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Copyright © 2019 - Todos os direitos reservados por:
Depósito de Literatura Cristã
“A História da Igreja - Vol. 3”
Capa / Diagramação
Liliana Ester Dinella
Tradução
Alexandre e Simone Meimaridis
Impressão e Acabamento
Imprensa da Fé, São Paulo - SP, Brasil
Publicado originalmente em inglês sob o título
“Short Papers on Church History”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
MILLER, Andrew
A História da Igreja - Vol. 3. —
Diadema: Depósito de Literatura Cristã, 2019. 376 p.;
16 x 23 cm.
ISBN: 978-85-9579-028-5
1. História. 2. Igreja. 3. Cristianismo. I. Título.
CDD 270
1ª Edição em português - Agosto 2019
Rua Athos Palma, 250
CEP 04476-020 - São Paulo - SP BRASIL
www.boasemente.com.br

ÍNDICE

Capítulo 33
O INÍCIO DA REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA9-34
O Papado e os Seres Humanos - O Estado da Igreja Romana no Início do
Século XVI - O Primeiro Período da Vida de Lutero - O Segundo Período da
Vida de Lutero - Lutero e a Piedosa Úrsula - Lutero Entra na Universidade de
Erfurt - Lutero Vê uma Bíblia Pela Primeira Vez - Como Estudar a Bíblia -
Lutero se Torna Monge - A Experiência de Lutero Como Monge - A Conversão
de Lutero - Lutero e Staupitz - Reflexões Acerca da Conversão de Lutero -
Lutero Como Sacerdote e Professor - Lutero Visita Roma
Capítulo 34
O PRIMEIRO JUBILEU PAPAL39-66
O Ano Dourado - O Comércio de Indulgências - Os Agentes do Papa — João
Tetzel - Uma Amostra do Típico Sermão de Tetzel - Lutero Enfrenta Tetzel
Publicamente - Lutero em Heidelberg - Lutero em Augsburgo - Lutero em
Altemburgo - Homens Eminentes do Século XVI - Lutero e a Bula da
Excomunhão - Lutero e Carlos V - A Dieta de Worms - A Convocação de
Lutero e seu Salvo Conduto - Lutero Comparece Diante da Assembleia - A
Oração de Lutero - Lutero Comparece Pela Segunda Vez - Reflexões Acerca
da Presença de Lutero na Dieta de Worms
Capítulo 35
LUTERO EM WARTBURG69-86
Reflexões Acerca do Cativeiro de Lutero - Lutero Retorna Para Wittenberg -
Lutero e a Bíblia em Alemão - O Progresso Geral da Reforma Protestante - A
Reforma e Henrique VIII - As Igrejas Luteranas - “As 100 Queixas da Nação
Alemã” - Eventos Adversos à Reforma Protestante - Os Anabatistas - A
Questão Acerca do Sacramento da Ceia - Chefes Políticos da Reforma
Protestante - A Primeira Dieta de Speyer - A Segunda Dieta de Speyer - O
Protesto
Capítulo 36
O PROTESTANTISMO89-105
A Carta à Igreja em Sardes - As Igrejas Luteranas 1526 - 1529 d.C. - A
Fundação das Primeiras Igrejas Luteranas - A Morte de Frederico, o Sábio - O
Apelo dos Príncipes - Encontros dos Protestantes
Capítulo 37
A CONTROVÉRSIA ACERCA DO SACRAMENTO DA SANTA CEIA107-123
A Opinião de Zuínglio - Karlstadt, Lutero e Zuínglio - Convocação Para um
Encontro em Marburgo - A Conferência em Marburgo - Uma Proposta Para o
Exercício da Tolerância e da Unidade - Reflexões Acerca da Conferência de
Marburgo
Capítulo 38
O ENCONTRO EM BOLONHA127-147
A Dieta de Augsburgo - A Confissão de Augsburgo - A Chegada do Imperador
Carlos V a Augsburgo - Os Líderes da Dieta de Augsburgo - A Abertura da
Dieta de Augsburgo - Os Artigos de Fé - Os Artigos Acerca das Falsas
Doutrinas e dos Abusos - A Inquietação dos Protestantes - As Preocupações e
Temores de Melanchthon - As Cartas de Lutero à Melanchthon
Capítulo 39
A REFUTAÇÃO DA CONFISSÃO151-168
A Refutação Católica Não é Aceita Pelos Protestantes - Negociações Secretas
- O Fim da Dieta - O Decreto Imperial - Reflexões Sobre a Dieta de Augsburgo
- A Providência de Deus nos Assuntos do Imperador Carlos V - A Liga de
Esmalcalda - O Segundo Encontro em Esmalcalda - O Imperador Carlos
Procura uma Conciliação com os Protestantes - A Paz de Nuremberg - A
Opinião dos Historiadores
Capítulo 40
A REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA171-188
A Introdução do Cristianismo na Suíça - O Nascimento e a Educação de
Zuínglio - Zuínglio Como Pastor em Glarus - Zuínglio em Einsiedeln - Zuínglio e
a Reforma em Einsiedeln - Os Efeitos das Pregações de Zuínglio - Zuínglio se
Muda Para Zurique - Zuínglio e o Evangelho - Zuínglio e a Venda de
Indulgências - A Tempestade Irrompe
Capítulo 41
OS LÍDERES DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA191-216
Reflexões Acerca do Raiar da Reforma Protestante na Suíça - O Progresso da
Reforma Protestante em Zurique 1522 d.C. - Os Monges Conspiram Contra
Zuínglio - Os Escritos de Zuínglio - Zuínglio e seus Irmãos - As Disputas em
Zurique - As Teses de Zuínglio - A Reunião em Zurique - As Consequências do
Decreto - O Zelo de Zuínglio e de Leo Jud - A Segunda Disputa em Zurique - A
Palavra de Deus Prevalece - Reflexões Acerca do Caráter da Conferência
Capítulo 42
AS CONSEQUÊNCIAS DOS DEBATES219-235
O Primeiro Mártir da Reforma Protestante na Suíça - O Sangue de Hottinger
Inflama Ainda Mais o Zelo dos Papistas - A Resposta de Zurique - A Remoção
das Imagens - A Reforma Protestante na Suíça e na Alemanha - O Casamento
de Zuínglio - O Progresso da Reforma Protestante - As Armas de Roma - A
Prisão Ilegal de Oexlin - As Falsas Acusações Contra Wirth e seus Filhos - A
Assembleia Reunida em Baden - Os Membros da Família Wirth e o Irmão
Ruteman São Falsamente Acusados - O Martírio de João Wirth, seus Filhos e
do Irmão Ruteman
Capítulo 43
O PROGRESSO GERAL DA REFORMA PROTESTANTE239-264
A Abolição da Missa Católica Romana - A Celebração da Ceia do Senhor - A
Reforma Protestante em Berna - As Freiras de Königsfeld - A Conferência em
Baden - O Início da Dieta - A Grande Conferência em Berna - A Oposição de
Roma - O Início da Conferência em Berna - Os Regulamentos da Conferência -
Os Resultados da Conferência - A Graça do Evangelho - A Reforma na
Basileia - O Povo se Adianta ao Governo - A Basileia Sob um Estado de Sítio -
As Imagens São Destruídas - As Consequências da Revolução
Capítulo 44
A POSTERIOR DIVULGAÇÃO DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA267-295
A Mistura de Interesses Espirituais e Políticos - O Primeiro Passo em Falso: “A
Confederação” - Cinco Cantões Formam uma Liga com a Áustria - Os Cantões
Romanos Perseguem os Reformados - A Declaração de Guerra - Preparações
Militares - O Tratado de Kappel - A Confederação Cristã de Zuínglio - Os Cinco
Cantões Rompem o Tratado - As Chamas da Perseguição São Reacendidas -
O Embargo - A Política Adotada Por Zuínglio - Novas Tentativas de Mediação -
A Posição de Zurique e a Reforma Protestante - A Guerra é Iniciada - A
Indecisão do Concelho de Zurique - Os Maus Pressentimentos do Povo - A
Batalha de Kappel - A Morte de Zuínglio - Reflexões Acerca da Vida de
Zuínglio - Tratados de Paz
Capítulo 45
A REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA297-320
Uma Breve Análise dos Acontecimentos - A Divulgação Geral do Evangelho na
Alemanha - Os Principais Personagens Vão Deixando o Cenário - Os Últimos
Anos de Lutero - A Morte de Lutero - O Funeral de Lutero - Reflexões Sobre a
Morte de Lutero - O Senhor Cuida de Seu Servo - A Vida Doméstica e
Particular de Lutero - O Casamento de Lutero - A Festa de Casamento - Lutero
no Círculo da sua Família - Conclusão
Capítulo 46
A ABERTURA DO CONCÍLIO DE TRENTO323-339
O Tratado Entre o Papa e o Imperador - A Guerra de Esmalcalda - O Papa
Revela o Segredo das Trevas - O Exército dos Confederados - As Primeiras
Operações de Guerra dos Protestantes - A Traição de Maurício - A Dissolução
da Liga Protestante - Os Alemães São Tratados Como um Povo Conquistado
Capítulo 47
O PERÍODO “INTERINO”343-360
O Novo Credo - O Período Interino Sofre Oposição dos Protestantes e dos
Papistas - A Submissão de Melanchthon - A Oposição das Cidades Livres -
Uma Nova Reviravolta na Maré dos Acontecimentos - A Revolução na
Alemanha 1552 d.C. - A Fuga do Imperador - A Paz de Passau - Algumas
Reflexões Acerca das Páginas Anteriores - As Calamidades dos Protestantes -
O Surgimento dos Jesuítas - Inácio de Loyola - O Início da Ordem dos Jesuítas
- O Verdadeiro Objetivo dos Jesuítas

GLOSSÁRIO363
ANOTAÇÕES371

Capítulo 33
O INÍCIO DA REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA

O domínio exclusivo da Igreja Latina ou Romana está se aproximando


do seu final. Começando nos dias do pontificado de Gregório I, o Grande,
ela reinou suprema por quase mil anos. Embora tenha perdido muito do
brilho que outrora possuíra sob o pontificado de Gregório VII, ainda
reivindicava para si, com sucesso, o direito que havia arrogado para si
sobre o Estado e a Igreja. Mas o momento havia chegado, onde os
povos, por tanto tempo oprimidos — de modo especial, o povo teutônico*
— levantariam seu braço de rebeldia contra a tirania de Roma,
sacudiriam o pesado jugo, e arrancariam do papado pelo menos uma
parte de sua presa. A guerra culminou com uma grande separação dos
teutônicos. O resultado final foi a fragmentação da cristandade, como
aconteceu com o navio no qual Paulo estava viajando para Roma (At 27).
Tem sido nosso desejo apresentar ao leitor uma visão justa do
verdadeiro caráter e dos caminhos da Igreja de Roma durante o longo
período de seu domínio. E o próprio leitor precisa julgar se a história
confirma a nossa interpretação das palavras do Senhor Jesus à igreja em
Tiatira (Ap 2:18-29). Ao escrevermos essa história, nosso único objetivo é
servir e agradar ao Senhor. Por mais ninguém nos lançaríamos na
travessia desses longos mil anos. A quantidade de material que temos
produzido apresenta apenas uma pequena porção do volume total, que
precisa ser lido por todos aqueles que desejam satisfazer suas mentes
com a verdade. Além do mais, uma grande porção da história do papado
é indigna de ser registrada em nossas páginas, ou de ser trazida diante
dos olhos de pessoas civilizadas e muito menos, diante dos olhos dos
cristãos. É melhor que seus adultérios e abominações sejam deixados
nas páginas dos registros de uma era mais rude. Dizemos isso porque,
certamente, as mesmas serão lançadas em um local particularmente
escuro, nas regiões do inferno.
Como temos visto nos capítulos anteriores, Deus mesmo preparou, por
quase trezentos anos, o caminho para a concretização de Seus
propósitos por meio de escolas, novas traduções e versões; invenções
significativas, como da imprensa; e, antes de tudo, pela intolerância da
Igreja Romana. Uma vez que tudo estava preparado, mesmo o mais fraco
dos instrumentos provou ser suficiente na mão do grande Mestre para
avivar o pequeno tição, transformando-o em uma grande labareda; e
colocar o mar dos povos em um estrondoso movimento; e que todos
esses elementos cumprissem Seus propósitos. Quando a pólvora está
esparramada de forma apropriada, até mesmo uma fagulha acidental
pode causar a explosão. Alcançar grandes resultados através de
pequenos meios e fracos instrumentos é uma característica de ação da
Providência Divina. O propósito disso é que o poder de Deus sempre seja
visto, e não o poder homem; e para que a honra seja dada somente a
Deus. O homem que Deus havia escolhido para Si como ferramenta, era
Martinho Lutero. Ele havia sido destinado para colher os gloriosos frutos
daquilo que chamamos de “A grande Reforma Protestante”. Já havia
custado muito esforço e trabalho para preparar o campo; e, no decorrer
dos séculos, muitos nobres homens haviam empenhado suas vidas e
derramado o seu sangue para promover esta obra. Porém eles não
tiveram o privilégio, pelo menos não neste mundo, de ver e gozar os
frutos do seu trabalho.
Durante os últimos mil anos, o papado estava em batalha contra as
testemunhas individuais a favor de Cristo; agora o papado e o
protestantismo se enfrentam. Para que o leitor possa entender de forma
correta a diferença entre essas duas abordagens, nós precisamos auxiliá-
lo a compreender o significado que o papado tinha até o tempo em que
Lutero surgiu no horizonte.
***
O PAPADO E OS SERES HUMANOS
Não são muitos aqueles que, em nossos dias, possuem qualquer
noção acerca da real natureza e de quão abrangente era o domínio
representado pela Igreja Católica Romana. Tal domínio foi plenamente
desenvolvido durante o longo período que chamamos de Idade Média.
Foi durante esse período que a Igreja Romana criou as condições que
permitiram que sua natureza1 permanecesse imutável até os dias de
hoje. Os tempos e as circunstâncias certamente mudaram, mas o mesmo
não aconteceu com o papado. O clero romano, incluindo os monges e os
frades, formavam uma classe distinta que se encontrava completamente
separada do restante da humanidade. Um largo, profundo e
intransponível abismo separava essas duas comunidades: o clero e os
leigos. A maneira de viver, as leis acerca dos direitos de propriedade, os
direitos e as obrigações sociais entre esses dois grupos não eram apenas
diferentes. Na grande maioria dos casos, as mesmas eram
completamente antagônicas*.
A educação e a formação naqueles dias, até onde podemos chamá-la
assim, era privilégio exclusivo do clero. Qualquer pessoa que ansiava
obter conhecimento, só poderia alcançar seu objetivo através da
orientação de algum homem ligado à igreja, ou sendo admitido em algum
mosteiro ou convento. Com isso, os filhos mais jovens da nobreza, e até
mesmo da realeza, se uniam às comunidades clericais, à medida que a
igreja se tornava cada vez mais rica e poderosa. Através desses meios,
os nomes mais famosos da terra se encontravam entre o clero e, dessa
forma, a Igreja e o Estado estavam incorporados um no outro. As
universidades, as escolas, sim, podemos dizer todo o âmbito do
conhecimento humano estava sob o pleno controle dos clérigos. A outra
grande divisão dos seres humanos — composta por aqueles que não
eram nem nobres nem pertenciam ao clero, que era chamada de leigos*
— era mantida nas mais profundas trevas e na mais grossa ignorância.
Maldito era todo aquele que se aventurasse a apontar algum novo
caminho que pudesse conduzir ao desenvolvimento da inteligência, à
liberdade e a conquista do poder. Até mesmo o mais ínfimo* raio de luz
era rápida e cuidadosamente apagado; as descobertas denunciadas
eram rigorosamente proibidas; e aqueles que traziam a luz, eram
estigmatizados* como mágicos e hereges, e eram perseguidos.
Apenas os sacerdotes podiam ler, escrever, produzir documentos
oficiais ou tratados, e desenvolver novas leis. Em decorrência da sua
posição e da sua superioridade intelectual, o clero tinha acesso nas
Cortes e nos concílios reais. Eles eram os negociadores e os
embaixadores, por excelência, de todos os soberanos. Mas os contratos
reais e as alianças que eram feitas, não eram os únicos segredos que
eles estavam a par. A confissão auricular2 desnudava diante dos clérigos
os mais íntimos pensamentos e todos os segredos dos corações
humanos, do mais rico, importante e nobre, até ao mais pobre e simples
dos indivíduos. Tudo estava exposto diante dos olhos do sacerdócio
romano. Nenhum ato lhes era desconhecido, o mesmo acontecia com
quase todos os pensamentos e intenções. É verdade que existiam
murmurações abafadas acerca da avareza, do orgulho e da vida imoral
dos sacerdotes. Mas ainda assim, eles eram sacerdotes e bispos,
possuindo grande autoridade; e acima de todos estava o próprio papa.
Apesar da indignidade da vida desregrada que costumavam levar, os
sacramentos administrados por esses homens jamais perdiam sua
importância. De modo semelhante, suas sentenças de condenação ou
absolvição possuíam o poder igualmente temido. Duvidar da eficácia dos
sacramentos e do poder dos sacerdotes, ou até mesmo rejeitá-los, era
considerado um crime horrendo. Eles eram tratados como hereges,
proscritos* e lançados fora da comunhão. Para a Igreja Romana, essas
pessoas mereciam o castigo do fogo presente, bem como o da
eternidade.
O papa era aceito e crido universalmente. Ele combinava em sua
própria pessoa, como se acreditava de maneira geral, todos os atributos
do poder supremo em questões de religião e de política. O poder dos
imperadores e dos reis era apenas derivado do próprio poder papal. O
poder dos papas era o único original. O sumo pontífice romano estava
revestido de autoridade divina para governar ilimitadamente e segundo
seu critério: depor monarcas e absolver súditos de seus juramentos de
lealdade, ou de qualquer tipo de obrigação que os mesmos tivessem
assumido com seus soberanos. Caso fosse necessário, o papa tinha até
mesmo o poder de dissolver todos os relacionamentos na sociedade.
Mas, acima de tudo, ele tinha o poder absoluto de manter a integridade
da fé, como transmitida a ele por seus antecessores ou como definida por
ele mesmo, como cabeça da igreja. O controle sobre esses ensinamentos
da igreja lhe concedia o direito de reprimir qualquer tipo de desvio, em
qualquer forma que se apresentasse, e de perseguir e exterminar todos
os que se atrevessem a colocar em dúvida suas supremas prerrogativas
eclesiásticas, tratando-os como rebeldes e traidores de Deus e de Sua
Igreja. O papa arrogava para si o direito de, a qualquer tempo, convocar
um governo secular, sem oferecer nenhuma compensação, para que o
mesmo sacrificasse vidas, dinheiro, trabalho, dedicação, e até os próprios
interesses para cumprir as ordens papais e possibilitar a manutenção da
integridade do império espiritual.3
***
O ESTADO DA IGREJA ROMANA NO INÍCIO DO SÉCULO XVI
Mesmo no início do século XVI, a reputação e o poder dos sacerdotes
ainda eram tão grandes, que parecia não haver nada que tivesse
condições de rompê-los. Tudo dependia dos sacerdotes. Ele dominava
como verdadeiro senhor sobre a consciência dos seres humanos, e
dispunha arbitrariamente tanto sobre o corpo quanto sobre a alma, no
tempo e na eternidade. Ninguém podia se dar ao luxo de fazer qualquer
coisa que desagradasse o sacerdote, ou que o pudesse colocar sob sua
censura. A excomunhão alienava o homem da igreja, independente de
sua posição social, e o excluía de qualquer possibilidade de salvação.
Ao mesmo tempo, é notável que justamente nessa época parecia não
haver nenhum perigo sério, de qualquer lado, que ameaçasse a esse
monstruoso sistema de iniquidade da Igreja Romana. Começando com o
Vaticano e descendo até a menor das paróquias*, a soberania e a
tranquilidade que a Igreja Romana desfrutava pareciam completamente
seguras. As diversas heresias e comoções que haviam perturbado a
igreja por muitos séculos, e contra as quais batalhou constantemente,
foram todas exterminadas ou suprimidas mediante as fogueiras e a
espada. Ao mesmo tempo, todas as queixas e petições de seus filhos
mais fiéis foram caladas de uma maneira desconsiderada. Até mesmo as
advertências originadas entre seus mais sinceros amigos foram
negligenciadas ou desprezadas. Onde estavam agora os valdenses, os
albigenses, os begardos4, os lolardos, os irmãos boêmios e todos os
outros grupos sectários? Todos eles foram exterminados através das
mais rigorosas medidas papais, ou pelo menos foram condenados ao
silêncio. É verdade que, em secreto, se levantavam muitas vozes
murmurando contra as injustiças, fraudes, violência e a tirania da Corte
de Roma. O mesmo era verdadeiro contra os crimes, a ignorância e a
corrupção moral que existia no meio de todos os membros do clero. É
verdade que os mais fiéis seguidores, aqui e ali, se levantavam com
sérias advertências, mas os papas estavam tão acostumados a essas
murmurações, que não lhes dava atenção; e as advertências eram
desconsideradas com indiferença. Acaso o papa não poderia conciliar os
insatisfeitos por meio de demonstrações de favor ou fazê-los calar com
severas punições? Por que deveria estar preocupado com isso?
Era um tempo onde as palavras de Apocalipse 18 podiam ser
aplicadas. “Porque” ela, a grande meretriz, a igreja degenerada “diz em
seu coração: Estou assentada como rainha, e não sou viúva, e não verei
o pranto” (v. 7). Seu olhar passava sobre os pilares e sobre as fortalezas
do seu poder, aparentemente indestrutíveis; ela se glorifica a si mesma, e
se gloria da sua reputação e da sua riqueza. Ela pensa que domina como
rainha e que está fora do alcance de qualquer vicissitude*. E no seu
atrevimento, diz: “Não verei pranto”. Ela não dá ouvidos às solenes
palavras dAquele que a contempla com olhar penetrante: “Sai dela, povo
meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não
incorras nas suas pragas. Porque já os seus pecados se acumularam até
ao céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela” (vv. 4-5).
O tempo de Deus havia chegado para que essa profecia fosse
cumprida, ao menos, parcialmente. A sentença para sua prisão já foi
proferida. A calma generalizada que estava reinando parecia a quietude
antes de uma tempestade. Exatamente quando Roma pensava que tudo
estava em segurança e em ordem para sempre, o fim de seu domínio
absoluto estava próximo. A reforma da igreja, tanto em sua cabeça — o
papa — quanto em seus membros, era parte de um clamor generalizado
através dos séculos. Mas ela encarou, de forma desafiadora, todas essas
exigências e reclamações. O que poderia ser feito agora? Deus mesmo
entrou em cena. Mas de que maneira? Será que Ele enviaria algum dos
seus anjos poderosos para derrubar o despotismo* de Roma; quebrar o
jugo do papado; romper as cadeias nas quais a arrogância e
arbitrariedade romana mantiveram os corpos e as almas dos homens; e
responder ao clamor que soava há séculos pela reforma da igreja? Não!
Como já mencionamos acima, esta não é a maneira de Deus. Ele não Se
utiliza de tais instrumentos poderosos para cumprir Seus propósitos; e
isso para que somente Deus fosse glorificado. Aquilo que os mais
poderosos soberanos à frente das legiões dos seus exércitos armados
não haviam conseguido, Deus executou de forma plena e gloriosa
através de um único movimento, por intermédio de um desconhecido
monge da Saxônia.
Nós já mencionamos seu nome repetidas vezes: Martinho Lutero, de
Eisleben. Ele foi a voz de Deus que despertou a Europa para essa
grande obra e convocou os trabalhadores para assumirem seus postos.
Se desejamos formar um juízo apropriado desse que foi o principal
instrumento escolhido por Deus para a realização dessa obra poderosa,
bem como da graça que o qualificou para tal, nós precisamos lançar um
olhar sobre os primeiros anos de vida do grande reformador.
O autor J. H. Merle d’Aubigné, em seu grande amor que tinha por
Lutero, nos fala: “Os primeiros anos de vida de um homem, nos quais ele
se forma e se desenvolve sob a mão de Deus, são sempre importantes.
Foi assim, especialmente, na carreira de Lutero; nela já se encontrava
toda a Reforma. As diversas vicissitudes desta obra se passaram uma
após a outra na alma daquele que foi o instrumento para realizar esta
obra antes mesmo que acontecessem no mundo exterior. Somente
aquele que conhece com precisão a reforma no coração de Lutero, tem a
chave para a reforma da Igreja”.5 Primeiramente, portanto,
contemplaremos a reforma em Lutero, antes de contemplarmos os fatos
por meio dos quais a cristandade foi transformada.
***
O PRIMEIRO PERÍODO DA VIDA DE LUTERO
Martinho Lutero era descendente de uma família pobre, porém virtuosa.
Por muitos anos, sua família morou na pequena cidade de Möhra, nos
domínios dos condes de Mansfeld, na Turíngia. Lutero costumava dizer:
“Eu sou filho de camponês, e meu pai, meu avô e meu bisavô foram
todos camponeses honestos”. Seu pai se chamava João Lutero, e logo
depois do seu casamento se mudou para Eisleben, na Saxônia. Foi ali
que Lutero nasceu em 10 de Novembro de 1483. Era véspera do dia de
São Martinho de Tours. No dia seguinte, o pai levou seu primogênito para
ser batizado na Igreja de São Pedro; e recebeu o nome de Martinho, em
honra ao santo, já que naquele dia acontecia a celebração do festival do
mesmo.
Seu pai era um homem íntegro e trabalhador. Ele era muito franco em
seu proceder; ao mesmo tempo, possuía uma firmeza de caráter
extraordinária, que aqui e ali se manifestava como verdadeira obstinação.
Ele gostava muito de ler e enriqueceu seus conhecimentos por meio de
um diligente estudo de todo livro que lhe chegava às mãos. Dotado, por
natureza, de uma inteligência clara e penetrante, por meio da sua
formação e saber se elevou muito acima daqueles da sua mesma classe.
Sua esposa se chamava Margarethe; ela era uma mulher humilde,
devotada, piedosa, temente a Deus, e que levava uma vida de oração.
Essas qualidades a transformaram em um padrão de virtude para todas
as suas vizinhas.
No verão seguinte, quando Martinho tinha cerca de seis meses, João
Lutero, com sua pequena família, se mudou para Mansfeld. No início,
eles tiveram que lutar com uma pobreza enorme. Mais tarde, Lutero
contou: “Meu pai era um lenhador e minha mãe, geralmente, carregava a
lenha nas costas procurando vendê-la, como um meio de sustentar seus
filhos”. O Senhor, todavia, não havia se esquecido desses honestos
trabalhadores e acabou conduzindo-os para uma condição acima
daquelas dificuldades, no seu devido tempo. João encontrou um trabalho
bem remunerado nas minas de ferro que existiam em Mansfeld. Por sua
diligência no trabalho e por seu senso de economia ele conquistou, aos
poucos, certo bem-estar. Ele adquiriu de tal forma o respeito generalizado
de seus concidadãos, que foi escolhido como membro do Concelho da
cidade; e por meio desta distinção, e com a retidão do seu caráter e a
agudez da sua inteligência, foi fácil para ele encontrar acesso junto ao
melhor que existia na sociedade daquele distrito.
A maior ambição do pai era ver seu filho mais velho transformado em
um erudito. Mas ele não se esqueceu da sua educação doméstica. Assim
que Lutero tinha idade suficiente para receber instrução, seus devotados
pais lhe falaram acerca do Senhor Jesus e passaram a orar com ele
ajoelhados ao lado de sua cama. Martinho foi enviado muito cedo para a
escola. Seu primeiro instrutor foi um homem chamado George Emilius,
que era o professor daquela localidade. Ali lhe foi ensinado o catecismo,
os dez mandamentos, a confissão de fé apostólica, a oração do Pai
Nosso e os primeiros rudimentos do latim. Infelizmente, de acordo com os
rudes costumes daqueles dias, o pequeno Martinho deu seus primeiros
passos na educação sob muitos e severos castigos. Em certa ocasião, de
acordo com seu próprio relato, ele foi chicoteado pelo inclemente Emilius
quinze vezes em um mesmo dia. Desde a sua mais tenra idade ele foi
educado na dura escola da pobreza, da dificuldade e do sofrimento. Tudo
isso veio compor seu caráter para uma vida futura de grandes batalhas.
O tratamento que recebia em casa não era mais misericordioso.
“Seu pai o chicoteava com esmerado rigor”, nos diz um de seus
biógrafos, “pois esse método era considerado, por muito tempo, o único
instrumento para a educação tanto moral quanto intelectual. Até mesmo
sua mãe seguia esse método de educação com tão grande zelo que era
capaz de fazer o próprio filho sangrar”. O temperamento forte e
impetuoso de Martinho dava aos pais, naturalmente, frequentes
oportunidades para, com base nesses princípios, puni-lo. “Meus pais”, ele
disse mais tarde em sua vida, “me trataram de uma forma tão dura, que
eu me tornei muito tímido. Certo dia minha mãe me castigou de maneira
tão severa por causa de uma castanha, que eu cheguei a sangrar.
Todavia, eles acreditavam sinceramente que estavam fazendo a coisa
certa; não podendo, contudo, distinguir os espíritos, o que é necessário
para saber quem, como e quando deve ser punido”.6
***
O SEGUNDO PERÍODO DA VIDA DE LUTERO
Quando Lutero atingiu a idade de catorze anos, no ano de 1497, ele já
havia aprendido tudo o que lhe poderia ser ensinado na escola latina de
Mansfeld. Como havia dado provas que possuía uma capacidade que
poderia levá-lo muito além nos estudos, seu pai decidiu enviá-lo para a
escola franciscana em Magdeburgo. Isso foi uma mudança agradável
para Martinho. Ver o mundo e, antes de tudo, aprender mais, isso era seu
mais ardente desejo. Todavia, devemos notar que a severidade na
educação que Lutero teve em Mansfeld não cessou quando ele deixou a
casa de seu pai. Quando chegou a Magdeburgo, Lutero encontrou-se no
meio de muitos estranhos, sem amigos, sem dinheiro e, até mesmo, sem
comida suficiente para viver. Seu ânimo começou a decair; seu espírito
foi completamente esmagado. Intimidado pelo duro tratamento que havia
recebido em Mansfeld, ele tremia na presença de seus mestres. Nas
suas horas vagas, Martinho precisava, junto com outras crianças pobres,
mendigar seu alimento nas portas de cidadãos compassivos. Ele mesmo
conta que certa vez, na época natalina, ele foi cantar, na companhia de
seus colegas de miséria, as costumeiras canções de Natal nos vilarejos
da vizinhança. Todos eram muito tímidos por causa das ameaças e das
tiranias com as quais os professores estavam acostumados a torturar
seus alunos. Essa timidez fazia com que eles fugissem da presença dos
gentis camponeses, que saíam de suas casas trazendo comida para eles.
Certa vez, quando estavam cantando no vilarejo em frente a uma casa,
seu dono, um camponês grande e forte, saiu e perguntou em voz alta e
num tom áspero: “Meninos, onde vocês estão?”; isso causou um pânico
tão grande nos jovens, que saíram correndo tão rápido quanto puderam.
Somente depois que o camponês chamou várias vezes com amabilidade,
eles se atreveram a aproximar-se e receber o que lhes era oferecido.
Lutero ficou em Magdeburgo por cerca de um ano, até que, por fim, a
dificuldade que enfrentava em encontrar comida se tornou tão grande,
que ele, com a autorização de seus pais, abandonou a cidade e partiu
para Eisenach. Naquela cidade também havia uma boa escola e alguns
parentes de sua mãe moravam ali. Mas os parentes que estavam nessa
cidade ou negligenciaram o cuidado que deveriam ter por ele, ou não
tinham os meios para ajudá-lo. Sua situação era complicada. E assim,
esse pobre rapaz também se viu obrigado a mendigar seu pão. Como já
havia feito antes, quando a fome apertava ele saía cantando de porta em
porta, em troca de um pedaço de pão. Esse costume ainda existe nas
cidades alemãs nos dias de hoje. Em alguns lugares, os corais de
meninos conseguem pedir e levantar contribuições para ajudar as
instituições a que pertencem. Aquele modo de ganhar o pão de cada dia,
entretanto, era extremamente humilhante para Lutero. As frequentes
atitudes de desprezo e as repreensões que com frequência colhia em vez
de um pedacinho de pão, especialmente vindas de pessoas de posses,
quase quebrantavam seu coração. Por esse motivo, ele derramou muitas
lágrimas secretamente, e sofreu desesperadamente pensando em seu
futuro.
“Será que devo renunciar a todas as minhas acalentadas esperanças
de educação para viver uma vida melhor e progredir como ser humano?
Devo retornar para Mansfeld e trabalhar como mineiro para sempre?”
Essas questões se levantavam e ganhavam espaço no coração do jovem
estudante. Todavia, nós sabemos que havia Alguém que estava cuidando
dele, mesmo que nessa época Lutero ainda não O conhecesse; e esse
mesmo Alguém o havia destinado para um trabalho longe das minas de
Mansfeld. Uma amorosa mão paternal o estava conduzindo e pesando
cada provação cuidadosamente. O inimigo não podia acrescentar nem
um grama sequer ao peso que havia sido determinado por Deus. O
Senhor estava educando Seu futuro servo na escola da adversidade. E
quando ele tivesse aprendido a lição, então a recompensa viria. Uma
enorme crise na sua história estava a caminho. O tempo determinado
pelo Senhor para sua libertação, estava próximo.
***
LUTERO E A PIEDOSA ÚRSULA
Um dia, depois de seus estudos, Lutero estava voltando para casa e,
como de costume, mendigava seu pão cantando. Após ter sido rejeitado,
de forma rude, em três casas sucessivamente, ele parou extremamente
abatido e desanimado diante de uma porta. Ele se assustou quando, de
repente, a porta se abriu e uma mulher apareceu e o convidou
amavelmente para entrar. Essa mulher era a bondosa Úrsula, a esposa
de Conrado Cotta, um respeitado cidadão de Eisenach. Ela já havia
reparado em Lutero antes, na igreja; e sempre havia chamado a sua
atenção o tom agradável e melancólico da sua voz e a seriedade de sua
expressão. Quando ela viu o rapaz parado tão desconsolado diante de
sua casa, se sentiu impulsionada para chamá-lo para dentro e refrigerá-lo
com alimentos. Conrado não apenas aprovou a benevolência de sua
esposa, mas logo o jovem Lutero lhe agradou tanto, que o recebeu em
sua casa como um filho. Aliviado de suas preocupações temporais, e
desfrutando de muitos privilégios na família cristã de seu benfeitor, a
mente de Lutero, naturalmente aguçada, foi despertada para novos
interesses, novas alegrias, novas esperanças — para uma nova e feliz
existência. O Deus de toda graça, em Sua misericórdia, havia aberto os
corações e as mãos da bondosa Úrsula e do seu bom marido justamente
no tempo certo, para preparar um amoroso lar para aquele jovem pobre,
desesperado e de espírito quebrantado. Quase se torna desnecessário
dizer que o amor deles ficou gravado profundamente no coração de
Lutero, e certamente foi registrado no céu e eles não perderão a
recompensa.
Lutero avançou, com um vigor renovado, em seus estudos literários e
científicos. Além disso, ele também se dedicou à música. Por amor à
música e por gratidão para com sua mãe adotiva, que também era uma
grande amante da música, Lutero aprendeu, em suas horas de folga, a
tocar a flauta e o alaúde*. Lutero costumava cantar tocando o alaúde,
pois Úrsula tinha verdadeira paixão por sua voz melodiosa acompanhada
do instrumento. Foi assim que se iniciou o amor de Lutero pela música,
que o acompanhou até a velhice. A música, muitas vezes, tornou-se um
refúgio e consolo para ele em tempos de tribulação e de tentação. Mais
tarde, ele compôs muitas melodias e também poemas. Uma série dos
mais belos e sublimes hinos sacros foram compostos e musicados por
ele7.
Na alegre atmosfera que existia na casa da família Cotta, era apenas
natural que o caráter e a personalidade de Lutero sofressem uma grande
transformação. Suas ansiedades foram removidas, sua timidez
desapareceu, sua mente gozava de paz, seu comportamento era cheio
de ânimo e feliz; e seus distintos talentos, aliados com seu caráter alegre
e bondoso por natureza, fizeram dele o preferido de todos na escola
franciscana. Foi assim que se passaram quatro anos felizes de sua vida.
“Ele ultrapassou todos os seus companheiros”, assim diz Melanchthon,
“na eloquência, e no talento de compositor, tanto em prosa quanto em
verso.”
Trebonius, o superior do mosteiro e diretor da escola, tinha este aluno
ambicioso especialmente em seu coração. E, para Lutero, também não
havia outro professor que gostasse mais do que deste homem erudito e
afável. Trebonius se distinguia de todos os seus colegas pela
consideração no seu trato com a juventude. Ele tinha o costume, ao
entrar na sala de aula, de saudar os alunos tirando o gorro. Seus colegas,
que não adotavam o mesmo costume, expressavam enorme surpresa
diante desse gesto de condescendência*. Trebonius se justificava
dizendo: “Entre esses rapazes existem alguns que Deus irá, um dia,
transformar em prefeitos, chanceleres*, doutores e magistrados. Apesar
de ainda não os vermos ocupando essas posições, nem vestidos com
suas roupas de dignitários, é apenas correto que os tratemos com o
devido respeito”. O jovem Lutero estava presente e, sem dúvida, sempre
se lembraria dessas palavras de seu estimado professor.
Encorajado por esses primeiros sucessos em Eisenach e
reconhecendo que seu curso de estudos estava assegurado, ele teve
sede por outra oportunidade. Ele desejava meios mais abrangentes que
facilitassem seu progresso e desenvolvimento intelectual. Poder
frequentar uma universidade, passou a ser seu mais ardente desejo. Seu
pai, cujas circunstâncias haviam melhorado consideravelmente,
concordou com Lutero, mas exigiu que ele estudasse Direito.
***
LUTERO ENTRA NA UNIVERSIDADE DE ERFURT
No ano 1501, Lutero chegou à universidade em Erfurt, que naqueles
dias era a mais distinta em toda a Alemanha. Agora, ele estava com
dezoito anos e se lançou com ardente entusiasmo ao estudo das
ciências. Mais tarde, Lutero disse: “Meu pai me sustentou ali com muito
amor e fidelidade, através do suor do seu rosto”. Em relação a essa
efusão* de gratidão do filho, um de seus biógrafos observa: “Certamente
todas as obras de História da Humanidade não contam de nenhum
trabalho manual de um pai que foi coroado com uma recompensa tão
gloriosa como aquela que resultou da diligência perseverante do mineiro
de Mansfeld. Cada gota de suor que caía de sua testa foi utilizada pela
vigilante Providência para promover Seus propósitos. Além disso, esse
mesmo suor serviu como um meio para fecundar aquele espírito que
Deus havia escolhido para promover uma mudança nos princípios
predominantes do mundo cristão”.8
Nós temos razões para acreditar que outros pensamentos, além do
enriquecimento dos seus conhecimentos, também estavam exercitando a
mente de Lutero durante esse tempo. A misericordiosa intervenção de
Deus, que o havia levado ao amável círculo familiar dos Cotta, e tudo
aquilo que ele viu e aprendeu ali na convivência com aquele casal,
causaram uma profunda e permanente impressão em seu coração.
Lutero rejeitou, fortemente, estudar a filosofia de Aristóteles, embora o
sistema de ensino deste filósofo possuísse grande reputação nas
universidades e era apresentado como o melhor, ou antes, como a única
regra do pensar inteligente. Naqueles dias, a lógica e a dialética*
aristotélica eram as únicas disciplinas disponíveis na maioria das
universidades. “Não tivesse Aristóteles sido um homem”, Lutero
costumava dizer, “eu não hesitaria em considerá-lo um diabo”; tão grande
era a aversão que Martinho tinha pela filosofia do sábio helênico*. As
obras dos grandes escolásticos* de tempos passados, tais como: João
Duns Escoto, Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham e Boaventura lhe
foram recomendados como os únicos meios para alcançar a verdadeira
piedade e o sólido saber. Todavia, esses escritos eram apenas um pouco
melhores do que a lógica de Aristóteles, quando a questão era satisfazer
as necessidades de uma consciência conturbada. Independente disso
tudo, na sabedoria de Deus, era necessário que Lutero se tornasse
familiarizado com esses escritos. O propósito de Deus era que Seu servo
pudesse ter uma maior capacidade e dominasse melhor o terreno da
filosofia, para poder expor à luz a completa inutilidade da mesma no
serviço e na adoração a Ele. Lutero também estudou os melhores
clássicos latinos e, sendo abençoado com uma perspicaz inteligência,
diligência perseverante e excelente memória, ele fez grandes e rápidos
progressos em seus estudos. Logo adquiriu a reputação de um dialético
hábil e sagaz.
No ano 1503 o jovem estudante recebeu o primeiro grau da dignidade
acadêmica: o diploma de bacharel em Artes. Dois anos depois, em 1505,
ele foi reconhecido como doutor em Filosofia. Após ter feito avanços tão
significativos nas diversas áreas do saber, Martinho começou a
concentrar sua atenção no estudo da jurisprudência*, atendendo assim
aos desejos de seu pai. Mas o Senhor tinha outro trabalho para Lutero. A
graça de Deus já estava trabalhando em seu coração. Naqueles dias,
Martinho estava dedicando bastante tempo à prática da oração, e
costumava dizer: “Orar com diligência vale mais do que apenas estudar”
— o que podemos considerar como uma excelente regra para todos os
estudantes cristãos.
***
LUTERO VÊ UMA BÍBLIA PELA PRIMEIRA VEZ
Um dia, Lutero encontrava-se, segundo o seu costume, na biblioteca
da universidade de Erfurt. No desejo insatisfeito de seu coração, por luz e
redenção, ele buscava por algo novo, e eis que a mão de Deus o
conduziu até uma Bíblia. Ele nunca havia visto tal livro. Então ele abre e
lê o título — de fato tratava-se de uma Bíblia completa! Grandemente
surpreso e alegre, ele folheava rapidamente as páginas deste Livro
interessante. Lutero havia sido educado por pais piedosos; havia vivido
quatro anos com uma família cristã, e ainda assim, nunca tinha visto uma
Bíblia. Isso pode parecer inacreditável para o leitor protestante. Porém,
essa mesma ignorância da Palavra de Deus prevalece no meio das
comunidades católicas romanas até os dias de hoje9. A Bíblia não tinha
lugar entre os meios de educação de um sacerdote católico, e os fiéis
estavam proibidos de ler a Bíblia. Somente algumas poucas passagens
são lidas nas Igrejas Católicas e utilizadas nas missas; e até mesmo os
católicos piedosos gostam de acreditar que estas passagens formam o
conteúdo essencial de toda a Bíblia. Este é o fundamento estreito e
precário sobre o qual está edificada a fé dos católicos. Uma fé cega
sustentada por um poderoso e assustador sistema baseado nas trevas e
na idolatria.
Mas também como protestantes, em cuja possessão, já há séculos, se
encontra a preciosa e autêntica Palavra de Deus, temos que lembrar: a
Bíblia não pode ser compreendida apenas com o intelecto. Pois assim
como diz: “qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito
do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de
Deus, senão o Espírito de Deus” (1 Co 2:11). Sem a instrução e o poder
do Espírito Santo, que habita no crente por meio da fé em Cristo Jesus,
não pode haver uma compreensão correta da Palavra de Deus nem uma
sujeição verdadeira do coração humano à sua autoridade absoluta. Por
essa mesma razão, diversas expressões, como por exemplo: “A Bíblia,
toda a Bíblia e nada mais do que a Bíblia”, pode soar muito bem e ter
uma importância relativa quando contrastados com os ensinos do
papado. Contudo, ainda assim é incorreta e pode levar ao engano. Essa
expressão é correta e verdadeira quando se fala da Bíblia como sendo
um padrão ou uma linha guia. Mas se a intenção disso é afirmar que a
Bíblia por si própria é suficiente e que ela se interpreta a si mesma, então
a expressão é incorreta; pois, por meio disso, o Espírito Santo seria
praticamente excluído. Também se fala muito do “direito a uma
interpretação particular” ou de uma “livre pesquisa”. Infelizmente, as
consequências de tal afirmação têm sido frequentemente as mais
danosas possíveis. Recorre-se à inteligência humana para esclarecer
questões religiosas; e o orgulho e a rebeldia contra a manifesta vontade
de Deus são apenas alguns dos maus frutos desse princípio originado
pelo protestantismo. Infelizmente, essa é a realidade; embora a intenção
original tivesse sido a de enfrentar a arrogante infalibilidade do
sacerdócio romano e a consequente escravização da mente dos leigos.
Um pecador perdido, já condenado, não tem direito alguma a qualquer
coisa, a não ser um lugar entre os perdidos. Todavia, se a Deus Lhe
agrada falar com esse indivíduo, ele tem a obrigação de ouvir, apenas
ouvir. Ele não possui nenhum direito de estipular o que Deus pode ou não
lhe comunicar. Não é permitido ao homem ter sua própria opinião acerca
das coisas divinas. As pessoas, de fato, não acreditam que estão
perdidas. Elas acreditam que têm cometido pecados — sim, que são
culpadas, mas não creem que estejam “já condenadas”, no atual estado
em que se encontram. A maioria das pessoas não sabe se está
realmente perdida ou salva. Esse é o principal motivo porque gostam de
falar de seus direitos, como possuindo livre arbítrio. Todavia, alguém
pode nos perguntar: Qual é a função da nossa capacidade racional se
não devemos usar a mesma? Nós respondemos: O maior privilégio do
homem e o melhor uso que ele pode fazer da sua inteligência é: tomar
em suas mãos a Palavra de Deus, estudá-la em humildade e assim,
conhecer a vontade de Deus.
***
COMO ESTUDAR A BÍBLIA
Então surgem mais perguntas: Como devo estudar a Bíblia? Quando
eu leio a Bíblia com toda a diligência, o que me dá a garantia de que eu a
compreenda? Posso confiar na agudez do meu intelecto ou na minha
capacidade de discernimento? A Bíblia pode ser aplicada a tudo aquilo
que está em mim e ao redor de mim? Não! Nada depende da minha
própria competência. Então, somente quando eu ocupar em humildade o
lugar de sujeição que me convém, Deus mesmo me dará discernimento e
plena certeza. Deus não pode negar-se a Si mesmo. O Espírito Santo
nunca falha em honrar o Senhor Jesus, pois, como está escrito: “Se
alguém quiser fazer a vontade dele [de Deus], pela mesma doutrina
conhecerá se ela é de Deus” (Jo 7:17). Esse é o terreno bendito sobre o
qual a alma do homem pode repousar, em contraste com aquele
representado pelos teólogos modernos e pelos incrédulos, que está
baseado na capacidade de discernimento e na diligência humanas. Para
o espírito da obediência e da sujeição, tudo está seguro.
Agir de acordo com a Palavra de Deus, deve vir antes de saber e
conhecer algo novo. Precisa existir uma disposição para fazer a vontade
de Deus se desejamos conhecer ou compreender Suas doutrinas. Por
outro lado, o orgulho humano, por natureza, gosta de inverter essa
ordem; ele diz: Antes de me submeter à vontade de Deus, preciso
primeiro compreender a Sua Palavra.
Os oráculos de Deus têm sido confiados tanto aos católicos quanto aos
protestantes. E é esse Livro Santo, a Palavra de Deus, que constituirá a
base e o padrão pelo qual todos os homens serão julgados diante do
grande trono branco. Entretanto, vemos pela história, que o primeiro
grupo ocultou a Bíblia afirmando que a mesma era sagrada demais para
ser vista pelos olhos dos homens, e para ser ouvida pelos ouvidos
humanos. O segundo, por sua vez, trouxe a mesma à luz, propagou-a em
todos os países, de forma que se tornou o meio para que a voz de Deus
fosse ouvida em todas as estradas, nas ruas e becos das cidades. Foi
dessa forma que a Reforma Protestante foi concretizada. Roma havia
fincado profundamente suas raízes na credulidade e na devoção de uma
grande multidão. Ela permaneceu firme e inabalável, até que as mentes
das pessoas simples foram alcançadas e libertadas pelo poder da
verdade. Isso só foi possível com a livre propagação da Bíblia. “O
movimento veio de cima, segundo a rica graça de Deus. O Espírito que
em todo tempo testificava de Jesus, Senhor sobre todos, deu Sua própria
língua e voz à Palavra escrita de Deus. Juntamente com o Espírito Santo,
Deus estava presente nos vasos que Ele havia preparado de antemão
para realizar essa obra; e o Espírito era o poder da proclamação, da
compreensão, e da aplicação da Palavra, lançando luz sobre o caminho
que conduz para a glória e também sobre todos aqueles que seguiam por
esse mesmo caminho. Por outro lado, o Espírito também despertava a
convicção de que Satanás, juntamente com seus escravos, se
encontrava no caminho da rebelião contra Deus em direção ao inferno.”
Agora vamos retomar a história de Lutero. Depois de ter bebido uma
vez da Fonte inesgotável da verdade divina, Lutero foi impelido, vez após
vez, até a biblioteca. Com crescente prazer e alegria ele examinava as
páginas e compreendia os trechos da Sagrada Escritura que, até então,
haviam permanecido desconhecidos para ele; e desejava de todo
coração poder possuir, algum dia, uma cópia daquele tesouro. Ele estava
surpreso pela maravilhosa plenitude de sabedoria que a Bíblia continha.
Lutero se delongava muito nas narrativas simples, entre as quais a
história de Ana e do jovem Samuel era especialmente atraente para ele.
Entretanto, por mais atraente que a Palavra de Deus lhe parecesse, e por
mais que lhe fosse agradável consumir muitas horas lendo a mesma, ele
ainda estava muito longe de enxergar o caminho da salvação. Em
decorrência de seus extraordinários esforços para poder aprovar seu
primeiro exame com honras, ele caiu em uma enfermidade muito séria.
Quando a morte se aproximou do jovem estudante com todo o seu terror,
qual era o seu refúgio? “Ó Maria, vem me socorrer!” Esse era o seu
temeroso clamor em voz alta, durante toda a noite. Ele não conhecia
nenhum ajudador mais poderoso do que a virgem Maria. Anos depois,
Lutero afirmou: “Se eu tivesse morrido naqueles dias, teria partido deste
mundo na firme confiança em Maria”. A única base para o perdão dos
pecados e a salvação do pecador nunca lhe haviam sido ensinadas,
apesar dele ter usufruído da mais cuidadosa educação que a casa
paternal e a igreja, escola e universidade, poderiam oferecer.
***
LUTERO SE TORNA MONGE
Encorajado com os honrosos títulos e a popularidade que havia
conquistado, Lutero decidiu, depois que sua saúde havia sido restaurada,
se aplicar completamente ao estudo da lei. Ele começou a ensinar a ética
de Aristóteles junto com outras divisões da filosofia. Por volta desse
tempo, enquanto ele estava engajado em seguir esse caminho secular,
um evento singular e solene aconteceu, o qual deu uma nova direção a
toda a sua vida futura. Um de seus amigos favoritos na faculdade,
chamado Alexius, morreu de modo súbito, provavelmente por mãos
assassinas. Os detalhes acerca da sua morte são incertos. As
consequências, entretanto, foram certas e importantes. A perda repentina
de seu amigo abalou Lutero profundamente. Ele se perguntava tremendo:
“Qual seria o destino da minha alma se eu fosse chamado da mesma
forma, sem nenhum sinal de advertência?”. O terror da morte que tanto o
havia atormentado antes, na sua enfermidade, retornou com força
redobrada, e dominou por completo sua pobre alma. Enquanto se
encontrava nesse estado de agitação mental, com a solene questão
acerca da salvação de sua alma ainda não resolvida, ele foi
surpreendido, certo dia, por uma violenta tempestade de relâmpagos e
trovões, nas proximidades de Erfurt. Os raios caíam por todos os lados e
os trovões estrondavam sem parar. Apavorado ao extremo, Lutero se
lançou no chão imaginando que havia chegado a sua última hora, e que
no momento seguinte ele teria que passar para a eternidade. Envolvido
com os temores da morte e ignorante acerca do caminho de Deus pela fé
em Jesus Cristo, ele clamou por socorro à santa Ana. Na sua aflição, fez
o seguinte voto: se o Senhor o livrasse daquele perigo, ele abandonaria o
mundo e se isolaria em um mosteiro, pelo resto de seus dias.
A tempestade amainou aos poucos, e Lutero retornou são e salvo a
Erfurt. Mas ele não voltaria a lecionar, nem continuaria com seus estudos
acerca das leis. O voto que havia feito estava sobre ele, e Lutero não era
um homem de quebrar sua palavra. Ele renunciou a sua posição
privilegiada e a todas as brilhantes perspectivas de honra e reputação na
vida acadêmica, e as trocou pelo sombrio silêncio do mosteiro. Isso não
era algo incomum naqueles dias. Quem ponderava seriamente acerca da
salvação da sua alma, entrava para uma das ordens monásticas
existentes, para alcançar a santidade que era necessária para um
encontro com Deus. Ele sabia que sua decisão iria causar um grande
desgosto em seu pai, e esse pensamento lhe causou uma enorme dor,
mas sua decisão era inalterável. Cerca de duas semanas após o
acontecimento acima relatado, no dia 17 de julho de 1505, ele convidou
alguns de seus colegas universitários para um jantar. Como era comum
naqueles encontros, músicas e uma conversação animada e espirituosa
temperavam o jantar. Já tarde da noite, Lutero comunicou suas intenções
a seus surpresos amigos. Esse era o jantar que deveria marcar sua
despedida; ele disse adeus a seus amigos e ao mundo. Naquela mesma
noite, desconsiderando todos os argumentos contrários, ele entrou no
mosteiro agostiniano que existia em Erfurt.
Lutero era incapaz de fazer algo pela metade, com indiferença. Por
isso, não deve nos surpreender vê-lo agora deixando seus amigos, seus
livros, seus estudos, suas roupas e, no meio das trevas da noite, dirigir-se
apressadamente para o mosteiro. “Abram para mim, em nome de Deus!”,
ele clamou batendo na porta. “O que você deseja?”, respondeu o frade
porteiro, do lado de dentro. “Consagrar a minha vida a Deus!”, ele
respondeu. O portão se abriu, Lutero entrou e o portão se fechou
novamente. Ele estava agora completamente separado de seus pais,
amigos, estudos e de todo o mundo exterior. Mas, de acordo com a fé
daqueles tempos, sua alma estava agora perfeitamente segura, pois ele
se encontrava a sós com Deus.
***
A EXPERIÊNCIA DE LUTERO COMO MONGE
Os motivos pelos quais Lutero foi levado a dar esse passo precipitado,
ele explicou dezesseis anos depois da seguinte forma: “Eu nunca fui, em
meu coração, um monge. Também não tinha nenhuma intenção de
mortificar a cobiça e os meus desejos carnais, mas torturado pelo medo e
pelo pavor que sentia da morte, eu fiz um voto involuntário e forçado”.
Logo depois de ser aceito no mosteiro, Lutero devolveu para a
universidade sua toga* de professor e o anel de ofício. Assim ele se
despiu até mesmo das roupas que havia usado até então, para que não
ficasse nada para trás que o lembrasse do mundo ao qual ele havia
renunciado. Seu pai ficou profundamente entristecido pelo procedimento
de seu filho. Seus amigos na universidade de Erfurt estavam em estado
de choque. Apenas os monges se regozijaram. Sem dúvida seu orgulho
era bajulado, afinal de contas, eles se sentiam bastante honrados por
terem um doutor tão distinto como membro da Ordem a que pertenciam.
Mas o ardente desejo do jovem monge pelos estudos, por um
conhecimento mais elevado, e seu impulso profundo por redenção,
embora ainda inconsciente, não seriam correspondidos no mosteiro. Mal
ele havia entrado e já estava sujeito, independente de sua alta reputação
na universidade, aos trabalhos mais humildes e serviços braçais. Ele
recebeu ordens para varrer os dormitórios, dar corda no relógio, abrir e
fechar os portões como um verdadeiro porteiro e realizar todos os
trabalhos de um serviçal no mosteiro. Mas isso não era tudo. O
respeitado doutor em filosofia precisava ser humilhado publicamente.
Quando o pobre monge havia realizado as suas muitas e pesadas tarefas
no mosteiro, e ansiava por um pouco de tempo para descansar e poder
se ocupar com seus amados livros, ele era obrigado a sair do mosteiro, ir
para a cidade com um saco às costas e mendigar. Os monges lhe
disseram que não era através dos estudos que ele iria beneficiar a
comunidade. Pelo contrário, ele precisava ajudá-la pedindo pão, grãos,
ovos, peixes, carne e dinheiro. Dessa forma, o jovem monge
perambulava com aquele áspero saco nas costas, mendigando de casa
em casa, pelas ruas de Erfurt; aquelas que outrora o haviam visto como o
afamado e querido doutor da filosofia e das artes.
Tudo isso representou uma educação muito severa para Lutero.
Porém, sem dúvida, a mesma foi permitida e supervisionada pela sábia
providência de Deus, para que, por meio da experiência pessoal, ele
conhece-se os mínimos detalhes da vida monástica, e também para
desenvolver uma compreensão mais aguda da grande ilusão que essa
vida representava. Sem essas experiências teria sido impossível para
Lutero adquirir os conhecimentos que precisava, e que lhe seriam tão
úteis em breve. Ao mesmo tempo, por meio dessas adversidades e
provações, foi suscitado nele essa perseverança inquebrantável e a força
de vontade que tanto se distinguiram na sua futura obra. Mas não seria
por muito tempo que ele teria que realizar esse trabalho humilhante. A
universidade se envergonhava de ver um dos seus mais honrados
membros de outrora perambular pelas ruas com um saco de mendigo,
pedindo humildemente, em cada porta, por um pedaço de pão ou algum
outro alimento. Um emissário da universidade foi enviado ao mosteiro e
censurou o prior, e Lutero foi dispensado da prática da mendicância.
***
A CONVERSÃO DE LUTERO
Tendo obtido certo relaxamento de seus afazeres braçais, Lutero agora
retomou seus estudos com zelo renovado. A leitura e a meditação sobre
o que leu era seu constante prazer. Especialmente as obras dos Pais da
Igreja, sobretudo de Santo Agostinho, atraíram sua atenção. Em certo
local do mosteiro havia uma Bíblia presa a uma corrente. Para aquele
lugar o jovem monge se retirava, tantas vezes quanto possível, para ler a
Palavra de Deus e alargar a sua compreensão espiritual sobre os
assuntos divinos. Por volta desse tempo, ele conheceu um dos frades,
chamado João Lange, que possuía um grande conhecimento tanto do
grego como do hebraico. Lutero ainda não havia encontrado o tempo
para se ocupar com as línguas originais da Bíblia. Todavia, a
oportunidade havia chegado, e ele a abraçou com grande alegria e
diligência. Dessa maneira, na reclusão de sua cela, e com a ajuda
daquele monge muito erudito, ele começou a estudar com grande
empenho o grego e o hebraico, e com isso, lançou os fundamentos,
inconscientemente, para a sua maior e mais útil de todas as suas obras
— a tradução da Bíblia para a língua alemã. O dicionário hebraico de
Reuchlin tinha acabado de ser lançado, e isso lhe foi de grande ajuda.
Entretanto, Lutero não negligenciou de ler e examinar as Sagradas
Escrituras. Porém, visto que frequentemente ele não entendia o sentido
da Palavra, a sua aflição interior só aumentou. Conseguir obter a certeza
da salvação da sua alma era o maior e mais ardente desejo de seu
coração. Nenhuma outra coisa poderia lhe dar descanso. Por isso ele
havia entrado para o mosteiro, tinha se tornado um monge; por isso ele
lutou constantemente contra as más inclinações e desejos que
encontrava em seu próprio coração, e passava noites inteiras ajoelhado
no chão frio e duro de sua pequena cela. Ele também tinha excedido
todos os irmãos em vigílias, jejuns e flagelações. Mesmo assim, em
nenhuma dessas atividades típicas entre os monges ele havia encontrado
a paz. Tudo isso somente serviu para aumentar o medo da sua alma; sim,
de levá-lo próximo ao desespero mais profundo e quase lhe custou a
própria vida. Através do escrupuloso rigor da vida ascética*, Lutero
enfraqueceu tanto o seu corpo que sua mente passou a divagar, a ponto
de pensar que estava cercado de espíritos e demônios. Mas, alguns
podem indagar: por que isso acontecia? Ele não era sincero? Claro que
ele era, mas, com crescente zelo, ele procurava alcançar a paz com Deus
mediante seus próprios exercícios religiosos. Porém, quanto mais ele se
esforçava, mais amargamente ele era despontado. Ele estava tentando
fazer a obra que Cristo já havia feito em seu favor — assim como
milhares de pessoas fazem no tempo presente; embora, talvez, com
menos sinceridade, seriedade e autonegação que Lutero. Essas pessoas
estão olhando para si mesmas — para os seus próprios sentimentos ou
seus próprios atos, pensamentos e realizações. Constantemente é o
próprio eu que é o objeto com o qual se ocupam, e não Cristo e Sua obra
completa. “Olhai para mim”, nos diz o SENHOR. E qual é o resultado
quando se obedece às Suas palavras? Salvação! — instantânea e
completa salvação pessoal! “Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos
os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro” (Is 45:22). É a
essa verdade que toda alma precisa se submeter antes de poder provar a
doçura que resulta da paz com Deus. Mas Lutero ainda era
completamente ignorante da sublime simplicidade e da beleza do
Evangelho da graça de Deus.
Durante aquele período da sua história, Lutero considerava que
nenhum sacrifício era grande demais desde que pudesse conceder-lhe
aquela santidade que ele achava por necessária para alcançar a
salvação temporal e a eterna glória. Ele realmente pensava que podia
comprar a felicidade eterna por seus próprios méritos. Essas são as
trevas em que se encontra mergulhada a Igreja de Roma. De modo
semelhante, essa também era a grande ilusão de um de seus mais fiéis
seguidores. Alguns anos mais tarde, quando sua compreensão quanto ao
caminho da salvação era melhor, ele escreveu para o duque Jorge da
Saxônia: “Eu era de fato um monge piedoso, e seguia as regras da
minha ordem de modo muito estrito, mais do que posso descrever. Se
alguma vez um monge pudesse obter os céus pelas suas práticas, eu
certamente teria esse direito. Todas as pessoas da Ordem que me
conheceram podem testemunhar isso. Se continuasse com aquelas
práticas por um período mais extenso, minhas flagelações teriam
resultado em minha própria morte, por causa da intensidade das minhas
vigílias, orações, leituras e outros labores”. Ser admitido no céu por seus
próprios méritos era seu alvo, e seu zelo para alcançar isso, de fato o
levou à beira da morte.
Quando Lutero viu que todos os seus esforços para alcançar o
descanso da sua alma eram vãos, foi tomado de uma profunda
depressão. Em uma ocasião, quando o sentimento da sua
pecaminosidade e da maldade do seu coração havia se tornado
especialmente forte, ele se trancou em sua cela e por vários dias e noites
se recusou a admitir a entrada de qualquer pessoa. Um monge amigo —
que até certo ponto conhecia o infeliz estado da alma do jovem Lutero —
na companhia de alguns rapazes do coral, finalmente arrombou a porta
da cela, visto que não recebera resposta aos reiterados chamados.
Inerte, Lutero jazia com o rosto no chão da cela. Alarmado, o monge
correu até ele e procurou despertá-lo de seu entorpecimento sacudindo-o
violentamente. Porém, em vão. Então o monge se lembrou do grande
gosto que Lutero pela música, e ordenou que os rapazes do coral
cantassem um hino. O som suave das vozes realmente operou um
milagre. Aos poucos, os sentidos e a vida do pobre monge voltaram. Mas,
o pesado fardo que ele carregava ainda não havia sido retirado do seu
coração e da sua consciência. Para isso, ele precisava mais do que a
suave melodia de um hino; para isso era necessário a agradável música
do Evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. E o momento
em que ele a ouviria, estava bem próximo.
***
LUTERO E STAUPITZ
João Staupitz, a quem Deus queria enviar a Lutero com a mensagem
da graça, era o vigário geral dos agostinianos em toda a Alemanha. Os
historiadores se referem a ele nos mais elevados termos. Um deles nos
diz: “Ele era, de fato, descendente de nobres, mas tornou-se mais ilustre
e apreciado por causa do poder de sua eloquência, da extensão do seu
conhecimento, da retidão do seu caráter e da pureza de conduta da sua
vida”.10 É extremamente notável, e nos exorta a agradecermos a Deus,
que, em um tempo onde a corrupção do papado havia alcançado seu
ápice, podemos ver um homem tão temente a Deus ocupar uma posição
tão proeminente. Ele exercia uma grande influência — e podemos
acrescentar, benéfica. Frederico, o Sábio, Príncipe-eleitor da Saxônia —
que tinha um grande amor e estima por Staupitz — fundou a universidade
de Wittenberg sob sua direção.
Exatamente quando a aflição da alma de Lutero havia alcançado seu
ponto mais elevado, foi anunciada a visita do vigário geral para realizar a
costumeira inspeção do mosteiro em Erfurt. O débil e magro corpo de
Lutero, a expressão melancólica do seu rosto, mas, antes de tudo, o olhar
sério do jovem monge, que denotava lutas interiores, atraíram a atenção
de Staupitz. Ele se ocupou com Lutero mais do que teria feito
normalmente; e conseguiu, mediante perguntas amorosas, extrair da
boca do sombrio monge uma confissão abrangente acerca do seu estado
desesperado. Outrora, Staupitz havia passado pelas mesmas lutas, e por
isso estava em condições de mostrar o caminho correto para seu infeliz
subordinado. Com palavras amáveis, ele procurou animá-lo e consolá-lo.
Ele assegurou a Lutero que a sua esperança de poder ser aceito na
presença de Deus com base no seu voto e nas suas boas obras era
totalmente vã; e que ele somente poderia ser salvo pela graça e
misericórdia de Deus. Ao mesmo tempo, lhe mostrou que esta graça se
havia manifestado, da maneira mais gloriosa, na entrega de Seu Filho; e
lhe provou pelas Escrituras, que Deus justificaria a todo aquele que
verdadeiramente cresse em Jesus Cristo e no Seu sangue derramado.
Antes de deixar o mosteiro, Staupitz alegrou a Lutero presenteando-o
com uma Bíblia; aquele Livro precioso que já, há tanto tempo, ele
desejava possuir. Staupitz lhe deu esse bom conselho: “Que a tua
principal ocupação sempre seja o estudo das Escrituras”.
Um raio da luz divina penetrou a mente obscurecida de Lutero. Suas
conversas e a correspondência trocada com o vigário geral o auxiliaram
bastante e lhe serviram de grande consolo. Mas ainda assim, a
verdadeira paz com Deus era algo desconhecido para ele. As violentas
lutas de sua alma continuaram e, por fim, seu corpo sucumbiu. Durante o
segundo ano de sua estadia no mosteiro agostiniano, Lutero ficou tão
doente que teve que ser removido para a enfermaria. Todos os seus
pavores de antes retornaram à medida que a morte se aproximava. Ele
continuava ignorante do valor da obra completa de Jesus Cristo a favor
do crente, e o mesmo acontecia com seus mestres. A terrível imagem de
sua grande culpa, e as exigências da santa lei de Deus, o enchiam de
profundo medo. Lutero não era um homem comum, e visto que passava
por experiências que homens comuns que o rodeavam não poderiam
entender, ele estava completamente sozinho e não podia compartilhar
suas angústias com ninguém.
Um dia, ele estava se revirando em seu leito, em estado de desespero,
quando recebeu a visita de um velho monge. Esta visita deveria conduzir
a uma abençoada decisão. Esse homem lhe falou acerca do caminho da
paz. Vencido pela bondade e pelas palavras cordiais que ouvia, Lutero
abriu seu coração para o bondoso ancião. O monge não podia responder
a todas as perguntas do apavorado doente, porém ele conhecia a eficácia
da fé, e repetiu-lhe várias vezes o artigo do Credo Apostólico que diz: “Eu
creio no perdão dos pecados”. Essas poucas e simples palavras parecem
ter servido, sob a benção de Deus, para conduzir o espírito de Lutero da
justiça pelas obras mortas à justiça pela fé viva em Cristo. É fato que
Lutero estava bem familiarizado com a forma dessas palavras desde a
sua infância. Mas tudo o que ele havia feito com elas, foi apenas repeti-
las impensadamente, como milhares de cristãos nominais de todas as
épocas. Agora, essas mesmas palavras, enchiam seu coração de
esperança e consolação. Lutero, em voz baixa, repetia várias vezes
essas palavras — “Eu creio no perdão dos pecados” — como se quisesse
sondar sua profundidade e força. O velho monge interrompeu Lutero,
dizendo: “Porém, não se trata de uma afirmação geral, e sim de um ato
de fé pessoal. Não devo crer apenas no perdão dos pecados de Davi ou
no perdão dos pecados de Pedro, mas no perdão dos meus pecados. Até
mesmo os demônios creem de modo geral, mas eles não possuem uma
fé pessoal. Ouça o que São Bernardo disse: ‘O testemunho do Espírito
Santo para o seu coração é esse: teus pecados estão perdoados’”.
Daquele momento em diante, a luz divina entrou no coração de Lutero, e
passo a passo agora ele avançava — através do estudo diligente da
Palavra de Deus e da constante oração — vitorioso no caminho da
verdade; para tornar-se assim, um grande e honrado servo do Senhor.
***
REFLEXÕES ACERCA DA CONVERSÃO DE LUTERO
Essa é a história da conversão de Lutero. Foi uma conversão
realmente genuína e verdadeira, alcançada através da graça de Deus.
Entretanto, essa obra ainda não estava bem consolidada nele. A medida
e o caráter da verdade apresentados por Staupitz e o velho monge, não
podiam fortalecer Lutero contra os ataques do inimigo. Nessa ocasião,
Lutero tinha tão pouco conhecimento dos pensamentos de Deus, do amor
de Cristo, da perfeição da Sua obra, da libertação através da Sua morte e
ressurreição, que era fácil que a alma convertida fosse rapidamente
torturada novamente, com dúvidas e temores. E é isso mesmo o que
também encontramos por todos os lados nos dias de hoje. São poucos
aqueles que têm uma verdadeira e firme paz com Deus. Eles esperam e
confiam que serão salvos, no melhor dos casos; mas lhes falta a plena
certeza da fé. E por que isso acontece? Justamente por causa do
conhecimento insuficiente acerca do seu próprio estado de perdição e da
obra de Cristo, que supre perfeitamente as necessidades desse mesmo
estado. “Porque com uma só oblação* aperfeiçoou para sempre os que
são santificados” (Hb 10:14). É evidente que se entendemos um pouco
da dignidade e da glória dAquele que sofreu e morreu, a saber, o Senhor
Jesus, maior será nossa fé diante do valor do Seu sacrifício e da Sua
oferta. Tal sacrifício não pode ser repetido, e o sangue de Cristo não será
aplicado uma segunda vez. Ele é tão poderoso que nunca perde a sua
eficácia. Nós precisamos nos purificar diariamente por meio da água (Jo
13), mas o pensamento de uma segunda aplicação do sangue de Cristo
como propiciação* é desconhecido nas Escrituras. Uma vez lavada nesse
precioso sangue, a consciência é aperfeiçoada para sempre. Deus jamais
pode perder de vista aquilo que apagou plenamente o pecado, que O
glorificou perfeitamente, e que venceu todo inimigo.
Lutero costumava dizer que antes de se encontrar com Staupitz e o
velho monge “estava envolto nas ‘faixas’ do papado, e não havia
percebido a sua corrupção”. E essa é a mesma condição, em certo
sentido, de muitos milhões de pessoas, ainda nos dias de hoje. Elas se
encontram envoltas nas ‘faixas’ de seus respectivos sistemas de
doutrinas e partidos eclesiásticos, sem que tenham examinado
cuidadosamente tais posições comparando-as com a Palavra de Deus.
Consequentemente, elas desconhecem por completo a bem-aventurada
liberdade com que Cristo abençoa o Seu povo. Lutero havia se
convertido, mas de forma alguma ele se encontrava do lado de fora da
casa da escravidão. A libertação da sua alma das ‘faixas’ papais foi um
processo lento. Ele pouco conhecia os privilégios e bênçãos outorgadas
aos filhos de Deus e de sua posição “em Cristo”. Todavia, nós sabemos a
partir das Escrituras qual é essa benção, e quais são as bênçãos
derramadas sobre todas as almas convertidas. É verdade que todas
essas bênçãos eram a porção de Lutero, porém, ignorante como ele era,
não as podia usufruir. Assim que a mulher tocou a borda da roupa do
Senhor, sua hemorragia cessou imediatamente (Mc 5:28-30). Pelo leve
toque da fé, a virtude que estava no Senhor Jesus operou naquela
mulher. A história da cura dessa mulher é uma linda ilustração da alma
recém-convertida, que está diante de Deus em toda a aceitação, a
excelência, a vida, a justiça, a paz, a alegria e a bem-aventurada
liberdade do próprio Cristo! A vida eterna ocupa o lugar da morte
espiritual; a justiça divina toma o lugar da pecaminosidade humana; e em
vez de estar longe de Deus, a alma é transportada à presença dEle. Esta
é a benção de cada um assim que se converte verdadeiramente, ainda
que, como Lutero, tenha estado à beira do desespero e não visse nada
diante de si, a não ser trevas e escuridão.
Outro exemplo, temos no ladrão na cruz. Poucos instantes depois de
sua conversão, ele entra nos céus com Cristo, estando tão habilitado
para adentrar o santo lugar, quanto o próprio Cristo. “Hoje estarás comigo
no Paraíso”. A consequência imediata da fé em Cristo é a herança que
possibilita o encontro dos santos na luz (cf. Lc 23:39-43; Mc 5:25-34; Cl
1:12-14).
***
LUTERO COMO SACERDOTE E PROFESSOR
Lutero passou três anos intensos no mosteiro em Erfurt. Mas esses
anos não foram perdidos para ele. A formação geral de seu espírito, o
exercício de sua alma, e seus estudos de hebraico e grego
representaram algumas das áreas necessárias para sua educação,
visando sua futura carreira no serviço do Senhor. Além disso, aquele foi o
local de seu nascimento espiritual. Foi ali também que ele ouviu pela
primeira vez a doutrina da justificação pela fé — aquela verdade divina
que formaria a principal base da sua futura grande obra.
No ano 1507 ele foi ordenado como sacerdote. Seu pai estava
presente nessa cerimônia, embora ele ainda não tivesse se reconciliado
completamente com seu filho, devido sua decisão. Lutero recebeu do
bispo Jerônimo de Brandemburgo a consagração sacerdotal, e com isso,
o poder para oferecer sacrifícios pelos vivos e pelos mortos, e para
converter, mediante o murmúrio de umas poucas palavras, a hóstia no
próprio corpo e sangue do Senhor Jesus Cristo. Mais tarde, quando lhe
foram abertos os olhos, ele ficou chocado lembrando-se dessa cena.
Porém, ainda assim, ele nunca conseguiu se livrar do conceito de ver, no
pão e no vinho da Ceia, o real corpo e o sangue do Senhor
(transubstanciação11), e tomar a Ceia assim. Embora ele fosse
capacitado pela graça de Deus para desvendar os inúmeros abusos
supersticiosos de Roma, parece que certa cegueira cobria seus olhos, de
modo que ele não pôde reconhecer os claros ensinamentos das
Sagradas Escrituras acerca da Ceia.
Mas Staupitz, o amigo fiel e protetor de Lutero — que agora estava
com vinte e cinco anos de idade — colocou-o em uma posição na qual
ele teve oportunidade de desdobrar seus grandes poderes intelectuais e
continuar desenvolvendo e formando seu caráter. O monge agostiniano
foi convidado pelo Príncipe-eleitor Frederico, atendendo a sugestão do
vigário geral, a ocupar a cadeira de professor de filosofia em sua
próspera universidade. Lutero, aceitando esse convite, se mudou para
Wittenberg no ano 1508. Mesmo tendo sido chamado para ser um
professor, ele não deixou de ser um monge. Ele se instalou em uma cela
no mosteiro agostiniano daquela cidade. As matérias sobre as quais
devia lecionar eram Física e a dialética de Aristóteles. Esta era uma
ocupação inapropriada para um homem que tinha fome e sede pela
Palavra de Deus. Era impossível que ele pudesse satisfazer seu espírito
com algo assim. Mas podemos afirmar, ainda outra vez, que este tempo,
segundo a sabedoria de Deus, era um período necessário na sua
educação. Após ter enfrentado o isolamento do mosteiro, Lutero precisou
ocupar-se, por um tempo, detalhadamente com a filosofia escolástica e
com os mais infrutuosos sofismas* humanos. Tudo isso era necessário
para que pudesse estar mais bem capacitado para poder expor os lados
sombrios e os enganos de ambos os sistemas — o filosófico e o religioso
católico romano — combater os erros, e emancipar as almas das
pessoas das suas más influências.
Lutero se entregou com todo fervor à sua nova profissão. A força e o
estilo vigoroso e natural das suas preleções logo ajuntaram um numeroso
grupo de estudantes em torno da sua pessoa. Constantemente, os
auditórios estavam lotados. Além disso, ele se ocupava zelosamente,
como já o fizera, com o estudo do grego e do hebraico. Seu forte desejo
era beber da própria fonte; e Deus, a cujo olhar não escapava o íntimo
desejo de seu coração e o empenho de sua vida, aplainou o caminho
para que esse desejo pudesse ser satisfeito. Poucos meses após sua
chegada à universidade, Lutero obteve a dignidade de bacharel em
Divindade. Com esse diploma ele estava habilitado a fazer preleções na
área de teologia e sobre a Bíblia. Agora Lutero se sentia dentro da sua
própria esfera e estava determinado a ensinar apenas aquilo que ele
mesmo havia aprendido da Palavra de Deus. Ele começou com a
exposição dos Salmos, e em seguida passou para a Epístola de Paulo
aos Romanos.
Os estudos pormenorizados no silêncio das celas, tanto em Erfurt
quanto em Wittenberg, agora lhe favoreceram muito. Essas meditações
preciosas lhe davam um caráter totalmente novo às suas preleções. Ele
falava não apenas como um professor eloquente, mas como um cristão
que havia experimentado em si próprio a força das verdades por ele
ensinadas. Quando, em suas explanações, chegou à última frase de
Romanos 1:17, “mas o justo viverá pela fé”, uma luz, que sobrepassava
o brilho do sol, encheu por completo a sua alma. O Espírito de Deus
revestiu estas palavras com luz e poder, e as mesmas impactaram tanto
o entendimento quanto o coração de Lutero. Como uma voz de Deus, a
grande doutrina da justificação somente pela fé, penetrou no coração de
Lutero. Finalmente ele conseguiu enxergar que a vida eterna não era
obtida através de penitências e sim pela fé. Toda a história da Reforma
alemã está intimamente conectada a essas poucas palavras. À luz das
mesmas, Lutero foi capaz de explicar as Escrituras do Antigo e do Novo
Testamento. Por meio da sua força e verdade ele expôs à luz a falsidade
do papado, colocou um fim ao domínio da mentira, e levou adiante a
grande Reforma. Com isso, ele encheu de gozo o coração da Europa,
fazendo com que o reino da pretensão e da hipocrisia, representado pelo
papado, chegasse a um fim. Lutero se viu sozinho diante de toda a
autoridade e governo — diante do mundo inteiro — amparado apenas
pela verdade contida na Palavra de Deus, que diz: “mas o justo viverá
pela fé”. A Palavra de Deus é verdadeira e o papado não passa de uma
mentira. É necessário que esse último seja derrubado, e que o outro
triunfe, pois a verdade é saudável para a alma e a mentira é veneno
mortal para ela. Esses princípios da justiça eterna estavam agora
indelevelmente* escritos no coração de Lutero pelo Espírito de Deus. E,
por mais simples que possa parecer, Lutero foi capacitado, através da fé
na Palavra de Deus, a triunfar sobre papas, bispos, o clero, reis e
imperadores. Lutero levantou o estandarte da salvação através da fé em
Cristo Jesus, sem nenhuma participação das obras da lei.
A grande obra havia sido iniciada, mas o obreiro ainda tinha algumas
difíceis lições para aprender.
***
LUTERO VISITA ROMA
À causa de algumas divergências entre vários mosteiros agostinianos e
o vigário geral, Lutero foi enviado a Roma; visto que o consideravam ser
a pessoa mais preparada para apresentar os pontos conflitivos diante de
Sua Santidade, em Roma, para que este decida a questão. Era
necessário, de acordo com a sabedoria divina, que Lutero fosse conhecer
a cidade de Roma. Como um humilde monge do norte distante, ele
imaginava o papa como o mais santo homem sobre a terra, e a própria
Roma como a cidade dos santos. Essas ilusões só poderiam ser
desfeitas através da observação pessoal.
No ano 1510, sem um centavo e descalço, Lutero cruzou os Alpes. Ele
encontrava alimento nas casas dos camponeses pelas quais passava, e
um leito para dormir nos numerosos mosteiros. Mal ele se encontrou do
outro lado dos Alpes, se deparou com os mais suntuosos mosteiros de
mármore, monges comendo as mais finas iguarias e levando uma vida
regalada e luxuosa. Tudo isso era novo e surpreendente para o pobre
monge de vida frugal*, vindo de Wittenberg. Mas quem descreve o seu
espanto quando, também às sextas-feiras, as mesas dos beneditinos
estavam repletas das mais deliciosas iguarias! Lutero estava tão
indignado que exclamou com ira: “Não sabeis que a Igreja Romana e o
papa proíbem esse tipo de coisas?”. Alguns dizem que, por expressar-se
com tal liberdade, ele quase teve que pagar com a própria vida. Tendo
recebido uma sugestão amistosa para ir embora, e percebendo que sua
presença importunava os monges, ele deixou o mosteiro. Peregrinando
através das ardentes planícies da Lombardia, alcançou a cidade de
Bolonha gravemente doente. Novamente o inimigo teve sucesso em
inquietar seu espírito por meio do pavor da morte que se aproximava.
Desviando seu olhar de Cristo, o pobre enfermo começou novamente a
se ocupar com sua própria pecaminosidade, e, naturalmente, a
inquietação e o medo encheram seu coração. Assim ele lutou por um
longo tempo. Por fim, as palavras do apóstolo que tantas vezes haviam
refrigerado seu coração — “mas o justo viverá pela fé” — trouxeram
novamente luz e paz para a sua alma. Assim ele rejubilou, e com isso
toda a luta havia terminado e seu amedrontado espírito foi acalmado. As
suas forças retornaram e ele prosseguiu sua jornada. Depois de
atravessar a cidade de Florença ele chegou aos Montes Apeninos. O
ardente sol italiano queimava a sua cabeça sem misericórdia, fazendo
com que este alemão, que estava acostumado com um clima mais
ameno, padecesse. Finalmente, ele avistou a famosa cidade edificada
sobre as sete colinas.
Antes que entremos pelos portões de Roma com Lutero, precisamos
nos lembrar de que ele ainda permanecia um partidário do papado, de
corpo e alma — embora a verdade do Evangelho já houvesse penetrado
no seu coração. Além disso, sua veneração ao papado aproximava-se
muito a uma reverência idólatra. Para ele, Roma era a santa cidade —
santificada pelos túmulos dos apóstolos, o monumento dos santos e o
sangue dos inúmeros mártires. De repente, ele se deu conta que a Roma
verdadeira era muito diferente da Roma que existia em sua imaginação.
À medida que se aproximava dos portões da cidade, seu coração batia
violentamente. Cheio de profunda comoção, ele caiu de joelhos e com
suas mãos levantadas para o céu exclamou: “Santa cidade de Roma, eu
te saúdo! Bendita Roma, três vezes santificada pelo sangue dos teus
mártires!”. Com toda sorte de expressões da mais profunda reverência e
amor, Lutero saudou a metrópole da cristandade. Ele pisou o chão da
cidade com santo temor. Sob a influência de um incontrolável
entusiasmo, ele se apressou a visitar os lugares sagrados; e ele ouvia,
com atenção redobrada, as histórias miraculosas e as lendas que
estavam relacionadas com esses lugares. Tudo o que ele via e ouvia
recebia com toda a credulidade e devoção. Mas, essa ilusão não
perduraria por muito tempo. A impiedade e a corrupção dos sacerdotes
italianos eram tão manifestas que não lhe podiam ficar ocultas por muito
tempo. Seu coração estremecia face às coisas infames que ele via e
ouvia diariamente. O que mais o contristava era a abominável leviandade
com a qual os sacerdotes realizavam suas obrigações espirituais. Certo
dia, ele estava rezando uma missa com alguns sacerdotes. Estes já
haviam rezado sete missas antes que ele tivesse terminado a primeira.
“Rápido! Rápido!”, clamava um daqueles sacerdotes; “Mande seu filho de
volta para nossa senhora”, fazendo uma alusão blasfema da
transubstanciação do pão no corpo e no sangue de Jesus Cristo. Lutero
espantou-se; ele não podia imaginar um nível mais inescrupuloso de
infâmia do que aquele. O desencanto de Lutero foi completo, e o
propósito de Deus em sua educação estava sendo alcançado.
Lutero esperava encontrar em Roma o exercício austero* de uma
religião. Ele imaginava que os sacerdotes fossem homens com traços
faciais sérios e dignos, vestidos com os trajes simples dos apóstolos,
saciando sua sede com o orvalho dos céus, dormindo sobre a terra nua e
não temendo nenhum esforço para levar o Evangelho aos homens. Mas
em vez disso, ele viu a pompa triunfal da corte do pontífice, seus
suntuosos cortejos; os cardeais em liteiras*, ou montados a cavalo, ou
em carruagens que brilhavam com pedras preciosas, cobertas por um
arco repleto de penas de pavão para protegê-los dos raios de sol. As
igrejas luxuosas, com suas magníficas decorações, os rituais mais
luxuosos ainda, o esplendor pagão das pinturas — tudo isso, associado
com a impiedade dos sacerdotes, era insuportável para o coração de
Lutero. Essa era a Roma — a Roma de Rafael, de Michelangelo, de
Perugino e Benvenuto — para aquele pobre monge alemão de
Wittenberg, que havia viajado mais de dois mil quilômetros a pé
esperando encontrar algo que pudesse aprofundar sua piedade e
fortalecer a sua fé.
No entanto, o poder da superstição adquirida era tão grande em Lutero
que, apesar do conhecimento que ele tinha das Escrituras e dos amargos
desapontamentos experimentados em Roma, ele desejava obter uma
indulgência prometida pelo papa. Essa era oferecida a todos aqueles que
subissem de joelhos os degraus daquela que era chamada de escada de
Pilatos12. Enquanto ele subia a escada, pensou ter ouvido uma voz,
como um trovão, dizendo: “Mas o justo viverá pela fé”. Espantado e ao
mesmo tempo envergonhado, ele se levantou imediatamente dos
degraus e fugiu apressadamente da cena da sua tolice supersticiosa.
Depois de ter executado a tarefa a qual lhe haviam confiado, Lutero
virou as costas para a cidade papal corrompida, para sempre. Ele disse:
“Adeus Roma! Que todos que desejam levar uma vida santa saiam de ti.
Tudo é permitido em Roma, com exceção do indivíduo ser um homem
honesto”. Naquele momento, ele ainda não pensava em deixar a Igreja
Romana; mas perplexo e com grande perturbação, retornou para a
Saxônia.
Assim que Lutero chegou a Wittenberg, e diante da insistência de seu
amigo, o vigário geral Staupitz, ele aceitou o grau de Doutor em
Divindade13. Ao mesmo tempo, ele foi convidado a pregar na paróquia
agostiniana. Isto lhe abriu um círculo de ação novo e muito abençoado.
Todavia, ele estava alarmado com a responsabilidade que isso trazia
consigo, e por algum tempo, relutou em aceitar o desejo de seus amigos
e ocupar um lugar tão importante. Porém, quando Staupitz argumentou
com ele da maneira mais insistente, afirmando que esse era um
ministério que Deus mesmo lhe estava confiando, ele concordou. Agora
Lutero tinha a liberdade de anunciar o puro e verdadeiro Evangelho de
Cristo por todas as partes: nos mosteiros da sua Ordem, nas igrejas e
nas capelas. Como seus contemporâneos relatam, ele tinha uma bela e
forte voz, que cativava os ouvintes. Seus gestos eram agradáveis e
nobres. Seriedade, ousadia corajosa, aliadas a um singular fervor,
caracterizavam todas as suas preleções e as distinguiam muito daquelas
dos seus antecessores e contemporâneos. Ele agraciava muitas pessoas
pela forma criativa de seus sermões, ao mesmo tempo em que atraía uns
pela vivacidade e dominava outros pela força dos seus poderosos
argumentos. Lutero havia adquirido, nos últimos quatro ou cinco anos, um
profundo conhecimento das línguas grega e hebraica. Ele havia
perscrutado diligentemente o Novo Testamento em grego; e estava
plenamente convicto que a justificação pela fé era uma doutrina peculiar
do Evangelho. Também entendia que a genuína Palavra de Deus era o
único e fundamental meio para o reavivamento e a Reforma da Igreja.
A partir do ano 1512, até o memorável ano 1517, Lutero avançou com
vigor e intrepidez no caminho que havia iniciado. Tornou-se um corajoso
intérprete, anunciando a Palavra de Deus. Alto, e cada vez mais forte, se
fazia ouvir a voz do corajoso arauto* da verdade, despertando um eco em
milhares de corações. A sua voz foi ouvida muito além de Wittenberg,
atraindo um grande número de estudantes para a universidade da
Saxônia. Entretanto, Lutero permaneceu modesto e humilde; desejando,
antes de tudo, fazer apenas o que era verdadeiro e o que agradava a
Deus — e então ensinar isso. E dessa forma ele escolheu,
involuntariamente, o meio correto para lançar para longe todas as
mentiras, abusos e superstições de Roma.
Mas deixemos agora esta testemunha corajosa com a sua obra
gloriosa, e ocupemo-nos por um instante com o estado das coisas na
Igreja Romana; que trouxe João Tetzel e suas indulgências até às
vizinhanças de Wittenberg.14

1 Existe um ditado católico romano que diz: “Roma Semper Eadem” ou “Roma
Sempre a Mesma”.
2 Confissão auricular é uma prática inventada pela Igreja Católica Romana, onde
seus membros são obrigados a confessarem seus pecados diretamente aos
padres membros do clero.
3 Milman´s Survey, Latin Christianity, vol. 6, p. 357; Greenwood´s Summary, book
14, chap. 1.
4 Por volta do século XII surgiram, primeiramente nos Países Baixos, associações
de mulheres que se uniram para uma vida quieta e contemplativa, sem as regras
de confinamento dos mosteiros. Seu objetivo era guardar uma conduta pura, sem
mácula, e a prática da caridade cristã. Elas se chamavam “beguinas”, que pode
ter sido derivado de santa Begga ou de certo sacerdote chamado Lambert le
Bègue, que dizem ter vivido em Liège, Bélgica, por volta do ano 1180, e que tenha
pregado contra a corrupção do clero. Elas viviam em cabanas individuais, que
tinham que construir com recursos próprios. Todas essas cabanas eram rodeadas
por um muro, e estava sob a direção de uma madre superiora que fora escolhida
por elas mesmas. Essa vila era chamada de “Vila das Beguinas” ou “beguinários”.
No início do século XIII, esta união social também foi imitada pelos homens.
Contudo, estes, para diferenciar-se das associações femininas, se chamavam
“begardos”. Eles formaram um movimento religioso cristão que iniciou na
Alemanha, estendendo-se pela França, Holanda e Espanha. Foram grupos de
pregadores itinerantes que denunciavam a corrupção do clero e pregavam uma
vida fiel ao Evangelho e à experiência dos primeiros apóstolos.
5 D’Aubigné, B. I, S. 139.
6 Waddington´s Reformation, vol. 1, p. 31; D´Aubigné´s Reformation, vol. 1, p. 195.
7 Seu hino mais conhecido é “Castelo Forte”, que se tornou e continua sendo o hino
oficial da Reforma Protestante.
8 Waddington, vol. 1, p. 34.
9 N. do T.: Apesar da Igreja Católica Romana ter modificado sua abordagem quanto
ao uso de Bíblias pelos fiéis, publicando inúmeras versões e traduções, ainda
assim, a grande massa de católicos romanos ignora o verdadeiro conteúdo da
Palavra de Deus.
10 Waddington, vol. 1, p. 47.
11 Transubstanciação: literalmente, mudança da matéria. Assim é chamada, na
doutrina católica, a suposta transformação do pão e do vinho da ceia no corpo e
no sangue de Cristo. Segundo a doutrina da igreja romana, ela ocorre
imediatamente depois da consagração, ou da benção pelo sacerdote, embora a
aparência exterior do pão (hóstia) e o vinho permanecem a mesma.
12 Tratava-se de uma escada que diziam ter sido transportada de forma miraculosa
da casa de Pilatos, em Jerusalém, para Roma.
13 Título honorário concedido pelas universidades ao redor do mundo, para honrar
aqueles que demonstram excelência no estudo da teologia.
14 D´Aubigné, vol. 1. Froude´s Short Studies, vol. 1. Waddington´s Reformation, vol.
1. Universal History, vol. 6, Bagster and Sons.

Capítulo 34
O PRIMEIRO JUBILEU PAPAL

As Cruzadas haviam elevado ao máximo a avareza do clero romano e a


superstição do povo em geral. Durante duzentos anos elas
representaram uma enorme fonte de riqueza e poder para a Igreja
Romana. Ao mesmo tempo, elas também trouxeram a ruína, uma miséria
incalculável, e completa degradação das nações da Europa. Nessas
chamadas “guerras santas”, cerca de seis milhões de europeus perderam
suas vidas. Enquanto duravam essas guerras, os cruzados deixavam
suas propriedades sob os cuidados dos bispos ou clérigos. Caso o
proprietário morresse — algo que normalmente acontecia devido as
batalhas ou a enfermidades — naturalmente, todos os bens passavam
para as mãos dos sacerdotes e eram incorporados ao patrimônio da
igreja. Tal situação encontra-se registrada de forma singular no templo da
história, como um monumento à estupidez humana, bem como à
presunção geral. Mas com o final do século XIII, esta rica fonte de
ingressos secou completamente.
No ano 1291, a cidade de Acre, que era a última fortaleza militar
mantida pelos cristãos na Palestina, caiu nas mãos dos otomanos*. Os
infiéis estavam agora na posse incontestável do santo sepulcro de Cristo,
de todos os outros lugares sagrados e dos objetos pelos quais os
peregrinos costumavam visitar esses lugares. Foi dessa maneira que o
grande esquema papal e a orgulhosa glória dos cruzados chegaram ao
fim na Terra Santa.
Mas com o fim das Cruzadas, o papa e a Igreja Romana não apenas
sofreram grandes perdas em dinheiro e bens, mas também o desejo do
povo pelas indulgências não podia mais ser satisfeito. Diante dessa nova
realidade, duas graves questões foram levantadas: de que maneira o
tesouro papal poderia continuar a recolher as riquezas a que estava
acostumado; e de que maneira poderiam ser concedidas as indulgências.
Essas questões surgiram porque o papado estava acostumado a herdar
todos os bens daqueles que morriam nas Cruzadas. No entanto, aqueles
que pereciam tinham garantidas as indulgências necessárias de perdão
dos pecados e de entrada no céu. Era uma estratégia onde todos
ganhavam: a igreja ficava com o dinheiro e os bens, e os cruzados
herdavam a vida eterna. Com o fim das Cruzadas o plano se dissolveu.
Mas o papa ainda queria o dinheiro, e o povo queria o perdão dos seus
pecados, e estava disposto a pagar pelo mesmo. Com o objetivo de
atingir a esses dois importantes alvos, a astúcia romana inventou uma
nova e muito bem-sucedida forma de ação. O papa daqueles dias,
Bonifácio VIII, declarou: “Alcançamos o fim do século XIII; vamos
proclamar um ano de jubileu1”. Era impossível recuperar a Palestina, pois
a mesma estava irremediavelmente perdida. A cruz e o santo sepulcro
estavam nas mãos dos sarracenos2. Por outro lado, a santa cidade de
Roma e os túmulos dos apóstolos ainda existiam, de modo que apenas
precisava de um impulso de cima para conduzir o fluxo dos peregrinos
para lá. O astuto papa calculou com muita precisão quais seriam as
vantagens que surgiriam da transferência do destino das peregrinações
de Jerusalém para Roma. Essa foi uma das mais bem-sucedidas épocas
das práticas supersticiosas da Igreja.
No dia 22 de fevereiro de 1300 foi promulgada uma bula papal3
prometendo indulgências extraordinariamente plenas a todo aquele que,
no decorrer desse ano visitasse, com todas as penitências
correspondentes e devoção, os túmulos de São Pedro e São Paulo em
Roma. Os cidadãos romanos deveriam visitar os túmulos diariamente por
trinta dias sucessivos, enquanto que para os estrangeiros bastavam
quinze dias. A bula foi imediatamente divulgada através de toda a
cristandade. A mesma afirmava que todos os que confessassem e
lamentassem seus pecados, e peregrinassem de forma devota ao túmulo
do “príncipe dos apóstolos”, receberiam uma indulgência plenária4. Em
outras palavras, a completa remissão ou perdão de todos os pecados
tanto do passado, do presente quanto também os que haveriam de
cometer no futuro. Até então, uma indulgência desse tipo havia sido
concedida, de forma limitada, apenas aos que haviam participado de uma
Cruzada. Quando esta bula se tornou conhecida na Europa, se levantou
uma verdadeira tempestade de entusiasmo religioso. Multidões de todos
os países se apressaram para peregrinar em direção a Roma. O anúncio
do jubileu foi bem recebido por todos e causou uma enorme e pacífica
Cruzada de toda a cristandade em direção à cidade santa. “Durante todo
aquele ano, todas as estradas, mesmo nas partes mais remotas da
Alemanha, Hungria, Boêmia e Grã-Bretanha, se viram lotadas com
peregrinos de todas as idades, de ambos os sexos, que buscavam expiar
seus próprios pecados; não através de uma peregrinação armada e
perigosa até Jerusalém, mas por uma jornada até Roma, bem mais
econômica e muito menos perigosa”.
***
O ANO DOURADO
É impossível darmos uma informação exata quanto ao número dos
peregrinos que fizeram essa viagem para Roma. No entanto, algumas
testemunhas oculares afirmam que constantemente havia em torno de
duzentos mil visitantes presentes na cidade de Roma. É afirmado que
cerca de dois milhões de peregrinos se deslocaram até a santa cidade
dos católicos romanos durante o ano do jubileu. As riquezas que afluíram
para dentro dos cofres papais durante o ano do jubileu foram
monstruosas. Ainda que cada peregrino ofertasse apenas uma pequena
soma, quantas riquezas devem ter sido coletadas! As ofertas eram tantas
que precisavam ser retiradas com rodos de cima dos altares. Por esse
motivo, os romanos chamaram aquele período de ano dourado. Uma
testemunha ocular nos diz que viu dois sacerdotes com pás em suas
mãos, trabalhando dia e noite, tirando as pilhas de moedas de ouro e de
prata que eram depositadas sobre os altares e os túmulos dos apóstolos.
E todas essas doações não eram destinadas para a caridade ou, como
outrora, como oferta ou subsídio para as Cruzadas, onde eram dedicadas
para as necessidades e o transporte dos exércitos. Mas agora, sem
nenhuma guerra para ser combatida, toda essa riqueza estava à livre
disposição do papa, que fez uso dela de forma arbitrária*. Bonifácio, de
modo sagaz, excluiu dos benefícios das indulgências os inimigos da
igreja, ou melhor dizendo, seus próprios inimigos.
Assim, uma grande parte da cristandade, com exceção de uns poucos
e celebrados rebeldes que se opunham à Sé Romana, “recebeu” o
perdão dos pecados e a vida eterna. Em gratidão a isso, eles lançaram
aos pés do papa uma riqueza extraordinária. O sucesso ultrapassou
todas as suas expectativas. A aglomeração de pessoas nas ruas de
Roma frequentemente era tão grande, que muitos peregrinos mais fracos
foram pisoteados ou esmagados pela multidão.
Bonifácio VIII tinha proposto que o jubileu deveria ser celebrado a cada
cem anos, mas as vantagens de tal festa para a igreja eram
extraordinariamente grandes, que logo foi decidido encurtar o intervalo.
Por esse motivo, Clemente VI já repetiu o jubileu em 1350. Novamente
afluíram inúmeras multidões de peregrinos para Roma, levando para a
cidade e para o papa uma imensurável riqueza. As ruas que conduziam
às igrejas que deveriam ser visitadas, por ordem do papa — São Pedro,
São Paulo e São João de Latrão — estavam constantemente lotadas por
uma aglomeração tão grande de peregrinos que era impossível andar na
direção oposta ao fluxo geral da multidão. Os romanos aproveitaram isso
para tirar vantagem, cobrando valores elevadíssimos pela alimentação e
pela hospedagem; praticamente não havia casa que não tivesse sido
preparada para hospedar os peregrinos. Contudo, ainda assim, muitos
tiveram que passar as noites no interior das igrejas ou nas ruas; e não
foram poucos que pereceram em decorrência de enfermidades e
esgotamento.
Com o passar do tempo, o intervalo de cinquenta anos ainda pareceu
muito longa para os papas. Então, em 1389, Urbano VI reduziu o
intervalo entre os jubileus para trinta e três anos; tomando como modelo
a duração da vida do Senhor Jesus, como Homem, sobre essa terra.
Finalmente, Sisto IV em 1475, determinou que o festival do jubileu
deveria ser celebrado a cada vinte e cinco anos. A Igreja Romana
mantém essa prática até os nossos dias, respeitando esse último
intervalo estabelecido por Sisto IV.
É realmente de romper o coração ver que as massas do povo são
enganadas e doutrinas tão blasfemas são cridas e exercidas na prática,
não apenas nos supersticiosos tempos da Idade Média, mas também em
nossos dias — embora a educação e a cultura alcançassem um nível tão
elevado e numerosas testemunhas se levantassem pela verdade da
Palavra de Deus e a doutrina da obra consumada de Cristo.
O seguinte trecho foi extraído de uma bula papal que foi publicada em
1824, com vistas ao jubileu que deveria ser celebrado no ano seguinte.
Esse trecho mostra claramente que o espírito e a arrogância do papado
permaneceram imutáveis.
“Nós temos determinado, pela virtude da plena autoridade que nos foi
concedida diretamente dos céus, a abrir totalmente o sagrado tesouro,
que consiste nos méritos, sofrimentos e virtudes de Cristo, nosso Senhor,
de Sua virgem mãe, e de todos os santos; tesouro que foi confiado à
nossa administração pelo Autor da salvação da humanidade. Por isso,
convêm a vós, veneráveis irmãos, patriarcas, primazes, arcebispos e
bispos, explicar detalhadamente, com total clareza, o poder das
indulgências. Deveis demonstrar a eficácia das mesmas no perdão das
penitências eclesiásticas, como também com respeito aos castigos
temporais devidos à justiça divina por pecados do passado. Também
deveis ensinar acerca do socorro que é oferecido desde o tesouro
celestial, procedente dos méritos de Cristo e dos santos; e que é
concedido para os que morreram no amor de Deus, como verdadeiros
penitentes, contudo, antes que pudessem, por meio da penitência,
oferecer plena satisfação através de frutos dignos pelos pecados de
omissão ou não, e que agora se encontram no processo de purificação
através do fogo do purgatório”.5
***
O COMÉRCIO DE INDULGÊNCIAS
Leão X subiu ao trono papal no ano 1513. Ele era o segundo filho de
Lourenço de Médici, o magnificente*. Leão trouxe junto consigo, para
dentro da corte pontifícia*, o estilo refinado, luxuoso e extravagante de
sua família. Além disso, naqueles dias Michelangelo tinha terminado o
projeto da Catedral de São Pedro; a construção já se encontrava em
andamento e devorava monstruosas somas de dinheiro. Agora, a maior
questão e mais importante era de onde levantar fundos para cobrir as
despesas da construção, também para levar adiante os outros
numerosos planos do papa e para manter cheios os cofres do tesouro
papal.
As cartas de Lutero a este papa são propícias para nos dar um juízo
errado sobre este homem. Aparentemente, Lutero não conhecia o caráter
de Leão X, embora tivessem bastante contato. Quase todas as cartas
tinham conotações de elogios exagerados e falsos louvores, dando
aparência de bajulação. Não temos dúvidas que Lutero, ao escrever suas
cartas, estava se dirigindo ao papa ainda sob a forte superstição que o
levava a venerar o mesmo como o cabeça da igreja, bem como por causa
de sua fama como homem erudito.
Ao mesmo tempo em que Leão X tinha a reputação de ser um dos
homens mais educados e refinados de seus dias, na realidade ele estava
muito longe de ser sequer um homem de boa moral. Na sua corte se
celebravam constantemente as mais suntuosas festas, e ele se entregava
sem reservas a todos os tipos de prazeres. Em relação à suas obrigações
religiosas, suas responsabilidades e deveres quanto ao papado, ele era
completamente negligente. Quando comparado com seus predecessores
imediatos — o dissoluto Alexandre VI, cujo nome nunca pode ser
pronunciado senão com enorme repugnância; e o selvagem guerreiro
Júlio II, cujo governo tumultuado encheu grande parte da Europa com
massacres e o sangue de muitos inocentes — a pessoa e a corte de
Leão X podem ser apresentadas à luz de um contraste favorável.
Com o intuito de satisfazer as diversas, extravagantes e pesadas
despesas de Leão X, a necessidade de levantar fundos em proporção
cada vez maior tornou-se, a cada momento, mais imperativa. “Dinheiro!
Dinheiro!”, esse era o clamor. Uma testemunha daqueles dias disse: “O
que cobre uma multidão de pecados é o dinheiro, e não a caridade”. É de
se admirar que um papa tão inescrupuloso como Leão achasse uma
saída tão segura e confortável realizando o comércio das indulgências de
forma mais sistemática do que até então? Para alcançar seu objetivo com
mais certeza, Leão resolveu reduzir o preço das indulgências, e que
hábeis agentes deveriam ser empregados para promover a venda das
mesmas através de toda a Europa. Como veremos, o plano era projetado
de forma muito astuta. Porém, embora correspondesse ao objetivo
imediato, nas suas consequências se voltou contra aqueles que o haviam
idealizado. O plano foi adotado, mas Deus, que está acima de tudo,
utilizou este infame comércio de Roma para aplainar o caminho da
Reforma Protestante e acelerar a queda do despotismo romano. A
Alemanha foi escolhida para ser o primeiro e privilegiado cenário para a
venda das indulgências. Isso se devia à sua desfavorável posição
geográfica, que poderia impedir a presença de muitos fiéis para a
celebração do próximo jubileu em Roma. Como os fiéis alemães tinham
dificuldades de transpor os Alpes e os Apeninos para chegarem a Roma,
nada melhor do que levar a oferta de perdão diretamente às suas cidades
localizadas ao norte.
Já observamos anteriormente que o propósito original das indulgências
consistia, para aquele que a adquiria em troca de certo valor em dinheiro,
em uma diminuição ou uma absolvição total das penitências exteriores
devidas pelos seus pecados; assim como acontece nos tribunais do
mundo, onde, em caso de delitos menores, o condenado deve pagar uma
determinada multa em vez de ser castigado com a prisão. Uma vez paga
a multa ou cumprida a obrigação imposta, o réu está livre da culpa e da
prisão. De modo semelhante, eles faziam com que o povo pobre e
ignorante acreditasse que o dinheiro que era pago ao que vendia as
indulgências, seria atribuído como um crédito na contabilidade celestial.
Tal contabilidade registraria a indulgência como crédito; enquanto que as
mentiras, o falar mal, os roubos, os assassinatos e as perversões de
todos os tipos seriam registrados como débito ao indivíduo. As
indulgências também foram comparadas com uma carta de crédito que
poderia ser resgatada no céu, já que a mesma estava assinada pelo papa
e continha a observação: “Valor recebido”; possuindo assim, valor diante
de Deus. Naturalmente, os valores das indulgências eram diferenciados;
nos casos em que os pecados cometidos fossem muitos e grandes, o
penitente precisava pagar um alto preço pelas indulgências
correspondentes. O preço era variável, segundo o tamanho e a gravidade
dos pecados.
Aos poucos, esse sistema de perdão recebeu, por meio dos esforços
dos inescrupulosos sacerdotes romanos, uma extensão tal, que se tornou
uma fonte inesgotável de abundantes riquezas a favor do papado. Até
aqueles dias, pesadas obras meritórias eram exigidas como forma de
arrependimento dos pecadores — e todos eram pecadores — obras tais
como jejuns, flagelações, peregrinações e, após a morte, uma longa
estadia de sofrimento no purgatório. Mas agora, era anunciado aos
admirados pecadores que, sob certas condições, o peso de todas essas
obras meritórias poderia ser removido, e os anos que teriam que
enfrentar no fogo do purgatório poderia ser abreviado através do poder,
conferido por Cristo, a São Pedro e seus sucessores. A condição mais
simples para o penitente, e a mais conveniente ao papado, era: “Dinheiro!
Dinheiro!”.
***
OS AGENTES DO PAPA — JOÃO TETZEL
Aquilo que começou como uma mera especulação por parte do papa
Leão X, tornou-se grande sucesso comercial. Ele enviou vendedores
competentes às mais diversas partes da Europa, levando uma
quantidade enorme de indulgências e isenções que podiam ser aplicadas
às mais variadas circunstâncias. Por uma determinada quantia em
dinheiro, uma isenção poderia ser adquirida; o que permitia ao indivíduo
comer carne às sextas feiras ou nos dias da quaresma. Outra permitia a
pessoa casar-se com parente próximo, enquanto outras autorizavam a
prática de todo tipo de prazer proibido. Os vendedores não perderam
tempo; iam de cidade em cidade, de povoado em povoado, oferecendo e
promovendo seus produtos com gritos e comentários divertidos. Eles
garantiam ao admirado povo que agora havia chegado a oportunidade de
comprar o perdão e a salvação de suas almas por preços
significativamente reduzidos. Multidões de compradores se aglomeraram
para adquirir a sua pretensa felicidade eterna; e o dinheiro dos fiéis fluía
em larga escala para dentro dos cofres dos sacerdotes. Estes apareciam
constantemente em cortejos suntuosos, levavam uma boa vida, e
esbanjavam o dinheiro recebido. Aos poucos, muitos desses vendedores
se aproximaram da região da Saxônia. O arcebispo de Mainz, e outros
dignitários espirituais, haviam prometido ao papa pleno apoio a esse
tráfico imoral, infame e iníquo. Tal apoio era oferecido em troca de uma
participação nos lucros. Dessa maneira, o negócio foi crescendo de forma
ininterrupta, até que os barulhentos abutres se aproximaram dos portões
de Wittenberg.
Esses comerciantes de indulgências atravessavam o país em grande
estilo, vivendo de forma luxuosa e gastando muito dinheiro da forma mais
liberal possível. Quando a procissão dos vendedores se aproximava da
cidade, um representante deles procurava as autoridades do lugar e
dizia: “A graça de Deus e do santo padre se encontram junto às portas da
cidade”. Tal tipo de mensagem, naqueles dias de enorme superstição, era
suficiente para transformar a mais pacífica e calma cidade da Alemanha
em um cenário de grande alvoroço. O clero, os padres, as freiras, os dois
concílios locais e todos os comerciantes com suas bandeiras, incluindo
homens e mulheres, velhos e jovens, saíam ao encontro dos mercadores
de indulgências, levando velas acesas em suas mãos, enquanto
avançavam ao som das músicas. Todas as ruas eram enfeitadas com
bandeiras, os sinos soavam, e longas procissões de freiras e monges
passavam pela cidade clamando: “Comprem! Comprem!”.
Entre os muitos vendedores dessa grande feira papal, um homem em
particular atraiu a atenção dos espectadores. Ele era um monge
dominicano, com má fama; se chamava João Tetzel e era filho de um
ourives de Lípsia. Seu nome adquiriu odiosa notoriedade na história da
Europa. Geralmente, o famoso monge mercador estava sentado em uma
carruagem segurando uma enorme cruz vermelha em suas mãos; e a
bula papal, que estava sobre uma almofada de veludo, era levada diante
dele. Rapidamente as igrejas transformavam-se em grandes casas
comerciais. Depois que a cruz vermelha era colocada diante do altar e o
brasão papal era pendurado nela, Tetzel costumava subir ao púlpito e, em
alta voz, promovia com rude eloquência a eficácia das indulgências que
estava vendendo.6
***
UMA AMOSTRA DO TÍPICO SERMÃO DE TETZEL
O seguinte trecho foi extraído de um dos costumeiros discursos de
Tetzel, e dará ao leitor uma pequena noção da conduta impúdica* e das
blasfêmias verbais desse atrevido impostor, todas elas feitas sob a
autorização do papa e dos arcebispos locais. Com o tom e os gestos de
um vendedor de feira, ele começava:
“As indulgências são as mais preciosas e os mais nobres de todos os
dons oferecidos por Deus. Venham e eu vos darei cartas, todas
devidamente seladas, por meio das quais vos poderão ser perdoados até
mesmo os pecados que cometereis no futuro. Eu não trocaria esse
privilégio nem mesmo por aqueles desfrutados pelo próprio São Pedro no
céu. Digo isso, pois tenho salvado mais almas pelas minhas indulgências
do que o apóstolo através de suas pregações. Não existe nenhum
pecado tão grande que uma indulgência não possa perdoar. Porém, mais
do que isso! As indulgências são capazes de socorrer não apenas os
vivos, mas também aqueles que já estão mortos. Sacerdotes! Nobres!
Comerciantes! Esposas! Jovens! Moças solteiras! Será que não ouvis
seus falecidos pais e amigos que clamam por socorro das profundezas
do abismo, dizendo: ‘Nós estamos sofrendo terríveis tormentos! Uma
pequena oferta da vossa parte, poderá nos livrar desse sofrimento. Vós
podeis dá-la, porém não quereis!’? Não sejais tolos nem ignorantes nem
insensíveis, recusando a entenderem a graça de Deus que lhes é
oferecida de maneira tão rica! Por que digo isso? Porque no exato
momento em que o vosso dinheiro cair no fundo da caixa do tesouro, a
alma escapará do purgatório e voará livremente para o céu. Por isso,
aproximai-vos todos! Aqui está a caixa do tesouro! Aqui estão as
indulgências! Comprem! Comprem! Se deixais passar esta oportunidade
sem fazer uso dela, não haverá mais salvação para vós! Eu sou inocente
da miséria das vossas almas condenadas! Vinde e comprai! O Senhor
nosso Deus já não reina, Ele entregou todo o poder ao papa.”
Uma vez que o discurso desse monge inescrupuloso havia terminado,
a multidão apavorada e supersticiosa corria para comprar o perdão dos
seus pecados e também a libertação de seus amigos dos tormentos do
purgatório. Até mesmo um mendigo que vivia de esmolas encontrava
dinheiro para comprar o perdão de seus pecados. O dinheiro era
abundante. Logo, a caixa do tesouro papal não podia mais conter todo o
dinheiro que vinha de todas as partes.
Leão alcançou seu objetivo plenamente. Porém, as consequências
morais deste lamentável comércio eram apavorantes. As fáceis
condições pelas quais os homens podiam alcançar a permissão papal
para praticar qualquer espécie de perversão, abriam o caminho para as
mais grossas imoralidades, bem como a rebeldia contra toda a
autoridade. É relatado (mas também negado por outros) que o próprio
Tetzel foi condenado por adultério e por conduta imprópria na cidade de
Innsbruck, e sentenciado pelo imperador Maximiliano a ser colocado
dentro de um saco e lançado vivo dentro do rio. Entretanto, o Eleitor
Frederico da Saxônia intercedeu junto ao imperador e conseguiu obter o
perdão para o monge transgressor; salvando-o assim dessa vergonhosa
morte. O despudorado dominicano prosseguiu em seu caminho como o
representante de Sua Santidade, o papa, como se nada tivesse
acontecido.
***
LUTERO ENFRENTA TETZEL PUBLICAMENTE
1517 D.C.
A situação havia evoluído tanto que uma crise era inevitável. As
arrogâncias do papa eram tão impertinentes e os abusos cometidos por
parte de Tetzel e seus companheiros eram tão graves e chamativos, que
finalmente os olhos de muitos foram abertos. Contudo, parece que
ninguém tinha a coragem de levantar sua voz livre e abertamente contra
a infame conduta dos mercadores de indulgências. Por muito tempo foi
permitido que eles fizessem seu lamentável trabalho sem serem
incomodados. Mas, em silêncio, Deus estava preparando o homem que
devia falar com estrondosa voz à consciência desses sacerdotes que
haviam se esquecido dEle, e revelar suas ações infames diante de todo o
mundo.
Lutero havia acompanhado com atenção a propagação do comércio
das indulgências, contudo, sem ter visto uma ocasião para opor-se.
Todavia, quando Tetzel chegou às proximidades de Wittenberg, um
confronto foi inevitável, e assim surgiu a ocasião para Lutero se
manifestar em público. Esse confronto se deu porque vários cidadãos de
Wittenberg, apesar das advertências de Lutero, haviam se dirigido até
Jüterbog, que distava alguns quilômetros, e haviam comprado
indulgências para si. Pouco tempo depois, alguns deles confessaram
seus pecados para Lutero, porém acrescentaram imediatamente, que
nem pensavam em deixar esses pecados. Em decorrência disso, Lutero
lhes negou a absolvição. E quando eles faziam referência às suas
indulgências, Lutero lhes respondia que, apesar das indulgências, eles
pereceriam se não se voltassem ao Senhor em sincero arrependimento.
Quando Tetzel recebeu a notícia desse desprezo pelas suas
indulgências, ficou muito irado e vociferava* furiosamente. Ele mandou
acender, repetidas vezes, uma fogueira na praça, para, por meio disso,
demonstrar que ele tinha todo o poder conferido pelo papa para queimar
todos os hereges que se opusessem à santíssima indulgência.
Entrementes, Lutero escreveu cartas aos arcebispos de Mainz, Meissen,
Zeitz e Naumburg; nas quais ele pedia, insistente e humildemente, para
que eles detivessem o comércio de indulgências. Visto que não recebeu
nenhuma resposta e os bispos não fizeram nada para corresponder a
seus pedidos, no dia 31 de Outubro de 1517 Lutero fixou na porta da
Catedral de Wittenberg suas famosas noventa e cinco teses, nas quais
ele desafiava muitas das doutrinas da Igreja Católica defendidas por
Tetzel, especialmente aquelas que diziam respeito à venda de
indulgências.
Agora, o machado estava colocado na raiz da árvore. As sementes da
Reforma estavam resumidas dentro das proposições contidas em suas
noventa e cinco teses. Nelas, Lutero diz: “As indulgências do papa não
podem remover os pecados. Somente Deus pode perdoar pecados, e Ele
perdoa a todos aqueles que verdadeiramente se arrependem, sem a
cooperação da absolvição humana. A igreja apenas pode libertar das
penitências que ela mesma impôs, mas o poder dela está limitado
somente a este mundo, e não se estende além da morte. Quem é esse
homem que se atreve a dizer que por certa quantidade de coroas7 a alma
de um pecador pode ser salva? Todo verdadeiro cristão participa em
todas as bênçãos de Cristo, pela graça de Deus e sem as declarações
contidas em uma carta de indulgência”. Esse era o tom do ousado
protesto de Lutero. Embora nessas teses houvesse muita coisa que ainda
evidenciasse o zeloso monge e seguidor do papado, ainda assim, através
delas, permeava essa uma e grande verdade: que o homem é salvo sem
as obras da lei e sem seus méritos, apenas pela fé em Jesus Cristo.
Nunca antes esta verdade havia sido apresentada em uma linguagem
tão pública e ousada. Começou a batalha entre as trevas que imperavam
e a luz que estava aparecendo. Fortalecido e equipado pelo próprio Deus,
Lutero entrou no campo de batalha — no campo contrário às doutrinas e
aos abusos da Igreja de Roma — e arrancou de seu terrível opositor,
pedaço a pedaço, do solo roubado. A universidade e toda a cidade de
Wittenberg estavam em profunda agitação. Todos leram as teses fixadas
na porta da catedral. As verdades nelas expressadas passaram de boca
em boca. Peregrinos e viajantes que naqueles dias se encontravam em
Wittenberg, voltaram para suas cidades levando as famosas teses do
monge agostiniano. Através desse meio, essa maravilhosa novidade foi
divulgada por todas as partes. Pfizer disse: “Esta foi a faísca decisiva da
tocha que havia sido acendida na fogueira do mártir boêmio João Huss.
Esta expandiu-se até lançar sua luz nos mais remotos cantos da terra,
dando o sinal para os poderosos eventos futuros”. Um historiador da
mesma época relata: “Em menos de catorze dias, as teses de Lutero se
tornaram conhecidas em todas as partes da Alemanha. E antes que se
passassem quatro semanas, as mesmas já haviam sido lidas e
admiradas por toda a cristandade, como se os anjos do céu tivessem sido
os mensageiros que as levaram sobre suas asas para todos os homens”.
O clamor e os gritos de Roma não demoraram, e logo exigiram fogo e
fogueiras para destruir os hereges. Outro historiador, James Froude,
declara: “Os mosteiros e as construções religiosas espalhadas por toda a
Alemanha pareciam verdadeiros canis, cujos ocupantes eram como cães
uivando uns aos outros por causa da corrupção espiritual. Se as almas
não poderiam ser libertadas do purgatório mediante seus cânticos, então
sua ocupação era inútil. Por outro lado, para os jovens leigos e para os
nobres espíritos de toda a Europa, Wittenberg tornou-se um farol que
lançava a longa distância seus brilhantes raios de luz em meio às trevas
generalizadas”. De uma vez o nome de Lutero se tornou conhecido no
mundo inteiro. Se ele não estivesse sendo guiado pela sabedoria de
Deus, a sua repentina popularidade poderia tê-lo facilmente demovido*
da senda de um humilde servo de Deus. Mas a graça de Deus operava
poderosamente nele. Apesar de tudo, ele permaneceu modesto e
humilde, e perseverava com calma em seu posto na igreja agostiniana
localizada em Wittenberg; até que Deus, em Seu próprio tempo, o
chamou para o cenário público.
***
LUTERO EM HEIDELBERG
Na primavera de 1518, houve uma assembleia geral da Ordem dos
agostinianos na cidade de Heidelberg. Lutero também foi convidado e se
pôs em caminho. Seus amigos, que tinham conhecimento das intenções
e das traições planejadas pelos dominicanos, temiam pela vida de Lutero
e desaconselharam decididamente que ele empreendesse a viagem.
Lutero, todavia, não era homem de se deixar intimidar pelo medo dos
perigos para fazer aquilo que ele acreditava que era seu dever. Sua
confiança estava depositada no Deus vivo. Uma oportunidade tão
favorável para pregar o Evangelho, divulgar a verdade e defender suas
teses, não poderia ser negligenciada. Ele iniciou sua viagem a Heidelberg
a pé, no dia 13 de abril, na companhia de um guia que também o ajudava
a carregar sua bagagem.
A curiosidade geral de ver e ouvir o corajoso monge que ousava
enfrentar a Igreja Romana e o papa, atraiu uma enorme multidão para a
cidade e para a universidade de Heidelberg. Ali, diante de uma grande
assembleia, em uma sala do mosteiro agostiniano, Lutero debateu com
cinco Doutores em Divindade acerca de uma série de novas teses que
ele havia redigido. A maioria dos pontos tratados tinha a ver com
questões teológicas e filosóficas. O conhecimento exato que Lutero tinha
das Escrituras, dos dogmas* tradicionais da Igreja de Roma, sua total
falta de respeito pelo famoso nome e pelo sistema de Aristóteles, seu
grande poder de argumentação e sua poderosa eloquência — tudo isso
logo mostrou a seus inimigos que eles não estavam tratando com um
oponente comum. Totalmente derrotados e envergonhados, eles tiveram
que se retirar do campo de batalha. Lutero retornou para Wittenberg bem
protegido, e acompanhado por muitos de seus amigos.
O maravilhoso efeito exercido por esses debates, nos ouvintes,
motivou Tetzel à tentativa de revidar o ataque de Lutero contra a venda
das indulgências. Ele redigiu um tratado repleto de jactância* e de
blasfêmias, no qual afirmava reiteradamente o poder do papa e do clero
que ele representava, como plenamente capazes de perdoar para
sempre todos os pecados cometidos pelas pessoas. Em resposta a essas
desafiadoras afirmações, Lutero escreveu outra série de proposições*, às
quais chamou de “Resoluções”. Essa outra série era, na realidade, uma
explicação de suas teses anteriores. Nesse tratado, podemos reconhecer
mais claramente o reformador. Ele apresenta, de forma corajosa, a
grande verdade da Reforma Protestante — a justificação somente pela
fé, sem o auxílio das obras da lei.
No dia 30 de maio de 1518, Lutero enviou uma cópia dessa Resolução
para o próprio papa, acompanhada de uma humilde carta pedindo ao
papa que tome uma decisão quanto a essa controvérsia. Apesar da falta
de interesse que lhe era peculiar quando o assunto eram questões
religiosas, Leão X não podia tratar a carta de Lutero com indiferença,
especialmente naqueles dias. Isso porque o próprio imperador
Maximiliano também havia solicitado sua interferência naquela questão.
O papa ordenou que Lutero fosse enviado a Roma, onde deveria
responder por sua audácia*. Lutero recusou obedecer à ordem;
declarando, entretanto, que estava disposto a comparecer e defender sua
causa diante de uma comissão de juízes sábios, imparciais e piedosos na
própria Alemanha. O papa, tendo descoberto que Lutero estava sob a
proteção de Frederico, o Eleitor da Saxônia, enviou uma carta ao príncipe
pedindo-lhe que entregasse o monge herege nas mãos do cardeal
Tomás Caetano, o qual estava de posse de instruções detalhadas
acerca de como proceder com respeito ao desobediente doutor. Todavia,
em louvor a esse homem singularmente sábio e excelente príncipe,
devemos registrar que o mesmo enfrentou decididamente as intenções
do papa, e se negou a entregar seu protegido aos inimigos impiedosos.
Agora, o papa se via obrigado a tomar outras medidas, mais justas,
contra Lutero. Dessa forma, a intimação para que Lutero comparecesse a
Roma foi modificada por uma convocação à cidade de Augsburgo, para
que ali respondesse diante de Caetano. Lutero declarou sua intenção de
obedecer a essa convocação.
***
LUTERO EM AUGSBURGO
Alguns de seus amigos, preocupados com a segurança de sua valiosa
vida, tentaram dissuadi-lo de seu propósito. Mas, destemido como
sempre e confiando na graciosa proteção de Deus, Lutero manteve sua
decisão. Vestido com o seu hábito marrom de monge, ele deixou
Wittenberg a pé para ir até Augsburgo. Os cidadãos de Wittenberg
acompanharam seu amado mestre até os portões da cidade, onde se
despediu das pessoas e seguiu sua viagem.
Ele chegou a Augsburgo são e salvo, e logo começaram as audiências.
O cardeal Caetano assumiu a aparência de um pai terno e compassivo, e
se dirigiu a Lutero como seu querido filho. Todavia, ao mesmo tempo,
deu-lhe a entender, em linguagem bem clara, que o papa insistia que
Lutero se retratasse* das suas doutrinas e que não aceitaria nada menos
do que isso. “Peço então”, disse Lutero, “que me informe no que eu estou
errado.” O cardeal e seus representantes italianos, que esperavam que o
pobre monge alemão caísse de joelhos e implorasse perdão
humildemente, ficaram muito surpresos com a sua calma e sua postura
firme e digna. Caetano lhe apresentou diversos dos supostos erros, mas,
como Lutero se reportava às Sagradas Escrituras, não querendo deixar
valer outra autoridade, o cardeal se enfureceu e gritou: “Eu estou aqui
para ordenar e não para argumentar contigo! Retrate-se ou esteja pronto
para receber o castigo merecido”.
Com isso, a primeira audiência teve fim. Uma segunda e uma terceira
reunião foram igualmente em vão. Lutero permaneceu inabalável na sua
exigência de que as suas afirmações fossem contraditas a partir da
Palavra de Deus. Lutero disse para o cardeal: “Vamos raciocinar sobre os
pontos em disputa e resolver todas as questões pelas orientações que
encontramos nas Sagradas Escrituras”. “O quê!”, exclamou o cardeal
furioso, “Pensas que o papa se interessa pelas opiniões de um
camponês alemão? O dedo mínimo da mão do papa é mais forte do que
toda a Alemanha. Esperas que vossos príncipes peguem em armas para
te defender — um verme miserável igual a ti? Eu te digo: não! E então, o
que irá acontecer contigo? Para onde fugirás?”
A nobre resposta do homem de Deus foi: “Assim como agora, para as
mãos do Deus Todo-Poderoso”.
Assim terminaram as audiências, com uma total derrota de Roma. A
Corte foi dissolvida. Para grande surpresa do orgulhoso italiano, o pobre
filho de um camponês — um miserável monge mendicante de uma
cidade provinciana alemã — ousava desafiar o poder e resistir às
exigências do soberano de toda a cristandade. Mesmo investido de toda
autoridade e de pleno poder para esmagar sua vítima, o cardeal teve que
retornar a Roma e relatar sua derrota ao seu senhor. Ele também teve
que dizer que nenhum tipo de argumento, ameaças, apelos nem
promessas da mais alta distinção, poderiam fazer o teimoso alemão
abandonar suas perversas heresias. Lutero, por sua vez, como a fiel
testemunha, se viu em meio a um enorme perigo. Ele abandonou
secretamente a cidade, e retornou para Wittenberg.
Irritado ao extremo com o fracasso de seu plano, o papa tornou a
escrever ao Eleitor, exigindo que o mesmo entregasse o criminoso à
justiça ou que o expulsasse de seus domínios. O Eleitor Frederico estava
em uma situação difícil. Uma desavença pública com o papa poderia
acarretar as mais sérias complicações. Lutero, ao ouvir do embaraço de
seu príncipe, escreveu para ele comunicando-lhe que estava
considerando seriamente em fugir para a França, visto que ali ele
esperava poder trabalhar mais livremente. Frederico não concordou com
isso, e Aquele que inclina o coração dos reis segundo a sua vontade (cf.
Pv 21:1), conduziu também os pensamentos do bondoso Eleitor, e lhe
deu corajem para continuar protegendo Seu servo, apesar das ameaças
do papa e do legado.
Visto que a missão do cardeal Caetano havia falhado, não conseguindo
o resultado desejado, o papa Leão X enviou outro agente: o núncio*
papal, Carlos von Miltitz. Esse emissário trouxe consigo uma rosa
dourada, ricamente perfumada, que deveria representar o corpo de Cristo
e que era concedida pelo papa todos os anos a um distinto príncipe. Este
presente era um sinal do favor especial da parte do papa, e neste ano
devia ser concedido ao Eleitor da Saxônia; para que com isso, sem
dúvida, ele fosse estimulado a ações mais enérgicas contra Lutero.
Quando chegou à Saxônia, Miltitz se encontrou com seu velho amigo
Spalatino, e este lhe informou sobre o verdadeiro estado das coisas na
Alemanha, das quais Miltitz havia feito uma imagem errônea. Ele
assegurou ao legado* papal, que as divisões na igreja eram, em sua
maioria, consequências da falsidade, das mentiras e das blasfêmias
proferidas por Tetzel, o vendedor de indulgências. Miltitz sentiu-se
surpreso, e convocou Tetzel para comparecer diante dele em Altemburgo
e responder por sua conduta. Tetzel, covarde como era, já havia se
retirado um tempo antes ao colégio dos Paulinos, na Lípsia, para ali se
esconder da ira de seus numerosos inimigos. Há algum tempo ele já não
viajava de cidade em cidade com sua bula papal e sua carruagem
dourada. Ele escreveu para Miltitz, dizendo: “Eu não me incomodaria com
a fadiga da viagem, contanto que pudesse deixar a Lípsia em segurança.
Todavia, o monge agostiniano, Martinho Lutero, conseguiu agitar e
levantar tantos homens poderosos contra mim, que não estou seguro em
nenhum lugar”. Que contraste entre este, o outrora jactancioso enviado
do papa, e Lutero, o simples e humilde servo de Deus! Tão digna de
admiração como era a coragem e a confiança de um, tão desprezível era
a covardia e o medo do outro. Com uma consciência pesada, Tetzel
faleceu pouco tempo depois, em grande miséria.
***
LUTERO EM ALTEMBURGO
O legado papal percebeu rapidamente a popularidade de Lutero e com
que interesse a sua causa era acompanhada por todas as classes. Por
esse motivo, ele procedeu de modo totalmente diferente do que o
orgulhoso Caetano. Ele se aproximou do destemido reformador com todo
tipo de demonstrações de amizade. Costumava dirigir-se a Lutero com as
palavras: “Meu querido Martinho”. Ele esperava ganhar Lutero por meio
de bajulações e fingida amabilidade, para assim, levá-lo a retratar-se e
para que a disputa tivesse um final feliz. Por um momento parecia que o
ardiloso núncio teve sucesso em prender Lutero na sua rede. Ele era um
diplomata perspicaz e grande bajulador do papa.
“Eu ofereço”, disse Lutero, “da minha parte, ficar em silêncio, no futuro,
acerca dessas questões e deixar que as mesmas desapareçam por si
mesmas. Prometo fazer isso desde que meus oponentes também fiquem
em silêncio.” Miltitz aceitou a oferta com grande alegria, beijou o monge
herege e procurou induzi-lo a escrever uma carta penitente endereçada
ao papa Leão X. Além disso, cobriu Lutero com todo tipo de expressões
de afeto e bondade. Dessa maneira, a grande controvérsia entre a
verdade e a mentira, entre o papado e a Reforma, parecia ter chegado a
um final pouco honroso. A paz foi assinada por ambos partidos e tudo
parecia estar na mais perfeita ordem. Mas, apenas parecia. Era
impossível que a obra de Deus findasse de maneira tão indigna. A
Reforma não podia ser impedida pela aparente reconciliação de Lutero
com a Igreja de Roma.
Justamente por aquele tempo, quando o próprio Lutero se condenou ao
silêncio por um momento, outra voz se fez ouvir. Era a voz do doutor
João Eck; ele era professor de teologia em Ingolstadt, autor de uma obra
intitulada “Obelisco”8, e um grande e zeloso defensor do papado. Eck
desafiou Karlstadt, que era doutor em Wittenberg e amigo de Lutero, para
um debate público acerca de pontos controversos da teologia e,
principalmente, acerca das teses de Lutero a respeito das indulgências.
No início, Lutero não interferiu nessa disputa, porém, pouco a pouco, se
viu obrigado a sair de seu esconderijo. Esse debate público foi conduzido
em Lípsia, e se estendeu por várias semanas. O doutor Eck contendia a
favor do papado, enquanto Lutero e Karlstadt a favor da Reforma. Essas
acaloradas discussões foram usadas por Deus para divulgar a verdade
não apenas na Alemanha, mas em toda a cristandade. O fato de Lutero
se reportar repetidas vezes às Escrituras, despertou em muitas almas —
especialmente na dos estudantes das universidades de Lípsia e
Wittenberg — um espírito inquiridor*, que nada, a não ser toda a
inabalável verdade da Palavra de Deus, poderia satisfazer. Dessa
maneira, a obra do Senhor progrediu, a reputação do papa diminuiu, e a
mente dos europeus foi preparada para a grande revolução que
aconteceria em breve.
***
HOMENS EMINENTES DO SÉCULO XVI
Aqui paramos por um instante para lançar um olhar sobre algumas das
principais pessoas que agiram no cenário daquele tumultuado tempo. O
período da Reforma é muito notável e um dos mais impressionantes da
história, devido ao grande número de personagens e aos grandiosos
eventos.
Martinho Lutero, aquele a quem o Espírito de Deus usou como um
instrumento, de modo especial, encontra-se diante de nós como a figura
central e mais proeminente. Nessa situação de grande perigo, muitas
vezes ele poderia ter pensado que estava sozinho, mas Deus estava
ocupado reunindo ao redor dele alguns dos homens mais eminentes*; os
quais, desde cedo, declararam total concordância com sua posição e se
engajaram com todas as forças em sua defesa. No ano 1518, Filipe
Melanchthon foi nomeado professor de grego na universidade de
Wittenberg. A partir daquele período, ele se tornou um amigo íntimo e fiel
colaborador do reformador, até o fim de seus dias. João Oekolampad,
que era professor na cidade de Basileia; Ulrico Zuínglio, Doutor em
Divindade na cidade de Zurique; Martin Bucer; Erasmo de Roterdã; e
muitos outros — cujos nomes brilharão para sempre entre os
instrumentos mais distintos da Reforma — foram levantados pela
graciosa providência de Deus, exatamente naqueles dias, para colaborar
nesta grande obra.
A morte do imperador Maximiliano, em janeiro de 1519, deixou vazio o
trono imperial alemão, e isso foi um elemento bastante favorável para a
causa da Reforma. A atenção da Corte de Roma foi desviada das
questões referentes a Lutero para essa, muito mais urgente, que dizia
respeito à eleição de um novo imperador. Durante o período que o Sacro
Império Romano Germânico estava sem imperador, o Eleitor Frederico foi
nomeado representante do Império. Isso lhe deu condições de oferecer
uma proteção ainda maior a Lutero e seus associados. A coroa imperial
foi oferecida pelos eleitores para Frederico, mas ele recusou-se a aceitar
tamanha e perigosa distinção. De fato, ele não queria assumir os
incômodos representados pelo pesado fardo de administrar o Império.
Entrementes, dois jovens príncipes, Henrique VIII, da Inglaterra, e
Francisco I, da França, reivindicavam para si o trono. Porém, após muita
oscilação, o elegido foi um neto de Maximiliano — chamado Carlos —
que também era neto de Fernando II, o católico, rei de Aragão. Devido
aos direitos hereditários e as extensas possessões deste jovem príncipe,
os eleitores decidiram a seu favor. Ele era soberano sobre a Espanha, a
Burgúndia e os Países Baixos, sobre Nápoles, Sicília, e o novo Império
das Índias. Além disso, a descoberta da América, por Cristovão Colombo,
adicionou muitos reinos do novo mundo a seu Império. Desde os dias de
Carlos Magno, nenhum monarca havia governado sobre tão vastos
domínios.
O papa, que a princípio se opunha à coroação de Carlos, por causa
dos conflitos de interesse do Vaticano, acabou por retirar suas objeções
ao perceber que Carlos seria eleito de qualquer maneira. Dessa forma,
Carlos foi coroado na cidade de Aachen no dia 22 de outubro de 1520.
Com apenas vinte anos de idade, o jovem Carlos assumiu o poderoso
Império Germânico, adotando o nome de Carlos V. Ele é descrito como
um jovem de grandes talentos naturais; sua seriedade e calma eram
impressionantes, e iam muito além do que era esperado para um jovem
da sua idade; ele era um grande amigo e promotor da arte bélica* e das
ciências. Também costumava ser extremamente amigável quando lhe
convinha. Ele possuía a sutileza e a perspicácia de um italiano, e a
atitude reservada e taciturna de um espanhol. Porém, antes de tudo, era
um católico fervoroso, dedicado e um fiel seguidor do papa. “Ele era
piedoso e calado”, assim nos diz Lutero, “eu aposto que ele fala menos
durante um ano inteiro do que eu falo em apenas um dia.”
Portanto, esse era o homem para o qual o caso de Lutero precisava ser
encaminhado agora. Nenhum outro homem mais apropriado poderia ser
encontrado para executar os decretos e fazer a obra que interessava ao
Vaticano. Iremos mencionar aqui os pensamentos do historiador Merle
d’Aubigné acerca dessa mudança no governo do reino alemão. Elas são
dignas do piedoso e fervoroso biógrafo de Lutero.
“Um novo personagem estava prestes a aparecer em cena. Deus
queria confrontar o monge de Wittenberg com o mais poderoso monarca
que governou a cristandade, desde os dias de Carlos Magno. Deus
escolheu um príncipe no vigor da juventude, cujo reinado prometia ser de
longa duração; cujo cetro se estendia sobre uma considerável parte do
Velho e do Novo Mundo, de modo que, como um famoso poeta disse, o
sol não se punha nos seus grandes domínios. Deus o colocou face a face
com a modesta Reforma, que começou na reclusão de uma escura cela
de um mosteiro, na cidade de Erfurt, pela angústia e choro de um pobre
monge. A história deste monarca e de seu reinado estavam destinadas,
assim nos parece, a ensinarem ao mundo uma lição importante. Essa
história serviria para mostrar a nulidade de todo o poder humano na luta
com a fraqueza de Deus (cf. 1 Co 1:25). Se um amigo de Lutero tivesse
sido escolhido para ser o imperador, o sucesso da Reforma poderia ser
atribuído a ele. Por outro lado, mesmo se o imperador fosse um soberano
fraco e se opusesse às novas doutrinas, o triunfo da obra da Reforma
poderia ser considerado como fruto da fraqueza do monarca. Mas foi o
orgulhoso conquistador de Pavia que estava destinado a se humilhar
diante do poder da Palavra de Deus; aquele, para quem era algo
insignificante trazer Francisco I prisioneiro à Madri, teve que depor a sua
espada diante do filho de um pobre mineiro aos olhos de todo o mundo!”9
***
LUTERO E A BULA DA EXCOMUNHÃO
Vamos retomar a história de Lutero com o encerramento do debate em
Lípsia. O doutor Eck, o famoso teólogo papal, muito irritado por sua
derrota e ardendo em ira contra Lutero, retornou às pressas para Roma
com o objetivo de obter uma bula de excomunhão contra seu oponente.
Sendo incapaz de refutar os recorrentes, porém fervorosos e decididos
reportes do reformador à Palavra de Deus, buscou sua condenação e
destruição pelo caminho da violência. Sempre tem sido essa a maneira
de agir de Roma e dos seus emissários.
A princípio, Leão não concordou em condenar Lutero sem uma razão
mais plausível. Mas finalmente foi vencido pelo clamor e pela
importunação vinda de Eck e de seus amigos, especialmente da parte
dos dominicanos; e então emitiu a desejada bula no dia 15 de junho de
1520. Segundo a opinião da maioria dos historiadores, o papa Leão X
agiu de forma muito imprudente. Os escritos de Lutero foram condenados
ao fogo, e ele mesmo foi entregue para Satanás como um perverso
herege. Tudo isso deveria se cumprir a menos que ele se retratasse e
implorasse a clemência do sumo pontífice no prazo de sessenta dias.
Todavia, o tempo de Lutero e seus amigos serem atemorizados e
silenciados mediante a ameaça da excomunhão, já havia passado. Em
geral, o temor do anátema papal já não era mais tão grande como antes.
Nos últimos cinquenta anos houve uma enorme mudança nos corações
da população alemã. A invenção da imprensa teve um sucesso
silencioso, porém eficaz em toda a Europa. Contudo, nem Leão X nem
Carlos V perceberam, até esse momento, toda a extensão e as
consequências dessa mudança. A incansável atividade de Gutenberg e
de seus seguidores; a descoberta da América por Colombo; Vasco da
Gama contornando o Cabo da Boa Esperança; a conquista de
Constantinopla pelos turcos e, ligado a isso, a dispersão dos sábios
gregos por toda a Europa — todos esses acontecimentos trouxeram nova
vida e novas atividades para o espírito humano; fizeram renascer o
interesse pela literatura, ciência e pela pesquisa; expandiram a mente
humana e despertaram os povos da profunda letargia* em que se
encontravam durante a longa e escura noite da Idade Média.10
Antes que a bula de Leão X chegasse a Wittenberg, boa parte da
Alemanha já estava unida de coração com Lutero, mas, de modo
especial, os estudantes, os artistas e os comerciantes. Lutero conhecia o
solo em que estava pisando, e percebeu que o tempo para dar o passo
decisivo havia chegado. Uma ruptura pública com Roma não podia ser
evitada por mais tempo. Ele havia escrito as mais submissas e pacíficas
cartas ao papa, aos cardeais, aos bispos, aos príncipes e a todos os
homens eruditos; ele havia apelado ao papa para comparecer diante de
um tribunal supremo, organizado por um concílio geral, porém tudo isso
foi em vão. Interiormente, Lutero já havia se separado de Roma em
Lípsia, e agora estava determinado a renunciar exteriormente à Igreja de
Roma e combater publicamente a autoridade da mesma. No dia 10 de
dezembro de 1520, às nove horas da manhã, tendo anunciado sua
intenção, Lutero pegou a bula papal juntamente com uma cópia da lei
canônica, os decretos papais, alguns dos escritos de Eck e de Jerônimo
Emser e, na presença de uma grande multidão de espectadores, colocou
fogo em tudo diante dos portões de Wittenberg. Ao lançar esses livros
nas chamas, o ousado monge disse: “Por teres afligido os santos do
Senhor, te aflija e te consuma o fogo eterno!”. Os doutores e os
estudantes da universidade, ali reunidos, irromperam em gritos de
aprovação.
Em seguida, Lutero entrou novamente em Wittenberg. Tendo se livrado
dessa maneira do jugo de Roma, ele fez um poderoso discurso ao povo
alemão, onde lhes fez recordar de suas sérias obrigações. A fogueira de
Wittenberg acendeu todos os ânimos, um fogo que não poderia mais ser
apagado. Quase toda a nação passou a seguir o corajoso doutor. Agora
Lutero era um homem totalmente livre. O laço que o havia prendido por
tanto tempo a Roma, agora estava rompido. A partir desse momento, ele
assumiu a atitude de um antagonista aberto e intransigente contra o papa
e seus emissários. Ele também publicou numerosos tratados contra a
corrupção do sistema romano e em defesa da verdade de Deus; os quais
fluíram da sua poderosa pena e se propagaram por toda a cristandade na
velocidade de um raio.
***
LUTERO E CARLOS V
Leão X se dirigiu agora ao jovem imperador pedindo-lhe a sua ajuda.
Ele relembrou a Carlos os votos que acabara de fazer — ser um
advogado e defensor da igreja constantemente. Com base nisso, o papa
exigiu que o imperador impusesse o devido castigo sobre o audacioso e
rebelde monge Martinho Lutero. Por todas as partes havia uma
ansiedade sobre qual seria a decisão do imperador. Será que ele iria
simpatizar com os princípios de progresso que podia ser visto em todos
os âmbitos: na literatura, na política e na religião? Ou será que ele seria
apenas um obediente instrumento do poder e maldade papal? Essas
eram questões de grande importância naquele momento.
Todavia, naquele momento, Carlos estava ocupado com outros
assuntos que lhe pareciam mais importantes. Dois anos se passaram até
que ele teve tempo suficiente para voltar a sua atenção para a questão
que ocupava a mente de todos. Esse intervalo foi utilizado por Lutero e
seus amigos do modo mais proveitoso. Durante os anos 1518 a1520,
foram escritas uma série de explicações sobre a Palavra de Deus, as
quais cativaram profundamente seus leitores. Pela graciosa condução de
Deus, a nova doutrina estava fazendo rápido progresso, não apenas na
Alemanha, mas também na Suíça, França e Inglaterra. Os preconceitos
profundamente arraigados ao longo de muitos séculos estavam sendo
arrancados gradativamente de muitos corações, de muitas partes da
Europa. As trevas foram cedendo mais e mais diante dos brilhantes raios
da aurora.
Finalmente, o imperador Carlos teve que se convencer que seria
necessário algo mais do que debates eruditos para impedir o progresso
daquele movimento, que ameaçava derrubar a religião de seus ancestrais
e a paz de seu Império. Por isso, ele proclamou uma Dieta*, ou
assembleia dos Estados da Monarquia Germânica, que seria realizada na
cidade de Worms; para ali, entre outras proposições, tratar da questão
de Lutero. Foi diante dessa assembleia que Lutero foi convocado a
comparecer e responder sobre sua conduta contumaz*. O papa e seu
partido jubilaram, visto que estavam convencidos que agora seu arqui-
inimigo seria atingido por uma ruína inevitável. Mas eles jubilaram cedo
demais, como veremos a seguir. Um, que é mais poderoso do que todos
os grandes da terra, estava com Lutero.
***
A DIETA DE WORMS
DE JANEIRO ATÉ MAIO DE 1521
O monge de Erfurt, armado com a Palavra de Deus e confiando
firmemente na força da presença divina, havia vencido o exército de
vendedores de indulgências. Ele também havia conseguido uma vitória
fácil sobre o legado papal em Augsburgo, e sobre o defensor do papado
nos salões da universidade de Lípsia. Lutero também havia respondido
às ameaças iradas do papa Leão X queimando sua bula de excomunhão
na cidade de Wittenberg. Roma havia sofrido um golpe atrás do outro;
suas ameaças foram desprezadas; parecia que sua força havia se
dissipado. A pretensa igreja não poderia mais agir como estava
acostumada desde os tempos antigos. Os homens haviam começado a
pensar por si mesmos e não se submetiam mais cegamente às ordens e
dogmas de Roma. A última esperança de Roma se fundava sobre o
jovem imperador devotado à igreja. Com ele, a vitória final era certa.
Carlos V, o servo fiel de São Pedro, abriu a Dieta no dia 28 de janeiro,
data em que se celebrava o festival em honra a Carlos Magno. Nunca
antes na história da humanidade, um número tão grande de reis,
príncipes, prelados, nobres, e homens poderosos desse mundo, haviam
se reunido em uma Dieta. “Eleitores, duques, arcebispos, landgraves*,
governantes militares das províncias de fronteira, condes, bispos, barões,
senhores de terras, bem como representantes das cidades e
embaixadores dos reinos da cristandade, lotaram as estradas que
conduziam à cidade de Worms com suas brilhantes carruagens e seus
séquitos. Grandes questões que afetavam a paz da Europa, do mundo e
o triunfo da verdade deveriam ser discutidas com a maior e mais
profunda seriedade.” Mas tudo o demais parece sem importância em
comparação com a causa de Lutero e a Reforma Protestante.
Depois da abertura da Dieta, um núncio papal chamado Jerônimo
Aleandro, que era homem de brilhante eloquência, dirigiu-se ao
imperador, aos príncipes e a todos os representantes presentes fazendo
um discurso que durou aproximadamente três horas. Ele tinha os livros
de Lutero diante de si, bem como cópias das bulas papais. Ele disse tudo
aquilo que Roma poderia dizer contra os livros e o autor dos mesmos.
Aleandro afirmou que nos escritos de Lutero havia tantos erros que, por
causa deles, poderiam ser queimados cem mil hereges. Sua poderosa
oratória, apresentada com todo o fervor de um fanático seguidor de
Roma, e o entusiasmo de seu vocabulário, causaram uma profunda
impressão sobre toda a assembleia. Não demorou muito para que
murmúrios contra Lutero e seus seguidores fossem ouvidos de todos os
lados. No entanto, do longo discurso de Aleandro, transpareceu que ele
procurava impedir, com todos os meios, uma aparição pessoal de Lutero
diante da Dieta. O partido papal temia a distinção que seria dada,
necessariamente, a essa nova doutrina por meio da presença de Lutero
diante desta grandiosa assembleia. Ao mesmo tempo, eles temiam um
exame aprofundado dos pontos controversos; visto que já uma vez
tiveram que abandonar o cenário, de forma vergonhosa, diante da
poderosa eloquência de Lutero e suas esmagadoras provas. O papa
Leão X escreveu de próprio punho uma solicitação ao imperador, para
que este não desse o salvo conduto a Lutero. Naturalmente, os bispos
concordaram com o papa, que não deveriam dar um salvo conduto e nem
deviam fidelidade a um herege.
***
A CONVOCAÇÃO DE LUTERO E SEU SALVO CONDUTO
O jovem imperador se encontrava em uma situação de grande
embaraço. Colocado entre o núncio papal e o Eleitor Frederico, ao qual
ele se sentia devedor por sua coroa, o que ele poderia fazer? Ele gostaria
de agradar aos dois. Naquela ocasião, toda essa questão não lhe parecia
tão importante. Poupar ou mandar sacrificar a vida de um pobre monge
alemão era uma questão de menor monta para Carlos V. Mas o mesmo
não era verdadeiro aos olhos dAquele que é Senhor sobre todos os
senhores. Era a vontade de Deus que Lutero desse testemunho diante
daquela grande assembleia a favor da Sua verdade e contra a mentira de
Satanás. Finalmente, Carlos V percebeu que teria que tomar uma
decisão. Para ele, a apresentação de Lutero diante da Dieta parecia o
único meio capaz de dar um fim a toda aquela situação que havia atraído
a atenção e ocupava a mente de todos no Império. Mas aqui, o Eleitor da
Saxônia interferiu. Embora ele também desejasse que Lutero fosse a
Worms, ele conhecia demasiadamente bem os traiçoeiros clérigos e
lembrava-se da sorte de João Huss e Jerônimo de Praga. Portanto, ele
daria sua aprovação para a convocação de Lutero apenas sob duas
condições, a saber, que o imperador desse um salvo conduto seguro a
Lutero e, caso Lutero fosse condenado, que pudesse voltar em liberdade
para Wittenberg. O imperador hesitou, mas finalmente concordou. O
salvo conduto foi escrito e Lutero foi convocado a comparecer em
Worms. Lutero esperava há muito tempo por essa convocação, e se
colocou a caminho imediatamente.
No dia 2 de abril, Lutero se despediu de seus amigos e iniciou sua
viagem. Ele utilizou uma modesta carruagem e foi acompanhado de seus
amigos Jerônimo Schurff, Nicolau de Amsdorf e Pedro Suaven. O arauto
imperial portando o salvo conduto, cavalgava diante deles. Por toda a
viagem, Lutero experimentou que os sombrios pressentimentos de todos
os seus amigos se cumpriam. Por todas as partes ele foi advertido que
“uma ação traiçoeira estava planejada e que ele já estava condenado.
Seus livros já haviam sido queimados pelo carrasco e ele era um homem
morto se prosseguisse sua viagem”. Mas Lutero, sem desanimar,
respondeu: “Eu confio no Deus Todo-Poderoso, cuja Palavra e cujos
mandamentos tenho diante de mim”. Ele anunciou a nova doutrina
corajosamente em diversos lugares por onde passou, e aceitou com
gratidão a hospedagem que seus amigos lhe ofereciam. Todavia, à
medida que se aproximava de Worms, a tempestade que ele mesmo
havia causado, tornou-se mais violenta. Os inimigos da Reforma rangiam
os dentes com ira quando ouviram que ele estava se aproximando da
cidade. Spalatino, o capelão do Eleitor e fiel amigo de Lutero, enviou um
mensageiro ao seu encontro com as palavras: “Não entre em Worms!”.
Mas o intrépido monge, cheio de santo entusiasmo, ignorou a mensagem
e disse: “Diga a vosso senhor que, ainda que houvesse tantos diabos em
Worms quantas são as telhas nos telhados, mesmo assim irei”. Na
manhã de 16 de abril ele viu as muralhas e torres da antiga cidade.
Cavaleiros e nobres saíram da cidade ao seu encontro, e mais de duas
mil pessoas o acompanharam até o seu alojamento. Todas as casas
estavam ocupadas até os telhados, cheios de espectadores curiosos.
Todos queriam ver o homem que ousava declarar guerra ao papa.
No dia seguinte, Lutero foi conduzido para a Dieta escoltado pelo mais
alto oficial do Império, Ulrico de Pappenheim. A multidão enchia tanto as
ruas, que foi necessário conduzir Lutero através de casas e jardins
particulares, até fazê-lo alcançar o salão de audiências. Muitos dos
cavaleiros e nobres que estavam diante das portas do salão do concílio
falaram palavras encorajadoras a Lutero, enquanto este passava. Um
deles, que provavelmente conhecia a verdade e amava o Senhor Jesus,
fez Lutero se lembrar das palavras do Mestre: “Mas, quando vos
entregarem, não vos dê cuidado como, ou o que haveis de falar, porque
naquela mesma hora vos será ministrado o que haveis de dizer” (Mt
10:19). Um cavaleiro já de idade, Georg von Frundsberg, vestido com
uma armadura brilhante, tocou o ombro de Lutero com sua luva e disse:
“Alguns de nós temos enfrentado acirradas batalhas em nossos dias, mas
nem eu nem qualquer outro cavaleiro dessa companhia passamos por
momentos como esse que tu irás passar, nem tivemos a necessidade de
tanta coragem quanto tu precisas ter agora. Se tens certeza da tua causa
e fé nas doutrinas que apresentas, vai em frente, em nome de Deus;
esteja confiante, Deus não irá te abandonar”. Erguendo sua cabeça,
Lutero disse: “Sim, em nome de Deus, avante”.
***
LUTERO COMPARECE DIANTE DA ASSEMBLEIA
Para um homem que passou muitos anos no silêncio e no recolhimento
de um mosteiro, a visão de uma assembleia tão magnificente deve ter
sido realmente imponente. Ali estava sentado Carlos V, o soberano sobre
a metade do mundo. Ao seu lado estavam príncipes e potentados do
Império Germânico, além de bispos, arcebispos, cardeais com suas
roupas de cor vermelho escarlate, núncios papais em seus suntuosos
trajes oficiais, embaixadores dos mais poderosos príncipes da
cristandade, delegações, e uma multidão incontável de cavaleiros e
nobres. Todos estes estavam reunidos para ouvir o interrogatório e a
condenação do filho de um pobre mineiro de Mansfeld. Vestido com sua
simples túnica de monge, com o rosto pálido e enfraquecido pelos
constantes trabalhos e tribulações de sua vida, Lutero permaneceu
calmamente em pé no meio dessa majestosa assembleia. “Ainda assim,
como um profeta solitário, ele permaneceu firme, proferindo palavras
corajosas e elevadas”, respondendo todas as questões com firmeza e
modéstia.
Após um momento de intenso silêncio, o chanceler de Tréveris se
dirigiu a Lutero em alta voz, primeiro em latim, depois em alemão:
“Martinho Lutero, foste chamado por Sua Majestade imperial para
responder duas questões: a primeira, admites que escreveste estes
livros?” — apontando para aproximadamente vinte volumes colocados
sobre uma mesa. “A segunda questão: estás disposto a retratar-te sobre
estes livros e do que neles está escrito, ou persistes nas doutrinas que
eles contêm?” Em relação à primeira pergunta, Lutero respondeu que
reconhecia plenamente aqueles livros, e que jamais renegaria a qualquer
um deles. Quanto à segunda pergunta, ele solicitou um prazo para
pensar, para que sua resposta fosse tal, que ele não ofendesse a Palavra
de Deus nem colocasse em risco a sua própria alma. A assembleia lhe
concedeu um dia. Não nos cabe examinar quais tenham sido as razões
de Lutero para pedir uma prorrogação. Todavia, uma coisa é certa, essa
prorrogação foi utilizada por Deus para manifestar as fontes secretas da
força e da coragem de Lutero, bem como dos crentes de todas as
épocas. Aquela maravilhosa oração que Lutero elevou a Deus, pouco
antes de comparecer por segunda vez diante da Dieta, é o mais precioso
documento que foi conservado de toda a história da Reforma Protestante.
***
A ORAÇÃO DE LUTERO
Depois que Lutero retornou para a sua habitação, ele se sentiu
profundamente perturbado em seu interior. Por um breve momento, seu
olhar se desviou de seu Senhor. Ele estava preocupado com os muitos e
poderosos príncipes diante dos quais teria que comparecer. Ele se sentiu
como Pedro, quando olhou para as ondas bravias em vez de fixar sua
atenção na Pessoa de Cristo. Sua fé enfraqueceu; ele sentiu como se
fosse afundar. Nesse estado de alma, Lutero prostrou-se com seu rosto
em terra e elevou profundos gemidos ao trono da graça, para os quais ele
não podia encontrar palavras. Era o próprio Espírito intercedendo por ele.
Um amigo, tendo ouvido da sua inquietação, correu até ele preocupado; e
teve o privilégio de ouvir os gritos entrecortados que saíam do mais
profundo de seu ser apreensivo.
“Oh, Todo-Poderoso e Eterno Deus! Quão terrível é este mundo! Veja,
ele abriu a sua fauce* para me engolir, e quão fraca é minha confiança
em Ti! Quão fraca é a carne e quão poderoso é Satanás! Se colocasse
meus olhos naquilo que é poderoso no mundo, então tudo está perdido!
Minha última hora é chegada, pois minha condenação já foi pronunciada!
Oh Deus! Oh Deus! Tu meu Deus, socorre-me contra toda a sabedoria do
mundo! Socorre-me! Tu tens que fazê-lo, Tu somente; não é a minha
causa, mas a Tua! Eu não tenho nada para fazer aqui, nada para
contender com esses grandes homens do mundo! Gostaria de ver meus
dias fluírem em paz e felicidade. Mas a causa é Tua, Senhor; e é uma
causa justa e eterna. Meu Senhor! Ajuda-me! Tu, Deus fiel e imutável!
Não confio em homem algum, pois sei que isso é em vão. Tudo que é
carnal está fadado ao fracasso. Oh Deus! Meu Deus! Não me ouves?
Meu Deus, Tu estás morto? Não, Tu não podes morrer; Tu apenas te
ocultas; Tu me escolheste para isso, estou certo disso. Deus, auxilia-me,
em nome do Teu Filho Jesus Cristo, que é minha proteção, o meu escudo
e a minha fortaleza.”
Por um momento, Lutero lutou em silêncio com o Senhor. A confiança
na carne e a obstinação humana que poderiam ter sobrado nele, deviam
ser totalmente quebradas na presença de Deus. Somente então ele seria
um instrumento adequado para o serviço para o qual seu Senhor e
Mestre queria utilizá-lo, pois “o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2
Co 12:9). Então, quando ele irrompeu novamente nessas exclamações
curtas e que estremeciam o coração, a luta da sua alma pareceu ter
alcançado o ápice.
“Oh Senhor! Onde estás? Oh meu Deus! Onde estás? Vem! Eu estou
pronto. Estou disposto a entregar minha vida pela Tua verdade, como um
cordeiro manso. Pois esta causa é justa — é a Tua causa. Não Te
deixarei, nem agora e nem na eternidade. Ainda que o mundo estivesse
cheio de diabos; que meu corpo, que é Tua obra, fosse lançado ao pó,
esquartejado, mutilado, queimado — minha alma é Tua; isso a Tua
Palavra me garante. Minha alma Te pertence e permanecerá Contigo
eternamente. Amém. Oh Deus! Socorre-me! Amém!”11
Esta oração explica o estado em que se encontrava o coração de
Lutero e o caráter da sua comunhão com Deus, melhor do que qualquer
descrição que possa ser oferecida pela escrita de um biógrafo. O Deus
vivo preparava Seu servo para Sua obra, fazendo-o provar o amargor da
morte. Lutero estava apenas emergindo das trevas da superstição. Ele
ainda não havia compreendido plenamente as abençoadas verdades da
morte e da ressurreição, da sua identificação com Cristo, e da sua plena
aceitação no Amado. Mas a realidade da sua íntima comunhão com
Deus, e o poder e o fervor da sua oração, refrigeram nossos corações
ainda hoje, mesmo após cinco séculos.
***
LUTERO COMPARECE PELA SEGUNDA VEZ
Os frutos de sua oração logo puderam ser percebidos. Lutero se
encontrava novamente diante do imperador Carlos V e dos grandes
personagens ali reunidos. O chanceler iniciou a sessão dizendo:
“Martinho Lutero, ontem pedistes por uma prorrogação, a qual chegou ao
seu final. Responda, portanto, à questão que lhe foi feita por Sua
Majestade, cuja benevolência tens experimentado. Irás defender teus
livros ou irás retratar-te do que escrevestes neles?”.
Lutero virou-se para o imperador e com o semblante sério, no qual
refletiam a calma interior, a modéstia e a firmeza, ele passou a apresentar
detalhadamente o conteúdo de seus livros. Muito daquilo que ele falou
deve ter sido bastante agradável para os alemães ali presentes; mas,
sem dúvida, profundamente irritante para os romanos. Como um
exemplo, apresentamos uma pequena parte do que ele disse: “Em alguns
de meus livros tenho escrito contra o papado e contra aqueles que
desolaram a cristandade, no corpo e na alma, com sua falsa doutrina,
com sua vida ímpia e com seus escandalosos exemplos. As suas falsas
doutrinas, suas infames vidas, e seus caminhos perversos são
conhecidos de todos os homens. Pois ninguém pode negar isso —
porque todos os corações piedosos lamentam sobre isso — que pelas
suas doutrinas humanas e leis papais, as consciências dos cristãos são
enredadas, atormentadas e sobrecarregadas. Ao mesmo tempo, a
riqueza e os bens da cristandade, mas especialmente dessa ilustre nação
alemã, são devorados com uma inacreditável tirania!”.
Mas essa explicação acerca de seus livros não era o que a Dieta
desejava ouvir. Lutero foi pressionado para fazer uma retratação clara e
inequívoca. “Irás retratar-te ou não?”, perguntou o orador da Dieta com
alta voz. Agora, Lutero, sem hesitar, deu a seguinte resposta, que é digna
do destemido reformador: “Visto que Sua Majestade imperial, os
príncipes e os eleitores desejam uma resposta precisa, clara e simples,
eu a darei, a saber: Não creio somente no papa e nos concílios, porque é
claramente manifesto que os mesmos erram frequentemente e muitas
vezes têm se contradito uns aos outros. Portanto, a menos que eu seja
convencido pelo testemunho das Santas Escrituras ou por razões e
motivos públicos e claros, e a menos que consigam me convencer e
manter minha consciência cativa pela Palavra de Deus, eu não posso e
não irei retratar nada, pois não é seguro nem aconselhável para um
cristão falar contra sua própria consciência”. A seguir, olhando ao redor
para toda a assembleia — para todos aqueles que eram grandes em
poder, todos os que eram veneráveis pela idade — Lutero encerrou com
estas maravilhosas e memoráveis palavras: “Aqui estou, e não posso
agir de nenhuma outra maneira. Que Deus me ajude! Amém”.
Surpresos pela coragem e ousadia que o monge simples manifestou,
muitos dos príncipes apenas conseguiram suprimir sua admiração, outros
estavam em uma situação embaraçosa. De certa forma, neste nobre
protesto de Lutero, estava toda a alma e o significado da Reforma
Protestante. Os homens deveriam continuar dizendo que isso ou aquilo
era verdadeiro apenas porque o papa havia feito tal afirmação? Ou eles
tinham o direito de, doravante, julgar os decretos dos papas e dos
concílios, como palavras de homens comuns, pelo infalível padrão da
Palavra de Deus? Estas eram as perguntas que Lutero acabara de
responder de maneira simples, porém, ao mesmo tempo, com
convincente poder e verdade. Movido pela mão do monge de Wittenberg,
o sino anunciando a morte do absolutismo, da ilimitada soberania da
igreja, começou a soar em todos os países.
Quando Lutero terminou o seu discurso, o chanceler disse: “Uma vez
que não irás retratar-te, o imperador e os Estados do Império irão
considerar que curso eles deverão adotar com respeito a um herege
obstinado como tu”. Lutero respondeu com voz firme: “Deus me ajude; eu
não posso me retratar”. Após uma breve deliberação, o chanceler
anunciou à multidão que estava ouvindo muito atentamente: “A Dieta do
Império irá se reunir amanhã de manhã para ouvir a decisão do
imperador”.
O efeito geral produzido sobre os participantes da Dieta, tanto pelas
palavras como pela conduta de Lutero, foi inquestionavelmente mais
favorável a ele. Lutero deu mais motivos do que nunca para que seus
inimigos temessem. Na presença de tantos líderes eclesiásticos tão
poderosos, todos sedentos pelo seu sangue, Lutero não temeu denunciar
impiedosamente e atacar, com sua costumeira rudeza, as iniquidades do
papado. Mas o que foi ainda muito mais importante para a causa da
Reforma é que ele — por meio da sua conduta firme e varonil —
despertou em seus amigos algo da confiança inabalável na verdade que
ele mesmo possuía. Após uma noite de insônia, de imensa ansiedade e
discussão com todos os partidos, a manhã chegou, e com ela as duras
notícias para Lutero. A política e a astúcia do Vaticano haviam
prevalecido no concílio do imperador Carlos V. Quando a Dieta estava
reunida, o jovem imperador mandou ler o seguinte edito.
“Sendo descendente de imperadores cristãos da Alemanha, de reis
católicos da Espanha, de arquiduques da Áustria, de duques da
Burgúndia, os quais têm sido renomados defensores da fé romana, estou
firmemente decidido a imitar o exemplo de meus ancestrais. Um simples
monge, induzido por sua própria tolice, se atreveu a levantar-se contra a
fé da cristandade. Para confrontar tamanha impiedade, estou disposto a
sacrificar meus reinos, meus tesouros, meus amigos, meu corpo, meu
sangue, minha alma e minha vida. Removerei o monge agostiniano
Lutero de suas funções, e proíbo-o de causar qualquer rebelião, por
menor que seja, entre o povo. De outra forma, destruirei ele e seus
seguidores, como contumazes hereges, por meio da excomunhão, do
interdito12 e lançando mão de todos os meios possíveis para destruí-los.
Convoco todos os membros dos Estados para agirem de igual modo,
como fiéis cristãos.”
Por mais severa que esta sentença possa parecer, a mesma ainda
estava longe de satisfazer os papistas. Eles desejavam uma
oportunidade para violar o salvo conduto, e repetir a tragédia perpetrada*
por seus ancestrais, cem anos antes, na cidade de Constança. “O rio
Reno”, eles disseram, “deveria receber suas cinzas, da mesma forma que
recebeu as cinzas de João Huss e Jerônimo de Praga”. Mas esses
atentados covardes e traiçoeiros foram rejeitados com aversão pelos
príncipes alemães, nos quais prevalecia o espírito de honra nacional e
pela consideração à palavra dada. Esse espírito animava a grande
maioria dos participantes da Dieta do Império. Carlos também rejeitou
com firmeza este ato de deslealdade.
Agora restava apenas uma única esperança para o partido papal, que
era o assassinato, de modo traiçoeiro, deste nobre homem. O historiador
Froude diz: “Uma conspiração foi feita para assassinar Lutero em sua
viagem de retorno à Saxônia. A majestade insultada de Roma deveria ser
vingada, se não fosse possível de outra forma, pelo punhal do assassino.
Mas esse infame atentado também fracassou. O Eleitor Frederico, da
Saxônia, tomou conhecimento do malévolo plano dos assassinos. Um
grupo de cavaleiros, disfarçados de salteadores, assaltou o reformador
em sua viagem de retorno, já próximo de Wittenberg; o sequestraram e
com toda pressa o levaram para o castelo de Wartburg, onde Lutero
permaneceu em tranquilidade e paz, longe de todo tumulto, até que uma
revolta generalizada na Alemanha o colocou fora de perigo”.13
***
REFLEXÕES ACERCA DA PRESENÇA DE LUTERO NA DIETA DE WORMS
O fato de que Lutero compareceu diante da Dieta já era uma vitória
sobre o papado. Sua entrada na cidade de Worms parecia uma
procissão triunfal. Ali, apesar de ser condenado duas vezes,
excomungado como herege e cortado de todas as sociedades humanas,
ele teve o privilégio de permanecer diante da mais ilustra assembleia de
todo o mundo. O papa Leão X o havia condenado anteriormente a um
silêncio perpétuo, e agora ele foi convidado, pelo uso da mais respeitosa
linguagem, a se pronunciar perante milhares. Pela graça da providência
de Deus, Lutero teve permissão de se dirigir aos ouvidos de numerosos
representantes de toda a cristandade e dar testemunho da verdade, sem
que um ousasse interrompê-lo ou contradizê-lo. Suas palavras corajosas
e eloquentes penetraram em todo o mundo. De acordo com d’Aubigné,
“Deus havia dado o primeiro impulso para uma imensa revolução
religiosa, que foi efetuada por meio de Lutero, e a cabeça suprema do
poder sacerdotal romano, por tanto tempo adorada, estava ameaçada a
sucumbir”. A voz de um único homem derrubou o papa do trono, que ele
havia ocupado na sua arrogância, e o entregou ao desprezo de todos
aqueles que pensavam corretamente e julgavam de forma imparcial. O
simples fato do interrogatório de Lutero em Worms anunciou ao mundo
que o poder do papado estava quebrado e que a vitória da Reforma
Protestante estava garantida. Um pobre, perseguido, sem amigos e
solitário monge se colocou contra a majestade da Tríplice Tiara papal. O
poder secular foi chamado para esmagar o herege, mas o próprio
imperador se recusou a executar o decreto do papa. O banimento foi
lançado por terra, sem efeito. Um poder espiritual, superior ao papa e ao
imperador, prevaleceu, e os sons jubilosos do triunfo penetraram até as
terras mais longínquas.
É evidente que nem o papa, nem seus prelados, nem o imperador
conhecia o real estado do pensamento do povo. Uma nova geração havia
surgido, a qual havia sido ensinada por vários homens eruditos a se
libertar do domínio espiritual de Roma, a pensar por si mesma e a ter
opinião própria. Os pensamentos de Lutero sobre o papado e sobre a
Palavra de Deus também eram os pensamentos de milhares de outras
pessoas, embora naquela ocasião ele estivesse sozinho diante da Dieta,
como testemunha da verdade de Deus. Suas palavras acharam um
alegre eco em inúmeros corações. Face às muitas arrogâncias da Igreja
Romana e do Reino, Lutero afirmou decididamente o direito de cada
indivíduo ler a Palavra de Deus e examiná-la; e também de que era o
dever de cada um se submeter incondicionalmente à autoridade da
Bíblia. Entre todos os príncipes presentes, Lutero não tinha nem um
sequer que se declarasse seu protetor ou que se confessasse
abertamente do seu lado, nem mesmo um simples advogado de qualquer
nível ou influência em toda a assembleia. Mas Deus — que fortaleceu o
profeta Elias a resistir aos sacerdotes de Baal no monte Carmelo; que
esteve ao lado de Paulo quando este compareceu diante de nobres e
príncipes desse mundo, e até mesmo diante do poderoso César Romano
— também concedeu ao monge de Wittenberg uma sabedoria e poder,
aos quais ninguém podia resistir, que impôs a todos a convicção de que o
verdadeiro poder espiritual e a feliz liberdade só podem ser encontradas
onde há uma boa consciência, que é pela fé no Senhor Jesus Cristo e
pela presença e poder do Espírito Santo.14

1 Celebração Católica em que se recebe a indulgência plenária ou perdão de todos


os pecados, que é concedida pelo papa em várias solenidades.
2 Povo nômade pré-islâmico, que habitava os desertos situados entre a Síria e a
Arábia, ou indivíduo desse povo.
3 Documento papal ou de um senado acadêmico, escrito em pergaminho e selado.
Originalmente se designava com a palavra “bula”, a cápsula metálica na qual se
encontrava o selo de cera ou de chumbo que se costumava pendurar o
documento.
4 Indulgência plenária é aquela que, supostamente, perdoava todos os pecados de
uma pessoa. Ela também podia ser atribuída a algum ente querido para livrá-lo
dos tormentos do purgatório.
5 Gardner´s, Faiths of the World, vol. 2, p. 252.
6 Ver D’Aubigné, vol. 1, p. 322. Froude’s Short Studies, vol. 1, p. 96.
7 Unidade monetária e moeda corrente na Idade Média.
8 Obra produzida por João Eck, na qual atacava Martinho Lutero e suas 95 teses e
defendia de forma ardorosa o papado.
9 Vol. 2, p. 109. Ver também Froude´s em Short Studies on Great Subjects vol. 1.
Universal History, Bagster, vol. 8. Waddington´s Reformation, vol. 1, Mosheim, vol.
3.
10 James White em Eighteen Christian Centuries, p. 381.
11 D’Aubigné, vol.II, pg.232.
12 Por interdito, entende-se uma proibição decretada por um papa ou bispo de todos
os procedimentos eclesiásticos.
13 Short Studies on Great Subjects.
14 Universal History, Bagster, vol. 7, p. 18. Waddington, vol. 1, p. 364. D´Aubigné,
vol. 2, p. 347. Para mais detalhes ver Milner, vol. 4.

Capítulo 35
LUTERO EM WARTBURG

O súbito e misterioso desaparecimento de Lutero causou uma profunda


preocupação em seus amigos e produziu um grande júbilo em seus
inimigos. Os boatos mais extraordinários circularam através das
províncias, de tal forma que o nome de Lutero, seu caráter e obras foram
debatidos em todos os lugares, muito mais do que em qualquer período
anterior. Como o segredo era necessário para sua própria segurança,
tanto seus amigos quanto seus inimigos foram mantidos na incerteza por
vários meses, visto que os únicos que poderiam dar o paradeiro do
reformador se mantiveram em absoluto silêncio.
O castelo de Wartburg, local onde Lutero se encontrava e ao qual mais
tarde chamou de “sua ilha de Patmos”, era uma antiga e inexpugnável*
fortaleza. Localizada no topo de uma montanha bosqueada*, antigamente
havia servido de residência para os landgraves da Turíngia. Da
perspectiva privilegiada do castelo, Lutero podia observar a vizinhança de
Eisenach, que era onde sua mãe havia nascido e a cidade na qual
passou sua primeira infância. Para não levantar suspeitas quanto a sua
identidade, Lutero foi obrigado a abandonar suas vestes e capuz de
monge; deixar a barba e o cabelo crescer; se vestir com as roupas e
aceitar um título que o caracterizassem como um nobre cavalheiro do
campo. O mais aguçado olho dificilmente teria reconhecido naquele
delgado Junker* George, que cingia uma espada, o outrora monge e
antagonista* do papa. Para o próprio Lutero, estas mudanças eram
extremas. Repetidamente ele sofreu de severos problemas físicos que o
deixaram acamado, porém mais do que isso, um profundo abatimento da
sua alma o torturava. Em algumas de suas cartas escritas da “ilha de
Patmos”, ele se queixava amargamente dos costumes indolentes que
estava adquirindo e das más consequências da boa vida que estava
levando. Apesar de encontrar-se separado bruscamente de seus labores
públicos nos auditórios da universidade e dos púlpitos da igreja em
Wittenberg, ele continuava a escrever diligentemente. Para os seus
adversários, parecia que agora, na sua reclusão, ele estava ainda mais
ativo do que antes. Lutero trabalhava com incansável diligência. Cartas e
tratados de todo tipo foram enviados desde Wartburg para todas as
regiões e províncias da Alemanha. Foi no silêncio da antiga fortaleza
onde ele também começou sua maior, mais útil e importante obra literária
— a tradução da Bíblia para a língua alemã. Durante seu isolamento, no
verão do ano de 1521, Lutero concluiu o Novo Testamento. Ao mesmo
tempo, ele se empenhou diligentemente a ampliar e aprofundar seu
conhecimento das línguas grega e hebraica, com o propósito de poder
oferecer uma versão da Bíblia, na língua alemã, mais completa e mais
correta possível.
***
REFLEXÕES ACERCA DO CATIVEIRO DE LUTERO
Nesse momento da nossa história, faremos uma pausa para aprender
uma importante lição para nós a partir dos caminhos de Deus para com
Seu servo. Como uma águia presa por uma corrente, Lutero sentava-se o
dia todo em meio às densas florestas da Turíngia refletindo, de forma
sombria, sobre o triste e corrompido estado em que se encontrava a
igreja e o clero. Ele estava cheio de inquietude acerca dos resultados da
Dieta de Worms, do bem-estar de seus amigos e do progresso da
verdade. Lutero não havia aceitado as cadeias que o torturavam e
irritavam como vindas do Senhor. Sua saúde estava debilitada e ele
passava noites inteiras acordado. Os pensamentos depressivos de sua
mente aumentavam diariamente, e ele imaginava que estava exposto aos
incessantes ataques de Satanás. Naqueles dias ele escreveu a um
amigo: “Nesta solidão que me encontro, estou abandonado a milhares de
demônios enviados por Satanás. É muito mais fácil lutar com inimigos
que tem carne e sangue, do que com espíritos maus nos lugares
celestiais”. Ele ansiava por liberdade e por colocar-se na frente da
batalha. Temendo que pudesse ser acusado de ter desertado
covardemente do campo de batalha, ele exclamou: “Eu prefiro ser
colocado sobre brasas ardentes, do que apodrecer aqui semimorto!”.
A razão humana estava tentada a dizer: “A decisão está à porta. A
atividade incansável e os ataques irresistíveis de Lutero, agora, são mais
necessários do que nunca. Se o líder de tão poderoso movimento for
obrigado a se retirar nessa hora tão importante, então a causa da
verdade sofrerá perdas irreparáveis e seus inimigos triunfarão”. Todavia,
apesar de todo o raciocínio humano, o Deus soberano diz: “Não! Os
meus caminhos não são os vossos caminhos, nem meus pensamentos
são os vossos pensamentos. O cativeiro do meu servo servirá para a
libertação de milhões de pessoas”. E foi isso mesmo o que aconteceu. O
cativeiro produziu nele, como nenhum outro evento na sua história, um
maior enriquecimento de sua mente; contribuiu muito para colocar em
ordem as suas opiniões referentes à natureza e a extensão da Reforma,
assim como o estado das coisas ao seu redor exigia; moderou seu fervor
e o capacitou para a continuação da batalha. Além disso, também serviu
para que ele escrevesse inúmeros livros e fizesse a tradução completa da
Bíblia para o alemão. Se Deus não tivesse, em Sua graciosa providência,
tido o cuidado de que Lutero desparecesse por um tempo do cenário das
suas vitórias e sucessos, talvez ele tivesse sido levado longe demais pela
violência natural de seu caráter ou teria naufragado nas perigosas rochas
do orgulho espiritual e da autoexaltação, nas quais muitos grandes
reformadores sucumbiram. Que todos nós possamos aprender a nos
curvar voluntariamente sob a mão do nosso Senhor e Mestre, tanto
quando Ele deseja que estejamos quietos, como quando Ele nos diz:
“Levanta-te e serve nessa obra para a qual Eu te chamei e te capacitei”.
Moisés na terra de Midiã, Paulo na região da Arábia, João na ilha de
Patmos, e Lutero em Wartburg — que preciosas instruções para todos os
servos do Senhor.
***
LUTERO RETORNA PARA WITTENBERG
Durante a estadia de Lutero em Wartburg, não houve ninguém entre
seus seguidores que possuísse capacidade e habilidades suficientes para
continuar com vigor sua obra. O calmo e erudito teólogo Filipe
Melanchthon estava capacitado para ensinar outros, reproduzir e expor
as verdades das Escrituras de uma maneira bela e completa, porém não
estava em condições de apaziguar os ânimos exaltados e conduzi-los no
caminho certo. Ele era um homem pacífico, mas não possuía a força
necessária para lutar as incessantes batalhas da jovem Reforma. André
Karlstadt, um doutor de Wittenberg e um dos primeiros amigos de
Lutero, e que não ignorava a verdade, foi induzido a liderar algumas
pessoas fanáticas que imaginavam manter uma comunhão imediata com
Deus e costumavam arrogar para si mesmas títulos de profetas e
apóstolos. O número desses indivíduos aumentou bastante. Muitos
jovens universitários de Wittenberg se uniram ao grupo. Eles declararam
que as ideias reformistas de Lutero não eram abrangentes nem
profundas suficientes. Em seu entusiasmo fanático, eles proclamavam:
“Ai! Ai! Ai da falsa igreja e dos bispos corruptos!”. Eles invadiam as
igrejas, quebravam e queimavam as imagens, e praticavam outros
diversos excessos, os quais colocavam em risco o nascer da liberdade,
da paz e do bem-estar de toda a Alemanha. As autoridades civis
tomaram providências para coibir tais abusos, e muitos desses zelotes*
foram lançados na prisão.
O clamor por Lutero tornou-se cada vez mais generalizado. Ele era o
único homem que podia enfrentar, com sucesso, e fazer calar tanto os
papistas quanto também os fanáticos religiosos. Na sua solidão, em
Wartburg, ele ouviu dessa nova confusão; e sem ter obtido o
consentimento do Eleitor Frederico, Lutero fugiu de Wartburg, colocando
a sua vida em risco, e dirigiu-se apressadamente para o cenário do
tumulto. Entre os nomes que entraram para o memorial da história, como
os líderes da tolice que apontamos acima, nós podemos destacar os de
Nicolas Storch, Marcos Stubner, Martinho Cellary e Tomás Müntzer. Esse
último — Müntzer —encontramos novamente alguns anos depois, em
1525, como o líder da rebelião dos camponeses, que foi chamada de “A
Guerra dos Camponeses”.
Lutero retornou de sua “Ilha de Patmos” para Wittenberg no mês de
março de 1522. Ele foi recebido pelos doutores, estudantes e cidadãos
com demonstrações de alegria sincera e afeição. Lutero ficou assustado
quando percebeu que confusão aqueles fanáticos religiosos já haviam
ocasionado no meio do rebanho. Em oito dias consecutivos ele enfrentou,
com poderosas pregações, os fanáticos e suas tolas doutrinas. Antes de
tudo, Lutero condenou seus procedimentos violentos contra a Igreja
Romana e seus seguidores; contudo, evitou todo e qualquer ataque que
pudesse ofender ou ferir suas pessoas. Justamente essa moderação fez
com que suas pregações fossem mais efetivas e convincentes. Em
relação à missa, contra a qual Karlstadt e seus companheiros lutavam
com grande fervor, entre outras coisas, ele disse: “A missa é algo mau, e
Deus é seu inimigo; ela deve ser removida, mas sem lançar mão de
algum ato de violência ou tumulto, pois devemos dar a honra a Deus,
permitindo que somente a Sua Palavra opere, sem nossa intervenção e
obras... Eu irei pregar, falar e escrever, porém não obrigarei nem
constrangerei ninguém, pois a fé é um ato voluntário. Tomai exemplo de
mim; enfrentei o papa, as indulgências e os papistas, porém sem
violência. Eu apenas promovi a Palavra de Deus. Tudo o que fiz foi
pregar e escrever. Tudo isso fez com que o papado se tornasse tão
enfraquecido como nunca antes um príncipe ou um imperador conseguiu.
Eu não fiz nada, a Palavra de Deus agiu e executou tudo”. Assim, este
grande homem não atribuiu a honra a si, mas a Deus e à Sua Palavra.
“Suas mensagens foram seguidas pelo mais absoluto sucesso”, nos diz
um historiador. “Todos os sintomas de desordem desapareceram
imediatamente e os ânimos exaltados foram apaziguados. A cidade foi
restaurada à sua tranquilidade anterior, a universidade retomou seus
legítimos estudos e seus princípios racionais e sadios. Enquanto isso,
Karlstadt, o desafortunado autor da confusão, esmagado pela
predominância da inteligência superior de Lutero, logo depois
desapareceu do cenário da sua ignomínia*”. Lutero era um homem que
se opunha, de modo firme, a todo e qualquer tipo de violência. O belo
princípio que ele expressava em suas pregações repetidamente era:
“Antes que possas remover de modo vantajoso os objetos da idolatria,
tais como as imagens, primeiramente, é necessário que libertes do erro o
coração dos idólatras”. E ele estava firmemente convicto que isso poderia
acontecer somente pela Palavra de Deus, e por isso ele almejava colocar
este livro na mão do seu povo, em sua língua materna.
***
LUTERO E A BÍBLIA EM ALEMÃO
Assim que a paz e a ordem foram restabelecidas, Lutero voltou para o
seu objetivo principal — a tradução do Novo Testamento. Como
sabemos, ele já tinha concluído essa tradução em Wartburg, contudo
achou necessário submetê-la a mais uma minuciosa revisão, em conjunto
com Melanchthon. Após fazer isso, essa nova tradução foi enviada
imediatamente para impressão, que foi feita com muita rapidez, de modo
que já em setembro de 1522 toda a obra pôde ser publicada. Quando
essa obra surgiu, causou uma enorme sensação. Como se estivesse
sendo carregada pelas poderosas asas do vento, a mesma se espalhou
de uma a outra extremidade da Alemanha, e para muitos outros países. D
´Aubigné escreveu: “O Novo Testamento foi escrito no espírito das
Sagradas Escrituras, em uma linguagem cheia do vigor da mocidade, que
pela primeira vez desdobrava as suas grandes belezas. A mesma atraiu o
interesse, entusiasmou e comoveu todas as pessoas, das mais humildes
àqueles que ocupavam os mais altos cargos”. Até mesmo o historiador
papal, Louis Maimbourg, confessou que “a tradução de Lutero era
singularmente elegante, e a mesma foi aceita e aprovada de tal modo,
que era lida por praticamente todas as pessoas na Alemanha. Mulheres
da mais alta classe a liam com atenção persistente e com muita
dedicação; e elas defendiam, de maneira obstinada, os princípios do
reformador contra os bispos, os monges e os doutores da Igreja Católica
Romana”. O Novo Testamento de Lutero tornou-se um livro
representativo do povo alemão. Era o livro do povo, sim, mais ainda, era
o livro de Deus. Este trabalho foi mais útil do que todos os outros escritos
de Lutero para divulgar e consolidar as doutrinas da Reforma. A Reforma
Protestante encontrou no Novo Testamento o próprio fundamento sobre o
qual podia ser edificada, que era: a Palavra de Deus que vive e
permanece para sempre.
As estatísticas a seguir nos mostram o maravilhoso sucesso alcançado
por essa obra. “Todos os exemplares se esgotaram rapidamente. Uma
segunda edição surgiu no mês de dezembro de 1522, e no ano de 1533
já haviam sido impressas dezessete edições em Wittenberg, treze em
Augsburgo, doze na Basileia, uma em Erfurt, uma em Grimma, uma na
Lípsia e treze em Estrasburgo”1. Entrementes, Lutero se empenhou para
finalizar sua segunda grande obra — a tradução do Antigo Testamento.
Com a ajuda de Melanchthon e outros amigos, esse trabalho foi
publicado em partes, à medida que eram completadas. A Bíblia inteira foi
publicada pela primeira vez no ano 1534. A monumental obra de Lutero
agora estava terminada. Até então, ele havia falado, mas agora era o
próprio Deus quem falava aos corações e às consciências dos homens.
Que pensamento poderoso, vasto, maravilhoso! Os testemunhos divinos
acerca da verdade agora eram apresentados a uma grande nação, que,
até então, estava perecendo por falta de conhecimento (cf. Os 4:6). A
Palavra de Deus nunca mais estaria selada debaixo de uma língua
desconhecida. O caminho da paz com Deus não estaria mais
obscurecido pelas tradições dos homens; o testemunho do próprio Deus
acerca de Cristo se aproximou de todo homem de forma clara e audível;
e as boas novas da salvação estavam libertadas de todos os acréscimos
supersticiosos do sistema romano.
***
O PROGRESSO GERAL DA REFORMA PROTESTANTE
O poderoso movimento que havia tomado conta de todas as classes e
posições sociais entrou em uma nova fase que parecia não ter limites
nem fim. A população alemã despertou de um profundo sono, que havia
durado séculos; o puro Evangelho reviveu e a Reforma Protestante teve
um constante aumento no seu significado e na sua extensão. Tudo isso
teve uma grande influência no restante da Europa. Suécia, Dinamarca,
Holanda, Suíça, Bélgica, Itália, Espanha, França e as Ilhas Britânicas
foram arrastadas involuntariamente para dentro dessa grande corrente do
movimento religioso. Em pouco tempo, a Reforma deixou de ser uma
questão meramente local ou até mesmo nacional. Todo governo teve que
reconhecer que, querendo eles ou não, tinham que levar a Reforma em
conta em seus planos e ações. Todos os fundamentos e as estruturas
dos mais antigos reinos foram abalados por esse novo movimento
religioso.
Comerciantes que viajavam por todas as partes, viajantes e
mensageiros, sempre traziam consigo boas novas acerca das coisas
maravilhosas que estavam acontecendo e as divulgavam por toda parte.
Navios aportavam em todos os lugares, carruagens paravam nas
pousadas e secretamente descarregavam pacotes com as novas
traduções da Bíblia, bem como tratados contendo os sermões escritos
pelo reformador. O interesse, uma vez despertado, crescia cada vez
mais. O impulso pela investigação e a sede pelo saber subiram a uma
altura nunca antes conhecida. Sob estas circunstâncias, era natural que a
velha igreja, tendo o poder civil do seu lado, empenhou-se ferozmente
para exterminar pela raiz essa nova doutrina que surgia no seu seio.
Apesar disso, surgiam cada vez mais homens corajosos que anunciavam
destemidamente a Cristo, na convicção de que a Reforma Protestante
era necessária. Até mesmo entre os monges havia almas sérias e
sinceras o suficiente para não temer em pregar a Cristo como o fim da lei
para a justiça de todo aquele que crê, uma vez que estavam convencidos
do incorreto da sua posição. Por todas as partes se levantavam vozes
testemunhando em alto som que somente Deus podia perdoar os
pecados através da fé no precioso sangue de Cristo (Rm 10:4).
Frente a isso, também o clero não permaneceu inativo. Logo eles
reconheceram que essas doutrinas eram prejudiciais ao seu poder, aos
seus privilégios, bem como à sua própria existência; e levantaram grande
clamor, dizendo: “Heresia! Heresia!”. Procuravam, por todos os meios,
combater seus inimigos hereges. Excomunhões foram emitidas pela
igreja, seguidas de editos reais. Uma violenta perseguição se levantou
contra os pregadores e contra as ousadas testemunhas da verdade; os
aprisionamentos tornaram-se frequentes. As torturas foram novamente
aplicadas, as fogueiras ardiam. Desse período em diante começaram as
terríveis perseguições aos protestantes, e o relato acerca dos mártires e
dos martírios passaram a ser registradas pela história. Por certo tempo, a
hipocrisia triunfou e os justos sofreram, mas o poder do Senhor e de Sua
verdade prevaleceram de modo maravilhoso.
Não é nosso desejo nos aventurarmos nessas turbulentas águas nesse
momento. Precisamos retornar, por um breve período, para a Alemanha,
e testemunharmos o surgimento do protestantismo, que deu uma nova
direção para a história espiritual da humanidade.
***
A REFORMA E HENRIQUE VIII
A rápida difusão do Novo Testamento de Lutero e a enorme impressão
que ele causou na igreja, na escola e nos lares, despertou as mais
profundas preocupações no partido papal. O poder secular, influenciado
pelo poder eclesiástico, proibiu, sob a ameaça das mais severas
penalidades, a distribuição e a leitura do Livro condenado. Um dos mais
poderosos reis da cristandade se levantou pessoalmente contra o
audacioso monge de Wittenberg. O cavalheiresco* Henrique VIII da
Inglaterra, que inicialmente havia sido destinado por seu pai para a
posição clerical, viu naquela situação uma boa oportunidade para mostrar
diante de todo o mundo a sua grande erudição. Ele, que havia sido
vitorioso em tantos torneios, estava certo de que também teria sucesso
no âmbito espiritual; portanto, escreveu um livro em defesa dos sete
sacramentos. Sua intenção era oferecer uma resposta ao tratado de
Lutero chamado: “O Cativeiro Babilônico”. Nenhum livro de Lutero havia
provocado uma indignação maior entre os papistas do que este tratado.
Por isso, não precisamos nos admirar que Henrique foi bajulado e
elogiado pelo papa pela sua enérgica defesa da falsa doutrina de Roma.
O sumo pontífice lhe concedeu o título de “Defensor da Fé”; o qual os
reis britânicos mantiveram até tempos recentes. Ao ataque de Sua
Majestade, Lutero respondeu de uma maneira que, na verdade, poderia
ser desculpado por causa do seu temperamento facilmente irritável, mas
teria sido melhor que sua reação fosse reprimida.
Perto do final do ano 1521, uma mudança muito importante aconteceu
no governo do Vaticano. O papa Leão X morreu de repente, no auge de
sua vida. Leão, viciado em prazeres e amante da suntuosidade, foi
arrancado, de forma inesperada e estando totalmente despreparado, das
suas esbanjadoras festividades para comparecer diante do Eterno Juiz.
Ele não trovejaria mais contra os hereges alemães; não baniria mais a
crescente Reforma nem seus agentes; nem condenaria a nova doutrina
como perversa e diabólica. Ele morreu denunciando a doutrina da
justificação pela fé como destruidora de todas as obrigações morais, ao
mesmo tempo em que ele e seus dissolutos cardeais desperdiçavam o
tempo e a saúde em prazeres pródigos* e perversos; além de promover
caríssimos e imorais espetáculos no teatro em Roma. Porém agora, o
grande Leão X seria pesado na balança do santuário celestial. Ele foi
sucedido no trono papal por Adriano VI, um homem de moral mais pura
do que a de Leão X, porém igualmente hostil contra a verdade do
Evangelho.
***
AS IGREJAS LUTERANAS
Pouco tempo depois de Lutero ter retornado de Wartburg, os Estados
do Império se reuniram em uma Dieta em Nuremberg. Os bispos, que
compunham uma significativa parcela da assembleia, exigiram
impetuosamente a execução da sentença que fora proferida sobre o
arqui-herege Lutero. Todavia, depois de muita discussão infrutífera,
nenhum acordo foi acertado e a Dieta foi adiada até o outono seguinte.
Enquanto isso, o reformador, em franco desprezo à excomunhão papal
e ao edito imperial, continuava sua obra de maneira calma e firme,
pregando e escrevendo. Melanchthon o apoiava diligentemente por meio
de sua hábil e fluente pena. Podemos afirmar que durante esse período
“a palavra do Senhor crescia poderosamente e prevalecia” (At 19:20).
Monges abandonaram seus mosteiros e tornaram-se instrumentos ativos
na propagação do Evangelho. Lutero, em uma carta escrita a Spalatino,
menciona a fuga de nove freiras do convento a que pertenciam, entre as
quais menciona uma que se chamava Catarina von Bora, que mais
tarde se tornaria sua esposa.
Gradativamente, começou-se a introduzir novas formas de cultos nos
lugares que foram ganhos pela nova doutrina; embora isso acontecesse
de forma muito suave e tendo em consideração o sentimento do povo. As
igrejas, que eram arrancadas dos sacerdotes romanos, eram chamadas
segundo o nome do reformador: Igrejas Luteranas. Lutero mesmo provou
sua sabedoria exercendo grande paciência para com todos aqueles que
estavam se adaptando paulatinamente*, saindo do velho sistema e
adotando o novo. Após sua nobre e firme presença na Dieta de Worms,
Lutero apareceu muito pouco naquilo que podemos chamar de obra
externa da Reforma Protestante. Na Dieta ele havia testemunhado de tal
maneira a favor de Deus e Sua verdade, como poucos homens o fizeram
antes e depois dele. Ele manifestou uma grandeza moral incomparável
na sua conduta durante aquela ocasião, que permanece como única em
sua história. Porém, infelizmente, desde aquele momento em diante, a
verdadeira beleza da Reforma Protestante desapareceu cada vez mais.
Elementos políticos se misturaram no movimento, e logo passaram a ter
o papel preponderante*. As ações externas mais agressivas e a proteção
das igrejas reformadas caíram nas mãos dos príncipes seculares; e com
isso foi colocada a base para um rápido declínio e um subsequente
desvio do fundamento original. Contudo, retornaremos a isso, mais
detalhadamente, ao contemplarmos a carta dirigida a Sardes, em
Apocalipse 3:1-6.
A atenção do novo papa, Adriano VI, se voltou imediatamente à
questão que envolvia Lutero e a restauração da paz dentro da Igreja
Católica Romana. Ele admitiu abertamente, através de um profundo
lamento, os grandes abusos que haviam adentrado na corte papal sob o
governo do seu antecessor, e expressou a intenção de reformar
profundamente a cúria* romana. No dia 25 de novembro de 1522,
Adriano VI enviou uma carta para a Dieta que estava, outra vez, reunida
em Nuremberg. Nela, ele lamentou a devastação da igreja pela perversão
de um único herege, que nem a admoestação paternal de Leão X, nem
seus banimentos, nem a condenação confirmada pelo edito de Worms
foram capazes de silenciar. Também fez um dramático apelo aos
soberanos para que lançassem mão da espada. Ele os lembrou de como
Deus havia punido Datã e Abirão por causa da sua rebelião contra o
sumo sacerdote Arão (Dt 11:6). Além disso, o papa pressionou os
soberanos a seguirem o nobre exemplo de seus piedosos antepassados,
que, por um ato de perfeita justiça, haviam livrado o mundo de hereges,
tais como João Huss e Jerônimo de Praga, que teriam ressurgido em
Lutero.
***
“AS 100 QUEIXAS DA NAÇÃO ALEMÔ
O partido papal levantou-se unânime, unindo-se às exigências de
Adriano VI. Os bispos reunidos elevaram seu clamor por vingança contra
o odiado herege de Wittenberg. Mas a maioria dos príncipes seculares
não estava inclinada a ceder às suas exigências, mas achavam que havia
chegado o momento de se livrarem do pesado jugo romano, sob o qual
eles haviam sido esmagados por muitos séculos. Apesar de terem
reclamado muitas vezes de tal situação, nunca conseguiram ser ouvidos.
A maioria dos príncipes reunidos na Dieta não estava de acordo com as
doutrinas da Reforma Protestante e com o procedimento de Lutero,
contudo eles tomaram a decisão de enviar uma tese acusatória a Roma,
a chamada “As 100 Queixas da Nação Alemã sobre a Santa Sé” —
Centum gravamina teutonicae nationis. A confissão sincera de Adriano
VI acerca da corrupção do clero romano, deu-lhes um pretexto bem-vindo
para tal.
A partir daquele momento, o contraste entre os elementos seculares e
espirituais tornou-se cada vez mais evidente no grande movimento da
Reforma Protestante. Os nobres e o povo se uniram para se livrarem da
humilhação e derrubarem o opressor universal representado pelo
papado. Agora, já não se tratava mais do impotente e solitário monge
enfrentando, no poder de Deus e de Sua verdade, o Golias do papado e
conquistando um triunfo após o outro sobre este, começando na cidade
de Worms; mas, no lugar da batalha divina entre verdade e engano,
entraram contendas políticas e confusões militares. A história da Reforma
entrou em uma nova fase. A luz e a verdade de Deus, que haviam
marcado o avanço da Reforma de uma forma tão gloriosa até agora,
foram colocadas cada vez mais em segundo plano. Assim que os
príncipes se levantaram para expandir a Reforma pela força da espada,
não notamos quaisquer avanços na compreensão e na aplicação da
verdade de Deus, até mesmo nos reformadores. Apesar de Lutero ser um
homem que possuía uma fé genuína e inabalável, ele não percebeu os
efeitos lamentáveis e enfraquecedores que, necessariamente, seriam
exercidos pela união dos príncipes seculares com a causa de Deus. Os
príncipes, em sua luta pela Reforma, geralmente perseguiam apenas
seus próprios e egoístas objetivos. É evidente que tudo isso corrompia o
sadio progresso de toda a Reforma. O resultado dessa união produziu
uma cegueira espiritual que obliterou* os triunfos alcançados pela fé.
Não podemos listar todas as “queixas” aqui. As mesmas tinham,
principalmente, um caráter eclesiástico, e tangiam* as lamentáveis
circunstâncias sob as quais toda a cristandade sofria. Em especial, foram
destacados os impostos opressivos por parte dos sacerdotes, o constante
aumento e imposição de dízimos perpétuos sob falsas alegações, a
intromissão violenta dos cardeais na coleta dos melhores benefícios, a
ignorância e a completa incapacidade dos clérigos locais para
pastorearem e manterem a ordem em suas paróquias, o pernicioso
excesso do número de festivais religiosos, a demasiada liberalidade com
a qual eram concedidas as absolvições e indulgências, a extorsão por
parte do clero ao ministrar os sacramentos, a infame venalidade* das
coisas sagradas, e finalmente, a imoralidade geral que existia nas Ordens
chamadas espirituais. Porém, embora os príncipes não tivessem outro
objetivo além da reforma exterior da igreja — enquanto Lutero queria
restaurar a religião, ainda que fosse à custa da Igreja Romana — a
diversidade dos pontos de vista de ambas as partes não eram tão
evidentes, visto que, em certo sentido, eles perseguiam um objetivo
comum — o desejo de se verem livres do jugo e da tirania romana — e
eram animados por um ódio comum contra o papado.2 Contudo, os
resultados para a promoção da verdade e a divulgação da luz eram
necessariamente prejudiciais.
***
EVENTOS ADVERSOS À REFORMA PROTESTANTE
Enquanto a Reforma Protestante, através da atividade de Lutero e de
seus amigos, ganhava força e se espalhava rapidamente por todas as
partes da Europa, surgiram diversos males que ameaçavam retardar seu
progresso e denegrir seu caráter.
No outono de 1524, os camponeses alemães (já mencionados
anteriormente), que haviam sido oprimidos ao extremo pelo destruidor
sistema papal, levantaram-se em uma rebelião contra os tiranos
eclesiásticos. Além de toda pompa e luxo ostentada pelo alto clero, o
povo também tinha que sustentar a multidão de membros do clero
inferior. Mas isso não era tudo. Novas Ordens religiosas surgiam
continuamente, e as velhas Ordens mendicantes se espalhavam como
enxames de gafanhotos sobre toda a superfície do país, devorando com
impunidade o pouco que o povo tinha para seu próprio sustento. Há muito
tempo se ouviam, aqui e ali, graves murmúrios e surgiam pequenas
revoltas; contudo, parece que somente esse grande movimento, que
passava naquele tempo por todos os países, deu o sinal para uma revolta
generalizada. Naquele ano, praticamente todas as províncias do sul da
Alemanha se encontravam num estado geral de insurreição*. Grandes
grupos de camponeses e mineiros passavam pelo país destruindo e
queimando. Como um tornado que se forma subitamente, os
camponeses invadiram os edifícios religiosos, saquearam mosteiros,
destruíram imagens e utensílios do altar, e cometeram os atos mais
infames. Muitos castelos da nobreza também foram vítimas da sua fúria
destruidora, visto que os nobres haviam se tornado igualmente odiosos
pelo seu orgulho e dureza, assim como os clérigos pela sua avareza.
Pelo fato da maior parte dessa turba furiosa ser constituída de
camponeses, essas terríveis batalhas foram chamadas de Guerra dos
Camponeses. No início, essa revolta perseguia apenas objetivos
seculares. Os infelizes camponeses queriam tirar dos seus ombros parte
dos pesados fardos e conquistar uma liberdade maior. Infelizmente
alguns fanáticos religiosos se uniram a eles, constituindo-se em seus
líderes, e deram à guerra um caráter mais religioso. O tumulto perdurou
por algum tempo com terrível violência, mas terminou com a derrota e o
massacre dos revoltosos. Apesar da bravia coragem, os bandos
desregrados e mal armados não puderam resistir aos exércitos dos
príncipes alemães, que estavam acostumados à guerra. Na batalha em
Mühlhausen, no ano de 1525, foram totalmente esmagados. Tomás
Müntzer, o principal líder dos camponeses, foi feito prisioneiro e foi
cruelmente executado junto com vários companheiros. Os camponeses,
que foram dispersos em todas as direções, nunca mais se juntaram. Os
vencedores realizaram uma terrível vingança. Até mesmo após a calma
ter sido restaurada, alguns príncipes e bispos percorreram o país com
seus algozes* e decapitaram centenas. Em vez de melhorar a situação
dos infelizes camponeses, havia piorado.
Naturalmente, os papistas e os inimigos da Reforma Protestante não
perderam a oportunidade de procurar a origem destas cenas selvagens
nas doutrinas de Lutero. Contudo, essa acusação não possuía nenhuma
base sólida. As revoltas não estavam relacionadas com a Reforma
Protestante, nem com os seguidores de Lutero, e ele mesmo não tinha
relação alguma com os revoltosos; não haviam sido motivadas com base
em seus escritos, pelo contrário, Lutero os enfrentou duramente em
vários tratados.
***
OS ANABATISTAS
Após a morte de Müntzer e da dispersão dos camponeses, outro grupo
fanático surgiu. Tratava-se dos anabatistas. Esse grupo foi chamado
assim por rejeitarem o batismo de infantes e afirmarem que, para o
verdadeiro renascimento do crente, era necessário realizar um novo
batismo por imersão. Esse grupo causou profunda perturbação e
perplexidade nos reformadores. Aquilo que os gnósticos* foram para os
Pais da Igreja e os maniqueístas* para a Igreja Católica, os anabatistas
foram para os reformadores. Eles eram fanáticos declarados.
“Os líderes do movimento afirmavam serem diretamente inspirados, e
que possuíam o privilégio de uma comunicação direta e frequente com a
divindade. Seus crédulos seguidores aceitavam essas afirmações sem
discutir. Eles alegavam ter visões e revelações acerca do passado e do
futuro. O número de seguidores cresceu com grande rapidez, e os
mesmos seguiam o movimento da Reforma Protestante por onde quer
que essa fosse”. O clamor geral desses fanáticos era: “Nenhum tributo,
nenhum dízimo! Todas as coisas em comum! Nenhuma autoridade! O
reino de Cristo está próximo! O batismo de crianças é uma invenção do
diabo”. Eles se chamavam a si próprios de “os verdadeiros e
fundamentais reformadores”. O coração de Lutero estava profundamente
entristecido por causa dessas infelizes pessoas. Em relação a eles,
Lutero observa: “Satanás está agindo furiosamente. Esses novos
sectários chamados anabatistas aumentam em número, e tem uma
grande aparência de uma vida correta, bem como grande coragem diante
da morte, seja pelo fogo ou por afogamento”.
Em apenas dois anos esses fanáticos haviam se espalhado, em
números consideráveis, sobre a Silésia, a Bavária, a Suábia e a Suíça.
Mas, visto que seus princípios ameaçavam derrubar toda a ordem social,
o governo entrou em ação contra eles por todas as partes. Uma violenta
perseguição teve início e as mais severas punições foram aplicadas nos
seguidores dessa seita. Porém, eles suportavam tudo com uma
perseverança invencível. Nem as torturas nem as fogueiras podiam
movê-los a se retratarem. Sem demonstrar qualquer sinal de medo, eles
suportavam as maiores torturas.
Foi principalmente na cidade de Münster, na Vestfália, que os sectários
se assentaram. Depois de obrigarem ao bispo a abandonar a cidade,
junto com seus seguidores, Münster foi consagrada na capital do novo
reino de Deus. Certo João Bockold, um alfaiate de Leiden (por isso é
chamado costumeiramente de João de Leiden), assumiu o governo do
reino de Sião e introduziu um regime de verdadeiro pavor. Ele enviou
certo número de apóstolos para organizar o restante das cidades da Terra
segundo o modelo de Münster, e sujeitá-las ao cetro do novo rei.
Contudo, sendo sitiados pelas tropas do bispo, os anabatistas resistiram
desesperadamente. Finalmente a fome os obrigou a se renderem, em
1536. Os vitoriosos executaram uma vingança sangrenta nos que
restaram. João de Leiden, que foi capturado vivo pelas tropas do bispo,
foi executado com bárbaras crueldades junto com seu carrasco
Knipperdolling e seu chanceler Krechting. Com a queda de Münster, a
força dos anabatistas havia sido rompida. A maioria dos mais moderados,
que desde o início haviam detestado profundamente as abominações dos
líderes fanáticos e da multidão seduzida por eles, se uniu a uma
irmandade, que devia a sua origem a certo Menno Simons (nascido em
1496, em Witmarsum, na Frísia). Ainda hoje, em diversos lugares,
existem descendentes desta irmandade, sob o nome de menonitas.
***
A QUESTÃO ACERCA DO SACRAMENTO DA CEIA
No mesmo ano em que surgiram os anabatistas (1524), uma longa e
perniciosa controvérsia levantou-se entre aqueles que haviam se retirado
da comunhão romana. Tal controvérsia tratava da questão de como a
presença do corpo e do sangue de Cristo eram apresentados na
celebração da ceia. Lutero e seus seguidores haviam rejeitado a doutrina
papal da transubstanciação — isto é, a suposta transformação do pão e
do vinho, após a consagração sacerdotal, no corpo e no sangue do
Senhor Jesus. Apesar de ter rejeitado essa convicção, Lutero mantinha
que todos os que participavam da ceia recebiam o verdadeiro corpo e o
sangue de Cristo, pelos elementos da ceia, o pão e o vinho. Essa
doutrina foi denominada de consubstanciação. Ela se baseava sobre
outra doutrina, a da ubiquidade* do corpo de Cristo. “Cristo”, dizia Lutero,
“está presente no pão e no vinho, porque Ele está presente em todas as
partes, e em especial ali onde Ele quer”.
Ulrico Zuínglio, o reformador suíço, e seus seguidores eram mais
simples, havendo-se separado de forma mais decidida das tradições de
Roma. Eles ensinavam que o corpo e o sangue do Senhor não estavam
presentes nos elementos da santa ceia, mas que o pão e o vinho eram
apenas símbolos ou emblemas, os quais lembravam a morte de Cristo e
as bênçãos que dela fluíam para os crentes. Visto que quase todos os
teólogos suíços e muitos do norte da Alemanha seguiam a doutrina de
Zuínglio, e Lutero e seus seguidores, pelo contrário, defendiam
decididamente a sua opinião, criou-se uma grande dissensão entre os
verdadeiros amigos da Reforma. Essa desunião foi astutamente nutrida
pelos papistas, para servir aos seus próprios objetivos. Contudo, mais
adiante retornaremos a isso.
***
CHEFES POLÍTICOS DA REFORMA PROTESTANTE
O estado de inquietação em que se encontravam as nações europeias,
as constantes guerras entre Carlos V e Francisco I e a ameaçadora
atitude dos turcos, ocupavam e inquietavam o imperador de tal forma,
que por muitos anos ele não pôde voltar a sua atenção às complicações
na Alemanha, especialmente àquela difícil questão que envolvia a nova
heresia. Em todas essas circunstâncias, porém, podemos reconhecer
claramente a poderosa mão do Senhor. Enquanto Carlos V vigiava
cuidadosamente a França, a Espanha e os acontecimentos na Itália,
Lutero e seus companheiros desenvolviam uma atividade intensa para
divulgar a verdade por meio de seus escritos, preleções e sermões; e
para firmar essa verdade no coração e na mente do povo. Ao mesmo
tempo, os príncipes evangélicos se uniam cada vez mais para defender a
fé que tinham abraçado, bem como a liberdade política que gozavam.
O traiçoeiro papa, Clemente VII, e seu hábil núncio, Lorenzo
Campeggio, estavam determinados a executar o edito de Worms com
todo seu rigor e exterminar completamente a heresia luterana. Mas isso
não podia ser alcançado sem a cooperação de poderosos soberanos do
Império. Até então, Carlos V havia demonstrado muita lentidão na
execução das ordens papais. Todavia, parecia que diversas
circunstâncias se uniram naquele momento para favorecer a política do
Vaticano, e ameaçavam extinguir a jovem Reforma Protestante. Mas
Deus está acima de tudo. “Os reis da terra se levantam e os governos
consultam juntamente contra o SENHOR e contra o seu ungido, dizendo:
Rompamos as suas ataduras, e sacudamos de nós as suas cordas.
Aquele que habita nos céus se rirá; o Senhor zombará deles” (Sl 2:2-4). A
espada do imperador, que havia sido levantada para exterminar os
reformadores, voltou-se, por causa da traição do papa, contra a própria
Roma.
Na batalha de Pavia, em 1526, Francisco I foi derrotado por Carlos V, e
feito prisioneiro. Como o rei da França havia sido vencido, não podia mais
prestar nenhum serviço ao papa, por isso, este transferiu imediatamente
sua amizade ao conquistador. Uma aliança foi formada entre o imperador,
o rei da Inglaterra e o arquiduque Fernando I da Áustria.
O artigo principal do tratado firmado era: “Todos os partidos envolvidos
devem unir suas forças e marchar com seus exércitos contra os
perturbadores da religião católica, e contra aqueles que insultaram o
papa, vingando assim, todas as ofensas cometidas contra a Sé Romana”.
Pela malícia de Satanás, o mesmo espírito prevaleceu em outras
negociações envolvendo os grandes poderes daqueles dias. O Tratado
de Madri, que restaurou a liberdade de Francisco I, também lhe ofereceu
a oportunidade de unir-se àquela aliança. Os três mais poderosos
príncipes da Europa estavam agora associados com o papa, com o
objetivo específico de executar os decretos da Dieta de Worms,
exterminando, através do fogo e da espada, o movimento luterano.
***
A PRIMEIRA DIETA DE SPEYER
A Dieta de Speyer foi iniciada no dia 25 de junho de 1526. Seu objetivo
era dar o golpe decisivo contra Lutero e seus seguidores. Fernando, que
era irmão do imperador, presidia a Dieta. A mensagem do imperador para
as autoridades ali reunidas, somente foi lida depois de alguns dias que a
Dieta havia começado. Nela estavam contidas as seguintes exigências:
que todas as contendas referentes a questões religiosas deviam acabar
imediatamente; que os costumes da Igreja Romana deveriam ser
restaurados completamente; que o edito da Dieta de Worms deveria ser
executado o mais depressa possível; e que todos os luteranos deveriam
ser destruídos por completo. Os príncipes alemães já haviam feito uma
aliança anteriormente, ainda que não pelos mesmos motivos, mas por
temor diante de um perigo comum. Eles estavam decididos a não tolerar
mais a reintrodução dos antigos abusos e a perseguição àqueles que os
haviam removido. Os cabeças dessa aliança eram: João, o Constante,
Eleitor da Saxônia (seu irmão, Frederico, o sábio, havia morrido no dia 5
de maio de 1525); Filipe I, jovem landgrave de Hesse e arquiduque da
Prússia; George e Casimiro, margraves* de Brandemburgo; o Eleitor
Palatino; os duques de Braunschweig-Lunenburgo, Pomerânia e
Mecklenburgo; os príncipes de Anhalt e Henneberg; e os condes de
Mansfeld. A cidade imperial Magdeburgo também se uniu mais tarde a
essa aliança. Quando estes príncipes ouviram as exigências do
imperador, se reuniram em uma conferência e emitiram a seguinte
declaração: “Empregaremos todas as nossas forças para promover a
glória de Deus, e para manter a doutrina conforme ensinada em Sua
Palavra. Sempre seremos gratos a Deus por ter reavivado, em nossos
dias, a verdadeira doutrina da justificação pela fé, a qual permaneceu por
um longo período enterrada sob uma enorme massa de superstição.
Também nos comprometemos a não permitir a extinção da verdade, que
Deus nos tem revelado nesses últimos tempos”.
Esta foi a primeira declaração pública dos príncipes protestantes e, ao
mesmo tempo provavelmente, a mais simples e mais clara que eles
jamais emitiram. Ela ficou conhecida como a “Resolução Inicial ou
Pura”. Nela não encontramos nenhuma conotação política, social nem
financeira. A firmeza do partido evangélico e a ousadia de recusar a
obedecer ao edito do imperador, deixaram Fernando e os papistas
grandemente surpresos. Uma séria divisão parecia inevitável. Mas, de
repente, uma voz vinda dEle — que é sublime sobre o céu e a terra —
colocou um fim nas discussões que estavam acontecendo em Speyer.
Embaixadores vindos da parte do rei da Hungria trouxeram notícias
lamentáveis. Solimão I, o guerreiro dominador dos turcos, havia feito uma
invasão destruidora nos países da região do Danúbio. Luís II, rei da
Hungria e da Boêmia, morreu afogado no dia 29 de agosto de 1526,
quando fugia do temido inimigo. Portanto, a coroa de ambos os países
passou para Fernando; e caso ele quisesse mantê-la, deveria dirigir-se o
mais rápido possível às fronteiras ameaçadas, visto que Solimão, com
sua incontável multidão, avançava constantemente. O perigo, vindo da
parte dos triunfantes turcos, ameaçava toda a Europa; e assim, de
repente, a atenção foi desviada de Lutero e da Reforma para esses
novos e terríveis inimigos. Fernando, que nesse momento era a cabeça
do partido papal, deixou a Alemanha Ocidental por um longo período, se
apressando para proteger seus domínios que eram fronteiriços com o
reino da Hungria.
Aquilo que os exércitos vitoriosos de Solimão alcançaram com relação
a Fernando, a traição do papa Clemente operou no imperador Carlos V.
Mal Francisco I tinha escapado de seu cativeiro, quando o papa, temendo
o crescente poder de Carlos V sobre a Itália, fez uma aliança com o rei da
França, o duque de Milão e os venezianos, contra o imperador. Ao
mesmo tempo, o papa absolveu Francisco I de seu solene juramento de
lealdade feito a Carlos V e o autorizou a violar o Tratado de Madri. Essas
atitudes acenderam a ira do imperador de tal forma que ele aniquilou
qualquer autoridade do papa na Espanha e iniciou uma guerra contra o
papa na Itália, que culminou com a captura de Roma pelo general Carlos
de Bourbon, o qual recebeu autorização para saquear a mesma
indiscriminadamente. Os rudes soldados alemães e os mercenários
espanhóis devastaram a infeliz cidade como bárbaros. Nada estava
seguro diante da fúria deles, nada lhes era santo; as vidas e as
propriedades de Roma estavam em suas mãos. O próprio papa foi
tratado de forma infame e vergonhosa. Existem poucas passagens na
história nas quais a poderosa mão da providência vingativa se mostrou
mais claramente do que aqui.
No meio de todas essas perturbações, os príncipes alemães tomaram
uma resolução, a qual não poderia ser mais favorável aos reformadores.
Eles determinaram enviar uma embaixada ao imperador para pedir-lhe
que convocasse imediatamente um concílio eclesiástico livre, para a
decisão dos pontos controversos. Enquanto isso, todos os indivíduos
deveriam desfrutar de plena liberdade para conduzirem seus interesses
religiosos em seus próprios territórios, da maneira que melhor
entendessem. Todavia, tais procedimentos deviam levar em conta a
responsabilidade de todos para com Deus e para com o imperador.
Agora, os reformadores podiam continuar sua obra sem serem
perturbados. Eles utilizaram diligentemente a oportunidade que Deus lhes
dava para fortalecer e divulgar a causa da Reforma. Grandes mudanças
foram efetuadas na forma de se adorar a Deus, bem como nas leis que
regulavam as questões religiosas. Muitas tradições supersticiosas da
Igreja Romana foram completamente abolidas. A posição dos príncipes e
do povo tomava uma forma cada vez mais definida e decidida. Dessa
maneira, foram lançadas as bases da futura divisão entre os Estados
católicos e protestantes na história da Reforma, entre os anos 1526 a
1529.
***
A SEGUNDA DIETA DE SPEYER
No começo da primavera de 1529, o imperador, que entrementes havia
se reconciliado novamente com o papa, convocou a famosa segunda
Dieta de Speyer. Os Estados do Império reuniram-se prontamente. O
partido papal procurou demonstrar toda sua força de um modo especial,
assumindo uma atitude hostil e desdenhosa frente aos protestantes. Em
nenhuma outra ocasião semelhante a essa havia aparecido um grupo tão
grande de príncipes eclesiásticos. Alguns príncipes, que até então
haviam se mantido neutros ou até mesmo se mostrado favoráveis a
Reforma Protestante, agora se declaravam contra a mesma. Outros
vieram acompanhados de um número considerável de cavaleiros e
serviçais, manifestando abertamente o seu ódio e o seu desprezo contra
os príncipes evangélicos. Não era difícil perceber, pelos seus modos e
olhares traiçoeiros, a malignidade de suas intenções. Em uma palavra: o
partido papal estava seriamente empenhado para extinguir a heresia com
o fogo e a espada. A liberdade de fé, que já durava praticamente três
anos, deveria ser novamente suprimida; e no lugar do decreto de 1526,
seria introduzido outra vez o decreto de 1521.
A mensagem que o imperador apresentou, a qual os comissários
entregaram à Dieta, estava redigida em um tom arrogante e despótico*.
Nessa mensagem, o imperador se queixou das mudanças que haviam
ocorrido na religião, e do desprezo demonstrado contra sua própria
autoridade. Como chefe do mundo cristão, ele exigia uma submissão
incondicional às suas ordens. O imperador observou que as inovações
religiosas, às quais ele havia proibido, estavam aumentando diariamente
em número e extensão. Tudo isso estava acontecendo sob o pretexto de
se obedecer ao edito da primeira Dieta de Speyer; que, pela virtude do
seu poder absoluto, ele declarava inválido, visto que se encontrava em
completa contradição com as suas ordens.
O decreto do imperador era grandemente ofensivo e causava enorme
aborrecimento aos nobres alemães. O mesmo escarnecia os privilégios e
a independência que a nobreza alemã desfrutava. Os príncipes
evangélicos e os representantes das cidades autônomas assumiram,
desde o início, uma posição de rejeição contra o edito. Uma profunda
irritação e uma justa indignação havia tomado conta de todos eles. Eles
afirmaram, com firmeza e determinação, que o edito de Speyer havia sido
promulgado segundo a maneira e formas costumeiras; que os
comissários imperiais haviam dado a sua aprovação em nome do
imperador; que se tratava de uma ação legal dos representantes de todo
o povo alemão; e, finalmente, que o poder do imperador não era tão
abrangente para anular, sem mais, tal edito.
***
O PROTESTO
As discussões que essa questão gerou eram longas e muito
conturbadas. Ambos os partidos se exaltaram muito. Os católicos
trouxeram seus mais hábeis e astutos argumentadores, entre os quais
podemos citar o celebrado Eck. Mas os príncipes evangélicos também
estavam firmes e unidos, e defendiam sua justa causa com força e
habilidade. Os papistas logo perceberam que deveriam abandonar sua
exigência de anular o edito de Speyer. Em contrapartida, queriam impor
uma resolução que, onde o edito de Worms tivesse sido executado,
qualquer inovação religiosa deveria permanecer proibida. Porém, onde o
edito não fora executado e onde a introdução não fosse possível sem
causar tumulto, não se deveria continuar com a Reforma, não se deveria
tratar de questões controversas, não se deveria proibir a missa, não se
deveria permitir que os católicos passassem para o luteranismo, não se
deveria rejeitar a jurisdição dos bispos, nem tolerar anabatistas nem
sacramentistas. Por fim, Fernando, que presidia a Dieta, exigiu com um
tom veemente a submissão incondicional dos príncipes alemães a esta
resolução. Mas os príncipes evangélicos protestaram. Isso aconteceu no
dia 19 de abril de 1529. Contudo, visto que seus protestos verbais foram
ignorados e desprezados pelos papistas, no dia seguinte eles entregaram
um protesto pormenorizado por escrito, e apelaram para o imperador
para a realização de um futuro concílio. Em decorrência desse
procedimento, eles receberam o nome de “protestantes”. Essa é a
origem do termo que ainda hoje é usado para denominar todas as
inúmeras igrejas e grupos que rejeitam os ensinamentos, rituais e
cerimônias da Igreja Romana.
Esse documento, que deixou o partido papal muito perplexo e chamou
muito a atenção de forma geral, estava assinado por João, Eleitor da
Saxônia; Filipe I, landgrave de Hesse; George, de Brandemburgo;
Ernesto e Francisco de Luneburgo; Wolfgang de Anhalt; e por
representantes de outras catorze cidades imperiais. Todavia, no
documento não constava nenhuma assinatura de qualquer teólogo,
Doutor em Divindade ou professor universitário. A grande Reforma, ou
revolução religiosa havia passado para as mãos dos poderosos desse
mundo. Não existiu nenhum Lutero em Speyer, como outrora na Dieta de
Worms. Despreocupados com as controvérsias dos grandes deste
mundo, Lutero e seus amigos prosseguiram seus estudos, continuaram
trabalhando sem descanso nas igrejas, nas universidades, e no
progresso pacífico da Palavra de Deus. O precioso evangelho da graça
de Deus, anunciado pelos instrumentos de Sua escolha, celebrava
grandes triunfos secretamente. E Deus sabe como estimar e
recompensar o trabalho de seus fiéis servos: “Portanto, nada julgueis
antes do tempo, até que o Senhor venha, o qual também trará à luz as
coisas ocultas das trevas, e manifestará os desígnios dos corações; e
então cada um receberá de Deus o louvor” (1 Co 4:5).
No segundo dia da Dieta de Speyer, o sistema papal recebeu sua
ferida mortal. O reinado de Jezabel foi rejeitado como uma tirania
intolerável, não apenas pelos precursores da Reforma, mas também por
muitos outros príncipes favoráveis ao catolicismo. O povo alemão sacudiu
com ira o odioso jugo romano que haviam tolerado por séculos.
Historicamente, se encerra aqui o período de Tiatira, iniciando o período
Protestante, que nos é apresentado simbolicamente nas cartas à Sardes,
Filadélfia e Laodiceia — embora as quatro cartas, na sua aplicação, se
estendem até o final da história da Igreja. Quando o tempo do fim chegar,
todo verdadeiro cristão, independente da denominação a que possa
pertencer, será levado para se encontrar com o Senhor nos ares, e no
tempo determinado retornará a esta terra com Ele, que estará revestido
de plena majestade e glória. Então, o Senhor aplicará Seu divino
julgamento sobre todos os apóstatas.
1 D’Aubigné, vol III, pg. 81.
2 Waddington, vol. 2, pp. 43-45.

Capítulo 36
O PROTESTANTISMO

O protesto dos príncipes favoráveis ao luteranismo na segunda Dieta de


Speyer, em 1529, faz parte de um determinado período na história da
Reforma Protestante, bem como da Igreja em geral. Ao mesmo tempo,
nós precisamos nos lembrar que o protestantismo não era uma
novidade em si mesmo, embora fosse afirmado pelos defensores do
papado que o protestantismo fosse algo recente — um filho de Lutero e
Calvino — enquanto que a religião católica romana teria existido desde
os dias dos apóstolos. A antiguidade da religião católica romana não
passa de uma arrogância vaidosa de seus advogados. De fato, o
significado que o termo protestantismo recebeu no decorrer do século
XVI é novo, porém não aquilo que ele realmente representa. Os
protestantes lutavam pela verdade de Deus e Sua autoridade sobre a
consciência dos homens. Nesse sentido, o protestantismo é tão antigo
quanto o próprio cristianismo, e sempre existiu; embora tenha quase
desaparecido sob o amontoado de erros e da crescente superstição
desde os tempos de Constantino I até o século XVI.
Ainda assim, durante esses tempos tenebrosos houve numerosos
protestantes. Embora o despotismo e o engano dominassem, ainda
assim os princípios do protestantismo eram continuamente guardados e
defendidos por aqueles fiéis, espalhados aqui e ali, que se aferravam à
verdade de Deus. Além dos paulicianos, dos nestorianos e dos armênios
do Oriente, nós temos nossos bem conhecidos amigos no Ocidente: os
valdenses, os albigenses, os seguidores de Wycliffe ou lolardos, e os
irmãos boêmios. Além dessas quatro grandes comunidades, havia outros
diversos grupos. Entre esses podemos citar os cátaros, os leonistas, os
espirituais da Calábria, os narbonnes, etc. Todos haviam levantado seu
protesto contra a corrupta Igreja Romana e suas doutrinas blasfemas,
mas, são os quatro que mencionamos primeiro que formam os grandes
braços do nobre conjunto que testemunhava e sofria a favor de Cristo e
do Seu Evangelho. Mesmo que tenham sido chamados por nomes
diferentes, esses grupos possuíam uma origem comum e uma fé
igualmente comum.
O protestantismo que estamos tratando agora, da perspectiva histórica,
data da segunda Dieta de Speyer, de 1529. Foi nesse ano que esse
protestantismo tomou uma forma exterior determinada. Todavia, em um
breve período de tempo, o mesmo estava incorporado na constituição
nacional da Alemanha, estava armado e, se necessário, pronto para
defender com a espada a religião e a liberdade civil. Isso é o que
chamamos de protestantismo em sua forma política, no qual,
infelizmente, havia apenas um pouco do aroma agradável do verdadeiro
cristianismo, e não expressava nem os ideais do cristianismo, nem da
Igreja de Deus e muito menos do Corpo de Cristo.
Agora chegou o momento de contemplarmos a carta do Senhor à igreja
em Sardes. O início do protestantismo na história da cristandade é o
melhor momento para introduzirmos essa carta. Nessa carta
encontramos a avaliação daquele poderoso movimento da boca do
próprio Senhor; não pelos relatos parciais ou preconceituosos de algum
historiador que nos apresenta o quadro daqueles tempos conturbados,
mas Ele mesmo, que é a Verdade, nos fala a nós. Isso é profundamente
solene, mas, ao mesmo tempo, de um valor inefável*. Que o Senhor nos
conceda a graça de podermos penetrar em Seus pensamentos acerca
desse assunto.
***
A CARTA À IGREJA EM SARDES
“E ao anjo da igreja que está em Sardes escreve: Isto diz o que tem os
sete espíritos de Deus, e as sete estrelas: Conheço as tuas obras, que
tens nome de que vives, e estás morto. Sê vigilante, e confirma os
restantes, que estão para morrer; porque não achei as tuas obras
perfeitas diante de Deus. Lembra-te, pois, do que tens recebido e ouvido,
e guarda-o, e arrepende-te. E, se não vigiares, virei sobre ti como um
ladrão, e não saberás a que hora sobre ti virei. Mas também tens em
Sardes algumas poucas pessoas que não contaminaram suas vestes, e
comigo andarão vestidas de branco; porquanto são dignas disso. O que
vencer será vestido de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o
seu nome do livro da vida; e confessarei o seu nome diante de meu Pai e
diante dos seus anjos. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às
igrejas” (Ap 3:1-6).
Anteriormente, vimos o estado geral da Igreja Romana sob a ativa
condução do papado. Porém agora, precisamos contemplar um período
totalmente novo da história da Igreja, bem como uma nova ordem das
coisas como resultado da grande Reforma Protestante. Muitas das
características morais dos períodos anteriores, sem dúvida, existiam em
Sardes, porém, ainda assim, o caráter dessa carta é tão distinto que nos
faz reconhecer imediatamente o quadro de um período totalmente novo,
tanto na história civil quanto na eclesiástica.
As primeiras quatro cartas descrevem o estado da Igreja antes da
Reforma Protestante, enquanto que as últimas três representam o
aspecto geral do corpo professo da Igreja depois dos dias de Lutero.
Entretanto, precisamos distinguir cuidadosamente entre a poderosa obra
do Espírito de Deus, por meio dos reformadores, daquele formalismo sem
força e sem vida que logo surgiu nas igrejas luteranas e reformadas, o
qual corresponde claramente ao lamentável estado da igreja em Sardes.
Os protestantes mal haviam experimentado a benção da libertação da
opressão romana quando caíram na escravidão dos poderes civis deste
mundo. A consequência direta disso foi que a Igreja se viu em meio a um
estado de morte espiritual. O Senhor Jesus faz alusão a esse mesmo
estado de coisas com as palavras: “Conheço as tuas obras, que tens
nome de que vives, e estás morto” (cp. 3:1). Esse estado se iniciou logo
após os dias dos primeiros reformadores. Naturalmente, isso não se
refere aos verdadeiros cristãos daquele tempo; dos tais é dito que não
estão mortos, mas que a sua “vida está escondida com Cristo em Deus”
(Cl 3:3). Porém, é o sistema com o qual os cristãos estão envolvidos que
o Senhor declara como algo morto, sem vitalidade. Uma confissão de fé
ortodoxa, uma exatidão nas coisas exteriores e o “nome de que vives”
caracterizou o protestantismo desde aquele tempo. O espírito imundo do
papado foi expulso e a casa foi varrida e adornada (cf. Lc 11:25). Mas as
terríveis palavras proferidas pela boca do Senhor Jesus — “estás morto”
— descrevem o seu verdadeiro caráter, assim como Ele o vê. Os diversos
sistemas de nossas igrejas nacionais bem como os grandes grupos de
dissidentes* professos, são denominados pelo Senhor — “morto” — a
realidade viva está ausente por completo.
Uma análise das diferentes partes da carta escrita à igreja em Sardes
nos capacitará a entender melhor a avaliação do Senhor quanto aos
numerosos sistemas protestantes que estão ao nosso redor.

1. Como acontece nessas cartas, o caráter assumido pelo Senhor é


divinamente apropriado ao estado daqueles aos quais Ele dirige
Suas palavras. “Isto diz o que tem os setes espíritos de Deus, e as
sete estrelas” (v. 1). Aqui o Senhor Se apresenta a Si mesmo, para
os fiéis, como Aquele que possui toda a plenitude do Espírito Santo e
toda a autoridade com vistas ao governo eclesiástico (o número sete
é a figura da perfeição). A plenitude da benção espiritual que está em
Cristo, e à Sua disposição, permanece inalterada para sempre, ainda
que a corrupção e a ruína externa da Igreja tenham avançado a tal
ponto que, tanto o corpo professante como cada cristão individual, é
inescusável quando procuram consolo e ajuda nas fontes humanas.
2. Infelizmente, foi exatamente nessa armadilha que os próprios
reformadores já caíram. Os dois aspectos que aqui encontramos
reunidos em Cristo — os sete espíritos e as sete estrelas ou, com
outras palavras, o poder espiritual interior e o poder governamental
exterior — foram separados pelos reformadores. Esse foi um grande
engano, um lamentável erro. Em seu zelo por alcançar plena
libertação do temido poder do papado, eles se colocaram sob a
proteção dos príncipes protestantes. Eles ignoraram a grande
verdade de que todo o poder necessário para a Igreja — seja interno
ou externo, seja em relação ao espiritual ou com vistas ao seu
governo exterior — reside na Cabeça da mesma, que é o Senhor
Jesus Cristo. Além disso, nenhuma tirania de Roma nem qualquer
fraqueza por parte de uns poucos reformadores é capaz de mudar
uma ínfima parte dessa bendita verdade. “Independente de qual seja
a falha da Igreja e de quanto ela tenha se aliado ao mundo, ainda
assim, essa verdade permanece: que a plena e divina suficiência do
Espírito Santo, com todos os Seus atributos, é a sua parte; a saber,
sob Aquele que é a Cabeça da Igreja, a qual Ele cuida, ama e
supervisiona”1. Cristo também tem as sete estrelas em Sua mão.
Aqui não está escrito como na carta à Éfeso: “Aquele que tem
[segura] na sua destra as sete estrelas” (cp. 2:1), mas “que tem... as
sete estrelas”. Embora em Sardes o Senhor não segurasse mais as
estrelas em Sua destra, Ele não abriu mão delas. Ele jamais poderia
fazer isso. Ele continua tendo-as sob Sua mão, embora não mais na
Sua destra. “Isto diz o que tem... as sete estrelas”.
Nesse contexto, é bom fazermos um pequeno
esclarecimento sobre as estrelas. Em Apocalipse 1:20
lemos: “As sete estrelas são os anjos das sete igrejas”.
Através de toda a Sagrada Escritura, a expressão “estrelas”
simboliza um poder subordinado, enquanto que o sol
simboliza o poder supremo (cf. Ml 4:2). Os anjos, pelo
contrário, nos fazem pensar em uma substituição; por
exemplo, lemos em Atos 12:15: “E diziam: É o seu anjo”, e o
homem que lutou com Jacó sem dúvida alguma era um anjo
do SENHOR, ainda assim Jacó disse: “Tenho visto a Deus
face a face” (cf. Gn 32:24-30). Portanto, se é dito que o
Senhor Jesus tem “os sete espíritos de Deus, e as sete
estrelas”, isso quer dizer, com outras palavras, que nEle
está presente todo o poder do Espírito e toda a autoridade
eclesiástica, tanto para a Igreja em sua totalidade como
também para o crente individualmente. E, certamente, os
crentes devem ser constantemente a expressão viva
dAquele que é sua vida, sua sabedoria e força neste
mundo. Que possamos nos manter em um espírito de
obediência e dependência, cada vez mais próximos dEle e
de Sua poderosa destra.
3. É quase desnecessário acrescentar que os títulos “estrela” e “anjo”
não justificam no mais mínimo o pensamento de uma posição
espiritual ou em ministros instituídos por homens. O sistema que
predomina desde os dias da Reforma abre amplamente as portas
para que até mesmo pessoas inconversas possam assumir essas
funções, desde que tenham formação intelectual. Todavia, quão
distinto é o sistema divino conforme nos é apresentado nesses
versículos! As “estrelas” possuem um caráter de autoridade sob a
direção de Cristo, e é em Seu nome, como a Cabeça do governo,
que agem. Já como “anjos”, eles são representantes das igrejas, e
representam as mesmas diante dos olhos de Cristo. Que visão
sublime é essa que temos diante de nós! Ambos os títulos pertencem
a uma pessoa. “As sete estrelas são os anjos das sete igrejas”.
Portanto, esta pessoa era, por um lado, a expressão de Cristo em
um poder subordinado frente à Igreja e, por outro lado, apresentava
a Igreja em seu estado interior diante dos olhos de Cristo. Para esse
tipo de ministros, divinamente apontados e qualificados, não pode
existir nenhum tipo de objeção em nenhuma época da Igreja nem em
nenhum país. Nunca devemos deixar de orar por tais homens. Tendo
visto os pensamentos de Cristo quanto ao que Ele representa em Si
mesmo para Sua Igreja em todas as épocas e condições, agora
precisamos nos empenhar em entender a posição das igrejas
reformadas como apresentadas, em figura, pelo estado em que as
coisas se encontravam na igreja em Sardes.
4. No sistema católico, a salvação não dependia apenas da fé em
Cristo, mas da comunhão com a igreja. Todas as bênçãos
dependiam da relação do indivíduo com a Igreja de Roma. Não havia
perdão de pecados, nem paz com Deus, nem salvação eterna em
Cristo, nem salvação para a alma fora da comunhão com ela. Foi
justamente essa doutrina blasfema que deu à Igreja Romana um
poder tão extenso e que tornou suas excomunhões em castigos tão
insuportáveis, os quais foram impostos a indivíduos ou a povos
inteiros durante o período das trevas. Assim que se ouvia a voz irada
da igreja, todos sabiam que não era possível oferecer resistência.
Não havia nenhum homem, desde o mais elevado monarca até o
mais simples súdito, que não tremesse diante das palavras do
pontífice romano. A guerra, a fome e a peste eram mais toleráveis do
que os anátemas papais. Aquelas duravam apenas por um tempo,
porém, estas condenavam a alma para o eterno castigo do inferno.
Pouco importava quão sincera a fé e a piedade de uma pessoa
pudessem ser. Caso ele não pertencesse à santa Igreja Romana e
não desfrutasse do benefício de seus sacramentos, a salvação era
impossível para ele. Essa terrível doutrina fazia da igreja tudo —
mestra, legisladora e salvadora — e a comunhão com ela era o único
caminho para o céu. A Igreja Romana também arrogava para si o
direito de determinar quem era santo e quem não. Ela também
decidia quem iria direto para o céu depois da morte, quais eram
aqueles que deveriam ir ao purgatório e por quanto tempo deveriam
permanecer naquele lugar de tormento. Todas as posições e a
importância que alguém poderia desfrutar no tempo e na eternidade,
eram determinadas por ela.
“Somente a Reforma trouxe luz a essas lamentáveis
trevas e desvendou a corrupção da assim chamada noiva
de Cristo, em toda sua dimensão. Muitos se insurgiram em
rebeldia contra a igreja e declararam que todo o sistema
papal não passava de uma mentira de Satanás. Ao mesmo
tempo, esses protestantes afirmavam que Lutero era
verdadeiro em suas afirmações acerca de Deus. Porém, em
vez dos reformadores se refugiarem em Cristo como seu
único auxílio e força, eles cometeram, como já vimos, o fatal
erro de se dirigirem às autoridades civis e buscar a proteção
delas diante das perseguições de Roma. Em decorrência
disso, o governo eclesiástico passou rapidamente às mãos
dos magistrados seculares. Estes começaram a fazer
prescrições em relação aos cultos e quanto à formação e
instituição dos ministros. Anteriormente, a igreja, sob o
papado, havia sido a soberana do mundo, agora, contudo, o
mundo se tornou o dominador da igreja. A carta à igreja em
Sardes descreve os acontecimentos que seguiram a
Reforma Protestante assim que o brilho, o fervor da
verdade, e o usufruto da primeira benção divina haviam
passado, e um frio formalismo foi estabelecido. É verdade
que nos países protestantes sempre houve certa medida de
liberdade de consciência, porém, o objetivo de Deus não é
apenas libertar a alma dos grandes males, mas trazê-la
diante de Si para que possa manter uma relação com Ele. A
alma também deve permitir que Ele possa Se glorificar nos
caminhos do Seu agrado, para que o Senhor possa ter
liberdade para agir e operar por meio do Espírito Santo,
como Lhe apraz. E assim que o Senhor Jesus recebe o
justo lugar que Lhe pertence, então se evidenciará o
abençoado fruto disso, em amor e santa liberdade. Não
precisamos a liberdade humana derivada do poder do
mundo, mas a liberdade do Espírito Santo. Que Deus nos
guarde de falarmos contra os poderes e as autoridades que
se encontram no governo, pois Ele mesmo os instituiu. Os
cristãos pecaram ao colocarem o poder secular nessa
posição errada. O Senhor Jesus desvenda a raiz dessa
questão pela maneira que Ele Se apresenta para a igreja
em Sardes. Seja o poder espiritual ou a autoridade exterior,
o Senhor reivindica Seus direitos de ambos. Somente a Ele
pertence esse poder e essa autoridade. Onde houver fé
suficiente para olhar para o Senhor Jesus em Sua posição
como Cabeça da Igreja, Ele certamente cuidará de cada
necessidade. Se Ele ouve o mais débil chamado de Suas
ovelhinhas, será que seria incapaz de adentrar na mais
profunda necessidade da Sua Igreja, a qual,
constantemente, é o objeto de Seu grande amor? O Senhor
Jesus assumiu a posição de Cabeça da Igreja quando
entrou na glória celestial; e não entrou apenas para ser a
Cabeça, mas para agir como tal”.2
5. Ao exporem a falsa doutrina do sistema papal no que diz respeito ao
poder da igreja, os reformadores caíram em um erro fatal. Esse erro
foi o de conceder muita importância aos pensamentos e opiniões
pessoais. O princípio católico era: a igreja faz o cristão. Já para os
protestantes o princípio era: os cristãos fazem a Igreja. As duas
posições são extremas e erradas, e a consequência é a mesma do
ponto de vista prático: nos dois casos, Cristo perde o direito de
ocupar o lugar que Lhe pertence exclusivamente. Um sacerdote
romano ensina que um ser humano só pode receber o bem para sua
alma se tiver uma verdadeira ligação com a Santa Madre Igreja
Católica Apostólica Romana. Assim que essa ligação for
interrompida, o indivíduo está completamente perdido. A única
maneira de receber o perdão dos pecados e a salvação eterna é
através dos santos sacramentos da igreja. Ser lançado para fora da
igreja equivale com a condenação nos eternos tormentos do inferno.
Porém, se houvesse arrependimento, atestado por algum tipo de
absolvição sacerdotal, a alma poderia ser libertada de tão terrível
destruição e seria restaurada ao pleno favor da igreja, que
corresponderia à vida eterna. Independente de qualquer coisa, a
posição do ser humano no céu, na terra, no purgatório ou no inferno
era, necessariamente, determinada e estabelecida pela Igreja
Romana. Esse é o princípio fundamental do catolicismo romano, que
outorga ao sacerdócio poder ilimitado sobre seus iludidos devotos.
Todavia, esse tipo de influência não é encontrado apenas no arraial
do romanismo. O mesmo existe em todos os lugares onde as
pessoas são controladas por um poder eclesiástico. Isso tem
acontecido desde os tempos mais remotos registrados pela história.
Os reformadores combatiam decididamente essas doutrinas; as
correntes da escravidão à Igreja de Roma foram rompidas e
lançadas para longe. Essa obra foi realizada pelo Espírito Santo de
Deus e pelo poder do próprio Senhor Jesus. Os reformadores
negavam a afirmação que a igreja fosse a despenseira de tais
bênçãos, exortavam a todos a lerem pessoalmente a Bíblia,
examiná-la e considerá-la como autoridade absoluta. Eles exortavam
a crerem no Senhor Jesus e serem justificados por meio desta fé, e
não por obras meritórias. Anunciavam novamente a doutrina dos
apóstolos, de que somente em Jesus Cristo havia salvação e que
cada um, por si próprio, era responsável perante Deus, e que
nenhum homem tinha o poder de absolvê-lo de seus pecados ou
decidir quanto ao eterno destino de outras pessoas.
Até esse ponto, os reformadores tinham toda razão,
somente o Senhor edifica pedras vivas sobre o fundamento
da Rocha, a preciosa e escolhida pedra de esquina. Porém,
infelizmente, se perdeu rapidamente de vista o lugar do
Senhor na Igreja e a Sua atividade nela mediante o Espírito
Santo. O homem começou a fundar comunidades, segundo
seus próprios pensamentos, e a construir “igrejas”. Desse
modo, infelizmente, o pensamento de Deus acerca da
verdadeira Igreja foi completamente perdido e não foi
recuperado até o século XIX, como veremos mais adiante.
Rapidamente surgiram, nas diversas partes da
cristandade, numerosas igrejas ou sociedades religiosas.
Mas cada país decidia, segundo seu próprio critério, como a
igreja deveria ser instituída e governada. Alguns pensavam
que o poder eclesiástico deveria ser colocado nas mãos dos
magistrados civis; outros afirmavam que a igreja deveria
reter esse poder dentro de si mesma. Essas divergências
de opinião resultaram nas numerosas corporações
dissidentes, as quais podem ser vistas, ainda hoje, em
todos os lugares ao nosso redor. Enquanto isso, os
pensamentos de Cristo quanto ao caráter e a constituição
de Sua Igreja, que é apresentado e ensinado de forma
ampla e detalhada nas epístolas, parecem ter sido
completamente ignorados pelos líderes da Reforma
Protestante. A fé individual, como o grande princípio
salvador da alma, inicialmente era ensinada em todos os
lugares, e somos gratos ao Senhor por isso. Foi através
desse ensinamento que muitas almas foram salvas e, como
consequência, Deus foi glorificado. Porém, ao mesmo
tempo, comunidades eram instituídas e igrejas eram
fundadas, segundo o critério de cada um. Para todo
pesquisador sincero da história da Igreja, se ele estiver
disposto a se sujeitar aos ensinamentos da Palavra de
Deus, este fato deve despertar dor e tristeza nele.
Lemos, por exemplo, em Efésios 4:4: “há um só corpo e
um só Espírito”; mas de acordo com os princípios do
protestantismo, deveríamos ler: “há muitos corpos e um
Espírito”. Pode haver mais do que uma instituição divina e
mais de um Corpo de Cristo? No versículo 3 nós lemos:
“Procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da
paz”. É desnecessário elucidar o que devemos entender por
“unidade do Espírito”. Não é uma uniformidade ou uma
igualdade de pensamentos e sentimentos dos indivíduos
crentes, mas trata-se da unidade dos membros do Corpo de
Cristo fundada pelo Espírito Santo. É a unidade essencial
de todos os verdadeiros crentes, que é operada pelo poder
do Espírito Santo. E esta unidade, que de fato existe,
devemos “guardar”, não fazer. Devemos ser diligentes em
mantê-la e realizá-la na prática, por meio de uma conduta
segundo o Espírito da graça. “Porque, assim como o corpo
é um, e tem muitos membros, e todos os membros deste
um corpo, sendo muitos, são um só corpo, assim é Cristo
também. Pois todos nós fomos batizados em um Espírito,
formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos,
quer livres, e todos temos bebido de um Espírito” (1 Co
12:12-13).
6. Os sistemas religiosos representados pela igreja em Sardes não
estão apenas sem vida, mas também as obras daqueles que
pertencem a eles estão incompletas. “Porque não achei as tuas
obras perfeitas diante de Deus” (Ap 3:2), diz o Senhor Jesus. Ele
busca os frutos que correspondam aos recursos que estão à
disposição da fé. Ele se apresenta a Si mesmo como Aquele que
possui toda a plenitude do poder e da energia espiritual para Sua
Igreja. Por esse motivo, Ele procura na Igreja os frutos que
correspondam a Ele e O satisfaçam. Ele não pode rebaixar Seu
padrão devido nossas falhas e fraquezas. Portanto, Ele diz: “Lembra-
te, pois, do que tens recebido e ouvido, e guarda-o, e arrepende-te”
(v. 3). Com esta séria advertência, Ele dirige a atenção da Igreja à
graça que ela recebeu e à Palavra que ela ouviu. Ele procura por
obras completas, que correspondam à medida da graça recebida e
do nível da verdade que foi comunicado. Porém, infelizmente, sob o
vão pretexto de que “não pode haver nada perfeito nem na Igreja
nem nos crentes individualmente”, o pensamento de obedecer a
Palavra de Deus em todas as circunstâncias, perdeu seu verdadeiro
lugar na maioria dos corações dos cristãos.
Tomemos como exemplo um caso que é bastante comum
hoje em dia. Um jovem homem se converte através da visita
de um evangelista. Ele não tem mais relacionamentos ou
amigos em uma igreja do que na outra. Mas ele precisa
passar a frequentar algum lugar. Ele recebe a
recomendação de visitar as diferentes igrejas próximas de
sua residência, e passar a frequentar onde ele achar que
está recebendo a maior benção. Esse é o critério pelo qual
ele deve julgar ou decidir-se: sua própria benção. Receber
bênçãos, sem dúvida, é algo cujo valor não pode ser
subestimado. Todavia, se elas são transformadas no
objetivo principal, colocando-as no lugar da agradável
vontade do Senhor, o resultado será trevas espirituais e
sequidão da alma. A submissão à Palavra de Deus
certamente se tornará uma fonte mais rica de bênçãos para
nossas almas do que a mera busca de bênçãos para nós,
ignorando os pensamentos de Deus acerca da Igreja e da
unidade de todos os crentes, assim como Ele nos revelou
nas cartas dos apóstolos. Mas, infelizmente, se ouve com
frequência: “Existem coisas boas em todas as
denominações, mas nenhuma delas é totalmente boa e
correta. Assim sendo, devemos examinar cuidadosamente,
julgar por nós mesmos, e escolher aquela que pensamos
que segue as Escrituras de forma mais apropriada, uma vez
que não existe nenhum sistema perfeito”. Porém, por mais
plausível que isso possa soar, só pode ser aplicado a
sistemas religiosos humanos. O sistema de Deus precisa
ser perfeito, e nenhum sistema que não seja perfeito
encontrará Sua aprovação. As imperfeições e os múltiplos
defeitos daqueles que se submetem à Palavra de Deus e
procuram realizar e executar Seus pensamentos a respeito
da Sua Igreja, não afeta em nada a perfeição da própria
instituição divina.
Geralmente não é feito uma distinção entre um sistema e
aqueles que se encontram dentro dele. Supondo que um
pequeno grupo de cristãos fracos ou até mesmo imperfeitos
se reúna ao redor de Cristo, o ponto central divino; isso, de
maneira nenhuma, torna fraco ou imperfeito a Pessoa de
Cristo, que é o centro. Por outro lado, se um grande número
dos melhores cristãos estivesse reunido em torno de um
ponto central humano, nem por isso este, se torna divino. O
Senhor Jesus é o centro de todos os pensamentos e
desígnios de Deus. Todos que, por meio do Espírito Santo,
estão reunidos em torno deste Centro, se encontram em
solo divino e serão ricamente abençoados. Esse deve ser
sempre nosso principal objetivo: estar onde o Senhor está,
em plena certeza de fé, na firme confiança de que Ele irá
abençoar as nossas almas. “Porque, onde estiverem dois
ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles”
(Mt 18:20).
A diferença entre o grande sistema de Sardes e aqueles
que se encontravam dentro dele, fica evidente nas palavras
do Senhor Jesus: “Porque não achei as tuas obras perfeitas
diante de Deus. Lembra-te, pois, do que tens recebido e
ouvido, e guarda-o, e arrepende-te” (Ap 3:2-3). A Igreja
precisa ser julgada, não por causa de um sistema sem vida,
mas sim pelos recursos que estão disponíveis em Cristo, a
Cabeça. O lamentável fato de que as coisas não são agora
como eram no princípio, não é razão para que os cristãos
fundem igrejas segundo seus próprios pensamentos, e as
governem segundo as leis instituídas por eles mesmos.
Todavia, esse tem sido o pecado e a prática do
protestantismo, de forma que o número das comunidades
religiosas se tornou em uma legião. “Lembra-te, pois, do
que tens recebido e ouvido, e guarda-o, e arrepende-te”, é a
advertência mais solene feita para a igreja em Sardes e
para os protestantes em geral. A Palavra de Deus deve ser
nosso único guia e autoridade, e a graça de nosso Senhor
Jesus Cristo nossa única fonte de poder. É o próprio Senhor
quem chama a atenção da igreja a essas duas grandes
verdades: a graça recebida e a verdade ouvida. São esses
elementos que formam o padrão de medida da
responsabilidade do grande sistema na igreja em Sardes, e
através do qual ela será, necessariamente, julgada pelo seu
Senhor.
7. Aqui é falado da vinda do Senhor de uma maneira como se a Igreja
já houvesse descido à posição do mundo: “E, se não vigiares, virei
sobre ti como um ladrão, e não saberás a que hora sobre ti virei” (Ap
3:3). Chama-nos a atenção quão semelhante é essa passagem com
as palavras do apóstolo a respeito do mundo, em 1 Tessalonicenses
5:2: “o dia do Senhor virá como o ladrão de noite”. O Senhor espera
que os Seus peregrinem seu caminho em decidida separação do
mundo, mas Sardes havia falhado por completo nesse propósito;
suas obras não foram achadas perfeitas. Em Sardes havia uma
grande conformidade com o mundo. Já na igreja em Tiatira, os
santos de Deus são louvados à causa do seu amor, sua fé, e sua
perseverança, apesar do mal existente; e porque “as tuas últimas
obras são mais do que as primeiras” (Ap 2:19). Em Sardes não
encontramos nada disso. Submissão obediente à Palavra de Deus e
separação do mundo são coisas pouco conhecidas do
protestantismo, assim como ele se desenvolveu. Por isso deverão
partilhar da porção do mundo. “Virei sobre ti como um ladrão”. E
assim será com a gigantesca massa de cristãos nominais, mas o
mesmo não acontecerá com o verdadeiro crente.
Mas há verdadeiros crentes em Sardes, que se
distinguem da massa professante. “Mas também tens em
Sardes algumas poucas pessoas que não contaminaram
suas vestes, e comigo andarão vestidas de branco;
porquanto são dignas disso” (Ap 3:4). Essa é uma palavra
de verdadeiro conforto para todos aqueles que estão
andando com o Senhor, em separação do mundo. É o
mundo que contamina as vestes do cristão. A expressão
“algumas poucas pessoas” significa, sem dúvida, indivíduos.
O Senhor conhece, pelo seu próprio nome, cada um que
está andando fielmente com Ele. É a esses que Ele
assegura que também andarão vestidos de branco
juntamente com Ele no céu. Bem-aventurado todo aquele
que vence! Em vez de ter o nome riscado do livro da vida, o
próprio Senhor irá confessar o nome dele diante de Seu Pai
e de Seus anjos.
Ao retomarmos a história, uma mistura de sentimentos
enche o nosso coração — sentimentos de gratidão a Deus,
com vistas à grande obra do Seu Espírito nos dias da
Reforma Protestante; e sentimentos de profunda dor e de
sincera tristeza face às falhas dos homens, que surgiram
tão rapidamente. Mas antes de prosseguirmos,
lembraremos mais uma vez, brevemente, os diversos
estados interiores nos quais temos visto a igreja professante
até agora. Na carta escrita à igreja em Éfeso, vemos que o
amor dela para com Cristo já havia esfriado: “deixaste o teu
primeiro amor” (cp. 2:4). Essa é a origem de todas as falhas
que vieram em seguida. Em Esmirna, vemos o sofrimento
sob a perseguição de Satanás. Já em Pérgamo, vemos a
mundanização da Igreja, e ela habitando em um mundo
onde está o trono de Satanás. Em Tiatira encontramos a
corrupção. Ela permite que a profetiza Jezabel ensine e
seduza os servos do Senhor a praticarem a fornicação e
comerem alimentos sacrificados aos ídolos. Por fim, em
Sardes, vemos a morte espiritual. Jezabel não está mais
presente. Sardes conseguiu se livrar de Jezabel e suas
corrupções. E o nome de que vive está presente, isto quer
dizer: uma grande profissão e uma aparência de
cristianismo, porém nenhum verdadeiro poder vital.

***
AS IGREJAS LUTERANAS
1526–1529 D.C.
Para mostrarmos aos nossos leitores quão fielmente a carta profética à
Sardes reflete as circunstâncias, assim como se formaram durante os
dias dos reformadores e mais ainda depois nas igrejas protestantes,
ofereceremos alguns extratos de Merle d’Aubigné, o escritor confiável e
frequentemente aqui mencionado, que escreveu o livro “História da
Reforma do século XVI”.
“A Reforma precisava de alguns anos de paz para que pudesse crescer
e se fortalecer. Ela podia gozar dessa paz porque seus dois grandes
inimigos estivam em guerra um com o outro. A tolice de Clemente VII
havia salvado a Reforma de um perigo ameaçador, e a queda de Roma
havia auxiliado na edificação da pregação do Evangelho. Isso não foi
proveitoso apenas por alguns meses, mas a paz reinou na Alemanha
entre 1526 até 1529. Essa paz serviu para o desenvolvimento e a
divulgação da Reforma.”
“Uma vez que o jugo papal havia sido quebrado, a igreja renovada
precisava de uma constituição pela qual a ordem eclesiástica devia ser
restabelecida. Era impossível manter os bispos em sua antiga jurisdição,
visto que estes afirmavam serem servos do papa antes de qualquer
coisa. E para que não vigorasse um estado de anarquia, foi necessário
introduzir outra ordem de coisas. Foram tomadas providências para
impedir o caos. Os povos evangélicos se separaram definitivamente do
domínio despótico que por séculos manteve todo o Ocidente sob pesada
escravidão.”
“Por duas vezes, os nobres alemães reunidos em Dieta queriam
transformar a reforma da igreja em uma questão nacional. Porém, o
imperador, o papa e uns poucos príncipes se opunham a essa medida. A
Dieta de Speyer ordenou que cada estado implementasse as
determinações que a própria Dieta não conseguia impor sobre o povo
alemão. Mas que tipo de constituição deveria substituir a hierarquia
papal?”
“Ao mesmo tempo em que suprimiam o papa, eles poderiam preservar
a ordem episcopal. Essa parecia ser a forma mais apropriada, pois era a
forma utilizada até então — foi o que aconteceu mais tarde na Inglaterra,
porém no continente, uma igreja episcopal evangélica era impossível.
Porém, também podiam reconstruir a constituição da igreja recorrendo à
exclusiva validade da Palavra divina e às instruções do Deus soberano,
restabelecendo novamente os direitos do povo cristão. Essa forma era a
mais distante da hierarquia romana. Entre ambos os extremos havia
constituições intermediárias. Zuínglio era a favor da segunda opção,
porém ele não a executou totalmente... O passo diante do qual Zuínglio
hesitava ainda era possível, e de fato aconteceu. Um príncipe levou
adiante aquilo que parecia duvidoso aos republicanos. A Alemanha
evangélica, no momento em que começou a experimentar o
desenvolvimento de sua própria constituição eclesiástica, também deu
início a um processo que abriu um enorme e profundo abismo entre o
povo alemão e a monarquia representada pelo papado, visto que foi a
que combateu isso mais decididamente. Enquanto a Inglaterra
aristocrática perseverou em uma forma episcopal, os obedientes alemães
permaneceram em um tipo de igreja estatal. O extremo democrático
surgiu da França e da Suíça.”3
Por meio destas breves citações, vemos que na restauração da Igreja
os povos e os príncipes se deixaram levar — alguns mais, outros menos
— por princípios políticos e motivações humanas. Apesar dos líderes do
movimento terem um desejo sincero de agir em conformidade com a
Palavra de Deus, ainda assim, parece que nunca lhes passou pela mente
que o próprio Deus havia fornecido uma constituição determinada para
Sua Igreja nas páginas do Novo Testamento. Deus não concedeu ao
homem liberdade alguma de adicionar algo a esta instituição divina ou
alterar uma única palavra das Suas prescrições, da mesma forma que Ele
não concedeu aos israelitas a liberdade de adicionar ou alterar em nada o
modelo do tabernáculo que Ele lhes havia dado por intermédio de
Moisés. Mas, como já tratamos detalhadamente a questão da instituição
e da direção da Igreja no primeiro volume, não é necessário retornarmos
a isso novamente. Todas as coisas devem ser aferidas* pelo padrão da
Palavra de Deus, e tudo aquilo que não tiver a aprovação dela, deve ser
abandonado.
***
A FUNDAÇÃO DAS PRIMEIRAS IGREJAS LUTERANAS
Não podemos afirmar que a Reforma Protestante na Alemanha foi
iniciada no meio das classes mais baixas da população. Na Suíça, o
movimento partiu do povo, na Alemanha partiu mais dos eruditos e dos
príncipes. Desde o início, os príncipes estavam à frente da batalha, e
sentaram-se nos primeiros bancos dos concílios. E assim, naturalmente,
de acordo com d’Aubigné, “a organização democrática (partindo do povo)
teve que dar lugar para o governo civil”. Assim, a instituição das Igrejas
Luteranas foi algo puramente humano e político. Cristo como o centro da
Sua Igreja e o Espírito Santo como o poder agregador trazendo as
pessoas para o centro, foram ignorados por completo. Esse é o motivo
porque o Senhor declara que todos esses sistemas estão “mortos”. É
verdade que nas Igrejas Luteranas e nas Igrejas Reformadas é pregado
sobre Cristo, o Espírito Santo e a Palavra de Deus, e também se crê
nisso; porém não é dado a nenhum deles o lugar que lhes corresponde.
Por isso elas estão sem verdadeira vida, por maior que seja o número
dos crentes que se encontram nelas. Lutero encontrou apoio para
desenvolver o seu trabalho predominantemente entre as classes mais
altas. “Ele aceitou os príncipes como representantes do povo, e a partir
daí, a influência do Estado tornou-se o fator principal na constituição das
igrejas evangélicas na Alemanha.”
A Reforma não é formação. A verdade, como ela foi proclamada
originalmente, e a primeira formação da Igreja no dia de Pentecostes
deveriam ter servido como única guia para os reformadores do século
XVI. No fundo, a Reforma nada mais é do que o retorno àquilo que era
desde o início. Portanto, a Reforma da Igreja deveria consistir na
recondução da Igreja à harmonia com aquilo que Deus manifestou na
Sua Palavra acerca dela. E se no primeiro século a Igreja foi formada
sem a participação de príncipes desse mundo, a mesma não poderia ser
reformada no século XVI sem a participação deles? Por que deveria ser
necessário convocar um poder secular para a Reforma da Igreja se este
não foi necessário no início, na sua formação no dia de Pentecostes? A
verdade de que a Igreja é a assembleia do povo de Deus, o Corpo de
Cristo, era pouco ou nada compreendida pelos reformadores. Desde o
início eles não agiram de acordo com esta verdade, e depois deles, as
igrejas protestantes se afastaram cada vez mais desta verdade. Onde se
encontrava uma compreensão acerca dessa verdade nas igrejas
protestantes? Ela se havia perdido totalmente.
Filipe I, landgrave de Hesse, um príncipe magnânimo* e
empreendedor, foi o primeiro em dar uma constituição às igrejas
localizadas em seus territórios. Foi essa constituição que serviu de
modelo para as novas igrejas da cristandade.
***
A MORTE DE FREDERICO, O SÁBIO
No ano 1525, Frederico, o sábio, Príncipe-eleitor da Saxônia, faleceu.
Ele havia sido um dos mais sinceros amigos e protetores de Lutero.
Contudo, lhe faltava a necessária energia e determinação para ser um
reformador. Ele nunca havia perdido a esperança de conseguir uma paz
sincera e legítima entre os partidos contenciosos. Seu irmão, João, que
se tornou seu sucessor, tinha um caráter totalmente diferente. Ele era um
completo luterano e tinha mais do caráter de um reformador. Em
questões eclesiásticas, ele arrogou para si um poder ilimitado e assumiu
uma posição de liderança. Ele levou Lutero e Melanchthon a elaborarem
“leis acerca da organização da constituição da igreja e do governo da
mesma, incluindo a forma pública de adoração, os deveres e os salários
dos clérigos, e das coisas referentes ao bem-estar da igreja. Estando
plenamente convencido quanto à verdade das doutrinas de Lutero, e
percebendo claramente a impossibilidade de preservar as mesmas caso
a autoridade do pontífice romano fosse mantida, João tomou sobre si
mesmo toda a jurisdição eclesiástica. Ele providenciou para que mestres
competentes e piedosos fossem colocados em todas as igrejas, e
removeu aqueles que considerava incompetentes. Seu exemplo foi logo
seguido por outros príncipes e Estados da Alemanha, que também
haviam se libertado do domínio do pontífice romano; de modo que eles
prescreveram praticamente as mesmas constituições que João havia
implantado”.4 Esse foi o fundamento sobre o qual foram plantadas as
primeiras Igrejas Luteranas ou Reformadas na Alemanha.
O efeito de tais medidas determinadas, como podemos facilmente
supor, logo produziu resultados. Profundas dissensões entre os príncipes
surgiram imediatamente depois das decisões tomadas por João da
Saxônia. O amor pela paz e a moderação de Frederico haviam mantido
os príncipes alemães unidos até certo ponto. Todavia, os procedimentos
de João e dos príncipes que agiram de igual forma, deixaram claro para
todos que eles estavam determinados a separar definitivamente as
igrejas de seus territórios da Igreja de Roma. Essa atitude despertou
sérios temores nos príncipes católicos, que os fizeram pensar em meios
para defender a antiga religião e punir os ousados inovadores. Mas uma
aliança também foi formada pelos príncipes luteranos. Porém, o estado
geral de perturbação em que se encontrava a Europa impediu o início de
uma guerra civil. Como as mãos do imperador Carlos estavam ocupadas
com várias guerras em diferentes lugares, os reformadores foram
deixados em paz até o ano 1529, podendo continuar sua obra. Com isso,
chegamos novamente ao importante período de tempo com o qual
encerramos o capítulo anterior.
***
O APELO DOS PRÍNCIPES
Como já temos visto, através do esforço do partido papal durante a
Segunda Dieta de Speyer (em 1529), o edito emitido contra Lutero na
Dieta de Worms (em 1521) foi confirmado e todas as inovações religiosas
foram terminantemente proibidas. Foi contra essa decisão que a maioria
dos príncipes evangélicos manifestou um solene e deliberado protesto.
Todavia, os príncipes protestantes não estavam satisfeitos em expressar
apenas sua discordância com respeito aos decretos da Dieta de Speyer.
Logo após o término da Dieta, eles se reuniram na casa de um clérigo e
fizeram redigir um documento legal, por meio de dois notários, no qual
davam um breve resumo acerca das deliberações da Dieta, expressavam
suas queixas e apresentavam as razões para justificar o ousado passo
que estavam tomando. Além disso, com expressões respeitosas, porém
determinadas, eles reafirmaram o direito sagrado da consciência humana
em questões relacionadas com a religião e, finalmente, apelaram para o
imperador que organizasse um novo concílio geral. O documento
elaborado pelos príncipes encerrava com as palavras: “Nós, portanto,
apelamos — à Sua Majestade Imperial e ao direito de uma assembleia
livre e universal de toda a santa cristandade — por nós mesmos, por
nossos súditos e por todos aqueles que recebem ou que irão receber
doravante a Palavra de Deus, contra todas as medidas prejudiciais,
impostas no passado, presente ou futuro”5. Esse documento ocupou doze
páginas de pergaminho. Na décima terceira página foram adicionadas as
assinaturas e os selos que equivaliam aos mesmos que haviam sido
colocados no protesto original.
A cópia dessa solene declaração foi imediatamente enviada ao
imperador sob os cuidados de três representantes. Naquela ocasião, o
imperador Carlos V estava viajando da Espanha para a Itália. Os
emissários se encontraram com o imperador na cidade de Placência,
para se desincumbirem da sua tarefa. O imperador ficou grandemente
irado por causa da ousadia dos príncipes alemães e pela coragem de se
oporem à sua soberana vontade. O que feriu o orgulho do arrogante
espanhol foi principalmente o tom determinado do documento. Em sua
irritação, ele ordenou prender os emissários; e lhes proibiu, sob ameaça
de pena de morte, de abandonar seus aposentos ou de dar notícias sobre
sua sorte aos príncipes protestantes. Mas logo ele reconsiderou sua
decisão e os colocou em liberdade, e seguiu seu caminho para Bolonha,
onde ele passou vários meses na companhia do papa Clemente VII, seu
antigo antagonista.
Enquanto isso, os líderes protestantes não estavam inativos. Eles
empregaram todos os meios que estavam à sua disposição para divulgar
a nova doutrina e para fortalecer a sua própria reputação junto ao povo.
No dia 5 de maio, onze dias após terem redigido o apelo, o mesmo foi
impresso e publicado pelo landgrave Filipe de Hesse; e alguns dias
depois o Eleitor da Saxônia seguiu o exemplo. A grande contenda entre
católicos e protestantes agora havia assumido uma forma determinada,
que era patente diante dos olhos de toda a cristandade.
***
ENCONTROS DOS PROTESTANTES
O temor dos príncipes quanto às intenções do imperador foi
confirmado. O tratamento violento que havia dispensado aos emissários e
a renovação da sua amizade com o papa eram sinais claros que ele tinha
intenções de tomar severas medidas contra os hereges. Os líderes
protestantes perceberam que o tempo para pensarem em sua segurança,
diante de eventuais ataques do ofendido e indignado imperador, havia
chegado. No verão do ano de 1529 foram realizadas assembleias nas
cidades de Rottach, Schwabach, Nuremberg e Esmalcalda. Todavia, não
se chegou a nenhuma decisão clara, principalmente pelo fato da
divergência de opinião acerca da Ceia do Senhor. Em uma de suas
reuniões, eles decidiram, formalmente, que “uma convergência acerca
dos sacramentos, do batismo e da Ceia era essencial para uma aliança
religiosa entre cristãos”. Mas naquele tempo, infelizmente, os
reformadores já estavam divididos em dois grupos por causa da
controvérsia acerca da Ceia.
O partido papal estava bem familiarizado com os duros e polêmicos
tratados que foram escritos por Lutero e Zuínglio, os líderes dos dois
partidos, acerca desse assunto. Eles empregaram tudo para alargar cada
vez mais a ruptura entre os seguidores de ambos os partidos. Já durante
as reuniões da Dieta de Speyer, os antagonistas dos príncipes
reformadores os haviam censurado continuamente: “Vós vos gloriais de
reter a pura Palavra de Deus, e ainda assim continuais desunidos entre
vós”. O jovem landgrave de Hesse sentia-se profundamente incomodado
por essa desunião e pelas críticas públicas, e decidiu usar todos os meios
possíveis para conseguir uma reconciliação entre os reformadores suíços
e saxônicos. Com esse objetivo, ele convocou uma conferência que
deveria acontecer na cidade de Marburgo, em 1529; e convidou Lutero,
Zuínglio e alguns dos mais destacados doutores e teólogos de ambos os
partidos.

1 Preleções acerca das Sete Cartas enviadas às igrejas do Apocalipse. J. N. Darby.


2 Lectures on the Revelation-Sardis, por W.K.
3 Vol. 4, pág. 26-47.
4 A História da Igreja, Mosheim, vol. 3, p. 122.
5 D´Aubigné, vol. 4, p.83.

Capítulo 37
A CONTROVÉRSIA ACERCA DO SACRAMENTO DA SANTA
CEIA

A doutrina da presença real de Cristo no pão e no vinho da Ceia foi


estabelecida na Igreja Romana no IV Concílio de Latrão, realizado no ano
de 1215. Por três séculos a doutrina da transubstanciação foi a principal
fortaleza doutrinária de Roma, bem como sua maior blasfêmia. Essa
doutrina contribuiu para o aumento da reputação da igreja corrompida e
dos seus sacerdotes. O pensamento da presença corporal de Cristo na
Santa Ceia rodeava a reputação da igreja com uma brilhante auréola,
excitava a fantasia do povo e atraía poderosamente seus sentimentos.
Essa doutrina deu origem a numerosas cerimônias supersticiosas, rendia
muito dinheiro para os sacerdotes e lhes concedia um poder
extraordinário. Os mais surpreendentes milagres, assim se dizia, eram
realizados por meio da hóstia consagrada, tanto entre os vivos quanto
entre os mortos. Podemos dizer que jamais alguma invenção humana se
igualou a esta, em incoerência, em banalidade e em maldade. Em um
grande concílio da igreja em Roma, o papa Urbano disse: “As mãos do
sacerdote são elevadas a uma altura que não é concedida a nenhum
anjo, formando a Deus, o Criador de todas as coisas, e sacrificando-O
para a salvação de todo o mundo. Visto que este privilégio eleva o papa
até mesmo acima dos anjos, qualquer sujeição do papa aos reis desta
terra deve ser amaldiçoada”. Este é o motivo porque o papa não pode,
em hipótese nenhuma, submeter-se a qualquer autoridade humana.
Quando Urbano havia acabado seu discurso, todo o sínodo deu a sua
aprovação por meio de um alto “Amém!”. Dessa forma, aquela doutrina
se tornou na pedra angular do edifício papal.
Lutero, como um sacerdote e monge, acreditava firmemente nesse
mistério da iniquidade e, infelizmente, nunca foi totalmente libertado da
sua influência até o fim de sua vida. Ele pecou contra Deus e contra sua
consciência quando aceitou a ordenação sacerdotal. A partir daquele
momento, uma cegueira absoluta desceu sobre seus olhos e sua mente
quanto ao poder do sacerdote sobre os elementos envolvidos no
sacrifício da missa. Apesar de Lutero, como reformador, ter rejeitado a
doutrina da transubstanciação, no lugar dela ele adotou a doutrina da
consubstanciação, que é ainda mais inexplicável. Ele declarou incorreta a
afirmação da Igreja Romana de que o pão e o vinho, após a oração de
consagração feita pelo sacerdote, se transformassem no corpo e no
sangue do Senhor. Sua opinião era que o pão e o vinho permaneciam
naquilo que eles eram — verdadeiro pão e verdadeiro vinho — porém ao
mesmo tempo, com os mesmos seria ingerida a matéria essencial do
corpo humano de Cristo.
***
A OPINIÃO DE ZUÍNGLIO
Ulrico Zuínglio, o grande reformador suíço e companheiro de Lutero,
se apartou decididamente tanto dos ensinamentos de Roma quanto do
reformador saxão, no que dizia respeito à presença verdadeira de Cristo
nos elementos da Santa Ceia. Logo após a sua conversão, a atenção de
Zuínglio havia sido atraída pela simplicidade com a qual a Sagrada
Escritura fala da Ceia do Senhor. Ele havia lido na Palavra de Deus que
Cristo havia deixado esse mundo e retornado para Seu Pai nos céus; e
para Seus discípulos isto deveria ser um objeto de fé e de esperança.
Zuínglio encontrou no livro de Atos as palavras: “E, estando com os olhos
fitos no céu, enquanto ele subia, eis que junto deles se puseram dois
homens vestidos de branco. Os quais lhes disseram: Homens galileus,
por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi
recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir” (At
1:10-11). Dessa maneira, ele pôde reconhecer que o bendito Senhor
ascendeu ao céu pessoal, corporal e visivelmente; e que Ele retornaria da
mesma forma, porém não antes que a presente dispensação divina, o
período da Igreja, tivesse findado. “O qual convém que o céu contenha
até aos tempos da restauração de tudo” (cp. 3:21).
Zuínglio afirmava que as palavras do bendito Senhor: “Isto é o Meu
corpo”, “Isto é o Meu sangue” eram figurativas em seu caráter e não
significavam nada além de que o pão e o vinho, que eram utilizados na
celebração da Ceia, eram símbolos ou emblemas do corpo e do sangue
de Cristo. Além disso, toda a celebração acontecia para recordação da
Sua morte por nós, segundo as palavras do apóstolo Paulo em 1
Coríntios 11:22-28: “Fazei isto em memória de mim... Porque todas as
vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte
do Senhor, até que venha”.
Por um longo tempo Zuínglio havia mantido para si esse conceito
acerca da Ceia do Senhor, visto que ele sabia quão profundamente a
velha doutrina da Igreja Romana estava arraigada nos corações e mentes
do povo ignorante e supersticioso. Entretanto, pensando que logo viria o
tempo para uma proclamação pública desta verdade, e prevendo a
oposição que ele teria que vencer, procurou divulgar essa verdade e
firmar sua posição de forma diligente, mas discreta. Cartas, tratando
desse assunto, foram enviadas a muitos homens sábios através de toda
a Europa. A intenção de Zuínglio era movê-los a examinarem a Palavra
de Deus, mesmo que não concordassem com as opiniões dos
reformadores suíços. Mas enquanto Zuínglio esperava calmamente pelo
momento certo, no qual ele poderia fazer ouvir sua voz, outra pessoa,
com mais entusiasmo do que sabedoria, escreveu um tratado contra a
doutrina de Lutero referente à Ceia. Dessa forma, ele provocou uma
violenta tempestade, que durou mais de quatro anos.
***
KARLSTADT, LUTERO E ZUÍNGLIO
André Bodenstein, que ficou mais conhecido como Dr. Karlstadt, era
um professor na universidade em Wittenberg. Ele iniciou a controvérsia.
Karlstadt era um homem hábil, erudito e devotado à causa da Reforma
Protestante. Porém, em decorrência da impetuosidade do seu caráter, ele
era inclinado a tomar medidas violentas. Ele queria que todas as imagens
fossem destruídas e que todos os ritos do papado fossem abolidos de
uma vez. Karlstadt foi um dos primeiros e mais próximo amigo de Lutero,
mas rejeitou a doutrina dele quanto à presença real de Cristo na Ceia.
Para Lutero, essa atitude de Karlstadt era um pecado imperdoável. Além
disso, por meio das suas pregações fanáticas, Karlstadt havia contribuído
muito para a disseminação da seita dos anabatistas ou “dos profetas
celestiais” (como eram chamados) e também havia aprovado seus
excessos. E foi exatamente isso que levou Lutero a colocar os chamados
sacramentistas e os anabatistas em um mesmo nível. Nisso, Lutero agiu
muito injustamente, pois Zuínglio e seus seguidores condenavam o
fanatismo daquela seita com a mesma intensidade de Lutero e seus
colegas.
Para refutar Karlstadt, Lutero escreveu um tratado contra a seita e a
doutrina dos anabatistas em 1525, no qual, entre outras coisas, ele
declara: “O Dr. Karlstadt se afastou de nós e tornou-se nosso mais
amargo antagonista. Embora lamente profundamente esse escândalo,
ainda assim me regozijo que Satanás tenha mostrado suas garras
abertamente. Por meio deste tratado, quero envergonhar seus profetas
celestiais, os quais por um longo período de tempo têm sussurrado e
murmurado em segredo, porém jamais quiseram aparecer abertamente.
Isso foi assim até que finalmente, pela graça de Deus, mostraram seu
verdadeiro rosto. Mas nem toda a infâmia daquilo que planejam está
revelada, pois ainda existem muitas mentiras escondidas, acerca das
quais tenho apenas grandes suspeitas. Eu também sei que há tempos o
Dr. Karlstadt tem estimulado essa heresia em sua mente, apesar de ainda
não ter encontrado coragem para anunciá-la de forma aberta”.
Quando esse tratado foi publicado, Zuínglio teve a convicção de que
também havia chegado o tempo dele falar. Porém, embora ele coincidisse
com as opiniões de Karlstadt referente à Ceia, ele rejeitava
decididamente sua maneira ofensiva de escrever e a violência de suas
palavras. No ano de 1525 ele publicou um importante tratado “acerca da
verdadeira e da falsa religião”. Neste tratado, Zuínglio expôs de forma
clara e abrangente a sua própria opinião acerca da Ceia e, ao mesmo
tempo condenou, com expressões terminantes, o espírito revoltoso dos
anabatistas e os erros dos papistas a respeito dos objetos em questão.
Em resposta a isso, foi publicado um tratado com o título: “Outra vez a
nova doutrina falsa dos sacramentistas”. A isso, Zuínglio respondeu no
mesmo ano; e aproveitou a oportunidade para exortar seus oponentes
luteranos a serem menos pessoais em suas ofensas e mais racionais na
sua argumentação, baseando-a nas Escrituras. Nos escritos do
reformador suíço manifestava-se moderação e respeito diante do
oponente, o que causou extrema surpresa nos saxões, pois até mesmo o
próprio Melanchthon, calmo por natureza, por vezes foi contagiado pela
violência de Lutero.
João Oekolampad, amigo íntimo de Zuínglio, estava pregando durante
aqueles dias na cidade de Basileia a doutrina simples do Novo
Testamento acerca da Ceia do Senhor. Mas quando ele descobriu que
seus opositores o relacionavam com Karlstadt, ele defendeu sua posição
em um tratado público. Esse tratado causou uma grande sensação.
Escrito com verdadeiro espírito cristão, o mesmo continha uma lógica
firme e lançava mão dos melhores argumentos, que eram retirados tanto
das Escrituras como dos escritos dos mais eminentes Pais da Igreja.
Esse tratado falava aos corações com um poder convincente, levando
muitos a aceitarem a nova doutrina ou pelo menos examiná-la
profundamente. O próprio Erasmo quase foi levado a ter outra convicção
por causa desse tratado. Ele escreveu para um amigo: “Um novo dogma
surgiu, que na Ceia não há nada além do pão e do vinho. Refutar essa
afirmação agora se tornou muito difícil, visto que João Oekolampad a
confirmou com tantas evidências e argumentos que até os próprios
eleitos correm o risco de serem seduzidos por ela”.
Em resposta a esse tratado, logo foi publicado um escrito injurioso, que
foi assinado por catorze teólogos alemães, contendo um prefácio escrito
pelo próprio Lutero. Zuínglio sentiu-se profundamente ofendido e
queixou-se dos ataques hostis que um homem sincero e erudito, como
Oekolampad, tinha que suportar por parte de seus irmãos alemães.
Zuínglio disse: “Não tenho visto nada durante a minha vida que seja
menos digno de louvor do que esta resposta, por causa da violência feita
contra as Santas Escrituras, pela manifesta falta de moderação e pelo
tom arrogante e obstinado. De todos os homens, o irmão Oekolampad é
o mais inofensivo, sendo um verdadeiro modelo de todo tipo de piedade e
conhecimento. Ele é o responsável pela difusão do conhecimento literário
que tem beneficiado uma grande quantidade de pessoas, que
aprenderam a gostar da literatura através dos seus escritos. Agora este
homem é tratado de maneira tão infame e com tal ingratidão imatura, que
nos sentimos chamados não apenas para reprová-los, mas para execrá-
los*”.1
Assim, a controvérsia prosseguiu. O número de contenciosos de
ambos partidos aumentava constantemente. Lutero sentia-se
profundamente surpreso e entristecido ao perceber que tantos homens
sábios e piedosos apoiavam a opinião de Zuínglio. Muitos, de cuja
firmeza Lutero havia estado plenamente convencido, agora se inclinavam
mais e mais para a doutrina suíça da Ceia. Esta descoberta agitou ao
máximo o espírito irritável de Lutero, e o encheu com dor e com ira. Suas
cartas e escritos daquele período fervilhavam de expressões
extremamente pungentes* e até mesmo totalmente desmedidas e
inconvenientes. Ele chamou os líderes do partido opositor de “Absalões,
conspiradores contra o sacramento da Santa Ceia. Em comparação com
a maldade destes, os papistas são leves antagonistas. Esses homens
são instrumentos satânicos da minha tentação”. Os seguidores de Lutero
imitaram a linguagem e a maneira de seu mestre. E foi assim que a
violência e a obstinação do caráter de Lutero deram a essa controvérsia
uma forma cada vez mais funesta. Desde o final do ano 1524 até o ano
1529, Lutero escreveu tanto e de forma tão violenta contra os
reformadores suíços e tão pouco contra os papistas, que Erasmo de
Roterdã comentou de forma sarcástica: “Os luteranos estão ansiosos por
voltar ao seio da Igreja Romana”.
***
CONVOCAÇÃO PARA UM ENCONTRO EM MARBURGO
De fato era um trabalho difícil acalmar os espíritos amargurados dos
doutores cristãos e reconciliá-los mutuamente. Mas o inteligente
landgrave de Hesse percebeu que, para a causa da Reforma, havia se
tornado uma questão vital reconciliar ambos os partidos. Nesta ocasião, e
em anteriores, ele manifestou uma mentalidade bem mais cristã do que o
próprio Lutero, o grande reformador. Este pensamento é de fato
humilhante, porém temos que honrar a verdade. Mas não é nossa
atribuição julgar motivos, pois existe Um que irá julgar os segredos de
todos os homens (1 Co 4:5).
A profunda relação desta grande controvérsia com a situação política e
as inquietações na Alemanha, a tornava objeto do maior interesse e da
penosa preocupação dos príncipes protestantes; isso se tornou no
grande impedimento para a união deles. E o que poderia acontecer em
face de adversários tão poderosos como Roma e o imperador se os
protestantes estavam desunidos entre si? Os teólogos papais
acompanhavam com maliciosa satisfação a crescente amargura dessas
infelizes dissensões, e lançavam mão de todas suas artimanhas para
obterem proveito dessa disputa. É evidente que o landgrave lamentava
mais essa discórdia do que os próprios teólogos de Wittenberg. Diante
disso, ele estava determinado a organizar, sem demora, uma conferência,
e se possível promover a reconciliação entre os líderes dos diferentes
partidos. Tanto os reformadores alemães quanto os suíços estavam de
acordo sobre as grandes e fundamentais verdades contidas na revelação
bíblica. Eles divergiam apenas em um ponto: a real presença de Cristo na
Ceia. Para o landgrave Filipe, toda essa questão aparentemente não
passava de uma disputa acerca de palavras. Diante dos seus ministros,
ele afirmou: “Os luteranos não querem saber nada acerca de uma aliança
com os seguidores de Zuínglio. Portanto, vamos colocar um fim a todas
as objeções que estes têm contra Lutero”. E com este objetivo, Filipe
convocou os principais teólogos da Saxônia, da Suíça e de Estrasburgo
para se encontrarem na cidade de Marburgo, em outubro de 1529, para
resolver esta disputa. Zuínglio aceitou o convite com muita alegria e
tomou providências para comparecer no tempo determinado. Contudo,
Lutero expressou claramente sua aversão de se encontrar com Zuínglio.
Os inúmeros tratados contenciosos que haviam sido trocados entre ele e
o reformador da Suíça, aparentemente deixaram uma profunda
impressão em Lutero acerca do poder de Zuínglio. Senão, por qual outra
razão este homem sempre tão destemido e corajoso teria ficado
amedrontado em se encontrar com seu antagonista? De todas as
maneiras possíveis, até mesmo por meios indignos, Lutero procurou
frustrar o encontro com seu oponente. Mas todas essas tentativas
fracassaram diante da firmeza do landgrave. Finalmente, Lutero escreveu
para Filipe.
“Tenho recebido vossa ordem para ir a Marburgo participar de um
encontro com Oekolampad e seus companheiros, para disputar acerca da
nossa divergência quanto ao sacramento da Santa Ceia. Embora eu
tenha poucas esperanças de que a paz e a união sejam restauradas por
meio disto, não posso louvar o bastante vosso zelo e vosso cuidado. Por
este motivo, não me nego a empreender uma tarefa inútil e talvez
perigosa para nós; pois não quero dar nenhuma razão aos meus
adversários para dizerem que eles estariam mais inclinados do que eu a
buscarem um acordo. Eu sei muito bem que não farei a eles nenhuma
concessão indigna... E caso eles não cedam, todo o vosso esforço terá
sido em vão.” Todas as cartas pessoais de Lutero, que ele escreveu
durante aqueles dias, expressam a mesma opinião e o mesmo espírito
pertinaz. Toda essa questão já havia sido avaliada e decidida na mente
de Lutero, antes mesmo dele iniciar a sua viagem. Todavia, sua alma
estava muito longe de gozar tranquilidade e paz. Ele temia sucumbir à
batalha que estava diante dele. Isso transparece especialmente em duas
proposições que ele e Melanchthon fizeram.
Primeiramente ele pediu, em seu nome e no de Melanchthon, que
alguns teólogos papais, conhecidos como homens sinceros, pudessem
ter acesso à conferência como testemunhas. “Se não houver juízes
imparciais, os seguidores de Zuínglio poderão se gloriar de uma vitória.”
Todo leitor livre de preconceito deve se surpreender ao ouvir o reformador
saxônico e o autor do livro “Do Cativeiro Babilônico da Igreja” falar assim.
Aqui, indiscutivelmente, Lutero se apartou de forma imperdoável dos
princípios da Reforma Protestante. Será que Lutero havia se esquecido
que os papistas, mais do que qualquer outro partido na cristandade,
afirmavam a doutrina da real presença de Cristo nos elementos da Santa
Ceia? Ainda assim ele propôs que eles comparecessem como juízes
imparciais. Que fraqueza se mostra, pelo menos por um momento, neste
grande homem! De que maneira podemos explicar tal procedimento? Ele
abandonou o fundamento seguro da Palavra de Deus e foi para um
fundamento incerto da superstição e das opiniões pré-concebidas. Em
vez de se apoiar somente no Deus vivo e na Sua Palavra, como outrora,
ele se volta para os seus inimigos declarados, para buscar neles ajuda e
refúgio — que solene lição todos os cristãos encontram nesses fatos;
somente a Sagrada Escritura e o Senhor Jesus devem ser nosso refúgio.
Mas o landgrave Filipe não aceitou a proposta de Lutero, visto que era
um fervoroso opositor dos papistas.
Em uma carta, geralmente atribuída a Melanchthon, escrita e
endereçada para o príncipe Eleitor da Saxônia, por volta do dia 14 de
maio, os reformadores foram além. “Que o príncipe se recuse a permitir
nossa viagem até Marburgo. Com isso teremos uma boa razão para
desculpar nossa ausência.” Mas, de acordo com D’Aubigné, “o Eleitor
não quis fazer parte de tal procedimento, de modo que os reformadores
de Wittenberg se viram compelidos a aceitar o convite do landgrave”.
Uma terceira proposta foi sugerida, que demonstra ainda mais
claramente o medo e a preocupação dos teólogos da Saxônia. De acordo
com essa sugestão, “Zuínglio não deveria estar presente entre os
teólogos suíços convocados a virem para participar do debate”. Mas essa
proposta também não pôde sequer ser considerada. Os convites já
haviam sido enviados, e a obstinação de Lutero já havia irritado o
landgrave Filipe de tal modo que não quis mais dar ouvidos às suas
propostas. Estes detalhes, que em si mesmos são de pouco significado,
são dignos de ser relatados, pois mostram que diferença surge na
conduta de um homem quando ele se levanta na dependência de Deus e
pela verdade divina, ou quando ele se empenha por um dogma
estabelecido por ele mesmo. No primeiro caso a fé o mantém firme, e a
graça lhe concede coragem, firmeza e uma atitude nobre. Já no outro
caso, se mostram nele os traços evidentes de fraqueza, inquietude e
desconfiança. É a presença de Deus e a fé no Soberano que fazem toda
a diferença. Como diz o poeta:
“Deus é por mim? Não temerei, mesmo que todos se levantem contra
mim;
Quando clamo por Jesus meu Salvador, o exército do mal foge.
Meu amigo, o Senhor Todo-Poderoso, e Aquele que me ama é Deus.
Que inimigo poderá me causar mal, mesmo vindo como um dilúvio?
Eu sei, eu creio, eu digo sem nenhum temor,
Que Deus, o maior, o mais poderoso, me ama para sempre,
Em todo tempo, em todos os lugares, Ele permanece ao meu lado,
Ele reina sobre a fúria da batalha, da tempestade e da maré.”

***
A CONFERÊNCIA EM MARBURGO
O senado em Zurique tinha se recusado, de forma categórica, a
permitir que Zuínglio fosse a Marburgo, temendo que na viagem pelo
território imperial algum tipo de mal pudesse lhe suceder. Mas o
reformador sentia que sua presença na conferência era necessária,
visando o bem-estar da Igreja. Por esse motivo, tendo plena convicção
que deveria ir, em secreto tomou as devidas providências para sua
viagem, e partiu da cidade de Zurique à noite, acompanhado apenas por
um amigo — Rodolfo Colling, que era professor de grego. Ele deixou a
seguinte nota para o senado: “Se parti sem informá-los não é porque
desprezo a vossa autoridade, pois os considero os mais sábios dos
homens; mas por conhecer o amor que tendes por mim, percebo que
vossa preocupação impediria a minha viagem”. Zuínglio e seu
companheiro chegaram seguros em Basileia, onde Oekolampad uniu-se
a eles. Então seguiram para Estrasburgo, onde três outros teólogos se
juntaram ao grupo: Bucer, Hedio e Sturm; e, sob a escolta de um grupo
de cavaleiros de Hesse que Filipe havia enviado para protegê-los, toda a
comitiva continuou a viagem para Marburgo, aonde chegaram no dia 29
de setembro. Lutero e seus amigos chegaram no dia seguinte. Os dois
grupos foram bem recebidos pelo landgrave Filipe, com seleta cortesia.
Eles foram hospedados no seu castelo, fazendo suas refeições
juntamente com o anfitrião.
Filipe não ignorava os sentimentos amargos que essa disputa havia
produzido entre os líderes dos dois grupos. Por esse motivo, ele fez a
sábia proposta de que, antes da conferência pública, os teólogos
tivessem um encontro particular para, dessa forma, preparar o caminho
para a reconciliação e a unificação. Conhecendo bem o temperamento
daqueles homens, Filipe ordenou que Lutero se encontrasse com
Oekolampad, e Melanchthon com Zuínglio, separadamente. Mas os
teólogos saxões levantaram tantas acusações contra seus opositores
suíços que não houve nenhum progresso; pelo contrário, os disputantes
se exaltavam cada vez mais e a questão tornou-se ainda mais
complicada. O debate público foi marcado, de comum acordo, para o dia
seguinte, 02 de outubro de 1529.
A conferência geral teve lugar em uma sala no interior do castelo, na
presença do landgrave e seus principais ministros, políticos e religiosos,
além de deputados da Saxônia, Zurique, Estrasburgo e da Basileia.
Também estavam presentes alguns estudiosos estrangeiros. Nas
proximidades da cadeira do landgrave, foi colocada uma mesa, aonde os
quatro teólogos — Lutero, Zuínglio, Melanchthon e Oekolampad —
tomaram lugar. Ao se aproximarem dos seus lugares, Lutero tomou um
pedaço de giz e escreveu com grandes letras na toalha de veludo: “HOC
EST CORPUS MEUM” — “Este é o meu corpo”. Ele desejava ter essas
palavras continuamente diante de seus olhos; em partes para reanimar
sua coragem, e em partes para confundir seus poderosos adversários.
“Sim”, disse Lutero, “essas são as palavras de Cristo e dessa rocha
nenhum adversário poderá me deslocar”.
Depois que todos os envolvidos tinham se reunido, o chanceler de
Hesse declarou aberta a conferência. Ele explicou os objetivos da
mesma, e exortou que os contendedores usassem da moderação
apropriada aos cristãos e que buscassem o restabelecimento da unidade
em Cristo. Mas Lutero, em vez de abordar imediatamente a questão
acerca da Ceia, insistia que antes era necessário chegarem a um acordo
quanto a outros artigos de fé, tais como: a divindade de Cristo, o pecado
original, a justificação pela fé, etc.; visto que os doutores saxões
suspeitavam que os suíços não fossem sadios na doutrina quanto a estes
e outros assuntos. Não nos compete tentarmos determinar qual era o
objetivo de Lutero ao procurar alargar o campo de debate. Todavia,
Zuínglio respondeu que seus escritos tinham evidências suficientes,
provando que não havia diferenças com Lutero nestes pontos.
O landgrave Filipe, que havia assumido a direção do debate,
concordou com os suíços e Lutero foi forçado, sem mais delongas, a
adentrar na embaraçosa questão da Ceia. Entretanto, ficou bem evidente
que Lutero estava exaltado quando disse: “Declaro solenemente que
divirjo dos meus opositores em relação à doutrina da Ceia do Senhor, e
continuarei divergindo. Cristo disse: ‘Esse é o meu corpo’. Mostrem-me
que um corpo não é um corpo. Eu rejeito a inteligência, a mente humana,
as razões carnais e as provas matemáticas. Deus está acima da
matemática. Nós temos a Palavra de Deus e precisamos adorá-la e
praticá-la”. Foi assim que começou o tão celebrado debate. Apontando
para as palavras que ele havia escrito sobre a toalha, o impetuoso
homem acrescentou: “Nenhuma consideração jamais me levará a
abandonar meu entendimento do significado literal dessas palavras. Não
darei ouvidos nem a sentimentos nem a raciocínios, tendo as palavras de
Deus diante de mim”. Tendo em vista a conhecida teimosia de Lutero,
esta declaração era o suficiente para destruir qualquer esperança de uma
solução satisfatória da disputa.
Mas, os suíços não se intimidaram diante das palavras agressivas e
arrogantes de Lutero. Em um tom calmo, Oekolampad respondeu: “É
inegável que na Palavra de Deus há expressões figuradas, entre as quais
podemos citar: João é Elias, a Rocha é Cristo, e Eu sou a videira
verdadeira. E assim, esta também é uma expressão figurada: ‘Este é o
meu corpo’”. Lutero admitiu a existência de expressões figuradas na
Bíblia, mas negou que a expressão ‘Este é o meu corpo’ fosse figurada.
Então, Oekolampad lembrou a Lutero as palavras que o Senhor disse
em João 6: “’O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita’ (v.
63). Porém, quando Cristo disse aos habitantes de Cafarnaum: ‘a carne
para nada aproveita’, Ele rejeitou, com essas mesmas palavras, o ato de
comer o Seu corpo. Portanto, Ele não estabeleceu essa prática ao
instituir a Ceia do Senhor“.
Lutero respondeu veementemente: “Eu nego a segunda dessas
proposições. Havia tanto um comer real como também um comer
espiritual da carne de Cristo. Quanto ao primeiro caso, Cristo declara que
não é de nenhum proveito”.
Oekolampad observou que por meio disso, Lutero, de fato, cedia aos
seus argumentos; pois ele havia admitido que era necessário comer
espiritualmente, e que o comer literal não era de proveito algum, portanto,
sem valor.
Lutero retrucou: “Não devemos questionar qual é o valor que tal comer
tem. Tudo o que Deus ordena se torna espírito e vida (cf. Jo 6:63). Se
Deus nos ordenar que levantemos uma palha do chão, por meio disso
realizamos uma obra espiritual. Precisamos prestar atenção Àquele que
fala conosco, e não tanto àquilo que Ele está nos dizendo. Deus fala —
portanto, vós homens, seus vermes, ouçam! Deus ordena — e o mundo
deve obedecer! E todos nós temos que nos prostrar e humildemente
beijar Sua Palavra”.
Nesse momento Zuínglio interferiu na discussão. As numerosas provas
das Escrituras, da ciência e da inteligência, às quais ele se referiu para
atestar suas opiniões, encurralaram Lutero. Após citar numerosas
passagens das Escrituras nas quais o símbolo é expresso por aquilo que
representava, Zuínglio mencionou novamente a passagem do Evangelho
de João 6, à qual Oekolampad havia se referido anteriormente. Em
relação com as palavras do Senhor, ‘a carne para nada aproveita’, ele
tirou a conclusão de que as palavras relacionadas com a Ceia também
deveriam ser explicadas de forma semelhante2.
Lutero — “Quando Cristo diz que a carne para nada aproveita, Ele não
está falando de Sua própria carne e sim da nossa.”
Zuínglio — “A alma se alimenta do espírito e não da carne.”
Lutero — “É com a boca que nós comemos o corpo. A alma não come
o corpo.”
Zuínglio — “Portanto, o corpo de Cristo é um alimento físico e não um
alimento da alma?”
Lutero — “Estás sendo astuto.”
Zuínglio — “De maneira nenhuma, mas estás contradizendo-te a ti
mesmo.”
Lutero — “Se Deus me oferecesse maçãs silvestres, eu iria comê-las
espiritualmente. Na Ceia, a boca recebe o corpo de Cristo, e a alma crê
em Suas palavras.”
De fato, as palavras de Lutero eram muito obscuras e confusas. Por
um lado, parecia que ele não queria permitir uma interpretação nem
figurada nem literal destas cinco palavras significativas — “este é o meu
corpo”. Por outro lado, parecia que ele mesmo entendia as mesmas nos
dois sentidos. Zuínglio percebeu que a maneira com que se havia
procedido até agora não levaria a nenhuma boa conclusão. Portanto, ele
procurou provar, somente pelas Sagradas Escrituras, que os elementos
da Ceia, o pão e o vinho, não eram o real corpo e o sangue do Senhor,
mas eram apenas símbolos ou emblemas desse corpo e desse sangue.
Lutero, entretanto, não se deixou abalar. Apontando com seu dedo
para as palavras escritas sobre a mesa, ele repetia: “Este é o meu corpo!
Este é o meu corpo! Nem o próprio diabo irá me demover disso. Se eu
começar a cismar* sobre isso, cairei da fé”.
Porém, embora Lutero permanecesse inabalável, muitos dos ouvintes
ficaram surpresos pela clareza e firmeza com as quais Zuínglio conduzia
a disputa. Por isso, nessa ocasião muitas mentes foram preparadas para
receberem esta verdade extremamente importante. Vários foram
convencidos da verdade dos argumentos de Zuínglio; o mais destacado
entre eles era Francisco Lambert, de Avignon, o primeiro teólogo de
Hesse. Até então, ele havia professado a doutrina luterana da Ceia, e era
um amigo e grande admirador de Lutero. Mas, tendo ouvido os
argumentos dos suíços, ele não se conteve e exclamou: “Quando vim
para essa conferência, meu desejo era ser como uma folha de papel em
branco, na qual o dedo de Deus pudesse escrever Sua verdade. Agora,
vejo que é o Espírito quem vivifica, e a carne para nada aproveita. Estou
de acordo com Oekolampad e Zuínglio”. Os doutores de Wittenberg
observaram esta mudança com indignação, e procuraram enfraquecer a
exclamação de Lambert com as breves palavras: “Seu francês
inconstante!”. “O quê?!”, respondeu o ex-franciscano; “Será que Paulo
também demonstrou fraqueza quando renunciou o título de fariseu? E o
que dizer de nós mesmos; fomos inconstantes ao abandonar a seita
perdida do papado?”
Uma grande agitação dominou aquela sala. Mas entrementes, chegou
a hora do almoço, e os disputantes saíram para logo em seguida se
reunirem novamente na suntuosa mesa do landgrave.
Na parte da tarde o debate foi reiniciado com Luto tomando a iniciativa,
dizendo: “Eu creio que o corpo de Cristo está no céu, mas que também
está nos elementos da Ceia. Pouco me importa se isso vai contra as leis
da natureza, desde que não vá contra a fé. Cristo encontra-se presente,
de forma material, nos elementos da Ceia, da mesma maneira que Ele
nasceu da virgem”.
Oekolampad respondeu com as palavras do apóstolo Paulo, citando 2
Coríntios 5:16: “ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a
carne, contudo agora já não o conhecemos deste modo”.
Lutero replicou: “Segundo a carne, aqui quer dizer, segundo nossas
afeições carnais”.
“Então me responda esta pergunta, doutor Lutero”, interferiu Zuínglio.
“Cristo subiu ao céu, e se Ele está no céu corporalmente, como é
possível que Ele esteja no pão? A Palavra de Deus nos ensina que o
Senhor Jesus se tornou semelhante em tudo aos irmãos (cf. Hb 2:17).
Portanto, Ele não pode estar no mesmo instante em cada um dos
milhares de altares nos quais a Ceia está sendo celebrada.”
“Se eu quisesse arrazoar”, replicou Lutero, “tentaria provar que Jesus
Cristo foi casado. Que Ele tinha olhos negros e que viveu na Alemanha.
Eu pouco me importo por especulações numéricas ou matemáticas.”
“Aqui não se trata de nenhuma questão numérica ou matemática”,
prosseguiu Zuínglio, “mas se trata daquilo que o apóstolo Paulo falou aos
filipenses em relação ao Senhor, que Cristo tomou a ‘forma de servo,
fazendo-se semelhante aos homens’ (cf. Fp 2:7).”
Lutero, temendo ser demovido da sua posição original por meio do
poderoso antagonista, se refugiou novamente nas palavras que ele
escreveu sobre a mesa e, apontado para elas, exclamou: “Meus caros
senhores, se meu Senhor Jesus Cristo disse: ‘HOC EST CORPUS MEUM’, eu
creio que Seu corpo encontra-se realmente aqui”.
Irritado com a obstinação inflexível e a irracionalidade de Lutero,
Zuínglio fez um rápido movimento em direção ao seu opositor, e batendo
na mesa disse-lhe: “Meu caro doutor, vós afirmais, portanto, que o corpo
de Cristo está localmente presente na Ceia, pois vós dizeis: ‘O corpo de
Cristo está ali’. Ali, ali e ali é um advérbio de lugar. Portanto, o corpo de
Cristo tem uma natureza tal que pode se encontrar apenas em um lugar.
Se, porém, ele se encontra em um lugar, ele está no céu. Segue-se que
ele não está no pão”.
Lutero, aborrecido, respondeu: “Eu repito que não tenho nada a ver
com provas numéricas ou matemáticas. Tão logo as palavras de
consagração são pronunciadas sobre o pão, o corpo está presente ali,
independente de quão perverso seja o sacerdote que pronuncia as
mesmas”.
É, de fato, incompreensível como um homem com o conhecimento de
Lutero podia expressar tais palavras. Elas realmente continham uma
blasfêmia, embora Lutero não pensasse nisso. Segundo a sua afirmação,
o Senhor, querendo ou não, tinha que descer do céu para dentro do pão
do sacerdote assim que este murmurasse as palavras de consagração.
Não importava se o sacerdote fosse um homem piedoso ou ímpio. Isso
não se assemelha com precisão às arrogâncias e blasfêmias de Roma?
O landgrave Filipe, percebendo que a discussão ameaçava tornar-se
cada vez mais violenta, levantou a sessão. No dia seguinte, um domingo
(3 de outubro), prosseguiram com o debate. Mas é de pouco interesse
para nosso leitor continuar acompanhando essa disputa. Zuínglio e
Oekolampad reiteraram e completaram suas provas a partir das
Escrituras e dos mais antigos Pais da Igreja, mas foi tudo em vão. A
todos os seus argumentos, Lutero confrontava constantemente com uma
resposta: “Este é o meu corpo”. Finalmente, não se satisfazendo em
apenas apontar para essas palavras, ele tomou a toalha, levantou-a
diante dos olhos dos suíços e exclamou: “Vejam, vejam, assim diz o
texto. Vós não conseguistes nos demover dele, como chegastes a se
orgulharem; nós não nos interessamos por mais nenhuma outra prova”.
Depois desta declaração terminante, havia sido cortada toda esperança
de levar Lutero a pensar de outra forma, e continuar a conferência se
tornou inútil. Ainda assim, a discussão foi reiniciada na manhã seguinte,
mas no final do dia os dois partidos inimigos não haviam se aproximado
nem o mais mínimo de uma reconciliação.
Contudo, uma epidemia severa e contagiosa, chamada de “Doença
Inglesa do Suor”, havia surgido justamente nesse tempo em que
acontecia o debate em Marburgo e, causando grande devastação, tornou
necessário o encerramento imediato da conferência. Todos estavam em
grande inquietação e se apressaram para abandonar a cidade.
Assim, parecia que todos os esforços haviam sido em vão. O landgrave
procurou promover, até o último instante, a unificação entre ambos os
partidos, fazendo um último apelo veemente: “Senhores, não podeis partir
dessa maneira. Não existe mais nada que possa ser feito para sanar
essa ruptura? É necessário que esse único ponto de diferença separe
irrevogavelmente os amigos da Reforma Protestante?”. Por sua vez, o
chanceler de Hesse, disse: “Não existe nenhum meio dos senhores
teólogos chegarem a um entendimento, como o landgrave deseja com
toda a sinceridade?”.
Lutero replicou: “Eu conheço apenas um meio para chegarmos a um
acordo, e este é que nossos adversários creiam do modo como nós
cremos”. “Não podemos”, replicaram os suíços. “Então”, disse Lutero, “eu
vos abandono ao julgamento de Deus e oro para que o Senhor possa
iluminá-los”. “Nós iremos fazer o mesmo”, respondeu Oekolampad.
Zuínglio ouvia a conversação em silêncio, porém profundamente
comovido. Finalmente, ele não pôde mais reprimir seus sentimentos e
irrompeu em lágrimas na presença de todos.
***
UMA PROPOSTA PARA O EXERCÍCIO DA TOLERÂNCIA E DA UNIDADE
A conferência terminou e nada foi alcançado. Filipe e outros
mediadores se empenharam em conseguir pelo menos um acordo
exterior entre os dois partidos. Filipe convocou os teólogos um após outro
à sua sala e ali os advertiu, exortou e conjurou para estabelecerem uma
tolerância e união mútua. “Pense, por um instante”, disse-lhes o
landgrave, “no bem da cristandade, e remova toda discórdia que existe
em seu peito”. A situação política dava motivos para os temores mais
graves. O imperador Carlos V e o papa estavam selando uma aliança na
Itália. Fernando e os príncipes católicos romanos estavam se unindo na
Alemanha. A união entre todos os protestantes parecia o único meio para
sua salvação. Filipe percebia isso muito bem e por isso se empenhava
com todas as suas forças para estabelecer essa união. Mas, infelizmente,
o intratável e obstinado Lutero estava no seu caminho.
Os doutores suíços estavam bem dispostos em atender os desejos do
landgrave. Zuínglio disse: “Vamos reconhecer nossa unidade em tudo
aquilo que concordamos, e quanto aos demais pontos, vamos tolerar uns
aos outros, lembrando-nos que somos irmãos. Em relação à base da
salvação — a necessidade da fé no Senhor Jesus — não há divergência
alguma”.
“Sim, sim!”, respondeu o landgrave, “vós concordais, portanto dai uma
prova da vossa unidade e reconhecei-vos como irmãos”. Zuínglio se
aproximou dos doutores de Wittenberg e disse: “Não existe ninguém
sobre a face da terra com quem eu mais desejo estar unido do que
convosco”. Oekolampad, Bucer e Hedio também disseram o mesmo. Por
um momento, esta atitude cristã parecia ter o efeito desejado. Muitos
corações, até mesmo aqueles dos doutores saxões, estavam comovidos.
“Reconheçam-se! Reconheçam-se!”, pediu o landgrave veementemente,
“reconheçam-se como irmãos!” Até mesmo a dureza de Lutero parecia
render-se. Com lágrimas nos olhos, Zuínglio se aproximou de Lutero
estendendo-lhe a mão, e pediu-lhe que expressasse apenas a palavra
“irmão”. Mas, infelizmente, aquele coração afetuoso sofreu um cruel
desapontamento. Quando todos os olhos estavam fitos nos dois líderes e
todos os corações cheios de esperança que as duas grandes famílias
da Reforma Protestante se unissem finalmente após longa disputa,
Lutero rejeitou a destra de Zuínglio que lhe era oferecida e disse de
maneira lancinante*: “Vós tendes outro espírito do que nós”; o que
equivalia dizer: “Nós temos o Espírito de Deus e vós o espírito de
Satanás”. D’Aubigné relata: “Essas palavras atingiram os suíços como
uma descarga elétrica. O coração deles sangrava cada vez que Lutero
repetia essas palavras, e ele o fez várias vezes, como ele mesmo relata”.
De acordo com o historiador Cunningham, “a recusa de Lutero em aceitar
a mão de Zuínglio, razão pela qual este homem verdadeiramente nobre
derramou lágrimas de dor, foi uma das mais deploráveis e humilhantes,
mas ao mesmo tempo, uma solene e instrutiva exibição do engano da
pecaminosidade e da dureza do coração humano, como jamais
presenciadas no mundo”.3
Houve uma breve deliberação entre os doutores de Wittenberg —
Lutero, Melanchthon, Agrícola, Brenz, Jonas e Osiander — porém não
levou a nenhum melhor resultado. Voltando-se para Zuínglio e seus
companheiros, os saxões disseram: “Nós mantemos que a doutrina da
presença física de Cristo nos elementos da Santa Ceia é algo essencial
para a salvação. Por esse motivo, a nossa consciência não permite
considerar-vos como estando em comunhão com a verdadeira Igreja”.
“Sendo assim”, replicou Bucer, “foi uma tolice pedir-vos que nos
reconheçais como irmãos. É nossa convicção que vossa doutrina
prejudica a honra de Jesus Cristo, que agora está assentado à direita de
Deus. Porém, visto que vós reconheceis por toda a parte a dependência
do Senhor, assim, tendo em consideração a vossa consciência, que vos
obriga a aceitar a doutrina que professais, não temos dúvidas que estais
em Cristo.”
“Quanto a nós”, respondeu Lutero, “declaramos mais uma vez que
nossas consciências nos proíbem de reconhecer-vos como irmãos.”
Bucer respondeu: “Bem, meu caro doutor. Se negais a reconhecer
como irmãos aqueles que diferem de vós em qualquer ponto, vós não
encontrareis nem um único irmão, nem mesmo no vosso partido”.
Com isso, os suíços haviam feito tudo que estava em seu alcance. Eles
disseram: “Nós estamos conscientes que agimos na presença de Deus. A
posteridade dará testemunho disso”. Eles estavam prontos para deixar a
sala. Tinham manifestado um verdadeiro espírito cristão, e o sentimento
geral dos que participaram da conferência era definitivamente favorável a
eles e à doutrina que defendiam. Quando Lutero percebeu isso, e vendo
a ira do landgrave, se mostrou um pouco mais moderado. Ele se dirigiu
aos suíços e disse: “Nós vos reconhecemos como amigos, mas não vos
consideramos como irmãos nem membros da Igreja de Cristo. Entretanto,
o amor, que também é devido aos inimigos, não vos será negado”.
Estas palavras continham uma nova ofensa. Mesmo assim, os suíços
resolveram aceitar a oferta. Os opositores se cumprimentaram e algumas
palavras amistosas foram trocadas entre eles. O landgrave estava
jubiloso que pelo menos isso havia sido alcançado, e ordenou que fosse
escrito um registro desse importante resultado. Ele disse: “Nós
precisamos que o mundo cristão saiba que, com exceção da doutrina da
presença do corpo e do sangue do Senhor nos elementos da Santa Ceia,
os senhores estão de acordo em todos os pontos principais da fé”. Todos
se declararam de acordo com essa proposta e Lutero foi designado para
redigir uma série de artigos que definissem a fé protestante.
Os “Artigos de Marburgo” foram prontamente produzidos por Lutero.
A mesma consistia de quinze artigos. Os principais entre eles tratavam da
trindade, da encarnação, da ressurreição, da ascensão, do pecado
original, da justificação pela fé, da autoridade das Escrituras Sagradas e
da rejeição da tradição romana. Por último, estava a Ceia do Senhor, que
foi chamada de alimento espiritual do verdadeiro corpo e do verdadeiro
sangue do Senhor Jesus Cristo. Quando esses artigos foram lidos, os
suíços disseram “Amém” de coração para os primeiros catorze. E,
embora os termos do último artigo lhes parecessem um pouco obscuros,
permitindo diferentes interpretações, eles também estavam dispostos a
assinar este, sem mais protestos. No dia 04 de outubro de 1529, este
importante documento foi assinado pelos dois partidos. Concordou-se
também em ativar, de ambos os lados, o espírito de amor cristão e evitar
toda a amargura, ao mesmo tempo em que cada um mantinha aquilo que
considerava ser a verdade de Deus.
A seguir, esse documento foi enviado para impressão. Sua publicação
deu margem para que os saxões afirmassem que os suíços haviam
aceitado a confissão de fé de Lutero e se retratado de todas as suas
falsas doutrinas, com exceção daquela acerca da Ceia. Também diziam
que somente o temor do povo os teria impedido de se retratarem também
desta, e que não puderam apresentar outros argumentos contra a
doutrina de Lutero, a não ser sua própria incapacidade de acreditar na
mesma. Tais boatos se espalharam rapidamente por todas as partes da
Alemanha. Mas todos eles eram falsos. Nós temos visto o contrário; que
a coragem e a confiança dos suíços cresciam à medida que a disputa
avançava, e que sua mente pacífica e sua franqueza se destacavam com
vantagem sobre a insensatez e a obstinação de seus opositores.
Na terça-feira, dia 05 de outubro, depois de quatro dias de conferência,
o landgrave deixou Marburgo pela manhã, bem cedo. Os doutores e seus
amigos também partiram imediatamente. Mas as verdades que haviam
saído à luz por meio dos debates, e as opiniões estabelecidas por ambos
os lados, se divulgaram por todas as regiões da Alemanha, e muitos
corações foram levados a examinar o Novo Testamento — acerca do
caráter e da essência da Santa Ceia — com maior seriedade do que até
então.
***
REFLEXÕES ACERCA DA CONFERÊNCIA DE MARBURGO
Com sentimentos de profunda gratidão, mas também com sincera dor,
faremos uma retrospectiva sobre os debates na cidade de Marburgo —
com gratidão a Deus porque, por meio disso, Ele expôs a uma luz mais
clara a doutrina da Sagrada Escritura acerca da Ceia; com tristeza em
relação à conduta lamentável daquele homem, que naquele tempo
possuía uma influência tão poderosa. As doutrinas defendidas pelos
suíços eram bem pouco conhecidas na Alemanha, até aqueles dias.
Como a doutrina da consubstanciação havia sido estabelecida por Lutero
e seus seguidores, uma grande ignorância — referente ao verdadeiro
caráter e essência, como também acerca do objetivo da instituição da
Santa Ceia — imperava no meio dos alemães. Todos haviam seguido
cegamente ao grande líder. Porém agora, em todas as partes foi
despertado um grande interesse e uma pesquisa pela verdade; e muitos
aceitavam, com grande disposição, as doutrinas dos suíços, tornando-se
uma benção eterna na vida de milhares de preciosas almas. Como vimos,
Lambert havia sido convencido, já durante a conferência, da verdade das
afirmações de Zuínglio e seus companheiros. O próprio landgrave
declarou, pouco antes da sua morte, que a conferência em Marburgo
também lhe havia aberto os olhos acerca da inconsistência da doutrina
da consubstanciação.
Dessa maneira, Deus, em Sua bondade, utilizou esta lamentável
disputa para a divulgação da verdade e para a realização das Suas
graciosas intenções. Enquanto Lutero estava mais preocupado com sua
própria reputação, Deus estava cuidando do progresso da Reforma
Protestante. Mas o que é o ser humano! Que diferença nós vemos aqui,
entre o Lutero dos primeiros dias da Reforma Protestante, que confiava
apenas em Deus, o solitário lutador pela Sua verdade e o Lutero de
tempos posteriores, o líder de um partido que havia se tornado poderoso,
o defensor obstinado de suas próprias opiniões! Surpreendidos nos
perguntamos: Como isto foi possível? Um coração que há pouco era tão
largo, tão amoroso e tão tolerante, de repente se tornou tão intransigente
e partidário. Há apenas uma resposta: Lutero havia deixado a base da
humildade e da dependência de Deus para passar à da obstinação
humana. Alguns poderiam dizer que, segundo sua consciência, ele
pensava estar lutando pela verdade e, em certo sentido, isso é
admissível. Todavia, temos que nos lembrar que ele rejeitou todas as
pacíficas propostas de uma investigação em comum da Palavra de Deus,
bem como a todos os meios razoáveis de se alcançar uma compreensão
apropriada e harmônica daquelas cinco palavras — “Este é o meu corpo”.
Parecia que Lutero estava preocupado apenas em manter sua própria
autoridade, reputação e poder, como o líder de um partido. Naquela
ocasião, nem Lutero nem nenhum de seus seguidores manifestaram
interesse pela promoção do Evangelho e o triunfo da Reforma
Protestante. Dessa maneira, a grande e abençoada obra de Lutero foi
enfraquecida e desonrada por uma das doutrinas mais tolas e erradas
que alguma vez foi proposta para a aceitação da humanidade crédula.
A posição e o perigo de um líder de partido, nas coisas concernentes
a Deus, estão claramente manifestados na seguinte opinião acerca de
Lutero: “Em Marburgo, Lutero era o papa. Por aclamação geral, ele foi
considerado o líder do partido evangélico, e assumiu o caráter de um
déspota. Para sustentar essa imagem, em questões espirituais, é
necessário criar o conceito da infalibilidade. Se por uma única vez Lutero
cedesse em qualquer ponto doutrinário — se admitisse uma única vez
que ele estava errado — toda a ilusão cessaria, e com ela desapareceria
a autoridade que a mesma sustentava. Era assim que a maioria do povo
via a posição de Lutero. Pela própria posição que ocupava ou que
imaginava ocupar, Lutero se viu forçado a acreditar e a defender, com o
mais elevado tom, cada uma das afirmações que havia proclamado em
público... Contudo, Lutero perdeu tanto sua influência quanto sua
reputação naquela controvérsia. Por seu tom arrogante e seu sofisma
elaborado, ele enfraqueceu as afeições e o respeito que recebia de um
grande grupo de admiradores inteligentes. Muitos agora começavam a ter
uma opinião menos elevada acerca de seus talentos, bem como da sua
amabilidade. Em vez de uma grande devoção e magnanimidade, que lhe
haviam rendido um grande respeito nas batalhas iniciais, agora o espírito
de Lutero estava dominado por uma vanglória e uma grande arrogância.
Pela decisão que tomou e por sua obstinação, Lutero acabou destruindo
a possibilidade de unir a Alemanha e a Suíça em um único rebanho. Ele
não era mais o brilhante precursor da Reforma Protestante. Tendo se
apartado daquela importante posição de onde havia propagado a luz para
toda a cristandade, agora havia se tornado apenas no líder de um partido.
Temos que reconhecer que, naquele momento, esse partido era o mais
visível e o mais poderoso dos reformadores, mas estava destinado, em
tempos posteriores, a sofrer enormes reveses e deserções*, os quais
fizeram com que o nome “Luterano” alcançasse uma notoriedade
negativa em todo o mundo protestante”.4

1 Waddington, vol. 2, pp. 346-370.


2 Notemos, de passagem, que em João 6 não é falado de nenhuma forma sobre a
Ceia. Como sabemos, esta foi instituída pelo Senhor somente algum tempo
depois. Sua encarnação, Sua morte e Sua ascensão ao céu são as grandes
verdades que Ele expõe neste capítulo diante dos ouvidos dos judeus. Ele, a Vida
Eterna, a qual estava junto ao Pai, se tornou carne para manifestar ao Pai, para
morrer em graça por nós e para colocar em ordem a questão do pecado. “Se o
grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito
fruto” (Jo 12:24). Somente em ligação com um Cristo morto, que derramou Seu
sangue, e por meio da fé nEle, o pecador perdido pode ter a vida. Sua carne devia
ser comida e Seu sangue bebido. Somente a morte de Cristo é a vida daquele
que crê (Jo 6:54-55). Porém, ao mesmo tempo, o Cristo morto também é o
alimento diário do crente. Ele se alimenta da morte de Cristo, isto é, Cristo tomou
sobre Si, em graça, o pecado e a morte — os quais estavam ligados com a vida
do crente — dando-lhes um fim. E agora, o crente se nutre desta infinita graça, a
qual está nEle, que consumou esta obra.
3 D’Aubigné´s History of the Reformation, vol. 4, pp. 88-126; Cunningham´s Lectures
on the Reformation, p. 218.
4 Dean Waddington, vol. 2, p. 401.

Capítulo 38
O ENCONTRO EM BOLONHA

Na última menção que fizemos do imperador e do papa, os mesmos se


encontravam juntos, passando os meses de inverno na cidade de
Bolonha. O imperador Carlos V entrou na cidade acompanhado de uma
grande e suntuosa comitiva, no dia 05 de novembro de 1529. Clemente,
tendo recebido a notícia que o imperador se aproximava, apressou-se
para ir a Bolonha, e recebeu seu hóspede revestido com toda a pompa
eclesiástica. O imperador foi escoltado por vinte e cinco cardeais que
vieram recebê-lo nos limites da cidade, além de uma multidão de nobres
espanhóis e italianos que, vestidos com roupas festivas e com suas
suntuosas carruagens e cavalos, deram à comitiva um aspecto
extremamente magnífico. O papa, feliz por ver seu outrora adversário
agora como seu dedicado filho, saudou-o três vezes. O imperador, por
sua vez, movido pela reverência devida ao “santo padre”, caiu de joelhos
beijando humildemente seus pés, depois suas mãos e sua face.
Assim se encontraram os dois líderes da cristandade romana. Após
terem concluído as cerimônias de saudação, eles começaram
imediatamente a discutir sobre os meios e caminhos para extirpar* as
heresias que haviam surgido na Alemanha. Fiel ao seu caráter, o papa
propôs as mais extremas medidas de violência. Todavia, o imperador,
mais cauteloso e inteligente do que Clemente, propôs que deveria ser
convocado um concílio geral para tratar das questões da igreja que
estavam pendentes e deliberarem acerca da remoção dos abusos.
Clemente, que temia a discussão pública dessas questões, lançou mão
de todos os argumentos para fazer o imperador desistir desse propósito.
Ele assegurou ao mesmo que sua bondade e tolerância apenas fariam
com que os hereges se tornassem mais presunçosos e atrevidos, e que
não haveria esperança para o estado na Alemanha se não interviessem
com todo o rigor contra os rebeldes. Contudo, Carlos V havia
experimentado amplamente que os príncipes protestantes não se
deixavam intimidar por meio de ameaças, por isso ele insistiu na sua
proposta de convocar um concílio livre da igreja. O papa ficou indignado;
ele estava irado pela pertinácia* dos inimigos da fé católica. E assim, a
resistência que seus planos encontraram no imperador, o irritaram ainda
mais.
Em relação às discussões em Bolonha, Waddington observa: “De um
lado estava o príncipe e o guerreiro, o representante natural de
procedimentos arbitrários e violentos. Do outro lado, estava o pacífico
príncipe eclesiástico, que representava a religião do Deus de
misericórdia. Mesmo assim, qualquer ato de piedade ou temor de Deus
que possa ser encontrado no diálogo acima, qualquer justiça ou
consideração aos direitos e ao bem-estar da humanidade, qualquer
princípio de moral sadio, qualquer respeito pelos simples e claros
preceitos ensinados por Cristo — nada disso se encontrou no ministro da
unidade e do amor cristão, mas sim no príncipe secular. Em
contrapartida, da boca do sacerdote espiritual somente havia propostas
para a violência e o derramamento de sangue”.1
O ardiloso papa estava bem ciente que naqueles dias os príncipes
evangélicos se encontravam enfraquecidos e divididos. Por esse motivo,
ele pressionou Carlos V a executar imediatamente as sentenças
proferidas pelo papa Leão X, e também os decretos da Dieta de Worms.
Mas o imperador não era homem que se deixava demover facilmente das
decisões que havia tomado. Por meio de seu chanceler Mercurino de
Gattinara, o imperador comunicou suas opiniões e planos em uma
conferência especial. Ele disse: “O imperador tem observado com
profunda aflição as dissensões que têm surgido sob o seu governo, e
cuja violência parece aumentar em vez de diminuir. Entre todos os
deveres que a providência lhe impôs, nenhuma lhe é mais querida do que
a restauração da tranquilidade na igreja. O imperador acredita que não
existe um meio mais salutar para a igreja, nem mais digno para o
soberano pontífice e para um príncipe cristão, do que convocar um
concílio livre e geral para determinar, pelo uso das Escrituras Sagradas, o
fim de todas as controvérsias. Tal concílio deve se reunir imediatamente e
será composto pelos mais eminentes teólogos de todas as nações, de tal
maneira que uma perfeita liberdade de debate seja assegurada. Os
artigos de fé determinados por tal concílio, depois de receberem a
aprovação do papa, deverão tornar-se na doutrina estabelecida para todo
o mundo cristão e receber todo apoio, incluindo a interferência dos
poderes civis, caso isso se torne necessário”.
Nada poderia ter sido mais desagradável para o papa Clemente do que
tal proposta. Os Concílios de Pisa e de Constança, que haviam
culminado com a deposição dos papas Bento XIII, Gregório XII e João
XXIII, aumentavam seus temores. Ele tinha muitos motivos pessoais para
temer uma assembleia geral da cristandade. Ele disse: “Grandes
concílios servem apenas para divulgar opiniões populares. Não é com
decretos de um sínodo, mas com a lâmina das espadas que devemos
decidir as questões controversas”. Todavia, o imperador permaneceu
inabalável, e assim, Clemente se viu obrigado a prometer que pelo
menos pensaria na proposta.
***
A DIETA DE AUGSBURGO
Ainda assim, Clemente não perdeu a esperança de ganhar, aos
poucos, o imperador. Em conversas secretas, ele insistiu tanto até que,
finalmente, Carlos se mostrou um pouco inclinado aos planos do papa.
Entretanto, o imperador persistiu que seria injusto seguir o conselho do
Vaticano oferecido pelo papa Clemente, pois se tratava, na realidade, de
uma violação das leis imperiais da Alemanha. Era inaceitável condenar
súditos sem antes ouvi-los e combatê-los. Para o maior desgosto do
papa, no mês de janeiro de 1530, Carlos V enviou cartas para a
Alemanha, ordenando e convocando uma Dieta do império, a qual
deveria se reunir na cidade de Augsburgo no mês de abril daquele
mesmo ano.
Nesse meio tempo, durante a sua permanência em Bolonha, Carlos
expressou seu desejo de ser coroado pelo papa, assim como muitos de
seus antepassados também haviam sido. O imperador indicou o dia 22
de fevereiro para receber a coroa de ferro como rei da Lombardia, e a
coroa dourada como imperador romano no dia 24 daquele mesmo mês —
dia do seu aniversário e também a data que marcava sua vitória na
batalha de Pavia; por isso ele sempre considerou esse dia, seu dia de
sorte. Mencionamos este fato porque Carlos tornou-se outro homem após
ter selado, através de um juramento, seus votos de coroação, que
culminavam na promessa que ele empregaria todas as suas forças para a
defesa da dignidade papal e da Igreja Romana. O pontífice, tendo ungido
o imperador com óleo e lhe entregado o cetro, também lhe deu de
presente uma espada desembainhada, dizendo: “Faça uso dessa espada
para defender a igreja contra os inimigos da fé”. Em seguida, tomando
um globo dourado cravejado com muitas joias, disse: “Governe o mundo
com piedade e firmeza”. Depois disso, Carlos se curvou e Clemente
colocou a coroa dourada, repleta de diamantes, sobre sua cabeça
dizendo: “Carlos, imperador invencível, receba esta coroa que coloco
sobre sua cabeça como um sinal diante dos olhos de toda a terra, da
autoridade que lhe está sendo conferida”. A seguir, o imperador beijou a
cruz branca, bordada no sapato vermelho do papa, e exclamou: “Juro que
sempre usarei toda a minha força para defender a autoridade pontifícia e
a Igreja de Roma”. Mas, apesar deste juramento, Carlos não estava em
condições de proceder contra os reformadores, assim como o papa
desejava. O Senhor já havia protegido a Reforma Protestante da
violência externa por treze anos, apesar das decisões de concílios
dirigidos por reis e pontífices. E por meio da Sua graça a havia
fortalecido, de modo que nenhum poder humano pudesse exterminá-la.
Também naquele momento vemos a mão da bondosa Providência em
ação. A longa rivalidade existente entre Carlos V e Francisco I, da França
— que dava ocasião para constantes e novas intrigas — e também a
ameaçadora atitude dos turcos no leste do Império Germânico, foi
utilizado por Deus para assegurar um progresso calmo e pacífico da
Reforma Protestante. Essa era uma obra que pertencia a Deus e Ele
cuidava muito bem da mesma.
***
A CONFISSÃO DE AUGSBURGO
Assim que se tornaram conhecidas as razões do imperador para
convocar a Dieta, o Eleitor da Saxônia instruiu os teólogos de Wittenberg
para prepararem uma Confissão de Fé. Até aquele momento, nenhuma
Confissão de fé havia sido publicada pelos reformadores. Mas, visto que
o imperador estava aprisionado pelos preconceitos generalizados e pelas
interpretações erradas do papado, João pensava que o único meio para
enfrentar esses preconceitos e alcançar a justiça era através da
apresentação pública e direta dos verdadeiros princípios da Reforma e
dos objetivos que ela perseguia. Lutero, auxiliado por Justus Jonas,
Pomeranos e Melanchthon, reexaminou os dezessete artigos que
haviam sido elaborados e promulgados pelo partido Luterano, por
ocasião de uma assembleia em Schwabach, em 1529. Eles entregaram
os mesmos ao Eleitor, que naquela semana estava na cidade de Torgau;
por isso passaram a serem chamados de “Os Artigos de Torgau”.
Melanchthon, por ordem e autoridade dos príncipes, tomou esses artigos
como base e preparou uma Confissão mais exata, mais elaborada e
completa das doutrinas e preceitos dos Luteranos e das razões da sua
resistência contra Roma e a Igreja Católica. Desde então, esse
documento alcançou grande fama sob o nome de “A Confissão de
Augsburgo”.
Lutero forneceu o material para esta Confissão; porém, a revisão e a
elaboração foi a tarefa do moderado Melanchthon. Lutero disse: “Eu nasci
para ser um guerreiro impetuoso; limpo a terra, arranco as ervas
daninhas, preencho as valas e nivelo os caminhos. Porém, semear,
plantar, regar e adornar a terra é, pela graça de Deus, a obra de Filipe
Melanchthon”. Tendo em vista que o pretenso objetivo pelo qual o
imperador havia convocado esse concílio era a restauração da unidade
da fé, era necessário redigir esta Confissão com expressões que não
fossem ofensivas — até onde a fidelidade a Deus e à Sua Palavra
permitisse. O Eleitor recomendou aos teólogos que discernissem entre os
artigos que deviam ser mantidos a qualquer preço, daqueles que, se
necessário, podiam ser mudados ou totalmente excluídos. Enquanto
aquela famosa Confissão dava expressão da verdade, assim como ela
era crida por todos os protestantes, também era, ao mesmo tempo, a
manifestação mais moderada — que eles podiam conceder, visando
manter a paz — dos seus princípios.
Quanto mais próximo estava o dia em que a Dieta devia acontecer,
tanto mais forte se expressavam as preocupações dos príncipes
evangélicos quanto às reais intenções do imperador, bem como da
segurança do Eleitor. Ele era o primeiro e mais poderoso dos príncipes
alemães, e ocupava o lugar mais destacado entre eles no que dizia
respeito ao interesse na causa da Reforma Protestante, sua resistência
contra o papado e a proteção de Lutero contra a vingança papal e
imperial. Contudo, João não compartilhava estes temores; ele foi o
primeiro príncipe a comparecer em Augsburgo.
A Dieta havia sido adiada para 1 de maio. O Eleitor chegou no dia 2,
acompanhado por uma força militar de cento e sessenta cavaleiros e
vários dos mais eminentes teólogos da Saxônia. Faltava apenas Lutero;
ele foi deixado na cidade de Coburgo. O Eleitor temia que a presença de
Lutero na Dieta pudesse exasperar* os papistas e estimular o imperador
a adotar medidas extremas e violentas. Lutero havia sido excomungado
pelo papa, condenado pelo imperador e, de forma geral, era visto como o
único autor das dissensões que tanto excitavam as mentes. Mas, ao
mesmo tempo, o Eleitor João estava determinado a manter Lutero
próximo o suficiente, de tal forma que pudesse consultá-lo a qualquer
momento.
Foi durante esse tempo que Lutero compilou seus dois catecismos, o
Maior e o Menor, os quais gozam de grande reputação nas Igrejas
Luteranas até os dias de hoje. Estando no castelo, em Coburgo, Lutero
era informado constantemente de tudo o que se passava na Dieta, e ele
manifestava suas opiniões e instruções através de numerosas cartas.
Pouco antes da abertura da Dieta ele publicou um livro, cujo título era:
“Uma admoestação dirigida aos eclesiásticos reunidos na Dieta de
Augsburgo”. O objetivo desse escrito era defender a posição dos
reformadores, refutar as falsas acusações levantadas contra eles e
apontar os abusos do papado como a razão da persistente oposição dos
reformadores.
No dia 12 de maio, Filipe de Hesse chegou a Augsburgo acompanhado
de uma escolta de cento e noventa cavaleiros. Por volta daqueles dias, o
imperador chegou a Innsbruck, na região do Tirol, acompanhado por um
grande número de príncipes da Corte papal, cardeais, legados e nobres
da Alemanha, Espanha e Itália. O qualificado biógrafo de Carlos V,
William Robertson, nos informa que o imperador estava muito pensativo
durante sua viagem até Augsburgo. “Ele teve muitas oportunidades de
observar os sentimentos do povo alemão com respeito aos pontos em
disputa. Ele encontrou os ânimos tão exaltados e amargurados, que ficou
totalmente convicto de que apenas em caso de necessidade extrema,
quando todos os outros meios se manifestassem ineficazes, tomaria
medidas severas.” Ao que parece, o imperador permaneceu algum tempo
em Innsbruck. Seu propósito era estudar a situação na Alemanha e
ponderar profundamente os próximos passos para a execução de seus
planos.
Nesse meio tempo, muitas pessoas, vindas de todas as partes da
Alemanha, estavam se dirigindo para Augsburgo para assistir a Dieta,
que havia sido esperada com muita ansiedade. “Príncipes, bispos,
deputados, cavaleiros, nobres, e soldados trajando esplêndidos
uniformes, entravam por todos os portões da cidade e enchiam as ruas,
as praças, as hospedarias, as igrejas e os palácios. Toda a magnificência
da Alemanha estava se reunindo em Augsburgo. A difícil situação do
reino e da cristandade, a presença de Carlos V e sua amável forma de
agir, o amor por novidades, os grandes espetáculos e todas as vivas
emoções, atraíram os alemães desde seus lares, fazendo-os irem até
Augsburgo. Todas as pessoas, ociosas ou não, que de alguma forma
podiam, se deslocaram das diversas regiões do Império em direção à
famosa cidade.”2
É interessante notarmos que no momento em que os maiores líderes
entre os reformadores estavam reunidos em Augsburgo, e quando a
tormenta sobre a Reforma parecia iminente, o nobre landgrave de Hesse
fez um último esforço para reconciliar os dois grandes grupos dos
reformadores. Embora Lutero não estivesse presente, o espírito que ele
havia manifestado em Marburgo habitava em seus seguidores,
manifestando-se novamente com o mesmo ardor. Os luteranos
asseguraram ao landgrave que jamais poderiam reconhecer como irmãos
aqueles que persistiam no terrível erro de modo obstinado. Além disso,
eles pensavam que, por meio de uma aliança com os seguidores de
Zuínglio, eles atrairiam para si todo o ódio do qual aqueles homens eram
alvo, e com isso refreariam o progresso da Reforma Protestante. O
landgrave não conseguia compreender como um único erro (pressupondo
que realmente fosse um erro) ou uma questão obscura oferecia razão
suficiente para excluir os irmãos da comunhão. Mas todos seus
argumentos fracassaram diante da mentalidade inflexível dos luteranos.
Nenhum medo do perigo, nenhuma esperança de sucesso — nada
poderia induzi-los a estabelecer qualquer comunhão com os seguidores
de Zuínglio.3
Como o imperador ainda não havia chegado a Augsburgo — isso
aconteceu apenas no dia 15 de junho — e a cidade estava repleta de
visitantes, os príncipes protestantes determinaram que seus pregadores
falassem nos púlpitos de algumas das principais igrejas. Era bem
possível que esse passo causasse o desagrado do imperador, mas tanto
o Eleitor João como também o landgrave Filipe pensavam que se tratava
de uma oportunidade ímpar e muito favorável, que não podia ser
negligenciada. João fez com que um de seus pregadores da Saxônia
falasse diariamente na igreja dos dominicanos e na de Santa Catarina,
com as portas abertas. Filipe de Hesse ordenou que seu capelão, Snepff,
anunciasse o evangelho na Catedral. Assim, sob a graciosa direção de
Deus, foi pregado diariamente, diante de uma multidão que ouvia
atentamente, as boas novas da salvação por fé, sem as obras da lei.
Uma grande parte dos habitantes de Augsburgo já estava inclinada ao
luteranismo.
Esse foi um passo ousado e corajoso da parte dos dois destemidos
príncipes, porém se tornou no meio para uma completa mudança de
pensamentos e opiniões de muitas pessoas que vieram com uma
mentalidade hostil contra os protestantes. Os clérigos católicos de
Augsburgo e os príncipes favoráveis ao papado, que já estavam ali
reunidos, ficaram admirados e surpresos com tudo aquilo. Eles
esperavam que os protestantes, à semelhança de criminosos
condenados, não ousariam nem levantar suas cabeças quando a elite da
cristandade católica se aproximasse dos portões da cidade; e eis que o
caso foi justamente ao contrário! Mas o que eles deveriam fazer? O bispo
de Augsburgo ordenou que seus sacerdotes também subissem aos
púlpitos e se dirigissem ao povo. Mas os sacerdotes romanos não eram
bons pregadores. Eles sabiam muito bem rezar a missa e recitar as
orações prescritas, mas não sabiam anunciar o Evangelho. Os papistas
se enfureceram. Eles se apressaram em informar o imperador Carlos
acerca desses acontecimentos. O imperador enviou ordens de Innsbruck
para que os sermões, que eram considerados ofensivos, cessassem
imediatamente. O Eleitor replicou que lhe era impossível impor o silêncio
sobre a Palavra de Deus e se recusou a impedir que o povo fosse
consolado ouvindo a mesma. Ele encerrou sua carta ao imperador com
as palavras: “No que diz respeito à exigência de encerrar as pregações,
digo-vos que apenas é ensinada a pura verdade de Deus, que justamente
neste tempo nos é absolutamente necessária e da qual não podemos
prescindir”.4
Os protestantes esperavam que uma resposta tão ousada apressasse
a chegada do imperador. Melanchthon ainda estava trabalhando na
elaboração da Confissão. De caráter temeroso e torturado pelas mais
penosas preocupações, ele pesava cuidadosamente cada expressão,
moderando-a e alterando-a diversas vezes até escrevê-la finalmente. Ele
estava trabalhando com todas as suas forças; tão intensamente que seu
frágil corpo ameaçava sucumbir ao esforço. Lutero considerava tudo isso
supérfluo e lhe fez as mais severas repreensões. No dia 12 de maio lhe
escreveu: “Eu te ordeno, e que todos os teus companheiros te obriguem,
sob pena de maldição, que poupes teu frágil e pequeno corpo. Também
no descanso serve-se a Deus e, com frequência, muito mais. Por isso Ele
prescreveu tão severamente a celebração do sábado”.
Enquanto os amigos da Reforma Protestante preparavam-se dessa
maneira para a batalha que estava diante deles em Augsburgo, Lutero
não estava inativo em Coburgo. Numerosas cartas e tratados foram
enviados para todas as partes a partir de sua fortaleza; fato esse que
relembrava sua passagem pelo castelo de Wartburg. Por volta desse
tempo, também foi composto o glorioso cântico de triunfo de Lutero:
“Castelo forte é nosso Deus, espada e bom escudo; com Seu poder
defende os Seus em todo transe agudo.” O castelo de Coburgo se
encontrava na encosta de um monte. Os aposentos de Lutero estavam
localizados no andar superior. Desse modo, algumas vezes, ele datava
suas cartas como tendo origem “na Dieta dos corvos e das gralhas”.
Impaciente ao perceber que a Dieta era adiada dia a dia, Lutero escreveu
a um de seus amigos que ele mesmo havia decidido convocar uma Dieta
em Coburgo. “Aqui já nos encontramos em plena assembleia”, ele
escreveu em seu estilo original e humorístico, “poderás ver aqui reis,
duques e outros grandes senhores, os quais deliberam seriamente
acerca das questões do reino; e com voz incansável gritam seus dogmas
e decretos em pleno ar. Eles não habitam nessas cavernas que designais
com o nome de palácios. Os céus são os baldaquinos* que eles ocupam.
As verdes árvores são o chão multicolorido deles, e as paredes que os
cercam são as extremidades da terra. Eles desprezam toda a pompa com
ouro e seda, cavalos e armaduras. Eles não requerem serviçais; eles têm
apenas uma vestimenta, cor e aparência. Eu nunca vi nem ouvi o
imperador deles, mas posso entendê-los. Nesse ano eles estão
determinados a fazer uma guerra sem tréguas contra os melhores frutos
da terra.” Ele encerrou a carta com estas palavras: “Esta foi uma
brincadeira alegre, porém necessária para dissipar os sombrios
pensamentos que me assaltam”. Por muitas semanas ele estava lutando
uma batalha semelhante à de outrora, em Wartburg. Seu poder de
imaginação pintava diante dele os mais terríveis quadros; os sofrimentos
físicos e os sonhos noturnos o torturavam constantemente. Mas seu
espírito forte saiu vitorioso de todos esses combates.
***
A CHEGADA DO IMPERADOR CARLOS V A AUGSBURGO
Gattinara, o chanceler do imperador, faleceu em Innsbruck. Sua morte
foi uma grande perda para a causa da Reforma. Ele era um homem de
bom senso, de grande moderação e bondade; ele era um determinado
opositor dos planos sanguinários do papa. Ele possuía grande influência
sobre o imperador, e era o único homem que se atrevia a opor-se ao
papa sem temor. Ao ouvir de sua morte, o tímido Melanchthon exclamou:
“Com ele, todas as esperanças humanas dos protestantes
desapareceram”.
Dois dias depois da morte de Gattinara, Carlos V saiu de Innsbruck.
Chegou a Munique no dia 10 de junho, e em Augsburgo no dia 15 do
mesmo mês. Ele fez sua entrada pública naquela cidade com uma pompa
extraordinária. Nunca antes, de acordo com os historiadores, algo tão
magnificente havia sido visto no Império Germânico.5 O Eleitor, os demais
príncipes do reino, com seus conselheiros e ministros, saíram da cidade
às três horas da tarde para se encontrarem com o imperador. Quando
Carlos havia se aproximado, encontrando-se a uns cinquenta passos
deles, todos eles desmontaram de seus cavalos. Percebendo que o
imperador se dispunha a fazer o mesmo, alguns deles se aproximaram
rapidamente e pediram que permanecesse na sela. Contudo, Carlos V
não se deixou deter, desmontou do cavalo sem hesitar, aproximou-se dos
príncipes com um sorriso amável nos lábios e os saudou cordialmente
com um aperto de mão. Somente o legado papal permaneceu
orgulhosamente montado em sua mula, detendo-se com dois de seus
cardeais sobre um lugar elevado. Para expressar a sua sublimidade
sobre todos os grandes ali reunidos, estendeu a mão concedendo a
benção. Imediatamente, o imperador Carlos, o rei Fernando, os príncipes,
os espanhóis, os italianos, enfim, todos os que se submetiam ao papa
caíram humildemente de joelhos. Todavia, os protestantes, seguindo o
exemplo de Mardoqueu (cf. Et 3:2) não se inclinaram diante do núncio
papal. Eles permaneceram em pé no meio da multidão prostrada. Esta foi
a primeira das pílulas amargas que o partido papal teve que engolir nessa
ocasião. Mas o imperador parecia não ter notado tal atitude, porém, sem
dúvida, ele também estava extremamente surpreso pela firmeza dos
protestantes. Carlos montou novamente no seu cavalo e a grande
procissão seguiu adiante, com dois mil soldados imperiais à frente.
Nessa ocasião, o imperador estava com trinta anos de idade. Ele era
um homem de porte formoso, de maneiras cativantes, belo rosto e
feições agradáveis. A sua pele era pálida, porém tinha uma voz suave.
Em geral, todo seu porte parecia mais a de um cortesão do que de um
guerreiro. Após entrar na cidade ele se dirigiu imediatamente para a
Catedral. Em meio a mais brilhante exibição de pompa eclesiástica e
riqueza secular, ele se lançou de joelhos diante do altar e elevou as suas
mãos para o céu em oração. Quando ele se levantou, um servidor da
igreja lhe ofereceu uma almofada bordada com ouro para poder se
ajoelhar, mas ele recusou a mesma e se ajoelhou novamente sobre as
pedras nuas da igreja. Seguindo seu exemplo, toda a assembleia se
ajoelhou juntamente com ele. Apenas o Eleitor João da Saxônia e o
landgrave Filipe de Hesse permaneceram em pé. Por causa de seu
cargo, era exigido que os dois estivessem presentes na cerimônia em
caráter oficial. Porém eles agiram sem temor, segundo sua fé em Deus e
em Sua Palavra.
***
OS LÍDERES DA DIETA DE AUGSBURGO
Antes de começarmos a descrever as questões discutidas na Dieta, é
conveniente apresentarmos brevemente os principais líderes de cada
uma das partes. À frente do partido papal estava o imperador Carlos V;
seu irmão Fernando, que era arquiduque da Áustria, rei da Hungria e da
Boêmia; o legado papal Lorenzo Campeggio; os núncios Vicente
Pimpinelli e Pedro Paulo Vergerio; Joaquim, o Eleitor de Brandemburgo; e
os duques Jorge da Saxônia e Guilherme da Bavária. Todos eles eram
católicos romanos fervorosos e participaram, de forma ativa, em todos os
debates da Dieta. Os principais teólogos desse grupo eram João Faber,
João Eck, João Cochlaeus e Conrado de Wimpina.
Do lado dos protestantes se encontrava João, o Eleitor da Saxônia e
seu enérgico filho João Frederico; Filipe, o landgrave de Hesse; George,
o margrave de Brandemburgo; Ernesto e Francisco, duques de
Lunenburg; Joaquim Ernesto, príncipe de Anhalt; Alberto, conde de
Mansfeld; o conde Filipe de Hanover; e os deputados de várias cidades
imperiais. Os principais teólogos eram Filipe Melanchthon, Justus Jonas,
George Spalatino, Snepff e Miguel Agrícola. Além desses, estavam
presentes vários teólogos da Suíça, bem como Martin Bucer, Caspar
Hedio e Wolfgang Capito de Estrasburgo.6
Havia chegado o momento no qual a firmeza e os princípios dos
protestantes passariam pela prova de fogo. Ainda na tarde do dia de sua
chegada, o imperador ordenou que o Eleitor da Saxônia e o landgrave de
Hesse comparecessem, e reiterou a ordem que os pregadores
cessassem suas atividades. Após um longo e pesado silêncio, Filipe
replicou: “Nós pedimos à Vossa Majestade que retire essa exigência, pois
nossos pregadores anunciam a pura Palavra de Deus, assim como os
antigos mestres da Igreja, Agostinho, Hilário e muitos outros o fizeram.
Não podemos nos privar do alimento que vem da Palavra de Deus nem
negar, em sã consciência, Seu santo Evangelho”. Carlos, a quem essa
resposta desagradou muito, respondeu, por meio de seu irmão Fernando
(ele mesmo entendia muito pouco o alemão), que não poderia desistir da
sua exigência. A isto, o landgrave respondeu com fervor: “Sua Majestade
Imperial, vossa consciência não é senhora e mestre sobre a nossa
consciência”. O margrave de Brandemburgo, que até agora estivera em
silêncio, não podendo conter-se por mais tempo, colocou a sua mão no
próprio pescoço e disse com profunda emoção: “Antes de permitir que me
seja tomada a Palavra de Deus e que negue meu Deus, prefiro me
ajoelhar diante da Vossa Majestade Imperial para que me corte a
cabeça”. O imperador Carlos, que entendeu muito bem o sentido dessas
palavras e o movimento da mão que a acompanhou, respondeu
rapidamente em um alemão precário: “Querido príncipe, não tirar cabeça,
não tirar cabeça!”. Ele mesmo parecia estar profundamente comovido, e
propôs que os pregadores dos dois lados fossem silenciados e que a
escolha de outros pregadores, durante a duração da Dieta, caberia a ele
mesmo. Alguns dias depois, essa proposta foi executada.
Antes de se separarem, Fernando trouxe à tona outra questão, por
meio da qual ele pensava que os protestantes poderiam cair. No dia
seguinte era o dia da celebração de Corpus Christi, no qual se
costumava fazer uma grande procissão com a hóstia. Em ocasiões
anteriores, os membros da Dieta sempre haviam participado da festa.
Com base nisso, Fernando fez a exigência que também agora os
príncipes protestantes cedessem à vontade do imperador e assistissem a
procissão. A armadilha foi astutamente colocada. Fernando sabia muito
bem que os príncipes que estavam diante dele eram devotados à
doutrina de Lutero — da real presença do corpo de Cristo no pão — e
que corresponder à exigência imperial resultaria mais fácil para eles do
que para os seguidores de Zuínglio. Ele também sabia que no caso de
uma recusa, a ira do imperador seria incitada* ao extremo. Por um
momento os príncipes alemães se entreolharam consternados*, mas em
seguida responderam: “Cristo não instituiu a adoração da Ceia”. O
imperador se exaltou grandemente; insistiu na sua exigência e deu até a
manhã seguinte para aos príncipes darem a resposta.
Os príncipes compareceram novamente diante do imperador na hora
determinada. Este repetiu sua exigência e eles sua recusa. Ele
acrescentou até mesmo ameaças, porém sem sucesso. Carlos V, que
não esperava tal resistência, se irou, e o legado papal fez de tudo para
instigar ainda mais sua indignação. Finalmente, o margrave de
Brandemburgo tomou a palavra e disse: “Vós sabeis como meus
ancestrais e eu apoiamos vossa sublime casa, colocando as nossas
próprias vidas em perigo. Mas em questões divinas sou obrigado a
colocar de lado todos os mandamentos humanos, sejam quais forem as
consequências; pois está escrito: ‘Mais importa obedecer a Deus do que
aos homens’ (At 5:29). Por aquela doutrina que pude conhecer como a
Palavra de Deus e a verdade eterna, estou disposto a enfrentar qualquer
perigo. Ouço que quem quer perseverar nessa doutrina salutar, há de
esperar a morte — e eu, com prazer, a sofrerei”. Vemos outra vez,
claramente, como a sabedoria de Deus se utilizou da ira do homem para
a glorificação do Seu nome. O imperador, seu irmão, o legado papal e
todos os outros precisavam ouvir a verdade, querendo ou não. Os
príncipes protestantes expressaram, repetidas vezes, que a Ceia estava
destinada para a benção espiritual dos cristãos, porém jamais para ser
conduzida através das ruas em uma procissão suntuosa, como um objeto
de adoração da multidão. Além disso, eles afirmaram que toda a
celebração de Corpus Christi não estava respaldada pela Palavra de
Deus, e deploravam uma degradação tão indecente daquela instituição
do Senhor.
Quando o imperador e seu partido perderam toda a esperança de obter
sucesso e deixaram a sala onde estiveram reunidos, a hora para o início
da procissão já havia passado. Os príncipes protestantes retornaram
cheios de esperança e alegria para seus palácios, e o festival foi
celebrado sem a presença deles. A derrota do imperador e o triunfo dos
protestantes causaram uma grande amargura para o legado papal.
Contudo, ele estava longe de perder a esperança. Ainda que a astúcia de
Fernando houvesse falhado, o legado já tinha uma nova rede preparada,
com a qual esperava poder capturar seus opositores. A abertura da Dieta
foi marcada para o dia 20 de junho, e o evento seria iniciado com a
celebração de uma esplêndida missa solene.
O Eleitor da Saxônia era o marechal do Império. Em virtude do seu
ofício, ele estava obrigado a levar a espada imperial em ocasiões
especiais. Então Campeggio disse ao imperador Carlos V: “Ordene que
ele exerça sua função na missa do Espírito Santo, com a qual a Dieta
será iniciada”. Com isso, ele queria obrigar o Eleitor não apenas a assistir
as cerimônias católicas, mas também a ter uma participação ativa nelas.
O primeiro impulso do Eleitor foi o de recusar a esta exigência, mas
atendendo aos argumentos de seus amigos — de que neste caso ele não
estaria cumprindo uma obrigação religiosa, mas um ofício civil — ele
concordou em assistir a solenidade. Antes, porém, ele comunicou ao
imperador que ele não deveria entender, de nenhuma maneira, que a sua
presença ali fosse uma concessão religiosa.
Pela graciosa direção da Providência Divina, mais uma vez o Eleitor
deveria dar testemunho a favor da verdade de Deus e contra os abusos e
superstições do papado — e na própria fortaleza deste. Diante dos olhos
de numerosa multidão e com a espada na sua mão, o marechal imperial
permaneceu em pé ao lado do altar, junto com seu amigo margrave,
enquanto todos os demais se prostraram de joelhos no momento em que
o sacerdote levantava a hóstia consagrada. Aqueles dois homens tiveram
a coragem de se oporem, apesar dos poderes hostis ali reunidos, tanto
papais quanto imperiais. Embora esta ocorrência não tivesse maiores
consequências, ainda assim merece ser mencionada, visto que mostra a
determinação com a qual os protestantes enfrentavam a batalha e
também porque exerceu uma grande influência sobre o ânimo de Carlos.
Ele pouco conhecia os princípios e o caráter de seus antagonistas. Era
algo totalmente novo para ele se deparar com uma resistência tão
determinada em uma questão religiosa controversa. O imperador deixou
a igreja imediatamente após o término da missa, subiu em sua carruagem
e se dirigiu ao local onde as sessões da Dieta seriam realizadas.
***
A ABERTURA DA DIETA DE AUGSBURGO
Nesse momento, a grande controvérsia religiosa, que havia sido
iniciada por um humilde e desconhecido monge da Saxônia, reuniu
quarenta e dois príncipes soberanos, numerosos embaixadores, condes,
nobres, bispos, delegações de várias cidades, etc. ao redor do imperador,
que era chamado o “defensor da fé”. Era uma magnífica e ilustre
assembleia. A Dieta foi aberta com um longo discurso, escrito pelo
imperador e lido pelo Conde Palatino. O discurso tratava principalmente
de dois assuntos: da guerra com os infiéis turcos e das dissensões
religiosas na Alemanha. Sob o comando do sultão Suleiman, o magnífico,
os turcos haviam tomado Belgrado, conquistado a ilha de Rodes e
cercado a cidade de Viena, ameaçando com isso toda a Europa.
Portanto, era necessária a adoção de medidas vigorosas com o objetivo
de impedir o avanço dos otomanos. Ainda assim, as infelizes dissensões
eclesiásticas compunham a parte principal no discurso do imperador. Não
era difícil observar que a linguagem utilizada nesse discurso era bem
mais hostil aos protestantes do que a expectativa criada pelas cartas
imperiais de convocação. Depois que Carlos escrevera aquelas cartas,
ele havia sido coroado pelo papa e tinha jurado defender ao papa e a
Igreja Romana. Os muitos encontros secretos com Clemente na cidade
de Bolonha também haviam feito sua parte, ganhando o espírito do
imperador contra a Reforma. Sua linguagem havia mudado totalmente.
Ele lamentava que o edito de Worms não houvesse sido executado e que
todos os esforços posteriores para a supressão da disputa também
haviam permanecido infrutuosos. Após sua estadia de alguns anos na
Espanha e na Itália, ele estava de volta à Alemanha para realizar uma
investigação pessoal, ouvir as queixas e as razões de ambos os partidos.
O legado teria apreciado muito que o debate desses pontos religiosos
controversos não acontecesse em público, mas que fossem discutidos
em particular com Melanchthon e os outros líderes eclesiásticos do
Protestantismo; já que ele esperava poder apanhá-los com seu astuto
dom de persuasão. Mas os príncipes não queriam saber disso, embora
Melanchthon, na sua timidez inata*, também teria preferido uma reunião
secreta. Os príncipes exigiram que a Dieta começasse imediatamente
com a discussão das questões religiosas. Portanto, o imperador ordenou
que no dia 22 de junho, uma quarta-feira (a Dieta havia sido aberta na
segunda-feira anterior), o Eleitor e seus amigos lhe apresentassem — na
próxima sessão pública, que deveria acontecer na sexta-feira — uma
confissão da sua fé, além de um registro dos abusos eclesiásticos dos
quais eles se queixavam, e um esboço das reformas por eles desejadas.
Os príncipes protestantes utilizaram esse período de dois dias que lhes
restavam para o mútuo encorajamento e fortalecimento. Eles se reuniram
na quinta-feira, 23 de junho, na residência do Eleitor, para examinar pela
última vez a Confissão ou a Apologia, como era chamada naqueles
tempos. Também, em uma oração coletiva, encomendaram todo seu
caminho ao Senhor. Foi um tempo de grande inquietação e de oração
persistente. No dia seguinte, a Dieta voltou a reunir-se. Mas logo se
evidenciou que os papistas procuravam impedir de todas as formas a
leitura da Apologia. Já eram três horas da tarde quando a sessão teve
início. O legado Campeggio gastou muito tempo com seu discurso. Ele,
em nome de seu senhor, o papa, exigiu que o imperador abolisse as
doutrinas falsas dos hereges, para salvar a cristandade da perdição.
Quando ele finalmente encerrou seu discurso, os embaixadores da
Áustria, de Caríntia e de Kranj foram chamados. Eles também utilizaram
uma boa parte do tempo apresentando suas queixas referentes às
abominações dos turcos fanáticos, e suas petições por proteção para os
países ameaçados. Entrementes, ficou tarde e, quando finalmente os
príncipes protestantes se levantaram para ler sua Apologia, o imperador
disse que para aquele dia já estava tarde demais. Sem dúvida, Carlos
agia em concordância com o legado papal. Os papistas já jubilavam, visto
que não havia nada que temessem mais do que uma leitura pública da
Confissão de fé dos protestantes. Porém, os príncipes evangélicos não
se deram por vencidos tão facilmente; eles estavam determinados a
lerem em voz alta a sua Confissão diante das autoridades do Império que
estavam presentes.
Uma violenta discussão irrompeu entre os dois partidos, ou como
podemos afirmar, entre os poderes da luz e das trevas. Já que o pai da
mentira não havia conseguido levar à morte as testemunhas da verdade,
ele usou todos os meios para, pelo menos, apagar a luz e impedir a
expressão pública da verdade. Todavia, um pequeno grupo de homens
fiéis, movido pela graça de Deus, resistiu com sucesso a todos os
esforços dos poderes das trevas; e enfrentou com nobreza o grande
imperador, os cardeais, prelados e príncipes católicos, triunfando sobre
os mesmos. Por fim o imperador disse: “Entreguem a vossa confissão por
escrito aos oficiais indicados, e tenham certeza que a mesma será
devidamente avaliada e respondida”. Os príncipes responderam: “Nossa
honra está em jogo, nossas almas correm perigo. Nós fomos acusados
publicamente e também responderemos publicamente”. Quanto mais
pertinazmente Carlos se negava a ouvir a confissão, tanto mais decididos
e ousados os príncipes protestantes se tornaram. Eles asseguraram ao
imperador que não teriam outras motivações além das já mencionadas, e
que por isso eles não entregariam o documento até que lhes fosse
permitido lê-lo publicamente, em voz alta.
O imperador estava surpreso por essa conduta determinada e
percebeu que deveria fazer alguma concessão. “Amanhã”, disse o
imperador, “eu ouvirei a vossa Confissão; porém não aqui, mas na capela
do palácio Palatino.” Os príncipes concordaram com isso e retornaram
para seus aposentos cheios de gratidão ao Senhor, enquanto o legado e
seus amigos esperavam a manhã seguinte com grande preocupação.
A capela que havia sido designada pelo imperador para ouvir a
Apologia era significativamente menor que o salão do parlamento, ela
comportava apenas duzentas pessoas. Esse foi o ardil utilizado pelo
inimigo para impedir que um número maior de pessoas ouvisse a leitura
do documento. Todavia, o plano não foi completamente bem sucedido.
Não apenas a própria capela, mas também os recintos adjacentes e o
pátio estavam lotados de atentos ouvintes.
No dia 25 de junho de 1530 — um dia de grande importância na
história da Reforma Protestante, do cristianismo e da própria raça
humana — os príncipes protestantes compareceram diante do imperador
Carlos V. Cristovão Beyer e Gregor Bruck, os dois chanceleres do Eleitor,
estavam em pé diante do trono do imperador; um tinha em suas mãos a
cópia da Confissão em alemão e o outro em latim. O imperador desejava
que a cópia em latim fosse lida, mas o Eleitor, de modo muito respeitoso,
relembrou ao imperador que estavam na Alemanha e que por isso todos
deveriam ter a permissão de falar em alemão. O imperador consentiu. O
Eleitor e seus companheiros queriam permanecer em pé durante a
leitura, mas o imperador lhes pediu que tomassem seus assentos. Então,
a seguir, o chanceler Beyer leu a temida Confissão. Testemunhas contam
que ele leu devagar, solene, claramente e com uma voz alta e sonora, de
modo que podia ser ouvido em todos os recintos adjacentes. Duas horas
foram necessárias para a leitura do volumoso documento, porém, por
todo o tempo prevaleceu o mais profundo silêncio e a mais viva atenção.
Quando Beyer havia finalizado, Bruck se aproximou do imperador e lhe
entregou as duas cópias da Confissão — das quais a cópia em alemão
estava devidamente assinada pelos príncipes — dizendo: “Com a graça
de Deus, que irá defender Sua causa, essa Confissão irá triunfar sobre as
portas do inferno”. O imperador Carlos V deu o exemplar em alemão para
o arcebispo de Mainz, enquanto tomou a cópia em latim para si mesmo.
Ao mesmo tempo, ele assegurou ao Eleitor e a seus aliados que iria
examinar cuidadosamente o conteúdo da mesma.
A impressão deixada pela leitura deste documento foi enorme, como
era de se esperar. A parcela de ouvintes livres de preconceitos estava
surpresa ao descobrir que as doutrinas dos protestantes eram tão
moderadas. De acordo com o historiador Veit Ludwig von Seckendorff,
“muitas pessoas, de elevada sabedoria e inteligência, se pronunciaram
favoravelmente acerca do que tinham ouvido, e declararam que não
perderiam o privilégio de ouvir aquelas palavras nem mesmo em troca de
uma grande soma de dinheiro”. O arcebispo de Salzburgo disse para
todos, depois de ouvir a leitura da Confissão, que uma reforma da missa
católica era necessária, que a liberdade de comer carne era conveniente,
e que a exigência de ser libertado de tantos preceitos humanos era justa;
porém que não deveria ser permitido que um pobre monge levasse
adiante toda a Reforma — ele, pelo menos, não admitia uma reforma por
meio de uma ferramenta tão miserável. Esse é o orgulho e o preconceito
que existe no coração humano. O arcebispo deveria se lembrar que Deus
escolheu as coisas loucas desse mundo para confundir as sábias, e as
coisas fracas desse mundo para confundir aquelas que são poderosas,
“para que nenhuma carne se glorie perante ele” (cf. 1 Co 1:26-29). A
grande obra do Espírito de Deus foi reconhecida pelo arcebispo como
necessária e boa, porém ele a rejeitou porque Deus utilizou um monge
desconhecido como a ferramenta para tal.
Todavia, muitos corações haviam sido tocados pela Confissão e muitas
consciências despertadas. O poder da verdade se mostrou claramente.
Por um momento parecia que ela triunfava. O bispo de Augsburgo
exclamou: “Tudo o que os luteranos disseram é a pura verdade e não
podemos negá-la!”. Depois de ouvir a Confissão, o duque da Bavária, o
maior defensor do papado na Alemanha, disse para Eck: “Caro doutor,
anteriormente tendes me esboçado um quadro bem diferente desta
doutrina e desta causa; porém agora, podes ainda refutar a Confissão do
Eleitor e de seus amigos com razões sadias e consistentes?”. Eck
respondeu um pouco desanimado: “Não, através dos escritos dos
apóstolos não será possível. Mas por intermédio dos escritos dos Pais da
Igreja e das determinações dos concílios, podemos”. Em resposta, o
duque disse em tom de reprovação: “Então, segundo me dizeis, os
luteranos apoiam sua doutrina nas Escrituras, enquanto a nossa doutrina
se apoia em simples palavras humanas”.
Quando recebeu a notícia, a alegria de Lutero foi imensa ao ouvir da
bondade que o Senhor havia manifestado aos seus amigos. Ele
escreveu: “Estou extremamente feliz por ter vivido até esse momento, no
qual Cristo foi anunciado por uma gloriosa Confissão, por tão ilustres
testemunhas e em tão magnífica assembleia... Nossos adversários
pensavam que haviam sido bem sucedidos quando os pregadores foram
silenciados pela proibição imperial. Mas eles — estas pessoas miseráveis
— não percebem que por meio da leitura da Confissão diante da Dieta foi
pregado mais do que talvez dez pregadores pudessem ter feito... É
evidente que Cristo não está calado nessa Dieta. A Palavra de Deus não
está presa — se a mesma for proibida de ser anunciada nos púlpitos, ela
deverá ser ouvida nos palácios. Se pobres pregadores são proibidos de
falar, então os grandes príncipes e senhores falarão”.
No dia seguinte ao da leitura da Confissão, o imperador Carlos
convidou os Estados do Império, fiéis a Roma, para uma reunião
especial. “Que resposta nós devemos dar para essa Confissão?”,
perguntou o imperador à assembleia ali reunida. Três opiniões diferentes
foram ouvidas. Os favoráveis ao papado, em concordância com o espírito
que sempre animou a Igreja Romana, não tinham outra coisa a propor
senão a vingança imediata. “Não vamos sequer discutir as razões dos
nossos opositores”, eles disseram, “porém antes, levemos adiante a
execução do edito de Worms contra Lutero e seus seguidores; e
obriguemo-los, com a violência das armas, a renunciarem seus erros e a
retornarem ao seio da Igreja Romana.” Um segundo partido, composto na
sua maioria pelas autoridades do Império, propôs que a Confissão
deveria ser examinada por homens moderados e imparciais, e que a
decisão final deveria ser dada pelo imperador. Por fim, o terceiro partido,
composto por homens de tradição e defensores da doutrina da Igreja,
aconselhou que, primeiramente a Confissão fosse refutada
publicamente, e então obrigar os protestantes a se submeterem às
doutrinas e as cerimônias estabelecidas, até que um concílio tomasse
outra decisão. Essa última proposta foi adotada com o consentimento do
imperador. Faber, Eck e Cochlaeus, que eram os tradicionais defensores
de Roma e os mais amargos inimigos da Reforma — com o auxílio de
alguns monges menos eruditos, porém muito devotados ao papado —
foram escolhidos para elaborarem uma refutação da Confissão
Protestante e apresentarem a mesma à Dieta, no prazo de seis semanas.
Enquanto isso, alguns emissários de Roma estavam ativos na Alemanha,
praticando seus antigos costumes de suborno e corrupção. Tais costumes
eram utilizados por Roma quando esta fracassava em suas tentativas
públicas de convencer as pessoas.
Voltemos um pouco nossa atenção para a tão mencionada Confissão,
que desde aquele tempo alcançou tal fama e que fora elevada à
confissão de fé da maior parte da cristandade protestante. Contudo, o
leitor não deve esperar uma descrição detalhada desse volumoso
documento; antes, iremos nos limitar a apontar brevemente seu
conteúdo. Toda a Confissão é composta de vinte e oito artigos, ou
capítulos. Nos primeiros vinte e um artigos está resumida a confissão da
fé protestante. Enquanto os últimos sete artigos contêm os erros e os
abusos ofensivos da Igreja Romana, os quais haviam levado aos
protestantes a abandonarem a comunhão com aquela igreja.
***
OS ARTIGOS DE FÉ
Os artigos eram: A trindade — O pecado original — A Pessoa e a obra
de Cristo, o Filho de Deus — A justificação — O Espírito Santo e a
Palavra de Deus — A necessidade e a agradabilidade das obras — A
Igreja — Membros indignos — O batismo — A Ceia — O arrependimento
— A confissão de pecados — O uso dos sacramentos — O ministério na
Igreja — Cerimônias na Igreja — Instituições civis — O juízo final e o
estado futuro — O livre arbítrio — As causas do pecado — A fé e as boas
obras — A oração e a invocação para os santos.
***
OS ARTIGOS ACERCA DAS FALSAS DOUTRINAS E DOS ABUSOS
Além disso, como já mencionamos, na Confissão havia sete artigos
que tratavam dos seguintes pontos: A missa — Os dois elementos da
Ceia — A confissão auricular — A distinção entre os tipos de alimentos e
outras tradições — O matrimônio sacerdotal — Os votos monásticos — O
poder eclesiástico.
No décimo artigo, os luteranos ensinam expressamente que o
verdadeiro corpo e o sangue de Cristo na Ceia, representados pelos
elementos do pão e do vinho, estariam presentes, seriam distribuídos e
recebidos. Em decorrência dessa determinada defesa do dogma da
consubstanciação, o partido reformado representado pelos seguidores de
Zuínglio se recusou a assinar a Confissão de Augsburgo. Por isso, as
cidades imperiais de Estrasburgo, Constança, Lindau e Memmingen
apresentaram outra confissão, que foi chamada de: Confissão das Quatro
Cidades — Confessio Tetrapolitana. A mesma concordava
substancialmente com a Confissão de Augsburgo, exceto naquilo que
dizia respeito à doutrina da real presença do corpo e do sangue de Cristo
nos elementos da Ceia. Essa confissão não teve a permissão do
imperador para ser lida em público. Mais tarde Zuínglio enviou
pessoalmente um documento especial da Confissão a Carlos e, por meio
disso, a ira do partido papal chegou a seu ápice.7
***
A INQUIETAÇÃO DOS PROTESTANTES
A espera de seis semanas foi, de fato, um tempo de grandes
provações e adversidades para os protestantes. Eles foram enredados
em múltiplas dificuldades, vindo de todas as partes. Mais uma vez Roma
aplicou seu exitoso sistema de persuasão e intimidação. Promessas de
todos os tipos foram feitas aos mais destacados líderes dos protestantes,
para induzi-los a renegar; ou procuravam intimidá-los por meio de
violentas ameaças e fazê-los vacilar em sua firmeza.
Até mesmo o grande imperador condescendeu a usar uma medida
astuta e violenta contra o Eleitor da Saxônia e o margrave de
Brandemburgo. Por exemplo, ao Eleitor João ele ameaçou que negaria a
dignidade de Príncipe-eleitor a seu filho, João Frederico, caso não
abandonasse as heresias luteranas. Quanto ao landgrave de Hesse, o
imperador quis levá-lo a renegar seduzindo-o com a atraente oferta de
uma coroa. Carlos disse para Filipe: “O que me dirias se eu te elevasse
ao nível de dignidade real? Mas”, acrescentou imediatamente, “se
continuares a opor-te às minhas ordens, irei tratá-lo como convém a um
imperador romano”.
Quanto à conduta do imperador, seu biógrafo, Robertson, faz as
seguintes observações corretas: “Como seus esforços com os teólogos
não haviam sido bem-sucedidos, o imperador Carlos se voltou aos
príncipes. Porém também neles, Carlos não encontrou nenhuma
inclinação para renunciar às suas convicções — ainda que desejassem
muito entrar em acordo com o imperador e ser do seu agrado. Naqueles
dias, o zelo pela causa da religião havia se apoderado da mente dos
homens de uma maneira pouco compreensível para nós que vivemos em
um tempo no qual o fervor do entusiasmo — que havia sido incitado pela
primeira proclamação da verdade e a restauração da liberdade de
consciência — deixou de agir há muito tempo. O zelo daqueles dias era
tão grande que fez com que os príncipes esquecessem seus interesses
políticos, que costumavam ocupar o primeiro lugar em seus
pensamentos. Embora tivessem sido atraídos por promessas de
vantagens que, segundo se sabia, há muito tempo ambicionavam, o
Eleitor da Saxônia, o landgrave de Hesse e outros líderes dos
protestantes se recusaram — com uma firmeza nobre e digna de ser
imitada — a renunciar aquilo que eles consideravam a causa de Deus em
troca de algum benefício terreal”.8
***
AS PREOCUPAÇÕES E TEMORES DE MELANCHTHON
Visto que o imperador não foi bem-sucedido em fazer que os príncipes
que lideravam mudassem de opinião, o legado papal e seus
representantes fizeram os maiores esforços para ganhar, para seus
objetivos, alguns dos principais teólogos, especialmente, Filipe
Melanchthon. Ele havia manifestado um grande desconforto diante das
conferências secretas mantidas pelo imperador com os príncipes; e,
temeroso com era e por amor à paz, chegou a propor uma moderação
das exigências contidas na Confissão. Sentindo-se lisonjeado pela fingida
amabilidade e atenção do legado, inquietado pensando na possibilidade
de uma guerra civil, e amedrontado pela atitude cada vez mais
ameaçadora do partido papal, por um momento ele perdeu sua presença
de espírito e foi impulsado à beira da renúncia. D’Aubigné observa:
“Melanchthon estava tão intimidado que pensava ter que adquirir a paz a
qualquer preço, e decidiu reduzir suas proposições tanto quanto
possível”. Contudo, devemos mencionar — para desculpá-lo — que a sua
posição de fato era extremamente difícil. A responsabilidade de redigir a
Confissão havia sido quase que exclusiva dele. Ao mesmo tempo, por um
lado, não era uma tarefa fácil procurar todas as razões imagináveis para
justificar a maneira de agir dos reformadores e, por outro lado, evitar tudo
que pudesse ofender os papistas desnecessariamente. Desta forma, ele
estava exposto aos ataques de seus inimigos e às censuras de seus
amigos. Ao mesmo tempo, ele tinha que lidar com os príncipes, com os
teólogos, e também com os ardilosos emissários vindos de Roma.
O espírito manso e medroso de Melanchthon não estava preparado
para enfrentar tais batalhas e adversidades. Ele não possuía o caráter
inflexível nem o zelo religioso de seu mestre, Lutero. Melanchthon era um
homem extraordinariamente erudito, talentoso, e um cristão sincero.
Porém, ele era mais apropriado para uma sala de estudos do que para
um campo de batalha pública. Por possuir uma moderação incomum,
raramente ele utilizava expressões agudas em seus escritos, mesmo
quando se tratava de escrever obras polêmicas. No seu ardente desejo
de conseguir uma reconciliação dos dois partidos, ele fez concessões
para os católicos, as quais Lutero jamais teria aprovado e nem mesmo os
príncipes estavam de acordo com elas. A seguinte carta enviada ao
legado papal mostra o quanto Melanchthon havia perdido a coragem e
quão vacilante havia se tornado.
Ele escreveu para Campeggio: “Não temos nenhuma doutrina em que
tenhamos uma opinião diferente daquela sustentada pela Igreja Católica
Romana. Nós veneramos a autoridade universal do pontífice romano e
estamos prontos a obedecê-lo, desde que ele não nos rejeite e, segundo
a graça que ele está acostumado a demonstrar aos povos, esteja
disposto a tolerar diversas coisas, nas quais não podemos agir
diferente... Rejeitarias àqueles que se aproximam de ti suplicantes? Irás
persegui-los com fogo e com a espada?... Nós estamos sendo tão
odiados na Alemanha justamente porque defendemos, com firmeza
inflexível, os dogmas da Igreja Romana. Com a ajuda de Deus,
permaneceremos fiéis a Cristo e à Igreja Romana, ainda que sejamos
rejeitados por vós”. A tal ponto Melanchthon, o principal dos teólogos
evangélicos, se humilhou diante de Roma e de toda a cristandade. Mas
havia Um que mantinha um olhar vigilante e fiel nos interesses da
Reforma Protestante, fazendo com que até mesmo a fraqueza do Seu
servo servisse para o cumprimento de Seus propósitos e para a
glorificação do Seu santo nome.
Melanchthon estava tão desanimado que chegou a propor que o Eleitor
exigisse apenas a distribuição dos dois elementos durante a Ceia e o
casamento dos sacerdotes. Se essas duas exigências fossem aceitas,
então, humanamente falando, teria acontecido a reconciliação com
Roma, e isso teria causado um grande dano à causa da Reforma
Protestante. Mas, felizmente, o legado papal era orgulhoso e cego
demais para ceder sequer o mais mínimo possível. Entrementes, os olhos
de Melanchthon se abriram gradativamente. Envergonhado por sua
fraqueza e desânimo que havia demonstrado frente ao legado, ele se
recluiu. Mas quando os papistas o acusaram que estava apenas fingindo
a unidade com eles para ocultar as heresias contidas na Confissão, e
quando começaram a atacar a própria Confissão e com isso a sua
pessoa, ele encontrou suficiente coragem e confiança para enfrentá-los
outra vez com ousadia.
***
AS CARTAS DE LUTERO À MELANCHTHON
Lutero ainda se encontrava em Coburgo, mas era constantemente
informado acerca de tudo o que se passava, e escrevia uma carta após a
outra para seus amigos, especialmente para o Eleitor e para
Melanchthon. Suas cartas eram permeadas* por um espírito totalmente
diferente do que as cartas do temeroso Melanchthon. Mas, como
Waddington observa corretamente, “a moderação e a sublime solidão de
Coburgo foram muito mais favoráveis nestas impressões puramente
espirituais do que os salões lotados e os pátios da cidade de Augsburgo.
O constante contato com as fraquezas e as preocupações de seus
amigos, e a incansável atividade e vigilância que eram necessárias, por
causa do inimigo que sempre estava preparando novos ataques, teriam
feito vacilar até mesmo a um homem mais determinado do que
Melanchthon. Tivesse Lutero sido exposto pessoalmente a estas
provações por tão longo tempo, provavelmente também teria vacilado,
ainda que a sua coragem não tivesse sido abalada”.9
Os seguintes extratos de algumas das cartas de Lutero, que ele
escreveu durante aquele tempo difícil, novamente nos mostram Lutero
como aquele homem de fé que havíamos perdido em Marburgo; e nos
manifestam seus princípios verdadeiramente cristãos e seu julgamento
sadio. “É tua filosofia, meu caro Melanchthon, que te tortura, não a tua
teologia... Teu ‘eu’ é o teu maior inimigo; e és tu mesmo que colocas nas
mãos de Satanás as armas que ele usa contra ti... Da minha parte, não
estou tão perturbado acerca da nossa causa em comum. Deus tem poder
para ressuscitar os mortos; assim, Ele também pode reerguer a Sua
causa quando esta cai, e quando ela para, levá-la adiante, e quando não
somos dignos de ser Suas ferramentas, então Ele faz a obra acontecer
por outros. Mas se não encontramos mais consolo e nenhuma coragem
em Suas promessas, quem há sobre a face da terra que possa ser o
legítimo herdeiro dessas promessas?”.
Dois dias depois, Lutero escreveu: “O que me desagrada em tua carta
é que tu dizes que estás seguindo a minha autoridade nessa questão. Eu
não desejo ser aquele que te obriga nessa causa, nem quero ser visto
como tal. Se essa não é igualmente também a tua causa, então não
quero, de modo algum, que a mesma seja atribuída a mim e imposta
sobre ti. Se a causa pertence somente a mim, então somente eu quero
agir nela... Certamente sou fiel a ti e estou constantemente intercedendo
por ti em meus clamores e orações, e desejaria que estivesse presente
contigo. Todavia, é um esforço vão escrever assim para ti, porque estás
seguindo as regras da tua filosofia; persistes em julgar estes assuntos
apenas pela razão. E assim te torturas a ti mesmo até a morte, sem
perceber que esta causa está totalmente fora do teu âmbito e da tua
razão”.
No dia 13 de julho, Lutero escreveu outra vez para o seu filho na fé,
dizendo: “Penso que durante este tempo percebestes muito bem que
Belial não pode ser reconciliado com Cristo por nenhum meio. E por isso,
enquanto a doutrina for questionada, não há nenhuma esperança para
alcançarmos a concordância por meio de um concílio... Eu, por minha
parte, certamente não cederei no mais mínimo; preferiria suportar tudo,
até a mais terrível miséria. Quanto mais teus adversários exigirem, tanto
menos tu deves ceder! Deus não irá nos ajudar antes que sejamos
abandonados por todos”. Para Spalatino ele escreveu: “Se isso não fosse
tentar a Deus, há muito tempo estaria contigo”.
No dia 21 de junho Lutero escreveu para Justus Jonas: “Estou muito
feliz que Melanchthon está começando a conhecer, por experiência
própria, o verdadeiro caráter de Campeggio e dos italianos. Uma
natureza filosófica como a de Melanchthon não acredita em nada a
menos que seja através da experiência. Quanto a mim, não confio no
confessor do imperador nem em qualquer outro italiano. Por exemplo,
meu amigo Caetano gostava tanto de mim que queria derramar sangue
por minha causa, isto é, derramar meu próprio sangue. Quando um
italiano é bom, então é o melhor de todos os homens; porém isso é um
fenômeno tão raro como um cisne negro... Eu gostaria de ser vítima
desse concílio, assim como Huss foi vítima daquele realizado em
Constança”.
Através desses trechos fica bem claro que Lutero não tinha parte
alguma naquela humilhante carta de Melanchthon para o legado papal.
Pelo contrário, todos os historiadores concordam que as cartas de Lutero
foram utilizadas por Deus para fortalecer e consolidar a posição de seus
amigos em Augsburgo durante aquele momento extremamente crítico.
Embora os diplomatas papais lançassem mão de todos os meios que
estavam à sua disposição, não puderam se gloriar de terem convencido
sequer um único protestante a renegar. O Eleitor da Saxônia era o
principal objeto dos mais diligentes esforços do imperador e do partido
papal. Se conseguissem fazê-lo cair, eles acreditavam que teriam
ganhado o jogo. Mas o Senhor capacitou Seu servo para permanecer
firme e triunfar sobre todas as astúcias e os ataques de seus inimigos. O
Eleitor João disse com determinação: “Eu preciso renunciar a Deus ou ao
mundo. Bem, não tenho dúvidas quanto a minha escolha. Deus fez de
mim um indigno, um Príncipe-eleitor; eu me lanço em Seus braços e
deixo que Ele faça comigo o que achar melhor. Eu desejo manter firme
minha confissão em meu Salvador Jesus”. Verdadeiramente esta é uma
nobre resolução. O Eleitor João resistiu invencível, como um guerreiro da
luz contra os poderes das trevas. Armas carnais não podem prevalecer
contra as armas do espírito, que são utilizadas pela fé. Aqui podemos ver
que o Eleitor e seus amigos foram vitoriosos. Quisera Deus que eles
tivessem guardado continuamente essa sublimidade moral! Todavia, no
dia em que esses homens desceram para o campo de batalha do mundo,
para combater seus opositores com as mesmas armas, se evidenciou a
decadência e a derrota. Em breve, nós iremos conhecer melhor o grande
contraste entre esses dois tipos de armas.

1 Waddington, vol. 3, p. 39.


2 D’Aubigné, vol. 4, p. 129.
3 Waddington, vol. 3, p. 48.
4 D’Aubigné, vol. 4, p. 133.
5 Ver a descrição completa em D’Aubigné, vol. 4.
6 History of the Church, por John Scott, M.A., vol. 1, p. 6.
7 Scott´s Continuation of Milner, vol. 1, p. 30; Dean Waddington, vol. 3, p. 57;
D’Aubigné, vol.4; Faiths of the World, vol. 1, p. 258. Para um resumo da Confissão
inteira ver Mosheim, vol. 3, p. 139.
8 Robertson, Charles the Fifth, vol. 2, p. 383.
9 Church History, vol. 3, p. 72.

Capítulo 39
A REFUTAÇÃO DA CONFISSÃO

No dia 13 de julho, menos de três semanas após a leitura da Confissão


Protestante em Augsburgo, os teólogos do papa apresentaram sua
resposta ao imperador. Esse documento tinha por volta de duzentas e
oitenta páginas, mas a sua linguagem era tão violenta e ofensiva que o
imperador Carlos não permitiu que o mesmo fosse lido diante da Dieta. O
imperador ficou muito aborrecido e ordenou que outro fosse redigido, o
qual deveria ser menos extenso e mais moderado em seus termos. Uma
vez que o documento foi alterado, para corresponder aos pensamentos
do imperador, ele ordenou que o mesmo fosse lido diante de todos os
membros da Dieta reunidos no dia 3 de agosto.
Após a leitura, o conde Palatino, chamado de “a boca do imperador”,
tomou a palavra. De maneira geral, ele admitiu que muitos abusos
haviam se introduzido furtivamente na igreja, e que de modo algum o
imperador defendia tais abusos. Por fim declarou: “Sua Majestade
Imperial considerou que os artigos dessa Refutação eram ortodoxos,
católicos e apropriados ao Evangelho. Por esses motivos, portanto, ele
exige que os protestantes abandonem sua Confissão, que agora está
plenamente refutada, e que se submetam a todos os artigos que
acabaram de ser apresentados. Entretanto, caso venham a recusar tal
submissão, o imperador procederá conforme a sua posição de defensor e
protetor da Igreja Romana”.
Essas palavras, que eram tão claras, não poderiam ser mal
interpretadas pelos protestantes. Elas permeavam violência e guerra.
Cada um dos dois partidos se encontrava agora em seu próprio território.
Os protestantes se reportavam à simples e pura Palavra de Deus e os
católicos às obras do homem — dos pais da Igreja, dos papas e dos
concílios. Foi assim que sempre se diferenciaram a verdadeira e a falsa
religião. Assim que começamos a aplicar outro padrão que não seja a
verdade divina, pisamos a base incerta das opiniões humanas. Talvez
não nos afastemos tanto da verdade como Roma o fez, mas estaremos
nos encaminhando para tal. Todos aqueles que mantêm a pura verdade
de Deus como a única base de sustentação da sua fé e vida prática — do
caminhar diário, da adoração e do testemunho — por vezes podem ter
que lamentar suas próprias faltas e pecados. Todos nós sabemos que
existe muita imperfeição misturada com a pureza do serviço cristão. Mas
a pergunta crucial para todo cristão deve ser: eu posso admitir ou aceitar
um padrão que seja inferior àquele revelado por Deus em Sua Palavra?
Quando o próprio Senhor Jesus teve que enfrentar o tentador, Seu
infalível refúgio foi a Palavra de Deus, mediante a qual Ele obteve uma
vitória completa sobre o tentador, dizendo: “Está escrito”. Aprender deste
Cristo é a vocação do cristão. O apóstolo Paulo diz: “Mas vós não
aprendestes assim a Cristo, se é que o tendes ouvido, e nele fostes
ensinados, como está a verdade em Jesus” (Ef 4:20-21). E ele ainda nos
mostra como a regra da vida cristã é bastante simples, mas muito
abrangente, ao dizer: “Para mim o viver é Cristo” (Fp 1:21). Por meio
dessas palavras o apóstolo está nos dizendo: ‘Para mim o viver é ter
Cristo sempre diante de mim como meu objetivo, meu motivo e meu
poder. Dessa forma, eu desejo que a vida do Senhor Jesus possa ser
manifestada através da minha vida, enquanto estou aqui’. Quando o
cristão assume essa posição, o olhar estará concentrado apenas em um
foco, seu coração não estará dividido e todo o seu caminho estará repleto
de luz (cf. Gl 2:20; 2 Co 4:10).
Vamos retornar agora para nossa história.
A Refutação apresentada pelos teólogos católicos rejeitava por
completo a doutrina da justificação pela fé sem a participação ou o mérito
das boas obras. A respeito do matrimônio sacerdotal, os católicos
expressaram sua maior surpresa pelo fato de que os protestantes
ousassem fazer tal exigência, visto que desde os dias dos apóstolos o
casamento dos sacerdotes não era comum. A missa foi declarada uma
oferta tanto para os vivos quanto para os mortos. De acordo com os
teólogos romanos, “o profeta Daniel havia profetizado há muito tempo
que, quando o anticristo viesse, o sacrifício diário cessaria; porém, até
então, isto não havia acontecido na Santa Igreja Romana — embora
naqueles lugares onde a missa é desprezada, onde os altares são
destruídos e as imagens são queimadas, aquela profecia já se cumpriu”.
Portanto, esses eram os argumentos dos iluminados doutores em
teologia que defendiam o papado. No exato momento em que eles se
reportam às Escrituras, eles dão provas que se encontram
completamente cegados pelo deus deste século (cf. 2 Co 4:4). Era esse o
caráter da Refutação que o imperador Carlos V apresentou aos príncipes
protestantes, à qual deveriam submeter-se sem reservas. Eles deveriam
agir dessa maneira em respeito à própria autoridade do imperador como
o protetor da integridade da Igreja Católica Romana e da unidade
religiosa do Império.
***
A REFUTAÇÃO CATÓLICA NÃO É ACEITA PELOS PROTESTANTES
João, o nobre Eleitor da Saxônia, respondeu em nome de seus aliados:
“Por amor à paz nós estamos dispostos a fazer tudo o que a boa
consciência nos permita, e caso formos convencidos de um erro por meio
da autoridade das Escrituras, estamos prontos a renunciar ao mesmo.
Portanto, nós desejamos uma cópia da Refutação, para poder lê-la com
toda atenção e verificar em quais pontos ela nos pareça insatisfatória”.
Eles entendiam que essa solicitação estava em conformidade com uma
discussão justa e aberta, para a qual eles haviam sido convidados
através do edito de convocação. Entretanto, esse pedido justo, foi
recusado. A Refutação católica da Confissão de Augsburgo não deveria
ser publicada, e os protestantes não receberiam cópias. Todavia, como
eles persistiram na sua exigência, Carlos ordenou que lhes fosse
fornecido uma cópia, com a condição de que se abstivessem de dar uma
resposta à mesma, que concordassem rapidamente com o imperador,
que se submetessem à sua decisão e, finalmente, que a Refutação não
fosse copiada nem compartilhada com outras pessoas; visto que o
imperador queria evitar mais discussões a respeito da mesma. Sob tais
condições, os protestantes se recusaram a receber o documento e
declararam diante da Dieta, no dia 6 de agosto, que eles apelavam para
Deus e Sua graça a favor da sua causa.
A firmeza demonstrada pelos príncipes protestantes irritou
grandemente o imperador. Ele percebeu que os príncipes protestantes
não apenas rejeitaram suas propostas, mas recusaram até mesmo aquilo
que ele considerava uma grande manifestação de favor da sua parte.
Juntamente com toda a destreza para o engano que Roma possuía, o
imperador havia falhado por completo, tanto em convencê-los quanto em
desuni-los. Ele se viu completamente derrotado. Quanto mais as
discussões avançavam, tanto mais firmemente os príncipes protestantes
se uniram. De acordo com o historiador D’Aubigné, “agitação, ira e
consternação foram manifestados em todos os assentos daquela augusta
assembleia. A resposta dos protestantes era uma verdadeira declaração
de guerra, pois era percebida como uma rebelião, tanto pelo imperador
quanto por Roma. O duque Jorge da Saxônia, os príncipes da Bavária e
todos os fervorosos seguidores de Roma, rangiam os dentes de ira.
Houve um murmúrio generalizado; palavras carregadas de ódio podiam
ser ouvidas e faltou pouco para haver atos de violência na presença do
imperador. Porém, o arcebispo Alberto, o Eleitor de Brandemburgo, os
duques de Brunsvique, Pomerânia e Mecklenburgo intervieram, pedindo
aos protestantes que colocassem um fim nessa desagradável cena, para
que o imperador não se tornasse mais violento. Assim, se separaram
aborrecidos e preocupados”.1
***
NEGOCIAÇÕES SECRETAS
O tumulto causado pela rejeição das propostas do imperador, pelos
protestantes, foi tão violento que os Eleitores de Mainz e de
Brandemburgo pediram para que fosse aceita a intermediação deles para
uma conciliação privada e amigável da controvérsia. Carlos atendeu seus
pedidos e determinou um grupo de mediadores. Foram escolhidos seis —
todos violentos inimigos da Reforma — a saber: o Eleitor de
Brandemburgo, o arcebispo de Salzburgo, os bispos de Estrasburgo,
Wurtzburgo e de Bamberg, além do duque Jorge da Saxônia. Agora a
disputa havia entrado em uma nova fase, porém, nem por isso se
aproximou um passo sequer de uma solução pacífica. Tivesse o
imperador Carlos podido agir segundo a sua própria convicção, sem ser
influenciado, não teria sido difícil fazer um acordo pacífico com os
reformadores protestantes. O imperador precisava tanto do dinheiro
quanto das pessoas da Alemanha, e ele era inteligente o bastante para
compreender que prejuízos uma guerra civil na Alemanha lhe traria. De
maneira nenhuma estava em suas intenções destruir o país e perseguir
seus súditos até a morte pela única razão de que eles se negavam a
obedecer ao papa. Alguns historiadores até afirmavam que quanto mais o
imperador tomava conhecimento dos princípios dos reformadores, tanto
menos ele podia se fechar diante dessa verdade. Também é certo que
sua irmã Isabel, a esposa do rei Cristiano II, da Dinamarca, era uma
princesa piedosa e muito inclinada ao luteranismo. Ela conversava
frequentemente com seu irmão acerca dos protestantes e defendia a
causa deles.
O imperador se encontrava em um grande embaraço, e precisava agir
com muita astúcia política. Visto que ele estava sob o mais solene
juramento de defender a Igreja Romana e a dignidade papal, ele
precisava agir de acordo com isso. Mensageiros após mensageiros eram
enviados de Roma para fazer as mais violentas censuras ao imperador
devido seu procedimento hesitante, e Campeggio, o legado papal, fez
questão de incitar a ira do imperador contra os protestantes e de instigá-
lo a um maior zelo. Ele disse: “Que o imperador faça um acordo com os
príncipes católicos da Alemanha; e se esses rebeldes, que se mostram
igualmente insensíveis tanto a ameaças quanto a promessas persistirem
de forma obstinada no seu procedimento diabólico, então, que Vossa
Majestade faça uso do fogo e da espada, e que tome posse de todas as
propriedades dos hereges, erradicando por completo esta peste
venenosa. Depois, que Vossa Majestade possa indicar santos
inquisidores que perseguirão aqueles que restaram dos reformadores,
procedendo contra eles da mesma maneira que fizeram na Espanha
contra os mouros*”. Além disso, Campeggio propôs que a universidade
de Wittenberg deveria ser colocada sob banimento, que os livros
heréticos fossem queimados e que todos aqueles que tivessem estudado
naquela capital da heresia deveriam ser declarados como indignos de
receber favores do papa ou do imperador. “Mas antes de tudo isso”, disse
o ardiloso legado ao imperador, “é necessário que os bens dos hereges
sejam confiscados sem piedade. Mesmo que Vossa Majestade se limite a
confiscar apenas os bens dos líderes dos protestantes, ainda assim
poderia ser extorquida uma grande soma de dinheiro, o qual seria
suficiente para continuar com a guerra contra os turcos”.2
Tais eram os conselhos de Roma, e por meio deles os mediadores
sentiam-se muito fortalecidos. Na primeira reunião eles asseguraram aos
príncipes protestantes, como já havia acontecido muitas vezes, que o
imperador agiria com moderação e amabilidade. Eles falaram de seu
fervoroso desejo de restaurar a unidade e, em conjunto com o papa,
abolir alguns abusos que haviam penetrado na igreja cristã. O Eleitor de
Brandemburgo disse: “As opiniões que tendes adotado e o procedimento
que tendes seguido é totalmente contrário ao Evangelho! Portanto, deixai
vossos erros, não vos mantenhais por mais tempo separados da igreja e
assinai a Refutação sem demora. Se vos recusares — então quantas
almas se perderão por vossa culpa, quanto derramamento de sangue,
quanta destruição e revolta será causada por meio disso em todo o
Império!”. E, virando-se para o Eleitor da Saxônia, lhe disse diretamente
que, caso não renunciasse e amaldiçoasse essa nova doutrina, o
imperador lhe tomaria suas dignidades, suas possessões e sua vida pela
força das armas. Ao mesmo tempo, o Eleitor lhe disse que, em
decorrência disso, certamente a ruína viria sobre os seus súditos e até
mesmo sobre as mulheres e crianças inocentes. Por um momento, o
Príncipe-eleitor se deixou intimidar por essa linguagem ameaçadora,
porém recuperou rapidamente sua habitual determinação. Também os
demais príncipes protestantes permaneceram firmes e unânimes, não se
deixando desorientar nem mesmo pelas medidas incomuns que o
imperador havia adotado para vigiá-los — pois, em lugar dos guardas da
cidade, os soldados imperiais ocuparam os portões da cidade, não
deixando ninguém entrar nem sair; os príncipes eram muito bem
observados.
Imediatamente após essa primeira reunião, o landgrave de Hesse
partiu de Augsburgo. Sua súbita saída causou, por um lado, a ira do
imperador e, por outro lado, a consternação dos príncipes e de todos os
membros da Dieta. Ninguém sabia quais eram suas intenções e seus
planos, mas após a sua partida, ele mandou entregar uma nota ao Eleitor
João, na qual ele lhe assegurava que permaneceria inabalavelmente fiel
à causa do Evangelho e que estava determinado a derramar até a última
gota de sangue em favor dela. Ao mesmo tempo, ele exortou seus
aliados a não se deixarem demover de forma alguma da Palavra de
Deus. Seus ministros, que haviam permanecido em Augsburgo, tinham
sido instruídos a apoiarem a causa protestante com todas as forças.3
Filipe, um homem de grande perspicácia e penetrante inteligência,
percebeu que a disputa havia tomado um caráter mais perigoso e mais
desesperançador do que nunca antes. Ele não podia mais tolerar o
tratamento arrogante e desprezível que os príncipes protestantes tinham
que suportar da parte dos papistas. Toda esperança de paz lhe parecia
impossível; então, ele decidiu deixar a cidade e voltar para casa. Certa
noite, ao escurecer, Filipe se disfarçou e, em companhia de alguns
homens, saiu furtivamente pelos portões que estavam sendo muito
vigiados, montou em cavalos que haviam sido preparados e partiu. Logo
se mostrou que seu julgamento era correto. Todo o mês de agosto se
passou com conferências longas e totalmente inúteis. Embora houvesse
concordância em alguns pontos de menor importância, nos pontos
doutrinários, que são a real base do cristianismo, não houve nenhum
acordo. A Igreja Romana exigia uma submissão sem reservas. Porém, os
protestantes não se deixaram induzir a isso. No final do mês a disputa se
encontrava no mesmo ponto do que no início, apesar de todos os
esforços dos tais mediadores.
***
O FIM DA DIETA
Aquilo que os teólogos e os príncipes católicos não haviam
conseguido, o imperador pensava conseguir através de sua influência
pessoal. Mas todos os seus esforços fracassaram diante da inflexível
firmeza dos príncipes protestantes. Aparentemente, o imperador nunca
compreendeu a verdadeira natureza da disputa ou, pelo menos, ele não
podia compreender os efeitos em uma consciência iluminada pela
Palavra de Deus. Era um poder totalmente novo que confrontava o
guerreiro e o governante, e ele teve que experimentar que as
consciências não se encontravam no âmbito da sua influência pessoal e
do poder da sua espada.
Estando convencido da inutilidade da diplomacia papal e de sua
sagacidade, ele mandou convocar os chefes dos protestantes no dia 7 de
setembro para uma audiência particular em seus aposentos. Apenas seu
irmão e um seleto número de seus conselheiros mais próximos estavam
presentes. Uma vez que os príncipes e os representantes das cidades
entraram no aposento real, por meio do conde Palatino o imperador
expressou seu desagrado pela conduta que os protestantes haviam
adotado. O imperador não esperava que eles, sendo um número tão
reduzido, fossem introduzir inovações que eram contrárias aos costumes
mais antigos e mais sagrados da Igreja Romana. Além disso, Carlos não
imaginava que eles instituiriam um tipo especial de religião, que se
desviava totalmente daquela que ele, seu irmão e todos os príncipes e
Estados do Império confessavam. Com isso, eles estavam discordando,
por completo, dos reis de toda a terra e até mesmo dos seus próprios
ancestrais. Entretanto, estando desejoso de preservar a paz, e querendo
demonstrar clemência até o final, o imperador iria usar sua influência
junto ao Santo Padre em Roma para estabelecer um concílio geral, tão
logo um local pudesse ser encontrado. Mas, por enquanto, eles deveriam
retornar ao seio da Igreja Católica e deixar tudo como era outrora. Os
príncipes protestantes, respeitosamente, responderam que eles não
fundaram novas seitas ou algo que fosse contrário à Sagrada Escritura,
mas, pelo contrário, eles não entraram em acordo com seus opositores
somente porque queriam permanecer fiéis à Palavra de Deus. Eles
estavam agradecidos pela promessa de convocar um concílio geral da
igreja, embora isso fosse apenas o cumprimento de uma promessa que já
lhes havia sido feita anteriormente. Além disso, eles não podiam se
declarar dispostos a introduzir novamente, em suas igrejas, os abusos
que haviam condenado em sua Confissão. E, ainda que estivessem
dispostos a tal, não estariam em condições de impor isso a seus súditos
outra vez.
Carlos estava surpreso. Ele não desejava guerra, mas como poderia
evitá-la e preservar sua honra ao mesmo tempo? Ele não podia entender
como uns poucos príncipes, detentores de um pequeno poder, ousavam
rejeitar suas propostas conciliatórias e condescendentes. Carlos lhes deu
a entender que eles eram a minoria, e que por isso deveriam se sujeitar à
decisão da maioria. Seria extremamente arrogante da parte deles colocar
a sua opinião acima da opinião da Igreja Romana, e de elevar-se em sua
própria sabedoria acima do papa e de todos os dignitários eclesiásticos e
seculares da cristandade. A seguir, o imperador pediu aos protestantes
que retomassem a conferência e as mediações, e expressou a esperança
de alcançar um acordo em mais oito dias. Mas os príncipes protestantes
se recusaram a reiniciar a conferência, pois seria um desperdício de
tempo. Em decorrência dessa declaração, no dia 9 de setembro todas as
negociações diretas entre os príncipes protestantes e o imperador Carlos
V foram encerradas.
***
O DECRETO IMPERIAL
Quando se espalhou a notícia de que os esforços pessoais de Carlos
não tiveram sucesso, surgiu uma grande agitação na cidade. Os
príncipes protestantes, liderados pelo Eleitor da Saxônia, se prepararam
para partir. No dia 19 de setembro, João queria deixar Augsburgo, porém,
atendendo à solicitação do imperador, resolveu permanecer mais quatro
dias. Durante este tempo, Carlos convocou uma parte dos Estados
Católicos do Império para formar uma comissão para elaborar o último
decreto. Aqueles que foram comissionados para redigir o decreto eram os
eleitores de Mainz e Brandemburgo; o arcebispo de Salzburgo; os bispos
de Estrasburgo e Speyer; Jorge, o duque da Saxônia; Guilherme, o
duque da Bavária e Henrique, o duque de Brunsvique. Esses homens
compunham o grupo de inimigos mais violentos da Reforma Protestante.
No dia 22 de setembro o esboço do decreto foi lido para os príncipes
protestantes. O mesmo afirmava que a Confissão do Eleitor e seus
aliados havia sido ouvida publicamente e refutada. Dizia ainda que nas
reuniões posteriores, os príncipes haviam se retratado de parte das
novas doutrinas, mas que ainda mantinham suas posições quanto ao
restante. Foi-lhes concedido até o dia 15 de abril do ano seguinte para
que eles entrassem em acordo com o papa e com o restante da
cristandade, e para que retornassem às doutrinas da Igreja Romana, pelo
menos até que um concílio cristão tivesse tomado alguma outra decisão.
Enquanto isso, foi ordenado que eles vivessem pacificamente, não
tolerassem nenhuma mudança na religião e não publicassem nenhum
novo tratado religioso. Também não deveriam impedir nenhum de seus
súditos a retornar para sua antiga fé e a se aliarem com outros príncipes
do Império, visando suprimir os anabatistas e os sacramentistas. Os
príncipes protestantes receberam uma garantia que, dentro dos próximos
seis meses, o imperador iria publicar suas convocações para um concílio
que deveria se reunir no ano seguinte.
O tom dessa resolução pode ser considerado extremamente moderado
quando comparado com a linguagem violenta e abusiva que
frequentemente era ouvida do partido papal. Porém, por trás da
aparência de amabilidade, se ocultava a astúcia de Roma. Caso os
príncipes protestantes concordassem com o decreto, eles estariam
confessando publicamente que a sua causa havia se manifestado como
sendo falsa, e que a Reforma era uma seita. Portanto, eles responderam
com a firmeza habitual: “Nós afirmamos que nossa Confissão não foi
refutada de nenhuma maneira. Pelo contrário, ela descansa de tal forma
sobre a Palavra de Deus que sua refutação é impossível. Nós a temos
como sendo verdade divina, e esperamos, um dia, poder subsistir com
ela diante do julgamento de Deus. E nós teríamos provado, com mais
clareza ainda, que ela está em concordância com a Palavra de Deus se
nos tivesse sido permitido ter uma cópia da Refutação”. A seguir,
Pontano, um teólogo protestante, entregou ao imperador uma apologia
da Confissão de Augsburgo, a qual Melanchthon havia redigido em
resposta à Refutação papal. Mas o imperador se negou a aceitá-la.
Depois que os protestantes haviam reiterado mais uma vez a sua
disposição de abandonar qualquer opinião contrária às Escrituras e
haviam expressado a sua fidelidade para com Carlos V e o Império, eles
pediram uma cópia do decreto que havia sido lido, para que pudessem
ter clareza quanto ao seu conteúdo antes da sua publicação.
Na manhã do dia 23 de setembro, o imperador concedeu ao Eleitor, e a
seus companheiros, uma audiência de despedida. Carlos não queria retê-
los por mais tempo. Como era costume, o imperador deu a mão a cada
um dos príncipes, dando-lhes a permissão para partir.
Contudo, uma grande parte das delegações protestantes ainda
permaneceu na cidade após a partida dos seus líderes. Os príncipes
católicos também permaneceram.
A Dieta continuou com suas reuniões plenárias por quase dois meses
depois que os príncipes protestantes partiram. Nessa ocasião, a Dieta se
ocupou com a confirmação definitiva do decreto final do imperador e com
a deliberação acerca das medidas que deveriam ser tomadas contra os
protestantes. Além disso, trataram especialmente da questão do perigo
ameaçador por parte dos turcos. Somente no dia 19 de novembro o
documento definitivo do decreto final foi lido de forma solene diante dos
príncipes e delegações ainda presentes; o mesmo foi publicado três dias
depois. Em muitos pontos esse documento era muito mais hostil do que o
primeiro esboço que havia sido lido diante dos príncipes protestantes.
Depois de compararmos várias análises desse importante documento, é
nossa convicção que Waddington nos oferece a mais clara e simples
apresentação do conteúdo do mesmo. Ele diz o seguinte: “Aqueles que
negassem a presença corpórea de Cristo no sacramento, sofreriam a
condenação e a banição imperial. Foi ordenada a restauração dos
antigos sacramentos, dos rituais e das cerimônias em todos os lugares
onde estas haviam sido abolidas. Também foi ordenada a destituição de
todos os sacerdotes casados. Estes não podiam ser substituídos por
outros sacerdotes sem a prévia aprovação da parte de um bispo. As
imagens que haviam sido removidas das igrejas deveriam ser
recolocadas no seu lugar. A doutrina do livre arbítrio foi afirmada
expressamente, enquanto que qualquer doutrina contrária foi declarada
uma ofensa a Deus, sim, um erro bestial. A doutrina da justificação
somente pela fé foi rejeitada, e a obediência às autoridades civis foi
enfatizada com grande zelo. Os pregadores foram instruídos a exortarem
o povo para que invocassem os santos, observassem os dias de festas e
de jejuns, e que frequentassem diligentemente as missas. Os monges
deveriam se submeter incondicionalmente às regras das suas respectivas
Ordens. Também foi ordenado que os clérigos deveriam levar uma vida
respeitável e decorosa. Todos aqueles que tentassem introduzir qualquer
mudança na doutrina ou no culto a Deus deveriam ser submetidos a
castigos pessoais. Todos os mosteiros que haviam sido destruídos
deveriam ser reconstruídos, e suas receitas anteriores restituídas aos
monges. Este decreto seria imposto pelo uso da força militar em todos os
lugares onde não fosse recebido voluntariamente, e os Estados do
Império estavam obrigados a unir suas forças militares com aquelas do
imperador, para que esse propósito fosse cumprido. O Poder Judiciário
Imperial foi instruído para perseguir os rebeldes, e os estados
circundantes deveriam executar as sentenças deste julgamento.
Finalmente, deveria ser solicitado ao papa que, no período de seis
meses, convocasse um concílio da igreja, o qual deveria acontecer em
até um ano, no máximo”.
Dois dias depois da publicação do documento final, Carlos V partiu de
Augsburgo em direção à Colônia. De acordo com D’Aubigné, o imperador
se encontrava em uma situação de grande embaraço, e não sabia como
sair da confusão na qual se havia colocado. Como chefe do Império, ele
havia assumido voluntariamente a missão de proteger a Igreja Romana e
suprimir os inimigos dela. Como já dissemos anteriormente, ele não
queria a guerra, porém a posição que ele havia assumido
espontaneamente o obrigava a usar a espada. “Caso ele não executasse
suas ameaças, sua reputação estaria comprometida, e sua autoridade
sujeita ao desprezo geral. O soberano dos dois mundos foi vencido por
um pequeno grupo de cristãos, e aquele que havia entrado na cidade de
maneira brilhante e suntuosa, a deixava agora em absoluto silêncio e
completamente abatido. O maior poder da terra fracassou diante do
poder de Deus”.4
***
REFLEXÕES SOBRE A DIETA DE AUGSBURGO
Nenhum estudo é vazio e infrutífero, e nenhum tempo é desperdiçado
se nos conduz a uma compreensão mais profunda de Deus, bem como a
uma experiência mais íntima com Seus santos caminhos. Poder notar a
mão de Deus guiando e controlando os assuntos mais complicados entre
os homens, visando concretizar Seus próprios e graciosos propósitos, é
algo realmente edificante e revigorante para as nossas almas. “Quem é
sábio observará estas coisas, e eles compreenderão as benignidades do
SENHOR”. “E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o
bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo
o seu propósito” (Sl 107:43, Rm 8:28). Os historiadores seculares podem
contemplar com admiração o desfecho daquela grande batalha e
perguntar surpresos como foi possível que um pequeno e fraco grupinho
de reformadores pôde celebrar um triunfo tão brilhante sobre o forte e
orgulhoso poder de Roma. Nós, porém, reconhecemos nisso a poderosa
mão de Deus e a graciosa operação dAquele que é o “cabeça da igreja,
que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos” (Ef
1:22-23). Podemos afirmar que, também naqueles conturbados dias, o
Senhor cumpriu Sua promessa: “Quando, pois, vos conduzirem e vos
entregarem, não estejais ansiosos de antemão pelo que haveis de dizer,
nem premediteis; mas, o que vos for dado naquela hora, isso falai,
porque não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo” (Mc 13:11).
Embora os emissários papais fossem conduzidos pelo astuto legado
Campeggio e apoiados pelo imperador, falharam por completo em
alcançar qualquer vantagem significativa sobre os príncipes alemães. O
Eleitor e seus aliados estavam inabaláveis como uma rocha em meio às
ondas bravias — eles rebatiam todos os ataques maus e pérfidos* dos
seus opositores impotentes. Confiando firmemente na ajuda de Deus e
na Sua boa causa, se mantiveram firmes frente às ardentes irrupções de
ira dos seus inimigos, suas ameaças e maldições. Com toda a sua
perspicácia, o papa, o imperador, o legado e os príncipes fracassaram
totalmente no confronto com as fiéis testemunhas da verdade. Um
observador próximo relata: “Dia após dia eles viram seus planos sendo
contrariados e seus artifícios frustrados por homens que não tinham a
pretensão de possuir inteligência e experiência política. Eram todos
súditos alemães, príncipes pouco conhecidos, sem habilidades nas
artimanhas das cortes e desconhecendo até mesmo os rudimentos da
arte da intriga. Eles empregaram em vão toda a sua astúcia para
imaginar novos planos e artimanhas — todos foram frustrados com a
mesma prudência”.
Involuntariamente, os acontecimentos na Dieta de Augsburgo nos
lembram da Dieta em Worms, e nos mostram quão grandes mudanças
haviam acontecido nos últimos nove anos:
1. Nos dias da Dieta de Worms, Lutero permaneceu completamente
sozinho como representante da Reforma Protestante. Naquela
ocasião, nem mesmo um único príncipe havia se declarado a favor
das novas doutrinas. Em Augsburgo tudo era diferente. Em vez de
um monge simples, solitário e desconhecido, nós vemos uma
numerosa e bem organizada corporação de príncipes, nobres e
teólogos. Todos eles eram homens importantes e respeitados. Mas,
em ambas as ocasiões, Roma foi muito humilhada e ficou muito
perplexa. Ela não conseguiu silenciar nem um monge solitário nem
um grupo de príncipes. Assim se manifestou claramente o poder de
Deus em conexão com a Sua própria Palavra. O decreto final da
Dieta de Augsburgo se assemelhava, em muitos pontos, com o edito
que a Igreja de Roma havia promulgado em Worms, o qual ela nunca
foi capaz de executar: uma prova contundente da força da Reforma
Protestante e da fraqueza dos seus opositores.
2. Os resultados da Dieta de Augsburgo eram, evidentemente,
favoráveis aos protestantes. O objetivo do partido papal era
arrancar pela raiz, por meio da espada de Carlos V, a Reforma
Protestante da Alemanha. Em lugar disso, o protestantismo se
fortaleceu extremamente e foi libertado de muitos julgamentos
errôneos. A conduta calma, sóbria, determinada e digna dos
príncipes protestantes fez com que muitos simpatizantes do papa os
vissem de uma maneira mais favorável, e que por fim se unissem a
eles. “Entre as pessoas mais importantes que se converteram,
estava Hermann von Wied, arcebispo de Colônia; Frederico II, conde
Palatino; o primeiro ministro do imperador, Eric II, duque de
Brunsvique, que mais tarde se tornou Príncipe-eleitor; os duques de
Mecklenburgo e da Pomerânia; Joaquim II, o príncipe e Eleitor de
Brandemburgo, que em breve iria suceder a seu pai no governo; e
George Ernest, filho do príncipe Guilherme de Henneberg. Várias
cidades imperiais livres, que até então eram simpatizantes do
papado ou ainda não tinham se decidido por nenhum partido, agora
se declararam a favor da Reforma Protestante. Até mesmo o
imperador e seu irmão levaram consigo um sentimento de menor
aversão para com o nome e a fé protestante do que aquele que lhes
havia sido inculcado pelos seus conselheiros eclesiásticos”.
3. Um considerável número de verdades foi apresentado diante
daquela augusta assembleia e manteve ocupados os corações e
espíritos por quase seis meses. Isso representou um extraordinário
benefício para a causa. Muitos dignitários, tanto da Igreja Romana
quanto do Estado, ouviram a pura verdade de Deus pela primeira vez
em suas vidas. Além da conhecida Confissão dos Luteranos, outras
duas Confissões foram apresentadas na Dieta. Como já
mencionamos anteriormente, uma havia sido enviada diretamente
por Zuínglio; e a outra, chamada Confessio Tetrapolitana, havia sido
redigida por Bucer e assinada pelos representantes de quatro
cidades imperiais, a saber: Estrasburgo, Constância, Memmingen e
Lindau. Dessa maneira, sob a direção de Deus, a verdade foi
publicada por um tríplice e nobre testemunho. Em essência, as três
confissões tinham a mesma linguagem no que diz respeito às
grandes e fundamentais verdades encontradas na Palavra de Deus;
elas apenas divergiam quanto à doutrina da real presença do corpo e
do sangue de Cristo nos elementos da Ceia.
4. Nosso atual objetivo é falar, com corações agradecidos, daquilo que
o Senhor fez por meio das Suas nobres testemunhas e para o qual
Ele os capacitou por meio da Sua graça. Contudo, havia muitas
verdades benditas da Palavra de Deus que não se encontravam
referidas nessas confissões de fé. Gostaríamos de enumerar
algumas delas: as verdades referentes à Igreja como o Corpo de
Cristo e suas relações celestiais; a ação do Espírito Santo; a
diferença entre a justiça de Deus e a justiça da lei; a unidade do
crente com o Cristo glorificado; a esperança da vinda do Senhor para
os Seus santos e da Sua posterior manifestação com eles, em poder
e glória. Os reformadores desconheciam todas essas verdades,
parcial ou totalmente. Entretanto, eles eram fiéis naquilo que Deus
lhes havia revelado, e perseveraram inabaláveis nisso, mesmo em
face aos perigos ameaçadores. Foi a fé que alcançou a vitória.

“Neste ponto, a história evangélica da Reforma Protestante alemã está


praticamente encerrada, e se inicia a história diplomática do
protestantismo legalista. A igreja dos primeiros séculos havia surgido
novamente e se mostrava com toda sua vitalidade. Conferências e
debates, alianças políticas e batalhas, lamentáveis derrotas ainda iriam
acontecer, mas isso era secundário. O grande movimento estava
concluído, a causa da fé havia sido ganha pela fé; a obra fora executada;
a doutrina evangélica se arraigou no mundo e nem as tempestades dos
homens, nem os poderes do inferno podem arrancá-la”.5
***
A PROVIDÊNCIA DE DEUS NOS ASSUNTOS DO IMPERADOR CARLOS V
Na história da Reforma Protestante, cheia de vicissitudes, é
extremamente interessante podermos ver a poderosa mão da providência
divina por todas as partes, não apenas frustrando os perversos ataques
dos inimigos, mas também fazendo com que contribuíssem para o bem.
As pessoas, os escritos e o testemunho das pessoas escolhidas por
Deus, frequentemente foram protegidos e promovidos por meios que nem
poderíamos imaginar. Somente Deus podia transformar as dissensões
entre os reis da Europa e os exércitos dos turcos em instrumentos úteis
para o progresso do Evangelho da paz. E Deus tem agido dessa maneira
desde o princípio do movimento.
Quase imediatamente após a promulgação do Edito de Worms contra
os reformadores, uma guerra teve início entre o imperador Carlos V e
Francisco I, o rei da França. De acordo com o historiador Robertson,
“ainda que Carlos desejasse muito colocar um fim às atividades de
Lutero, durante a Dieta de Worms, frequentemente ele já fora obrigado a
voltar sua atenção para assuntos que pareciam ser mais importantes”. O
poder do rei da França era um empecilho para a realização de seus
ambiciosos planos e continuamente ele cismava para achar meios para
poder limitá-lo. De acordo com a história civil, registrada por aquele
tempo, tanto Carlos V quanto Francisco I reivindicavam os direitos sobre
o ducado de Milão, que havia sido conquistado por Luís XII, que, por sua
vez, perdeu posteriormente. “Por algum tempo Francisco I parecia ter o
domínio. Mas por volta do ano 1525, Carlos V se apoderou novamente do
ducado. Ao mesmo tempo, o imperador reivindicava o território de Artois
que, como ele afirmava, fazia parte dos Países Baixos. Além disso, ele
devia defender Navarra, que seu avô Fernando havia tomado dos
franceses. Francisco I, por sua vez, reivindicava seus direitos sobre o
reino das duas Sicílias. Esse reino englobava a ilha da Sicília e parte da
Itália continental.” Tudo isso nos explica a antipatia do imperador em
iniciar as hostilidades contra seus vassalos alemães. Essas constantes
disputas entre os maiores poderes da Europa ocuparam totalmente a
atenção dos monarcas por tantos anos, que a Reforma Protestante pôde
se desenvolver sem ser perturbada. Ao mesmo tempo, as repetidas
ameaças do poder papal eram ignoradas ou adiadas.
Naturalmente, a severidade do edito de Augsburgo despertou as mais
sérias apreensões e preocupações dos protestantes e de toda a
Alemanha. De forma geral, a expectativa era de uma imediata irrupção de
uma destruidora guerra civil, e com ela a aniquilação dos protestantes.
Mas Deus, que controla todas as coisas, tinha planos bem diferentes. De
forma alguma Carlos V estava inclinado a iniciar uma séria perseguição
naquele momento. Seu relacionamento cordial com os príncipes
protestantes, por quase seis meses, lhe havia ensinado que eles não
eram fanáticos perigosos nem inimigos domésticos, como havia sido
levado a crer pelas falsas acusações feitas pelos representantes do
partido papal. Certamente o imperador deve ter ficado muito
impressionado, mais do que talvez ele mesmo admitisse, com a firmeza
dos príncipes e a justiça da causa protestante, apesar de ter dificuldades
em entender os conceitos de liberdade civis e religiosas que os mesmos
reivindicavam. Contudo, ele não via razão para castigar fiéis súditos
como rebeldes só para agradar o sumo pontífice. O papa Clemente e
todos os seus aliados italianos estavam muito desapontados com o fato
do imperador não ter assumido suas responsabilidades e seu caráter de
defensor da igreja, e por não ter feito guerra contra aqueles incorrigíveis
hereges. E ainda que Carlos V tivesse sido tão sedento de sangue como
Clemente, a situação política do seu império teria lhe impossibilitado de
proceder com o rigor desejado pelos papistas contra os inimigos da Igreja
de Roma.
As notícias vindas do Oriente assumiam um caráter cada vez mais
inquietante. Suleiman, o Magnífico, liderando um poderoso exército de
trezentos mil homens, havia invadido novamente a Hungria com a
explícita intenção de destronar a Fernando, o irmão do imperador, e
substituí-lo por um turco. Este ameaçador perigo desviou novamente a
atenção geral e os pensamentos do imperador da situação da Alemanha.
***
A LIGA DE ESMALCALDA
Imediatamente após a dissolução da Dieta de Augsburgo e da
publicação do seu hostil e ameaçador decreto final, o Eleitor da Saxônia e
seus aliados se reuniram para deliberarem sobre sua conduta no futuro.
O decreto imperial pairava sobre suas cabeças como uma espada
desembainhada, e eles deveriam estar preparados para o pior. O temor
deste perigo ameaçador oprimiu de tal modo o espírito desanimado de
Melanchthon, que ele estava prestes a entrar em desespero. Por outro
lado, Lutero não se sentia nem um pouco desencorajado. Por meio de
suas cartas, escritas no seu refúgio solitário em Coburgo, ele confortou e
encorajou seus amigos. Lutero estava plenamente convencido que a
obra, era a obra de Deus. Por esse motivo, ele exortava os príncipes a
permanecerem firmes sobre a base da verdade eterna, a confiarem na
poderosa proteção de Deus e, com respeito ao puro Evangelho, não
cederem em absoluto diante de seus inimigos.
Em novembro de 1530, o landgrave de Hesse, que era mais impetuoso
que os outros e menos desfavorável à doutrina defendida pelos
reformadores suíços no que dizia respeito à Ceia do Senhor, fez uma
aliança por seis anos com os cantões* de Zurique, Berna, Basileia e a
cidade de Estrasburgo.
No dia 22 de dezembro daquele mesmo ano, o landgrave e outros
líderes protestantes se reuniram em Esmalcalda, uma cidade na Alta
Saxônia. Ali foi colocada a base para a famosa “Liga de Esmalcalda”. O
landgrave — que nunca havia desistido de seu principal objetivo, que era
a união de todos os protestantes — empenhou-se, de todas as formas,
para ver os suíços incluídos na confederação. Mas Lutero e seus
seguidores se opuseram enfaticamente a essa proposta.
Por meio da Liga de Esmalcalda, os Estados protestantes do Império
se uniram em uma corporação fechada para defender-se. Todavia, Lutero
e alguns outros que sempre haviam sido contrários a qualquer
confederação, mesmo que fosse para defesa da sua causa, tinham
grandes restrições quanto a essa aliança. Os juristas, bem como os
teólogos, foram consultados com respeito à legalidade da mesma. Os
primeiros afirmaram que existiam certos casos nos quais as leis
permitiam resistir à autoridade imperial, pois, em virtude do acordo
existente entre o imperador e os Estados, este não podia transgredir as
leis do Império nem os direitos e a liberdade da Igreja alemã. Os juristas
consideravam que tal acordo havia sido violado pelo imperador. Por esse
motivo, os Estados tinham o direito de se confederarem contra ele. Ainda
que não estivesse convencido da exatidão dessa argumentação, Lutero
respondeu que não faria nenhuma objeção, pois o Evangelho de maneira
nenhuma invalidava as instituições civis. Entretanto, ele não poderia
aprovar uma guerra ofensiva.
Este passo fatal foi o primeiro no caminho do declínio dos protestantes.
Por medo do inimigo, eles abandonaram a base da fé. Até o próprio
Lutero fracassou. Em vez de peregrinar pelo caminho dos sofrimentos e
do desprezo na simples confiança em Deus, como até então, eles se
uniram para enfrentar a violência com violência.
Por volta desse tempo, aconteceu algo que deu uma razão política aos
príncipes protestantes para se oporem ao imperador. Carlos V, cujos
planos ambiciosos se expandiam conforme seu poder crescia, expressou
o desejo que seu irmão Fernando fosse coroado rei dos romanos. Com
esse propósito, o imperador convocou o colégio eleitoral para se
encontrar na cidade de Colônia. O Eleitor da Saxônia se recusou a
comparecer, porém enviou seu filho mais velho para que declarasse, aos
Eleitores reunidos, que a escolha de Fernando era irregular, ilegal e
contrária às determinações da Bula Dourada6, e que essa eleição
destruiria as liberdades do Império. Mas o protesto foi ignorado. Os
demais Príncipes-eleitores, os quais Carlos havia ganhado para seus
objetivos com grande esforço, realizaram a eleição no dia 5 de Janeiro de
1531, e seis dias depois, em Aachen, Fernando foi coroado rei dos
romanos com grande suntuosidade e solenidade.
***
O SEGUNDO ENCONTRO EM ESMALCALDA
No dia 29 de março de 1531, os protestantes iniciaram a segunda
assembleia em Esmalcalda. A liga, que a princípio estava limitada ao
Eleitor da Saxônia e aos demais príncipes e Estados protestantes, foi
expandida, e agora incluía todos aqueles que, independente de sua
confissão religiosa, estivessem insatisfeitos com a conduta do imperador
e que também protestavam contra a eleição de Fernando como rei dos
romanos. Eles também se esforçaram diligentemente para induzir os reis
da França, Inglaterra e Dinamarca, bem como outros príncipes e Estados,
para se unirem à confederação. Os duques da Bavária e outros que não
estiveram presentes no primeiro encontro, agora também se juntaram à
Liga. Eles tomaram uma série de providências para, caso houvesse
necessidade, disponibilizar de soldados e material bélico.
***
O IMPERADOR CARLOS PROCURA UMA CONCILIAÇÃO COM OS
PROTESTANTES
A atitude guerreira assumida pelos confederados e a situação delicada
e desfavorável no Oriente, fez com que o imperador achasse conveniente
se esforçar por conseguir a amizade dos protestantes em vez de
provocar sua ira através de medidas severas. Carlos não podia dispensar
a assistência dos protestantes na guerra contra os turcos; mas quando
ele enviou uma ordem solicitando que colocassem a seu dispor homens e
dinheiro, os príncipes protestantes declararam unânimes que não
atenderiam a essa solicitação antes que não lhes fosse assegurada uma
paz religiosa generalizada. Eles tomaram muito cuidado para não colocar
nas mãos dos seus perseguidores os meios da sua autodefesa, e
exigiram que primeiramente fosse colocado um fim aos procedimentos
hostis da Câmara Judicial do Império contra os protestantes. Carlos
encontrava-se em um grande embaraço. O que ele deveria fazer? Se ele
cedesse à exigência dos protestantes, isso equivaleria a uma retratação
do decreto da Dieta de Augsburgo. Se ele não aceitasse, então ele não
seria forte o bastante para enfrentar os turcos.
Depois de inúmeras deliberações, o Eleitor de Mainz e o príncipe
Palatino se ofereceram para mediar as partes. Eles se encontraram com
os protestantes em Schweinfurt. Os mediadores fizeram as seguintes
propostas: “A Confissão de Augsburgo deveria ser, sem mais inovações,
a doutrina dos protestantes até que um Concílio tomasse alguma outra
decisão. Em contrapartida, os protestantes deveriam se comprometer a
não entrar em nenhuma associação com os seguidores de Zuínglio ou
com os anabatistas; não deveriam fazer nenhuma tentativa de divulgar
suas doutrinas nos Estados católicos nem perturbar a jurisdição ou as
cerimônias da Igreja Romana. Além disso, deveriam oferecer assistência
para a guerra contra os turcos e se submeter às ordens do imperador e
do rei romano”. Os protestantes rejeitaram estas propostas,
principalmente em razão da coroação de Fernando. Eles se recusaram a
reconhecer o rei romano e nisso encontraram apoio não apenas da parte
de alguns príncipes católicos, mas também dos reis da França e da
Inglaterra.
***
A PAZ DE NUREMBERG
Agora os protestantes estavam conscientes de sua própria força e
estavam determinados a aproveitar sua vantagem frente ao imperador.
Por isso, eles responderam aos mediadores que o imperador deveria
conceder, de forma ampla e geral, uma paz religiosa; que a Câmara
Imperial deveria ser instruída a anular a execução das sentenças
pronunciadas contra os protestantes, que diziam respeito a questões
religiosas; e que as duas partes deveriam se comprometer a não se
importunarem mutuamente em questões de fé. Se estas exigências
fossem concedidas, os protestantes, de sua parte, prometiam não
introduzir nenhuma inovação na sua Confissão nem interferir na
jurisdição eclesiástica católica em todos os locais onde a mesma ainda
estivesse estabelecida. Prometiam ainda manifestar a mais zelosa
obediência ao imperador, e fornecer todos os suprimentos possíveis para
auxiliar na guerra contra os turcos. Quando, depois de muita discussão,
nenhum acordo foi alcançado, um novo encontro foi fixado para o dia 3
de junho de 1532, na cidade de Nuremberg.
Entrementes, os turcos continuavam avançando e agora se
aproximavam da Áustria, ameaçando o coração do Império Germânico.
Era esse o estado em que as coisas se encontravam quando a
conferência retomou as negociações no tempo determinado.
Novamente se levantou uma violenta discussão, contudo, seu final era
previsível. As notícias cada vez mais ameaçadoras vindas do oriente do
Império fizeram calar todas as argumentações e objeções dos
mediadores imperiais e, finalmente, as condições propostas pelos
protestantes foram aceitas. No dia 23 de Julho de 1532 a famosa Paz de
Religião de Nuremberg foi alcançada. Entrementes, o imperador estava
em Ratisbona, aguardando impaciente o resultado das negociações.
Quando, finalmente, no dia 2 de agosto lhe foi entregue o acordo, Carlos
o assinou sem sequer ver o seu conteúdo — a tal ponto lhe era
importante assegurar-se da ajuda dos protestantes.
***
A OPINIÃO DOS HISTORIADORES
É muito interessante notarmos quão unânimes a maioria dos
historiadores são ao atribuir essa grande vitória dos reformadores a uma
intervenção direta do próprio Deus. Waddington diz: “Não há dúvida
alguma que não foi através do poder natural dos protestantes, e menos
ainda pela autoridade da sua doutrina, mas apenas por meio da poderosa
mão da providência divina. Esta transformou até mesmo as armas dos
incrédulos turcos em um meio para o reavivamento do Evangelho. Aquele
acordo deu aos protestantes uma vantagem de imensurável importância.
Os Editos de Worms e de Augsburgo agora estavam de fato revogados, e
isso por tempo indefinido”. Outro historiador, Scultetus, chama nossa
atenção para que “admiremos a providência de Deus, que utilizou o
sultão turco como o grande instrumento que tornou impossível ou pelo
menos adiou a execução do Edito de Augsburgo contra a Reforma”.
Melanchthon, por sua vez, afirma: “Pelo silencioso mandamento de Deus,
o imperador foi desviado de seus propósitos contra os alemães através
da guerra contra os turcos. Desse modo, eles suavizaram o edito de
Augsburgo. Nenhuma geração de homens esteve em maior perigo do
que nós mesmos nos encontrávamos. Nenhum partido jamais esteve
exposto à animosidades e hostilidades mais amargas do que nós. Não
havia nenhum socorro para nós, exceto aquele vindo de Deus”.
E o testemunho do historiador civil, Robertson, ainda tem peso maior
do que esse representado pelos historiadores eclesiásticos. Após
comentar pormenorizadamente o conteúdo do acordo, ele diz o seguinte:
“Aquele tratado assinado em Ratisbona estipulava que uma paz universal
deveria ser estabelecida entre os alemães até que um concílio geral
pudesse se reunir. O imperador iria se empenhar pessoalmente para que
o mesmo fosse convocado dentro de um período de seis meses. Também
dizia que nenhuma pessoa poderia ser perturbada por causa das suas
crenças religiosas; todos os processos que estivessem a cargo da
Câmara Imperial contra os protestantes deveriam ser revogados, e as
sentenças já proferidas, em detrimento* dos protestantes, deveriam ser
declaradas inválidas. Por sua parte, os protestantes deviam se empenhar
em auxiliar o imperador com seus exércitos na resistência contra o
invasor turco. Mediante a firmeza inabalável em guardar seus princípios,
pela unanimidade com a qual insistiam nas suas reivindicações e pela
destreza com a qual tiraram proveito da situação do imperador, os
protestantes alcançaram termos que se aproximavam muito com uma
tolerância da sua religião. Todas as concessões foram feitas pelo
imperador Carlos e nenhuma pelos protestantes; até mesmo o
reconhecimento, tão ardentemente desejado pelo imperador, da eleição
de seu irmão como rei dos romanos, não foi sequer mencionado. Os
protestantes da Alemanha, que até então eram vistos como uma seita
religiosa, agora eram considerados como uma corporação política
bastante representativa”.7
Outra questão é até que ponto foi benéfico para os interesses do
cristianismo ter alcançado importância política. Nós já expressamos a
nossa opinião sobre este assunto quando contemplamos a carta dirigida
à igreja em Sardes. O político e o teólogo nunca devem se unir em uma
mesma pessoa. Dizemos isso porque a cidadania do cristão encontra-se
no céu. O princípio que governa a posição do cristão nesse mundo é o de
peregrinação — ele é um forasteiro e peregrino (1 Pe 2:11; Fp 3:20).
Os príncipes, da forma mais nobre, cumpriram seus compromissos
assumidos com o imperador Carlos V. Eles trouxeram seus exércitos para
os campos de batalha em números que excediam em muito todas as
expectativas. Por meio desses novos reforços, o exército imperial
cresceu, atingindo o número de noventa mil soldados de infantaria
exercitados na guerra. Esses eram acompanhados por trinta mil homens
de cavalaria, além de uma prodigiosa multidão de homens que não
estavam regularmente alistados. O imperador assumiu o comando desse
exército pessoalmente. Toda a Europa aguardava com grande tensão
essa batalha decisiva entre os dois monarcas mais poderosos do mundo.
Mais de meio milhão de homens, praticamente de todas as nações, se
preparavam para a grande batalha, mas essa batalha não aconteceu. O
grande e afamado sultão Suleiman, o Magnífico, parecia ter perdido a
coragem. Quando o exército imperial se aproximou, apressadamente ele
se retirou com seus trezentos mil homens, sem sequer ter lutado. Esta
era a primeira vez em que o imperador Carlos V, que já havia conduzido
tantas guerras significativas e alcançado muitas vitórias, apareceu
comandando pessoalmente suas tropas. Enfrentar a um general tão
temido quanto Suleiman era uma grande honra para o jovem imperador, e
tê-lo obrigado à retirada lhe rendeu muito louvor.
Porém quem, nós perguntamos, não vê nesta vitória, que foi alcançada
sem derramar sangue, uma mão mais elevada e poderosa do que a de
Carlos V? Após o turco ter apavorado o imperador pela sua aparição e tê-
lo obrigado a ceder, sua obra havia sido completada. O Deus que dirige
todas as coisas enviou Suleiman de volta para o seu lar. O Império
precisava ser salvo pelo bem da Reforma Protestante. Embora o
poderoso sultão Suleiman houvesse feito preparativos extraordinários
para esta campanha militar, ela foi encerrada sem que nenhum evento
memorável pudesse ser registrado. O imperador Carlos V retornou para a
Espanha com o objetivo de cuidar dos seus domínios. Os reformadores
deixaram as suas armas e retornaram para suas ocupações pacíficas e
cristãs, e a igreja protestante descansou das perseguições, desfrutando
de um período de tranquilidade que durou cerca de quinze anos.
Tendo alcançado, através do gracioso cuidado de Deus, um grande
triunfo, a Reforma Protestante se estabeleceu firmemente na Alemanha.
Por esse motivo, nós podemos, com gratidão a Deus, deixar a história da
Reforma na Alemanha e, nos próximos capítulos, voltar nossa atenção e
examinar o surgimento e o progresso do movimento da Reforma na
Suíça.

1 D´Aubigné, vol. 4, p. 277. John Scott, vol. 1, p. 53.


2 Ranke´s History of the Popes, vol. 1, p. 76.
3 Waddington, vol. 3, p. 84.
4 D’Aubigné, vol. 4, pp. 132-340; Waddington, vol. 3, pp. 43-113; Scott´s
Continuation, vol. 1, pp. 1-90; Du Pin, vol. 3, p. 206.
5 Merle D’Aubigné, vol. 4, p. 255.
6 A Bula Dourada de 1356 é um decreto emitido por Carlos IV, na Dieta de
Nuremberg. Ela foi denominada Bula Dourada por causa do grande selo dourado
com que havia sido selada. A mesma tratava de importantes aspectos
constitucionais do Sacro Império Romano Germânico.
7 Waddington, vol. 3, p. 160. John Scott, vol. 1, p. 112. Robertson´s Reign of Charles
V., vol. 5, p. 391.
Capítulo 40
A REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA

Ao contemplarmos a história da Reforma Protestante na Alemanha e na


Suíça, nossos corações sentem-se fortalecidos e alegres ao notarmos a
perfeita unidade das ações do Espírito Santo de Deus em ambos os
países. A Alemanha e a Suíça eram países muito diferentes no âmbito
social, político e nacional. A Alemanha era constituída por um gigantesco
sistema monárquico — o Sacro Império Romano Germânico — que
contrastava drasticamente com as treze pequenas repúblicas que
compunham a Suíça. Na Alemanha, a Reforma Protestante teve que lutar
contra o poder imperial. Já na Suíça, a mesma teve que lutar contra a
democracia. Todavia, devemos notar que, independente dessas
condições tão diversas, essa grande obra foi iniciada pelo Espírito de
Deus nos dois países, na mesma época e com o reavivamento das
mesmas verdades. Isso evidentemente era de Deus e mostra a origem
divina da Reforma Protestante. “Eu comecei a pregar o Evangelho”, diz
Zuínglio, “no ano da graça de 1516, em uma época quando o nome de
Lutero nunca havia sido ouvido em meu país. Eu não aprendi a doutrina
cristã de Lutero, e sim da Palavra de Deus (cf. Gálatas 1:11-12). Se
Lutero prega a Cristo, ele faz o que eu faço, não há mais nada a dizer.”
Merle D’Aubigné é um dos poucos historiadores que consideram este
fato interessante de uma perspectiva divina. Os caminhos de Deus, em
Seu governo bem como em Sua graça, são verdadeiramente instrutivos e
edificantes para o coração quando os examinamos em comunhão com
Ele. Mas os assuntos mais espirituais serão áridos e não seremos
tocados por eles se Deus não preenche os nossos pensamentos. É por
esse motivo que D’Aubigné escreve: “Zuínglio não tinha nenhuma relação
com Lutero. Sem dúvida havia uma ligação entre os dois, porém não
devemos buscar esta ligação aqui na terra, mas lá em cima — ambos
receberam a verdade do céu. O elo de união entre os dois era o próprio
Deus”.1
Contudo, a Reforma nos dois países — e em outros Estados da Europa
— derivou sua impressionante semelhança e unidade de um e mesmo
Espírito Santo, do qual elas surgiram. Ainda assim, as Reformas
assumiram formas e configurações especiais, correspondentes a cada
povo e país. Na Alemanha, a pessoa de Lutero assumiu uma estatura
superior, que o transformou no mais destacado entre todos os seus
companheiros reformadores. Ele era visto e ouvido; ele ocupava um lugar
preeminente em todos os lugares e ocasiões. Na maioria dos casos, sua
poderosa voz dava a palavra final. Nada podia ser feito nem decidido sem
a sua participação. Em relação ao âmbito espiritual, ele era o líder
reconhecido do partido protestante. Na Suíça a situação era diferente, ali
não havia um único indivíduo em cujas mãos estava a direção do
movimento. Foi do agrado de Deus revelar Sua verdade a muitos
corações ao mesmo tempo e trabalhar em numerosos espíritos
simultaneamente e nos diferentes cantões. Um número considerável de
homens nobres estava à frente da batalha e se destacaram na luta da fé:
Justus Jonas, Thomas Wyttenbach, Ulrico Zuínglio, Leo Jud, Wolfgang
Fabrício Capito, Bertoldo Haller, Guilherme Farel, João Oekolampad,
Oswaldo Myconius e João Calvino. Em Glarona, Basileia, Zurique, Berna,
Neunburg, Genebra, Lucerna, Schaffhausen, Appenzell, São Galo e
Grisões, a batalha se iniciou simultaneamente. É verdade que na Suíça
alemã se destacava o nome de Ulrico Zuínglio, muito acima de todos os
outros, porém ele nunca ocupou o lugar de supremo líder ou
comandante.
Mas antes que tentemos traçar a história da Reforma na Suíça,
devemos renovar nosso conhecimento acerca das condições religiosas
que precederam aquele grande movimento.
***
A INTRODUÇÃO DO CRISTIANISMO NA SUÍÇA
O cristianismo foi introduzido pela primeira vez no país das montanhas,
dos vales e dos lagos, no século VII, através de um nativo da Irlanda
chamado Galo, que era discípulo do grande abade São Columbano.
Após a morte de Galo, seus discípulos, e outros missionários vindos da
Irlanda, continuaram o trabalho visando a conversão dos suíços. O
Evangelho se divulgou cada vez mais e muitos mosteiros foram
fundados. Uma nova igreja helvética* surgiu, instituída completamente
segundo o modelo romano e que reconhecia a suserania* do papa.
Por volta da metade do século XI, dois eremitas* partiram da cidade de
São Galo e alcançaram o vale onde está o enorme lago de Zurique,
fixando ali sua residência. Gradativamente, o vale começou a se povoar.
Em um lugar elevado, aproximadamente mil metros, foi construída uma
igreja. Pouco a pouco surgiu um pequeno vilarejo em volta da igreja que,
em decorrência do caráter selvagem da região, recebeu o nome de
Wildhaus. Nesse vilarejo, no final do século XV, morava um homem
chamado Zuínglio; ele era o prefeito dessa pequena comunidade e o pai
do reformador Ulrico Zuínglio.
Em decorrência da sua posição em meio a montanhas quase
inacessíveis e no coração da Europa, a Suíça foi comparada com uma
escola militar. Os soldados suíços tinham a reputação de possuírem
grande valentia e uma persistência incansável, e eram muito cobiçados
como mercenários. Isso os induziu ao mau hábito de se alistarem a
serviço de príncipes estrangeiros. Embora eles estivessem muito
afeiçoados às montanhas da sua pátria e considerassem sua liberdade
como o maior bem, a ambição pelo ouro do estrangeiro seduziu a muitos
homens fortes a abandonarem os pacíficos prados alpinos para buscar
riqueza e honra fora do seu país.
Com o passar dos anos, este mau hábito foi aumentando cada vez
mais e, finalmente, se tornou em um grande mal nacional. Os laços
familiares mais íntimos foram rompidos. Milhares de homens que
estavam na plenitude da sua força deixaram o país e nunca mais
voltaram, e aqueles que reviram a sua pátria estavam em um estado
quase selvagem e totalmente desmoralizados. Foi assim que a
simplicidade original do povo desapareceu rapidamente. É lamentável ter
que relatar, mas todos os historiadores que conhecemos registram este
fato: uma grande, se não a maior parte da culpa dessa desgraça
nacional, cabe aos pontífices romanos. Em suas numerosas disputas
com outras nações, os papas, com frequência, se viam diante da
necessidade de solicitar o socorro que os cantões suíços podiam lhes
oferecer. Isso acontecia porque faltava tanto a coragem quanto a
fidelidade necessária aos seus próprios súditos. Por essa razão, os
mesmos se recusavam a servir Sua Santidade. O tesouro apostólico
supria os meios necessários, e os pobres, mas bravos suíços, geralmente
eram determinantes no resultado do conflito a favor do papa nos campos
de batalha ao norte da Itália. Os sacerdotes haviam sido instruídos para
persuadir o povo ignorante para essa forma de obediência ao Santo
Padre. Eles diziam: “É uma santa causa cingir os lombos para a batalha e
um glorioso martírio poder dar a vida no serviço para a igreja”. Por um
longo tempo estes discursos impressionavam, contudo, mais tarde, não
atingiram mais o objetivo. Porém, a ambição por dinheiro prevalecia
sobre todas as outras considerações. Quem podia fazer as maiores
ofertas tinha certeza de obter os serviços dos suíços. Essa situação fez
com que o papa usasse de grande generosidade na distribuição de
indulgências e outros benefícios. Por meio dessas práticas, a corrupção
moral dos sacerdotes e do povo foi mais rápida, e a grande veneração
que as igrejas suíças sempre tinham demonstrado para a Sé Romana,
diminuiu rapidamente e de forma drástica.
“No início do século XVI, a Igreja de Roma havia alcançado um nível de
grandeza e poder que parecia impossível que a mesma viesse a sofrer
qualquer tipo de perturbação. De modo especial, podemos afirmar que na
Suíça qualquer mudança religiosa parecia impossível. Isso se devia a
dois fatores: a estrita aliança que existia entre o povo suíço e o papa; e a
extrema ignorância e corrupção que prevaleciam no país. Mas é
exatamente em circunstâncias desse tipo que Deus tem prazer especial
em trabalhar. Isso para que toda a glória seja dirigida ao próprio Deus.
Sua justiça não poderia permitir nem tolerar por mais tempo o terrível
excesso de desordem que reinava na igreja na Europa. Mas Deus tem
seus verdadeiros adoradores, que sempre irão adorá-lo em espírito e em
verdade”.2
De maneira geral, esse era o estado das coisas quando amanhecia o
novo dia nos vales dos Alpes. Frequentemente, Ulrico Zuínglio tem sido
chamado o apóstolo da Reforma Protestante na Suíça. Sem dúvida, ele
foi o principal instrumento pelo qual Deus iniciou e levou adiante essa
grande obra, mesmo que alguns outros já houvessem trabalhado o
campo antes dele. Zuínglio possuía uma mente clara e perspicaz, um
amor ardente pela verdade; estava animado por um nobre zelo de que a
verdade fosse propagada, que Deus fosse glorificado; e buscava o bem
de Sua Igreja. Embora ele estivesse enganado em diversas coisas, como
acontece com os melhores servos do Senhor, ainda assim seu nome
merece um lugar entre os mais augustos nomes da história da Igreja. Ele
pode ser comparado com Lutero e Calvino.
***
O NASCIMENTO E A EDUCAÇÃO DE ZUÍNGLIO
A família de Zuínglio era antiga, respeitável, e naquele tempo
considerada em grande estima em toda a região conhecida por
Toggenburg — um pequeno distrito localizado no meio de altas
montanhas e estreitos vales cobertos com árvores e pastagens. Ulrico
era o terceiro filho. Ele teve sete irmãos e uma irmã. Nasceu no dia do
ano novo de 1484, em um vilarejo às margens do lago de Zurique,
chamado Wildhaus, que já mencionamos acima. Ele passou sua primeira
infância na atmosfera calma e agradável da sua casa paternal. Quando
se desenvolveu, se tornou um menino forte; ele perambulava a maior
parte do tempo pelas montanhas ou acompanhava seu pai aos altos e
suculentos prados da Suíça. A grandiosidade da natureza parece ter
causado uma profunda impressão na alma desse alegre menino, fazendo
com que seu espírito se expandisse e amadurecesse prematuramente.
Seu amigo Myconius escreveu: “Muitas vezes eu pensei que nessas
alturas, próximo do céu, ele deve ter adquirido algo celestial e divino”.
O pai possuía numerosos rebanhos, e assim que o cálido sol de maio
derretia a neve e cobria os prados com um verde novo e fresco, ele
deixava a casa e subia as montanhas com seus animais. Assim que os
filhos atingiam idade suficiente, tinham que acompanhar o pai. É muito
provável que Ulrico nunca teria deixado a estreita esfera de Toggenburg
se as prometedoras capacidades do menino não tivessem convencido a
seu pai a consagrá-lo para servir a igreja. Antes de completar dez anos
de idade, ele foi colocado sob os cuidados de seu tio, que era deão* na
localidade de Wesen. Naquele menino esperto, o tio descobriu
habilidades e talentos tão grandes que aconselhou a seu pai que o
deixasse estudar sob sua direção. Dessa forma, com a aprovação
paterna, bem como com a assistência da família, Zuínglio entrou na
universidade. Ele estudou em Basileia, Berna, Viena e outra vez em
Basileia, completando seus estudos de maneira bem sucedida. Sua
sincera maneira de ser, a vivacidade e a perspicácia do seu espírito e os
progressos avassaladores que ele fez nos estudos das ciências, fez dele
o preferido declarado de seus mestres. Quando estudava em Berna, os
dominicanos — a quem lhes havia chamado a atenção a bela voz do
jovem montanhês e que haviam ouvido dos seus talentos que se haviam
desenvolvido tão precocemente — procuraram convencê-lo para entrar
para o seu mosteiro. Eles pensavam que dessa maneira poderiam ganhá-
lo para si e esperavam que um dia ele fosse um belo ornamento para a
ordem dos dominicanos. Mas quando o pai ouviu acerca dos esforços
dos dominicanos, ele manifestou expressamente sua desaprovação para
tal passo, e ordenou que o filho partisse imediatamente de Berna para
Viena. O inocente jovem conseguiu, dessa forma, escapar das muralhas
monásticas dentro das quais o jovem Lutero havia sofrido tanto. Além
disso, Zuínglio se viu livre dos nefastos* efeitos morais que trouxeram
muita infelicidade a Lutero ao longo de toda a sua vida.
Durante sua segunda estadia em Basileia, Zuínglio estudou teologia
sob a direção do celebrado Thomas Wyttenbach. Desse competente
teólogo — que fazia jus à sua fama e que não ocultava de seus alunos os
erros da Igreja de Roma — Zuínglio parece ter aprendido aquilo que
Lutero, na mesma época, estava aprendendo por meio dos ensinamentos
de Staupitz, a saber: a grande doutrina da justificação pela fé. “O tempo
está próximo”, disse Wyttenbach, “para que a teologia escolástica seja
colocada de lado e as antigas doutrinas da Igreja restauradas”. Aos
numerosos ouvintes que se juntavam ao redor do amado mestre ouvindo
com muita atenção aquele que com tal ousadia conduzia a ciência
teológica a caminhos totalmente novos, ele assegurava: “A morte de
Cristo é o único resgate oferecido pelas nossas almas”. “O coração de
Zuínglio recebeu avidamente esta semente da vida; e, como naquele
tempo os estudos clássicos passaram a substituir a escolástica da Idade
Média por todas as partes, ele, juntamente com seus mestres e amigos,
se decidiu por esse novo caminho”.3
Também foi em Basileia que ele fez algumas de suas melhores
amizades, que perdurariam por toda a sua vida e que foram
frequentemente de grande consolo nas batalhas posteriores. Leo Jud,
filho de um sacerdote da Alsácia, e Capito tornaram-se amigos íntimos
de Ulrico durante essa época. Como seus conterrâneos, e seu
companheiro de Reforma, Lutero, Zuínglio também era amante da
música. Ele tocava o alaúde, a harpa, o violino, a flauta, o saltério, o
chifre usado nas caçadas e diversos outros instrumentos. Nas horas
difíceis ou quando seu espírito estava cansado pelos severos estudos,
ele costumava se distrair por meio da música e se fortalecer para novos
desafios.
***
ZUÍNGLIO COMO PASTOR4 EM GLARUS
Após ter completado seus estudos em teologia e complementado os
mesmos com um grau de Mestre em Artes, Zuínglio foi escolhido, no ano
de 1506, pela comunidade em Glarus para ser o pastor da mesma. Ali
ele permaneceu por dez anos cumprindo fielmente com as numerosas
responsabilidades de seu cargo; ao mesmo tempo continuou a examinar
diligentemente as Sagradas Escrituras. Ao que tudo indica, foi durante
esse tempo que ele alcançou, por meio do conhecimento e da
experiência, o preparo necessário para o futuro serviço a favor do
Senhor, bem como de Sua Igreja. Um dos seus biógrafos escreve: “Um
manuscrito extremamente interessante ainda é conservado na biblioteca
de Zurique. Trata-se de uma cópia de todas as epístolas do apóstolo
Paulo em grego, com inúmeras anotações dos escritos dos mais
eminentes pais da Igreja, as quais Zuínglio escreveu com sua própria
mão para depois memorizá-las por completo”. No final do manuscrito se
lê: “Copiado por Ulrico Zuínglio em 1514”. Ele também estudou os
clássicos latinos e gregos e extraiu dos escritos dos pais da Igreja —
especialmente de Orígenes, Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Crisóstomo
— as doutrinas e práticas que eram usuais nas igrejas primitivas. Zuínglio
disse: “Eu estudo os doutores, mas não como autoridades, e sim com o
mesmo objetivo que temos quando perguntamos a um amigo: de que
maneira entendes essa passagem?”. Os escritos de Wycliffe e Huss
também lhe eram familiares, mas, como todos os estudiosos daqueles
dias, ele devorava os escritos de Erasmo assim que eram publicados.
Desse tempo em diante, os abusos eclesiásticos que haviam sido
introduzidos por Roma, tornaram-se cada vez mais claros diante do seu
espírito. Destemidamente, ele explicava do púlpito a genuína Palavra de
Deus e, embora ainda fosse fiel à missa e muitas outras coisas, ele
denunciava as invenções e corrupções do sistema romano. Esse foi o
raiar da Reforma Protestante na Suíça. No lugar das mentiras de
Roma, Zuínglio colocava a ilimitada autoridade da Palavra de Deus, e
com isso, na realidade, a vitória da luz sobre as trevas já estava
conquistada.
Zuínglio estava ocupado com o zeloso cumprimento das suas
obrigações pastorais quando, de repente, ele foi obrigado a abandonar
seu pacífico âmbito de ação para acompanhar seus conterrâneos em
uma expedição militar na Itália. Francisco I, que havia jurado restaurar a
honra da França na Itália, estava ameaçando o papa. Este, encontrando-
se em grandes dificuldades, se voltou para os cantões suíços para que o
socorressem. Segundo o costume daquele tempo, o prefeito do cantão e
os pastores das diversas paróquias eram obrigados a acompanhar as
tropas do exército em tais expedições. Por isso, nos anos 1513 e 1515,
Zuínglio foi forçado a acompanhar a bandeira de sua paróquia até as
planícies da Itália. Na primeira expedição, os franceses foram derrotados
pelo valente exército dos confederados suíços na localidade de Novara e
tiveram que fugir. Diante desse fato, os monges e sacerdotes declararam
de seus púlpitos que os suíços eram o povo de Deus, que havia vingado
a noiva de Cristo contra o ataque de seus inimigos. Todavia, no ano de
1515, na fatal batalha de Marignano, Zuínglio foi testemunha da
completa derrota dos seus compatriotas. D’Aubigné diz: “Foi ali onde caiu
a flor da juventude helvética”.
Visto que Zuínglio não podia prevenir esta terrível desgraça, ele
mesmo tomou a espada na mão e se lançou em meio aos perigos a favor
de Roma. Dominado por sentimentos nacionalistas e patrióticos, ele
perdeu completamente de vista a sua posição como um soldado de
Cristo. Sua maneira de agir manifestava uma nobreza natural, porém ela
não era cristã. Ele se esqueceu, por um breve momento, que como um
ministro de Cristo ele deveria lutar apenas com a espada do Espírito, que
é a Palavra de Deus: “Porque as armas da nossa milícia não são carnais,
mas sim poderosas em Deus para destruição das fortalezas; destruindo
argumentos, e toda a altivez que se levanta contra o conhecimento de
Deus, e levando cativo todo o entendimento à obediência de Cristo” (2 Co
10:4-5).
Foi a partir desse momento que Zuínglio sentiu, mais do que nunca, a
necessidade de uma reforma, tanto na Igreja quanto no Estado. Ele havia
visto o suficiente das lamentáveis consequências do costume de seus
conterrâneos de lutar as batalhas de outras nações e de empregar bens e
sangue para resolver disputas alheias. A visão de tantos de seus bravos
conterrâneos sendo massacrados além dos Alpes, para defender um
papa incrédulo e ambicioso, encheram Zuínglio com uma ira justa. Ele
levantou sua voz contra essa prática perniciosa e, através de sua
pregação, muitos dos cantões suíços se deixaram convencer e
renunciaram a tais práticas. Assim como Lutero, na Itália ele também teve
a oportunidade de ver o orgulho, a vida suntuosa que os prelados
levavam, a avareza e a ignorância dos sacerdotes, bem como a vida
imoral e desregrada dos monges. Isso foi decisivo para sua conduta
posterior. Anteriormente ele havia se deixado levar algumas vezes pela
vida leviana e pelos princípios fúteis da sua época, porém agora ele
começou a exercer a sua ocupação com muito mais seriedade. Ele subia
ao púlpito com a firme determinação de anunciar nada mais do que a
pura Palavra de Deus. Com santa reverência, ele examinava as
Escrituras e buscava entendê-las sob oração e súplicas. A sua pessoa já
havia alcançado tal importância que não poderia deixar de exercer
influência nos que o rodeavam, tanto os de perto como os de longe. Um
vivaz espírito inquiridor começou a despertar nas montanhas e nos vales
da Suíça.
Alguns historiadores levantaram a questão a qual dos dois grandes
reformadores, Zuínglio ou Lutero, era devida a honra de ter sido o
primeiro a atacar o papado. Ao que tudo indica, ambos tomaram
conhecimento da verdade ao mesmo tempo, em especial a doutrina da
justificação pela fé; mas, como reformador, Lutero foi evidentemente o
primeiro a estar no campo de batalha. Enquanto Zuínglio anunciava o
Evangelho ainda de forma relativamente oculta, Lutero já havia levantado
publicamente o estandarte da verdade contra o domínio do erro, e a sua
poderosa voz já havia penetrado por todas as partes da cristandade.
***
ZUÍNGLIO EM EINSIEDELN
No outono de 1516, Zuínglio recebeu um convite dos líderes do
mosteiro beneditino em Einsiedeln — um pequeno lugarejo no cantão de
Schwyz, cuja fama havia se espalhado — para ocupar o cargo de pastor
e pregador na Igreja Nossa Senhora das Ermidas. Nisso se mostrou, de
maneira muito clara, a mão do Senhor. Einsiedeln era um grande ponto
de atração para todas as almas supersticiosas da Suíça, sim, quase de
toda a cristandade. De acordo com o historiador Ruchat, “o local poderia
ser chamado de ‘a Diana de Éfeso’ ou ‘Loreto da Suíça’”. Os mais
maravilhosos mitos estavam entretecidos com a história desta igreja.
Segundo a lenda, o próprio Cristo a teria inaugurado certa noite,
enquanto anjos, apóstolos e santos cantavam hinos e a santa virgem
estava em pé sobre o altar em brilhantes vestiduras. Uma imagem da
virgem Maria, que segundo a crença geral teria o poder de fazer milagres,
era cuidadosamente guardada no mosteiro. Multidões de peregrinos
afluíam anualmente, vindas de todas as partes da cristandade para
manifestar sua reverência diante da imagem milagreira e oferecer-lhe
ricas dádivas. Para este lugar, o Senhor conduziu os passos de Seu
servo. Ele deveria conhecer de perto a superstição e a idolatria de Roma.
Sobre a entrada principal do mosteiro havia uma placa, sustentada pela
figura de um anjo, na qual estavam gravadas estas palavras blasfemas:
“Aqui se pode obter o pleno perdão dos pecados”. D’Aubigné diz: “Muitos
peregrinos, de todos os países da cristandade, vinham para alcançar esta
graça por meio da peregrinação. Na festa dedicada a Maria, a igreja, o
mosteiro e todo o vale ao redor ficavam cheios com seus devotos
adoradores. Mas, de modo especial, gigantescas multidões inundavam
Einsiedeln no dia da grande ‘Festa dos Anjos’. Milhares de homens e
mulheres subiam as encostas da montanha em longas filas em direção
ao oratório, enquanto iam cantando hinos ou rezando seus terços e
rosários. Toda essa devota multidão se espremia dentro da igreja, onde
pensavam estar mais próximos de Deus do que em qualquer outro
lugar”.5 Ainda hoje essa cena se repete a cada ano. De acordo com
estimativas, cerca de cem mil pobres e iludidos devotos visitam aquele
lugar todos os anos. Tão grande é o poder da igreja corrupta, tão
poderosa a sedução da superstição — até mesmo em nosso século tão
esclarecido.
Depois de termos comentado acerca da extraordinária importância
desse mosteiro, o leitor talvez fique surpreso em saber que o abade do
mesmo, Conrado de Rechburg era o mais famoso caçador e criador de
cavalos de toda a região. Ele tinha uma profunda aversão a todo tipo de
superstição, preferindo seu haras e as montanhas ao mosteiro. Uma vez,
quando foi pressionado pelos visitantes do mosteiro para celebrar a santa
missa, ele respondeu: “Se Jesus Cristo está realmente presente na
hóstia, eu sou indigno até mesmo de olhar para Ele, e muito menos de
oferecê-Lo como sacrifício ao Pai. Porém, se Ele não está presente, ai de
mim se apresento um pedaço de pão como um objeto de adoração do
povo no lugar do próprio Deus...! A única coisa que me resta fazer é
clamar como Davi: ‘Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua
benignidade... e não entres em juízo com o teu servo’ (Sl 51:1; 143:2)”.
O administrador das questões seculares do mosteiro era o barão
Diepold von Geroldseck. Ele era um homem de um caráter
completamente diferente de Conrado. Ele era moderado, sincero, piedoso
e um entusiasta promotor das ciências. Ele tinha muito prazer em
convidar homens de reputada sabedoria para virem ao mosteiro. E
justamente a erudição e a piedade de Zuínglio o haviam induzido a
oferecer-lhe o cargo de pregador da igreja do mosteiro. No silêncio
daquele local distante, o jovem reformador pôde desfrutar de
tranquilidade, de tempo abundante, das vantagens de uma grande
biblioteca, bem como da companhia de amigos sábios. A eloquência do
novo pregador e a amabilidade do administrador atraíram um grande
número de homens sábios para visitarem Einsiedeln. Ali, Zuínglio
conheceu vários dos que, posteriormente, se tornaram seus amigos mais
íntimos, entre eles: Francisco Zink, Michael Sander, João Oexlin,
Wolfgang Capito e Caspar Hedio — homens cujos nomes alcançaram
fama na história da Reforma Protestante. Com eles, Zuínglio lia
diligentemente a Palavra de Deus, os escritos dos pais da Igreja, os
antigos clássicos e os escritos de Reuchlin e Erasmo.
***
ZUÍNGLIO E A REFORMA EM EINSIEDELN
Embora Zuínglio gostasse muito de se relacionar com aqueles homens
eruditos e as conversações com eles eram seu refrigério mais agradável,
ele nunca perdeu de vista sua verdadeira obra, a Reforma. E, de acordo
com a luz que nesse tempo ele possuía, procurou promovê-la com todas
as suas forças. Zuínglio iniciou seu trabalho com o administrador. Este
lhe havia pedido uma orientação quanto ao que deveria ler. “Leia as
Sagradas Escrituras”, disse Zuínglio a Geroldseck, “pois logo vai chegar o
tempo em que os cristãos não irão mais se apoiar em São Jerônimo6 ou
em qualquer outro doutor, mas apenas na Palavra de Deus.” O
administrador seguiu o conselho do reformador e também permitiu que as
freiras do convento lessem a Bíblia no idioma popular. A grande estima
que o administrador tinha por Zuínglio logo se transformou em uma
grande afeição. Mais tarde ele o seguiu até Zurique, aonde veio a falecer
juntamente com Zuínglio, na batalha no campo de Kappel, no dia 11 de
outubro de 1531. Ao que parece, o abade Rechburg também tirou grande
proveito do ministério do novo pregador. Ele baniu, praticamente, todas
as práticas supersticiosas de seu mosteiro. Ele faleceu em 1526,
confessando que sua confiança se encontrava apenas na graça e na
misericórdia de Deus e em nada mais. As pregações vigorosas e
ardentes de Zuínglio atraíram multidões de ouvintes para a igreja do
mosteiro, causando uma profunda impressão na mente de todos. Ele
procurou reconduzir as pessoas, da adoração idólatra das imagens, para
a fé em Cristo, das invenções e tradições humanas para a pura doutrina
do evangelho. “Buscai o perdão dos vossos pecados”, ele clamava, “não
na bendita virgem, mas nos méritos e intercessão do Senhor Jesus
Cristo!”.
Aquilo que Lutero havia aprendido em sua visita a Roma, Zuínglio
aprendeu em Einsiedeln. Sua alma se indignava ao ver milhares de
peregrinos, vindos das regiões mais distantes da Europa, visitando esse
local com a intenção de comprarem o perdão dos seus pecados por meio
das ofertas que traziam para a patrona do santuário eremita. Embora
agisse contra os interesses do mosteiro, bem como dos seus próprios,
ele não hesitou nem por um instante em seguir o impulso do seu coração
e a voz de sua consciência, e levantou ousadamente sua voz contra este
abominável engano. Ele desferiu um poderoso golpe contra a própria raiz
do mal, anunciando a salvação de graça mediante a fé em Cristo, sem a
cooperação dos méritos das peregrinações, das indulgências, dos votos e
das penitências. Havia, principalmente, dois pontos que Zuínglio
procurava inculcar nas mentes dos seus ouvintes, a saber: que Deus é
toda a fonte de salvação e que Ele é o mesmo em todos os lugares. Ele
costumava dizer nas suas pregações: “Não pensem que Deus está nesta
igreja mais do que em qualquer outra parte da Sua criação. Seja aonde
for que vós vos encontreis, Deus está perto e disposto a ouvir as vossas
orações, seja nos vossos lares ou aqui em Einsiedeln. Poderíeis alcançar
a graça de Deus por meio de obras inúteis, longas peregrinações, por
ofertas e imagens, pela invocação da virgem ou dos santos? De que
servem as muitas palavras e orações, os belos capuzes, uma cabeça
bem rapada, uma túnica longa e esvoaçante ou sapatilhas bordadas com
ouro? Deus olha os nossos corações. Mas que pena! Nossos corações
estão longe de Deus”.
Ao mesmo tempo, Zuínglio pregava a doutrina da reconciliação por
meio da fé no precioso sacrifício de Cristo, uma vez por todas, oferecido
no Calvário. “De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como
se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos
reconcilieis com Deus. Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado
por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5:20-21).
***
OS EFEITOS DAS PREGAÇÕES DE ZUÍNGLIO
Ao descrever suas pregações, os admiradores de Zuínglio talvez se
deixaram levar longe demais pela admiração por este grande homem.
Contudo, segundo relatos de historiadores daquela época, os efeitos que
essas pregações produziam são uma prova do grande poder que elas
exerciam sobre as multidões de peregrinos. Essas pregações produziam
impressões difíceis de serem descritas. Admiração e indignação se
alternavam nas expressões faciais dos ouvintes enquanto Zuínglio
pregava, e assim que ele terminava, um murmúrio abafado denotava as
profundas emoções das pessoas. A santidade do local impedia uma
irrupção dos sentimentos em voz alta, porém, assim que a multidão saía
da igreja, alguns, movidos por preconceitos ou interesses pessoais, se
declaravam contra as novas doutrinas; enquanto outros, que se sentiam
rodeados por uma luz até então totalmente desconhecida, jubilavam com
entusiasmo por aquilo que tinha ouvido. “Muitos eram conduzidos ao
Senhor Jesus que, de um modo muito claro, lhes era apresentado como o
único Salvador dos perdidos. Não eram poucos os que levavam de volta
os dons e as ofertas que haviam trazido para oferecer à virgem. Muitos
peregrinos, ao retornarem para seus lares, anunciavam o que haviam
ouvido em Einsiedeln: ‘Somente Cristo é o Salvador e Ele pode salvar em
qualquer lugar’. Ao ouvirem estas palavras, muitos grupos retornavam
sem terem concluído sua peregrinação. Os adoradores de Maria
diminuíam diariamente.”7
Apesar de Zuínglio atacar de forma tão objetiva e impiedosa as
superstições das multidões que o cercavam — de modo que todo o
edifício doutrinário da igreja ameaçava ruir — chama a atenção de que,
por um longo tempo, o partido papal não duvidava de sua ortodoxia. Qual
poderia ser a razão para tal? Roma percebia muito bem que influência tal
homem poderia exercer em um país republicano como a Suíça, e seu
plano era ganhá-lo para seus objetivos. Erasmo já havia sido ganho por
meio de pensões e manifestações de honra, por que não também
Zuínglio? Além disso, a corte de Roma era sempre política o suficiente
para conceder a homens eminentes uma ampla margem em suas
doutrinas e trabalhos, desde que reconhecessem a supremacia do papa.
Por volta dessa época — 1518 — Zuínglio foi objeto de todo tipo de
bajulações por parte do papa Leão X. Entre outras coisas, o papa o
agraciou com um diploma, nomeando-o capelão da Santa Sé. Além
disso, ele recebia uma pensão anual de 50 moedas de ouro, que lhe
foram dadas por vários anos — apesar de ter se negado a recebê-las.
Por ordens do papa, o legado Pucci lhe fez brilhantes ofertas. Contudo,
Zuínglio rejeitou todas elas. Ele não queria sacrificar a verdade por nada.
Ainda assim, ele não renunciou completamente a Roma. Tanto Lutero
quanto Zuínglio demoraram em entender que a Igreja de Roma não podia
ser reformada, uma vez que se encontrava completamente corrompida
desde suas raízes até seus ramos mais altos. Eles também demoraram
em entender que as palavras de Deus para o Seu povo sempre foram:
“Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e
para que não incorras nas suas pragas” (Ap 18:4; cf. Is 1:16-17; Rm
12:9). Quando o cristão se encontra em uma posição eclesiástica errada,
a primeira coisa que ele deve fazer é, na confiança no Senhor, abandonar
a mesma e, sem dúvida, o Senhor lhe dará mais luz e direção.
***
ZUÍNGLIO SE MUDA PARA ZURIQUE
Depois de permanecer quase três anos em Einsiedeln, Zuínglio
recebeu um convite do reitor e dos cônegos* da catedral de Zurique para
tornar-se pastor e pregador da mesma. Durante os últimos anos, Zuínglio
havia se tornado conhecido de muitas pessoas de grande influência e
reputação, e o número de seus amigos aumentou consideravelmente.
Entretanto, nenhum de seus amigos lhe era mais devotado do que
Oswaldo Myconius. Esse distinguido homem era diretor da escola pública
em Zurique e era muito estimado por toda a população, pela sua
devoção, piedade, conhecimento e inteligência. Atendendo aos
insistentes pedidos desse, Zuínglio foi até Zurique para deliberar com ele
a respeito dessa questão e avaliá-la na presença do Senhor. Alguns
cônegos, temendo os efeitos do espírito inovador de um pregador tão
corajoso, se opuseram à sua indicação. Mas tanto sua aparência pessoal
como sua reputação falaram a seu favor. Ele era um homem de modos
graciosos e educados. Sua aparência era imponente, mas agradável.
Zuínglio era calmo, gentil e sociável; ele era conhecido em todo o país
por sua eloquência, seriedade e discrição. Ele foi eleito por uma grande
maioria e mudou-se para Zurique.
No primeiro dia de janeiro de 1519, com a idade de trinta e cinco anos,
Zuínglio assumiu seu novo cargo em Zurique. Durante sua estadia em
Einsiedeln, o Mestre divino havia preparado Seu servo para esse trabalho
novo e extremamente importante. Aquele que havia escolhido a
universidade de Wittenberg para o reformador saxão, escolheu a catedral
suíça de Zurique para Zuínglio. O Senhor estava utilizando todas as
coisas para o bem da Sua Igreja e para o progresso da Reforma
Protestante. A cidade de Zurique era considerada como a cabeça da
Confederação Helvética8. Nessa cidade, o reformador podia relacionar-se
com as pessoas mais inteligentes e dinâmicas de toda a Suíça. A partir
de Zurique, ele também podia influenciar os cantões ao redor e espalhar
por todos os lados a semente da verdade. O tom sério e incomum de
suas pregações atraiu grandes multidões para a igreja e causou uma
forte impressão em suas mentes. Logo depois de sua chegada, o
administrador e os cônegos da catedral fizeram questão de lembrar ao
jovem sacerdote, com toda seriedade, de que era sua santa obrigação
“ter cuidado quanto às arrecadações da catedral; exortar os fiéis, tanto do
púlpito quanto no confessionário, a pagarem seus dízimos e promessas,
demonstrando, por meio de suas ofertas, a afeição que nutriam pela
igreja”. Todavia, felizmente Zuínglio havia sido libertado do espírito dos
sacerdotes gananciosos e aplicou todas as suas forças para alcançar
outros objetivos. Ele mesmo preferia se tornar pobre se, por meio disso,
pudesse enriquecer as almas dos seus ouvintes.
***
ZUÍNGLIO E O EVANGELHO
Antes de aceitar seu novo cargo, Zuínglio havia se reservado o direito
de não ter que se limitar, em suas pregações, às leituras feitas
publicamente nem a passagens da Palavra de Deus relacionadas a
festivais religiosos ou aos temas dos domingos, conforme estabelecidos
pelos lecionários*. Ele teria plena liberdade para pregar sobre todas as
porções das Escrituras. Zuínglio entendia, com clareza, que o costume
desenvolvido pela Igreja Católica Romana de pregar ano após ano sobre
porções isoladas e sem conexão com toda a Palavra de Deus causava
uma enorme limitação na capacidade do povo em entender a verdade.
Ele disse aos cônegos da catedral: “A vida de Cristo foi escondida do
povo por muito tempo. Eu irei pregar sobre todo o Evangelho de Mateus,
capítulo por capítulo, sob a direção do Espírito Santo, sem utilizar
nenhum comentário humano; tirando a preciosa água da vida diretamente
da fonte das Santas Escrituras, procurando perscrutar suas profundezas
por meio da cuidadosa comparação das passagens e buscando entender
seu sentido com constante e fervorosa oração. Dedicarei o meu
ministério para a glória de Deus, para o louvor de Seu Filho Unigênito,
para a verdadeira salvação das almas e para a edificação delas na
verdadeira fé”. Dessa forma, Zuínglio colocou corajosamente seus pés no
caminho da Reforma, rejeitando o uso exclusivo dos fragmentos dos
Evangelhos, que constituíam os livros básicos dos pregadores papais
desde os dias do imperador Carlos Magno.
Uma linguagem tão nova e tão corajosa causou uma profunda
consternação no colegiado dos cônegos. Alguns deles exclamavam:
“Esse modo de pregar é uma inovação! Uma inovação tende a nos
conduzir a outras. E onde iremos parar com tudo isso?”. Zuínglio
respondeu: “Não se trata de uma nova maneira, antes, de uma muito
antiga. Procure lembrar-se das homilias* de São Crisóstomo sobre o
Evangelho de Mateus, e aquelas de Agostinho sobre o Evangelho de
João”. Ao contrário de Lutero, Zuínglio não chocou as mentes humanas
com respostas rudes e tempestuosas, mas conversava com os líderes da
igreja com calma e gentileza. Contudo, do púlpito, ele anunciava a alegre
mensagem da salvação no Senhor Jesus com voz poderosa e coração
transbordante, e trovejava contra os abusos da Igreja Romana e as
superstições dessa época. Ele insistia, principalmente, que era
necessário seguir, de forma imparcial e sem reservas, a Palavra de Deus
como o único padrão, norma de fé e prática. A impressão causada por
Zuínglio sobre os habitantes de Zurique foi tão grande que, em pouco
mais de um ano após sua chegada, a Câmara da cidade publicou um
edito, por meio do qual todos os pregadores e pessoas que tivessem a
obrigação de cuidar das almas eram instruídos a não ensinar nada que
não pudesse ser provado pelas Escrituras, e ignorar por completo,
mediante o silêncio, as meras doutrinas e ordenanças humanas.
À semelhança de João Batista, ele exortou todas as classes de
pessoas ao sincero arrependimento. Ele atacou corajosamente os erros e
os vícios que prevaleciam entre o povo — a preguiça, a falta de
temperança, a luxúria, a opressão dos pobres — e novamente se voltou
com grande zelo contra o mau hábito de prestar serviço militar a
governos estrangeiros. De acordo com Myconius, “no púlpito, Zuínglio
não poupava ninguém. Nem o papa, nem prelados, nem o imperador,
reis, duques, príncipes, senhores, e nem mesmo os próprios
confederados. Nunca antes se havia ouvido um homem falar com
tamanha autoridade. Toda a força e todo o prazer de seu coração
estavam em Deus. E essa era a motivação que o levava a exortar toda a
cidade de Zurique a confiar somente no Senhor”. Seu trabalho foi
acompanhado pelos mais belos e encorajadores resultados. Ao término
do seu primeiro ano, ele podia contar com pelo menos duas mil pessoas
que haviam abraçado suas pregações e professavam terem se convertido
ao Evangelho que ele anunciava. Naturalmente, precisamos deixar para
Deus o julgamento quanto à genuinidade dessas conversões, porém, em
todo caso, foi um tempo extremamente importante para os habitantes de
Zurique. O Senhor, que como Cabeça sobre todas as coisas foi dado à
Sua Igreja, estava sustentando e protegendo Seu servo de todas as
perseguições, enquanto Seu Espírito operava poderosamente nos
corações e nas consciências das pessoas.
Entrementes, o próprio reformador fazia grandes progressos no
conhecimento da verdade. Ele continuou estudando diligentemente as
Escrituras do Novo Testamento e, embora houvesse sido acusado de
querer submeter a Bíblia à sua inteligência, sabemos, dos seus próprios
escritos, que ele considerava a Palavra de Deus com grande reverência e
que a lia constantemente sob muita oração e com o fervoroso desejo de
ser conduzido e ensinado pelo Espírito Santo. Ele costumava dizer: “A
filosofia e a teologia me faziam objeções constantemente, então,
finalmente, eu disse para mim mesmo que devia deixar tudo isso de lado
e procurar os pensamentos divinos apenas em Sua Palavra. Eu pedi ao
Senhor pela Sua luz e, apesar de que eu lia apenas as Escrituras, ela
ficou mais clara para mim do que se a tivesse estudado com muitas
explicações... Quem é da opinião de que tudo que não é pertinente à
inteligência é vão, tolo e incorreto, tem uma baixa opinião do Evangelho.
O Evangelho não pode ser interpretado pela mente humana”.
Este homem fervoroso estava ativo do raiar do dia até tarde da noite.
“Ele estudava sem parar. Desde o início do dia até as dez horas da
manhã ele lia, escrevia e traduzia; ele se ocupava preferencialmente com
o hebraico. Depois do almoço ele se ocupava em aconselhar aqueles que
buscavam sua orientação. Em seguida, costumava sair para caminhar
com seus amigos e visitar seu rebanho; logo ele retomava seus estudos
na parte da tarde. Após o jantar fazia novamente uma pequena
caminhada e, voltando para casa, com frequência escrevia cartas até a
meia noite. Ele sempre trabalhava em pé e nunca permitia ser
perturbado, exceto por alguma questão muito importante.”9
***
ZUÍNGLIO E A VENDA DE INDULGÊNCIAS
No mês de agosto de 1518, a bula do papa Leão X, que ordenava a
venda de indulgências através da cristandade, também foi publicada na
Suíça. Um monge franciscano de Milão, chamado Bernardino Sansão,
recebeu o encargo do papa e cruzou os Alpes italianos acompanhado de
um grande número de pessoas. Ele realizou esse infame comércio, que
lhe havia sido confiado por Sua Santidade, com as mesmas pretensões
blasfemas e o mesmo descaramento do seu companheiro alemão, mal
afamado, João Tetzel. Naqueles dias, Zuínglio ainda era pregador em
Einsiedeln, e testificou corajosamente contra a hipocrisia, o engano e a
conduta pessoal de Sansão.
Em decorrência da oposição inesperada de Zuínglio, o infame Sansão
obteve pouco sucesso dentro do cantão de Schwyz. Então ele prosseguiu
para os cantões de Zug, Lucerna e Unterwald, onde encontrou muitos
compradores. Todavia, como os habitantes dessa região eram pessoas
muito pobres, eles não podiam oferecer mais do que umas poucas
moedas de pequeno valor por uma indulgência. Isso não servia aos
propósitos de Sansão, seu cofre demorava muito para encher. Isso o
desagradou muito e ele resolveu seguir em frente. Prosseguindo a sua
viagem, ele passou pelos glaciares de Oberland* e, tendo oferecido sua
mercadoria nas mais belas regiões da Suíça, chegou a Berna.
No início Sansão foi proibido de entrar na cidade de Berna, mas após
longas discussões conseguiu ser admitido na cidade com relutância. Ele
entrou ali acompanhado de uma esplêndida procissão, com bandeiras
ricamente adornadas, nas quais estava estampado o brasão do papa e o
brasão de Berna juntos. Ele montou sua tenda na igreja de São Vicente e
começou a promover, com grandes gritos, a venda das indulgências, que
variavam de poucos centavos até grandes somas que atingiam
quinhentos ducados*. Para os ricos dizia: “Aqui há indulgências escritas
em pergaminhos dignos, que valem uma coroa*”. Para os pobres dizia:
“Ali se encontram absolvições em papel comum, que podem ser
adquiridas por dois batz*”. O atrevimento e a insolência do
plenipotenciário* papal haviam crescido a tal ponto que não se
envergonhava de iludir os crédulos ouvintes da maneira mais infame.
De Berna, ele partiu para Baden, contudo, não pôde ficar lá por muito
tempo, visto que seu comércio foi tão ridicularizado que teve que partir
sem ter conseguido nada. Depois ele entrou na diocese do bispo de
Constança. Ali, confiando na autoridade do papa, Sansão omitiu
apresentar ao bispo a bula papal e solicitar a aprovação do bispo. Irado
pelo desrespeito para com a sua pessoa, o bispo ordenou a Zuínglio, e
aos demais clérigos da sua diocese, para que expulsassem o
comerciante de indulgências de suas igrejas. O bispo estava feliz em ter
uma boa razão para rejeitar o intruso. Ele considerava o comércio de
Sansão uma violação dos direitos episcopais e sacerdotais, visto que
suas receitas foram diminuídas consideravelmente por ele.
Em razão desta proibição, Henrique Bullinger, que era o deão rural de
Bremgarten e pai do ilustre reformador e cronista que tinha o mesmo
nome, recusou-se a receber o agente papal. Depois de uma violenta
discussão, que terminou com a excomunhão do deão por Sansão, este
prosseguiu sua viagem em direção a Zurique. Enquanto isso, Zuínglio
não estava ocioso. Vendo que o inimigo se aproximava cada vez mais,
ele pregou fervorosamente durante vários meses contra a indulgência
papal, e procurava incitar a indignação do povo contra este comércio
infame. Por meio da fé no precioso sacrifício de Cristo, ele havia
experimentado em sua própria alma quão prazeroso é se alegrar no
perdão dos seus pecados e na graça de Deus em Cristo Jesus. Assim
como aconteceu com Lutero, a sua deficiente compreensão do pleno
valor daquele sacrifício, causava nele o descobrimento de que seu estado
pecaminoso não havia mudado de maneira alguma, e isso às vezes lhe
causava inquietação e medo, mas ele achou, na graça de Jesus Cristo, a
libertação de todos os seus temores. Zuínglio disse em um dos seus
escritos: “Quando Satanás vem para me assustar clamando: ‘Não tens
feito isso ou aquilo que Deus tem ordenado’, imediatamente me consola
uma suave voz dizendo: ‘Aquilo que não podes fazer — e de fato és
totalmente incapaz — tudo isso Cristo já fez de modo completo e
perfeito’. Sim, quando meu coração é oprimido pela minha incapacidade
e pela fraqueza da minha carne, meu espírito se eleva na alegre certeza:
Cristo é a tua santificação! Cristo é a tua justiça! Cristo é a tua salvação!
Tu és nada! Não podes fazer nada! Cristo é o Alfa e o Ômega. Cristo é o
primeiro e o último. Cristo é tudo, Ele pode tudo. Todas as coisas criadas
irão te abandonar e te enganar, mas Cristo, o Santo e o Justo, irá te
receber e te justificar. Sim, essa é a verdade!”. Essa era a exclamação do
reformador iluminado pelo próprio Deus, feliz e humilde. “Sim! Cristo é
nossa justiça e a justiça de todo aquele que comparecerá justificado
diante do trono de Deus”.
Graças aos diligentes esforços de Zuínglio em proclamar a verdade, os
habitantes de Zurique, de modo geral, não estavam inclinados a abrir os
portões da cidade para esse impostor enviado pelo papa. Quando
Sansão se aproximava da cidade, uma comissão enviada pelo governo
da cidade foi ao seu encontro para lhe comunicar a determinação da
população de Zurique. Ainda assim, o astuto monge conseguiu obter a
permissão para entrar na cidade, sob a alegação de que tinha uma
mensagem de Sua Santidade que devia transmitir para a Dieta Federal
Suíça10. Porém, quando Sansão apenas falava das suas bulas, ele foi
mandado embora imediatamente, depois de ter sido obrigado a retirar a
excomunhão que havia proferido contra Bullinger. Irado, Sansão saiu da
cidade e retornou para a Itália. O dinheiro que ele havia conseguido
arrancar dos pobres suíços, mediante suas mentiras e enganos, foi
transportado em uma carroça puxada por três cavalos. Entrementes, a
Dieta Federal havia enviado ao papa um documento no qual se
queixaram violentamente sobre a infame conduta do seu legado. Depois
de dois meses o papa Leão X respondeu — em abril de 1519 — com
educação e cortesia. Sua experiência com a revolução saxônica, sem
dúvida, o havia ensinado que concessões apropriadas poderiam prevenir
outra revolução, desta vez, nos cantões suíços.
“A Dieta Helvética”, nos diz D’Aubigné, “demonstrou uma resolução
mais firme do que a Dieta Germânica. Isso aconteceu porque nem bispos
nem cardeais tinham assento na mesma. E, uma vez que o papa estava
privado do apoio desses indivíduos, ele resolveu agir de uma forma mais
indulgente para com os suíços do que havia feito com os alemães. As
indulgências, que tiveram um papel tão importante na Reforma na
Alemanha, foram de pouca importância na Reforma Suíça.”
***
A TEMPESTADE IRROMPE
O zelo de Zuínglio em atacar e expulsar o vendedor de indulgências da
diocese do bispo de Constança foi totalmente aprovado por aquele
prelado. O vigário de Constança, João Faber, era um caloroso amigo de
Zuínglio e lhe escreveu uma carta com estima e em termos amáveis,
exortando-o a prosseguir de forma resoluta no caminho que ele havia
iniciado de maneira tão auspiciosa*, e lhe prometeu o apoio total do
bispo. Encorajado por tais palavras de apoio aos seus esforços e
esperançoso que o bispo estivesse disposto a promover essa obra que
estava no seu coração, Zuínglio convidou os dois insistentemente para
que dessem suporte para a divulgação da mensagem evangélica e que
permitissem a livre pregação do Evangelho no âmbito de sua diocese.
Zuínglio disse: “Eu não tenho falhado em exortar João Faber — com toda
a reverência e humildade, em público e em privado, por meio de
conversas e cartas — a apoiar a luz do Evangelho que ele está vendo
brilhar de forma tão clara; de modo que nenhum poder humano poderá
abafá-la ou extingui-la”. Mas o reformador logo iria descobrir que uma
mudança total havia acontecido na mente do bispo e de seu vigário
desde que o vendedor de indulgências tinha partido. Zuínglio acrescenta:
“Eles, que há pouco me incentivaram com suas reiteradas exortações,
agora não me consideram digno de uma resposta; embora, inicialmente,
o vigário assegurou-me expressamente que seu bispo não poderia tolerar
por mais tempo a insolência, as injustiças e as arrogâncias do pontífice
romano”.
João Faber — que já havia sido visto em Augsburgo, associado com
Eck e Cochlaeus — depois de romper com Zuínglio, tornou-se um dos
mais pertinazes e violentos inimigos da Reforma Protestante. Zuínglio,
desde o começo do seu ministério em Zurique, tinha trabalhado
incansavelmente para instruir o povo quanto ao significado, objetivo e
caráter do Evangelho e, ao mesmo tempo, para mostrar-lhes quão
extraordinariamente importante era de deixarem-se guiar em todos os
seus deveres religiosos apenas pela Palavra da Verdade. Ele havia
compreendido o profundo significado das palavras do apóstolo: “Toda a
Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para
repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de
Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra” (2 Tm
3:16-17).
Na verdade, nada pode ser considerado uma “boa obra” se as
Escrituras Sagradas não nos fornecerem instrução para a execução da
mesma. Entretanto, não iria demorar muito para que Zuínglio percebesse
que tais opiniões e doutrinas em breve deixariam de ser aprovadas pelos
dignitários da hierarquia papal. Todavia, a graça de Deus capacitou
Zuínglio a apoiar todas suas esperanças e expectativas em um
fundamento seguro. Antonio Pucci, o legado papal, havia tentado seduzir
Zuínglio anteriormente, para que mudasse de opinião e que vacilasse em
sua determinação, mas foi tudo em vão. O reformador relata o encontro
dos dois com as seguintes palavras: “Ele se encontrou comigo quatro
vezes, e me fez muitas esplêndidas promessas, mas eu lhe disse que,
com a ajuda de Deus, iria continuar pregando o Evangelho, e que por
meio dessa pregação abalaria o poder do papado”.
No ano de 1520, Zuínglio recusou a pensão que recebia de Roma
para a compra de livros, bem como a posição de capelão da Santa Sé.
Nessa ocasião, ele disse: “Antigamente eu pensava que podia me
permitir desfrutar da generosidade do papa, enquanto pudesse manter
uma consciência pura e piedosa acerca da sua religião e suas doutrinas.
Mas depois que o conhecimento de Jesus Cristo me alcançou e cresceu
dentro de mim, rejeitei para sempre tanto ao papa quanto aos seus
presentes”.
As consequências das pregações de Zuínglio sobre a mente do povo, e
a influência de sua presença em Zurique, ficaram cada vez mais
evidentes. Várias cerimônias da Igreja Romana eram cada vez menos
observadas, e por fim caíram totalmente em desuso. O jejum da
quaresma, que sempre havia sido guardado com extremo rigor, foi
negligenciado. O povo da cidade afirmava que, como cristãos, eles
tinham a liberdade de comer carne ou não. Por fim, o senado de Zurique
ficou alarmado por causa desses procedimentos e por causa das queixas
de alguns sacerdotes. Vários dos mais fervorosos seguidores da nova
doutrina foram lançados na prisão. Quando o bispo de Constança ouviu
sobre essas desordens, promulgou imediatamente um edito contra as
inovações e seus autores, e exortou o povo, por meio de seus
mensageiros, a permanecerem firmes aos ensinamentos da Igreja
Romana, pelo menos até que um concílio geral da igreja tenha decidido
acerca dessas questões pendentes. Essa maneira de proceder era
habitual da igreja, pois assim mantinha as condições como lhe
interessava. A ordem do senado — que os monges e sacerdotes deviam
pregar somente a pura Palavra de Deus — tornou a confusão ainda
maior. A maioria desses servos infiéis nunca havia visto a Bíblia, quanto
menos, lido. Por isso, as diversas ordens monásticas e os sacerdotes se
opuseram violentamente contra esta ordem. A sua ira se dirigia
principalmente contra o ousado pregador da catedral. Numerosas
conspirações foram forjadas contra Zuínglio, de modo que às vezes foi
necessário proteger a ele e aos seus amigos das ciladas.
A tempestade se aproximava de todos os lados, e Zuínglio sabia muito
bem contra quem a fúria da mesma seria primeiramente direcionada. Mas
tudo isso apenas aumentava seu zelo e o levava a escrever tratados em
defesa da verdade e de seus amigos, os quais ele mandou distribuir em
todos os cantões suíços. Os princípios da Reforma Protestante agora
faziam tanto progresso através de toda a Suíça que Erasmo, em uma
carta que ele escreveu em 1522 ao presidente da corte de Mechelen,
declarou que “o espírito da Reforma aumentou tanto na Confederação
Helvética, que já existem mais de duzentas mil pessoas que abominam a
Sé Romana e que são fervorosos seguidores de Lutero”.

1 D´Aubigné, vol. 2, p. 382.


2 Abraham Ruchat, of Lausanne, como citado por Scott, vol. 2, p. 328; Gardner´s
Faiths of the World, vol. 2, p. 19.
3 D’Aubigné, vol. 2, p. 399; Waddington, vol. 2, p. 268; The Faiths of the World, vol.
2, p. 20.
4 N. do E.: O termo “pastor” refere-se a um título eclesiástico dado pelo homem ao
líder de uma determinada “igreja”. Não corresponde em absoluto ao dom bíblico
de pastor, que é uma pessoa que outorga cuidados pastorais, geralmente de
modo particular e individual.
5 Scott, vol. 2, p. 344; D’Aubigné, vol. 2, p. 426.
6 N. do T.: São Jerônimo fez uma tradução da Bíblia em latim, que ficou conhecida
como “Vulgata”. Essa versão está em uso até os dias de hoje, principalmente em
celebrações feitas exclusivamente em latim. Durante séculos, a Igreja Católica
Romana usou a Vulgata Latina para traduzir a Bíblia para os idiomas de diversos
povos, inclusive para a língua portuguesa. Nos dias de hoje, as novas traduções
usam os textos originais do hebraico, aramaico e grego, mas ainda existem
muitas versões que continuam baseadas na Vulgata Latina de São Jerônimo.
7 Merle D’Aubigné, vol. 2, p. 303.
8 A Confederação Helvética foi a precursora do moderno país chamado Suíça.
9 Ver D´Aubigné, vol. 2, p. 450. Scott, vol. 2, p. 355. Universal History, vol. 7, p. 73.
10 A Dieta Federal, como é conhecida a Dieta da Confederação Suíça, até 1848 era
a assembleia dos deputados dos cantões suíços.

Capítulo 41
OS LÍDERES DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA

No capítulo anterior estivemos ocupados com o início do trabalho bem-


sucedido de Zuínglio e do esperançoso começo da Reforma em três
cantões: Glarus, Schwyz e Zurique. Agora deixaremos o grande
reformador, por um momento, para nos familiarizar com alguns daqueles
piedosos e devotados homens que Deus havia levantado ao mesmo
tempo e que os preparava para a mesma obra gloriosa da Sua graça e
poder.
Alguns dos nomes mais significativos já encontramos em ligação com a
história da Reforma Protestante na Alemanha. O leitor irá se lembrar, de
maneira especial, de um homem que teve uma participação destacada
em Marburgo nas discussões acerca da Santa Ceia. Estamos falando de
João Oekolampad, professor na universidade de Basileia. Seu verdadeiro
nome era João Heussgen, que, segundo o costume daquela época,
traduziu seu sobrenome para o grego: Oekolampad. Ele nasceu no ano
de 1482 em Weinsberg, na região da Francônia, aproximadamente um
ano antes de Zuínglio e Lutero. Ele era descendente de uma respeitável
família que havia se mudado da Basileia. Seu pai havia determinado que
o filho seguiria a carreira de administrador ou de advogado, mas sua
piedosa mãe desejava consagrá-lo ao serviço de Deus e de Sua igreja.
Foi com esse desejo que ela criou seu filho, da mesma maneira que
Mônica fez com Agostinho. João era uma pessoa de temperamento
manso, pacífico e de excelente caráter, com uma mente brilhante. Desde
a mais tenra idade se distinguiu dos seus contemporâneos por causa dos
rápidos progressos que fazia em todas as questões da ciência. Ele se
preparou em Heilbronn e então, atendendo primeiramente ao desejo de
seu pai, estudou Direito em Bolonha. Todavia, visto que esses estudos
eram contrários à sua própria inclinação e ao desejo manifesto de sua
mãe, seu pai finalmente concordou em que deixasse novamente Bolonha
e estudasse teologia em Heidelberg.
Em concordância com o desejo de seus pais, ele iniciou seu ministério
como pregador em sua cidade natal. Mas, pouco tempo depois, ele partiu
para Basileia. Ele havia sido escolhido para ser o pregador na principal
igreja daquela cidade, e dois anos mais tarde foi distinguido pela
universidade local com o título de Doutor em Teologia. Ele era um cristão
sincero e pregava acerca de Cristo de forma séria, intensa e eloquente.
Era grandemente amado e admirado por seus ouvintes, não apenas por
sua eloquência, mas também por sua humildade, mansidão e piedade.
Ao mesmo tempo, ele dominava com maestria as três línguas
relacionadas à religião — hebraico, grego e latim — a ponto de chamar a
atenção de Erasmo de Roterdã. Naqueles dias, Basileia era o grande
centro das ciências e uma capital da imprensa de livros. “Naqueles dias
Erasmo estava ocupado com a preparação da primeira edição de seu
Novo Testamento em grego, e encontrou ajuda inesperada na pessoa de
Oekolampad, que foi de grande utilidade na comparação das numerosas
citações do Antigo Testamento, que são encontradas no Novo
Testamento, com o original hebraico.” Oekolampad, por sua parte, se
sentiu atraído pelo famoso sábio; a inteligência perspicaz e a profunda
erudição de Roterdã o enchiam de entusiasmo e admiração. Oekolampad
provavelmente teria aceitado as ideias de Erasmo, que desejava apenas
uma reforma parcial e superficial da Igreja Romana — o que teria
causado grande dano à sua alma — mas o Senhor, em Sua bondade e
providência, o levou por um tempo para longe de Erasmo. Ele retornou
para o silêncio e a quietude da sua terra natal. Erasmo, ao que parece,
também tinha grande estima pelo jovem pregador. Foi com as seguintes
palavras que ele reconheceu o importante serviço que Oekolampad lhe
havia prestado: “Quanto a essa questão, eu recebi uma grande ajuda e
apoio desse homem, que não é distinguido apenas por causa de sua
piedade, mas também pelo seu conhecimento das três línguas, que são
indispensáveis para um verdadeiro teólogo. Estou me referindo a João
Oekolampad, pois eu mesmo não tenho conhecimento suficiente do
hebraico para estar em condições de fazer qualquer pronunciamento
acerca dessas passagens (a saber, as citações do Antigo Testamento)”.
No final do ano 1518 Oekolampad mudou-se para Augsburgo, depois
de ter recebido um convite vindo da parte dos cônegos da catedral para
tornar-se pregador na mesma. Ali ele teve a oportunidade de pregar de
Cristo para um grande número de pessoas, mas, impulsionado por uma
inquietude interior, ele logo renunciou àquela posição. Apesar de ser um
cristão verdadeiro, Oekolampad ainda não conhecia aquela paz
inabalável que a compreensão acerca da completa obra de Cristo
concede para a alma. É verdade que havia tempos nos quais ele era feliz
e tinha certeza da sua salvação, mas então a inquietude e as dúvidas
torturantes enchiam sua alma novamente. Somente uma compreensão
clara acerca da perfeição da obra de Cristo dá descanso e constância ao
coração. Podemos aplicar isso até mesmo aos acontecimentos comuns
desta vida. Se verdadeiramente conhecemos a paz com Deus — feita por
meio do sangue da cruz, pela eternidade, a qual nunca mais pode ser
perturbada — então estamos em condições de contemplar as coisas ao
nosso redor com mais calma, avaliá-las na presença de Deus e na luz
infalível que manifesta a natureza e o valor de tudo. O salmista disse:
“Tenho posto o SENHOR continuamente diante de mim”, e quais são as
consequências disso? “Por isso que ele está à minha mão direita, nunca
vacilarei” (Sl 16:8). Essas são as consequências infalíveis de termos o
Senhor sempre diante de nós como objeto da nossa atenção. Conforme
diz o salmista, o Senhor está à nossa direita, isto é, um lugar de força, de
onde procede a estabilidade da mente e a alegria do coração.
Mas, como muitos outros, Oekolampad ainda não havia abandonado o
sistema corrupto dentro do qual se encontrava. O que ele desejava não
era uma profunda reforma da Igreja, mas sim uma purificação do
catolicismo — ele ainda não havia aprendido que é necessário abandonar
o mal antes de poder fazer o bem. Como toda alma sincera que procura
remendar uma vestimenta velha em vez de vestir uma nova, ele também
teve que experimentar os mais amargos desapontamentos até que,
finalmente, ele começou a perder as esperanças do cumprimento dos
seus desejos. Então ele decidiu se retirar para um mosteiro, para ali, em
silenciosa reclusão, passar o resto dos seus dias em oração e trabalho.
Para isso ele escolheu o mosteiro de Santa Brígida, nas proximidades de
Augsburgo, que era famoso por causa da piedade e erudição dos que ali
residiam.
Ele permaneceu naquele mosteiro por dois anos. Para sua educação
foi necessário que ele, assim como Lutero e Zuínglio, conhecesse a vida
monástica, o ponto culminante do sistema romano. No final do mês de
fevereiro de 1522 ele deixou sua silenciosa cela, visto que sua vida
parecia correr perigo devido às perseguições do partido papal.
Oekolampad havia recebido um convite do famoso cavaleiro Franz von
Sickingen, assim ele foi à Ebernburg, um castelo nas proximidades de
Kreuznach, que era um lugar de refúgio de muitos homens sábios
daqueles tempos. Ali foi recebido com muita amabilidade; mas ele não
permaneceu por muito tempo. Já em novembro do mesmo ano ele deixou
o castelo do hospitaleiro cavaleiro e retornou para Basileia. Nesta cidade,
que já havia sido cenário dos seus trabalhos, ele permaneceu até o fim
da sua vida, e trabalhou com grande seriedade e zelo na abençoada obra
da Reforma Protestante.
Leo Jud, contemporâneo e amigo de Oekolampad, é descrito pelos
historiadores como um homem de baixa estatura, mas com uma mente
poderosa. Ele se distinguia por um devotado amor pelos pobres e um
zelo fervoroso contra todas as falsas doutrinas. De fato, se dizia que
todas as coisas que constituem um homem bom não apenas podiam ser
encontradas nele, mas que eram abundantes em sua vida. Ele nasceu no
ano de 1482, e descendia de uma família de certo destaque, que era
originária da região da Alsácia. Seu pai era pastor. Depois de estudar por
um tempo em Sélestat, em 1505 mudou-se para a Basileia, e ali,
juntamente com Zuínglio, estudou com o excelente mestre Thomas
Wyttenbach. À semelhança de Oekolampad, ele começou suas
atividades como pregador na sua cidade natal, mas assim como este,
logo renunciou ao seu cargo pastoral e retornou para Basileia. Depois de
ter pregado por alguns anos na igreja de São Teodoro, ele sucedeu a
Zuínglio em Einsiedeln, no início de 1519. Dali mudou-se para Zurique,
em 1523, para ocupar a posição de pastor na igreja de São Pedro. A
partir desse momento, ele se tornou verdadeiro companheiro de jugo de
Zuínglio na obra da Reforma Protestante (cf. Fp 4:3). Além de ser um
fervoroso e eloquente pregador do evangelho, Leo Jud era um estudante
aplicado dos escritos de Reuchlin, Erasmo e Lutero. Ele traduziu, para a
língua alemã, uma paráfrase* do Novo Testamento de Erasmo. Na época,
essa tradução foi considerada de grande importância, já que existiam
poucas obras de exposição das Escrituras em circulação na língua
comum do povo. Como profundo conhecedor da língua hebraica, ele
também forneceu várias traduções valiosas de diversas partes da Palavra
de Deus, tanto para o alemão quanto para a língua latina.
Conrad Kirsner, ou Pelicano, também era nativo da Alsácia, e nasceu
no ano de 1478. Tornou-se muito famoso pelo extenso conhecimento que
tinha do hebraico e de outras literaturas orientais. Ele usou seu
conhecimento para ilustrar as verdades divinas encontradas nas
Escrituras. Mesmo contra a vontade de muitos de seus amigos, ele
entrou para a vida monástica com a idade de dezesseis anos. Quando
tinha vinte e quatro anos seu conhecimento e vida piedosa o
recomendaram para assumir o ofício de professor de teologia na cidade
de Basileia. Dois anos depois, ele recebeu o grau de Doutor em
Divindade por meio de uma bula emitida pelo próprio papa. Estando em
uma viagem na Itália, onde deveria receber honras ainda mais elevadas,
ele adoeceu chegando a Milão. Assim que a sua saúde se restabeleceu,
Conrad retornou para Basileia. Ali, ele recebeu do bispo local, a
incumbência de compilar os pontos mais importantes da doutrina cristã,
com base nas Sagradas Escrituras. Sua fama e influência aumentavam
rapidamente, e ele foi coberto de honras; mas, ao mesmo tempo,
começava a se preparar uma mudança grande e benéfica em seu interior.
Por volta desse tempo, os escritos de Lutero tornaram-se cada vez mais
conhecidos. As noventa e cinco teses que o corajoso monge havia
afixado na porta da catedral de Wittenberg chegaram às mãos de
Pelicano. Ele as recebeu com alegria, já que a luz da verdade também
havia lançado seus raios na sua alma. O comércio de indulgências, a
doutrina do purgatório e a supremacia do papa já o haviam escandalizado
há muito tempo. Ele aguardava os seguintes escritos do monge de
Wittenberg com ansiedade. A verdade, que ele recebia avidamente,
estava libertando-o gradualmente das obras e dos preceitos humanos.
Ele abdicou de seus votos monásticos e, por amor à verdade, renunciou
com prazer às brilhantes perspectivas de promoção dentro da Igreja
Católica. No ano de 1526 se mudou para Zurique e se esforçou
diligentemente para espalhar a semente da verdade, pura e divina, até a
sua morte, em 1556.
Wolfgang Fabrício Capito era filho de um senador da Alsácia. Sua
mãe pertencia a uma família da nobreza. Ele nasceu na cidade de
Haguenau, no ano de 1478. Dessa maneira, a pequena província da
Alsácia tem a honra de ser o local do nascimento de três dos mais
distintos e zelosos reformadores. Desde a sua juventude, Capito tinha
uma inclinação para o clericalismo, contudo, seu pai, que aborrecia os
clérigos daqueles dias por causa da sua ignorância e imoralidade,
determinou que ele estudasse medicina. De fato, ele estudou, de forma
sucessiva, física, teologia, lei canônica; e adquiriu o título de Doutor em
cada uma dessas áreas. Todavia, depois da morte de seu pai, ele se
lançou totalmente sobre os estudos eclesiásticos, o objeto original de sua
escolha.
Sua carreira pode ser apresentada de modo breve. Ele foi professor de
filosofia, por um curto período de tempo, na cidade de Friburgo. Depois
se tornou pregador em Speyer, por três anos. Quando fez uma visita a
Heidelberg, ele conheceu Oekolampad e tornaram-se muito amigos. Essa
amizade foi interrompida apenas com a morte de Oekolampad. Em 1515,
ele se mudou para Basileia. Ali, a convite do senado local, ele assumiu
como ministro titular da catedral da cidade. Acerca dele, Erasmo fala da
seguinte maneira: “Um teólogo profundo, um homem de grandes
habilidades nas três línguas e de uma vida de devoção e santidade
irrepreensíveis”. Logo após chegar a Basileia, Conrad persuadiu seu
amigo Oekolampad a se unir a ele. A primeira luz do alvorecer da
Reforma na Basileia começara a brilhar. Esses dois dedicados e fiéis
homens trabalharam com diligência incansável a favor do Evangelho e na
pregação da Palavra de Deus. Semente muita boa foi semeada, que, sob
a graça de Deus, nasceu e produziu maravilhosos frutos.
Durante cinco anos (até 1520) Capito trabalhou de forma abençoada
na cidade de Basileia. Diante de um auditório sempre numeroso, ele
explicava as Escrituras, especialmente o Evangelho de Mateus. Ele
mesmo fala sobre a crescente benção que descansava sobre seu
trabalho: “Aqui, a situação progride constantemente. Os teólogos e os
monges estão ao nosso favor. Grandes multidões assistem minhas
preleções sobre o Evangelho de Mateus. Entretanto, existem algumas
pessoas que proferem terríveis ameaças contra Lutero, mas a doutrina já
se arraigou demais para que possa ser arrancada pela violência. Alguns
me acusam de estar favorecendo o luteranismo, mas eu procuro ocultar
dessas pessoas, cuidadosamente, minhas inclinações”. Essa condição
tranquila não durou por muito tempo; Capito foi acusado de praticar a
mesma heresia de Lutero. Os sacerdotes e monges conspiraram contra
ele. Mas, naquele mesmo tempo, ele foi convidado por Alberto, arcebispo
de Mainz, para ocupar a posição de chanceler, o que ele aceitou
prontamente, deixando Basileia para trás. Quando essa notícia chegou
ao conhecimento do povo, toda a cidade foi tomada de agitação. A ira
generalizada se voltou contra os sacerdotes e monges, pois todos sabiam
que as suas perseguições haviam expulsado o amado mestre da
Basileia.
A reputação da grande erudição e piedade de Capito se elevou tanto,
que o papa Leão X lhe conferiu, espontaneamente, o título de reitor; o
imperador Carlos V concedeu-lhe um título de nobreza; e Alberto, um dos
primeiros príncipes do Império Germânico, o indicou como conselheiro
eclesiástico e chanceler. Todavia, todas essas altas posições e honrarias
não correspondiam aos desejos e inclinações de Capito, embora nesse
tempo ele ainda compreendesse pouco sobre a grande obra para a qual
o Senhor o queria preparar. Gradualmente, seus olhos foram se abrindo
para conhecer a verdade. A missa católica tornou-se ofensiva à sua
consciência, e ele se recusava a continuar celebrando a mesma. Depois
de passar quase três anos na corte do arcebispo, Capito renunciou e
uniu-se a Martin Bucer em Estrasburgo. Ali ele esteve ativo, como um
humilde servo do Evangelho, até a sua morte, no ano de 1541. Essa era
a obra na qual a sua alma se deleitava. Ele começou a insistir na urgente
necessidade de uma Reforma e se empenhou com grande vigor para que
isso se realizasse, dependendo apenas e completamente do Deus vivo.
Capito e Pelicano, já em 1512, tinham o pensamento unânime de que a
Ceia do Senhor era um memorial ou uma lembrança do sacrifício de
Cristo. Muito tempo antes que essa doutrina fosse anunciada
publicamente pelos reformadores suíços, Deus já havia dado luz a estes
dois homens acerca disso.
Caspar Hedio nasceu em Ettlingen, na região de Baden. Ele foi
educado em Basileia, recebendo também o diploma na universidade
local. Trabalhou por um longo período a favor do Evangelho, com muito
sucesso; primeiramente em Mainz e em seguida em Estrasburgo.
Quando Capito deixou Basileia, Hedio foi escolhido como seu sucessor.
O partido papal se opôs à sua indicação. Hedio contra-argumentava com
as seguintes palavras: “A verdade dói e não é aconselhável ferir ouvidos
sensíveis através da pregação. Mas isso pouco importa. Nada irá me
fazer desviar do reto caminho”. Os monges redobraram seus esforços
vociferando: “Ele é discípulo de Capito!”. A agitação generalizada e os
distúrbios aumentavam diariamente na cidade. Naqueles dias, Hedio
escreveu a Zuínglio: “Eu me sinto sozinho tendo que combater, na minha
fraqueza, contra esses monstros pestilentos. O conhecimento e o
cristianismo encontram-se agora entre o martelo e a bigorna. Lutero
acaba de ser condenado pelas universidades de Lovaina e Colônia. Se
alguma vez a Igreja esteve em grande perigo iminente, esse é o
momento”. Ao que tudo indica, algum tempo depois dessas agitações
Hedio se mudou para Estrasburgo, onde podia continuar seu trabalho
sem ser perturbado. Ele era um homem de modos recatados e de
temperamento moderado.
Bertoldo Haller foi o reformador de Berna. Ele nasceu em Aldingen, na
região de Württemberg, por volta do ano 1492. Ele estudou em
Pforzheim; seu professor era Simmler e Melanchthon foi seu
companheiro de classe. Os habitantes de Berna, que sempre haviam sido
hostis às novas doutrinas e que haviam se irritado com o povo de
Zurique, pelo fato deste ter protegido o que eles chamavam de
Luteranismo, começaram a deixar de lado seus preconceitos através das
pregações gentis, mas realmente evangélicas de Bertoldo Haller. No ano
1520 ele foi nomeado cônego e pregador da catedral de Berna. Ele teve
um vigoroso apoio para seu trabalho da parte de um monge franciscano,
Sebastian Meyer que, de um fervoroso seguidor do papa havia se
tornado um pregador igualmente fervoroso do Evangelho da graça de
Deus. Haller era um homem eloquente e possuía conhecimentos
profundos. Suas pregações impressionavam grandemente os cidadãos
de Berna. Muitos se voltaram para essa nova doutrina, porém outros se
encheram de ira e raiva contra o corajoso pregador. Uma profunda
agitação se apoderou de todos os ânimos. A inquietação crescia
diariamente. De ambos os lados as disputas se acirraram de tal modo
que, por fim, o senado interveio e expulsou a vários líderes de ambos os
partidos da cidade.
Haller, tímido e temeroso por natureza, se voltou para Zuínglio pedindo
conselho e compartilhando com ele todas as suas dificuldades e
preocupações. Zuínglio era o homem apropriado para encorajá-lo. Haller
lhe escreveu: “Minha alma está sobrecarregada. Eu não posso suportar
mais um tratamento tão injusto. Estou determinado a deixar meu púlpito e
mudar para Basileia, para me dedicar completamente aos estudos das
Sagradas Escrituras, em conjunto com Wyttenbach”. “Meu caro amigo”,
respondeu-lhe Zuínglio, “eu também sinto que o desencorajamento quer
apoderar-se de mim quando me vejo exposto a tais ataques injustos. Mas
Cristo desperta minha consciência através do poderoso estímulo de Suas
palavras de advertência e promessas. Eu me sinto alarmado quando O
ouço dizer: ‘Mas qualquer que me negar diante dos homens, eu o negarei
também diante de meu Pai, que está nos céus’ (Mt 10:33). Então o
Senhor restaura a minha tranquilidade e me consola novamente por meio
da Sua promessa: ‘Portanto, qualquer que me confessar diante dos
homens, eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus’ (Mt
10:32). Meu caro Bertoldo, tenha coragem! Nossos nomes estão escritos
com letras indeléveis nos anais dos cidadãos celestiais. Eu estou pronto
para morrer por Cristo. Meu desejo é que esses selvagens filhotes de
urso1 possam dar ouvidos à doutrina de Jesus Cristo, e sejam
domesticados. Mas precisas realizar esse trabalho com grande
mansidão, para que eles não se voltem furiosos contra ti e te
despedacem.” O desânimo de Bertoldo desapareceu após tão vigoroso
encorajamento. A chama que ardia tão brilhante no peito de Zuínglio
também acendeu o ânimo de Haller. A partir daí, ele pregou com
crescente poder e incansável zelo e, pela graça de Deus, se tornou o
abençoado instrumento que devolveu o puro Evangelho à República de
Berna, de onde havia sido exilado por tanto tempo.
Oswaldo Myconius — deve ser distinguido de Frederico Myconius, o
discípulo de Lutero — nasceu em Lucerna por volta de 1488. Ele estudou
em Basileia, onde conheceu muitos homens estudiosos que faziam parte
do círculo de Erasmo; mas, especialmente, também fazia parte daquele
grupo de homens que se reunia ao redor de Zuínglio em Zurique. Ele foi
eleito diretor da escola pública em Basileia, depois ocupou o mesmo
cargo em Zurique e, por fim, em sua cidade natal. Em decorrência do
espírito guerreiro que dominava o cantão de Lucerna, o pregador do
Evangelho, que ousava condenar o mau hábito de prestar serviço militar
aos países estrangeiros, era instantaneamente confrontado com a mais
violenta e determinada oposição. “Ele é um luterano!”, o povo clamava,
“Lutero precisa ser queimado, e o diretor da escola pública com ele!” Ele
foi convocado para comparecer diante das autoridades locais, sendo
proibido de ler as obras de Lutero para seus alunos e até mesmo de
mencionar seu nome diante deles. Sua resposta ao Concelho foi: “Que
necessidade qualquer pessoa teria de apresentar Lutero quando
possuímos os Evangelhos e os escritos do Novo Testamento, dos quais
podemos aprender a verdade divina?”. Entretanto, seu espírito gentil por
natureza foi ferido, e ele se sentiu deprimido pelas hostilidades dos seus
opositores. “Todo mundo está contra mim!”, ele exclamou, “Me sinto
assaltado por numerosas tempestades. Para que lado eu devo seguir ou
como escaparei de todas elas? Se Cristo não estivesse comigo, já teria
sucumbido a esses ataques há muito tempo.” No ano 1523 ele foi expulso
de Lucerna, e depois de muitas mudanças chegou à Basileia, onde foi
eleito como sucessor de Oekolampad, vindo a ocupar tanto sua cátedra*
de mestre quanto seu púlpito. Myconius permaneceu nessas posições até
sua morte, em 1552. Ele trabalhou com grande empenho para disseminar
a verdade, e seus serviços para a causa da Reforma Protestante foram
grandes e valiosos.
Joaquim Vadian, ou Vadianus, era um leigo distinto. Nasceu em São
Galo, onde foi eleito oito vezes para o senado. Ele era um homem muito
culto e educado, e um entusiasta devoto e promotor das ciências. Já
desde muito cedo Joaquim se ocupou com a grande questão da
restauração de um cristianismo puro e de acordo com as Escrituras. Sob
a graciosa direção de Deus, e com grande sabedoria e prudência, ele
promoveu a causa da Reforma. Por mais de uma vez ele presidiu
importantes debates públicos, que foram de grande influência e benção
para o bom progresso da obra da Reforma na Suíça.
Tomás e André Blaurer procediam de uma família nobre de
Constança. Desde cedo, ambos dedicaram suas forças para a causa da
Reforma Protestante. André é especialmente conhecido como o
reformador de sua cidade natal. A cidade de Constança, que havia
alcançado grande fama na história devido às perseguições papais e à
firmeza e perseverança cristãs, também foi favorecida com outras duas
nobres testemunhas da verdade, Sebastian Hofmeister e João Wauner.
Estes fiéis homens testemunharam e sofreram, com grande constância e
firmeza, pela Reforma da Igreja.2
***
REFLEXÕES ACERCA DO RAIAR DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA
Quem poderia não reconhecer a poderosa operação da graça divina no
despertar, quase simultâneo, de tantas nobres testemunhas a favor de
Cristo e do Seu Evangelho? Quem não se prostraria em adoração e
exaltaria ao nosso grande Deus pela Sua maravilhosa condução? Tantos
homens diferentes em diversos lugares, praticamente ao mesmo tempo
— como se estivessem combinados — começaram a estudar as mesmas
verdades e a divulgá-las, impulsionados pela mesma motivação,
animados pelos mesmos desejos, embora, pelo menos inicialmente, nem
sequer se conhecessem. Notemos bem que este grande movimento se
desenvolveu totalmente independente daquele que estava acontecendo
na Alemanha. Somente pouco tempo antes da Dieta de Worms, o nome e
os escritos de Lutero começaram a chegar a outros países.
A maioria dos homens, cujos nomes citamos anteriormente, tinha um
excelente caráter e possuía grandes conhecimentos e habilidades. Todos
eles tinham as mais favoráveis perspectivas para serem promovidos a
posições honrosas dentro da Igreja Católica. Porém, eles sacrificaram
tudo isso voluntariamente, deixando tudo de lado para poder se
consagrar completamente ao Senhor Jesus e ao serviço do Seu
Evangelho. E Deus — que nunca se esquece de honrar aqueles que
honram Seu Filho (cf. Hb 6:10) — aceitou o sacrifício voluntário e utilizou
os talentos e o conhecimento desses homens para o cumprimento de
Sua grande obra.
Deus fez com que o peso moral e intelectual desses homens fosse
sentido pelos seus mais amargos e preconceituosos inimigos. Aqui
podemos reafirmar aquilo que o salmista diz: “O Senhor deu a palavra;
grande era o exército dos que anunciavam as boas novas” (Sl 68:11). É
realmente impressionante que esses eminentes homens agiam como
verdadeiros irmãos, vivendo juntos em união. Um laço de amizade firme e
sincero rodeou a todos até a morte.
O coração do crente jubila de alegria quando vê que a mão e o poder
de Deus estão tão evidentemente ativos a favor da glorificação de Seu
Filho, e para a emancipação* de Sua Igreja da escravidão do papado.
Não existe nada mais maravilhoso nesse mundo que, quando o Espírito
de Deus age, a verdade triunfa. Quando olhamos para trás, para aqueles
tempos conturbados, o que vemos? No princípio eram uns poucos
homens, apoiados apenas no poder da verdade, que se esforçaram para
mudar totalmente as opiniões religiosas, os sentimentos e os costumes
de seus contemporâneos. A veneração dos seres humanos pelas
tradições, o amor pela religião de seus ancestrais e o interesse por
diversas coisas, se levantou contra eles. Os reis da terra e seus
exércitos, o papa e seus emissários se uniram para suprimirem as novas
doutrinas e para silenciarem, pela morte, os que traziam essas doutrinas.
Porém todos os esforços foram inúteis; serviram apenas para purificar as
motivações dos reformadores e incentivar seu zelo. Aos olhos naturais,
os obstáculos pareciam invencíveis. Entretanto, a causa da verdade
prevalece — todo obstáculo é vencido sem nenhum outro meio visível,
apenas a pregação da Palavra de Deus e as orações.
Quanto mais avançarmos em nossa história, mais veremos isso
confirmado. Nações inteiras obedeceram à voz dos reformadores,
abandonaram o culto realizado pelos seus pais, destruíram os ídolos e
lançaram por terra os rituais praticados por numerosas gerações. Aquilo
que, num primeiro momento parecia ser apenas uma disputa que
interessava aos teólogos, acabou produzindo uma grande revolução
moral, cuja influência se estendeu sobre todo o mundo civilizado.3
***
O PROGRESSO DA REFORMA PROTESTANTE EM ZURIQUE
1522 D.C.
Foi no decorrer do ano 1520 — como já temos observado — que as
autoridades civis de Zurique intervieram pela primeira vez contra a obra
da Reforma Protestante. Os efeitos produzidos pelas pregações de
Zuínglio sobre as classes média e baixa da população começaram a se
evidenciar cada vez mais naqueles dias. Além da disputa relativa à
Quaresma, que foi encaminhada para ser discutida diante do senado,
Zuínglio chamava a atenção dos cidadãos de Zurique para uma questão
importante, a saber, a terrível imoralidade que prevalecia entre o clero
devido ao celibato. Em uma carta particular enviada ao bispo, Zuínglio
pedia que este não promulgasse nenhum edito que fosse injurioso ao
Evangelho, que não continuasse tolerando as práticas de fornicação e
que não obrigasse os sacerdotes ao celibato. Por todas as partes era
permitido, em troca do pagamento de uma pequena soma como
penalidade, que os sacerdotes mantivessem prostitutas, e em alguns
cantões eles eram até incentivados para tal. Mas em vez de dar ouvidos
às repreensões tão necessárias e civilizadas vindas da parte do
reformador de Zurique, o bispo começou a perseguir vários membros do
clero acerca dos quais se sabia que haviam abraçado as novas doutrinas.
Eles foram chamados de luteranos heréticos, e acusados de divulgar
opiniões que eram hostis à Sé romana. Até esse momento, os
reformadores suíços ainda não haviam sido confrontados com uma
oposição pública e sistemática. Mas a partir de agora, a Igreja Romana
passou a implorar por uma intervenção do Estado para impedir o
progresso do movimento e castigar os odiados inovadores.
Mas, como sempre, sob a boa providência de Deus, a oposição e a
perseguição que se levantava em vários lugares serviu apenas para
aprofundar e expandir a obra. Todas as controvérsias e disputas públicas
foram usadas na Suíça, primeiramente, para promover a expansão da
Reforma Protestante. O vento da perseguição espalhou a boa semente
para todos os lados e fez com que se arraigasse em todo o país. Os
sacerdotes, que se viram ameaçados em seus domínios e temiam pelas
suas vidas abastadas, se voltaram com todos os meios contra a nova
doutrina. Mas foi justamente por meio desses ataques que a verdade
ganhou mais e mais força, e se tornou conhecida por todas as partes.
D’Aubigné escreve: “Sem esses ataques, talvez a verdade tivesse ficado
oculta, somente algumas poucas almas fiéis a teriam conhecido; porém
Deus velava para que ela fosse publicada ao mundo. A oposição lhe
abriu novas portas, lançou-a sobre um novo caminho e dirigiu os olhares
de todo o povo para ela. Assim, muitas vezes, uma rajada de vento
espalha para longe a semente que, talvez de outro modo, teria
permanecido ociosa em um lugar. A árvore que estava destinada a
abrigar o povo da Suíça havia sido plantada em seus vales, porém, os
temporais eram necessários para fortalecer suas raízes e estender seus
ramos. Os partidários do papado, vendo que o fogo queimava em
Zurique, correram apressadamente para extingui-lo. Mas tudo o que eles
conseguiram foi que o fogo se expandisse mais”.4
***
OS MONGES CONSPIRAM CONTRA ZUÍNGLIO
No ano 1522, as novas doutrinas haviam progredido de tal maneira em
Zurique causando não apenas a ira do bispo, mas também consideráveis
preocupações ao senado. As divisões e confusões que predominavam já
há algum tempo na cidade, estavam, evidentemente, aumentando. Eram
principalmente os monges, encorajados por seus superiores, que faziam
questão de instigar os ânimos do povo contra Zuínglio e seus
companheiros. O poder das trevas fazia de tudo para extinguir a tão
temida luz que ameaçava manifestar suas obras. Em Zurique havia três
Ordens de monges — dominicanos, franciscanos e agostinianos.
Estes três grupos se aliaram contra Zuínglio, o inimigo comum, e o
acusaram diante dos magistrados, alegando que ele “atacava
incessantemente suas Ordens e que, em seus discursos, os expunha ao
desprezo e à ridicularização do povo”. Eles pediram ao senado que
silenciasse o corajoso pregador e que abolissem o edito promulgado em
1520 ou que, pelo menos, lhes fosse permitido derivar seus sermões dos
escritos de Tomás de Aquino e João Duns Escoto. As autoridades não
apenas recusaram esses pedidos, mas renovaram a ordem — “que nada
deveria ser anunciado desde os púlpitos que não pudesse ser claramente
provado pela Palavra escrita de Deus”. Os monges enfurecidos fizeram
um voto, dizendo que “se Zuínglio não cessasse com suas hostilidades
contra eles, seriam obrigados a adotarem medidas mais violentas”.
Por volta do mesmo tempo, o bispo de Constança compareceu pela
segunda vez diante do senado de Zurique apresentando violentas
acusações contra Zuínglio. Ele também dirigiu uma insistente exortação,
por escrito, ao clero e aos magistrados de sua diocese, bem como ao
reitor e ao colegiado de cônegos da catedral de Zurique. Essas
exortações foram acompanhadas de cópias da bula papal contra Lutero e
do edito de Worms. Três clérigos, entre eles o coadjutor* do bispo,
Melchior Battli, levaram esses documentos até Zurique e instauraram
pessoalmente a queixa contra Zuínglio. Devido à importância do assunto,
foi convocado o grande senado, chamado de “Concelho dos Duzentos”.
O coadjutor, em um discurso violento, apresentou diante dos juízes as
numerosas acusações que tinha contra Zuínglio; mas este refutou todas
elas com tanta clareza e poder, que seu opositor se calou envergonhado.
A Reforma havia alcançado a primeira vitória pública sobre os seus
inimigos. A opinião geral era que Roma havia sofrido uma derrota
decisiva. E, sem haver conseguido coisa alguma, a delegação do bispo
teve que retornar para Constança com vergonha e ira no coração. Essas
circunstâncias levaram Zuínglio a solicitar, respeitosamente, que uma
conferência pública fosse convocada, na qual ele poderia ter a
oportunidade de defender a si mesmo, bem como suas doutrinas. Nesse
meio tempo, ele escreveu com toda diligência, visando tornar ainda mais
amplamente conhecidas as verdades que ele defendia e ensinava, e os
erros e abusos contra os quais ele testificava.
***
OS ESCRITOS DE ZUÍNGLIO
Em julho do ano 1522 ele se dirigiu aos líderes da grande
Confederação Helvética com uma “exortação santa e amistosa”, na
qual lhes pedia a “não obstruir a pregação do Evangelho e nem serem
contrários ao casamento dos clérigos”. “Não temam, nobres homens”, ele
disse nesse documento, “em nos conceder tal liberdade! Existem certos
sinais evidentes pelos quais qualquer pessoa pode identificar um
verdadeiro pregador do Evangelho. Aquele que, negligenciando seus
próprios interesses não poupa empenho nem trabalho para tornar
conhecida a vontade de Deus e fazê-la vigorar, que se dedica a trazer
pecadores ao arrependimento e que consola aos aflitos, está, sem
nenhuma sombra de dúvida, em perfeita harmonia com Cristo. Mas
quando vedes mestres que diariamente apresentam novos santos para
serem venerados pelo povo, cujo favor precisa ser alcançado através de
ofertas — e quando esses mesmos mestres falam continuamente acerca
da extensão do poder sacerdotal e da autoridade do papa — tenham
certeza que esses homens estão muito mais preocupados com as suas
próprias vantagens do que com o cuidado das almas que lhes foram
confiadas.”
“Se tais homens vos aconselham a fazer cessar a pregação do
Evangelho através de decretos públicos, fechem seus ouvidos contra tais
insinuações. E estejam certos que o único objetivo deles é prevenir
quaisquer ataques que possam ser feitos aos seus benefícios e às suas
posições honrosas. Digam apenas: ‘Se essa obra é de homens, ela irá
perecer por si mesma; mas se vem de Deus, será em vão a união de
todos os poderes da terra contra a mesma’.”5
Depois de explicar o caráter do Evangelho e demonstrar que toda
doutrina sadia deve ser derivada apenas das Escrituras, ele falou acerca
da imoralidade que prevalecia entre os membros do clero, e mostrou
quão grandes prejuízos para a causa do cristianismo surgiam disso. Ele
se voltou de modo enfático e com grande seriedade contra a proibição do
casamento dos clérigos, provando tratar-se de uma chama de invenção
enganosa de tempos mais recentes, cujo propósito era aumentar o poder
da igreja. Ele afirmava que o celibato rompia os laços que deveriam unir
os ministros de Deus ao povo, fazendo com que desconhecessem
totalmente as relações familiares, para assim concentrar todo o seu zelo
nos interesses da corporação ou da Ordem monástica à qual eles
pertenciam, promovendo assim o poder papal.
Por volta desse tempo, Zuínglio escreveu em termos semelhantes para
o bispo de Constança. Nessa exortação, ele convocava o bispo para que
se colocasse como líder daqueles que estavam trabalhando para
alcançar a Reforma na igreja. Entre outras coisas ele escreve: “Por isso
lhe pedimos — pelo amor de Cristo, pela liberdade que Ele nos adquiriu,
pela aflição de tantas almas fracas e oscilantes, pelas feridas de tantas
consciências enfermas, e por amor de todas as relações divinas e
humanas — que permita que seja demolido, com precaução e prudência,
tudo aquilo que tem sido construído com temeridade, para que este
edifício, que foi construído contra a vontade de Deus, não desabe um dia
causando muita destruição”. Essas duas petições foram assinadas por
Zuínglio e outros dez dos mais zelosos promotores da Reforma
Protestante na Suíça.
A exortação, ou o mandato do bispo aos cônegos da catedral de
Zurique, levou Zuínglio a redigir outro escrito, ao qual ele chamou de seu
“Apologeticus Archeteles”6. Essa obra era uma compilação dos
principais pontos em disputa entre os reformadores e seus adversários.
De acordo com Gerdesius: “Essa obra é um relato fidedigno da Reforma
proposta por Zuínglio e se diferencia muito dos relatos apresentados por
numerosos historiadores”7. Esse escrito tornou-se mais famoso que todos
os seus escritos anteriores e era tido em grande estima, não apenas na
Suíça, mas também em países estrangeiros. Ele era a prova definitiva
que seu autor era “poderoso nas Escrituras”, e um homem que unia uma
coragem intrépida com a verdadeira moderação cristã.
Quando o bispo de Constança percebeu que seu poder não bastava
para suprimir este crescente movimento, ele apelou para a Câmara dos
Deputados ou a Assembleia Nacional de Baden, exigindo a intervenção
de toda a Confederação Helvética para fazer cumprir seus muitos
decretos que haviam sido desprezados. Todavia, as sementes da
Reforma estavam brotando em Baden de forma tão forte como em
Zurique. Isso é verdadeiro pelo menos no que diz respeito aos pastores,
pois eles chegaram a uma decisão unânime de não pregar nenhuma
doutrina que não pudesse ser provada a partir das Escrituras. “Este apelo
feito pelo bispo”, nos diz Waddington, “culminou com a perseguição de
um único e pouco conhecido transgressor da ordem episcopal”. Certo
pastor chamado Urbano Weiss, da cidade de Filispach, no condado de
Baden, havia pregado, de maneira corajosa, contra a invocação dos
santos. Para agradar o bispo, esse pastor foi feito prisioneiro e foi levado
até Constança, onde permaneceu preso por um longo tempo. Ele foi o
primeiro dos reformadores suíços que foi julgado digno de sofrer por
amor à verdade.
***
ZUÍNGLIO E SEUS IRMÃOS
Nossos leitores devem se lembrar que Zuínglio tinha sete irmãos e uma
irmã. Nesse período da história, todos eles estavam vivos. Quando as
notícias acerca da suposta apostasia de Ulrico chegou aos distantes
vales onde viviam, eles foram tomados de grande consternação, e
escreveram ao seu irmão compartilhando com ele sua preocupação
acerca da sua conduta, expressando o desejo de conversar com ele
acerca desse assunto para obter esclarecimento. Apesar de que a
ansiedade de seus irmãos estava mais relacionada com a reputação da
família do que com o desejo pela verdade, tal situação deu a Zuínglio
uma oportunidade bem-vinda para escrever de forma franca e sincera
acerca das verdades do Evangelho, e de expressar-lhes os afetuosos
sentimentos cristãos de seu coração.
Depois de expressar sua mais sincera afeição por seus irmãos, e o
mais profundo interesse que nutria pelo bem estar deles, ele continuou
dizendo: “Enquanto Deus o permitir, eu irei cumprir a tarefa que me foi
confiada, sem temer o mundo e seus orgulhosos tiranos. Contudo, de
modo algum estou sozinho, pois há muito tempo eu entreguei a mim
mesmo e a todas as minhas circunstâncias nas mãos de Deus... Estejam
certos que não existe nenhum tipo de mal que possa vir sobre mim que
eu não tenha levado em consideração cuidadosamente, e que não esteja
preparado para enfrentá-lo. Eu tenho certeza que minha força é nula. Eu
também conheço o poder daqueles com os quais tenho que contender.
Mas posso dizer com o apóstolo Paulo: ‘Posso todas as coisas em Cristo
que me fortalece’ (Fp 4:13). Vós dizeis: ‘Que ignomínia e com que
vergonha nossa família seria coberta se tu vieres a ser queimado na
estaca como um herege ou morreres de alguma outra morte desonrosa!
E que benefício traria tal morte?’. Meus amados irmãos, ouçam minha
resposta. Cristo, o Salvador e Senhor de todos, do qual eu sou apenas
um servo, disse: ‘Bem aventurados sereis quando os homens vos
odiarem e quando vos separarem, e vos injuriarem, e rejeitarem o vosso
nome como mau, por causa do Filho do homem. Folgai nesse dia, exultai;
porque eis que é grande o vosso galardão no céu’ (Lc 6:22-23). Portanto,
aprendam que quanto mais meu nome for coberto de ignomínia nesse
mundo por amor do Senhor Jesus, tanto mais ele será honrado aos olhos
do meu Deus... Cristo, o Filho de Deus, desceu do céu para derramar
Seu sangue para nossa salvação. Portanto, aquele que não sacrifica
voluntariamente sua vida pela honra do seu Senhor, é um soldado de
Cristo covarde e indigno desse Nome; é semelhante a um soldado que
lança de si seu escudo e foge de maneira desonrosa.
Vós sois meus irmãos, irmãos de sangue, filhos de meu pai; mas se
não quiséreis ser meus irmãos em Cristo pela fé, devo lamentar com a
mais profunda dor e tristeza. A Palavra do Senhor nos exorta até mesmo
a deixar nosso pai e mãe se eles ameaçam afastar nossos corações de
Sua pessoa. Confiem na Palavra de Deus de todo coração e sem hesitar.
Apresentem todas as suas tristezas e preocupações diante de Cristo.
Derramai vossos corações diante da Sua face, busquem graça, paz e o
perdão dos vossos pecados apenas nEle. Por fim, estejais unidos com
Cristo por meio de um laço de união tão íntimo, de modo que Ele seja um
com vós e vós um com Ele. Que Deus permita que sejais guiados sob
Seus cuidados pelo Espírito Santo, recebendo Suas instruções. Amém.
Adeus! Eu nunca cessarei de ser vosso irmão fiel e sincero, enquanto
forem meus irmãos em Cristo. Estou escrevendo, com grande pressa, de
Zurique, no ano do nosso Senhor de 1522”.
Que amor Zuínglio demonstra para com o seu Senhor, pelo Seu
Evangelho, pela Sua Igreja; e que profunda devoção se expressam
nestas palavras! Evidentemente, ele foi ensinado pelo próprio Deus de
forma maravilhosa. Seu conhecimento do caminho da salvação e sua
profunda compreensão daquela verdade preciosa — da unidade dos
crentes com Cristo — é uma verdade que enche os nossos corações com
admiração e alegria. É verdade que ele ainda não entendia a libertação
do domínio do pecado, de Satanás e do mundo através da morte de
Cristo, como ensinada em Romanos 6 e outras porções das Escrituras.
Ele também não conhecia os ensinamentos das Escrituras que tratam da
questão da Igreja como o corpo de Cristo, conforme ensinado por Paulo,
que diz: “Pois todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um
corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos
bebido de um Espírito” (1 Co 12:13). Mas ele entendia que existia uma
comunhão na graça e na benção por meio da fé no precioso sacrifício de
Cristo. Se Zuínglio tivesse se colocado mais sob o poder da ressurreição,
seus biógrafos teriam menos motivos para chamá-lo de “um patriota
cristão” ou ”o herói cristão”. Não que ele tivesse amado menos o seu
próximo, seus familiares ou sua pátria, mas ele teria manifestado mais
concordância com o espírito de um homem que não apenas morreu, mas
que também ressuscitou com Cristo e está unido a Ele pelo Espírito
Santo que habita nele. Como Lutero, ele também mantinha que a
doutrina da justificação apenas pela fé era a pedra fundamental da fé
cristã. Todavia, ele se encontrava menos sob o poder dos preconceitos e
tinha uma visão mais ampla da verdade divina do que o reformador
saxão. Além disso, ele também tinha uma forma mais elevada de
expressar essa mesma verdade.
***
AS DISPUTAS EM ZURIQUE
A exasperação entre os dois partidos contenciosos, em Zurique, havia
aumentado bastante pela derrota da delegação enviada pelo bispo. Para
colocar um fim a esta disputa, Zuínglio pediu permissão ao senado para
poder defender publicamente a si próprio e à sua doutrina. O senado, que
queria muito restaurar a paz na cidade, atendeu seu pedido e a
conferência foi marcada para o dia 29 de janeiro de 1523, onde deveriam
ser discutidos e resolvidos os diversos pontos religiosos controversos.
Esse foi o primeiro de vários debates públicos, os quais, sob a
providência soberana de Deus, fizeram avançar e progredir rapidamente
os ensinamentos da Reforma Protestante na Suíça. Para essa
conferência foram convidados todos aqueles que tivessem alguma
alegação a fazer contra o pastor da catedral, dando-lhes o direito de
poder expressar livremente suas acusações.
Todavia, uma condição nobre foi estipulada e anunciada pelo senado
da cidade, a saber, que todas as acusações deveriam estar apoiadas nas
Escrituras e não em meros costumes ou tradições dos homens. O clero
do cantão recebeu um convite especial; o bispo recebeu um pedido
insistente para comparecer. Caso isso não fosse possível, então que ele
enviasse representantes competentes.
A intenção do senado era que todos os envolvidos estivessem bem
informados acerca dos assuntos que Zuínglio apresentaria e que seriam
discutidos. Por isso, e para que ninguém pudesse alegar que havia sido
surpreendido por qualquer um dos temas, algum tempo antes da reunião
Zuínglio publicou uma série de Sessenta e Sete Teses. Estas teses
continham as principais doutrinas que ele havia pregado e pelas quais ele
estava disposto a lutar. Desse modo, seus opositores tiveram tempo
suficiente para se preparar para a batalha. O conteúdo das teses de
Zuínglio se divulgou com uma rapidez incrível, tanto em Zurique como
nos demais cantões.
***
AS TESES DE ZUÍNGLIO
Visto que estas teses podem ser consideradas como a profissão de fé
dos reformadores suíços, e que de modo geral são de grande interesse,
apresentaremos brevemente as mais importantes:
- O Evangelho é a única regra de fé, e a afirmação que o mesmo não
é nada sem a aprovação da Igreja de Roma está errada.
- Cristo é a única cabeça da Igreja.
- Todas as tradições humanas devem ser rejeitadas.
- As tentativas, por parte do clero, de justificar a pompa, as riquezas,
as honras e as dignidades é a causa das divisões na igreja.
- Os atos de penitência são prescrições da tradição, e não
aproveitam nada para a salvação do ser humano.
- A missa não é um sacrifício em si mesmo, mas apenas a
celebração da memória do sacrifício de Cristo.
- Deus não proibiu o casamento a nenhuma classe de cristãos e,
consequentemente, é errado proibir os sacerdotes de se casarem,
pois o celibato deles tem se tornado na maior causa de grandes
imoralidades.
- Quem perdoa pecados em troca de dinheiro se faz culpado do
pecado da simonia*; somente Deus tem o poder de perdoar pecados.
- O único caminho de salvação para todos — de ontem, hoje e
sempre — é Jesus Cristo.
- A Palavra de Deus não diz absolutamente nada acerca do
purgatório.
- Todos os cristãos são irmãos de Cristo e irmãos entre eles, eles
não têm pais na terra; dessa forma caem por terra todas as ordens,
seitas e partidos.
- A afirmação que a graça é necessariamente derivada pelo
recebimento dos sacramentos é uma invenção.
- Não deve ser usada nenhuma força contra aqueles que não
reconhecem seu erro, a não ser que, por meio da sua conduta
revoltosa, perturbem a paz pública.8
***
A REUNIÃO EM ZURIQUE
Conforme nos contam os historiadores, logo nas primeiras horas da
manhã do dia 29 de Janeiro de 1523, um grande número de pessoas
reuniu-se na sala do senado em Zurique. Todo o clero da cidade e do
cantão, e muitos outros vindos das mais distantes partes, estavam
presentes. Ali também havia um grande número de cidadãos, eruditos,
nobres, autoridades e outras pessoas das mais variadas origens. O
magistrado Mark Reust, um homem de grande caráter moral, deu início
às deliberações com um breve discurso. Ele apontou para as Sessenta e
Sete Teses de Zuínglio, e convidou todos aqueles que discordavam das
mesmas a virem à frente apresentar suas objeções sem nenhum temor.
Como representantes do bispo, vieram os Grão-mestres* da corte
episcopal de Constança — o cavaleiro Jakob von Anwyl e o vigário geral,
Faber — acompanhados de muitos teólogos. Todos esperavam que
Faber tentasse refutar as teses de Zuínglio e fizesse a defesa da Igreja
Romana. Mas, evidentemente, Faber temia seu oponente e recusou-se a
discutir qualquer um de seus artigos. Zuínglio o pressionou para que
falasse, mas em vão. “Eu não fui enviado para cá com o propósito de
disputar”, disse Faber, “e sim para ouvir. Além do mais, esse não é o local
apropriado para resolver uma tão importante questão controversa. A
Dieta de Nuremberg prometeu um concílio geral para o próximo ano, até
lá devemos esperar. Um concílio geral da igreja é o único tribunal legítimo
em questões de doutrina. Entrementes, eu fui incumbido de oferecer a
minha mediação para apaziguar os tumultos que alvoroçam a cidade.”
Zuínglio, que tinha o desejo de que suas doutrinas fossem submetidas
aos exames mais severos, ficou profundamente indignado pela resposta
evasiva de Faber. Zuínglio estava sentado no meio da sala, diante de
uma mesa sobre a qual estava uma Bíblia. Após as palavras de Faber,
ele se levantou subitamente e exclamou em voz alta: “O quê!? Esta
grande e sábia assembleia não vale tanto quanto um concílio?”. Depois,
voltando-se para o senado, pediu: “Excelentíssimos senhores, defendam
a Palavra de Deus!”. Após esse apelo se seguiu um longo silêncio. Por
fim, Zuínglio retomou: “Eu conjuro a todos que me acusaram — e eu sei
que vários deles estão aqui presentes — a virem aqui à frente e me
repreenderem por amor à Verdade”. Mas, novamente não houve
resposta. Seus opositores, que o haviam difamado secretamente, agora,
em público, mantiveram um obstinado silêncio. Zuínglio possuía uma
consciência reta, e desejava justificar seus ensinamentos publicamente,
diante do senado de seu país, diante dos membros da sua diocese e
diante de toda a Igreja de Deus. Mais uma vez ele expressou o desejo de
discutir suas doutrinas diante do senado da cidade e de tantos ouvintes
eruditos, e repetiu que estava disposto a se retratar de qualquer erro do
qual ele fosse convencido. Mas Faber continuou recusando-se, e apenas
prometeu publicar uma refutação escrita dos erros de Zuínglio.
À tarde foi realizada uma segunda assembleia. Novamente o
magistrado disse: “Se houver alguém aqui que tenha algo a dizer contra
Zuínglio ou contra os seus ensinamentos, que venha à frente”. Ele repetiu
essas palavras três vezes, mas como ninguém se apresentou, o senado
declarou que as proposições evangélicas haviam triunfado de um modo
indisputável. A seguir, o senado declarou: “Uma vez que o mestre Ulrico
Zuínglio desafiou repetidas vezes e de forma pública aos adversários de
seus ensinamentos para que viessem refutá-los usando argumentos
retirados da Escritura, e uma vez que ninguém se manifestou para assim
proceder, Zuínglio deverá continuar anunciando e pregando a Palavra de
Deus, como está acostumado a fazer. De modo semelhante, todos os
outros ministros religiosos dos cantões, que residam tanto na cidade
quanto no campo, devem abster-se de pregar sobre qualquer tema que
não possa ser provado pelas Escrituras. Todos devem se restringir de
fazer acusações de heresia e outras alegações escandalosas sob a pena
de severa punição”.
Ao ouvir a determinação do senado, Zuínglio não pôde conter-se e
expressou publicamente sua mais profunda alegria. “Nós te agradecemos
ó Senhor, porque foi Tua vontade que a Tua mais santa Palavra reinasse
de igual modo, tanto no céu como na terra.” Faber, ao ouvir essas
palavras, não conseguiu segurar por mais tempo sua ira. “As teses do
mestre Ulrico”, ele disse, “são contrárias à honra da igreja e aos
ensinamentos de Cristo, e eu irei prová-lo”. A isso, Zuínglio respondeu:
“Faça isso, mas eu não terei nenhum outro juiz, a não ser o Evangelho”.
“O Evangelho e sempre o Evangelho!”, retrucou Faber, “Poderíamos viver
amável, pacífica e virtuosamente se não houvesse Evangelho.” Com isso,
a disputa foi encerrada.
Leo Jud, Hofmeister, Meyer, e outros, juntamente com Zuínglio, se
empenharam para fazer com que os membros do partido papal
participassem de um debate, mas, fora uma pequena escaramuça*
acerca da invocação dos santos, não houve mais nada que seja digno de
nota.
***
AS CONSEQUÊNCIAS DO DECRETO
De acordo com Hess, o decreto do senado de Zurique deu um
poderoso impulso ao progresso da Reforma Protestante na Suíça. Após
uma derrota tão humilhante dos soldados papais, a Reforma fazia
conquistas com pouco esforço. O efeito da conduta de Zuínglio no
senado da cidade foi muito favorável a ele e aos seus ensinamentos.
“Sua simplicidade, firmeza, e sua maneira sincera e amável, encheu a
audiência de admiração. Sua eloquência e conhecimento arrastaram
consigo aqueles que ainda oscilavam entre os dois partidos. O silêncio
dos seus adversários foi considerado como uma prova tácita* da fraqueza
deles — serviu para a causa de Zuínglio quase tanto quanto seus
próprios e mais fortes argumentos. A partir desse momento, os amigos da
Reforma se multiplicaram rapidamente em todas as classes da
sociedade.” Levando-se em conta que os tempos ainda eram dominados
pelo poder papal, aquele decreto de fato foi uma bela prova da coragem e
da mentalidade íntegra do senado de Zurique. O mesmo não ordenava
nenhum tipo de imposição penal nem penitências com base em
transgressões religiosas. Zuínglio e todos os demais pastores
encontraram proteção por meio desse decreto, e foram instruídos a
pregar a Palavra de Deus como até então. Somente um rompimento
aberto da paz, ou um ato que poderia levar diretamente a tal, seria punido
pelas autoridades seculares.
Logo depois da conferência, Faber escreveu para um amigo em Mainz.
Ele expressou suas apreensões acerca de Zuínglio nos seguintes termos:
“Eu não tenho novas para ti, exceto que um segundo Lutero surgiu em
Zurique, que é mais perigoso do que o primeiro, pois ele trata com um
povo muito mais austero. Eu devo contender com ele, querendo ou não;
mas faço isso com grande relutância, visto que sou obrigado a fazê-lo. Tu
irás tomar pleno conhecimento de tudo quando eu publicar meu livro, que
prova que a missa é um sacrifício”.9
Contudo, na mesma proporção em que a Reforma se firmava e se
espalhava, os inimigos redobravam os esforços para combatê-la. Os mais
hábeis representantes do papado foram silenciados publicamente. Ficou
evidente que aqueles homens estavam com medo de entrar em um
debate público com o corajoso reformador. Mas a Roma inescrupulosa
sempre tinha outras armas a seu dispor. Os historiadores fidedignos
relatam que certo legado papal, chamado Ennius, e o bispo de Constança
contrataram homens para assassinar Zuínglio assim que surgisse uma
oportunidade que não envolvesse grandes riscos. Certo dia, o reformador
recebeu uma nota na qual um amigo, que ocultou seu nome, o advertia
insistentemente: “Emboscadas te cercam por todos os lados, e um
veneno mortal tem sido preparado para tirar a tua vida. Coma somente na
tua casa, e coma somente o pão que a tua própria cozinheira assou. Eu
sou seu amigo e tu ainda irás me conhecer”. Outra pessoa disse a um
capelão que vivia com o reformador: “Saiam da vossa casa
imediatamente, pois uma desgraça é iminente”. Mas, em tudo isso, o
homem de Deus permaneceu calmo e impassível*, confiando no Senhor.
“Eu não temo os meus inimigos, pois com Deus, sou como uma rocha
alta diante do rugir das ondas.” Mas, embora os atentados assassinos do
bispo e dos monges fracassaram, Roma ainda não havia esgotado todos
os seus meios. Então ela procurou conquistar Zuínglio com bajulação.
Adriano VI, que nesse tempo estava ocupando o trono papal e que
perseguia os reformadores da Saxônia com seus anátemas, inicialmente
parecia se preocupar pouco pelos acontecimentos em Zurique. Mas
quando aquele importante decreto do senado de Zurique chegou ao
conhecimento de Roma, Adriano escreveu uma carta extremamente
bajuladora a Zuínglio, na qual ele o chamava “seu mui amado filho” e lhe
assegurava sua “especial simpatia”. Ao mesmo tempo, Zink foi
comissionado para fazer tudo o que fosse possível para ganhar Zuínglio.
“E o que tens para oferecer a Zuínglio?”, perguntou Myconius ao portador
da carta papal. “Qualquer coisa, exceto a cadeira de São Pedro”,
respondeu. O cajado de bispado ou um chapéu de cardeal; Adriano
queria dar-lhe tudo, bastava Zuínglio pedir. Mas se o papa pensava poder
fazer vacilar o reformador de Zurique por meio de tais ofertas, viu-se
amargamente decepcionado. Todas as suas propostas foram rejeitadas
com igual determinação. D’Aubigné, observa: “Zuínglio era um inimigo
muito mais irreconciliável da Igreja Romana do que Lutero. Ao contrário
do reformador saxão, ele nunca havia sido um monge e, por esse motivo,
sua consciência havia sido menos levada ao engano e sua capacidade
de julgamento menos afetada pela influência dos dogmas papais”.
Zuínglio procedia de forma muito mais impiedosa do que Lutero com as
ideias e rituais dos séculos anteriores; até mesmo o costume mais
inofensivo, que estivesse relacionado com qualquer abuso, foi removido
por ele sem maiores delongas. Seu zelo pela dignidade, suficiência e
autoridade das Escrituras era impressionante. Ele costumava dizer:
“Somente a Palavra de Deus, deve permanecer”. Por outro lado, alguns
diziam que Zuínglio havia chegado a estas convicções por meio de
batalhas menos duras e que, portanto, ardiam no seu coração com uma
força menor do que no coração de Lutero. Nós podemos perceber a
veracidade dessa afirmação em apenas um ponto, a saber, em relação à
doutrina da justificação pela fé. Embora o reformador suíço cria nesta
verdade de modo igualmente sincera como o saxão, ela nunca foi para
ele aquilo que ela foi para Lutero. Para Lutero, essa verdade foi a fonte
da sua força, consolo e alegria na sua atividade. Os dois homens haviam
sido conduzidos por Deus por diferentes caminhos, e tinham sido
preparados de forma diferente para suas grandes obras.
***
O ZELO DE ZUÍNGLIO E DE LEO JUD
Zuínglio havia alcançado uma grande influência e popularidade por
meio do desfecho da conferência no mês de janeiro. Ainda assim, ele não
tinha pressa para introduzir mudanças drásticas no culto habitual. Seu
fervoroso desejo era instruir o povo, auxiliá-lo na remoção de seus
preconceitos e trazê-los para uma unidade de mente antes de
recomendar qualquer grande mudança. Ele tinha aversão, e com toda
razão, a qualquer precipitação; antes, ele procurava dissipar as mentiras
por meio da exposição da verdade. Por esse motivo, ele se dedicou à
pregação da Palavra de Deus com zelo e coragem ainda maiores. Nesse
processo, ele foi apoiado vigorosamente pelo seu amigo Leo Jud, que
naquele tempo havia sido eleito ministro na igreja de São Pedro. Não
temos certeza se o prometido livro de Faber acerca da missa alguma vez
foi publicado. Mas, naquele mesmo ano, Zuínglio escreveu um livro
intitulado: “Tratado Acerca da Missa”. Nesse livro ele argumentava com
grande força contra a pedra angular do sistema papal: que a missa era
um sacrifício. Naquela mesma época, um sacerdote chamado Luís Hetzer
publicou um livro cujo título era: “O Julgamento de Deus Acerca das
Imagens”. Esse livro causou uma grande impressão, de modo que uma
parte do povo não podia pensar em mais nada a não ser nas imagens.
Dessa forma, essa obra foi mais prejudicial do que útil.
Os cidadãos de Zurique estavam se tornando grandes amigos da
Reforma Protestante, mas por meio do escrito de Hetzer, seu zelo se
agitou a tal ponto que alguns espíritos mais ardentes determinaram
purificar a cidade de todos os ídolos pela força. Do lado de fora de um
dos portões da cidade existia um crucifixo esculpido de modo elaborado e
ricamente ornamentado, ao qual era manifestada uma supersticiosa
veneração. A ira dos agitados cidadãos se voltou, primeiramente, contra
esta imagem. Um grande grupo de pessoas liderado por um operário
chamado Nicolas Hottinger — que, como diz Bullinger, era um homem
íntegro e bem instruído nas Sagradas Escrituras — foi até aquele lugar e
lançou por terra este crucifixo. Esse ato atrevido encheu de pavor e
horror toda a cidade de Zurique. “Eles são culpados de sacrilégio e
merecem ser mortos por esse ato”, vociferaram os amigos de Roma. A
agitação cresceu a tal ponto que as autoridades se viram obrigadas a
interferir e lançar na prisão o líder desse movimento. Todavia, quando a
sentença devia ser pronunciada sobre eles, a opinião do tribunal estava
dividida. Enquanto alguns consideravam aquele ato como um crime digno
de morte, outros achavam que o mesmo havia sido uma boa obra, mas,
em decorrência de um zelo excessivamente grande, foi feito da maneira
errada. Durante os debates do tribunal acerca da sentença, Zuínglio
pregava desde o púlpito que a lei de Moisés proibia expressamente
transformar imagens em objetos de adoração religiosa. Ele dizia:
“Portanto, Hottinger e seus amigos não estão sujeitos à punição de Deus,
nem são culpados de morte; porém eles agiram com violência e sem a
permissão das autoridades, e por isso eles devem ser punidos”.
A linguagem de Zuínglio aumentou mais ainda a perplexidade dos
magistrados; toda a cidade estava dividida. Finalmente, o senado
determinou que fosse convocada uma reunião para discutir essa questão,
e que até lá os acusados deveriam permanecer sob custódia do tribunal.
Dessa maneira, nós podemos ver que, sob a bondosa direção de Deus,
mesmo tais lamentáveis excessos foram os meios usados por Deus para
trazer à luz não apenas as densas trevas do papado, mas também a
verdade de Deus sobre assuntos de vital importância. Eles também
serviram para assegurar novos triunfos e maiores liberdades para os
reformadores.
***
A SEGUNDA DISPUTA EM ZURIQUE
O dia 26 de outubro do ano 1523 foi fixado para uma segunda série de
discussões. Os assuntos a serem discutidos eram: se a adoração de
imagens era correta segundo as Escrituras, e se a missa deveria ser
preservada ou abolida. A assembleia reunida era bem mais numerosa
que a anterior. Estima-se que cerca de novecentas pessoas estavam
presentes, vindas de todas as partes da Suíça, incluindo os membros do
grande Concelho dos Duzentos. Também estavam presentes cerca de
trezentos e cinquenta eclesiásticos. Foram enviados convites aos bispos
de Constança, Coira e Basileia, bem como à universidade de Basileia.
Também foi solicitado que os doze cantões enviassem representantes à
Zurique. Porém, os bispos simplesmente rejeitaram os convites. A
humilhação sofrida por seus representantes em janeiro ainda estava
fresca em suas memórias, e eles não estavam dispostos a se expor ao
perigo de uma segunda derrota. Somente as cidades de Schaffhausen e
São Galo enviaram delegados. Esses delegados, Joaquim Vadian, de
São Galo, e Hofmeister, de Schaffhausen, foram eleitos para presidir a
assembleia. Depois que o edito de convocação foi lido e o objetivo do
encontro estabelecido, Zuínglio e Leo Jud foram convocados a
apresentarem diante da assembleia suas opiniões acerca do culto às
imagens e da missa, e defendê-las contra eventuais objeções.
Com o temor e a piedade que lhe eram próprias, Zuínglio propôs que
as deliberações fossem iniciadas com uma oração. Ele fez com que os
amigos se lembrassem da promessa de Cristo, que diz: “onde estiverem
dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles“ (Mt
18:20). Depois da oração, e de um breve discurso pronunciado pelo
presidente da assembleia — no qual, assim como na primeira vez, ele
enfatizava novamente que os que iriam falar deveriam apoiar seus
argumentos e conclusões apenas na Palavra de Deus — foi solicitado a
Zuínglio que desse início às deliberações.
Antes de falar acerca da primeira proposição, que tratava da adoração
de imagens, Zuínglio solicitou a oportunidade de fazer algumas
observações acerca do uso da palavra “Igreja” de acordo com as
Escrituras. Ele entendia que isso era necessário porque o direito e a
autoridade das presentes deliberações dependiam da compreensão e do
significado que as Escrituras dão à palavra Igreja. Ele rejeitava
decididamente a presunção da Igreja de Roma, a qual afirmava que nada
tinha validade em todo o mundo cristão a menos que tivesse a
confirmação dela.
De acordo com sua compreensão, o termo “Igreja” designava, em
primeiro lugar, o corpo universal dos fiéis. “A Igreja está espalhada pelo
mundo inteiro, em todos aqueles lugares onde se crê em Jesus Cristo.”
Em segundo lugar, podemos denominar os crentes que se reúnem em
um determinado lugar como a igreja daquela localidade. Para ilustrar, ele
citou a igreja em Éfeso, Corinto, as igrejas na Galácia, a igreja em
Schaffhausen ou a igreja em Zurique. Ele afirmava que era totalmente
errado restringir essa expressão a uma associação que consistia
exclusivamente do papa, dos cardeais, dos bispos e de outros
eclesiásticos. Seu objetivo era derrubar as objeções apresentadas pelos
católicos romanos contra a autoridade de uma assembleia como essa
diante da qual ele se encontrava. Ele também afirmava que qualquer
assembleia que estava unida pela fé com Cristo e que considerava a
Sagrada Escritura como única regra de fé e prática, possuía o pleno
direito de discutir e definir suas próprias questões de forma autônoma.
Procedendo dessa maneira, Zuínglio estava retirando a igreja de Zurique
da jurisdição do bispo de Constança, separando-a do domínio sacerdotal
romano.
Quando Zuínglio havia terminado, foi feito um convite, a todos os que
tivessem qualquer objeção contra suas afirmações, para que viessem à
frente e expressassem sua opinião sem nenhum temor. Os reformadores
estavam conscientes da sua boa causa e não tinham necessidade de
temer uma discussão aberta e sincera. Um idoso cônego de Zurique,
chamado Konrad Hoffmann tentou uma resposta, mas ele falou apenas
da autoridade das bulas papais, do edito do imperador, dos cânones da
igreja e da impropriedade de todos esses debates, sem fazer sequer
alguma referência às Escrituras. Ele foi informado que não estava
observando as regras estabelecidas pela assembleia. Então, quando
Hoffmann fez a proposta de esperar por um concílio e até lá se sujeitar às
ordens do bispo, Zuínglio respondeu: “Esperar por um concílio? Quem irá
comparecer? O papa e alguns bispos ociosos e ignorantes que farão tudo
segundo seus pensamentos. Não. Isso não é a Igreja. Höngg e Küsnacht
(dois vilarejos nas proximidades de Zurique) certamente são uma igreja
antes do que todos os bispos e papas juntos”. Em seguida, o prior dos
agostinianos, que era um pregador muito capaz e apegado com todo o
coração à antiga fé, confessou que não poderia refutar as proposições de
Zuínglio, a menos que fosse permitido que ele se reportasse à lei
canônica. Imediatamente, Zuínglio apontou para uma frase na lei
canônica, que dizia que podemos nos apoiar apenas nas Escrituras. O
prior se calou perplexo e retornou ao seu lugar, murmurando consigo
mesmo: “O papa já tomou a decisão. Eu me atenho a essa decisão e
deixo que outros argumentem”.
A seguir, se levantou Leo Jud — frequentemente chamado,
zombeteiramente, de “o pequeno sacerdote” — a quem havia sido
confiado o assunto acerca das imagens. Ele se dirigiu à assembleia por
um longo tempo. Leo Jud provou pelas Escrituras, “que o uso de imagens
é proibido pela Palavra de Deus; que o cristão não deve fabricá-las,
dedicá-las, e muito menos pagar qualquer espécie de honra ou tributo às
mesmas”. No segundo dia da conferência, Zuínglio introduziu o assunto
referente à missa, demonstrando pelas palavras da própria instituição da
Santa Ceia e outras passagens do Novo Testamento, que a missa não é
um sacrifício, uma vez que nenhum homem pode oferecer a Deus um
sacrifício a favor de outrem. Zuínglio também chamou a atenção que, o
modo como se celebra a ceia na Igreja Católica, é muito diferente da
instituição da Ceia feita pelo próprio Senhor. Para a grande satisfação
dos senhores do Concelho ali reunidos, as poucas e fracas tentativas
feitas por alguns sacerdotes para defender as práticas e as doutrinas
estabelecidas pela Igreja Romana foram imediatamente refutadas pelos
dois reformadores, vindo a fracassar totalmente.
***
A PALAVRA DE DEUS PREVALECE
Uma profunda e saudável impressão havia sido causada sobre toda a
assembleia por meio das discussões que haviam acontecido até então.
Schmidt, o Comandante* de Küsnacht, tomou a palavra: “Até agora todos
têm adorado a muitos ídolos. Os habitantes das campinas têm subido às
montanhas, e aqueles que habitam nas montanhas descem às campinas;
os franceses vão para a Alemanha e os alemães para a França. Todavia,
não precisais mais correr de lá pra cá por causa da vossa necessidade.
Deus reuniu todas as coisas em Cristo. Nobres homens de Zurique:
vamos para a verdadeira e perfeita fonte. Que Jesus Cristo possa por fim
entrar novamente no vosso território para tomar posse dos Seus antigos
domínios. Que os cristãos possam formar a Cristo em seus corações”. O
velho e guerreiro magistrado, Reust, voltando-se para o senado falou
com sua forte voz: “Que todos nós possamos tomar em nossa mão a
espada da Palavra de Deus, e peçamos a Deus que faça Sua obra
prosperar!”. As palavras destes dois homens penetraram profundamente
nos corações dos ouvintes. Intensamente comovido, Zuínglio exclamou:
“Deus está conosco. Ele irá defender Sua própria causa. Avancemos em
nome do Senhor — avancemos!”. Ele não pôde mais ocultar sua emoção
e rompeu em lágrimas; e muitos outros choraram com ele.
Assim, as discussões foram encerradas. As mesmas haviam durado
três dias. Todas as decisões foram a favor da Reforma Protestante. A
vitória dos reformadores era inquestionável. Antes que a assembleia se
dissolvesse, Vadian, de São Galo, se levantou e falou em nome de todos
os que haviam presidido aquela reunião: “É desnecessário que uma
determinada sentença seja pronunciada como decisão da assembleia.
Cada um ouviu o testemunho da Palavra de Deus acerca desses dois
pontos controversos e também tomou conhecimento das verdades
pronunciadas contra as mesmas. Cada um julgue por si mesmo qual
conclusão deve tirar disso e obedeça à convicção da sua própria
consciência”. Reust se uniu a ele e exortou mais uma vez à assembleia:
“Encorajo a todos os presentes a fazerem da Palavra de Deus seu único
guia, seguindo-a sem nada temer”. Com essas palavras, a reunião foi
encerrada e a assembleia dissolvida.
***
REFLEXÕES ACERCA DO CARÁTER DA CONFERÊNCIA
Todos nós, que conhecemos um pouco acerca do valor da Palavra de
Deus, precisamos refletir com grande satisfação e alegria a forma como
essas disputas foram conduzidas. Creio que nunca poderemos ser gratos
o suficiente diante do apreço demonstrado pelas Santas Escrituras.
Zuínglio fez um grande e nobre trabalho. Ele restaurou a Bíblia ao seu
verdadeiro lugar e devolveu ao povo seus verdadeiros privilégios. Os que
haviam conduzido aquela assembleia haviam afirmado publicamente que
somente a Palavra de Deus tem autoridade, e que ela era a única regra
de fé e de vida prática. E, não podemos nos esquecer, tudo isso
aconteceu em uma época em que todas as classes estavam apenas
começando a ouvir as verdades que diziam respeito aos erros do papado
e a perceber o valor da Bíblia. Todos haviam esquecido por completo que
a Palavra de Deus é a espada do Espírito, por meio da qual todas as
questões deveriam ser decididas. Ao mesmo tempo, o caráter e a própria
existência da Bíblia, como Palavra de Deus, foram reafirmados. Até
aquele dia, muitos dos sacerdotes nunca sequer haviam visto uma cópia
das Sagradas Escrituras, e poucos deles tinham tido a oportunidade de
ler uma porção da mesma. Zuínglio, Leo Jud e outros, plantaram
novamente a reverência diante da Palavra de Deus nos corações dos
seus conterrâneos. Aquela luz, que por tanto tempo havia estado debaixo
do alqueire, foi colocada novamente no velador (cf. Mt 5:15), e as trevas
desapareceram. A Palavra de Deus era o seu tesouro mais precioso, a
fonte do seu consolo e coragem na batalha; e a glorificação de Cristo era
o mais profundo desejo dos seus corações.
Para manter aquela posição, era necessário mais do que a presença
de Zuínglio, mais do que seus brilhantes talentos, que sua elevada
educação e sua eloquência natural. Nada além da fé no Deus vivo e em
Sua divina presença poderia ter sustentado Zuínglio naquele momento. A
grandeza, associada à superstição, poderiam ter dado mil razões para
que o dogma do papado fosse mantido de forma suprema. Mas naqueles
dias, a fé fez — assim como precisa fazer nos dias de hoje — um
verdadeiro ataque a todo sistema do papado, denunciando-o como uma
impostura* de Satanás e que está em oposição direta à verdade de Deus.
Diante de novecentas pessoas (tanto membros da Igreja Católica
Romana, leigos e clérigos) Zuínglio, Leo Jud e outros, mantiveram a
verdade e a pureza da Palavra de Deus. Para eles, era necessário que
essa Palavra fosse colocada nas mãos de todo o povo como o único
padrão de fé e moral. Ao mesmo tempo, todos os costumes honrados e
as tradições do romanismo — embora fossem apoiados pela credulidade
das pessoas e pela exibição de poder mundano que era manifestada por
tantos séculos — deveriam ser abandonados, pois eram meras invenções
das artimanhas sacerdotais e prejudiciais para as almas das pessoas.
Esse era um serviço que exigia coragem, especialmente naqueles dias.
Mas quando Cristo ocupa o lugar mais elevado no coração, Sua força é
aperfeiçoada através da nossa fraqueza. Nós sabemos que a Palavra de
Deus é a espada do Espírito, por meio da qual todas as questões devem
ser resolvidas. É somente a ela que todos os cristãos devem se apegar.
Uma única linha das Escrituras é mais poderosa do que dez milhares de
razões humanas. Aqui devemos fazer uma pergunta importante: até que
ponto os ensinamentos das Escrituras são, de fato, observados como a
única regra pelos crentes nos dias de hoje? Onde podemos encontrar
uma fidelidade inflexível à plena verdade hoje em dia? Nós nem sabemos
para onde olhar. Por outro lado, ouvimos diversos questionamentos
referentes à verdadeira inspiração das Escrituras. Muitos dizem: “Como é
possível dar diversas interpretações às Escrituras, então, não existe a
possibilidade da mesma ser decisiva”. Pensa-se que é necessário
estabelecer confissões de fé e se coloca estas no lugar da Palavra de
Deus. E assim, a infidelidade cresce cada vez mais e mais em nossos
dias, o que facilita o crescimento do romanismo bem como de outras
religiões, conduzindo a cristandade à sua apostasia final. Entretanto, que
todos aqueles que amam o Senhor Jesus possam manter-se firmes em
Sua Palavra, que é imutável e eterna. Tu Senhor, “engrandeceste a Tua
Palavra acima de todo o teu nome” (Sl 138:2). E, ainda hoje, é a mais
pura verdade que, “aos que me honram honrarei, porém os que me
desprezam serão desprezados” (1 Sm 2:30). Que o Senhor nos conceda
a graça para glorificarmos Seu nome através de uma obediência fiel à
Sua Palavra. Que, em tudo que fizermos relacionado com a religião,
possamos ser capazes de dizer: “Assim diz o Senhor”; ou “Está escrito”
(Mt 4:1-10).

1 N. do T.: Sem dúvida uma alusão ao brasão da cidade de Berna, que tem um urso
estampado.
2 As datas e os fatos dos esboços acima foram retirados, em sua maior parte, dos
escritos de Scott, History, onde o leitor irá encontrar muitos detalhes que foram
aqui omitidos, vol. 2, pp. 366-384.
3 Prefácio, Life of Zwingle, by J. G. Hess. Translated by Lucy Aikin.
4 D’Aubigné, vol. 2, p. 502.
5 Hess, pp. 130-138.
6 N. do T.: “Minha primeira e última defesa”. Provavelmente Zuínglio deu esse nome
ao seu escrito porque esperava que esta primeira resposta também fosse a
última.
7 Citações de Scott dos escritos de Gerdesius, professor de divindade em
Gröningen, e de A. Ruchat, vol. 2, p. 406.
8 Hess, p. 148.
9 Waddington, vol. 2, p. 284.

Capítulo 42
AS CONSEQUÊNCIAS DOS DEBATES

Mesmo estando convencidas que nem a missa ou o culto às imagens


podia ser justificado pela Palavra de Deus, ainda assim as autoridades de
Zurique não se sentiam confortáveis com a ideia de abolir tais usos e
costumes pela via legal. De forma muito prudente, Zuínglio também
recomendou grande cautela e moderação. Quando perguntaram pela sua
opinião, ele disse ao Concelho: “Deus conhece meu coração e Ele sabe
que a minha intenção é edificar e não derrubar. Eu conheço almas
medrosas, e todas elas merecem ser poupadas. O povo em geral ainda
não possui luz suficiente para receber, com unanimidade, mudanças tão
enérgicas. Por isso, permitam que a missa ainda seja celebrada por
algum tempo, aos domingos, em todas as igrejas, contudo, que ninguém
se atreva a insultar o sacerdote oficiante”. Os magistrados deram ouvidos
ao conselho de Zuínglio com prazer, pois lhes importava muito prevenir
todo tipo de agitação civil, e permitiram que cada sacerdote rezasse a
missa ou evitasse fazê-lo, conforme achasse mais apropriado. Todavia,
os magistrados reservaram para si mesmos o direito de determinar, no
futuro, qualquer orientação que eles julgassem conveniente.
Durante esse período, os amigos da Reforma Protestante pediram ao
senado que libertasse as pessoas que haviam sido presas por terem
participado na destruição do crucifixo de Stadelhofen, mencionada no
capítulo anterior. Todos foram colocados em liberdade, com exceção de
Hottinger e um de seus amigos, os quais eram os principais líderes
daquele ato que causou grande tumulto na cidade. Eles foram banidos
por dois anos do cantão de Zurique.
***
O PRIMEIRO MÁRTIR DA REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA
Quanto mais progressos a causa da Reforma fazia, tanto mais
aumentava a raiva dos seus inimigos. Eles perceberam que deveriam
tomar medidas mais vigorosas se quisessem colocar barreiras eficazes
para a propagação da nova doutrina. No mês de janeiro de 1524, uma
Dieta se reuniu na cidade de Lucerna. Todos os cantões estavam
representados, com exceção de Zurique e Schaffhausen. O clero, que
estava presente nessa Dieta, se empenhou em instigar o Concelho contra
as novas doutrinas e contra aqueles odiados inovadores. Seus esforços
não foram infrutuosos. Os acontecimentos recentes em Zurique haviam
alarmado todos os espíritos. Receosos, eles se perguntavam que fim
teria tudo isso. Por essa razão, os partidários de Roma não tiveram
problemas para influenciar o Concelho e um edito foi emitido nos
seguintes termos: “O povo estava proibido de falar ou repetir qualquer
ensinamento novo ou luterano, tanto em público como em privado. As
pessoas também estavam proibidas de discutirem esses assuntos tanto
nas tavernas quanto nas festas. Além disso, quaisquer leis expedidas
pelo bispo de Constança que tratassem de questões religiosas deveriam
ser rigorosamente observadas. Todas as pessoas, independente de ser
homem ou mulher, velho ou jovem, que ouvisse ou visse qualquer coisa
contrária ao edito, estavam obrigadas a denunciarem imediatamente tais
práticas às autoridades”. Dessa maneira, por meio da sutileza de
Satanás, uma armadilha foi colocada para os reformadores, na qual eles
cairiam necessariamente. Começou uma perseguição sistemática. Esse
edito foi publicado em todos os distritos juntamente com a ordem para ser
executado com toda a severidade. Somente Zurique se recusou
firmemente em reconhecê-lo. Hottinger foi a primeira vítima dessa
resolução.
Depois de ter sido banido de Zurique, Hottinger foi para Baden, onde
viveu sustentando-se pelo trabalho de suas próprias mãos. Ele nunca
evitou ou deixou de aproveitar qualquer oportunidade para falar de sua fé.
Quando lhe perguntavam sua opinião acerca das novas doutrinas que os
pastores em Zurique estavam pregando, ele falava francamente acerca
do assunto. Certa vez ele disse: “Eles pregam que Cristo se sacrificou
uma vez por todas, por todos os cristãos; e que por esse único sacrifício,
como nos ensina o apóstolo Paulo, Ele aperfeiçoou para sempre todos os
que estão sendo santificados1 (Hb 10:14). Portanto, a missa não é um
sacrifício, e a invocação de santos e a adoração de imagens são práticas
contrárias à Palavra de Deus”. Essas palavras eram mais do que
suficientes para condenarem aquele homem inocente. Ele foi denunciado
diante do prefeito da cidade pela sua maneira herética de pensar e foi
preso em seguida. Diante dos juízes, quando questionado acerca de suas
crenças religiosas, ele não escondeu suas convicções e professou sua fé
abertamente, e se declarou pronto para justificar tudo o que havia
afirmado anteriormente. O tribunal lhe respondeu que ele havia
transgredido uma ordem do poder civil que proibia todas as discussões
que tratavam de assuntos pertinentes à fé. Mas como o tribunal de Baden
não quis condenar o prisioneiro, o prefeito sedento por sangue o enviou
para Lucerna. Ali, sem mais delongas, ele foi condenado pelos
representantes dos sete cantões para ser morto por decapitação.
Quando informado dessa severa sentença, ele respondeu calmamente:
“Que seja feita a vontade do Senhor! Que Deus se agrade em perdoar
todos aqueles que contribuíram para minha morte...”. Um dos juízes o
interrompeu: “Está bem, está bem. Não estamos sentados aqui para ouvir
sermões. Você pode palrar* em outro momento!”. Outro juiz disse
escarnecendo: “Esse homem precisa ser decapitado imediatamente, mas
se ele conseguir recolocar sua cabeça de volta no lugar, então
seguiremos seus ensinamentos”. Hottinger respondeu: “Também
disseram ao Senhor Jesus: ‘Ó Cristo, Rei de Israel, desça agora da cruz,
para que o vejamos e acreditemos’ (Mc 15:32)”. Um monge colocou um
crucifixo sobre os lábios de Hottinger, mas ele o afastou, dizendo: “É pela
fé que nós devemos receber o Cristo crucificado em nossos corações”.
Hottinger foi visivelmente fortalecido pela presença do Senhor enquanto
caminhava para o local onde seria executado. Muitos o seguiam
chorando. “Não chorem por mim”, ele dizia, “estou a caminho da bem-
aventurança eterna.” Com uma seriedade comovente, ele pregou o
Evangelho aos que o rodeavam, e exortou o povo a olhar para o Senhor
Jesus Cristo, pois é apenas nEle que pode ser encontrado o perdão e a
salvação. Suas últimas palavras no cadafalso* foram: “Em tuas mãos
meu Senhor e Salvador Jesus Cristo, eu entrego o meu espírito!”. Em
poucos instantes ele estava ausente do corpo e presente com seu amado
Senhor (cf. 2 Co 5:6).
A tranquilidade, a coragem e a sabedoria que Hottinger demonstrou
diante dos juízes e enquanto caminhava na direção do cadafalso, deram
a ele um lugar de honra entre aqueles que morreram pela causa da
Reforma Protestante. Com uma calma e firmeza dignas de admiração,
nos últimos instantes ele implorou pela misericórdia de Deus a favor de
seus juízes, e pediu para que pudessem ter seus olhos abertos para
enxergarem a verdade. Depois, voltando-se para o povo, ele disse: “Se
eu ofendi qualquer um dentre vós, que possam me perdoar, assim como
eu tenho perdoado meus inimigos. Peçam para que Deus sustente a
minha fé até o último momento. Uma vez que minha sentença for
executada, vossas orações não serão mais de proveito para mim”.2
***
O SANGUE DE HOTTINGER INFLAMA AINDA MAIS O ZELO DOS PAPISTAS
O Concelho de Zurique apresentou um grave protesto na Dieta em
decorrência da injusta condenação de Hottinger. Mas este protesto não
apenas foi desconsiderado, mas os inimigos da Reforma instigaram ainda
mais a ira deles. Mal o sangue daquele inocente mártir cristão havia
esfriado e a Dieta já estava determinando medidas ainda mais violentas
para a supressão da nova doutrina. Imediatamente eles decidiram enviar
uma delegação a Zurique — onde estava o centro da perversão — para
convocar o Concelho e os cidadãos a renunciarem às suas atividades
heréticas.
De acordo com essa resolução, uma embaixada foi enviada a Zurique
no dia 21 de março de 1524. Essa embaixada era composta de
representantes de todos os cantões que se encontravam reunidos em
Lucerna, com uma única exceção: o cantão de Schaffhausen. A
delegação se apresentou imediatamente diante do senado da cidade.
Primeiramente lamentaram que a unidade da antiga fé cristã tivesse sido
rompida, e advertiram que as mais lamentáveis consequências iriam
suceder se não abandonassem as infelizes inovações recentemente
introduzidas, pelas quais o pacífico descanso da igreja e do Estado já
havia sido profundamente abalado. Eles prosseguiram: “Caros
confederados de Zurique, unam vossos esforços aos nossos, ajudem-nos
a suprimir essa nova fé, e deponham Zuínglio e seus alunos. Teria sido
melhor se esse mal tivesse sido eliminado logo no seu início, e se nós,
seguindo o exemplo de nossos ancestrais, tivéssemos vindicado* a honra
de Deus, da bendita virgem Maria e de todos os santos com nossas
próprias vidas e fortunas. Os frutos dos ensinamentos de Lutero são
visíveis em todos os lugares na atitude ameaçadora do povo, o qual se
demonstra maduro para uma rebelião”. Dessa forma, os representantes
vindos de Lucerna apelaram ao senado de Zurique para que demitissem
Zuínglio e Leo Jud, que eram os instrumentos desses ensinamentos que
estavam contaminando os suíços. Prontamente a delegação admitiu que
havia abusos no sistema eclesiástico romano que precisavam ser
removidos. Eles disseram: “Todos nós somos oprimidos pelo papa e pelo
colégio de cardeais, pelos bispos e seus agentes, os quais, através da
usurpação, da simonia e das indulgências esgotaram as riquezas do país.
Todos nós estamos dispostos a cooperar para remover males como
esses, e em associação convosco enfrentar os abusos dos papas e dos
seus cortesãos. Porém, vós não deveis mais tolerar as inovações
heréticas que estão sendo abrigadas e alimentadas pelo senado de
Zurique”.
Essa foi a linguagem dos adversários da Reforma Protestante. O
momento solene da decisão havia chegado. Será que Zurique teria
coragem suficiente para se opor aos decretos da Dieta e da grande
maioria da Confederação Helvética sozinha? O senado encontrava-se em
uma situação extremamente difícil, mas ele não vacilou nem por um
instante. A morte de Hottinger não tinha desencorajado os cidadãos de
Zurique, antes havia despertado sua justa indignação. Sua resposta foi
firme e determinada.
***
A RESPOSTA DE ZURIQUE
A resposta do senado de Zurique foi: “Não podemos fazer nenhum tipo
de concessão naquilo que concerne à Palavra de Deus. Pelos últimos
cinco anos nós temos ouvido as sagradas instruções de nossos ministros.
No princípio essas doutrinas pareciam novas e ofensivas a nós, uma vez
que nunca tínhamos ouvido falar em algo semelhante. Mas quando
entendemos e percebemos, com clareza, que o propósito e o conteúdo
das pregações eram anunciar Jesus Cristo como o autor e consumador
da nossa salvação, o qual morreu na cruz como Salvador da humanidade
e derramou Seu precioso sangue para nos purificar dos nossos pecados,
e que se encontra agora no céu como nosso único Advogado e Mediador
entre Deus e os homens. Quando ouvimos essa mensagem tão salutar,
não pudemos fazer outra coisa a não ser recebê-la com grande
disposição”. Quanto às propostas da delegação de proceder em conjunto
contra os abusos de Roma, eles responderam que somente a obediência
à Palavra de Deus poderia manter a unidade entre os Estados, e que a
única arma eficaz para romper o poder dos papistas e colocar
definitivamente um fim nos seus abusos, usurpações e ganâncias,
consistia na pregação da pura Palavra de Deus.
Dessa forma, os zuriquenhos levantaram, com nobre dignidade, a
preciosa Palavra de Deus como seu estandarte, ao qual estavam
determinados a seguir; e Deus estava com eles. O senado concluiu: “Não
existe nada que desejemos mais ardentemente do que a manutenção da
paz. Também não é nossa intenção violar de alguma forma nossas leis e
tratados de aliança. Mas nesta causa, que diz respeito a nossa
segurança e salvação eternas, não podemos agir de forma diferente, a
menos que nos convençam de que estamos errados. Portanto, vos
pedimos mais uma vez que, se considerais nossa doutrina como contrária
às Escrituras, nos convençam disso. Mas devemos exortá-los que não se
demorem. Estamos dispostos a esperar até o final do mês de maio. Até lá
aguardamos uma resposta vinda da vossa parte, dos bispos e da
universidade da Basileia”.
***
A REMOÇÃO DAS IMAGENS
O tempo determinado passou e nenhuma resposta veio dos cantões
católicos romanos. Por esse motivo, o Concelho de Zurique determinou
que a obra da Reforma Protestante deveria prosseguir. O decreto
para a remoção das imagens das igrejas já havia sido aprovado em
janeiro, mas as autoridades ainda não haviam executado o mesmo. É de
fato admirável a forma calma e prudente com a qual essa difícil questão
foi conduzida pelos magistrados de Zurique. Eles se demoraram na
expectativa de que o próprio povo se enfadasse das imagens e que a
remoção destas fosse alcançada através de um consenso geral.
Somente quando parecia que todos os ânimos estavam
suficientemente preparados, o Concelho da cidade, atendendo a
solicitação de Zuínglio, Leo Jud e Engelhardt, publicou uma ordem que
dizia: “Visto que toda a honra é devida somente a Deus, todas as
imagens devem ser removidas de todas as igrejas do cantão, e os
ornamentos das mesmas devem ser vendidos para o benefício dos
pobres. O Concelho também proíbe que qualquer indivíduo, agindo
sozinho, destrua qualquer imagem sem que tenha autorização para tal, a
não ser que aquelas imagens fossem propriedade particular do indivíduo.
As igrejas podem destruir suas imagens de acordo com o método
prescrito. Todas as pessoas ou famílias que doaram imagens para serem
colocadas nas igrejas, devem remover as mesmas dentro de certo
período, ou as mesmas serão destruídas pelas autoridades públicas”.
Através dessas medidas prudentes e moderadas, resultantes dos
conselhos de Zuínglio, a cidade de Zurique conseguiu evitar qualquer
agitação e dissensão civil, e as imagens foram removidas sem qualquer
perturbação.
A comissão indicada para a remoção das imagens consistia de doze
pessoas do Concelho, três pastores, o arquiteto da cidade, pedreiros,
carpinteiros e outros assistentes necessários. Esse grupo de pessoas foi
às várias igrejas e, tendo fechado suas portas, retiraram os crucifixos,
rasparam os afrescos das paredes e as pintaram com cal, queimaram os
quadros e despedaçaram ou destruíram as imagens de santos para
impedir que alguma vez pudessem servir novamente como objetos de
veneração idólatra. As igrejas do campo seguiram o exemplo da capital,
demonstrando um zelo ainda maior na destruição de todos os objetos
usados para adoração. Em um mosteiro em Altenbach encontrava-se
uma famosa estátua de pedra da virgem Maria, que tinha a reputação de
ser uma grande milagreira e por isso era venerada por todos. Zuínglio
conta, de maneira um pouco irônica que, a todos os visitantes do
mosteiro, os monges afirmavam que a mesma nunca poderia ser
removida de modo permanente do seu venerável lugar. De acordo com
esses monges, por diversas vezes a mesma já havia sido removida e
levada para outro lugar, sendo firmemente fixada e até mesmo trancada
dentro de uma sala, mas sempre reaparecia na manhã seguinte na sua
base original. Todavia, para surpresa de todos, ela fracassou
completamente em confirmar a afirmação dos monges. Também essa
maravilhosa imagem foi vítima do zelo dos purificadores das igrejas.
Mãos rudes a arrancaram do seu lugar e eis que nunca mais voltou para
lá. Assim, esse ídolo expôs a afirmação dos astutos monges como sendo
mentiras miseráveis. Com isso, o ídolo perdeu toda credibilidade que
tinha junto ao povo.
Diante desse fato, Zuínglio exclamou: “Eu me alegro e incentivo todos
os outros a se alegrarem comigo, de que esse blasfemo engano foi por
fim removido diante dos olhos dos homens. E, uma vez que isso
aconteceu, todas as outras invenções do papado poderão ser vencidas
mais facilmente. Somente a Deus, através do qual nos veio o poder e a
graça para realizarmos todas essas coisas, seja o louvor e a glória para
sempre!”.
***
A REFORMA PROTESTANTE NA SUÍÇA E NA ALEMANHA
Contemplando esse poderoso trabalho do Espírito de Deus, pararemos
por um momento para comparar os dois grandes líderes da Reforma
Protestante, o da Suíça e o da Alemanha. Queremos contrastar o caráter
de seus princípios e ações e os resultados consequentes. A diferença
entre os dois tem sido algo sempre muito marcante. Como o próprio
D’Aubigné, o grande defensor de Lutero, tem reconhecido as diferenças
entre os dois reformadores, nos sentimos com mais liberdade para
chamar a atenção dos nossos leitores para as mesmas.
O que caracterizou a conduta de Zuínglio desde o início foi uma
consideração extremamente elevada da Sagrada Escritura e um zelo
incansável para remover tudo aquilo que era contrário a ela. Zuínglio
afirmava corajosamente que todas as práticas religiosas que não
pudessem ser encontradas ou provadas pela Palavra de Deus deveriam
ser completamente abolidas. Seu Antigo Testamento em hebraico e seu
Novo Testamento em grego se encontravam na mesa diante dele em
todas as salas de debates, e ele não admitia nenhum outro padrão válido
que não fosse esse representado pela Palavra de Deus. Já com a velha
religião, Lutero procedia de uma maneira muito diferente à de Zuínglio.
Lutero desejava manter na igreja muito daquelas práticas que não eram
direta ou expressamente contrárias ao ensinamento das Escrituras.
Como é fácil perceber, esse não era um princípio bom nem sadio.
Quando a pergunta se isso ou aquilo não está expressamente proibido na
Palavra de Deus se torna na norma da minha conduta, eu irei me permitir
muitas coisas que não correspondem aos pensamentos de Deus e à
verdade por Ele revelada. Às vezes pode ser difícil de provar que aquilo
que eu me permito está proibido nas Escrituras com palavras categóricas,
porém, Deus nunca me deixará na incerteza acerca de qual é o caminho
agradável diante dEle se eu desejo sinceramente fazer Sua vontade. E é
neste caminho que eu devo andar. A verdade é categórica e nunca me
deixará na incerteza. O outro princípio sempre suscitará inconstância e
insegurança na minha conduta.
D’Aubigné escreve detalhadamente sobre as diferenças entre os dois
reformadores e os seus procedimentos. Mencionamos textualmente uma
parte das suas explanações: “A perspectiva dos dois reformadores era
distinta. Lutero havia se levantado contra aqueles que de modo violento
haviam destruído as imagens que existiam nas igrejas de Wittenberg ao
mesmo tempo em que os ídolos eram derrubados nos templos de Zurique
sob a direção do próprio Zuínglio. O reformador alemão desejava
permanecer unido à Igreja de Roma, e teria se contentado em apenas
purificá-la de todas as suas práticas, que eram, de forma manifesta,
contrárias à Palavra de Deus. O reformador de Zurique examinou todos
os acontecimentos da Idade Média e chegou à conclusão que nada podia
ser encontrado que estivesse revestido de autoridade absoluta, fosse
tradição ou algo escrito. A restauração à simplicidade primitiva da igreja
era o conceito que ele tinha de uma Reforma, por isso ele voltou às
origens, aos tempos apostólicos. Dessa maneira, portanto, podemos
perceber que a Reforma promovida por Zuínglio era mais completa do
que aquela de Lutero.
A Reforma tinha duas grandes tarefas fundamentais. O cristianismo
primitivo3 havia sido transformado a partir do segundo século através da
autojustificação ensinada pelo farisaísmo judaico e pelo paganismo dos
gregos. Sob a influência dessas duas religiões se tornou gradativamente
no catolicismo romano. O elemento judaico consistia principalmente na
doutrina de homens. A perspectiva farisaica da justiça própria — da
salvação por meio de obras meritórias praticadas pelos seres humanos
— havia penetrado na Igreja vindo do judaísmo. O elemento pagão havia
desfigurado o conceito de um Deus infinito com Seu poder absoluto que
opera incessantemente por todas as partes. Também havia introduzido na
Igreja o domínio dos símbolos, das imagens e das cerimônias; os santos
se tornaram nos semideuses do papado. O reformador germânico
proclamava a grande doutrina da justificação pela fé e, por meio disso,
infligiu o golpe mortal na justiça farisaica de Roma. O reformador suíço
fez exatamente o mesmo. O homem é incapaz de redimir a si próprio, e
este era o ponto de partida de todos os reformadores. Mas Zuínglio fez
mais do que isso. Ele estabeleceu a operação de Deus como sendo uma
operação ilimitada, exclusiva e que abrangia tudo, e dessa maneira ele
derrubou os cultos pagãos idólatras de Roma. O catolicismo romano
elevou o homem e rebaixou a Deus. Lutero rebaixou o homem, Zuínglio
elevou a Deus novamente ao trono”.4
***
O CASAMENTO DE ZUÍNGLIO
De todas as inovações que estavam sendo introduzidas, nenhuma foi
motivo de maior escândalo para o partido papal que o casamento dos
membros do clero. Por meio disso foi desafiada toda a disciplina
eclesiástica, bem como todos aqueles que estavam acostumados a
considerarem-se os guardiões e protetores da mesma. Viver juntos, como
se fosse casado, era ignorado — quando não aprovado pelas autoridades
eclesiásticas. Mas o ato de se casar era considerado pecado mortal. Tão
corrompidos eram os princípios do papado. Mas o Espírito de Deus agora
estava operando poderosamente, e os olhos de muitos foram abertos
para enxergarem a verdade. Um dos sacerdotes de Estrasburgo que,
como a maioria dos seus companheiros de ofício havia levado uma vida
imoral por um longo tempo, pela graça de Deus foi levado a enxergar seu
pecado e tomou a decisão de casar-se imediatamente. Assim que isto se
tornou público, o bispo exigiu que o malfeitor despedisse a mulher.
Quando o sacerdote se recusou obedecer a essa ordem, surgiu uma
grande agitação da cidade, tanto no meio das autoridades eclesiásticas
como nas civis. Mas logo o bispo teve que reconhecer que o tempo em
que Roma dominava de forma impedida sobre as consciências das
pessoas, havia passado. Muitas pessoas aprovaram a decisão do
sacerdote e um grande número de clérigos seguiu seu exemplo. Em vão
Roma clamou por ajuda diante das autoridades seculares; esta se
recusou a punir os culpados.
No mês de abril de 1524, o próprio Zuínglio fez uso do direito que ele
havia tantas vezes reivindicado a favor de todos os sacerdotes. Ele se
casou com Anna Reinhart, que era viúva de John Meyer von Knonau,
soberano de Weiningen. Anna era uma mulher que gozava de grande
consideração em Zurique e, pela sua piedade e modéstia, havia atraído a
atenção de Zuínglio. Quando esse casamento foi publicamente
proclamado, isso estabeleceu um bom exemplo para seus irmãos na fé.
Dos vários filhos que nasceram deste casamento, somente dois
sobreviveram ao pai: Ulrico, que se tornou arquidiácono de Zurique; e
Regula, que se casou com Rodolfo Gwalther, um destacado teólogo
daquele tempo. No ano seguinte, Lutero casou-se com Catarina de
Bora. Esses acontecimentos deram muitos motivos para que os inimigos
blasfemassem. No caso de Zuínglio, como ele nunca havia sido um
monge nem sua esposa uma freira, o escândalo não foi tão grande
quanto no caso de Lutero e Catarina.
***
O PROGRESSO DA REFORMA PROTESTANTE
O Senhor abençoou grandemente os trabalhos dos reformadores em
Zurique durante aquele tempo. Ao mesmo tempo, impediu a ação da mão
cruel de seus inimigos. A Palavra de Deus encontrou seu lugar
apropriado no coração dos reformadores e, através dos esforços deles,
no coração do povo. Como sabemos, Deus nunca falha em abençoar o
povo ou a nação que honra Sua Palavra. Esse é o caminho mais seguro
para as mais ricas bênçãos de Deus. O Senhor ainda diz: “porque aos
que me honram honrarei“ (1 Sm 2:30).
A destruição das imagens foi imediatamente seguida pela dissolução
voluntária das duas instituições religiosas mais importantes que existiam
na cidade de Zurique. A primeira era uma abadia antiga e muito rica, que
havia sido fundada por reis. Ela era conhecida pelo nome de
Fraumünster, e servia para receber mulheres das mais distintas e nobres
famílias. A abadia se distinguia não apenas por sua antiguidade, mas
também pelas inúmeras liberdades e privilégios que desfrutava. Além
disso, a mesma possuía uma imensurável receita financeira. Essa
extraordinária sociedade feminina exercia o soberano direito de cunhar
todo o dinheiro em circulação em Zurique e de nomear as pessoas que
deveriam presidir nos tribunais de justiça. Essa instituição entregou, de
livre e espontânea vontade, todos os seus bens e direitos nas mãos do
governo civil, com a condição de que as riquezas existentes fossem
utilizados para fins piedosos e caritativos. A abadessa, Catarina de
Zimmern se retirou com uma pensão apropriada e casou-se logo em
seguida. Como consequência dessa mudança, no ano 1526 a cidade de
Zurique cunhou pela primeira vez as moedas e estabeleceu Cortes de
justiça em seu próprio nome.
O grupo de cônegos, ao qual Zuínglio pertencia como membro, depois
de ter feito um acordo com o governo a respeito de seus direitos e
receitas, seguiu o exemplo das freiras ricas. Os poucos monges
remanescentes das três ordens existentes foram reunidos em um único
mosteiro. Os monges jovens deveriam aprender algum ofício útil para a
sociedade, enquanto os mais velhos deveriam terminar seus dias em paz.
As notícias desses novos triunfos da Reforma Protestante se
divulgaram rapidamente por todas as montanhas e vales da Suíça,
despertando a fúria nos cantões favoráveis a Roma. Os sacerdotes
fizeram questão de manter ativa a ira da população distorcendo os fatos e
enfeitando-os com mentiras grosseiras. Dietas foram convocadas sem o
conhecimento do Senado de Zurique, e os representantes dos cantões
católicos assumiram o compromisso de nunca permitir o estabelecimento
desses novos ensinamentos na Suíça.
Entretanto, também os pontífices não foram apenas espectadores
indiferentes. Clemente VII enviou uma breve mensagem dirigida à
República Helvética em geral, na qual ele saudava seus cidadãos com as
mais calorosas expressões de respeito e benevolência. Ele também
dirigiu uma carta extremamente bajuladora a todos — tanto leigos quanto
clérigos — que se haviam distinguido por meio de seu zelo em apoiar a fé
católica. Na opinião do papa, o zelo deles era “mais glorioso do que todas
as vitórias e conquistas militares alcançadas por aquele bravo povo
suíço”. Além disso, ele exortou insistentemente seus amados filhos a
perseverarem nesse louvável caminho, até que tivessem extirpado
completamente as “doutrinas luteranas” do solo suíço.
Os dez cantões que eram contrários à nova fé foram instigados ainda
muito mais por estas palavras vindas do papa. No mês de julho eles se
reuniram em assembleia na cidade de Zug, e decidiram enviar
representantes até Zurique, Schaffhausen e Appenzell. Esses tinham a
missão de declarar àqueles três cantões que a Dieta estava firmemente
determinada a “exterminar a nova doutrina e perseguir seus seguidores,
despojando-os de seus bens, suas honras e até mesmo de suas próprias
vidas”. Era impossível para o povo de Zurique ouvir tais ameaças sem
experimentar uma profunda comoção. Apesar disso, sua resposta foi tão
firme e determinada como antes: “Em questões de fé, apenas a Palavra
de Deus deve ser obedecida”. Quando receberam essa resposta, os
cantões católicos ficaram muito irados. Lucerna, Uri, Schwyz, Zug,
Unterwald e Friburgo declararam aos cidadãos de Zurique que eles não
mais se sentariam juntos em uma Dieta a menos que renunciassem a
esses novos dogmas. A unidade federativa foi assim quebrada pelos
partidários de Roma e, apesar de seus juramentos e alianças, eles
estavam determinados a impedir o progresso da verdade e perseguir
seus irmãos com o fogo e a espada.
***
AS ARMAS DE ROMA
A batalha começou a assumir um caráter bem mais alarmante. Pouco
tempo depois aconteceu um evento que fez aumentar a divisão dos
confederados e deu a Roma a oportunidade de demonstrar com que
armas ela estava preparada para lutar em defesa da sua fé e para
impedir o progresso da verdade.
A vila de Stammheim, situada nas fronteiras do cantão de Turgóvia,
dependia em tudo da cidade de Zurique, com exceção de sua jurisdição
criminal, que era responsabilidade da autoridade administrativa de
Turgóvia. Essa vila possuía uma capela dedicada a Santa Ana. A vila
havia sido enriquecida através das doações de uma multidão de
peregrinos que visitava a capela. Mas apesar dessas vantagens, os
habitantes da vila estavam inclinados a abandonar a idolatria e abraçar
os princípios da Reforma Protestante. Naqueles dias, Stammheim era
governada por um vice-administrador chamado João Wirth, que era um
homem digno, gozava de grande consideração por toda parte e era um
fervoroso pregador do evangelho. Ele tinha dois jovens filhos que eram
sacerdotes, João e Adriano, que se encontravam naquela cidade por
ordem do Concelho de Zurique, para instruir o povo. Cheios de devoção e
coragem, e sendo também zelosos pregadores do Evangelho, ensinavam
aos cidadãos daquele vilarejo que as honras que atribuíam à Patrona de
sua vila eram, na realidade, atos que desonravam a Deus e contrários a
Sua Santa Palavra. Assim que esses homens receberam o edito do
Concelho de Zurique que tratava da questão relativa às imagens,
queimaram os quadros que haviam sido oferecidos como ex-votos* em
cumprimento de promessas por milagres recebidos, através da mediação
de Santa Ana, e removeram todas as imagens e crucifixos que haviam
sido colocadas em espaços públicos de Stammheim.
Embora o sentimento popular, de forma geral, era favorável ao
movimento da Reforma, ainda existiam muitos que se apegavam a seus
ídolos com uma tenacidade peculiar da idolatria, e que murmuravam
contra a remoção dos ídolos e desejavam derramar o sangue daqueles
que os destruíam. Essas pessoas levaram suas reclamações e queixas
ao grande administrador da Turgóvia, chamado José Amberg. Esse
homem infeliz, outrora esteve inclinado a aceitar as doutrinas de Zuínglio,
mas mudou de opinião quando se candidatou ao ofício de administrador,
visando obter os votos de seus concidadãos, que eram todos católicos
fervorosos. Ele havia prometido usar todo o seu poder para extirpar a
nova seita na cidade de Turgóvia. Ele teria mandado prender os
ofensores com prazer, mas Stammheim estava fora da sua jurisdição. Já
há muito tempo ele nutria um profundo ódio contra o vice-administrador
Wirth e seus dois filhos, e expressava abertamente a intenção de vingar
neles a desonra que havia sido praticada contra a Santa Ana.
***
A PRISÃO ILEGAL DE OEXLIN
Nas proximidades de Stammheim, no castelo de Stein, no Reno, vivia e
trabalhava o pastor Oexlin, um íntimo amigo de Zuínglio e o homem mais
destacado da Reforma Protestante em Turgóvia. Foi primeiramente
contra ele que se voltou a ira de Amberg. À meia noite do dia 7 de julho
de 1524, o sábio e devotado ministro foi preso pelos soldados do
administrador e, apesar de seus gritos, foi levado à força. Tudo isso
ignorando suas queixas e demonstrando um completo desprezo pelos
privilégios de sua posição. Os habitantes, despertando com o barulho,
correram para as ruas, e o pacífico vilarejo rapidamente se tornou o
cenário de um tumulto assustador. Antes que eles pudessem sequer
entender o que estava acontecendo, os soldados já haviam desaparecido
na escuridão da noite com seu prisioneiro. De acordo com o costume
daqueles tempos, o sino de alarme foi tocado. Ao ouvir o alarme, os
habitantes de todos os vilarejos adjacentes se reuniram rapidamente;
todos corriam de lá pra cá perplexos, e durante muito tempo ninguém
sabia o que realmente estava acontecendo.
Quando João Wirth e seus filhos ouviram que seu amigo e irmão havia
sido levado violentamente, eles se apressaram em perseguir os
sequestradores, mas era tarde demais. Os soldados, tendo ouvido soar o
alarme, aceleraram ainda mais o passo e, rapidamente, atravessaram o
rio Thur, deixando os perseguidores na outra margem. Um pedido foi feito
para Amberg com o objetivo de soltar Oexlin em troca do pagamento de
uma fiança, mas a oferta foi recusada. Como geralmente acontece
nesses casos, também nessa ocasião, infelizmente, houve pessoas
revoltosas e sem princípios cujo único objetivo foi causar tumulto e
confusão, e assim, a situação ficou realmente fora de controle. Sob a
liderança destes revoltosos, os enfurecidos campesinos se dirigiram ao
mosteiro de Ittingen, exigindo de forma autoritária que lhes fosse dado
mantimentos. Porém não ficaram satisfeitos com o que receberam. Em
seguida, eles começaram a pilhar o mosteiro e beber em excesso. Wirth
e seus filhos fizeram todo o possível para tentar restringir a agitada
multidão, mas sem obter nenhum sucesso. Muitos entre o populacho
acreditavam que os internos do mosteiro haviam encorajado a tirania de
Amberg, a qual deveria ser vingada agora nos monges de Ittingen.
Enquanto a rebelião se espalhava pelos depósitos e pelas adegas, um
incêndio foi iniciado e o mosteiro foi queimado até os alicerces.
***
AS FALSAS ACUSAÇÕES CONTRA WIRTH E SEUS FILHOS
A destruição do mosteiro foi suficiente para servir aos perversos
propósitos do adversário. O grande administrador Amberg, ao reportar os
acontecimentos daquele fatídico evento para os governantes, acusou os
habitantes de Stein e de Stammheim. Mas, acima de tudo, ele culpou o
administrador Wirth e seus filhos, aos quais acusou de terem ordenado
fazer soar o alarme, causando assim o tumulto e os excessos cometidos
em Ittingen. Ele também os acusou de terem profanado a Patrona da
cidade e de terem ateado fogo ao monastério.
Poucos dias depois, os representantes dos cantões se reuniram na
cidade de Zug. A indignação que sentiam era tão grande e generalizada
que foi feita a proposta de ir imediatamente a Stein e Stammheim e
massacrar seus habitantes. Todavia, os representantes de Zurique, sendo
contrários a essa intenção, falaram com maior moderação, dizendo: “Se
existe um culpado, ele precisa ser punido, mas de acordo com a lei, e
não pela violência”. Vadian, o representante de São Galo, concordou com
eles. Estes homens também demonstraram aos representantes dos
cantões que foi o grande administrador que havia provocado a comoção
ao violar os direitos da cidade de Stein, ao proceder com a prisão ilegal
do pastor Oexlin. Irritados pela ação violenta do administrador, os
habitantes de Stein e dos vilarejos circundantes haviam se deixado levar
por esses lamentáveis excessos. Nesse meio tempo, o Concelho de
Zurique enviou um de seus membros com uma escolta de soldados até
Stammheim — cujos habitantes eram súditos de Zurique — com o
objetivo de prender as pessoas acusadas. Muitos dos acusados fugiram
para garantirem sua segurança. Todavia, Wirth e seus dois filhos, que
haviam retornado para o lar antes que o monastério fosse incendiado,
recusaram-se a fugir, confiando na própria inocência e na justiça dos
seus governantes. Quando os soldados chegaram à sua casa, o digno
homem disse para eles: “Os senhores de Zurique poderiam ter evitado
todo esse trabalho. Se o Concelho tivesse mandado um menino como
representante, ainda assim eu obedeceria à convocação deles”. Os três
membros da família Wirth, junto com seu amigo, Burchard Ruteman, o
administrador de Nussbaumen — um homem com o mesmo espírito —
foram feitos prisioneiros e levados para Zurique.
Depois de três semanas de cárcere, eles foram levados para serem
interrogados. Eles reconheceram que haviam saído de suas casas
quando soou o alarme e que haviam acompanhado a multidão até
Ittingen. Ali, em vez de atiçar os ânimos dos camponeses para praticarem
desordens, eles se empenharam em dissuadir os mesmos de tais
práticas e coibir os abusos. Não tendo sucesso em seu empenho e após
receberem a notícia que o grande administrador havia se recusado a
libertar o pastor Oexlin, eles retornaram imediatamente para seus lares.
Eles haviam agido apenas de acordo com os princípios republicanos
adotados pelo país, deixando seus lares para atender o alarme. Visto que
todas as suas afirmações provaram ser verdadeiras e que nada na sua
conduta era digno de punição, os juízes declararam os quatro homens
inocentes.
***
A ASSEMBLEIA REUNIDA EM BADEN
Esses fatos foram transmitidos aos cantões que estavam reunidos em
Baden, mas os mesmos não ficaram nada satisfeitos com a sentença do
Concelho de Zurique. A sede de Jezabel por sangue havia sido aguçada
pelo fato de ter sua presa tão próxima de suas garras. Ela estava
determinada a estender seu braço e garantir o cumprimento de seus
sanguinários interesses. Contrário aos costumes estabelecidos pela
Confederação, ela exigia que os prisioneiros fossem entregues para
serem julgados pela Assembleia em Baden. O Concelho de Zurique
recusou a exigência alegando ser injusto, visto que o direito de julgar
seus próprios súditos pertencia a eles e a Dieta não possuía nenhum
direito sobre as pessoas acusadas. Essa resposta firme causou uma
grande fúria nos representantes dos cantões católicos reunidos em
Baden. Eles vociferaram: “Nós iremos fazer justiça com as nossas
próprias mãos caso os acusados não sejam entregues a nós
imediatamente; marcharemos com nossas tropas até Zurique e os
levaremos com violência!”. Esta ameaça causou grande consternação em
Zurique. Conscientes do estado de ânimo contrário a Zurique, por causa
de Zuínglio e da Reforma Protestante, e temendo as calamidades de uma
guerra civil, a determinação do Senado foi grandemente abalada.
Que momento infeliz para a honra de Zurique! Zuínglio disse ao
Concelho: “Ceder a essas ameaças, renunciar a direitos justos,
especialmente quando a vida de um cidadão está em jogo, para mim é
uma demonstração de fraqueza criminosa. O que podemos esperar disso
tudo senão as mais nefastas consequências? Se os acusados fossem de
fato culpados, eu não me oporia que a espada da justiça fosse aplicada.
Mas, como sabemos, esses homens já foram julgados inocentes. Por que
entregá-los para um tribunal que já está de antemão determinado a fazer
cair todo o ódio que sentem contra a Reforma Protestante sobre suas
pobres cabeças inocentes?”. Toda a cidade de Zurique estava
profundamente agitada. Havia muitas discussões. As opiniões estavam
divididas. Por fim, chegou-se a supor que um meio termo havia sido
alcançado. Foi determinado que os prisioneiros fossem entregues, com a
condição de que os mesmos deveriam ser interrogados apenas quanto
aos acontecimentos tumultuosos em Ittingen, e não quanto à fé que
professavam. A Dieta concordou com essa proposta e, na sexta-feira, 18
de agosto, os três membros da família Wirth e o amigo deles deixaram a
cidade de Zurique. Eles estavam acompanhados por quatro membros do
Concelho, além de vários homens armados.
Um historiador relata: “Uma profunda depressão tomou conta de toda a
cidade diante da perspectiva da sorte que aguardava os dois corajosos
jovens e seus companheiros idosos. À medida que caminhavam pelas
ruas de Zurique, se ouvia somente o choro e o profundo lamento das
pessoas. “Que cortejo desolador!”, exclamou alguém. Zuínglio pregava:
“Deus irá nos punir por termos entregue esses homens. Vamos orar para
que Deus fortaleça com Sua graça estes pobres prisioneiros e que
sustente a fé dos mesmos”. As igrejas estavam totalmente lotadas. Não
havia nenhuma pessoa que não estivesse com o rosto banhado em
lágrimas por esses primeiros frutos ofertados a Deus pela Reforma
Protestante na Suíça.
***
OS MEMBROS DA FAMÍLIA WIRTH E O IRMÃO RUTEMAN SÃO
FALSAMENTE ACUSADOS
Quando os prisioneiros chegaram a Baden foram imediatamente
lançados em um calabouço miserável. O interrogatório teve início no dia
seguinte, apenas para cumprir uma formalidade, pois não queriam
condenar os prisioneiros sem antes ouvi-los. O administrador Wirth foi o
primeiro a ser conduzido ao tribunal. Os católicos, agindo de acordo com
seu costumeiro princípio: “é errado manter comunhão com hereges”,
imediatamente questionaram o idoso administrador acerca da remoção
das imagens de santos em Stammheim e sobre outros pontos pertinentes
à sua fé. Os representantes de Zurique protestaram, lembrando a Dieta
que isso consistia uma grave violação das condições fixadas para que os
prisioneiros comparecessem diante do tribunal. Mas foi tudo em vão.
Quando os representantes de Zurique apelaram para que o acordo fosse
mantido, foram tratados com desprezo e zombaria. Os prisioneiros foram
colocados sob tortura, na esperança de arrancar deles alguma confissão
que pudesse oferecer pelo menos uma aparência de justiça na sentença
que já estava determinada e que seria pronunciada contra eles.
As mais cruéis torturas foram impostas ao ancião Wirth, sem nenhuma
consideração à sua posição ou à sua idade. Todavia, ele persistiu em
declarar sua inocência, tanto da pilhagem quanto do incêndio do mosteiro
em Ittingen. Desde as primeiras horas da manhã até ao meio dia, eles
praticaram suas crueldades no velho homem. Para com seu filho João,
procedeu-se com uma impiedade ainda maior. “Misericordioso e eterno
Deus!”, ele gritava sob os mais terríveis tormentos, “ajuda-me, consola-
me!”. Mas os seus gritos de dor apenas despertaram a cruel zombaria
dos seus torturadores. “Onde está agora o teu Cristo?”, escarneceu um
dos presentes, “Peça-Lhe para que venha e te ajude!”. Mas nada podia
abalar a firmeza e a coragem da fé deste jovem. Seu irmão, Adriano, foi
ameaçado de ter suas veias rasgadas uma após a outra, a menos que
confessasse sua culpa. Mas a única confissão que saía da sua boca era
que ele havia pregado o Evangelho de Cristo e que havia se casado.
Quando finalmente se cansaram das torturas, os algozes mandaram as
fiéis testemunhas de Cristo de volta para o sujo calabouço. Seus corpos
estavam praticamente rasgados em pedaços. Mas eles mesmos se
mantinham na firme e feliz consciência de sua própria inocência, e
estavam sendo sustentados pela presença e poder de seu Senhor e
Mestre, Cristo Jesus. Estavam felizes também por terem suportado a
ignomínia e os sofrimentos pelo seu amado Senhor.
A esposa do administrador, Ana Wirth, ao receber a notícia que seu
marido e seus dois filhos foram transferidos para Baden, apressou-se em
ir até lá. Carregando seu filho menor em seus braços, chorando muito,
implorou pela misericórdia dos juízes. Prostrando-se aos pés daqueles
impiedosos homens, lhes implorou por misericórdia e para que tivessem
em conta sua família numerosa e os serviços que seu marido havia
prestado no passado para o Estado e o país, mas foi tudo em vão. Seu
pedido suplicante, que apenas uma esposa e mãe poderia fazer, em vez
de amolecer o coração dos juízes, acabou por irritá-los ainda mais, e com
isso expôs o ódio satânico contra a verdade, que os tornava insensíveis a
qualquer sentimento humano — era a verdadeira causa de todas as
crueldades que praticavam. Um dos juízes, Geronimo Stocker,
representante e administrador do cantão de Zug, foi conduzido pela mão
da Providência a dar o mais belo testemunho quanto ao caráter de Wirth
e da atitude traiçoeira de seus juízes. Ele foi questionado por um amigo
que havia acompanhado a desesperada esposa e mãe até Baden: “Vocês
conhecem bem o administrador Wirth; não sabeis que ele foi um homem
íntegro toda sua vida?”. Geronimo respondeu: “Sim, eu o conheço. Eu fui
administrador por duas vezes em Turgóvia, e nunca conheci um homem
mais sincero, honrado, correto e hospitaleiro do que João Wirth. Sua casa
estava aberta a todos que precisavam de sua assistência. De fato, sua
casa era como um mosteiro, uma hospedaria e um hospital. E eu não
consigo imaginar que tipo de demônio o atraiu para dentro desse tumulto.
Se ele tivesse feito um assalto, roubado, ou até mesmo cometido um
assassinato, eu estaria disposto a fazer todos os esforços para obter seu
perdão. Mas vendo que ele queimou a imagem da bendita santa Ana, a
mãe da virgem Maria, ele precisa morrer. É impossível demonstrar
misericórdia para um homem na condição em que ele se encontra”.
Diante de tais homens, e de tal mentalidade, não restava esperança
alguma para a infeliz mulher. A Corte encerrou suas atividades, os
prisioneiros voltaram para suas celas e os representantes retornaram aos
seus cantões; eles não tornaram a se encontrar até que todo um mês
tivesse passado.
***
O MARTÍRIO DE JOÃO WIRTH, SEUS FILHOS E DO IRMÃO RUTEMAN
Aquelas terríveis quatro semanas chegaram ao fim e os representantes
dos Estados católicos se reuniram novamente para deliberar quanto à
sentença dos prisioneiros. Com uma solenidade que zombava de toda a
justiça, e com as portas trancadas, a sentença de morte, por meio da
espada, foi pronunciada ao administrador Wirth, ao seu filho João — que
era o mais forte na fé e que havia sido o mais fervoroso em conduzir a
outros a abandonarem a idolatria — e sobre o administrador Ruteman.
Adriano, o filho mais velho, foi devolvido à sua desesperada mãe, talvez
para atenuar a injustiça e a crueldade da sentença por meio desta
demonstração de misericórdia.
Os oficiais foram para a torre com o objetivo de trazer os prisioneiros
para a Corte. Quando a sentença de morte foi lida, Adriano irrompeu em
lágrimas. Seu pai o consolou e, ao mesmo tempo, arrancou dele a
promessa que ele nunca, em nenhuma hipótese, tentaria vingar suas
mortes. “Meu irmão”, disse João para Adriano, “onde está a Palavra de
Deus sempre haverá também uma vida de sofrimentos. Portanto, não
chore meu irmão, retome sua coragem, continue pregando o Evangelho
de Cristo e seja constante na causa do Senhor. De minha parte, eu posso
render graças ao meu Senhor neste dia, porque Ele me honrou
chamando-me para sofrer e morrer por causa da Sua verdade. Bendito
seja Seu santo nome para sempre! Que Sua santa vontade seja feita!”
Após finalizar as costumeiras cerimônias, os condenados foram
conduzidos para o cadafalso. De cabeça erguida, eles iam de forma
calma e alegre ao encontro da morte. O sofrimento experimentado por
aqueles homens fiéis, durante a longa detenção no insalubre calabouço e
nas torturas que os mesmos receberam, transformou a morte em uma
bem-vinda mensagem de paz. Foi marcante a nobreza do filho João —
que deve ser relembrada com admiração e gratidão para sempre — cujo
coração estava cheio do mais tenro interesse a favor de seu pai, e que
procurou, de todas as maneiras, confortá-lo e consolá-lo. Rios de
lágrimas corriam dos olhos de todos os espectadores enquanto ele
abraçava seu velho pai e se despedia dele em cima do cadafalso. “Meu
querido e amado pai, de agora em diante tu não serás mais meu pai e
nem eu serei mais seu filho. Nós somos irmãos em Cristo Jesus, por
amor de quem estamos prontos a morrer agora. Mas temos a certeza de
que hoje iremos, caríssimo irmão, ao encontro dEle, que é nosso Pai e
Pai de todos os fiéis. Uma vez em Sua presença, nós iremos desfrutar da
bem-aventurança eterna. Não temos nada a temer!” “Amém!”, respondeu
o pai, “que o Deus Todo-Poderoso seja glorificado, meu querido filho e
irmão em Cristo!”. Ao lado deles, o administrador Ruteman orava em
silêncio.
Com as palavras “em nome de Cristo”, os três se ajoelharam juntos e,
no momento seguinte, suas cabeças rolaram sobre o cadafalso.
Enquanto isso, suas felizes almas entravam no descanso e no gozo do
paraíso de Deus.
A multidão expressou sua indignação ao ver as marcas das torturas
nos corpos e lamentou em voz alta o triplo homicídio. Os dois
administradores deixaram vinte e dois filhos e quarenta e cinco netos.
Ana cuidou de sua numerosa família, educando-a no temor do Senhor.
Ela era muito respeitada por suas virtudes em todo o distrito. Mas ela
ainda não tinha bebido a última gota do cálice da sua amarga angústia.
Ana foi condenada a pagar doze coroas de ouro ao verdugo que havia
decapitado seu esposo e seu filho. Que o leitor note a cruel barbaridade,
a desprezível mesquinharia, a perseguição covarde, a imensa crueldade
que se alegra em dilacerar um coração profundamente ferido e
machucado de uma pobre mulher. “No seu secreto conselho não entre
minha alma, com a sua congregação minha glória não se ajunte“ (Gn
49:6).
Adriano Wirth foi solto, mas recebeu uma ordem severa de fazer uma
confissão pública de seu crime na cidade de Einsiedeln. Porém ele
conseguiu fugir para Zurique, onde encontrou um refúgio seguro. Mais
tarde tornou-se pastor em Altorf. Ele foi o pai do famoso Rodolfo
Ospiniano, autor da História Sacramentária. O pastor Oexlin foi
igualmente libertado, depois de ter sido interrogado e torturado em
Lucerna. Ele também encontrou refúgio no cantão de Zurique, onde se
tornou um pregador do Evangelho.5

1 N.T. Nessa afirmação transparece que Hottinger acreditava que o apóstolo Paulo
era o autor da Epístola aos Hebreus.
2 Hess, p. 168.
3 N.T. A expressão cristianismo primitivo é utilizada pelos historiadores para fazer
referência exclusivamente ao século I d.C. Já os séculos II e III d.C. os chamam
de “Período dos Pais da Igreja”. É muito importante que o leitor não confunda
esses períodos.
4 D´Aubigné, vol. 3, pp. 356-359.
5 Para mais detalhes, ver Life of Zwingle, por Hess, 178-194. D´Aubigné, vol. 2, cap.
5. Scott, vol. 2, pp. 494-501.

Capítulo 43
O PROGRESSO GERAL DA REFORMA PROTESTANTE

A Reforma Protestante na Suíça havia sido agora batizada com sangue


– o sangue das fiéis testemunhas de Jesus Cristo. O adversário do
Evangelho tinha feito sua obra – uma obra cruel e covarde. Mas as
consequências da morte daqueles três homens foram totalmente
diferentes do esperado. Em vez de desferir um golpe destruidor contra a
causa da Reforma, o inimigo se feriu a si próprio e a seu poder. A notícia
acerca dos acontecimentos em Baden fez com que todos os homens se
tornassem mais sensíveis e pensativos, e refletissem melhor sobre suas
vidas aqui na terra e o destino eterno de suas almas. Os efeitos da
violenta ação foram sentidos por todas as classes através de toda a
Suíça. Com isso, o poder de Roma foi, na realidade, enfraquecido, e os
triunfos da Reforma Protestante foram garantidos. Mesmo os líderes dos
cantões católicos, apesar do ódio que sentiam pelos reformadores e pelo
movimento deles, não podiam esconder de si mesmos a corrupção geral
dos costumes promovida e tolerada pelo catolicismo romano e as
flagrantes imoralidades praticadas pelo clero como um todo. Esses fatos
transformavam a Reforma em algo absolutamente necessário. Contudo,
esses líderes percebiam a dureza e a indiferença das autoridades
eclesiásticas romanas acerca de todas essas questões. Dessa maneira,
eles resolveram agir no sentido de suprirem as necessidades das igrejas
dos cantões, colaborando também para promover a paz no pequeno país
que compartilhavam com os cantões protestantes. Todavia, o plano dos
representantes dos cantões católicos sofreu severa oposição daqueles
que detinham qualquer tipo de influência eclesiástica. Diante dessa
resistência, os que estavam interessados em reformas não tinham força e
muito menos autoridade para levar adiante seus intuitos. Portanto, suas
esperanças se voltaram para um futuro Concílio Geral da igreja, do qual
já tantas vezes havia sido falado. Eles esperavam que este Concílio
trouxesse novamente a paz para a cristandade naquele pequeno país.
Enquanto estes fatos estavam agitando os líderes dos cantões
católicos, aqueles que eram favoráveis à Reforma Protestante se uniram
cada vez mais. Zurique, Berna, Glarus, Schaffhausen e Appenzell
formaram uma aliança com os cantões protestantes com o objetivo de
que a verdade pudesse ser divulgada de um modo mais efetivo, ao
mesmo tempo em que protegiam seus direitos e liberdades. Cada vez
mais alto se levantavam as vozes dos amigos da Palavra de Deus. A
violenta morte dos dois Wirth e de seu amigo em Baden não havia
intimidado aos que eram favoráveis ao Evangelho, antes, havia
fortalecido sua força e redobrado sua coragem. De acordo com
D’Aubigné, “todas as vezes que Roma levantava um cadafalso e que
cabeças rolavam sobre o mesmo, a Reforma Protestante exaltava ainda
mais a Palavra de Deus e derrubava um abuso após o outro. Quando
Hottinger foi executado, Zurique suprimiu as imagens, e agora, com a
morte dos Wirth, Zurique devia responder abolindo definitivamente a
missa. A crueldade de Roma apenas elevava a força da Reforma
Protestante”.
Desde a decisão das duas conferências, o Concelho de Zurique
estava determinado a abolir o supersticioso ritual da missa católica
romana. Mas eles entendiam que era melhor adiar um pouco até que a
mentalidade do povo estivesse pronta e preparada para tal mudança.
Dessa forma, eles permitiram que a missa continuasse a ser praticada
mesmo depois da remoção das imagens, mas nenhum sacerdote tinha a
obrigação de rezar a mesma. Ao mesmo tempo, nenhum leigo estava
sujeito a ouvi-la. A missa foi negligenciada dia a dia, caindo no
desrespeito geral, de modo que a liderança de Zurique chegou à
conclusão que o tempo para sua total abolição havia, finalmente,
chegado.
***
A ABOLIÇÃO DA MISSA CATÓLICA ROMANA
No dia 11 de abril de 1525, os pastores Zuínglio, Leo Jud e Engelhardt
de Zurique, acompanhados por Megander, capelão do hospital, e
Oswaldo Myconius, pregador da igreja da abadia, apresentaram-se diante
do Concelho e recomendaram a imediata abolição do pretenso sacrifício
oferecido sobre o altar e a restauração da Ceia do Senhor na sua forma
original. Apenas um advogado estava presente para defender a opinião
da Igreja Romana. Vozes temerosas se fizeram ouvir, advertindo sobre a
ousadia de tal procedimento. Mas os cinco homens persistiram em sua
exigência de maneira séria e determinada. Engelhardt, que antes de se
converter era doutor em lei canônica, explicou de maneira eloquente as
diferenças entre o culto suntuoso, porém sem vida da igreja latina e a
simples celebração da Ceia de acordo com a instituição de Cristo, como
havia sido praticada pelos primeiros cristãos. Todos os que estavam
presentes sentiram a solenidade e a importância da resolução para a qual
o Concelho havia sido convocado a se manifestar. Por esse motivo, e
para não dar nenhum passo precipitado, todos acharam por bem adiar o
debate até o dia seguinte. No outro dia, após algumas conferências entre
os teólogos e os senadores, o Concelho publicou um decreto nos
seguintes termos: “Doravante, em obediência à Palavra de Deus, a Ceia
deve ser celebrada da forma como foi instituída por Cristo e praticada
pelos apóstolos. É permitido aos enfermos, e àqueles ignorantes da
verdadeira fé, a continuarem na prática antiga por um tempo
determinado. A missa deve ser abolida e não mais celebrada já a partir
de amanhã”. De acordo com essa decisão, todos os altares foram
removidos das igrejas e substituídos por mesas comuns. A maioria das
pessoas passaram a participar da Ceia de acordo com esse novo
formato. Aqueles que continuavam assistindo às missas eram menos
numerosos do que os reformadores esperavam. Foi dessa maneira que
aquele mistério da iniquidade, que durante séculos havia impressionado
profundamente os sentimentos e a credulidade dos seres humanos,
desabou de uma vez. A missa havia sido celebrada na igreja latina desde
seu período mais antigo; todavia, o ato de se prostrar diante da elevação
da hóstia e outras cerimônias foram adicionadas mais tarde.
***
A CELEBRAÇÃO DA CEIA DO SENHOR
Antes da celebração, Zuínglio pregou acerca das palavras de Êxodo
12:11: “É a páscoa do Senhor”. Os ouvintes estavam profundamente
comovidos; quem ainda tinha dúvidas, agora estava convencido de que a
maneira como havia sido celebrada a Ceia até então, não apenas era
errada, mas também desonrava o Senhor. Depois da conclusão do
sermão, uma mesa foi coberta com uma toalha branca; pão não levedado
e cálices cheios de vinho foram colocados sobre ela para assim
representar, de uma maneira mais semelhante possível, a última ceia de
nosso Senhor com seus discípulos. Depois, os ministros se aproximaram
da mesa. Os diáconos leram em voz alta as palavras da instituição da
ceia e outras passagens. A multidão era tão grande e o culto se
prolongou por tanto tempo que foi necessário a participação ativa de
vários pastores e muitos diáconos desempenhando diversas funções.
Após uma oração e uma solene exortação ao povo para se autoexaminar,
o pastor levantou o pão e em voz alta repetiu as palavras que o Senhor
disse ao instituir a Ceia. Então entregou o pão e, em seguida, o cálice
aos diáconos e estes os deram ao povo. Cada um dos participantes
tomava um pedaço do pão e um pouco do vinho. Enquanto os elementos
eram passados ao redor, um dos pastores leu no Evangelho de João
aquelas revigorantes e benditas palavras proferidas pelo Senhor aos
seus discípulos após a celebração da festa da páscoa. Depois da
celebração da ceia toda a congregação colocou-se de joelhos e ofereceu
sua grata adoração e ação de graças a Deus. A seguir, hinos cheios de
expressão de amor e de louvor ao Salvador e Senhor concluíram aquela
celebração solene e sublime — essa foi a primeira celebração da Ceia do
Senhor feita pelos reformadores na Suíça. A festa se estendeu por um
período de três dias. Na quinta-feira os jovens tomaram a Ceia; na
chamada sexta-feira santa, os homens e as mulheres; e no domingo de
páscoa, os anciãos.
Visando estabelecer a boa obra em Zurique, e ao mesmo tempo tornar
conhecida a verdade em todos os lugares, por volta dessa época
Zuínglio, Leo Jud e outros homens sábios publicaram várias obras que
tratavam de partes das Sagradas Escrituras. Entre essas obras vamos
encontrar o Pentateuco, e outros livros históricos do Antigo Testamento,
além de um comentário muito sólido acerca da “Verdadeira e Falsa
Religião”, que provou ser de grande proveito para muitos.
Agora podemos deixar Zurique de lado por um tempo, uma vez que
descrevemos com riqueza de detalhes a ação do Espírito de Deus
naquele local. Iremos considerar agora a obra da Reforma em outras
partes da Suíça. Contudo, podemos fazê-lo de maneira abreviada, visto
que esta obra, embora em alguns pontos distinta daquela em Zurique, era
semelhante em seus pontos fundamentais.
***
A REFORMA PROTESTANTE EM BERNA
Berna era um dos mais influentes cantões da Confederação. Entre
seus habitantes se encontravam muitos amigos poderosos do Evangelho,
bem como muitos adversários formidáveis. Durante os primeiros anos
depois do surgimento de Lutero e de Zuínglio, uma violenta aversão
contra a nova doutrina se manifestou em Berna. Não havia nenhum outro
lugar onde a batalha poderia ser mais severa. Todavia, por meio da
incansável atividade dos moderados Sebastian Meyer e Bertoldo
Haller, homens que eram verdadeiramente a favor do Evangelho, os
mais violentos preconceitos desapareceram paulatinamente, e muitos se
voltaram de coração para a nova fé.
A benção de Deus descansava sobre o trabalho desses homens
devotados, dedicados e consistentes, e assim a causa da verdade
prosperou. Também podemos concluir, a partir de um decreto que o
governo emitiu em 1523, que, já nesse tempo, a balança começou a se
inclinar para o lado da Reforma Protestante. O decreto dizia: “Uma vez
que ensinamentos conflitantes estão sendo ensinados ao povo e que os
pregadores estão trovejando uns contra os outros, os mesmos devem, a
partir de agora, pregar exclusiva e publicamente o Santo Evangelho e a
doutrina divina assim como ela pode ser provada pelos livros do Antigo e
Novo Testamento. Eles também não devem propor nada contrário às
Santas Escrituras contra Lutero ou qualquer outra autoridade, e devem
evitar todo tipo de discurso com tendências a causar divisões”.
Por essa decisão do Senado, a pregação do Evangelho em toda a sua
plenitude e simplicidade foi encorajada; a Palavra de Deus foi
estabelecida como o único padrão de apelação nas discussões e o único
parâmetro da verdade. Assim, foi lançado o fundamento seguro da
verdadeira Reforma Protestante, sancionada pelo próprio governo. Mas
essas vantagens foram suficientes para suscitar a ira e a inveja dos
papistas e conduzi-los a adotar suas táticas favoritas, que incluíam a
intriga, a traição e a violência. As duas fiéis e poderosas testemunhas da
verdade em Berna, Sebastian Meyer e Bertoldo Haller, precisavam ser
silenciadas por quaisquer meios, justos ou injustos. Juntamente com o
conhecido pregador de Wittenbach, eles foram falsamente acusados de
terem exortado algumas freiras a abandonarem sua vida monástica. Os
inimigos da Reforma propuseram que os três fossem banidos de Berna
por causa desse crime. Rapidamente ganharam o apoio do Pequeno
Concelho. Mas quando a conspiração foi descoberta, a oposição por
parte do povo foi tão grande que a questão foi levada diante do Grande
Concelho. Os pregadores foram trazidos, absolvidos das acusações e
colocados em liberdade. Entretanto, foram exortados a se limitarem aos
seus púlpitos e a não se intrometerem nos assuntos dos conventos. Isso
era tudo o que aqueles homens dedicados desejavam e precisavam:
seus púlpitos. Dessa forma, a Reforma Protestante alcançou uma nova
vitória e seus inimigos tiveram que se retirar cobertos de vergonha e
desgraça.
***
AS FREIRAS DE KÖNIGSFELD
Alguns meses depois destes fatos, a obra da Reforma Protestante foi
grandemente promovida pela inesperada conversão das freiras de
Königsfeld. Nesse convento, o Evangelho celebrou gloriosos triunfos. O
convento havia sido decorado com toda a magnificência da Idade Média
e estava localizado perto do castelo de Habsburgo. Foi dessa famosa
família de Habsburgo que surgiu a casa imperial da Áustria no século VII.
E dessa casa imperial muitos vieram a ocupar o trono como imperadores
do Reino Germânico. Era no convento de Königsfeld que as filhas dos
nobres da Suíça e da Suábia costumavam vestir o hábito. Beatriz de
Landenberg, irmã do bispo de Constança, era uma das internas. Mas foi
a verdade de Deus, que o bispo procurava suprimir com todas as forças,
que se tornou o meio de conversão de muitas freiras nesse convento
imperial. Os escritos de Lutero e Zuínglio, e também as Santas
Escrituras, haviam conseguido penetrar nas silenciosas celas e a
transformação salvadora aconteceu gradativamente em muitos corações.
Deus estava operando poderosamente pelo Seu Santo Espírito e o
preconceito mais forte e as maiores dificuldades foram completamente
derrotadas. A carta a seguir, escrita por Margarete Watteville, uma jovem
freira e irmã do cônego do colegiado da catedral de Berna, irá nos
fornecer uma ideia clara dos frutos da Reforma Protestante, bem como
do espírito verdadeiramente cristão que existia naquelas mulheres
piedosas. Ela escreveu para Zuínglio:
“Que a graça e a paz do nosso Senhor te sejam concedidas e
multiplicadas sempre por Deus nosso Pai celestial! Meu mais
sábio, digno e querido senhor, gostaria de pedir a sua atenção
para essa carta que estou lhe enviando. Por amor àquilo que é
nosso em Cristo me sinto constrangida a escrevê-la,
especialmente desde o momento em que descobri que a
doutrina da salvação está crescendo dia a dia através da sua
pregação da Palavra de Deus. Por essa razão eu louvo o Deus
Eterno, por ter nos iluminado novamente com Sua luz, e ter nos
enviado, pelo Seu Espírito Santo, tantos arautos de Sua bendita
Palavra. Ao mesmo tempo, apresento a Deus as minhas mais
ardentes orações, para que Ele possa revestir com o Seu
próprio poder tanto o irmão como todos aqueles que proclamam
as boas novas de salvação. Peço também que Ele possa lhe
preparar contra todos os inimigos da verdade, para que Sua
divina Palavra possa crescer no coração de todos os homens.
Meu muito erudito senhor, atrevo-me a enviar essa pequena
manifestação da minha afeição a vossa reverendíssima pessoa.
Por favor, não despreze a mesma, pois é uma oferta do amor
cristão. Caso essa pasta medicinal lhe faça bem, e deseje obter
mais da mesma, peço-lhe que me avise, pois será para mim
motivo de grande satisfação fazer qualquer coisa que lhe seja
agradável. Quero dizer que não sou apenas eu que pensa dessa
maneira, mas todas aquelas que amam o Evangelho aqui em
nosso convento em Königsfeld. As irmãs o saúdam com
reverência em Jesus Cristo e todas nós oramos por ti sem
cessar, pela proteção do Deus Todo-Poderoso em sua vida —
escrita no sábado, véspera do quarto domingo da Quaresma,
1523”.
Algumas freiras, entre elas a escritora da carta acima, finalmente
chegaram à conclusão de que poderiam servir melhor ao Senhor do lado
de fora dos muros de seu convento, e por essa razão pediram a
permissão de poder abandoná-lo. O Concelho de Berna ficou
grandemente alarmado diante desse inusitado pedido, e se empenhou ao
máximo para convencer as freiras, que ansiavam por liberdade, a
permanecerem no convento, prometendo que a disciplina do mesmo
seria relaxada e que os suprimentos diários e liberdade seriam
aumentados. Mas foi em vão. “Não é a liberdade da carne que
desejamos”, essas piedosas mulheres disseram ao Concelho, “e sim a
liberdade do espírito. Nós, vossas pobres e inocentes prisioneiras,
pedimos que tenham compaixão de nós”. Como elas insistiam inabaláveis
em seu pedido, o governo achou por bem, finalmente, ceder. E o decreto
que restaurou a liberdade às freiras continha prescrições gerais para o
caso de que outras seguissem seu exemplo. As autoridades foram
instruídas de não impedir que as freiras fossem libertadas, desde que
tivessem o consentimento de seus pais. Esse decreto abriu os portões
dos conventos e isso enfraqueceu grandemente o mérito e o poder de
Roma. Também manifestava os triunfos da Reforma Protestante e sua
crescente força. Muitas daquelas mulheres tornaram-se, em um curto
espaço de tempo, mulheres desposadas com toda dignidade.
***
A CONFERÊNCIA EM BADEN
Mas, apesar do princípio da Reforma Protestante estar avançando
cada vez mais rapidamente, o partido católico romano ainda era muito
poderoso, mais numeroso e bastante ativo. Ainda era necessário que
muitas batalhas violentas fossem travadas antes que a vitória pudesse
ser declarada.
Desde a primeira conferência realizada em Zurique, o bispo de
Constança e João Faber, que era o vigário geral, estavam
constantemente deliberando por quais meios eles poderiam, de forma
mais eficiente, impedir o progresso da Reforma Protestante e apagar a
luz da verdade que estava brilhando cada vez mais. A experiência havia
demonstrado que suas queixas e acusações não eram levadas a sério
pelo povo em geral. A publicação de livros também era inútil, pois os
reformadores superavam muito a seus adversários tanto em
conhecimento quanto em talentos e capacidade. De fato, qualquer
esperança de sucesso para a Igreja Romana parecia algo completamente
impossível, a menos que conseguissem destruir Zuínglio, pois a
influência e a popularidade do pregador de Zurique aumentavam dia a
dia.
Um evento político, que aconteceu por volta dessa época, fez com que
os defensores da Igreja Romana percebessem a necessidade urgente de
tomar medidas rápidas e vigorosas. Estamos falando da infeliz batalha de
Pavia, que foi travada entre os franceses e as forças imperiais
germânicas. Essa batalha lançou uma escura nuvem de luto e tristeza
sobre toda a Suíça, mas ao mesmo tempo fez brilhar um raio de
sabedoria, patriotismo e de verdadeiro cristianismo por parte de Zuínglio.
Mais de dez mil mercenários suíços haviam lutado no campo de batalha
que tinha sido fatal para a França. Entre cinco a seis mil desses
combatentes perderam a vida enquanto os demais foram feitos
prisioneiros. Um grito de horror passou por todo o país. Quando
finalmente a liberdade desses prisioneiros foi comprada e eles foram
enviados de volta para seus lares, seus corpos abatidos, aleijados e
magros se constituíam em um verdadeiro espetáculo de terror enquanto
caminhavam de vila em vila através do país. Por onde passavam eram
recebidos pelos lamentos das viúvas e dos órfãos daqueles que haviam
sido mortos. O povo se lembrava que Zuínglio, desde seu púlpito em
Zurique e também em seus escritos, sempre havia protestado contra
esse alistamento a serviço de exércitos estrangeiros. Agora, eles se
arrependiam amargamente de não ter dado ouvidos às suas insistentes
advertências. Por esse motivo, o povo passou a chamá-lo o maior e mais
fiel dos patriotas e o melhor amigo do povo.
Todavia, agora os romanistas viram que o sentimento geral estava a
favor de Zuínglio e que algumas medidas precisavam ser tomadas para
pôr em cheque sua crescente influência. Mas como isso poderia ser
feito? Quem poderia solucionar tal problema? Era necessário proceder
com muita sabedoria e cautela; Jezabel tinha uma longa experiência
nessas práticas e veio ao auxílio deles. Ela forneceu os conselhos
necessários. A primeira coisa a fazer era induzir Zuínglio a sair de
Zurique, seu lugar de refúgio. Era necessário convocar um novo debate e
convidar Zuínglio para comparecer. Esse debate deveria acontecer em
uma cidade favorável aos papistas. Caso Zuínglio aceitasse o convite, e
uma vez que estivesse fora do território do seu Estado, ele estaria sob o
poder de seus inimigos. O plano era prendê-lo, à semelhança dos dois
Wirth, e queimá-lo vivo. A morte do maior defensor do movimento da
Reforma Protestante representaria o fim de todo o movimento em si
mesmo. O plano, que parecia bem arquitetado, foi aprovado e a vitória
parecia garantida. “A torrente que flui com a verdade, fará com que as
águas da heresia retornem ao abismo de onde surgiram. E novamente
‘os montes eternos’ da velha fé, que o dilúvio da mentira ameaçou
encobrir, irão aparecer outra vez com seus topos estáveis e majestosos
como sempre”. Para garantir mais ainda o desfecho da batalha, Faber
comunicou seu plano ao doutor Eck, que era vice-chanceler de Ingolstadt
e que havia alcançado grande reputação com seu partido combatendo as
opiniões de Lutero em Lípsia, pedindo-lhe sua ajuda na disputa. Eck
aceitou com prazer o convite para assumir a liderança desse debate.
Esse notório e inescrupuloso advogado do papado enviou aos cantões
uma carta repleta de acusações e injúrias contra Zuínglio, ao mesmo
tempo em que se oferecia para convencê-lo publicamente de seus erros,
caso o povo lhe concedesse uma oportunidade favorável. “Eu estou muito
confiante”, ele disse, “que poderei, com pouco empenho, manter nossa
antiga e verdadeira fé cristã e os veneráveis costumes, contrariando
Zuínglio — o qual certamente tirou mais leite das vacas do que leu livros.”
A Dieta foi convocada e deveria acontecer na cidade de Baden (uma
cidade controlada por Roma) no mês de maio de 1526.
Zuínglio foi convidado juntamente com outros teólogos de Zurique para
participar do debate, mas o Senado se recusou a permitir sua saída de
Zurique. Na opinião do Concelho, enviar Zuínglio até Baden era o
equivalente a enviá-lo para a morte e não para uma disputa teológica.
Não podemos nos esquecer que foi naquela cidade que o sangue do pai
e do filho da família Wirth e de seu amigo Ruteman foi derramado, e ali,
os cantões papistas eram muito poderosos. Eles já haviam queimado os
livros de Zuínglio em Friburgo, uma pintura representando o mesmo em
Lucerna, e agora eles tinham o ardente desejo de queimá-lo vivo em
Baden. De fato, o partido papal nem se preocupava em esconder suas
intenções acerca de Zuínglio, a quem eles denunciavam em suas
manifestações públicas como um rebelde, herege e um pervertedor das
Escrituras. Diante destes fatos, o Concelho de Zurique decretou que
Zuínglio não deveria ir a Baden. Eles também protestaram de antemão
contra quaisquer resoluções que pudessem ser tomadas naquela Dieta.
Mas ofereceram ao doutor Eck toda segurança caso desejasse vir a
Zurique debater a Reforma Protestante com Zuínglio. Contudo, a oferta
foi recusada, e a conferência aconteceu em Baden sem a presença de
Zuínglio.
***
O INÍCIO DA DIETA
Por fim, no dia 21 de maio foi dado início ao debate em Baden. Faber,
Eck e Murner, acompanhados por prelados, magistrados e doutores —
todos cobertos com ouro e prata — chegaram à cidade com muita
pompa. Oekolampad e Bertoldo Haller, dois homens calmos e tímidos,
eram os únicos reformadores presentes no debate. Sua aparência
simples, quase pobre, formava um contraste muito grande com a
aparência do partido opositor, que estava vestido com roupas de seda e
de damasco* e adornado com correntes, anéis e cruzes. Os mesmos
dogmas que haviam sido rebatidos, vez após vez, foram novamente
apresentados por Eck. A seguir apresentamos suas sete proposições,
como apresentadas pelo sábio e sincero historiador católico romano Du
Pin. A leitura dos mesmos irá colocar diante dos olhos do leitor os pontos
da doutrina do papado, pelos quais os papistas estavam se empenhando
e dispostos inclusive a derramar sangue, não apenas de seus melhores
cidadãos, mas dos próprios santos de Deus. Eis as proposições:
1. O verdadeiro corpo e sangue de Cristo estão presentes no
sacramento sobre o altar;
2. O corpo e o sangue de Cristo são oferecidos verdadeiramente no
sacrifício da missa a favor tanto dos vivos quanto dos mortos;
3. Devemos clamar por socorro à bendita virgem Maria e aos santos,
como nossos intercessores;
4. As imagens de Jesus Cristo e Seus santos não devem ser
removidas;
5. Existe um purgatório depois desta vida;
6. As crianças nascem com o pecado original;
7. O batismo remove o pecado original.1

Somente Eck falou em defesa das doutrinas papistas, mas a ausência


de Zuínglio o desconsertou grandemente e acabou anulando o propósito
principal da Dieta. “Eu sou grato a Deus”, escreveu Oekolampad a
Zuínglio, “pelo fato de não estares aqui. O andamento da disputa me faz
perceber claramente que, se estivesses aqui, nenhum de nós escaparia
de sermos queimados vivos nas estacas. Eles demonstraram grande
impaciência e relutância ao me ouvir, mas Deus não irá renunciar a Sua
glória, a qual nós queremos manter.” Esse tímido homem enfrentou as
intensas agressões e as observações sarcásticas de Eck com uma
firmeza tranquila; ele falava tão hábil e corajosamente que seus
opositores exclamaram involuntariamente: “Quem dera que este homem
estivesse do nosso lado!”. Ainda assim, o desfecho do debate era
previsível, visto que a assembleia estava completamente sob o governo
de Eck e de seus companheiros. Sendo assim, foi pronunciada uma
excomunhão contra Zuínglio e seus seguidores. Além disso, foi requerido
que o Senado da Basileia depusesse Oekolampad de seu ofício e que o
mesmo fosse banido. Por outro lado, também foi estritamente proibido a
venda dos livros de Lutero e Zuínglio, bem como qualquer inovação, isto
é, quaisquer mudanças na adoração ou doutrina, sob ameaça das mais
severas penas.
O partido papal afirmou ter obtido uma grande vitória em Baden e se
empenhou em divulgá-la por todas as partes, mas tal vitória era apenas
aparente. Seus gritos de triunfo em breve deveriam emudecer.
Oekolampad foi recebido de braços abertos na Basileia, e Bertoldo Haller
manteve o exercício de suas funções, independente das excomunhões
lançadas sobre ele. Os cantões de Zurique, Berna, Basileia e
Schaffhausen exigiram que pudessem inspecionar e tomar conhecimento
dos documentos contendo as deliberações da assembleia. Mas como
isso lhes foi negado, esses cantões declararam que as determinações
dessa Dieta não poderiam ter obrigatoriedade para eles.
Uma disputa que ocorreu imediatamente após o retorno de Bertoldo
Haller e dos representantes de Berna que vinham de Baden, manifestou
claramente quanto o poder de Roma já havia sido abalado em Berna.
Durante os seis meses que antecederam a conferência, o reformador
havia suspendido a celebração da missa em Berna. O pequeno Senado,
influenciado pelos decretos de Baden, insistia na restauração da mesma.
Haller, de modo firme, porém respeitoso, recusou tal exigência e apelou
para o Senado maior. Ele disse: “Se eu devo celebrar a missa então
deponho meu cargo; a honra de Deus e a verdade da Sua santa Palavra
são para mim mais caras do que os cuidados pela alimentação e pela
vestimenta”. Esta declaração impressionou profundamente aos ouvintes.
O Senado se encontrava em um grande embaraço. Será que o Senado
maior anularia o nobre edito de 1523 e confirmaria o mandato de
perseguição de 1526? Todavia, o povo veio em socorro do reformador.
Bertoldo Haller era muito amado pelas pessoas e elas se ajuntaram em
grandes multidões diante do Senado e expressaram sua determinação de
não se verem privadas de seu amado mestre. O Senado, procurando
satisfazer ao povo e ao mesmo tempo a Roma, decretou: “Bertoldo Haller
deve resignar da sua dignidade de cônego, mas continuará mantendo
suas funções ministeriais, não estando sob a obrigação de celebrar a
missa católica romana”. É evidente que o tempo em que as comunidades
eram governadas por editos papais ou intimidadas por censuras vindas
de Roma, já haviam ficado para trás. O povo, cansado dessa longa
disputa religiosa, estava fora do alcance da Igreja de Roma. O abismo
que separava o partido protestante do papal estava se alargando dia a
dia. E o espírito e a posição de cada lado tornavam-se cada vez mais
hostis.
Os cinco cantões católicos mais antigos, Lucerna, Uri, Schwyz,
Unterwald e Zug, o “berço e o baluarte da Suíça”, como eram chamados,
percebendo a indecisão de Berna no caso de Bertoldo Haller, ofereceram
às autoridades daquela cidade o envio de representantes que pudessem
auxiliá-los na manutenção da antiga religião. Tal proposta ofendeu
profundamente o orgulho de Berna — que era um Estado militar. O
magistrado respondeu: “O envio da embaixada é realmente
desnecessária, uma vez que o povo de Berna tem plena capacidade de
gerenciar seus próprios assuntos, e o cuidado com a religião é, dentre
todos os assuntos, o mais exclusivo de seus cidadãos”. Eles
aproveitaram a oportunidade para revogar todos os compromissos que
seus representantes haviam assumido em Baden, e confirmaram o edito
de 1523. Além disso, eles decretaram que uma audiência pública deveria
acontecer na cidade de Berna no inverno seguinte, durante a qual deveria
ser adotada uma decisão final acerca de todas as questões em disputa.
***
A GRANDE CONFERÊNCIA EM BERNA
Os bispos de Constança, Basileia, Sião e Lausanne, juntamente com
todos os seus mais importantes teólogos, foram convocados a
comparecerem nesta grande conferência sob a pena de terem
confiscadas todas as suas posses que se encontravam no cantão de
Berna. Os teólogos de ambos os partidos receberam ordens para
estarem presentes, e ficou estabelecido que as Santas Escrituras seriam
o único padrão de apelação e que não poderiam ser usados as
interpretações dos antigos. Não deveria ser apresentada nenhuma prova
que não estivesse apoiada sobre determinadas passagens da Palavra de
Deus. Além disso, deveriam ser evitados sofismas e palavras injuriosas.
Foram estabelecidos dez artigos que deveriam servir de base para o
debate; os mesmos foram publicados aos representantes de ambos os
partidos. Estes também tinham a obrigação de manterem-se sujeitos à
liderança da Conferência.
Os artigos eram os seguintes:

1. A Igreja, cuja única e suprema cabeça é Jesus Cristo, nasceu da


Palavra de Deus e subsiste apenas por meio dessa mesma Palavra,
não dando ouvidos a nenhuma voz estranha;
2. A Igreja não deve observar nenhuma outra lei e não está sujeita às
tradições humanas;
3. A morte expiatória de Cristo na cruz é suficiente por todos os
pecados de todo o mundo, e aqueles que buscam salvação através
de quaisquer outros meios negam o Senhor Jesus Cristo;
4. Não pode ser provado por nenhum testemunho das Escrituras que o
corpo e o sangue de Jesus Cristo são recebidos, de forma corpórea,
no sacramento oferecido na missa;
5. O sacrifício da missa é contrário ao ensinamento das Escrituras e
desonra o sacrifício de Cristo;
6. Cristo é o único Mediador e Advogado de Seu povo diante de Deus,
o Pai;
7. A existência do purgatório não pode ser provada pelas Escrituras e,
portanto, as orações, cerimônias e missas anuais a favor dos mortos
são completamente inúteis;
8. A adoração das imagens, estátuas e quadros é contrária à Palavra
de Deus;
9. O casamento não é proibido a nenhuma classe de homens;
10. Todas as pessoas envolvidas com práticas sexuais pecaminosas
devem ser colocadas fora da comunhão com a igreja, como nos
ensinam as Escrituras, pois não existe nada que desonre mais a
ordem do sacerdócio do que um celibato imoral.2

Bertoldo Haller, o reformador modesto e tímido foi o autor dos dez


artigos. Porém estava apavorado diante do pensamento de ter que
defendê-los. Ele disse aos seus amigos: “Eu não posso manejar sozinho
a espada das palavras, me estendam vossas mãos para me auxiliar, caso
contrário tudo estará perdido”. Em sua aflição, ele também escreveu a
Zuínglio pedindo ajuda: “Nós estamos entre o martelo e a bigorna.
Estamos segurando o lobo pelas orelhas, porém não sabemos como
iremos nos desfazer dele. Por isso venha e conduzas tu mesmo esse
debate”. Merle D’Aubigné escreve: “A disputa era muito desigual. De um
lado se encontrava a hierarquia romana, um colosso que havia crescido
por muitos séculos, sustentada por uma poderosa tradição, pelos
preconceitos dos seres humanos, bem como pela autoridade do poder
civil. E do outro lado estava Bertoldo Haller, um simples pregador do
Evangelho. Mas quanto mais fraco era o instrumento, mais invencível era
a espada do Espírito. Entretanto, o fiel servo do Senhor precisou passar
por profundos exercícios na sua alma para tomar consciência de toda sua
fraqueza e assim se refugiar na única fonte de poder (comp. 2 Co
12:9,10). Mas ele não deveria estar sozinho nessa batalha. Tanto Zuínglio
quanto Oekolampad prometeram ajudá-lo. O momento decisivo estava se
aproximando. Todos perceberam a importância desse momento. O
destino e o progresso da Reforma Protestante na Suíça estava nas mãos
de Deus, porém agora dependia do desfecho desse debate. Quando
Haller soube que Zuínglio e Oekolampad viriam, exclamou
profundamente comovido: ‘Na minha fraqueza, o Senhor envia tais
homens para me assistir nesta dura batalha’”. 3
***
A OPOSIÇÃO DE ROMA
O partido católico, apreensivo com os resultados da conferência, se
empenhou de todos os modos para impedir a mesma. Os cinco cantões
católicos mencionados anteriormente se reuniram em Lucerna e se
declararam firmemente decididos contra o debate, e disseram aos
berneses que a conferência em Baden havia decidido, de modo
satisfatório, as questões controversas. Os católicos da Alemanha também
enviaram uma carta ao Concelho de Berna, na qual desaconselhavam
insistentemente a realização da conferência planejada. Eles pediram aos
governantes que não seduzissem o povo com essas inovações que
haviam surgido por meio da influência de uns poucos estrangeiros, mas
que permanecessem na religião de seus pais e antepassados, sob a
sombra da qual haviam alcançado tantas gloriosas vitórias e expandido
os limites de seus domínios territoriais. A isto, o Senado de Berna
respondeu: “O que está em jogo é a fé cristã, a salvação das almas, e a
paz da república. Por esse motivo, não existe nenhuma razão para
demover-nos da decisão tomada”. Diversos meios foram aplicados para
persuadir ou intimidar tanto o Senado quanto os cidadãos. Os habitantes
de Friburgo chegaram ao ponto de incitar o povo de Berna a se levantar
contra seus governantes. Cartas de salvo conduto foram recusados a
ministros evangélicos, e os cantões católicos não permitiram a travessia
pelo seu território a todo aquele que estivesse se dirigindo à conferência
em Berna. O fato de que o imperador tenha dirigido um pedido ao
Senado para adiar a conferência e deixar a decisão nas mãos de um
concílio geral da igreja prova a importância que esse debate tinha, até
mesmo no exterior.
O leitor deverá tirar suas próprias conclusões quanto ao motivo que os
católicos tinham para fazer todos os esforços possíveis para impedir a
assembleia proposta. Isso mostra claramente o quanto eles estavam
cientes da sua própria fraqueza. Eles tinham verdadeiro pavor da simples
luz que emana das Escrituras. Os bispos declararam explicitamente que
não queriam envolver-se na questão, visto que o debate devia ser
regulamentado pelas Sagradas Escrituras. O catolicismo romano só pode
existir nas mais densas trevas quando se trata da verdade de Deus.
Todavia, todas as objeções e ameaças dos adversários da Reforma
foram completamente vãs. O Senado de Berna manteve-se firme em sua
decisão. Além disso, os princípios evangélicos haviam progredido tão
evidentemente entre todas as classes dos habitantes de Berna, que
qualquer tentativa de impedir a causa da Reforma Protestante teria
gerado imediatamente uma grave comoção popular e muito
derramamento de sangue.
***
O INÍCIO DA CONFERÊNCIA EM BERNA
Em 7 de janeiro de 1528 a grande e temida conferência foi aberta.
Nenhum dos prelados e um pequeno número das altas autoridades que
haviam sido convidadas se encontravam presentes. Porém, se reuniu um
grande número de eclesiásticos e homens sábios, vindos de todas as
partes da Suíça e dos países vizinhos. Cerca de cem mestres
reformados, pregadores do Evangelho vindos de Glarus, Schaffhausen,
São Galo, Constança, Ulm, Lindau, Eisenach, Augsburgo, Estrasburgo e
outras localidades, se reuniram em Zurique, e dali continuaram a viagem
para Berna em companhia de Zuínglio. Preocupados pela vida do seu
reformador, o Senado de Zurique havia destinado uma forte divisão de
homens armados para escoltar a Zuínglio e aos seus amigos. Não sem
razão se temia uma traição por parte dos papistas. Mais de trezentos e
cinquenta reformadores estavam presentes no debate. Muitos desses
homens dignos já haviam adquirido um lugar de honra na história da
Igreja. Contudo, podemos destacar apenas os nomes mais proeminentes:
Bertoldo Haller foi apoiado por Zuínglio, Oekolampad, Capito e Bucer.
Esses eram os lutadores da Reforma Protestante na Suíça e em
Estrasburgo. Ainda podemos citar homens como: Conrad Pelicano,
Henrique Bullinger, André Blaurer, Sebastian Hofmeister, Megander,
Francisco Zink, Conrado Schmidt, o burgomestre* Mark Reust e Joaquim
Vadian, cônsul de São Galo. Do lado dos papistas encontravam-se
apenas alguns poucos homens eruditos e de reputação: Alex Grad,
Conrado Tregarius, João Buchstab, Aegidius Tschudi — nomes que
aparecem pouco nas páginas da história da Igreja. Os mais afamados
lutadores de Roma, como Eck, Faber e Cochlaeus haviam desdenhado
sua participação no debate. Portanto, essa assembleia tinha uma
configuração totalmente distinta das assembleias anteriores. Desse
modo, os poucos e fracos defensores do papado se enfrentaram a um
grande número de seletos e eruditos combatentes de Cristo.
Descontando umas poucas e fracas manifestações vindas do partido
papal, na tentativa de perturbar a unanimidade dos reformadores, não
existiu nenhuma outra atividade destacada ou de interesse marcante
durante todo o tempo que durou a assembleia que possa interessar aos
leitores dos nossos dias.
***
OS REGULAMENTOS DA CONFERÊNCIA
Quatro presidentes foram indicados, e para que tudo pudesse ser
registrado com fidelidade, quatro secretários foram escolhidos — dois de
cada lado — que fizeram juramento de registrar uma narrativa fiel de
todas as questões abordadas durante o debate. O encontro aconteceu na
igreja dos franciscanos e se estendeu do dia 7 até o dia 28 de janeiro de
1528. Duas sessões aconteceram diariamente, e cada uma delas foi
aberta com uma oração. Foi assegurada, aos dois partidos, plena
liberdade para debater, contudo, mais uma vez foram lembrados que a
regra do debate, anteriormente estabelecida, devia ser estritamente
observada: “Nenhuma prova seria admitida a menos que tivesse origem
nas Escrituras. De modo semelhante, nenhum tipo de julgamento era
permitido, apenas a própria Escritura deveria explicar-se a si mesma,
onde as passagens mais obscuras seriam explicadas com outras mais
claras. As dez teses redigidas por Haller foram discutidas de modo
sucessivo. Zuínglio, Oekolampad, Capito, Bucer e Haller as defenderam
com tanto sucesso que uma vasta maioria do clero de Berna, juntamente
com os cônegos, os reitores e os sub-reitores dos dominicanos
assinaram os dez artigos, declarando que julgavam os mesmos em
perfeita concordância com o conteúdo das Sagradas Escrituras. Antes da
assembleia se dissolver, os presidentes exortaram os magistrados a
adotarem medidas a favor do interesse da Reforma, conforme
determinassem ser sábio e prático.
***
OS RESULTADOS DA CONFERÊNCIA
Imediatamente, as autoridades de Berna tomaram as medidas
necessárias, em concordância com os sábios conselhos dados pelos
presidentes. Os altares foram removidos das igrejas e as imagens foram
destruídas; tudo isso, entretanto, sem nenhuma desordem nem
derramamento de sangue. Eles publicaram um decreto, com a
concordância dos cidadãos, proclamando os dez artigos como a
confissão de fé geral. Além disso, por meio desse decreto, eles privaram
os quatro bispos — de Constança, Lausanne, Basileia e Sião — de toda
a jurisdição espiritual que possuíam dentro do território de Berna,
ordenando a remoção de todos os deões rurais que tivessem posições
hostis à Reforma Protestante. Ordenaram ainda que a missa e as
imagens fossem banidas de Berna para sempre. Foi dessa maneira que a
queda da hierarquia papal foi alcançada por completo através daquele
extenso cantão. Seus ídolos, que haviam reinado por doze séculos, foram
completamente derrubados e destruídos em um único dia!
Quando, outrora, Constantino tornou a confissão do cristianismo em
um caminho pelo qual se podiam alcançar vantagens seculares, os
soldados e magistrados pagãos se introduziram na Igreja. Infelizmente,
com eles também a idolatria entrou na Igreja. Foi assim que estátuas,
imagens, pinturas, pompas, festivais, vestimentas suntuosas e os
semideuses do paganismo foram introduzidos na igreja professa. E tudo
isso foi feito com um único propósito: que a Igreja pudesse desfrutar dos
favores dos príncipes e do povo. Começando no século IV até o século
XVI, a idolatria predominou enquanto a Palavra de Deus era degradada e
rejeitada cada vez mais pela igreja dominante. Mas agora nós vemos
alguém muito maior que Constantino — o modesto pastor de Zurique,
filho de um criador de gado do vale de Togemburgo — em pé diante de
nós, como vencedor por meio da graça de Deus. Ele foi levantado no
século XVI como um dos mais nobres combatentes a favor da Palavra de
Deus e da verdade divina, para tornar-se, ao mesmo tempo, o mais
implacável inimigo dos elementos judaicos e pagãos da Igreja Romana.
Lutero foi um grande reformador quanto à doutrina, mas algumas vezes
revelou certa fraqueza quanto ao culto da Igreja Romana. A poderosa
eficácia de Zuínglio se estendeu a ambos sem distinção. Não podemos
nos esquecer que todo o louvor deve ser dado ao Deus de toda a graça,
e ao poder de Seu Espírito Santo. Foi por meio desse poder que Zuínglio
recolocou a Bíblia no seu devido lugar, após um longo período de
desprezo e também purificou a Igreja dos muitos e inveterados abusos
que haviam sido introduzidos nela.
Antes de partir de Berna, Zuínglio foi mais uma vez até a catedral da
cidade, onde vinte e cinco altares e um grande número de imagens
haviam sido destruídos. Passando por estas eloquentes ruínas, ele subiu
no púlpito em meio a uma imensa multidão. Foi com grande emoção que
ele disse: ”A verdade alcançou a vitória, mas apenas a perseverança
pode completar o triunfo. Cristo perseverou até a morte de cruz.
Cidadãos de Berna! Eu lhes faço um pedido: não abandonem a Cristo!
Permaneçam firmes, meus irmãos, na liberdade com a qual Cristo nos
libertou e não se submetam novamente ao jugo da escravidão! (Gl 5:1).
Não temais nada, pois o mesmo Deus que iluminou os vossos olhos irá
iluminar os olhos de todos os vossos confederados também. E assim, a
Suíça regenerada pelo Espírito Santo irá florescer em justiça e paz”.
De fato, a vitória foi completa. Foi ordenado aos cidadãos, sem
exceção, que rescindissem a obediência às autoridades episcopais. Ao
mesmo tempo, os diáconos, pastores e todos os outros ministros da
igreja foram completamente absolvidos de todos os juramentos de
lealdade feitos aos seus superiores espirituais. Os altares, as imagens e
a celebração das missas foram abolidos através de todo o território de
Berna, juntamente com inúmeras cerimônias e ordenanças pontifícias,
como: aniversário de santos, dedicação de igrejas, o uso de vestimentas
sagradas, dias de jejuns e dias de festas. A capital adotou a nova forma
de adoração, e no decorrer de poucos meses, todas as cidades do
cantão seguiram seu exemplo.
***
A GRAÇA DO EVANGELHO
Para nós, é raro testemunharmos na história da Igreja uma grande
vitória sendo celebrada por atos de graça. De fato, isso é algo
completamente novo na cristandade. Nunca foi assim nos dias do reinado
de Jezabel. Seus triunfos sempre se caracterizavam pelos cadafalsos e
pelas fogueiras. Seus desobedientes filhos tiveram que sentir todo o peso
da sua ira. Mas, como sabemos, os princípios do papado são
essencialmente opostos à misericórdia ensinada nos Evangelhos. O fogo
e a espada são os argumentos de um, enquanto que o amor e a
misericórdia são do outro. As verdadeiras virtudes cristãs como a
humildade, o amor e a disposição para perdoar eram desconhecidas ao
papado em todos os tempos.
Um quadro totalmente diferente se desenrola diante de nossos olhos
quando a verdade permanece vitoriosa na batalha. Em Berna, seu triunfo
foi celebrado com manifestações de júbilo públicas e com atos de graça e
misericórdia. Pouco tempo depois do encerramento do debate, os
magistrados mandaram abrir as portas das prisões e dois homens
condenados à morte foram perdoados. Outros, que haviam sido banidos
da república, foram convidados a retornarem para seus lares. Dessa
forma, o amor cristão seguiu os passos da verdade e da fé. “Um grande
clamor ressoou por todas as partes;”, assim escreve Bullinger, “em um
dia, o domínio de Roma caiu através de todo o país sem a necessidade
de atos traiçoeiros, violência ou sedução. Caiu apenas pela força da
verdade.” Os monges abandonaram seus monastérios e colocaram à
disposição dos magistrados os abastados meios financeiros dos mesmos
para que estes os usassem para fins benevolentes e educacionais. Todas
as casas religiosas foram convertidas em espaçosas escolas e hospitais.
Até mesmo o principesco convento de Königsfeld foi dedicado para esses
mesmos propósitos úteis. “Se um rei ou imperador aliado”, diziam os
cidadãos, “fosse entrar em nossa cidade, não iríamos demonstrar perdão
aos malfeitores e favor aos pobres? E agora, eis que o Rei dos reis, o
Príncipe da paz e o Filho de Deus, o Salvador da humanidade nos visitou
e traz consigo o perdão de nossos pecados, pelos quais nós merecíamos
o eterno banimento de Sua presença. Será que existe maneira melhor de
celebrar esse advento do Senhor em nossa cidade do que através do
perdão de todos aqueles que têm nos ofendido?”
Também seguiu-se uma regeneração moral e política, à qual não deve
ser colocada entre os menos honrosos ou misericordiosos complementos
da Reforma Protestante. O caráter pacífico e a linguagem suave do
Evangelho penetraram profundamente nos corações dos berneses e os
convenceram do quanto o serviço militar estrangeiro era errado e
contrário às Escrituras. Por isso, durante a Dieta, o Senado pressionou
para que esse serviço militar fosse abolido, contudo, sem sucesso. A
seguir, foi determinado que pelo menos nenhum bernês prestasse serviço
mercenário a países estrangeiros e que as pensões e salários pagos por
governantes estrangeiros para os mercenários fossem rejeitados.
No domingo da ressurreição, a Ceia do Senhor foi celebrada pela
primeira vez de acordo com a instituição do bendito Salvador e Mestre, e
segundo a prática adotada pelos apóstolos. Assim como pouco tempo
antes em Zurique, também em Berna foi um tempo de grande solenidade
e do mais profundo interesse nas coisas divinas. Os cidadãos e suas
esposas, vestidos de maneira sóbria (que os fazia lembrar a antiga
simplicidade suíça), se reuniram em silêncio ao redor da mesa do Senhor.
Toda diferença da posição exterior parecia não existir nessa hora. Ao lado
dos chefes de Estado estava ajoelhado o simples trabalhador; ao lado
dos membros do Grande Senado, o rude filho das montanhas. Uma
solene seriedade dominava toda essa ação. Cheio de profunda alegria,
Hofmeister escreveu aos seus companheiros: “Desde que eu tenho visto
como Deus deu um testemunho tão concludente* à verdade, tenho
grande esperança de ganhar também àqueles que até então não creram
na Palavra”.
Foi desse modo que a Reforma Protestante foi estabelecida em Berna,
e até hoje Roma não tem conseguido suprimir novamente a doutrina
evangélica desse lugar. Se a disputa em Baden ofereceu uma
ascendência temporária ao partido papal, a mesma foi mais do que
contrabalanceada pela conferência em Berna e suas consequências. “Os
cidadãos de Constança, Schaffhausen, São Galo, Glarus, Togemburgo e
outros lugares nos quais a batalha ainda não estava definitivamente
decidida, declararam agora, de modo firme, sua adesão à Reforma
Protestante e provaram seu zelo evangélico através da destruição das
imagens e altares e da abolição da missa”.4
***
A REFORMA NA BASILEIA
Os triunfos do Evangelho em Berna causaram profundos efeitos nos
diversos cantões. Mas esses efeitos foram especialmente sentidos
naqueles onde as doutrinas reformadas já haviam sido previamente bem
recebidas. Toda Suíça foi agitada pela decisiva participação que aquele
poderoso cantão teve no movimento da Reforma Protestante. James
Wylie diz: “A posição decidida que Berna adotou quanto à Reforma deu
nova vida à causa protestante em todas as partes do país. No oeste,
esse fato preparou o caminho para que a fé protestante entrasse na
Suíça francesa. No leste, na Suíça alemã, o impulso vindo de Berna
completou a Reforma em todas as cidades e vilas, onde já há algum
tempo havia começado. A partir de Grisões, na fronteira com a Itália e até
os limites da Floresta Negra, onde a Basileia é banhada pelas águas do
Reno, a influência foi sentida e o movimento, que estava paralisado, foi
novamente ativado. Somente as grandes montanhas no centro do país,
que estendem seus cumes para cima das nuvens, onde os glaciares
eternos se assentam e nascem os grandes rios, foram os únicos lugares
que permaneceram imóveis. Contudo foram sacudidos, pois a vitória da
Reforma obtida em Berna despertou um grito de surpresa e pavor por
todo o Oberland”.5
Mas a Reforma da famosa e erudita cidade da Basileia foi a mais
importante consequência do decisivo passo tomado em Berna. Basileia
era tão importante quanto Zurique e Berna na Confederação Suíça. Nós
já tivemos oportunidade de nos referirmos a Basileia em conexão com o
início da trajetória das vidas de Zuínglio e Leo Jud, quando eles
estiveram aos pés do famoso Wittenbach — o primeiro a semear a boa
semente do Evangelho na Suíça. Capito e Hedio, de forma sucessiva,
regaram a preciosa semente que estava brotando por meio de suas
orações e da exposição pública do Evangelho da graça de Deus. Essa
semente floresceu poderosamente sob a abençoada atividade do
moderado e erudito Oekolampad. Também foi nessa cidade que a maioria
dos escritos de Lutero foram impressos pelo famoso Froben, e a partir
dessa cidade que foram distribuídos por toda a Suíça e outros países.
***
O POVO SE ADIANTA AO GOVERNO
Durante seis anos o Evangelho havia sido pregado fielmente e com
incansável diligência pelo piedoso Oekolampad. Mas apesar de todo o
seu conhecimento lhe faltava a determinação e a energia indispensáveis
para um reformador. Alguns o compararam, com razão, com
Melanchthon. Aquilo que Melanchthon foi para o inflexível e muitas vezes
autoritário Lutero, Oekolampad foi para o corajoso e impetuoso Zuínglio.
Quieto e calado, ele continuou seu caminho e nunca perdeu a esperança
de que o tempo no qual a luz da verdade expulsaria as trevas finalmente
também viria para a Basileia. D’Aubigné escreve: “Porém, enquanto a
tríplice aristocracia* — o clero superior, os nobres e as universidades —
podia impedir qualquer livre desenvolvimento da consciência cristã, a sua
expectativa era em vão. Os cidadãos estavam destinados a proporcionar
a vitória à causa da Reforma na Basileia”. Os cidadãos da Basileia
estavam favoráveis à Reforma Protestante há muito tempo. Mas como o
governo não fez nada para satisfazer o desejo generalizado por
libertação do jugo romano, finalmente eles se levantaram pela sua própria
força e executaram aquilo diante do qual os magistrados haviam recuado.
O Senado foi obrigado a ceder às exigências do povo, ficando sob suas
ordens. Assim, em decorrência da conduta oscilante dos governantes, a
Reforma na Basileia adotou o caráter de uma revolução violenta.
Poucos anos antes dessa revolta dos cidadãos, que aconteceu em
1528, o Senado havia ordenado que a pura Palavra de Deus fosse
pregada e que existisse uma uniformidade no culto. Referente à missa,
porém, em breve seria realizada uma disputa pública, quando seria
votado acerca da sua abolição ou não. Por meio desse decreto, o
Concelho pensava ter lançado um fundamento firme para a paz pública.
Mas, como acontece com todas as medidas parciais em tempos
turbulentos, esse decreto fracassou por completo em seu objetivo. Tanto
católicos romanos quanto os reformados continuaram a atacar uns aos
outros, de modo público e secreto. Mas da parte do partido papal a
batalha foi conduzida com tal amargura e crescente ousadia que os
cidadãos reformados começaram a temer que o próprio Senado estivesse
apoiando suas ambições. Essa suspeita se espalhou por toda a cidade e
agitou o partido protestante. Eles começaram a se reunir em grande
número. Mas, antes de tomarem qualquer decisão, eles enviaram
representantes para lembrar o Senado da obrigação que havia assumido
mediante o decreto, acima mencionado, que fora emitido.
Tudo isso era perfeitamente legal e consistente com os princípios da
República. Mas os amigos do papado, que em sua maior parte residiam
na chamada Pequena Basileia (que se encontrava do outro lado do Rio
Reno), ao ouvirem da intenção dos reformados se juntaram e, portando
armas, foram até o prédio da prefeitura da cidade com o objetivo de
obstruir a passagem dos protestantes que portavam a petição dirigida ao
Concelho. Mas foi em vão. A delegação conseguiu entrar na prefeitura.
Henrique Meltinger, que era burgomestre e um intrépido líder dos
papistas, tinha grande influência sobre o Senado e recusou-se a receber
a petição demonstrando enorme arrogância. Meyer, que era vice-
burgomestre e um fervoroso amigo da Reforma Protestante, estava à
favor da aceitação da petição. Ele tinha a maioria do povo ao seu lado.
Um choque tornou-se inevitável. De acordo com Oekolampad, “a hora
fatal se aproximava, apavorando os inimigos de Deus”. O Senado foi
tomado de grande inquietação. Em vão foi a tentativa de apaziguar os
agitados partidos; em vão foram todas as exortações para que a multidão
se dispersasse. O tumulto estava aumentando gradualmente Finalmente,
o Senado se viu obrigado a aceitar a petição, na qual dizia: “Honoráveis,
sábios e bondosos senhores, pedimos-vos que tomeis a peito a honra de
Deus, devolvei a paz à cidade. Permitam que os pregadores papistas
disputem com os outros. Se a missa é verdadeira, iremos celebrá-la em
nossas igrejas; se, porém, ela é uma abominação diante de Deus, não
podemos atrair sobre nós e sobre os nossos filhos a terrível ira de Deus
por amor aos sacerdotes”. O Concelho hesitou, não queria perder a
simpatia de nenhum dos partidos. Entretanto, a tempestade se tornava
cada vez mais violenta, de um modo muito rápido. Logo, Basileia parecia
um campo militar agitado. Uma pequena casualidade podia transformá-la
em um sangrento campo de batalha.
***
A BASILEIA SOB UM ESTADO DE SÍTIO
Na noite de 25 de dezembro de 1528, alarmados com os
acontecimentos, os partidários do bispo reuniram um grande número de
armas e levantaram um clamor pela cidade de que um exército austríaco
estaria vindo socorrê-los. Tendo ouvido esse clamor apavorante, os
protestantes se levantaram rapidamente de suas camas, empunharam
suas armas e se reuniram na hospedaria Gartner, tradicional ponto de
encontro de seu partido. As novas do que estava acontecendo na
Basileia haviam trazido à cidade muitos representantes vindos tanto de
cantões reformados quanto católicos, com o intuito de expressarem suas
simpatias, bem como de oferecer aos litigantes* sua mediação. Mas os
cidadãos reformados estavam ansiosamente aguardando a decisão dos
magistrados. Os dois partidos permaneceram com seus homens armados
durante vários dias e noites. Todos os portões da cidade, com exceção de
dois, foram fechados, e guardas fortemente armados foram distribuídos
ao longo de todo o perímetro da mesma. O Senado continuava suas
reuniões, e aprovava um edito após o outro. Todavia, as decisões eram
indeterminadas e oscilantes, e com isso apenas faziam aumentar a
agitação em vez de apaziguá-la. Os protestantes, levando em conta
aquilo que consideravam que era devido à glória de Cristo, à justiça
pública e ao bem estar de seus descendentes, repetiram suas
advertências ao Concelho, exigindo uma resposta imediata. Finalmente,
os partidos acordaram de enviar representantes de ambos os lados ao
Concelho para obrigá-lo a solucionar definitivamente a contenda. Cerca
de cinquenta homens respeitados se dirigiram aos senhores do Concelho
que estavam em constantes reuniões. Mas a contínua atitude indecisa
dos representantes da cidade não permitiu que uma decisão final
pudesse ser alcançada. Semanas se passaram sem que fosse tomada
nenhuma medida enérgica.
Por fim, no dia 8 de fevereiro de 1529, os reformados, cansados dessa
longa hesitação, se apresentaram diante do Concelho exigindo que todos
os inimigos da Reforma, todos os parentes e amigos dos sacerdotes, que
eram os únicos culpados dessas delongas e inquietações, fossem
removidos do Concelho, pelo menos até que a paz fosse restaurada. Os
cidadãos, de um modo geral, temiam que essa demora, bem como as
medidas parciais propostas, pudessem estar sendo utilizadas para
encobrir algum desígnio perverso, e que sua religião e sua liberdade civil
corriam perigo. Mas quando o Concelho deu novamente uma resposta
esquiva*, seus ânimos foram atiçados de tal maneira que tomaram posse
dos portões e das torres da cidade, e exigiram a remoção imediata dos
membros suspeitos do Senado. Entretanto, este passo não é compatível
com o Evangelho da paz e a mentalidade que deve dominar a um
combatente de Cristo. Mas devemos considerar que os cidadãos foram
levados ao extremo, sendo impulsionados a tomar essa medida por
causa da indecisão do Concelho. Contudo, também devemos nos lembrar
quais são os princípios de um governo popular, qual era a educação
daqueles homens e que os mesmos estavam apenas começando a
emergir das profundas trevas do papado. Por meio de Sua graça e Seu
poder, Deus conduziu esse movimento de tal modo que foi alcançada
uma significativa vitória sem derramar uma gota de sangue sequer.
Por muito tempo, a paciência do povo da cidade havia sido duramente
provada pela paralisação das ações do Concelho. Por meio dessas
medidas violentas dos reformados, a agitação foi novamente alimentada.
Basileia se encontrava no limiar de uma fatal guerra civil. O Senado foi
acusado de traição. Os católicos vociferavam: “A missa, a missa! Às
armas se a missa for rejeitada!”. Esses gritos foram acompanhados com
uma enxurrada de insultos, desafios e ameaças sanguinárias. Os
protestantes responderam: “Nada de missa, não suportamos mais
nenhuma missa, nem mesmo uma única sequer. Preferimos morrer!”. O
embaraço do Senado aumentava cada vez mais. Somente Oekolampad
permaneceu calmo e prudente em meio à revolta generalizada. Do seu
púlpito, ele exortou de maneira insistente à mansidão e à moderação de
modo que seus ouvintes muitas vezes foram comovidos até as lágrimas.
Ele orava fervorosamente a Deus, pedindo que Ele os dirigisse para que
tudo acontecesse para Sua glorificação e para a libertação de Seu povo
dos rituais supersticiosos de Roma. Muitas vezes, Oekolampad
conseguiu, mediante a sua influência, impedir que os ânimos excitados
cometessem ações irrefletidas.
Crendo sinceramente que eles estavam contendendo por suas
liberdades civis e religiosas, os protestantes resolveram não ceder. Mas
como o Senado ainda se manteve calado apesar da firme exigência dos
reformados, mil e duzentos homens muito bem armados se apresentaram
diante do Senado. “Nós queremos uma resposta ainda hoje à noite”, eles
disseram. Eram nove horas da noite. O Concelho respondeu: “Amanhã
nós daremos uma resposta”. Ao mesmo tempo o Senado implorou aos
cidadãos que se retirassem em paz para os seus lares. Mas esses
homens não se deixaram repelir tão facilmente. Eles responderam:
“Nenhum olho se fechará esta noite em Basileia. Ainda hoje precisamos
ter uma resposta”. O Senado percebeu que não poderia demorar-se mais
em fazer uma concessão ao povo.
Já bem próximo da meia noite eles enviaram mensageiros aos homens
que estavam esperando pacientemente, dizendo: “Todos os membros do
Senado que são parentes de sacerdotes serão removidos daquele corpo,
e quanto a todas as outras demandas, especialmente aquelas que dizem
respeito à religião e à política, serão atendidas de acordo com a vontade
popular”. Essa resposta deveria ter sido satisfatória para aqueles
homens; mas, uma vez que a suspeita havia sido despertada no povo e
eles temiam que o Senado apenas desse essa resposta para ganhar
tempo, eles decidiram não se separar; eles permaneceram armados e
não relaxaram sua vigilância durante toda aquela noite.
***
AS IMAGENS SÃO DESTRUÍDAS
Amanheceu no dia seguinte; a multidão reunida diante da prefeitura
aumentava constantemente em número, contudo, se manteve bastante
calma. Porém, uma pequena coincidência devia provocar uma grande
agitação nessa multidão. Uma divisão de homens armados, que havia
sido designada pelos protestantes para patrulhar as ruas e para
inspecionar todos os postos de vigia da cidade, entrou na catedral de São
Pedro. Um dos homens, movido pela curiosidade, abriu uma porta lateral
com uma alabarda*. Ali eles se depararam com uma grande quantidade
de imagens de santos que haviam sido removidas e escondidas naquele
local. Uma dessas imagens caiu no pavimento de pedras, despedaçando-
se. Por um momento, os que estavam ao redor contemplaram os cacos
surpreendidos, mas então, gargalhando, retiraram uma imagem após
outra, despedaçando-as igualmente. Não demorou muito até que todo o
chão estivesse coberto de cabeças, troncos e membros quebrados das
imagens. Os sacerdotes, atraídos pelo barulho, começaram a gritar
fortemente, tentando impedir essas ações; mas isso apenas acelerou o
trabalho de destruição. O rumor de um tumulto na igreja correu
rapidamente através de toda cidade. Centenas de cidadãos armados
correram imediatamente para o local. A hora da fúria religiosa havia
chegado. “Por que devemos poupar os ídolos? São eles que atiçam as
chamas da discórdia!”, gritava o povo. Como uma enxurrada violenta, a
multidão invadiu o interior consagrado da igreja. Os altares foram
demolidos, as pinturas foram rasgadas, os ídolos e as relíquias
derrubados de seus nichos e todos os destroços foram levados a uma
praça pública e queimados até virarem cinzas.
Os sacerdotes logo perceberam que qualquer intento de salvar seus
santos objetos seria em vão. Tremendo de medo, correram para se
esconderem na sacristia. O Senado chegou às pressas, tomado de
profunda surpresa, e tentou impor sua autoridade para apaziguar a
agitada multidão. Mas já era tarde demais. Eles haviam falhado no
primeiro requisito da arte do governo popular — a sabedoria de discernir
o tempo exato de satisfazer as exigências do povo. Por meio da sua
conduta ambígua, o Senado havia perdido sua reputação e toda a
confiança dos cidadãos. Sua paciência, testada por tanto tempo, havia
acabado. O Senado havia sido cegado pela poderosa influência de uma
pequena facção de defensores do catolicismo que existia dentro do
mesmo. Com uma postura arrogante, o povo enfrentou os apavorados
senhores do Concelho e disseram: “Nós fizemos em uma hora aquilo que
tendes deliberado durante três anos sem, contudo, fazê-lo”. Enquanto os
iconoclastas* respeitavam todos os tipos de propriedades privadas,
nenhum símbolo da idolatria exposto em público era poupado. Saindo da
catedral eles foram para as demais igrejas da cidade e todos os ídolos
caíram sob os golpes destes honrados cidadãos da Basileia, nos quais se
havia acendido um zelo totalmente incomum. Todos os ídolos foram
lançados nas fogueiras, de modo que iluminaram as trevas da noite e
aqueceram as multidões entusiasmadas no meio do frio intenso. Eles
estavam prestes a atravessar a ponte para ir à Pequena Basileia, a sede
dos papistas, quando os apavorados moradores pediram que lhes fosse
permitido que removessem eles mesmos as imagens.
O povo havia alcançado uma vitória decisiva; o Senado, ainda que
relutante, cedeu. Doze membros do Senado — que se opunham à
Reforma Protestante — foram exonerados* de sua dignidade; o
burgomestre Meltinger, tomado de pavor, já havia fugido durante a noite.
Após breve deliberação, foi decretado que:

1. Os cidadãos deveriam votar para eleger os membros dos dois


Concelhos;
2. A partir daquele dia, todos os ídolos e a missa católica estavam
abolidos por completo, tanto na cidade como no cantão, e as igrejas
deviam ser supridas com ministros capazes, que pregassem a
Palavra de Deus;
3. Em todas as deliberações, em questões pertinentes à religião e à
Confederação, duzentos e sessenta membros das diversas
corporações deveriam ser admitidos para deliberarem junto com o
Senado.6

Esses foram os importantes triunfos daqueles dois dias marcantes. Os


cidadãos conseguiram assegurar o estabelecimento da reforma religiosa,
também obtiveram grandes privilégios que lhes permitiram participar no
governo, sem derramar uma gota de sangue. Esses dois objetivos, o civil
e o religioso, estavam geralmente combinados na Reforma Suíça. “O
início da reforma na Basileia”, nos diz Ruchat, “foi um tanto quanto
tumultuado, mas seu desfecho foi feliz, e todas as inquietações que
surgiram acerca da religião foram extintas sem prejudicar a vida dos
cidadãos ou seus bens.” Todas as corporações se encontraram no dia 12
de fevereiro e fizeram juramentos individuais de fidelidade à nova ordem
estabelecida. No domingo seguinte, a adoração reformada foi introduzida
em todas as igrejas da Basileia e, pela primeira vez, salmos em alemão
foram cantados pela reverente multidão. Durante o curso da semana
seguinte, uma anistia ampla, geral e irrestrita foi proclamada pelo
Senado, abolindo todas as ofensas.
***
AS CONSEQUÊNCIAS DA REVOLUÇÃO
Todas as coisas agora estavam mudadas na Basileia. Os líderes do
partido papal, os sacerdotes, os teólogos e os monges se preparavam
para deixar a cidade. Não se tratava de temor quanto à própria segurança
e sim de um ódio contra a fé protestante. Muitos deles foram
cordialmente convidados a permanecer. Certamente, Erasmo foi a
pessoa mais eminente que se retirou da Basileia nessa ocasião, após
haver morado nela por muitos anos. Ao escrever para seu amigo
Wilibaldo Pirkheimer, pouco antes da sua saída, ele disse: “Oekolampad
me ofereceu sua amizade sincera, a qual eu aceitei sob a condição que
ele me permita discordar dele em alguns pontos. Ele queria me
convencer a não abandonar Basileia. Eu lhe disse que era com grande
relutância que estava saindo da mesma, uma vez que em muitas
ocasiões a cidade tinha se mostrado tão agradável para mim. Todavia,
lhe disse que não poderia suportar o ódio ao qual estaria exposto se
permanecesse na cidade, pois se eu ficasse pensariam que eu estou de
acordo com os acontecimentos mais recentes”. Pouco tempo depois, ele
partiu, mudando-se para Friburgo. Seu salário, sua fama, seu crédito com
as pessoas importantes dentro do catolicismo, com o papa e com o
partido papal estavam em perigo caso ele decidisse permanecer por mais
tempo naquela cidade. Mas Erasmo, apesar de ser um homem de letras,
muito sábio, tinha uma grande inclinação para o sarcasmo e a zombaria.
Por ocasião da destruição das imagens, ele observou ironicamente:
“Estranho que os santos não realizaram nenhum milagre para se salvar;
em outras oportunidades eles fizeram maravilhas diante de ataques muito
menos significativos”. Este grande erudito, embora convencido da
inconsistência e tolice da superstição romana e sendo favorável às
doutrinas da Reforma Protestante, tinha medo de se colocar do lado dos
reformadores com determinação. Ele recuava diante da ignomínia
pertinente de tal passo. Ele se esforçava constantemente de não perder a
simpatia de nenhum dos partidos e, dessa forma, ele nunca teve uma
postura determinada. Ele oscilava entre os dois partidos com
insegurança. Por convicção, ele fazia parte da Reforma; mas o calculismo
e o medo o mantiveram na antiga igreja.
Após a partida de Erasmo e de outros professores, novos professores
foram convidados a preencher as cadeiras vazias na universidade. Entre
eles: Oswaldo Myconius, Frígio, Sebastião Munster e Simon Grynaeus.
Ao mesmo tempo, uma nova ordem eclesiástica foi instituída e uma nova
confissão de fé foi redigida e publicada — que é considerada como um
dos mais preciosos documentos da época.7 Dessa forma, uma grande
mudança foi efetuada. Apesar do seu poder secular e espiritual, o papado
havia caído na Basileia. Oekolampad escreve: “A cunha do Senhor
penetrou na madeira e rompeu o nó maligno”. Ainda assim, não podemos
negar que a Reforma na Basileia dá espaço para uma séria repreensão.
Embora Deus, em Sua graça, concedeu um desfecho feliz e abençoado,
ainda assim os meios aplicados pelos homens eram ilegais e reprováveis.
Lutero jamais teria dado seu consentimento para uma solução tão
violenta da discórdia.
Foi durante essa época que aconteceu a disputa acerca do sacramento
da Ceia do Senhor, chamada de a controvérsia sacramentária entre
Lutero e Zuínglio. Já relatamos os detalhes concernentes a essa disputa
no capítulo 37, não tendo necessidade de abordar novamente essa
questão.

1 Du Pin, folio ed. vol. 3, p. 201; Hess, pp. 240-250.


2 Waddington, vol. 2, pp. 327-336. Scott, vol. 3, pp. 1-25. D´Aubigné, vol. 4, pp. 361-
385. Hess, pp. 250-258.
3 D´Aubigné, vol. 4, pp. 277-278.
4 Para maiores detalhes dessa grande crise, ver Scott, vol. 3. Ele cita as narrativas
de Bucer referentes ao encontro em Berna, e cita também a obra de Sebastião
Munster. Além disso, ele faz menção às obras de Gerdes, Abraão Ruchat, e
outros. Du Pin em sua apologia para explicar a ausência dos quatro bispos, diz o
seguinte: “Disputas acerca de questões de fé não devem ser determinadas
apenas pelo ensinamento das Escrituras, porque cada um poderá explicá-las
conforme sua própria inclinação. A lei de Deus tem suprido outra forma para se
decidir quaisquer dúvidas que surjam com respeito à religião, e é: consultar o
papa e obedecer a todas as suas determinações”. Esse é o nível da cegueira de
um dos mais razoáveis estudiosos e devotado membro da Igreja Romana.
5 History of Protestantism, vol. 2, p. 70.
6 Wylie´s History of Protestantism, vol. 2, p. 75.
7 Scott, vol. 3, p. 40; Waddington, vol. 2, p. 321; D´Aubigné, vol. 4, p. 416.

Capítulo 44
A POSTERIOR DIVULGAÇÃO DA REFORMA
PROTESTANTE NA SUÍÇA
Agora, a Reforma Protestante estava bem estabelecida nos três
principais e mais poderosos cantões da Suíça: Zurique, Berna e Basileia.
O exemplo desses importantes Estados influenciou, em grande parte,
uma porção considerável da Suíça alemã. A queda do poder romano na
Basileia decidiu a sorte do papado em muitos outros lugares. Ali onde os
cidadãos estavam inclinados a adotar os ensinamentos reformados, mas
que ainda estavam indecisos, agora, declaravam sua fé nas novas
doutrinas de forma corajosa, reconhecendo-as como sendo de acordo
com as Escrituras. Os cantões de Schaffhausen, São Galo, Glarus,
Bienna, Turgóvia, Bremgarten, Togemburgo, Wesen, e outras localidades
menos importantes, adotaram completa ou parcialmente os ensinamentos
da Reforma Protestante. O efeito da disputa em Berna e as
consequências da revolução na Basileia, seguido pelo zelo dos cidadãos,
também foi sentido na Suíça francesa. Algumas comunidades localizadas
em meio a densas florestas de abeto no cantão de Jura1, até então
haviam demonstrado a mais absoluta devoção ao pontífice romano, mas
foram poderosamente atingidos por esse movimento.
***
A MISTURA DE INTERESSES ESPIRITUAIS E POLÍTICOS
Agora precisamos fazer uma pequena pausa para mencionar uma
manifestação que reduz significativamente a nossa alegria sobre a
divulgação da verdade da obra reformadora. Desde o início, o grande e
fatal erro do Protestantismo foi buscar o apoio do braço humano para sua
proteção em vez de apenas testemunhar a favor da verdade e confiar no
Deus vivo. Mal os reformadores haviam rompido com Roma, já se
sentiam como que apavorados pelo poder remanescente do papado. Isso
fez com que estendessem suas mãos buscando o apoio do governo civil
e procurando abrigo sob seus exércitos. Satanás conseguiu desviar seus
olhos de Deus, voltando-os sobre o poder de seus inimigos, e com isso
sua força foi abalada e sua firmeza desapareceu.
É verdade que Lutero se opunha ao uso da força das armas com o
propósito de promover a divulgação da Reforma e buscava o triunfo da
verdade por meio da proclamação pacífica do Evangelho. Ainda assim,
como temos visto, ele concordou que os príncipes assumissem todo o
controle sobre os assuntos eclesiásticos e espirituais no período inicial da
Reforma Protestante na Alemanha. Infelizmente, Zuínglio foi bem mais
longe neste perigoso curso. Quando as dificuldades se levantaram e
perigosas tempestades assolaram o barco da Reforma, através das
traições e hostilidades dos cantões católicos, ele entendeu que era seu
dever, como um verdadeiro republicano e um cristão patriota, intervir nas
questões federais e aconselhar o Senado. Ele também cismou quanto a
meios para repelir o perigo ameaçador e tomar providências para
enfrentar o inimigo de modo enfático. Desse modo, ele desceu do
consagrado lugar de sua vocação e se tornou um estadista ativo e
calculista. A partir desse momento, parecia que o poderoso braço de
Deus, que até então havia protegido ao grande reformador e a sua obra
de modo tão visível, se desviou dele. Zuínglio enveredou por um caminho
no qual Deus não podia mais estar com ele, pois Deus não executa Sua
obra por meio das armas carnais, mas pelas armas do Espírito. Para
alcançar Seus objetivos, Ele não precisa da inteligência e nem do poder
dos homens. Pelo contrário, estes apenas corrompem e impedem a obra
de Deus. Todos os planos de Zuínglio fracassaram, tinham que fracassar.
Ele mesmo sofreu uma morte desonrosa no tumultuado e sangrento
campo de batalha, e a causa evangélica na Suíça sofreu um golpe que a
abalou profundamente.
Do momento em que os Estados reformados assumiram, ou melhor,
usurparam as funções da Igreja Romana no campo da política, e os
ministros do Evangelho passaram a se envolver no dia a dia das práticas
políticas, nuvens começaram a se juntar e uma tormenta se formava. Não
temos dúvidas que os magistrados de Zurique e Berna desejavam
fortalecer a boa obra dentro de seus cantões e estendê-la fora dos
mesmos. Com esse objetivo, eles publicaram vários editos proibindo seus
súditos de frequentarem à missa e de falarem de forma desfavorável
acerca das mudanças recentes. Além disso, ordenavam que os mesmos
frequentassem, de forma mais assídua, as reuniões evangélicas. Com o
objetivo de purificar as práticas morais do povo, os magistrados também
emitiram um edito geral contra todo o tipo de festas públicas, bebedeiras
e blasfêmias. Assim, as autoridades civis impunham sua religião através
de editos.
***
O PRIMEIRO PASSO EM FALSO: “A CONFEDERAÇÃO”
Zuínglio, que havia recebido uma educação republicana e crescido com
esse modo de pensar, tinha um ardente amor pela sua pátria, e agora
estava animado pelo zeloso desejo de divulgar a Reforma Protestante.
Tendo isso em vista, poderíamos avaliar a conduta do famoso reformador
de um modo mais moderado. Porém, ainda assim ele deveria ter sabido
que o Reino de Cristo não é deste mundo e que, por essa razão, também
não pode ser promovido por meio das armas deste mundo. Mas ele se
esqueceu completamente disso, de modo que ele mesmo se apresentou
na iminente batalha como o supremo condutor e general, conduzindo
com grande habilidade os preparativos. Influenciado por essa educação
republicana, Zuínglio imaginava que era bom para os reformadores, e
para a Reforma Protestante, formar uma liga. Esse foi o primeiro passo
naquele caminho em declive e fatal. Tendo percebido desde cedo que o
movimento da Reforma poderia eventualmente dividir seu amado país em
dois campos, ele achava perfeitamente justificável promover uma aliança
entre todos os Estados que haviam adotado a Reforma Protestante. No
ano 1527, ele propôs ao Concelho de Zurique o que ficou conhecido
como a Coalizão dos Cantões Cristãos, na qual todos aqueles que
professavam o Evangelho podiam se unir em uma nova Confederação
Reformada. A cidade de Constança foi a primeira a se unir à nova liga.
Logo em seguida, Berna, São Galo, Mühlhausen, Basileia, Schaffhausen
e Estrasburgo se uniram também. Mas, essa “Coalizão dos Cantões
Cristãos”, nos diz D’Aubigné, “poderia se tornar a semente de uma nova
confederação. Imediatamente despertou inúmeros adversários contra
Zuínglio, mesmo entre os partidários da Reforma Protestante”. Agora, o
pastor de Zurique estava pisando em um solo muito perigoso, e isso ficou
provado pela maneira rápida com que ele chegou ao fim. Como um
cidadão, ele havia sido ensinado a considerar a regeneração de seu país
como parte de sua religião, e a igreja na qual havia crescido — a Igreja
Católica Apostólica Romana — havia, durante séculos, brandido duas
espadas. Até mesmo nos dias de hoje nos surpreendemos em descobrir
a grande quantidade de cristãos que são governados pelo nacionalismo2.
Lutero, que acreditava na instituição imperial, era completamente
oposto à política carnal de resistência. “Os cristãos”, ele dizia, “não
devem resistir ao imperador, e se ele exige sua morte, eles devem estar
prontos para entregarem suas vidas”.
***
CINCO CANTÕES FORMAM UMA LIGA COM A ÁUSTRIA
Quando os católicos romanos ouviram falar acerca dessa nova aliança
dos protestantes, ficaram alarmados e cheios de indignação e temor. Os
cinco cantões, conhecidos como os “cantões florestais” — Lucerna, Zug,
Schwyz, Uri e Unterwald — permaneceram firmes em sua fidelidade a
Roma. Os camponeses, que habitavam às margens do Lago dos Quatro
Cantões, nas encostas e nos vales circundantes, eram ásperos e duros
como as montanhas da sua pátria e estavam presos de todo coração aos
seus hábitos, suas tradições e sua religião. Quando ouviram as novas a
respeito da terrível perversão praticada pelos hereges nas planícies
abaixo, eles reagiram com dor e raiva. Quando sacerdotes e monges
começaram a chegar à região de Oberland contando que os altares
diante dos quais seus pais se ajoelharam haviam sido destruídos, que as
imagens foram queimadas em praças públicas, que a missa havia sido
abolida e que os sacerdotes e monges foram expulsos, a sua fúria foi
imensa. Sendo completamente ignorantes quanto ao significado da
palavra Reforma, nós podemos facilmente imaginar seus sentimentos,
atiçados pelas artimanhas dos monges e sacerdotes. “Isso não pode
continuar assim. Essa heresia ímpia precisa ser exterminada pelo fogo e
pela espada!”, clamou a multidão fanática.
Mas como conseguir isso? Os cantões protestantes eram fortes
demais, de modo que os cantões florestais, sozinhos, não poderiam fazer
nada contra eles. O bispo de Constança também apelou a eles por meio
de cartas, desafiando-os a agir com firmeza, caso contrário, toda a Suíça
iria abraçar a Reforma Protestante.
O que deveria ser feito? Uma aliança com um Estado estrangeiro, sem
o consentimento dos demais cantões, seria uma violação do princípio
fundamental da Confederação Helvética, bem como da liga da
fraternidade. Contudo, o orgulhoso povo das montanhas, que havia sido
instigado a uma fúria extrema pelos seus sacerdotes e pelo bispo de
Constança, não recuou diante de uma ação tão ilegal. Manter os
pretensos direitos da Igreja Romana nesse momento tinha mais valor
para eles do que guardar fidelidade à Confederação e à nação. O ódio
contra a nova fé venceu o proverbial amor dos suíços para com a sua
pátria. Sabendo que Fernando, arquiduque da Áustria e irmão de Carlos
V, era conhecido pelo seu ardente ódio aos protestantes, assim como
eles, os cinco cantões pediram sua ajuda e entraram em aliança com o
príncipe para extirpar a Reforma Protestante e manter o catolicismo
romano no solo suíço.
Essa decisão não era apenas inconstitucional, mas desnaturada e
cruel. A Áustria sempre fora o antigo opressor e natural inimigo da nação
suíça. Aquele país representava o último lugar onde um cantão suíço
procuraria encontrar socorro. “Será que eles haviam esquecido”, indaga
um escritor moderno, “o terrível jugo que a Áustria lhes havia imposto em
outros tempos? Será que se esqueceram do sangue que seus pais
tiveram que derramar para quebrar aquele jugo? Haviam esquecido as
sangrentas batalhas que lutaram nos campos de Morgarten e Sempach?
Eles estavam prontos a esquecer o ódio nacional em troca da antipatia
religiosa. O terror do protestantismo suplantou o desprezo que nutriam
pelo tradicional inimigo.”3
Essa aliança que os suíços desejavam era tão contrária a todos os
preconceitos e sentimentos nacionais que eles nutriam contra a Áustria,
que os austríacos tiveram muita dificuldade em acreditar que os suíços
estavam sendo sinceros. Para provar sua sinceridade, eles ofereceram
alguns reféns e disseram: “Queremos que vós mesmos redijais os artigos
do tratado. Ordenem e nós obedeceremos!”. Somente depois disto que
os austríacos concordaram em negociar com eles. A liga foi concluída
com um juramento das duas partes, no dia 23 de abril de 1529, na
localidade de Waldshut. A mesma decretava o seguinte: “Todas as
tentativas de se formarem novas seitas nos cinco cantões devem ser
punidas com a morte. E, em casos de emergência, a Áustria enviará seis
mil soldados de infantaria e quatrocentos de cavalaria para a Suíça,
fornecendo todos os suprimentos necessários. Caso seja necessário, os
cantões protestantes sofrerão um bloqueio e todas as provisões serão
interceptadas”.
A notícia dessas negociações causou uma grande agitação e
insatisfação, alarmando até mesmo os inimigos da Reforma. Fazer
aquele tipo de aliança com um poder estrangeiro equivalia a
comprometer a independência da Suíça e, em vez de conseguirem um
aliado, acabariam por encontrar um dominador. Mas os sentimentos
patrióticos dos suíços foram logo extinguidos pelo ódio que sentiam dos
seguidores de Zuínglio. Em sua alegria pela concretização dessa liga e
na esperança de poder vingar-se dos destruidores do antigo culto, os
homens de Unterwald e Uri esqueceram completamente os sentimentos
hostis contra os outrora opressores da sua pátria, de modo que, em seu
zelo fanático, levantaram os brasões das armas da Áustria juntamente
com os seus, e decoraram seus chapéus com penas de pavão, como
faziam os austríacos. Nessa época foi composto o poema que
expressava o sentimento nacional:
“Avante helvéticos, avante,
Unidos pelo orgulho da pena do pavão
Corramos como bois selvagens nos cantões florestais
Em amizade com nossos aliados”.
Os oito cantões que não haviam se unido a essa aliança, com exceção
de Friburgo, se reuniram para deliberarem acerca das medidas
apropriadas para a dissolução daquela aliança e para obter uma
reconciliação com os cantões florestais. Eles enviaram representantes
aos confederados das montanhas para lhes apresentar a ilegalidade da
sua conduta. Mas os mesmos foram tratados com grande desdém por
todos os lugares por onde passaram. Sentindo que podiam contar com o
apoio do exército imperial, os papistas não se intimidaram em apresentar
todo tipo de insultos contra as doutrinas e às pessoas dos reformadores.
Quando a delegação quis se desincumbir da sua tarefa, os montanheses
gritaram: “Nenhum sermão, nenhum sermão!”. Em outro lugar, eles foram
rejeitados com estas palavras: “Queira Deus, que a vossa nova fé seja
sepultada para sempre!”. Os habitantes de Lucerna revidaram as suas
alegações dizendo: “Nós saberemos guardar a nós, a nossos filhos e a
nossos netos do veneno de vossos sacerdotes rebeldes”. Os moradores
de Unterwald lhes disseram: “Nós e os demais cantões florestais somos
os genuínos suíços. Vós fostes recebidos de favor na Confederação
Helvética”. Os representantes dos oito cantões se retiraram indignados,
mas sentiram-se ainda mais chocados e humilhados ao passar pela casa
do secretário de Estado, onde eles viram os brasões das armas de
Zurique, Berna, Basileia e Estrasburgo pendurados em uma imponente
forca.
***
OS CANTÕES ROMANOS PERSEGUEM OS REFORMADOS
Desse modo, a guerra parecia inevitável. Todas as coisas estavam
conduzindo a uma ruptura completa e imediata. Os habitantes das
montanhas tornaram-se mais desconsiderados e violentos a cada dia.
Com o intuito de defender a religião de seus pais e de excluir as novas
doutrinas do meio de seus súditos, o partido papal começou a confiscar
os bens, prender, torturar e expulsar das suas terras aqueles que
ensinavam as verdades da fé reformada. Quando a notícia da
vergonhosa rejeição sofrida pela delegação em Unterwald chegou a
Zurique, todos os ânimos foram tomados de uma violenta ira. Zuínglio
pensava que tal ofensa tinha que ser vingada, e propôs ao Concelho
punir ao atrevido cantão pela sua injúria. Provavelmente isso teria
acontecido se Berna não tivesse se declarado contra e exortado à
moderação cristã. A tempestade amainou* mais uma vez, porém por
pouco tempo. De repente, aconteceu algo que excitou novamente, e de
forma selvagem, as ondas que apenas haviam sido apaziguadas. Esse
caso foi de uma atrocidade tal que despertou os sentimentos mais nobres
da humanidade e acabou conduzindo toda essa situação para uma
verdadeira crise.
Tiago Kayser, um pastor do cantão de Zurique e pai de família, estava
indo para a cidade de Oberkirchen, no sábado 22 de maio, onde deveria
pregar no domingo. Enquanto caminhava calma e confiadamente através
de um pequeno bosque, pelo qual tinha passado muitas vezes antes,
subitamente seis homens saltaram da mata, o manietaram e o levaram
para Schwyz. Quando chegaram àquela cidade, ele foi imediatamente
apresentado diante dos magistrados, que o interrogaram. Nenhuma outra
acusação foi levantada contra ele, senão que era um ministro evangélico.
Isso bastou plenamente para o ódio dos juízes fanáticos. Apesar das
sérias alegações vindas de Zurique, que havia recebido rapidamente a
notícia da violenta prisão de Kayser, o infeliz homem foi condenado a ser
queimado vivo. Os representantes de Zurique e Glarus argumentaram
que o prisioneiro não pertencia à jurisdição do cantão de Schwyz, mas foi
em vão. Seus pedidos e ameaças foram ignorados, o exasperado povo
queria uma vítima. A cruel sentença foi executada no dia 29 de maio. No
momento em que aquele homem piedoso ouviu sua sentença, desatou a
chorar. Mas antes que a hora do seu martírio chegasse, a graça de Deus
já havia consolado seu coração e fortalecido sua coragem, a ponto dele
se encontrar pleno da alegria do Espírito. Foi dessa maneira que ele
caminhou com firmeza e alegremente até a estaca, confessando sua fé
em alta voz, agradecendo e louvando ao Senhor Jesus no meio das
chamas, pelo fato de ter sido considerado digno de morrer a favor do
Evangelho — até dar seu último suspiro. A delegação de Zurique assistiu
a esse triste espetáculo. Quando a voz do mártir, audível a todos, surgia
do meio da fumaça e das chamas, um dos magistrados de Schwyz disse
aos representantes de Zurique com um sorriso sarcástico nos lábios:
“Vão e contem ao povo de Zurique de que maneira ele nos agradeceu!”.
Foi assim que os homens de Zurique foram desafiados e afrontados.
***
A DECLARAÇÃO DE GUERRA
Ao receberem a notícia desse ato infame, os habitantes de Zurique
ficaram extremamente irritados. O que havia acontecido em Schwyz foi
considerado uma ofensa de todos os direitos religiosos e políticos de
Zurique; e eles declararam guerra contra os cinco cantões. O dever dos
magistrados é defender os oprimidos, mas o dever do ministro de Cristo é
manter-se firme em seu chamado sagrado, e empunhar apenas a espada
do Espírito, que é a Palavra de Deus (Ef 6:17). Historiadores imparciais
registraram o lamentável abandono dos deveres que o grande reformador
Zuínglio tinha com os preceitos graciosos de seu Mestre, do qual ele
deveria ser uma testemunha viva. As chamas da fogueira do seu
companheiro de luta e serviço acenderam nele uma ardente cólera.
Como cidadão e patriota, mais uma vez Zuínglio foi o primeiro a levantar
sua poderosa voz exigindo uma vingança imediata para essa infâmia.
Sua voz ressoou até os mais longínquos cantos da Confederação
Helvética, despertando uma verdadeira tempestade de indignação contra
a hipocrisia e a intolerância dos cantões florestais.
Zuínglio convocou as autoridades, exigindo que fossem adotadas
medidas enérgicas. Tanto nas reuniões do Concelho quanto de seu
púlpito, ele exortava a todos a empunharem suas armas, a serem firmes
e a não temerem nada. Identificando-se a si mesmo com o exército, do
qual ele era o capelão, Zuínglio exclamava: “A paz que muitos almejam
não é paz, mas guerra! Enquanto a guerra que nós almejamos, em
verdade é paz. Não temos sede de sangue, mas iremos cortar as asas da
oligarquia*. Se fugirmos dessa nossa responsabilidade, a verdade do
Evangelho e as vidas dos ministros não estarão seguras. É verdade que
precisamos confiar apenas em Deus, mas quando temos diante de nós
uma causa justa, também precisamos saber como defender a mesma e,
como Josué e Gideão, estarmos prontos a derramar o nosso sangue em
defesa da nossa pátria e da nossa fé!”.
Tivesse Zuínglio sido um magistrado no Concelho ou um general no
exército, seus apelos teriam sido consistentes e corretos. Mas ele tinha
se esquecido que era ministro do Príncipe da Paz, e que da boca de tal
homem jamais deveriam proceder palavras como as acima mencionadas;
ele nunca deveria convocar uma guerra e derramamento de sangue.
Sempre devemos lembrar que as armas da nossa milícia não são
carnais, mas espirituais e poderosas através do poder de Deus (2 Co
10:4). O famoso reformador havia se transformado totalmente — de um
homem da igreja, havia se tornado um homem do Estado; em vez de,
como anteriormente, apenas anunciar o Evangelho da paz e as eternas
verdades da Palavra de Deus, agora ele realizava discursos públicos de
conteúdo político, traçava planos de defesa e insistia em uma
remodelação da organização da guerra. Ele até mesmo escreveu
tratados acerca dos diversos tipos de armas e sua utilização mais
vantajosa. Entretanto, em meio desta atividade nova e desgastante, ele
nunca perdeu de vista o grande objetivo que sempre tinha em mente: a
promoção da Reforma Protestante e a libertação do Evangelho de todos
os seus impedimentos e inimigos. Devemos lembrar também que sua
convocação para o uso da força era contra os abusos políticos e não
contra as diferenças de fé. Durante esse tempo, ele propôs aos seus
concidadãos: “Vamos propor aos cinco cantões que permitam a livre
pregação da Palavra de Deus; que renunciem suas alianças perversas e
que possam punir aqueles que se oferecem para servir governos
estrangeiros. Ninguém deve ser obrigado a abandonar a missa, os ritos,
os ídolos e as superstições. O poderoso sopro da Palavra de Deus irá
dispersar com facilidade toda essa poeira. Permaneçam firmes! Nós
conseguiremos conduzir o carro da Reforma Protestante através de todos
os empecilhos e alcançaremos a unidade da fé e da Suíça”.4 Que
lamentável que este grande homem tenha se desviado tanto do reto
caminho, ao ponto de querer, por meio do uso das forças das armas,
forçar este belo objetivo de obter a unidade da fé e a liberdade da Palavra
de Deus!
***
PREPARAÇÕES MILITARES
Enquanto isso, os cantões católicos estiveram muito ativos. Eles
sabiam muito bem o que haviam feito e o que deveriam esperar. A guerra
religiosa havia sido iniciada. O som do chifre convocando para a guerra
ecoou nas montanhas e nos vales dos cantões florestais. Por todas as
partes os homens estavam tomando as suas armas. Mensageiros foram
enviados às pressas para a Áustria, para pedir as tropas de ajuda que
haviam sido prometidas. Mas Fernando, que estava sendo novamente
atacado pelos turcos, não pôde disponibilizar as tropas. De modo que a
delegação teve que voltar sem conseguir nada. Não obstante, de forma
firme, e unidos entre si, os homens dos cinco cantões marcharam sob a
grande bandeira de Lucerna para batalharem contra Zurique no dia 8 de
junho. A cidade viu que não havia nenhum minuto a perder. Quatro mil
homens bem armados passaram os portões da cidade no dia 9 de junho.
Zuínglio foi com eles ao encontro dos inimigos, montado no seu cavalo e
com uma brilhante alabarda em sua mão. Os muros e as torres da cidade
estavam lotados de mulheres e crianças que queriam testemunhar a
partida dos guerreiros. Entre esses, se encontrava Ana, a esposa de
Zuínglio. Às nove horas da noite daquele mesmo dia eles chegaram a
Kappel, uma vila que ficava na fronteira entre Zurique e Zug. Ao raiar do
dia seguinte, os guerreiros de Zurique enviaram um emissário a Zug com
uma declaração formal de guerra, bem como para anunciar a ruptura da
aliança. A sua chegada causou pavor e consternação na pequena cidade.
Os homens tomaram suas armas, as mulheres e as crianças corriam
pelas ruas chorando e gritando, a cidade estava um caos. A súbita
chegada dos guerreiros de Zurique havia tomado a pequena vila de
surpresa.
No momento em que a primeira divisão do exército de Zurique, que
consistia de dois mil homens, estava se preparando para cruzar a
fronteira, notaram um cavaleiro se aproximando a pleno galope. Seu
nome era Oebli, o magistrado-chefe de Glarus. “Parem!”, ele gritou com
grande agitação, “Eu venho da parte da Confederação. Os cinco cantões
estão prontos para a batalha, mas consegui convencê-los a pararem o
avanço de suas tropas se fizerem o mesmo. Eu vos imploro, senhores de
Zurique e a todo o povo, que, pelo amor a Deus e pelo amor à nossa
Confederação, suspendam sua marcha por enquanto. Em poucas horas
estarei de volta; espero, com a ajuda de Deus, obter uma paz honrada e
impedir que nossas casas fiquem cheias de viúvas e órfãos.”5
Oebli era um homem honrado e favorável à Reforma. Por esse motivo,
os capitães do exército de Zurique suspenderam sua marcha. Muitos
acreditavam que Oebli obteria a paz satisfazendo ambos os lados, mas
Zuínglio suspeitava que era uma armadilha. Perturbado e muito
incomodado, Zuínglio pensava que a intervenção de Oebli não passava
de uma astúcia de Satanás. Ele sabia que os cinco cantões não haviam
conseguido o auxílio que esperavam da Áustria naquele momento, por
isso pensava que estavam fingindo, que desejavam a paz apenas para
ganhar tempo. Com ânimo sombrio, Zuínglio andava de um lado para o
outro. Por fim, ele se aproximou de Oebli e lhe disse em um tom grave:
“Amigo magistrado, tu terás que responder diante do Senhor por essa
mediação. Nossos adversários estão em apertos. Esse é o motivo porque
eles nos enviam essas palavras gentis. Porém, mais tarde irão cair sobre
nós quando estivermos distraídos, e então não haverá quem nos livre”.
Nenhuma profecia foi cumprida de modo mais literal como esta. “Meu
querido amigo”, respondeu Oebli, “eu confio em Deus que tudo acabará
bem. Nós iremos fazer o nosso melhor.” Com essas palavras, ele partiu
cavalgando apressadamente para Zug. Zuínglio, em profunda meditação,
voltou para sua tenda. Em espírito, ele antecipava um futuro tenebroso e
terrível. “Hoje eles imploram e nos pedem a paz”, disse Zuínglio, “mas em
um mês, quando tivermos deposto as armas, eles virão e nos
esmagarão.”
***
O TRATADO DE KAPPEL
Mediante seus incansáveis esforços, Oebli conseguiu dar início às
deliberações entre os dois acampamentos inimigos, contudo, se
passaram várias semanas antes que houvesse concordância quanto às
condições de paz. Os representantes de Zurique e os romanistas, com a
participação dos cantões neutros, se reuniram durante esses dias para
redigirem um documento contendo os artigos do tratado de paz. Durante
aqueles dias, os soldados dos dois exércitos travaram uma relação
amistosa. Eles se lembraram que todos eram suíços, eram irmãos. As
sentinelas, que estavam a apenas um tiro de pedra um do outro,
conversavam cordialmente entre si. Eles se divertiam, comiam e bebiam
juntos. A ordem predominava no acampamento das tropas de Zurique;
Zuínglio, ou outro ministro, pregava diariamente. Entre os soldados não
se ouvia nenhum palavrão nem disputas; nenhuma pessoa desonesta era
admitida; orações eram feitas antes e depois das refeições, e cada
homem obedecia a seu superior. Não havia dados nem baralhos, nem
outro jogo que pudesse excitar os ânimos. Apenas salmos, hinos e
cânticos patrióticos eram cantados. Eram praticados exercícios físicos, o
que ajudavam na recreação dos militares dos exércitos de Zurique. O
espírito do reformador havia passado para o exército.
Por fim, o tratado foi concluído no dia 26 de junho de 1529. Os
guerreiros desmontaram suas barracas e retornaram para seus lares
jubilosos. Os termos deste tratado, apesar de não corresponderem
totalmente aos desejos dos protestantes, e em especial os de Zuínglio,
ainda assim eram favoráveis à Reforma. Os cantões florestais se
comprometeram a abandonar a aliança feita com a Áustria e a liberdade
de consciência deveria ser garantida a todos os seus súditos. Mesmo as
menores paróquias deveriam decidir, por uma maioria de votos, qual
religião desejavam professar. E a família de Kayser devia receber uma
indenização. O povo de Zurique ficou satisfeito com o sucesso que havia
coroado a disposição guerreira que haviam demonstrado. Mas o espírito
de Zuínglio estava oprimido por grandes preocupações. Calado e abatido,
ele retornou a Zurique. Os berneses — que não haviam contribuído com
absolutamente nada para que aquela vitória fosse alcançada sem
derramamento de sangue, pelo contrário, haviam manifestado sua
oposição — começaram a invejar a crescente influência de Zurique. Isso,
infelizmente, fez surgir um espírito de desunião entre aqueles dois
poderosos Estados, o que fez com que o laço entre eles começasse a ruir
e culminasse na grande catástrofe de 1531.
***
A CONFEDERAÇÃO CRISTÃ DE ZUÍNGLIO
Contudo, o espírito forte e vivaz do reformador não se entregou por
muito tempo à melancolia que havia tomado conta dele. Rapidamente,
ele recuperou sua antiga determinação e energia e voltou-se, com um
zelo ainda maior, às questões políticas. Zuínglio se enredou cada vez
mais na armadilha que o astuto inimigo das almas lhe havia preparado.
Satanás conhecia os pontos fracos de Zuínglio e o tentou com a grande
ideia de unir toda a Suíça e a cristandade reformada mediante uma
confederação cristã. Satanás sabia que dessa maneira poderia destruir
ao reformador e a sua obra, por isso ele impulsionava, com grande
astúcia, a Zuínglio nesse caminho. As intenções do reformador, sem
dúvida, eram as mais puras e elevadas em caráter. A conduta hostil dos
cinco cantões e a oposição que se levantava por todas as partes contra a
Reforma pareciam exigir, de modo cada vez mais imperativo, uma união
mais firme dos evangélicos. O espírito enérgico de Zuínglio meditava dia
e noite em como poderia fazer avançar a Reforma Protestante e derrubar
aquele terrível poder que havia mantido as nações da Europa sob a
escravidão por um longo período. O grandioso plano que ele pretendia
realizar consistia em unir todos os Estados e nações protestantes da
Europa em uma santa confederação. Seu olhar ia além das fronteiras da
Suíça, abrangendo toda a cristandade. Nenhum homem de seus dias
possuía uma compreensão tão precisa das condições políticas, militares
e religiosas como ele. Sem conseguir enxergar a diferença dos princípios
da lei do Antigo Testamento e da graça no Novo Testamento, ele
honestamente pensava que era dever dos Estados protestantes
colocarem seu poder militar a serviço da defesa do Evangelho. Ele dizia:
“Por que não deveriam todos os poderes protestantes se unir em uma
santa aliança com o propósito de frustrar os planos que o papa e o
imperador estão tramando para suprimir, de forma violenta, a Reforma
Protestante? Sem dúvida, a Palavra de Deus se mantém em pé somente
pelo poder de Deus e não pela força dos homens, porém Deus utiliza
frequentemente pessoas como instrumentos para ajudar a outras
pessoas. Por isso queremos nos unir; que desde as fontes do Reno até
Estrasburgo haja um povo e uma aliança”.6 Lamentavelmente, Zuínglio
havia desaprendido a olhar apenas para Deus e esperar dEle o socorro.
Ele começou a confiar nos homens e fazer da carne seu braço.
Os planos de Zuínglio e as negociações para executá-los poderiam ser
considerados honrados para um homem de Estado, mas, na realidade,
para um ministro cristão era uma reprovação. Porém, independente de
quão grande e fatal foi seu erro, o objetivo que o reformador perseguia
era bom e nobre: a divulgação do Evangelho e a livre pregação da
Palavra de Deus por toda a sua terra natal. Zuínglio considerava essa
meta muito mais preciosa que sua própria vida. Nosso Senhor e Mestre,
que conhece os mais secretos pensamentos e motivos do nosso coração,
um dia certamente irá reconhecer estas motivações do Seu servo,
mesmo que não possa aprovar a sua obra. Além disso, se afirma de
maneira positiva que, apesar de sua atividade política, Zuínglio nunca
negligenciou, nem por um momento sequer, suas obrigações pastorais;
ele continuou sendo o incansável pastor e fiel conselheiro do seu
rebanho. Raramente um homem desenvolveu uma atividade tão
abrangente em âmbitos tão diversos como o reformador suíço nos
últimos anos da sua vida. Ele foi estadista, general, reformador e
pregador ao mesmo tempo.
***
OS CINCO CANTÕES ROMPEM O TRATADO
Pouco tempo depois que o tratado de Kappel havia sido assinado, os
católicos começaram a enfastiar-se* dele. Visto que o tratado era
definitivamente favorável à expansão do poder de seus inimigos e à
divulgação da verdade, este se tornou cada dia mais insuportável. Os
cantões controlados pelo papado estavam irados pelo progresso da
Reforma Protestante e que a mesma se aproximava cada vez mais e
ameaçava entrar em suas próprias cidades e vilarejos. Por esse motivo,
os romanistas estavam ansiosos para encontrar algum pretexto para se
livrarem do compromisso assumido no tratado. Esse motivo não foi difícil
de ser encontrado. Para falar a verdade, eles nunca haviam cumprido os
compromissos assumidos. A “liberdade de consciência”, que foi
assegurada pelo tratado a todos os súditos dos cantões, logo foi a causa
para graves atritos. E não podia ser de outra forma, pois os pensamentos
de Roma acerca dos “direitos da consciência” jamais podiam ser reunidos
com as exigências de um coração verdadeiramente sincero. Roma não
conhece nenhum direito da consciência, e se ela quiser permanecer fiel
aos seus princípios, ela também não pode reconhecer uma liberdade de
consciência. Os católicos nunca entenderam nem aceitaram a distinção
entre a prática religiosa e a obediência civil. Mas essa era a posição
fundamental defendida pelos protestantes. Os católicos nunca poderiam
concordar com a mesma, nem mesmo por um momento sequer. Foi isso
que se tornou o principal motivo da disputa e a fonte de inumeráveis
controvérsias que, dia a dia aumentavam a irritação e que por fim levou à
violação aberta, por parte dos montanheses, do tratado que haviam
firmado. Os poucos protestantes que habitavam dispersos pelos cantões
católicos logo se viram na pior das situações. Visto que eles, obedecendo
à sua consciência, não podiam mais participar das atividades
supersticiosas de seus vizinhos, eles foram taxados de falsos mestres e
hereges. Isso teria sido suportável, mas a multidão, uma vez incitada, não
permaneceu inativa. Às imprecações logo se seguiram maus tratos de
todo tipo. Os magistrados e presidentes das diferentes comunidades
andavam de mãos dadas com o povo. Todos os que se confessavam a
favor da nova fé e que amavam a Palavra de Deus mais do que as
tradições e mandamentos dos homens foram punidos com multas,
lançados no cárcere ou expulsos das suas casas e propriedades sem
misericórdia.
O cálice da indignação católica se encheu. Sangue! Sangue! Era o
clamor que se ouvia. Somente o sangue dos fiéis seguidores do Senhor
Jesus poderia expiar a ignomínia infligida aos ídolos mudos. Somente a
destruição, pelas fogueiras, dos santos de Deus, seria aceita como uma
resposta para as cinzas de seus altares e imagens. Oh, Roma! Roma!
Quando irás satisfazer sua sede do sangue dos redimidos de Deus?
Parece que essa sede é impossível de ser saciada. Os verdadeiros
oceanos de sangue que já derramaste parecem apenas ter aumentado a
tua sede!
Nós podemos ver essa sede por sangue em todas as ocasiões
possíveis que marcaram teu domínio usurpador. Mas o que irá acontecer
quando teu reino terminar e não houver mais sangue para ser
derramado? Aquela terrível palavra “lembra-te” irá te lançar para trás e
fazer-te ver o passado cheio de sangue derramado, os calabouços da
Inquisição e as chamas onde queimaste tuas vítimas desamparadas e
inocentes. Porém, tudo isso mudará. Uma bem-aventurança, pura e
eterna, será a parte de todos os que sofreram sob tuas mãos. Mas o que
dizer do lugar onde as chamas nunca se apagarão; onde o verme nunca
morrerá; onde as visões do passado fluirão incessantemente diante de
tua alma inquieta e sem sono, e onde uma gota de água fria nunca será
obtida para resfriar tua língua ardente? Ali serás confrontada com todas
essas memórias, com as acusações da tua consciência e as lembranças
de todos aqueles a quem enganaste por meio de tuas feitiçarias e que
arrastastes para as regiões da maldição eterna por meio dos grandes
enganos que praticastes.
***
AS CHAMAS DA PERSEGUIÇÃO SÃO REACENDIDAS
Agora a Suíça estava dividida em dois campos, e o abismo que
separava os mesmos crescia a cada dia. Os cantões florestais, apoiados
pelo imperador e seu irmão Fernando, reiniciaram a perseguição dos
protestantes com um ardor ainda maior. Sua fúria voltou-se
principalmente contra os pregadores do Evangelho. Suas vítimas foram
tratadas com muita crueldade. Os pregadores e os que professavam a fé
reformada eram encarcerados, onde quer que fossem encontrados, e
seus bens confiscados. Suas línguas eram arrancadas; e eles eram
decapitados ou queimados nas fogueiras. O clamor de socorro dos
pobres perseguidos chegou até Zurique e encontrou um forte eco nos
habitantes dessa cidade. A voz de Zuínglio se levantou mais poderosa do
que nunca. Ele considerava seu dever despertar os cantões
confederados. Zuínglio viajou e visitou muitas cidades pessoalmente, fez
numerosos discursos diante de grandes assembleias e empregou toda
sua irresistível eloquência para acender o zelo dos ouvintes para a
defesa do Evangelho e da liberdade do povo. Ele dizia: “Essas vítimas
são suíços, aos quais um partido está procurando arrancar-lhes, de forma
vil, as liberdades que lhes foram transmitidas por seus ancestrais. Se
considerarmos que é injusto tentarmos abolir a religião romana de nossos
adversários pela força, não podemos considerar como algo menor a
prisão, o banimento e o confisco das propriedades desses cidadãos
apenas porque suas consciências os impelem a abraçar opiniões que são
desprezíveis aos seus opressores”.
No dia 5 de setembro de 1530, os mais eminentes pastores de Zurique,
Berna, Basileia e Estrasburgo — Oekolampad, Capito, Megander, Leo
Jud e Myconius — se reuniram em Zurique e redigiram uma ardorosa e
insistente exortação aos confederados católicos, na qual pediam por
moderação cristã e unidade. Mas a mesma foi desprezada por completo.
Em uma Dieta Geral, que aconteceu no mês de abril do ano seguinte na
cidade de Baden, a conduta ilegal dos cinco cantões foi o assunto
principal das discussões, dos quais participaram representantes de todos
os cantões. Houve uma violenta disputa entre as delegações de Zurique
e dos cantões florestais. Foi em vão que Berna, e outros cantões
favoráveis à paz, intervieram pedindo a ambos os partidos que
removessem a causa da discórdia. Os habitantes de Zurique, liderados
por Zuínglio, não queriam saber de um acordo. Zuínglio declarou: “Não
podemos mais continuar discutindo. A quebra da aliança dos cinco
cantões e as infames ofensas com as quais somos cobertos, nos obrigam
a enfrentar nossos opositores com violência”. Os cantões florestais
também não foram favoráveis à paz. Eles estavam determinados a
reiniciar a guerra, a qual tiveram que renunciar dois anos antes por falta
de preparativos. Os berneses eram menos ardorosos; embora eles
admitissem que os cinco cantões houvessem ofendido o Tratado de
Kappel e quebrado suas promessas de forma vergonhosa, eles queriam,
de todas as formas, evitar uma guerra civil, e propuseram um meio mais
moderado, como eles pensavam, para forçar os cantões florestais a
cumprirem suas obrigações.
***
O EMBARGO
“Fechemos nossos mercados ao comércio com os cinco cantões”,
disseram os berneses, “e vamos recusar supri-los com vinho, milho, sal,
aço e ferro. Dessa maneira, apoiaremos os homens de paz que há no
meio deles, e com isso evitaremos o derramamento de muito sangue
inocente.” Apesar da oposição dos habitantes de Zurique, essa proposta
foi adotada no dia 15 de maio; publicada e executada imediatamente.
Como os cinco cantões estavam situados exclusivamente nas partes
montanhosas da Suíça, tais medidas eram de extrema severidade.
Devido à natureza geográfica daquela região, eles dependiam em grande
parte das planícies para suprir suas necessidades. A condição
montanhosa da sua região não lhes permitia obter muitos frutos da terra;
a maioria dos habitantes dependia dos seus rebanhos. Tudo o que
precisavam para seu sustento, exceto leite e queijo, eles compravam dos
mercados da planície. Mas agora esses mercados estavam fechados e
as estradas que conduziam àquelas cidades estavam bloqueadas. Esse
decreto foi executado com um rigor desconsiderado; as consequências
foram as mais lamentáveis.
Pão, vinho e sal, de repente, desapareceram das mesas dos mais
pobres. A fome, com suas terríveis consequências, tais como doenças e
epidemias, espalhou rapidamente a morte e o terror entre os infelizes
habitantes da montanha. Um forte grito de desespero surgiu dos prados
elevados e ecoou pelos vales e planícies. Muitos corações foram movidos
pela compaixão. Muitas vozes, tanto entre os próprios confederados
como do exterior, se levantaram iradas contra a cruel maneira de agir dos
habitantes de Zurique e dos seus aliados. Diziam: “O que resultará disso?
Paulo escreve aos romanos: ‘Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de
comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás
brasas de fogo sobre sua cabeça’ (cp. 12:20). E o que vós fazeis?”.
Infelizmente, essa pergunta era totalmente justificada. Os reformados
caíram de um erro fatal para outro. Em vez de pregar o Evangelho aos
pobres e vencer os rebeldes por meio do amor, lhes tiraram o pão diário.
Não demorou para que os católicos, levados à beira do desespero pela
dureza de seus opositores, jurassem vingança sangrenta.
***
A POLÍTICA ADOTADA POR ZUÍNGLIO
A intervenção de Zuínglio nos assuntos políticos de Zurique naqueles
dias tem sido muito criticada pelos historiadores e, de modo
especialmente severo pelo próprio D´Aubigné. Nós citaremos a opinião
de Waddington, que não poderá ser acusado de pender em direção ao
republicanismo7.
“Devemos mencionar que Zuínglio era um decidido opositor das
medidas de embargo e as enfrentou com todo o poder da sua
personalidade. Ele pregava ardorosamente contra a execução dessa
resolução fatal nas assembleias do Concelho e nas igrejas. Ele percebeu,
com sua costumeira perspicácia, o grande perigo que tais medidas
traziam consigo. Sua opinião era que uma guerra submeteria os cantões
católicos antes do que uma maneira tão intransigente* de agir — esta
parecia ser mais moderada que uma guerra, mas, no fundo, era muito
mais desumana e dura. Entregar toda uma população ao terror da fome
jamais poderia levar a um bom final, mas incitaria ao extremo o ódio, a
amargura e a fúria dos opositores. Com sua aguda sagacidade, ele
também previa que qualquer demora iria resultar em desgraça para
Zurique.”8 Zuínglio disse: “Desta maneira nós sacrificamos as vantagens
que tínhamos conseguido e damos tempo para os cinco cantões se
prepararem e nos atacarem. Devemos tomar cuidado para que o
imperador não se alie a eles e nos ataque por um lado enquanto nossos
antigos confederados nos atacam pelo outro. Uma guerra justa não é
contrária aos ensinamentos da Palavra de Deus, mas sim tirarmos o pão
da boca dos culpados e dos inocentes, oprimirmos os enfermos, os
idosos, as crianças e demais por meio da fome. Por meio disso iremos
incitar a ira do povo pobre e tornar em inimigos aqueles que ainda são
nossos amigos e irmãos”9. Mas todos seus apelos não tiveram sucesso; a
sua voz não foi ouvida. Os outros cantões, especialmente o de Berna,
insistiram inabaláveis na sua posição, para o grande prejuízo de Zurique,
como veremos logo.
Entrementes, as terríveis consequências do bloqueio geral se tornaram
cada vez mais perceptíveis nos cantões florestais. A aflição aumentava
mais e mais, levando finalmente os orgulhosos montanheses ao
desespero. Rodeados por todas as partes como por muralhas
impenetráveis, não lhes restou outra coisa a não ser empunhar suas
armas e rompê-las. Mas para tal, suas próprias forças não bastavam, e
em vão se voltaram para o exterior pedindo ajuda. Eles brandiam suas
espadas com fúria impotente e selvagem, e clamavam: “Eles bloquearam
nossas estradas, mas nós iremos abrir caminho pela violência!”. Na sua
aflição, buscavam consolo na religião. Muitas peregrinações foram feitas
para Einsiedeln e outros lugares sagrados; orações foram dirigidas para o
alto, tomaram os rosários em suas mãos e recitaram inúmeros Pai Nosso.
A guerra teria sido iniciada imediatamente se os líderes católicos não
tivessem considerado necessário um adiamento. Eles sabiam da
desunião e da insatisfação entre os protestantes, e esperavam que o
tempo aumentasse mais essa divisão.
***
NOVAS TENTATIVAS DE MEDIAÇÃO
Várias tentativas foram feitas para alcançar uma reconciliação entre os
partidos contenciosos, mas sem efeito prático algum. Zurique e Berna
exigiam que a livre pregação da Palavra de Deus deveria ser permitida
não apenas nas suas paróquias, mas também nas paróquias dos cinco
cantões. Porém, diante das circunstâncias atuais, isso era pedir demais.
Eles não se satisfaziam com menos. Os católicos, por sua parte,
responderam que não iriam aceitar nenhuma proposta antes que o
embargo fosse levantado. Representantes de todos os cantões se
encontraram em cinco ocasiões diferentes, entre 14 de junho e 23 de
agosto. Os cantões neutros continuavam com suas tentativas de
pacificação apoiados por embaixadores enviados por países
estrangeiros, especialmente da França; porém não estiveram em
condições de aproximar os partidos um passo sequer da reconciliação.
A posição do reformador tornava-se mais difícil e embaraçosa a cada
dia. É impossível contemplarmos esse momento sem nos sentirmos
impelidos a compartilhar as agonias de seu sofrido coração. Mas
devemos nos lembrar que ele se desviou da linha reta da Palavra de
Deus, e acabou ficando sem a direção divina na sua vida. Desde que ele
havia começado a se intrometer em disputas políticas, a reverência por
sua pessoa havia diminuído mais e mais entre o povo. Não se via mais
nele o grande reformador, mas o estadista e guerreiro. Em Zurique havia
se formado, paulatinamente, um forte partido que não estava de acordo
com seus planos e que queria evitar, principalmente, a guerra que ele
aconselhava. O número dos insatisfeitos aumentava diariamente. Em vão
Zuínglio empregou toda sua eloquência para ganhar o povo novamente
para si; sua influência sobre as massas, outrora tão grande, havia
desaparecido. É verdade que ainda gostavam de ouvi-lo, porém não
queriam mais obedecer seus conselhos. Devemos insistir que, por melhor
que tenham sido as intenções de todas as suas atitudes, as mesmas
eram inconsistentes com o alto e santo chamado que ele havia recebido.
A união infeliz e anormal dos dois caracteres de uma disputa espiritual e
mundana em Zuínglio produziu confusão e insegurança em todos os
ânimos. A mistura da Igreja e o Estado, que havia corrompido o
cristianismo desde os dias do imperador Constantino10, estava
espalhando muita confusão em todos os lugares e apressando a ruína da
Reforma Protestante. O objetivo da política de Zuínglio, sem dúvida, era
incorporar os dois em um. Porém, ele teve que experimentar que o crente
não pode nem deve estar unido em um jugo com o incrédulo (2 Co 6:14).
Zuínglio teve que colher, em grande medida, os amargos frutos da sua
incorreta maneira de agir. Uma vez que ele misturou a Reforma com a
política, não estava mais em seu poder desviar as terríveis
consequências deste passo.
***
A POSIÇÃO DE ZURIQUE E A REFORMA PROTESTANTE
Zuínglio estava ansioso, inquieto e martirizado pelos mais obscuros
pressentimentos quanto ao futuro. Ele viu como negras nuvens de
tempestade se formavam, vindo de todos os lados, estando fora de seu
alcance dispersá-las. Ele teve que contemplar como sua cidade natal e a
Reforma se apressavam para a ruína. Zuínglio não podia detê-la. Muitos
daqueles que haviam sido seus amigos se voltaram contra ele. Seus
inimigos tiraram proveito da discórdia generalizada e o perturbaram e
atormentaram. Os defensores dos monges — havia muitos ainda em
oculto — que agora levantavam novamente suas cabeças com coragem,
os que eram favoráveis ao serviço militar no estrangeiro e aos salários
provenientes do exterior, e os insatisfeitos de todo tipo, apontaram para
Zuínglio como sendo o causador de todos os sofrimentos do povo. Com o
coração quebrantado, o reformador percebeu que não lhe restava nada
mais que retirar-se do cenário público; suas ações foram mal
interpretadas, seus conselhos não foram seguidos e ele mesmo foi
caluniado das mais diversas formas.
Foi assim que, no dia 26 de julho, ele entregou sua demissão no
Grande Concelho com a seguinte justificativa: “Não se tem mais
consideração por mim; inimigos do Evangelho são escolhidos para fazer
parte do Concelho; negam-se a seguir minhas propostas e me
responsabilizam por todo tipo de calamidade. Eu não posso continuar
mais mantendo tal posição”. Devido a esta inesperada linguajem do
reformador, os magistrados ficaram em um grande embaraço. Eles
reconheciam que Zuínglio tinha razão, mas também sentiam que sua
retirada, no presente momento, seria fatal para Zurique. Não apenas
Zurique, mas também a Reforma Protestante corriam perigo se o piloto
aprovado deixasse o timão e o navio fosse entregue ao poder das ondas.
Imediatamente, o Concelho enviou a Zuínglio o burgomestre e uma
comissão de magistrados com a petição para não abandonar sua pátria
nesse momento tão crítico. Zuínglio oscilou por muito tempo; passou três
dias e três noites em oração, empenhando-se em buscar a direção divina.
Quando, finalmente, os representantes do Concelho lhe expuseram que a
causa da Reforma estaria definitivamente perdida caso ele se retirasse
agora do campo de batalha, Zuínglio cedeu e consentiu em manter-se em
seu lugar. Ele disse: “Eu permaneço convosco, e trabalharei pelo bem do
povo até a morte”.
Ele se entregou à sua atividade política com novo ardor, na esperança
de recuperar sua influência sobre o povo e elevar a coragem dos
habitantes de Zurique. Contudo, ele ficou amargamente desapontado.
Uma funesta cegueira parecia ter se apoderado tanto do governo quanto
do povo. Dia após dia eles se opunham mais à guerra, a qual, num
primeiro momento, haviam exigido de forma impetuosa. Os esforços de
Zuínglio também não tiveram sucesso fora da cidade de Zurique. Os
diversos cantões e cidades estavam desunidos entre si, e em vão o
reformador de Zurique procurou banir a dissensão do seu seio para
unificar todas as forças em uma defesa efetiva da Reforma. Todos
estavam se identificando com a política passiva adotada pela cidade de
Berna. Correndo grande perigo, Zuínglio foi à cidade de Bremgarten,
onde, no dia 10 de agosto, se realizava a quarta Dieta. Acompanhado por
dois amigos, ele entrou furtivamente, de noite, na casa do conhecido
historiador Bullinger, encontrando-se ali com a delegação de Berna. Com
lágrimas nos olhos, Zuínglio implorou que eles trabalhassem para que o
embargo fosse levantado. Com as mais fortes expressões ele lhes
descreveu o danoso desta medida e os perigos que dela surgiriam para a
Reforma. Porém, embora os berneses ficassem profundamente
comovidos, por um momento, pelas graves alegações do reformador,
como relata Bullinger, e prometessem se empenhar plenamente para
desviar essa ameaçadora calamidade, logo se demonstrou que os
esforços de Zuínglio foram em vão. Após várias horas de conversações
os homens se separaram — visto que Zuínglio tinha que sair da cidade
antes do amanhecer para não ser reconhecido. Com muitas lágrimas ele
se despediu de seu jovem amigo Bullinger, pressentindo que o estaria
abraçando pela última vez. Com o coração profundamente comovido,
Zuínglio o deixou com as palavras: “Deus te guarde, querido Henrique.
Seja fiel ao Senhor Jesus Cristo e à Sua Igreja!”.
***
A GUERRA É INICIADA
Entrementes, todas as tentativas de mediação continuaram com
empenho. Porém, todas elas fracassavam na inabalável firmeza dos
cantões florestais. Até mesmo quando lhes foi proposto que o tratado de
paz do ano de 1529 vigorasse novamente, deixando de lado todas as
demais exigências, eles, orgulhosamente, rejeitaram respondendo:
“Preferimos morrer antes de sacrificar o mínimo da nossa fé”. Eles
estavam determinados a decidir a questão religiosa por meio das armas.
Enquanto essas infrutuosas tentativas aumentavam a desunião entre os
reformados, elevavam a coragem dos montanheses e lhes dava tempo
para se armarem energicamente. Aquilo que Zuínglio havia previsto com
seu agudo olhar, aconteceu literalmente. Quando os católicos se sentiram
suficientemente preparados, levantaram seus estandartes no dia 6 de
outubro de 1531. Eles foram os primeiros a lançar mão das armas. A
defesa da Igreja Romana e da Santa Sé era o verdadeiro motivo para
fazerem aquela guerra, apesar de alegarem que o embargo comercial era
ofensivo. Os líderes estavam estreitamente unidos e encontraram um
poderoso apoio no povo, que ardia com o desejo de vingar-se daqueles
que lhes haviam tirado o alimento e que procuravam roubar também sua
religião. A fé e o sofrimento comum uniam todos eles em um só espírito,
com um mesmo objetivo.
O acampamento dos reformados oferecia uma visão oposta. Aqui, os
líderes estavam desunidos, indecisos e cheios de desconfiança mútua. O
povo estava insatisfeito e eram contra a guerra. Sob tais circunstâncias,
não poderia haver uma ação decisiva. “Não nos precipitemos”, diziam,
“os cinco cantões irão reconsiderar. Os rumores do armamento dos
cantões florestais não são verdadeiros.” Assim procuravam se acalmar,
ficando adormecidos. Os montanheses fizeram a sua parte, preparando-
se silenciosamente para o ataque, para então cair de forma mais terrível
sobre os desavisados. Todas as passagens que permitiam o trânsito de
pessoas foram cuidadosamente vigiadas, e todas as comunicações entre
Zurique e os cinco cantões foram cortadas. Um historiador suíço nos diz:
“Uma terrível avalanche estava pronta para desabar dos cumes
congelados das montanhas, e deslizar sobre os vales chegando até as
portas de Zurique, derrubando tudo o que encontrava em seu caminho
sem dar nenhum sinal de sua queda iminente. A ruína deveria cair
repentinamente sobre os destruidores da antiga religião”.
Na esperança de dividir os reformados, os católicos declararam guerra
não contra os cantões reformados, mas apenas contra Zurique. A mira de
Jezabel estava no sangue de Zuínglio; ele precisava ser morto. Enquanto
o reformador estivesse vivo, não haveria paz para a Santa Madre Igreja
Católica na Suíça. No dia 8 de outubro, os cantões florestais
comunicaram à cidade de Zurique, por meio de um mensageiro, a
revogação da assim chamada “Aliança Eterna”. Isso equivalia a uma
declaração de guerra. Na sua infeliz cegueira, o Concelho e o povo
continuavam a desacreditar na seriedade da situação. Os inimigos
começaram a agir imediatamente. Já no dia seguinte, oito mil homens,
após terem assistido reverentemente a missa, começaram a marchar em
direção à fronteira de Zurique. Do outro lado se aproximavam tropas de
apoio italianas, que o papa havia enviado para socorrer seus fiéis filhos.
O exército papal completo somava doze mil homens. No entardecer
desse dia, a vanguarda dos montanheses invadiu os territórios das
paróquias livres. Quando os soldados descobriram as marcas da
destruição dos altares e das imagens nas igrejas, arderam em ira. Com
terríveis imprecações* e insultos, eles se derramaram pelo território,
saqueando e destruindo tudo o que encontravam. Os campesinos,
tomados de pavor e pânico, abandonaram os vilarejos e as cabanas em
uma tumultuada fuga, e se apressaram em direção a Zurique.
***
A INDECISÃO DO CONCELHO DE ZURIQUE
Mensageiro após mensageiro chegava a Zurique, trazendo notícias da
terrível invasão dos montanheses. Porém, de modo incompreensível, eles
ainda tomavam isso como um alarme falso. O Concelho foi convocado,
contudo, a maioria dos magistrados achou desnecessário comparecer.
Em vez de fazer soar o alarme sem mais demora e conclamar aos
cidadãos para empunhar armas, se contentaram em enviar dois
magistrados para Kappel e Bremgarten para se informarem do que havia
de verdade em tudo isso. Eles disseram: “Os cinco cantões estão
fazendo um pequeno barulho para nos assustar e nos fazer suspender o
embargo”. Eles foram dormir tranquilamente. No amanhecer do dia 10,
foram rudemente despertados de sua sonolência por uma informação
concreta, trazida por espiões, que o inimigo já havia cruzado a fronteira e
tomado Hytzkilch. Mas mesmo essa terrível notícia não conseguiu
arrancar o Concelho da sua negligência e indecisão; apenas enviaram
uma divisão de seiscentos homens com seis canhões até Kappel com o
objetivo de impedir o avanço do inimigo. O dia inteiro se passou com
longos e inúteis discursos e debates. Assim, o precioso tempo foi mal
gasto. Finalmente, às sete horas da noite, foi tomada a resolução de
fazer soar os sinos de alarme na cidade e no campo. Mas já era tarde
demais. A sorte de Zurique já estava selada. Os habitantes o
pressentiam, e nessa noite não dormiram; choravam e oravam. Foi uma
noite assustadora, como se a própria natureza se encolhesse diante de
todo o sangue que estava para ser derramado. “O sol se pôs atrás do
monte Albis”, assim nos diz Wylie, “a cidade, o lago e o cantão foram
completamente envolvidos em trevas; com elas, vieram o tremor e o
terror. Lá fora, uma violenta tempestade desabou com uma fúria terrível;
o vento uivava sobre a cidade e os campos ao redor de Zurique; as
ondas do lago eram agitadas pela força do vento; os sinos de alarme
continuavam a soar. Havia muitas lágrimas e lamentos nas casas de
Zurique, bem como amargas despedidas entre aqueles que sentiam que
estavam, provavelmente, se abraçando pela última vez.”11
***
OS MAUS PRESSENTIMENTOS DO POVO
Aquela terrível noite foi seguida por um dia ainda mais terrível. A
manhã chegou, a tempestade havia passado, mas nem um alvorecer
brilhante poderia dissipar a escuridão que havia tomado conta dos
corações dos habitantes de Zurique. O som das trombetas e o rufar dos
tambores chamavam os cidadãos para se armarem. Mas horas se
passaram antes que algumas poucas centenas de soldados pudessem
ser reunidas. De acordo com Hess, “a indecisão do Concelho encheu os
corações dos cidadãos com sentimentos de ansiedade e contribuiu para
a diminuição do senso de obediência e dever. Como sabemos, quando o
governo vacila, destrói toda a confiança do povo, e ordens dadas em tom
hesitante dificilmente são obedecidas”. Em vez de um exército de quatro
mil homens, que o Concelho havia determinado que marchassem em
direção a Kappel, somente setecentos soldados estavam prontos e
armados às dez horas da manhã. Mesmo esses estavam completamente
desordenados, agitados e sem armamentos e uniformes suficientes.
Zuínglio, seguindo as instruções do Concelho e de conformidade com os
costumes de seu país, acompanhou o exército como capelão. Com um
coração quebrantado e ferido ele se despediu da sua amada esposa e
seus queridos filhos. Ele não tinha ilusões nem procurava enganar-se a si
mesmo quanto ao desfecho daquela expedição, mas considerava seu
dever obedecer às ordens de seus superiores sem apresentar nenhum
tipo de objeção. Zuínglio sentia que ele e muitos homens excelentes
estavam diante de uma difícil empreitada. Mantendo-se calmo no meio de
seus amigos que tremiam por causa de sua vida, ele ainda procurou
confortá-los, dizendo: “Deus não irá abandonar Seus servos. Ele irá
assisti-los, ainda que tudo pareça perdido. Minha confiança está somente
em Deus e não nos homens. Eu me submeto à Sua soberana vontade”.
***
A BATALHA DE KAPPEL
Ao meio dia, sob a bandeira de Zurique hasteada, os setecentos
homens saíram da cidade para enfrentar o inimigo. Ana, a esposa de
Zuínglio, acompanhou seu marido com o olhar desde um lugar alto, até
que o perdeu de vista. Mas, além do marido, ela também tinha um filho,
um irmão, um grande número de parentes próximos e muitos amigos
íntimos naquele desventurado exército; ela não tinha nenhuma esperança
de revê-los. Ana compartilhava os maus pressentimentos de seu esposo
e, como ele, acreditava que era pela santa causa de Deus e Sua verdade
que eles assim se expunham a si mesmos tanto ao perigo como à morte,
que para eles representava um martírio.
À medida que o exército avançava, Zuínglio foi ficando cada vez mais
para trás. Aqueles que estavam mais próximos dele podiam ouvi-lo
orando pela Igreja e pela causa de Deus.
Mas, antes de terem alcançado Kappel, que ficava aproximadamente a
18 quilômetros de Zurique, eles já ouviram o estrondo dos canhões. A
batalha já havia iniciado. Os zuriquenses apressaram os passos, porém,
apesar de todos os esforços, avançavam vagarosamente. O caminho que
conduzia pelo pico de Albis lhes oferecia empecilhos quase invencíveis
para o transporte do armamento. Finalmente alcançaram o pico da
montanha. Entusiasmado, Zuínglio se pôs à frente do exército
exclamando: “Avante! Corramos para socorrer nossos irmãos!”.
A descida foi rápida; logo eles alcançaram o campo de batalha. Apesar
de serem visivelmente em menor número, os zuriquenses intervieram
destemidamente na batalha. Sua artilharia causou uma grande confusão
nas fileiras dos católicos. Nisso, um homem valente do cantão de Uri,
com trezentos voluntários, atacou o flanco esquerdo do exército de
Zurique. Quão surpreso ele ficou ao ver diante de si o pequeno grupo de
seus inimigos! Encobertos por uma densa floresta de faias*, esse valente
e seus homens conseguiram se aproximar furtivamente, sem serem
percebidos. De repente, estando já bem próximos, ele mandou que os
artilheiros abrissem fogo. Depois desse fogo devastador, ele se lançou
sobre as vacilantes fileiras dos protestantes com o grito: “Abaixo com os
hereges e com os iconoclastas!”.
O exército de Zurique, atacado de dois lados ao mesmo tempo por um
inimigo muito superior em força, sofreu uma derrota sangrenta. O melhor
de Zurique caiu. O cerne da população de Zurique, sete membros do
pequeno Concelho, dezenove membros do Concelho dos Duzentos,
sessenta e cinco cidadãos da cidade, quatrocentos e dezessete cidadãos
do campo; o pai entre seus filhos; o irmão entre seus irmãos; todos
estavam caídos, pálidos e sangrentos no campo de batalha. Vinte e cinco
pregadores se encontravam entre os mortos. Deus não poderia ter
expressado de forma mais clara o Seu desagrado naquela ímpia
associação entre a Igreja e mundo, entre a espada do Espírito e daquelas
da carne. Era 11 de outubro de 1531.
Eles haviam se afastado do caminho estreito da Palavra de Deus, e o
Senhor não estava mais com eles. A Igreja havia se tornado o Estado e o
Estado havia se tornado a Igreja. O exército atual era composto de
membros das igrejas e de seus pastores, em vez de soldados suíços.
Esse era um erro que Deus precisava julgar, e os católicos eram a vara
na mão de Deus para castigar Seus filhos amados. Que esses fatos
sirvam de lição para os cristãos de todas as épocas.
***
A MORTE DE ZUÍNGLIO
Mas nenhuma morte afetou tão fortemente Zurique e toda a obra da
Reforma Protestante na Suíça mais do que a de Ulrico Zuínglio. No
momento mais intenso da batalha Zuínglio se inclinou para consolar um
moribundo; ali, ele foi atingido na cabeça por uma pedra, de forma tão
violenta, que caiu atordoado. Ele se recuperou rapidamente, porém, mal
se levantou do chão e foi atingido por vários golpes de lança. Extenuado,
ele se apoiou no tronco de uma árvore.
Quando o campo de Kappel estava completamente dominado pelos
católicos, os soldados vieram trazendo tochas e começaram a revirar o
campo de batalha. O objetivo deles era arrancar e roubar qualquer coisa
de valor. Quando encontravam algum caído, que ainda estivesse vivo,
eles diziam: “Clame pela ajuda dos santos e confesse os seus pecados a
um de nossos sacerdotes”. Se o ferido se recusava, era imediatamente
morto como um vil herege, sob inúmeras maldições. Entre os feridos,
encontraram um que estava com as mãos entrelaçadas, com o olhar
voltado para o céu e seus lábios se moviam em oração. Um dos soldados
lhe perguntou: “Desejas um sacerdote para confessar os seus pecados?”.
A vítima apenas balançou sua cabeça. “Invoque a mãe de Deus e outros
santos para que intercedam a teu favor.” De novo ele balançou sua
cabeça energicamente, tendo os olhos fixos no céu. “Esse homem não
passa de um herege obstinado!”, disseram os soldados. Mas um deles,
movido pela curiosidade, fez o moribundo virar a cabeça em direção ao
fogo que havia sido aceso ali próximo, e exclamou: “Eu acho que esse
homem é Zuínglio!”. Naquele mesmo instante, o capitão Tockinger, de
Unterwald, estava se aproximando e, ao ouvir o nome de Zuínglio,
desembainhou sua espada e cortou a garganta do reformador, proferindo
inúmeras maldições. As últimas palavras de Zuínglio foram: “O corpo
podeis matar, a alma não!”. Dessa maneira, pôs fim ao que restava
daquela vida extraordinária. E assim cumpriu-se a Escritura que diz:
“Todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão” (Mt 26:52).
A noite estava fria e uma forte geada caiu sobre o campo de batalha,
cobrindo como um lençol os corpos dos mortos e dos moribundos.
Finalmente a manhã surgiu. O corpo de Zuínglio foi reconhecido e todo
ódio de seus inimigos se manifestou contra ele. O cadáver foi partido em
quatro partes pelos católicos, queimado até as cinzas que, depois de
serem misturadas com excremento de porco, foram espalhadas aos
quatro ventos.
Uns poucos homens feridos conseguiram retornar para seus lares e
contaram o que havia acontecido. A desventurada Ana havia perdido
naquela batalha não apenas seu esposo, mas também seu talentoso filho
do primeiro casamento, o genro, o cunhado e o irmão. Mas, mesmo
sendo uma mulher, uma esposa e uma mãe, ela também era uma
verdadeira cristã e se dedicou ao tenro cuidado de seus filhos mais
jovens. Ana também procurou alegrar-se no Senhor no meio de suas
muitas lágrimas, pois sabia que muitos daqueles a quem amava haviam
recebido a coroa do martírio (Rm 8:31-39).
***
REFLEXÕES ACERCA DA VIDA DE ZUÍNGLIO
Como já vimos de forma bastante ampla algo do caráter e dos
princípios do grande reformador suíço, temos pouco a adicionar nessa
reflexão. Porém não podemos nos despedir dessa triste cena sem
oferecer um tributo de respeitosa gratidão a alguém que Deus mesmo
levantou e que foi maravilhosamente usado pelo Senhor. Também não
podemos deixar de expressar nossa profunda tristeza ao ver que uma luz
tão poderosa acabou se desviando do caminho estreito, levando muitos
outros junto com ele.
Ao traçarmos seus passos, a partir da pequena cabana de pastores no
Vale de Togemburgo, temos muito que admirar e imitar; tudo aquilo pelo
qual toda a posteridade deverá ser sempre agradecida. Ele se dedicou
com grande constância e intrepidez às convicções de sua própria mente
quanto ao ensino da Palavra de Deus, na exata proporção em que
compreendia o significado espiritual e como deveria ser aplicado. Nós
nunca poderemos nos esquecer nem menosprezar a nobre posição que
ele frequentemente assumiu a favor da autoridade absoluta da Palavra de
Deus, em um tempo que sua existência era praticamente desconhecida e
nunca havia sequer sido lida nem por sacerdotes nem por monges.
Naquelas salas de discussões públicas, quando ele colocava sua Bíblia
hebraica e seu Novo Testamento grego sobre a mesa diante de si, e
apelava para aqueles livros como o único padrão de fé e prática, Deus
era glorificado, Seu poder era manifestado e os católicos se sentiam
completamente confundidos e retornavam para a escuridão de suas
próprias superstições.
Zuínglio, como um homem eminente de seus dias, permaneceu
triunfante. A luz da Reforma Protestante progrediu rapidamente e chegou
a dar a impressão que, em breve, espalharia sua luz sobre todas as
montanhas e vales da Suíça. Todos os cantões, com exceção dos
cantões florestais, receberam a verdade, completa ou parcialmente, e
assumiram uma posição de simples dependência à Palavra viva de Deus
e de Sua graça. Até mesmo a região de Oberland poderia se submeter à
nova fé em breve. Mas a partir do dia em que Zuínglio aconselhou
Zurique a punir os perseguidores com a espada, ele assumiu o caráter de
um político. E, apesar de continuar sendo um cristão sincero e ardoroso
reformador, ele passou a pensar que era seu dever conhecer o
funcionamento dos gabinetes reais, dos Concelhos e do movimento dos
exércitos. Essa foi a rocha na qual o barco do reformador se despedaçou,
pois a atingiu com todas as suas velas soltas ao vento — e Zuínglio
estava no timão. Tivemos a oportunidade de observar o desastre e,
certamente, o mesmo deve servir como uma luz de farol através de todas
as eras do cristianismo. Porém, infelizmente, não é isso que temos
observado, porque notamos que muitos daqueles que são chamados de
ministros reformados, mesmo nos dias atuais, costumam elogiar o zelo
de Zuínglio como patriota e político, ao mesmo tempo em que
argumentam que ele sofreu por causa da dureza dos corações de outros
indivíduos.
É verdade que ele apresentou fortes objeções ao embargo que acabou
culminando com a guerra. Mas ele advogava o uso das armas, que se
encontra tão longe do Espírito de Cristo quanto o embargo comercial. E
as duas razões pelas quais o reformador apelou ao governo de Zurique,
incentivando o uso de armas, foram motivadas pelos caluniadores e pelas
perseguições dos papistas. Mas o que nos diz o bendito Senhor? “Bem-
aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo,
disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos,
porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram
os profetas que foram antes de vós.” E ainda outra vez: “Abençoai aos
que vos perseguem, abençoai, e não amaldiçoeis”. E, sabendo o estado
de irritação que a calúnia e a perseguição irão produzir naturalmente, o
gracioso Senhor nos instrui como agir: “Não vos vingueis a vós mesmos,
amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu
recompensarei, diz o Senhor” (Mt 5:11-12; Rm 12:14, 19-20). É claro que,
tanto o embargo quanto o apelo às armas, são completamente
condenados pelos preceitos divinos de nosso Senhor e Mestre.
O cristão é salvo pela graça e permanece em pé sustentado também
pela graça. Ele deve servir como uma testemunha dessa graça, e isso,
sob todas as circunstâncias. Essa última verdade, infelizmente, o grande
reformador nunca entendeu. Zuínglio nunca enxergou a verdade que o
cristão está separado do mundo pela morte e ressurreição de Cristo. Ele
também não entendia o relacionamento celestial que existe entre Cristo e
a Igreja, como a noiva, a esposa do Cordeiro. Ainda assim, a Palavra de
Deus é simples, e nós não podemos encontrar nenhuma desculpa que
justifique nossa ignorância. Ao mesmo tempo, devemos demonstrar uma
tolerância maior com Zuínglio do que com muitos ministros do Evangelho
dos nossos dias. Muitos desses homens têm assumido uma boa parte da
liderança nas questões políticas, não apenas a nível local, mas também
mundial. Emergindo das trevas do papado, cujo único argumento era o
uso da espada, e alimentado em meio à liberdade suíça, bem como pelas
histórias das repúblicas antigas, Zuínglio acreditava honestamente, desde
os seus primeiros dias de juventude, que todos os tiranos precisam ser
enfrentados e que os cristãos deveriam se unir com o governo civil, tendo
como objetivo resistir a tais indivíduos. Por não ser capaz de enxergar,
depois da sua conversão, nem o chamado celestial nem o verdadeiro
caráter do cristão, ele agiu baseado naquelas convicções como o líder do
partido reformado.
Ficamos felizes ao descobrir que o próprio D´Aubigné concorda com
nossa opinião. Ele escreve o seguinte: “Zuínglio, observando a forma
como todos os poderes estavam se levantando contra a Reforma
Protestante, acabou concebendo um plano de governo compartilhado ou
de um Estado cristão que deveria unir todos os amigos da Palavra de
Deus em uma santa e poderosa liga. Essa fase política de seu caráter
parece, aos olhos de algumas pessoas, sua maior reivindicação à glória.
Mas não hesitamos em reconhecer nisso o seu maior erro. O reformador,
abandonando os caminhos dos apóstolos, permitiu a si mesmo se perder
pelo perverso exemplo que o papado lhe oferecia. A Igreja primitiva
nunca se opôs a seus perseguidores, com a exceção de estar sempre
disposta a anunciar o Evangelho da paz. A fé era a única espada que ela
utilizou para derrotar os poderosos que existem sobre a terra”. Mas o
próprio Zuínglio, ao que parece, enfrentava algum tipo de conflito em sua
mente quanto a esse assunto; ele disse: “Sem dúvida, não é pela força
humana e sim apenas pela força de Deus que a Palavra do Senhor deve
ser sustentada. Mas Deus geralmente faz uso de homens como
instrumentos de socorro a outros homens. Vamos, portanto, nos unir; e
vamos formar, das nascentes do Reno até Estrasburgo, uma aliança
constituída de um único povo”.
Quanto à sua capacidade intelectual, suas obras teológicas e literárias,
iremos permitir que uma testemunha capaz nos ofereça sua opinião.
Waddington, falando acerca de Zuínglio, nos diz: “O reformador produziu
muitas criativas e bem elaboradas composições, sejam polêmicas,
exegéticas* ou hermenêuticas*, as quais foram escritas em um período
apenas um pouco mais extenso do que doze anos. Nesse mesmo
período ele se encontrava permanentemente absorvido por muitas outras
preocupações e ocupações. Mesmo assim, suas obras irão permanecer
como um memorial eterno de sua extensa erudição; um julgamento sadio
e equilibrado sobre o todo do seu temperamento cândido e caridoso,
associado a uma calma, dedicada e profunda fé. Todas essas realidades
acerca de Zuínglio devem nos conduzir a um lamento profundo,
especialmente agora, pelo fato dele ter sido retirado de nosso meio de
forma tão abrupta”.
“Juntamente com suas interpretações profundas e equilibradas das
Escrituras, suas obras também revelam muitos sentimentos nobres, que
fluem de um elevado e grandioso espírito. Dotado com uma capacidade
de profunda compreensão, animado por um zelo honesto, equilibrado por
uma prudência consumada, firme e tolerante, ele não permitiu que
nenhuma dessas grandes qualidades fosse manchada por uma única
falta sequer. Ele demonstrou grande sagacidade em alcançar seus
propósitos. Nunca permitiu ser guiado, nem em seus atos ou em seus
escritos, por qualquer espírito faccioso; nunca desconfiamos que ele
estivesse movido por uma razão indigna.”12
Zuínglio não tinha completado quarenta e oito anos quando morreu. Ele
estava em pleno vigor de sua vida e na maturidade da sua capacidade de
compreensão. Com dons tão ricos e variados, apenas podemos imaginar
o que ele poderia ter feito pela Reforma Protestante na Suíça, e até
mesmo pela própria Europa, caso tivesse se restringido ao ministério da
Palavra de Deus. Mas se nós fracassamos em fazer a obra do Senhor do
modo como Ele deseja, podemos ter certeza que a mesma será tirada de
nós e entregue a outro. “Ninguém que milita se embaraça com negócios
desta vida, a fim de agradar àquele que o alistou para a guerra. E, se
alguém também milita, não é coroado se não militar legitimamente“ (2 Tm
2:4-5).
***
TRATADOS DE PAZ
A notícia do desrespeitoso tratamento dado aos restos mortais de
Zuínglio despertou enorme indignação e raiva na cidade de Zurique. Eles
organizaram suas forças e a cidade de Berna se uniu a eles para apoiar
sua aliada. O exército conjunto era realmente impressionante. Eles
assumiram a ofensiva, e invadiram o cantão de Zug. Mas o Senhor não
estava com eles. Eles demonstraram todas as formas de incompetência.
Sem um plano comum de operação, iniciaram o ataque de forma dura,
mas desunida. O resultado foi que a insubordinação prevaleceu entre os
protestantes, enquanto os católicos se mantinham ordeiros, unidos e
resolutos. A vitória desses últimos foi fácil e completa.
Estes sucessos, que superaram em muito a expectativa dos cinco
cantões, inspiraram os mesmos com uma grande confiança religiosa no
que dizia respeito à santidade da causa que defendiam. Por seu lado,
diante de tais reveses, os reformadores tornaram-se desesperançados e
dispostos a negociar um tratado de paz. Negociações foram feitas, e dois
tratados foram redigidos e assinados pelos habitantes de Zurique e de
Berna nos dias 16 e 23 de novembro. Esses novos tratados anularam
aquele assinado em 1529; foram grandemente humilhantes para Zurique
e para a causa, e deram decisivas vantagens aos inimigos da Reforma
Protestante. O tratado dizia: “Em nome da mais louvável, santa e divina
Trindade! Nós, zuriquenses, devemos e queremos permitir que os nossos
queridos confederados dos cinco cantões, os amados cidadãos de Valais
e todos os súditos espirituais e seculares, permaneçam em sua
verdadeira e indiscutível fé cristã. Renunciamos todas as nossas más
intenções, nossa astúcia e engano. E nós, dos cinco cantões, permitimos
que os zuriquenses e os seus aliados mantenham sua fé”. Com isso, a
Igreja Romana foi reconhecida publicamente como sendo a verdadeira
Igreja de Cristo; que toleraria os evangélicos apenas por amor à paz.
Esses tratados são de grande importância histórica, pois fixaram uma
linha divisória permanente entre a Reforma da Suíça daquela que estava
acontecendo na Alemanha. De lá para cá, nenhuma mudança importante
aconteceu entre os cantões católicos e protestantes.
Zuínglio, ao partir para Kappel, triste e convicto que jamais retornaria a
Zurique, designou o jovem Bullinger, de Bremgarten, como seu
sucessor, o qual, após um breve intervalo, foi designado pastor titular e
professor de teologia. Ele cumpriu suas obrigações nessas duas áreas
durante quarenta anos. Durante esse tempo, Bullinger se destacou de
uma forma indiscutível, e prestou extensos serviços à Igreja de Cristo.
Naquele mesmo desventurado outono do ano de 1531, se apagou outra
das mais brilhantes luzes da Reforma Protestante na Suíça. O manso e
gentil, o sábio e dedicado Oekolampad, ao ouvir da morte de seu amigo e
das indignidades que foram lançadas sobre sua memória, faleceu pouco
depois, vítima de um coração partido, com a idade de quarenta e nove
anos. Quando ele percebeu que sua partida estava próxima, reuniu seus
amigos e colegas ao seu redor e os exortou, solenemente, a se
manterem firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor (1
Co 15:58). Tudo isso para que Deus possa ser glorificado e a bendita
causa de Cristo se tornasse cada vez mais resplandecente através da luz
da sua própria pureza. Dessa maneira, o pacífico Oekolampad
adormeceu. Sua morte foi como sua vida: cheia de luz e paz. Ele foi
sucedido na Basileia pelo sábio e dedicado Oswaldo Myconius.13
A história da Reforma Protestante na Suíça Francesa, que aconteceu
algum tempo depois e na qual se destacaram homens como Guilherme
Farel e João Calvino, precisa ser deixada de lado nesse momento.
Devemos retornar para a Alemanha, para examinar os últimos anos e as
cenas finais da vida do grande reformador alemão.

1 O Jura é um cantão da Suíça, na parte ocidental do país, que se estende do lago


de Genebra até o rio Reno. O Jura é também uma pequena cadeia de montanhas
culminando a 1.720m, situada ao norte dos Alpes, entre a França, a Suíça e a
Alemanha.
2 N. T. Esse nacionalismo chauvinista* foi a principal causa da I e da II Guerras
Mundiais (iniciadas pelos alemães) e de todas as guerras contemporâneas
iniciadas pelos Estados Unidos nos últimos cinquenta anos. Todos os homens que
lideraram essas guerras se declaravam cristãos.
3 Wylie´s History of Protestantism, vol. 2, p. 76.
4 D´Aubigné, vol. 4, p. 477.
5 D´Aubigné, vol. 4, p. 480. Wylie, vol. 2, p. 82.
6 Wylie, vol. 2, p. 86.
7 N. do T. O autor faz essa afirmação, provavelmente porque o historiador George
Waddington era inglês e aderia à monarquia representativa e não ao
republicanismo.
8 History of the Reformation, vol. 3, p. 236.
9 D´Aubigné, vol. 4, p. 536.
10 N.T. Constantino governou o império romano de 306-337 d.C.
11 History of Protestantism, vol. 2, p. 93; ver também D´Aubigné, vol. 4, p. 568.
12 History of the Reformation, vol. 3, p. 242.
13 D´Aubigné, vol. 4, pp. 465-621. John Scott, vol. 3, pp. 104-120, com citações de
Ruchat. Life of Zwingle, por J. G. Hess. Waddington, vol. 3, pp. 236-252. Wylie,
vol. 2, pp. 77-95.
Capítulo 45
A REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA

Nós já acompanhamos o curso da história da Reforma Protestante na


Alemanha desde o seu começo, no ano de 1517, quando Lutero afixou
suas 95 teses na porta da catedral em Wittenberg, até o ano 1532,
quando o imperador do Sacro Império Romano Germânico se viu
obrigado a assinar o tratado de paz religiosa em Ratisbona, também
conhecido como Regensburgo. O período desses quinze anos é, em
nossa opinião, o mais importante e significativo dos anais da História da
Igreja, exceto pelos primeiros anos da Era Cristã. Nós tivemos a
oportunidade de observar uma sucessão de eventos que foram
caracterizados pela graça de Deus e o poder do Espírito Santo,
combinados com a ação da poderosa mão do Senhor manifestando-se
soberana sobre governos e governantes. Contemplamos com admiração
e adoração como a Europa emergiu das profundas trevas, e da mais
abjeta superstição impostas por Roma, para a luz e a liberdade da
verdade encontrada na Palavra de Deus. Nós desconhecemos qualquer
outra época da história da humanidade que chame mais a nossa atenção
ou que nos inspire uma adoração divina mais profunda e intensa.
Ainda assim, nós podemos nos perguntar de que maneira essa
revolução alcançou seus objetivos de forma tão rápida e abençoada. Não
foi através da filosofia, nem pela ação dos homens sábios. Não foram os
humanistas, como alguns chegam a imaginar, mas apenas pela verdade
de Deus agindo nas consciências dos homens através do poder do
Espírito Santo. Sobre qual fundamento Lutero permaneceu em pé e
triunfou na Dieta de Worms? Foi sobre a Palavra de Deus, sustentado
pela graça do Senhor.
Com base em que princípio os príncipes protestantes conseguiram
prevalecer e tornar-se vitoriosos em Augsburgo? Precisamente sobre o
mesmo que já temos mencionado. E por quais meios Zuínglio conseguiu
colocar em fuga os inimigos da verdade na cidade de Zurique? Foi
através de seus apelos à Palavra de Deus e apenas a ela. Mas quando
mudaram sua posição, abandonando o fundamento divino e trocando-o
pelo humano, eles se tornaram tão frágeis quanto qualquer outro homem.
Vemos isso de modo especial no caso de Zuínglio. Enquanto a
consciência governava as decisões daquela nobre mente e sua potente
voz se fazia ouvir, os mais poderosos defensores da Roma papal foram
confundidos e fugiram envergonhados daquela presença tão imponente.
Mas que tristeza quando ele uniu a espada civil com a espada do Espírito
da verdade de Deus; ali ele foi completamente desonrado. Zuínglio
abandonou o local seguro para tornar-se o mais fraco dos fracos. Ele
passou a ter uma consciência ruim, sua couraça havia sido removida e
isso geralmente tira do homem a sua coragem, a paz e a alegria. É
apenas através da consciência que a verdade estabelece seus domínios
nas mentes e nos caminhos dos seres humanos.
Esse fato, visto da perspectiva histórica, é maravilhoso, e exige muita
atenção de nós. Lutero era um homem livre de qualquer fanatismo, da
mesma maneira que procurou se manter longe de toda e qualquer
hipocrisia. Ele era um homem simples, e sua consciência estava
plenamente firmada na Palavra de Deus. Suas afeições eram movidas
pelo poderoso fogo dessa mesma Palavra. Sustentando-se pela Palavra
de Deus, ele conseguiu abalar toda a Europa através de um poder que
apenas a fé pode entender. “Mas, àquele que não pratica, mas crê
naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.” As
duas características da fé são: 1) excluir todo e qualquer poder humano;
2) introduzir o poder divino. Como o apóstolo diz: “Posso todas as coisas
em Cristo que me fortalece” (Rm 4:5; Fp 4:13).
Agora, nós pretendemos centrar nossa atenção, por um momento, nos
efeitos do poder da Palavra de Deus naquele curto período de quinze
anos.
***
UMA BREVE ANÁLISE DOS ACONTECIMENTOS
A grande verdade que os primeiros reformadores pregaram de maneira
determinada — justificação apenas pela fé, sem a participação de obras
meritórias humanas — espalhou-se com uma velocidade extraordinária.
Em um breve período de tempo, a mesma se tornou conhecida em
grande parte da Europa. No ano 1530, Lutero escreveu ao Eleitor falando
da Saxônia como sendo uma região na qual parecia ter começado o
tempo do reino milenar. Assim dizia o reformador com coração
agradecido: ‘Isso é algo que me enche de grande prazer, quando posso
ver meninos e meninas crescendo e podendo entender e falar acerca de
Deus e de Cristo de uma maneira muito melhor do que era possível
antigamente, mesmo dentro das faculdades, dos mosteiros e das escolas
do papado. Eu vejo que nos domínios de sua soberania está plantado um
agradável paraíso para esta juventude, e que não existe nada similar em
qualquer outra parte do mundo’. O território estava livre dos mosteiros e
conventos, e por todas as partes se levantavam igrejas e escolas.
O corajoso landgrave Filipe, o generoso, junto com toda a região de
Hesse, também havia aceitado o Evangelho e construído igrejas e
escolas, todas administradas pelo próprio governo. O Grão-mestre da
Ordem alemã, Alberto, margrave de Brandemburgo, em 1525, como
duque da Prússia, converteu-se para a doutrina evangélica depois que
seu país e seus dois bispos já se haviam voltado a essa doutrina. O bispo
da catedral de Königsberg já havia anunciado à sua congregação, no
natal de 1523, a grande alegria de que o Salvador nascera de novo para
o seu povo. A Livônia e a Estônia se tornaram evangélicas em 1521,
seguidas por Curlândia. Na Francônia, na Silésia, na Frísia do leste, em
Brunsvique, em Lunenburg, em Anhalt, em Mansfeld e outros países e
domínios, a luz do Evangelho estava se espalhando. Muitas das cidades
livres, entre elas Nuremberg e Magdeburgo, abriram seus portões aos
pregadores da nova doutrina e agora se regozijavam na verdade, ao
mesmo tempo em que davam um corajoso testemunho a favor da
mesma. As rápidas conquistas da Reforma Protestante na Suíça já foram
examinadas, com certa profundidade, dentro do período histórico em que
as mesmas aconteceram. Através da pequena cadeia de montanhas do
Jura, passando pelas margens do lago Leman, a luz do Evangelho
percorreu rapidamente seu caminho, chegando até Genebra. Na
Dinamarca, Noruega e na Suécia, vemos como o Evangelho se arraigou
firmemente, chegando até a longínqua Islândia. A Transilvânia se
submeteu em grande parte à nova doutrina. Ela também foi divulgada na
Boêmia, na Morávia, na Polônia e na Hungria; igualmente na Itália e na
Espanha, porém de forma passageira. Mesmo na Corte de Francisco I e
na Universidade de Paris1, locais renomados pela ortodoxia católica,
podemos encontrar verdadeiros crentes e a doutrina da justificação
mediante a fé somente. Mas não podemos nos esquecer que o Estado
era e continuava sendo católico romano, e ele teve que pagar um preço
altíssimo por meio de numerosas e sangrentas revoluções por ter
rejeitado a verdade e perseguido as testemunhas da fé. Na Inglaterra, os
seguidores de Wycliffe foram reavivados, e os perseguidos lolardos2
levantaram novamente suas cabeças e testificaram a favor da verdade
com coragem renovada. O rei, o parlamento e o povo em geral, lançaram
para longe o jugo de Roma em 1533, e Henrique VIII foi declarado
supremo líder da Igreja Anglicana3. Dessa maneira, a autoridade do
pontífice romano foi abolida por completo na Inglaterra. Os detalhes
desse evento tão importante irão compor um tema distinto neste nosso
trabalho, se assim o Senhor nos permitir.
Já em 1528, os tratados de Lutero e o Novo Testamento produzido
por Tyndale haviam produzido muita benção na Escócia. O nobre, gentil
e erudito Patrício Hamilton, que havia estudado em Wittenberg e
Marburgo, foi queimado na estaca no centro da grande área em frente
aos portões da faculdade de São Salvador, em Aberdeen, acusado de
“possuir, crer e divulgar diversas heresias de Martinho Lutero”.4
***
A DIVULGAÇÃO GERAL DO EVANGELHO NA ALEMANHA
Depois da assinatura do tratado de paz em Ratisbona, muitos, que até
então haviam escondido suas opiniões, agora se declararam a favor das
grandes verdades da Reforma Protestante de modo firme e público.
Príncipes, nobres, diversas regiões e cidades da Alemanha, ano após
ano professavam sem medo, terem abandonado a velha fé católica
romana e abraçado a nova doutrina.
Um acontecimento que, em si mesmo era de natureza puramente
política, sob a providência de Deus se tornou na causa da evangelização
de Württemberg. O colérico duque Ulrico de Württemberg, que com
frequência havia oprimido duramente aos seus súditos e também aos
seus vizinhos, havia sido expulso da liga da Suábia e do seu país, e o
imperador entregou o ducado a seu irmão Fernando, como feudo. Este
dominador católico suprimia violentamente a nova doutrina, embora a
maioria do povo fosse favorável a ela. O povo se queixava e, depois de
um longo cativeiro de dezessete anos, o príncipe exilado foi restaurado
através da ajuda de seu corajoso parente Filipe de Hesse, mediante o
uso das armas do ducado de seus ancestrais. Ulrico, após este longo
exílio, havia mudado e se voltado à doutrina evangélica, tornando-se um
governante moderado. Ao que parece, ele havia comparecido na
conferência realizada em Marburgo em 1529, onde, pela primeira vez,
ficou favoravelmente impressionado com os ensinamentos da Reforma
Protestante. “Por isso”, nos diz Scultetus, “seu primeiro objetivo ao
recuperar seus domínios, foi consagrá-los por completo à glória de Cristo;
procurou introduzir a pregação da pura Palavra de Deus, bem como a
administração da Santa Ceia, assim como a mesma havia sido instituída
pelo Senhor.” Ele também chamou vários teólogos renomados para
organizar as igrejas, estabelecer escolas e organizar outros detalhes
segundo os princípios do protestantismo. A Universidade Tubinga foi
organizada segundo o modelo de Marburgo e Wittenberg. Tudo isso era
como a vida que se originava da morte sobre os extensos domínios que
haviam sido controlados pelo hipócrita e católico Fernando.
No ano de 1535 faleceu o Príncipe-eleitor Joaquim de Brandemburgo,
que era um grande inimigo da doutrina evangélica. Sua própria esposa,
Isabel, teve que fugir dele por haver aceitado o Evangelho. Seu filho,
Joaquim II, assumiu o governo e, como já havia se voltado secretamente
para a nova doutrina, se converteu a igreja evangélica juntamente com
todos os seus domínios. A reforma do ducado de Württemberg foi
seguida por aquela que aconteceu em Brunsvique, e depois em
Calenberg, Hanover, Pomerânia, Mecklenburgo, bem como a maioria das
cidades imperiais como Augsburgo, Bremen, Hamburgo e Lübeck. Existe,
todavia, um fato relacionado ao avanço da causa protestante por volta
dessa época que exige de nós um cuidado especial, porque ele serve
como ilustração do poder soberano da providência de Deus para que
toda a Saxônia se voltasse à doutrina evangélica.
No dia 24 de abril de 1539, Jorge, duque da Saxônia, o antigo inimigo
de Lutero, faleceu. Ele era o cabeça da linhagem albertina da família da
Saxônia e, como marquês de Mísnia e da Turíngia, possuía extensos
territórios, que incluíam as grandes cidades de Dresden, Lípsia e outras
cidades que agora eram as mais importantes de todo o eleitorado. Desde
o início da Reforma Protestante, Jorge foi o mais resoluto e determinado
inimigo daquilo que ele costumava chamar de luteranismo. É muito
provável que, a princípio, sua inimizade fosse fruto de uma fé sincera nas
doutrinas do romanismo. Mas se tornou uma verdadeira amargura por
causa da aversão pessoal que ele tinha por Lutero e pelos outros
Príncipes-eleitores. Essa aversão se tornou ainda muito maior quando ele
percebeu que os membros da outra linhagem da família se tornaram
amigos íntimos de Lutero. Pela sua morte inesperada, e visto que não
tinha filhos, a sucessão de seu trono coube a seu irmão Henrique, cujo
apego às doutrinas da Reforma Protestante superava em muito, se isso
fosse possível, àquele que seu irmão Jorge tinha às doutrinas do papado.
Como Ulrico havia feito antes em Württemberg, Henrique convidou
alguns teólogos protestantes, e entre eles o próprio Lutero, para se
encontrarem com ele em Lípsia para uma deliberação. O resultado desse
encontro foi que, no curso de poucas semanas, todo o sistema de ritos
eclesiásticos foi completamente abolido e o pleno exercício da religião
reformada estabelecido, e tudo isso para a alegria generalizada dos seus
súditos. Alguns anos mais tarde, em 1544, o Príncipe-eleitor João
Frederico I assumiu o trono do Palatinado, e com ele, toda esta região se
converteu abertamente à doutrina evangélica.
Todos estes acontecimentos proporcionaram uma grande vantagem
para a Reforma Protestante. Além de remover inimigos do núcleo dos
Estados reformados, converteu aquilo que até então era um ponto de
fraqueza em uma posição de força. Assim, a Liga de Esmalcalda cresceu
e se fortaleceu, estendendo seus limites e ampliando o número dos
protestantes. Os territórios dos príncipes e cidades favoráveis à causa
protestante aumentaram e se uniram até formarem uma linha grande e
praticamente ininterrupta, que iniciava no mar Báltico e terminava nas
margens do rio Reno.5 Ainda antes da morte de Lutero, vemos que a
metade da Alemanha e todo o norte se tornaram evangélicas.
***
OS PRINCIPAIS PERSONAGENS VÃO DEIXANDO O CENÁRIO
Muitos dos homens, cujos nomes e vidas nos tornamos familiarizados e
que fizeram parte da ilustre batalha do início da Reforma Protestante,
estavam saindo do cenário desta vida. “Tendo cumprido as
responsabilidades que lhes foram designadas”, assim nos diz
Waddington, “eles prosseguiram para sua jornada final. E a tumba que os
encerrou, e onde seus corpos se transformaram em pó, poderia ter
escondido as memórias da maioria deles, como em um profundo
esquecimento. Isso só não aconteceu porque os mesmos viveram em um
desses períodos de revoluções convulsivas que irrompem como
tempestades sobre os eventos ordinários do progresso humano. São
esses eventos que fazem perdurar os traços duradouros dos atos desses
personagens sobre os destinos dos seres humanos, após a vida dos
mesmos terem sido encerradas. A evidente intenção desses fatos é
conceder àqueles personagens humildes, uma marca remota, porém
inteligente sobre sua posteridade.” Felizes são todos aqueles cujas ações
desta vida são realizadas com uma boa consciência para com Deus e o
homem — arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus
Cristo — e que se preocupam pela glória de Deus e o bem-estar uns dos
outros.
A consciência tem muito mais a ver com o futuro bem-estar de um ser
humano do que geralmente costumamos imaginar. Uma má consciência
impede a pessoa de crer na graça de Deus em Cristo, como benefício
para a culpa que sente. O homem sabe a diferença entre o bem e o mal,
e, sabendo que escolheu o mal e recusou o bem, acredita que Deus está
sempre contra ele. Nesse estado mental, ele se esforça para manter toda
e qualquer coisa que possa levá-lo a um encontro face a face com Deus.
Portanto, à medida que a incredulidade aumenta, a mente se torna
obscurecida e o coração vai se tornando cada vez mais endurecido. Os
efeitos da autopiedade, através do poder e da sutileza do inimigo, são os
mais ruinosos possíveis. O homem é cegado pelo deus deste mundo, e
se ocupa tanto consigo mesmo que não consegue ver nenhuma beleza
moral no Senhor Jesus, nenhuma necessidade de Cristo como o
Salvador, e nenhuma necessidade de salvação que exija sua aceitação.
Assim sendo, muitos saem desse cenário respeitáveis exteriormente,
mas interiormente cheio de pecados contra os quais eles foram solene e
frequentemente advertidos.
Nós não julgamos os mortos, mas oferecemos o resultado das nossas
reflexões para o benefício dos vivos. É nosso desejo que as pessoas,
tantas quantas possíveis, não caminhem sob a influência de uma má
consciência, da autopiedade e do poder que Satanás tem de cegar o
indivíduo até que tenham terminado a sua participação no cenário deste
mundo. Caso isso aconteça, esses indivíduos irão despertar no além,
quando já é tarde demais, e perceberão que rejeitaram a verdade e que
ignoraram o Salvador. Certamente, o dia da misericórdia passará, a porta
da graça se fechará e, ao perceber que sua perda é irreversível, eles
afundarão sob o peso do mais terrível desespero.
João, o Eleitor da Saxônia, cujo cognome era Constante, morreu no
dia 16 de agosto de 1532. Durante sete severos anos, esse ilustre
príncipe guiou com grande sabedoria e firmeza o navio da Reforma
Protestante. Como já vimos, em Augsburgo ele demonstrou uma firmeza
superior àquela demonstrada por alguns de seus próprios teólogos. Mas,
ao mesmo tempo, ele agiu de forma moderada e prudente, evitando
assim um confronto imediato com o imperador. Em uma ocasião ele foi
duramente ameaçado por Carlos V; em outra, sua honestidade foi
colocada à prova através de propostas dissimuladas, porém atraentes.
Mas, como era um homem nobre e livre de motivações políticas, ele
permaneceu fiel às suas convicções e, de forma generosa, se dedicou à
grande questão pública do século XVI, que era a Reforma Protestante.
Não existe nenhuma dúvida quanto à genuinidade de sua devoção. Ele
tinha uma grande afeição por Lutero e, em situações de difíceis questões,
ele se aconselhava com o reformador.
Ele considerava as Escrituras Sagradas como um grande tesouro, e
costumava pedir que alguns jovens de famílias nobres lessem as
mesmas para ele. Tais leituras, dependendo do dia, duravam até seis
horas. Felizmente, a Reforma Protestante não perdeu nada por causa da
sua morte. Seu filho e sucessor, João Frederico, chamado de
Magnânimo, estava em plena flor da idade e era devotado à causa
protestante, bem como à pessoa de Lutero, com a mesma fidelidade que
seu pai, além de ser mais talentoso do que este. Ele foi distinguido pela
piedade e firmeza nas severas provações e dificuldades pelas quais seu
caminho o conduziu mais tarde.6
Apesar do alto preço que fora fixado pela vida de Lutero, poucos
antagonistas o sobreviveram, e é nosso desejo notar alguns dos mais
importantes.
O papa Clemente VII morreu no dia 27 de setembro de 1534. Até
mesmo os historiadores italianos relatam que ele era “odiado pela sua
própria Corte e temido por parte dos príncipes por ser desleal. Ele era
considerado um homem avarento, sem fé e com uma natureza
geralmente indisposta para fazer o bem a seu semelhante”. Ele foi
caracterizado pela dureza de coração e inclemência, que se tornavam
cada dia piores, à medida que sua saúde deteriorava; uma fraqueza
mórbida o dominou no declínio da sua vida. As virtudes geralmente
atribuídas a ele eram: seriedade, parcimônia, autocontrole e a habilidade
de dissimular. De fato essa última era uma qualidade tão fundamental na
Corte romana, que todos aqueles que dominavam bem essa arte, na qual
cada um desejava ser o melhor, recebiam palavras elogiosas e eram
admirados pelos outros.7
Clemente é muito conhecido pelos nossos leitores pela sua pretensa e
constante disposição para convocar Concílios Gerais, mas também
porque ele sabia, ao mesmo tempo, adiar ou impedir completamente tal
convocação de forma hábil e por meio das suas intrigas. Sua mente
obscura e traiçoeira abominava a ideia de um Concílio Geral da igreja.
Ele tinha medo da luz. Clemente sabia que as circunstâncias de sua
própria história e de sua ascensão à cadeira papal, não haviam sido
transparentes e estavam sujeitas a sérias reprovações caso um Concílio
fosse convocado. Quão diferente foi a vida e o caráter de um dos mais
importantes príncipes da Alemanha, do Príncipe-eleitor da Saxônia,
quando comparada com o principal pastor da Igreja Romana! Procuremos
imitar tudo aquilo que procedia de Deus, nas vidas dos primeiros, e evitar
tudo o que procedeu de Satanás na vida do último.
Cardeal Tomás Caetano foi um dos primeiros antagonistas de Lutero e
morreu no mesmo ano que Clemente VII. Ele foi censurado por muitos
dos dignitários da Igreja Romana por seu mal sucedido debate com
Lutero em Augsburgo. Apesar disso, ele continuou desfrutando do favor
do Vaticano. Alguns imaginam que ele concentrou sua atenção mais ao
estudo das Escrituras após sua derrota diante de Lutero. No entanto, ele
viveu e morreu a serviço do papado.
Lorenzo Campeggio foi escolhido como legado para representar a
Igreja Romana nos difíceis e importantes debates durante a famosa Dieta
de Augsburgo. Ele morreu em 1539. De maneira hábil, ele representou
Sua Majestade, o papa, sua dignidade, bem como os princípios
defendidos pelo Vaticano. De maneira constante, e em encontros
secretos, ele insistia com o imperador Carlos V para que o mesmo
adotasse medidas violentas contra os protestantes. Entre suas sugestões
encontramos as fogueiras, a espada, o confisco geral dos bens, o
Tribunal da Inquisição e a queima de livros hereges, entre outros. Estas
eram as medidas que ele considerava apropriadas para corrigir os
protestantes; mas ele se guardava de ir além das ordens que havia
recebido.
Jerônimo Aleandro foi o grande defensor do papado na Dieta de
Worms, e morreu no ano de 1542. Por causa de seu grande zelo a favor
da causa pontifícia, ele foi condecorado com altas honras eclesiásticas.
Porém mais tarde, suas atividades eram principalmente de ordem
política, no gerenciamento de questões comerciais públicas, assuntos de
Estado e no aconselhamento de príncipes.
O grande erudito Erasmo de Roterdã ficou famoso devido as suas
muitas obras literárias e, em certos aspectos, pode ser considerado como
um precursor de Lutero. Ele morreu no ano 1536, com a idade de
sessenta e nove anos. Seu nome sempre é associado com o de Lutero e
da Reforma Protestante, mesmo que nos últimos anos Lutero teve que
considerá-lo como o maior dos inimigos da Reforma Protestante e grande
adversário de toda fé verdadeira. A Erasmo lhe faltava os princípios
essenciais que caracterizavam um reformador. Ele era insincero*,
instável, covarde e tremia de medo dos possíveis resultados de suas
próprias obras. Ele era um reformador, enquanto a Reforma Protestante
ainda não era uma realidade. Quando a Reforma foi estabelecida na
Basileia através da destruição das imagens, ele fugiu apavorado dali, e
retornou apenas quando a tranquilidade havia sido restaurada.
Entretanto, independente de suas inconsistências, ele usufruía de grande
respeito por causa da sua reputação literária, suas maneiras e conquistas
nas disputas e nos debates. Sua morte foi lamentada como uma grande
perda nacional. Ele faleceu professando fé na Santa Madre Igreja
Apostólica Romana e negando qualquer relação com as novas práticas
evangélicas.
João Eck, o conhecido professor da cidade de Ingolstadt, terminou sua
tumultuada carreira em 1543, com a idade de cinquenta e sete anos. Ele
foi um incansável defensor da dignidade e da absoluta supremacia da
Roma papal. João era um homem arrogante e vaidoso, contudo, um
excelente orador e eminentemente dotado com as qualidades
necessárias para um debatedor bem sucedido. Seu zelo incansável o
levou a todos os campos de batalha em que os reformadores se
encontravam. Em todos os lugares ele se destacava pelo seu espírito de
luta. Estava sempre contendendo com coragem e energia e, em mais de
uma ocasião, foi bem sucedido. Participou de debates durante mais de
vinte anos, sendo confrontado pelas principais lideranças entre os
reformadores. Foi assim que ele viveu e morreu, defendendo as
arrogâncias da Igreja Romana até o seu último suspiro.
***
OS ÚLTIMOS ANOS DE LUTERO
Podemos dizer que, em certo sentido, o testemunho público de Lutero
e de seus colaboradores encerrou-se quando eles redigiram e
entregaram a Confissão de Augsburgo. A disputa daqueles dias estava
sofrendo uma mudança em seu caráter. Não se tratava mais apenas de
uma luta entre hereges excomungados sustentando o testemunho da
verdade de Deus contra as falsidades da Igreja de Roma. Agora, a
questão envolvia os príncipes da Alemanha, unidos em uma Liga e
poderosamente armados e prontos para enfrentarem ao imperador e seu
poder. Mas apesar de estarem longe das atenções dos cronistas
públicos, os reformadores continuaram trabalhando de forma incansável
em seus deveres relacionados ao chamado especial que haviam recebido
de Deus, ao mesmo tempo em que sentiam grande alegria em constatar
os resultados de seus labores no progresso pacífico feito pela Palavra de
Deus. De Lutero, entretanto, um de seus biógrafos nos diz o seguinte:
“Apesar dele continuar desempenhando suas funções e
responsabilidades como pregador e professor em Wittenberg, ele seguia
publicando comentários sobre o Pentateuco e outras porções das
Escrituras e também continuava escrevendo tratados populares, todas as
vezes que sentia que as circunstâncias assim o exigiam. Todavia, apesar
das suas várias ocupações, era evidente que seu espírito empreendedor
estava sofrendo um grande abatimento, e que nos últimos anos ele não
mais se arriscava a difundir nenhuma nova doutrina”.8
Durante seus últimos anos, o grande reformador, que no passado havia
atraído tanto a atenção, sofreu com diversas, graves e dolorosas
enfermidades, e era evidente que ele estava se aproximando
rapidamente do final de sua vida sobre a terra. Lutero estava cansado e
considerava que sua obra estava realizada. Ele ansiava partir deste
cenário de luta para a terra de descanso. No local para onde Lutero iria,
cessariam todas as rudes disputas da vida, suas animosidades e injúrias.
Tudo seria esquecido. Escrevendo para um amigo, poucos dias antes de
partir para sua última jornada, ele disse: “Eu estou velho, decrépito,
magro, pálido, esgotado, desanimado e privado da metade da minha
capacidade de enxergar. Entretanto, em um tempo em que eu tinha
esperança de alcançar uma razoável porção de descanso, eu continuo
sobrecarregado com muitas atividades, escrevendo, falando, e fazendo
muitas outras coisas, como se nunca na minha vida tivesse feito qualquer
coisa”. Ele também previa tempos obscuros para a Alemanha. Ele disse:
“Vós realmente precisareis de muita oração, pois o futuro de nossos filhos
e da Alemanha é tenebroso. Por isso digo, perseverai na oração após a
minha morte. Orai com seriedade e guardai diligentemente a Palavra de
Deus. Estejam apercebidos e preparados”. Ele também lamentava
profundamente acerca dos países protestantes, dizendo: “Exceto alguns
poucos que são sérios e aceitaram com gratidão o Evangelho, a maioria
é ingrata, insolente e atrevida, e vivem como se Deus tivesse dado Sua
Palavra e nos libertado do papado apenas para que pudéssemos viver
em liberdade e fazer o que bem entendermos. O indescritível desprezo
da Palavra, e os inexprimíveis suspiros dos piedosos, mostram que o
mundo está perdido e que o dia da sua ruína e da nossa redenção está
próxima”. Em sua indignação, ele até chegou a abandonar Wittenberg, e
o Príncipe-eleitor teve muito trabalho para fazê-lo voltar. Lutero retornou,
mas continuou ansiando partir para o lar celestial. No dia 17 de janeiro de
1546, Lutero pregou pela última vez em Wittenberg, ele não havia
cessado de exortar a todos a permanecerem fiéis à Palavra de Deus e a
orarem pela Igreja após a sua morte.
Em janeiro de 1546, os condes de Mansfeld, tendo algumas
divergências quanto a limites territoriais e suas respectivas heranças,
convidaram Lutero para vir a Eisleben — sua cidade natal — para decidir
a situação como um árbitro. Ele já havia ido lá anteriormente, mas sem
sucesso; contudo, agora prometeram que lhe dariam ouvidos. Mesmo
que ele não tinha nenhum interesse em se envolver em tais situações,
preferindo ocupar-se em suas atividades costumeiras, ainda assim ele
consentiu em fazer a viagem.
A despeito da sua fraqueza física e do clima invernal, ele partiu de
Wittenberg no dia 23 de janeiro, acompanhado pelos seus três filhos.
Eles passaram por Halle, onde seu fiel companheiro, Justus Jonas se
juntou a eles. Apesar de sua fraqueza e sofrendo bastante, ele se
envolveu em um negócio que lhe custaria três semanas de tempo, e
todas as coisas foram preparadas para satisfazer os senhores de
Mansfeld. Lutero e seus acompanhantes foram recebidos com grandes
honras pelos condes. Eles saíram ao encontro de Lutero acompanhados
de uma escolta de cem homens montados a cavalo e em meio ao
repicar* dos sinos de todas as igrejas. No entanto, as negociações
avançavam muito vagarosamente, cada um queria manter seus direitos.
Lutero se lamentava. Na segunda carta à sua esposa, no dia 6 de
fevereiro, ele escreve: “Nós estamos sentados aqui sendo martirizados,
gostaríamos muito de ir-nos, mas não pode ser. Penso que ficaremos
mais uns oito dias. Agora entendo por que o Senhor chama, nos
Evangelhos, as riquezas de espinhos, aqui é a escola onde se aprende a
compreender isso”. Ocasionalmente, Lutero pregava na igreja de
Eisleben e participava da celebração da Santa Ceia. Todas as noites,
quando se despedia de seus amigos, ele costumava dizer: “Orem a Deus
para que a causa de Sua igreja possa prosperar”. Ele pregou pela última
vez em Eisleben, no dia 14 de fevereiro. Nesse dia também enviou sua
última carta à sua esposa.
As negociações estavam chegando ao fim, e os condes haviam
entrado em um acordo com a comunidade a respeito dos principais
pontos. Nos dias 15 e 16 eles se reuniram no aposento de Lutero e este
lhes falou que não deveriam apenas procurar a unidade, mas a base e o
vínculo da unidade: o amor. No dia 17 de fevereiro ele foi persuadido a se
abster das negociações. Naquela noite ele jantou com seus amigos,
incluindo seus três filhos — João, Martinho e Paulo — além de Justus
Jonas. Por volta das nove horas, Lutero se dirigiu para os seus
aposentos, olhou para fora da janela, olhou para o alto e fez uma
fervorosa oração. Pensamentos profundos estavam passando através de
sua mente, mas nenhum deles deprimiu seu espírito. Como de costume,
Lutero estava repousando no sofá e, percebendo que estava chegando a
última noite da sua vida, ele disse: “Eu nasci e fui batizado aqui em
Eisleben. Jonas, o que acha de eu ficar e morrer aqui?”. Seu amigo, o
doutor Jonas, e Cochlaeus foram testemunhas oculares das últimas
horas e da morte desse grande homem, e nos deixaram um relato exato.
***
A MORTE DE LUTERO
Na sua última noite, Lutero se queixou de uma angústia que oprimia
seu peito. Mas foi aliviado por meio de massagens e aplicações de
compressas quentes. Sentindo-se melhor, ele saiu de seu quarto e
juntou-se aos outros para jantar. Algumas vezes durante aquela última
refeição, Lutero estava brincalhão. Em outros momentos, tornava-se
profundamente sério — como acontecia algumas vezes na presença de
seus amigos mais próximos. Após o jantar, a angústia voltou. Apesar
disso, ele não pediu auxílio médico. Lutero apenas solicitou que lhe
trouxessem um pano de linho aquecido para colocá-lo sobre seu peito.
Ele adormeceu em um sofá por volta das nove horas e despertou uma
hora depois. Vendo tantos de seus amigos ao seu redor, ele desejou que
os mesmos se retirassem para seus quartos. O próprio Lutero foi
conduzido a seu aposento e, quando o colocaram em sua cama, ele
exclamou: “Eu vou descansar com Deus. Em Suas mãos eu entrego meu
espírito”. Estendendo suas mãos para desejar boa noite a todos, ele
ainda disse: “Orem pela causa de Deus e do seu Evangelho, para que
progrida”. Depois de dormir por cerca de três horas, ele acordou com
dores e sentindo-se muito mal. Ele disse: “Quão enfermo eu estou! Que
angústia eu sinto em meu peito! Certamente morrerei em Eisleben!”.
“Meu amado pai”, replicou-lhe Jonas, “Deus, nosso Pai celestial
certamente lhe assistirá através de Jesus Cristo, a quem tens pregado”.
Lutero voltou para sua sala sem solicitar nenhuma assistência, repetindo
ainda outra vez: “Oh! Meu Deus, em Tuas mãos eu entrego meu espírito”.
Foi solicitada a presença de dois médicos, que logo compareceram no
local. Juntamente com o conde Alberto, acompanhado de sua esposa, lhe
administraram alguns cordiais* e outros medicamentos.
Todos os amigos de Lutero e seus três filhos estavam agora reunidos
ao redor dele. Lutero parecia um pouco mais aliviado. Reclinou-se em um
sofá e começou a transpirar pesadamente. Isso deu aos amigos alguma
esperança, mas ele mesmo lhes disse: “É um suor frio, que antecede a
morte. Eu devo entregar meu espírito”. Depois disso, ele começou a orar
com as seguintes palavras:
“Oh Eterno e misericordioso Deus, meu Pai celestial, Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, e Deus de toda a consolação! Eu te agradeço
porque tens revelado Seu Filho Jesus Cristo a mim, em quem eu tenho
crido, Àquele que tenho pregado e Aquele a quem eu tenho confessado
publicamente. Eu amo e adoro meu amado Salvador e redentor, a quem
o papa e uma verdadeira multidão de ímpios perseguem, desprezam e
blasfemam. Eu te peço meu Senhor Jesus Cristo, recebe minha alma! Oh
Pai celestial, mesmo que eu seja arrancado desta vida, pois eu preciso
entregar meu corpo de volta ao pó, ainda assim eu estou certo de que irei
habitar contigo para sempre, e sei que ninguém poderá me arrebatar de
Tuas mãos”. A seguir, ele recitou alguns versículos bíblicos, como João
3:16 e Salmo 68:20. Depois, ele repetiu três vezes as seguintes palavras:
“Em tuas mãos eu entrego meu espírito. Tu és o meu redentor, oh
Senhor, Deus da verdade”. Ele então ficou em silêncio, fechou os olhos e
as forças começaram a lhe faltar. A condessa ofereceu-lhe um pouco de
cordial e lhe chamou pelo nome, mas ele não respondeu. Então Jonas
lhe perguntou em voz alta: “Amado pai, confessas que Jesus Cristo é o
Filho de Deus, nosso Salvador e redentor e que permaneces firme na
doutrina que tens pregado?”, ele respondeu de forma clara e audível:
“Sim, eu confesso”. A partir desse momento Lutero não falou mais nada.
Ele continuou por algum tempo com suas mãos cruzadas e sua
respiração suave interrompida por soluços. Em seguida, ele adormeceu
suavemente no Senhor. Eram três horas da manhã do dia 18 de fevereiro
de 1546. A dor e o lamento se apoderaram dos presentes, e logo também
da cidade e dos países circundantes. Melanchthon estava em uma
preleção em Wittenberg, e exclamou diante dos seus alunos: “Oh, ele se
foi, carros de Israel, e seus cavaleiros!”.9
***
O FUNERAL DE LUTERO
Os Condes de Mansfeld teriam grande prazer em reter e sepultar o
corpo de Lutero em sua cidade natal, mas eles se submeteram aos
desejos do Eleitor, que pediu que o corpo fosse levado para Wittenberg e
fosse sepultado na catedral local. O corpo foi levado para a maior igreja
de Eisleben. Uma grande comoção prevalecia entre o povo. Jonas fez um
sermão de consolação para uma imensa multidão de pessoas. Depois
disso, o corpo foi colocado sob a responsabilidade de dez cidadãos que
deveriam guardá-lo durante a noite. Cedo, na manhã seguinte, a
procissão fúnebre saiu de Eisleben sob o tocar dos sinos e com hinos,
seguindo em direção a Wittenberg.
O povo afluía dos vilarejos e das cidades, e seguia o cortejo; por onde
passavam, os sinos tocavam. Quando, no dia 20 de fevereiro, o cortejo
chegou ao Elstertor, foi recebido pelo Senado, pelo reitor, os professores
e os alunos da universidade; também estavam presentes os principais
cidadãos. O cortejo seguiu adiante acompanhado de todo o povo até a
igreja de todos os santos. Em seguida, chegou a viúva de Lutero com
seus filhos, acompanhados de um pequeno grupo de amigos. Entre
esses, devemos notar a presença de: Melanchthon, Pontano, Jonas,
Pomeranos, Caspar Cruciger e outros companheiros de jugo do falecido.
Todos eles eram veteranos da Reforma Protestante.
“Hinos apropriados eram cantados à medida que o cortejo avançava
através das ruas da cidade. O corpo foi depositado ao lado direito do
púlpito. Depois de alguns versos terem sido cantados, Pomeranos se
dirigiu à enorme multidão. Em seguida, Melanchthon pronunciou a oração
final. Ambos falaram com a voz embargada pela emoção e com lágrimas
nos olhos, e foram acompanhados pelos soluços da multidão.”10
***
REFLEXÕES SOBRE A MORTE DE LUTERO
Fazer um estudo e uma estimativa dos diferentes personagens que
passam diante de nós na história — contrastados em todas as coisas
apesar de um desenho comum — e, ao mesmo tempo, lançar o olhar da
fé sobre a soberana mão de Deus no todo da vida dos indivíduos e de
seus caminhos, certamente será algo interessante, profundo e muito
proveitoso. Esse é o estudo daquilo que Deus é como soberano Senhor,
e do que o homem é em si mesmo, independente de quão rico seja em
dons ou renovado pela graça divina. Quando falamos desses grandes
personagens, nós sempre devemos acrescentar que estamos lidando
apenas com homens falíveis. Existe somente Um que é infalível e, graças
a Deus, nós não temos nenhum outro cabeça, nem centro, mas apenas
Ele. Também não temos nenhum outro nome, mas somente o nome dEle
— o nome de Jesus — e é apenas a partir desse elevado ponto de vista
que nós podemos estimar, de maneira apropriada, todos os personagens
e eventos da história.
A vida e morte de Lutero estão repletas das mais profundas instruções
para todo aquele que medita nelas. A vida de Lutero se torna ainda mais
proveitosa quando contrastada com a de seu grande companheiro
Zuínglio, de Zurique. Os dois tinham um mesmo objetivo. Mas, os
caminhos seguidos para alcançar tal objetivo, estavam tão distantes
quanto os polos da terra. Será muito difícil para nós definirmos qual dos
dois tinha o coração maior pela manutenção e pela divulgação da
verdade de Deus. Talvez possamos dizer que Lutero era mais caloroso e
profundo, enquanto Zuínglio era mais claro e mais abrangente em suas
ideias. Um representava a guerra, o outro a paz. Um buscava a vitória
apenas através da energia da fé e da corajosa confissão da verdade; o
outro imaginava que a espada do magistrado poderia, em alguns casos,
tornar-se aliada do Evangelho da paz. Um estava destinado a ver seus
labores coroados com um sucesso quase universal; o outro estava
destinado a testemunhar uma catástrofe que ameaçava envolver sua
querida Reforma Protestante. Um faleceu em paz, cercado por seus
amigos; o outro pelos golpes de seus inimigos. O princípio adotado por
Lutero quanto a esse respeito, é um dos princípios essenciais do
cristianismo. A fúria do perseguidor deve ser confrontada pela verdade e
pela mansidão — que é a coroa mais nobre do mártir — e não através de
editos políticos e homens armados. Não temos dúvidas de que esses
dois grandes exemplos foram usados por Deus para servirem de grandes
lições a todas as futuras gerações. Se queremos seguir a Cristo, nós
precisamos ser caracterizados pela presença de Seu Espírito Santo, e
andarmos em Seus passos. “Aquele que diz que está nele, também deve
andar como ele andou” (1 Jo 2:6).
***
O SENHOR CUIDA DE SEU SERVO
Nós não precisamos de nenhuma voz vinda do céu para nos assegurar
que o Senhor mantinha Seu cuidadoso olhar sobre a vida de Seu servo
Lutero. Ele confiava em Deus, e sua fé não foi desapontada. Não existe
nenhuma instância mais maravilhosa do poder preservador da
providência divina em todas as páginas da história. Todas as suas lições
são apropriadas para fortalecer nossa fé em Deus, que é o Senhor
soberano sobre todas as coisas e pessoas. Um monge agostiniano, de
condição humilde, sem nenhuma autoridade, sem nenhuma proteção
levantou-se para enfrentar o mais degradante e bem assentado
despotismo que, alguma vez, se impôs sobre a credulidade dos seres
humanos, tendo triunfado por completo. Nós não podemos ser lembrados
o suficiente desse invisível, mas invencível poder. A fé sempre está em
harmonia com a mente e o governo de Deus. Esse foi o grande segredo
da vitória de Lutero. Ele raramente pôde contar com qualquer apoio
quando compareceu, de forma altiva, diante de reis, príncipes, papas e
prelados, diante de todos aqueles que detinham o poder e eram
venerados pela sua antiguidade.
Nenhum olho humano poderia descobrir qualquer motivo adequado
para a estranha posição que ele havia adotado. Não se tratava de
vaidade, nem de ambição e muito menos de fanatismo. Lutero nunca se
viu como superior, e nunca se interessou em ser mais do que apenas o
doutor Martinho Lutero. Aqueles eram dias de paz geral e de plena
submissão à autoridade papal. Por que, então, perturbar as águas
tranquilas? Existe apenas uma resposta para essa pergunta: a
consciência. Existia um poder que iluminava a consciência do monge,
que nem mesmo a espada, duplamente afiada do papado, era capaz de
vencer. Mesmo o homem natural, sem consciência, pode se tornar um
homem que seja mais alto e mais nobre, no verdadeiro sentido dessas
palavras. Mas a fé colocou o reformador sobre o fundamento sólido da
Palavra de Deus, através da qual ele ensinou a diferença entre a verdade
e a falsidade, o certo e o errado, a justiça e a opressão. Lutero
permaneceu firme a favor da verdade de Deus, e Deus, em sabedoria e
poder, permaneceu o tempo todo com ele. De forma corajosa, ele
manteve “que a Escritura é o único meio para testar a verdade de
qualquer assunto, e a interpretação da Escritura é um privilégio e direito
de todos. Que a consciência, bem como a felicidade, prosperidade e
dignidade do ser humano, tem suas prerrogativas, que são mais elevadas
que todos os poderes da terra e que o despotismo, seja espiritual,
eclesiástico ou intelectual, é contrário à vontade de Deus”. Foi sobre esse
fundamento que a Reforma Protestante foi edificada. E pela manutenção
desses princípios, aquele sistema de engano, que se considerava
onipotente, viu-se abalado a partir do seu centro, por um simples monge
vestindo seu hábito com capuz marrom.
Para conseguir a destruição de tal herege, Roma teria oferecido com
alegria metade de seu reino. Mas ela era incapaz de tocar em um fio de
cabelo de sua cabeça, ou tirar um dia ou uma hora da vida daquele
homem. Por mais de trinta anos Lutero desafiou as maiores malícias da
Igreja de Roma, suas duras e poderosas palavras, bem como todos os
seus poderes. Sim, esses mesmos poderes que, pouco tempo antes,
haviam feito os mais orgulhosos monarcas tremerem assentados sobre
seus tronos. Mas agora, relâmpagos estavam sendo forjados em
Wittenberg, bem como no Vaticano, os quais estavam sendo lançados,
sem a menor cerimônia, sobre papas e reis, assim como sobre os
anabatistas e os camponeses revolucionários. O que era possível fazer
contra aquele monge audacioso? Será que nenhum homem irá nos livrar
das agressões deste pestilento inimigo do papado? Onde estão os
punhais e os cálices cheios de venenos de Jezabel, que geralmente
vinha socorrer Roma? Ainda assim, Lutero estava sempre presente, era
sempre visto, sempre em ação, escrevendo, falando, pronunciando
palavras de desafio aos seus adversários e inspirando seus amigos com
coragem e resolução. Mas ele não desejava o derramamento de sangue.
Seu objetivo era a vida e não a morte. Quando ele se mostrava mais
rude, tratava-se apenas da forma de falar, e tinha o propósito de
despertar a cristandade de séculos de sonambulismo. Outras vezes, sua
voz se levantava irada contra os poderosos da terra porque estavam
tentando impedir o progresso da verdade. Todas as mãos que estavam
envolvidas de alguma forma com a tirania papal, se levantaram contra
ele. Mesmo assim, nenhuma delas foi capaz de desferir-lhe o golpe fatal.
Essa é a perfeita segurança desfrutada pelo homem que descansa sob
o escudo do Todo-Poderoso. No Império Germânico, podia ser
convocada Dieta após Dieta, apoiada pelos representantes da autoridade
papal, mas tudo seria em vão. Lutero se encontrava além do alcance das
mãos deles, apesar de poder ser visto sempre. Sua porta permanecia
aberta, os pobres vinham procurá-lo para receberem esmolas.
Estrangeiros importantes, vindos de todas as partes da Europa, podiam
entrar, conversar livremente e jantar com o famoso professor. Mas entre
eles, era impossível encontrar um que fosse capaz de causar-lhe algum
dano. E assim, Lutero viveu em uma cidade que não tinha muralhas ao
seu redor, chamada Wittenberg; tão seguro quanto se estivesse do lado
de dentro dos próprios portões celestiais.
***
A VIDA DOMÉSTICA E PARTICULAR DE LUTERO
“Até o presente momento”, nos diz um crítico competente, “a ideia mais
comum do caráter do grande reformador tem sido a de uma mistura
composta de violência e rudeza. Essas características têm sido tão
proeminentes, que as linhas mais finas de seus retratos são
completamente obliteradas*. O leão e o cordeiro estavam unidos em
Lutero. Nada poderia exceder sua atitude de submissão e humildade
quando tinha que escolher entre agir de forma modesta ou arriscada. Mas
quando a consciência falava, nenhuma outra consideração era levada em
conta, por algum tempo; e ele certamente abalou a floresta com sua
indignação magnificente. Não estudaremos a sua vida de constante
contentamento, mesmo em meio a grande pobreza, nem seu desprezo
pelas riquezas, porque esta é a característica da maioria dos grandes
homens que são, na realidade, mais valiosos do que o ouro puro. O que
nos interessa é sua longa e inquebrantável amizade com Melanchthon —
um caráter tão diferente do próprio Lutero e, em alguns aspectos, até
mesmo superior, como o próprio Lutero era o primeiro a reconhecer — a
qual sempre nos pareceu como uma prova que ele possuía uma
disposição gentil e educada. Nem a inveja nem o ciúme foram capazes
de interromper, nem por um instante, a afeição fraternal que subsistia
entre aqueles grandes homens. Ao que parece, Lutero não era suscetível
a essas paixões. Ele também não tinha nenhuma ambição pessoal que
fosse manifesta. Lutero nunca assumiu ares de grandeza ou importância,
independente das coisas grandiosas das quais participou. Ele gostava de
pensar de si mesmo como um homem comum, no meio de homens
comuns.”
“Mas essa grande simplicidade de modos exibia não apenas sua
grandeza natural, mas também apontava para uma mentalidade
apostólica, que podemos perceber em todos os mensageiros de Deus,
começando com o próprio Moisés e seguindo adiante. Tais homens são
moldados de uma vez pela mão dAquele que os enviou. Os acidentes
deste mundo não possuem nenhum poder sobre tais homens, como o
tem sobre os outros. Absolutamente nada pode alterar ou modificar a
conformação moral que esses homens assumem. Existe uma unidade,
uma inteireza de caráter nesses instrumentos escolhidos. Eles são
governados por uma ideia, e uma ideia apenas. Foi dessa forma que
nasceu a simplicidade e a forma caseira de Lutero conduzir a sua vida.
Tivesse ele assumido o papel de grande homem, ele apenas teria dado
provas de que não era um apóstolo ou enviado. No seio de sua família e
entre os seus vizinhos, ele se mostrava um homem agradável, afetuoso e
santo. Sua devoção não era praticada como uma máscara, pelo contrário,
a mesma fluía de forma natural em suas atividades e conversas
diárias.”11
***
O CASAMENTO DE LUTERO
O casamento de Lutero aconteceu cerca de um mês depois da morte
de seu amigo e protetor, Frederico da Saxônia, e enquanto toda a
Alemanha lamentava o sangue derramado de milhares de seus
camponeses. Sua impetuosidade natural ficou muito evidente nessa
ocasião.
O nome de Catarina von Bora já gozava de uma grande fama há muito
tempo. Ela era de uma boa e nobre família, e uma das nove reclusas que,
após ter estudado os escritos de Lutero, chegou ao conhecimento da
verdade. Tendo entendido que não tinha obrigação com os votos
assumidos, fugiu do convento localizado na cidade de Mísnia. Sob a
proteção de cidadãos honrados, estas nove freiras chegaram a
Wittenberg, e Lutero tinha providenciado moradia para elas da melhor
forma possível. Antes que se passassem dois anos, oito daquelas nove
freiras estavam casadas. Catarina era a única que permanecia solteira.
Durante esse tempo, ela foi sustentada pelas doações de seus amigos,
que eram administradas por Lutero. Com o objetivo de proporcionar um
lar também para Catarina, Lutero propôs que ela se casasse com um de
seus amigos, um humilde pastor evangélico. Mas Catarina recusou tal
proposta. Ela disse: “Não. Eu não me casarei, a não ser com Amsdorf ou
Lutero. Estas palavras ingênuas e ousadas surpreenderam Lutero. Ele já
havia recomendado o matrimônio a muitos, e ensinava que o celibato era
um voto ímpio e contrário à natureza. Após algumas trocas de cartas com
seus amigos, por fim Lutero disse: “Não é bom que o homem esteja só.
Não quero manter nada da minha vida papista”. Lutero também queria
agradar seu velho pai. Mais tarde, muitas vezes ele fez referência ao
desejo de seu pai, ao citar as razões que o convenceram a casar-se. À
sua maneira, rápida e decidida, ele logo realizou seu propósito.
Sem comentar seu propósito com a maioria, no dia 13 de junho de
1525, Lutero foi até a casa de seu amigo e colega Amsdorf. Ele desejava
que Pomeranos, a quem ele chamava de “O Pastor”, abençoasse sua
união. O celebrado pintor, Lucas Cranach e o doutor João Apella, foram
as únicas testemunhas do casamento. Melanchthon, o mais querido de
todos os amigos, estava ausente. Ele não fora capaz de aprovar este
passo ousado em um tempo tão turbulento. Ele estava profundamente
afligido; mas quando um grande clamor se levantou contra o seu amigo
por causa do seu casamento, Melanchthon, de maneira calorosa,
defendeu Lutero.
Assim que esse casamento, muito discreto, tornou-se conhecido, um
grito de indignação se levantou, e uma enxurrada de escárnios e
zombaria se derramou sobre Lutero; toda a Europa sentiu-se perturbada.
Os inimigos estavam triunfantes, esse casamento lhes ofereceu uma boa
oportunidade para espalharem as mais falsas e agressivas calúnias
quanto a Lutero e sua esposa. Seus próprios amigos consideravam o
casamento como um embaraço muito sério. Dessa união entre um monge
e uma freira, os católicos afirmavam de forma confiante que, de acordo
com a profecia, sem nenhuma sombra de dúvida, nasceria o anticristo.
Ao mesmo tempo, os trovadores e os homens instruídos atacavam os
nubentes* com seus hinos sarcásticos e epigramas*.
Em nossos dias, nós não podemos ter uma ideia precisa do efeito que
tal passo teve sobre a mente das pessoas daquela época. Acima de tudo,
se tratava de uma rude violação dos votos que eram considerados, por
séculos, como invioláveis. Até mesmo muitos discípulos da Reforma
Protestante sentiram-se escandalizados por ver seu líder casando-se
com uma freira. Como sabemos, preconceitos antigos são muito difíceis
de serem vencidos. Mas, independente da forma súbita como tudo
aconteceu, Lutero estava preparado para justificar e defender seu
casamento. Ele enfrentou a tormenta com um contra ataque de sátiras e
com sarcasmo. Mas nosso interesse maior deve estar concentrado nas
questões de que tudo aquilo tinha a ver com sua consciência. Lutero
afirmou, de modo corajoso, que o casamento era uma ordenança de
Deus, ao passo que o celibato não passava de uma instituição humana.
“Eu não estou me casando”, ele disse, “para viver uma longa vida com
ela. Mas, ao notar que as nações e os príncipes estão manifestando sua
fúria contra mim, prevendo que o meu fim está próximo e que depois da
minha morte eles poderão pisotear outra vez minhas doutrinas, eu estou
decidido, por causa da necessidade de edificar os mais fracos, a
apresentar o seguinte testemunho: a guerra contra os camponeses
causou uma grande reprovação contra os príncipes da Reforma
Protestante, e Roma parece ter recuperado, naquele momento, o terreno
que havia perdido. Ela chegou a se gabar com a esperança da vitória.
Mas o casamento do monge, que se encontrava sob a maldição do papa
e o banimento do imperador, foi capaz de espalhar terror e surpresa
através de todas as suas fileiras, revelando de uma maneira mais intensa
a coragem do inimigo que ela imaginou ter esmagado”.12
***
A FESTA DE CASAMENTO
No dia 15 de junho, em uma carta escrita a Ruchel, Lutero diz: “Eu
tomei a decisão de lançar fora até mesmo os mínimos pedaços da minha
antiga vida sob o papado. Por esse motivo, eu me casei, atendendo a
uma solicitação urgente do meu pai”. Esse amigo era muito rico e, ao
convidá-lo para a festa de casamento que estava marcada para o dia 27
daquele mês, Lutero disse, com sua franqueza e simplicidade
características: “Qualquer presente que decidas trazer será aceitável”.
Em uma carta enviada a Spalatino, por volta daquele mesmo tempo,
Lutero disse: “Eu tenho calado a boca daqueles que tem caluniado a mim
e a Catarina von Bora. Se devo dar uma festa para celebrar minhas
núpcias, tu não apenas deves estar presente, como deves enviar-me um
suprimento de carne de cervo. Enquanto isso, ore por nós, e nos dê a sua
benção”. Para Venceslau Link, ele escreveu: “De repente, enquanto eu
estava considerando outras coisas em vez de um casamento, Deus me
conduziu de forma maravilhosa para uma união matrimonial com a freira
Catarina von Bora”. Ele convidou Venceslau para a festa, mas estipulou
que o mesmo não deveria trazer nenhum presente, já que era tão pobre
quanto o próprio Martinho Lutero. Em outra carta ele dizia: “O que
ouvistes é verdade. Eu me casei com Catarina, e isso subitamente, antes
que as conhecidas línguas que costumam tumultuar tudo pudessem me
alcançar, pois penso que não me resta muito tempo de vida e eu não
tinha como recusar esse último ato de obediência que me foi solicitado
por meu pai”. O velho casal de Mansfeld — João e Margarete Lutero —
estavam presentes.
Pelas informações acima, deve ficar claro que uma das razões pela
qual Lutero justificou seu casamento, era a pressa que seu pai tinha em
vê-lo casado. “Todavia, quando nos lembramos da atitude de desprezo”,
nos diz um dos seus mais decentes críticos, “com a qual ele havia tratado
seus pais vinte anos antes, quando ele tomou o passo mais importante
no início da sua carreira, em direta oposição a vontade de seus pais, nós
podemos questionar se sua decisão com respeito ao seu casamento
tinha qualquer relação com a influência de seus pais. Além disso,
também podemos questionar se, diante das características e hábitos
presentes, a persuasão de seu pai poderia, de fato, induzi-lo a dar um
passo na direção de algo que ele não tinha previamente determinado? A
defesa que ele apresentou seria aceitável para qualquer homem, exceto
para Lutero. Mas, temos que levar em conta que sua posição era muito
importante diante de todos os seus irmãos reformadores. Somam-se a
isso seus enormes sucessos, que haviam ajudado tanto no progresso das
novas doutrinas. E mais, a inquestionável atitude desinteressada de seu
caráter e intenções era tal, que seus seguidores tinham o direito de
esperar uma autonegação maior vinda da parte dele do que Spalatino ou
Karlstadt. Eles tinham o direito de esperar, em troca pela quase absoluta
obediência com que o respeitavam, que Lutero sacrificasse qualquer
inclinação pessoal, por mais consistente que fosse com os princípios
evangélicos, em vez de causar escândalo, mesmo que não fosse
intencional, para a causa da Reforma Protestante. Daquele momento em
diante, Lutero deixou de ser considerado como alguém separado de seus
irmãos, e se aproximou do nível da humanidade que todos
compartilhavam.”13
Apesar deste passo, considerado imprudente, ter diminuído de forma
inquestionável a estima que Lutero gozava diante do público, o mesmo
não parece ter causado nenhum tipo de ferida séria à causa da Reforma
Protestante. A obra era de Deus e estava profundamente arraigada para
ser abalada pelos erros de Seus servos. Vinte anos de uma vida
doméstica pacífica e feliz podem muito bem ter servido para recompensar
amplamente o reformador por certa perda de sua reputação pública.
***
LUTERO NO CÍRCULO DA SUA FAMÍLIA
Como presente a Lutero, o Eleitor lhe deu o mosteiro agostiniano em
Wittenberg, que estava vazio. Ali, nos amplos aposentos do velho
mosteiro, vivia “o doutor”, como ele era chamado em Wittenberg, com sua
esposa. Ele dizia que havia encontrado nela uma companheira piedosa,
amável e temente a Deus. Quando se casaram, ele tinha 42 anos e ela
26. Quando se casaram, eles não estavam enamorados nem
apaixonados, como é habitual. Contudo, com o passar do tempo, se
desenvolveu entre eles um profundo amor e uma cordial e terna afeição.
Nos primeiros anos do matrimônio, Catarina teve que lutar
frequentemente contra uma tristeza e depressão, consequências dos
muitos escárnios e zombarias por causa dessa união de um monge com
uma freira. Todavia, Lutero procurava animá-la: “Tu és minha legítima
esposa, tenha certeza disso e não duvide, deixe que o mundo cego e
ímpio fale o que quiser, se oriente pela Palavra de Deus, permaneça
firme nela, então terás uma boa consciência e um consolo constante
contra o diabo e todas suas bocas blasfemas”. Catarina era uma mulher
muito modesta, com tenras afeições e um bom senso, que ia muito além
do ordinário. Quando Lutero se sentia rejeitado, ela costumava consolá-lo
por meio da leitura de passagens da Bíblia. Ela também foi uma
cuidadora dedicada nas muitas enfermidades de Lutero. Também
procurava aliviar toda a sua ansiedade quanto às responsabilidades
domésticas. Catarina costumava sentar-se próxima dele durante seus
momentos de lazer, entretendo-o com o trabalho manual que estava
fazendo, que era um bordado retratando o próprio Lutero. Ela costumava
lembrá-lo das cartas que precisava escrever. Outras vezes, ela o
gratificava com conversas sobre assuntos gerais, longe dos debates
sérios que preocupavam sua cabeça de doutor. Isso fazia com que Lutero
relaxasse e se tornasse brincalhão. Ele deixou para a sua esposa a
direção do lar; Catarina era uma boa administradora e guardava a ordem
firmemente. Por isso Lutero se dirigia a ela como meu senhor Käthe, a
doutora. Suas cartas para Catarina transbordavam de ternura e, à medida
que os anos avançavam, sua afeição aumentava cada vez mais. Ele
costumava se referir a ela como sua querida e graciosa esposa ou como
sua querida e amistosa Käthe.
Após um ano de casados, houve uma grande alegria no mosteiro
agostiniano. Lutero disse: “A mim, o mais feliz dos homens, foi dado pela
melhor mulher, um filhinho, que Deus possa abençoá-lo. Pela
maravilhosa graça de Deus, eu me tornei pai. O menino foi chamado de
João. No ano de 1527 sua esposa lhe deu uma filhinha, Elizabeth que,
porém, pouco tempo depois lhe foi tomada. Acerca desse acontecimento,
Lutero escreve: “Minha filhinha Elizabetinha faleceu e deixou para trás um
ânimo ferido. Lamento muito a sua perda. Nunca antes eu pensei que um
coração paterno pudesse amolecer tanto por causa de um filho”. Ainda
outros quatro filhos lhes nasceram, dois meninos e duas meninas. A mais
velha, Madalene, morreu quando tinha treze anos. Ela era a preferida do
pai; uma criança formosa, quieta e piedosa. Lutero sofreu indizivelmente
no seu leito de morte, porém se curvou humildemente sob a poderosa
mão de Deus. Nessa ocasião, suas orações e declarações testificam de
um amoroso e tenro coração paterno, mas, ao mesmo tempo, também da
sua brilhante confiança em Deus e de sua profunda humildade.
Esse grande homem, que na batalha pela verdade podia dizer palavras
tão rudes, de modo que faziam estremecer o mundo, no círculo de sua
família era carinhoso e tenro. Ele brincava com seus filhos e, à noite,
contava histórias. Lembrando da sua própria e severa educação, Lutero
queria ser mais moderado, porém, quando era necessário ele castigava
severamente. Contudo, constantemente ele fazia com que também nesse
momento eles percebessem seu amor. Seu princípio era: “Junto com a
vara deve estar uma maçã”.
Durante as refeições, Lutero normalmente estava alegre; estas se
constituíam em uma parte do seu refrigério no círculo da sua família e
dos seus hóspedes, que eram muito frequentes. As conversações
giravam, em grande parte, em torno da Igreja e das Escrituras, e era
quando Lutero expressava muitos dos seus pensamentos reformadores.
Tais conversações foram registradas por escrito sem que ele o soubesse.
A acusação que os inimigos do reformador lhe faziam, que Lutero era
sem moderação nas refeições, era infundada. Sabemos de vários de
seus conhecidos e amigos, em especial de Melanchthon, que Lutero não
era apenas muito moderado ao comer e beber, mas que muitas vezes ele
também jejuava, assim como estava habituado quando ainda era monge.
Lutero também considerava os empregados como família, tratava com
eles carinhosa e paternalmente, de manhã e a noite, todos se juntavam
para uma reunião doméstica. Após ter cantado um hino, era lido um
trecho da Bíblia sobre o qual Lutero falava, às vezes de forma mais
breve, outras de modo mais amplo. É bem conhecido seu amor pelo
canto e pela música. Ele gostava de afugentar as tentações e os maus
pensamentos com cânticos e tocando seu alaúde, além de passar muitas
horas com sua família e visitantes, se alegrando com a música. Ele
compôs melodias para hinos espirituais próprios e de outros poetas, ou
usou melodias populares. Além do seu amor para o canto, devemos
mencionar o amor de Lutero pela oração. Nos é relatado que ele passava
algumas horas em oração cada dia, no entanto, ele também usava seu
querido livro de orações. Certa vez ele disse: “Se eu negligencio a oração
por um dia, perco uma grande porção do fogo da fé”. Em uma ocasião, a
sua oração cheia de fé manteve seu amigo Melanchthon com vida; assim
que ele havia orado, Lutero se aproximou do enfermo em estado grave, e
lhe disse: “Esteja tranquilo Filipe! Tu não irás morrer!”. Além da oração, o
trabalho na sua sala de estudos, e especialmente a pesquisa na Bíblia,
eram o alimento diário de Lutero. Por algum tempo, ele também trabalhou
ocasionalmente com o torno, em partes, para se recrear, porém em
partes também para ganhar seu pão neste mundo, caso não o quisessem
mais manter por amor do Evangelho.
“Portanto, não apenas no seu âmbito de ação pública e no campo de
batalha como o grande reformador, mas também no círculo doméstico,
Lutero viveu uma vida rica, uma vida cheia de fé, cheia de amor, cheia de
cordial participação em tudo o grande, o bom e o belo.” 14
O Eleitor supriu as necessidades da mãe e dos cinco filhos depois da
morte de Lutero.
***
CONCLUSÃO
Antes de nos separarmos do grande reformador, o qual ocupou uma
grande parcela da nossa atenção no estudo que estamos fazendo da
História da Igreja, queremos apresentar algumas estimativas feitas
acerca dele por um dos mais judiciosos* escritores — o historiador de
Carlos V — bem como pelo deão Waddington, o qual revisou a extensa
obra escrita por aquele. “Como Lutero foi levantado pela providência
divina para ser o autor de uma das maiores revoluções registrada na
história, cremos que talvez não existe nenhum outro personagem cujo
caráter tenha sido pintado com cores tão opostas. Em sua própria época,
um partido sentiu-se abalado, horrorizado e inflamado pela ira, quando
viu com que mão corajosa ele derrubava todas as coisas que eles
consideravam sagradas, ou valiosas como beneficentes, imputando-lhe
não apenas os defeitos e vícios de um homem, mas as características do
próprio demônio. Por outro lado, muitos se sentiam cheios de admiração
e gratidão, considerando-o como o restaurador dos direitos e da liberdade
da Igreja cristã. Muitos lhe atribuíam uma perfeição que ia além do
humano e consideravam todas as suas atitudes com um profundo
respeito, tributo esse que deve ser pago somente àqueles que são
guiados pela inspiração direta do céu. É sua própria conduta, e não a
censura desfigurada ou o louvor exagerado de seus contemporâneos,
que deve regular as opiniões do tempo presente no que diz respeito a
Lutero. Zelo por aquilo que ele reputava como verdade; intrepidez
inaudita na manutenção das doutrinas que pregava; habilidades, tanto
naturais quanto aprendidas, para defender seus princípios, e uma
incansável capacidade produtiva na propagação das doutrinas e
princípios — essas são virtudes que brilham de maneira tão evidente em
sua vida e comportamento, que até mesmo seus inimigos precisam
concordar que tinham grande consideração por Lutero.”
“A tudo isso, devemos adicionar, com igual justiça, que Lutero tinha
modos puros e até mesmo austeros, especialmente à medida que foi
assumindo o caráter de um reformador. Tal santidade de vida servia bem
à doutrina que ele pregava e à ausência completa de interesses próprios
e terrenos, os quais impedem qualquer dúvida acerca da sua sinceridade.
Lutero estava acima de todos os interesses egoísticos e era um
verdadeiro estranho às coisas elegantes da vida. Desprezando os
prazeres carnais, ele costumava deixar tanto as honras como as ofertas
das igrejas para os seus discípulos, e se contentava perfeitamente em
manter seu estado original como professor na universidade e pastor na
cidade de Wittenberg, recebendo os pagamentos moderados referentes a
esses ofícios. Possuindo um caráter forte e veemente, em muitas
ocasiões se manifestava com grande impetuosidade, deixando atônitos
as pessoas de espírito mais fraco ou aqueles que normalmente preferiam
estar em situações mais tranquilas. Por demonstrar certas disposições
louváveis até as últimas consequências, algumas vezes ele atingia o
limite de tornar-se culpado, e muitas vezes foi traído por ações
excessivas que o expuseram à censuras. Sua confiança de que suas
opiniões eram bem fundadas, faziam com que se aproximasse da
arrogância, sua coragem em afirmá-las parecia demonstrar rudeza. Sua
firmeza em se apegar às mesmas era, muitas vezes, confundida com
obstinação, e seu zelo em confrontar seus adversários com indignação
em suas palavras era considerada abusiva. Acostumado a considerar
todas as coisas subordinadas à verdade, ele esperava o mesmo de todos
os outros homens. Lutero não tinha por hábito dar nenhum espaço para a
timidez ou os preconceitos de outros. Por esse motivo, ele tinha a atitude
de despejar sobre todos aqueles que o desapontavam, nesse ponto
específico, uma torrente de críticas misturadas com desprezo. Quando
suas doutrinas eram atacadas, independente de qualquer distinção de
posição ou caráter, ele fustigava todos os seus adversários
indiscriminadamente, com a mesma severidade. Nem a dignidade real de
Henrique VIII ou o eminente conhecimento e habilidades de Erasmo
foram capazes de protegê-los do mesmo tipo de críticas pesadas com as
quais ele tratou homens como Tetzel e João Eck.”
“Mas essa falta de decoro, da qual Lutero era culpado, não pode ser
atribuída por completo ao seu forte temperamento. Ela deve ser
entendida, em parte, como os modos comuns daquela época. Certas
partes do comportamento de Lutero, que nos podem parecer culpáveis,
de fato não ofendiam seus contemporâneos. A notícia de sua morte
encheu o partido católico romano com uma alegria excessiva e até
mesmo indecorosa, ao mesmo tempo em que retirou o brilho espiritual de
seus seguidores. O que nenhum dos dois partidos foi capaz de entender,
é que suas doutrinas agora estavam tão firmemente arraigadas que
tinham condição de florescer, independentemente da mão que tinha
semeado as mesmas.”15
“Mas o fato mais importante na história da Reforma Protestante e, em
minha opinião, um dos mais relevantes na própria história do mundo,
ainda precisa ser mencionado — que os limites alcançados pela Reforma
Protestante, enquanto Lutero vivia, permanecem praticamente
inalteradas, dividindo as duas confissões. Quase tudo o que foi
conquistado antes de sua morte, permaneceu. Todavia, praticamente
todos os avanços feitos depois de sua morte foram desfeitos por Roma.
O entusiasmo de uma única geração conseguiu, sob sua liderança,
estabelecer seus próprios limites. Nenhum empenho de seus discípulos,
ou a reverência pelo nome de Lutero e suas virtudes, conseguiu melhorar
a posição da Reforma Protestante nos três séculos seguintes. O mesmo
pode ser dito acerca da difusão da fé e do conhecimento, da civilização e
da atividade comercial, além da verdade filosófica. Nada disso foi capaz
de expandir o que havia sido alcançado durante os dias do próprio
Lutero. O edifício da Reforma Protestante, que foi passado das mãos do
arquiteto, mantém praticamente as mesmas dimensões que tinha
naqueles dias. A forma, de fato, sofreu algumas alterações, e aquela
parte que ele considerava exclusivamente sagrada foi bastante estreitada
por diversas modificações. Entretanto, tudo aquilo que diz respeito ao
incansável e inflexível inimigo de Roma, transformou-se em um triunfo
imortal. Triunfo esse, que ele conseguiu com suas próprias mãos, ao
arrancar da Igreja de Roma todas as coisas que ela havia inventado e
ordenado. Lutero conseguiu, até onde podemos enxergar, livrar o povo da
terrível mão que o oprimia, até vê-la completamente humilhada. Mesmo
nos dias de hoje, ainda agrada à mão da providência divina ver Roma
permanentemente diminuída em sua grandeza e humilhada em seu
poder.”16

1 N. do T. A Universidade de Paris é mais conhecida pelo seu tradicional nome de:


Panthéon Sorbonne.
2 Ver vol. 2 da História da Igreja, p. 311
3 A Igreja da Inglaterra é chamada de Igreja Anglicana.
4 Cunningham, vol. 1, p. 220. Wylie, vol. 1, p. 620.
5 Robertson´s History of Charles V, p. 244.
6 Scott, vol. 1, p. 129; Waddington, vol. 3, p. 164.
7 Guicciardini e Fra Paolo, citados por Waddington, vol. 3, p. 183.
8 História da Igreja pelo Rev. João Fry, p. 324.
9 Dessa narrativa fornecida por Justus Jonas para o Eleitor da Saxônia, através da
mão do secretário do Conde Alberto. Ver Scott´s History, vol. 1, pp. 464-477.
10 Para porções da oração de Melanchthon ver Waddington, vol. 3, pp. 353-356.
11 Artigo publicado na Revista Blackwood, em dezembro de 1835, levemente
alterado pelo autor.
12 D´Aubigné, vol. 3, p. 309.
13 Waddington, vol. 2, p. 121.
14 Hagenbach, preleções acerca da Reforma, p 421.
15 História de Carlos V por Robertson, vol. 6, pp. 71-76.
16 Waddington´s History of the Reformation, vol. 3, p. 362.

Capítulo 46
A ABERTURA DO CONCÍLIO DE TRENTO

Já muito antes da morte de Lutero, as circunstâncias se mostravam


muito desfavoráveis para a paz e para a liberdade religiosa dos
protestantes. Os mesmos, em vez de se valer da oração e da confiança
em Deus como seu escudo e proteção, se dedicaram a fortalecer a Liga
de Esmalcalda e se prepararam para a guerra. Agora, eles constituíam
um corpo político completo. Essa era a característica externa do
protestantismo naquele período. Mal o homem que amava a paz estava
em seu túmulo, e seus conselhos foram todos esquecidos por seus
seguidores. Lutero não conseguia imaginar uma calamidade maior
desabando sobre a causa da verdade do que o desembainhar de
espadas para defender a mesma. Para ele, era melhor ter mártires do
que guerreiros.
O receoso imperador acompanhava de perto o crescimento do poder
da Liga de Esmalcalda, e chegou a chamá-la de “um império dentro de
um império”. Mas sua expedição desastrada em Argel1, a retomada de
sua guerra contra Francisco I da França, e os sucessos alcançados pelos
turcos na Hungria, o fizeram contemporizar* com os protestantes e
esconder seus verdadeiros sentimentos e intenções, pois agora ele
precisava dos protestantes. Ele organizou diversas Dietas do Império,
convidando a teólogos eminentes de ambos os partidos com o propósito
específico de resolver as diferenças religiosas e restaurar a paz e a
harmonia, mas sem obter algum resultado satisfatório. Os protestantes
foram enganados e baixaram a guarda pelas atitudes fingidas e
aparentes concessões do imperador. Na Dieta de Spires, em 1542, o
sumo pontífice católico romano, Paulo III, através de seu legado, renovou
sua promessa de convocar um Concílio Geral da Igreja. Ele determinou
que o mesmo deveria acontecer em Trento, uma cidade localizada na
região do Tirol, sujeita ao rei dos romanos e próxima da fronteira entre a
Alemanha e a Itália. Fernando e todo o partido católico manifestaram a
imensa satisfação que sentiam e aceitaram a proposta. Mas não foi assim
com os protestantes. Eles rejeitaram tanto o local quanto o próprio
Concílio proposto pelo papa, exigindo a convocação de um Concílio
ecumênico ou livre. Eles protestaram dizendo que não aceitariam um
Concílio que se reunisse fora das fronteiras da Alemanha, convocado
pela autoridade papal e no qual o papa tinha o direito de presidir e decidir.
Isso irritou muito ao imperador; ele estava firmemente determinado a
enfrentar os evangélicos com a força da espada. Uma guerra religiosa
parecia iminente. Desprezando os protestos, e sentindo-se fortalecido
pelo consenso geral de seu próprio partido, o sumo pontífice publicou
uma bula convocando o Concílio de Trento para se reunir antes do dia 1
de novembro de 1545. Ao mesmo tempo, ele nomeou três cardeais para
presidirem o Concílio como seus legados.
No tempo indicado, os legados papais, os embaixadores do império e
alguns poucos prelados compareceram. Mas, como uma violenta guerra
estava sendo travada naqueles dias entre o imperador Carlos V e
Francisco I da França, poucos eclesiásticos podiam viajar com
segurança. Por causa dessas circunstâncias, ficou claro que nada
satisfatório poderia ser alcançado. Visando evitar ser ridicularizado e
desprezado por parte de seus inimigos, o papa adiou a reabertura do
Concílio por tempo indefinido. Entretanto, Fernando, rei dos romanos,
achou necessário não apenas fingir que aceitava a conduta dos
protestantes, mas também buscar o favor dos mesmos através de
repetidos atos de aparente bondade. Ele dependia do apoio dos
protestantes para defender a Hungria contra os infiéis otomanos, e não
apenas permitiu que os protestantes fossem inseridos nos registros da
Dieta, mas renovou, a favor deles, todas as concessões que o imperador
havia feito em Ratisbona. Além disso, Fernando concedeu aos
protestantes tudo o que eles exigiram como garantia de sua segurança
futura. Com tudo isso, os reformadores puderam experimentar certo
descanso, e os princípios evangélicos tiveram tempo para aprofundarem
suas raízes e se espalharem cada vez mais, mas não por causa da boa
vontade dos governantes, mas sim por causa da incômoda situação
enfrentada por seus adversários.
Em 1544, em uma Dieta realizada no mesmo local, o politiqueiro*
imperador Carlos V, percebendo que o tempo de ofender o zeloso espírito
dos protestantes ainda não havia chegado e que o momento não era
apropriado para provocar o poder da Liga de Esmalcalda, tomou a
decisão de acalmar os protestantes alemães através de novas
concessões, que expandiam ainda mais seus privilégios religiosos. Como
ainda estava envolvido em guerras no estrangeiro e suas mãos não
estavam completamente livres, ele se utilizou de todos os poderes de
dissimulação ao seu alcance para cortejar e elogiar o Eleitor da Saxônia e
o landgrave de Hesse, que eram os cabeças do partido protestante e,
através deles, enganar os membros da Liga de Esmalcalda.
Enquanto isso, sua majestade papal estava se tornando cada vez mais
ciumenta com respeito a todas essas negociações e concessões. Seu
mais ardente desejo, como tinha acontecido com seus três
predecessores, era o de arrancar pela raiz, através da força das armas,
essa gigantesca heresia que estava se expandindo por todos os lados.
Desde o início da Reforma Protestante, um dos constantes objetivos do
Vaticano foi o de criar um rompimento hostil entre o imperador e os
príncipes protestantes, para fazê-los entrarem em guerra. Mas, até onde
podemos julgar, a concretização desses desígnios perversos foi
impedida, por quase trinta anos, pela mão da providência divina,
principalmente em resposta às orações de praticamente um único
homem, Lutero. Todavia agora, esse homem estava fora do cenário e
seus irmãos estavam confiando mais em sua organização militar e na
força de seus numerosos exércitos do que em Deus. Além disso, a
posição firme que haviam tomado com respeito ao Concílio proposto,
deram ao papa e ao imperador todas as oportunidades para atraí-los para
uma armadilha. E foi exatamente isso que aconteceu, como iremos ver
em breve.
O objetivo proposto para esse famoso Concílio era, é claro, a
pacificação da igreja, a cura de suas enfermidades, a restauração de sua
unidade e a benção de seus filhos. Porém, o objetivo real era a completa
erradicação das doutrinas de Lutero, de Zuínglio e Calvino. Ao mesmo
tempo, se pretendia promover a perseguição imediata de todos os que se
opusessem a seus decretos. Era esse o acordo secreto estabelecido
entre o sumo pontífice católico romano e o imperador Carlos V. Os dois
sabiam muito bem que os protestantes jamais se submeteriam às
decisões do Concílio, nem obedeceriam às instruções de seus cânones.
***
O TRATADO ENTRE O PAPA E O IMPERADOR
Em dezembro de 1545, depois de muitos anos de intrigas,
dissimulações e disputas, o Concílio há muito tempo prometido e
aguardado, finalmente, se reuniu na cidade de Trento. O mesmo se
reuniu e se dispersou diversas vezes, tendo sua duração estendida até o
ano 15632.
O Concílio de Trento, cujo pretenso objetivo era fixar o destino da
cristandade, na realidade, era apenas uma parte do grande ardil para
suprimir o luteranismo. O imperador havia dado fim à sua guerra com
Francisco I através da assinatura do tratado de paz de Crépy. Ele
também tinha conseguido um tratado de paz com o sultão Suleiman e,
secretamente, havia conseguido o apoio de alguns dos príncipes
católicos da Alemanha, e com isso ele esperava poder voltar-se
finalmente contra os protestantes. Com enorme cautela, ele começou a
organizar seus preparativos para a guerra. O papa, que nos últimos
tempos havia reprovado grande parte das atitudes políticas do imperador,
mas que temia seu poder, mais do que depressa concordou que todas as
outras questões deveriam dar lugar àquela que era considerada a mais
importante. Um tratado foi redigido entre o papa e o imperador, no qual
eles se comprometiam a:

1. “O papa e o imperador, para a glória de Deus e o bem público, mas


especialmente pelos interesses e bem estar da Alemanha, fizeram
um acordo com base em certos artigos e condições. Em primeiro
lugar, o imperador iria suprir um exército e todos os elementos
necessários para a guerra; estes deveriam estar prontos até o mês
de junho do ano seguinte. Em seguida, deveria obrigar, pela força
das armas, àqueles que recusassem o Concílio e suas decisões,
mantendo uma posição de erro, a abraçarem a antiga religião e
submeterem-se à Santa Sé.”
2. “O papa, por sua vez, além dos cem mil ducados que já havia dado
ao imperador, se dispunha a depositar no Banco de Viena, tanto
quanto fosse necessário para cobrir as despesas com a guerra. O
papa ainda se comprometia a suprir, por sua própria conta e durante
o espaço de seis meses, mil e duzentos soldados de infantaria e
quinhentos de cavalaria; também oferecia ao imperador, durante o
ano corrente, metade da receita de todas as igrejas e mosteiros da
Espanha. Além disso, o papa se comprometia a autorizar o
imperador a alienar terras que pertenciam às abadias naquele
mesmo país — Espanha — até atingir o valor de quinhentos mil
ducados. Por sua vez, o imperador deveria suprimir, pelo uso da
força, as censuras tanto espirituais quanto militares vindas de
qualquer príncipe que tentasse impedir a execução do tratado.”
3. “O Concílio, por sua parte, deveria redigir imediatamente um esboço
de uma confissão de fé, que deveria conter todos os artigos que a
igreja exigia que seus membros acreditassem. Esse deveria ser o
primeiro e principal interesse do Concílio. Além disso, maldições e
excomunhões deveriam ser proferidas em nome e pela autoridade do
Espírito Santo contra todos os que negassem as verdades contidas
na confissão.”3

Dessa maneira, a armadilha mais ardilosa foi cuidadosamente


preparada. Tratava-se do mais profundo artifício satânico para a
destruição dos protestantes, mas que havia sido planejado por aquele
que assume o título de “mais santo pai”, além do caráter de
“infalibilidade”. O imperador se declarou disposto a realizar os planos do
papa mediante o poder das armas. O inimigo viu que os reformadores
haviam mudado do terreno moral para o político. Agora, eles não eram
apenas protestantes a favor da verdade de Deus, contra as mentiras do
papado, e sim uma confederação armada, preparada para enfrentar os
exércitos papais e imperiais em seus próprios territórios. Esse foi o erro
fatal que eles cometeram, e Deus teve que envergonhá-los. Ele jamais
viria ao socorro deles com base nas práticas mundanas que estavam
adotando. Em breve, a tolice e a fraqueza dos protestantes ficariam
patentes diante dos olhos de todos.
O Concílio deu início às deliberações — apesar do fato que somente
uns poucos bispos espanhóis e italianos estarem presentes —
examinando o primeiro e principal ponto de controvérsia entre a Igreja de
Roma e os reformadores. Tratava-se da regra que deveria ser
considerada como suprema e decisiva em todas as questões de fé, bem
como determinar sua autoridade infalível. O Concílio decidiu que:

1. “Os livros que haviam recebido a designação de apócrifos deveriam


ser colocados no mesmo nível de autoridade com aqueles que
haviam sido aceitos pelos judeus e pelos cristãos primitivos no
Cânon das Sagradas Escrituras.”
2. “As tradições verbais, passadas desde a era apostólica e
preservadas pela igreja, deviam ser consideradas igualmente
importantes e obrigatórias, assim como as doutrinas e preceitos que
os autores inspirados tinham registrado em seus escritos.”
3. “A tradução latina das Escrituras, feita e revisada parcialmente por
Jerônimo, que era conhecida pelo nome de Vulgata, era o único texto
que deveria ser lido nas igrejas e usado como fonte de apelação nas
escolas, devendo ser considerado autêntico e canônico.”
Esse era um ataque frontal para o mais importante princípio do
protestantismo. O mesmo representava um pré-julgamento de todas as
questões a serem debatidas e tornava inúteis todas as discussões entre
os dois partidos. Lutero e seus seguidores haviam ensinado e afirmado,
desde o princípio, que a Palavra de Deus era a única regra de fé e
prática; que eles não dependiam de nenhuma outra autoridade em
questões de fé que fosse além do único e infalível padrão apresentado
nas Sagradas Escrituras. Esse era o fundamento e a pedra angular do
protestantismo. Mas a primeira decisão do Concílio tinha a intenção de
minar tal fundamento, de tal maneira, que pudesse julgar e condenar o
sistema por completo.
***
A GUERRA DE ESMALCALDA
Os protestantes, percebendo que o verdadeiro objetivo do Concílio não
era examinar suas exigências e sim condenar a fé que professavam
como heresia, e com isso atraí-los para uma rota de colisão com o
imperador, que então poderia decidir a questão através do uso da
espada, rejeitaram, de maneira firme, os decretos do Concílio. Ao mesmo
tempo, eles publicaram um longo manifesto, contendo uma renovação
de seus protestos contra a reunião do Concílio, juntamente com as
razões que os levaram a declinar a aceitação da jurisdição do mesmo.
Mas Carlos V ainda não estava preparado para hostilidades, portanto,
quando os protestantes emitiram o manifesto contra o Concílio e seus
decretos, ele procurou manter sua política de dissimulação. Ele não tinha
vontade de aumentar o zelo do Concílio nem de despertar quaisquer
operações por parte da Liga protestante. Seu primeiro objetivo era
enganar os protestantes de tal maneira, que ele pudesse ganhar tempo
para o amadurecimento dos seus planos e para se preparar e se armar
para a guerra. Com esse propósito, ele teve uma reunião com o
landgrave de Hesse, que era o mais ativo de todos os confederados. O
landgrave também era aquele que mais suspeitava das intenções do
imperador. Com palavras brilhantes, Carlos V afirmou sua preocupação
com a alegria do povo alemão, e de sua completa aversão a qualquer
medida violenta. Ele negou, da forma mais categórica possível, que
tivesse firmado qualquer tratado com o Vaticano ou que tivesse iniciado
quaisquer preparativos militares voltados para uma guerra.
Tal era a consumada duplicidade de Carlos V que desfez todas as
dúvidas e apreensões do landgrave Filipe. Com isso, o landgrave partiu
plenamente satisfeito e acreditando que as intenções do imperador eram
mesmo pacíficas. Quando retornou ao seio dos príncipes evangélicos
confederados, que estavam reunidos em Worms, ele apresentou uma
narrativa tão elogiosa quanto à atitude favorável do imperador para com
eles, que os mesmos relaxaram e tornaram-se indecisos quanto às suas
operações, pensando que o perigo estava distante ou que era apenas
imaginário. Dessa maneira, dando ouvidos às mentiras de Satanás, os
líderes protestantes ficaram completamente cegos e agiram como
verdadeiros tolos, como já havia acontecido com os homens de Zurique
em 1531. Eles estavam fora da base da fé, e confiavam em sua própria
sabedoria e força. E foi exatamente essa atitude que os conduziu à sua
desgraça e humilhação. A partir desse momento, cada passo que os
protestantes deram foi para baixo e na direção errada.
No que dizia respeito à paz, a conduta do imperador era, em todas as
frentes, oposta ao que os seus lábios professavam. Isso podia ser visto
por todos, com exceção daqueles que tinham mais motivos para
suspeitar dele. Henrique VIII, rei da Inglaterra, informou secretamente os
príncipes protestantes que Carlos V, há muito tempo, havia decidido
exterminar as doutrinas protestantes. E, além disso, o mesmo estava
aproveitando diligentemente do presente intervalo de tranquilidade, para
melhor se preparar para executar seus desígnios. Os mercadores de
Augsburgo entre os quais havia alguns que favoreciam a causa
protestante, tendo sido notificados por seus representantes na Itália que a
ruína dos reformadores estava sendo planejada, advertiram os mesmos
do perigo que se aproximava. Confirmando essas notícias, eles ouviram
informações, vindas dos Países Baixos, que o imperador Carlos V, com
grande precaução para manter suas medidas encobertas, tinha dado
ordens para que tropas fossem organizadas ali e em outras partes de
seus domínios. E uma vez que ele não estava em guerra nem com
Francisco I e nem com Suleiman, ou qualquer outro poder, qual seria seu
propósito para tais preparativos a não ser a extinção da Liga de
Esmalcalda, bem como das heresias que por tanto tempo abundavam por
toda a Alemanha?
***
O PAPA REVELA O SEGREDO DAS TREVAS
O segredo agora já era do conhecimento de muitos. Tanto os oficiais
quanto os aliados de Carlos V não mantinham nenhum mistério sobre o
que estava sendo planejado. Pelo contrário, eles falavam abertamente
acerca das intenções do imperador. O papa, transbordando de alegria,
agora anunciava os planos funestos a todos, não tendo dúvidas que o
processo de guerra estava desencadeado. Assim como havia acontecido
nos dias de Inocêncio III, proclamou em alta voz uma cruzada contra os
hereges alemães, exortando os fiéis a pegarem suas armas para
defenderem a santa causa e prometeu a todos amplas indulgências. De
acordo com o Dr. Robertson, “o papa estava orgulhoso de ter sido o autor
de uma liga tão formidável contra a heresia luterana. Ele estava feliz em
pensar que a glória da extirpação da heresia protestante estava
reservada ao seu pontificado. Ele publicou os artigos de seu tratado com
o imperador, visando demonstrar a santa intenção da aliança feita entre
ele e o imperador, bem como para demonstrar seu zelo para com a igreja.
Foi esse zelo que o levou a se empenhar através dessas medidas
extraordinárias, visando manter a fé e a pureza da igreja de Roma. Não
satisfeito com tudo isso, logo em seguida ele publicou uma bula,
contendo as mais liberais promessas de indulgências a todos que se
engajassem nessa santa empreitada. Juntamente com tais promessas, o
papa exortou calorosamente a todos aqueles que, não podendo tomar
parte na luta pessoalmente, aumentassem o fervor de suas orações, a
severidade de suas mortificações, de tal maneira que pudessem atrair a
benção dos céus sobre todos aqueles que estavam dispostos a ir aos
campos de batalha”.4
O papa, que esperava poder gloriar-se em que essa guerra não tinha
outro objetivo a não ser a defesa da antiga fé, estava profundamente
irritado pela atitude de Carlos V, que tentava fazer tudo aquilo parecer
apenas uma disputa política. Então ele expôs de forma traiçoeira a
política do imperador, e declarou que a derrocada* do luteranismo estava
próxima. O imperador, constrangido por aquela revelação e não menos
ofendido pela indiscrição e malícia do papa, deu continuidade a seus
próprios planos, reafirmando que suas intenções eram apenas as
mesmas que ele havia afirmado anteriormente. Assim, as duas cabeças
da cristandade — a fonte da verdade e a fonte de honra, como eram
chamadas — estavam proclamando para todos que não existia nem
verdade nem honra em nenhuma das duas. E é dessa maneira que eles
permanecem diante de toda a posteridade, até a última geração: os dois
formavam uma composição de bruxaria, falsidade, hipocrisia e crueldade.
Todavia, os artifícios de Carlos V já não convenciam todos os
confederados protestantes. Alguns deles percebiam claramente que o
imperador estava se armando para suprimir a Reforma Protestante e
extinguir as liberdades do povo alemão. Por esse motivo, eles
determinaram que fossem feitos preparativos para se defenderem, ao
mesmo tempo em que se mantinham firmes às suas liberdades
religiosas, não abandonando os direitos civis que haviam sido
transmitidos a eles por seus ancestrais. Uma delegação dos
confederados foi enviada ao imperador para indagar acerca dos
preparativos militares que estavam sendo realizados sob seu comando, e
com qual propósito, e contra qual inimigo. Naquele momento, os fatos já
haviam se tornado tão notórios que o imperador não pôde mais esconder
suas intenções. Contudo, ele admitiu apenas parte da verdade. Ele
admitiu que era a Alemanha que tinha em vista ao fazer tais preparativos,
mas afirmou que seu único objetivo era manter os direitos e as
prerrogativas da dignidade imperial. Seu propósito não era ferir ninguém
por causa da sua posição religiosa, mas que sua intenção era apenas
punir certos príncipes rebeldes e preservar a antiga constituição do
Império de ser obstruída ou dissolvida por uma conduta imoral e
inaceitável. Apesar do imperador não citar os nomes contra os quais ele
estava dirigindo suas atitudes vingativas, todos sabiam que ele tinha em
mente João Frederico, o Eleitor da Saxônia e Filipe, o landgrave de
Hesse.
Os que conheciam o caráter do imperador perceberam claramente o
engano que estava contido nas palavras deste. Contudo, os tímidos e os
indecisos se deram por satisfeitos e se apaziguaram. O que o imperador
fez, foi supri-los com uma desculpa para a inatividade. Eles disseram:
“Vemos que a guerra não diz respeito à religião e sim meramente a uma
disputa entre o imperador e alguns membros da Liga de Esmalcalda”.
Essa foi a grande habilidade demonstrada pelo imperador, a qual ele
usou para causar uma divisão nos sentimentos dos confederados. Com
isso, ele ganhou tempo bem como outras sólidas vantagens.
***
O EXÉRCITO DOS CONFEDERADOS
Logo depois destes fatos, os mais determinados dos confederados se
encontraram na cidade de Ulm para decidirem as direções necessárias
que deveriam adotar em seus procedimentos futuros. Foi resolvido que
eles deveriam repelir a força pela força, e fazer vigorosas preparações
para a guerra. Eles também decidiram que, tendo negligenciado por tanto
tempo o fortalecimento de si próprios através de alianças com países
estrangeiros, deveriam agora buscar fazer acordos com os venezianos,
os suíços e os reis da França e da Inglaterra. É uma pena percebermos
que em menos de trinta anos, os líderes da Reforma Protestante
abandonaram a base divina e os princípios que adotaram no início e que
os conduziram aos grandes triunfos em Worms e Augsburgo — isso para
não falarmos do claro ensino da Palavra de Deus — para se aliarem a
homens tais como Henrique VIII da Inglaterra e Francisco I da França.
Não iremos demorar muito para ver as tristes consequências dessas
malfadadas decisões.
As negociações com as Cortes estrangeiras para formar uma aliança,
foram todas mal sucedidas. Além disso, alguns príncipes evangélicos,
como Maurício da Saxônia e os poderosos príncipes Eleitores de
Brandemburgo e do Palatinado, declararam que permaneceriam neutros.
Mesmo assim, os chefes protestantes não tiveram grandes dificuldades
em arregimentar e trazer para o campo de batalha uma força
considerável. As instituições feudais, que subsistiam em plena força
durante aquele período na Alemanha, autorizaram os nobres a convocar
seus inúmeros vassalos, mobilizando-os num período extremamente
curto. “Em poucas semanas”, nos diz o historiador de Carlos V, “os
líderes protestantes foram capazes de reunir um exército composto de
setenta mil soldados de infantaria e quinze mil de cavalaria. Além disso,
juntaram cento e vinte canhões, oitocentas carroças com munição, oito
mil bestas de carga, além de seis mil homens em um grupamento de
engenharia. Esse exército, um dos mais numerosos e sem dúvida o
melhor preparado de todos os que já haviam existido na Europa durante
aquele século, não exigiu o esforço unido de todos os protestantes para
ser levantado. O Eleitor da Saxônia, o landgrave de Hesse, o duque de
Wurttemberg, os príncipes de Anhalt e as cidades imperiais de
Augsburgo, Ulm e Estrasburgo, foram os únicos poderes que
contribuíram para esse grande exército. Os Eleitores de Colônia, de
Brandemburgo, o conde Palatino e muitos outros, intimidados pelas
ameaças do imperador ou enganados por suas palavras sutis,
permaneceram neutros.”
O número das tropas, bem como a impressionante rapidez com que as
mesmas foram reunidas, surpreendeu o imperador, enchendo-o das mais
inquietantes apreensões. De fato, ele não estava em condições de resistir
a uma força tão poderosa. Isolado em Ratisbona, com um exército de
pouco mais de dez mil soldados, o imperador aguardava tropas de
reforço que deveriam vir da Hungria, Itália, dos Países baixos e outros
lugares. Ele se sentia completamente vencido pela aproximação de um
exército tão formidável, o qual ele não podia combater e nem mesmo
tinha esperança de conseguir recuar em segurança. Felizmente para
Carlos V, os confederados, hesitantes, não aproveitaram as vantagens
que se encontravam diante deles, nem seguiram o conselho do valoroso
guerreiro Sebastian Schertlin. O tempo precioso foi desperdiçado
escrevendo uma carta ao imperador e um manifesto para todos os
habitantes da Alemanha. Mesmo enfraquecido e em grande perigo diante
da situação, ainda assim o imperador assumiu um ar de altivez inflexível,
algo que lhe era característico. Sua única resposta à carta enviada pelos
protestantes foi publicar um banimento do império contra o Eleitor da
Saxônia e o landgrave de Hesse, que eram os líderes dos protestantes,
bem como todos os que ousassem ajudá-los. Por meio dessa sentença,
eles foram declarados rebeldes e fora da lei, e privados de todos os
privilégios que desfrutavam como membros do Império Germânico. Além
disso, o imperador decretou que não era apenas legal, mas inclusive
meritório invadir o território desses indivíduos. Uma sentença tão
importante quanto essa, de acordo com a jurisprudência germânica,
requeria a autoridade de uma Dieta do Império, mas Carlos V ignorou tal
formalidade e assumiu o poder centrado em sua própria pessoa.
Os confederados, percebendo agora que todas as esperanças de
alcançarem algum tipo de acomodação estavam esgotadas, declararam
solenemente guerra contra Carlos V, a quem eles não mais atribuíam
qualquer outro título senão o de pretenso imperador. Ao mesmo tempo,
eles renunciaram toda lealdade para com ele. Mas agora que o momento
para a guerra havia chegado, a Liga estava desunida e despreparada. O
supremo comando do exército havia sido entregue pela Liga ao Eleitor e
ao landgrave, os quais tinham o mesmo poder. Isso provou ser
desastroso desde o primeiro momento. O temperamento natural e a
disposição dos dois príncipes eram completamente diferentes. O Eleitor
era vagaroso, indeciso e cauteloso; ao passo que o landgrave era ágil,
empreendedor, de decisões rápidas e belicoso*. Mas se Filipe era o
melhor soldado, João era o príncipe mais importante. E de que maneira
um landgrave poderia dar ordens a um Eleitor? Todos os inconvenientes
decorrentes de uma autoridade dividida foram imediatamente sentidos.
Muito tempo foi desperdiçado, as dissensões se multiplicaram e com isso
todo o valente exército sofreu. Enquanto isso, o imperador havia
transferido seu acampamento para os territórios do duque da Bavária, um
príncipe neutro, deixando apenas uma pequena guarnição em Ratisbona.
Mais alguns dias foram perdidos pelos protestantes, deliberando se
deveriam perseguir o imperador ou atacar Ratisbona. A essa altura, o
exército imperial já somava trinta e seis mil homens. E, através de
deserções covardes, o exército protestante se viu reduzido a quarenta e
sete mil.
***
AS PRIMEIRAS OPERAÇÕES DE GUERRA DOS PROTESTANTES
Como os confederados foram incapazes de impedir que as tropas
espanholas, italianas e outras se juntassem ao exercito imperial, Carlos V
pôde mandar reforços para a guarnição de Ratisbona, em uma
quantidade suficiente, que fez com que os protestantes renunciassem a
qualquer esperança de conquistar a cidade. Com isso, eles resolveram
marchar em direção a Ingolstadt, que ficava às margens do rio Danúbio,
próximo de onde o imperador Carlos V estava acampado. De acordo com
o historiador Dr. Robertson, “os protestantes reclamaram em alta voz
contra a notória violação das leis e da constituição por parte do
imperador. Isso se devia ao fato dele ter chamado tropas estrangeiras
para devastarem os campos alemães e oprimirem a liberdade do povo
alemão. Todos os protestantes chegaram a acreditar que o papa, não
satisfeito em atacá-los abertamente mediante o uso da força das armas,
também havia dispersado seus emissários sobre toda a Alemanha, para
que incendiassem as cidades e os depósitos, além de envenenarem os
poços e as fontes de água. Esses rumores foram confirmados, em certo
sentido, pelo comportamento das tropas papais, as quais imaginavam
que nada era rigoroso demais como castigo sobre os hereges que
haviam sido amaldiçoados pela igreja. Esses soldados foram culpados de
grandes excessos cometidos contra a população nos Estados luteranos,
e por terem agravado as misérias da guerra, misturando as mesmas com
um zelo cruel e hipócrita”.
Com os ânimos exasperados pelas notícias de tão grandes crueldades,
nós poderíamos esperar que uma energia correspondente fosse colocada
em prática, para fazer com que tais calamidades cessassem. A
campanha militar poderia ter sido encerrada logo no seu início, caso os
líderes protestantes tivessem permanecido unidos e firmes. Quando eles
chegaram a Ingolstadt, encontraram o imperador em um acampamento
nada impressionante no que diz respeito à força militar. Havia apenas um
pequeno exército e o mesmo estava circundado por uma pequena
trincheira. Mas, desde o começo, o grande objetivo do imperador era
evitar a guerra, esgotar a paciência dos confederados, induzi-los a se
separarem; assim, a vitória imperial sobre cada príncipe, individualmente,
poderia ser assegurada.
Diante de Ingolstadt havia uma planície muito extensa, que permitia a
distribuição de um numeroso exército e a utilização de todas as unidades
de uma só vez. Nenhum exército gozou de uma posição mais favorável
do que aquela que estava sendo experimentada pelas forças
protestantes. Os soldados estavam cheios de ardor e ansiosos de lançar
mão da oportunidade de atacar o imperador. Mas infelizmente, devido a
fraqueza e o desacordo de seus líderes, a vantagem foi desperdiçada, e
não somente isso, foi perdida para sempre. “O landgrave insistia que todo
o comando deveria ser concedido a ele, pois ele terminaria com a guerra
naquela ocasião, decidindo assim, por uma ação geral, o futuro dos dois
partidos. Mas, por outro lado, o Eleitor insistia em falar da disciplina das
forças inimigas, da presença do imperador, da experiência de seus
oficiais e como tudo isso transformava a situação em uma aventura
insegura.” Enquanto os líderes protestantes estavam debatendo se
deveriam ou não atacar o imperador de surpresa, o reforço imperial
chegou e a oportunidade se perdeu.
Mas, apesar da grande vacilação, por fim decidiram avançar, em
formação de batalha, em direção ao campo inimigo. O propósito era atrair
os soldados imperiais para fora de suas trincheiras. Todavia, o imperador
era sábio demais para cair nessa armadilha. Ele estava lutando em seu
próprio território e com suas próprias armas. Portanto, ele era um inimigo
incomparável diante de todos os protestantes da Alemanha, os quais
estavam em um fundamento errado, lutando com armas carnais e não
com armas espirituais. Eles abriram fogo e continuaram disparando por
horas sobre o exército imperial, mas o imperador se mantinha firme em
seu sistema, com uma constância inflexível. Ele manteve seus soldados
por trás das trincheiras e restringiu quaisquer excursões ou escaramuças
que pudessem provocar um conflito generalizado. O imperador também
cavalgou por trás das suas linhas, dirigindo-se às tropas de diferentes
nações em seus próprios idiomas, encorajando-os não apenas por suas
palavras, mas pela alegria em sua voz e semblante. Em muitas ocasiões,
o imperador se expôs em posições de maior perigo, em meio ao fogo da
artilharia inimiga. A noite caiu e, não vendo nenhuma perspectiva de
atrair os inimigos para uma luta em campo aberto, os confederados se
retiraram para o seu próprio acampamento.
O tempo desperdiçado foi utilizado com grande diligência pelo
imperador para fortalecer suas frentes de batalha. Mas os confederados
protestantes, vendo que haviam perdido sua grande oportunidade,
voltaram suas atenções para a tentativa de impedir a chegada de um
poderoso reforço vindo dos Países Baixos. Todavia, tudo isso foi inútil.
Quando o exército flamenco chegou, o imperador começou a agir de
modo mais ofensivo, mas, com grande sagacidade, ainda evitava a
batalha. O imperador previa que a discórdia e a necessidade financeira
iriam obrigar os confederados a se dispersarem por todas as partes. E,
aguardando esses acontecimentos, ele ficou observando o cenário com
grande paciência. Os dois exércitos estiveram no campo desde a metade
do verão até o final do outono, e pouco havia sido alcançado — nada
havia sido ganho por nenhum dos dois lados. De repente, um fato
inesperado decidiu a disputa, ocasionando um revés fatal para todos os
protestantes. Esse evento preparou o caminho para a tragédia que
seguiu-se.
***
A TRAIÇÃO DE MAURÍCIO
Maurício era filho de Henrique, e sucedeu seu pai no governo de parte
da Saxônia, que pertencia à chamada linha albertina5.
“Naquela ocasião, esse jovem príncipe tinha apenas vinte anos, mas
mesmo nesse período inicial, começou a descobrir que tinha grandes
talentos que o qualificavam para intervir de maneira relevante nos
acontecimentos que envolviam toda a Alemanha. Assim que assumiu um
cargo na administração, ele passou a adotar uma postura singular, que
demonstrava seu grande interesse em, desde o princípio, alcançar uma
posição incomum e de grande destaque.”6
Ele professava ser um zeloso protestante, mas tinha objeções quanto a
se unir a Liga de Esmalcalda, sob a alegação que os princípios da
mesma não estavam suficientemente baseados nas Escrituras. Ele
declarou sua determinação em manter a pureza da religião, mas não
queria intrometer-se nos interesses políticos ou acordos que a mesma
havia dado origem. Tal era a duplicidade consumada e a política satânica
desse jovem. Durante muito tempo, ele avaliou os dois lados com grande
sagacidade política, e conseguiu antever que a vitória, provavelmente, no
final caberia ao imperador. Por esse motivo, ele passou a confiar
irrestritamente no imperador e, ao mesmo tempo, buscou o favor do
mesmo através de todos os meios possíveis, bem como do irmão do
imperador, Fernando.
Na Dieta de Ratisbona, no mês de maio de 1541, Maurício assinou um
tratado com o imperador, no qual ele se comprometia a auxiliar Carlos V
como fiel súdito. Por sua vez, o imperador lhe deu em troca, todos os
despojos do Eleitor, seus títulos bem como seus territórios. O Eleitor não
tinha a menor suspeita que seu jovem parente e vizinho estivesse lhe
traindo daquela forma cruel. Por esse motivo, ele tratou o jovem com
muito carinho e, ao partir para se unir com as tropas confederadas,
entregou a administração de seus domínios à proteção desse príncipe.
Esse, por sua vez, representando um papel de maneira magistral,
aparentando profunda admiração e amizade pelo Eleitor, aceitou a
responsabilidade. Agora o plano estava completo, e o imperador enviou a
Maurício uma cópia do decreto imperial, que denunciava e bania tanto o
Eleitor quanto o landgrave. Com esse documento, o imperador requeria
de Maurício sua total lealdade e o cumprimento do dever assumido com o
líder supremo do Império. Ele deveria dominar e controlar imediatamente
todos os territórios que haviam sido tirados das mãos do Eleitor.
Esse artifício, que fez a invasão parecer uma necessidade e não uma
escolha, era um fino véu para cobrir o a traição de ambos. Depois que
algumas formalidades foram observadas, para dar uma aparência
especial à sua relutância, Maurício marchou com seus exércitos para os
territórios de seus parentes e, com a ajuda de Fernando, atacou e
derrotou as tropas do Eleitor, assumindo a plena administração de toda a
região.
***
A DISSOLUÇÃO DA LIGA PROTESTANTE
Quando as novas dessas rápidas conquistas chegaram ao bom Eleitor,
ele ficou consternado e cheio de indignação. Ele resolveu retornar
imediatamente para seu lar com suas tropas e defender sua amada
Saxônia. Não foi uma decisão fácil, porque o Eleitor não queria deixar o
campo de batalha, uma vez que preferia o sucesso da causa comum à
segurança de seus próprios domínios. Todavia, os sofrimentos e as
reclamações de seus súditos aumentaram tanto, que ele tornou-se
impaciente diante da necessidade de socorrê-los frente à opressão de
Maurício e das crueldades praticadas pelos soldados húngaros, que
estavam acostumados, por causa da guerra contra os turcos, a
praticarem os mais terríveis tipos agressões. Graças aos seus esforços,
ele conseguiu libertar novamente a Saxônia. Esse foi o golpe fatal para a
Liga de Esmalcalda. O plano havia sido traçado com tanta sutileza e foi
tão bem sucedido, que atendeu aos desejos do imperador.
Após a partida do Eleitor, a Liga foi desfeita, e os príncipes, uma vez
divididos, se tornaram presa fácil do imperador. A confederação, outrora
tão poderosa a ponto de abalar o trono imperial e ameaçar expulsar
Carlos da Alemanha, caiu aos pedaços e foi dissolvida em poucas
semanas. Quão fraco e vazio é tudo se Deus não está presente com Sua
força! Carlos percebeu sua oportunidade e, com seu exército,
rapidamente impediu que os príncipes, consternados, voltassem a se
unir. Com exceção do Eleitor e do landgrave, quase todos os príncipes
protestantes e seus Estados submeteram-se e imploraram, da maneira
mais humilhante, o perdão do católico Carlos V. Como o imperador se
encontrava em grandes dificuldades financeiras, ele impôs pesadas
multas sobre seus inimigos, às quais ele fez questão de cobrar até o
último centavo.7
Com exceção do landgrave e do Eleitor, foram poucos os membros da
Liga protestante que permaneceram armados. Quanto aos dois líderes do
movimento, há muito tempo o imperador já os havia marcado como
objetos de sua vingança pessoal. Por esse motivo, ele não estava
disposto a propor a nenhum deles qualquer termo de reconciliação. Por
algum tempo, circunstâncias diversas impediram o ataque, mas Carlos,
apreensivo em relação a uma nova guerra contra a França, ficou aliviado
com a morte de seu grande rival, Francisco I, e resolveu marchar com
seus exércitos contra o Eleitor, que mal havia conseguido recuperar todos
os seus domínios que se encontravam nas mãos do traidor Maurício.
Na primavera de 1547, houve grandes batalhas entre o exército do
imperador e do Eleitor, nas localidades de Muhlberg, às margens do rio
Elba, bem como em Mulhausen. O Eleitor foi ferido, derrotado e feito
prisioneiro, o que praticamente encerrou a guerra. A batalha decisiva
custou a perda de apenas cinquenta homens às tropas imperiais. Por
outro lado, mil e duzentos saxões foram mortos e um grande número
deles feitos prisioneiros. Maurício, como recompensa pela sua traição, foi
imediatamente empossado como senhor de todos os domínios do Eleitor
da Saxônia. A cidade de Gota, e os pequenos territórios anexos à
mesma, foram cedidos à família do Eleitor. Enquanto isso, o próprio
Eleitor deveria permanecer em prisão perpétua do Império.
O landgrave era o único que mantinha um exército agora, e não estava
nem um pouco inclinado a se render. Mas Maurício, que era seu genro,
conseguiu convencê-lo a se submeter, assegurando-lhe que tanto ele
quanto o Eleitor de Brandemburgo tinham a palavra do imperador
garantindo sua liberdade. Mas em tudo isso, Filipe foi cruelmente
enganado. Há muitas razões para acreditar que esses dois nobres,
enquanto agiam como mediadores, foram enganados pelo pérfido Carlos
V. O objetivo do imperador era prender Filipe, de tal maneira que o
mesmo estivesse completamente à sua mercê. Mas, apesar das
garantias e das palavras de confiança transmitidas por Maurício e pelo
Eleitor de Brandemburgo, o landgrave suspeitava das intenções do
imperador e se recusou a comparecer diante de sua Corte. Sua
relutância, todavia, foi por fim vencida pela ação dos dois príncipes que
assinaram um documento, no qual comprometiam suas próprias vidas em
troca da liberdade da vida do landgrave. Tendo suas dúvidas removidas
por esses atos, ele compareceu diante do imperador no acampamento
localizado em Halle, na Saxônia.
Carlos V, que havia assumido uma postura arrogante e o tom imperial
de um conquistador, estava assentado em um magnífico trono, com
todos os símbolos de sua dignidade e cercado por um grande número de
príncipes do império. O landgrave foi introduzido com grande solenidade
e, avançando em direção ao trono, caiu de joelhos diante do mesmo. Os
olhos de todos os presentes estavam fixos no infeliz landgrave — o mais
popular de todos os príncipes protestantes da Alemanha. “Poucos podiam
ver um príncipe”, nos diz Robertson, “tão poderoso e tão forte de espírito,
implorando misericórdia e assumindo a postura de um suplicante, sem
sentirem-se tocados com grande compaixão; ao mesmo tempo em que
refletiam seriamente sobre a instabilidade e a vaidade da grandeza
humana.” Mas, havia um coração que permanecia indiferente àquela
cena tão tocante: era o coração insensível do espanhol, vendo toda a
Alemanha prostrada a seus pés. Ele contemplava toda aquela cena com
a mais fria indiferença. O imperador insistia em uma submissão
incondicional. “Foi exigido de Filipe que entregasse sua própria pessoa e
todos os seus territórios ao imperador. Que implorasse de joelhos o
perdão do imperador e que pagasse cento e cinquenta mil coroas para
cobrir as despesas com a guerra. Além disso, o landgrave deveria
demolir as fortificações de todas as cidades sob seu domínio, com
exceção de uma apenas. Também deveria obrigar a guarnição, que seria
colocada nessa cidade fortificada, a fazer um juramento de fidelidade ao
imperador.” O landgrave, estando completamente a mercê do imperador,
confirmou estar de acordo com todas essas exigências e confessou sua
culpa em todos esses eventos. Depois se levantou e avançou em direção
ao imperador com a intenção de beijar-lhe a mão, mas Carlos V recusou,
virando-se abruptamente, sem conceder ao príncipe caído qualquer sinal
de compaixão ou reconciliação.
O landgrave Filipe teve a permissão de se retirar, aparentemente em
liberdade, junto com seus amigos Maurício e o Eleitor de Brandemburgo.
Os três foram recebidos pelo duque de Alba e tratados com grande
respeito e cortesia. Mas depois do jantar, quando o duque se levantou
para ir embora, ele comunica as ordens que havia recebido de prender o
landgrave Filipe. O infeliz príncipe ficou completamente mudo. Seu
coração foi acometido de profunda tristeza. Em seguida, em um acesso
de raiva, lançou mão de expressões violentas, que falavam da injustiça e
dos artifícios traiçoeiros do imperador que haviam sido provocadas por
todas aquelas circunstâncias. Porém, foi tudo em vão. Maurício e o
Eleitor demonstraram profundo descontentamento e recorreram a
argumentos, súplicas e apelos, visando livrar o desafortunado príncipe da
situação de grande ignomínia na qual se encontrava pela traição do
imperador. Empenhando suas próprias honras e títulos, eles imploraram a
favor do landgrave, para que o mesmo fosse posto em liberdade.
Todavia, o duque de Alba manteve-se inflexível. Filipe era seu prisioneiro
e foi colocado sob a custódia de guardas espanhóis. O landgrave foi
libertado pelo imperador somente depois de cinco anos, quando os
assuntos de Carlos V sofreram um reverso total. Essa nova situação
também introduziu uma nova época na história da Reforma Protestante.
***
OS ALEMÃES SÃO TRATADOS COMO UM POVO CONQUISTADO
A vitória do imperador agora estava completa. Ele era o senhor de toda
a Alemanha. Ao tomar posse da cidade de Wittenberg, ele visitou o
túmulo de Lutero. Enquanto olhava em silêncio o tranquilo local do
último descanso do monge — que havia agitado e levado toda a Europa a
se revoltar, desafiando tanto o papa quanto o poder imperial —, os
espanhóis o instigaram a destruir o monumento do herege e desenterrar
seus ossos. Todavia, o imperador Carlos V respondeu de forma nobre:
“Eu não tenho mais nada que ver com Lutero. Ele se foi para a presença
de outro juiz, cuja província nós não devemos invadir. Eu faço guerra com
aqueles que estão vivos, e não com os mortos”. Mas quão diferentes
foram seus sentimentos ao voltar-se da memória do homem de fé, para
aqueles que haviam pegado em armas e se rebelaram contra ele! Os dois
príncipes, Frederico e Filipe, acompanhavam a comitiva do rei e eram
exibidos nas marchas triunfais, de cidade em cidade, e conduzidos de
prisão em prisão. O imperador tinha prazer em exibi-los como um
espetáculo público aos seus antigos súditos, seus familiares e amigos.
Essa foi uma humilhação muito amarga para o povo alemão. Profundas
reclamações surgiram de todos os cantos do país contra essa forma
abusiva de manifestação de poder e contra o cruel tratamento que dois
dos mais ilustres príncipes da Alemanha estavam recebendo.
Mas o dia da adversidade trouxe à luz o verdadeiro caráter desses
dois homens públicos. Frederico, que era um verdadeiro cristão, aceitou a
aflição como vinda da mão do Senhor e submeteu-se à mesma. Ele tinha
seus olhos fixos para além das causas imediatas. Frederico abandonou o
espírito de guerreiro e abraçou o de um mártir cristão. Todos os
historiadores concordam em atribuir ao príncipe os maiores louvores por
sua mansidão, paciência e conduta cristã. Até mesmo o historiador
católico romano, Thuanus, disse acerca dele: “Diante de todos os
homens, o príncipe revelou um espírito superior a todas as adversidades
através da constância de sua mente”.
Entretanto, a conduta do landgrave foi completamente oposta a do
Eleitor. Nós tivemos a oportunidade de vê-lo professar a religião cristã, e
falamos acerca de seu zelo buscando a união dos cristãos na
Conferência de Marburgo. Todavia, “no dia da adversidade” sua força não
foi suficiente. Sua impaciência era tal diante dos sofrimentos que estava
experimentando que, com o intuito de obter sua liberdade, ele ofereceu
voluntariamente entregar não apenas seus títulos, mas também abrir mão
de seus princípios religiosos. Ele nunca julgou a si mesmo, nem seu
comportamento, como se estivesse sempre na presença de Deus. Por
esse motivo, ele era incapaz de ver a soberana mão de Deus agindo em
seu sofrimento. Nesses dois homens, podemos ver uma clara ilustração
da grande diferença entre uma mera forma de religião (mesmo quando
acompanhada de uma mente ativa e estimulante) e a fé no Senhor Jesus
Cristo, que passa a controlar o coração humano. O dia da provação é o
que descortina diante dos nossos olhos essa diferença essencial. Um se
lamenta por causa da vergonhosa traição que o privou de sua liberdade e
pela injustiça pela qual ele continua prisioneiro, até ser levado a ponto de
verdadeira loucura. O outro não é insensível a todas essas desumanas
crueldades com as quais tem sido tratado, mas ele confessa seu próprio
erro, confia na sábia e toda poderosa providência para todas as coisas,
espera em Deus, renova suas forças e se fortalece cada vez mais, dia a
dia, até que, pela graça divina, ele pode se alegrar até mesmo nas suas
cadeias. O verdadeiro cristão experimenta a doce presença de Deus em
sua vida, mesmo em meio a grandes dificuldades, e sabe que tudo
resultará numa brilhante coroa, que receberá quando chegar ao céu.
Agora precisamos voltar nossa atenção às ações públicas do
imperador.
Logo depois, muitos dos outros príncipes tiveram a oportunidade de
sentir o poder opressor do imperador, mas de um modo diferente. Carlos
V deu ordens às suas tropas para confiscarem todas as peças de
artilharia e estoques militares que pertenciam aos príncipes que haviam
sido membros da Liga de Esmalcalda. E, “tendo ajuntado mais de
quinhentos canhões, que representavam um número muito importante
naqueles dias, ele despachou parte dos mesmos para os Países Baixos,
parte para a Itália e parte para a Espanha. Seu objetivo, ao fazer essa
distribuição, era espalhar a fama de seus sucessos e vitórias. Os
mesmos deveriam servir como monumentos ao fato que havia
conseguido conquistar uma nação que, até aqueles dias, era considerada
invencível. Em seguida, ele impôs pesadas taxas baseado unicamente
em sua autoridade, até mesmo sobre todos aqueles que haviam lhe
servido com fidelidade durante a guerra, bem como sobre todos os que
tinham pegado em armas contra ele. Através desses impostos, ele juntou
a imensa fortuna de um milhão e seiscentas mil coroas. Essa soma era
extremamente pródiga para o século XVI”.8
Os alemães, naturalmente zelosos de seus privilégios, sentiram-se
profundamente alarmados diante de tamanha manifestação de poder,
mas eles se encontravam tão consternados, que se sentiram obrigados a
obedecer às ordens do arrogante espanhol. Todavia, é importante que se
diga que, ao mesmo tempo, o descontentamento e o ressentimento do
povo alemão havia se tornado universal, e eles estavam prontos a se
rebelarem, na primeira oportunidade, com absoluta violência. Enquanto
Carlos V dava ordens aos alemães como um povo conquistado, seu
irmão Fernando exercia o mesmo tipo de despotismo sobre o povo da
Boêmia, despojando-os praticamente todos os privilégios.

1 N. do T. Cidade portuária e capital da Argélia, no norte da África.


2 Para maiores detalhes ver Manual of Councils escrito por Landon; History of
Council of Trent, escrito pelo padre Paulo; História da Igreja de Scott, vol. 2, pp.
256-324; A História de Carlos V, vol. 6, escrita pelo Dr. Robertson.
3 Ver F. Paul, Teckendorf, Sleidan, Abbe Millot, citado pelo Dr. Robertson e Wylie em
History of Protestantism, vol. 2, p. 113.
4 Para maiores detalhes desse período interessante ver A História de Carlos V, vol.
4 do Dr. Robertson´s Collected Writings.
5 N. do T. A Linha Albertina, pertencia à linhagem da dinastia de Habsburgo e foi
iniciada por Alberto III que, depois da morte de seu irmão Rodolfo IV, que era o
fundador, dividiu os territórios de Habsburgo com seu irmão. Alberto era o príncipe
do Ducado da Áustria, enquanto os territórios do sul – o interior da Áustria – eram
governados por seu irmão, Leopoldo III. O filho de Alberto, também era chamado
Alberto, e passou a governar os territórios de seu pai a partir de 1394, como
Alberto IV. Ele veio a falecer em 1404 deixando sua esposa, Joana de Wittelsbach
e um filho, Alberto V, que se tornou rei dos romanos, rei da Boêmia e da Hungria.
Alberto V tinha se casado com Isabel, filha de Sigismundo de Luxemburgo, que
era rei da Hungria e da Boêmia. Depois da morte de Sigismundo em 1437, Alberto
V foi coroado como rei de todos esses territórios. Ele veio a falecer no ano
seguinte ao da sua coroação.
6 Dr. Robertson, vol. 6, p. 22.
7 Dr. Robertson, History, book 8.
8 Robertson, livro 9, p. 178.

Capítulo 47
O PERÍODO “INTERINO”

Agora o imperador era pleno senhor sobre toda a situação. Pensando ter
subjugado o independente e teimoso espírito do povo alemão, Carlos V
convocou uma Dieta para se reunir em Augsburgo. Nessa Dieta, ele
exigia que os protestantes submetessem suas dissensões religiosas, que
haviam levantado na Alemanha, às decisões do Concílio de Trento. A
cidade de Augsburgo, bem como a assembleia ali reunida, estavam
completamente cercadas pelas vitoriosas tropas do imperador. Sem
dúvida, o propósito de tal demonstração de força era alcançar a
submissão dos protestantes aos desejos do orgulhoso imperador. Carlos
V imediatamente tomou posse da catedral e de algumas igrejas e, após
as mesmas terem sido devidamente purificadas, foram restauradas à
adoração papal. Mas ele mal havia dado início a esses procedimentos
quando soube, para seu profundo desgosto, que o papa havia transferido
o local do Concílio, de Trento para Bolonha.
Naturalmente, o grande sucesso e ascensão de Carlos na Alemanha
despertaram o medo e a inveja do pontífice romano. Ele antecipou que o
poder do imperador naquele país teria grande influência sobre as
decisões do Concílio, e que o mesmo até poderia se utilizar do Concílio
para limitar o poder ou até mesmo abolir a autoridade papal. Por esse
motivo, o papa abraçou a primeira oportunidade que teve para retirar
suas tropas do exército imperial e mudar o Concílio para Bolonha, uma
cidade controlada pelo próprio papa.
Tal mudança sofreu enérgica oposição por parte do imperador e de
todos os bispos cujos interesses políticos se alinhavam aos de Carlos V.
O imperador permaneceu na cidade de Trento, enquanto os bispos
espanhóis e napolitanos acompanharam os legados até a cidade de
Bolonha. Dessa maneira, uma cisão* teve início naquela assembleia, que
havia sido convocada para sanar todas as divisões da cristandade. Essa
polêmica causou o adiamento indefinido do Concílio. Nenhum meio foi
encontrado para restaurar as atividades do Concílio de Trento, até que o
papa Júlio III sucedeu ao papa Paulo III no trono do Vaticano, no ano de
1550. Todavia, naquele ano todas as intenções do imperador Carlos V já
haviam sido dissipadas.
Como a perspectiva de um Concílio geral se encontrava agora mais
distante do que nunca, o imperador, em sua devotada preocupação pelas
dissensões religiosas de seus súditos do norte, achou por bem, nesse
meio tempo, preparar um sistema doutrinário ao qual todos deveriam se
conformar até que um Concílio, nos moldes desejados, pudesse se
reunir. Esse novo credo foi chamado de “Interim”. Esse nome foi criado
por Julius von Pflug, Sidonius e Agrícola. Os dois primeiros eram
dignitários da Igreja Romana, e o último era um teólogo protestante, mas
era considerado um apóstata pelos seus irmãos.
***
O NOVO CREDO
Esse famoso tratado continha um sistema completo da teologia
romana. Todavia, devemos notar que, em sua maior parte, o mesmo
utilizava “palavras suaves ou até mesmo frases das Escrituras, usadas
com cuidadosa ambiguidade”.
Toda doutrina peculiar ao papado foi mantida ou, como resume o
senhor Wylie, “o Interim nos ensinou, entre outras coisas, a supremacia
do papa, o dogma da transubstanciação, o sacrifício da missa, a
invocação dos santos, a confissão auricular, a justificação pelas obras e o
pleno direito concedido à Igreja Romana como única intérprete das
Escrituras Sagradas. Em poucas palavras, podemos dizer que Roma não
fez nem uma concessão sequer. Por engolirem um credo completamente
papista, os protestantes seriam recompensados com dois benefícios
insignificantes: os clérigos que já se encontravam casados, tiveram a
permissão de continuar em seus ofícios sem terem que renunciar às suas
esposas; e onde já estivesse estabelecido o costume de dispensar os
dois elementos da Santa Ceia — o pão e o cálice — tal costume deveria
ser tolerado. Pelos católicos, isso foi chamado de ‘encontrar os
protestantes na metade do caminho’”.1
Este documento, que provocou as mais desoladoras calamidades e
opressões sobre os protestantes, foi submetido pelo imperador à Dieta de
Augsburgo, no dia 15 de maio de 1548. Tendo sido lido na presença da
Dieta, da forma apropriada, o arcebispo de Mainz, sem dar tempo para
qualquer discussão, levantou-se apressadamente, agradeceu ao
imperador por seus devotados esforços para restaurar a paz da igreja e,
em nome da Dieta, declarou a aprovação do sistema de doutrina que
tinham acabado de ouvir. Essa declaração, inesperada e inconstitucional,
surpreendeu a todos na assembleia, mas nenhum de seus membros teve
a coragem suficiente de contradizer o que o arcebispo acabara de
afirmar. Intimidada pelas tropas do imperador que estavam do lado de
fora do local da assembleia, a Dieta permaneceu no mais absoluto
silêncio. Carlos V prontamente aceitou a declaração como uma
ratificação plena daquele período interino, proclamando-o como um
decreto do Império. O mesmo deveria permanecer em vigor até que um
Concílio livre e geral pudesse ser convocado. Todos deveriam se
conformar, sob pena de sofrerem castigos por desacatar a vontade do
imperador. O documento referente ao período interino foi imediatamente
publicado em alemão, bem como na língua latina.
***
O PERÍODO INTERINO SOFRE OPOSIÇÃO DOS PROTESTANTES E DOS
PAPISTAS
O imperador estava orgulhoso do seu novo estratagema* e,
acreditando que estava no caminho certo para a vitória e para a
consumação final de seus planos, promulgou imediatamente o Interim.
Todavia, para sua grande surpresa, ele descobriu que todos os partidos
reclamaram do mesmo com igual veemência. Os protestantes
condenavam o decreto como um sistema que continha os mais grotescos
erros inventados pelo papado. Os papistas condenavam o documento
porque algumas das doutrinas da santa Igreja Católica Romana haviam
sido deixadas de lado de modo ímpio. Entretanto, foi em Roma que a
indignação dos eclesiásticos se manifestou de forma mais agressiva. Eles
reclamaram contra a atitude profana do imperador de invadir os limites do
ofício sacerdotal, e chegaram até mesmo a compará-lo ao apóstata
Henrique VIII da Inglaterra, que havia usurpado não apenas os títulos,
mas também a jurisdição que pertencia ao supremo pontífice.
Entre os príncipes protestantes, havia uma grande diversidade de
sentimentos, cujos detalhes não temos necessidade de discutir aqui.
Alguns cederam, fingindo submissão, mas outros, por sua vez,
assumiram uma posição firme e protestaram fielmente contra o
documento. O imperador Carlos V sabia muito bem a grande influência
que o exemplo de seu prisioneiro, Frederico da Saxônia, teria sobre todos
os protestantes. Em função desse fato, ele se empenhou com a maior
dedicação possível para conseguir a aprovação do Eleitor da Saxônia
para o seu plano. Mas o fato é que Frederico não estava disposto a se
deixar mover pela promessa de liberdade nem pelas ameaças de maiores
maus tratos. Ele foi ao encontro do imperador com armas muito mais
poderosas do que todas aquelas que o imperador possuía. Essas armas
eram o poder da consciência e da Palavra de Deus. Esse tipo de atitude
teria feito um grande bem para os protestantes e à causa do
protestantismo se outros tivessem se levantado para se oporem tanto às
ameaças do papa quanto do imperador. Alguns poderiam ter sido
honrados até mesmo com o martírio, mas o país teria sido salvo da
desolação da guerra e a glória moral dos princípios divinos teria sido
estampada de forma indelével sobre a Reforma Protestante.
Depois de ter declarado sua firme crença nas doutrinas protestantes,
Frederico disse: “Eu não posso, na minha velhice, abandonar os
princípios pelos quais lutei desde cedo na minha vida, nem mesmo para
obter a liberdade durante os poucos e declinantes anos que me restam.
Se agir dessa maneira, eu trairia a boa causa pela qual tenho sofrido
tanto e que ainda estou disposto a sofrer. Nessa solidão, é muito melhor
desfrutar a estima de homens virtuosos, juntamente com a aprovação da
minha própria consciência, do que retornar para o mundo acusado e
culpado pelo pecado de apostasia, e assim trazer sobre mim enorme
desgraça e grande amargura para o restante dos meus dias”. Por causa
dessa magnânima resolução, pela qual ele estabeleceu um nobre padrão
para todos os seus compatriotas, o imperador lhe recompensou com
marcas novas de tortura, devido ao desagrado que havia causado ao
mesmo. “O rigor de seu confinamento foi aumentado, o número de seus
servos foi diminuído, os homens do clero luterano, que até então tinham
permissão para ajudá-lo, foram dispensados, e até mesmo os seus
devocionários, que haviam sido seu maior consolo durante o tedioso
período de prisão, lhe foram tirados.”
***
A SUBMISSÃO DE MELANCHTHON
É algo profundamente lamentável que os teólogos de Wittenberg não
tenham testemunhado de modo mais firme a favor da verdade e contra os
estratagemas papais. Em sua fraqueza, o próprio Melanchthon, movido
em parte pelo seu medo do imperador Carlos V e em parte por seu
excessivo desejo de agradar pessoas de altas posições, se empenhou
em buscar um curso intermediário, no qual outros teólogos o seguiram.
Ele introduziu o pernicioso princípio do essencial, não essencial e coisas
indiferentes em questões religiosas. Ele decidiu que o documento do
período interino não poderia ser admitido de maneira alguma; mas não
havia impedimento em receber e aprovar o mesmo nas questões que não
eram essenciais ou indiferentes para a religião. Essa decisão deu origem
a uma série de longas e amargas controvérsias no seio da Igreja
Luterana. Os seguidores genuínos de Lutero não podiam aceitar como
indiferente os ensinamentos e objetivos daquele documento, e se
opuseram ao mesmo com grande fervor, juntamente com os teólogos de
Wittenberg e de Lípsia. Eles acusavam os outros de renunciarem ao
Protestantismo a favor da religião do imperador. Esse princípio dissoluto
tem causado muito mal em todas as igrejas reformadas, desde aqueles
dias e até agora. Ele serve como uma cobertura conveniente para todos
que não têm consciência quanto à autoridade da Palavra de Deus e
desejam apenas satisfazer seus próprios fins. Mas, certamente, nenhuma
parte da verdade divina pode ser considerada nem como indiferente ou
não essencial. O salmista nos diz: “As palavras do SENHOR são palavras
puras, como prata refinada em fornalha de barro, purificada sete vezes”
(Sl 12:6). Quão diferente, dos teólogos, é a estimativa do Espírito quanto
à verdade e no que diz respeito às “palavras de Deus... purificadas sete
vezes”.2
***
A OPOSIÇÃO DAS CIDADES LIVRES
A recepção do Interim nas diferentes províncias dependia
completamente de quão próxima ou quão distante as mesmas se
encontravam do poder imperial. Em todos os lugares onde seu braço não
podia se manifestar com força, o mesmo era enfrentado de forma aberta.
Mas onde o poder imperial era sentido, havia, pelo menos exteriormente,
uma aceitação do mesmo. Entretanto, foi nas cidades livres que o
imperador Carlos encontrou a mais violenta oposição ao seu novo plano.
Foi nessas cidades que a Reforma Protestante tinha alcançado seus
maiores progressos. Era nelas que os mais eminentes teólogos
reformados se estabeleceram como pastores e professores em suas
escolas e seminários com o objetivo de instruir os jovens. Tal empenho
produziu os frutos esperados em cada uma dessas cidades. A princípio,
eles pediram e reclamaram junto ao imperador, porém sem nenhum
efeito, pois Carlos V estava determinado em fazer cumprir, de forma
universal e até as últimas consequências, os odiosos termos desse
documento.
Sua primeira tentativa foi na cidade de Augsburgo. “Ele deu ordens
para que uma parte de suas tropas tomasse o controle dos portões da
cidade. O restante do exército foi distribuído em diferentes locais dentro
da mesma. Depois disso, ele convocou uma assembleia com todos os
representantes do burgo* na prefeitura da cidade, onde, por sua única
autoridade, publicou um decreto abolindo a forma presente de governo da
cidade, bem como todas as suas entidades e fraternidades. Em seguida,
ele nomeou um pequeno número de pessoas às quais concedeu todos os
futuros poderes de governo. Cada uma dessas pessoas escolhidas fez
um juramento para observar o Interim.” A perseguição seguiu-se
imediatamente, pois muitos ainda buscavam manter uma boa consciência
diante de Deus, aderindo à verdade de Sua Palavra. Os pastores
protestantes foram forçados ao exílio ou eram destituídos de seus
próprios lares, sendo desabrigados em sua terra natal. Suas igrejas foram
purificadas da contaminação protestante, e os antigos ritos das missas,
vestimentas, cruzes, altares, velas, imagens, etc., foram restabelecidos.
O imperador também deu ordens para que os habitantes da cidade
fossem obrigados, pelos soldados imperiais, a frequentarem as missas.
“Somente no sul da Alemanha, cerca de quatrocentos pregadores fiéis do
Evangelho fugiram com suas esposas e famílias, e vagaram sem comida
ou abrigo. Outros, que não conseguiram escapar, caíram nas mãos do
inimigo e foram levados acorrentados.” Essa situação continuou por
quase cinco anos, período durante o qual o sofrimento e as calamidades
dos fiéis foram muito além daquelas registradas pelos cronistas, e não
encontram uma descrição apropriada na história da Igreja. Todavia, nós
sabemos que existe Alguém que ouviu cada soluço e viu cada uma das
lágrimas que foram derramadas: “E um memorial foi escrito diante dele,
para os que temeram o SENHOR, e para os que se lembraram do seu
nome. E eles serão meus, diz o SENHOR dos Exércitos; naquele dia serão
para mim joias“ (Ml 3:16-17).
***
UMA NOVA REVIRAVOLTA NA MARÉ DOS ACONTECIMENTOS
O período dos seus sofrimentos, ou melhor, da sua purificação, estava
prestes a ser cumprido, e o dia de sua libertação pela poderosa mão de
Deus estava próximo. Todavia, nada disso foi percebido e nem mesmo
passou pelo pensamento do seu opressor. O imperador imaginava que
suas vitórias tinham sido completas, seus planos consumados, e que
agora ele poderia folgar um pouco das atividades do governo e
experimentar a doçura do descanso e da bonança. Foi com esse
propósito que ele foi até Innsbruck, na região do Tirol, acompanhado
apenas de uma pequena guarnição. Mas alguns já anteviam a
tempestade se formando em várias partes. Em breve, o firmamento do
domínio e da glória do imperador escureceria por completo, deixando o
senhor dos dois mundos sem nenhuma honra e preso em absoluta
solidão numa cela de mosteiro. Aconteceu assim:
Ainda havia quatro cidades notáveis que mantinham uma posição
antagônica à autoridade do imperador. Essas cidades eram: Magdeburgo,
Bremen, Hamburgo e Lübeck. Mas, como a resistência de Magdeburgo é
a única que está diretamente conectada aos eventos que mudaram por
completo a face de toda aquela situação na Alemanha, nós iremos
concentrar nossa atenção apenas nessa cidade.
Na Dieta de Augsburgo, no ano de 1550, foi decidido que um exército
seria mandado contra Magdeburgo para sitiá-la. Através de uma bem
articulada dissimulação de suas verdadeiras intenções, e por um
aparente zelo visando impor a obediência ao Interim, o notório Maurício
da Saxônia se comprometeu em fazer com que a cidade rebelde se
submetesse ao imperador. Essa proposta recebeu a sanção da Dieta e a
plena aprovação do imperador.
A mente de Maurício, bem como a de muitos outros, estava agitada por
profundos pensamentos antes que o mesmo fosse nomeado para a
missão. Os últimos sucessos do imperador Carlos V haviam despertado o
medo em muitos corações e mentes. O Vaticano foi o primeiro a dar o
alarme. O papa se arrependeu de haver contribuído de forma tão ampla
para o crescimento do poder daquele que um dia poderia tornar-se seu
próprio senhor. Carlos V já havia abalado os fundamentos da autoridade
eclesiástica ao presumir que podia definir artigos de fé bem como regular
as formas de adoração. Esforços foram feitos para formar alianças com
poderes estrangeiros para que uma vigorosa resistência pudesse ser
rapidamente oferecida antes que o poder do imperador se tornasse tão
formidável que fosse impossível qualquer tipo de oposição.
Mas agora, estava aparente diante de todos que Carlos V estava
empenhado em exigir uma obediência rígida, em conformidade com as
doutrinas e ritos da Igreja Romana em vez de permitir a liberdade de
consciência, como ele sempre havia prometido. A nação se sentiu
profundamente traída. Antes do início da guerra, eles haviam ouvido vez
após vez, que não estava nos planos do imperador alterar a religião
reformada. Entretanto agora, tanto a religião quanto as liberdades da
Alemanha jaziam aos pés do monarca traiçoeiro. Isso não poderia deixar
de alarmar os príncipes do Império, especialmente Maurício da Saxônia.
O povo costumava se referir a Maurício, de forma satírica, como “Judas”;
todos os seus concidadãos o acusavam de ser o autor daquelas
calamidades. Nessa dolorosa posição, Maurício tomou sua decisão.
Somente uma coisa seria capaz de expiar a traição da Liga de
Esmalcalda — a completa derrota do poder do imperador sobre toda a
Alemanha. E Maurício estava determinado a realizar sua decisão.
De acordo com Robertson, o biógrafo do imperador, “Maurício viu o
terrível jugo que estava sendo preparado para ser imposto sobre seu
país. Além disso, ele percebia que, através do rápido e formidável
progresso do poder imperial, faltavam apenas poucos passos a serem
dados para que Carlos V se transformasse no monarca absoluto da
Alemanha, como ele já havia se tornado sobre toda a Espanha”. Maurício
era um protestante — pelo menos do ponto de vista político —, e, por sua
dignidade eleitoral, o líder de seu partido. Além do mais, suas paixões
concorriam com seu amor pela liberdade. Ele desejava vingar a forma
cruel como o landgrave de Hesse, seu sogro, havia sido aprisionado, o
qual, por insistência do próprio Maurício, havia se colocado
completamente nas mãos do imperador.
Quando ele divulgou seu ousado propósito aos príncipes, eles tiveram
grande dificuldade em acreditar de imediato. Todavia, por fim, estando
convencidos de sua sinceridade, eles prontamente prometeram auxiliá-lo.
Tendo conquistado a confiança do partido protestante, ele pôs em prática
todos os seus recursos da arte da duplicidade para enganar o imperador.
A inveja do imperador Carlos V havia sido excitada ao ouvir da amizade
que o Eleitor Maurício tinha com alguns dos príncipes protestantes. Mas
agora, por seu aparente zelo contra os cidadãos de Magdeburgo, todas
essas suspeitas foram dissipadas, e o imperador foi inspirado com uma
confiança renovada em Maurício. Como general de exército, ele tinha sob
seu comando uma poderosa força. Entretanto, ele manipulou a situação,
adiando o cerco a Magdeburgo até que seus planos estivessem
completamente amadurecidos. Secretamente, Maurício assinou tratados
e formou uma Liga com vários príncipes alemães, além de fazer uma
aliança com o poderoso rei da França, Henrique II, que provou ser o mais
efetivo dos aliados, apesar de ser católico.
***
A REVOLUÇÃO NA ALEMANHA
1552 D.C.
Quando os preparativos de Maurício estavam terminados, ele publicou
um manifesto contendo suas razões para pegar em armas contra o
imperador. As razões alegadas diziam respeito a seu interesse de
garantir a segurança da religião protestante, que estava ameaçada de
uma imediata destruição. Além disso, sua intenção era a manutenção das
leis e da constituição do Império, e também a libertação do landgrave de
Hesse das misérias de um longo e injusto aprisionamento. Com a
primeira proposta, ele fez com que todos os amigos da Reforma
Protestante se levantassem para apoiá-lo, já que se encontravam em
uma desesperada situação devido a opressão sofrida por parte de seus
inimigos. Com a segunda proposta, ele despertou o interesse dos amigos
da liberdade a favor da sua causa — tanto católicos quanto protestantes.
E com a última, ele atraiu para o seu lado toda a simpatia que havia sido
despertada pela injusta prisão do landgrave e pelo rigor com que o
imperador tratou tão nobre príncipe. Ao mesmo tempo, Henrique da
França emitiu um manifesto no qual ele assumia o extraordinário título de
“Protetor das liberdades da Alemanha e de seus príncipes cativos”.
Como havíamos visto, o imperador estava descansando em Innsbruck,
que ficava três dias de viagem da cidade de Trento, observando de perto
os procedimentos do Concílio, que se encontrava novamente reunido
naquela cidade. Maurício, ainda escondendo seus propósitos sob um véu
da mais requintada dissimulação, enviou um mensageiro de confiança
para assegurar ao imperador que o mesmo deveria esperar por sua
chegada a Innsbruck, em poucos dias. Diante da promessa de tamanha
visita amistosa, o imperador manteve-se em grande expectativa diária.
Entrementes, o tempo para a ação havia chegado. A trombeta de guerra
se fez ouvir e, com um bem preparado exército de vinte mil homens de
infantaria e cinco mil cavaleiros, Maurício avançou o mais secretamente
possível, estando determinado a surpreender o imperador e prendê-lo
pessoalmente. As guarnições imperiais, a propósito, não ofereceram
nenhuma resistência, mas as notícias chegaram ao local em que o
imperador se encontrava: toda a Alemanha estava em pé e em marcha
na direção de Innsbruck.
***
A FUGA DO IMPERADOR
Era tarde da noite, uma noite escura; a chuva caía pesadamente. Mas
o perigo se aproximava e nada poderia salvar o imperador senão uma
rápida fuga. Há algum tempo ele sofria de um ataque severo de gota e
não tinha condições de fugir montado em um cavalo. Então ele foi
colocado em uma liteira, que era o único movimento que ele podia
suportar, e viajou durante toda a noite tendo o caminho iluminado por
tochas. Aqueles que o levavam, optaram por seguir pelas estradas dos
Alpes, que eram praticamente intransponíveis. Seus servidores e
atendentes o seguiam de forma precipitada e em grande confusão. Nessa
situação miserável, o ex-conquistador da Alemanha chegou com sua
abatida comitiva no vilarejo de Villach, em um canto remoto da região da
Caríntia3.
Maurício entrou em Innsbruck poucas horas depois do imperador e
seus assistentes terem deixado a mesma. Mas em vez de persegui-los,
ele permitiu que toda a bagagem do imperador, juntamente com a de
seus ministros, fosse saqueada pelos seus soldados. Para o imperador
caído, não restava outra coisa a não ser negociar, ou melhor, submeter-
se aos termos que lhe foram propostos. O imperador indicou seu irmão
Fernando como seu negociador. Maurício da Saxônia, com o apoio de
toda a Alemanha, era senhor absoluto.
***
A PAZ DE PASSAU
No dia 2 de agosto de 1552, o famoso Tratado de Passau foi
concluído. Por esse tratado ficou acertado que o landgrave deveria ser
posto em liberdade e levado em segurança para seus próprios domínios.
Além disso, dentro de seis meses, uma Dieta deveria ser realizada com a
participação de todos os Estados, para deliberar sobre os melhores
meios para dar fim a todas as dissensões religiosas existentes e que,
nesse meio tempo, nenhum tipo de agressão deveria ser praticado contra
aqueles que adotaram a confissão de fé de Augsburgo. Caso a Dieta a
ser convocada não conseguisse estabelecer um ajuste amigável para as
disputas religiosas, o Tratado de Passau passaria então a vigorar de
forma permanente. Dessa maneira, a paz foi restaurada no Império e foi
concedida plena liberdade à fé protestante. Em seguida, veio o
acontecimento que ficou conhecido como o “Paz de Augsburgo”, em
1555, que não apenas ratificou a paz de Passau, mas ampliou as
liberdades religiosas da Alemanha. Foi essa memorável convenção que
deu aos protestantes, depois de muitas mortes, muitas calamidades e
conflitos, uma paz religiosa firme e estável, que eles desfrutam até o dia
de hoje. Infelizmente, o jovem Maurício, que teve um papel tão notável
tanto na derrota quanto no triunfo dos protestantes, caiu no campo de
batalha em menos de um ano após da promulgação da paz de Passau.
Dessa maneira, ele não teve a possibilidade de ver os plenos resultados
de suas ações.4
Todos esses acordos e tratados foram profundamente humilhantes
para a ambição frustrada de Carlos V. Os protestantes, aos quais ele
pretendia esmagar por completo, estavam florescendo através de todo o
Império. Os sacerdotes, que sabiam apenas rezar missas, estavam
sendo dispensados em massa, e os pastores que haviam sido banidos,
trazidos de volta com grande alegria para seus amados rebanhos. O
estimado Frederico, que havia sido levado pelo imperador de um lugar
para outro durante cinco anos, foi conduzido de volta para seu lar, sua
afetuosa família e amigos. Mas para o imperador Carlos V, tudo parecia
apenas um complexo jogo de sombras e cores escuras diante de sua
mente perturbada. Ele nunca teve um coração voltado para a amizade, e
alguns chegaram a dizer que ele nunca fez um amigo sequer durante
toda sua vida. Dessa forma, desgastado, muito cansado e sem nenhum
amigo, o imperador se escondeu nas fortalezas da Caríntia. Dos
historiadores civis nós aprendemos que, naqueles dias, a guerra contra
os turcos continuava na Hungria, e estes continuavam avançando. De
acordo com o tratado com Maurício, Henrique II foi para o campo de
batalha acompanhado de um numeroso e bem armado exército, e
derrotou por completo as forças espanholas em Lorena e na Alsácia. A
Itália estava às vésperas de uma revolução e prestes a entrar em um
estado de total anarquia. O imperador estava no exílio, seu tesouro
completamente vazio, ele não tinha crédito e seus exércitos estavam
espalhados e desanimados. Sentindo que estava caindo rapidamente das
elevadas posições às quais estava acostumado, o imperador resolveu
retirar-se completamente dos assuntos deste mundo, com o objetivo de
passar o restante dos seus dias em retiro e completa solidão.
Consequentemente, aos 56 anos, ele deixou toda a Europa atônita ao
renunciar à coroa imperial a favor de seu irmão Fernando, e o restante de
suas vastas possessões na Europa e na América ao seu filho Filipe II,
que nasceu de seu casamento com Isabel de Portugal, e a quem já havia
sido coroado como rei de Nápoles e da Sicília. No ano seguinte, depois
de ter colocado seus negócios em ordem, ele se retirou para o mosteiro
de São Justo, próximo da cidade de Plasencia, na Espanha. Mas ele
continuava sofrendo tão severamente de gota, que algumas vezes
precisava ser carregado em uma cadeira e outras vezes ele era levado
em uma pequena carruagem, sofrendo dores excruciantes* a cada passo
e avançando com grande dificuldade. Como todas as casas religiosas
daqueles dias, o mosteiro de São Justo estava localizado em um local
muito aprazível: “O mesmo se encontrava em um pequeno vale, regado
por um pequeno riacho e cercado por montanhas cobertas de imponentes
árvores. Por causa da natureza de seu solo, bem como da temperatura
de seu clima, o local era estimado como o mais saudável e agradável em
toda a Espanha”. O imperador viveu ali cerca de dois anos, e morreu no
dia 21 de setembro de 1558, aos cinquenta e nove anos de idade.
***
ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DAS PÁGINAS ANTERIORES
Nós não precisamos perder tempo com os dias em que o imperador
esteve enclausurado. A maior parte do tempo ele passava distraindo-se
com objetos mecânicos leves — quando o alívio da gota lhe permitia tais
atividades. Uma dessas distrações era uma lamentação teatral de seu
próprio funeral antes de sua morte. Ele ordenou que sua tumba fosse
levantada dentro da capela; que seu corpo fosse colocado no caixão com
grande solenidade; que os monges deveriam estar chorando e uma
procissão fúnebre deveria acompanhar o caixão com os monges
carregando longas velas pretas até dentro da capela. O funeral para o
morto era cantado, o caixão aspergido com água benta; os enlutados se
retiravam e as portas da capela eram fechadas. Em seguida, Carlos se
levantava do seu caixão e se retirava para os seus aposentos, cheio de
todas aquelas terríveis sensações que uma farsa tão revoltante tinha o
propósito de produzir. Ele morreu quase que imediatamente depois desse
dia.
Sim, ele morreu, morreu para todas as suas dignidades e humilhações,
para todas as suas ambições e desapontamentos, para todos os seus
planos e suas políticas. Sim, aquele que havia sacrificado centenas de
milhares de vidas humanas e gasto milhões com o objetivo final de
extinguir o protestantismo, morreu no ambiente minúsculo de uma
pequena cela monástica. Enquanto isso, o protestantismo estava
enchendo o vasto firmamento do pensamento humano com sua luz e
glória. É aqui que deixamos o grande imperador — talvez o maior com
respeito a seus domínios, o maior a se sentar sobre um trono. Agora ele
se encontra diante de um tribunal onde, tanto os motivos quanto as ações
são pesadas, e onde todos nós precisamos ser julgados pelo padrão
divino.
É inútil procurarmos em qualquer lugar por algum traço de
arrependimento nesse inveterado inimigo dos reformadores. Dentro das
paredes do mosteiro de São Justo, longe de se arrepender de sua
conduta para com os reformadores, seu único e grande arrependimento
foi não tê-los tratado com maior severidade. Quando foi informado que o
luteranismo estava se espalhando pela Espanha e que várias pessoas
haviam sido presas sob a suspeita de estarem infectadas com o mesmo,
ele escreveu cartas do mosteiro para sua filha Joana, governadora da
Espanha, para João de Vega, presidente do Conselho de Castela e para
o inquisidor geral para que exercessem seus respectivos poderes com
todo o vigor possível. “Vós deveis prender todos os membros desse
partido e, depois de ter usado todos os meios para convertê-los ao
cristianismo, deveis queimá-los nas estacas. Porém estou persuadido de
que nenhum deles irá se tornar um católico sincero, pois eles têm uma
propensão irresistível para dogmatizar.” E prosseguiu dizendo: ”Se eles
não forem condenados ao fogo das estacas, cometereis um grande erro,
como eu fiz quando permiti que Lutero continuasse vivo. Eu sei que o
poupei apenas pelo salvo conduto que lhe concedi, mas confesso que
errei de maneira vergonhosa ao agir dessa maneira. Eu realmente não
tinha nenhuma obrigação de cumprir minha promessa para com aquele
herege. Como consequência direta de não ter tirado sua vida naquela
ocasião, a heresia continuou progredindo. Tenho certeza que sua morte
teria sufocado aquela heresia ainda no seu nascimento”.5
Aqui estamos diante do verdadeiro coração de Carlos V. Não existe
mais nenhuma razão para artifícios e dissimulações ou pretensa
tolerância com relação aos protestantes. O que ele fez com suas guerras
e o papel duplo que ele representou em sua política já fazem parte do
passado. O que vemos agora, exposto abertamente, é o verdadeiro
espírito de um papista. O único arrependimento no final da sua vida foi o
de não ter destruído a Reforma Protestante no seu início. Parece que
podemos ouvi-lo rangendo seus dentes com fúria ao pensar em Lutero e
lamentando-se por não ter violado sua promessa. Mas sabemos que
existe Alguém que todo o tempo estava cuidando da vida de Lutero, bem
como da nascente Reforma Protestante. Por esse motivo, esse Alguém
— Deus — manteve as mãos de Carlos plenamente ocupadas durante
mais de trinta anos, para que não tivesse tempo para guerrear contra os
luteranos. Todavia, alguns pensam que o extermínio da heresia
protestante foi algo que sempre esteve diante de seus olhos e era, no
fundo, o grande objetivo de sua vida e de seu reinado.
Mas foi nessa disputa, na qual ele havia apostado tudo, que ele perdeu
tudo — seus domínios, seu trono, sua coroa e sua grandeza. Em nenhum
outro momento da história a mão de Deus se manifestou de forma tão
evidente nas questões de qualquer outro príncipe. Em um momento, de
um só golpe, tudo foi mudado. “Seu poder desmoronou quando,
aparentemente, se encontrava no ápice. Nenhum dos sinais habituais,
que precedem a queda da grandeza de alguém, advertiu ao imperador de
tão dramática ruína. Seu vasto prestígio foi prejudicado. Ele não havia
sido ferido num campo de batalha, mas sua glória militar sofreu um
completo eclipse. Nenhum de seus reinos lhe foi arrancado de suas
mãos.”6 De todos os grandes homens que haviam começado na vida com
ele, tais como Francisco I, Henrique VIII, o papa Leão X e Martinho
Lutero, ele era o único sobrevivente. Seus rivais partiram antes dele e
nenhum deixou alguém que fosse capaz de disputar as posses de Carlos
V em um campo de batalha. Todavia, a mão do Senhor, em um ato de
justiça de retribuição, levantou-se contra o opressor de Seu povo. E quem
poderia livrar o imperador dessa poderosa mão? Já um dedo havia
escrito nas paredes de seu palácio: “MENE, MENE: Contou Deus o teu
reino, e o acabou” (Dn 5:26). Instantaneamente, os portões de bronze de
seu poder já não podiam mais protegê-lo, e ele foi obrigado a fugir diante
de um poder que sua própria política traiçoeira e fraudulenta havia criado.
A vara, que ele tinha preparado para destruir a Alemanha, foi usada por
Deus para a sua completa e ignominiosa destruição. Que realidade é o
governo bem como a graça de Deus sobre a terra! Deus controla os
movimentos dos mais poderosos monarcas e cuida das menores coisas
da criação. Isso, a fé conhece bem; e é nessa realidade que a mesma
encontra seu descanso e consolação. “Porque os olhos do Senhor estão
sobre os justos, e os seus ouvidos atentos às suas orações” (1 Pe 3:12).
***
AS CALAMIDADES DOS PROTESTANTES
Outra lição que está claramente escrita nas páginas anteriores é esta:
Deus é um Deus zeloso, e que não dá Sua glória para nenhum outro (Is
48:11). Ele terá Sua obra feita pelos Seus próprios meios e à Sua
maneira. Nenhuma calamidade maior poderia ter sobrevindo à Reforma
Protestante do que seus amigos terem abandonado a divina posição da
fé que haviam adotado, para descerem à plataforma do mundo da
diplomacia e das armas. Caso eles tivessem triunfado pelo uso desses
meios, isso teria causado a perda do verdadeiro caráter do movimento
reformador, o qual teria perecido na própria terra onde tinha nascido.
Além disso, os reformadores teriam se tornado um mero poder político.
Entretanto, Deus não podia tolerar tal situação. Então Ele os fez passar
por uma derrota vergonhosa e os despojou de toda e qualquer força e
poder, até que não tivessem nenhum outro recurso a não ser o próprio
Senhor. Eles não tinham nenhuma Liga, ou espada, ou tesouro, ou
castelos, ou qualquer outro meio de defesa. Eles foram trazidos de volta
aos seus primeiros princípios — fé na Palavra de Deus e o martírio como
testemunhas do Senhor Jesus. Mas esses princípios divinos e invencíveis
pareciam ter morrido com seu grande líder, e foram enterrados
juntamente com ele em seu túmulo. Foi somente por meio de grande
sofrimento e muita humilhação que seus seguidores foram levados a
enxergar os erros que haviam cometido.
Mas tão logo perceberam que não possuíam nenhum outro meio de
defesa a não ser a Palavra de Deus e uma boa consciência diante dEle, a
libertação veio. O próprio Senhor disse: “Porque o cetro da impiedade
não permanecerá sobre a sorte dos justos, para que o justo não estenda
as suas mãos para a iniquidade” (Sl 125:3). Essas são a bondade e as
tenras misericórdias de Deus. Ele não retira Seus olhos sobre os justos.
Todavia, sempre é perigoso abandonar princípios da Palavra de Deus e
nos deixarmos governar nossos caminhos pelas máximas e políticas
desse mundo. Isso é verdadeiro em todas as áreas da vida, mas no
assunto que temos diante de nós, a Palavra de Deus é clara, como diz o
apóstolo: “Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim
poderosas em Deus para destruição das fortalezas”. Sim, nossas armas
são “poderosas em Deus”. E como o bendito Senhor disse: “Porque todos
os que lançarem mão da espada, à espada morrerão” (2 Co 10:4; Mt
26:52).
A Reforma na Alemanha, envolvendo as igrejas luteranas, agora
estava definitivamente estabelecida. Mas as igrejas reformadas, que
envolviam os seguidores de Zuínglio e Calvino, foram excluídas dos
privilégios garantidos pelo Tratado de Passau e Augsburgo. Nenhuma
tolerância foi estendida às igrejas reformadas até a assinatura da paz de
Vestfália, quase um século mais tarde. Por esse famoso tratado, a
pacificação de Passau foi estendida aos membros das igrejas
reformadas, e a independência da Suíça foi declarada pela primeira vez.
“O equilíbrio de poder, através do qual as mais fracas entre as nações
podiam ser efetivamente protegidas e as mais poderosas restringidas em
seus planos agressivos de ambição — que haviam sido excessivamente
satisfeitos — foi um dos resultados mais importantes das negociações e
discussões em Vestfália.”7
***
O SURGIMENTO DOS JESUÍTAS
Antes de deixarmos definitivamente o reinado de Carlos V, devemos
notar dois memoráveis eventos que aconteceram durante esse reinado,
por causa da relação que eles tiveram com a Reforma Protestante e a
grande batalha religiosa que, naqueles dias, agitava todas as classes da
sociedade. Estamos nos referindo ao Concílio de Trento e ao surgimento
da ordem dos jesuítas. Como já falamos algo acerca do primeiro, iremos
concentrar nossa atenção apenas no segundo.
Podemos compreender facilmente que os inimigos da Reforma
Protestante agora se encontravam no fim de sua capacidade de reação.
O que poderia ser feito? Aquilo pelo que eles esperaram durante trinta
anos como o meio mais seguro de esmagar a Reforma, tinha falhado por
completo. Mais do que isso, o mesmo havia cessado de ser um poder
opositor. Enquanto isso, a Reforma Protestante estava ampliando
rapidamente sua área de domínio e multiplicando o número de seus
membros. Nessa disputa, o papa havia sofrido perdas imensas em sua
dignidade, influência e receitas financeiras, e não podia mais apelar ao
poder imperial como estava acostumado a fazer antes. Os frades de
túnicas negras, brancas e cinzentas haviam sido dispersados e seus
monastérios destruídos. O que se poderia esperar do futuro? Essa era
uma grave questão para o perverso coração de Jezabel e para todos
aqueles com os quais ela se aconselhava. Homens armados tinham
fracassado. “Paz e persuasão precisam ser nossas táticas agora”,
sugeria o espírito que presidia aquela assembleia. “Um exército precisa
ser levantado, cujo uniforme deve ser a estola sacerdotal, e os votos
precisam ser pobreza, castidade, o cuidado dos cristãos e a conversão
dos incrédulos. O caráter desses missionários deve ser pacífico e
persuasivo. É sob essa aparência que o trabalho da contra Reforma
precisa ser imediatamente instituído.” Esta proposta razoável foi
aprovada de forma unânime, e podemos perceber que nenhuma outra
proposta teve sua origem nas profundezas de Satanás, mais do que
essa. A história dos jesuítas irá provar que nenhum outro plano foi
executado de modo mais satânico do que esse. As fontes dos
sentimentos humanos, da simpatia e da misericórdia parecem ter secado
em todos os membros da sociedade, e as fontes da intolerância e
crueldade inspiradas no inferno, que não encontram nenhum paralelo na
história, certamente tomaram conta de todos eles.
***
INÁCIO DE LOYOLA
A sociedade dos jesuítas, uma Ordem religiosa da Igreja Romana, foi
fundada por Inácio de Loyola, que era filho de um nobre espanhol. Inácio
nasceu no ano de 1491 na localidade de Guipúscoa, na província da
Biscaia. Quando jovem, ele tornou-se pajem na Corte de Fernando e
Isabela8. Mas ele logo se cansou daquela vida de vaidades e desejava se
engajar nas guerras de seu país. Em 1521 o encontramos defendendo
Pamplona contra os franceses. Mas o jovem e intrépido Loyola foi
severamente ferido em ambas as pernas. Em seguida, Loyola foi
acometido de forte febre, e o futuro restaurador do papado chegou bem
próximo de uma morte prematura.
Todavia, por causa de sua natureza ardente, romântica e visionária,
durante sua longa enfermidade ele se dedicou com grande gosto à
leitura. Os romances dos cavaleiros espanhóis, que descreviam os
conflitos dos homens de sua nação contra os mouros, eram seus
favoritos. Mas quando se cansava desse tipo de literatura, ele se
dedicava a ler uma série de romances ainda mais maravilhosos, que
narravam as lendas dos santos católicos romanos. Com uma intensidade
mórbida, ele estudou esses livros de devoção mística, até que resolveu
imitar em sua própria vida as maravilhosas virtudes atribuídas a Benedito,
Domingos e Francisco. Com esse propósito, uma vez recuperado de sua
enfermidade, ele se retirou para o mosteiro beneditino localizado no
Monte Serrat, que ficava próximo da cidade de Barcelona. Ali ele passou
sua primeira noite na famosa gruta dedicada à virgem Maria. Ele
suspendeu sua lança e seu escudo diante de uma imagem da virgem e
fez um voto de constante obediência a Deus e à Sua igreja,
abandonando, com isso, as atividades seculares e assumindo a posição
de um cavaleiro espiritual.
Para celebrar sua auto dedicação à Maria, ele partiu para a cidade
vizinha de Manresa. A santidade, na visão de tais homens, não consiste
na semelhança moral da alma com o Senhor Jesus, mas apenas na
mortificação do corpo humano. Junto à pele de seu corpo, ele usava, de
forma alternada, os seguintes elementos: uma corrente de ferro, um
tecido feito com pelo de cavalos e um trançado de espinhos pontiagudos.
Três vezes ao dia ele se fustigava, de forma resoluta, chicoteando suas
costas nuas9. Tudo isso não tinha o propósito de mortificar as práticas do
corpo, mas sim o próprio corpo inofensivo. Esse é o poder cegante de
Satanás, e tais são as práticas das trevas apropriadas aos seus
propósitos (2 Co 4:4). Depois de ter viajado com os pés descalços até
Roma, Jerusalém e outros lugares considerados sagrados pela história
do Salvador, ele finalmente se dirigiu a Paris. Ali, ele se encontrou com
Francisco Xavier, que em seguida se tornaria o grande apóstolo da Índia.
Outros espíritos com ideias semelhantes se uniram a eles, e um pequeno
grupo de zelosos associados reuniu-se ao redor de Loyola, dando assim
origem à Companhia de Jesus — eles eram oito ou nove homens no
total.
***
O INÍCIO DA ORDEM DOS JESUÍTAS
No dia 15 de agosto de 1534, quando era comemorado o festival da
Assunção da virgem Maria10, em uma das capelas subterrâneas da igreja
de Montmartre, depois de terem recebido o sacramento da missa, todos
eles fizeram os votos de pobreza e castidade. Em seguida, fizeram um
juramento solene de dedicarem suas vidas à conversão dos sarracenos
em Jerusalém, ao cuidado dos cristãos necessitados e colocaram a si
próprios e seus serviços, sem reserva, aos pés do sumo pontífice. “Esse
exército alistado era pequeno, mas ao mesmo tempo, grande. Era
pequeno quando se contava o número de seus membros, e grande
quando se pesava o valor de seus participantes. Para apressar o
crescimento de seu pequeno Hércules, Loyola havia preparado, de
antemão, seu livro intitulado ‘Exercícios Espirituais’. Este é um livro de
regras que ensina os homens como conduzir o trabalho de suas próprias
conversões. O mesmo consistia de quatro grandes meditações, e o
penitente, retirado em completa solidão, deveria se ocupar em absorver
as mesmas com sua mente, de forma sucessiva. O período concedido
para concluir tal processo era de sete dias. Esse material era
apresentado, como acontece com o Alcorão, como sendo uma revelação
divina11. ‘O livro de Exercícios’ nos diz um jesuíta, ‘foi realmente escrito
pelo dedo de Deus e entregue a Inácio pela santa mãe de Deus’.”12
Depois de alguns atrasos, o papa Paulo III, tendo aprovado o plano de
Loyola e seus companheiros, expediu uma bula em 1540, autorizando a
formação do corpo sob o nome de “A Companhia de Jesus”. Em abril do
ano seguinte, o próprio Inácio assumiu o cargo de Superior Geral. A
Companhia de Jesus, até os dias de hoje, deve submissão exclusiva ao
próprio papa. Agora a ordem tinha uma existência formal. Seus membros
deviam vestir túnicas pretas como os clérigos seculares, e não deviam
ficar confinados em clausuras. Eles tinham plena liberdade de se misturar
com todas as classes, e não demorou muito tempo para que fossem
encontrados ocupando tribunais, confessionários e púlpitos. Além disso,
administravam estabelecimentos educacionais; garantindo, com isso, a
afeição e a cooperação dos jovens. Multidões de convertidos entusiastas
adotavam o novo padrão em todos os países e vinham de todas as
classes sociais.
***
O VERDADEIRO OBJETIVO DOS JESUÍTAS
Até aqui temos pisado o terreno no qual o verdadeiro caráter dos
jesuítas não se manifestou — tudo o que vimos foram os votos feitos com
a intenção de enganar. Mas iremos prosseguir no estudo da história
dessa Companhia. Não será muito difícil seguirmos as pisadas
manchadas de sangue dos traiçoeiros seguidores de Loyola por todos os
países. Tendo se espalhado por todo o mundo, nós os encontramos
executando secretamente os decretos e os desejos particulares do
Vaticano. O único e grande objetivo da Companhia de Jesus era estender
o poder do papa e, o princípio fundamental da fraternidade, era a
imediata, implícita, inquestionável e firme obediência ao papa, através de
seu superior geral que residia em Roma. A organização dessa
Companhia é, de longe, a mais complexa de todas que já existiram na
Igreja Romana. Alguns costumam dizer: “A monarquia jesuíta cobre o
mundo inteiro”. Eles possuem superiores provinciais, que correspondem
ao superior geral em Roma, em praticamente todas as províncias do
mundo. Por meio do confessionário, ele vê e sabe praticamente todas as
coisas que são feitas e ditas, não apenas dentro da Igreja Romana, mas
também na vida privada das famílias, por todas as partes do mundo
habitado. Nenhum lugar é tão distante, nem dificuldades ou perigos tão
grandes, e nenhum meio é considerado nefasto demais para um jesuíta,
desde que exista uma pequena esperança de estender o poder do
papado.
A Conspiração da Pólvora, que foi planejada para destruir de uma
única vez todos os membros da nobreza e da aristocracia protestante da
Inglaterra, é atribuída à influência traiçoeira dos jesuítas. O mesmo é
verdadeiro com relação a muitas outras conspirações que tinham a
intenção de matar a rainha Elizabeth. A gigantesca perversidade da
armada espanhola, e o imenso triunfo alcançado com a morte de
milhares de protestantes no massacre da noite de São Bartolomeu —
sem falarmos de inúmeras outras sedições, torturas, envenenamentos,
assassinatos e massacres em menor escala — devem ser atribuídos à
política e às sementes plantadas pelos jesuítas. O poder dos mesmos
tornou-se tão grande e destruidor que, muitas vezes, foi necessária a
intervenção do Estado para reprimi-los. De acordo com historiadores,
eles foram expulsos de Portugal em 1759, da França em 1764, da
Espanha e da América espanhola em 1767, e das duas Sicílias em 1768.
No ano 1773, a Companhia de Jesus foi suprimida pelo próprio papa
Giovanni Vincenzo Ganganelli, que tomou o nome de Clemente XIV. Mas
assim que ele assinou a ordem para o banimento da Companhia, ele foi
vítima da vingança da mesma, e morreu envenenado. Em 1801 eles
foram restaurados pelo papa Pio VII, mas foram mandados embora da
Sicília em 1860. É desnecessário dizer que eles encontraram
rapidamente os meios e os caminhos para retornarem. O papa Pio IX
confirmou a restauração da Ordem de tal maneira, que a mesma ocupa
uma posição proeminente na estrutura hierárquica de Roma até os dias
de hoje. Eles controlam a maioria dos estabelecimentos colegiais dessa
cidade e em muitos outros lugares.13
Foi dessa maneira que o enfraquecido poder do papado foi
grandemente reavivado — sua ferida mortal foi curada. Por meio da
Reforma Protestante, muitos dos mais ricos e poderosos reinos da
Europa abandonaram a lealdade para com o papa. Esse foi um golpe
fatal para sua grandeza e poder. O mesmo diminuiu a extensão de seus
domínios, aboliu sua jurisdição dentro dos territórios desses países e
diminuiu, de forma considerável, suas receitas financeiras. Todavia, mais
do que isso, é bem conhecido o fato que Carlos V contemplava
seriamente a redução do poder papal e até mesmo sua subversão total.
Esse foi o ponto mais baixo e quase culminou com o fim do papado, o
que apenas não aconteceu porque o exército de jesuítas veio ao seu
socorro, algo que pode ser visto como uma perfeita ilustração do ensino
de Apocalipse 13:3, mas ainda distante do pleno cumprimento dessas
solenes profecias.
Vamos agora retornar a nossa história geral e fazermos uma breve
avaliação do progresso da Reforma Protestante em diversos países.

1 History of Protestantism, vol. 2, p. 118. Ver também Robertson, History, vol. 6,


book 9.
2 Ver Mosheim, History of the Lutheran Church on the Controversies, vol. 3, também
Scott´s continuation of Milner on Melancthon´s submission, vol. 2.
3 N. do T. Caríntia, o Estado mais ao sul da Áustria.
4 Mosheim, vol. 3, p. 157. Wylie, vol. 2, p. 122. Scott, vol. 2, p. 83.
5 History of the Reformations in Spain. Dr. McCrie, p. 119.
6 History of Protestantism, vol. 2, p. 121.
7 Universal History, vol. 6, p. 87; Wylie, vol. 2, p. 122.
8 N. do T. Fernando e Isabela, reis católicos dos reinos espanhóis de Aragão e
Castela.
9 N. do T. A prática da auto flagelação é uma das tradições místicas mais poderosas
dentro do catolicismo romano. O próprio papa João Paulo II costumava se auto
flagelar diariamente, como uma forma de se punir pelos pecados cometidos. Se
conhecesse o sofrimento de Cristo a nosso favor na cruz de Calvário, veria a
inutilidade de tal gesto.
10 N. do T. Tradição católica romana, transformada em dogma, que declara que
Maria subiu ao céu pouco antes de morrer ou imediatamente após sua morte.
11 N. do T. Trata-se de um livro pouco extenso – cerca de 70 páginas – com os
tradicionais ensinamentos errados usados em todos os processos de auto
salvação.
12 History of Protestantism, vol. 2, p. 384. N. do T. Trata-se de um livro pouco
extenso – cerca de 70 páginas – com as tradicionais bobagens ensinadas em
todos os processos de auto salvação.
13 Para uma explanação mais ampla quanto ao código moral dos jesuítas,
sugerirmos a leitura do livro de Pascal, que era um jansenista, intitulado Cartas
Provinciais. Para maiores detalhes da organização, treinamento e operações dos
jesuítas ver History of Protestantism, vol. 2; Religiões do Mundo — Os Jesusitas:
History Universal, Bastr, vol. 6 p. 82; History of the Reformation por Hardwick, p.
329.

GLOSSÁRIO

A
Aferidas
Conferidas; comparadas.
Alabarda
Arma antiga composta por uma longa haste e rematada por uma peça
pontiaguda, de ferro, que por sua vez é atravessada por uma lâmina em forma
de meia-lua, com um gancho ou esporão no outro lado.
Alaúde
Antigo instrumento de cordas dedilháveis. De origem árabe, teve larga difusão
na Europa, da Idade Média ao Barroco.
Algozes
Carrasco, executor da pena de morte.
Amainou
Amainar: diminuir a força; ceder, minorar.
Antagônicas
Contrário, oposto.
Antagonista
Opositor; adversário.
Arauto
Aquele que, por meio de pregão, tornava pública uma notícia.
Arbitrária
Que não segue regras ou normas; que não tem fundamento lógico; que
apenas depende da vontade ou arbítrio daquele que age.
Ascética
Prática de um estilo de vida austera, por meio da abstenção dos prazeres
físicos e psicológicos.
Audácia
Ousadia, intrepidez.
Auspiciosa
Que gera esperanças; prometedora.
Austero
De caráter severo; rígido; rigoroso.
B
Baldaquinos
Um baldaquino se refere a qualquer obra de arquitetura constituída por uma
cúpula sustentada por colunas.
Batz
Moeda que equivalia a 1,5 centavos.
Bélica
Arte da guerra.
Belicoso
Que tem inclinação para a guerra, para o combate.
Bosqueada
Lugar muito arborizado.
Burgo
Divisão administrativa em vários países.
Burgomestre
Principal magistrado municipal de certas cidades europeias.
C
Cadafalso
Palanque ou estrado montado para a execução de condenados; patíbulo.
Cantões
Divisão territorial adotada pela Suíça e outros países.
Cátedra
Cadeira de quem ensina; cadeira professoral.
Cavalheiresco
Cavalheiro, nobre.
Chauvinista
Chauvinismo: termo dado a todo tipo de opinião exacerbada, tendenciosa ou
agressiva em favor de um país, grupo ou ideia.
Chanceleres
Encarregados da guarda real e, em certas épocas, da administração da justiça
e chefe dos conselheiros do rei.
Cisão
Divisão de um partido, de uma sociedade, de uma doutrina.
Cismar
Refletir sobre alguma coisa de maneira insistente.
Coadjutor
Nomeado para ajudar e substituir um bispo no exercício das suas funções.
Comandante
Era um nome oficial do administrador das ordens religiosas de cavaleiros.
Concludente
Que prova ou demonstra irrefutavelmente algo.
Condescendência
Complacência, tolerância.
Cônegos
Religioso que participa do colegiado de uma catedral ou de uma igreja e
trabalha na administração da mesma.
Contemporizar
Ser flexível, transigente.
Contumaz
Que demonstra muita obstinação; insistente.
Consternados
Afligir-se profundamente; encher-se de espanto; desolação.
Cordiais
Medicamento ou bebida que fortalece ou conforta. Eram muito empregados na
terapêutica antiga.
Coroa
Unidade monetária, e uma moeda.
Cúria
Corte pontifícia.
D
Damasco
Tecido de seda encorpada, de uma só cor, com fundo fosco e desenhos
acetinados, que era usado em trajes de aparato e, atualmente, de modo
especial, em estofos de luxo.
Demovido
Deslocado; dissuadido.
Deão
Título de dignidade eclesiástica logo abaixo do bispo ou arcebispo; que dirigia
a vida doméstica dos clérigos.
Derrocada
Destruição; mudança brutal que leva a um estado de colapso, de ruína; queda
acompanhada de decadência, degradação.
Deserções
Desistências, abandonos.
Despótico
Em que há despotismo; tirânico, opressivo.
Despotismo
Poder isolado, arbitrário e absoluto de um déspota.
Detrimento
Prejuízo, perda.
Dialética
Processo de diálogo; debate entre interlocutores comprometidos com a busca
da verdade.
Dieta
Este tipo de assembleia era um órgão deliberativo formal e suas decisões
valiam para todo o Império.
Dissidentes
Que sai de um determinado grupo ou organização.
Ducados
Designação comum a diversas moedas de ouro de vários países.
Dogmas
Pontos fundamentais de uma doutrina religiosa, apresentados como certos e
indiscutíveis.
E
Efusão
Demonstração excessiva.
Emancipação
Libertação, independência.
Eminentes
Que se destacam por sua qualidade ou importância; excelente.
Enfastiar-se
Provocar ou sentir fastio, aborrecimento; entediar-se, enfadar-se.
Epigramas
Poesia breve, satírica; sátira.
Eremitas
Indivíduo que, por penitência, vive em lugar deserto, isolado; ermitão.
Escaramuça
Combate de menor importância.
Escolásticos
Teol. Pensamento cristão da Idade Média, baseado na tentativa de conciliação
entre um ideal de racionalidade.
Esquiva
Esquivar: recusar-se a fazer alguma coisa; eximir-se, negar-se.
Estigmatizados
Estigmatizar: criticar; acusar; censurar ou condenar; classificar uma pessoa de
forma negativa ou desagradável.
Estratagema
Manobra, plano previamente estudado e posto em prática para atingir
determinado objetivo.
Ex-votos
Quadro, imagem, inscrição, ou órgão de cera, madeira, etc., que se oferece e
se expõe numa igreja ou numa capela em comemoração de voto ou promessa
cumpridos através de um milagre.
Exasperar
Tornar (-se) colérico, enfurecido.
Excruciantes
Que é doloroso, atormenta e tortura.
Execrá-los
Execrar: detestar, abominar, amaldiçoar.
Exegéticas
Explicativo, expositivo.
Exonerados
Exonerar: destituir, demitir do cargo que ocupava.
Extirpar
Arrancar pela raiz.
F
Faias
Árvores do Sul e Centro da Europa.
Fauce
Boca, garganta.
Frugal
Que é moderado; sóbrio; simples.
G
Gnósticos
Gnosticismo é um conjunto de correntes filosófico-religiosas.
Grão-mestres
Título de Grão-mestre ou Grande Mestre é o mais alto grau em ordens
honoríficas ou de mérito, isto é, título dado à máxima autoridade de uma
Ordem. Tem poder quase absoluto.
H
Helênico
Relativo ou pertencente à Hélade, ou Grécia antiga.
Helvética
A expressão helvética foi usada algumas vezes para se referir aos cantões
que, unidos, representam o país que chamamos de Suíça.
Hermenêuticas
Interpretação de textos religiosos, especialmente das Sagradas Escrituras.
Homilias
Pregação em estilo familiar que busca explicar um tema ou texto evangélico.
I
Iconoclastas
Diz-se de quem destrói imagens ou ídolos e, por extensão, obras de arte.
Ignomínia
Humilhação, vergonha pública grave.
Impassível
Que não experimenta ou não denota exteriormente nenhuma emoção,
sentimento ou perturbação; imperturbável.
Impostura
Ação de impostor.
Imprecações
Maldição, vociferação.
Impúdica
Despudorada; que não possui vergonha.
Inata
Que pertence ao ser desde o seu nascimento.
Incitada
Instigada, estimulada.
Indelevelmente
Que não pode ser apagado.
Inefável
Que não se pode descrever.
Inexpugnável
Que não pode ser vencida ou conquistada.
Ínfimo
Que ou o que é muito pequeno em suas dimensões, volume, quantidade,
intensidade.
Inquiridor
Aquele que averigua, que pesquisa; investigador.
Insincero
Falso, fingido.
Insurreição
Rebeldia, revolta.
Intransigente
Intolerante.
J
Jactância
Atitude de alguém que se manifesta com arrogância e tem alta opinião de si
mesmo; vaidade, orgulho.
Judiciosos
Que é perspicaz e justo em seus julgamentos; que demonstra sensatez;
acertado.
Junker
Eram denominados os membros da nobreza constituída por grandes
proprietários de terras nos estados alemães.
Jurisprudência
Ciência do direito e das leis.
L
Lancinante
Cortante, aguda.
Landgraves
Título ou dignidade de alguns príncipes ou nobres alemães que julgavam
pleitos em nome do imperador.
Lecionários
Livro que contém as lições ou leituras inscritas no ofício divino. Os lecionários
modernos trazem todo o material necessário para as missas semanais e
cobrem um período de três anos.
Legado
Encarregado pelo papa de governar territórios que pertenciam ao papado.
Leigos
Que pertence ao povo cristão como tal e não à hierarquia eclesiástica.
Letargia
Incapacidade de reagir e de expressar emoções; apatia, inércia e/ou
desinteresse.
Liteiras
Cadeira portátil usada como meio de transporte, coberta e fechada, sustentada
por duas varas compridas que são levadas por dois homens ou dois animais
de carga, um à frente e outro atrás.
M
Magnânimo
Generoso; bondoso.
Magnificente
Que tem opulência, esplendor, suntuosidade.
Maniqueístas
O maniqueísmo é uma filosofia religiosa.
Margraves
Título que outrora se dava aos príncipes soberanos de certos estados
fronteiriços da Alemanha.
Mouros
Antigos habitantes árabes da Mauritânia (norte da África) que invadiram a
península Ibérica.
N
Nefastos
Algo que provoca desgraça; funesto; sinistro.
Nubentes
A pessoa que vai casar, ou seja, o noivo ou a noiva.
Núncio
Representante permanente da Igreja Católica Romana junto a um governo.
O
Oberland
Designa-se como Oberland Bernês a região mais elevada do cantão de Berna.
Oblação
Sacrifício, oferta.
Obliteradas
Obliterar: fazer desaparecer pouco a pouco; apagar.
Obliterou
Destruiu; eliminou; suprimiu.
Oligarquia
Regime político em que o poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas,
pertencentes ao mesmo partido, classe ou família.
Otomanos
Turcos.
P
Paráfrase
Interpretação, explicação ou nova apresentação de um texto.
Parlar
Falar muito; tagarelar.
Paróquias
Divisão territorial de uma diocese sobre a qual tem jurisdição ordinária um
sacerdote: o pároco.
Paulatinamente
Pouco a pouco; gradativamente.
Pérfidos
Traidor.
Permeadas
Impregnadas.
Perpetrada
Praticada, cometida.
Pertinácia
Teimosia, obstinação.
Plenipotenciário
Agente diplomático investido de plenos poderes, em relação a uma missão
especial.
Politiqueiro
Aquele que, em política, usa de processos pouco corretos, que faz politicagem.
Pontifícia
Referente ao papado.
Preponderante
Dominante; principal.
Pródigos
Gastador, esbanjador.
Propiciação
Ato sacrificial pelo qual Deus se torna propício ou favorável ao pecador.
Proposições
Termo usado em lógica para descrever o conteúdo de asserções.
Proscritos
Banidos, exilados.
Pungentes
Capaz de ferir; que provoca dor.
R
Repicar
Produzir sons agudos e repetidos; tocar.
Retratasse
Retratar: anular; desfazer; voltar atrás.
S
Simonia
Compra ou venda ilícita de coisas espirituais (como indulgências e
sacramentos) ou temporais ligadas às espirituais (como os benefícios
eclesiásticos).
Sofismas
Argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da
verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta,
na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente
enganosa.
Suserania
Direito ou poder de ordenar, de decidir, de atuar, de se fazer obedecer;
domínio, autoridade, poder.
T
Tácita
Algo que é implícito ou que está subentendido.
Tangiam
Tocavam; roçavam.
Teutônico
Relativo à Alemanha e aos alemães.
Toga
Peça de vestuário característica da Roma Antiga.
Tríplice aristocracia
Grupo ou classe que detêm privilégios; nobreza.
U
Ubiquidade
Faculdade divina de estar presente em todas as partes ao mesmo tempo.
V
Venalidade
Condição ou qualidade do que pode ser vendido.
Vicissitude
Sucessão de mudanças ou de alternâncias.
Vindicado
Vindicar: reclamar ou exigir a restituição de algo.
Vociferava
Falar aos brados ou colericamente.
Z
Zelotes
Significa literalmente alguém que zela pelo nome de Deus. Apesar de que, em
nossos dias, a palavra designa alguém com excesso de entusiasmo.

ANOTAÇÕES
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Este não é um mero livro sobre a história do cristianismo. O


autor vai além do fato histórico para destilar lições morais e
espirituais relevantes dos personagens, lugares e eventos. O
leitor é conectado com a pessoa de Cristo e com a Palavra de
Deus. O texto é enriquecido com a verdade bíblica de modo a
proporcionar bênçãos para a alma.
Em todo lugar, e em todas as épocas, o Deus soberano sempre
dispensou ternos cuidados aos seus entes queridos. A luz do
testemunho divino por vezes parecia apagar, quando um novo
vento de sua misericórdia insuflava novamente a fé, a coragem e
a obediência. O transcorrer da história repetidas vezes confirmou
que “o sangue dos mártires é a semente da Igreja”.
Caso você nunca se interessou pelo assunto, deixe-se
encorajar pelo maravilhoso testemunho da graça divina
dispensada a vasos de barro semelhantes a nós!

Paulo se declara “autor” no início e no fim da epístola (cps. 1:1;


16:21), e no capítulo 4:15, afirma que conduziu os coríntios à fé
no Senhor Jesus. Durante a estada de três anos em Éfeso,
chegaram aos ouvidos de Paulo ainda outras particularidades a
respeito da igreja em Corinto. Pelos membros da família de Cloé,
ele foi informado das contendas que havia entre eles (cp. 1:11).
Além disso, os coríntios haviam escrito uma carta ao apóstolo, na
qual o interrogavam sobre diversos assuntos (cps. 7:1; 8:1; 12:1;
16:1).
A primeira epístola aos Coríntios contém instruções detalhadas
sobre a ordem interna e o comportamento corporativo da Igreja
de Deus. Por essa razão, apela-se repetidamente para a
responsabilidade dos crentes (por exemplo: por meio da décupla
pergunta: “Não sabeis...” (cps. 3:16; 5:6; 6:2,3,9,15,16,19;
9:13,24; compare com cps. 10:1; 12:1).
A “MAGNA CARTA” da Igreja
A segunda epístola aos Coríntios é uma das cartas mais
complexas do Novo Testamento. À semelhança da epístola aos
Filipenses, é também um testemunho muito pessoal do apóstolo
Paulo. Contém poucas passagens doutrinárias, mas em
contrapartida há muitos pontos em que o escritor expressa os
seus sentimentos. Enquanto a primeira carta leva um caráter
doutrinário e autoritativo, a segunda expressa mais os motivos
interiores do apóstolo no seu serviço para o Senhor (2 Co
1:12ss.; 5:14; 12:19) e o seu profundo desejo pela restauração
da comunhão genuína com os coríntios (2 Co 2:1ss.; 6:1ss.;
7:2ss.).
Nos capítulos 1 a 7, Paulo explica, em conexão com os
versículos introdutórios, o caráter, os motivos e o propósito de
sua atuação e de seu serviço, cuja fonte de energia era o Senhor
Jesus (2 Co 1:20-22; 2:14-17; 3:18; 4:4-18; 5:7-21).
O assunto da segunda parte da carta (cps. 8 e 9) é a coleta, já
mencionada em 1 Coríntios 16, a favor dos irmãos empobrecidos
na Judeia, situação que tocava profundamente o coração de
Paulo (comp. com Gl 2:10; Rm 15:25-28). É também o objetivo
de Paulo aquecer os corações dos coríntios para esse serviço de
amor, o de socorrer os necessitados.
Pedidos Brasil e África direto com a editora:
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Table of Contents
Capítulo 33
O Início da Reforma Protestante na Alemanha
O Papado e os Seres Humanos
O Estado da Igreja Romana
no Início do Século XVI
O Primeiro Período da Vida
de Lutero
O Segundo Período da Vida
de Lutero
Lutero e a Piedosa Úrsula
Lutero Entra na
Universidade de Erfurt
Lutero Vê uma Bíblia Pela
Primeira Vez
Como Estudar a Bíblia
Lutero se Torna Monge
A Experiência de Lutero
Como Monge
A Conversão de Lutero
Lutero e Staupitz
Reflexões Acerca da
Conversão de Lutero
Lutero Como Sacerdote e
Professor
Lutero Visita Roma
Capítulo 34
O Primeiro Jubileu Papal
O Ano Dourado
O Comércio de Indulgências
Os Agentes do Papa —
João Tetzel
Uma Amostra do Típico
Sermão de Tetzel
Lutero Enfrenta Tetzel
Publicamente
Lutero em Heidelberg
Lutero em Augsburgo
Lutero em Altemburgo
Homens Eminentes do
Século XVI
Lutero e a Bula da
Excomunhão
Lutero e Carlos V
A Dieta de Worms
A Convocação de Lutero e
seu Salvo Conduto
Lutero Comparece Diante da
Assembleia
A Oração de Lutero
Lutero Comparece Pela
Segunda Vez
Reflexões Acerca da
Presença de Lutero na Dieta
de Worms
Capítulo 35
Lutero em Wartburg
Reflexões Acerca do
Cativeiro de Lutero
Lutero Retorna Para
Wittenberg
Lutero e a Bíblia em Alemão
O Progresso Geral da
Reforma Protestante
A Reforma e Henrique VIII
As Igrejas Luteranas
“As 100 Queixas da Nação
Alemã”
Eventos Adversos à
Reforma Protestante
Os Anabatistas
A Questão Acerca do
Sacramento da Ceia
Chefes Políticos da Reforma
Protestante
A Primeira Dieta de Speyer
A Segunda Dieta de Speyer
O Protesto
Capítulo 36
O Protestantismo
A Carta à Igreja em Sardes
As Igrejas Luteranas
A Fundação das Primeiras
Igrejas Luteranas
A Morte de Frederico, o
Sábio
O Apelo dos Príncipes
Encontros dos Protestantes
Capítulo 37
A Controvérsia Acerca do Sacramento da
Santa Ceia
A Opinião de Zuínglio
Karlstadt, Lutero e Zuínglio
Convocação Para um
Encontro em Marburgo
A Conferência em Marburgo
Uma Proposta Para o
Exercício da Tolerância e da
Unidade
Reflexões Acerca da
Conferência de Marburgo
Capítulo 38
O Encontro em Bolonha
A Dieta de Augsburgo
A Confissão de Augsburgo
A Chegada do Imperador
Carlos V a Augsburgo
Os Líderes da Dieta de
Augsburgo
A Abertura da Dieta de
Augsburgo
Os Artigos de Fé
Os Artigos Acerca das
Falsas Doutrinas e dos
Abusos
A Inquietação dos
Protestantes
As Preocupações e Temores
de Melanchthon
As Cartas de Lutero à
Melanchthon
Capítulo 39
A Refutação da Confissão
A Refutação Católica Não é
Aceita Pelos Protestantes
Negociações Secretas
O Fim da Dieta
O Decreto Imperial
Reflexões Sobre a Dieta de
Augsburgo
A Providência de Deus nos
Assuntos do Imperador
Carlos V
A Liga de Esmalcalda
O Segundo Encontro em
Esmalcalda
O Imperador Carlos Procura
uma Conciliação com os
Protestantes
A Paz de Nuremberg
A Opinião dos Historiadores
Capítulo 40
A Reforma Protestante na Suíça
A Introdução do Cristianismo
na Suíça
O Nascimento e a Educação
de Zuínglio
Zuínglio Como Pastor em
Glarus
Zuínglio em Einsiedeln
Zuínglio e a Reforma em
Einsiedeln
Os Efeitos das Pregações
de Zuínglio
Zuínglio se Muda Para
Zurique
Zuínglio e o Evangelho
Zuínglio e a Venda de
Indulgências
A Tempestade Irrompe
Capítulo 41
Os Líderes da Reforma Protestante na Suíça
Reflexões Acerca do Raiar
da Reforma Protestante na
Suíça
O Progresso da Reforma
Protestante em Zurique
Os Monges Conspiram
Contra Zuínglio
Os Escritos de Zuínglio
Zuínglio e seus Irmãos
As Disputas em Zurique
As Teses de Zuínglio
A Reunião em Zurique
As Consequências do
Decreto
O Zelo de Zuínglio e de Leo
Jud
A Segunda Disputa em
Zurique
A Palavra de Deus
Prevalece
Reflexões Acerca do Caráter
da Conferência
Capítulo 42
As Consequências dos Debates
O Primeiro Mártir da
Reforma Protestante na
Suíça
O Sangue de Hottinger
Inflama Ainda Mais o Zelo
dos Papistas
A Resposta de Zurique
A Remoção das Imagens
A Reforma Protestante na
Suíça e na Alemanha
O Casamento de Zuínglio
O Progresso da Reforma
Protestante
As Armas de Roma
A Prisão Ilegal de Oexlin
As Falsas Acusações Contra
Wirth e seus Filhos
A Assembleia Reunida em
Baden
Os Membros da Família
Wirth e o Irmão Ruteman
São Falsamente Acusados
O Martírio de João Wirth,
seus Filhos e do Irmão
Ruteman
Capítulo 43
O Progresso Geral da Reforma Protestante
A Abolição da Missa
Católica Romana
A Celebração da Ceia do
Senhor
A Reforma Protestante em
Berna
As Freiras de Königsfeld
A Conferência em Baden
O Início da Dieta
A Grande Conferência em
Berna
A Oposição de Roma
O Início da Conferência em
Berna
Os Regulamentos da
Conferência
Os Resultados da
Conferência
A Graça do Evangelho
A Reforma na Basileia
O Povo se Adianta ao
Governo
A Basileia Sob um Estado
de Sítio
As Imagens São Destruídas
As Consequências da
Revolução
Capítulo 44
A Posterior Divulgação da Reforma
Protestante na Suíça
A Mistura de Interesses
Espirituais e Políticos
O Primeiro Passo em Falso:
“A Confederação”
Cinco Cantões Formam uma
Liga com a Áustria
Os Cantões Romanos
Perseguem os Reformados
A Declaração de Guerra
Preparações Militares
O Tratado de Kappel
A Confederação Cristã de
Zuínglio
Os Cinco Cantões Rompem
o Tratado
As Chamas da Perseguição
São Reacendidas
O Embargo
A Política Adotada Por
Zuínglio
Novas Tentativas de
Mediação
A Posição de Zurique e a
Reforma Protestante
A Guerra é Iniciada
A Indecisão do Concelho de
Zurique
Os Maus Pressentimentos
do Povo
A Batalha de Kappel
A Morte de Zuínglio
Reflexões Acerca da Vida de
Zuínglio
Tratados de Paz
Capítulo 45
A Reforma Protestante na Alemanha
Uma Breve Análise dos
Acontecimentos
A Divulgação Geral do
Evangelho na Alemanha
Os Principais Personagens
Vão Deixando o Cenário
Os Últimos Anos de Lutero
A Morte de Lutero
O Funeral de Lutero
Reflexões Sobre a Morte de
Lutero
O Senhor Cuida de Seu
Servo
A Vida Doméstica e
Particular de Lutero
O Casamento de Lutero
A Festa de Casamento
Lutero no Círculo da sua
Família
Conclusão
Capítulo 46
A Abertura do Concílio de Trento
O Tratado Entre o Papa e o
Imperador
A Guerra de Esmalcalda
O Papa Revela o Segredo
das Trevas
O Exército dos
Confederados
As Primeiras Operações de
Guerra dos Protestantes
A Traição de Maurício
A Dissolução da Liga
Protestante
Os Alemães São Tratados
Como um Povo Conquistado
Capítulo 47
O Período “Interino”
O Novo Credo
O Período Interino Sofre
Oposição dos Protestantes e
dos Papistas
A Submissão de
Melanchthon
A Oposição das Cidades
Livres
Uma Nova Reviravolta na
Maré dos Acontecimentos
A Revolução na Alemanha
A Fuga do Imperador
A Paz de Passau
Algumas Reflexões Acerca
das Páginas Anteriores
As Calamidades dos
Protestantes
O Surgimento dos Jesuítas
Inácio de Loyola
O Início da Ordem dos
Jesuítas
O Verdadeiro Objetivo dos
Jesuítas
Glossário
Anotações

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