não distante dali, no qual se enconA

23 Coelho, José João Teixeira. «Instrução para o governo da capitania de Minas GeA
rais (1780)». In: RIHGB 15 (7) 1852, p. 452.
24 SaintAHilaire, Auguste de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Ge
rais. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1938, vol. I, p. 177.
25 SaintAHilaire, op. cit., vol II, p. 326A327.
26 Eschwege, Wilhelm L. v. Brasil, novo mundo. Belo Horizonte: Fundação João PiA
nheiro, 1996, p. 65.
27 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 93. Grifo nosso.
87

trara ouro.28 «Tudo se movimenta», diz Richard Burton já na segunda metade do


século XIX, pois no mineiro «o instinto nômade ainda está muito forte».29 Até
mesmo nas primeiras décadas do século XX Monbeig constatava a permanência
em paulistas e mineiros de uma «espécie de instinto que os impele sempre para
adiante, para além da civilização».30
SejaAnos permitido examinar a questão um pouco mais de perto, uma vez que
ela pode nos dizer algo de importante sobre a psicologia dos antigos mineiros.
Para os observadores europeus esta inclinação ao movimento era fruto da «indoA
lência», da resistência ao serviço militar e da fuga do rigor da justiça, da faciliA
dade de obtenção de novas terras e do escasso amor à terra natal.31 A questão da
«indolência» é das mais complexas, e exigiria de nós, antes de mais nada, um
questionamento das bases a partir das quais a idéia mesma de «indolência» pôde
se constituir.32 De um suposto pouco apego à terra natal não parece dar prova a
civilização lusoAbrasileira – fiel que foi e é ao sentimento da saudade.
Num certo sentido, podeAse dizer que o homem daquele período vive ainda sob
o jugo da Natureza. Ele se desloca abruptamente para os locais nos quais se diz
haver ouro; vêAse expulso de seu chão por força de secas prolongadas ou de surA
tos epidêmicos (as temidas sezões); descarta de antemão a simples idéia de ter
que trabalhar suas terras quando há tantas outras ainda desocupadas. Daí porque o
arraial foi a forma de povoação típica do homem mineiro. A condição de transitoA
riedade que o próprio termo traduz não poderia ser mais representativa. Às vezes
o arraial assenta raízes, às vezes não – e só então se descobre que, ao invés de
constituir um embrião de cidade, ele não passara de simples acampamento.
Mas, enfim, que terá sido aquela «força» que impelia os homens para adiante?
Em grande parte foi a força do mito. O mito do Eldorado, antes de tudo.33 Duas

28 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 72.


29 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, pp. 145 e 325.
30 Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, p. 122.
31 SaintAHilaire, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco e pela pro
víncia de Goiás. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1944, vol. I, p. 123; Pohl, João
Emanuel. Viagem no interior do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do LiA
vro, 1951, vol. II, p. 301; Eschwege, op. cit., p. 86A87.
32 Antônio Cândido, que infelizmente não chegou tão longe, atribuiu o «desamor ao
trabalho» do homem rural do sudeste brasileiro à «desnecessidade de trabalhar,
condicionada pela falta de estímulos prementes, a técnica sumária, e, em muitos
casos, a espoliação eventual da terra obtida por posse ou concessão». Cândido, A.
Os parceiros do Rio Bonito, p. 65. Alguns elementos para uma interpretação cultuA
ralista podem ser encontrados no artigo de Eisenstadt, S. N. «Culture, religions and
development in North American and Latin American civilizations». In: Interna
tional Social Science Journal (134) 1992: 593A606.
33 Ver, entre outros: Ricardo, Cassiano. Marcha para oeste. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1939; Pouyllau, Michel. «Une géographie de l’Eldorado». In: Décou
vertes et explorateurs. Actes du Colloque International. Bordeaux: L’Harmattan,
1994, pp. 451A463.
88

de suas variantes adquiriram notoriedade na Minas colonial: a Serra do SabaraA


buçu e a Lagoa Dourada. Os bandeirantes imaginavam a primeira coberta de
prata, enquanto que a Lagoa Dourada, situada em algum ponto das cabeceiras do
rio São Francisco, era procurada – diz um documento escrito em 1809 – «pela
grande riqueza que se julga ter; assim como um campo vizinho, a que dão o nome
de Campo da Riqueza».34 Mais tarde, descoberto o ouro, fantásticas histórias
chegavam ao Reino e a outras regiões da Colônia. DiziaAse que nas Minas basA
tava arrancarAse um punhado de mato com as mãos e sacodíAlo para obter o preA
cioso metal.35 Na segunda metade do século XIX o mito da Lagoa Dourada era
ainda corrente em Minas, e não apenas nos estratos inferiores da pirâmide social.
Tschudi afirma que mesmo «homens extremamente cultos» não duvidavam de sua
existência: «poderAseAia até acreditar que eles mesmos a tinham visto, e no enA
tanto baseavamAse unicamente na tradição». Quando de sua passagem pela proA
víncia, acreditavaAse que a Lagoa Dourada estaria localizada na região das floA
restas ainda pouco conhecidas que se extendiam entre os vales do Rio Mucuri e
do Rio Belmonte.36
Os pioneiros não têm a ilusão de que em Minas os espera uma terra sem mal.
SabeAse bem que ali campeia a desordem e o crime. Mas não há como resistir ao
apelo irresistível das lavras. Quem as procura aspira a uma salvação no hic et
nunc. A estrutura desta «salvação» no plano da imanência não obedece ao princíA
pio da justiça divina, mas sim ao imperativo da «sorte»: o mineiro é antes de tudo
um jogador. Sob este prisma, podeAse entender melhor o problema do habitus
nômade. Pois a lógica do homem que se desloca ao sabor da última descoberta de
ouro ou da busca de um novo chão não é outra senão a do jogo. MovimentarAse,
nos séculos XVIII e XIX, é antes de tudo uma outra forma de «fazer uma aposta».
É curioso que até agora este traço fundamental da vida mineira não tenha sido
devidamente ressaltado, já que testemunhos não faltaram. O retrato que Nuno
Marques Pereira faz daqueles que seguem para as «minas do ouro» em seu Com
pêndio Narrativo do Peregrino da América (1728) é aliás contundente: homens
que abandonam tudo em nome da sede de riqueza, pouco inclinados à observânA
cia do ideal católico segundo o qual a suprema virtude estava em ausentarAse do
«mundo». Naquele tempo – relata um dos personagens do livro – «chegou à miA
nha pátria a notícia dos grandes haveres, que se havia descoberto neste Estado do
Brasil nas minas do ouro, por cuja razão me deliberei embarcar em uma frota,
que fazia viagem para o Rio de Janeiro, sem mais cabedais, que a ferramenta do
meu ofício.»37 Por volta de 1750, o paulista Bento Fernandes Furtado falaAnos do

34 Leite, Mário. Paulistas e mineiros. Plantadores de cidades, p. 88; Ribeiro, JoaA


quim. Folklore dos bandeirantes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946, p. 50.
35 Konetzke, Richard. Die Indianerkulturen Altamerikas und die spanisch portugie
sische Kolonialherrschaft. Frankfurt: Fischer, 1995 (1956), p. 304.
36 Tschudi, Johann Jacob v. Reisen durch Südamerika, Stuttgart: Brockhaus, 1971
(1866), 2. Band, p. 255.
37 Pereira, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América. Rio de
89

«inumerável povo de várias partes do Brasil e em maior quantidade filhos de


Portugal» que tinha vindo às minas, «os mais deles, pobres».38
Quem toma o caminho das minas é um aventureiro39: um jogador, um homo
ludens portanto. Quando Sérgio Buarque caracteriza o aventureiro como o tipo
humano «que ignora as fronteiras» e que é marcado por essa «ânsia de prosperiA
dade sem custo (...) tão notoriamente característica da gente de nossa terra»,40 não
é da essência mesma do jogador que se está a falar? Simmel, em seu ensaio Das
Abenteuer, já percebera claramente o paralelismo entre jogo e aventura.41
Consta que, antes de se dirigir às minas, Bartolomeu Bueno tinha sido banido
da vila de São Paulo «por haver perdido todo o seu cabedal a jogos de parar».42 O
século XVIII foi definido por Carrato como «o século da jogatina»,43 e, de fato,
esta prática se alastrara desde as primeiras décadas daquele século. Por duas veA
zes, em 1729, as autoridades civis proibiram a realização de rifas.44 Foram
comuns as denúncias feitas pelos visitadores diocesanos, como a que se faz em
1733 contra João Afonso Barbosa, morador de Caeté, «admoestado a não mais
tornar a admitir em sua casa jogos ou dar tabulagens».45 Embora o quadro geral
da sociedade no século seguinte seja em muito diferente daquele em que viveram
os pioneiros, o fascínio exercido pelo jogo não arrefeceu. ReferindoAse aos habiA
tantes do sertão norte de Minas, Spix e Martius constatam sua inclinação pelo
jogo de cartas e dados.46 Durante sua longa estadia em Congonhas, Hermann
Burmeister pôde observar a relação do mineiro com o jogo de cartas:
«Ninguém imagina a paixão com que os homens se dedicam a este jogo.
Começavam pela manhã, às 10 ou mesmo antes, ao meio dia fazem um peA
queno intervalo, após o qual continuam a tarde toda e a noite adentro. (...)
Não fazia ele [o hospedeiro de Burmeister] segredo do fato de jogar como
profissional, dandoAme como exemplo um fazendeiro vizinho, que adquirira

Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1988 (1728), vol. II, p. 228.


38 CCM, p. 184.
39 O termo já era corrente no século XVIII. Martinho de Mello e Castro escreve em
1788 que «os primeiros habitantes d’aquella capitania [de Minas] foram uns avenA
tureiros da capitania de S. Paulo (...). Com a notícia d’estes descobrimentos sahiA
ram do Rio de Janeiro, e de diversas partes, outros semelhantes aventureiros».
Castro, Martinho de Mello e. «Instrução para o Visconde de Barbacena». In:
RIHGB (21) 1844: 3A59, p. 14.
40 Holanda, Raízes do Brasil, pp. 13 e 15.
41 Simmel, Georg. «Das Abenteuer». In: Simmel, G. Philosophische Kultur. Leipzig:
Alfred Kröner, 1919, pp. 7A24.
42 CCM, p. 170.
43 Carrato, José Ferreira. «A crise dos custumes nas Minas Gerais do século XVIII».
In: Revista de Letras (Assis) (3) 1962: 218A248, p. 244.
44 CCM, pp. 361 e 368.
45 Carrato, «A crise dos costumes...», p. 245.
46 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 66.
90

casa, terras e culturas por meio do jogo»47


A dimensão «salvífica» do jogo no Brasil foi, de resto, bem diagnosticada por
Stefan Zweig. Para ele, «a riqueza é algo com que se sonha; ela deve vir do céu, e
no Brasil a função deste céu é substituída pela loteria».48 O proletário brasileiro,
diz por sua vez Flusser, «nunca vive para o seu trabalho e sua situação econôA
mica, social e política, mas sempre vive, fundamentalmente, para o jogo».49 Seja
sob a forma do assim chamado «jogo de azar», seja sob a forma de habitus nôA
made, o que está em questão é um claro anseio de promoção social. É bem isso
que a linguagem cotidiana revela por meio da expressão tentar a sorte em outro
lugar. Numa sociedade pósAestamental como a brasileira, profundamente marA
cada pela desigualdade, em que as perspectivas reais de ascensão à custa do emA
penho e do valor individuais são mínimas, em que a economia das oportunidades
é regida pela lógica da raça, do parentesco e/ou das «boas» relações, em tal socieA
dade as possibilidades (sejam elas fulgazes ou não) de promoção social se coloA
cam acima de tudo na esfera do lúdico.50 Festa, jogo e «nomadismo» situamAse
assim num mesmo plano simbólico e, quem sabe mesmo, existencial. Na Minas
Gerais dos séculos XVIII e XIX, possivelmente ainda hoje, o homo ludens é a
necessária contraface do homo hierarchicus. Esta íntima relação entre estrutura
social e habitus nômade (que sabemos agora constituir apenas uma outra modaliA
dade de jogo) não passou despercebida a Guimarães Rosa: «Quem é pobre, pouco
se apega, é um giroAoAgiro no vago das gerais, que nem os pássaros de rios e laA
goas.»51
Seria assim inexato afirmar, como o fazem Simmel, Huizinga e Flusser, que o
jogo não se relaciona com uma aspiração no plano propriamente material, ou que
é o ato de jogar em si que dá sentido à vida do apostador.52 Para uma compreenA
são deste problema, nada melhor que recorrer ao romance O jogador, de DosA
toievski.53 Escrito em 1866, ele já mostrava em que medida a tese levantada pelos
autores acima mencionados só se aplica às camadas sociais dominantes. Nosso

47 Burmeister, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e


Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, pp. 251A252. Grifo nosso.
48 Zweig, Stefan. Brasilien. Ein Land der Zukunft. Leipzig: Insel, 1994, p. 151.
49 Ver Flusser, Vilém. Fenomenologia do brasileiro. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998, p.
104. CitaAse aqui a versão brasileira uma vez que na edição alemã este trecho foi
excluído.
50 Estamos em evidente débito, neste ponto, com o pensamento de Da Matta, RoA
berto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990 (1979); Da
Matta, R. Explorações. Ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Janeiro:
Rocco, 1986.
51 Rosa, Grande sertão, p. 39.
52 Simmel, «Das Abenteuer», p. 20; Huizinga, Johan. Homo ludens. Köln: Pantheon,
s/d (1938), pp. 80A81; Flusser, Vilém. Brasilien oder die Suche..., p. 96.
53 Dostojewski, Fjodor. Der Spieler. Späte Prosa. Berlin: AufbauAVerlag, 1990, pp.
348A530.
91

interesse por esta obra não se justifica apenas pelo caráter pioneiro das reflexões
que contém; o que nos parece fundamental é o fato de que em O jogador o disA
curso dominante sobre os «jogos de azar» e seus adeptos é pela primeira vez conA
frontado criticamente com a lógica predominante num universo cultural situado
às margens do mundo dito «civilizado» da época. Ao darAse conta da existência de
um contraAdiscurso, a análise histórica pode então deixar de constituirAse unilateA
ralmente; isto é, apenas a partir da crítica européia à «indolência» dos brasileiA
ros.54
Com a autoridade de quem freqüentou casas de jogos no sul da Alemanha e na
Suíça por uma década, Dostoievski constata a existência de uma nítida distinção
entre os jogos da «plebe» e os da elite. Ao jogar, o aristocrata «de forma alguma
deve se interessar pelo próprio ganho». Num cassino, «um verdadeiro gentlemen
não deve demonstrar qualquer perturbação nem mesmo quando perde todos os
seus bens». Os jogos dos pobres, por sua vez, têm no ganho o seu único e verdaA
deiro fim. As palavras de Alexei Ivanovitch, personagem principal de O jogador,
bem poderiam estar na boca de qualquer aventureiro na Minas antiga (basta que,
por meio de um simples exercício de imaginação, se substitua a palavra «russo»
por «mineiro»): «Um russo não é apenas incapaz de adquirir capitais; ele os disA
sipa sem razão e desregradamente. Todavia também nós, russos, precisamos de
dinheiro, de modo que somos extremamente propensos a – e mesmo ávidos por –
métodos como a roleta, que podem fazer a alguém rico em duas horas, sem que
seja necessário se esforçar demais». Esta constatação não implica um elogio da
ética capitalista. Pelo contrário: Ivanovitch declara preferir «viver como um nôA
made numa tenda» a aderir à «forma alemã de acumular riquezas». Depois de desA
crever ironicamente a ética econômica protestante, ele conclui: «Como eu me inA
clino, antes, à forma russa, tendo preferencialmente a adquirir riqueza à custa da
roleta. Eu não quero ser Hoppe & Cia. em cinco gerações. O dinheiro, eu preciso
para mim mesmo, e longe de mim ver todo o meu Ser como um acessório do caA
pital».55
Na psicologia do mineiro, o jogo – e por decorrência a «sorte» – exercem um
papel fundamental enquanto meio de «salvação». O que evidentemente não quer
dizer que a dimensão lúdica simplesmente substitua a religiosa. Na prática, as
crenças religiosas são integradas e, por assim dizer, adaptadas às necessidades
vitais do homo ludens. Não nos esqueçamos de que um dos traços característicos
da religiosidade popular lusoAbrasileira é precisamente este colocar (e por vezes
em alto grau) a transcendência a serviço da imanência. Tal mentalidade foi partiA
cularmente bem descrita no romance O garimpeiro, de Bernardo Guimarães. O
herói Elias ambiciona casarAse com Lúcia, filha de um abastado fazendeiro, mas

54 Ver Bendocchi Alves, Débora. «A imagem do Brasil para os emigrantes alemães


através do ‹Illustrierte Zeitung› de Leipzig: 1844A1869 ». In: Zeuske, Michael y
Schmieder, Ulrike (eds). Regiones europeas y Latinoamérica (siglos XVIII y XIX).
Frankfurt: Vervuert, 1999, pp. 257A269.
55 Dostojewski, Der Spieler, pp. 362A363, 376, 376A377, 378A379.
92

vê em sua condição social inferior uma barreira intransponível. «Ah! Se eu fosse


rico!... Por que não quis a sorte, que eu possuísse um pouco de dinheiro?», perA
guntaAse ele. Elias decide então empregar suas parcas economias na mineração;
todavia a tão esperada riqueza não vem de imediato. «Nem assim – explica a certa
altura o narrador – perdera a fé em que estava de que do chão havia de lhe brotar
a riqueza e a felicidade». Em sua desolação, o protagonista põe às claras a hoA
mologia que perseguimos aqui:
Só o jogo, o testamento ou o garimpo nos podem tornar ricos de um dia para
o outro.
Seu ajudante, o velho Simão, procura animáAlo: «Já fiz uma promessa a Nossa
Senhora do Patrocínio, e ela há de nos valer».56 Não foi outro o quadro enconA
trado por Langsdorff em Minas. A sede de ouro era tal que as pessoas «continuam
a investir contra as partes ainda intocadas dos morros, revolvendo e escavando a
terra a esmo. Elas jogam na loteria». E justifica em seguida a sua comparação:
«Encontrei o proprietário de uma fazenda dando ordens para dois negros – mais
do que isso ele não tinha. Ele se aproximava deles dizendo as seguintes palavras:
‹Deus dê prosperidade e bom êxito ao seu trabalho!›. Depois de explicarAlhes
onde e a que distância deveriam conduzir a água para empurrar a terra, revolvêAla
ou arrastáAla, ele voltava passeando para casa e dizendo: ‹Deus dê prosperidade
ao seu trabalho!›. A todas as objeções que eu lhe fazia, ele respondia sempre com
o argumento de que tinha esperança de poder ganhar muito dinheiro com pouco
trabalho».57 Para muitos a ereção de uma igreja era concebida inclusive como
uma forma de gozar das bênçãos do santo (à qual a mesma era dedicada) sobre os
trabalhos de mineração.58
Se as crenças populares relacionamAse estreitamente com o estilo de vida e a
mentalidade do homo ludens, é preciso dizer que nem sempre elas confirmam a
eficácia do sagrado católico. Curiosamente, é preciso por vezes afastarAse de
forma direta ou indireta dos símbolos cristãos para se alcançar o sucesso deseA
jado. Nuno Marques afirma que tinha difundidoAse pelas minas a crença de que
«toda pessoa que trouxesse contas [rosários] consigo, e por elas rezasse, e se enA
comendasse a Deus, e à Santíssima Virgem Nossa Senhora, não havia de achar
ouro».59 Que tais concepções se manteriam ainda por muito tempo, mostraAo um
exemplo retirado do manuscrito de uma Geografia e História do Gongo. Escrita
pelo vigário do lugar em 1912, ela oferece um painel da trajetória daquele que foi
um dos nossos mais importantes centros de mineração no século XIX. Segundo o
manuscrito atribuíaAse ao «negro pagão» mais facilidade para encontrar ouro. Por
esta razão mantinhaAse em toda lavra um escravo africano não batizado, ou então

56 Guimarães, Bernardo. O garimpeiro. São Paulo: Melhoramentos, 1962, pp. 41,


129, 48 e 153.
57 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 39A40.
58 Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 53.
59 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. II, p. 174.
93

um «molecote» que só se vinha a batizar após os dezoito ou vinte anos de idade. É


justamente o pagão – por definição aquele que está excluído da comunidade dos
crentes – o veículo da «graça».
O mesmo documento falaAnos na crença no Menino de Ouro. DavaAse este
nome a toda pepita cuja forma sugeria uma aparência humana. Sua descoberta
anunciava o declínio iminente daquela lavra. O autor do manuscrito reproduz o
que ouvira da velha negra Maria Cândida sobre a razão do fim da Companhia de
Mineração do Gongo Sôco. «Com o tom mais crente», dissera ela:
«Nhonhô vigário, a Companhia fechou porque um negro achou um MeninoA
deAOuro, e Seu João Blema mandô o Menino pra Inglaterra. Toda gente dizia
que não mandasse o menino que o ouro parava. Mas ele mandou o menino
assim mesmo e o ouro logo fugiu».60

A persistência destas formas de crença popular relacionaAse também com os proA


blemas relativos à presença e formação do clero em Minas Gerais. Dois tipos de
sacerdotes predominam nos momentos iniciais da nossa história: de um lado, os
capelães; de outro, uma grande quantidade de clérigos e frades irregularmente
estabelecidos na região. Os capelães, com seus altares portáteis, celebravam misA
sas e ministravam os sacramentos ao longo dos tortuosos caminhos que levavam
às minas ou a lugares delas afastados. A idéia de partirem rumo ao desconhecido
sem a garantia das bênçãos diárias de um capelão parecia absurda aos bandeiranA
tes. Nos primeiros anos do século XVIII, Salvador Fernandes Furtado de MenA
donça conseguira autorização episcopal «para poder armar altar portátil em qualA
quer parte e erigir capelas onde quer que fosse necessário para se administrar toA
dos os sacramentos aos católicos que o procurassem naqueles desertos, que então
o eram pelo capelão que consigo trazia».61 VêAse que este tipo de capelão não está
a serviço exclusivo do bandeirante, uma vez que, na medida do possível, deve dar
assistência às populações das regiões que percorre. Mas não resta dúvida de que a
obrigação primeira daqueles sacerdotes é para com seus patrocinadores. Quando,
em 1700, José de Camargo Pimentel se encontra enfermo e às vésperas do «desA
canso prometido aos bons», o capelão que o acompanha rogaAlhe que prepare seu
testamento, se confesse e sacramenteAse. A princípio o velho Pimentel não lhe dá
ouvidos. Finalmente, num dia de sábado, ao romper do dia, manda que chamem o
capelão e que seja rezada missa. «E mandou armar altar no mesmo aposento onde
disse missa, e a ouviu o enfermo de joelhos, e recebeu o sacramento». Pouco deA
pois «entrou em agonia, acabando a vida com graves demonstrações de predestiA
nado».62 Em sua expedição empreendida sessenta e nove anos mais tarde pelo
sertão oeste da Capitania, Inácio Correia Pamplona fezAse também acompanhar
de um sacerdote. Pamplona assistia ao sacrifício da missa «sem que falhasse um

60 AEAM, armário 24, caixa 5. Grifo nosso.


61 CCM, p. 181.
62 CCM, pp. 175A176.
94

só dia, por mais forçoso impedimento que se oferecesse».63 Mas nem todos
servem a um bandeirante. Entre 1703 e 1710 dois sacerdotes, com a devida autoA
rização episcopal, percorrem a região de Catas Altas, Antônio Pereira e São João
delARei «armando altar portátil onde lhes era necessário administrar os sacraA
mentos».64 Os capelães foram portanto os primeiros especialistas do sagrado
cristão a se estabelecerem em Minas Gerais. Sua contribuição à formação da reliA
giosidade mineira não deve, porém, ser superestimada: tal como o bandeirante, o
capelão é um nômade.
E havia os outros. Um aluvião de sacerdotes seculares e mesmo de religiosos
entravam indevidamente no território mineiro. Pelo menos desde 1702, as autoriA
dades não se cansam de denunciáAlos e exigir sua expulsão.65 Daqueles eclesiásA
ticos diziaAse tudo – que vieram às Minas exclusivamente movidos pela ganância,
que tomavam parte ativa em levantes e no contrabando, etc. Ao longo de toda a
primeira metade do século XVIII sucedemAse acusações de igual teor.66 Hoje
sabeAse bem quão longe estava a situação moral do clero da época de corresponA
der aos rígidos princípios tridentinos.67 Um Nuno Marques Pereira, por exemplo,
ressaltava a «pouca devoção» dos padres e a «pressa» e «distração» com que eles
celebravam o culto. Não poucos missionários «costumam ir às minas e a esses
sertões, mais levados dos interesses do ouro e cabedais, que do zelo de servir a
Deus, e ao bem das almas».68 O bispo do Rio de Janeiro, Dom Lourenço de AlA
meida, reclama em 1733 dos clérigos que «vêm parar a estas Minas, aonde muitos
vivem licenciosamente e mais destraídos do que os seculares mais perversos (...).
Parece coisa incrível a multidão que há deles, e sem embargo que o Reverendo
Bispo tem mandado suspender das Ordens a todo o clérigo que veio para estas
Minas sem licença sua, nada basta para que eles deixem de estar nelas». O mesmo
se passa com os frades, «a maior parte deles maus religiosos e para o serem basta
só o não quererem estar nos seus conventos».69 DeterminaAse, uma vez mais, sua
expulsão. Entretanto uma carta do governador Gomes Freire de Andrada, datada

63 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jorA


nada que fez o Senhor Mestre de Campo, Regente e GuardaAmor Inácio Correia
Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do Capote às conquistas do Sertão,
até se tornar a recolher à mesma sua dita fazenda do Capote etc. etc. etc.». In:
Anais da Biblioteca Nacional (108) 1988: 53A113, p. 65.
64 CCM, p. 263.
65 Diniz, Sílvio Gabriel. «Primeiras freguesias nas Minas de Ouro». In: RIHGMG (8)
1961: 173A183, p. 176.
66 CCM, pp. 347, 367A368, 390.
67 Mott, Luiz. «Modelos de santidade para um clero devasso: a propósito das pinturas
do Cabildo de Mariana, 1760». In: Revista do Departamento de História da UFMG
(9) 1989: 96A120; Lima, Lana Lage da Gama. «A reforma tridentina do clero no
Brasil Colonial». In: Congresso Internacional Missionação Portuguesa e Encontro
de Culturas – Actas. Braga, 1993, pp. 531A549.
68 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. I, pp. 366A367, p. 370.
69 APM, SCA32, folhas 104A104v.
95

de 25 de outubro de 1742, revela possíveis efeitos negativos do rigor excessivo


de tais medidas. Entre os expulsos encontravamAse vigários, funcionários da buA
rocracia eclesiástica, «clérigos [que] se ocupam uns em capelas particulares de
pessoas a quem a distância não permite (...) o irem à matriz da freguesia ouvir
missa nos dias de preceito, outros em capelas de irmandades». Os prejuízos não
se verificavam apenas no que diz respeito à esfera religiosa. Alguns sacerdotes,
acrescenta Andrada, «têm grossas lavras e bastantes escravos, e seria em prejuízo
da Fazenda Real exterminaremAse estes perdendoAse o estabelecimento e escravos
com que se acham».70
A posse em 1748 do primeiro bispo de Mariana, Dom Frei Manuel da Cruz,
assinala o início de uma outra estratégia visando alterar este quadro. Prova disso
é a criação do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte em 1750. Entretanto,
após a morte de Dom Frei Manuel (ocorrida em 1764), o bispado permaneceria
nada menos que 16 anos sem titular. Quanto à formação de sacerdotes, o SemináA
rio sofre forte concorrência das chamadas «Aulas Régias» patrocinadas pela CoA
roa. Um estudo de Barbara Fadel mostrou que apenas 21% dos novos padres orA
denados no Seminário da Boa Morte no período colonial tinham efetivamente
estudado ali.71 Tal como outros estabelecimentos religiosos da época, ele era freA
qüentado sobretudo por uma elite: os candidatos deveriam dispor de um renA
dimento anual mínimo de 25.000 réis. A grande maioria dos seminaristas era posA
suidora de terras, e a quarta parte deles detinha escravos. Ainda assim, por falta
de recursos e certamente de vocações72 o Seminário da Boa Morte é fechado em
1811. Sua reabertura só viria a ocorrer em 1820 com Dom Frei José da SantísA
sima Trindade.
Diante de um clero com este perfil («nada é tão comum quanto padres fazenA
deiros», dirá SaintAHilaire),73 é fácil entender a existência nas camadas menos
privilegiadas da população daquilo que poderíamos chamar de anticlericalismo
popular.74 É Eschwege quem fala, num trecho repleto de implicações: no sertão
leste mineiro os padres «são geralmente pouco estimados. O povo os vê, igualA
mente, como um mal necessário. DizAse, por isso mesmo, que os padres são bons
apenas para rezar a missa e ouvir a confissão. Fora disso a opinião geral é de que:

70 APM, SCA45, folhas 53vA54.


71 Fadel, Barbara. Clero e sociedade: Minas Gerais, 1745 1817. São Paulo: tese de
doutorado em História, USP, 1994, pp. 59A60.
72 «O edital de Dom Frei Cipriano, de 1798, convocando para o Seminário os candiA
datos ao sacerdócio, precisou ser renovado por duas vezes e, mesmo assim, sem
chegar a grandes resultados. O Cônego Trindade relata que, de 1806 a 1811, ainda
havia seminaristas, mas logo esses escassearam». Fadel, op. cit., p. 57.
73 SaintAHilaire, A. Viagem às nascentes..., vol. I, p. 127.
74 Para Baroja este fenômeno pode ser facilmente observado nos séculos XVI e XVII,
e traduziria «una desilusión con respecto a las actuaciones, públicas y privadas, de
los hombres de la Iglesia». Baroja, Julio Caro. «Santos y campesinos». In: Baroja,
J. C. Ensayos sobre la cultura popular española. Madrid: Dosbe, 1979, pp. 169A
182, p. 176.
96

‹Deus nos livre da companhia dos padres!›».75 VêAse como o caráter ambígüo do
status do sacerdote permeia estruturalmente a religião popular. A relatividade que
nela assume a noção de «poder» contraria a idéia simplista segundo a qual o hieA
rocrata exerce um controle quase absoluto sobre os fiéis. O padre é indispensável;
afinal só ele pode ministrar os sacramentos. Mas que ele pretenda extender sua
autoridade além de um determinado raio de ação, isso já é uma coisa totalmente
diferente. Para as populações rurais e semiArurais, o passar do tempo não abalou a
convicção (nem sempre explicitada) de que «a igreja é do povo»76, e de que por
vezes «são os padres que acabam com a religião».77 Na Vila de Piedade dos GeA
rais, o texto de uma das mensagens que se acredita terem sido enviadas por Nossa
Senhora é explícito: «Os padres gostam de ser os primeiros, serão os últimos. Às
vezes são grandes pecadores.»78 Um interessantíssimo episódio ocorrido na vila
de São João Nepomuceno mostra que alguns sacerdotes realmente faziam jus a
esta má fama. Em correspondência enviada às autoridades eclesiásticas em 5 de
julho de 1892, um paroquiano informa sobre «o triste espetáculo que aqui se deu
no dia 3 do corrente: às 11 horas do dia, depois de uma ausência de um mês e
tanto, aqui entrou o Sr. Pe. Antônio Teixeira, escoltado por cerca de cento e tantos
capangas todos de cor preta na maior parte, entre eles, muitos assassinos, e arA
mados dos pés à cabeça. Dando tiros e pedindo sangue; e nesse gosto insultando
as autoridades e nada respeitando; sendo a missa só assistida pelos mesmos caA
pangas, ficando grande parte deles escoltando as portas da igreja e fazendo braA
mir suas armas! Com custo pude conter o povo da freguesia que quiseram [sic]
desafrontarAse de tamanha afronta, senão fora o que, seria a nossa freguesia teatro
de cenas de mortes! Em nome de Nosso Bom Deus e de Nossa Santa Religião, eu
vos peço compadecerAse de nós, oficiando e implorando ao Exmo. Sr. Bispo a noA
meação de um outro pároco para esta freguesia».79
Na percepção popular a virtude precede sempre o status institucional. Não se
deve supor que estilo de vida nômade e virtude necessariamente contradigam um
ao outro. Um outro tipo de sacerdote desperta nas populações rurais um profundo
sentimento de admiração e respeito: são os «padres missionários», que percorrem
o interior brasileiro a partir do século XIX pregando o Evangelho. Apesar das diA
versas referências que lhes fazem os escritores mineiros80, a ação dos missionáA

75 Eschwege, W. Brasil, novo mundo, p. 81. Grifo nosso.


76 Citado por Willems, E. Uma vila brasileira, p. 85.
77 Citado por Espírito Santo, Moisés. A religião popular portuguesa. Lisboa: Assírio
& Alvim, 1990 (1984), p. 200.
78 Citado por Ferreira, As aparições em Piedade dos Gerais, p. 78.
79 AEDC, cx. 3, pasta «Cidade de São João Nepomuceno ». Os grifos estão no origiA
nal.
80 Guimarães, Bernardo. O seminarista. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969, p.
141; Rosa, Guimarães. «Grande Gedeão». In: Rosa, G. Tutaméia. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1979, p. 77; Lanza, Jovelino. Minha Sete Lagoas. Belo Horizonte:
Armazém de Idéias, 1999, p. 228A229.
97

rios infelizmente não foi ainda explorada pela historiografia. O melhor retrato nos
foi pintado sem dúvida por Rosa: «foi tempo de missão, e chegaram no arraial os
missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas,
bradando sermão forte, com forte voz, com fé brava. De manhã à noite, durado de
três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e
aconselhando (...). A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde
como virtude».81 O entusiasmo com que essas figuras eram recebidas é atestado
por um pedido de provisão feito por moradores de Baependi em 1899:
«Os abaixo assinados desejam construir na explanada da serra oriental desta
cidade uma capela de pedra decente para o santo sacrifício e atos do culto
divino sob a invocação do Senhor Bom Jesus do Calvário, com o fim princiA
pal de recordar a primeira procissão do aniversário da Santa Missão, na qual
cerca de 4000 fiéis carregaram a braço cerca de 25 carros de pedra para o
patamar da santa cruz deixada pelos missionários; e que realizouAse a 24 de
maio deste ano, 1° jubileu da missão.»82

O sentimento de que o monopólio sobre os meios de salvação nem sempre torna


o clero «melhor» é um dos fatores que explicam a difusão da chamada devotio
moderna. Para Weiler este movimento surgiu do desejo das pessoas comuns em
ter acesso às formas e aos conteúdos de uma espiritualidade até então limitada
aos mosteiros.83 Enfim: da necessidade de santificarAse mesmo não se ausentando
completamente do «mundo». Hoornaert julga que a devotio criou «o clima religiA
oso típico do Brasil Colônia»,84 o que parece ser particularmente verdadeiro no
caso de Minas Gerais, apesar (ou justamente por causa) das grandes limitações ali
impostas pela burocracia eclesiástica e civil. Os ermitães oferecemAnos um
exemplo típico. Homens vestidos à maneira de frades, que deixavam cabelos e
barba crescerem e percorriam as estradas com imagens de santos que davam a
beijar em troca de esmolas. O dinheiro devia destinarAse a uma irmandade, uma
capela em construção ou a outras obras pias. Ao pedirem em 1783 autorização
para erigir capela no lugar chamado Ribeirão de São Francisco do Turvo, Maria
Lopes e Francisco Martins rogam também que lhes seja permitido dotar a mesma
de um ermitão «que com caixinha possa vagar por esta capitania, e por outra
qualquer, tirando esmolas pelos fiéis, para as suas obras».85 Algumas capelas
chegavam a ter dois e mesmo três ermitães, e seu número girava em torno de 400

81 Rosa, Grande sertão, p. 209.


82 AEDC, cx. 1, pasta «Cidade de Baependi». O despacho anotado à margem da folha
é datado de 19.10.1899.
83 Weiler, Anton G. «Soziale und sozialApsychologische Aspekte der Devotio MoA
derna». In: Schreiner, Klaus (Hrsg.) Laienfrömmigkeit im späten Mittelalter. MünA
chen: R. Oldenburg, 1992, pp. 191A201.
84 Hoornaert, Eduardo. «A Igreja no Brasil». In: Dussel, E. (org.) Historia liberatio
nis: 500 anos da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 309.
85 APM, SCA19, folhas 73A73v.
98

em meados do século XVIII.86 Ao dirigirAse para Vila Rica em 1811, Eschwege


se encontra com uma destas figuras: «O que cruzou conosco desceu do cavalo e
nos deu o santo para que o beijássemos. Como em muitas coisas, também aqui
dáAse origem a inúmeros abusos, pois vários destes ermitães levam esse tipo de
vida para se sustentarem à custa de outros ou então consomem o dinheiro com
bebida na primeira taverna. Eles têm a especial infelicidade, apesar da proteção
do santo, de serem freqüentemente assaltados e por essa razão andam
normalmente muito bem armados. Há algumas semanas um [deles] foi morto nas
imediações de Vila Rica».87 Também SaintAHilaire nos fala, rapidamente, do seu
encontro com um «um desses frades ermitães que vão mendigar e escandalizar os
fiéis».88 O retrato pintado pelos viajantes não é dos mais lisonjeiros, e as
autoridades civis não pareciam ter opinião muito distinta a respeito. Para o
Conselho Ultramarino «os ermitães são prejudiciais; não só porque usam mal das
esmolas, mas porque vivem em uma ociosidade tal que se precipitam em vícios
que obrigam a serem castigados».89 A visão popular é entretanto diversa, em que
pesem os eventuais abusos. O ermitão é um homem que se santifica pela sua
abnegação e pela radicalidade com que se devota à causa da religião. AcreditaAse
que sua condição resulta de uma promessa; voto feito em virtude de um grande
pecado anteriormente cometido. Como se negar uma esmola a tais homens? Pode
ser que se trate de um simples aproveitador, mas pode ser também que aquele
ermitão seja um Feliciano Mendes, um Irmão Lourenço ou um Antônio da Silva
Bracarena. Melhor abafar no peito toda dúvida, já que a própria dúvida
configuraria um ato de impiedade. Neste ponto as obras de Tomás Antônio
Gonzaga,90 Bernardo Guimarães91 e José de Alencar92 seguramente se
aproximam bem mais do universo religioso popular que o ceticismo ilustrado dos
viajantes europeus ou o cálculo frio dos burocratas.
Isto nos leva a uma última porém decisiva modalidade de intercessão entre reA
ligião e movimento na Minas Gerais dos dois primeiros séculos: a romaria.93 AsA
sumindo uma feição típica no universo religioso lusoAbrasileiro, elas permitemA
nos visualizar algumas das formas através das quais as camadas sociais inferiores

86 CCM, p. 710.
87 Eschwege, Wilhelm L. Journal von Brasilien. Weimar, 1818, II, pp. 95A96.
88 SaintAHilaire, A. Viagem às nascentes..., vol. I, p. 92.
89 Citado por Aguiar, Marcos M. de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora
africana no Brasil Colonial. São Paulo: tese de doutorado em História, USP, 1999,
p. 314.
90 Gonzaga, Tomás Antônio. Cartas chilenas. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp.
108A112.
91 Guimarães, Bernardo. O ermitão do Muquém. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,
1964.
92 Alencar, José de. «O ermitão da Glória». In: Obra completa. Rio de Janeiro: José
Aguilar, 1958.
93 Não nos ocuparemos aqui com a questão das grandes procissões, por se tratar de
um dispositivo ritual típico dos espaços especificamente urbanos da época.
99

se relacionam com o sagrado. Quando ao fascínio pelo movimento se soma a


possibilidade de maximizar a experiência do numinoso, temAse por resultado um
tipo de prática religiosa cujo poder de atração foi muito bem caracterizado por
Carrato: «Nada mais agradável àquela gente semiAnômade das Gerais do que esA
sas romarias, tão ao gosto da nossa gente, que ainda não ancorou na terra».94 LiA
mitemoAnos aqui a apontar alguns casos mais importantes e evocar um ou dois
aspectos que nos parecem essenciais à elucidação das relações entre religião e esA
paço. O homem mineiro fazia suas romarias seja para os dois santuários de Bom
Jesus do Matosinhos (em Congonhas do Campo e em Conceição do Mato DenA
tro) ou eremitérios da Serra do Caraça e da Serra da Piedade, seja para centros
mais simples como as capelas de Nossa Senhora da Lapa (nas proximidades do
Arraial de Antônio Pereira) e de Santana (em Mariana) ou a mística gruta de São
Tomé das Letras, seja ainda para santuários situados a maior distância, como
Nossa Senhora da Abadia do Muquém (em Goiás). Congonhas do Campo e o CaA
raça atraíam romeiros de regiões distantes, como o registro do Rio Paraibuna ou
do termo de Minas Novas, e mesmo de capitanias vizinhas como Mato Grosso,
São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás.95
O santuário pode ser definido como a forma superior de espaço sagrado. Isto
significa que a percepção de uma diferença qualitativa em relação ao espaço do
cotidiano é levada ali ao seu ponto máximo. O santuário situaAse, diz Alphonse
Dupront, «nestes confins misteriosos mas reais onde imanência e transcendência
se comunicam».96 Como um dos traços estruturais do sagrado reside no fato de
que ele tende a cercarAse de interdições, o santuário normalmente surge em locais
à parte, de difícil acesso (penhascos, grutas, montanhas) ou simplesmente distanA
tes dos centros povoados. AcorreAse àquele lugar porque ali se encontram relíA
quias de um santo, porque ali descobriuAse alguma imagem milagrosa, porque ali
se erigiu um templo em razão de uma graça obtida, porque ali teveAse uma visão.
Na Serra da Piedade viveu nossa já conhecida Irmã Germana.97 Em 1757, em
Congonhas do Campo, Feliciano Mendes atribui a recuperação de uma grave doA
ença de que padecia à cruz que fez levantar no Morro do Maranhão. Naquele luA
gar decide ele construir capela e ermida. Em 1780 tem início a tradição do jubileu
anual do Santuário do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, devoção aliás tipicaA
mente portuguesa. A respeito da origem da capela com o mesmo orago em ConA
ceição do Mato Dentro, há duas versões opostas. Para uns, ela foi construída por
um certo José Correia Porto, em conseqüência de uma promessa que fizera para

94 Carrato, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1963, p. 212.
95 Carrato, José Ferreira. «Medievalidades mineiras nos tempos da Inconfidência:
hospícios e romarias ». In: Revista do Departamento de História da UFMG (9)
1989: 121A129, p. 126.
96 Dupront, Alphonse. Du sacré. Croisades et pèlegrinages, images et langages. PaA
ris: Gallimard, 1987, p. 44.
97 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., pp. 117A123.
100

curarAse de uma doença. Para outros o protagonista foi um escravo, que teria
achado uma imagem do Cristo Cruxificado. Por ocasião de uma seca a imagem
foi levada em procissão, e com sucesso: logo depois caía a chuva. DecideAse enA
tão erguer a igrejinha do Senhor Bom Jesus, o que efetivamente acontece em 16
de junho de 1743.98 Sobre a capela de Nossa Senhora da Lapa, sabemos por meio
do testemunho de Dom Frei José da Santíssima Trindade que ela se situava «em
uma gruta debaixo de um monte» e que era «admirável, e por isso muito deA
vota».99 A capela de Senhora Santana, em Mariana, entrara em declínio em meaA
dos do setecentos. Segundo o Códice Matoso, havia ao seu redor «casas de romaA
gem, em que antigamente se recolhiam infinitos devotos, que de partes muito
distantes vinham antigamente de romaria a visitar a mesma santa».100 O arraial de
São Tomé das Letras deve sua formação à descoberta de enigmáticas inscrições
feitas nas paredes de uma gruta ali situada. Em conformidade com crença difunA
dida no Brasil Colônia, as mesmas foram atribuídas a São Tomé, apóstolo que teA
ria percorrido a América catequisando os índios nos primeiros tempos do cristiaA
nismo. Uma cópia das inscrições, feita por ordem do governador Gomes Freire de
Andrade em 1738, foi «analisada» pelo padre José Mascarenhas nove anos deA
pois. Mascarenhas confirma a versão popular da origem dos sinais e chega
mesmo a datáAlas do ano 54 da nossa era.101
A cura milagrosa por intermédio de uma promessa, as evidências da passagem
de um apóstolo, a existência de uma mulher cuja santidade ninguém ousa questiA
onar, a descoberta de uma imagem, visões da Virgem Santa: a irrupção espontâA
nea do sagrado é uma constante na religião popular. Nela o numinoso nunca está
completamente «rotinizado». Por outro lado, e como as romarias inevitavelmente
assumem uma dimensão festiva, a fronteira entre sagrado e profano está longe de
corresponder às espectativas do clero e das classes letradas. O que explica o desA
conforto e a desconfiança da autoridade eclesiástica face às romarias. Tanto
quanto possível procuraAse domesticáAlas, pois acreditaAse, como Jean Gerson
(1363A1428), que «nada há de mais perigoso do que a devoção ignorante».102 Por
vezes este esforço disciplinador assume uma forma autoritária, como se viu no
período em que Dom Frei Cipriano de São José esteve à frente do bispado de MaA
riana (1798A1817). Sobre o Caraça, afirmou ele que «é para se notar que as gentes

98 Guimarães, Alphonsus de. «Jubileu em Conceição do Serro». In: Guimarães, A. de.


Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960, p. 485; Dias, Maria Vitória.
Mato Dentro: viagem através dos tempos e contratempos da história de Concei
ção. Belo Horizonte, 1994, p. 51.
99 Trindade, Dom Frei José da Santíssima. Visitas pastorais (1821 1825). Belo HoriA
zonte: Fundação João Pinheiro, 1998, p. 110.
100 CCM, p. 254.
101 CCM, 374A382; DHGMG, 331A332; Weckmann, Luis. La herencia medieval del
Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, pp. 169A170.
102 Citado por Huizinga, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa: Ulisséia, s/d
[1919], p. 119.
101

que sobem com tanto trabalho a Serra para lucrar indulgências, nem cuidam, nem
se apressam para entrar nas suas respectivas freguesias, onde sem maior incôA
modo, confessandoAse, e comungando podem lucrar as que os Sumos Pontífices
concedem a todos os fiéis em todos os dias do ano (...). Donde se pode inferir
sem escrúpulo que o divertimento, e a curiosidade, a romagem, e a mistura de
um, e outro sexo é todo o móvel de semelhantes devoções.»103 Se os bens de salA
vação podem ser obtidos por meio do sacrifício da missa e do sacerdote que o
celebra, por que razão, perguntaAse o bispo, empreender cansativas peregrinaA
ções? A resposta lhe parece óbvia: as causas que levam tantos romeiros aos sanA
tuários não seriam de natureza religiosa, mas «profana». O prelado marianense
critica duramente a «confusão», o «descomposto» e o «tumulto» do Santuário de
Congonhas e chega mesmo a proibir a realização de missas na Serra da Piedade
quando ali se encontrava Irmã Germana. A reação popular não tarda. Como o
bispo havia imposto sua proibição sob o pretexto de que aquele culto não tivera
autorização do rei, os fiéis solicitam e obtém a dita permissão.104
O fenômeno peregrino constitui hoje um dos mais importantes campos de pesA
quisa no âmbito das ciências das religiões, e obviamente não temos a pretensão
de analisáAlo extensamente aqui. InteressaAnos ressaltar apenas um dos seus asA
pectos, qual seja, o da relação que se estabelece entre peregrinação e «realidade».
Victor Turner julga que as peregrinações obedecem a uma lógica próxima da de
um rito de iniciação. Por seu intermédio um grupo institui um espaçoAtempo no
qual a estrutura do diaAaAdia é abolida, em que os laços sociais são reforçados por
meio do sentimento de communitas. Este desejo coletivo de contrapor uma «antiA
estrutura» à estrutura cotidiana explica, no entender de Turner, porque as peregriA
nações muitas vezes assumem uma dimensão «anárquica» e mesmo «anticleriA
cal».105 Pierre Sanchis partilha de um ponto de vista próximo, e identifica homoA
logias entre romaria e utopia.106 E Klaus Guth considera a peregrinação «uma
evasão do mundo cotidiano, geralmente sob uma forma comunitária».107
Todavia não parece factível a idéia de Turner de que o contato com uma outra
realidade só se efetiva no momento em que o peregrino atinge seu objetivo. PôrA
se a caminho já implica numa primeira ruptura com o mundo da vida.108 Bollnow

103 Citado por Carrato, José Ferreira. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais.
São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968, p. 38. Grifo nosso.
104 Carrato, As Minas Gerais..., p. 191; SaintAHilaire, Viagens pelo distrito..., pp. 119A
120.
105 Turner, Victor & Tuner, Edith. Image und pilgrimage in Christian culture. Oxford:
Blackwell, 1978, pp. 1A39.
106 Sanchis, P. Arraial: festa de um povo, p. 141.
107 Guth, Klaus. «Die Wallfahrt – Ausdruck religiöser Volkskultur. Eine vergleichende
phänomenologische Untersuchung». In: Ethnologia Europea (16) 1986: 59A82.
108 O conceito de «mundo da vida» (Lebenswelt) não deve ser entendido como um
mero sinônimo de «cotidiano» (Alltag). Ele denota não o mundo social préAconstiA
tuído com o qual nos defrontamos, mas o complexo de «províncias de significado »
(Sinnbereiche) que compõem a «realidade primordial» (ausgezeichnete Wirklich
102

mostrou como esta forma elementar de peregrinação que é o simples passeio reA
sulta de um anseio de «libertação das fadigas e preocupações do diaAaAdia». O
efeito psicológico ao fim de um passeio é o de um «rejuvenescimento».109 Não é
outra a natureza do sentimento que invade os romeiros ao fim de sua longa jorA
nada. Alphonsus de Guimarães nos fala de homens e mulheres que retornam para
casa «com os corações aliviados de culpas e de pecados» depois de terem particiA
pado do jubileu em Conceição do Mato Dentro.110 Talvez isto nos dê uma pista a
mais para entender por que o centro de peregrinação é, por definição, um lugar
distante ou de difícil acesso. As palavras romaria («ir a Roma») e peregrinus
(«estrangeiro», «que viaja no estrangeiro») dizem muito por si mesmas: há algo de
fascinante não apenas no sítio onde repousa o santuário, mas no ato mesmo de
deslocar se até ele. Para Dupront111 a peregrinação cristã se distingue da pratiA
cada em outros sistemas religiosos pelo fato de investir maior carga simbólica na
dinâmica do ato em si (aller à) que no encontro com o espaço sagrado. A distânA
cia, ou antes, a «virtude purgativa» do espaço percorrido, é que garante a obA
tenção das graças almejadas. Os versos do mais conhecido poeta mineiro bem o
mostram:
Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.112
ColocarAse em movimento significa nestes casos transportarAse para uma outra
realidade, transcender o mundo da vida. Assim se entende também porque a roA
maria/peregrinação muitas vezes se confunde com a festa. Ao contrário do que
supunha o severo Dom Cipriano, o lúdico e o sagrado eram, para a imensa maioA
ria dos mineiros do seu tempo, apenas as duas faces de uma mesma moeda. A
forte inclinação pelas «formas provisórias de existência» (Laura de Mello e
Souza) e o surgimento de diversos centros de romaria na Minas Gerais dos dois
primeiros séculos sugere, talvez, a existência de uma espécie de nostalgia coletiva
em relação ao modo de vida nômade, uma vez que a fixação num determinado
espaço se confronta com uma das duas alternativas: ou tal fixação não chega a se
efetivar (por ser conscientemente concebida como um impecílio à «salvação» na
imanência) ou, caso haja de fato uma sedentarização, sua aparente irreversibiliA
dade deve ser periodicamente amenizada pelo deslocamento a um espaço saA
grado.

keit) da nossa existência. Da extensa literatura a respeito, conferir Schütz, «On


multiple realities », pp. 208A229; e Grathoff, Milieu und Lebenswelt, pp. 91A121.
109 Bollnow, Mensch und Raum, pp. 114, 120.
110 Guimarães, «Jubileu em Conceição do Serro», p. 487.
111 Dupront, Du sacré, p. 371.
112 Andrade, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio,
1976, p. 34.
103

3.1.2 A religião e o mundo da vida


Se fosse preciso resumir, numa palavra, o modo pelo qual o cotidiano se apreA
sentava à consciência do homem mineiro, esta palavra bem poderia ser «monotoA
nia». O diaAaAdia era regido por um regime temporal específico – o da lentidão.
Imersos nas suas obrigações cotidianas, os atores sociais não se dão conta deste
fato. Vimos que a festa e a romaria, por sua vez, têm em comum o fato de repreA
sentarem uma superação momentânea do mundo da vida, e são precisamente
eventos deste tipo que nos permitem perceber o que é o seu «reverso». Em outros
termos, uma consciência clara da realidade do cotidiano só aflora sob o efeito do
choque que é o instante de retorno a ele. Instante em que a povoação volta à sua
«monotonia habitual, ao seu sossego triste», à sua «paz melancólica».113 Acabada
a festa, diz Bernardo Guimarães, «tudo caiu na tristeza e monotonia (...) pois
contrastava horrivelmente com a alegria e festivo alvoroto dos dias que acabavam
de escoarAse, e dos quais somente restavam saudades».114 Na maior parte do
tempo, o arraial é um lugar «sem aconteceres».115 Mesmo numa sede episcopal
como Mariana, a estrutura do cotidiano não se apresentava de outra forma, conA
forme mostra Richard Burton:
«O negociante debruçaAse, com os cotovelos no balcão, e olha vagamente
para a rua, ou medita e fuma, juntamente com um amigo ou amigos, sentados
em tamboretes, mais perto da porta. Os negrinhos andam pelas ruas ou proA
vocam porcos e cães vadios, que, segundo parece, constituem a maior parte
da população (...). Pretas velhas erravam, arrastando molambos (...) o tempo
é artigo que não tem valor aqui, e pontualidade é sinônimo de impossíA
vel».116
Mas perguntarAse sobre o papel da religião no cotidiano não implica cair num
contrasenso? «Religião» e «cotidiano» não se excluem mutuamente? Não necessaA
riamente. Vimos no capítulo anterior como há muito caiu por terra a visão dicoA
tômica das relações entre sagrado e profano. Outras dicotomias ainda comuns nos
estudos sobre religião têm sido alvo de profundo questionamento, como é o caso
do par religião/magia.117 Em contextos outros que não a Europa cristã (e não toda
ela!), tais antíteses simplesmente não fazem sentido ou devem, ao menos, ser reA
lativizadas. A forma social por meio da qual um grupo intermedia suas relações
com a transcendência varia cultural e historicamente. O que torna algumas situaA
ções particularmente interessantes é que distintas formas sociais de religião poA
dem coexistir sem que uma delas se imponha completamente sobre as demais.
TrataAse, sim, de pluralismo; mas de um tipo distinto do que ocorre no mundo

113 Guimarães, Aphonsus de. «Jubileu...», pp. 486A487.


114 Guimarães, Bernardo. O garimpeiro, p. 32.
115 Rosa, Guimarães. «ArroioAdasAAntas». In: Rosa, Tutaméia, p. 17.
116 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 273.
117 Luckmann, «Über die Funktion der Religion», p. 34; Matthes, «Was ist anders an
anderen Religionen?», p. 23.
104

moderno. Este último é, por assim dizer, sociologicamente condicionado; aquele


parece ser «existencial». Na antiga Minas Gerais, ora se manipulam forças supeA
riores por meio de uma simples simpatia, ora se recorre ao poder de cura (ou de
malefício) de um especialista, ora é na doutrina e nos ritos controlados pela Igreja
Católica que se busca – como se dizia então – o «pasto espiritual». A maioria das
pessoas simplesmente não concebia estes diferentes códigos e níveis de instituciA
onalização de relação com a transcendência como mutuamente excludentes entre
si. Significa dizer: um complexo de práticas e representações, distribuídas seA
gundo níveis variados de institucionalização e racionalização, e que só por arbiA
trariedade nos negaríamos a agregar sob o termo «religião».
Quem cruza com um negro pelos caminhos dificilmente deixa de ouvir dele
um Louvado («Louvado seja Nossa Senhora e Jesus Cristo»).118 Após uma refeiA
ção, os convivas se levantam, dãoAse as mãos e fazem o sinal da cruz.119 AcreA
ditaAse que problemas de ordem estritamente prática – dar cabo em uma praga de
formigas, curar uma mula vítima de diarréia ou uma pessoa picada por cobra –
podem ser resolvidos através de promessas, benzeções e simpatias.120 O prestígio
dos curadores em casos de picadas de cobras é tanto que «o povo tem mais confiA
ança neles do que em qualquer médico», dizem Spix e Martius. Os curadores deA
terminavam um período de 60 dias, no qual o doente deveria observar tabus de
contato (evitar mulheres menstruadas), cósmicos (deitarAse sempre que caísse a
noite) e alimentares. A maioria dos curadores era composta de negros libertos e
mamelucos, o que de alguma forma evidencia a continuidade de tradições religioA
sas ameríndias e/ou africanas. Spix e Martius estranharam que não houvesse
mulheres entre os curadores, justo elas que «em questões de medicina são ouvidas
em primeiro lugar». A resposta que lhes dá um mulato é a de que mulheres só poA
dem tornarAse curadoras após os 50 anos, pois até esta idade «elas próprias são
venenosas».121 Este procedimento sem dúvida assenta em arquétipos antiqüísA
simos. Se mulheres e serpentes são «venenosas» é porque se acredita que ambas
partilham de uma mesma natureza. Langsdorff diz ter ouvido que «os índios enA
venenam suas flechas besuntandoAas com a menstruação das mulheres e levandoA
as ao fogo».122 Bernardo Guimarães descreve num trecho de O seminarista uma
simpatia para imobilizar cobras, comum às «roceiras» do seu tempo: «talvez o
leitor não creia nessas cousas que chamam abusões do povo; mas o certo é que,
desde o momento em que a senhora Antunes pregou os olhos na cobra e começou
a arrochar a saia na cintura, a bicha parou imediatamente».123

118 Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, pp. 107A108.


119 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol I, p. 188.
120 Luccock, Notas sobre..., p. 347; Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 82; Da Silva,
Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 221A222.
121 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, pp. 164A165.
122 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 24.
123 Guimarães, Bernardo, O seminarista, p. 32. Barbosa também faz menção a esta
prática. Ver Barbosa, Waldemar de Almeida. A decadência das Minas e a fuga da
105

Tal como a vida constitui uma trajetória cujos marcos divisores são ritos de
passagem como o batismo, matrimônio e exéquias, também um dia comum deA
compõeAse em diferentes momentos. À noite, ao deitarAse, o cristão faz suas oraA
ções. Diz Gonzaga em suas Cartas Chilenas:
E mal estendendo nos lencóis o corpo,
Dou um sopro na vela, os olhos fecho,
E pelos dedos, rezo a muitos santos,
Por ver se chega mais depressa o sono;
Conselho que me deram sábias velhas.124
O espaço não se subdividia em porções matematicamente uniformes, mas em
extensões de distinto valor. Seguindo o mesmo princípio, as horas do dia distinA
guiamAse qualitativamente umas das outras. Toda diferenciação encontra na históA
ria sagrada a sua justificativa: o meioAdia, hora em que se inicia a agonia de
Cristo – assim como seu reverso, a meiaAnoite –; as 15:00h, quando Ele expira no
Calvário («E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona»;
Mt 27, 45); as 18:00h, hora da Anunciação. Especialmente esta última, também
chamada hora da Ave Maria ou do Ângelus, despertou a atenção dos viajantes.
SaintAHilaire conta que em toda Minas «quando o sino vibra todos param, descoA
bremAse, juntam as mãos e rezam».125 Chegando ao anoitecer no Arraial do InfiA
cionado, Spix e Martius depararamAse com boa parte dos habitantes «reunidos diA
ante de imagens de Nossa Senhora iluminadas».126 Os ritos religiosos deviam reA
alizarAse sempre entre a aurora e o crepúsculo. A Igreja determinava que «nem
uma pessoa, de qualquer estado, e qualidade que seja, poderá ser enterrada antes
de nascer o sol». À exceção da procissão da QuintaAFeira de Endoenças, nenhuma
outra poderia realizarAse «das Ave Marias por diante», por ter mostrado a experiA
ência «que nas procissões de noite pode haver, e há muitas ofensas a Deus nosso
Senhor, as quais, diz o Apóstolo, são obras das trevas, de que é Príncipe o
demônio».127
Por todos os cantos, no cume de cada morro, em estradas, pontes e especialA
mente nas encruzilhadas, erguemAse cruzes. «À sombra desse símbolo – diz BerA
nardo Guimarães – toda a terra é sagrada».128 Desde muito cedo na história do

mineração. Belo Horizonte: UFMG, 1971, p. 259.


124 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 66.
125 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, p. 214A215. CompareAse essa pasA
sagem de Bernardo Guimarães n’O garimpeiro: «Daí a pouco ouviaAse a sineta da
casa chamando a família e os escravos para a reza da Ave Maria, e ao som dessa
reza (...) a paz e a bênção do céu desciam nas asas cinzentas do crepúsculo sobre
aquelas tranqüilas solidões» (p. 16).
126 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, p. 217.
127 CAB, livro IV, título XLV, 818; livro III, título XV, 492.
128 Guimarães, Bernardo. «A filha do fazendeiro». In: Guimarães, B. História e tra
dições da província de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976,
p. 134.
106

cristianismo, atribuiAse à «árvore bendita», à «sagrada árvore da Cruz»129 duas


virtudes principais: ela é símbolo de vitória e garantia de proteção contra forças
adversas.130 Para Nuno Marques Pereira o «santo lenho» deve ser venerado pois é
«estandarte da glória, instrumento da nossa redenção, símbolo da Fé, chave do paA
raíso, divino arcoAíris da paz entre Deus e os homens, terror do inferno, espanto
dos demônios, timbre dos católicos, esforço dos fracos, escudo dos fortes justifiA
cados na graça de Deus».131 Nenhuma esfera da vida deixa de se beneficiar com a
sua presença. Até mesmo um recorde de produção na Fábrica de Ferro de Gaspar
Soares foi comemorado com a colocação de uma cruz de ferro em frente à fundiA
ção.132 Nos locais onde se cometem assassinatos, ou onde se punem seus autores,
colocamAse cruzes – estas mesmas que assinalam as casas em que moram as parA
teiras.133 Em 1811, no caminho para Minas, Eschwege deparaAse com centenas de
cruzes de diversos tamanhos no alto de um morro, «que a superstição dos tropeiA
ros ainda ergue diariamente por causa das dificuldades superadas». Poucos anos
depois, SaintAHilaire observa que «essas cruzes são plantadas pelos que transitam
por este caminho pela primeira vez, e temem não voltar se deixarem de cumprir
tão importante dever».134 Ainda na primeira metade do século passado, a força de
tais práticas podia ser testemunhada em Itaipava. Quem passa diante de uma cruz
à beira de um caminho tira o chapéu, benzeAse, e diz:
Deus te salve cruz consagrada
que guarda a alma de um crente
levaiAme em paz e salvamente.135

Estas palavras demonstram que um espaço primordial a ser santificado e proteA


gido é, evidentemente, o próprio corpo. Quem é cristão benzeAse sempre, e benA
zerAse significa fazer o sinal da cruz. Assim se exprime a esperança na Cruz do
Salvador e na proteção que dela emana.136 Para Nuno Marques «todo cristão está
obrigado a fazer estas três cruzes, na testa, na boca e coração». A eficácia de tal
gesto é de tal ordem que permite «nos livrarmos de nossos inimigos visíveis e inA

129 CCM, p. 275; CAB, livro IV, título XXI, 702.


130 Benz, Ernst. Beschreibung das Christentums. Eine historische Phänomenologie.
München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1975, p. 140A141; Harmening, Super
stitio, p. 237A238.
131 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. I, p. 106.
132 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. II, p. 371.
133 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 115; Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 114;
SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol II, p. 227; Burton, Viagem do Rio de
Janeiro a Morro Velho, p. 85.
134 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 100; SaintAHilaire, Viagem pelas provín
cias..., vol. I, p. 97.
135 Willems, Uma vila brasileira, p. 136.
136 Jungmann, Josef A. Symbolik der Katholischen Kirche. Stuttgart: Anton HierseA
mann, 1960, p. 17.
107

visíveis».137 Passando por um local onde sabia encontrarAse um bando de malfeiA


tores, Gonzaga segue em frente «rezando sempre o credo, e por cautela/ fazendo
muitas cruzes sobre o peito».138
Há espaços (em especial os limites ou fronteiras) cuja natureza ambivalente
exige daqueles que por eles transitam a realização de determinados ritos. Um inA
teressante exemplo são as cerimônias ainda hoje chamadas «botaAfora». Ao sair
do povoado do Desemboque, Eschwege escreve que «conforme o costume da
terra, uma multidão de cavaleiros acompanhouAme durante um percurso de meia
hora».139 Como o movimento inverso segue o mesmo princípio, ele deve ser
acompanhado por um rito idêntico. O autor do diário da expedição de Inácio CorA
reia Pamplona ao sertão oeste da capitania de Minas relata que no dia 25 de
agosto de 1769 «fomos dormir a um sítio chamado Barbosa, digo Manoel BarA
bosa, o qual veio esperar[Anos] com outros sujeitos uma légua antes de chegarmos
a sua casa».140 No século seguinte Pohl presenciaria algo semelhante no Morro de
Gaspar Soares, quando dois filhos de um capitãoAmor voltavam após um período
de estudos: «jovens de quinze a dezesseis anos que, em companhia do vigário de
Inficionado, voltavam daquele lugar. Todos os moradores do arraial, festivamente
vestidos, a maioria a cavalo, foram ao seu encontro a uma légua de distância.»141
Tais cerimônias constituem aquilo que van Gennep, em estudo clássico, chamou
de «ritos de separação» e «ritos de incorporação».142
Os rios são espaços liminares por excelência. Se a água é, dos elementos, o que
mais estreitamente se liga ao princípio da vida, é natural que na maior parte das
culturas ela esteja estreitamente vinculada ao sagrado.143 Este caráter numinoso
da água se soma, nos rios, à sua qualidade de marco delimitador. Quando Drusus
se dispõe a atravessar o Elba, limite oriental do Império Romano, surge diante
dele uma mulher de tamanho colossal: «Retornes! Pois é chegado o término dos
teus feitos e da tua vida!»144 O Lima, na Lusitânia, extremo oposto do Império,
era chamado fluvius Oblivionis («rio do esquecimento»). Os legionários de Brutus
negaramAse a atravessáAlo e, assim, adentrar no reino dos mortos.145 O território
que se inicia na margem oposta é envolto portanto em mistérios nos quais poucos
têm a coragem de penetrar (como aquele personagem de Rosa que pretendia
«atravessar o rio, como quem enfim abre os olhos»).146 A persistência de tais arA

137 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. II, p. 253.


138 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 216.
139 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 133.
140 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...», p. 57.
141 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. II, p. 372.
142 Van Gennep, Arnold. The rites of passage. Chicago: University of Chicago Press,
1960 (1908), p. 23.
143 Eliade, Die Religionen und das Heilige, pp. 217A246.
144 Schmidt, Leopold. Volksglaube und Volksbrauch. Berlin: Erich Schmidt, 1966, p. 64.
145 Deffontaines, Géographie et religions, p. 104.
146 Rosa, Guimarães, «Ripuária». In: Rosa, G. Tutaméia, p. 135.
108

quétipos verificavaAse até há bem pouco em Minas. Em Sete Lagoas, no início do


século XX, diziaAse que «as águas do Córrego do Matadouro, à meiaAnoite em
ponto, dormem e somente acordam e reiniciam seu curso quando os galos cantam
a primeira vez».147
Não há povoação possível sem acesso farto a um manancial de água. Esta deA
pendência se colocava de forma tão evidente que os nomes de boa parte dos arA
raiais mineiros adveio dos cursos d’água nas proximidades dos quais se localizaA
vam. Ao se aproximar de um córrego «de águas límpidas e cristalinas», LangsA
dorff se espanta ao notar a ausência de moradias às suas margens. «Afinal, é a
existência de água que determina o estabelecimento das pessoas nos lugares».148
No plano religioso, tal dependência se manifesta por meio do fenômeno das
águas santas. Mentelle conta num livro publicado em 1784 que em certo lugar de
TrásAosAMontes, na véspera do dia de São João, uma multidão banhavaAse num
rio sobre o qual acreditavaAse surgir o Espírito Santo à meiaAnoite para lhe benzer
as águas. Voltando de uma caçada, o Marquês Manuel D’Almeida parou ali, disA
posto a descobrir o motivo daquele ajuntamento. «Por volta da meiaAnoite – narra
Mentelle – de fato apareceu um pássaro e voou. Todos gritaram milagre e glória
ao Espírito Santo. O Marquês acreditou que esclareceria os espíritos, tornandoA
lhes sensível a causa de seu erro; ele atirou no pássaro e o matou. O povo (...) não
viu neste pássaro morto a convicção de sua falsa credulidade; ele sentiu apenas
um movimento de indignação contra o homem que ousara afrontar a divindade» e
«se sublevou com furor».149 Se o efeito benfazejo dos banhos santos se manteve
após esta «profanação», não o sabemos. CabeAnos ressaltar, antes, a unidimensioA
nalidade que marca a mentalidade popular: inexiste delimitação clara entre este
mundo e o «além». Os rios, fontes e lagoas representam focos onde se dá o que
Dupront chamou de «transbordamento do sagrado».150 O peso da herança portuA
guesa na Minas antiga é atestada pelos versos de Gonzaga:
Não viste, Doroteu, quando arrebenta
Ao pé de alguma ermida a fonte santa,
Que a fama logo corre; e todo o povo
Concebe, que ela cura as graves queixas?151
Todavia as águas não são dotadas da mesma força que santuários assentados soA
bre a rocha. Um simples ato de impiedade e o extraordinário esvanece. O já ciA
tado manuscrito da História e Geografia do Gongo contém um interessante relato

147 Lanza, Minha Sete Lagoas, p. 78.


148 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 234.
149 Mentelle, M. Géographie comparée; ou Analyse de la géographie ancienne et mo
derne des peuples de tous les pays et de tous les âges. Portugal moderne. Paris,
1784, pp. 195A196.
150 Dupront, Du sacré, p. 42.
151 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 74.
109

a respeito. Uma testemunha explica ao seu autor por que não lhe agradava fazer
passeios à Lagoa das Antas na companhia dos ingleses que então dirigiam a mina:
«Eu ia sempre com muito pesar, porque antes daqueles pagãos se meterem a
tomar banho na lagoa, quando ia chegando o meioAdia a gente via uma cruA
zinha de prata vir subindo do fundo da água, e ir crescendo, crescendo até fiA
car uma cruz grande e muito brilhante na flor da lagoa, quando era meioAdia
em ponto; e depois a cruz ia diminuindo e abaixando até desaparecer. Desde
o dia que os pagãos do Gongo começaram a se banhar na lagoa ninguém não
viu mais nada.»152
A tradição oral ainda guarda exemplos parecidos, como o que ouvimos na PontiA
nha (um povoado pertencente ao município de Paraopeba, composto quase que
exclusivamente de negros) alguns anos atrás. ContaAse que a bela lagoa ali exisA
tente, chamada aliás Lagoa Dourada, era encantada. «No tempo dos antigos» um
cavalo aparecia cavalgando nas águas, com parte do corpo submersa. Desde que
um homem do lugar atirou no misterioso animal este não aparecera mais.153
DigaAse de passagem que a crença em seres mágicos que habitam o fundo das
águas é uma constante em Minas. Caso contrariados, eles viram barcos, perseA
guem barqueiros ou ordenam aos peixes que fujam. Há pescadores mesmo que
lhes fazem oferendas, depositando presentes ou alimento à beira dos rios.154
As águas nunca deixam de suscitar um sentimento de mysterium tremendum
(Otto), em especial quando dotadas de poderes curativos. A fama de Lagoa Santa
era de tal ordem, na primeira metade do setecentos, que chegaramAse a embarcar
barris com sua água para Portugal.155 Em meados da década de 1820, após visitar
o arraial, Langsdorff escreveu: «Há mais de 100 anos (...) pessoas que sofriam de
gota ou pessoas entrevadas eram trazidas até da Bahia para cá e daqui saíam toA
talmente curadas». Corriam histórias de que «em seu centro, há abismos insondáA
veis; e que, nesse mesmo lugar, há um redemoinho ou turbilhão que atrai para ele
e engole tudo que dele se aproxime».156 Rios e lagoas são locais privilegiados,
superiores – neles parece haver sempre uma «terceira margem».157
Em resumo, podeAse dizer que nos arraiais mineiros setecentistas e oitocentisA
tas o extraordiário fazia parte do cotidiano. Isso de forma alguma significa que a
modalidade de pensamento vigente fosse «préAlógica», para usar os termos da
velha tese de LévyABruhl (basta dizer que ele próprio viria a renegar sua teoria no

152 AEAM, armário 24, caixa 5.


153 Esta saga demonológica foi recolhida na Pontinha quando ali estivemos, em 1994,
com um grupo de alunos (a fundamentação do uso do termo «saga» e a apresentaA
ção dos seus tipos básicos será feita na seção 4.3.2).
154 Gomes, Núbia Pereira de Magalhães. Crendices e superstições do pescador mi
neiro. [Juiz de Fora?], s/d. , pp. 31A32.
155 DHGMG, p. 182.
156 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 180A181.
157 Rosa, Guimarães. «A terceira margem do rio». In: Rosa, G. Primeiras estórias. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1967, pp. 32A37.
110

fim da vida). Significa apenas que, numa época e num meio ainda não dominados
pela ciência e técnica modernas, a religião é o manancial fundamental de sentido.
Oposições binárias rígidas do tipo «natural»/»sobrenatural» são estranhas à visão
de mundo popular.158 Em sociedades tradicionais como a que estudamos aqui, ora
o numinoso é domesticado pela Igreja, ora escapa ao controle eclesiástico e se dá
a experimentar por intermédio de curandeiros ou feiticeiros, ora toda intermediaA
ção perde sua razão de ser e o sagrado manifestaAse anárquica e diretamente nas
suas diversas modalidades: carisma, visões, «assombrações».
Típico de sociedades onde o «sagrado selvagem» (Bastide) não foi completaA
mente marginalizado do mundo da vida é a crença em seres fantásticos. Alguns
deles limitados ao universo infantil, fruto de um esforço pedagógico que – reveA
ladoramente – só parece dotado de eficácia porque legitimado ao nível da transA
cendência. Gonzaga nos fala dos «chorosos meninos, que emudecem,/ quando as
amas lhes dizem: ‹Cala, cala/ que lá vem o tutu, que papa gente!›»159 Os adultos
tinham seus próprios fantasmas, como os que geraram pânico entre os moradores
de Vila Rica nos tempos do Conde de Assumar. Vultos sinistros, vindos das
montanhas que cercam a povoação, percorriam suas vielas durante a noite. Houve
até quem lhes atribuísse características tipicamente demoníacas, como chifres,
asas e pésAdeApato.160 A princípio a reação da população é comunicar as autoriA
dades, pois, como foi visto no capítulo anterior, até um passado não muito disA
tante a questão do além também era um «caso de polícia». O governador deterA
mina em 13 de julho de 1720 que
«para evitar todo o gênero de desassossêgo que têm com os mascarados, se
atirem contra estes e os matem, por serem perturbadores do sossêgo públiA
co... e se lhes declara que não ficarão incursos em crime algum os que mataA
rem os ditos mascarados, antes sim se lhes dará um prêmio de cem oitavas
de ouro a todo aquele quem constar que matou algum mascarado que apareça
no morro ou na Vila a qualquer hora da noite.»161

e
158 Febvre percebeu bem que «les hommes du XVI siècle ne possédaient notre notion
du naturel s’opposant au surnaturel. Ou plutôt, pour eux, la communication deA
meure normale et incessante entre le naturel et le surnaturel». Febvre, Le problème
de l’incroyance au 16e siècle, p. 407. Para uma crítica da validade da contraposição
entre «natural» e «sobrenatural», ver Luckmann, Thomas. Comment on «Malinovski
magic: the riddle of the empty cell», by Karl E. Rosengreen. In: Current Anthro
pology (17) 1976: 678A679.
159 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 121. Sobre este tema, ver as páginas notáveis de
Freyre, Casa grande & senzala, pp. 128A131, 328A330.
160 Guimarães Rosa se refere pelo menos duas vezes ao Diabo com a expressão «PéA
deAPato». Rosa, Grande sertão, pp. 37 e 282. Esta característica encontra a seA
guinte explicação popular: como a maior parte das pontes eram dotadas de cruzes,
o Diabo viaAse obrigado a evitáAlas, tendo conseqüentemente de atravessar os rios.
Daí os pésAdeApato. Dornas Filho, João. Achegas de etnografia e folclore. Belo HoA
rizonte: Imprensa Publicações, 1972, p. 189.
161 Citado por Dornas Filho, op. cit., p. 120.
111

NoteAse que Assumar, homem ilustrado, refereAse aos vultos como simples «masA
carados». Ao seu ver tudo não passa de uma ação de criminosos, quilombolas talA
vez, interessados em apavorar os crédulos vilaAriquenses. Mas as severas medidas
repressivas por ele determinadas mostramAse inócuas. A população muda então de
estratégia e pede autorização ao bispo do Rio de Janeiro para instalar altares em
lugares estratégicos como as entradas da vila e os cruzamentos. O povo passou a
ajuntarAse ali, todas as tardes, para rezar; e somente assim deuAse cabo das
demoníacas figuras.162
No verdadeiro tratado de etnografia sertaneja que é Sagarana, Rosa enumera
lugares e circunstâncias em que os seres fantásticos costumam aparecer: «todo
pauAd’óleo; todas as cruzes; todos os pontos onde os levadores de defunto, por
qualquer causa, fizeram estância, depondo o esquife no chão; todas as encruziA
lhadas – mas somente à meiaAnoite; todos os caminhos: na quaresma – com os
lobisomens e as mulasAsemAcabeça, e o cramondongue, que é um carroAdeAbois
que roda à disparada, sem precisar de boi nenhum para puxar».163 A mulaAsemA
cabeça sai em «todas as noites de sextaAfeira para sábado» por becos e cemitérios
para assombrar as pessoas.164 Outra interessante crença do período colonial, a do
João do Campo, só conhecemos por intermédio de SaintAHilaire: «‹João do
Campo› é um ser imaginário representativo das regiões descobertas. Quando se
entra nos campos é em casa de ‹João do Campo› que se entra, e, quando o viaA
jante dorme ao relento é ‹João do Campo› que o hospeda.»165 Durante sua passaA
gem pelas proximidades de Rio Manso, Tschudi ouve «fabulosas histórias da getiA
ranabóia, que mataria seres humanos e animais, à distância e num piscar de olhos,
com suas setas. ConsideramAna o mais terrível bicho do Brasil».166 A existência
de lobisomens era crença tão difundida no sertão oeste de Minas que «muitos vão
até a ponto de tratar de heréticos os que se recusam a acreditar nisso».167
O fato de que um Dom Viçoso tenha dedicado um contundente trecho do seu
Catecismo de Mariana às «superstições» evidencia, por si só, a persistência das
práticas e representações populares de que falamos acima:

P. Em que consiste a superstição?


R. Consiste: 1°, em servir, no culto de Deus, de práticas vãs, e não autorizaA
das pela Igreja; 2°, em pôr a confiança em certas palavras, em observâncias
que a Igreja não aprova.

162 Menezes, Furtado de. Igrejas e irmandades de Ouro Preto. Belo Horizonte: IEA
PHA, 1975, p. 111.
163 Rosa, Guimarães. «Minha gente». In: Rosa, G. Sagarana. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1983, p. 181. Ver ainda o poema «Assombramento» em Rosa, GuimaA
rães. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp. 123A124.
164 Guimarães, Bernardo. O seminarista., p. 83.
165 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., pp. 224A225.
166 Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 174.
167 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 122.
112

P. Será superstição consultar os mágicos e os advinhadores?


R. É superstição; porque é pedir ao demônio o que só Deus pode nos dar.168
Uma evidência a mais de que o numinoso não se reduzia à sua expressão eclesiA
ástica é a ocorrência de um tipo muito particular de hierofania: a visão. A visão
costuma ser um evento espontâneo (quando não «único») e que eventualmente
desencadeia uma intensa transformação a nível pessoal e/ou coletivo. Ao nível da
vida individual a visão funciona como um marco; ela tem um caráter «iniciatóA
rio». Uma visão dá início à carreira da curandeira e advinha africana Luíza Pinta,
um caso já bem explorado pela historiografia.169 É depois de ter uma visão que
Feliciano Mendes decide levantar a ermida que deu origem ao santuário de ConA
gonhas do Campo. De caminho para o Rio de Janeiro, para onde viajava a fim de
obter licença eclesiástica para a sua capela, ele vê um frade
«de hábito branco, escapulário e manto azul, barbas crescidas e chapéu caído
para as costas, e logo lhe pareceu ser o estado para que Deus o chamava, e
logo fez menção de se vestir do mesmo hábito, e lhe tirou o chapéu dizendo,
fico de acordo como quem aceitava o aviso e logo desapareceu o tal ermiA
tão».170

No local onde o ermitão Antônio Bracarena ergueu a capela da Serra da Piedade,


Nossa Senhora teria aparecido a uma menina muda. Ao ter a visão da Virgem
com Jesus nos braços, a garota teria subitamente recuperado o dom da fala.171 O
local onde se dá uma hierofania transmutaAse em espaço sagrado, e deve ser assiA
nalado seja com um templo seja com uma simples cruz. SaintAHilaire relata a
história de uma dessas cruzes, nas redondezas de São João do Morro Grande:
«Um homem, viajando nessa região, acreditou ter visto almas do purgatório, que
volteavam ao redor do seu cavalo, sob a forma de pombos, pedindoAlhe preces.
Em memória dessa aparição ele fez erguer uma cruz; a história que venho a relaA
tar achaAse gravada ao pé da mesma».172 Outras espécies de aparição, como as
«assombrações», obviamente não gozam do mesmo status. Burton conta a história
do padre Antônio Farias, falecido proprietário de uma casa no Morro Velho, que
«na quaresma ainda visita o seu lar mundano, e, sem constrangimento, tira do arA
mário o que quer. ‹Seu› Pedro, seu escravo de barba grisalha, com a simples fé

168 Viçoso, Dom Antônio Ferreira. Catecismo de Mariana. Paris: Garnier, sem data, p.
49
169 Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, pp. 352A357; Mott, Luiz, «O calunduAanA
gola de Luzia Pinta...», pp. 74A75; Ramos, Donald. «A ‹voz popular› e a cultura poA
pular no Brasil do século XVIII». In: Silva, Maria B. N. da. Cultura portuguesa na
Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, pp. 144A146.
170 Citado por Algranti, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Con
dição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750 1822.
Brasília/Rio de Janeiro: Edunb/José Olympio, 1999 (1993), p. 93.
171 Carrato, As Minas Gerais e os primórdios do Caraça, p. 219.
172 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos Diamantes..., pp. 105A106.
113

fetichista dos africanos, põe a carne na mesa e muitas vezes vê o ‹fantasma› pasA
sando, de aposento em aposento».173 Em Minas as assombrações se manifestam
geralmente no espaço da casa, e, mais precisamente, na cozinha.174 Veremos adiA
ante (seção 3.2.3) porquê.
Alguns têm visões daquilo que espera os homens após a morte. Nuno Marques
Pereira reproduz os elementos típicos da tradição cristã no seu retrato do inferno:
«O lugar é o mais infame, e mais baixo que pode haver, pois é o mesmo centro da
terra, e por isso ali se vão ajuntar todas as imundícies, geradas daquela putrefaA
ção, como serpentes, escorpiões, víboras, lagartos, sapos, e toda a mais casta de
bichos venenosos. Além das mais horrendas e espantosas vistas de tantos demôA
nios, e condenados.» Contudo a obra de Pereira é expressão de um um estilo de
pensamento erudito, e prova disso é sua preocupação em conferir precisão aritA
mética à sua descrição. O inferno seria um lugar «tão apertado, que dizem os au
tores, e mais peritos matemáticos, que não tem largura e circuito que de duas, ou
três léguas».175 Para que tenhamos uma idéia das representações que o homem
comum tinha a respeito, parece ser mais representativo o caso do funcionário
João Alves de Carvalho, morador da Mariana dos primeiros anos do século XIX.
Em correspondência endereçada ao então governador da Capitania de Minas, ele
requere sua manutenção no posto de porteiro. Afirma ser velho, pobre e reponsáA
vel pela esposa incapacitada para o trabalho; seu ofício é sua única fonte de
renda. Mas assegura ser «homem temente a Deus», «beato» e ter «voto jurado»,
uma vez que é casado mas «não usa do matrimônio». Por estas razões teria Deus
levado
«a alma do suplicante ao fogo do purgatório, aonde esteve dois minutos arA
dendo nele, foi levado aos céus aonde esteve dois minutos e viu tudo como
estava, foi levado ao inferno entre os condenados, e também viu lá o inferno
dos padres, e viu como o fogo abrasava neles, e a gritaria desordenada que
faziam, também foi ao purgatório das mulheres aonde viu todas assentadas

173 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 196. O renomado folclorista
finlandês Lauri Honko diz serem três as características básicas das «assombraA
ções»: elas são seres empíricos (nunca se questiona, no universo popular, a realiA
dade de uma aparição), são seres solitários e têm sempre um caráter local. Honko,
Lauri. Geisterglaube in Ingermanland. Helsinki: Academia Scientiarum Fennica,
1962, pp. 67A68.
174 Laterza Filho, Moacyr. «A plausibilidade dos fantasmas». In: Em Tese 2(2) 1998:
151A158.
175 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. II, p. 298 (grifo nosso). Colocar o saber maA
temático à serviço da fé – eis aí um recurso que foi comum às elites eclesiásticas
da era moderna. Vimos um Pe. José Mascarenhas atestando que a autoria das insA
crições de São Tomé das Letras se deviam ao referido apóstolo, e datandoAas de 54
d.c. Martinus Borrhaus, um autor protestante do século XVI, aventurouAse até a
calcular o número total de demônios existentes: 2.665.866.746.664! Ver Roskoff,
Gustav. Geschichte des Teufels. Eine kulturhistorische Satanologie von den Anfän
gen bis ins 18. Jahrhundert. Nördlingen: Greno, 1987 (1869), 2. Band, p. 380.
114

em um campo aonde conheceu várias, e teve a dita de falar com Deus cinco
vezes, aonde o Senhor lhe disse que estava nos céus e que lá era o seu lugar,
e também viu Nossa Senhora por cinco vezes, e também viu os anjos cantaA
rem e os cortezãos cantarem e dançarem, e outras coisas muito mais: e porA
que soube com certeza que Vossa Excelência ficava cego rogou a Nossa SeA
nhora para lhe dar vista. AditouAlhe a Senhora que o suplicante fizesse a noA
vena da paixão, a qual a fez (...).»176
Eduardo Paiva observa corretamente que tais descrições «não são criações de
João Alves, mas formas que povoavam o imaginário social».177 SejaAnos permiA
tido acrescentar algo ao seu comentário. Tão importante quanto o retrato que João
Alves pinta do alémAtúmulo é obviamente aquele que ele oferece de si mesmo:
vivendo na pobreza, na castidade («não usa do matrimônio»), vivendo para a reliA
gião, o autor do documento oferece um exemplo notável daquele desejo de santiA
dade no mundo que está no cerne mesmo da devotio moderna. Além do mais,
numa sociedade em que o anonimato era virtualmente impossível, como naquelas
pequenas cidades em que «todosAsabemAdeAtodos», é difícil imaginar que se puA
desse dirigir uma correspondência a uma alta autoridade distorcendo radicalA
mente a realidade dos fatos relativos à sua própria pessoa. O fato de João Alves
observar tão estreitamente a religião tende a exercer um efeito legitimador sobre
o seu relato (se aquele homem experimentou de fato tais visões, é algo que o
historiador não está em condições de sentenciar). Mas o que está em questão é
uma demanda muito terrena: a sua manutenção no posto de porteiro. Ver a Deus e
Nossa Senhora, os anjos e os condenados, para garantir um emprego? DeparamoA
nos aqui, mais uma vez, com esta típica propensão da religião popular que é a de
colocar transcendência em função da imanência. Mais: numa «sociedade relacioA
nal» (Da Matta) como a brasileira, é importante demonstrar que os laços entre as
pessoas não se limitam à vida terrena. NoteAse que, embora seja «casado com uma
mulher doente há mais de dez anos que não sai à rua por ser entrevada», é pela
saúde do governador (que «ficava cego») que João Alves roga à Virgem. Esta
contradição não implica necessariamente que nosso personagem limitaraAse a inA
ventar sua visão, guiandoAse por um tosco oportunismo. O importante é perceber
que nos termos da mentalidade da época tal relato adquiria – ou deveria adquirir
– um acento de verdade. Ao fim de seu monumental estudo sobre as visões no
interior da tradição cristã, Benz escreve que todo aquele que passa por esta expeA
riência «é tomado pela consciência irrefutável de que esta realidade do alémA
mundo por ele experimentada é a verdadeira realidade, face à qual toda realidade
terrena esvanece e perde seu valor».178 Pouco importa que o relato de João Alves

176 Transcrito e analizado em Paiva, Eduardo França. «A viagem insólita de um cristão


das Minas Gerais: um documento e um mergulho no imaginário colonial». In: RBH
16(31A32) 1996: 353A363; p. 355. Optamos aqui por atualizar a grafia original.
177 Idem, ibidem, p. 359.
178 Benz, Ernst. Die Vision. Erfahrungsformen und Bilderwelt. Stuttgart: Ernst Klett,
1969, p. 641. A uma conclusão semelhante chega Hahn, Alois. «Unendliches Ende:
115

pareça inverossímil aos olhos de quem o lê hoje ou mesmo a alguns de seus conA
temporâneos. LembremoAnos da fórmula luminosa de Weber: não há vida religiA
osa plena sem «sacrifício do intelecto».179
Há, finalmente, o culto aos santos. Eles oferecem proteção, concedem graças,
servem de veículo à identidade de um grupo ou coletividade. Santos, enfim, que
os fiéis tratam como se fosse um parente próximo. Como bem mostrou Freyre,
«impossível conceberAse um cristianismo português ou lusoAbrasileiro sem essa
intimidade entre o devoto e o santo».180 Se se concebe o panteão católico como
um gradiente de forças ou entidades que se dispõem numa ordem crescente de saA
cralidade, não há dúvida que os santos situamAse no pólo oposto do da figura de
Deus pai. Enquanto a função deste último quase que se resume a dar coerência ao
modelo cosmogônico cristão, um Deus distante e que aparentemente não mais se
ocupa com o destino dos homens, o santo – é Sanchis quem observa – participa
«no mundo do ‹sagrado› e do poder, sem ter por isso abandonado todos os traços
da humana psicologia».181 Só assim se entende como um agricultor alentejano
pôde dizer:
«Deus, não sabemos se ele existe. Mas não podemos negar que esta santa
aqui faz muitos milagres.»182
Estas palavras mostram que o culto aos santos ocupa o ponto central no catoliA
cismo popular.183 O cotidiano é estruturalmente marcado pela devoção a eles. Do
indivíduo à coletividade, do espaço da casa ao do arraial, para cada doença, cada
imprevisto da vida e cada profissão há o respectivo santo. RecorreAse a São LibóA
rio (problemas renais), São Brás (problemas na garganta), São Bento (contra o
veneno de cobras), São Jerônimo e Santa Bárbara (contra perigos em tempestaA
des), Santa Luzia (pela saúde dos olhos), São Sebastião (contra pragas nas lavouA
ras e rebanhos), São Roque (contra a lepra e epidemias), São Lourenço e São
Manuel (pelo dom da paciência), São Miguel Arcanjo (contra embustes e ciladas
do demônio). Santa Cecília é protetora dos músicos, Santo Ivo dos advogados,
São José dos carpinteiros, São Jorge dos ofícios ligados ao fogo, Santa Joana

Höllenvorstellungen in soziologischer Perspektive». In: Stierle, K. und Warning, R.


(Hrsg.) Das Ende. Figuren einer Denkform. München: Wilhelm Fink, 1996, p. 166.
179 Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 566.
180 Freyre, Casa grande & senzala, p. 225.
181 Sanchis, Arraial: festa de um povo, p. 56.
182 Citado por Sanchis, ibidem, p. 41A42.
183 Harnack considera este aspecto um desvio. Para ele o culto aos santos seria uma
«religião de segunda ordem». Harnack, Adolf v. Dogmengeschichte. Tübingen: J.
C. B. Mohr, 1991 (1889A1891), p. 274. É curioso observar que Durkheim, numa
formulação algo confusa, se aproximou muito do que dissera o historiador e teóA
logo alemão: «Nas religiões populares, como nas religiões inferiores, estão em
primeiro plano seres espirituais de segunda ordem». Durkheim, As formas ele
mentares..., p. 106.
116

d’Arc dos militares.184 A lista poderia alongarAse indefinidamente, mas seria inA
completa se deixássemos de mencionar Santo Antônio de Pádua (ao qual se reA
corre para reaver objetos perdidos e arranjar casamento). SaintAHilaire pôde ver o
prestígio deste santo quando esteve na Serra da Ibitipoca. Num rochedo haviamA
se formado manchas pretas que o pesquisador atribuiu a líquens, e uma delas
lembrava a figura de um monge segurando um livro. «Dele fizeram um Santo
Antônio e é objeto de veneração em toda a zona. Todos quantos perderam aniA
mais na serra vão rezar o terço diante da imagem e os encontram infalivelmente.
Outros há que, em romaria e de vela em punho, visitam o rochedo onde está reA
presentado o santo e ali fazem penitência».185
A forma básica de relação entre devoto e santo é, como se vê, a oração. Existe
uma convicção generalizada de que tal relação é regida pelo princípio da troca.
No Portugal setecentista costumavaAse oferecer uma refeição a São Francisco de
Paula porque as orações não eram consideradas suficientes por si mesmas.186
Quando se almeja alcançar uma «graça» especial, lançaAse mão da promessa.
Caso atendido, o devoto deverá «pagar» ao santo. Pagar uma promessa significa,
por exemplo, imporAse um sacrifício, fazer uma romaria, submeterAse a um tabu
alimentar ou comportamental. O mecanismo da promessa lembra o do sacrifício,
com uma diferença: desta vez a situação de subordinação do fiel em relação à diA
vindade não é mais tão clara.187
Em 1828, no Caraça, uma romeira com os braços abertos, segurando uma vela
em cada mão, sobe de joelhos toda a escada do santuário, atravessa o patamar
fronteiro à igreja, entra na mesma e segue até o altar, onde finalmente deposita
sua oferenda.188 As modalidades de «pagamento» incluem ainda construir uma

184 Gaio Sobrinho, Antônio. «Devoções coloniais mineiras a partir de São João delA
Rei». Mimeografado, 1997, p. 3.
185 SaintAHilaire, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a
São Paulo. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974, pp. 33A34.
186 Mentelle, Géographie comparée, p. 193.
187 Heiler escreve a respeito: «nos primórdios, o homem faz uma oferenda quando, suA
plicante, eleva suas mãos para o deus a fim de obter dele o que deseja. Mas nem
sempre ele tem a sorte de ver seu desejo realizado. Ele fica ‹escaldado› (gewitzt); e
não mais confia totalmente na divindade. Por essa razão ele se recusa a assumir
despesas em vão; ele quer obter primeiramente a ajuda do deus e, somente então,
(...) realizar sua oferenda». Heiler, Friedrich. Das Gebet. Eine religionsgeschichtli
che und religionspsychologische Untersuchung. München: Ernst Reinhardt, 1920,
p. 78.
188 Carrato, «Medievalidades mineiras...», p. 127. Não raro a promessa é motivada por
uma doença grave ou mal tido como incurável, e no entanto seu «pagamento » enA
volve, ou tende freqüentemente a envolver, alguma forma de provação corporal.
No universo religioso popular a mortificação não visa a domesticação do (e/ou
combate ao) próprio corpo, mas sim uma compensação pelo reestabelecimento do
seu equilíbrio. Ver Hahn, Alois. «Religiöse Dimension der Leiblichkeit». In: Hahn,
A. Konstruktionen des Selbst, der Welt und der Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp,
2000, pp. 387A403.
117

capela, e mesmo, no sentido mais literal do termo, pagar ao santo. Encontramos


no Arquivo Público Mineiro um interessante exemplo. TrataAse de três promessas
feitas a Santo Antônio respectivamente em 1848, 1860 e 1883, todas com o inA
tuito de recuperar escravos fugidos. Elas foram redigidas em pequenas folhas de
papel de formato retangular – os chamados «requerimentos»189 –, com cerca de
18 x 14 cm. Os textos estão escritos não em linhas sobrepostas umas às outras,
mas sim acompanhando o formato da folha, e de fora para dentro (da seguinte
forma: ).
«Devo que pagarei ao glorioso Padre Santo Antônio a quantia de quarenta
réis procedidos de uma promessa que fiz para que faça com que apareça, seja
preso e entregue a seu Sr. o escravo por nome Afonso e por clareza passei
este por mim feito consignado e obrigo os meus bens presentes e futuros. FaA
zenda da Cachoeira 15 de outubro de 1848. P.G.»
«Devo que pagarei ao glorioso Padre Santo Antônio a quantia de quarenta
réis precedidos de uma promessa que fiz para que faça com que apareça ou
seja preso, entregue a seu senhor o escravo por nome Ricardo e por clareza
passei este por mim feito e assinado e obrigo os meus bens presentes e futuA
ros. Fazenda da Posse 22 de maio de 1860. Valentim José de Gouveia.»
«Devo que pagarei ao glorioso Padre Santo Antônio a quantia de quarenta
réis precedidos de uma promessa que fiz para que faça com que apareça ou
seja preso ou entregue a seu senhor o escravo por nome José e por clareza
passo este por mim feito e assinado e obrigo os meus bens presentes e futuA
ros. Fazenda da Cachoeira 12 de novembro de 1883 [a assinatura foi rasuA
rada].»190

Trinta e cinco anos se passam entre a primeira e a terceira promessa sem qualquer
alteração significativa a nível formal, e até mesmo a quantia a ser dada continua a
mesma. Isso indica que os devotos simplesmente seguiam um modelo préAexisA
tente, muito provavelmente colocado à disposição na própria capela ou santuário
a que recorreram. O fato de os textos estarem escritos de forma a descrever círA
culos em torno de um eixo central não é desprovido de interesse. Para a mentaliA
dade popular o movimento circular possui uma espécie de propriedade mágica
que maximiza a eficácia de inúmeros tipos de invocação.191 Mas o essencial para
nós é perceber que, numa época em que já se publicavam anúncios nas grandes
cidades do litoral prometendo recompensa a quem prendesse escravos fugidos,192
o recurso ao além com o mesmo fim continuasse comum em Minas Gerais. O uso
da escrita também chama a atenção (em outras ocasiões, os «requerimentos» ao

189 Espírito Santo, M. A religião popular portuguesa, p. 133.


190 APM, SP, Cx. 21 [69].
191 Cascudo, Superstição no Brasil, pp. 414A416.
192 Conrad, Robert E. (ed.) Children of God’s fire. A documentary history of black
slavery in Brazil. Priceton: Priceton University Press, 1983, p. 367.
118

santo eram queimados e suas cinzas atiradas ao vento)193, e quem sabe se possa
consideráAlo uma forma mais «sofisticada» de contato com o transcendente, uma
vez que a maior parte da população era composta de analfabetos, e, portanto, só
podia fazer sua promessa verbal ou mentalmente. Outro ponto a ser ressaltado é o
perfil social dos devotos, ao que parece todos pertencentes à elite. Seria excessivo
caracterizar Santo Antônio como um «santo dos ricos», mas não há como ignorar
que as tensões sociais de alguma forma reverberavam no plano religioso. Talvez
nesse sentido se possam ler estes versos populares:
Santo Antônio é milagroso,
mas, santo traidor.
Santo Antônio amarra negro
pra levar pra seu senhor.194

Uma boa parte daquilo que nos dizem os breviários sobre o que deve ou deveria
ser o catolicismo simplesmente não se aplica ao universo popular. Um negro vê a
imagem da Virgem aproximarAse em procissão e diz: «Lá vem o meu parente».195
Uma intimidade que pode se extender à figura do próprio demônio e fazer dele,
momentaneamente, algo bem distinto do «pai da mentira» de que falam as escrituA
ras. Em Portugal, no santuário de São João de Arga, os romeiros levam esmolas
ao Senhor Diabo, o mesmo Diabo ao qual a aldeia de São Bartolomeu atribui a
sua fundação.196 Em Lavras Novas, um antigo distrito de Ouro Preto, contaAse
que a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres foi edificada num terreno onde antes
morara uma velha feiticeira que havia feito um pacto com o demônio.197
PercebeAse afinal que os princípios que regem esta modalidade de relação com
o sagrado são os da afetividade, da intimidade e da troca. Não a despeito destas
características mas justamente por causa delas é que por vezes se concebe que o
santo pode ser coagido a satisfazer a vontade do devoto. As fontes inquisitoriais
fazem referência a casos como a da negra forra Rosa Gomes, ocorrido em Sabará,
no ano de 1762. Desesperada por ver que os santos não intercediam em seu favor,
ela «partiu a facão as imagens de Nossa Senhora, Santo Antônio, inclusive o meA
nino Jesus, decepandoAlhes a cabeça e arrancandoAlhes os braços».198 Estas e
muitas outras formas cotidianas de coação do sagrado não eram contudo consideA
radas de maior gravidade pela Igreja, e prova disso é que o Santo Ofício limitouA

193 Expilly, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1935, pp. 168A169.
194 Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, p. 112.
195 Kidder, D. P. e Fletcher, J. C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Cia Editora NaA
cional, 1941, vol. I, p. 167
196 Leitão, Rubem Alfredo. «Páginas de casa». In: MourãoAFerreira, David e Seixo,
Maria Alzira (orgs). Portugal. A terra e o homem. Lisboa: Calouste Gulbekian, vol.
II, 1980, p. 149; Espírito Santo, M. A religião popular portuguesa, p. 36.
197 Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, p. 187A188.
198 Citado por Mott, Escravidão, homossexualidade e demonologia, p. 96.
119

se apenas a repreender Rosa Gomes pelo seu ato. De fato, a documentação oficial
falaAnos pouco a respeito exatamente por se tratar de uma prática bastante difunA
dida e que, desde que não se estendesse a símbolos situados num patamar mais
elevado de sacralidade, nada tinha de sacrílega. Que tais ritos eram comuns tanto
no reino quanto na colônia, mostramAno as referências a respeito nas ConstituiA
ções do Arcebispado de Évora (1534) e nas Constituições do Arcebispado da BaA
hia (1707).199
Há casos especiais, como aquele de que Alphosus de Guimarães diz ter sido
«testemunha quase ocular» no século XIX: um médico e um padre, empenhados
em vencerem as eleições num «remoto e pacato município mineiro», e dispostos a
evitar qualquer reviravolta de última hora, fizeram para os eleitores «uma enorme
panelada, e na hora em que esta fervia, atiraram o Santo [Antônio] no meio dos
legumes e das postas de carne».200 Diante deste exemplo, não há como evitar a
impressão de que um determinado «limite» foi ultrapassado. Dois fatores, porA
tanto, determinam tanto aos olhos do devoto comum quanto da hierarquia eclesiA
ástica a gravidade ou não destes procedimentos: (a) qual das figuras do panteão
católico é «castigada»; e (b) com que finalidade o rito é empregado. Todos no
Brasil sabem que Santo Antônio ainda é «castigado» por moças que desejam caA
sarAse, e a ninguém ocorre taxar tal ação de «feitiçaria».201
Como se recorre aos santos para solucionar problemas da vida cotidiana, tanto
a nível individual quanto coletivo, a «coação» pode se dar em ambos os níveis.
Em épocas de seca prolongada a população dos arraiais mineiros de Chapada e
São João da Chapada trocavam entre si seus santos padroeiros. Os santos só eram
reconduzidos às suas respectivas igrejas depois que chovesse.202 No nordeste braA

199 Silva, Rebello da. História de Portugal. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1971 (1861A1871), p. 537; CAB, livro V, título III, 901.
200 Guimarães, Alphosus de. «Bruxos e médicos». In: Obra completa, p. 466.
201 «Quando demora em atender aos pedidos, as raparigas arrancamAlhes dos braços o
Menino Jesus e deitamAno de cabeça para baixo no fundo de um poço, até que se
opere o milagre». Arinos, Affonso. Lendas e tradições brasileiras. Rio de Janeiro:
F. Briguiet & Cia, 1937, pp. 147A148. A continuidade e a força destas tradições é
mais que evidente. Um familiar nos explicava há pouco tempo que Santo Antônio
é tido como «pirracento». Quando um pedido a ele não é realizado, podeAse «pedir
por mal». AmarraAse sua imagem, em meio a orações, e enterraAse a mesma de caA
beça para baixo num vaso. Ou então trancaAse o santo, colocandoAo em lugares feA
chados, pois «santo não pode ficar em lugar fechado ». O mesmo familiar nos narA
rou o seguinte caso: em Belo Horizonte, certa mulher enterrou Santo Antônio num
vaso com o intuito de conseguir um marido. Teve sucesso; porém temeu que, uma
vez desenterrada a imagem, seu casamento se arruinasse. Dentro em pouco seu esA
poso tornouAse alcoólatra, e num dia, em meio a uma briga, deuAlhe justamente
com o tal vaso na cabeça. A mulher morreu e Santo Antônio «se vingou». Este reA
lato demonstra que no imaginário popular, embora o santo possa ser coagido, ele
nunca está completamente à mercê do devoto.
202 Machado Filho, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Rio de JaA
neiro: José Olympio, 1943, p. 47.
120

sileiro, segundo Gonçalves Fernandes, assim teria se dirigido um certo fazendeiro


às imagens que tinha em seu altar doméstico: «bem, meus senhores: tenho muito
dinheiro empregado em vocês para me socorrerem nessas ocasiões. Há muito que
peço com amor: não querem me atender? Amanhã, se não amanhecer chovendo,
quem for de madeira vai cozinhar feijão e quem for de barro entra no cacete!»203
A antigüidade destes ritos de inversão é evidente. Numa obra de Jacobus de VoA
raigne, escrita no século XIII, contaAse a história de um judeu que colocou suas
posses sob a proteção de uma imagem de São Nicolau. No entanto, durante sua
ausência, ladrões levam tudo o que de valioso possuía, à excessão da referida
imagem. Ao regressar, e vendo o que ocorrera, o judeu insulta o santo e cobreAo
de pancadas. São Nicolau aparece aos ladrões, mostraAlhes as marcas dos golpes
que recebera e os convence a devolver o produto do roubo.204 Formas homólogas
de coação do sagrado observaramAse até mesmo nos mosteiros medievais de
Cluny e Tours.205 Isto posto, não há como levar a sério a hipótese de Mott de que
este fenômeno era fruto de uma «vingança» por parte daqueles que tinham sido
obrigados a adotar o catolicismo.206
Laura de Mello e Souza afirmou que os «desacatos» aos santos no âmbito do
catolicismo lusoAbrasileiro diferenciaramAse sobremaneira dos que se verificaram
em outras partes da Europa, o que não corresponde às evidências.207 Se nosso esA
copo de referência se alarga, vemos que algo semelhante se passa também em
outros sistemas religiosos. O jesuíta Matteo Ricci observou no século XVI que os
chineses «adoram alguns ídolos, mas quando estes não lhes concedem o que peA
dem, os golpeiam com força e depois fazem as pazes com eles».208 Na Birmânia o
culto dos espíritos ancestrais em altares domésticos se dá de forma bastante pesA

203 Fernandes, Gonçalves. Religião, crença e atitude. Recife: Instituto Joaquim NaA
buco, 1963, pp. 45A46. Ver também Cascudo, Superstição no Brasil, pp.439A440.
204 Schmitt, JeanAClaude. Heidenspaß und Höllenangst. Aberglaube im Mittelalter.
Campus: Frankfurt/Paris: Campus/Maison des Sciences de l’Homme, 1993, p. 118.
205 Geary, Patrick. «L’humiliation des saints». In. Annales (34) 1979: 27A42.
206 Mott, Luiz, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 188. A avaliação ligeira de WeA
ber, de que tais ritos são fruto de um «naturalismo préAanimista» também não
acrescenta muita coisa à discussão. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 228. O
mesmo se pode dizer de Thales de Azevedo, para quem a coação dos santos «assiA
mila esse culto a uma idolatria». Azevedo, Thales de. O catolicismo no Brasil. Rio
de Janeiro: MEC, 1955, p. 29. Igualmente etnocêntrica é a afirmativa de Lima Jr.,
de que as multidões que afluíram para Minas eram dominadas por um «falso conA
ceito da Divindade». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, p. 91.
207 Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 115. Para a França, ver Sébillot, Paul.
Le folk lore de France. Paris: E. Guilmoto, 1907, tome IVe, p. 166A169 e Burke,
Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 197.
Para a Alemanha, conferir o verbete «Bild und Bildzauber», em: HdA, 1. Band, p.
1291 e Petzoldt, «Magie und Religion», p. 481.
208 Citado por Gernet, Jacques. Primeras reacciones chinas al cristianismo. México:
Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 106.
121

soal; tanto se pode censuráAlos quanto fazerAlhes pedidos.209 O próprio Durkheim


havia notado que «diante dos seus deuses, o homem não está sempre em estado
tão evidente de inferioridade; pois pode acontecer, muitas vezes, que exerça sobre
eles verdadeira coerção física para obter deles aquilo que deseja».210 A ocorrência
dos ritos de inversão evidentemente aumenta à medida em que o indivíduo coA
locaAse em relação com as «divindades» ou «forças» situadas nos níveis inferiores
do panteão, já que é a estas que normalmente se recorre face aos problemas imeA
diatos do cotidiano.
O culto à Virgem Maria assemelhaAse ao culto aos santos, mas encontraAse inA
contestavelmente num patamar distinto. Maria está acima deles e mesmo, na pra
xis do catolicismo popular, acima do próprio Cristo.211 Se a primeira pessoa da
Santíssima Trindade se limita à sua função cosmogônica, a segunda não parece
menos distante. Jesus incorpora um anseio de redenção futura, vale dizer: de algo
que não se coloca no horizonte do diaAaAdia do católico – salvo quando eclodem
movimentos messiânicos (que Lanternari considera, com toda a razão, «expresA
sões heterodoxas da religiosidade popular»). A importância do culto mariano
pode ser facilmente verificada através da toponímia. Dos 289 municípios mineiA
ros cujos nomes ainda fazem menção ao panteão católico, nada menos que 74
contêm uma das invocações de Maria. No segundo posto vem Santo Antônio (22
cidades), enquanto que a figura de Jesus só aparece em sexto lugar (14 cidaA
des).212
Maria é «mãe de misericórdia», «advogada nossa», «porta do céu», «saúde dos
enfermos», «consoladora dos aflitos», etc. Ela é a mãe perfeita, arquetípica. TradiA
ções populares difundidas por todo o mundo cristão falam de sua infinita miseriA
córdia para com os homens. Uma dessas tocantes narrativas é reproduzida por
Câmara Cascudo: «Antes da Ascenção, Nosso Senhor, apanhando um leve puA
nhado de areia, disse aos discípulos: – Até mil e pouco! E atirouAo ao vento.
Nossa Senhora, apiedada da brevidade do prazo concedido, encheu a santa mãoA
zinha de areia e jogandoAa também ao ar, suplicou: E mais estes, meu filho!».213

209 Leach, Sistemas políticos da Alta Birmânia, p. 226.


210 Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 69. As palavras supostaA
mente ditas pela Virgem em uma de suas «aparições » em Piedade dos Gerais são
emblemáticas: «Deus é forte mas o povo precisa ajudáAlo». Citado por Ferreira, As
aparições em Piedade dos Gerais, p. 19.
211 «She does not remain sublimely distant, to be approached only with trepidation;
she comes close to the beliver», escreve Heiler, Friedrich. «The Madonna as reliA
gious symbol». In: Campbell, J. (ed.) The mystic vision. Papers from the Eranos
Yearbooks. Princeton: Princeton University Press, 1968, p. 367. A mesma «prefeA
rência» por Maria se observa na Romênia. Ver o verbete «Marie» em TaloQ, Ion.
Petit dictionnaire de mythologie populaire roumaine. Traduit par Claude LecouA
teux. Paris, no prelo, p. 263.
212 Costa, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais. Belo Horizonte: BDMG,
1997, p. 69.
213 Cascudo, Superstição no Brasil, p. 364.
122

ContabilizaramAse nada menos que 94 diferentes invocações de Maria no período


colonial. Em especial em Minas Gerais a devoção à Virgem parece ter sido partiA
cularmente intensa no século XVIII.214 A mais difundida destas invocações foi
sabidamente a de Nossa Senhora da Conceição, que desde 1646 gozava do status
de «Padroeira e Defensora dos Reinos e Senhorios de Portugal».
A segunda invocação mais importante de Maria foi a de Nossa Senhora do RoA
sário. Como é bem sabido, no Brasil ela popularizouAse antes de tudo entre os neA
gros. A razão desta preferência chama a atenção pois havia santos negros, como
São Benedito e Santa Efigênia, que – em tese – se prestavam a uma identificação
mais imediata a nível «étnico» que a branca Senhora do Rosário. A realidade pode
ter sido bem outra em regiões em que a religião oficial ainda não se impusera.
Em Chapada e outros arraiais do Vale do Jequitinhonha a sua imagem era sempre
negra, afirma SaintAHilaire.215 Fato é que tão logo um arraial se formava e, por
assim dizer, se estabilizava, a segunda capela erigida geralmente tinha por orago
Nossa Senhora do Rosário – os escravos tinham necessidade de erigir, o quanto
antes, o seu próprio local de culto. Mas por que precisamente sob esta invocação?
A dificuldade de se chegar a uma solução satisfatória desta questão foi ressaltada
há tempos por Julita Scarano.216 Tudo indica que a confluência de representações
e práticas religiosas africanas com o cosmos sagrado cristão foi, desde o início,
facilitado por semelhanças a nível morfológico e estrutural. Em algumas sociedaA
des africanas ocidentais existiam «rainhas mães» que, por vezes, chegavam a asA
sumir o trono.217 Por outro lado, custaAnos crer que a devoção a Nossa Senhora
do Rosário no Brasil escravista fosse interpretada da mesma forma que no seu
continente de origem, e que os escravos e negros livres celebrassem por meio
dela a própria conversão.218 É possível que parte da solução para o problema esA
teja no rosário em si: trataAse de uma forma de oração que, diferentemente de ouA
tras tantas orações cristãs, tem uma dimensão eminentemente comunitária. ConsA
truir uma nova identidade coletiva era uma demanda fundamental das populações
africanas transplantadas à força para o Novo Mundo, e não resta dúvida que as

214 Souza, Maria Beatriz de Mello e. «O culto mariano no Brasil Colonial. CaracteriA
zação tipológica das invocações (1500A1822)». In: Congresso Internacional Mis
sionação Portuguesa e Encontro de Culturas – Actas. Braga, 1993, tomo III, pp.
337 e 344.
215 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, p. 76.
216 Scarano, Julita. Devoção e escravidão. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Cia Editora NacioA
nal, 1978, p. 39.
217 Baumann, Hermann et Westermann, Diedrich. Les peuples et les civilizations de
l’Afrique. Paris: Payot, 1970, p. 360.
218 «A fim de imortalizar o triunfo das forças cristãs [sobre os Albigenses], Pio V insA
tituiu a festa de Nossa Senhora das Vitórias, cujo nome foi mudado para Nossa SeA
nhora do Rosário pelo seu sucessor, o papa Gregório XIII, que reconheceu no rosáA
rio a arma da vitória». Megale, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 431.
123

práticas cristãs prestaramAse a este papel (sobretudo em Minas). Finalmente, o


uso do rosário como amuleto foi outro ponto de convergência entre catolicismo
popular e as religiões africanas tradicionais. Na Minas do século XIX tanto hoA
mens quanto mulheres andavam sempre com rosários no pescoço. SaintAHilaire
afirma ser um «uso dos mineiros», e Pohl interessaAse tanto por tal costume que
faz menção a ele quatro vezes.219 A vitalidade destas práticas é atestada por um
verso recolhido por van der Poel no Vale do Jequitinhonha:
Coitado daquele homem
Que o demônio queria
Por não ter no pescoço
O rosário de Maria220
O que não causa admiração quando se sabe que na Europa seiscentista e setecenA
tista acreditavaAse que bastava jogar um rosário sobre um fantasma para que o
mesmo desaparecesse; que seu uso protegia mulheres grávidas e recémAnascidos
contra feitiços; que facilitava o trabalho de parto, ajudava a curar dores de cabeça
e até doenças.221 O hábito de trazer amuletos desta maneira também era difunA
dido na África. Consta que após receber do papa uma bula com indulgências,
Dom Diogo (1545A1561), rei convertido do Congo, meteuAa numa bolsa e penduA
rouAa no pescoço.222 Qualquer semelhança com o uso das chamadas «bolsas de
mandinga» analisadas por Laura de Mello e Souza no Brasil Colônia certamente
não será mera coincidência.223 Entre os escravos mulçumanos que promoveram a
famosa Revolta dos Malês na Bahia (1835), encontraramAse saquinhos de couro
contendo inscrições do Alcorão. Saquinhos que, segundo Pierre Verger, eram
usados como talismãs.224 Por vezes surgem amuletos muito mais simples, como
se viessem à tona estratos profundos de crenças préAcristãs. Pohl diz ter enconA
trado no Córrego Fundo «cubos soltos de hematita vermelha do tamanho de uma
polegada e também menores, que chamam pedra de Santana e que, encastoada
em prata e pendurada ao pescoço por um cordão de seda, é usada como talismã
contra dor de cabeça e outras doenças».225 Por configurarAse numa espécie de em
blema total, Maria se adequa tanto às demandas do cotidiano dos nossos arraiais
quanto às exigências da religião oficial. Até mesmo o Tribunal do Santo Ofício
permitiu, numa sessão realizada em 29 de julho de 1903, que parvas imagines

219 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 138; Pohl, Viagem no interior do


Brasil, vol. I, pp. 193, 222, 234; Vol. II, p. 442.
220 Van der Poel, Frei Francisco. O rosário dos homens pretos. Belo Horizonte: ImA
prensa Oficial, 1981, p. 77.
221 Brauneck, Manfred. Religiöse Volkskunst. Köln: DuMont, 1978, pp. 250 e 253.
222 Brásio, Pe. Antônio. «O problema da coroação dos reis do Congo». In: Revista
Portuguesa de História (12) 1969: 351A381, p. 363.
223 Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, pp. 210A226.
224 Verger, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a
Bahia de Todos os Santos. São Paulo: Currupio, 1987, p. 343.
225 Pohl, Viagem ao interior do Brasil, vol. I, p. 225.
124

chartaceas Beatae Mariae Virginis in aqua liquefactas vel ad modum pillulae in


volutas ad sanitatem impetrandam deglutire.226

3.2 Casa
3.2.1 Microcosmo
Tönnies foi provavelmente o primeiro autor a ressaltar que à forma básica de soA
cialização (a família) corresponde um espaço específico: a casa. «O estudo da
casa é o estudo da comunidade, tal como o estudo da célula orgânica é o estudo
da vida», escreveu.227 Suas análises a respeito limitaramAse a considerações no
plano teórico, até porque seu empreendimento em Gemeinschaft und Gesellschaft
foi o de estabalecer o que ele considerava serem os conceitos básicos da análise
sociológica. Foi preciso esperar por um Gilberto Freyre para que os primeiros
estudos da casa numa perspectiva históricoAsociológica fossem levados a cabo.
Assim definiu Freyre o seu projeto: «o centro de interesse para o nosso estudo de
choques entre raças, entre culturas, entre idades, entre cores, entre os dois sexos,
não é nenhum campo sensacional de batalha (...). O centro de interesse para o
nosso estudo desses antagonismos e das acomodações que lhes atenuavam as duA
rezas continua a ser a casa.»228 Basta que comparemos este programa de pesquisa
com o que se escrevia em sociologia ou história naquela época para nos darmos
conta do caráter excepcional da obra de Freyre. Nada mais natural, pois, num esA
tudo que visa identificar as relações entre religião e espaço, que a casa deva ser
considerada o ponto de partida.
Qualquer análise nãoAformalista da vida social necessariamente se depara com
o fato de que a casa nunca é simplesmente um abrigo. Desde muito cedo na históA
ria da humanidade, esta função elementar foi investida de um sentido que faz da
casa um espaço distinto, superior, sagrado. A casa é o espaço primordial. Ela é «o
primeiro mundo do ser humano», «o grande berço».229 Ao mesmo tempo, toda
casa constitui um microcosmo da sociedade. Através dela é possível esquadrinhar
não só o todo das relações entre os homens mas também a forma por meio da
qual estes homens se relacionam com a transcendência. Ela reproduz, em miniaA
tura – e mesmo quando o faz de forma invertida – a lógica que predomina «lá
fora».230

226 HdA, 1. Band, p. 1290.


227 Tönnies, Ferdinand. Gemeinschaft und Gesellschaft. Grundbegriffe der reinen So
ziologie. Berlin: Karl Kurtius, 1926 (1887), p. 25A26.
228 Freyre, Sobrados e mucambos, vol. I, p. 9.
229 Bachelard, A poética do espaço, p. 113.
230 TrataAse de um traço típico daquilo que Cassirer chama «espaço estrutural», onde
«reencontramos em cada parte a forma e a estrutura do todo». Cassirer, Philosophie
der symbolischen Formen, 2. Band, p. 110. Durkheim explica que «na perspectiva
125

Uma abordagem funcionalista tradicional, como a que propôs Robert MerA


ton231, nada acrescenta à nossa pesquisa. O mesmo se deve dizer da perspectiva
marxista de um Henri Lefebvre. Este considera que a análise fenomenológica e
etnológica da casa é a simples expressão de uma «nostalgia» do homem contemA
porâneo. Para Lefebvre tais estudos em nada servem à compreensão da moderniA
dade; darAlhes atenção significa «evitar a realidade, sabotar a procura pelo conheA
cimento».232 O desenvolvimento capitalista teria feito da casa um mero resíduo –
um tema irrelevante, ao seu ver. As coletividades que se devem investigar são as
classes, não as famílias. Os espaços sociais em que a realidade é efetivamente viA
vida e reproduzida são os da fábrica, não os da casa. Não é preciso muita perspiA
cácia para se perceber a que simplismos a análise marxista do espaço (pelo menos
quando conduzida nestes termos) pôde chegar. A doutrina de Lefebvre mostra que
o materialismo dá as costas ao fato de que as realidades sociais nunca se reA
sumem à sua dimensão empírica, ao fato de que só nos relacionamos uns com os
outros e com o mundo por meio de um intrincado jogo de simbolismos. Por outro
lado, quem há de negar – e nem mesmo um autor politicamente «conservador»
como Freyre o fez – que as relações de poder e hierarquia que atravessam o corpo
social encontram seus correspondentes no âmbito da casa? Mas este é um ponto a
ser discutido mais adiante.
No início da história de Minas, a rigor, não há «casas». Por volta de 1704, os
fundadores de São João delARei levantaram ali seus primeiros ranchos, «ditas asA
sim as casas de vivenda por serem levantadas de taipa de mão com cobertura de
palha».233 Este quadro não se alterou substancialmente mesmo após sua elevação
a vila. Diz um relato de 1717 que em São João delARei «quase todas as casas [são]
de palha».234 DirAseAá que a precariedade daquelas habitações se devia à carência
de ferramentas e de artesãos, o que sem dúvida pode ter sido verdade em muitos
casos. Todavia deveAse levar em conta que o estilo predominante de construção é
também expressão direta do estilo de vida daquelas populações. Um estilo que,
como vimos, era profundamente marcado pelo habitus nômade. Um outro docuA
mento atesta que os pioneiros «não se ocupavam na eleição dos aposentos nem na
melhoria dos sítios, porque, como o seu desígnio só era a extração do ouro onde
ele se descobria, ali fabricavam os seus ranchos ou choças de beira no chão, feiA
tos de palha de palmito, onde eles e os negros se recolhiam para, com mais faciliA

do pensamento religioso, a parte vale o todo». Durkheim, As formas elementares


da vida religiosa, p. 286.
231 Merton, Robert K. «Zur Sozialpsychologie des Wohnens ». In: Atteslander, P. und
Hamm, Bernd (Hrsg.) Materialien zur Siedlungssoziologie. Köln: Kieperheuer &
Witsch, 1974, pp. 164A182.
232 Lefebvre, The production of space, pp. 120A123.
233 CCM, p. 231.
234 «Diário da jornada, que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janeiro até
a cidade de São Paulo, e desta até as Minas no ano 1717». In: Revista do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (3) 1939: 295A316, p. 313.
126

dade, se permutarem para diferentes paragens».235 Fato que, digaAse de passagem,


não passou desapercebido a Freyre. Para ele a casaAgrande e a choça de palha corA
respondem a dois modelos civilizacionais opostos entre si (ainda que, acrescenta,
«complementares»): um sedentário e outro móvel.236
Nosso homo ludens, em sua avidez de riqueza, constrói suas moradas tão perto
das lavras que «hoje se fazem, amanhã as botam em terra para trabalhar».237 Daí a
opção pelo uso de materiais mais rústicos, menos duradouros. ConseqüenteA
mente, a casa nem sempre ofereceu em Minas – ao contrário do que escreveu Le
Loup238 – um indício visível da condição social daqueles que a habitavam. E não
só em princípios de século XVIII. Em 1816, nas redondezas de Dores do Indaiá,
Eschwege observa que «as poucas fazendas que se vêem nem merecem esse
nome, pois constam de choças miseráveis».239 Os moradores da Comarca de PaA
racatu, diz SaintAHilaire, «ocupam choupanas pequenas e escuras, e mesmo
quando a fazenda tem alguma importância, a casa do proprietário não se distin
gue das dos seus negros». Na fazenda de Dona Tomásia, entre Piuí e a Serra da
Canastra, «a proprietária habitava uma miserável cabana».240 Numa fazenda goiA
ana próxima da fronteira com Minas, Spix e Martius notam que «as cabanas de
negros, feitas de ripas, rebocadas de barro e cobertas de palha de milho ou com as
folhas de palmeira, são amiúde construídas como as da África».241
Desloquemos agora nosso olhar para o extremo oposto da província, para as
densas florestas que antes cobriam os vales do Rio Doce, do Mucuri e a Zona da
Mata. Veremos ali uma realidade distinta. Em áreas povoadas por inúmeros povos
indígenas, a habitação assumia por vezes uma feição que em nada lembra a casaA
grande ou o simplório pauAaApique. Os índios Coroados enterravam seus mortos
sob suas cabanas. Quando se tratava de um adulto, a casa era abandonada porque
tinhaAse medo do seu fantasma. A casa dos vivos transmutavaAse em casa dos
mortos.242 Outro aspecto interessante foi ressaltado por Luccock, que, nas proxiA
midades do arraial do Chapéu d’Uvas, encontrou uma casa de dimensões e caA
racterísticas incomuns: «Todos os homens que dela faziam parte tinham ido para
o mato, o que não impedia que ainda houvesse perto de trinta pessoas na casa, de
todas as tonalidades, desde o preto de azeviche até a branca tez da dona (...). A

235 CCM, p. 251.


236 Freyre, Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo, 1971, p. 37.
237 «Diário da jornada... », p. 313.
238 «Les formes d’habitat temporaire et rudimentaire qui prédominaient dans l’arraial
primitiv, sont restées celles des classes pauvres ». Le Loup, Les villes du Minas Ge
rais, p. 100.
239 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 97.
240 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 206. Grifo nosso.
241 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 102. Este dado mostra que a afirmaA
tiva de Lemos segundo a qual «o escravo negro não contribuiu na definição da casa
nacional» deveria ser avaliada com mais cuidado. Lemos, Carlos. História da casa
brasileira. São Paulo: Contexto, 1989, p. 11.
242 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, p. 206.
127

residência dessa numerosa família consistia num quarto enorme, exatamente


como um celeiro na Inglaterra. Tinha as paredes de barro, o forro de sapé e o piso
de terra, sem qualquer divisão, nem teto, revestimento ou caiação alguma. Ao
centro, viamAse vestígios de recente fogueira, cercada de pedras para sustentáculo
do aparelho culinário. Dos lados e estendidas sobre tábuas havia umas esteiras
onde dormiam as pessoas. Estas, com mais dois ou três armários em que se contiA
nham as miudezas, uma mesa velha e umas poucas pedras e blocos de madeira
que serviam de assento, constituíam o mobiliário todo.»243 A utilização de uma
técnica de construção mista e a existência de mobília não esconde o aspecto funA
damental, e que atesta a clara influência indígena: a coabitação de várias famílias
na mesma casa – o communism of living de que falava Morgan.244
De que forma o sagrado está representado nas moradias das camadas sociais
inferiores? Os viajantes calam a respeito. Podemos porém afirmar com alguma
certeza que pelo menos um elemento era comum às habitações dos mineiros dos
séculos XVIII e XIX: o pequeno altar doméstico. Nuno Marques Pereira diz ter
conhecido «um preto casado, por nome Manoel, em certa vila, o qual, sendo caA
tivo, tinha sua casa na fazenda de seu senhor, muito limpa e asseada; e na varanda
tinha um nicho feito, e nele um altar, onde estava colocada uma imagem de Cristo
e outra da Senhora do Rosário, com outros santos. E todos os dias cantava o terço
de Nossa Senhora com sua mulher e filhos».245 Euclides da Cunha dá notícia da
existência de rústicos altares nos casebres do arraial de Canudos.246
À medida em que subimos na hierarquia social, como aliás ocorre sempre
quando se estuda a história, as informações crescem em número. EscolheAse o loA
cal da construção: como no caso do arraial, a casa não deve afastarAse demasiaA
damente de um curso d’água.247 FazemAse então as fundações, o alicerce. A casa
é um espelho do mundo, de modo que ao iniciar sua construção o homem «reA
pete» simbolicamente a criação do universo. TrataAse, pois, de um empreendiA
mento sagrado. No passado, em muitas sociedades, toda obra importante era marA
cada por um sacrifício de construção (Bauopfer). Paul Sartori demonstrou, num
estudo que marcou época, que a realização de sacrifícios humanos visava dotar
edifícios, pontes ou muralhas de um espírito protetor que era a garantia de sua
força e durabilidade. Com o passar do tempo, as vítimas – criminosos, escravos,
prisioneiros de guerra, crianças – foram progressivamente substituídas por aniA
mais ou simplesmente por determinados emblemas depositados nas fundações.248

243 Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais..., pp. 287A288.
244 Morgan, Lewis H. Houses and house life of the American aborigines. Chicago:
The University of Chicago Press, 1965 (1881).
245 Pereira, Compêndio narrativo, vol. I, p. 175.
246 Cunha, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d (1902), p. 119.
247 Holanda, Caminhos e fronteiras, p. 41; Rosa, Sagarana, p. 182.
248 Sartori, Paul. «Ueber das Bauopfer ». In: Zeitschrift für Ethnologie (30) 1898: 1A54,
pp. 5, 10, 28, 32 e 44. Eliade resume bem a questão: «Para durar, uma construção
(...) deve ser animada, ou seja, deve receber simultaneamente uma vida e uma
128

Gilberto Freyre faz menção a um único caso, transmitido pela tradição oral, de
um senhor de engenho que «mandou matar dois escravos e enterráAlos nos alicerA
ces da casa».249 No período colonial parece ter sido comum a bênção dos alicerA
ces por um sacerdote.250 ConcluiAse que o solo é depositário de forças a serem
vencidas ou, pelo menos, neutralizadas. Vale dizer: o espaço sobre o qual se
constrói nunca é neutro, nunca é «profano». O Bauopfer ou a bênção do alicerce
não sacralizam o espaço; o que estes ritos visam, na verdade, é operar uma subsA
tituição – por meio da qual o «sagrado fasto» se sobrepõe ao «sagrado nefasto»
preexistente.251 PodeAse também lançar mão de um outro mecanismo para se
evitar o contato direto com as forças nefastas. SaintAHilaire nota que em Minas
era «costume geral» edificar as casas de fazenda sobre estacas.252
O pólo oposto não desempenha função menos importante. É bem possível que
Flusser esteja com a razão quando considera o teto o elemento fundamental. Sua
função se confunde com a da própria casa – palavras como sem teto ou obdachlos
indicam em que medida a casa é a extensão lógica da sua cobertura.253 Quem
percorre as cidades do ciclo do ouro vê em inúmeros telhados figuras de pombas,
evidente representação do Espírito Santo. E ainda é comum que as laterais dos
telhados mineiros recebam um arremate conhecido como «peito de pombo». A
morada dos homens incorpora simbolismos estreitamente vinculados à morada
dos deuses (Tertuliano, no segundo século na nossa era, referiaAse às igrejas como
domus columbae). As homologias entre casa e templo não param aí. SaintAHilaire
e Langsdorff relatam que era bastante comum a colocação de cruzes nas áreas deA
fronte das habitações.254 Finalmente, era no espaço da casa que se realizavam os
ritos funerários sem os quais a alma do defunto não podia ser adequadamente inA

alma. A ‹transferência› da alma só é possível por meio de um sacrifício». Eliade,


Mircea. De Zalmoxis à Gengis Khan. Paris: Payot, 1970, p. 178. Ver ainda TaloQ,
Petit dictionnaire de mythologie populaire roumaine, pp. 362A363.
249 Freyre, Casa grande & senzala, (prefácio à primeira edição) lvii.
250 Mott, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 164.
251 Ver Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, pp. 488A490; bem como o
interessante livro de Lecouteux, Claude. Démons et génies du terroir au Moyen
Âge. Paris: Imago, 1995, pp. 100A107.
252 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol I, p. 251. Examinando este fenôA
meno, Deffontaines sugere que a terra «era vista como um lugar de infortúnio reA
servada às forças inimigas e à morte». Deffontaines, «Wert und Grenzen der reliA
giösen Erklärung...», p. 211.
253 Flusser, «Häuser entwerfen ». In: Vom Subjekt zum Projekt, p. 63. PodeAse verificar
a justeza da tese de Flusser por meio da «festa da cumeeira», que continua tradicioA
nal no interior de Minas. No dia em que a lage de uma casa em construção é conA
cluída, o proprietário deve oferecer uma pequena festa aos pedreiros e/ou às pesA
soas que o ajudam. A fase de acabamento é entendida como secundária pois a casa,
no que tem de essencial, está pronta: o proprietário já tem um teto.
254 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, p. 24; Da Silva, Os diários de
Langsdorff, vol. I, p. 318.
129

corporada ao reino dos mortos.255 Este conjunto de evidências vai de encontro à


tese de van der Leeuw, de que «casa e templo são, na essência, um só».256
Esta sobreposição casa/templo expressaAse de forma particularmente evidente
em muitas «casas de fazenda». Da inevitável tendência à especialização que se veA
rifica no espaço interno das moradias das elites rurais nascem os «quartos dos
santos» (aposentos onde se colocava o altar doméstico) e, por fim, a capela – enA
tão chamada oratório257 ou ermida.
Luiz Mott atribuiu este fenômeno à existência de um suposto «apartheid reliA
gioso»: «os mais esnobes e elitistas (...) construíam seus próprios locais de culto –
capelas, ermidas e até igrejas, no interior ou anexas às suas moradias, evitando
assim o indesejado convívio com os fiéis de outras raças ou de estratos inferioA
res».258 Esta afirmação não encontra qualquer respaldo na documentação. A autoA
rização eclesiástica para a realização de celebrações em ermidas era dada, na esA
magadora maioria dos casos, sob a condição de que as mesmas fossem franqueaA
das a todo católico. Um regimento feito por Dom Frei Manoel da Cruz em 26 de
abril de 1757 esclarecia aos vigários da vara259 as condições a serem observadas
antes da sagração: «InformarAseAão se as ermidas estão decentemente fabricadas
com paredes seguras, e portas que se fizerem sem que possam servir para outro
ministério profano, emendarão tudo o que for possível nesta matéria por reverênA
cia de Deus, e edificação dos fiéis, advertindo, que todas quantas concedemos
são públicas, e devem estar em parte pública».260
Uma sistematização das normas a respeito só veio a ocorrer em 1888. Fica esA
tabelecido, quanto aos oratórios, que o vigário deveria certificarAse pessoalmente:
«1, se o oratório (...) é conveniente e redunda em aumento do culto; 2, se está deA
cente e separado de todo o uso doméstico; 3, se sobre ele há, ou não, dormitório;
4, se está provido de todos os objetos necessários à celebração da missa».261 EmA

255 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 102; Willems, Uma vila brasileira, pp.
160A161; Rosa, Guimarães. «Os irmãos Dagobé». In: Primeiras estórias, pp. 26A30.
Conferir ainda o útil levantamento de Stubbe, Hannes. «Tod, Trauer und Verwitwung
in der brasilianischen Folklore». In: Staden Jahrbuch (34A35) 1986A1987: 11A29.
256 Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 372.
257 Para que o oratórioAermida não seja confundido com os pequenos altares de maA
deira portáteis, nos quais se colocavam os santos de devoção da família (também
denominados «oratórios»), usaremos para estes o termo altar doméstico. Sobre os
«quartos de santos», ver Lima Júnior, Augusto de. A capitania das Minas Gerais.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978 (1940), p. 115.
258 Mott, «Cotidiano e vivência religiosa...», p. 161.
259 Título dado aos sacerdotes que estavam à frente das cabeças de comarca.
260 AEDC, Livro do Tombo de Aiuruoca (1730A1822); grifo nosso.
261 Actas e constituições do primeiro sínodo diocesano fortalexiense celebrado na
respectiva igreja catedral em os dias 31 de janeiro, 1° e 2 de fevereiro de 1888;
sendo bispo desta diocese o Exmo e Rvmo Snr Dom Joaquim José Vieira, do ConA
selho de S. Magestade o Imperador, comendador da Ordem de Cristo, etc, etc.
Ceará: Typographia Economica, 1888, p. 229.
130

bora a existência de ermidas privadas («dentro da habitação de algum particular, e


comumente para seu uso; sem ingresso e egresso livre, nem porta – in via publica
– que seja franca para todos»)262 estivesse formalmente prevista, as autorizações
eram raríssimas uma vez que deveriam ser obtidas junto à Santa Sé. O que equiA
vale a dizer que, na prática, todo local de culto oficialmente reconhecido é pú
blico. Um futuro bispo de Mariana escrevia entre fins de 1886 e princípios de
1887:
«Os oratórios em fazendas, com entradas francas para todos, têm sido consiA
derados sempre como públicos, e suprimem a falta de capelas. A única conA
dição que lhes falta para o rigor de públicos é que têm saída para terras partiA
culares, e não para terrenos públicos, condição esta difícil de ser observada
no Brasil. Estes oratórios são o remédio e meio de conservar a fé e piedade
no povo simples religioso de nossos interiores, que ali ouvem missa, [e] conA
fessamAse em grande número».263
Os pedidos de provisão enviados à autoridade eclesiástica permitemAnos visualiA
zar melhor a questão. Por volta de 1713, Ambrósio Caldeira Brantes, morador da
região de São João delARei, escreve ao bispo do Rio de Janeiro dando conta de
sua intenção em erguer uma ermida. Sendo «forasteiro» e, conseqüentemente,
alvo da inimizade de muitos (o choque entre paulistas e emboabas tivera fim apeA
nas cinco anos antes), ele afirma que
«tem sua morada e a faz fora dos arraiais, e concursos dos moradores assim
por se livrar de ocasiões de encontros com os naturais, [que] pela sublevação
passada ficaram com errônea indissimulável aos forasteiros, como para com
menos investimento tratar das suas lavras, causa por onde fica sempre desviA
ado da Igreja, e não vai a ela a missa por evitar a sua perdição, de sua família
e de seus amigos; o que vendo o Rev. Padre Francisco Barreto de Menezes
com olhos desapaixonados, enquanto não andou com ele suplicante em litíA
gio, lhe disse [que caso] tivesse missa em casa, que ele o tiraria a paz, e a
salvo do que nisso houvesse, e depois o Rev. Vigário da Vara (...) lhe licenA
ciou o consentimento.»

Como o Padre Menezes não tivera sucesso em seu litígio com Caldeira Brantes,
estaria então empenhado a anular a permissão para a construção da ermida.
Brantes vêAse sem saída, pois
«achandoAse com os perigos referidos para o poder lograr [o bem espiritual]
na igreja, e precisa de passar o ano sem missa, e com os escândalos, que
nisso necessariamente há de ter, quando a sua devoção o move a tê la à sua
custa, portanto.»

262 Idem, ibidem, p. 228.


263 Dom Silvério Gomes Pimenta, citado por Trindade, Cônego Raimundo. Archidio
cese de Mariana. Subsídios para a sua história. São Paulo: Escolas Profissionais
do Lyceu Coração de Jesus, 1928, vol. I, p. 505.
131

Dom Francisco de São Jerônimo, bispo do Rio, expede sua autorização em 29 de


março de 1713:
«(...) concedemos licença para em uma das casas de sua habitação, qual eleA
ger, levantar oratório com porta para fora em que se diga missa, e a ouvirem
o suplicante e sua família e pessoas que aí haverem [sic] em sua casa.»264
O controle eclesiástico sobre a ereção de lugares de culto sempre foi intenso.
Numa carta pastoral escrita em 3 de novembro de 1727 durante uma estadia em
São João delARei, Dom Antônio de Guadalupe determina que «nenhuma pessoa
consinta que em uma sua casa se levante altar portátil para nele se dizer missa exA
ceto os párocos ou quem fizer as suas vezes».265 Em maio de 1821, os moradores
do lugar denominado Água Fria, distante «légua e meia a duas» da freguesia de
São José da Barra Longa, escrevem ao bispo de Mariana pedindoAlhe permissão
para assistirem missa na ermida da fazendeira Maria Caetano de Almeida, «que
dista daquela matriz uma légua e lhe[s] é mais cômodo para suas famílias e es
cravatura». Os suplicantes afirmam que «nas circunstâncias de procurarem a
igreja matriz encontram duas pontes ou o rio caudaloso que corre à frente da
mesma matriz e uma das ditas pontes muito arruinada». A outra ponte, «do uso
particular de herdeiros do falecido SargentoAMor Manoel Joaquim de Almeida
(...) que por benignos facultam passar em horas competentes do dia, e outras veA
zes impedem com duas chaves que têm».266
Os pedidos de provisão feitos na segunda metade do século XIX seguem o
mesmo princípio básico. Tomemos um exemplo:
«João Vieira Marques, fazendeiro, residente na freguesia de São Domingos
do Prata, tendo uma numerosa família composta de filhos e escravos, e moA
rando a légua e meia da igreja matriz, não pode moverAse facilmente com sua
família para ali cumprir o preceito da missa aos domingos e dias santos; por
isso pede a V. Exma Rma licença para que qualquer sacerdote aprovado no bisA
pado possa celebrar missa e administrar os mais sacramentos em sua ermida,
que está decente e tem os ornamentos necessários.»
No atestado dado pelo vigário de São Domingos do Prata em 30 de agosto de
1877, lêAse: «tem lugar decente, separado de todo uso doméstico, exclusivamente
destinada ao culto divino uma ermida com altar fixo e porta para o público, livre
e franca aos fiéis».267
Em 1887, José Ferreira da Costa, habitante da freguesia de São Gonçalo de
Contagem, assegura que o oratório de sua fazenda é dotado de todos os ornaA
mentos e tem «ingresso franco para a varanda». Caetano Pedro Cotta, morador da
freguesia do Inficionado, afirma ter «no fundo da varanda de sua fazenda de São

264 AEAM, pasta 24, gaveta 1; grifos nossos.


265 AEAM, 1° livro de pastorais e provisões de bispos visitadores, p. 9.
266 AEAM, pasta 33, gaveta 4; grifo nosso.
267 AEAM, ibidem. Grifos nossos.
132

José um oratório decente e paramentado, cuja porta é fronteira à da entrada da


dita varanda (...). O suplicante tem família numerosa, e dista sua fazenda da maA
triz cinco léguas». Vicente Pedro Cotta, que afirma viver a quatro léguas da
mesma sede paroquial e ser «chefe de numerosa família», tem duas ermidas nas
duas fazendas de sua propriedade e requere o privilégio de nelas se poder rezar
missa. Em 19 de agosto de 1879, depois de certificarAse que ambos os oratórios
têm «entrada pública» e são «exclusivamente reservados ao culto divino», Dom
Viçoso dá permissão de celebração. O capitão Luís Antônio de Oliveira e Castro,
que fez ermida na sua fazenda do Pirapora, freguesia de Santa Ana do GuaraA
ciaba, afirma ser a mesma «há largos anos consagrada ao culto divino, (...) situada
à entrada da varanda e com ingresso franco a todos». Distante duas léguas da maA
triz de Venda Nova, a propriedade de Adolfo da Silva é dotada de «oratório púA
blico». Ao pedir provisão ao bispo, ele acrescenta: «Há na circunvizinhança
muitos habitantes que espiritualmente muito lucrarão com a concessão da graça
requerida». O documento é datado de 13 de julho de 1890.268 Morador da fregueA
sia de Santa Quitéria, o comendador Manuel Pereira Mello Viana preferiu recorA
rer diretamente ao internúncio apostólico para usufruir do direito de celebrar em
sua ermida. Eis o teor da resposta de Dom Francisco Spolverini:
Delecto nobis in Christo Illmo Dne Commendatori Emmanueli Pereira de
Mello Vianna, Diocesis Marianensis (...) supplicationes tuo nomine vobis
datae, ut in Sacello, quod in praedio tuo ‹Fazenda de Santo Antônio› nuncu
pato existit, Missae celebrationem permitteremus (...). Quae Missae non so
lum tibi, sed tuis etiam cosanguineis, affinibus, hospitibus, et omnibus ad
stantibus in praecepti ad implementum, dictus festis, suffragetur. (...) Civitate
Petropolitana die 27 Decembris 1887. Franciscus Spolverini, Internuntius
Apostolicus.269
Como o teor e a forma dos pedidos em questão é sempre o mesmo,270 a mera aluA
são a outros casos não acrescentaria muito ao que se expôs acima.
Houve de fato uma «exclusão» dos escravos? O máximo que se poderia dizer é
que tal exclusão foi relativa. Pois os senhores não tinham como se furtar à obriA
gação de permitir (e mesmo, se necessário fosse, coagir) a sua participação nos
cultos. As Constituições do Arcebispado da Bahia eram bem claras: «mandamos a

268 AEABH, caixas 37 e 813; AEAM, pasta 33, gaveta 4.


269 AEABH, caixa 838.
270 Para o mesmo período, há referências a ermidas nas fazendas Floresta (freguesia
de Rio Branco), Turvo (?), Bonfim (freguesia do Pomba), Fragas (freguesia de
Paulo Moreira) e Chácara (freguesia de São José da Barra Longa). AEAM, pasta
33, gaveta 4. Segundo relatório do vigário de Piedade do Paraopeba enviado a MaA
riana em 23 de fevereiro de 1855, naquela freguesia havia celebração constante ou
esporadicamente nas ermidas das fazendas do Bananal, Bom Jardim, Martins,
Contenda, Pouso Alegre, Tejuco, Ponte Alta, Caveira e Serra. APM, SP, Cx. 16
[65]. Há ainda, em 1893, notícia de oratório na fazenda do Jardim, freguesia de
São Tomé das Letras. AEDC, caixa 4.
133

nossos súditos que ouçam missa conventual nos domingos e dias santos de
guarda (...) e a ela façam ir seus filhos, criados, escravos e todas as mais pessoas
que tiverem a seu cargo».271 Ribeyrolles assistiu uma dessas celebrações. Os saA
cerdotes, diz ele, «chegam no sábado à noite. Rezam na capela, ao passo que os
negros cantam. No outro dia, é o grande ofício, o mistério da óstia. Os escravos,
de joelhos, cantam como na véspera. Os senhores assistem com suas famílias ao
sacrifício simbólico, e por vezes, uma prática religiosa encerra o serviço diA
vino».272 Não há como negar que o lugar reservado aos escravos nas celebrações
refletia sua condição de párias. Isto ajuda a explicar por que os negros erigiam,
tão logo estivessem em condições, a sua própria capela. Porém não se deve esA
quecer que a existência de gradações no interior do espaço sagrado católico é anA
terior ao problema do status do negro, e obedecia já a outras clivagens; como as
existentes entre sacredotes/leigos e homens/mulheres.
Por outro lado: o fato de os oratórios serem construídos contigüamente às vaA
randas demonstra, por si só, o seu caráter público. Observemos que a ermida deA
veria ser separada «de todo espaço doméstico». As evidências aparentemente o
contradizem. Nas plantas de sedes de fazendas dos séculos XVIII e XIX reproduA
zidas por Helena Martins,273 vêAse claramente que a ermida é dotada não só de
uma porta principal para a varanda mas também de uma passagem para a sala de
visitas. Mas a contradição é, insistaAse, apenas aparente. Se há uma ligação direta
entre ermida e sala, é porque esta última não era percebida como um espaço «doA
méstico» stricto sensu.
Os pedidos de provisão de ermidas domésticas em nada se diferenciam, no que
têm de essencial, dos pedidos de ereção de capelas. Por detrás de ambos, a
mesma intensa demanda pelo sacrifício da missa e pelos sacramentos, as mesmas
dificuldades de deslocamento, o mesmo peso imposto pelas distâncias. E, mais
importante: o mesmo caráter coletivo e (não tenhamos medo do termo) interA
étnico do culto católico. A diferença entre o culto realizado numa ermida e um
culto celebrado numa igreja paroquial é portanto de escala, não de natureza. Nada
nos permite falar na existência de um «catolicismo patriarcal» e muito menos de
um «apartheid religioso» na Minas antiga.
* * *
A percepção do espaço se divide em dois campos básicos e, por assim dizer,
opostos: a casa e a rua. A contraposição entre estes dois planos é de tal ordem que
Freyre chegou a consideráAlos «inimigos».274 Enquanto a rua é vista como um
«domínio semidesconhecido e semicontrolado, povoado de personagens perigoA

271 CAB, livro II, título XI, 367.


272 Ribeyrolles, Charles. Brasil pitoresco. São Paulo: Martins, 1976, vol. II, p. 34A35.
273 Martins, Helena Teixeira. Sedes de fazendas mineiras. Campos das Vertentes. Sé
culos XVIII e XIX. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 1998, pp. 53, 78, 87, 116,
124, 147 e 193.
274 Freyre, Sobrados e mucambos, vol. I, p. 109.
134

sos»,275 a casa constitui um mundo à parte, um refúgio onde as ameaças ou as duA


ras hierarquias da realidade «lá fora» não devem vigorar. Que a casa é um espaço
sagrado, demonstraAo ainda o fato de que ela é envolta em interdições (cuja exA
pressão material é a cerca ou muro): o acesso a ela é regulado por uma etiqueta
que deve ser rigorosamente observada. Consta que um dos incidentes que anteceA
deu a «Guerra dos Emboabas» foi deflagrado pela invasão de uma casa: «E sendo
em junho de 1707, em antevésperas de São Pedro, o levou [o paulista José MaA
chado] o destino à casa de um Domingos Ribeiro, a quem, depois do atrevimento
de entrar nela ousadamente, o descompôs».276 Durante os três meses e meio em
que permaneceu em Congonhas, Burmeister pôde notar como
«Nem pela porta aberta se passa sem autorização do dono da casa; costumaA
se bater palmas, até aparecer alguém que convide a entrar, ou então gritaAse
‹ó de casa› para chamar a atenção dos seus moradores. Quem for introduzido
numa casa brasileira sem ser convidado terá uma recepção fria, expondoAse
até a ser posto para fora, pois ninguém suporta tal ofensa à boa educação sem
severa recriminação.»277

Terminemos esta seção com duas rápidas observações. A primeira diz respeito a
uma tese defendida por Roberto da Matta. Para ele a vida social no Brasil se disA
tribui por três diferentes esferas: a casa, a rua e o «outro mundo». Esta última esA
fera seria a da transcendência, «da renúncia ritualizada deste mundo com seus soA
frimentos e suas contradições». O contato com o «outro mundo» se daria na rua,
mais precisamente nas festas religiosas por meio das quais «a sociedade se junta
pelo lado do espaço da renúncia e do abandono do mundo».278 Esta formulação já
não nos parece satisfatória. Da Matta parte do esquema de Freyre, mas deixa de
lado um aspecto que não passara desapercebido ao mestre pernambucano: o «ouA
tro mundo», o numinoso, não está destacado do espaço doméstico. De fato, este é
o refúgio primordial – é antes de tudo na casa que o indivíduo se ausenta da reaA
lidade do mundo da vida. Veremos dentro em pouco que os espaços privilegiados
de renúncia podem ser considerados meras expressões radicalizadas da casa enA
quanto temenos. A segunda observação relacionaAse intimamente com a anterior.
Será mesmo possível sustentar a idéia de que nas sociedades industriais e pósAinA
dustriais «a casa tornouAse uma instituição puramente secular»?279 Não o cremos.
A habitação moderna – mesmo depois de ter sido despojada dos antigos ritos e
simbolismos religiosos que marcavam sua construção, mesmo depois de ser reifiA
cada a ponto de aparentemente tornarAse uma «máquina de morar» – continua a

275 Da Matta, Carnavais, malandros e heróis, p. 75.


276 CCM, p. 232.
277 Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 246.
278 Da Matta, Roberto. A casa e a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.
Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, pp. 68 e 67.
279 Rabuzzi, Kathryn A. «Home». In: ER, vol. 6, pp. 438A442, p. 441.
135

exercer este papel de refúgio280, de garantia de segurança e privacidade. É por


isso, como bem notou Flusser, que o sentimento do estarAemAcasa pode ser consiA
derado, em última análise, um sentimento de tipo religioso.281

3.2.2 «Segregação» da mulher


Não é nosso objetivo tratar da história da mulher em Minas, um campo de pesA
quisas bem explorado por outros autores. ReservaremoAnos apenas o direito de
sublinhar alguns aspectos que parecem apontar para uma interessante confluência
entre sagrado, espaço e relações de gênero.
Dizer, depois de uma leitura ligeira dos relatos dos viajantes, que a típica muA
lher mineira vivia reclusa, seria sem dúvida distorcer os fatos. Há uma clara relaA
ção entre estrato social, grupo étnico e nível de «segregação». A mulher confinada
à esfera do «lar» é, na maioria dos casos, a mulher branca, de origem portuguesa
ou pertencente a um grupo familiar no qual o código moral tradicional português
domina. Nas camadas sociais inferiores o padrão de comportamento feminino dos
setores médios e das elites nunca foi observado. E não poderia ser de outra forma.
Paiva mostrou como as estratégias cotidianas de resistência das escravas incluíam
o recurso da sexualidade como forma de desfrutar de um melhor tratamento por
parte dos senhores.282 A prostituição era corrente em praticamente todos os lugaA
res de Minas, dos arraiais nascentes às vilas. Em 2 de dezembro de 1733 o Conde
das Galveias expedia ordem no sentido de coibir «os pecados públicos, que com
tanta soltura correm desenfreadamente no Arraial do Tejuco, pelo grande número
de mulheres desonestas que habitam no mesmo arraial, com vida tão dissoluta e
escandalosa (...).»283 Langsdorff legouAnos uma viva descrição a respeito: «Em
todas as vendas, havia prostitutas. Quando se lhes pergunta que tipo de atividade
fazem, elas respondem, sem rodeios, que estão ali para entreter os viajantes. À
noite, seja na venda ou entre os tropeiros, ouvemAse sempre pessoas tocando viA

280 Durand, Yves. «À propos du symbolisme du refuge – realités de l’image et transA


formations du sens». In: Circé. Cahiers du Centre de Recherche sur l’Imaginaire
(2) 1970: 179A219.
281 Flusser, Vilém. Dinge und Undinge. Phänomenologische Skizzen. München: Carl
Hanser, 1993, p. 31. A uma conclusão idêntica chega Bollnow, Mensch und Raum,
p. 140. Ver também Leiris, Michel. «Le sacré dans la vie quotidienne». In: Hollier,
Denis. Le Collège de Sociologie (1937 1939). Paris: Gallimard, 1995, pp. 94A118.
282 Paiva, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. São
Paulo: Anna Blume, 1996.
283 Citado por Carrato, «A crise dos costumes...», p. 232. Conferir os estudos de Souza,
Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII.
Rio de Janeiro: Graal, 1982, pp. 180A185; e Figueiredo, Luciano R. de A. O avesso
da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII.
Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/Edunb, 1993. Para o século XIX, ver SaintA
Hilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 119, vol. II, p. 355; Da Silva, Os
diários de Langsdorff, vol. I, p. 78.
136

olão (...). Enquanto isso, aquelas moças, na sua atividade profissional, tentam seA
duzir os viajantes. Elas dançam danças obscenas, cantam canções de baixo calão,
deixam que se lhes sirva vinho ou cachaça, fumam tabaco, para, logo em seguida,
através de outro talento, se mostrarem simpáticas e prestativas.»284 Havia ainda
mulheres cuja atividade profissional ou poder econômico proporcionava um nível
de autonomia surpreendente. Pohl encontrou determinado dia «uma tropa de burA
ros, cujo dono era acompanhado por uma mulata, que montava garbosamente à
moda masculina e sabia fazer uso das esporas de suas grandes botas».285 Algumas
proprietárias de fazendas, por vezes velhas matriarcas, aparecem aqui e ali nos
relatos.
Contudo não foram estas as que chamaram a atenção dos viajantes. O que doA
minou o olhar do estrangeiro foi, antes de tudo, a questão da «segregação» femiA
nina. Este estranhamento não é difícil de se entender uma vez que, ao contrário
de Portugal, em vários países europeus os contatos entre os sexos já não eram
mais regidos por tantos tabus. Um escritor italiano anônimo do século XVI surA
preendeuAse ao ver que os portugueses mantinham as mulheres «na maior sujeiA
ção que pode haver, guardandoAas sem confiar nem nos parentes nem em quaisA
quer outros. (...) Jantar e cear em conjunto, como noutras partes se faz, seria aqui
considerado desonra».286 Na mais lusitana das províncias brasileiras, é natural
que a reclusão de inúmeras mulheres no espaço da casa fosse relativamente coA
mum.
A maioria dos viajantes que percorreram Minas no século XIX nunca pôs seus
olhos, senão acidentalmente, sobre as mulheres ou filhas daqueles que os acoA
lhiam. Segundo Burmeister, «é caso raríssimo» um estranho ser apresentado logo
de início às mulheres da casa. Elas «nunca se mostram; ficam fora do círculo
masculino, olhando furtivamente pelas portas ou pelas janelas».287 Langsdorff
afirma que «em Barbacena, onde reina grande degradação moral e indolência, as
mulheres e moças ficam trancadas o dia todo dentro das casas, não aparecem nem
à janela». Na fazenda do Pau de Cheiro, o mesmo autor observa que as mulheres
«não apareceram na casa, embora também não tenham se escondido, como aconA
tece em outros lugares».288 De sua experiência na fazenda dos Troncos, nas
proximidades do Arraial do Desemboque, diz Eschwege: «Para que o jantar não
chegasse frio à nossa mesa, a dona da casa e as filhas, sempre às escondidas,
aproximaramAse dos fundos do moinho para entregarem, através de um furo na

284 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 21A22.


285 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. II, p. 442.
286 «Retrato e reverso do Reino de Portugal». In: Nova História (1) 1984: 83A143, p.
134.
287 Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 246. Bernardo Guimarães diz o mesmo: «QuanA
do lhes aparece em casa alguma pessoa mais bem trajada e de maneiras mais poliA
das apenas animamAse a espiar por trás das portas». Guimarães, O garimpeiro, pp.
32A33.
288 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, pp. 86 e 194.
137

parede, as panelas. Pela mesma via, recebemos, no dia seguinte, o desjejum.»289


VêAse que este padrão era mais freqüente nos arraiais e propriedades rurais. Nas
vilas as possibilidades de contato pareciam ser maiores, como atesta Tschudi, que
afirma ter sido sempre apresentado às mulheres dos seus convivas.290 Mas há
evidências de que os antigos costumes resistiram por muito tempo. Na década de
1940, no Vale do Paraíba, Emílio Willems identifica «um padrão de ‹recato› que
limita a esfera de influência da mulher casada ao lar. Quando o marido recebe
hóspedes, ela raramente aparece e nas refeições ela serve os convidados sem toA
mar lugar à mesa».291 Pierson observou o mesmo fenômeno em Cruz das Almas,
uma povoação não distante da fronteira com Minas.292 Quanto às filhas, convém
acrescentar que a «segregação» provavelmente desempenhou um importante paA
pel no que se refere as estratégias matrimoniais. Ao fim de um longo período
hospedado em casa de um fazendeiro, SaintAHilaire ouve dele a seguinte confisA
são: «Está surpreso, sem dúvida, meu amigo, de que minhas filhas não se tenham
jamais mostrado ao senhor; detesto o costume que me obriga a afastáAlas, mas
não poderia subtrairAme a ele sem prejudicarAlhes o casamento».293
Que tenha havido mulheres submetidas a uma limitação tão brutal do seu esA
paço vital, não deveria causarAnos surpresa. Com base num amplo levantamento
histórico e etnográfico, Dux mostra que esta «segregação» espacial da mulher esA
teve por toda a parte relacionada aos cuidados com os filhos e à preparação das
refeições. O homem, por seu turno, devia garantir o sustento e a proteção da faA
mília. InstalaAse uma dicotomia entre casa e rua que corresponde, primordialA
mente, às diferentes atribuições de homens e mulheres. Com o desenvolvimento
da agricultura e a formação do aparato estatal, os homens se valem de sua supreA
macia no mundo «da rua» reforçando seu domínio e consagrandoAo cultural e leA
galmente.294 O trabalho dos etnólogos têm mostrado que esta divisão de papéis,
de poder e, conseqüentemente, de espaços, não arrefeceu em várias regiões de
Portugal.295 Em culturas tradicionais e mesmo em países como a Alemanha conA
temporânea as disparidades entre os sexos podem ser «medidas» nas diferentes

289 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 116.


290 Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 278.
291 Willems, Uma vila brasileira, p. 63.
292 «When a stranger enters the house of a local resident, he is never presented to eiA
ther the wife or daughters ». Pierson, Cruz das Almas, p. 136.
293 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 80.
294 Dux, Günter. Die Spur der Macht im Verhältnis der Geschlechter. Frankfurt: SuhrA
kamp, 1997 (1992), pp. 164A179, 306, 363.
295 No EntreADouroAeAMinho a casa continua «o espaço feminino por excelência». AlA
meida, Carlos A. F. de. «Território paroquial no EntreADouroAeAMinho. Sua sacraliA
zação». In: Nova Renascença 2(1) 1981: 202A212, p. 205. Particularmente útil é o
estudo de Dracklé, Dorle. «‹Die Frau gehört ins Haus und der Mann auf die Straße›.
Zur kulturellen Konstruktion von Geschlechterdifferenz im Alentejo (Portugal)».
In: HauserASchäublin, B. und RöttgerARössler, B. (Hrsg.) Differenz und Geschlecht.
Berlin: Dietrich Reimer, 1998, pp. 107A135.
138

relações que homens e mulheres estabelecem com o espaço doméstico e urbaA


no.296 PreocuparAse com o estudo da casa de forma alguma implica, como supuA
nha Lefebvre, em despender tempo e forças com um tema «nostálgico».
DamoAnos conta então de um fato sumamente interessante. Onde predominou
o sistema de reclusão feminina, como foi o caso de tantas fazendas e arraiais miA
neiros, o espaço da mulher tendia a restringirAse à casa e à igreja, ou seja, aos dois
pólos sagrados básicos do cotidiano. Sim, porque as mulheres de que falamos
aqui só se ausentavam de suas casas aos domingos, quando tinham de assistir à
missa. E sob que vigilância! Acompanhadas, sempre, elas percorriam discretaA
mente ruas e caminhos – espaços ilícitos, para elas – sem sequer se atrever a leA
vantar os olhos.297 O importante a perceber é que este tipo de «segregação» femiA
nina não se distingue significativamente das interdições que se levantam em torno
de tudo que é sagrado. VejaAse que os únicos espaços femininos alternativos à
casa e à igreja constituíam uma síntese de ambos: os recolhimentos e conventos.
Recolhimentos eram instituições femininas inspiradas no modelo monástico,
fundadas por leigos (a Coroa foi sabidamente hostil à criação de conventos na
Colônia), e que desempenhavam também atividades de caráter caritativo e educaA
cional. Os mais importantes recolhimentos mineiros setecentistas, como MacaúA
bas e a Casa de Oração do Vale de Lágrimas, foram bem estudados por Carrato e
outros.298 Não é preciso que nos concentremos nos exemplos mais famosos para
nos darmos conta da essência do fenômeno. Em 1824 Langsdorff conheceu o peA
queno recolhimento da fazenda Jacuara, uma grande propriedade situada entre
Lagoa Santa e Curvelo:
«Um estabelecimento em particular, o convento, merece um comentário em
especial. Todas as moças a partir de 12 anos, bem como as esposas birrentas
e briguentas são trancadas numa casa isolada, que serve ou como casa de
trabalhos forçados ou como casa de correção. As jovens moças, para serem
educadas para o trabalho e para aprender a fiar e tecer; as outras, para não
fazerem besteira. O capataz afirma que, dessa forma, as jovens se casam
mais cedo (...). Elas só podem sair da instituição aos domingos, para ir à
missa.»299
Burmeister revela uma outra função da segregação feminina em Minas: «queA
rendo alguém verAse livre de sua mulher por certo tempo, basta recorrer à polícia,

296 Spain, Daphne. «Räumliche Geschlechtersegregation und Status der Frau». In:
Ethnologica (22) 1997: 31A40; e Löw, Raumsoziologie, pp. 246A254.
297 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, pp. 118A119; Pohl, Viagem no inte
rior do Brasil, vol. I, p. 200; Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p.
166.
298 Carrato, As Minas Gerais e os primórdios do Caraça, pp. 193A204. Ver também
Algranti, Honradas e devotas: mulheres da Colônia; e Nunes, Maria J. R. «Freiras
no Brasil». In: Del Priore, Mary (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2000.
299 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol I, p. 187.
139

que a manda levar para um convento (...). A mulher não opõe resistência: o hoA
mem manda e ela obedece. Durante esse tempo, o marido atiraAse a uma vida folA
gada e de prazeres».300
Em suma, recolhimentos e conventos eram um misto de refúgio, escola e priA
são. Eles ofereciam mesmo, somos tentados a dizer, uma imagem invertida
daquela Urstiftung tão comum às sociedades tradicionais que é a «casa dos hoA
mens». E, em todo o caso: formas supremas de segregação feminina na Minas dos
séculos XVIII e XIX, eles nada mais eram que a expressão paroxística da própria
casa.

3.2.3 Janus e Vesta


Argumentamos há pouco que a casa é um espaço sagrado atravessado por um
eixo vertical. O telhado, elemento que «resume» simbolicamente o todo, elevanA
doAse em direção ao céu, deve ser considerado o pólo positivo. No pólo oposto, as
fundações. O contato direto com o solo e com o sagrado nefasto de que ele é
portador tem de ser neutralizado, seja por meio de um rito (um sacerdote deve
benzer o alicerce), seja por meio da construção da casa sobre estacas. Ao analiA
sarmos a casa com mais cuidado, veremos que um segundo eixo a atravessa.
Desta vez, um eixo longitudinal cujos extremos se localizam respectivamente na
sala e na cozinha.
Onde predominou o modelo civilizacional português, o tipo ideal de casa se reA
sume a três espaços básicos: sala, quarto(s) e cozinha. Desnecessário dizer que
não há como estabelecer aqui limites rígidos, pois, como mostrou Da Matta, o esA
paço da casa sempre é percebido como um continuum.301 Se a porta é de fato um
limite entre a rua e a casa, ela é um limite relativo.302 Por esta razão Janus, antigo
deus romano da porta, era representado como um homem de duas faces. Um deus
que simbolizava tempos (o primeiro mês do ano leva ainda o seu nome) e espaços
fronteiriços, ambígüos. É, efetivamente, o caso da sala de visitas. A lógica masA
culina do mundo «lá fora» se extende até ela. SaintAHilaire escreve: «Nas casas
dos pobres, assim como nas dos ricos, existe sempre uma peça denominada sala,
que dá para o exterior. É sempre ali que se recebem os estranhos, e se fazem as
refeições, sentados em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida».303
Tal como a rua, a sala é o espaço da ritualização, do cerimonialismo, e não é mera
coincidência que o altar doméstico normalmente esteja associado a ela.304 DiríaA
mos ser este o pólo masculino da casa.

300 Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 247.


301 Da Matta, Carnavais, malandros e heróis, p. 74.
302 Para uma análise do significado sociológico da porta, ver Simmel, Georg. «Brücke
und Tür». In: Simmel, G. Brücke und Tür. Stuttgart: K. F. Koeller, 1957, pp. 1A7.
303 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., p. 186.
304 «Às vezes, em lugar de um santo só, compraAse um grupo inteiro em pequenas viA
trinas envernizadas estilo Renascença. Tais vitrinas, de dois pés de altura, apreA
140

Nos fundos fica a cozinha, e, mais especificamente, o fogão. Que a mulher esA
teja diretamente associada a ele, é para nós um fato altamente significativo. Em
Roma era este o local mais sagrado da habitação, altar mesmo de Vesta, a deusa
do fogão e – por extensão – da própria casa. Aliás o nome de Vesta entre os greA
gos era Hestia, literalmente: fogão. Outras divindades e espíritos tutelares, como
os penates e os lares, tinham também no fogão o seu «altar».305 EnganaAse quem
pensa que trataAse aqui de um complexo de representações limitado à AntigüiA
dade. Em seu conhecido livro sobre a aldeia de Montaillou, Le Roy Ladurie
mostra que «a parte essencial do domus é a cozinha ou foganha», também chaA
mada «casa dentro da casa».306 Em Itaipava, segundo Willems, «no sábado de
Aleluia, o padre vai de casa em casa, benze todas elas, principalmente, porém, o
fogão».307 Há regiões de Portugal onde o fogão continua sendo chamado de
«lar».308 Reciprocamente, «fogão» foi palavra comumente usada na Minas dos séA
culos XVIIIAXIX como um sinônimo de «habitação». Em outros termos: o fogão
resume a casa tal como a casa resume o mundo.
Que nos dizem os viajantes? SaintAHilaire: «O interior das casas, reservado às
mulheres, é um santuário em que o estranho nunca penetra, e pessoas que me
demonstravam a maior confiança jamais permitiram que meu criado entrasse na
cozinha para secar o papel necessário à conservação de minhas plantas».309 BurA
ton, sobre a fazenda da Fábrica da Ilha: «Era a habitação comum do interior, um
terreiro usado pelos negros e animais, uma escada de madeira levando à ‹sala› (...)
e, por trás, o gineceu ou cozinha, que são os lugares interditos, a ‹sancta› da
Dona».310 De Courcy, em plena noite de São João: «Em uma noite explêndida (...)
todas as choupanas acenderam seu fogão, em torno do qual a família, os amigos
reunidos dançam, assam a canaAdeAacúcar e a mandioca para a refeição da
noite».311
O fogão, também na Minas Gerais antiga, é «o núcleo e a essência da casa»
(Tönnies), «o símbolo de sua força» (van der Leeuw). Não admira que a pessoa da

sentavam as imagens de Cristo Crucificado, Maria e João e custavam 100.000 réis.


O artista informou que os fazendeiros ricos gostavam de compráAlas para colocáA
las em frente à porta da salaAdeAestar». Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 228.
305 Wissowa, Georg. Religion und Kultus der Römer. München: C. H. Beck, 1912, pp.
156A174.
306 Le Roy Ladurie, Emmanuel. Montaillou, village occitain de 1294 à 1324. Paris:
Gallimard, 1982, pp. 61, 69A70.
307 Willems, Uma vila brasileira, p. 156.
308 Fiedler, Hermann. «Bausteine zur Wohnkultur in Portugal». In: Aufsätze zur por
tugiesischen Kulturgeschichte (1) 1960: 166A182, p. 172. Cascudo, Câmara. Dicio
nário do folclore brasileiro. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972, p. 379;
Almeida, «Território paroquial no EntreADouroAeAMinho...», p. 210.
309 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., p. 186.
310 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 259.
311 De Courcy, Ernest. Seis semanas nas Minas de Ouro do Brasil. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1997, p. 94.
141

família que mais diretamente se associava a ele tenha sido cercada de tantos inA
terditos. Bourdieu constata o mesmíssimo fenômeno no seu estudo sobre as casas
dos bérberes na Argélia. Lá, como em Minas, podeAse dizer que à reclusão da
mulher corresponde, na mesma medida, uma exclusão do homem (ao menos duA
rante o dia) do universo da casa.312 ChegaAse assim a uma conclusão algo desA
concertante: a «segregação» da mulher no espaço doméstico e, em especial, na
cozinha, sugere que é sobretudo ela que está ligada ao sagrado.313 Eis porque
parece ser algo mais que uma bela metáfora a imagem utilizada por Bernardo
Guimarães num de seus romances: «O Major tinha contruído uma bonita e asA
seada casinha no laçante de uma colina à margem direita do ribeirão, algum tanto
isolada do resto da povoação. Era um templozinho, de que Lúcia era a deusa tuA
telar».314
Nas moradas das elites a situação é mais complexa. À primeira vista, a preA
sença e a localização da ermida colocaria por terra a supremacia do princípio
feminino na casa. Foi visto que a continuidade existente entre ermida e sala deA
monstra que se trata – principalmente no caso da última – de porções ambivalenA
tes. Projeção do mundo da rua na casa, elas compõem um espaço intermediário e,
ao menos tendencialmente, sob o raio de influência do homem. Quanto mais porA
que a ermida é a expressão de um sagrado católico oficial, estritamente definido e
regulamentado. Conseqüentemente, e haja vista a «afinidade eletiva» entre amA
bos: expressão de um sagrado dominado pelo princípio masculino. A existência
da ermida seria então a evidência da vitória final de Janus sobre Vesta? ConquisA
tado, enfim, o último bastião? A linguagem utilizada nos documentos eclesiástiA
cos é reveladora. Em hipótese alguma a ermida deve misturarAse com o espaço
«doméstico». De modo que o domínio público (ermida) e semiApúblico (sala)
contrapõeAse ao «resto». Paradoxalmente, é no «doméstico» que se esconde aquilo
que o domus tem de mais valioso. E é precisamente neste domínio que a mulher,
mesmo aquela pertecente às elites rurais, continua a gozar de preeminência.

3.3 Arraial
Recapitulemos: o arraial é um ponto de cristalização, um espaço não racionali
zado de convívio coletivo. Ele é a expressão das necessidades econômicas, reli
giosas e lúdicas de um grupo de vizinhança. Primeiramente examinaremos o
arraial mineiro numa perspectiva morfológica. É preciso saber, afinal, como eram

312 Bourdieu, Pierre. «La maison ou le monde renversé». In: Bourdieu, P. Le sens
pratique. Paris: Minuit, 1980, pp. 448A451. Claro está que não compartilhamos da
posição de Lemos, segundo a qual no Brasil o fogão não teria ocupado o centro
simbólico da casa. Lemos, História da casa brasileira, p. 13.
313 Para Luhmann «o sagrado é representado como mistério, portanto como proibição
ou impossibilidade de comunicação ». Luhmann, Die Religion der Gesellschaft, p.
81.
314 Guimarães, Bernardo, O garimpeiro, p. 57.
142

aqueles embriões de cidades. Apesar de ainda não ser a hora de nos ocuparmos a
fundo com a questão das origens, será necessário introduzir alguns exemplos
preliminares para que possamos visualizar o processo de protoAurbanização como
um todo. Poderemos assim identificar os seus componentes básicos e, em espeA
cial, mostrar de que forma a religião esteve presente em cada um deles.
Uma diferenciação clara se impõe entre os arraiais que cresceram à margem da
mineração e os que se formaram em áreas ou fases em que predominou a agropeA
cuária. O primeiro tipo teve normalmente por origem um ou mais acampamentos
de mineradores, e era marcado nos seus primórdios por um rápido aumento do
efetivo populacional. ProcediaAse então à construção de uma tosca capela. Ela
podia, eventualmente, conferir alguma estabilidade ao assentamento, mas a sorte
do arraial minerador era obviamente determinada pelas perspectivas de ganho na
mineração. O segundo tipo de arraial não tinha por centelha um local onde se exA
plorava ouro («descoberto»), mas pura e simplesmente a capela. O processo de
protoAurbanização processavaAse aí muito mais lentamente.
Uma das dificuldades com as quais lidamos reside na polissemia do termo «arA
raial», aspecto para o qual já se chamou a atenção. A palavra denotava no seu uso
cotidiano: (a) o simples acampamento, e (b) pequenos agregados de casas que se
formavam seja (b.1) ao longo do leito dos riachos e grupiaras315 – por vezes utiliA
zavaAse o termo «bairro» –, seja (b.2) em torno de uma capela. Quando se lê em
antigos relatos que os primeiros descobridores das minas «levantaram arraial» ou
«fizeram arraial», isso significa basicamente o estabelecimento de acampamentos.
Num momento posterior, especialmente a partir de meados do setecentos, «fazer
um arraial» significa levantar casas em torno de uma capela préAexistente. ConA
tudo não se pode dizer que tenha havido uma solução de continuidade histórica
entre estes dois modelos. Eles coexistiram tanto no século XVIII quanto no seA
guinte.
Em parte por terem estado pouco atentos a esta variação semântica e tipológica
é que vários autores defenderam a hipótese de que os povoados de Minas Gerais
nasceram, via de regra, como fruto direto do gold rush e do comércio.316 Dois
exemplos nos darão uma idéia mais precisa dos dois tipos de embrião de cidade.
Situada na Zona da Mata, a atual cidade de Guaraciaba começou a formarAse
por volta da metade do século XVIII. A provisão para a construção da capela de
Santana dos Ferros data de 28 de novembro de 1749.317 Eschwege, escrevendo
pouco mais de cinqüenta anos depois, usa precisamente o exemplo do então arA

315 Grupiara: «Ocorrência de ouro ou diamantes em camadas argilosas sob o solo, nas
encostas dos morros, junto a rios e córregos» (Maria Verônica Campos).
316 Em especial: D’Assumpção, Lívia Romanelli. «Considerações sobre a formação do
espaço urbano setecentista nas Minas». In: Revista do Departamento de História
da UFMG (9) 1989: 130A140. Em Lima Jr. o problema é formulado ambigüamente.
Ora ele atribui – sem apresentar exemplos – a formação dos arraiais ao comércio,
ora ao «motivo religioso». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, pp. 38 e 90.
317 DHGMG, p. 144.
143

raial de Santana dos Ferros para dar sua explicação do processo de urbanização
em Minas: «A origem destes arraiais, assim como das vilas em Minas, foram as
escavações de ouro. (...) A primeira coisa que se fazia era erigir uma pequena caA
pela para o serviço religioso, e cercas; aquele que tinha meios, construía uma
grande casa a partir de uma frágil cabana inicial. Conforme se achava mais ou
menos ouro, crescia ou decrescia o bemAestar e o luxo nestes lugares. (...) TamA
bém o arraial aqui citado [Santana dos Ferros] deve sua origem à exploração de
ouro nas margens do rio Piranga.»318
Algo totalmente diferente ocorreu na gênese de Nazareno, um exAdistrito de
São João delARei. Embora a capela de Nossa Senhora do Nazaré existisse desde
1734, até princípios do século XIX o arraial ainda não surgira. Como se explica
isso? Uma carta dos moradores do lugar ao rei de Portugal, datada de 3 de março
de 1802, esclarece a questão:
«Ela [a capela] é situada em uma larga e dilatada campina e é bastantemente
grande e suntuosa, bem aparamentada e suprida à custa dos povos da aplicaA
ção, mas sofrendo estes o desgosto de que o terreno da mesma está situado
em terras de terceiro, o qual não consente que se façam casas, cômodos ou
ranchos de que tanto se precisam para os suplicantes que das suas fazendas e
lavras vem distantes léguas a satisfazerem os divinos preceitos, não tendo
onde mudem os vestuários para decentemente assistirem no templo homens,
mulheres, nem parte onde possam recolher suas montadas.
Esta falta (...) reconhecem que a ser aquele terreno livre aos suplicantes com
os seus logradouros, avaliado tudo (...) e satisfazendo os suplicantes o seu
valor ao dono das terras, se faria um perfeito arraial e dos melhores da coA
marca, não só pelos muitos e nobres edifícios como pelo comércio iria em
aumento a população e os direitos régios (...).
As distâncias, soberano senhor, de muitos dos suplicantes, os campos e o
mais justificam o indigente estado em que chegam para a indispensável obriA
gação da lei, e entram na casa de oração. Logo é justa a graça que os supliA
cantes imploram, as suas cavalgaduras, posses ou dispensas, que perturbação
não causam, exposto tudo aos acasos e à inconstância dos tempos.»319

O documento acima contém alguns dados fundamentais. Mais de meio século


após a construção da capela não havia ainda arraial porque o proprietário das terA
ras em que a mesma fora erigida não permitia a construção de casas. Não era um
procedimento comum. NoteAse que a função das casas não era a de servir de moA
radia àquelas pessoas – que, afastadas dali, viviam em suas «fazendas e lavras» –
mas sim a de servir de local onde elas pudessem guardar seus pertences e vestir
se condignamente para assistir às celebrações.
Os aplicados de Nossa Senhora do Nazareno dispõemAse a comprar o terreno
em torno da capela, e para isso pedem a intervenção do rei. Sua argumentação

318 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 54.


319 APM (AHU), cx. 162, doc. 9.
144

extrapola o plano especificamente religioso: a configuração do lugar era perfeita,


e certamente formarAseAia um belo arraial. Futuramente, com o desenvolvimento
do comércio, também a Coroa se beneficiaria com a quantidade crescente de imA
postos arrecadados. Ao que parece os autores do requerimento tiveram sucesso,
pois em 1841 a referida capela era elevada a paróquia, o que comprova o cresciA
mento do arraial. Segundo Barbosa, Nossa Senhora do Nazaré, «era lugar prósA
pero e com bastante comércio».320
A situação é distinta em Santana dos Ferros. Não resta dúvida que a mineração
explica o enorme afluxo de aventureiros às margens deste ou daquele rio. Nos
núcleos mineradores a capela não é causa, mas sim conseqüência deste moviA
mento. Além do mais, ela não pode sequer ser tomada como indício seguro de
«sedentarização». A formação de uma multidão não implica necessariamente fiA
xação, o estabelecimento de um senso de coletividade, de comunidade. As mulA
tidões são agregados demasiado voláteis, ajuntamAse tão rapidamente quanto se
dispersam. Que o templo, ou antes, os sentimentos religiosos que ele representa
no plano material, nem sempre eram capazes de sobrepujar a tendência à instabiA
lidade típica destes agregados humanos, demonstramAno os casos de capelas e arA
raiais abandonados em virtude da queda da produção aurífera, à dificuldade de
abastecimento ou à insegurança.
Ao lado do problema propriamente sociológico, há o espacial. O sistema de
concessão de terrenos para a mineração (as datas) tendia a diluir a ocupação do
sítio, já que os mesmos se localizavam normalmente ao longo dos cursos d’água.
Murillo Marx afirma que, respeitadas as limitações impostas por este sistema, não
haveria espaço disponível para levantar a povoação. Ao seu ver é nas terras perA
tencentes às capelas (nos patrimônios) que este espaço «público» originalmente se
formava.321
Marx incide em pelo menos um sério erro metodológico ao analisar conjuntaA
mente arraiais mineradores e arraiais originados em patrimônios religiosos. A
solução para o problema do espaço a ser ocupado pelo povoado não foi a mesma
nos dois casos. É preciso diferenciar os dois tipos de urbanogênese, uma vez que
eles têm um caráter distinto. Para resumir as diferenças entre estes tipos no que
eles têm talvez de fundamental, podeAse afirmar que enquanto o arraial baseado
na mineração tem a sua capela, nos inúmeros embriões de cidade com que nos
ocupamos neste estudo dáAse algo inverso e sem dúvida original: é a capela que
«tem» um arraial.
Uma ressalva que se poderia fazer ao importante trabalho de Cláudia Fonseca
sobre a evolução do espaço cultural de Mariana é a sua incorporação do modelo
de Marx. Os próprios mapas por ela reproduzidos mostram que a primeira onda
de ocupações dos terrenos nos arraiais mineradores tendia a espalharAse às marA

320 DHGMG, p. 218.


321 Marx, Murillo. «Arraiais mineiros: relendo Sylvio de Vasconcellos». In: Barroco
(15) 1992: 389A393.
145

gens dos córregos.322 Nas datas, portanto, e não ao redor das primeiras capelas.
Diogo de Vasconcellos foi bastante claro a respeito: «O chão, as casas, as benfeiA
torias compreenderamAse nestas datas».323 ComprovaAo ainda o caso de São João
delARei, e isso quatro anos após a criação da vila, onde os mineiros ainda têm
quase todas as casas de palha, e umas mui separadas das outras e junta
mente pelas lavras de ouro, que ficam tão perto delas, que hoje se fazem,
amanhã as botam em terra para trabalhar.324
No que diz respeito à ocupação do solo, não se deve ignorar o fato de que havia
pelo menos uma alternativa para a multidão de aventureiros recémAchegados às
minas. As margens das estradas e dos cursos d’água não podiam ser apropriados
por particulares; o detentor de uma data ou sesmaria não tinha como vedar o
acesso a estes espaços tidos como públicos.325 Tudo indica – e o caso de Mariana
pareceAnos exemplar – que a ocupação irregular destes terrenos garantiu um chão
a boa parte dos pioneiros antes mesmo da formação das vilas.326
Se nosso interesse está centrado no papel «urbanizador» exercido pela religião,
em todo o caso é essencial perceber que existiram modelos alternativos e mesmo
concorrentes de protoAurbanização. Deixemos de lado, momentaneamente, o arA
raial minerador e o tipo humano (o homo ludens) que ele espelha. É hora de nos
debruçarmos sobre a questão dos patrimônios a fim de entender como e onde se
formavam os outros arraiais de Minas.

3.3.1 Patrimônio
Logo nas primeiras linhas de sua obra sobre a história de Sabará, Zoroastro PasA
sos escreve que «o alto espírito de religiosidade portuguesa adotava, como norma
invariável de conduta nas suas descobertas, ter, como núcleo da povoação que se
devia formar, uma capela. Em torno dessa capela (...) se iam construindo as moA

322 Fonseca, «O espaço urbano de Mariana», pp. 57A59.


323 Vasconcellos, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: ImA
prensa Oficial, 1904, p. 108.
324 «Diário da jornada... », p. 313.
325 Porto, Costa. O sistema sesmarial no Brasil. Brasília: Edunb, s/d (1965), pp. 122A
123.
326 A respeito de Mariana, diz Vasconcellos (História antiga..., p. 392) que «a conseA
qüência do concurso de adventícios assim atraídos [pelo ouro] não se fez esperar.
Os antigos moradores recompuzeram suas casas abandonadas no primitivo assento,
e os recémAchegados derramaramAse pela margem do rio, invadindo sem respeito
nem considerações as terras por Antônio Pereira compradas a Manoel da Cunha».
Todavia sua afirmativa de que o povoado tornou a crescer em torno da capela de
Nossa Sra. da Conceição não é confirmada pelos mapas reproduzidos por DamasA
ceno. O que sugere fortemente (como demonstram diversos casos que ainda tereA
mos a oportunidade de analisar) que o patrimônio das duas primeiras capelas de
Mariana não fora constituído em terras, mas em dinheiro.
146

radas de que a capela cobrava foros».327 Assim, conclui ele, a história das capelas
permitiria conhecer a história de nossas cidades. O que é certo, até certo ponto.
Porque a pergunta seguinte naturalmente é a de saber por que se deveriam pagar
foros a uma capela.
Isso ocorria pelo fato de que o terreno sobre o qual se levantavam as casas
pertencia ao templo, ou antes, era «patrimônio do santo».328 Os geógrafos perceA
beram que era preciso identificar a origem deste chão em que surgia o arraial. A
eles devemos a descoberta da importância dos patrimônios enquanto espaço priA
mordial onde se formou uma parcela significativa dos embriões de cidades brasiA
leiros.
As Constituições do Arcebispado da Bahia determinavam que todo templo que
se quisesse edificar deveria ser dotado de uma renda mínima capaz de garantir
sua conservação. Tal quantia era estipulada em 6.000 réis anuais.329 Este «fundo»
era o patrimônio da capela. Porém, e na maioria dos casos, prevaleceu uma outra
modalidade: a doação de uma porção de terra (igualmente chamada patrimônio)
«ao santo». Via de regra, a capela era ali erigida. Quem pretendesse construir uma
casa no referido patrimônio estava obrigado a pagar uma taxa anual (foro) a um
administrador (fabriqueiro).330 Em tese, este sistema garantia a consecução dos
mesmos objetivos que a doação em dinheiro. O predomínio dos patrimônios em
terras demonstra que os doadores estavam certos de que em torno da capela surgiA
riam casas. Do contrário é difícil imaginar que a autoridade eclesiástica aceitasse
tal prática.
PercebeAse que a separação entre patrimônio e templo é artificial, já que um
existe em função do outro. Apenas por razões de ordem puramente metodológica
é que nossa análise momentaneamente procede a esta separação. TrataAse de veriA
ficar em que medida a incorporação pela historiografia dos avanços feitos nos
estudos de Moraes, Deffontaines, Monbeig e Azevedo331 nos fornece um meio
privilegiado de compreender as íntimas relações entre religião e produção do esA
paço na história do Brasil.
Waldemar Barbosa pode ser considerado o único historiador que se debruçou
com seriedade sobre este tema, e praticamente todos os verbetes do seu Dicioná

327 Passos, Zoroastro Vianna. Em torno da história de Sabará. Rio de Janeiro, 1940, p. 1.
328 Dorn observa que desde a Antigüidade tardia o santo escolhido para orago dos
mosteiros ou capelas era considerado o legítimo «proprietário » dos mesmos. Dorn,
Johann. «Beiträge zur Patrozinienforschung». In: AfKG (13) 1917: 9A49, p. 36.
329 CAB, livro IV, título XIX, 692.
330 A cobrança de taxas àqueles desejosos de construir nas terras pertencentes a um
templo também era prática comum nos antigos povoados chineses. Weber, Ge
sammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 382.
331 Moraes, «Contribuição para a história do povoamento em São Paulo até fins do séA
culo XVIII» (1935); Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidaA
des» (1938); Monbeig, «O estudo geográfico das cidades » (1940); Monbeig, Pio
neiros e fazendeiros de São Paulo (1952); Azevedo, «Embriões de cidades brasileiA
ras» (1956).
147

rio dão prova da importância dos patrimônios. O que temos a fazer é aprofundar
este esforço, e isso num sentido qualitativo. Para tanto, é preciso enfocar a quesA
tão sob uma perspectiva ligeiramente distinta. Barbosa limitouAse a citar o nome
dos doadores, a data de constituição do patrimônio da primeira capela, e, quando
muito, a extensão do mesmo. Ele deixa de lado um tipo de documento que vimos
ser fundamental: os pedidos de provisão à autoridade eclesiástica ou civil. Tais
documentos geralmente dãoAnos um retrato da «préAhistória» do povoado, e perA
mitem às vezes visualizar se, além das motivações especificamente religiosas,
havia razões de ordem prática para se dar início a um arraial. Além disso, BarA
bosa peca ao nosso ver por desprezar a tradição oral. A Enciclopédia dos Municí
pios Brasileiros felizmente não se prendeu a este rigorismo objetivista. Seus
verbetes muitas vezes reproduzem sagas e mitos de origem que, evidentemente,
são para nós de grande interesse.
A dimensão dos patrimônios variava muito. Em São João Evangelista o patriA
mônio da capela media 2 alqueires (9,68 ha).332 Em Marliéria e Matipó, 3 alqueiA
res (14,4 ha). Em Pains e Estiva, respectivamente 12 e 14 ha. Em Mosenhor
Paulo, 60 alqueires (288 ha). Alguns eram enormes, como o doado à primitiva
capela de Alpinópolis: meia légua quadrada, ou seja, 1.905 ha. O de Campo FloA
rido tinha uma légua quadrada (3.810 ha).333 De forma geral, podeAse dizer que o
tamanho dos patrimônios tendia a variar na razão inversa do grau de ocupação e
povoamento de uma dada região. No Vale do Rio Doce e na Zona da Mata, seja
devido à topografia, seja por causa das densas florestas e da presença de tribos
indígenas hostis à presença do «civilizado», a ocupação do território não foi tão
simples quanto no oeste mineiro. Na comarca de Paracatu, apesar dos inúmeros
quilombos, o perfil geográfico favorecia uma ocupação mais «espalhada», e o taA
manho médio das propriedades – portanto dos patrimônios – sempre foi maior. As
doações eram feitas por indivíduos isolados, casais ou mesmo um conjunto de
moradores. Em Miraí nada menos que 53 pessoas adquiriram em 1852 uma parte
da fazenda de Salustiano José Fernandes a fim de constituir o patrimônio de uma
capela a ser erigida em honra a Santo Antônio.334 Casos como os de Andradas e
de Santo Antônio do Grama mostram ainda que doações iniciais de dimensões
consideradas insuficientes podiam ser complementadas por doações posteriores,
feitas por outros proprietários.335
A importância deste sistema de produção do espaço coletivo pode ser atestada
pelo fato de que a criação das vilas funcionava segundo o mesmo princípio. TamA
bém elas deveriam ter seu patrimônio. Este patrimônio fundiário era dividido em
duas partes. Uma, chamada logradouro público ou rossio, era reservada ao uso
comum dos habitantes, especialmente à pastagem de animais e à extração de maA

332 1 alqueire = 4,8 ha. 1 ha = 10.000 m².


333 EMB, vol. 27, p. 235; EMB, vol. 26, pp. 57, 70 e 239; EMB, vol. 25 p. 100;
AHCMG, p. 950; EMB, vol. 24 pp. 61A62 e 321.
334 EMB, vol. 26, p. 104.
335 DHGMG, p. 24; EMB, vol. 27, p. 176.
148

deira. A outra parte, destinada às novas edificações, era aforada a fim de dotar a
Câmara de recursos.336 O patrimônio da Câmara de Mariana media meia légua
quadrada, o da de Vila Rica uma, e o da de São João delARei duas léguas quadraA
das.337 Para que se tenha uma idéia da importância para a municipalidade dos terA
renos aforáveis, basta dizer que a cobrança de foros das casas perfazia, em 1777,
a segunda maior fonte de renda das Câmaras de Vila Rica, Mariana, Sabará e PiA
tangui, e a terceira da Câmara de São João delARei.338
Um útil documento para que se possa visualizar as fases iniciais deste processo
é o da constituição do patrimônio da Vila de Barbacena. Em 1792, ano seguinte à
sua elevação a vila, escrevia o então governador da Capitania de Minas, Visconde
de Barbacena: «(...) me foi apresentado que para o estabelecimento da mesma
vila, necessitam que eu, em nome de Sua Majestade, lhe concedesse uma légua
de terra em quadra, para seu patrimônio». O terreno da vila situavaAse na fazenda
da Caveira, que pertencera a nada mais nada menos que Joaquim Silvério dos
Reis e José Alves de Freitas Bello. Segundo o governador, «a dita fazenda fora
seqüestrada com os bens daqueles devedores fiscais». No ato da demarcação,
continua ele, «devem ser ouvidos os interessados e confrontantes, examinados
seus títulos, e acautelado todo o prejuízo injusto de terceiro». O patrimônio deA
verá ter «uma légua em quadra, fazendo pião na mesma vila onde mais conviniA
ente for, (...) a qual sesmaria ficará servindo de patrimônio e rendimento da dita
Câmara com os aforamentos que tiverem lugar na forma que serem concedidos
[sic]; e costumado a respeito das vilas mais velhas, e para logradouros e usos coA
muns dos seus moradores, com declaração porém que serão os ditos oficiais da
Câmara obrigados a demarcar judicialmente a referida sesmaria dentro em um
ano que se contará da data desta [17 de março], sendo para esse efeito notificados
os vizinhos interessados e ditos sesmeiros confrontantes (...) e não poderão [os
oficiais] por virtude dela proibir a repartição dos descobrimentos de terras e miA
nerais que no tal sítio hajam ou possam haver, nem os caminhos e serventias púA
blicas que houver (...) nem farão aforamento algum das terras desta sesmaria a
religiões, igrejas ou eclesiásticos, e acontecendo fazêAlos será com encargo de

336 A confusão que reina na literatura a respeito é grande. Tanto Caio Prado Júnior
(Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1957, pp. 314A315)
quanto Reis Filho (Evolução urbana do Brasil, pp. 112A113) e Marx (Cidade no
Brasil, p. 68) enganaramAse ao dizer que rossio e patrimônio da câmara são, basiA
camente, a mesma coisa. Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol.
XXVI, p. 265) lêAse que o rossio é um «terreno que era rocado ou usufruído em
comum pelo povo; logradouro público ». A bipartição do patrimônio das Câmaras
em terras comunais (o rossio) e terras aforáveis foi claramente demonstrada em
Porto, O sistema sesmarial no Brasil, pp. 128A129 e Ramos, A social history of
Ouro Preto, pp. 134A135.
337 CCM, p. 253; Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 134A135; AEAM, pasta
33, gaveta 2, arq. 1.
338 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», pp. 262A278.
149

pagarem delas dízimos como quaisquer seculares».339


A documentação sobre os patrimônios religiosos em que se formaram os arA
raiais setecentistas é rara. Pedidos de provisão aos bispos e «livros do tombo»
(que contém os dados referentes à história do templo) se perderam. Daí os pífios
resultados do esforço de Dom Viçoso em obter das freguesias do bispado de MaA
riana informações sobre os patrimônios das capelas e matrizes. O levantamento
fora feito a pedido da Presidência da Província, porque, como se sabe, sob o reA
gime de padroado, o Estado deveria concorrer financeiramente com a manutenA
ção dos templos. Era preciso saber se as capelas e igrejas dispunham de alguma
renda própria.
Em 13 de junho de 1851, praticamente um ano após o pedido da autoridade ciA
vil, Dom Viçoso entrega os resultados do levantamento em questão: das 65 matriA
zes listadas, somente umas poucas declaram ter patrimônio em terras. EvidenteA
mente todas tiveram algum tipo de patrimônio, já que do contrário elas sequer
poderiam ter sido oficialmente reconhecidas. Porém a esmagadora maioria não
tinha mais como comprováAlo. A precariedade do aparato eclesiástico e o estilo de
vida nômade tanto dos fiéis quanto dos sacerdotes seguramente contribuiu para
que pouca atenção fosse dada à importância de se preservar estes documentos a
partir das fases iniciais do século XVIII.
À época em que foi feito o referido levantamento, os dois terrenos do patrimôA
nio da matriz de Santa Rita do Turvo (atual Viçosa) se encontravam ocupados por
casas. Seus moradores pagavam ao fabriqueiro respectivamente 80 e 40 réis anuA
ais por braça [1 braça = 4,84 m²]. Na freguesia da Prata «tem a matriz terreno de
4 alqueires de planta, em que está edificado o arraial». Em São Sebastião dos
Correntes (atual Sabinópolis) a matriz detinha 2,5 alqueires. De Nepomuneco diz
o relatório que «a matriz tem por patrimônio o terreno em que está a vila, que terá
um quarto (cuido que quarto quer dizer = quarta parte de uma sesmaria), doado
por José Furtado de Mendonça». Em Conceição do Rio Verde o patrimônio da
matriz media 500 braças.340
Estes casos demonstram que em meados do século XIX ainda havia localidaA
des antigas nas quais a instituição dos patrimônios religiosos, bem ou mal, se
mantinha. As informações prestadas pelos vigários demonstram que algumas coA
munidades tinham plena consciência de que o arraial ou vila cresceu sobre terras
pertencentes à igreja. Esta consciência pode ser medida ainda por meio da corresA
pondência da Câmara de Passos ao Ministério dos Negócios do Império em 1857.
Aquela informa que «não possui terreno algum de seu patrimônio, e que o mesmo
em que se acha a Câmara e Cadeia edificada pertence, por doações de popula
res, ao patrimônio do Senhor Bom Jesus dos Passos, cuja possessão lhe foi conA
ferida segundo a regra estabelecida de concederAse posses para edificação de préA

339 AEAM, pasta 33, gaveta 2, arq. 1.


340 APM, SP, PP1/9, cx. 13, pasta 5. Grifos nossos.
150

dios particulares no território do patrimônio do Senhor dos Passos».341 VêAse que


nem sempre a criação de uma vila implicava na existência de um patrimônio da
Câmara. Mesmo 26 anos após sua elevação a vila, Diamantina não dispunha
ainda do seu. Numa carta datada de 28 de outubro de 1857, a Câmara explica que
«nenhumas terras formam o seu patrimônio neste município, pois que o decreto
de 13 de outubro de 1831 que elevou esta povoação à categoria de vila não as
concedeu (...). A área de que carece esta municipalidade deve ser de uma légua
quadrada de três mil braças a exemplo do que antigamente se praticava, a fim de
que a Câmara tenha cômodo para permitir as edificações, abertura de novas ruas,
praças e logradouros».342
Se a municipalidade não dispunha de terras próprias, em que chãos tinha ela se
formado? A resposta é óbvia: no patrimônio da primeira capela – posteriormente
elevada, na maioria dos casos, a matriz –, e isso mesmo quando não se dispunha
de documentos capazes de comprovar que o rossio se estabelecera sobre as «terA
ras do santo».

3.3.2 Capela e praça


A capela é o centro do arraial. Ela é o edifício mais imponente, orgulho dos moA
radores do lugar. Muito freqüentemente, é no terreno que lhe foi doado como paA
trimônio que erguemAse as primeiras casas, onde surge uma praça, onde pouco a
pouco delineiaAse o traçado das primeiras ruas. Esta configuração espacial básica
corresponde, por sua vez, a uma representação que acompanha a história das reliA
giões desde há muito: o templo constitui o eixo simbólico de uma povoação. Aí
se administram os «bens de salvação» sem os quais o cristão não pode viver nem
morrer em paz. Ele é a «casa de Deus»343, o espaço sagrado onde imanência e
transcendência se comunicam regularmente. Seu entorno, a praça, é o espaço de
socialização no qual os habitantes do arraial e os que vêm das redondezas travam
contato, fazem as festas do padroeiro e desfilam processionalmente. ReferindoAse
a Minas Gerais, SaintAHilaire afirmou que «na maioria dos povoados, as igrejas se
erguem isoladas e em praças públicas».344
O papel destas capelas enquanto locus privilegiado do catolicismo popular foi
pioneiramente ressaltado por Beozzo. Dizia ele: «muitos estudiosos do catoliA
cismo brasileiro deram a entender que o fundamental da religião do povo é uma
religião privatizada, entre o devoto e o seu santo, vivida no recôndito de sua casa
(...). PareceAnos um erro porém, pois mesmo a nível mais local a religião não se

341 APM, SCA657. Grifo nosso.


342 APM, SCA657.
343 Trecho de um dos cânticos entoados no ato de consagração de uma igreja: terribilis
est locus iste/ hic domus Dei est et porta coeli/ et vocabitur aula Dei. Citado por
Jungmann, Symbolik der Katholischen Kirche, pp. 61A62.
344 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., II, p. 83.
151

reduz simplesmente ao culto doméstico. (...) Para entender esta religião, não poA
demos buscar o seu cerne na matriz das vilas e cidades, com seu vigário e conA
ventos. Ela se enraíza longe da matriz, em torno de capelas, pequenas igrejas e
cruzeiros, mui raramente servidas por um padre.»345 Se as festas podem ser conA
sideradas os nódulos temporais em que a fé do povo periodicamente se «conA
densa», não resta dúvida que as capelas, muito mais freqüentemente que os santuA
ários, «foram o repositório apropriado para a religiosidade popular»346 dos antigos
mineiros.
Das primeiras rústicas capelas, feitas para durar tão pouco quanto as choças
dos bandeirantes, passouAse, num segundo momento, a erigir construções mais
estáveis. Sinal evidente de que os arraiais criavam raízes. UsavamAse então a maA
deira, o adobe, por vezes a pedra. Por si só, uma capela feita para durar não signiA
ficava que o instinto de segregação e as necessidades religiosas inevitavelmente
subjulgavam o habitus nômade, mas ela era sempre um primeiro passo.
Havia normas rígidas quanto à orientação do templo. Ele devia ser construído
de forma tal que «o sacerdote no altar fique com o rosto no oriente, e não poA
dendo ser, fique para o meio dia, mas nunca para o norte, nem para o ociA
dente».347 A fachada da capela deveria, portanto, ser voltada para o leste ou sul.
Como se pode notar, os pontos cardeais não eram percebidos como meras refeA
rências destituídas de valor. Para entendermos a razão disto, temos de insistir noA
vamente no seguinte aspecto: uma coisa é o espaço matemático representado (e,
em larga medida, construído) por uma visão racionalista do mundo; outra, bem
diferente, é o espaço vivido no cotidiano. Desde a Antigüidade o oriente é tido
como a direção sagrada por excelência. Do leste vem a luz, fonte de toda vida.
VerificaAse aqui uma lógica binária simples determinada pela associação primária
entre luz e sagrado. Se nos orientamos para o nascer do sol, o sul fica à nossa di
reita. É bem sabido como a valorização da direita em detrimento da esquerda é
um fenômeno presente num grande número de culturas.348 DefinemAse assim os
dois pólos positivos (leste e sul); e, por oposição, os negativos (oeste e norte). Já
presentes entre egípcios, gregos e romanos,349 estas representações foram incorA
poradas pelo cristianismo antigo –– com a associação do sul ao Espírito Santo, e
do norte à renúncia de Deus, da luz e da fé. A criança a ser batizada é voltada
para o ocidente, para renunciar ao diabo e suas obras (renuntiatio satanae), e enA

345 Beozzo, «Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada», p. 754.


346 TorresALodoño, Fernando. «Paróquia e comunidade na representação do sagrado na
Colônia». In: TorresALodoño, F. (org.) Paróquia e comunidade no Brasil. Pers
pectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997, p. 54.
347 CAB, livro IV, título XVII, 688.
348 O estudo clássico a respeito continua sendo o de Hertz, «Prééminence de la main
droite».
349 Müller, Werner. Die heilige Stadt. Roma quadrata, himmlisches Jerusalem und die
Mythe vom Weltnabel. Stuttgart: Kohlhammer, 1961, pp. 36A45; Deffontaines,
Géographie et religions, p. 82; Tuan, Espaço e lugar, pp. 106A108.
152

tão voltada para o leste, a região do paraíso, a fim de abraçar a crença em


Cristo.350
As melhores descrições dos arraiais mineiros foram feitas pelos viajantes na
primeira metade do século XIX. O padrão básico de organização espacial destas
formas elementares de espaço urbano fica evidente quando se passam em revista
alguns exemplos. No Arraial de Formigas (atual Montes Claros), SaintAHilaire
observa que «a maioria das casas é construída ao redor de uma praça irregular que
forma um quadrilátero alongado, e, por sua extensão, seria digna das maiores ciA
dades. (...) A igreja está situada no fundo da praça (...). Além da praça de que
acabo de falar, há ainda em Formigas algumas ruas paralelas a dois dos lados da
própria praça. As casas são quase todas pequenas, baixas e cobertas de telhas.
Três ou quatro têm sobrado; algumas são construídas de adobes, as outras de
barro e varas cruzadas. (...) VêemAse na povoação uma hospedaria, várias vendas,
e enfim, algumas lojas em que se vendem fazendas e quinquilharias».351 Tapera,
por sua vez, resumiaAse a cerca de 70 moradas destribuídas ao longo de «uma só
rua, à extremidade da qual fica a igreja».352 O pequeno arraial de Santo Antônio
compreendia «apenas um pequeno número de casas em mau estado (...). A vista
da parte da aldeia onde se encontra a igreja é muito agradável. Esse edifício foi
construído à beira de um rio, em uma pequena praça coberta de grama e cercada
de morros. As casas são esparsas, cá e lá, ao redor da praça».353 Cataguases, que
no tempo em que por ali passou Burmeister ainda se chamava Santa Rita de Meia
Pataca, formava «um retângulo em cujo meio se encontra uma igreja (...). As caA
sas eram todas de aspecto agradável e emolduradas por faixas brancas de cal. HaA
via, pelo menos, umas 30, inclusive uma farmácia na grande praça onde estava a
igreja».354 O mesmo viajante descreve ainda sua rápida passagem por Ouro
Branco: «Logo ao sair da estrada de acesso, entramos numa grande praça aberta,
onde encontramos a igreja e alguns dos melhores sobrados. Atravessando esta
praça, entramos, do outro lado, na continuação da estrada, marginada por mais
casas e que leva para fora da localidade. Na praça, há, ainda, num belo grupo de
macaúbas, um crucifixo.»355 Por vezes a configuração do sítio inviabilizava o
desenvolvimento da praça ao redor da igreja, como em Oliveira: «O Arraial de
Nossa Senhora da Oliveira consta de umas 200 choupanas de barro, que formam
uma rua única, larga, inteiramente escavada pelas chuvas, e fica sobre uma coA
lina, cujo topo é ornado por uma igreja não concluída.»356 As cerca de 80 casas
que formavam Bonfim (hoje Bocaiúva) formavam «uma grande praça e uma larga

350 Jungmann, Symbolik der Katholischen Kirche, pp. 57A58; Cassirer, Philosophie der
symbolischen Formen, 2. Band, p. 126.
351 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 290A291.
352 SaintAHilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes..., p. 74.
353 Idem, ibidem, p. 141.
354 Burmeister, Viagem ao Brasil, p. 169.
355 Idem, ibidem, p. 271.
356 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. I, p. 219.
153

rua e ficam situadas na encosta de uma grande colina. No meio da praça achaAse a
igreja bastante grande, com duas torres baixas».357 Em Barreiras (Carbonita) haA
via algo em torno de quarenta fogos, que «formam uma rua que se estende rio
acima, na direção de oeste para leste e se abre, no alto, numa praça bastante
grande, em cujo centro se acha a igreja ainda não inteiramente construída do
Santíssimo Coração de Jesus».358 Em Camargos havia aproximadamente 60 moA
radas «mal construídas e muito mal conservadas, distribuídas numa rua torta, em
solo muito desigual. O melhor edifício do lugar é a igreja, construída de pedra e
que fica numa elevação a que conduz uma larga escada, na qual se acha um
grande cruzeiro de pedra sabão.»359
Após uma apreciação ligeira dos relatos dos viajantes seríamos tentados a crer
que todo arraial tinha a sua capela ou igreja; porém o estudo da relação entre pa
trimônio religioso e proto urbanização demonstra que, para um número não des
prezível de casos, o contrário parece estar mais próximo da verdade. É a capela
que «tem» um arraial.
Dom Frei José da Santíssima Trindade foi aliás explícito a esse respeito, como
demonstram os casos de diversos templos do arcebispado de Mariana por ele ciA
tados em seu livro de visitas pastorais: a capela de Santo Amaro do Brumado,
filial da freguesia de Santa Bárbara («no arraial da capela...»); a capela de Nossa
Senhora do Rosário da Itabira, na mesma freguesia («tem arraial público e popuA
loso»); a freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Congonhas de Sabará («no
arraial da matriz...»); em Conceição do Airuoca («a igreja matriz... tem pequeno
arraial»); a capela do Carmo em Pouso Alto («está a capela em bom lugar com
seu arraial vistoso»); a capela dos Santíssimos Corações do Rio Verde, filial da
matriz de Campanha («esta capela é de madeira e está colocada em bom local,
com seu arraial que se vai povoando»); a freguesia de Nossa Senhora das Dores
(«a igreja é de madeira e pequena... Tem bom adro e bom arraial»).360 A gênese de
Ubá foi praticamente antecipada por Dom Frei José, que escreveu ainda: «A
capela do Ubá está por acabar e tem uma boa imagem de São Januário, bispo e
mártir; o seu local é muito melhor que o da igreja matriz e com proporções para
se fazer um bonito arraial». O mesmo vale para a capela de Santa Rita, filial do
Pomba. TrataAse do embrião da atual cidade de Viçosa: «[a capela] está em um
bom local erigida e pode ter um bonito arraial, fazendoAlhe os moradores e freA
gueses suas casas, o que ficou providenciado».361
Um dos aspectos mais interessantes do padrão de organização espacial dos
nossos antigos povoados diz respeito aos seus limites. Se a capela é o centro simA
bólico do arraial, e o patrimônio no qual ela está construída pode ser definido
como um espaço sagrado sobre o qual se desenvolve o embrião de cidade, como

357 Idem, ibidem, vol. II, p. 286.


358 Idem, ibidem, vol. II, pp. 292A293.
359 Idem, ibidem, vol. II, p. 386.
360 Trindade, Visitas pastorais (1821 1825), pp. 107A108, 119, 203, 211, 222 e 272.
361 Idem, ibidem, pp. 170 e 174. Grifos nossos.
154

o homem mineiro dos séculos XVIII e XIX concebe a fronteira além da qual o
espaço deixa de manifestar este caráter numinoso? Não houve em Minas arraiais
cercados por muros ou paliçadas. Paliçadas ou muros, que no plano estritamente
funcional visam garantir a segurança dos moradores, adquirem no plano simbóA
licoAreligioso uma dimensão fundamental: eles impedem que substâncias ou pesA
soas de qualidade distintas se misturem. A dimensão sagrada da muralha fica
evidente quando se sabe que inúmeras vezes ela só é considerada concluída após
a realização de um rito de construção.362 Diz o mito da criação de Roma que
Rômulo, após fundar o mundus e erigir o altar, traçou o sulco que definia os liA
mites da cidade. Sobre o mesmo se construíram as muralhas sagradas (ninguém
podia tocáAlas sem a permissão dos sacerdotes). Na China o caminho é oposto. A
construção da cidade começa pelas muralhas sagradas; só depois é erigido o temA
plo dos antepassados. Ambas, a cidade chinesa e a romana, são pensadas simultaA
neamente a partir do centro irradiador e de um nítido limite em relação ao espaço
exterior.
Ora, no patrimônio religioso encontramos apenas o ponto de rotação central –
a capela. Daí que mais de uma vez se tenha observado que o povoado brasileiro
não estabelece uma demarcação nítida em relação ao mundo «lá fora», ou de que
ele seria uma mera «extensão do campo». Caio Prado Júnior afirmou em Forma
ção do Brasil contemporâneo que nossos antigos centros urbanos eram um mero
«apêndice rural, um puro reflexo do campo».363 Um amplo levantamento geográA
fico do Vale do Jequitinhonha chegou à conclusão de que «senteAse mais a preA
sença da atividade agrária, na paisagem das cidades, que os reflexos de funções
urbanas no meio rural. (...) Por tudo isso, as cidades são um prolongamento do
campo».364 Leloup constata o mesmo: «fora de uma pequena zona central, o asA
pecto da cidade é muito pouco ‹urbano›».365
Evidente que o arraial – este espaço nãoAracionalizado de convívio gerado peA
las necessidades econômicas, religiosas e lúdicas de um grupo de vizinhança –
não se diferenciava de forma radical do «campo», e a ausência de um muro sem
dúvida contribuiu para isso. Tal como nos bairros rurais paulistas, o espaço do arA
raial «tende a parecer ‹difuso›, sem contornos precisos».366 PodeAse dizer que a
percepção de uma rígida dicotomia cidadeAcampo é muito mais expressão de uma
visão racionalista do espaço que um fenômeno que possa ser observado no uniA
verso mental da maioria dos mineiros do setecentos e oitocentos.367 O que gostaA

362 Sartori, «Ueber das Bauopfer »; Eliade, Die Religionen und das Heilige, p. 420;
Eliade, The sacred and the profane, p. 49.
363 Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo, p. 290.
364 Guimarães, Alisson (coord.) Estudo geográfico do Vale do Jequitinhonha. Belo
Horizonte: Grupo de Trabalho para a Pecuária, 1960, p. 86.
365 Leloup, Les villes du Minas Gerais, p. 35.
366 Pereira de Queiróz, M. I. «O sitiante tradicional e a percepção do espaço». In:
RIEB (15) 1974: 79A96, p. 90.
367 Para uma crítica do esquematismo cidadeAcampo, ver Baroja, Júlio Caro. «La ciuA
155

ríamos de ressaltar é que entre o espaço sagrado do complexo capelaApatrimônioA


arraial e o espaço «profano» que o circunda não parece haver ruptura, mas sim
uma certa continuidade: uma semantização que obedece a um critério de progresA
sividade, não de cortes. Este continuum muito provavelmente expressa no plano
espacial aquela inexistência de fronteiras claras entre sagrado e «profano» que
vimos ser típica do catolicismo popular.
Tal critério de progressividade se observa no próprio espaço sagrado. Este poA
deria ser graficamente representado por três círculos concêntricos no interior dos
quais se situa a capela. Ao seu redor, o adro, e, no entorno do mesmo, o patrimôA
nio. Obviamente não há como «medir» estes distintos níveis de sacralidade, mas
não é difícil demonstrar que estas diferenças existem.368 Uma evidência de que o
templo constitui o foco a partir do qual o numinoso gradativamente diminui de
«intensidade» é a existência do direito de asilo. Segundo as Constituições do ArA
cebispado da Bahia, «para os delinqüentes gozarem da imunidade da igreja, basta
que se peguem aos ferrolhos das portas das igrejas, capelas, ou ermidas, ou se enA
costem a elas, ou às paredes, ou se recolham debaixo dos alpendres contíguos
com as ditas igrejas, capelas ou ermidas».369 O simples contato com a parte física
de uma capela ou igreja põe instantaneamente a salvo qualquer espécie de malA
feitor. Os adros não são dotados da mesma força, mas também são espaços sagraA
dos. As mesmas Constituições determinam que neles «não se façam feiras, poA
nham tendas, nem se compre, e venda, ou apregoe coisa alguma».370 O comércio
e outras atividades profanas não podem realizarAse sobre um chão sagrado. Pode
ainda acontecer de esta interdição ser extendida a todo o patrimônio (embora a
legislação eclesiástica nada diga a respeito), conforme demonstra o importante
exemplo de Itaipava nas primeiras décadas do século XX:
«Anos atrás demoliuAse uma das igrejas da cidade. No mesmo local a CâA
mara construiu o Mercado Municipal que antes funcionava no Largo da MaA
triz. Foi o golpe de morte nessa feira bastante concorrida. O mercado foi
construído em ‹terras da santa› [Nossa Senhora dos Remédios], local sagrado
que não podia ser profanado por um edifício destinado a objetivos alheios ao
culto. Temendo desagradar a Santa, os homens da roça deixaram de concorA
rer ao novo mercado que até hoje continua ‹morto›, embora uma geração já
houvesse passado desde que ocorreu a substituição. Quando, há mais de 25

dad y el campo, o una discusión sobre viejos lugares comunes». In: RDTP (15)
1959: 381A400, p. 387; e Tuan, Topofilia, p. 125.
368 Ver Leach, Edmund. Cultura e comunicação. A lógica pela qual os símbolos estão
ligados. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pp. 104A105.
369 CAB, livro IV, título XXXII, 751. É interessante notar que a desclericalização em
algumas sociedades contemporâneas chegou a um ponto tal que mesmo uma instiA
tuição milenar como esta seja considerada hoje anacrônica e mesmo ilegal. Para
um jornalista do Frankfurter Allgemeine Zeitung, «‹O direito de asilo› é uma infraA
ção da lei, e todos os envolvidos o sabem». Pergande, Frank. «Ein zu großer NaA
me». In: FAZ, 12.09.2001.
370 CAB, livro IV, título XXIX, 738.
156

anos, se construíra o Grupo Escolar em terra de São Benedito, alguns moraA


dores recusaramAse, a princípio, a mandar os filhos à escola, pois assim, na
opinião deles, teriam participado de uma profanação. Nenhum mal, porém, se
vê em construir casa de moradia num local pertencente à igreja.»371
O mercado, que Weber acreditava ser um dos elementos estruturais do espaço urA
bano, não teve entre nós a mesma importância que na Europa. A socialização e a
produção do espaço estavam, possivelmente para a maioria dos casos, mais ligaA
das à função religiosa que à econômica. Não é por outra razão que os viajantes
falamAnos sempre de «vendas», mas nunca de «mercados» em nossos arraiais. Por
outro lado, morar e mesmo entregarAse a atividades comerciais em casas não
contradiz a natureza sagrada do patrimônio do templo: há uma identidade proA
funda entre casa, capela e patrimônio.

3.3.3 Cemitério
Nas formas elementares do espaço urbano mineiro o espaço do cemitério freA
qüentemente se confundia com o da capela. A casa de Deus era, simultaneamente,
casa dos mortos. Quem entra nas antigas igrejas vê ainda nos assoalhos os
números das covas de membros das irmandades e beneméritos que contribuíram
para sua construção. Tal prática era considerada um «costume pio, antigo e louA
vável».372 Sucessivas tentativas de se coibíAla esbarraram na resignada resistência
popular,373 e isso a tal ponto que somente na segunda metade do século XIX o
sepultamento nos templos viria a ser formalmente proibido pelas autoridades imA
periais. Tal superposição demonstra que «os vivos e os mortos estão unidos em
Cristo e não podem ser separados pela morte».374
A existência do cemitério era tão vital quanto a da capela. A rigor, uma das
funções principais do adro é exatamente a de servir como campo santo. As norA
mas vigentes determinavam que «haverá no âmbito, e circunferência delas [das
capelas] adros, e cemitérios capazes para nelas se enterrarem os defuntos; os
quais adros serão demarcados por nosso provisor, ou vigárioAgeral».375 No ano de
1750, o ponto de rotação da povoação de Piranga tinha o seguinte aspecto: «Está
esta igreja [matriz de Nossa Senhora da Conceição] em um nobre terreiro, com o
cemitério à roda, no meio do arraial».376 Em outros núcleos formados no período
colonial, como Lavras Novas e Cocais, estes adrosAcemitérios ainda podem ser
vistos. Em fins do século XVIII, alguns moradores de Campanha pedem autoriA
zação para levantarem uma capela de Nossa Senhora das Dores «onde seja proA

371 Willems, Uma vila brasileira, p. 137. Grifo nosso.


372 CAB, livro IV, título LIII, 843.
373 Trindade, Cônego. Archidiocese de Mariana, vol. I, pp. 344A345.
374 Benz, Beschreibung des Christentums, pp. 91A92.
375 CAB, livro IV, título XVII, 688.
376 CCM, p. 258.
157

movido o seu culto (...) e onde possam enterrar os seus irmãos».377 Conhecedor
do sertão leste mineiro, Bernardo Guimarães também fez menção a estes espaços:
«a capelinha (...) tinha também junto a si o seu terreno sagrado, cercado de muro
de pedra, e com uma cruz no meio, e era ali, que os fazendeiros daqueles contorA
nos mandavam enterrar os seus defuntos».378 Num pedido de provisão feito em
1900, Maria Carlota, moradora da freguesia de São Gonçalo da Contagem, dá
conta que «tendo edificado uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Remédios
(...) e estando defendida por um muro bem construído ao redor e entregue ao
culto público, deseja aproveitar o espaço murado para um cemitério onde aspira
ser sepultada quando morrer».379
A autoridade eclesiástica dava ordens expressas para que adros e capelas fosA
sem cercados. LêAse num regimento de 1757 feito por Dom Frei Manoel da Cruz:
«Encomendamos muito aos ditos vigários da vara trabalhem todo o possível para
que os adros das igrejas estejam demarcados, e valados com cercas, e os cemitéA
rios com cruzes levantadas, não só para a reverência, mas também para evitar dúA
vidas sobre a imunidade [do terreno]».380 Dom Frei José, ao passar em 1824 pela
vila de Barbacena, fez a seguinte advertência: «recomendamos muito o cerco do
cemitério para que não se profane o lugar destinado para recolher os restos dos
fiéis, que em vida foram templos do Espírito Santo e por muitas vezes receberam
o sagrado corpo e sangue de Jesus Cristo nosso Redentor». Na capela de Nossa
Senhora das Mercês, filial de São Manuel do Pomba, o mesmo prelado ordena
que se faça o cemitério «ao redor da igreja ou, ao menos, interinamente, por deA
trás dela se faça um [cercado] de madeira de lei, com porta fechada e cruz». Ao
fabriqueiro da matriz de Conceição de Guarapiranga, manda ele «que, sem deA
mora, se proporcione terreno pela parte posterior da igreja para cemitério cercado
de muro de pedra, de altura suficiente, ou ao menos de medeira de lei, com porta
e cruz». Na capela do Espírito Santo, filial da freguesia de Nossa Senhora das DoA
res (atual Boa Esperança), o bispo de Mariana observa «a falta de cerco indispenA
sável do adro para não se profanar, como de fato está este lugar destinado para se
sepultarem os cadáveres dos fiéis, que pelos princípios bem sabidos deve ser saA
grado».381 Neste sentido, um caso que se poderia classificar de extremo é o dos
cemitérios clandestinos. Em relatório datado de 26 de outubro de 1838, o vigário
de Santa Rita do Turvo queixaAse de que «há dois cemitérios nesta freguesia; e
um na de Arrepiados [hoje Araponga] na extrema desta. Estes cemitérios estão no
mato sem formalidade alguma de lugar sagrado, e neles sepultaAse os corpos sem
no participarem para evadiremAse os seus donos de satisfazer os emolumentos

377 APM (AHU), cx. 149, doc. 64. O despacho do Conselho Ultramarino é datado em
3 de setembro de 1799.
378 Guimarães, Bernardo, «A filha do fazendeiro». In: Guimarães, B., História e tra
dições da província de Minas Gerais, p. 16.
379 AEABH, cx. 037.
380 AEDC, Livro do tombo de Aiuruoca (1730A1822).
381 Trindade, Visitas pastorais (1821 1825), pp. 198, 180, 183 e 272.
158

eclesiásticos».382
As visitas pastorais de Dom Frei José estão repletas de exemplos que atestam
como a população estava longe de ter as mesmas preocupações que a hierarquia
no que diz respeito à clara delimitação dos terrenos de adros e cemitérios.383 Que
as pessoas não estivessem preocupadas em estabelecer fronteiras claras entre o
eixo simbólico do arraial e os chãos à sua volta, só pode significar que no catoliA
cismo praticado pela maioria o sagrado não é percebido como uma realidade cuA
jos «limites» possam ser claramente (no caso: espacialmente) definidos. O patriA
mônio no qual situaAse capela e seu adro também é um espaço sagrado, de forma
que levantar muros ou cercas separando o «mais sagrado» do «menos sagrado» diA
ficilmente faz sentido no universo religioso popular. O que não quer dizer que os
antigos mineiros não tivessem consciência das gradações existentes, ou que eles
fossem indiferentes em relação à questão do seu local de sepultamento. Em abA
soluto. Apesar de possuírem uma capelinha, os moradores da parte oriental da
Serra da Canastra não obtiveram do vigário de Piũí permissão para enterrar ali
seus mortos. SaintAHilaire relata: «Como os brasileiros fazem muita questão de
ser enterrados em igrejas, (...) transportavamAse os corpos nas costas de homens,
da serra até a vila, e, para me servir da expressão do lavrador em cuja casa dorA
mira a duas léguas da cachoeira, os carregadores chegavam quase no mesmo esA
tado daqueles que levavam a enterrar».384 Como diz aquele personagem de Rosa,
um moribundo vitimado pela malária: «quando for a minha hora (...) quero ir mas
é pr’a o cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda é chão de Deus».385
O geógrafo Wilbur Zelinsky define o cemitério como uma espécie de «vestíA
bulo» da terra dos mortos, um ponto de interligação entre esta vida e o além.386
Ele divide com santuários e templos este status privilegiado de espaços onde
imanência e transcendência se tocam. No Québec, onde o padrão de protoAurbaA
nização foi em vários aspectos similar ao nosso, os povoados só eram tidos como
consolidados depois que o número de sepulturas do cemitério local superasse o
de habitantes.387 Em determinadas circunstâncias foi exatamente a «cidade dos
mortos» e não a «casa de Deus» o fator deflagrador da gênese urbana. Em Estrela
do Indaiá e em Guarani o cemitério antecedeu a ereção da primeira capela; do

382 AEAM, armário 24, cx. 3.


383 Trindade, Visitas pastorais, pp. 87, 106, 118, 119, 144, 177, 186, 211, 213, 221,
225, 233, 263, 297.
384 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, p. 179.
385 Rosa, «Sarapalha ». In: Sagarana, p. 123, grifo nosso. Basta dizer, a este respeito,
que a mais notória forma de punição post mortem aos suicidas consistia em impeA
dir o seu sepultamento em cemitérios. É o caso de Roberto e Paulina, protagonistas
da novela «A filha do fazendeiro », de Bernardo Guimarães (História e tradições...,
pp. 133A134).
386 Zelinsky, Wilbur. «Unearthly delights: cemetery names and the map of the changA
ing American afterworld». In: Lowenthal and Bowden (eds.), Geographies of the
mind, p. 173.
387 Deffontaines, «Wert und Grenzen der religiöse Erklärung...», p. 206.
159

que, aliás, os antigos topônimos dão prova («Cemitério da Estrela» e «Divino EsA
pírito Santo do Cemitério»). De Guiricema sabeAse algo mais. Em 1825 faleceu a
esposa do português José Lucas Pereira, que havia se estabelecido naquela região
da Zona da Mata. Após enterráAla, Pereira decidiu construir uma capela para
trasladar os restos para o interior do recinto sagrado. Assim se fez, e, uma vez
doado o patrimônio, cresceu o arraial. Em São Sebastião do Rio Preto, quando a
capela foi erigida, já havia diversas casas nas imediações de um cemitério que ali
fora construído em 1814. A antiga denominação de Virginópolis, «Nossa Senhora
do Patrocínio», adveio do cemitério feito por Félix Gomes de Brito em meados do
século XIX. No sítio hoje ocupado pela cidade de Água Boa, em meados do séA
culo XIX, teria ocorrido um assassinato. Como o cemitério mais próximo distava
dali duas léguas, resolveram os moradores enterrar o cadáver ao pé de uma árA
vore. A proprietária do terreno, Ana Felícia da Silva, decidiu mais tarde fazer um
cemitério no mesmo lugar, o qual foi bento por frei Bernardino do Lago Negro.
Pouco depois faziaAse a capela, e, ao seu redor, levantaramAse as primeiras casas.
Surgindo a idéia de fundar um arraial, Ana Felícia e seu marido, José Joaquim
Carneiro, doaram dois alqueires para patrimônio da capela. A partir de então,
formouAse Água Boa.388

3.3.4 As «vilas de domingo» existiram?


Tudo leva a crer que foi Deffontaines o responsável pela difusão da expressão
«vila de domingo». No seu estudo de 1938, escreve ele: «Às vezes a cidade não
tem vida senão nos dias de missa, nos domingos, durante as festas e sobretudo
durante a novena do santo padroeiro da aglomeração; durante a semana, a cidade
fica vazia, quase todas as casas estão fechadas, os habitantes retornam para as
suas fazendas; denominamAse tais aglomerações vilas de domingo. Em São Tomé
das Letras, no sul de Minas, o burgo fica completamente fechado durante a seA
mana».389 Em Géographie et religions, onde se encontra trecho quase idêntico ao
que se acaba de reproduzir, ele afirma que estas «pequenas aglomerações em
torno das igrejas ou capelas (...) levavam o expressivo nome de vilas do domin
go».390 A expressão volta a aparecer em 1956, em sua comunicação no Congresso
Internacional de Geografia.391
Povoações cuja única razão de ser é o culto religioso. Tal fenômeno verificouA
se na Minas antiga? E, se é esse o caso, correspondeu ele de fato ao termo emA
pregado por Deffontaines? É o que temos em mente verificar.

388 EMB, vol. 25, pp. 106, 201, 182; DHGMG, pp. 144A145, 147, 330, 370; AHCMG,
pp. 656A657.
a
389 Deffontaines, «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades», 2 parte, p. 299.
390 Deffontaines, Géographie et religions, p. 124.
391 Deffontaines, Pierre. «Le stade initial de la géographie urbaine est un stade reliA
gieux». In: XVIIIe Congrès International de Géographie. Rio de Janeiro, 1965
(tome III), pp. 163A166, p. 165.
160

Santana dos Ferros, de cuja origem já falamos, é um bom ponto de partida. Na


primeira década do século XIX, a situação daquele núcleo é a seguinte: «Hoje em
dia, à exceção de alguns faiscadores, ninguém mais trabalha [na mineração], e o
declínio total do arraial seria inevitável se a fertilidade das áreas vizinhas não tiA
vesse oferecido outro meio de subsistência. A maior parte dos moradores dedicaA
se agora à agricultura e vive aqui e acolá em propriedades dispersas, mas mantém
suas casas no arraial e utilizamAse delas nos dias de domingo e de festa, quando
vão à igreja. Fora esses dias estes lugares encontramAse completamente vaA
zios».392 Ferros era formado por cerca de 30 casas, mas o número de aplicados da
capela era bem mais elevado do que as dimensões do arraial permitiriam supor:
2.000 pessoas.
O exemplo comprova como, naquelas regiões onde as condições topográficas e
a qualidade dos solos eram favoráveis, processouAse uma rápida passagem da miA
neração à agricultura. Isso significou uma inevitável dispersão da população por
propriedades situadas, não raro, a léguas de distância do embrião urbano (razão
da desproporção entre o número de moradores das redondezas e a quantidade de
casas no arraial). O mundo da vida do homem oitocentista mineiro é sobretudo a
fazenda. Foi ela «o verdadeiro núcleo de ocupação humana e de povoamento».393
A principal força capaz de contrabalançar – não necesseriamente reverter –
esta tendência ao isolamento foi a religião. SaintAHilaire escreveu que nas proA
víncias centrais do Brasil, onde a povoação encontravaAse muito mais dispersa
que no litoral, o grande afastamento seja em relação aos templos seja em relação
a postos de abastecimento levava à construção de casas nas proximidades de uma
igreja. Estas moradas serviam de local de socialização e de descanso após a viaA
gem. Num segundo estágio, artífices e comerciantes se estabeleciam ali em busca
de clientes. «E é assim que se formam, na maioria, as povoações do interior que
não devem sua origem à presença do ouro», conclui.394 Mas o que são afinal as
assim chamadas «vilas de domingo»: antigos povoados mineradores decaídos cuja
vida só se mantém às custas da devoção popular ou, pelo contrário, embriões de
cidade em formação?

392 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 54.


393 Diégues Júnior, Manuel. «A ‹fazenda› como ambiente de relações étnicas e de culA
tura no Brasil». In: III Colóquio Internacional de Estudos Luso Brasileiros (Actas).
Lisboa, 1957, pp. 101A113, p. 105. Para Spix e Martius (op. cit., vol. I, p. 194) «o
costume de morar a maior parte do ano em fazendas distantes, fora dos lugares
habitados, domina em todo o Brasil». Ver também Holanda, Raízes do Brasil, pp.
57A60.
394 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 61. «Os lavradores passam a
vida nas fazendas e só vão à vila nos dias em que a missa é obrigatória. ForçandoA
os a se reunirem e comunicarem uns com os outros, o cumprimento das obrigações
religiosas os impede, talvez mais do que qualquer outra causa, de cair em um esA
tado próximo da vida selvagem». SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp.
121A122.
161

Por sorte o fenômeno destes núcleos que «pulsam» ao sabor dos cultos dominiA
cais e das festas religiosas chamou a atenção dos viajantes europeus, de forma
que seus relatos podem darAnos boas pistas para analisar este caso particularA
mente interessante de relação entre o sagrado e o espaço. A quase totalidade das
cidades citadas a seguir tiveram uma trajetória semelhante à de Santana dos FerA
ros.
No Vale do Jequitinhonha encontramos o maior número de casos, cuja descriA
ção devemos de forma especial a SaintAHilaire, que por ali passou em 1817.
Nossa Senhora da Penha (Penha de França) tinha então algo em torno de 50 caA
sas, das quais 18 dispunhamAse em torno de uma pequena praça no meio da qual
elevavaAse a capela. «As casas pertencem a agricultores, dos quais a maioria só
vem à povoação aos domingos, e, em grande parte, ficam fechadas durante os
dias úteis». São João Batista (Itamarandiba) compunhaAse de cerca de 60 casas.
Sua matriz «é grande, bem conservada, e elevaAse no meio de uma praça irregular
e mais ou menos elíptica, que se extende por um plano inclinado. As casas que,
na maior parte, rodeiam a praça, foram construídas recentemente (...). Vi em São
João ainda menos gente que em Penha. Colonos que habitam os trechos de matas
dos arredores são os proprietários de quase toda essa povoação, e ali não vão seA
não aos domingos, para ouvir missa». O mesmo verificaAse em Chapada, porém
nesta localidade a igreja não ocupa o centro da praça. Os «moradores», aproximaA
damente 500 pessoas, «só vêm à povoação aos domingos». O mesmo se dá em
Água Suja (Berilo), Piedade (Turmalina), e Bonfim (Bocaiúva). Em Araçuaí a
organização do espaço obedece ao mesmo padrão básico. Suas casas «formam
dois lados opostos de um quadrilátero alongado», enquanto que a capela «achaAse
colocada a uma distância aproximadamente igual das duas ordens de casas, e diA
ante dela existe um pequeno terraço rodeado por uma balaustrada de madeira.
Quase todas as casas de Araçuaí pertencem a lavradores que ali só vêm aos doA
mingos e dias de festa».395
No sul de Minas encontramos outros casos. Madre de Deus, continua SaintA
Hilaire, resumiaAse a 12 casas em torno de uma capela. «Todas, sem exceção, esA
tavam fechadas, e o meu tropeiro, José Mariano, que conhecia perfeitamente a
zona, disseAme que a maior parte não tinha habitantes a não ser quando algum
padre vinha de São João [delARei] celebrar missa na pequena igreja.» Em Oliveira
o fenômeno se repete: a maioria de suas casas «e mesmo das mais bonitas, só são
habitadas no domingo».396 São Tomé das Letras foi assim descrita por um autor
anônimo em fins do século XIX: «São Tomé é um arraial decadente (...), com 400
habitantes, aproximadamente sem indústria e sem vida própria. Um largo central
de fórmula retangular contém o cemitério e a igreja. Este largo é a parte mais imA
portante do arraial; outras ruas estreitas e pequenas correm paralelas aos lados

395 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 20, 32, 78, 211, 225, 287,
234A235.
396 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 90A91, 137.
162

deste retângulo. As casas de construção baixa pertencem na maior parte a fazenA


deiros da vizinhança, que só utilizamAse delas nos tempos de festas (...). Do lado
direito da igrejinha, que é limpa e de aspecto agradável, está o cemitério, formado
de uma área retangular cercada de um muro e cheia de terra.»397 Observemos
apenas que a afirmação relativa à «decadência» de São Tomé dificilmente corresA
ponde à realidade, pois nada de significativo na vida do povoado mudara décadas
mais tarde, quando ali esteve Deffontaines.
Na região dos Campos das Vertentes encontramos três casos. Em Tamanduá
(Itapecerica), vinte e oito anos após sua elevação a vila, os habitantes «são cultiA
vadores que só lá vão aos domingos e dias de festa, alguns mercadores, artífices,
e homens pobres que, aproveitandoAse da abundância de que se goza na região,
vão comer ora na casa de um, ora na casa de outro, e passam a vida na ociosiA
dade». Em Piũí, aproximadamente 60 casas dispunhamAse «à maneira de um Y
muito imperfeito». É numa das ruas, «extremamente larga», que se localiza a maA
triz. Os habitantes «passam a vida nas suas fazendas e sítios e só vêm à vila aos
domingos; por isso encontrei a maioria das suas casas fechadas».398 Eschwege
passa por Bambuí em 1816, e descreveAa como sendo «um pequeno lugar, paupérA
rimo, de 40 fogos, aproximadamente». As casas estão dispostas sem ordem, e esA
tão «sempre desabitadas, pois apenas em dias de festa é que os donos as utilizam,
já que moram durante o resto do ano nas fazendas».399
No Alto Paranaíba, sertão leste mineiro, encontramos novamente três localidaA
des em que o fenômeno se repete. Patrocínio tinha em 1819 cerca de 40 casas,
que, «dispostas em duas filas, formam uma praça alongada no meio da qual está
construída uma pequena capela, edificada, como as próprias casas, de madeira e
barro». Em Araxá, quinze anos após seu surgimento, viaAse «uma praça alongada,
muito larga e regular (...). A igreja está construída na extremidade mais elevada
da praça, e, conforme o uso geral, colocada a igual distância das duas ordens de
casas». As moradas situadas fora desta praça ficam dispersas «quase sem ordem».
Como nas demais povoações citadas, «durante os dias de trabalho a maior parte
das casas de Araxá ficam fechadas; seus proprietários não vêm aí senão aos doA
mingos». Em 1816, São Pedro de Alcântara (Ibiá) «possui apenas 12 casas, as
quais, exceto a do pároco, permanecem quase sempre desabitadas, com exceção
dos dias de festa».400
Nossos dois últimos exemplos situamAse na Zona da Mata. TendoAse formado
na última década do século XVIII, o Arraial das Mercês foi visitado em 1824 por

397 RAPM (IV) 1899, p. 506. O patrimônio da capela era composto, segundo corresA
pondência do vigário datada de 20 de fevereiro de 1870, de apólices da dívida púA
blica, «que dáAlhe a renda anual de 540 mil réis», e de 30 alqueires de terra. APM,
SP 1381.
398 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 141, 160A162.
399 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 92.
400 SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol. I, pp. 240, 226; Eschwege, Brasil, novo
mundo, p. 103.
163

Langsdorff. O cônsul russo atribuiu erradamente a origem de Mercês «ao acaso»,


e suas próprias palavras o demonstram: «Proprietários de terra abastados ajudaA
ram um padre a construir uma capela. Tão logo ela ficou pronta, eles acharam por
bem construir uma casa ou uma pousada nas proximidades da capela, a fim de
poderem assistir à missa e às festas da Igreja com mais conforto. Pouco a pouco,
vieram também vendeiros, sapateiros, alfaiates e donos de mercearias, de forma
que hoje, após 20 anos, existe ali uma aldeia» composta de «uma única rua e uma
linda praça aberta onde fica a capela».401 O Chapéu d’Uvas (Paula Lima), surgido
na primeira metade do setecentos, tinha 13 casas em torno da matriz em 1817.
Cinqüenta anos depois, Tschudi descreveAo como «um lugar melancólico» forA
mado por cerca de 40 casas: «Numa praça bastante desleixada está a capela (...).
Quase todo grande fazendeiro das redondezas construiu para si uma casa no
arraial [Dorf], a fim de trocarAse, quando aos domingos ele e sua família vêm a
cavalo para a missa».402
Do que foi visto até agora se deduz que há pelo menos quatro boas razões para
contestar a validade da expressão «vila de domingo». Primeiramente há que notar
que o termo é, em si mesmo, um equívoco. As casas do povoado são utilizadas
nos dias de culto e de festas importantes, e não apenas nos domingos. Por outro
lado, só uma pequena parte dos povoados dos quais falamos eram efetivamente
«vilas»; a grande maioria é composta de arraiais. Uma terceira razão diz respeito à
afirmação de Deffontaines de que durante a semana o núcleo fica «vazio» pois
«quase todas as casas ficam fechadas». Este quase vale um mundo. Há um
pequeno contingente de pessoas que ali vive permanentemente. SaintAHilaire é
claro: «a população permanente das povoações é, em geral, composta quase toda
de homens de cor, tendeiros e artesãos». Em Penha este grupo citadino – se nos é
permitido o uso da expressão – compõeAse de «homens de cor, pobres, ignorantes
e ociosos». Os que ficam em Araxá durante a semana, continua ele, «são artífices
(...), homens sem ocupação, alguns mercadores e mulheres públicas».403 Grupos
de perfil sócioAeconômico claramente definido e que de forma alguma podem ser
considerados de importância secundária na dinâmica do embrião urbano. Por fim,
seja dito também que a expressão «vila de domingo» não aparece em nenhum dos
documentos que utilizamos. Pode ser que Deffontaines tenha ouvidoAa em algum
dos seus trabalhos de campo ou mesmo em São Tomé das Letras, à qual sempre
se refere. Mas isso não resolve nosso problema.
Talvez estaremos mais próximos de uma solução da questão se optarmos por
falar em «movimento pendular semanal».404 O caráter cíclico do deslocamento
entre a morada do diaAaAdia e a morada ritual fica assim melhor caracterizado,

401 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 64.


402 Costa, Toponímia de Minas Gerais, p. 328; Pohl, Viagem ao interior do Brasil, vol.
I, p. 192; Tschudi, Reisen durch Südamerika, 1. Band, pp. 264A265.
403 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 270; vol. II, p. 21; SaintAHilaire,
Viagem às nascentes..., vol. I, p. 226.
404 Estamos em débito, aqui, com o Prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorin Filho.
164

com a vantagem de não fazer menção a um dia específico da semana. A periodiA


cidade da ida a (e da estadia temporária em) um espaço sagrado lembra em tudo a
lógica das romarias. DirAseAia apenas que, ao contrário destas, o deslocamento da
fazenda rumo ao templo não é percebido como dotado da mesma potência regeA
neradora, não implica numa passagem a um plano tão radicalmente extraAcotidiA
ano – em suma: o movimento pendular semanal de tipo religioso pode ser consiA
derado uma «miniAperegrinação». O que buscam os fazendeiros e suas famílias ao
dirigiremAse para suas casas no arraial não é, afinal, algo tão diferente do que
buscam os romeiros em seu santuário. Não apenas os «bens de salvação», mas
também uma superação do cotidiano que implica, necessariamente, numa
superação do espaço do cotidiano. Como se deste modo eles pudessem dizer para
si mesmos o que diz aquele personagem de Guimarães Rosa: «Eu avistava as noA
vas estradas, diversidade de terras. Se amanhecia num lugar, se ia à noite noutro,
tudo o que podia ser ranço ou discórdia consigo restava para trás».405

3.4 Sertão
O sertão é a mais interessante categoria espacial do Brasil dos séculos XVIIIA
XIX. O sertão transpira ameaça e mistério; espaço polissêmico em que as noções
de fronteira, esconderijo e deserto se confundem. É verdade que ele pode ser conA
siderado, e ainda o é, uma categoria geográfica. O que não significa que seja posA
sível reduzíAlo a um espaço fixo, claramente delimitado. Se existe uma forma de
contempláAlo numa perspectiva próxima da que dele tinham os mineiros antigos,
esta certamente não será a do formalismo racionalista, mas sim algo que se aproA
xime daquela «geografia mítica» que propunha Cassirer.
Foram poucos os historiadores que se detiveram sobre este tema, a despeito do
«retorno do espaço» à agenda das ciências humanas nos anos recentes. A força da
perspectiva formalista é exemplificada pelo estudo de história regional de MataA
Machado406 sobre o sertão noroeste de Minas Gerais e pelo amplo balanço feito
por Emanuel Araújo. Um importante salto qualitativo deuAse com os estudos de
Carrara, que aborda o sertão não apenas enquanto espaço econômico e social,
mas também como uma das «categorias primeiras da percepção geográfica» dos
antigos mineiros.407 Porém, ao se ocupar com o sentido da palavra sertão, CarA
rara não destoa das definições correntes. Para ele foi a baixa densidade demográA
fica «a característica dominante» da percepção sobre o sertão nos dois primeiros
séculos da história de Minas408, tal como para Araújo a idéia de «grandes vazios

405 Rosa, Grande sertão, p. 124.


406 MataAMachado, Bernardo. História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690
1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.
407 Carrara, Ângelo Alves. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais
(1674 1807). Tese de doutorado, UFRJ, 1997, p. 149.
408 Carrara, «O ‹sertão› no espaço econômico da mineração», p. 43.
165

incultos e desabitados aparece como um dos elementos definidores da noção de


‹sertão›».409
Vejamos o que disseram os europeus a respeito. Para Eschwege, «dáAse o nome
de sertões às regiões onde pouca ou quase nenhuma civilização foi introduzida,
por conseguinte, aos espaços quase ou totalmente desabitados».410 Segundo
SaintAHilaire a palavra sertão designa «uma espécie de divisão vaga e convencioA
nal determinada pela natureza do território e, principalmente, pela escassez de
população».411 Spix e Martius encontravamAse próximos de Montes Claros
quando anotaram o seguinte: «achamoAnos agora no sertão, como denominam os
mineiros a vastidão deserta, na sua linguagem usual».412 Burmeister se expressa
nestes termos: «O sertão é para o brasileiro o que o ‹farAwest›, além de Ohio, é
para o norteAamericano. A terra incógnita é por ele (...) considerada um deserto
árido e abandonado, para o qual somente iria em caso de extrema necessidade. O
que de lá vem nada significa e quem lá mora não se pode considerar verdadei
ramente mineiro».413 Todavia Langsdorff, ao passar pela região de Curvelo, dáA
nos uma visão distinta: «O sertão (interior) não é tão deserto e agreste como desA
creveu St. Hilaire. Já estamos no sertão, e ainda é uma região fértil e habitada».414
Será mesmo a baixa densidade populacional o critério fundamental de definição
do sertão? Talvez algumas indicações a respeito da «localização» dos sertões e o
perfil de seus moradores ajudemAnos a esclarecer a questão.
Durante o século XVIII e boa parte do XIX, o sertão está um pouco por toda a
parte: rumo sudoeste, a partir de Formiga; a oeste, toda a comarca de Paracatu;
praticamente todo o Vale do São Francisco; no meioAnorte, a partir de localidades
como Lagoa Santa, Pompéu e Curvelo; mesmo a leste, nas densas matas do Vale
do Rio Doce; e sudeste, uma boa porção da Zona da Mata. Isso explica por que o
termo «sertão» vinha normalmente acompanhado de um outro, especificandoAo
segundo peculiaridades topográficas, divisões administrativas, etc. Este sertão
genérico de que falam a maior parte dos viajantes não reflete, como bem insiste
Carrara, a «pluralidade e variedade» com que a categoria era concebida na Minas
da época.415 Relacionado a este aspecto, há um outro fator complicador. O sertão
é um espaço fluido, sem fronteiras claramente definidas. Estas fronteiras – e conA
seqüentemente: a «localização» do sertão – podem variar tanto ao sabor das conA
cepções espaciais (Raumauffassungen) de um grupo social específico quanto,
historicamente, em função das transformações impostas à paisagem. SaintAHilaire
diz ter encontrado no sertão de Paracatu um casal que tinha «a mesma vaidade de

409 Araújo, «Tão vasto, tão ermo, tão longe. O sertão e o sertanejo nos tempos coloniA
ais», p. 80.
410 Eschwege, Journal von Brasilien, 1. Band, p. 10.
411 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 247A248.
412 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 65.
413 Burmeister, Viagem ao Brasil..., p. 224. Grifo nosso.
414 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 220.
415 Carrara, «O ‹sertão› no espaço econômico da mineração», p. 42.
166

julgar que esta zona não pertencia ao sertão; o deserto, diziam, só começa além
de certas monhanhas que se encontram entre esta região e o São Francisco».416 O
caráter relativo da categoria pode ser claramente observado no caso de Itaipava.
Após o declínio da produção cafeeira nas primeiras décadas do século XX, WilA
lems constata uma «inversão ocorrida na localização do ‹sertão›, que passou de
oeste a leste. A princípio, Itaipava era um posto avançado à ‹boca do sertão›. OuA
trora, o sertão era Minas e São Paulo. Atualmente, os moradores de Itaipava
chamam de ‹sertão› as áreas cobertas de mata virgem da Serra do Mar».417 FinalA
mente, mudanças a nível estrutural, por exemplo as acarretadas pelo avanço da
urbanização, evidentemente têm um impacto imediato sobre a percepção coletiva
a respeito do espaço sertanejo. Há uma boa dose de verdade na afirmação de
Guimarães Rosa de que a cidade «acaba com o sertão».418
Em que pese esta fluidez, a imagem que se fazia destes espaços era, via de reA
gra, negativa. Impossível, diz Bento Fernandes Furtado, o exercício da justiça
«em um sertão onde, sem controvérsia, campeava a liberdade sem sujeição a neA
nhuma lei».419 Teixeira Coelho afirma que um certo Manuel Nunes Viana, moraA
dor «nos sertões da comarca do Sabará», e outros que a ele tinhamAse aliado anA
davam «fazendoAse, pelas mortes e violências que tinham executado, o terror dos
povos». O mesmo autor narra ainda o esforço de colonização promovido por
Dom Antônio de Noronha, empenhado que estava em conquistar os «vastos serA
tões que ficam ao lado do sul do Rio Doce», que eram então cheios de cachoeiras
«e infestado[s] de índios».420 A abertura do caminho novo entre as minas e o Rio
de Janeiro no início do século XVIII fez com que a Coroa portuguesa decretasse
a proibição da colonização dos sertões da Mantiqueira. Foi precisamente esta
proibição, segundo Carla Anastasia, que permitiu o alastramento dos grupos de
bandidos naquela região.421 Somente quando a produção de ouro entrou em
franco declínio é que surgiram iniciativas oficiais no sentido de ocupar aquela
área. Dom Rodrigo José de Menezes manda então que «se penetrassem os sertões
incultos, e juntamente os da Mantiqueira, abaixo proibidos a título de servirem de
barreira, ou de impedimento aos descaminhos do ouro».422 Do lado oposto da caA

416 SaintAHilaire, Viagem às nascentes, vol. I, p. 279. Esta relativização também é inA
vocada por Rosa logo nas primeiras linhas de seu opus magnus: «O senhor tolere, isto é
o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os camposAgerais a fora a
dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de
Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão?». Rosa, Grande sertão, p. 7.
417 Willems, Uma vila brasileira, p. 27.
418 Rosa, Grande sertão, p. 156.
419 CCM, p. 193.
420 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», pp. 348A349,
358. Grifo nosso.
421 Anastasia, Carla. «Salteadores, bandoleiros e desbravadores nas Matas Gerais da
Mantiqueira (1783A1786)». In: Del Priore, M. (org.) Revisão do paraíso. Rio de
Janeiro: Campus, 2000, p. 124.
422 «Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da capitania de Minas GeA
167

pitania as ameaças à ordem colonial não eram menores. Além da busca do ouro,
um dos motivos que levou Inácio Correia Pamplona a percorrer o oeste de Minas
foi o combate aos quilombos ali estabelecidos. LêAse no diário de uma de suas
expedições que, em 6 de novembro de 1769, foram avistadas algumas casas que
se julgaram pertencer a quilombolas, pois «no sertão não mora mais ninguém».423
Século XIX adentro, os viajantes fazem referência a vários arraiais e vilas do
sertão que deviam sua origem a delinqüentes de toda espécie. Araxá teria sido
formada «na maior parte, (...) de malfeitores, fugitivos de outras partes de Minas
e de Goiás». De Formiga, dizAse que «criminosos perseguidos pela justiça se vieA
ram refugiar neste lugar remoto e contribuíram para aumentarAlhe a população; os
habitantes não gozam de boa fama». A vila do Tamanduá tivera, segundo consta, a
mesma origem: ela «deve os seus fundamentos a criminosos que vieram, há uma
centena de anos, procurar um asilo no seio das florestas de que a região é
coberta». Os moradores do Arraial de Formigas eram «como filhos do sertão, mal
afamados como brigões e por seu banditismo».424
A idéia generalizada de que o sertão é antes de tudo um espaço escassamente
povoado não corresponde ao sentido de que era investido o termo. Um dos doA
cumentos do Códice Matoso revela que os primeiros exploradores das minas vieA
ram das regiões mais populosas do Brasil «e também do sertão, que é muito exA
tenso e tem muita gente».425 Boa parte da banda oriental de Minas, à época
povoada por diversas nações indígenas e coberta por densas florestas, também reA
cebia a denominação de sertão. O pontoAchave a elucidar é: por que paisagens
tão radicalmente distintas entre si, como são o oeste e o leste de Minas Gerais426,
puderam um dia ser designadas pelo mesmo termo?
Primeiramente, porque ambos eram espaços cercados de interdições – por veA
zes interdições de ordem legal, como vimos –, nos quais prevalecem forças que o
homem comum prefere evitar. Não se trata de espaços vazios (no sentido de
Simmel) e muito menos de espaços «profanos». Na verdade o sertão é um espaço
sagrado; mas um espaço sagrado que se coloca num plano oposto ao dos santuáA
rios e patrimônios religiosos. O princípio que nele domina é sobretudo o do sa
grado nefasto. Uma extensão, enfim, dominada pelas «trevas exteriores, o mundo
das ciladas e das armadilhas, que não conhece lei nem autoridade, e donde sopra
uma ameaça permanente de mácula, de doença e de perdição».427 A existência de

rais. Seu descobrimento, estado civil, político e das rendas reais (1781)». In:
RIHGB (71) 1908: 117A184, p. 174.
423 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...», p. 79. Grifo nosso.
424 Eschwege, Brasil, novo mundo, p. 106; SaintAHilaire, Viagem às nascentes..., vol.
I, pp. 150A151, 140; Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, p. 68.
425 CCM, p. 197.
426 Uma bela síntese descritiva desta verdadeira «encruzilhada de paisagens» que é
Minas Gerais foi feita por Bernardes, Nilo. «Fisionomia da terra». In: Cesar, G.
(org.) Minas Gerais – Terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1970, pp. 1A10.
427 Caillois, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988 (1939), p. 52.
168

doenças e epidemias – as temidas sezões – no sertão contribuiu para reforçar este


temor. Spix e Martius legaramAnos um testemunho interessante, ao descreverem
sua chegada em Salgado (atual Januária): «os nossos tropeiros declararam que
não iriam adiante conosco. O medo das febres perigosas nestas regiões apavorava
a todos, e, depois que o capataz de Minas Novas havia escapulido, durante a
noite, em Capão, não havia meio de reter os outros.»428 LembremoAnos que, para
a mentalidade da época, a doença nunca é um fato puramente biológico. As forA
mas de cura invariavelmente envolviam o sagrado, e a escassez de médicos cerA
tamente reforçava tais concepções. Um espaço onde grassam doenças, onde
grassam miséria e crime, não pode ser um «chão de Deus».
A penetração e o estabelecimento dos bandeirantes no sertão da Casa da Casca
foi dos mais difíceis porque, além de ser este «muito agro e falto de víveres silA
vestres, por serem tudo matos e aspérrimas brenhas», estava o mesmo sertão «poA
voado de bravos e orgulhosíssimos gentios».429 Na sua tentativa de incrementar a
ocupação da Zona da Mata e do Alto Rio Doce, Dom Rodrigo de Menezes adenA
tra os sertões dos Arrepiados, então ocupados pelo «gentio Puri, nação bárbara e
guerreira». Do alto de uma serra ele vê «sertões tão dilatados, quais a vista pôde
alcançar, povoados de diversas nações de índios bravos e feras». DirigindoAse
para o noroeste, passa por Ponte Nova e, tomando o cuidado de munirAse de uma
escolta, penetra na região dos Botocudos. «É este o bravo Botocudo devorador da
carne humana, e senhor de toda aquela dilatada mata». Dom Rodrigo conclui que
«aqueles sertões tinham geralmente ouro», mas «se achavam infestados de gentiA
lismo».430 Os sertões de matas não foram menos temidos pelos naturalistas euroA
peus. Segundo Eschwege, «a região mais perigosa que os viajantes têm de atraA
vessar é chamada floresta ou mata dos Puris (...) que se compõe de pura mata
virgem e tem cerca de uma légua de largura. Há inúmeros exemplos de que aqui
os selvagens atiraram flechas em animais e cães de viajantes a fim de os provoA
car, mas sem nunca terem matado qualquer pessoa».431 Spix e Martius ficaram
particularmente amedrontados ao passar pelas florestas nas imediações de PiA
ranga:
«(...) escura como o inferno de Dante fechavaAse a mata, e cada vez mais esA
treita e mais íngreme, a vereda nos levou por labirínticos meandros, a proA
fundos abismos (...). Ao horror, que esta solidão agreste infundia na alma,
acrescentavaAse ainda a aflitiva perspectiva de um ataque de animais ferozes
ou de índios inimigos que a nossa imaginação figurava em pavorosos quaA
dros, com os mais lúgrebes presentimentos.»432

428 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. II, 83.


429 CCM, p. 170.
430 «Descrição geográfica... », pp. 176A179.
431 Eschwege, Journal von Brasilien, p. 56A57.
432 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. I, p. 193. Grifos nossos.
169

O testemunho de Pohl atesta o misto de fascínio e temor suscitados por uma floA
resta no Campo das Vertentes:
«Penetramos imediatamente num corte de selva, cujas grossas árvores de
formas para mim completamente desconhecidas, eram entrelaçadas, em esA
tranhas voltas, por parasitas arbóreas; as quais (...) formavam, por assim
dizer, um tecido impermeável aos raios solares e que, como cordoalha de naA
vio, se movia ao mais leve impulso. Essa imagem agiu poderosamente em
meu espírito. Com temeroso respeito atravessei essa abóboda da selva, o esA
curo dessa floresta, que, com as figuras indefinidas, me apareceu como um
grande segredo da natureza.»433
Os riscos, imaginados ou reais, que cercavam os sertões de matos incultos mon
tanhosos e penhascosos434 ajudam a explicar por que a política de colonização do
leste mineiro na segunda metade do século XVIII privilegiou, antes de mais nada,
os delinqüentes e vadios. Em 1768 o governador Luís Diogo Lobo da Silva
afirma que somente pessoas com este perfil se sujeitariam à «calamitosa e miseA
rável vida e riscos» necessários à colonização.435 O Conde de Valadares, por sua
vez, determina o envio dos vadios à conquista do Cuité «porque como a conserA
vação desta conquista era necessária, e se não podia conseguir sem que nela houA
vesse um corpo de tropas da dita qualidade, mais conforme à razão o ser a mesma
tropa composta de homens vadios e facinorosos, do que de homens bem morigeA
rados e precisos para a cultura de terras».436 A estratégia tem continuidade com
Dom Rodrigo de Menezes em 1783, quando se chega a apoiar com víveres, ferA
ramentas e roupas o estabelecimento daquelas «pessoas insignificantes» no sertão
do Caeté.437 As conseqüências que poderiam advir do contato entre delinqüentes
(sem dúvida numerosos) e os diversos povos indígenas que ali habitavam não paA
reciam tirar o sono das autoridades coloniais.
Aos olhos de muitos dos moradores das vilas de Minas Gerais, há dois tipos
básicos de habitantes do sertão: delinqüentes (criminosos foragidos, vadios, salA
teadores, quilombolas) e índios. RusselAWood percebeuAo bem, e se aproximou
de uma caracterização adequada do conjunto de imagens e sensações suscitados
pelo espaço sertanejo quando sugeriu que «civilização e ortodoxia terminavam

433 Pohl, Viagem no interior do Brasil, vol. I, p. 223. Grifos nossos. O fato de que esA
ses três relatos advém de autores alemães está longe de ser mera coincidência.
Röhrich mostrou que a floresta ocupa no imaginário popular alemão um lugar
muito mais destacado que em mitos de sociedades indígenas latinoAamericanas.
Röhrich, Lutz. Märchen und Wirklichkeit. Wiesbaden: Steiner, 1974, pp. 201A202.
Parece plausível que os naturalistas citados não estivessem tão distantes deste pano
de fundo popular quanto se poderia crer.
434 CCM, p. 171.
435 Citado por Anastasia, «Salteadores, bandoleiros e desbravadores...», p. 123. Ver
ainda Souza, Desclassificados do ouro, pp. 71A90.
436 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais», p. 348.
437 «Descrição geográfica... », p. 181A182.
170

onde começava o sertão».438 O nível de difusão de expressões religiosas perifériA


cas, paraA e antiAinstitucionais foi sem dúvida uma marca da religião sertaneja.
Segundo SaintAHilaire, «temAse, em todo o sertão, grande fé em sortilégios (...). O
feiticeiro, que por ocasião de minha viagem tinha maior fama, era um negro livre
que habitava uma povoação dependente do termo de Minas Novas. Apesar do
preconceito em geral vigente contra sua cor, vinham consultáAlo de muito longe, e
o negro esperto comprava escravos, e ia constituindo para si uma habitação exA
celente».439
Para o homem comum o sertão é o negativo do espaço habitável «normal». DiA
fícil encontrar na literatura brasileira uma exploração tão profunda do complexo
de imagens que o envolve como a que foi feita por Guimarães Rosa. Como na
história de Turíbio Todo, que foge rumo ao norte de Minas após cometer um hoA
micídio. O irmão da vítima se convence de que o assassino fugira para Piedade
do Bagre (atual cidade de Felixlândia), onde tinha parentes: «Quando chegasse na
Piedade – para adiante não havia terras aonde um cristão pensasse ir –, (...) traA
tava de voltar nos passos». Como Augusto Matraga, que, em seu refúgio no sertão
norte, diz para si mesmo: «P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!»440 Ou
ainda na reflexão do jagunço Riobaldo: «sertão é onde manda quem é forte, com
as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!».441 Quando, em 18 de
setembro de 1781, Dom Rodrigo de Menezes regressa a Mariana depois de sua
incursão pelos sertões dos Arrepiados e do Caeté, sua primeira ação é seguir para
a igreja matriz a fim de oferecer um TeADeum «em ação de graças da felicidade
daquela perigosa viagem».442 Cassiano Ricardo cita o caso de um bandeirante
que, antes de embrenharAse sertão adentro, profere a seguinte oração: «Peço ao
anjo São Gabriel e ao santo do meu nome e ao anjo de minha guarda me queiram
acompanhar e livrar dos demônios».443 Ritos de incorporação e de separação que
inevitavelmente se realizam à entrada e à saída de um espaço sagrado.
O sertão compreende uma síntese tipicamente brasileira de motivos que, pelo
menos na tradição européia, cristalizamAse em torno do complexo de imagens deA
sertoAfloresta:444 refúgio, ameaça, espaço de transgressão (ou de expiação) no
qual a justiça humana e mesmo a divina não vigoram. Num sentido mais amplo,

438 RusselAWood, «Frontiers in Colonial Brazil», p. 37.


439 SaintAHilaire, Viagem às províncias..., vol. II, p. 252. Conferir o retrato que faz
Guimarães Rosa da figura do negro feiticeiro nos seus contos «São Marcos» e
«Corpo Fechado». Rosa, Sagarana, pp. 221A249, 271, 277A280. Ver também CarA
rato, «A crise dos costumes...», pp. 240A241.
440 Rosa, Sagarana, pp. 143, 338. Grifo nosso.
441 Rosa, Grande sertão, p. 18.
442 «Descição geográfica...», p. 180.
443 Ricardo, Marcha para oeste, p. 336.
444 Gehrts, Heino. «Der Wald ». In: Janning, J. und Gehrts, H. (Hrsg.) Die Welt im
Märchen. Kassel: Röth, 1984, pp. 37A53; Le Goff, «Le désertAforêt dans l’Occident
médiéval», pp. 66 e 70.
171

para os antigos mineiros, o sertão se caracteriza sobretudo por ser um espaço in


civilizado. Não basta que aquelas regiões sejam habitadas se seus moradores não
se mostram capazes de domesticar o próprio espaço em que vivem. O sertão é,
em outras palavras, a antítese de tudo aquilo que uma parcela significativa da poA
pulação brasileira dos séculos XVIIIAXIX julgava ser a «civilização» (e aqui já
nos encontramos diante dos fundamentos da visão de um Euclides da Cunha).
Esta noção de «civilização» resumiaAse a três critérios fundamentais, e dialeticaA
mente relacionados entre si: submissão ↔ urbanização ↔ religião. Os arraiais, e
em especial as vilas, são os loci a partir dos quais o ideal civilizatório ocidentalA
cristão se difunde. É ali que a natural compulsão dos homens para o crime pode –
assim se supunha – ser controlada pelas instâncias de poder jurídico e policial;445
é também ali, sob a ação educadora e/ou missionária da Igreja, que «pessoas insiA
gnificantes» e «selvagens» podem ser salvas de sua «superstição», de seu pagaA
nismo e finalmente trazidos à «verdadeira» comunidade dos crentes. O sertão é,
pois, o reverso da cidade: um espaço ainda livre de toda e qualquer forma de doA
mesticação.

3.5 Espaços utópicos


Nossa análise das relações entre espaço e representações religiosas não poderia
deixar de fazer menção aos quilombos. Por serem espaços instituídos sob a égide
de visões de mundo distintas ou só parcialmente influenciadas pelo catolicismo
popular tradicional, não nos demoraremos neste ponto. Apenas algumas observaA
ções serão suficientes para que possamos caracterizáAlos no quadro da Minas anA
tiga.
Antes de mais nada, trataAse de definir os quilombos – exemplos perfeitos do
que Foucault denominou espaces autres («espaços que de alguma forma estão em
contato com todos os outros, e que entretanto os contradizem»).446
O quilombo é uma comunidade de exAescravos na qual se institui um sistema
político, econômico, e, em alguns casos, de parentesco e religioso, alternativo ao
da antiga condição servil. Em Minas Gerais a proliferação dos quilombos foi faA
vorecida basicamente por dois fatores. De um lado, pelo enorme contingente de
escravos trazidos para o serviço na mineração e, mais tarde, empregado na agriA
cultura; por outro, pelas características ecológicas próprias do território mineiro
(povoamento escasso nos sertões do oeste, topografia acidentada e densas matas
na região do quadrilátero ferrífero). A despeito das importantes pesquisas levadas
a cabo nos últimos anos447, o cotidiano das comunidades quilombolas mineiras

445 A crítica de Gonzaga («E aonde se amontoam os viventes/ em cidades ou vilas, aí


crescem/ os crimes e as desordens aos milhares»; Cartas Chilenas, p. 213) deve ser
vista como uma exceção ou, quando muito, como uma posição minoritária no quaA
dro da época.
446 Foucault, «Des espaces autres», p. 755.
447 Guimarães, Carlos Magno. A negação da ordem escravista: quilombos em Minas
172

está longe de ser tão bem conhecido como o do famoso quilombo dos Palmares,
em razão da grande dificuldade de se obter dados confiáveis sobre a sua estrutura
interna.
Depois de se debruçar sobre as comunidades quilombolas mineiras, Donald
Ramos afirmou que o quilombo não significava uma ruptura mas sim uma mera
«rejeição» do sistema escravocrata. Para ele as comunidades de fugitivos funcioA
navam como uma «válvula de escape que ajudava a impedir que o sistema imploA
disse».448 A «implosão» só apresentarAseAia, ao seu ver, sob a forma de rebelião.
Curiosa inversão: o ato de rebelarAse é colocado por Ramos num patamar mais
elevado de complexidade e radicalidade, sendo que, na verdade, ele configura um
evidente pressuposto (mesmo quando «atomizado» sob a forma de simples fuga
individual) para a formação dos quilombos. O fato de que os quilombos continuA
avam a manter relações mais ou menos estreitas com a sociedade escravista não
significa que eles não se colocassem como uma alternativa para a massa de opriA
midos que constituía a base do sistema – alternativa que a revolta, por si só, não
era capaz de oferecer.449
Preferimos ver no quilombo uma utopia vivida. São três os aspectos que fazem
dele um empreendimento utópico: (1) a objetivação coletiva do ideal de liberA
dade; (2) a organização dos fugitivos numa comunidade cujos princípios fundaA
mentais tendem a contradizer os que vigoram fora dela; e, finalmente, (3) o estaA
belecimento desta comunidade num espaço à parte. ObserveAse que, a despeito da
etimologia do termo, as utopias freqüentemente criam lugares. Um projeto alterA
nativo de organização social «exige», por assim dizer, se pretende adquirir uma
aparência de exeqüibilidade para aqueles que o abraçam, a sua expressão espaA
cial.450

Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988; Guimarães, Carlos Magno. «O
quilombo do Ambrósio: lenda, documentos e arqueologia». In: EIA 16 (1A2) 1990:
161A174; Gomes, Flávio dos Santos. «Seguindo o mapa das minas: plantas e
quilombos mineiros setecentistas». In: Estudos Afro Asiáticos (29) 1996: 113A142;
Reis, J. J. e Gomes, F. S. (org.) Liberdade por um fio. História dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996; Souza, Laura de Mello e. Norma e conflito.
Aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte, UFMG, 1999.
448 Ramos, Donald. «O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do século
XVIII». In: Reis e Gomes, Liberdade por um fio, pp. 167 e 174.
449 Para uma análise das revoltas na Minas Colonial, ver Anastasia, Carla. Vassalos
rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo
Horizonte: C/Arte, 1998.
450 Sobre o conceito de utopia ver Mannheim, Karl. Ideologie und Utopie. Bonn:
Friedrich Cohen, 1929, pp. 169A191; Doren, Alfred. «Wunschräume und WunschA
zeiten». In: Neusüss, A. (Hrsg.) Utopie. Begriff und Phänomen des Utopischen.
Neuwied/Berlin: Luchterhand, 1968, pp. 123A177; Baczko, Bronislaw. Lumières de
l’utopie. Paris: Payot, 1978, pp. 29A38; Hölscher, Lucien. «Utopie». In: Brunner,
O., Conze, W. und Koselleck, R. (Hrsg.) Geschichtliche Grundbegriffe. Stuttgart:
KlettACotta, 1990 (6. Band).
173

As plantas de quilombos mineiros setecentistas feitas por ocasião da expedição


de Inácio Pamplona em 1769 demonstram que o espaço quilombola não obedecia
a qualquer modelo, mesmo informal.451 Em boa medida a disposição desordenada
das casas deviaAse à configuração típica do topos quilombola: havia uma compreA
ensível preferência por locais de topografia acidentada, de forma a facilitar as atiA
vidades de defesa. Por outro lado, eram precisamente as preocupações de ordem
«militar» as únicas que justificaram a intervenção racional dos quilombolas sobre
o espaço. Com a exceção do grande quilombo do Ambrósio, a discrepância entre
a meticulosa construção de fossas, trincheiras e paliçadas contrasta com a dispoA
sição aleatória das casas e espaços voltadas para fins rituais. Quando se compaA
ram estas plantas entre si, não se distingue a existência qualquer padrão comum.
Se de fato, como postulou Simmel, a relação de um grupo com seu espaço «é a
raiz e o símbolo da sua estrutura»452, fica claro que a funçãoAdefesa soprepujou
todas as demais na objetivação espacial da utopia libertária dos quilombolas miA
neiros.
Uma contraposição entre o espaço do arraial e o espaço quilombola revela de
imediato duas distinções fundamentais. Nos primeiros se verifica um padrão coA
mum, sem qualquer preocupação de estabelecimento de fronteiras claras entre o
núcleo protoAurbano e o seu entorno. Nos quilombos dáAse exatamente o contráA
rio. É interessante ainda notar que em dois dos seis quilombos cartografados pela
expedição de Pamplona encontramAse cruzeiros plantados entre os conjuntos de
casas. Um sinal evidente do quão cristianizados já eram seus moradores, embora
não estejamos em condições de saber muita coisa da religiosidade praticada nesA
tes espaços utópicos.
A natureza do quilombo fica mais clara se o compararmos com um tipo antaA
gônico de espace autre: o espaço disciplinar de tipo religioso. ReferimoAnos aos
monastérios e especialmente aos aldeamentos e missões.
Para Jean Séguy e Paula Montero os monastérios e as missões se baseavam no
modelo utópico453, o que não nos parece razoável. Monastérios, aldeamentos e
missões podem ser mais facilmente entendidos por meio do conceito de «heteroA
topia». Proposto por Foucault, ele designa todo espaço disciplinar em que o hoA
mem não é agente da reconstrução da sociedade, mas uma mera variável a ser
controlada. Enquanto o quilombo é fruto de um anseio de liberdade, a missão ex
prime sobretudo a sua perda. O quilombo é um projeto libertário, e a missão um
projeto autoritário. Não é por outra razão que a preocupação com a ordenação do
espaço seja um traço fundamental de heterotopias como prisões, hospícios ou
missões, e não exerça papel digno de nota nos quilombos. De um lado, um espaço
interno racionalizado; de outro, um espaço «espontâneo». Se o fundamental na

451 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...», pp. 107A112.


452 Simmel, «Der Raum und die räumlichen Ordnungen der Gesellschaft», p. 693.
453 Séguy, Jean. «Une sociologie des sociétés imaginés: monachisme et utopie». In:
Annales. MarsAAvril 1971: 328A354; Montero, Paula. «Utopias missionárias na
América». In: Revista Sexta Feira. Antropologia, artes, humanidades (5) 2001.
174

heterotopia é disciplinar o ser humano, o que realmente importa na utopia vivida


quilombola é garantir a sua dignidade.
175

4. Sociogênese e dinâmica do arraial


Uma história da sociogênese e do cotidiano dos povoados brasileiros ainda está
para ser escrita. Os trabalhos de Borba de Moraes, Pierre Deffontaines, Pierre
Monbeig, Aroldo de Azevedo, Waldemar Barbosa e Murillo Marx oferecem as
bases a partir das quais tal história pode ser recuperada. Somente por meio de
uma ambiciosa geografia histórica e de uma minuciosa classificação das formas
elementares do espaço urbano será possível mensurar a importância das forças
que catalizaram a sociogênese daqueles embriões de cidade. De fundamental imA
portância é a identificação de cada uma destas diferentes forças: extrativismo miA
neral ou vegetal, religião, comércio, defesa (quartéis), transporte (portos fluviais,
estradas, estações ferroviárias), e assim por diante. Cada uma delas deve ser estuA
dada por meio de um aparato metodológico apropriado. Foi o que procuramos
fazer, no nosso caso específico, ao nos reportarmos às diversas ciências das reliA
giões. Se bem que a existência de tipos puros dificilmente se verifica. O arraial
originado num patrimônio em terras pertencente a uma capela não tem grandes
perspectivas diante de si caso as atividades econômicas no seu «interior» e à sua
volta sejam pouco promissoras; da mesma forma que embriões que – como os
quartéis – à primeira vista parecem ser formas estritamente «profanas» dificilA
mente prescindem da intervenção do sagrado. Para que as diferenças entre os emA
briões de cidades na Minas Gerais dos séculos XVIIIAXIX fiquem mais claras,
iniciaremos este capítulo com uma visão de conjunto da influência dos dois tipos
de forças que, ao lado da religião, mais se fizeram presentes no surgimento de
nossos antigos povoados. Só então nos ocuparemos a fundo com as relações entre
o arraial e o sagrado.

4.1 ProtoAurbanização e atividade econômica


A influência de fatores de ordem estritamente econômica na formação das cidaA
des mineiras pode ser compreendida a partir de três modalidades principais: miA
neração, comércio e cidadeAempreendimento. A importância dos dois primeiros
fatores foi maior no espaço de tempo que aqui nos ocupa, uma vez que a cidadeA
empreendimento é um fenômeno que só assume seus contornos definitivos na
passagem para o século XX.
Ao estabeleceremAse, os pioneiros não se preocupam com as dificuldades imA
postas pela orografia. O que realmente conta é a perspectiva de enriquecimento.
A simples idéia de levantar sua morada distante do local de trabalho pareceAlhes
absurda. Um testemunho de 1717 fala da caótica disposição das casas em São
João delARei, o que «não sucederia (...) se aqueles moradores as fabricassem em
um plano, aonde está situada a igreja adonde não há ouro».1 Princípios de ordem
«paisagística» ou «urbanística» são completamente estranhos ao universo mental

1 «Diário da jornada... », p. 313.


176

do nosso homo ludens. Basta pensar em Ouro Preto e seu «sítio impossível» (Le
Loup). Por esta razão eram comuns as «ruas tortuosas, vencendo com dificuldade
o abrupto das encostas, e o casario como que agarrado sobre os morros, num miA
lagre de equilíbrio».2
Os embriões de cidade cuja origem se associa diretamente ao gold rush não
apresentaram sempre o padrão de desenvolvimento concêntrico que vimos ter
sido o predominante nas cidades que se formaram a partir de um patrimônio reliA
gioso. Não era raro que, naqueles lugares nos quais as descobertas auríferas reA
velavamAse mais promissoras, a ocupação dos terrenos se polarizasse em torno de
dois ou mais subAnúcleos dispostos nas proximidades das áreas de exploração.
Algumas das primeiras vilas de Minas surgiram da fusão destes subAnúcleos, os
quais recebiam os nomes de bairros ou arraiais (sobre a polissemia do termo «arA
raial», ver seção 3.3). Esta tendência à aglutinação decorria do aumento vertigiA
noso da população e, conseqüentemente, da progressiva ocupação dos interstícios
entre os distintos bairros.
Nos primórdios de Mariana,3 o primeiro núcleo a formarAse foi o de Mata CaA
valos. Porém, devido aos surtos de fome que assolaram a região em 1697A1698 e
1701A1702, Mata Cavalos entra em decadência. Em 1703, Antônio Pereira consA
trói nas proximidades do ribeirão ali existente uma ermida dedicada a Nossa SeA
nhora da Conceição («que era tão pequena que só cabiam o altar dentro dela e o
acólito para ajudar a missa»).4 Com a invasão da sua sesmaria por um grande
contingente de mineiros, cresce aos poucos o «Arraial de Baixo». O afluxo de
aventureiros é de tal ordem que, no ano seguinte à sua ereção, a ermida da ConA
ceição era elevada a freguesia.5 Um segundo bairro, com o nome de São Gonçalo,
formaAse posteriormente na parte dita «de cima», ao longo da estrada que seguia
para Ouro Preto.
Em Ouro Preto observaAse a existência deste mesmo modelo «multipolar».
Com o passar dos anos, subAnúcleos como o Caquende e o Arraial dos Paulistas
foram pouco a pouco absorvidos pelo de Ouro Preto. A organização espacial
destes bairros dependia das características do sítio. Enquanto em Antônio Dias
desenvolveuAse um padrão linear, em Padre Faria o perfil era «caótico». Ademais,
a instabilidade era muito alta. Alguns bairros prosperavam e fundiamAse com asA
sentamentos vizinhos, enquanto que outros simplesmente desapareciam.6 Em SaA

2 Azevedo, «Arraiais e corrutelas », p. 13. Ver também Gutersohn, Heinrich. «A reA


gião central de Minas Gerais. Uma contribuição à geografia cultural do Brasil». In:
Boletim Geográfico (118) 1954: 5A49, p. 19.
3 Fonseca, Cláudia D. Mariana: gênese e transformação de uma paisagem cultural,
pp. 53, 58 e 62. Ver ainda, da mesma autora, «O espaço urbano de Mariana: sua
formação e suas representações». In: VVAA. Termo de Mariana. História e docu
mentação. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1998.
4 CCM, p. 182.
5 DHGMG, p. 196.
6 Vasconcelos, Salomão de. «Os primeiros aforamentos e os primeiros ranchos em
177

bará, os dois subAnúcleos principais teriam sido os de Barra e Igreja Grande, mas
havia uma infinidade de outros de menores dimensões.7 Sylvio de Vasconcellos
acusa o mesmo fenômeno em Diamantina, e afirma ser «provável que a povoação
tenha nascido da polarização de pequenos núcleos isolados».8
Em resumo: a ocupação do sítio, em que pese o sistema de concessão de datas,
é abrupta e desordenada. ConstroemAse ranchos nas próprias datas, ao longo dos
leitos dos córregos e dos caminhos. A população é composta por mineradores,
gente desocupada e criminosos; o comércio (inclusive na sua modalidade sexual)
é intenso; a prodigalidade e a jogatina estão na ordem do dia. Enfim, o arraial miA
nerador é o hábitat por excelência do homo ludens.
Um excelente retrato do que é o cotidiano deste tipo de aglomerado foiAnos
dado por Langsdorff, que visitou Descoberta Nova (atual cidade de Descoberto,
na Zona da Mata) em 1824, poucos meses após seu surgimento. Face à riqueza de
seu relato, vale a pena reproduziAlo um pouco mais extensamente:
«(...) alcançamos Descoberta Nova. A gritaria, os estrondos, a barulheira fezA
nos perceber de longe que havia lá grande quantidade de pessoas. InicialA
mente, vimos a fazenda do verdadeiro proprietário e, depois, uma longa
fileira de palhoças. São as casas dos mineiros (se é que posso usar essa deA
nominação) e de pessoas que para cá vieram para praticar o comércio e aproA
veitar a oportunidade favorável. Pedimos abrigo na primeira e na segunda
casa, mas em vão. Depois passamos por entre as cabanas e vimos mercadoA
rias jogadas entre estalagens, vendas e casas de jogos. Toda a aldeia tinha o
aspecto de uma feira com suas carrocinhas de comidas. Aqui, os homens
deitados em estacas fincadas na terra, em esteiras de palha; lá uma mulher ou
uma moça. Um tinha um prato de feijão com toucinho. Mais adiante, rodavaA
se uma agulha para decidir quem ganha e quem perde. Mágicos mostram sua
arte; vinho, aguardente de cabeça, restilo e prazeres eram vendidos por toda
parte. Comerciantes e, principalmente, vendedores estavam alojados no bosA
que. (...) Logo que a fama da descoberta se espalhou pela terra, vieram pesA
soas de todas as partes, de forma que hoje (após cerca de dois a quatro me
ses da descoberta) já se reuniram aqui quase 3000 almas. Nem todos vieram
para lavrar ouro: alguns vieram para se divertir. Jogadores e beberrões,
prostitutas e muitas outras pessoas que, de uma forma ou de outra, tentam
ludibriar uns aos outros. Alguns vivem miserável e deploravelmente; outros
gastam tudo ou perdem no jogo o que ganharam com a lavação. Foi realA
mente muito estranho ver aqui pessoas que, há poucas semanas, talvez não
possuíssem sequer um tostão e que agora lidam com táleres de prata como se
fossem moedas de cobre. Nem mesmo o ouro tem valor. Pode se dizer: como
foi ganho, será desperdiçado. É como uma loteria; ninguém sabe avaliar o

Ouro Preto». In: RPHAN (5) 1941: 241A257; Ramos, A social history of Ouro
Preto, pp. 142A152; Menezes, Igrejas e irmandades de Ouro Preto, p. 27.
7 Passos, Em torno da história de Sabará, pp. 2A3.
8 Vasconcellos, Sylvio. «Formação urbana do Arraial do Tejuco». In: RPHAN (4)
1959: 121A134, p. 127.
178

valor do ganho. O que chama a atenção é que tantas pessoas de repente teA
nham se aglomerado aqui, e o governo parece não ter tomado conhecimento
disso (...). Um chega, lava o ouro e vai embora; o outro, da mesma forma, e
assim podeAse dizer que, aqui, mudam as pessoas diariamente.»9
Se confrontamos Descoberta Nova com outros exemplos de protoAurbanização
em contextos marcados pela mineração tradicional, algumas similitudes tornamA
se evidentes. É interessante notar que a simples rua ladeada por rústicas moradias
e casas de comércio era também a configuração de Nevada City, uma típica poA
voação gerada pela exploração de ouro na Califórnia.10 Mas enquanto nos EUA
as novas cidades se adequavam rapidamente ao padrão geométrico determinado
pela Land Ordinance de 1785,11 o núcleo minerador latinoAamericano tendia – até
(mas não apenas) por força das particularidades do seu quadro topográfico – a
desenvolverAse desordenada e espontaneamente.12 Aroldo de Azevedo afirma,
quanto ao Brasil, que «a impropriedade do sítio urbano constituiu a regra».13 A
racionalidade econômica limitaAse à esfera das trocas comerciais; e no entanto,
dentro deste universo que visivelmente obedece a leis próprias, perdeAse a noção
do valor relativo das mercadorias. «O dinheiro aqui parece ser de pouco valor, e
qualquer pessoa tem o bastante», escreveu uma testemunha do gold rush norteA
americano.14
Quanto ao mais, é como se a dimensão lúdica se apossasse completamente do
mundo da vida. Pois a vida se resume a dois princípios: o da diversão e o da
aposta. Até que ponto é difícil separar uma coisa da outra, comprovaAo não só o
caso de Descoberta Nova. Assim se expressa um aventureiro americano oitocenA
tista, ouvido numa casa de jogos: «I came here not to gamble, but to find amuseA
ment».15 O jogo é uma «tentação a que não se pode furtar um verdadeiro garimA
peiro».16 O termo «loteria» para definir a lógica segundo a qual se orienta o
mundo do garimpo, digaAse de passagem, não foi empregado apenas por LangsA
dorff. Também nos EUA a corrida do ouro foi vista como uma great lottery.17 A

9 Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, pp. 77A79; grifos nossos.


10 Phelps, Robert. «‹All hands have gone downtown›. Urban places in Gold Rush CaA
lifornia». In: California History 79 (2) 2000: 113A140, p. 130.
11 Ver Reps, John W. Cities of the American West. A history of frontier urban plan
ning. Princeton: Princeton University Press, 1979.
12 Gakenheimer, Ralph A. «The early colonial mining town: some special opportuniA
ties for the study of urban structure». In: XXXIX Congresso Internacional de
Americanistas – Actas y Memorias. Lima, 1972 (vol. II), pp. 359A371, p. 368.
13 Azevedo, «Arraiais e corrutelas», p. 13.
14 Rohrbough, Malcom. «No boy’s play. Migration and settlement in early gold rush
California». In: California History 79 (2) 2000: 25A43, p. 38.
15 Kurutz, Gary F. «Popular culture on the golden shore». In: California History 79
(2) 2000: 280A315, p. 285.
16 Luís Sabóia Ribeiro, citado por Azevedo, «Arraiais e corrutelas», p. 23.
17 Kurutz, «Popular culture...», p. 284.
179

literatura popular dos povoados formados em torno de garimpos de diamante no


Mato Grosso das décadas de 1920A1930 (as corrutelas) não dá margem a dúvida:
Isto é uma pura verdade
Que o garimpo é um jogo.
Eu falo sem vaidade,
os de sorte arranja[m] riqueza
e os blefados não salvam a despesa.18
Esta lógica se mantinha mesmo quando a aposta assumia a forma social de «noA
madismo». Um proprietário de minas no Potosí reclamava da precariedade com
que ali eram construídas as casas e concluía: «Os que as habitam são oportunistas
que vêm e vão sem permanecerem por um maior tempo».19 Azevedo constata:
«Não resta dúvida que um dos principais característicos da corrutela consiste na
heterogeneidade e mobilidade de sua população».20
Com isto parece ficar comprovada aquela conclusão a que chegávamos anteriA
ormente: para uma parte substancial dos homens e mulheres da Minas antiga,
festa, jogo e «nomadismo» situavamAse no mesmo plano simbólico e existencial.
O papel do comércio enquanto atividade subsidiária e, ao mesmo tempo, gaA
rantidora de uma relativa estabilização dos embriões de cidade, não deve ser esA
quecido. Em 1715, Ouro Preto e Antônio Dias tinham, respectivamente, 42 e 61
comércios. Em subAnúcleos de menor importância, situados no Morro de Vila
Rica, a realidade era a mesma. Ouro Podre tinha 25, Ouro Bueno 21 e Rio das
Pedras 9 comércios.21 O relato de Tschudi, ainda que feito no início da segunda
metade do século XIX, mostraAnos a importância destes estabelecimentos na reA
gião de Diamantina:
«No Brasil formamAse imediatamente, em todo distrito de diamantes recémA
descoberto, um pequeno lugar com uma ou mais vendas onde se fazem neA
gócios, vendemAse diamantes, alimentos e cachaça. Tal lugar se chama co
mércio até ganhar o suficiente em importância para, sob determinado nome,
entrar para a classe dos arraiais (Dörfer). Todo sábado reúnemAse garimpeiA
ros e compradores para ali fazer seus negócios. Todos estão armados e
prontos a defender com a própria vida o seu ganho. Em meio à cachaça, jogo
e prostitutas, essa gente – que de si mesma diz: ‹nós somos todos ladrões› –
faz seus negócios (...). Escravos fugidos, assassinos, desertores, ladrões, neA
gras e mulatas devassas formam a sociedade para a qual até mesmo o gaA
rimpeiro (ao qual nenhum prêmio de virtude seria concedido) olha com
desprezo. (...) De comércios formaramAse gradativamente o povoado de

18 Esta estrofe faz parte de um poema popular (do tipo poema em abc) com o título
«Mergulho do garimpeiro blefado», da autoria de José Lopes de Araújo. ReproduA
zido na íntegra em Dornas Filho, Achegas de etnografia e folclore, pp. 208A211.
19 Gakenheimer, «The early colonial mining town», p. 367.
20 Azevedo, «Arraiais e corrutelas», p. 20.
21 Ramos, A social history of Ouro Preto, pp. 150A151.
180

Santa Isabel de Sincorá e muitas pequenas localidades nas terras ricas em diA
amantes.»22
Os pontos de parada ao longo das estradas (como os que, em grande quantidade,
distribuíamAse no percurso do «caminho novo» entre Minas e o Rio de Janeiro)
exerciam uma força aglutinadora que, sob determinadas circunstâncias, podia dar
origem a um embrião de cidade. Os tipos de pontos de parada foram bem caracteA
rizados por Burton: há o pouso, «mero terreno de acampamento, cujo proprietário
não se importa que os tropeiros ali dêem água aos seus animais e os amarrem em
estacas»; o rancho, composto de «um telheiro comprido, tendo, às vezes, na
frente, uma varanda»; e a venda, onde se «vende de tudo, desde alho e livro de
missa, até cachaça, doces e velas».23
A origem de diversas cidades, como se vê, nada teve de idílica ou devota. Por
vezes a autoridade religiosa é impotente diante das outras necessidades, bem mais
concretas, das pessoas comuns. Araçuaí oferece um exemplo interessante. Na
primeira metade do oitocentos, o padre Carlos Pereira Freire de Moura fundou
uma povoação chamada Pontal na confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha.
Rigoroso (o que não era necessariamente comum naquele tempo), ele proibiu a
presença de prostitutas e o consumo de álcool no Pontal. Uma fazendeira da reA
gião, Luciana Teixeira, acolheu então aquelas mulheres e seus «clientes», e no
novo local de seu estabelecimento cresceu o arraial que deu origem a Araçuaí.24
Serrania, localizada no sul de Minas, formouAse a partir de um pouso de tropeiA
ros. O local tornouAse ponto de encontro de «malfeitores e boêmios», e pouco a
pouco surgiram casas em seu redor. Por volta de 1898, por iniciativa do vigário
de Alfenas, particulares fizeram a doação do patrimônio a uma capela a ser eriA
gida no lugar.25
É bem sabido o quanto importantes centros regionais dos dias de hoje deveram
seu crescimento e prosperidade ao comércio na confluência ou à margem das esA
tradas. Tal o foram Formiga, Barbacena e Juiz de Fora. Goodwin Jr. observou,
quanto a esta última: «nascida às margens de um caminho, a cidade continuou a
ter nas estradas um importante elemento do seu desenvolvimento».26 O que se
confirmaria principalmente a partir da segunda metade do século XIX, com o
surto da cafeicultura e o início da espansão da malha ferroviária na Zona da
Mata.27

22 Tschudi, Reisen durch Südamerika, I, p. 158.


23 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, pp. 100A101. O autor menciona
ainda dois outros tipos (a hospedaria ou estalagem e o hotel), que porém não eram
tão comuns quanto os três anteriores.
24 DHGMG, pp. 28A29.
25 EMB, vol. 27, p. 306.
26 Goodwin Jr., James W. «A princesa de Minas». A construção de uma identidade
pelas elites juizforanas. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em história,
UFMG, 1996, p. 43.
27 Blasenheim, Peter L. «As ferrovias de Minas Gerais no século dezenove». In: Lo
181

Em Philadelphia (atual Teófilo Otoni) deuAse algo novo. O nascimento desta


cidade não correspondeu nem às demandas do homo religiosus nem às do homo
ludens. TrataAse do primeiro caso de cidadeAempreendimento na história de MiA
nas.28 Seu espaço urbano associaAse diretamente a uma empresa capitalista, e não
à «loteria» da mineração. Daí ser o seu traçado concebido em moldes estritamente
racionais. A espontaneidade dá lugar ao planejamento. PodeAse dizer, neste senA
tido, que Philadelphia antecipa Belo Horizonte (com a diferença de que nesta
última o empreendimento não é fruto de uma iniciativa privada, mas governaA
mental). Em 1847 o político e empresário Teófilo Otoni criou sua Companhia de
Comércio e Navegação do Rio Mucuri. Além do monopólio sobre o comércio
fluvial na região, a empresa de Otoni obteve do governo o direito de estabelecer
colônias no Vale do Mucuri. Ele sonhava com a «civilização» daqueles sertões até
então ocupados por indígenas. Nos seus planos, Philadelphia viria a ser o centro
de uma nova província do Império, e para povoáAla foram trazidos imigrantes euA
ropeus, especialmente suíços e alemães.29
Philadelphia foi fundada em 7 de setembro de 1853, com projeto do engeA
nheiro Robert Schlobach da Costa. A distinção em relação aos arraiais de origem
religiosa ou mineral é gritante: suas ruas cruzamAse segundo um plano geoméA
trico, e no centro da povoação ergueAse não um templo, mas o armazém central
da Companhia do Mucuri. PreviaAse a construção de uma igreja católica e uma
protestante, mas era esta última que se localizava no alto de um morro ao lado da
praça central. Tschudi esteve em Philadelphia em fevereiro de 1858, quando a
povoação tinha cerca de 100 casas prontas. Antes da ponte que atravessava o Rio
de Todos os Santos situavaAse o «bairro» denominado Olaria. A razão desta deA
nominação fora a antiga fábrica de telhas que ali se levantara. Em suas miseráveis
casas residem pessoas pobres e algumas prostitutas. Depois de passar pela ponte e
entrar na povoação propriamente dita, o viajante vê diante de si duas grandes praA
ças. A maior delas leva o nome Praça da Companhia. Entre as praças estendeAse
a rua direita, e nela é que se localiza o armazém central. A igreja protestante fiA
cara pronta já em 1855, enquanto a católica ainda estava em construção.30
Embora a forma de organização do espaço de Philadelphia seja racional, poA
demAse identificar elementos que mostram uma certa continuidade em relação a

cus 2 (2) 1996: 81A110.


28 Para uma visão de conjunto do que eram as cidadesAempreendimento na primeira
metade do século XX, ver Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, pp.
221A241.
29 Dreher, Martin N. «Imigração alemã e protestantismo em Minas Gerais, ao longo
do século XIX». In: Rhema 16 (4) 1998: 77A104, pp. 98A100. A introdução de
imigrantes no espaço vital indígena foi uma estratégia «civilizadora» comum no
BrasilAImpério, como demonstra Prien, HansAJürgen. «Imigração, colonização e
terra indígena». In: Jochem, Toni V. (org). São Pedro de Alcântara, 1829 1999.
Aspectos de sua história. São Pedro de Alcântara, 1999, pp. 57A67.
30 Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, pp. 234A238.
182

características próprias das formas préAurbanas anteriores. O fato de a rua princiA


pal receber o nome de «direita» tem sua origem no costume de dar esta designaA
ção à via que desemboca no largo das antigas matrizes. Segundo Waldemar BarA
bosa, a escolha do local da povoação foi determinado pelo encontro de duas exA
pedições que haviam partido de direções contrárias (uma do Mucuri e outra de
Minas Novas). O local do encontro fora precisamente a margem do Rio de Todos
os Santos.31 Aparentemente, a solução é «racional»; porém – como teremos
oportunidade de explorar na seção 4.3.2 – ela tem sua origem em antigas práticas
de caráter nitidamente religioso. DemonstraAo ainda a constatação de Tschudi de
que o sítio realmente não era dos mais felizes, por estar espremido entre os morA
ros que cercam os vales dos rios nas redondezas. AcreditavaAse inicialmente que
uma planície à direita da Praça da Companhia permitiria o crescimento do núcleo.
Todavia a grande densidade da floresta havia «disfarçado» o morro ali existente, o
que só se veio a perceber mais tarde, com o desmatamento.32 De modo que PhiA
ladelphia, nossa primeira cidadeAempreendimento, não conseguira se libertar de
alguns simbolismos ancestrais. Algo parecido se pode observar em localidades do
sul de Minas cuja origem ou desenvolvimento se associa diretamente à exploraA
ção de águas dotadas de propriedades medicinais: Caxambu, Poços de Caldas e
São Lourenço. Nas duas primeiras a exploração foi planejada e financiada pelo
poder público33; na última, pela iniciativa privada.34 Esta racionalização da exA
ploração não se sobrepõe de todo, porém, à crença ancestral na dimensão numiA
nosa – «milagrosa» – das águas.35 Como a própria história, a evolução do espaço
urbano se faz num misto de ruptura e de continuidade, consciente ou não, com o
passado.

4.2 ProtoAurbanização e política indigenista


A primeira questão a ser colocada é saber se houve mesmo uma política indigeA
nista na Minas antiga. Tudo se inicia com a progressiva ocupação dos sertões da
Zona da Mata e Rio Doce. A partir da segunda metade do século XVIII o inteA
resse por estas regiões aumentara muito, e os governadores da capitania viam
nelas a saída para a crise causada pelo declínio da produção de ouro. É quando se
intensificam as iniciativas no sentido de explorar e ocupar os territórios tradicioA
nalmente habitados pelos índios. Ainda é cedo para que se possa falar numa «poA
lítica indigenista». Nesta primeira fase, a ação colonizadora foi sobretudo de caA
ráter policialAmilitar. A expressão espacial deste esforço era o presídio.

31 DHGMG, p. 349.
32 Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, p. 238.
33 Sobre Caxambu: ANEDC (15) 1953: 18A20; DHGMG, pp. 86A87. Sobre Poços de
Caldas: RAPM, ano I, fascículo 2, 1896, pp. 198A201; DHGMG, pp. 261A262.
34 ANEDC (12) 1950: 8A10; EMB, vol. 27, p. 253; DHGMG, pp. 324A325.
35 Espírito Santo, A religião popular portuguesa, pp. 35A37.
183

Eschwege explica que «dáAse aqui [em Minas Gerais] o nome de presídio aos
lugares onde se estabelecem as forças militares destinadas à defesa ou civilização
dos índios, bem como à prevenção do contrabando».36 O presídio representava
portanto um tipo de posto avançado. Alguns chegaram a ser fundados pelos banA
deirantes, mas a grande maioria surgiu da iniciativa estatal. Os colonos para lá
encaminhados, como foi visto no capítulo anterior, eram considerados a escória
da sociedade. Quando se lê os documentos da época, percebeAse claramente que a
imagem dos responsáveis diretos pelo empreendimento «civilizatório» pratica
mente não se distinguia, aos olhos das autoridades, da imagem daqueles a serem
«civilizados». Justamente os homens persuadidos ou coagidos a partirem rumo
aos sertões de matos (e que antes viviam «como feras nos arraiais, nos sertões e
nos lugares inacessíveis») é que tomam para si a tarefa de defender os presídios
do Cuité e dos Arrependidos «da irrupção do gentio bárbaro, e que penetram
como feras os matos virgens no seguimento do mesmo gentio».37 Só por ingenuiA
dade poderíamos supor que os governadores não estavam conscientes das trágicas
conseqüências que o contato entre colonos e indígenas, estabelecido nestas conA
dições, haveria de gerar. Uma carta régia em maio de 1798 autorizava a introduA
ção do trabalho compulsório dos indígenas. LegitimavaAse assim as violências e
as expropriações cometidas pelos fazendeiros.38
Além dos presídios do Cuité e dos Arrepiados, há referências a outros, como os
de Peçanha, Abre Campo e São João Batista. Numa zona de fronteira e de difícil
acesso, estes postos nem sempre resistiam por muito tempo. Em sua viagem aos
sertões do Rio Doce, Dom Antônio de Noronha determinou que «se fizesse uma
povoação nova, por se achar o pequeno presídio que [ali] existia em sítio baixo e
pantanoso».39 Além disso havia a compreensível reação de algumas tribos à
progressiva conquista do seu espaço vital. Os bispos criavam paróquias sem que
se soubesse ao certo até que ponto os novos núcleos resistiriam às dificuldades
impostas pelo meio e pelos índios. O presídio de Abre Campo, por exemplo, teve
de enfrentar inúmeros revezes até estabilizarAse e tornarAse povoação nas últimas
décadas do setecentos.40

36 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 62.


37 Coelho, «Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais (1780)», p. 347;
«Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da Capitania das Minas GeA
rais (1781)», p. 177 (grifos nossos). A mesma estratégia foi utilizada em outras reA
giões do Brasil. Ver Flexor, Maria Helena O. «Núcleos urbanos planeados do séA
culo XVIII e a estratégia de civilização dos índios do Brasil». In: Silva, M. B. NizA
za da (org.) Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995,
pp. 79A88.
38 Paraíso, Maria H. B. «Os botocudos e sua trajetória histórica». In: Cunha, Manuela
Carneiro da (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998
(1992), p. 416.
39 Coelho, «Instrução para o governo ...», p. 359.
40 DHGMG, pp. 16A17.
184

Quanto à catequese propriamente dita, seu início na região se confunde com a


trajetória de pelo menos dois arraiais. O mais antigo deles, o arraial do Pomba,
formouAse bem cedo. A freguesia do Mártir São Manuel do Rio Pomba e Peixe
foi criada pelo bispo do Rio de Janeiro em 16 de fevereiro de 1718. Este núcleo
inicial, porém, teve vida curta. As atrocidades cometidas pelos bandeirantes e os
contraAataques dos índios criaram dificuldades tais que o estabelecimento de um
sacerdote só viria a se concretizar em 1767, com o padre Manuel de Jesus Maria.
O novo vigário levantou a capela, as primeiras casas e uma escola. A acreditar em
Barbosa, seu trabalho foi bem acolhido entre os coroados e coropós. Em conA
seqüência da atividade deste missionário, cresceu o arraial do Pomba.41 Seu asA
pecto em 1824: «[a capela] é de pauAaApique e fica numa grande praça aberta e
livre. O lugar tem várias ruas, as casas são pequenas e térreas e, nesse momento,
estão quase todas abandonadas pelos seus habitantes, que estão todos em DescoA
berta Nova». Padre Jesus Maria mantinha, nas proximidades, um moinho de canaA
deAacúcar e uma venda.42
Em São João Batista do Presídio (hoje Visconde do Rio Branco) o núcleo priA
mitivo fora levantado por bandeirantes. O lucrativo comércio da ipecacuanha (ou
poaia, raiz usada como remédio contra tosse, vomitivo e espectorante) abriu boas
perspectivas para a povoação. A fim de controlar esta atividade, criouAse ali, no
dia 10 de junho de 1789, um quartel dotado de 60 soldados.43 Certamente já haA
via de existir uma capela provisória, quem sabe um simples altar portátil. Em
1776 estava formado seu cemitério. Em 25 de agosto de 1787 o padre Jesus MaA
ria obteve provisão para a ereção de uma capela dedicada a São João Batista.44 O
arraial não cresceu significativamente até que, por volta de 1814, muitas pessoas
advindas de São Miguel e, posteriormente, de Catas Altas, começaram a estabeA
lecerAse ali. Em 1817 havia cerca de 30 casas no local, e «prósperas roças» nas reA
dondezas.45 Em 1824 o arraial tinha nada menos que 360 casas. CriavamAse suíA
nos, plantavaAse milho, feijão, café e canaAdeAacúcar. O comércio da ipecacuanha
mantinhaAse intenso. Os índios extraíam a raiz para vendêAla pelo preço de 6 paA
tacas (2.000 réis) ao quilo. Com o que, escreve Langsdorff, eles «bebem até não
terem mais dinheiro». CogitavaAse então mudar a localização do arraial, em razão
dos prejuízos causados por enchentes.46
É a partir do início do século XIX que se pode falar do início de uma «política
indigenista» oficial. Ela se orientou por dois objetivos básicos: colonização dos
sertões do leste e guerra aos índios botocudos. Logo após a chegada da Família
Real ao Brasil, criaAse a Junta de Conquista e Civilização dos Índios, do ComérA

41 EMB, vol. 27, p. 74; DHGMG, pp. 286A287.


42 Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, p. 72.
43 Como em Patrocínio do Muriaé, onde a exploração da ipecacuanha forneceu as baA
ses econômicas do crescimento do núcleo incial. EMB, vol. 26, pp. 299A300.
44 EMB, vol. 27, p. 446; DHGMG, p. 370.
45 Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, I, p. 194.
46 Trindade, Visitas pastorais, p. 172.
185

cio e Navegação do Rio Doce. Alguns números falam por si sós: a carta régia que
constituiu a Junta determinou a criação de 6 divisões de soldados, num total de
aproximadamente 600 homens. Em correspondência datada de 20 de março de
1809, o alferes Antônio Roiz Taborda determina ao comandante da primeira diviA
são «até o mês de maio entrar com a gente de sua divisão a atacar os botocudos
nas suas aldeias». Taborda diz esperar avanços significativos daquele comandante
por ser este um «oficial antigo, e de tropa de linha», e que, como tal, haveria de
demonstrar sua energia «em debelar esta massa antropófoga, que tantos prejuízos
tem causado aos fazendeiros desta capitania».47 O resultado prático destas mediA
das não correspondeu de todo às intenções expressas pela Coroa. Eschwege falaA
nos do estado de coisas em 1815:
«Nem o território dos botocudos – que compreende um distrito de boas 1200
léguas quadradas (...) – foi conquistado, nem os botocudos curvaramAse sob
o brando jugo da lei, nem se abriram estradas, nem foi incentivada a navegaA
bilidade do Rio Doce.»48
Somente na primeira metade do oitocentos criaramAse em Minas 87 quartéis e 73
aldeamentos.49 Cidades como Aimorés e Jequitinhonha são alguns dos frutos
deste esforço. Se nos arraiais formados a partir de patrimônios religiosos o ponto
de cristalização em torno do qual se adensa o arraial nascente foram as capelas,
nos casos de que se trata aqui é evidentemente o quartel que desempenha esse
papel. Isso fica claro no caso de São Miguel (atual Jequitinhonha). Fundado pelo
alferes Julião Fernandes Leão por volta de 1804 e sede da 7a Divisão Militar, este
embrião de cidade sequer tinha uma capela quando por ele passou SaintAHilaire.
Possível, no quadro mental da Minas antiga, a criação de um espaço em áreas de
fronteira sem o recurso ao sagrado? A presença de um cruzeiro diante do quartel
bem mostra em que medida a transformação racional do espaço nem sempre exA
cluiu o recurso ao numinoso. Anos depois, Pohl visitou São Miguel. A igreja esA
tava em construção e já havia 40 casas de telha no arraial.50
Segundo um relatório feito em 1813 pelo futuro diretor dos distritos dos índios
no alto Rio Doce, Guido Tomás Marlière, existiam então 150 aldeias de coroados,
num total de 1.900 indígenas.51 Os coropós eram bem menos numerosos. Mais ou
menos na mesma época, contavamAse 292 pessoas divididas por 29 aldeias. O esA
forço da Coroa visava, explicitamente, «civilizar» e «pacificar» os índios por meio
da catequese, da introdução da agricultura e da sedentarização. A abertura de esA
tradas, criação de quartéis e presídios garantiria as condições mínimas para a

47 APM, SCA334.
48 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 81.
49 Paraíso, «Os botocudos...», p. 418.
50 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., II, p. 121; Pohl, Viagem no interior do
Brasil, II, p. 315; DHGMG, p. 174.
51 Cada uma destas aldeias era composta de uma ou no máximo duas famílias «extenA
sas ». Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 120A121.
186

formação e crescimento de povoações. A guerra aos botocudos também visava


abastecer de mãoAdeAobra a fronteira agrícola em expansão.52 Se o processo de
protoAurbanização no leste de Minas não pode ser entendido sem o reconheciA
mento da decisiva intervenção do poder público, a centelha que deflagrava a
gênese de um embrião de cidade continuava a ser, muitas vezes, de natureza reliA
giosa. Os moradores das margens do rio Ubá obtiveram, em 3 de novembro de
1815, autorização para a ereção de uma capela a São Januário. Os doadores do
seu patrimônio foram o capitãoAmor Antônio Januário Carneiro e sua mulher,
Francisca Januário de Paula Carneiro.53 A capela foi concluída em 1818. Em
1823, Dom Frei José escrevia que «seu local é muito melhor que o da igreja maA
triz» e que tem «proporções para se fazer um bonito arraial».54 Langsdorff
confirma estas impressões um ano mais tarde: «A aldeia d’Ubá é pequena e insiA
gnificante, mas a redondeza é agradável, e o local parece crescer diariamente
(considerandoAse as muitas casas novas)».55
A história de vários arraiais relacionaAse intimamente com a figura de Marlière.
Por sua iniciativa foram fundados aldeamentos em 18 diferentes localidades, dos
quais muitos efetivamente tornaramAse núcleos urbanos.56 Muriaé teve início com
um aldeamento no lugar denominado Sítio de Manoel Burgo. Ali decidiu
Marlière levantar capela de São Paulo Apóstolo. A provisão episcopal foi obtida
em 16 de agosto de 1819, e o curato foi criado em 1821. Mas devido à lentidão
com que era dotada de recursos públicos, a capela só foi considerada em
condições de funcionar em 1832. Em 1844, segundo um relatório da Câmara da
Vila do Presídio, o Arraial de São Paulo contava «com um pequeno número de
casas habitadas, com um patrimônio composto de mais de duas sesmarias» conA
cedidas por Dom João VI.57 Meia Pataca (hoje Cataguases) localizavaAse num síA
tio inicialmente denominado Porto dos Diamantes. Embora os primeiros habiA
tantes tivessem se estabelecido naquelas redondezas entre 1809 e 1810, foi soA
mente em 26 de maio de 1828 que o sargento de ordenanças Henrique José de
Azevedo e outros moradores doaram o patrimônio no qual Marlière cuidou de leA
vantar capela de Santa Rita e fundar a povoação.58 O Sapé (Guidoval) cresceu
nas imediações do sítio pertencente a Marlière no distrito dos coroados. Este sítio
tinha o nome de Guidoval, e daí o nome atual da cidade.59 Guido Pocrane, um ínA
dio «civilizado» e que tornouAse afilhado de Marlière, foi o fundador da localiA

52 Mattos, Izabel Missagia de. «O projeto militarista do Rio Doce». Mimeografado,


2001.
53 EMB, vol. 27, p. 390.
54 Trindade, Visitas Pastorais, p. 170.
55 Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, p. 89.
56 Mattos, «O projeto militarista do Rio Doce», p. 3.
57 AEAM, arm. 24, cx. 3; DHGMG, p. 214.
58 EMB, vol. 24, pp. 423A424; DHGMG, pp. 84A85.
59 EMB, vol. 25, p. 198; DHGMG, p. 146.
187

dade que traz ainda o seu nome.60


Em outros casos os arraiais apenas se superpuseram a espaços anteriormente
ocupados por aldeias. Nas origens de São João Evangelista existiu, no início do
século XIX, um aldeamento chamado São Nicolau. Os índios abandonaramAno
mais tarde e seguiram para Peçanha. As terras foram progressivamente assenhoA
radas por vários pioneiros, entre eles Idelfonso da Rocha Freitas. Seus filhos
(Valeriano Freitas e Henrique Freitas) doaram, em 1874, cerca de dois alqueires
de terras a Nossa Senhora do Rosário. Com a capela, surgiu o povoado.61 TamA
bém em Queiroga (atual Itanhomi) havia, nos primeiros anos do último século,
um aldeamento. A partir de 1906, por iniciativa do padre Modesto Vieira, levanA
touAse um cruzeiro e começou a construirAse capela.62
Tudo isso não deve, porém, ser tomado como evidência do sucesso da empresa
civilizatória lusoAbrasileira. A despeito do tom entusiasta de historiadores como
Diogo de Vasconcellos e Waldemar Barbosa (para quem o padre Jesus Maria foi o
«apóstolo dos silvícolas», e Marlière o «grande civilizador dos índios»), sabeAse
hoje que a realidade foi outra. A opinião dominante a respeito das diversas tribos
existentes no território mineiro era basicamente a mesma que predominara desde
o início da colonização do Brasil: o índio é um selvagem que desconhece toda
forma de «civilidade» e que, portanto, encontraAse ainda num estado subAhumano.
Para Nuno Marques Pereira os índios eram «tão vadios, e calaceiros, que nem alA
deias, nem casas têm, nem domicílio certo, porque dormem onde lhes anoitece
(...) tendo somente por Deus os seus ventres».63 PenseAse na ironia histórica que é
esta atribuição de incivilidade à condição de vida nômade; justo naquela Minas
antiga em que o enraizamento sempre fora exceção. Mas estas considerações obA
viamente não perturbavam as consciências. Era mais cômodo caracterizar os ínA
dios como «muito atraiçoados, vingativos, sem nehum gênero de caridade», uma
gente na qual não se acha «primor nem cortesia», que «não tem agradecimento ao
benefício, que se lhes faz», seres «que mais se inclinam para o mal, do que para o
bem».64 Não surpreendem, pois, os versos de Gonzaga: «Aqui os Europeus se diA
vertiam/ em andarem à caça dos gentios/ como à caça de feras, pelos matos».65
Uma das primeiras e mais veementes críticas ao fracasso da política oficial foi
feita por Eschwege. No seu Journal von Brasilien, o mineralogista alemão menA
ciona as formas habituais por meio das quais os colonos lidavam com os índios:
expropriação de terras, envenenamento, difusão intencional de doenças e do alA
coolismo, massacres. Os soldados estacionados nos quartéis e presídios nada faA

60 DHGMG, p. 262.
61 EMB, vol. 27, p. 235; DHGMG, p. 321. O tamanho do patrimônio difere nas duas
fontes. O DHGMG fala em dois alqueires (96.400 m²), e a EMB em 9,68 ha
(96.800 m²).
62 EMB, vol. 25, p. 278.
63 Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América, II, p. 58.
64 Pereira, op. cit., II, p. 60.
65 Gonzaga, Cartas chilenas, p. 213.
188

zem pela segurança dos indígenas. Pelo contrário:


«Marlière tem grande esperança na sua civilização; mas em que ajudam belas
idéias quando homens perversos destroem de um lado o que é construído de
outro? Assim acontecem aos pobres puris ainda maiores crueldades onde eles
são vigiados pelas divisões.»66

E mais:
«Um rico proprietário das redondezas onde os puris recentemente se estabeA
leceram sugeriu ao diretor que se poderia misturar azinhavre à sua comida a
fim de dar cabo deles. O comandante do distrito de Santana dos Ferros me
disse abertamente, numa oportunidade em que eu conversava com ele sobre
aqueles puris, que agora seria a melhor oportunidade para extinguir tal povo
de uma só vez (...). Eu conheço até mesmo alguns sacerdotes que apoiam
esta idéia.»67
A resistência inicial ao modelo civilizacional europeu era uma reação compreenA
sível.68 Ademais, a imensa maioria dos coroados e coropós não chegara a adquirir
conhecimentos básicos da língua portuguesa. Nestas condições, a conversão ao
catolicismo seria ainda impensável. Os batismos e a assistência ao culto não imA
plicavam o abandono do antigo cosmos sagrado mas inseriaAse, para muitos dos
«pacificados», numa espécie de «política de boa vizinhança» e, por que não dizêA
lo, numa estratégia de sobrevivência. Nos domingos e dias santos os subAdiretores
os levavam às capelas, onde os vigários procuravam ensináAlos a rezar. Logo em
seguida, porém, cuidavam os índios de visitar Marlière e dizerAlhe: «Capitão, teA
nho fome. Eu estava na igreja».69 Diferentemente dos africanos, cujos complexos
sistemas politeístas ofereceram as condições para uma rápida incorporação criaA
tiva dos cânones católicos, nos xamanismos ameríndios não havia «afinidades
eletivas» capazes de facilitar o processo de aculturação religiosa.70 Ao visitar a
aldeia de Santo Antônio, SaintAHilaire espantouAse ao perceber que um índio vaA

66 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 103.


67 Eschwege, Journal von Brasilien, I, pp. 103A104.
68 O que não quer dizer que a posterior aculturação tenha inviabilizado a reconstruA
ção da identidade indígena. Ver as oportunas reflexões de Mattos, Izabel Missagia
de. «Temas para o estudo da história indígena em Minas Gerais ». In: Cadernos de
História 5 (6) 2000: 5A16.
69 Eschwege, Journal von Brasilien, I, p. 148.
70 Sobre a religião dos principais grupos indígenas que habitavam o território miA
neiro, ver Steward, Julian (ed.) Handbook of South American Indians. New York:
Cooper Square, 1963, vol. I, pp. 523A545. Para uma visão panorâmica, conferir
Wright, Robin M. and Cunha, Manuela C. da. «Destruction, resistance, and transA
formation – Southern, Coastal, and Northern Brazil (1580A1890)». In: Salomon, F.
and Schwartz, S. (ed.) The Cambridge History of the Native Peoples of The
Americas. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, vol. III, part 2, pp. 287A
381.
189

liaAse da palavra tupã para designar tanto Deus quanto o santo da capela.71 Dois
representativos exemplos são dados por Freireyss, que esteve no presídio de São
João Batista em 1814. Marlière deixou seu cãozinho com um coroado para que
este o curasse dos ferimentos que sofrera devido a um ataque de porcos famintos.
Dois dias depois o índio se apresentou ao Diretor dos Índios com a notícia da
morte do pobre animal, não sem deixar de acrescentar: «como o cão era de um
amigo, enterreiAo e pus uma cruz no túmulo».72
E continua o mesmo viajante: «TinhaAse contado aos índios batizados há pouco
a história de São Manuel, não poupando as narrações de seus milagres. Ao
mesmo tempo estavaAse construindo uma igreja no presídio e no dia da inauguraA
ção da capela provisória a imagem de São Manuel devia ser ali depositada. CuriA
osos por conhecer o milagroso santo, muitos índios tinham chegado, mas, quando
viram que a imagem era de madeira, voltaram todos para as suas matas. AcrediA
tavam que se fazia caçoada deles e diziam que o santo era de pau e que pau só era
pau e não tinha ação nenhuma».73 Em Mercês, reza a tradição local, a primeira
capela foi destruída pelos índios, que lhe atribuíram um violento surto epidêmico
que grassava naquela região.74 O mesmo fenômeno deuAse em Itambacuri, onde
uma epidemia de sarampo fez com que os índios acusassem os padres de feitiçaA
ria e queimassem o aldeamento.75 Esta atribuição de epidemias ao sagrado cristão
é tão mais interessante quando se sabe que, para o catolicismo popular lusoAbraA
sileiro, a relação é exatamente inversa. Segundo o Códice Matoso, o sítio de GuaA
rapiranga (atual cidade de Piranga) era, em seus primórdios, «muito infestado de
sezões». Em 1695 construiuAse a capela de Nossa Senhora da Conceição. Com a
vinda do vigário nomeado, padre Roque Pinto de Almeida, «foi o caso milagroso
que logo que foi benzida e os ares cessaram as sezões, sarando os que as tinham,
e ficou este distrito [o] mais sadio das Minas».76
Itambacuri foi o primeiro aldeamento mineiro dirigido por uma ordem religiA
osa. Os responsáveis por este projeto «heterotópico», os capuchinhos Serafim de
Gorizia e Ângelo de Sassoferrato, foram nomeados pelo governo em 1872 e iniA
ciaram suas atividades no ano seguinte. Sua missão era aldear os botocudos e
evitar os conflitos entre estes e os colonos no Vale do Mucuri, os quais vinham se
agravando desde a falência da Companhia de Comércio de Teófilo Otoni. «CiviliA
zação», catequese e urbanização eram ainda os três princípios que norteavam a
política indigenista no Brasil, como demonstram as palavras de Frei Ângelo ao
referirAse ao local onde deveriam se estabelecer: «Devia ser quanto possível um
ponto central, que deparasse belo horizonte visual, e onde se pudesse formar uma

71 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., I, p. 359.


72 Freireyss, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 96.
73 Freireyss, op. cit., p. 98.
74 EMB, vol. 26, p. 87.
75 Paraíso, «Os botocudos...», p. 420.
76 CCM, p. 257.
190

aldeia, uma freguesia e até uma cidade».77 Izabel Missagia de Mattos, que tem se
dedicado à análise sistemática da história de Itambacuri, caracteriza esta iniciaA
tiva como «empreendimento missionárioAcivilizador».78
Em 1902 o bispo coadjuntor de Mariana visita Itambacuri, e afirma ser «ótima»
a sua igreja. O mestre dos índios era então João Alves Correia, «bisneto duma ínA
dia de São Miguel do Jequitinhonha, pegada a dente de cães». Para o prelado a
morte dos «heróis» fundadores do aldeamento (ocorrida em 24 de maio de 1893)
fora fruto da «traição dos índios». Existia ainda no lugar um recolhimento com 14
meninas, «a quem uma índia aranã ensina a ler».79 O aldeamento não resistiu às
hostilidades e massacres cometidos ora pelos moradores da região, ora pelos próA
prios índios. O núcleo, porém, firmouAse e em 1911 foi finalmente elevado a disA
trito.80

4.3 ProtoAurbanização e cosmos sagrado


No terceiro capítulo de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque diagnosticou um «preA
domínio esmagador do ruralismo» no Brasil Colônia.81 Esta convicção encontrou
eco na obra de autores como Oliveira Vianna, para o qual o homem brasileiro
colonial era marcado pelo «gosto do insulamento» e mesmo por uma «tendência
antiurbana».82 Que tenha havido indivíduos que pelos mais distintos motivos busA
cavam a solidão nos sertões, é ponto pacífico. Porém, a grande diáspora que
marca o processo de ruralização em Minas na segunda metade do século XVIII
foi claramente deflagrada pela queda da produção de ouro. A agricultura assume,
gradativamente, a condição de atividade econômica predominante. O espaço do
mundo da vida não é mais a lavra à margem de um curso d’água ou a grupiara,
mas a fazenda. Esta transição deve ter exercido uma influência que certamente
não se limitou à imposição de outras formas de subsistência no novo Lebens
raum. PodeAse imaginar o impacto decorrente deste processo sobre a percepção
ambiental de homens até então habituados à paisagem cultural das «vilas do
ouro».
A tese do antiurbanismo colonial não se sustenta porque pressupõe que aqueles
homens, depois de se espalharem pelo território mineiro, não teriam produzido
forças capazes de contrabalançar e mesmo reverter tal dispersão.83 A religião foi

77 Citado por Palazzolo, Frei Jacinto de. Nas selvas dos Vales do Mucurí e do Rio
Doce. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1954, p. 61.
78 Mattos, Izabel Missagia. ‹Civilização› e resistência: revolta indígena no aldea
mento missionário de Itambacuri – 1893. Relatório científico apresentado ao douA
torado em Ciências Sociais da Universidade de Campinas, 2001, p. 26.
79 AEAD, cx. 49 (Livro de visita pastoral de Dom Joaquim Silvério de Souza).
80 Paraíso, «Os botocudos...», pp. 419A420; DHGMH, pp. 160A161.
81 Holanda, Raízes do Brasil, p. 60.
82 Vianna, Instituições políticas brasileiras, vol. I, p. 102.
83 A solução de Freyre demonstra ser bem mais factível: «Talvez não haja exagero em
191

uma das mais importantes destas forças. A ponto de podermos afirmar, sem qualA
quer receio de violentar os fatos: ela produziu cidades.84
Por meio da análise da história das primitivas capelas e seus patrimônios veA
remos como isso foi possível. É necessário estabelecer aqui, de antemão, uma
distinção importante. Não se trata simplesmente de reconstituir a trajetória deste
ou daquele município, mas sim de demonstrar como o universo das representaA
ções religiosas deu vida aos arraiais mineiros. No seu Dicionário Histórico Geo
gráfico de Minas Gerais, Waldemar Barbosa contribuiu, e muito, para que o emA
penho inicial dos geógrafos recebesse o devido tratamento historiográfico. TodaA
via, apesar de ter tido em mãos muitas das fontes das quais nos utilizaremos
(pedidos de provisão, escrituras de doação de terras, relatórios enviados às autoA
ridades civis e eclesiásticas), Barbosa não as explorou a fundo. É compreensível
que um trabalho nas dimensões do que ele empreendeu não pudesse aprofundarA
se no estudo dos casos; a tarefa deveria ser levada a cabo pelas novas gerações de
historiadores. O presente estudo deve ser entendido nesta perspectiva. Por outro
lado, não nos interessa apenas a gênese das formas elementares do espaço urbano
mineiro, mas também identificar as formas de religiosidade popular que permeaA
ram – e em grande medida presidiram – este processo. A documentação em
questão tem muito a dizer a este respeito.
No capítulo precedente, ao fim de nossa discussão sobre o problema das ermiA
das domésticas, concluímos que elas eram, antes de mais nada, fruto da intensa
demanda pelo sacrifício da missa. SomeAse a isto as dificuldades impostas pelas
distâncias e/ou pela precariedade das vias de acesso à sede paroquial mais próA
xima. Afirmamos que o culto realizado numa ermida só se diferenciava daquele
celebrado em qualquer outro templo por sua «escala», mas não pela sua natureza.
Como veremos a seguir (seção 4.3.1), a ereção de capelas e a constituição de seus
respectivos patrimônios em terras – embrião de tantas de nossas vilas e cidades –
se assentou sobre as mesmas bases. Mas se no caso das ermidas domésticas a iniA
ciativa parte de um único proprietário que arca com todos os gastos, no caso das
capelas isso se dá bem mais raramente. Em razão dos altos custos envolvidos, são
quase sempre grupos de moradores que se organizam para construir um templo
onde possam receber de um sacerdote o indispensável «pasto espiritual». Mesmo
quando a constituição do patrimônio «do santo» é feita por um único doador, o
processo como um todo tem um caráter nitidamente coletivo. Diante disso, há
que matizar a afirmativa de Julita Scarano, de que o grande número de templos

dizerAse do brasileiro que (...) é um predisposto à rurbanidade, isto é, a um misto de


urbano e de rural, de desenvolvimento e de estabilização (...). Uma forma de
existência nem sempre atingida mas quase sempre desejada por todo brasileiro».
Freyre, Sobrados e Mocambos, p. 20.
84 Dorn mostrou como freqüentemente «há um incontestável paralelismo cronológico
entre a fundação de um lugar e a fundação de uma igreja». Dorn, Johann. «PatroziA
nienforschung und Ortsnamenkunde». In: Zeitschrift für Ortsnamenforschung (8)
1932: 3A8, p. 5.
192

no território mineiro85 se deveu à existência das irmandades. Não é verdade que


«apenas agremiações solidamente constituídas teriam tido possibilidade de levar a
cabo tais obras».86 Na préAhistória dos arraiais e vilas, a devoção coletiva não esA
tava ainda institucionalmente enquadrada sob a forma de irmandades.
É revelador que a principal preocupação expressa na grande maioria dos doA
cumentos analisados seja a necessidade de «cumprir com o preceito da missa».
MencionaAse também, é verdade, o «escândalo» em que vivem aquelas populaA
ções privadas dos sacramentos. A eucaristia e a penitência, únicos sacramentos a
serem periodicamente «renovados», normalmente só eram recebidos uma única
vez por ano, na Quaresma (ocasião da chamada desobriga).87 É bem sabido que
para a Igreja Católica os «meios de salvação» constituíram um instrumento de
disciplinarização dos fiéis e de imposição da religião oficial.88 Um Dom Frei
Manoel da Cruz determina numa visita pastoral em Catas Altas no ano de 1743:
«Não deve o reverendo pároco admitir ao sacramento do matrimônio a pessoa alA
guma sem que saiba a doutrina cristã nem confessor algum absolver a penitente
que ignorar a dita doutrina».89 Esta estratégia provavelmente nunca se mostrou
totalmente eficaz. Em 1825, escrevia Dom Frei José: «Porquanto a ignorância da
doutrina cristã é digna de lástima, ordenamos a todos os confessores, e com pena
de suspensão ipso facto, não admitam a penitente algum a Confissão, em especial
da desobriga, sem preceder exame da doutrina».90 Na freguesia de Barra Longa,
ainda segundo o mesmo bispo, houve pessoas que «amotinadamente se queixaA
ram da negação do pároco em admitíAlos a sacramentos».91
No caso do batismo e mesmo da extremaAunção a dependência dos leigos em
relação ao clero podia ser relativizada. Havia circunstâncias em que o povo se
«apropriava» dos sacramentos. A própria Igreja permitia que, em casos extremos,
o batismo pudesse ser ministrado por qualquer pessoa.92 Em 1769, Inácio Correia
Pamplona encontrou no sertão oeste de Minas «um homem por nome Valentim,

85 «Em nenhuma província brasileira a evidente desproporção entre o número de haA


bitantes e o de igrejas se manifesta em tão alto grau como em Minas Gerais».
Tschudi, Reisen durch Südamerika, 2. Band, p. 52.
86 Scarano, Devoção e escravidão, p. 83.
87 CAB, livro I, título XXXVI, 139.
88 A este respeito, ver o interessante estudo de Hahn, Alois. «Zur Soziologie der
Beichte und anderer Formen institutionalisierter Bekenntnisse: SelbstthematisieA
rung und Zivilisationsprozess». In: Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsy
chologie (34) 1982: 408A434. Ver também Harnack, Dogmengeschichte, pp. 405A
414, 431A436.
89 AEAM, 1° livro de pastorais e provisões de bispos visitadores.
90 Trindade, Visitas pastorais, p. 259.
91 Trindade, Visitas pastorais, p. 166.
92 CAB, livro I, título XIII, 43. «Na zona rural de Itaipava, os moradores antecipam o
batismo. Mal a criança nasceu chamam os padrinhos e com uma canequinha, água,
sal e um raminho de arruda ministraAse o batismo». Willems, Uma vila brasileira,
p. 150.
193

oficial de Alfaiate, mui porco e muito sujo, que dizem era o homem que encoA
mendava os defuntos».93 De uma maneira geral, os baixos níveis de sacramentaA
ção são uma constante nos séculos XVIIIAXIX. Uma história dos sacramentos
provavelmente tem menos a nos dizer sobre o cotidiano da religião da gente coA
mum na Minas antiga que uma história do culto.94
Adalgisa Campos observa, a respeito da Minas colonial, que «mais do que a
participação na eucaristia, (...) é importante estar presente à celebração».95 EmA
bora a vida religiosa se expressasse por meio de inúmeros atos de devoção, como
as invocações e orações nos momentos «críticos» do diaAaAdia (antes de levantarA
se e de dormir, ao sair de casa, antes das refeições, na hora do Ângelus) ou na
reza do terço, o seu ponto alto davaAse sem dúvida na assistência ao culto domiA
nical. Estamos aqui diante de um estilo de religiosidade, como bem mostrou José
Comblin, no qual «a forma é o suporte da devoção».96
Este ponto merece aprofundamento. A religião configura um campo da vida
coletiva por meio do qual se dá a ler a lógica do edifício social, e a Minas antiga
certamente não faz exceção à regra. Affonso Ávila mostrou que a civilização barA
roca mineira era marcada pela «busca deliberada da sugestão ótica». O prazer
«quase sensual diante das cores e formas», a empolgação «pelo rito da religião e
pela magia do ouro» condicionavaAlhe os hábitos e maneiras como um todo.97
Esta mentalidade não se limitou aos principais centros urbanos da época, e muito
menos se confinou ao setecentos. Obviamente, o esplendor das grandes matrizes,
festas e procissões urbanas só pôde se maximizar tanto em virtude da mineração.
Com a diminuição da produção de ouro e a subseqüente ruralização, nada mais
natural que também o barroco entrasse em «declínio». Mas a progressiva superaA

93 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...». In: Anais da Bibli


oteca Nacional (108) 1988, p. 58.
94 A menção aos sacramentos nas correspondências enviadas às autoridades não deve
ser necessariamente tomada como uma prova de que eles eram colocados num
mesmo patamar de impotância que a prática do culto dominical. Uma hipótese a
ser considerada é a de que este procedimento seria, antes, uma estratégia de legitiA
mação dos próprios pedidos. No catolicismo popular observaAse, por vezes, uma
postura bastante cética em relação à penitência. VejaAse o que alguns dos moradoA
res de Cruz das Almas declararam a Donald Pierson: «This business of confessing
is not for me. Why should I be telling things to another man?»; «I’m a Catholic but
I don’t go to confession. That is nonsense»; «Whenever I can, I go to Mass. But to
confess – that’s another thing. You should confess your sins only to the Father in
Heaven; isn’t that so?». Pierson, Cruz das Almas, p. 157.
95 Campos, Adalgisa Arantes. A terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a
São Miguel e Almas. São Paulo: tese de doutorado em história, USP, 1994, pp.
261A262.
96 Comblin, José. «Para uma tipologia do Catolicismo no Brasil». In: REB 28(1)
1968: 46A73, p. 60.
97 Ávila, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Textos do século do ouro e as
projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: UFMG, 1967, vol. I, pp. 85 e 108.
194

ção de um estilo artístico não significa que a visão de mundo que lhe serviu de
base tenha se desagregado com a mesma velocidade. Nosso catolicismo popular
permaneceu profundamente marcado por este «primado do visual» (Ávila). É preA
cisamente a missa o momento da vida social em que esses componentes estrutuA
rais da religião e da cultura mineira antiga podem ser melhor percebidos.
PoderAseAia dizer, em contraposição a esta tese, que dificilmente terá havido
eventos que sintetizassem melhor a visão de mundo barroca que os ritos fúnebres.
É possível. Mesmo a frenética atividade das confrarias e ordens terceiras girava,
em larga medida, em torno da garantia de sepultamento e da realização de um fuA
neral adequado («verdadeira obcessão» dos tempos coloniais, diz Boschi).98 Que
os ritos funerários sejam investidos de uma dramaticidade infinitamente superior
à de uma celebração dominical, não deveria mesmo causarAnos surpresa. Afinal,
para o cristão, só é possível morrer uma vez. Porém o que torna o sacrifício da
missa tão interessante é o fato de que ele – como todo rito – é dotado de um caA
ráter extraAcotidiano sem com isso distanciarAse de forma radical do cotidiano da
vida. E reciprocamente: ele é rito periódico sem com isso reduzirAse a uma mera
rotina.
Seria ingênuo imaginar que tamanha ênfase no culto se deveu apenas a consA
trangimentos eclesiásticos. Como se sabe, o ritualismo era um traço marcante da
cultura portuguesa que manteveAse intocado entre nós.99 Ele impregnava todas as
expressões, todos os campos da vida. As vozes dissonantes só faziam confirmar a
regra. Em meados do setecentos, Mathias da Silva Eça lamentava: «a vida civil se
reduz a um cerimonial composto de genuflexões, e de palavras».100 O serviço reA
ligioso era o momento onde este ritualismo assumia uma expressão particularA
mente nítida, como se pode perceber nesse conselho de Eschwege aos futuros
viajantes interessados em percorrer Minas Gerais:
«Tudo o que tem a ver com as boas maneiras e o cerimonial deve ser aqui riA
gorosamente observado, do contrário perdeAse muito facilmente o respeito.
Um homem inteligente nunca se omitirá com relação a assuntos religiosos,
mas visitará as igrejas do país mesmo quando declararAse adepto de outra reA
ligião. Com isto ele ficará livre de muitas observações desagradáveis, tanto
por parte das pessoas de melhor condição quanto da plebe.»101

98 Boschi, Os leigos e o poder, p. 150. O que não é exatamente uma originalidade:


«na maioria das sociedades, os funerais são uma oportunidade de ostentação », diz
Leach, Sistemas políticos da Alta Birmânia, p. 176. Segundo Scarano, oito dos
vinte ítens que compunham o compromisso da irmandade do Rosário do Serro
tratavam do tema da morte. Scarano, Devoção e escravidão, p. 53.
99 Willems, Emílio. «Portuguese culture in Brazil». In: Proceedings of the Interna
tional Colloquium on Luso Brazilian Studies. Nashville: The Vanderbilt University
Press, 1953, pp. 66A79.
100 Eça, Mathias Aires Ramos da Silva. Reflexões sobre a vaidade dos homens, ou
discursos morais sobre os efeitos da vaidade. Lisboa, 1752, p. 56.
101 Eschwege, Journal von Brasilien, vol. I, p. 20.
195

Meio século mais tarde, Burton reclamava ainda do «penoso desdobrar de ceriA
mônias» de que se cercavam os mineiros.102
Ao se dirigir ao templo, a mãe de família sai processionalmente com as filhas
em fila indiana, dispostas por ordem de idade. Ao fim, caminha seu vigilante maA
rido.103 Este procedimento demonstra não só a solenidade de que se reveste o dia
do culto, mas também que o espaço é percebido pelos atores sociais como uma
dimensão heterogênea. O que é uma procissão? Ela é uma «oração pública feita a
Deus por um comum ajuntamento de fiéis disposto com certa ordem, que vai de
um lugar sagrado a outro lugar sagrado».104 O mesmo formalismo e a mesma disA
ciplina podem ser observados no cortejo das devotas famílias mineiras. A casa é o
espaço sagrado do qual parte esta procissão em miniatura, e a igreja o espaço
sagrado para onde ela se dirige.
Aos domingos a indumentária assume uma importância capital. O sacrifício da
missa é um evento sagrado, de modo que a ninguém ocorre a idéia de assistiAlo
com as vestes do diaAaAdia. A íntima relação entre o dispositivo ritual e essas
«máquinas de comunicar» que são as roupas sempre foi, de resto, ressaltada pelos
antropólogos.105 O caso de Nossa Senhora de Nazaré (ver seção 3.3) mostra que
as primeiras casas levantadas ao redor da capela não são «residências». Elas são –
inicialmente, pelo menos – um mero abrigo onde as pessoas vindas de longe para
a celebração recolhem seus pertences e onde podem trocar de roupa «para decenA
temente assistirem no templo».106 Esta preocupação era generalizada entre os caA
tólicos, independente de etnia ou condição social. Em princípios da década de
1720, um certo capitão Matias Barbosa ia à missa com sua consorte índia «calA
çada, bem vestida de manto e com outras escravas que os acompanham».107 Nuno
Marques Pereira narra as dificuldades da esposa de um fazendeiro em fazer com
que suas escravas assistissem às celebrações. Elas recusavamAse a fazêAlo sem
sua senhora, e, «chegando a irem, há de ser com todo o preparo e roupas, como as
mais escravas de suas vizinhas».108 Burmeister nota que, no dia do Senhor, em
Congonhas, «o grande número de pessoas elegantemente vestidas surpreende, e
pensamos encontrarAnos numa feira européia. Mas a ilusão não dura. No dia seA
guinte tudo muda: calças rôtas, sapatos gastos, saias sujas e remendadas e chaA

102 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 335.


103 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, pp. 118A119; Burmeister, Viagem
ao Brasil, p. 248.
104 CAB, livro III, título XIII, 488.
105 «The best clothes owned are worn to Mass», diz Pierson, Cruz das Almas, p. 154.
Ver também Leach, Cultura e comunicação, pp. 68A69; Da Matta, Carnavais, ma
landros e heróis, pp. 50A52.
106 APM (AHU), cx. 162, doc. 9.
107 Citado por Resende, Maria L. Chaves de. «Brasis coloniales: o gentio da terra nas
Minas Gerais setecentista (1730A1800)». Trabalho apresentado no encontro da LaA
tin American Studies Association, Washington, setembro de 2001, p. 13.
108 Pereira, Compêndio narrativo..., vol. I, p. 183.
196

péus velhos substituem os elegantes trajes domingueiros».109


A missa não dura muito mais que 15 minutos, e é acompanhada em silêncio.
Como todo bom representante do antiAritualismo moderno110, Burmeister irritaAse
com a preocupação das pessoas em se apresentarem bem vestidas à igreja. Para
ele a participação no culto se resumia «a uma feira de vaidades». Burton teve uma
percepção diferente quando de sua visita à mina de Morro Velho, onde assistiu
sucessivamente o culto na capela protestante e a missa na capela católica. Seu
testemunho: «Depois de passar muitos dias sem ouvir uma ladainha inglesa, não
podemos deixar de pensar na observação do oratoriano Dr. Newman, isto é, que
‹o protestantismo é a mais triste das religiões›».111 Reunidos para assistir a missa,
ele encontrou um grande número de pessoas, na sua maioria negros. Após serem
acossados por um sacristão ávido de contribuições,
«todos entraram, os brancos tomando lugar à frente e os pretos atrás, os hoA
mens de pé e as mulheres sentadas no chão. O velho costume continua no
interior; somente nas cidades mais civilizadas do Brasil, as igrejas dispõe de
bancos. Todo o mundo vestia trajes domingueiros; a capela estava repleta de
tulipas (...). A conduta do ‹rebanho› era, sob todos os aspectos, exemplar;
seus cantos eram mais entoados e havia mais fervor que na igreja rival.»112
Em Congonhas a disposição dos fiéis nas igrejas obedecia ao mesmo critério de
divisão por sexo e condição sócioAracial: mulheres na nave central, ajoelhadas no
chão; homens livres de pé, nos fundos ou laterais; os escravos em frente ou ao
lado da porta de entrada. Tal como nas procissões e mesmo nos cemitérios, o luA
gar ocupado por uma pessoa ou grupo era a expressão visível da sua situação na
hierarquia do mundo. A historiografia centrouAse sobretudo nesta dimensão das
celebrações públicas na Minas Colonial. Para autores como Adalgisa Campos113,
Júnia Furtado114, Iris Kantor115 e Laura de Mello e Souza116, trataAse de momenA
tos que refletem, ao mesmo tempo que reforçam, a ordem e o controle social.
Há, porém, o outro lado da moeda. As ciências sociais ressaltam, pelo menos
desde Durkheim, que o rito exerce uma funçãoAchave no processo de socializaA

109 Burmeister, Viagem ao Brasil, p. 248.


110 Soeffner, HansAGeorg. «Rituale des Antiritualismus – Materialien für AußeralltägA
liches». In: Soeffner, Die Ordnung der Rituale, pp. 102A130.
111 Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p. 197.
112 Burton, op. cit., p. 198. Grifo nosso.
113 Campos, Adalgisa Arantes. «A visão nobiliárquica nas solenidades do setecentos
mineiro». In: LPH – Revista de História (6) 1996: 111A122.
114 Furtado, Júnia Ferreira. «Desfilar: a procissão barroca». In: RBH 17(33) 1997: 251A
279.
115 Kantor, Iris. «Notas sobre a aparência e visibilidade social nas cerimônias públicas
em Minas setecentista». In: Pós História (6) 1998: 163A174.
116 Souza, Laura de Mello e. «Festas barrocas e vida cotidiana em Minas Gerais». In:
Jancsó, István e Kantor, Iris (orgs.) Festa. Cultura e sociabilidade na América
Portuguesa. São Paulo: Edusp/Hucitec, 2001.
197

ção. Ele desempenha, no dizer de Maffesoli, o papel de coagulant social.117


Numa palavra: se para o historiador o rito «separa», para o cientista social ele
«une». Evidentemente, as duas linhas de interpretação não se excluem mutuaA
mente. Os ritos reforçam a unidade do corpo social sem que isso implique uma
pura e simples anulação das diferenças existentes. Enquanto alguns deles presA
tamAse mais à representação e delimitação das fronteiras sociais, com outros dáA
se o contrário.118 As duas dimensões estão sempre presentes, em maior ou menor
grau, conforme o rito em questão. Ora, o caso da missa demonstra de maneira
clara a predominância do fator communitas. Se a necessidade da participação freA
qüente no culto leva à ereção de uma capela e à constituição do respectivo patriA
mônio em terras (ou seja, à formação do embrião urbano), é forçoso reconhecer
que a análise da origem de muitos dos arraiais mineiros demonstra a que ponto o
rito produz – e reproduz – o social. A capela e o arraial são as expressões mateA
riais e espaciais da força sociogenética do fenômeno religioso.
O serviço religioso é uma das mais privilegiadas formas de «socialização do
extraordinário»119 nos séculos XVIII e XIX. Mais que estreitar os laços entre os
viventes, ele estabelece uma ponte entre o mundo da vida e o «outro mundo».
Para a mentalidade católica tradicional a celebração é investida de enorme eficáA
cia, quando não de uma potência «mágica». Uma interessante conseqüência desta
crença foi a prática de se instituir a própria alma como herdeira nos testamentos.
Os bens deveriam ser revertidos para a celebração de missas por intenção da alma
do falecido. Quando se tratava de membros das camadas sociais mais elevadas,
atingiamAse por vezes números impressionantes. Matias Barbosa da Silva, o funA
dador do arraial de Barra Longa, determinou em seu testamento a celebração de
5.200 missas por sua alma.120 As autoridades portuguesas apressaramAse a coibir
o que consideravam ser um excesso, mas ainda assim continuaram a permitir que
cerca de 100$000 réis fossem reservados para esse fim. O que garantia a celebraA
ção de aproximadamente 167 missas.121 No tempo em que Langsdorff esteve no
Distrito dos Índios Coroados, o preço cobrado por uma missa era duas a três veA
zes superior ao praticado na Corte. Como faltavam sacerdotes em Minas, enviA
avaAse o dinheiro para o Rio de Janeiro a fim de se conseguir a celebração de

117 Maffesoli, Michel. «Le rituel dans la vie sociale». In: Lambert, JeanAClarence (dir.).
Roger Caillois. Témoignages, études et analyses. Paris: De la Différence, 1991, pp.
366A372.
118 Para Roberto da Matta o rito é «veículo da permanência e da mudança. Do retorno
à ordem ou da criação de uma nova ordem, uma nova alternativa». Da Matta, Car
navais, malandros e heróis, p. 33.
119 A expressão é de Luckmann, Thomas. «Riten als Bewältigung lebensweltlicher
Grenzen». In: Schweizerische Zeitschrift für Soziologie (3) 1985: 535A550, p. 544.
120 DHGMG, p. 44.
121 Chamon, Carla Simone. «O bem da alma: a terça e a tercinha do defunto nos inA
ventários do século XVIII da comarca do Rio das Velhas». In: VH (12) 1993: 58A
65.
198

missas.122 Segundo SaintAHilaire, na maior parte das paróquias de Minas Gerais


faziaAse uma procissão antes da missa para o resgate das almas do purgatório. Ele
diz ter encontrado em todas as tabernas «um tronco em que estão pintadas figuras
rodeadas de chamas, e que é destinado a receber as esmolas que se querem fazer
às almas do purgatório».123 AcreditaAse ser possível «interceder» a posteriori no
destino dos que partiram: os mortos precisam dos vivos tanto quanto os vivos dos
mortos. Por meio do serviço religioso o contato entre uns e outros adquire um caA
ráter periódico. Conseqüentemente, a missa pode ser considerada um enclave do
extra cotidiano no cotidiano da vida.
De onde vem a sua potência «mágica»? Jung mostrou que a missa, como eviA
dencia a expressão corrente, é um «sacrifício». Não um sacrifício qualquer, mas
sim sacrifício da divindade. Esta imolação ritual de Cristo é subArepticiamente
reconhecida pela própria Igreja: o Concílio de Trento estabeleceu que na missa
idem ille Christus continetur et incruente immolatur. Por outro lado, a missa reA
presenta a reatualização do mistério/milagre da encarnação. O ponto alto da celeA
bração é precisamente o ato de consagração, uma vez que nele Cristo tornarAseAia
corpo presente. O sentido da missa, conclui Jung, «é a communio do Cristo vivo
com seus fiéis».124
* * *
Nosso objetivo aqui não é traçar um painel da prática religiosa em Minas Gerais
nos séculos XVIIIAXIX, mas meramente o de chamar a atenção para a longa du
ração das suas formas. De fato, a análise da missa nos mostra uma impressioA
nante estabilidade a nível formal. Este aspecto relacionaAse com aquilo que, no
entender de Sanchis, seria um dos elementos definidores da identidade católica: a
sua «insistência quase obcessional (...) sobre a importância do significante».125
Uma tendência que parece ter sido acentuada, em Minas, por fatores como a forte
influência do padrão de religiosidade portuguesa, o relativo isolamento geográA
fico e a manutenção das tradicionais estruturas sócioAeconômicas. Esta impresA
sionante estabilidade das formas rituais – inclusive daquelas mais estreitamente
ligadas ao universo religioso popular –, por sua vez, pode ser entendida como um
indício razoavelmente seguro de uma estabilidade correspondente ao nível das
representações coletivas.

122 Da Silva, Os diários de Langsdorff, I, 216.


123 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. I, p. 200.
124 Jung, Carl Gustav. «Das Wandlungssymbol in der Messe». In: Jung, C. G. Zur
Psychologie westlicher und östlicher Religion. Düsseldorf: WalterAVerlag, 1995,
pp. 222A223, 230, 231A232, 238, 282.
125 Sanchis, Pierre. «Uma ‹identidade católica›? ». In: Cadernos do ISER (22) 1986: 5A
16, p. 7.
199

Diferentemente daqueles que insistem na tese do «exteriorismo» do catolicismo


tradicional,126 nada vemos de arcaico ou anômalo nesta perenidade das formas e
neste apego às formas. Os historiadores que falam em «exterioridade» nada mais
fazem que projetar no passado duas ilusões tipicamente modernas. De um lado, a
ilusão (etnocêntrica) de que somente a experiência religiosa interiorizada, ascéA
tica, seria efetivamente «autêntica»; e de outro lado a ilusão (anacrônica) de que
já não vivemos hoje sob o jugo de incontáveis práticas rituais.127 Sendo a atitude
antiAritualista um fenômeno relativamente recente na história do Ocidente, não há
como fazer dela o ponto de referência a partir do qual nos propomos a entender
visões de mundo que não se orientavam pela mesma préAdisposição à rejeição da
importância social dos ritos. Tomando de empréstimo uma formulação de Arnold
Gehlen (e que somente à primeira vista parece ser contraditória), diríamos que na
Minas antiga forms are the food of faith.128

4.3.1 CapelaApatrimônioAarraial
Os pedidos de autorização para a construção de capelas permitemAnos visualizar
alguns aspectos da religião popular da Minas antiga que nem sempre podem ser
percebidos por meio de fontes como visitas pastorais, testamentos, devassas ou
processos inquisitoriais. DeveAse ter em mente que os autores destes pedidos haA
bitam regiões afastadas das sedes paroquiais. Neste estágio a sua vida religiosa é,
por assim dizer, «livre». Claro está que o próprio fato de terem de se submeter aos
mecanismos de controle oficiais mostra que esta autonomia não tem como se
manter indefinidamente. A religião popular vive, pois, num equilíbrio dinâmico
entre os constrangimentos institucionais e a fidelidade às suas próprias práticas e
representações. Com a realização mais ou menos freqüente de missas na capela
essa relação de forças ainda não será substancialmente alterada.
Mesmo quando o arraial cresce e se torna sede paroquial, novas capelas contiA
nuam a surgir. Este aumento do número de templos se deve basicamente a dois
fatores. O orago da matriz, que na gênese do arraial simbolizava a unidade de

126 Citemos apenas um exemplo entre muitos. Tinhorão, referindoAse aos negros braA
sileiros, afirma existir entre eles uma «tendência para a integração no catolicismo,
levada sempre mais pelas exterioridades do culto do que pela assimilação dos
conceitos teóricos da fé (...)». Tinhorão, José Ramos. Os negros em Portugal. LisA
boa: Caminho, 1988, p. 139 (grifo nosso).
127 Para uma discussão mais detalhada, ver Da Mata, «Religionswissenschaften e críA
tica da historiografia da Minas Colonial», pp. 50A51; Soeffner, Gesellschaft ohne
Baldachin, p. 30; e Maffesoli, «Le rituel dans la vie sociale», pp. 369A370.
128 Gehlen, Arnold. Urmensch und Spätkultur. Bonn: Athenäum, 1956, p. 27. Esta
tendência, típica de sociedades tradicionais, parece ter sido levada à sua expressão
máxima na China antiga. Os chineses, diz Granet, «não crêem que a alma dê vida
ao corpo; antes, diríamos, acreditam que a alma só aparece após um enriqueciA
mento da vida corporal». Granet, O pensamento chinês, pp. 243A244.
200

todo o grupo, tem de dividir esta função com outros oragos à medida em que o
núcleo se estabiliza e cresce em população. O que está em questão, neste caso, é
menos um processo de polarização que o reflexo do caráter multifacetado da próA
pria devoção popular. Ao mesmo tempo, a complexidade crescente da estrutura
social do embrião de cidade pode também se manifestar por meio da progressiva
organização de distintos grupos organizados segundo critérios sociais, étnicos e –
last but not least – religiosos: as irmandades. Não nos ocuparemos com elas neste
trabalho, haja vista os inúmeros estudos feitos a respeito nas últimas décadas. O
que importa perceber é que a expansão da rede de templos mantém íntima relação
com a formação de novos bairros (muitas vezes por meio de um mecanismo
idêntico ao que deu origem à povoação) e o nível crescente de complexidade
morfológica do arraial. Uma vez atingido este estágio, a presença institucional da
Igreja começa a exercer uma influência cada vez maior sobre os distintos grupos,
o que significa que o espaço ocupado pela religião popular tende a diminuir numa
relação inversa à do avanço do processo de urbanização. Esta interessante dialéA
tica entre sagrado e produção do espaço vai de encontro ao modelo desenvolvido
pela geografia da religião. Dinâmica religiosa e dinâmica ambiental condicioA
namAse reciprocamente.129
Resumido o processo em suas linhas gerais, passemos agora à apreciação dos
casos concretos. Para tanto, nos utilizaremos de fontes eclesiásticas e nãoAeclesiA
ásticas. Como todas as terras do Brasil pertenciam ao padroado da Ordem de
Cristo, da qual o soberano português era o grãoAmestre, os pedidos de ereção de
capelas deveriam obter autorização não só junto à autoridade diocesana, mas
também junto à Coroa.130
Vejamos um caso típico. Em 29 de março de 1742, Alexandre Gomes de Souza
e o alferes João Ferreira da Silva escrevem ao bispo do Rio de Janeiro afirmando
ter «suas fazendas de roçar e minerar na freguesia da Conceição de Guarapiranga
(...) em distância da matriz quinze ou dezesseis léguas pouco mais ou menos, para
a qual não podem vir senão embarcados em canoa com grande risco de vida pelo
rio caudaloso, e nas ditas fazendas têm feitores e escravos (...) e os suplicantes
são homens casados e com grandes famílias que entre ambos têm perto de duA
zentas pessoas e também na dita paragem e sertão estão já situados muitos moraA
dores, e outros que de novo se vão situando, onde não podem comodamente ser
socorridos com os sacramentos nem satisfazer ao preceito de ouvir missa, e atenA
dendo os suplicantes aos ditos inconvinientes querem erigir uma capela no sítio

129 Ver seção 2.4.2.


130 Não dispomos das datas da maioria dos pedidos enviados ao Conselho UltramaA
rino. Mas como estes, via de regra, demoravam cerca de um ano para serem resA
pondidos, é possível estimar de forma aproximada quando os mesmos foram feitos.
Mencionaremos no corpo do texto os anos prováveis de envio das correspondênA
cias a Portugal. Nas notas de pé de página a referência ao documento citado será
seguida, quando necessário, da data do respectivo despacho do Conselho UltramaA
rino.
201

chamado São João com a invocação do mesmo santo [São João Batista] para o
que apresentam a escritura de patrimônio para a sustentação da capela e certidão
do reverendo pároco da sobredita freguesia».131
O fazendeiro Hipólito Gonçalves Barbosa, morador do caminho novo para o
Rio de Janeiro (comarca de São João delARei), requereu em 1787 ou 1788 autoriA
zação para fazer uma capela. Ele afirmava «ter família numerosa, muitos filhos e
escravos para cultivarem as terras que por sesmaria alcançou». Era sua intenção
pagar uma promessa a Nossa Senhora do Monte do Carmo por terAse curado de
uma «doença mortal». A promessa em questão consistia em «mandar fazer uma
capela de pedra e cal com seu patrimônio para um capelão».132
Depois de obter provisão em 1793 junto à Sé de Mariana, o capitão Manoel
Pereira Brandão, comandante das ordenanças em Queluz, pede permissão para
poder «celebrar e administrar os sacramentos necessários à sua numerosa família
em um passo, ou ermida adjacente às casas da sua residência». Feita de pedra e
cal, a ermida situavaAse em «lugar muito cômodo donde a sua família e outros
mais podem ouvir missa sem que saiam a lugar muito público». Brandão consiA
dera justo o seu pedido, uma vez que «no tempo de águas especialmente se faz
difícil à sua família e vizinhança satisfazerem ao preceito na matriz por ficar disA
tante».133
José Ferreira Santiago e outras pessoas dedicavamAse à mineração nas margens
do rio Santo Antônio (comarca do Serro Frio). Surgia assim, em fins da década de
1780, uma «nova povoação» desprovida porém do «pasto espiritual, pois que não
têm sacerdote nem altar». Os suplicantes afirmam terem filhos ainda por batizar,
«tudo isso pela grande distância em que ficam da igreja, tendo de atravessar os
caudalosos rios». Requeriam assim licença para erigirem uma ermida «à sua custa
na qual se dissesse missa e se administrassem os sacramentos». Sem o que
estariam «na triste situação de abandonarem os seus trabalhos».134 Em outra carta
enviada à Coroa (em 1786 ou 1787) lêAse o seguinte: «Dizem os devotos de São
Francisco de Paula que eles suplicantes erigiram ao mesmo glorioso santo uma
ermida na freguesia de Santo Antônio da Vila de São José (...), na qual se ajunta
concursos de povo [sic] ao santo sacrifício da missa; e porque os suplicantes deA
sejam muito fazerAlhe patrimônio e bonita capela», requerem autorização real.135
Estes casos retratam aspectos que se revelam recorrentes nas fontes pesquisaA
das, como a necessidade premente do sacrifício da missa e dos sacramentos, a caA
pela erigida individualmente como fruto de uma «graça» alcançada, a dimensão
coletiva da devoção popular e sua expressão a nível material/espacial por meio do

131 AEAM, pasta 54, gav. 1, arq. 1. TratarAseAia da primitiva capela de São João BaA
tista do Presídio? A distância entre Guarapiranga (atual Piranga) e Visconde do Rio
Branco sugere que sim.
132 APM (AHU), cx. 128, doc. 13 [20.01.1788].
133 APM (AHU), cx. 140, doc. 26 [27.06.1795].
134 APM (AHU), cx. 128, doc. 28 [06.03.1788].
135 APM (AHU), cx. 127, doc. 34 [29.10.1787].
202

templo e da constituição do patrimônio em terras.


Os aplicados da capela do Divino Espírito Santo da paróquia de Santa Ana das
Lavras do Funil informam em 1783 ou 1784 que haviam obtido licença episcopal
para a ereção «da mencionada capela sita na paragem chamada Restinga das PiA
tangueiras, por ser mais cômoda para as suas vizinhanças assistirem missa e asA
sistirem todos os mais exercícios espirituais, o que muitas vezes deixavam de faA
zer pela longitude da sua freguesia».136 Praticamente na mesma época, um grupo
de devotos do Senhor Bom Jesus do Livramento escreve no seu requerimento que
«têm feito a sua capela perfeita e completa sita na freguesia de Aiuruoca, comarca
do Rio das Mortes e bispado de Mariana, e para haver de se benzer e se lhe fazer
o seu patrimônio decente precisam os suplicantes licença de Vossa Magestade
atendendo a utilidade e aumento do culto divino e aos longes daquelas terras».137
As fórmulas volta e meia se repetem. Mas há exceções. Florentino Soares da
Fonseca, morador do Córrego do Bação, freguesia da Itabira, requere em 1753 ou
1754 autorização ao senado da Câmara de Vila Rica para aumentar o patrimônio
da capela de Nossa Senhora da Oliveira. A capela situaAse em sua fazenda, e nela
«os moradores daquele bairro vão assistir missa» (já existia, portanto, um arraialA
zinho no lugar). PercebeAse pelo teor do documento que a igreja havia sido eriA
gida bem antes, provavelmente pelo antigo proprietário do terreno. Porém o funA
dador, que «deveria dotáAla com patrimônio suficiente (...) o não fez como deA
voto». Para Fonseca, esta pouca devoção era atestada pelo fato de que a terra iniA
cialmente doada não passava de «um pedaço de capoeira138 que já não produz
nada por muito cansada». EntendaAse: um tal patrimônio não rendia o suficiente
para cobrir os gastos da capela. Fonseca diz ser o único responsável pela conserA
vação da mesma, uma vez que a «grande decadência» das roças reduzira os moraA
dores do lugar à pobreza. Diante da necessidade de refazer a capela (a qual, além
de antiga, estava «ameaçando ruína»), ele requere autorização para abrir uma
venda que «sirva de patrimônio naquele bairro não se permitindo mais nem uma
[outra em] meia légua em circunferência». Para dar força a seu pedido, ele se vale
de uma retórica que muito nos revela da mentalidade de então. Fonseca se orienta
menos por um certo racionalismo jurídico que pelo recurso a argumentos de orA
dem religiosa e moral. Tendo a Câmara de Vila Rica concedido o mesmo favor
«à capela de São Gonçalo139 do mesmo Bação (...) [e] sendo axioma de diA
reito termitante que o que se concede a um se não pode negar a outros, e se o
milagroso São Gonçalo sendo vassalo do Rei dos Reis lhe foi franqueada
semelhante graça, com maior razão se não deve negar a Nossa Senhora da

136 APM (AUH), cx. 122, doc. 23 [06.09.1784].


137 APM (AHU), cx. 122, doc. 38 [14.10.1784].
138 Capoeira: «Terreno em que o mato foi roçado e/ou queimado para cultivo da terra,
ou para outro fim» (Aurélio B. de H. Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portu
guesa).
139 Atual Bação, distrito de Itabirito.
203

Oliveira que é Rainha da Corte Celestial, advogada dos pecadores, e mãe


piedosíssima das misericórdias, que manda, e aquele pede.» 140
Como a hierarquia celestial deve necessariamente refletirAse nas realidades terA
restres, a capela da Mãe de Deus (aquela «que manda») deve gozar de precedênA
cia sobre a de um simples santo (aquele «que pede»). NoteAse como na fala de
Fonseca o orago de um templo não é uma simples representação desta ou daquela
figura do panteão católico: ele é a figura representada. Mas o suplicante segue em
frente, e afirma ter tido notícia de que naquele ano, por ocasião da visita episcoA
pal, «saíram [in]criminadas duas vendas por legítimas casas de alcoice141«. Razão
pela qual prenderamAse na cadeia de Vila Rica
«umas negras e negros e ainda os foragidos do mato aonde se praticava o
Uso de Vênus, com irreparável dano daqueles moradores, o que não há de
suceder com a venda concedida a Nossa Senhora da Oliveira porque essa
somente se há de alugar a homem branco conhecidamente de boa vida e
costumes, com a condição de não assistir nunca nela negra ou mulata por ter
mostrado a experiência que semelhante gente é o símbolo dos desaforos.»142
Do que é dito não há como saber onde viviam as pessoas que sofreram os «danos
irreparáveis» causados por aqueles estabelecimentos. O episódio é invocado com
o objetivo de estabelecer uma clara diferença entre empreendimentos puramente
profanos e aqueles cuja finalidade principal era servir à ‹causa da religião›. O
critério de limpeza racial seria a garantia, assevera Fonseca, de que no patrimônio
de Nossa Senhora a história seria diferente. A Câmara de Vila Rica defere seu
pedido em 8 de março de 1754, afirmando ser ele «muito atendível, assim para a
conservação do culto da mesma Senhora como para se evitar escândalos, e como
este senado concedeu a mesma graça à capela de São Gonçalo, não fica lugar de
se negar a Nossa Senhora».
Um caso distinto se passa em princípios dos anos 1790. TrataAse de um exemA
plo clássico daquelas formas de religiosidade inspiradas pelo modelo da devotio
moderna. Silvestre Ferreira Ribeiro diz ter feito «voto de edificar uma capela ou
ermida ao Senhor Bom Jesus, e de o servir, enquanto o mesmo Senhor lhe fizesse
mercê de vida». A capela se situaria a apenas meia légua da matriz da vila de São
Bento do Tamanduá (atual Itapecerica). A provisão episcopal foi dada, restava a
autorização real. Como condições para o deferimento, além da constituição de
«patrimônio suficiente para a administração, reparo e ornamento da mesma caA
pela», o Conselho Ultramarino estabeleceu que o capelão seria nomeado «por Sua
Majestade como sua [da capela] padroeira»143 e que a edifição correria por conta
de Ribeiro, «e não de esmolas dos fiéis». A questão do patrimônio já estava resolA

140 APM (AHU), cx. 64, doc. 24 [06.03.1754].


141 Alcoice ou alcouce: prostíbulo.
142 APM (AHU), cx. 64, doc. 24.
143 No século XVIII e em parte do XIX há uma clara distinção entre os termos «orago»
e «padroeiro ». O tema será explorado na seção 4.3.4.
204

vida, pois uma carta dos membros da Câmara do Tamanduá, com data de 1° de
junho de 1791, mostra que a capela do Senhor Bom Jesus de Matosinhos recebera
de Antônio Joaquim de Ávilla uma chácara «que renderá muito acima de vinte
mil réis». No que diz respeito a Ribeiro, os vereadores escrevem: «por vermos
que a sua vida exemplar se faz digna dãoAlhe a graça que implora para aquele
louvável voto, que é constante, e verdadeiro».144 Movida por sua «particular deA
voção à Virgem Santíssima», Tereza de Jesus prometeu alguns anos mais tarde
levantar uma capela dedicada a Nossa Senhora da Luz nos subúrbios do Arraial
do Tejuco «e fazerAlhe um decente patrimônio para sustentação do culto divino».
E isso, acrescenta ela, «não só em obséquio à Senhora, mas também em benefício
da suplicante e mais vizinhos, que nela muito desejam afervorar o culto».145
Fora do espaço das vilas e dos grandes arraiais, a razão principal para o apareA
cimento de uma casa de oração é a demanda pelo culto e pelos sacramentos. Por
vezes o inesperado torna premente uma necessidade religiosa que até então só
gozara de importância secundária na vida de um ou outro. A teodicéia do sofri
mento (Weber) é acionada. Uma desgraça a nível pessoal, uma doença, tudo pode
ser suportado – desde que o indivíduo não esteja privado dos meios de salvação.
Parece ser este o pano de fundo do requerimento feito em 8 de maio de 1804 por
Antônio Leite Ribeiro. Morador na sua fazenda do Ribeiro Fundo, na freguesia
de São João delARei, ele tem em mente fazer ali uma ermida por estar distante da
capela de Nossa Senhora de Nazaré, e além disso ter «numerosa família». Consta
de um dos documentos anexos que ele empregava em sua propriedade mais de 60
«agregados pobres». Em relatório feito em 12 de maio de 1804 pelo vigário resA
ponsável pela inspeção da ermida, lêAse que Ribeiro estava enfermo. O que indica
tanto a dificuldade de deslocamento até a capela mais próxima quanto o terror
causado pela perspectiva de uma morte sem os sacramentos.146
Os pedidos feitos coletivamente apenas confirmam em que medida o universo
das representações religiosas levava a uma progressiva transformação da paisaA
gem cultural da Minas antiga. Em 1805 ou 1806 Francisco Vieira Carneiro, João
Fernandes da Silva e outros moradores da freguesia de Pouso Alto, termo de
Campanha, informam que «com zelo católico» começaram a erigir uma capela
dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo numa paragem denominada RiA
beirão do Carmo. Os motivos «que os moviam a tão piedosa obra eram tão urA
gentes e fatais, quais as constantes inundações consecutivas à rigorosa inturmesA
cência e enchente do Rio Verde, por efeitos da qual não podem os suplicantes
senão em manifesto risco de vida congregarAse na igreja matriz, sendo essa a
razão porque o seu pároco lhes não pode administrar os sacramentos nas ocasiões
oportunas, e de última precisão, maiormente naquelas povoações que lhe ficam
na longa distância de mais de oito léguas, resultando daqui as lamentáveis conseA

144 APM (AHU), cx. 137, doc. 16 [16.05.1792].


145 APM (AHU), cx. 165, doc. 68 [02.12.1802].
146 APM (AHU), cx. 169, doc. 21 [02.03.1805].
205

qüências de morrer muitos daquela gente sem sacramentos, e ser enterrada em luA
gares profanos».147
A formação dessa rede de ermidas domésticas e capelas nem sempre era a gaA
rantia de que a população espalhada por fazendas ou arraiais passasse a gozar de
adequada assistência religiosa. É o que se pode notar de uma representação apreA
sentada em fins dos anos 1740 pelos aplicados das capelas de Nossa Senhora de
Conceição da Barra, São Gonçalo do Ibituruna, Nossa Senhora de Nazaré, São
Gonçalo do Brumado e Santo Antônio do Rio das Mortes pequeno148, todas filiais
da matriz de São João delARei. Devido à distância que os separava da sede
paroquial, «têm falecido muitas pessoas sem sacramentos sem que seja suficiente
o pagarem os suplicantes a capelães, porque estes não satisfazem a tudo, pela
parca conviniência que os suplicantes lhe[s] podem fazer, por também pagarem
ao seu reverendo pároco». Este, porém, «é pároco só no nome, e não no exercício;
vendoAse os suplicantes neste extremo, sem poderem possuir o bem e consolação
de suas almas».149 Os fiéis pedem então pela criação de uma freguesia no arraial
de Conceição da Barra, por ser o mesmo eqüidistante das demais capelas. Isso
somente viria a concretizarAse em 1825.
De que maneira a história do templo reflete a dinâmica de uma povoação,
mostraAo Catas Altas. O arraial teria surgido em 1703, e já em 1710 dispunha de
um vigário.150 No início da década de 1730, os seus moradores resolveram pedir
auxílio financeiro à Coroa a fim de concluir a construção da nova matriz. JustifiA
camAse com o argumento de que as duas primeiras igrejas paroquiais tinham sido
feitas exclusivamente às suas custas. A primeira em breve espaço de tempo reA
velouAse imprópria por ser muito pequena. A segunda, feita de madeira, enconA
travaAse de tal modo arruinada que os próprios fregueses receavam adentráAla. A
comunidade inicia em 1731 construção de uma terceira matriz, desta vez feita de
materiais duráveis. O novo templo ficou orçado em 54.000 cruzados. Todavia os
moradores não se vêem em condições de arcar com todos os gastos «pela miséria
em que se acham de falta de ouro, várias contribuições, real donativo, várias irA
mandades,151 e despesas com capitãesAdoAmato para o seu sossego». O Conselho
Ultramarino determina que o provedor da fazenda verifique (por meio de uma viA

147 APM (AHU), cx. 181, doc. 53 [26.08.1806].


148 TrataAse, atualmente, das cidades de Cassiterita, Ibituruna e Nazareno; e dos disA
tritos sãoAjoanenses de Caburu e Rio das Mortes. Waldemar Barbosa enganaAse
quando diz que a capela de Conceição da Barra teria recebido provisão em 1765
(DHGMH, p. 84). Esta capela – como as demais aqui mencionadas – existia pelo
menos desde 1749. O que não chega, por outro lado, a ser um indício preciso do
início do povoado, pois vimos que em Nazareno o arraial só se formou a partir de
1802.
149 APM (AHU), cx. 54, doc. 31 [13.10.1749].
150 DHGMG, p. 85.
151 NoteAse que a existência das confrarias era um impecílio à ereção da nova sede paA
roquial. A prioridade de cada uma delas era a construção e conservação da sua
própria igreja.
206

sita realizada em 1734) a veracidade de tais informações; e se decide enfim pela


doação de 15.000 cruzados à freguesia de Catas Altas, repartidos em três anos.152
Outro bom retrato da dinâmica do catolicismo popular e das transformações
por ele impostas à paisagem nos é dado por um pedido feito no arraial de Nossa
Senhora da Nazaré153, termo de Mariana, no início dos anos 1790. Os moradores
do lugar dizem manter um oratório na paragem chamada «Ilha», no qual veneram
uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Asseguram ainda prestar à santa
«reverentes cultos, que em todos os dias do ano à noite lhe rezam o terço e
nos dias de sua festa sempre fazem uma prática e isto com grandiosa funA
ção;154 e como por conta dos muitos milagres que aquela Senhora continuaA
damente está fazendo em benefício dos seus devotos[, eles] agradecidos lhe
querem fazer uma capela onde onde seja com mais decência venerada e isto
se não pode conseguir sem beneplácito de Vossa Majestade (...) que Vossa
Majestade permita faculdade para se edificar uma capela com sepulturas liA
vres, e que sendo o capelão que servis pago pelos suplicantes (...).»155

Testemunhos como este nos mostram até que ponto nossa história da religião tem
ignorado estas formas de religiosidade popular setecentistas. As inúmeras pesquiA
sas dedicadas às irmandades ou às práticas religiosas periféricas ou «desviantes»
pouco ou nada nos dizem a respeito do culto comunitário, cotidiano, espontâneo,
não enquadrado em termos institucionais, que se dava longe ou simplesmente à
margem das sedes paroquiais.
O direito à prática e à assistência religiosa é algo absolutamente evidente para
os homens da época. Nem mesmo os criminosos poderiam ser dele privados. Isso
fica claro numa representação enviada pela Câmara de São João delARei à Coroa
em 8 de julho de 1741. A construção da nova cadeia da vila fora concluída, porém
os presos encontravamAse impedidos de cumprirem com o preceito da missa. Em
vista disso, «alguns devotos se ofereceram para a ereção de uma capela, ou
oratório em lugar acomodado, para satisfazerem os presos o mesmo preceito». A
única condição imposta pelos doadores era de que o patrimônio em dinheiro
(6.000 réis anuais) da capela fosse constituído pela própria Câmara. Os oficiais
acham razoável a proposta: «Nós ascendendo a que a obra era pia, e proveitosa ao
bem das Almas, como também praticada na maior parte onde há cadeias, fizeA
mos o patrimônio debaixo da condição se Vossa Majestade o confirmasse, e por
bem houvesse».156 O Conselho Ultramarino aprova o pedido em 9 de maio de
1742.

152 APM (AHU), cx. 29, doc. 28 [05.02.1735].


153 É quase certo que se trata da atual cidade de Santa Rita Durão. Ver DHGMG, p.
299; e Costa, Toponímia de Minas Gerais, p. 382.
154 Função: festa.
155 APM (AHU), cx. 136, doc. 14 [04.03.1791].
156 APM (AHU), cx. 41, doc. 70. O grifo é nosso.
207

É compreensível que o patrimônio de uma casa de oração erigida num espaço


já urbanizado se tenha feito em dinheiro (ou ainda, como foi comum no caso de
muitas irmandades, sob a forma de casas)157, afinal não há nestas circunstâncias
tantos terrenos disponíveis. Mas mesmo nas regiões afastadas do centro da capiA
tania os patrimônios eram às vezes constituídos em dinheiro.
A antiga capela de São Brás do Suaçuí seguramente foi terminada um pouco
antes de 1728, já que o termo de doação do seu patrimônio data daquele ano. Em
13 de abril de 1728, Amador de Sousa da Guarda declarava ao tabelião em Vila
Rica estar disposto a doar «o seu sítio onde mora na Paropeba para fábrica e renA
dimento da capela de São Braz, sita no Suassuhy e a ela fazia doação de seis mil
réis de dote em cada um ano os quais têm de sair do rendimento do dito sítio de
que [o] outorgante é senhor (...) cuja doação fazia para comodamente melhor veA
nerar e administrar o Sacrifício da Missa». Um dos documentos do «processo de
patrimônio» de São Braz revela que os seis mil réis anuais foram pagos regularA
mente apenas até 1797, mantendoAse os descendentes do instituidor da capela na
condição de devedores até 1836.158
A capela do arraial de Santo Antônio do Rio Acima teria sido erigida em 1736.
Que o núcleo se formou no patrimônio «do santo», mostraAo um relatório enviado
pelo padre José Sabino Marques a Mariana em 11 de outubro de 1893: «esta maA
triz tem um pequeno patrimônio, que consiste no terreno em que estão edificadas
as casas deste arraial». Embora sua extensão fosse calculada em cerca de três
alqueires de planta de milho, o sacerdote afirma que «pouco rendimento tem proA
duzido».159
Construída por um grupo de moradores do Pirapetinga, a capela de Santa QuiA
téria (freguesia de Guarapiranga) recebeu de Pascoal Luiz em 5 de julho de 1733
a doação de 6.000 réis dos rendimentos de um sítio de sua propriedade «para a
dita capela se poder ter e manter de todo o seu necessário na forma da ConstituiA
ção deste bispado». Esta quantia deveria ser colocada à disposição do templo «de
hoje para todo o sempre».160
Algo semelhante pode ser visto na capela de Santana do Morro do Chapéu
(atual cidade de Santana dos Montes). A provisão para a sua ereção foi dada em
1749.161 A doação do terreno foi feita por Antônio Duarte Corrêa em 12 de junho
de 1751:
«(...) nesta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, em o escritóA
rio de mim tabelião (...) me foi dito que ele era senhor e possuidor de uma
fazenda de roça sita na mesma paragem do Morro do Chapéu (...) e que na

157 Scarano mostra que as irmandades de Nossa Senhora do Rosário do Distrito DiaA
mantino tinham «nas casas para alugar a sua maior fonte de renda». Scarano, Devo
ção e escravidão, p. 70.
158 AEAM, arm. 24, cx. 5.
159 AEABH, cx. 502 (grifo nosso); DHGMG, p. 281.
160 AEAM, arm. 24, cx. 4.
161 DHGMG, p. 303.
208

sobredita fazenda (...) se acha uma capela onde está colocada a imagem da
Senhora Santana e sua sustentação lhe faz ele outorgante como com efeito
(...) lhe nomeava e dava em dote as terras compreendidas na sobredita faA
zenda (...) as quais terras entre capoeiras e matas virgens levarão de planta
quarenta e tantos alqueires (...) e que nas referidas terras faz ele outorgante,
certo a quantia de seis mil réis em cada um ano para adjutório dos paramenA
tos em o mais pertences à dita capela (...) para ele outorgante e seus sucessoA
res a entrarem em cada um ano com a sobredita quantia dos referidos seis
mil réis sem falta alguma para o que dito fica, cujo encargo passará de uns
para outros ditos sucessores que houverem a possuir a sobredita fazenda
onde se compreendem as terras acima doadas.»162
Em 21 de março de 1752 fezAse uma segunda escritura, provavelmente devido a
erros no estabelecimento dos limites das terras cujo rendimento deveria reverterA
se em benefício da capela. Além de Corrêa, assinam o documento Manoel André
Pinto e sua mulher Luíza Rodrigues Graça. A extensão do terreno é desta vez um
pouco menor, «30 alqueires pouco mais ou menos, entre matas virgens e capoeiA
ras». A efetiva doação de um terreno à capela com certeza se deu mais tarde; toA
davia ignoramos quando. Morro do Chapéu somente viria a adquirir o status de
distrito (de Queluz) em 1840 e de freguesia em 1874. Em 1897, segundo inforA
mação do vigário José Januário Carneiro, a matriz recebeu doação da terça parte
dos bens de Herculano Teixeira: 60 alqueires de terras no valor de 5 contos de
réis, entre as freguesias de Santo Amaro e Queluz.
Não sabemos quando surgiu o arraial do Redondo (hoje Alto Maranhão), mas é
certo que a constituição do patrimônio de sua capela deuAse em 14 de março de
1754. Nesta data Domingos de Magalhães e sua esposa, Rosa Perpétua do SaA
cramento, moradores daquele arraial, declaram «que para haver de se celebrar o
sacrossanto sacrifício da missa na capela de Nossa Senhora da Ajuda (...) lhe era
preciso consignarAlhe dote para guisamento e preparos à mesma». Pelo que comA
prometiamAse a dotáAla de «9.000 réis a cada ano para sua segurança da qual
quantia hipotecavam uma fazenda de lavouras com casas de vivenda e engenho
sito no rio do Jequeri».163
O quadro descrito num pedido enviado ao bispo de Mariana em 27 de março
de 1761 já nos é de certa forma familiar: o padre Domingos de Araújo e outros
moradores da freguesia da Barra Longa dizem viver com «suas famílias e agregaA
dos», «fábricas e escravaturas» a sete léguas de distância da sede paroquial e a
outros sete da freguesia de São Caetano. Por isso «passam os suplicantes com
suas famílias em contínua desolação da falta de pasto espiritual e [do] Santo SaA
crifício da Missa, [e] com excessivo trabalho saem a desobrigarAse na quaresma
de cada ano à dita capela mais vizinha, e com notório risco da salvação de suas
almas, e que para aliviarAlhes é necessário mandar carregar para fora dos ditos síA
tios os enfermos em redes para serem sacramentados e pelo (...) perigo de suas

162 AEAM, arm 24, cx. 4.


163 AEAM, arm. 24, cx. 2.
209

vidas pela longitude e incômodo do abalo do caminho, a que vendo o reverendo


suplicante e movido de piedade e zelo do próximo, quer erigir na sua fazenda
uma capela com invocação a Nossa Senhora da Saúde, por ser o lugar mais conA
viniente para todos, e com cemitério para nele se sepultar os defuntos». Dom Frei
Manoel da Cruz dá provisão para a ereção da capela em 20 de outubro do mesmo
ano. O patrimônio (oito oitavas de ouro anuais) foi constituído em 3 de novembro
de 1762, e garantido através de meia sesmaria de terras «em matas virgens e caA
poeiras onde se acha a mesma capela».164 A capelinha da Saúde foi elevada a
paróquia setenta e nove anos mais tarde.165 FormavaAse a atual cidade de Dom
Silvério.
Também o arraial de Piedade do Bagre (atual Felixlândia) deveu sua formação
à iniciativa de um sacerdote. Em termo de doação lavrado em 19 de abril de 1762
na Vila de Sabará, o padre Félix Ferreira da Rocha atestava ser morador da sua
fazenda do Bagre, localizada na freguesia de Santo Antônio do Curvelo. Padre
Félix desejava «erigir uma capela com a invocação de Nossa Senhora da Piedade,
para haver de nela se poder celebrar missa e para esse efeito e o mais que necesA
sário fazer dote e patrimônio cujo lhe faz em meia légua de terra que fica na
mesma fazenda (...) com a condição de que ele dito doador obriga por sua pessoa
a uns a fazer doar seis mil réis ou o que for necessário para a côngrua que preA
tende erigir para se conservar com a decência necessária para o culto divino para
o que (...) promete não revogar, nem reclamar, nem alienar a tal dita meia légua
de terra que doado tem».166 Segundo a tradição oral de Felixlândia, algumas faA
mílias que viviam no terreno do padre, e que desejavam se libertar da sua tutela,
começaram a construir casas em volta da capela da Senhora da Piedade, cresA
cendo assim o arraial.167
Na escritura de doação do patrimônio da capela de São José do Chopotó (hoje
Alto Rio Doce), feita em 5 de maio de 1764, podeAse observar um dado novo.
José Alves Maciel Pereira e sua mulher, Vicência Maria de Oliveira, moradores
na freguesia de Guapapiranga, doaram naquela ocasião parte de uma sesmaria de
sua propriedade à capela de São José. AtenteAse para o fato de que nesta escritura
os doadores já previam a possibilidade de formação de um arraial no patrimô
nio:
«(...) no caso que pelo tempo futuro se estabeleça naquela paragem das terras
doadas – arraial – não podem ter os moradores do mesmo – porcos nem vaA
cas soltas por não deficarem [sic] e prejudicar a fazenda deles doantes e que
outrossim pessoas poderão fazer casas algumas nas ditas terras doadas sem
preceder licença do administrador [da capela]».168

164 AEAM, arm. 24, cx. 2.


165 DHGMG, p. 119.
166 AEAD, cx. 102.
167 EMB, vol. 25, p. 127.
168 RAPM, II, 1897, pp. 123A125.
210

O documento acima revela em que medida os atores sociais estavam plenamente


conscientes de que a constituição de um patrimônio em terras tendia a funcionar
como um pólo de atração. A formação de um arraial neste espaço sagrado pertenA
cente à capela nada tinha, pois, de «espontânea».169
Não foi outra a origem da cidade de Senhora dos Remédios. Em 1764 ou 1765
os moradores da região das cabeceiras de Brejaúba da Serra da Mantiqueira, no
seu pedido de provisão, explicam que a matriz da Borda do Campo dista deles
sete léguas, e «a capela mais próxima», a de Ressaca, fica a cinco léguas. Daí ser
este o
«motivo porque são poucos os que ouvem missa mais do que de ano e
mesmo padecendo uma total falta de pasto espiritual pela distância referida,
de tal forma que quase sempre fica todo aquele numeroso povo sem missa;
estando em evidente perigo de morrerem sem sacramentos. E para evitarem
tão considerável dano, querem os suplicantes erigir uma capela na fazenda
de Manoel Souza Barbosa, o qual não só consente em que se faça a dita caA
pela na sua fazenda, no pé da própria casa em que vive, mas também está
pronto a fazerAlhe patrimônio, tudo a fim de poderem todos os domingos e
dias santos ouvir missa e terem prontos os mais sacramentos, pois estão viA
vendo como gentios, sem uso da igreja, falta de doutrina e de todos os saA
cramentos, sendo tão perniciosas faltas o motivo de não estar mais povoado
aquele continente.»170
A última frase é clara. Somente a capela e a devida assistência religiosa garantiA
riam à região um povoamento estável. Não sabemos se o patrimônio que Manoel
Souza Barbosa prometera doar foi constituído em dinheiro ou bens imóveis.
Consta que a capela de Nossa Senhora dos Remédios foi dotada com terras e alA
gumas casas pelo governador Luiz Diogo Lobo da Silva e outras pessoas (o que
deve ter acontecido, portanto, no máximo até meados de 1768). Em 31 de janeiro
de 1775, Antônio Ferreira Mendes doou ao patrimônio outras casas situadas ao
redor do templo. Em 1895, duas décadas e meia após a criação da paróquia, o viA
gário do arraial informava ao bispado que havia ali «um terreno em duas sortes de
cerca de três ou quatro alqueires com o título de logradouro; existem mais três
posses ocupadas por moradores que também se diz pertencer a esta igreja».
Uma das mais completas séries documentais que localizamos nos processos de
patrimônio do arquivo da Cúria de Mariana diz respeito aos primórdios da cidade
de Rio Espera. O pedido de construção da capela de Nossa Senhora da Piedade
fezAse provavelmente em 1759 ou nos primeiros meses de 1760. O vigário de ItaA

169 A tese da «espontaneidade» foi defendida por Costa Porto: «A ‹povoação›, na ColôA
nia, se apresenta como fenômeno espontâneo, o fato material de se agruparem alA
gumas famílias em residências – fogos – com certa contigüidade e unidade formal,
mas sem nenhuma interferência do Estado». Porto, O sistema sesmarial no Brasil,
p. 127.
170 AEAM, arm. 24, cx. 3; grifos nossos. A autorização do cônego da Câmara EclesiA
ástica de Mariana data de 20 de março de 1765.
211

verava, Manoel Ribeiro Taborda, determinou em 2 de outubro de 1760 que o paA


dre João Maciel da Costa fosse à fazenda de André da Costa de Oliveira. Nesta
fazenda, situada «no Ribeirão da Espera entre o Lamim e as Embrajaúbas», deveA
ria o sacerdote demarcar o sítio da capela «onde mais conviniente for, ficando a
porta principal da capela para o nascente do sol».171 O padre João atesta em carta
de 20 de outubro do mesmo ano ter feito a demarcação do terreno sob a assistênA
cia de muitas pessoas, «não havendo entre elas contraposição alguma».
Estas palavras não correspondiam inteiramente à verdade. Um dos moradores
das redondezas, Francisco de Souza Rego, pretendia que a capela de Nossa SeA
nhora fosse erigida na sua Fazenda do Lamim, sem levar em consideração os moA
radores da Espera e Embrajaúbas. Ele desrespeitava assim um princípio básico da
tradição, segundo o qual a capela deveria situarAse num ponto eqüidistante em
relação à população a ela afiliada. O desentendimento acirrouAse, com este e
aquele partido argumentando ter feito as maiores despezas para a construção, e
finalmente culminou com o sumiço da provisão dada ao templo. As suspeitas caíA
ram naturalmente sobre Rego. Em vista do ocorrido, o bispo de Mariana manteve
os termos relativos ao local que fora inicialmente escolhido, e revogou pedido
antigo de Rego no sentido de fazer uma ermida em sua fazenda. O fazendeiro não
desistiu, e voltou a pedir autorização para fazer sua ermida, alegando a distância
de uma légua em relação à capela da Espera. Em sua resposta, dada em 25 de noA
vembro de 1760, o bispo argumenta: «Como a paragem da Espera é a mais útil
para todos os moradores, para nela se fazer a capela mencionada, e nos consta
que brevemente se fará; concluída ela requererá [novamente] o suplicante». Rego
teve de se conformar com esta decisão, e de aguardar sete anos para obter autoriA
zação para sua ermida.172
Enquanto isso, iniciaramAse os trabalhos de construção da capela de Nossa SeA
nhora da Piedade. A lentidão com que a mesma era erigida demonstra a escassez
de recursos dos moradores da região. Em 1765, telhado e capelaAmor já estavam
prontos. A nave achavaAse ainda em obras. Ainda assim requereuAse permissão
para celebrar missa, «para os suplicantes nela se refazerem do pasto espiritual enA
quanto não se completa o corpo da mesma capela». Em 24 de junho de 1765, o
bispo permite as celebrações pelo período de um ano, ao término do qual a obra
deveria estar concluída. A primeira missa foi realizada pelo vigário Taborda no
Natal no mesmo ano. Pouco depois, em 26 de fevereiro de 1766, os aplicados da
capela pedem autorização para bênção da pia batismal e de um terreno para servir
de cemitério. Em nova correspondência, datada de 22 de dezembro de 1766, os
moradores informam ao bispo que «não puderam concluir as obras por motivos

171 Sobre a questão da orientação dos templos, ver seção 3.3.2.


172 DHGMG, p. 185. Há, no DHGMG, algumas imprecisões no verbete «Lamim».
Barbosa afirma ter existido ali uma antiga capela feita por José Pires Lamim, com
provisão de 4.07.1760. Ora, a provisão em questão parece ser, antes, a primeira
obtida por Rego para sua ermida, e posteriormente anulada em razão do conflito
sobre a capela da Espera.
212

de suas penúrias» e pedem prorrogação «para se poder celebrar, batizar e sepultar


na mesma capela, e seu cemitério pelo tempo de um ano».
O termo de doação do patrimônio foi lavrado em Vila Rica, no dia 11 de agosto
de 1766. TrataAse de um dos raros documentos nos quais se pode visualizar a inA
cipiente organização espacial do embrião urbano de tipo religioso. Mateus Pereira
da Ponte e sua mulher, Quitéria de Oliveira de Jesus, atestam ser possuidores das
terras à margem do Ribeirão da Espera onde fora edificada a capela da Senhora
da Piedade. Declaram fazer das mesmas doação «irrevogável» à capela, além de
reservar
«chãos para cinco moradores de casas com sessenta palmos de frente, cada
uma com seus fundos com 200 para o quintal, a saber um dos referidos chãos
para eles doadores, e outros para Antônio Ferreira Ribeiro, e outros para
Manoel Lopes da Rocha, e outros para João Rodrigues, outros para DominA
gos da Silva Pacheco, com condição prévia porém que nem eles doadores,
nem os mais acima referidos não poderão usar das ditas casas para cousas de
fazenda seca ou molhado [sic], por si ou por outrem para o dito fim (...) e da
mesma sorte fazem doação eles outorgantes de uma morada de casas coberA
tas de telha sita nas mesmas terras com loja preparada para nela se vender
fazenda seca ou molhados e todo o mais negócio, pagandoAse delas aluguéis
para o patrimônio da mesma capela, à qual fazem a dita doação, e outrossim,
nenhuma pessoa se poderá intrometer a fazer casas nas ditas terras sem beA
neplácito dos administradores da mesma, ouvidos eles outorgantes se conA
vém ou não e todas as mais casas que ao presente estiverem feitas e ao futuro
se fizerem pagarão todos os anos os aluguéis que são para a mesma capela, e
(...) não poderão ter de fronteira mais que sessenta palmos e fundos 200
(...).»173
Cerca de seis anos depois de iniciada a capela, existiam apenas meia dúzia de caA
sas ao seu redor. As cinco primeiras pertenciam a fazendeiros das redondezas,
entre eles os doadores do patrimônio; uma sexta casa ficaria reservada para o coA
mércio no arraial. Outras pessoas interessadas em fazer moradas nas imediações
da capela provavelmente não obtiveram autorização dos proprietários do terreno.
Mas com a doação do patrimônio em terras tudo muda de figura. VislumbraAse o
inevitável crescimento do núcleo. Por esta razão, além da permissão dos aforaA
mentos, concedeAse o monopólio do comércio a uma única venda, cujo aluguel,
por sua vez, deveAse reverter à capela (vimos que o mesmo ocorreu em Nossa SeA
nhora da Oliveira do Bação). As dimensões dos lotes para a construção de casas
ficam préAfixadas: 13,2 metros de frente por 44 de fundo. Enfim, em 4 de março
de 1767 o vigário Manoel Ribeiro Taborda procede à visita da capela de Nossa
Senhora da Piedade da Espera, à demarcação (com marcos feitos de braúna) e
bênção do seu adro.
O Arraial de Formigas (hoje Montes Claros) cresceu no patrimônio da capela
de Nossa Senhora da Conceição e São José. O dono da Fazenda dos Montes ClaA

173 AEAM, arm. 24, cx. 4.


213

ros, José Lopes da Costa, enviou correspondência à diocese de Salvador – à qual


era subordinada a região norte de Minas – em 1769 na qual enumera as razões
pelas quais pretendia erigir uma capela. Um quadro semelhante ao de tantos ouA
tros casos já enumerados: a propriedade de Costa situavaAse a nada mais nada
menos que vinte léguas de Santo Antônio de Itacambira, o que impedia a ele e
sua família, bem como a outros moradores das redondezas, «satisfazer o culto diA
vino, nem comodamente (...) administrar o sacramento aos doentes, mais ainda
em tempo de águas». O patrimônio em terras doado por Costa à capela era
enorme. Segundo a escritura de julho de 1769, media ele uma légua e meia de
comprimento por uma légua de largura. Além disso doavamAse cinqüenta noviA
lhos.174 Ao contrário de outros arraiais, cujo ritmo de crescimento era normalA
mente lento, Formigas desenvolveuAse rapidamente a partir de 1809 com o início
da produção de salitre. SaintAHilaire visitou a povoação em 1817, e disse tratarAse
de «uma das mais belas que vi na província de Minas». Havia então duzentas caA
sas em Formigas, e uma população de cerca de oitocentas pessoas.175
Eis o que pudemos apurar sobre a formação de Dores do Turvo: nos primeiros
anos da década de 1780 existia nas imediações do ribeirão de São Francisco do
Turvo uma ermida de Nossa Senhora das Dores, que os habitantes da região ediA
ficaram «à custa de seu trabalho e despesa». A escolha do orago deveuAse, ao que
parece, a Maria Lopes. Ela, Francisco Martins e outros devotos requisitaram
posteriormente à Coroa autorização para que «em lugar da ermida que têm edifiA
cada na mesma paragem, possam erigir uma capela à mesma Santíssima Virgem
das Dores, para mais comodamente poderem satisfazer aos preceitos divinos e
terem o pronto pasto espiritual». Ademais, requeriam permissão para ter um erA
mitão, «que com caixinha da mesma Senhora das Dores possa vagar por aquela
capitania e outra qualquer» a fim de coletar donativos para a conclusão da
obra.176
Nosso último exemplo setecentista refereAse à origem do município de São JoA
aquim de Bicas. O pedido de provisão para a capela local foi feito em 1795 ou
1796. Este documento demonstra claramente em que medida as representações e
práticas religiosas são capazes de induzir à criação do espaço protoAurbano.
«Diz Francisco Gomes Leite, residente na freguesia de Nossa Senhora da
Boa Viagem do Curral delARei comarca do Sabará e bispado de Mariana nas
Minas Gerais, que ele e outros roceiros de grande fábrica, penetrados do
justo sentimento de não poder sem grande incômodo gravíssimo de suas pesA
soas e famílias ter a consolação espiritual de assistir ao santo sacrifício da
missa nos dias de preceito, por ser[em] as suas fazendas estabelecidas em paA
ragem muito distante da freguesia, e ainda mesmo da capela filial da Senhora

174 RAPM, II, 1897, pp. 562A564.


175 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., vol. II, pp. 290A291.
176 APM (AHU), cx. 119, doc. 44 [01.07.1783]; APM, SCA19, folhas 73A73v; EMB,
vol. 25, p. 73; DHGMG, p. 121.
214

do Carmo ereta no Arraial da Capela Nova177, obtiveram benigna faculdade


do Exmo. Rmo. Bispo daquele bispado para a ereção de uma ermida na paraA
gem chamada a Ponte Nova, e pondo em consideração aquele justo empenho
com o auxílio de todos os fazendeiros daquelas vizinhanças, concluíram a
factura da dita ermida prontissimamente, e fizeram colocar nela a imagem de
São Joaquim seguindoAse logo a celebração dos sacrifícios com licença do
mesmo Exmo. prelado, e sumo gosto do próprio pároco. Foi tanto do agrado
daqueles povos a ereção daquela ermida, já pelo ponderado motivo de terem
a consolação de ter missa todos os dias de preceito, já por terem bem próA
xima às suas habitações o recurso competente para os sacramentos nas ocaA
siões de necessidade, que todos liberalmente se apresentaram a concorrer
com esmolas, não só para o paramento necessário da ermida, como para asA
salariar um capelão sem ajutório do pároco. E ele mesmo querendo proviA
denciáAlos do remédio espiritual se deliberou a pedir ao Exmo. Bispo licença
para o dito confessar mulheres (...). Sendo manifesto ao provedor da coA
marca, que a dita ermida já estava [a]bastecida de adornos, e que era necesA
sário vigiar sobre a conservação deles, elegeu um administrador o qual é o
suplicante presentemente, e tão gostosamente exercita o dito emprego, que
lembrandoAse que com o recurso do tempo poderá enfraquecer a devoção daA
queles povos, e faltar com isso o necessário para a subsistência da ermida e
guisamento, está disposto a fazerAlhe um patrimônio de bens de raiz178 seus
próprios, fazendo doação deles. E como não pode reduzir a efeito os seus deA
sejos sem obter licença de Vossa Magestade, suplica por isso a Vossa MaA
gestade haja por efeito especial da sua real grandeza, e zelo católico, conceA
der faculdade para o suplicante fazer doação ponderada por terem os bens
maior valor de que duzentos mil réis, e que igualmente se possa estabelecer o
patrimônio, praticadas as formalidades de estilo, passandoAse para tudo proA
visão, por cuja graça formará Vossa Magestade um degrau para ascender à
eterna bemAaventurança».179
Um minucioso processo anexo ao pedido citado acima, em que constam depoiA
mentos de várias testemunhas, atesta a veracidade das informações dadas por
Francisco Gomes Leite. A maior parte dos habitantes da paragem da Ponte Nova
compunhaAse de «roceiros e mineiros». Antes da construção da ermida de São JoA
aquim faleciam muitos recémAnascidos e idosos sem os respectivos sacramentos,
pois a matriz do Curral del Rei ficava a nove léguas dali, e a capela do Arraial da
Capela Nova a três léguas.180 Além disso, a estrada que dava acesso à Capela
Nova era «muito ruim e principalmente em tempo de águas». O mal foi finalA
mente sanado com a ereção do templo na Ponte Nova e a nomeação do padre José
Benevides para o cargo de capelão. Mas faltava ainda o patrimônio, de modo que

177 Atual cidade de Betim.


178 Bens passíveis de registro.
179 APM (AHU), cx. 142, doc. 34 [25.08.1796].
180 Para uma visão de conjunto da vida religiosa nesta freguesia, ver Campos, AdalA
gisa Arantes. «A mentalidade religiosa do setecentos: o Curral del Rei e as visitas
religiosas ». In: VH (18) 1997: 11A28.
215

a capela só era conservada «com as esmolas do suplicante e mais moradores». Os


bens que o administrador decide doar valiam 200.000 réis. As fontes não permiA
tem saber se este patrimônio foi constituído em terras, casas ou ambas as coisas.
Que a cidade de Capelinha originouAse a partir da tríade capelaApatrimônioAarA
raial, sugereAo não apenas o seu topônimo. Num documento redigido pelo padre
José Batista dos Santos em 5 de maio de 1945,181 e seguramente baseado da traA
dição oral, dizAse que por volta de 1812 Feliciano Luís Pego e seus familiares deA
cidiram erigir uma capela naquela região do Alto Jequitinhonha: «Nesta humilde
capela se reuniam aos sábados e domingos os membros da família de Feliciano e
alguns amigos seus para rezarem o terço ou o ofício de Nossa Senhora. ApareA
cendo então a idéia de se estabelecer um povoado neste lugar, Feliciano doou
para este fim, a Nossa Senhora da Graça, uma porção de terreno em torno de sua
capela. ConstruíramAse nesta ocasião algumas choupanas nos lugares mais próA
ximos à capela e assim foiAse desenvolvendo a povoação com o nome de CapeliA
nha de Nossa Senhora da Graça». Em 1817 Capelinha já tinha cerca de 50 casas.
SaintAHilaire escreve: «Poucas colônias oferecem tanto como Capelinha a imaA
gem de uma colônia nascente».182 O desenvolvimento do arraial se acelerou a
partir da metade do século XIX, com o avanço da ocupação da região.183
Não foi outra a lógica que presidiu a formação de São João Nepomuceno. Uma
família há tempos ali estabelecida decidiu levantar uma igrejinha, que recebeu
provisão em 1811.184 O termo de doação do patrimônio foi feito por José Antônio
de Mendonça e sua mulher Francisca Maria de São José na Fazenda do Ribeirão,
em 27 de novembro de 1815. Pelo mesmo, prometiam eles doar à capela de São
João uma «sorte de terras [que] foram avaliadas em dez alqueires de planta, sitas
à roda da mesma capela».185
A capela de Nossa Senhora do Livramento foi o ponto de partida da história do
arraial de Livramento de Barbacena (atual cidade de Oliveira Fortes). As obras
tiveram início provavelmente em fins de 1821, todavia o responsável, João da
Silva de Andrade, não se comprometeu de imediato a dotáAla do devido patrimôA
nio. O comandante de ordenanças da capela do Piau inspecionou a obra em feveA
reiro de 1822, e, ao darAse conta que o terreno em que se erigia a capela pertencia
a Manoel da Costa Cardoso («crioulo forro») e a Francisco Alves de Faria («acaA
boclado»), ambos pobres, achou por bem embargar a construção. Em vista disso,
Andrade e outros fazendeiros do lugar requereram permissão para dar continuiA
dade aos trabalhos, comprometendoAse a doar um pedaço de terra à capela. O
embrião tomou forma aos poucos. Em 1895, 15 anos depois da criação da fregueA
sia, o pároco do Livramento notificou a todos os paroquianos que a cobrança de

181 AEAD, cx. 102. Tanto o DHGMG (p. 76) quanto a EMB (vol. 24, p. 342) baseiamA
se nesta mesma fonte, sem contudo mencionáAla.
182 SaintAHilaire, Viagem pelas províncias..., II, pp. 39A40.
183 Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, pp. 193A194.
184 DHGMG, p. 321.
185 AEAM, pasta 11AA/G. 1/A.2
216

foros anuais voltaria a ser posta em prática – o que demonstra que o patrimônio
rendera durante um período relativamente curto de tempo. Em carta de 31 de deA
zembro de 1895, o vigário Lourenço de Lucas esclarece à Cúria que «não é verA
dade que alguns dos meus paroquianos repugnam a se reconhecer foreiros; pelo
contrário, estão prontos a pagar». DigaAse de passagem que entre os foreiros enA
contavaAse Crispim Bias Fortes (governador de Minas entre 1894 e 1898). O terA
reno da capela foi medido no ano seguinte, e contaramAse então 108 foreiros.186
Às vezes o terreno do patrimônio era doado de uma só vez, por um ou mais
proprietários. Do contrário eram feitas doações sucessivas até que o «santo» detiA
vesse bens suficientes. É o caso da capela de Nossa Senhora das Mercês, na freA
guesia de Santa Cruz do Escalvado. A provisão para sua construção foi dada em
26 de janeiro de 1846, porém o patrimônio original (cuja extensão ignoramos) foi
posteriormente acrescido de um terreno doado pelos devotos. Este terreno origiA
nalmente pertencera a um escravo, de nome Ciríaco Martins Valadão, que o comA
prara em 1848 da mãe de seu senhor pela quantia de 40.000 réis. Em 11 de feveA
reiro de 1862, Valadão vendeu seu terreno (por 50.000 réis) a Felícia Clara de
Oliveira, que por sua vez o doou à capela das Mercês. Na mesma freguesia, em
18 de março de 1885, a capela de São Sebastião teve aumentado o seu patrimônio
em quatro alqueires, os quais estavam estimados em 200.000 réis.187 A capela de
São Sebastião do Grota (atual Grota, distrito de Jequeri) obteve seu patrimônio
em terras antes mesmo de dispor da provisão episcopal. Há referência a um alA
queire doado por Eliseu Fernandes da Silva e sua esposa, e a uma segunda doação
em 30 de setembro de 1877: «Digo eu abaixo assinada Dorselina Brás Batista que
entre (...) uma parte de terra que me cabe por herança de minha falecida mãe (...)
de cuja parte de terra dou ao mártir São Sebastião terreno de uma quarta no lugar
denominado Grota».188
A formação de São Sebastião da Mata (atual Eugenópolis) foi singular. O pioA
neiro na região teria sido Antônio Rodrigues dos Santos, que levantou em sua faA
zenda de São Manoel uma capelinha com esta mesma invocação. Consta que
chegaram a surgir casas ao seu redor, mas após a morte de Antônio dos Santos a
propriedade foi dividida entre seus herdeiros, e o núcleo retrocedeu. Em 1848, a
fazenda de São Manoel foi comprada por Luíza Maria de Jesus. DecidiuAse mais
tarde levantar nova capela no mesmo lugar da anterior, desta vez tendo São SeA
bastião por orago. O procedimento, em si, nada tem de excepcional: quando uma
igreja passava a desfrutar de um novo benfeitor podia realizarAse a mudança de
orago.189 Aos poucos o núcleo retomou fôlego, com novas casas surgindo ao reA
dor da igrejinha. Em 1865, finalmente, Joaquim Batista de Figueiredo e outros
proprietários doaram um terreno de 12 alqueires para patrimônio de São SebasA

186 AEAM, arm. 24, cx. 3.


187 AEAM, arm. 24, cx. 4.
188 AEAM, arm. 24, cx. 4; DHGMG, p. 142.
189 Dorn, «Beiträge zur Patrozinienforschung», pp. 36A37.
217

tião – o que, como já demonstramos, estabelece as préAcondições básicas para o


crescimento do arraial. É interessante notar que a devoção ao primeiro orago não
foi suprimida da consciência coletiva, pois quando o lugarejo adquiriu – em 1891
– o status de vila o nome escolhido para a mesma foi precisamente o de São MaA
noel.190
O município de Dores da Vitória teve como marco inicial a edificação da caA
pela de Nossa Senhora das Dores da Vitória. Dom Viçoso atendeu a um requeriA
mento de Antônio Carlos da Fonseca, Francisco Luiz de Andrade e outros moraA
dores em 10 de agosto de 1855. O distrito foi criado apenas dois anos mais tarde.
Este crescimento rápido (em comparação com os casos típicos de embriões de
cidade de origem religiosa) é o que provavelmente explica a necessidade de um
posterior aumento das dimensões do patrimônio. Em 19 de julho de 1863, Ana
Francisca do Sacramento, Higino Garcia de Oliveira, João Carlos da Fonseca
Silva e João Ferreira da Costa doaram dois alqueires «de terras de cultura», no
valor de 100.000 réis, à capela da Senhora das Dores.191
O caso de Santo Antônio do Grama demonstra como doações sucessivas poA
dem ser motivadas pela demanda de aumento da área do embrião de cidade. AnA
tônio Luiz de Freitas fundou, em 13 de junho de 1850, uma capelinha de Santo
Antônio na divisa de sua propriedade com a Fazenda do Grama. Uma vez consA
tituído o patrimônio, começou a formarAse o arraial. Seguramente devido a um
afluxo crescente de foreiros, outros pequenos fazendeiros aumentam pouco a
pouco a área do patrimônio: José Fernandes da Silva doou 4 alqueires à capela, e
fez a Rua de Baixo; Antônio Claudiano da Silva adquiriu um terreno chamado
Palhada onde se fez uma rua com o mesmo nome; José Antônio Pereira Salgado
acrescentou ao patrimônio uma sorte de terras que se extendia da capela ao CórA
rego dos Salgados; Venâncio Gonçalves Mil e Francisco Gomes da Silva Jr. fizeA
ram a Rua Nova; Joaquim Gonçalves Gomes (o tesoureiro da capela) doou os terA
renos onde se delineou a Rua de Cima. Esta última doação teria sido, segundo o
depoimento de um morador recolhido já no século XX, a que mais contribuiu
para a «rapidez assombrosa» com que se desenvolveu o arraial.192
Em Amparo da Serra a doação do patrimônio inicial deuAse em 15 de dezemA
bro de 1862. Como acontecia por vezes, cedeuAse à capela não um terreno em si,
mas o rendimento por ele produzido. Francisco [Lisimbra?] e sua esposa Rita
Maria de Jesus doaram o produto de um alqueire de terras de sua propriedade. O
mesmo fizeram – e na mesma data – João Gonçalves Leal e sua mulher Simplícia
Maria de Jesus, porém sob o rendimento de três alqueires e meio. O arraial parece

190 AEAM, arm. 24, cx. 3; EMB, vol. 25, pp. 114A115. Não nos foi possível identificar
ao certo quem foi o responsável (ou responsáveis) pela reconstrução da capela. Na
EMB sugereAse que tenha sido a própria Luíza Maria de Jesus, enquanto que numa
carta do vigário de São Miguel, datada de 10 de maio de 1893, aparecem os nomes
de Manuel Luiz Pereira Grugel e Feliciano Mariano dos Prazeres.
191 AEAM, arm. 24, cx. 2.
192 AEAM, arm. 24, cx. 4; EMB, vol. 27, p. 176.
218

ter tido aquela data como ponto de partida, já que não se faz qualquer menção a
ele nas duas escrituras. Treze anos mais tarde o arraial estava formado, e o patriA
mônio foi aumentado: o casal Simplício José de Almeida e Sebastiana Maria de
Alcântara vendeu ao vigário um «pedaço de terras nas vertentes deste arraial que
divisam por um lado com as terras do patrimônio e pelo outro com terra dos venA
dedores (...) para o patrimônio de Nossa Senhora do Amparo e cujo rendimento
será aplicado à igreja da mesma santa».193
Na análise dos dados acima o pesquisador pode pode ser levado a crer que a
tríade capelaApatrimônioAarraial desfrutava de uma espécie de autonomia em relaA
ção à percepção e às intenções dos atores sociais. Como se necessidades espirituA
ais e normas eclesiásticas simplesmente guiassem os indivíduos. Um grupo de
fiéis precisava de uma capela a fim de assistir ao culto, receber o «pasto espiriA
tual» e os meios de salvação. A constituição do patrimônio seria uma mera conA
seqüência de exigências eclesiásticas; e a formação do arraial, por seu turno, uma
conseqüência da conseqüência. Na verdade as coisas não eram assim tão simples.
Não nos esqueçamos de que o patrimônio sempre pôde ser constituído em diA
nheiro. Se quase sempre ele o era em terras é porque os fazendeiros preferiam
esta segunda modalidade. Se o instituidor de uma capela pretendesse evitar que a
mesma deflagrasse o processo de protoAurbanização, bastava dotáAla de 6.000 réis
anuais. De maneira que, fora das circunstâncias onde predominou a mineração ou
a ação policialAmilitar do Estado, não houve arraial possível sem patrimônio em
terras – sem um espaço sagrado associado ao templo.
Neste ponto, é preciso fazer um reparo importante a Sérgio Buarque de HoA
landa. Para ele, «a cidade que os portugueses construíram na América não é proA
duto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza»; nossas cidades não
seriam fruto de um «ato definido da vontade humana».194 Este juízo se amparava
numa contraposição dicotômica do modelo das cidades coloniais espanholas e
portuguesas, já convinientemente criticada por Roberta Marx Delson em seu esA
tudo sobre cidades planejadas no Brasil Colonial.195 Mas não é necessário que se
chegue tão longe. Mesmo os arraiais nunca foram estruturas totalmente «espontâA
neas», seja no que se refere à sua gênese seja no que se refere à sua organização
espacial.
O problema para o historiador reside no fato de que o desejo de se promover a
protoAurbanização por meio de capelas e patrimônios dificilmente se manifesta
nas fontes. Afinal, não havia razões para isso: ao dirigirAse a um bispo ou à CoA
roa, um indivíduo ou grupo de moradores deveria pedir permissão para levantar
um templo, mas não para dar início a uma povoação. Ainda assim alguns pedidos
de provisão ou escrituras de patrimônios permitem perceber que a formação de

193 AEAM, arm. 24, cx. 1. Baseado no Cônego Trindade, Barbosa atribui a primeira
doação a Domiciano José da Fonseca (DHGMG, p. 24). Este fora, na verdade, um
mero arrendatário das terras pertencentes aos doadores.
194 Holanda, Raízes do Brasil, pp. 76, 62.
195 Delson, New towns for Colonial Brazil.
219

uma povoação sempre foi um «ato definido da vontade humana». Foi o que puA
demos observar no caso do arraial setecentista de São José do Chopotó. Vejamos
outros exemplos.
O primeiro deles diz respeito à gênese da atual cidade de Matipó. Depois de
obter uma graça de São João Batista, João Fernandes dos Santos decidiu «pagar a
promessa» que assumira perante o santo de sua devoção: erigirAlhe uma capela. O
termo de doação do patrimônio, datado de 28 de outubro de 1876, é assinado por
ele e sua mulher Antônia Valeriana da Silva:
«(...) doamos de nossa livre e espontânea vontade para fundação de um ar
raial, cinco e meio alqueires de terras de cultura, (...) dentro desta minha faA
zenda no lugar denominado São João Batista declarando que destes cinco
alqueires e meio um é grátis para os povos e quatro e meio [para] quem quiA
ser edificar dentro deste terreno.»196
O segundo exemplo trata da formação do embrião de São Domingos (atual MisA
sionário). Em carta ao bispado de Mariana em 1° de outubro de 1884, Francisco
Antônio de Souza Barros informa que concluíra uma capela dedicada a São DoA
mingos de Gusmão em sua fazenda. Junto dela, o fazendeiro fizera também um
«cemitério murado de pedra». A capela estava dotada, assegura ele, de «algum
terreno» para patrimônio. Ao que parece, a dimensão deste patrimônio não era das
mais avantajadas, pois numa escritura de 20 de novembro de 1891 lêAse que
Francisco da Costa Barros comprou um alqueire e meio de «terra de cultura» a
fim de doáAlo à capela, assim como para a «criação do arraial de São Domin
gos».197
O terceiro exemplo é o da capela do Senhor Bom Jesus do VauAAçu, ponto de
rotação em torno do qual formouAse o arraial de Alto VauAAçu (atual Padre FelisA
berto). Curiosamente, a doação do patrimônio antecedeu ali a construção da
capela. A escritura demonstra o desejo explícito de Antônio Luiz Martins de CarA
valho em deflagrar o processo de protoAurbanização. Em 22 de junho de 1898,
cedeu ele três alqueires
«ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos a cujo santo fica de hoje em diante
pertencendo esse terreno para seu patrimônio onde o povo poderá erigir
igreja, fundar qualquer estabelecimento de caridade, de instrução pública asA
sim como casas particulares e todo edifício necessário para um bom arraial
(...).»198
A capela foi construída, mas por algum motivo o arraial não se desenvolveu de
imediato. Uma segunda escritura, com data de 21 de novembro de 1914, estipuA
lou a doação de mais um alqueire e três quartos de terras «ao Senhor Bom Jesus e
sua capela». Os doadores, Maria Luiza Fialho, José Antônio de Miranda e sua

196 AEAM, arm, 24, cx. 3 (grifo nosso).


197 AEAM, arm. 24, cx. 3 (o grifo é nosso).
198 AEAM, arm. 24, cx. 1.
220

mulher, declaram que nas ditas terras «se poderá erigir igrejas, estabelecimentos e
instituições fiéis, fundar hospitais, casas de instrução, casas particulares, fábricas,
maquinismos, ruas, praças e outros melhoramentos indispensáveis a uma boa
vila».
São Sebastião do Pirapitinga (hoje Pirapitinga, distrito de Catas Altas da NoA
ruega) deve sua formação à ereção de uma capela por José Gomes da Silva. O
patrimônio foi doado em 31 de julho de 1888, e media «um alqueire e meia quarta
de terras» localizadas «no centro da pequena povoação denominada Pirapetinga,
onde já vários têm feito suas casas». NoteAse que a formação do grupo de casas
em torno da capela iniciouAse antes da doação do patrimônio. Mas isso só pôde
ocorrer porque o proprietário do terreno não se opôs. De toda forma, trataAse de
uma situação transitória. Somente a constituição do patrimônio em terras garante
o direito dos foreiros de se instalarem nas proximidades da capela e ali fixarem
residência.199
Um pedido de ereção de capela permiteAnos rastrear a préAhistória de Santa
Filomena (distrito de Santana do Manhuaçu). Em 24 de abril de 1898, enviouAse a
Dom Silvério Gomes Pimenta, bispo de Mariana, a seguinte carta: «Desejando os
habitantes do córrego Taquaruçu nesta freguesia de São José do Barroso [atual
Paula Cândido], edificar uma capela à gloriosa Santa Filomena em um patrimôA
nio de seis alqueires de terras, doado à mesma santa na fazenda pertencente ao
finado Padre Francisco Valente, vêm por esta requerer a Va. Exa. a competente
licença e bem assim autorização ao vigário desta freguesia para benzer a dita caA
pela depois de ultimada. O referido patrimônio dista mais de duas léguas da sede
da freguesia (...)».200
Como se pode notar, a tríade capelaApatrimônioAarraial é de fundamental imA
portância para a compreensão da formação da rede urbana mineira. Quanto mais
porque este tipo de interação entre sagrado e protoAurbanização foi um processo
de longa duração, tendo se extendido do setecentos até o século XX adentro.
Mencionemos, a título de ilustração, o caso de São Sebastião de Santa Rosa,
germe da atual cidade de Paiva. Por volta de 1906 uma violenta epidemia atingia
aquela porção da Zona da Mata. João Ferreira de Paiva, rico fazendeiro da região,
prometeu então a São Sebastião que fundaria um arraial caso a sezão fosse debeA
lada. A graça foi obtida, e Paiva mandou levantar um grande cruzeiro que, posteA
riormente, se mandou transladar a um local chamado Santa Rosa, onde o fazenA
deiro havia adquirido um terreno para patrimônio e início do arraial. Em 8 de
julho de 1907 realizouAse a primeira missa ao ar livre no sítio onde ergueuAse,
mais tarde, a capela de São Sebastião.201 Em 1909, seu patrimônio media cerca
de oito alqueires. A capela era feita em madeira, e media 80 palmos de compriA
mento por 30 de largura e 28 de altura. Havia ainda no lugar o cruzeiro «com toA

199 AEAM, arm. 24, cx. 2.


200 AEAM, pasta 33, gav. 4, arq. 4.
201 EMB, vol. 26, p. 242.
221

dos os martírios», um cemitério e uma casa para a residência do padre. O arraial


tinha então «vinte casas edificadas e outras já em construção com cem habitantes,
achandoAse colocado o dito arraial num lugar pitoresco» e com farto acesso a
fonte d’água. ReuniamAse ali, por ocasião das celebrações, 500 pessoas ou
mais.202 O desenvolvimento da localidade foi bastante favorecido, a partir de
1914, com a inauguração de uma estação ferroviária – em terras, aliás, doadas
pelo mesmo João Ferreira de Paiva.203

4.3.2 Sagas e mitos de origem


Não é apenas o historiador, munido de seu aparato teóricoAmetodológico e seu
vasto elenco de fontes, que se ocupa com a origem de nossas capelas e embriões
de cidade. Movido pela mesma curiosidade, o povo também se pergunta a resA
peito. À sua maneira, ele encontra respostas. Estas respostas eventualmente consA
tituem um corpo de narrativas que se pode classificar como sagas ou mitos de
origem.
Comecemos com um exemplo bem conhecido. No século XVIII, ao recolheA
rem suas redes do leito de um rio, alguns pescadores encontram uma imagem de
Nossa Senhora sem cabeça. Depois de lançarem outras vezes as redes, a cabeça
pertencente à mesma imagem é encontrada. FazAseAlhe um pequeno altar. Os que
recorrem a ela não se decepcionam. Acontecem milagres, e a devoção cresce cada
vez mais. Um templo maior é construído. As graças obtidas por intermédio da
santa espalham sua fama por regiões distantes, e iniciamAse finalmente as roA
marias. Todo católico em nosso país conhece a «lenda» da padroeira do Brasil,
Nossa Senhora Aparecida.
Numa perspectiva objetivista, narrativas deste tipo não merecem crédito algum
da parte do historiador. Ninguém interessado em reconstruir a realidade histórica
deveria servirAse de «lendas». Adolf von Harnack escreveu: «Se perguntarmos
hoje aos nossos grandes historiadores (...) qual é a mais difícil parte de sua tarefa,
assim nos responderão eles unanimemente: a luta contra a lenda (Legende)».204
Desde há muito este rigorismo cientificista tem sido criticado. O que foi escrito
por André Jolles em 1930 a respeito da saga aplicaAse perfeitamente à atitude que
predomina na modernidade em relação à «lenda». Jolles chamava a atenção para
essa «tirania da história» que nos leva a pensar «que a saga simplesmente não
existiria, ou que ela constituiria apenas uma espécie de tímida préAcondição da
própria história».205

202 AEAM, arm, 24, cx. 3.


203 DHGMG, p. 234.
204 Harnack, Adolf von. «Legenden als Geschichtsquellen». In: Harnack, A. v. Reden
und Aufsätze. Gieszen: J. Ricker’sche Verlagsbuchhandlung, 1904 (1. Band), p. 8.
205 Jolles, André. Einfache Formen. Tübingen: Niemeyer, 1974 (1930), p. 64.
222

A historiografia contemporânea adota, sabidamente, uma posição bem menos


ortodoxa. Gêneros como a saga e o mito oferecemAnos uma privilegiada via de
acesso à mentalidade de uma época, ou, pelo menos, aos estilos de pensamento
de uma camada social num dado período histórico. O grande medievalista russo
Gurjewitsch, por exemplo, considera a saga uma das mais originais fontes para o
estudo do que ele chama o «mundo interior» do homem medieval.206
Como uma coletividade concebe o universo à sua volta? Como ela organiza as
relações entre as distintas «províncias de significado» (Schütz) que constituem
sua realidade? O fundamental aqui é perceber que para a mentalidade popular tais
narrativas são de fato verdadeiras. Neste sentido toda saga e todo mito contém
uma porção não desprezível de verdade, e como tal pode e deve ser explorada
pelo historiador.207
Vimos que o homem comum, na Minas antiga, é um homo religiosus. A idéia
de «acaso» lhe é estranha: todo evento sensível, todo fenômeno, encontra no inviA
sível a sua justificação. Ele ignora (ou simplesmente recusa) a rígida separação
entre sagrado e profano de que tanto fala a religião oficial. Em seu universo o
extraAcotidiano faz parte do cotidiano.
Narrativas como a da origem da imagem de Nossa Senhora Aparecida eram
moeda corrente na América Latina durante o período colonial.208 Na Minas dos
séculos XVIIIAXIX encontramAse ainda diversas outras modalidades mais ou meA
nos semelhantes. Boa parte delas relacionaAse à construção de uma capela e, por
conseguinte, à gênese de um arraial. Ora, diante deste tipo de fonte, a questão que
se coloca não é mais «como surgiu a cidade», mas como o povo concebe a origem
da cidade.
O primeiro passo para a análise deste material consistiria no abandono da palaA
vra «lenda», de vez que sua acepção corrente, no Brasil, está intimamente associA
ada à idéia de «deturpação do real». Em conformidade com os trabalhos daqueles
que primeiro realizaram estudos sistemáticos nesta área – os folcloristas –, emA
pregaremos o termo saga.209 Ao contrário do que sugere o senso comum, este
termo não denota apenas os relatos dos feitos dos antigos heróis nórdicos. As saA
gas têm dimensões e motivos que podem variar ao infinito – da complexidade do

206 Gurjewitsch, Aaron. Das Individuum im europäischen Mittelalter. München: C. H.


Beck, 1994, p. 55.
207 Pettazzoni, Raffaele. «The truth of myth». In: Dundes, Alan (ed.) Sacred narrative.
Readings in the theory of myth. Berlekey: University of California Press, 1984, pp.
98A109.
208 Ver Souza, Juliana B. Almeida de. «Virgem mestiça: devoção à Nossa Senhora na
colonização do Novo Mundo». In: Tempo 6 (11) 2001: 77A92.
209 No francês e no inglês usamAse os derivados da forma latina legenda (légende, le
gend). Embora a palavra exista em português, o seu uso não se consagrou nem
mesmo entre os pesquisadores brasileiros e lusitanos. A melhor solução nos parece
ser «saga», uma vez que este termo encontrou uma aplicação bem mais precisa no
âmbito da folclorística alemã.
223

Edda à singela «história» da padroeira do Brasil. «Saga» é uma denominação


abrangente para uma infinidade de subAgêneros de narrativa popular que têm em
comum o fato de colocarem no centro da ação não propriamente o homem em si,
mas o extraordinário.210 Pelo menos naqueles contextos sociais ainda não afetaA
dos pela técnica e ciência modernas, a saga é percebida como a expressão inequíA
voca de um fato realmente acontecido. Ela pode ser considerada como uma espéA
cie de cristalização, sob a forma de narrativa, das crenças populares. Donde se
conclui que o estudo das sagas se confunde, em grande medida, com o estudo da
religião popular.211
São três os seus tipos básicos212:
– sagas demonológicas (no sentido original da palavra daímōn): nas quais o que
desempenha o papel central é o Erlebnis, a «vivência» do extraordinário;
– sagas históricas: onde figuram pessoas ou eventos reais;
– sagas de origem: nas quais se busca explicar um dado fenômeno ou manifestaA
ção natural (uma tradução mais adequada para Ursprungssage é, talvez, «mito
de origem»).
Esta classificação não visa estabelecer uma diferenciação rígida, uma vez que
na prática há sagas que contém elementos pertencentes aos três tipos ideais. VeA
remos, dentro em pouco, ser este o caso de muitas das sagas relativas às antigas
capelas e arraiais mineiros. Em todo o caso estes tipos ideais oferecem um quadro
de referência, contribuindo assim para conferir alguma intelegibilidade ao mateA
rial pesquisado.
A cidade não é algo «natural». Sua formação deve, portanto, ser explicada. Daí
o surgimento das sagas ou mitos de origem: para alguns Lisboa teria sido fundada
por Ulisses; outros crêem que o fundador teria sido Luso, um companheiro de
Baco; para outros ainda o seu fundador foi um bisneto de Noé.213 À primeira
vista, e em virtude da sua formação bem mais recente, nada semelhante teria
acontecido em nossos arraiais. Conferindo um peso excessivo a casos como os de
Belo Horizonte e Brasília, Flusser chega a escrever que as cidades brasileiras,
«diferentemente das européias, originamAse não num projeto mítico, mas racioA
nal».214 Mas não é bem esse o caso.

210 Röhrich, Lutz. Sage. Stuttgart: Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1966, pp. 1A4.
211 Tillhagen, CarlAHerman. «Was ist eine Sage? Eine Definition und ein Vorschlag für
ein europäisches Sagensystem». In: Petzoldt, L. (Hrsg.) Vergleichende Sagenfor
schung. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969, pp. 307A318.
212 Bausinger, Hermann. Formen der «Volkspoesie». Berlin: Erich Schmidt, 1980, pp.
179A187; Röhrich, Lutz. «Erzählforschung». In: Brednich, R. W. (Hrsg.) Grundriß
der Volkskunde. Berlin: Reimer, 2001, pp. 527A531.
213 Costa, Alexandre de Carvalho. Lendas – historietas – etimologias populares e ou
tras etimologias respeitantes às cidades, vilas, aldeias e lugares de Portugal Con
tinental. Porto: Civilização, 1959, p. 21.
214 Flusser, «Brasilianische Städte», p. 262.
224

Um problema com o qual todas as sagas direta ou indiretamente se ocupam é o


da escolha do sítio. Em Divino a solução foi original. Dispostos a fundar um poA
voado, os antigos moradores da região decidiram sair em caminhada, pela manhã,
descendo pelo ribeirão São João do Norte até o rio Carangola, percorrendo suas
margens até o ponto em que sentissem fome. No local em que pararam para fazer
sua refeição, fincaram a bandeira do Divino Espírito Santo (de quem eram devoA
tos) e edificaram a capela.215 A refeição como símbolo de congraçamento e
união: algo que a capela – e o espaço que por seu intermédio se torna habitável –
haveria de reforçar e representar de forma perene.
Por volta de 1790, dois fazendeiros do sul de Minas tiveram a idéia de levantar
uma capela. Discordaram, porém, quanto ao local da obra. DecidiuAse enfim que
ambos sairiam de suas fazendas numa mesma hora combinada, um em direção à
propriedade do outro. No local do encontro seria erigida a capela, célulaAmater da
atual cidade de Bocaina de Minas.216
A origem de Luz estaria relacionada, igualmente, a desentendimentos entre
proprietários rurais. Duas fazendas vizinhas, chamadas «Cocais» e «Camargos»,
não tinham limites bem demarcados, o que motivava descontentamento e tensões
de ambos os lados. A esposa de um dos fazendeiros, apreensiva, fez promessa a
Nossa Senhora da Luz para que fosse encontrada uma solução pacífica. Surgiu
então uma idéia para se resolver a questão: partindo pela manhã, simultaneaA
mente, cada um de sua residência, os fazendeiros cavalgariam um em direção ao
outro. Próximo do ribeirão do Jorge Pequeno deuAse o encontro, colocandoAse ali
o marco divisório. ResolveuAse fazer uma capela no mesmo local, a qual recebeu
patrimônio. Daí a formação do arraial de Nossa Senhora da Luz da Confusão.217
A mesma solução foi posta em prática em Martinho Campos, embora na versão
da saga de que dispomos não se faça menção a diferenças de opinião entre os faA
zendeiros Jerônimo Vieira e Maximiliano Alves de Araújo. Os dois decidiram na
primeira metade do século XIX erigir uma capela a Nossa Senhora da Abadia.218
Deixar ao «acaso» de um encontro a determinação do sítio do templo? Em abA
soluto. A prática descrita acima nos remete a arquétipos cujas origens provavelA
mente se perdem no tempo. Em França acreditavaAse que «depois de terem escoA
lhido o lugar da igreja de São LégerAsousABeuvray, São Léger e São Julien comA
binaram um encontro para o dia seguinte: o lugar onde eles se encontrassem seria
escolhido para edificar a igreja de Laizy».219

215 EMB, vol. 25, p. 40.


216 EMB, vol. 24, p. 199.
217 EMB, vol. 25, p. 468.
218 EMB, vol. 26, p. 60.
219 Sébillot, Le folk lore de France, p. 113. ContaAse nos cantões suíços de Uri e GraA
rus que a fronteira entre ambos teria sido demarcada por meio do mesmo recurso.
Para pôr fim aos conflitos, dois homens robustos sairiam, cada um de sua região,
«tão logo o galo cantasse». Petzoldt, Leander (Hrsg.) Deutsche Volkssagen. MünA
chen: C. H. Beck, 1978, pp. 336A337.
225

Tal como na Europa220, o que muitas vezes desencadeia a construção de uma


capela na Minas antiga é o cumprimento de uma promessa – o que, digaAse de
passagem, tende a relativizar a idéia de que o homem do século XVIII seria «obA
cecado» pela morte (para usar os termos de Euclides da Cunha: «a terra é o exílio
insuportável, o morto um bemAaventurado sempre»).221 O mecanismo da proA
messa revela uma lógica diversa. É comum recorrerAse a ela num momento de peA
rigo eminente ou de doença. No âmbito do catolicismo popular, o exercício da fé
está em função da vida.
ContaAse em Bom Sucesso que a origem da cidade se relaciona ao seguinte
episódio. Por volta de 1720 passava por aquela região um governador de Minas
com sua esposa, que estava grávida. Sentindo ela as dores do parto, fez o goverA
nador uma promessa à Virgem a fim de que tudo ocorresse sem problemas. ObA
tida a «graça», mandouAse construir no local uma capela dedicada a Nossa SeA
nhora do Bom Sucesso. Ao seu redor formouAse o arraial.222 Em 1755, o padre
Domingos de Araújo se estabeleceu com seus escravos numa fazenda. Anos deA
pois a região foi afetada por uma sezão. Reunindo seus escravos em ofícios reliA
giosos, o padre Araújo suplicou a Nossa Senhora da Saúde que os socorresse e
prometeu fazerAlhe uma capela. PôsAse o sacerdote a caminho do Rio de Janeiro,
de onde trouxe, nas costas de um escravo, uma imagem da santa. Chegados à sua
fazenda, esta imagem foi intronizada numa capela provisória construída no interA
regno da viagem. A epidemia arrefeceu, e a capela constituiu o eixo em torno do
qual surgiu o arraial de Nossa Senhora da Saúde, atual cidade de Dom Silvério.223
Segundo a saga de origem de São Domingos do Prata, o fazendeiro Domingos
Marques Afonso perdeuAse na mata, aonde fora caçar. Já sem esperança de safarA
se dos ataques de índios ou de animais selvagens, pediu a proteção divina, por
intermédio «do seu homônimo, São Domingos de Gusmão, ao qual prometeu
doar um patrimônio no lugar onde estava sua roça de milho». Depois de feito este
voto, Afonso conseguiu chegar são e salvo a lugar seguro. Em 1760, em compaA
nhia de Antônio Alves Passos, ele deu início à construção da capela de São DoA
mingos. A doação do patrimônio fezAse em 3 de outubro de 1768 em Catas
Altas.224 Em Paraopeba acreditaAse que a capela de Nossa Senhora do Carmo foi
erguida e dotada de patrimônio por um proprietário chamado Coronel Marques,
em agradecimento por ter saído ileso de um ataque de onça durante uma caA
çada.225
FazAse promessas sobretudo devido a doenças ou ao medo de contrair doenças.
O fundador de Santa Rita do Sapucaí, Manoel José da Fonseca, era tido como um
homem «piedoso e bom». ContaAse que ele chegou àquela região com um saco às

220 Sébillot, Le folk lore de France, pp. 123A124; HdA, 4. Band, p. 969.
221 Cunha, Os sertões, p. 95.
222 EMB, vol. 24, pp. 219A220.
223 EMB, vol. 25, p. 58.
224 EMB, vol. 27, p. 189A190.
225 EMB, vol. 26, p. 268.
226

costas, no qual trazia uma imagem de Santa Rita. Certa ocasião, ao verAse enA
fermo, ele fez promessa de doar a Santa Rita de Cássia um terreno e contruirAlhe
uma capela se recuperasse a saúde. Após sua morte (a variante de que dispomos
não esclarece se a «graça» foi efetivamente atingida), sua esposa, Genoveva da
Fonseca, doou em 1825 cerca de oito alqueires à santa – embrião da cidade de
Santa Rita do Sapucaí.226
Atraídos pela qualidade das terras, dois irmãos, Daniel e Joaquim Goulart, se
estabeleceram no sul de Minas. Isso por volta de 1820. Tempos depois um deles
ficou gravemente doente, e ambos fizeram promessa de doar a São João Batista
uma porção de terras entre os córregos do Lava Pés e da Chácara. Obtida a cura,
doaram os irmãos Goulart nada menos que 70 alqueires nos quais logo foi erigida
uma capela de São João Batista. Em 1825 um pequeno grupo de casas já se forA
mara ao redor do templo.227 Bom Jesus do Galho teria sido fruto de uma proA
messa feita por Adão Coelho por volta de 1880. Devido a uma grave moléstia, «e
não conseguindo cura na medicina», resolveu apelar para o Senhor Bom Jesus.
Depois de restabelecerAse, Coelho doou terras «para que se construísse o poA
voado».228 Não é outro o motivo central na saga de origem de Monte Alegre de
Minas. A família de Martins Pereira, a caminho de Goiás, teve um de seus memA
bros acometido por uma enfermidade. Tiveram, por esta razão, de fazer pouso
naquela parte do Triângulo Mineiro. Como devotos de São Francisco das Chagas,
fizeram o voto de doar uma gleba de terras e construir uma capela para este santo,
no caso de cura daquele familiar adoecido. Assim se deu, e com auxílio de outras
famílias – os Gonçalves Costa e os Martins de Sá – a promessa foi cumprida:
nasceu assim a povoação de São Francisco das Chagas do Monte Alegre.229
A epidemia volta a aparecer, relacionada à promessa, na saga da cidade de TeiA
xeiras. Em torno de 1840, encontravaAse Antônio Serafim Teixeira a caminho de
Ouro Preto para ali vender o produto de suas lavouras. No percurso, Teixeira foi
tomado pelo medo de contrair uma moléstia que então grassava na região. VendoA
se nestas circunstâncias, fez promessa a Santo Antônio de que lhe construiria uma
capela próxima ao local de sua residência. Tempos depois, a capela era erigida. O
povoado cresceu lentamente.230 O mesmo teria se dado em Raul Soares. Duas irA
mãs, depois de rogarem a São Sebastião pelo abrandamento de sezões, doaram
terras para patrimônio de uma igreja a ser construída em honra ao dito santo.231
Narrativas de estrutura semelhante (promessa → patrimônio/capela → arraial)
encontramAse ainda nas cidades de Botelhos, Conceição de Aparecida, Guapé e
Elói Mendes.232 Podemos consideráAlas uma mistura de sagas históricas e mitos

226 EMB, vol. 27, p. 164.


227 EMB, vol. 27, p. 217.
228 EMB, vol. 24, p. 214.
229 EMB, vol. 26, p. 118.
230 EMB, vol. 27, pp. 343A344.
231 EMB, vol. 27, p. 13.
232 EMB, vol. 24, pp. 235 e 463; EMB, vol. 25, p. 171; ANEDC (22) 1960, p. 34.
227

de origem: os personagens são quase sempre pessoas que realmente existiram, e a


memória coletiva reconhece neles os «heróis fundadores» da comunidade. Por
outro lado, trataAse de explicar um fenômeno – a cidade – que se sabe de origem
«nãoAnatural». Um fenômeno que os homens, por si sós, não seriam capazes de
produzir. O que essas sagas parecem querer nos dizer é que, sem a decisiva in
tervenção do sagrado, o embrião de cidade jamais teria existido.
Mas a religião popular estabelece também uma certa gradação entre as difeA
rentes formas por meio das quais se dá tal intervenção. Se nos casos acima o saA
grado é invocado, há outros em que ele simplesmente se manifesta. Estas maniA
festações espontâneas do numinoso, estas hierofanias233, colocam determinados
eventos num patamar mais elevado de sacralidade. Um fenômeno recorrente nas
sagas pesquisadas é a construção da capela no lugar onde se encontra a imagem
de um santo. Van der Leeuw observou com perspicácia que este fenômeno mostra
que os homens nem sempre escolhem o local da capela. É o local que, por assim
dizer, se revela.234 Uma das moradoras de Cruz das Almas resumiu a questão de
forma primorosa:
«Os santos que são mais milagrosos são os antigos. Isso é porque os novos
santos são feitos, e os antigos eram encontrados.»235
Bocaiúva teria surgido após o aparecimento de uma imagem do Senhor do BonA
fim no início do século XVIII. Antônia Leite, esposa de Faustino Leite Pereira,
ofereceu parte de suas terras para patrimônio da igreja do Bonfim. «Foi este, na
verdade, o marco inicial da fundação da cidade».236 Em Matosinhos, a capela
primitiva foi edificada nas ruínas de um antigo acampamento, onde se descobriu
uma imagem do Senhor Bom Jesus.237 Em Nova Resende, in illo tempore, achouA
se uma imagem de Santa Rita. ErigiuAse uma capela à santa, que recebeu o resA
pectivo patrimônio. Estava formado o embrião da cidade.238 O mesmo se deu em
Turmalina, após o aparecimento da imagem de Nossa Senhora da Piedade.239

233 Goody («Religion and ritual», p. 151) critica este termo de Eliade, considerandoAo
inadequado para fins de sociologia religiosa comparada. Mas a recíproca não nos
parece menos verdadeira: pode o método sociológico ser de alguma valia na anáA
lise das sagas e mitos de origem? Como já apontava LéviAStrauss (Antropologia
estrutural, p. 239), estes relatos apresentam notáveis semelhanças apesar de se oriA
ginarem nos mais diversos contextos culturais e geográficos. Há fenômenos, como
a crença em milagres e visões, que não se prestam a uma explicação de tipo soA
ciológico tradicional (Benz, Die Vision, p. 642). A alternativa poderia estar num
diálogo mais intenso com a fenomenologia. Nesta perspectiva: Dupront, Du sacré,
pp. 44, 221; e Knoblauch, Religionssoziologie, pp. 35A38.
234 Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 375.
235 Pierson, Cruz das Almas, p. 147.
236 EMB, vol. 24, p. 202.
237 EMB, vol. 26, p. 75.
238 EMB, vol. 26, p. 199.
239 EMB, vol. 27, p. 387.
228

Em 1853, um lenhador chamado Pedro Espetáculo (sic), ao manejar sua foice


num roçado, descobriu uma imagem de São Pedro. O fato foi considerado um
milagre, e nada menos que 19 proprietários constituíram um patrimônio com 60
alqueires para a capela dedicada ao santo. Desta «união» veio a idéia para o topôA
nimo que ainda hoje se mantém no lugar: São Pedro da União.240 A saga de oriA
gem de São Vicente de Minas conta que no início do século XIX um empregado
do fazendeiro Francisco José de Andrade Melo encontrou um santo às margens
de uma nascente d’água. VerificouAse mais tarde que se tratava de uma imagem
de São Vicente Férrer. O proprietário das terras mandou fazer uma ermida em
honra ao santo, e depois uma capela. Esta tornouAse «o centro das atividades soA
ciais da redondeza», crescendo assim o arraial.241
De Portugal242 à Romênia243, a tradição popular é marcada pelos mesmos reA
latos de capelas construídas em lugares (campos, rochedos ou grutas, junto a
fontes ou árvores244) onde se acharam imagens de santos. Moisés Espírito Santo,
centrandoAse no estudo da crença nas «Senhoras Aparecidas» em aldeias portuA
guesas, sugere que este fenômeno exprime «a visão do próprio nascimento e maA
nifesta o desejo da presença da mãe».245 Esta interpretação não satisfaz: também
membros masculinos do panteão católico eram encontrados.
Um grupo particularmente interessante de sagas é o das imagens «teimosas»,
aliás comuns na Espanha246 e na França.247 Vejamos o caso de Passa Vinte. Na
primeira metade do oitocentos, duas velhas negras forras, ao saírem para buscar
lenha, encontraram uma imagem de Santo Antônio no mato, ao pé de uma árvore.
LevaramAna para casa e colocaramAna num altar improvisado. No dia seguinte a
imagem havia desaparecido misteriosamente, e após intensas buscas, foram enA
contráAla no mesmo local onde ela estava na véspera. TrouxeramAna de volta, mas
o desaparecimento se repetiu nos mesmos termos: Santo Antônio voltara para seu
lugar de origem. Diante do fato, as escravas reuniram conhecidos e construíram,

240 EMB, vol. 27, p. 264.


241 EMB, vol. 27, p. 288.
242 Costa, Lendas – historietas – etimologias populares..., pp. 433, 524, 562, 568, 570A
571.
243 TaloQ, Ion. Petit dictionnaire de mythologie populaire roumaine, p. 263; TaloQ, Ion.
«Bausagen in Rumänien». In: Fabula (10) 1969: 198A211, pp. 201A202; TaloQ, Ion.
Mekterul Manole. Grai Qi SufletACultura NaŃională: BucareQti, 1997, p. 398.
244 «TrataAse de lugares que, devido à sua expressão simbólica, são predestinados à
construção de uma igreja». Blümmel, MariaAVerena. «Bauplatzlegende». In: EM, 1.
Band, p. 1402.
245 Espírito Santo, A religião popular portuguesa, p. 98.
246 Segundo Paul Zumthor, «du IXe au XVIIIe siècle, se sont fondés, particulièrement
en Espagne, bien des sanctuaires mariaux aux emplacements où un berger de jadis
était censé avoir découvert une image miraculeuse de la Vierge, laquelle aurait reA
fusé d’être transportée ailleurs ». Zumthor, La mesure du monde, p. 55.
247 Sébillot, Le folk lore de France, p. 121.
229

em regime de mutirão, uma capela no local em que o santo preferia ficar.248 Juiz
de Fora dáAnos outro exemplo. Quando se concluiu a nova capela (atual matriz da
cidade), em terras doadas por José Ribeiro de Resende, a imagem de Santo AntôA
nio deveria ser trazida da antiga capela do Caminho Novo. Assim se fez, procesA
sionalmente, «com grandes manifestações de fé e civismo». Durante a noite, poA
rém, a imagem voltou para seu antigo templo. DandoAse conta do ocorrido, os
fiéis realizaram nova procissão, trasladando o santo para a capela nova. Mais uma
vez, na noite seguinte, voltou a imagem para sua antiga capela. A solução enconA
trada foi original. Enquanto a reação comum consiste em submeterAse à vontade
do santo, os moradores de Juiz de Fora passaram a procurar a imagem em romaA
ria «até que, vigiada, custodiada dia e noite, adaptouAse à nova situação».249 Santo
Antônio foi coagido a aceitar a sua nova morada.
Na sua interessante análise comparada das sagas associadas a Nossa Senhora
na América Latina Colonial, Juliana Beatriz de Souza sugere que por meio destas
narrativas «a Igreja encontrava um meio de transformar o colonizado, potencialA
mente rebelde, em aliado, no fortalecimento da sua presença nas colônias ameriA
canas».250 Reduzir tais crenças ao produto de uma manipulação, da parte de quem
quer que seja, significaria ao nosso ver assumir uma atitude incompatível com a
lógica que parece mover o fenômeno religioso popular. Uma lógica à qual os cléA
rigos, em maior ou menor grau, têm de obedecer.251 Por outro lado, seria igualA
mente apressado excluir qualquer possibilidade de «manipulação».
Para Dupront, se as sagas são «cristalizações do imaginário coletivo, lentaA
mente elaboradas, ou ficções produzidas por eruditos com a finalidade de condiA
cionar ou excitar, não importa».252 De fato: a origem das sagas importa menos
que seu dinamismo próprio.253 Para a gente simples do campo, elas cumprem o
papel fundamental de (se assim podemos nos expressar) explicar o inexplicável.

248 EMB, vol. 26, p. 279A280.


249 Bastos, Wilson de Lima. Folclore no setor religião em Juiz de Fora. Juiz de Fora:
Paraibuna, 1973, p. 10.
250 Souza, «Virgem mestiça...», p. 91.
251 Como já percebera Weber: «A fim de manter seu poder, freqüentemente ele [o
clero] precisa, em ampla medida, ceder às necessidades dos leigos ». Weber,
Wirtschaft und Gesellschaft, p. 260.
252 Dupront, Du sacré, p. 56.
253 Eis aqui outro ponto em que nos afastamos de Juliana de Souza. BaseandoAse em
Mott, ela propõe que estas tradições teriam tido origem na Espanha (Souza, «VirA
gem mestiça...», p. 83). Na verdade, sagas deste tipo estavam presentes em pratiA
camente todo o ocidente cristão. Encontrar uma «origem» das narrativas religiosas
populares no tempo e no espaço é, de resto, tarefa praticamente irrealizável. Esta
preocupação em se historicizar o mito faz lembrar o paradigma da escola difusioA
nista, ou ainda a doutrina dos «círculos culturais» (Kulturkreisen). A respeito, ver
as críticas de Malinowski, Bronislaw. Eine wissenschaftliche Theorie der Kultur.
Frankfurt: Suhrkamp, 1975 (1944), pp. 60A62; e LéviAStrauss, Antropologia estru
tural, pp. 18A19.
230

Ao mesmo tempo, tais narrativas revelam algo da ambivalência que marca as reA
lações entre religião popular e religião oficial. As sagas «demonológicas» expriA
mem uma (ânsia de) comunicação direta com o sagrado, sem a intermediação
institucional da Igreja.254 Eis que, num segundo momento, constróiAse a capela. A
médio ou longo prazo, isso implica numa rotinização – ao menos relativa – do caA
risma. Esta curiosa dialética também se dá a ler numa perspectiva geográfica. As
transformações que as representações coletivas geram no espaço reincidem sobre
o campo religioso, alterando parcialmente a sua lógica inicial (sagrado «selvaA
gem» → capela/sacerdote → domesticação do sagrado). Ou seja: «à medida em
que utilizam e moldam espaços, os grupos religiosos também moldamAse a si
mesmos».255
Os eventos que se relacionam à origem de uma povoação podem assumir um
grau de sacralidade ainda mais elevado, como as visões e os milagres. Em Santa
Bárbara de Canoas (atual Guaranésia), embora a capela primitiva tenha sido feita
à custa da devoção de José Maria Uchoa, consideraAse que o que influiu decisiA
vamente na formação do arraial foi a providência divina. Na véspera da inauguraA
ção do templo, um grupo de homens trabalhava na derrubada da mata onde hoje
se localiza a cidade. Ao tentar escapar da queda de um tronco, um dos trabalhaA
dores caiu ao solo e, aterrorizado, gritou por Santa Bárbara. Eis que a árvore, arA
rastada na queda, teve sua raiz violentamente projetada para fora, atirando para
longe o pobre homem e salvandoAo da morte certa. «Seus companheiros então se
prosternaram e murmuraram: Milagre! Milagre! de Santa Bárbara!» Celebrada a
primeira missa no dia seguinte, José Martins e Manoel Fernandes Varanda decidiA
ram doar patrimônio a Santa Bárbara, a fim de nele fazer um arraial.256 A narraA
tiva comprova algo que nossa documentação já havia mostrado. Longe das áreas
mineradoras, da ação colonizadora do Estado ou das concorridas rotas de comérA
cio, o arraial só se forma após a doação do patrimônio que compõe o espaço (saA
grado) da futura povoação.
A saga de origem de Lambari tem uma trama um pouco mais complexa. Em
meados do século XIX, a área atualmente ocupada pela cidade era coberta por
uma floresta. Sua vegetação era tão densa que nem mesmo os raios solares conA
seguiam ali penetrar.257 Perdida na imensidão da mata existia uma fonte de águas
milagrosas, conhecida somente por um velho escravo mina de propriedade de um
fazendeiro de Campanha. Antônio Dantas era o seu nome. Naquela época, chegou
a Campanha um rico fazendeiro e criador, Antônio Alves Troncoso. Vinha ele

254 Ver Espírito Santo, Moisés. Origens orientais da religião popular portuguesa. LisA
boa: Assírio & Alvin, 1988, p. 26; e Dupront, Du sacré, p. 430.
255 Hoheisel, Karl. «Religionsgeographie und Religionsgeschichte». In: Zinser, H.
(Hrsg.) Religionswissenschaft. Eine Einführung. Berlin: Dietrich Reimer, 1988.p.
125.
256 EMB, vol. 25, p. 178.
257 «A floresta escura tem um caráter numinoso», lembra van der Leeuw, Phänomeno
logie der Religion, p. 370.
231

com sua filha Cecília à vila, para que um famoso médico ali residente pudesse
curáAla de uma grave enfermidade. Mas as luzes da ciência não reestabeleceram a
saúde da jovem. Numa venda de Campanha, Tancredo – noivo de Cecília – conA
tava a pessoas ali presentes sobre os sofrimentos de que ela era vítima, até que o
escravo Dantas, aproximandoAse, falouAlhe da fonte milagrosa. Decidiram todos
seguir até o local designado, onde, depois de tratarAse com a água durante 20 dias,
Cecília recuperouAse totalmente. Seu pai, em agradecimento pela graça obtida,
fez construir ali uma capela dedicada a Nossa Senhora da Saúde. Nesta singela
casa de oração celebrouAse, pouco tempo depois, o casamento de Tancredo e CeA
cília. Ao seu redor, nasceu a povoação de Lambari.258
Estas narrativas apresentam uma visível semelhança com as sagas de origem
dos mais importantes centros de romarias da Minas antiga. A gruta de Nossa SeA
nhora da Lapa, que Carrato diz ter sido o mais antigo santuário de Minas, foi desA
coberta por um garoto que ali penetrara à procura de um coelho. Dentro da gruta,
encontrou ele uma imagem da Virgem. O povo, ao saber do ocorrido, para lá se
dirigiu e, colocandoAa num andor, transportou a imagem até a matriz. À noite,
Nossa Senhora voltou à sua gruta, e o fato foi interpretado como sinal de que ali
deveria ser ela venerada.259 Foi depois de curarAse de uma doença que Feliciano
Mendes se dispôs a erigir o santuário do Senhor Bom Jesus em Congonhas do
Campo. A visão da Virgem onde haveria de se construir o eremitério da Serra da
Piedade; as marcas deixadas por São Tomé em pessoa numa gruta do sul de MiA
nas; a imagem encontrada por um escravo em Conceição do Mato Dentro: a
identidade entre o elemento popular e este tipo de manifestação do sagrado é eviA
dente. O parentesco entre os grandes centros de romarias e inúmeros de nossos
embriões de cidade, assentados em seus patrimônios, é flagrante. Concebidos
como espaços sagrados, eles devem sua origem a um transbordamento da transA
cendência.260 Santuário e arraial «pulsam» regularmente; um por ocasião das
grandes festas que são os jubileus, o outro por ocasião do culto dominical. Uma
vez mais podeAse dizer que a diferença aqui é de grandeza, não de natureza.
Se estes aspectos da religião popular escapam a toda e qualquer tentativa de
interpretação pautada por aquilo que EvansAPritchard ironicamente chamou me
tafísica sociológica, é preciso reconhecer que nem tudo nas sagas está desconecA
tado da realidade social.261 Basta dizer que são quase sempre indivíduos socialA
mente marginalizados (pescadores, lavradores, escravos) os que estabelecem a
ponte entre o cotidiano e o transcendente. Dificilmente aquele que encontra a

258 ANEDC (8) 1946: 5A7.


259 Carrato, Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais, p. 35.
260 «A pilgrimage’s foundation is typically marked by visions, miracles, or martyrA
doms». Turner & Turner, Image and pilgrimage in Christian culture, p. 25.
261 Longe de nós ignorar a existência, ao nível do imaginário, desta dialética «entre as
pulsões subjetivas e assimiladoras e os constrangimentos (intimations objectives)
que emanam do meio cósmico e social». Durand, Gilbert. Les structures anthro
pologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1984 (1969), p. 38.
232

imagem santa, que tem a visão, que desfruta de um acesso privilegiado ao numiA
noso, é o membro das camadas privilegiadas. Para o imaginário popular existe
uma «afinidade eletiva» entre a(s) divindade(s) e os excluídos deste mundo.
Como disse Antônio Xavier, pai de duas das moças que afirmam receber mensaA
gens da Virgem na Vila de Piedade dos Gerais: «Deus é sempre dos pobres e é por
isso que ele, junto com sua mãe, escolheu este lugar».262

4.3.3 Ritos de fundação


Ritos são «ações simbólicas minuciosamente constituídas e que visam o
(re)estabelecimento da segurança em momentos de transição e de superação de
fronteiras».263 O dispositivo ritual «demarca» e ao mesmo tempo garante a passaA
gem entre diferentes espaços (ritos de separação e incorporação) ou estados (ritos
de iniciação), assim como a passagem entre «províncias de significado» distintas:
ritos também são as orações noturnas feitas pelo homo religiosus antes de adenA
trar o mundo dos sonhos.
A importância do ritual na gênese do espaço urbano é atestada desde a AntiA
güidade. Difícil imaginar que a Minas Gerais dos séculos XVIIIAXIX tenha consA
tituído uma exceção. Porque não basta que a imposição de normas religiosas, a
existência de recursos naturais e a vontade do próprio além definam o local da
capela e de seu respectivo arraial. A extensão só se torna habitável depois de ter
sido sacralizada por intermédio de um rito.
Todavia são bastante raras as referências a respeito na literatura, e não consta
que os historiadores do fenômeno urbano brasileiro tenham se ocupado com a
questão. Mesmo nas fontes com as quais trabalhamos os ritos de fundação são
mencionados de forma fragmentária. Ainda assim, talvez valha a pena reunir alA
guns destes fragmentos e verificar se, a partir deles, se pode avançar alguma coisa
na compreensão deste importante aspecto do processo de formação de nossos arA
raiais.
Rocha Pombo dá a sua versão do rito de fundação no Brasil Colônia: «A funA
dação da cidade aqui é ainda uma cerimônia de culto: ergueAse a cruz no alto de
uma colina; marcaAse no solo o quadrilátero para os muros, e benzeAse a terra; leA
vantaAse em seguida, no meio dessa área, a capela destinada ao orago».264 É inteA
ressante notar como este rito lembra a cerimônia de delimitação do terreno dediA
cado à construção de uma capela. O bispo ou seu representante deve levantar uma
cruz no sítio escolhido, e, em seguida, demarcar a área do templo e seu respectivo
adro.265 Na prática, invertiaAse às vezes a ordem dos procedimentos. O sítio da

262 Citado por Ferreira, As aparições em Piedade dos Gerais, p. 46.


263 Soeffner, Gesellschaft ohne Baldachin, p. 204.
264 Rocha Pombo, José Francisco da. História do Brazil. Rio de Janeiro: J. Fonseca
Saraiva, vol. II, s/d, p. 581.
265 CAB, livro IV, título XVII, 687.
233

igreja nova da Borda do Campo (atual Barbacena) foi demarcado em 19 de


agosto de 1726. O início das obras só se deu 16 anos depois. No dia 9 de dezemA
bro de 1743, em meio a grande festa, levantouAse um cruzeiro no lugar da consA
trução.266
Em geral, o terreno do patrimônio deve passar por dois ritos: a demarcação e o
ato de posse. Aparentemente, não há uma padronização. Em alguns casos desA
creveAse a demarcação e omiteAse o ato de posse; em outros ocorre o inverso.
Podemos ver como é feita a demarcação no caso da capela de Nossa Senhora
do Ó de Sabará. Como parece ter sido típico em arraiais mineradores, inicialA
mente ela não foi dotada de patrimônio em terras. Era somente à custa de esmolas
que os fiéis a mantinham. Em 1717 decidem eles recorrer à Câmara da vila: «queA
rem os suplicantes fazer um patrimônio para o que carecem de terras no circuito
da dita capela para nelas fazer ou darem a quem possua algum rendimento». A
área requerida media 70 braças. Em 28 de setembro de 1717 o terreno é conceA
dido, com a condição que o rendimento das casas já existentes no local fosse reA
servado à Câmara. Em 8 de dezembro do mesmo ano o arruador e medidor do
Conselho, José Ferreira da Conceição, deslocouAse até o sítio designado para
efetuar a medição.
«Certifico que (...) fui medir no Arraial de Nossa Senhora do Ó os terrenos
concedidos, os quais medi 35 braças para cada lado, que vem a ser 70 braças
de largura; aonde chegaram as ditas braças lhe pus 2 marcos de pedra, em
cada um lhe puseram 5 pedras mais pequenas que servem de testemunhas da
dita arruação, e por ser pedida passo a presente certidão.»267
Esta descrição não permite identificar a existência de qualquer simbolismo religiA
oso. A demarcação do patrimônio seria, portanto, um rito «profano»? É preciso

266 Trindade, Cônego Raimundo. Instituições de igrejas no bispado de Mariana. Rio


de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945, p. 61.
267 AEABH, cx. 837. A interpretação destes documentos prestouAse a uma série de
confusões da parte de outros autores. Como o pedido enviado à Câmara se inicia
com a frase «dizem os devotos de Nossa Senhora da Espectação que eles estão faA
bricando uma capela (...)», Salomão de Vasconcelos afirmou que a igrejinha estava
passando por uma «reforma». Na verdade, «fabricar» significa aqui «dotar de fáA
brica», ou seja, sustentar e manter financeiramente uma obra pia. À época, quando
se falava em «construir» uma capela, o mais comum era o uso do verbo erigir. VasA
concelos, Salomão de. «Velhas matrizes mineiras...». In: RIHGMG 2 (2) 1945: 84A
102, p. 86A87. Murillo Marx («Arraiais mineiros...», p. 391), baseandoAse amA
plamente em Vasconcelos e referindoAse ao mesmo exemplo, escreve: «Tais docuA
mentos dizem tudo para compreendermos a gênese (...) dos arraiais mineiros».
Como acreditamos ter comprovado, é um erro imaginar que os patrimônios tenham
desempenhado um papel importante na gênese dos arraiais ligados à mineração. O
caso da capela de Nossa Senhora do Ó bem o demonstra: o arraial já existia antes
da doação do patrimônio. Aliás, outro detalhe importante para o qual Marx não
atentou é que «arraial», aqui, não significa «povoado» mas sim bairro (Sabará era
vila desde 1711).
234

atentar para o fato de que a certidão do arruador não tem por objetivo explicar
minuciosamente qual é o procedimento adotado. Ela é um mero registro.
Que o processo podia eventualmente atingir um considerável grau de compleA
xidade, mostraAo o próximo exemplo. Erigida em fins da década de 1760, a caA
pela de Nossa Senhora da Ajuda de Três Pontas seguramente teve seu primeiro
patrimônio constituído em dinheiro. Uma sesmaria de meia légua quadrada, abarA
cando toda aquela redondeza, foi obtida por Bento Ferreira de Brito junto ao
governador da Capitania em 24 de setembro de 1793. A demarcação da área reA
servada para «logradouro da capela» (o que significa que se trata de um daqueles
casos em que se doa não o terreno em si, mas seu rendimento) fezAse simultaneA
amente à delimitação da sesmaria, em 3 de outubro de 1794.
Joaquim Nunes Corrêa e Manuel Fernandes Teixeira foram os medidores noA
meados. De comum acordo, decidiuAse colocar o eixo de referência (o pião)
numa serra, a certa distância da capela. Feito de pedra, este pião tinha quatro cruA
zes, cada uma delas voltada para a direção na qual deveriam seguir os medidores.
UtilizouAse uma corda de linho fino com extensão de 15 braças (33 m.). Uma vez
instalado o pião, partiram os medidores rumo sudeste, e contaram 25 cordas «para
logradouro do arraial» (que já existia num declive próximo ao córrego da Ortiga).
Neste local foi instalado um marco de pedra com uma cruz voltada para o pião.
Seguiram adiante mais nove cordas, até as margens do córrego da Ortiga, onde
colocaram um marco de madeira «em que lavraram uma cruz virada para o pião».
Retornando ao ponto de partida, caminharam rumo noroeste e mediram 25 cordas
«para logradouro da dita capela». Assentaram o marco de pedra com uma cruz
voltada para o pião, e, depois de percorrer mais 91 cordas na mesma direção, finA
caram um marco de «pau de jacarandá». Voltaram ao pião e de lá seguiram 25
cordas rumo sudoeste «para logradouros» da capela. Este terceiro marco de pedra
foi colocado no alto da serra, pouco atrás do templo. Continuando a medição,
percorreram 50 cordas, ao fim dos quais colocouAse um marco «de pau nativo».
Voltaram mais uma vez ao pião e tomaram direção nordeste. Ao fim das primeiA
ras 25 cordas «para logradouro da capela» colocaram o marco de pedra. Depois,
outras 50 cordas foram contadas e o último marco de «pau nativo de jacarandá»
foi instalado.268 Portanto o quadrilátero central ocupava uma área de 50 x 50 corA
das (272,25 hectares), dividida em quatro partes. Dos três quartos destinados à
capela, um quarto ficou reservado para o doador. O restante (25 x 25 cordas ou
68,06 ha.) foi destinado ao arraial. A sentença do juiz de sesmarias, datada de 14
de outubro de 1794, dava a Bento Ferreira de Brito direito de posse sobre a sesA
maria (área total: 2.597,265 ha.), «salvo as do quarto também medido e demarA
cado reservado para logradouros do Arraial».269

268 ANEDC (19) 1957: 9A11.


269 EquivocaAse Waldemar Barbosa ao afirmar que o patrimônio media meia légua de
sesmaria e que o arraial surgiu em torno da capela. DHGMG, pp. 356A357. O erro
foi induzido pela transcrição incompleta dos documentos originais feita por MonA
senhor Lefort. Da maneira como este último organiza sua exposição, o leitor é leA
235

Tal como na China e na Roma antigas, o espaço é concebido como um quaA


drado. Os quatro marcos «internos» delimitam a parte central, a mais importante
do terreno. Por isso eles são de pedra. Mas da mesma forma que os «externos»,
feitos em madeira, eles trazem cruzes voltadas para o ponto de rotação (depois de
concluída a demarcação, a sesmaria tem nada menos que 12 cruzes: uma em cada
marco e quatro no pião). O símbolo da cruz atesta a sua sacralidade.270
O caráter religioso deste complexo de ritos fica mais evidente no ato de posse.
Segundo Nelson Omegna, «o padre ou o diretor da irmandade, representando o
santo, quebra alguns ramos de árvore, espalhaAos, cava o chão, semeia a terra, e
estende o olhar pela extensão da área doada, apossandoAse dela».271 Com uma ou
outra diferença, esta descrição coincide com a da posse da sesmaria em que se
formou a cidade de Três Pontas:
«Ao sesmeiro [foi] mandado cortar ramos, cavar terras e com ânimo de toA
mar posse, em cujo auto disse eu escrivão três vezes em voz alta, que se haA
via quem se opusesse à dita posse chegasse a fazer o seu requerimento, e
porque proferidas as ditas palavras e feitas as mais cerimônias da lei, não
houvesse oposição, houve o (...) dito sesmeiro [Bento Ferreira de Brito] por
empossado das referidas terras.»272

Van der Leeuw insistiu, e com razão, que a agricultura e a fundação de uma ciA
dade estão intimamente relacionadas entre si no plano simbólico.273 O costume
do uso do arado para delimitar a área do bastide medieval também parece ter se
transmitido à Minas antiga, onde ele aparece de forma evidentemente mais tosca.
A rigor, tanto o patrimônio quanto o bastide são «plantados».274 Ao estender o
olhar sobre a área do patrimônio, a pessoa que dele se apossa faz lembrar o proA
cedimento dos áugures romanos. O sacerdote sobe a um ponto alto do terreno (o
templum), voltaAse para o oriente e divide seu campo de visão em quatro partes.
As manifestações que aí se verificarem (raios, vôo de passaros, etc) fornecerão
elementos para o oráculo.275 Toda a realidade circunscreveAse ao que se situa

vado a crer que toda a sesmaria tinha sido doada à capela, o que é desmentido pelo
próprio atestado de medição. A configuração «anômala» do embrião de Três Pontas
– o arraial se desenvolveu a certa distância da capela – provavelmente foi causada
pelo fato de que esta última estava num sítio elevado e sem espaço suficiente ao
seu redor. O mesmo ocorreu com o arraial da capela de Santana de São João
Acima, filial da matriz de Pitangui. Trindade, Visitas pastorais, p. 142.
270 «A sacralidade dos marcos e sua irremovibilidade (termini em Roma, kudurru na
Babilônia) é conhecida e se prolonga até a era moderna». Van der Leeuw, Phäno
menologie der Religion, p. 377.
271 Omegna, A cidade colonial, p. 71.
272 ANEDC (19) 1957: 12. Grifo nosso.
273 Van der Leeuw, Phänomenologie der Religion, p. 376.
274 Heers, Jacques. La ville au Moyen Âge. Paisages, pouvoirs et conflits. Paris:
Fayard, 1990, p. 130.
275 Müller, Die heilige Stadt, p. 45.
236

dentro deste horizonte visual – no interior do qual ela é, por assim dizer, fenomeA
nologicamente «reduzida».
Inácio Correia Pamplona escolheu, em 1769, «um lugar delicioso e aprazível»
para fundar um arraial. Mas para o ato de posse pareceuAlhe melhor subir uma
serra, para «apreender tudo quanto a vista alcançasse do alto dela». Ali chegando
com sua comitiva, mandou tocar os tambores e reunir todos os interessados. Em
seguida,
«fizeram em um pau de sucupira do campo quatro cruzes e mandou o Senhor
Mestre de Campo armar um altar ao pé do dito pau, e depois de postas nele
as Santíssimas Imagens de Nosso Senhor e Nossa Senhora, o reverendo caA
pelão mandou por a todos de joelhos, e que rezassem uma Ave Maria e uma
Salve Rainha a Nossa Senhora para que prometesse que, desfeito aquele ato,
se nos seguisse a todos em bom sucesso, o que assim se fez com toda a deA
voção. Depois disto acabado, mandou o Senhor Mestre de Campo tocar
trompas, flautas, violas e rebecas (...), acabado isso disse ao soldado José
Francisco Serra, em voz alta, que o Senhor Mestre de Campo estava em ato
de posse naquele lugar (...).»276

Nas referências a ritos de fundação de embriões de cidade formados ao longo do


século XIX, outros elementos tornamAse mais evidentes – em especial o levantaA
mento do cruzeiro277 e a missa. Por vezes se menciona a presença de oficiais de
justiça. Como no arraial de São Sebastião da Ventania (atual Alpinópolis). Em
1808, Ana Teodora de Souza, empenhada em cumprir o desejo do seu esposo há
pouco falecido, adquiriu por 500.000 réis meia légua em quadra. Seu objetivo:
levantar uma capela em homenagem a São Sebastião e fundar um arraial. Em 14
de dezembro de 1809, Pedro Antônio de Souza, oficial de justiça de Campanha,
veio com sua comitiva ao local e deu à capela «posse judicial, civil e solene» soA
bre o patrimônio. A cerimônia foi acompanhada pelo vigário de Jacuí.278 No dia
23 de março de 1812 doouAse um terreno a Nossa Senhora do Carmo para a funA
dação de um arraial. Uma segunda doação foi feita por João Coelho Nunes em 24
de fevereiro de 1814. Nesta mesma data, reuniramAse no terreno doado os moraA
dores dos arredores, celebrouAse missa, levantouAse um cruzeiro «e deuAse por
fundado o arraial de Nossa Senhora do Carmo», hoje cidade de Carmo de MiA
nas.279 Em fins da década de 1860 doaramAse 11 alqueires à capela de Santa IsaA
bel dos Coqueiros (atual Heliodora). Convocado o padre Antônio Carlos da
Silveira, dirigiuAse ele ao local da doação, celebrou missa e tomou posse do paA

276 «Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos...». In: Anais da Bibli
oteca Nacional (108) 1988, pp. 77A78.
277 Sobre o papel das cruzes, ver Martin, Hervé et Martin, Louis. «Croix rurales et saA
cralisation de l’espace». In: Archives de Sciences Sociales des Religions 43(1)
1977: 23A38.
278 EMB, vol. 24, pp. 61A62.
279 EMB, vol. 24, p. 390.
237

trimônio em nome do bispo de Mariana.280 Manoel Gonçalves Prudente e sua


mulher Delfina Maria da Conceição doaram em 1885 terras para fundar um arA
raial que recebeu o nome de Santo Antônio da Coluna. Em 15 de agosto do
mesmo ano, Dom João Antônio dos Santos benzeu um cruzeiro no terreno doado.
Neste local erigiuAse, mais tarde, a matriz da cidade de Coluna.281
Estas referências esparsas não nos permitem saber até que ponto os procediA
mentos eram ou não padronizados. Em parte, isso se deve ao caráter da docuA
mentação de que nos servimos. Uma análise minuciosa dos ritos de fundação exiA
giria um estudo da extensa documentação produzida por juízes de sesmarias,
medidores, oficiais de justiça, etc. Tarefa essa que, evidentemente, não estamos
condições de empreender neste trabalho. Por hora, bastará fazer algumas obserA
vações de caráter geral a respeito dos ritos de fundação. Os momentos básicos paA
recem ser: (a) demarcação, (b) ato de posse, (c) levantamento de um cruzeiro, (d)
bênção e/ou missa e (e) festa. Como dissemos, não há rigidez nesta ordem e
muito menos presença obrigatória de todos os elementos. Normalmente quem
oficia o rito é um oficial de justiça, secundado ou não por um sacerdote. Este úlA
timo pode assumir preeminência, em especial naqueles casos em que o fundador
do arraial é, ele próprio, um padre (como em Cordisburgo, Dom Silvério, Dom
Viçoso e São Tomás de Aquino).282 Embora a demarcação e o ato de posse pareA
çam ser ritos «laicos», nem um nem outro estão completamente destituídos de co
notação religiosa. SegueAse, então, o rito religioso stricto sensu: uma prece coleA
tiva aos pés de um cruzeiro ou um altar rústico, a missa, a bênção. Seja dito, aliás,
que as empresas de loteamento que atuaram no oeste paulista na primeira metade
do século XX conservaram o costume de levantar e benzer um cruzeiro na claA
reira aberta para dar lugar à nova cidade. Monbeig diz que «essa é uma ocasião de
grande festa, de que o loteador fará o maior alarde possível, convidando os perA
sonagens importantes da região».283
A festa, «pulsão da unidade», opera na duração a mesma transformação que o
patrimônio impõe ao espaço. A comunidade já pode surgir.

4.3.4 Relações de poder


O arraial é uma expressão espacial, e talvez a mais privilegiada, da religião poA
pular na Minas antiga. A tríade capelaApatrimônioAarraial pode ser tomada como
um signo visível do universo mental predominante naquela época.
Como toda forma de espaço, o arraial deve ser construído simbolicamente e
socialmente. Isso acontece através de um complexo processo de interação entre
os planos religioso, social e espacial. Embora cada um destes níveis desfrute de

280 EMB, vol. 25, pp. 204A205.


281 EMB, vol. 24, p. 455.
282 EMB, vol. 24, p. 527; vol. 25, p. 58; vol. 27, p. 438; vol. 27, p. 284A5.
283 Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, p. 236.
238

um dinamismo próprio, nenhum deles é absolutamente «autônomo» um em relaA


ção ao outro.284 O que significa dizer que a análise da produção do espaço do
arraial permite identificar não só a visão de mundo do grupo que o «preenche»
mas também as relações de poder que aí se desenrolam.
Uma parcela substancial das capelas era construída e mantida por um único faA
zendeiro. MovemAno outros interesses que não os de natureza religiosa? Sem
dúvida. Em 1756, Antônio da Costa envia um pedido de provisão ao bispo de
Mariana afirmando viver com sua família «mui retirado» da freguesia de FurA
quim. Era sua intenção «fazer à sua custa uma capela» em sua propriedade, aberta
a «todo o povo, do que há grande número, e pela longitude com que estão muitas
vezes perdem a missa». Detalhe importante: Antônio da Costa «tem seu filho cujo
deve ordenáAlo a título da mesma capela».285
Há pelo menos um forte indício de que a capela e o sacerdote podem, eventuA
almente, se tornar instrumentos de poder nas mãos dos fazendeiros: é a possibiliA
dade de um fazendeiro tornarAse padroeiro de uma capela (não confundir com
orago, termo utilizado para se referir ao santo venerado). Padroeiros, segundo a
Encyclopedia e Diccionário Internacional (vol. XIV, p. 8317), são aqueles «que
têm o direito de padroado», que são «fundadores de igrejas ou mosteiros». Na
Antigüidade tardia o membro de alguma família influente podia obter direitos soA
bre o túmulo de um mártir, adquirindo assim o status de patronus. Peter Brown
considera esta prática uma forma de «privatização do sagrado».286 Analisando a
questão no contexto do Brasil Colônia, Riolando Azzi chega a uma conclusão
semelhante: «o ‹dono da igreja› tornavaAse também o ‹dono do santo›«.287
A mais clara referência à existência desta instituição em Minas foi feita em fins
do século XIX pelo Monsenhor Bicalho, secretário do bispado de Mariana.
Empenhado em reaver os patrimônios das antigas capelas e matrizes, ele explica
em correspondência aos párocos que
«os fundadores recebiam dos Exmos. e Rvmos. Srs. Bispos o título de padroeiros
dessas capelas, gozando de muitos privilégios, como o de ter capelão, poder
nomeáAlos entre os sacerdotes aprovados, administrar os bens das capelas,
etc, título este de que os fundadores muito se vangloriavam. Era uma espécie
de direito de padroado.»288

A existência desta prática é confirmada por uma provisão de Dom Frei Manoel da
Cruz, datada de 3 de novembro de 1753:

284 Löw, Raumsoziologie, p. 131.


285 AEAM, pasta 54, gav. 1, arq. 1.
286 Brown, Peter. The cult of the saints. It’s rise and function in Latin Christianity.
Chicago: University of Chicago Press, 1981, pp. 32A34. Na China, quando o temA
plo dos povoados era construído à custa de doadores, estes recebiam títulos honoA
ríficos. Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, I, p. 382, nota 2.
287 Azzi, A cristandade colonial, p. 49.
288 AEAM, arm. 24, cx. 5.
239

«Fazemos saber que (...) nos convém a dizer o Coronel Miguel Alves Pereira,
administrador da Capela de Nossa Senhora da Conceição do Suassuaí da
Matriz do Santo Antônio do Ribeirão de Santa Bárbara, havemos por bem de
lhe mandar passar a presente nossa provisão, pela qual gozará do privilégio
de padroeiro e lhe concedemos a si e a seus sucessores, sendo brancos
legítimos, o jus de nomear para capelão de sua capela sacerdote secular,
sendo por nós aprovado; com a cláusula, porém, se fazer à sua custa todas as
obras que forem necessárias na dita capela.»289
Outros desfrutaram do mesmo privilégio. Antônio José de Abranches decidira leA
vantar uma capela dedicada a Nossa Senhora Mãe dos Homens na sua Fazenda da
Costa da Mina, situada a quatro léguas da matriz da Borda do Campo. A capela,
diz ele numa carta de 27 de novembro de 1789, seria dotada de fábrica e patrimoA
niada «à sua própria conta, sem que alguns paroquianos, que ficavam meus viziA
nhos, para as despesas concorressem». Depois de concluídas as obras, Abranches
estabeleceu um capelão com 120.000 réis de côngrua para celebrar para sua faA
mília, além de colocar à sua disposição um cavalo «para o mesmo igualmente
acudir aos paroquianos mais vizinhos». O fazendeiro tinha plena consciência da
estreita relação entre a necessidade de assitência religiosa e o efetivo povoamento
naquelas regiões não diretamente afetadas pela lógica do extrativismo mineral:
«bem visível é a urgência que havia de capelão cura naquele sítio, sem o qual seA
ria o mesmo despovoado e ermo». De fato, ali se formou um arraial, hoje localiA
dade de Correia de Almeida. Ao fim de sua longa carta, Abranches fazia seu
requerimento à Coroa:
«E como a vós do ponderado pareça justo, que as providências internas têm
confirmação, e que o suplicante deve gozar do privilégio de padroeiro da caA
pela e oratório independente do pároco da matriz, assim como se tem conceA
dido a outros padroeiros.»290
Manoel Pereira Guimarães foi padroeiro da capela de Nossa Senhora da ConceiA
ção de Catas Altas da Noruega, erigida em 1727.291 A capela de Santo Antônio do
Calambau, em torno da qual cresceu a cidade de Presidente Bernardes, foi benta
em 10 de janeiro de 1775. O patrimônio foi doado por João Cabral da Silva, mas
Ana Cabral da Câmara é que se tornou a padroeira da capela. Em Cocais, a capela
de Nossa Senhora do Rosário foi fundada pelos irmãos Antônio Furtado Leite e
João Furtado Leite, que tornaramAse seus padroeiros. Em 1° de fevereiro de 1755,
obteve Ana Maria do Nascimento provisão para erigir uma capela a Nossa
Senhora da Conceição na sua fazenda do Rio Grande. E obteve também o
privilégio de tornarAse padroeira da mesma. Na freguesia de Sabará, José RodriA
gues Soares e sua esposa Teodora Teixeira de Souza doaram o patrimônio da caA
pela do Rosário em 1765 e 1766. José Rodrigues foi o padroeiro. A prática se

289 AEAM, pasta 33, gav. 4, arq. 4.; grifo nosso.


290 APM, SCA19, fls. 194vA195v.
291 AEAM, arm. 24, cx. 2.
240

extendeu até princípios do século XX. Em Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto,
Carlos Wigg e sua mulher tornaramAse padroeiros da paróquia de Nossa Senhora
de Calastróis – isso em 1918.292
A possibilidade de um fazendeiro tornarAse padroeiro aparentemente dá força à
tese segundo a qual houve um «catolicismo patriarcal» no Brasil colonial. O amA
biente típico deste subAtipo de catolicismo seria o engenho de açúcar. Mas a julA
gar pela exposição de Hoornaert, onde há uma capela associada a uma casaA
grande e um capelão dependente do seu proprietário, aí existe «catolicismo paA
triarcal». Nestas circunstâncias, o espírito da religião cristã sofreria uma espécie
de deturpação (Hoornaert chega a usar o termo «patológico»). Em resumo, no
«catolicismo patriarcal» o sacerdote é um mero funcionário a serviço dos interesA
ses do fazendeiro. O objetivo básico é sacralizar a ordem social estabelecida e
«impedir o nascimento de uma consciência de comunidade» entre os mais poA
bres.293 Em Minas, ainda segundo o mesmo autor, terAseAia desenvolvido uma
modalidade à parte: o «catolicismo mineiro». Ao invés de ser o produto da ativiA
dade dos missionários portugueses, o «catolicismo mineiro» representava os inA
teresses de comerciantes e funcionários da Coroa. Uma forma de religiosidade,
pois, «fundamentalmente colonialista».294
Ora, como distinguir um outro «tipo» de catolicismo apenas a partir da suposta
dependência financeira do capelão e dos privilégios obtidos pelo padroeiro? É um
erro pressupor que o catolicismo popular não possa ter florescido nesse ambiente.
Um segundo ponto a questionar é o panoAdeAfundo epistemológico da análise de
Hoornaert. De uma maneira geral, ele coincide com a leitura marxista da categoA
ria ideologia: de um lado, a «legítima» visão de mundo dos oprimidos; de outro, a
«falsa consciência» imposta pelas elites. Outras obras de peso escritas no período
em que apareceu Formação do catolicismo brasileiro trazem as mesmas marcas.
Para Bastide, por exemplo, somente as religiões afroAbrasileiras estavam em conA
dições de expressar a resistência do negro na história do Brasil.295 A aceitar estes
pressupostos, o catolicismo se apresentaria aos escravos como uma forma de
«falsa consciência». Os limites deste tipo de análise são hoje evidentes. Uma
coisa é o que a elite eclesiástica ou social têm a pretensão de impor através de um
sistema religioso; outra, bem diferente, a forma como este sistema é (re)interpreA
tado e vivenciado pelos seus adeptos.
Não se trata de negar que os padroeiros das capelas pudessem se valer de sua
posição frente ao capelão e à comunidade como forma de reforçar seu poder soA
bre seus escravos, sua clientela e, eventualmente, sua vizinhança. Mas uma visão
mais próxima da realidade certamente reconheceria no campo religioso um jogo
de forças entre hierocracia/elites de um lado e a massa de adeptos do outro, e não

292 Trindade, Instituições de igrejas no bispado de Mariana, pp. 72, 93, 250, 259 e
315.
293 Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro, p. 74.
294 Hoornaert, idem, p. 97.
295 Bastide, As religiões africanas no Brasil, pp. 113A140.
241

uma simples imposição de uns sobre outros. O historiador, em todo o caso, não
tem como se esquivar ao peso das evidências. E estas demonstram que o campo
religioso na Minas antiga é profundamente marcado pela consciência de que o
sagrado, em grande parte, é algo que «pertence» ao povo. As sagas e mitos de oriA
gem analisados neste capítulo demonstraramAno claramente.
Curiosamente, podia ocorrer de um capelão atuar menos como um instrumento
de «domesticação das massas» (Weber) que de domesticação das elites. Tschudi
descreve o capelão do Barão de Diamantina como «um homem culto, solícito». E
acrescenta: «Não foi difícil perceber que padre José era o princípio dominante na
[sua] casa».296 Na verdade, e na imensa maioria dos casos, os sacerdotes de forma
alguma podiam ser considerados funcionários do fazendeiro. Diferentemente de
um capataz, vaqueiro ou administrador, o capelão não reside na fazenda. Ele se
desloca até ela, geralmente aos sábados à noite, e conduz as orações na ermida.297
No dia seguinte, celebra a missa e certamente fica para o almoço. Os vizinhos
que acorrem para o culto também almoçam e jantam às custas do anfitrião.298 O
que significa que os gastos do padroeiro são consideráveis. Por ocasião de granA
des comemorações chegavaAse a gastar entre 3.000 e 4.000 réis.299
Uma vez que todo local de culto é público, possuir uma ermida doméstica, ter
uma capela encravada em suas terras ou mesmo na sua vizinhança significa para
o proprietário ter de conviver com o afluxo periódico de fiéis. Nem sempre as
conseqüências deste afluxo eram de interesse dos fazendeiros. Diversos deles neA
gavamAse a permitir que se construíssem casas ao redor das capelas por eles eriA
gidas. Para tanto, constituíam o patrimônio em dinheiro, de modo que a capela
não gozasse de terras próprias e a formação do arraial se tornasse inviável. Caso
necessário lançavaAse mão de estratagemas, como ocorreu nos primórios de BarA
bacena.
A capela de Nossa Senhora da Piedade era de construção antiga. Já em 1726,
com a abertura do Caminho Novo, era elevada a sede de freguesia. Mais tarde,
face ao mau estado da capela, os moradores da região sentiramAse compelidos a
construir novo templo. Quase concluídas as obras, e sabendo ser inevitável a
formação do arraial, um fazendeiro das redondezas, Estevão dos Reis Motta, reA
quisitou em segredo (e obteve) uma sesmaria cujas terras abarcavam o sítio da
matriz. Os moradores, alheios ao que se passava, pediram ao Rei autorização para
fundarem o arraial, o que foi concedido em 9 de maio de 1747.300 Seguindo as

296 Tschudi, Reisen durch Südamerika, II, p. 63.


297 Ribeyrolles, Brasil pitoresco, vol. II, pp. 34A35.
298 Hospedado na fazenda da Boa Vista, SaintAHilaire (Viagem pelas províncias..., vol.
II, p. 104A105) observou que «todos os colonos da vizinhança se tinham reunido na
habitação com os filhos e netos de minha hospedeira [Luciana Teixeira], para asA
sistir ao serviço divino. Essa boa gente jantou em casa dela: a mesma mesa foi
posta e desfeita várias vezes».
299 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 337.
300 APM, SCA45, fls. 48A48v.
242

normas vigentes, o governador Gomes Freire de Andrada passou um edital em 6


de junho de 1748 no qual estabelecia um prazo de um mês para que os que possíA
veis prejudicados com a construção do povoado se apresentassem com seus títuA
los de posse. ValendoAse do seu título, Motta vai à presença do governador e disA
põeAse a permitir que os fiéis construíssem «cobertos levantados em pilares para
recorrer suas bagagens, e ainda mais algumas moradas de casas», sob a condição
porém «de não terem em elas vendendo seus habitadores alfaiates, barbeiro, ferA
reiro e semelhantes oficiais». Como esta proibição não deu mostras de ser aceita
pelos que pretendiam fundar o arraial, Motta se defende com o argumento de que
se consentisse em vendas naquele sítio «perdia todo o lucro da sua fazenda, pois
as frutas que colhesse não teriam saída».301 Diante do impasse, os moradores reA
correm à Coroa. Eles argumentam em sua correspondência que Motta, seu sócio
José Pinto Reis e outros fazendeiros estavam «empenhados em que se não faça arA
raial». A proibição de terem suas próprias vendas no local pareceAlhes atentar
«contra o bem público, porque os moradores do dito arraial se não podiam
conservar sem lojas e vendas públicas por não haver na dita freguesia outro
arraial com lojas e vendas a que pudessem recorrer os moradores, querendo
assim o dito Estevão dos Reis Motta, seu sócio e mais alguns vizinhos venA
derAlhes os seus mantimentos e mais gêneros de fazendas, secos e molhados
que metessem no dito arraial, pondoAlhes o preço a seu arbítrio, o que não só
parece iníqüo, mas contra toda a razão, direito e regalia que devem ter todos
os arraiais, porque toda a sua conservação depende de comércio livre e geral
(...). A igreja se acha em um lugar deserto com grande perigo de ser roubada
e o grande discômodo [sic] de não ter o pároco acomodação junto dela para
mais prontamente acodir aos sacramentos, nem podem ajuntarAse irmãos da
confraria que acompanha o Senhor quando sai por viático, sucedendo muitas
vezes sair além da tarde com grande indecência por se acharem apenas duas
pessoas que [o] acompanhem, o que tudo é contra o serviço de Deus e de
Vossa Majestade; e com grande prejuízo do bem espiritual e temporal dos
suplicantes (...).»302
A decisão final lhes foi favorável. Em carta datada de 25 de maio de 1753, o
Conselho Ultramarino observa que nos dias das celebrações os fiéis e suas famíA
lias deslocamAse «cinco, seis e mais léguas, e muitas vezes não [o] fazem por falta
de casas, em que possam repararAse das chuvas e mais incomodidades do tempo
(...) o que assim não aconteceria se houvesse arraial».303 Somente então pôde ter
início o Arraial da Igreja Nova, embrião da Vila de Barbacena.
Ao visitar a freguesia de Pitangui em 1822, Dom Frei José anota a respeito da
capela de Santo Antônio de São João Acima: «achaAse arruinada no meio de um

301 APM, SCA45, fls. 106A106v. (carta de Gomes Freire de Andrada à Coroa, 15 de
março de 1749).
302 APM (AHU), cx. 162, doc. 30.
303 Ibidem. Barbosa, que menciona en passant este documento, se engana ao afirmar
que ele tem data de 15.05.1753. DHGMG, p. 42.
243

adro cercado de madeira feita curiosamente, mas em um local pouco agradável e


sem arraial, por não darem licença os donos da terra».304 O mesmo se observou
inicialmente na capela (hoje cidade) de Campo Belo. Erigida por Catarina FerA
reira provavelmente em fins do século XVIII, em 1824 ela se encontrava sem caA
pelão. Um dos motivos apurados pelo bispo de Mariana era o de estar a mesma
«encravada em terras da fazenda denominada Campo Belo». Os proprietários,
continua ele, «temem a sua freqüência por não se verem na precisão do aldeaA
mento e povoação do lugar».305 Uma carta enviada em 27 de setembro de 1901
pelo vigário de Piedade do Paraopeba ao bispado de Mariana comprova que este
tipo de procedimento se estendeu até períodos mais recentes:
«Exmo. e Rvmo. Sr. Bispo – (...) o Sr. Antônio Pedro de Araújo e sua mulher
achamAse edificando, à sua custa, uma capela no caminho que daqui vai para
a Aranha, para entregáAla ao culto público. Desejam saber se podem constiA
tuir seu patrimônio em dinheiro. Têm receio de que, constituindoAo em terA
reno, por ocasião do aforamento venham se estabelecer vizinhos que os inA
comodem, servindoAse principalmente da água de seu uso. Se não puderem
constituir o patrimônio em dinheiro, desejam então saber se o podem em terA
ras, mas que não sejam contíguas à capela, que é em frente da morada dos
mesmos. (...) Beijando o sagrado anel, peço a bênção e me subscrevo (...)
Padre Ubaldo Anselmo da Silva.»306

A autorização de Dom Silvério Gomes Pimenta é dada apenas três dias depois,
com a ressalva de que «ao redor da capela fique uma área capaz para a mesma na
qual não se edifique».
A história de Santa Rita do Turvo (atual Viçosa) foi marcada pela mesma proA
blemática. Por volta de 1781, Ignácio Vieira de Andrade e outros, «moradores do
Turvo», pedem autorização para fazer uma «capela ou ermida» com a invocação
de Santa Rita. A dificuldade de cumprirem com suas obrigações religiosas deviaA
se ao fato de morarem em lugar de «conquista nova». Não lhes fora possível preA
cisar a que distância estavam da matriz «por não estarem aqueles matos penetraA
dos de moradores, sendo mais por onde deve ser o caminho habitado de índios,
dos quais [a]inda que de paz sempre os povoadores temem a sua inconstância».
Em 1788 ou 1789 o vigário do Pomba, padre Manoel de Jesus Maria, pede perA
missão para fazer da ermida uma capela, por ser aquele templo «muito conveniA
ente aos novos povoadores e aos (...) índios que se estão reduzindo ao cristiaA
nismo».307 Tais evidências vão de encontro à suspeita, levantada por Waldemar
Barbosa, que a primeira casa de oração da futura cidade de Viçosa existira antes
mesmo da virada para o século XIX.308 Muito provavelmente as terras do patriA

304 Trindade, Visitas pastorais, pp. 141A142.


305 Trindade, Visitas pastorais, p. 228; EMB, vol. 24, p. 313.
306 AEABH, cx. 444.
307 APM (AHU), cx. 131, doc. 25.
308 DHGMG, p. 368.
244

mônio não foram doadas ao redor da capela. Uma certidão de 20 de agosto de


1805 atesta ainda que Manoel Cardoso Machado e sua mulher Ana Joaquina
acrescentaram algumas casas cobertas de telha aos bens de Santa Rita.309 DécaA
das depois da sua construção o arraial não se formara ainda porque o proprietário
do terreno não franqueava a construção de casas ao redor da capela. Em virtude
dessa proibição, algumas pessoas levantaram suas moradas a cerca de 10 minutos
de distância dali, nas encostas de um morro310 (nas terras do patrimônio?).
Em 1823, durante sua visita pastoral, Dom Frei José constatou que a instransiA
gência do fazendeiro prejudicava a manutenção do templo. Impedidos de fazer o
arraial, os aplicados não se sentiam obrigados a contribuir financeiramente nos
reparos e ornamentação da capela. AmparandoAse na tradição, escreve Dom Frei
José:
«Deixamos esta desordem algum tempo remediada e esperamos que os benA
feitores do lugar correspondam às nossas intenções como fundadas na razão
e bem conhecido direito que têm os aplicados de edificarem casas no plano
circunscrito de uma capela pública e curada, pela prática bem sabida de to
das as igrejas deste bispado, encravadas no meio de outras semelhantes
fazendas.»311
Segundo Langsdorff, que passou por ali naquele mesmo ano, a morte do antigo
proprietário e a intervenção do bispo surtiram efeito. Uma segunda doação foi
feita.312 «Agora estão começando a assentar lá as casas do arraial», anota o exploA
rador russo.313
O caso de Viçosa mostra que o jogo de forças entre elite rural e o elemento poA
pular nem sempre pende definitivamente em favor da primeira. Eis outro exemA
plo: ao comprar a fazenda São Joanico, o padre Veríssimo de Souza Rocha doou
uma porção de terras à capela que já se encontrava, com algumas casas em volta,
naquela propriedade. Uma ordem régia determinou que as terras do patrimônio
fossem vendidas, porém o padre Rocha voltou a adquiriAlas por 120 oitavas de
ouro. O arraial de Santo Antônio de São Joanico tornouAse, em virtude disto, proA
priedade privada. Inconformados com a perda do patrimônio, os habitantes do luA
gar invadiram por diversas vezes as terras que haviam sido doadas, forçando o

309 AEAM, arm. 24, cx. 5. Num relatório escrito em 26 de outubro de 1838, o vigário
de Santa Rita do Turvo informa que o patrimônio «consta de terras e casas aforaA
das».
310 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 104.
311 Trindade, Visitas pastorais, p. 176. Grifo nosso.
312 Numa carta sem identificação, enviada ao vigário geral da Cúria de Mariana em 26
de julho de 1913, afirmaAse que segundo a tradição corrente em Viçosa «o patriA
mônio foi doado pelo falecido padre Manoel Ignácio de Castro, cujo título de doaA
ção foi entregue pelo mesmo (...) ao falecido bispo de Mariana, Dom Frei José da
Santíssima Trindade, na ocasião em que este bispo esteve aqui em visita». AEAM,
arm. 24, cx. 5.
313 Da Silva, Os diários de Langsdorff, vol. I, p. 104.
245

herdeiro do padre Rocha a constituir novo patrimônio. Num outro sítio da mesma
fazenda doaramAse cerca de 200 hectares para nova capela, no dia 2 de outubro de
1832. O templo foi sagrado em 20 de setembro de 1835, e aos poucos formouAse
o arraial e futura cidade de Maravilhas.314
Mas muitas vezes prevaleciam os interesses dos fazendeiros. Em meados da
década de 1880, Joaquim Gomes de Resende doou 5 alqueires de sua Fazenda da
Boceta para patrimônio de uma capela, a ser construída no local, sob a invocação
de Nossa Senhora da Conceição. A história por detrás desta doação é sem dúvida
original. Ao contrário do que normalmente poderia se esperar, a iniciativa de ReA
sende provocou profunda irritação entre seus vizinhos. Um deles, José Martins de
Oliveira, deu a sua versão dos fatos em uma carta (escrita muito provavelmente
em 1887) à autoridade eclesiástica. Segundo ele, Joaquim Gomes de Resende era
um «homem idiota e caprichoso», e sua doação não fora motivada por devoção à
Santa, mas sim «para fazer mal às propriedades do suplicante, imundar a água que
é pequena e devassar os fundos de suas fazendas». Oliveira afirma não poder conA
sentir com aquela doação «porque é pai de numerosa família, [e] não pode ter
suas fazendas devassadas e com a povoação sobre os fundos de suas fazendas e
agoada em cujo lugar não pode ser admitido patrimônio senão por caprichosos e
malfeitores». A referida doação nada mais era que um «verdadeiro capricho odiA
oso filho da ingratidão e é tudo porque quis [este] picareta casarAse com uma filha
do suplicante e esse mostrouAlhe um espelho». Oliveira se dispõe a comprar um
terreno em outro lugar e fazer doação dele ou mesmo destinar recursos à Santa. E
pede a intervenção da Igreja no litígio, a fim de que «se evite alguma desgraça».
O vigário de Jequeri, convencido ou persuadido por Oliveira, sugeriu à Cúria de
Mariana que o patrimônio doado fosse trocado por outro em benefício da matriz,
porém a operação não se completou. Em 1910, o novo vigário de Santana do JeA
queri propunha ao bispo a venda do antigo patrimônio da Fazenda da Boceta.
Dentre as causas enumeradas, diz ele que aquelas terras «não se prestam para a
formação de um povoado por falta d’água no lugar onde se acham e por serem
montanhosas». Além disso, «estando anexas a fazendeiros, estes não fazem perA
muta por terreno mais próprio para se formar um povoado, e nem desejam que
isto se faça, opondoAse com energia por prejudicarAlhes os interesses».315
VêAse que nos séculos XVIIIAXIX a afirmação do poder das elites rurais não
passava necessariamente por uma (suposta) instrumentalização da religião, como
a instituição dos patroni poderia fazer crer. Para muitos fazendeiros a formação
de um povoado não era desejável porque isso significaria ter de abrir mão da exA
clusividade sobre alguns dos seus recursos, como a água. A maior parte da popuA
lação, por outro lado, não concebia a capela sem o respectivo arraial. Em face da
oposição dos fazendeiros o povo se organizava e os pressionava por intermédio
da autoridade civil e/ou eclesiástica, e mesmo de invasões. Quem pretende analiA

314 EMB, vol. 26, p. 37.


315 AEAM, arm. 24, cx. 3.
246

sar o campo religioso certamente pode fazêAlo sob o prisma das relações de poder
entre diferentes estratos sociais, entre hierocracia e «leigos», etc. Todavia o histoA
riador da religião não deve se esquecer de que a relação de poder nada mais é que
uma forma particular de relação social. Significa dizer: ela obedece, tal como
qualquer outra relação social, ao princípio da reciprocidade. Os atores sempre
dispõem de algum poder. Mesmo quando a vida religiosa é institucionalmente
controlada por fazendeiros e sacerdotes, a massa de fiéis nunca está completaA
mente à deriva dos interesses e prioridades daqueles grupos. Mesmo quando têm
a pretensão de se servir da religião enquanto mecanismo de «domesticação das
massas», as elites rurais podem vir a depararAse com a decidida resistência popuA
lar. Seja no plano das representações religiosas (sagas e mitos de origem), seja no
plano da praxis propriamente dita. Para a grande maioria na Minas antiga, o arA
raial é imprescindível. Ele é bem mais que um aglomerado de casas, nas quais as
pessoas depositam seus pertences e se vestem adequadamente para assistir ao
culto. Ele representa a estreita ligação entre os devotos e o seu santo – uma ligaA
ção que, por seu intermédio, se expressa espacialmente. O arraial garante que a
religião nunca venha a ser completamente «privatizada».

4.4 A desclericalização do espaço


Que destino tiveram os patrimônios daquela infinidade de capelas e matrizes? A
maior parte foi simplesmente assenhorada por proprietários, fabriqueiros desoA
nestos ou ainda pelas Câmaras Municipais, já no alvorecer da República. O histoA
riador poderia sentirAse então tentado a concordar com Murillo Marx, para quem
o chão urbano passou por um progressivo processo de «secularização».316 De
fato, um dos sentidos originais da palavra «secularização» era exatamente o de
denotar a perda dos bens eclesiásticos para o Estado. Caso fosse ainda este o seu
significado, não haveria qualquer problema em falar numa secularização do esA
paço urbano no Brasil. Entretanto, na sua acepção corrente, «secularização» pasA
sou a designar um suposto esvaecimento do fenômeno religioso. «Morte de
Deus», «desencantamento do mundo», «saída da religião» foram algumas das difeA
rentes expressões empregadas para designar este processo. Vimos (seção 2.4.2)
que, nesta perspectiva, a «secularização» não passa de um mito moderno. Os próA
prios patrimônios «leigos» estudados por Monbeig na colonização do oeste pauA
lista não podem ser considerados embriões de cidade totalmente «profanos». A
fundação do loteamento era normalmente precedida por um rito religioso.
O que se pretende analisar aqui são os mecanismos por meio dos quais os paA
trimônios em terras caíram em mãos de particulares e das Câmaras (isto é, a «seA
cularização» no antigo sentido do termo). Para evitar qualquer tipo de confusão,
pareceAnos mais sensato renunciar ao conceito de «secularização». DiferenteA

316 Marx, Nosso chão: do sagrado ao profano, pp. 17, 144, 200.
247

mente de Pierucci317, não acreditamos que faça sentido resgatar a sua acepção
políticoAjurídica «original». Além do mais, o uso moderno deste conceito (dentro
e fora da sociologia) traduz apenas o mito da dissolução da religião. Ora, a reliA
gião não pode se dissolver: ela é uma constante antropológica.318 Existem, isso
sim, novas formas sociais de religião – que, todavia, o estudioso da sociedade
nem sempre está em condições (em virtude dos seus pressupostos teóricos) de reA
conhecer como tais. Optamos assim por adotar o termo neutro desclericalização.
Ao contrário do que se poderia imaginar, a desclericalização dos patrimônios
não começou com a Proclamação da República e a conseqüente separação entre
Igreja e Estado. É anterior a ela. Isso demonstra que a apropriação das terras «dos
santos» se iniciou num contexto ainda profundamente marcado pela religião caA
tólica tradicional. Antes de nos indagarmos se esta prática constituiu ou não um
paradoxo, é preciso voltar aos documentos.

4.4.1 Interesses privados e desclericalização


Há indícios de que já no século XVIII as terras doadas às capelas eram cobiçadas
por muita gente. Quando de sua morte, Mathias da Costa Maciel doou terrenos à
irmandade do Santíssimo Sacramento da matriz de Rio Acima. Em 25 de abril de
1763, o visitador geral José dos Santos determina que «a dita irmandade não conA
sinta que ninguém tome as ditas terras sem primeiro lhes passar arrendamento».
Mesmo tendo um dos seus antecessores estabelecido pena de excomunhão maior
ipso facto incurrenda a quem se assenhorasse das terras do patrimônio, os usurA
padores não se intimidaram:
«têm várias pessoas feito algumas propriedades nas ditas terras sem as arrenA
darem nem obterem licença da irmandade com assinatura do reverendo páA
roco.»319

A quase totalidade dos casos de apropriação pesquisados concentramAse, todavia,


ao longo do século XIX. A resposta mais cômoda para este fato: com a progresA
siva perda de influência da religião na passagem para o século XX, seria natural
que terras antes consideradas «sagradas» perdessem gradativamente este caráter.
A dissolução da rede de patrimônios religiosos nada mais seria que uma evidênA
cia do desencantamento do mundo. A República seria a expressão desta transA
formação no plano político; assim como Belo Horizonte, a nova capital, o seria
no plano urbanístico.
Mas a razão pela qual existem mais casos registrados na segunda metade do
oitocentos é bem outra. O primeiro esforço eclesiástico no sentido mapear os paA

317 Pierucci, «Secularização em Max Weber ».


318 Dux, Günter. Die Logik der Weltbilder. Frankfurt: Suhrkamp, 1990 (1982), pp.
307A308.
319 AEABH, cx. 502.
248

trimônios na Diocese de Mariana ocorreu na época de Dom Viçoso, em virtude de


um requerimento feito pelo poder público em 1850. Vigorando ainda o sistema de
padroado, estava o Estado obrigado a concorrer financeiramente com a manuA
tenção dos templos. Era portanto necessário saber quais deles gozavam ou não de
rendas próprias, advindas dos seus respectivos patrimônios.320 O outro momentoA
chave no que se refere à produção de documentos foi o ano de 1890, quando se
decreta a separação entre Estado e Igreja. Esta última ficava agora desprovida do
auxílio dos cofres públicos. Daí a importância de garantir a posse dos patrimôA
nios. A grande ofensiva da Igreja marianense teve início em 1893, quando o seA
cretário do bispado, Monsenhor Júlio de Paula Dias Bicalho, enviou a todos os
vigários da diocese um questionário em que deveriam constar informações minuA
ciosas sobre os patrimônios.321 Não é improvável que as usurpações das terras
das capelas e matrizes tenham ocorrido no setecentos, porém não dispomos (até o
momento) de fontes que delas dêem prova.
Por outro lado, não se deve esquecer de que o século XIX é o século da «ruraA
lização». Embora a agricultura sempre tenha sido praticada em Minas, é no oitoA
centos que ela se firma como a atividade econômica base da província. Nada
mais natural que, nestas condições, a demanda (e a cobiça) por terra tenha auA
mentado tanto.
Em correspondência com data de 26 de junho de 1852, o vigário de Abre
Campo informa sobre o estratagema empregado por Cipriano Aloísio Pereira, o
qual havia feito doação de um terreno próximo da matriz «em benefício desta e
dos habitantes que ali se quiseram arranchar». O suposto benfeitor da matriz, poA
rém, recebia o produto da venda dos lotes sem repassáAlo à igreja.322 O vigário de
Formiga afirma, em 21 de fevereiro de 1854, que os «primeiros habitantes desta
vila (...) despojaram a São Vicente do terreno em que está edificada», o mesmo
ocorrendo com as capelas filiais dos então distritos de Arcos e Porto Real do Rio
São Francisco (atual Iguatama): «Ambas estas capelas receberam em princípio
dos proprietários do lugar uma porção de terreno; mas (...) os particulares foramA
se apossando do que quiseram arbitrariamente, sem ônus algum».323 Em ItatiaiuA
çu, segundo carta do pároco em 8 de julho de 1864, a igreja matriz possuía ¼ de
légua em terras. «Porém nada rendem, antes alguns pedaços têm sido vendidos
pelos fabriqueiros sem que a autoridade competente tenha tomado conhecimento
algum disso, e não tendo este produto revertido em benefício da igreja».324 O viA
gário de Venda Nova, por sua vez, escreve em 30 de janeiro de 1870 que
«O arraial da Venda Nova está edificado sobre um terreno que foi deixado
em patrimônio à antiga capela de Santo Antônio, mas o povo se tem apodeA

320 APM, SP, PP1/9, cx. 13, pasta 5.


321 AEAM, arm. 24, cx. 5.
322 APM, SP, PP 1/9, cx. 13.
323 APM, SP, PP 1/9, cx. 19, pasta 36.
324 APM, SP 1061.
249

rado dele, edifica, e o desfruta gratuitamente, e nesta posse está de longuísA


simo tempo, porque nunca houve quem taxasse algum foro e o cobrasse, de
sorte que o patrimônio é nominal.»325
Em Carangola, consta que tanto a matriz como o arraial localizavamAse num terA
reno de 15 ou 20 alqueires que fora comprado para patrimônio. Os habitantes neA
gavamAse contudo a pagar os direitos à Fazenda Pública e a fazerem a escritura
de doação ao orago. O patrimônio foi dividido em lotes, cuja venda era destinada
à construção da sede paroquial. «Acontece porém – escreve o pároco em 9 de
março de 1870 – que o terreno está todo tomado e a matriz sem rendimento alA
gum para se continuar na sua conclusão». Ele diz esforçarAse para convencer os
compradores dos terrenos a regularizarem sua situação a fim de que o patrimônio
gere foros para a matriz, «mas bem longe de se convencerem, são pertinazes em
não quererem passar os títulos, dizendo que são senhores e possuidores do terA
reno, e que dele hão de fazer o que muito lhes aprouver».326
Não raro a figura do fabriqueiro exercia um papelAchave no processo de desA
clericalização dos patrimônios, de vez que era ele o responsável pela administraA
ção dos bens dos templos. Ao visitar o Serro em 1821, Dom Frei José é inforA
mado de que o fabriqueiro «cobrava os direitos da fábrica e os consumia».327 A
freguesia de Rio Preto oferece outro exemplo. A acreditar no pároco do lugar, o
rendimento do patrimônio decresceu na ordem inversa do aumento da população:
de oito a nove contos de réis para cerca de 100.000 réis, isso num período de
tempo em que «a população cresceu espantosamente». Tudo porque «outrora ocuA
pava o cargo de fabriqueiro um cidadão probo e honrado, e hoje [ocupaAo] um
homem ébrio, desmoralizado, que consome todo o dinheiro que arrecada em beA
bidas e jogatinas».328
Nem sempre o não pagamento dos foros era questão de má fé. Em alguns casos
os foreiros não cumpriam com suas obrigações simplesmente porque não o poA
diam. Quando, a despeito da pobreza dos moradores, a Igreja insistia nas cobranA
ças, a população reagia muito negativamente. Em Santa Rita do Turvo, escreve o
vigário em 26 de outubro de 1838, «o povo é muito pobre, e mesmo não se quer
unir, principalmente depois que aqui se pôs em andamento a [cobrança da] fábriA
ca». A capela filial de Nossa Senhora da Conceição dispunha de um patrimônio
de nada menos de ¼ de sesmaria, a maior parte do qual habitado e cultivado. A
capela ainda não estava terminada, pois a sua conclusão «não cabe na força do
povo, que não é rico». Não há fabriqueiro no lugar «por ninguém querer sujeitarA
se a trabalho, responsabilidade e graves inimizades».329 Para tentar minorar o
problema, a lei provincial n° 258 de 23 de dezembro de 1844 estabeleceu que os

325 APM, SP 1381.


326 APM, SP 1381.
327 Trindade, Visitas pastorais, p. 93.
328 APM, SP 1381 (carta datada de 24 de março de 1870).
329 AEAM, arm. 24, cx. 5. Grifo nosso.
250

fabriqueiros passavam a ter direito a 25% do valor por eles arrecadado (30% no
caso das dívidas anteriores à vigência da lei).330 O efeito desta medida pode ter
sido o oposto do pretendido. Em 21 de janeiro de 1870, Domingos Cândido da
Silveira, vigário de Betim, afirmava ser «de urgente necessidade uma lei que reA
gule melhor os negócios da fábrica». Os rendimentos das igrejas não seriam sufiA
cientes, diz ele, sequer para «reparos no material da matriz e compra de paraA
mentos necessários».331
A capela de Nossa Senhora da Conceição do arraial de Campina no Rio Verde
(hoje cidade de Conceição do Rio Verde) teve constituído seu patrimônio em
1778, por Damião Rodrigues Gomes e sua mulher Isabel Maria de Jesus. Depois
de sucessivos acréscimos, os terrenos da capela somavam 373 braças. Entre 1789
e 1801 os foros foram pagos regularmente. Mas em 1895 a situação se alterera
totalmente: a matriz encontravaAse, segundo palavras do vigário, «paupérrima». A
despeito de seus esforços para convencer os moradores «do dever que lhes corria
ao pagarem os foros do patrimônio que ocupam», nenhum resultado se obtinha.
Um dos moradores estaria a insuflar os demais ao não pagamento, chegando
mesmo a ameaçar o vigário: «à minha pessoa declarou que minha estada aqui deA
pendia de não falar no patrimônio». Os foreiros de uma chácara pertencente à caA
pela negavamAse desde 1879 a pagar suas obrigações. Naquele mesmo ano, tendo
o padre José Pedro de Souza decidido reivindicar os direitos do patrimônio,
houve «forte oposição do povo, que protestou veementemente».332
Em 1838 a matriz de Três Corações tinha um «tênue patrimônio». Como o proA
curador da matriz administravaAo de forma «pouco ativa» e «invigilante», seu renA
dimento montava em 9.000 a 10.000 réis. Segundo o pároco ele poderia, bem
administrado, render praticamente o dobro. Quarenta e sete anos mais tarde, poA
rém, lêAse num relatório que o patrimônio da matriz (16 alqueires e mais «alguA
mas propriedades») estavam «em poder de particulares, sem que se saiba quais os
títulos que lhes asseguram a posse delas».333 Em Alto Rio Doce, no ano de 1895,
estimavaAse que metade do patrimônio em 50 alqueires fora já assenhorada.334
Algumas vezes, sucessivas doações eram vítimas de sucessivas usurpações.
Constituído em 26 de agosto de 1754, o primeiro patrimônio da capela de Nossa
Senhora do Rosário de Paulo Moreira (hoje Alvinópolis) praticamente «desapareA
cera» ao fim do setecentos, de modo que nova doação acabou sendo feita em 2 de
novembro de 1801.335 Uma carta escrita pelos moradores do povoado em 1886
afirma que uma sesmaria de terras fora doada à igreja de Nossa Senhora do RosáA
rio. Entretanto,

330 APM, SP 1061. Carta de João Crispiano Soares, conselheiro do Presidente da ProA
víncia, ao bispo de Mariana. Datada de 18.02.1864.
331 APM, SP 1381.
332 ANEDC (14) 1952: 22A24.
333 AEDC, cx. 4, pasta «Três Corações».
334 AEAM, arm. 24, cx. 1.
335 DHGMG, p. 23.
251

«José Pinto Pereira e Amaro Pires, já falecidos, tomaram todo o terreno do


patrimônio e logradouro público, sem a menor resistência dos povos, por que
estas pessoas eram mandões do lugar e como tais eram temidos, ficando este
terreno fazendo parte de seus bens, e como tais foram transferidos a terceiros
que o possuem com prejuízos e danos dos povos.»336
Em outubro de 1896, Bernardino de Senna Figueiredo enviava uma carta ao juiz
de direito de Alto Rio Doce dando conta da invasão do patrimônio da matriz de
Nossa Senhora da Piedade de Boa Esperança. Segundo ele, poucos dias antes
«o cidadão bandido Rodrigues Madeira, como intruso, invadiu o dito patriA
mônio, intitulandoAse possuidor de um pedaço do mesmo, sito na rua denoA
minada de cima no dito arraial, fazendo cercados e plantações no intuito de
estabelecer ali uma posse sem o competente aforamento.»337
Figueiredo requeriu então a restituição das terras do patrimônio, e uma multa no
valor de um conto de réis para o invasor. No mês seguinte o vigário informa ter
desistido da ação a pedido de Rodrigues Madeira, por ter este reconhecido o diA
reito da igreja e pago todas as despesas.
Recorrer à justiça para resguardar os direitos dos templos podia significar tamA
bém ter de dar início a um verdadeiro inquérito, como ocorreu na freguesia do
Santíssimo Sacramento do Taquaruçu de Minas. Tendo desaparecido os títulos
dos patrimônios das antigas capelas do Boticário, Santo Antônio e Taquaruçu de
Baixo, o vigário requereu do juiz de paz que se intimassem testemunhas a fim de
saber que destino tinham tido aquelas terras. Em 2 de novembro de 1894 iniciaA
ramAse os depoimentos. O lavrador Joaquim Regino Alves, 64 anos, declarou que
seu avô, Antônio José Alves, doou o terreno do arraial do Boticário à capela ali
existente. O carpinteiro Manoel Rodrigues Homem, 73 anos, confirmou que AnA
tônio José Alves fizera «um donativo de um terreno para edificar este arraial e
[para] patrimônio da matriz». Quanto à capela de Santo Antônio, disse José MenA
des Vieira, 66 anos, que trinta anos antes tinha visto ainda suas paredes e esteios.
Afirmou que «sempre ouviu dos antigos que a capela tinha patrimônio (...) e ele
testemunha entende ser verdade dos antigos por ter visto um marco no lugar deA
nominado Sesmaria e que este marco arrancaram». Joaquim Moreira Sabino, 69
anos, também declarou ter visto a capela de Santo Antônio e que «seus tios lhe
disseram que sua bisavó dera a margem do campo de Santo Antônio até o lugar
denominado Sesmaria para patrimônio da capela». As imagens teriam sido manA
dadas para a matriz do Arraial do Japão (atual Carmópolis de Minas), e o altar foi
levado para a fazenda do Macuco, de propriedade do padre Manoel Ferreira
Pinto.338 Estes depoimentos, em si mesmos, não tinham eficácia jurídica. Sem
documentos que atestassem a doação dos patrimônios e seu arrendamento ao

336 AEAM, pasta 22, gav. 3, arq. 2.


337 AEAM, arm. 24, cx. 4.
338 AEABH, cx. 509.
252

longo do tempo, a Igreja não tinha como evitar sua perda.


Uma trama bem mais complexa envolveu a usurpação do patrimônio da matriz
de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas da Noruega. Erigida em 1727339,
a primitiva capela obteve de Sebastião Pedrosa e sua mulher Maria Rodrigues
uma primeira doação de terras em 11 de fevereiro de 1744. Nova doação foi feita
mais tarde (não sabemos exatamente quando) por Manoel Alves Ferreira, meA
dindo entre 24 e 30 alqueires. Sigamos a tumultuada história deste segundo terA
reno.
O antigo fabriqueiro da capela cedeu as terras do patrimônio a dois fazendeiA
ros: Joaquim Gonçalves Goulart e Manoel Felisberto. O primeiro concordou em
pagar 12.000 réis por ano, e o segundo a metade deste valor. Mais tarde, Silvério
José de Almeida obteve de Goulart a cessão de seu direito de arrendamento. InteA
ressado nos demais terrenos do patrimônio – cuja qualidade era excelente –, AlA
meida adquire a fazenda de Manoel Felisberto. Este, contudo, adverteAo que a
porção de terras já então chamadas «do patrimônio» não lhe pertenciam, mas sim
«à santa». Almeida, que tinha alguns terrenos arrendados a Francisco Alves Lobo
da Neiva, então fabriqueiro, propôsAse a trocáAlos pelos do patrimônio. O negócio
não teria se completado, pois Neiva disse que, embora fosse responsável pelos
bens da capela, não estava no direito de dispor dos mesmos. As tentativas de
aquisição do patrimônio respeitaram, até este momento, as normas eclesiásticas.
Tudo começou a mudar de figura quando faleceu a primeira mulher de Silvério
José de Almeida, Dona Cândida. Ao fazer o inventário dos bens, seus herdeiros
pediramAlhe que se incluísse o patrimônio entre eles, ao que se negou terminenA
temente Almeida. O projeto de seus filhos se realizou contudo após a sua morte:
as terras da capela foram fraudulentamente inseridas no inventário e divididas. A
maior parte coube a Francisco José de Almeida e José Calisto de Almeida. A porA
ção de Francisco manteveAse em suas mãos. Já a parte de Calisto foi transferida a
seus filhos, que dividiramAna entre si depois de sua morte e venderamAna a AntôA
nio Gonçalves de Arruda. Procurado pelo vigário Guilherme Coelho Neto em
1897, Francisco declarou que só pagaria os foros que devia à capela por decisão
episcopal. Arruda, por sua vez, disse que entregaria sua parte caso os herdeiros de
Calisto o reembolsassem. O vigário, o zelador e o secretário do bispado iniciam
então uma minuciosa busca dos livros de receita da capela, sem os quais as terras
não poderiam ser reclamadas judicialmente. Somente em 1910 o zelador Antônio
Carlos Alves Neiva veio a descobrir que Antônio Gonçalves Arruda estava de
posse dos livros em questão:
«Hoje milagrosamente eu soube por pessoa muito de bem que o livro está em
poder de quem está usufrutando das terras do referido patrimônio, sem pagar
o aforamento, dizendo que as terras são sua propriedade, porque as comA
prou.»340

339 DHGMG, p. 86.


340 AEAM, arm. 24, cx. 1.
253

Em carta escrita em 23 de agosto de 1895 ao Monsenhor Bicalho, o vigário GuiA


lherme Neto afirma que o desmembramento do patrimônio só foi possível devido
ao desleixo ou à conivência dos seus antecessores. Realmente, não se pode negar
que vários dos párocos favoreciam antes de tudo aos interesses de particulares. O
fabriqueiro de Santo Antônio da Venda Nova queixavaAse ao bispo de Mariana,
em 23 de setembro de 1881, que o vigário havia concedido a Joaquim de Santana
direito de arrendamento em terras do patrimônio. Entretanto aquelas terras eram
usadas como rossio pela população: «o terreno é dádiva a Santo Antônio para os
paroquianos tirar lenhas, cipós para reparos de suas casinhas e com os mesmos
paroquianos é que [se] obtém algumas esmolas para as construções desta matriz e
cujo arrendamento o vigário o fez em particular e os paroquianos estão bastante
desgostosos porque ficam sem recursos».341 O pároco de Nossa Senhora da Saúde
de Mariana (atual Dom Silvério) reclamava em 1897 ao secretário do bispado que
seu antecessor havia se apossado dos livros da matriz e se negava a entregáAlos.
Em sua resposta, Monsenhor Bicalho sugere que se evite o conflito direto. Mais
inteligente seria fazer uso da persuasão e induzir os usurpadores a abrir mão esA
pontaneamente dos bens da Igreja «para que não atraiam as maldições de Deus».
A Igreja, afirma Bicalho, «só quer que se lhes reconheçam o domínio de tais
patrimônios, e garantaAse o culto divino; mas não quer desalojar ninguém, nem
oprimir».342
As disputas estenderamAse século XX adentro. A capela setecentista de Nossa
Senhora do Socorro obteve patrimônio por doação de Manuel Perdigão da Costa
em 17 de março de 1738.343 Um longo manifesto publicado pelo vigário Manoel
Mello Mattos em 15 de agosto de 1911 afirma que todos no arraial conheciam a
capela e sabiam que em torno dela «formouAse e continua a desenvolverAse o seu
povoado». O patrimônio teria sido arrendado «por longos anos» à Companhia de
Mineração do Gongo. Posteriormente, rescindido o contrato, as terras foram deA
volvidas pela empresa à paróquia. Um dos moradores do arraial, João Evangelista
de Resende, apresentouAse então com duas testemunhas diante do juiz municipal
de Santa Bárbara afirmando que as terras pertenciam a ele, por herança de seu
pai. Para o vigário a iniciativa de Resende fazia parte de um «conluio, com o obA
jetivo de perturbar a capela na sua posse tradicional e incontroversa». Resende
estaria reclamando os terrenos a mando dos proprietários do Gongo. O pároco reA
comenda aos moradores que não participem das «discussões impertinentes que o
Sr. João Evangelista costuma provocar sobre as divisas do Gongo e patrimônio»,
além de pedir que a população não se negue a testemunhar em favor dos direitos
da capela.344

341 AEABH, cx. 813.


342 AEAM, arm. 24, cx. 2.
343 DHGMG, p. 346. Num documento sem assinatura e sem data (AEAM, arm. 24, cx.
5) referente à capela do Socorro consta uma outra data: 17 de maio de 1730.
344 AEAM, arm. 24, cx. 5.
254

Por volta de 1893, João Antônio Ferreira doou 50 litros de terra (4,8 ha) a São
José, padroeiro do arraial de São José do Passa Bem (atual Passabém). O doador
colocou como condição que ele próprio encabeçasse uma comissão responsável
pela venda dos lotes do patrimônio. Com o falecimento de quase todos os memA
bros dessa comissão, o terreno passou a ser fechado por particulares que ali
construíam suas casas «não tendo pago quantia alguma a benefício da capela de
São José». FormouAse então uma nova comissão, que, em vista do que se passava,
dirigiuAse em 16 de outubro de 1923 ao bispo de Mariana para saber se deveria
medir os terrenos ocupados e cobrar o necessário dos responsáveis. Informam
ainda ao bispo que «alguns proprietários venderam casas com terreno, [e] passaA
ram documento sem terem comprado os terrenos». Em visita a Passabém, o bispo
auxiliar, Dom Antônio José dos Santos, conseguiu que os herdeiros de João AnA
tônio Ferreira ratificassem a doação. Ainda assim, continuam os membros da coA
missão, «alguns proprietários que têm terreno fechado (...) responderam que não
pagavam nada».345
De uma maneira geral, a Igreja não teve como reverter a privatização dos paA
trimônios. No período compreendido entre o decreto de separação entre Igreja e
Estado (7 de janeiro de 1890) e o início de vigência do Código Civil (1° de jaA
neiro de 1917) ela não dispôs de instrumentos legais capazes de garantir as terras
das matrizes e capelas. Antes de 1917, quando um particular construía uma casa
em terras do patrimônio – e partindo do pressuposto que as construções tinham
geralmente maior valor que os terrenos por elas ocupadas – as decisões judiciais
tendiam a favorecer o dono da casa em caso de litígio entre as partes. Segundo
parecer do advogado Agripino Gomes Veado, dado em 7 de março de 1921, os
proprietários das casas feitas em terras da igreja de Nossa Senhora do Patrocínio
antes da vigência do Código Civil tornavamAse legalmente senhores dos terrenos,
tendo apenas de indenizar à igreja o valor da terra ocupada.346
Como reagiam os católicos à privatização dos patrimônios «dos santos»? Numa
época em que a maior parte dos moradores de distritos habitavam as áreas adjaA
centes aos arraiais propriamente ditos, podeAse imaginar que nem todos os apliA
cados de uma capela se davam conta de ocupações irregulares ou do não pagaA
mento dos foros, quanto mais porque muitas vezes os vigários e fabriqueiros
eram os responsáveis diretos ou indiretos pelos descaminhos dos patrimônios. As
relações de dominação no campo impunham, por sua vez, o silêncio àqueles que
eventualmente poderiam se opor à usurpação dos direitos das capelas. Mas não se
deve pensar que este fenômeno fosse estranho ao cotidiano da maior parte das
pessoas na Minas antiga. A apropriação dos patrimônios por particulares apenas
seguia uma tradição já antiga no Brasil. Analisando a questão da posse da terra na
Colônia, Carrara constata um «descumprimento usual e generalizado da legislaA
ção agrária». Do ponto de vista econômico, diz ele, «a propriedade sempre funciA

345 AEAD, cx. 2.


346 AEAM, arm. 24, cx. 3.
255

onou como propriedade privada no Brasil».347 ObserveAse ainda que os patrimôA


nios das Câmaras (no caso, os terrenos dos logradouros) não eram mais respeitaA
dos que os patrimônios religiosos. Segundo Reis Filho, os pagamentos de foros às
Câmaras «tendiam a desaparecer, sempre que fosse possível aos moradores enA
contrar uma forma de evitáAlos».348
O aparente «paradoxo» que foi a apropriação das terras dos patrimônios num
contexto profundamente marcado pelo catolicismo popular deverAseAia, ao nosso
ver, mais à escassez de registros escritos (sobre a forma como estas apropriações
eram encaradas pela maioria das pessoas) que a uma suposta indiferença religiA
osa. Ainda assim, alguns documentos dão testemunho de que nem tudo se assistia
de forma absolutamente passiva. A ocupação de metade do do patrimônio de Alto
Rio Doce, diz o pároco em 1895, «tem sido censurada pela maioria dos fiéis».349
Manoel Dias Lopes Santa Ana, um dos filhos do usurpador do patrimônio de
Catas Altas da Noruega, recusouAse a aceitar uma parte das terras que lhe eram
oferecidas pelo seu pai «por saber que pertencia a Nossa Senhora da Conceição
da Noruega».350 Naquela mesma freguesia, Manoel Francisco de Freitas, que
mantinha em seu poder uma casa pertencente ao patrimônio da capela de São
Gonçalo, foi excomungado pelo vigário Guilherme Coelho Neto por ter reagido
com excessiva violência depois de lhe ser pedida a devolução desta casa. VendoA
se «abandonado quase de todo povo», Freitas teve de mudarAse para outra reA
gião.351 Nas primeiras décadas do século XX, Willems observou o seguinte feA
nômeno em Itaipava:
«Sagrados também são os lugares que ‹pertencem ao santo›. Anos atrás deA
moliuAse uma das igrejas (Nossa Senhora dos Remédios) da cidade. No
mesmo local a Câmara construiu o Mercado Municipal que antes funcionava
no Largo da Matriz. Foi o golpe de morte nessa feira bastante concorrida. O
mercado foi construído em ‹terras da santa›, local sagrado que não podia ser
profanado por um edifício destinado a objetivos alheios ao culto. Temendo
desagradar a Santa, os homens da roça deixaram de concorrer ao novo merA
cado que até hoje continua ‹morto›, embora uma geração já houvesse pasA
sado desde que ocorreu a substituição. Quando, há mais de 25 anos, se
construíra o Grupo Escolar em terra de São Benedito, alguns moradores reA
cusaramAse, a princípio, a mandar os filhos à escola, pois assim, na opinião
deles, teriam participado de uma profanação.»352

347 Carrara, Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674 1807), pp.
135, 141.
348 Reis Filho, Evolução urbana do Brasil, pp. 114A115.
349 AEAM, arm. 24, cx. 1.
350 AEAM, arm. 24, cx. 2.
351 AEAM, arm. 24, cx. 2. Carta do padre Guilherme Coelho Neto, datada de 23 de
agosto de 1895.
352 Willems, Uma vila brasileira, p. 137. Até 1995, ano em que Amauri Ferreira deA
fendeu sua dissertação de mestrado sobre as «aparições » de Nossa Senhora na Vila
256

4.4.2. Poder público e desclericalização


As disputas entre os representantes eclesiásticos e Conselhos Distritais ou as CâA
maras Municipais se entensifica em fins do século XIX. Não raro os logradouros
públicos se formaram a partir de terras antes pertencentes às capelas e/ou matriA
zes. A Igreja perdia terreno para o Estado – literalmente. Isso obviamente gerou
inúmeras disputas judiciais, como se verá adiante.
Vejamos inicialmente um caso misto de apropriação privada e pública. O paA
trimônio da capela do Senhor Bom Jesus do Bonfim (hoje cidade de Bonfim) foi
doado em 8 de junho de 1752 por João Antunes da Silva e sua esposa Maria do
Couto. Um século depois, os moradores do Bonfim não mais se lembravam dos
nomes dos doadores, embora fosse mais ou menos notória a origem das terras da
capela. Por volta de 1857, o seu zelador, João de Souza Parreiras, vendeu parte do
patrimônio. O restante foi tomado pela Câmara após a criação da vila em 1860.
Parreiras teria vendido oito alqueires a Silvéria Maria do Carmo, os quais passaA
ram ainda de mão em mão: compraramAno, sucessivamente, Manoel Bernardo da
Cunha, Antônio Nery Ferreira e, finalmente, Christiano José da Rocha. Balduíno
Pereira Henriques e sua esposa, moradores de Bonfim, declararam ao pároco em
1897 que
«se João Parreiras foi vendedor de partes do patrimônio, a municipalidade foi
usurpadora do resto, e que não lhes consta que esta, para formar seus lograA
douros, tenha comprado sequer um palmo de terra. Balduíno lembraAse que
seu avô (...), quando via alguém edificar nesses terrenos, ou apossarAse deles,
costumava exclamar indignado: ‹Os ladrões estão roubando do Senhor do
Bonfim!›»353

Em Patrocínio do Muriaé ocorreu uma curiosa dualidade de poderes. O terreno da


matriz fora doado por Antônio Rodrigues dos Santos, em 28 de outubro de 1840.
Ao que parece, após as medidas do governo provisório, surgiu um sério conflito
entre representantes da Igreja e poder público a respeito do patrimônio. Em 1893
Antônio Francisco Leite de Castro, proprietário de uma fábrica de tijolos, requeA
reu ao agente executivo, João Chrysostomo Leopoldino, autorização para retirar
barro do logradouro, o que lhe foi negado. Insatisfeito com a decisão, Leite de
Castro recorreu ao vigário, propondoAlhe o arrendamento do mesmo terreno. Este,
certamente para ganhar um poderoso aliado na luta pelos direitos da matriz, ceA
deu ao pedido. O valor do aforamento ficou estipulado em 100 réis por metro de
extensão. Esta decisão se deu num momento de grande radicalização, como se
pode perceber pelo tom de uma matéria publicada no jornal local por Horácio
Catta Preta:

de Piedade dos Gerais, o comércio ainda era proibido no local. Ferreira, As apari
ções em Piedade dos Gerais, p. 13.
353 AEABH, cx. 507.
257

«O Sr. agente executivo deste município (...) com seu procedimento capriA
choso e cheio de vingancinhas veio preciptar a questão que já fez eco neste
município e reboará estrondosamente em todos os outros da confedereção
brasileira (...). O Sr. Leite de Castro, porém, altivo, enérgico e inteligente
como é, acaba de esmagar, como a montanha ao sapo, ao Sr. agente executivo
municipal recorrendo a quem (...) competia arrendar os terrenos do patrimôA
nio.»354

Nova matéria na imprensa local, em 20 de agosto de 1893, dava conta de que o


«importante e distintíssimo industrial» Leite de Castro havia se colocado à dispoA
sição da paróquia para custear qualquer ação judicial que visasse garantir a posse
do patrimônio pela matriz. Infelizmente a documentação não nos permite saber
como teve fim o conflito.
Francisco Pereira Pontes, morador da freguesia do Rio Pomba, enviou ao Rei
de Portugal pedido para levantar uma capela dedicada ao Senhor Bom Jesus da
Cana Verde. A autorização real foi dada em 17 de abril de 1821. O patrimônio
doado à capela media 51 alqueires (244,8 ha). Tudo leva a crer que com o passar
do tempo estas terras foram, pouco a pouco, sendo ocupadas. Em 1894 o vigário
Theodolindo Fagundes escrevia ao bispo de Mariana dizendo que a Câmara do
Pomba negavaAse a reconhecer os títulos do patrimônio e que, além disso, fazia
«o maior pouco caso» de suas reclamações. «Já fiz o que pude, estão de capricho,
até os advogados dão parecer contra a igreja», acrescenta ele. Em resposta a esta
carta, Monsenhor Bicalho sugere ao vigário que faça uma coleta entre os paroA
quianos para custear as ações judiciais: «Como se vê, os adversários têm tido paA
receres e têm tido meios para sustentar despesa em oposição aos sagrados direitos
da matriz; ora, não é bem que os filhos da Igreja ali se mostrem menos generosos
do que aqueles». Obtidos os meios, o vigário deveria procurar o jurisconsulto LaA
fayette Rodrigues Pereira e entregarAlhe os documentos que estavam em seu
poder. «Será a última palavra», conclui Bicalho. Entretanto dois acontecimentos
prejudicaram a estratégia da Igreja: primeiramente, a morte do padre Theodolindo
Fagundes. E, mais grave, a usurpação da escritura do patrimônio. Segundo o
novo vigário, Antônio José Gomes, em correspondência com data de 6 de outubro
de 1898, o padre Fagundes conseguira cópia da escritura que se achava em
Portugal. Desejoso de solucionar o quanto antes a disputa entre a Câmara e a paA
róquia, Fagundes teria procurado o advogado Francisco de Paula Motta, ao qual
entregou a escritura. Mais tarde, quando o novo pároco procurou aquele advoA
gado, este lhe apresentou apenas «um título falso de seis alqueires, de que diverA
sas pessoas aqui possuem». Paula Motta exercia então o cargo de agente execuA
tivo.355
Em 7 novembro de 1896 o Diário Oficial de Minas Gerais publicou um edital
comunicando o leilão público de mil hectares de terras «devolutas» entre a EstaA

354 AEAM, arm. 24, cx. 3 (Echo Municipal, 9.07.1893).


355 AEAM, arm. 24, cx. 5.
258

ção de Miguel Burnier e Pires, lugar pertencente à freguesia de Congonhas do


Campo. Em 19 de novembro do mesmo ano, Monsenhor Bicalho escreve a uma
alta autoridade civil afirmando que na área a ser leiloada existiram três capelas
públicas, de modo que «os terrenos mencionados no referido edital não são deA
volutos, mas sim patrimônios dessas capelas». E pede que o leilão seja suspenso,
«com o que prestará Va. Exa. assinalado serviço à Religião, à Igreja e ainda à
Causa Pública».356
Em Congonhas do Campo, em 1897, o patrimônio da matriz de Nossa Senhora
da Conceição estava sendo aforado pelo agente distrital Sabino de Souza Costa.
O orçamento do distrito, publicado no Minas Gerais de 27 de fevereiro, estabeleA
cia o valor de 350.000 réis para a concessão de aforamentos.357
O patrimônio de Santana do Jequeri media originalmente 12 alqueires (57,6
ha). A doação foi feita por Manoel Gonçalves Mol, Joaquim Antônio Ribeiro,
Manoel Justiniano Ferreira, Camilo de Leeliz, Antônio José Martins e Manoel
Gonçalves Pena em 22 de novembro de 1849. A demarcação e medição dos terA
renos fizeramAse em 3 de dezembro de 1853. Em fins do oitocentos a matriz entra
na justiça contra Luiz de Assis Marcondes, agente executivo distrital de Jequeri,
requerendo reintegração de posse sobre o patrimônio. Deflagradora da ação judiA
cial foi a discordância entre o fabriqueiro e o agente distrital quanto a um pedido
de construção nas terras do patrimônio feito por Maria Antônia Alves dos Santos.
Enquanto o administrador dos bens da igreja permitira a obra, Marcondes a proiA
bira. Este, «negando alinhamento e mandando demolir prédios em começo de
construção», provava assim que se achava de posse do patrimônio. Como a lei
mineira n° 2 de 14 de setembro de 1891 transferia todo o poder de decisão a resA
peito de obras nos logradouros públicos às Câmaras e não aos Conselhos DistriA
tais, o juiz deu ganho de causa ao fabriqueiro, condenando Marcondes a abrir
mão do terreno do patrimônio.358
Na década de 1730, no lugar hoje ocupado pela cidade de Curvelo, o padre
Antônio de Ávila Curvelo, português, adquiriu uma grande extensão de terreno.
No lugar já havia um arraialzinho chamado Santo Antônio da Estrada, com uma
rústica ermida coberta de palha. O padre Curvelo aumentouAa e colocouAlhe um
telhado. Ao falecer, deixou em testamento à capela uma sesmaria quadrada de
terras. Tal como em tantas outras localidades, estas terras foram progressivamente
ocupadas, subdivididas e vendidas – mesmo após a criação da vila. No intuito de
impedir novas ocupações do logradouro público, a Câmara decidiu demarcar seu
terreno. Para este fim, foi nomeada uma comissão, cujo parecer foi publicado em
8 de março de 1902. Em consulta feita pela diocese de Diamantina ao advogado
Levindo Reis, perguntavaAse se a mitra podia reivindicar os terrenos, já que a

356 AEAM, arm. 24, cx. 5.


357 AEAM, arm. 24, cx. 2 (carta enviada em 19.03.1897 a Lafayette Rodrigues PeA
reira).
358 AEAM, arm. 24, cx. 3.
259

Câmara não dispunha de qualquer documento que comprovasse propriedade


sobre o patrimônio da matriz. A resposta confirma os termos da lei n° 2 de 14 de
setembro de 1891: os antigos patrimônios foram transmutados em logradouros
públicos, e, como tais, deveriam ser administrados pelas Câmaras. Um segundo
parecer, dado pelo advogado Ernesto Reis da Gama Cerqueira, argumenta que
depois de passado mais de um século da doação original sem que a Igreja
reclamasse a sua posse, e tendo as ocupações se transmitido aos herdeiros ao
longo do tempo, adquiriam estes domínio «e, portanto, o direito de se manterem
na posse dos ditos terrenos». De maneira que a Câmara, tanto quanto qualquer
outro possuidor, estava em condições de contestar a ação de reintegração da
matriz, sob o argumento de que o direito da mesma já havia prescrito.359
A Igreja tentou resistir o máximo que pôde à desclericalização dos patrimôA
nios. Em Abre Campo a polêmica chegou também às páginas da imprensa. Em
texto publicado em O Abre Campo de 1° de fevereiro de 1903, lêAse:
«Os terrenos doados pelo povo às capelas, que depois foram elevadas a maA
trizes, constituem seus patrimônios [e] não podem as Câmaras Municipais
administráAlos, aforáAlos, conceder licença para edificações de prédios e ouA
tras obras; são bens incorporados às fábricas cuja administração pertence aos
respectivos fabriqueiros de nomeação do Exmo. Bispo Diocesano. (...) Os que
pretendem construir casas, não devem requerer licença à Câmara (...), deA
vendo requerer aos fabriqueiros e aos conselheiros que possuem terrenos o
aforamento dos mesmos, uma vez que eles são os únicos competentes para
dar as concessões. (...) A nossa Câmara ainda não adquiriu terrenos para seu
patrimônio de acordo com a legislação vigente, e assim sendo, nenhum diA
reito tem ela de cobrar imposto (...).»360

Esta «dualidade de poderes» só poderia intensificar ainda mais o atrito entre EsA
tado e Igreja. Ao tentar assegurar a posse das terras das antigas capelas, a Igreja
desautorizava, aos olhos da população, a ação do poder público. Em 19 de deA
zembro de 1906, o pároco de São Miguel do Anta escrevia uma carta ao bispo de
Mariana informamdoAo que ocorria então «uma veemente questão sobre o patriA
mônio» do qual estava de posse a Câmara Municipal. Rogava ainda que se lhe
enviasse, o mais rápido possível, cópia do título de doação dos terrenos. E justifiA
cavaAse, dizendo que
«estando a matriz desta freguesia em completa pobreza, e distituída de todo o
necessário para o culto externo, e estando todos os fregueses a reclamarem
sobre a injusta usurpação que está praticando a Câmara, a ponto de quereA
remAse revolucionar (...).»361

359 AEAD, cx. 101, pasta «Paróquia Santo Antônio – Curvelo» (cartas escritas, resA
pectivamente, em 30 de setembro de 1903 e 29 de dezembro de 1902).
360 AEAM, arm. 24, cx. 1.
361 AEAM, arm. 24, cx. 4.
260

Resta, enfim, o caso da cidadeAsímbolo do projeto moderno em Minas Gerais:


Belo Horizonte. Como se sabe, a nova capital de Minas Gerais foi construída soA
bre o antigo arraial do Curral delARei. Destinada a ocupar o centro das decisões
políticas do estado, era de fundamental importância para Igreja que ao menos ali
ela conseguisse oporAse ao processo de desclericalização do espaço. Vencida a
batalha em Belo Horizonte, a guerra não estaria de todo perdida. Mas as condiA
ções eram agora ainda menos favoráveis, e não apenas devido à influência cresA
cente do positivismo entre os novos donos do poder. Num parecer com data de 9
de agosto de 1894, certamente feito a pedido das autoridades eclesiásticas, LaA
fayette Roiz Pereira procura conferir base jurídica à demanda da Igreja. Partindo
do pressuposto que todo templo deveria ser dotado de «patrimônio em terras, que
é o costume da nossa diocese», ele conclui que a matriz da Boa Viagem necessaA
riamente dispunha ou tinha disposto do terreno sobre o qual se construía a capital.
Sabemos que esta afirmativa só é parcialmente correta. Toda nova capela tinha de
ter o seu patrimônio, porém o mesmo podia ser – e o foi, muitas vezes – constiA
tuído em dinheiro, não em terras. É revelador que Lafayette Pereira e mesmo os
prelados marianenses se esquivassem de evocar as Constituições do Arcebispado
da Bahia, onde, digaAse de passagem, somente a modalidade patrimônioAemAdiA
nheiro é mencionada. Mas Lafayette Pereira ia ainda mais longe, e negava «que a
aludida porção de terras pertença ao Estado. (...) Seria preciso que por parte do
Estado se exibisse título legal de aquisição».362
Em 1895, Dom Antônio de Sá e Benevides dirige uma carta ao governador em
que insiste na «necessidade de salvar os direitos da Igreja no patrimônio da maA
triz». Benevides diziaAse obrigado «a empregar todos os esforços para conservar o
que é da Igreja, mormente nas condições em que atualmente ela se acha». A resA
posta de Bias Fortes é clara: «O governo tem sido solícito em respeitar todos os
direitos de domínio devidamente formado nas desapropriações procedidas naA
quele distrito». Quanto ao patrimônio, acrescentava, «nenhuma reclamação doA
cumentada até esta data foi apresentada sobre a propriedade que por ventura teA
nha a Igreja».363 As autoridades eclesiásticas nada podiam fazer: aproximadaA
mente um século depois de sua construção, a igreja de Nossa Senhora da Boa
Viagem não tinha patrimônio algum, segundo relatório do vigário da vara de SaA
bará em 1838.364 A despeito de intensos esforços, o termo de doação do patrimôA
nio da antiga capela – se é que ele foi mesmo constituído em terras – nunca foi
encontrado. O padre Francisco Martins Dias, em obra sobre Belo Horizonte puA
blicada já em 1897, escreve:
«Não encontramos aqui nem livros, nem outros quaisquer documentos, que
menção fizeram do patrimônio da paróquia; queremos acreditar que se perA
deram proposital ou fortuitamente. (...) Ao que parece, foram os astutos

362 AEAM, arm.24, cx. 5.


363 AEABH, cx. 438 (carta de 25 de fevereiro de 1895), grifo nosso.
364 AEABH, cx. 438 (carta datada de 24 de dezembro de 1838).
261

mandões e os régulos de tempos idos, que, abusando da simplicidade do


povo, e da timidez ou desleixo do pároco, com artimanhas e trapaças, lançaA
vam mãos sacrílegas no que à igreja pertencia, e daí iamAse sucedendo as
transmissões até os presentes proprietários».365

Mesmo admitindo que o patrimônio em terras tenha existido, muito provavelA


mente nada poderia ser feito contra as apropriações realizadas pelo poder civil em
nome do «bem público» e do «progresso». O Estado não tomou qualquer conheA
cimento das reivindicações do clero, e somente com muito custo concordou que a
igreja da Boa Viagem fosse mantida em seu sítio de origem (o projeto original da
capital previa que a velha matriz fosse demolida, e uma nova erigida no alto do
Cruzeiro).366 Talvez se possa falar legitimamente, aqui, no estabelecimento de um
«marco histórico». Pois o caso de Belo Horizonte ilustra, melhor que qualquer
outro, a inexorável desclericalização dos antigos patrimônios. Os chãos «dos
santos» tiveram de dar lugar aos logradouros públicos. O processo de desclericaA
lização do espaço dos antigos arraiais culminaria, alguns anos mais tarde, com o
início da progressiva descristianização da toponímia mineira.367 Pouca valia teve
o singelo protesto de Guimarães Rosa, para quem «nome de lugar onde alguém já
nasceu, devia de estar sagrado».368 Contando com fervorosos adeptos no aparato
estatal, as novas formas sociais de religião – religião civil, «religião da humaniA
dade» – tinham como projeto moldar o espaço e seus signos ao espírito do tempo.
Numa certa medida, o conseguiram. O que não significa que se possa falar em
«secularização» na jovem República brasileira. Na ilusão de expulsarem a religião
da vida social, as novas elites remodelaram o espaço urbano à sua imagem e seA
melhança – religiosamente.369

365 Dias, Francisco Martins. Traços históricos e descriptivos de Bello Horizonte. Bello
Horizonte: Typographia Bello Horizonte, 1897, pp. 43A44.
366 Almeida, Marcelina das Graças de. Fé na modernidade e tradição na fé: a catedral
da Boa Viagem e a capital. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em história,
UFMG, 1993, p. 75.
367 A lei n° 843 de 7 de setembro de 1923 alterou os nomes de 324 localidades mineiA
ras, das quais 177 tinham anteriormente uma denominação de caráter explicitaA
mente religioso (DHGMG, pp. 10A14). Lima Jr. chamou estas mudanças de «deA
predação toponímica». Lima Júnior, A capitania das Minas Gerais, p. 87.
368 Rosa, Grande sertão, p. 39.
369 Da Mata, «Passado e presente da religião civil», pp. 196A200.
262
263

5. Derrota da «cidade selvagem»?


1897 é o ano da inauguração de Belo Horizonte. Uma notável coincidência históA
rica, que valeria, por sí só, um estudo à parte: 1897 é também o ano da queda do
arraial de Canudos. Se existe algo como um espectro das distintas possibilidades
de interação entre o universo das representações coletivas e o das estruturas espaA
ciais, não resta dúvida de que Canudos e Belo Horizonte situamAse nas suas antíA
podas. Utopia milenarista de um lado, heterotopia modernista de outro.1
Na visão de Euclides da Cunha, tudo em Canudos era atípico e, num certo senA
tido, monstruoso: a raça, mestiça; a religião, «indefinida»; o espaço do arraial,
caótico. Por isso ele se refere ao arraial de Canudos com a expressão «a cidade
selvagem».2
Belo Horizonte representa um modelo diametralmente oposto. Nela, o sonho
do progresso assume o lugar do sonho milenarista. Não é mais a religião que cria
a cidade, mas sim o pensamento racional, o planejamento metódico. À relativa
espontaneidade das formas sucede a geometria. O espaço urbano, doravante, é
algo a ser domesticado. Sua gênese não mais se associa às necessidades impostas
pela fé. Ela responde a um triunfo da vontade. 1897 assinalaria, portanto, uma viA
rada histórica. Depois de Belo Horizonte, parecíamos condenados a confirmar a
afirmação de Flusser de que as cidades brasileiras, «diferentemente das européias,
originamAse não num projeto mítico, mas racional».3 Contestamos esta tese no
capítulo anterior, à luz do estudo das origens e da dinâmica dos antigos embriões
de cidades mineiros. Mas a hipótese de Flusser aparentemente adquire força diA
ante de exemplos como os de Philadelphia e da nova capital de Minas.
Um dos grandes paradoxos dos processos históricos reside no fato de que
mesmo sob a aparência das rupturas mais espetaculares, subsiste sempre um núA
cleo duro que resiste à corrosão do tempo. Ora, precisamente naqueles espaços
urbanos que assinalam a vitória do projeto moderno – e a desclericalização do esA
paço – o substrato religioso tradicional nunca foi completamente eliminado. A
suspeita de que Belo Horizonte tenha surgido em terras de Nossa Senhora da Boa
Viagem não foi apenas fruto da ânsia dos representantes da Igreja em garantir seu
poder econômico e simbólico face à ação do Estado. Esta suspeita se baseava na
probabilidade muito real de que as terras onde se situava o arraial do Curral delA
Rei teriam, originalmente, feito parte do patrimônio «da Santa».
A este respeito, é bastante ilustrativa a resistência da Igreja em aceitar que a
antiga matriz da Boa Viagem fosse demolida e reconstruída num outro local.
Antes, a matriz havia constituído o foco da vida social do Curral delARei. Com a

1 É verdade que Bloch se refere ao planejamento urbano moderno com as expressões


«utopia da cidade racional» e «utopia da ordem». Bloch, Ernst. Das Prinzip Hoff
nung. Frankfurt: Suhrkamp, 1982 (1959), pp. 865A866. Porém estamos, nesse ponA
to, mais próximos da posição de Foucault, «Des espaces autres», pp. 752A762.
2 Cunha, Os sertões, p. 122.
3 Flusser, «Brasilianische Städte», p. 262.
264

inauguração de Belo Horizonte, o locus das decisões políticas se deslocou para o


conjunto da Praça da Liberdade (onde, aliás, a Igreja também se fará presente
mais tarde, com a construção do Palácio Cristo Rei ao lado – e à direita – da sede
do Governo do Estado). Mas o coração religioso da metrópole nascente pulsava
ainda no mesmo espaço sagrado de outrora, ali mesmo onde, no início do século
XVIII, fora erguida a capela primitiva do arraial.
Nem mesmo Brasília, a capitalAmonumento, rompeu de todo com o substrato
religioso que, desde sempre, une o sagrado ao urbano.4 Em 30 de agosto de 1883,
Dom João Bosco teve uma visão na qual percorria o território latinoAamericano
embarcado num trem:
«Eu via as entranhas das montanhas e o fundo das planícies. Tinha sob os
olhos as riquezas incomparáveis destes países, as quais um dia serão descoA
bertas. Via numerosas minas de metais preciosos e de carvão fóssil, depósiA
tos de petróleo tão abundantes que jamais já se viram em outros lugares. Mas
não era tudo. Entre os paralelos 15 e 20 graus, havia um leito muito largo e
muito extenso, que partia de um ponto donde se formava um lago. Agora,
uma voz disse repetidamente: quando se vierem escavar as minas escondidas
no meio destas montanhas, aparecerá neste sítio a terra prometida, donde
fluirá leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.»5

O mito foi mobilizado, mais tarde, pelos defensores da construção da nova capital
brasileira no estado de Goiás. Políticos como Juscelino Kubitschek invocaramA
no. O que é compreensível, já que poucas experiências religiosas fascinam tanto
quanto a visão.6 Que ver neste caso senão uma evidência da ligação estrutural
entre o fenômeno religioso e o fenômeno urbano? A jovem Brasília só fez seguir
os exemplos de Roma, Lisboa e tantas outras. O que sugere, num certo sentido,
que a cidade, também para o homem moderno, continua sendo um «mistério». O
mito vem em seu socorro: ele torna a cidade inteligível na medida em que a justi
fica.
A análise da nossa «geografia mítica» nos termos propostos por Cassirer deA
monstraria, ainda, a existência de uma reveladora homologia entre Brasília e CaA
nudos. Segundo depoimento de um clérigo anotado por Euclides da Cunha, corria
no sertão baiano a crença de que em Canudos «nem é preciso trabalhar, é a terra
da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas».7
O mesmo motivo – cuja antigüidade é evidente (Ex 3: 8) – pode ser observado na
visão de Dom Bosco.
Não seria excessivo acrescentar que este tipo de representação mítica muito
provavelmente se mantém nos dias de hoje, apenas sob novas roupagens. É coA

4 Ver Tuan, Topofilia, pp. 196A198.


5 Tamanini, Lourenço Fernando. Memória da construção: Brasília. Royal Court:
Brasília, 1994, p. 105. Grifo nosso.
6 Benz, Die Vision, pp. 641A642.
7 Cunha, Os sertões, p. 127.
265

mum entre os brasileiros a impressão de que em Brasília, cidade dos funcionários


públicos, ganhaAse bem e «ninguém trabalha». A capital do Brasil, costumaAse diA
zer, é uma «ilha da fantasia». A ruptura entre a cidade modernista e a «cidade selA
vagem» é menos radical que se imagina.8

* * *
Este trabalho procurou demonstrar, numa perspectiva que nos arriscaríamos a caA
racterizar como históricoAfenomenológica, de que maneira religião e espaço inA
teragem nos dois primeiros séculos da história de Minas Gerais. Primeiramente
mostrouAse como a religião estava profundamente imbricada no mundo da vida.
Em seguida, empreendemos uma análise do espaço vivido – do mais íntimo da
casa aos confins do sertão. Finalmente, centramos nossa atenção nas formas eleA
mentares do espaço urbano, onde o jogo de interAinfluências entre representações
religiosas, concepções espaciais (Raumauffassungen) e organização do espaço se
apresentam de maneira particularmente nítida.
O espaço reflete sempre a visão de mundo do grupo que o «preenche». De que
forma o arraial na Minas antiga permite saber um pouco mais a respeito da menA
talidade daqueles que o criaram e que o habitaram? Num ambiente ainda domiA
nado pelo catolicismo popular, é a capela que «tem» um arraial, não o contrário.
Para se entender por quê o embrião de cidade se forma, é preciso entender o que
esta capela efetivamente representa: ela é a expressão material e espacial de uma
necessidade de comunicação periódica com o sagrado. Ela configura um espaço
qualitativamente distinto daquele que se situa ao seu redor, e esta qualidade se
extende ao terreno que lhe é doado: o patrimônio. É a partir deste binômio caA
pelaApatrimônio que o arraial se forma. As primeiras casas que nele se levantam
não são propriamente residências, mas simples pousos nos quais as pessoas se
preparam para o rito da missa. Estes pousos têm originalmente, portanto, uma
função ritual. Ali os fazendeiros e suas famílias, vindos muitas vezes de longe, se
vestem adequadamente para a celebração. Simultaneamente, surgem os primeiros
estabelecimentos comercias, as primeiras «vendas». Elas são aceitas de bom
grado, afinal o arraial não é (nem pode ser) um espaço exclusivamente devotado
à religião. Caso as condições oferecidas pelo meio e as perspectivas econômicas
sejam favoráveis, o núcleo se desenvolve. Do contrário o arraial cai em estagnaA
ção ou é simplesmente abandonado. E, no entanto: a «fagulha» que desencadeia
todo o processo é de natureza religiosa.
O arraial que se forma a partir de uma capela e seu patrimônio em terras ofeA
rece um modelo diferente do arraial surgido às margens de um local de mineraA

8 Para uma visão mais abrangente, ver Haufe, Hans. «Die historische Stadt: RaumA
identität und kulturelles Erbe in Lateinamerika». In: Riekenberg, M., Rinke, S. u.
Schmidt, P. (Hrsg.) Kultur Diskurs: Kontinuität und Wandel der Diskussion um
Identitäten in Lateinamerika im 19. und 20. Jahrhundert. Stuttgart: HansADieter
Heinz, 2001, pp. 103A129.
266

ção. Grosso modo, poderíamos dizer que o tipo humano predominante no priA
meiro é o «homo religiosus», enquanto que o tipo que prevalece no segundo é o
«homo ludens». O arraial minerador vive em função das lavras; o arraial surgido
num patrimônio tem na capela o seu ponto de rotação.
Outro interessante aspecto se dá a ler por meio do complexo capelaApatrimôA
nioAarraial. Ele é concebido sem fronteiras. Nada existe ao seu redor que denote a
necessidade de separar de maneira clara e indubitável o «dentro» do «fora». Os
inúmeros casos de adros e cemitérios destituídos de muros revelam a mesma lóA
gica, qual seja: no universo religioso popular da Minas antiga não há uma clara
diferenciação entre sagrado e profano. A organização do espaço do arraial permite
visualizar este aspecto fundamental da religião popular. Em outros termos, o
extraAcotidiano faz parte do cotidiano. A festa, o lúdico, não estão em «oposição»
ao sagrado. As representações e práticas religiosas não se voltam exclusivamente
para o post mortem, uma vez que elas estão indissociavelmente integradas à
trama da vida.
O estudo do arraial mineiro não exclui, de certo, o fato de que na sua constituiA
ção entram em jogo determinadas relações de poder. A capela podia perfeitaA
mente ser encarada, da parte de um grande fazendeiro, como um instrumento. ArA
cando com os custos de sua construção, ele pode vir a obter o título de «padroeiA
ro». A indicação e o sustento de um capelão reforçam sua autoridade. De modo
que se a religião não pode ser reduzida à sua função de sacralizadora da ordem
social, não há como negar que ela também se presta a este papel.
Todavia o estudo das sagas e mitos de origem dos arraiais demonstra que a
idéia de que o campo religioso seria dominado pela lógica ditada pelas elites ruA
rais e/ou pelo clero deve ser posta de lado. No âmbito do catolicismo popular são
muitas vezes os oprimidos deste mundo que estabelecem a ligação entre deuses e
homens. No mundo da vida (Lebenswelt) da Minas antiga, o carisma é patrimônio
comum.
A geografia da religião nos ajuda a perceber, finalmente, que o complexo caA
pelaApatrimônioAarraial é marcado por um paradoxo: a evolução do núcleo imA
plica, ao menos tendencialmente, num enfraquecimento progressivo da modaliA
dade de vida religiosa que presidira a sua própria gênese. Uma população
vivendo à margem de todo tipo de «assistência religiosa» formal se decide pela
construção de uma capela. Neste estágio, a comunidade não está submetida a
qualquer espécie de constrangimento institucional. Como vimos, é exatamente
esta relação ambivalente das massas rurais com o aparato eclesiástico que parece
ser um dos principais elementos daquilo que chamamos catolicismo popular. EriA
gida a capela, doado o patrimônio, o embrião de cidade começa a se desenvolver.
Com o tempo, aquela rústica capela inicial já não consegue abrigar o número
crescente de fiéis. FazAse um templo de maiores dimensões, e a estabilização do
núcleo tornaAo digno de ser elevado à condição de freguesia. Com a presença do
vigário, o controle sobre a vida religiosa da população se torna cada vez mais inA
tenso. Criadas as primeiras escolas, o advento da educação formal reforça ainda
mais a tendência à marginalização das concepções religiosas iniciais. Com isso
267

não se pretende dizer que o catolicismo popular seja sufocado por um processo
que ele mesmo deflagra, mas apenas que seu espaço efetivamente tende a se reA
duzir.
A história de todo núcleo urbano é a história da dialética entre espaço e repreA
sentações. O espaço é «produzido» – isto é, ele adquire significado – a partir de
determinadas concepções préAexistentes. Entretanto, os arraiais são algo mais que
espelhos da mentalidade predominante na Minas Gerais dos séculos XVIIIAXIX.
À medida em que evoluem, estes embriões de cidades contribuem para que o caA
tolicismo popular seja substituído por formas cada vez mais «enquadradas» de reA
ligiosidade.
269

Fontes e Bibliografia
Abreviaturas
AEABH – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte
AEAD – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina
AEAM – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana
AEDC – Arquivo Eclesiástico da Diocese de Campanha
AfKG – Archiv für Kulturgeschichte
AHCMG – Annuario HistoricoAChorografico de Minas Gerais
ANEDC – Anuário Eclesiástico da Diocese de Campanha
APM – Arquivo Público Mineiro
CAB – Constituições do Arcebispado da Bahia
CCM – Códice Costa Matoso
DHGMG – Dicionário HistóricoAGeográfico de Minas Gerais
EIA – Estudos IberoAAmericanos
EM – Enzyklopädie des Märchens
EMB – Enciclopédia dos Municípios Brasileiros
ER – The Encyclopedia of Religion
GG – Geschichte und Gesellschaft
HAHR – Hispanic American Historical Review
HdA – Handwörterbuch des deutschen Aberglaubens
HrwG – Handbuch religionswissenschaftlicher Grundbegriffe
HT – History and Theory
IESS – International Encyclopedia of the Social Sciences
IJRS – Internationales Jahrbuch für Religionssoziologie
JbLA – Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft LateinA
amerikas
JPC – Journal of Popular Culture
MTSR – Method & Theory in the Study of Religion
PHG – Progress in Human Geography
RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro
RBCS – Revista Brasileira de Ciências Sociais
RBEP – Revista Brasileira de Estudos Políticos
RBG – Revista Brasileira de Geografia
RBH – Revista Brasileira de História
RDTP – Revista de Dialectología y Tradiciones Populares
REB – Revista Eclesiástica Brasileira
RGG – Die Religion in Geschichte und Gegenwart
RH – Revista de História (São Paulo)
RHR – Revista de História Regional
RIEB – Revista do Instituto de Estudos Brasileiros
RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil
RIHGMG – Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
270

RPHAN – Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


ThQ – Theologische Quartalschrift
VH – Varia Historia

a) Documentos manuscritos
I. Arquivo Público Mineiro
Códices da Seção Colonial: SC 19; SC 32; SC 35; SC 45.
Códices da Seção Provincial: SP 508; SP 546; SP 565; SP 602; SP 657; SP 779;
SP 897; SP 952; SP 1061; SP 1159; SP 1381.
Documentos avulsos Seção Provincial: PP 1/9, cx.7; PP 1/9, cx. 8; PP 1/9, cx. 9;
PP 1/9, cx. 12; PP 1/9, cx. 13; PP 1/9, cx. 16; PP 1/9, cx. 18; PP 1/9, cx. 19; PP
1/9, cx. 20; PP 1/9, cx. 21.
Microfilmes do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU): Cx. 29, doc. 28; cx. 41,
doc. 70; cx. 54, doc. 31; cx. 62, doc. 30; cx. 64, doc. 24; cx. 119, doc. 44; cx. 122,
docs. 23 e 38; cx. 127, doc. 34; cx. 128, docs. 13 e 28; cx. 131, doc. 25; cx. 136,
doc. 14; cx. 137, doc. 16; cx. 140, doc. 26; cx. 142, doc. 34; cx. 149, doc. 64; cx.
162, doc. 9; cx. 165, doc. 68; cx. 169, doc. 21; cx. 181, doc. 53.

II. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina


Documentos avulsos: caixas 02, 49, 101, 102, 106.

III. Arquivo Eclesiástico da Diocese de Campanha


Documentos avulsos: caixas 01, 02, 03, 04, 05.
Livro do tombo de Aiuruoca (1730 1822)
Livro de pastorais de Baependi (1822 1899)

IV. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte


Documentos avulsos: caixas 31, 37, 295, 404, 438, 444, 502, 503, 507, 509, 813,
837.

V. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana


Documentos avulsos: pasta 22, gav. 3, arq. 2; pasta 28, gav. 1, arq. 1; pasta 33,
gav. 2, arq. 1; pasta 33, gav. 4, arq. 4; pasta 54, gav. 1, arq. 1; pasta 11AA/G.1/A.2.
Processos de patrimônio: arm. 24, caixas 01, 02, 03, 04, 05.
271

b) Documentos impressos
Actas e constituições do primeiro sínodo diocesano fortalexiense celebrado na
respectiva igreja catedral em os dias 31 de janeiro, 1° e 2 de fevereiro de
1888; sendo bispo desta diocese o Exmo e Rvmo Snr Dom Joaquim José ViA
eira, do Conselho de S. Magestade o Imperador, comendador da Ordem de
Cristo, etc, etc. Ceará: Typographia Economica, 1888.
Castro, Martinho de Mello e. «Instrução para o Visconde de Barbacena». In:
RIHGB (21) 1844: 3A59.
Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das
minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvi
dor geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, &
vários papéis. Coordenação de Luciano Figueiredo e Mônica Campos. Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999.
Coelho, José João Teixeira. «Instrução para o governo da capitania de Minas GeA
rais (1780)». In: RIHGB 15 (7) 1852: 255A481.
Da Vide, Dom Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arbebispado da
Bahia. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro, 1853 (1719A1720).
«Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da capitania de Minas GeA
rais. Seu descobrimento, estado civil, político e das rendas reais (1781)». In:
RIHGB (71) 1908: 117A184
«Diário da jornada, que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro desde o Rio de Janeiro
até a cidade de São Paulo, e desta até as Minas no ano 1717». In: RPHAN
(3) 1939: 295A316.
«Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jorA
nada que fez o Senhor Mestre de Campo, Regente e GuardaAmor Inácio CorA
reia Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do Capote às conquistas
do Sertão, até se tornar a recolher à mesma sua dita fazenda do Capote etc.
etc. etc.». In: Anais da Biblioteca Nacional (108) 1988: 53A113.
«Retrato e reverso do Reino de Portugal». In: Nova História (1) 1984: 83A143.
Trindade, Dom Frei José da Santíssima. Visitas pastorais (1821 1825). Belo HoA
rizonte: Fundação João Pinheiro, 1998.

c) Viajantes
Burmeister, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Ja
neiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980 (1853).
Burton, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Belo Horizonte: ItaA
tiaia, 1976 (1869).
Da Silva, Danuzio G. B. (org.) Os diários de Langsdorff. Campinas/Rio de JaA
neiro: Associação Internacional Langsdorff/Fiocruz, 1997.
De Courcy, Ernest. Seis semanas nas Minas de Ouro do Brasil. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1997.
272

Eschwege, Wilhelm L. v. Journal von Brasilien. Weimar: Gr. h. S. pr. LandesAInA


dustrieAComptoirs, 1818.
– – –. Pluto brasiliensis. São Paulo: Cia Editora Nacional, s/d (1853).
– – –. Brasil, novo mundo. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1996.
Expilly, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. São Paulo: Cia. Editora NacioA
nal, 1935.
Freireyss, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.
Kidder, D. P. e Fletcher, J. C. O Brasil e os brasileiros. São Paulo: Cia Editora
Nacional, 1941.
Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.
Pohl, João Emanuel. Viagens no interior do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto NaA
cional do Livro, 1951 (1817A1821).
Ribeyrolles, Charles. Brasil pitoresco. São Paulo: Martins, 1976.
Saint Hilaire, Auguste de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas
Gerais. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1938 (1830).
– – –. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1941 (1833).
– – –. Viagem às nascentes do rio São Francisco e pela província de Goiás. São
Paulo: Cia Editora Nacional, 1944 (1847).
– – –. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974.
Spix, Johann Baptist v. e Martius, Carl Friedrich Philipp v. Viagem pelo Brasil.
São Paulo: Melhoramentos, 1976 (1823).
Tschudi, Johann Jakob v. Reisen durch Südamerika. Stuttgart: Brockhaus, (1971)
1866.

d) Tratados e crônicas
Antonil, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e Minas. São
Paulo: Melhoramentos, 1976 (1711).
Eça, Mathias Aires Ramos da Silva. Reflexões sobre a vaidade dos homens, ou
discursos morais sobre os efeitos da vaidade. Lisboa, 1752.
Mentelle, M. Géographie comparée; ou Analyse de la géographie ancienne et
moderne des peuples de tous les pays et de tous les âges. Portugal moderne.
Paris, 1784.
Pereira, Nuno Marques. Compêndio narrativo do Peregrino da América. Rio de
Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1988 (1728).
Viçoso, Dom Antônio Ferreira. Catecismo de Mariana. Paris: Garnier, s/d.

e) Beletrística
Alencar, José de. Obra Completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958.
273

Andrade, Carlos Drummond de. Passeios na Ilha. Rio de Janeiro: Simões, 1952.
– – –. Menino antigo. Brasília/Rio de Janeiro: José Olympio/MEC, 1973.
– – –. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
Cunha, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d (1902).
Dostojewski, Fjodor. Der Spieler. Späte Prosa. Berlin: AufbauAVerlag, 1990.
Gonzaga, Tomás Antônio. Cartas chilenas. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
Guimarães, Alphosus de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.
Guimarães, Bernardo. O garimpeiro. São Paulo: Melhoramentos, 1962.
– – –. O ermitão do Muquém. Rio de Janeiro: Ediouro, 1964.
– – –. O seminarista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1969.
– – –. História e tradições da província de Minas Gerais. Rio de Janeiro: CiviliA
zação Brasileira, 1976.
Lanza, Jovelino. Minha Sete Lagoas. Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 1999.
Leitão, Rubem Alfredo. «Páginas de casa». In: MourãoAFerreira, David e Seixo,
Maria Alzira (orgs). Portugal – A terra e o homem. Lisboa: Calouste GulA
bekian, 1980.
Meyer Clason, Curt. «Nachwort». In: Rosa, João Guimarães. Sagarana. Köln:
Kiepenheuer & Witsch, 1982.
Rosa, João Guimarães. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
– – –. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
– – –. Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
– – –. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
– – –. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Zweig, Stefan. Brasilien. Ein Land der Zukunft. Leipzig: Insel, 1994.

f) Anuários, dicionários e enciclopédias


Bächtold Stäubli, H. und Hoffmann Krayer, E. (Hrsg.) Handwörterbuch des
deutschen Aberglaubens. Berlin: Walter de Gruyter, 1987 (1927A1942).
Barbosa, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Ge
rais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995 (1971).
Brunner, O., Conze, W. und Koselleck, R. (Hrsg.) Geschichtliche Grundbegrif
fe. Stuttgart: KlettACotta, 1990.
Cancik, H., Gladigow, B. und Kohl, KAH. (Hrsg.) Handbuch religionswissen
schaftlicher Grundbegriffe. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1988A1998.
Eliade, Mircea (ed.) The Encyclopedia of Religion. New York: Macmillan, 1987.
Fahlbusch, Erwin u.a. (Hrsg.) Evangelisches Kirchenlexikon. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1996.
Ferreira, Jurandyr Pires (coord.) Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio
de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1958.
Galling, Kurt u.a. (Hrsg.) Die Religion in Geschichte und Gegenwart. Tübingen,
J. C. B. Mohr, 1962³.
Lefort, Monsenhor José do Patrocínio. Anuário Eclesiástico da Diocese de Cam
panha. Campanha, (vols. VIIIAXXIV) 1946A1962.
274

Machado, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa:


Confluência, 1967.
Morais e Silva, Antônio. Grande dicionário da língua portuguesa. Lisboa: ConA
fluência, 1950 (vol. II).
Ranke, Kurt (Hrsg.) Enzyklopädie des Märchens. Berlin/New York: Walter de
Gruyter, 1975A1991.
Senna, Nelson de (dir.) Annuario Historico Chorografico de Minas Gerais (vol.
III). Belo Horizonte, 1909.
Sills, David L. (ed.) International Encyclopedia of the Social Sciences. New
York: Macmillan & Free Press, 1972 (1968).
Silva, Maria B. Nizza da (org.) Dicionário da história da colonização portuguesa
no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994.
Steward, Julian (ed.) Handbook of South American Indians. New York: Cooper
Square, 1963.
Vainfas, Ronaldo (org.) Dicionário do Brasil Colonial (1500 1808). Rio de JaA
neiro: Objetiva, 2000.
Vários autores. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa/Rio de
Janeiro: Editorial Enciclopédia, s/d.

g) Literatura especializada
Abreu, Martha. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio
de Janeiro. 1830 1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Adam, A. M. «On the methods of history». In: Philosophy of the Social Sciences
29 (2) 1999: 315A324.
Aguiar, Marcos M. de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana
no Brasil Colonial. São Paulo: tese de doutorado em história, Universidade
de São Paulo, 1999.
Alcaide, Elisa L. «El debate epistemológico sobre la historia de la iglesia». In:
EIA 2(24) 1998: 205A216.
Algranti, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da Colônia. Condição fe
minina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750 1822.
Brasília/Rio de Janeiro: Edunb/José Olympio, 1999 (1993).
Almeida, Carlos A. F. de. «Território paroquial no EntreADouroAeAMinho. Sua saA
cralização». In: Nova Renascença 2(1) 1981: 202A212.
Almeida, Marcelina das Graças de. Fé na modernidade e tradição na fé: a cate
dral da Boa Viagem e a capital. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em
história, Universidade Federal de Minas Gerais, 1993.
– – –. »Belo Horizonte: 100 anos – história e historiografia». In: LPH – Revista de
História (6) 1996: 230A234.
Altermatt, Urs. «Prolegomena zu einer Alltagsgeschichte der katholischen LeA
benswelt». In: ThQ 4 (173) 1993: 259A271.
– – –. «Volkskatholizismus». In: Evangelisches Kirchenlexikon. Göttingen: VanA
denhoeck & Ruprecht, 1996.
275

Anastasia, Carla. Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira


metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
– – – . «Salteadores, bandoleiros e desbravadores nas Matas Gerais da MantiA
queira (1783A1786)». In: Del Priore, M. (org.) Revisão do paraíso. Rio de
Janeiro: Campus, 2000.
Araújo, Emanuel. «Tão vasto, tão ermo, tão longe: o sertão e o sertanejo nos
tempos coloniais». In: Del Priore, M. (org.) Revisão do paraíso. Rio de JaA
neiro: Campus, 2000.
Archila, Mauricio. «Es aún posible la búsqueda de la verdad? Notas sobre la
(nueva) historia cultural». In: Anuario Colombiano de Historia Social y de
la Cultura (26) 1999: 251A285.
Arinos, Affonso. Lendas e tradições brasileiras. Rio de Janeiro: F. Briguiet &
Cia, 1937.
Augé, Marc. Não lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas: Papirus, 1994 (1992).
– – –. «Espacio y alteridad». In: Revista de Occidente (140) 1993: 13A34.
– – –. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Rio de Janeiro: BerA
trand Brasil, 1997.
Ávila, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Textos do século do ouro e as
projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: UFMG, 1967.
Azevedo, Aroldo de. «Vilas e cidades do Brasil Colonial». In: Anais da Associa
ção dos Geógrafos Brasileiros 9(1) 1957: 83A168.
– – –. «Arraiais e corrutelas». In: Boletim Paulista de Geografia (27) 1957: 3A26.
– – –. »Embriões de cidades brasileiras». In: XVIIIe Congrès International de
Géographie. Rio de Janeiro, 1965 (tome III).
Azevedo, Aroldo de (org.) Brasil. A terra e o homem. São Paulo: Cia. Editora
Nacional & Edusp, 1970.
Azevedo, Thales de. Povoamento da cidade de Salvador. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1955 (1950).
– – –. O catolicismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura,
1955.
Azzi, Riolando. A cristandade colonial. Mito e ideologia. Petrópolis: Vozes,
1987.
Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (1957).
Baczko, Bronislaw. Lumières de l’utopie. Paris: Payot, 1978.
Baker, P., Newman, M. e Frake, C. «Ecology and Anthropology: a symposium».
In: American Anthropologist (64) 1962: 15A59.
Balandier, Georges. «Le sacré par le détour des sociétés de la tradition». In: Ca
hiers Internationaux de Sociologie (100) 1996: 5A12.
Balme, Christopher. «Inventive syncretism. The concept of the syncretic in interA
cultural discourse». In: Stummer, P. O and Baume, C. (ed.) Fusion of cul
tures? Amsterdam: Rodopi, 1996.
Barbosa, Waldemar de Almeida. A decadência das Minas e a fuga da mineração.
Belo Horizonte: UFMG, 1971.
276

Barker, Eileen. «The scientific study of religion? You must be joking!» In: Jour
nal for the Scientific Study of Religion 34(3) 1995: 287A310.
Baroja, Julio Caro. «La ciudad y el campo, o una discusión sobre viejos lugares
comunes». In: RDTP (15) 1959: 381A400.
– – –. De la superstición al ateísmo. Meditaciones antropológicas. Madrid: TauA
rus, 1974.
– – –. «Sobre el sincretismo religioso». In: RDTP (34) 1978: 3A22.
– – –. «Santos y campesinos». In: Baroja, J. C. Ensayos sobre la cultura popular
española. Madrid: Dosbe, 1979.
– – –. «La interpretación históricoAcultural del paisage». In: RDTP (37) 1982: 3A
55.
– – –. «Arte visoria». In: RDTP (48) 1987: 7A48.
Barthes, Roland. Oeuvres complètes (1942 1965). Paris: Du Seuil, 1993.
Bastide, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1971
(1960).
Bastos, Wilson de Lima. Folclore no setor religião em Juiz de Fora. Juiz de
Fora: Paraibuna, 1973.
Bauer, Dieter R. «Heiligkeit des Landes: ein Beispiel für die Prägekraft der
Volksreligiosität». In: Dinzelbacher, P. und Bauer, D. R. (Hrsg.) Volksreligi
on im hohen und späten Mittelalter. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1990.
Baumann, Hermann et Westermann, Diedrich. Les peuples et les civilizations
de l’Afrique. Paris: Payot, 1970.
Bausinger, Hermann. Formen der «Volkspoesie». Berlin: Erich Schmidt, 1980.
Bendocchi Alves, Débora. «A imagem do Brasil para os emigrantes alemães
através do ‹Illustrierte Zeitung› de Leipzig: 1844A1869». In: Zeuske, M. y
Schmieder, U. (eds). Regiones europeas y Latinoamérica (siglos XVIII y
XIX). Frankfurt: Vervuert, 1999.
Benz, Ernst. Die Vision. Erfahrungsformen und Bilderwelt. Stuttgart: Ernst Klett,
1969.
– – –. Beschreibung des Christentums. Eine historische Phänomenologie. MünA
chen: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1975.
– – –. «Norm und Heiliger Geist in der Geschichte das Christentums». In: Eranos
Jahrbuch (43) 1977: 137A182.
Beozzo, José O. «Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada». In:
REB 37(148) 1977: 741A758.
Beozzo, José O. (et alii). Para uma história da Igreja na América Latina. O de
bate metodológico. Petrópolis: Vozes, 1986.
Berger, Peter and Luckmann, Thomas. «Sociology of religion and sociology of
knowledge». In: Social Research (47) 1963: 417A427.
– – –. «Secularization and pluralism». In: IJRS (2) 1966: 73A84.
– – –. Modernität, Pluralismus und Sinnkrise. Die Orientierung des modernen
Menschen. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 1995.
Berger, Peter, Berger, Brigitte and Kellner, Hansfried. The homeless mind.
Harmondsworth: Penguin Books, 1974.
277

Bernardes, Nilo. «Fisionomia da terra». In: Cesar, G. (org.) Minas Gerais – Terra
e povo. Porto Alegre: Globo, 1970.
Berner, Ulrich. «Der Begriff ‹Synkretismus› – ein Instrument historischer
Erkenntnis?». In: Saeculum (30) 1979: 68A85.
Blasenheim, Peter L. «As ferrovias de Minas Gerais no século dezenove». In:
Locus 2 (2) 1996: 81A110.
Blehr, Otto. «FolkAbelief as a religious phenomenon». In: Moser, D.AR. (Hrsg.)
Glaube im Abseits. Beiträge zur Erforschung des Aberglaubens. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1992.
Bloch, Ernst. Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt: Suhrkamp, 1982 (1959).
Blümmel, MariaAVerena. «Bauplatzlegende». In: EM, 1. Band, 1975.
Boglioni, Pierre. «Some methodological reflections on the study of the medieval
popular religion». In: JPC (3) 1977: 697A705.
Bollnow, Otto F. Mensch und Raum. Stuttgart: Kohlhammer, 1997 (1963).
Boschi, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política coloniza
dora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
Boschi, Caio César et alii. Evolução urbana e municipalismo em Portugal e no
Brasil. Anais do Primeiro Colóquio de Estudos Históricos Brasil Portugal.
Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994.
Botelho, Tarcísio Rodrigues. População e nação no Brasil do século XIX. São
Paulo: tese de doutorado em história, Universidade de São Paulo, 1998.
Bourdieu, Pierre. «La maison ou le monde renversé». In: Bourdieu, P. Le sens
pratique. Paris: Minuit, 1980.
– – –. «Sociologues de la croyance et croyances de sociologues». In: Bourdieu, P.
Choses dites. Paris: Minuit, 1987.
Bourdieu, Pierre & Raphael, Lutz. «Über die Beziehungen zwischen Geschichte
und Soziologie in Frankreich und Deutschland». In: GG (22) 1996: 62A89.
Boxer, C. R. A era de ouro do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1963.
Brásio, Pe. Antônio. «O problema da coroação dos reis do Congo». In: Revista
Portuguesa de História (12) 1969: 351A381.
Braudel, Fernand. «Historia e sociología». In: Gurvich, G. (org.) Tratado de so
ciología. Buenos Aires: Kapelusz, 1962.
– – –. História e ciências sociais. Lisboa: Presença, 1972.
Brauneck, Manfred. Religiöse Volkskunst. Köln: DuMont, 1978.
Breuer, Stefan. «Herrschaftsstruktur und städtischer Raum». In: AfKG (77) 1995:
135A164.
– – –. «Nichtlegitime Herrschaft». In: Nippel, W. (Hrsg.) Max Weber und die
Stadt im Kulturvergleich. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2000.
Brown, Peter. The cult of the saints. It’s rise and function in Latin Christianity.
Chicago: University of Chicago Press, 1981.
Brunner, Karl. «Virtuelle und wirkliche Welt. Umweltgeschichte und MentaliA
tätsgeschichte». In: Spindler, K. (Hrsg.) Mensch und Natur im mittelalterli
chen Europa. Flagenfurt: Wieser, 1998.
278

Burke, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras,
1995 (1978).
– – –. History and social theory. Ithaca: Cornell University Press, 1993.
Büttner, Manfred. «Von der Religionsgeographie zur Geographie der GeistesA
haltung?» In: Die Erde (107) 1976: 300A329.
– – –. «Geosophie, geographisches Denken und Entdeckungsgeschichte, ReliA
gionsgeographie und Geographie der Geisteshaltung». In: Die Erde (111)
1980: 37A55.
– – –. «On the history and philosophy of the geography of religion in Germany».
In: Religion (10) 1980: 86A119.
– – –. «Zur Geschichte und Sytematik der Religionsgeographie». In: Geographia
Religionum (1) 1985: 13A121.
– – –. «Religionsgeographie bzw. Geographie der Geisteshaltung, ein Teilbereich
der (SozialA) Geographie, und/oder...?». In: Büttner, M. (Hrsg.) Wissenschaf
ten und Musik unter dem Einfluß einer sich ändernden Geisteshaltung. BoA
chum: Brockmeyer, 1992.
Byrne, Peter. «The study of religion: neutral, scientific, or neither?» In: MTSR 9
(4) 1997: 339A351.
Caillois, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988 (1939).
Campos, Adalgisa Arantes. A terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a
São Miguel e Almas. São Paulo: tese de doutorado em história, Universidade
de São Paulo, 1994.
– – –. «A visão nobiliárquica nas solenidades do setecentos mineiro». In: LPH –
Revista de História (6) 1996: 111A122.
– – –. «A mentalidade religiosa do setecentos: o Curral del Rei e as visitas religiA
osas». In: VH (18) 1997: 11A28.
Cândido, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio,
1964.
Canevacci, Massimo. Sincretismos. Uma exploração das hibridações culturais.
São Paulo: Studio Nobel, 1996.
Cardoso, Ciro Flamarion. «Repensando a construção do espaço». In: RHR 3(1)
1998: 7A23.
Carrara, Ângelo Alves. «O ‹sertão› no espaço econômico da mineração». In:
LPH – Revista de História (6) 1996: 40A48.
– – –. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674 1807). Rio de
Janeiro: tese de doutorado em história, Universidade Federal do Rio de JaA
neiro, 1997.
– – –. «Paisagens de um grande sertão: a margem esquerda do médioASão FranA
cisco nos séculos XVIII a XX». In: Ciência e Trópico 29 (1) 2001: 61A123.
Carrato, José Ferreira. «A crise dos custumes nas Minas Gerais do século
XVIII». In: Revista de Letras (Assis) (3) 1962: 218A248.
– – –. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo: Cia Editora NaciA
onal, 1963.
279

– – –. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Cia Editora


Nacional, 1968.
– – –. «Medievalidades mineiras nos tempos da Inconfidência: hospícios e romaA
rias». In: Revista do Departamento de História da Universidade Federal de
Minas Gerais (9) 1989: 121A129.
Carvalho, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
Carvalho, Marcos B. de. «Diálogos entre as Ciências Sociais: um legado inteA
lectual de Friedrich Ratzel (1844A1904)». In: Biblio 3w. Revista Bibliográ
fica de Geografía y Ciencias Sociales (34) 1997.
– – –. «Ratzel: releituras contemporâneas. Uma reabilitação?». In: Biblio 3w. Re
vista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales (25) 1997.
Carvalho, Orlando. A multiplicação dos municípios em Minas Gerais. Rio de JaA
neiro: Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 1957.
Cascudo, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Brasília: Instituto
Nacional do Livro, 1972.
– – –. Superstição no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1985.
Cassirer, Ernst. Philosophie der symbolischen Formen. Darmstadt: WissenA
schaftliche Buchgesellschaft, 1958 (1923).
– – –. Symbol, Technik, Sprache. Aufsätze aus den Jahren 1927 1933. Hamburg:
Felix Meiner, 1985.
– – –. Zur Logik der Kulturwissenschaften. Darmstadt: Wissenschaftliche BuchA
gesellschaft, 1994 (1942).
Chamon, Carla Simone. «O bem da alma: a terça e a tercinha do defunto nos inA
ventários do século XVIII da comarca do Rio das Velhas». In: VH (12)
1993: 58A65.
Chartier, Roger. «Zeit der Zweifel. Zum Verständnis gegenwärtiger GeschichtsA
schreibung». In: Conrad, C. und Kessel, M. (Hrsg.) Geschichte schreiben in
der Postmoderne. Beiträge zur aktuellen Diskussion. Stuttgart: Reclam,
1994.
Chaunu, Pierre. Histoire, Science Sociale. La durée, l’espace et l’homme a
l’époque moderne. Paris: Société d’Édition d’Enseignement Supérieur,
1974.
Colpe, Carsten (Hrsg.) Die Diskussion um das «Heilige». Darmstadt: WissenA
schaftliche Buchgesellschaft, 1977.
Colpe, Carsten. «Das Heilige». In: HrwG , 3. Band, 1993.
Comblin, José. «Para uma tipologia do Catolicismo no Brasil». In: REB 28 (1)
1968: 46A73.
Conrad, Robert E. (ed.) Children of God’s fire. A documentary history of black
slavery in Brazil. Priceton: Priceton University Press, 1983.
Corrêa, Roberto L. «Espaço, um conceitoAchave da geografia». In: Castro, I. E.,
Gomes, P. C. e Corrêa, R. L. (orgs.) Geografia: conceitos e temas. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
280

Costa, Alexandre de Carvalho. Lendas – Historietas – Etimologias populares e


outras etimologias respeitantes às cidades, vilas, aldeias e lugares de Por
tugal Continental. Porto: Civilização, 1959.
Costa, Iraci Del Nero da. «Fundamentos econômicos da ocupação e povoamento
de Minas Gerais». In: RIEB (24) 1982: 41A52.
Costa, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais. Belo Horizonte: BDMG,
1997.
Courville, Serge. «Esquisse du développement villageois au Québec: le cas de
l’aire seigneuriale entre 1760 et 1854». In: Cahiers de Géographie du Qué
bec 28 (73A74) 1984: 9A46.
Coutinho, Francisco A. «O modelo epistemológico de Paul Feyerabend e os eleA
mentos irracionais do progresso científico». In: Revista da Fundação Educa
cional Monsenhor Messias (5) 1998: 19A44.
D’Assumpção, Lívia Romanelli. «Considerações sobre a formação do espaço urA
bano setecentista nas Minas». In: Revista do Departamento de História da
Universidade Federal de Minas Gerais (9) 1989: 130A140.
Da Mata, Sérgio. «Diante de quem se inclinar?». In: RBEP (82) 1996: 159A179.
– – –. «Sacralização da política, politização do sagrado (quando a Igreja se desA
cortina)». In: VH (16) 1996: 142A157.
– – –. «Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas Colonial». In:
RH (136) 1997: 41A57.
– – –. «O sagrado e as formas elementares do espaço urbano mineiro (séculos
XVIIIAXIX)». In: Rhema 4(16) 1998: 11A43.
– – –. Resenha do livro de Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos. Uma revi
são histórica. In: EIA 2 (24) 1998: 353A359.
– – –. «Passado e presente da religião civil». In: VH (23) 2000: 180A204.
Da Matta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Guanabara,
1990 (1979).
– – –. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2000 (1984).
– – –. Explorações. Ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1986.
– – –. A casa e a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de JaA
neiro: Guanabara, 1987.
Daxelmüller, Christoph. «Volksfrömmigkeit». In: Brednich, R. (Hrsg.) Grundriß
der Volkskunde. Berlin: Dietrich Reimer, 2001.
De Toro, Fernando (ed.) Explorations on post theory: toward a third space. MaA
drid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 1999.
Deffontaines, Pierre. «Como se constituiu no Brasil a rede de cidades». In: Bole
tim Geográfico (14) 1944: 141A148; (15) 1944: 299A308.
– – –. Géographie et religions. Paris: Gallimard, 1948 (1947).
– – –. «Wert und Grenzen der religiösen Erklärung in der Geographie des MenA
schen». In: Diogène (2) 1953: 199A213.
– – –. «Le stade initial de la géographie urbaine est un stade religieux». In: XVIIIe
Congrès International de Géographie. Rio de Janeiro, 1965 (tome III).
281

Del Priore, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2000.
Delson, Roberta Marx. New towns for colonial Brazil. Spatial and social plan
ning in the Eighteenth century. Ann Arbor: University Microfilms InternaA
tional, 1979.
Delumeau, Jean (ed.) L’historien et la foi. Paris: Fayard, 1996.
Detienne, Marcel. Apollon – Le couteau à la main. Une approche expérimentale
du polythéisme grec. Paris: Gallimard, 1998.
Dias, Francisco Martins. Traços históricos e descriptivos de Bello Horizonte.
Bello Horizonte: Typographia Bello Horizonte, 1897.
Dias, Maria Vitória. Mato Dentro: viagem através dos tempos e contratempos da
história de Conceição. Belo Horizonte, 1994.
Diégues Júnior, Manuel. «A ‹fazenda› como ambiente de relações étnicas e de
cultura no Brasil». In: III Colóquio Internacional de Estudos Luso Brasilei
ros (Actas). Lisboa, 1957.
– – –. Áreas culturais do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais, 1960.
Diniz, Sílvio Gabriel. «Primeiras freguesias nas Minas de Ouro». In: RIHGMG
(8) 1961: 173A183.
Doren, Alfred. «Wunschräume und Wunschzeiten». In: Neusüss, A. (Hrsg.) Uto
pie. Begriff und Phänomen des Utopischen. Neuwied/Berlin: Luchterhand,
1968.
Dorn, Johann. «Beiträge zur Patrozinienforschung». In: AfKG (13) 1917: 9A49.
– – –. «Patrozinienforschung und Ortsnamenkunde». In: Zeitschrift für Ortsna
menforschung (8) 1932: 3A8.
Dornas Filho, João. Achegas de etnografia e folclore. Belo Horizonte: Imprensa
Publicações, 1972.
Dracklé, Dorle. «‹Die Frau gehört ins Haus und der Mann auf die Straße›. Zur
kulturellen Konstruktion von Geschlechterdifferenz im Alentejo (Portugal)».
In: HauserASchäublin, B. und RöttgerARössler, B. (Hrsg.) Differenz und Ge
schlecht. Berlin: Dietrich Reimer, 1998.
Dreher, Martin N. «Imigração alemã e protestantismo em Minas Gerais, ao longo
do século XIX». In: Rhema 16 (4) 1998: 77A104.
Droogers, André and Siebers, Hans. «Popular religion and power in Latin AmeA
rica: an introduction». In: Droogers, A., Huizer, G. and Siebers, H. (eds.)
Popular power in Latin American religions. Saarbrücken: Breitenbach,
1991.
Dupront, Alphonse. Du sacré. Croisades et pèlegrinages. Images et langages.
Paris: Gallimard, 1987.
Durand, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod,
1984 (1969).
Durand, Yves. «À propos du symbolisme du refuge – realités de l’image et transA
formations du sens». In: Circé. Cahiers du Centre de Recherche sur
l’Imaginaire (2) 1970: 179A219.
282

Durkheim, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas,


1989 (1912).
Duvignaud, Jean. Lieux et non lieux. Paris: Galilée, 1977.
Dux, Günther. «Ursprung, Funktion und Gehalt der Religion». In: IJRS (8) 1973,
pp. 6A67.
– – –. Die Logik der Weltbilder. Frankfurt: Suhrkamp, 1990 (1982).
– – –. Die Spur der Macht im Verhältnis der Geschlechter. Frankfurt: Suhrkamp,
1997 (1992).
Ehrich, R. W. and Henderson, G. M. «Culture area». In: IESS. Vol. 3, 1972.
Eisenstadt, S. N. «Culture, religions and development in North American and
Latin American civilizations». In: International Social Science Journal (134)
1992: 593A606.
Eliade, Mircea. The sacred and the profane. New York: Harper, 1961 (1957).
– – –. De Zalmoxis à Gengis Khan. Paris: Payot, 1970.
– – –. Die Religionen und das Heilige. Darmstadt: Wissenschaftliche BuchgeA
sellschaft, 1976.
Ennes, Ernesto. As guerras nos Palmares. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1938.
Espírito Santo, Moisés. A religião popular portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvin,
1990 (1984).
– – –. Origens orientais da religião popular portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvin,
1988.
Evans Pritchard, E. E. Nuer Religion. Oxford: Clarendon, 1956.
– – –. Theories of primitive religion. Oxford: Clarendon, 1965.
Fadel, Barbara. Clero e sociedade: Minas Gerais, 1745 1817. São Paulo: tese de
doutorado em história, Universidade de São Paulo, 1994.
Febvre, Lucien. La terre et l’évolution humaine. Paris: Albin Michel, 1970
(1922).
– – –. Der Rhein und seine Geschichte. Frankfurt: Campus, 1995 (1925).
– – –. Le problème de l’incroyance au 16e siècle. Paris: Albin Michel, 1988
(1942).
– – –. «Frontière – Wort und Bedeutung». In: Raulff, U. (Hrsg.) Lucien Febvre.
Das Gewissen des Historikers. Berlin: Klaus Wagenbach, 1988.
Fernandes, Gonçalves. Religião, crença e atitude. Recife: Instituto Joaquim NaA
buco, 1963.
Ferreira, Amauri Carlos. As aparições em Piedade dos Gerais e a construção do
sujeito religioso. São Paulo: dissertação de mestrado em Ciência da ReliA
gião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995.
Ferreti, Sérgio F. Repensando o sincretismo. São Paulo/São Luís: Edusp/FaA
pema, 1995.
– – –. «Notas sobre o sincretismo religioso no Brasil – modelos, limitações, posA
sibilidades». In: Tempo 6 (11) 2001: 13A26.
Fiedler, Hermann. «Bausteine zur Wohnkultur in Portugal». In: Aufsätze zur
portugiesischen Kulturgeschichte (1) 1960: 166A182.
283

Figueiredo, Betânia Gonçalves. «Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao


longo do século XIX». In: História, Ciências, Saúde 6 (2) 1999: 277A291.
Figueiredo, Luciano R. de A. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da
mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro/Brasília: José
Olympio/Edunb, 1993.
Firth, Raymond. Religion. A humanist interpretation. London: Routledge, 1996.
Fitzgerald, Timothy. «A critique of ‹religion› as a crossAcultural category». In:
MTSR 9 (2) 1997: 91A110.
Flexor, Maria Helena O. «Núcleos urbanos planeados do século XVIII e a estraA
tégia de civilização dos índios do Brasil». In: Silva, M. B. N. da (org.) Cul
tura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995.
Flusser, Vilém. Dinge und Undinge. Phänomenologische Skizzen. München: Carl
Hanser, 1993.
– – –. «Brasilianische Städte». In: Flusser, V. Brasilien oder die Suche nach dem
neuen Menschen. Für eine Phänomenologie der Unterentwicklung. MannA
heim: Bollmann, 1994.
– – –. Vom Subjekt zum Projekt. Menschwerdung. Mannheim: Bollmann, 1994.
– – –. Fenomenologia do brasileiro. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.
Flynn, Thomas R. «Foucault and the spaces of history». In: The Monist 74 (2)
1991: 165A186.
Fonseca, Cláudia D. Mariana: gênese e transformação de uma paisagem cultu
ral. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em geografia, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1995.
– – –. «O espaço urbano de Mariana: sua formação e suas representações». In:
VVAA. Termo de Mariana. História e documentação. Ouro Preto: Editora
da UFOP, 1998.
Foucault, Michel. «Des espaces autres». In: Foucault, M. Dits et écrits. 1954
1988. Paris: Gallimard, (tome IV) 1994.
– – –. «Space, power and knowlegde». In: During, S. (ed.) The cultural studies
reader. London: Routledge, 1993.
Freire, Plínio Gomes. Um herege vai ao paraíso. Cosmologia de um ex colono
condenado pela Inquisição (1680 1744). São Paulo: Cia das Letras, 1997.
Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1995 (1933).
– – –. Sobrados e mucambos. Lisboa: Livros do Brasil, s/d (1936).
– – –. Assombrações do Recife velho. Rio de Janeiro: Condé, 1955.
– – –. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo, 1971.
Frijhoff, W. Th. M. «Official and popular religion in Christianity. The late
MiddleAAges and Early Modern Times (13th – 18th centuries)». In: Vrijhof, P.
H. and Waardenburg, J. (ed.) Official and popular religion. The Hague:
Mouton, 1979.
Frobenius, Leo. Kulturgeschichte Afrikas. Wuppertal: Peter Hammer, 1998
(1933).
Furtado, Júnia Ferreira. «Desfilar: a procissão barroca». In: RBH 17(33) 1997:
251A279.
284

Fustel de Coulanges, Numa Denis. La cité antique. Paris: Hachette, s/d (1898).
Gadamer, HansAGeorg. Wahrheit und Methode. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1960.
– – –. «Reflexionen über das Verhältnis von Religion und Wissenschaft». In: GaA
damer, HAG. Gesammelte Werke. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1993 (Band 8).
Gaio Sobrinho, Antônio. «Devoções coloniais mineiras a partir de São João delA
Rei». Mimeografado, 1997.
Gakenheimer, Ralph A. «The early colonial mining town: some special opportuA
nities for the study of urban structure». In: XXXIX Congresso Internacional
de Americanistas – Actas y Memorias. Lima, (vol. II) 1972.
Gauchet, Marcel. Le désenchantement du monde. Paris: Gallimard, 1985.
Geary, Patrick. «L’humiliation des saints». In. Annales (34) 1979: 27A42.
Gehlen, Arnold. Urmensch und Spätkultur. Bonn: Athenäum, 1956.
– – –. «Über kulturelle Kristallisation». In: Gehlen, A. Studien zur Anthropologie
und Soziologie. Neuwied: Luchterhand, 1963.
Gehlen, Rolf. «Raum». In: HrwG. 4. Band, 1998.
Gehrts, Heino. «Der Wald». In: Janning, J. und Gehrts, H. (Hrsg.) Die Welt im
Märchen. Kassel: Röth, 1984.
Gernet, Jacques. Primeras reacciones chinas al cristianismo. México: Fondo de
Cultura Económica, 1989.
Gieryn, Thomas F. «A space for place in sociology». In: Annual Review of So
ciology (26) 2000: 463A496.
Godinho, Vitorino Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. LisA
boa: Arcádia, 1971.
Gomes, Flávio dos Santos. «Seguindo o mapa das minas: plantas e quilombos
mineiros setecentistas». In: Estudos Afro Asiáticos (29) 1996: 113A142.
Gomes, Nubia Pereira de Magalhães. Crendices e superstições do pescador mi
neiro. [Juiz de Fora?], s/d.
Gomes de Brito, Bernardo (org.) História trágico marítima. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1998 (1735A1736).
Goodwin Jr., James W. «A princesa de Minas». A construção de uma identidade
pelas elites juizforanas. Belo Horizonte: dissertação de mestrado em históA
ria, Universidade Federal de Minas Gerais, 1996.
Goody, Jack. «Religion and ritual: the definitional problem». In: British Journal
of Sociology (12) 1961: 142A164.
Granet, Marcel. O pensamento chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997
(1934).
– – –. Études sociologiques sur la Chine. Paris: Presses Universitaires de France,
1953.
Grathoff, Richard. Milieu und Lebenswelt. Frankfurt: Suhrkamp, 1995 (1989).
Guelke, Leonard. «The relations between geography and history reconsidered».
In: HT 36 (2) 1997: 216A234.
Guimarães, Alisson (coord.) Estudo geográfico do Vale do Jequitinhonha. Belo
Horizonte: Grupo de Trabalho para a Pecuária, 1960.
285

Guimarães, Carlos Magno. A negação da ordem escravista: quilombos em Mi


nas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988.
– – –. «O quilombo do Ambrósio: lenda, documentos e arqueologia». In: EIA 16
(1A2) 1990: 161A174.
Günther, Horst. «Historiker ohne Geschichte». In: Die Neue Rundschau 105 (1)
1994: 31A40.
Gurjewitsch, Aaron. Das Weltbild des mittelterlichen Menschen. München: C. H.
Beck, 1986 (1972).
– – –. Das Individuum im europäischen Mittelalter. München: C. H. Beck, 1994.
Gutersohn, Heinrich. «A região central de Minas Gerais. Uma contribuição à
geografia cultural do Brasil». In: Boletim Geográfico (118) 1954: 5A49.
Guth, Klaus. «Die Wallfahrt – Ausdruck religiöser Volkskultur». In: Ethnologia
Europaea (16) 1986: 59A82.
Haase, Carl. «Stadtbegriff und Stadtentstehungsschichten in Westfalen». In:
Haase, C. (Hrsg.) Die Stadt des Mittelalters. Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, (1. Band) 1978.
Habermas, Jürgen. Zur Logik der Sozialwissenschaften. Frankfurt: Suhrkamp,
1970.
– – –. «Glaube, Wissen – Öffnung». In: Süddeutsche Zeitung, 15.10.2001.
Hahn, Alois. «Zur Soziologie der Beichte und anderer Formen institutionalisierA
ter Bekenntnisse: Selbstthematisierung und Zivilisationsprozess». In Kölner
Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie (34) 1982: 408A434.
– – –. «Unendliches Ende: Höllenvorstellungen in soziologischer Perspektive».
In: Stierle, K. und Warning, R. (Hrsg.) Das Ende. Figuren einer Denkform.
München: Wilhelm Fink, 1996.
– – –. «Religiöse Dimension der Leiblichkeit». In: Hahn, A. Konstruktionen des
Selbst, der Welt und der Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp, 2000.
Halbwachs, Maurice. Morphologie sociale. Paris: Armand Colin, 1970 (1938).
Harmening, Dieter. Superstitio. Überlieferungs und theoriegeschichtliche Un
tersuchungen zur kirchlich theologischen Aberglaubensliteratur des Mittel
alters. Berlin: Erich Schmidt, 1979.
Harnack, Adolf von. Dogmengeschichte. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1991 (1889A
1891).
– – –. «Legenden als Geschichtsquellen». In: Harnack, A. v. Reden und Aufsätze.
Gieszen: J. Ricker’sche Verlagsbuchhandlung, 1904.
Haufe, Hans. «Die historische Stadt: Raumidentität und kulturelles Erbe in LaA
teinamerika». In: Riekenberg, M., Rinke, S. u. Schmidt, P. (Hrsg.) Kultur
Diskurs: Kontinuität und Wandel der Diskussion um Identitäten in Latein
amerika im 19. und 20. Jahrhundert. Stuttgart: HansADieter Heinz, 2001.
Heers, Jacques. La ville au Moyen Âge. Paisages, pouvoirs et conflits. Paris:
Fayard, 1990.
Heiler, Friedrich. Das Gebet. Eine religionsgeschichtliche und religionspsycho
logische Untersuchung. München: Ernst Reinhardt, 1920.
286

– – –. «The Madonna as religious symbol». In: Campbell, J. (ed.) The mystic vi


sion. Papers from the Eranos Yearbooks. Princeton: Princeton University
Press, 1968.
Helm, June. «The ecological approach in anthropology». In: American Journal of
Sociology (67) 1962: 630A639.
Hermann, Jacqueline. No reino do desejado. A construção do sebastianismo em
Portugal, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
Herskovits, Melville. Antropologia cultural. São Paulo: Mestre Jou, 1973.
Hertz, Robert. «Prééminence de la main droite». In: Hertz, R. Mélanges de so
ciologie religieuse et folklore. Paris: Félix Alcan, 1928.
Hirsch, Eric & O’Hanlon, Michael (eds.) The anthropology of landscape: pers
pectives on place and space. Oxford: Claredon Press, 1996.
Hoffmann Krayer, Eduard. «Die Volkskunde als Wissenschaft». In: Lutz, G.
(Hrsg.) Volkskunde. Ein Handbuch zur Geschichte ihrer Probleme. Berlin:
Erich Schmidt, 1958.
Hoheisel, Karl. «Religionsgeographie». In: HrwG, 1988, 1. Band, pp. 108A120.
– – –. «Religionsgeographie und Religionsgeschichte». In: Zinser, H. (Hrsg.) Re
ligionswissenschaft. Eine Einführung. Berlin: Dietrich Reimer, 1988.
Hoheisel, K. und Rinschede, G. «Raumwirksamkeit von Religionen und IdeoloA
gien». In: Praxis Geographie 19(9) 1989: 6A11.
Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1984 (1936).
– – –. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Cia das Letras, 1994 (1957).
Hölscher, Lucien. «Utopie». In: Brunner, O., Conze, W. und Koselleck, R.
(Hrsg.) Geschichtliche Grundbegriffe. Stuttgart: KlettACotta, (6. Band) 1990.
Honigsheim, Paul. «Max Weber in Heidelberg». In: König, R. & Winckelmann, J.
(Hrsg.) Max Weber zum Gedächtnis. Köln: Westdeutscher Verlag, 1963.
Honko, Lauri. Geisterglaube in Ingermanland. Helsinki: Academia Scientiarum
Fennica, 1962.
Hoornaert, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro. 1500 1800. PetrópoA
lis: Vozes, 1991 (1974).
– – –. «A Igreja no Brasil». In: Dussel, E. (org.) Historia liberationis: 500 anos da
Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992.
Hoornaert, Eduardo (org.) História da Igreja na América na América Latina e
no Caribe (1945 1995). O debate metodológico. Petrópolis: Vozes, 1995.
Hugger, Paul. «Volkskundliche GemeindeA und Stadtforschung». In: Brednich, R.
(Hrsg.). Grundriß der Volkskunde. Berlin: Dietrich Reimer, 2001.
Huizinga, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa: Ulisséia, s/d (1919).
– – –. Homo ludens. Köln: Pantheon, s/d (1938).
Hultkranz, Ǻke. «Ecology of religion: its scope and methodology». In: Honko,
Lauri (ed.). Science of Religion. Studies in methodology. The Hague:
Mounton, 1979.
287

Hunt, Lynn. «History beyond social theory». In: Carroll, D. (ed.). The states of
«theory». History, art, and critical discourse. New York: Columbia UniverA
sity Press, 1990.
Husserl, Edmund. Die Krisis des europäischen Menschentums und die Philoso
phie. Weinheim: Beltz Athenäum, 1995 (1935).
– – –. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie. Hamburg: Felix Meiner, 1996 (1936).
– – –. Die phänomenologische Methode. Ausgewählte Texte. Stuttgart: Reclam,
1985.
Jolles, André. Einfache Formen. Tübingen: Niemeyer, 1974 (1930).
Jung, Carl Gustav. «Das Wandlungssymbol in der Messe». In: Jung, C. G. Zur
Psychologie westlicher und östlicher Religion. Düsseldorf: WalterAVerlag,
1995.
Jungmann, Josef A. Symbolik der Katholischen Kirche. Stuttgart: Anton HierA
semann, 1960.
Kantor, Iris. «Notas sobre a aparência e visibilidade social nas cerimônias públiA
cas em Minas setecentista». In: Pós História (6) 1998: 163A174.
Klimkeit, HansAJoachim. «Das Phänomen der Grenze im mythischen Denken».
In: Benz, E. (Hrsg.) Die Grenze der machbaren Welt. Leiden: E. J. Brill,
1975.
Klöpper, Rudolf. «Der geographische Stadtbegriff». In: Schöller, P. (Hrsg.) All
gemeine Stadtgeographie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
1969.
Knoblauch, Hubert. «Für einen weiten Religionsbegriff». In: Ethik und Sozial
wissenschaften 6 (4) 1995: 468A470.
– – –. Religionssoziologie. Berlin: Walter de Gruyter, 1999.
Kocka, Jürgen. Sozialgeschichte. Begriff, Entwicklung, Probleme. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1986.
Konetzke, Richard. Die Indianerkulturen Altamerikas und die spanisch portu
giesische Kolonialherrschaft. Frankfurt: Fischer, 1995 (1956).
Kong, Lily. «Geography and religion: trends and prospects». In: PHG 14 (3)
1990: 355A371.
– – –. «Mapping ‹new› geographies of religion: politics and poetics in modernity».
In: PHG 25 (2) 2001: 211A233.
Koselleck, Reinhardt. «Über die Theoriebedürftigkeit der GeschichtswissenA
schaft». In: Schieder, T. & Gräubig, K. (Hrsg.) Theorieprobleme der Ge
schichtswissenschaft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1977.
– – –. «Raum und Geschichte». In: Koselleck, R. Zeitschichten. Studien zur Hi
storik. Frankfurt: Suhrkamp, 2000.
Künzel, Rudi. «Paganisme, syncrétisme et culture religieuse populaire au haut
Moyen Age». In: Annales (4A5) 1992: 1055A1069.
Kurutz, Gary F. «Popular culture on the golden shore». In: California History 79
(2) 2000: 280A315.
288

Lacoste, Yves. A geografia. Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.
Campinas: Papirus, 1993.
Lambert, Yves. «La ‹Tour de Babel› des définitions de la religion». In: Social
Compass 38 (1) 1991: 73A85.
Laterza Filho, Moacyr. «A plausibilidade dos fantasmas». In: Em Tese 2(2) 1998:
151A158.
Le Bras, Gabriel. «Un programme. La géographie religieuse». In: Le Bras, G.
Études de sociologie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France,
1956 (tome II).
Le Goff, Jacques. La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1981.
– – –. «Le désertAforêt dans l’Occident médiéval». In: Le Goff, J. L’Imaginaire
Médiéval. Paris: Gallimard, 1985.
Le Roy Ladurie, Emmanuel. Montaillou, village occitain de 1294 à 1324. Paris:
Gallimard, 1982.
Leach, Edmund. Sistemas políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Edusp, 1995
(1954).
– – –. Cultura e comunicação. A lógica pela qual os símbolos estão ligados. Rio
de Janeiro: Zahar, 1978 (1976).
Lecouteux, Claude. Démons et génies du terroir au Moyen Âge. Paris: Imago,
1995.
Lefebvre, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 1991 (1974).
Leiris, Michel. «Le sacré dans la vie quotidienne». In: Hollier, D. Le Collège de
Sociologie (1937 1939). Paris: Gallimard, 1995.
Leite, Mário. Paulistas e mineiros: plantadores de cidades. São Paulo: EdArt,
1961.
Leloup, Yves. Les villes du Minas Gerais. Paris: Université de Paris, 1970.
– – –. «Aspectos da urbanização». In: Cesar, G. (org.) Minas Gerais – Terra e
povo. Porto Alegre: Globo, 1970.
– – –. «Villes et organisation régionale dans le Minas Gerais». In: La régionalisa
tion de l’espace au Brésil. Seminaire International du CNRS. Paris: Éditions
du CNRS, 1971.
Lemos, Carlos. História da casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989.
Lévi Strauss, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1973 (1958).
Lima, Lana Lage da Gama. «A reforma tridentina do clero no Brasil colonial». In:
Congresso Internacional Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas –
Actas. Braga, 1993.
Lima Júnior, Augusto de. A capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte/São
Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978 (1940).
– – –. As primeiras vilas do ouro. Belo Horizonte: Santa Maria, 1962.
Lorenz, Chris. Konstruktion der Vergangenheit. Eine Einführung in die Ge
schichtstheorie. Köln: Böhlau, 1997.
– – –. «Comparative historiography: problems and perspectives». In: HT (38)
1999: 25A39.
289

Löw, Martina. Raumsoziologie. Frankfurt: Suhrkamp, 2001.


Lowenthal, David and Bowden, Martyn J. (ed.) Geographies of the mind. Essays
in historical geosophy. New York: Oxford University Press, 1976.
Luchiari, Maria T. «A categoria espaço na teoria social». In: Temáticas 4(7)
1996: 191A239.
Luckmann, Thomas. The invisible religion. The problem of religion in modern
society. New York: Macmillan, 1967.
– – –. Comment on «Malinovski magic: the riddle of the empty cell», by Karl E.
Rosengreen. In: Current Anthropology (17) 1976: 678A679.
– – –. «Säkularisierung – ein moderner Mythos». In: Luckmann, T. Lebenswelt
und Gesellschaft. Paderborn: Schöningh, 1980.
– – –. «Riten als Bewältigung lebensweltlicher Grenzen». In: Schweizerische
Zeitschrift für Soziologie (3) 1985: 535A550.
– – –. «Über die Funktion der Religion». In: Koslowski, P. (Hrsg.) Die religiöse
Dimension der Gesellschaft: Religion und ihre Theorien. Tübingen: J. C. B.
Mohr, 1985.
– – –. «Religion – Gesellschaft – Transzendenz». In: Höhn, H.AJ. (Hrsg.) Krise
der Immanenz. Religion an den Grenzen der Moderne. Frankfurt: Fischer,
1996.
Luhmann, Niklas. Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp,
1997.
– – –. Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 2000.
Lüthi, Max. Das europäische Volksmärchen. Tübingen: Francke, 1997 (1947).
Machado Filho, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1943.
Maffesoli, Michel. «La dynamique de l’apparence». In: L’Homme et la Société
(59A62) 1981: 3A10.
– – –. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996 (1990).
– – –. «Le rituel dans la vie sociale». In: Lambert, J.AC. (dir.) Roger Caillois. Té
moignages, études et analyses. Paris: De la Différence, 1991.
Malinowski, Bronislaw. Eine wissenschaftliche Theorie der Kultur. Frankfurt:
Suhrkamp, 1975 (1944).
Malpas, J. E. Place and experience. A philosophical topography. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.
Mannheim, Karl. Ideologie und Utopie. Bonn: Friedrich Cohen, 1929.
Martin, Hervé et Martin, Louis. «Croix rurales et sacralisation de l’espace». In:
Archives de Sciences Sociales des Religions 43(1) 1977: 23A38.
Martins, Helena Teixeira. Sedes de fazendas mineiras. Campos das Vertentes.
Séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 1998.
Martins Filho, Amilcar e Martins, Roberto B. «Slavery in a nonexport ecoA
nomy: nineteenthAcentury Minas Gerais revisited». In: HAHR 63 (3) 1983:
537A568.
Martins, Roberto B. e Martins, Maria do Carmo S. «As exportações de Minas
Gerais no século XIX». In: RBEP (58) 1984: 105A120.
290

Marx, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Edusp, 1989.
– – –. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Edusp & Nobel, 1991.
– – –. «Arraiais mineiros: relendo Sylvio de Vasconcellos». In: Barroco (15)
1992: 389A393.
Matthes, Joachim. «Was ist anders an anderen Religionen?». In: Bergmann, J.,
Hahn, A. und Luckmann, T. (Hrsg.) Religion und Kultur. Köln: WestdeutA
scher Verlag, 1993.
Mattos, Izabel M. de. «O projeto militarista do Rio Doce». Mimeografado, 2000.
– – –. «Temas para o estudo da história indígena em Minas Gerais». In: Cadernos
de História 5 (6) 2000: 5A16.
– – –. ‹Civilização› e resistência: revolta indígena no aldeamento missionário de
Itambacuri – 1893. Relatório científico apresentado ao doutorado em CiênA
cias Sociais da Universidade de Campinas, 2001.
Mauss, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.
Megale, Januário Francisco (org.) Max Sorre. São Paulo: Ática, 1984.
Megale, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. Petrópolis: VoA
zes, 1998.
Menezes, Furtado de. Igrejas e irmandades de Ouro Preto. Belo Horizonte: IEA
PHA, 1975.
Mensching, Gustav. «Synkretismus». In: RGG³. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1962.
Merton, Robert K. «Zur Sozialpsychologie des Wohnens». In: Atteslander, P. und
Hamm, B. (Hrsg.) Materialien zur Siedlungssoziologie. Köln: Kieperheuer
& Witsch, 1974.
Moerman, David. «The ideology of landscape and the theather of the state. Insei
pilgrimage to Kumano (1090A1220)». In: Japanese Journal of Religious Stu
dies 24(3A4) 1997: 347A374.
Monbeig, Pierre. «O estudo geográfico das cidades». In: Monbeig, P. Novos estu
dos de geografia humana brasileira. São Paulo, Difusão Européia do Livro,
1957.
– – –. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Polis, 1984
(1952).
Montero, Paula. «Utopias missionárias na América». In: Revista Sexta Feira.
Antropologia, artes, humanidades (5) 2001.
Moraes, Rubens Borba de. «Contribuição para a história do povoamento em São
Paulo até fins do século XVIII». In: Geografia (1) 1935: 69A87.
Morán, Emilio F. Adaptabilidade humana. Uma introdução à antropologia eco
lógica. São Paulo: Edusp, 1994.
Morgan, Lewis H. Houses and house life of the American aborigines. Chicago:
The University of Chicago Press, 1965 (1881).
Morse, Richard M. «Some characteristics of Latin American urban history». In:
The American Historical Review 17(2) 1962: 317A338.
– – –. A evolução das cidades Latino Americanas. São Paulo: Cebrap, 1975
Mott, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone,
1988.
291

– – –. «Modelos de santidade para um clero devasso: a propósito das pinturas do


Cabildo de Mariana, 1760». In: Revista do Departamento de História da
Universidade Federal de Minas Gerais (9) 1989: 96A120.
– – –. «O calunduAangola de Luzia Pinta: Sabará, 1739». In: Revista do IAC 2(1A
2) 1994: 73A82.
– – –. «Santos e santas no Brasil Colonial». In: VH (13) 1994: 44A66.
– – –. «Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu». In: Souza, L.
de M. e. (org.) História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada
na América Portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
Motta, Roberto. «La gestion sociologique du religieux: la formation de la théoloA
gie afroAbrésilienne». In: Most. Journal on Multicultural Societies 1(2) 1999
(www.unesco.org/most/v11n2mot.htm).
Müller, Werner. Die heilige Stadt. Roma quadrata, himmlisches Jerusalem und
die Mythe vom Weltnabel. Stuttgart: Kohlhammer, 1961.
Munford, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
Niethammer, Lutz. «Stadtgeschichte in einer urbanisierten Gesellschaft». In:
Schieder, W. & Sellin, V. (Hrsg.). Sozialgeschichte in Deutschland. GöttinA
gen: Vandenhoeck & Ruprecht, (2. Band) 1986.
Nishida, Kitaro. «Ortlogik und religiöse Weltanschauung». In: Nishida, K. Logik
des Ortes. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999.
Novinsky, Anita. «Ser marrano em Minas Colonial». In: RBH 21(40) 2001: 161A
176.
Oliveira, Pedro A. Ribeiro de. «A ambivalência política da religião popular». In:
REB (54) 1994: 413A426.
Omegna, Nelson. A cidade colonial. Instituto Nacional do Livro/Ibrasa: Brasília,
1971.
O’Neil, Mary R. «Superstition». In: ER. New York: Macmillan, 1987 (vol. 14).
Otto, Rudolf. Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und
sein Verhältnis zum Rationalen. München: C. H. Beck, 1997 (1917).
Paiva, Eduardo F. «A viagem insólita de um cristão das Minas Gerais: um docuA
mento e um mergulho no imaginário colonial». In: RBH 16(31A32) 1996:
353A363.
– – –. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. São Paulo: Anna
Blume, 1996.
Palazzolo, Frei Jacinto de. Nas selvas dos Vales do Mucurí e do Rio Doce. São
Paulo: Cia Editora Nacional, 1954.
Paraíso, Maria H. B. «Os botocudos e sua trajetória histórica». In: Cunha, M. C.
da (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998
(1992).
Passos, Zoroastro V. Em torno da história de Sabará. Rio de Janeiro, 1940.
Paula, Floriano P. de. «Vilas de Minas Gerais no período colonial». In: RBEP
(19) 1965: 275A284.
Pereira de Queiróz, M. I. «O catolicismo rústico no Brasil». In: RIEB (5) 1968:
103A123.
292

– – –. «O sitiante tradicional e a percepção do espaço». In: RIEB (15) 1974: 79A


96.
Pettazzoni, Raffaele. «The truth of myth». In: Dundes, A. (ed.) Sacred narrative.
Readings in the theory of myth. Berlekey: University of California Press,
1984.
Petzoldt, Leander (Hrsg.) Deutsche Volkssagen. München: C. H. Beck, 1978.
Petzoldt, Leander. «Magie und Religion». In: Dinzelbacher, P. und Bauer, D. R.
(Hrsg.) Volksreligion im hohen und späten Mittelalter. Paderborn: Ferdinand
Schöningh, 1990.
Phelps, Robert. «‹All hands have gone downtown›. Urban places in Gold Rush
California». In: California History 79 (2) 2000: 113A140.
Pierson, Donald. Cruz das Almas. A Brazilian village. Washinton: United States
Government Printing Office, 1951.
Pierucci, Antônio F. «Secularização em Max Weber». In: RBCS 13(37) 1998.
Plessner, Helmuth. Mit anderen Augen. Stuttgart: Reclam, 1982.
Popper, Karl. The poverty of historicism. London: Routledge/Kegan Paul, 1966
(1957).
Porto, Costa. O sistema sesmarial no Brasil. Brasília, Edunb, s/d (1965).
Potthast, B., Kohut, K. und Kohlhepp, G. (eds.) El espacio interior de América
del Sur. Frankfurt: Vervuert, 1999.
Pouyllau, Michel. «Une géographie de l’Eldorado». In: Découvertes et explora
teurs. Actes du Colloque International. Bordeaux: L’Harmattan, 1994, pp.
451A463.
Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: BrasiA
liense, 1957 (1942).
Prien, HansAJürgen. La historia del cristianismo en America Latina. Salamanca:
Sígueme, 1985 (1978).
– – –. «Consideraciones acerca de una eclesiología ecuménica como punto de
partida para una historiografía ecuménica del cristianismo en América LatiA
na». In: Prien, H.AJ. (Hrsg.) Religiosidad e historiografía. Frankfurt: VerA
vuert, 1998, pp. 83A91.
– – –. «Imigração, colonização e terra indígena». In: Jochem, Toni V. (org). São
Pedro de Alcântara, 1829 1999. Aspectos de sua história. São Pedro de AlA
cântara, 1999.
– – –. «Von der Alten Kirche bis zur Kirche in Lateinamerika heute. Synkretismus
als kirchengeschichtliches Problem». In: Prien, H.AJ. Das Evangelium im
Abendland und in der Neuen Welt. Frankfurt: Vervuert, 2000.
Pye, Michael. «What is ‹religion› in east Asia?». In: Bianchi, U. (ed.) The notion
of «Religion» in comparative research. Roma: «L’Erma» di Bretschneider,
1994.
Rabinovič, Michail G. «On the problem of defining the concept of ‹city› for the
sake of ethnographic studies». In: Ethnologia Slavica (16) 1984: 111A119.
Raminelli, Ronald. «História urbana». In: Cardoso, C. F. & Vainfas, R. (orgs.)
Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
293

Ramos, Donald. A social history of Ouro Preto: stresses of dynamic urbanization


in Colonial Brazil. 1695 1726. Phd dissertation, The University of Florida,
1972.
– – –. «A ‹voz popular› e a cultura popular no Brasil do século XVIII». In: Silva,
M. B. N. da. Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa,
1995.
Ranger, Terence. «Taking places of the land: holy places and pilgrimages in
twentiethAcentury Zimbabwe». In: Past and Present (117) 1987: 158A194.
Ratzel, Friedrich. Anthropogeographie. Stuttgart: J. Engelhorn, 1909 (1882) e
1912 (1891).
– – –. Politische Geographie. München: R. Oldenbourg, 1897.
Reboredo, Jose M. G. «Notas antropologicas sobre la importancia del ‹pueblo› en
la Galicia oriental». In: Cuadernos de Estudios Gallegos 35 (100) 1984A
1985: 529A546.
Reis, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
Reis, João José. e Gomes, Flávio dos Santos (org.) Liberdade por um fio. Histó
ria dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
Reis Filho, Nestor G. Evolução urbana do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1968.
Relph, Edward. Place and placelessness. London: Pion, 1976.
Reps, John W. Cities of the American West. A history of frontier urban planning.
Princeton: Princeton University Press, 1979.
Resende, Maria L. C. de. «Brasis coloniales: o gentio da terra nas Minas Gerais
setecentista (1730A1800)». Trabalho apresentado no encontro da Latin AmeA
rican Studies Association, Washington, setembro de 2001.
Ricardo, Cassiano. Marcha para oeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939.
Rinschede, Gilbert. Religionsgeographie. Braunschweig: Westermann, 1999.
Robinson, David J. «A linguagem e o significado de lugar na América Latina».
In: RH (121) 1989: 67A110.
Rocha Pombo, José F. da. História do Brazil. Rio de Janeiro: J. Fonseca Saraiva,
s/d (vol. II).
Rohrbough, Malcom. «No boy’s play. Migration and settlement in early gold
rush California». In: California History 79 (2) 2000: 25A43.
Röhrich, Lutz. «Aberglaube». In: RGG³. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1962.
– – –. Sage. Stuttgart: Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1966.
– – –. Märchen und Wirklichkeit. Wiesbaden: Steiner, 1974.
– – –. «Erzählforschung». In: Brednich, R. W. (Hrsg.) Grundriß der Volkskunde.
Berlin: Dietrich Reimer, 2001.
Rorty, Richard. «Method, social science, and social hope». In: Seidman, Steven
(ed.) The postmodern turn. New perspectives on social theory. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994.
Rosendahl, Zeny. Espaço e religião. Uma abordagem geográfica. Rio de JaA
neiro: EdUERJ, 1996.
294

Roskoff, Gustav. Geschichte des Teufels. Eine kulturhistorische Satanologie von


den Anfängen bis ins 18. Jahrhundert. Nördlingen: Greno, 1987 (1869).
Rudolf, Kurt. «Religionswissenschaftliche Überlegungen zur ReligionsgeograA
phie». In: Kreisel, W. (Hrsg.) Geisteshaltung und Umwelt. Aachen: Alano,
1988.
– – –. «Inwieweit ist der Begriff ‹Religion› eurozentrisch?» In: Bianchi, U. (ed.)
The notion of «Religion» in comparative research. Roma: «L’Erma» di
Bretschneider, 1994.
Rüsen, Jörn. «Historismus als Wissenschaftsparadigma. Leistung und Grenzen
eines strukturgeschichtlichen Ansatzes der Historiographiegeschichte». In:
Oexle, O. G. & Rüsen, J. (Hrsg.) Historismus in den Kulturwissenschaften.
Köln: Böhlau, 1996.
– – –. «Narratividade e objetividade na Ciência Histórica». In: EIA 24 (2) 1998:
311A335.
Russel Wood, A. J. R «Frontiers in Colonial Brazil: reality, myth, and metaphor».
In: Covington, P. (ed.) Latin American frontiers, borders and hinterlands.
University of New Mexico, 1990.
Salgado, Plínio. Como nasceram as cidades do Brasil. Lisboa: Ática, 1946.
Sanchis, Pierre. Arraial: festa de um povo. As romarias portuguesas. Lisboa:
Dom Quixote, 1992 (1983).
– – –. «Uma ‹identidade católica›?» In: Cadernos do ISER (22) 1986: 5A16.
– – –. «Sincretismo e jogo das categorias: a propósito do Brasil, de Portugal e do
Catolicismo». In: Textos de Sociologia e Antropologia (44) Mestrado em SoA
ciologia da Universidade Federal de Minas Gerais, 1993.
– – –. «Pra não dizer que não falei de sincretismo». In: Comunicações do ISER
(13) 1994: 4A11.
– – –. «As tramas sincréticas da história». In: RBCS (28) 1995:123A138.
– – –. «A profecia desmentida». In: Folha de São Paulo, 20.04.1997.
– – –. «Topos, raízes, identidade: um enfoque sobre o Brasil», mimeografado,
1997.
Sartori, Paul. «Ueber das Bauopfer». In: Zeitschrift für Ethnologie (30) 1898: 1A
54.
Sauer, Edith. «Kirchengeschichte als historische Disziplin?» In: EngelAJanosi, F.,
Klingenstein, G. und Lutz, H. (Hrsg.) Denken über die Geschichte. Wien:
Verlag für Geschichte und Politik, 1974.
Scarano, Julita. Devoção e escravidão. A irmandade de Nossa Senhora do Rosá
rio dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Cia EdiA
tora Nacional, 1978.
Scarlato, Francisco C. «População e urbanização brasileira», In: Ross, J. (org).
Geografia do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.
Schama, Simon. «Landschaft und Erinnerung». In: Conrad, C. und Hessel, M.
(Hrsg.) Kultur und Geschichte. Neue Einblicke in eine alte Beziehung. StuttA
gart: Reclam, 1998.
295

Schieder, Wolfgang. «Religionsgeschichte als Sozialgeschichte». In: GG, 3.


Jahrgang, 1977: 291A298.
– – –. «Einleitung». In: Schieder, W. (Hrsg.) Volksreligiosität in der modernen So
zialgeschichte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1986.
– – –. «Religion in der Sozialgeschichte». In: Schieder, W. und Sellin, V. (Hrsg.)
Sozialgeschichte in Deutschland. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, (3.
Band) 1987.
– – –. Religion und Revolution. Die Trierer Walllfahrt von 1844. Vierow: SHA
Verlag, 1996.
– – –. «Volksfrömmigkeit, Volksreligiosität». In: Evangelisches Kirchenlexikon.
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996.
Schmidt, Leopold. Volksglaube und Volksbrauch. Berlin: Erich Schmidt, 1966.
Schmitt, JeanAClaude. Heidenspaß und Höllenangst. Aberglaube im Mittelalter.
Campus: Frankfurt/Paris: Campus/Maison des Sciences de l’Homme, p.
1993.
Schröter, Bernd. «Bemerkungen zu einer Historiographie der Grenze». In: JbLA
(31) 1994: 329A360.
Schütz, Alfred. «On multiple realities». In: Schütz, A. Collected papers. The pro
blem of social reality. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973.
Schwind, Martin. «Über die Aufgaben der Religionsgeographie». In: Schwind,
M. (Hrsg.) Religionsgeographie. Darmstadt: Wissenschaftliche BuchgesellA
schaft, 1975.
Sébillot, Paul. Le folk lore de France. Paris: E. Guilmoto, 1907 (tome IVe).
Séguy, Jean. «Une sociologie des sociétés imaginés: monachisme et utopie». In:
Annales. MarsAAvril 1971: 328A354.
Silva, Francisco C. T. da. «História das paisagens». In: Cardoso, C. F. e Vainfas,
R. (org.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
Silva, Rebello da. História de Portugal. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1971 (1861A1871).
Silveira, Vicente. Expansão da Igreja Católica em Minas Gerais. Belo HoriA
zonte: Imprensa Oficial, 1983.
Simmel, Georg. «Die Großstädte und das Geistesleben». In: Simmel, G. Aufsätze
und Abhandlungen (1901 1908). Frankfurt: Suhrkamp, 1995.
– – –. «Der Raum und die räumlichen Ordnungen der Gesellschaft». In: Simmel,
G. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung.
Frankfurt: Suhrkamp, 1999 (1908).
– – –. «Vom Wesen des historischen Verstehens». In: Geschichtliche Abende im
Zentralinstitut für Erziehung und Unterricht. Berlin, 1918.
– – –. «Das Abenteuer». In: Simmel, G. Philosophische Kultur. Leipzig: Alfred
Kröner, 1919.
– – –. «Brücke und Tür». In: Simmel, G. Brücke und Tür. Stuttgart: K. F. Koeller,
1957.
– – –. «Le problème du temps historique». In: Revue de Métaphysique et de Mo
rale (3) 1995: 295A309.
296

Simon, Franz. «SakralAProfan». In: Liedtke, M. (Hrsg.) Aberglaube – Magie –


Religion. Graz: Austria Medien Service, 1995.
Soares, Luiz E. «Religioso por natureza». In: Soares, L. E. O rigor da indisci
plina. Ensaios de antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: Relume DuA
mará, 1994.
Soares, Maria T. de S. «A primeira vila portuguesa no Brasil». In: Actas do III
Colóquio Internacional de Estudos Luso Brasileiros. Lisboa, 1959.
Sodré, Nelson W. Introdução à Geografia. Petrópolis: Vozes, 1992.
Soeffner, HansAGeorg. Die Ordnung der Rituale. Frankfurt: Suhrkamp, 1995
(1992).
– – –. «Verstehende Soziologie und sozialwissenschaftliche Hermeneutik». In:
Hitzler, R., Reichertz, J. und Schröer, N. (Hrsg.) Hermeneutische Wissens
soziologie. Konstanz: UVK, 1999.
– – –. Gesellschaft ohne Baldachin. Weilerswist: Velbrück, 2000.
Soja, Edward. «History: geography: modernity». In: During, S. (ed.) The cultural
studies reader. London: Routledge, 1993.
Sopher, David. Geography of religions. PrenticeAHall: Englewood Cliffs, 1967.
– – –. «Geography and religions». In: PHG (5) 1981: 510A524.
Souza, Juliana B. Almeida de. «Virgem mestiça: devoção à Nossa Senhora na
colonização do Novo Mundo». In: Tempo 6 (11) 2001: 77A92.
Souza, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século
XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
– – –. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1995 (1986).
– – –. «Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas
fronteiras e nas fortificações». In: Souza, L. de M. e (org.) História da Vida
Privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São
Paulo: Cia das Letras, 1997.
– – –. Norma e conflito. Aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo HoA
rizonte: UFMG, 1999.
– – –. «Festas barrocas e vida cotidiana em Minas Gerais». In: Jancsó, I. e Kantor,
I. (orgs.) Festa. Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo:
Edusp/Hucitec, 2001.
Souza, Maria B. de M. e. «O culto mariano no Brasil colonial». In: Congresso
Internacional Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas – Actas.
Braga, 1993, vol. III, pp. 337A364.
Spain, Daphne. «Räumliche Geschlechtersegregation und Status der Frau». In:
Ethnologica (22) 1997: 31A40.
Spengler, Oswald. Der Untergang des Abendlandes. München: C. H. Beck, 1922
(2. Band).
Steward, Julian. «Cultural ecology». In: IESS. New York: Macmillan & The Free
Press, 1973 (vol. 4).
Stubbe, Hannes. «Tod, Trauer und Verwitwung in der brasilianischen Folklore».
In: Staden Jahrbuch (34A35) 1986A1987: 11A29.
Süss, Günther P. Catolicismo popular no Brasil. São Paulo: Loyola, 1979.
297

TaloL, Ion. «Bausagen in Rumänien». In: Fabula (10) 1969: 198A211.


– – –. Mekterul Manole. Grai Qi SufletACultura NaŃională: BucareQti, 1997.
– – –. Petit dictionnaire de mythologie populaire roumaine. Paris, no prelo.
Tamanini, Lourenço F. Memória da construção: Brasília. Royal Court: Brasília,
1994.
Tenbruck, Friedrich. «Die Theologie aus der Sicht der Soziologie». In: ThQ
(157) 1977: 217A218.
– – –. «Die Religion im Maelstrom der Reflexion». In: Bergmann, J., Hahn, A.
und Luckmann, T. (Hrsg.) Religion und Kultur. Köln: Westdeutscher Verlag,
1993.
Theilmann, John. «Medieval pilgrims and the origins of tourism». In: JPC (4)
1987: 93A102.
Tillhagen, CarlAHerman. «Was ist eine Sage? Eine Definition und ein Vorschlag
für ein europäisches Sagensystem». In: Petzoldt, L. (Hrsg.) Vergleichende
Sagenforschung. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969.
Tinhorão, José R. Os negros em Portugal. Lisboa: Caminho, 1988.
Tönnies, Ferdinand. Gemeinschaft und Gesellschaft. Grundbegriffe der reinen
Soziologie. Berlin: Karl Kurtius, 1926 (1887).
Torres Lonoño, Fernando. «Paróquia e comunidade na representação do sagrado
na Colônia». In: TorresALodoño, F. (org). Paróquia e comunidade no Brasil.
Perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997.
Trindade, Cônego Raimundo. Archidiocese de Mariana. Subsídios para a sua
história. São Paulo: Escolas Profissionais do Lyceu Coração de Jesus, 1928.
– – –. Instituições de igrejas no bispado de Mariana. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação e Saúde, 1945.
Troeltsch, Ernst. Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen. TübinA
gen: J. C. B. Mohr, 1994 (1912).
Tuan, YiAfu. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio am
biente. São Paulo: Difel, 1980 (1974).
– – –. Espaço e lugar. A perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983
(1977).
Turner, Victor & Turner, Edith. Image and pilgrimage in Christian culture.
Oxford: Blackwell, 1978.
Vainfas, Ronaldo. A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colo
nial. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
Vale, Edênio. «Aspectos psicoAgrupais do comportamento religiosoApopular». In:
Cadernos. Studium Theologicum (6) 1977: 73A96.
Valverde, Orlando. «Estudo regional da Zona da Mata, de Minas Gerais». In:
RBG 1 (20) 1958: 3A82.
Van der Leeuw, Gerardus. Phänomenologie der Religion. Tübingen: J. C. B.
Mohr, 1933.
Van der Poel, Frei Francisco. O Rosário dos homens pretos. Belo Horizonte: ImA
prensa Oficial, 1981.
298

Van Gennep, Arnold. The rites of passage. Chicago: University of Chicago


Press, 1960 (1908).
Vasconcelos, Salomão de. «Os primeiros aforamentos e os primeiros ranchos em
Ouro Preto». In: RPHAN (5) 1941: 241A257.
– – –. «Velhas matrizes mineiras...». In: RIHGMG 2 (2) 1945: 84A102.
Vasconcellos, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: ImA
prensa Oficial, 1904.
Vasconcellos, Sylvio de. «Formação urbana do Arraial do Tejuco». In: RPHAN
(4) 1959: 121A134.
Velho, Otávio. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
– – –. «Globalização: antropologia e religião». In: Mana 3 (1) 1997: 133A154.
Verger, Pierre. «Les religions traditionnelles africaines sontAelles compatibles
avec les formes actuelles de l’existence?». In: Paulme, Denise et alii. Les re
ligions africaines traditionnelles. Paris: Éditions du Seuil, 1965.
– – –. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de
Todos os Santos. São Paulo: Currupio, 1987.
Vernant, JeanAPierre. «Para que servem as religiões». In: Religião e Sociedade
(9) 1983: 65A70.
Veyne, Paul. «L’histoire conceptualisante». In: Le Goff, J. & Nora, P. (ed). Faire
de l’Histoire. Paris: Gallimard, (tome I) 1974.
Vianna, Oliveira. «A formação das cidades». In: Revista do Brasil 25 (95) 1923:
225A226.
– – –. Pequenos estudos de psycologia social. São Paulo: Monteiro Lobato &
Cia, 1923.
– – –. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
Vilhena, Luís R. Projeto e missão. O movimento folclórico brasileiro. 1947
1964. Rio de Janeiro: FGV/Funarte, 1997.
Vogt, Edvard. «Über das Problem der Objektivität in der religionssoziologischen
Forschung». In: Goldschmidt, D. und Matthes, J. (Hrsg.) Probleme der Reli
gionssoziologie. Köln: Westdeutscher Verlag, 1962.
Vovelle, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Wach, Joachim. The comparative study of religions. New York: Columbia UniA
versity Press, 1958.
Wagner, Falk. Was ist Religion? Studien zu ihrem Begriff und Thema in Ge
schichte und Gegenwart. Gütersloh: Mohn, 1991.
Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: J. C. B.
Mohr, 1988 (1920).
– – –. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: J. C. B. Mohr,
1988 (1922).
– – –. Wirtschaft und Gesellschaft. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1925.
Weckmann, Luis. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura
Económica, 1993.
299

Wehler, HansAUlrich. «Soziologie und Geschichte aus der Sicht des SozialhistoA
rikers». In: Ludz, P. C. (Hrsg.) Soziologie und Sozialgeschichte. Aspekte und
Probleme. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1972.
– – –. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts (1945 2000). GöttinA
gen: Wallstein, 2001.
Weiler, Anton G. «Soziale und sozialApsychologische Aspekte der Devotio MoA
derna». In: Schreiner, K. (Hrsg.) Laienfrömmigkeit im späten Mittelalter.
München: R. Oldenburg, 1992.
Wiese, Leopold von. «Die Problematik einer Soziologie des Dorfes». In: Wiese,
L. v. (Hrsg.) Das Dorf als soziales Gebilde. München: Duncker & Humblot,
1928.
Willems, Emílio. Uma vila brasileira. Tradição e transição. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1961 (1947).
– – –. «Portuguese culture in Brazil». In: Proceedings of the International Collo
quium on Luso Brazilian Studies. Nashville: The Vanderbilt University
Press, 1953.
Wissowa, Georg. Religion und Kultus der Römer. München: C. H. Beck, 1912.
Wright, Robin M. and Cunha, Manuela C. da. «Destruction, resistance, and
transformation – Southern, Coastal, and Northern Brazil (1580A1890)». In:
Salomon, F. and Schwartz, S. (ed.) The Cambridge History of the Native
Peoples of The Americas. Cambridge: Cambridge University Press, 1999
(vol. III, part 2).
Zelinsky, Wilbur. «Unearthly delights: cemetery names and the map of the
changing American afterworld». In: Lowenthal, D. and Bowden, M. J. (eds.)
Geographies of the the mind. Essays in historical geosophy. New York:
Oxford University Press, 1976.
Zeuske, Michael y Schmieder, Ulrike (eds.) Regiones europeas y Latinoamérica
(siglos XVIII y XIX). Frankfurt: Vervuert, 1999.
Zimmermann, Clemens. «Dorf und Land in der Sozialgeschichte». In: Schieder,
W. & Sellin, V. (Hrsg.) Sozialgeschichte in Deutschland. Göttingen: VanA
denhoeck & Ruprecht, (2. Band) 1986.
Zumthor, Paul. La mesure du monde. Représentation de l’espace au Moyen Âge.
Paris: Seuil, 1993.
Anexos
303

«Igreja Católica é ‹dona› de distrito em São Paulo»


A Igreja Católica é dona de todo o território do distrito de Cruz das Posses, em
uma realidade imobiliária típica da Idade Média.
Cruz das Posses pertence ao município de Sertãozinho (330 km de São Paulo)
e tem 8.000 habitantes.
O território do distrito tem 39 hectares (ou 390 mil m²) divididos em terrenos
que pertencem à igreja. Toda a área, equivalente a 54 campos de futebol, está reA
gistrada em um documento no Cartório de Registro de Imóveis de Sertãozinho
em nome do Patrimônio da Capella de Santa Cruz.
A posse da igreja foi adquirida por meio de uma doação feita em 1906 por um
fazendeiro do local «para o bom Jesus».
Os terrenos foreiros, no qual o usuário paga a um senhorio por sua utilização,
surgiram na Europa durante a Idade Média, quando a Igreja tinha o domínio da
boa parte de Portugal, França e Espanha.
Moradores de Cruz das Posses estão familiarizados com termos jurídicos meA
dievais, como o foro (dinheiro pago pela utilização do terreno) e o laudêmio (diA
nheiro pago ao senhorio quando da alienação da área), e possuem cartas de afoA
ramento de seus terrenos.
Essa carta não vale como uma escritura. Legalmente, a pessoa tem o domínio
do terreno, mas não tem a posse.
Se os moradores precisarem de um empréstimo bancário ou quiserem avalizar
um negócio, por exemplo, o documento não serve como garantia porque não
comprova a propriedade do imóvel.
O subprefeito de Cruz das Posses, Antônio Ferreira Rosa, diz que 70% da poA
pulação do local possui cartas de aforamento, também chamadas de «cartas de
data».
Os demais terrenos são da igreja ou de pessoas que conseguiram a escritura irA
regularmente, segundo o cartório de Sertãozinho.
«Eu mesmo tenho uma ‹carta de data›. O que acontece, na prática, é que a casa
é da pessoa, mas o terreno é da igreja. Então, ninguém compra e ninguém vende
mais aqui», afirma o subprefeito.
O comerciante José Antônio Petri, 37, tem três cartas de aforamento de imóA
veis em Cruz das Posses. Ele diz que já tentou um empréstimo bancário para
equipar melhor o seu supermercado, mas não conseguiu.
«Aqui, todo mundo sofre com isso. A nossa propriedade, na prática, não vale
nada. Eu já fui no cartório, tentei resolver na igreja, mas não tem jeito», afirma.

Igreja
Procurado pela Folha, o padre Antônio de Oliveira, que tomou conta das terras de
Cruz das Posses por mais 50 anos, não quis falar sobre o caso.
O arcebispo de Ribeirão Preto, D. Arnaldo Ribeiro, também se negou a falar
sobre o assunto.
304

O atual pároco de Cruz das Posses, Ilson Montanari, disse que a igreja está
tentanto encontrar uma solução para resolver o problema, mas ainda não conseA
guiu.
«É uma questão difícil. Pensamos em iniciar ações por usucapião, já que todas
as pessoas estão lá há várias décadas, mas isso não é viável porque fica muito
caro. Ainda estamos estudando uma medida legal», afirmou o padre.
O padre Sérgio Carmona, que também trabalha em Cruz as Posses, afirmou
que o foro e o laudêmio não estão mais sendo cobrados. Segundo ele, o foro não
é cobrado pela igreja há mais de dez anos e o laudêmio deixou de ser cobrado há
cerca de dois anos.
(Folha de São Paulo, 11.01.1998)
Arraial de Matozinhos em 1887

Lavras Novas
307

Planta da cidade de Philadelphia, século XIX


Teófilo Otoni (Philadelphia) em 1858 (Tschudi, Reisen durch Südamerika)

309
310
311

Planta da cidade de Chiador (anos 1950). Fonte: Valverde, Orlando. «Estudo regional da
Zona da Mata, de Minas Gerais». In: RBG 1 (20) 1958, p. 70. Sobre a origem do arraial,
lêAse na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros: «Diz a tradição que [o português
Antônio Joaquim dos Santos] se instalou no local onde hoje existe a fazenda Serra da
Arriba, deliberando, pouco depois, a construção, por ele próprio e seus escravos, de
uma capela em honra a Santo Antônio. Concluída a capela, (...) deu carta de liberdade
aos escravos que trabalharam na construção, ao mesmo tempo que lhes permitiu consA
truírem ranchos e cultivar terras ao redor da capela. IniciouAse, desta forma, o poA
voado». EMB, v. 24, p. 440.

Você também pode gostar