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O jovem Marx

l
eoutros escritos
de filosofia
GyörgyLukács

EDITORA
Editora UFRJ
Copyright © 2007 by
Os direitos autorais sobre a organização e atradução desta obra foram cedidos gratuita-
Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto à Editora UFRI
mente por
Ficha Catalográfica elaborada pela Divisão
de Processamento Técnico - SIBI/UFRJ

L954} Lukács, György, 1885-1971


Ojovem Marx e outros escritos de filosofia / Carlos Nelson
Coutinho e José Paulo Netto, organização, apresentaço e
tradução. -Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. (Pensamento
Crítico ; v. 9)
256 p.; 14 x 21 cm
1. Marx, Karl, 1818-1883 filosofia. 2. Filosofia marxista.
I. Coutinho, Carlos Nelson, Org. II. Netto, José Paulo, Org.
III. Título.
CDD: 146.32

ISBN 978-85-7108-318-9

Revisão
Simone Brantes
Capa, Projeto Gráfico
Ana Carreiro
Editoração Eletrônica
Janise Duarte
Universidade Federal do
Forum de Ciência
Rio de Janeiro
e Cultura
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Apoio
Fundação Universitária
José Bonifécio
VI. AS BASES
DO
PENSAMENTO EDA ONTOLÓGICAS
ATIVIDADE DO HOMEM

Quem quiser expor numa


conferência, ainda que somente
dentro de certos limites, os princípios mais gerais do complexo
problemático aqui abordado vai se encontrar diante de uma dupla
dificuldade. Por um lado, seria necessário fornecer um panorama
crítico do estágio atual da discussão sobreesse
problema, e, por outro,
caberia tornar evidente o edifício conceitual de uma nova ontologia,
pelomenos em sua estrutura fundamental. Para tratarmos de mnodo
maisou menos exaustivO asegunda questão, teremos de renunciar a
abordar - ainda que sumariamente - a primeira. Todos sabem que,
nas últimas décadas, o neopositivismo, radicalizando as velhas ten
dências gnosiologistas, dominou de modo incontrastado, com sua
recusa de princípio em face de toda e qualquer colocação ontológica,
considerada como não científica. E não apenas na vida filosófica
propriamente dita, mas também no mundo da práxis. Se analisarmos
com atenção as formulações teóricasdos grupos dirigentes políticos,
militares e econômicos de nosso tempo, descobriremos que - cons
cienteou inconscientemente - elas são determinadas por métodos de
pensamento neopositivistas. Deriva disso a onipotência quase ilimi
tada desses métodos; e, quando o confrontocom a realidade tiver con
abalos desde a
duzido àcrise aberta, essasituação produzirágrandes
amplo do ter
Vidapolítico-económica atéa filosofia nosentido mais
que estamos apenas no início de tal processo, ésuticiente
o.Mas, já
aquia sua simples menção. onto
local, das tentativas
lampouco nos ocuparemos, neste
últimas décadas., Limitar-nos-emos a declarar simples
Ogicas das
consideramos como extremamente problemáticas,
LE que as de um conheci-
os últimos desenvolvimentos
bastando-nos recordar
226 GYÖRGY LUKÁCS

díssimo iniciador dessa corrente, como Sartre, para pelo menos aludir
aesta problemática e a essa orientação.
Reveladora éaqui a relação com o marxismo. Na história da
filosofia, como se sabe, raramente o marxismo foi entendido como
uma ontologia. Em troca, oque aqui nos propomos émostrar como o
elemento filosoficamente decisivo na ação de Marx consistiu em ter
esboçado os lineamentos de uma ontologia histórico-materialista,
superando teórica e praticamente o idealismo lógico-ontológico de
Hegel. Hegel abriucaminho neste terreno, na medida em que conce
beu a seu modo a ontologia como história; em contraste com a onto
logia religiosa, ade Hegel partia de "baixo", do aspecto mais simples, e
traçava uma história evolutiva necessária que chegava até o "alto até
as objetivações mais complexas da cultura humana. Naturalmente, o
acentorecaía sobre o ser social e seus produtos, assim como era carac
terístico de Hegelo fato de que o homem fosse visto como criador de
Si mesmo.
Aontologia marxiana se diferencia da de Hegel por afastar
todo elemento lógico-dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo
elemento teleológico. Com esse ato materialista de colocar sobre os
próprios pés", nãopodia deixar dedesaparecer da série dos momentos
motores do processo também a síntese do elemento simples. Em
Marx,o ponto de partida nãoédado nem pelo átomo (como nos ve
Ihos materialistas), nem pelo simples ser abstrato (como em Hegel).
Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo existente
deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e
movida) de um complexo concreto. Isso conduz, portanto, a duas
conseqúências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu con
junto évisto como um processo histórico;em segundo,as categorias
não são tidas como enunciados sobre algo que éou que se torna, mas
sim comoformas moventes e movidas daprópria matéria:"formas do
ser, determinações da existência"?'Essa posição radical - também na
medida em que é radicalmente diversa do velho materialismo foi
interpretada, de diferentes modos, segundo o velhoespírito; quando
isso aconteceu, teve-se a falsa idéia de que Marx subestimava a im
portância da consciência com relação ao ser material. Demonstra
remos em seguida, de modo concreto., que essa maneira de ver é
As BASES ONTOLÓGICAS 227

equivocada. Aqui nos interessa apenas estabelecer que Marx enten


dia a consciência como um produto tardio do desenvolvimento do
ser material. Aquela impresso equivocada só pode surgir quando tal
fatoé interpretado à luz da criaçãodivina afirmada pelas religiões ou
de um idealismo platônico. Para uma filosofia evolutiva materialista,
ao contrário, oproduto tardio não éjamais necessariamente um
produtode menor valor ontológico. Quandose diz que aconsciência
reflete a realidade e, com base nisso, torna possível intervir nessa rea
lidade para modificá-la, quer-sedizer que a consciência tem um real
poder no plano do ser e não -como se supõe apartir das supra-citadas
visões equivocadas - que
queela écarente de força.

Podemos aqui nosocupar somenteda ontologia do ser social.


Contudo, não seremos capazes de captar sua especificidade se não
compreendermos que um ser social só pode surgir e se desenvolver
com base em um ser orgânico e que esse último pode fazer o mesmo
apenas com base no ser inorgânico. A ciência jávem descobrindo as
formas preparatórias de passagem de um tipo de ser a outro; e tamb¿m
já foramn esclarecidas as mais importantes categorias fundamentais
das formas de ser mais complexas, enquanto contrapostas àquelas
mais simples: a reproduçãoda vida em contraposição ao simples tor
consciente
nar-se outra coisa; a adaptação ativa, coma modificação
passiva.
do ambiente, em contraposição àadaptação meramente
simples de ser
Ademaíis, tornou-se claro que, entre uma forma mais
transição que essa
(por mais numerosas que sejam as categorias de mais complexa,
forma
forma produz) e o nascimento real de uma é
mais complexa
verifica-se de qualquer modo um salto; essa forma
qualitativamente novo, cuja gênese não pode jamais ser simples
algo
mente "deduzida" da forma mais simples. aperfeiçoamento da
salto, tem sempre lugar o
Depois desse
forma de ser. Contudo, embora surja sempre algo qualitativa
nova impressão de estar em face de
muitoscasos tem-se a
mente novo, em fundante em novas
modos de reação do ser
umasimples variaçãodos precisa
naquelas categorias que constituem
categorias de efetividade,
228 <" GYÖRGY LUKACS

o exemplo da luz:
mente onovo no ser da nova formação. Tomemnos
puramente fisico
enquanto sobre as plantas ela ainda atua de modo
químico (mas, na verdade, dando lugar jáaquia efeitos vitais espe
cíficos), navisão dos animais superiores a luz desenvolve formas de
reação aoambiente que jásão especificamente biológicas. Do mesmo
modo, o processo de reprodução assume na natureza orgânica formas
cada vez maiscorrespondentes àsua própria essência, torna-se cada
vez mais nitidamente um ser sui generis, ainda que jamais possa ser
eliminado oseu enraizamento nas bases ontológicas originárias.
Mesmo sem ter aqui apossibilidade sequer de mencionar um tal
complexO problemático, gostaríamos, porém, de destacar que
desenvolvimento do processo de reprodução orgânica nosentido de
formas superiores, o seu tornar-se cada vez mais puro e expressa
mente biológico no sentido próprio do termo, forma também - com
aajuda das percepções sensíveis uma espécie de consciência, im
portante epifenômeno enquanto órgão superior do funcionamento
eficaz dessa reprodução.
Para que possa nascer o trabalho, enquanto base dinämico
estruturante de um novo tipode ser,éindispensável um determinado
grau de desenvolvimento doprocesso orgânicode reprodução. Tam
bém aqui teremos de deixar de lado os numerosos casos de capacida
de de trabalhar, que se conservam, porém, como pura capacidade;
tampouco podemos nos deter nas situações de beco sem saída, nas
quais surge não apenas um certo tipo de trabalho, mas inclusive a
conseqüência necessária do seu desenvolvimento, ou seja, a divisão
do trabalho (abelhas etc.).Contudo, em tais situações, essa diviso do
trabalho - enquanto se fixa como diferenciação biológica dos exem
plares da espécie - não consegue se tornar princípio de desenvolvi
mento ulterior no sentido de um ser de novo tipo, permanecendo, ao
contrário, comoum estágio estabilizado, ou seja, como um beco sem
saída no desenvolvimento.
A
esséncia do trabalho consiste precisamente em ir além dessa
estabilização dos seres vivos na competição biológica com seu meio
ambiente. O momentoessencial da separaçãoé constituído não pela
fabricação de produtos, mas pelo papel da consciència, a qual, pre
cisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução bio
As BASES ONTOLÓGICAS 229

Jógica:o produto,diz Marx, éum resultado que jáno iníciodo proces


so existia "narepresentação do trabalhador", isto é, no plano ideal.?
Talvez surpreenda o fato deque seja atribuído àconsciência
um papel tãodecisivo, precisamente na passagem em que buscamos
tracar a diferença entre o ser da natureza orgânicaeo ser social. Mas
não se deve esquecer que os complexos problemáticos aqui emer
gentes (cujotipo mais alto é oda liberdade eda necessidade) só conse
guem adquirir um verdadeiro sentido quando se atribui- e precisa
menteno plano ontológico um papel ativo àconsciência. Nos casos
em que a consciência não se tornou um poder ontológico efetivo,
essaoposição jamais pôde ter lugar. Em troca, quando a consciência
possui objetivamente esse papel, ela não pode deixar de ter um peso
na solução de tais oposições.
Com justa razão se pode definir o homem que trabalha, ou
seja, o animal tornado homem através do trabalho, como um ser que
dárespostas. Com efeito, éinegável que toda atividade laborativa sur
gecomo resposta que busca solucionar o carecimentoque aprovoca.
Todavia, onúcleo daquestão se perderia caso se tomasse aqui como
pressuposto uma relação imediata. Ao contrário, o homem torna-se
umser que dárespostas precisamente na medida em que, paralela
mente ao desenvolvimento social e em proporção crescente, ele ge
neraliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e
suas possibilidades de satisfazê-los, bem como na medida em que, na
sua resposta ao carecimento que a provoca, funda eenriquece a pró
pria atividade com estas mediações, freqüentemente bastante articu
ladas. Desse modo, não apenas a resposta, mas também a pergunta
são um produto imediato da consciência que guia a atividade. Mas
isso não anula o fato de que o ato de responder éo elemento ontolo
gicamente primárionesse complexodinâmico. Tão-somenteo care
cimento material, enquanto motor do processo de reprodução indivi
dual ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do tra
balho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em fun
çãoda sua satisfação. Oque não desmente o fato de que tal satisfação
sópode ter lugar com aajuda de uma cadeia de mediações, as quais
transformam ininterruptamente tanto anatureza que circunda a
Sociedade quanto os homens que nela atuam, suas relaçõesetc. E isso
GYÖRGY LUKÁCs
230

porque tais mediações tornam praticamente eficientes forças, liames,


qualidades etc. da natureza que, de outro modo, não poderiam exer-
cer essa ação: o homem, liberando e dominando essas forças, traz à
existência um processo de desenvolvimento das próprias capacidade.
nosentido de níveis superiores.
Com o trabalho, portanto, dá-se ao mesmotempo, no plano
ontológico, a possibilidade do desenvolvimento superior dos homene
Que trabalham. Já por esse motivo - mas, antes de mnais nada,
porgue
se altera aadaptação passiva, meramente reativa, do
processo de
reprodução ao mundo circundante, jáque esse mundo circundante é
transformado de maneira consciente eativa-, otrabalho se torna não
simplesmente um fato no qual se expressa a nova peculiaridade do
ser social, mas, ao contrário,
também se converte no modelo precisamente
no plano ontológico,
de toda anova forma doser.
Quanto maior for a precisão com que
cionamento,tanto mais resultaráevidente esseobservarmos o seu fun
seu caráter. C trabalho
éconstituídopor
posições teleológicas que, em cada caso
põem em funcionamento séries
causais. Basta
concreto,
taçãopara eliminar preconceitos essa simples consta
da causalidade, que ontológicos milenares. Aocontrário
representa lei espontânea na qual todos os movi
mentos de todas as formas
a
de ser
leologia é um modo de pôr - umaencontram sua expressão geral, a te
consciência que, embora as guiando posição sempre realizada por uma
em
determinada direção, pode
movimentar apenas séries causais. As filosofias
nhecendo aposição teleológica como anteriores, não reco
eram obrigadas a inventar, por
por outro, uma natureza um particularidade
lado,um
do ser social,
sujeito transcendente, e,
modo teleológico, com a especial onde as correlações
dade tendências de finalidade de atuavam
atribuir natureza e àsocie
à
de
desenvolvimento
aquié compreender que se está
ciedade tornada realmente social,
de tipo
diante de uma teleológico. Decisivo
a maior duplicidade: numa so
conjunto põe o todo em parte das atividades cujo
gica, mas a
existência movimento
real delas -e
é
certamente de origem
teleoló
isoladas ouforam inseridas não importa se
sais que jamais e em
gico,
num contexto -éfeita de
nenhum sentidopodemn ser de permaneceram
conexões cau
caráter teleoló
As BASES ONTOLÓGICAS 231

Toda práxis social, se considerarmos otrabalho como seu


si esse caráter contraditório. Por um lado, a
modelo, contém em
práxisé uma decisão entre alternativas, já que todo indivíduo
deve decidir se o faz ou não. Todo ato
singular, sempre que faz algo,
ocial, portanto, surge de uma decisão entre alternativas acerca de
posições teleológicasfuturas. A necessidade social só se pode afirmar
meio da pressão que exerce sobre indivíduos (freqüentemente
os
por m
de maneira anônima), a fim de
que as decisões deles tenham uma
determinada orientação. Marx delineia corretamente essa condição,
dizendo que os homens são impelidospelas circunstâncias a agir de
determinado modo"sob pena de se arruinarem". Eles devem, em
última análise, realizar por sias próprias ações, ainda que freqüente
mente atuem contrasua própriaconvicção.
Decorrem dessa ineliminável condição do homem que vive
em sociedade todos os problemas reais levando-se naturalmen
teem conta queesses são mais complicadosem situações mais com
plicadas - daquele complexo que costumamos chamar de liberdade.
Sem ir além daregião do trabalho em sentido estrito, podemos nos
deter sobre as categorias de valor e de dever-ser. A natureza não conhe
ce nenhuma das duas. Na natureza inorgånica, as mudanças de um
modo de ser para outro nãotêm, é claro, nada a ver com os valores. Na
natureza orgânica, onde oprocesso de reprodução significa ontolo
gicamente adaptação ao ambiente, pode-se jáfalar de êxito ou de fra
casso; mas também essa oposição não ultrapassa - precisamente do
pontode vista ontológico - os limites de um mero ser-de-outro
modo.
Completamente diversa é a situação quando nos deparamos
com otrabalho. O conhecimento em geral distingue com bastante
nitidez entre o ser-em-si, objetivamente existente, dos objetos, por
um lado,e, por outro, oser-para-nós, meramente pensado, que tais
objetos adquirem no processo cognoscitivo. No trabalho, ao con
trario, oser-para-nós do produto torna-se uma sua propriedade obje
Iva realmente existente;e trata-se precisamente daquela propriedade
em virtude da qual o produto, se posto e realizado corretamente, po
de desempenhar suas funções sociais. Assim, portanto, o produtodo
trabalho tem um valor (no caso de fracasso, écarente de valor, é um
232 GYÖRGY LUKÁCs

desvalor). Tão-somente a objetivação real do ser-para-nós faz Com


que possamrealmente nascer valores. Nos níveis mais altos da socie-
dade, os valores assumem formas mais espirituais; isso, porém, não
ontológica.
eliminao significado básico dessagênese
Um processo similar ocorre com o dever-ser. Oconteúdo do
dever-ser é um comportamento do homem determinado por fina
lidades sociais (e não por inclinações simplesmente naturais
pontaneamente humanas). Ora, essencial ao trabalho é que nele när
anenas todos os movimentos, mas também os homens que o realizam
devem ser dirigidos por finalidades determinadas previamente. Por.
tanto, todo movimento é submetido a um dever-ser. Também aquiaaui
não surge nada de novo, no que se refere aos elementos ontologica
mente importantes, quandoessa estrutura dinâmica se transfere para
campos de ação puramenteespirituais. Ao contrário, os anéis da ca
deiaontológica, quedo comportamento inicial levam até os subse
qüentes comportamentos mais espirituais, aparecem em toda a sua
clareza, diferentemente do que ocorre no caso dos métodos gnosioló
gico-lógicos, nos quais o caminho que leva das formas mais elevadas
àquelas iniciais resulta invisível, ou, melhor dizendo, nos quais as
segundas aparecenm,do pontode vista das primeiras, até mesmo como
oposições.
Seagora, partindodo sujeito quepõe, lançamos um olhar sobre
o processo global do trabalho, notamos imediatamente que esse
sujeitocertamente realiza a posição teleológica de modo consciente,
mas sem jamais estar em
condições de ver todos os condiciona
mentos da própria atividade, para não falarmos de todas as suas
conseqúências. Éóbvio que isso não impede que os homens atuem.
De fato, existem inúmeras situações nas
nar, éabsolutamente necessário que o
quais, sob pena de se arrul
homem atue, embora tenha
claraconsciência de que pode
conhecer apenas uma parte minlma
das circunstâncias. E, no próprio
sabe quepode trabalho, o homem muitas vezes
dominar apenas uma pequena faixade elementos Cir
cunstantes; mas sabe também - já que o
nessas condições, o trabalho promete carecimento urge e, mesmo
realizá-lo de algum modo. satisfazê-1o - que ele é capaz e
As BASES ONTOLÓGICAS 233

Essa ineliminável situação tem duas importantes conseqúên-


lugar, a dialética interna do constante aperfeiçoa-
cias. Em primeiro
mentodo trabalho se dá
porque, enquanto otrabalho érealizado, a
observação dos seus resultados etc. faz crescer continuamente afaixa
se tornam cognoscíveisveis e, por conseguinte, o
de determinações que abarca campos cada vez
trabalho setorna cada vez mais variado,
maiores, sobe de nível tanto em extensão
quanto em intensidade. Na
não pode
medida, porém, em que esse processo de aperfeiçoamento
eliminar o fato de fundo, ou seja, a incognoscibilidade do conjunto
modo de ser do trabalho - paralelamente ao
das circunstâncias, esse
de uma realj
seu crescimento - desperta também a sensação íntima
dade transcendente, cujos poderes desconhecidoso homem tenta de
algum modo utilizar em seu próprio proveito. Não éaqui o local para
uma análise detalhada das diversas formas de práica mágica, de fé
religiosa etc. quese desenvolvem a partir dessa situação. Todavia, em
de tais formas
bora essa seja apenas, como éóbvio, uma das fontes
ideológicas, não podíamos deixar de mencioná-la. Em especial
porque o trabalho é não apenas o modelo objetivamente ontológico
-
detoda práxis humana, mas também-nos casos aqui mencionados
realidade,
o modelo diretoque serve de exemplo àcriação divina da
na qual todas as coisas aparecem como produzidas teleologicamente
por umcriador onisciente.
O trabalho éum atode pôr consciente e, portanto, pressupóe
um conhecimento concreto, ainda que jamais perteito, de finalidades
emeios determinados. Vimos que o desenvolvimento, oaperteiçoa
mento, do trabalho éuma de suas características ontológicas; disso
sociais de ordem
Tesuita que, ao se constituir, o trabalho geraprodutos
a
mals elevada. Talvez a mais importante dessas diferenciações seja
Crescente autonomização das atividades preparatórias, ou seja, a se
concreto, tem lu
Paraçãosempre relativa que, no próprio trabalho
por outro, as finalidades e
6 enre o conhecimento, por um lado, e, eram ori
OSmeios, A matemática, a geometria,a fisica, a químicaetc.
preparatório do tra
sarlamente partes, momentos desse processo autôno-
balho. Pouco a pouco, elas cresceram até setornarem camposessa fun
inteiramente, porém,
Os de conhecimento, sem perderem
234 GYÖRGY LUKÁCs

çåo originária. Quanto mais universais e autônomas se tornam


ciências, tanto mais universal e perfeitotorna-se por sua vez o essas
traba-
lho; quanto mais elas crescem, se intensificam etc., tanto
torna a influência dos conhecimentos assim obtidos sobre as
maior se
lidades e osmeios de efetivação do trabalho. fina-
Uma tal diferenciação é já uma torma relativamente aperfei.
coada de divisão do trabalho. Essa divisão, todavia, é a consegüèncis
ais elementar do desenvolvimento do próprio trabalho. Mesmo
antes que o trabalho houvesse atingido sua explicitação plena e
intensiva digamos, mesmo no período da coleta dos produtos
naturais -, esse fenômeno da divisão do trabalho jáse manifesta na
caça. Digna de nota, paranós, éaqui a manifestação de uma nova
forma de posição teleológica; ou seja, aquinão se trata de elaborar um
fragmentoda natureza de acordo com finalidades humanas, mas, ao
contrário, um homem (ou vários homens) é induzido a realizar
algumas posições teleológicas segundo um modo predeterminado. Já
que um determinado trabalho (por mais que possa ser diferenciada a
diviso dotrabalho que o caracteriza) pode ter apenas uma finalidade
principal unitária, épreciso encontrar meios que garantam esse
caráter unitário da finalidade na preparação ena execução do tra
balho. Por isso, essas novas posiÇões teleológicas devem entrar em
ação no mesmo momento em que surge a divisão do trabalho; e
continuam a ser, mesmo posteriormente, um meioindispensável em
todo trabalho que se funda sobre a divisão do trabalho. Com a
diferenciação social de nívelsuperior, com o nascimentodas classes
sociais com interesses antagônicos, esse tipo de posição teleológica
torna-se a base espiritual-estruturante do que o marxismo chama de
ideologia. Ou seja: nos conflitos suscitados pelas contradições das
modalidades de produção mais desenvolvidas, a ideologia produz as
formas através das quais os homnens se tornam conscientes desses
conflitose neles se inserem mediante a luta .
Esses conflitos envolvem de modo cada vez mais profundo a
totalidade davida social. Partindo dos contrastes privados e resolvidos
de modo diretamente privado no trabalho individual e na vida coti
diana, eleschegam até aqueles graves complexos problemáticos que a
humanidade vem se esforçando até hoje para resolver através da luta,
As BASES ONTOLÓGICAS 235

e1as grandes transtormaçoes SOCiais. A estrutura de base, porém.


revela sempre traços essenciais comuns: assim como, no próprio
trabalho,ossaber real sobre os processos naturais envolvidos em cada
so concreto é imprescindivel para poder desenvolver com èxitoo
intercâmbio orgânico da. sociedade com a natureza, do mesmo modo
certosaber sobre a natureza dos homens, sobre suas recíprocas
relações sociais pessoais, é aqui indispensável para induzi-los
efetuar as posições teleológicas desejadas. Todo oprocesso através do
qual, a partir desses conhecimentos surgidos por necessidade vital
(aue, no início, assumiram as formas do costume, da tradição, dos
hábitos e também do mito), se desenvolveram em seguida procedi
mentosde tipo racional, até mesmo algumas ciências, todo este pro
cesso é,nas palavras de Fontane, um "campo imenso". Portanto, não é
pOssível abordá-lo numa conferência. Podemos apenas afirmar que
os conhecimentos que influenciam o intercâmbio orgånico com a
natureza são muito mais facilmente desvinculáveis das posições
teleológicas que condicionaram o seu aparecimento do que os co
nhecimentos dirigidos no sentido de influenciar os homens e os
grupos humanos.Nesse último caso, a relação entre finalidade e fun
damentação cognoscitiva é muito mais íntima. Essa afirmação, con
tudo, não nos deve induzir ao exagero gnosiológico que consiste em
identificar ou diferenciar de modo absoluto os dois processos. Trata
se de elemnentos ontológicos comunsou diversos, que estãosimulta
neamente presentes e que podem encontrar solução somente numa
concreta dialética histórico-social.
Nestaconferência, podemos mencionar apenas a base sócio
ontológica. Todo evento social decorre de posições teleológicas
Individuais, mas, tomado em si mesmo, é de caráter puramente
causal. Agènese teleológica, todavia, tem naturalmente importantes
conseqüências para todos os processos sociais. Por um lado, dela
podem surgir objetos, com tudo o que disso decorre, que não po
deriam ser produzidos pela natureza; basta pensar, para continuar
da aquino campo dos primitivos, no exemplo da roda. Poroutro
lado, toda sociedade se desenvolve até níveis onde a necessidade deixa
de operar de maneira mecånico-espontânea; omodo de manifestação
típico da necessidade passa a ser, cada vez mais nitidamente e a
GYÖRGY LUKÁCS
236

denender do caso concreto, aquele de induzir impelir coagir etc o.


homens a tomarem determinadas deCiSões teleológicas, ou entx
impedir que o façam.
Oprocesso global da sociedade éum processo causal. uue
que
possui suas próprias leis, mas não ê jamais dirigido objetivamente
para arealização de finalidades. Mesmo quando alguns homens ou
grupos de homensconseguem realizar suas finalidades, os resultadoe
produzem, na maioria dos casos, algo que é inteiramente diverso
daquiloque se havia pretendido. (Basta pensar no modopelo qual o
desenvolvimento das forças produtivas,na Antigüidade, destruiu as
bases da sociedade; ouno modo pelo qual, num determinadoestágio
do capitalismo, esse mesmo desenvolvimento provocou crises
econômicas periódicas etc.) Essa discrepância interior entre as posi
Ções teleológicas e os seusefeitos causais aumenta como crescimento
das sociedades, com a intensificação da participação
em tais sociedades. Naturalmente, também isso deve sócio-humana
ser entendido
em sua contraditoriedade concreta. Certos grandes
eventos econô
micos (como, por exemplo, a crise de 1929) podem se
a aparência de irresistíveis apresentar sob
catástrofes naturais. A história mostra,
porém, que, precisamente nas reviravoltas mais significativas basta
pensar nas grandes revoluções -, foi bastante importante o que
costumava chamar de fator subjetivo. Êverdade que a diferençaLeninentre
a finalidade e seus efeitos se
dos elementos e tendências
expressa como preponderância de tato
materiais noprocesso de reprodução da
sociedade. Isso não significa, porém, que esse processo
mar-se sempre de modo necessário, sem ser consiga afir
abalado por nenhuma
resistência.O fator subjetivo, resultante dareação humana a taisten
dências de movimento, permanece
comoum fator que provoca sempre, em muitos campos,
cisivo. mudançase, por vezes, é até mesmo de

Tentamos mostrar como as categorias


conexões no ser social jáestão dadas no fundamentais e suas
trabalho, Os limites dessa
conferência não nos permitem seguir, ainda que sóde modo indi
As BASES ONTOLÓGICAS 237

cativo, a ascensão gradual do trabalho até a totalidade da sociedade.


(Por exemplo: nãopodemos nos deter sobre transições importantes
comoa do valor de uso ao valor de troca, desse último ao dinheiro
etc.) Por isso, oS ouvintes a fim de que eu possa pelo menos me
referir àimportânciaque os elementos atéaqui esboçados têm para o
coniunto da sociedade, para seu desenvolvimento, para suas pers
pectivas -devem permitir-me deixar de lado zonas de intermediação
concretamente bastante importantes, com o objetivo de esclarecer
assim um pouco mais amplamente pelo menos o vínculo mais geral
desse início genético da sociedade e da história com seu próprio de
senvolvimento.
Antes de mais nada, trata-se de ver em que consiste aquela
necessidade econômica que amigos e inimigos de Marx, analisando
com escassa compreensão oconjunto da sua obra, costumam exaltar
ou denegrir. Cabe sublinhar, de imediato, uma coisa óbvia: não se tra
ta de um processo de necessidade natural, embora o próprio Marx
em polêmica contra o idealismo - tenha algumas vezes usado essa
expressão. Jáfizemos referência à razão ontológica fundamental, ou
seja, àcausalidade posta em movimento por decisões teleológicas
alternativas. Desse fato decorre que nossos conhecimentos positivos a
respeito dessa necessidade devem, quanto aos aspectos concreta
mente essenciais, ter um caráter post festum. Decerto, algumas ten
dências gerais são visíveis; mas, concretamente, elas se traduzem na
prática de modo bastante desigual, razão por que apenas num se
gundo momento éque conseguimos saber qual éo seu efetivo caráter.
Na maioria dos casos,tão-somente os modosde realização dos produ
tossociais mais diferenciados, maiscomplexos, éque mostram clara
mentequal foi na realidadea orientação evolutivade um períodode
transformação. Portanto, tais tendências só podem ser apreendidas de
modo preciso num segundo momento;da mesma maneira,os juízos,
aspirações,previsões sociais etc. que se formaram neste meio tempo
eque não sãode modo algum indiferentes em face da explicitação das
próprias tendências só são confirnados ou refutados numa etapa
posterior.
No desenvolvimento econômico que teve lugar até hoje,
podemos notar a presença de três orientações evolutivas desse tipo, as
GrÖRGY LUKÁCS
238

quais se realizaram de modo evidente, ainda que freqüentemente


desigual, masde qualquer modo independentemente da vontadeed
saber que serviram de fundamento às posições teleológicas.
Em primeiro lugar, háuma tendência constante nosentido d
diminuirotempo de trabalho socialmente necessário àreproducäo
dos homens. Trata-se de uma tendência geral, que hoje já ninguém
contesta.

Em segundo lugar, esse processo de reprodução tornou-se cada


vez mais nitidamente social. Quando Marx se refere a um constante
recuo das barreiras naturais", pretende indicar, por um lado, que a
vida humana (e, portanto, social) jamais pode desvincular-se in
teiramente de sua base em processos naturais; mas, por outro,quer
mostrar que, tantoquantitativa quanto qualitativamente, diminuide
modo constante o papel do elemento puramente natural (quer na
produção,quer nos produtos)e quetodos os momentosdecisivos da
reprodução humana basta pensar em aspectosS naturais como a
nutriçãoouasexualidade - acolhem em si, com intensidade cada vez
maior, momentos sociais, pelos quais são constante e essencialmente
transformados.
Em terceiro lugar, o desenvolvimento econômico cria ligações
quantitativas equalitativas cada vez mais intensas entre as sociedades
singulares originariamente pequenas e autônomas, as quais - de
modo objetivo e real - compunham no início o gênero humano. O
predomínio econômico do mercado mundial, que hoje se afirma
cada vez mais fortemente, mostra que a humanidade jáse
unificou,
pelo menos no sentidoeconômico geral. Éverdade que tal
existe apenas como ser e ativação de princípios unificação
unidade. Ela se realiza concretamente num mundo econômicos reais de
onde essa in
tegração gera paraa vida dos homens e dos povos os mais
ásperos conflitos (por exemplo: a questão dos negros nos graves e
Unidos). Estados
Em todos esses casos, estamos diante de
tantes, decisivas, da transformação tanto tendências impor
ser social, através das quais externa quantointerna o
este último chega à forma que lhe é
própria; ou seja, o homem deixa a condição de ser natural para tornar"
se pessoa humana,
transforma-se de espécie animal que alcançou uni
As BASES ONTOLØGICAS 239

certo grau de desenvolvimento relativamente elevado em gênero


humano, em humanidade. Tudo isso é o produto das séries causais
aneSurgem no conjuntoda sociedade. Oprocesso em si não tem uma
finalidade. Seu desenvolvimento no sentido de níveis superiores
contém, por isso, a ativação de contradições de tipo cada vez mais
elevado, cada vez mais fundamental. Oprogresso édecerto uma sín
tese das atividades humanas, mas não o aperfeiçoamento delas de
acordo com uma teleologia qualquer: por isso, tal desenvolvimento
destrói continuamente os resultados primitivos que, embora belos,
são economicamente limitados; por isso, o progresso econômico
objetivo aparece sempre sob aforma de novos conflitos sociais. É
assim que surgemn, a partir da comunidade primitiva dos homens,
antinomias aparentemente insolúveis, isto é, as oposições de classe,
de modo que até mesmo as piores formas de inumanidade são o
resultado desse progresso. Em seus inícios, a escravidão constitui um
progresso em relação ao canibalismo; hoje, ageneralizaço da aliena
ção dos homens é um sintoma do fato de que o desenvolvimento
econômico estáem vias de revolucionar a relação do homem com o
trabalho.
Aindividualidade já aparece como uma categoria do ser
natural, assim como ogênero. Esses dois pólos do ser orgånico podem
se elevar a pessoa humana e a gênero humano no ser social somente
de modo simultâneo, somente no processo que torna a sociedade
cada vez mais social. O materialismo anterior a Marx não chegou
sequer a colocar este problema. Para Feuerbach, como Marx obser
vouem sua crítica, háapenas o indivíduo humano isolado, por um
lado, e, por outro, um gênero mudo, que relaciona os múltiplos in
divíduos somente no plano natural. Tarefa de uma ontologia mate
rialista tornada histórica é, ao contrário, descobrir agênese, ocres
cimento, as contradições no interior do desenvolvimento unitário; é
mostrar queo homem, comosimultaneamente produtor e produto
da sociedade, realiza em seu ser-homem algo mais elevado que ser
simplesmente exemplar de um genero abstrato, que ogenero, nesse
nível ontológico, no nível do ser socialdesenvolvido, não é mais uma
mera generalização àqual os vários exemplares se ligam de modo
"mudo";émostrar que tais exemplares, ao contrário, elevam-se até o
240 GYÖRGY LUKÁCS

pontode adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada


até alcançarem a síntese ontológico-Social de sua singularidade
(convertida em individualidade) com o gênero humano (convertido
neles em algo consciente de si).

Como teórico desse ser edesse devir, Marx extrai todas as


conseqüências do desenvolvimento histórico. Descobre gue os
homens se criaram a si mesmos como homens através do trabalbo.
masque sua história até hoje foiapenas apré-história da humanidade.
A história autêntica poderácomeçar apenas com o
comunismo, com
o estágio superior do socialismo. Portanto, o comunismo nãoé para
Marx uma antecipação utópico-mental de um estado de perfeição
imaginada ao qual se deve chegar; ao contrário, éo início real da
explicitação das energias autenticamente humanas que odesenvol
vimento ocorrido até hoje suscitou, reproduziu, elevou contradito
riamente a níveis superiores, enquanto importantes conquistas da
humanização. Tudo isso éobra dos próprios homens, resultado da
atividade deles.
"Os homens fazem sua própria história", diz Marx, "mas não a
fazem como querem, sob circunstâncias de sua escolha Isso quer
dizer o mesmo que antes formulamos do seguinte modo: o homem é
um ser que dárespostas. Aquise expressa a unidade - contida de mo
do contraditoriamente indissolúvel no ser social -
entre liberdade e
necessidade, a qual jáse manifesta no trabalho como unidade indis
soluvelmente contraditória das decisões teleológicas entre alterna
tivas comn as premissas e conseqüências
ineliminavelmente ligadas a
uma relação causal necessária. Uma unidade que se
reproduz
continuamente sob formas sempre novas, cada vez mnais complexas
mediatizadas, em todos os níveis sócio-pessoais da atividade humana.e
Por isso, Marx fala do período inicial da
humanidade comode um "reino da liberdade",autêntica história da
o qual, porém, `só
pode florescer com base no reino da
dução econômico- socialda humanidade, necessidade" (isto é, da repro
das tendências objetivas de
desenvolvimento àqual nos referimos
anteriormente).
As BASES ONTOLÓGICAS 241

Precisamente essa ligação do reino da liberdade com sua base


sócio-material, com oreino econômico da necessidade, mostra como

aliberdade do gênero humano éo resultado de sua própria atividade.


Aliberdade, bem como sua possibilidade, não éalgo dado por
natureza, não éum dom concedido a partir do alto e nem sequer uma
E
parte integrante - de oorigem misteriosa do ser humano. Éo produto
da própria atividade humana, a qual, embora sempre engendrecon-
cretamente algo diferente daquilo que se propusera, termina por ter
conseqüências que ampliam, de modo objetivo e contínuo,o espaço
no qual a liberdade se torna possível; e tal ampliação ocorre, precisa
mente, de modo direto, no processo de desenvolvimento econômico,
decisões
noqual, por um lado, aumenta o número, o alcance etc. das
humanas entre alternativas, e, por outro, eleva-se ao mesmo tempo a
capacidade dos homens,na medida em quese elevam as tarefas a eles
colocadas por sua própria atividade. Tudo isso,naturalmente, perma
nece ainda no "reino da necessidade".
Contudo, o desenvolvimento do processo de trabalho, do
feita indiretas:
campo de atividade, tem outras conseqüências, dessa
antes de mais nada, o surgimento e a explicitação da personalidade
capacida
humana. Esta possui, como base inevitável, a elevação das
Aliás, épossível
des, mas não é sua simples e linear consecução.
verificado,manifesta-se
constatar que, no desenvolvimento até agora
mesmo uma relação de
entre os dois processos, com freqüência, até diferentes
diversamente nas
oposição. Essa oposição se manifesta
aprofunda àmedida que esse
etapas do desenvolvimento, mas se desenvolvimento das
desenvolvimento se tornamais elevado. Hoje, o
mais nitidamente,
capacidades, que vão se diferenciando cada vez per
obstáculo para o vir-a-ser da
aparece até mesmo como um personalidade
sonalidade, como um veículo para a alienação da
humana.
homens
Já com o trabalhomais primitivo, a conformidade dos
princípio e em sua ime
com o gênero deixa de ser muda. Mas, no consciência
diaticidade, ela se torna apenas um ser-em-si, ou seja, a
maiores
ativa do respectivo contexto social fundado na economia. Por
que sejam os progressos da soCiabilidade, por mais que seu
horizonte
se amplie, a consciência geral do gênero humano não supera ainda
242 GrORGY LUKACS

essa particularidadeda condição dada do indivíduo edo gênero em


cadaoportunidade concreta.
Contudo, aaelevação da conformidade ao gênero jamais desa-
parece completamente da ordem do dia da história. Marx define o
reinoda liberdade dizendo ser ele "um desenvolvimento das fr
bumanas comoum fimem si mesmo,° ou seja, como algo que tem
tanto parao homem individual quanto para asociedade, um con
teúdo suficiente para transformá-lo em finalidade autônoma. Anter
de mais nada,é claro que uma talconformidade ao gênero pressupõe
um nível doreino da necessidade que ainda está muito longe de ser
atingido. Sóquando o trabalho for efetiva e completamente con
trolado pela humanidade - e, portanto, só quando ele tiver em si a
possibilidade de ser "não apenas meio de vida", mas o "primeiro ca
recimento da vida" , só quando ahumanidade houver superado
qualquer caráter coercitivo em sua própria autoprodução, só então
terá sido aberto o caminho social para a atividade humana como fi
nalidade autônoma.
Abrir o caminho significa: criar as condições materiais ne
cessárias e um campo de possibilidades para a livre utilização de si. As
duas coisas são produtos da atividade humana. Mas a primeira é fruto
de um desenvolvimentonecessário, enquanto a segunda resulta do
usocorreto, humano, do que foi produzido
necessariamente. A pró
pria liberdade não pode ser simplesmente um produto necessário de
um desenvolvimento inelutável, ainda que todas as
premissas de sua
explicitação encontrem nesse desenvolvimento -e somente nele -
suas possibilidades de existência.
Epor isso que não estamos aqui diante de uma
utopia. Com
eteito, em primeiro lugar, todas as suas possibilidades efetivas de
lização são produzidas por um processo necessário. Não é rea
jáno primeiríssimoestágio do trabalho casual que
momentoda liberdade na decisão entretenhamos dado tanto peso ao
conquístar sua própria liberdade através alternativas.
O homem deve
só pode fazê-lo porque toda sua de sua própriaação. Mas ele
constitutiva necessária, também umatividade já contém, como parte
Aqui, porém, hámuito mais. momento
de liberdade.
Se
festasse ininterruptamente no curso deesse momento não se mani
toda a história humana, se
As BASES ONTOLÓGICAS 243

não conservasse nela uma perene continuidade, não poderia natural-


mente desempenhar opapel de fator subjetivo nem sequer durante a
grande virada. Mas a contraditória desigualdade do desenvolvimento
sempre provocou tais conseqüências. Já o caráter causal das conse
qüências das posições teleológicas faz com que todo progresso se
fotive como unidade contraditória entre progresso e regressão. Com
as ideologias, tal fato não apenas é elevado à consciència (gue fre
aüentemente éuma falsa consciência) edefendido segundo os res
pectivos interesses sociais antagônicos, mas é igualmente referido às
sociedades comototalidades vivas, aos homens como personalidades
que buscam seu verdadeiro caminho. Por isso, em algumas importan
tes manifestações individuais, volta continuamente a se expressar a
imagem - até agora sempre fragmentária - de um mundo de ativida
des humanas que édigno de ser assumido como finalidade autônoma.
Aliás, deve-se notar que, enquanto os novos ordenamentos práticos
que em seu tempo marcaram época desapareceram da memória da
maior parte da humanidade sem deixar traço, essas
manifestações
individuais - na prática necessariamente vs, freqüentemente con
denadas aum fimn trágico - conservam-se, ao contrário, como
algo
ineliminável e vivo na memória da humanidade.
Temos aqui a consciência da melhor parte dos homens, ou
seja, dos homens que, no process0 da aut¿ntica
humanização, se
colocaram em condições de dar um passo à frente com relação à
maioria de seus contemporâneos; é essa consciência que, a despeito
e todo problema prático, empresta às suas
durabilidade. Neles se expressa uma comunhomanifestações
uma tal
de personalidade e
sociedade que tem como objetivo precisamente essa conformidade
plenamente explicitada dohomem ao gênero. Estes homens revelam
Se disponíveis a empreender um progresso interior
quando se
Testam as crises às quais o gênero chegou pelos caminhos mani
com isso, eles contribuem para produzir normais;
efetivamente uma confor
nidade ao gênero para-si, nos momentos em que tal
revelou-se materialmente possível. conformidade
A maior parte das ideologias esteve e está a
Servaçãoe do desenyolvimento da conformidade aoserviço da con
gênero em-si.
Por isso,
orientam-se semprepara a atualidade concreta, aparelham-
GYÖRGY LUKÁCS
244

se sempre de modo a corresponder aos variados da luta tipos


Mas somente a grande filosotia e agrande arte (assim co atual,
em.
comportamento exemplar de alguns indivíduos em sua ação)
operam
em direco contrária, na direçao do genero para-Si, e, por isso
servam-se espontaneamente na
memória memória da humanidade.
acumu
lam-se enquanto condiçöes de uma disponibilidade: torna
homens interiormente disponíveis para o reino daliberdade.
aqui, antes de mais nada, uma recusa sócio-humana das Temos
tendências
quepõemem perigo essefazer- ndo homem. O
jovem
por exemplo,viu nodomínio da categoria do "ter" o Drincinal Marx,
perigo.l
Nãopor acaso ele supôs que a lutade libertação da humanidade
minavana perspectiva segundo a qual os sentidos humanos se trans.
formariam em elaboradores de teorias. Também certamente noA
casual o fato de que, ao lado dos grandes filósofos, Shakespeare eos
trágicos gregos tenham desempenhado um papel tão importante na
formação espiritual e na conduta de Marx. (Tampouco é casual a
admiração de Lenin pela Apassionata de Beethoven.) Aqui podemos
ver como os clássicos do marxismo, ao contrário dos seus epigonos,
todos dominados pela idéia da manipulação exata, jamais perderam
de vista a modalidade particular de realização do reino da liberdade,
embora tenham sabido avaliar - de modo igualmente claro -o indis
pensável papel de fundamento desempenhado pelo reino da ne
cessidade.
Hoje, na tentativa de renovar a ontologia marxiana, deve-se
dar igual importância aambos os aspectos: a prioridade do elemento
material na essência, na constituição do ser social, por um lado, mas,
por outroe ao mesmo tempo, anecessidade de compreender que
uma concepção materialista da realidade nada tem em comum com
a capitulação, habitual em nossos dias, diante dos particularismos
objetivos ou subjetivos.

Notas
I Lukács cita
aqui uma presente na "Introdução" (1857)
(1 a Para a
expressa0
crítica da economia politica, em id., Manuscritos econômico-filosóficos e outros
As BASES ONTOLÓGICAS 245

textos escolhidos, São Paulo, Abril Cultural, col. "Os pensadores", v. 35,
1974, p. 127.
2A menção, aqui, éà célebre observação de Marx (0 capital, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1998, livro 1, v. 1,p. 211-212), segundo a qual "o que
distingue o piorarquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua
construção da casa] antes de transformá-la em realidade"
Lukács parafraseia a seguinte observação de Marx: "¾necessário distinguir
sempre entre atransformação material das condições econômicas de pro
dução [...]eas formas jurídicas, políticas, religiosas,artísticas ou filosóficas,
em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência
deste conflito e o conduzem até o fim" ("Prefácio" [1859) a Para a crítica
da economia política, em id., Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos
escolhidos, cit., p. 136).
Areferência é àsexta tese sobre Feuerbach, onde Marx diz: "Por isso, [em
Feuerbach) a essência só pode ser captada como gênero, generalidade
interna, muda, que liga muitos homens de modo natural" (Teses contra
Feuerbach, em Manuscritos etc., cit., p. 58).
5"Com essa formação social [capitalista) se encerra a pré-história da humani
dade" (Marx, Prefácio" (1859), cit., p. 136).
"K. Marx, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro, Paz eTerra,
1968, p. 17.
7"De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser deter
minado por necessidade e por utilidade exteriormente impostas. [Mas este
reino] sópode florescer tendocomo base o reino da necessidade" (K. Marx,
Ocapital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, livro 3, v. 3, p. 942).
Ibid.

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