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ÍNDICE
Capítulo 33
O INÍCIO DA REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA9-34
O Papado e os Seres Humanos - O Estado da Igreja Romana no Início do
Século XVI - O Primeiro Período da Vida de Lutero - O Segundo Período da
Vida de Lutero - Lutero e a Piedosa Úrsula - Lutero Entra na Universidade de
Erfurt - Lutero Vê uma Bíblia Pela Primeira Vez - Como Estudar a Bíblia -
Lutero se Torna Monge - A Experiência de Lutero Como Monge - A Conversão
de Lutero - Lutero e Staupitz - Reflexões Acerca da Conversão de Lutero -
Lutero Como Sacerdote e Professor - Lutero Visita Roma
Capítulo 34
O PRIMEIRO JUBILEU PAPAL39-66
O Ano Dourado - O Comércio de Indulgências - Os Agentes do Papa — João
Tetzel - Uma Amostra do Típico Sermão de Tetzel - Lutero Enfrenta Tetzel
Publicamente - Lutero em Heidelberg - Lutero em Augsburgo - Lutero em
Altemburgo - Homens Eminentes do Século XVI - Lutero e a Bula da
Excomunhão - Lutero e Carlos V - A Dieta de Worms - A Convocação de
Lutero e seu Salvo Conduto - Lutero Comparece Diante da Assembleia - A
Oração de Lutero - Lutero Comparece Pela Segunda Vez - Reflexões Acerca
da Presença de Lutero na Dieta de Worms
Capítulo 35
LUTERO EM WARTBURG69-86
Reflexões Acerca do Cativeiro de Lutero - Lutero Retorna Para Wittenberg -
Lutero e a Bíblia em Alemão - O Progresso Geral da Reforma Protestante - A
Reforma e Henrique VIII - As Igrejas Luteranas - “As 100 Queixas da Nação
Alemã” - Eventos Adversos à Reforma Protestante - Os Anabatistas - A
Questão Acerca do Sacramento da Ceia - Chefes Políticos da Reforma
Protestante - A Primeira Dieta de Speyer - A Segunda Dieta de Speyer - O
Protesto
Capítulo 36
O PROTESTANTISMO89-105
A Carta à Igreja em Sardes - As Igrejas Luteranas 1526 - 1529 d.C. - A
Fundação das Primeiras Igrejas Luteranas - A Morte de Frederico, o Sábio - O
Apelo dos Príncipes - Encontros dos Protestantes
Capítulo 37
A CONTROVÉRSIA ACERCA DO SACRAMENTO DA SANTA CEIA107-123
A Opinião de Zuínglio - Karlstadt, Lutero e Zuínglio - Convocação Para um
Encontro em Marburgo - A Conferência em Marburgo - Uma Proposta Para o
Exercício da Tolerância e da Unidade - Reflexões Acerca da Conferência de
Marburgo
Capítulo 38
O ENCONTRO EM BOLONHA127-147
A Dieta de Augsburgo - A Confissão de Augsburgo - A Chegada do Imperador
Carlos V a Augsburgo - Os Líderes da Dieta de Augsburgo - A Abertura da
Dieta de Augsburgo - Os Artigos de Fé - Os Artigos Acerca das Falsas
Doutrinas e dos Abusos - A Inquietação dos Protestantes - As Preocupações e
Temores de Melanchthon - As Cartas de Lutero à Melanchthon
Capítulo 39
A REFUTAÇÃO DA CONFISSÃO151-168
A Refutação Católica Não é Aceita Pelos Protestantes - Negociações Secretas
- O Fim da Dieta - O Decreto Imperial - Reflexões Sobre a Dieta de Augsburgo
- A Providência de Deus nos Assuntos do Imperador Carlos V - A Liga de
Esmalcalda - O Segundo Encontro em Esmalcalda - O Imperador Carlos
Procura uma Conciliação com os Protestantes - A Paz de Nuremberg - A
Opinião dos Historiadores
Capítulo 40
A REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA171-188
A Introdução do Cristianismo na Suíça - O Nascimento e a Educação de
Zuínglio - Zuínglio Como Pastor em Glarus - Zuínglio em Einsiedeln - Zuínglio e
a Reforma em Einsiedeln - Os Efeitos das Pregações de Zuínglio - Zuínglio se
Muda Para Zurique - Zuínglio e o Evangelho - Zuínglio e a Venda de
Indulgências - A Tempestade Irrompe
Capítulo 41
OS LÍDERES DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA191-216
Reflexões Acerca do Raiar da Reforma Protestante na Suíça - O Progresso da
Reforma Protestante em Zurique 1522 d.C. - Os Monges Conspiram Contra
Zuínglio - Os Escritos de Zuínglio - Zuínglio e seus Irmãos - As Disputas em
Zurique - As Teses de Zuínglio - A Reunião em Zurique - As Consequências do
Decreto - O Zelo de Zuínglio e de Leo Jud - A Segunda Disputa em Zurique - A
Palavra de Deus Prevalece - Reflexões Acerca do Caráter da Conferência
Capítulo 42
AS CONSEQUÊNCIAS DOS DEBATES219-235
O Primeiro Mártir da Reforma Protestante na Suíça - O Sangue de Hottinger
Inflama Ainda Mais o Zelo dos Papistas - A Resposta de Zurique - A Remoção
das Imagens - A Reforma Protestante na Suíça e na Alemanha - O Casamento
de Zuínglio - O Progresso da Reforma Protestante - As Armas de Roma - A
Prisão Ilegal de Oexlin - As Falsas Acusações Contra Wirth e seus Filhos - A
Assembleia Reunida em Baden - Os Membros da Família Wirth e o Irmão
Ruteman São Falsamente Acusados - O Martírio de João Wirth, seus Filhos e
do Irmão Ruteman
Capítulo 43
O PROGRESSO GERAL DA REFORMA PROTESTANTE239-264
A Abolição da Missa Católica Romana - A Celebração da Ceia do Senhor - A
Reforma Protestante em Berna - As Freiras de Königsfeld - A Conferência em
Baden - O Início da Dieta - A Grande Conferência em Berna - A Oposição de
Roma - O Início da Conferência em Berna - Os Regulamentos da Conferência -
Os Resultados da Conferência - A Graça do Evangelho - A Reforma na
Basileia - O Povo se Adianta ao Governo - A Basileia Sob um Estado de Sítio -
As Imagens São Destruídas - As Consequências da Revolução
Capítulo 44
A POSTERIOR DIVULGAÇÃO DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA267-295
A Mistura de Interesses Espirituais e Políticos - O Primeiro Passo em Falso: “A
Confederação” - Cinco Cantões Formam uma Liga com a Áustria - Os Cantões
Romanos Perseguem os Reformados - A Declaração de Guerra - Preparações
Militares - O Tratado de Kappel - A Confederação Cristã de Zuínglio - Os Cinco
Cantões Rompem o Tratado - As Chamas da Perseguição São Reacendidas -
O Embargo - A Política Adotada Por Zuínglio - Novas Tentativas de Mediação -
A Posição de Zurique e a Reforma Protestante - A Guerra é Iniciada - A
Indecisão do Concelho de Zurique - Os Maus Pressentimentos do Povo - A
Batalha de Kappel - A Morte de Zuínglio - Reflexões Acerca da Vida de
Zuínglio - Tratados de Paz
Capítulo 45
A REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA297-320
Uma Breve Análise dos Acontecimentos - A Divulgação Geral do Evangelho na
Alemanha - Os Principais Personagens Vão Deixando o Cenário - Os Últimos
Anos de Lutero - A Morte de Lutero - O Funeral de Lutero - Reflexões Sobre a
Morte de Lutero - O Senhor Cuida de Seu Servo - A Vida Doméstica e
Particular de Lutero - O Casamento de Lutero - A Festa de Casamento - Lutero
no Círculo da sua Família - Conclusão
Capítulo 46
A ABERTURA DO CONCÍLIO DE TRENTO323-339
O Tratado Entre o Papa e o Imperador - A Guerra de Esmalcalda - O Papa
Revela o Segredo das Trevas - O Exército dos Confederados - As Primeiras
Operações de Guerra dos Protestantes - A Traição de Maurício - A Dissolução
da Liga Protestante - Os Alemães São Tratados Como um Povo Conquistado
Capítulo 47
O PERÍODO “INTERINO”343-360
O Novo Credo - O Período Interino Sofre Oposição dos Protestantes e dos
Papistas - A Submissão de Melanchthon - A Oposição das Cidades Livres -
Uma Nova Reviravolta na Maré dos Acontecimentos - A Revolução na
Alemanha 1552 d.C. - A Fuga do Imperador - A Paz de Passau - Algumas
Reflexões Acerca das Páginas Anteriores - As Calamidades dos Protestantes -
O Surgimento dos Jesuítas - Inácio de Loyola - O Início da Ordem dos Jesuítas
- O Verdadeiro Objetivo dos Jesuítas
GLOSSÁRIO363
ANOTAÇÕES371
Capítulo 33
O INÍCIO DA REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA
1 Existe um ditado católico romano que diz: “Roma Semper Eadem” ou “Roma
Sempre a Mesma”.
2 Confissão auricular é uma prática inventada pela Igreja Católica Romana, onde
seus membros são obrigados a confessarem seus pecados diretamente aos
padres membros do clero.
3 Milman´s Survey, Latin Christianity, vol. 6, p. 357; Greenwood´s Summary, book
14, chap. 1.
4 Por volta do século XII surgiram, primeiramente nos Países Baixos, associações
de mulheres que se uniram para uma vida quieta e contemplativa, sem as regras
de confinamento dos mosteiros. Seu objetivo era guardar uma conduta pura, sem
mácula, e a prática da caridade cristã. Elas se chamavam “beguinas”, que pode
ter sido derivado de santa Begga ou de certo sacerdote chamado Lambert le
Bègue, que dizem ter vivido em Liège, Bélgica, por volta do ano 1180, e que tenha
pregado contra a corrupção do clero. Elas viviam em cabanas individuais, que
tinham que construir com recursos próprios. Todas essas cabanas eram rodeadas
por um muro, e estava sob a direção de uma madre superiora que fora escolhida
por elas mesmas. Essa vila era chamada de “Vila das Beguinas” ou “beguinários”.
No início do século XIII, esta união social também foi imitada pelos homens.
Contudo, estes, para diferenciar-se das associações femininas, se chamavam
“begardos”. Eles formaram um movimento religioso cristão que iniciou na
Alemanha, estendendo-se pela França, Holanda e Espanha. Foram grupos de
pregadores itinerantes que denunciavam a corrupção do clero e pregavam uma
vida fiel ao Evangelho e à experiência dos primeiros apóstolos.
5 D’Aubigné, B. I, S. 139.
6 Waddington´s Reformation, vol. 1, p. 31; D´Aubigné´s Reformation, vol. 1, p. 195.
7 Seu hino mais conhecido é “Castelo Forte”, que se tornou e continua sendo o hino
oficial da Reforma Protestante.
8 Waddington, vol. 1, p. 34.
9 N. do T.: Apesar da Igreja Católica Romana ter modificado sua abordagem quanto
ao uso de Bíblias pelos fiéis, publicando inúmeras versões e traduções, ainda
assim, a grande massa de católicos romanos ignora o verdadeiro conteúdo da
Palavra de Deus.
10 Waddington, vol. 1, p. 47.
11 Transubstanciação: literalmente, mudança da matéria. Assim é chamada, na
doutrina católica, a suposta transformação do pão e do vinho da ceia no corpo e
no sangue de Cristo. Segundo a doutrina da igreja romana, ela ocorre
imediatamente depois da consagração, ou da benção pelo sacerdote, embora a
aparência exterior do pão (hóstia) e o vinho permanecem a mesma.
12 Tratava-se de uma escada que diziam ter sido transportada de forma miraculosa
da casa de Pilatos, em Jerusalém, para Roma.
13 Título honorário concedido pelas universidades ao redor do mundo, para honrar
aqueles que demonstram excelência no estudo da teologia.
14 D´Aubigné, vol. 1. Froude´s Short Studies, vol. 1. Waddington´s Reformation, vol.
1. Universal History, vol. 6, Bagster and Sons.
Capítulo 34
O PRIMEIRO JUBILEU PAPAL
Capítulo 35
LUTERO EM WARTBURG
Capítulo 36
O PROTESTANTISMO
***
AS IGREJAS LUTERANAS
1526–1529 D.C.
Para mostrarmos aos nossos leitores quão fielmente a carta profética à
Sardes reflete as circunstâncias, assim como se formaram durante os
dias dos reformadores e mais ainda depois nas igrejas protestantes,
ofereceremos alguns extratos de Merle d’Aubigné, o escritor confiável e
frequentemente aqui mencionado, que escreveu o livro “História da
Reforma do século XVI”.
“A Reforma precisava de alguns anos de paz para que pudesse crescer
e se fortalecer. Ela podia gozar dessa paz porque seus dois grandes
inimigos estivam em guerra um com o outro. A tolice de Clemente VII
havia salvado a Reforma de um perigo ameaçador, e a queda de Roma
havia auxiliado na edificação da pregação do Evangelho. Isso não foi
proveitoso apenas por alguns meses, mas a paz reinou na Alemanha
entre 1526 até 1529. Essa paz serviu para o desenvolvimento e a
divulgação da Reforma.”
“Uma vez que o jugo papal havia sido quebrado, a igreja renovada
precisava de uma constituição pela qual a ordem eclesiástica devia ser
restabelecida. Era impossível manter os bispos em sua antiga jurisdição,
visto que estes afirmavam serem servos do papa antes de qualquer
coisa. E para que não vigorasse um estado de anarquia, foi necessário
introduzir outra ordem de coisas. Foram tomadas providências para
impedir o caos. Os povos evangélicos se separaram definitivamente do
domínio despótico que por séculos manteve todo o Ocidente sob pesada
escravidão.”
“Por duas vezes, os nobres alemães reunidos em Dieta queriam
transformar a reforma da igreja em uma questão nacional. Porém, o
imperador, o papa e uns poucos príncipes se opunham a essa medida. A
Dieta de Speyer ordenou que cada estado implementasse as
determinações que a própria Dieta não conseguia impor sobre o povo
alemão. Mas que tipo de constituição deveria substituir a hierarquia
papal?”
“Ao mesmo tempo em que suprimiam o papa, eles poderiam preservar
a ordem episcopal. Essa parecia ser a forma mais apropriada, pois era a
forma utilizada até então — foi o que aconteceu mais tarde na Inglaterra,
porém no continente, uma igreja episcopal evangélica era impossível.
Porém, também podiam reconstruir a constituição da igreja recorrendo à
exclusiva validade da Palavra divina e às instruções do Deus soberano,
restabelecendo novamente os direitos do povo cristão. Essa forma era a
mais distante da hierarquia romana. Entre ambos os extremos havia
constituições intermediárias. Zuínglio era a favor da segunda opção,
porém ele não a executou totalmente... O passo diante do qual Zuínglio
hesitava ainda era possível, e de fato aconteceu. Um príncipe levou
adiante aquilo que parecia duvidoso aos republicanos. A Alemanha
evangélica, no momento em que começou a experimentar o
desenvolvimento de sua própria constituição eclesiástica, também deu
início a um processo que abriu um enorme e profundo abismo entre o
povo alemão e a monarquia representada pelo papado, visto que foi a
que combateu isso mais decididamente. Enquanto a Inglaterra
aristocrática perseverou em uma forma episcopal, os obedientes alemães
permaneceram em um tipo de igreja estatal. O extremo democrático
surgiu da França e da Suíça.”3
Por meio destas breves citações, vemos que na restauração da Igreja
os povos e os príncipes se deixaram levar — alguns mais, outros menos
— por princípios políticos e motivações humanas. Apesar dos líderes do
movimento terem um desejo sincero de agir em conformidade com a
Palavra de Deus, ainda assim, parece que nunca lhes passou pela mente
que o próprio Deus havia fornecido uma constituição determinada para
Sua Igreja nas páginas do Novo Testamento. Deus não concedeu ao
homem liberdade alguma de adicionar algo a esta instituição divina ou
alterar uma única palavra das Suas prescrições, da mesma forma que Ele
não concedeu aos israelitas a liberdade de adicionar ou alterar em nada o
modelo do tabernáculo que Ele lhes havia dado por intermédio de
Moisés. Mas, como já tratamos detalhadamente a questão da instituição
e da direção da Igreja no primeiro volume, não é necessário retornarmos
a isso novamente. Todas as coisas devem ser aferidas* pelo padrão da
Palavra de Deus, e tudo aquilo que não tiver a aprovação dela, deve ser
abandonado.
***
A FUNDAÇÃO DAS PRIMEIRAS IGREJAS LUTERANAS
Não podemos afirmar que a Reforma Protestante na Alemanha foi
iniciada no meio das classes mais baixas da população. Na Suíça, o
movimento partiu do povo, na Alemanha partiu mais dos eruditos e dos
príncipes. Desde o início, os príncipes estavam à frente da batalha, e
sentaram-se nos primeiros bancos dos concílios. E assim, naturalmente,
de acordo com d’Aubigné, “a organização democrática (partindo do povo)
teve que dar lugar para o governo civil”. Assim, a instituição das Igrejas
Luteranas foi algo puramente humano e político. Cristo como o centro da
Sua Igreja e o Espírito Santo como o poder agregador trazendo as
pessoas para o centro, foram ignorados por completo. Esse é o motivo
porque o Senhor declara que todos esses sistemas estão “mortos”. É
verdade que nas Igrejas Luteranas e nas Igrejas Reformadas é pregado
sobre Cristo, o Espírito Santo e a Palavra de Deus, e também se crê
nisso; porém não é dado a nenhum deles o lugar que lhes corresponde.
Por isso elas estão sem verdadeira vida, por maior que seja o número
dos crentes que se encontram nelas. Lutero encontrou apoio para
desenvolver o seu trabalho predominantemente entre as classes mais
altas. “Ele aceitou os príncipes como representantes do povo, e a partir
daí, a influência do Estado tornou-se o fator principal na constituição das
igrejas evangélicas na Alemanha.”
A Reforma não é formação. A verdade, como ela foi proclamada
originalmente, e a primeira formação da Igreja no dia de Pentecostes
deveriam ter servido como única guia para os reformadores do século
XVI. No fundo, a Reforma nada mais é do que o retorno àquilo que era
desde o início. Portanto, a Reforma da Igreja deveria consistir na
recondução da Igreja à harmonia com aquilo que Deus manifestou na
Sua Palavra acerca dela. E se no primeiro século a Igreja foi formada
sem a participação de príncipes desse mundo, a mesma não poderia ser
reformada no século XVI sem a participação deles? Por que deveria ser
necessário convocar um poder secular para a Reforma da Igreja se este
não foi necessário no início, na sua formação no dia de Pentecostes? A
verdade de que a Igreja é a assembleia do povo de Deus, o Corpo de
Cristo, era pouco ou nada compreendida pelos reformadores. Desde o
início eles não agiram de acordo com esta verdade, e depois deles, as
igrejas protestantes se afastaram cada vez mais desta verdade. Onde se
encontrava uma compreensão acerca dessa verdade nas igrejas
protestantes? Ela se havia perdido totalmente.
Filipe I, landgrave de Hesse, um príncipe magnânimo* e
empreendedor, foi o primeiro em dar uma constituição às igrejas
localizadas em seus territórios. Foi essa constituição que serviu de
modelo para as novas igrejas da cristandade.
***
A MORTE DE FREDERICO, O SÁBIO
No ano 1525, Frederico, o sábio, Príncipe-eleitor da Saxônia, faleceu.
Ele havia sido um dos mais sinceros amigos e protetores de Lutero.
Contudo, lhe faltava a necessária energia e determinação para ser um
reformador. Ele nunca havia perdido a esperança de conseguir uma paz
sincera e legítima entre os partidos contenciosos. Seu irmão, João, que
se tornou seu sucessor, tinha um caráter totalmente diferente. Ele era um
completo luterano e tinha mais do caráter de um reformador. Em
questões eclesiásticas, ele arrogou para si um poder ilimitado e assumiu
uma posição de liderança. Ele levou Lutero e Melanchthon a elaborarem
“leis acerca da organização da constituição da igreja e do governo da
mesma, incluindo a forma pública de adoração, os deveres e os salários
dos clérigos, e das coisas referentes ao bem-estar da igreja. Estando
plenamente convencido quanto à verdade das doutrinas de Lutero, e
percebendo claramente a impossibilidade de preservar as mesmas caso
a autoridade do pontífice romano fosse mantida, João tomou sobre si
mesmo toda a jurisdição eclesiástica. Ele providenciou para que mestres
competentes e piedosos fossem colocados em todas as igrejas, e
removeu aqueles que considerava incompetentes. Seu exemplo foi logo
seguido por outros príncipes e Estados da Alemanha, que também
haviam se libertado do domínio do pontífice romano; de modo que eles
prescreveram praticamente as mesmas constituições que João havia
implantado”.4 Esse foi o fundamento sobre o qual foram plantadas as
primeiras Igrejas Luteranas ou Reformadas na Alemanha.
O efeito de tais medidas determinadas, como podemos facilmente
supor, logo produziu resultados. Profundas dissensões entre os príncipes
surgiram imediatamente depois das decisões tomadas por João da
Saxônia. O amor pela paz e a moderação de Frederico haviam mantido
os príncipes alemães unidos até certo ponto. Todavia, os procedimentos
de João e dos príncipes que agiram de igual forma, deixaram claro para
todos que eles estavam determinados a separar definitivamente as
igrejas de seus territórios da Igreja de Roma. Essa atitude despertou
sérios temores nos príncipes católicos, que os fizeram pensar em meios
para defender a antiga religião e punir os ousados inovadores. Mas uma
aliança também foi formada pelos príncipes luteranos. Porém, o estado
geral de perturbação em que se encontrava a Europa impediu o início de
uma guerra civil. Como as mãos do imperador Carlos estavam ocupadas
com várias guerras em diferentes lugares, os reformadores foram
deixados em paz até o ano 1529, podendo continuar sua obra. Com isso,
chegamos novamente ao importante período de tempo com o qual
encerramos o capítulo anterior.
***
O APELO DOS PRÍNCIPES
Como já temos visto, através do esforço do partido papal durante a
Segunda Dieta de Speyer (em 1529), o edito emitido contra Lutero na
Dieta de Worms (em 1521) foi confirmado e todas as inovações religiosas
foram terminantemente proibidas. Foi contra essa decisão que a maioria
dos príncipes evangélicos manifestou um solene e deliberado protesto.
Todavia, os príncipes protestantes não estavam satisfeitos em expressar
apenas sua discordância com respeito aos decretos da Dieta de Speyer.
Logo após o término da Dieta, eles se reuniram na casa de um clérigo e
fizeram redigir um documento legal, por meio de dois notários, no qual
davam um breve resumo acerca das deliberações da Dieta, expressavam
suas queixas e apresentavam as razões para justificar o ousado passo
que estavam tomando. Além disso, com expressões respeitosas, porém
determinadas, eles reafirmaram o direito sagrado da consciência humana
em questões relacionadas com a religião e, finalmente, apelaram para o
imperador que organizasse um novo concílio geral. O documento
elaborado pelos príncipes encerrava com as palavras: “Nós, portanto,
apelamos — à Sua Majestade Imperial e ao direito de uma assembleia
livre e universal de toda a santa cristandade — por nós mesmos, por
nossos súditos e por todos aqueles que recebem ou que irão receber
doravante a Palavra de Deus, contra todas as medidas prejudiciais,
impostas no passado, presente ou futuro”5. Esse documento ocupou doze
páginas de pergaminho. Na décima terceira página foram adicionadas as
assinaturas e os selos que equivaliam aos mesmos que haviam sido
colocados no protesto original.
A cópia dessa solene declaração foi imediatamente enviada ao
imperador sob os cuidados de três representantes. Naquela ocasião, o
imperador Carlos V estava viajando da Espanha para a Itália. Os
emissários se encontraram com o imperador na cidade de Placência,
para se desincumbirem da sua tarefa. O imperador ficou grandemente
irado por causa da ousadia dos príncipes alemães e pela coragem de se
oporem à sua soberana vontade. O que feriu o orgulho do arrogante
espanhol foi principalmente o tom determinado do documento. Em sua
irritação, ele ordenou prender os emissários; e lhes proibiu, sob ameaça
de pena de morte, de abandonar seus aposentos ou de dar notícias sobre
sua sorte aos príncipes protestantes. Mas logo ele reconsiderou sua
decisão e os colocou em liberdade, e seguiu seu caminho para Bolonha,
onde ele passou vários meses na companhia do papa Clemente VII, seu
antigo antagonista.
Enquanto isso, os líderes protestantes não estavam inativos. Eles
empregaram todos os meios que estavam à sua disposição para divulgar
a nova doutrina e para fortalecer a sua própria reputação junto ao povo.
No dia 5 de maio, onze dias após terem redigido o apelo, o mesmo foi
impresso e publicado pelo landgrave Filipe de Hesse; e alguns dias
depois o Eleitor da Saxônia seguiu o exemplo. A grande contenda entre
católicos e protestantes agora havia assumido uma forma determinada,
que era patente diante dos olhos de toda a cristandade.
***
ENCONTROS DOS PROTESTANTES
O temor dos príncipes quanto às intenções do imperador foi
confirmado. O tratamento violento que havia dispensado aos emissários e
a renovação da sua amizade com o papa eram sinais claros que ele tinha
intenções de tomar severas medidas contra os hereges. Os líderes
protestantes perceberam que o tempo para pensarem em sua segurança,
diante de eventuais ataques do ofendido e indignado imperador, havia
chegado. No verão do ano de 1529 foram realizadas assembleias nas
cidades de Rottach, Schwabach, Nuremberg e Esmalcalda. Todavia, não
se chegou a nenhuma decisão clara, principalmente pelo fato da
divergência de opinião acerca da Ceia do Senhor. Em uma de suas
reuniões, eles decidiram, formalmente, que “uma convergência acerca
dos sacramentos, do batismo e da Ceia era essencial para uma aliança
religiosa entre cristãos”. Mas naquele tempo, infelizmente, os
reformadores já estavam divididos em dois grupos por causa da
controvérsia acerca da Ceia.
O partido papal estava bem familiarizado com os duros e polêmicos
tratados que foram escritos por Lutero e Zuínglio, os líderes dos dois
partidos, acerca desse assunto. Eles empregaram tudo para alargar cada
vez mais a ruptura entre os seguidores de ambos os partidos. Já durante
as reuniões da Dieta de Speyer, os antagonistas dos príncipes
reformadores os haviam censurado continuamente: “Vós vos gloriais de
reter a pura Palavra de Deus, e ainda assim continuais desunidos entre
vós”. O jovem landgrave de Hesse sentia-se profundamente incomodado
por essa desunião e pelas críticas públicas, e decidiu usar todos os meios
possíveis para conseguir uma reconciliação entre os reformadores suíços
e saxônicos. Com esse objetivo, ele convocou uma conferência que
deveria acontecer na cidade de Marburgo, em 1529; e convidou Lutero,
Zuínglio e alguns dos mais destacados doutores e teólogos de ambos os
partidos.
Capítulo 37
A CONTROVÉRSIA ACERCA DO SACRAMENTO DA SANTA
CEIA
***
A CONFERÊNCIA EM MARBURGO
O senado em Zurique tinha se recusado, de forma categórica, a
permitir que Zuínglio fosse a Marburgo, temendo que na viagem pelo
território imperial algum tipo de mal pudesse lhe suceder. Mas o
reformador sentia que sua presença na conferência era necessária,
visando o bem-estar da Igreja. Por esse motivo, tendo plena convicção
que deveria ir, em secreto tomou as devidas providências para sua
viagem, e partiu da cidade de Zurique à noite, acompanhado apenas por
um amigo — Rodolfo Colling, que era professor de grego. Ele deixou a
seguinte nota para o senado: “Se parti sem informá-los não é porque
desprezo a vossa autoridade, pois os considero os mais sábios dos
homens; mas por conhecer o amor que tendes por mim, percebo que
vossa preocupação impediria a minha viagem”. Zuínglio e seu
companheiro chegaram seguros em Basileia, onde Oekolampad uniu-se
a eles. Então seguiram para Estrasburgo, onde três outros teólogos se
juntaram ao grupo: Bucer, Hedio e Sturm; e, sob a escolta de um grupo
de cavaleiros de Hesse que Filipe havia enviado para protegê-los, toda a
comitiva continuou a viagem para Marburgo, aonde chegaram no dia 29
de setembro. Lutero e seus amigos chegaram no dia seguinte. Os dois
grupos foram bem recebidos pelo landgrave Filipe, com seleta cortesia.
Eles foram hospedados no seu castelo, fazendo suas refeições
juntamente com o anfitrião.
Filipe não ignorava os sentimentos amargos que essa disputa havia
produzido entre os líderes dos dois grupos. Por esse motivo, ele fez a
sábia proposta de que, antes da conferência pública, os teólogos
tivessem um encontro particular para, dessa forma, preparar o caminho
para a reconciliação e a unificação. Conhecendo bem o temperamento
daqueles homens, Filipe ordenou que Lutero se encontrasse com
Oekolampad, e Melanchthon com Zuínglio, separadamente. Mas os
teólogos saxões levantaram tantas acusações contra seus opositores
suíços que não houve nenhum progresso; pelo contrário, os disputantes
se exaltavam cada vez mais e a questão tornou-se ainda mais
complicada. O debate público foi marcado, de comum acordo, para o dia
seguinte, 02 de outubro de 1529.
A conferência geral teve lugar em uma sala no interior do castelo, na
presença do landgrave e seus principais ministros, políticos e religiosos,
além de deputados da Saxônia, Zurique, Estrasburgo e da Basileia.
Também estavam presentes alguns estudiosos estrangeiros. Nas
proximidades da cadeira do landgrave, foi colocada uma mesa, aonde os
quatro teólogos — Lutero, Zuínglio, Melanchthon e Oekolampad —
tomaram lugar. Ao se aproximarem dos seus lugares, Lutero tomou um
pedaço de giz e escreveu com grandes letras na toalha de veludo: “HOC
EST CORPUS MEUM” — “Este é o meu corpo”. Ele desejava ter essas
palavras continuamente diante de seus olhos; em partes para reanimar
sua coragem, e em partes para confundir seus poderosos adversários.
“Sim”, disse Lutero, “essas são as palavras de Cristo e dessa rocha
nenhum adversário poderá me deslocar”.
Depois que todos os envolvidos tinham se reunido, o chanceler de
Hesse declarou aberta a conferência. Ele explicou os objetivos da
mesma, e exortou que os contendedores usassem da moderação
apropriada aos cristãos e que buscassem o restabelecimento da unidade
em Cristo. Mas Lutero, em vez de abordar imediatamente a questão
acerca da Ceia, insistia que antes era necessário chegarem a um acordo
quanto a outros artigos de fé, tais como: a divindade de Cristo, o pecado
original, a justificação pela fé, etc.; visto que os doutores saxões
suspeitavam que os suíços não fossem sadios na doutrina quanto a estes
e outros assuntos. Não nos compete tentarmos determinar qual era o
objetivo de Lutero ao procurar alargar o campo de debate. Todavia,
Zuínglio respondeu que seus escritos tinham evidências suficientes,
provando que não havia diferenças com Lutero nestes pontos.
O landgrave Filipe, que havia assumido a direção do debate,
concordou com os suíços e Lutero foi forçado, sem mais delongas, a
adentrar na embaraçosa questão da Ceia. Entretanto, ficou bem evidente
que Lutero estava exaltado quando disse: “Declaro solenemente que
divirjo dos meus opositores em relação à doutrina da Ceia do Senhor, e
continuarei divergindo. Cristo disse: ‘Esse é o meu corpo’. Mostrem-me
que um corpo não é um corpo. Eu rejeito a inteligência, a mente humana,
as razões carnais e as provas matemáticas. Deus está acima da
matemática. Nós temos a Palavra de Deus e precisamos adorá-la e
praticá-la”. Foi assim que começou o tão celebrado debate. Apontando
para as palavras que ele havia escrito sobre a toalha, o impetuoso
homem acrescentou: “Nenhuma consideração jamais me levará a
abandonar meu entendimento do significado literal dessas palavras. Não
darei ouvidos nem a sentimentos nem a raciocínios, tendo as palavras de
Deus diante de mim”. Tendo em vista a conhecida teimosia de Lutero,
esta declaração era o suficiente para destruir qualquer esperança de uma
solução satisfatória da disputa.
Mas, os suíços não se intimidaram diante das palavras agressivas e
arrogantes de Lutero. Em um tom calmo, Oekolampad respondeu: “É
inegável que na Palavra de Deus há expressões figuradas, entre as quais
podemos citar: João é Elias, a Rocha é Cristo, e Eu sou a videira
verdadeira. E assim, esta também é uma expressão figurada: ‘Este é o
meu corpo’”. Lutero admitiu a existência de expressões figuradas na
Bíblia, mas negou que a expressão ‘Este é o meu corpo’ fosse figurada.
Então, Oekolampad lembrou a Lutero as palavras que o Senhor disse
em João 6: “’O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita’ (v.
63). Porém, quando Cristo disse aos habitantes de Cafarnaum: ‘a carne
para nada aproveita’, Ele rejeitou, com essas mesmas palavras, o ato de
comer o Seu corpo. Portanto, Ele não estabeleceu essa prática ao
instituir a Ceia do Senhor“.
Lutero respondeu veementemente: “Eu nego a segunda dessas
proposições. Havia tanto um comer real como também um comer
espiritual da carne de Cristo. Quanto ao primeiro caso, Cristo declara que
não é de nenhum proveito”.
Oekolampad observou que por meio disso, Lutero, de fato, cedia aos
seus argumentos; pois ele havia admitido que era necessário comer
espiritualmente, e que o comer literal não era de proveito algum, portanto,
sem valor.
Lutero retrucou: “Não devemos questionar qual é o valor que tal comer
tem. Tudo o que Deus ordena se torna espírito e vida (cf. Jo 6:63). Se
Deus nos ordenar que levantemos uma palha do chão, por meio disso
realizamos uma obra espiritual. Precisamos prestar atenção Àquele que
fala conosco, e não tanto àquilo que Ele está nos dizendo. Deus fala —
portanto, vós homens, seus vermes, ouçam! Deus ordena — e o mundo
deve obedecer! E todos nós temos que nos prostrar e humildemente
beijar Sua Palavra”.
Nesse momento Zuínglio interferiu na discussão. As numerosas provas
das Escrituras, da ciência e da inteligência, às quais ele se referiu para
atestar suas opiniões, encurralaram Lutero. Após citar numerosas
passagens das Escrituras nas quais o símbolo é expresso por aquilo que
representava, Zuínglio mencionou novamente a passagem do Evangelho
de João 6, à qual Oekolampad havia se referido anteriormente. Em
relação com as palavras do Senhor, ‘a carne para nada aproveita’, ele
tirou a conclusão de que as palavras relacionadas com a Ceia também
deveriam ser explicadas de forma semelhante2.
Lutero — “Quando Cristo diz que a carne para nada aproveita, Ele não
está falando de Sua própria carne e sim da nossa.”
Zuínglio — “A alma se alimenta do espírito e não da carne.”
Lutero — “É com a boca que nós comemos o corpo. A alma não come
o corpo.”
Zuínglio — “Portanto, o corpo de Cristo é um alimento físico e não um
alimento da alma?”
Lutero — “Estás sendo astuto.”
Zuínglio — “De maneira nenhuma, mas estás contradizendo-te a ti
mesmo.”
Lutero — “Se Deus me oferecesse maçãs silvestres, eu iria comê-las
espiritualmente. Na Ceia, a boca recebe o corpo de Cristo, e a alma crê
em Suas palavras.”
De fato, as palavras de Lutero eram muito obscuras e confusas. Por
um lado, parecia que ele não queria permitir uma interpretação nem
figurada nem literal destas cinco palavras significativas — “este é o meu
corpo”. Por outro lado, parecia que ele mesmo entendia as mesmas nos
dois sentidos. Zuínglio percebeu que a maneira com que se havia
procedido até agora não levaria a nenhuma boa conclusão. Portanto, ele
procurou provar, somente pelas Sagradas Escrituras, que os elementos
da Ceia, o pão e o vinho, não eram o real corpo e o sangue do Senhor,
mas eram apenas símbolos ou emblemas desse corpo e desse sangue.
Lutero, entretanto, não se deixou abalar. Apontando com seu dedo
para as palavras escritas sobre a mesa, ele repetia: “Este é o meu corpo!
Este é o meu corpo! Nem o próprio diabo irá me demover disso. Se eu
começar a cismar* sobre isso, cairei da fé”.
Porém, embora Lutero permanecesse inabalável, muitos dos ouvintes
ficaram surpresos pela clareza e firmeza com as quais Zuínglio conduzia
a disputa. Por isso, nessa ocasião muitas mentes foram preparadas para
receberem esta verdade extremamente importante. Vários foram
convencidos da verdade dos argumentos de Zuínglio; o mais destacado
entre eles era Francisco Lambert, de Avignon, o primeiro teólogo de
Hesse. Até então, ele havia professado a doutrina luterana da Ceia, e era
um amigo e grande admirador de Lutero. Mas, tendo ouvido os
argumentos dos suíços, ele não se conteve e exclamou: “Quando vim
para essa conferência, meu desejo era ser como uma folha de papel em
branco, na qual o dedo de Deus pudesse escrever Sua verdade. Agora,
vejo que é o Espírito quem vivifica, e a carne para nada aproveita. Estou
de acordo com Oekolampad e Zuínglio”. Os doutores de Wittenberg
observaram esta mudança com indignação, e procuraram enfraquecer a
exclamação de Lambert com as breves palavras: “Seu francês
inconstante!”. “O quê?!”, respondeu o ex-franciscano; “Será que Paulo
também demonstrou fraqueza quando renunciou o título de fariseu? E o
que dizer de nós mesmos; fomos inconstantes ao abandonar a seita
perdida do papado?”
Uma grande agitação dominou aquela sala. Mas entrementes, chegou
a hora do almoço, e os disputantes saíram para logo em seguida se
reunirem novamente na suntuosa mesa do landgrave.
Na parte da tarde o debate foi reiniciado com Luto tomando a iniciativa,
dizendo: “Eu creio que o corpo de Cristo está no céu, mas que também
está nos elementos da Ceia. Pouco me importa se isso vai contra as leis
da natureza, desde que não vá contra a fé. Cristo encontra-se presente,
de forma material, nos elementos da Ceia, da mesma maneira que Ele
nasceu da virgem”.
Oekolampad respondeu com as palavras do apóstolo Paulo, citando 2
Coríntios 5:16: “ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a
carne, contudo agora já não o conhecemos deste modo”.
Lutero replicou: “Segundo a carne, aqui quer dizer, segundo nossas
afeições carnais”.
“Então me responda esta pergunta, doutor Lutero”, interferiu Zuínglio.
“Cristo subiu ao céu, e se Ele está no céu corporalmente, como é
possível que Ele esteja no pão? A Palavra de Deus nos ensina que o
Senhor Jesus se tornou semelhante em tudo aos irmãos (cf. Hb 2:17).
Portanto, Ele não pode estar no mesmo instante em cada um dos
milhares de altares nos quais a Ceia está sendo celebrada.”
“Se eu quisesse arrazoar”, replicou Lutero, “tentaria provar que Jesus
Cristo foi casado. Que Ele tinha olhos negros e que viveu na Alemanha.
Eu pouco me importo por especulações numéricas ou matemáticas.”
“Aqui não se trata de nenhuma questão numérica ou matemática”,
prosseguiu Zuínglio, “mas se trata daquilo que o apóstolo Paulo falou aos
filipenses em relação ao Senhor, que Cristo tomou a ‘forma de servo,
fazendo-se semelhante aos homens’ (cf. Fp 2:7).”
Lutero, temendo ser demovido da sua posição original por meio do
poderoso antagonista, se refugiou novamente nas palavras que ele
escreveu sobre a mesa e, apontado para elas, exclamou: “Meus caros
senhores, se meu Senhor Jesus Cristo disse: ‘HOC EST CORPUS MEUM’, eu
creio que Seu corpo encontra-se realmente aqui”.
Irritado com a obstinação inflexível e a irracionalidade de Lutero,
Zuínglio fez um rápido movimento em direção ao seu opositor, e batendo
na mesa disse-lhe: “Meu caro doutor, vós afirmais, portanto, que o corpo
de Cristo está localmente presente na Ceia, pois vós dizeis: ‘O corpo de
Cristo está ali’. Ali, ali e ali é um advérbio de lugar. Portanto, o corpo de
Cristo tem uma natureza tal que pode se encontrar apenas em um lugar.
Se, porém, ele se encontra em um lugar, ele está no céu. Segue-se que
ele não está no pão”.
Lutero, aborrecido, respondeu: “Eu repito que não tenho nada a ver
com provas numéricas ou matemáticas. Tão logo as palavras de
consagração são pronunciadas sobre o pão, o corpo está presente ali,
independente de quão perverso seja o sacerdote que pronuncia as
mesmas”.
É, de fato, incompreensível como um homem com o conhecimento de
Lutero podia expressar tais palavras. Elas realmente continham uma
blasfêmia, embora Lutero não pensasse nisso. Segundo a sua afirmação,
o Senhor, querendo ou não, tinha que descer do céu para dentro do pão
do sacerdote assim que este murmurasse as palavras de consagração.
Não importava se o sacerdote fosse um homem piedoso ou ímpio. Isso
não se assemelha com precisão às arrogâncias e blasfêmias de Roma?
O landgrave Filipe, percebendo que a discussão ameaçava tornar-se
cada vez mais violenta, levantou a sessão. No dia seguinte, um domingo
(3 de outubro), prosseguiram com o debate. Mas é de pouco interesse
para nosso leitor continuar acompanhando essa disputa. Zuínglio e
Oekolampad reiteraram e completaram suas provas a partir das
Escrituras e dos mais antigos Pais da Igreja, mas foi tudo em vão. A
todos os seus argumentos, Lutero confrontava constantemente com uma
resposta: “Este é o meu corpo”. Finalmente, não se satisfazendo em
apenas apontar para essas palavras, ele tomou a toalha, levantou-a
diante dos olhos dos suíços e exclamou: “Vejam, vejam, assim diz o
texto. Vós não conseguistes nos demover dele, como chegastes a se
orgulharem; nós não nos interessamos por mais nenhuma outra prova”.
Depois desta declaração terminante, havia sido cortada toda esperança
de levar Lutero a pensar de outra forma, e continuar a conferência se
tornou inútil. Ainda assim, a discussão foi reiniciada na manhã seguinte,
mas no final do dia os dois partidos inimigos não haviam se aproximado
nem o mais mínimo de uma reconciliação.
Contudo, uma epidemia severa e contagiosa, chamada de “Doença
Inglesa do Suor”, havia surgido justamente nesse tempo em que
acontecia o debate em Marburgo e, causando grande devastação, tornou
necessário o encerramento imediato da conferência. Todos estavam em
grande inquietação e se apressaram para abandonar a cidade.
Assim, parecia que todos os esforços haviam sido em vão. O landgrave
procurou promover, até o último instante, a unificação entre ambos os
partidos, fazendo um último apelo veemente: “Senhores, não podeis partir
dessa maneira. Não existe mais nada que possa ser feito para sanar
essa ruptura? É necessário que esse único ponto de diferença separe
irrevogavelmente os amigos da Reforma Protestante?”. Por sua vez, o
chanceler de Hesse, disse: “Não existe nenhum meio dos senhores
teólogos chegarem a um entendimento, como o landgrave deseja com
toda a sinceridade?”.
Lutero replicou: “Eu conheço apenas um meio para chegarmos a um
acordo, e este é que nossos adversários creiam do modo como nós
cremos”. “Não podemos”, replicaram os suíços. “Então”, disse Lutero, “eu
vos abandono ao julgamento de Deus e oro para que o Senhor possa
iluminá-los”. “Nós iremos fazer o mesmo”, respondeu Oekolampad.
Zuínglio ouvia a conversação em silêncio, porém profundamente
comovido. Finalmente, ele não pôde mais reprimir seus sentimentos e
irrompeu em lágrimas na presença de todos.
***
UMA PROPOSTA PARA O EXERCÍCIO DA TOLERÂNCIA E DA UNIDADE
A conferência terminou e nada foi alcançado. Filipe e outros
mediadores se empenharam em conseguir pelo menos um acordo
exterior entre os dois partidos. Filipe convocou os teólogos um após outro
à sua sala e ali os advertiu, exortou e conjurou para estabelecerem uma
tolerância e união mútua. “Pense, por um instante”, disse-lhes o
landgrave, “no bem da cristandade, e remova toda discórdia que existe
em seu peito”. A situação política dava motivos para os temores mais
graves. O imperador Carlos V e o papa estavam selando uma aliança na
Itália. Fernando e os príncipes católicos romanos estavam se unindo na
Alemanha. A união entre todos os protestantes parecia o único meio para
sua salvação. Filipe percebia isso muito bem e por isso se empenhava
com todas as suas forças para estabelecer essa união. Mas, infelizmente,
o intratável e obstinado Lutero estava no seu caminho.
Os doutores suíços estavam bem dispostos em atender os desejos do
landgrave. Zuínglio disse: “Vamos reconhecer nossa unidade em tudo
aquilo que concordamos, e quanto aos demais pontos, vamos tolerar uns
aos outros, lembrando-nos que somos irmãos. Em relação à base da
salvação — a necessidade da fé no Senhor Jesus — não há divergência
alguma”.
“Sim, sim!”, respondeu o landgrave, “vós concordais, portanto dai uma
prova da vossa unidade e reconhecei-vos como irmãos”. Zuínglio se
aproximou dos doutores de Wittenberg e disse: “Não existe ninguém
sobre a face da terra com quem eu mais desejo estar unido do que
convosco”. Oekolampad, Bucer e Hedio também disseram o mesmo. Por
um momento, esta atitude cristã parecia ter o efeito desejado. Muitos
corações, até mesmo aqueles dos doutores saxões, estavam comovidos.
“Reconheçam-se! Reconheçam-se!”, pediu o landgrave veementemente,
“reconheçam-se como irmãos!” Até mesmo a dureza de Lutero parecia
render-se. Com lágrimas nos olhos, Zuínglio se aproximou de Lutero
estendendo-lhe a mão, e pediu-lhe que expressasse apenas a palavra
“irmão”. Mas, infelizmente, aquele coração afetuoso sofreu um cruel
desapontamento. Quando todos os olhos estavam fitos nos dois líderes e
todos os corações cheios de esperança que as duas grandes famílias
da Reforma Protestante se unissem finalmente após longa disputa,
Lutero rejeitou a destra de Zuínglio que lhe era oferecida e disse de
maneira lancinante*: “Vós tendes outro espírito do que nós”; o que
equivalia dizer: “Nós temos o Espírito de Deus e vós o espírito de
Satanás”. D’Aubigné relata: “Essas palavras atingiram os suíços como
uma descarga elétrica. O coração deles sangrava cada vez que Lutero
repetia essas palavras, e ele o fez várias vezes, como ele mesmo relata”.
De acordo com o historiador Cunningham, “a recusa de Lutero em aceitar
a mão de Zuínglio, razão pela qual este homem verdadeiramente nobre
derramou lágrimas de dor, foi uma das mais deploráveis e humilhantes,
mas ao mesmo tempo, uma solene e instrutiva exibição do engano da
pecaminosidade e da dureza do coração humano, como jamais
presenciadas no mundo”.3
Houve uma breve deliberação entre os doutores de Wittenberg —
Lutero, Melanchthon, Agrícola, Brenz, Jonas e Osiander — porém não
levou a nenhum melhor resultado. Voltando-se para Zuínglio e seus
companheiros, os saxões disseram: “Nós mantemos que a doutrina da
presença física de Cristo nos elementos da Santa Ceia é algo essencial
para a salvação. Por esse motivo, a nossa consciência não permite
considerar-vos como estando em comunhão com a verdadeira Igreja”.
“Sendo assim”, replicou Bucer, “foi uma tolice pedir-vos que nos
reconheçais como irmãos. É nossa convicção que vossa doutrina
prejudica a honra de Jesus Cristo, que agora está assentado à direita de
Deus. Porém, visto que vós reconheceis por toda a parte a dependência
do Senhor, assim, tendo em consideração a vossa consciência, que vos
obriga a aceitar a doutrina que professais, não temos dúvidas que estais
em Cristo.”
“Quanto a nós”, respondeu Lutero, “declaramos mais uma vez que
nossas consciências nos proíbem de reconhecer-vos como irmãos.”
Bucer respondeu: “Bem, meu caro doutor. Se negais a reconhecer
como irmãos aqueles que diferem de vós em qualquer ponto, vós não
encontrareis nem um único irmão, nem mesmo no vosso partido”.
Com isso, os suíços haviam feito tudo que estava em seu alcance. Eles
disseram: “Nós estamos conscientes que agimos na presença de Deus. A
posteridade dará testemunho disso”. Eles estavam prontos para deixar a
sala. Tinham manifestado um verdadeiro espírito cristão, e o sentimento
geral dos que participaram da conferência era definitivamente favorável a
eles e à doutrina que defendiam. Quando Lutero percebeu isso, e vendo
a ira do landgrave, se mostrou um pouco mais moderado. Ele se dirigiu
aos suíços e disse: “Nós vos reconhecemos como amigos, mas não vos
consideramos como irmãos nem membros da Igreja de Cristo. Entretanto,
o amor, que também é devido aos inimigos, não vos será negado”.
Estas palavras continham uma nova ofensa. Mesmo assim, os suíços
resolveram aceitar a oferta. Os opositores se cumprimentaram e algumas
palavras amistosas foram trocadas entre eles. O landgrave estava
jubiloso que pelo menos isso havia sido alcançado, e ordenou que fosse
escrito um registro desse importante resultado. Ele disse: “Nós
precisamos que o mundo cristão saiba que, com exceção da doutrina da
presença do corpo e do sangue do Senhor nos elementos da Santa Ceia,
os senhores estão de acordo em todos os pontos principais da fé”. Todos
se declararam de acordo com essa proposta e Lutero foi designado para
redigir uma série de artigos que definissem a fé protestante.
Os “Artigos de Marburgo” foram prontamente produzidos por Lutero.
A mesma consistia de quinze artigos. Os principais entre eles tratavam da
trindade, da encarnação, da ressurreição, da ascensão, do pecado
original, da justificação pela fé, da autoridade das Escrituras Sagradas e
da rejeição da tradição romana. Por último, estava a Ceia do Senhor, que
foi chamada de alimento espiritual do verdadeiro corpo e do verdadeiro
sangue do Senhor Jesus Cristo. Quando esses artigos foram lidos, os
suíços disseram “Amém” de coração para os primeiros catorze. E,
embora os termos do último artigo lhes parecessem um pouco obscuros,
permitindo diferentes interpretações, eles também estavam dispostos a
assinar este, sem mais protestos. No dia 04 de outubro de 1529, este
importante documento foi assinado pelos dois partidos. Concordou-se
também em ativar, de ambos os lados, o espírito de amor cristão e evitar
toda a amargura, ao mesmo tempo em que cada um mantinha aquilo que
considerava ser a verdade de Deus.
A seguir, esse documento foi enviado para impressão. Sua publicação
deu margem para que os saxões afirmassem que os suíços haviam
aceitado a confissão de fé de Lutero e se retratado de todas as suas
falsas doutrinas, com exceção daquela acerca da Ceia. Também diziam
que somente o temor do povo os teria impedido de se retratarem também
desta, e que não puderam apresentar outros argumentos contra a
doutrina de Lutero, a não ser sua própria incapacidade de acreditar na
mesma. Tais boatos se espalharam rapidamente por todas as partes da
Alemanha. Mas todos eles eram falsos. Nós temos visto o contrário; que
a coragem e a confiança dos suíços cresciam à medida que a disputa
avançava, e que sua mente pacífica e sua franqueza se destacavam com
vantagem sobre a insensatez e a obstinação de seus opositores.
Na terça-feira, dia 05 de outubro, depois de quatro dias de conferência,
o landgrave deixou Marburgo pela manhã, bem cedo. Os doutores e seus
amigos também partiram imediatamente. Mas as verdades que haviam
saído à luz por meio dos debates, e as opiniões estabelecidas por ambos
os lados, se divulgaram por todas as regiões da Alemanha, e muitos
corações foram levados a examinar o Novo Testamento — acerca do
caráter e da essência da Santa Ceia — com maior seriedade do que até
então.
***
REFLEXÕES ACERCA DA CONFERÊNCIA DE MARBURGO
Com sentimentos de profunda gratidão, mas também com sincera dor,
faremos uma retrospectiva sobre os debates na cidade de Marburgo —
com gratidão a Deus porque, por meio disso, Ele expôs a uma luz mais
clara a doutrina da Sagrada Escritura acerca da Ceia; com tristeza em
relação à conduta lamentável daquele homem, que naquele tempo
possuía uma influência tão poderosa. As doutrinas defendidas pelos
suíços eram bem pouco conhecidas na Alemanha, até aqueles dias.
Como a doutrina da consubstanciação havia sido estabelecida por Lutero
e seus seguidores, uma grande ignorância — referente ao verdadeiro
caráter e essência, como também acerca do objetivo da instituição da
Santa Ceia — imperava no meio dos alemães. Todos haviam seguido
cegamente ao grande líder. Porém agora, em todas as partes foi
despertado um grande interesse e uma pesquisa pela verdade; e muitos
aceitavam, com grande disposição, as doutrinas dos suíços, tornando-se
uma benção eterna na vida de milhares de preciosas almas. Como vimos,
Lambert havia sido convencido, já durante a conferência, da verdade das
afirmações de Zuínglio e seus companheiros. O próprio landgrave
declarou, pouco antes da sua morte, que a conferência em Marburgo
também lhe havia aberto os olhos acerca da inconsistência da doutrina
da consubstanciação.
Dessa maneira, Deus, em Sua bondade, utilizou esta lamentável
disputa para a divulgação da verdade e para a realização das Suas
graciosas intenções. Enquanto Lutero estava mais preocupado com sua
própria reputação, Deus estava cuidando do progresso da Reforma
Protestante. Mas o que é o ser humano! Que diferença nós vemos aqui,
entre o Lutero dos primeiros dias da Reforma Protestante, que confiava
apenas em Deus, o solitário lutador pela Sua verdade e o Lutero de
tempos posteriores, o líder de um partido que havia se tornado poderoso,
o defensor obstinado de suas próprias opiniões! Surpreendidos nos
perguntamos: Como isto foi possível? Um coração que há pouco era tão
largo, tão amoroso e tão tolerante, de repente se tornou tão intransigente
e partidário. Há apenas uma resposta: Lutero havia deixado a base da
humildade e da dependência de Deus para passar à da obstinação
humana. Alguns poderiam dizer que, segundo sua consciência, ele
pensava estar lutando pela verdade e, em certo sentido, isso é
admissível. Todavia, temos que nos lembrar que ele rejeitou todas as
pacíficas propostas de uma investigação em comum da Palavra de Deus,
bem como a todos os meios razoáveis de se alcançar uma compreensão
apropriada e harmônica daquelas cinco palavras — “Este é o meu corpo”.
Parecia que Lutero estava preocupado apenas em manter sua própria
autoridade, reputação e poder, como o líder de um partido. Naquela
ocasião, nem Lutero nem nenhum de seus seguidores manifestaram
interesse pela promoção do Evangelho e o triunfo da Reforma
Protestante. Dessa maneira, a grande e abençoada obra de Lutero foi
enfraquecida e desonrada por uma das doutrinas mais tolas e erradas
que alguma vez foi proposta para a aceitação da humanidade crédula.
A posição e o perigo de um líder de partido, nas coisas concernentes
a Deus, estão claramente manifestados na seguinte opinião acerca de
Lutero: “Em Marburgo, Lutero era o papa. Por aclamação geral, ele foi
considerado o líder do partido evangélico, e assumiu o caráter de um
déspota. Para sustentar essa imagem, em questões espirituais, é
necessário criar o conceito da infalibilidade. Se por uma única vez Lutero
cedesse em qualquer ponto doutrinário — se admitisse uma única vez
que ele estava errado — toda a ilusão cessaria, e com ela desapareceria
a autoridade que a mesma sustentava. Era assim que a maioria do povo
via a posição de Lutero. Pela própria posição que ocupava ou que
imaginava ocupar, Lutero se viu forçado a acreditar e a defender, com o
mais elevado tom, cada uma das afirmações que havia proclamado em
público... Contudo, Lutero perdeu tanto sua influência quanto sua
reputação naquela controvérsia. Por seu tom arrogante e seu sofisma
elaborado, ele enfraqueceu as afeições e o respeito que recebia de um
grande grupo de admiradores inteligentes. Muitos agora começavam a ter
uma opinião menos elevada acerca de seus talentos, bem como da sua
amabilidade. Em vez de uma grande devoção e magnanimidade, que lhe
haviam rendido um grande respeito nas batalhas iniciais, agora o espírito
de Lutero estava dominado por uma vanglória e uma grande arrogância.
Pela decisão que tomou e por sua obstinação, Lutero acabou destruindo
a possibilidade de unir a Alemanha e a Suíça em um único rebanho. Ele
não era mais o brilhante precursor da Reforma Protestante. Tendo se
apartado daquela importante posição de onde havia propagado a luz para
toda a cristandade, agora havia se tornado apenas no líder de um partido.
Temos que reconhecer que, naquele momento, esse partido era o mais
visível e o mais poderoso dos reformadores, mas estava destinado, em
tempos posteriores, a sofrer enormes reveses e deserções*, os quais
fizeram com que o nome “Luterano” alcançasse uma notoriedade
negativa em todo o mundo protestante”.4
Capítulo 38
O ENCONTRO EM BOLONHA
Capítulo 39
A REFUTAÇÃO DA CONFISSÃO
Capítulo 41
OS LÍDERES DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA
1 N. do T.: Sem dúvida uma alusão ao brasão da cidade de Berna, que tem um urso
estampado.
2 As datas e os fatos dos esboços acima foram retirados, em sua maior parte, dos
escritos de Scott, History, onde o leitor irá encontrar muitos detalhes que foram
aqui omitidos, vol. 2, pp. 366-384.
3 Prefácio, Life of Zwingle, by J. G. Hess. Translated by Lucy Aikin.
4 D’Aubigné, vol. 2, p. 502.
5 Hess, pp. 130-138.
6 N. do T.: “Minha primeira e última defesa”. Provavelmente Zuínglio deu esse nome
ao seu escrito porque esperava que esta primeira resposta também fosse a
última.
7 Citações de Scott dos escritos de Gerdesius, professor de divindade em
Gröningen, e de A. Ruchat, vol. 2, p. 406.
8 Hess, p. 148.
9 Waddington, vol. 2, p. 284.
Capítulo 42
AS CONSEQUÊNCIAS DOS DEBATES
1 N.T. Nessa afirmação transparece que Hottinger acreditava que o apóstolo Paulo
era o autor da Epístola aos Hebreus.
2 Hess, p. 168.
3 N.T. A expressão cristianismo primitivo é utilizada pelos historiadores para fazer
referência exclusivamente ao século I d.C. Já os séculos II e III d.C. os chamam
de “Período dos Pais da Igreja”. É muito importante que o leitor não confunda
esses períodos.
4 D´Aubigné, vol. 3, pp. 356-359.
5 Para mais detalhes, ver Life of Zwingle, por Hess, 178-194. D´Aubigné, vol. 2, cap.
5. Scott, vol. 2, pp. 494-501.
Capítulo 43
O PROGRESSO GERAL DA REFORMA PROTESTANTE
Capítulo 44
A POSTERIOR DIVULGAÇÃO DA REFORMA
PROTESTANTE NA SUÍÇA
Agora, a Reforma Protestante estava bem estabelecida nos três
principais e mais poderosos cantões da Suíça: Zurique, Berna e Basileia.
O exemplo desses importantes Estados influenciou, em grande parte,
uma porção considerável da Suíça alemã. A queda do poder romano na
Basileia decidiu a sorte do papado em muitos outros lugares. Ali onde os
cidadãos estavam inclinados a adotar os ensinamentos reformados, mas
que ainda estavam indecisos, agora, declaravam sua fé nas novas
doutrinas de forma corajosa, reconhecendo-as como sendo de acordo
com as Escrituras. Os cantões de Schaffhausen, São Galo, Glarus,
Bienna, Turgóvia, Bremgarten, Togemburgo, Wesen, e outras localidades
menos importantes, adotaram completa ou parcialmente os ensinamentos
da Reforma Protestante. O efeito da disputa em Berna e as
consequências da revolução na Basileia, seguido pelo zelo dos cidadãos,
também foi sentido na Suíça francesa. Algumas comunidades localizadas
em meio a densas florestas de abeto no cantão de Jura1, até então
haviam demonstrado a mais absoluta devoção ao pontífice romano, mas
foram poderosamente atingidos por esse movimento.
***
A MISTURA DE INTERESSES ESPIRITUAIS E POLÍTICOS
Agora precisamos fazer uma pequena pausa para mencionar uma
manifestação que reduz significativamente a nossa alegria sobre a
divulgação da verdade da obra reformadora. Desde o início, o grande e
fatal erro do Protestantismo foi buscar o apoio do braço humano para sua
proteção em vez de apenas testemunhar a favor da verdade e confiar no
Deus vivo. Mal os reformadores haviam rompido com Roma, já se
sentiam como que apavorados pelo poder remanescente do papado. Isso
fez com que estendessem suas mãos buscando o apoio do governo civil
e procurando abrigo sob seus exércitos. Satanás conseguiu desviar seus
olhos de Deus, voltando-os sobre o poder de seus inimigos, e com isso
sua força foi abalada e sua firmeza desapareceu.
É verdade que Lutero se opunha ao uso da força das armas com o
propósito de promover a divulgação da Reforma e buscava o triunfo da
verdade por meio da proclamação pacífica do Evangelho. Ainda assim,
como temos visto, ele concordou que os príncipes assumissem todo o
controle sobre os assuntos eclesiásticos e espirituais no período inicial da
Reforma Protestante na Alemanha. Infelizmente, Zuínglio foi bem mais
longe neste perigoso curso. Quando as dificuldades se levantaram e
perigosas tempestades assolaram o barco da Reforma, através das
traições e hostilidades dos cantões católicos, ele entendeu que era seu
dever, como um verdadeiro republicano e um cristão patriota, intervir nas
questões federais e aconselhar o Senado. Ele também cismou quanto a
meios para repelir o perigo ameaçador e tomar providências para
enfrentar o inimigo de modo enfático. Desse modo, ele desceu do
consagrado lugar de sua vocação e se tornou um estadista ativo e
calculista. A partir desse momento, parecia que o poderoso braço de
Deus, que até então havia protegido ao grande reformador e a sua obra
de modo tão visível, se desviou dele. Zuínglio enveredou por um caminho
no qual Deus não podia mais estar com ele, pois Deus não executa Sua
obra por meio das armas carnais, mas pelas armas do Espírito. Para
alcançar Seus objetivos, Ele não precisa da inteligência e nem do poder
dos homens. Pelo contrário, estes apenas corrompem e impedem a obra
de Deus. Todos os planos de Zuínglio fracassaram, tinham que fracassar.
Ele mesmo sofreu uma morte desonrosa no tumultuado e sangrento
campo de batalha, e a causa evangélica na Suíça sofreu um golpe que a
abalou profundamente.
Do momento em que os Estados reformados assumiram, ou melhor,
usurparam as funções da Igreja Romana no campo da política, e os
ministros do Evangelho passaram a se envolver no dia a dia das práticas
políticas, nuvens começaram a se juntar e uma tormenta se formava. Não
temos dúvidas que os magistrados de Zurique e Berna desejavam
fortalecer a boa obra dentro de seus cantões e estendê-la fora dos
mesmos. Com esse objetivo, eles publicaram vários editos proibindo seus
súditos de frequentarem à missa e de falarem de forma desfavorável
acerca das mudanças recentes. Além disso, ordenavam que os mesmos
frequentassem, de forma mais assídua, as reuniões evangélicas. Com o
objetivo de purificar as práticas morais do povo, os magistrados também
emitiram um edito geral contra todo o tipo de festas públicas, bebedeiras
e blasfêmias. Assim, as autoridades civis impunham sua religião através
de editos.
***
O PRIMEIRO PASSO EM FALSO: “A CONFEDERAÇÃO”
Zuínglio, que havia recebido uma educação republicana e crescido com
esse modo de pensar, tinha um ardente amor pela sua pátria, e agora
estava animado pelo zeloso desejo de divulgar a Reforma Protestante.
Tendo isso em vista, poderíamos avaliar a conduta do famoso reformador
de um modo mais moderado. Porém, ainda assim ele deveria ter sabido
que o Reino de Cristo não é deste mundo e que, por essa razão, também
não pode ser promovido por meio das armas deste mundo. Mas ele se
esqueceu completamente disso, de modo que ele mesmo se apresentou
na iminente batalha como o supremo condutor e general, conduzindo
com grande habilidade os preparativos. Influenciado por essa educação
republicana, Zuínglio imaginava que era bom para os reformadores, e
para a Reforma Protestante, formar uma liga. Esse foi o primeiro passo
naquele caminho em declive e fatal. Tendo percebido desde cedo que o
movimento da Reforma poderia eventualmente dividir seu amado país em
dois campos, ele achava perfeitamente justificável promover uma aliança
entre todos os Estados que haviam adotado a Reforma Protestante. No
ano 1527, ele propôs ao Concelho de Zurique o que ficou conhecido
como a Coalizão dos Cantões Cristãos, na qual todos aqueles que
professavam o Evangelho podiam se unir em uma nova Confederação
Reformada. A cidade de Constança foi a primeira a se unir à nova liga.
Logo em seguida, Berna, São Galo, Mühlhausen, Basileia, Schaffhausen
e Estrasburgo se uniram também. Mas, essa “Coalizão dos Cantões
Cristãos”, nos diz D’Aubigné, “poderia se tornar a semente de uma nova
confederação. Imediatamente despertou inúmeros adversários contra
Zuínglio, mesmo entre os partidários da Reforma Protestante”. Agora, o
pastor de Zurique estava pisando em um solo muito perigoso, e isso ficou
provado pela maneira rápida com que ele chegou ao fim. Como um
cidadão, ele havia sido ensinado a considerar a regeneração de seu país
como parte de sua religião, e a igreja na qual havia crescido — a Igreja
Católica Apostólica Romana — havia, durante séculos, brandido duas
espadas. Até mesmo nos dias de hoje nos surpreendemos em descobrir
a grande quantidade de cristãos que são governados pelo nacionalismo2.
Lutero, que acreditava na instituição imperial, era completamente
oposto à política carnal de resistência. “Os cristãos”, ele dizia, “não
devem resistir ao imperador, e se ele exige sua morte, eles devem estar
prontos para entregarem suas vidas”.
***
CINCO CANTÕES FORMAM UMA LIGA COM A ÁUSTRIA
Quando os católicos romanos ouviram falar acerca dessa nova aliança
dos protestantes, ficaram alarmados e cheios de indignação e temor. Os
cinco cantões, conhecidos como os “cantões florestais” — Lucerna, Zug,
Schwyz, Uri e Unterwald — permaneceram firmes em sua fidelidade a
Roma. Os camponeses, que habitavam às margens do Lago dos Quatro
Cantões, nas encostas e nos vales circundantes, eram ásperos e duros
como as montanhas da sua pátria e estavam presos de todo coração aos
seus hábitos, suas tradições e sua religião. Quando ouviram as novas a
respeito da terrível perversão praticada pelos hereges nas planícies
abaixo, eles reagiram com dor e raiva. Quando sacerdotes e monges
começaram a chegar à região de Oberland contando que os altares
diante dos quais seus pais se ajoelharam haviam sido destruídos, que as
imagens foram queimadas em praças públicas, que a missa havia sido
abolida e que os sacerdotes e monges foram expulsos, a sua fúria foi
imensa. Sendo completamente ignorantes quanto ao significado da
palavra Reforma, nós podemos facilmente imaginar seus sentimentos,
atiçados pelas artimanhas dos monges e sacerdotes. “Isso não pode
continuar assim. Essa heresia ímpia precisa ser exterminada pelo fogo e
pela espada!”, clamou a multidão fanática.
Mas como conseguir isso? Os cantões protestantes eram fortes
demais, de modo que os cantões florestais, sozinhos, não poderiam fazer
nada contra eles. O bispo de Constança também apelou a eles por meio
de cartas, desafiando-os a agir com firmeza, caso contrário, toda a Suíça
iria abraçar a Reforma Protestante.
O que deveria ser feito? Uma aliança com um Estado estrangeiro, sem
o consentimento dos demais cantões, seria uma violação do princípio
fundamental da Confederação Helvética, bem como da liga da
fraternidade. Contudo, o orgulhoso povo das montanhas, que havia sido
instigado a uma fúria extrema pelos seus sacerdotes e pelo bispo de
Constança, não recuou diante de uma ação tão ilegal. Manter os
pretensos direitos da Igreja Romana nesse momento tinha mais valor
para eles do que guardar fidelidade à Confederação e à nação. O ódio
contra a nova fé venceu o proverbial amor dos suíços para com a sua
pátria. Sabendo que Fernando, arquiduque da Áustria e irmão de Carlos
V, era conhecido pelo seu ardente ódio aos protestantes, assim como
eles, os cinco cantões pediram sua ajuda e entraram em aliança com o
príncipe para extirpar a Reforma Protestante e manter o catolicismo
romano no solo suíço.
Essa decisão não era apenas inconstitucional, mas desnaturada e
cruel. A Áustria sempre fora o antigo opressor e natural inimigo da nação
suíça. Aquele país representava o último lugar onde um cantão suíço
procuraria encontrar socorro. “Será que eles haviam esquecido”, indaga
um escritor moderno, “o terrível jugo que a Áustria lhes havia imposto em
outros tempos? Será que se esqueceram do sangue que seus pais
tiveram que derramar para quebrar aquele jugo? Haviam esquecido as
sangrentas batalhas que lutaram nos campos de Morgarten e Sempach?
Eles estavam prontos a esquecer o ódio nacional em troca da antipatia
religiosa. O terror do protestantismo suplantou o desprezo que nutriam
pelo tradicional inimigo.”3
Essa aliança que os suíços desejavam era tão contrária a todos os
preconceitos e sentimentos nacionais que eles nutriam contra a Áustria,
que os austríacos tiveram muita dificuldade em acreditar que os suíços
estavam sendo sinceros. Para provar sua sinceridade, eles ofereceram
alguns reféns e disseram: “Queremos que vós mesmos redijais os artigos
do tratado. Ordenem e nós obedeceremos!”. Somente depois disto que
os austríacos concordaram em negociar com eles. A liga foi concluída
com um juramento das duas partes, no dia 23 de abril de 1529, na
localidade de Waldshut. A mesma decretava o seguinte: “Todas as
tentativas de se formarem novas seitas nos cinco cantões devem ser
punidas com a morte. E, em casos de emergência, a Áustria enviará seis
mil soldados de infantaria e quatrocentos de cavalaria para a Suíça,
fornecendo todos os suprimentos necessários. Caso seja necessário, os
cantões protestantes sofrerão um bloqueio e todas as provisões serão
interceptadas”.
A notícia dessas negociações causou uma grande agitação e
insatisfação, alarmando até mesmo os inimigos da Reforma. Fazer
aquele tipo de aliança com um poder estrangeiro equivalia a
comprometer a independência da Suíça e, em vez de conseguirem um
aliado, acabariam por encontrar um dominador. Mas os sentimentos
patrióticos dos suíços foram logo extinguidos pelo ódio que sentiam dos
seguidores de Zuínglio. Em sua alegria pela concretização dessa liga e
na esperança de poder vingar-se dos destruidores do antigo culto, os
homens de Unterwald e Uri esqueceram completamente os sentimentos
hostis contra os outrora opressores da sua pátria, de modo que, em seu
zelo fanático, levantaram os brasões das armas da Áustria juntamente
com os seus, e decoraram seus chapéus com penas de pavão, como
faziam os austríacos. Nessa época foi composto o poema que
expressava o sentimento nacional:
“Avante helvéticos, avante,
Unidos pelo orgulho da pena do pavão
Corramos como bois selvagens nos cantões florestais
Em amizade com nossos aliados”.
Os oito cantões que não haviam se unido a essa aliança, com exceção
de Friburgo, se reuniram para deliberarem acerca das medidas
apropriadas para a dissolução daquela aliança e para obter uma
reconciliação com os cantões florestais. Eles enviaram representantes
aos confederados das montanhas para lhes apresentar a ilegalidade da
sua conduta. Mas os mesmos foram tratados com grande desdém por
todos os lugares por onde passaram. Sentindo que podiam contar com o
apoio do exército imperial, os papistas não se intimidaram em apresentar
todo tipo de insultos contra as doutrinas e às pessoas dos reformadores.
Quando a delegação quis se desincumbir da sua tarefa, os montanheses
gritaram: “Nenhum sermão, nenhum sermão!”. Em outro lugar, eles foram
rejeitados com estas palavras: “Queira Deus, que a vossa nova fé seja
sepultada para sempre!”. Os habitantes de Lucerna revidaram as suas
alegações dizendo: “Nós saberemos guardar a nós, a nossos filhos e a
nossos netos do veneno de vossos sacerdotes rebeldes”. Os moradores
de Unterwald lhes disseram: “Nós e os demais cantões florestais somos
os genuínos suíços. Vós fostes recebidos de favor na Confederação
Helvética”. Os representantes dos oito cantões se retiraram indignados,
mas sentiram-se ainda mais chocados e humilhados ao passar pela casa
do secretário de Estado, onde eles viram os brasões das armas de
Zurique, Berna, Basileia e Estrasburgo pendurados em uma imponente
forca.
***
OS CANTÕES ROMANOS PERSEGUEM OS REFORMADOS
Desse modo, a guerra parecia inevitável. Todas as coisas estavam
conduzindo a uma ruptura completa e imediata. Os habitantes das
montanhas tornaram-se mais desconsiderados e violentos a cada dia.
Com o intuito de defender a religião de seus pais e de excluir as novas
doutrinas do meio de seus súditos, o partido papal começou a confiscar
os bens, prender, torturar e expulsar das suas terras aqueles que
ensinavam as verdades da fé reformada. Quando a notícia da
vergonhosa rejeição sofrida pela delegação em Unterwald chegou a
Zurique, todos os ânimos foram tomados de uma violenta ira. Zuínglio
pensava que tal ofensa tinha que ser vingada, e propôs ao Concelho
punir ao atrevido cantão pela sua injúria. Provavelmente isso teria
acontecido se Berna não tivesse se declarado contra e exortado à
moderação cristã. A tempestade amainou* mais uma vez, porém por
pouco tempo. De repente, aconteceu algo que excitou novamente, e de
forma selvagem, as ondas que apenas haviam sido apaziguadas. Esse
caso foi de uma atrocidade tal que despertou os sentimentos mais nobres
da humanidade e acabou conduzindo toda essa situação para uma
verdadeira crise.
Tiago Kayser, um pastor do cantão de Zurique e pai de família, estava
indo para a cidade de Oberkirchen, no sábado 22 de maio, onde deveria
pregar no domingo. Enquanto caminhava calma e confiadamente através
de um pequeno bosque, pelo qual tinha passado muitas vezes antes,
subitamente seis homens saltaram da mata, o manietaram e o levaram
para Schwyz. Quando chegaram àquela cidade, ele foi imediatamente
apresentado diante dos magistrados, que o interrogaram. Nenhuma outra
acusação foi levantada contra ele, senão que era um ministro evangélico.
Isso bastou plenamente para o ódio dos juízes fanáticos. Apesar das
sérias alegações vindas de Zurique, que havia recebido rapidamente a
notícia da violenta prisão de Kayser, o infeliz homem foi condenado a ser
queimado vivo. Os representantes de Zurique e Glarus argumentaram
que o prisioneiro não pertencia à jurisdição do cantão de Schwyz, mas foi
em vão. Seus pedidos e ameaças foram ignorados, o exasperado povo
queria uma vítima. A cruel sentença foi executada no dia 29 de maio. No
momento em que aquele homem piedoso ouviu sua sentença, desatou a
chorar. Mas antes que a hora do seu martírio chegasse, a graça de Deus
já havia consolado seu coração e fortalecido sua coragem, a ponto dele
se encontrar pleno da alegria do Espírito. Foi dessa maneira que ele
caminhou com firmeza e alegremente até a estaca, confessando sua fé
em alta voz, agradecendo e louvando ao Senhor Jesus no meio das
chamas, pelo fato de ter sido considerado digno de morrer a favor do
Evangelho — até dar seu último suspiro. A delegação de Zurique assistiu
a esse triste espetáculo. Quando a voz do mártir, audível a todos, surgia
do meio da fumaça e das chamas, um dos magistrados de Schwyz disse
aos representantes de Zurique com um sorriso sarcástico nos lábios:
“Vão e contem ao povo de Zurique de que maneira ele nos agradeceu!”.
Foi assim que os homens de Zurique foram desafiados e afrontados.
***
A DECLARAÇÃO DE GUERRA
Ao receberem a notícia desse ato infame, os habitantes de Zurique
ficaram extremamente irritados. O que havia acontecido em Schwyz foi
considerado uma ofensa de todos os direitos religiosos e políticos de
Zurique; e eles declararam guerra contra os cinco cantões. O dever dos
magistrados é defender os oprimidos, mas o dever do ministro de Cristo é
manter-se firme em seu chamado sagrado, e empunhar apenas a espada
do Espírito, que é a Palavra de Deus (Ef 6:17). Historiadores imparciais
registraram o lamentável abandono dos deveres que o grande reformador
Zuínglio tinha com os preceitos graciosos de seu Mestre, do qual ele
deveria ser uma testemunha viva. As chamas da fogueira do seu
companheiro de luta e serviço acenderam nele uma ardente cólera.
Como cidadão e patriota, mais uma vez Zuínglio foi o primeiro a levantar
sua poderosa voz exigindo uma vingança imediata para essa infâmia.
Sua voz ressoou até os mais longínquos cantos da Confederação
Helvética, despertando uma verdadeira tempestade de indignação contra
a hipocrisia e a intolerância dos cantões florestais.
Zuínglio convocou as autoridades, exigindo que fossem adotadas
medidas enérgicas. Tanto nas reuniões do Concelho quanto de seu
púlpito, ele exortava a todos a empunharem suas armas, a serem firmes
e a não temerem nada. Identificando-se a si mesmo com o exército, do
qual ele era o capelão, Zuínglio exclamava: “A paz que muitos almejam
não é paz, mas guerra! Enquanto a guerra que nós almejamos, em
verdade é paz. Não temos sede de sangue, mas iremos cortar as asas da
oligarquia*. Se fugirmos dessa nossa responsabilidade, a verdade do
Evangelho e as vidas dos ministros não estarão seguras. É verdade que
precisamos confiar apenas em Deus, mas quando temos diante de nós
uma causa justa, também precisamos saber como defender a mesma e,
como Josué e Gideão, estarmos prontos a derramar o nosso sangue em
defesa da nossa pátria e da nossa fé!”.
Tivesse Zuínglio sido um magistrado no Concelho ou um general no
exército, seus apelos teriam sido consistentes e corretos. Mas ele tinha
se esquecido que era ministro do Príncipe da Paz, e que da boca de tal
homem jamais deveriam proceder palavras como as acima mencionadas;
ele nunca deveria convocar uma guerra e derramamento de sangue.
Sempre devemos lembrar que as armas da nossa milícia não são
carnais, mas espirituais e poderosas através do poder de Deus (2 Co
10:4). O famoso reformador havia se transformado totalmente — de um
homem da igreja, havia se tornado um homem do Estado; em vez de,
como anteriormente, apenas anunciar o Evangelho da paz e as eternas
verdades da Palavra de Deus, agora ele realizava discursos públicos de
conteúdo político, traçava planos de defesa e insistia em uma
remodelação da organização da guerra. Ele até mesmo escreveu
tratados acerca dos diversos tipos de armas e sua utilização mais
vantajosa. Entretanto, em meio desta atividade nova e desgastante, ele
nunca perdeu de vista o grande objetivo que sempre tinha em mente: a
promoção da Reforma Protestante e a libertação do Evangelho de todos
os seus impedimentos e inimigos. Devemos lembrar também que sua
convocação para o uso da força era contra os abusos políticos e não
contra as diferenças de fé. Durante esse tempo, ele propôs aos seus
concidadãos: “Vamos propor aos cinco cantões que permitam a livre
pregação da Palavra de Deus; que renunciem suas alianças perversas e
que possam punir aqueles que se oferecem para servir governos
estrangeiros. Ninguém deve ser obrigado a abandonar a missa, os ritos,
os ídolos e as superstições. O poderoso sopro da Palavra de Deus irá
dispersar com facilidade toda essa poeira. Permaneçam firmes! Nós
conseguiremos conduzir o carro da Reforma Protestante através de todos
os empecilhos e alcançaremos a unidade da fé e da Suíça”.4 Que
lamentável que este grande homem tenha se desviado tanto do reto
caminho, ao ponto de querer, por meio do uso das forças das armas,
forçar este belo objetivo de obter a unidade da fé e a liberdade da Palavra
de Deus!
***
PREPARAÇÕES MILITARES
Enquanto isso, os cantões católicos estiveram muito ativos. Eles
sabiam muito bem o que haviam feito e o que deveriam esperar. A guerra
religiosa havia sido iniciada. O som do chifre convocando para a guerra
ecoou nas montanhas e nos vales dos cantões florestais. Por todas as
partes os homens estavam tomando as suas armas. Mensageiros foram
enviados às pressas para a Áustria, para pedir as tropas de ajuda que
haviam sido prometidas. Mas Fernando, que estava sendo novamente
atacado pelos turcos, não pôde disponibilizar as tropas. De modo que a
delegação teve que voltar sem conseguir nada. Não obstante, de forma
firme, e unidos entre si, os homens dos cinco cantões marcharam sob a
grande bandeira de Lucerna para batalharem contra Zurique no dia 8 de
junho. A cidade viu que não havia nenhum minuto a perder. Quatro mil
homens bem armados passaram os portões da cidade no dia 9 de junho.
Zuínglio foi com eles ao encontro dos inimigos, montado no seu cavalo e
com uma brilhante alabarda em sua mão. Os muros e as torres da cidade
estavam lotados de mulheres e crianças que queriam testemunhar a
partida dos guerreiros. Entre esses, se encontrava Ana, a esposa de
Zuínglio. Às nove horas da noite daquele mesmo dia eles chegaram a
Kappel, uma vila que ficava na fronteira entre Zurique e Zug. Ao raiar do
dia seguinte, os guerreiros de Zurique enviaram um emissário a Zug com
uma declaração formal de guerra, bem como para anunciar a ruptura da
aliança. A sua chegada causou pavor e consternação na pequena cidade.
Os homens tomaram suas armas, as mulheres e as crianças corriam
pelas ruas chorando e gritando, a cidade estava um caos. A súbita
chegada dos guerreiros de Zurique havia tomado a pequena vila de
surpresa.
No momento em que a primeira divisão do exército de Zurique, que
consistia de dois mil homens, estava se preparando para cruzar a
fronteira, notaram um cavaleiro se aproximando a pleno galope. Seu
nome era Oebli, o magistrado-chefe de Glarus. “Parem!”, ele gritou com
grande agitação, “Eu venho da parte da Confederação. Os cinco cantões
estão prontos para a batalha, mas consegui convencê-los a pararem o
avanço de suas tropas se fizerem o mesmo. Eu vos imploro, senhores de
Zurique e a todo o povo, que, pelo amor a Deus e pelo amor à nossa
Confederação, suspendam sua marcha por enquanto. Em poucas horas
estarei de volta; espero, com a ajuda de Deus, obter uma paz honrada e
impedir que nossas casas fiquem cheias de viúvas e órfãos.”5
Oebli era um homem honrado e favorável à Reforma. Por esse motivo,
os capitães do exército de Zurique suspenderam sua marcha. Muitos
acreditavam que Oebli obteria a paz satisfazendo ambos os lados, mas
Zuínglio suspeitava que era uma armadilha. Perturbado e muito
incomodado, Zuínglio pensava que a intervenção de Oebli não passava
de uma astúcia de Satanás. Ele sabia que os cinco cantões não haviam
conseguido o auxílio que esperavam da Áustria naquele momento, por
isso pensava que estavam fingindo, que desejavam a paz apenas para
ganhar tempo. Com ânimo sombrio, Zuínglio andava de um lado para o
outro. Por fim, ele se aproximou de Oebli e lhe disse em um tom grave:
“Amigo magistrado, tu terás que responder diante do Senhor por essa
mediação. Nossos adversários estão em apertos. Esse é o motivo porque
eles nos enviam essas palavras gentis. Porém, mais tarde irão cair sobre
nós quando estivermos distraídos, e então não haverá quem nos livre”.
Nenhuma profecia foi cumprida de modo mais literal como esta. “Meu
querido amigo”, respondeu Oebli, “eu confio em Deus que tudo acabará
bem. Nós iremos fazer o nosso melhor.” Com essas palavras, ele partiu
cavalgando apressadamente para Zug. Zuínglio, em profunda meditação,
voltou para sua tenda. Em espírito, ele antecipava um futuro tenebroso e
terrível. “Hoje eles imploram e nos pedem a paz”, disse Zuínglio, “mas em
um mês, quando tivermos deposto as armas, eles virão e nos
esmagarão.”
***
O TRATADO DE KAPPEL
Mediante seus incansáveis esforços, Oebli conseguiu dar início às
deliberações entre os dois acampamentos inimigos, contudo, se
passaram várias semanas antes que houvesse concordância quanto às
condições de paz. Os representantes de Zurique e os romanistas, com a
participação dos cantões neutros, se reuniram durante esses dias para
redigirem um documento contendo os artigos do tratado de paz. Durante
aqueles dias, os soldados dos dois exércitos travaram uma relação
amistosa. Eles se lembraram que todos eram suíços, eram irmãos. As
sentinelas, que estavam a apenas um tiro de pedra um do outro,
conversavam cordialmente entre si. Eles se divertiam, comiam e bebiam
juntos. A ordem predominava no acampamento das tropas de Zurique;
Zuínglio, ou outro ministro, pregava diariamente. Entre os soldados não
se ouvia nenhum palavrão nem disputas; nenhuma pessoa desonesta era
admitida; orações eram feitas antes e depois das refeições, e cada
homem obedecia a seu superior. Não havia dados nem baralhos, nem
outro jogo que pudesse excitar os ânimos. Apenas salmos, hinos e
cânticos patrióticos eram cantados. Eram praticados exercícios físicos, o
que ajudavam na recreação dos militares dos exércitos de Zurique. O
espírito do reformador havia passado para o exército.
Por fim, o tratado foi concluído no dia 26 de junho de 1529. Os
guerreiros desmontaram suas barracas e retornaram para seus lares
jubilosos. Os termos deste tratado, apesar de não corresponderem
totalmente aos desejos dos protestantes, e em especial os de Zuínglio,
ainda assim eram favoráveis à Reforma. Os cantões florestais se
comprometeram a abandonar a aliança feita com a Áustria e a liberdade
de consciência deveria ser garantida a todos os seus súditos. Mesmo as
menores paróquias deveriam decidir, por uma maioria de votos, qual
religião desejavam professar. E a família de Kayser devia receber uma
indenização. O povo de Zurique ficou satisfeito com o sucesso que havia
coroado a disposição guerreira que haviam demonstrado. Mas o espírito
de Zuínglio estava oprimido por grandes preocupações. Calado e abatido,
ele retornou a Zurique. Os berneses — que não haviam contribuído com
absolutamente nada para que aquela vitória fosse alcançada sem
derramamento de sangue, pelo contrário, haviam manifestado sua
oposição — começaram a invejar a crescente influência de Zurique. Isso,
infelizmente, fez surgir um espírito de desunião entre aqueles dois
poderosos Estados, o que fez com que o laço entre eles começasse a ruir
e culminasse na grande catástrofe de 1531.
***
A CONFEDERAÇÃO CRISTÃ DE ZUÍNGLIO
Contudo, o espírito forte e vivaz do reformador não se entregou por
muito tempo à melancolia que havia tomado conta dele. Rapidamente,
ele recuperou sua antiga determinação e energia e voltou-se, com um
zelo ainda maior, às questões políticas. Zuínglio se enredou cada vez
mais na armadilha que o astuto inimigo das almas lhe havia preparado.
Satanás conhecia os pontos fracos de Zuínglio e o tentou com a grande
ideia de unir toda a Suíça e a cristandade reformada mediante uma
confederação cristã. Satanás sabia que dessa maneira poderia destruir
ao reformador e a sua obra, por isso ele impulsionava, com grande
astúcia, a Zuínglio nesse caminho. As intenções do reformador, sem
dúvida, eram as mais puras e elevadas em caráter. A conduta hostil dos
cinco cantões e a oposição que se levantava por todas as partes contra a
Reforma pareciam exigir, de modo cada vez mais imperativo, uma união
mais firme dos evangélicos. O espírito enérgico de Zuínglio meditava dia
e noite em como poderia fazer avançar a Reforma Protestante e derrubar
aquele terrível poder que havia mantido as nações da Europa sob a
escravidão por um longo período. O grandioso plano que ele pretendia
realizar consistia em unir todos os Estados e nações protestantes da
Europa em uma santa confederação. Seu olhar ia além das fronteiras da
Suíça, abrangendo toda a cristandade. Nenhum homem de seus dias
possuía uma compreensão tão precisa das condições políticas, militares
e religiosas como ele. Sem conseguir enxergar a diferença dos princípios
da lei do Antigo Testamento e da graça no Novo Testamento, ele
honestamente pensava que era dever dos Estados protestantes
colocarem seu poder militar a serviço da defesa do Evangelho. Ele dizia:
“Por que não deveriam todos os poderes protestantes se unir em uma
santa aliança com o propósito de frustrar os planos que o papa e o
imperador estão tramando para suprimir, de forma violenta, a Reforma
Protestante? Sem dúvida, a Palavra de Deus se mantém em pé somente
pelo poder de Deus e não pela força dos homens, porém Deus utiliza
frequentemente pessoas como instrumentos para ajudar a outras
pessoas. Por isso queremos nos unir; que desde as fontes do Reno até
Estrasburgo haja um povo e uma aliança”.6 Lamentavelmente, Zuínglio
havia desaprendido a olhar apenas para Deus e esperar dEle o socorro.
Ele começou a confiar nos homens e fazer da carne seu braço.
Os planos de Zuínglio e as negociações para executá-los poderiam ser
considerados honrados para um homem de Estado, mas, na realidade,
para um ministro cristão era uma reprovação. Porém, independente de
quão grande e fatal foi seu erro, o objetivo que o reformador perseguia
era bom e nobre: a divulgação do Evangelho e a livre pregação da
Palavra de Deus por toda a sua terra natal. Zuínglio considerava essa
meta muito mais preciosa que sua própria vida. Nosso Senhor e Mestre,
que conhece os mais secretos pensamentos e motivos do nosso coração,
um dia certamente irá reconhecer estas motivações do Seu servo,
mesmo que não possa aprovar a sua obra. Além disso, se afirma de
maneira positiva que, apesar de sua atividade política, Zuínglio nunca
negligenciou, nem por um momento sequer, suas obrigações pastorais;
ele continuou sendo o incansável pastor e fiel conselheiro do seu
rebanho. Raramente um homem desenvolveu uma atividade tão
abrangente em âmbitos tão diversos como o reformador suíço nos
últimos anos da sua vida. Ele foi estadista, general, reformador e
pregador ao mesmo tempo.
***
OS CINCO CANTÕES ROMPEM O TRATADO
Pouco tempo depois que o tratado de Kappel havia sido assinado, os
católicos começaram a enfastiar-se* dele. Visto que o tratado era
definitivamente favorável à expansão do poder de seus inimigos e à
divulgação da verdade, este se tornou cada dia mais insuportável. Os
cantões controlados pelo papado estavam irados pelo progresso da
Reforma Protestante e que a mesma se aproximava cada vez mais e
ameaçava entrar em suas próprias cidades e vilarejos. Por esse motivo,
os romanistas estavam ansiosos para encontrar algum pretexto para se
livrarem do compromisso assumido no tratado. Esse motivo não foi difícil
de ser encontrado. Para falar a verdade, eles nunca haviam cumprido os
compromissos assumidos. A “liberdade de consciência”, que foi
assegurada pelo tratado a todos os súditos dos cantões, logo foi a causa
para graves atritos. E não podia ser de outra forma, pois os pensamentos
de Roma acerca dos “direitos da consciência” jamais podiam ser reunidos
com as exigências de um coração verdadeiramente sincero. Roma não
conhece nenhum direito da consciência, e se ela quiser permanecer fiel
aos seus princípios, ela também não pode reconhecer uma liberdade de
consciência. Os católicos nunca entenderam nem aceitaram a distinção
entre a prática religiosa e a obediência civil. Mas essa era a posição
fundamental defendida pelos protestantes. Os católicos nunca poderiam
concordar com a mesma, nem mesmo por um momento sequer. Foi isso
que se tornou o principal motivo da disputa e a fonte de inumeráveis
controvérsias que, dia a dia aumentavam a irritação e que por fim levou à
violação aberta, por parte dos montanheses, do tratado que haviam
firmado. Os poucos protestantes que habitavam dispersos pelos cantões
católicos logo se viram na pior das situações. Visto que eles, obedecendo
à sua consciência, não podiam mais participar das atividades
supersticiosas de seus vizinhos, eles foram taxados de falsos mestres e
hereges. Isso teria sido suportável, mas a multidão, uma vez incitada, não
permaneceu inativa. Às imprecações logo se seguiram maus tratos de
todo tipo. Os magistrados e presidentes das diferentes comunidades
andavam de mãos dadas com o povo. Todos os que se confessavam a
favor da nova fé e que amavam a Palavra de Deus mais do que as
tradições e mandamentos dos homens foram punidos com multas,
lançados no cárcere ou expulsos das suas casas e propriedades sem
misericórdia.
O cálice da indignação católica se encheu. Sangue! Sangue! Era o
clamor que se ouvia. Somente o sangue dos fiéis seguidores do Senhor
Jesus poderia expiar a ignomínia infligida aos ídolos mudos. Somente a
destruição, pelas fogueiras, dos santos de Deus, seria aceita como uma
resposta para as cinzas de seus altares e imagens. Oh, Roma! Roma!
Quando irás satisfazer sua sede do sangue dos redimidos de Deus?
Parece que essa sede é impossível de ser saciada. Os verdadeiros
oceanos de sangue que já derramaste parecem apenas ter aumentado a
tua sede!
Nós podemos ver essa sede por sangue em todas as ocasiões
possíveis que marcaram teu domínio usurpador. Mas o que irá acontecer
quando teu reino terminar e não houver mais sangue para ser
derramado? Aquela terrível palavra “lembra-te” irá te lançar para trás e
fazer-te ver o passado cheio de sangue derramado, os calabouços da
Inquisição e as chamas onde queimaste tuas vítimas desamparadas e
inocentes. Porém, tudo isso mudará. Uma bem-aventurança, pura e
eterna, será a parte de todos os que sofreram sob tuas mãos. Mas o que
dizer do lugar onde as chamas nunca se apagarão; onde o verme nunca
morrerá; onde as visões do passado fluirão incessantemente diante de
tua alma inquieta e sem sono, e onde uma gota de água fria nunca será
obtida para resfriar tua língua ardente? Ali serás confrontada com todas
essas memórias, com as acusações da tua consciência e as lembranças
de todos aqueles a quem enganaste por meio de tuas feitiçarias e que
arrastastes para as regiões da maldição eterna por meio dos grandes
enganos que praticastes.
***
AS CHAMAS DA PERSEGUIÇÃO SÃO REACENDIDAS
Agora a Suíça estava dividida em dois campos, e o abismo que
separava os mesmos crescia a cada dia. Os cantões florestais, apoiados
pelo imperador e seu irmão Fernando, reiniciaram a perseguição dos
protestantes com um ardor ainda maior. Sua fúria voltou-se
principalmente contra os pregadores do Evangelho. Suas vítimas foram
tratadas com muita crueldade. Os pregadores e os que professavam a fé
reformada eram encarcerados, onde quer que fossem encontrados, e
seus bens confiscados. Suas línguas eram arrancadas; e eles eram
decapitados ou queimados nas fogueiras. O clamor de socorro dos
pobres perseguidos chegou até Zurique e encontrou um forte eco nos
habitantes dessa cidade. A voz de Zuínglio se levantou mais poderosa do
que nunca. Ele considerava seu dever despertar os cantões
confederados. Zuínglio viajou e visitou muitas cidades pessoalmente, fez
numerosos discursos diante de grandes assembleias e empregou toda
sua irresistível eloquência para acender o zelo dos ouvintes para a
defesa do Evangelho e da liberdade do povo. Ele dizia: “Essas vítimas
são suíços, aos quais um partido está procurando arrancar-lhes, de forma
vil, as liberdades que lhes foram transmitidas por seus ancestrais. Se
considerarmos que é injusto tentarmos abolir a religião romana de nossos
adversários pela força, não podemos considerar como algo menor a
prisão, o banimento e o confisco das propriedades desses cidadãos
apenas porque suas consciências os impelem a abraçar opiniões que são
desprezíveis aos seus opressores”.
No dia 5 de setembro de 1530, os mais eminentes pastores de Zurique,
Berna, Basileia e Estrasburgo — Oekolampad, Capito, Megander, Leo
Jud e Myconius — se reuniram em Zurique e redigiram uma ardorosa e
insistente exortação aos confederados católicos, na qual pediam por
moderação cristã e unidade. Mas a mesma foi desprezada por completo.
Em uma Dieta Geral, que aconteceu no mês de abril do ano seguinte na
cidade de Baden, a conduta ilegal dos cinco cantões foi o assunto
principal das discussões, dos quais participaram representantes de todos
os cantões. Houve uma violenta disputa entre as delegações de Zurique
e dos cantões florestais. Foi em vão que Berna, e outros cantões
favoráveis à paz, intervieram pedindo a ambos os partidos que
removessem a causa da discórdia. Os habitantes de Zurique, liderados
por Zuínglio, não queriam saber de um acordo. Zuínglio declarou: “Não
podemos mais continuar discutindo. A quebra da aliança dos cinco
cantões e as infames ofensas com as quais somos cobertos, nos obrigam
a enfrentar nossos opositores com violência”. Os cantões florestais
também não foram favoráveis à paz. Eles estavam determinados a
reiniciar a guerra, a qual tiveram que renunciar dois anos antes por falta
de preparativos. Os berneses eram menos ardorosos; embora eles
admitissem que os cinco cantões houvessem ofendido o Tratado de
Kappel e quebrado suas promessas de forma vergonhosa, eles queriam,
de todas as formas, evitar uma guerra civil, e propuseram um meio mais
moderado, como eles pensavam, para forçar os cantões florestais a
cumprirem suas obrigações.
***
O EMBARGO
“Fechemos nossos mercados ao comércio com os cinco cantões”,
disseram os berneses, “e vamos recusar supri-los com vinho, milho, sal,
aço e ferro. Dessa maneira, apoiaremos os homens de paz que há no
meio deles, e com isso evitaremos o derramamento de muito sangue
inocente.” Apesar da oposição dos habitantes de Zurique, essa proposta
foi adotada no dia 15 de maio; publicada e executada imediatamente.
Como os cinco cantões estavam situados exclusivamente nas partes
montanhosas da Suíça, tais medidas eram de extrema severidade.
Devido à natureza geográfica daquela região, eles dependiam em grande
parte das planícies para suprir suas necessidades. A condição
montanhosa da sua região não lhes permitia obter muitos frutos da terra;
a maioria dos habitantes dependia dos seus rebanhos. Tudo o que
precisavam para seu sustento, exceto leite e queijo, eles compravam dos
mercados da planície. Mas agora esses mercados estavam fechados e
as estradas que conduziam àquelas cidades estavam bloqueadas. Esse
decreto foi executado com um rigor desconsiderado; as consequências
foram as mais lamentáveis.
Pão, vinho e sal, de repente, desapareceram das mesas dos mais
pobres. A fome, com suas terríveis consequências, tais como doenças e
epidemias, espalhou rapidamente a morte e o terror entre os infelizes
habitantes da montanha. Um forte grito de desespero surgiu dos prados
elevados e ecoou pelos vales e planícies. Muitos corações foram movidos
pela compaixão. Muitas vozes, tanto entre os próprios confederados
como do exterior, se levantaram iradas contra a cruel maneira de agir dos
habitantes de Zurique e dos seus aliados. Diziam: “O que resultará disso?
Paulo escreve aos romanos: ‘Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de
comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás
brasas de fogo sobre sua cabeça’ (cp. 12:20). E o que vós fazeis?”.
Infelizmente, essa pergunta era totalmente justificada. Os reformados
caíram de um erro fatal para outro. Em vez de pregar o Evangelho aos
pobres e vencer os rebeldes por meio do amor, lhes tiraram o pão diário.
Não demorou para que os católicos, levados à beira do desespero pela
dureza de seus opositores, jurassem vingança sangrenta.
***
A POLÍTICA ADOTADA POR ZUÍNGLIO
A intervenção de Zuínglio nos assuntos políticos de Zurique naqueles
dias tem sido muito criticada pelos historiadores e, de modo
especialmente severo pelo próprio D´Aubigné. Nós citaremos a opinião
de Waddington, que não poderá ser acusado de pender em direção ao
republicanismo7.
“Devemos mencionar que Zuínglio era um decidido opositor das
medidas de embargo e as enfrentou com todo o poder da sua
personalidade. Ele pregava ardorosamente contra a execução dessa
resolução fatal nas assembleias do Concelho e nas igrejas. Ele percebeu,
com sua costumeira perspicácia, o grande perigo que tais medidas
traziam consigo. Sua opinião era que uma guerra submeteria os cantões
católicos antes do que uma maneira tão intransigente* de agir — esta
parecia ser mais moderada que uma guerra, mas, no fundo, era muito
mais desumana e dura. Entregar toda uma população ao terror da fome
jamais poderia levar a um bom final, mas incitaria ao extremo o ódio, a
amargura e a fúria dos opositores. Com sua aguda sagacidade, ele
também previa que qualquer demora iria resultar em desgraça para
Zurique.”8 Zuínglio disse: “Desta maneira nós sacrificamos as vantagens
que tínhamos conseguido e damos tempo para os cinco cantões se
prepararem e nos atacarem. Devemos tomar cuidado para que o
imperador não se alie a eles e nos ataque por um lado enquanto nossos
antigos confederados nos atacam pelo outro. Uma guerra justa não é
contrária aos ensinamentos da Palavra de Deus, mas sim tirarmos o pão
da boca dos culpados e dos inocentes, oprimirmos os enfermos, os
idosos, as crianças e demais por meio da fome. Por meio disso iremos
incitar a ira do povo pobre e tornar em inimigos aqueles que ainda são
nossos amigos e irmãos”9. Mas todos seus apelos não tiveram sucesso; a
sua voz não foi ouvida. Os outros cantões, especialmente o de Berna,
insistiram inabaláveis na sua posição, para o grande prejuízo de Zurique,
como veremos logo.
Entrementes, as terríveis consequências do bloqueio geral se tornaram
cada vez mais perceptíveis nos cantões florestais. A aflição aumentava
mais e mais, levando finalmente os orgulhosos montanheses ao
desespero. Rodeados por todas as partes como por muralhas
impenetráveis, não lhes restou outra coisa a não ser empunhar suas
armas e rompê-las. Mas para tal, suas próprias forças não bastavam, e
em vão se voltaram para o exterior pedindo ajuda. Eles brandiam suas
espadas com fúria impotente e selvagem, e clamavam: “Eles bloquearam
nossas estradas, mas nós iremos abrir caminho pela violência!”. Na sua
aflição, buscavam consolo na religião. Muitas peregrinações foram feitas
para Einsiedeln e outros lugares sagrados; orações foram dirigidas para o
alto, tomaram os rosários em suas mãos e recitaram inúmeros Pai Nosso.
A guerra teria sido iniciada imediatamente se os líderes católicos não
tivessem considerado necessário um adiamento. Eles sabiam da
desunião e da insatisfação entre os protestantes, e esperavam que o
tempo aumentasse mais essa divisão.
***
NOVAS TENTATIVAS DE MEDIAÇÃO
Várias tentativas foram feitas para alcançar uma reconciliação entre os
partidos contenciosos, mas sem efeito prático algum. Zurique e Berna
exigiam que a livre pregação da Palavra de Deus deveria ser permitida
não apenas nas suas paróquias, mas também nas paróquias dos cinco
cantões. Porém, diante das circunstâncias atuais, isso era pedir demais.
Eles não se satisfaziam com menos. Os católicos, por sua parte,
responderam que não iriam aceitar nenhuma proposta antes que o
embargo fosse levantado. Representantes de todos os cantões se
encontraram em cinco ocasiões diferentes, entre 14 de junho e 23 de
agosto. Os cantões neutros continuavam com suas tentativas de
pacificação apoiados por embaixadores enviados por países
estrangeiros, especialmente da França; porém não estiveram em
condições de aproximar os partidos um passo sequer da reconciliação.
A posição do reformador tornava-se mais difícil e embaraçosa a cada
dia. É impossível contemplarmos esse momento sem nos sentirmos
impelidos a compartilhar as agonias de seu sofrido coração. Mas
devemos nos lembrar que ele se desviou da linha reta da Palavra de
Deus, e acabou ficando sem a direção divina na sua vida. Desde que ele
havia começado a se intrometer em disputas políticas, a reverência por
sua pessoa havia diminuído mais e mais entre o povo. Não se via mais
nele o grande reformador, mas o estadista e guerreiro. Em Zurique havia
se formado, paulatinamente, um forte partido que não estava de acordo
com seus planos e que queria evitar, principalmente, a guerra que ele
aconselhava. O número dos insatisfeitos aumentava diariamente. Em vão
Zuínglio empregou toda sua eloquência para ganhar o povo novamente
para si; sua influência sobre as massas, outrora tão grande, havia
desaparecido. É verdade que ainda gostavam de ouvi-lo, porém não
queriam mais obedecer seus conselhos. Devemos insistir que, por melhor
que tenham sido as intenções de todas as suas atitudes, as mesmas
eram inconsistentes com o alto e santo chamado que ele havia recebido.
A união infeliz e anormal dos dois caracteres de uma disputa espiritual e
mundana em Zuínglio produziu confusão e insegurança em todos os
ânimos. A mistura da Igreja e o Estado, que havia corrompido o
cristianismo desde os dias do imperador Constantino10, estava
espalhando muita confusão em todos os lugares e apressando a ruína da
Reforma Protestante. O objetivo da política de Zuínglio, sem dúvida, era
incorporar os dois em um. Porém, ele teve que experimentar que o crente
não pode nem deve estar unido em um jugo com o incrédulo (2 Co 6:14).
Zuínglio teve que colher, em grande medida, os amargos frutos da sua
incorreta maneira de agir. Uma vez que ele misturou a Reforma com a
política, não estava mais em seu poder desviar as terríveis
consequências deste passo.
***
A POSIÇÃO DE ZURIQUE E A REFORMA PROTESTANTE
Zuínglio estava ansioso, inquieto e martirizado pelos mais obscuros
pressentimentos quanto ao futuro. Ele viu como negras nuvens de
tempestade se formavam, vindo de todos os lados, estando fora de seu
alcance dispersá-las. Ele teve que contemplar como sua cidade natal e a
Reforma se apressavam para a ruína. Zuínglio não podia detê-la. Muitos
daqueles que haviam sido seus amigos se voltaram contra ele. Seus
inimigos tiraram proveito da discórdia generalizada e o perturbaram e
atormentaram. Os defensores dos monges — havia muitos ainda em
oculto — que agora levantavam novamente suas cabeças com coragem,
os que eram favoráveis ao serviço militar no estrangeiro e aos salários
provenientes do exterior, e os insatisfeitos de todo tipo, apontaram para
Zuínglio como sendo o causador de todos os sofrimentos do povo. Com o
coração quebrantado, o reformador percebeu que não lhe restava nada
mais que retirar-se do cenário público; suas ações foram mal
interpretadas, seus conselhos não foram seguidos e ele mesmo foi
caluniado das mais diversas formas.
Foi assim que, no dia 26 de julho, ele entregou sua demissão no
Grande Concelho com a seguinte justificativa: “Não se tem mais
consideração por mim; inimigos do Evangelho são escolhidos para fazer
parte do Concelho; negam-se a seguir minhas propostas e me
responsabilizam por todo tipo de calamidade. Eu não posso continuar
mais mantendo tal posição”. Devido a esta inesperada linguajem do
reformador, os magistrados ficaram em um grande embaraço. Eles
reconheciam que Zuínglio tinha razão, mas também sentiam que sua
retirada, no presente momento, seria fatal para Zurique. Não apenas
Zurique, mas também a Reforma Protestante corriam perigo se o piloto
aprovado deixasse o timão e o navio fosse entregue ao poder das ondas.
Imediatamente, o Concelho enviou a Zuínglio o burgomestre e uma
comissão de magistrados com a petição para não abandonar sua pátria
nesse momento tão crítico. Zuínglio oscilou por muito tempo; passou três
dias e três noites em oração, empenhando-se em buscar a direção divina.
Quando, finalmente, os representantes do Concelho lhe expuseram que a
causa da Reforma estaria definitivamente perdida caso ele se retirasse
agora do campo de batalha, Zuínglio cedeu e consentiu em manter-se em
seu lugar. Ele disse: “Eu permaneço convosco, e trabalharei pelo bem do
povo até a morte”.
Ele se entregou à sua atividade política com novo ardor, na esperança
de recuperar sua influência sobre o povo e elevar a coragem dos
habitantes de Zurique. Contudo, ele ficou amargamente desapontado.
Uma funesta cegueira parecia ter se apoderado tanto do governo quanto
do povo. Dia após dia eles se opunham mais à guerra, a qual, num
primeiro momento, haviam exigido de forma impetuosa. Os esforços de
Zuínglio também não tiveram sucesso fora da cidade de Zurique. Os
diversos cantões e cidades estavam desunidos entre si, e em vão o
reformador de Zurique procurou banir a dissensão do seu seio para
unificar todas as forças em uma defesa efetiva da Reforma. Todos
estavam se identificando com a política passiva adotada pela cidade de
Berna. Correndo grande perigo, Zuínglio foi à cidade de Bremgarten,
onde, no dia 10 de agosto, se realizava a quarta Dieta. Acompanhado por
dois amigos, ele entrou furtivamente, de noite, na casa do conhecido
historiador Bullinger, encontrando-se ali com a delegação de Berna. Com
lágrimas nos olhos, Zuínglio implorou que eles trabalhassem para que o
embargo fosse levantado. Com as mais fortes expressões ele lhes
descreveu o danoso desta medida e os perigos que dela surgiriam para a
Reforma. Porém, embora os berneses ficassem profundamente
comovidos, por um momento, pelas graves alegações do reformador,
como relata Bullinger, e prometessem se empenhar plenamente para
desviar essa ameaçadora calamidade, logo se demonstrou que os
esforços de Zuínglio foram em vão. Após várias horas de conversações
os homens se separaram — visto que Zuínglio tinha que sair da cidade
antes do amanhecer para não ser reconhecido. Com muitas lágrimas ele
se despediu de seu jovem amigo Bullinger, pressentindo que o estaria
abraçando pela última vez. Com o coração profundamente comovido,
Zuínglio o deixou com as palavras: “Deus te guarde, querido Henrique.
Seja fiel ao Senhor Jesus Cristo e à Sua Igreja!”.
***
A GUERRA É INICIADA
Entrementes, todas as tentativas de mediação continuaram com
empenho. Porém, todas elas fracassavam na inabalável firmeza dos
cantões florestais. Até mesmo quando lhes foi proposto que o tratado de
paz do ano de 1529 vigorasse novamente, deixando de lado todas as
demais exigências, eles, orgulhosamente, rejeitaram respondendo:
“Preferimos morrer antes de sacrificar o mínimo da nossa fé”. Eles
estavam determinados a decidir a questão religiosa por meio das armas.
Enquanto essas infrutuosas tentativas aumentavam a desunião entre os
reformados, elevavam a coragem dos montanheses e lhes dava tempo
para se armarem energicamente. Aquilo que Zuínglio havia previsto com
seu agudo olhar, aconteceu literalmente. Quando os católicos se sentiram
suficientemente preparados, levantaram seus estandartes no dia 6 de
outubro de 1531. Eles foram os primeiros a lançar mão das armas. A
defesa da Igreja Romana e da Santa Sé era o verdadeiro motivo para
fazerem aquela guerra, apesar de alegarem que o embargo comercial era
ofensivo. Os líderes estavam estreitamente unidos e encontraram um
poderoso apoio no povo, que ardia com o desejo de vingar-se daqueles
que lhes haviam tirado o alimento e que procuravam roubar também sua
religião. A fé e o sofrimento comum uniam todos eles em um só espírito,
com um mesmo objetivo.
O acampamento dos reformados oferecia uma visão oposta. Aqui, os
líderes estavam desunidos, indecisos e cheios de desconfiança mútua. O
povo estava insatisfeito e eram contra a guerra. Sob tais circunstâncias,
não poderia haver uma ação decisiva. “Não nos precipitemos”, diziam,
“os cinco cantões irão reconsiderar. Os rumores do armamento dos
cantões florestais não são verdadeiros.” Assim procuravam se acalmar,
ficando adormecidos. Os montanheses fizeram a sua parte, preparando-
se silenciosamente para o ataque, para então cair de forma mais terrível
sobre os desavisados. Todas as passagens que permitiam o trânsito de
pessoas foram cuidadosamente vigiadas, e todas as comunicações entre
Zurique e os cinco cantões foram cortadas. Um historiador suíço nos diz:
“Uma terrível avalanche estava pronta para desabar dos cumes
congelados das montanhas, e deslizar sobre os vales chegando até as
portas de Zurique, derrubando tudo o que encontrava em seu caminho
sem dar nenhum sinal de sua queda iminente. A ruína deveria cair
repentinamente sobre os destruidores da antiga religião”.
Na esperança de dividir os reformados, os católicos declararam guerra
não contra os cantões reformados, mas apenas contra Zurique. A mira de
Jezabel estava no sangue de Zuínglio; ele precisava ser morto. Enquanto
o reformador estivesse vivo, não haveria paz para a Santa Madre Igreja
Católica na Suíça. No dia 8 de outubro, os cantões florestais
comunicaram à cidade de Zurique, por meio de um mensageiro, a
revogação da assim chamada “Aliança Eterna”. Isso equivalia a uma
declaração de guerra. Na sua infeliz cegueira, o Concelho e o povo
continuavam a desacreditar na seriedade da situação. Os inimigos
começaram a agir imediatamente. Já no dia seguinte, oito mil homens,
após terem assistido reverentemente a missa, começaram a marchar em
direção à fronteira de Zurique. Do outro lado se aproximavam tropas de
apoio italianas, que o papa havia enviado para socorrer seus fiéis filhos.
O exército papal completo somava doze mil homens. No entardecer
desse dia, a vanguarda dos montanheses invadiu os territórios das
paróquias livres. Quando os soldados descobriram as marcas da
destruição dos altares e das imagens nas igrejas, arderam em ira. Com
terríveis imprecações* e insultos, eles se derramaram pelo território,
saqueando e destruindo tudo o que encontravam. Os campesinos,
tomados de pavor e pânico, abandonaram os vilarejos e as cabanas em
uma tumultuada fuga, e se apressaram em direção a Zurique.
***
A INDECISÃO DO CONCELHO DE ZURIQUE
Mensageiro após mensageiro chegava a Zurique, trazendo notícias da
terrível invasão dos montanheses. Porém, de modo incompreensível, eles
ainda tomavam isso como um alarme falso. O Concelho foi convocado,
contudo, a maioria dos magistrados achou desnecessário comparecer.
Em vez de fazer soar o alarme sem mais demora e conclamar aos
cidadãos para empunhar armas, se contentaram em enviar dois
magistrados para Kappel e Bremgarten para se informarem do que havia
de verdade em tudo isso. Eles disseram: “Os cinco cantões estão
fazendo um pequeno barulho para nos assustar e nos fazer suspender o
embargo”. Eles foram dormir tranquilamente. No amanhecer do dia 10,
foram rudemente despertados de sua sonolência por uma informação
concreta, trazida por espiões, que o inimigo já havia cruzado a fronteira e
tomado Hytzkilch. Mas mesmo essa terrível notícia não conseguiu
arrancar o Concelho da sua negligência e indecisão; apenas enviaram
uma divisão de seiscentos homens com seis canhões até Kappel com o
objetivo de impedir o avanço do inimigo. O dia inteiro se passou com
longos e inúteis discursos e debates. Assim, o precioso tempo foi mal
gasto. Finalmente, às sete horas da noite, foi tomada a resolução de
fazer soar os sinos de alarme na cidade e no campo. Mas já era tarde
demais. A sorte de Zurique já estava selada. Os habitantes o
pressentiam, e nessa noite não dormiram; choravam e oravam. Foi uma
noite assustadora, como se a própria natureza se encolhesse diante de
todo o sangue que estava para ser derramado. “O sol se pôs atrás do
monte Albis”, assim nos diz Wylie, “a cidade, o lago e o cantão foram
completamente envolvidos em trevas; com elas, vieram o tremor e o
terror. Lá fora, uma violenta tempestade desabou com uma fúria terrível;
o vento uivava sobre a cidade e os campos ao redor de Zurique; as
ondas do lago eram agitadas pela força do vento; os sinos de alarme
continuavam a soar. Havia muitas lágrimas e lamentos nas casas de
Zurique, bem como amargas despedidas entre aqueles que sentiam que
estavam, provavelmente, se abraçando pela última vez.”11
***
OS MAUS PRESSENTIMENTOS DO POVO
Aquela terrível noite foi seguida por um dia ainda mais terrível. A
manhã chegou, a tempestade havia passado, mas nem um alvorecer
brilhante poderia dissipar a escuridão que havia tomado conta dos
corações dos habitantes de Zurique. O som das trombetas e o rufar dos
tambores chamavam os cidadãos para se armarem. Mas horas se
passaram antes que algumas poucas centenas de soldados pudessem
ser reunidas. De acordo com Hess, “a indecisão do Concelho encheu os
corações dos cidadãos com sentimentos de ansiedade e contribuiu para
a diminuição do senso de obediência e dever. Como sabemos, quando o
governo vacila, destrói toda a confiança do povo, e ordens dadas em tom
hesitante dificilmente são obedecidas”. Em vez de um exército de quatro
mil homens, que o Concelho havia determinado que marchassem em
direção a Kappel, somente setecentos soldados estavam prontos e
armados às dez horas da manhã. Mesmo esses estavam completamente
desordenados, agitados e sem armamentos e uniformes suficientes.
Zuínglio, seguindo as instruções do Concelho e de conformidade com os
costumes de seu país, acompanhou o exército como capelão. Com um
coração quebrantado e ferido ele se despediu da sua amada esposa e
seus queridos filhos. Ele não tinha ilusões nem procurava enganar-se a si
mesmo quanto ao desfecho daquela expedição, mas considerava seu
dever obedecer às ordens de seus superiores sem apresentar nenhum
tipo de objeção. Zuínglio sentia que ele e muitos homens excelentes
estavam diante de uma difícil empreitada. Mantendo-se calmo no meio de
seus amigos que tremiam por causa de sua vida, ele ainda procurou
confortá-los, dizendo: “Deus não irá abandonar Seus servos. Ele irá
assisti-los, ainda que tudo pareça perdido. Minha confiança está somente
em Deus e não nos homens. Eu me submeto à Sua soberana vontade”.
***
A BATALHA DE KAPPEL
Ao meio dia, sob a bandeira de Zurique hasteada, os setecentos
homens saíram da cidade para enfrentar o inimigo. Ana, a esposa de
Zuínglio, acompanhou seu marido com o olhar desde um lugar alto, até
que o perdeu de vista. Mas, além do marido, ela também tinha um filho,
um irmão, um grande número de parentes próximos e muitos amigos
íntimos naquele desventurado exército; ela não tinha nenhuma esperança
de revê-los. Ana compartilhava os maus pressentimentos de seu esposo
e, como ele, acreditava que era pela santa causa de Deus e Sua verdade
que eles assim se expunham a si mesmos tanto ao perigo como à morte,
que para eles representava um martírio.
À medida que o exército avançava, Zuínglio foi ficando cada vez mais
para trás. Aqueles que estavam mais próximos dele podiam ouvi-lo
orando pela Igreja e pela causa de Deus.
Mas, antes de terem alcançado Kappel, que ficava aproximadamente a
18 quilômetros de Zurique, eles já ouviram o estrondo dos canhões. A
batalha já havia iniciado. Os zuriquenses apressaram os passos, porém,
apesar de todos os esforços, avançavam vagarosamente. O caminho que
conduzia pelo pico de Albis lhes oferecia empecilhos quase invencíveis
para o transporte do armamento. Finalmente alcançaram o pico da
montanha. Entusiasmado, Zuínglio se pôs à frente do exército
exclamando: “Avante! Corramos para socorrer nossos irmãos!”.
A descida foi rápida; logo eles alcançaram o campo de batalha. Apesar
de serem visivelmente em menor número, os zuriquenses intervieram
destemidamente na batalha. Sua artilharia causou uma grande confusão
nas fileiras dos católicos. Nisso, um homem valente do cantão de Uri,
com trezentos voluntários, atacou o flanco esquerdo do exército de
Zurique. Quão surpreso ele ficou ao ver diante de si o pequeno grupo de
seus inimigos! Encobertos por uma densa floresta de faias*, esse valente
e seus homens conseguiram se aproximar furtivamente, sem serem
percebidos. De repente, estando já bem próximos, ele mandou que os
artilheiros abrissem fogo. Depois desse fogo devastador, ele se lançou
sobre as vacilantes fileiras dos protestantes com o grito: “Abaixo com os
hereges e com os iconoclastas!”.
O exército de Zurique, atacado de dois lados ao mesmo tempo por um
inimigo muito superior em força, sofreu uma derrota sangrenta. O melhor
de Zurique caiu. O cerne da população de Zurique, sete membros do
pequeno Concelho, dezenove membros do Concelho dos Duzentos,
sessenta e cinco cidadãos da cidade, quatrocentos e dezessete cidadãos
do campo; o pai entre seus filhos; o irmão entre seus irmãos; todos
estavam caídos, pálidos e sangrentos no campo de batalha. Vinte e cinco
pregadores se encontravam entre os mortos. Deus não poderia ter
expressado de forma mais clara o Seu desagrado naquela ímpia
associação entre a Igreja e mundo, entre a espada do Espírito e daquelas
da carne. Era 11 de outubro de 1531.
Eles haviam se afastado do caminho estreito da Palavra de Deus, e o
Senhor não estava mais com eles. A Igreja havia se tornado o Estado e o
Estado havia se tornado a Igreja. O exército atual era composto de
membros das igrejas e de seus pastores, em vez de soldados suíços.
Esse era um erro que Deus precisava julgar, e os católicos eram a vara
na mão de Deus para castigar Seus filhos amados. Que esses fatos
sirvam de lição para os cristãos de todas as épocas.
***
A MORTE DE ZUÍNGLIO
Mas nenhuma morte afetou tão fortemente Zurique e toda a obra da
Reforma Protestante na Suíça mais do que a de Ulrico Zuínglio. No
momento mais intenso da batalha Zuínglio se inclinou para consolar um
moribundo; ali, ele foi atingido na cabeça por uma pedra, de forma tão
violenta, que caiu atordoado. Ele se recuperou rapidamente, porém, mal
se levantou do chão e foi atingido por vários golpes de lança. Extenuado,
ele se apoiou no tronco de uma árvore.
Quando o campo de Kappel estava completamente dominado pelos
católicos, os soldados vieram trazendo tochas e começaram a revirar o
campo de batalha. O objetivo deles era arrancar e roubar qualquer coisa
de valor. Quando encontravam algum caído, que ainda estivesse vivo,
eles diziam: “Clame pela ajuda dos santos e confesse os seus pecados a
um de nossos sacerdotes”. Se o ferido se recusava, era imediatamente
morto como um vil herege, sob inúmeras maldições. Entre os feridos,
encontraram um que estava com as mãos entrelaçadas, com o olhar
voltado para o céu e seus lábios se moviam em oração. Um dos soldados
lhe perguntou: “Desejas um sacerdote para confessar os seus pecados?”.
A vítima apenas balançou sua cabeça. “Invoque a mãe de Deus e outros
santos para que intercedam a teu favor.” De novo ele balançou sua
cabeça energicamente, tendo os olhos fixos no céu. “Esse homem não
passa de um herege obstinado!”, disseram os soldados. Mas um deles,
movido pela curiosidade, fez o moribundo virar a cabeça em direção ao
fogo que havia sido aceso ali próximo, e exclamou: “Eu acho que esse
homem é Zuínglio!”. Naquele mesmo instante, o capitão Tockinger, de
Unterwald, estava se aproximando e, ao ouvir o nome de Zuínglio,
desembainhou sua espada e cortou a garganta do reformador, proferindo
inúmeras maldições. As últimas palavras de Zuínglio foram: “O corpo
podeis matar, a alma não!”. Dessa maneira, pôs fim ao que restava
daquela vida extraordinária. E assim cumpriu-se a Escritura que diz:
“Todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão” (Mt 26:52).
A noite estava fria e uma forte geada caiu sobre o campo de batalha,
cobrindo como um lençol os corpos dos mortos e dos moribundos.
Finalmente a manhã surgiu. O corpo de Zuínglio foi reconhecido e todo
ódio de seus inimigos se manifestou contra ele. O cadáver foi partido em
quatro partes pelos católicos, queimado até as cinzas que, depois de
serem misturadas com excremento de porco, foram espalhadas aos
quatro ventos.
Uns poucos homens feridos conseguiram retornar para seus lares e
contaram o que havia acontecido. A desventurada Ana havia perdido
naquela batalha não apenas seu esposo, mas também seu talentoso filho
do primeiro casamento, o genro, o cunhado e o irmão. Mas, mesmo
sendo uma mulher, uma esposa e uma mãe, ela também era uma
verdadeira cristã e se dedicou ao tenro cuidado de seus filhos mais
jovens. Ana também procurou alegrar-se no Senhor no meio de suas
muitas lágrimas, pois sabia que muitos daqueles a quem amava haviam
recebido a coroa do martírio (Rm 8:31-39).
***
REFLEXÕES ACERCA DA VIDA DE ZUÍNGLIO
Como já vimos de forma bastante ampla algo do caráter e dos
princípios do grande reformador suíço, temos pouco a adicionar nessa
reflexão. Porém não podemos nos despedir dessa triste cena sem
oferecer um tributo de respeitosa gratidão a alguém que Deus mesmo
levantou e que foi maravilhosamente usado pelo Senhor. Também não
podemos deixar de expressar nossa profunda tristeza ao ver que uma luz
tão poderosa acabou se desviando do caminho estreito, levando muitos
outros junto com ele.
Ao traçarmos seus passos, a partir da pequena cabana de pastores no
Vale de Togemburgo, temos muito que admirar e imitar; tudo aquilo pelo
qual toda a posteridade deverá ser sempre agradecida. Ele se dedicou
com grande constância e intrepidez às convicções de sua própria mente
quanto ao ensino da Palavra de Deus, na exata proporção em que
compreendia o significado espiritual e como deveria ser aplicado. Nós
nunca poderemos nos esquecer nem menosprezar a nobre posição que
ele frequentemente assumiu a favor da autoridade absoluta da Palavra de
Deus, em um tempo que sua existência era praticamente desconhecida e
nunca havia sequer sido lida nem por sacerdotes nem por monges.
Naquelas salas de discussões públicas, quando ele colocava sua Bíblia
hebraica e seu Novo Testamento grego sobre a mesa diante de si, e
apelava para aqueles livros como o único padrão de fé e prática, Deus
era glorificado, Seu poder era manifestado e os católicos se sentiam
completamente confundidos e retornavam para a escuridão de suas
próprias superstições.
Zuínglio, como um homem eminente de seus dias, permaneceu
triunfante. A luz da Reforma Protestante progrediu rapidamente e chegou
a dar a impressão que, em breve, espalharia sua luz sobre todas as
montanhas e vales da Suíça. Todos os cantões, com exceção dos
cantões florestais, receberam a verdade, completa ou parcialmente, e
assumiram uma posição de simples dependência à Palavra viva de Deus
e de Sua graça. Até mesmo a região de Oberland poderia se submeter à
nova fé em breve. Mas a partir do dia em que Zuínglio aconselhou
Zurique a punir os perseguidores com a espada, ele assumiu o caráter de
um político. E, apesar de continuar sendo um cristão sincero e ardoroso
reformador, ele passou a pensar que era seu dever conhecer o
funcionamento dos gabinetes reais, dos Concelhos e do movimento dos
exércitos. Essa foi a rocha na qual o barco do reformador se despedaçou,
pois a atingiu com todas as suas velas soltas ao vento — e Zuínglio
estava no timão. Tivemos a oportunidade de observar o desastre e,
certamente, o mesmo deve servir como uma luz de farol através de todas
as eras do cristianismo. Porém, infelizmente, não é isso que temos
observado, porque notamos que muitos daqueles que são chamados de
ministros reformados, mesmo nos dias atuais, costumam elogiar o zelo
de Zuínglio como patriota e político, ao mesmo tempo em que
argumentam que ele sofreu por causa da dureza dos corações de outros
indivíduos.
É verdade que ele apresentou fortes objeções ao embargo que acabou
culminando com a guerra. Mas ele advogava o uso das armas, que se
encontra tão longe do Espírito de Cristo quanto o embargo comercial. E
as duas razões pelas quais o reformador apelou ao governo de Zurique,
incentivando o uso de armas, foram motivadas pelos caluniadores e pelas
perseguições dos papistas. Mas o que nos diz o bendito Senhor? “Bem-
aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo,
disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos,
porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram
os profetas que foram antes de vós.” E ainda outra vez: “Abençoai aos
que vos perseguem, abençoai, e não amaldiçoeis”. E, sabendo o estado
de irritação que a calúnia e a perseguição irão produzir naturalmente, o
gracioso Senhor nos instrui como agir: “Não vos vingueis a vós mesmos,
amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu
recompensarei, diz o Senhor” (Mt 5:11-12; Rm 12:14, 19-20). É claro que,
tanto o embargo quanto o apelo às armas, são completamente
condenados pelos preceitos divinos de nosso Senhor e Mestre.
O cristão é salvo pela graça e permanece em pé sustentado também
pela graça. Ele deve servir como uma testemunha dessa graça, e isso,
sob todas as circunstâncias. Essa última verdade, infelizmente, o grande
reformador nunca entendeu. Zuínglio nunca enxergou a verdade que o
cristão está separado do mundo pela morte e ressurreição de Cristo. Ele
também não entendia o relacionamento celestial que existe entre Cristo e
a Igreja, como a noiva, a esposa do Cordeiro. Ainda assim, a Palavra de
Deus é simples, e nós não podemos encontrar nenhuma desculpa que
justifique nossa ignorância. Ao mesmo tempo, devemos demonstrar uma
tolerância maior com Zuínglio do que com muitos ministros do Evangelho
dos nossos dias. Muitos desses homens têm assumido uma boa parte da
liderança nas questões políticas, não apenas a nível local, mas também
mundial. Emergindo das trevas do papado, cujo único argumento era o
uso da espada, e alimentado em meio à liberdade suíça, bem como pelas
histórias das repúblicas antigas, Zuínglio acreditava honestamente, desde
os seus primeiros dias de juventude, que todos os tiranos precisam ser
enfrentados e que os cristãos deveriam se unir com o governo civil, tendo
como objetivo resistir a tais indivíduos. Por não ser capaz de enxergar,
depois da sua conversão, nem o chamado celestial nem o verdadeiro
caráter do cristão, ele agiu baseado naquelas convicções como o líder do
partido reformado.
Ficamos felizes ao descobrir que o próprio D´Aubigné concorda com
nossa opinião. Ele escreve o seguinte: “Zuínglio, observando a forma
como todos os poderes estavam se levantando contra a Reforma
Protestante, acabou concebendo um plano de governo compartilhado ou
de um Estado cristão que deveria unir todos os amigos da Palavra de
Deus em uma santa e poderosa liga. Essa fase política de seu caráter
parece, aos olhos de algumas pessoas, sua maior reivindicação à glória.
Mas não hesitamos em reconhecer nisso o seu maior erro. O reformador,
abandonando os caminhos dos apóstolos, permitiu a si mesmo se perder
pelo perverso exemplo que o papado lhe oferecia. A Igreja primitiva
nunca se opôs a seus perseguidores, com a exceção de estar sempre
disposta a anunciar o Evangelho da paz. A fé era a única espada que ela
utilizou para derrotar os poderosos que existem sobre a terra”. Mas o
próprio Zuínglio, ao que parece, enfrentava algum tipo de conflito em sua
mente quanto a esse assunto; ele disse: “Sem dúvida, não é pela força
humana e sim apenas pela força de Deus que a Palavra do Senhor deve
ser sustentada. Mas Deus geralmente faz uso de homens como
instrumentos de socorro a outros homens. Vamos, portanto, nos unir; e
vamos formar, das nascentes do Reno até Estrasburgo, uma aliança
constituída de um único povo”.
Quanto à sua capacidade intelectual, suas obras teológicas e literárias,
iremos permitir que uma testemunha capaz nos ofereça sua opinião.
Waddington, falando acerca de Zuínglio, nos diz: “O reformador produziu
muitas criativas e bem elaboradas composições, sejam polêmicas,
exegéticas* ou hermenêuticas*, as quais foram escritas em um período
apenas um pouco mais extenso do que doze anos. Nesse mesmo
período ele se encontrava permanentemente absorvido por muitas outras
preocupações e ocupações. Mesmo assim, suas obras irão permanecer
como um memorial eterno de sua extensa erudição; um julgamento sadio
e equilibrado sobre o todo do seu temperamento cândido e caridoso,
associado a uma calma, dedicada e profunda fé. Todas essas realidades
acerca de Zuínglio devem nos conduzir a um lamento profundo,
especialmente agora, pelo fato dele ter sido retirado de nosso meio de
forma tão abrupta”.
“Juntamente com suas interpretações profundas e equilibradas das
Escrituras, suas obras também revelam muitos sentimentos nobres, que
fluem de um elevado e grandioso espírito. Dotado com uma capacidade
de profunda compreensão, animado por um zelo honesto, equilibrado por
uma prudência consumada, firme e tolerante, ele não permitiu que
nenhuma dessas grandes qualidades fosse manchada por uma única
falta sequer. Ele demonstrou grande sagacidade em alcançar seus
propósitos. Nunca permitiu ser guiado, nem em seus atos ou em seus
escritos, por qualquer espírito faccioso; nunca desconfiamos que ele
estivesse movido por uma razão indigna.”12
Zuínglio não tinha completado quarenta e oito anos quando morreu. Ele
estava em pleno vigor de sua vida e na maturidade da sua capacidade de
compreensão. Com dons tão ricos e variados, apenas podemos imaginar
o que ele poderia ter feito pela Reforma Protestante na Suíça, e até
mesmo pela própria Europa, caso tivesse se restringido ao ministério da
Palavra de Deus. Mas se nós fracassamos em fazer a obra do Senhor do
modo como Ele deseja, podemos ter certeza que a mesma será tirada de
nós e entregue a outro. “Ninguém que milita se embaraça com negócios
desta vida, a fim de agradar àquele que o alistou para a guerra. E, se
alguém também milita, não é coroado se não militar legitimamente“ (2 Tm
2:4-5).
***
TRATADOS DE PAZ
A notícia do desrespeitoso tratamento dado aos restos mortais de
Zuínglio despertou enorme indignação e raiva na cidade de Zurique. Eles
organizaram suas forças e a cidade de Berna se uniu a eles para apoiar
sua aliada. O exército conjunto era realmente impressionante. Eles
assumiram a ofensiva, e invadiram o cantão de Zug. Mas o Senhor não
estava com eles. Eles demonstraram todas as formas de incompetência.
Sem um plano comum de operação, iniciaram o ataque de forma dura,
mas desunida. O resultado foi que a insubordinação prevaleceu entre os
protestantes, enquanto os católicos se mantinham ordeiros, unidos e
resolutos. A vitória desses últimos foi fácil e completa.
Estes sucessos, que superaram em muito a expectativa dos cinco
cantões, inspiraram os mesmos com uma grande confiança religiosa no
que dizia respeito à santidade da causa que defendiam. Por seu lado,
diante de tais reveses, os reformadores tornaram-se desesperançados e
dispostos a negociar um tratado de paz. Negociações foram feitas, e dois
tratados foram redigidos e assinados pelos habitantes de Zurique e de
Berna nos dias 16 e 23 de novembro. Esses novos tratados anularam
aquele assinado em 1529; foram grandemente humilhantes para Zurique
e para a causa, e deram decisivas vantagens aos inimigos da Reforma
Protestante. O tratado dizia: “Em nome da mais louvável, santa e divina
Trindade! Nós, zuriquenses, devemos e queremos permitir que os nossos
queridos confederados dos cinco cantões, os amados cidadãos de Valais
e todos os súditos espirituais e seculares, permaneçam em sua
verdadeira e indiscutível fé cristã. Renunciamos todas as nossas más
intenções, nossa astúcia e engano. E nós, dos cinco cantões, permitimos
que os zuriquenses e os seus aliados mantenham sua fé”. Com isso, a
Igreja Romana foi reconhecida publicamente como sendo a verdadeira
Igreja de Cristo; que toleraria os evangélicos apenas por amor à paz.
Esses tratados são de grande importância histórica, pois fixaram uma
linha divisória permanente entre a Reforma da Suíça daquela que estava
acontecendo na Alemanha. De lá para cá, nenhuma mudança importante
aconteceu entre os cantões católicos e protestantes.
Zuínglio, ao partir para Kappel, triste e convicto que jamais retornaria a
Zurique, designou o jovem Bullinger, de Bremgarten, como seu
sucessor, o qual, após um breve intervalo, foi designado pastor titular e
professor de teologia. Ele cumpriu suas obrigações nessas duas áreas
durante quarenta anos. Durante esse tempo, Bullinger se destacou de
uma forma indiscutível, e prestou extensos serviços à Igreja de Cristo.
Naquele mesmo desventurado outono do ano de 1531, se apagou outra
das mais brilhantes luzes da Reforma Protestante na Suíça. O manso e
gentil, o sábio e dedicado Oekolampad, ao ouvir da morte de seu amigo e
das indignidades que foram lançadas sobre sua memória, faleceu pouco
depois, vítima de um coração partido, com a idade de quarenta e nove
anos. Quando ele percebeu que sua partida estava próxima, reuniu seus
amigos e colegas ao seu redor e os exortou, solenemente, a se
manterem firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor (1
Co 15:58). Tudo isso para que Deus possa ser glorificado e a bendita
causa de Cristo se tornasse cada vez mais resplandecente através da luz
da sua própria pureza. Dessa maneira, o pacífico Oekolampad
adormeceu. Sua morte foi como sua vida: cheia de luz e paz. Ele foi
sucedido na Basileia pelo sábio e dedicado Oswaldo Myconius.13
A história da Reforma Protestante na Suíça Francesa, que aconteceu
algum tempo depois e na qual se destacaram homens como Guilherme
Farel e João Calvino, precisa ser deixada de lado nesse momento.
Devemos retornar para a Alemanha, para examinar os últimos anos e as
cenas finais da vida do grande reformador alemão.
Capítulo 46
A ABERTURA DO CONCÍLIO DE TRENTO
Capítulo 47
O PERÍODO “INTERINO”
Agora o imperador era pleno senhor sobre toda a situação. Pensando ter
subjugado o independente e teimoso espírito do povo alemão, Carlos V
convocou uma Dieta para se reunir em Augsburgo. Nessa Dieta, ele
exigia que os protestantes submetessem suas dissensões religiosas, que
haviam levantado na Alemanha, às decisões do Concílio de Trento. A
cidade de Augsburgo, bem como a assembleia ali reunida, estavam
completamente cercadas pelas vitoriosas tropas do imperador. Sem
dúvida, o propósito de tal demonstração de força era alcançar a
submissão dos protestantes aos desejos do orgulhoso imperador. Carlos
V imediatamente tomou posse da catedral e de algumas igrejas e, após
as mesmas terem sido devidamente purificadas, foram restauradas à
adoração papal. Mas ele mal havia dado início a esses procedimentos
quando soube, para seu profundo desgosto, que o papa havia transferido
o local do Concílio, de Trento para Bolonha.
Naturalmente, o grande sucesso e ascensão de Carlos na Alemanha
despertaram o medo e a inveja do pontífice romano. Ele antecipou que o
poder do imperador naquele país teria grande influência sobre as
decisões do Concílio, e que o mesmo até poderia se utilizar do Concílio
para limitar o poder ou até mesmo abolir a autoridade papal. Por esse
motivo, o papa abraçou a primeira oportunidade que teve para retirar
suas tropas do exército imperial e mudar o Concílio para Bolonha, uma
cidade controlada pelo próprio papa.
Tal mudança sofreu enérgica oposição por parte do imperador e de
todos os bispos cujos interesses políticos se alinhavam aos de Carlos V.
O imperador permaneceu na cidade de Trento, enquanto os bispos
espanhóis e napolitanos acompanharam os legados até a cidade de
Bolonha. Dessa maneira, uma cisão* teve início naquela assembleia, que
havia sido convocada para sanar todas as divisões da cristandade. Essa
polêmica causou o adiamento indefinido do Concílio. Nenhum meio foi
encontrado para restaurar as atividades do Concílio de Trento, até que o
papa Júlio III sucedeu ao papa Paulo III no trono do Vaticano, no ano de
1550. Todavia, naquele ano todas as intenções do imperador Carlos V já
haviam sido dissipadas.
Como a perspectiva de um Concílio geral se encontrava agora mais
distante do que nunca, o imperador, em sua devotada preocupação pelas
dissensões religiosas de seus súditos do norte, achou por bem, nesse
meio tempo, preparar um sistema doutrinário ao qual todos deveriam se
conformar até que um Concílio, nos moldes desejados, pudesse se
reunir. Esse novo credo foi chamado de “Interim”. Esse nome foi criado
por Julius von Pflug, Sidonius e Agrícola. Os dois primeiros eram
dignitários da Igreja Romana, e o último era um teólogo protestante, mas
era considerado um apóstata pelos seus irmãos.
***
O NOVO CREDO
Esse famoso tratado continha um sistema completo da teologia
romana. Todavia, devemos notar que, em sua maior parte, o mesmo
utilizava “palavras suaves ou até mesmo frases das Escrituras, usadas
com cuidadosa ambiguidade”.
Toda doutrina peculiar ao papado foi mantida ou, como resume o
senhor Wylie, “o Interim nos ensinou, entre outras coisas, a supremacia
do papa, o dogma da transubstanciação, o sacrifício da missa, a
invocação dos santos, a confissão auricular, a justificação pelas obras e o
pleno direito concedido à Igreja Romana como única intérprete das
Escrituras Sagradas. Em poucas palavras, podemos dizer que Roma não
fez nem uma concessão sequer. Por engolirem um credo completamente
papista, os protestantes seriam recompensados com dois benefícios
insignificantes: os clérigos que já se encontravam casados, tiveram a
permissão de continuar em seus ofícios sem terem que renunciar às suas
esposas; e onde já estivesse estabelecido o costume de dispensar os
dois elementos da Santa Ceia — o pão e o cálice — tal costume deveria
ser tolerado. Pelos católicos, isso foi chamado de ‘encontrar os
protestantes na metade do caminho’”.1
Este documento, que provocou as mais desoladoras calamidades e
opressões sobre os protestantes, foi submetido pelo imperador à Dieta de
Augsburgo, no dia 15 de maio de 1548. Tendo sido lido na presença da
Dieta, da forma apropriada, o arcebispo de Mainz, sem dar tempo para
qualquer discussão, levantou-se apressadamente, agradeceu ao
imperador por seus devotados esforços para restaurar a paz da igreja e,
em nome da Dieta, declarou a aprovação do sistema de doutrina que
tinham acabado de ouvir. Essa declaração, inesperada e inconstitucional,
surpreendeu a todos na assembleia, mas nenhum de seus membros teve
a coragem suficiente de contradizer o que o arcebispo acabara de
afirmar. Intimidada pelas tropas do imperador que estavam do lado de
fora do local da assembleia, a Dieta permaneceu no mais absoluto
silêncio. Carlos V prontamente aceitou a declaração como uma
ratificação plena daquele período interino, proclamando-o como um
decreto do Império. O mesmo deveria permanecer em vigor até que um
Concílio livre e geral pudesse ser convocado. Todos deveriam se
conformar, sob pena de sofrerem castigos por desacatar a vontade do
imperador. O documento referente ao período interino foi imediatamente
publicado em alemão, bem como na língua latina.
***
O PERÍODO INTERINO SOFRE OPOSIÇÃO DOS PROTESTANTES E DOS
PAPISTAS
O imperador estava orgulhoso do seu novo estratagema* e,
acreditando que estava no caminho certo para a vitória e para a
consumação final de seus planos, promulgou imediatamente o Interim.
Todavia, para sua grande surpresa, ele descobriu que todos os partidos
reclamaram do mesmo com igual veemência. Os protestantes
condenavam o decreto como um sistema que continha os mais grotescos
erros inventados pelo papado. Os papistas condenavam o documento
porque algumas das doutrinas da santa Igreja Católica Romana haviam
sido deixadas de lado de modo ímpio. Entretanto, foi em Roma que a
indignação dos eclesiásticos se manifestou de forma mais agressiva. Eles
reclamaram contra a atitude profana do imperador de invadir os limites do
ofício sacerdotal, e chegaram até mesmo a compará-lo ao apóstata
Henrique VIII da Inglaterra, que havia usurpado não apenas os títulos,
mas também a jurisdição que pertencia ao supremo pontífice.
Entre os príncipes protestantes, havia uma grande diversidade de
sentimentos, cujos detalhes não temos necessidade de discutir aqui.
Alguns cederam, fingindo submissão, mas outros, por sua vez,
assumiram uma posição firme e protestaram fielmente contra o
documento. O imperador Carlos V sabia muito bem a grande influência
que o exemplo de seu prisioneiro, Frederico da Saxônia, teria sobre todos
os protestantes. Em função desse fato, ele se empenhou com a maior
dedicação possível para conseguir a aprovação do Eleitor da Saxônia
para o seu plano. Mas o fato é que Frederico não estava disposto a se
deixar mover pela promessa de liberdade nem pelas ameaças de maiores
maus tratos. Ele foi ao encontro do imperador com armas muito mais
poderosas do que todas aquelas que o imperador possuía. Essas armas
eram o poder da consciência e da Palavra de Deus. Esse tipo de atitude
teria feito um grande bem para os protestantes e à causa do
protestantismo se outros tivessem se levantado para se oporem tanto às
ameaças do papa quanto do imperador. Alguns poderiam ter sido
honrados até mesmo com o martírio, mas o país teria sido salvo da
desolação da guerra e a glória moral dos princípios divinos teria sido
estampada de forma indelével sobre a Reforma Protestante.
Depois de ter declarado sua firme crença nas doutrinas protestantes,
Frederico disse: “Eu não posso, na minha velhice, abandonar os
princípios pelos quais lutei desde cedo na minha vida, nem mesmo para
obter a liberdade durante os poucos e declinantes anos que me restam.
Se agir dessa maneira, eu trairia a boa causa pela qual tenho sofrido
tanto e que ainda estou disposto a sofrer. Nessa solidão, é muito melhor
desfrutar a estima de homens virtuosos, juntamente com a aprovação da
minha própria consciência, do que retornar para o mundo acusado e
culpado pelo pecado de apostasia, e assim trazer sobre mim enorme
desgraça e grande amargura para o restante dos meus dias”. Por causa
dessa magnânima resolução, pela qual ele estabeleceu um nobre padrão
para todos os seus compatriotas, o imperador lhe recompensou com
marcas novas de tortura, devido ao desagrado que havia causado ao
mesmo. “O rigor de seu confinamento foi aumentado, o número de seus
servos foi diminuído, os homens do clero luterano, que até então tinham
permissão para ajudá-lo, foram dispensados, e até mesmo os seus
devocionários, que haviam sido seu maior consolo durante o tedioso
período de prisão, lhe foram tirados.”
***
A SUBMISSÃO DE MELANCHTHON
É algo profundamente lamentável que os teólogos de Wittenberg não
tenham testemunhado de modo mais firme a favor da verdade e contra os
estratagemas papais. Em sua fraqueza, o próprio Melanchthon, movido
em parte pelo seu medo do imperador Carlos V e em parte por seu
excessivo desejo de agradar pessoas de altas posições, se empenhou
em buscar um curso intermediário, no qual outros teólogos o seguiram.
Ele introduziu o pernicioso princípio do essencial, não essencial e coisas
indiferentes em questões religiosas. Ele decidiu que o documento do
período interino não poderia ser admitido de maneira alguma; mas não
havia impedimento em receber e aprovar o mesmo nas questões que não
eram essenciais ou indiferentes para a religião. Essa decisão deu origem
a uma série de longas e amargas controvérsias no seio da Igreja
Luterana. Os seguidores genuínos de Lutero não podiam aceitar como
indiferente os ensinamentos e objetivos daquele documento, e se
opuseram ao mesmo com grande fervor, juntamente com os teólogos de
Wittenberg e de Lípsia. Eles acusavam os outros de renunciarem ao
Protestantismo a favor da religião do imperador. Esse princípio dissoluto
tem causado muito mal em todas as igrejas reformadas, desde aqueles
dias e até agora. Ele serve como uma cobertura conveniente para todos
que não têm consciência quanto à autoridade da Palavra de Deus e
desejam apenas satisfazer seus próprios fins. Mas, certamente, nenhuma
parte da verdade divina pode ser considerada nem como indiferente ou
não essencial. O salmista nos diz: “As palavras do SENHOR são palavras
puras, como prata refinada em fornalha de barro, purificada sete vezes”
(Sl 12:6). Quão diferente, dos teólogos, é a estimativa do Espírito quanto
à verdade e no que diz respeito às “palavras de Deus... purificadas sete
vezes”.2
***
A OPOSIÇÃO DAS CIDADES LIVRES
A recepção do Interim nas diferentes províncias dependia
completamente de quão próxima ou quão distante as mesmas se
encontravam do poder imperial. Em todos os lugares onde seu braço não
podia se manifestar com força, o mesmo era enfrentado de forma aberta.
Mas onde o poder imperial era sentido, havia, pelo menos exteriormente,
uma aceitação do mesmo. Entretanto, foi nas cidades livres que o
imperador Carlos encontrou a mais violenta oposição ao seu novo plano.
Foi nessas cidades que a Reforma Protestante tinha alcançado seus
maiores progressos. Era nelas que os mais eminentes teólogos
reformados se estabeleceram como pastores e professores em suas
escolas e seminários com o objetivo de instruir os jovens. Tal empenho
produziu os frutos esperados em cada uma dessas cidades. A princípio,
eles pediram e reclamaram junto ao imperador, porém sem nenhum
efeito, pois Carlos V estava determinado em fazer cumprir, de forma
universal e até as últimas consequências, os odiosos termos desse
documento.
Sua primeira tentativa foi na cidade de Augsburgo. “Ele deu ordens
para que uma parte de suas tropas tomasse o controle dos portões da
cidade. O restante do exército foi distribuído em diferentes locais dentro
da mesma. Depois disso, ele convocou uma assembleia com todos os
representantes do burgo* na prefeitura da cidade, onde, por sua única
autoridade, publicou um decreto abolindo a forma presente de governo da
cidade, bem como todas as suas entidades e fraternidades. Em seguida,
ele nomeou um pequeno número de pessoas às quais concedeu todos os
futuros poderes de governo. Cada uma dessas pessoas escolhidas fez
um juramento para observar o Interim.” A perseguição seguiu-se
imediatamente, pois muitos ainda buscavam manter uma boa consciência
diante de Deus, aderindo à verdade de Sua Palavra. Os pastores
protestantes foram forçados ao exílio ou eram destituídos de seus
próprios lares, sendo desabrigados em sua terra natal. Suas igrejas foram
purificadas da contaminação protestante, e os antigos ritos das missas,
vestimentas, cruzes, altares, velas, imagens, etc., foram restabelecidos.
O imperador também deu ordens para que os habitantes da cidade
fossem obrigados, pelos soldados imperiais, a frequentarem as missas.
“Somente no sul da Alemanha, cerca de quatrocentos pregadores fiéis do
Evangelho fugiram com suas esposas e famílias, e vagaram sem comida
ou abrigo. Outros, que não conseguiram escapar, caíram nas mãos do
inimigo e foram levados acorrentados.” Essa situação continuou por
quase cinco anos, período durante o qual o sofrimento e as calamidades
dos fiéis foram muito além daquelas registradas pelos cronistas, e não
encontram uma descrição apropriada na história da Igreja. Todavia, nós
sabemos que existe Alguém que ouviu cada soluço e viu cada uma das
lágrimas que foram derramadas: “E um memorial foi escrito diante dele,
para os que temeram o SENHOR, e para os que se lembraram do seu
nome. E eles serão meus, diz o SENHOR dos Exércitos; naquele dia serão
para mim joias“ (Ml 3:16-17).
***
UMA NOVA REVIRAVOLTA NA MARÉ DOS ACONTECIMENTOS
O período dos seus sofrimentos, ou melhor, da sua purificação, estava
prestes a ser cumprido, e o dia de sua libertação pela poderosa mão de
Deus estava próximo. Todavia, nada disso foi percebido e nem mesmo
passou pelo pensamento do seu opressor. O imperador imaginava que
suas vitórias tinham sido completas, seus planos consumados, e que
agora ele poderia folgar um pouco das atividades do governo e
experimentar a doçura do descanso e da bonança. Foi com esse
propósito que ele foi até Innsbruck, na região do Tirol, acompanhado
apenas de uma pequena guarnição. Mas alguns já anteviam a
tempestade se formando em várias partes. Em breve, o firmamento do
domínio e da glória do imperador escureceria por completo, deixando o
senhor dos dois mundos sem nenhuma honra e preso em absoluta
solidão numa cela de mosteiro. Aconteceu assim:
Ainda havia quatro cidades notáveis que mantinham uma posição
antagônica à autoridade do imperador. Essas cidades eram: Magdeburgo,
Bremen, Hamburgo e Lübeck. Mas, como a resistência de Magdeburgo é
a única que está diretamente conectada aos eventos que mudaram por
completo a face de toda aquela situação na Alemanha, nós iremos
concentrar nossa atenção apenas nessa cidade.
Na Dieta de Augsburgo, no ano de 1550, foi decidido que um exército
seria mandado contra Magdeburgo para sitiá-la. Através de uma bem
articulada dissimulação de suas verdadeiras intenções, e por um
aparente zelo visando impor a obediência ao Interim, o notório Maurício
da Saxônia se comprometeu em fazer com que a cidade rebelde se
submetesse ao imperador. Essa proposta recebeu a sanção da Dieta e a
plena aprovação do imperador.
A mente de Maurício, bem como a de muitos outros, estava agitada por
profundos pensamentos antes que o mesmo fosse nomeado para a
missão. Os últimos sucessos do imperador Carlos V haviam despertado o
medo em muitos corações e mentes. O Vaticano foi o primeiro a dar o
alarme. O papa se arrependeu de haver contribuído de forma tão ampla
para o crescimento do poder daquele que um dia poderia tornar-se seu
próprio senhor. Carlos V já havia abalado os fundamentos da autoridade
eclesiástica ao presumir que podia definir artigos de fé bem como regular
as formas de adoração. Esforços foram feitos para formar alianças com
poderes estrangeiros para que uma vigorosa resistência pudesse ser
rapidamente oferecida antes que o poder do imperador se tornasse tão
formidável que fosse impossível qualquer tipo de oposição.
Mas agora, estava aparente diante de todos que Carlos V estava
empenhado em exigir uma obediência rígida, em conformidade com as
doutrinas e ritos da Igreja Romana em vez de permitir a liberdade de
consciência, como ele sempre havia prometido. A nação se sentiu
profundamente traída. Antes do início da guerra, eles haviam ouvido vez
após vez, que não estava nos planos do imperador alterar a religião
reformada. Entretanto agora, tanto a religião quanto as liberdades da
Alemanha jaziam aos pés do monarca traiçoeiro. Isso não poderia deixar
de alarmar os príncipes do Império, especialmente Maurício da Saxônia.
O povo costumava se referir a Maurício, de forma satírica, como “Judas”;
todos os seus concidadãos o acusavam de ser o autor daquelas
calamidades. Nessa dolorosa posição, Maurício tomou sua decisão.
Somente uma coisa seria capaz de expiar a traição da Liga de
Esmalcalda — a completa derrota do poder do imperador sobre toda a
Alemanha. E Maurício estava determinado a realizar sua decisão.
De acordo com Robertson, o biógrafo do imperador, “Maurício viu o
terrível jugo que estava sendo preparado para ser imposto sobre seu
país. Além disso, ele percebia que, através do rápido e formidável
progresso do poder imperial, faltavam apenas poucos passos a serem
dados para que Carlos V se transformasse no monarca absoluto da
Alemanha, como ele já havia se tornado sobre toda a Espanha”. Maurício
era um protestante — pelo menos do ponto de vista político —, e, por sua
dignidade eleitoral, o líder de seu partido. Além do mais, suas paixões
concorriam com seu amor pela liberdade. Ele desejava vingar a forma
cruel como o landgrave de Hesse, seu sogro, havia sido aprisionado, o
qual, por insistência do próprio Maurício, havia se colocado
completamente nas mãos do imperador.
Quando ele divulgou seu ousado propósito aos príncipes, eles tiveram
grande dificuldade em acreditar de imediato. Todavia, por fim, estando
convencidos de sua sinceridade, eles prontamente prometeram auxiliá-lo.
Tendo conquistado a confiança do partido protestante, ele pôs em prática
todos os seus recursos da arte da duplicidade para enganar o imperador.
A inveja do imperador Carlos V havia sido excitada ao ouvir da amizade
que o Eleitor Maurício tinha com alguns dos príncipes protestantes. Mas
agora, por seu aparente zelo contra os cidadãos de Magdeburgo, todas
essas suspeitas foram dissipadas, e o imperador foi inspirado com uma
confiança renovada em Maurício. Como general de exército, ele tinha sob
seu comando uma poderosa força. Entretanto, ele manipulou a situação,
adiando o cerco a Magdeburgo até que seus planos estivessem
completamente amadurecidos. Secretamente, Maurício assinou tratados
e formou uma Liga com vários príncipes alemães, além de fazer uma
aliança com o poderoso rei da França, Henrique II, que provou ser o mais
efetivo dos aliados, apesar de ser católico.
***
A REVOLUÇÃO NA ALEMANHA
1552 D.C.
Quando os preparativos de Maurício estavam terminados, ele publicou
um manifesto contendo suas razões para pegar em armas contra o
imperador. As razões alegadas diziam respeito a seu interesse de
garantir a segurança da religião protestante, que estava ameaçada de
uma imediata destruição. Além disso, sua intenção era a manutenção das
leis e da constituição do Império, e também a libertação do landgrave de
Hesse das misérias de um longo e injusto aprisionamento. Com a
primeira proposta, ele fez com que todos os amigos da Reforma
Protestante se levantassem para apoiá-lo, já que se encontravam em
uma desesperada situação devido a opressão sofrida por parte de seus
inimigos. Com a segunda proposta, ele despertou o interesse dos amigos
da liberdade a favor da sua causa — tanto católicos quanto protestantes.
E com a última, ele atraiu para o seu lado toda a simpatia que havia sido
despertada pela injusta prisão do landgrave e pelo rigor com que o
imperador tratou tão nobre príncipe. Ao mesmo tempo, Henrique da
França emitiu um manifesto no qual ele assumia o extraordinário título de
“Protetor das liberdades da Alemanha e de seus príncipes cativos”.
Como havíamos visto, o imperador estava descansando em Innsbruck,
que ficava três dias de viagem da cidade de Trento, observando de perto
os procedimentos do Concílio, que se encontrava novamente reunido
naquela cidade. Maurício, ainda escondendo seus propósitos sob um véu
da mais requintada dissimulação, enviou um mensageiro de confiança
para assegurar ao imperador que o mesmo deveria esperar por sua
chegada a Innsbruck, em poucos dias. Diante da promessa de tamanha
visita amistosa, o imperador manteve-se em grande expectativa diária.
Entrementes, o tempo para a ação havia chegado. A trombeta de guerra
se fez ouvir e, com um bem preparado exército de vinte mil homens de
infantaria e cinco mil cavaleiros, Maurício avançou o mais secretamente
possível, estando determinado a surpreender o imperador e prendê-lo
pessoalmente. As guarnições imperiais, a propósito, não ofereceram
nenhuma resistência, mas as notícias chegaram ao local em que o
imperador se encontrava: toda a Alemanha estava em pé e em marcha
na direção de Innsbruck.
***
A FUGA DO IMPERADOR
Era tarde da noite, uma noite escura; a chuva caía pesadamente. Mas
o perigo se aproximava e nada poderia salvar o imperador senão uma
rápida fuga. Há algum tempo ele sofria de um ataque severo de gota e
não tinha condições de fugir montado em um cavalo. Então ele foi
colocado em uma liteira, que era o único movimento que ele podia
suportar, e viajou durante toda a noite tendo o caminho iluminado por
tochas. Aqueles que o levavam, optaram por seguir pelas estradas dos
Alpes, que eram praticamente intransponíveis. Seus servidores e
atendentes o seguiam de forma precipitada e em grande confusão. Nessa
situação miserável, o ex-conquistador da Alemanha chegou com sua
abatida comitiva no vilarejo de Villach, em um canto remoto da região da
Caríntia3.
Maurício entrou em Innsbruck poucas horas depois do imperador e
seus assistentes terem deixado a mesma. Mas em vez de persegui-los,
ele permitiu que toda a bagagem do imperador, juntamente com a de
seus ministros, fosse saqueada pelos seus soldados. Para o imperador
caído, não restava outra coisa a não ser negociar, ou melhor, submeter-
se aos termos que lhe foram propostos. O imperador indicou seu irmão
Fernando como seu negociador. Maurício da Saxônia, com o apoio de
toda a Alemanha, era senhor absoluto.
***
A PAZ DE PASSAU
No dia 2 de agosto de 1552, o famoso Tratado de Passau foi
concluído. Por esse tratado ficou acertado que o landgrave deveria ser
posto em liberdade e levado em segurança para seus próprios domínios.
Além disso, dentro de seis meses, uma Dieta deveria ser realizada com a
participação de todos os Estados, para deliberar sobre os melhores
meios para dar fim a todas as dissensões religiosas existentes e que,
nesse meio tempo, nenhum tipo de agressão deveria ser praticado contra
aqueles que adotaram a confissão de fé de Augsburgo. Caso a Dieta a
ser convocada não conseguisse estabelecer um ajuste amigável para as
disputas religiosas, o Tratado de Passau passaria então a vigorar de
forma permanente. Dessa maneira, a paz foi restaurada no Império e foi
concedida plena liberdade à fé protestante. Em seguida, veio o
acontecimento que ficou conhecido como o “Paz de Augsburgo”, em
1555, que não apenas ratificou a paz de Passau, mas ampliou as
liberdades religiosas da Alemanha. Foi essa memorável convenção que
deu aos protestantes, depois de muitas mortes, muitas calamidades e
conflitos, uma paz religiosa firme e estável, que eles desfrutam até o dia
de hoje. Infelizmente, o jovem Maurício, que teve um papel tão notável
tanto na derrota quanto no triunfo dos protestantes, caiu no campo de
batalha em menos de um ano após da promulgação da paz de Passau.
Dessa maneira, ele não teve a possibilidade de ver os plenos resultados
de suas ações.4
Todos esses acordos e tratados foram profundamente humilhantes
para a ambição frustrada de Carlos V. Os protestantes, aos quais ele
pretendia esmagar por completo, estavam florescendo através de todo o
Império. Os sacerdotes, que sabiam apenas rezar missas, estavam
sendo dispensados em massa, e os pastores que haviam sido banidos,
trazidos de volta com grande alegria para seus amados rebanhos. O
estimado Frederico, que havia sido levado pelo imperador de um lugar
para outro durante cinco anos, foi conduzido de volta para seu lar, sua
afetuosa família e amigos. Mas para o imperador Carlos V, tudo parecia
apenas um complexo jogo de sombras e cores escuras diante de sua
mente perturbada. Ele nunca teve um coração voltado para a amizade, e
alguns chegaram a dizer que ele nunca fez um amigo sequer durante
toda sua vida. Dessa forma, desgastado, muito cansado e sem nenhum
amigo, o imperador se escondeu nas fortalezas da Caríntia. Dos
historiadores civis nós aprendemos que, naqueles dias, a guerra contra
os turcos continuava na Hungria, e estes continuavam avançando. De
acordo com o tratado com Maurício, Henrique II foi para o campo de
batalha acompanhado de um numeroso e bem armado exército, e
derrotou por completo as forças espanholas em Lorena e na Alsácia. A
Itália estava às vésperas de uma revolução e prestes a entrar em um
estado de total anarquia. O imperador estava no exílio, seu tesouro
completamente vazio, ele não tinha crédito e seus exércitos estavam
espalhados e desanimados. Sentindo que estava caindo rapidamente das
elevadas posições às quais estava acostumado, o imperador resolveu
retirar-se completamente dos assuntos deste mundo, com o objetivo de
passar o restante dos seus dias em retiro e completa solidão.
Consequentemente, aos 56 anos, ele deixou toda a Europa atônita ao
renunciar à coroa imperial a favor de seu irmão Fernando, e o restante de
suas vastas possessões na Europa e na América ao seu filho Filipe II,
que nasceu de seu casamento com Isabel de Portugal, e a quem já havia
sido coroado como rei de Nápoles e da Sicília. No ano seguinte, depois
de ter colocado seus negócios em ordem, ele se retirou para o mosteiro
de São Justo, próximo da cidade de Plasencia, na Espanha. Mas ele
continuava sofrendo tão severamente de gota, que algumas vezes
precisava ser carregado em uma cadeira e outras vezes ele era levado
em uma pequena carruagem, sofrendo dores excruciantes* a cada passo
e avançando com grande dificuldade. Como todas as casas religiosas
daqueles dias, o mosteiro de São Justo estava localizado em um local
muito aprazível: “O mesmo se encontrava em um pequeno vale, regado
por um pequeno riacho e cercado por montanhas cobertas de imponentes
árvores. Por causa da natureza de seu solo, bem como da temperatura
de seu clima, o local era estimado como o mais saudável e agradável em
toda a Espanha”. O imperador viveu ali cerca de dois anos, e morreu no
dia 21 de setembro de 1558, aos cinquenta e nove anos de idade.
***
ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DAS PÁGINAS ANTERIORES
Nós não precisamos perder tempo com os dias em que o imperador
esteve enclausurado. A maior parte do tempo ele passava distraindo-se
com objetos mecânicos leves — quando o alívio da gota lhe permitia tais
atividades. Uma dessas distrações era uma lamentação teatral de seu
próprio funeral antes de sua morte. Ele ordenou que sua tumba fosse
levantada dentro da capela; que seu corpo fosse colocado no caixão com
grande solenidade; que os monges deveriam estar chorando e uma
procissão fúnebre deveria acompanhar o caixão com os monges
carregando longas velas pretas até dentro da capela. O funeral para o
morto era cantado, o caixão aspergido com água benta; os enlutados se
retiravam e as portas da capela eram fechadas. Em seguida, Carlos se
levantava do seu caixão e se retirava para os seus aposentos, cheio de
todas aquelas terríveis sensações que uma farsa tão revoltante tinha o
propósito de produzir. Ele morreu quase que imediatamente depois desse
dia.
Sim, ele morreu, morreu para todas as suas dignidades e humilhações,
para todas as suas ambições e desapontamentos, para todos os seus
planos e suas políticas. Sim, aquele que havia sacrificado centenas de
milhares de vidas humanas e gasto milhões com o objetivo final de
extinguir o protestantismo, morreu no ambiente minúsculo de uma
pequena cela monástica. Enquanto isso, o protestantismo estava
enchendo o vasto firmamento do pensamento humano com sua luz e
glória. É aqui que deixamos o grande imperador — talvez o maior com
respeito a seus domínios, o maior a se sentar sobre um trono. Agora ele
se encontra diante de um tribunal onde, tanto os motivos quanto as ações
são pesadas, e onde todos nós precisamos ser julgados pelo padrão
divino.
É inútil procurarmos em qualquer lugar por algum traço de
arrependimento nesse inveterado inimigo dos reformadores. Dentro das
paredes do mosteiro de São Justo, longe de se arrepender de sua
conduta para com os reformadores, seu único e grande arrependimento
foi não tê-los tratado com maior severidade. Quando foi informado que o
luteranismo estava se espalhando pela Espanha e que várias pessoas
haviam sido presas sob a suspeita de estarem infectadas com o mesmo,
ele escreveu cartas do mosteiro para sua filha Joana, governadora da
Espanha, para João de Vega, presidente do Conselho de Castela e para
o inquisidor geral para que exercessem seus respectivos poderes com
todo o vigor possível. “Vós deveis prender todos os membros desse
partido e, depois de ter usado todos os meios para convertê-los ao
cristianismo, deveis queimá-los nas estacas. Porém estou persuadido de
que nenhum deles irá se tornar um católico sincero, pois eles têm uma
propensão irresistível para dogmatizar.” E prosseguiu dizendo: ”Se eles
não forem condenados ao fogo das estacas, cometereis um grande erro,
como eu fiz quando permiti que Lutero continuasse vivo. Eu sei que o
poupei apenas pelo salvo conduto que lhe concedi, mas confesso que
errei de maneira vergonhosa ao agir dessa maneira. Eu realmente não
tinha nenhuma obrigação de cumprir minha promessa para com aquele
herege. Como consequência direta de não ter tirado sua vida naquela
ocasião, a heresia continuou progredindo. Tenho certeza que sua morte
teria sufocado aquela heresia ainda no seu nascimento”.5
Aqui estamos diante do verdadeiro coração de Carlos V. Não existe
mais nenhuma razão para artifícios e dissimulações ou pretensa
tolerância com relação aos protestantes. O que ele fez com suas guerras
e o papel duplo que ele representou em sua política já fazem parte do
passado. O que vemos agora, exposto abertamente, é o verdadeiro
espírito de um papista. O único arrependimento no final da sua vida foi o
de não ter destruído a Reforma Protestante no seu início. Parece que
podemos ouvi-lo rangendo seus dentes com fúria ao pensar em Lutero e
lamentando-se por não ter violado sua promessa. Mas sabemos que
existe Alguém que todo o tempo estava cuidando da vida de Lutero, bem
como da nascente Reforma Protestante. Por esse motivo, esse Alguém
— Deus — manteve as mãos de Carlos plenamente ocupadas durante
mais de trinta anos, para que não tivesse tempo para guerrear contra os
luteranos. Todavia, alguns pensam que o extermínio da heresia
protestante foi algo que sempre esteve diante de seus olhos e era, no
fundo, o grande objetivo de sua vida e de seu reinado.
Mas foi nessa disputa, na qual ele havia apostado tudo, que ele perdeu
tudo — seus domínios, seu trono, sua coroa e sua grandeza. Em nenhum
outro momento da história a mão de Deus se manifestou de forma tão
evidente nas questões de qualquer outro príncipe. Em um momento, de
um só golpe, tudo foi mudado. “Seu poder desmoronou quando,
aparentemente, se encontrava no ápice. Nenhum dos sinais habituais,
que precedem a queda da grandeza de alguém, advertiu ao imperador de
tão dramática ruína. Seu vasto prestígio foi prejudicado. Ele não havia
sido ferido num campo de batalha, mas sua glória militar sofreu um
completo eclipse. Nenhum de seus reinos lhe foi arrancado de suas
mãos.”6 De todos os grandes homens que haviam começado na vida com
ele, tais como Francisco I, Henrique VIII, o papa Leão X e Martinho
Lutero, ele era o único sobrevivente. Seus rivais partiram antes dele e
nenhum deixou alguém que fosse capaz de disputar as posses de Carlos
V em um campo de batalha. Todavia, a mão do Senhor, em um ato de
justiça de retribuição, levantou-se contra o opressor de Seu povo. E quem
poderia livrar o imperador dessa poderosa mão? Já um dedo havia
escrito nas paredes de seu palácio: “MENE, MENE: Contou Deus o teu
reino, e o acabou” (Dn 5:26). Instantaneamente, os portões de bronze de
seu poder já não podiam mais protegê-lo, e ele foi obrigado a fugir diante
de um poder que sua própria política traiçoeira e fraudulenta havia criado.
A vara, que ele tinha preparado para destruir a Alemanha, foi usada por
Deus para a sua completa e ignominiosa destruição. Que realidade é o
governo bem como a graça de Deus sobre a terra! Deus controla os
movimentos dos mais poderosos monarcas e cuida das menores coisas
da criação. Isso, a fé conhece bem; e é nessa realidade que a mesma
encontra seu descanso e consolação. “Porque os olhos do Senhor estão
sobre os justos, e os seus ouvidos atentos às suas orações” (1 Pe 3:12).
***
AS CALAMIDADES DOS PROTESTANTES
Outra lição que está claramente escrita nas páginas anteriores é esta:
Deus é um Deus zeloso, e que não dá Sua glória para nenhum outro (Is
48:11). Ele terá Sua obra feita pelos Seus próprios meios e à Sua
maneira. Nenhuma calamidade maior poderia ter sobrevindo à Reforma
Protestante do que seus amigos terem abandonado a divina posição da
fé que haviam adotado, para descerem à plataforma do mundo da
diplomacia e das armas. Caso eles tivessem triunfado pelo uso desses
meios, isso teria causado a perda do verdadeiro caráter do movimento
reformador, o qual teria perecido na própria terra onde tinha nascido.
Além disso, os reformadores teriam se tornado um mero poder político.
Entretanto, Deus não podia tolerar tal situação. Então Ele os fez passar
por uma derrota vergonhosa e os despojou de toda e qualquer força e
poder, até que não tivessem nenhum outro recurso a não ser o próprio
Senhor. Eles não tinham nenhuma Liga, ou espada, ou tesouro, ou
castelos, ou qualquer outro meio de defesa. Eles foram trazidos de volta
aos seus primeiros princípios — fé na Palavra de Deus e o martírio como
testemunhas do Senhor Jesus. Mas esses princípios divinos e invencíveis
pareciam ter morrido com seu grande líder, e foram enterrados
juntamente com ele em seu túmulo. Foi somente por meio de grande
sofrimento e muita humilhação que seus seguidores foram levados a
enxergar os erros que haviam cometido.
Mas tão logo perceberam que não possuíam nenhum outro meio de
defesa a não ser a Palavra de Deus e uma boa consciência diante dEle, a
libertação veio. O próprio Senhor disse: “Porque o cetro da impiedade
não permanecerá sobre a sorte dos justos, para que o justo não estenda
as suas mãos para a iniquidade” (Sl 125:3). Essas são a bondade e as
tenras misericórdias de Deus. Ele não retira Seus olhos sobre os justos.
Todavia, sempre é perigoso abandonar princípios da Palavra de Deus e
nos deixarmos governar nossos caminhos pelas máximas e políticas
desse mundo. Isso é verdadeiro em todas as áreas da vida, mas no
assunto que temos diante de nós, a Palavra de Deus é clara, como diz o
apóstolo: “Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim
poderosas em Deus para destruição das fortalezas”. Sim, nossas armas
são “poderosas em Deus”. E como o bendito Senhor disse: “Porque todos
os que lançarem mão da espada, à espada morrerão” (2 Co 10:4; Mt
26:52).
A Reforma na Alemanha, envolvendo as igrejas luteranas, agora
estava definitivamente estabelecida. Mas as igrejas reformadas, que
envolviam os seguidores de Zuínglio e Calvino, foram excluídas dos
privilégios garantidos pelo Tratado de Passau e Augsburgo. Nenhuma
tolerância foi estendida às igrejas reformadas até a assinatura da paz de
Vestfália, quase um século mais tarde. Por esse famoso tratado, a
pacificação de Passau foi estendida aos membros das igrejas
reformadas, e a independência da Suíça foi declarada pela primeira vez.
“O equilíbrio de poder, através do qual as mais fracas entre as nações
podiam ser efetivamente protegidas e as mais poderosas restringidas em
seus planos agressivos de ambição — que haviam sido excessivamente
satisfeitos — foi um dos resultados mais importantes das negociações e
discussões em Vestfália.”7
***
O SURGIMENTO DOS JESUÍTAS
Antes de deixarmos definitivamente o reinado de Carlos V, devemos
notar dois memoráveis eventos que aconteceram durante esse reinado,
por causa da relação que eles tiveram com a Reforma Protestante e a
grande batalha religiosa que, naqueles dias, agitava todas as classes da
sociedade. Estamos nos referindo ao Concílio de Trento e ao surgimento
da ordem dos jesuítas. Como já falamos algo acerca do primeiro, iremos
concentrar nossa atenção apenas no segundo.
Podemos compreender facilmente que os inimigos da Reforma
Protestante agora se encontravam no fim de sua capacidade de reação.
O que poderia ser feito? Aquilo pelo que eles esperaram durante trinta
anos como o meio mais seguro de esmagar a Reforma, tinha falhado por
completo. Mais do que isso, o mesmo havia cessado de ser um poder
opositor. Enquanto isso, a Reforma Protestante estava ampliando
rapidamente sua área de domínio e multiplicando o número de seus
membros. Nessa disputa, o papa havia sofrido perdas imensas em sua
dignidade, influência e receitas financeiras, e não podia mais apelar ao
poder imperial como estava acostumado a fazer antes. Os frades de
túnicas negras, brancas e cinzentas haviam sido dispersados e seus
monastérios destruídos. O que se poderia esperar do futuro? Essa era
uma grave questão para o perverso coração de Jezabel e para todos
aqueles com os quais ela se aconselhava. Homens armados tinham
fracassado. “Paz e persuasão precisam ser nossas táticas agora”,
sugeria o espírito que presidia aquela assembleia. “Um exército precisa
ser levantado, cujo uniforme deve ser a estola sacerdotal, e os votos
precisam ser pobreza, castidade, o cuidado dos cristãos e a conversão
dos incrédulos. O caráter desses missionários deve ser pacífico e
persuasivo. É sob essa aparência que o trabalho da contra Reforma
precisa ser imediatamente instituído.” Esta proposta razoável foi
aprovada de forma unânime, e podemos perceber que nenhuma outra
proposta teve sua origem nas profundezas de Satanás, mais do que
essa. A história dos jesuítas irá provar que nenhum outro plano foi
executado de modo mais satânico do que esse. As fontes dos
sentimentos humanos, da simpatia e da misericórdia parecem ter secado
em todos os membros da sociedade, e as fontes da intolerância e
crueldade inspiradas no inferno, que não encontram nenhum paralelo na
história, certamente tomaram conta de todos eles.
***
INÁCIO DE LOYOLA
A sociedade dos jesuítas, uma Ordem religiosa da Igreja Romana, foi
fundada por Inácio de Loyola, que era filho de um nobre espanhol. Inácio
nasceu no ano de 1491 na localidade de Guipúscoa, na província da
Biscaia. Quando jovem, ele tornou-se pajem na Corte de Fernando e
Isabela8. Mas ele logo se cansou daquela vida de vaidades e desejava se
engajar nas guerras de seu país. Em 1521 o encontramos defendendo
Pamplona contra os franceses. Mas o jovem e intrépido Loyola foi
severamente ferido em ambas as pernas. Em seguida, Loyola foi
acometido de forte febre, e o futuro restaurador do papado chegou bem
próximo de uma morte prematura.
Todavia, por causa de sua natureza ardente, romântica e visionária,
durante sua longa enfermidade ele se dedicou com grande gosto à
leitura. Os romances dos cavaleiros espanhóis, que descreviam os
conflitos dos homens de sua nação contra os mouros, eram seus
favoritos. Mas quando se cansava desse tipo de literatura, ele se
dedicava a ler uma série de romances ainda mais maravilhosos, que
narravam as lendas dos santos católicos romanos. Com uma intensidade
mórbida, ele estudou esses livros de devoção mística, até que resolveu
imitar em sua própria vida as maravilhosas virtudes atribuídas a Benedito,
Domingos e Francisco. Com esse propósito, uma vez recuperado de sua
enfermidade, ele se retirou para o mosteiro beneditino localizado no
Monte Serrat, que ficava próximo da cidade de Barcelona. Ali ele passou
sua primeira noite na famosa gruta dedicada à virgem Maria. Ele
suspendeu sua lança e seu escudo diante de uma imagem da virgem e
fez um voto de constante obediência a Deus e à Sua igreja,
abandonando, com isso, as atividades seculares e assumindo a posição
de um cavaleiro espiritual.
Para celebrar sua auto dedicação à Maria, ele partiu para a cidade
vizinha de Manresa. A santidade, na visão de tais homens, não consiste
na semelhança moral da alma com o Senhor Jesus, mas apenas na
mortificação do corpo humano. Junto à pele de seu corpo, ele usava, de
forma alternada, os seguintes elementos: uma corrente de ferro, um
tecido feito com pelo de cavalos e um trançado de espinhos pontiagudos.
Três vezes ao dia ele se fustigava, de forma resoluta, chicoteando suas
costas nuas9. Tudo isso não tinha o propósito de mortificar as práticas do
corpo, mas sim o próprio corpo inofensivo. Esse é o poder cegante de
Satanás, e tais são as práticas das trevas apropriadas aos seus
propósitos (2 Co 4:4). Depois de ter viajado com os pés descalços até
Roma, Jerusalém e outros lugares considerados sagrados pela história
do Salvador, ele finalmente se dirigiu a Paris. Ali, ele se encontrou com
Francisco Xavier, que em seguida se tornaria o grande apóstolo da Índia.
Outros espíritos com ideias semelhantes se uniram a eles, e um pequeno
grupo de zelosos associados reuniu-se ao redor de Loyola, dando assim
origem à Companhia de Jesus — eles eram oito ou nove homens no
total.
***
O INÍCIO DA ORDEM DOS JESUÍTAS
No dia 15 de agosto de 1534, quando era comemorado o festival da
Assunção da virgem Maria10, em uma das capelas subterrâneas da igreja
de Montmartre, depois de terem recebido o sacramento da missa, todos
eles fizeram os votos de pobreza e castidade. Em seguida, fizeram um
juramento solene de dedicarem suas vidas à conversão dos sarracenos
em Jerusalém, ao cuidado dos cristãos necessitados e colocaram a si
próprios e seus serviços, sem reserva, aos pés do sumo pontífice. “Esse
exército alistado era pequeno, mas ao mesmo tempo, grande. Era
pequeno quando se contava o número de seus membros, e grande
quando se pesava o valor de seus participantes. Para apressar o
crescimento de seu pequeno Hércules, Loyola havia preparado, de
antemão, seu livro intitulado ‘Exercícios Espirituais’. Este é um livro de
regras que ensina os homens como conduzir o trabalho de suas próprias
conversões. O mesmo consistia de quatro grandes meditações, e o
penitente, retirado em completa solidão, deveria se ocupar em absorver
as mesmas com sua mente, de forma sucessiva. O período concedido
para concluir tal processo era de sete dias. Esse material era
apresentado, como acontece com o Alcorão, como sendo uma revelação
divina11. ‘O livro de Exercícios’ nos diz um jesuíta, ‘foi realmente escrito
pelo dedo de Deus e entregue a Inácio pela santa mãe de Deus’.”12
Depois de alguns atrasos, o papa Paulo III, tendo aprovado o plano de
Loyola e seus companheiros, expediu uma bula em 1540, autorizando a
formação do corpo sob o nome de “A Companhia de Jesus”. Em abril do
ano seguinte, o próprio Inácio assumiu o cargo de Superior Geral. A
Companhia de Jesus, até os dias de hoje, deve submissão exclusiva ao
próprio papa. Agora a ordem tinha uma existência formal. Seus membros
deviam vestir túnicas pretas como os clérigos seculares, e não deviam
ficar confinados em clausuras. Eles tinham plena liberdade de se misturar
com todas as classes, e não demorou muito tempo para que fossem
encontrados ocupando tribunais, confessionários e púlpitos. Além disso,
administravam estabelecimentos educacionais; garantindo, com isso, a
afeição e a cooperação dos jovens. Multidões de convertidos entusiastas
adotavam o novo padrão em todos os países e vinham de todas as
classes sociais.
***
O VERDADEIRO OBJETIVO DOS JESUÍTAS
Até aqui temos pisado o terreno no qual o verdadeiro caráter dos
jesuítas não se manifestou — tudo o que vimos foram os votos feitos com
a intenção de enganar. Mas iremos prosseguir no estudo da história
dessa Companhia. Não será muito difícil seguirmos as pisadas
manchadas de sangue dos traiçoeiros seguidores de Loyola por todos os
países. Tendo se espalhado por todo o mundo, nós os encontramos
executando secretamente os decretos e os desejos particulares do
Vaticano. O único e grande objetivo da Companhia de Jesus era estender
o poder do papa e, o princípio fundamental da fraternidade, era a
imediata, implícita, inquestionável e firme obediência ao papa, através de
seu superior geral que residia em Roma. A organização dessa
Companhia é, de longe, a mais complexa de todas que já existiram na
Igreja Romana. Alguns costumam dizer: “A monarquia jesuíta cobre o
mundo inteiro”. Eles possuem superiores provinciais, que correspondem
ao superior geral em Roma, em praticamente todas as províncias do
mundo. Por meio do confessionário, ele vê e sabe praticamente todas as
coisas que são feitas e ditas, não apenas dentro da Igreja Romana, mas
também na vida privada das famílias, por todas as partes do mundo
habitado. Nenhum lugar é tão distante, nem dificuldades ou perigos tão
grandes, e nenhum meio é considerado nefasto demais para um jesuíta,
desde que exista uma pequena esperança de estender o poder do
papado.
A Conspiração da Pólvora, que foi planejada para destruir de uma
única vez todos os membros da nobreza e da aristocracia protestante da
Inglaterra, é atribuída à influência traiçoeira dos jesuítas. O mesmo é
verdadeiro com relação a muitas outras conspirações que tinham a
intenção de matar a rainha Elizabeth. A gigantesca perversidade da
armada espanhola, e o imenso triunfo alcançado com a morte de
milhares de protestantes no massacre da noite de São Bartolomeu —
sem falarmos de inúmeras outras sedições, torturas, envenenamentos,
assassinatos e massacres em menor escala — devem ser atribuídos à
política e às sementes plantadas pelos jesuítas. O poder dos mesmos
tornou-se tão grande e destruidor que, muitas vezes, foi necessária a
intervenção do Estado para reprimi-los. De acordo com historiadores,
eles foram expulsos de Portugal em 1759, da França em 1764, da
Espanha e da América espanhola em 1767, e das duas Sicílias em 1768.
No ano 1773, a Companhia de Jesus foi suprimida pelo próprio papa
Giovanni Vincenzo Ganganelli, que tomou o nome de Clemente XIV. Mas
assim que ele assinou a ordem para o banimento da Companhia, ele foi
vítima da vingança da mesma, e morreu envenenado. Em 1801 eles
foram restaurados pelo papa Pio VII, mas foram mandados embora da
Sicília em 1860. É desnecessário dizer que eles encontraram
rapidamente os meios e os caminhos para retornarem. O papa Pio IX
confirmou a restauração da Ordem de tal maneira, que a mesma ocupa
uma posição proeminente na estrutura hierárquica de Roma até os dias
de hoje. Eles controlam a maioria dos estabelecimentos colegiais dessa
cidade e em muitos outros lugares.13
Foi dessa maneira que o enfraquecido poder do papado foi
grandemente reavivado — sua ferida mortal foi curada. Por meio da
Reforma Protestante, muitos dos mais ricos e poderosos reinos da
Europa abandonaram a lealdade para com o papa. Esse foi um golpe
fatal para sua grandeza e poder. O mesmo diminuiu a extensão de seus
domínios, aboliu sua jurisdição dentro dos territórios desses países e
diminuiu, de forma considerável, suas receitas financeiras. Todavia, mais
do que isso, é bem conhecido o fato que Carlos V contemplava
seriamente a redução do poder papal e até mesmo sua subversão total.
Esse foi o ponto mais baixo e quase culminou com o fim do papado, o
que apenas não aconteceu porque o exército de jesuítas veio ao seu
socorro, algo que pode ser visto como uma perfeita ilustração do ensino
de Apocalipse 13:3, mas ainda distante do pleno cumprimento dessas
solenes profecias.
Vamos agora retornar a nossa história geral e fazermos uma breve
avaliação do progresso da Reforma Protestante em diversos países.
GLOSSÁRIO
A
Aferidas
Conferidas; comparadas.
Alabarda
Arma antiga composta por uma longa haste e rematada por uma peça
pontiaguda, de ferro, que por sua vez é atravessada por uma lâmina em forma
de meia-lua, com um gancho ou esporão no outro lado.
Alaúde
Antigo instrumento de cordas dedilháveis. De origem árabe, teve larga difusão
na Europa, da Idade Média ao Barroco.
Algozes
Carrasco, executor da pena de morte.
Amainou
Amainar: diminuir a força; ceder, minorar.
Antagônicas
Contrário, oposto.
Antagonista
Opositor; adversário.
Arauto
Aquele que, por meio de pregão, tornava pública uma notícia.
Arbitrária
Que não segue regras ou normas; que não tem fundamento lógico; que
apenas depende da vontade ou arbítrio daquele que age.
Ascética
Prática de um estilo de vida austera, por meio da abstenção dos prazeres
físicos e psicológicos.
Audácia
Ousadia, intrepidez.
Auspiciosa
Que gera esperanças; prometedora.
Austero
De caráter severo; rígido; rigoroso.
B
Baldaquinos
Um baldaquino se refere a qualquer obra de arquitetura constituída por uma
cúpula sustentada por colunas.
Batz
Moeda que equivalia a 1,5 centavos.
Bélica
Arte da guerra.
Belicoso
Que tem inclinação para a guerra, para o combate.
Bosqueada
Lugar muito arborizado.
Burgo
Divisão administrativa em vários países.
Burgomestre
Principal magistrado municipal de certas cidades europeias.
C
Cadafalso
Palanque ou estrado montado para a execução de condenados; patíbulo.
Cantões
Divisão territorial adotada pela Suíça e outros países.
Cátedra
Cadeira de quem ensina; cadeira professoral.
Cavalheiresco
Cavalheiro, nobre.
Chauvinista
Chauvinismo: termo dado a todo tipo de opinião exacerbada, tendenciosa ou
agressiva em favor de um país, grupo ou ideia.
Chanceleres
Encarregados da guarda real e, em certas épocas, da administração da justiça
e chefe dos conselheiros do rei.
Cisão
Divisão de um partido, de uma sociedade, de uma doutrina.
Cismar
Refletir sobre alguma coisa de maneira insistente.
Coadjutor
Nomeado para ajudar e substituir um bispo no exercício das suas funções.
Comandante
Era um nome oficial do administrador das ordens religiosas de cavaleiros.
Concludente
Que prova ou demonstra irrefutavelmente algo.
Condescendência
Complacência, tolerância.
Cônegos
Religioso que participa do colegiado de uma catedral ou de uma igreja e
trabalha na administração da mesma.
Contemporizar
Ser flexível, transigente.
Contumaz
Que demonstra muita obstinação; insistente.
Consternados
Afligir-se profundamente; encher-se de espanto; desolação.
Cordiais
Medicamento ou bebida que fortalece ou conforta. Eram muito empregados na
terapêutica antiga.
Coroa
Unidade monetária, e uma moeda.
Cúria
Corte pontifícia.
D
Damasco
Tecido de seda encorpada, de uma só cor, com fundo fosco e desenhos
acetinados, que era usado em trajes de aparato e, atualmente, de modo
especial, em estofos de luxo.
Demovido
Deslocado; dissuadido.
Deão
Título de dignidade eclesiástica logo abaixo do bispo ou arcebispo; que dirigia
a vida doméstica dos clérigos.
Derrocada
Destruição; mudança brutal que leva a um estado de colapso, de ruína; queda
acompanhada de decadência, degradação.
Deserções
Desistências, abandonos.
Despótico
Em que há despotismo; tirânico, opressivo.
Despotismo
Poder isolado, arbitrário e absoluto de um déspota.
Detrimento
Prejuízo, perda.
Dialética
Processo de diálogo; debate entre interlocutores comprometidos com a busca
da verdade.
Dieta
Este tipo de assembleia era um órgão deliberativo formal e suas decisões
valiam para todo o Império.
Dissidentes
Que sai de um determinado grupo ou organização.
Ducados
Designação comum a diversas moedas de ouro de vários países.
Dogmas
Pontos fundamentais de uma doutrina religiosa, apresentados como certos e
indiscutíveis.
E
Efusão
Demonstração excessiva.
Emancipação
Libertação, independência.
Eminentes
Que se destacam por sua qualidade ou importância; excelente.
Enfastiar-se
Provocar ou sentir fastio, aborrecimento; entediar-se, enfadar-se.
Epigramas
Poesia breve, satírica; sátira.
Eremitas
Indivíduo que, por penitência, vive em lugar deserto, isolado; ermitão.
Escaramuça
Combate de menor importância.
Escolásticos
Teol. Pensamento cristão da Idade Média, baseado na tentativa de conciliação
entre um ideal de racionalidade.
Esquiva
Esquivar: recusar-se a fazer alguma coisa; eximir-se, negar-se.
Estigmatizados
Estigmatizar: criticar; acusar; censurar ou condenar; classificar uma pessoa de
forma negativa ou desagradável.
Estratagema
Manobra, plano previamente estudado e posto em prática para atingir
determinado objetivo.
Ex-votos
Quadro, imagem, inscrição, ou órgão de cera, madeira, etc., que se oferece e
se expõe numa igreja ou numa capela em comemoração de voto ou promessa
cumpridos através de um milagre.
Exasperar
Tornar (-se) colérico, enfurecido.
Excruciantes
Que é doloroso, atormenta e tortura.
Execrá-los
Execrar: detestar, abominar, amaldiçoar.
Exegéticas
Explicativo, expositivo.
Exonerados
Exonerar: destituir, demitir do cargo que ocupava.
Extirpar
Arrancar pela raiz.
F
Faias
Árvores do Sul e Centro da Europa.
Fauce
Boca, garganta.
Frugal
Que é moderado; sóbrio; simples.
G
Gnósticos
Gnosticismo é um conjunto de correntes filosófico-religiosas.
Grão-mestres
Título de Grão-mestre ou Grande Mestre é o mais alto grau em ordens
honoríficas ou de mérito, isto é, título dado à máxima autoridade de uma
Ordem. Tem poder quase absoluto.
H
Helênico
Relativo ou pertencente à Hélade, ou Grécia antiga.
Helvética
A expressão helvética foi usada algumas vezes para se referir aos cantões
que, unidos, representam o país que chamamos de Suíça.
Hermenêuticas
Interpretação de textos religiosos, especialmente das Sagradas Escrituras.
Homilias
Pregação em estilo familiar que busca explicar um tema ou texto evangélico.
I
Iconoclastas
Diz-se de quem destrói imagens ou ídolos e, por extensão, obras de arte.
Ignomínia
Humilhação, vergonha pública grave.
Impassível
Que não experimenta ou não denota exteriormente nenhuma emoção,
sentimento ou perturbação; imperturbável.
Impostura
Ação de impostor.
Imprecações
Maldição, vociferação.
Impúdica
Despudorada; que não possui vergonha.
Inata
Que pertence ao ser desde o seu nascimento.
Incitada
Instigada, estimulada.
Indelevelmente
Que não pode ser apagado.
Inefável
Que não se pode descrever.
Inexpugnável
Que não pode ser vencida ou conquistada.
Ínfimo
Que ou o que é muito pequeno em suas dimensões, volume, quantidade,
intensidade.
Inquiridor
Aquele que averigua, que pesquisa; investigador.
Insincero
Falso, fingido.
Insurreição
Rebeldia, revolta.
Intransigente
Intolerante.
J
Jactância
Atitude de alguém que se manifesta com arrogância e tem alta opinião de si
mesmo; vaidade, orgulho.
Judiciosos
Que é perspicaz e justo em seus julgamentos; que demonstra sensatez;
acertado.
Junker
Eram denominados os membros da nobreza constituída por grandes
proprietários de terras nos estados alemães.
Jurisprudência
Ciência do direito e das leis.
L
Lancinante
Cortante, aguda.
Landgraves
Título ou dignidade de alguns príncipes ou nobres alemães que julgavam
pleitos em nome do imperador.
Lecionários
Livro que contém as lições ou leituras inscritas no ofício divino. Os lecionários
modernos trazem todo o material necessário para as missas semanais e
cobrem um período de três anos.
Legado
Encarregado pelo papa de governar territórios que pertenciam ao papado.
Leigos
Que pertence ao povo cristão como tal e não à hierarquia eclesiástica.
Letargia
Incapacidade de reagir e de expressar emoções; apatia, inércia e/ou
desinteresse.
Liteiras
Cadeira portátil usada como meio de transporte, coberta e fechada, sustentada
por duas varas compridas que são levadas por dois homens ou dois animais
de carga, um à frente e outro atrás.
M
Magnânimo
Generoso; bondoso.
Magnificente
Que tem opulência, esplendor, suntuosidade.
Maniqueístas
O maniqueísmo é uma filosofia religiosa.
Margraves
Título que outrora se dava aos príncipes soberanos de certos estados
fronteiriços da Alemanha.
Mouros
Antigos habitantes árabes da Mauritânia (norte da África) que invadiram a
península Ibérica.
N
Nefastos
Algo que provoca desgraça; funesto; sinistro.
Nubentes
A pessoa que vai casar, ou seja, o noivo ou a noiva.
Núncio
Representante permanente da Igreja Católica Romana junto a um governo.
O
Oberland
Designa-se como Oberland Bernês a região mais elevada do cantão de Berna.
Oblação
Sacrifício, oferta.
Obliteradas
Obliterar: fazer desaparecer pouco a pouco; apagar.
Obliterou
Destruiu; eliminou; suprimiu.
Oligarquia
Regime político em que o poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas,
pertencentes ao mesmo partido, classe ou família.
Otomanos
Turcos.
P
Paráfrase
Interpretação, explicação ou nova apresentação de um texto.
Parlar
Falar muito; tagarelar.
Paróquias
Divisão territorial de uma diocese sobre a qual tem jurisdição ordinária um
sacerdote: o pároco.
Paulatinamente
Pouco a pouco; gradativamente.
Pérfidos
Traidor.
Permeadas
Impregnadas.
Perpetrada
Praticada, cometida.
Pertinácia
Teimosia, obstinação.
Plenipotenciário
Agente diplomático investido de plenos poderes, em relação a uma missão
especial.
Politiqueiro
Aquele que, em política, usa de processos pouco corretos, que faz politicagem.
Pontifícia
Referente ao papado.
Preponderante
Dominante; principal.
Pródigos
Gastador, esbanjador.
Propiciação
Ato sacrificial pelo qual Deus se torna propício ou favorável ao pecador.
Proposições
Termo usado em lógica para descrever o conteúdo de asserções.
Proscritos
Banidos, exilados.
Pungentes
Capaz de ferir; que provoca dor.
R
Repicar
Produzir sons agudos e repetidos; tocar.
Retratasse
Retratar: anular; desfazer; voltar atrás.
S
Simonia
Compra ou venda ilícita de coisas espirituais (como indulgências e
sacramentos) ou temporais ligadas às espirituais (como os benefícios
eclesiásticos).
Sofismas
Argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da
verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta,
na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente
enganosa.
Suserania
Direito ou poder de ordenar, de decidir, de atuar, de se fazer obedecer;
domínio, autoridade, poder.
T
Tácita
Algo que é implícito ou que está subentendido.
Tangiam
Tocavam; roçavam.
Teutônico
Relativo à Alemanha e aos alemães.
Toga
Peça de vestuário característica da Roma Antiga.
Tríplice aristocracia
Grupo ou classe que detêm privilégios; nobreza.
U
Ubiquidade
Faculdade divina de estar presente em todas as partes ao mesmo tempo.
V
Venalidade
Condição ou qualidade do que pode ser vendido.
Vicissitude
Sucessão de mudanças ou de alternâncias.
Vindicado
Vindicar: reclamar ou exigir a restituição de algo.
Vociferava
Falar aos brados ou colericamente.
Z
Zelotes
Significa literalmente alguém que zela pelo nome de Deus. Apesar de que, em
nossos dias, a palavra designa alguém com excesso de entusiasmo.
ANOTAÇÕES
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