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PUC-SP
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2011
Banca Examinadora
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iii
Ao meu esposo Roderick, por todo seu amor e dedicação à
nossa família.
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por me ter proporcionado a vida, a saúde e a família que tenho.
À minha mãe Helenilce, por seu exemplo de dedicação e persistência, por seu amor e
por sempre se ter empenhado na minha realização pessoal e profissional.
Ao meu pai José Roberto, pelo amor e suporte dedicado à minha mãe e à nossa família.
À minha filha Sofia, por me ter proporcionado a alegria necessária para continuar na
luta diária.
Ao meu sogro, Rodemarck de Castello Branco, por seu exemplo de sucesso e por ter
proporcionado à nossa família todo o suporte necessário para o cumprimento desta tarefa.
À minha sogra, Romélia Oda Cabral Castello Branco, pelas inúmeras vezes em que
esteve pronta a ajudar-me, por seu carinho e afeto e por sua atenção tão especial à minha filha.
À Professora Ritta de Cássia Haikal, por sua dedicação ao realizar a revisão deste
trabalho de forma tão meticulosa.
Aos meus amigos, pelo apoio e por terem aceitado e compreendido as minhas ausências.
Ao meu orientador, Professor André Ramos Tavares, pela atenção e apoio dedicado a
esta tarefa.
v
RESUMO
Resumo: Este estudo tem por objetivo principal verificar a participação da Justiça
Constitucional na concretização dos Direitos Fundamentais. Para tanto, estabeleceu-se como
ponto de partida as mudanças trazidas pelos novos ideais discutidas no constitucionalismo
contemporâneo. A crescente preocupação com a efetividade dos Direitos Fundamentais e a
ampliação do conteúdo material da Constituição impõe uma atuação cada vez mais
abrangente da Justiça Constitucional e a necessidade de reformulação da compreensão de sua
função interpretativa. Assim, o trabalho divide-se em três etapas distintas. Em um primeiro
momento, a abordagem se inicia na análise da relação existente entre o Estado e a
Constituição, bem como sua gradativa evolução até a formação do Estado Constitucional e,
consequentemente, do constitucionalismo contemporâneo. Em seguida, o estudo propõe a
análise do „novo‟ Direito Constitucional, abordando as diferentes terminologias que vem sido
adotadas para definir o atual momento de mudança de concepção das idéias sobre
Constituição e suas consequências trazidas para o Direito na temática da constitucionalização
do Direito e na busca pela concretização dos Direitos Fundamentais. Por fim, o estudo se
concentra nas atividades da Justiça Constitucional e a identificação da sua relação com o
constitucionalismo contemporâneo para fins de concretização dos Direitos Fundamentais
vi
ABSTRACT
This study aims to evaluate the role of Constitucional Justice in the implementation of
Fundamental Rights. To that end, it was established as a starting point the changes brought
about by new ideas discussed in contemporary constitutionalism. The increasing concern over
the effectiveness of Fundamental Rights and the expansion of the substantive content of the
Constitution imposes a more comprehensive role of Constitutional Justice and the need to
recast their understanding of the interpretative function. Therefore, this work is divided into
three distinct stages. At first, the approach begins on the analysis of the relationship between
the State and the Constitution, and its gradual evolution to the formation of constitutional
state and thus of contemporary constitutionalism. Then, the study proposes the analysis of the
'new' Constitutional Law, approaching the several terminologies that have been adopted to
define the actual moment of changing of the conception of ideas about Constitution and its
consequences brought to the Law on the theme of constitutionalization of the law and in
seeking the concretization of Fundamental Rights. Finally, the study focuses on the activities
of the Constitutional Justice and the identification of its relationship to contemporary
constitutionalism in attaining Fundamental Rights
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1
CAPÍTULO 2 - O NEOCONSTITUCIONALISMO
viii
2.6.1. A terminologia apropriada e sua abrangência ............................................................. 63
3.11. Os A valorização dos princípios e a abertura das normas constitucionais ................... 102
ix
INTRODUÇÃO
Na verdade, alguns apontam que a ideia é ir até mesmo mais além. Não se trataria
somente de reformular o modo como se compreende a Constituição e, sim, construir uma
nova teoria do Direito, capaz de modificar os critérios de validez difundidos pelo
positivismo jurídico kelseniano e conferir maior amplitude ao conceito de Direito.
1
Assim, desenvolveram-se as ideias no constitucionalismo contemporâneo
responsáveis pelo surgimento do chamado „neoconstitucionalismo‟. Ainda que exista algum
debate quanto à adequada terminologia para se adotar, importa ressaltar a ideia que o termo
pretende explicitar: a aproximação do Direito com a moral, a valorização dos princípios
mediante a interpretação constitucional e a efetividade dos Direitos Fundamentais.
Para uma coerente abordagem do tema, optou-se por estruturar este trabalho em três
Capítulos. Inicialmente, realizou-se um estudo acerca das relações existentes entre o Estado e
a Constituição, com breve abordagem dos aspectos conceituais e de sua gradativa evolução
até a formação do Estado Constitucional e, consequentemente, do constitucionalismo
contemporâneo. A partir de então, o constitucionalismo foi analisado sob o enfoque histórico-
descritivo para identificar seu processo evolutivo desde a antiguidade até a
contemporaneidade, destacando-se os constitucionalismos desenvolvidos na Inglaterra, na
França e nos Estados Unidos, para, assim, adentrar na temática referente ao momento de
expansão do constitucionalismo a partir do surgimento do chamado Estado pós-moderno.
2
Por fim, a pesquisa concentra-se no estudo das atividades da Justiça Constitucional,
bem como na identificação da sua relação com o constitucionalismo contemporâneo para fins
de concretização dos Direitos Fundamentais almejados, objetivo final deste trabalho, porque
se centra na busca de solução da falta de efetividade dos Direitos Fundamentais por meio da
atuação da Justiça Constitucional. Após a identificação de aspectos gerais envolvendo a
Justiça Constitucional, tais como seu surgimento, natureza, conceito e funções, passa-se à
análise da função de interpretação constitucional diante do constitucionalismo
contemporâneo.
3
CAPÍTULO 1 – O CONSTITUCIONALISMO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO
Por ser uma sociedade política, o Estado deve sempre ter em vista a realização do
bem comum, já que surgiu em razão de um ato de vontade do homem, que cedeu ao Estado
seus direitos em busca de proteção2. Na atualidade, o Estado, além de carregar consigo a
característica de ser constitucional, deve também ser um Estado de Direito Social e
Democrático, uma vez que, além de ser capaz de intervir na ordem social e econômica,
também tem o dever de garantir o cumprimento de Direitos Fundamentais de seus cidadãos.
1
Manual de Direito Constitucional, tomo II: Constituição, 4ª ed., Coimbra Editora, 2000, p. 10.
2
Curso de Teoria do Estado e Ciência Política, 4.ed, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 4. Celso Ribeiro Bastos
esclarece que a Teoria Geral do Estado, como disciplina autônoma, busca conhecer a realidade do Estado para
chegar à elaboração do Estado ideal, tendo sempre em mente vários Estados como objeto de estudo e não
apenas um, pois o estudo de um Estado em particular e seu ordenamento jurídico cabem ao Direito
Constitucional. Foi a partir do período entre guerras que surgiu a necessidade de se estudar o fenômeno estatal
e a Teoria Geral do Estado se desenvolveu como uma doutrina, cujo campo de atuação se encontra no que há
de comum entre todos os Estados, uma vez que trabalha com elementos existentes em todos eles: povo,
território e poder. (p. 1-2).
4
Todavia, um longo caminho foi percorrido para que fosse possível compreender o Estado nos
termos acima expostos.
Conforme explica Hermann Heller, o poder do Estado passa a ser sempre legal, já
que se torna um poder político juridicamente organizado. Desse modo, tal poder passa a ter
como fundamento a legalidade, enquanto esta se fundamenta na legitimidade4. Portanto, o
poder passa de poder de fato para poder legítimo, “que resulta do reconhecimento por aqueles
a quem a vontade do sujeito se dirige de que ele actua de acordo com uma lei digna de
acatamento geral, isto é, de que ele está no seu direito ao manifestar certa vontade” 5.
3
Conforme ensina Marcello Caetano: “Chama-se de poder a possibilidade de eficazmente impor aos outros o
respeito da própria conduta ou de traçar a conduta alheia.” (Manual de Ciência Política e Direito
Constitucional, Tomo I, 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 5)
4
Hermann Heller, Teoria do Estado, São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 288-289.
5
Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito, cit., p. 5.
6
Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito, cit., p. 5.
7
As características que o Estado absorve no decorrer da história são responsáveis por conferir a ele os adjetivos
que o qualificam: Estado Democrático, Estado Social, Estado Moderno, Estado de Direito, Estado Absolutista.
Percebe-se, assim, que o momento político em que este Estado se encontrava o acompanha para expressar as
relações deste com seus cidadãos. Diante de tantas variações de conceito e justificações, Joaquim José Gomes
Canotilho defende a ideia de que hoje apenas existe o Estado Constitucional. Segundo o autor, o
constitucionalismo tentou estruturar um Estado com qualidades que fazem dele um Estado constitucional. Mas,
para que o Estado constitucional seja um estado com as qualidades identificadas pelo constitucionalismo, ele
deve ser também um Estado Democrático de Direito. Assim, existem duas grandes qualidades que o Estado
constitucional deve possuir: ser Estado de Direito e ser Estado Democrático. Esta conexão interna entre
democracia e Estado de Direito é, portanto, fundamental. (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª
ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 93).
5
poder supremo de um Estado senão pela via da legalidade, da produção de normas jurídicas
capazes de orientar os mandamentos que o compõem. Além disso, também a função exercida
pelo Direito na sociedade só poderia ser efetivada se contasse com o aparelhamento e a
organização proporcionada pela figura do Estado.
Nesse aspecto, Konrad Hesse observa que a presença e a relevância de tais conflitos
são fundamentais para que se possa vislumbrar a formação de uma unidade política. Hesse
ensina que a formação da unidade política de um Estado não implica o surgimento de um
Estado harmônico e a eliminação das diferenças sociais, políticas, institucionais e
organizativas por meio da nivelação total:
Convém salientar, contudo, que não é a existência do conflito que importa e, sim, a
resolução e a regulação dele, visto que somente a partir de tal esforço será possível tirar
proveito dos seus resultados, especialmente do seu efeito de garantir a formação e a
manutenção da unidade política do Estado10.
6
Este, por se tratar de uma realidade normativa com o intuito de estabelecer um modelo de
atuação dos membros da sociedade, indicando como as pessoas devem atuar e conviver,
apresenta-se como um mecanismo de controle das tendências de dissociação que surgem do
convívio social11. Portanto, a relação entre Estado e Sociedade por meio do Direito é natural.
O próprio Estado já é uma sociedade de fins políticos juridicamente organizada, com estrutura
e forma conferida pelo Direito por meio da Constituição12.
Nesse sentido, Pablo Lucas Verdú entende que a expressão Estado de Direito tem a
pretensão de transmitir a ideia de que todo o âmbito estatal está presidido de normas jurídicas,
o que leva à compreensão de que todo o poder estatal e qualquer atividade realizada pelo
Estado se ajustem àquilo determinado pelo Direito em suas prescrições legais15.
7
arbitrariedades e a direção atingida por tal desenvolvimento seria a inversão da relação
existente entre Poder e Direito. O autor explica que, embora a expressão possa comportar
certo esvaziamento de conteúdo, não se pode inverter o seu uso para afastá-la de sua origem
liberal.
Todas essas características descritas até agora se referem ao Estado que se formou
com base em uma forma moderna de representação do poder. Segundo Paulo Bonavides 19,
quando se utiliza a expressão Estado Moderno, pretende-se fazer referência àquele modelo de
Estado surgido em contraponto ao modelo estabelecido na antiguidade. Trata-se de uma nova
forma de representação do poder bem diferente daquela existente na Antiguidade Clássica e
também na Idade Média.
17
Agassiz Almeida Filho, em prefácio da sua tradução da obra de Pablo Lucas Verdú, A luta pelo Estado de
Direito, cit., p. X.
18
Gustavo Zagrebelsky, El Derecho Ductil, cit., p. 23.
19
Teoria Geral do Estado, 8ª ed., São Paulo: Malheiros editores, 2010, p. 33.
8
A consequência maior dessas transformações observadas na evolução do Estado
Moderno e seu Constitucionalismo, e que assinalaram o irreparável declínio do
sistema liberal de poder, foi a aparição de um Estado constitucional, cujos
fundamentos foram postos com toda clareza pelos publicistas que o teorizam.
Ocorre, porém, que o Estado não logrou ainda completar o ciclo de seu
desenvolvimento, nem determinar a natureza definitiva de suas formas
institucionais, tampouco dizer qual a tábua ou base de valores sobre a qual assentará,
por derradeiro, a sua legitimidade20.
Assim, pela primeira vez na época moderna, a lei vem submetida a uma relação de
adequação e de subordinação, já que deve obediência a um patamar mais alto do Direito: a
Constituição. Trata-se de uma inovação que se tem apresentado como uma continuação da
evolução dos princípios trazidos pelo surgimento do Estado de Direito, mas que, de fato, se
refere a uma profunda transformação e afeta, inclusive, a própria concepção de Direito21.
20
Teoria Geral do Estado, cit., p. 50.
21
Gustavo Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, cit., p. 34.
22
Teoria Geral do Estado, cit., p. 50.
23
Introdução à Teoria do Estado: fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional
Democrático, Tradução de Urbano Carvelli, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2009, p. 29.
9
24
capaz de fazer nascer um núcleo social” . Portanto, é possível afirmar que a Constituição
existe como decorrência do fenômeno político de formação estatal, porque, conforme bem
explicita Jorge Miranda, “onde está o fenômeno político, aí está o fenômeno constitucional”
25
.
Portanto, essa participação política, que se traduz em uma decisão democrática, deve
ser considerada como o princípio necessário da legitimação moral do exercício do poder 29.
Representa a apreciação dos princípios da liberdade e da igualdade, características
24
Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, cit., p. 31.
25
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. I, cit., p. 22.
26
O Poder de Reforma Constitucional, Bahia: Livraria Progresso Editora, 1954, p. 38.
27
Isto não impede que países como a Inglaterra, que adotam uma Constituição costumeira, cogitem a existência
de um Poder Constituinte. “O que há, nestas, é a permanente manifestação constituinte, na medida em que os
hábitos vão-se sedimentando para corporificar o costume.” (Michel Temer, Elementos de Direito
Constitucional, cit., p. 32-33).
28
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 98.
29
Francisco J. Laporta, Norma básica, Constitución y decisión por mayorias, in: Francisco J. Laporta (org.),
Constitución: problemas filosóficos, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 86.
10
fundamentais de toda democracia, legitima o documento formulado e confere a este a
validade necessária para se tornar a norma suprema do Estado.
Importa esclarecer que o poder sempre existe quando alguém tem a possibilidade de
fazer acatar pelos outros a sua própria vontade. Pode ser um poder de fato ou um poder
legítimo (de direito). O poder de fato utiliza-se da força para obter a imposição da vontade. Já
o poder legítimo “resulta do reconhecimento por aqueles a quem a vontade do sujeito se dirige
de que ele actua de acordo com uma lei digna de acatamento geral, isto é, de que ele está no
seu direito ao manifestar certa vontade” 31.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o poder constituinte, quando originário, não é
referente a um fato jurídico justamente porque suas características – de ser incondicionado e
30
Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, cit., p. 32.
31
Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, cit., p. 5.
32
Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, cit., p. 32, nota 1.
33
Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, cit., p. 5.
34
Elementos de Direito Constitucional, cit., p. 32.
11
ilimitado – já não reconhecem a este poder espécie alguma de restrição e, portanto, sem
referencial a seguir em qualquer norma jurídica. Assim, é por meio da manifestação deste
poder que todo o ordenamento jurídico se forma e faz surgir o texto constitucional, razão pela
qual o autor afirma que o poder constituinte é pré-jurídico e precede a formação do Direito35.
É possível afirmar, portanto, que, “desde que existe Estado, existe, materialmente, ao
36
menos, a função constituinte, pois não se compreende grupo estatal destituído da mesma” .
Sendo assim, o poder constituinte não seria um fato jurídico, mas fato é. Por essa razão, Celso
Antônio Bandeira de Mello qualifica como irrelevante a necessidade de se conferir a
titularidade desse poder a alguém:
35
Celso Antônio Bandeira de Mello, Poder Constituinte, In: Revista de Direito Constitucional e Ciência
Política, v. 4, Rio de Janeiro: Forense, p. 69.
36
Nelson de Souza Sampaio, O Poder de Reforma Constitucional, cit., p. 39.
37
Celso Antônio Bandeira de Mello, Poder Constituinte, cit., p. 69-70.
38
Direito Constitucional Comparado, I - O Poder Constituinte, São Paulo: José Bushatsky Editor, Editora da
Universidade de São Paulo, 1974, p. 37.
12
Martin Kriele39 sustenta que tanto o conceito de legitimidade quanto o conceito de
soberania formam a chave para a compreensão de quase todos os problemas da Teoria do
Estado na sua fase moderna. Kriele explica que o poder de imposição do poder público só
existe enquanto for justificado e a soberania depende da legitimidade, que é o fundamento da
soberania.
No entanto, por mais que a soberania popular seja uma necessidade inevitável para o
estabelecimento de um Estado Constitucional, trata-se de um recurso provisório a ser utilizado
em uma situação transitória. Essa afirmação é capaz de estabelecer os fundamentos da
diferença entre poder constituinte e poder constituído. Nas palavras de Martin Kriele:
39
Introdução à Teoria do Estado, cit., p. 29..
40
Norma básica, Constitución y decisión por mayorias, cit., p. 87.
41
Soberania popular y Estado de Derecho, In: In: Francisco J. Laporta (org.), Constitución: problemas
filosóficos, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 47. Texto no original: “En el
processo democratizador de la idea de soberania jugo, como és notório, um papel relevante Rousseau, quien
configuro como voluntad general el concepto moderno de por soberano. Dicha voluntad general, al igual
noción que la noción absolutista de soberania, será superior e transcedente a las voluntades individuales,
pero em lugar de recaer em um solo hombre será patrimônio inalienable del pueblo, a quien correrponderá
su titularidad y ejercício”.
13
soberano. Ele renuncia então à sua soberania através da legislação constitucional.
Assim se tem no artigo conclusivo da Constituição de 1791: “A Assembleia
Nacional declara que a Constituição está concluída e que nada pode modificar
quanto a isso”. Quando, portanto, o “pouvoir constituant” renuncia à sua soberania,
a Assembleia Legislativa vinculada à Constituição não tem soberania42.
Assim, é possível concluir que nem sempre o titular do poder constituinte é também
o exercente desse poder45. Por ser o poder constituinte um ato reflexo, possui a característica
de ser poder consciente e, por isso, deve pertencer a alguma entidade igualmente consciente,
personalizada. Trata-se de determinar o sujeito do poder constituinte, que pode ser passivo ou
ativo. O sujeito passivo do poder constituinte é a nação, porque, mediante a manifestação
deste poder, é constituída. Mas, para determinar a entidade definida como sujeito ativo do
poder constituinte, é necessário saber qual a entidade capaz de conferir à nação a
Constituição46.
42
Introdução à Teoria do Estado, cit., p. 202.
43
Nelson de Souza Sampaio, O Poder de Reforma Constitucional, cit., p. 42.
44
Introdução à Teoria do Estado, cit., p. 203.
45
MichelTemer, Elementos de Direito Constitucional, cit., p. 33.
46
Nelson Saldanha, O Poder Constituinte, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 72.
47
Nelson Saldanha, O Poder Constituinte, cit., p. 73.
14
Nélson Saldanha explica que, conforme as circunstâncias, a soberania tem sido
atribuída ao monarca, ao Estado ou ao povo48. Mas o fato é que nas circunstâncias atuais,
especialmente após o advento do constitucionalismo moderno, não há como se atribuir a
soberania ao monarca, razão pela qual se chega à afirmação de que o titular do poder
constituinte é o povo.
O fato é que a discussão envolvendo a titularidade do poder constituinte se torna
fundamental na medida em que surge a necessidade de se determinar o que ou quem seria esse
“povo”. O problema encontra-se no caráter abstrato que o termo representa. Para Francisco J.
Laporta:
Desde sua primeira aparição no cenário do pensamento político nas mãos do "abade
Sieyès," o conceito de poder constituinte traz consigo deliciosas afirmações sobre
entes misteriosos e atividades fantasmagóricas. Coisas, por exemplo, como a
comunidade é "... um conjunto capaz de querer e agir", ou que "a nação é tudo o que
pode ser pelo fato de que é". Sem mencionar essa outra: "De qualquer maneira que
uma nação quiser algo, basta com que queira; todas as formas são válidas e sua
vontade é sempre a lei suprema". Por fim, mediante uma linguagem enigmática e um
pouco mística, Emmanuel Sieyès veio dar forma de postulado constitucional a uma
aspiração política viva na realidade francesa da revolução. Mas o fez de um modo
que nos deixou muita confusão. A sequência argumentativa é fácil reconstruir: existe
um sujeito, a quem se usualmente se denomina de “soberano”, detentor de uma
vontade, com a qual cria as normas jurídicas e, em especial, a constituição 49.
48
O Poder Constituinte, cit., p.73.
49
Francisco J. Laporta, Filosofía del Derecho y norma, in: Francisco J. Laporta (org.), Constitución: problemas
filosóficos, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 23. Texto no original: “Desde
que hace su primera aparición en el escenário del pensamiento político de la mano de „abbé Sieyès‟, el
concepto de poder constituyente trae consigo deliciosas afirmaciones sobre entes misteriosos y actividades
fantasmagóricas. Cosas, por ejemplo, como la comunidad que es „.. un todo capaz de querer y de actuar‟, o
que „la nación es todo lo que puede ser por el hecho que es‟. Por no mencionar esta outra: „de cualquier
manera que quiera algo uma nación, basta com que lo quiera; todas las formas son válidas y su voluntades
siempre la ley suprema‟. Em definitiva, mediante um lenguaje enigmático y algo místico, Emmanuel Sieyès
venía a dar forma de postulado constitucional a uma aspiración política viva em la realidad francesa de la
revolución. Pero lo hizo de um modo que nos dejó legadas um sinfín de confusiones. La secuencia
argumental es fácil de reconstruir: existe um sujeto, al que usualmente se denomina “soberania”, provisto
de uma voluntad, con la que crea las normas jurídicas, y en especial la constitución”.
50
Direito Constitucional Comparado, cit., p. 37.
15
da titularidade do poder constituinte. Em um Estado Constitucional Democrático, o „povo‟
escolhe seus representantes por meio de eleições instituidoras de uma Assembleia
Constituinte, cuja função será constituir o Estado que se está pretendendo ordenar
juridicamente.
O problema que envolve a titularidade do poder constituinte representa, de certa
forma, uma visão de como o povo chegou à pretensão dessa titularidade e de como tem sido
possível viabilizar tal pretensão sem a quebra das conveniências democráticas, nem das
técnicas.51
Pode-se dizer que, somente com o surgimento das primeiras assembleias
constituintes, a teoria do poder constituinte começou a desenvolver-se. Foi por meio da obra
de Sieyès – O que é o Terceiro Estado? – que se propagaram as ideias de ascensão da
burguesia e possibilitaram, assim, o surgimento da primeira Assembleia Nacional
Constituinte52, em 1789. Porém, já em 1787, os delegados das ex-colônias britânicas
reuniram-se em forma de Assembleia, na Convenção de Filadélfia, que resultou na primeira
construção de Constituição nos moldes contemporâneos53.
É possível afirmar, portanto, que a titularidade do poder constituinte seria conferida
ao povo, mas o exercício do poder é conferido pelo povo aos seus representantes, capazes de
instituir um novo Estado e formular uma Constituição. Assim, das diferentes hipóteses que
podem surgir quanto ao titular do Poder Constituinte, a modalidade mais conhecida é a
Assembleia Constituinte54, que exerce esse poder por meio da representação popular que
detém no momento de formação do Estado.
Dessa forma, a noção do povo, como titular direto, e de seus representantes, como
titulares indiretos do poder constituinte, torna praticável a participação popular, já que o povo,
como tal, não teria condições de governar de forma direta nem formar a consciência
necessária para se autoconferir uma Constituição nos termos contemporâneos. Do mesmo
51
Nelson Saldanha, O Poder Constituinte, cit., p. 75.
52
Segundo Nelson de Souza Sampaio a teoria do poder constituinte somente começa a se delinear com as
primeiras assembleias constituintes: “(...) as convenções das colônias recém-emancipadas pela Revolução
Americana, somente se define nas vésperas da Revolução Francesa, através da obra de Sieyés Que é o
Terceiro Estado?, destinada a propagar as ideias e reivindicações da burguesia na campanha eleitoral que
antecedeu a reunião dos Estados Gerais de 1789” (O Poder de Reforma Constitucional, cit., p. 40).
53
André Ramos Tavares explica que a primeira manifestação histórica do poder constituinte se teria operado na
Convenção de Filadélfia de 1787, quando dezenas de delegados das ex-colônias britânicas se reúnem em
Assembleia. (Curso de Direito Constitucional, 8ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 51). A partir
da Convenção de Filadélfia, surgiu a primeira constituição escrita, que inaugurou o constitucionalismo
moderno.
54
Nelson de Souza Sampaio, O Poder de Reforma Constitucional, cit., p. 41.
16
modo, o governo, por si só, não teria o fundamento necessário para dirigir o povo se não fosse
por este eleito.
Nesse sentido, Karl Loewenstein aborda a existência de uma democracia
constitucional baseada em uma estrutura triangular, da qual participam governo, povo e
parlamento. Assim, a democracia constitucional parte do convencimento de que todo poder
emana do povo e, por isso, tanto o Governo quanto o Parlamento devem estar de acordo com
a vontade popular. Conclui-se, portanto, que existe uma complementaridade entre povo e
governo55.
Conforme aduz Joaquim José Gomes Canotilho, “o problema do titular do poder
56
constituinte só pode ter hoje uma resposta democrática” . O Poder constituinte é, portanto,
poder constituinte do povo concebido em sua „grandeza pluralística‟.
Canotilho explica que, somente a partir da noção pluralística que o termo „povo‟ comporta, se
torna possível abandonar o mito da subjetividade originária que envolve o poder constituinte,
responsável pela abstração envolvendo a sua titularidade.
Nesse aspecto, Peter Härbele sustenta que „povo‟ não é apenas um referencial
quantitativo que se manifesta no dia da eleição, mas também um elemento pluralista, que se
faz presente de forma legitimadora no processo constitucional57. Assim, o conceito atual de
povo deve ser compreendido, em sentido político, como um grupo de pessoas que agem
segundo ideias, interesses e representações de natureza política58.
Quanto ao aspecto da vinculação do poder constituinte, ainda que se afirme ser esse
poder ilimitado e livre, porque não encontra barreiras no direito positivo, convém observar
que, apesar de o poder constituinte ser capaz de criar outro poder, não pode deixar de ser uma
força plenamente consciente. No mundo moderno, as Constituições não são mais formações
espontâneas e, sim, obras reflexas, que devem corresponder à realidade e à necessidade social
de uma comunidade59. Assim, segundo Nelson Saldanha, o ato constituinte:
Relaciona-se com esse caráter intencional aquela vontade-de-futuro, que tem sido
notada nas Constituições ocidentais e revela um ânimo político determinado a
enfrentar, por uma resolução presente, as eventualidades vindouras, e a perenizar em
55
Teoría de la Constitución, Barcelona: Editorial Ariel, 1979, p. 91.
56
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 75.
57
Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – Contribuição para a
interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 37.
58
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 75.
59
Nelson Saldanha, O Poder Constituinte, cit., p.68.
17
sentido indefinido as suas disposições; há que encontrar então um traço de otimismo
nessas instaurações de Constituição, a projetar (tarefa do poder constituinte) a
valorização das soluções presentes sobre as perspectivas supervenientes. 60
Dessa forma, seria possível afirmar que, nos moldes do constitucionalismo atual, o
poder constituinte sofre limitações, uma vez que não pode transpor os ditames constitucionais
já assegurados e compreendidos como fundamentais. Mesmo quando originário, diante de um
Estado já formado, o poder constituinte sofre limitações decorrentes do contexto histórico e
cultural em que a comunidade política se encontra. Nas palavras de André Ramos Tavares:
Neste sentido é que se alude à situação histórica da comunidade política, aos ideais
de justiça, ao Direito Internacional, a um Direito Natural, a grupos de pressão
(presentes em toda Assembleia Constituinte), a crenças ou a uma realidade social
subjacente limitadora (normalidade na teoria do jurista Hermann Heller), ou a
princípios superiores de convivência humana.61
Assim, o poder constituinte não pode ser um ato inteiramente livre, uma vez que se
encontra originariamente orientado pelas necessidades da sociedade. O sujeito constituinte
deve obedecer a padrões e modelos de conduta culturais, éticos e sociais, radicados na
consciência jurídica geral da comunidade. Por tal razão, Joaquim José Gomes Canotilho
aponta a existência de uma vinculação jurídica do poder constituinte, já que existem
princípios de justiça e de direito internacional de indispensável observação na manifestação
constituinte62. Se o ato constituinte é capaz de quanta autodeterminação histórico-política, é
possível encontrar num corpo social; por outro lado, é inescapavelmente determinado pelos
diversos tipos de circunstâncias culturais, que marcam cada manifestação daquele corpo63.
Convém observar, no entanto, que existe uma diferença fundamental entre o Poder
Constituinte como função do ato constituinte e a Constituição como produto resultante do ato
constituinte. Consoante observa Jorge Reinaldo Vanossi, “o poder constituinte é
fundamentalmente função, participando da criação e distribuição de competências do Estado”
64
. Assim, para o autor, toda vez em que houver uma redistribuição ou reformulação na
divisão dessas competências o poder constituinte novamente se manifesta. Nas palavras do
autor:
60
O Poder Constituinte, cit., p.69.
61
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 63-64.
62
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 81.
63
Nelson Saldanha, O Poder Constituinte, cit., p.69.
64
Jorge Reinaldo Vanossi, Uma visão atualizada do Poder Constituinte, Revista de Direito Constitucional e
Ciência Política, v. 4, Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 12.
18
Não tenho nenhum inconveniente (para dizê-lo em termos teóricos, é claro) em
prescindir da expressão Poder Constituinte. Do que não podemos prescindir é da
noção desse conceito, da função constituinte. Existe uma função constituinte e, uma
vez que existem os poderes constituídos, existe algo ou alguém ou um ato que fez
distribuição do Poder. Não podemos entender o funcionamento dos poderes
ordinários, se não aceitarmos a preexistência de um órgão ou um Poder que cumpriu
uma função consistente em organizar e distribuir tais poderes ordinários. Se não nos
agrada denominá-los constituinte e se não queremos reconhecer o seu caráter
extraordinário de supremo, ilimitado, absoluto e todos os demais termos utilizados
pela doutrina tradicional, então prescindamos de todos esses adjetivos, mas, de
qualquer forma, temos que conceptualizar a existência de uma função sem a qual
não se concebe a estrutura do Estado Contemporâneo. 65
Nesse aspecto, cumpre ressaltar a distinção proposta por Paulo Bonavides entre
poder constituinte formal e poder constituinte material. Assim, existe uma Constituição
formal, composta de textos e folhas de papel, e outra real, relativa ao conjunto de forças
econômicas, políticas, sociais e financeiras, que estruturam a nação. A Constituição real é
65
Jorge Reinaldo Vanossi, Uma visão atualizada do Poder Constituinte, cit., p. 19.
66
Conforme André Ramos Tavares: “Segundo a doutrina de Georges Burdeau, a denominação de “poder” a essa
verdadeira potência é incongruente com a definição que lhe é comumente oferecida. Se é poder, só poderia
ser selvagem, que extravasa os limites do jurídico. O poder pressupõe, nos ensinamentos daquele renomado
publicista, um quadro de competências, o delineamento da extensão de seu exercício e sua ligação com uma
regra anterior, da qual vai haurir a validade de sua existência. Com o que se denomina „poder constituinte
originário‟ não ocorre isso. Decorre de tal fato motivo suficiente para abandonar, do ponto de vista técnico, a
referência a „poder‟. Preferível seria designá-lo simplesmente força ou energia constituinte, que
evidentemente só pode ser a originária e, mais do que isso, aquela que se manifesta como ruptura plena,
revolucionária ou que se relacione à independência de um Estado.” (Curso de Direito Constitucional, cit., p.
54)
67
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Manual de Direito Constitucional Comparado, cit., p. 68-69.
19
condicionante da Constituição formal e também abrange as correntes espirituais portadoras de
valores básicos. Essa Constituição real seria capaz de formar uma espécie de constituinte
permanente68. Nas palavras do autor:
Dessa forma, o poder constituinte formal cede espaço para o poder constituinte real,
que se assenta na própria sociedade e não no Parlamento. Esse é o poder que tem dado vida à
Constituição da Inglaterra e também seria este o poder por detrás da impressionante
permanência da Constituição americana70.
Na atualidade, têm-se reconhecido outras formas de manifestações da vontade
constituinte, incluindo-se nestas algumas decisões da Justiça Constitucional. Tais decisões,
identificadas como „mutação constitucional informal‟71, teriam a capacidade de atuar na
modificação do conteúdo constitucional por meio da atividade de interpretação da
Constituição. Nesse aspecto, poder-se-ia conceber a manifestação de um poder constituinte
real, capaz de fundamentar as decisões da Justiça Constitucional, porque, conforme aduz
Paulo Bonavides, “é o poder constituinte dos juízes e hermeneutas que interpreta a
Constituição72.
68
Teoria Geral do Estado, cit., p. 345-346.
69
Teoria Geral do Estado, cit., p. 347.
70
Paulo Bonavides, Teoria Geral do Estado, op. cit., p. 347.
71
André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 53. Conforme explica o autor: “É preciso
admitir que há outras situações nas quais as decisões constituintes parecem ser renovadas, situações não
controláveis e não identificáveis topicamente no tempo. É o caso, por exemplo, de diversas decisões da
Justiça Constitucional substantiva, especialmente daquilo que acabou sendo identificado pela literatura
tradicional como uma inofensiva e plenamente aceitável „mutação constitucional informal‟. O tema insere-se
no estudo da legitimidade e da posição (estrutural) da chamada Justiça Constitucional, com repercussões
evidentes para o estudo do sentido atual do poder constituinte.”
72
Teoria Geral do Estado, cit., p. 347.
20
do tempo, mas também o desenvolvimento político dos Estados que elegeram uma
Constituição como norma fundamental.
73
Nesse sentido, a Constituição aparece como ponto de partida, pois é a criadora da ordem jurídica por ela
ordenada. Bem diferente do sentido institucional de Constituição, em que esta aparece como resultado e
descreve o poder já institucionalizado, decorrente de fatores históricos. (Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, t. II, cit., p. 16)
74
Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo,
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 4-5.
75
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 23.
21
garantias fundamentais76. Como se pode observar, o autor concebe o Direito Constitucional
diante de problemas jurídico-políticos e, por isso, compreende o constitucionalismo como
uma teoria ou ideologia, que ergue o princípio do governo limitado, indispensável à garantia
dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade.
Do mesmo modo, Jorge Miranda entende que o constitucionalismo somente pode ser
compreendido se integrado às grandes correntes filosóficas, ideológicas e sociais dos séculos
XVIII e XIX, pois traduz a ideia de Direito liberal e baseia a regulamentação do Estado em
conformidade com os princípios dos textos revolucionários proclamados78.
Todavia, Karl Loewenstein afirma que a existência de uma Constituição escrita não
se identifica com o surgimento do constitucionalismo, já que organizações políticas
anteriores já haviam vivido sob um governo constitucional, sem sentir a necessidade de
estabelecer limites para o exercício do poder político79. Mas, conforme se explicará mais
adiante, o autor refere-se ao constitucionalismo da antiguidade, em momento anterior ao
estabelecimento do chamado constitucionalismo moderno, surgido após o aparecimento das
primeiras Constituições escritas.
76
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 53.
77
Santi Romano, Princípios de Direito Constitucional Geral, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 42.
78
Manual de Direito Constitucional, cit., p. 17.
79
Teoria de la Constitución, cit., p. 154.
80
Luis Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, cit., p. 5
22
Constituição moderna, consistente em uma “ordenação sistemática e racional da comunidade
política por meio de um documento escrito, no qual se declaram as liberdades e os direitos e
81
se fixam os limites do poder político” . Já a Constituição histórica se refere ao “conjunto
de regras (escritas ou consuetudinárias) e de estruturas institucionais, conformadoras de uma
dada ordem jurídico-política num determinado sistema político-social” 82.
81
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 52.
82
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 53.
83
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, cit., p. 22
23
Nesse sentido, a Constituição evidencia o Estado como instituição por ser permanente,
independentemente das circunstâncias e dos detentores do poder.
84
Karl Loewenstein, Teoria de la Constitución, cit., p. 154-155. Conforme explica o autor, a primeira forma de
oposição legítima ao poder na história foram os profetas, conhecidos como vozes da consciência pública que
iam contra os dominadores injustos, carentes de sabedoria e que se teriam afastado do caminho estabelecido
nas Leis do Senhor. Com a ajuda de uma Constituição moral da sociedade estatal, os profetas fundamentaram
a rebelião contra a autoridade que se havia esquecido da Lei.
85
Na Grécia antiga, Aristóteles não se esqueceu do sentido normativo de ordem, de liberdade, ao realizar seus
estudos sobre as diferentes constituições de Cidades-estados. (Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, cit., p. 14)
86
André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 26.
87
Karl Loewenstein, Teoria de la Constitución, cit., p. 156. O autor explica que, diante da grande contribuição
dos gregos na evolução política ocidental, não teria muita importância o fato de que a polis-Estado tivesse
24
A decadência da democracia exemplar na Grécia ocorreu quando o fundamentalismo
democrático foi levado ao extremo e a assembleia de cidadãos se tornou poderosa, a ponto de
não se submeter a limite constitucional algum. Assim, o povo tornou-se incapaz de frear o seu
próprio poder soberano e impossibilitou que as cidades-estados gregas alcançassem
estabilidade interna e gerassem inconstância em seu caráter nacional, tornando-se alvo fácil
para ataques estrangeiros88.
sido montada sobre uma infraestrutura de uma economia de escravos. Contudo, convém ressaltar o fato de
que a participação política dos cidadãos gregos na antiguidade rejeitava, nesse grupo, a participação de
muitos seres humanos, assim hoje considerados na sociedade atual. Portanto, mulheres, crianças, escravos,
deficientes físicos e doentes não eram considerados cidadãos gregos e, sendo assim, não possuíam qualquer
participação naquele processo democrático. Talvez se esse modelo fosse trazido para a atualidade, essa
democracia também não poderia ser considerada tão constitucional assim, a não ser sob o ponto de vista
formal.
88
Karl Loewenstein, Teoria de la Constitución, cit.,p. 156.
89
Karl Loewenstein, Teoria de la Constitución, cit.,p. 157.
90
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, cit., p. 13.
25
Todavia, apesar de serem compreendidas como leis fundamentais do Estado,
superiores e dignas de serem respeitadas pelos reis, as Constituições institucionais, por serem
difusas e vagas, não eram capazes de determinar, com o rigor necessário, as relações entre
governantes e governados.
91
Luis Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, cit., p. 9.
92
Dalmo de Abreu Dallari, A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao século XXI, São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 45-46.
93
Horst Dippel, História do Constitucionalismo moderno: Novas perspectivas, Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2007, p. 1-2.
26
Talvez, por esse motivo, as explicações relativas ao surgimento e ao
desenvolvimento do constitucionalismo, advindo desse período revolucionário, se tornem, por
vezes, um pouco confusas. Na verdade, as consequências trazidas pelas grandes revoluções
foram capazes de modificar a estrutura organizatória e as bases em que se assentavam os
Estados. Tais consequências transformaram o papel do Estado na sociedade e fizeram surgir
uma nova espécie de Estado, que, no momento pós-revolucionário, assumiu o adjetivo de
Estado Liberal.
Essa afirmação talvez seja capaz de explicar a constatação exposta por Horst Dippel
no sentido de que, apesar de existir um grande número de estudos no campo do Direito
Constitucional, que pretendem explicar as origens do constitucionalismo moderno e sua
formação, poucos realmente ensinaram sobre a sua história. Segundo o autor, em todos esses
estudos, a unidade de análise escolhida foi o Estado e prejudicou, assim, uma perspectiva
direcionada para um nível mais elevado96.
94
Artigo 16 – Toute société dans laquelle La garantie des droits n‟est pás assurée, ni La separation dês
pouvoirs déterminée n‟a point de Constitution.
95
Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 88.
96
História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 4.
27
Com o surgimento do Estado Liberal, ocorreu uma completa separação do Estado e
da Sociedade, uma vez que as leis eram estabelecidas apenas em razão da organização dos
Poderes do Estado. Reduziu-se, assim, o conceito de Constituição a uma simples lei do
Estado, o que contribuiu para a formalização da ideia de que a Constituição somente poderia
ser entendida através do Estado97.
Para Celso Bastos, o Estado liberal, também chamado de Estado constitucional, tem
dois fundamentos principais: a história política da Inglaterra e o Iluminismo francês do século
XVIII98. Entretanto, seria possível afirmar que o conceito moderno de Constituição surgiu a
partir do desenvolvimento das Constituições americana e francesa.
97
Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 89. Para Canotilho,
existem três razões fundamentais capazes de explicar a transmutação da Constituição da República para a
Constituição do Estado: a) a evolução semântica do conceito de constituição; b) a progressiva estruturação do
Estado Liberal; e c) a influência da filosofia hegeliana e da jusblicística germânica, que compreendiam a
Constituição como uma ordem de um Estado.
98
Curso de Teoria do Estado e Ciência Política, cit., p. 138.
99
Segundo Martin Kriele, o Liberalismo foi um movimento político que buscava atingir dois objetivos: o Estado
Constitucional e a economia de mercado. Por se tratar de uma filosofia propagada pela sociedade burguesa de
mercado, o Estado Constitucional formado a partir do Liberalismo seria, assim, um Estado da classe
burguesa, a serviço dos produtores e comerciantes. No entanto, convém observar que a economia de mercado
não é apoio confiável do Estado Constitucional, já que esta parte da doutrina liberal voltada para o aspecto
econômico apenas encontrará respaldo nos valores fundamentais da pessoa humana. (Introdução à Teoria do
Estado, cit., p. 240).
28
valores também propagados pela Revolução Francesa, foram legados a um plano
secundário100.
O fundamental é que o indivíduo seja livre para atingir e realizar as suas opções
fundamentais. Do Estado, espera-se muito pouco: basicamente que organize um
exército para defender a sociedade contra o inimigo externo. Que assegure a boa
convivência internamente mediante a polícia e o Judiciário, incumbidos de aplicar as
leis civis e as leis penais. Tudo o mais, saúde, educação, previdência, seguro social,
será atingido pela própria atividade civil. Prega-se, portanto, o Estado absenteísta.
Quanto menos, melhor, ou, se preferir, o Estado é um mal necessário 102.
100
Dalmo de Abreu Dallari, A Constituição na vida dos povos, cit., p. 104.
101
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, cit., p. 17. Evidencia-se aqui o princípio da separação
dos Poderes e o primeiro mandamento da Revolução Francesa: liberdade.
102
Curso de Teoria do Estado e Ciência Política, cit., p. 139.
103
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, cit., p. 18.
104
André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 33.
29
Enquanto nos Estados Unidos, a Constituição recebeu, desde a sua origem, o caráter de norma
fundadora do Estado e tornou-se a norma fundamentadora de todo o sistema jurídico, na
Europa, o reconhecimento da primazia constitucional foi muito mais complexo.
Dessa forma, a lei passou a ser um ato supremo e, somente por meio dela, o Estado
seria capaz de justificar e validar suas ações. Assim, no Estado Liberal, desenvolve-se o
princípio da legalidade, que assinala a derrota do Absolutismo e do Antigo Regime106. Ao
expressar o Direito, a lei determina a contenção do poder do Estado, no contexto da
experiência social vivenciada em cada momento histórico107. Com isso, protegia-se a
liberdade conquistada e combatiam-se as antigas tradições absolutistas.
Por tudo isso, a Constituição escrita surge como uma necessidade no continente
europeu, tendo em vista que a ordenação desses mandamentos se torna complexa demais para
se basear apenas em normas esparsas e costumeiras. Dessa forma, é possível dizer que a
principal mudança surgida com o desenvolvimento do Estado Liberal na Europa foi o
105
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, cit., p. 20.
106
Gustavo Zagrebelsky, El Derecho dúctil, cit., p. 24.
107
Maria Garcia, Desobediência Civil: direito fundamental. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 72.
30
estabelecimento de limitações ao poder e, principalmente, a forma como esse poder é
distribuído.
108
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, cit., p. 19.
109
Dalmo de Abreu Dallari, A Constituição na vida dos povos, cit., p. 30.
110
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 42.
111
Quanto ao desenvolvimento do constitucionalismo fora da Europa, observa-se que, na América Central e
Meridional, em populações de dominação espanhola e portuguesa, eram proclamadas constituições escritas
como o modelo norte-americano, conforme a tendência europeia. Já na Ásia, principalmente no Japão,
apesar de terem sido proclamadas constituições escritas, não havia possibilidade de estas serem interpretadas
nos moldes das concepções jurídicas europeias ou norte-americanas, tendo em vista a permanência de fortes
tradições, que já fazem parte da cultura e do espírito nacional do povo. (Santi Romano, Princípios de Direito
Constitucional Geral, cit., p. 54). No Japão permanece ainda a figura do „Tenno‟ – o enviado de Deus – que é
o Imperador, a figura do governo, da autoridade e do Estado. Apenas a título de esclarecimento, uma vez que
31
Joaquim José Gomes Canotilho estabelece modelos teóricos para melhor
compreender o desenvolvimento da ideia constitucional. Assim, o autor classifica o
desenvolvimento do constitucionalismo em modelo historicista, modelo individualista e
modelo estadualista112.
Cada um dos modelos trazidos pelo autor busca responder a questões relativas ao
desenvolvimento do constitucionalismo britânico, francês e americano. Portanto, convém
aprofundar-se um pouco mais acerca das experiências precursoras do constitucionalismo
moderno, observadas na Inglaterra, nos Estados Unidos da América e na França.
Após a revolução puritana, a nova classe média ocupou o seu devido espaço no
Parlamento inglês e exigiu sua participação no processo político, além de reivindicar
limitações para a Coroa. Em 1678, com a Revolução gloriosa, o Parlamento venceu e a
monarquia absoluta foi substituída pela monarquia constitucional, com o estabelecimento de
limitações constitucionais à Coroa114.
o estudo do constitucionalismo desenvolvido nos países orientais toma direção completamente diferente da
dos países ocidentais, em razão da forte tradição cultural e religiosa que conservam, ainda hoje, seus traços
sociais mais primitivos. Karl Loewenstein explica que, nos países dos impérios orientais da antiguidade, a
ideologia aplicada era a da Teocracia, sistema em que os detentores do poder na terra seriam meros agentes
ou representantes do poder divino. No Oriente, os valores religiosos e “seculares” estavam fusionados e a
teocracia apareceu com diferentes nomes e formas no mundo islâmico, no budismo e no xintoísmo e é um
tipo de governo que até hoje ainda se mantém no Tibet. Portanto, o desenvolvimento constitucional no
Oriente é extremamente ligado às tradições culturais e religiosas daquele povo. (Teoría de la Constitución,
cit., p. 154).
112
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 55.
113
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 43.
114
Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, cit., p. 157. Segundo o autor, neste período teria surgido a
primeira constituição escrita. No lugar de documentos outogardos pela coroa, outros começaram a surgir.
Primeiramente surgiu o Fundamental Orders of Connecticut (1639). Depois, o Agreement of the people
(1647) foi criado em plano privado, mas acabou sendo considerado o documento mais influente da Inglaterra,
considerado como o primeiro projeto de uma constituição moderna. Em 1654, o Instrument of Goverment
seria a primeira constituição escrita válida do Estado Moderno. Mais tarde, outras leis igualmente
importantes surgiram o Habeas Corpus Act de 1679, o Bill of Rights de 1668 e o Act of Settlement 12 &13
32
Na Inglaterra, as limitações constitucionais impostas à Coroa, apesar de serem
identificadas em inúmeros documentos escritos, não foram capazes de formar um documento
único. A existência de um documento formal escrito com a finalidade de ser reconhecido
como Constituição foi dispensada, visto que o próprio povo já reconhecia a importância
constitucional das suas leis fundamentais e lhes conferia a solenidade necessária, como se
tivessem sido documentadas formalmente.
Na Inglaterra de hoje não se pode mais admitir que se trate de um sistema no qual a
Constituição seja exclusivamente costumeira. Pelo contrário, o ordenamento jurídico
inglês compõe-se do denominado Direito estatutário e das convenções
constitucionais, ao lado da jurisprudência e dos costumes (especialmente
parlamentares)115.
Assim como Santi Romano, Mario G. Losano também identifica as leis fundamentais
da Inglaterra na origem do constitucionalismo europeu. Segundo explica o autor, a história
jurídica inglesa é uma contraposição ininterrupta de leis setoriais do soberano e de constumes
de 1700). Contudo, os Ingleses acabaram por abandonar a concepção de uma lei fundamental escrita e se
contentaram com a regulação em leis individuais de sua ordem fundamental. Luís Roberto Barroso também
inclui neste rol, a Magna Charta de 1215 e a Petition of Rights de 1689. A Magna Charta, em razão da
amplitude de seus termos, é considerada um marco simbólico da história constitucional como uma carta geral
de liberdades públicas. Tratava-se de um documento responsável pela imposição da força política dos barões
do feudalismo ao Rei, capaz de resguardar dos direitos relativos à propriedade, à tributação e às liberdades,
inclusive a religiosa. Já a Petition of Rights, foi considerada o primeiro documento imposto pelo parlamento
ao Rei que continha substanciais limitações ao seu poder. (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo,
cit., p. 10-11).
115
Curso de Direito Constitucional, cit. p. 91.
116
Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, cit., p. 13.
33
não-escritos. É “da interação entre esses elementos que surge aquele sistema de limitações ao
poder soberano que, no século XVIII, serve de modelo a quem deseja limitar as monarquias
do continente europeu” 117.
Tal afirmativa se refere ao fato de que a Inglaterra se encontra sempre sobre a mesma
base, não interrompe ou, quando muito, restaura sem grandes modificações a atividade
legislativa, enquanto as Constituições de outros Estados têm tido caracteres mais ou menos
revolucionários. Esse aspecto é capaz de refletir-se diretamente na forma que as Constituições
adquirem. A Inglaterra nunca teve Constituição escrita, mas, quando o modelo de ordenação
inglesa foi transplantado para outros lugares, prevaleceu o sistema de redigir o Direito
constitucional119.
Segundo Luís Roberto Barroso, como a Constituição inglesa não possui forma de um
texto escrito, tem, portanto, natureza flexível, embora essa flexibilidade proporcione a
alteração da Constituição mediante ato do Parlamento120, já que, na Inglaterra, o modelo de
democracia se baseia na supremacia do Parlamento e não na da Constituição.
117
Os grandes sistemas jurídicos: Introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus, Tradução de
Marcela Varejão, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
118
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 51.
119
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 44. Importante observar que o modelo de ordenação
inglesa, baseado em normas costumeiras, serviu de base para o surgimento de um modelo de
constitucionalismo, cujo fundamento é a formalização por escrito de normas constitucionais. Trata-se,
portanto, da tentativa de redigir um modelo não escrito, pois o modelo inglês de Constituição consuetudinária
não é formalizado.
120
Luís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, cit., p. 13.
34
traduções. Já a via indireta seria aquela que deriva da influencia do modelo estatal inglês
sobre as suas colônias, especialmente, as norte-americanas121.
121
Os grandes sistemas jurídicos, cit., p. 75. Ao estabelecer tal relação seria possível entender as influências
exercidas pelo constitucionalismo inglês no desenvolvimento do constitucionalismo norte-americano que,
posteriormente, resultou no surgimento do constitucionalismo moderno. Todavia, conforme se explicará mais
adiante, há indícios de que o constitucionalismo desenvolvido nos Estados Unidos introduziu uma linguagem
mais clara e direta, cujos direitos se encontravam de fácil identificação, diferentemente da linguagem
utilizada nas cartas inglesas. (Horst Dippel, História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 5-6)
122
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 53-54.
123
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 51-52.
124
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 56.
125
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 30.
35
Diante de tais, não se pode negar a importância do modelo constitucional inglês para
o surgimento do Constitucionalismo moderno, já que tais características se encontram
presentes em quase todos os modelos de Estado constitucional, estabelecidos a partir da Idade
Moderna.
126
Dalmo de Abreu Dallari, A Constituição na vida dos povos, cit., p. 229.
127
Mario G. Losano, Os grandes sistemas jurídicos, cit., p. 77.
128
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 58
36
democracia dualista, exposta por Bruce Ackerman, por meio da qual a tomada de decisões é
dividida entre o „povo‟ e o governo. As decisões do povo são tomadas apenas em momentos
constitucionais, ou seja, em momentos raros e diante de condições especiais. Já as decisões
tomadas pelo governo ocorrem diariamente, porém, devem obedecer a determinadas
condições129.
129
Nós, o povo soberano: fundamentos do Direito Constitucional, Tradução de Mauro Raposo de Mello, Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7.
130
Dalmo de Abreu Dallari, A Constituição na vida dos povos, cit., p. 230.
131
História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 5.
132
História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 6.
37
todas as frases, “como base e fundamento de governo”, uma afirmação até aí
completamente desconhecida e que colidia com qualquer interpretação possível da
Constituição inglesa133.
Todavia, para Santi Romano, a filosofia do século XVIII não teria influído muito na
natureza jurídica dos institutos surgidos na América, já que teriam servido de base apenas por
um curto momento e rapidamente se emanciparam dessas ideias. Os americanos teriam
sobrevivido após o declínio dos princípios trazidos pela doutrina francesa e demonstrado mais
vitalidade do que estes, o que, definitivamente, mostraria a capacidade de o Direito americano
ter influenciado mais na distribuição das ideias constitucionalistas no mundo do que o Direito
francês136. Nesse sentido, assim sustenta o autor:
(...) a imediata fonte principal do constitucionalismo francês deve ser buscada não
nas doutrinas filosóficas que floresceram na França no século XVIII, principalmente
naquela de Rousseau, mas nas cartas americanas, logo, é falsa a afirmação de que
tais doutrinas lhe deram figura e alma particulares. Na América, a democracia e o
constitucionalismo têm tido um caráter essencialmente religioso, remontam à
Reforma e às lutas por esta geradas, conservam sempre os traços dessa sua
característica originária; na França, pelo contrário, preparadas por um movimento
filosófico aludido, adquiriram um aspecto mais simples e puramente político;
133
História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 7.
134
A Constituição na vida dos povos, cit., p. 231
135
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 52.
136
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 53.
38
portanto, ao serem difundidas no continente europeu, foram adotadas com tal
aspecto137.
Interessante notar que, conforme observa Horst Dippel, nenhum dos critérios
estabelecidos na Declaração de Direitos do Estado de Virgínia era realmente novo. Todos já
haviam sido discutidos nas colônias britânicas, mas a linguagem como esses critérios foram
proclamados, com a utilização de expressões diretas e claras, fez com que parecesse uma
novidade139.
Pelo fato de já ter avançado nas discussões sobre independência e sistema ideal de
governo, além de também deixar claro o seu rompimento com a Inglaterra, a Declaração de
137
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 52.
138
História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 8.
139
História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 10.
140
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 60
39
Direitos do Estado de Virgínia serviu de ponto de partida para a Constituição dos Estados
Unidos da América, que somente seria aprovada em 1787.
141
Horst Dippel, História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 10.
142
Horst Dippel, História do Constitucionalismo moderno, cit., p. 16.
40
No entanto, não se pode deixar de considerar certo resquício da influência das ideias
filosóficas difundidas na França no século XVIII. Certamente, alguma lição Thomas Jefferson
e outros ideários políticos americanos aproveitaram a literatura importada da França, porque
não se pode afirmar que, sem o acesso às ideias revolucionárias francesas, a Declaração do
Estado de Virgínia seria escrita nos mesmos moldes.
143
Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 50.
41
dando ensejo ao aparecimento de novas categorias políticas como poder constituinte,
soberania nacional e constituição escrita144.
144
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit. p. 56- 57.
145
Os grandes sistemas jurídicos, cit., p. 80.
146
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constituicional e Teoria da Constituição, p. 57-58.
147
Santi Romano, Princípios de Direito Constitucional Geral, cit., p. 50.
42
outras inspirações filosóficas e ideológicas sob pena ter seu âmbito de aplicação reduzido de
forma significativa148.
(...) é certamente a expressão definitiva daquilo que Pierre Bouretz designa como
movimento de retorno ao direito do país. Não se trata, como poderia parecer à
primeira vista, de uma mera reconstrução do Estado de Direito após anos de
autoritarismo militar. Mais do que isso, o movimento de retorno ao direito no Brasil
148
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, cit., p. 20.
149
Carlos Roberto Siqueira Castro, A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 15.
150
La Reforma Constitucional: El Constitucionalismo del “por-venir”. La reforma de la Constitución, In: El
Derecho Publico de Finales de Siglo: Una perspectiva iberoamericana, Madrid: Editorial Civitas, Fundación
BBV, 1997, p. 108.
43
também pretende reencantar o mundo. Seja pela adoção do relativismo ético na
busca do fundamento da ordem jurídica, seja pela defesa intransigente da efetivação
do sistema de direitos constitucionalmente assegurados e do papel ativo do
Judiciário, é no âmbito do constitucionalismo democrático brasileiro que se pretende
resgatar a força do direito, rompendo com a tradicional cultura jurídica 151.
151
Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação de Poderes, In: Luiz Werneck Viana
(org.), A Democracia e os três poderes no Brasil, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 26.
152
O Direito na pós-modernidade e reflexões frankfurtianas, 2ª ed. rev. atual.,Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2009, p. 146-147.
153
As conseqüências da modernidade, Tradução de Raul Fiker, São Paulo: Editora UNESP, 1991, p. 11.
154
Eduardo C. B. Bittar, O Direito na pós-modernidade, p. 35. O autor revela ainda que a pós-modernidade “não
encerra a modernidade, pois, em verdade, inaugura a sua mescla com os restos da modernidade” (p. 116).
44
Com vista nestas explicações não há ainda como determinar o marco inicial da pós-
modernidade e nem como afirmar que a modernidade já foi superada em todos os seus
aspectos, pois conforme afirma Eduardo C. B. Bittar, “pós-modernidade implica um momento
histórico, ou seja, uma certa conjuntura temporal que se processa „após a modernidade‟. Isso
155
importaria na necessidade de refinamento da própria ideia de modernidade aí contida” .O
que se sabe é que a modernidade vem sofrendo um desmoronamento paulatino, simbolizado
pelas múltiplas falências institucionais, pela existência de práticas incongruentes e desatinos
econômicos, geradoras de um estado de crise inegável e perceptível em todos os pontos de
vista156.
Esse novo ideal composto de valores, princípios e regras, além de novas técnicas de
hermenêutica e da teoria dos Direitos Fundamentais, recebe a designação provisória de pós-
positivismo158. Haveria, também, uma valorização de princípios, que são incorporados de
forma implícita ou explícita nos textos constitucionais e uma reaproximação do Direito com a
Ética.
155
Eduardo C. B. Bittar, O Direito na pós-modernidade, p. 23.
156
Eduardo C. B. Bittar, O Direito na pós-modernidade, cit., p. 97.
157
A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais, cit., p. 19.
158
Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o
papel dos princípios no Direito Brasileiro. Revista latino-americana de estudos constitucionais, n. 2, Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, jul.-dez, p. 175.
159
A força normativa da Constituição, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1991, p. 21.
45
espiritual do seu tempo e considere os elementos sociais, políticos e econômicos
dominantes; caso contrário, poderá vir a enfraquecer.
160
Carlos Roberto Siqueira Castro, A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais, cit., p. 25.
46
CAPÍTULO 2 – O „NOVO‟ DIREITO CONSTITUCIONAL
O problema reside no fato de que o Direito é uma realidade diversa demais, uma vez
que não possui definição única, concisa e universal, dada a variedade de elementos e a
particularidade que apresenta162. A própria variação do significado da palavra „direito‟ já
demonstra a pluralidade de compreensões a depender do modo como é ela aplicada. Várias
foram as teorias desenvolvidas com o intuito de determinar o conceito de Direito, no entanto,
para os fins deste trabalho, convém estabelecer como ponto de partida o positivismo jurídico,
especialmente o desenvolvido a partir de Hans Kelsen.
161
Maria Helena Diniz, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 19ª ed., São Paulo, Saraiva, 2008, p. 28.
162
Maria Helena Diniz, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, cit., p. 29.
47
Com o desenvolvimento do Estado na sua fase moderna, as regras do Direito natural
já não bastavam mais para assegurar a convivência pacífica entre os membros da sociedade e
controlar os abusos do poder estatal. No âmbito do racionalismo iluminista, a busca pelos
ideais de justiça tornou imprescindível o estabelecimento de normas criadas pelo próprio
homem “para controlar os ímpetos humanos e servir de veículo para a realização do bem
comum” 163.
163
Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 38.
164
Conforme explica Norberto Bobbio: “Com outra definição, poderíamos dizer que a teoria do direito natural é
aquela que considera poder estabelecer o que é justo e o que é injusto de modo universalmente válido. Mas
essa pretensão é fundada? A julgar pelas divergências entre os vários adeptos do direito natural sobre o que
deve ser considerado justo ou injusto, a julgar pelos fatos de que o que era natural para uns não o era para
outros, deveríamos responder que não. Para Kant (e em geral para todos os jusnaturalistas modernos), era
natural a liberdade; mas para Aristóteles, era natural a escravidão. Para Locke, era natural a propriedade
individual, mas para todos os socialistas utópicos, de Campanella a Winstanley, a Morelly, o instituto mais
conforme com a natureza do homem era a comunhão dos bens”. (Teoria Geral do Direito, Tradução de
Denise Agostinetti, São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 36).
165
Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 2. ed., São Paulo, Atlas, 1994, p. 75.
166
¿És el positivismo uma Teoría aceptable del Derecho?, In: Eduardo Ribeiro Moreira, Jerson Carneiro
Gonçalves Junior e Lucia Helena Polleti Betini (orgs.), Hermenêutica Constitucional: homenagem aos 22
anos do grupo de estudos Maria Garcia, Florianópolis: Conceito Editoral, 2010, p. 462-463.
48
princípio metodológico fundamental167. Kelsen concebe o sistema jurídico, cujo conteúdo é
formado exclusivamente por regras jurídicas. Por se tratar de uma teoria pura, Kelsen não
trata de princípios. Somente as normas, identificadas como as regras jurídicas, são
enunciados normativos com um pressuposto e consequência.
Importa ressaltar que, segundo observa Norberto Bobbio, a obra de Kelsen constitui
uma etapa fundamental da teoria do Direito. Apesar das incessantes críticas direcionadas às
suas afirmações, muitas outras obras se desenvolveram com base em conceitos fundamentais
trazidos por Kelsen168. Ainda assim, muitas vezes foi apontada como sede de todos os erros
do século169.
167
Hans Kelsen é apontado pela doutrina como um dos principais idealizadores do positivismo jurídico. Ao
desenvolver a sua Teoria Pura do Direito, Kelsen pretendeu explicar o direito sem qualquer influência
externa, eliminando os aspectos psicológicos, políticos e sociológicos. Apesar das críticas que sua teoria
sofreu, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, Kelsen reconhece que a teoria política, a sociologia e
a filosofia possuem objetos com certa conexão com o direito, mas este não pode ser analisado a partir de
influências de tais ciências, uma vez que elas podem obscurecer a essência da ciência jurídica e diluir seus
limites (Teoria Pura do Direito, 7ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.02).
168
Norberto Bobbio afirma que as duas principais teorias do direito surgidas nos últimos vinte anos, Law and
Justice de Alf Ross e The Concepto f the Law, de Herbert L. Hart, reconheceram o débito que contraíram
com a teoria pura do Direito. (Da estrutura à função, cit., p. 182)
169
Da estrutura à função: novos estudos de Teoria do Direito, Tradução de Daniela Beccaccia Versiani,
Baurueri, SP: Manole, 2007, p. 182.
49
feito contra o governo nazista, já que, do ponto de vista jurídico, tudo estaria normatizado
conforme as teorias do direito positivo. No entanto, o autor afirma que a crítica referente ao
fato de que o positivismo permitiu o nazismo é falsa, já que o próprio Hans Kelsen teria
defendido a criação de um Tribunal Constitucional, independente de todos os outros Poderes
do Estado e não a cargo do chefe do executivo170.
O próprio Hans Kelsen explica que a situação política e científica, pela qual a
Teoria Pura do Direito foi desenvolvida, referia-se à Primeira Guerra Mundial e aos abalos
sociais dela advindos, mas a situação não se modificou muito depois da Segunda Guerra
Mundial. Em resposta às críticas sofridas, aduz que:
Agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu
objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os
limites entre ciência e política, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um
determinado conteúdo, quer dizer, creem poder definir um Direito justo e,
consequentemente, um critério de valor para o Direito positivo 171.
170
O momento do positivismo, in: Dimitri Dimoulis e Écio Otto Duarte (coord.), Teoria do Direito
Neoconstitucional: Superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008, p. 235.
171
Hans Kelsen em prefácio à segunda edição de sua obra Teoria Pura do Direito, cit., p. XVIII.
50
em muitos sistemas de direito, tal como nos Estados Unidos, os critérios últimos
de validade jurídica podiam incorporar explicitamente, para além de pedigree,
princípios de justiça ou valores morais substantivos, e estes podem integrar o
conteúdo de restrições jurídico-constitucionais172.
172
O conceito de Direito, Tradução de A. Ribeiro Mendes, 5ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p.
309.
173
Eduardo Ribeiro Moreira, O momento do positivismo, cit., p. 237.
174
O momento do positivismo, cit., p. 238.
175
A incompatibilidade paradigmática entre positivismo e neoconstitucionalismo, in: Neoconstitucionalismo,
Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 334.
51
Friedrich Müller, o fracasso do positivismo jurídico não é casual, pois já afeta questões
fundamentais, como a realidade e o direito, o „ser e o dever ser‟176.
Para Friedrich Müller, não se trata de uma postura antipositivista, mas, sim, do
desenvolvimento de uma teoria pós-positivista, que concebe o trabalho jurídico como um
processo a ser realizado no tempo178.
176
O novo paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes, 2ª ed. rev. atual. amp. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p. 10.
177
Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, cit., p. 242.
178
O novo paradigma do Direito, cit., p. 11.
179
O momento do positivismo, cit., p. 240.
180
Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcelos, O começo da história: a nova interpretação constitucional e o
papel dos princípios no Direito Brasileiro, cit., p. 175.
52
Nesse aspecto, o constitucionalismo promove um retorno aos valores, vez que o
„pós-positivismo‟ guarda relativo respeito ao ordenamento jurídico, mas nele introduz ideias
de justiça e legitimidade181. A reaproximação da ética e do Direito seria possível mediante a
utilização de instrumentos jurídicos para concretizar os valores compartilhados por toda a
comunidade.
Não se pode esquecer que o positivismo jurídico teve, no final do século XX, a
importante função de superar as incertezas causadas pela aplicação da teoria do
direito jusnaturalista. (...) Em bom momento, a teoria do direito positivista teve seu
mérito de superar tais incertezas e dar rumo cientificamente exigido então ao
direito182.
181
Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro, Pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo, In: Luis Roberto Barroso (org.), A nova interpretação
constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e relações privadas, 3ª ed. rev., Rio de Janeiro: Renovar,
2008, p. 28.
182
O momento do positivismo, cit., p. 234.
53
„neoconstitucionalismo‟, „constitucionalização de direitos‟, „novo constitucionalismo‟,
„constitucionalismo contemporâneo‟ ou, ainda, „novo direito constitucional‟.
As exigências da ética que o Direito passa a ter que sustentar a partir do século XXI
conduzem ao constitucionalismo da verdade, conforme aduz Jose Roberto Dromi. Este seria o
modelo de constitucionalismo do por vir, vez que a Constituição não pode ser mais um
documento de promessas. Nas palavras do autor:
A Constituição deve ser uma ferramenta para ser, fazer e crescer. Não necessitamos
de uma Constituição somente para crescer, também para ser e fazer. Uma
Constituição que exija tanto a teoria como a prática; O saber especulativo como o
saber prático; a razão como a tradição. Este é o constitucionalismo imediatista. Para
não envelhecer, A Constituição tem que ser , e deve ser, a identidade axiológica dos
183
Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil, Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v. 28, n.60, Porto
Alegre: 2004 p. 26.
184
Neoconstitucionalismo e Teoria da Interpretação. In: Eduardo Ribeiro Moreira, Jerson Carneiro Gonçalves
Júnior e Lúcia Helena Polleti Betini (orgs.), Hermenêutica Constitucional: homenagem aos 22 anos do grupo
de estudos Maria Garcia, Florianópolis: Conceito Editoral, 2010, p. 216.
185
Em obra conjunta com Écito Oto Ramos Duarte, Neoconstitucionalismo e Positivismo Jurídico: as faces da
Teoria do Direito em tempos de interpretação moral da Constituição, São Paulo: Landy Editora, 2010, p. 77.
54
valores propostos e a prática política os valores realizados com atualização
constante186.
Cumpre salientar, no entanto, que a utilização recorrente dos prefixos „pós‟ e „neo‟
é justificável, na medida em que se destinam a expressar o que tem a pretensão de ser novo,
que veio depois, mas não se sabe ainda o que é e pode tanto ser avanço, quanto uma volta ao
passado188. Walber de Moura Agra compartilha desse mesmo entendimento, ao afirmar que
ainda não existe uma precisão conceitual para a terminologia „neoconstitucionalismo‟. Para
o autor, trata-se de um neologismo, que teria surgido com o objetivo de “exprimir algumas
qualificações que não poderiam ser devidamente explicadas pelas conceituações vigentes no
constitucionalismo, no juspositivismo ou no jusnaturalismo. Ele também é chamado de
constitucionalismo de direitos, constitucionalismo avançado ou paradigma argumentativo”
189
.
186
La Reforma Constitucional, cit., p. 108-109. Texto no original: “La Constitución deve ser una herramienta
para ser, hacer y crecer. No necessitamos una Constitución solo para crecer, también para ser y hacer. Una
Constitución que exija tanto la teoria como la práxis; el saber especulativo como el saber prático; la razón
como la tradición. Este es el constitucionalismo de la imediatez. Para no envejecer, la Constitución tiene que
ser, y debe ser, la identidad axiológica de los valores propuestos y la prática política los valores realizados
com actualidade constante”.
187
Maria Garcia, Desobediência Civil, cit., p.203.
188
Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito, cit., p. 27.
189
Walber de Moura Agra, Neoconstitucionalismo e superação do positivismo, In: Dimitri Dimoulis e Écio Oto
Duarte, Teoria do Direito Neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico?, São
Paulo: Método, 2008, p. 435.
190
O momento do positivismo, cit., p. 236.
55
positivismo incluso abranda tais características e trabalha com as fontes sociais, em que os
princípios passam a ser considerados.
191
Eduardo Ribeiro Moreira, O momento do positivismo, cit., p. 241-242.
192
O momento do positivismo, cit., p. 242.
56
identificar este processo evolutivo sofrido pelo Direito. Assim, os novos elementos trazidos
com esta nova teoria podem muitas vezes indicar se tratar do mesmo assunto, mas
identificados pela doutrina de forma diferente.
Écio Oto Duarte também registra uma série de propriedades e teses atribuíveis ao
paradigma neoconstitucionalista: a) pragmatismo; b) ecletismo (sincretismo) metodológico;
c) judicialismo ético-jurídico; d) interpretativismo moral-constitucional; d) pós-positivismo;
e) juízo de ponderação; f) especificidade interpretativa; g) ampliação do conteúdo da
Grundnorm; e h) conceito não positivista de Direito194.
193
Neoconstitucionalismo e superação do positivismo, cit., p.435.
194
Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico, cit., p. 64 e SS.
57
Como é tratado pelas
Como é tratado pelo
Tema Teorias Tradicionais do
Neoconstitucionalismo
Direito
Sociedade Homogênea Plural e Global
Monista (sem correlação Construtivista, com Parâmetros de
com o direito no Racionalidade Prática e Pretensão de
Moral positivismo jurídico) ou dos Correção, que vai guiar todo o
Valores (absoluta no discurso jurídico e romper com a
jusnaturalismo) ordem daquilo que é.
Estado Constitucional (acrescenta
uma especial atenção para as
emanações do poder constituinte e
Estado de Direito (com constituído – reformas
especial atenção à coerção constitucionais – e para o papel
Política exercida pelo Poder desempenhado pelo Tribunal
Judiciário e aos atos do Constitucional. Em primeiro plano,
poder público) aparece a constante vigilância em
torno dos Direitos Fundamentais, que
permitem o direito como um todo
alcançar novo status)
Desenho Lei em primeiro plano e Primazia da Constituição e da
Institucional das demais fontes tidas como Jurisprudência emanada pelo
Fontes do Direito secundárias Tribunal Constitucional
Primazia dos princípios preenchidos
pela argumentação jurídica.
Conjunto de Normas com Existência das normas políticas e dos
Teoria da Norma
configurações de regras critérios jurídico-procedimentais,
além de regras e princípios com
morfologia peculiar.
Metodologia constitucional apurada,
Teoria da Regras para interpretação e,
considerando valores e criando
interpretação quando estas não existirem,
conceitos como a derrotabilidade.
o intérprete é livre para
Toda interpretação jurídica é
julgar.
interpretação constitucional.
Positivismo (exclusivo ou
Teoria do Direito Neoconstitucionalismo
inclusivo)
Autoria: Eduardo Ribeiro Moreira195
195
Quadro apresentado no artigo Neoconstitucionalismo e teoria da interpretação, cit., p. 218-219.
58
O neoconstitucionalismo, como Teoria do Direito, pode ser compreendido como
paradigma que revisa a teoria da norma, a teoria da interpretação, a teoria das
fontes, suplantando o positivismo, para, percorrendo as transformações teóricas e
práticas nos diversos campos jurídicos integrá-las sob uma base útil e
transformadora 196.
196
Neoconstitucionalismo e teoria da interpretação, cit., p. 219-220.
59
2.4. A incompatibilidade entre positivismo jurídico e o „neoconstitucionalismo‟
197
Walber de Moura Agra, Neoconstitucionalismo e superação do positivismo, cit., p. 437.
198
O momento do positivismo, cit., p. 239-240.
199
Écio Oto Ramos Duarte, em obra conjunta com Susanna Pozzolo, Neoconstitucionalismo e positivismo
jurídico, cit. p. 71.
60
princípios e conteúdos de valores e irradia-se por todo o ordenamento jurídico, de forma a
proporcionar a sua constitucionalização. Assim, Susanna Pozzolo conclui que a metodologia
e a teoria da doutrina juspositivista não seriam adequadas para esse Direito surgido do
Estado Constitucional contemporâneo200.
Também sustentando a existência de uma incompatibilidade paradigmática entre o
positivismo e o „neoconstitucionalismo‟, Lenio Luiz Streck destaca a existência de três
frentes de batalha, que contrapõem o positivismo ao „neoconstitucionalismo‟. A primeira
delas é a teoria das fontes, tendo em vista que a lei não é fonte única, já que o
„neoconstitucionalismo‟ introduz a noção de princípios. A segunda refere-se à alteração
substancial ocorrida na teoria da norma, em razão do aparecimento dos princípios; o
„neoconstitucionalismo‟ evita a descontextualização do Direito entre dualismos que lhe
sustentam o modelo positivista-metafísico. Por fim, a terceira frente de batalha a ser
proposta trata do plano da interpretação, porque é impossível abordar o
„neoconstitucionalismo‟ sem superar o esquema da subsunção e a relação sujeito-objeto
proposta pelo positivismo jurídico201.
Portanto, os argumentos expostos de fato são capazes de sustentar que não há
qualquer possibilidade de compatibilizar o novo modelo construído pelo
„neoconstitucionalismo‟ com o positivismo jurídico, ou mesmo com a sua forma mais
branda, o positivismo inclusivo. Como visto, não se trata apenas de uma incompatibilidade
decorrente das diferentes concepções de Direito que os modelos apresentam nem referente
apenas ao fato de que o positivismo jurídico separa a Moral do Direito, enquanto no
„neoconstitucionalismo‟, a Moral e o Direito devem estar, necessariamente, em sintonia. A
discussão vai além, porque se refere a conceitos fundamentais norteadores do
desenvolvimento de qualquer Teoria do Direito.
O século XXI trouxe tendências para a sociedade atual que repercutem de forma
significativa nos desafios do Direito e exigem, em vista disso, uma transformação
equivalente do Direito Constitucional.
200
Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico, cit. p. 87.
201
A incompatibilidade paradigmática entre o positivismo e o neoconstitucionalismo, cit. p. 335.
61
Como o constitucionalismo se altera com o tempo e conforme a dinâmica social,
“O Direito contemporâneo passa, assim, pelo fio da navalha de uma renovação
incontornável: uma nova onda do constitucionalismo – movimento, processo, dinâmica –
por uma visão constitucionalizada do Direito” 202.
202
Maria Garcia, Desobediência Civil, cit., p.189.
203
Positivismo corrigido e positivistas incorrigíveis, in: Eduardo Ribeiro Moreira et.al. Hermenêutica
Constitucional: homenagem aos 22 anos do grupo de estudos Maria Garcia.Florianópolis: Conceito editorial,
2010, p. 30.
204
Positivismo corrigido e positivistas incorrigíveis, cit., p. 29.
62
modelo de Estado de Direito e sim uma completa transformação que inclusive afeta
necessariamente a concepção de Direito. Nas palavras do autor:
205
El derecho dúctil, cit., p. 33-34.
206
Positivismo corrigido e positivistas incorrigíveis, cit., p. 29.
207
Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil, cit., p. 65.
63
individuais‟, „direitos subjetivos públicos‟, „liberdades fundamentais‟ e „direitos humanos
fundamentais‟.
208
Direitos Humanos Fundamentais, 7ª ed., Saraiva: São Paulo, 2005, p. 15.
209
A eficácia dos Direitos Fundamentais, 4ª ed., rev., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 34.
64
Direitos Fundamentais (direitos sociais, políticos, individuais coletivos, de nacionalidade e
outros) 210.
Há, ainda, uma distinção entre as duas expressões mais utilizadas de forma genérica
para caracterizar direitos inseridos nesse contexto: „direitos humanos‟ e „Direitos
Fundamentais‟. De certa forma, os Direitos Fundamentais são sempre direitos humanos, uma
vez que seu titular será sempre o ser humano. Contudo, a utilização do termo “direitos
humanos” como um critério unificador não se justifica por essa razão, porque a expressão
“Direitos Fundamentais” se aplica aos direitos do ser humano, reconhecidos e positivados na
esfera constitucional interna, ao passo que o termo “direitos humanos” possui uma relação
com o direito internacional, já que se refere ao reconhecimento do ser humano como tal,
independentemente de qualquer ordem constitucional vigente. Os direitos humanos refletem,
portanto, um caráter supranacional de tais direitos e possuem uma validade universal211.
Isso se deve ao fato de que a maior parte das Constituições surgidas após a Segunda
Guerra Mundial teve suas bases retiradas da Declaração Universal de 1948 e em outros tantos
documentos internacionais que surgiram consequentemente. Além disso, não se pode negar o
atual processo de internacionalização do direito constitucional, o que acaba por aproximar213
ainda mais os conteúdos que as duas expressões procuram refletir.
Para Ingo Wolfgang Sarlet, apesar de haver uma conexão íntima entre os direitos
humanos e os fundamentais, a diferença entre eles ainda persiste, principalmente no plano da
210
Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 33.
211
Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 38.
212
Os Direitos Fundamentais, in: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 82, Belo Horizonte: 1996, p. 15-16.
213
Manoel Gonçalves Ferreira Filho compreende que a expressão “Direitos Fundamentais” é, na verdade, uma
abreviação de “direitos humanos fundamentais”. (Direitos Humanos Fundamentais, cit., p. 14).
65
positivação, visto que o termo „direitos humanos fundamentais‟ ainda ressalta os direitos
humanos de matriz internacional214.
De fato, existem expressões mais adequadas que outras, mas essa adequação depende
muito do contexto em que estão sendo empregadas. Muitas vezes, prefere-se utilizar o termo
„direitos humanos‟ por se tratar de um assunto referente à seara do Direito Internacional, sem,
contudo, deixar de trazer em seu sentido a expressão daqueles direitos que podem ter sido
reconhecidos em uma ordem jurídica interna como „Direitos Fundamentais‟.
Para efeitos de definição, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins afirmam que Direitos
Fundamentais são
214
A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 39.
215
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 393.
216
Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, 2ª ed. rev. atual. ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.
47.
66
Portanto, tratar de Direitos Fundamentais significa tratar dos direitos reconhecidos
por uma ordem jurídica interna, para que os Direitos Fundamentais possam ser estudados e
compreendidos como direitos jurídicos, positivamente vigentes em uma ordem constitucional,
é necessário que sejam antes positivados. Mas não é suficiente qualquer positivação, porque,
conforme observa José Joaquim Gomes Canotilho, a dimensão de Direitos Fundamentais
somente será conferida àqueles direitos positivados na Constituição, dotados de força de
norma constitucional217.
A constitucionalização dos Direitos Fundamentais não significa mera enunciação
formal de princípios. Segundo Alexandre de Moraes, a previsão constitucional de Direitos
Fundamentais representa a plena positivação de direitos a partir da qual o indivíduo tem a
possibilidade de exigir a participação do Poder Judiciário para a concretização. Tal previsão
direciona-se à proteção da dignidade humana em seu sentido mais amplo218.
No entanto, não se pode negar que, antes do reconhecimento de tais direitos em nível
de direito constitucional positivo, é possível identificar a existência dos chamados “direitos do
homem”, compreendidos como direitos naturais inerentes à própria natureza humana, que
antecederam e influenciaram o surgimento dos Direitos Fundamentais.
217
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 377.
218
Direitos Humanos Fundamentais e as Constituições brasileiras, in: Constitucionalismo social: estudos em
homenagem ao Ministro Marco Aurélio de Farias Mello, São Paulo: Editora LTR, 2003, p. 228-229.
219
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 380.
67
doutrina jusnaturalista, até chegar-se à fase de constitucionalização iniciada com as
declarações de direitos220.
Todavia, conforme ressaltam Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, a idéia de que os
Direitos Fundamentais tenham começado seu processo evolutivo ainda na antiguidade é
equívoca, porque somente se pode falar em Direitos Fundamentais diante da presença de três
elementos: Estado, indivíduo e texto normativo capaz de regular a relação entre Estado e
indivíduos221.
Portanto, haveria a necessidade de existir não somente o Estado ou o indivíduo, mas
de um instrumento capaz de regularizar esta relação. Sendo assim, a existência de uma
Constituição se faz fundamental, visto que somente por meio dela é que se torna possível a
declaração e, por consequência, a garantia dos Direitos reconhecidos como fundamentais.
Entretanto, pode-se afirmar que foi com o estabelecimento das cartas de franquias
medievais que os Direitos Fundamentais passaram a ser desenvolvidos de forma efetiva no
plano jurídico formal. A mais conhecida foi a Magna Carta de 1215, cuja finalidade foi
estabelecer o reconhecimento de direitos e prerrogativas ao rei em troca de certos direitos de
liberdade estamentais aos barões. Portanto, a Magna Carta não trazia a ideia de Direitos
Fundamentais inatos, mas já era capaz de estabelecer a abertura necessária para o
desenvolvimento dos direitos do homem, especialmente no que diz respeito à ideia da
liberdade individual.
Porém, conforme observa Ingo Wolfgang Sarlet, não se pode conceder a esses
direitos conferidos pela Magna Carta e outros documentos da mesma espécie o caráter de
autênticos Direitos Fundamentais, visto que foram conferidos dentro de um contexto social e
econômico marcado pela desigualdade222. Tratava-se de direitos atribuídos somente a certas
castas da sociedade medieval e, por isso, não estabeleciam direitos gerais e, sim, obrigações
concretas dos reis que subscreviam os documentos.
Segundo Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, somente na segunda metade do
século XVIII que foram reunidas as condições para o aparecimento dos Direitos
Fundamentais223. Todavia, é possível afirmar a existência anterior de circunstâncias histórico-
sociais capazes de influenciar no surgimento de tais direitos.
220
A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 43.
221
Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, cit. p. 21-23.
222
A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 48.
223
Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, cit., p. 23.
68
A Reforma Protestante é exemplo de um acontecimento histórico-social que cumpre
importante papel para o surgimento dos Direitos Fundamentais. Com a Reforma,
gradativamente se reconheceu a liberdade de opção religiosa e de culto e isso contribuiu para
a laicização da doutrina do direito natural224.
Do mesmo modo, as declarações de direitos inglesas do século XVII (Petition of
Rights, Habeas Corpus Act, Bill of Rights) estabelecem Direitos e liberdades reconhecidas aos
cidadãos ingleses e surgem como enunciações gerais de direito costumeiro, capazes de limitar
o poder monárquico de forma progressiva. Para Ingo Wolfgang Sarlet, essas declarações
significaram a evolução das liberdades e privilégios estamentais medievais para liberdades
genéricas no plano do direito público, mas ainda não podem ser consideradas como marco
inicial do surgimento dos Direitos Fundamentais, visto que tais direitos e liberdades não
vinculavam o Parlamento e, portanto, careciam de supremacia e estabilidade225.
Nesse aspecto, importa ressaltar a existência de um conflito doutrinário acerca do
marco inicial da transição dos direitos e liberdades legais inglesas para o nascimento dos
Direitos Fundamentais, porque tanto na América do Norte como na Europa as Declarações de
Direitos surgiram quase que de maneira simultânea.
Assim, há quem defenda o surgimento dos Direitos Fundamentais com a Declaração
de Direitos dos Povos da Virgínia de 1776, sendo esta compreendida como marco inicial do
desenvolvimento do constitucionalismo moderno, conforme aqui exposto, segundo as ideias
de Host Dippel.
De fato, as declarações americanas contribuíram de forma muito significativa na
incorporação dos Direitos Fundamentais pela Constituição Americana de 1787 e teriam
incorporado virtualmente os direitos e liberdades legais inglesas, mas com características de
universalidade e supremacia e vinculação do poder público.
Outra vertente doutrinária defende que a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789 inaugurou o marco de transição dos direitos e liberdades inglesas para o
nascimento dos Direitos Fundamentais constitucionalmente previstos. Assim como as
declarações americanas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão também
comportava inspiração jusnaturalista e reconheceu a todos os homens direitos naturais
invioláveis, inalienáveis e imprescritíveis, mas possuía um caráter mais universal e abstrato,
224
Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 49.
225
A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 50.
69
razão pela qual é possível entender que não se tratava apenas de Direitos Fundamentais e, sim,
de direitos que vieram a ser compreendidos como direitos humanos.
A grande diferença residiria no fato de que a Declaração francesa não teria a visão
individualista identificada nas Declarações americanas, além de conferir ao legislador o papel
de representante do povo, capaz de estabelecer limitações aos Direitos Fundamentais226.
O principal acontecimento que relaciona os Direitos Fundamentais de forma
definitiva ao constitucionalismo foi quando a Suprema Corte americana reconheceu a
supremacia da Constituição frente ao legislador federal, no caso Marbury versus Madison. Ao
garantir-se a supremacia constitucional, garantiu-se também a prevalência dos Direitos
Fundamentais nela contidos frente às outras leis. Tal fato influenciou de forma decisiva na
dogmática dos Direitos Fundamentais, já que o judiciário passou a atuar de forma efetiva na
fiscalização do cumprimento de tais direitos pelos demais poderes do Estado227.
Mas, ainda que o estudo da evolução dos Direitos Fundamentais aponte para a
constitucionalização ou positivação como fator fundamental para o reconhecimento desses
direitos em um contexto histórico, o constitucionalismo contemporâneo tem demonstrado o
surgimento de novas concepções consideradas pós-positivistas, que apontam para a ideia de
serem os Direitos Fundamentais a base e a razão de ser do constitucionalismo atual. Desse
modo, pode-se assegurar a esses direitos a condição de cláusula superconstitucional, que,
interpretada adequadamente, servirá de mecanismo para permitir a continuidade e o
aperfeiçoamento do sistema constitucional democrático.
226
Teoria dos Direitos Fundamentais, cit. p. 24.
227
Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, cit., p. 24.
70
dos Direitos Fundamentais na Constituição não é mais capaz de, por si só, alcançar a almejada
efetividade de tais direitos, vez que muitas vezes a previsão constitucional existe, mas a
realidade prática é outra.
Neste sentido, a busca pela efetividade dos direitos fundamentais encontraria uma
resposta nas novas concepções propostas no constitucionalismo contemporâneo. Este novo
Direito Constitucional, ainda em processo de formação de conceitos e de desenvolvimento de
teorias já seria capaz de indicar soluções alternativas para tentar solucionar o problema da
falta de efetividade dos Direitos Fundamentais.
Convém esclarecer que não faz parte do intuito deste trabalho tratar sobre a eficácia
jurídica das normas constitucionais e suas variadas classificações muito bem abordadas em
vasta doutrina230. Pretende-se apenas estabelecer uma relação da eficácia social, ou seja, da
efetividade dos Direitos Fundamentais com o constitucionalismo contemporâneo na tentativa
de se encontrar alguma solução para o problema da concretização dos Direitos Fundamentais.
228
A eficácia dos Direitos Fundamentais, cit. p. 227.
229
Aplicabilidade das normas constitucionais, José Afonso da Silva, 7ª ed., São Paulo: Malheiros editores, 1999,
p. 13.
230
Desde Ruy Barbosa muitas concepções sobre o problema da eficácia jurídica das normas constitucionais
surgiram. Para aprofundamento do tema, sugere-se: José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas
Constitucionais; Luís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo; J.H. Meirelles
Teixeira, Curso de Direito Constitucional; Maria Helena Diniz, Norma Constitucional e seus efeitos; Celso
Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Brito, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais.
71
Em vista disso, André Ramos Tavares identifica na Justiça Constitucional “o papel
didático de orientação geral do Estado no cumprimento e implementação de direitos
231
fundamentais” . Assim, é possível encontrar na Justiça Constitucional a possibilidade de
alcance da almejada efetividade dos Direitos Fundamentais.
231
Justiça Constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas, in: André Ramos Tavares (coord.), Justiça
Constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 163.
72
CAPÍTULO 3 - O PAPEL DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NA
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Assim, a lei foi concebida inicialmente apenas como uma força passiva, ou seja, uma
força em sentido estrito, e as decisões judiciais não tinham capacidade de exercer uma força
em sentido idêntico àquela conferido às leis. Portanto, nessa época, não há qualquer espaço
para a atividade de interpretação das leis, o que gera uma impossibilidade técnica de
existência de um Tribunal Constitucional234. Assim, o Judiciário era considerado apenas um
232
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 890.
233
Teoria da Justiça Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36.
234
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 37.
73
órgão de mera aplicação mecanicista da lei, em que os juízes deveriam retirar o seu respaldo
do Legislativo, de forma que era incompatível qualquer atuação de caráter normativo e
inovador.
235
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 890.
236
Marcelo Figueiredo, O Controle de constitucionalidade no Brasil, In: André Ramos Tavares e Walter
Claudius Rothenburg, Aspectos atuais do controle de constitucionalidade no Brasil: Recurso Extraordinário
e Arguição de Preceito Fundamental, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 176.
74
A explicação para um surgimento tão tardio (se comparado ao momento do
surgimento das Constituições) é de que apenas com o declínio do modelo de Estado legalista
começa-se a identificar o Direito não somente a partir das fontes. Com a crise, passou-se a
admitir uma pluralidade de fontes do Direito, indicativo de que esse novo modelo propõe uma
democratização do constitucionalismo237. Nesse aspecto, torna-se possível identificar o
surgimento de elementos capazes de dar início à transição entre os modelos positivista e pós-
positivista, ou, ainda, indicar as primeiras manifestações do neoconstitucionalismo.
Para que seja possível melhor compreensão da evolução do tema, convém, neste
momento, estabelecer uma distinção quanto às diversas terminologias aqui empregadas.
237
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 45.
238
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 47.
239
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 141.
75
Por „Justiça Constitucional‟ deve-se entender a justiça desenvolvida no âmbito do
Tribunal Constitucional e pode referir-se também a uma forma genérica de organização dos
tribunais constitucionais240.
Nesse sentido, André Ramos Tavares explica que o termo „jurisdição constitucional‟
tem sido utilizado para designar a atividade por meio da qual se realiza a proteção da
Constituição em todas as suas dimensões, por meio de um método jurídico-processual. Para o
autor, o uso desse termo parece pressupor a existência de um tribunal que desempenhe apenas
a curadoria da Constituição para assegurar seu cumprimento243.
240
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 151.
241
O termo jurisdição, quando empregado isoladamente, refere-se a uma das funções estatais que representa uma
forma de exercício da soberania do Estado em nome do povo, conforme determina o art. 1º, parágrafo único,
da Constituição Federal de 1988. Athos Gusmão Carneiro qualifica a jurisdição como a atividade estatal
correspondente ao direito subjetivo de ação pelo qual alguém pede ao Estado que lhe faça justiça (Jurisdição
e Competência, 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 3). Para Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegini
Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, a jurisdição representa a segunda ordem de atividades jurídicas do
Estado no desempenho de sua função jurídica. A primeira ordem seria a legislação, capaz de definir normas
de caráter genérico e abstrato. Ao buscar a realização dessas normas no caso de um conflito concreto entre
pessoas, o Estado utiliza-se da jurisdição, capaz de assegurar a prevalência do direito positivo do país. O
desenvolvimento do conceito de jurisdição tem como ponto de partida um debate metodológico existente
entre duas correntes do direito processual: a teoria dualista e a teoria unitária do ordenamento jurídico.
Chiovenda, representante da corrente dualista, compreende que o ordenamento jurídico é dividido entre
direito material e direito processual. Já Carnelutti, adepto da teoria unitária do ordenamento jurídico, entende
que o direito objetivo é incapaz de disciplinar todos os conflitos de interesses e o processo é necessário para
complementar os comandos da lei. (Teoria Geral do Processo, 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
1991, p. 40).
242
A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação da jurisdição constitucional
brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 19.
243
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 145.
244
Lenio Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito, 2. ed, Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 13.
76
Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, quando se adota um modelo de controle de
constitucionalidade, que todos os tribunais têm o direito e o dever de realizá-lo, a jurisdição
conferida a estes tribunais também seria constitucional. Nas palavras do autor:
Teoricamente até seria possível dispensar o caráter exclusivo, tendo em vista que
qualquer cumprimento da Constituição e realização da sua defesa seriam, desde já, o exercício
de jurisdição constitucional. Mas tal entendimento poderia alargar o uso da expressão abarcar
também aqueles casos em que os tribunais em geral dão cumprimento à Constituição247.
Assim, a jurisdição constitucional deve ser considerada uma atividade típica de um órgão
estatal especificamente criado com a finalidade de verificar a relação de congruência entre as
normas infraconstitucionais e a Constituição.
245
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 896.
246
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 145.
247
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 146.
77
Constitucional‟ e „Tribunal Constitucional‟, embora a palavra „Corte‟ guarde mais referência
com a realidade do direito americano248.
Por isso, a função de controle constitucional das leis é entendida como função
inaugural do Tribunal Constitucional diante do destaque por ela ocupado, apesar de existirem
248
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 154.
249
Eduardo Garcia de Enterria, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, Madrid: Editorial
Civitas, 2001, p. 132.
250
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 159.
251
Los limites de la Justicia Constitucional: el Tribunal Constitucional entre juridicción y legislación, In:
Francisco J. Laporta (org.), Constitución: problemas filosóficos, Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2003, p. 165.
78
ainda outras funções originárias implícitas. André Ramos Tavares explica que ao Tribunal
Constitucional também estão atribuídas as funções: a) interpretativa; b) estruturante; c)
arbitral; d) governativa; e e) legislativa scrito sensu252.
De forma diferente, José Joaquim Gomes Canotilho destaca a existência das funções
da Justiça Constitucional, e não propriamente do Tribunal Constitucional, como propõe André
Ramos Tavares.
Importa ressaltar que não deve ser reconhecida como função própria do Tribunal
Constitucional a interpretação das leis, mas, sim, a interpretação da Constituição. A
interpretação das leis ordinárias será realizada pelo Tribunal Constitucional para fins de
controle de constitucionalidade254 e, nesse, caso, a função de controle estará em evidência.
252
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 255.
253
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 895.
254
André Ramos Tavares, Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 218.
255
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 256.
79
No que diz respeito à função governativa, André Ramos Tavares explica que ela se
faz presente no desenvolvimento de todas as outras funções, porque ocorre a partir do
momento em que as Constituições passaram a incorporar normas programáticas,
caracterizadas por postulados a serem executados pelos Governos, “o que „constrangeu‟ o
Tribunal Constitucional a trabalhar também nessa seara” 256.
Ressalte-se que, a respeito dessa última função, há certa polêmica, já que a atuação
do Tribunal Constitucional nesses casos poderia significar uma atuação política do Tribunal
Constitucional, o que não seria permitido (ao menos preliminarmente), conforme se
demonstrará adiante.
256
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 256.
257
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 256.
80
outras atividades do Estado, sem qualquer influência de natureza política, de modo a ressaltar,
assim, a sua imparcialidade.
De fato, não há como negar ao Tribunal Constitucional sua natureza jurídica, visto
que suas decisões estão atreladas às regras estabelecidas no ordenamento jurídico do Estado.
Nesse sentido, Eduardo Garcia de Enterría ensina que a força erga omnes das
sentenças do Tribunal Constitucional teria uma natureza puramente legislativa e, por isso,
admite que o Tribunal Constitucional é um legislador, mas um legislador negativo. Existiria,
258
Los limites de la Justicia Constitucional, cit., p. 169.
259
Los limites de la Justicia Constitucional, cit., p. 171. Texto no original: “En resumen, la justicia
constitucional pressupone la separación entre el juicio de constitucionalidad de las leyes o de otros actos de
poder, que compete al Juez constitucional, la decisión política expressada em la ley, que es competência del
legislador democrático, y el juicio de legalidad, que compete a la jurisdicción ordinária. Esta separación
obliga al Tribunal a realizar um esfuerzo autoinibitorio a fin de que no transformese en un legislador
positivo ni en un Tribunal Supremo. Sin embargo no siempre resulta fácil mantenerse fiel a estos
propósitos”.
81
assim, um poder legislativo de duas formas: o legislador positivo, que tem a iniciativa de
editar normas de forma inovadora; e o legislador negativo, que elimina as leis incompatíveis
com a norma constitucional260.
Contudo, não há como negar o sentido político que possui a Constituição. Aliás, esse
é o seu sentido clássico, visto que é considerada uma carta política por excelência, capaz de
reconhecer o regime político e a organização do Estado, fixar regras de exercício do poder e
da participação popular.
260
La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 132.
261
Marina Gascón Abellán, Los limites de la Justicia Constitucional, cit., p. 180.
82
Supremo nesse sentido é necessário para a manutenção da supremacia da Constituição, visto
que o poder conferido tanto ao Legislativo quanto ao Judiciário não pode ser considerado
absoluto e deve, sim, ser limitado aos termos aduzidos no texto constitucional. Mas o fato é
que, muitas vezes, questões políticas chegam ao Supremo Tribunal Federal como questões
jurídicas a serem dirimidas.
262
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 455.
263
Neste aspecto, convém lembrar a recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da
lei conhecida como “ficha limpa”. Não há como negar que a decisão emanada do Supremo, apesar de se
basear em critérios jurídicos (tendo em vista se tratar de um processo que questiona a constitucionalidade da
lei), gerou consequências políticas, uma vez que, reconhecida a constitucionalidade da lei, certo candidato foi
reconhecido como impedido de participar do recente processo eleitoral nos termos da lei.
264
Marina Gascón Abellán, Los limites de la Justicia Constitucional, cit., p. 181.
83
3.5. A Justiça Constitucional brasileira e as influências do sistema austríaco e americano
de controle de constitucionalidade
265
O Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., p. 177.
266
Importa ressaltar que, na França, não há controle jurisdicional de constitucionalidade, pois este controle é
realizado por órgãos políticos. O fato é que a concepção da lei como vontade geral manteve-se aliada ao
dogma da supremacia da lei e, sendo assim, somente as assembleias legislativas teriam o poder de,
politicamente, controlar as leis quanto a sua constitucionalidade.
267
O Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., p. 180.
268
O Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., p. 181.
84
Para Eduardo Garcia de Enterria, o Tribunal Constitucional seria uma invenção do
constitucionalismo americano, reelaborado algum tempo depois por Hans Kelsen. A própria
concepção de Constituição é uma criação do constitucionalismo desenvolvido na América do
Norte. Foi a primeira emenda à Constituição americana de 1787269, que trouxe as primeiras
definições capazes de conferir limites ao Poder Legislativo, tornando-se explícita a ideia da
sua supremacia270.
269
“Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof;
or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to
petition the Government for a redress of grievances”. (O Congresso não deve fazer leis a respeito de se
estabelecer uma religião, ou proibir o seu livre exercício; ou diminuir a liberdade de expressão, ou da
imprensa; ou sobre o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para
que sejam feitas reparações por ofensas).
270
La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 125.
271
Em poucas palavras, pode-se dizer que o caso girava em torno da nomeação de William Marbury para o cargo
de juiz de paz, feita em 1801 pelo ainda presidente federalista John Adams, que estava terminando o seu
mandato e não teve tempo hábil para empossar Marbury no cargo. O sucessor de Adams, Thomas Jefferson,
ao assumir a presidência ordenou que o seu Secretário de Estado James Madison negasse posse a Marbury.
Inconformado, Marbury recorreu à Suprema Corte com o fim de que Madison fosse obrigado a dar-lhe a
posse. Para decidir a questão, Marshall serviu-se da competência constitucional da Suprema Corte e concluiu
que a Lei Judiciária de 1789 (que serviu de base para o pedido de Marbury e permitia que o Tribunal
expedisse mandados para sanar atos ilegais do Executivo) “seria” inconstitucional, pois o Artigo III, Seção 2,
disciplinava de forma taxativa a competência originária da Suprema Corte. Assim, o Congresso não poderia
ampliar as competências da Suprema Corte por meio da Lei Judiciária de 1789. A decisão do juiz Marshall é
até hoje lembrada por ter estabelecido as bases do controle difuso de normas, mas expressou uma
problemática muito mais política do que jurídica. O fato é que o ambiente político da época revelava que o
partido federalista havia perdido a eleição da presidência para um representante do partido republicano. Mas,
ainda que os federalistas não detivessem mais o controle do Poder Executivo e do Legislativo (o Congresso
também era formado em sua maioria por republicanos), ainda detinham o controle do Poder Judiciário, cuja
maioria era composta por federalistas, como Marshall. Os republicanos jamais admitiram a interferência do
Judiciário nas deliberações do Executivo e a decisão de Marshall revelou-se surpreendente, porque, ao invés
de apoiar a vertente federalista, apoiou os seus adversários, ou seja, ao admitir que a Lei Judiciária de 1789
era inconstitucional, limitou a competência da Suprema Corte e não admitiu a sua interferência em atos do
Poder Executivo.
85
1857, pelo caso Dredd Scott, uma decisão da Suprema Corte foi capaz de anular uma lei do
Congresso americano272.
Por mais que não possa ser considerada a primeira decisão que reconheceu a
nulidade de uma lei frente à Constituição, a decisão de Marshall 273 ainda se revela muito
importante no desenvolvimento do sistema de controle de constitucionalidade americano,
porque foi capaz de mostrar que o juiz é o último intérprete da Constituição 274. Dessa forma,
os princípios da Supremacia da Constituição e da competência do Judiciário para invalidar
atos do Congresso foram efetivamente consagrados.
272
José Acosta Sanchéz, Formación de la constitución y jurisdicción constitucional: fundamentos de la
democracia constitucional, Madrid: Tecnos, 1998, p. 115.
273
Importa salientar que, para resolver a questão, Marshall partiu do princípio de que, se a Constituição
americana é escrita, significa que seus parâmetros já estavam expressos e não haveria sentido uma lei
deliberada pelo Congresso tratar de assuntos que já estavam definidos em seu texto de forma originária e
absoluta. Isso enfraqueceria o papel da Constituição e colocaria as leis em um mesmo patamar. Marshall
também alertou para o fato de que todos os Juízes e Cortes deveriam obedecer à Constituição e não somente
às leis.
274
José Acosta Sanchéz, Formación de la constitución y jurisdicción constitucional: fundamentos de la
democracia constitucional, Madrid: Tecnos, 1998, p. 122.
275
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 898.
276
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 898-899.
86
Conforme explica Marcelo Figueiredo, com exceção da França, quase toda a Europa
adotou o modelo hoje conhecido por todos como controle concentrado de constitucionalidade.
Tal sistema se fundava na existência de um Tribunal Constitucional formado por profissionais
do Direito, especialmente criado para trabalhar com o controle abstrato das normas e sua
compatibilidade com a Constituição. Essa experiência europeia teria sido responsável pelo
surgimento da Justiça Constitucional, especializada na aplicação do direito constitucional277.
(..) a ideia básica subjacente a este modelo é a de que a decisão de questões jurídico-
constitucionais representa uma função jurisdicional em sentido material (não se
trata, portanto, apenas de um problema político-constitucional)” 279.
277
O Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., p. 179.
278
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 896.
279
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 896.
87
Assim, pelo ordenamento jurídico brasileiro, é possível que um juiz ordinário
reconheça a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma determinada norma, uma
vez que sua decisão, nesse sentido, é relevante para a apreciação satisfatória do caso em
concreto. No entanto, a Constituição confere apenas ao Supremo Tribunal Federal a
competência originária exclusiva para a apreciação do controle de constitucionalidade das
normas em abstrato e prevê mecanismos processuais especialmente voltados para tanto.
Conforme aduz Gilmar Ferreira Mendes, o Supremo Tribunal Federal ocupa uma
posição peculiar em razão da combinação desses dois sistemas e atua tanto como órgão de
revisão de última instância, como também Tribunal Constitucional, com competência para
aferir a constitucionalidade das leis estaduais e federais280.
Mas a combinação dos modelos para a adoção de um sistema misto pode gerar
alguns problemas de operacionalidade e legitimidade. Para Marcelo Figueiredo, a adoção de
ambos os modelos gera dúvidas e fica difícil saber qual é o mais democrático, ideal ou eficaz.
Também se questiona com relação à segurança proporcionada pelos modelos e a qualidade
das decisões. Para solucionar tais problemas, é preciso antes ter em mente que cada jurisdição
constitucional estabelecida em determinado Estado possui critérios próprios, porque sofre
variações conforme o sistema constitucional em que foi estabelecida281.
Assim, ainda que o Brasil tenha adotado um sistema misto, tal sistema se espelha nos
modelos americano e austríaco, e, genuinamente, não é este nem aquele. A própria
combinação de fatores faz com que exista alguma técnica, em ambos os modelos, que foi
relativizada ou flexibilizada para que se torne possível a operacionalidade do sistema.
280
Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha,
3ª ed., São Paulo: Saraiva: 1999, p. 20.
281
O Controle de constitucionalidade no Brasil, cit., p. 181.
88
capacidade de deliberar de forma definitiva também sobre outros temas, como a distribuição
de competência e o conflito entre os poderes282.
Portanto, para que seja possível a manutenção do equilíbrio e a atuação dos Poderes,
faz-se necessário o controle recíproco entre eles, sendo que o Judiciário é o poder
constitucionalmente competente para dirimir tais conflitos. Trata-se, conforme visto, da
função de arbitragem designada ao Tribunal Constitucional.
De outra forma, se a lei emana do Poder Legislativo, é possível afirmar que ela
possui natureza política. No entanto, essa mesma lei também pode conter uma natureza
jurídica ao ser integrada ao ordenamento jurídico vigente no Estado. Contudo, conforme
explica Nuno Piçarra, em determinado momento, o componente político da lei pode vir a
sobrepor-se a seu componente jurídico e, assim, postergar os valores jurídico-constitucionais
282
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 48.
283
Nuno Piçarra, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: em contributo para o
estudo das suas origens e evolução, Coimbra Editora, 1989, p. 258-259.
284
Ana Cândida da Cunha Ferraz e Fernanda Dias Menezes de Almeida, Interpretação Constitucional: O
controle judicial da atividade política, in: Eduardo Ribeiro Moreira et.al., Hermenêutica Constitucional:
homenagem aos 22 anos do grupo de estudos Maria Garcia, Florianópolis: Conceito editorial, 2010, p. 64.
89
fundamentais285. Portanto, existe a necessidade de se estabelecer um poder para garantir a
realização desses valores, e o poder que se revela mais adequado para tanto é o judicial, com
função exclusivamente jurídica e despida de qualquer influência política, com enfoque apenas
na salvaguarda e atualização dos valores constitucionais.
a sua dimensão muitas vezes marcadamente política faz com que a tutela dos
princípios constitucionais e dos valores especificamente jurídicos em geral não
possa caber, em última instância, ao legislador, mas aos tribunais (nomeadamente ao
Tribunal Constitucional), os quais justamente nessa tarefa encontram o limite do seu
poder. Serão o legítimo contrapoder do legislador apenas na medida em que se
confinarem no controlo exclusivamente jurídico da constitucionalidade das leis. Mas
já não estão, de modo algum, legitimados a erigir-se em contralegisladores ou
substitutos do legislador, invadindo a ampla liberdade de conformação política deste
no quadro da Constituição e usurpando o núcleo essencial da função legislativa 286.
Neste aspecto, evidencia-se o debate, cada vez mais emergente, sobre a legitimidade
democrática do Tribunal Constitucional. Discute-se, pois, como um Tribunal Constitucional,
formado por juízes não eleitos democraticamente pelo povo, pode ter o poder de frear as
normas produzidas pelos representantes do povo.
285
A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional, cit., p. 260.
286
A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional, cit., p. 260
90
Justiça Constitucional, em que prepondera a vertente, para procurar indicar elementos que lhe
assegurem um caráter democrático287.
Por tudo isso, percebe-se que a mudança ocorre no modo de ver a democracia antes
existente no Estado legalista e a democracia hoje existente com o Estado constitucional.
Sendo assim, é possível afirmar que a democracia vivenciada no Estado legalista teria
evoluído para ser concebida de forma substancialmente diferente, dada a sua necessária
associação com a Constituição.
Ana Cândida da Cunha Ferraz e Fernanda Dias Menezes de Almeida explicam que,
nesse aspecto, surge a principal diferença entre os poderes políticos e o Judiciário. O
Legislativo e o Executivo são poderes políticos, cujo fator legítimo se encontra na escolha dos
seus membros por eleição popular. Diferentemente, o Judiciário, por sua natureza imparcial,
possui uma legitimidade decorrente da forma técnica de escolha dos membros, ou seja,
287
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 492.
288
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 494.
289
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 494.
91
mediante aprovação em concurso público e, também, em certos casos, por indicação dos
membros do Executivo com aprovação do Legislativo290.
290
Interpretação Constitucional, cit., p. 64.
291
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 495
292
Hermenêutica constitucional, cit. p. 29.
293
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 498.
294
Conforme assevera André Ramos Tavares, é importante observar que muitas vezes essa maioria popular
representada pelo Legislativo pode constituir, na verdade, uma maioria qualificada, que se forma em
92
poderia acarretar a superação do Poder Constituinte Originário frente ao Poder Derivado e
enfraquecer a Constituição e sua supremacia.
Ocorre, desse modo, na verdade, uma mudança de ponto de vista sobre o sentido de
democracia. Deve-se ter em mente que a legitimação democrática conferida diretamente ao
legislador não é, do mesmo modo, conferida ao Tribunal Constitucional. Para Nuno Piçarra, o
Estado de Direito Contemporâneo passou a ser um Estado de jurisdição executor da
Constituição, em que o Poder Legislativo é limitado por um poder judicial, ainda que este não
disponha da mesma legitimidade democrática295.
detrimento de minorias. Dessa forma, a Constituição torna-se alvo de interesses conjecturais e, nesses casos,
o Tribunal Constitucional deve agir com maior vigor. (Teoria da Justiça Constitucional, cit. p. 500)
295
A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional, cit., p. 262.
296
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 501.
297
Teoria da Justiça Constitucional, cit., p. 504.
298
Alexandre de Moraes, Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais: garantia suprema da Constituição,
São Paulo: Atlas, 2000, p. 291.
93
caracteriza fundamento necessário para sustentar a ilegitimidade do órgão, porque seria uma
simplificação dos argumentos democráticos contrários à permanência do Tribunal
Constitucional299.
Dessa forma, o modo de escolha dos membros que compõem os poderes da União
revela-se mais um procedimento formal, que deve ser respeitado porque é
constitucionalmente previsto. No entanto, muitos outros aspectos devem ser considerados a
fim de se conferir ou não o respeito ao princípio democrático na composição do Tribunal
Constitucional. Como visto, a democracia não só se obtém por meio de eleição popular e, no
constitucionalismo contemporâneo, importa observar a realização dos Direitos Fundamentais.
299
Teoria da Justiça Constitucional, cit.,p. 493.
300
Jurisdição constitucional e hermenêutica, cit., p. 42.
301
Quando a Constituição de 1988 estava sendo elaborada, foi sugerida a criação de um Tribunal Constitucional,
com competência exclusiva de controle de constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal realizou intensa pressão nos constituintes para impedir a criação deste
órgão e entender que assim perderia sua principal atribuição e, por consequência, seu prestígio. (Dalmo de
Abreu Dallari, O poder dos juízes, 3ª ed., São Paulo: Saraiva p. 113-114).
94
certos casos, além de decidir sobre matérias expressamente previstas na Constituição302. Por
essa razão, não pode ser considerado um Tribunal Constitucional típico, já que também
desempenha outras funções conferidas pela Constituição.
Dalmo de Abreu Dallari explica que, somente por meio do aumento do número de
juízes ou da redução da competência do Tribunal, seria possível contornar a sobrecarga de
atividades, embora tais alternativas não pareçam aceitáveis para os membros do Supremo.
Sendo assim, a saída encontrada seria a redução da independência dos juízes e tribunais, na
302
Dalmo de Abreu Dallari O poder dos juízes, cit., p. 113.
303
O poder dos juízes, cit. p. 113.
95
tentativa de diminuir a quantidade de decisões merecedoras de recursos destinados à máxima
instância304.
É, portanto, nesse cenário, que o Supremo Tribunal Federal tem equilibrado suas
funções de instância máxima do Judiciário Brasileiro e Justiça Constitucional.
Conforme explica Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, com a superação
histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo, surgiu um conjunto amplo de
reflexões sobre o Direito, ainda em desenvolvimento, responsável por sua reaproximação com
a Ética. Esse conjunto envolve também reflexões sobre a função social do Direito e sua
interpretação305. Assim, busca-se a valorização dos princípios, sua incorporação pelos textos
constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica da sua normatividade.
304
O poder dos juízes, cit., p. 114.
305
O começo da história, cit., p. 174.
96
Assim, o juiz tem sempre de escolher entre interpretações conflitantes sobre o significado de
determinado precedente. Para Hart, “todas as regras têm uma penumbra de incerteza e o juiz
deve escolher entre alternativas” 306.
Desse modo, não basta apenas que o texto constitucional reconheça explicitamente a
força normativa de seus preceitos. É necessário que ocorra a transformação deles para a
realidade fática e isso somente é possível por meio do papel desempenhado pela Justiça
Constitucional. Todavia, a preocupação com a efetividade da Constituição envolve considerar
o tipo de justiça constitucional desenvolvido em cada país e o redimensionamento do papel
dos operadores do Direito308.
Lenio Luiz Streck explica que, no Brasil, sempre houve uma dificuldade no
cumprimento de requisitos mínimos de legalidade formal, conquistada com a Revolução
Francesa. O longo período de regime autoritário somente pode iniciar uma transição para uma
democracia a partir da convocação da Assembleia Constituinte, que resultou na Constituição
da República de 1988. Durante o processo de elaboração do texto constitucional, as
experiências do constitucionalismo europeu na época influenciaram na formação de um texto
programático, dirigente e compromissário309, mas o texto constitucional não teve o impacto
necessário capaz de despertar na sociedade o novo imaginário que estava a se formar.
306
O conceito de direito, cit., p. 17.
307
Jurisdição constitucional e hermenêutica, cit., p. 13.
308
Lenio Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, cit., p. 18.
309
Jurisdição constitucional e hermenêutica, cit., p. 25.
97
No entender de Gisele Cittadino, “o pensamento jurídico brasileiro é marcadamente
positivista e comprometido com a defesa de um sistema de direitos voltado para a garantia da
autonomia privada dos cidadãos”. Por isso, a defesa de direitos no Brasil está associada aos
direitos civis e políticos, enquanto que os direios econômicos e sociais acabam deixados para
uma segunda oportunidade310.
310
Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação dos poderes, cit., p. 26-27.
311
Jurisdição constitucional e hermenêutica, cit., p. 25. O autor explica que, como uma expressiva parcela dos
juristas não se deu conta do processo de refundação social com o advento da Constituição de 1988, muitos
continuaram presos às velhas práticas. Em nota de rodapé, o autor chama de habitus “o conjunto de crenças e
práticas que compõem os pré-juízos do jurista, que tornam a sua atividade refém da quotidianidade (algo que
podemos denominar de concretude ôntica), donde falará do e sobre o Direito. É o desde-já-sempre e o como-
sempre-o-Direito-tem-sido, que proporciona a rotinização do agir dos operadores jurídicos, propiciando-lhes,
em linguagem heideggeriana, uma „tranquilidade tentadora‟. O habitus é uma espécie de „casa tomada‟, onde
o problema de estar-refém-do-habitus nem sequer se apresenta como um problema-de-estar-refém-do-
habitus. É o lugar onde a suspensão dos pré-juízos não ocorre, impossibilitando-se a sua confrontação com o
horizonte crítico. Em síntese, o habitus vem a ser o locus da década para o discurso inautêntico repetitivo,
psicologizado e desontologizado.” (p. 25-26).
312
O começo da história, cit., p. 169.
313
O começo da história, cit., p. 170
98
o limite do sentido e o sentido do limite de o jurista (operador do Direito lato sensu)
podem dizer que o Direito permaneceu confinado a um conjunto de representações
permeado pelas crises de paradigmas, isto é, de um lado, a doutrina e a
jurisprudência trabalham ainda sob a perspectiva de um modelo liberal-
individualista-normativista, e, de outro, como que a avalizar esse (velho) modelo,
estão o paradigma epistemológico da filosofia da consciência aristotélico-tomista.
Graças a isso, os operadores do Direito (professor, advogado, juiz, promotor,
estudante do direito) se conformam (ram) com aquilo que é (e, portanto, estava)
predito acerca do Direito na sociedade brasileira.314
Assim, Streck afirma que não houve a devida compreensão do sentido do Estado
Democrático de Direito. Para o autor, a razão disso tudo é a “baixa constitucionalidade”
praticada no Brasil, capaz de afastar a realização dos ideais trazidos com a Constituição de
1988315.
Isso seria capaz de explicar as causas da falta de efetividade, ainda nos dias atuais, de
diversos dispositivos constitucionais, muitos deles relativos à defesa de direitos considerados
fundamentais.
Contudo, a perpetuidade desta falta de efetividade não faz parte do papel da Justiça
Constitucional. Nos dias atuais, “a jurisprudência desponta como fonte de direito justo, capaz
316
de acompanhar as exigências axiológicas da sociedade” e, no sistema jurídico brasileiro, a
jurisprudência é reconhecida como fonte direta do Direito e as mudanças na compreensão dos
métodos interpretativos cumprem função fundamental neste momento de transição de
concepções no Direito brasileiro.
Desta forma, todo o cuidado dispensado na elaboração de uma Constituição pode ser
considerado inútil se não for efetivamente aplicada e respeitada por todos os governantes e
governados. Sendo assim, o conteúdo constitucional não pode ser de aplicação impossível
nem conter regras que contrariem a realidade social. Mesmo no processo de reforma
constitucional por meio de emendas, a realidade social deve ser considerada sob pena de
desmoralização da Constituição, já que seus conteúdos apenas serão afirmações puramente
teóricas, sem qualquer eficácia prática317.
314
Jurisdição constitucional e hermenêutica, cit., p. 43.
315
Jurisdição constitucional e hermenêutica, cit., p. 43-44.
316
Ricardo Maurício Freire Soares, Hermenêutica e interpretação jurídica, Saraiva: São Paulo, 2010, p. 123.
317
Dalmo de Abreu Dallari, A prática da Constituição, in: Hermenêutica Constitucional: homenagem aos 22 anos
do grupo de Estudos Maria Garcia, Florianópolis: Conceito editorial, 2010, p. 195-99.
99
situações em que se está agindo de acordo com as normas ou contra elas. Uma vez existindo
essa consciência constitucional, será difícil o abuso de qualquer poder na utilização arbitrária
das normas constitucionais, já que cada pessoa agirá como vigilante. O autor observa a
existência de um circulo vicioso, porque, onde a Constituição não é respeitada, é crescente a
sua falta de prestígio e a tentação de agir contra ela. Entretanto, onde existe o costume de agir
em seu respeito, a Constituição torna-se mais fortalecida318.
Eduardo Garcia de Enterria afirma que o tema que envolve o Tribunal Constitucional
é aquele em que a Constituição encontra suas possibilidades de futuro 319. De fato, a função
interpretativa da Justiça Constitucional confere ao intérprete o poder de concretizar os
mandamentos constitucionais, pois o juiz constitucional pode, inclusive, inovar em muitos
aspectos na busca por uma alternativa adequada. Ainda que se confira ao Tribunal
Constitucional a característica de legislador negativo, sabe-se que é por meio das suas
decisões que a Constituição revela seu sentido e torna-se real.
318
A prática da Constituição, cit., p. 196.
319
La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 121.
320
Neoconstitucionalismo e Teoria da Interpretação, cit., p. 215.
100
Por esta razão, o autor afirma que a teoria da interpretação é um dos primeiros e mais
importantes desenvolvimentos do neoconstitucionalismo321.
Para Eduardo Ribeiro Moreira, esta nova a interpretação das leis em face da
Constituição no neoconstitucionalismo é chamada de “sobreinterpretação”, porque a
interpretação no neoconstitucionalismo possui um significado mais abrangente, relacionado
com o processo de constitucionalização do Direito324.
321
Neoconstitucionalismo e Teoria da Interpretação, cit., p. 221.
322
O começo da história, cit., p. 171.
323
O juiz constitucional no Brasil, in: Revista Latino-americana de estudos constitucionais, n. 2, Belo Horizonte:
Del Rey, 2003, p. 540.
324
Neoconstitucionalismo e Teoria da Interpretação, cit. p. 221.
101
principiologia, capaz de conferir-lhe a adaptabilidade necessária para a sua evolução ao
longo do tempo325.
Para Luís Roberto Barroso, a compreensão de uma ideia “muito singela” ensejou
uma mudança na interpretação constitucional:
O conceito trazido por Robert Alexy, por si só, já é capaz de ingressar, de forma
natural, na hermenêutica constitucional atualmente desejada. Ao conceituá-los como
325
André Ramos Tavares, A Constituição aberta. Revista latino-americana de estudos constitucionais, n.8,
Fortaleza, 2008, p. 333.
326
A interpretação constitucional será indireta em dois momentos: 1) mediante um juízo negativo sempre
presente, ou seja, quando ainda que não se faça menção a uma inconstitucionalidade, o juízo negativo de
constitucionalidade ocorreu com sucesso; 2) mediante um juízo finalístico, já que toda decisão deve cumprir
a Constituição. (Eduardo Ribeiro Moreira, Neoconstitucionalismo e Teoria da Interpretação, cit., p. 222)
327
Neoconstitucionalismo e Teoria da Interpretação, cit., p. 221-222
328
O começo da história, cit., p. 171
329
Robert Alexy, Constitucionalismo discursivo, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 99.
102
mandados de otimização, Alexy estabelece a necessidade de realizar a norma jurídica em
busca de sua excelência.
Conforme explica Luís Roberto Barroso, “as cláusulas constitucionais, por seu
conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se
prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar” 332.
O fato é que a interpretação tradicional está baseada em um modelo de regras aplicáveis
mediante subsunção e deve o intérprete revelar o sentido das normas para fazê-las incidir
sobre o caso concreto. Assim, na atividade interpretativa tradicional, os juízos formulados são
de fato e não de valor.
330
Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e Interpretação Constitucional, 2ª ed., rev. ampl., São Paulo: Celso
Bastos/ IBDC, 1999, p. 97.
331
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 106.
332
O começo da história, cit., p. 171.
103
instrumental e “funcionam como premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas da
aplicação das normas, que vão incidir sobre a relação jurídica de direito material”333.
333
Luís Roberto Barroso, O começo da história, cit., p. 210.
334
A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais, cit., p. 21.
335
A Constituição aberta, cit., p. 333.
336
A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais, cit., p. 21.
337
A força normativa da Constituição, cit., p. 21.
104
A ideia de mutação constitucional informal pressupõe a fixação de uma
interpretação anterior, normalmente pela Justiça Constitucional (usualmente um
Tribunal Constitucional) e a fixação, posterior no tempo, de outra interpretação
para o mesmo suporte normativo, para o mesmo dispositivo da Constituição, pela
mesma instância definitiva. A afirmação da ocorrência de mutação informal,
portanto, pressupõe uma comparação temporal que conclua pela diversidade de
compreensão de um mesmo enunciado normativo338.
Para Peter Härbele, a interpretação da Constituição é uma atividade que diz respeito
a todos, mesmo intérpretes indiretos ou em longo prazo. Trata-se de um processo aberto que
conhece possibilidades e alternativas. A vinculação converte-se em liberdade na medida em
que reconhece uma nova orientação hermenêutica. Há uma necessidade de integração da
realidade no processo de interpretação, que gera, como consequência, a ampliação do círculo
do intérprete341.
338
Curso de Direito Constitucional, cit., p. 107.
339
Teoria de la Constitución, cit., p. 164-165.
340
A Constituição aberta, cit., p. 328.
341
Hermenêutica Constitucional, cit., p. 30.
105
No mesmo sentido, Juarez Freitas, ao refletir sobre a melhor interpretação
constitucional, argumenta que ir além do texto constitucional é uma condição obrigatória
para compreender a tradição na qual o texto se encontra. Assim, é necessário “transcender
falsas dicotomias”, “caminhar além da interpretação semântica” e “não se render à suposta
autonomia exacerbada do objeto”342. Nesse sentido, a Constituição não deve ser vista como
um mero objeto de análise, pois ela não se confunde com seu âmbito textual, embora este a
integre.
Ocorre que a visão constitucional atual deve ser integralizante e por isso é
necessária uma revisão das concepções atuais de hermenêutica jurídica em busca da
“concretização”, termo utilizado pela doutrina alemã para indicar o sentido de atualização ou
de abertura na compreensão dos textos normativos, em uma abordagem não convencional da
compreensão do Direito344.
Tércio Sampaio Ferraz Jr. ensina que há três tipos de dogmática jurídica: a) a
analítica, que procura identificar o que é o Direito; b) a hermenêutica, que tem o papel de
compreender o Direito identificado; e c) a de decisão, que se traduz pela teoria da
argumentação jurídica345.
342
A melhor interpretação constitucional versus a única proposta correta, Revista latino-americana de estudos
constitucionais, n. 2, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, jul.-dez, p. 281.
343
Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, cit., p. 25.
344
André Ramos Tavares, A Constituição aberta, cit., p. 335.
345
Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1994, p. 17.
106
Assim, o jurista teórico apoia-se na dogmática para estabelecer limites dentro dos
quais podem explorar diferentes combinações. Essas limitações estabelecidas pela
dogmática comportam posições cognitivas diversas, que podem conduzir a exageros, como
uma visão muito restritiva e legalista do Direito, caracterizada por um excesso de
formalismo, a que Tércio Sampaio Ferraz Jr. chamou de “prisão do espírito”346.
346
Introdução ao estudo do Direito, cit., p. 49.
347
Introdução ao estudo do Direito, cit., p. 50.
348
Introdução ao estudo do Direito, cit., p. 51.
349
A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais, cit., p. 59.
107
grandes categorias diversas: os princípios e as regras”350. Estas últimas teriam uma
incidência bem mais restrita, enquanto os princípios já carregam a característica da abstração
e a possibilidade de incidirem sobre uma pluralidade de situações.
350
O começo da história, cit., p. 170.
351
A Constituição aberta, p. 336.
352
Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, O começo da história, p. 170.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para alguns, a crise representa o início de uma transição, mas seria melhor pensar
na ideia de continuidade como um ciclo que se renova e se aperfeiçoa a cada dificuldade
enfrentada, porque não se pretende deixar para trás as conquistas estabelecidas, mas
trabalhar os seus defeitos, para assim alcançar novos ideais. Aliás, é assim que a história
humana se apresenta, porque, a cada revolução, guerra ou descoberta, o homem se adapta,
inova e inaugura uma nova era.
109
a) O surgimento do Estado Constitucional proporcionou o aparecimento dos
primeiros documentos escritos considerados como norma fundamental do
ordenamento jurídico de um Estado. A Constituição passou a ser reconhecida
como norma suprema, necessária para a repartição igualitária do poder,
assegurando a liberdade dos cidadãos e assentando a organização político-
estatal;
110
g) O „neoconstitucionalismo‟ teve suas ideias desenvolvidas a partir do chamado
pós-positivismo, uma teoria que teria sido desenvolvida em momento posterior
ao desmembramento do positivismo em positivismo inclusivo e positivismo
exclusivo. O pós-positivismo seria, assim, uma nomenclatura de transição que
indica a necessidade de resgate dos valores e a reaproximação do Direito com a
ética. O modelo de positivismo inspirado por Kelsen estaria superado, mas tal
superação deve ser compreendida sem esquecer alguns dos institutos já
consolidados por essa Teoria do Direito. A Constituição tornou-se a sua mais
importante conquista, mas é a busca da concretização de suas normas,
especialmente no que tange à garantia dos Direitos Fundamentais, o elemento
que põe em questionamento a compreensão do Direito a partir do positivismo
jurídico kelseniano e faz surgir novas concepções para além daquelas pós-
positivistas;
111
„neoconstitucionalismo‟ obriga a rearticulação do problema da validade e
ultrapassa-se, desse modo, a ideia kelseniana da existência de uma norma
hipotética fundamental. Além disso, a lei passa a não ter uma única fonte, visto
que os princípios passam a ser incluídos como fonte do Direito e a técnica de
subsunção e a relação sujeito-objeto também se tornam inadequadas para o novo
contexto trazido pelo „neoconstitucionalismo‟;
112
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