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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


DO RIO DE JANEIRO

Bárbara Cecília Kreischer

“O caso triste e digno de memória que


do sepulcro os homens desenterra”:
(Re) Leituras de Inês de Castro na Contemporaneidade

Orientador:
Alexandre Montaury Baptista Coutinho

Rio de Janeiro
Abril/2015
2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA


DO RIO DE JANEIRO

Bárbara Cecília Kreischer

“O caso triste e digno de memória que


do sepulcro os homens desenterra”:
(Re) Leituras de Inês de Castro na Contemporaneidade

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade da PUC-Rio como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras.

Orientador:
Alexandre Montaury Baptista Coutinho

Rio de Janeiro
Abril/2015
3

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

Bárbara Cecília Kreischer

“O caso triste e digno de memória que do sepulcro os homens


desenterra”
(re) Leituras de Inês de Castro na Contemporaneidade

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do grau de Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em
Literatura, Cultura e Contemporaneidade
da PUC-Rio.

Prof. Dr. Alexandre Montaury Baptista Coutinho


Orientador
Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade-
PUC-Rio

Prof. Drª Lara Leal Nogueira da Silva Leal


Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade-
PUC-Rio

Prof. Dr. Luis Maffei


Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro, 14 de abril de 2015.


4

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução


total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, da autora e do orientador.

Bárbara Cecília Kreischer

Cursou a Graduação em Letras, ocasião em que se


licenciou em Língua Portuguesa e Literatura pela
Universidade Católica de Petrópolis, em 2011. Desde
então, tem participado de eventos na área de Literatura
Medieval, Clássica e Contemporânea, quando divulga
resultados parciais de suas pesquisas sobre a figura de
Inês de Castro na Literatura Portuguesa. Ingressou na no
mestrado do Programa de Pós-Graduação em Literatura,
Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, em 2013.

Ficha catalográfica
5

Aos meus pais Valmir e Sonia, que incessantemente


estimularam minha curiosidade.
6

Agradecimentos

A Deus, que me tem guiado pelos caminhos que almejo desde a graduação.
Ao meu orientador prof. Dr. Alexandre Montaury, e à prof.ª Drª Mariana
Custódio, pela orientação e direcionamentos a mim concedidos.
Aos professores que compõem a banca examinadora, prof. Drª. Lara Leal e prof.
Dr. Luis Maffei. Agradeço a presença, certa de que críticas e sugestões serão bem-
vindas para o aprimoramento do trabalho.
À CAPES, entidade importante no auxílio financeiro. À PUC-Rio, que contribuiu
significativamente para minha formação intelectual. Aos professores e os funcionários
do departamento pela prontidão e atenção.
Aos meus pais Valmir e Sonia, que pela formação humana me incentivaram a
escolher o caminho que desde cedo amei. Aos meus irmãos Débora e Erick pela
paciência e companheirismo. À minha avó Iza, tem me estimulado há 28 anos, ensinado
a não temer os percalços e os caminhos da vida.
Aos meus tios Altair Kreischer e Luiz Carlos Kreischer, pelos infinitos carinho e
estímulo.
À professora Albertina Cunha, que desde a graduação acreditou no meu trabalho,
lapidando as necessidades que, cedo, eu era incapaz de enxergar.
Às amigas Ana Carolina Carius e Célia Cristina do Amaral, que contribuíram não
só com minha estadia no RJ nos dias de aula e o transporte no primeiro ano, mas, pela
amizade e incentivo. Às amigas Angélica Gomes, Mayara Marques e Thais Gomes, que
presenciaram minhas dificuldades e acreditaram em mim, incentivando. A todos os
meus amigos, muito obrigada.
Ao grande amigo Jeferson Alves Masson e colega de curso. Os diálogos sobre
literatura e vida fizeram brotar uma amizade incrível. Aos colegas de curso Leonardo
Carvalho e Suellen Ferreira pelo companheirismo, algumas vezes, raro na academia.
Em especial aos meus colegas e grandes amigos da paixão pela literatura
portuguesa: prof. Ms. Francisco de Souza Gonçalves e prof. Ms. José Carlos de Lima
Neto, que me apresentaram a vida acadêmica. Sem o incentivo de vocês, certamente eu
não teria despertado para a pesquisa, que hoje é minha maior prioridade. Meus irmãos,
muito obrigada.
7

Por fim, agradeço aos muitos que me desmotivam, pois servem ao propósito que
menos esperam: incentivo para que o cansaço nunca me abata. Pelo contrário, fomenta
em mim a sede de alçar voos mais altos.
8

Resumo

KREISCHER, Bárbara Cecília. O caso triste e digno de memória que do


sepulcro os homens desenterra”: (re) leituras de Inês de Castro na
Contemporaneidade. Rio de Janeiro, 2015, 84 p. Dissertação de Mestrado-
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta dissertação consiste na seleção, leitura e análise comparativa das figurações


de Inês de Castro na produção literária portuguesa. A proposta se fundamenta no estudo
de textos que consagraram a personagem no cenário da tradição portuguesa – séculos
XIV, XV e XVI – e na ficção produzida a partir de1960. Afirma-se que há uma ruptura
com os textos tradicionais e, ao mesmo tempo, uma retomada da tradição literária. À
medida que a narrativa contemporânea se debruça sobre aspectos consagrados acerca da
personagem, também proporciona novas leituras da mesma, abrindo uma gama de
possibilidades narrativas a partir da apresentação da personagem analisada.

Palavras-chave
Inês de Castro – Literatura Portuguesa – Tradição e Ruptura – Memória e
Contemporaneidade.
9

ABSTRACT

KREISCHER, Bárbara Cecília. (Advisor) “O caso triste e digno de


memória que do sepulcro os homens desenterra”: Inês de Castro's
reinterpretations in Contemporanity. Rio de Janeiro, 1999. 84p. MSc.
Dissertation - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.

This dissertation consists of selecting, reading and comparative analysis of Inês de


Castro figurations in the Portuguese literary production. The proposal is based on the
study of texts devoted to character on the scene of Portuguese tradition - centuries XIV,
XV and XVI - and fiction produced from the sixties. It is argued that there is a break
with traditional texts and at the same time, a resumption of the literary tradition. As the
contemporary narrative focuses on embodied aspects about the character, it also offers
new readings of it, opening a range of narrative possibilities based on the presentation
of the analyzed character.

Keywords
Inês de Castro – Portuguese Literature - Tradition and rupture – Memory and
Contemporaneity
10

Sumário

Introdução 12

1. Formulações teóricas 14
1.1 Em defesa da literatura enquanto campo do saber 14
1.2 Considerações acerca da contemporaneidade literária 19
1.3 Sobre a noção de obra literária clássica 20
1.4 Sobre o julgamento de valor da obra literária 22
1.5 O lugar da obra clássica na contemporaneidade: reformulações 25
entre erudito e popular

2. Inês de Castro: da história à literatura 28


2.1 O reinado de D. Afonso IV: Inês de Castro histórica 28
2.2 A genealogia de Inês de Castro e os conflitos decorrentes 29
2.3 A morte de Inês de Castro e a legitimidade da união com D. Pedro 30
2.4 O reinado de D. Pedro e a trasladação: a cerimônia que inspirou 32
lendário e literatura
2.5 Considerações sobre o estabelecimento do episódio histórico para 34
o lírico e a sua consagração no classicismo português
2.5.1 A Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes: o primeiro registro de 35
Inês de Castro
2.5.2 Trovas à morte de Inês de Castro: breve análise do monólogo 42
palaciano
2.5.3 A Castro, de Antonio Ferreira: o drama do eterno desencontro 45
2.5.4 O episódio de Inês de Castro n’Os Lusíadas, de Camões: entre 48
Eros e Tanatos

3. Inês de Castro hoje 55


3.1 Diálogos contemporâneos e os lugares da tradição 55
3.1.1 O surreal como artifício ficcional: Teorema, de Herberto Helder 56
3.1.2 Adivinhas de Pedro e Inês: quando adjetivações inesianas 62
rompem com a tradição
3.1.3 Inês retorna ao centro narrativo: Minha Querida Inês, de 68
Margarida Rebelo Pinto e o decalque agustiniano
3.2 Inês de Castro como personagem da cultura de massa 75

4. Conclusão 79

Referências bibliográficas 81
11

D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta-se do casulo


carnal, transforma-se em luz, em labaredas, em nascente viva.
Entra nas vozes, nos lugares. Nada é tão incorruptível como a
sua morte. Herberto Helder
12

INTRODUÇÃO

Esta dissertação se propôs a analisar as figurações literárias de Inês de Castro na


contemporaneidade, a partir da análise da literatura portuguesa medieval e clássica do
tema. Como justificativas teóricas levantam-se aspectos ligados à importância de se
tratar temas clássicos na escola, como uma iniciação à compreensão da literatura e
cultura ocidental contemporâneas. Buscou-se um contraponto entre os critérios de
cânone e questionamentos sobre tal noção, dadas as ressignificações que temas
tradicionais ganham em expressões literárias contemporâneas.
Dadas tais justificativas, é importante a análise da literatura que primeiro
mencionou Inês de Castro, a Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes, texto do século
XIV que abriu espaço para a representação do episódio e que, apesar de não dar enfoque
à Inês, foi o ponto de partida para a inserção da personagem do cenário literário
português. Inês passa a personagem lírica da poesia palaciana: sob a organização de
Garcia de Resende, o Cancioneiro geral, publicado em 1516, conta com Trovas à morte
de Inês de Castro, que de mera personagem histórica, agora é criação literária. Assim,
este trabalho partiu da premissa de Maria Leonor Souza, que aponta o auge das
figurações inesianas se dá em Camões, pois n‘Os Lusíadas dedica dezoito estâncias a
Inês de Castro, e na peça Castro, de Antônio Ferreira. Deste pressuposto, ficou evidente
que o classicismo português, século XVI, consagrou a imagem canônica inesiana como
personagem frágil e vítima do amor. Inês de Castro passa a ser tema para criações do
maior nível de erudição literária segundo os padrões estéticos daquele tempo.
A partir disto, a leitura analítica deste trabalho salta para a literatura
contemporânea, onde se pode verificar o contraponto aqui proposto: a partir de 1960, a
produção literária do tema retira Inês de Castro do centro narrativo e abre inúmeras
possibilidades representativas para a personagem. Em Teorema, Herberto Helder partiu
do texto de Fernão Lopes para tratar do tema, mas sua grande inovação consiste na
ficção do narrador-personagem ser o algoz de Inês, onde explica as razões pelas quais
conspira contra o caso entre a dama e D. Pedro. Em 1983, Agustina Bessa-Luís inova na
narrativa Adivinhas de Pedro e Inês e cria uma ficção com tom biográfico, abrindo
inúmeras possibilidades representativas sobre o episódio; aqui, o trabalho se aprofundo
nos aspectos inesianos. Por fim, publicada em 2011, analisada a última obra sobre Inês
de Castro, Minha Querida Inês, de Margarida Rebelo Pinto, consiste na narrativa dos
13

sete dias que antecederam a morte de Inês de Castro. Reconduzida ao centro narrativo, a
personagem ganha aspectos de debates tipicamente contemporâneos e mantém aspectos
canônicos, onde se pode verificar a popularidade do tema em Portugal.
Ao considerar o percurso da personagem no final da idade média e o classicismo,
Inês de Castro é retirada do ambiente erudito do século XVI e passa a ser objeto da
literatura popular no início da segunda década dos anos 2000. Ecoada pelo tempo, Inês
de Castro continua a ser inspiração para escritores, demonstrando sua importância na
cena literária e cultural portuguesa.
14

1
Formulações teóricas

Quando Walter Benjamin escreveu acerca da reprodutibilidade técnica da obra de


arte no século XX, não pôde vislumbrar um fenômeno que é típico da
contemporaneidade: as mídias a favor da literatura e as releituras canônicas. Com seu
argumento da perda da aura da obra de arte plástica, Benjamin pouco mencionou a
literatura e se sua reprodução afetaria a qualidade da obra literária, sobretudo as
tradicionalmente denominadas por clássicas. Aqui, entende-se que não haveria diferença
entre uma obra de Platão ou de Eça de Queirós ser inúmeras vezes editadas e
republicadas: a divulgação das obras literárias demanda um movimento que vai na
contramão da reprodução em série das artes visuais, e acabam por contribuir para a
divulgação em massa de obras consagradas pelo cânone. Entretanto, editá-las em série
significaria arregimentar um maior número de leitores? Ressignificar o cânone na
contemporaneidade tem contribuído para o aumento de acessos a tais obras?
Assim, antes de adentrar nas noções de clássico e cânone, levanta-se uma
preocupação que se faz necessária mencionar: quais são desafios da literatura nos dias
de hoje? Urge, na contemporaneidade, retomar e evidenciar a necessidade de se ensinar
e divulgar a literatura tanto como disciplina quanto como campo estético. Para isso, as
noções de cânone e clássico devem ser pensadas à luz de teóricos contemporâneos aqui
selecionados para propor a seguinte reflexão: haverá ainda questões de que somente a
literatura pode dar conta? Há obras que são esteticamente superiores do que as que não
estão incluídas no cânone? Como pensadores da contemporaneidade pensam os
clássicos e encaram o tão debatido cânone?

1.1 Em defesa da Literatura enquanto campo do saber

Os questionamentos levantados por Antoine Compagnon em sua aula inaugural,


publicada com o título, ―Para que serve a literatura?‖ - provoca o leitor a partir da
pergunta: ―Por que defender a sua presença na escola?‖ -. Tais questionamentos são
pertinentes para se pensar noções teóricas sobre a literatura, - ou sobre o lugar que ela
ocupa hoje -, pois a dúvida acerca de sua capacidade de resistir às tecnologias é
frequentemente debatida, inclusive pelo senso comum. Existiriam ainda coisas a que
somente a literatura poderia responder?
15

De fato, enquanto disciplina, na atualidade, é bem verdade que, assim como as


demais Ciências Humanas de um modo geral, recebe escassa atenção e menor
quantidade de investimentos. Evidente que aqui não se trata de simplesmente se
contrapor às Ciências Exatas, mas de questionar sua hegemonia atualmente. Há mais ―fé
na Ciência‖ – matemática, médica, biológica, computacional - como se somente a elas
lhe fossem conferidos o status de Ciência plena:
A Ciência moderna, inicialmente um tipo de conhecimento como os outros,
assumiu uma preponderância total, reclamando para si o monopólio do
conhecimento válido e rigoroso, o que ocorreu com a consagração da
epistemologia positivista e a descredibilização de todas as epistemologias
alternativas 1.

Assim, cabe questionar o lugar – ou os lugares- que a literatura passa, perpassa e


se estabelece diante da reduzida atenção voltada a ela atualmente.
Um destes lugares que não se pode ignorar é a escola. Cabe destacar que ela é
disciplina obrigatória nos currículos escolares dos ensinos fundamental e médio: no
Brasil, seu conteúdo é previsto pelo documento PCN (Parâmetros Curriculares
Nacional) e é ministrado juntamente com a disciplina de Língua Portuguesa. É na escola
que o aluno estuda obras literárias canônicas 2 da língua vernácula, sobretudo nacionais,
contextualizadas historicamente. Evidente que, nos manuais escolares, a abordagem
histórica da literatura serve como reconhecimento político e de constituição de
identidade nacional; também cabe destacar que a literatura, sob a abordagem histórica,
torna-se ―meio por excelência para a compreensão de uma cultura na sua totalidade‖ 3,
dado que é evidente que ela acompanha os fenômenos sócio-históricos. Contudo, foi
acusada de, por muitos séculos, estar associada aos regimes de poder, legitimando a
ascensão dos estados, - que a incluíram em seus discursos de poder, de ódio, de guerras
e conflitos políticos.
Para Barthes, ―As forças de liberdade que residem na literatura, não dependem da
pessoa civil ou engajamento político do escritor (...) as ciências da ideologia sempre
tiveram tão pouco domínio sobre ela‖ 4. Logo, o escritor que domina a língua sabe
desviar ou investir nos propósitos doutrinais justamente por conseguir ―trapacear com a
língua, trapacear a língua‖ 5, de modo que é possível colocar a palavra, e, por

1
SANTOS, 2006, p.155.
2
Mais adiante serão formuladas as premissas e interrogações necessárias à dissertação.
3
COMPAGNON, 2010, p.21.
4
BARTHES, 1978, p.06
5
Idem.
16

conseguinte a obra, fora ou dentro de um discurso de poder: simplesmente servir ao


propósito puramente estético.
Ainda sobre a literatura nas escolas, outro aspecto que cabe destacar é que os
textos literários têm cada vez menor espaço, quando em seu lugar são contemplados os
textos informativos, científicos e documentais, ocupando maior carga horária: a ―própria
literatura (...) parece por vezes duvidar de sua legitimidade‖ 6, quando se depara com um
cenário onde o mercado de trabalho deixa de lado sua relevância, cedendo lugar a
formações escolares/acadêmicas menos voltadas para as artes de um modo geral, onde
os cursos profissionalizantes, técnicos e das ciências exatas promovem um retorno
financeiro maior e a curto prazo. Desta maneira, a literatura acaba por ser afastada e
desestimulada em face de discursos puramente capitalistas.
Contudo, o esforço deste trabalho é, inicialmente, considerá-la enquanto
aprendizado: para que se compreenda a literatura, tornam-se necessários conhecimentos
de outros campos do saber, pois ao recorrer a outras disciplinas, ela se constitui. Uma
novela de cavalaria será uma leitura mais interessante se o leitor possuir um mínimo de
conhecimento de História e Geografia do Ocidente Medieval: ―É a disciplina que devia
ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário‖ 7. Por ser
interdisciplinar, oferece um conhecimento do mundo que lhe é único: a literatura é, por
excelência, transversal em seus saberes, em que ela própria requer saberes diversos:
Verdadeiramente enciclopédica, a literatura nos faz girar os saberes, não fixa,
não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é
precioso (...). A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa
distância que a literatura nos importa 8.

Por ser transversal, a literatura não ocupa somente um lugar, mas está em vários
de diversas formas, desafiando a si mesma: quantas vezes pode-se vislumbrar a
modernização de Lisboa pelos olhos de Álvaro de Campos; a aridez do sertão
nordestino de Graciliano Ramos ou ainda a Colômbia de Garcia Márquez. Em meio a
uma infinidade de entretenimentos, o aspecto que se deseja destacar é a necessidade, o
desafio da reinvenção e a adaptação da literatura: continuar atrativa e ser
entretenimento. Se após o Romantismo ela passou à popularização por meio dos
folhetins, na atualidade enfrenta movimentos únicos em sua história: o mercado e outras
linguagens que expressam ou representam a experiência humana. Há exemplos da

6
COMPAGNON, op. cit.
7
BARTHES, op. cit., p.07
8
BARTHES, op.cit., p.06.
17

9
quantidade de livros que são lançados por mês pelas editoras, os comentados best-
sellers e a literatura para todos os gostos e idades. O mercado editorial faz movimentar a
literatura.
Em meio a tantos recursos tecnológicos e a estratégia de mercado, estaria a
literatura na iminência de ser trocada por outras linguagens? É verdade que ela nunca
foi o único entretenimento disponível para os homens. Contudo, atualmente o cinema,
invenção moderna acidental, tem o poder de arrebatar multidões às salas de exibição. E
há de se destacar como a sétima arte inúmeras vezes recorreu e recorre à literatura, sob
o slogan ―baseado no clássico/romance de...‖. Percebe-se que, ainda que retomado e
ressignificado, o texto literário perpassa a contemporaneidade sob novas abordagens e
linguagens estéticas.
Tais atrativos, tais discursos de poder - em que a própria literatura é usada
enquanto importância cultural a favor de um discurso que a toma como status - não
convocam somente um público maior, como legitimam as produções, lhe conferem
peso. Percebe-se a necessidade de se destacar a importância dela mesma em outras
linguagens.
Quando se observa o senso comum, é notório que as pessoas preferem o filme ao
livro, reduzindo a importância do livro ao enredo. Diferentemente da linguagem
literária, o cinema é idealização de uma equipe de produtores e difere da linguagem
literária porque esta permite ao leitor a experiência da interpretação e do fluxo de
imaginação acontecerem de uma maneira muito individual, silenciosa, única. O leitor é
dono do seu tempo, da postura, das imagens traçadas na imaginação, na identificação
com as personagens, cenários, dramas e alegrias: constrói seu ―cenário‖ a partir de
experiências vividas, dialoga com a obra. Compagnon, completa: ―quando leio,
identifico-me com os outros e sou tocado pelo seu destino; as suas alegrias e os seus
sofrimentos são momentaneamente os meus‖ 10.
Além disso, o trabalho do mercado editorial, ao promover a popularização do
livro acabou por democratizar e divulgar a experiência da obra de arte literária: edições
de bancas de jornal com preços populares e vasta utilização da internet contribuíram
para que a literatura se tornasse acessível como nunca em sua trajetória historiográfica:
saiu da elite para se firmar enquanto experiência de sensibilidade estética a partir do real

9
Consideram-se aqui as mídias digitais enquanto livro como os e-books.
10
COMPAGNON, 2010, p.46.
18

para qualquer pessoa que por ela se interessar, independente de sua condição social.
Basta acessar.
Diferentemente do que se pode imaginar, a literatura não nega sua impossibilidade
ao utilizar a realidade para representar outras realidades, o impossível, – e por que não
os impossíveis?- de se realizar neste mundo. Ela liberta o escritor e o leitor ao abrir
possibilidades de sair de si e colocar-se em outros lugares, em outras ocasiões, viver
uma vida – e outras e muitas – que não se poderia viver de fato neste mundo real;
desloca o leitor a lugares que ele não conhece:
A realização da pessoa, pensava Proust, ocorre não na vida mundana, mas
por meio da literatura, não só para o escritor que a ela se dedica por inteiro,
mas também para o leitor que ela comove enquanto a ela se entrega 11.

Considerando que a literatura proporciona conhecimento de vida, e do homem


enquanto sujeito do mundo, é prazer e evasão, torna-se necessário reafirmar e defender
sua iniciação na escola. É verdade que existem outras ciências que se dedicam à vida,
utilizando outros recursos, dos questionamentos humanos, fatos sociais e históricos ou
autoconhecimento – a Filosofia, a História, a Sociologia e a Psicanálise - mas nenhuma
delas talvez proporcione conhecimentos tão diversos quanto a literatura. Contudo, cabe
destacar que:
Todo o remédio pode envenenar: tanto cura como intoxica, como cura
intoxicando. (...) Fica-se doente de literatura, como Madame Bovary. Se a
literatura liberta da religião, ela torna-se ela própria um ópio 12.

Aqui, acredita-se num trabalho constante em mostrar e iniciar os alunos das


escolas regulares que a literatura evidencia o fascismo da linguagem, demonstrando
como ela pode ser um jogo de combinações de sentidos. Segundo Barthes, difere da
linguagem à medida que, se apropriando dela, sugere algo novo, faz perceber novas
coisas que, talvez sem ela, não fosse possível enxergar. Muitas obras transformam o
leitor, fazem com que ele passe a pensar a vida de outro modo; para isso, utilizando-se
do real e da linguagem escrita, a literatura é capaz de dar conta de outras verdades,
desperta sentimentos que não podem ser despertados por meio de outras artes: ―O poeta
e o romancista dão-nos a conhecer o que estava em nós, mas que ignorávamos por nos
13
faltarem as palavras‖ , sentimentos que antes eram só potência singular. Literatura é
possibilidade de se pensar de várias maneiras, oportunidade de o autor se superar e de o

11
Idem, p.19.
12
Idem, p.33.
13
Idem, p.35.
19

leitor se identificar pela experiência que somente ela pode conferir. Todavia, ao
considerar toda a sua produção no mundo, há que se pensar que o número de obras a
serem lidas é infinito: assim, os teóricos da área correm grande perigo ao delimitar
obras, julgadas mais relevantes. Afinal, haveria obras que são esteticamente superiores a
outras?

1.2 Considerações acerca da contemporaneidade literária

Alvo de muitas ressignificações, as noções de obra literária clássica e sua


inscrição no cânone têm sido alvo de questões discutidas por teóricos do pensamento
desde o século XIX. Assim, para se aproximar das noções aqui apresentadas, pretende-
14
se pensar, primeiramente a noção de contemporaneidade proposta por Agambem .
Algumas das noções apresentadas pelo autor consistem em propor que o pensador
contemporâneo é aquele que se constitui intempestivo, ou seja, pensa o tempo a que é
contemporâneo sem pertencer a ele: este anacronismo permite melhor apreensão e
percepção do tempo que vislumbra. Aproxima-se e ao mesmo tempo afasta-se, para
refletir sobre o tempo que vive, sem aderir a ele.
O pensador contemporâneo é aquele que busca compreender não as luzes de seu
tempo, mas sim o escuro. Ele não se permite cegar ou buscar tais luzes; ao contrário,
deixa que a escuridão do presente lhe proporcione pensar e responder às trevas do
agora, a fim de que seja capaz de identificar a luz que ao mesmo tempo em que se
aproxima, se distancia:
Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele
perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, obscuros.
Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é
capaz de escrever mergulhando a pena as trevas do presente 15.

Embora volte seu olhar para as luzes da história, o contemporâneo confronta-se


com seu presente, com a fratura que lhe é característica: é impedimento da
recomposição do tempo e é a cura para este mesmo tempo. Paradoxal, não deixa de
fixar a atenção no seu tempo e não hesita interrogá-lo a fim de estabelecer relação com
outros tempos e verificar o que há de inédito na História.
Considerando que o pensador contemporâneo volta o olhar para o seu tempo, este
trabalho recorre à figura do crítico literário. Como poderiam eles estabelecer, em seu

14
AGAMBEM, 2010, p.58, 59.
15
Idem, p.63.
20

tempo, as obras literárias e seu valor? Ou seria este um critério subjetivo, conforme
apontado por Kant? É bem verdade que, segundo Antoine Compagnon
O público espera dos profissionais da literatura que lhe digam quais são os
bons livros e quais são os maus: que os julguem, separem o joio do trigo,
fixem o cânone. A função do crítico literário é, conforme a etimologia,
declarar: ―acho que este livro é bom ou mau 16.

Desta maneira, os críticos literários de seu tempo correriam o perigo de serem


injustos em suas escolhas, como aponta Compagnon17 acerca de Saint-Beuve, que não
simpatizava com a obra de Stendhal, pois assim como ele, outros teóricos ―enganaram-
se tanto a respeito de seus contemporâneos, que um pouco de reserva lhe seria bem-
vinda.‖ É fato que a crítica literária enquanto disciplina acadêmica tem sido substituída
pela crítica jornalística, a fim de evitar o julgamento de valor, herdado pela tradição
canônica, que sempre praticou tal julgamento. Importante lembrar a quantidade de
jornais impressos e digitais que possuem inúmeras colunas sobre crítica literária e
cinematográfica.

1.3 Sobre a noção de obra literária clássica

Se uma obra ocupa o cânone, ainda que não seja antiga, ela pode ser considerada
uma obra clássica. Segundo Calvino, um dos critérios de identificação de uma obra de
valor é verificar se ela ainda é admirada, se arrebata grande número de leitores, se tais
leitores amaram a leitura, ou seja: se o tempo a consagrou, se ela ultrapassou seu tempo
de origem. Evidente que aqui se pode afirmar que a obra de Homero ocupa o lugar de
obra-prima clássica no Ocidente, pois está mais do que consagrada, bem como um
clássico do século XX, como Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, ainda
tem muito a dizer. O que tais obras ainda podem oferecer? Tanto Homero quanto Rosa
conseguem tocar em aspectos intemporais, ou seja, suas obras são capazes de oferecer
algo que há de universal e humano ao leitor – e por que não a eles próprios enquanto
autores. As angústias de Odisseu e as de Diadorim são tipicamente dramas, medos,
amores e inquietudes humanas. Logo, acessam a intempestividade da natureza humana.
Um clássico pode possuir diversas características, dentre elas, a capacidade de se
reler inúmeras vezes e ainda assim causar vislumbre no leitor. Podem-se citar as obras
que aqui se destacou: tanto Homero quanto Rosa foram inúmeras vezes editados e

16
COMPAGNON, 2014, p.221.
17
Idem, ibidem.
21

republicados numa diversidade de línguas. Assim, o apontamento de Bloom é


pertinente, pois ―toda originalidade literária forte se torna canônica‖ 18.
Outro aspecto destacado por Calvino é que grandes leitores são aqueles de idade
mais avançada: ―não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e
com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro‖19 ,
dado que os jovens não possuem experiência de vida para conseguir reler uma obra
consagrada com gosto. Ainda assim, é sensata a ideia de iniciação à literatura e dos
clássicos na escola, a fim de que cada indivíduo perceba qual tipo de leitura lhe é
prazerosa, para que não somente a cite, mas a compreendam de alguma maneira e que
tal obra possa ser relida na idade adulta. É necessário este primeiro contato.
A defesa da iniciação à leitura escolar, ainda que pouco prazerosa aos jovens, é
importante para que estes possam compreender fenômenos literários retratados em
outras linguagens contemporâneas, dada a vasta quantidade de obras que retomam e
ressignificam temas clássicos e canônicos. Para o jovem, é valioso perceber que a
encenação cinematográfica, ainda que com características contemporâneas, sobretudo
nas ressignificações, traga releituras de personagens, episódios e narrativas antigas. E,
embora as leituras da juventude sejam marcadas pela impaciência, os clássicos podem
oferecer um conhecimento de vida futura aos jovens. Com o passar do tempo, o leitor
adquire, com a leitura de um texto clássico, a possibilidade de (re) encontrar indagações
que a vida lhe trouxe: neste sentido, toda releitura é um novo acontecimento, uma nova
experiência, principalmente as leituras desinteressadas. Partindo deste desdobramento,
Calvino defende que
um clássico nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer (...) e
chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a
nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que
atravessaram 20.

As (re) leituras que chegam ao leitor são heranças culturais cunhadas ao longo dos
anos e dos séculos – e isso vale para os clássicos antigos ou modernos . Tornaram-se a
dúvida do que está inscrito no texto ou se são ―deformações‖ inscritas pelo tempo e pela
tradição hermenêutica. Logo, a Ilíada é um conjunto de narrativas inscritas numa
tradição ocidental que recebeu influências culturais da tradição oral por muitos anos. E
na contemporaneidade ainda é (re) lida e ressignificada, pois não se sabe ao certo em

18
Idem, p.33.
19
CALVINO, 1993, p.9.
20
Idem, p. 11.
22

que grau as leituras precedentes afetaram sua originalidade. É possível que a


originalidade resida nas leituras que vários povos e culturas ocidentais fizeram dela.
Um clássico também se caracteriza pela experiência de sua leitura: deve oferecer
uma surpresa em relação ao que se tinha por imagem dela, ou seja, daquilo que foi dito
ou escrito acerca dela. Ou ainda, pode oferecer aquilo que o leitor já sabia, mas não teve
conhecimento direto pela obra. Um exemplo proposto por Calvino é o fato de no meio
acadêmico ser mais comum ler textos acerca dos clássicos do que propriamente os
clássicos, pois tais textos têm mais a oferecer enquanto experiência estética do que
inúmeros textos de análise e críticos. Logo, o clássico deve ser aquele livro com que se
entra em contato direto, para que não se tenha apenas a ideia do que foi dito acerca dele.
Deve ser o ponto de partida para a análise, uma experiência individual, a fim de que se
possa partir para uma análise acadêmica.
Calvino 21
levanta a dúvida entre ler uma obra clássica ou uma contemporânea –
dada à quantidade infinita de obras que nunca se poderá ler. O autor propõe que, ainda
que o leitor dedicado não se ocupe de outras leituras, ele deve equilibrar a leitura de
ambos. Saber ler bem um clássico implica ler obras contemporâneas, buscar um ponto
de equilíbrio. O clássico é muitas das vezes encarado como obra de um tempo já
distante, dada a dificuldade da crítica literária ao autorizar e legitimar a obra assim que é
publicada.
Os clássicos como qualquer outra produção literária, podem oferecer uma série de
razões e engajamentos, como também servir a algum outro propósito. Assim, é
definitiva a premissa de Calvino: ―a única razão que se pode apresentar é que ler os
clássicos é melhor do que não ler os clássicos‖ 22.

1.4 Sobre o julgamento de valor da obra literária

É válido também destacar que a preocupação com o julgamento de valor é recente


dentro dos debates acerca das obras que entram para o cânone, uma vez que até o século
XIX tal discussão não era uma preocupação debatida, pois o cânone, modelo a ser
seguido, era uma estrutura estável e não se questionava seu método.

21
Idem, p. 14.
22
CALVINO, 1993, p.16.
23

Assim, o valor de uma obra pode ser analisado à luz dos conceitos clássicos, que
consideram a tradição literária, ou seja, o padrão clássico como modelo a ser seguido, e
o moderno, caracterizado pela corrente romântica, que questionou os critérios utilizados
pela tradição a fim de considerar a inserção e inscrição de uma obra no cânone. Antoine
Compagnon aponta que:
A ideia e o termo classicismo, não é inútil lembrar, são muito recentes em
francês. O termo só apareceu no século XVII, paralelamente a romantismo,
para designar a doutrina dos neoclássicos, partidários da tradição clássica e
inimigos da inspiração romântica 23.

O autor ainda cita o teórico Saint-Beuve, que defendia que a estética


considerada clássica era, assim como para os homens medievais, toda a cultura antiga
dos gregos e romanos-cabe destacar que, para os romanos, clássico era a estética
deixada pelos gregos. Assim, tal estética clássica implicaria uma noção de autoridade e
de elo com a tradição, consagrada pelo tempo. E por terem sido consideradas obras
clássicas desde sua existência, o debate em torno do valor da obra literária foi iniciado
com a literatura romântica, que reivindica uma formulação de identidade nacional. O
que entra para o cânone, de fato, são somente obras de valor? Quais são os critérios para
definir o valor de uma obra? Compagnon problematiza a questão ao propor que
estabelecer o valor da obra implicaria um juízo pessoal, que recai na ideia romântica do
subjetivismo, que acarretaria um relativismo. A proposta inicial do cânone, que é de
servir de modelo, estaria em vias de ser ressignificada.
O autor aponta os estudos de Kant, que defende que o julgamento de valor
estético é subjetivo, pois o belo proporcionaria satisfação desinteressada a cada
indivíduo, o que levaria a uma anarquia. Contrapondo-se à ideia kantiana, Gennete, na
observação de Compagnon, considerou que o cânone pode nascer de modo empírico e
que não haveria nem uma estabilidade nem um consenso. Ou seja: o fato de uma obra
ser escolhida para o cânone não significa que ela não possa sair dele.
Ainda assim, os opositores ao cânone argumentam que toda obra literária é uma
experiência individual, que cada leitor reage de maneira muito particular e que estipular
valores sobre a obra X em vez da obra Z seria injusto, além de se correr o perigo de
servir a alguma causa ideológica. Tal tomada de posição foi apresentada no romantismo,
no século XIX, quando os discursos de identidade nacional recorreram a tal conceito e
por sua vez criaram os cânones nacionais. A literatura romântica passou a servir ao

23
COMPAGNON, 2014, p. 230.
24

propósito político nacional, evocando aspectos culturais inscritos em obras que


retratavam um tempo distante, que tinham relação com a constituição da memória
comum de um povo ou nação. Elevando tais obras ao nível das clássicas greco-romanas,
o Estado Moderno se apoderou da literatura a fim de formar uma cultura típica,
sobretudo, nacionalista.
Apesar disso, ainda conforme Compagnon, ―todo estudo literário depende de um
24
sistema de preferências, consciente ou não‖ . Retomando a ideia de valor, para que
uma obra possa ser julgada como superior, levou-se em conta vários fatores, como a
famosa sentença da ―arte pela arte‖ – que possui técnicas de confecção-, ou da
superioridade da poesia em relação ao romance. Ou ainda, a preferência entre o clássico
e o romântico. Entretanto, há de se convir que a arte sempre rompe com ela mesma, pois
uma inovação pode passar a regra: forma e sentido, postos em tensão, ou mesmo
radicalmente imbricados,tornam-se um dos critérios para a valoração de uma obra
literária. É possível que alguns defensores do clássico e do cânone excluam a Arte
Moderna, tão importante e visível nas manifestações contemporâneas. Se os teóricos
clássicos defendem que o tempo elimina os efeitos da moda, como voltar o olhar
enquanto homem contemporâneo em meio a um mundo diverso de ressignificações que
partem de leituras canônicas? Haveria ainda a necessidade de se salvar os clássicos em
meio a tantos debates e evidências das partes que ora combatem, ora aderem ao cânone?
Harold Bloom, defensor do cânone, aponta que o equívoco dos opositores ao
cânone reside no fato de que há menos atenção para os estudos puramente estéticos: os
estudos culturais estão em voga na contemporaneidade, o que o autor vê como uma
ameaça à ordem e, por sua vez, ao cânone. Defende que ―a crítica literária, como uma
25
arte, sempre foi e sempre será um fenômeno elitista‖ , diferindo dos estudos das
escolas multiculturais. Em certa medida, os apontamentos de Bloom são pertinentes
quando tocam na questão de se selecionar, inevitavelmente, as obras que um indivíduo
lerá numa vida de leitura. De maneira provocativa, desafia tais estudos a apontar qual
autor poderia ser superado por Shakespeare. Assim, antes de adentrar no domínio do
coletivo, a leitura das obras passa pelo gosto individual, o que Antoine Compagnon
aponta como ―conjunto de preferências individuais antes de se tornarem norma‖ 26.

24
Idem, p. 222.
25
BLOOM, 1995, p.25.
26
COMPAGNON, 2014, p.250.
25

Cisões intelectuais à parte, o propósito deste trabalho é demonstrar como o


cânone, apesar de ser exaustivamente debatido, é retomado inúmeras vezes na
contemporaneidade.
Bloom aponta que
O cânone ocidental (...) existe precisamente para impor limites, para
estabelecer um padrão de medida (...) é a verdadeira arte da memória, a
autêntica fundação do pensamento cultural 27.

Assim, é inevitável para os contestadores do cânone, para os críticos literários e


culturais se ―livrarem‖ desta herança da memória cultural do Ocidente. Ao olhar para o
passado, os opositores do cânone passam a ler tal passado com as lentes das ideologias
herdadas, sobretudo a marxista - do tempo em que são contemporâneos - apontando o
cânone de ser manipulado por interesses políticos e sociais, o que se tornou evidente aos
estudiosos de tal tema.
28
É sensato o pensamento de Bloom no que diz respeito ao caráter puramente
estético das obras canônicas, pois se imortalizaram devido à luta nas relações sociais –
que pouco tem relação com luta de classes. Os valores estéticos surgiriam do agon
entre os textos: na linguagem, no leitor, que se propõe a realizar leituras mais difíceis,
livrar-se dos prazeres fáceis. Desta maneira, o cânone esteve sempre atrelado a um
ambiente erudito e puramente intelectual. Sua proposta pouco teve relação com uma
libertação das classes oprimidas.
Desta maneira, este trabalho consiste numa conciliação entre divulgar ao máximo
as obras canônicas (um caráter marxista) e uma tentativa de se manter ainda o caráter
puramente estético do texto. Para se contestar e ressignificar o cânone, há de se ler o
cânone. E ler o cânone implica em voltar o olhar para a história, e recontá-la de modos
diferentes dos já contados: recontar a história e toda a herança cultural e literária através
das lentes contemporâneas.

1.5 O lugar da obra clássica na contemporaneidade: reformulações entre


o erudito e o popular

Considerando que aqui também se defende a importância incontornável da


iniciação literária nas escolas – e é inevitável fugir de obras canônicas – torna-se
indispensável pensar a razão que aqui se propõe para a leitura dos clássicos. Um dos
27
Idem, p.42.
28
Idem, p. 44.
26

aspectos destacados foi o cinema, mas como o cânone aparece nas (re) leituras
contemporâneas?
Tomando por exemplo o caso da obra de Marion Zimmer Bradley - As Brumas de
Avalon - publicada em quatro volumes, em 1982, que ganhou versão fílmica. Nele, a
autora aborda a história do Rei Arthur e dos Cavaleiros da Távola Redonda sob uma
perspectiva em que o cristianismo, tradicionalmente retratado nas Novelas de Cavalaria,
é deixado em segundo plano, praticamente abolido da obra. Em vez disso, a autora
explora o mundo feminino e a suposta herança celta, a magia e práticas religiosas pré-
cristianização. O nomeado ―paganismo‖ é a vertente central da obra. A ruína da
estrutura feminina na obra se dá com o advento do cristianismo, que põe fim à igualdade
– e até superioridade da mulher – entre as personagens, encerrando o romance.
Também Saramago, em sua obra O que farei com este livro, publicado em 1998,
dedica um drama curioso: Camões enfrenta os impasses políticos para a publicação de
Os Lusíadas ao retornar das Índias. Evidente que se trata de não somente publicar a
obra. Saramago aborda o jogo político que Portugal se envolvia, como a recusa de D.
Sebastião em se casar, os interesses do clero e dos envolvidos no poder da coroa
portuguesa. Ao fim, o livro é publicado e Camões se questiona com a pergunta que
intitula o livro, depois de vislumbrar a velhice e a iminente queda do Império Português.
Por fim, o estrondoso sucesso da saga infanto-juvenil de Rick Riordan29, Percy
Jackson e os Olimpianos, faz parte de uma série de cinco livros que tratam de um
adolescente - comum - que vive em meados dos anos dois mil e que descobre ser um
semideus grego. As aventuras da personagem principal – uma analogia ao mito de
Perseu – e de seus amigos de escola são visíveis decalques dos mitos gregos, como
batalhas contra criaturas míticas, ressignificadas na contemporaneidade, como o caso da
Medusa, uma mulher comum, mas que ainda teria os poderes enunciados originalmente
no mito.
O esforço deste trabalho é o de evidenciar a necessidade de se ter conhecimento e
leituras de temas tradicionais na literatura e cultura ocidentais como forma até de
assegurar a legibilidade de produtos culturais da contemporaneidade. A infinidade de
temas trabalhados no contemporâneo acerca das tradições vem ganhando cada vez mais
espaço na produção literária contemporânea. O que acomete a literatura contemporânea

29
O autor possui uma série de livros dedicados ao mundo infanto-juvenil, em sua maior parte, baseados
nos mitos gregos.
27

é justamente um atravessamento entre cultura erudita e cultura popular, tempo em que


elas se ressignificam, se misturam, se associam.
Desta maneira, se introduz a vertente central deste trabalho: a proposta é
compreender como uma mulher, de que se têm escassas notícias históricas da sua
existência - por meio de apenas dois documentos que registraram a cessão de um espaço
no Paço de Santa Clara e a sua sentença de morte - poderia proporcionar na cultura
portuguesa tantas manifestações, sobretudo literárias, indo além do imaginário ficcional.
O episódio de Inês de Castro tem servido de roteiro turístico português, ruas recebem
seu nome e o de D. Pedro, hotéis se apropriam da narrativa medieval como atrativo ao
caso de amor do ―Romeu e Julieta‖ portugueses. Mas diferente das personagens de
Shakespeare, Pedro e Inês existiram. Seus túmulos estão no Mosteiro da Alcobaça,
próximo de Coimbra, onde se pode ver a riqueza artística com que foram construídos.
Outro atrativo turístico.
Na ficção, Inês inspira autores há mais de seiscentos anos, representando o tema.
Assim, este trabalho se propõe a pensar a personagem central do caso de amor
contrariado que a literatura portuguesa se encarregou de consagrar e, sobretudo,
demonstrar como ele tem sido tratado na literatura contemporânea. Pode-se verificar
que, assim como a maioria das obras do tema, o trabalho de ficção do episódio de Inês
de Castro continua a se inspirar na Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes, escrita no
século XV. Na literatura Contemporânea, concomitantemente rompe-se com a tradição
clássica para retomá-la em aspectos já conhecidos e consagrados pela historiografia
literária.
Conforme aponta Compagon,
o surpreendente é que as obras-primas perduram, continuam a ser pertinentes
para nós (...) E a teoria, mesmo denunciando a ilusão do valor, não alterou o
cânone. Muito ao contrário: ela o consolidou, propondo reler os mesmos
textos, mas por outras razões, razões novas, consideradas melhores 30.

Novamente, reitera-se a necessidade de se voltar o olhar para obras clássicas e


consagradas para se compreender as ressignificações da personagem na
contemporaneidade, tema do próximo capítulo.

***

30
COMPAGNON, 2014, p. 250.
28

2
Inês de Castro: da história à literatura

2.1 O reinado de Afonso IV: Inês de Castro histórica

É no reinado de D. Afonso IV (1325- 1357) que se situa o episódio de Inês de


Castro. O governo de Afonso foi conturbado, marcado não só por conflitos, mas pela
peste negra, que assolava a Europa na baixa idade média31. É importante destacar que
ele, filho de D. Dinis, tinha irmãos ilegítimos que eram os preferidos do pai. Tal fato
resultou numa disputa de poder entre os meios-irmãos, ocasião em que Afonso IV saiu
vitorioso. Também eram constantes a iminência da ocupação islâmica na Península
Ibérica e os desentendimentos entre Portugal e Castela. Desta maneira, a política de
casamentos entre tais reinos era praticada como aliança política, garantia de que nem
Portugal, nem Castela quebrariam acordos políticos e de paz, dadas as disputas políticas
entre os reinos.
A fim de cessar os conflitos, em meados de 1339, os dois reinos assinaram acordo
de paz em Sevilha, em que foi decidido o casamento entre o filho de Afonso IV, D.
Pedro, e de uma nobre castelhana, D. Constança Manuel, de família influente na corte
espanhola. O acordo selou os frágeis laços políticos entre Portugal e Espanha.
Assim, chega-se ao ponto que interessa a este trabalho: ―Inês veio para Portugal
em 1340, acompanhando a infanta D. Constança. Porventura predileta da infanta, foi
madrinha de seu primeiro filho, D. Luís, que não vingou (1341)‖ 32. Segundo a tradição,
Pedro e Inês se envolveram em um caso amoroso, e Afonso IV mandou para o exílio em
Albuquerque, o que não teria impedido o casal de cultivar a relação. Inês lá permaneceu
até a morte de Constança, em 1349, quando Pedro mandou trazê-la de volta, passando
ela a viver como mulher dele, contudo, sem oficializar a união. Da união nasceram
quatro filhos (um deles precocemente morto), o que, segundo historiadores, teria
causado o temor em Afonso IV de que a influência de Inês já havia atingido seu ápice:
a possibilidade de filhos ilegítimos requererem o trono português, como fora o caso dos
impasses e disputas do mesmo trono, anos antes, entre D. Afonso IV, filho legítimo de
D. Dinis e D. Isabel, e seu meio-irmão, D. Afonso Sanches, predileto do rei, mas

31
MARQUES, 1997, p. 206.
32
Idem , p. 205.
29

ilegítimo. Outra vez D. Afonso se viu em conflito contra herdeiros fora de uniões
matrimoniais oficiais. Desta maneira, delineia-se a pergunta: quais razões teriam levado
o rei a executar Inês de Castro? Como tem sido abordado tal fato?

2.2 A Genealogia de Inês de Castro e os conflitos decorrentes

Pouco – ou quase nada - se sabe sobre Inês de Castro enquanto personagem


histórica. Aquilo que se conta e o que a literatura se encarregou de consagrar como
lírico faz parte da ficção e do imaginário que cerca o tema. Segundo Sousa,
A personalidade de Inês é-nos totalmente desconhecida. (...) De facto, Inês de
Castro é uma figura que só chegou até nós em atitudes passivas: foi trazida
no séquito de uma princesa, foi exilada por um rei, mandada regressar por um
príncipe e por ele aposentada 33.

O que se tem documentado, segundo Marques, é que ―Inés Perez de Castro era
filha de D. Pedro Fernández de Castro, dito da guerra, grande senhor galego, camareiro-
mor de Afonso XI de Castela e primo direito de (...) D. Pedro I, e de uma dama de nome
Aldonza Suárez de Valadares.‖ Assim, verifica-se também ilegitimidade da ascendência
de Inês. 34 Seu pai a entregou ao seu primo, senhor de Albuquerque, D. Afonso Sanches,
meio-irmão de Afonso IV, de Portugal, e sua esposa, Teresa de Albuquerque, a fim de
que educassem a jovem Inês. 35
Cabe relembrar que entre 1320 e 1324 Afonso IV e Afonso Sanches se
envolveram na mencionada disputa do trono português. Para a desventura de Inês, além
do grau de parentesco entre ela e Pedro, havia também o dissabor do vínculo da dama
com o pai adotivo. Em tempos de conflitos, o apoio de famílias nobres, como o caso dos
Castro, Albuquerque e Manuel, (ambas de origem castelhana e portuguesa) oscilava
segundo os interesses pessoais vigentes: numa destas disputas, mais precisamente a do
trono português, os Castro se opuseram a Afonso IV, ocasião em que apoiaram Afonso
Sanches, filho ilegítimo de D. Dinis, dado que ―a defesa que Afonso IV e seus
partidários fizeram em favor do seu coroamento era baseada na noção de legitimidade
real, afinal, era filho do rei e da rainha de Portugal‖ 36.

33
SOUSA, 2005, p.11.
34
Segundo o historiador Oliveira Marques, Pedro Fernández de Castro era casado com uma senhora de
nome D. Beatriz.
35
SALES, 2006, p.21.
36
Idem, ibidem.
30

Assim, a ascendência biológica e adotiva de Inês de Castro explica alguns fatores


para a sua execução. Segundo Antonio José Saraiva:
O rei D. Afonso, pai de D.Pedro, que contrariava os amores adúlteros e
incestuosos do filho com a fidalga galega, expulsou-a de Portugal. Ela
acolheu-se no Castelo de Albuquerque, perto da fronteira portuguesa, em asa
de D. Teresa de Albuquerque, sua mãe adoptiva, viúva de um filho de D.
Dinis 37.

Constança morreu em decorrência do parto de D. Fernando, ocasião em que Inês


voltou para Portugal. É importante destacar que sua execução não ocorreu de imediato,
pois a dama galega viveu nos paços reais entre os anos de 1349 e 1355, intervalo de
tempo em que nasceram os filhos D. João, D. Dinis, D. Beatriz, filhos estes que viveram
nas cortes portuguesas até o reinado de seu meio-irmão, o rei D. Fernando.

2.3 A morte de Inês de Castro e a legitimidade da união com D. Pedro

A questão que tem se delineado ao longo de mais de seis séculos é se a morte de


Inês de Castro foi, de fato, uma questão de Estado. Segundo Marques, um ano antes da
morte da dama, seu irmão, D. Álvaro Perez de Castro, procurou D. Pedro para
convencê-lo a disputar contra D. Pedro de Castela o trono castelhano, dado o grau de
parentesco entre ambos. Segundo o historiador Marques, tal influência dos Castro sobre
o infante despertou em D. Afonso IV o temor de que o filho se envolvesse em questões
políticas do país vizinho.
Apesar disto, ainda pouco se sabe se o intuito de sucessão da parte de Inês de
Castro era persuasivo ao ponto dela se envolver em questões do reino. O que se tem
registrado em crônicas do século XIV são indicações dos fatos que eram relevantes para
a nação. Logo, a ―importância de Inês de Castro reside na sua morte‖, 38
em 7 de janeiro
de 1355, por degolação, fato que a tradição e a crônica não aceitaram, por julgarem ser
um episódio sentimental: a crônica não poderia aceitar a conveniência política da sua
morte. Segundo o livro de Noa de Santa Cruz de Coimbra, está registrada degolação de
Inês de Castro, constando que ―decolata fuit Dona Enes per mandatum dominis Regis
Alfonsi iiij” e no Breve Chronicon alcobacense consta também ―Era m.ª ccc.ª lxxxx.ª
iii.ª vii. dies Ianuarii occidit rex alfonsus domman agnetem colimbrie” 39.

37
SARAIVA, 1997, p.48.
38
SOUSA, 2005, p.15.
39
Apud SOUSA, p.15.
31

Sobre a morte de Inês de Castro, em documentos do século XVI, o fato é escrito


sob a ótica dos problemas causados no cenário político: uma insurreição do filho contra
Afonso IV. Por seis meses, Pedro guerreou contra o pai, uma espécie de revolta contra a
40
decisão de mandar executar Inês. Acenheiro ratifica tal acontecimento como uma
pressão do infante contra o pai para assumir o trono, tendo em vista a idade avançada de
D. Afonso IV: segundo Sousa41, tal hipótese não vem ―perturbar a lenda.‖ que tal fato
inspirou.
O documento mais antigo das consequências da morte de Inês data de agosto de
1355: registra como a rainha D. Beatriz mediou um pacto entre pai e filho, a fim de que
Pedro cessasse os danos causados no norte do país e a promessa de que não se vingaria.
Neste documento, aparece pela primeira vez a palavra desvairo, expressão cristalizada
por Fernão Lopes, relacionada aos ―grandes amores‖.
Outro fato também consagrado pela literatura e pelo lendário teria sido o suposto
diálogo entre Inês e o rei no momento da execução da dama. Tal diálogo é citado no
texto do pacto citado na expressão se diz. Contudo, segundo Sousa,42 seria um indício
―que a tradição ou a lenda já teria fixado‘‘, pois Afonso teria ido a Coimbra para
legitimar a execução. Em tal pacto não consta o nome dos fidalgos envolvidos no plano
de assassinar a amante favorita de Pedro, diferentemente do primeiro registro
historiográfico de Fernão Lopes. Segundo Sousa, o redator do pacto teria omitido tais
nomes por inserir o texto numa lógica do perdão. O tão evocado nome de Pero Coelho,
que ganhará repercussão com a crônica de Fernão Lopes – e ressignificação em
Teorema, de Herberto Helder, aparece, mas sem distinções nos escassos documentos
históricos sobre Inês de Castro.
Além disso, não se sabe se Pedro e Inês se casaram escondidos, como a lenda e
Fernão Lopes insinuam: há referências que aparecem em alguns documentos redigidos
ainda em vida dela: ―a doação do padroado da Igreja de Santo André de Canidelo, feita
por D. Pedro àquela que chama apenas ―D. Inês de Castro‖ 43, indício de que ainda não
haviam se casado. Há controvérsias entre documentos de 1358 e 1360, uma vez que a
nomeava ―D. Inês, nossa molher‖ 44. O testemunho de D. Beatriz, mãe de Pedro, em

40
Apud Sousa, p.16.
41
Idem, p. 17.
42
Idem, ibidem.
43
Lopes, 1979. p. 197.
44
SOUSA, 2005, p. 41.
32

1359, informa que os filhos de Inês eram considerados infantes, como D. Fernando.
Dessa maneira, tais documentos comprovariam a legitimidade jurídica dos filhos de
Inês de Castro com D. Pedro.
Fernão Lopes trabalha em suas crônicas – por muito tempo consideradas
documentos históricos – com uma questão que é visível ao leitor, ao levantar dúvidas
sobre a legitimidade do citado casamento e a legitimidade dos filhos. Sobre os frutos da
união de Pedro e Inês, cabe destacar que a ascendência naquele tempo pouco importava.
Não era necessário que um rei se casasse com filhas de reis: bastava que a mulher em
questão fosse descendente de monarcas. D. Constança o era, fato que incluiria Inês em
tal costume, dado que nem ela, nem Constança eram filhas de rei. Fica evidente que o
partido de Avis criou um discurso legitimado na pena de Lopes para justificar a
45
ascensão de D. João , ao poder, ao não considerar os documentos em que D. Beatriz
afirma a legitimidade dos filhos da Castro 46.
47
Fica evidente o testemunho tendencioso de Diogo Lopes Pacheco nas Cortes de
Coimbra, narrado na Crônica de D. João I, também da autoria de Fernão Lopes,
mencionado por João das Regras, homem influente. A crise política após a morte de D.
Fernando propiciou a disputa do trono português. O argumento que João das Regras se
utiliza tem por finalidade legitimar a ascensão do Mestre de Avis. A incerteza da
legitimidade dos filhos de Pedro e Inês fez com que o quarto irmão bastardo saísse à
frente na questão da eleição.

2.4 O reinado de D. Pedro e a trasladação: a cerimônia que inspirou o


lendário e a literatura

Ao assumir o trono Português, D. Pedro, que havia jurado nunca vingar a morte
de Inês, quebrou o pacto fixado em agosto de 1355. Numa troca de refugiados políticos,
conseguiu negociar com Castela a entrega dos fidalgos, os supostos responsáveis Pero
Coelho e Álvaro Gonçalves por instigar em D. Afonso IV a decisão de executar Inês de

45
D. João, Mestre de Avis, era filho ilegítimo de D. Pedro com uma dama. O filho, que provavelmente
nascera após a morte de Inês de Castro, se envolveu nas lutas de disputa do trono português contra a
cunhada, D. Leonor Teles, viúva de D. Fernando.Ascendeu ao trono português, instaurando nova dinastia.
É em seu reinado que se inicia o trabalho de Fernão Lopes, autor importante para o desenvolvimento
deste trabalho.
46
Idem, p. 42
47
In: SARAIVA, 1997, p.273.
33

Castro. Tal fato se verifica nas crônicas de Fernão Lopes e na crônica do espanhol Pedro
Lopez Ayalla 48, que também faz referência à troca de refugiados políticos, feita entre D.
Pedro de Portugal e D. Pedro de Castela.
Pedro executou os fidalgos em praça pública e mandou construir um túmulo para
ele e Inês, no Mosteiro da Alcobaça. Feito isso, D. Pedro promoveu uma cerimônia de
trasladação dos restos mortais da amada, ocasião em que a coroou rainha post-mortem.
Sobre este fato, segundo Maria do Amparo Maleval seria a ―própria santificação da
Castro‖ 49. Cabe destacar também que
As diferenças entre narrativas diziam respeito a Pedro, não a Inês. Para os
cronistas, Inês era inocente, além de belíssima. Qualidades que teriam
inclusive comovido o rei-pai, Afonso IV, ao vê-la com seus netos pedindo
clemência (...). Essa mistura de amor, saudade e culpa e fê-lo [D.Pedro]
cometer exageros no caso do combate ao pai 50.

51
Segundo Sousa , a iconografia das cenas da vida e do romance é uma fonte
histórica que pode oferecer indícios para algumas interpretações do episódio. Diferente
do que a literatura propagou, pode-se encontrar a cena da degolação, ao invés das
espadas, punhais e estocadas representadas pela literatura do tema e pelos cronistas
Acenheiro e Rui de Pina. Único dos cronistas que não menciona a maneira da execução,
Fernão Lopes, refere-se ao episódio de Inês de Castro somente com o propósito de
relatar as ações que honrariam a memória de Inês de Castro.
Fica evidente que a figura de D. Pedro foi fundamental para o que futuramente a
literatura e o imaginário popular consagrariam como a mais conhecida lenda portuguesa
dos amores contrariados. Ora, um rei de temperamento forte, sedento por instaurar a
justiça em seu reino, ocasião em que ―mostrou-se (...) meio louco (...) sempre
preocupado com a administração da justiça, em íntimo contacto com o povo, que o
adorava apesar de seus actos de crueldade e loucura‖ 52
, não mediria esforços para
honrar a mulher amada.
Em pouco tempo, a desastrosa sorte dos amores de Pedro e Inês ficaria conhecida.
A comoção que o episódio promoveu, sem dúvidas, abriu precedente para que a
literatura e a tradição oral se encarregassem de consagrar: um episódio que não possuiu
nada de lírico passa a ser motivo de inspiração artística de diversos campos da Arte,

48
Apud. Sousa, 2005, p. 56
49
MALEVAL, 1995, p.104
50
LIMA, 2008, p.152.
51
SOUSA, 2005, p. 57
52
MARQUES, 1997, p.206.
34

sobretudo da literatura. As obras castelhanas renascentistas que tratam do episódio de


Inês de Castro se ocuparam mais da cena da coroação e na ação, pois viram nela um
espetáculo que foi explorado pelos autores; as obras portuguesas que se ocuparam do
lirismo e até evitaram falar da coroação post mortem, preferindo os temas da ―saudade,
amor, melancolia e partida‖ 53. Ao rivalizar com histórias como a de Tristão e Isolda, o
episódio inesiano supera a própria morte: neles, o símbolo do amor irrealizado, criou a
lenda até hoje ecoada em Portugal. Entretanto, deve-se ratificar a importância histórica
da figura de D. Pedro para a projeção de Inês de Castro dentro do campo literário que se
ocupou do tema.

2.5 Considerações sobre o estabelecimento do episódio histórico para


o lírico e sua consagração no classicismo português

Conforme se buscou evidenciar, o acontecimento histórico, em si, não traz nada


de novo no que diz respeito aos costumes medievais, quanto mais ao se falar do
episódio de Inês de Castro. Ainda que aqui o intuito fosse somente destacar a
veracidade ou não do que foi apresentado, tal trabalho não se enquadraria na tentativa
de inseri-lo no campo dos estudos literários, mas sim de uma reconstituição a partir de
poucos documentos históricos que tratam do tema. Justamente é este ponto que aqui
interessa: a personagem histórica é pobre, sabe-se somente que um caso de amor a levou
a uma pena de morte. Tal aspecto tem sido motivo de inspiração para a literatura
inesiana.
É importante destacar um aspecto levantado por Sousa, de que o episódio
sentimental entre Pedro e Inês estaria amplamente divulgado e criado comoção coletiva:
Há de registrar a descoberta (...) de um poema de uma obra de David bem
Yom Tov Ibn Bilia, judeu português que viveu em Coimbra na primeira
metade do século XIV (...). Autor de um comentário científico sobre o
Pentateuco (...) deixou alguns poemas manuscritos, também em hebraico,
entre eles um que fala da sua infelicidade amorosa, dizendo que no mundo só
houve uma desgraça maior que a dele: a de Pedro e Inês 54.

Ainda em fins da idade média, a cronística e a literatura palaciana se


encarregaram de inserir o episódio no panorama literário, aquele com o primeiro
registro, este com o episódio lírico. Contudo, é evidente que o período Classicista
elevou a personagem de Inês de Castro a outro patamar artístico: devido a tal fato, este

53
SOUSA, 2005, p.58
54
Idem, p. 39.
35

trabalho selecionou e buscou analisar algumas obras que elevaram o nome da dama à
mais alta erudição literária. Os estudos de Sousa apontam diversas obras ibéricas – sem
considerar o fato de seu estudo se ater à repercussão na Europa - como a crônica de
Acenheiro e Rui de Pina, por exemplo. São inúmeros textos que não caberiam neste
estudo. Assim, optou-se por selecionar obras que estão cristalizadas no cânone e nos
manuais de literatura portuguesa como evidências da imagem consagrada da
personagem literária em questão. Ficou evidente que as obras que fixam D. Inês de
Castro canonicamente são as obras do classicismo: Antonio Ferreira, com o drama
Castro e Luis Vaz de Camões, que dedicou dezoito estâncias ao tema em Os Lusíadas.
Entretanto, não se pode partir para uma análise do período clássico da literatura
portuguesa sem considerar o primeiro registro do episódio na historiografia: o de Fernão
Lopes, que forneceu aspectos ficcionais utilizados na literatura contemporânea e
inspirou autores ao longo dos séculos. Recorrer ao primeiro texto historiográfico é
importante para se vislumbrar os demais textos baseados nas crônicas lopesianas.
Trovas à morte de Inês de Castro, inseridas no primeiro Cancioneiro organizado em
Portugal: ambas as obras se enquadram num momento cultural importante para
Portugal, pois a língua portuguesa iniciava seus primeiros passos ao se dissociar do
galego e se estabelecia como língua nacional. Assim, os mitos e lendas decorrentes de
tempo passados poderiam ganhar espaço dentro da literatura.
O que se pôde verificar foi uma inversão de papéis de importância entre D. Pedro
e D. Inês: na crônica, D. Pedro é agente da glorificação de Inês; em Trovas, pode-se
verificar pela primeira vez a personagem de D. Inês de Castro carregada de lirismo. Na
Castro e em Os Lusíadas, é representada nos padrões clássicos, ao ser equiparada às
grandes heroínas da mitologia greco-romana, a expressão de maior valor naquele tempo.

2.5.1 A Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes: o primeiro registro de Inês


de Castro

Por que semelhante amor, qual elRei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em
alguuma pessoa, porem disserom os antiigos que nenhuum he tam verdadeiramente achado, como
quel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo 55.

Esteticamente, o texto de Fernão Lopes se enquadra na segunda época medieval,


momento em que a língua portuguesa se separou do galaico e se firmou como idioma

55
LOPES, 1979, p. 199.
36

nacional português. É o período humanista que introduzirá novos aspectos culturais,


deixando o medievalismo primeiro para trás; neste período, a historiografia
―impregnada de intenções artísticas e fruto de uma posição crítica de espírito, só aparece
com Fernão Lopes, na alvorada no século XV‖ 56. Assim, o texto que aqui interessa,
Crônica de D.Pedro, faz parte de uma série de crônicas historiográficas, postas em
sequência capitulares, da Crônica dos cinco primeiros reis de Portugal. Segundo
Maleval, existem nestes textos ―pontos convergentes, dentre eles a questão da
legalidade/ilegalidade do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro‖ 57.
A Fernão Lopes coube criar uma genealogia do Reino português e de certo modo,
criar uma tradição para a dinastia insurgente. Assim, foi nomeado Guarda-Mor da Torre
do Tombo em meados de 1418, cargo que o tornava responsável por documentos de
confiança do reino Português. Posteriormente, foi aposentado em tal função. Além
disso, recebeu do infante D.Duarte uma recompensa pelos serviços prestados ao reino,
quando também obteve a carta de nobreza, ―vassalo de el-rei‖. São de sua autoria a
Crônica de Portugal (1419), Crônica de D.Pedro I, Crônica de D.Fernando, as duas
primeiras partes da Crônica de D.João I. Posteriormente, foi-lhe atribuída autoria da
terceira parte da Crônica da Tomada de Ceuta, reformulada por outro cronista, Zurara e
a Crônica de D.Duarte, provavelmente reescrita por Rui de Pina.
Por muito tempo, debateu-se o valor histórico dos documentos escritos e
organizados por Lopes. Seu método consistia na organização e na consulta a
documentos antigos, crônicas do Reino de Castela e a consulta a pessoas que teriam
vivido e participado dos movimentos de mudanças sociais, ocasião em que uma
insurgente burguesia se organizou para articular a eleição da Dinastia de Avis, no
âmbito dos embates de insurreição contra a rainha viúva Leonor Teles, acusada de se
associar aos interesses castelhanos. Grande parte da aristocracia portuguesa saiu
prejudicada na eleição de D. João, Mestre de Avis nas cortes.
É visível nas crônicas lopesianas o intuito de demonstrar uma coletividade do
povo português, encarnada na figura do Mestre de Avis, filho ilegítimo, e da cidade de
Lisboa, antropomorfizada no ato de fé, ao narrar a reza pela vitória do novo rei. Não se
pode ignorar que cabia a Lopes narrar a tomada de poder de um filho bastardo, e, ainda
que seus textos tentem demonstrar uma imparcialidade, é visível o intuito de legitimar

56
SPINA,1968, p.23.
57
MALEVAL, 1995, p. 98
37

politicamente D. João I. Para isso, na Crônica de Dom Pedro, que aqui interessa,
verifica-se tal intuito: anuncia um sonho do rei D. Pedro, em que o filho ilegítimo, o
Mestre de Avis, nomeado cavaleiro da Ordem de Avis assumiria o trono. Um sonho
profético em que retira dos filhos de Inês de Castro o direito à sucessão no trono
português. O argumento que o cronista usa está na mesma crônica, em que assim se lê:
―hora assi he que em quamto Dona Enes foi viva, nem depois da morte della (...) nem
depois que el reinou (...) nunca a nomeou por sua molher 58‖, ressaltando que o rei não
se lembrava da data que teria se casado em segredo, em Cantanhede. Fernão Lopes não
poderia proceder de outra maneira, tendo em vista que não deveria evidenciar a
legitimidade do primogênito de mesmo nome da Castro. Saraiva afirma que:
quanto aos filhos de D. Pedro e D. Inês de Castro, tidos por legítimos e,
portanto, herdeiros eventuais do trono, Fernão Lopes prepara de longe a
demonstração da sua ilegitimidade, evidenciando as razões que, apesar do
juramento feito por D.Pedro, deixaram em dúvida o seu casamento com
D.Inês 59.

É válido mencionar que, após a morte de D. Fernando, houve disputa de poder


entre o Infante D. João e D. João, Mestre de Avis. O filho de Inês de Castro era, de fato,
o candidato do povo, pois era considerado filho legítimo pelas vias hereditárias.
Contudo, o Mestre de Avis liderou uma revolta em 1383 na ausência do Infante,
tomando-lhe o poder. É evidente que Lopes não insere o Mestre numa lógica da disputa,
mas da santidade, da vocação, dos aspectos cavaleirescos. Contudo, segundo Arnault,
―o partido do infante não morreu com a elevação do Mestre de Avis a rei‖ 60, mas com a
morte do Infante D. Pedro, o espaço para a nova dinastia estava sacramentado.
Ainda assim, tais fatos não diminuem a dimensão ficcional em seu texto, ocasião
em que o autor cria um clima de novela de cavalaria e um aspecto messiânico da figura
do Mestre de Avis. O texto de Lopes é movimentado: seu gosto pelos ambientes
populares é emanado nos retratos morais e dos ambientes que se propõe a descrever. No
esforço de interagir com o leitor, faz juízos dos atos, sejam dos homens simples, sejam
dos reis ou dos fidalgos. Diferentemente dos cronistas medievais de grande importância,
Fernão Lopes narra acerca da participação popular, a arraia-miúda, nas lutas e
insatisfações do Reino. Segundo Spina:
No propósito de introduzir o leitor nos acontecimentos que descreve,
conversando com ele, animando e dramatizando os episódios que relata,

58
LOPES, 1979, p. 125.
59
SARAIVA, 1997, p.48.
60
ARNAULT, 1979, p.21.
38

numa linguagem simples, econômica e coloquial Neste sentido, em que o


estilo se distancia do retórico e desce para o plano da interlocução quase
familiar, a toldar as fronteiras entre a linguagem simples, econômica e
coloquial 61 .

O fato é que para sua criação textual, Lopes dispôs de muitos textos de que hoje
62
não se tem conhecimento: segundo Arnault , o cronista teria preferido relatos
testemunhais e do povo, indicando em seus textos expressões como ―segumdo alguums
que escprevem‖. Não restam dúvidas de que o cronista trazia uma concepção
democrática da História, tendo em vista o seu envolvimento com a causa nacionalista de
Avis. Tal espírito não terá continuidade noutros cronistas, como Zurara e Pina, que
fizeram suas crônicas se limitarem ao aspecto aristocrático, ordem vigente de seus
respectivos tempos.
Tais considerações se justificam para um entendimento mais claro da análise aqui
proposta. Na Crônica de D. Pedro ocorre o primeiro registro literário sobre Inês de
Castro. Por ter acesso aos documentos, o mais provável é que Lopes tenha recorrido a
eles e aos relatos daqueles que viveram e ouviram falar sobre o episódio entre Pedro e
Inês. Cabe destacar que o texto lopesiano não apresenta aspectos líricos sobre D. Inês:
sequer sua voz tem espaço, seja no discurso direto ou indireto, diferentemente de D.
Pedro e outras personagens que aparecem nestas e nas demais crônicas. Todavia, o texto
serviu de inspiração às produções literárias que se debruçaram sobre o tema. Lopes
recorre aos grandes amores da mitologia clássica, fruto do espírito humanista,
comparando o episódio com tais amores:
E se alguum disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assi
como Adriana e Dido, e outras que nom nomeamos, segumdo se lee em suas
epistolas, repomdesse que nom fallamos em amores compostos (...)mas
fallamos daquelles amores que se contam e leem nas estorias, que seu
fumdamento teem sobre verdade. Este verdadeiro amor ouve elRei Dom
Pedro a Dona Enes como della se namorou, seemdo casado e aimda Iffamte
de guisa que pero dela no começo perdesse vista e falla, (...) numca çessava
de emviar recados (...) 63.

Assim, sem deixar de narrar o envolvimento amoroso entre o rei e a dama, Lopes
se aproxima mais do estilo literário em sua narrativa do que do texto propriamente
histórico, elevando a paixão de Pedro por Inês às clássicas narrativas das Heróides,
organizadas por Ovídio, e que provavelmente no tempo de Lopes teriam estes textos
sido retomados.
61
SPINA, 1968, p.23.
62
ARNAULT, 1979, p. 14.
63
LOPES, 1979, p.199, 200.
39

Na mesma crônica, pode-se verificar a descrição do retrato moral do rei D. Pedro,


adjetivado pelo cronista como homem justiceiro e cru: ao longo da narrativa, o autor
procura demonstrar aspectos positivos do rei e do seu reinado. Contudo, esta imagem é
abalada pelo desvairo amoroso devido à execução de D. Inês de Castro: um trato que
Pedro fez com o rei castelhano de mesmo nome, fato que Lopes julga ao inserir em seu
texto que as virtudes morais devem estar mais presentes nos reis:
Por que o fruito principal da alma he a verdade, pela qual todallas cousas
estam em sua firmeza; e ella a de seer clara e non fingida, moormente nos
Reis e senhores, em que mais resplamdeçe qualquer virtude (...) achemos
delRei de Purtugal que a toda gente era manteedor de verdade, nossa
temçom he nom o louvar mais, pois contra seu juramento foi
consemtidor em tam fea cousa como esta 64.

Para além do julgamento, Fernão Lopes não deixa de narrar os feitos que serão
importantes para a circulação de imagens de Inês na literatura. A partir desta crônica, se
pode verificar a importância da figura de D. Pedro para a fixação da lenda do amor
saudoso entre ele e D. Inês. Somente os amores contrariados entram para as grandes
narrativas, como os já mencionados amores da literatura clássica. Lopes não poderia se
negar a narrar o caso de Inês de Castro, que é marcado em seu texto pela vingança aos
conselheiros do pai, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves:
A Purtugal forom tragidos Alvoro Gmçallvez e Pero Coelho (...) e elRei com
prazer de sua viimda, porem mal magoado por que Diego Lopez fugira, os
sahiu fora arreçeber, e sanha cruel sem piedado lhos fez per sua maão meter a
tormento, queremdo que lhe confessassem quaaes forom na morte de Donas
Enes culpados (...) deu um açoute no rostro a Pero Coelho, e elle se soltou em
desonestas feas pallavras, chamandolhe treedor, Fe perjuro, algoz e
carneçeiro dos homeens. E elRei dizemdo que lhe trouxessem çebolla e
vinagre pera o coelho, emfadousse delles e mandouhos matar 65.

A comida servida a D. Pedro sugeriria o julgamento de Lopes, que interpretou a


execução cruel: segundo o cronista, o rei teria comido carne de coelho,
coincidentemente o mesmo nome de um dos condenados. Segundo Maleval, o cronista
―sem deixar de atribuir boa pitada de humor (negro) às palavras e ações/rei‖ 66, indica a
indignação que sentia ao narrar a vingança. Ocorre, assim, ―o mito do ensandecimento
amoroso (...) preterindo a emoção da vingança‖ 67:
A maneira de sua morte, seemdo dita pelo meudo, seria mui estranha e crua
de comtar, ca mandou tirar o coraçom pellos peitos a Pero Coelho e a Alvoro
Gomçallves pellas espadoas (...) emfim mandouhos queimar; e todo feito ante

64
Idem, p.141, 142, grifos nossos.
65
Idem, p.148.
66
MALEVAL, 1995, p.102.
67
Idem, p. 103.
40

os paaços omde el pousava, de guisa que comendo oolhava quamto mandava


fazer. (...) muito perdeo elRei de sua boa fama 68.

Cabe destacar a maneira narrada da morte dos fidalgos: manda retirar o coração,
lugar metafórico onde se cultivam bons sentimentos humanos e manda-os queimar.
Segundo Maleval, o fogo, símbolo de purificação, os expurgaria de vez do reino de D.
Pedro. Assim, a vingança estava completa para o rei. Faltava exaltar e elevar D. Inês,
numa tentativa de reparar a morte injusta da dama.
Os aspectos tomados por Lopes como cruéis serviram aos autores posteriores, que
se inspiraram para escrever sobre dois sentimentos tipicamente portugueses: o amor e a
saudade, ainda que tais sentimentos da parte de D. Pedro comprometessem sua imagem
como governante, dado que se utilizou da condição de poder para vingar D. Inês.
Também na mesma crônica, Lopes narra que depois da morte de D. Inês, D. Pedro não
quis mais se casar: indício de que teria reforçado a ideia que se perpetuou do amor
verdadeiro que D. Pedro sentira por D. Inês, amor que o levara à perdição.
Tendo disposto de muitas fontes para escrever as crônicas, Fernão Lopes pode ter
se servido também dos túmulos de Pedro e Inês, indícios históricos para aprimorar sua
escrita: no monumento, podem-se ver ilustrações da vida do casal, em seus respectivos
mausoléus, postos no Mosteiro da Alcobaça. Em uma leitura atenciosa, aponta aspectos
que indicariam a melancolia do rei:
E seemdo nembrado de homraar seus ossos, pois lhe jamais fazer nom
podia, mandou fazer huum muimento dalva pedra, todo mui sotillmente
obrado, poemdo emlevada sobre a campãa de çima da imagem della com
coroa na cabeça, como se fora Rainha 69.

Ao evidenciar ―como se fora rainha‖, Lopes demonstra novamente seu


posicionamento político quanto à legitimidade real de D. Inês de Castro. Mas o fato que
aqui interessa é que D. Pedro a proclamou rainha depois de morta, ato que teria feito
surgir relatos de que o rei teria obrigado os súditos a beijarem a mão do cadáver, posto
no trono. Este lendário provavelmente se deve às peças teatrais castelhanas, que
trataram do tema com sarcasmo e morbidez. Quanto a este relato, Lopes não o indica,
talvez numa tentativa de tornar verossímeis os fatos ocorridos, limitando-se a narrar o
feito de D. Pedro como uma cerimônia importante e de grande repercussão, tendo
mobilizado multidões e fidalgos em tal cerimônia ao retirar os restos mortais de Inês de

68
LOPES, 1979, p. 149.
69
LOPES, 1979, p.199-200, grifos nossos.
41

Castro do também privilegiado Mosteiro de Santa Clara, onde sua avó Santa Isabel
repousava, criando para ele e Inês um lugar que privilegiasse a dama:
E este muimento mandou poer no moesteiro Dalcobaça, nom aa emtrada,
onde jazem os reis, mas dentro da egreja (...) E fez trazer o seu corpo do
mosteiro de Samta Clara de Coimbra, hu jazia, ho mais homrradamente que
se pode fazer, ca ella viinha em huumas andas, muito bem corregidas pera tal
tempo, as quaes tragiam gramdes cavalleiros, acompanhadas de gramdes
fidalgos, e muita outra gente, e donas, e domzellas, e muita creelezia. Pelo
caminho estavom muitos homeens com círios nas maãos, de tal guisa
hordenados, que sempre o seu corpo foi per todo o caminho per antre círios
acesos; e assi chegarom ataa o dito moesteiro, que eram ali dezassete legoas,
omde com muitas missas e gram solenidade foi posto em aquel muimento: e
foi esta a mais homrrada trellaçom, que ataa aquel tempo em Purtugal fora
vista. Semelhavelmente mandou elRei fazer outro tal muimento e tam bem
obrado pera si, e fezeo poer acerca do seu della, pera quamdo se aqueeçesse
de morrer o deitarem em elle 70.

Maleval aponta que D. Pedro finaliza suas honras a D. Inês de Castro


santificando-a ao depositar seus restos dentro da igreja, num monumento branco, posto
no lugar do sagrado, bem como a cerimônia cercada de círios, uma procissão cristã: ―se
refletirmos um pouco mais sobre o (s) sentido (s) simbólicos dos círios, veremos que o
casamento de Pedro e Inês na cerimônia do traslado se efetiva nos domínios do
imaginário‖ 71
. As velas indicariam ainda as virgens prudentes, prontas para serem
72
desposadas ; o túmulo, de mármore também indicaria a pureza com que Inês deveria
ser lembrada. Assim, esta cerimônia faria as vezes das núpcias do casal. Estava assim
cumprido o dever de santificar D. Inês, de retirar-lhe a culpa que o adultério pesava, de
honrar sua memória: D. Pedro poderia descansar em paz.
Diante de tais símbolos, Fernão Lopes eterniza a cena de trasladação e torna
famoso o episódio da glorificação da Castro. Recorrendo a Ayala nos registros escritos,
mas, sobretudo, carregado de uma tradição oral, nas expressões ―se diz‖, Lopes
conseguiu criar um retrato do reino de D. Pedro, em que o episódio inesiano é o de
maior destaque dentre os demais episódios de seu reinado. É evidente que Lopes teria
omitido fatos, mas, reitera-se que não se deve esquecer o fato de que o cronista servia à
Casa de Avis. Episódio permeado de aspectos política, tanto histórica como
literariamente, as forças que levaram D. Afonso IV a mandar executar Inês não
impediram que a literatura fizesse deste um tema artístico. É justamente a ausência de
aspectos em Inês de Castro na crônica de Lopes – e nas demais que trataram do tema -

70
Idem, ibidem.
71
MALEVAL, 1995, p.105.
72
Mt 25, 1-13.
42

que oferecem aos escritores um tema que pudesse ser largamente explorado pelo lirismo
e pela estética. Ainda segundo Sousa:
A vontade de um rei provocou um episódio trágico, fruto de tempos rudes,
em que a força era a lei (...). A vontade de outro rei impediu o seu
esquecimento e deu-lhe a dimensão do mito, um mito que implica também
uma violência – o triunfo do amor para além da morte. (...) o amor ultrapassa,
na história de Pedro e Inês, os limites e os significados de outras histórias
lendárias, como as de Tristão e Isolda ou Eloísa e Abelardo, pois o episódio
português supera a própria morte 73.

Ao superar os limites da morte em pouco tempo, partindo da frase inscrita nos


túmulos ―até o fim do mundo‖, o episódio descrito em Lopes, sem dúvidas, abre
precedentes para outras obras se debruçarem sobre a figura de Inês de Castro, que se
desvencilha (em parte) da imagem de D. Pedro, tema do próximo item.

2.5.2 Trovas à morte de Inês de Castro: breve análise do monólogo


palaciano
Eu era moça, menina,
Por nome Dona Inês
De Castro, e de tal doutrina
E virtudes, que era dina (...)74

Os versos da poesia Trovas à morte de Inês de Castro aparecem publicados pela


primeira vez em 1516, no Cancioneiro Geral organizado por Garcia de Resende, com
poesias dos séculos XV e XVI. Tendo se baseado no Cancioneiro General, do
castelhano Hernando Del Castillo, de 1511, a edição organizada por Resende conta com
a atividade poética daquele tempo, nas cortes de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel.
Assim como as crônicas de Lopes, sua confecção pertence à segunda época medieval,
momento em que a língua portuguesa se estabelecera como idioma nacional. Contando
com os primeiros poemas a se dissociarem da música, a poesia palaciana era uma arte
de certo modo descompromissada, uma vez que se ocupava de temas diversos e
demonstravam o recém refinamento das cortes. Sobre a obra, segundo Spina, ―o
interesse (...) não reside no seu valor poético, mas na narrativa de casos de
acontecimentos verificados na Europa de seu tempo‖ 75. Sabe-se que havia uma espécie
de mecenato praticado entre os artistas palacianos, que se organizavam nos palácios
para sessões de declamações poéticas, com o intuito de entreter o espectador. Contudo,
não se pode negar que há poemas que se destacaram nesta coletânea, como é o caso do

73
SOUSA, 2005, p.64.
74
SPINA, 1968, p. 59.
75
Idem, pg 33.
43

poema aqui destacado. Garcia de Resende, autor das Trovas, dedica ao episódio 22
estrofes, cada uma com 10 versos cada, de rima variada. Ao iniciar, o poeta se dirige às
mulheres, apresentando D. Inês de Castro como aquela que o galardão do amor fez
sofrer; desenvolve o poema em primeira pessoa do singular, cedendo voz à dama que
até então não havia se ―pronunciado‖ liricamente, mulher que sofre da coita de amor -
característica trovadoresca - ao declarar amor ao seu senhor:
Qual será o coração
Tão cru e sem piedade
Que não lhe cause paixão
Ua tam grã crueldade
E morte sem razão?
Triste de mim e inocente,
Que por ter muito fervente
Lealdade, fé, amor
Ao príncipe meu senhor,
Me mataram cruamente 76!

D. Inês ganha o direito de se defender: migra do espaço histórico e adentra no


espaço literário, onde no monólogo apresenta ao leitor as razões de sua morte, vista
como questão de Estado: a morte acontece à medida que o amor a leva à decadência.
Segundo Maleval, ―o Ocidente cristão, desde seus primórdios, tudo faria por firmar o
mito da paixão como sinônimo de sofrimento‖77. Assim, é interessante verificar a
advertência ao público feminino, advindo da crença de que Eva seria a introdutora do
pecado, perpetuando a culpa através das mulheres: logo, o modelo feminino de moral e
virtude se compara a Maria, mãe de Cristo, obediente, submissa, casta. Maleval aponta
também para uma comparação do episódio inesiano aqui proposto com o episódio dos
sonhos de Lancelote, da Demanda do Santo Graal, em que o cavaleiro sonha que está
no inferno com a amante Genevra – esposa do rei Arthur. A rainha padece no inferno
devido ao amor que lhe condicionara:
E no meio daquele fogo havia uma cadeira em que estava sentada a rainha
Genevra (...). Mas ela fazia um pranto tão grande e dava gritos tão grandes
(...). E quando via Lancelote, não podia suportar que não lhe dissesse ali onde
estava em tão grande aflição: - Ai, Lancelote!Tão mau foi o dia em que vos
conheci!Tais são os galardões do vosso amor!Vós me lançastes neste grande
sofrimento em que me vedes (...)78.

Evidente que no modelo da moral medieval o prazer e a liberdade femininos eram


demonizados, o que proporcionou à Igreja o controle dos comportamentos privados,

76
RESENDE apud SPINA, 1968, p. 144.
77
MALEVAL, 1995, p.99
78
MAGNE, 1988, p. 170,171.
44

principalmente dos nobres. Assim, o amor levaria os apaixonados à decadência na pior


das penas possíveis: a morte. Nesta lógica, pode-se verificar que as Trovas recorrem a
este modelo: ao descrever sua devoção ao infante, o sentimento expresso por Inês
assemelha-se mais uma vez às narrativas míticas do amor impossível. Um momento
importante do poema aparece na 8ª estrofe, quando Inês já pressente que o perigo era
iminente. Ora, o sentimentalismo exacerbado no discurso da dama demonstra que,
neste período - 161 anos depois do episódio histórico - a imagem de D. Inês de Castro
estaria consagrada no imaginário popular como a de uma vítima das intrigas da corte
portuguesa, posto que o amor lhe causara infortúnios:
Como as cousas que hão de ser
Logo dão no coração,
Comecei a entristecer
E comigo só dizer:
―Estes homens, d‘onde irão?‖
E tanto que perguntei,
Soube logo que era el-Rei
Quando o vi tão apressado,
Meu coração trespassado
Foi, que nunca mais falei 79.

Assim, sua representação segue seu suplício, ao narrar como se dá sua


infelicidade. Apesar de destacar a figura do rei, lhe retira a culpa, pois ao implorar pela
vida dos filhos, Afonso IV teria se comovido perante suas lágrimas. Ela, por fim,
anuncia que o sofrimento de Pedro será grande e que o rei considere isto. É evidente que
o seu apelo não surte efeito: antes que o rei pudesse mudar de ideia, – dada a comoção -
um dos conselheiros se precipitam, argumentando a ilegitimidade dos amores entre
Pedro e Inês, e que posteriormente ―o príncipe se casará/filhos de bênção terá/ será fora
do pecado‖ 80. Inês encerra seu diálogo ao narrar a maneira da sua morte como uma
sentença ―do galardão que meus amores me deram‖ 81.
Ainda que Trovas não seja um poema rico em recursos estilísticos, é válido
mencionar que a partir daqui a imagem de D. Inês de Castro começa a ser moldada
como o cânone literário a consagrou, em fins da idade média e classicismo, tendo seu
auge em Antonio Ferreira e Luis Vaz de Camões, que tomaram os mesmos caminhos:
aquele coloca o drama em cena na primeira tragédia portuguesa e este eterniza a

79
RESENDE, apud SPINA, op.cit, p.146.
80
RESENDE, apud SPINA, p. 148.
81
Idem, ibidem.
45

imagem de Inês como bela e forte na primeira epopeia portuguesa. A seguir, veremos
como o dramaturgo tratou do tema.

2.5.3 A Castro, de Antônio Ferreira: o drama do eterno desencontro

Ouve-me, Rei, Senhor; ouve primeiro


A derradeira voz dest’alma triste
Co estes teus pés me abraço, que não fujo
Aqui me tens segura 82.

A peça de Antonio Ferreira intitulada originalmente como Tragédia mui sentida


de Dona Inês de Castro teve posteriormente o seu título reduzido para Castro e foi
publicada em 1587, como parte da produção literária Classicista portuguesa. Composta
em cinco atos, em versos hendecassílabos, seu valor reside não só na poesia épica que é,
mas no fato de ser a primeira tragédia em língua nacional. Partindo da proposta
aristotélica de que a tragédia deveria se pautar nos pressupostos de um enredo
conhecido do público, como os mitos, justifica-se a escolha do autor pelo tema, pois o
episódio de Inês de Castro era amplamente conhecido no século XVI. Assim, obedece
aos paradigmas propostos por Aristóteles:
Na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem
caracteres para que efetuem a ação (...) deve ser representado o homem que
não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal
acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro 83.

Cavaliere aponta os estudos de Costa Marques, na introdução da edição de 1967


da Castro, ao destacar três características da Castro na ―recuperação de padrões formais
clássicos, o uso da língua nacional, o tema nacional tratado na tragédia‖ 84
. Assim,
considera que a extraordinariedade da obra reside na convergência destes três aspectos,
sem hierarquizá-los. Devido ao fato de as tragédias clássicas do século XVI serem
escritas em latim e de tratarem de representar os mitos greco-romanos, Ferreira inovou
não apenas ao promover a língua portuguesa como ―apta à composição dos gêneros
‗sérios‘ ‖ 85, mas também ao elevar o episódio inesiano, ao gênero de maior prestígio
dentro da ficção. Dessa maneira, a obra é caracterizada em concordância com o advento
da estética classicista. O resultado é a construção de uma heroína que age conforme a
lógica estética do século XVI, distanciando-se do fato histórico, apesar de se basear
82
FERREIRA, 1967, p.126.
83
ARISTÓTELES, 1973, p. 477.
84
CAVALIERE, 2004, p; 143.
85
Idem, p. 144
46

nele. Segundo Bessa-Luis, ―Antonio Ferreira recolheu da tradição coimbrã uma Castro
de certa maneira cativa do infante, mais do que apaixonada‖ 86.
O drama se desenvolve a partir do erro de Inês, que reside não simplesmente na
relação amorosa com o infante, mas na violação de valores morais e divinos,
considerando a condição de parentesco entre ela e Pedro, o adultério, a instalação de D.
Inês de Castro no Paço de Santa Clara (dedicado aos descendentes de Santa Isabel e
seus filhos legítimos) e a ilegitimidade da união. Muito são os fatores que proporcionam
a tensão e a fatalidade. Como nos heróis clássicos, a personagem tem consciência das
forças maiores que regem o destino. Segundo Massaud Moisés,
Antonio Ferreira convoca para a cena Inês de Castro, D. Pedro e D. Afonso
IV, na qualidade de personagens centrais, cercados de personagens
secundárias, como os conselheiros do rei, a ama e o coro, que assume a
função que detinha no teatro greco-latino, ou seja, a de comentar a ação e
aconselhar ou desaconselhar o procedimento das personagens 87.

Os cinco atos são centrados na personagem principal: no primeiro ato, surgem as


situações que despertarão a tragédia, onde Inês é representada no diálogo com a ama,
ocasião em que aparenta estar segura do amor do infante; no segundo ato, apesar da
hesitação de Afonso IV, o destino de D. Inês é traçado, influenciado pelos fidalgos
conselheiros; no terceiro ato, Inês desperta de um sonho que lhe anuncia seu destino,
quando o coro confirma o infortúnio que está por vir; no quarto ato acontece o diálogo
entre D. Afonso IV e D. Inês suplica pela vida, quando Razão de Amor e Razão de
Estado88 entram em conflito:
Esta é a mãe dos teus netos. Estes são
Filhos daquele filho que tanto amas.
Esta é aquela coitada mulher fraca,
Contra quem vens armado de crueza89

A questionada súplica de Inês aparece em Ferreira. Não cabe levantar hipóteses


acerca da sua veracidade, mas de verificar como a ficção contribui para a tensão da
cena. Toledo 90
aponta que ―a lucidez e a coragem é que lhe dão o status de heroína
trágica; não teme pelo seu destino apenas enquanto mulher, antes teme-o enquanto
mãe‖. Consciente, enfrenta o rei, tenta proteger os filhos e argumenta que o maior
prejudicado será o infante, anunciando a dor e a morte espiritual de que padecerá dali

86
BESSA-LUIS, 1983, p.128
87
MOISÉS, 2006, p.124.
88
TOLEDO, 2006, p. 124.
89
FERREIRA, 1967, p.121.
90
TOLEDO, 2006, p. 125.
47

em diante. Inês parece comover D. Afonso IV, que responde ―Vive em quanto Deus
quer‖. Entretanto, a catástrofe não pode mais ser impedida, pois é preciso castigar Inês:
o clima é interrompido com a antecipação dos fidalgos, que lembram o rei a Razão de
Estado. Quanto à veracidade desta cena, não cabe aqui debater, pois é pouco provável
que os conselheiros do rei, de fato, tenham assassinado Inês com as próprias mãos.
Segundo Toledo:
A catársis, elemento fundamental à teoria aristotélica da tragédia, só
acontece à medida que a heroína encontra um antagonista que precipita o
conflito trágico. O temor e a piedade, sentimentos morais, não se prendem à
situação em si, mas à identificação com a heroína envolvida 91.

A Castro e Afonso IV se opõem: o antagonista não reside nas personagens do rei,


nem dos conselheiros-carrascos, mas na lei que Inês infringiu. Cabe a eles sujar as mãos
de sangue para que tal erro seja sanado, restabelecer a ordem política. A execução de
Inês fica subentendida. Assim, no quinto ato, é comunicado a D. Pedro que Inês está
morta. Ao ouvir a notícia, lamenta sua dor, anuncia vingança, a coroa portuguesa e a
glorificação da amada, quando promete não medir esforços para que nunca seja apagada
da memória, quando encerra ao dizer ―vá est‘alma/ Descansar com a tua pera sempre.‖
É interessante verificar que D. Pedro - figura histórica importante para a fixação da
memória de D. Inês de Castro, conforme se viu nos textos de Lopes – não atua, nem é
personagem de destaque no drama. Ocorre uma inversão de papéis de importância ao
comparar o texto de Lopes com o de Ferreira: sem dúvidas, o lendário acerca do
episódio de Inês de Castro estava estabelecido no século XVI e é possível que Ferreira
possa ter recorrido a Trovas à morte de Inês de Castro, de Resende.
Um recurso que Ferreira explorou foi optar por não inserir Pedro e Inês em
nenhuma das cenas juntos: além de evidenciar a fragilidade da dama na ausência do
infante, a fatalidade se delineia, contribuindo para que o elemento trágico aconteça. O
poeta, ao recorrer à língua pátria, emprega-a com maestria na Castro, empregando um
discurso nacional que exalta os grandes homens, os grandes acontecimentos da nação
portuguesa. Evidente que a inovação de Ferreira consiste no fato de adotar o espírito
crítico da época, mas ultrapassa este requisito ao elevar o tema ao patamar das grandes
tragédias, equiparando D. Inês de Castro às grande heroínas greco-romanas. O mesmo
fará a épica camoniana, que dedica dezoito estâncias ao episódio de Inês de Castro.

91
Idem, ibidem, p. 126.
48

2.5.4 O episódio de Inês de Castro n’Os Lusíadas, de Camões: entre


Eros e Tanatos

Tu só, tu, puro amor, com força crua


Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga,
Se dizem, fero amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano 92

Narrativa dos grandes feitos portugueses, Os Lusíadas é a obra prima de Luis Vaz
de Camões. O autor provavelmente nasceu em Lisboa, formou-se intelectualmente em
Coimbra e prestou serviços militares na África, onde perdeu um olho. Com uma vida
repleta de conturbações, foi preso e libertado para prestar serviços ao rei, em 1553.
Viaja para Goa e circula pelas costas Africana e Chinesa. Na volta da viagem à China,
sobrevive a um naufrágio, salvando alguns cantos d‘Os Lusíadas, ocasião em que perde
sua amada Dinamene. Retorna em 1570 a Lisboa, quando sua obra-prima é censurada,
sendo liberada para publicação em 1572. Na miséria e provavelmente afetado pela
peste, morre em 1580.
Obedecendo aos padrões da epopeia clássica, Camões compôs sua épica com
rigor homérico: dividida em 10 cantos, cada um com cerca de 110 estâncias. Ao total,
são 1102 estrofes, em rima ABABABCC, 8816 versos decassílabos. Divide-se em três
partes: Introdução: possui dezoito estâncias, que se subdivide em Proposição (assunto
do poema), Invocação (invoca as Tágides, ninfas do Tejo) e Oferecimento (ao rei D.
Sebastião); Narração, do canto I ao X; Epílogo, no Canto X, estâncias 145 a 156.
Obra de valor e qualidade inquestionáveis, Os Lusíadas é uma exaltação ao seu
herói, o povo português, misturando o maravilhoso cristão e o pagão. O enredo reside
na viagem de Vasco da Gama às Índias, auxiliado por Vênus, que a todo o momento
livra os portugueses das ciladas de Baco. Os navegantes chegam a Moçambique,
Mombaça e ao desembarcar em Melinde, o rei local pede a Vasco da Gama que lhe
conte os feitos históricos de seu país. É neste ponto da narrativa que o capitão narra a
história de D. Inês de Castro. Prossegue ao mencionar os incidentes que afetaram a
viagem, como o conhecido episódio do Velho do Restelo, que lhes adverte contra a

92
CAMÕES, Canto III, estância 119.
49

cobiça, e o Gigante Adamastor, que tenta lhes impedir o acesso à costa oriental da
África. As naus partem e enfrentam outros perigos, quando Vênus lhes auxilia
novamente para que consigam chegar a seu destino em Calecute. Após alcançarem seu
objetivo, tomam rota de regresso à pátria; no meio do caminho, Vênus lhes presenteia
com a Ilha dos Amores, onde os navegantes descansam e desfrutam das ninfas. No
mesmo episódio, Tétis leva Vasco da Gama ao topo da ilha, lhe mostra a ―máquina do
mundo‖ e as glórias vindouras do povo português. Os navegantes partem da ilha,
retomando a rota. Camões encerra a obra em tom melancólico.
Assim como Ferreira, Camões destacou a língua portuguesa e o tema nacional ao
compor uma epopeia clássica. E tendo estes pressupostos em vista, não poderia ignorar
93
o episódio de Inês de Castro, ocasião em que também a retratou como heroína. Sousa
problematiza a questão da inspiração de Ferreira e Camões – destaca mais a do épico -
residir no poema latino De Agnetis Caede, de André de Resende, que inicia seu poema
com versos em que se visualiza D. Inês nos Campos do Mondego, em meio às flores,
conforme Camões inicia seus versos sobre o episódio em questão. Evidente que a
inspiração camoniana se origina do poema latino, pois naquela época as imitações eram
recorrentes. Contudo, não se pode diminuir o valor da obra de Camões, tão divulgado e
consagrado pela tradição literária: a erudição com que Os Lusíadas foi composto faz
desta uma obra de grande valor.
A personagem de Inês de Castro está construída pela tensão entre Eros (desejo) e
Tanatos (morte), referência clara à retomada dos mitos greco-latinos, que representavam
o Amor como o vilão e condutor da decadência humana. Vítima da covardia dos
carrascos, ela pagará por seu descuido com a vida. A fatalidade é proporcionada pelo
descuido quando Inês aparece segura de seu amor nos Campos do Mondego:
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos de Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxutos,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas 94

Inês colhe o doce fruto do amor, ensina às ervinhas do campo o nome do amado e
sente saudades dele. A fatalidade se desenrola a partir da ausência de Pedro. A sorte

93
SOUSA, 2005, p. 62.
94
CAMÕES, Canto III, estância 120.
50

reserva a Inês sua desgraça: o engano da dama reside no descuido de se deixar cegar de
amor pelo infante, ―nome que no peito escrito tinhas‖, uma vez que, possuída por Eros,
estará fragilizada e volúvel. Pedro nega casamentos com outras mulheres honrosas: ―De
outras belas senhoras e Princesas /Os desejados tálamos enjeita,/ Que tudo, enfim, tu,
puro amor, desprezas‖ 95. O casal não consegue enxergar os perigos e deixa-se levar pela
mão de Eros. A consequência é os comentários do povo, que murmura diante da
ilegitimidade da união. É preciso que D. Afonso IV tome uma decisão diante das
críticas e do descuido do filho: ―O velho pai sisudo, que respeita/ O murmurar do povo
e a fantasia/ Do filho, que casar-se não queria‖ 96. Assim, decide que Inês deve ser morta
e o papel de heroína lhe é incumbido. Como em Ferreira, ocorre a cena da entrevista da
dama com o rei, que se apieda diante da súplica. Mas nem o povo, nem os algozes se
comovem e Inês desempenhará o papel heróico ao aceitar os feitos que o destino lhe
reserva, a morte. O sacrifício dela recupera os valores sociais e cristãos e restabelece a
ordem política do Estado.
Em Camões, Inês atinge o ápice do episódio consagrado na memória cultural, ao
evocar o caso de amor, levado para além da morte:
O caso triste, e digno da memória
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de ser morta foi Rainha 97

Segundo Oliveira, ―o objeto da fatalidade é a conjunção do amor e da morte‖ 98,


visto que o autor deixa evidente que tal amor só pode ser realizado na eternidade,
divinizando-o, traço neoplatônico da estética vigente. O amor carnal e amor ideal não
podem ser realizados em vida, pois a demonização do corpo impede a plenitude de Eros.
Na morte, o amor pode ser pleno, puro, e eterno. Pureza esta encarnada na inocência de
cordeiro que Inês representa. Conforme afirma Oliveira ―a imagem de Inês como o
cordeiro se compara à do Cristo, que media a comunhão entre o mundo carnal e
espiritual e se oferece ao sacrifício‖ 99, Inês se recusa ao carnal e se oferece a Tanatos,
onde viverá para sempre:

95
Idem, estância 122.
96
Idem, Ibidem.
97
Idem, estância 118.
98
OLIVEIRA, 2000, p.23
99
Idem, ibidem.
51

(...) Mas ela, os olhos com que o ar serena


(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece 100

A súplica de Inês também indica o vislumbre do autor em relação aos


descobrimentos advindos com as Grandes Navegações, ao pedir ao rei em lugar da
morte, o exílio: ―Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,/ Onde em lágrimas viva
eternamente‖ 101
. Os argumentos de Inês não funcionam diante do rei piedoso – um
recurso já utilizado para retirar de Afonso IV a culpa. Assim, a execução de Inês é
representada com covardia, o que aumenta o clímax e confere à dama o status de
heroína, que assume a pena que o amor lhe impusera:
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amôres
Aquêle que despois a fêz Rainha,
As espadas banhando, e as brancas flôres,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidadosos 102

Cabe destacar um recurso estilístico nesse trecho: as espadas que atravessam o


colo de Inês. Conforme se destacou anteriormente o livro Noa de Santa Cruz de
Coimbra , em que consta a data e maneira da execução de D. Inês de Castro, a degola
foi sua pena, não restando dúvidas quanto à veracidade de tal fato. Contudo, segundo
Sousa103, as criações literárias não aceitaram esta versão e no lugar de representar a
degolação, citam as espadas como instrumento da execução. Assim, Camões aumenta o
clímax da ação, uma vez que a espada é arma de cavaleiros nobres, empunhada contra
inimigos que ameaçam a integridade do reino 104. O recurso camoniano ao mostrar Inês
assassinada pelas mãos de homens importantes evidencia a imagem da mulher frágil
diante das espadas que transpassam seu colo – a fim de matar não só Inês, mas o amor
por Pedro – é a mais adequada para reforçar estilisticamente a crueldade. Inês, infiel aos
valores cristãos, assim como os islâmicos, também chamados de infiéis, precisava ser
sanada pela integridade do Reino de Portugal.

100
CAMÕES, Canto III, estância 131.
101
Idem, estância 128.
102
CAMÕES, Canto III, estância 132.
103
SOUSA, 2005, p.15
104
Quanto a ideia de Reino, pode-se considerar tanto Portugal quanto Aragão e Castela. Os reinos
ibéricos se uniam no movimento das Cruzadas, frequentes no tempo de Inês de Castro, que tinham por
propósito expulsar os islâmicos, que ocuparam a Península Ibérica.
52

A pena de D. Pedro será viver sem Inês, triste até o fim de seus dias. Pedro está
morto e declara isto ao coroar Inês depois de morta. Nos túmulos, jazem as esperanças
de um encontro vindouro. No episódio camoniano, a morte não encerra o caso: antes,
glorifica Inês.
O episódio camoniano diverge dos textos de Fernão Lopes e Antonio Ferreira, em
que a figura de D. Pedro será a chave para a glorificação e exaltação de Inês de Castro.
Em Camões é a natureza que trata de assumir tal papel. Retomando o cenário idílico em
que Inês estava inserida, ―a prova glorificante é feita pela fatalidade, que vai reconhecer
o feito do herói. (...) Faz o reconhecimento através da natureza. A terra, molhada pelas
lágrimas das filhas do Mondego que choraram por muito tempo a morte da bela Inês,
faz brotar uma fonte‖ 105. Na ordem da natureza, as lágrimas derramadas pela dama são
transformadas numa fonte, onde eternamente a memória daquele lugar está ligada à Inês
de Castro:
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores 106

Ao recuar no poema, no fragmento da súplica de Inês:


Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se nêles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei 107

Pode-se verificar como a natureza ganha espaço no episódio inesiano e relação


direta com a heroína. Segundo Oliveira 108, não havendo lugar para o amor na cultura,
espaço das convenções humanas e por sua vez sociais daquele tempo, a natureza,
tradicionalmente seu oposto, seria o lugar de aceitação de amor tão puro, mesmo entre
animais ferozes. Sendo da ordem da natureza, que não tem regras para amar ou se
comportar, Inês precisa ser podada. Comparada à flor cândida, que retirada de seu lugar,
perde o viço, a beleza, a morte se precipita sobre ela:

105
OLIVEIRA, 2000, p. 28.
106
CAMÕES, Canto III, estância 135.
107
Idem, ibidem, estância 129.
108
OLIVEIRA, 2000, p. 38-39.
53

Assim como a bonina que cortada


Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lacivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada;
Tal está, morta, a pálida donzela,
Sêcas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva côr, co a doce vida 109

A vinculação da heroína com o quadro natural é predominante: seja repousando


no Mondego, onde conversa com os montes e as ervas, seja representada como flor
branca, ou ao levantar aos céus seu olhar diante da morte, quando evoca o mito de
110
Semíramis seja o cordeiro sacrificado que não recusa sua obrigação diante das forças
do destino. O poeta, por fim, evoca o Sol e os montes a apartarem daquele trágico dia a
luz, diante de grande covardia. A natureza e seus elementos eram as testemunhas das
forças antagônicas que regem a personagem.
Terminadas as dezoito estâncias ao tema, o poeta ainda menciona brevemente os
feitos de D. Pedro:
Não correu muito tempo que a vingança
Não visse Pedro das mortais feridas,
Que, em tomando do Reino a governança,
A tomou a dos fugidios homicidas 111

Novamente a figura de D. Pedro tem pouco espaço dentro do episódio. Segundo


Jacoto, ―a loucura que o teria tomado e regido as atitudes, a partir da notícia do
assassinato de Inês, não serve de matéria ao gênero‖ 112, dado que na lógica classicista a
passionalidade de D. Pedro quebraria o decoro da obra e deixaria a imagem de um rei
frágil e motivado pelas vontades. Perante os valores aristocráticos da época, não seria
válido para Camões representar um rei frágil dentro do contexto inesiano. O poeta
reservará suas críticas a D. Fernando, filho legítimo de D. Pedro.
Talvez seu esforço histórico para consagrar a memória de D. Inês de Castro tenha
atingido o objetivo: elevada à literatura do mais alto nível de erudição, Inês atinge seu
ápice lírico. Outros poetas também se ocuparão de ficcionalizar e de idealizar a imagem
da dama, que ultrapassa o tempo, fixa-se na memória coletiva e por mais de seiscentos

109
CAMÕES, Canto III, estância 134.
110
Segundo um mito de origem grega ou assíria, Semíramis, mãe de Nino, foi abandonada pela mãe, a
rainha da Assíria. Sobreviveu ao ser alimentada por aves.
111
CAMÕES, Canto III, estância 136.
112
JACOTO, 2006, p.177.
54

anos, é tema de inúmeras obras, tanto literárias quanto estéticas de um modo geral.
Entretanto, a imagem canônica de D. Inês de Castro, vítima e heroína, a tensão do amor
que a conduz à morte é a representação tradicional da sua figura. A ausência de aspectos
históricos e a divulgação do conturbado caso de amor entre um infante e uma nobre
bastarda criaram uma lenda evocada por muitos anos. Inês passa da morte à glorificação
113
e neles, impregnam-se os sentimentos tipicamente portugueses: amor e saudade.
Assim, este trabalho tem como pressuposto partir destas premissas canônicas e
verificar como a figura de D. Inês de Castro tem sido tratada na literatura
Contemporânea pós anos sessenta. Esta será a abordagem do próximo capítulo.

***

113
SOUSA, 2005, p.54.
55

3
Inês de Castro hoje

3.1 Diálogos contemporâneos e os lugares da tradição

Inês de Castro tem sido representada na literatura portuguesa há cerca de


seiscentos anos, quando os poetas depositaram em sua figura as características da
inocência e serva do amor de D. Pedro. Assim, toda a produção sobre a personagem
após o século XVI retomou estes aspectos, firmando um pacto com a tradição literária e
cultural portuguesa. Um exemplo disto é um excerto do poema de Bocage, À morte de
Inês de Castro, de meados do século XVIII:
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue;
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume;
E no fatal momento
Balbucia, arquejando: ―Esposo! Esposo!‖ 114

É provável que Bocage tenha se inspirado nos versos de Camões quando toca na
questão de Inês de Castro como vítima de um amor que não poderia recusar: a infâmia
de tal amor desperta nos maus o anseio de lavar a honra do reino no sangue casto da
dama. Serva do amor de Pedro, clama pelo esposo, outro aspecto que evidencia a
covardia praticada pelos fidalgos do rei, pois subentende-se que a união era legítima não
pelas leis humanas, mas pelas leis do amor.
Outro exemplo que aqui cabe demonstrar acerca da representação de Inês de
Castro como vítima está nos versos de Miguel Torga, publicado em Poemas Ibéricos:
Antes do fim do mundo, despertar,
Sem D.Pedro sentir,
E dizer às donzelas que o luar
E o aceno do amado que há-de vir…

E mostrar-lhes que o amor contrariado


Triunfa até da própria sepultura:
O amante, mais terno e apaixonado,
Ergue a noiva caída à sua altura.

E pedir-lhes depois, fidelidade humana


Ao mito do poeta, à linda Inês…

114
Extraído do site : http://purl.pt/1276/1/poemas.html
56

À eterna Julieta castelhana


Do Romeu português 115.

Ao comparar Inês de Castro à Julieta116 de Shakespeare, o poeta tem por propósito


evidenciar todo o sofrimento que a dama portuguesa , assim como a jovem de Verona,
enfrentou por conta do amor: a morte sela o pacto amoroso entre ambos e a eternidade é
o lugar onde podem desfrutar de eros, que ―triunfa da própria sepultura‖: a vitória de
Inês é ser lembrada pós-túmulo, conforme aponta Maleval: [ o corpo de Inês] ―Se
considerado não apenas no seu sentido de corpo desenterrado, mas de corpo tirado do
esquecimento para todo o sempre, com o alcance de duradoura fama‖ 117.
Tal modelo foi mantido até o século XX, sobretudo após os anos sessenta, quando
a tradição foi desconstruída, pois autores contemporâneos rompem com a tradição e a
representação de Inês de Castro. Inês é deslocada do centro da narrativa para dar lugar
ao seu algoz em Teorema ou ser ressignificada nas inúmeras possibilidades de
Adivinhas de Pedro e Inês. Deixa de ser o fio condutor do caso que seu nome intitula,
para ser ressignificada. Contudo, é reconduzida ao centro da narrativa em Minha
Querida Inês. Assim, pretende-se evidenciar os movimentos que a figura de Inês de
Castro sofreu em quarenta e três anos. O que se pode observar é uma retomada do olhar
canônico sobre a obra, sem negar aspectos contemporâneos.

3.1.1 O surreal como artifício ficcional: Teorema, de Herberto Helder

Teorema foi publicado em 1963, no livro de Herberto Helder “Os passos em


volta” quando o autor foi repatriado e passou a trabalhar na Fundação Callouste
Gulbenkian. O título do conto adianta a ideia que se propõe a apresentar e a própria
definição do vocábulo teorema, de acordo com Evanildo Bechara que dizer ―proposição
que necessita ser demonstrada para ser admitida‖ 118
. Aproximando-se do campo da
Matemática, um teorema aponta o caminho, evidências para um resultado, uma verdade.

115
Extraído do site: http://inescastro1000.blogspot.com.br/2010/03/poema-de-miguel-torga.html
116
Romeu e Julieta é uma tragédia escrita por Willian Shakespeare, no século XVI. Trata da rivalidade
entre famílias influentes de Verona, Itália. Os jovens Romeu e Julieta, oriundos destas famílias, se
apaixonam, atenuando as brigas entre os rivais. Cultivam o amor escondidos, e têm como álibi um padre,
que os ajuda no plano de fugirem. Ao final, há um equívoco no trato de tal fuga: Julieta toma uma
substância para se fingir de morta a fim de fugir com Romeu. A notícia não chega ao jovem que, ao ver a
amada no túmulo, se mata. Julieta acorda e vê Romeu morto, e em desespero, e se mata.
117
MALEVAL, 1995, p.111.
118
BECHARA, 2009, p.855.
57

Não foi de maneira despropositada que Helder escolheu este título, tendo em vista a
forte cisão com a tradição que o conto apresenta.
O conto traz uma releitura da crônica de Fernão Lopes, quando o autor recorre não
à personagem de Inês de Castro, mas ao conselheiro de D. Afonso IV, Pero Coelho. Inês
já não é mais o centro da narrativa, composta em primeira pessoa: cede voz à parte
envolvida no caso para que possam ser ouvidas as suas razões:
Isto se observa logo a partir do próprio ponto de vista em que se constrói a
narrativa, tal seja a visão de um dos assassinos – Pero Coelho – no além. A
partir de tal perspectiva, subvertidas são igualmente a noção de tempo
cronológico e espaço físico delimitado119.

Pero Coelho como narrador 120 conta os procedimentos da sua pena de execução e
os motivos que o levou a incitar no rei a pena de Inês de Castro. A narrativa se inicia
com elementos anacrônicos:
Sobre a praça onde sobressai a estátua municipal do Marquês de Sá da
Bandeira.(...) Distingo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o
barbeiro de bigode louro que veio à porta assistir ao meu suplício.Distingo
também a janela manuelina (...) O cláxon de um automóvel expande-se
liricamente no ar 121.

É importante mencionar que o D.Pedro reinou no século XIV; o Marquês de Sá da


Bandeira é uma figura histórica do século XIX; a arquitetura manuelina desenvolveu-se
no reinado de D.Manuel I, no século XV e o automóvel surge com a revolução
industrial, no século XIX. Helder apresenta ao leitor a ideia de que a narrativa se repete,
através da imaginação coletiva, constantemente ao longo do tempo:
Mas o estranhamento que mais aturde o leitor é a relação desse foco com o
tempo da narração: tudo se passa no presente da enunciação,(...) como se
recuássemos ao século XIV e estivéssemos na praça, confundidos com os
transeuntes que pararam para assistir ao suplício do algoz 122.

Helder representa as supostas ira e frieza de D.Pedro, indicadas no texto de Fernão


Lopes, bem como as razões que o levaram a ordenar a execução. O narrador chama o rei
pelo título que ficou conhecido: Cruel. Interessante verificar que, no decorrer do conto,
as expressões adverbiais de lugar sempre ocupam lugar de destaque: demarcam não só o
lugar dentro da narrativa, como ratificam posições hierárquicas – o rei no alto e o
condenado abaixo – como permitem verificar como o episódio entranha nos lugares ao

119
Idem, p.112.
120
Ao que parece através das analogias tratar-se de Pero Coelho, apesar do modo de execução (arrancar o
coração pelas costas) ter sido sofrida por Álvaro Gonçalves, segundo o texto de Fernão Lopes.
121
HELDER, 2010, p.84, 85 e 86.
122
JACOTO, 2008, p.178.
58

longo dos séculos. O episódio alcança uma temporalidade e intemporalidade ao mesmo


tempo. Está inscrito num tempo, mas também está fora dele para se perpetuar:
El-Rei D.Pedro, está à janela (...) Gosto desse rei louco, inocente e brutal.
Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas
endireito a cabeça, viro o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto
violento e melancólico de meu pobre Senhor. Por baixo da janela aonde
assomou há uma outra, em estilo manuelino (...) e detém-se em mim, em
baixo, em mim que me ajoelhei no meio de um grupo de soldados 123.

Outra evidência de que as demarcações de lugar têm grande importância é que


Pero Coelho vira o pescoço para a esquerda momentos antes de ser executado. Após a
execução, a lateralidade do narrador será indicada para o lado direito. Tradicionalmente,
o lado esquerdo foi acusado de ser a lateralidade incorreta; o esquerdo como aquele que
era marcado pela diferença. Ao ser executado e se cumprir um destino irrecusável, a
ordem é restabelecida e Pero Coelho indica o lado direito, como ―O rei segura meu
coração com a mão direita (...) tombei com a face direita na calçada (...) ‖ 124.
Carregado de ironia, o narrador prossegue sua descrição. Ao contrário do que se
tem por evidências históricas conhecidas – a morte de Inês ser ―Razão de Estado‖ – ,
Coelho afirma que isso não tinha importância, desmente a tradição literária que se
ocupou também desta razão. Em Teorema, Pero deveria salvar o infante da obsessão
pela dama e declara que o rei sabia que não haveria razões políticas senão as razões que
salvariam D.Pedro, ―contrariando o narrador de saída as causas históricas atribuídas ao
assassino de Inês de Castro‖ 125:
Fui condenado por assassínio de sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis
defender-me, alegando que eu era um patriota. Que desejava salvar o reino da
influência castelhana. Tolice. Não me interessa o reino. Matei-a para salvar o
amor do rei. D.Pedro sabe-o 126.

Rompe também com a imagem consagrada de Inês, ―amante favorita‖, ironia com
que trata do tema e certa razão, pois como se evidenciou no capítulo anterior, D. Pedro
ainda teve outro filho, Mestre de Avis, com uma dama chamada Teresa. Opõe-se às
narrativas tradicionais, que santificavam Inês. Helder, ao contrário, ―procede-se não à
santificação do caso, mas à sua satanização‖ 127
, pois demoniza os envolvidos e o amor
que tanto se defendeu como causa do ensandecimento:

123
HELDER, 2010, p. 83, grifos nossos.
124
Idem, p.85.
125
MALEVAL, 1995, p.112.
126
Idem, p.83.
127
MALEVAL, 1995, p.113.
59

Sei que vou para o inferno, visto eu ser um assassino e o meu país ser
católico (...) O rei e a amante são também criaturas infernais.Só a mulher do
rei, D.Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o
perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha 128.

D. Constança, por ser de boa virtude, misericordiosa, quase esquecida no tempo,


não ganha prestígio de Pero Coelho. Ao contrário, o algoz a despreza, pois sua
insignificância reside nos bons atos, marcados de santidade. A rainha não tem lugar na
narrativa adúltera entrelaçada das vontades da carne e do desejo, pois, do ponto de vista
do narrador, todos são criaturas infernais: Inês por aceitar ser amante e assim estar fora
das leis; Pero Coelho que assume o assassinato da dama e D. Pedro, que, segundo o
narrador, ―o quanto este homem trabalhou pela nossa obra! Fez transportar o cadáver da
amante de uma ponta à outra do país, às costas do povo, entre tochas e cânticos‖ 129.
Segundo a Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes,130 Coelho teria dito algumas
palavras de injúria contra o rei, chamando-lhe ―treedor, Fe perjuro, algoz e carneçeiro
dos homeens‖ 131
, ao que o rei ordena a execução. Em Teorema, Coelho tem a chance
de dizer a verdade, confessa seu crime. ―Como que evocando um ritual de missa negra,
acontecem procedimentos semelhantes ao de um ofertório, à confissão, à comunhão‖:
Senhor- digo eu- agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D.Inês.
Isto era preciso para que o teu amor se salvasse.
-Muito bem, responde o rei- Arranquem-lhe o coração pelas costas, e tragam-
mo 132.

O narrador-personagem prossegue o seu relato, mesmo após ser executado,


execução que firma uma comunhão entre assassino e assassinado, evidencia como é
necessário que a pena se cumpra, que a loucura do rei se faça:
Escolhem-me um sítio nas costas para enterrar o punhal. Estremeço. (...) Uma
pancada de alto a baixo, um sulco frio ao longo do corpo- e vejo meu coração
nas mãos de um carrasco. Um moço do rei espera com a bandeja de prata (...)
e nela põem o coração fumegante. A multidão grita e aplaude; só o rosto de
D.Pedro está triste, embora nele brilhe uma súbita luz interior de triunfo.(...)
O rei sorri. Ergue o coração na mão direita e mostra-o ao povo.O sangue
escorre-lhe (...) Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma
grande responsabilidade encontrar-se alguém à cabeça de um povo assim.
Felizmente o rei está à altura do cargo.(...) Somos todos loucos 133.

128
HELDER, 2010, p.84,85.
129
HELDER, 2010, p.84.
130
LOPES, 1979, p.199
131
Idem, p. 200.
132
HELDER,2010, p. 84.
132
Idem, ibidem.
133
Idem, p.85.
60

Após ser assassinado, o narrador continua a descrição, e no presente do indicativo,


demonstrando a eterna tristeza do rei e o eterno retorno ao episódio de Inês de Castro. O
narrador demonstra a tristeza e pura loucura do rei. Encara a morte sem desespero, pois
de nada adianta proclamar Inês como rainha. A morte selava o amor e a loucura de D.
Pedro. Ao povo resta aplaudir, consagrar e rememorar a narrativa ao longo dos anos,
pois também se sentem vingados com a morte de Coelho. Um misto de comoção e
loucura marca o ápice do conto.
Retomando comparação do sacrifício de Coelho a uma missa negra, o narrador faz
novamente uma analogia com o texto de Fernão Lopes ao narrar que após ordenar a
execução, ―E elRei dizemdo que lhe trouxessem çebolla e vinagre pera o coelho,
emfadousse delles e mandouhos matar (...) de guisa que comendo oolhava quamto
134
mandava fazer‖ . A analogia do prato servido ao rei, da Crônica de Fernão Lopes,
aparece em Teorema como uma extensão da existência e da alma de Pero Coelho, seu
coração extraído. O nome do fidalgo escolhido por Helder – não é descabido que o autor
tenha escolhido o nome de Pero Coelho e não o de Álvaro Gonçalves – cria uma relação
de sentidos entre os dois textos. Em Teorema, a comunhão entre D. Pedro e Pero
Coelho atinge sua plenitude quando o narrador-personagem conta:
um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, os maxilares movem-se
devagar. O rei come meu coração. (...) E eu também irei crescendo na minha
morte, irei crescendo dentro do rei que comeu meu coração 135.

A partir disto, o conto tem seu desenrolar e, diferentemente de Lopes que cita que
os corpos dos fidalgos foram queimados, a representação do fogo se dá por meio de
metáfora da comunhão entra as almas de Pero e Pedro: ―Seu corpo [do rei] ir-se-á
reduzindo à força de fogo interior e a paixão há-de se alastrar pela sua vida (...) E eu
também irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração‖ 136
. O fogo, conhecido
na idade média por purificar as almas, estabelece o pacto de comunhão entre ambos faz
com que Inês seja a causa de todo o acontecimento:
D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta-se do casulo carnal,
transforma-se em luz, em labaredas, em nascente viva. Entra nas vozes, nos
lugares. Nada é tão incorruptível como a sua morte. (...) No crisol do inferno
havemos de ficar os três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-
nos como alimento, de geração em geração 137.

134
LOPES, 1978, p.148.
135
HELDER, 2010, p.85, 86.
136
Idem, ibidem.
137
Idem, ibidem.
61

Tal pacto permite que a tradição rememore Inês de Castro ao longo dos anos: a
morte, elemento fundamental para que sua imagem se fixe, permite que nada abale ou
deteriore o episódio fixado nas narrativas do tema. Assim, são os três igualmente
criminosos, condenados à pureza eterna do fogo que purifica. Não há crime, há, pois,
evidências do teorema para que Inês de Castro seja rememorada e representada nas
artes: o narrador enuncia sua conclusão do teorema. Era preciso que o destino se
cumprisse: ―Percebo como tudo está ligado, como é necessário as coisas se
completarem.‖ 138
. A imagem casta de Inês é abalada, dando lugar à barbárie praticada
em seu nome.
Cabe destacar que Os passos em volta foi publicado no período em que o Estado
Novo Português intensificava seu ideal de nação, apesar de estar em evidente
decadência. No livro, não há nenhuma menção direta aos absurdos praticados pelo
139
governo salazarista. Entretanto, pode-se observar o que Jacoto aponta como um
espírito da alma coletiva. À medida que o Estado Novo imprimia e divulgava a imagem
de Vasco da Gama como colonizador, home expansor do império, Helder retrata em
Teorema um povo bárbaro, de fé cega e que tem um líder à altura, tão bárbaro, arbitrário
e cru. Uma analogia a Salazar?
O conto dá expressão ao que ficou á margem da epopeia [camoniana],
devolvendo a Portugal sua imagem primitiva: nele, contracenam as criaturas
infernais, o rei louco, a amante e o assassino, criaturas relegadas à sombra da
imagem que sustentava o sonho do Império Cristão no Ocidente 140.

Vale destacar que, em 1945, João Leitão de Barros produziu um filme sobre Inês
de Castro, patrocinado pelo Estado Novo. Uma tentativa do governo para criar uma
identidade nacional a partir de narrativas tradicionais, esforço semelhante ao do Estado
Moderno no século XIX, quando retomou as narrativas de fundação da pátria, em sua
maior parte, medievais.
De qualquer maneira, a voz de Helder dribla a censura política, subverte e
ressignifica o episódio de Inês de Castro, rompendo, assim, com a tradição literária à
medida em que não nega a importância do tema, mas reconfigura o eixo e pontos de
vista narratológicos.

138
HELDER, 2010, p.84.
139
JACOTO, 2008, p.183.
140
Idem, p. 184.
62

3.1.2 Adivinhas de Pedro e Inês: quando adjetivações inesianas rompem


com a tradição

Da autoria de Agustina Bessa-Luís, Adivinhas de Pedro e Inês foi publicado em


1983. Premiada em 1953 e 1954 com a publicação de A Sibila, a autora tem sido um dos
grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea, abordando temas femininos:
reconstrói-os sem fixar-se num padrão de personagens ao recorrer ao ―tom empregado
de quem não define nada, apenas sugere ou insinua, como se a narradora apalpasse o
terreno movediço das psicologias individuais‖ 141
. Embora a obra seja rica no episódio
como um todo, este trabalho atenta para as representações da figura de Inês de Castro,
que Agustina ficcionalizou.
Trata-se de uma investigação sem compromisso com o discurso histórico, onde o
título sugere o processo ficcional: a narradora levanta inúmeras hipóteses para os fatos
históricos, romanceando-os, atribuindo novos significados, onde rompe com os
discursos oficiais, sem negá-los. A obra é rica quanto à matéria histórica, pois parte dos
pormenores da sociedade medieval portuguesa– apesar de inúmeras vezes retornar no
tempo para falar dos senhores da Galiza, Castela e Portugal - da economia e, sobretudo,
dos costumes nas cortes e fora dela. Trata-se de uma investigação das possíveis e
inúmeras verdades que cercam o tema, presentes na figura de Inês de Castro.
A (s) projeção (ões) de Inês de Castro é talhada em meandros que oscilam: ora
Inês é movida por amor, ora por interesses políticos; ora é inocente por desconhecer a
política que lhe envolve; ora a demonstra toda a inclinação e ambição cultivadas desde
cedo por sua mãe adotiva, D. Teresa Albuquerque.
Divido em dez partes, a narrativa consiste em: I – Inês Peres ; II – A coroa
exterior ; III – Ninho de Garças ; IV- Diálogos Imperfeitos ; V- Os Castros ; VI – A
Touria ; VII – Poetas e desalmados ; VIII – A Beleza ; IX – Coisas Estranhas ; X –
Coroação. Os exemplos demonstram apenas um verbo: ser. São verbos de
permissão/modalizantes, ou seja, que indicam probabilidade, como as expressões
impessoais ―é provável‖, ―é possível‖, etc. Não são inseridos despropositadamente,
tendo em vista o processo ficcional que se constitui a obra logo indicada em seu título,
Adivinhas desconstrói a tradição e abre a obra, movimento tipicamente contemporâneo:

141
MOISÉS, 2006, p.621.
63

À medida que avança em suas pesquisas, a narradora constata a inviabilidade


de seu projeto. Percebe que é impossível descobrir uma verdade, pois esbarra
em vazios intencionalmente deixados para que certos fatos jamais viessem à
luz. (...) Em suas digressões, aponta a primazia da verdade ficcional em
relação às supostas verdades históricas, estas comprometidas com os
interesses do poder 142.

A obra se inscreve num lugar que não pertence somente mais ao que se escreveu,
mas que se propõe a ir além do que os grandes escritores abordaram acerca de Inês de
Castro: aponta as possibilidades que o tema oferece, extra discurso histórico, que
carrega em si o compromisso com uma verdade, ainda que esta verdade esteja
comprometida com o poder vigente:
A História é uma ficção controlada. A verdade é coisa muito diferente e jaz
encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da angústia
humana. Investigar a História ou os céus obscuros não se compadece com
susceptibilidades. Que temos nós a perder? A personalidade não existe, mas
sim efeitos que a desenham como os efeitos da luz sobre os corpos. Por isso
não causamos danos no carácter dos povos quando aventuramos paixões e
factos que, no fundo, são a projecção do mais humilde dos cabaneiros e
zagalos 143.

Partindo do fato de que o leitor tenha mínimo conhecimento do caso, a narradora


afirma a tradição, ao mencionar a bastardia de Inês, mas questiona a imagem cunhada
pelos poetas:
A dama Inês, bastarda de uma casa em que predominavam os homens, entre
os quais se destaca o pai, (...) não seria exactamente ingénua, como não eram
as jovens desses tempos tão propícios a fixações incestuosas, conflitos
emocionais, e o que se chama globalmente vivências traumáticas 144.

Desta maneira, a narradora considera as guerras e pressões sociais daquele tempo,


principalmente das mulheres envolvidas no poder e nas cortes. Considera o caso dos
Castros, pois ―eram gente poderosa e bastante dúbia nos pactos da sua casa‖ 145
. Assim,
a tão atribuída inocência de Inês de Castro seria uma construção através dos tempos, o
que em algumas hipóteses da narradora não diminuiria sua beleza. Evidências de que a
narradora parte de um ponto de vista contemporâneo, é quando apresenta Inês ao leitor
no início de seu texto:

142
SOARES, artigo extraído de http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno09-03.html
143
BESSA-LUÍS, 1986, p.201.
144
Idem, p. 20.
145
Idem, p. 96.
64

Donde vinha ela, essa donzela peregrina, moldada ao gosto medieval e que
devia causar nos homens novos a mesma impressão que hoje causam os
modelos da Vogue ou das marcas de aperitivos 146?

Um misto entre a tradição e a contemporaneidade são exemplos de como poderia


ser a tão evocada beleza de Inês de Castro: a narradora a compara a Isolda e à Aude,
ideal feminino medieval – que só existem à medida que o amado também existe – e a
compara uma supermodelo, provavelmente famosa, digna de estampar a capa de uma
revista da alta moda feminina – mulher do século XX, livre, em parte, das imposições
do patriarcado. Ao propor os símbolos máximos da beleza insuperável da dama, a
narradora aproxima o leitor do ponto de vista contemporâneo ao fazer equivaler a figura
da dama a uma top model. Contudo, o processo de adivinhação constante também
apresenta o ponto de vista de D. Constança sobre a beleza de Inês:
Uma cara mais cheia do que espiritual, uns braços carnudos demais; o colo,
tão célebre, tinha a tendência para tornar-se espesso e taurino. E a estatura
não era tão majestosa como parecia; enganava muito, com aquele recurso das
caudas, dos véus, das faixas soltas como bandeiras que esvoaçassem em volta
dela 147.

Também ficcionaliza sobre a inclinação política que poderia ter sido cultivada em
Inês de Castro, ―mulher educada para a obediência política‖, 148
desde muito cedo por D.
Teresa de Albuquerque, mãe adotiva e tutora da dama. Segundo o romance, Inês
pretendia, sim, o trono e a sua presença não era inapropriada no séquito de D.
Constança, rejeitada duas vezes por motivos políticos. Segundo a narradora, Constança
era a vítima da força que Inês envolveu Pedro e a motivação política por trás da beleza e
sedução:
Ela pretendia, por meio da sua identidade negativa, a de estrangeira, assumir
uma função social evidente - a de rainha. A sua influência sobre o infante
partia dessa claridade negativa; de tornar reais as suas pretensões (...) Não
era uma mulher inocente nem perversa. Era uma pessoa perigosa, é certo,
porque reflectia a personalidade tenebrosa que cada um sabe conter e espera
exorcizar149.

A escritora rompe com a tradição ao colocar Inês de Castro em lugar de uma


pessoa comum, que, na iminência de alcançar a coroa, jogaria com outros envolvidos no
poder para deter dele a força de fazer valer sua vontade de poder. Um jogo de interesses
políticos claramente evidenciados pela narradora.

146
Idem, p. 25.
147
Idem, p. 159.
148
Idem, p. 73.
149
Idem, p.73.
65

Para além do psicológico da personagem, a narradora realiza a leitura do túmulo


de Pedro e Inês, no Mosteiro da Alcobaça. Destaca o costume medieval de louvar a
fertilidade da mulher. Aliás, aproximações com a Virgem Maria são constantes: a
coroação da dama depois de morta – como a coroação de Maria, representação
tipicamente medieval – e o volumoso ventre, segundo a narradora, indicaria a
possibilidade de Inês estar grávida ao ser assassinada, aumentando, assim, a culpa dos
algozes.
Outra oscilação entre as possíveis faces de Inês de Castro – e a adjetivação é rica
quando se refere à personagem – seria a analogia do colo de Inês de Castro, que por
muito tempo tem sido chamada de Colo de Garça, por suposta beleza, altivez e
elegância. Contudo, a narradora, ao investigar as razões deste título que a tradição
consagrou, levanta a dúvida desta verdade:
Ao chamarem a Inês ―colo de garça‖, não se sabe se isso foi apenas galanteio,
ou se tinha também o sentido injurioso introduzido na língua francesa em
1175. A garça é a única ave que acasala fora do tempo da procriação; daí, o
seu nome ser aplicado à prostituta 150.

É interessante verificar a questão levantada sobre a ambiguidade que o termo Colo


de Garça possibilita: no século XIV, pode representar o amor e o sexo livre das
convenções sociais, o que era repudiado pelo catolicismo que já havia fortalecido seus
ideais ao ser fixado nos costumes da vida privada. Como pode o mesmo termo ser
talhado como uma adjetivação positiva, engrandecedora? A narradora não descarta as
possibilidades que as lacunas sobre a figura de Inês de Castro oferecem. Novamente,
aparece ambígua, pois de ambiciosa não poderia passar de um enfeite social de D. Pedro
para afrontar o pai:
Mas Inês seria de facto uma autêntica Castro, com o seu lado calculador, o
seu lado afectivo e tendente às insinuações da memória, capaz de traição, mas
capaz de dedicação cega? É possível que fosse assim. E também muito bela.
(...) Inês devia constituir o que se chama o mobiliário de ostentação, o que
era, em princípio, a mulher no paço e na albergaria 151.

Ao chamar a atenção para a importância do feminino, a imagem de Inês é


explorada mais próxima do nível da interpretação do que da exposição: o texto é
152
apelativo, ao estabelecer uma relação dialógica com o leitor . E assim, levanta a
hipótese de que a dama nunca tenha amado Pedro. Ao romper com a tradição – cita

150
Idem, p. 53
151
Idem, p. 74
152
MARINHO, s/a, p.7.
66

Trovas à Inês de Castro, de Garcia de Resende e A Castro, de Antonio Ferreira – a


narradora constitui a ambiguidade sobre a inocência da dama e como a literatura fez uso
do caso: ―Depois, os poetas arrebataram‑se com o material romântico, que está no
louvor dos mártires‖ 153.
Outra ruptura com a tradição canônica se dá quando a narradora pretende
questionar a veracidade de Fernão Lopes n‘ A Crônica de Dom João I 154
, ou seja, o
discurso oficial primeiro acerca de Inês, pois Lopes se esquivaria da verdade, sabida ou
não, sobre Pedro e Inês. Não há alternativa para o cronista tendo em vista sua
perspectiva política e como ele teria deixado evidente esta deficiência em seu discurso:
Em muitas palavras se vê que Fernão Lopes não conhecia os factos, que é a
melhor maneira de parecer sincero sobre eles. Para melhor rebaixar Inês,
apresenta um Dr. João das Regras titubeante e pouco informado, o que não é
de crer, que em toda a parte havia quem lhe trouxesse notícias desses
acontecimentos 155.

A fim de pôr abaixo as verdades consagradas pelo mito, a narradora investigativa


também questiona o ponto de vista da narrativa histórica sobre as famílias dos
conselheiros do rei Afonso IV. Faz uma vasta árvore genealógica de Pero Coelho e
Diogo Lopes Pacheco, pois eram descendentes de conselheiros, trovadores e influentes,
diferente do que a tradição literária se encarregou de os consagrar como alguns dos
antagonistas de Inês de Castro:
Quando se nos ensinava, nas aulas de História, o episódio de Inês de Castro,
sobressaíam as figuras denegridas de Pacheco e de Coelho. Homens que
pareciam andar rentes às paredes, congeminando atentados, tendo ao seu
serviço fideputas ladrões e comedores de vianda vil, para usar a linguagem
formosa de Gil Vicente. E digo formosa não no estilo vicentino, que sempre
quer dizer coisa contrária; mas porque é apropriada, e o que é justo é elegante
e de bom uso. Ora, tanto Coelhos como Pachecos eram do melhor que
Portugal tinha156.

Por não obedecer a uma ordem cronológica, as possibilidades sobre as razões de


Inês de Castro se dão à medida que a narradora levanta aspectos ambíguos e esmiúça-
os, como quem disseca todas as possibilidades inscritas pelos discursos oficiais,
inscrevendo novos significados para tais discursos, pois menciona que

153
BESSA-LUÍS,1983, p.81.
154
Nesta crônica, pode-se verificar o discurso do Dr. João das Regras a respeito da veracidade do
casamento de Pedro e Inês. Conforme exposto no II capítulo deste trabalho, o cronista estava envolvido
com a causa de Avis. Assim, não poderia discursar a favor dos filhos de Inês, pois seu compromisso era
com a nova dinastia.
155
Idem, p.97
156
Idem , p.208.
67

No fundo, Inês era inofensiva; não ocupava mais espaço, com todas as suas
ambições puramente de índole arcaica e próprias da mentalidade feminina, do
que qualquer outra esposa nietzschiana, gata ou pomba, conforme as
circunstâncias. Simplesmente ela harmonizava, dava sentido a uma certa
fraqueza do infante 157.

Encerra sua análise ao afirmar que Inês de Castro provavelmente despertou o


amor de D. Pedro por ser uma mulher comum e deixa a dúvida na imaginação do leitor,
pois na verdade, a figura de Inês era ―o princípio de desintegração que punha em causa
um dado psicológico inato da população, que era o desejo de durar como povo e acção
coletiva‖ 158
. Em suma, o caso seria um motivo para que os sentimentos do amor, da
partida e da saudade, tipicamente portugueses, pudessem ser cristalizados na cultura
lusa, principalmente em sua literatura.
Ao propor uma imensidão de possibilidades para o caso, a narradora sugere que
de fato, Inês pretendesse a coroa, que recebeu pós-morte. Difícil concluir uma verdade,
pois ao passo que se propõe a trazer luz sobre o caso de amor, também o encobre.
Segundo Marinho, ―Inês é o mistério permanente, difícil de compreender, porque suas
motivações estão constantemente dissimuladas e são, sempre, profundamente
ambíguas‖ 159.
Por fim, a narradora percebe que a busca por uma verdade é inútil e deposita na
imaginação do leitor a conclusão - ou não – sobre o caso, evidência de que as lacunas
deixadas pelo tempo e pela História são as características que continuam a despertar nos
escritores inspiração para tratar do tema, enraizado profundamente. Apesar de ter
pertencido a um tempo já distante, Inês de Castro continua a perpassar o imaginário e a
cultura de maneira muito agregada à cultura lusitana:
As adivinhas de Pedro e Inês ficam entregues à imaginação do público, dos
leitores, sobretudo aqueles que se preocupam com a descrição de uma
identidade nacional e sabem que ela nos é imposta do exterior, primeiro que
tudo. Ela é a soma de imagens em que não nos reconhecemos mas que estão
presas a nós com singular firmeza e às quais não podemos escapar. Pedro e
Inês são imagens dessas 160.

Cabe ao público atribuir significados que lhe forem mais plausíveis: não mais a
Inês que o imaginário coletivo cristalizou nem a bela Inês inocente dos poetas, mas uma
mulher que tem suas adjetivações exaustivamente trabalhadas, a fim de que o leitor lhe

157
Idem, ibidem.
158
Idem, ibidem.
159
MARINHO, s/a, p. 17.
160
Idem , p.207.
68

atribua o significado que lhe for mais conveniente. A riqueza da obra de Agustina reside
no mesmo caráter do mito do amor de Pedro e Inês: lacunas deixadas pela História que
serviram de inspiração aos poetas, mas que se enchem de possibilidades nas
perspectivas propostas pela narradora.

3.1.3 Inês retorna ao centro narrativo: Minha Querida Inês e o decalque


agustiniano

Após as pesquisas que este trabalho se propôs a realizar, verificou-se que não há
análises acadêmicas sobre o romance em questão. Assim, este item tem por propósito
dar circulação a análises preliminares, resultados da leitura desenvolvida e a
comparação das projeções da figura de Inês de Castro do citado romance com As
Adivinhas de Pedro e Inês, por carregar traços visíveis de decalques desta obra. Após a
leitura, ficou evidente que algumas das hipóteses que Agustina Bessa-Luís desenvolveu
em seu romance serviram de inspiração para o romance de Margarida Rebelo Pinto.
Desta maneira, a análise que aqui se propõe é fruto da pesquisa deste trabalho. Pretende-
se citar como o romance foi recebido pelo público na internet e os comentários sobre
ele. Ainda que impregnado de sentimentalismos, a obra é relevante para que se
evidencie como o tema tem sido abordado na literatura portuguesa atualmente.
O romance Minha Querida Inês foi publicado em 2011 pela Editora Clube do
Autor. Desenvolve-se na primeira pessoa, quando a própria Inês é reconduzida para o
centro da narrativa assumindo o papel de narradora-personagem. É ambientado no Paço
de Santa Clara – a edição de 2011 conta com o mapa do Paço – e o fio condutor do
tempo consiste nos últimos sete dias de vida personagem principal, longe de Pedro. Inês
pressente a morte iminente, onde seu destino se cumpre conforme a tradição se
encarregou de tornar conhecida: a desconfiança por ser galega, amante e não ter se
casado com o infante Pedro, pelo amor adúltero e pela questão de Estado.
Embora assuma o erro aos olhos da sociedade de seu tempo, a narradora toma
uma posição tipicamente contemporânea por não sentir culpa ou arrependimento, ou
seja, uma espécie de amor livre: conhece seus dotes e artifícios femininos e descreve a
paixão de Pedro por ela. Pedro pouco aparece na narrativa e, segundo a própria
narradora-personagem se deva à sua inaptidão para lidar com conflitos de modo
racional. Parte da data de 1º de janeiro, quando Inês pressente que algo estranho irá lhe
69

acometer. Seu discurso se intercala com o das personagens históricas e ficcionais –


todas mulheres-, estas mais carregadas de traços da obra agustiniana.
Inês também defende que as estranhezas que percebe em D. Pedro são frutos do
pouco amor cultivado pelo pai, que estivera ocupado nas guerras contra o pai. O
comportamento do infante se deve à falta de carinho:
Lembro-me de El-rei o detestar [Afonso Madeira], como detesta todos
aqueles que conquistam o coração de Pedro, já que ele, enquanto seu pai,
nunca foi capaz de tal proeza, talvez porque o seu próprio pai, D. Dinis,
nunca o amou como amou o ilegítimo D. Afonso Sanches 161.

O universo feminino é carregado nos discursos das personagens femininas, bem


como a contestação das mulheres e sua importância dentro da lógica da sociedade
romanceada na obra. São exemplos disto a imagem da lua, que é constantemente
utilizada por Inês para medir o tempo, em vez do sol:
O ninho perfeito onde Pedro e eu nos amamos todas as noites sempre que
estamos juntos, lugar abençoado pela graça de Deus onde a pequena Beatriz
foi concebida numa noite de lua cheia. Acordo um pouco indisposta e
lembro-me de que as regras estão em atraso há uma lua. Será que o meu
ventre carrega já outro filho de Pedro162?

Assim, também fica evidente que a autora possa ter recorrido à leitura agustiniana
do caso, que sugere que Inês estivesse grávida quando foi assassinada, um dos
significados possíveis da leitura do túmulo:
Isto é medida de recurso que nenhuma mulher em idade fecunda se atreve a
desdenhar. É abalado com essa confissão que D. Afonso se retira; não com as
lágrimas das crianças, que não estariam sequer presentes. Mas teme a
crueldade exercida sobre o feto, teme a repercussão desse crime, e D. Pedro
sabe fazer perdurar essa mancha, porque ordena que o corpo de Inês, na
história tumular, ascenda na figura de uma mulher grávida 163.

As mulheres são representadas pela imposição masculina, apesar da recorrência


frequente à imagem bondosa e casta da rainha D. Isabel – e aqui não há rupturas com a
tradição – e D. Brites, que percebe a necessidade de levar D. Fernando para brincar com
seus irmãos bastardos, filhos de Inês: ―A rainha D. Brites, sua avó, que não o [D.
Fernando] larga por um instante, já o levou a conhecer os meios-irmãos, filhos de
164
Pedro‖ . Contudo, a desconfiança masculina reina e Álvaro Gonçalves, um dos

161
PINTO, 2011, p.51
162
Idem, p. 47.
163
BESSA-LUÍS, 1983, p.113.
164
PINTO, 2011, p.39.
70

algozes de Inês que acaba por ganhar espaço na narrativa, diferentemente de Pero
Coelho, diz que:
São as mulheres, quase sempre as mulheres, quem provocam as maiores
desgraças no poder. Os homens perdem o senso e a razão na alcova de uma
mulher que conheça as manhas da carne. Ficam como cordeiros indefesos,
prontos para serem mortos pelos seus pares. Veja-se o infante D. Pedro, que a
todos assusta, e, no entanto, é Inês quem o domina165.

O que se verifica é uma continuidade do texto lopesiano, pois Fernão Lopes


condena a perdição amorosa em que D. Fernando se viu, quando diz que ele perdera o
siso. A continuação da representação tradicional da personagem permanece no texto
contemporâneo.
De maneira antagônica, as personagens masculinas e femininas ocuparão lugares
opostos, um recurso maniqueísta a que a autora recorre para que na ficção fique
evidente que se tratou de uma questão política, além de um embate entre gêneros. A
personagem masculina que recebe destaque neste estudo, além de Álvaro Gonçalves é o
escudeiro Afonso Madeira. Segundo a crônica de Fernão Lopes, este seria um escudeiro
fiel e que, tendo se relacionado com uma mulher casada, D. Pedro manda capar:
E como quer que o ElRei muito amasse, mais que se deve aqui dizer, posta
adeparte toda bem querença, mandouho tomar em sua camara e mandoulhe
cortar aquelles menbros que os homeens em moor preço tem 166.

Considerando que o trecho lopesiano poderia abrir a interpretação de uma relação


amorosa entre D. Pedro e o escudeiro, ela é sugerida também por Agustina Bessa-Luís
em Adivinhas:
O facto de D. Pedro ser suspeito de ser afeiçoado ao seu escudeiro Afonso
Madeira mais do que é decente conjecturar, e por isso o justiçou tão
barbaramente - por ciúme e não severidade mais casta. Ora os factos de
entretenimento são as calúnias e não as verdades; o que todos acreditam e
ninguém cala. Mas, diga-se o que se disser, a ―cantiga de amigo‖ não foi uma
trova de efeminados, a mais bela que se compôs até hoje 167.

Assim, Margarida Rebelo irá desenvolver o antagonista amoroso de Inês de


Castro, esta que odeia o escudeiro do marido e tem conhecimento do caso entre ambos.
Sendo encarregado de vigiar o Paço de Santa de Clara, Afonso Madeira facilita a
entrada dos executores de Inês de Castro:
Cabra vil e insensível, filha de uma bruxa, hás-de morrer em breve. Pensas
que mandas no reino só porque tens o infante de Portugal nas tuas mãos, mas

165
Idem, p.35.
166
LOPES, 1979, p.39, grifos nossos.
167
BESSA-LUÍS, 1983, p. 203.
71

enganas-te. Pedro não é só teu, nunca o será, pois antes de ti já me amou, e


depois de tua morte, voltará a amar-me. Ele gosta de machos 168.

Diverge da obra agustiniana, que por vezes sugere que a morte de Inês de Castro
se deve à negligência do infante. Em Minha Querida Inês, a narrativa pouco menciona
D. Pedro, exceto por uma carta em que envia para acalmar a amante. Evidência de que,
se historicamente Inês de Castro existiu somente por Pedro, na literatura contemporânea
ele é retirado do centro narrativo para que a dama ganhe destaque maior.
Antagonicamente, o feminino se articula pelo bem de D. Inês. Pela voz das
personagens femininas no romance, Inês de Castro é tratada como heroína por fazer
caridade, se compadecer dos pobres, como no caso da personagem Remédios,
personagem ficcional (não-histórica). Remédios é mulher moura, filha de um grande
sultão, que a perdeu após uma batalha, quando foi vendida como escrava. Vagou por
muitos lugares, sofreu abusos de homens até sentir asco deles. Inês de Castro a recolhe
da rua e a torna sua criada, o que faz com que Remédios sinta enorme amor e gratidão
por sua senhora. Por conhecer muito bem o manejo das ervas, Inês a nomeia Remédios.
Tem um caso amoroso com outra criada da dama, Clara, fato que Inês de Castro sabe,
mas não torna público:
Não mais esquecerei esse dia, quando D. Inês, vendo-me sentada à porta da
igreja, estancou o passo diante de mim e me perguntou de onde vinha. Ao
topar no meu linguarejar atrapalhado que era moura, logo me perguntou se
andava fugida e se precisava de um tecto.(...) Quando mudámos para o Paço
da rainha, já Clara e eu éramos como uma só alma, e D. Inês, sabendo de tal
segredo, destinou-nos uma câmara pequena por debaixo das escadas, para
que ninguém nos incomode e para que as possamos subir num ai se D. Inês
ou seus queridos filhos chamarem por nós. Clara é uma moça do campo que
Alá pôs em meu caminho, para me fazer mais cativa de seu coração do que a
minha condição de destino169.

A possibilidade de Inês de Castro ter uma serviçal moura é levantada por


Agustina Bessa-Luís, ao descrevê-la como detentora de saberes ocultos dos homens,
desde o adultério a abortos. Não é despropositado que Margarida Rebelo a nomeie
Remédios, uma metonímia que estende às suas habilidades:
Uma escrava moura, hábil em tratar dos penteados e tão lasciva e festiva, que
a sua intimidade se tornava um vício. É sabido como Filipe, o Belo expulsava
as criadas berberes da companhia da sua mulher Joana; e horas depois elas
ocupavam de novo o posto, com as suas receitas, os seus cantares, o jeito
para os malefícios de amor e as mezinhas para os partos difíceis.(...) como
Leonor de Guzmán, a concubina poderosa de Afonso XI, que confiava a uma
feiticeira moura os torvos desígnios que lhe favorecessem a prole bastarda.

168
PINTO, 2011, p. 63.
169
Idem, p.80.
72

Pedro o Cruel de Castela teria nascido de Maria de Portugal graças às artes de


Pêro Gil, um judeu, provavelmente médico, e que começou por escorraçar
uma parteira moura170.

Outra personagem acolhida por Inês de Castro é Guiomar, que é descrita por Inês
logo no início do romance, como uma prostituta e ladra, que se redime ao se casar com
um homem apaixonado por ela. Nos primeiros anos de casamento, Guiomar dá à luz
quatro filhos, que morrem, fato que a leva a um surto de loucura ao ponto de matar o
marido. Desde então, é conhecida por possessa e todos têm medo dela, exceto Inês de
Castro, que a visita diariamente no hospital do Paço e lhe cede carinho e confiança, o
mesmo que com outros doentes. Sente falta de Inês, que não a visita há tempos.
Pressente também a possibilidade iminente da morte de sua senhora, como um destino
inexorável. Questiona a injustiça dos homens ao falar de si e de Inês:
Pobre senhora minha, tão nobre e boa, que a morte espera com suas garras
afiadas. (...) D. Inês vai morrer, vejo o seu triste fim desenhado nas nuvens do
céu, em vão tento avisá-la, mas as grilhetas que me prendem à minha enxerga
não me deixam sair daqui. (...) Foi há mais de doze luas, talvez mesmo antes
da invernia passada, que D. Inês iniciou as suas visitas quase diárias ao
hospital.(...) D. Inês, a única pessoa que conseguiu limpar a raiva do meu
coração, a única mulher que mandou lavar os meus cabelos, a única senhora
que olhou para mim e não viu uma louca, uma meretriz sem vergonha, uma
ladra sem alma, uma pobre de Deus, mas sim uma mulher como ela171.

O que fica evidente é que a imagem de Inês de Castro se reitera como na tradição:
a retomada da característica de donzela inocente e bondosa é retomada neste romance
ao atribuir a Inês de Castro características já cristalizadas pelos poetas. Inês retoma seu
lugar no centro narrativo.
Outra personagem feminina que cabe destacar é Teresa, aia de Constança que é
descrita por Inês como mulher fiel e dedicada, apagada e sem muita beleza. Entretanto,
Inês não desconfia do amor secreto dela por Pedro, que é revelado em sua fala. Teresa
se encontra num paradoxo, pois dedica seu amor fraternal a sua senhora e paixão pelo
infante. Seu discurso demonstra como Inês julga-a erroneamente, pois não é inocente
como parece. Descreve seu amor por Pedro e seu desejo: diz desejar ter um filho casto
que sirva a Portugal. Tal fala deixa claro que esta Teresa em questão é a mãe de D.
João, Mestre de Avis, conforme Lopes aponta na Crônica de D. Pedro, ― mas ouve
huum filho dhuuma dona‖ 172 :

170
BESSA-LUÍS,1983, p.24.
171
PINTO, 2011, p.143.
172
LOPES, 1979, p. 195.
73

Não possuo traços finos nem cabelos sedosos. O sangue galego misturado
com mouro deu-me uma boca demasiado grande, os meus lábios carnudos
assemelham-se aos de um bode e os meus olhos escuros e saídos lembram os
de um peixe. Nunca me cresceram as pestanas com graciosidade
para que fossem notadas e, no entanto, tenho as sobrancelhas grossas que me
carregam o semblante. A minha pele não é pura nem alva como a de D. Inês,.
(...). Aquilo que vejo ao espelho é pele de cor mortiça e acinzentada, por
vezes semelhante ao tom do pêlo dos ratos que correm livres pelos campos.
(...) Há muito que desejo o infante, desde o instante em que o vi pela primeira
vez, no dia do casamento com D. Constança173.

Novamente, através da comparação com o texto de Adivinhas de Pedro e Inês, é


evidente que a autora tenha se inspirado em uma das possibilidades de Teresa, mãe do
Mestre de Avis, não ser uma mulher bela e sim uma criada de Inês. Em Fernão Lopes
seu nome não é, ao contrário do nome de Inês de Castro. Ocorre que, sendo D. Inês
elevada rainha, o mais provável é que fosse bela, pelo menos nas criações literárias. E
Teresa não devia chamar a atenção dos homens. Estabelecida esta lógica, o fio que
conduziu a narradora de Agustina Bessa-Luís também conduz a narrativa de Margarida
Rebelo, que desenvolve este fragmento:
Em geral, os homens não têm inclinação para as mulheres belas. A ligação de
D. Pedro com Teresa Galega, decerto uma criada de Dona Inês, e que tinha
como único encanto o ser boa dona de casa, diz da natural queda dos homens
para o conforto doméstico, sem excesso de sentimento e alteração do coração
174
.

Ao sétimo dia, o destino de Inês de Castro é inevitável: reduzida à dor, ao medo, à


ansiedade, a amante é surpreendida em seus aposentos por D. Afonso, Coelho, Pacheco
e Gonçalves. E, diferentemente da tradição literária, Inês implora por sua vida não em
favor dos filhos, mas de Pedro, que carece da atenção do pai:
— Meu senhor, sei agora que vou morrer, mas rogo-vos que aceiteis vosso
filho Pedro como ele é, não mais o desprezeis, pois vossa indiferença fez dele
um homem ferido e magoado. (...) Pedro é melhor do que pensais, um dia
será um rei justo como vós sois. Por favor, poupai-me à morte, não porque a
tema, mas porque o dano que ireis causar no coração de vosso filho será
como uma ferida que nunca verá a cura, e não será por meu desaparecimento
que guerras e lutas serão evitadas neste reino175.

Desta maneira, o desenlace rompe com a tradição ao apresentar tal aspecto, a


ausência de afetividade entre o infante e o rei. Ao mesmo tempo, não há indicação de
que D. Afonso tenha se comovido com as palavras de Inês de Castro. A tradição
literária cristalizou a cena de Inês com os filhos a implorar pela vida dela e de seus

173
PINTO, 2011, p.142-143.
174
BESSA-LUÍS, 1983, p. 74.
175
PINTO, 2011, 186.
74

filhos. Em Minha Querida Inês os filhos não estavam na câmara da mãe. Ao perceber
sua morte iminente, lhe resta o último pedido: que o rei aceitasse a natureza perturbada
do filho.
Ao final, Inês já morta contempla todos os fatos que se seguiram: de cima vê seu
corpo, as aias em prantos, Pedro guerreando contra o pai, Teresa se deitando com Pedro,
a trasladação de seus restos. Também vê Pedro se vingar do escudeiro, o túmulo
suntuoso, a profanação de seu túmulo pelos ingleses:
Serei mártir, serei amada, serei admirada, serei cantada e reconhecida, para
sempre serei lembrada neste reino e em tantos outros, por ter sido bela, por
ter sido sacrificada, por ter sido mulher. Pedro não voltará a casar e não mais
deixará de me chorar, serei sempre sua e dona do seu coração até ao fim dos
dias, até ao fim do mundo176.

Assim, torna-se evidente que a narrativa contemporânea retoma o tema e lhe


atribui novos significados. Ao mesmo tempo em que mantém aspectos da tradição
inesiana consagrados ao longo de seiscentos anos de literatura do tema, traz debates
tipicamente contemporâneos, como a homossexualidade de D. Pedro e das criadas de D.
Inês.
Minha Querida Inês diverge de Adivinhas de Pedro e Inês ao apresentar uma Inês
de Castro maniqueísta: boa aos olhos das mulheres e má aos olhos dos homens.
Apresenta o olhar do homem medieval, que tinha o Bem e o Mal como norteadores do
comportamento e interesses humanos, bem como a associação da mulher com a figura
do Diabo. Margarida Rebelo, apesar de ―contemporaneizar‖ a narrativa com temas da
sexualidade, mais reafirma a tradição do que a inova.
É importante destacar que a produção literária da autora é considerada popular em
177
Portugal. Em seu blog está registrado, por exemplo, o prêmio FNAC, recebido em
1999 pela venda de duzentos e oitenta mil exemplares da obra Sei lá, seu primeiro livro.
Conhecida por lançar best-sellers em Portugal, com Minha Querida Inês não foi
diferente: alcançou um grande número de vendas com seu primeiro romance histórico,
um dos seus vinte livros publicados em quinze anos.
Dada tal análise, observou-se que a personagem de Inês de Castro hoje é
personagem de best-seller. Mas este é um fenômeno tipicamente contemporâneo ao se
considerar o percurso que a personagem tem se enveredado pela ficção do tema. A

176
Idem, p.191.
177
http://margaridarebelopinto.blogs.sapo.pt/tag/bio
75

seguir, se propõe uma reflexão deste fato e como os rumos da literatura, de um modo
geral, têm sido mudados com a popularização de temas antes de exclusividade erudita.

3.2 Inês de Castro como personagem da cultura de massa

A cultura de massa tem sido tema de debates teóricos, uns em defesa, outros em
ataque. Segundo Umberto Eco178, urge destacar que o termo cultura de massa é genérico
e paradoxal: à medida que uma das possíveis interpretações para a palavra cultura
implica num fato da aristocracia, fundamentada na erudição, massa designa o maior
número de pessoas não-aristocratizadas. Com o alargamento da área cultural, o
surgimento da indústria da cultura de massa torna-se mais paradoxal que a questão
anterior: como associar o contato de almas que a cultura pode propor à montagem em
série de produtos seriados?
Para isso, a noção de cultura de massa deve ser considerada como uma cultura
disciplinada para a mediedade, ou seja, que atinge o gosto da média. É fato que as
massas se mobilizaram ao engajamento político, exigindo maior participação nos
direitos civis, o que as tornaram participantes da coisa pública. Política, direito e cultura
passaram a ser praticados por tal massa que era – e é – característica da sociedade
capitalista. Conquistados os direitos de fruição da vida pública, herdaram o gosto e
práticas da burguesia, que por sua vez se inspirava numa cultura ―superior‖.
A depreciação dos críticos na cultura de massa é o fato de que a experiência
estética proposta pelos produtores de uma cultura dirigida ao maior número de pessoas é
atingir a média. Atingido o objetivo, a crítica destaca que o gosto médio priva a massa
de uma experiência estética mais profunda, mais libertadora ao oferecer o produto de
consumo acabado. Evidente que esta é uma visão aristocrática, ―deveremos admitir que
uma solução estilística seja válida unicamente quando representa uma descoberta que
rompe com a tradição e é por isso, partilhada por poucos eleitos‖ 179?
Desta maneira, a indústria cultural entrega o bem de consumo de maneira
―condensada‖, a experiência estética pronta, ao invés de sugeri-la ou provocar a emoção
no ―consumidor‖ de tal arte. Despertam um nível superficial dos sentidos, que resulta
nos resulta nos prazeres fáceis.

178
ECO, 2011, p.8,9.
179
Idem, p.38.
76

Motivado por aspectos que há muito tempo a literatura já levanta o produto de


consumo se encontra do propósito que o motivara inicialmente. Assim, pode-se inferir
que alguns valores da cultura de massa são aqueles impostos de ―cima‖, ou seja, de uma
elite que tem por intuito o lucro e se apodera de valores de uma elite intelectual ou
aristocrática.
Os críticos que defendem a cultura de massa passaram a enxergá-la de maneira
que ela não seja tipicamente fruto de uma sociedade capitalista, mas sim de cidadãos
que vivem num tempo em que a participação na vida pública é ativa, como nunca antes
fora. Também defendem que a cultura de massa não ameaçaria uma cultura erudita. O
que ocorre hoje é fusão destas culturas, que por muito tempo eram separadas.
Eco180 destaca o exemplo do homem renascentista, que vislumbrando as imagens
de uma igreja ou uma pintura cristã baseada nos preceitos da doutrina católica,
distraidamente se via mais interessado na imagem do que nos valores que ela pretendia
atingir inicialmente. Difere do homem que possuía o livre acesso aos textos bíblicos,
filosóficos ou doutrinais em grego ou latim: seria a leitura despretensiosa da imagem
um prazer mais fácil que o da leitura de textos? Não há dúvidas de que sim.
Numa sociedade escolarizada como a de hoje, ler e escrever não é mais a questão
porque lutam as massas. Torna-se pertinente perguntar o tipo de leitura que a massa
acessa e há de se considerar que o produtor deste tipo de consumidor está condicionado
às políticas do lucro e das empresas. Assim, é importante pensar como veicular valores
culturais puramente compromissados com seus motivos antigos, que já não são os
mesmos.
Outro apontamento do autor é válido para este trabalho quando toca na questão da
indústria editorial. Conforme apontada no primeiro capítulo, tal empreendimento tem
movimentado a literatura atualmente:
A fabricação de livros tornou-se um fato industrial, submetido a regras da
produção do consumo (...) Mas distingue-se pelo seguinte: nela se acham
inseridos homens de cultura, para os quais o fim primeiro não é a produção
do livro para vender. (...) Por mais pessimista que se queira ser, o
aparecimento das edições críticas ou de coleções populares testemunha uma
vitória da comunidade cultural 181.

Uma vez aberto e possibilitado o conhecimento por vias do livro, torna-se


incontrolável. Dada a reprodutibilidade em série, é inevitável a volta ao estágio anterior

180
Idem, p. 45.
181
Idem, p. 50.
77

e ainda que controlada por pequenos grupos de uma elite é um fato positivo que a
literatura seja acessível, democrática.
Os espaços se fundem e torna-se difícil delimitar as preferências, uma vez que o
acesso às obras tornou-se democratizado. A relação entre culturas não significa uma
estabilidade do gosto: qualquer homem pode se aventurar pelas histórias em quadrinhos,
tanto quanto imergir na leitura de Proust. Dependerá da disposição e propósito do leitor,
capaz de se deleitar com distrações ou à fruição de uma leitura com uma proposta mais
elaborada. A diferença reside no leitor. Fato que leva a crer que o espaço da cultura de
massa e o da cultura de elite resultam na ausência de delimitação de fronteiras.
Estas considerações são pertinentes quando se volta o olhar para o percurso
literário que a personagem de Inês de Castro traçou – ou que foi traçado pelos poetas –
ao longo do tempo. O que se verifica no contemporâneo é uma espécie de
atravessamento: de personagem clássica a personagem de best-seller, Inês transitou por
lugares narrativos até ser ícone da cultura de massa. Em Teorema e Adivinhas de Pedro
e Inês é retirada do centro narrativo; em Minha Querida Inês ocupa o centro narrativo
novamente, mas com poucas rupturas com a tradição, pois mais a conserva do que
contesta, o texto de Margarida Rebelo Pinto perde na questão da originalidade, o que
não diminui os aspectos de ruptura trazidos pela narrativa.
Mas as veredas escolhidas para a personagem evidenciam como a ausência de
características históricas proporcionou possibilidades para sua representação literária. E
tal atravessamento é fruto de um esforço da cultura de massa, que só pôde representar
Inês a partir do século XX, ou seja, quando o mundo moderno passou a questionar as
verdades sagradas, as estruturas.
Segundo Bauman, ―a realidade deveria ser emancipada da ―mão morta‖ de sua
própria história‖ 182, ou seja, ao abalar as estruturas já enferrujadas da sociedade talhadas
pela história e pela convenção, não se propunha uma utopia do mundo novo. A metáfora
da liquidez ou liquefação proposta pelo sociológo para explicar os tempos modernos e
contemporâneos explica o percurso da personagem. Pode-se afirmar que, abaladas as
estruturas narrativas tradicionais de Inês de Castro, ela torna-se líquida, pois ―sabemos
pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos
movemos‖ 183.

182
BAUMAN, 2001, p.09.
183
Idem, ibidem.
78

Esvaziada das verdades sagradas, as representações inesianas fluíram pelos


lugares: de uma cultura aristocrática em que raros eram os livros e os leitores, para
personagem de livros de tiragem em série, o caso evidencia como não há uma
estabilidade ou níveis de cultura. Há a evidente retomada do tema dentro da literatura,
seja esta retomada uma ruptura ou uma continuidade da tradição, ou ambos os
processos.
Contudo, esgotadas as possibilidades representativas de Inês de Castro até o
presente momento, por que ainda se fala desta desconhecida que despertou nos poetas
inspiração para diferentes gêneros textuais? A hipótese levantada ao longo deste
trabalho é a de que a personagem e o episódio, ainda que tenha sido puramente político ,
tocam em algo que alma humana de qualquer tempo ainda é capaz de sentir. Há algo de
universal que o tema clássico oferece. Está enraizado na cultura portuguesa, como
Helder aponta, Dona Inês entra nas vozes e nos lugares, está em toda a parte em
Portugal: ruas, estabelecimentos, roteiros de viagem.
Uma história de amores contrariados sempre vence e nenhuma literatura melhor
do que a portuguesa para criar inúmeras representações para tal.
79

4
CONCLUSÃO

Sob a perspectiva de destacar a importância do conhecimento e leitura de temas


tradicionais na literatura, demonstrando a necessidade de se iniciar estas leituras na
escola, problematizando questões de valor da obra literária e buscando um contraponto
aos critérios que regem a inserção delas no cânone, este trabalho buscou uma leitura
contemporânea de uma personagem histórica, frequentemente representada na literatura
portuguesa.
A proposta consistiu na análise das figurações de Inês de Castro. Decalcada da
história, Inês de Castro, amante do infante D. Pedro, rapidamente se tornou tema
artístico em Portugal, sendo primeiramente representada em textos ficcionais no final da
idade média e início do classicismo português. N‘As Crônicas de D. Pedro, ela é
mencionada não somente por questões políticas, mas por inspirar um grandioso amor
em um homem, que, segundo o texto e fontes históricas, não mediu esforços para
glorificar seu nome. Também em fins da idade média surge o primeiro poema em que a
Inês de Castro é posta como personagem lírica; começa a se delinear seu perfil dentro
dos temas tradicionais. A inocência e vida precocemente roubadas são motivos de
inspiração ficcional para o poeta que vê em Inês de Castro um tema a ser representado.
Atingindo o que havia de mais erudito na produção literária daquele tempo, Inês
de Castro foi ícone das maiores representações da língua portuguesa no século XVI. Em
Castro, Antonio Ferreira conduz o espectador à catarse ao colocar Inês de Castro no
centro do drama, onde não encontra o amado em cena. Ao suplicar por sua vida e pela
dos filhos ao sogro, o autor lhe confere aspectos clássicos e a representa como heroína
que não se deixa abater pelo seu triste fim, assumindo que o único crime é o amor que
tem por Pedro. Camões também recorre aos artifícios da ficção clássica. Ao representar
Inês num cenário idílico, cede voz à dama, que vê na morte a única possibilidade de
realizar seu amor, sentimento este que leva os amantes à ruína.
Por cerca de quinhentos anos, tal imagem de Inês de Castro foi mantida pelos
escritores que se ocuparam do tema. Entretanto, no século XX há uma ruptura com
aspectos tradicionais inesianos. Em Teorema, Herberto Helder subverte a narrativa e
cede voz a Pero Coelho, fidalgo responsabilizado pela morte de Inês de Castro. Ao
representar a barbárie com que vingou a dama, Helder faz uma analogia da loucura de
D. Pedro aos absurdos praticados no Estado Novo português, que pregava a tradição
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como base da estrutura ditatorial salazarista. Adivinhas de Pedro e Inês consiste na


narrativa com tom biográfico, investigativo, em que a narradora cria muitas
interpretações ficcionais para o episódio de Inês de Castro. Não basta aceitar as
verdades dos discursos oficiais, com o de Fernão Lopes, mas sim de abrir possibilidades
narratológicas sobre um fato encoberto pelo tempo. Inês teria sido interesseira?
Despretensiosa? Criada para seduzir o infante? Ignorante na política? Marionete do
irmão? Pouco importa. Para a narradora, não há respostas, mas indagações que
despertam o leitor para o questionamento de discursos impostos pela história. Em
Minha Querida Inês, Margarida Rebelo Pinto se apropria de fatos históricos e de
aspectos da obra de Agustina Bessa-Luís para reconduzir Inês de Castro ao centro da
narrativa. Abordando aspectos tipicamente contemporâneos, a autora insere fatores que
não eram trabalhados antes em representações de Inês, com uma forte carga sexual, a
bissexualidade de D. Pedro e a homossexualidade das fiéis criadas de Inês, que
encoberta a relação amorosa delas. Ao se utilizar de sentimentalismo exacerbado,
Minha Querida Inês é uma narrativa voltada para um grande público.
Desta maneira, as considerações de Umberto Eco acerca da cultura de massa
foram importantes para demonstrar como uma personagem pode servir de tema
inúmeras vezes. Do teatro clássico a ebook, Inês de Castro continua a inspirar escritores
ainda hoje. Conforme aponta Agambem, o pensador contemporâneo não só volta seu
olhar para a história, mas tenta compreender o tempo a que pertence. A tentativa deste
trabalho foi a de demonstrar como uma personagem consagrada pela tradição pode
levantar debates de cunho político, social e estético.
A conclusão a que se chega é que a narrativa contemporânea ressignifica e retoma
aspectos canônicos, criando novas possibilidades representativas para Inês de Castro,
colocando em xeque as verdades consagradas, sem negá-las, abordando discussões sob
a ótica do contemporâneo e criando novas versões para temas tradicionais. É a evidência
de que há algo de humano e universal nas representações de Inês de Castro. Amante,
esposa, conspiradora política, mãe dos filhos, aqui não importa o que teria sido, mas sim
a ausência de aspectos históricos que abrem sempre novas possibilidades para se tratar
do tema. A prova de que uma narrativa de amores impossíveis continua a cativar
leitores de todos os tempos. Leitores de seis séculos.
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