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CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (PPGL)

BÁRBARA CRISTINA MARQUES

A ESTÉTICA DO KITSCH EM ONDE ANDARÁ


DULCE VEIGA?, DE CAIO FERNANDO ABREU

Londrina
2007

12
BÁRBARA CRISTINA MARQUES

A ESTÉTICA DO KITSCH EM ONDE ANDARÁ


DULCE VEIGA?, DE CAIO FERNANDO ABREU

Dissertação apresentada ao Curso


de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade Estadual de Londrina,
como requisto parcial à obtenção do
título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos


Santos Simon

Londrina
2007

13
BÁRBARA CRISTINA MARQUES

A ESTÉTICA DO KITSCH EM ONDE ANDARÁ DULCE


VEIGA?, DE CAIO FERNANDO ABREU

Dissertação apresentada ao Curso de


Pós-Graduação em Letras, da
Universidade Estadual de Londrina,
como requisto parcial à obtenção do
título de Mestre.

COMISSÃO EXAMINADORA

Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon


Universidade Estadual de Londrina

Profª Drª Gizelda Melo do Nacimento


Universidade Estadual de Londrina

Profª Drª Ana Maria Domingues de


Oliveira
Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho

Londrina, ____ de _______________ de 2007.

14
A Octávio e Luiza Soncella pela
sabedoria e amor com filhos, netos e
bisnetos

15
AGRADECIMENTOS

Ao meu marido Carlos Marques, pela paciência e compreensão, companheiro fiel


de todas as horas

A minha mãe, Sonia Soncella, que me mostrou a magia da literatura desde criança

A meu pai, Luiz Altino, e minha irmã, Camila, que demonstraram afeto em todo
esse período

A João Luiz Soncella e Josely Soncella, motivo de inspiração e orgulho

Ao meu orientador, Luiz Carlos Santos Simon, pela honestidade e profundo


respeito para com meu trabalho

Às professoras Gizelda Melo do Nascimento e Martha Dantas da Silva pela


participação afetuosa em minha banca de qualificação

Aos amigos queridos que fiz no percurso do Mestrado, Miguel Heitor Braga Vieira,
Francis de Lima Aguiar, Rafaella Berto Pucca e Ygor Raduy, pelas várias risadas
proporcionadas

À amiga de muitos anos, Silvana Drumond Monteiro, por tudo

Em especial, a três figuras muito queridas que me ensinaram que Arte é paixão, o
resto é retórica: Gabriela Canale Miola, Lara Gervásio Haddad, e Aurélia Hubner
Peixouto.

A CAPES pelo financiamento da minha pesquisa

16
Traduzir-se

Uma parte de mim


é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim


é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim


pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim


almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim


é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim


é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte


na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

(Ferreira Gullar)

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MARQUES, Bárbara Cristina. A estética do Kitsch em Onde andará Dulce Veiga?, de
Caio Fernando Abreu. 2007. 181 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina.

RESUMO

Esta dissertação lida com o conceito da estética do kitsch no romance Onde andará
Dulce Veiga? Um romance B (1990), de Caio Fernando Abreu, com o intuito de avaliar
de que maneira e em que medida esta narrativa multifacetada, apropriando-se de
manifestações da arte de massa, articula o espaço discursivo, numa espécie de
plurissignificação estética e estilística, de modo que os gêneros massivos possam ser
revalorizados e/ou apreendidos criticamente, apontando, sobretudo, a falência da
distância entre arte erudita e arte de massa. Problematizando o par arte e
entretenimento, o autor estabelece um tipo de jogo polifônico a partir da
incorporação do romance policial, do filme noir, do discurso clicherizado, das
referências fílmicas, musicais e cinematográficas. O kitsch, que perpassa todo o
romance, pode ser observado através da construção estereotipada de personagens e
ambientes, mas, sobretudo, por meio de um conjunto de discursos provenientes de
diferentes âmbitos culturais. No primeiro capítulo, com base num elenco teórico-
crítico, discorremos sobre a natureza do kitsch, seu contexto histórico-cultural,
lidando com os conceitos de indústria cultural e cultura de massa. Propusemos
também, no segundo tópico deste capítulo de abertura, uma discussão acerca de
vanguarda e kitsch, com o objetivo de constatar a dialética entre invenção e
padronização no cenário contemporâneo. A partir daí, no segundo capítulo,
tratamos da situação da ficção brasileira contemporânea, tendo em vista as décadas
de 70, 80 e 90. Constatamos que a produção literária brasileira contemporânea, em
linhas gerais, abriu-se a um novo diálogo intertextual e metaficcional, promovendo
novas possibilidades de leitura e apreensão do objeto artístico. Nesse sentido, o
debate acerca do pós-modernismo se fez presente neste capítulo, na tentativa de
mostrar os seus desdobramentos na ficção contemporânea. O terceiro capítulo foi
dedicado ao projeto literário de Caio Fernando Abreu. Vale ressaltar que buscamos
retirar da vasta produção do autor, antes de tudo, textos ancorados no
procedimento literário da paródia, do pastiche e da ironia pós-modernos com o
intuito de mostrar o “lado B” do autor. No capítulo de encerramento, demos
atenção ao romance, explorando o entrecruzamento dos gêneros massivos, da
estética do kitsch em contraponto com a estética noir, e a construção da
personagem Dulce Veiga como um mito da cultura de massa.

Palavras-chave: Estética do kitsch; gêneros massivos; romance pós-moderno;


reciclagem estética.

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MARQUES, Bárbara Cristina. A estética do Kitsch em Onde andará Dulce Veiga?, de
Caio Fernando Abreu. 2007. 181 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina.

ABSTRACT

This dissertation treats of the concept of kitsch in the novel Onde andará Dulce
Veiga? Um romance B (1990), from Caio Fernando Abreu, with the intention of
evaluating how and in what level this multiple narrative articulates the speech by
using mass art manifestations in a kind of aesthetic and stylistic plurisignification, in
a way that this massive genres can be revalued and/or appreciated critically,
showing the failure of the distance between massive art and elitist art.
Problematizing art and entertainment, the author establishes a polyphonic game
with the incorporation of detective novels, noir films, cliché speeches, music and
movie references. The kitsch that crosses the entire novel can be observed through
the stereotyped construction of characters and spaces, but above all, through an
ensemble of speeches from different cultural scopes. In the first chapter, based in
critical theoretical works, we talk about the kitsch nature in its historical cultural
context, dealing with the concepts of the cultural industry and mass culture. We
also propose, in the second part of the same chapter, a discussion about the avant-
garde and the kitsch, with the objective of verifying the dialectics between
invention and standardization in the contemporary scene. In the second chapter,
we speak about the contemporary Brazilian fiction situation within the 70s, 80s and
90s. In general, we noticed that this literary production opened to a new
intertextual and metafictional dialogue, promoting new possibilities of reading and
apprehending the artistic object. In this sense, the debate about postmodernism
was present in this chapter to show its ways in contemporary fiction. The third
chapter was dedicated to the literary project of Caio Fernando Abreu, mainly the
texts which use the post moderns parody, pastiche and irony with the aim of
showing the author’s “B side”. In the closing chapter, we talk about the novel
exploiting its crossing with the massive genre, the aesthetics of kitsch in opposition
with the noir one and the construction of Dulce Veiga’s character as a myth of the
mass culture.

Key-words: aesthetics of kitsch; massive genre; postmodern novel; aesthetic


recycling

19
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................12

1 A ESTÉTICA DO KITSCH: CONCEITO E CONTEXTO................................18


1.1 POR UMA FENOMENOLOGIA ESTÉTICA DO KITSCH.................................................18
1.2 DA VANGUARDA AO KITSCH: DA INVENÇÃO À PADRONIZAÇÃO...........................40

2 FORMAS E SITUAÇÕES DA FICÇÃO BRASILEIRA


CONTEMPORÂNEA...................................................................................................60
2.1OS SINTOMAS DA PÓS-MODERNIDADE NA FICÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:
O PÓS-MODERNISMO EM AÇÃO……………………………………………...74

3 O PROJETO LITERÁRIO DE CAIO: UMA POÉTICA DE MÚLTIPLAS


CENAS............................................................................................................................88

4 O KITSCH EM ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA?.......................................100


4.1 A IMPRESSÃO CINEMATOGRÁFICA E A NARRATIVA DETETIVESCA: O JOGO DA
SOBREPOSIÇÃO DE IMAGENS NO “THRILLER” POLICIAL......................................112
4.2 DULCE VEIGA: A CRIAÇÃO DE UM MITO DA CULTURA DE MASSA.......................130
4.3 AMBIÊNCIA KITSCH E NOIR: UM CONTRAPONTO DO PÓS-MODERNO.................145
4.4 “UM ROMANCE B”: COLAGEM E BRICOLAGEM – O KITSCH COMO UM
DESLOCAMENTO DE REVALORIZAÇÃO OU APROPRIAÇÃO CRÍTICA?.................158

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................167

REFERÊNCIAS..............................................................................................................174

INTRODUÇÃO

20
Pesquisar a estética do kitsch no romance Onde andará Dulce Veiga?
(1990), de Caio Fernando Abreu (1948-1996), pode-se dizer, é fruto de uma
inquietação que se estende, de um lado, ao projeto literário e poético do autor, e, de
outro, à questão da ficção brasileira contemporânea.
A obra de Caio Fernando Abreu (1970-1996) dialoga com muitos
acontecimentos políticos, sociais e culturais que marcam a metade do século XX.
Nesse caso, vê-se que a produção do autor gaúcho é comumente marcada pela
forte abordagem de temas que exploram a problematização do sujeito diante da
violência da ditadura militar no país, do inchaço dos grandes centros urbanos, dos
movimentos da contracultura, entre outros. O descentramento do sujeito,
enfatizado pela perda de um modelo identitário, é um dos traços mais peculiares da
obra do autor. Tendo perambulado por diversas metrópoles brasileiras e países
europeus ao longo de sua vida, Caio Fernando Abreu produziu uma vasta obra,
sendo que a maior parte dela consiste em contos, divididos em 8 livros (Inventário do
Ir-remediável; O Ovo apunhalado; Pedras de Calcutá; Morangos Mofados; Mel & Girassóis; Os
dragões não conhecem o paraíso; Ovelhas negras; Estranhos estrangeiros). Além destes, Caio é
autor ainda da novela Triângulo das águas, de 1983, e de dois romances, Limite Branco,
de 1971, e Onde andará Dulce Veiga?, de 1990. As personagens de Caio Fernando
Abreu representam o indivíduo aniquilado pelo confinamento do espaço urbano
caótico. Entretanto, o romance Onde andará Dulce Veiga?, ainda que não descarte a
problematização do sujeito pós-moderno, explora outras possibilidades estéticas
como forma representativa de um tipo de procedimento estilístico que enche a
obra de arte de extratexto histórico-social através do uso permanente de
intertextualidade. A apropriação dos gêneros massivos funciona, em Onde andará
Dulce Veiga?, como uma espécie de poética do artifício, cuja exageração, e mesmo a
adulteração, de formas e objetos artísticos confere multiplicidade à narrativa.

21
Diante disso, acabamos por nos questionar em que medida e de que
maneira este romance, assim como outras produções brasileiras contemporâneas,
em linhas gerais, torna-se um produto híbrido a partir do momento que incorpora
elementos “depreciados pela cultura erudita” e, numa espécie de reciclagem
estética, revaloriza e, muitas vezes, ressignifica estes materiais apontando, entre
outras coisas, para a falência da distância entre cultura erudita e cultura de massa.
Assim, o kitsch serviria para transformar o texto num conjunto de discursos
provenientes de diferentes âmbitos culturais.
Ao nos depararmos com essas outras possibilidades de apreensão
da obra de Caio Fernando Abreu, a partir do romance Onde andará Dulce Veiga?,
embora já se pudesse evidenciar esse diálogo do erudito e do massivo, do “maior e
do menor”, em outros contos anteriores ao romance, observamos uma carência de
uma pesquisa mais profunda orientada para este romance. No que respeita à
estética do kitsch, constatamos, então, a ausência de estudos que apontassem, ainda
que de maneira breve, para essa temática. Obviamente que esta ausência se deu
como uma espécie de motivo fundamental para acreditarmos na pertinência da
nossa dissertação. É claro que existem muitos estudos de fôlego acerca da
produção ficcional de Caio, porém, reiteramos, nenhum que tratasse deste romance
à luz da inferência do kitsch como um deslocamento que pode funcionar, ora como
revalorização, ora como apropriação crítica que põe em evidência a
problematização do par arte e entretenimento.
Uma vez decididos o corpus e a temática, partimos para a divisão
formal da dissertação, entendendo que a investigação dessa estética do kitsch nos
imporia, sem dúvida, um capítulo teórico para nos ajudar a compreender aquele
mecanismo de apropriação/incorporação/reciclagem no romance de Caio
Fernando Abreu.
Sendo assim, optamos por uma divisão que, embora seja um tanto
“tradicional”, aloca no primeiro capítulo uma discussão teórico-crítica acerca do
kitsch; no segundo, buscamos mesclar teorias e avaliações a respeito da ficção

22
brasileira contemporânea com exposições de citações de obras contemporâneas
(além das de Caio Fernando Abreu); o terceiro capítulo é dedicado ao projeto
literário do autor, dando atenção a três contos, cujo diálogo com os códigos
advindos da cultura de massa já pode apontar uma certa exploração do terreno do
kitsch; e por fim, no último capítulo, partimos para a análise do romance,
evidenciando os traços mais significativos para a conclusão da existência dessa
estética do kitsch em Onde andará Dulce Veiga?.
Nesse sentido, o primeiro capítulo irá se concentrar nas bases
teóricas acerca da fenomenologia da estética do kitsch, levando em conta os
conceitos de indústria cultural e cultura de massa, bem como o sistema opositivo
vanguarda e kitsch, avaliando suas implicações estéticas e ideológicas no tocante ao
lugar da arte na contemporaneidade.
No segundo capítulo, daremos atenção às situações e formas da
ficção brasileira contemporânea, de forma a avaliar a crise da representação estética
na narrativa pós-moderna que, uma vez cooptada pelos produtos da cultura de
massa, promove outras possibilidades estéticas através da incorporação e
ressignificação dos signos do mau gosto. A literatura, então, abre-se numa polifonia
discursiva ao agregar as manifestações da arte de massa, tais como o romance
policial, o melodrama, o folhetim, o cinema B hollywoodiano, as canções
populares, entre outros. Nesse sentido, para uma compreensão mais coesa da
produção literária brasileira contemporânea, fez-se necessário o diálogo com
algumas acepções acerca da discussão sobre o pós-modernismo, fundamentalmente
no que se refere à diluição das fronteiras entre as culturas, e mesmo ao
entrelaçamento destas; à fragmentação das formas discursivas; à falta de
profundidade estética da literatura contemporânea pela enfatização de uma
mecânica que busca atender as exigências de um público consumidor; à falência dos
modelos identitários; à problematização, e mesmo a perda, de categorias que foram,
outrora, válidas na modernidade. Trabalharemos com a idéia de que a ficção
brasileira, a partir da década de 70, apreende, como temáticas, os signos da vida

23
urbana e das metrópoles impessoais, os discursos antes periféricos, a
problematização do indivíduo, a fragmentação discursiva, e, claro, os elementos
advindos da cultura de massa. Estas temáticas deram nova cor à narrativa
contemporânea numa espécie de pluralidade discursiva, cujos códigos massivos são
revalorizados. É dentro desse contexto, de esgotamento das certezas, da
problematização do cânone do passado, da propagação das imagens midiáticas, da
metalinguagem, da apropriação dos produtos da indústria cultural, que emerge o
projeto literário de Caio Fernando Abreu.
No terceiro capítulo, pretendemos discutir a poética de Caio
Fernando Abreu, autor marcado por uma produção de temática urbana, que
representou, através de personagens quase sempre angustiadas, o peso da
experiência da solidão, da opressão, da falta de comunicabilidade entre os sujeitos
massificados pelo cotidiano frio dos grandes centros urbanos. Pode-se dizer que a
originalidade do projeto poético de Caio, como diz Márcia Denser (2003),
concentra-se na linguagem que é “ambígua e fragmentada, descentrada e
esquizofrênica, poética e anti-literária, minimalista, essencialmente pós-moderna”.
Na composição da obra de Caio ainda encontramos as imagens clicherizadas que
comportam valores gerados pela cultuta de massa, como os estereótipos fílmicos e
musicais através das divas do cinema norte-americano das décadas de 40 e 50, a
paródia dos romances policiais, o melodrama das telenovelas e a simulação de um
discurso padronizado. Todos estes elementos misturando-se sempre àquele
cotidiano hostil e degradado.
Finalmente, o capítulo que encerra nosso trabalho, destinado ao
romance Onde andará Dulce Veiga?, dar-se-á como uma espécie de diálogo com a
discussão engendrada nos capítulos anteriores, de maneira que se possa abarcar os
procedimentos narrativos com o intuito de analisar o kitsch, tanto sob o ponto de
vista temático, bem como dos elementos conteudísticos do romance. Dito de outro
modo, vê-se que, em Onde andará Dulce Veiga?, Caio Fernando Abreu, para além das
personagens descentradas, propõe a problematização de categorias estéticas, e

24
mesmo do próprio modelo formativo do objeto literário, quando insere os resíduos
do kitsch ao romance, conferindo-lhes novo sentido. Isso se sustentará através da
temática do romance, isto é, uma busca que, só aparentemente, se mostra afeita ao
gênero policial; através dos mitos vinculados à cultura de massa que atuam como
uma espécie de imaginário coletivo, apontando uma consciência alienante das
personagens; e ainda, por meio de todas as referências fílmicas e musicais que
pontuam o trânsito cultural, marcando, novamente, o cruzamento do massivo e
erudito, do cânonico e do periférico, o que, de fato, reveste o romance de uma
justaposição de códigos heterogêneos. Numa espécie de provocação, o romance
Onde andará Dulce Veiga? traz junto ao título um atributo, “um romance B”, que faz
referência aos filmes hollywoodianos de tipo B que, em linhas gerais, representa
uma ironização dos rótulos valorativos conferidos aos produtos da indústria
cultural. A recuperação do kitsch, da paródia, dos elementos da cultura de massa e
da cultura popular dialogam o tempo todo com as representações estéticas da
cultura erudita. A provocação do título ainda repousa na idéia de que “Onde andará
Dulce Veiga?” é o título da crônica que o protagonista se vê obrigado a escrever
para um jornal decadente, no qual trabalha, no afã de descobrir o paradeiro de
Dulce, cantora de sucesso da década de 60 que desaparece sem deixar pistas. Nesse
caso, não só o mistério da busca por Dulce sustenta o modelo policial, mas
também o discurso fragmentado, cujas informações são quase enigmáticas,
requerendo a interpretação do protagonista. O leitor, então, é inserido nessa
experiência de mistério. Deixa de ser passivo e é alimentado por uma curiosidade
que se dá graças ao suspense, e mesmo ao processo de identificação com os
símbolos massivos. Desse modo, o objetivo da nossa dissertação é consoante à tese
de Irlemar Chiampi (1996) quanto ao papel dessa reciclagem estética poder se
apresentar como “operação crítica”. Na opinião da autora, esse tipo de
procedimento artístico, de recuperação e revalorização dos códigos massivos,
“responde a uma necessidade de elaborar o luto pelo fim da modernidade” (p. 85).
Portanto, incorporar e ressignificar pode representar uma certa liberdade da obra,

25
ou uma abertura, tal qual afirma Eco (2004), que nos possibilitaria afirmar ser um
recurso como este um traço da ficção pós-moderna.

26
1 A ESTÉTICA DO KITSCH: CONCEITO E CONTEXTO

“O Kitsch é doce e insinuante, permanente e onipresente, ao


mesmo nível de nossa vida, solicitando apenas o esforço de
uma ginástica mental moderna e recomendada, ele é ‘sadio’ e
ao abrigo de todos os excessos culposos da arte absoluta, o
que explica sua relação íntima com a religião quando esta se
torna religião de massa: o misticismo de Tereza d’Ávila ou de
Salvador Dali, o vício de Baudelaire ou do Dr. Fausto
permanecem a priori fora de seu campo, não passam de falta
de gosto. No Kitsch o bom gosto se confunde com o mau
gosto no seu horror pelo excesso”
(Abraham Moles)

“[...] o próprio Broch avança a suspeita de que, sem uma gota


de kitsch, não pode existir nenhum tipo de arte; e Killy
pergunta-se a si mesmo se a falsa representação do mundo
que o Kitsch oferece é efetiva e unicamente mentira, ou se
não satifaz uma ineliminável exigência de ilusão que o
homem nutre. E quando define o Kitsch como filho espúrio
da arte, deixa em nós a suspeita de que, à dialética da vida
artística e do destino da arte na sociedade, é essencial a
presença desse filho espúrio, que produz efeitos naqueles
momentos em que seus consumidores desejam, efetivamente,
gozar efeitos, ao invés de empenharem-se na mais difícil e
reservada operação de uma fruição estética complexa e
responsável”
(Umberto Eco)

1.1 POR UMA FENOMENOLOGIA ESTÉTICA DO KITSCH

Um dos maiores problemas, senão o mais perturbador, com relação


às artes contemporâneas, especialmente aquelas advindas do seio da cultura de
massa, diz respeito ao fenômeno do kitsch1 – expressão alemã usada para designar

1
A etimologia da palavra kitsch pode ser concontrada em alguns dos teóricos dos quais irá se
tratar nesse trabalho. Emprestaremos de Eco (1993, p. 71) a etimologia conferida por Ludwig
27
objetos, atitudes ou obras de arte considerados de mau gosto, medíocres, cafonas,
démodés; trata-se, assim, da ausência de estilo, marcadamente conferida pela negação
daquilo que é autêntico, constituindo-se como uma arte pejorativa e falsa.
A partir disso, o primeiro passo deste trabalho consiste na
explanação de algumas teorias acerca da estética kitsch a fim de fundamentar as
bases de uma conceituação, levando em conta o contexto no qual o kitsch está
inserido, tanto sob o ponto de vista sócio-histórico localizado na ascensão
burguesa, bem como sob o viés do campo artístico, que, na tentativa de agradar um
público cada vez maior, lança mão de formas já gastas e projeta sobre elas uma
espécie de representação estética redundante, cujo objetivo é dar aos seus
receptores a capacidade de reconhecimento rápido e fácil. Nesse sentido, vê-se que
para encontrar uma caracterização para o kitsch é necessário verificarmos sua
intrínseca relação com outras formas artísticas e sua localização em um dado
contexto. Para tanto, trataremos nesse primeiro momento do fenômeno do kitsch à
luz de um elenco teórico que, ao nosso ver, pode ser dividido entre aqueles que
dirigem ao kitsch apenas uma análise formalista – no sentido mesmo de
compartimentá-lo em objetos, esvaziando-o de qualquer julgamento crítico-
ideológico – , como Abraham Moles (1975), por exemplo, e aqueles que o colocam
nos termos de uma visão dialética, isto é, procuram analisar a estética kitsch como
um signo de valor que só pode ser compreendido se colocado dentro de um
sistema dicotômico: na relação vanguarda e kitsch, tais como Clement Greenberg
(1996), Hermann Broch (2001), Gillo Dorfles (1965), José Guilherme Merquior
(1974) e Umberto Eco (1993).
Por saber que o kitsch acabou se tornando um tipo de arte
absolutamente perniciosa, como veremos na exposição teórica, acreditamos que,

Geiz, in Phaenomenologie des Kitsches (1960): “Segundo a primeira, remontaria ele à segunda metade
do século XIX, quando os turistas norte-americanos em Munique, querendo adquirir um quadro,
mas barato, pediam um esboço (sketch). Teria vindo daí o termo alemão para indicar a vulgar
pacotilha artística destinada a compradores desejosos de fáceis experiências estéticas. Todavia, em
dialeto mecklemburguês, já existia o verbo kitschen para ‘tirar a lama da rua’. Outra acepção do
mesmo verbo seria também ‘reformar móveis para fazê-los parecer antigo’, e tem-se igualmente o
verbo verkitschen para ‘vender barato’ (grifo do autor).
28
pensar a lógica da estética kitsch só é possível desde que se explore o princípio
daquilo que se convencionou chamar Estética – enquanto conceito subjacente à
experiência da arte e da natureza.
Entender e fazer crer que determinados objetos e produções são
genuinamente artísticos requer, sem dúvida alguma, trazer à discussão um outro
problema deveras complexo – o chamado juízo de valor. Todo o funcionamento
desta lógica, sobre a qual repousam objetos e obras, artistas, espectador/receptor,
fruição e apreciação, invoca a constituição do gosto, o qual pode chegar ao juízo
estético ou à simples apreciação hedonista. Seja como for, o gozo estético ou a
“concepção da apreciação como percipiência” (OSBORNE, 1978, p. 44) implica na
atual crise das formas de representação estética, cujo apagamento da distância entre
obra de arte e obra como bem de consumo promove o fascínio pelo kitsch.
Conceitualmente, seria possível acreditar que neste pequeno espaço
fronteiriço entre a universalidade do juízo estético e o prazer hedonista reside o
gérmen da estética do kitsch, na qual subjaz toda a degradação da arte que lhe
serviu de empréstimo. De fato, não se advoga aqui pelo projeto moderno nem pelo
“cosmopolitismo elitista dos estilos de vanguarda” (MERQUIOR, 1974, p. 8). A
nossa questão primeira está na tentativa de captar por que o rompimento com as
produções canônicas modernas foi culminar no efeitismo2 do kitsch?; e ainda, qual
a natureza desta estética kitsch?. Embora nosso foco concentre-se na atuação do
2
‘Efeitismo’ e ‘Esteticismo’ são expressões que integram o corpo da linguagem da estética do
Kitsch. Merquior (1974), por exemplo, explica o ‘efeitismo’ tomando de empréstimo a conhecida
fórmula do crítico norte-americano Clement Greenberg, que cria essa expressão ao comparar o
kitsch com a arte de vanguarda. Segundo Greenberg, então, “enquanto a arte de vanguarda,
sendo, como é, ‘abstrata’, introspectiva e reflexiva, dedicada às explorações ‘metalingüísticas’,
tende a imitar os processos da arte, o kitsch imita os efeitos da arte” (MERQUIOR, 1974, p. 14 –
grifo do autor). Embora Merquior aponte que a ação de provocar efeitos no âmbito das artes não
é uma especialidade que surge com o Kitsch, uma vez que “a arte da surpresa e dos efeitos
teatrais” (p. 14) remonte ao barroco, será com a arte kitsch que o “efeito se converte ao
‘agradável’, ao ‘culinário’ e digestivo” (p. 15 – grifo do autor). Com relação ao “esteticismo”,
podemos apresentar as considerações de Merquior e de Gillo Dorfles. Merquior, defende que a
arte kitsch é inimiga das “estéticas exigentes”, antes é “um dos alimentos desse ethos
desascetizado”. Nesse caso, o kitsch busca, antes de mais nada, efeitos “puramente estéticos” (p.
32). No caso de Dorfles, o procedimento do esteticismo na obra de arte é justamente “a ausência
de distância estética”, provocada pelo mecanismo da “falsificação intencional” (DORFLES, 1965,
p. 152).
29
kitsch, tendo em vista sua caracterização burlesca de formas outrora realizadas pela
arte, insistimos na necessidade de apontar, mesmo que de maneira breve, a
preocupação assumida da filosofia da arte por meio da determinação da natureza
do objeto artístico. Certamente, tal atitude implicaria uma exposição historiográfica
ou dialética dos fundamentos teóricos da estética da arte, mas cremos ser, além de
inviável, desnecessário, uma vez que optamos pelo filho espúrio daquela – o kitsch.
Por isso tudo, acresce-se também a insuficiência de teorias que há muito tentam dar
cabo das expressões estéticas; insuficiência que, claro, se verificará menos pela
capacidade intelectual do que pela vasta complexidade das produções artísticas e da
variedade das investigações filosóficas.
Nesse sentido, imaginamos que a nossa justificativa em traduzir o
pensamento de Immanuel Kant (1794-1804)3 e submetê-lo à lógica da nossa
argumentação repouse no fato de a teoria a respeito da fenomenologia do kitsch
apenas poder ser clarificada nos termos da dimensão estética4. Assim, notar-se-á
que o diálogo entre arte e kitsch não se esgotará nesse capítulo inicial; ao contrário,
tal contraposição irá se desdobrar em outras categorias de igual modo dicôtomicas,
isto é, postulações que, quer no âmbito estético, sociólogico, filosófico,
antropológico, e mesmo cultural, apontam este diálogo como situação sine qua non.
Finalmente, pretendemos encerrar esse capítulo com entendimento suficiente para
que possamos chegar ao romance de Caio Fernando Abreu, a saber, Onde andará
3
Será utilizada neste trabalho a terceira obra da trilogia de Críticas, a saber, A Crítica da Faculdade
do Juízo (1993), publicada em 1790, com a qual Kant diz haver ter concluído seu projeto crítico.
Acredita-se que essa obra encerra o empreendimento crítico de Kant, uma vez que arremata a
discussão da faculdade de entendimento e da razão, explorados na duas primeiras obras, com a
discussão a respeito da faculdade do juízo, sendo, portanto, o sistema dos juízos estéticos do
gosto opositivos aos dos juízos práticos e teóricos.
4
Importante ressaltar que seria perfeitamente pertinente somarmos a nossa discussão o
pensamento de Hegel, bem como o de Benedetto Croce e Luigi Pareyson no tocante à definição
do conceito de arte, em sentido geral. No entanto, julgamos ser esta discussão demasiado
complexa e extensa, não nos cabendo aqui. Além disso, acreditamos que a opção única por Kant
não seja excludente com os demais. O criticismo kantiano vem ao nosso encontro por razões
óbvias, que não se justificam somente no fato de o filósofo alemão ter fundado as bases da
estética moderna, mas que vão desde definições estéticas até as considerações sobre a formulação
de juízos de valor/juízos estéticos (tendo em vista a Crítica do Juízo). Mesmo assim, reservaremos
a Croce, em Breviário de Estética (1997), espaço para considerações a respeito dos fundamentos
kantianos.
30
Dulce Veiga? (1990), e apontar como esse objeto híbrido, construído a partir da
incorporação de elementos depreciados pela cultura erudita, numa espécie de
reciclagem, consegue, ao mesmo tempo, aliviar a tensão entre alta cultura e cultura
de massa – o que já revela a falência dos sistemas rígidos de separação entre as
culturas – , e ainda problematizar o par arte e entretenimento.
Não obstante o objeto artístico esteja relacionado diretamente a
uma intuição, a uma emoção ou sentimento, a estética é norteada por um discurso
racional e, portanto, está sujeita aos rigores de um exame lógico-argumentativo. De
qualquer modo, as teorias estéticas convergem na tentativa de dar as propriedades
denifidoras da natureza da arte. Isto significa dizer que a pergunta que principia um
discurso teórico é: “O que é arte?”. Assim, tais teorias manteriam uma intrínseca
relação não apenas com os fundamentos da natureza da arte, derivando daí a
apreciação estética, mas com o próprio conceito formulado a respeito desta. Em
geral, a teoria estética busca explicar tal conceituação, sua aplicação às várias formas
de representação estética, a experiência do artista, e, claro, a fruição pelos
apreciadores de arte. O problema é que, diante da complexidade artística, como
expusemos há pouco, se torna peremptoriamente ilegítimo qualquer tipo de
construção de propriedades que sejam necessárias ou suficientes à arte. Contudo, a
possibilidade de se verificar novas diretrizes para a também nova produção artística
contemporânea apenas se dá a partir da avaliação do papel e contribuição da teoria
estética.
Para não cairmos na armadilha do percurso de âmbito histórico ou
na mera taxionomia dos tipos teóricos concernentes à estética da arte, optamos, por
bem, direcionar nossa atenção inicial a alguns conceitos relativos ao campo estético
para, assim, alcançarmos nosso objeto de mira, o kitsch. Dessa forma, beleza,
unidade estética, gosto e percepção, gozo estético e juízo estético, todos conceitos
inerentes ao corpo da linguagem que formula a teoria da estética, nos servirão de
amparo para o início da nossa discussão neste capítulo.

31
Quando se abeira do terreno profícuo da teoria estética, no qual o
pensamento objetivo exerce firmes contornos na subjetividade artística, salta aos
olhos o conceito de gosto como essencial na compreensão das formulações dos
juízos estéticos, cuja autenticidade ou falsidade conferidas aos objetos se definem
pela maneira como ocorre a sua percepção. Contra o reducionismo do juízo
estético, forçosamente, surge nas malhas do gosto a experiência com objetos
artísticos, na qual não são imputados os valores estéticos. Então, vê-se que a
atividade estética só se realiza em si mesma através da exigência da criação do juízo
estético.
Chega-se, assim, ao pensamento de Immanuel Kant (filósofo
alemão que nos setecentos funda as bases da estética moderna) acerca da
concepção da apreciação estética permeada pelo conceito de juízo estético. Dotado
de um preciso pensamento crítico, Kant, “que relutou em elevar a Estética ao nível
de tratamento filosófico” (CROCE, 1997, p. 112), vê-se obrigado a escrever, depois
da Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática, a Crítica do Juízo, na qual “distingue
com energia a natureza estritamente idiossincrática do sentimento do agradável do
juízo propriamente estético” (MERQUIOR, 1974, p. 47). Talvez como forma
combativa aos princípios hedonistas de Aristóteles e Platão, os quais acreditavam
estar concentrado no belo o critério único de todo objeto artístico que desejava
agradar, Kant tenha proposto uma outra ordem, entendendo que beleza tem de ser
apreciada na sua forma, mas com o esclarecimento de que esta não representa um
fim em si mesma, sabendo, nesse caso, que o juízo estético se funda sobre um
sentimento privado e individual. No entanto, o belo essencial, em Kant, mesmo
contido na subjetividade de cada um, se revela como um prazer universal, já que
“solicita a aprovação de todos os demais” (KANT, 1993, p. 19). Por ser demasiado
complexa a doutrina kantiana, optamos por respaldos, conferindo a Merquior e
Croce uma explicação melhor do pensamento de Kant:

Para ele [Kant],o juízo estético não é cognitivo. Mediando entre as


faculdades cognitivas, jogando com elas, o juízo estético, sempre
32
experimentado por nós como universal, e não obstante sempre
referido a algo particular e sensível, faz pressentir uma harmonia
secreta – sem captação teórica possível – entre o homem e a
natureza. O juízo estético relaciona conhecimento e moral, mas não
os funde; não desvenda o sentido último do ser, a região oculta da
coisa em si; [...] Kant demonstrou que a satisfação proporcionada
pela experiência do belo é diversa do prazer causado pelo agradável
ou pelo bom. [...] o juízo estético é totalmente desinteressado
(MERQUIOR, 1969, p. 39-40 – grifo do autor).

Assim Kant, depois de ter assentado, criticando seus predecessores,


que a beleza é sem conceito, desinteressada, final sem
representação de fim, e fonte de prazer, mas de prazer universal,
readmitia inadvertidamente o intelectualismo ao definir a obra de
arte como representação adequada de um conceito, na qual o gênio
combinaria intelecto e imaginação, e readmitia até mesmo a
finalidade externa, explicando o belo como símbolo da moralidade
(CROCE, 1997, p. 113 – grifo nosso).

Logo, isso nos esclarece a diferença entre conhecimento e gosto em


Kant, isto é, o juízo estético que pode ser criado com bases no gosto da reflexão e
no gosto dos sentidos. Embora a chamada terceira Crítica, ao lado das outras
Críticas, tenha instaurado as matrizes para filosofia moderna, sustentou o problema
da universalidade do juízo. Merquior (1974, p. 47) defende a idéia de que, “ao
afirmar a universalidade do juízo estético, Kant não desejava escamotear a
constante ocorrência de diferenças de gosto. Seu objetivo era mostrar como o
autêntico juízo estético individual tende à persuasão dos interlocutores” (grifo do
autor).
Ainda nos valendo das premissas de Merquior (1974) ao versar
sobre “Kitsch e Antikitsch”, vê-se que o juízo estético funciona como uma espécie
de senso comum e, apesar da imanência de sua universalidade, este é fundamental
para que a arte antikitsch devolva ao indivíduo “a consciência crítica” em contraste
ao “lugar autômato” do “alienado consumidor do kitsch” (p. 48).
Ao retornarmos às raízes do fenômeno do kitsch, percebemos sem
grandes dificuldades que a estética kitsch é algo que se localiza “fora do lugar”

33
(ECO, 1993, p. 69); um mau gosto como falta de medida que opera na vulgaridade
através de clichês, mas que, ainda assim, busca se elevar à condição de obra de arte.

O kitsch, usando como matéria-prima os simulacros degradados e


academicizados da cultura genuína, acolhe e cultiva esta
insensibilidade, que é a fonte de seus lucros. O kitsch é mecânico e
opera por fórmulas. O kitsch é a experiência vicária e sensações
falsas. O kitsch muda de acordo com o estilo, mas permanece
sempre o mesmo. O kitsch é o epítome de tudo aquilo que é
espúrio na vida de nosso tempo. [...] O kitsch é enganador
(GREENBERG, 1996, 29).

Definir as propriedades do mau gosto parece ser a decisão mais


acertada, pelo menos a mais freqüente do universo teórico-crítico, para se chegar à
essência do kitsch. Na verdade, quando se passa pelo território vasto das teorias
que versam sobre os signos do mau gosto, o caminho trilhado quase sempre é o
mesmo, ou seja, o kitsch se presta à investigação do lugar da arte na
contemporaneidade, na qual estão inseridas as estratégias sistemáticas da indústria
cultural.
Do lugar histórico onde surge a estética kitsch, a civilização
burguesa, até a sua definitiva instalação, a cultura de massa, encontra-se a peculiar
experiência do kitsch. Em sentido geral, as definições para esta pseudo-arte,
englobadora daquilo que é apreendido como lixo artístico, inserem-se no campo
teórico sem grandes discordâncias. As aproximações e recuos são observados
quando se trata da postura exercida pelo kitsch relativa ao seu vilanismo ou ao seu
desempenho democrático. Do nosso elenco de críticos, como já foi exposto acima,
a par das diversidades, procuramos retirar traços comuns na tentativa de uma
possível fenomenologia estética do kitsch.
Tão logo, já se verifica uma concordância com relação à
artificialidade digestiva da estética kitsch, ainda que as posturas sejam opostas
dentro de uma visão positiva ou negativa. De todo modo, há um reconhecimento

34
no reino dos valores estéticos de um novo fenômeno, o qual revela na sua afluência
toda a gratuidade de uma arte apoiada na sensação de causar efeito. O lugar mais
seguro para o kitsch é justamente aquele avesso à sensibilidade da experiência
artística, fazendo, então, com que “o enfrentamento de dificuldades perceptivas”
(MERQUIOR, 1974, p. 12) não seja solicitado. Nesse caso, o kitsch é a arte do
paradoxo; ele é contestado por seu conformismo, pela utilização que faz de formas
já existentes, não busca o original, opta sempre pelo déjà vu; tem a tendência de
vulgarizar e deformar os objetos, o discurso e as formas estéticas; não contente
com a imitação e reprodução daqueles, o kitsch os degrada. Eis que essa
desnaturalização é essencial à lógica da estética kitsch.
Diante das aporias advindas do terreno acidentado da arte pela
invasão do kitsch, os teóricos buscam cada vez mais a compreensão de termos que
possam produzir algum significado com relação à estandartização da qual padece a
cultura contemporânea.
Um dos primeiros teóricos que atentou para a falência da arte
causada pela instauração do kitsch foi Hermann Broch, cujo livro Quelques
Remarques à propos du kitsch5 (2001) confere ao “homem kitsch” – kitschenschen – a
experiência da decadência artística. Broch viu na atitude do homem kitsch a única
possibilidade de permanência da “pacotilha artística”6, assentando toda sua
investigação “numa atitude determinada de vida”, atribuída à burguesia do século

5
No original: Einige Bemerkungen zum Problem des Kitsches (1955). Traduzido para o francês pela
Gallimard, em 1966, com o título: Quelques remarques à propos du kitsch.
6
O termo “pacotilha artística”, usado por Hermann Broch (2001) e também por Umberto Eco
(1993) é utilizado para designar um conjunto de ‘produtos’ que falsificam e adulteram obras de
arte originais. O kitsch, nesse sentido, representaria esse conjunto de obras artificiais. Dorfles
(1965, p. 147) afirma que “o princípio do ‘sub-rogado’, da falsificação com fins comerciais e
utilitários é, sem dúvida, um dos primeiros responsáveis pelo processo de degradação da obra de
arte”. O autor dá alguns exemplos interessantes que expressam bem essa condição de ‘fake’ do
kitsch: “a Gioconda de Leonardo utilizada como reclame de remédio [...], o fragmento de música
clássica reduzido a ritmo de jazz [...], a inserção de um móvel antigo no meio de outras peças de
grosseira falsificação [...], o romance célebre (Crime e Castigo, Ana Karenina, Vermelho e Negro)
condensado e reduzido ao romance cor-de-rosa [...]; o verso harmonioso e romântico, o refrão de
uma cançoneta, habilmente incluídos num texto literário, ou o objecto trivial e produzido
industrialmente, os restos, os destroços, de que grande artistas se serviram como elementos
compositivos nas suas obras (Schwitters, Duchamp, Picabia, etc.)” (DORFLES, 1965, p. 143).
35
XIX. Assim, é na atitude do homem que necessita da mentira do kitsch como
forma de reconhecimento próprio que Broch justifica sua definição, pois “a arte
kitsch não nasceria, nem sobreviveria se não existisse o homem do kitsch, que ama
o kitsch, que como produtor quer fabricá-lo e como consumidor está pronto a
comprá-lo e mesmo a pagar um preço alto por ele”7 (BROCH, 2001, p. 7 –
tradução nossa).
A teoria quase messiânica de Broch protagoniza uma luta pela
revitalização estética frente à literatura estetizante e à arte kitsch. O autor austríaco,
então, parte da idéia de que a dissolução dos valores, sejam estes ligados à arte ou
não, dá-se como conseqüência inevitável da secularização do Ocidente, uma vez
rompidas definitivamente a concepção platônica do mundo e a visão teocêntrica da
existência humana. O relativismo que pode suplantar valores de qualquer ordem
chegaria à arte e à literatura – instâncias privilegiadas – causando-lhes a morte na
mesma lógica que o advento da classe burguesa imputa à valoração dos signos
vazios. Com isso, o kitsch em toda a sua pujança seria a maior ameaça à arte, pois
provocaria num fruidor pouco informado uma espécie de arrebatamento, fazendo-
lhe crer, portanto, estar diante de uma verdadeira obra de arte; o kitsch escaparia
dos valores de controle (entenda-se juízo estético ou ‘senso comum’, como defende
Merquior) transformando-se numa mentira artística que operaria, antes de mais
nada, como contravenção do autêntico. É, pois, através da sedução que o kitsch,
enquanto fenômeno estético, se esforça por esconder o vazio.
Nas palavras de Merquior (1974), “os escritos de Broch sobre esse
tema constituem [...] o ápice crítico da teoria do kitsch”, porque conjuga “a
descrição estilística do kitsch a uma verdadeira sociopsicanálise da burguesia” (p. 29-30
– grifo do autor). O crítico brasileiro aponta a teoria de Broch em face dos
discursos contraproducentes de Edgar Morin e Abraham Moles, os quais também

7
No original: “l’art kitsch ne saurait naître ni subsister s’il n’existait pas l’homme du kitsch, qui
aime celui-ci, qui comme producteur veut en fabriquer et comme consommateur est prêt à en
acheter et même à le payer un bon prix”
36
se propuseram a tratar do kitsch, mas numa posição bem distante da de Broch.8 Na
verdade o que faz Merquior é traduzir o pensamento de Broch com relação à
“fome de décor” burguesa no século XIX:

Na Europa de 1800, a burguesia, em parte contaminada pela


libertinagem do século precedente, dispõe-se a temperar o ascetismo
protestante e os ideais espartanos da Revolução Francesa com uma
nova complacência em relação ao comportamento ‘estético’ e
exuberante. A eticidade burguesa, tanto tempo contraposta à
estetização aristocrática da existência, principia a ceder. A alta
burguesia pós-revolucionária arquiva o puritanismo neoclássico,
começa a inebriar-se de efusões e languidez românticas. Em lugar,
porém, de aceitar plenamente a exuberância vital longamente
reprimida, a burguesia triunfante caiu vítima dos seus velhos
impulsos ascéticos. Passou a estetizar – mas a estetizar, sublimando
[...] Desejava imitar as antigas elites, satisfazer sua própria fome de
‘décor’ – e contudo, incapaz de libertar-se do seu rancoroso e
imemorial desprezo pela vida fidalga, não pôde deixar de impor
uma inflexão desfiguradora ao instinto de exuberância
(MERQUIOR, 1974, p. 31 – grifo do autor).

Será justamente sob esse viés que Broch nos põe à frente daquilo
que ele nomeia como “o sistema do kitsch”9, que tem por princípio básico fazer
“um belo trabalho”10. Sendo assim, “o kitsch é o mal no sistema de valores da
arte”11 (BROCH, 2001, p. 33 – tradução nossa). O mecanismo enganador desta arte
de efeitos acaba, por assim dizer, representando um fim em si mesmo, tal qual nos
mostrou Broch, a beleza como consubstancial ao kitsch, e a verdade à arte.
Se “o esteticismo é a matriz da pseudoarte”, como quer Merquior
(1974, p. 32), não haverá dificuldade de compreensão ao ver que o kitsch não

8
Para Merquior, as análises de Morin e Moles são contraproducentes porque estes autores “se
empenham em neutralizar a noção de Kitsch, retirando-lhe todo sabor de acusação e denúncia” (p.
24 – grifo do autor). O problema dessa legitimação do kitsch, segundo Merquior, não reside na
tentativa de justificar a arte kitsch, e sim, de desejar “a uma sutil demolição interna do significado
crítico da idéia de kitsch” (p. 24).
9
No original: “le système du kitsch”
10
No original: “fait du beau travail”
11
No original: “le kitsch, c’est le mal dans le système des valeurs de l’art”
37
submete seus objetos a um imperativo ético, nem tão pouco nos convida à reflexão
ética; antes, ele se apóia na representação do efeito, notadamente percebido pela
comunhão de exagero e ostentação. Perceber a finalidade do kitsch é a forma mais
eficaz para entender o vilanismo tão comumente atribuído a sua falta de valor
estético. Prendemo-nos, então, à leitura que Broch faz acerca do papel exuberante
da arte prontamente reconhecível:

Sua convenção original é a exuberância ou, como podemos dizer


agora, uma exuberância simulada, já que ela busca estabelecer uma
ligação absolutamente falsa entre o céu e a terra. Em que tipo de
obra de arte ou, mais exatamente, em que criação artificial tenta ela
transformar a vida humana? A resposta é simples: em uma obra de
arte neurótica, isto é, uma obra de arte que impõe à realidade uma
convenção absolutamente irreal e que força a vida humana. No
auge do Romantismo, pululam, como a coisa mais banal, tragédias
de amor, suicídios e duplos suicídios, pois o neurótico, caminhando
entre convenções irreais que tomaram para ele um valor simbólico,
não se dá conta de que ele sempre toma a categoria estética no
lugar da categoria ética, e que ainda obedece a imperativos que, na
verdade, não são. A única categoria que se manifestou aqui é aquela
do kitsch e de sua maldade. É a maldade de uma hipocresia
universal no modo de viver, perdida no imenso tufo de
sentimentos e convenções. É supérfluo ressaltar que a burguesia
representou hipocritamente a comédia do triunfo completo de sua
atitude (BROCH, 2001, p. 33-34 – tradução nossa).12

12
No original: “Sa convention originelle est l’exubérance ou, comme nous pouvons maintenant
bien dire, une exubérance simulée puisqu’elle cherche à établir une liaison absolument fausse
entre le ciel et la terre. En quelle espèce d’œuvre d’art ou, plus exactement, en quelle création
artificielle essaye-t-elle de transformer la vie humaine? La réponse est simple: en une œuvre d’art
névrosique, c’est-à-dire une œuvre d’art qui impose à la réalité une convention absolument irréelle
et qui l’y fait entre de force. Dans le romantisme à son apogée fourmillent, comme la chose la
plus banale, des tragédies d’amour, des suicides et des doubles suicides, car le nérvrosé,
cheminant entre des conventions irréelles qui ont pris pour lui une valeur symbolique, ne
remarque pas qu’il ne cesse de prendre la catégorie esthétique pour la catégorie éthique et qu’il
obéit à des imperatifs qui n’en sont absolument pas. La seule catégorie qui s’est manifestée ici est
celle du kitsch et de sa malfaisance. C’est la malfaisance d’une hypocrisie universelle dans la façon
de vivre, égarée dans l’immenses fourrés de sentiments et de convention. Il est superflu de faire
ressortir que la bourgeoisie s’est jouée hypocritement la comédie du triomphe complet de son
attitude”.

38
Sob tal aspecto, verifica-se, em Broch, que agregar a automatização
artística aos desejos e gostos da burguesia industrial, copiados em grande parte da
nobreza aristocrática, é perfeitamente justificável no Romantismo pelo modo como
este concedia “valores simbólicos” aos objetos da arte sempre no sentido de
conferir-lhes a beleza como requisito imediato. Por causa dessa exigência
romântica, as produções artísticas passariam a repousar num sistema fechado,
culminando no fim da arte. Entretanto, o crítico afirma que o kitsch não é “uma
arte ruim”, mas sim “um corpo estranho jogado ao sistema da arte” (p. 30).
Da mesma forma que Broch, negando acumpliciar-se ao kitsch,
Clement Greenberg (1996), no capítulo intitulado “Vanguarda e Kitsch” (p. 22-39),
discute o kitsch à luz da formação de juízos de valor, entendendo que sem a
aplicação do gosto e juízo estético não há efetiva possibilidade de se conhecer arte.
Só isso já seria suficiente para revelar, indubitavelmente, uma postura bastante
contrária ao princípio “enganador” do kitsch. Todavia, o crítico norte-americano
avança na tese da objetividade do gosto, afirmando que nenhum juízo de valor
pode ser criado a partir de posições lógicas ou científicas por se tratar de valores
humanos, e, nesse sentido, “valores relativos” (p. 31). Mesmo os valores absolutos
(ou seja, os valores inquestionáveis, universais), de tal sorte que os buscou a
vanguarda, são aqueles que se ligam à estética, portanto, ainda relativos. Contudo,
diz Greenberg: “parece ter havido um consenso mais ou menos geral entre a parte
culta da humanidade em todas as épocas sobre o que é arte ruim” (p. 31).
A extensa obra de Greenberg permite-nos evidenciar, e não seria
redundante dizer, com bastante clareza, a vanguarda como uma produção de alto
nível, e a justificativa para isso reside na sua auto-consciência. Esse paralelismo
entre vanguarda e kitsch parece, de fato, ser um lugar-comum no seio da teoria
estética, porém, em Greenberg, essa relação se mostra antes como uma necessidade
do que uma contingência13. Isso porque, como se sabe, as vanguardas sempre

13
Cumpre lembrar, antes de mais nada, as duas acepções possíveis ligadas ao conceito de
vanguarda: aquela concernente às manifestações artísticas do ínicio do século XX, tais como
Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, e tantos outros ismos, acrescentando ainda as chamadas
39
tentaram manter o sentido de “verdade” ou “originalidade” da obra de arte,
baseando suas “experiências” em uma espécie de contraposição à ilusão promovida
pela arte enlatada. Na verdade, o assalto que faz o kitsch à estética de vanguarda
estabelece um tipo de dialética que desemboca na relação entre invenção e
padronização, com a qual, Greenberg, postula um modelo teórico para explicar o
modo como a dinâmica do kitsch, atuando provocativamente nos mesmo termos
da vanguarda, promove o rebaixamento de obras artísticas, e, ainda, incita nos seus
receptores a falsa sensação de estarem fruindo, do ponto de vista estético,
possibilidades artísticas mais apuradas.
Em decorrência disso, “o kitsch é enganador” porque não provoca
nenhum enriquecimento da capacidade fruitiva e mesmo da atividade perceptiva
diante do objeto artístico, ao contrário, trabalha na insistência de estabelecer formas
prontamente reconhecíveis, depauperando, assim, a verdadeira experiência das
formas de representação estética. Diante disso, Greenberg defende seu pensamento
a partir da idéia de que “a cultura de vanguarda é imitação do ato de imitar”,
enquanto o kitsch “imita seus efeitos” (GREENBERG, p. 26-33).
Já o italiano Dorfles (1965) propõe uma definição de kitsch que vai
além das propriedades normativas do gosto e da fruição estética porque, antes de
qualquer outra coisa, o kitsch liga-se a um desvio no exame da obra de arte, quer
dizer, o indivíduo “dotado de mau gosto”, certamente, poderá fruir determinados
objetos, mesmo aqueles considerados “obras de arte autêntica”, mediante um olhar
equivocado. De fato, se isso adultera, sob o ponto de vista estético, os objetos e as
obras, também provoca um “desvio da norma” (p. 141) no que diz respeito à
questão ética dos sentimentos. Diz Dorfles, então, que “mesmo os sentimentos, as

neovanguardas do período do pós-guerra que se estendem até os dias atuais – Pop Art, Arte
Povera, entre outras; e aquela ligada a uma idéia de vanguarda que, de acordo com Subirats (1993,
p. 11-12), “designa uma estratégia militar”, isto é, expressão de uma pretensão ideológica de
poder que agia de forma a dominar e postular “a liquidação das formas de experiência do
passado”. Isso será melhor entendido no próximo subcapítulo (1.2), onde trataremos da dialética
vanguarda e kitsch, voltando, inclusive às considerações de Greenberg. Por ora, cabe-nos apenas
esboçar o pensamento dialético de Greenberg, tendo em vista a necessidade que nos é imposta
pela definição do conceito de kitsch.
40
reacções patéticas, a resposta moral, a própria noção de ‘bem’ e de ‘mal’, de dor, de
amor, acabam, em certo sentido, por alterar-se” (DORFLES, 1965, p. 141 – grifo
do autor). Isso é curioso pois retira dos objetos e do aspecto fruitivo destes a
exclusividade de uma efetiva avaliação estética que pudesse, com efeito, criar uma
definição cristalizada para o kitsch. Dito de outro modo, vê-se que o que, a priori,
sustenta a degradação da arte genuína é uma espécie de “fruição aberrante”
conferida pela cooptação de valores artísticos aos produtos kitsch, cujo mediador é
aquele público que tem uma peculiar capacidade apreciativa (ou depreciativa)
duvidosa diante de objetos artísticos ou, por outro lado, complacente diante da
falsificação do kitsch.
Em Dorfles, também se verifica que a situação da fenomenologia
do mau gosto passa necessariamente pela compreensão da ascensão progressiva de
uma classe média (ou pequeno-burguesa), que, na tentativa de romper com os
velhos padrões de criação, passa a nutrir uma elevada simpatia ao ímpeto
renovador que prometia, entre outras coisas, o alargamento da produção artística,
daí o surgimento de uma arte destinada às massas. Certamente, pode-se pensar que,
tal qual fez Broch, ao associar o mau gosto ao sentimentalismo exacerbado do
Romantismo, Dorfles o faz na medida em que observa no “aburguesamento das
massas” um crescente gosto pelo “patético do tipo kitsch”. Isso porque o
sentimentalismo afeito ao kitsch, de acordo com Dorfles, pode ser considerado
“como uma espécie de pathos privado de todo o componente racional e
inteiramente voltado para um deleite hedonista das suas experiências” (p. 145 –
grifo do autor). Assim, o homem de mau gosto “deixa-se enternecer a qualquer
preço” (p. 145), corrompendo-se à falsificação do kitsch. Inegavelmente, isso
justifica aquela “fruição aberrante”.
Segundo Dorfles (1965, p. 152), a “distância estética” criada a partir
da adulteração da intencionalidade fruitiva faz com que a obra de arte não seja mais
“entendida como veículo de um ‘valor’, como um elemento axiologicamente
relevante, mas como um estímulo de uma pessoal e subjectiva comoção”.

41
Talvez esteja precisamente aqui uma das diferenças mais
significativas entre apreciador de bom e mau gosto, ou melhor,
entre o autêntico saboreador da arte e o saboreador ‘utilitário’ e
hedonista da mesma: o facto de estabelecer uma certa distância
entre si e a obra, de observá-la com participação consciente e não
apenas com ‘deixar-se ir’ na onda do agrado, faz com que possa
também admitir o porquê de uma possível negativização do kitsch, a
eventualidade de poder utilizá-lo com fins artísticos (DORFLES,
1965, p. 152 – grifo do autor).

Como conseqüência disso, vê-se que o kitsch é tributário de uma


lógica estética absolutamente negativa, cuja estetização acentuada dos elementos
desnaturaliza o processo fruitivo da obra de arte, transformando-se num
movimento programático. Isso significa dizer que na dinâmica do kitsch parece
ocorrer uma espécie de troca “feliz”, cujos desejos são saciados reciprocamente: o
espectador recebe um determinado objeto artístico de formato familiar, e portanto,
digestivo; a obra, produzida na e para a cultura de massa, veiculada sem exceção
nos mass media, alcança de prontidão seu intuito único, isto é, a circulação rápida.
Poder-se-ia supor que esse tipo de alargamento da produção artístico-cultural se dá
de forma democrática e que, por causa disso, os objetos e obras de arte não ficaram
mais restritos a uma camada da sociedade – alta cultura. No entanto, a
padronização dos estilos, os mesmos que são prontamente reconhecíveis e que,
portanto, agradam em larga escala, promulga, entre outras coisas, a massificação
cultural, retirando, assim, da arte uma certa individualidade sígnica. Em se tratando
do kitsch, vê-se que essa vulgarização da arte obedece a um tipo de normatização
que vai além da depauperação estética. Estrategicamente, o kitsch, ao criar os mitos
artificiais, promovendo-os no imaginário coletivo, além de esvaziar o sentido
ideológico da obra de arte, incute no receptor uma espécie de “motivo de consolo”
porque não só alimenta a idéia de uma fruição apurada, mas também lhe provoca a
sensação de prazer e satisfação diante do objeto artístico. Por tudo isso é que
estamos autorizados a afirmar que o kitsch se constitui de maneira única, uma vez

42
sabido que esse procedimento de provocar sensações falsas, mas não menos
prazerosas, é sempre predeterminado.
Merquior (1974) é absolutamente mordaz ao fazer algumas
observações a respeito “do vulgar que aspira a parecer refinado” (p. 7-8). Poder-se-
ia afirmar, talvez, que o capítulo intitulado “Kitsch e Antikitsch (arte e cultura na
sociedade industrial)” traga, sob o ponto de vista crítico, as melhores considerações
sobre a estética do kitsch, senão, pelo menos, a mais completa no tocante à
exposição teórico-crítica. Na verdade, o texto de Merquior pode ser considerado
completo porque discute o kitsch a partir de uma visão bem ampla que vai desde
sua formação junto à classe burguesa, sua especificidade concentrada no efeitismo e
esteticismo, a visão negativa da sociologia como crítica cultural, a sua legitimação
crítica, e, finalmente, a sua relação com a vanguarda. O que nos interessa nesse
momento é observar algumas dessas considerações de Merquior, levando em conta
o propósito inicial deste capítulo com relação à fenomenologia do kitsch. Nesse
sentido, concentraremos nossa atenção na idéia da “reação controlada”
concernente à atuação estética do kitsch, e ainda, na análise que faz o autor sobre o
livro O Kitsch: a arte da felicidade (1975)14, de Abraham Moles15, que, como é sabido,
vê no kitsch uma certa democratização cultural, um tipo de prazer socialmente
aceito.
Como o kitsch é um advento que surge da forte aspiração burguesa
aos prestígios artísticos gozados originalmente pelas aristocracias, não é de se
espantar que sua lógica se alimente da mesma forma que a cultura de massa que, no
intuito de obedecer aos padrões industriais, acabou por deteriorar os objetos
culturais. Por força do alargamento do consumo imediato e do desejo pelo
divertimento a qualquer preço, a cultura de massa – que nada mais é do que um
descendente da burguesia industrial – falsearia a promessa de que a cultura estaria,

14
O livro de Abraham Moles, originalmente em francês com o título: Psycologie du Kitsch – L’art du
bonheur, foi publicado pela Maison Mame, Paris, em 1971.
15
Conjugaremos, de forma a finalizar esse tópico incial, a crítica de Merquior ao pensamento de
Abraham Moles por acreditar que essa exposição dialética tenha pertinência na compreensão final
da fenomenologia estética do kitsch.
43
então, voltada às massas de forma democrática, que o acesso aos “bens culturais”
seria igualitário.
Esses mesmos bens culturais não passariam mais por uma fruição, e
sim, por uma consumação; os bens de consumo alimentariam um público, desejoso
de consumir, sob a máscara do politicamente acessível. Assim, a cultura, ao lado do
homem pouco afeito ao esforço mental, banaliza e padroniza tanto os objetos
quanto o gosto16. Cumpre lembrar que só isso não é suficiente para diferenciar a
arte kitsch dos outros tipos massivos de representação estética, pois, no caso
modelar do fenômeno kitsch a “reação controlada”17, previamente pensada, é
fundamental para seu aprimoramento. Este mecanismo, que conjuga na arte kitsch
efeitismo e esteticismo, segundo Merquior, é garantia para o homem da massa “da
alienada distração”, uma agradabilidade diante de um repertório de objetos
fomentadores do prazer. Sem dúvida, é possível perceber que o kitsch é uma arte
bem acabada, ainda que esteticamente degradada, tanto no seu propósito formal
quanto ideológico, idéia que, de fato, parece bastante paradoxal, uma vez
conhecido o esvaziamento de sentidos no kitsch. A explicação para este bom
acabamento reside na concepção de que a arte kitsch, insistindo nas formas
facilitadoras de fruição, e trabalhando no imaginário coletivo de forma a alimentar
o consolo através daquilo que é universalmente reconhecido, desempenharia um
papel absolutamente reacionário na tentativa de aprisionar um contingente
significativo de fruidores nos seus signos vazios. É, pois, nesse sentido que se
estende a crítica ferrenha de Merquior à teoria legitimadora de Moles, a qual, entre
outras coisas, confere ao kitsch a estética do prazer.
De fato, não é preciso esmiuçar o livro de Moles (1975) para se
deparar com conclusões pouco fundamentadas ou reflexões redundantes acerca do

16
Todas essas considerações a respeito da massificação cultural por meio da indústria cultural
serão esmiuçadas no próximo subcapítulo quando discutiremos a dialética vanguarda e kitsch.
17
De acordo com Merquior (1974, p. 11), “a forma específica da atuação do kitsch em termos de
percepção estética é a ‘reação controlada’: a especialidade do kitsch consiste em digerir
previamente a arte para o consumidor. A obra kitsch já contém as reações do leitor ou
espectador, dispensando maiores esforços perceptivos e interpretativos” (grifo do autor).
44
kitsch; isso já pode ser apontado como lugar-comun. O que chama atenção, e nesse
ponto concordamos com Merquior, é a falta de postura e definição valorativas no
tocante aos desígnios falaciosos da arte kitsch. No segundo capítulo do livro de
Moles, “A inserção do kitsch na vida” (1974, p. 23-30), diz o autor: “Este livro
gostaria de ser o revelador de uma imagem kitsch latente do universo
contemporâneo e para isso procurará morder com ácido cítrico esta imagem. O
distanciamento que oferece o humor não deve iludir-nos” (p. 28-29). O que se
verificará ao longo do livro, contudo, serão esforços para agregar à arte da
felicidade (entenda-se a arte do kitsch) um valor inegavelmente positivo. Moles
reconhece os processos negativos do kitsch, porém isso não neutraliza uma análise
absolutamente positiva com relação aos produtos do kitsch. Parece mesmo que a
conclusão de Merquior sobre a “tentativa de esvaziamento crítico da noção de
kitsch” (1974, p. 24) buscada por Moles se concentra no fato de este justificar o
kitsch como uma necessidade permanente do homem. Dessa forma, nota-se que,
mesmo ressaltando os aspectos artificiosos e destrutivos do kitsch, Moles atribui-
lhe um caráter menos pejorativo por acreditar no seu princípio de validade estética,
daí aquela atitude filistina tão rejeitada por Merquior. Para termos uma idéia mais
coesa do modelo teórico de Moles, é necessário que avaliemos, em primeiro lugar, a
relação ambígua estabelecida na transformação do kitsch em arte através do prazer
encontrado pelo homem.
A começar pelo plano estético, percebe-se que Moles,
erroneamente, confronta o kitsch com a arte pelo papel democrático deste em
contraposição à dificuldade perceptiva e fruitiva daquela. Ora, se Moles desejava
pôr o kitsch no mesmo princípio de equivalência estética que a chamada arte
autêntica, deveria, antes de tudo, lidar, sob o ponto de vista teórico-crítico, com
concepções mais apuradas sobre a finalidade dos objetos artísticos. Entretanto,
Moles prefere o reducionismo, lançando mão de taxionomias que, concordemos,
são interessantes, mas estão bem longe de revelar uma possível epistemologia do
kitsch, uma vez que é esta a proposta. O problema maior para Merquior é a defesa

45
de Moles quanto à alienação kitsch. Já nosso intuito é bem menos agressivo; não
pretendemos denunciar aqueles que não se posicionaram avessos à falsificação, e
sim, no caso de Moles, demonstrar que seus argumentos ficaram aquém das
possibilidades verdadeiramente explicativas. Moles defende, por exemplo, que

A posição kitsch situa-se entre a Moda e conservantismo, como


aceitação da ‘maioria’. Neste sentido, o kitsch é essencialmente
democrático: é a arte do aceitável, aquilo que não choca nosso
espírito por uma transcendência fora da vida cotidiana, nem por
um esforço que nos ultrapassa; e sobretudo se devemos superar
nossas próprias limitações, por seu intermédio. O kitsch está ao
alcance do homem, ao passo que a arte está fora do seu alcance, o
kitsch dilui a originalidade em medida suficiente para que seja aceita
por todos. […] O kitsch é a arte da felicidade (MOLES, 1975, p.
32-33 – grifo do autor).

É claro que não se pode compartimentar as representações estéticas


em níveis totalmente estanques, julgando toda e qualquer produção que contenha
elementos da cultura de massa como obras ruins ou, em última análise, subjugadas
à depreciação do kitsch. Caso contrário, nem estaríamos autorizados a sustentar
aqui uma análise estética do romance contemporâneo de Caio Fernando Abreu,
escolhido para contemplar nosso trabalho. Como veremos no segundo momento
desse capítulo, a sociedade da massa, funcionando sob a égide da indústria cultural,
também exerce um papel repressivo e conservador. Nesse sentido, é que se deve
avaliar o objeto artístico, no nosso caso literário, sempre levando em conta o
verdadeiro significado desse tipo de apropriação (que incorpora à literatura os
gêneros massivos), que, de fato, poderá assumir um interessante papel ideológico, e
mesmo estético. Eis a recusa de Moles. Não lhe interessou mensurar em que
medida o kitsch teria diálogo importante nas artes em geral, já que opta por sua
legitimação. Para ele, o kitsch é solidário com seu público porque, em primeiro
lugar, depura a arte de todo seu conteúdo reflexivo e seu procedimento causador de
estranheza, tornando-a mais familiar; em segundo lugar, porque chega ao fruidor de
forma conveniente, promovendo o conforto, numa “espontaneidade perceptiva e

46
aceitação fundamental” (p. 75). Parece ser essa a razão encontrada por Moles para
acreditar em uma “função pedagógica do kitsch”.

A função pedagógica do kitsch foi quase sempre negligenciada


tanto pelas incontáveis conotações negativas do kitsch como pela
tendência instintiva de todos aqueles que escrevem de superestimar
[sic] seu juízo estético. Em uma sociedade burguesa e, via de regra,
meritocrática, a passagem pelo kitsch é a passagem normal para se ter
acesso ao autêntico, não implicando à palavra ‘normal’ aqui
qualquer juízo de valor, mas apenas um aspecto estatístico. O
kitsch dá prazer aos membros da sociedade de massa e, por esta
via, lhes permite o acesso a exigências suplementares e a passar da
sentimentalidade à sensação (MOLES, 1975, p. 77 – grifo do
autor).

Diante disso, não se poderia refutar as críticas de Merquior (1974)


ao considerar a postura de Moles alienada, de “juízo deformante e deformado” (p.
28 – grifo do autor), ainda que axiológica em si mesma. Forçosamente, é preciso
reconhecer, de outro lado, que Merquior, a despeito da completude teórica, adota
uma postura bastante intransigente frente ao kitsch, insistindo sempre que o
fenômeno apenas pode ser tomado como depauperador da arte.
Quase chegando ao final deste primeiro momento do capítulo 1,
deveríamos nos questionar até que ponto o kitsch é ruinoso, e quando ele pode ser
reaproveitado. Os modelos teórico-críticos são capazes de nos colocar reflexões
mais profícuas e menos preconceituosas a respeito do kitsch?
Se por um lado, todo juízo crítico acerca do kitsch promove uma
reflexão do lugar da arte da contemporaneidade, de outro, tendo em vista as idéias
de Rosenberg (1974), em “Cultura Pop: a crítica kitsch”, vemos tão logo que tais
postulações no nível do “contraconceito” são igualmente falsas, e portanto,
também kitsch, pois, de modo geral, “os acadêmicos insistem em separação e
oposição […] para o kitsch por parte de uma arte idealística” (p. 196 – grifo do
autor). Para Rosenberg, a Arte não necessita de “atitude oficial” para produzir-lhe
um significado de validade ou nulidade. E o kitsch, com todo seu caráter ruinoso, é,

47
queiramos ou não, “a arte cotidiana de nossa época”18. E mesmo a arte autêntica –
aqui, a referência é à arte de vanguarda – tomou posse de figurações kitsch porque,
afinal de contas, “a arte de massa é um fenômeno do mundo da arte” e, assim,
“produzida segundo admissões básicas da Arte dos Séculos: a admissão de que as
formas tradicionais podem ser postas em novos usos através de recursos técnicos; a
admissão de que estas formas conservam um poder intrínseco de emocionar as
pessoas” (p. 196). Por isso, Rosenberg rejeita essa crítica acadêmica que instala nos
procedimentos estéticos a “separação e oposição” entre arte diletante e produção
mercadológica: “o resultado, claro, é kitsch” (p. 196 – grifo do autor).
A despeito da validação ou anulação do kitsch no universo teórico-
crítico, vê-se que só é possível abarcar todos os argumentos compreendendo as
mudanças na arte, ocorridas nas últimas décadas, de forma a abranger tanto os
modelos estruturais quanto os contextos histórico-sociais. É nesse sentido que
acreditamos que esboçar uma dialética entre vanguarda e kitsch, permeando os
conceitos de indústria cultural e cultura de massa, pode nos auxiliar a chegar a uma
compreensão mais coesa sobre a noção de estética do kitsch. Veremos, então,
como os procedimentos vanguardistas podem se assemelhar ao kitsch na medida
em que deixam de ser “dissonantes” e tornam-se “harmoniosos” (ECO, 1985, p.
53); de outro lado, como o kitsch pode se distanciar ou até mesmo se opor à
vanguarda mediante a promoção da automatização dos códigos da arte, retirando
dela, então, uma certa ideologia revolucionária, uma certa capacidade da arte de
discutir sua própria condição, tão cara à vanguarda. Pretendemos com isso verificar
aquele “processo de canibalização recíproco”, do qual nos fala Vera Lúcia Follain
de Figueiredo (2005), que promove o trânsito entre as esferas culturais de modo a
fazer tanto a cultura de massa se apropriar dos códigos da arte quanto a própria
vanguarda, que igualmente, emprestou os valores do kitsch. Isso nos levará, sem
dúvida, àquela outra dialética entre invenção e padronização que, de acordo com
Figueiredo (2005, p. 35), “vem sendo buscado pela ficção contemporânea como
18
O texto de Rosenberg data de 1974. Nesse caso, quando o autor se refere à arte de “nossa
época”, podemos nos certificar de que se trata da arte do século XX.
48
um caminho para a própria sobrevivência, ainda que sob a ameaça de diluir as
fronteiras que a delimitavam segundo os princípios de automatização da esfera da
arte que fundaram a modernidade estética”.

1.2 DA VANGUARDA AO KITSCH: DA INVENÇÃO À PADRONIZAÇÃO

“Mas no panorama da cultura de massa não se pode dizer


nem mesmo que a seqüência das mediações e dos
empréstimos se estabeleça num sentido único: não é apenas o
Kitsch que toma de empréstimo a uma cultura de proposta
estilemas que inserirá nos seus débeis contextos. Hoje, é a
cultura de vanguarda que, reagindo contra a situação maciça e
envolvente da cultura de massa, toma emprestado do Kitsch
os seus estilemas; e não faz outra coisa a pop-art, quando
individua os mais vulgares e pretensiosos dentre os símbolos
gráficos da indústria publicitária e os transforma em objeto de
uma atenção doentia e irônica, ampliando-lhes a imagem e
citando-a no quadro de uma obra de galeria.Vingança da
vanguarda contra o Kitsch, e lição da vanguarda ao Kitsch,
porque nesses casos o artista mostra ao produtor de Kitsch
como se pode inserir um estilema estranho num novo
contexto sem pecar no gosto: e a marca da fábrica de bebidas
ou a lânguida estória em quadrinhos, uma vez objetivadas
pelo pintor numa tela, adquirem uma necessidade que antes
não possuíam”
(Umberto Eco)

Tentamos mostrar no tópico anterior, para uma definição de kitsch,


a necessidade da estética moderna em apontar a distinção essencial do artístico e do
não-artístico, entendendo a obra de arte como algo autônomo, isto é, não
necessitando das condições sociais que alimentam um sistema de produção,
veiculação e consumo. É certo que muitos estetas tentaram exaustivamente
encerrar um modelo definidor que pudesse abarcar um vasto conjunto de material,
reunido sob o teto comum da arte, acreditando na prevalecência da forma sobre a
função. Isso reflete aquela proposição idealista de que o artístico teria o sentido de

49
alguma coisa “espiritual” e que o artista seria, então, uma espécie de gênio criador
isolado do universo dos mortais. Certamente, esses privilégios, concedidos às obras
há muito, revelavam, para além da finalidade da obra de arte, um certo narcisismo
artístico que implicava, entre outras coisas, o afastamento das produções artísticas
com o público pelo modo como estas eram tomadas pelo seu caráter
absolutamente apurado. Pierre Francastel, por exemplo, atribuiu ao reducionismo
das explicações estéticas esse afastamento entre o homem e a arte. Segundo ele,
aquelas teorizações do campo artístico eram

[…] dominadas por uma concepção intuitiva e metafísica que faz


da arte uma força isenta de toda servidão material, livre, gratuita e
através da qual o homem, em estado de graça, entra diretamente
em contato com as realidades supremas do universo, fora dos
tempos e dos espaços, no absoluto, além da história
(FRANCASTEL apud GULLAR, 1969, p. 99-100).

O nosso intuito naquele primeiro momento foi mostrar, a partir do


conceito de arte, como se pode aperceber e apreender determinados objetos sob
categorias de validade ou nulidade, isto é, por que razão algumas produções
recebem a nomeação de obras de arte e outras não. Isso nos foi necessário na
medida em que nos deparamos com modelos teórico-críticos que impunham para a
discussão do kitsch formulações de âmbito absolutamente estético. É bem provável
que não tenha ficado de todo clara nossa postura frente ao empréstimo que faz a
arte contemporânea dos materiais considerados kitsch e, portanto, depreciados pela
cultura erudita, fato que só vem explicitar a atual crise das formas de representação
estética, como já mencionado anteriormente. Por isso, nesse segundo momento do
capítulo que trata dos rumos do kitsch, tentaremos esmiuçar esse problema de
forma a verificar em que medida aqueles conceitos estanques (valores absolutos que
não permitem questionamentos de alguns objetos artísticos) acerca das
propriedades da arte são inválidos, em que medida a complexidade e diversidade
das produções contemporâneas promovem o esgotamento do conceito de arte.
50
Para compreender de fato essa diluição do conceito de arte no seio
da sociedade contemporânea, faz-se necessário abordar, sob o ponto de vista sócio-
cultural, as mudanças pelas quais passaram as artes no século XX até os dias atuais.
Isso significa lidar com determinados acontecimentos: a) efetivação da cultura de
massa, passando antes pela ascensão e transformação da classe burguesa; b)
estabelecimento de uma indústria cultural, que, por força dos mass media,
implantou uma nova ordem para a produção e circulação dos objetos artísticos; c)
surgimento das vanguardas artísticas como a máxima expressão de renovação
estética, como poética ideologicamente revolucionária; d) crise e esgotamento das
vanguardas. Pretendemos, assim, chegar à discussão vanguarda e kitsch como o
princípio que articula aquela dialética entre invenção e padronização. Isso se
justifica na medida em que aceitamos essa dialética como realização empírica dos
procedimentos artísticos concentrados, de um lado, nos processos vanguardistas e,
de outro, nas reproduções daquelas mesmas formas já gastas pelo kitsch.
No âmbito do estudo da estética, seja pela via filosófica e, mais
recentemente, pela sociologia da arte, sempre houve uma preocupação quanto ao
desvendamento do conceito de arte. Uma das explicações a respeito da falência dos
conceitos fechados, advindos em grande parte das estéticas idealistas, vem de
Néstor García-Canclini, cujo livro A socialização da arte: teoria e prática na América
Latina (1984) contém um estudo acerca da transformação do conceito de arte no
século XX, em avaliação constante dos fundamentos estéticos produzidos pela
filosofia. Tais conceitos, como mostra García-Canclini, chegam ao esgotamento
por força das mudanças decorrentes da sociedade moderna, e, claro, pelas novas
concepções das produções artísticas.
De acordo com o autor, de modo algum as artes poderiam se
fechar nesse conceito de autonomia porque, antes de mais nada, elas devem ser
avaliadas dentro de um contexto social. As artes sempre fizeram parte de um
processo social e cultural e, nesse sentido, avaliar sua função requer, entre outras
coisas, repensar o modus operandis com que elas estabelecem uma relação direta com

51
a sociedade e vice-versa. Para tanto, mesmo se pensar esteticamente, ver-se-á a
dificuldade em sistematizá-las sob um conceito único com o pretexto de fazer
emergir a sua essência. Vejamos a explicação de García-Canclini quanto aos
objetivos de seu estudo:

[...] trata-se de descentrar o estudo da arte, afastando-o da obra, ou


de uma Beleza idealizada, e de passar a analisar a arte como um
processo social e comunicacional. Isso equivale a incluir no
fenômeno artístico o autor, a obra, os difusores e o público.
Quisemos ver de que modo o uso do modelo sócio-econômico,
que explica a produção, distribuição e consumo dos bens, contribui
para compreender a circulação e a apreciação da arte; em que
medida o modelo comunicacional de emissor-mensagem-código-
canal-receptor pode explicar a formação dos fenômenos estéticos.
Propomo-nos a explicar as consequências que tem essa visão global
da arte – como processo que vai do autor até ao público e não
como mera coleção de obras – no seu estudo e numa prática
coerente com as transformações sociais (GARCÍA-CANCLINI,
1984, p. 3-4).

Nesse caso, o primeiro ponto que se deve ponderar diz respeito ao


caráter de autonomia atribuído às obras, entre os séculos XV e XVIII, que acabaria
por condicionar um sistema sobre o qual ficariam presos apenas o artista –
enquanto gênio criador – e suas obras, as quais seriam, então, configuradas “pelas
relações estéticas” na comparação com os demais objetos. De acordo com García-
Canclini, o início desse processo dá-se como “resultado de mudanças econômicas,
sociais e culturais: o surgimento de um mercado cultural; a independência dos
artistas em relação à tutela religiosa e cortesã; a criação de museus, galerias, teatros
fechados e salas de concerto”, até chegar naquela “justificação e sistematização
desses fatos por filósofos italianos, franceses e alemães” (p. 97).
Se pensarmos em uma trajetória histórica das investigações no
tocante à arte, tão logo se notará a figura emblemática de Platão que, a despeito de
não ser um teórico da arte, foi o primeiro a incorrer numa compreensão desta ao
atribuir-lhe uma função e uma finalidade. Tendo valorizado algumas expressões

52
artísticas, tais como o Teatro, a Arquitetura e a Escultura, o autor de A República
pôs nos termos da dimensão social a função da arte, e sua finalidade ficou destinada
à política. Das acepções de Platão, talvez a que tenha sofrido maior contestação no
tocante à estética foi o fato de o filósofo grego ter concedido à arte uma forma de
conhecimento inferior, posto que esta dava-se como imitação das coisas sensíveis.
Isso fez com que a arte se aprisionasse em um sentido de imitação da verdade. Já
Aristóteles toma a arte como uma atividade prática, fixando-lhe, sob o conceito de
mímesis, o sentido de verossimilhança. Em virtude do reconhecimento dado aos
aspectos formais da obra, Aristóteles avaliou a arte no domínio de suas
especificidades por entender que ela é uma construção e um conhecimento. Se essa
concepção mimética da arte já se apresentava problemática na antigüidade,
certamente, chegando ao século XVIII, quando a arte se faz mais efetivamente
objeto de investidas teórico-críticas, as tentativas de abordá-la sistematicamente
tornam-se mais abertas e propensas a reflexões.
Dentro desse contexto, que compreende os séculos XVIII e XIX,
consolidam-se as formulações teóricas acerca do conceito de arte, para as quais esta
recebe outras angulações. Nesse caso, tanto a vertente do Iluminismo francês, com
elaborações de Diderot e Rousseau, quanto o pensamento alemão, sob as figuras de
Lessing, Kant, Schelling e Hegel, “proclamam a autonomia definitiva da arte e dos
artistas, defendem sua indiferença com relação ao público e a toda forma de ação”
(GARCÍA-CANCLINI, 1984, p. 101).
Com o crescimento de um mercado capitalista, unido à ascensão e
estabelecimento da classe burguesa, as produções artísticas integram-se em um
sistema autônomo, diferente daquele ligado à tradição cortesã, de gosto
inegavelmente burguês. Segundo Hauser (1995), é preferencialmente, no século
XIX, quando a burguesia efetivamente recupera o poder e toma para si o domínio
das “questões culturais”, que a arte se vulgariza, havendo o “rebaixamento do
padrão dominante de gosto” e anunciando “o começo de um declínio da
qualidade” (p. 568). Hauser ainda coloca que essa fragilidade de gosto, nascida sob

53
a forma da exacerbação do sentimentalismo nos “primeiros romances de
sensação”, aponta, antes de um “deslocamento do valor estético”, o
desenvolvimento de uma “cultura emocional”. Em contrapartida, o intelectualismo
do pensamento alemão, sustentado na intelligentsia burguesa, proclama sob a égide
do irracionalismo uma outra compreensão das categorias estéticas. A obra de arte,
assim, seria tomada pelo seu caráter divino e não estético, “como um processo
misterioso derivado de fontes tão insondáveis quanto à inspiração divina, a intuição
cega e os estados de ânimo imprevisíveis” (HAUSER, 1995, p. 615).
A rigor, quando se investiga a origem dos movimentos artísticos de
ação coletiva, os quais a partir do Romantismo entram impetuosamente para a
história das artes, nota-se a importância da consolidação da classe burguesa em
virtude de uma conquista da liberdade de pensamento. No entanto, a situação do
artista sofre forte abalo nesse período porque a obra de arte, agora, tem de estar em
plena sintonia com os interesses mercadológicos da burguesia. Isso significa dizer
que restara ao artista a adequação ao sistema de uma civilização industrial ou a
oposição. Cumpre lembrar que o Romantismo, como reação à vida ordinária
burguesa, potencializa a distância entre o artista e o homem comum, e, por
conseguinte, afasta a obra da realidade social, promovendo o individualismo e
aquela idéia do artista como gênio criador. García-Canclini (1984) afirma que a
burguesia, tanto sob o ponto de vista econômico quanto ideológico, restringiu a
produção artística ao domínio da valorização do consumo e a liberdade criadora
dos artistas, posto que “os métodos de produção foram valorizados pela
exclusividade e pelo custo” (p. 103).
Esteticamente, nota-se, então, que os movimentos vanguardistas,
iniciados em fins do século XIX e tendo seu apogeu no começo do século XX, se
revelam como proscrição de toda a tradição apoiada numa ação libertária, que,
antes de mais nada, pretendia ser a expressão da modernidade. Se originalmente a
palavra avant-garde prefigura uma idéia de militância, entendida como a linha de
frente de um exército que se antecipa na defesa, tão logo ela chega à teoria da arte

54
significando um certo ativismo político que implicaria um comprometimento
artístico com as questões sociais (ENZENSBERGER, 1971). De acordo com
Subirats, as artes de vanguarda identificam-se com a idéia de militância, pois “esse
significado militar compreende um valor interior básico das próprias vanguardas
artísticas: seu caráter destrutivo, a concepção niilista do mundo, a visão
providencialista da história, a pretensão absoluta da ordem, das normas estéticas e
sociais, e também do poder” (SUBIRATS, 1993, p. 11). Nesse sentido, vê-se que
estes movimentos artísticos – Impressionismo, Cubismo, Dadaísmo, Futurismo e
tantos outros -ismos – refletem, sob o ponto de vista estético, aquele mesmo sentido
ideológico de “vanguarda” que resguardava a idéia de avanço, inovação e
recomeço. Assim é que todos os grupos vanguardistas assumiriam em seus
programas de protesto contra a ordem estabelecida a promessa “de liberdade
mediante a revolução” (ENZENSBERGER, 1971, p. 101). Seja como for, tanto o
projeto da modernidade quanto a idéia de vanguarda almejavam, através de
manifestações programáticas, um tipo de projeto civilizatório que sustentava, entre
outras coisas, a dissolução do conceito da autonomia da arte, outrora
institucionalizado pela efervescente classe burguesa. Em decorrência disso, o
projeto vanguardista buscou integrar as artes ao processo produtivo na tentativa de
consolidar aquele processo de modernização. Tratava-se, então, de efetivar a
aspiração de uma realidade ideal pela via tecnológica e, nesse caso, a arte retomaria
sua função social e seu caráter transformador. Entretanto, esse caráter beligerante
das vanguardas artísticas tornou-se problemático na medida em que suas
experimentações estéticas se esvaziam diante dos novos aparatos tecnológicos da
indústria cultural.
Muitas das vicissitudes que promoveram o esgotamento das
vanguardas, resultantes em grande parte da racionalização das instituições artísticas,
recaem sobre a própria atitude ambígua do projeto vanguardista, isto é, aquele
“espírito de aventura e experimentação” e “vontade de transformação e progresso”
estavam em sintonia com “o caráter destrutivo [...], e ao mesmo tempo definição de

55
um poder carismático e total; [...] um princípio legitimador de um novo sistema
globalizador de dominação” (SUBIRATS, 1993, p. 12-13). Nesse sentido, é que se
pode verificar que o movimento crítico de vanguarda representou um fim em si
mesmo; mostrou-se contraditório a começar pela propagação de uma poética
ideologicamente libertária, mas que, ao fim e ao cabo, ocultava “valores normativos
universais e absolutos” (p. 13), como pontua Subirats:

Em outra ordem das coisas, todas as diretrizes espirituais


românticas das vanguardas, desde suas manifestações
programáticas de um idealismo absoluto industrialmente reciclado
e seus transformados cultos messiânicos, até as profecias
apocalípticas e sua consciência trágica de visionário histórico,
decidido pela auto-imolação ritual e pelo incêndio virtual das
culturas históricas; tudo isso reapareceu ou simplesmente se encheu
de orgulho nas mitologias do fascismos europeus de poderes
carismáticos, regenerações da cultura e de raça, e no conseqüente
misticismo militar e existencialista de um holocausto coletivo, cujo
significado espiritual as vanguardas artísticas não deixaram de
exaltar no fundo de suas expressões mais abstratas e puras
(SUBIRATS, 1993, p. 16).

Um outro aspecto que deve ser mencionado, e que terá


desdobramentos para a dialética vanguarda e kitsch, diz respeito a uma concepção
de vanguarda ligada estritamente à mercantilização da estética.
A concepção de vanguarda em Sanguineti (in LIMA, 1982), por
exemplo, gravita em torno daquilo que ele entende como um duplo movimento
interno contraditório próprio da vanguarda, representado pelo momento “heróico
e patético”, no primeiro caso, e pelo momento “cínico”, no segundo caso. De todo
modo, qualquer um dos momentos, isto é, naquele em que o produto artístico tenta
escapar dos exames do mercado para não cair no jogo da mercantilização, ou
quando, de fato, a obra assume o caráter de mercadoria, aponta a neutralização da
vanguarda na medida em que esta perde tanto o comprometimento com ideais
revolucionários quanto a postura contestadora, transformando-se, de alguma

56
maneira, naquilo que sempre negou, ideológica e esteticamente, ou seja, em
mercadoria. Sanguineti afirma ainda que os museus tornaram-se uma espécie de
vitrine expositiva para os artistas, posto que “museu e mercado são absolutamente
contíguos e comunicantes” (SANGUINETI in LIMA, 1982, p. 268).
Na verdade, o problema apontado pelos teóricos como a crise das
vanguardas pode ser melhor avaliado fazendo um paralelo com o cenário artístico
contemporâneo, predominantemente marcado pelos adventos da cultura de massa
e da indústria cultural, afinal, como pontua Morin (1997a, p. 15), “a cultura de
massa é uma cultura: ela constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens
concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e
identificações específicas”.
Por uma compreensão mais coesa acerca do processo de
massificação da cultura, quando, de fato, se chega à diluição do caráter
revolucionário das vanguardas históricas e, por conseguinte, ao papel
desempenhado pelo kitsch como promoção de uma práxis artística padronizada, é
necessário abordar o conceito de “indústria cultural”, pioneiramente trazido ao
cenário moderno, em 1947, por Adorno e Horkheimer.19
Adorno e Horkheimer (in LIMA, 1982) elaboram o termo
“indústria cultural” de forma a elucidar o caráter contraditório da massificação da
cultura, ao identificarem na mercantilização desta um tipo de ideologia de
dominação imposta verticalmente, isto é, autoritariamente, quando procura adaptar
as mercadorias às massas e vice-versa, fato que geraria, entre outras coisas, o
desenvolvimento das novas tecnologias de reprodução. A análise dos
frankfurtianos está ancorada na idéia de que a indústria cultural, quando liquida a
obra de arte, destruindo, assim, sua capacidade crítica e transformadora, expropria

19
Quando se mencionam as figuras de Adorno e Horkheimer, logo de imediato, faz-se a
associação à Escola de Frankfurt, a qual, em 1924, despontaria na modernidade como uma das
mais importantes tendências filosóficas e teoria social do pensamento ocidental, abrigando um
elenco de teóricos, do qual fizeram parte, a exemplo dos já citados, Walter Benjamin, Herbert
Marcuse e, posteriormente, Jürgen Habermas.

57
também do sujeito a articulação crítica, fazendo-o perder sua autonomia. Esse
exercício de manipulação, estendido às obras e aos indivíduos, revela, sobretudo,
que a indústria cultural passou a mediar a relação dos homens com a sociedade.
Isso implica, entre outras coisas, o papel manipulatório e mantenedor da indústria
cultural no que respeita aos veículos de comunicação de massa – os mass media,
que, como já haviam demonstrado através do rádio e do cinema, possuíam forte
apuro técnico ao veicularem a propaganda nazi-fascista. Sob tal aspecto, Adorno e
Horkheimer verificaram, então, que os produtos da indústria cultural operavam no
sentido de alienar e reificar as massas porque ofereciam apenas a representação,
mediante formas diferentes, daquilo que é sempre igual, ainda que aparentemente
pareça algo novo. Nesse sentido, as análises aterradoras de Adorno e Horkheimer
assentam-se na idéia de que há um movimento recíproco, alimentado pela indústria
cultural, no cerne da relação entre obra de arte e fruidor. Dito de outro modo, têm-
se o empobrecimento estético dos produtos da indústria cultural, através de
fórmulas estereotipadas, e a generalização do conformismo dos
receptores/consumidores.20
Em “A indústria cultural: o Iluminismo como mistificação de
massas”21, Adorno e Horkheimer aludem à fetichização da técnica e à
estandartização da cultura amparadas pelas particularidades engendradas pelo
20
Importante ressaltar que estamos aqui trazendo as idéias de Adorno e Horkheimer acerca do
papel manipulador da indústria cultural com o intuito de verificar o modo como se efetiva a arte
de massa e, como resultado disso, observar de que maneira ocorre o esgotamento das vanguardas
históricas, cooptadas pelo mercado. Acreditamos ser por essa via que poderemos compreender a
dialética vanguarda e kitsch, e invenção e padronização. Isso significa dizer que, embora as idéias
de Adorno e Horkheimer devam ser levadas em conta pelo caráter emancipatório, reconhecemos
nestas o excesso de preconceitos, aliados a considerações exageradas e a uma visão unilateral e
absolutamente conservadora. No entanto, é necessário fazer uma ressalva quanto ao que estamos
chamado de ‘posturas conservadoras’ em Adorno e Horkheimer. Lembrando Silvia Borelli (1996,
p. 29), por exemplo, a radicalidade das concepções de Adorno “é compreendida quando inserida
em contexto histórico mais amplo. Em um mundo estilhaçado pela ameaça nazi-fascista,
deturpado pela ascensão stalinista e projeto idilicamente nos espaços audiovisuais [...], torna-se
justificável o surgimento de uma interpretação cujo pressuposto estético é o da negatividade e
cuja perspectiva analítica revela um inequívoco tom de desencantamento. Desencantamento
resultante do diagnóstico da presença de uma sociedade fragmentada, descontínua e em processo
acelerado de desagregação”.
21
Este texto faz parte do livro Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos (1947). No nosso
trabalho, será utilizada a publicação de Luiz Costa Lima (1982).
58
cinema e rádio enquanto veículos difusores de um tipo de prazer e divertimento
alienantes que conduzem as massas, antes de mais nada, à resignação. Assim sendo,
vê-se que uma das funções do cinema, por exemplo, seria a de regulador moral das
massas, uma vez obliterado seu caráter revolucionário e emancipatório, incutindo
nelas um determinado padrão de comportamento exibido nos filmes, no sentido de
manter o sistema. Na verdade, na análise dos autores, o cinema, como todos os
produtos da indústria cultural, é a arte fetichizada que pulveriza todos os
particulares em razão da fórmula universal, portanto, padronizada.
Embora os frankfurtianos, especialmente Adorno, Horkheimer e
Benjamin, operassem um pensamento em sintonia com a compreensão dos
fenômenos gerados pela modelagem cultural moderna, é com Walter Benjamin (in
LIMA, 1982), em 1936, que são delineadas reflexões sobre o curso transformador
da arte moderna no tocante ao processo de sua reprodutibilidade técnica. Pode-se
afirmar que o pensamento benjaminiano centra-se, no tocante às questões internas
relativas à constituição da obra de arte, no problema do embate entre a tradição e a
vanguarda, isto é, as identificações que faz quanto ao cinema e a fotografia –
expressões traduzidas nas vanguardas, cruzando-as com a tradição da pintura e do
teatro. Como colocou Luiz Costa Lima (1982, p. 208), no comentário sobre o
conhecido texto benjaminiano: “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica”, Benjamin teria demonstrado certo avanço com relação a Adorno e
Horkheimer, por “não mais tentar a caracterização da arte como infalível oposição
à indústria cultural, mas sim, ao desmistificar teorias consideradas como
universalmente válidas”. Para tanto, percebe-se em Benjamin uma certa distância
em relação às análises de Adorno e Horkheimer, pois vê no cinema, por exemplo,
sua capacidade transformadora em termos positivo, isto é, não registrou a perda
aurática da obra de arte como um dado de negatividade, ainda que sob a
perspectiva da subversão da função da arte. Subirats coloca que

[...] a originalidade e a radicalidade da proposição teórica


benjaminiana residem, em primeiro lugar, em considerar a ruptura
59
revolucionária e a transformação estrutural da obra de arte
moderna não de uma perspectiva crítico-ideológica, mas a partir
das mudanças da percepção, ou melhor, das novas formas de
construção social da realidade imediatamente derivadas das técnicas
de reprodução (SUBIRATS, 1993, p. 64).

Com efeito, a tese de Benjamin nos coloca à frente o problema, que


é consoante à problemática da repetição em série na indústria cultural, da perda da
autenticidade da obra de arte ao operar-se nas reproduções, tornando-se, então, um
fenômeno das massas. Contudo, Benjamin demonstra um certo deslumbramento
pelas novas possibilidades de reprodução da arte porque essas transformações
permitem, através destes dispositivos técnicos, uma sociabilidade quando
aumentado o potencial da arte como mediadora social. A função da arte moderna,
liberta das amarras da aura, aloca-se na práxis do cotidiano pela sua imediaticidade,
tornando mais progressiva sua autonomia. Isso porque, segundo o autor, ocorria
“pela primeira vez, na história do mundo: a emancipação da obra de arte da
existência parasitária que lhe era imposta por sua função ritual” (BENJAMIN in
LIMA, 1982, p. 217).
Se em Adorno a estética da negatividade da arte é encarada como
uma forma de resistência pela afirmação do sujeito, em Benjamin, a obra de arte
produzida em tempos de cultura de massa dá-se como apropriação emancipatória
da coletividade, isto é, em lugar da tradição surge uma arte enraizada na práxis, cujo
valor regulativo é consoante com o valor expositivo. A atração de Benjamin pelo
novo, pelas potencialidades abertas com a tecnologização, pode ser encarada, em
certa medida, como a mesma atitude que, no começo do século XX, animava os
artistas da vanguarda, fascinados pelo esplendor da máquina.
Isso posto, parece-nos bastante convincente compreender o
esgotamento das vanguardas históricas pela forma como estas foram rendidas pelas
“forças do espetáculo moderno da grande cidade” (SUBIRATS, 1993, p. 13-18),
pelos “valores estéticos do maquinismo”, enfim, pelo “novo imperativo da
reprodução técnica” da cultura de massa.
60
Todas as vanguardas de hoje não são senão repetição, embuste
para com as outras ou para consigo mesmo. O movimento, que
como grupo unido a uma doutrina, nascido há cinquënta ou trinta
anos com o propósito de romper com a resistência de uma
sociedade compacta oferecida à arte moderna, não sobreviveu às
condições históricas que o tornaram possíveis. [...] A acusão que se
deve fazer à vanguarda de hoje é, não a de ir longe demais, porém
de manter as portas abertas atrás dela, de procurar apoio em
doutrinas e coletividades, de não ser consciente de suas próprias
aporias, desde há muito resolvidas pela história. Ela faz comércio
de um futuro que não lhe pertence. Seu movimento não é senão
regressão. A vanguarda se transformou no seu oposto, ela se
tornou anacronismo. O risco pouco visível, mas infinito, em que
vive o futuro das artes, ela recusa assumir (ENZENSBERGER,
1971, p. 112).

Tendo em vista o propósito desta dissertação, isto é, constatar a


ressignificação dos códigos massivos na narrativa pós-moderna, podemos chegar à
dialética entre a invenção e padronização a partir da inferência do kitsch no
empreendimento vanguardista e vice-versa. Isso significa dizer que, de acordo com
Merquior, esse contágio da vanguarda com a arte de massa, e, de outro lado, a
repetição do kitsch por meio da depauperação dos procedimentos vanguardistas, é
desencadeado pelo processo de massificação da cultura.

Quando a sociedade de consumo invade o domínio dos objetos


culturais, das artes e dos costumes, aparece a ‘cultura de massa’ –
que não é mais cultura. Ela é o suporte social do gosto kitsch – que
não é mais gosto. Quando a sociedade de consumo invade o
domínio da alta cultura, o kitsch emigra para a arte das elites (que
não são elites). Nem por isso, contudo, abandona sua hegemonia
no terreno da arte ‘popular’ – que não é mais autenticamente
popular (MERQUIOR, 1974, p. 41-42 – grifo do autor).

Parece-nos, pois, que discorrer sobre vanguarda e kitsch é o mesmo


que individuar duas possibilidades estético-ideológicas, onde a primeira seria
correspondente de uma cultura erudita, e a segunda de uma cultura de massa. Em
outros termos, a vanguarda tributaria uma ideologia revolucionária mediante uma
61
poética renovadora enquanto o kitsch afirmaria uma ideologia alienada. Ora, o
problema é que as poéticas vanguardistas, e mesmo a idéia de vanguarda, em certa
medida, contribuíram para a efetivação do kitsch quando, como vimos com
Sanguineti, foram rendendo-se às leis do mercado e tornando-se mercadorias.
Cabe nesse momento, uma vez discutido o conceito de indústria
cultural, abarcarmos a idéia de uma cultura de massa no cenário contemporâneo,
no caso de uma compreensão mais segura, se assim se pode dizer, sobre o
fenômeno do kitsch.
Umberto Eco diria, ao discutir a “Estrutura do mau gosto” (1993,
p. 69-128), que, de certo modo, pode-se definir o kitsch como “o que surge
consumido; o que chega às massas ou ao público médio porque está consumido; e
que se consome (e, portanto, se depaupera) porque o uso a que foi submetido por
um grande número de consumidores lhe apressou e aprofundou o desgaste” (p.
100). Para o autor, evidenciar a função do kitsch e determinar suas características é
possível desde que se avaliem as condições da cultura de massa.
No caso específico de Eco, o conceito de cultura de massa é
trabalhado no sentido de avaliar as produções de massa como mensagens que
possibilitam a veiculação de ideologias e comportam valores. Uma das
possibilidades que nos permitem compreender a tese de Eco é inferir no nosso
texto as próprias perguntas do teórico, avaliando suas respostas e postura. Para
tanto, é fundamental que se aponte o modelo explicativo que o autor utiliza a fim
de se chegar a uma análise mais ponderada acerca do papel desempenhado pela
cultura de massa no cenário contemporâneo.
Já é conhecida a tese de Eco quanto à apresentação das
formulações a respeito da cultura de massa, concentrando de um lado os
“Apocalípticos”, e de outro os “Integrados”. Vê-se que essa separação em dois
grupos aponta para uma reflexão que coloca a questão da cultura de massa em
outros termos. Isso significa que, para Eco, o erro das formulações acerca das
manifestações da cultura de massa, sejam elas favoráveis ou contrárias, reside

62
naquela dicotomia que insiste em agregar papel valorativo, bom ou ruim, à cultura
de massa. Assim, a avaliação que se sustentaria, segundo Eco, seria “qual a ação
cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular
valores culturais?” (ECO, 1993, p. 50).
Na tentativa de responder questões como esta, por exemplo, e
observar em que medida os produtos de massa são válidos esteticamente, capazes
de sustentar uma veiculação de “valores originais”, Eco expõe alguns aspectos da
cultura de massa a partir de dois pontos-de-vista, isto é, aqueles que relegam aos
produtos de massa uma concepção mais conservadora, e aqueles que acreditam em
uma democratização cultural que eliminaria, entre outros, as diferenças de nível
social.
De modo geral, como já foi exposto anteriormente com as teses de
Adorno, Horkheimer e Benjamin, o termo “cultura de massa” toma corpo quando
as massas passam a participar efetivamente da vida social, tendo “acesso a novos
padrões de vida: entram progressivamente no universo do bem-estar, do lazer, do
consumo” (MORIN, 1977a, p. 89).
Se contrapusermos as duas faces de uma problemática que se dirige
ao conceito de cultura de massa e tudo que ele possa englobar, tal qual faz Eco,
veremos que o maior problema em se acumpliciar ou rejeitar as manifestações
emergentes da cultura de massa revela um certo reducionismo no sentido de
apontar a cultura de massa como algo homogêneo. O que nos interessa, todavia, é
tomar de empréstimo de Eco algumas considerações a respeito da cultura de massa
que, em certa medida, possam se assemelhar ao papel do kitsch.
O kitsch como um tipo de “mentira artística” (ECO, 1993, p. 73),
como “comunicação que tende à provocação do efeito” (p. 76) se aproxima, na
visão de Eco, das possibilidades inovadoras da vanguarda. De um lado, isso
também pode revelar uma certa diferença entre o kitsch e outros produtos da
cultura de massa, uma vez que os objetos do kitsch põem em evidência aquele tipo
de apresentação do objeto como obra de arte. Na verdade, a dialética vanguarda e

63
kitsch pode ser encarada como a mesma relação entre cultura erudita e cultura de
massa. Aliás, seguindo as premissas de Eco, vê-se que a estética do kitsch faz
dialética com a vanguarda justamente porque apresenta os produtos kitsch como
arte.
Vale lembrar, nesse momento, das palavras de Silvia Borelli com
relação à análise de Eco sobre as ‘separações’ entre cultura erudita (defendida pelo
autor como ‘cultura de proposta’) e cultura de massa – como a cultura do
entretenimento, apontadas e discutidas no conhecido livro Apocalípticos e Integrados
(1993):

No balanço entre apocalípticos e integrados, as ausências ou


precariedades estéticas, de linguagem, de conteúdo e consistência
são detectadas e comparadas aos referenciais eruditos por meio de
cuidadosa desconstrução interna dos produtos culturais. O
evidente fascínio – que Eco deixa claro possuir – pelos quadrinhos,
música, folhetim, rádio, cinema e televisão, não impede que estes
sejam vistos, neste momento, como mensagens – de melhor ou de
pior gosto – e como estruturas de consolação e evasão, mediadoras
da relação entre parceiros médios. Localizadas em espaço cultural
reservado às obviedades, repetições e ao kitsch, as mensagens
permanecem à disposição da massa e são acessíveis, também, ao
segmento culto da sociedade que deseje, eventualmente, escapar
(BORELLI, 1996, p. 31 – grifo da autora).

Na seqüência do texto de Silvia Borelli, a autora explica que a


dicotomia sobre as culturas, evidente neste livro de Eco, vai se ‘redefinindo’ em
outros livros, e mesmo em outros artigos publicados posteriormente ao Apocalípticos
e Integrados. Como conclusão disso, Borelli afirma que, na verdade, “o que Eco
revela é a existência de um pensamento que indaga constantemente sobre o
significado e o alcance da literatura e da cultura de massas” (1996, p. 32). Dessa
forma, Eco “possibilita que se relativize a rigidez analítica da crítica cultural e
literária que exclui dos campos em questão os produtos originários da produção
cultural de massa” (p. 32). Pode-se dizer, então, que a análise de Eco em relação à

64
episteme das culturas e à estética do kitsch oscila entre uma postura crítica mais
“severa e o fascínio pelos meios de comunicação” (BORELLI, 1996, p. 32).

Em muitas dessas sisudas condenações do gosto massificado, no


apelo descontiado a uma comunidade de fruidores ocupados
unicamente em descobrir as belezas ocultas e secretas da
mensagem reservada da grande arte, ou da arte inédita, nunca se
abre espaço para o consumidor médio (para cada um de nós, na
pele do consumidor médio), que, no fim de um dia de trabalho,
pede a um livro ou a uma película o estímulo de alguns efeitos
fundamentais (o arrepio, a risada, o patético) para restabelecer o
equilíbrio de sua vida física ou intelectual. O problema de uma
equilibrada comunicação cultural não consiste na abolição dessas
mensagens, mas na sua dosagem, e em evitar que sejam vendidas e
consumidas como arte (ECO, 1993, p. 87).

Levando em consideração a relação recíproca entre as propostas


inovadoras da vanguarda e a forma como o kitsch as digere ao privilegiar o efeito22,
chega-se à conclusão de que existe uma espécie de necessidade de uma estética para
com a outra. Ou seja, as descobertas e as inovações artísticas propostas pela
vanguarda surgem exatamente no momento em que a indústria cultural começa a
popularizar determinados produtos, inclusive a produção literária, que, segundo
Ligia Averbuck (1984, p. 4), é a “primeira forma absorvida pela cultura de massa”.
Ora, Greenberg (1996, p. 28) diria que “onde há uma vanguarda geralmente
também encontramos uma retaguarda”.
Tal como defendeu Merquior (1974), ao afirmar que o kitsch é
“uma expressão da cultura de massa” por apresentar uma estética que sustenta o
consumo, promovendo sempre mensagens redundantes na tentativa de provocar
efeitos23, Eco (1993) diz ser absolutamente espontânea a maneira pela qual “se

22
Relembando Greenberg (1996, p. 33), “se a vanguarda imita os processos da arte, o kitsch,
como vemos agora, imita seus efeitos”.
23
Representações estéticas como o folhetim, o melodrama, o cinema hollywoodiano, e a telenovela,
são exemplos perfeitos de matrizes culturais que desempenham o papel da provocação do efeito,
ou da “reação controlada” (MERQUIOR, 1974), pois “aparecem como elementos de
constituição do imaginário contemporâneo e de construção de uma mitologia moderna: reposição
65
identificou o Kitsch com a cultura de massa” (p. 76), justamente pelo modo como a
indústria cultural foi levada “a vender efeitos já confeccionados, a prescrever com o
produto as condições de uso, com a mensagem e a reação que deve provocar” (p.
76 – grifo do autor).

Nesse sentido, então, a situação antropológica da cultura de massa


delineia-se como uma contínua dialética entre propostas
inovadoras e adaptações homologadoras, as primeiras
continuamente traídas pelas últimas: com a maioria do público que
frui das últimas julgando adir a fruição das primeiras (ECO, 1993,
p. 80 – grifo nosso).

De certa maneira, poderíamos afirmar que os dois programas


estéticos – vanguarda e kitsch – compõem uma dialética que depende
substancialmente da cultura de massa. A vanguarda, seria posta, assim, como
poética inventiva, e o kitsch, por sua vez, como padronização. Vale lembrar que o
kitsch não pode ser considerado apenas um tipo de práxis artística que usa da
repetição como ‘estética’ e como finalidade (modelos prontos de sucesso, já
garantido pelo público), pois insiste na repetição da cópia de um produto artístico,
mas o depaupera.
Entretanto, a despeito da arte de vanguarda buscar “elaborar
continuamente novas propostas eversivas”, enquanto a “indústria da cultura de
consumo, estimulada pelas propostas de vanguarda, desenvolve continuamente
uma obra de mediação, difusão e adaptação” (ECO, 1993, p. 80), não podemos
deixar de pensar que muitas produções que incorporam os produtos massivos
operam no sentido de promover novas possibilidades estéticas.
Como a nossa dissertação objetiva uma pesquisa que, antes de mais
nada, se dirige a um corpus literário, é interessante que façamos um paralelo entre as

arquetípica, aclimatação do padrão originário a uma nova ordem de instrumento de mediação de


projeções e identificações na relação com o público receptor” (BORELLI, 1994, p. 132).
66
teorias que versam sobre o kitsch24 e as formas adotadas pela arte literária a partir
da industrialização da cultura. Isso significa dizer que, com a efetivação de uma
cultura voltada para as massas, a literatura passou a criar novos modelos que
pudessem dar conta das novas exigências do mercado, que, entre outras coisas,
passa a requerer a produção em larga escala. As condições sobre as quais tem se
produzido literatura na contemporaneidade contemplarão o segundo capítulo desta
dissertação, de maneira que possa trazer maior compreensão destas novas formas
de representação estética que conjugam o texto literário tout court, gêneros massivos
e técnicas, que, desde a invenção do cinema até as produções veiculadas nos meios
de comunicação de massa mais atuais, como as telenovelas, por exemplo,
permitiram uma literatura que apresenta maiores possibilidades quanto à
representação estética25.
Viu-se ao longo deste primeiro capítulo que a arte, em geral, e,
conseqüentemente a literatura, foi perdendo aquele caráter autônomo na medida
em que as classes sociais dividiram-se, ocupando lugar bastante significativo a
burguesia, que passou a operar mudanças no perfil do mercado artístico e,
principalmente, no público fruidor/leitor. Tão logo, com a invenção de novas
técnicas de reprodução, como expusemos a partir da tese benjaminiana, e com o
assentamento de uma indústria cultural, os gêneros massivos foram cada vez mais
se tornando matrizes culturais que, sem dúvida alguma, impuseram uma mudança
tanto em determinados segmentos da arte, quanto ao papel ideológico que esta
pudesse apresentar.

24
Pensamos aqui especificamente nas teorias que adotaram a dialética do kitsch com a vanguarda
como um tipo de modelo formativo para explicar a distância que mantém a estética do kitsch dos
demais produtos massivos a despeito de sua intrínseca relação com a cultura de massa. Os
exemplos estão nos modelos teóricos de Eco (1993), Greenberg (1996), e Merquior (1974).
25
Pensamos aqui na multiplicidade apresentada por estas produções pós-modernas, tanto com a
inferência de gêneros ficcionais seculares, como os romances policiais, romances de aventuras, os
folhetins melodramáticos, bem como com o entrecruzamento de linguagens (técnicas) de ficção
que são originalmente produzidas e veiculadas nos mass media, tais como as telenovelas, o
cinema B hollywoodiano (que engloba os filmes de ação, de suspense, de melodramas, os
western).
67
No capítulo que se segue, buscaremos explorar a produção literária
brasileira contemporânea que, reaproveitando-se de alguns elementos da cultura de
massa, pode ser vista e apreendida como uma literatura que mantém um diálogo
com o “espírito da pós-modernidade”. Em geral, várias obras, algumas com grande
vendagem e aceitação do público, como as de Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, João
Gilberto Noll, Antônio Torres, Caio Fernando Abreu, Roberto Drummond, José
Roberto Torero, Silviano Santiago, Sonia Coutinho, Sérgio Sant’Anna, entre outros,
articulam elementos do massivo, muitas vezes kitsch, sem que o resultado, ou seja,
sem que esta literatura perca qualidade estética. Ao contrário, elas evocam de seus
receptores possibilidades de fruição absolutamente crítica; mantêm a qualidade
estética, no caso da linguagem trabalhada, ainda que se faça uso de expressões
chulas; conseguem propiciar ao leitor uma participação ativa, seja pela identificação
através dos materiais recuperados dos mass media – linguagem quase televisiva ou
cinematográfica, seja pela possibilidade de o leitor poder criar mais de uma
possibilidade de leitura; e, por fim, o jogo estético estabelecido com o
entrecruzamento, com a justaposição de linguagens e de gêneros, tornando o autor
um verdadeiro bricoleur pós-moderno.

68
2 FORMAS E SITUAÇÕES DA FICÇÃO BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA

“Era como ir ao cinema. Mesa no canto, azeitonas pretas sem


caroço, pão com gergelim, patê de berinjela, bloody mary.
Um, dois cigarros. Na frente do rapaz a cara de Rupert
Everett em Dancing with a stranger e do casal em crise, Rita
Tushingan e Tom Selleck, pizza, guaraná, silêncio farpado.
Elis Regina numa FM suave, sentimental eu fico [...] A loura
com perfil de Grace Kelly, pena o moleton [...] Da mesa ao
lado Paula Prentiss e Daryl Hannah olham excitadas a chama
azul, Mel Gibson e Alan Ladd fingem não ligar. Mais três,
quatro cigarros, ar de Humphrey Bogart, se queres saber se
eu te amo ainda, Nana Caymmi na FM, procure entender a
minha dor. Outro café, outro licor, sou amigo de Fulano,
guardanapo de linho, Belmondo e Carmen Maura de mãos
dadas logo à esquerda [...] Na saída, os olhos ávidos de
Shelley Duvall ao lado de Woody Allen. E o bafo espesso da
Oscar Freire sem brisa na noite de fevereiro. Kim Novak
passa num monza cinza, desce no L’Arnaque”
(Caio Fernando Abreu – Onde andará Dulce Veiga?)

“O material desta história: basicamente, duas mulheres.


Capazes, no entanto, de se multiplicarem infinitamente. São
Lana Turner e uma outra, que se apresenta sem nome, sem
rosto e sem biografia, a não ser dados fragmentários, vagas
insinuações. Alguém que talvez nem seja uma mulher, mas
sim um espelho, embora fosco. Ou um ventríloquo, que fala
apenas através da imagem da atriz, o seu boneco. Não se
enganem, porém: o único personagem verdadeiro, o ponto de
referência para se poder entrançar os fios díspares desta
trama, formando um tapete, a tela em branco que serve para
o desdobramento ilimitado do sonho, portanto da realidade,
este personagem sou eu. Em outras palavras, Lana Turner.
(Lana, uma das primeiras grandes estrelas, quando surgia o
star-system de Hollywood: sem nenhuma tradição ou modelo a
serem seguidos, uma figura de ruptura na sociedade
americana da época, com um papel ou um poder ‘de homem’.
Lana para além da própria Lana, o símbolo que ela foi, o mito
que se criou em torno dela: deusa ou demônio, a vamp e seu it.
O que de Lana foi apresentado para o consumo de milhares
de pessoas desejosas de entrever – fosse para idolatrar,
destruir ou devorar – os bastidores de uma ‘vida glamourosa’;
em grande estilo, a ‘felicidade’ e a ‘dor’.)

69
Pois Lana Turner, como Madame Bovary para Flaubert, Lana
Turner c’est moi. Foi o que também pensou a segunda mulher,
a outra, o espelho”
(Sonia Coutinho – “Toda Lana Turner tem seu Johnny
Stompanato”)

Neste segundo capítulo, que tratará da condição da ficção brasileira


contemporânea, esperamos traçar o perfil da produção literária no Brasil nas
décadas de 70, 80 e 90, que, sem dúvida alguma, apresenta significativas mudanças
tanto no que se refere à construção e à feitura da narrativa, quanto à
problematização de categorias válidas na modernidade26.
Em certa medida, a literatura brasileira contemporânea,
especialmente aquela produzida a partir dos 70, pode ser pensada nos meandros da
lógica cultural pós-moderna ao apresentar uma crise das representações estéticas
diante da cooptação dos produtos da cultura de massa. O peso desta crise no
terreno da ficção contemporânea, que, pode-se dizer, obedece a mesma lógica do
debate acerca da pós-modernidade (fundamentalmente no que se refere à
frustração quanto à desestabilização do pensamento hegemônico, dissolvido no

26
Faz-se referência aqui à perda de crença na exatidão e a todos os valores que sustentavam a
modernidade. Lembremos das palavras de Eduardo Subirats em “Os maus dias passarão”
(Conferência no ‘Congresso Nacional de Arquitetos do Brasil’, São Paulo, 21 de outubro de 1991,
e no ‘Primer Encuentro Internacional sobre Teoría de las Artes’, Caracas, 27 de fevereiro de
1992), publicado no livro Vanguarda, Mídia e Metrópoles (1993): “O universalismo secular da razão,
que desde o iluminismo até o socialismo havia anunciado a possibilidade histórica de uma ordem
mundial da liberdade, fracassou diante do panorama real das desigualdades sociais e da
deterioração ou desintegração das formas de vida. Progresso, História, Razão e Revolução, as
grandes categorias que definiram os projetos sociais mais significativos da modernidade, se
converteram efetivamente em palavras de ordem vazias [...] É necessário questionar os grandes
discursos históricos e, ao mesmo tempo, questionar com eles o poder uniformizador e coercitivo
dos sistemas globais de dominação que precisamente legitimaram esses discursos. Porém, a
mentalidade pós-moderna da década de 80 não concretizou precisamente essa prometida crítica.
Limitou-se a expor a doutrina niilista do final dos grandes discursos filosóficos. Postulou uma
morte. Defendeu existencialisticamente a metafísica decadente da morte. Celebrou com
complacência mais ou menos irresponsável, a liquidação das esperanças históricas de um passado
recente. Para abrigar-se sob o signo de um arcaico pessimismo existencial pelos rumos
apocalípticos do fim da história” (SUBIRATS, 1993, p. 27)
70
momento em que aparecem as diferenças27, dando lugar ao provisório, à
incredulidade, à pluralidade de paradigmas, ao descentramento do sujeito pela
perda de um modelo identitário, à desterritorialização, entre outros), enfatiza uma
literatura que incorpora, cada vez mais, os signos da vida urbana e das metrópoles
impessoais, os discursos antes periféricos, provocando a fragmentação das formas
discursivas.
Nesse sentido, surge uma literatura que, muitas vezes, como
questionamento do cânone do passado, promove outras possibilidades estéticas
através da recuperação de gêneros massivos, multiplicando-se o espaço discursivo
pelas manifestações da arte de massa. Assim, o romance policial, o melodrama, o
folhetim, o cinema tipo B, as canções populares e os mitos artificiais28 criados pela
indústria cultural são comumente referenciados na produção contemporânea. Além
disso, a ficção brasileira pós-7029, muitas vezes apreendida como uma narrativa que
apresenta falta de profundidade estética por meio da enfatização de uma mecânica
que busca, cada vez mais, atender às exigências de um público consumidor,
empregaria, também, novos procedimentos estilísticos como a paródia e o pastiche,
a ironia e o humor, e a denúncia que expressa “as relações entre a modernização
conservadora e a violência” (PELLEGRINI, 2001a, p. 61). É, pois, dentro desse

27
Quando os discursos periféricos dos gays, dos negros, das mulheres, isto é, das minorias, se
fazem mais presentes na cultura ocidental e na crítica da cultura.
28
Segundo Fred Tavares (2000, p. 33 – grifo do autor), os mitos artificiais, sobretudo aqueles
criados e sustentados pela mídia televisiva, “emergem do mágico espetáculo da televisão e são
idolatrados por milhões de telespectadores. Estes novos sujeitos e identidades são mitologizados
e envolvidos nos sonhos e nas fantasias das mentes de consumo (funcionando como portadores
de projeção e identificação, sendo fabricados e massificados pelo meio eletrônico) como
personagens arquetípicos”.
29
Ao longo deste capítulo buscaremos mostrar as diferentes nuances entre a produção dos 70, 80
e dos 90, mas podemos já destacar a prosa dos 70 como marcada pelo golpe militar de 1964,
quando a literatura efetivamente mostra-se resistente à situação política do Brasil. De modo geral,
os textos produzidos nesse decênio, sob forma de romances-reportagens, relatos confessionais e
memorialismos, denunciam o sistema opressor responsável pela privação dos sonhos, ideais e
esperanças de liberdade. Tal qual afirma Alfredo Bosi (1994, p. 436), “o melhor da literatura feita
nos anos de regime militar bateria, portanto, a rota da contra-ideologia, que arma o indivíduo em
face do Estado autoritário e da mídia mentirosa. Ou, em outra direção, dissipa as ilusões de
onisciência e onipotência do eu burguês, pondo a nu os seus limites e opondo-lhe a realidade da
diferença”.
71
contexto, sob o ponto de vista cultural, de esgotamento das certezas, da perda ou
ausência de referenciais históricos, da fragmentação do sujeito, do fim das grandes
narrativas, e, sob o ponto de vista estético, da metalinguagem, da intertextualidade,
da apropriação dos produtos massivos e da propagação das imagens dos meios de
comunicação de massa que emerge a produção literária brasileira contemporânea.
Therezinha Barbieri (2003), discutindo a prosa dos 70, 80 e 90, à
qual ela chama de “Ficção impura”, faz um balanço da ficção literária brasileira
produzida nessas décadas, apontando alguns traços que iriam se evidenciar mais nas
narrativas dos 90 até os dias atuais.

Os caminhos percorridos no esforço da decifração dos signos de


nosso tempo circunscrevem apenas uma parte da ficção literária
brasileira dos anos 70, 80 e 90, e até os dois primeiros anos deste
milênio. Mas o que já me foi dado ver denuncia um perfil. A
combinação de múltiplos registros de linguagem, o diálogo cada
vez mais intenso com a cultura de massa, com a tradição literária,
com a historiografia, associado às oscilações do gosto e às
flutuações do mercado, interferiram no feitio da ficção
contemporânea no Brasil a ponto de determinar traços relevantes
de seu hibridismo. É certo que o discurso narrativo não oculta
mais o intercâmbio que dentro dele se estabelece com outras
formas de expressão e comunicação; ao contrário, faz da
mesclagem de discursos e sistemas semiológicos fonte para
novas invenções (BARBIERI, 2003, p. 109-110 – grifo nosso).

Ainda que se possa falar em “traços comuns” para as produções


brasileiras contemporâneas, é necessário avaliarmos aqui as diferenças que se
colocaram entre uma década e outra. De modo geral, é claro, o hibridismo presente
na literatura brasileira contemporânea com todas as suas nuances aponta para o
esgotamento de uma estética baseada na idéia vanguardista de ruptura30.

30
Cumpre lembrar que ao falarmos de “esgotamento de uma estética baseada na idéia
vanguardista de ruptura” estamos pensando nos programas estético-ideológicos das vanguardas
do início do século XX, os quais, como já expusemos no capítulo anterior, a partir de
manifestações programáticas, propunham uma ruptura com o passado no sentido de promover
nas artes em geral um caráter progressista, revolucionário e emancipatório.
72
Hoje assistimos ao crepúsculo da estética de mudança. A arte e a
literatura deste fim de século perderam paulatinamente seus
poderes de negação; há muito tempo suas negações são repetições
rituais, fórmulas sem rebeldia, cerimônias sem transgressões. Não
é o fim da arte: é o fim da idéia de arte moderna. Ou seja: o
fim da estética fundada no culto à mudança e à ruptura (PAZ
apud BARBIERI, 2003, p. 112 – grifo nosso).

Vários aspectos são apontados por críticos e teóricos quanto à


mudança na produção literária contemporânea que compreende as três últimas
décadas do século XX, sobretudo os anos 80 e 90. A abordagem dada a estas
avaliações também nos coloca à frente um problema no que diz respeito a nossa
observação sobre as formas e situações da ficção brasileira contemporânea. Isso
porque estes aspectos se dividem, entre o instrumental teórico escolhido, em: a)
temas explorados – sexualidade, problematização do sujeito, inferência dos mass
media, inchaço dos grandes centros urbanos, entre outros; b) multiplicação do
espaço discursivo – linguagem cinematográfica, jornalística, forte aparição das
imagens simuladas e televisivas, metalinguagem; c) perda ou pluralidade de foco
narrativo; d) diversificação dos gêneros narrativos – romance-reportagem, romance
policial, metaficção historiográfica, romance de aventuras, best-sellers. De acordo
com Cândido (2003, p. 209),

A legitimação da pluralidade acarreta o nascimento de textos


indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que
não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e
fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica do
romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a
justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de
toda a sorte.

Nesse sentido, acreditamos que a melhor “saída” é repassar o fio


histórico, dando ênfase aos anos 80 e 90, uma vez que nosso objeto, Onde andará
Dulce Veiga?, teve a primeira publicação em 1990, tendo sido iniciado de fato em

73
1985, segundo o próprio autor31. Além disso, o projeto poético de Caio Fernando
Abreu perpassa estas três décadas, o que nos impõe, mais uma vez, um olhar mais
apurado sobre a prosa brasileira contemporânea. Buscaremos explorar os traços
mais significativos de cada decênio encaixando em cada um deles a produção de
Caio. No entanto, é preciso fazer uma ressalva de que estas particularidades são
fluidas, pois há aspectos que transitam de uma década para outra.
A produção literária da década de 70 esteve intimamente ligada ao
contexto sócio-político do país, uma vez que a ditadura militar (1964-1984) vetava a
liberdade de expressão, o que acarretou um período marcado pela violência, pelas
manifestações de contestação à censura, quer no âmbito político-social, quer no
âmbito cultural. Os romances-reportagens ou a literatura fotográfica, de forte
cunho realista, apresentavam-se como forte luta contra a censura militar,
misturando no discurso literário diferentes modos expressivos oriundos do
jornalismo, da televisão e do cinema. De modo geral, os temas, sobretudo dos
romances desta década, denunciavam “a perplexidade diante das súbitas
transformações sociais, a violência da repressão política e da vida urbana, […] o
desamparo do indivíduo […], o medo diante do Estado militarizado” (FRANCO,
1998, p. 6). Assim, a década de 70, “engrossando uma vertente que vinha de trás, é
predominantemente ocupada pela literatura de denúncia política e social,
preenchendo espaços jornalísticos, já que a imprensa, amordaçada, deixava vácuos
de informação” (BARBIERI, 2003, p. 81).
Foram muitos os autores que se viram amarrados, em certa medida,
à “tirania da objetividade, que, sob o rótulo de literatura-verdade”, trouxeram ao
cenário literário brasileiro romances e contos que ecoavam, sob a forma de
depoimento e com um tom confessional, as vozes de “uma geração massacrada
pelo AI-5” (BARBIERI, 2003, p. 81). É o caso de se falar em Ignácio de Loyola
Brandão, em Zero (1975), em Rubem Fonseca, autor que já na década de 70
31
“Depoimento em mesa-redonda no seminário Sobre o Manuscrito, organizado pelo setor de
Filologia da fundação Casa Rui Barbosa, em outubro de 1990. Também participaram da mesa,
além de Caio, os escritores Antonio Callado e Sérgio Sant’Anna”. In: ABREU, Caio Fernando.
Depoimento (1998).
74
apresentava um perfil hiper-realista com forte propensão à violência, e em
Fernando Gabeira, com a publicação de O que é isso, companheiro? (1979), narrativa
que enfocava o período da ditadura militar, “o processo de institucionalização da
tortura no Brasil [...], a história de tempos bicudos, quando o medo, ‘que esteriliza
os abraços’, passou a ser o prato de cada dia” (BARBIERI, 2003, p. 82 – grifo da
autora).
Nas palavras de Jaime Ginsburg, em artigo sobre dois contos de
Caio, “Lixo e purpurina” e “Os sobreviventes”32,

Alguns escritores brasileiros estabeleceram, no período da ditadura


militar, uma relação tensa com a História, em que a posição crítica
esteve dividida entre uma vontade de apoiar movimentos de
transformação e um senso de limitação das condições de
viabilização desses movimentos (GINSBURG, 2005, p. 37).

Na leitura de Ginsburg, os dois contos mantêm uma relação direta


fundamentalmente pela temática que exploram acerca da violência gerada pelo
processo da ditadura. Um dos pontos avaliados pelo autor diz respeito à condição
opressora do exílio. O conto “Lixo e purpurina”, publicado nos 70, pode ser lido
“em conexão” com “Os sobreviventes”, de 1982, porque, enquanto o primeiro
“apresenta um processo de repressão histórica em curso, do ponto de vista de um
exilado, esse conto de 1982 permite avaliar o impacto histórico dessa repressão”
(GINSBURG, 2005, p. 41).

A censura, na verdade, não foi apenas uma força geradora das


‘narrativas de resistência’ à opressão do regime – que efetivamente
se configuraram, sobretudo com temas e soluções formais
específicas –, mas um elemento a mais, compondo, juntamente
com outros, um novo horizonte de produção. Isso porque o
Estado utilizou a censura como uma faca de dois gumes: de um
lado, ele impediu um tipo de orientação, o de conteúdo político de
32
“Lixo e purpurina”, de 1974, publicado no livro Ovelhas negras (1995); “Os sobreviventes”, de
1982, publicado no livro Morangos Mofados (1982).
75
esquerda, mas, de outro, incentivou aquele que reafirmava o status
quo. E, no aspecto mais geral, o da produção técnica de bens
culturais, fez com que crescesse e se consolidasse definitivamente
uma sofisticada indústria cultural no Brasil, com base em incentivos
e subvenções (PELLEGRINI, 2001b, p. 4).

De outro lado, como pontua Tânia Pellegrini (2001b), a ficção


brasileira que caminha para a década de 80 tenta efetivamente buscar novas formas
estéticas com o afastamento do retrato social de vertente hiper-realista, uma vez
que o mercado da indústria cultural unido à tecnologização que se implantava no
país permitiam outros modos de produção, cujo enfoque dado à subjetividade se
combinava à objetividade dos meios de comunicação de massa.

Portanto, se grande parte da literatura produzida nos anos 1970


ainda se caracteriza pela crença no poder da palavra, na sua
‘função’ potencial de transformar as estruturas sociais, de revelar a
‘realidade brasileira’ injusta e desigual e também por um certo teor
artesanal da sua fatura, que ainda comportava experimentalismos
formais (veja-se, por exemplo, Avalovara, de Osman Lins, de 1973),
a das décadas subseqüentes terá muito mais afinidades com a
pressa do mercado, com a fungibilidade do universo das imagens
eletrônicas e com as novas formas de comunicação global, que aos
poucos vão eliminando qualquer inquietação a respeito da
convivência ou não entre nacional e importado – entre ‘campo’ e
‘cidade’ –, desde que agora tudo se define em termos globais
(PELLEGRINI, 2001b, p. 5 – grifo da autora).

A expressão que Flora Süssekind (1993) utiliza para caracterizar a


prosa brasileira dos 80 – “ficção em trânsito” – é absolutamente pertinente porque
revela uma narrativa que tem sua trajetória marcada pelas mudanças provocadas
pela cultura de massa. Ainda que tente manter alguns traços do decênio anterior,
tais como “uma nacionalidade em retrato coeso ou um elogio detetivesco do
ideário ‘liberal’”, a ficção da década de 80 projeta aquilo que viria a ser posto com
mais evidência nos anos 90, isto é, “a teatralização da linguagem do espetáculo,

76
convertendo-se a prosa em vitrine onde se expõem e observam personagens sem
fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo” (SÜSSEKIND, 1993, p. 210).
A prosa dos 80, e, por conseqüência a dos 90, sobrevive, então, de
temáticas em que afloram os discursos periféricos dos homossexuais, das mulheres,
dos negros, além de uma expressão estética que passa a incorporar as leis do
mercado editorial e as imagens veiculadas nos meios de comunicação de massa. O
cenário urbano agudiza-se em detrimento do rural, revelando o universo de
violência nas metrópoles, recrudescido pelo contexto marginalizado das drogas, da
pornografia e das doenças sexuais – como a Aids, por exemplo.

Da mesma forma, o surgimento de uma ‘literatura gay’ ou de


temática homossexual vincula-se à penetração, no Brasil, a partir da
‘abertura política’ dos anos 1980, das idéias de transgressão e
diversidade cultural associadas ao pós-moderno, das influências da
organização dos movimentos de homossexuais na Europa e
Estados Unidos, além do impacto da proliferação da AIDS. Os
homossexuais, juntamente com as mulheres, portanto, são as vozes
até então reprimidas (quase sempre suprimidas), que conseguem
aos poucos um espaço para se fazer ouvir, inclusive como
decorrência de sua própria organização enquanto movimento
político brasileiro. Aos poucos, seja através de ambíguas máscaras e
sinais de que sua escrita lança mão, seja por meio do realismo puro
e simples, essa prosa cada vez mais vai abrindo caminho nas ruas
da cidade (PELLEGRINI, 2001b, p. 6-7 – grifo da autora).

A questão do corpo em evidência nunca foi tão explorada como na


ficção contemporânea. Segundo Luiz C. Simon (2004, p. 11), “é a partir dos anos
50 e 60, de forma mais conjunta, que a literatura se desembaraça com mais vigor do
tabu que é falar de corpo e sexo, com liberdade”. A exposição do corpo, seja pelo
excesso das imagens pornográficas, seja pelos papéis sexuais exercidos, parece ser
um processo que se movimenta na mesma ordem da produção das imagens
midiáticas, sobretudo as televisivas. Dito de outro modo, os reprodutores da
imagem ou das imagens pós-modernas, para estar de acordo com a multiplicidade
exigida pela pós-modernidade, não revelam uma “libertação em si”, já que “o
77
importante não são os meios, mas sim o uso que se pode fazer e efetivamente deles
se faz” (PELLEGRINI, 1999, p. 192). O decorrer disso, com efeito, é um
apagamento da separação entre o privado e o público em todas as esferas sociais. A
sexualidade é um dos aspectos submetidos a este desnudamento. Privacidade e
liberdade estão juntas num mesmo espaço de confinamento público; exemplo disso
são os chamados reality shows, os quais promovem cada vez mais as experiências,
antes privadas, de forma ‘mediada’ (MIRA, 1996). No entanto, como pontua Luiz
C. Simon (2004, p. 17), apesar da “liberdade cada vez maior no que se refere à
exposição do corpo e ao debate acerca de comportamentos sexuais”, esta “ainda
convive com certas fronteiras”, ou seja,

[...] de um lado, o desenvolvimento crescente de práticas


pornográficas, vinculadas com freqüência à idéia de vulgaridade; do
outro, a permanência de uma timidez quanto a determinados
comportamentos e discussões referentes a corpo e a sexo. No
âmbito da literatura, a questão é até onde e como se pode chegar
(SIMON, 2004, p. 17).

Diante de toda esta espetacularização, o sujeito que aparece em


muitas das narrativas brasileiras pós-modernas é aquele que passa a viver a
experiência do descentramento e da falta de localização pela falência de uma
identidade estável. O deslocamento no qual estão inseridos os modelos identitários,
devido à fragmentação social e à imersão do sujeito nas metrópoles, sedimenta a
fragilidade de um “eu” cuja identidade é cambiante e provisória. Essa diluição de
identidades tradicionais em detrimento dos moldes flutuantes germina um sujeito
solitário, traumatizado e, sobretudo, problemático.
Um dos aspectos que faz emergir a perda dos limites identitários
está vinculado à figuração dos grandes centros urbanos. A urbe contemporânea é a
colagem de múltiplas cenas, todas desordenadas, cuja transitoriedade de elementos
artificiais e cosmopolitas promove a incomunicabilidade entre os indivíduos. O
sujeito, na ambiência citadina, limita-se na incerteza, preserva o isolamento e fica
78
absolutamente anônimo diante dos espetáculos que a metrópole oferece. Nesse
sentido, vê-se que a metrópole que seduz é a mesma que vulnerabiliza o sujeito,
uma vez que provoca neste uma crise de identidade por meio da dissolução de seus
referenciais culturais e sociais, impondo-lhe novos valores e criando outras
necessidades. Vejamos a comparação que Nizia Villaça faz a respeito da condição
do sujeito na ficção dos anos 70 e dos 80.

Após os anos 80, sobretudo, a discussão sobre a questão do sujeito


e sua articulação com a linguagem acentua-se visivelmente entre
nós, vulgariza-se mesmo, fazendo entre nós sintoma também da
criação. Enquanto os anos 70 caracterizavam-se por uma literatura
preocupada com os efeitos naturalistas de identificação, via relatos
jornalísticos das misérias da pós-revolução de 64, nos anos 80 há
uma progressiva abertura política e acentuam-se os caminhos que
problematizam o lugar do sujeito, as verdades e as crenças.
Simultaneamente, as conceituações de indivíduo e de sujeito vão
perdendo seus antigos perfis e se tornando indiferentes, se
acoplando ou se excluindo mutuamente (VILLAÇA, 1996, p. 44-
45).

Esta desarticulação de um modelo identitário mostra-se na prosa


brasileira contemporânea como uma espécie de fratura, revelando a força do
fragmento que se estende ao sujeito e à própria narrativa. Sem dúvida alguma, este
é um dos traços mais marcantes da prosa contemporânea, sobretudo se pensarmos
em Caio Fernando Abreu, cujas temáticas da solidão, do enclausuramento e da
claustrofobia diante do mundo compõem uma literatura onde realidade e fantasia
se misturam33. Pode-se pensar também em Sérgio Sant’Anna, que, a despeito de

33
Lembremos dos contos “Dama da noite”, de Os dragões não conhecem o paraíso (1988), e “Aqueles
dois”, de Morangos mofados (1982). Nos dois casos, as personagens padecem de um mesmo mal – o
isolamento, a falta de comunicação com o outro e o estranhamento de si e do outro. “Dama da
noite”, por exemplo, é um conto que carrega consigo a ambivalência de um sujeito que busca a
lucidez e o entendimento do “eu” através de uma personagem madura, cuja vida afetiva é levada
ao outro como a imagem do fracasso, havendo, portanto, um embrutecimento deste “eu”. Imersa
num processo de deterioração, a personagem atesta à figura do outro – do “boy” – uma fala ácida
que se legitima por meio de perguntas agudas, construindo, assim, um tipo de manifesto
anárquico contra si – filha de uma geração derrotada, e contra o outro, que, de igual modo,
79
apresentar “como marca de seu estilo [...] a preocupação com o desmontar os
artifícios textuais, mostrando como ‘funciona um texto’, desvelando a máscara do
realismo tradicional”, segundo Pellegrini (1999, p. 26 – grifo da autora), também
ficcionaliza a problematização do sujeito com a realidade. Com relação a Notas de
Mafredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), de 1973, Liane Bonato (2003, p. 174)
afirma ser a imagem deste sujeito “[…] múltipla, inquietante e ao mesmo tempo
grotesca, brutal, enigmática. Os heróis são medíocres, vencidos pela impotência que
lhes tolhe as atitudes, conduzindo-os à humilhação e ao desespero”.
Levando em consideração a leitura de Therezinha Barbieri sobre a
ficção brasileira contemporânea, isto é, uma leitura que enxerga a produção “dos 80
e 90 na rede de novas relações estabelecidas a partir do contexto da sociedade de
massa” (BARBIERI, 2003, p. 38), chegaremos, ao nosso ver, num dos aspectos
mais marcantes e significativos do processo de hibridismo, tão caro às narrativas
consideradas pós-modernas. Isto porque um dos maiores paradoxos das narrativas
pós-modernas é justamente a relação que mantém com a cultura de massa, ou
melhor, a diluição entre as chamadas cultura de elite e cultura de massa
(HUTCHEON, 1991).
Além da crescente importância das referências aos mitos da
indústria cultural, tais como as divas do cinema norte-americano, os cantores de
boleros e pop, e, ainda, das referências aos produtos do universo dos meios de
comunicação de massa, como as radionovelas, os melodramas, e, mais
recentemente, as telenovelas brasileiras, tem-se na ficção contemporânea o excesso
das imagens, tanto a cinematográfica quanto a televisiva.

pertence a uma geração já desesperançada, afinal, ele “nasceu dentro de um apartamento, vendo
tevê. Não sabe nada, foras essa coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark, computador,
heavy-metal e o caralho” (ABREU, 1988, p. 94). Já em “Aqueles dois”, por meio de referências
musicais e cinematográficas, é criado um espaço fechado e solitário para as confissões
amarguradas de Raul e Saul, ambos sobreviventes de uma vida fracassada. A temática da
homoafetividade é revelada como um simulacro dos conflitos do eu através de intolerância social
e perplexidade diante da superfície fria do cotidiano. Assim, o problema da solidão, aliado à
carência afetiva nas grandes cidades, faz com que estas personagens se descubram num mundo
absurdo e inseguro.
80
A propagação das imagens e das performances que emplacaram na
prosa brasileira das décadas de 80 e 90 consolida um outro fato – o de que a
literatura, em geral, foi rendida às leis do mercado.34 As chamadas subliteratura,
paraliteratura, os best-sellers, ou seja, a literatura de massa, exigiram do romance
contemporâneo, por força da pressão do mercado, uma espécie de reprodução das
características dos produtos da indústria cultural, seja na composição ou nas
temáticas. A importância das citações, como dito acima, aponta para dois aspectos:
de um lado, uma narrativa quando utiliza este tipo de recurso aproxima o leitor
através de identificações com seu universo familiar; de outro, porque as referências
aos produtos massivos seria condição prévia de garantia de vendagem. Conforme
defende Tânia Pellegrini (2001b, p. 62 – grifos da autora), “a propalada eliminação
das fronteiras entre ‘cultura erudita’ e ‘cultura popular’ instaurou uma outra, muito
mais poderosa, a da ‘cultura de mercado’. Tal fato provocaria na ficção brasileira
contemporânea, “como se fossem soluções pós-modernas”, “as mesmices,
descuidos, chulices e obviedades”.
Desse modo, é por força desta cultura de mercado que se
intensificam os gêneros massivos com todas as suas construções clicherizadas.
Exemplo claro dessa propagação são os romances policiais e as formas
folhetinescas, entre outros, os quais recebem a designação de literatura de
entretenimento.
Sem dúvida, o grande representante dessa nova vertente do policial
é Rubem Fonseca, autor de grande vendagem, que com romances como Bufo &
Spallanzani (1986), A grande arte (1983) e Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988),
por exemplo, potencializou algumas características do gênero, como a criação de

34
É importante ressaltar que esta idéia de que a literatura, ainda que em linhas gerais, se rende às
leis do mercado, defendida por Tânia Pellegrini (2001b) é apresentada neste capítulo como
tentativa de mostrar algumas condições da produção ficcional brasileira das décadas de 80 e 90. A
despeito de esta afirmação ser pertinente, não desejamos aqui fazer dela um endosso para a nossa
dissertação, pois sabemos que nem toda obra produzida nestas décadas, sobretudo a prosa de
ficção, pode ser avaliada no âmbito da literatura de massa. Deve-se salientar também que a autora
discute o estreitamento da ligação entre a literatura e o mercado como um dos pontos que
marcam a produção dos 80 e 90.
81
personagens detetivescas absolutamente estereotipadas – detetive Madrake que
aparece em muitos de seus textos –, mas mesclou a isso uma forma de narrar bem
típica das narrativas pós-modernas. Isto é, Rubem Fonseca transgrediu formas
tradicionais35 em favor da justaposição de códigos, com a mescla de vários tipos de
linguagem (cinematográfica, ensaística, televisiva, detetivesca), o que tornou plural
sua prosa.
A pluralidade, que parece ser o traço mais marcante na ficção
brasileira contemporânea, promoveu uma literatura pop, “onde existe uma
suspensão do juízo crítico, uma morte ou retraimento do autor e uma reduplicação
frenética dos códigos e discurso, que atravessam a atualidade. Literatura que
poderíamos dizer na linha do pastiche” (VILLAÇA, 1996, p. 96 – grifo nosso).

A lógica da textualidade dos discursos considerados pop, sejam eles


literários ou picturais, é a lógica do simulacro: cópia da cópia. Não
é a realidade imediata que fornece o conteúdo da história narrada
(como as relações e os sentimentos humanos, os conflitos íntimos
das personagens, que não comparecem ao texto), mas uma
realidade secundária – a imagem de um ídolo de massa, um clichê
que aparece repetidas vezes nos meios de comunicação de massa, o
vasto repertório de ícones e marcas da publicidade, a tecnologia da
produção cinematográfica ou das histórias em quadrinhos. Nesse
sentido, a lógica da cultura do simulacro, que é também a cultura
da imagem do mundo como espetáculo, encontra na
superficialidade um dos componentes principais do processo de
construção desses discursos, que deslocam o modelo de
profundidade narrativa que caracterizou a arte da primeira metade
do século 20 (HOISEL apud CRUZ, 2003, p. 17).

Certamente, essa incorporação dos massivos, que confere à prosa


contemporânea o caráter de pop e que a coloca na linha do pastiche e da paródia,
surge como marca de um zeitgeist pós-moderno.

35
Falaremos sobre as formas, os tipos e a constituição dos romances policiais (enquanto gênero
narrativo que possui um modelo estrutural que gera produção em série de fácil aceitação junto ao
público) no 4º Capítulo, destinado à análise de Onde andará Dulce Veiga?, usando a discussão de
Sandra Reimão, autora de vários livros sobre o gênero e Boileau e Narcejac.
82
A nossa intenção nesta dissertação não é investigar as possíveis
marcas que compõem a pós-modernidade e o fenômeno do pós-modernismo36,
mas acreditamos ser inevitável fazer algumas observações a respeito, uma vez que a
narrativa brasileira dos 80 e 90, principalmente, apresenta sintomas da
contemporaneidade.

2.1 OSSINTOMAS DA PÓS-MODERNIDADE NA FICÇÃO BRASILEIRA


CONTEMPORÂNEA: O PÓS-MODERNISMO EM AÇÃO

“Eu diria que as artes contemporâneas – no sentido mais


amplo possível, quer se autodenominem pós-modernistas ou
rejeitem esse rótulo – já não podem ser consideradas uma
nova fase na seqüência dos movimentos modernistas e
vanguardista que começaram em Paris nas décadas de 1850 e
1860 e que mantiveram vivo um ethos de progresso cultural e
vanguardismo até a década de 1960. Nesse nível, o pós-
modernismo não pode ser considerado simples seqüela do
modernismo, como o último passo na infindável revolta do
modernismo contra si mesmo. A sensibilidade pós-moderna
do nosso tempo é diferente tanto do modernismo quanto do
vanguardismo precisamente porque coloca a questão da
tradição e da conservação cultural como tema estético e
político fundamental, ainda que nem sempre tenha êxito.
Porém, o que acho mais importante no pós-modernismo
contemporâneo é que ele opera num campo de tensão entre
tradição e inovação, conservação e renovação, cultura de
massas e grande arte, em que os segundos termos já não são
automaticamente privilegiados em relação aos primeiros; um
campo de tensão que já não pode ser compreendido mediante

36
Cumpre lembrar que esta distinção entre pós-modernidade e pós-modernismo é pertinente,
sobretudo porque as duas expressões, de acordo com Eagleton (1998), traduzem ‘movimentos’
diferentes. Assim, a pós-modernidade “[...] alude a um período histórico específico. É uma linha
de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a
idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os
fundamentos definitivos de explicação” (p. 7); enquanto o pós-modernismo seria “um estilo de
cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial,
descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as
fronteiras entre a cultura ‘elitista’ e a cultura ‘popular’, bem como entre a arte e a experiência
cotidiana” (p. 7 – grifo do autor).

83
categorias como progresso versus reação, direita versus
esquerda, presente versus passado, modernismo versus
realismo, abstração versus representação, vanguarda versus
kitsch”
(Andreas Huyssen)

As discussões que gravitam em torno do pós-modernismo ou do


termo pós-moderno na sociedade contemporânea têm trazido à tona uma série de
postulações, todas de igual modo bastante contraditórias e destoantes entre si. No
seio dessas calorosas discussões, é visível a dificuldade de se tornar mais precisa
uma definição acerca do fenômeno, em virtude de seu caráter multifacetado.
Sendo assim, destacam-se avaliações distintas que consideram o
pós-modernismo, de um lado, uma ‘poética’ absolutamente conservadora e
reacionária, marcada por uma forte ligação com o processo do capitalismo
(Jameson, Eagleton); e de outro lado, aquelas que o percebem dentro de uma visão
mais positiva, segundo a qual o pós-modernismo representaria uma poética
revolucionária, uma vez que consegue representar a pluralidade da nossa época, que
é, nesse momento, auto-reflexiva e paródica, desafiando e questionando a cultura
(HUTCHEON, 1991). Sob essa segunda perspectiva, o pós-modernismo marcaria,
então, a possibilidade de a arte se abrir para os mais variados discursos e temas,
articulando reflexões que podem ser positivas no plano ideológico, histórico e,
sobretudo, sócio-cultural. Seja como for, vê-se que o debate assentado sobre o pós-
modernismo aponta para uma espécie de variação acerca de uma mesma
problemática, uma vez que os elogios e as críticas respeitam características e temas
iguais.

De fato, uma das características mais marcantes do pós-moderno é


o modo pelo qual, nesse período, inúmeras análises de tendências,
até agora de natureza bastante diferente [...] se aglutinaram todas
para formar um novo gênero discursivo, a que podemos muito
bem denominar ‘teoria do pós-modernismo’, e isso por si só já é
um fato digno de nota. Trata-se claramente, de uma classificação

84
que inclui a si mesma e eu acho muito bom não ter que se discutir
se os capítulos que se seguem são uma investigação sobre a
natureza da ‘teoria do pós-modernismo’ ou apenas exemplos dela
(JAMESON, 1996, p. 14 – grifo do autor).

As tentativas de se tecer análises sobre o pós-modernismo, sejam


elas negativas ou positivas, implicam algumas condições, dentre as quais se pode
destacar a relação que tem a pós-modernidade (conseqüentemente o pós-
modernismo) com a modernidade e o Modernismo. Essa discussão já carrega no
seu bojo uma outra contradição: a que põe em evidência a própria existência do
pós-modernismo.
Se existe uma tentativa em discutir o pós-modernismo à luz de um
movimento antecessor, é lícito, pois, que haja uma forte indagação acerca da
continuidade e/ou extensão sob o rastro de um movimento que, ao que parece,
pretendeu uma identidade comum, notadamente estável, pautada em verdades
absolutas, além de uma enorme e indiscutível valorização da arte.
A rigor, a modernidade, entre outras coisas, é caracterizada pelo
crescimento do capitalismo (sistema que é regido, em geral, pela implementação da
indústria, assentando a sociedade moderna na máquina), pela “ascensão
democratizadora dos setores médios e liberais, a imprensa e o rádio, a
industrialização, o crescimento urbano, além das novas indústrias culturais”
(GARCÍA-CANCLINI, 1997, p. 67). Em complementação à idéia de García-
Canclini, cumpre lembrar as palavras de Jair Ferreira dos Santos concernente à
estética modernista:

As vanguardas modernistas – futurismo, cubismo, expressionismo


– significarão a quebra do universo racional fornecido pela ciência
e refletido pela estética por muito tempo. Nesse universo, a
Representação realista (imitativa, ilusionista) supunha que a
literatura ou a pintura espelhavam ponto por ponto o real. Mas a
sociedade industrial, com o automóvel, o avião, a eletricidade, os
conflitos sociais, a descoberta do inconsciente, irá colocá-la em
xeque. O modernismo é a Crise da Representação realista do
85
mundo e do sujeito na arte. […] Novas linguagens deveriam sugir
para que um sujeito caótico pudesse não representar, mas interpretar
livremente a realidade, segundo sua visão particular. Para isso, a
nova estética moderna cavou um fosso entre arte e realidade. A
arte ficou autônoma, liberta-se da representação das coisas [...],
decretando o fim da figuração, usando a deformação, a
fragmentação, a abstração, o grotesco, a assimetria, a inconguência.
Linguagem nova quer dizer forma nova, não imitativa. Nascem aí o
formalismo e o hermetismo da arte moderna, que é um jogo com
formas inventadas (SANTOS, 1997, p. 33 – grifo do autor).

Com relação à modernidade/pós-modernidade, Laclau em “A


política e os limites da modernidade” (in HOLLANDA, 1992) afirma ser
demasiado complicado “estabelecer limites da modernidade”, mais até do que
“localizar fronteiras”, uma vez que as similaridades entre os dois ismos são dadas
“pelo processo de erosão e desintegração de categorias tais como ‘fundação’,
‘novo’, ‘identidade’, ‘vanguarda’ etc” (p. 129).
Se ruptura, descontinuidade ou ainda, se extensão do modernismo,
o fato é que para os teóricos que discutem o pós-modernismo há uma crescente
emergência em avaliar e tentar destrinchar a agudeza de paradoxos suplantados pela
contemporaneidade. Jameson vem salientar essa premissa:

Em vez de sucumbir à tentação de denunciar as complacências do


pós-modernismo com algum sintoma final de decadência ou de
saudar as novas formas como os arautos de uma nova Utopia
tecnológica e tecnocrática, parece mais apropriado avaliar a nova
produção cultural com base na hipótese operacional de uma
modificação geral da própria cultura a partir da reestruturação
social do capitalismo tardio como um sistema (JAMESON, 2004,
p. 39-40).37

37
É importante lembrar que Jamenson analisa o fenômeno cultural contemporâneo sob o viés da
crítica marxista, que tende a observar o texto literário segundo um contorno político. A citação
aqui exposta pretende elucidar apenas a visão do crítico com relação à emergência em discutir os
efeitos do pós-modernismo na sociedade contemporânea.
86
Andreas Huyssen (in HOLLANDA, 1992, p. 20-23), por exemplo,
diz haver uma transformação evidente na cultura ocidental contemporânea. Sendo
discutível ou não o caráter dessas transformações, o que importa todavia, segundo
o autor, é que o termo “pós-modernismo” nestas proporções é devidamente
cabível. Nesse sentido, Huyssen explicita sua posição ao afirmar que não tentará
“definir o que é pós-modernismo”, valendo-se apenas de um “mapeamento” deste,
segundo o “modo como ele tem dado forma a vários discursos desde os anos 60”.
Se a pós-modernidade debruça-se no paradoxal, tornam-se
contraditórias ainda mais as teorias que tentam desanuviar a forte natureza
multivalente do fenômeno do pós-modernismo. Nesse sentido, de haver algumas
abordagens para o problema que encerra o pós-modernismo, parece firmar-se
bastante perigosa uma tentativa de rotular o termo e suas causas. A par de alguns
teóricos, tais como Frederic Jameson, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard,
Andreas Huyssen, Linda Hutcheon, Terry Eagleton, Ernest Laclau, Ihab Hassan,
Steven Connor, Perry Anderson, entre outros, surgem vozes consideráveis como o
português Carlos Ceia que vem também evidenciar essa problemática:

O principal problema com o conceito de pós-modernismo na


teoria da cultura de hoje é o facto de ele ser ainda um conceito em
gestação à data em que se anuncia a sua agonia final. À medida que
a reflexão crítica tem crescido, as implicações que borbulham no
seu macrocosmos parecem tornar-se cada vez menos conclusivas,
que levanta enormes suspeitas sobre a legitimidade de mais um
ismo. […] Por isso, avanço desde já com a hipótese de ser mais
correcto falar de paradigmas pós-modernos do que de um pós-
modernismo datado em termos de autoria e cronologia (CEIA,
1998, p. 10-11 – grifos do autor).

Segue os passos de Ceia, Leyla Perrone-Moisés (1998, p. 188 – grifo


da autora) que também afirma ser igualmente difícil definir a pós-modernidade
através de “conceitos ou examinada a partir de práticas particulares […] o que se
deve tanto a sua heterogeneidade e indeterminação de princípio quanto a sua

87
condição de algo que está sendo feito ‘agora mesmo’, algo que ainda não oferece, e
nem pretende oferecer, nenhuma perspectiva futura”.
A despeito das diferentes posturas adotadas por alguns que
teorizam o pós-modernismo, o que se pretende observar aqui são alguns dos traços
que, independente de que linhas seguem, sinalizam alguns aspectos da literatura
contemporânea.
As mudanças que ocorrem a partir das décadas de 50-60, “quando
por convenção se encerra o modernismo” (SANTOS, 1997, p. 7-8), abalam os
pilares da sociedade ocidental. No frenesi pós-moderno, a tecnociência, os meios
midiáticos, o bombardeio de informação, a massificação cultural, as chamadas
neovanguardas (Pop Art, Arte Povera, Op Art, Land Art), até a própria
digitalização do real fazem surgir uma literatura que é, ao fim e ao cabo, a
exuberância de uma geração plena de recursos e aparatos tecnológicos.
Se a “contradição é típica da teoria pós-modernista”, ou ainda, se
“o múltiplo, o heterogêneo, o diferente é a retórica pluralizante do pós-
modernismo”, tal qual afirma Hutcheon (1991, p. 87-95), é claro que o resultado
dessa literatura muitas vezes pode ser grotesco. Embora já tenhamos mencionado a
condição descentrada e problemática do sujeito pós-moderno, vale ressaltar as
palavras de Jair Ferreira dos Santos no tocante ao niilismo abrupto que toma conta
do indivíduo em tempos de pós-modernidade.

Na pós-modernidade, matéria e espírito se esfumam em imagens,


em dígitos num fluxo acelerado. A isso os filósofos estão
chamando de desreferencialização do real e dessubstancialização do sujeito,
ou seja, o referente (a realidade) se degrada em fantasmagoria e o
sujeito (o indivíduo) perde a substância anterior, sente-se vazio [...]
O indivíduo na condição pós-moderna é um sujeito blip, alguém
submetido a um bombardeio maciço e aleatório de informações
parcelares, que nunca formam um todo, e com importantes efeitos

88
culturais, sociais e políticos (SANTOS, 1997, p. 15-27 – grifo do
autor)38.

As muitas discussões que giram em torno do debate sobre a pós-


modernidade/pós-modernismo apontam caminhos distintos para a compreensão
destes termos que alocam num único espaço expressões como insegurança,
incredulidade, desterritorialização, pluralismos, identidades, paradoxos, enfim,
palavras que agregam valores ‘negativos’ se as usarmos como sinônimo de ruptura.
Dito de outro modo, vê-se que uma das bases da problemática que se instaura no
seio das teorias que discutem a questão da contemporaneidade está vinculada à
associação dos termos ‘pós-modernismo/modernismo’ e ‘pós-
modernidade/modernidade’, inicialmente porque o Modernismo foi um
movimento extremamente importante, enquanto o projeto da modernidade
propunha uma real transformação para a identidade ocidental. Nesse sentido,
pensar num esgotamento de um dos dois, numa ruptura, implica uma questão
muito importante e ainda insolúvel, ou seja, a passagem de um discurso totalizante
e hegemônico, instituído pelas classes burguesas dominantes, para um certo
relativismo cultural, muito producente no campo das artes e, conseqüentemente, no
universo literário. Essa diluição de um pensamento único e universal ocorre, no
campo sócio-cultural, no momento em que começam a surgir discursos em que
afloram as diferenças como os movimentos negro norte-americano, o movimento
feminista e o movimento gay. Movimentos que passam a chamar a atenção para as
diferenças culturais promovendo a abdicação dos universalismos da modernidade.
Assim, a unidade que cai dá lugar à pluralidade de sentidos, à multiplicidade, à
heterogeneidade, enfim, a algo provisório. Hutcheon (1991) procura mostrar que o
pós-modernismo ensina que um discurso se desdobrou em vários. Diante dessa
perspectiva descentralizada que se evidencia na contemporaneidade, o assombrado

38
O termo blip é usado pelo autor para designar os fragmentos de informação que chegam ao
sujeito. Contrapondo-se ao real que é bit – dado os códigos que permeam os meio de
comunicação de massa, o sujeito fica tão fragmentado quanto o próprio blip que lhe é passado.
89
pós-modernismo revela que não existe mais uma Cultura monolítica, branca,
ocidental, masculina e heterossexual. Podemos, então, falar em ‘culturas’, em
‘discursos’ e, claro, em ‘literaturas’.
No âmbito da ficção brasileira contemporânea, esta diversidade
articula-se de modo que as produções apresentem uma espécie de mélange de traços
que formam a estética pós-moderna. O “fim das grandes narrativas”, expressão que
tomou grande corpo na teoria cultural através de Lyotard (2000), chegou à prosa
brasileira da contemporaneidade com o fim dos grandes heróis e a problematização
de personagens sem rosto, sem nome e sem perspectivas, bem como a ressonância
do imediatismo do mercado e o pragmatismo do consumo proposto pela indústria
cultural.
A leitura da realidade que passou a fazer o autor contemporâneo
tornou-se mediada pelos signos dos mass media. A cultura de massa desdobrou-se
em cultura da mídia na chamada era da imagem, onde objetos tecnológicos como a
televisão, e mais recentemente, a Internet, conduziram a um novo tipo de
autonomia cultural (KELLNER, 2001). Sem dúvida, a televisão, nesse domínio, foi
o principal meio produtor de possibilidades de fragmentação, em que as pequenas
narrativas tiveram cada vez mais importância com a democratização da exposição
de outros rostos e outras identidades. Certamente, uma tendência dos meios de
comunicação de massa para a fragmentação.
Acerca do agenciamento cultural pelas mídias visuais, sobretudo a
televisa, Martín-Barbero e Gérman Rey, no livro Os exercícios do ver: hegemonia
audiovisual e ficção televisiva (2001), discutem a experiência audiovisual como produto
de uma representação hegemônica. Na verdade, o próprio aparelhamento midiático
concentra em si um potencial subversivo porque traz no seu âmago a necessidade
de pluralizar as percepções da nossa realidade. Os autores afirmam, então, que é
com a televisão como experiência audiovisual que se concretiza uma nova ordem
cultural, uma outra percepção de ser e estar no mundo. As imagens captadas e
transmitidas pela TV oferecem, para nosso deleite, um tipo de migração espacial,

90
permitindo-nos uma mudança de percepção de tempo e espaço através de uma
simulação que vai além do real. Assim, os autores de Os exercícios do ver discutem os
movimentos da cultura num espaço social, agora coordenado pela hegemonia
audiovisual, e todos os seus desdobramentos, mostrando “o entrelaçamento cada
dia mais denso entre os modos de simbolização e ritualização do laço social com os
modos de operar os fluxos audiovisuais e das redes comunicacionais” (MARTÍN-
BARBERO; REY, 2001, p. 18). Desse modo, a segmentação, a fluidez e a
proximidade, bem como a multiplicidade de narrativas, a ênfase no imediato e o
excesso de imagens tornam a televisão a principal representativa da cultura
contemporânea.

A cultura da mídia converte a todos em membros de uma


sociedade eletrônica, que se apresenta imaginariamente como uma
sociedade de iguais. Aparentemente, não há mais nada democrático
do que a cultura eletrônica, cuja necessidade de audiência a obriga
digerir as mais diversas. Na mídia, todo mundo pode sentir que há
algo de próprio e, ao mesmo tempo, todo mundo pode imaginar
que o que a mídia oferece é objeto de apropriação e desfrute. Os
miseráveis, os marginalizados, os simplesmente pobres, os
operários e os desempregados, os habitantes da cidade e os
interioranos encontram na mídia uma cultura em que cada um
reconhece sua medida e cada um crê identificar seus gostos e
desejos (SARLO, 1997, 104).

A questão que borbulha da calorosa discussão sobre a pós-


modernidade e seus derivados concernente ao relacionamento entre mercado e
cultura, então, não é um dado novo, segundo Tânia Pellegrini; o que seria novo, em
suas palavras, é:

[...] a solidez do casamento entre mídia e mercado, que introduz


indiferenciações antes impossíveis de conseguir. O uso da imagem
eletrônica estabelece nexos e estimula percepções antes sequer
pensadas. [...], percebe-se que os produtos vendidos no mercado
[...] tornam-se, entre outras coisas, o verdadeiro conteúdo da
imagem transmitida pela TV (PELLEGRINI, 1999, p. 184-185 –
grifo da autora).

91
Isto nos leva a pensar que, para as performances pós-modernas se
concretizarem de fato, é indispensável o uso da produção da imagem através das
técnicas midiáticas; talvez seja mais fácil pensar nessa associação como algo
inerente aos paradoxos que a pós-modernidade ora afirma, ora nega e ora subverte.
De modo geral, a cultura da mídia traz ao palco da pós-modernidade uma espécie
de vitrine do consumo. O que todos estes meios fazem é conferir ao espectador um
jogo de aparências que sempre se descortina pelo excesso. Baudrillard (1992, p. 73)
vê na lógica da sedução “um despreendimento do real através do próprio excesso
das aparências do real. Os objetos aí se parecem muito com o que são, essa
semelhança é como um segundo estado, e seu relevo, através dessa semelhança
alegórica, através da luz diagonal, é o da ironia do excesso da realidade”.
Nesse sentido, diante do espetáculo pós-moderno, a ‘(des) ordem
cultural’ é agora programada porque lhe foi introjetada a emergência da
performance rápida a partir da tecnociência, dos meios de comunicação de massa,
das indústrias culturais – cinematográfica, fonográfica, e tantas outras terminadas
em “gráficas”, da robotização, da cibernética, entre outras.

Considerando em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o


resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um
suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada.
É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas
formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou
consumo direto de divertimentos – , o espetáculo constitui o
modelo atual da vida dominante na sociedade (DEBORD, 2002, p.
14).

Com efeito, a literatura brasileira produzida na contemporaneidade


obedece aos mesmos espetáculos imagéticos produzidos pelos medias. Já
esboçamos na abertura deste Capítulo alguns traços que freqüentam as produções
literárias brasileiras contemporâneas, sobretudo das décadas de 80 e 90. Vale
relembrar que a palavra de ordem para essa ficção é a pluralidade. É a partir dela

92
que todos os outros aspectos aparecem, como a confluência de linguagens,
multiplicidade de formas e estilos muitas vezes indefiníveis, a narração e
compreensão do espaço-tempo, as referências e citações, as mudanças de cenários,
e tantos outros. Nizia Villaça (1996, p. 77), ao tratar de autores, cujas obras
apresentam características pós-modernas onde os textos reproduzem “os
simulacros que percorrem os meios de comunicação de massa”, afirma que:

É como se o fantástico da própria realidade sufocasse a imaginação


do autor. Tais narrativas jogam com os diversos códigos da
contemporaneidade, reduplicando desde o modo de produzir
informações, o processo de enunciação, até os sentidos veiculados
através da estrutura narrativa e personagens (VILLAÇA, 1996, p.
77-78).

Nessa linha de simulação e de apropriação dos gêneros massivos,


encontram-se alguns autores que fazem da literatura representação da
representação, e, numa espécie de reciclagem estética, revalorizam e ressignificam
os materiais advindos da cultura de massa. Tal procedimento evidencia, antes de
mais nada, um movimento contra-hegemônico de desterritorializar o limite entre os
gêneros ‘menor e maior’, provocando um deslocamento em termos de políticas
culturais no sentido de adulterar um sistema de valores. Essa irreverência contida
em boa parte da produção literária brasileira pós-moderna, que joga no texto
modelos e formas prontamente reconhecíveis, clicherizando a narrativa e a
aproximando de uma estética pop, confere “um novo status dentro da cultura pós-
moderna da América Latina” (CHIAMPI, 1996, p. 76).

Os tópicos dos gêneros massivos não são utilizados como meros


temas, ou vistos com distância ou visão de fora, mas como
referências culturais enraizadas na mentalidade dos personagens; a
estrutura melodramática dos relatos sentimentais é recuperada em
complexas situações de registro experimental; os tics obsessivos do
gosto massivo pontuam os diálogos, os sonhos e o fluxo de
consciência dos personagens; os clichês, a cafonice, os

93
convencionalismos discursivos de baixa extração são ‘naturalizados’
no discurso da narração que remete a uma voz autorial da alta
cultura (CHIAMPI, 1996, p. 76 – grifo da autora).

O artigo de Irlemar Chiampi, “O romance latino-americano do pós-


boom se apropria dos gêneros da cultura de massas” (1996), nos parece bastante
significativo para avaliarmos o perfil da nossa produção contemporânea, ainda que
a autora trate, de forma geral, de autores hispano-americanos, como o argentino
Manuel Puig, o peruano Mario Vargas Llosa e o porto-riquenho Luis Rafael
Sánchez, entre outros.
Chiampi utiliza algumas expressões, tais como ‘despragmatização,
transcodificação, repragmatização’, para indicar as estratégias do deslocamento dos
códigos massivos. Para ela, este tipo de procedimento gerou, a partir da
combinação dos materiais ‘espúrios’, uma operação crítica no texto. O fenômeno,
que teve seu início na América Latina com autores do chamado posboom, foi uma
forma dos autores compreenderem os movimentos do multiculturalismo da nossa
cultura que, ao contrário “de uma visão estanque do culto e do popular [...]” que
“numa perspectiva americanista [...] excluía a cultura de massas”, agora passariam a
assumi-la “como expressão legítima do imaginário social” (CHIAMPI, 1996, p. 77).
Nesse sentido, é que

[...] os textos que realizam esse efeito de maneira convincente


adotam claramente estratégias experimentais de hibridização de
discursos, mediante a tomada de fragmentos que ora se justapõem,
superpõem ou mesclam, desencadeando um curto circuito das
temporalidades e culturas que se expressam nas linguagens
convocadas (CHIAMPI, 1996, p. 78).

Nota-se, portanto, que o papel da hibridização nos textos da


contemporaneidade, cuja mescla de técnicas de narração absolutamente sofisticadas
com os produtos da cultura de massa, é o de provocar no leitor possibilidades

94
estéticas novas, bem como promover uma discussão crítica com relação à própria
condição das práticas e produções pós-modernas.
Um dos resultados dessa apropriação dos massivos na ficção
brasileira contemporânea pode ser conferido, tal como pontua Luiz C. Simon
(1999), pelo culto aos mitos do cinema, da música e, sobretudo, da televisão39. Em
certa medida, percebe-se que a referência ao mito se dá como uma espécie de
projeção das personagens, isto é, os astros e estrelas da mídia podem saciar o desejo
destas personagens em ingressar num universo de grandes paixões, de glamour e de
grandes sensações, sugerido pelos filmes e telenovelas, na tentativa de realizar seus
sonhos impossíveis.
Para tanto, vê-se que a coexistência de elementos tão díspares
dentro de um mesmo texto, aspecto que põe o texto no nível da simulação, é um
meio de retratar a pós-modernidade como um universo artificial. Na prosa, esse
artificialismo é representado pela inferência das imagens clicherizadas. Assim, “a
descontinuidade do discurso narrativo deixa à mostra, na recorrência de suas
múltiplas fraturas, reminiscências, clichês automatizados, ênfases retóricas, pedaços
de reportagens, filmes, peças de teatro e de TV” (BARBIERI, 2003, p. 61).
Finalmente, o gosto pelo kitsch que surge em algumas produções
brasileiras contemporâneas40 confirma a necessidade de discutir o lugar da arte na

39
Consideramos que essa mitificação é um dos principais traços do romance Onde andará Dulce
Veiga? (1990). O culto à cantora Dulce Veiga, que desaparece sem deixar pistas, e às divas do
cinema hollywoodiano, como também às cantoras de jazz (Billie Holiday, por exemplo), aliado à
idéia de uma narrativa afeita ao gênero policial exercem a função, no desenrolar da trama, a
função de mitificação de um imaginário coletivo. Entre outras coisas, tal procedimento serve para
sustentar o efeito de sedução dos produtos massivos.
40
Podemos citar, por exemplo, o conto “Marilyn no inferno”, de O cego e a dançarina (1980), que,
segundo a análise Therezinha Barbieri, “incorpora à cena da escrita a presença de anúncios
luminosos, de filmes, shows de strip-tease, programas de TV e de rádio, video games, outdoors
etc”. (BARBIERI, 2003, p. 72). Outro exemplo típico de construção de um discurso kitsch é o
conto “Ismênia, moça donzela”, de Dalton Trevisan, publicado em Morte na praça, de 1964.
Segundo Arnaldo Franco Junior (2002), neste conto: “O kitsch reside na possibilidade de
reconhecermos, por meio das cartas, não apenas as etapas de uma seqüência narrativa previsível
desde a sua manifestação até os seus desdobramentos ‘naturais’, mas, também, algo como uma
força inexorável, que faz com que, a partir da constituição morfológica das personagens, a anedota
que as une apresente-se como algo déjà vu em todos os seus aspectos. Essa força tem um nome e é
95
contemporaneidade uma vez que são incorporados à narrativa os signos da cultura
de massa. Desse modo, por trás dos discursos clicherizados e dos objetos
fetichizados, tem-se, de um lado, uma ficção que apresenta uma espécie de versão
cifrada do papel desempenhado pelo objeto literário frente às leis do mercado, e, de
outro, uma ficção que busca arduamente representar uma realidade teatralizada, já
representada, isto é, uma realidade que já se coloca no nível do simulacro. Daí, o
“texto funciona como uma máscara amplificadora que tudo põe a nu, nada
escapando à violência do simulacro” (BARBIERI, 2003, p. 63).
No próximo capítulo, quando tratarmos do projeto literário de Caio
Fernando Abreu, mostraremos que a recorrência de uma prosa kitsch pode ser
observada também em alguns contos, e não apenas no romance Onde andará Dulce
Veiga?. Desse modo, analisaremos os contos “Mel & Girassóis”, de Os dragões não
conhecem o paraíso (1988), “Ascensão e queda de Robhéa, manequim & robô”, de O
Ovo apunhalado (1995) e “A margarida enlatada”, também de O Ovo apunhalado
(1995)41.

um elemento característico do folhetim/melodrama, comum, também, à estrutura do fait divers:


fatalidade do destino (FRANCO JUNIOR, 2002, p. 74-75 – grifo do autor).
41
Importante ressaltar que estas datas correspondem às edições que serão usadas na dissertação.
96
3 O PROJETO LITERÁRIO DE CAIO FERNANDO ABREU: UMA
POÉTICA DE MÚLTIPLAS CENAS

“Acho que sou uma figura um pouco atípica na literatura


brasileira. [...] Na minha obra aparecem coisas que não são
consideradas material digno, literário. Zé Castello, de O
Estado de São Paulo, escreveu uma crítica brilhante de Ovelhas
negras, em que ele diz que me utilizo do trash e me compara à
Zulmira Ribeiro Tavares, que ele diz que ela escreve como
uma professora. A literatura dela é organizada e limpa, é
‘boa’ literatura. E eu sou o oposto, porque lido com o trash,
de onde tiro não só ‘boa’ literatura, mas também vida
pulsante. [...] Mas deve ser insuportável para a universidade
brasileira, para a crítica brasileira assumir e lidar com um
escritor que confessa, por exemplo, que o trabalho do
Cazuza e da Rita Lee influenciou muito mais do que
Graciliano Ramos. Isso deve ser insuportável. Você
compreende? Isso não é literário. E eu gosto de incorporar o
chulo, o não-literário”
(Caio Fernando Abreu)

Autor gaúcho, de Santiago do Boqueirão, CFA42 passou grande


parte da vida perambulando por capitais brasileiras e estrangeiras, fazendo de sua
própria vida, assim como sua literatura, uma grande experiência, marcada pelo
contato com o sexo sem muito compromisso, as drogas, a efervescência de uma
geração que descobriu na cultura pop um meio alternativo de se expressar. Na
contramão de um país marginalizado pela opressão do regime ditatorial, Caio se
manifestou esteticamente, através da escrita, contra o poder hegemônico que
impunha o aniquilamento do periférico, do diferente sob o esquadrinhamento
militar. Grande parte da produção do autor, senão sua totalidade, esteve
diretamente vinculada às experiências de vida do próprio Caio. Na narrativa de
CFA, de modo geral, a problematização do eu tornou-se o próprio objeto da ficção.
Autor de relevância indiscutível para a literatura brasileira contemporânea, CFA
surge em meio à turbulência das décadas de 60/70, cunhando em sua obra temas

42
A partir daqui usaremos a sigla CFA para designar o autor Caio Fernando Abreu.
97
um tanto oblíquos para a época. Desse modo, o autor exercita no seu universo
poético uma linguagem que se assemelha a um jogo de peças que vão se montando
pouco a pouco, onde realidade e fantasia se misturam. A multiplicidade temática
esbarra em personagens que, em sua maioria, padecem de um mesmo mal – o
isolamento, a falta de comunicação com o outro, o estranhamento de si e do outro,
a angustiante possibilidade de ser e estar no mundo. No prefácio de O Ovo
apunhalado (4. ed.), a autora e amiga de Caio, Lygia Fagundes Telles escreve acerca
do projeto literário do autor:

Mundo de uma desesperada busca, onde as palavras se procuram


no escuro e no silêncio como mãos que raramente (tão raramente,
meu Deus) se encontram e se separam em meio do vazio. Da
solidão. [...] O medo, a perplexidade, a coléra, a ironia, o fervor – o
sentimento do homem caça e caçador é redescoberto neste corpo-
a-corpo de criador e criação. Sim, suas personagens são os anti-
heróis, mas com eles Caio não constrói o anticonto tão ao gosto de
seus companheiros de geração. Revolucionário sempre. Original
sempre, mas sem se preocupar com modismos (importados ou
não) que tentam impressionar um público que, de resto, já não se
impressiona com nada. Ele não escreve o antitexto, mas O
TEXTO que reabilita e renova o gênero. Caio Fernando Abreu
assume a emoção (TELLES in ABREU, 1992, p. 13-14 – grifo da
autora).

Realmente, Caio não se corrompeu por modismos, apesar de sua


obra pôr a nu os esfacelamentos da contemporaneidade, fato que o deixou longe
dos estudos acadêmicos por muito tempo, ainda que já tivesse muitos leitores
apaixonados por essa literatura viva, de “vida pulsante”, como ele mesmo declarou
a Marcelo Secron Bessa (1997, p. 11). Tendo explorado em quase toda sua
produção temáticas a respeito do homoerotismo, da repressão política, da
sexualidade sem (pre)conceitos, do isolamento e descentramento do sujeito em
meio aos grandes centros urbanos, do misticismo/esoterismo, da experiência
psicodélica, dos movimentos da contracultura, da AIDS, entre outros, CFA “sai de
cena”, em 1996, deixando uma vasta produção artístico-literária, a qual, já nessa
98
época, seria material de estudo para alguns críticos literários. A obra do autor,
compreendida em 26 anos de escrita, foi circunscrita na produção literária brasileira
através de 8 livros de contos, 2 romances, um livro com três novelas, além da
publicação de 1 livro dirigido ao público infantil, peças de teatro, e um livro
contendo a reunião de algumas crônicas.43
Dos estudos variados acerca da produção literária de CFA, muitos
deles abordam a questão da densidade temática e formal de uma literatura
fragmentária que oscila o foco narrativo constantemente, explora a complexidade
das relações afetivas, atua com uma linguagem absolutamente inquietante (quer no
nível estrutural, quer no lingüístico), estabelece a mistura de gêneros discursivos,
utiliza diversas referências fílmicas, musicais, místicas, literárias, e popular. Este
último aspecto aponta para uma intertextualidade discursiva, na qual se pode
observar o diálogo com outras expressões artísticas e culturais. Sem dúvida, a
metaficcionalidade ancorada nos textos do autor abre possibilidades de leitura a
partir das quais se entrevê o trânsito cultural e histórico de uma época. O texto,
assim, pluraliza-se, ressignifica-se no constante movimento articulatório com
cenários socio-culturais, com os conflitos, esperanças e frustrações de uma geração
marcada pela utopia. Podemos afirmar que a obra de Caio mantém, sob o ponto de
vista temático, uma certa unidade, uma vez que os temas, a maioria deles muito
complexos, não se perdem ao longo dos anos de escrita. Entretanto, é preciso
ressaltar, antes da maturidade estética e estilística que chega pouco a pouco aos
textos (digamos que isso é comum em autores do quilate de CFA), a perda daquela
timidez percebida nas primeiras publicações. Isso se legitima ao se verificar a
incursão de um desnudamento de temas “pesados”, como diria o próprio autor

43
Livros de contos: Inventário do Irremediável (1970); Inventário do Ir-remediável (revisado e reeditado
em 1995); O Ovo apunhalado (1975); Pedras de Calcutá (1977); Morangos Mofados (1982); Os dragões não
conhecem o paraíso (1988); Mel & Girassóis (Antologia de contos de 1988, organizada por Regina
Zilberman); Ovelhas negras (1995); Estranhos e estrangeiros (livro póstumo de 1996). Novelas:
Triângulo das águas (1983); Bien loin de Marienbad (publicada na França em 1994); As Frangas (novela
dirigida ao público infantil de 1989). Romances: Limite Branco (1970); Onde andará Dulce Veiga?
(1990). Peças teatrais: Teatro Completo (publicação póstuma de 1977). Crônicas: Pequenas
Epifanias (Reunião de crônicas escritas entre 1986 e 1995, publicado postumamente em 1996).
99
(apud BESSA, 1997), tais como a homoafetividade e a AIDS. Na verdade, a
inclinação a uma poética homoerótica dá-se como uma espécie de terminologia
para designar algumas das relações sexuais e afetivas estampadas, sejam elas em
contos, novelas ou nos romances. Caio dizia que não escrevia sobre
“homossexualidade”, mas sim sobre sexualidades partilhadas com parceiros do
mesmo sexo, do sexo oposto ou os dois. É claro que não se pode excluir esta
possibilidade dos textos do autor, haja vista o grande número de trabalhos a
respeito. Talvez, a maior necessidade desse tipo de autoria, pelo menos no que toca
à poética de CFA, fazia parte de um questionamento bem mais complexo – a
subjetividade do eu enfraquecido em busca da identidade perdida. Essa busca
desesperada por se descobrir e, simultaneamente, conhecer o outro é articulada de
modo que as personagens apresentem um estado, muitas vezes, ambíguo, dividido
entre a esperança da liberdade, do amor, da descoberta, e a frustração, o incômodo,
o estranhamento do corpo e ausência de percepção e compreensão do espaço
urbano.
Das temáticas mais significativas, ou mais freqüentes, tratadas por
CFA, destacam-se as referências à geração hippie, iniciada na década de 60, que
revolucionava padrões de comportamentos, cujo interesse se fez mais latente pela
busca de uma espiritualidade, o psicodelismo, a vida em comunidade, e o próprio
movimento de contracultura, todos estes violentamente censurados pelo
militarismo brasileiro. Como ilustração dessas perspectivas, voltadas em grande
parte à experiência da intimidade, têm-se os livros Pedras de Calcutá (1977), e Ovelhas
negras (1995). Destes dois livros, destacam-se os contos “Loucura, chichete & som”
e “Lixo e purpurina”, de Ovelhas negras; “Sally Can Dance (and the Kids)”, de Pedras
de Calcutá. Sob um ambiente rarefeito, aparece na produção de CFA um estado de
loucura e alucinação, evidenciado por personagens que se paralisam diante do vazio
e da solidão; estas enlouquecem ao se depararem com situações adversas,
aprisionando-se na espera por algo ou alguém. “Uma estória de borboletas”, de
Pedras de Calcutá, e “Gravata”, de Os dragões não conhecem o paraíso são dois contos

100
emblemáticos nesse sentido. Curioso nestes dois contos é a desnaturalização do
real; aliás, o real é conhecido a partir da loucura. Há o esvaziamento de qualquer
tentativa de delimitação entre a loucura e o real. A respeito dessa temática, sublinha
Bruno Souza Leal (2002, p. 81):

[...] a loucura, as drogas, as realidades em suspensão que são


freqüentes nos contos reafirmam também a própria necessidade da
ficção. O texto desnaturaliza-se, se proprõe sonho e desta forma se
afirma enquanto delírio, tessitura. Por outro lado, o eu descentrado
que o habita, diante de seu desenraizamento e do mundo
ficcionalizado procura uma lógica superior, uma ordem cósmica
que justifique esse estado de coisas. Só encontra sonho. [...] Já que
tudo é nada, mas mesmo assim permanece, é de ilusão que se vive
e é preciso voltar a tecer [...].

Clotilde Favalli (1995, p. 16) afirma, a partir do livro Inventário do Ir-


remediável, por exemplo, ser a loucura “antes um meio de representar a oposição
entre as tendências mais originais do indivíduo e as pressões sociais”. Na
observação da autora, as personagens que contemplam os contos sofrem por não
conseguir a libertação de seu próprio estado de aprisionamento. Os espaços
fechados, claustrofóbicos são uma espécie de metáfora para o corpo degradado.
Todos esse estados de ânimo voltados à problematização do ser, sucumbido à
ausência de um modelo indentitário, foram como fantasmas na vida de CFA que,
só descobre a esperança, a “claridade” depois de receber o resultado de
soropositivo, em 1994.

Caio Fernando Abreu passou boa parte de seus quarenta e sete


anos de vida enamorado da morte. Preferiu sempre as atmosferas
sombrias e se deixou guiar por uma estética dark que começava nas
roupas negras, nas olheiras emprestadas de El Greco, no porte
arqueado, e que se ampliava em suas idéias depressivas a respeito
do mundo a seu redor (CASTELLO, 1999, p. 59).

101
Para José Castello (1999), Caio foi o “poeta negro” por excelência,
e somente com a proximidade eminente da morte, pôde se transformar em um
outro Caio. De modo geral, os estudos a respeito da obra de CFA são bastante
recentes e, nesse sentido, há uma espécie de escassez no que seria uma fortuna
crítica mais ampla. Pode-se dizer que os estudos abordam o aspecto temático na
observação crítica do projeto literário do autor. Já expusemos alguns temas que
sobrevoam a obra de CFA. Sem dúvida alguma, além do caráter testesmunhal
centrado na referencialidade de um momento socio-histórico determinado,
sobressaem outras perspectivas de leituras, algumas abordadas com enorme
freqüência, ancoradas nos conflitos existenciais, nas práticas homoafetivas e, por
fim, na massificação cultural das décadas de 80 e 90. Esta última em especial é
consoante a nossa pesquisa pela semelhança que alguns contos mantêm com o
romance Onde andará Dulce Veiga? quanto a referências irônicas à sociedade do
consumo. Nesse caso, podemos lembrar de “Ascensão e queda de Robhéa,
manequim & robô” e “A margarida enlatada”, os dois de O Ovo apunhalado. Na
perspectiva do kitsch, o conto “Mel & Girassóis”, de Os dragões não conhecem o paraíso,
é modelar nesse sentido. Em linhas gerais, esses três contos evidenciam a ironia, a
fala mordaz e o recurso da pluralidade discursiva como estratégias ficcionais na
tentativa de problematizar o espaço repressor e reificador da cultura de
massa.Vejamos “Ascensão e queda de Robhéa, manequim & robô”:

A jovem, conhecida artisticamente como Robhéa, alcançou um


espantoso sucesso. Galgou todos os degraus da fama em
pouquíssimo tempo, acabando por filmar com os cineastas mais
em voga no momento, ganhando prêmios e mais prêmios em
festivais internacionais e sendo eleita Rainha das Atrizes durante
cinco carnavais seguidos. [...] Retirou-se para uma ilha deserta e
inacessível, onde viveu até o fim de seus dias. Comentou-se que
seria homossexual, e fora obrigada pelos empresários a esconder
esse terrível fato do grande público. Uma jovem que fora sua
camareira publicou um diário chamado Minha vida com Robhéa, best-
seller durante dez anos seguidos, com edições revistas pela autora,
adaptações para rádio, televisão, cinema e foto novela,

102
proporcionando à ex-camareira a candidatura, ao mesmo tempo,
aos Prêmios Nobel da Paz e da Literatura. [...] Tudo inútil. Muitos
anos depois, os jornais publicaram uma pequena nota
comunicando que Robhéa, ex-manequim, ex-atriz de cinema e
robô de sucesso em passadas décadas, suicidara-se [...], desde então,
foram publicados fascículos com sua vida completa e fotos
inéditas, os travestis passaram a imitá-la em seus shows e, quando as
discussões versavam sobre as grandes cafonas do passado, seu
nome era sempre o primeiro a ser lembrado (ABREU, 1992, p. 49-
50).

Neste conto, o autor lança mão de um olhar crítico acerca da


banalização e efemeridade da sociedade do consumo, cujos valores e expectativas
são relativizados em detrimento da fama, do sucesso, do alcance midiático. A partir
de uma imagem metafórica, CFA constrói a personagem robótica, Robhéa, como
tentativa de problematizar o desejo do homem pelo bens de consumo. A
massificação cultural projetada nos meios de comunicação, tais como as revistas de
celebridades, o livro de memórias transformado em best-seller, e o cinema, por
exemplo, também aponta para a coisificação do ser humano, uma vez que este é
colocado no mesmo nível dos objetos. Pode-se dizer que o autor também critica a
posição do intelectual brasileiro, e mesmo a criação do objeto literário. A literatura
é rendida ao sistema mercadológico. O livro de memórias, espécie de biografia de
Robhéa, é uma tendência do mercado editorial pelo grande número de vendas que
produções como esta apresentam. José Paulo Paes (1990, p. 26), ao discorrer sobre
a literatura de entretenimento, reconhece que essas formas modelares de uma
ficção voltada às massas não possuem o comprometimento com “a representação
artística dos valores a termos facilmente compreensíveis ao comum das pessoas”.
O mesmo ocorre com o conto “A margarida enlatada”, de O Ovo apunhalado. Assim
como o conto anterior, “A margarida enlatada” mantém um ritmo narrativo
acelerado para marcar o compasso com o desespero pela sucesso profissional da
personagem. Aqui, um empresário percebe ao acaso que pode enlatar e vender
margaridas. Se no conto anterior, celebra-se, de alguma maneira, a transitoriedade e
falta de essência do sujeito, tópicos que caracterizam o contexto da
103
contemporaneidade, neste conto, Caio utiliza o recurso intertextual, mesclando à
escritura ficcional da literatura com discursos próprios do meio publicitário,
reproduzindo, assim, novos contextos discursivos na mistura com o diálogo
advindo da cultura de massa. Através de uma prosa meio hiper-realista, meio
fantástica, o autor brinca com os jogos semânticos, fazendo tanto a linguagem
propagandística quanto a literária ficarem, simultaneamente, na fronteira entre arte
e não-arte.

Chamou imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e


esqueceu de almoçar [...] No dia seguinte, acordou mais cedo do
que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes.
As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu,
misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os
cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e
amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:

Ponha uma margarida na sua fossa.

Sorriu. Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme


underground, uma campanha antitóxicos, um livro de denúncia.
Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais
e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos,
chamadas:

O índice de poluição dos rios é alarmante.


Não entre nessa.
Ponha uma margarida na sua fossa. [...]

Jingles. Programas de televisão. Horário nobre. Ipobe. Procura


desvairada de margaridas pelas praças e jardins. Não eram
encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente. Contratos.
Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas
plásticos. Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro
corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria (ABREU, 1992, p.
158-160).

De modo geral, em “A margarida enlatada” observa-se de que


maneira e em que medida a estética do consumo penetra no sujeito, promovendo a
difusão de promessas falsas, ilusórias e, sobretudo, efêmeras. Nesse sentido, é que

104
se afirma o processo de realidade simulada por força dos massa media. A
sensibilidade artística em autores pós-modernos, como CFA, difunde-se numa
produção literária alicerçada pelo imbricamento de vários modelos discursivos, quer
sob o ponto de vista formal, ou socio-cultural. Essa profusão de imagens que Caio
produz em muitos de seus contos também significa a quebra entre o real e o
imaginário. O capitalismo tardio (JAMESON, 1996) mostrou-se tão avassalador, ao
destruir identidades e desterritorializar culturas, que a literatura pós-moderna se viu
cada vez mais propensa a jogar com os planos simulados, onde são tematizados os
cruzamentos entre realidade e fantasia, loucura e sanidade. Neste conto, ocorre o
divórcio entre a ficção e o real. O absurdo que, teoricamente, deveria estar ligado
ao jogo ficcional, é posto no plano do real. A margarida é apenas uma constituição
simbólica por meio da qual o autor identifica a realidade exterior calcada na imagérie
contemporânea.

Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu
o anúncio:
Margarida já era, amizade.
Saca esta transa:
O barato agora é avenca (ABREU, 1992, p. 161).

O deboche e a ironia são dois aspectos que estabelecem o discurso


crítico sobre os heróis pós-modernos – os consumidores, protagonistas de um
tempo em que a confusão e os excessos dão fisionomia à cultura da pós-
modernidade. Sob esse mesmo viés também pode ser lido o conto “Ascensão e
queda de Robhéa, manequim & robô”.
Já no conto “Mel & Girassóis”, de Os dragões não conhecem o paraíso,
os produtos massivos dão forma a uma espécie de fotonovela melodramática,
recheada de chichês, verificáveis nas muitas frases feitas, na construção
estereotipada dos dois protagonistas, no espaço representado por um paraíso
tropical bem à moda do kitsch, no repertório romântico marcado pelos materiais da

105
cultura de massa (novelas de TV, revistas femininas, música, cinema), e no desejo
pessoal em encontrar e viver uma história de amor.

Olharam-se entre palmeiras – carnívoros, mas saciados, portanto


serenos, pela primeira vez. Quase animais no meio das moitas
sombrias em que de repente tornou-se o céu azul redondo, de
cetim, o mar verde, pedra preciosa, quando se olharam. [...] Lugar
comum, sonho tropical: não é excitante viver? [...] Então foi jantar
no restaurante do hotel, aquela coisa de bananas & abacaxis
decorando saladas, araras & tucanos empoleirados sobre suflês,
como um filme meio B, até mesmo meio C, e de repente houvesse
um número rápido com Carmem Miranda nas escadarias, não
espantaria (ABREU, 1988, p. 100-101).

Curiosamente, este conto assemelha-se muito ao romance Onde


andará Dulce Veiga?. Talvez, até pudéssemos afirmar ser ele uma espécie de
preâmbulo para o romance. Isso porque as manifestações típicas da cultura de
massa, como o folhetim, o melodrama, os roteiros das telenovelas, funcionam
como modelo para a constituição narrativa, assinalando ao leitor, tal como no
romance, a possibilidade de identificação, uma espécie de auto-representação
narrativa. As referências fílmicas, literárias e musicais dinamizam uma linguagem
afeita ao pastiche pós-moderno. Imitação barata que não pleiteia a deformação tal
como a paródia – muito mais presente em Onde andará Dulce Veiga?. Neste conto,
podemos afirmar que CFA respeita o kitsch na medida em que o infere ao texto
guardando esteticamente seus aspectos artificiais. Exemplo disso é a construção das
duas persoganens que tentam ‘encenar’ papéis no afã de realizar suas conquistas
afetivas e sexuais.

Ela era qualquer coisa como uma Psicóloga Que Sonhava Escrever
Um Livro; ele, qualquer coisa como um Alto Executivo Bancário A
Fim de Largar Tudo Para Morar Num Barco Como O Amir Klink.
Ela, que quase não fumava, aceitou um cigarro. E disse que gostava
de Fellini. Ele concordou: demais. Para a surpresa dela, ele falou
em Fassbinder. Ela foi mais além, rebateu com Wim Wenders. Ele

106
então teve um pouco de medo, recuou e contemporaneizou em
Bergman. [...]. Encontram-se tanto que, mais de meio-dia, ela
aceitou também uma cerveja. Meio idiotas, mas tão felizes, ficaram
cantando O Pato, enquanto todos aqueles Atletas Dispostos A
Tudo Por Um Corpo Mais Perfeito, Gays Fugindo Da Paranóia
Urbana Da Aids, Senhoras Idosas Porém Com Tudo Em Cima, e
por aí vai, retiravam-se em busca de almoço. O sol queimava
queimava. Então ele viu um barquinho a deslizar, no macio azul do
mar, mostrou pra ela, que viu também, e apontaram, e riram, e o
sol não parecia tão ardente [...]. Ela não suportou olhar tanto
tempo. Virou de costas, debrucou-se na janela, feito filme: Doris
Day, casta porém ousada. Então ele veio por trás: Cary Grant,
grandalhão porém mansinho. Tocou-a devagar no ombro nu
moreno dourado sob o vestido decotado, e disse:
– Sabe, eu pensei tanto. Eu acho que.
Ela se voltou de repente. E disse:
– Eu também. Eu acho que.
Ficaram se olhando. Completamente dourados, olhos úmidos. Seria
a brisa? Verão pleno solto lá fora.
Bem perto dela, ele perguntou:
– O quê?
Ela disse:
– Sim.
Puxou-o pela cintura, ainda mais perto.
Ele disse:
– Você parece mel.
Ela disse:
– E você, um girassol (ABREU, 1988, p. 106-114).

Dentro da vasta produção de CFA, talvez o conto acima analisado


esteja mais próximo da discussão empreendida nesta dissertação. É claro que isso
não significa dizer que outros contos, ou mesmo a trilogia de Triângulo das águas,
não apresentem as performances da contemporaneidade. Sabe-se que em muitos
contos do autor aparece a imagem da metrópole e de todos os signos urbanos. De
qualquer forma, não é tão comum a presença de uma temática como esta, a partir
da qual perpassam os códigos dos massivos, mesmo sem a inferência de uma
estética absolutamente kitsch. Em geral, a poética de CFA potencializa o
descentramento e fragmentação do eu, seja através da sexualidade, da loucura, da
perda da identidade, da falta de referenciais, do espaço caótico dos grandes centros

107
urbanos, ou mesmo, através dos próprios conflitos existenciais. Optamos por nos
concentrar nesses três contos em especial pelo modo como estas narrativas podem
nos traduzir uma outra face do projeto literário do autor. Isso se deu para nós não
como insatisfação em vista das temáticas mais freqüentemente exploradas,
tampouco para alcançarmos com o trabalho uma certa exclusividade, se assim se
pode dizer. O nosso objetivo neste capítulo foi justamente uma forma de legitimar
a nossa tese de que a obra de CFA, num todo, não se aprisiona na melancolia, no
estado de solidão e fragmentação do sujeito. É óbvio, até por motivos de paixão
mesmo pelo texto de Caio, que todas essas temáticas que regem grande parte dos
estudos levantados são muito significativas na compreensão da poética do autor.
No entanto, não se pode deixar de empreender uma pesquisa voltada para esse
olhar, embora crítico, irônico e paródico acerca das manifestações da cultura de
massa e os gêneros massivos.

108
4 O KITSCH EM ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA?

“Sou uma pessoa clichê. Nos anos 50, andei de motocicleta e


dancei rock. Nos anos 60, fui preso como comunista. Depois,
virei hippie e experimentei todas as drogas. Passei por uma
fase punk e outra dance. Não há nenhuma experiência clichê
de minha geração que eu não tenha vivido. O HIV é
simplesmente a face da minha morte”.
(Caio Fernando Abreu)

Escolhemos esta declaração de CFA44, em entrevista a Carlos


Franco para o Jornal do Brasil, para abrir este último capítulo por acreditarmos que
parte do projeto literário do autor, como já tentamos mostrar no capítulo anterior,
explora o clichê de forma a revelar um certo gosto pela estética pop dos anos 60.
A respeito da pop-art, Oscar Masotta (1965), por exemplo, diz que
artistas como Linchestein e Andy Warhol apropriavam-se de materiais massivos
(fotografias de Marilyn Monroe ou as latas Campbell, entre outros) e os
reproduziam ocultando a impressão do autor, apagando, assim, a marca da criação.
Desse modo, a pop-art, ao propor a representação do já representado (fotografia,
publicidade e o cinema), encontraria a diferença na repetição da forma, como
também através do deslocamento e uso destes materiais a partir do mecanismo de
apropriação.
O romance Onde andará Dulce Veiga? Um romance B, de 1990, faz
parte de um conjunto de obras, como colocado no segundo capítulo desta
dissertação, que explora o humor, o lirismo, o pastiche e a paródia como forma
representativa de um tipo de procedimento estético e estilístico que enche a obra de
arte de extratexto histórico-social através do uso permanente de intertextualidade.
Essa incorporação dos gêneros massivos, que confere multiplicidade à narrativa, no

44
Apud FRANCO, Carlos. Um último sopro de vida. 1996.
109
caso de Onde andará Dulce Veiga?, trata-se de um gesto camp45, isto é, de um tipo de
estilo que se relaciona a uma poética do artifício definida pela exageração estética
de certos objetos artísticos.
Neste capítulo, que encerra nossa dissertação, buscaremos explorar
esses procedimentos de apropriação/reciclagem/incorporação, de forma a avaliar o
kitsch como uma estética que transforma o texto num conjunto de discursos
provenientes de diferentes âmbitos culturais. Assim, o tom detetivesco do romance,
a impressão cinematográfica, a construção da personagem Dulce Veiga como mito,
a ambiência kitsch em contraste com o “noir”, e o “romance B” como colagem e
bricolagem serão os pontos avaliados para observar a adoção da estética do kitsch
como um deslocamento de revalorização ou de apropriação crítica pelo autor.
De modo geral, a trama do romance em questão é articulada pela
busca da cantora Dulce Veiga que desaparece no dia de um show de estréia sem
deixar pistas. O protagonista, também narrador, é um jornalista decadente de quase
quarenta anos que, depois de um tempo de desemprego e desilusão, é convidado a
trabalhar como repórter em um jornal sensacionalista. Escalado por Castilhos, seu
editor, a fazer uma entrevista com uma banda de rock chamada Vaginas Dentadas,
o protagonista (sem nome em todo o romance) redescobre o mito Dulce Veiga ao
ouvir, na voz de Márcia Felácio – vocalista das Vaginas, a música “Nada além”46,
agora em ritmo de punk rock da década de 80. A lembrança de Dulce, que fora
entrevistada por ele no início de sua carreira, o leva a escrever uma crônica
intitulada “Onde andará Dulce Veiga?”, fato que desperta a curiosidade em milhões
de leitores do jornal. É, pois, a partir daí que a narrativa se abre num jogo à moda
policial, uma vez que o jornalista/protagonista/narrador se vê obrigado a fazer o
45
De acordo com Susan Sontag em “Notas sobre o Camp” (1987, p. 318-337), o gesto camp “é
um certo tipo de esteticismo. É uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético. Essa
maneira, a maneira do Camp, não se refere à beleza, mas ao grau de artifício, de estilização [...]
Camp é uma visão do mundo em termos de estilo – mas um estilo peculiar. É a predileção pelo
exagero, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são [...] Camp é arte que se
propõe seriamente, mas não pode ser levada totalmente a sério porque é ‘demais’” (grifo da
autora).
46
Música de Custódio Mesquita em parceria com Mario Lago, interpretada por Orlando Silva em
1941.
110
papel de detetive na tentativa de desvendar o mistério que gravita em torno do
desaparecimento da cantora ocorrido há vinte anos. Como a crônica sobre o
sumiço de Dulce desperta grande repercussão nacional, Rafic, dono do jornaleco
Diário da Cidade, viabiliza financeiramente ao jornalista a investigação do paradeiro
da cantora.
O romance é fracionado em sete capítulos que correspondem aos
dias da semana, todos devidamente intitulados47, conferindo à narrativa uma
velocidade do texto. O aspecto da velocidade no romance é um recurso típico de
narrativas contemporâneas, o qual pode tanto se concentrar na rapidez dos
acontecimentos, muitas vezes através da inferência de inúmeros diálogos, bem
como pelo corte abrupto de frases. Vale lembrar as Seis propostas para o novo milênio
(1990), de Italo Calvino, sendo que a “rapidez e a concisão do estilo agradam
porque apresentam à alma uma turba de idéias simultâneas, ou cuja sucessão é tão
rápida que parecem simultâneas” (p. 55).

Na vida prática, o tempo é uma riqueza de que somos avaros; na


literatura, o tempo é uma riqueza de que se pode dispor com
prodigalidade e indiferença; não se trata de chegar primeiro a um
limite preestabelecido; ao contrário, a economia de tempo é uma
coisa boa, porque quanto mais tempo economizamos, mais tempo
poderemos perder. A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer
antes de mais nada agilidade, mobilidade, desenvoltura; qualidades
essas que se combinam com uma escrita propensa às divagações, a
saltar de um assunto para o outro, a perder o fio do relato para
reencontrá-lo ao fim de inumeráveis circunlóquios (CALVINO,
1990, p. 59).

Sendo assim, a linguagem veloz em Onde andará Dulce Veiga?, com


toda sua polissemia discursiva, serve também para hiperbolizar a tensão quanto à
expectativa do leitor em resolver junto com o suposto “detetive” o mistério do
47
A intitulação dos capítulos é feita da seguinte maneira: “I – Segunda-feira: Vaginas Dentadas;
II – Terça-feira: The Hard Core of Beauty; III – Quarta-feira: A Fera Mulçumana; IV – Quinta-
feira: Poltrona Verde; V – Sexta-feira: O Labirínto de Mercúrio; VI – Sábado: Vaga Estrela do
Norte; VII – Domingo: Nada Além”
111
desaparecimento. De outro lado, os cortes das falas ou mesmo a passagem rápida
de um discurso para o outro – relato de acontecimentos para divagações ativadas
pela memória de Dulce – dão suporte para a fragmentação discursiva, uma vez que
as informações vão sendo colhidas sempre de forma enigmática, necessitando a
interpretação do protagonista e do leitor. É o caso de pensarmos no momento em
que o jornalista se lembra da cantora Dulce ao ouvir a música “Nada além” pela
segunda vez naquela segunda-feira. Toda lembrança que, pela manhã, já ameaçava
voltar ao ouvir a canção que saía do rádio enquanto tomava o banho é despertada
numa fração de segundos quando chega ao ensaio da banda Vaginas Dentadas.

Então ouvi no rádio uma música que parecia conhecida. Dizia


qualquer coisa como ‘a realidade não importa, o que importa é a
ilusão’, no que eu concordava plenamente [...] Mas a música que
ressoava em algum porão da memória era antiga como um bolero,
um fox, e o que saía do rádio era um desses rocks com baixo
elétrico desesperado, percussão envenenada e sintetizadores
histéricos. A voz da cantora lembrava vidro moído num
liquidificador. De qualquer forma, pensei, a letra está certa. E todas
as coisas que eu lembrava, ou achava que lembrava, porque de
tanto lembrar delas acabara por transformá-las em mera – e
péssima – literatura, já não importava mais (ABREU, 1990, p. 13-
14 – grifo do autor)48

Foi então que comecei a ouvir.


Por trás da porta, vinha uma música muito familiar. Não apenas
familiar. Havia nela, ou na sensação estranha que me provocava,
algo mais perturbador (p. 24).

Distorcida pelo arranjo que lembrava um vento radioativo


soprando dentro de uma catedral gótica, acelerada, gemida e
urrada, completamente diversa do tom sereno que tivera um dia,
poluída pelos uivos contaminados da guitarra e as batidas imitando
explosões longínquas, era uma velho sucesso dos anos 40 ou 50 (p.
27).

Fechando os olhos, vi novamente a poltrona verde. E mais nada,


nada além, até começar a lembrar dos mesmos versos cantados por
uma outra voz. Uma voz de mulher, antiga, densa, pesada.

48
Todas as citações que serão usadas nesta dissertação do romance Onde andará Dulce Veiga? são
da publicação de 1990, pela Cia das Letras.
112
– Corta! – alguém gritou.
Então lembrei, num relâmpago: Dulce Veiga.
Há dez, quinze, vinte, quantos anos? O arrepio desceu da nuca para
os meus braços, estranho feito uma premonição (p. 28).

A música interpretada por Orlando Silva, além de ter a função de


ativar a memória do jornalista, dá suporte para a mitificação tanto de Dulce Veiga
quanto de sua filha Márcia Felácio. Evidente também o fato de “Nada além” ser
uma canção popular brasileira, veiculada no rádio nas décadas de 40 e 50, o que
revela a exploração que faz o autor do terreno do kitsch, determinada pela
recorrência ao sentimentalismo que, certamente, poderia ser relacionado ao
melodrama e ao folhetim. A música na voz de Dulce, que faz sucesso
provavelmente na década de 60 (uma vez que o romance é ambientado nos 80
quando Dulce já havia desaparecido fazia 20 anos), traz a carga sentimental e
intimista típica do samba-canção da chamada década de ouro do rádio; na voz de
Márcia Felácio, no entanto, ela é subvertida ao ritmo do punk rock, “de natureza
mais explosiva [...], agredindo os ouvidos com a altura do seu tom tortuoso,
visando ferir a sociedade, cuspindo toda sua indignação de volta na cara” (LIMA
TRINDADE, 2006, p. 10). Tem-se, então, o uso do clichê marcado duas vezes – a
linguagem hiperbólica do melodrama com Dulce, e a desautomatização desse
sentimentalismo exacerbado através do ritmo alucinante com a banda Vaginas
Dentadas. Entretanto, esta desautomatização do clichê melodramático se processa
na narrativa como uma espécie de simulação assumida como máscara, uma vez que
a música cantada por Márcia também assume a categoria de hit emplacando como
um produto de massa.
Em todo o romance é possível evidenciar alguns clichês típicos do
gênero policial por meio da atmosfera de suspense em torno do desaparecimento
da cantora (que pode suscitar no leitor a expectativa de um crime) e também com a
criação do mito – sustentada na personagem Dulce Veiga e, em certa medida, na
personagem Márcia Felácio (filha de Dulce Veiga) que se torna um ídolo para

113
jovens admiradores do rock pesado e metalizado da década de 80. A mitificação
destas personagens, certamente anti-heroínas, potencializa o efeito de sedução dos
produtos da cultura de massa nas pessoas. Algumas das descrições de Márcia
Felácio, por exemplo, que aparecem no romance podem ser encaradas como a
imagem da obscuridade e da agressividade típicas da rebeldia de alguns movimentos
dos anos 80.49

À frente delas, apoiada num poste falso de luz, outra garota de


cabelos descoloridos, coberta de couro negro, com uma guitarra.
De onde eu estava, não conseguia ver seu rosto. Apenas percebia o
contraste entre as roupas pesadas e os cabelos quase brancos,
pairando feito auréola sobre o rosto profundamente pálido, sob a
luz azulada dos spots. Irreal como um anjo. Um anjo do mal, sem
asas nem harpa, um anjo caído. Essa era Márcia Felácio (p. 25).

Pedi outro uísque, fiquei acompanhando a performance de Márcia.


Era sensacional. A maquiagem branca acentuava o clima de
decomposição urbana, as olheiras tinham sido acentuadas com
sombra negra. Ela terminou o discurso apocalíptico com o punho
cerrado erguido no ar – onde andará Angela Davis, pensei – , as
tachas da pulseira de couro cintilaram sob a luz dos spots. Depois
pegou a guitarra e, sem pausa, atacou um daqueles rocks que
falavam em césio, peste bubônica, mercúrio, devastação nuclear,
lixo atômico, climato & ozônio. Buracos, claro. A platéia aplaudia e
dançava freneticamente: Márcia Felácio e as Vaginas Dentadas
eram um sucesso (p. 162).

Em linhas gerais, o romance, carregado de referências fílmicas,


musicais e cinematográficas, é a colagem de alguns gêneros massivos, tais como: a
narrativa policial (por se tratar de uma trama investigativa), os romances noirs, além
do cinema, todos produtos de massa de grande aceitação do público e vendagem

49
No romance Onde andará Dulce Veiga?, a personagem Márcia Felácio mitifica a idéia dos
movimentos undergrounds, consolidados na década de 80, os quais, a partir da música,
representavam a rebeldia e a insatisfação com o mundo e com padrões estabelecidos. Derivações
do rock, estilos como o punk rock, por exemplo, funcionaram, a partir da década de 70, como
movimentos da contracultura. O parecer sujo compunha uma espécie de estética ideológica que
se refletia nas roupas e no visual, bem como no próprio som distorcido das guitarras e dos vocais
berrados.
114
garantida. Caio constrói em Onde andará Dulce Veiga? um universo quase
cinematográfico, “roteirizado” pelas descrições pormenorizadas de elementos que
enriquecem a imagem e pela caracterização absolutamente estereotipada das
personagens (gestos, gostos, preferências, trejeitos). Duas personagens que
chamam a atenção quanto ao exagero na caracterização, quase numa espécie de
montagem caricatural ou galeria fotográfica, são Terezinha O’Connor – colunista
social do Diário da Cidade –, e Castilho, editor-chefe da redação.

Uma loura cinqüentona, com muitas jóias douradas e um vestido


decotado imitando onça, debruçou-se na máquina quando passei.
Poderia ser vulgar, mas qualquer coisa no pescoço esticado demais
e nos ombros rígidos, jogados para trás, revelava certa aristocracia.
Quem sabe uma recém-divorciada tentando começar de novo, uma
ex-bailarina russa fascinada pelos trópicos e obrigada a fazer
sórdidas traduções para sobreviver [...] Pedi licença à loura e peguei
o telefone. Antes que pudesse discar, ela estendeu sobre a mesa a
mão cheia de anéis e longas unhas escarlates.
– Prazer – disse, sem nenhum sotaque russo. Ao contrário, com
suas vogais abertas soava levemente baiano. – Sou Terezinha
O’Connor.
– Terezinha como?
– O’Connor – ela repetiu, caprichando na pronúncia. – De origem
irlandesa, sabe? Sou a cronista social (p. 17-18).

Castilhos bateu no ar um de seus cigarros. Desde que eu o


conhecia, há uns vinte anos, fumava três ou quatro ao mesmo
tempo. Alguns equilibravam-se na beira da mesa, o contorno
metálico cheio de manchas escuras, outros espalhavam-se pelos
cinzeiros perdidos entre pilhas de laudas, fotos, clips, pastas,
envelopes, copos de plástico, adoçante artificial [...], latas de coca-
cola dietética e um boi nordestino de cerâmica, que eu conhecia de
outras redações (p. 14).

O kitsch no romance pode ser apreendido através dos recursos


ficcionais que favorecem a espetacularização da realidade na medida em que
estabelecem uma vinculação com a seqüência da história e, de outro modo, pela
pluralidade de clichês. O uso de uma prosa kitsch, apresentada neste romance
como uma espécie de remodelagem dos discursos advindos da cultura de massa,
115
presta-se, em certa medida, à problematização de categorias estéticas, e mesmo do
próprio modelo formativo do objeto literário, ao prestigiar e reproduzir
ironicamente a trivialidade e a banalidade da predileção por modelos e objetos
artísticos considerados de mau gosto e de fácil comercialização. O uso da estética
do kitsch é uma maneira que o autor encontra para caracterizar a linguagem dos
produtos da indústria cultural, tendo como pressuposto básico a exageração dos
valores manifestados pela cultura de massa. É a forma de diluir as fronteiras que
separam o erudito e o massivo, de romper com os limites tradicionais e
canonizados da literatura com “L” maiúsculo, de produzir um movimento
anárquico a partir da busca por novas alternativas estéticas e técnicas de narração.
Nesse sentido, a narrativa é montada em cima de registros polifônicos. O
narrador/protagonista é aquele que conduz ao leitor referências provenientes da
cultura erudita, mesclando, então, seu gosto apurado com os gestos e as
preferências cafonas das outras personagens. Mas é importante ressaltar que esse
procedimento narrativo, de estabelecer o diálogo entre o erudito e o massivo, o
maior e o menor, se revela antes como um recurso absolutamente consciente do
autor. Isso significa dizer que não existe um olhar distanciado para os materiais da
cultura de massa, ao contrário, o narrador estabelece esse jogo como forma de
demonstrar os sintomas e as práticas culturais da contemporaneidade. Dessa forma,
o olhar crítico do narrador quanto ao way of life das personagens se mistura ao jogo
narrativo de subverter o lugar das coisas. Esta subversão é marcada pela forma
como algumas personagens recebem os produtos artísticos considerados ‘genuínos’
e conferem-lhes outros valores; ou o inverso – tomar obras fakes e, muitas vezes
degradadas, como aspirantes a objetos de arte. Esse processo de mediação ocorre
com Castilho e Rafic, só para citarmos alguns. No caso de Castilho, há o jogo com
trechos de obras consagradas pelo cânone. Castilho os recita e alguém da redação
do jornal tem a função de adivinhar de que autor se trata.

116
Castilho gritou:
– É a capa da sexta – e depois, sem levantar, mas com a voz muito
empostada, num inglês tão perfeito que não entendi absolutamente
nada, recitou: – ‘Disable all the benefits of your country, be out of love with
your Nativity, and almost chide God for making that countenance you are’.
O rapaz de preto deteve as mãos sobre o teclado.
– Jonh Donne – arriscou.
A ex-bailarina russa bateu palmas:
– Fernando Pessoa.
Estava totalmente errada. Nos vinte anos que eu conhecia aquele
jogo, em língua portuguesa Castilhos só admitia Camões. E certa
vez, para surpresa geral, Florbela Espanca: ‘Sempre da vida o mesmo
estranho mal, e o coração a mesma chaga aberta!’. Agora todos esperavam,
olhando para mim. Era decisivo como uma prova iniciática.
Chutei:
– Shakespeare.
Castilhos confirmou:
– As you like it. Ato quatro, cena um (p. 17-18 – grifo do autor).

Quanto a Rafic, além da cafonice do vestuário – uma espécie de


bicheiro –, o narrador o apresenta como um típico ricaço emergente que acredita
ser um exímio conhecedor de arte. Isso fica evidente nesta passagem quando o
jornalista vai à casa de Rafic pela primeira vez:

[...] cheguei mais perto de um quadro que lembrava Di Cavalcanti.


Eu precisava mesmo de óculos: era uma mulata extremamente
parecida com aquela que Castilhos publicara a foto.
– Muito bem, muito bem. Beleza, vejo que tem bom-gosto – disse
uma voz.
Eu me virei [...] Era um cinqüentão grande, forte, de ombros largos
e cabelos inteiramente grisalhos contrastando, ensaiados, com as
sobrancelhas cerradas e os bigodes negros. Usava um terno de
linho branco, a camisa vermelha aberta exibia três correntes de
ouro entre os pêlos negros abundantes. Cheirava a Pacco Rabanne
pour homme [...]
– Já sei que é um grande apreciador de arte, Castilhos me contou
tudo a seu respeito.
Fiquei imaginando que tipo de coisa Castilhos poderia ter contado.
As unhas esmaltadas de Rafic apontaram o quadro da mulata:
– Não é uma verdadeira obra-prima? Minha última aquisição, sou
um colecionador exigente, você sabe. Rapaz novo, mas muito

117
original. A moça é modelo, atriz, cantora. Puta talento, puta mulher
[...]
– Muito expressivo – eu disse. A náusea voltava, mais forte (p. 103-
104 – grifo do autor).

Vale lembrar que o kitsch exerce a função de provocar efeitos


sentimentais através do processo ou da “técnica da reiteração do estímulo [...], ou
melhor, oferecê-lo já provocado e comentado, já confeccionado”. Estas palavras de
Umberto Eco (1993, p. 72) servem-nos de suporte para entender o recurso que
CFA utiliza com uso freqüente das imagens criadas principalmente com os clichês
cinematográficos. Tal procedimento, isto é, a apropriação de referências do cinema,
potencializa uma literatura que se aproxima das técnicas dos roteiros
cinematográficos, numa espécie de simulação de um thriller policial. Estas mediações
cinematográficas, se por um lado servem para representar a crueza da realidade
social, de outro apagam a fronteira entre aquilo que é verdadeiramente real e aquilo
que é pura ilusão.

A cultura contemporânea é sobretudo visual [...], cuja força retórica


reside sobretudo na imagem e secundariamente no texto escrito,
que funciona mais como um complemento, muitas vezes até
desnecessário, tal o impacto de significação dos recursos imagéticos
(PELLEGRINI, 2003, p. 15)

Tomando as palavras de Tânia Pellegrini (2003), vê-se que a


inferência das imagens que chegam do cinema, da fotografia e mesmo da televisão
dão multiplicidade ao espaço narrativo, favorecendo tanto a focalização dos
elementos cenográficos quanto a articulação entre a realidade ficcional, o sonho, a
imaginação, o delírio, a memória e o mito. Como “soluções narrativas [...], essa
multiplicidade”

118
[...] engloba desde a construção prolixa de personagens
infinitamente díspares e planas, até a presença tradicionalmente
marcante de heróis problemáticos em conflito com um mundo
hostil; desde a perspectiva da pintura homogênea e realista de
ambientes e atmosferas, até a refração de espaços múltiplos e
simultâneos, zonas ou territórios antigeograficamente ilimitados,
traduzindo a sensação de caos globalizado; desde o tempo como
duração, que se perde ou recupera pela memória, pelo sonho ou
pelo desejo, até a experiência de um eterno presente, pontual e
descontínuo, ‘esquizofrenicamente’ mensurado pelos tempos das
novas mídias (PELLEGRINI, 2003, p. 16-17 – grifo da autora).

Fica claro no romance que as referências ao clichê pop, por meio de


citações e recorrências às divas do cinema hollywoodiano (Marilyn Monroe, Rita
Hayworth, Audrey Hepburn, Marlene Dietrich, entre outras), à canção popular
argentina (Carlos Gardel) ou à música pop norte-americana de Madonna,
misturadas com artistas, escritores e filmes considerados ‘eruditos’, uma espécie de
símbolo cult, é um procedimento de desierarquização de valores, funcionando como
um discurso contra-hegemônico em termos de políticas culturais. Há, portanto, a
afirmação de que na contemporaneidade o movimento é o de desterritorializar e
desagregar valores, ou, sob outro ponto de vista, produzir conscientemente uma
ruptura com a tradição herdada. Dito de outro modo, o que de fato narrativas
como esta propõem é a desmistificação do canônico, expandindo, assim, o
chamado “horizonte de expectativas” do leitor.
Pode-se dizer, então, que CFA cruza diversos códigos de
representação como matriz que constitui o romance Onde andará Dulce Veiga?. A
narrativa multivalente, permeada de clicherizações e discursos justapostos, permite
a incorporação de uma estética kitsch que é moldada a partir de simulações ou
representações “de segundo grau”. Isto é, “a prosa de ficção sabe-se agora invadida,
inibida e expandida pelo cinema, pelo jornal, pelo rádio e pela televisão”
(BARBIERI, 2003, p. 61-62). O jogo das referências que se abre num hibridismo
discursivo também marca pontos de ambigüidade no romance justamente pelo uso

119
de simulações. Ilusão e realidade se confundem no protagonista e, por conseguinte,
no leitor que aguarda ansiosamente o desvendamento do mistério.

O jogo dos diálogos é o dos simulacros, ele simula o detetive e os


outros simulam as vítimas, em segundo grau, do mistério. São
representações que possuem caráter de falsidade porque, por um
lado, o detetive frustrado possui tino detetivesco legítimo, afinal a
poltrona verde não só era aquela de Dulce Veiga como escondia a
chave do segredo. Por outro lado, as vítimas tanto não são o que
parecem, já que não desconhecem totalmente o que aconteceu,
como chegam a ser cúmplices do mistério (JASINSKI, 2000, p.
72).

A condição de simular situações e fatos em Onde andará Dulce Veiga?


é impressa na narrativa por força do suspense, como já dissemos, e pela forma
como o autor recorta e cola cinematograficamente os acontecimentos. O tom de
mistério que se acopla às imagens visuais e sonoras marca a complexidade da trama,
tudo sendo descrito como takes que roteirizam a linguagem. Nesse sentido, muitas
são as cenas que misturam os níveis da memória, da ilusão, da imaginação e do
inconsciente através dos sonhos. Isso ocorre tanto com objetos que projetam
imagens e lembranças de outras pessoas quanto a própria visão ilusória manifestada
no protagonista pela imagem de Dulce, ainda jovem e linda perambulando pelas
ruas de São Paulo. Desse modo, além da lembrança de Dulce, que pouco a pouco
vai se tornando mais “real” no protagonista, têm-se ainda, tal como a visão que é
projetada da cantora, as lembranças de Lidia, ex-companheira, e de Pedro, um affair
homossexual do passado. Os restos de Lidia no apartamento do jornalista são
objetos (posters colocados nas paredes) que fazem referências a alguns ícones cults –
Che Guevara, Jonh Lennon, e Charles Chaplin. Quanto a Pedro, “o poema
manchado de café”, uma das lembranças que, diria o jornalista, “recolhera e
escondera de mim mesmo” (p. 111). A lembrança da noite de amor que passara

120
com Pedro também é marcada por observações irônicas do protagonista a respeito
de gêneros que seduzem o público da indústria cultural:

No meu ouvido, Pedro repetia que não podíamos fugir daquilo,


que estávamos predestinados, que fora um encontro mágico, que
precisava de mim para não morrer de solidão e abandono e tristeza.
Eu deixava que repetisse todas essas coisas de fotonovela, de
melodrama, de latinoamérica, que continuasse a me beijar (p. 114).

Veremos no próximo subcapítulo como o protagonista e, por


conseguinte, a própria narrativa deixam-se seduzir pelas referências
cinematográficas, musicais e literárias, construindo uma realidade ficcional que usa
e abusa dos clichês na configuração de novas identidades. Isto é, no protagonista,
há a mudança de perspectiva quanto a sua própria condição existencial,
inicialmente marcada pela apatia, mas que se desdobra na obsessão em encontrar
Dulce; na narrativa, a necessidade de inventar por meio desses novos recursos
ficcionais outras possibilidades estético-literárias.

4.1 A IMPRESSÃO CINEMATOGRÁFICA E A NARRATIVA DETETIVESCA: O JOGO DA


SOBREPOSIÇÃO DE IMAGENS NO “THRILLER” POLICIAL

“Nunca entendi bem de onde vêm as histórias, de onde


nascem as canções, de onde brotam os poemas. Para mim é
sempre magia, mistério. Dulce Veiga nasceu da seguinte
forma: morei dois anos em Londres, no começo dos anos 70
e, quando voltei ao Brasil, o primeiro filme (eu adoro cinema,
cinema brasileiro principalmente), e o primeiro filme que vi
foi A Estrela Sobe, de Bruno Barreto. É uma adaptação de
um romance de Marques Rebelo, com o mesmo título, a
história de uma cantora de rádio chamada Leniza Maria – no
filme era Beth Faria quem fazia lindamente. Fui assistir ao
filme. Estava no Brasil há seis/sete meses, ainda traumatizado
de Brasil. Nesse filme, havia uma personagem chamada Dulce
Veiga, uma cantora interpretada pela Odete Lara. Acho que

121
algumas pessoas aqui, pelo menos com mais de 35 anos,
sabem quem é Odete Lara. Para quem não se lembra, foi a
maior estrela de cinema deste país, talvez a única estrela de
cinema deste país. Ela fazia uma cantora chamada Dulce
Veiga, cujo grande sucesso no filme era ‘Nada além’, um fox
de Custódio Mesquita, com letra de Mário Lago. Fiquei
fascinado por aquela personagem, fiquei absolutamente
fascinado com a Odete e com a figura de Dulce Veiga na
cabeça, a personagem. Eu me perguntava: mas onde andará
Dulce Veiga? Que era o mesmo que: onde andará Odete
Lara? Se aquela personagem fosse viva, o que teria acontecido
com ela? Passaram-se muitos anos, isso foi em 76, 77, e de
repente essa imagem da cantora Dulce Veiga, sempre
cantando ‘Nada além’, começou a magnetizar, agregar, atrair
outras coisas estranhas também, outras histórias, outras
personagens. Fui anotando nos meus cadernos. De repente,
eu ‘soube’ que essa mulher – que já não era personagem do
filme, era minha – no dia da estréia do grande show dela, que a
lançaria como a maior cantora do Brasil, simplesmente não
compareceu à estréia. Deixou um bilhete na poltrona do seu
quarto, uma bergère de veludo verde de que gostava muito,
dizendo: ‘Eu quero outra coisa, desapareci para sempre, não
tentem me encontrar’. Todas essas coisas foram se juntando
estranhamente, caoticamente na minha cabeça até que, por
volta de 1985, assumi que isso era um romance ou uma
novela, e comecei a escrever”
(Caio Fernando Abreu)

Iniciar este subcapítulo com este depoimento de CFA50 a respeito


do romance Onde andará Dulce Veiga? nos é bastante significativo porque revela não
somente a ligação estreita e absolutamente afetiva que mantinha o autor com o
cinema, com a literatura e a música popular brasileira, mas também para nos
aproximar deste romance no que respeita seu processo criativo e literário. O
depoimento, que para nós vem como uma espécie de epígrafe de inspiração para
nossa análise, aponta para uma significação ficcional que nos permite evidenciar
como a linguagem literária é próxima à do cinema e vice-versa.

50
Depoimento que o autor concedeu em mesa-redonda no seminário Sobre o Manuscrito, organizado pelo
setor de Filologia da fundação Casa de Rui Barbosa, em outubro, de 1990.
122
A respeito destas aproximações, Antonio Hohlfeldt (1984)
apresenta algumas diferenças que são significativas para entendermos de que
maneira CFA em seu romance aproxima essas linguagens de modo que a narrativa
se roteirize, e as imagens, por sua vez, possam produzir tanto impacto a ponto de a
história ser “narrada” como se fossem takes. Assim, o tempo e o espaço são
cadenciados como se houvesse mesmo uma câmera, ora congelando, ora
fracionando, ora dando velocidade às cenas. Seguindo as observações de Hohlfeldt
(1984, p. 131), “a literatura constitui-se numa linguagem simples, que se transmite
pela palavra, enquanto o cinema é uma linguagem mais complexa, compreendendo
códigos superpostos, e por vezes os mais díspares possíveis”. Vejamos o que diz o
autor ao comparar as duas linguagens:

Ocorre que a literatura é fundamentalmente seqüência, sucessão de


fatos, enquanto o cinema caracteriza-se pelo simultaneísmo, tanto
espacial quanto temporal, fazendo com que a estética
cinematográfica resida essencialmente na identificação e posterior
emotividade do espectador em relação ao que lhe é projetado na
tela (HOHLFELDT, 1984, p. 131).

No entanto, um problema se coloca à frente se pensarmos na


relação intersemiótica que se faz presente em Onde andará Dulce Veiga?. Como
pensar nestas duas expressões estéticas quando “deslocadas” de seus contextos
originais? Sabemos que a literatura tem como veículo de expressão, por assim dizer,
a palavra; em contrapartida, o cinema, a imagem. Mas é evidente que nas produções
literárias contemporâneas a intersemiose entre os signos visuais, verbais e musicais
promove uma narrativa que ultrapassa os limites da palavra e da escrita. Muitas
vezes, o leitor torna-se “espectador” pois, certamente, a inferência dos códigos
visuais espetaculariza a dinâmica dos acontecimentos ficcionais. Assim, os recursos
pertencentes à linguagem do cinema, como cortes, planos, enquadramentos,
angulações, entre outros, invadem a ‘cena’ literária, propiciando aos autores novas
técnicas narrativas e outros modos de representação.
123
Em Onde andará Dulce Veiga?, há o constante cruzamento de cenas
que misturam à realidade da narrativa imagens, sons, e mesmo referências
lingüísticas que atestam a multiplicidade, resultado do intercâmbio entre a película e
a literatura. Na verdade, essa impressão cinematográfica no romance, unida à cor
do policial de suspense, possibilita antes de mais nada a manipulação de criar o jogo
ótico, ratificando o caráter ilusório da ficção. Tal motivação é possível uma vez que
o cinema, por meio da câmera – espécie de prisma, permite deformar a realidade.
Sob essa perspectiva, o cinema é antes de tudo um artifício que simula por meio de
imagens, primeiramente, “índices de realidade” (METZ, 1972, p. 33). O cinema,
por si só, produz uma visão deformadora e fragmentária que altera os modos de
percepção do sujeito, ainda que apresente todo um questionamento acerca da
representação da realidade. Nesse caso, para representar a realidade e se constituir
como discurso, o cinema se ocupa da montagem da sucessão de imagens, dada
pelos seus próprios meios, funcionando como dispositivo técnico e artístico.
Sabe-se que o cinema, como uma arte nova, necessitou de tempo
para se (re)afirmar como tal e para identificar seus próprios meios e recursos
técnicos. Tentou muitas vezes, no início, imitar o teatro ou a literatura. Pouco
tempo depois de sua origem, quando firmados seus procedimentos próprios, é que
o cinema viria a repercutir nas outras artes, e de como estas questionavam a forma
de representar a realidade.51
A nossa leitura do romance de CFA, neste momento, opera na
tentativa de evidenciar como Onde andará Dulce Veiga? é influenciado tanto pelos
mecanismos como pelos temas do cinema. Sob essa perspectiva, o texto adota um
procedimento de adulteração da realidade, construindo um discurso que se
fragmenta em diversos níveis de representação, como já apontamos algumas vezes.
Logo no início do romance, o narrador é flagrado pelo leitor
usando registros de narração que são fixados como se fossem closes captados por
uma câmera: “Acendi um cigarro. E não tomei nenhuma dessas atitudes,
51
A respeito da origem e das significações do cinema, cf: Christian Metz – Ensayos sobre la
significacion en el cine (1972), e Assis Brasil – Cinema e Literatura: choque de linguagens (1967).
124
dramáticas como se algum canto houvesse uma câmera cinematográfica à minha
espreita. Ou Deus. Sem juiz nem platéia, sem close nem zoom, fiquei ali parado no
começo da tarde escaldante de fevereiro” (p. 11 – grifo do autor). Esta atitude de se
colocar em observação ou em representação, isto é, saber-se em ‘foco’ de uma
possível câmera, indica um narrador que faz do espaço literário um lugar de
múltiplas possibilidades de significação. Ou seja, o texto pode ser apreendido nos
seus recursos multidiscursivos, inclusive pelo recurso da montagem – característica
essencial na realização de um filme. É como se o romance Onde andará Dulce Veiga?
constituísse em sua totalidade uma espécie de script pronto para a filmagem.
Vejamos um outro momento do romance em que o narrador, fazendo referência a
sua própria condição, consegue atingir, a partir de imagens enquadradas em
determinado ângulo, a função da estética cinematográfica.

Espantoso: na noite anterior eu fora dormir como um jornalista


desempregado, endividado, amargo, solitário e desiludido de quase
quarenta anos para acordar no dia seguinte, magicamente, com
aquela voz do passado me comunicando pelo telefone que eu era –
da pesada. A partir de hoje, uma vida feita de fatos. Ação,
movimento, dinamismo. A claquete bate. Deus vira mais uma
página de seu infinito, chatíssimo roteiro (p. 13 – grifo do autor).

Podemos supor que a narrativa se configura próxima a um roteiro


de cinema porque, em primeiro lugar, o narrador, observado e observando
cenas/fatos, mediatiza a narração por meio de imagens; em segundo lugar, tanto os
acontecimentos (a ação dramática em si) quanto as personagens são apontados
e/ou marcados por recursos de expressão que remetem a filmes ou cenas destes.
Como vimos com o Depoimento de CFA no início deste subcapítulo,
o romance foi estrategicamente pensado a partir de um filme de Bruno Barreto,
baseado no romance homônimo de Marques Rebelo, de 1939. Tal atitude já
revelaria um romance que utiliza o procedimento fílmico para abrir ao leitor
possibilidades de combinação entre o universo cinematográfico e o espaço literário.

125
Entretanto, Caio vai além. Produz uma obra absolutamente polifônica. Sob a
perspectiva da sétima arte, o romance joga com os planos de enquadramentos,
angulações e, também, com o uso de flashbacks, ativados pelas lembranças de Dulce
Veiga, de Lidia, de Pedro, e mesmo de outras pessoas do círculo de Dulce – como
Alberto Veiga (o marido) e Pepito Moraes (o pianista).
Interessante ressaltar que Caio brinca com o travestimento de certas
personagens (seja este ‘real’ ou imaginário – isto é, há o travestimento daquelas que
realmente encarnam outras pessoas, como Jacyr/Jacyra e Saul/Dulce, e daquelas
que desejam ser um outro, como Patricia que acredita ser a reencarnação de
Virginia Woolf) sempre as colocando num nível de comparação com personagens
do cinema. Jacyr, por exemplo, vizinho que se presta à faxina na casa do jornalista,
é metade do ano homem e metade mulher, daí Jacyra.

Botas brancas até o joelho, minissaia de couro, cabelos presos no


alto da cabeça, pulseiras tilintando, a maquiagem de prostituta
borrada como se tivesse dormido sem lavar o rosto ou pintado a
cara sem espelho – era Jacyr [...] Quase na porta do edifício, Jacyr
me chamou. Olhei para ele, para ela. Estava parado na curva da
escada, uma das mãos na cintura, a outra segurando o cigarro na
altura dos seios falsos. Parecia Jodie Foster em Taxi driver, versão
mulata (p. 45-46 – grifo do autor).

O recurso da ‘montagem’ no romance, também podendo ser


entendido como colagem e bricolagem, não é o único procedimento usado pelo
autor para dar complexidade ao espaço discursivo. Pode-se falar também do
processo de escritura das imagens que, reiterado diversas vezes no texto por meio
da descrição de personagens, lugares e situações, adquire um poder visual capaz de
transmitir uma mensagem icônica.

As pás dos ventiladores giravam silenciosas. Nenhum ruído de


telefone ou máquina de escrever. Em preto e branco, a redação era
um fotograma projetado no espaço. Ao fundo de costas para a

126
janela filtrando uma luz sempre baça pelos vidros sujos, Castilhos
flutuava entre nuvens de cigarros. À esquerda, vestida de cinza,
voltada para a parede, inteiramente imóvel, Terezinha O’Connor
contemplava mais uma página do calendário Seicho-No-Ie que
devia ter acabado de virar [...] Tambores na selva, lembrei, ligar um
rádio para que a música afro fizesse aquela natureza-morta
estremecer. Ou entrar desejando boa tarde! em voz alta, tão alta
que fossem obrigados a mover-se, mesmo para me olhar com
desagrado, sem dizer coisa alguma. Mas parado na porta – se a
câmera mudasse seu enquadramento e substituísse meus
olhos pelos olhos de Castilhos ou de alguém postado atrás
dele, por sobre seus ombros curvos – , eu também fazia parte
daquela cena. Qualquer movimento, o filme andaria (p. 82 –
grifo nosso).

Vemos que nesta passagem do texto (quando o jornalista chega à


redação do jornal), a temporalidade passa para um segundo plano, ao passo que o
espaço toma a forma nítida de imagem. A narração adquire um ritmo lento que
recorda a lentidão das imagens cinematográficas quando não há ação propriamente
dita nem diálogos. Interessante observar o jogo estabelecido quanto à focalização
narrativa, uma vez que o narrador apresenta a possibilidade de dois focos para o
leitor. Dito de outro modo, o protagonista sabe-se em cena, fato que faz o leitor
acreditar que a narrativa funciona sob um ponto único de vista, mas, ao sugerir a
mudança de “enquadramento” pela substituição do olhar (do narrador para
Castilhos), esta focalização em primeira pessoa pode automaticamente ser
deslocada, podendo até se tornar mais ágil.
O romance, saturado de filmes, fotos, citações literárias, referências
musicais, citações da religião afro-brasileira e oriental (os calendários Seicho-No-Ies
de Terezinha, as saudações de Pai Tomás – repórter de variedades do Diário da
Cidade, ou os búzios e orixás de Jandira – a vizinha, mãe de Jacyr/Jacyra), posters de
astros do rock e de pin-ups, revistas femininas e de celebridades, atrizes de
telenovelas brasileiras, néons, entre outros, reflete uma ficção que se condiciona ao
universo imagético da cultura de massa. Já vimos, no primeiro capítulo desta
dissertação, as teses de Walter Benjamin sobre as técnicas de reprodução que foram

127
pouco a pouco adentrando o terreno das artes em geral, promovendo outros
modos de percepção dos objetos artísticos. Mais recentemente, na chamada Era da
Imagem, o produto literário também se viu ‘contaminado’ (o termo aqui não é
empregado com sentido pejorativo) pelas imagens que saíam da TV e do cinema,
sem falarmos das imagens eletrônicas da Web, muito provavelmente por conta do
modo pela qual sofreu a imaginação dos autores (BARBIERI, 2003). Sendo assim,
a dicotomia autor-receptor é mediatizada por uma obra que, num certo sentido,
democratiza possibilidades de leitura e de apreensão de significados.
Narrado como um filme, Onde andará Dulce Veiga? se choca com os
ingredientes típicos da trama policial, mesclando-os aos diferentes desdobramentos
que o gênero recebeu desde sua origem52. A despeito de Boileau e Narcejac (1991)
afirmarem ser um grande engano pensar em renovação do romance policial a partir
de Edgar A. Poe, “tornando-se sucessivamente romance-problema, romance de
suspense, romance ‘noir’, etc” (p. 9), fica evidente no romance de CFA a
elaboração de técnicas de narrativas detetivescas pelo abuso de clichês do gênero.
Mais um recurso usado por Caio para revelar um tipo de inconsciente coletivo que
projeta sobre os produtos da indústria cultural sonhos, desejos e expectativas. O
mistério, o erotismo e, algumas vezes, a violência – retratada pela cidade caótica e
pela deterioração de personagens com o uso de drogas (Márcia com a cocaína,
Dulce e Saul com a heroína), ajudam a compor o cenário de suspense do romance.
De modo geral, Onde andará Dulce Veiga? pode ser entendido como uma paródia do
gênero policial tradicional, uma vez que o desaparecimento de Dulce – mote da
trama – não se liga a crimes e/ou assassinatos; ao contrário, apenas sugere esta
possibilidade sustentada pelas divagações do próprio narrador.

Dulce Veiga, eu tinha que encontrar Dulce Veiga.


[...] Não aconteceu nada. Nada além de um terror lento, enquanto
lembrava de Rafic, do dinheiro e do que, não sabia exatamente
como, eu tinha prometido a ele: encontrar Dulce Veiga. E ela podia
estar morta, morando em Cristiana, Salt Lake City, Alcântara ou
52
Cf: BOILEAU; NARCEJAC. O romance policial (1991)
128
Jaguari, internada num hospício, longe de tudo [...] Era preciso
encontrar Dulce Veiga, manter aquele emprego, continuar a viver
(p. 119-120).

Não há dúvida de que o romance policial (e todos os seus


congêneres), desde sua criação, sempre atraiu grande público por se tratar de um
gênero que se sustenta num tipo de modelo estrutural que estimula as emoções dos
leitores através da combinação de alguns elementos. Decifrar enigmas, identificar
crimes por meio de pistas, desvendar mistérios, poder espiar a vida alheia, obter
informações sigilosas, estudar a natureza psicológica dos criminosos e descobrir
uma inteligência máxima na figura do detetive são alguns dos fatores responsáveis
pela aceitação e perpetuação do gênero. A repetição em série destes modelos
permitiu que o romance policial fosse considerado um produto de massa pelo seu
caráter envolvente junto ao público consumidor. Desse modo, muitas obras do
gênero tornaram-se verdadeiros best-sellers, transformando as narrativas policiais em
ícones da indústria cultural e do mercado editorial.
A respeito da chamada literatura de entretenimento53, Silvia Borelli
(1996, p. 50) diz que formas narrativas consideradas de massa são organizadas a
partir de uma “lógica que não propõe rupturas estéticas mas resgata, como em
qualquer outra literatura, matrizes tradicionais aparentemente perdidas na imensa
fragmentação do cotidiano modernizado”. Isto significa dizer, como afirma a
autora, que as literaturas triviais obedecem, sobretudo, a “mecanismos de
constituição” na tentativa de manter o consumo. Não obstante seja considerada
marginal por muito críticos literários, não se pode ocultar a atração que a literatura
de massa exerce em grande parte de leitores, também tidos como ‘médios’. Ignorar
obras que objetivam o consumo rápido e explícito em favor de uma literatura

53
Ou literatura de massa, encontram-se os romances policiais, romances de aventura, melodrama,
folhetim, ficção científica, telenovelas, histórias em quadrinho, entre outros.
129
‘culta’ e/ou esteticamente mais apurada, é o mesmo que descartar um dos
elementos da triconomia autor-obra-receptor, ou seja, o leitor.54

As bases de sustentação dessas formas literárias localizam-se na


repetição de um modelo que revela pela variação – e não pela
ruptura – e na forte presença dos gêneros como dimensão
prioritária de ficcionalidade. Divertem, entretêm, restituem e se
estabelecem com o leitor uma relação em que prazer, riso, medo,
lágrimas, ansiedades e, fundamentalmente, excessos – afetivos e
emocionados – afloram, possibilitando também o resgate de
experiências: experiências de outra estética presente em qualquer
tempo e em qualquer espaço da história da cultura (BORELLI,
1996, p. 50).

No romance de CFA, o suspense e o mistério, ingredientes do


policial, além de incitar a curiosidade do seu leitor (curiosidade esta que provoca
mudança na vida do protagonista), misturam-se ao jogo das imagens
cinematográficas no afã de estabelecer a fantasia ou a ilusão. Na verdade, o
romance parodia situações clássicas das narrativas policiais, bem como aspectos do

54
Vale lembrar das considerações de Umberto Eco, em “Intentio lectoris” (2004), quanto aos
limites, às possibilidades e à pluralidade no âmbito da interpretação. Esta tornou-se alvo no
processo de observação do objeto literário com autores que versavam uma “estratégia” bem
distinta daqueles precedentes, cujas balizas para análise do texto davam-se no exercício único da
verificação da forma. O estruturalismo e todas as teorias imanentistas do texto acabaram por dar
lugar a um outro tipo de investigação, cujo papel do receptor se fazia imprescindível. Ora, se o
leitor ou a intenção do leitor pesa agora no projeto literário, é evidente que o texto em si
apresente-se como polifônico e, se possuidor de vozes múltiplas, também são certas as
possibilidades interpretativas. Mesmo que ocorrido mudança nos paradigmas de análise para a
crítica literária, isso não significa dizer, segundo Eco, que os pós-estruturalistas partilhavam de
idéias únicas, por certo que afins. Ao cotejar as várias possibilidades que pode oferecer a leitura, o
semiólogo italiano aponta duas posturas distintas no tecer a leitura pelo leitor: aquela que apenas
usa o texto e a que o interpreta de fato. Na tricotomia autor-obra-leitor, atenta-se para as
intenções de cada uma destas instâncias como responsáveis pela produção do sentido de um
texto. Eco questiona até que ponto o leitor e o processo interpretativo podem ser fidedignos à
obra; ainda mais quando postulada a existência de uma intentio auctoris e intentio operis dividindo
espaço com a intenção do leitor. De todo modo, acredita-se que o texto literário é o lugar por
excelência onde residem diversas e variadas vozes culturais, e, nesse sentido, o texto apresenta
espaços lacônicos, cujo preenchimento é dado, a posteriori, pelo leitor como uma espécie de
manipulador de objetos.

130
cinema, a fim de exagerar os elementos dos massivos, deformando criativamente os
modelos de sucesso. No texto, o autor chega a citar Phillip Marlowe, detetive
criado pelo escritor Raymond Chandler que, ao lado de Dashiell Hammett, funda o
chamado romance ‘noir’. Caio, dessa maneira, não só enfatiza a ação investigativa
do romance, como também potencializa o efeito do kitsch em narrativas como esta.
Isso quer dizer que o caráter de exagero, de provocação de efeito e de
reconhecimento imediato dos produtos que apresentam uma estética kitsch, é
trabalhado no romance, entre outros, a partir da apropriação dos recursos do
romance policial, mais especificamente o romance noir.55

Márcia entrou no táxi. Pela janela, ainda disse:


– Deixa elas terminarem o show sozinhas. Diz que eu passei mal,
inventa qualquer coisa. Depois a gente conversa.
Patricia tentou beijá-la, ela fechou a janela. O táxi arrancou e partiu.
No meio da rua, Patricia ainda gritou o nome dela, depois baixou a
cabeça, chutou o pára.-lama de um carri e tornou a entrar no
Hiroshima. Eu então toquei o ombro do motorista, e disse
finalmente aquela frase que sonhava há pelo menos trinta
anos:
– Siga aquele carro.
Ele me olhou como se eu tivesse completamente louco. Precisei
repetir três vezes, vezes demais para um clichê. Ele começou a
se mover, era nordestino. A cena da perseguição dos
automóveis, filmada de helicóptero. Pneus gritando nas curvas,
batidas e música frenética, uma grua subindo devagar. Mas nas ruas
vazias não havia perigo, e o fusca arrebentado onde eu estava não
tinha sequer rádio (p. 182 – grifo nosso).

Na passagem acima, o jornalista sai à procura de Márcia Felácio


que, tal como sua mãe, abandona o show para atender mais um dos surtos de Saul.
Este enlouquece após o desaparecimento de Dulce, travestindo-se curiosamente na
figura clicherizada da cantora. No longo percurso do protagonista em busca de
pistas que pudessem apontar o paradeiro de Dulce, muitas cenas são ‘amarradas’
magistralmente para manter o ar enigmático do romance. Em resumo, o
55
Falaremos da estética dos romances e/ou filmes noirs no tópico 4.3 deste capítulo.
131
protagonista tenta seguir alguns passos da carreira de Dulce, cruzando personagens
que fizeram parte do momento de sucesso desta. Assim, o núcleo central do
romance, ancorado no jornalista, em Dulce Veiga e Márcia Felácio, vai passo a
passo se ramificando em diversos outros núcleos. O jornalista acaba por se
lembrar/descobrir (as lembranças nem sempre são muito definidas para ele)
algumas figuras que acompanhavam a cantora no auge de sua carreira. Interessante
ressaltar que este fato ocorre a partir de velhas fotografias encontradas na redação
do jornal, quando, ao terminar a crônica sobre o desaparecimento de Dulce, o
jornalista procura nos arquivos fotos da cantora para integrá-las ao texto. Vêm à
tona no romance, nesse momento, as personagens de Alberto Veiga, marido de
Dulce, o pianista Pepito Moraes, o “homem de bigodes pesados e ar de turco” –
Rafic (ainda não identificado pelo jornalista) e a atriz Lilian Lara, melhor amiga de
Dulce. Percebe-se, então, que as fotografias funcionam também como pistas.
Deve-se salientar também que, como em todo o romance, as descrições destas
personagens nas fotografias revelam mais uma vez o ambiente cafona marcado
pelos clichês.

Havia também fotos com outras pessoas: debruçada nos ombros


de Pepito Moraes, seu pianista preferido; com o marido Alberto
Veiga, clima canastrão de galã de filme mexicano dos anos 60,
paletó com ombreiras, cigarro na piteira entre as unhas esmaltadas;
no meio do grupo, em torno de uma mesa de boate, mãos dadas
com um homem forte, vagamente familiar, de bigodes pesados e ar
de turco; recebendo um prêmio de Leniza Maia e entregando outro
a Maysa, sorrindo entre as duas. Para minha surpresa, várias fotos
com Lilian Lara – sua melhor amiga, diziam alguns recortes da
revista Intervalo (p. 57 – grifo do autor).

Neste trecho, é necessário fazermos algumas observações além das


já comentadas anteriormente. Veja que os recursos da simulação e da
intertextualidade aparecem novamente no romance, sustentados pela mistura que
faz o narrador de realidade e ficção. O ato de o narrador colocar em cena uma

132
personagem real, como a cantora Maysa, e recuperar Leniza Maia, a famosa cantora
de rádio que luta pela fama no romance de Marques Rebelo, aponta, como uma
espécie de interface da narrativa, o valor do simulacro. Este, em forma de repetição
de modelos massivos ou representação de representação (como é o caso da cantora
‘fictícia’ Leniza Maia), aparece como um jogo intertextual a ser decodificado pelo
leitor. Procedimento típico da cultura de massa, a repetição pode se referir a um
protótipo, a uma matriz, ou a um arquétipo, repetidos constantemente na tentativa
de marcar pontos de identificação com o público. Calabrese (1987) diz que a forma
mais conhecida, e portanto mais comercial, da repetição é aquela que consiste na
continuação de um tema e/ou personagens que tenham sucesso. Viu-se neste
último trecho, por exemplo, que a repetição de Leniza Maia e a referência à cantora
brasileira Maysa funciona também para privilegiar os flashbacks do romance que, de
modo geral, mantêm a salvo as personagens, potencializando ainda mais o tipo de
simulação produzida. Sem dúvida alguma, essa condição de reproduzir na ficção
ícones da cultura massiva, funcionando como um espelho para o leitor,
recondiciona uma narrativa que requer receptores diferenciados, que possam
decodificar e reconhecer no texto os elementos parodísticos, as citações, o jogo de
ironia e, sobretudo, os simulacros.56
A idéia de thriller policial sobre uma das quais nos debruçamos neste
capítulo também pode ser tomada como um dos processos utilizados pelo autor
para sustentar o princípio de simulação do romance. Tal fato indica um duplo
movimento no plano da diegese: aumentar o potencial dramático da ação no que
respeita aos movimentos de desdobramentos da trama sustentada pelo mistério do
desaparecimento de Dulce Veiga; incidir sobre a descaracterização de alguns
elementos do gênero através da exageração e ridicularização, elevando o índice
parodístico da narrativa.

56
Cumpre lembrar que a nossa idéia de simulacro é consoante à tese de Baudrillard (1991) a
respeito da cultura contemporânea ser o universo da simulação. Na contemporaneidade, não
existe mais o real, mas um “hiper-real”. Diz Baudrillard: “Já não existe o espelho do ser e das
aparências, do real e do seu conceito. Já não existe coextensividade imaginária: é a miniaturização
genética que é a dimensão da simulação” (p. 8).
133
Segundo Muniz Sodré (1988, p. 38), a palavra thriller, “como
variante do gênero policial, tem sido forte constante de inspiração à indústria
cinematográfica e, sem dúvida nenhuma, fonte de conhecimento dos bastidores do
poder dos grandes centros urbanos”.

Thriller é uma palavra para todo uso, cujo sentido convém precisar.
A narrativa de ‘fazer medo’ deve entender-se de duas maneiras. De
um lado, há a narrativa de espanto, cujo modelo deve ser
procurado no velho romance ‘noir’ [...] A detecção aí não
desempenha nenhum papel. Por outro lado, há esse novo romance
policial americano que não procura absolutamente espantar, mas
que faz mal pela dureza de certas cenas (BOILEAU; NARCEJAC,
1991, p. 59 – grifo dos autores).

O thriller, romance noir, ou também “policial americano”


(REIMÃO, 2005, p. 11), de modo geral, destaca-se ou difere-se do romance policial
tradicional pela presença de alguns elementos que colaboram para a degradação do
ambiente em que é narrado a história. Claro que a temática do noir, parentesco que
mantém com a tradição do policial, está centrada em algum crime, mas com o
diferencial de personagens, ambientes e situações que fogem aos padrões clássicos
das narrativas policiais mais tradicionais. No romance noir, aparecem
heróis/detetives (ou anti-heróis) nada elegantes, pouco afeitos ao cerebralismos dos
investigadores dos policiais europeus e seus talentos para desvendar soluções
enigmáticas ou crimes. Contrariamente, a narrativa do noir revela toda a
obscuridade dos violentos centros urbanos, a marginalidade e a brutalidade dos
becos sujos, onde se encontram personagens execráveis. É o “bas-fond social”
(REIMÃO, 2005, p. 12) que é mostrado nos romances deste gênero. Metido em
tramas complexas, o detetive do noir é “duro, elíptico, desarrumado, hirsuto”
(BOILEAU; NARCEJAC, 1988, p. 58).
Na trama de Onde andará Dulce Veiga?, Caio explora estas
características, perceptíveis em muitos momentos do romance, salientando os

134
clichês do gênero de forma que a narrativa seja divida em duas ambiências: a
underground da metrópole apodrecida, cujo cenário é o da prostituição, das drogas e
da marginalidade; e a totalmente kitsch, evidenciada pela cafonice de cenários e
personagens.
Em meio à paródia detetivesca, a visão que o leitor tem do
protagonista é uma espécie de mistura do sujeito descentrado de Hall (1998), de um
‘eu’ esquizóide de Deleuze e Guattarri (1976), do fractal de Baudrillard (1976)57,
isto é, sem identidade fixa – traço comum nas personagens de Caio, mas que,
ironicamente, é temperado ao tom do humor, traço que aponta para os sinais do
triunfo da superficialidade, do vazio e da efemeridade da pós-modernidade. Nesse
sentido, a narrativa realiza a marcação dos estereótipos e das formas ritualizadas do
processo de imitação. Tanto o sujeito problemático quanto o risível são
amalgamados em uma só pessoa. “O bem e o mal cozinhando no mesmo caldeirão.
Não rimos mais dos outros, mas, à la Woody Allen, rimos de nós mesmos”
(VILLAÇA, 1996, p. 138 – grifo da autora).

Abri o chuveiro, mas a água fria não conseguia resgatar aqueles


restos e reflexos de imagens perdidas, viradas pelo avesso. Entre os
pêlos negros do peito, contei à toa dois fios inteiramente brancos.
Amanhã serão três, pensei. Depois dez, cem. Mil, em direção a
quê? A um daqueles senhores cinqüentões em que talvez me
tornaria em breve, tufos de pêlos grisalhos escapando pelo
colarinho aberto, uma corrente de ouro entre eles. Digno, só um
pouco patético. Essa era a melhor maneira de ficar deprimido pelo
resto do dia. Então tive vontade de cantar, que estava tudo, tudo
certo, repeti esfregando a cabeça, mas não lembrava nenhuma
canção, eu não sabia cantar, navegando naquele pequeno milagre
que começara a acontecer há dois dias. Um emprego: acordar,
tomar banho, fazer a barba, beber café – e ter para onde ir (p. 76).

57
Emprestamos de Nizia Villaça (1996), as considerações acerca das fases do simulacro,
desenvolvidas por Baudrillard em L’échange symbolique et la mort (1976). Segundo observa Villaça, a
quarta fase, a fractal, diz respeito “a desreferencialização total” do sujeito com objeto, “nada se
distigue de nada, tudo perde o lugar e o valor em sucessivos golpes” (p. 73).
135
Nesse caso, o “ter para onde ir” é o mesmo que poder recomeçar,
redescobrir-se diante do frenesi da metrópole que “parecia metida dentro de uma
cúpula de vidro embaçada de vapor. Fumaça, hálitos, suor evaporando, monóxido,
vírus” (p. 16). A função de jornalista, então, abre-se na possibilidade da descoberta
(de si e do outro). Vê-se que a crônica, gênero consagrado pelo veículo jornalístico,
que fora publicada em homenagem à cantora tem papel fundamental no romance
porque marca a associação não apenas com o ofício de escritor (metalinguagem),
mas, inegavelmente, serve como alavanca para desencadear o processo investigativo
da narrativa. De autor a detetive, o jornalista passa a se alimentar de pistas, e não
mais de notícias. O vazio dá lugar à expectativa. Vejamos o que diz Isabel Jasinski a
respeito da incorporação do policial em Onde andará Dulce Veiga?.

Pontes e pistas que se ligam, por vezes evidências óbvias demais


para que ninguém nunca as tivesse observado antes, coincidências
descabidas que falseiam a história são características dessa obra
que, pela maneira como são associadas, atribuem certa ironia crítica
da narrativa ao discurso do romance policial. Ela recupera esse
discurso e sua visão de mundo de forma acentuada, aproximando-o
do ridículo e associando-o a outro tipo de mistério que muitas
vezes se contradiz à objetividade do mistério policialesco
(JASINSKI, 2000, p. 78).

Ao contrário do narrador objetivo do romance noir, que “nunca se


comove, nunca toma partido” (BOILEAU; NARCEJAC, p. 61), o narrador do
romance de CFA entra numa espécie de paranóia, acentuando, assim, seu
envolvimento com o desaparecimento de Dulce Veiga. Os discursos enigmáticos
das personagens em relação às possíveis pistas do paradeiro da cantora são
articulados na narrativa a fim de problematizar o andamento da solução do
mistério. A obscuridade dos relatos a respeito de Dulce prende, por assim dizer, o
leitor na trama, acreditando num desfecho que possa surpreender. Entretanto,
como pontua Sandra Reimão (2005, p. 12), “no romance policial noir não existe
verdade final indiscutível, inquestionável, uma interpretação acima de qualquer

136
suspeita”. O próprio Caio (1995), ao comentar o romance em entrevista a José
Castello, ressalta que: “O leitor, se puder, vai entender então que Dulce está ligada
ao Santo Daime e isso provocará um choque violento porque, provavelmente, ele
estava lendo o livro como um romance policial”. Isso já revela uma proposta de
ruptura com o romance policial, indicando, antes de mais nada, o caráter de
desapropriação do gênero em favor de reciclagens e transformações. Assim, o
deslocamento de matrizes culturais como esta – o policial – permite que a narrativa
resulte em novos produtos. A respeito da adulteração dos produtos massivos,
Borelli (1996, p. 193), conclui que, “se, por um lado, os gêneros perdem parte de
sua autenticidade com adaptações [...], por outro, ganham em diversificação e
ampliam seus limites em direção a interessante processo de desterritorialização”.
As descobertas sobre o sumiço de Dulce Veiga vão sendo
projetadas no romance conforme o protagonista vai tateando situações e pessoas.
O triângulo afetivo concentrado em Dulce, Alberto Veiga e Saul é ponto-chave
para o desfecho do mistério. Descobre-se, então, que Dulce mantinha uma relação
extraconjugal com Saul, um ativista político que fora exilado em tempos de ditadura
militar no país. Assim, é levantada no romance outra especulação – a de que Márcia
poderia não ser realmente filha de Alberto Veiga. Especulação que se efetiva
quando o jornalista vai ao encontro de Lilian Lara, que fora, afinal, “a última pessoa
a ver Dulce Veiga” (p. 171). Imaginando receber a visita do jornalista para uma
entrevista sobre sua carreira de sucesso como atriz, Lilian Lara fala o tempo todo
de seus papéis, chegando a colocar uma fita de vídeo sobre o filme que fizera com
Dulce, pois chegou a dizer: “Quando Dulce desapareceu [...] nós estávamos
fazendo um filme juntas. Eu peguei uns fragmentos, mandei montar este vídeo. É a
última imagem dela” (p. 174). A passagem que narra a ida do jornalista à casa da
atriz reforça a idéia do procedimento híbrido da narrativa. Em primeiro lugar,
porque a personagem de Lilian só apresenta um certo glamour quando vista no
vídeo do filme, filmado há vinte anos. Na realidade da ficção, esta personagem é
apresentada na superfície, sem nenhuma densidade, vivendo ainda de um modelo

137
identitário do passado, mediado por imagens cinematográficas ou televisivas. Em
segundo lugar, tem-se a configuração do tempo e do espaço desmontada pelos
artifícios das imagens. O paralelismo entre realidade e ficção se desdobra em
‘realidade da narrativa’ e ‘ficção propriamente dita’. No filme “em preto e branco”
(p. 175) mostrado ao jornalista, Dulce aparece sentada numa poltrona. Nesse
sentido, cruzam-se a imagem ‘real’ de Dulce na narrativa e a imagem do filme.
Nesta passagem do romance, embora sabendo ser “um fracasso como detetive” (p.
169), o jornalista (e o leitor) é surpreendido com duas revelações bombásticas. Saul
era o pai de Márcia, e não o marido Alberto Veiga. Dulce o havia deixado para
viver com Saul que “foi preso, torturado, e quando saiu da prisão, meio louco,
Dulce tinha desaparecido e Alberto mandara Márcia para bem longe. Aí ele foi
parar num hospício, durante anos” (p. 174). A segunda revelação: Patricia era filha
de Lilian Lara.
A pluralidade de fontes e pistas neste romance é uma constante no
texto como tentativa de clicherizar a dramatização de narrativas policialescas.
Cruzada com um número imenso de imagens, percebe-se que Onde andará Dulce
Veiga? subverte a racionalidade típica do thriller policial, pois permite ao leitor
vivenciar ou assistir às mazelas e às ambigüidades do sujeito problemático.
Preferimos, assim, deixar o desfecho do romance para o próximo
tópico, uma vez que este se liga fundamentalmente à figura e à descoberta do
paradeiro de Dulce. Veremos como a personagem mitificada e fetichizada como
produto de uma indústria cultural é construída no imaginário do narrador, ainda
que essa imagem do mito seja quebrada ao final, afirmando, mais uma vez, o
movimento de desarticulação da narrativa.

138
4.2 DULCE VEIGA: A CRIAÇÃO DE UM MITO DA CULTURA DE MASSA

Rita Hayworth em Gilda (1946), de Charles Vidor

“Como os sonhos, os mitos são produtos da imaginação


humana, Suas imagens, em conseqüência, embora oriundas
do mundo material e de sua suposta história, são, como os
sonhos, revelações das mais profundas esperanças, desejos e
temores, potencialidades e conflitos da vontade humana –
que por sua vez é movida pelas energias dos ógãos do corpo
que funcionam de maneiras variadas uns contra os outros, e
em concerto. Ou seja, todo mito, intencionalmente ou não, é
psicologicamente simbólico. Suas narrativas e imagens devem
ser entendidas, portanto, não literalmente, mas como
metáforas”
(Joseph Campbell)

A figura de Dulce Veiga no romance Onde andará Dulce Veiga?: Um


romance B, como já apontamos algumas vezes no percurso da nossa análise, está
ligada às figurações de alguns gêneros massivos escolhidos por CFA para dar cor a
esta narrativa polifônica. Assim, é impossível compreender a função exercida pela
cantora enquanto um mito da cultura de massa sem fazermos as associações com o
papel dos audiovisuais na América Latina, em especial com a experiência do cinema
norte-americano como uma matriz cultural participante da formação de um
imaginário coletivo. Esta focalização no cinema hollywoodiano se presta no
139
romance à mitificação da personagem Dulce que, poderíamos supor, se tratar de
uma espécie de atualização dos papéis dos antigos mitos das sociedades arcaicas,
guardadas, é claro, as diferenças.58
Renato Ortiz (1994), ao fazer um balanço da modernização da
sociedade brasileira, aponta a década de 40 como o momento em que ocorre o
surto de desenvolvimento no país. Segundo o autor, pode-se falar em consolidação
de uma “sociedade de massa” no Brasil entre as décadas de 40 e 50 quando os
meios de comunicação de massa se tornam efetivamente um bem de consumo.
Ainda que o rádio tivesse se instaurado no país nos anos 20, é somente a partir dos
anos 40 que se acentua o poder comercial deste. Ortiz usa o exemplo das
radionovelas, introduzidas em 1941, e “dos filmes americanos, que no pós-guerra
dominam o mercado cinematográfico” (ORTIZ, 1994, p. 41). Além destes, o autor
ainda aponta o mercado de publicações e a implementação de estações de cinema e
televisão e suas variações (Revista Manchete, TV Record, em 1953; TV Tupi, em
1950; Fotonovela, em 1951; TV Paulista, em 1952). Ortiz ressalta que

[…] os anos 40 marcam uma mudança na orientação dos modelos


estrangeiros entre nós. Os padrões europeus vão ceder lugar aos
valores americanos, transmitidos pela publicidade, cinema e pelos
livros em língua inglesa que começam a superar em número as
publicações de origem francesa (ORTIZ, 1994, p. 71).

58
Aqui vale a ressalva de que o papel dos mitos projetados dentro de uma cultura de massa não
pode ser encarado da mesma maneira como as antigas sociedades tomavam um vasto repertório
iconográfico como uma espécie de narrativa embuída da função de explicar a origem do mundo e
de dar, entre outros, a compreensão de fenômenos ocorridos no corpo da estrutura social. Mircea
Eliade (1978, p. 11), por exemplo, diz que “o mito conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial […]. Em outros termos, o mito narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o
Cosmo, ou apenas um fragmento”. Não nos interessa, de fato, traçar um percurso de evolução
do significado do mito. No entanto, tentaremos mostrar que a mitificação de Dulce Veiga pode
ser associada ao papel dos mass media como agentes de consolidação imaginária e
ressignificadores do conceito de mito no que respeita à produção simbólica contemporânea.

140
Nesse sentido, com a predominância de uma orientação
comportamental e artística apoiada no star system norte-americano, é que começam a
surgir, no Brasil, os mitos do século XX, os quais, nas palavras de Edgar Morin
(1977b), surgem “olimpianos”, intocáveis. Os novos mitos, portanto, exercem o
mesmo poder que os meios de comunicação de massa quanto a sua capacidade de
construção e manutenção de identidades que refletem valores, desejos e
perspectivas consoantes às aspirações do público massivo. É oportuno considerar,
então, alguns elementos característicos que dão contorno ao conceito de mito no
âmbito da cultura de massa, correlacionando-o às expressões estéticas dos mass
media que, no romance, imprimem uma multiplicidade discursiva.
Considerando o sentido do fenômeno dos “mitos sociais”, tal qual
pontua Gillo Dorfles (1965), pode-se dizer que, na contemporaneidade, ocorre uma
desmitificação com relação aos mitos sagrados, que perderam grande parte de sua
riqueza simbólica institucionalizada, ao passo que o processo de mitificação
adquiriu a força da simbolização de novos elementos elevados a uma categoria
semelhante a dos mitos, sobretudo pela sua cota de irracionalidade.59

Se a Antiguidade tinha criado os seus mitos e os seus feitiços


recorrendo muitas vezes a elementos tirados do mundo natural […]
ou os criara ex novo, aproveitando as imagens simbólicas que
afloravam a consciência e derivavam de encantamentos e
alucinações, o nosso tempo, em contrapartida, cria os seus mitos e
os seus feitiços, tomando-os de empréstimo a elementos pré-
fabricados, muitas vezes mecânico, produzidos em série, criados
pelo homem, mas já desumanizados, convertidos em simulacros
(DORFLES, 1965, p. 164 – grifo do autor).

59
De acordo com Dorfles, os novos mitos da sociedade moderna surgem pelo desconhecimento
de uma má interpretação de alguns elementos ou situações. Explica o autor que quando se
desconhece a finalidade de uma técnica ou se distorce o verdadeiro uso de um elemento junto a
sua adoração chega-se a uma forma “mitagógica”, isto é, são os fatores mitizantes ou
fetichisticamente mitizantes que conferem valor negativo à mitificação. De outro lado, quando
esta mitificação é capaz de restituir alguns valores simbólicos a entidades já perdidas, tem-se o
caráter “mitopoiético”, positivamente, ainda que seja de forma inconsciente.
141
Mais do que apenas recriarem as velhas narrativas míticas, a cultura
de massa acabou por fundar um repertório imenso de mitos modernos que, através
das aspirações coletivas corporificadas pelas personagens midiáticas, foi possível
“criar” figuras que aglutinaram o imaginário de nossa época. A percepção do uso
da expressão “mito” na sociedade de massa, isto é, a apropriação de formas de
representação para designar personalidades que exercem um certo destaque no
imaginário contemporâneo, permeia a obra de alguns teóricos, tais como Edgar
Morin, Roland Barthes e Umberto Eco. Morin (1977), por exemplo, afirma que a
cultura de massa fornece à vida privada as imagens e modelos que dão forma às
inspirações do homem comum a partir do empréstimo da terminologia mítica ou
do discurso mítico.

Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a


propor mitos de auto realização, heróis modelos, uma ideologia e
receitas práticas para a vida privada [...] E é porque a cultura de
massa se torna o grande fornecedor dos mitos condutores do lazer,
da felicidade, do amor, que nós podemos compreender o
movimento que a impulsiona, não só do real para o imaginário,
mas também do imaginário para o real (MORIN, 1977b, p. 90).

Em Onde andará Dulce Veiga?, o narrador alimenta, em quase todo o


romance, uma imagem estereotipada da personagem Dulce Veiga, projetada a partir
das estrelas hollywoodianas e também das divas da época de ouro do rádio. Ainda
que o autor a dessacralize ao final do romance, Dulce, sem dúvida alguma, é
cristalizada da mesma forma que as estrelas cinematográficas passaram de simples
entretenimento para se tornarem ícones de sedução, cuja beleza plena de artifício
era capaz de despertar paixões. Assim, a ressignificação dos mitos põe em cena
personalidades midiáticas que produzem no ‘espectador’ uma identificação extrema,
isto é, novos protótipos criados artificialmente para serem copiados. Vejamos a
primeira descrição de Dulce pelo jornalista/narrador para, a partir dela, tecermos

142
algumas considerações com relação à pulverização do mito baseada no cânone
estético dos modelos mais tradicionais do cinema hollywoodiano.

A primeira vez que vi Dulce Veiga, e foram apenas duas, ela estava sentada
numa poltrona de veludo verde. […] Por alguma razão, até hoje, ao pensar
nela penso também inevitavelmente num filme qualquer, em preto e branco, da
década de 40 ou começo dos 50. Dulce tinha a cabeça jogada para trás,
afundada entre aquelas abas. Como se não me visse, como se eu não estivesse
lá. Parada sob o arco que dividia em duas a sala de paredes altas onde
estávamos os dois, eu podia ver apenas sua garganta muito fina branca, um fio
de pérolas brilhando contra a pele. Na peça escurecida, provavelmente era quase
noite e, além disso, as cortinas permaneciam sempre cerradas, eu saberia depois,
sem que ninguém me contasse, as sombras caídas sobre a poltrona e seus cabelos
louros não permitiam que eu visse o rosto dela. Percebia somente suas mãos
longas, magras, unhas pintadas de vermelho, destacadas como um recorte móvel
na penumbra azulada do entardecer. Numa das mãos, agitava lenta um cálice
de conhaque. A outra segurava um cigarro aceso. […] Não estou
absolutamente seguro que, de algum lugar no interior do apartamento, viessem
os acordes iniciais de Crazy, he calls me, na gravação de Billie Holiday, e
poderia ser também Glad to be unhappy, Sophisticated lady ou qualquer
outra dessas canções roucas, gemidas. Naquele tempo eu não as conhecia, mas
estou certo de que nessa ou na outra vez perguntei quem era e ela disse que era
Billie […] Tudo isso que agora parecia clichê banal, naquele tempo […] –
tudo era novo, eu nem suspeitava das marcas pelo caminho. […] Logo que
entrei na sala, não a vi. Mas devo ter sentido a presença de alguém, algo como
uma respiração arfante, um perfume adocicado de jasmim, dama da noite,
manacá ou outra dessas flores assim antigas, excessivamente perfumadas. […]
Quando meus olhos acostumaram-se à luz escassa pude vê-la inteira, sentada
naquela poltrona de veludo verde, pernas cruzadas, vestida toda de preto. Ela
usava sempre no máximo duas cores. […] A brasa de seu cigarro subia e
descia no escuro, às vezes mais viva, quando ela tragava. […] Creio que
perguntei se podíamos começar a entrevista, e ela disse que sim, ou não disse
nada durante algum tempo, não lembro. Mas tenho certeza que, antes de
levantar o rosto, estendeu a mão para depositar o cálice de conhaque sobre a
mesa de mármore, depois apanhou uma caixinha preta, redonda, abriu a
tampa com um estalido seco e equilibrou nela o cigarro. Só então Dulce Veiga
ergueu para mim o rosto de maçãs salientes, os olhos verdes, e pude ver seus
cabelos lisos, louros, finos, repartidos ao meio com exatidão milimétrica, caindo
em duas pontas no espaço entre os lábios finos e o queixo um tanto orgulhoso
(p. 33-35 – grifo do autor).

143
Escolhemos esta longa descrição de Dulce porque ela nos permite
constatar o processo criativo utilizado pelo autor para estabelecer no romance-
mosaico a mitificação da cantora.60 No plano do enredo, esse procedimento
mimético de criar uma personagem tal qual um objeto de devoção e adoração,
sobre o qual são projetados um mundo de sonhos inspirado nos produtos da
cultura de massa, funciona, em primeira instância, para aumentar um conjunto de
potencialidades que pode ser ativado pela memória. Isto é, Dulce para o jornalista é
a cristalização de uma imagem que reflete sua própria condição de medo e solidão,
ou sua própria ideologia perdida, cujos sonhos pessoais e profissionais foram
frustrados. Por isso, o narrador propõe um modelo mitificado buscando evidenciar
os mecanismos de identificação a partir de protótipos já gastos e reconhecidos.
Sublinham-se, assim, as semelhanças entre os mitos sociais e o imaginário coletivo
motivado pelo desejo de projeção de conflitos e emoções.
Ao longo do romance, é possível verificar alguns fatores que
favorecem a mitificação de Dulce Veiga, estando a maioria deles ligada aos veículos
de comunicação de massa. O desaparecimento da cantora como mote do romance,
além de propiciar na narrativa a inferência do jogo policial, permite reforçar a
imortalização do mito. Se como afirmou Roland Barthes (1975, p. 163),
enfatizando que “a função do mito é evacuar o real”, vê-se que o abandono da
cantora do cenário artístico no auge do sucesso culminando nesse desaparecimento
sem pistas dá relevo ao binômio realidade/ilusão. A falta de domínio entre o real e
o ilusório pode ser observada em diversas passagens nas quais o jornalista
protagoniza cenas de delírio ao acreditar estar vendo Dulce Veiga perambular por
vários cenários da São Paulo caótica.

60
Cumpre relembrar, antes de mais nada, que a personagem Dulce Veiga foi inspirada na
personagem da atriz brasileira Odete Lara que, no filme de Bruno Barreto (baseado no romance
de Marques Rebelo) A estrela sobe, interpreta uma cantora de rádio – Dulce Gonçalves – que,
embora tivesse papel secundário, exerceu grande fascínio em CFA como uma espécie de símbolo
de glamour.

144
Com relação aos meios audiovisuais, como mantenedores de
discursos míticos no sentido de projetar padrões de comportamento afeitos à
imitação, a personagem Dulce Veiga vincula-se no romance a dois modelos
estereotipados dos mass media, a cantora de rádio em ascensão e a estrela
clicherizada do cinema norte-americano das décadas de 40/50/60. Para
compreender de que maneira e em que medida esses veículos de comunicação de
massa introjetam valores e mudam os costumes do imaginário contemporâneo,
emprestamos de Martín-Barbero (2003) algumas considerações a respeito do
cinema e do rádio. Optamos, assim, por seguir o mesmo diálogo do professor
espanhol estabelecido com as teses de Edgar Morin (1977) pela semelhança da
teoria em torno da cultura de massa que define, de alguma maneira, o
funcionamento sociocultural desses veículos massivos.
O primeiro ponto que se deve considerar, então, diz respeito “aos
mecanismos de identificação e projeção, para pensar os modos como a indústria
cultural responde, na era da racionalidade instrumental, à demanda de mitos e
heróis” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 95). Em diálogo com Morin, para o qual, a
função destes meios na cultura de massa é “a comunicação do real com o
imaginário”, Martín-Barbero explica que o sucesso dos mitos modernos e dessa
nova mitologia se dá em função da “resposta a interrogações e vazios não
preenchidos” (p. 95). Isto significa dizer que os mass media respondem às
aspirações de um público desejoso de ver nas telas do cinema ou ouvir através do
rádio os mesmos conflitos e situações do seu próprio cotidiano, fosse pelo tom
lamurioso e exagerado das narrativas melodramáticas, fosse pelo happy end das
películas hollywoodianas. No tocante ao cinema, Martín-Barbero afirma que com o
estabelecimento do star system norte-americano em detrimento das produções
européias e também com “a criação de gêneros” foi possível comercializar “os
mecanismos de percepção e reconhecimento popular” (MARTÍN-BARBERO,
2003, p. 210). Nesse sentido, o espectador passou a expressar um tipo de sedução

145
não mais pelas condições da representação e sim pela identificação com os finais e
destinos de cada personagem.

A indistinção entre ator e personagem produzia um novo tipo de


mediação entre o espectador e o mito. Mediação que tinha no
espaço da tela um dispositivo específico: o primeiro plano, com sua
capacidade de aproximação e fascinação, mas também de difusão e
popularização do rosto de atores; fora da tela, essa mediação
contava com a imprensa enquanto dispositivo muito eficaz de
referenciação e tradução do mito em valores e pautas de
comportamentos cotidianos (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 211 –
grifo do autor).

Desse modo, o cinema passou a mediar através de uma modelagem


simbólica própria experiências de subjetividade na medida em que as possibilidades
de “se ver nas telas” foram se tornando cada vez mais próximas do espectador.
Dito de outro modo, como coloca Martín-Barbero (2003, p. 244 – grifo do autor),
“as pessoas vão ao cinema para se ver, numa seqüência de imagens que mais do que
argumentos lhes entregam gestos, rostos, modos de falar e caminhar, paisagens,
cores”. É por isso mesmo que uma das “chaves da sedução” (p. 245) concentra-se
na figura das estrelas – atrizes e atores, que

[…] abastecem com faces, corpos, vozes e tons a fome das pessoas
por se verem e se ouvirem. Para além da maquiagem e da operação
comercial, as verdadeiras estrelas do cinema obtêm sua força de um
pacto secreto que enlaça esses rostos e vozes com seu público, com
seus desejos e obsessões (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 245).

O símbolo Dulce Veiga como projeção mítica é também


potencializado no romance por outras personagens que, por meio da memória,
descrevem situações onde se pode vislumbrar a cantora ‘protagonizando’ um papel

146
tal qual o faria uma estrela de cinema. Vejamos a descrição da lembrança de
Castilhos, editor-chefe do jornal, quando o protagonista lhe pergunta sobre Dulce.

– Você lembra dela?


[…] Ele tirou os óculos. Naquele tom monocórdio em que dizia os
poemas, falou:
– E você acha que eu poderia esquecer? Logo ela, Dulce Veiga, a
melhor de todas. A mais elegante, a mais dramática, a mais
misteriosa e abençoada com aquela voz rouca que conseguia dar
forma a qualquer sentimento, desde que fosse profundo. E
doloroso, Dulce cantava a dor de estar vivo e não haver mais
remédio nenhum para isso. E era linda, tão linda. Não só a voz,
mas a maneira como se debruçava sobre o piano com um cálice de
dry-martini na mão, mexia lenta a azeitona e pegava devagar o
microfone com a outra. Não, por favor, não pense nenhuma
vulgaridade. Como se colhesse uma rosa para depositar no altar de
um deus cruel, assim ela pegava o microfone para cantar. Como
quem aceita um dom que implica em outras desventuras, assim ela
cantava. Não havia sexualidade explícita em Dulce Veiga, mas
qualquer coisa como a lamentação da existência da sexualidade.
Tudo que cantava era como se pedisse perdão por ter sentimentos
e desejos. Uma parte dela estava no centro disso, chafurdando no
lodo da paixão. A outra era uma deusa fria, longe de toda essa
lamentável lama do humano buscando prazeres. Aquele rosto
parecia esculpido em mármore branco, tão inatingível… Você pode
achar que estou exagerando, mas todos que a viram um dia, e
houve um tempo em que, embora não fôssemos muitos, éramos
um clube fechado, uma legião, uma seita de fanáticos aos pés de
Dulce Veiga. Nunca houve nenhuma outra como ela, nem vai
haver (p. 48-49).

A forte imagem que é construída sobre Dulce Veiga é a chave para


quase todos os desdobramentos da trama à moda policialesca. A história de vida da
personagem do romance é permeada por diversos conflitos que corroboram sua
função mítica. O jornalista visualiza em Dulce seu passado repleto de esperanças ao
mesmo tempo que se identifica com a face degradada da cantora. Isto é, ambos
queriam “outra coisa”, pois tudo significava “nada além de uma ilusão”. No
entanto, é a lembrança de Dulce e a vontade de descobrir seu paradeiro que

147
conferem um novo sentido na vida do jornalista. A cada nova ‘pista’, ainda que
todas fossem quase sempre muito enigmáticas e desencontradas, o jornalista se
enche de esperança. Dulce que tivera a vida marcada pelo sucesso e pela desilusão
corresponde simbolicamente àquilo que Morin (1977b, p. 109) denomina como “a
crise da felicidade”. Para o sociólogo francês, a crise dos mitos olimpianos decorre
da substituição do arquétipo de felicidade para o da infelicidade. O cinema,
considerado até a década de 60 como o maior produtor de estrelas, que produzia
grandes produções apoiadas nos perfis estereotipados, tanto no que respeita aos
modos de representação quanto à exigência de rostos de beleza ofuscante, passa a
produzir filmes de baixo orçamento cujas personagens já não necessitam ser
“grandes astros”.

Estes filmes rompem com o happy end e se estendem, não mais


sobre o sucesso social e amoroso, mas sobre as dificuldades da vida
social e amorosa. Ao mesmo tempo, o Olimpo dos astros, que se
estendem aos playboys, príncipes e princesas, milionários e heróis da
dolce vita internacional, este Olimpo que não cessou de ser
iluminado por todos os holofotes dos meios de comunicação de
massa, começa também a revelar uma crise de felicidade. São os
tormentos de Elizabeth Taylor, a tentativa de suicídio da
superestrela, imagem feliz da feminilidade erótica em pleno viço,
Marilyn Monroe (1962). […] A crise dos olímpicos desequilibra
todo o edifício ideológico da cultura de massas. Os olímpicos eram
os deuses-modelo que mostravam a via da salvação, e tornam-se a
encarnação vanguardista do mal que mina o individualismo
gozador da civilização moderna (MORIN, 1977b, p. 109-110 –
grifo do autor).

Ainda que a carreira de Dulce Veiga estivesse voltada à música,


mesmo tendo protagonizado filmes, ela é apresentada diversas vezes no romance
segundo o estereótipo de atrizes cinematográficas. As observações de Morin
quanto à degradação da imagem feliz de astros do cinema norte-americano nos
servem para verificar a ambigüidade da personalidade de Dulce. Descrita por
muitos pela beleza e sofisticação, a cantora também fora lembrada pela sua

148
profunda dor, pela falta de certeza diante do mundo e da própria existência. Nesse
sentido, as imagens da cantora que povoam a mente do jornalista e de outros,
como Castilhos e Rafic, por exemplo, a partir de fragmentos da memória de um
passado que combina sucesso e decadência, não correspodem à realidade em que se
encontra Dulce. Mesmo antes da aparição da cantora ao final do romance, o
narrador descobre, ao dinamizar encontros com personagens do círculo de Dulce,
contornos de uma Dulce perdida em sua própria solidão, talvez em busca de uma
identidade que fora apagada pela desumanização da sociedade e pelo sistema
cultural brasileiro, ancorado naquele momento na ditadura militar. Vale lembrar
que Dulce, mesmo casada com Alberto Veiga, envolve-se com o ex-ativista
político, Saul, com quem secretamente tem uma filha, Márcia Felácio. Vejamos
algumas passagens em que o narrador descreve a vida de Dulce antes de seu
desaparecimento.

Quando Dulce Veiga desapareceu, ela e Alberto estavam separados


há quase dois anos, praticamente desde o nascimento de Márcia.
Tinham sido casados durante dez anos, aos quais ele se referia
como ‘os mais felizes da minha vida’. Não revelava os motivos da
separação, mas parecia evidente que, enquanto Alberto desfraldava
cada vez mais sua homossexualidade, Dulce começara a beber, a
tomar drogas, a ter amantes bizarros (p. 130 – grifo do autor).

Lilian serviu, brindou, provei: vodca com suco de laranja, muito


doce. Recomecei a falar. Quando disse o nome de Saul, ela tornou
a encher o copo e com a maior naturalidade, como se todo mundo
soubesse disso, lamentou:
– Foi quem mais sofreu, coitado. Afinal, ele é o pai de Márcia.
Quase pulei do sofá:
– Quer dizer então que Alberto.
– Imagina, meu bem. Eu acompanhei tudo isso bem de perto,
ficamos grávidas na mesma época. Claro que Alberto e Márcia,
aquela mau-caráter, se encarregaram de espalhar outra história.
Devem morrer de vergonha. Alberto, de ser um corno. E Márcia,
uma bastarda. O que aconteceu foi tristíssimo, meu bem. Dulce
deixou Alberto para viver com Saul, que estava metido em mil
complicações políticas. Você sabe, naquele tempo a barra era
pesada. Não é como hoje, comunista virou trouxa. Saul foi preso,
torturado, e quando saiu da prisão, meio louco, Dulce tinha

149
desaparecido e Alberto mandara Márcia para bem longe. Aí ele foi
parar num hospício, durante anos (p. 174).

De certa maneira, estes dois trechos citados acima podem fornecer


uma das facetas que revelam a personalidade de Dulce Veiga. Como vimos com
Morin (1977b), o discurso mítico projetado a partir de personalidades midiáticas
não se liga apenas ao glamour, ao estereótipo da felicidade. Mesmo o medo, os
conflitos e o fracasso expressam simbolicamente uma atitude mítica na medida em
que sugerem as mesmas motivações no narrador e em outras personagens do
romance. Isto se justifica se pensarmos na condição psicopatológica de Saul. O
jornalista, seguindo as pistas que lhe são apontadas, descobre que Márcia Felácio –
filha da cantora – encoberta a loucura de Saul. Este, depois do desaparecimento da
cantora, enlouquece e passa a viver em condições absolutamente precárias em um
quarto sujo de pensão. O resultado da perda em Saul desdobra-se no travestimento
da própria Dulce. Para a diegese, é através do delírio silencioso de Saul que o
narrador, finalmente, descobre o paradeiro de Dulce Veiga ao encontrar na famosa
“poltrona verde” o diário da cantora, levando-o ao seu destino.

O quarto estava destruído. Frangalhos das capas de revistas e


jornais das paredes misturavam-se aos cacos do toca-discos,
espalhados pelo chão. Os vestidos antigos, echarpes, chapéus e
sapatos tinham sido arrancados do guarda-roupa, jogados sobre a
cama de ferro. Embora velha, desbotada, cheia de manchas, a única
coisa relativamente intacta naquela devastação era a poltrona de
veludo verde. Jogado entre os trapos, com um robe de seda puída,
um dragão nas costas, Saul soluçava. […] Estendi a mão, toquei seu
ombro. […] Ele voltou-se. No rosto deformado pela loucura e pelo
sofrimento, apenas os olhos continuavam iguais, castanhos muito
claros. […]
– Saul.
Ele gritou. Não era um grito, mas um grunhido, um ronco sem
forma, como se a dor não encontrasse palavras. […]
– Dulce, Dulce Veiga.
Ele sorriu. Os dentes escuros, manchados de cigarro, roídos de
cáries.
– Onde está Dulce Veiga?

150
Ele tornou a gritar, a gemer sem palavras, não parecia ter medo de
mim. Passei a mão por sua cabeça, os fios muito curtos espetavam
as palmas esfoladas das minhas mãos. Ele parou de arranhar o
ferro da cama, torceu uma ponta do robe. Lembrava um gato
sarnento, escorraçado […] (p. 187-188).

Nesse sentido, vê-se que o narrador concede ao leitor duas imagens


de Dulce Veiga, alternadas em sucesso e decadência, mas que, de toda a maneira,
potencializam a condição do mito. De acordo com Raphael Patai (1974, p. 258),
“os mitos precisam de imagens individuais em que as suas características, aliás
difusas, possam ser concretizadas, personificadas e tornadas tangíveis”.
Curiosamente, o narrador brinca com o poder exercido através da mitificação de
Dulce porque, de um lado, a projeta com personalidade individual semelhante às
performances de ídolos cinematográficos ostensivamente projetados a partir de
padrões que lhes conferem o deslumbramento e a sedução; de outro, reconhece na
cantora uma inclinação ao desespero. Assim, apesar de “pouco popular” (p. 55), o
jornalista ascende sua imagem, evidente nessa passagem em que escolhe uma foto
de Dulce para colocá-la junto à publicação da crônica “Onde andará Dulce Veiga”:

Escolhi: contra um fundo claro infinito, os ombros nus, Dulce


Veiga jogava para trás os cabelos louros, como Rita Hayworth em
Gilda, sorrindo. Mas havia outras – sedutoras, artificiais, sombrias,
extravagantes. […] Quase todas bonitas, mas nem uma com a luz
daquela que eu tinha escolhido. Irracional, decidi que era preciso
de qualquer forma passar uma imagem feliz de Dulce Veiga
(p. 57 – grifo nosso).

No jogo dessas representações, dos simulacros e das imagens


clicherizadas, o desfecho, no romance, dá-se como uma espécie de quebra de
expectativas, uma vez que o presente destoa do passado. Ou, em outra leitura, a
realidade é avessa à ilusão. Dulce Veiga, “a figura da femme fatale, com sua
sexualidade exacerbada e gosto pela destruição” (LIMA TRINDADE, 2006, p. 10

151
– grifo do autor) é encontrada cantando numa churrascaria como uma senhora, de
vida simples, totalmente alheia ao universo artístico.

Dulce Veiga sorriu, afastando da testa os cabelos com muitos fios


brancos entre as mechas louras. Tinha mudado, percebi. Não
apenas pelas rugas nos cantos dos olhos verdes, nem pelos vincos
mais fundos ao lado da boca. Seus maxilares haviam perdido a
dureza, o orgulho, e desaparecera do sorriso de lábios finos aquela
expressão de cinismo, ironia, certa crueldade. Uma mulher de
pouco mais de cinqüenta anos, cara lavada, um vestido amarelo de
algodão, sandálias nos pés pequenos, de unhas sem pintura. Não
era mais bela, tornara-se outra coisa, mais que isso – talvez real (p.
199).

A dessacralização do mito ocorre na narrativa por força da ilusão


perdida, dos desejos não realizados, do aniquilamento de um tempo de esperança.
No diário da cantora encontrado pelo jornalista, onde se pôde descobrir um mapa
que apontava a cidade Estrela do Norte (uma espécie de comunidade alternativa),
Dulce confessa querer “outra coisa”. A estrela dá lugar à mulher em conflito com
sua própria existência num enfrentamento com o cotidiano frio e artificial.

“R. soube que tenho andado com Saul. Disse que vai mandar fazer uma
investigação sobre ele.”
“Não posso romper completamente com R. Saul não compreende. Há coisas, eu
disse. […]”
“R. disse que acionará a toda a imprensa. Que jogarão tomates e ovos podres
no dia da estréia do show, que a crítica dirá que sou ridícula.”
“Recebi outra carta de Deodato, ele diz que a hora que eu quiser, a
comunidade está aberta. Mandou um pouco, provei. É amargo demais. Tive
vontade de ser outra coisa.”
“R. diz que pagou pessoas para me apedrejarem na saída do teatro. Não
suporto mais. Não posso falar nada, só poderia fugir”.
“Quero apenas cantar. Não quero nada disso que vejo em volta, eu quero
encontrar outra coisa”.
“Vou ajudar a preparar a Nova Era. E me esquecer de mim.” (p. 194 –
grifo do autor).

152
De um modo geral, em todo o romance é possível evidenciar um
modelo discursivo apoiado em simbologias. Nesse caso, o “processo mitopoiético”
(ECO, 2003) empregado na construção de Dulce Veiga também se estende a toda a
narrativa através de uma iconografia e analogia que atestam os mesmos valores
simbólicos que são particulares aos mitos. Isto significa que em Onde andará Dulce
Veiga? a necessidade de mitificação responde a uma outra necessidade da
contemporaneidade. Trata-se, na sociedade de massa, como observa Umberto Eco,
da “identificação privada e subjetiva, na origem, entre um objeto, ou uma imagem,
e uma soma de finalidades, ora cônscias ora incônscias, de maneira a realizar-se
uma unidade entre imagens e aspirações” (ECO, 2003, p. 242). CFA tece então, em
meio à polifonia do romance, construções bastante reveladoras que permitem
entrever um vasto repertório de mitologias, muitas vezes, universalmente
conhecidas. É o caso das referências à astrologia, cuja porta-voz é Patricia,
produtora da banda Vaginas Dentadas; aos ícones da religião afro-brasileira com
seus deuses sobrenaturais; às citações do calendário Seicho-No-Ie de Terezinha
sempre com dizeres que remetem a acontecimentos no nível do enredo; às imagens
da mitologia grega (Perseu e Medusa, por exemplo); à simbologia do número sete,
reconhecida pelo próprio autor61; ao ritual do Santo Daime que se liga à
comunidade onde passa a viver a cantora; à metáfora a partir da imagem da
borboleta. Esta última merece algumas considerações, ainda que breves.
Segundo Raphael Patai (1974), a verdade do mito concentra-se na
crença, isto é, é preciso acreditar “na verdade que o mito afirma” (p. 14). Além
disso, são necessárias algumas condições para a perpetuação da narrativa mítica: os
mitos têm que comunicar mensagens que possibilitem a auto-identificação; exigem
repetições; determinam a sensação de satisfação, saciedade de desejos e aumento de
autoconfiança. Dentre estas características, vê-se que, para a ordenação do sentido
e suas significações quanto ao uso da imagem da borboleta, CFA insiste
constantemente na repetição da simbologia da borboleta. Esta representa para a

61
In: ABREU, Caio Fernando. Depoimento (1998).
153
narrativa como um todo a metamorfose do protagonista. Metamorfose esta que
simboliza o próprio ritual de nascimento e morte. Para o jornalista, este “morrer”
significa fazer renascer um outro ‘eu’, transformado, purificado. Muitas são as
passagens que apontam a imagem da borboleta como símbolo de alguma
mensagem oculta. Vejamos: ela aparece tatuada nos seios de Márcia Felácio; é
oferecido ao jornalista por um vendedor ambulante um bilhete do jogo do bicho
que era da borboleta; Castilhos num determinado momento do romance faz gestos
com as mãos que lembram os de uma borboleta.
Os signos ligados ao misticismo ajudam a compor os episódios
fragmentados do romance. Procurar Dulce é uma maneira metafórica de montar o
quebra-cabeça da própria existência do jornalista. Desvendar as pistas e interpretar
os sinais fazem de Onde andará Dulce Veiga? não apenas um romance aparentemente
do tipo B, romance policial, mas um verdadeiro projeto de busca de um centro, de
uma certa unidade, tanto para o desfecho da trama, bem como para o jornalista
“um ideal de vida melhor” (BITTENCOURT, 1995, p. 20).

4.3 AMBIÊNCIA KITSCH E NOIR: UM CONTRAPONTO DO PÓS-MODERNO

Humphrey Bogart em A Relíquia Macabra (Sam Spade, 1941), de John Huston

“Toda essa paisagem de comerciais e motéis, de pistas


de Las Vegas, sessões de fim de noite na TV e filmes

154
hollywoodianos de segunda, da chamada subliteratura,
com suas categorias de horror e aventura em brochuras
de aeroporto, da biografia popular, dos mistérios
policiais e dos romances fantasiosos ou de ficção
científica. [...] Incorporam-nos, a ponto de a linha
divisória entre a arte superior e as formas comerciais
parecer cada vez mais difícil de traçar”
(Jameson)

Quando se pensa em romance noir ou filme noir, tão logo nos


deparamos com um tipo de estética que se aproxima do famoso gênero policial.
Contudo, a ambientação do roman noir é caracterizada pela atmosfera pessimista e
sombria, onde as personagens se debatem contra a violência, com o sexo sem
amor, a miséria, a pobreza, o desespero, a injustiça, ou apenas contra um mundo
que elas não suportam mais. Em contrapartida, o universo proposto pelo kitsch é
bem mais lúdico porque opera na insistência de clichês dispostos ao exagero, ao
excesso de ornamentação, ou simplesmente a um “desvio” de olhar sobre a arte
(DORFLES, 1965). O vulgarmente cafona que imprime a idéia de um gosto
duvidoso passou pela compreensão de alguns teóricos, como discutido no primeiro
capítulo desta dissertação, como caracterização estéril, na maioria dos casos, de um
tipo de orientação comportamental vinculado aos padrões estereotipados do
mundo do consumo de massa. No universo dominado pelo consumo, a polaridade
entre arte erudita e de massa estreitou-se e, assim, o apego a objetos que
demonstrassem uma certa inclinação para o artifício possibilitou, de certo modo,
uma releitura da cultura de massa. Assim, viu-se com o kitsch uma espécie de
transferência de significados inaugurando uma estética marcada pela estilização
afetada. No entanto, sob outro ponto de vista, pode-se afirmar que a estética do
kitsch faz despontar um novo cenário onde é preciso compreender a
potencialização desses novos usos. Isto significa que, de alguma maneira, o kitsch
possui caráter transgressor, mesmo que a serviço da degradação da arte, porque
insiste na idéia de pleitear um certo refinamento, até então conferido às obras
‘genuinamente artísticas’.
155
CFA parece mesmo ter pensado nessas duas possibilidades, o kitsch
e o noir, ao escrever o romance Onde andará Dulce Veiga?. Sob a etiqueta do policial,
o romance é num todo uma grande jogada artística, de primeira qualidade, sem
dúvida alguma, pois recolhe para o enredo a criação de uma trama policialesca,
embora subvertida, lidando com uma variedade imensa de clichês. Se o leitor
quiser, o romance pode ser lido como “Um romance B”, cuja intenção é apenas
desvendar o mistério sobre o desaparecimento de Dulce Veiga. Entretanto, numa
narrativa multivalente como esta, as referências fílmicas, musicais e literárias, entre
outras, não permitem uma leitura descompromissada. A apropriação de vários
gêneros, a maioria deles massivo, reproduz no romance inúmeras possibilidades de
leitura. A alternância das ambiências kitsch e noir que perpassa todo o romance é
mais uma tentativa de inferir o jogo da simulação se pensarmos no resultado
irônico em detrimento de uma possível ambigüidade.
Não se deve esquecer que o romance Onde andará Dulce Veiga? é
uma típica narrativa pós-moderna. E, portanto, seria inviável considerar este
romance sem nos determos em duas questões levantadas por Umberto Eco em Pós-
escrito a O Nome da Rosa (1985) quanto ao ‘assombrado’ termo ‘pós-moderno’. O
que Eco aloca na discussão sobre o termo e seus possíveis significados relaciona-se
às idéias de ironia e divertimento. Dois desdobramentos discursivos absolutamente
pertinentes ao romance que é, esteticamente, a colagem e, ao mesmo tempo, a
bricolagem resultantes de uma incorporação de vários gêneros massivos. Eco
reconhece uma certa negatividade quanto ao uso do termo ter servido “a tudo
aquilo que agrada a quem o usa”. E nos aponta uma definição, ou melhor, uma
opinião que direciona um caminho muito próximo ao que estamos compreendendo
aqui nesta dissertação como pós-moderno. Assim, diz o autor, “o pós-moderno
não é uma tendência que possa ser delimitada cronologicamente, mas uma
categoria espiritual, […] um modo de operar” (ECO, 1985, p. 55). A ironia e o
“agradável” estariam afinados a esse modo de operar do pós-moderno.

156
Ironia, jogo metalingüístico, enunciação elevada ao quadrado.
Portanto, com o moderno, quem não entende não pode aceitá-lo,
ao passo que, com o pós-moderno, é possível até entender o jogo e
levar as coisas a sério. O que constitui a qualidade (o risco) da
ironia. Existe sempre quem tome o discurso irônico como se fosse
sério (ECO, 1985, p. 57-58).

Quando nos vemos diante de um julgamento como este, salta aos


olhos um processo criativo que busca romper com a distância, tanto tempo
sustentada, entre a arte e o divertimento. CFA mostra, então, em Onde andará Dulce
Veiga? a possibilidade de fazer arte, em que pese o fato de instigar o leitor a
participar de um universo paralelo à cultura de massa, sem que os meios de
reconhecimento rápido associados ao divertimento deixem de ser explorados.
Afinal, “povoar os sonhos dos leitores não significa necessariamente consolá-los.
Pode significar obcecá-los” (ECO, 1985, p. 61). Daí a exploração do terreno do
kitsch e do noir. Dois elementos que jogam diretamente com o processo de
ironização. Mas é preciso lembrar, como já dissemos antes, que não há um olhar
distanciado do autor sobre os gêneros da arte de massa. Pode-se falar, talvez, de
uma atitude de dessacralização do erudito como forma de diluir o divórcio entre o
canônico e o periférico. Atitude esta que só vem corroborar um autor
comprometido com seu tempo.
O contraponto entre duas atmosferas distintas esteticamente, como
o kitsch e o noir, oferece ao leitor identificar-se culturalmente com universos
cotidianizados. Dito de outro modo, assim como os mass media produzem novas
instâncias de subjetividades através de um discurso ideológico que acopla
mensagens construtoras de padrões de comportamento, o romance pós-moderno
de caráter multifacetado como Onde andará Dulce Veiga? permite ao leitor o “ver-se”
na história. Ao se perguntar por que os materiais considerados “espúrios,
alienantes, degradados” tornaram-se aceitáveis no contexto latino-americano,
Irlemar Chiampi (1996, p. 83) afirma que uma das explicações relaciona-se ao papel
dessa reciclagem se apresentar “como operação crítica na combinação dos

157
materiais, de modo a selecioná-los de acordo com as conveniências políticas e
éticas pós-modernas”. Fica claro no romance de CFA que tal incorporação,
sobretudo o uso do kitsch, serve a uma análise crítica ironizada no que respeita a
maneira pela qual o homem contemporâneo interpreta e apreende os signos dos
gêneros massivos.
Com relação à apropriação da estética do romance noir, observa-se
na narrativa uma espécie de desdobramento quanto ao uso dos elementos do noir.
Isso porque a narrativa aparentemente obedece ao jogo detetivesco clicherizado
através do desaparecimento de Dulce que suscita interpretações de pistas,
investigação de pessoas, depoimentos desencontrados e enigmáticos; de outro lado,
descrições de espaços apodrecidos, violentados pelo caos urbano. Sabe-se que o
romance policial compreende diferentes categorias, sendo que uma delas é o
chamado romance noir, o qual, recortando diferentes características do gênero
policial, retrata, sobretudo, uma realidade social que põe em cena a violência
urbana, a corrupção, a obscuridade dos espaços marginalizados. Opõe-se, assim, ao
universo lúdico do policial tradicional, apontando um discurso crítico e contestador
da sociedade, onde o detetive, por exemplo, é mergulhado num meio social
determinado.
Nascido nos Estados Unidos, de onde surgiram mestres do gênero
que criaram uma literatura com novas personagens e um novo meio de difusão, o
romance noir empreendeu uma literatura mais distante do padrão do romance
policial tradicional e mais realista tornando-se, assim, uma leitura popular. O
policial noir americano desenvolve-se nos anos 30, logo após a queda da bolsa em
1929, em plena crise sociopolítica marcada pela corrupção. Dessa forma, o
romance se prende ao aspecto social primando pelo testemunho da situação de
uma sociedade em decomposição. Daí uma narrativa que passa a retratar a luta de
gangues, a corrupção e o crime organizado, isto é, uma literatura testemunha de
uma vida que se torna cada vez mais violenta. Por isso, esses romances abandonam
totalmente a idéia de jogo, como no romance enigma, e buscam compreender a

158
violência do homem moderno, importando agora não mais os aspectos
psicológicos e sim os comportamentais. Autores com Dashiell Hammett e
Raymond Chandler tornam-se grandes ícones do gênero por inaugurar uma
narrativa que “é construída no presente, acompanha o correr dos fatos, segue as
investigações, ou seja, se dá no mesmo tempo da ação” (REIMÃO, 2005, p. 11). A
proposta é de uma narrativa cujo discurso é sombrio, de atmosfera obscura. O
detetive, por sua vez, é descaracterizado daquele estereótipo que apresentava um
investigador gentil e confiável. O detetive, no romance noir, tem a consciência de
viver numa sociedade corrompida e marginalizada. Como literatura de massa, estão
presentes no romance noir alguns elementos clicherizados, tais como o detetive
particular (privé), a secretária, os colaboradores, o jornalista e a femme fatale.62 Em
linhas gerais, então, pode-se delinear esse congênere do policial como uma
narrativa que descreve uma sociedade sombria de ambiência envolvente onde uma
certa magia se descobre por meio do aspecto ‘cinza’ e freqüentemente noturno das
ruas da metrópole. Narra-se o mistério, mas, revelando-se sobretudo as
conseqüências perversas de uma desigualdade social. Nota-se que no caso do
romance noir tudo é possível, sem regras, sem codificações.
Em Onde andará Dulce Veiga?, as descrições de ambientes afeitos à
estética do noir são observadas a partir de espaços fechados, absolutamente
claustrofóbicos, e de lugares urbanos sujos de uma metrópole apodrecida. A
ambiência citadina, nesse sentido, é apresentada ao leitor como elemento simbólico
que compõe um cenário sempre em movimento; uma atmosfera fervilhante, cuja
malha humana é tomada por barulhos, luzes, tráfego e buzinas. A cidade, como
espaço sígnico, é efêmera; por trás dos milhares de néons deixa transparecer os
escombros de um espaço em decadência. A imagem da metrópole, no romance,
recorta-se na visão do protagonista não como espetáculo de luzes e vitrines, mas
como espaço de opressão onde os valores e referenciais são todos esgotados. Os
espaços fechados, por sua vez, como representação do enclausuramento do sujeito,

62
Cf: Emerson F. C. Paubel in: O filme “noir”.
159
pasteurizam uma certa podridão onde as vozes ficam reprimidas diante do
gigantismo da metrópole impessoal. É o caso do apartamento do jornalista e do
quarto mofento de Saul.

Era um edifício doente, contaminado, quase terminal. Mas


continuava no mesmo lugar, ainda não tinha desmoronado.
Embora, a julgar pelas rachaduras no concreto, pelas falhas cada
vez mais largas no revestimento de pastilhas de cor indefinida,
como feridas espalhando-se aos poucos sobre a pele, isso fosse
apenas uma questão de meses. Velha e querida espelunca, pensei
com certo carinho, esse tipo de carinho por um cachorro velho,
cego e sarnento, enquanto passava a mão na eterna placa de en
consserto pendurada pelos porteiros nordestinos na porta do
elevador quebrado. Novamente subi pelas escadas meio alagadas,
que sempre me faziam lembrar de um hospital onde nunca estivera.
Um hospital em quarentena, isolado por alguma peste
desconhecida e mortal (p. 37 – grifo do autor).

No trecho acima, o espaço de moradia, de refúgio, de intimidade,


marcado pela degradação, aponta para uma espécie de representação simbólica da
insatisfação e descrença do protagonista. É como se o narrador problematizasse,
através desses traços de decadência, uma subjetividade ancorada em experiências
marcadas pelo sofrimento. O edifício seria, portanto, uma espécie de espelho das
frustrações de um ‘eu’ perplexo diante da falência de ideais e sonhos. Tais
representações sinalizam um olhar sombrio e desacreditado diante da possibilidade
de construção de relações interpessoais, sejam elas afetivas, profissionais ou sociais.
Tal como o prédio em estado de decomposição, a descrição do apartamento do
jornalista remete à imagem do estilo noir pelo favorecimento do espaço pouco
iluminado, guardando simbolicamente o cromatismo em preto e branco típico dos
filmes considerados noir das décadas de 40 e 50. Na verdade, pode-se dizer que a
baixa iluminação, ou mesmo a sobreposição do preto e do branco, reflete, de um
lado, a falta de cor associada à perda de expectativas e, de outro, o reforço do
mistério no plano do enredo. A cenografia que se aproxima do filme noir descrita

160
no romance estabelece uma relação com uma estética trash como aceitação do
precário, do podre, do lixo em detrimento de valores considerados de ‘bom gosto’.
É curioso observar no romance a conjugação do ambiente típico do noir, pela sua
atmosfera sombria, com os resíduos dessa composição meio grotesca, pois, de fato,
a comunicação destes elementos enfatiza o caráter crítico da obra, uma vez que é
aumentado o grau de tensão social.

Até encontrar um táxi, passei por dois anões, um corcunda, três


cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, mais um
enrolado em trapos como leproso, uma negra sangrando, um velho
de muletas, duas gêmeas mongolóides, de braço dado, e tantos
mendigos que não consegui contar. A cenografia eram sacos de lixo
com cheiro doce, moscas esvoaçando, crianças em volta (p. 21).

Na passagem acima, o jornalista dirige-se ao encontro com a banda


de Márcia Felácio para uma entrevista. Todas essas bizarrices vistas no trajeto
ajudam na coerência da montagem cenográfica onde o espaço narrativo, alternado à
cafonice do kitsch, produz uma complexa função metafórica na medida em que a
expressão do corpo, obsessivamente marcada por aberrações e anomalias, é
espacializada e interpelada pela força da repulsa. Neste trecho, especificamente, a
ênfase está na figuração do corpo deformado como local de conflito social. Um
outro momento do romance em que se pode entrever o trash, retratando um
cenário mutilado pela podridão, dá-se por meio da descrição do “cenário” montado
para a gravação e ensaio da banda Vaginas Dentadas. O ambiente degradado e sujo
aqui reflete um tipo de comportamento que prima pela agressividade, pela
subversão cultural, ou seja, uma forma discursiva que vai na contramão dos valores
sociais preestabelecidos no sentido de uma postura revolucionária.

A sala grande estava enevoada pelo gelo seco. Entre nuvens, fui
distinguindo aos poucos alguns homens, ou parte deles. Troncos,
cabeças. Pouco depois, ao fundo, um cenário de papelão pintado
reproduzindo edifícios em ruínas cercadas por enormes latas de
lixo quase do tamanho deles. De dentro delas, brotavam objetos

161
inesperados: uma perna de manequim, um relógio de pêndulo, um
violoncelo partido ao meio, bonecas decepadas, flores de plástico,
lápides, résteas de alho. Salvador Dali em Hollywood, pensei,
cenografando um filme de Christopher Lee (p. 25).

A ambiência tipicamente noir que confirma o tom detetivesco do


romance é apontada algumas vezes para enfatizar a busca do jornalista. De um
lado, o espaço lúgubre reforça o caráter dramático do protagonista, a ambigüidade
de Dulce Veiga (dialeticamente, representação de um modelo ideal de beleza, mas
também de dor e fragilidade), e de figuras marcadas pela exclusão; de outro, este
mesmo espaço aumenta o grau de clichês que se repetem no nível da
ficcionalização da narrativa. Vejamos o momento em que o jornalista encontra-se
com o ex-pianista de Dulce, Pepito Moraes.

A não ser pelo garçom passando devagar um pano sobre o balcão e


o homem de cabelos compridos e grisalhos, debruçado sobre o
piano, o bar estava vazio. O garçom mal olhou para mim, fui
andando entre as mesas enquanto via as costas curvas do pianista e
suas mãos sobre o teclado. Quando ele voltou-se de perfil para
pegar o copo de uísque em cima do piano, reconheci Pepito
Moraes, o pianista de Dulce Veiga. […] Pepito deu um longo gole
no uísque. Além dos vidros, a noite tinha acabado de cair, O asfalto
molhado da Ipiranga era fio de luzes refletidas, invertendo os
edifícios. Alguns casais começaram a encher o bar. Quase todos
homens cinqüentões, bem vestidos, acompanhados por garotas
mais jovens, muito pintadas. As luzes diminuíram no salão […] (p.
64-66).

Lima Trindade (2006) sublinha, a partir de uma pesquisa citada por


Emerson F. C. Paubel, alguns elementos característicos do noir. Seguindo a lista de
Lima Trindade (2006, p. 7), encontramos: “traição/ilusão; a femme fatale; destino;
aliança e lealdades instáveis; perversão/transgressão moral”. Todos estes elementos
estão presentes em Onde andará Dulce Veiga?, e isto, sem dúvida, reflete na
perspectiva de autoreferencialidade. Isto quer dizer que, em linhas gerais, o

162
romance apresenta personagens humanas, identificadas na sociedade. Elas têm uma
psicologia, um estado de espírito, são, de fato, projetadas como “reais”. O leitor,
desse modo, pode encontrar uma personagem com quem se identificar. Estas são
capazes de despertar a emoção e a curiosidade do leitor. Pode-se dizer que o
romance se torna uma espécie de estudo de caso onde o leitor reconhece-se e
conhece-se. Tais personagens são geralmente bem trabalhadas pelo autor de modo
que seus perfis aparecem sempre muito variados. Dulce Veiga e Márcia Felácio
simbolizam a femme fatale, figura que tem os atributos da sedução e destruição;
Alberto Veiga, Saul, Rafic e Pepito Moraes, em certa medida, perpassam o
componente da traição, ressaltado por Lima Trindade, ao mesmo tempo que
podem ser tomados como ‘culpados’ de um suposto crime em função de suas
ligações afetivo-obsessivas com Dulce; e, por fim, o jornalista/protagonista
representando o detetive que, tal como no romance noir, possui certos valores
numa sociedade corrompida. À margem de todos os estereótipos do romance noir,
o que se pode identificar de fato a partir da incorporação dos elementos do noir em
Onde andará Dulce Veiga é a construção de uma narrativa que privilegia detalhes,
utiliza gírias e expressões corriqueiras com o intuito de reforçar uma escritura
precisa da realidade marginalizada, pela qual não perpassa o universo idealizado.
Contudo, o romance, polifônico nos seus discursos, serve de lugar
de apreciação crítica com o ambiente ‘vulgar’ do kitsch. Vestimentas,
comportamentos, descrições de espaços cafonas, tudo se presta à inferência desse
universo estético depauperado. A etiqueta de uma literatura pop, que empresta à
narrativa multiplicidade discursiva e estética, expressa os elementos e produtos
próprios da cultura de massa. É a maneira encontrada pelo autor para retratar um
cotidiano onde, segundo Morin (1977b), “[…] é preciso […] apreciar o cinema,
gostar de introduzir uma moeda na jukebox, divertir-se nos caça-níqueis, seguir as
partidas esportivas, no rádio, na televisão, cantarolar o último sucesso”. Em sentido
amplo, o que o romance de CFA discute está muito próximo aos debates acerca das
práticas artísticas pós-modernas. Já identificamos, no segundo capítulo desta

163
dissertação, alguns aspectos que afloram dessa literatura chamada pós-moderna.
Queremos dizer que o que apreendemos de fato como “literatura pós-moderna” se
liga a uma idéia de pluralidade de códigos que permite uma práxis artística
ideologica e esteticamente positiva na medida em que amplia o espaço discursivo da
narrativa. A incorporação/apropriação de objetos e discursos considerados
alienantes não rebaixa a obra pós-moderna, nem tampouco lhe retira o status
artístico; ao contrário, permite a revitalização dos signos massivos e a identificação
e decodificação destes mesmos elementos por parte do leitor. É nesse sentido que
encaramos o romance Onde andará Dulce Veiga?. A estética do kitsch no romance é
mais um, dentre os códigos massivos, elemento de composição para o processo
criativo de CFA que esboça o perfil de uma prosa polimorfa, iluminando a
capacidade de um texto literário poder gerar outros textos. É, portanto, a riqueza
do encontro entre vários suportes de expressão estética.
A ambientação de mau gosto proporcionada pela estética do kitsch
em Onde andará Dulce Veiga? focaliza um cotidiano clicherizado de onde se podem
entrever imagens portadoras de uma cafonice que expressa o desejo pelo exagero,
pelo excesso de ornamentação. Já falamos das personagens Terezinha O’Connor,
Castilhos e Rafic pelo modo como estas simulam comportamentos e atitudes
próximos a um gosto apurado, quando, na verdade, representam aquela
inadequação com a mesma intensidade que o kitsch reclama para si autenticidade e
originalidade. Acreditamos que uma maneira interessante de evidenciar a estética do
kitsch, segundo o propósito deste subcapítulo, seria trazer à luz a relação que as
personagens mantêm com determinados objetos. Abraham Moles (1975, p. 204)
sublinha que essa relação entre o homem e os objetos diz respeito “não somente à
escolha dos objetos mas também aos próprios comportamentos. O homem Kitsch
seria talvez definido por comportamentos e por série de atos […]”. O autor explica
que, em geral, tal relação se estabelece dialeticamente, uma vez que os produtos
oferecidos pelo mercado para o consumo são fabricados “pelo ser humano e para si
próprio” (p. 199 – grifo do autor). Isso significa que o homem se relaciona com os

164
objetos, no âmbito de uma atitude kitsch, a partir de um processo que os coloca
diante de um “prazer estético” que agrada pela beleza. Diz Moles que “o mundo da
moderna sociedade de consumo é um mundo artificial de objetos fabricados” (p. 155 –
grifo do autor).
No romance, os arquétipos do vulgar potencializam a construção
de estereótipos, sejam eles personagens caricaturizados, comportamentos
identificáveis, repetição de mensagens que apresentam pistas para o
desvendamento do sumiço de Dulce. Com relação aos ambientes projetados sob a
etiqueta do kitsch, podemos recorrer à casa de Rafic.

Na curva da avenida das Magnólias, seria impossível ignorar aquele


número 58 brilhando em néon rosa no começo da noite.
Samambaias verdejantes despencavam em cascatas no jardim
suspenso […]. No alto da escadaria, entre crisântemos impecáveis,
polpudos, amarelos, espiava um anão de cerâmica. Parecia o
Zangado. No meio da orgia das bananeiras, palmeiras nanicas,
espadas de São Jorge e outras folhas agudas, lustrosas, que
pareciam de plástico naquele excesso de esplendor, apareceu de
repente um mordomo. Nada britânico, apesar do uniforme e luvas
brancas […]. Imensa como um navio, a sala era toda branca. Os
tapetes, as paredes, sofás e poltronas, a mesa com tampo de vidro
cheia de prataria baiana. As cores estavam apenas nos quadros
acima dos sofás. Primitivos, tropicais, laranjas e verdes e azuis
berrantes, bandeirolas de são João, ladeiras, igrejinhas no topo de
colinas, selvas com tucanos e araras e bichos e penas
resplandecentes, palmeiras e luas cheias solitárias pairando sobre
marés encapeladas. Tudo isso em torno do que devia ser a peça
principal: em moldura dourada, o retrato de uma mulher loura,
empinada, com uma águia entre as mãos (p. 102-103).

Vemos, portanto, que os artifícios do mundo burguês são


efetivamente articulados na narrativa para compor um cenário over, ridicularizado
pelo narrador. Rafic e Silvinha simbolizam o deslumbramento da classe dos ricos
emergentes aficcionados pelos ornamentos e materiais da indústria do consumo. O
mau gosto se projeta antes pelo modo como essas personagens reagem à inferência
dos produtos da cultura de massa em suas vidas. Curioso observar no romance que,

165
a despeito da decadência do protagonista, o autor possibilita ao leitor através do
próprio protagonista/narrador perceber a vulgarização tanto dos espaços quanto da
atitude das personagens. No episódio em que a esposa de Rafic, a famosa Silvinha
Rafic, aparece na sala, percebemos claramente que o autor coloca em flagrante a
ironia mediante a referência de signos próprios da sociedade de massa.

Silvinha bebericou o uísque dele, depois serviu-se de uma dose de


campari. Franziu o nariz, talvez sentisse meu cheiro, depois
caminhou até o sofá, parou no meio do caminho, apertou uns
botões. Ray Conniff emudeceu, a voz de Simone despencou sobre
a sala. Ela sentou, cruzou as pernas, começou a folhear uma Vogue
estrangeira. Faltava uma cadela poodle tingida de rosa a seus pés. E
os créditos de Dallas subindo sobre a imagem congelada (p. 108 –
grifo do autor).

Nesta passagem, o kitsch reside no modelo estrutural criado por


CFA para tipificar uma geração fortemente marcada pelo consumo de programas
televisivos norte-americanos. Tal como o cinema, as séries americanas da década de
80 serviram um grande imaginário coletivo. Como já apontamos algumas vezes, o
narrador de Onde andará Dulce Veiga? é absolutamente irônico na percepção de
comportamentos das personagens. Além da projeção de ambientes cafonas, o
kitsch pode ser apreendido nesse romance como resultado de um olhar do narrador
que seleciona e reconhece os elementos clicherizados ou subvertidos à banalização.
Isso responde ao que Moles (1975) determina como o princípio de inadequação,
correspondente ao desvio da função de qualquer objeto artístico. Destacam-se,
ainda, para a configuração da estética do kitsch no romance a repetição e
previsibilidade no tocante às mensagens do calendário Seicho-No-Ie ou às
premonições da vizinha mãe-de-santo Jandira. O vasto repertório iconográfico de
santos católicos ou do candomblé também compõe o cenário kitsch da narrativa
multifacetada de CFA. As frases feitas, que buscam sempre apontar ao leitor o
desenrolar da trama, os clichês dos gêneros massivos, que contemplam o

166
imaginário sob o qual estão circunscritas as personagens, reiteram o caráter de
reconhecimento fácil próprio da estética do kitsch.

4.4 “UM ROMANCE B”: COLAGEM E BRICOLAGEM – O KITSCH COMO UM


DESLOCAMENTO DE REVALORIZAÇÃO OU APROPRIAÇÃO CRÍTICA?

“O mundo inteiro é um palco, todos os homens e


mulheres não passam de atores”
(Shakespeare)

“O espetáculo não pode parar”


(Sérgio Sant’Anna)

As discussões sobre o pós-modernismo e, em especial, a respeito da


literatura pós-moderna na contemporaneidade parecem realmente inclinar-se a
contradições de todo tipo, apresentando-se, a maioria delas, tão paradoxais quanto
o próprio termo. Com relação à produção literária contemporânea, o debate
desperta uma série de termos que são consoantes à noção de pluralidade que o pós-
modernismo propõe. Desde a imagem da bricolage e do bricoleur de Lévi-Strauss até
ao pastiche de Jameson e, ainda, à paródia de Hutcheon, temos tido contato
permanente com uma literatura que subverte e contesta (ou articula de modo
diferente) os ensinamentos de uma cultura monolítica, ocidental, branca e
heterossexual – como já discutimos aqui. Todas essas noções correspondentes a
uma tradição cultural perderam sua relevância e credibilidade em face de
posicionamentos que preferem o “entre-lugar” (SANTIAGO, 2000), focalizando,
assim, as diferenças. Se as práticas sócio-culturais localizam-se, no universo da pós-
modernidade, num espaço de transição, no qual há um vácuo da autoridade
cultural, a literatura contemporânea liberta-se das amarras num movimento de
descentralização que permite, sobretudo, evidenciar um discurso multifacetado,

167
significando a quebra de uma estrutura fechada e a valorização de estruturas
abertas, inacabadas (cf: HUTCHEON, 1991; ECO, 1985).
O sentido de bricolagem ancorado em Lévi-Strauss, por exemplo,
assinala um novo arranjo de elementos, uma vez que novos universos nascem de
seus fragmentos. A figura do bricoleur, como um tipo de arranjador faz-tudo pela
abordagem oportunista que lhe permite sobreviver e também afrontar a
instabilidade da pós-modernidade, pode ser vinculada ao autor contemporâneo que,
bombardeado por imagens culturais vindas de todas as direções, trabalha com o
‘reaproveitamento’ de diversos resíduos estéticos na elaboração de uma narrativa
que reclama para si outros olhares. Pode-se dizer, nesse sentido, que a noção pós-
moderna que se tem acerca dessas metanarrativas são como alegorias63 cotidianas.
Isto é, a experiência com a esquizofrenia das imagens pós-modernas acentua uma
forma discursiva que brinca com as mensagens a ponto de o sentido se obscurecer
diante da pluralidade das imagens. Parece, pois, que o original não é mais
precedente sobre a citação, a referência, a colagem/bricolagem e o procedimento
submetido à incorporação de formas e modelos discursivos advindos do seio da
cultura de massa.

Os textos pós-modernos freqüentemente revelam experiência


esquizofrênica da linguagem: as frases são materialidades
significantes pairando livremente, como se os significados tivessem
evaporado. Toda realidade, uma vez descrita é logo descartada.
Esse jogo verbal coloca a materialidade da linguagem em primeiro
plano, gerando implacáveis superfícies descontínuas. Mais do que o
excesso de temas, ou o superávit de interrupções, ou a bifurcação
multiplicadora de unidades composicionais, esse jogo textual de
significantes permite ver a linguagem como a arena do poder
(GUELFI, 1999, p. 120).

O recurso que se sobressai em Onde andará Dulce Veiga? é o caráter

63
De acordo com Craig Owens (1989, p. 204), “a alegoria se verifica cada vez que um texto tem
o seu duplo num outro”. Desse modo, “na estrutura alegórica, um texto é ‘lido através’ de outro,
por muito fragmentária, intermitente ou caótica que possa ser sua relação: o paradigma da obra
alegórica (sendo), pois, o palimpesto”.
168
performático de um discurso que teatraliza outras expressões estéticas onde é
possível observar uma técnica narrativa que aumenta o grau de ironia revelando,
por trás da obra, um autor que consegue domar o estado de confusão da
contemporaneidade. Se falamos em ironia dentro de uma ficção que se apresenta
tão fluída como a pós-moderna, não se pode descartar as marcas da paródia e do
pastiche como elementos cada vez mais sintonizados à literatura contemporânea.
Com o romance de CFA não é diferente. Onde andará Dulce Veiga? é, portanto, um
romance que se esgarça na tentativa de abrigar várias outras vozes, outros
discursos, outras literaturas; através de outros gêneros artísticos, sejam eles
massivos ou não, CFA trabalha o jogo da representação subvertendo a ordem dos
signos, retirando-lhes seus significados ou apenas os deslocando para lhes dar novo
sentido. O romance, então, aparece como uma rede múltipla – símbolo do
empreendimento pós-moderno. Steven Connor (2000, p. 103-104 – grifo do autor)
diz que “[…] os relatos mais aceitos na ficção pós-moderna acentuam a
prevalecência da ‘metaficção’ paródica, ou a exploração pelos textos literários de
sua própria natureza de condição de ficção”. A nossa intenção, ao citarmos a
paródia e o pastiche, não é discorrer sobre as características de cada um, mas
apenas os localizarmos dentro do jogo ficcional elaborado por Caio. Isso porque o
romance se mantém aberto à inserção de formas estéticas de toda ordem e
natureza. Já é comum em textos que discutem o pós-modernismo apontar tais
elementos como típicos da estrutura romanesca pós-moderna. Sem dúvida, os
nomes de Linda Hutcheon e Frederic Jameson destacam-se na projeção dos
debates acerca da produção literária contemporânea que faz uso permanente dessas
técnicas narrativas. Grosso modo, poderíamos ressaltar, a respeito dos conceitos de
paródia e de pastiche, a crescente importância destes como uma espécie de
paradigma de se fazer arte na contemporaneidade. Circunscritos na arte pós-
moderna de modo geral, esses dois conceitos são comumente confundidos pela
proximidade metaficcional. Hutcheon (1989; 1991) que prefere a paródia,
obviamente porque esta se adequa ao seu objeto de análise – a metaficção

169
historiográfica, sublinha que ela “[…] é, pois, na sua irônica ‘transcontextualização’
e inversão, repetição com diferença” (HUTCHEON, 1989, p. 48 – grifo da autora).
Nos limites da paródia situam-se diversos ‘tipos discursivos’, entre eles o pastiche
que, ainda segundo Hutcheon (1989, p. 50) “opera por semelhança e
correspondência”, ou seja, “o pastiche é imitativo”. Na comparação entre os dois,
enfatiza a autora, “a paródia está para o pastiche talvez como a figura de retórica está
para o clichê. No pastiche e no clichê, pode dizer-se que a diferença se reduz à
semelhança” (1989, p. 55 – grifo da autora). Já na acepção de Jameson (1996), a
paródia pode ser melhor identificada na literatura moderna, de modo geral, ao
passo que o pastiche, como procedente das artes visuais, está inserido na cultura da
massa. No âmbito da produção literária, podemos interpretar o conceito de
pastiche de Jameson como a transformação da realidade em imagens, o que afirma
sua condição de simulação e heterogeneidade estilística que conduz à perda do
referente. Seria, portanto, uma imitação esvaziada de sentido. Para exemplificar a
sua noção de pastiche, o autor recorre aos “filmes de nostalgia” que, de alguma
maneira, buscam resgatar as sensações do passado através da recriação de cenários
antigos e estereótipos construídos no imaginário coletivo, perdendo, assim, a
referência com o mundo real.
No universo de Onde andará Dulce Veiga?, a recorrência a filmes,
músicas, textos literários, entre outros, alude à necessidade de resgatar um passado
perdido, retomado apenas pela memória destes referentes já mitificados. A colagem
de múltiplas cenas busca se ordenar por meio da trama policialesca. De fato, a
narrativa filia-se, por assim dizer, muito mais ao recurso da paródia na medida em
que ridiculariza as mesmas formas de construção utilizadas no romance. Dito de
outro modo, os gêneros da arte de massa, e mesmo os suportes dos mass media,
são comumente ironizados pelo autor. Entretanto, é preciso avaliar as apropriações
utilizadas no romance, em linhas gerais, em sentido duplo. Isso porque o olhar
sobre estes gêneros na narrativa não é de todo crítico, se pensarmos no
envolvimento do narrador/protagonista (uma vez que é através dele que o leitor

170
pode reconhecer o potencial crítico) com todo esse universo da cultura de massa e
midiática. Os universos entre cultura de massa, erudita, e mesmo popular, que
poderiam ser postos em paralelo, estão amalgamados no romance como tentativa
de romper fronteiras, acentuando o caráter heterogêneo do discurso pós-moderno.
Ou, sob outra leitura, revelando o enfraquecimento dos limites a partir de uma
hibridação que problematiza as conceituações ou julgamentos quanto à qualidade
estética das expressões da arte de massa.
Preferimos deixar o subtítulo do romance – “Um romance B” –
para este momento final da nossa dissertação por acreditarmos que ele está sujeito à
discussão que pretendemos levantar sobre o deslocamento do kitsch, e todas as
incorporações dos gêneros massivos, como um procedimento estético-estilístico
que revaloriza e ressignifica ou apenas o faz como apropriação crítica. Colocamos
essa questão no fechamento de nossa análise pelo caráter perturbador que ela nos
provoca. Isso porque, optar por uma das respostas seria o mesmo que descartar
possibilidades que o próprio romance oferece. Ou seja, essa operação de incorporar
no romance produtos dos gêneros massivos ocorre como apropriação crítica que
ressignifica e, ao mesmo tempo, revaloriza. Desse modo, a incorporação já é, por si
só, uma postura de revalorização. O exemplo mais significativo, nesse sentido, é a
construção da trama à moda policial, uma espécie de thriller, que, juntamente com o
subtítulo do romance, aponta para a idéia de uma narrativa propensa a supostos
crimes, desvendamentos de mistérios, personagens corrompidas pelo universo da
cultura de massa. Entre outras características, Onde andará Dulce Veiga? Um romance B
é um conjunto de perspectivas de leitura e feitura narrativa, apoiado no enredo
particular do famoso romance noir ou filme noir. O atributo do “romance B” já é,
ele próprio, uma grande ironia quanto à fabricação de modelos cinematográficos
considerados ‘ruins’, de baixa qualidade por conta de uma produção de baixo
orçamento. O próprio Caio (1998) afirmou ter sido enganado pelos revisores do
romance ao publicar o subtítulo grafado em maiúsculo, e apenas na folha de rosto e
não na capa. O atributo em minúsculo era justamente para dar a idéia de deboche.

171
Mas os revisores dão muito problema para a gente. Esse meu
último livro, Dulce Veiga, eu queria um subtítulo assim: um romance
b, tudo em minúsculas, no romance e no b também, a idéia de
filme B, uma coisa tão B que o B deveria ser minúsculo. Não teve
jeito, saiu maiúscula…(ABREU, 1998, p. 86 – grifo do autor).

Nesse sentido, se consideramos o kitsch como um tipo de discurso


massivo que vulgariza o status da obra de arte, privilegiando todos aqueles aspectos
discutidos no preâmbulo do trabalho, tais como o efeitismo, o esteticismo, a cópia
barata de objetos artísticos, e ainda, a reprodução degradada de formas estéticas
exploradas pela arte, vemos tão logo que o método de elaboração do romance
analisado, a partir da apropriação de gêneros e produtos da arte de massa, coloca-se
a serviço de discutir a composição da arte na pós-modernidade. Um processo
criativo que, certamente, utiliza recursos metaficcionais e auto-reflexivos na
tentativa de abrir possibilidades de leitura e transformar o código discursivo em
simulação tanto da realidade quanto da própria condição do fazer artístico. CFA
possibilita ao leitor, isto é, a nós, ser uma espécie de co-narrador de uma trama que
constrói a realidade através da escrita. A realidade do leitor passa a ser a realidade
da ficção. Usando vários signos da cultura de massa, o romance promove a
identificação do leitor com um universo que lhe é conhecido. Fazemos parte, então,
do espetáculo, do processo de teatralização de imagens que simula roteiros
cinematográficos, onde podemos nos tornar espectador e personagem ao mesmo
tempo. Tudo é espetacularizado; tudo é simulação. O enredo finge ser gênero
policial, personagens fingem e desejam ser outras personagens, o espaço narrativo é
constantemente desnaturalizado; é o jogo das aparências, a simulação do ser e do
parecer. Híbrido, impuro, Onde andará Dulce Veiga? Um romance B mitifica e
desmitifica, constrói e desconstrói, cria ilusões e as desfaz. Através de diversos
níveis discursivos, o romance trabalha na abordagem de uma prosa que subverte e,
ao mesmo tempo, reinventa a própria literatura.
Quanto ao uso do kitsch, esse montar/desmontar da linguagem,
pelos mecanismos automáticos da repetição, da subversão dos gêneros, do tom
172
irônico da paródia, do jogo dos simulacros, privilegia constantes ficcionais sobre as
quais são arquitetadas reflexões críticas no sentido de evidenciar o cotidiano
reificado pela indústria cultural. CFA, nesse sentido, supera os próprios limites da
estética do kitsch, pois a revela, em alguns momentos do romance, a partir da
problematização da cultura erudita. A tendência de vulgarizar e deformar através da
prevalência da produção do efeito, provocando, assim, uma atitude cafona, também
é deslocada de seu contexto. Isso significa dizer que o kitsch é apresentado de
forma ‘intacta’ e ‘subvertida’. Afinal, o gosto pelo artificial não é apenas
característico, no conjunto da narrativa, daquelas personagens imersas no universo
da cultura de massa. Em geral, o narrador ironiza o mau gosto das atitudes e
escolhas de personagens que mitificam o cotidiano de estrelas do cinema, da
música, da tecnologia dos meios de comunicação de massa, das revistas femininas,
do misticismo, das drogas. No entanto, podemos comprovar a subversão do olhar
sobre o kitsch pela inferência da personagem Filemon na história. Caio sublinha
que esta personagem foi escolhida ao acaso na composição do romance. Aliás, o
livro já estava praticamente ‘fechado’ quando Filemon surgiu na imaginação do
autor.

[…] de repente apareceu uma personagem que eu não havia


previsto, um rapaz, um jornalista meio metido a pós-moderno, com
cabelo arrepiado de gel, vestido de preto. Não tinha planejado esse
rapaz, ele apareceu com um discurso louco. Aí eu pensei: preciso
de um nome para esse cara. Estendi a mão e peguei Memórias,
Sonhos e Reflexões do Jung, abri ao acaso, levei o dedo (eu faço muito
isso), e tinha um nome ali, Filemon, uma entidade altamente
profana que Jung via de vez em quando. Batizei meu personagem
de Filemon e decidi que ele tinha um pai que era terapeuta
junguiano, por isso o havia batizado de Filemon (ABREU, 1998, p.
81-82).

Abordamos a figura de Filemon porque esta personagem legitima a


ironia do autor quanto ao papel do intelectual na contemporaneidade e, sobretudo,
à apropriação de um discurso literário canônico.

173
Todo vestido de preto, cabelos eriçados de gel no alto da cabeça,
raspados em volta das orelhas, uma cruz também de prata
pendurada na orelha esquerda, muito pálido, era o rapaz que eu já
vira na redação. Não era uma palidez doentia, dessas de gente que,
por medo da luz, qualquer espécie de luz, recusava-se a ver o sol,
nem tinha aquele tom macilento dos intelectuais que bebem até
tarde da noite. Era uma palidez sofisticada, aristocrática, como
quem viveu muito tempo na Europa e achasse vulgar uma pele
bronzeada, uma camisa florida ou qualquer outra cor além do preto
e do branco da pele.
– Meu nome é Filemon – ele disse. – Desculpe interromper, mas
eu li o seu livro. Não lembro direito o título. Visões, qualquer coisa
assim.
– Miragens – corrigi. […]
– Belo título. Bastante simbolista, não? […]
– Nada contra o final do século XIX, ainda mais agora, no final do
século XX. Afinal, as questões básicas e o desamparo humano
continuam e continuarão os mesmos de sempre.
Era pedante demais. […] Ele parecia ter decorado o texto, soava
inteiramente deslocado ali, no ar azedo do bar do jornal, em frente
àqueles vidros redondos atulhados de ovos de cascas azuis, às
travessas de peixe frito, coxinhas, empadas, cheiro de cebola e
presunto gordo (p. 58-59).

Relembrando as observações de Eco (1993), não podemos esquecer


que o kitsch é “algo que se localiza fora do lugar”. Tem-se nesse trecho não apenas
a inversão do kitsch do seu contexto massivo, bem como a inadequação de postura
de Filemon. O pedantismo próprio ao kitsch, que pretende se localizar no nível da
arte, é característico desta personagem. O ambiente degradado do bar contrasta
diretamente com as colocações crítico-literárias da personagem que, de alguma
forma, se mostra tão afeito à ascensão social (nesse caso, a pretensão de se
posicionar como um intelectual) quanto as outras personagens do romance. O
autor também subverte a unidade do espaço, tônica para a inadequação do
comportamento prepotente de Filemon.
O deslocamento do kitsch em Onde andará Dulce Veiga? partilha das
duas possibilidades as quais questionamos. Com efeito, o mecanismo de subversão
de valores, de expectativas, de formas estéticas, dos gêneros narrativos, gera no

174
romance certa ambigüidade inerente aos textos pós-modernos. Entretanto, é
preciso ressaltar que o texto de CFA, mesclando gêneros e discursos, consegue
mostrar em que medida a narrativa pode construir novas possibilidades estético-
literárias; até que ponto, através do texto narrativo, a ficção e a realidade podem se
imbricar. Isso equivale ao papel da ressignificação estética permitindo evidenciar
um processo criativo sobre o qual a literatura se mantém viva, porque nos mostra
criticamente a natureza dos gêneros massivos, dos materiais degradados,
clicherizados e ‘alienantes’ como fisionomias da pós-modernidade. Parece-nos,
pois, que a aposta de uma narrativa híbrida, polifônica, plural, enfim, múltipla não
descaracterizou o status da obra de arte. Ao contrário, abriu-nos portas para novas
perspectivas de apreensão do texto literário.

175
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como em todo trabalho acadêmico científico, o pesquisador parte


de um objeto, um corpus de análise, sobre o qual se ancora uma temática a ser
discutida na tentativa de sanar algumas inquietações ou, sob outro aspecto,
constatar uma percepção já existente a respeito de determinada obra e determinado
autor – para os trabalhos que se voltam à análise literária. A despeito das
obviedades destas considerações, de alguma maneira, é importante para nós
percorrer o trajeto do nosso trabalho. Não apenas porque ele nos veio como uma
inquietação mesmo a respeito da produção literária de CFA, bem como o modo
pelo qual as produções contemporâneas, em geral, promovem um tipo de literatura
híbrida, multifacetada, polifônica, plural, a partir do entrecruzamento de diferentes
campos de produção cultural. Entendemos que as obras pós-modernas, e dentro
desse conjunto insere-se o romance Onde andará Dulce Veiga? Um romance B, ao
trabalharem com o reaproveitamento/incorporação/apropriação (criticamente ou
não) dos elementos que compõem os gêneros massivos, ‘criaram’ um novo tipo de
composição artística e estilística, abrindo para o leitor vários níveis de
possibilidades de apreensão do objeto literário. A inventividade do autor, tão
questionada na pós-modernidade, mostrou-se, ao nosso ver, tão complexa quanto
aquela que, nas obras modernas, de vanguarda, foi motivo de estranhamento, uma
vez que a intenção era, de fato, causar o choque, o espanto. Essa complexidade da
qual falamos, e que inicialmente nos veio como inquietação (no sentido de desejar
explorá-la), ocorre na contramão do processo de estranhamento das produções
estéticas – seja na pintura ou na literatura – modernas. A palavra de ordem na
literatura contemporânea, ao que parece, é a auto-identificação. E ela desdobra-se
em vários outros termos que, sob a etiqueta do assombrado pós-modernismo,
conferem a estética da hibridação. Metaficcionalidade, intertextualidade,
bricolagem, reciclagem, paródia, pastiche, entre outros, constituem um corpo
semântico bastante significativo para refletirmos sobre a condição de se fazer arte
176
na contemporaneidade. Por isso, quando usamos a expressão “complexidade” para
a literatura pós-moderna estamos querendo, propositalmente, pôr em relevo um
tipo de criação artística que faz uso de ‘técnicas’ narrativas/discursivas no qual se
observa uma literatura repleta de justaposição de fragmentos, acoplada de imagens
e linguagens cinematográficas, jornalísticas, literárias, televisivas, radiofônicas e
publicitárias.
Na leitura de Onde andará Dulce Veiga?, acabamos por nos deparar
com uma rede enorme de signicados, cujos códigos embricavam-se a cada frase.
Advindos de muitas direções, os fragmentos que se alinhavam no romance
exerciam a quebra definitiva da fronteira que separava o maior e o menor, o erudito
do massivo. Desdobra-se, então, sobre o próprio texto uma representação
contracenada com discursos clicherizados da cultura de massa, cujo significado se
alternava entre o esvaziamento de sentido e a plurissignificação. Simulando
realidades ficcionais, fantasia, sonho, delírio e um hiper-realismo, o romance nos
apresentava um discurso crítico entremeado à espetacularização da trama. Como
narrativa multivalente, os artifícios modelares da cultura de massa, da sociedade do
consumo, enfim, do universo contemporâneo, ao invés de denunciarem o desgaste
da representação, iluminava uma escrita que complexificava o papel da arte na pós-
modernidade. Diante da agilidade discursiva, um elemento expressivo da cultura de
massa nos chamou a atenção pelo modo com que freqüentou a narrativa. O kitsch
estava ali. Contrastando com citações e referência da alta cultura, o kitsch brilhava
em personagens, intrigas, conflitos, ambientes, em linguagem discursiva. Eis que os
produtos massivos assinalavam a marca avassaladora da estética do kitsch.
A partir daí, tivemos um caminho tortuoso, não menos prazeroso
obviamente, ao pensar numa maneira que pudesse viabilizar a nossa escolha
temática sobre o objeto a ser analisado. A inferência, e mesmo a intersecção, de
gêneros considerados alienantes, “espúrios”, como diria Irlemar Chiampi (1996),
eram bastante claras, e sobre elas poderíamos desassombradamente discorrer. E a
respeito do kitsch? De fato, esta questão nos perturbou, uma vez que o kitsch

177
parecia estar meio esquecido do universo crítico-literário, além do fato de este
freqüentar com muito mais afinco outras áreas de estudos e culturais, como as artes
plásticas, o design e a arquitetura. Contudo, aceitamos o desafio e partimos ao
levantamento bibliográfico. Para a nossa surpresa, a estética do ‘mau gosto’ nos
chegou como um leque de possibilidades de leitura. Isso significa dizer que, ao
contrário do que pensamos no início, o kitsch apresentava, feliz ou infelizmente,
muito mais do que o imperativo da cafonice. Foi preciso verificar seu contexto
histórico-cultural ao lado das mudanças pelas quais passaram as artes, sobretudo no
século XX. Ancorada num elenco teórico que versava sobre o kitsch, só assim a
nossa pesquisa pôde estabelecer ligações com o romance de CFA, já que as
posições teórico-críticas nos apontavam direções quanto à natureza dessa estética.
Apresentamos um perfil da produção literária brasileira
contemporânea, baseado nas décadas de 70, 80 e 90. Não foi difícil perceber a
qualidade estética de uma literatura que, embora trabalhasse com a articulação de
vários elementos massivos, manteve potencial crítico, técnicas narrativas
absolutamente sofisticadas com a mescla de linguagens discursivas, e, sobretudo,
uma literatura que proporcionou ao leitor uma participação ativa. Vimos que a
literatura dos 70, por exemplo, esteve a serviço dos escritores para testemunhar um
contexto sócio-político de um país marginalizado pela opressão da ditadutra militar.
Firmaram-se, nesse caso, obras que mantinham compromisso literário em
apresentar a violência do período marcado pela censura de toda ordem. Muitos dos
textos de CFA, sobretudo os contos, denunciaram os efeitos do golpe militar.
Outros autores, como Fernando Gabeira, Ignácio de Loyola Brandão e Rubem
Fonseca, ao lado de CFA, refletiram as vozes de indivíduos que amargaram o exílio,
a repressão cultural, reproduzindo a frustração dos sonhos e desejos de uma
juventude obscurecida pela realidade opaca e violenta do regime militar. Violência
representada, muitas vezes, pela impossibilidade de soltar a voz, de não poder
decidir sobre suas próprias preferências. De outro lado, a ficção dos 80 e que se
estende à década de 90, ainda que com algumas diferenças, passou a adotar uma

178
linguagem “mais aberta ao mundo e ao tempo” (BARBIERI, 2003, p. 44). A
tentação por agregar novas formas estéticas e estilísticas passou a perseguir os
escritores contemporâneos, principalmente aquelas que vinham do cenário da
cultura de massa. Curiosamente, essa atração pelos produtos massivos não
conseguiu descaracterizar a qualidade expressiva de muitos autores que
transformaram esta atração em incorporação. Viu-se que, de modo geral, o espaço
urbano das metrópoles, ao mesmo tempo, apodrecido e sedutor, agudizou-se
sucumbindo o rural. Os discursos periféricos, com temáticas voltadas à condição
do feminino, do homossexual, do negro, entre outros, também se fizeram mais
presentes. A sexualidade, a questão do corpo em evidência, como apontamos,
passou a ser mais explorada, retirando o peso de vulgarização ou, sob outro ponto-
de-vista, os (pre)conceitos e tabus até então vigentes. A problematização da
literatura e o papel do intelectual estiveram articulados com os processos culturais
de uma sociedade consumista. Sem dúvida alguma, o aspecto que mais se
sobressaiu, na avaliação das produções literárias destes períodos, foi a fragmentação
da identidade do sujeito em meio à confusão e instabilidade da pós-modernidade. A
forte presença das imagens pode ser inserida dentro dessa projeção mais
significativa. Os mass media ofereceram, então, a propagação intensa de imagens
que favoreceu à representação dos recursos do simulacro. O televisivo, o
cinematográfico, o teatral, explorados no espaço discursivo, inauguraram uma
literatura propensa à multiplicação. Cresceu a importância das citações, das
referências, dos clichês, da linguagem chula, das obviedades. Tudo isso apontou
para uma literatura que traduziu fortemente os desdobramentos do
contemporâneo. Diante desse fato, propusemos uma breve discussão sobre pós-
modernismo/pós-modernidade. Com as leituras que fizemos, percebemos que,
como já apontamos neste trabalho, o debate acerca da contemporaneidade, com
discussões girando em torno do pós-modernismo/pós-modernidade, apontavam
caminhos distintos para a compreensão de termos que alocam num único espaço
expressões como incredulidade, perda de referenciais, multiplicidade, pluralidade,

179
paradoxos, incertezas, falência de um modelo identitário, queda das grandes
narrativas, heterogeneidade, culturas ao invés de Cultura. Mediante olhares
positivos ou negativos, os teóricos da cultura contemporânea apresentam um
pensamento comum com relação à diluição de categorias hegemônicas e universais.
Os sintomas da pós-modernidade são expressos na literatura brasileira
contemporânea de modo que a ficção se torne cada vez mais mediada pelos signos
dos mass media. Isso porque, vimos que a cultura de massa desdobrou-se numa
heterogeneidade a partir da sintaxe da chamada Era da imagem.
Avaliando a poética de CFA no terceiro capítulo, deparamo-nos
com uma escrita esquizofrênica que se revelou, sobretudo, como problematização
em vários níveis e contextos. Rompendo diversas vezes com uma estrutura linear,
CFA reproduziu uma linguagem permeada de sensações, alucinações, e
subjetividades que representa, antes de mais nada, a necessidade real de expurgar
experiências pessoais, afetivas, sexuais. Isso não significa dizer que a obra de Caio
seja necessariamente, ou somente, autobiográfica. Aliás, o projeto literário do autor
é comumente confundido com sua trajetória pessoal. Quando escolhemos trabalhar
com a obra de CFA sentimos a escassez de uma fortuna crítica, especialmente em
livros, a respeito da literatura do autor que publicou mais de dez livros ao longo de
26 anos de escrita. De modo geral, os textos críticos sobre a literatura do autor
estão dispostos em materiais diversos, tais como jornais, artigos em antologias
críticas, publicações em periódicos, e trabalhos acadêmicos (nem sempre de fácil
acesso). Uma outra inquietação nossa, e que tem muito a ver com a nossa opção
pelo romance Onde andará Dulce Veiga?, e mais ainda, com a escolha da temática, foi
observar nos textos críticos aos quais tivemos acesso uma certa recorrência de
temáticas na avaliação do objeto literário. Isto é, grande parte das pesquisas se
mostrou ancorada nas temáticas da identidade, sexualidade, do processo
testemunhal de uma geração massacrada pela ditadura, do homoerotismo, do
universo urbano caótico, e mesmo a violência. É preciso ressaltar que muitos destes
trabalhos comentaram o uso do procedimento intertextual e metaficcional do

180
autor. Nesse sentido, pelo menos sobre o material utilizado por nós, incomodou-
nos, em certa medida, a ausência de uma avaliação que pudesse desnudar a
confluência da escritura literária com a reprodução de discursos, linguagens, e
imagens advindos do contexto da cultura de massa. A exploração que fizemos do
kitsch no romance parte desse incômodo, mas, principalmente, pelo caráter
desafiador de despertar um tipo de estética um tanto esquecida pela literatura e pela
crítica literária. É claro que todas essas temáticas, balizes de muitos trabalhos
críticos, são absolutamente relevantes em se tratando da paisagem literária da obra
de CFA. Além disso, a plasticidade estética, a qualidade narrativa e o envolvimento
com sensações ambivalentes (loucura, sanidade, realidade, fantasia, esperança e
desespero, euforia e melancolia, isolamento e coletividade) apontam para um autor,
cuja produção é de extrema qualidade. Como tínhamos a intenção, ainda que
modesta, de mostrar o lado B de Caio, optamos neste terceiro capítulo por avaliar
rapidamente três contos que revelavam matizes novos se os contrapusermos aos
contos que têm exploração de temas mais “pesados”, como disse o próprio autor.
De alguma maneira, estes três contos, em particular “Mel & Girassóis”, de Os
dragões não conhecem o paraíso (1988), podem ser entendidos como embrião para o
romance Onde andará Dulce Veiga?.
O nosso último capítulo se ocupou da análise do romance, levando
em conta os aspectos mais significativos para marcar a apropriação do kitsch. Já
comentamos no início deste fechamento do trabalho a respeito da condição
multidiscursiva do romance. Nesse sentido, daremos seqüência ao trajeto da
dissertação. Subdividimos este último capítulo em 4 subcapítulos, abordando as
marcas da linguagem cinematográfica e a construção da intriga à moda detetivesca;
a criação da personagem Dulce Veiga como um mito da cultura de massa; o
contraste das ambiências kitsch e noir como característica de uma ficção pós-
moderna; e, finalmente, a inferência do kitsch como um deslocamento de
revalorização ou apropriação crítica do autor. Deixamos essa questão sobre a
introdução da estética do kitsch para finalizar nossa análise porque, certamente, ela

181
responderia nossa tese inicial, ainda pouco amadurecida, a respeito da obra pós-
moderna, sendo plural e propensa a diversos níveis de interpretações e leituras,
poder proceder com essas incorporações, reaproveitamentos e reciclagens estéticas,
ideologica ou criticamente, num movimento duplo. Ou seja, buscar na arte de
massa gêneros comumente associados ao entretenimento, como é o caso do
romance policial, pode tanto representar um movimento de revalorização como
apreensão crítica. O texto parodístico de CFA não descarta nenhuma dessas
possibilidades. Ao contrário, dialoga com o leitor através da inferência de
elementos da cultura erudita, por meio de citações e referência à literatura ‘culta’,
bem como através de materiais e linguagens discursivas familiares. O processo de
identificação que satisfaz o gosto pelo massivo entrecruza-se com o universo da
alta cultura. Na verdade, essa separação, esse paralelismo entre as culturas, perdeu-
se ao longo da trama. É mais pertinente falarmos em hibridização dessas categorias.
Nesse sentido, podemos concluir que o romance Onde andará Dulce Veiga? é uma
espécie de gênero em mutação, privilegiando reflexões que apontam para os limites
da arte e da não-arte. Ou, dito de outro modo, questionando tanto a validade
estética das formas tidas como ‘originais’ e daquelas que falseiam outros objetos.
CFA, de fato, coloca aos leitores, médios ou não, a reflexão sobre o status da obra
de arte contemporânea. Só isso já revela um autor preocupado em construir uma
outra trajetória para a história da literatura, sem medos e preconceitos que possam
despertar julgamentos febris. Nesse sentido, o romance é a ilustração da
contemporaneidade, estampando as manifestações da cultura de massa, onde o
kitsch, segundo a nossa leitura, é um elemento a mais para colorir a narrativa.

182
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