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Christine Greiner

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Indagações sobre o que pode (ser) um processo
A pós as apresentações da Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010,
em março de 2010, grande parte do público sentiu-se inquieta com uma dúvida que
pairou durante todo o evento: afinal, como se faz a apresentação de um processo de
pesquisa em dança?

Diante da diversidade de experiências apresentadas na mostra, ficou claro que não existe
um formato único e que, pela própria falta de prática de todos, há muito a ser esclarecido. A
maioria absoluta dos eventos que programam dança em nosso país ainda está pautada pelo
modelo “mostra de espetáculos”. Assim, há dificuldades para lidar com o novo formato, tanto
da parte institucional como da parte dos artistas e do público.

Como não houve nenhuma “fórmula” sugerida a priori, cada artista decidiu, por si mesmo,
como fazer sua apresentação, e muitos optaram por mostrar seus supostos processos de
criação já configurados como espetáculos. Em alguns casos, o argumento que justificou
essa escolha foi o de que, para testar as hipóteses que gostariam de desenvolver, o
projeto pedia uma formatação assemelhada à de um espetáculo propriamente dito (com
palco, iluminação etc.). Esses artistas compreenderam que o termo “processo” poderia ser
traduzido como uma etapa anterior à finalização do espetáculo e isso gerou uma primeira
inquietação. Sendo a dança contemporânea, ela mesma, de natureza processual, seria afinal
o próprio espetáculo sempre um processo, assim como todas as suas “versões” preliminares?
Em outros casos, a noção de processo confundiu-se com a de projeto e os trabalhos foram
apresentados como uma proposição inicial a ser desenvolvida. Esses artistas optaram por
mostrar imagens ou fragmentos iniciais de movimentos e conversaram sobre o material que
pretendiam elaborar nos próximos passos da pesquisa.

Além dessas duas alternativas de apresentação, alguns selecionados acabaram demonstrando


grande inexperiência em relação ao que significa fazer uma pesquisa, apresentando
espetáculos como sempre fizeram antes, sem se preocupar com o projeto inicial, o processo
de investigação e a formulação corporal das questões propostas.

O que me parece mais interessante neste momento pós-evento não é atribuir um juízo de
valor sobre eventuais acertos ou erros, mas aproveitar a oportunidade para refletir sobre a
natureza do que seja uma pesquisa e aquilo que se vem chamando de “processo”.

Para começar, pode ser um bom exercício deixar de lado a noção de “etapas”, ou seja,
daquilo que acontece sequencialmente, seguindo a lógica do progresso ou da história
tradicionalmente definida como uma coisa depois da outra. Processos de pesquisa não
são, afinal, radicalmente distintos dos modos de ser de outros fenômenos vivos. São
complexos e imprevisíveis.

Como explica o etólogo e geneticista Richard Dawkins (2009), o pesquisador, sobretudo


aquele interessado em contar uma história, é sempre tentado a vasculhar o passado à
procura de padrões que se repetem e explicam o que acontece agora. Mas esse “apetite por
padrões” afronta outro entendimento: o de que a história não vai a lugar nenhum e não segue
80 necessariamente regras ou padrões já dados.

Há também aqueles pesquisadores que se afeiçoam à “soberba do presente”. Acham que


o passado tem sempre por objetivo o tempo atual, como se quem já tivesse vivido a
história não encontrasse nada mais a fazer senão prenunciar-nos. Mas seria adequado, ao
pensar em processo, admitir que o passado atua sempre em função da produção de um
presente específico?

Quando retrocedemos na história da evolução, não importa de onde partimos, terminamos


celebrando a vida. Mas quando avançamos, explica Dawkins, exaltamos sempre a diversidade.
Isso funciona em pequenas e grandes escalas temporais. Assim, se na história da espécie
humana o DNA é nossa principal relíquia renovada (um registro escrito e recopiado), na
história da cultura é provável que a possibilidade de renovação e de diversidade esteja na
gênese do pensamento: o movimento1. Nesse caso, a dança tem muito a contribuir com a
construção do conhecimento humano.

Antes de retomar a questão específica da apresentação de processos de pesquisa em dança,


gostaria de pontuar algumas definições formuladas em outros campos que podem auxiliar
no desdobramento da discussão.
1  É importante notar que, ao relacionar pensamento e movimento, não estou me referindo necessa-
riamente a deslocamentos, mas ao movimento interno como acionamento do sistema sensório-motor
que, por sua vez, aciona o pensamento. Autores com obras traduzidas para o português, como António
Damásio, George Lakoff e Mark Johnson (ver GREINER, 2005), assim como os brasileiros Miguel Nicolelis
e Sidarta Ribeiro, do Instituto Internacional de Neurociência de Natal, têm trabalhado com essa hipótese.
Processo como ação
De modo geral, processo tem sido definido no campo científico como acontecimentos
unidos por redes de relações. Uma teoria centrada em processos está, portanto, em contínua
mutação, embora mantenha sempre alguma estabilidade que a torne reconhecível como
parte de um mesmo projeto.

Quando as ciências naturais se tornaram ciências de processos e, mais especificamente, de


processos sem retorno (irreversíveis e irremediáveis), a capacidade humana responsável
por isso não foi nenhuma capacidade teórica de contemplação ou de razão absoluta,
mas a faculdade humana de agir e de iniciar processos sem precedentes, com resultado
incerto e imprevisível.

Portanto, o conceito central das ciências da era moderna, tanto da ciência natural quanto da histórica,
foi o próprio conceito de processo e por isso esse termo passou a ser cada vez mais citado.

A experiência humana real em que esse conceito se baseia é a ação. Sempre foi. Em outras
palavras, se podemos conceber a história e a natureza como sistemas de processos, é porque
somos capazes de agir e de iniciar nossos próprios processos.

No caso específico da dança (e da dança no Brasil), parece cada vez mais importante refletir
sobre processo como ação. Tanto na dança moderna como no teatro, entre o fim do século
XIX e o começo do XX, foi amplamente aceita a definição de ação como um movimento
intencional e com significado. Pesquisadores como Jaques-Dalcroze, François Delsarte, 81
Constantin Stanislavski e Rudolf Laban, entre outros, foram responsáveis em grande parte por
algumas das mais importantes definições do que seria uma ação física, a expressão de um
gesto, o significado de um movimento, a consciência corporal, e assim por diante. No entanto,
estudos recentes sobre a percepção (NOË, 2004) mostraram que boa parte dos movimentos
não intencionais, não conscientes e aparentemente insignificantes é, no fim das contas,
fundamental para organizar nossas ações no mundo. O que diferencia essa constatação
daquelas formuladas pelos artistas citados é que esses movimentos e habilidades deixaram
de ser considerados importantes não porque antecedem ou preparam as ações, mas porque
já são, eles mesmos, ações cognitivas.

Todos os fenômenos culturais, assim como todas as organizações do vivo, são fluidos e
móveis. Em grande parte, isso decorre do fato de ser o corpo a primeira mídia da cultura e
da vida. Em uma obra-prima escrita originalmente em 1972 e traduzida para o português em
1992, o médico e biólogo Henri Atlan redigiu um dos ensaios mais desconcertantes sobre
a organização do vivo, nomeando-o Entre o Cristal e a Fumaça. Nesse texto, explicou que
todo processo transita entre dois extremos: uma ordem repetitiva, perfeitamente simétrica,
cujos modelos físicos mais clássicos são os cristais, e uma variedade infinitamente complexa
e imprevisível, como as formas evanescentes da fumaça.

Essas discussões apontavam para a importância do reconhecimento de diferentes níveis de


descrição. Em um nível muito básico (do micro), tudo é processo: no corpo, na vida e na arte.
A natureza processual pode ser reconhecida, nesse sentido, mesmo quando o sistema está
temporariamente estabilizado (como espetáculo, por exemplo). Isso porque, mesmo nessas
circunstâncias do supostamente“pronto”, há sempre uma taxa de inacabamento e descontinuidade.
No entanto, o processo entendido como ação e, sobretudo, como ação política pede por outros
níveis de descrição que complexificam o fenômeno da vida em seus modos macroscópicos
de organização. O próprio livro de Atlan é um bom exemplo. Muitos leitores que pertenceram
à geração que esteve nos campos de concentração sentiram-se perturbados com o título da
sua obra. Isso porque, entre eles, a referência mais imediata da noite de cristal e da noite de
fumaça remetia às noites sem dormir nos campos de extermínio, que representavam situações
(e emoções) absolutamente antagônicas aos modos de organização do vivo discutidos por
Atlan. Apesar dessas ressalvas, Atlan manteve o título da obra, apostando na efervescência
criativa que marca o cruzamento de diferentes níveis de descrição de um fenômeno, quando
nos dispomos a estudá-lo e apresentá-lo em sua complexidade.

O que ainda precisa ser discutido


As fórmulas acadêmicas tradicionais que ensinam como fazer um projeto e as definições do
que seja um processo pedem uma revisão urgente quando colocadas lado a lado com as
definições propostas por outras áreas de conhecimento e por experiências que resistem em
se encaixar nos modelos conhecidos. Não se trata apenas de criar novas regras e vocabulários,
mas de uma mudança mais profunda para desestabilizar algumas dualidades assentadas no
tempo: teoria e prática, sujeito e corpo, arte e ciência, natureza e cultura.

Pode ser o momento propício para mudar algumas formulações que aos poucos foram se
esvaziando. Por exemplo, é bem provável que não existam na maioria das pesquisas corporais
82 “objetos de estudo” e sim “princípios organizativos”. As “hipóteses” tendem a ser muito mais
inquietações do que afirmações. Mas isso não significa que tudo seja vago e indefinido. As
inquietações são a ignição para a formulação de uma questão. Há chaves conectivas que
precisam ser reconhecidas quando um criador decide propor um projeto. Este não está
apartado do processo nem tampouco de seu “resultado”. Não são etapas, mas modos de
organização que se complexificam na medida em que são criadas novas conexões. Não há
uma ordem sequencial. A inquietação ganha visibilidade no corpo quando se configura como
ação e se torna, inevitavelmente, política. Se isso não acontece, o movimento corre o risco
de enclausurar-se, tornando-se intraduzível e padecendo daquilo que, em outro momento,
nomeei como anorexia da ação comunicativa (GREINER, 2005), que seria a perda de apetite
para o conhecimento.

Durante séculos discutiu-se o fazer artístico como uma atividade concebida em um universo
próprio, essencial, fechado em si mesmo. Mas como sustentar essa visão de arte ainda hoje?
Michel Foucault (1976) foi um dos pensadores que observaram como, nos limiares da Idade
Moderna, a vida natural começou a ser incluída nos mecanismos do poder estatal e a política
se transformou em uma biopolítica, sem deixar nada ou ninguém para fora desse sistema.
Segundo Foucault, durante milênios o homem foi considerado um animal vivente capaz
de uma existência política, mas, na Idade Moderna, se transformou em um animal em cuja
política estava em questão sua vida de ser vivente. Isso trouxe uma ambiguidade perversa:
a possibilidade de proteger a vida por meio das estratégias políticas e, ao mesmo tempo, a
autorização para seu extermínio. Assim, por um lado, o biopoder qualificava a vida dos seres
viventes, mas, por outro, construía os corpos dóceis dos quais necessitava. O poder moderno
passou a ser compreendido como o poder sobre a vida, exercendo um controle sobre todos
os passos da vida e regulando, sobretudo, o comportamento corporal.
A dança não escapou a esse modo de organização que passou a impregnar todo e qualquer
processo de criação. Resta compreender como esse controle pode ser identificado nas
experiências contemporâneas e de que modo a escolha (deliberada e política) pela natureza
processual da criação pode fazer alguma diferença.

Existe uma relacionalidade primária com o entorno que está presente diante de toda
possibilidade de ação corporal2. Ao contrário do que se imaginou durante muitos anos, não
se “aplica” o conhecimento sensório-motor à experiência (a teoria na prática). Ele é testado,
o tempo todo, como experiência. A experiência perceptual é um modo de exploração do
mundo. Suas habilidades necessárias são, ao mesmo tempo, sensório-motoras e conceituais.

Na filosofia, a ideia de conceito (chave mestra das teorias) sempre envolveu articulação,
corte e superposição. É apenas sob essa condição que se pode sair do caos mental. Em O
que É Filosofia (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 33), “o conceito diz o acontecimento, não a
essência ou a coisa”. É, portanto, o acontecimento de outrem ou o acontecimento do rosto
quando este é tomado como conceito. O pássaro, explicam os autores, também pode ser
um acontecimento. O conceito define-se pela “inseparabilidade de um número finito de
componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevoo absoluto, à velocidade
infinita”. Por isso, o conceito filosófico não se refere ao vivido por compensação, “mas consiste
em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido, bem como qualquer estado de
coisas. Cada conceito corta o acontecimento e o recorta à sua maneira” (op. cit., p. 47).

Nesse viés, haveria três planos reconhecíveis e tão irredutíveis quanto seus elementos: o plano
de imanência da filosofia, o plano de composição da arte e o plano de referência da ciência,
identificados, respectivamente, como forma de conceito, força de sensação e função de 83
conhecimento. Os problemas de interferência entre esses planos, segundo os autores, juntar-
se-iam no cérebro (op. cit., p. 277), compondo uma rede dinâmica. Assim, o conhecimento
não seria uma forma ou uma força, mas uma função.

Estudando percepção como cognição com base em Alva Noë, tornou-se possível afirmar que
todos os planos estão juntos também, desde o início no corpo todo. A relação com o mundo
via pensamento/experiência não difere em tipo, mas em grau. O grau mais primitivo (que dá
início ao processo) não é definido como qualidades sensórias ou intensidades, mas já como
um entendimento sensório-motor. A habilidade para pensar sobre o mundo seria também (e
de modo indiscernível) nossa habilidade para experienciá-lo. Nesse viés, a experiência é uma
aptidão implementada em ação que traduz as diferentes conexões entre um organismo e seu
entorno, que, por sua vez, não se configuram como instâncias separadas (dentro e fora), mas,
sim, como sistemas que coevoluem.

Pensar nos processos de pesquisa em dança com base nessas conexões pode ser um
bom começo para evitar a pressão que nos direciona o tempo todo para as armadilhas da
despolitização e da subserviência dos processos de criação.

Não existem salva-vidas e os manuais de instrução continuam ineficientes. Mas as pistas estão
o tempo todo por aí...

2  Há mais de dez anos eu e Helena Katz temos desenvolvido juntas na PUC-SP o que chamamos de
Teoria Corpomídia, que estuda exatamente essas conexões coevolutivas entre corpo e ambiente.
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Referências bibliográficas

ATLAN, Henri. Entre o cristal e a fumaça. Ensaio sobre a organização do ser vivo. Tradução Vera
Ribeiro, revisão técnica Henrique Lins de Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
DAWKINS, Richard. A grande história da evolução. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso
Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.
_____. Milles plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Tradução Ligia Ponde
Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1976.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
NOË, Alva. Action in perception. Cambridge: MIT Press, 2004.

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