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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS


Programa de Pós-Graduação em Letras

Cláudia Araújo Garcia

AMORES, VOLÚPIAS E MEMÓRIAS:


um retrato do violão na poesia brasileira

Texto apresentado ao Programa de Pós-


graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito para obtenção do título de
Doutor em Letras.

Orientadora: Profª. Drª. Raquel Beatriz


Junqueira Guimarães

Área de concentração: Literaturas de


Língua Portuguesa.

Belo Horizonte
2019
1

Cláudia Araújo Garcia

AMORES, VOLÚPIAS E MEMÓRIAS:


um retrato do violão na poesia brasileira

Texto apresentado ao Programa de Pós-


graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito para obtenção do título de
Doutor em Letras.

Orientadora: Profª. Drª. Raquel Beatriz


Junqueira Guimarães

Área de concentração: Literaturas de


Língua Portuguesa

Belo Horizonte
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Garcia, Cláudia Araújo


G216a Amores, volúpias e memórias: um retrato do violão na poesia brasileira /
Cláudia Araújo Garcia. Belo Horizonte, 2019.
280 f. : il.

Orientadora: Raquel Beatriz Junqueira Guimarães


Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras

1. Música e literatura. 2. Poesia brasileira. 3. Violão. 4. Seresta. 5. Sedução na


literatura. 6. Boemia. 7. I. Guimarães, Raquel Beatriz Junqueira. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.
IV. Título.

CDU: 869.0(81)-1
Ficha catalográfica elaborada por Renata Diniz Guimarães de Oliveira - CRB 6/2646
2

Cláudia Araújo Garcia

Texto apresentado ao Programa de Pós-


graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito para a obtenção do grau de
Doutor em Letras.

Área de concentração: Literaturas de


Língua Portuguesa

_______________________________________________________________
Raquel Beatriz Junqueira Guimarães (Orientadora) – PUC Minas

_______________________________________________________________
Ivete Lara Camargos Walty – PUC Minas

_______________________________________________________________
Vera Lopes da Silva – PUC Minas

_______________________________________________________________
Roniere Silva Menezes – CEFET

_______________________________________________________________
Humberto Amorim Neto – UFRJ

Belo Horizonte, 11 de novembro de 2019


3

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Raquel Beatriz Junqueira Guimarães, por acolher as


minhas ideias e conduzir, com competência e dedicação, este trabalho.
Agradeço também pela confiança e pelo incentivo durante todo o percurso.
Aos professores Humberto Amorim Neto, Roniere Silva Menezes, Ivete
Lara Camargos Walty, Vera Lopes da Silva, Márcia Marques de Morais e
Guilherme Paoliello por aceitarem, prontamente, o convite para comporem a
banca examinadora.
Às mulheres da minha família, por me fazerem ir mais longe. Em especial,
à minha mãe Nélvia, pela força e por ser fonte de amor, acolhimento e
integridade. À tia Iara, por todo o suporte e pelo coração imenso. À minha avó
Sílvia (in memoriam), pela sabedoria na doçura dos gestos e silêncios.
Ao meu pai Enildo, pelo saber curioso e aguçado.
Ao Cacá (in memoriam), por me ensinar tanto sobre generosidade.
Ao meu irmão Fernando e à minha cunhada Monique pela cumplicidade
e afeto.
À Laura e Júlia, sobrinhas e afilhadas queridas, por iluminarem a minha
vida com seus risos e sorrisos imensos. Agradeço por me mostrarem tanto sobre
o amor.
Ao Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier, por
construir as bases de minha formação musical.
Aos meus alunos e ex-alunos, pelas valiosas trocas e aprendizados.
À Universidade do Estado de Minas Gerais, em especial, à direção e aos
professores da área de violão, pelo apoio indispensável. A todos os colegas,
funcionários e alunos da ESMU, meus sinceros agradecimentos.
Ao querido amigo e professor Rogério Bianchi, pelo incentivo fundamental
e por todos os ensinamentos.
À FAPEMIG, pelo apoio com a bolsa de PCRH no último ano de
doutoramento.
Aos docentes, colegas e funcionários do Programa de Pós-graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais pela disponibilidade
tão atenciosa e corajosa ao receber uma violonista em seus espaços literários.
4

Aos meus amigos, por tecerem comigo, com paciência e compreensão,


cada passo deste caminho.
A todos vocês, minha gratidão e o meu carinho.
5

O violão, em sua simplicidade, mesmo quando o pinho tosco se cobre


de vernizes e arabescos em madrepérola e pedrarias, parece ter sido
criado para a linguagem sonora e sincera dos simples; dos que sofrem
e se queixam, dos que acreditam na poesia das frases musicais; dos
que estão sós e precisam falar consigo mesmo sem parecer que estão
loucos; dos que não sabem declarar o seu amor como os demais; dos
que precisam fugir a realidade, seca por demais para ser aceita sem
um pouco de harmonia.

BRITO, Nazareno de. Texto da contracapa do disco Abismo de


rosas, 1961, do violonista Dilermando Reis.
6

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 “Ao Violão” ........................................................................ 27


FIGURA 2 Iluminura do códice “Cantigas de Santa Maria” ............... 44
FIGURA 3 Alaúde .............................................................................. 44
FIGURA 4 Harlequin with Guitar - Derain André ……………………... 51
FIGURA 5 Arlequim com guitarra - Pablo Picasso ............................ 51
FIGURA 6 Arlequim com guitarra - Juan Gris .................................... 52
FIGURA 7 Poema “Viola d’Amore” .................................................... 73
FIGURA 8 Citação de Carl Sandburg ................................................ 85
FIGURA 9 Poema “Bohemio .............................................................. 106
FIGURA 10 Jogo e correspondência entre as figuras literárias e os
instrumentos no poema “O violão e o vilão” ..................... 143
FIGURA11 “Desenho da mulher com alaúde” .................................... 149
FIGURA12 Como nasce um violão ..................................................... 153
FIGURA 13 Foto ilustrativa das mulheres violonistas .......................... 158
FIGURA 14 “As princesas em noite de gala” ....................................... 158
FIGURA 15 Pintura “Tangedor de viola” .............................................. 170
FIGURA 16 A viola e a representação amorosa no poema “Minha
viola bonita” ...................................................................... 175
FIGURA 17 Paralelo entre os espaços criados pelo poema “Minha
viola bonita” e a trajetória do instrumento ........................ 176
7

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 Paralelo entre os poemas “Manuela” e “Mortal Loucura” 70


QUADRO 2 A exploração do fonema [v] no poema “O violão e o
vilão” ................................................................................. 140
QUADRO 3 Paralelo e contraposição entre as figuras literárias do
poema “O violão e o vilão” ............................................... 144
8

RESUMO

Com o intuito de estudarmos o violão em nossa cultura e ampliarmos os diálogos


entre música e literatura, investigamos como, na poesia brasileira, a linguagem
constrói um discurso simbólico sobre o violão, e procuramos compreender a
participação ou a influência do instrumento na construção poética. Para isso,
utilizamos, como proposta metodológica, uma perspectiva comparativista e
interdisciplinar envolvendo musicologia histórica e interpretação de obras
literárias. Além do estudo de fontes bibliográficas relacionadas ao assunto, o
escopo literário desta pesquisa abrangeu a localização, a seleção e a análise de
textos poéticos envolvendo o violão, e/ou instrumentos a ele relacionados, como
a “viola”, a “guitarra” e o “alaúde”. O estudo das obras nos revelou três
importantes eixos temáticos que, por vezes se perpassam, sendo: o primeiro,
relacionado ao amor idealizado e à cena seresteira; o segundo, abordando
boemia, a sedução e a indolência; e o terceiro, referente aos espelhamentos
entre o violão e a cultura brasileira. Em termos arquetípicos, o instrumento
suscitou associações ao amor juvenil proibido, ideal e romântico e também à
libido e voluptuosidade, atuando tanto como veículo de sedução, quanto meio de
expressão dos sentimentos enlevados e dos anseios fervorosos. No campo
musical, além das referências a diversos gêneros e elementos da esfera da
música, notamos o uso de efeitos sonoros e da musicalidade das palavras
reforçando a semântica dos versos. Percebemos também a alusão direta à
constituição estrutural do instrumento, seus toques e a emulação de sua
produção sonora através das figuras de linguagem. De uma maneira ampla,
constatou-se que, além das figuras literárias às quais o violão dá voz, os poemas
apresentam o caráter subversivo do instrumento; a capacidade de acomodar
sentimentos e expressões; a habilidade de condensar ambiguidades; e a
nostalgia, mas também a atualidade do violão. Essa abordagem abrangente
envolvendo autores de várias partes do país, e de diferentes tempos,
principalmente dos séculos XIX e XX, nos permitiu inferir que, ao representar e
evocar imagens, sons e elementos simbólicos relacionados à prática seresteira,
o violão expõe e reforça uma determinada memória cultural, replicada através
dos poemas e atualizada pelo leitor nas identificações que suscita. Assim, ao
longo deste trabalho, foi possível perceber não só a presença do violão na
9

construção textual, como verificar a hipótese de que, apesar das ressignificações


sofridas pelo violão, o texto poético perpetua uma imagem ligada à sua função
de acompanhador dos gêneros populares, principalmente a canção. Pela
ausência de referências à prática solista e as constantes descrições no
acompanhamento musical, esses aspectos nos mostram tanto o descompasso
entre o alcance dessas duas atividades, quanto a força do instrumento na cultura
popular brasileira. Embora o violão tenha desenvolvido e legitimado um
repertório solista, bem como conquistado outros espaços (como as salas de
concerto), notamos a cristalização, ainda que tensiva, de determinados
estereótipos, arquétipos e associações simbólicas já bastante arraigados à sua
trajetória.

Palavras-chave: Violão e literatura. Poesia brasileira. Sedução e boemia.


Seresta. Memória e cultura brasileira.
10

ABSTRACT

In order to study the guitar in our culture and broaden the dialogues between
music and literature, we investigate how, in Brazilian poetry, language builds a
symbolic discourse about the guitar, and we seek to understand the participation
or influence of the instrument in the poetic construction. For this, we use as a
methodological approach, a comparative and interdisciplinary perspective
involving historical musicology and interpretation of literary works. In addition to
the study of bibliographic sources related to the subject, the literary scope of this
research included the localization, selection and analysis of poetic texts involving
the guitar, and/or related instruments, such as the "viola", the "guitar" and the
lute. The study of the works revealed to us three important thematic axes that
may overlap, being: the first, related to the idealized love and the seresta scene;
the second, addressing bohemia, seduction and sloth; and the third, concerning
the mirrors between the guitar and the Brazilian culture. In archetypal terms, the
instrument aroused associations with forbidden, ideal and romantic youthful love,
as well as libido and voluptuousness, acting both as a vehicle of seduction and
as a means of expressing rapt feelings and fervent longings. In the musical field,
in addition to references to various genres and elements of the music sphere, we
note the use of sound effects and the musicality of words reinforcing the
semantics of the verses. We also noticed the direct allusion to the structural
constitution of the instrument, its touches and the emulation of its sound
production through the figures of language. In a broad way, it was found that,
besides the literary figures to which the guitar gives voice, the poems present the
subversive character of the instrument; the ability to accommodate feelings and
expressions; the ability to condense ambiguities; and nostalgia, but also the
prevalence of the guitar. This comprehensive approach involving authors from
various parts of the country, and from different times, especially from the
nineteenth and twentieth centuries, allowed us to infer that, by representing and
evoking images, sounds and symbolic elements related to seresta, the guitar
exposes and reinforces a certain cultural memory, replicated through the poems
and updated by the reader through the identifications it raises. Thus, through this
work, it was possible to perceive not only the presence of the guitar in the textual
construction, but also to verify the hypothesis that, despite the resignifications
11

suffered by the guitar, the poetic text perpetuates an image linked to its function
of accompanying popular genres, especially the song. Due to the absence of
references to solo practice and the constant descriptions in the musical
accompaniment, these aspects show us both the mismatch between the scope
of these two activities and the strength of the instrument in Brazilian popular
culture. Although the guitar has developed and legitimized a soloist repertoire, as
well as conquering other venues (such as concert halls), we note the
crystallization, although tense, of certain stereotypes, archetypes and symbolic
associations already deeply rooted in its trajectory.

Keywords: Guitar and Literature. Brazilian poetry. Seduction and bohemia.


Seresta. Memory and Brazilian culture.
12

SUMÁRIO

1 “PEGUE ESTA CAIXA MISTERIOSA E DESCUBRA SEUS


SEGREDOS” ............................................................................. 13

2 O AMOR SONHADO E A MOLDURA SERESTEIRA ............... 27


2.1 “Acorda, vem ver a lua” ........................................................... 28
2.2 “Vem ouvir a voz queixosa,/ minhas trovas vem ouvir!” ..... 38
2.3 “O canto banhado em pranto” ................................................ 53
2.4 “De que modo vou abrir a janela, se não for doida?/ Como
a fecharei, se não for santa?” ................................................. 75
2.4.1 A fuga da donzela ..................................................................... 82

3 BOEMIA, ÓCIO E SEDUÇÃO ................................................... 93


3.1 “Já passei noites inteiras/ no furor das bebedeiras...” ........ 94
3.2 “Não lhe ouças, filha, o canto merencóreo!/ Fecha a janela
e foge, que esse canto/ Vem da guitarra de D. Juan
Tenório!” ................................................................................... 113
3.3 “Que dama é aquela que vai sorrindo,/ Mas verga o torso
como um chorão?” .................................................................. 137

4 SONS E CONTORNOS DE BRASILIDADE .............................. 160


4.1 “Quando a viola acorda na choça o sertanejo” .................... 162
4.1.1 “Eu pego a minha viola/ E nas moda dou um repasso” ....... 187
4.2 “Ah, esse bojo perfeito” .......................................................... 212
4.2.1 “O violão! O alto-falante da alma nacional” .......................... 226
4.3 “Um violão que desacata” ....................................................... 236

5 “ANDA CÁ, MEU VIOLÃO, EU QUERO AGORA, AFINAR-


TE” ............................................................................................. 252

REFERÊNCIAS ...................................................................................... 264


13

1 “PEGUE ESTA CAIXA MISTERIOSA E DESCUBRA SEUS SEGREDOS”1

O violão está presente na cultura brasileira de maneira decisiva,


participando da origem e caracterização das mais relevantes expressões
musicais. Por sua capacidade de aculturar estilos e elementos estrangeiros,
mediar culturas, transitar entre as diversas camadas sociais, e frequentar os
mais variados espaços físicos, o instrumento se tornou um dos mais
democráticos, conhecidos e importantes veículos de expressão nacional. Nessa
trajetória, além de ter conquistado seu espaço nas salas de concerto e adquirido,
durante o século XX, um repertório solista, o violão esteve profundamente ligado
à função de acompanhador, destacando-se tanto na conformação de
importantes gêneros musicais (como a modinha, o lundu, e o choro), quanto – e
especialmente – no acompanhamento da voz.
Vinculada histórica e culturalmente ao violão, a canção brasileira tem sua
prática consolidada desde as modinhas do século XVIII, passando pelas
derramadas cantigas de amor seresteiras do começo do século XX, até as mais
diversas manifestações populares, como a bossa nova, o samba e a MPB. É
claro que isso não aconteceria sem conflitos e tensões, principalmente pelas
associações do instrumento à marginalidade e à boemia, pois era tido como “o
companheiro inseparável do seresteiro, sinônimo ameno encontrado para
vagabundo e desordeiro, e quem o cultivasse nele teria a pior das
recomendações” (O VIOLÃO, n. 1, 1928, p. 8).
De malandro a instrumento típico brasileiro, o violão passou, ao longo de
quase um século, por intensas ressignificações que se refletiram, de forma
significativa, na canção. No entanto, ao contrário do que acontece em sua
vertente popular – na já afamada formação “um banquinho e um violão”, a
canção erudita acompanhada pelo violão caminha timidamente em termos de
produção, estudo e divulgação. Constituindo um relevante objeto de pesquisa e
um campo ainda pouco explorado, verificamos em trabalho realizado
anteriormente – a dissertação de mestrado intitulada O violão na canção de
câmara brasileira: um estudo de seus aspectos musicais e simbólicos

1
Tradução nossa. Trecho do poema de Agustin Barrios, “Profesion de Fé”: “Tupá, el Espíritu
Supremo y protector de mi raza,/ encontróme un día en medio del bosque florecido./ Y me dijo:
"Toma esta caja misteriosa y descubre sus secretos" (BARRIOS, 2016).
14

(GARCIA, 2011) – que a modinha está tão fortemente ligada à cultura brasileira
que ela se perpetua, em termos musicais e simbólicos, também na canção de
câmara, tanto a escrita originalmente para violão, quanto nas obras nacionalistas
acompanhadas pelo piano. Esse é um aspecto significativo, pois constatamos
através da análise de repertório, que o violão se faz presente de forma virtual
nas canções para canto e piano, conferindo-lhes características e sonoridades
nacionais. Observamos também que esse recurso utilizado pelos nossos
compositores modernistas permitiu que o violão, citado ou evocado pelo piano,
se fizesse presente no ambiente erudito no momento em que sua entrada ainda
não era permitida.
Ao longo do estudo foi possível verificar as escolhas sonoras e musicais
que os compositores nacionalistas, como Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone,
Oscar Lorenzo Fernandes e César Guerra-Peixe, utilizaram para interpretar e
dar voz aos poemas de diversos autores da época, como Manuel Bandeira,
Guilherme de Almeida e Osório Dutra.
Ainda no âmbito musical, tematizando o repertório de canção de câmara
brasileira, além da dissertação de mestrado O violonismo e a canção de
câmara brasileira de Lourival Lourenço Jr. (2019), destacam-se os esforços do
grupo de pesquisa “Resgate da Canção Brasileira”, da Escola de Música da
UFMG, e os trabalhos realizados, principalmente, no campo da semiótica. Nesse
sentido, temos a tese Imagens de brasilidade nas canções de câmara de
Lorenzo Fernandez: uma abordagem semiológica das articulações entre
música e poesia, escrita por Mônica Pedrosa de Pádua (2009), dedicada aos
processos de produção de imagens e à construção de sentido nos textos
musicais e poéticos em relação às teorias tradutórias e da semiologia. Luciana
M. de Castro Silva Dutra (2009) em seu trabalho, Traduções da lírica de
Manuel Bandeira na canção de câmara de Helza Camêu, aponta também para
a característica hipertextual e intersemiótica da canção.
Assim como nos textos das canções, diversos títulos literários retratam o
violão e seu uso. Essas obras nos fornecem descrições importantes sobre o
cotidiano, a sociedade, o pensamento de cada época, como a obra de Lima
Barreto (1881-1922), O triste fim de Policarpo Quaresma, datada de 1915, em
que, ao falar de uma aula de violão, observa:
15

Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal


sujeito, empunhando o “pinho” na posição de tocar, o major,
atentamente, ouvia: “Olhe, major, assim.” E as cordas vibravam
vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: “É ‘ré’,
aprendeu?”
Mais não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o
major aprendia a tocar violão. Mas que cousa? Um homem tão sério
metido nessas malandragens! (BARRETO, 1993, p. 20).

O violão também está presente em importantes obras de autores como


José de Alencar (1829-1877), Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), Aluízio
Azevedo (1857-1913), Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), Machado de
Assis (1839-1908), Mario de Andrade (1893-1945) e Guimarães Rosa (1908-
1967). Diversas referências e análises desses textos narrativos podem ser
encontradas em importantes artigos – como “A dialética da malandragem”, de
Antonio Candido (1970) –, e livros como Aspectos da Literatura Brasileira, de
Mário de Andrade (1972); Feitiço decente: transformações do samba no Rio de
Janeiro (1917-1933), de Carlos Sandroni (2001); O mistério do samba, de
Hermano Vianna (2007); e No fio da navalha, de Giovanna Dealtry (2009). São
encontradas, também, várias e publicações acadêmicas, como as dissertações
de mestrado Literatura, história e senso comum: Lima Barreto e suas
representações do músico popular, de Isadora Rodrigues (2013) e Sob o selo
nacional, sobre o solo popular: ressonâncias de uma nação na obra para
violão de Heitor Villa-lobos (1908-1940), de Jonas Lana (2005); e a tese de
doutorado Violão e identidade nacional: Rio de Janeiro 1830/1930, de Márcia
Taborda (2004).
Assim como nos textos das canções e das narrativas literárias, o violão
também traça seus caminhos e evoca sons e imagens na produção poética. Com
o intuito de dar prosseguimento ao estudo do violão na cultura do país e ampliar
os diálogos entre música e literatura, este trabalho pretendeu investigar como,
na poesia brasileira, a linguagem constrói um discurso simbólico sobre o violão,
bem como compreender a participação ou influência do instrumento na
construção poética. Nesse viés de mão dupla, o violão atua como elemento
mediador que nos permitiu tanto observar sua presença no própria corpo textual
– modificando ambientes, criando imagens e sons, transitando por espaços, e
aproximando o leitor do texto através da identificação que suscita –, quanto
verificar a hipótese de que, apesar das ressignificações sofridas pelo violão, o
16

texto poético perpetua uma imagem ligada à sua função de acompanhador dos
gêneros populares.
Para desenvolvermos este estudo, utilizamos uma abordagem
metodológica interdisciplinar reunindo musicologia histórica e interpretação de
obras literárias, numa perspectiva própria dos estudos da literatura comparada.
Inicialmente, a pesquisa envolveu a localização – através de buscas feitas
na internet, em livros publicados, poesias reunidas, conjuntos de fortuna crítica,
estudos acadêmicos (artigos, teses e dissertações) – de poemas que se referiam
diretamente ao violão e/ou instrumentos a ele associados, como a “viola”, a
“guitarra” e o “alaúde”. Esse desdobramento que se aproxima de uma
ramificação ou mesmo da observação refratária do violão e de alguns
instrumentos de cordas dedilhadas a ele relacionados, tornou-se necessário
devido a imprecisões terminológicas e liberdades textuais. Como esses
instrumentos geram equivalências em suas funções e simbologias, por
transitarem e se metamorfosearem de acordo com o contexto em que estão
inseridos, buscou-se, nas análises realizadas, não estabelecer delimitações nem
exigir especificidades musicológicas nos textos analisados, mas, sim, respeitar
as escolhas poéticas ou necessidades suscitadas pela própria construção
literária.
Em seguida, procedemos à análise interpretativa, à seleção dos poemas,
à organização e ao agrupamento do material. Os poemas foram selecionados,
observando-se a presença dos autores no contexto canônico literário, a
divulgação das obras e, principalmente, a participação e a descrição de
elementos relacionados ao violão. Por fim, além da identificação de eixos
temáticos surgidas nas análises, estabelecemos o diálogo tanto com a história
do violão e os aspectos sonoros e musicais suscitados quanto com os contextos
culturais e sociais envolvidos. É fundamental esclarecer que os resultados foram
obtidos a partir do estudo das fontes literárias e musicais, bem como das
características textuais e padrões estéticos que se aproximam, sem, no entanto,
se estabelecerem hierarquias ou limites rígidos entre os eixos, pois esses eixos,
por vezes, se perpassam e se unificam. Como o escopo deste trabalho é amplo
e diversificado, não se pretendeu formular generalizações e, sim, com base em
uma amostragem, discutir as tensões, possibilidade e encontros entre literatura
e música, tendo o violão como fio condutor.
17

Em termos temporais, nosso enfoque se dirige aos séculos XIX e XX em


função da trajetória do instrumento, pois esse período inclui relevantes
processos de ressignificação, a importante atuação no acompanhamento dos
principais gêneros musicais brasileiros, a criação e legitimação de um repertório
solista e a conquista de seu espaço (também nas esferas eruditas e
acadêmicas). Porém, isso não nos impede de dialogar com períodos anteriores
ou posteriores, traçando, sem intuitos lineares, um desenho flexível e dinâmico,
no qual iremos transitar, diacronicamente, por diversos tempos, épocas e
momentos, conforme os desdobramentos e necessidades das discussões.
Para construirmos essa rede de significação envolvendo poesia e música
– elementos textuais e características literomusicais – além do estudo de fontes
bibliográficas relacionadas ao assunto, abordamos os poemas de Álvares de
Azevedo (1831-1852), Castro Alves (1847-1871), Francisco Lobo da Costa
(1853-1888), João da Cruz e Sousa (1861-1898), Mário de Andrade (1893-
1945), Guilherme de Almeida (1890-1969), Cecília Meireles (1901-1964), Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), Manoel de Barros (1916-2014) e Adélia
Prado (1935). Torna-se importante ressaltar que a análise desse conteúdo
poético foi ilustrada e permeada pelo constante diálogo com textos narrativos;
excertos teatrais; imagens, quadros e pinturas; conteúdo de revistas
especializadas para violão; poemas de canções de câmara para violão e canto;
letras de músicas populares; e referências a elementos da esfera musical (como
forma, agógica, e dinâmica) e do universo violonístico – como tipos de ataque,
sonoridades e timbres.
As possibilidades de confluência entre palavra e som são abordadas tanto
por Luiz Piva (1990), em Literatura e Música (1990) quanto pelo violonista
Flavio Barbeitas (2007), que, em sua tese A música habita a linguagem: teoria
da música e noção de musicalidade na poesia, coloca em discussão essa
perspectiva e analisa a hipótese de que:

música e linguagem não são instâncias separadas e incomunicáveis


como se correspondessem, cada uma, a diferentes habilidades do
homem. Independentemente do fato de hoje imaginarmos coisas
completamente diferentes quando deparamos com os significantes
“música” e “linguagem”, o principal é exatamente o que permanece
esquecido sob essa superfície, ou seja, o principal é a unidade de
sentido composta por música e linguagem. (BARBEITAS, 2007, p. 16).
18

Já a dimensão lítero-musical, presente na articulação entre literatura e


música, é categorizada por Nélson Barros da Costa (2001), em seu trabalho A
produção do discurso lítero-musical brasileiro, no qual utiliza o interdiscurso,
o dialogismo e a intertextualidade para analisar a Música Popular Brasileira como
uma prática discursiva, em meio às suas tensões e diversidades.

É tema recorrente nos meios que comentam a MPB a multiplicidade de


ritmos, estilos e propostas estéticas que povoam o panorama lítero-
musical brasileiro. No entanto, essa diversidade não se dá sem
conflitos e vacilos, nem tem organização evidente. Diferentemente de
outros campos discursivos, como é o caso da religião e da ciência,
onde grupos, correntes, tendências etc. se definem, se organizam e se
estabilizam mediante estatutos e ideologias razoavelmente bem
definidos, o discurso lítero-musical brasileiro aparece dilacerado por
uma heterogeneidade complexa e inconsistente. (COSTA, 2001,
p.169).

Para a realização desta pesquisa e da compreensão das relações entre


literatura, música e cultura, tornou-se preciso recorrer à literatura comparada
que, panoramicamente,

é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o


estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro,
diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes [...],
a filosofia, a história, as ciências, a religião etc. Em suma, é a
comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da
literatura com outras esferas da expressão humana. (REMAK, 1994, p.
175).

No Brasil, podemos destacar as abordagens críticas e teóricas sobre


questões identitárias, intertextuais, históricas e culturais, presentes nos trabalhos
de Sandra Nitrini (1997), Tânia Franco Carvalhal (1986) e Eduardo Coutinho
(1994).
Ao pensarmos no violão e sua presença no contexto brasileiro, temos uma
visão do instrumento já permeada por determinadas caraterísticas e estigmas
pertencentes ao senso comum que, não sendo uma aquisição individual, torna-
se uma espécie de herança cultural adquirida de uma série de experiências,
vivências e observações de mundo. Além dessas noções, comumente aceitas
pelos indivíduos, perpassaram, neste trabalho, importantes termos relevantes
para nossa discussão, como arquétipo, imagem e símbolo. É claro que esses
conceitos são amplos, profundos e, muitas vezes, divergentes, porém nosso
intuito não é o de reduzir ou limitar, mas, sim, apresentar alguns traços que nos
19

permitiram ampliar tanto a compreensão de nosso objeto de pesquisa, quanto


do violão na cultura brasileira.
Enquanto o estereótipo se constitui como generalizações sobre
comportamentos ou características resultantes de ideias ou imagens
preconcebidas e atribuídas a pessoas, situações, coisas ou grupos sociais, o
termo arquétipo (2018) exprime a noção de padrão original, conforme indica a
etimologia grega da palavra, formada pelos termos arkhé, que significa “primeiro,
antigo, dominante, original”, e typos, que quer dizer “marca, impressão, molde
ou modelo”.
Remontando a Platão e à filosofia, o conceito foi desenvolvido pelo viés
da psicologia analítica, por Jung (2000), principalmente a partir de 1919, a partir
da identificação de determinados “motivos” ou "pensamentos elementares"
comuns e fundamentais à experiência humana. Assim, podemos entender como
arquétipo não só o “modelo, padrão de algo (objeto, produto, qualidade,
comportamento etc.), como “na psicanálise junguiana, modelo de pensamento
comum a toda a humanidade, composto de símbolos ou imagens que constituem
uma espécie de inconsciente coletivo” (ARQUÉTIPO, 2018).
No campo das imagens, Lúcia Santaella e Winfried Nöth (2001) explicam
a existência de dois domínios, sendo o primeiro, referente às representações
visuais (“objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente
visual”, como desenhos, quadros, fotografias), e o segundo, como
representações mentais – “visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos”:

Ambos os domínios da imagem não existem separados, pois estão


inextricavelmente ligados já na sua gênese. Não há imagens como
representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente
daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens
mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos
objetos visuais. (SANTAELLA; NÖTH, 2001, p. 15).

O processo de formação de imagens em nossa mente envolve não só o


aspecto visual, como também outros tipos de modalidades sensoriais, gerando,
assim, o que Antônio Damásio (2002, p. 123) denomina como imagens
perceptivas – imagens auditivas, táteis, por exemplo. Já as relacionadas com
lembranças do passado ou projeções de futuro, o neurocientista as considera
como evocadas e, sendo incompletas e passageiras, tornam-se “tentativas de
réplica” de experiências já vivenciadas. Através delas “podemos sempre evocar,
20

nos olhos ou ouvidos de nossa mente, imagens aproximadas do que


experienciamos anteriormente” (DAMÁSIO, 2002, p. 128).
Para Alfredo Bosi a “imagem-no-poema” “já não é, evidentemente, um
ícone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma produzido na hora do
devaneio: é uma palavra articulada” (BOSI, 1977, p. 21). E acrescenta:

A crítica de língua inglesa costuma designar com o termo image não


só os nomes concretos que figurem no texto (casa, mar, sol,
pinheiro...), mas todos os procedimentos que contribuam para evocar
aspectos sensíveis do referente, e que vão da onomatopeia à
comparação. (BOSI,1977, p. 29).

Maria Luiza Ramos (1969), por sua vez, em “No terreno da expressão
linguística”, explica que a imagem é caracterizada por sua “função substitutiva”:

[...] a intencionalidade de uma determinada significação nominal é


deslocada de um objeto para outro. Naturalmente, isto é possível pelo
fato de o conteúdo material de determinada palavra e, principalmente,
o seu conteúdo formal, apresentarem analogia com o conteúdo da
outra palavra, para a qual se deslocou a intencionalidade. Em vez de
constituir processo anômalo de significação, a metáfora é apenas o
resultado multi-radiação do fator direção intencional que integra a
estrutura nominal. (RAMOS, 1969, p. 72-73).

Além de abordar a sinestesia como uma das mais “interessantes


modalidades de metáfora” por transpor “reações sensoriais de natureza
heterógena, provocando na mente do leitor um todo homogêneo e complexo”
(RAMOS, 1969, p. 78), a autora explica também que a palavra ultrapassa seu
sentido objetivo, para alcançar uma significação pelo todo:

[...] é o contexto que vai emprestar dimensão poética à imagem, não


por explica-la – que a mensagem poética é de natureza sui generis e
não requer conhecimento racional – mas por situá-la num todo
expressivo e significativo. (RAMOS, 1969, p. 77).

Ao condensar, simultaneamente, percepção – pela forma e sonoridade no


momento da leitura – e evocação de imagens pela memória, o poema “tenta
recuperar o imediato, o finito da imagem, mas se constrói através de um discurso
que se estabelece no tempo de seu transcurso e que necessita de mediação
para ser compreendido” (PÁDUA, 2009, p. 123).
A relação entre imagem e símbolo se estabelece através da operação de
sentido dentro de um sistema social e cultural. Conforme Santaella (2002),
21

símbolos são, por natureza, leis, convenções, pactos coletivos


(culturais), e são assim denominados, porque estabelecem uma
relação com o objeto, porque trazem em si informações que lhe são
atribuídas nas relações sociais, gerando interpretantes determinados,
fechados, pactuados, denominados argumentos. Imagens se tornam
símbolos quando o significado de seus elementos só pode ser
entendido com a ajuda do código de uma convenção cultural.
(SANTAELLA, 2002, p. 20).

Essa característica também aparece em Peirce (2005), que define o


símbolo como:

um signo que se refere ao objeto que denota em virtude de uma lei,


normalmente uma associação de ideias gerais que opera no sentido
de fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo aquele
objeto. Assim, é, em si mesmo, uma lei ou tipo geral, ou seja, um legi-
signo. (PEIRCE, 2005, p. 52).

O legi-signo está imbuído não de singularidade ou individualidade, mas,


sim, do que é geral, ou seja, “um símbolo não pode indicar uma coisa particular;
ele denota uma espécie (um tipo de coisa)”. Santaella (2003) exemplifica:

Assim são as palavras. Isto é: signos de lei e gerais. A palavra mulher,


por exemplo, é um geral. O objeto que ela designa não é esta mulher,
aquela mulher, ou a mulher do meu vizinho, mas toda e qualquer
mulher. O objeto representado pelo símbolo é tão genético quanto o
próprio símbolo. Desse modo, o objeto de uma palavra não é alguma
coisa existente, mas uma ideia abstrata, lei armazenada na
programação linguística de nossos cérebros. É por força da mediação
dessa lei que a palavra mulher pode representar qualquer mulher,
independentemente da singularidade de cada mulher particular.
(SANTAELLA, 2003, p. 14).

Além do campo da semiótica, o símbolo pode ser entendido, de uma


maneira mais ampla, sendo mais que um “simples signo ou sinal”, pois:

transcende o significado e depende da interpretação que, por sua, vez,


depende de certa predisposição. Não apenas representa, embora de
certo modo encobrindo, como – também, de certo modo realiza e anula
ao mesmo tempo. Afeta estruturas mentais. Por isso é comparado a
esquemas afetivos, funcionais e motores, com a finalidade de
demonstrar que, de certa maneira, mobiliza a totalidade do psiquismo.
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 18).

Esses sentidos simbólicos podem mudar e ampliar, por meio da formação


de uma rede de interpretantes, variando conforme cada indivíduo, nos limites da
historicidade:
Referir-se a um objeto pelo seu nome é suprimir as três quartas partes
da fruição do poema que consiste na felicidade de adivinhar pouco a
22

pouco; sugeri-lo, eis o que sonhamos. É o uso perfeito desse mistério


que constitui o símbolo; evocar pouco a pouco um objeto para mostrar
um estado de alma, ou, inversamente, escolher um objeto e
desprender dele um estado de alma por uma série de decifrações.
(MALLARMÉ, 1886 apud JUNKES, 2006, p. 7).

Ainda sobre imagem, símbolo, metáfora e alegoria, Antonio Candido


(1996) explica que, “no trabalho criador, o poeta usa as palavras não só “na
acepção corrente” ou na “acepção diversa da corrente, mas que é aceita por um
grupo”; como também “dotadas de uma acepção que ele cria, e que pode ou não
tornar-se convencional”. A forma como as palavras são arranjadas criam uma
semântica particular de maneira que “o seu significado apresente ao auditor, ou
leitor, um super-significado, próprio ao conjunto do poema, e que constitui o seu
significado geral” (CANDIDO,1996, p. 63).
Na construção dessa “unidade expressiva”, o verso pode ser percebido
como “uma unidade indissolúvel de ritmo, sonoridade e significado”:

Justamente na busca de tais significados é que emprega a palavra


como imagem ou como símbolo. A base de toda imagem, metáfora,
alegoria ou símbolo é a analogia, isto é, a semelhança entre coisas
diferentes. E aqui encontramos, no plano dos significados, um
problema que já encontráramos no plano das sonoridades como
sinestesia: o da correspondência. Com base na possibilidade de
estabelecer analogias o poeta cria a sua linguagem, oscilando entre a
afirmação direta e o símbolo hermético. Raramente o poema é feito
apenas com um ou outro destes ingredientes polares, e na sequência
dos versos somos capazes de notar a gradação que os separa. Muitas
vezes, o elemento simbólico não está na peculiaridade das palavras,
ou na sequência de imagens, mas no efeito final do poema tomado em
bloco. E em tudo observamos a capacidade peculiar de sentir e
manipular palavras. (CANDIDO, 1996, p. 65).

Ao abordar “As modalidades de palavras figuradas”, Candido define


“imagens” como “o nome que damos a toda figuração de sentido que faz as
palavras dizerem algo diferente de seu estrito valor semântico”, não sendo
apenas enfeites, “mas elementos viscerais da expressão, que através delas se
efetuava” (CANDIDO, 1996, p. 70).
Nesse processo de construção de sentido, a modalidade de imagem que
opera na transferência de sentido é denominada como metáfora. A capacidade
de “condensar uma alta carga expressiva” em poucas palavras ocorre através
da semelhança, “da comparação subjetiva”, da “abstração”, e da transposição
“que penetra com força na sensibilidade, impondo-se pela analogia criada
23

arbitrariamente”, gerando a “formação de uma nova realidade semântica de


caráter simbólico” (CANDIDO, 1996, p. 90). Assim, a metáfora está

mais ligada a uma necessidade profunda de expressão, parecendo


"criar" uma realidade diversa, que se apresenta na sua integridade sem
justificativa, sem desculpas, sem recurso a um elemento discursivo de
prova que nos arraste para o universo prosaico da razão e da lógica.
(CANDIDO, 1996, p. 78).

Já em relação à alegoria, Candido (1996, p. 19) esclarece que, apesar


das imprecisões de limites entre os conceitos, “é uma metáfora continuada”,
requerendo muitas palavras ou sequências, “figuradas ou não, que formam uma
superfigura”. Enquanto "a alegoria descreve conscientemente o geral e o
abstrato no particular", o símbolo "faz transparecer o geral na forma do
particular". Sobre este último, este autor explica que, em sua força sugestiva,
“não há necessariamente elemento narrativo ou descritivo”; pois “a abstração é
meramente virtual, possível e incerta, nem sempre sendo possível perceber a
intenção do poeta”, podendo, às vezes, “acontecer que esta não exista e o
símbolo decorra inconscientemente da sua criação” (CANDIDO, 1996, p. 80).
Com isso, por definição, o símbolo “é antes um princípio, uma tendência
geral do poema, resultante do jogo de alterações particulares de sentido das
palavras e da grande alteração fundamental: o intuito poético, a intenção que
preside à fatura” (CANDIDO, 1996, p. 87).
No entendimento desses conceitos foi possível, por meio de sua
transposição ao âmbito deste estudo, estabelecer relações e identificar pontos
relevantes para a compreensão do violão no universo poético. Ao estudarmos
os ambientes, características, sujeitos, práticas e expressões musicais,
adentramos o território dos arquétipos, das imagens e dos símbolos pelos
aspectos suscitados no decorrer das análises e que perpassam o retrato do
violão na poesia e na cultura brasileira.
É importante esclarecer que, neste trabalho, entendemos o violão pelo
viés simbólico, por sua capacidade de estabelecer representações e engendrar
um conjunto de noções fundamentais à cultura brasileira. O que estamos
dizendo, com isso, é que o objeto traz consigo as relações estabelecidas com o
contexto histórico, social e cultural, ao mesmo em que desencadeia
interpretantes e significações relativas às convenções que o envolvem. Dessa
24

forma, a palavra violão alcança seu sentido no contexto poético ao


considerarmos sua profunda ligação com a esfera brasileira. No ponto de contato
com a realidade inventada ou não, a referência violão condensa aspectos
sensoriais, (re)cria imagens e sons, evoca ambientes e figuras, e acessa
lembranças reais ou imaginárias. Nesse pacto com o leitor e com os sentidos
coletivos, o instrumento não só influi no efeito final do poema, como suscita, com
certa nostalgia, a memória de nossa cultura.
No estudo dos poemas selecionados, observamos a existência de três
relevantes eixos temáticos com que optamos por estruturar a tese, sendo, o
primeiro, referente às características seresteiras; o segundo, abordando a
boemia, a sedução e o ócio; e o terceiro, enfocando os aspectos relacionados
aos elementos culturais brasileiros.
É importante reiterar que esses eixos temáticos – ou grandes partes – são
permeáveis, transitáveis e, por vezes, não excludentes, pois articulam dois ou
mais elementos comuns. A fim de percebermos como o violão participa da poesia
brasileira e verificarmos a hipótese de que, apesar das ressignificações sofridas
pelo instrumento, o texto poético perpetua uma imagem ligada à sua função de
acompanhador dos gêneros populares, estabelecemos as relações possíveis
entre a poética e a trajetória do instrumento. Dessa forma, além das análises e
da identificação de aspectos musicais e violonísticos na poesia, foi possível
observar como – e se – as mudanças simbólicas e musicais pelas quais o violão
passou (principalmente ao longo do século XX) se refletiram na forma como o
instrumento é percebido e retratado.
Do olhar mais amplo para o mais específico, realizamos em cada eixo um
giro panorâmico a seu redor, ou seja, além da observação dos aspectos
inerentes ao corpo poético, também buscamos apreender o que está a sua volta
e as conexões que estabelece, como um movimento cinematográfico, captando
a cena por diversos e variados ângulos.
Por esse viés complementar e dinâmico, o primeiro eixo temático,
intitulado O AMOR SONHADO E A MOLDURA SERESTEIRA, está dividido em
quatro subseções: a primeira, relacionada à manifestação amorosa desvelada
pela serenata (sua realização, sonoridades e características), estabelecendo
também os pontos de conexão com o trovadorismo ibérico medieval; a segunda,
trazendo a foco, a figura do trovador e do menestrel; a terceira, voltada ao
25

conteúdo – ou temática – de seu “canto”, revelada nos poemas-canções, ou seja,


de que é feita sua canção na poesia; e a quarta, relativa tanto à musa
resguardada pelas distâncias físicas e sociais, quanto à mulher conhecedora de
seus sentimentos, desejos, e dos subterfúgios necessários para manifestá-los.
Assim, percorremos a cena seresteira (enquanto expressão artística, poética e
musical) → quem a realiza → o que toca (e canta) → e a quem se destina.
Além de acompanhar o amor romântico, o violão também – em sua
trajetória e na poesia – carrega as marcas, contextuais e simbólicas, da
vadiagem e da conquista. Por isso, no segundo eixo temático, denominado
BOEMIA, ÓCIO E SEDUÇÃO, discutimos, inicialmente, a relação entre o
instrumento e a figura, os hábitos e ambientes do capadócio. Em seguida,
abordamos o aspecto da sedução que permeia o imaginário associado ao
instrumento e a quem o toca, incluindo não só a aproximação ao arquétipo de
Don Juan, como a utilização do violão como meio e estratégia de conquista. É
importante ressaltar como os impactos da relação do instrumento ao estereótipo
do boêmio e ao arquétipo do mais conhecido sedutor se refletem na construção
de significados simbólicos sobre o instrumento, deixando marcas e estigmas em
sua trajetória, e tornando-se combatido por representar um perigo para a
sociedade, para os costumes e, em especial, para a mulher, pelo poder de
conduzi-las à “perdição”. Por fim, explanamos sobre os reflexos da sedução na
figura feminina, tratando assim, sob a perspectiva da mulher, como isso as
atinge, como as dilacera, e o que lhes é roubado. Nesta seção, abordamos
também a relação do instrumento com as formas femininas e a importância da
mulher na incorporação e aceitação do violão na esfera erudita.
O último eixo temático abrange a ligação do instrumento aos aspectos
nacionais, traçando SONS E CONTORNOS DE BRASILIDADE. Dividido em
três subseções, esse eixo envolve, primeiramente, o regionalismo, localizando o
violão e a viola – e também sua variante, a viola-de-cocho –, no interior do país,
nas mãos dos tropeiros e suas identificações ao contexto rural. Em seguida,
debruçamo-nos sobre os processos de ressignificação do violão e sua ligação
com o urbano e com as expressões identitárias nacionais. Finalmente,
apresentamos uma síntese dos assuntos discutidos ao longo deste trabalho,
articulando e reunindo afetos, contradições, volúpias, marginalidade, resistência
e alcance do instrumento.
26

Com isso, pode-se perceber como o violão participa da construção


poética, compondo ambientes, evocando imagens e sons, mediando espaços e
aproximando o leitor do texto através da identificação que suscita, e ainda
abordar, conjuntamente, os contextos e os aspectos históricos, sociais e
musicais que envolvem o instrumento e seu uso em nossa cultura.
Para fazer desta tese também música, todas as seções e subseções
foram intituladas com trechos poéticos ou fragmentos de canções.
Passemos a voz ao violão na poesia brasileira.
27

2 O AMOR SONHADO E A MOLDURA SERESTEIRA

Adorado por poetas e combatido por sua relação com vida boêmia, o
violão ocupa um lugar sem igual na cultura brasileira, equilibrando-se entre o
amor sonhado e os preconceitos que o acompanham, como nos relata Catulo da
Paixão Cearense:

[...] nós que preferimos uma modinha, uma canção rústica, um lundu
requebrado a um qualquer trecho de Wagner, [...] não nos importemos
com o pedantismo [...] dos que menoscabam do violão, por ser ele
dizem, o instrumento dos desocupados e perdidos. Quando
encontrardes um desses tipos n'uma sala em que haja alguém que vos
deseje ouvir, recitai com ênfase e entusiasmo a poesia, que dediquei
ao violão, e, depois, cantai a modinha que se segue a essa poesia,
mas, é a única cousa que vos peço, com todo o sentimento. Quando
proferirdes os nomes de Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães,
Laurindo, Varella, Castro Alves e Tobias Barreto, principalmente, fitai
com veemência os minguados paspalhões, e deixai-os eclipsados na
imensidade de suas insignificantes pessoas. Esses gênios superiores
eram sinceros adoradores do violão. (CEARENSE, 1908, p. 10).

Figura 1 – “Ao Violão”

Fonte: CEARENSE, 1908, p. 13.


28

Esse instrumento, ao qual Catulo dedica sua modinha, destaca-se no


acompanhamento da manifestação amorosa e, pela força de seu “queixume”,
“desprendendo das fibras teus soluços”, convida a musa – e o leitor – a ouvir as
suas súplicas. Ao desejar “que ela surja do leito e abra a janela”, somos lançados
à expressão seresteira tão comum e importante para nossa cultura. Por isso,
iniciaremos nosso percurso estabelecendo, nesta primeira subseção, um
panorama sobre a prática seresteira e a participação do violão na construção da
cena amorosa. Posteriormente, na segunda subseção, abordaremos não só a
ligação e os reflexos do trovadorismo ibérico na seresta brasileira, como também
a figura do trovador acompanhado por seu instrumento. Na terceira,
apresentaremos os poemas que também são canções para que possamos
conhecer a voz do trovador e seu canto. Como última subseção, trataremos da
perspectiva da musa que, de inalcançável a inquieta, busca subterfúgios e
maneiras para realizar seus desejos.
É importante esclarecer que apresentaremos apenas uma amostragem
de poemas, pois estes, ao mesmo tempo que condensam os elementos
fundamentais para nossa discussão, representam e se desdobram para
horizontes mais amplos.
Vamos agora nos render ao chamado da serenata.

2.1 “Acorda, vem ver a lua”2

A tradição de apresentar canções, em noites enluaradas, remonta ao


trovadorismo medieval, porém a prática se popularizou no Brasil, a partir do
século XVIII, principalmente com o surgimento da modinha. Esse gênero teve
participação decisiva na formação do repertório de cantores e pequenos grupos
instrumentais que viriam a formar o tradicional terno de choro, composto por
flauta (ou instrumento de sopro), violão e cavaquinho – populares até as
primeiras décadas do século XX.

2 Primeiro verso da canção Melodia Sentimental, de Heitor Villa-Lobos. Composta em 1958,


com poesia de Dora Vasconcelos, a canção integra a obra Floresta do Amazonas, que se
transformou em suíte sinfônica após problemas em sua utilização como trilha sonora do filme A
flor que não morreu.
29

Caracterizada pelo uso de temas sentimentais, a modinha tem sua


inspiração nas relações amorosas, porém não possui uma estrutura musical
determinada. Ao abordar A Modinha e o Lundu no XVIII, Araújo (1963, p. 27)
explica que, “longe de se fixar em uma forma definitiva, a modinha adquiriu,
desde seus primórdios, feição e caráter de canção acompanhada, de fundo lírico
e sentimental, mas sem esquema formal definido”.
Sobre o processo de configuração do gênero, Afonso Ruy, em seu livro
Boêmios e Seresteiros do Passado, ressalta que:

Os tempos passaram; a canção romântica que se alastrara no Brasil,


ora como moda, ora sob o título de modinha, evoluíra, sofrendo
interferência do meio, adaptando-se às mais diversas influências,
veículo misterioso de uma mensagem afetiva ou queixumes de um
sentimento mal compreendido, quando não se tornava mensageira de
uma paixão confessada nessa vigília, desabafo confortador de um
coração em desespero. (RUY, 1952, p. 8).

Por seu caráter afetivo, as modinhas eram cantadas nas janelas das
mulheres amadas, durante as noites de lua, por esse pequeno grupo de
instrumentistas, que geralmente desconheciam a leitura musical, mas
improvisavam e compunham durante suas andanças boêmias pelas ruas da
cidade. Tinhorão explica que:

para dar nome a essas cantorias solitárias ou em grupo, os espanhóis


criaram a palavra serenada e os portugueses o substantivo serenata,
derivando ambos do latim serenus, que tanto podia querer dizer céu
sem nuvens, quanto calma e tranquilidade. (TINHORÃO, 2005, p. 13).

Vejamos agora como essa “execução instrumental ou vocal que se


apresenta à noite, em passeio ou sob a janela de alguém” (SERENATA, 2018)
se desenha na poesia brasileira:

1ª Sombra

Marieta

Como o gênio da noite, que desata


O véu de rendas sobre a espádua nua,
Ela solta os cabelos... Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata...

O seio virginal, que a mão recata,


Embalde o prende a mão... cresce, flutua...
Sonha a moça ao relento... Além na rua
Preludia um violão na serenata!...
30

... Furtivos passos morrem no lajedo...


Resvala a escada do balcão discreta
Matam lábios os beijos em segredo...

Afoga-me os suspiros, Marieta!


Ó surpresa! ó palor! ó pranto! ó medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta!...
(ALVES, 2005, p. 197).

Nesse soneto de Castro Alves, os quartetos descrevem a figura feminina


com certa sensualidade, mostrada nos cabelos soltos, na espádua nua e no
“gênio” – figura que, no romantismo, adquire uma conotação profética
aproximando-se do vate ou bardo – que “desata o véu de rendas”. Em seguida,
além de criar imagens plásticas através do “seio virginal” que “cresce, flutua”, o
poeta deixa transparecer nesses versos a inútil tentativa de manter o recato,
conter o desejo. Esse esforço é ineficaz, uma vez que, do lado de fora, na rua,
as mãos habilidosas no instrumento anunciam a chegada do homem devotado.
Nesse momento da cena poética, cabe ao violão, em termos textuais,
imaginários e sonoros, a função de não só prenunciar a chegada do amado, com
a utilização do verbo “preludiar”, como também nos permite encontrar referência
no gênero musical “prelúdio”, que, possuindo forma livre, era tocado
originalmente com o intuito de afinar, aquecer e introduzir a tonalidade de uma
peça maior, como uma suíte musical, por exemplo. É importante também
ressaltar que a chegada desse violão em serenata gera suspense e expectativa
do que virá a seguir – marcada pelo uso das reticências que encerram o verso e
também a estrutura de quadras –, uma vez que não sabemos se essa
manifestação amorosa será aceita ou não pela musa resguardada. E é com o
uso desse mesmo sinal gráfico (no começo do verso) que se dá o encontro, o
desenrolar da cena, afinal esse Romeu consegue chegar furtivamente à sacada
de sua amada.
No entanto, nem sempre a serenata era correspondida. O compositor
paulista Francisco Mignone (1897-1986), ao falar de suas Valsas de esquina
(escritas entre 1938 e 1943), relata que:

[...] naquele tempo havia outra coisa muito interessante em São Paulo:
os rapazes reuniam-se à noite e faziam serenatas. Eu tocava um pouco
de violão e flauta e íamos nas esquinas tocando às pretendidas
namoradas, escondidas namoradas, ou sonhadas namoradas. Assim
começaram essas valsas, e a impressão foi tão forte que ainda
perdurou no meu espírito até mais tarde, quando escrevi as famosas
31

Valsas de Esquina. Muita gente me pergunta: ‘esquina por quê?’


Porque nós ficávamos nas esquinas, tocando às nossas sonhadas, que
não apareciam. (MIGNONE, 1991, p. 2).

É importante notar que essas esquinas teriam também a função de


esconderijo da vigilância patriarcal. No texto de Luiz Paulo Horta, para o encarte
do disco As 12 Valsas de Esquina de Francisco Mignone, gravadas pelo
pianista Arthur Moreira Lima, podem-se encontrar importantes detalhes sobre a
inspiração para nome das valsas e sua relação com o ambiente seresteiro:

Mignone dá a sua própria versão: o nome dessas valsas, segundo ele,


foi dado por Mário de Andrade, pois “lembram aquelas valsas que, à
noite, debaixo dos bruxuleantes lampiões a gás das esquinas, os
chorões tocavam em suas serenatas às amadas, que atrás das
venezianas ou cortinas, ficavam ouvindo. As esquinas serviam de
refúgio, caso aparecesse um parente na rua para afugentar os boêmios
perturbadores do silêncio noturno. (HORTA, 2003, no encarte do disco
de Arthur Moreira Lima).

Retornando ao poema, os tercetos não só apresentam um número menor


de versos, como também o ritmo se acelera dando fluência aos acontecimentos.
O primeiro terceto tem seu início marcado por reticência que, conforme
comentamos anteriormente, sugerem a continuação, ou o desenrolar da cena: a
partir de agora, o leitor saberá o desfecho amoroso. O sujeito lírico se aproxima,
e aos poucos o conhecemos por meio de seus “furtivos passos”, adjetivo que
indica a discrição daquele “que não se expõe nem se dá a conhecer” (FURTIVO,
2018). Nesse momento, os verbos que, na primeira parte, estavam sendo usados
no presente passam para o pretérito, indicando a consumação do encontro, a
realização do desejo. Ao contrário das idealizações das gerações românticas
anteriores, a obra de Castro Alves e a de seus contemporâneos têm como
característica o amor sob um viés mais real, abarcando a possibilidade de
realização do contato físico e do encontro afetivo.
No último terceto, as personagens que compõem a teia poética se
apresentam: tanto o sujeito lírico aparece/fala em 1ª pessoa (“Afoga-me”),
quanto a musa também tem seu nome – que também dá título ao poema –
pronunciado. Por fim, a sequência de expressões curtas, acompanhadas de
exclamações (“Ó surpresa! ó palor! ó pranto! ó medo!), transmite os sentimentos,
o afã e a ânsia do sujeito lírico diante dos desafios e empecilhos amorosos.
32

Nesse soneto, a cena do balcão, no primeiro terceto, faz referência direta


a Romeu e Julieta, rememorando o amor predestinado, porém proibido, e
trazendo à tona o arquétipo do amor juvenil que paira, inerente e mítico, nas
diversas expressões artísticas e culturais de todos os tempos.
No poema em análise, o poeta tece, aos poucos, a ambientação
seresteira, em que a luz do luar desnuda e desdobra os espaços da musa
resguardada, enquanto a noite esconde os segredos e encobre os desejos. O
instrumento nesse contexto não apenas evoca as sonoridades que compõem a
cena, mas também é através dele, em serenata, que a chegada do amado é
anunciada. O violão revela o amor, e é por seus sons – seu chamado – que se
dá o encontro. Ele marca o ponto de tensão, mas também estabelece a
interseção entre os amantes e a mediação do encontro amoroso. Esse violão em
serenata, ao terminar os quartetos, marca tanto a divisão da forma, quanto evoca
sonoridades musicais e imprime certa sensualidade ao soneto.
Na “Serenata”, do poeta sul-rio-grandense, também do romantismo
brasileiro, Francisco Lobo da Costa (1853 - 1888), temos, na primeira estrofe, o
chamado (da amada e também do leitor) através do uso de verbos no imperativo
afirmativo. Na imagem poética criada por esses primeiros versos, é possível
identificar o tempo da aurora, do amanhecer, quando o Sol – apesar de ser uma
estrela central e fixa – foge “do leito”. É importante observar também as outras
significações que podemos inferir sobre o astro-rei no contexto poético: ele é o
princípio do masculino, – ativo –, como a chegada do homem amado; é o calor,
o que confere vida (“os passarinhos cantam”); é a luz que surge no deserto,
evidenciando as oposições entre claro/escuro, dia/noite, vida/morte; ele surge no
horizonte, levantando de seu leito, como a donzela que o poeta quer despertar.
Porém, esse Sol “banha” o corpo – o poeta utiliza um verbo associado à água,
elemento que retornará na terceira quadra, associado ao amor – e o acorda
(assim como o mar desperta o amor, mais à frente no poema). Observemos os
versos:

Serenata

Acorda... escuta: os passarinhos cantam...


Olha: lá surge no deserto a luz;
É o sol vermelho que fugiu do leito,
Banhando a fronte nos regatos nus.
33

Ouve... Não ouves!... o tropeiro fala


Treme a viola na canção gentil,
E as borboletas despertando fogem
Dos seios frescos das cecéns de abril.

Não durmas... Olha como o mar palpita,


E a branca espuma silenciosa vai!
– A espuma é o anjo que dormiu na rede
E o mar o acorda murmurando: Amai!

Amor! a onda que descai serena...


Amor! as notas da cantiga vã!
Amor! a infância, – as orações do berço...
Amor! o sono da gentil irmã.
(COSTA, 1991, p. 61).

Na segunda quadra do poema, em meio ao suspense evidenciado pelo


uso de reticências e pelo pedido do sujeito lírico à amada que escute, ele
constata, exclama, que ela não ouve o que o tropeiro diz. Sabemos pelo verso
seguinte que se trata de uma canção gentil e que a viola treme (ou vibra, como
é típico do instrumento.) No entanto aqui, o verbo também pode significar uma
“agitação física e involuntária, por frio, medo, emoção aguda” (TREMER, 2018),
como a causada pelas serenatas tanto em suas musas, quanto nos seresteiros.
Sobre essa atuação do instrumento no acompanhamento da voz e da canção,
“viola” e “violão” se igualam em seus significados e funções, mas, pelo contexto
rural evocado pelo poema (através das descrições da natureza e do uso de
expressão como “Eia”), a viola-de-arame (ou viola caipira) se encaixa, de
maneira simbiótica, à figura do tropeiro e ao espaço do interior, onde o
instrumento se tornou mais disseminado.
Em seguida, assim como o sol despertando e fugindo de seu leito (na
primeira quadra), as borboletas também fazem o mesmo das açucenas que as
abrigam. É importante notar nesse trecho que a viola e a canção despertam as
borboletas, símbolo de transformação (metamorfose) (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2017, p. 138), ou seja, é por seus sons que a vida se modifica,
que o amor se transforma. Outro ponto relevante é a escolha e referência ao mês
de “abril”, pois, além de rimar com “gentil”, a palavra derivaria do latim Aprilis,
que significa abrir, ou surgiria como uma derivação de Aphros, o nome etrusco
de Vênus, a deusa do amor e da paixão, que aparecerá como “espuma” nas
próximas estrofes.
34

Vênus é também Afrodite, no panteão grego, e, conforme sua origem


mitológica, teria surgido em uma concha de madrepérola, gerada pela espuma
do mar. No poema, a espuma branca não só contrasta com o sol vermelho dos
primeiros versos, como metaforiza a figura angelical desperta pelo mar palpitante
– como o coração dos que amam. Por isso, o sujeito poético pede à amada que
não durma, afinal, depois de modificados pelo amor, é preciso estar desperto e
atento (ou, nas palavras de Chico Buarque, “preciso não dormir/ até se
consumar/ o tempo da gente”3). O poema engendra até esse momento um
contraste e uma cadência importante a ser observada: o silêncio do anjo que
dormiu versus o som da canção que desperta; a viola acorda a borboleta, assim
como o mar desperta o anjo, e determina: “amai!”. Além da viola e da canção
que, no contexto do poema, marcam o momento de transformação e saída do
estado torpor, a água é também considerada, na literatura e nos sonhos, um
importante arquétipo para nascimento, ressurreição, fertilidade e crescimento.
Em seguida, na quarta estrofe, o uso da palavra amor, ao mesmo tempo
em que funciona como um vocativo, é também explicação ou a tentativa de
definição do termo. Conforme o poema, amor é o movimento contra o qual não
se pode lutar, apenas pender por falta de forças (“a onda que descai serena...”);
é sonoridade, sons que passam, como a música, inapreensível e transitória (“as
notas da cantiga vã!”); é infância e também morte (irmã do amor, dualidade tão
presente no romantismo).
Ao terminar o poema, o sujeito lírico reitera seus pedidos e finalmente se
apresenta: “– sou eu”.

Eia... desperta! Quanta luz se espalha!...


a aurora volta recamando o céu...
Serás a rosa ao suspirar das brisas;
Acorda... escuta... vem ouvir, – sou eu!...
(COSTA, 1991, p. 61).

Nessa quadra final, a utilização da palavra “suspirar”, além de significar


saudade, nostalgia, adquire também o sentido de ansiar, metaforizando o desejo
do eu lírico. Em relação à amada, sua personificação na figura da rosa nos revela
simbologias relacionadas ao amor, ao coração, à perfeição, à beleza, à

3Primeiros versos da canção Todo o sentimento, letra de Chico Buarque e música de


Cristóvão Bastos (LETRAS, 2018.).
35

sensualidade e ao renascimento. Conforme a mitologia greco-romana, essa flor


estaria associada à Afrodite ou Vênus (figura apontada anteriormente na
interpretação poética), pois as rosas, que eram brancas, tingiram-se de vermelho
com o sangue de Adônis, seu amado, ferido de morte. Assim, além de simbolizar
o amor e o romantismo, a rosa também representa a regeneração.4
Além disso, outra dimensão do poema pode ser percebida: um ciclo que
se desenha no percurso poético, sendo o primeiro momento o despertar; em
seguida, a transformação, o crescimento; e, por fim, o renascimento. É notável
também que a aurora marca o começo e o fim do poema, assim como a
predominância da cor vermelha (solar), na primeira quadra, e a rosa, nos últimos
versos.
Entretanto, apesar de todas as declarações do sujeito lírico, não é
possível identificar, como no poema “Marieta”, de Castro Alves, analisado
anteriormente, se a amada atende a seu pedido. Esse caráter suspensivo é
reforçado pelo uso dos verbos no imperativo afirmativo, seguidos e
entrecortados por reticências (“Acorda... escuta... vem ouvir”).
Nessa serenata sobre o amor e para o amor, o homem apaixonado é
como a brisa – que passa – assim como a canção e o tropeiro. Apesar de
algumas características serem recorrentes em nossas análises, como a prática
seresteira durante a madrugada, a expectativa do encontro, reforçado pelo uso
de reticências, o desejo que a amada desperte para ouvir as declarações
amorosas, e o suspense sobre a vontade da musa, esse poema nos aponta para
mais um aspecto importante: a errância. Assim como o amor é trânsito
(onda/nota/infância/sono), o seresteiro ou tropeiro também é o sujeito vagante,
erradio.
Assim como em Francisco Lobo da Costa, a serenata também serviu de
inspiração, tema e título para Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em um
poema publicado no livro memorialístico Boitempo e A falta que ama.
Percebamos como o poeta compõe sua “Serenata”:

4“Várias lendas referentes a flores surgem ligadas à história de Adônis; não apenas a origem
mítica da mirra (as lágrimas de Mirra), mas também a da rosa: inicialmente a rosa era branca,
mas, quando Afrodite corria em socorro do seu amigo ferido, espetou-se-lhe no pé e a cor do
sangue tingiu as flores que lhe são consagradas.” (GRIMAL, 1992, p. 7).
36

Serenata

Flauta e violão na trova da rua


que é uma treva rolando da montanha
fazem das suas.
Não há garrucha que impeça:
A música viola o domicílio
e põe rosas no leito da donzela.
(ANDRADE, 1968, p. 24).

No poema, os instrumentos presentes são a flauta e o violão que,


metonimicamente, representam os músicos e a configuração instrumental da
prática seresteira. Porém, no contexto poético, mais do que as sonoridades
evocadas, esses dois instrumentos acionam, por suas formas e cargas
simbólicas, a relação com o masculino e o feminino: a flauta, símbolo fálico; e o
violão, com seus contornos e associações ao corpo feminino. Além desses
aspectos, a flauta também nos remete a características que persistem e marcam
a construção estereotipada do músico boêmio, como a “vadiação”, a “indolência”,
pela relação com o indivíduo que vive na flauta, aquele que nada leva a sério.
Maria Luiza Ramos (1984), em sua análise do poema, explica que:

É sabido que os objetos pontiagudos são símbolos fálicos, enquanto


os objetos ocos simbolizam o sexo feminino. No caso de violão, o
símbolo é duplamente significativo, na sua condição de ícone: por se
tratar de uma caixa e por ter uma forma que lembra o corpo da mulher.
Quanto a fazem das suas, trata-se de uma lexia do tipo de "fazer de
conta que", "fazer arte", etc. Essa expressão, precedida pela referência
à treva, que prepara o cenário para o proibido, antecipando a
desobediência, a "arte", introduz no texto a ideia de transgressão.
(RAMOS, 1984, p. 191).

Conforme o poema, essa trova acontece no espaço da rua,


provavelmente de alguma cidade montanhosa do interior (como Itabira, se
pensarmos pelo viés biográfico). Entretanto o poeta estabelece, por
paronomásia, uma característica de treva a essa prática e ao contexto em que
se realiza. Enquanto “trova” (2018) é definida, pelo dicionário, como “música
leve, lírica, de caráter mais ou menos popular” ou “cantiga medieval”; “treva”
(2018) significa a “absoluta falta de luz; escuridão”. Esse jogo de palavras é um
dado significativo, pois, ao mesmo tempo em que o violão em serenata
expressaria as declarações de amor, também sua presença representaria, por
questões que discutiremos ao longo desta subseção, um risco aos costumes e
37

ideais da época, principalmente porque “não há garrucha que impeça” seu


alcance. Ruy (1952) considera que:

nos primeiros decênios do século, o violão abastardara-se, tornando-


se essencialmente plebeu, sem vencer o preconceito mundano que o
considerava o instrumento do vício, companheiro perdulário e mau
conselheiro. Fechava-lhe as portas a sociedade. Os pais cautelosos,
cerravam as venezianas. Os maridos, zelosos e ciumentos, quando
não corriam a pau os seresteiros que lhes rondavam a porta,
escutavam, em guarda e assustados as variações do instrumento a se
afinar, enquanto, suspirosas, sentadas ao leito, donas e donzelas
sentiam o palpitar descompassado do coração em aceleradas
pulsações. (RUY, 1952, p. 9-10).

Essa tentativa de represamento – musical, cultural e histórico – e a força


de sua manifestação aparece retratada nos últimos versos, nos quais música e
viola aparecem como instrumentos de violação (“A música viola o domicílio”),
vencendo as distâncias e os impedimentos ao conseguir colocar “rosas no leito
da donzela”.
Com isso, temos a fatalidade do encontro apesar da garrucha, “termo para
o qual se desloca o poder daquele que a sustenta. Mas garrucha é também
símbolo fálico e, por se tratar de uma palavra mais antiga, conota o poder
paterno, a vigilância” (RAMOS, 1984, p. 191). A consumação amorosa se dá pelo
simbolismo evocado pelas rosas vermelhas que tanto trazem o romantismo da
serenata, quanto representam o sexo, a paixão e a violação – as marcas da
defloração:

Como acontece em garrucha, donzela é um termo datado, que tem a


vantagem de trazer consigo um tempo passado. E ao nos
aproximarmos do desfecho do poema – esse momento em que a
música, que viola o domicílio, é igualmente quem põe rosas no leito da
donzela, vemos como se desdobra o termo nodal – viola – cuja
conotação sexual se atualiza no leito. (RAMOS, 1984, p. 192).

Além de se constituir como prática popular, a serenata é também um dos


principais gêneros da música erudita. Caracterizada pelo estilo leve e romântico,
o gênero possui uma estrutura formada de diversos movimentos, sendo a
abertura e o final em andamento rápido e movimentos internos com alternância
entre rápidos e lentos.
Analisemos agora um pouco mais sobre trovas e sua influência na
configuração da serenata.
38

2.2 “Vem ouvir a voz queixosa,/ minhas trovas vem ouvir!”5

A prática de criar e cantar versos acompanhados por um instrumento


musical remonta à Idade Média europeia, destacando-se principalmente nos
territórios de nacionalidade ibérica. Historicamente, Mendes (2015) explica que:

Denomina-se trovadorismo o movimento poético-musical iniciado no


século XI pelos trovadores da Provença, sul da França, cujas
composições eram acompanhadas por instrumentos musicais e por
dança, corroborando com o fato de que a literatura medieval não se
restringia à escrita, não acessível a grande parte dos indivíduos, e
fundamentava-se na oralidade, elemento que permitia a transmissão
quase que imediata das informações que estas produções se
revestiam, assim como da abrangência de um número maior de
pessoas a receber tais elementos, sejam eles poéticos, amorosos,
ideológicos, sociais, políticos e também de divertimento, uma vez que
o verso se constitui como uma forma de ritmar a fala que contribui para
o desenvolvimento da memória. (MENDES, 2015, p. 64).

Para abordarmos seus percursos históricos e aspectos mais relevantes,


partiremos da “Cantiga”, de Álvares de Azevedo:

Cantiga

Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela...
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.

Adormeceu-a, sonhando,
Um feiticeiro condão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração.

Dorme a lâmpada argentina


Defronte do leito seu;
Noite a noite a lua triste
Vem espreitá-la do céu.

Voam os sonhos errantes


Do leito sob o dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.

E no castelo, sozinha,
Dorme encantada donzela...
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.

5 Versos da canção “Acorda” (CEARENSE, 1908, p. 49).


39

Dormem cheirosas, abrindo,


As roseiras em botão...
E dormem no seio dela
As rosas do coração.
(AZEVEDO, 2009, p. 82).

Nesse poema, somos transportados, já na primeira estrofe, à atmosfera


mítica dos contos de fada, na qual a donzela, ainda que viva, permanece em
estado de adormecimento. Sabemos através da quadra seguinte que, por efeito
de poderes encantatórios, esse torpor não é apenas físico, mas atinge uma
dimensão amorosa, afinal, “dormem no seio dela/ as rosas do coração”. Esse
estado da donzela se expande e se reflete na lâmpada que, mesmo presente,
não emite luminosidade; na lua triste, que vigia seu sono, e em tudo a seu redor,
conforme o verso com uso de travessão explicativo. Esses elementos nos
conduzem, entretanto, a tecer ainda duas observações importantes: a primeira,
referente à utilização da prata – presente na luz da lua e na “lâmpada argentina”
– reforçando o caráter/estado da donzela, pois, como elemento alquímico, está
relacionado à frieza, aos problemas afetivos, aos medos e à insensibilidade. Já
o dourado – utilizado na caracterização do castelo – apesar de estar associado,
em nossa leitura, ao poder, à realeza e também à durabilidade e perfeição
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 669), revela-se solitário, de acordo com
a quinta estrofe do poema. É importante ressaltar que, ao repetir a primeira
estrofe com apenas uma modificação nos adjetivos (de “doirado” para “solitário”),
esses versos funcionam como o estribilho da cantiga.
O segundo ponto trata da dimensão fabulosa do poema, construída não
só em uma atmosfera e em um tempo alegórico, como do acesso ao inconsciente
coletivo, em que, em meio às histórias infantis, o poema nos conecta (ou nos
remete quase imediatamente) ao conto de fadas da bela adormecida. Nesse
enredo, uma princesa é enfeitiçada por uma bruxa ou fada maligna, caindo em
sono profundo ao furar o dedo em uma roca de fiar, na chegada de sua idade
adulta. É interessante observar que, em uma, dentre as várias versões dessa
história, a donzela adormecida chama-se Talia (WISH, 2018),6 nome derivado
da palavra grega Thaleia, que significa "o florescimento”, e seus dois filhos são
o sol e a lua, manifestados no poema por meio dos elementos que comentamos
anteriormente.

6 Versão italiana da Bela Adormecida.


40

Durante o tempo de espera para a chegada do príncipe que a despertará


com um beijo de amor verdadeiro, uma das fadas faz dormir todo o reino durante
cem anos (cena espelhada no poema pelo verso “– Dorme tudo junto dela”),
porém cresce uma floresta de espinheiros ao redor do castelo que a mantém
isolada, representando um empecilho para a concretização amorosa e para a
quebra do feitiço. Por essa razão – e aqui, nos aproximamos novamente do
contexto poético pelas várias referências à flor –, em algumas versões do conto,
o nome da princesa é traduzido como a Rosa do Espinheiro, Flor do
Espinheiro ou Rosa de Urze.7
Dando continuidade à nossa análise, essa primeira parte do poema
termina com um movimento de tensão, uma vez que, ao mesmo tempo em que
os botões vão se abrindo, as rosas permanecem adormecidas (ideia reiterada
na repetição dos dois últimos versos da segunda quadra). No contexto desta
primeira cantiga, temos uma percepção da força da natureza influindo tanto na
vida interior quanto no aspecto exterior, revelando o amadurecimento latente
que, apesar de dormente, está lá, sendo gestado, sobrepujando todas as
tentativas de contê-lo, mesmo retirando-se todas as rocas do reino. No entanto,
nesse processo de formação do sujeito, é preciso respeitar o tempo de
maturação e crescimento, marcados pelo sono, metáfora da morte e do
renascimento, com a chegada do tempo primaveril, na próxima parte do poema.
Isabela Fernandes explica que “a morte simbólica representa o despedaçamento
de estágios ultrapassados do indivíduo, a superação dos desejos regressivos e
dos medos que dominam o sujeito na sua passagem para o mundo adulto.”
(FERNANDES, 2000, p. 7).
Porém, antes de abordarmos o desenrolar da “Cantiga”, interessa-nos
ainda, em especial, a quarta quadra do poema por meio da qual sabe-se que,
através dos sons do alaúde e da figura do menestrel, os sonhos da donzela
“voam”. Esses versos nos revelam que, apesar da imobilidade – morte – da
princesa adormecida, seus pensamentos, desejos, sonhos e vontades
movimentam-se, vagam, viajam para além do leito resguardado. Se, por um lado,
a infância está protegida pelo dossel do leito e confinada ao interior do castelo,
por outro, é no espaço da rua, pelas mãos do menestrel e dos sons do alaúde

7 Do título original Dornröschen.


41

em que os desejos reprimidos encontram expressão e liberdade. Além dessa


distância geográfica e simbólica, há, no entanto, uma aproximação psicológica
entre a princesa em estado de dormência e a figura do menestrel que evoca – e
reforça – o torpor que permeia o poema: o amoroso. Todos esses elementos
conectam os dois poemas que compõem essa cantiga e estabelecem um novo
estribilho, na repetição dos versos dessa quadra na segunda estrofe do poema
seguinte, como veremos mais adiante.
Apesar de, pelo dicionário, menestrel ser definido como poeta ou cantor
que entoa poemas e canções próprios, ou alheios, e ter como sinônimos o bardo
e o trovador, algumas distinções tonam-se necessárias. Ao estudar a identidade
sociocultural de trovadores e jograis, Mendes (2005) aponta a existência de certa
hierarquia entre os tocadores da tradição galego-portuguesa dos séculos XIII e
XIV, organizada e determinada pela posição social que ocupam, e explica que:

Nela o trovador corresponde ao compositor de origem nobre que ocupa


a posição superior nessa hierarquia. Por sua vez, o jogral posicionava-
se numa escala inferior por ser um mero intérprete de canções alheias.
A ele sobressaía o menestrel, músico-poeta protegido por um nobre.
Seguindo-se a ele tem-se o segrel, cavaleiro-trovador que andava de
corte em corte. Além desses, também participavam do espetáculo
trovadoresco as jogralescas e soldadeiras, dançarinas ou cantoras que
em troca de dinheiro acompanhavam o jogral. (MENDES, 2005, p. 74).

Essas diferenças e categorizações na prática trovadoresca indicam não


só questões de ordenação e valor, como também os imbricados processos
sociais, culturais e mediadores que envolvem a canção e seu instrumentista
acompanhador no trânsito entre as diversas camadas da sociedade, nas
transformações (musicais e poéticas) ocorridas ao longo do tempo e em suas
aproximações simbólicas que envolvem as figuras do trovador e do menestrel –
e também a do seresteiro brasileiro, no século XIX –, e sua presença tanto nos
ambientes de nobreza, quanto nas ruas.
Essa capacidade de circular pelos vários espaços e camadas
socioculturais deixa em evidência a errância como uma característica recorrente
e comum a todos eles. O aspecto nômade determina não só a falta de fixação a
um local, mas também aquele que anda ao acaso, sem destino certo.
Vagabundo, vacilante, pouco firme, assim como os “sonhos” da donzela, as
“notas” da cantiga dissipadas pelo tempo e o menestrel que passa, errante, como
é próprio dessa figura.
42

Na segunda e última parte da cantiga que estamos analisando, há um


deslocamento da atmosfera descritiva do conto de fadas para a inserção do eu
lírico e da identificação da donzela. O narrador ou contador de histórias passa a
ocupar uma posição dentro do poema-conto falando diretamente de sua – e para
sua – amada. Nessa mudança de perspectiva, o sujeito esclarece, já na primeira
estrofe, que a donzela adormecida é uma imagem-metáfora da casta alma de
sua amada, porém não é assim que ele a imagina. Em seus pensamentos, ela
não está em estado de adormecimento, mas permanece desperta, aguardando
(uma vez que velar é tanto “cuidar” quanto “ficar acordado”) nos desejos que
habitam “debaixo do teu dossel”:

II

A donzela adormecida
É a tua alma, santinha,
Que não sonha nas saudades
E nos amores da minha.

– Nos meus amores que velam


Debaixo do teu dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.
(AZEVEDO, 2009, p. 83).

Enquanto esses últimos versos não só revelam os sentimentos expressos


nas “sonoridades delicadas, suaves” e no “ansiar” dos suspiros no alaúde,
quanto funcionam como conectores e rememorações do primeiro poema, na
estrofe seguinte, há uma mudança na atmosfera poética. O sujeito lírico pede,
no uso do imperativo, que a donzela acorde, e a torna mais tangível,
trespassando a personagem do conto de fadas, para mostrá-la agora como a
“sua” donzela:

Acorda, minha donzela,


Foi-se a lua, eis a manhã
E nos céus da primavera
É a aurora tua irmã.
(AZEVEDO, 2009, p. 83).

Nessa quadra, temos também uma mudança temporal expressa na


passagem da noite para o dia e um chamado para o despertar, o florescer não
só da natureza, mas também de sua amada que, saindo da morte simbólica, se
prepara para seu renascimento. Esse caráter é reforçado pelos versos
43

seguintes, em que, assim como a natureza se renova na primavera, também a


chegada da mocidade aflora (e deflora) a sexualidade, as descobertas afetivas
e o desejo de concretização e satisfação amorosa: “

Abriram no vale as flores


Sorrindo na fresquidão:
Entre as rosas da campina
Abram-se as do coração.
(AZEVEDO, 2009, p. 83).

Nesse “era uma vez”, o sujeito lírico insiste que sua amada desperte, para
que ambos, se desfazendo do “véu” – termo significativo por sua característica
contraditória, pois, ao mesmo tempo em que esconde, protege, e transparece
(“aquilo que se revela velando-se, aquilo que se vela revelando-se”)
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 951), também prepara uma espécie de
morte e luto. Com isso, esse processo marcaria a passagem da infância para as
primeiras experiências da adolescência:

Acorda, minha donzela,


Soltemos da infância o véu...
Se nós morrermos num beijo,
Acordaremos no céu.
(AZEVEDO, 2009, p. 83).

É importante observar que o beijo representa um aspecto fundamental,


tanto no conto de fadas quanto no poema, porém ele estabelece uma tensão por
movimento inverso, ou seja, enquanto o beijo desperta para a vida a princesa
adormecida, no contexto poético ele causa a morte (tanto da donzela quanto do
sujeito lírico), para a chegada ao “céu”, metáfora do prazer. Esses conflitos
juvenis, o receio e o fascínio pelo desconhecido e a curiosidade de vivenciar
novas experiências – por provar uma maçã, o fruto proibido, a Branca de Neve
cai em sono profundo; a Bela Adormecida dorme durante 100 anos, ao furar o
dedo em fuso de uma roca de fiar amaldiçoada, na passagem para os seus 16
anos (15 em algumas histórias) – permeiam e ambientam a construção poética.
Esse espelhamento da relação amorosa na atmosfera palaciana,
atemporal, em forma de cantiga acompanhada pelo alaúde, nos remete à
produção musical do trovadorismo. Assim, escolhemos essa cantiga por
condensar as características que estamos analisando, porém, na próxima
44

subseção, veremos, de maneira detalhada, outros poemas-canções, nos quais


os instrumentos de cordas dedilhadas se fazem presentes.
Conforme comentamos anteriormente, a figura do trovador acompanhado
pelo alaúde remonta à Idade Média e aparece em registros como as iluminuras
das Cantigas de Santa Maria, obra produzida pelo rei Afonso X, o Sábio. Nesse
códice, escrito em galego-português e datado do século XIII, estão reunidas
canções que contam e louvam os milagres da Virgem, cuja parte musical
apresenta características de monodias gregorianas e estreita relação entre o
texto e a música. Em relação ao acompanhamento, é possível identificar, na
ilustração abaixo, a presença do alaúde com sua caixa de ressonância em
formato de pera, fundo arredondado, tampo plano, de uma a três rosáceas ou
boca, quantidade de cordas variável (podendo ser simples ou duplas), diversas
afinações, e o braço curto terminando em cravelhame em ângulo reto:

Figura 2 – Iluminura do códice “Cantigas de Santa Maria”

Fonte: ALFOBRE DE LETRAS, 2010.

Figura 3 – Alaúde

Fonte: ALFOBRE DE LETRAS, 2010.


45

Apesar de não haver comprovações, supõe-se que sua origem seja árabe,
assim como a etimologia de seu nome al'ud, "a madeira". Além de se destacar
no acompanhamento de canções, o instrumento desempenhou um importante
papel como solista, principalmente no período renascentista e barroco, caindo
em desuso por volta do século XIX, mas chegando até os dias de hoje através
de sua prática nos trabalhos de música antiga e das transcrições de seu
repertório para o violão.
Enquanto a guitarra se populariza entre as camadas mais pobres, o
alaúde se torna o confidente de desejos e nostalgias dos ambientes palacianos,
caráter reforçado e exposto em “Boêmios” de Álvares de Azevedo, quando Nini
dá início ao poema e pede ao interlocutor (Puff) – e também ao leitor – “Escuta
um pouco”:

Havia um Rei, numa ilha solitária,


Um Rei valente, cavaleiro e belo.
O Rei tinha um irmão: – era um mancebo
Pálido, pensativo. A sua vida
Era nas serras divagar cismando,
Sentar-se junto ao mar, dormir no bosque
Ou vibrar no alaúde os seus gemidos. [...]
(AZEVEDO, 2009, p. 148).

Saindo dessa cena que se passa na Itália, para os ambientes cariocas, o


alaúde também aparece na obra de Catulo da Paixão Cearense, que, apesar de
não tocar o instrumento, coloca-o como parte de sua canção Acorda – cujos
primeiros versos dão título a esse tópico –, revelando, com isso, os processos
de apropriação da antiga prática, o acesso aos significados que permeiam o
imaginário popular, e a consolidação amalgamada desse “rude trovador”:

Vem ouvir a voz queixosa,


Minhas trovas vem ouvir!
Geme a lira suspirosa,
Não são horas de dormir!

Ouve o canto triste e rude


Do teu rude trovador!
São as notas do alaúde,
Quando o punge antiga dor!

São as horas encantadas


de falar do nosso amor!
As estrelas, namoradas,
se namoram no fulgor.
Olha o mar na rocha erguida
46

dando um beijo com fragor!


Só não tens pena, ó querida,
do vencido trovador!

Ama tudo cá na terra,


lá nos céus, com mais ardor!
Todo o peito amor encerra...
Que é da vida sem amor?!

ESTRIBILHO

Vem n'um beijo meigo e terno,


dar alento ao trovador!
Eu te juro amor eterno...
Vem jurar-me eterno amor!
(CEARENSE, 1908, p. 49-50).

É relevante observar que o registro dessa canção apresenta, como


instrução, a utilização da “Música da Modinha – Ama a Lua a Branca Vaga”,
rememorando um procedimento comum também aos trovadores que, no
contrafactum, mantém-se a parte musical, e troca-se apenas a letra, conforme
explica Cordeniz (2010):

O recurso a contrafacta (utilização de melodias pré-existentes nos


poemas) foi recorrente durante o século XX, derivado da ausência de
exemplos originais para as cantigas de amigo, amor e de escárnio e
maldizer. Houve quem aplicasse melodias litúrgicas aos textos
medievais, tendo a ver com a tese que defendia o nascimento do
trovadorismo europeu como uma extensão da prática religiosa, como
é o caso do Cónego José Augusto Alegria, que em 1968 publica alguns
exemplos de contrafacta. O autor acreditava que não existiriam
melodias diferentes para todas as cantigas, tal como os hinários, por
exemplo (1968: 10), e propôs algumas utilizações de material litúrgico
para o repertório profano da lírica medieval, incidindo nas cantigas de
amigo. (CORDENIZ, 2010, p. 58).

Além dessas aproximações entre a construção musical e literária, fica


evidente, em um relato de Catullo da Paixão Cearense (1908), a presença do
trovadorismo no contexto simples, popular, e marcado pelas sonoridades do
violão brasileiro:

O conselheiro Octaviano, dizia que, ao sair do Lyrico de onde vinha


saturado de música clássica, e, ao passar pela casinha de um pobre
trovador, parava, extasiado, ouvindo, os suspiros da sua voz dolente
e os gemidos do seu violão, harmonioso e terno. (CEARENSE, 1908,
p.10-11).

O trovador e o seresteiro se entrecruzam também no poema de Manuel


Bandeira (1886-1968), musicado por Heitor Villa-Lobos, no qual o texto poético
47

com traços trovadorescos (como a confissão do amor incondicional, a tristeza de


não ser correspondido – sequer ouvido –, e a “voz” da figura arquetípica) ganha
a sonoridade, a linguagem e a atmosfera dos serenos na construção desta
Seresta nº 5 (1925), intitulada Modinha. A canção faz parte das 14 peças que
integram o ciclo de Serestas, compostas entre 1925 e1926.

Na solidão da minha vida


Morrerei, querida,
Do teu desamor.
Muito embora me desprezes,
Te amarei constante,
Sem que a ti distante
Chegue a longe e triste voz
do trovador.

Feliz te quero!
Mas se um dia
Toda essa alegria
Se mudasse em dor,
Ouvirias do passado
A voz do meu carinho
Repetir baixinho
A meiga e triste confissão.
(VILLA-LOBOS, Heitor, 1926).

O amor cantando e contado pelos trovadores – e seresteiros – habita os


ideais platônicos do amor cortês, em um limiar contraditório entre desejo erótico
e a impossibilidade de sua concretização. Já a musa, perfeita e inalcançável, ao
mesmo tempo em que o conduz, o enamorado, a um estado de perfeição quase
místico (como uma transposição dos sentimentos religiosos), também o recebe
na condição de submissão e vassalagem (espelhando as relações sociais
feudais). É importante notar o papel feminino nesse contexto, pois, apesar de
não possuir voz, em termos de autoria – e, na poesia brasileira, veremos também
a escassez de textos relacionados ao violão escritos ou enunciados por mulheres
–, a figura feminina torna-se fundamental para a produção musical e literária,
pois é ela o mote inspirador da produção artística trovadoresca e seu
destinatário.

La lírica amorosa medieval europea, es, en general, una literatura


compuesta por hombres. Si bien en ella la mujer es objeto en
innumerables ocasiones de veneración, y en muchos otros la portadora
del discurso, la sociedad feudal, de marcado carácter misógino, no
considera que la mujer esté capacitada para componer poesía, lo que
hace que esta labor sea atribuida al género masculino. Aún cuando
existen excepciones, como es el caso de las trobairitz francesas, este
48

tipo de lírica es obra de trovadores y Minnesänger, transmisores de la


cultura de la época, quienes imaginan lós pensamientos y sentimientos
de la fémina para después plasmarlos en sus composiciones, con el fin
primordial de servir de entretenimiento a la nobleza, al tiempo que
instruirla para seguir el rígido código de la caballería, imperante en toda
Europa. (TOREZANO, 2014, p. 43-44).

O grande alcance – geográfico, temporal e social – e a extensa produção


poética e musical evidenciam a popularidade do trovadorismo e sua capacidade
de circulação. O trovador atua como uma figura mediadora, transitando entre os
diversos espaços (entre o urbano e o rural, os palácios e as ruas), e tornando-
se um operador cultural e social, tanto por apresentar sua produção amorosa,
como as cantigas de amor e de amigo, quanto por ser capaz de estabelecer
críticas satíricas (diretas ou indiretas) aos costumes, como as cantigas de
escárnio e maldizer.
Essa capacidade aglutinadora, tanto sonora quanto simbólica, e as
tensões que permeiam seu percurso aparecem tecidas na voz de “O trovador”,
de Mário de Andrade:

O trovador

Sentimentos em mim do asperamente


dos homens das primeiras eras...
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...

Sou um tupi tangendo um alaúde!


(ANDRADE apud TONI, 1987, p. 83).

Esse poema que integra o livro Paulicéia Desvairada, escrito em 1920 e


publicado no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, segue, segundo seu
prefácio, “a ordem imprevista das comoções, das associações de imagens, dos
contactos exteriores” (MARTHA, 1999). Nele, temos a quebra de padrões que
vínhamos observando na maior parte dos poemas analisados anteriormente:
primeiro, pela escolha na quantidade de versos, não quadras, mas dez em seu
total, divididos em duas partes (nona e monóstico); segundo, por desafiar as
regras gramaticais e subverter a sintaxe de colocação na construção discursiva;
49

e, por fim, pela surpreendente exploração de recursos extratextuais e sonoros


na criação poético-musical.
Martha (1999), em seu artigo “O trovador, a lira e o alaúde”, explica que:

Como um todo, o poema expõe seu processo de criação: a imersão no


passado, através da liberação e projeção de forças inconscientes, leva
o poeta à ação no presente, incorporando temas e recuperando suas
raízes. Dividido entre o romantismo radical do primitivismo e o
futurismo experimental da linguagem, o poema cabe inteiro no quadro
da modernidade, notadamente, na “escola” desvairista fundada por
Mário de Andrade, com o livro Paulicéia Desvairada. (MARTHA, 1999,
p. 25).

Para além da lírica moderna que permeia o poema, precisamos aqui


estabelecer alguns paralelos e cruzamentos entre os aspectos poéticos e as
relações históricas, musicais e simbólicas por ele suscitadas. Para isso, partimos
da observação textual composta por ideias fluidas parecendo, a princípio,
baralhadas e jogadas no papel, em um movimento contínuo de imagens,
sentimentos e percepções que, reforçadas pela supressão dos verbos, exigem
do leitor o ofício da costura. Essa importância da recepção para efetivação da
expressão artística aproxima o poema das cantigas trovadorescas, pois se, no
primeiro, o leitor precisa da musicalidade e da compreensão da linguagem para
construir sua significação, no segundo, pressupõe-se o ouvinte tanto para a
circulação, a memória e o acesso ao conteúdo, quanto para sua concepção
literário-musical.
É significativo observar também que os principais tipos de cantigas dos
trovadores transparecem no decorrer do poema no uso do termo “sarcasmo”,
conferindo não só certo tom irônico ao texto, como rememorando as canções
satíricas de escárnio e maldizer; e da referência à “alma doente” e figura
“arlequinal”, que, além de um importante arquétipo para a construção poética,
remete-nos a seu universo amoroso.
Personagem da antiga Comedia dell’Arte, Arlequim divertia o público
com suas espertezas e trapalhadas na tentativa de enganar seus patrões,
revelando as questões sociais e ridicularizando os costumes da época. É notório
também o triângulo amoroso do qual participa e em que, por sua sedução e
malandragem, conquista o amor da jovem e perspicaz Colombina, deixando
triste o Pierrot apaixonado. Seu traje era feito de pedaços de pano triangulares,
50

geralmente nas cores verde, vermelho e azul; em seu rosto, chapéu e meia-
máscara preta; e um sabre de madeira à cintura. Sobre essa característica
multicolorida de sua veste, Vieira (2012, p. 82) explica que, “no início, usava uma
roupa branca, mas de tanto ser remendada com cores diferentes e numerosas,
acabou desaparecendo debaixo dos remendos”.
No contexto poético, esses reparos e retalhos suscitam, em nossa leitura,
a metáfora e a síntese da formação e da construção de uma identidade nacional
brasileira, nos moldes marioandradinas, com seu mosaico sincrético, diverso e
ambíguo:

O arlequim é a imagem do irresoluto e do incoerente, que não se


prende a ideias, sem princípio e sem caráter. Seu sabre é apenas de
madeira, seu rosto anda sempre mascarado, sua vestimenta é feita de
remendos, de pedaços de pano. A disposição desses pedaços de
xadrez evoca uma situação conflitiva – a de um ser que não conseguiu
individualizar-se, personalizar-se e desvincular-se da confusão dos
desejos, projetos e possibilidades. (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2017, p. 80).

Além dessa capacidade aglutinadora (acomodando culturas, extratos


sociais, costumes, tempos e espaços), o Arlequim de Mário de Andrade também
nos aproxima da imagem daquele que é incompleto – pois sai, nas noites
carnavalescas, em busca de seu amor (a Colombina) –; do amante, que rouba
beijos das damas e lhes entrega seu “coração arlequinal” (para que, quando
comido, se tornem o próprio Arlequim); e do inconstante, esperto e insolente
“herói sem nenhum caráter”. Todos esses espectros arquetípicos que compõem
o sujeito do poema se entrecruzam e se unificam na figura do “tupi tangendo
alaúde”, como um espelho do seresteiro brasileiro, do malandro e do boêmio. No
entanto, esses agentes e expressões parecem vir de uma força mais antiga e
universal, da qual o trovador “arlequinal”, acompanhado por seu violão, ganha
feições não só poéticas e musicais como formas e cores nas obras de pintores,
como o francês Derain André e os cubistas Pablo Picasso, em 1914, e Juan Gris,
em quadro datado de 1919:
51

Figura 4 - Harlequin with Guitar - Derain André

Fonte: MUSÉE DE L'ORANGERIE, 2018.

Figura 5 - Arlequim com guitarra - Pablo Picasso

Fonte: ARTE NA REDE, 2018b.


52

Figura 6 - Arlequim com guitarra - Juan Gris

Fonte: ARTE NA REDE, 2018a.

Saindo da esfera imagética, precisamos ainda descortinar as sonoridades


produzidas, uma vez que, no poema de Mário de Andrade, além da musicalidade
que lhe é própria, temos também a criação de alguns timbres e a exploração de
recursos que nos remetem aos instrumentos acompanhadores da prática
trovadoresca.
Em termos estruturais, os ecos e a repetição de termos – “primeiras eras”/
“primaveras”; “intermitentemente”/ “doente” – revelam uma insistência que,
reforçada pelo uso da pontuação em reticências, gera uma sensação de
continuidade, como se o verso se prolongasse no próximo, e um efeito de eco
que nos aproxima da ressonância própria do bojo de madeira dos instrumentos
de cordas dedilhadas que estamos abordando. Por outro lado, o resultado
sonoro produzido pelas aliterações dos sons consonantais [s] e [t] e das
assonâncias [em] e [om] emula tanto o ruído do ataque dos dedos nas cordas,
quanto cria um timbre próximo à emissão sonora desses instrumentos. Com isso,
se, por um lado, há uma dissonância do discurso por sua descontinuidade, por
outro, se estabelece uma consonância com a sonoridade do trovador.
Entre a aspereza – citada no poema e produzida por ele – e o “longo som
redondo”, Mário de Andrade concluiu seus versos de maneira surpreendente e
desafiadora. Primeiro, porque simula o próprio instrumento na criação de
53

palavras que, sem significado, se atêm à sonoridade “Cantabona!


Cantabona!/Dlorom...”; segundo, ao estabelecer um “eu sou”, o poeta mescla o
aspecto nacional e selvagem do tupi ao alaúde que, como vimos, está
relacionado ao estrangeiro e ao ambiente palaciano.
Nesse processo antropofágico, em sintonia com o pensamento estético
modernista, o trovador se personifica no “tupi tangendo alaúde”, porém além da
identificação nacionalista, que veremos com mais detalhes na última seção deste
trabalho, o poema aproxima passado e presente, memória e atualidade. Ao
utilizar o termo “trovador” somente no título (acompanhado pelo artigo masculino
definido, revelando não se tratar de qualquer trovador), o poeta estabelece uma
conexão com ambientes, agentes, sonoridades e práticas da tradição medieval.
Ao mesmo tempo em que, mascarado, sabemos deste trovador pelas pistas
deixadas ao longo do texto, por meio de uma roupagem que já nos coloca no
século XX e nos desafia à continuidade (pelo uso do verbo no gerúndio), ao nos
apresentar esse tupi com seu alaúde. Seguimos hoje, ainda “tangendo” a viola
nos interiores, o violão nas serestas, nas rodas de choro e de samba, nas ruas
e nas salas de concerto, nos mais variados espaços, tempos e expressões
artísticas e musicais.
Ao longo desta subseção, abordamos importantes elementos tanto da
seresta, com suas características e aspectos históricos, quanto do trovadorismo,
partindo da dimensão fabulosa, em que o trovador com seu instrumento revela
suas paixões e segue sua amada “de joelhos”, até chegarmos ao século XX, com
seu mosaico colorido de peças, sonoridades e simbologias de que é feito o
trovador brasileiro. Após conhecermos um pouco o ambiente, as figuras e o
contexto da seresta, é preciso agora escutar os poemas-canções dedilhados por
este trovador.

2.3 “O canto banhado em pranto”8

A cantiga medieval, aqui considerada o poema composto e cantado por


trovador, traduz as manifestações amorosas, como nas cantigas de amor (em
que o homem se declara para sua amada, sem ser correspondido) e nas cantigas

8 Verso do poema “Viola d’Amore”, de Idelma Ribeiro de Faria (1966, p. 14.).


54

de amigo (nas quais a voz poética feminina confidencia seus sentimentos pela
falta da figura masculina ou se alegra pelo encontro). Revela, ainda, de maneira
crítica, irônica e satírica, os costumes da época, nas cantigas de escárnio e
maldizer.
O canto remonta à antiguidade e carrega em si características primordiais.
Canta-se para quem nasce e para quem morre, para invocar ou pedir licença aos
deuses, para a dança e para o lamento. Existem cantos de cura, de trabalho, de
luta. As mitológicas musas gregas cantavam em coro as glórias atemporais dos
Olimpos. Há também a força do canto da sereia que seduz e leva aos naufrágios
as embarcações, silenciado por Orfeu para salvar os tripulantes. Há o cante
hondo9 e profundo dos povos.
Esse caráter originário é ainda reforçado por Chevalier e Gheerbrant, para
quem:

O canto é o símbolo da palavra que une a potência criadora à sua


criação, no momento em que esta última reconhece sua dependência
de criatura, exprimindo-a na alegria, na adoração ou na imploração. É
o sopro da criatura a responder ao sopro do criador. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2017, p. 176).

Nas diversas possibilidades de união entre palavra e som, o lied alemão,


a melodie francesa e a canção de câmara brasileira configuram um repertório
construído a partir de um texto poético preexistente e cujo acompanhamento é
feito, em sua maioria, pelo piano. Já na vertente popular são acrescentados
outros processos composicionais, como a criação de letra e música
simultaneamente, ou a elaboração da letra com base na música, e o violão e “um
banquinho” participam, de maneira determinante, na configuração e na prática
dos principais gêneros populares brasileiros. Em sentido inverso, pretendemos
aqui analisar a poesia feita a partir de uma ideia de canção, ou seja, a poética
com inspiração no gênero musical.
Para isso, partiremos do poema “O pastor moribundo”, que, assim como
a “Cantiga” analisada anteriormente, também integra a primeira parte da Lira

9 “De cualquier manera, el flamenco, o su padre, el cante jondo, brotan de ese sentimiento de
angustia de los pueblos marginados que veían en sus cantes una forma de liberar todo lo jondo
(hondo, profundo), una forma de externar su dolor interior. Por ello, el flamenco de hoy no
tieneun origen puro, porque es la mezcla de los perseguidos; árabes, gitanos y sefardíes y
tantos otros, incluso de los cristianos que les dieron abrigo”. (RETAMAR, 2009, p. 50).
55

dos Vinte Anos, e nos remete ao sentimentalismo, à morte e à melancólica


impossibilidade de realização amorosa. É importante observar que o autor utiliza,
como subtítulo poético, a descrição “Cantiga de viola”, não só evocando ao leitor
memórias musicais e imagéticas, como sugerindo a conotação do percurso
textual. Essa especificação pode ser entendida, em uma transposição para o
universo musical, como a indicação de andamento que auxilia o intérprete na
escolha da velocidade de execução e do caráter de um determinado trecho ou
obra. Por essa designação, sabemos também que quem acompanha o trovador
agora não é o alaúde e, sim, a viola:

O pastor moribundo

Cantiga de viola

A existência dolorida
Cansa em meu peito: eu bem sei
Que morrerei...
Contudo da minha vida
Podia alentar-se a flor
No teu amor!

Do coração nos refolhos


Solta um ai! num teu suspiro
Eu respiro...
Mas fita ao menos teus olhos
Sobre os meus... eu quero-os ver
Para morrer!

Guarda contigo a viola


onde teus olhos cantei...
E suspirei!
Só a ideia me consola
Que morro como vivi...
Morro por ti!

Se um dia tu’alma pura


Tiver saudades de mim,
Meu serafim!
Talvez notas de ternura
Inspirem o doudo amor
Do trovador!
(AZEVEDO, 2009, p. 74).

A cena criada no poema revela, nas duas primeiras estrofes, o sujeito


lírico em sua condição de morte, marcado pelo cansaço existencial e por sua
situação moribunda (agonizando, murchando, sem viço), cuja sensação de
alívio, acalento e fôlego pode ser encontrada somente no olhar, no afeto e na
respiração da pessoa amada. Na terceira estrofe, entretanto, a viola funciona
56

não só como um objeto precioso e singular – o único bem que esse pastor, no
momento de sua “morte”, pede que fique com sua musa – como também um
instrumento de lembrança, onde estão gravados (e poderão ser acessados) os
registros de sua voz, sua musicalidade, e a expressão de todos os sentimentos
vividos e cantados. Sabe-se, nesse instante, o motivo de sua vida e de sua
morte: a amada.
Apesar de a morte ser, possivelmente, o único consolo para o irrealizável
e o alívio para os desejos não concretizados – principalmente no contexto do
Romantismo literário brasileiro –,10 a finitude se desdobra em transmutação. Ao
mesmo tempo em que este eu lírico devotado passa por um processo de morte
simbólica, ele é também um pastor (figura que vai além de uma vida simples
ligada à natureza e adquire significações relacionadas ao “constante exercício
de vigilância”) (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 691). Nômade, intuitivo e
sábio, o pastor não permanece no sono mortal, “ele está desperto e vê”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 692). Já a mulher amada é, na última
estrofe, comparada à figura angelical do Serafim. Significando “beleza extrema”,
o termo se bifurca tanto em purificação quanto ardor, pois Serafim é “nome dos
seres celestes, que significa o abrasador (Saraf)” ou “os que inflamam”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017, p. 813). Essa dualidade da musa – que
pode ser tanto a figura do anjo quanto o fogo que incendeia – também gera
tensão, e certa aproximação, com a figura do pastor-trovador, estabelecendo
tênues limites entre a inspiração e a perdição, a pureza e a loucura.
Nesse poema que canta/versa sobre a morte, o sofrimento e a nostalgia,
a viola serve de mote e instrumento de memória e perpetuação. Já o trovador
palaciano com seu alaúde se aclimata a espaço, sons e figuras do interior do
Brasil, em um processo que será desvelado com mais calma e detalhe no
decorrer deste texto. Para isso, seguimos agora, com a “Canção do Violeiro”, de
Castro Alves:

10 Em crítica a Álvares de Azevedo, Mário de Andrade aponta o desejo de morte pela


dificuldade de lidar com a potência vital e o medo de viver o amor em sua plenitude: “Entre os
cacoetes históricos que organizaram o destino do homem romântico, um dos mais curiosos foi
o de morrer na mocidade. Morria-se jovem porque isso era triste, e sobretudo lamentável. Mais
lamentável que penoso...” (ANDRADE, 1972, p. 199).
57

Canção do Violeiro

Passa, ó vento das campinas,


Leva a canção do tropeiro.
Meu coração 'stá deserto,
'Stá deserto o mundo inteiro.
Quem viu a minha senhora
Dona do meu coração?

Chora, chora na viola,


Violeiro do sertão.

Ela foi-se ao pôr da tarde


Como as gaivotas do rio.
Como os orvalhos que descem
Da noite num beijo frio,
O cauã canta bem triste,
Mais triste é meu coração.

Chora, chora na viola,


Violeiro do sertão.

E eu disse: a senhora volta


Com as flores da sapucaia.
Veio o tempo, trouxe as flores,
Foi o tempo, a flor desmaia.
Colhereira, que além voas,
Onde está meu coração?

Chora, chora na viola,


Violeiro do sertão.

Não quero mais esta vida,


Não quero mais esta terra.
Vou procurá-la bem longe,
Lá para as bandas da serra.
Ai! triste que eu sou escravo!
Que vale ter coração?

Chora, chora na viola,


Violeiro do sertão.
(CASTRO ALVES, 2017).

Esses versos do livro O navio negreiro e outros poemas acrescentam


à nossa discussão um termo que se constitui como gênero musical – equivalente
à cantiga – fundamental para a cultura brasileira e para os instrumentos de
cordas dedilhadas: a canção. Enquanto Mário de Andrade a define como sendo
o “canto solista acompanhado por instrumento solista” (ANDRADE apud
BAROGENO, 2005, p. 927), Pádua (2009) explica que:

A canção, do ponto de vista de sua produção, é uma obra multimídia,


por se utilizar da palavra e da música. Desta forma, a produção de uma
canção pode ser considerada como uma ação conjunta que envolve a
transposição de elementos de uma mídia a outra, a criação de uma
obra multimídia original e a recriação da mídia original. A canção se
58

constitui como um universo de significação ampliado por conter


diferentes mídias, ou seja, diferentes sistemas de significação, o verbal
e o musical, cada um com sua coerência individual, com seus
elementos próprios que interagem no interior da canção. (PÁDUA,
2009, p. 78).

Por outro lado, é preciso observar que o gênero canção inclui também
outros tipos de configurações, por vezes, somente instrumentais, como as 48
Canções sem Palavras, do compositor alemão Felix Mendelssohn, para piano
solo; e outras textuais, como os poemas deste tópico que, apesar de não
possuírem sua criação atrelada ao campo da música, apresentam traços,
inspirações e influências musicais.
Retornando à “Canção do Violeiro”, pode-se notar, em sua forma, uma
estrutura de quatro estrofes, em sextilhas, intercaladas por dísticos que
funcionam, assim como na música popular, como o estribilho desta “canção”. Já
na primeira estrofe, temos a marca do que é passageiro e não se pode conter ou
limitar – o tropeiro, a canção, e o vento –, condição errante tão associada à figura
do tocador de viola (assim como ao trovador e também ao violonista seresteiro).
É a partir da pergunta que encerra essa estrofe que, em seguida, o poema se
desenvolve, revelando a solidão e o vazio – uma vez que “Meu coração 'stá
deserto,/ 'Stá deserto o mundo inteiro” – e a projeção do estado interior do eu
lírico na natureza (“o cauã canta bem triste,/Mais triste é meu coração”), como é
característico da escrita desse período.
Sendo vã a espera pela volta da mulher amada, o eu lírico decide partir
em sua busca, renunciando, com isso, a sua própria vida, sua pátria (“Não quero
mais esta terra”), sua liberdade e assumindo, como o trovador, sua condição
servil (“Ai! triste que eu sou escravo!”). Ao longo do poema, as perguntas
desenham um percurso que vai da procura à renúncia e desafiam o interlocutor,
em um jogo de deslocamento e questionamentos do sujeito poético a seu
interlocutor, como em “Quem viu a minha senhora/ Dona do meu coração?”, e,
em seguida, “Colhereira, que além voas,/Onde está meu coração?” e, por fim,
“Que vale ter coração?”.
Além do tropeiro, do ambiente rural das “bandas da serra” – que nos
desloca do trovador palaciano para o interior brasileiro –, a estrofe-estribilho
“Chora, chora na viola,/Violeiro do sertão” revela o instrumento como uma
extensão do violeiro, sua personificação, seu espelho, e também seu
59

companheiro de estrada, seu consolo. Além dos sentimentos de cumplicidade e


confidencialidade de que estão imbuídos os versos, há, em termos sonoros, uma
(re)criação de timbres relacionados à viola e emulados na aliteração [s] (durante
todo o poema, com a repetição da palavra “coração”, de verbos como “passa”,
“stá”, e do uso de plurais) e da aproximação de alguns recursos musicais (como
os acordes rasgueados que marcam os acompanhamentos das canções
sertanejas) produzidos no refrão pelo ritmo e pela sonoridade marcada das
consoantes [x] e [v].
Além da musicalidade presente na construção poética, da evocação
simbólica e da criação de timbres, que estamos defendendo aqui, é importante
acrescentar que a “Canção do violeiro” serviu de inspiração e texto para o
compositor Edino Krieger (1928) na construção de obra musical homônima para
canto e piano, em 1956, na qual o acompanhamento faz uso de importantes
elementos da música brasileira, como as linhas contrapontísticas, contracantos,
baixos de finalização e cromatismo.
Com título análogo, “A cantiga do sertanejo”, de Álvares de Azevedo, se
vale da presença constante da conjunção subordinativa condicional “se” e do uso
de verbos no pretérito perfeito e no pretérito mais-que-perfeito, com o intuito de
reforçar a imprecisão e a incerteza que perpassam a proposta amorosa. Como
este é um poema longo, ao contrário das formas curtas e breves que geralmente
marcam as cantigas, optaremos por apresentar os trechos poéticos,
paulatinamente, acompanhando o desenrolar das análises.
Inicialmente, é preciso observar que epígrafe que abre o poema “Love me,
and leave me not”,11 da comédia trágica O mercador de Veneza, de W.
Shakespeare, já nos anuncia a carga emotiva que envolve as dezesseis estrofes
em sextilhas. Em termos estruturais, as duas primeiras estrofes apresentam o
mote ou, em terminologia musical, o motivo ou tema, que se repetirá (“Se tu
quiseras”/“Se tu viesses”) e propiciará a argumentação do eu lírico.

Donzela! Se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração:
E se ouviras o desejo
Do amoroso sertanejo
Que descora de paixão!...

11 “Ama-me e não me deixe”. Tradução nossa.


60

Se tu viesses comigo
Das serras ao desabrigo
Aprender o que é amar...
– Ouvi-lo no frio vento,
Das aves no sentimento,
Nas águas e no luar!...
(AZEVEDO, 2009, p. 26).

Em seguida, em meio ao caráter confessional dos versos, a viola


representa um ponto fundamental, pois é ela que revela: o poema é a canção.

– Ouvi-lo nessa viola,


Onde a modinha espanhola
Sabe carpir e gemer!...
Que pelas horas perdidas
Tem cantigas doloridas,
Muito amor, muito doer...
(AZEVEDO, 2009, p. 26).

Por esses versos, podemos perceber também que a viola não só sintetiza
o binômio amor e dor, como realiza a função de expressar e consolar o trovador-
sertanejo, em um processo de identificação, simbiose e cumplicidade. Essa
capacidade de traduzir e exprimir os sentimentos de lamentação também está
relacionada ao violão – afinal viola e violão se unificam em simbologia e função
–, como na canção Dentro da noite, de Oscar Lorenzo Fernandez, que, apesar
de escrita para canto e piano, apresenta um acompanhamento instrumental
próximo à linguagem violonística, ambientando o poema de Osório Dutra (1889-
1968), no qual o violão canta, geme e chora:

Dentro da noite cor de treva,


Sem uma estrela cor de leite
Canta violão para eu sonhar!

Na casa humilde do caboclo,


Que fica ao fundo do grotão,
Geme, violão! Para eu sonhar

Na casa humilde do caboclo,


Geme, violão quero esquecer!
Quero esquecer!

Deixa que durma a natureza,


E nos envolva o seu mistério...
Chora violão, para eu dormir!
(Osório Dutra apud FERNANDEZ, 1946, partitura).

Assim como a “casa humilde do caboclo”, Álvares de Azevedo prossegue


o poema apresentando a descrição do sertanejo e suas posses (como o luar, a
61

noite, as lendas antigas, as cantigas, os perfumes) e subvertendo os padrões


sociais de riqueza, pois, apesar de “pobre” (“Tem apenas seu desejo/E as noites
belas do val!...”), é dono de sua liberdade e da natureza que o cerca.

Pobre amor! o sertanejo


Tem apenas seu desejo
E as noites belas do val!...
Só o ponche adamascado,

O trabuco prateado
E o ferro de seu punhal!...

E tem as lendas antigas


E as desmaiadas cantigas
Que fazem de amor gemer!...
E nas noites indolentes
Bebe cânticos ardentes
Que fazem estremecer!...

Tem mais... na selva sombria


Das florestas a harmonia,
Onde passa a voz de Deus,
E nos relentos da serra
Pernoita na sua terra,
No leito dos sonhos seus!
(AZEVEDO, 2009, p. 26-27).

Depois de o eu lírico apresentar as diversas razões para que seu amor


viesse e com ele quisesse viver no sertão onde “tudo canta e diz – amor!”, ele
converte suas dúvidas em convite (“Ah! vem! amemos! vivamos!”), revelado pelo
uso de verbos no imperativo afirmativo, da pontuação em exclamação e da
afetividade expressa na interjeição de alegria. É preciso, por fim, destacar que o
poema se encerra com os mesmos versos da primeira estrofe, como se a canção
seguisse uma estrutura composta de tema-desenvolvimento-tema/retorno (A-B-
A’). No entanto, o uso das reticências após o sinal de exclamação parece deixar
a canção em aberto – incerta e contínua –, como se a sonoridade do poema-
canção prosseguisse após seu término.

Ah! vem! amemos! vivamos!


O enlevo do amor bebamos
Nos perfumes do serão!
Ah! Virgem, se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração!...
(AZEVEDO, 2009, p. 29).
62

As reticências estão presentes também, de forma marcante e insistente,


no poema “Manuela”, que possui como subtítulo – ou, andamento-caráter da
esfera musical, em uma perspectiva análoga – a indicação “Cantiga do rancho”,
do autor baiano Castro Alves. Integrando o livro Os escravos, esse poema
“conta” uma história de amor, e sua forma pode ser dividida em quatro partes,
sendo a primeira uma introdução com características que se aproximam da prosa
e da narração dos elementos contextuais e preparatórios que anunciam a
história; a segunda, em que o eu lírico versa sobre a amada; a terceira trata da
canção a ela dedicada; e, por fim, a quarta, na qual o poeta retoma à escrita
inicial e apresenta o desfecho do romance. Vejamos mais detidamente cada uma
dessas estruturas.
O poema inicia-se com um chamado – tanto ao grupo de tropeiros ao qual
o sujeito lírico pertence, quanto ao leitor (“Companheiros!”) – e um convite a
proferir seus cantos de amor, nas trovas que ecoam pela serra. É interessante
notar, no entanto, que a referência ao “Sincorá” nos aproxima do próprio autor e
sua biografia, uma vez que a cadeia montanhosa pertence à Chapada
Diamantina e situa-se no estado da Bahia, local onde o poeta nasceu e viveu até
os 15 anos de idade, retornando já próximo de sua morte.

Manuela

Cantiga do riacho

Companheiros! já na serra
Erra.
A tropa inteira a pastar...
Tropeiros!... junto à candeia
Eia!
Soltemos nosso trovar...

Té que as barras do Oriente


Rente
Saiam dos montes de lá...
Cada qual sua cantiga
Diga
Aos ecos do Sincorá.

No rancho as noites se escoam.


Voam,
Quando geme o trovador...
Ouvi, pois! que esta guitarra...
Narra
O meu romance de amor.
(CASTRO ALVES, 2017).
63

Nessa última estrofe da introdução, é importante perceber que, além da


figura do trovador e seu sofrer, cabe à guitarra uma função determinante: o de
narrar a história de amor. Ao pedir ao interlocutor – e também ao leitor – que a
escute, somos convidados não só a entrar em contato com seu “gemer” e a
sonoridade rural do interior do país, mas também com seu passado trovadoresco
e a memória ancestral dos lamentos dos amores não correspondidos, afinal,
sabemos que ela guarda e revela o “romance de amor” – este e o de tempos
imemoriais.
Após a indicação de cesura, no final dessa seção, a segunda parte se
inicia com as duas primeiras estrofes revelando, por metáforas, o temperamento
da mulher amada, em que o torço – “xale que se usa em torno da cabeça” – que
a resguarda também a adjetiva (“tortuoso, sinuoso, retorcido”) ficando ao sabor
dos ventos ou dos casos amorosos, conforme popularmente se define “viração”.
A rosa aparece novamente como metáfora, porém não como a pureza tão
associada à flor ou como botão da “Cantiga”, de Álvares de Azevedo, mas
deflorada como “rosa aberta no sertão”. Esse caráter volúvel e dúbio torna a
musa mais palpável e por ser mais próxima à realidade, “Manuela – a moreninha”
é o avesso das virgens idealizadas – como a cantada pelo sertanejo no poema
anterior – e das imagens pálidas do romantismo.

Manuela era formosa


Rosa,
Rosa aberta no sertão...
Com seu torço adamascado
Dado
Ao sopro da viração.

Provocante, mas esquiva,


Viva
Como um doudo beija-flor...
Manuela - a moreninha
Tinha
Em cada peito um amor...
(CASTRO ALVES, 2017).

Em seguida, o sujeito lírico se desloca de narrador a personagem –


indicado pelo uso do pronome oblíquo “me” e do verbo na primeira pessoa “vejo”
– e rememora o encantamento ao contemplar sua amada:

Inda agora quando o vento


Lento
64

Traz-me saudades de então


Parece que a vejo ainda
Linda
Do fado no turbilhão

Vejo-lhe o pé resvalando
Brando
No fandango a delirar.
Inda ao som das castanholas
Rolas
Diante do meu olhar...
(CASTRO ALVES, 2017).

Entretanto, na última estrofe desta subseção, a viola aparece como


instrumento de rememoração, de consolo e cumplicidade, pois é nela que o
homem apaixonado acompanha as tiranas (2011),12 que, no contexto poético,
podem tanto significar dança originária da Península Ibérica (“com canto em
compasso binário composto e andamento moderado”, popularizada no Brasil no
final do século XVIII, “e cuja coreografia inclui sapateado, requebros e,
eventualmente, umbigada”), como a “mulher ingrata, esquiva ou má”.

Manuela... mesmo agora


Chora
Minh'alma pensando em ti...
E na viola relembro
Lembro
Tiranas que então gemi.
(CASTRO ALVES, 2017).

A terceira parte do poema é a canção propriamente dita, marcada pelo


uso de aspas e pela modificação nas nuances textuais, passando do descritivo
à voz do cantador. Nela, o canto do trovador revela seu desejo e sua condição
servil (“serei cativo teu”) adiante da amada que é morte e perdição, não por ser
a virgem imaginada, mas por sua força sensual de mulher, revelado pelos
olhares, pernas, “peitos”, e cabelos soltos:

Manuela, Manuela
Bela
Como tu ninguém luziu...
Minha travessa morena,
Pena
Pena tem de quem te viu!...

12 Sandroni (2001) explica que “trata-se de uma dança originária da Espanha, que teria
chegado ao Brasil no final do século XVIII. Melo, em A música no Brasil, diz que ela
representa o componente hispânico entre os “três tipos populares de arte musical brasileira” –
os outros dois seriam o lundu, africano, e a modinha portuguesa.” (SANDRONI, 2001, p. 29).
65

Manuela... Eu não perjuro!


Juro
Pela luz dos olhos teus...
Morrer por ti Manuela
Bela,
Se esqueces os sonhos meus.

Por teus sombrios olhares


- Mares
Onde eu me afogo de amor...
Pelas tranças que desatas
- Matas
Cheias de aroma e frescor ...

Pelos peitos que entre rendas


Vendas
Com medo que os vão roubar...
Pela perna que no frio
Rio
Pude outro dia enxergar...
Por tudo que tem a terra,
Serra,
Mato, rio, campo e céu...
Eu te juro, Manuela,
Bela
Que serei cativo teu ...
(CASTRO ALVES, 2017).

Ao mesmo tempo em que declara sua devoção à moreninha, o sujeito


lírico expõe sua habilidade e imagem de conquistador, antecipando um dos
arquétipos que iremos abordar, detalhadamente, no segundo eixo temático deste
trabalho. Na sequência da cantiga, percebemos que este Don Juan encontra, na
amada, seu canto e seu lugar:

Tu bem sabes que Maria,


Fria
É pra outros, não pra mim...
Que morrem Lúcia, Joana
E Ana
Aos sons do meu bandolim...

Mas tu és um passarinho
- Ninho
Fizeste no peito meu ...
Eu sou a boca - és o canto
Tanto
Que sem ti não canto eu.

Vamos pois a noite cresce


Desce
A lua a beijar a flor
À sombra dos arvoredos
Ledos
Os ventos choram de amor
(CASTRO ALVES, 2017).
66

Tamanho é seu desejo que, nas últimas estrofes da canção – cuja


finalização é marcada pelo fechamento das aspas –, ele a pede em casamento.
Não se trata de uma união convencional, mas sim de um enlace abençoado pela
natureza, no qual a amada terá como reino a vastidão das coisas simples e
naturais, ao invés de riquezas materiais:

Vamos pois ó moreninha


Minha
Minha esposa ali serás
Ao vale a relva tapiza
Pisa
Serão teus Paços-reais!

Por padre uma árvore vasta


Basta!
Por igreja - o azul do céu...
Serão as brancas estrelas
- Velas
Acesas pra o himeneu".
(CASTRO ALVES, 2017).

Findada a canção, o poema segue para seu desfecho e retoma as feições


iniciais, em que o sujeito lírico relata que seu canto não é ouvido e sua
desventura amorosa só encontra expressão e refúgio na bebida e no som
plangente da viola:

Assim nos tempos perdidos


Idos
Eu cantava mas em vão
Manuela, que me ouvia,
Ria,
Casta flor da solidão!

Companheiros! se inda agora


Chora
Minha viola a gemer,
É porque um dia... Escutai-me
Dai-me
Sim! dai-me antes que beber!...

É que um dia... mas bebamos...


Vamos
No copo afogue-se a dor!
Manuela, Manuela,
Bela,
Fez-se amante do senhor!
(CASTRO ALVES, 2017).

Nesse desfecho surpreendente, temos a resolução de tantas reticências


e a explicação da impossibilidade de realização amorosa determinada pelo
67

destino da musa que, no entanto, já está, de certa forma, antecipado pela


escolha e pelo uso do nome próprio Manuela (2018) – que, sendo a forma
feminina de Manuel, significa "Deus está conosco" ou apenas "Deus conosco".
É importante notar ainda que, no poema, temos a presença tanto da
guitarra, na primeira parte, com função de narrar a história de amor; quanto da
viola, na última, expressando, em seu lamento, os sentimentos do sujeito lírico
pelo triste desfecho amoroso. Entremeando poesia e história, precisamos tecer,
antes de prosseguirmos com as análises, algumas considerações sobre esses
instrumentos presentes na cena poética. Nosso intuito, com isso, não é o de
estabelecer definições terminológicas ou aprofundar em questões
organológicas,13 e sim, elucidar aspectos que possam ampliar e contribuir para
nossa discussão.
O termo “guitarra” tem sua origem derivada do grego kithara – em francês,
guitare; em alemão, gitarre; em italiano, chitarra; em inglês, guitar; e em
espanhol, guitarra –, adquirindo, apenas na língua portuguesa, sua
correspondência no termo “violão”. Apesar de estar frequentemente associada à
guitarra elétrica, podemos inferir, pelo contexto, época, e características
descritivas e simbólicas, que as obras abordadas neste estudo incluem o
instrumento em “suas formas barroca e clássica, isto é, a guitarra de 4 e 5 ordens
e a guitarra clássica. O termo violão passa a ser usado somente quando do
surgimento do instrumento em sua forma moderna e atual no final do século XIX”.
(DUDEQUE, 1994, p. 7).
O violonista Fábio Zanon (2017), em seu programa de rádio A arte do
violão, nos apresenta um importante panorama sobre os instrumentos de cordas
dedilhadas, suas diferenças e percursos históricos:

Em meados do séc XVI havia uma profusão de instrumentos de cordas


dedilhadas em toda a Europa, que vinham em todas as formas,
afinações e quantidade de cordas imagináveis, mas que podem,
grosso modo, ser divididos em três famílias principais: a dos alaúdes,
em forma de pêra, cujo nome se origina no al´ud persa, a das vihuelas,
em forma de oito, um nome originário da palavra latina fidicula, de onde
também se derivam as palavras portuguesas viola e violão e a das
guitarras, também em forma de oito, um nome derivado das palavras
persas char (4) e tar (corda). Estas grandes famílias atingiram um
apogeu de popularidade no Renascimento e Barroco e produziram um

13A Organologia pode ser definida como “o estudo dos instrumentos de música que envolve
distintos ramos: a classificação, a terminologia, a história, as funções sociais, a construção de
instrumentos, a acústica e a performance.” (BALLESTÉ, 2009, p. 67).
68

repertório imenso, mas a família das guitarras, originariamente a


menos aristocrática, passou por grandes transformações e atingiu seu
apogeu no final do séc XVIII enquanto as outras duas gradualmente
declinaram até tornarem-se obsoletas. Ao redor de 1780,
simultaneamente na Itália e Alemanha, as mutações organológicas
haviam transformado o instrumento de 4 cordas duplas em um
instrumento solista de seis cordas simples, um formato suficientemente
estável para se espalhar por toda a Europa. Ao redor de 1800, a
popularidade deste formato produziu um levante de grandes virtuoses
e compositores que constituem a primeira Época de Ouro do violão.
(ZANON, 2017).

Nessa profusão de instrumentos, a Espanha desempenha um território


fundamental para a guitarra, tanto pela profunda ligação com as expressões
populares, quanto pela origem e importância para própria história do
instrumento. Além de ser berço de importantes compositores e intérpretes, é
nesse contexto que o violão adquire seu formato moderno, suas dimensões e
leque harmônico (através do trabalho do luthier espanhol Antonio Torres).
Em “Manuela” temos reflexos da influência espanhola – como o fandango
(2018) (“dança popular espanhola sapateada ao som de guitarra e castanholas”);
as tiranas que o sujeito lírico toca; e as castanholas que a amada usa –,
convivendo e se misturando aos aspectos nacionalistas da construção poética.
Se, por um lado, a guitarra atua como sinônimo do violão, por outro, ela
também se equivale à viola. Nessas aproximações, Adriana Ballesté (2009)
explica que:

A guitarra, a viola e muitos outros instrumentos de cordas dedilhadas


existiam em Portugal e na Península Ibérica em grande quantidade e
variedade. Mas instrumentos diferentes eram conhecidos pelo mesmo
termo assim como termos distintos nomeavam instrumentos iguais.
Budasz (2001, p. 11) afirma que os termos utilizados para designar
‘guitarra’ e ‘viola’, por exemplo, parecem ter sido freqüentemente
trocados um pelo outro e ― [...] pode ser dado como certo é que em
meados do século XV, o termo viola, assim como vihuela e muitas
variantes da palavra guitarra, eram usados para designar vários tipos
de instrumentos dedilhados ou de arco [...]. (BALLESTÉ, 2009, p. 2).

Em relação às trajetórias e questões de execução, o pesquisador e crítico


musical José Ramos Tinhorão (1998) acrescenta:

a velha guitarra latina dos antigos trovadores do século XIII ter-se-ia


transformado pela virada dos séculos XIV-XV na vihuela espanhola,
que era afinal a mesma viola usada em Portugal por tocadores
palacianos ilustres como Garcia de Resende, com suas seis ordens de
cordas próprias para a execução ponteada, ou dedilhada, que fazia
supor seu uso um estudo de música mais aprimorado. Pois, ao lado
69

destas [...] apareceriam então as violas mais simples, chamadas às


vezes de guitarras, menores no tamanho e com números de cordas
reduzido geralmente a quatro ordens, e que qualquer curioso possuidor
de bom ouvido podia tocar de golpe ou de rasgueado, suprindo a falta
de recursos técnicos com o ritmo da mão direita. (TINHORÃO, 1998,
p. 26-27).

O termo “viola”, além de designar, em português, dois tipos de


instrumentos distintos, abarcando tanto a família de cordas friccionadas, quanto
a de cordas dedilhadas, se vale de complemento para definir sua tipologia,
variando conforme sua utilização (viola da mano, de arco, da gamba, viola
d’amore), ou por suas especificações regionais (viola caipira, viola de arame, de
cocho, viola braguesa, dentre outras). Sobre essa questão de nomenclatura,
Taborda (2011) ressalta:

A respeito do nome, Tomás Borba e Lopes Graça assinalam no


Dicionário de Música a antiga prática de vários países da Europa de
esculpir uma figura feminina, ou então uma flor – a violeta (do latim
viola) –, na parte superior do cravelhal das violas de cordas
friccionadas. Tal fato levou alguns musicólogos à suposição de que a
flor tivesse dado nome à família desses instrumentos. (TABORDA,
2011, p. 26).

No Brasil, a viola trazida pelos jesuítas foi utilizada com a finalidade de


catequizar e instaurar a música portuguesa na cultura indígena. Já no século
XVII, o instrumento torna-se conhecido pelas mãos de músicos amadores,
envolvidos com vadiagem e boemia, como o poeta Gregório de Matos. No século
seguinte, ao participar do acompanhamento de importantes gêneros da música
brasileira, como o lundu e a modinha, a viola atinge enorme popularidade. Por
utilizar a mesma afinação que o violão, os dois instrumentos foram, por vezes,
confundidos, em uma ambiguidade – parcialmente – desfeita no século XX,
quando o violão se firmou no ambiente urbano e a viola se estabeleceu no
interior, consolidando a viola caipira (DUDEQUE, 1994). Esse instrumento de
cinco cordas duplas é também conhecido como viola de arame, por utilizar,
geralmente, encordoamento metálico, “possivelmente arame de várias cores
(amarelo ou branco) ou com banho de metal mais nobre” (NOGUEIRA, 2008, p.
22). Sobre essas questões, Taborda (2004) reforça:

Entre nós a palavra viola mantém até hoje o significado de violão.


Embora se especializasse na designação do instrumento inicial de
quatro ou cinco cordas duplas, limitado quase exclusivamente à área
rural, conservou também, de forma residual, o valor semântico de
70

violão, este, sim, quase exclusivamente limitado à área urbana


litorânea. O instrumento de cinco cordas duplas, como era tradição,
passou a ser sempre identificado pelo complemento: viola de arame,
viola de dez cordas, viola caipira, viola sertaneja. (TABORDA, 2004, p.
13).

Essa profunda ligação com o ambiente rural, que marca a história do


instrumento, fica evidente em “Manuela”, nas descrições do contexto que
envolve a cena poética, como a natureza e o rancho; na figura do tropeiro; e na
utilização de linguagem coloquial, que corroboram com a escolha da viola e
conferem certo sabor regionalista à cantiga.
Se, na esfera musical, o poema de Castro Alves poderia se aproximar de
uma cantiga estruturada formalmente por introdução, desenvolvimento e coda,
“Manuela” ecoa como a “Mortal Loucura”, soneto de Gregório de Matos,
musicado por José Miguel Wisnik e interpretado por Caetano Veloso para o
espetáculo de dança Oncotô (2005), do Grupo Corpo. Gravada também por
importantes nomes, como Maria Bethânia e Mônica Salmaso, o poema que
inspira a canção trata de questões existenciais, como a efemeridade da vida
metaforizada pela flor, conforme nos informa a didascália do poema “No sermão
que pregou na Madre de Deus D. João Franco de Oliveira, pondera o poeta a
fragilidade humana”. Tanto em “Manuela” quanto no soneto do poeta barroco, os
versos se desenrolam em um jogo de ecos, em que a palavra final de cada verso
se torna parte da palavra seguinte, explorando as diferentes significações, em
meio às semelhanças de escrita e de pronúncia. Vejamos nos trechos dos
poemas, colocados lado a lado, a sonoridade e o ritmo impressos pela
paronímia:

Quadro 1 – Paralelo entre os poemas “Manuela” e “Mortal Loucura”


“Manuela, Manuela Na oração, que desaterra, a terra
Bela Quer Deus que a quem está o cuidado, dado
Como tu ninguém luziu... Pregue que a vida é emprestado, estado
Minha travessa morena, Mistérios mil que desenterra, enterra
Pena
Pena tem de quem te viu!... Quem não cuida de si, que é terra, erra
Que o alto Rei, por afamado, amado
Manuela... Eu não perjuro! É quem lhe assiste ao desvelado, lado
Juro Da morte ao ar não desaferra, aferra
Pela luz dos olhos teus...
Morrer por ti Manuela Quem do mundo a mortal loucura, cura
Bela, A vontade de Deus sagrada, agrada
Se esqueces os sonhos meus. Firmar-lhe a vida em atadura, dura
71

Por teus sombrios olhares Ó voz zelosa, que dobrada, brada


- Mares Já sei que a flor da formosura, usura
Onde eu me afogo de amor... Será no fim dessa jornada, nada.
Pelas tranças que desatas
- Matas
Cheias de aroma e frescor ... [...]
Fonte: Elaborado pela autora desta tese.

Ao analisarmos esses poemas, que utilizam em seu título ou subtítulo o


termo “cantiga”, observamos que, por um lado eles se ligam ao passado
medieval, pela temática, prática e carga simbólica – mesmo não obedecendo
aos esquemas formais da trova (como ser uma quadra, com versos em
redondilhas maiores, dentre outras especificações) (RECANTO DAS LETRAS,
2018). Por outro, aproximam-se tanto da canção feita no interior do país e
acompanhada pela viola, quanto das Cantorias ou Repentes (devido ao uso
preferencial e predominante das estrofes com seis versos).
Mário de Andrade, no poema “Moda do Corajoso”, também emprega as
sextilhas, porém estabelece a liberdade formal – marcante em sua obra e no
período em que se insere – através do uso estrófico variado, incluindo monóstico,
dístico e décima. Os versos que abrem o poema e compõem o mote, em termos
literários – ou o tema, na esfera musical –, engendram a contraposição entre a
candura (e a religiosidade) evocadas pelo nome da musa – “Maria” (2018)
significa “a pureza", "a virtude", "a virgindade” – e a revelação de que é ela o
motivo dos “pecados” deste eu lírico. Em tom confessional, o poema trata da
impossibilidade amorosa, pois não se pode “gostar de donas casadas”, e da
esperança de que, no futuro, a história terá seu “fim” e a amada será “esquecida”
e “arquivada”, como um objeto ou uma fotografia antiga. Contudo, é preciso
coragem para esquecer um amor:

Moda do corajoso

Maria dos meus pecados,


Maria, viola de amor...

Já sei que não tem propósito


Gostar de donas casadas,
Mas quem que pode com o peito!
Amar não é desrespeito,
Meu amor terá seu fim.
Maria há-de ter um fim.

Quem sofre sou eu, que importa


Pros outros meu sofrimento?
72

Já estou curando a ferida.


Se dando tempo pro tempo
Toda paixão é esquecida.
Maria será esquecida.

Que bonita que ela é!... Não


Me esqueço dela um momento!
Porém não dou cinco meses,
Acabarão as fraquezas
E a paixão será arquivada.
Maria será arquivada.

Por enquanto isso é impossível.


O meu corpo encasquetou
De não gostar senão de uma...
Pois, pra não fazer feiura,
Meu espírito sublima
O fogo devorador.
Faz da paixão uma prima,
Faz do desejo um bordão,
E encabulado ponteia
A malvadeza do amor.

Maria, viola de amor!...


(ANDRADE, 1968, p. 168-169).

Nesse poema-canção, o efeito de ecos é construído pela repetição literal,


nos dois últimos versos de cada estrofe, das palavras que encerram a frase,
exceto pelo início, em que há a recorrência da primeira palavra, o nome de Maria.
Além da reverberação que produzem, a repetição dos termos provoca a
reiteração dos sentimentos e do longo percurso esperado pelo sujeito lírico, em
uma espécie de sequência que compreende a amada → o término → a história
esquecida e guardada, e, mesmo assim, o amor (“Maria”, “fim”, “esquecida”
“arquivada”, “amor”).
O termo “moda”, que dá título ao poema, marca seu caráter cancioneiro e
a presença da viola em seu discurso, uma vez que, apesar de ter origem lusitana
e um sentido genérico de canção – reforçado por Mário de Andrade ao explicar
que “a palavra “Moda” para designar canção vernácula corre desde muito cedo
em Portugal” –, no Brasil, ela se popularizou como um tipo de canção rural,
geralmente a duas vozes, com um intervalo musical de terça e acompanhamento
feito pela viola.
No contexto poético, o instrumento também se destaca por seu sentido
polissêmico. Em um jogo semântico, somos deslocados pelos vários significados
que o termo pode permitir, incluindo: a correspondência ao corpo e às curvas de
Maria; a associação ao verbo “violar” (uma vez que a relação transgride as
73

convenções sociais, e descumpre as sutilezas do amor e das possibilidades de


esquecimento); e a alusão ao próprio instrumento, pelas referências às cordas
(“primas” e “bordões” que cantam a paixão e o desejo) e à forma de tocar,
“ponteando” não a delicadeza, mas a “malvadeza” do amor.
Além dessa associação com a viola de arame, a sonoridade do verso
“viola de amor” nos aproxima de outra significação: a viola d’amore. Popular no
século XVII, este instrumento de cordas friccionadas, diferentemente da viola de
cordas dedilhadas, possui, ao todo, de 12 a 14 cordas (MELOTECA, 2018), é
tocada sob o queixo, como o violino, e sua voluta é ornamentada com a cabeça
de um cupido, o símbolo do amor.
Essa estreita relação entre a viola e o sentimento amoroso aparece
também em um poema da escritora paulista Idelma Ribeiro de Faria (1914-2002),
intitulado “Viola d’amore” e publicado na revista Violão e Mestres N. 5, em junho
de 1966. Nesse periódico dedicado ao violão, o poema figura ao lado de um
informativo de programa de recital e versa sobre o alcance do instrumento, agora
renascido e livre, e sobre sua voz, marcada pelo “canto banhado em pranto”.

Figura 7 – Poema “Viola d’Amore”

Fonte: FARIA, 1966, p. 14.


74

É importante reforçar que, mais do que desemaranhar as especificidades


terminológicas que estes poemas podem nos suscitar, cabe ao leitor-ouvinte das
“modas” e canções de amor acompanhadas – e confidenciadas – pela viola,
transitar por seus significados e por seus meandros simbólicos e sonoros.
De maneira geral, apesar das especificidades estruturais e das diferenças
históricas e idiomáticas, “alaúde”, “viola”, “guitarra” e “violão” se aproximam em
significado e simbologia, ao acompanharem a manifestação amorosa. Mesmo
reconhecendo a tensão entre o alaúde (instrumento oficialmente aceito) e o
violão (combatido nos palcos dos principais teatros), a gama de instrumentos
abordados neste trabalho se reconcilia, tanto em termos culturais, quanto
poéticos, por acolher e, ao mesmo tempo, revelar os sentimentos e desejos de
seu tocador. Essa associação é tal que, no Brasil, a palavra “pinho” (2018)
abarca – e representa metonimicamente – os instrumentos de cordas dedilhadas
mais comuns. Com isso, a expressão popular “chorar no pinho” adquire o
significado de “tocar violão ou viola”.
Pela profunda relação de companheirismo e confidencialidade entre o
violão e o sujeito que o toca, percebemos no conteúdo poético que o instrumento
não só escuta as mágoas de amor, evidenciada em versos como “E suspiram no
alaúde/ As notas do menestrel” (AZEVEDO, 2009, p. 82), “ou vibrar no alaúde
os seus gemidos” (AZEVEDO, 2009, p. 148) “Chora, chora na viola/ Violeiro do
sertão”, “Ouvi, pois! que esta guitarra.../ Narra/ O meu romance de amor”, “E na
viola relembro/ Lembro/ Tiranas que então gemi”, “Faz da paixão uma prima,/
Faz do desejo um bordão/ E encabulado ponteia/ A malvadeza do amor”
(ANDRADE, 1968, p. 168-169) já citados anteriormente, como personifica o
próprio sujeito.
Com isso, é possível perceber que o instrumento ouve como um amigo,
mas é também uma extensão do corpo e da alma de seu instrumentista. Nesses
diálogos e deslocamentos espelhados entre outro e o próprio eu, cabem ao
instrumento guardar segredos e revelar os amores (e as dores) de seu tocador,
falando ao – sobre (e como) – seu coração. O pinho é capaz de acomodar e
expressar tanto os desejos carnais, como em Castro Alves (2005, p. 209), ao
indagar “Quem, na guitarra que suspira e chora, há de cantar-te seu amor
selvagem?”, quanto o afeto idealizado “onde eu me afogo de amor...”.
75

2.4 “De que modo vou abrir a janela, se não for doida?/ Como a fecharei,
se não for santa?”14

Ao longo deste primeiro eixo temático, foi possível observar como o violão
e os instrumentos a ele relacionados participam da construção poética da
expressão amorosa – marcada pelos anseios, conflitos e arquétipos do amor
impossível –, ao mesmo tempo em que dialoga com a própria imagem e história
do instrumento. No percurso que traçamos, partimos da cena e da prática
seresteira, apresentando também sua ligação com o trovadorismo; abordamos,
em seguida, tanto a relação de confidência entre o trovador e seu instrumento,
quanto sua expressão revelada pelos poemas associados à canção; para,
finalmente, chegarmos à perspectiva da musa, assunto do qual nos dedicaremos
nesta subseção.
Tantas vezes vista como resguardada e inatingível, a mulher que inspira,
também anseia. Assim, apesar de, na maior parte dos poemas amorosos, a
figura feminina revelar traços de pureza e recato, é fundamental reconhecer que
ela também se desdobra em um espectro maior de sutilezas, em uma paleta de
sentimentos, posições e desejos, encontrando caminhos – nem sempre amenos
– para manifestá-los. Vamos agora abrir a janela e revelar o que ela guarda.
No poema “Na várzea”, Álvares de Azevedo nos apresenta, em meio à
natureza que compõe o cenário, de um lado, o sujeito lírico suspirando ao violão
seus lamentos de amor e, de outro, a donzela resguardada, à qual devota seus
desejos e tormentos. A evidente – e imprecisa – distância geográfica que marca
a impossibilidade desse encontro amoroso é evidenciada pelo uso do advérbio
“lá” – que representa tanto um lugar distante do alcançável, quanto a distância
entre o ponto de fala do eu lírico em relação à localização da amada – e também
pela descrição da morada que a abriga. Apesar de clara e venturosa “à sombra”,
a casa é protegida e cerceada “pelo muro” e pela rosa (símbolo recorrente nesse
contexto, tanto pelo amor que representa, quanto pelas defesas e impedimentos
de seus espinhos):

Lá onde o rio molemente chora


Nas campinas em flor e rola triste...
Alveja, à sombra, habitação ditosa,

14 Últimos versos do poema “A serenata”, de Adélia Prado (1995, p. 82).


76

Coroa os frisos da janela verde


A trepadeira em flor do jasmineiro
E pelo muro se avermelha a rosa.
(AZEVEDO, 2009, p. 237).

Em seguida, há um movimento de aproximação indicado pelo emprego do


advérbio “ali” – naquele lugar, ainda distante, porém agora visível –, onde a luz
e o calor do amanhecer despertam a mulher amada. O efeito criado por esses
deslocamentos resulta em uma direção focal cada vez mais afunilada, na qual o
poema sai de um plano geral – e contextual – para, aos poucos, revelar o que
há por trás das “janelas verdes”, coroadas pela “trepadeira em flor do jasmineiro”:
a musa inspiradora. Com as lentes direcionadas para sua beleza, temos pistas
de seu recato, já que ela não dorme com os cabelos soltos, mas trançados (“nas
tranças negras da donzela pálida”); do contraste que envolve sua figura,
(evidenciado pelo escuro dos cabelos em contraposição à brancura de sua face);
e de seus conflitos entre a religiosidade (revelada pela cruz que carrega e “beija
tremendo”, e os desejos, suspiros e anseios de seu coração). Na passagem da
infância para adolescência, essa musa aparece metaforizada pela camélia,
símbolo de feminilidade e expressão de estados, como a usada por Marguerite15
(para indicar sua disponibilidade e sentimentos a seus pretendentes), na obra de
Alexandre Dumas, e pelos adeptos aos ideais propostos pelo movimento
abolicionista. No contexto poético, a donzela, ainda não deflorada, – nem
manchada, como as flores que depois de colhidas ficam escuras quando tocadas
(MARCUS, 2018) –, está apenas “em botão”. É interessante notar que essa flor
também está presente na composição do cenário de Castro Alves, em “Uma
página de escola realista”, que será analisada mais adiante (“Há, nas jarras
deslumbrantes,/ Camélias frias, brilhantes,/ Lembrando a neve polar”).
Observemos os versos de Álvares de Azevedo:

Ali quando a manhã acorda a bela,


A bela, que eu sonhei nos meus amores...
Ao primeiro calor do sol d’aurora
Entorna-se da flor o doce aroma,
Inda mais doce em matutino orvalho,
Nas tranças negras da donzela pálida,
Mais bela que o diamante se aveluda,
Camélia fresca, inda em botão, tingida
De neve e de coral... no seio dela

15 Marguerite Gautier, protagonista do romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas


Filho (1848).
77

Não reluz o colar... em negro fio


A cruz da infância melhor guarda o seio,
Que o amor virginal beija tremendo
E os ais do coração melhor perfuma...
(AZEVEDO, 2009, p. 237).

Ao se dirigir ao interlocutor – e também ao leitor –, o sujeito lírico expõe


que sua amada dorme resguardada pela janela “cerrada” (e cercada) por rosas
e jasmins durante a noite. Assim como a natureza (que é também um reflexo de
seu estado interno) esse homem apaixonado deixa transparecer o desejo pelo
contato do beijo:

Vem comigo, mancebo: aqui sentemo-nos...


Ela dorme: a janela inda cerrada
Se enche de rosas e jasmins, à noite...
E as flores virgens com o aberto seio
Um beijo da donzela ainda imploram.
(AZEVEDO, 2009, p. 238).

Apesar de a amada permanecer em estado de adormecimento, o poeta


expressa, em seguida, não só a vontade de que “ela acordasse”, como também
de que a distância fosse superada (“se esta janela num instante abrisse”), e que,
não sendo mais inatingível, pudesse ouvir sua “dor de amante”. Na última estrofe
desse poema, a atmosfera se torna mais íntima, envolvida por uma sutil
sensualidade, revelada pela construção imagética da musa, com os cabelos
soltos, em um estado entre o sono, o sonho e o despertar – assim como as
moças acordadas pela serenata –; e despida, apenas com as “mãos cobrindo o
seio”.

Se o anjo de meus tímidos amores


Pudesse ouvir-te os cândidos suspiros,
Que a minha dor de amante lhe revelam...
Se ela acordasse, nos cabelos soltos
Inda o semblante sonolento e pálido
E o seio seminu e os ombros níveos
E as trêmulas mãos cobrindo o seio...
(AZEVEDO, 2009, p. 239).

No entanto, afora os desejos manifestos, à mulher caberia o trêmulo


recato, pois “certo é que o ser e o parecer dependem da candura” (PORTUGAL,
1984, p. 40) e ao homem, o galantear platônico, já que “aproximar-se da mulher
cortejada com a alma acesa de cobiça imunda é deslizar nos esterquilínios da
culpa sensual” (PORTUGAL, 1984, p. 14). Esse amor devotado, ligado ao
78

sublime e à religiosidade – “a este amor e ao divino um cristal os separa”


(PORTUGAL, 1984, p.140) – presente no romantismo literário brasileiro, se
aproxima (ou vem na esteira) do já proposto, praticamente um século antes, por
D. Francisco de Portugal (1585-1632). Em sua Arte de Galantaria, escrita em
1628, publicada, postumamente, em 1670, e editada em 1984 com prefácio de
Joaquim Ferreira, encontramos a seguinte orientação:

O enamorado galanteará a dama sem propósitos carnais, longe das


perversões da luxúria. A fé deve guiá-lo nas sinuosas veredas do
galanteio, mas fé isenta de esperança, fé que mal se distingue da que
humedece em candura os olhos que se fixam na Virgem. (PORTUGAL,
1984, p. 14).

Acrescenta, em seguida:

A dama é para ele a “divindade” – como no Fédon e no Fedro do imortal


ateniense. É uma nesga de Deus, um pálido vestígio da perfeição
celeste... E galanteá-la é prestar culto à beleza divina. O amor
transfunde-se, nesta metafísica da atracção instintiva, em actos de
pura adoração. (PORTUGAL, 1984, p. 14).

Se nessa relação “o galã triunfa servindo, a Dama em ser servida”


(PORTUGAL, 1984, p. 31) – ou conforme Álvares de Azevedo “Quando a seus
pés” (AZEVEDO, 2009, p. 238) –, os atributos necessários ao galã envolvem
tanto as questões de vestimentas, como pensamento, atos e ações, devendo a
gala estar “não só no que traja, mas no que pensa e no que faz” (PORTUGAL,
1984, p. 46):

Tenha a capa bem posta, o chapéu sem amolgadela; e mostre-se tão


aplicado às Damas que aparente não estar ali para outra coisa. Não se
valha do que ouvir ao companheiro, nem de derivações e vocábulos
reservados aos estudantes. Não esteja tão bisonho como se estivesse
corrido, nem com tanto despejo como se fosse um cínico: mostre uma
perturbação que pareça acatamento, e um desenfado que baste a
parecer que sabe os estilos. (PORTUGAL, 1984, p.77-78).

Se ao galã cabe o ofício do verso, de “lavra própria, não do engenho


alheio” (PORTUGAL, 1984, p. 83), à mulher é dado outro destino:

não lhes aprovamos maiores estudos, enquanto Damas. Preferimos


vê-las resolvendo uns jasmins em vez de um Tito Lívio, rociando-se
com água de âmbar e não suando com a Arte Poética, de Escaligero.”
(PORTUGAL, 1984, p. 34).
79

Entretanto a subversão desses valores e a percepção de traços mais


próximos à realidade podem ser encontradas, ao retornarmos ainda mais na
linha temporal, na obra do autor português Gil Vicente. Em algumas de suas
farsas, datadas das primeiras décadas de 1500, temos não só crítica, satírica e
caricatural aos costumes e à sociedade da época – de acordo com o que o
próprio gênero teatral sugere –, como também a (des)construção de imagens e
estereótipos ligadas ao tocador, à serenata e também à musa inspiradora.
Em Quem tem farelos? (VICENTE, 2018b), o escudeiro é descrito como
um sujeito pobre, porém namorador, valendo-se da viola para suscitar paixões
nas moças, conforme indicado pelo autor: “escudeiro mancebo per nome Aires
Rosado tangia viola e a esta causa, ainda que sua moradia era muito fraca,
continuadamente era namorado”. Com o intuito de conquistar Isabel, a
preparação e a construção da cena seresteira se dá numa conversa entre o
escudeiro e um dos criados que o acompanha:

Escudeiro: Agora que estou desposto irei tanger a minha dama.


Apariço: Já ela estará na cama.
Escudeiro: Pois entonces é o gosto.
(VICENTE, 2018b).

Em seguida, pela indicação teatral, o escudeiro “tange e canta na rua à


porta de sua dama Isabel e, em começando a cantar Si dormís doncella, ladram
os cães”. Nessa serenata, Aires Rosado pede, em sua cantiga, que a amada não
só acorde e abra a janela (“Si dormís doncella/ despertad y abrid”), como propõe
a fuga: “Que venida es la hora/ si queréis partir” (VICENTE, 2018b).
Com isso, é possível observar a composição do quadro seresteiro e os
elementos presentes, como a noite, a donzela resguardada em sua casa, o
escudeiro apaixonado cantando e tangendo para a amada, o desejo do encontro
amoroso e a impossibilidade de sua realização, com a chegada da “velha” mãe
da moça que acorda e vem à janela para afastar o pretendente. No entanto, o
desenrolar da história é marcado pela constante interrupção – apesar dos
esforços de Apariço – da serenata e da comunicação entre os apaixonados em
virtude dos cães que ladram na rua e dos miados felinos. Ora, se, de um lado,
temos a serenata como uma imagem idealizada – já cristalizada e revestida de
romantismo –, de outro, os miados e latidos conferem certo tom de comicidade
e realidade à cena e à prática.
80

É importante, entretanto, ressaltar um último aspecto dessa obra: as


características da donzela. Enquanto a mãe de Isabel afugenta o escudeiro (“Vai
comer homem coitado/ e dá ò demo o tanger”), que foge acovardado, ela insiste
que sua filha deva se dedicar aos trabalhos domésticos (“Aprende logo a tecer/
entam bolir c’o fiado”). Porém, essa dama, ao contrário do que é imposto à figura
feminina e dos hábitos das moças de “boa família”, se recusa a seguir as
orientações de sua mãe, preferindo, em vez da tecelagem e da costura, cuidar
de si e ser cortejada (“Mãe deixai-me vós a mim/ vereis como me atavio”).
Assim, como Isabel, a jovem casadoira Inês Pereira, que dá título à outra
farsa do autor (VICENTE, 2018a), foge às idealizações enlevadas ao personificar
a malícia, a ambição e o desejo de ascensão social por meio do casamento.
Tendo como mote o ditado “mais quero asno que me leve, que cavalo que me
derrube”, a obra incorpora as três fases da vida amorosa de Inês: a primeira –
fantasiosa –, em que, cansada dos afazeres e do “cativeiro” doméstico, a
personagem busca um noivo galante e que “saiba tanger viola,/ E coma eu pão
e cebola” (VICENTE, 2018a). No entanto, Vidal, um dos judeus casamenteiros,
explica que,

O marido que quereis


De viola e dessa sorte,
Não no há senão na corte
Que cá não no achareis.
(VICENTE, 2018a).

É importante observar, por essa fala, que a viola e a habilidade de


executá-la permeiam o ambiente cortesão e determinam o desejo – e a escolha
– da dama, conforme reforçado pelo mesmo judeu:

Esperai, aguardai ora!


Soubemos dum escudeiro
De feição d'atafoneiro
Que virá logo essora,
Que fala... e com' ora fala!
Estrugirá esta sala.
E tange... e com' ora tange!
E alcança quanto abrange,
E se preza bem da gala.
(VICENTE, 2018a).

Todas essas características fazem do escudeiro Brás da Mata o


pretendente escolhido, entretanto ele, na verdade, se revela como um simulacro
81

de elegância, posição social e dos ideais cortesãos, estando apenas interessado


em resolver sua situação financeira com o dote do casamento. Por não conseguir
ver além das aparências (ou conforme o dito popular “por fora bela viola, por
dentro pão bolorento”), a moça ambiciosa, porém ingênua, torna-se
desencantada ao ser confinada em casa pelo marido (“Já vos preguei as
janelas,/ Por que não vos ponhais nelas./ Estareis aqui encerrada/ Nesta casa,
tão fechada”). Por fim, com a morte do escudeiro, fugindo de uma batalha – ao
contrário dos princípios corteses –, a viúva casa-se com Pêro Marques (seu
primeiro pretendente, recusado por ser um lavrador simples e inculto) que a leva
nas costas para um encontro com o amante. Leviana, adúltera e desforrada, Inês
canta uma cantiga referente à sua infidelidade ao marido que, enganado e parvo,
responde com o refrão “Pois assi se fazem as cousas” (VICENTE, 2018a).
Essa obra, ligada à poesia, por seus versos rimados e ao cancioneiro,
como glosa em cima de um mote, incorpora trocadilhos, ditados e expressões
populares que caracterizam e determinam o estrato social de cada personagem
do enredo. Com isso, nesses personagens-tipo (escudeiro, moça, criado), ficam
evidentes não os aspectos individuais, mas os simbólicos e representativos do
grupo ao qual pertencem. Por esse viés, a figura do escudeiro, em A Farsa ou
Auto de Inês Pereira, nos revela um tipo social popular no contexto português
do século XV, marcado tanto pela galantaria, quanto pela pretensão:

Sei bem ler


E muito bem escrever
E bom jogador de bola,
E quanto a tanger viola,
Logo me vereis tanger.
(VICENTE, 2018a).

É preciso observar, entretanto, que, ao ressaltar seus atributos, esse


escudeiro oculta sua personalidade e sua condição social, em processo de
espelhamento caricatural desse grau mais inferior da nobreza fidalga e em
decadência no século XV, devido aos novos padrões de riqueza gerados pelo
comércio ultramarino. Com isso, através do escudeiro alegórico, Gil Vicente
critica e expõe a aristocracia e a nobreza decadente que, vivendo sob o véu dos
ideais cavalheirescos, tenta manter seu status e solucionar seus problemas
financeiros por meio de um casamento lucrativo.
82

Outro ponto importante que essa figura evidencia é o caráter urbano


diante da rusticidade do concorrente preterido. Enquanto Brás da Mata, cavaleiro
educado e tocador de viola, representa a fidalguia e a modernidade da corte em
constante expansão com o desenvolvimento do capitalismo, Perô Marques, com
sua linguagem simples e rural, retrata o homem rico, porém provinciano. Dessa
forma, fica expresso também o comportamento das moças da época, denotado
por Inês que, ao desprezar a vida no campo e buscar ascender socialmente,
escolhe uma união não por amor, mas por interesse.
Por fim, é preciso ainda ressaltar que a presença da viola nessas duas
obras vicentinas suscita o poder de sedução do instrumento e de seu tocador,
que, com a serenata e sua habilidade musical, não só desafia a moral e bons
costumes, ao invadir os domicílios e encantar as mulheres, como compõe a
figura estereotipada do instrumentista sedutor e namorador, assunto que
veremos detalhadamente no próximo eixo temático.

2.4.1 A fuga da donzela

Do dilema de abrir ou não a janela, a mulher resguarda também se


desloca para aquela que assume o instrumento em suas mãos e encontra
caminhos para realizar seus desejos.
Na prosa, isso acontece em Quincas Borba, uma vez que Rubião, ao
pensar “em várias mulheres que podia escolher muito bem uma relação” (ASSIS,
1997, p. 115), abandona o plano de “executar, a quatro mãos, a sonata conjugal,
música séria, regular e clássica” para ceder aos pecados – da mulher e da
guitarra por ela dedilhada: “de repente, ouvia a guitarra do pecado, tangida pelos
dedos de Sofia, que o deliciavam, que o estonteavam, a um tempo; e lá se ia
toda a castidade do plano anterior.” (ASSIS, 1997, p. 115-116).
A jovem mulata Vidinha, do livro Memórias de um Sargento de Milícias,
encanta o “vadio” Leonardo ao tomar a viola e cantar “acompanhando-se em
uma toada insípida hoje” (ALMEIDA, 1980, p. 241): “O Leonardo, que talvez
hereditariamente tinha queda para aquelas coisas, ouviu boquiaberto a modinha,
e tal impressão lhe causou, que depois disso nunca mais tirou os olhos de cima
da cantora. A modinha foi aplaudida como cumpria.” (ALMEIDA, 2011, p. 168).
83

Tamanho o fascínio que desperta que “admirava-se ele de como é que


havia podido inclinar-se por um só instante a Luizinha, menina sensaborona e
esquisita, quando havia no mundo mulheres como Vidinha”. (ALMEIDA, 2011, p.
168).
Dessa pincelada de prosa que nos introduz à relação do instrumento com
o pecado e com a mulata, passemos ao nosso corpo poético. No “Drama Cômico
em Quatro Palavras”, intitulado “Uma página de Escola Realista”, do escritor
Castro Alves, a guitarra aparece nas mãos de Sílvia que, “a meia voz,
acompanhando-se na guitarra” (ALVES, 2005, p. 241), chora no leito de morte
de Mário. Esse poema se desenrola em um cenário marcado pela tristeza (“O
asilo, onde sofre alguém” ALVES, 2005, p. 238) e pelo momento do entardecer
(“A tarde frouxa e serena lá desmaia para o fim”) (ALVES, 2005, p. 238). É nessa
alcova “fria e pequena” que surge um “vulto incerto”: “– O vulto de uma mulher”.
Antes de darmos prosseguimento à análise poética é fundamental
ressaltar que esse é um dos raros contextos em que o violão (e/ou os
instrumentos a ele associados) aparece acompanhando uma figura feminina.
Conforme veremos ao longo deste trabalho, na maior parte dos poemas
coletados, há uma predominância de sua relação com a esfera masculina, o que
não estabelece propriamente questões hierárquicas ou de valor, mas, antes, nos
coloca diante de importantes questionamentos sobre o registro e a perspectiva
das relações entre mulher e o violão na poesia brasileira.
Passemos, agora, à voz para Sílvia e sua guitarra:

Sílvia (a meia voz, acompanhando-se na guitarra)

Dizem as moças galantes


Que as rolas são tão constantes...
Pois será?
Que morrendo-lhe os amantes,
Morrem de fome, arquejantes,
Quem dirá?

Dizem sábios arrogantes


Que nestas terras distantes,
Não por cá,
Sobre piras fumegantes
Morrem viúvas constantes,
Pois será?

Não creio nos navegantes


Nem nas histórias galantes,
Que há por lá.
84

Fome e fogueiras brilhantes


Cá não há...
Mas inda morrem amantes
De saudades lacerantes
Quem dirá?

(Aos últimos arpejos cai-lhe uma lágrima)


(ALVES, 2005, p. 241).

Nesse poema-canção, de ritmo ágil provocado pelos versos curtos e


aliterações do fonema [s], Sílvia questiona a fidelidade conjugal, quando da
morte de um dos amantes. Para isso, ela faz referência à rola, pássaro que, além
de possuir apenas um parceiro durante a vida, permanece sozinho quando este
morre, e ao Sati,16 prática hindu em que a viúva se sacrifica viva na fogueira da
pira funerária de seu falecido marido. No entanto, apesar de constatar as
diferenças e descrenças nessas “histórias”, uma dúvida ainda permanece: não
havendo “fome” ou “fogueira”, a saudade é capaz de fazer morrer os amantes?
– “Quem dirá?”.
Após esses versos, o autor indica, por meio de rubricas, que “(Aos últimos
arpejos [de Sílvia] cai-lhe uma lágrima) (ALVES, 2005, p. 241)”, e “Mário (vendo-
a chorar)”, declara:

Sílvia! Deixa rolar sobre a guitarra,


Da lágrima a harmonia peregrina!
Sílvia! Cantando – és a mulher formosa!
Sílvia! Chorando – és a mulher divina!
(ALVES, 2005, p. 241-242).

Três pontos aqui são fundamentais: o primeiro que, ao realizar um arpejo


– recurso musical e idiomático em que as notas são tocadas sucessivamente –
antevê-se metaforicamente, a imagem das lágrimas rolando pelo rosto de Sílvia
que chora “sobre a guitarra”, ou seja, o instrumento transforma-se em seu
amparo, seu travesseiro. O segundo trata-se da beleza e do fascínio despertados
por Sílvia ao cantar e tocar a guitarra, encantando seu ouvinte-amante. O terceiro
e último aspecto refere-se à “harmonia peregrina” que marca e compõe, em
termos históricos, musicais e simbólicos, os caminhos seguidos pelo
instrumento. Acompanhando, como vimos, o seresteiro, o trovador, o menestrel,

16“Sati feminino, de sat, ou “verdade” na lingual hindi, também chamado suttee, é uma prática
funeral comum na sociedade indiana pré-colonial e colonial. A prática consiste em que a viúva
seja lançada à pira crematória voluntariamente (a maioria das vezes por força e/ou coação)
para que esta possa servir ao esposo no além-túmulo” (PARADISO, 2013, p. 224).
85

o tropeiro, e tantos outros sujeitos moventes, como soldados e ciganos, o pinho


se revela em sua condição devocional e sua capacidade de viajar por terras
longínquas. Essa portabilidade possibilita – e em parte explica – sua enorme
difusão, democratização e participação nos mais variados e importantes estilos
e gêneros musicais, como a modinha e o lundu, não só determinando
características, como mediando práticas, espaços e agentes que incluem desde
terreiros de samba e rodas de choro aos palcos de concerto e tantas outras
manifestações artísticas. Na revista Violão e Mestres n. 2, essa característica
fica reforçada em contraponto ao piano:

Figura 8 – Citação de Carl Sandburg

Fonte: VIOLÃO E MESTRE N. 2 ,1964, p. 7.

Assim como as figuras masculinas que temos abordado nesta subseção,


Sílvia também se confessa “cativa”, transparecendo tanto sua situação de
servidão e condição de prisioneira, quanto à opressão e ao domínio estabelecido
pelo amado. No entanto, apesar de presa pelos “frios cadeados” dos “brancos
dedos” de Mário que “desmaiando”, “no espasmo sua mão contraída prende uma
trança da moça”, Sílvia revela que seu desejo não pode ser contido:

Teus brancos dedos fecharam


De meu cabelo a madeixa,
Tua amante não se queixa...
Bem vês... cativa ficou.
Mas não se prende o desejo
Que n'alma acaso se aninha!...
Nunca viste a andorinha,
Que alegre o fio quebrou?
(ALVES, 2005, p. 246).

Contrariamente aos simbolismos suscitados pela rola e também pela


andorinha, ave migratória, monogâmica, o final do poema nos surpreendente,
pois essa “Madalena”, após tentar em vão “abrir-te os dedos fechados...”
86

(ALVES, 2005, p. 247), “debruça-se a escrever numa carteira” (ALVES, 2005, p.


247):

Paulo! Vem à meia-noite...


Mário morre! Mário expira!
Vem que minha alma delira
E embalde cativa estou...
(ALVES, 2005, p. 247).

Nessa mescla entre o trágico e o cômico, as situações da vida e as


complicadas relações amorosas são retratadas e já aparecem sugeridas pelos
termos “realismo” e “drama cômico”, presentes no título e subtítulo do poema. A
tensão criada pela triangulação amorosa é desfeita com a morte de Mário que,
tendo lido clandestinamente a declaração de sua amada, a libera para seguir seu
caminho (“Sílvia! a morte abre-me os dedos,/ És livre, Sílvia... caminha!”( ALVES,
2005, p. 247).
Já no poema “Moça na sua cama”, da autora mineira Adélia Prado, temos
não só a representação da importância e força alcançada pela escrita feminina
na Literatura Brasileira, como, no poema, podemos observar a manutenção dos
costumes relacionados ao confinamento “protetivo” da mulher e os subterfúgios
necessários para conquistar suas vontades:

Moça na sua cama

Papai tosse, dando aviso de si,


vem examinar as tramelas,
uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
87

dos monsenhores podados.


Posso sofrer amanhã
linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.
(PRADO, 1995, p. 175).

Os primeiros versos desse poema nos indica a moça resguardada não só


pelo espaço da casa (a “cumeeira” em madeira resistente e as “tramelas”), mas
pela proteção familiar, demonstrada tanto pela figura paterna – que, dedicado à
cautela e segurança desse lar, se faz presente pela “tosse” –, quanto pela
materna que se dedica aos cuidados com a filha. Entretanto, em meio ao
sossego propiciado, essa donzela na cama empreende sua fuga “atrás dos
homens”.
O perigo das moças saírem de casa já aparece relatado no começo do
século XVI, nos versos do poeta português Baltasar Dias, em seu “Conselho
para bem cazar”, nos quais manifesta a preocupação de que “que a mulher e a
galinha/ se percam pelo andar”, pois o costume de “ir muitas vezes fora” poderia
sujeitá-las “(como acontecia com as galinhas longe da vista dos donos) ao perigo
do assédio pelas ruas” (TINHORÃO, 2011, p. 47-48):

convém à mulher d’agora


tempera-se no falar:
e não há muito de andar,
porque ir muitas vezes fora
faz a muitos mal cuidar.
e também há de atentar
um mote ou cantiguinha,
que a muitos ouço cantar,
que a mulher e a galinha
se percam pelo andar.
(DIAS apud TINHORÃO, 2011, p. 47).

Se, para conseguir um bom casamento, convém à mulher “tempera-se no


falar/ e não há muito de andar”, e com a união, terminadas as galantarias, a
88

dama se converte em “desestimações vivas, sepultura de divindades mortas,


términos do melindre, corrupção da beleza” (PORTUGAL, 1984, p. 56), o sujeito
lírico de Adélia Prado caminha em direção oposta. Revelando-se não só segura
de suas vontades (“me contendo por usura”) e desejada pelos homens (“fazer
render o bom”), a mulher afirma também, com liberdade – e libertinagem –, sua
sexualidade e seus desejos:

Se me tocar, desencadeio as chusmas,


os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
(PRADO, 1995, p.175).

Além dessas imagens criadas, temos, ao longo do poema, o uso de


verbos que reforçam tanto o caráter voluptuoso que sugerimos acima (arder,
desencadear, tocar, cavalgar, campear), quanto a preocupação, o conhecimento
(“mamãe sabe”) e a orientação materna, que, ao cobrir sua filha, aconselha:
“dorme logo”. No contexto poético, esse estado de adormecimento – e contenção
dos desejos – esperado pela mãe, adquire outro significado, em contraposição
às análises anteriores: agora o sono não conduz ao encantamento ou ao
entorpecimento do desejo, e, sim, à possibilidade de sua realização. É por meio
do sono e do sonho que “a moça na cama” encontra o subterfúgio, a
possibilidade e a confissão de seus anseios.
A necessidade (e a impossibilidade concreta) dessa fuga pode ser
justificada pelo ambiente interiorano sugerido, em que a composição dos locais
por onde o eu lírico transita, os costumes familiares – revelados pelo tratamento
carinhoso com os pais (o uso de diminutivo papai e mamãe) e a prática de “tomar
a benção” –, e os hábitos religiosos, nos remetem ao contexto social, cultural e
geográfico do interior de Minas Gerais. Affonso Romano de Sant’Anna, no
prefácio da primeira edição de O coração disparado (1978) (livro em que o
poema está inserido) ressalta que os versos da poetisa assumem “um tom
mágico e fantástico, que recria a vida do interior mineiro através de uma dicção
inovadoramente feminina”.
Trazendo o foco de um plano mais amplo para a perspectiva da moça, é
possível perceber que, envolto nessa atmosfera interiorana e mineira, esse eu
lírico traça um percurso cíclico, mas transformador, no decorrer do poema: casa
89

→ praça → beco → bar → igreja (matriz) → fábricas → quartel → cama. Esse


trajeto revela o ímpeto de sair do confinamento da casa (com a cumeeira de
madeira dura e nobre, a peroba do campo) e da cama de onde partem os anseios
da moça, para se apropriar dos espaços, da liberdade e das descobertas do
corpo, e retornar à cama (porém, agora, sem vernizes, apenas com a
simplicidade e rusticidade do catre).
Além do conflito espacial e simbólico entre casa/vida familiar e a
rua/perdição, também fica evidente a polaridade entre o religioso – característica
que perpassa a obra da autora – e o profano. Ao subverter os costumes, o eu
lírico não só afirma seu desejo instintivo, como assume um caráter amoral,
eximindo-se dos preceitos cristãos:

Que bom não ser livro inspirado


o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
(PRADO, 1995, p.175).

Para a poetisa:

A.P. - A religiosidade está na minha obra em registro explícito de


confissão católica. E assim, primeiro, porque são dados da minha
experiência mais remota, oculta, o dogma, a catequese. Mas, sobre ser
um dado cultural-biográfico, é também e principalmente um empenho
em viver minha crença, crença herdada, mas que abraço por desejo e
necessidade do coração. Não há, então, como ela não aparecer no
meu texto. (FERRAZ, 1998).

Em meio às múltiplas significações suscitadas pelo poema, percebemos


também o jogo simbólico estabelecido, como no verso “o céu é aqui, mamãe”,
em que a aspiração celestial se transforma em um presente profano, ou seja,
seu sentido se desloca de um lugar sagrado e distante para os prazeres terrenos,
da experiência espiritual para a vivência do corpo. Isso ocorre também na
menção ao “óleo santo” que, geralmente usado como símbolo do Espírito
Santo,17 adquire um papel de condução não à verdade e à benção divina, mas
ao saber mundano, ungido pela “mão do frei Crisóstomo”.
A interseção entre as esferas religiosa e profana também fica nítida
através da citação extratextual, nos últimos versos do poema, nos quais é

17 “E vós tendes a unção do Santo, e sabeis todas as coisas” (JOÃO 2:20).


90

possível identificar a invocação da conhecida oração do Anjo da Guarda – “Santo


Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina,
sempre me rege, me guarde, me governe e me ilumine”18 –, porém, apesar de
representar uma força masculina para o eu lírico, o anjo não oferece perigo, pois
ele é “eunuco”.
A vivência erótica integrada à experiência religiosa marca a escrita da
autora que percebe no corpo e em sua condição de mulher, o sagrado e a
potência do desejo:

Eu descobri que o erótico é sagrado [...]. Toda poesia mística é


sensual, não precisa dividir. O corpo é algo preciosíssimo, não é?
Então, só é erótico por isso, para animar a divindade. [...] Veja a liturgia,
é um procedimento carnal, puramente erótico: “Esse é o meu corpo,
esse é o meu sangue, tomai e comei”. (PRADO, 2000, p. 29).

Ao contrário da presença angelical permitida, a “moça” na cama, em sua


fuga (imaginada) atrás dos homens, expõe tanto os tipos masculinos que lhes
são proibidos, quanto nos fala deles. Se, de um lado, temos os “moços” devotos
da Virgem Maria, que aguardam o encontro na Igreja, ocultados pela noite e pela
neblina; de outro, o espaço da rua revela uma “moa de moços no bar, violão e
olhos/ difíceis de sair de mim”. Desejando religiosos e pecadores, esses versos
nos dão indicações de seus perfis, em especial, sobre a presença do violão no
bar, compondo um tipo estereotipado, diferente do que temos abordado até aqui,
mas que será tratado na seção seguinte desta tese. Temos, assim, não a figura
romantizada do trovador ou menestrel, mas a do boêmio, amante da branquinha,
e frequentador dos bares e ruas da cidade.
Neste poema, o sujeito lírico, feminino, em primeira pessoa e sem as
indicações de seu nome próprio, também pode ser percebido como uma
personagem que, por seu desejo de viver o instinto e a sexualidade, sem limites
e pudores, enfrentará a mácula e o estigma de não obedecer às normais sociais:

Posso sofrer amanhã


a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
(PRADO, 1995, p.175).

18 Grifo nosso.
91

Além das “flores murchas” que se contrapõem à imagem da “rosa em


botão”, tão utilizada no romantismo, a mulher sai da posição de cativa, de sua
condição de servidão – característica recorrente nos poemas amorosos
apresentados anteriormente –, para ter os homens a seus pés. Degenerada e
devassa, ela não quer um único amor, nem a experiência amorosa enlevada,
mas, sim, a vivência de um sentimento de arrebatamento, cólera e ironia:

Da vida quero a paixão.


E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
(PRADO, 1995, p. 175).

Essa mulher, ao almejar a “paixão”, nos remete não só a essa “emoção


ou sentimento muito forte (amor, ódio, desejo etc.), capaz de alterar o
comportamento, o raciocínio, a lucidez” (2018), como também ao desejo de
ressurgir transformada, já que, despida das imposições sociais, poderia afinal se
(re)conhecer sem máscaras, assumindo sua face crua e verdadeira.
Ao reunir religiosidade e o elemento erótico, o poema reflete o desejo de
liberdade tanto do sentimento de culpa e desejo, quanto das restrições sociais.
Essa intimidade dividida com o leitor traz a naturalidade e a integração entre
corpo e espírito, na vivência da sexualidade e da fé:

A linguagem adeliana libera a sexualidade feminina dos preconceitos


e dos falsos pudores, reunindo a inocência (que afasta o sexo da ideia
de pecado e punição) e a oferta (que o afasta da vergonha e dos
recalques, componentes dos valores condicionantes). [...] [Há] uma
mulher confiante e segura de sua atuação erótica, através de analogias
com a natureza, que guardam ainda o sentido da concreção e da
carnalidade, de que Adélia Prado não abre mão. (SOARES, 1999, p.
141).

Se, por um lado, Adélia Prado nos mostra a autoria e a voz feminina –
plena em sua força e potência –, por outro, sua obra nos aproxima também da
dama, não a imaginada, mas a tangível:

Quando escrever o livro com o meu nome


e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja, / a uma
lápide, a um descampado,
para chorar, chorar e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.
(PRADO, 1995, p. 12).
92

“Esta espécie ainda envergonhada” vai além da imagem lívida e pura da


donzela, para, em meio a conflitos, dualidades e imposições, “carregar bandeira”
e assumir seus desejos (PRADO, 1995, p. 11). A “moça” no século XX abre a
janela, faz versos e, ao aceitar “os subterfúgios que me cabem,/ sem precisar
mentir” (PRADO, 1995, p. 11), foge, ainda que em pensamento, do confinamento
sociocultural a que historicamente foi submetida. Agora a musa protegida e
idealizada da serenata, também sai em busca dos “moços no bar” com seus
violões, conquistando sua liberdade e desvelando seu ser: “Mulher é
desdobrável. Eu sou” (PRADO, 1995, p. 11).
Nas interseções entre literatura e música, o violão e os instrumentos de
cordas dedilhadas a ele relacionados – que, apesar de suas distinções, por
vezes funcionam como sinônimos –, conferem à poética uma atmosfera
seresteira, com seus conflitos, imagens e figuras, ao mesmo tempo em que nos
fornecem informações sobre a prática, as sonoridades e a própria história do
instrumento.
Os poemas analisados no decorrer desta seção revelam a presença
recorrente de alguns aspectos, como a noite, a lua, a serenata, a figura do
trovador errante ou menestrel, a musa idealizada e resguardada, e o violão como
confidente e veículo expressivo dos sentimentos e das impossibilidades
amorosas. A articulação das análises dos poemas dos séculos XIX e XX,
canções, obras teatrais e conteúdos publicados em revistas especializadas nos
revelam que, sob o viés amoroso, o violão está relacionado ao arquétipo do amor
juvenil e irrealizável (como Romeu e Julieta) e à função de acompanhador da
voz e da canção, sem incluir, em sua abordagem, a perspectiva e seu
desenvolvimento solista.
Ao percorremos a cena seresteira sob vários ângulos – o cenário, a
prática musical, o contexto, a história e conexão com o trovadorismo, a
sonoridade e a perspectiva da musa – foi possível perceber a participação do
violão na construção de uma imagem cristalizada pelo tempo e pela cultura.
Nela, o instrumento atua – e se perpetua –, por sua força simbólica, como
confidente e revelador das dores e desilusões amorosas. Partiremos agora ao
estudo de sua outra faceta: a ligação com a boemia e a sedução, ou seja,
sairemos da varanda e dos amores romantizados para as ruas.
93

3 BOEMIA, ÓCIO E SEDUÇÃO

Na seção anterior abordamos o violão como acompanhador das


manifestações amorosas idealizadas, representadas pelo arquétipo do amor
juvenil e impossível de Romeu e Julieta. Se, por um lado, o violão participa da
construção poética conferindo simbologias à manifestação amorosa e evocando
aspectos afetivos e sonoros, por outro, o conteúdo poético reforça e evidencia
aquilo que permanece na memória cultural brasileira, tipificada na figura do
menestrel com seu instrumento, cantando as derramadas cantigas de amor, sob
a luz da lua.
Ao enxergar a cena seresteira sob seus múltiplos ângulos, trouxemos a
ligação com o passado trovadoresco, os elementos de sua prática no contexto
brasileiro, a voz do seresteiro ou o amor em poema-canção, e por fim, a musa
resguardada. Falta-nos, entretanto, investigar, de maneira mais aprofundada,
sobre seus agentes, ou seja, traçar o perfil daquele que toca, identificando seus
traços e características. Pretendemos com isso, tirar de cena, –
momentaneamente, pois sabemos que ela não se apaga –, a imagem
romantizada do nobre trovador para trazermos a foco outra faceta do seresteiro:
a figura do boêmio sedutor, já antecipada pelos escudeiros das peças teatrais
citados na primeira parte deste trabalho.
É claro que são muitos os pontos comuns e que as imagens – tanto
românticas, quanto estigmatizadas – convivem e, por vezes, se convergem.
Porém, neste segundo eixo temático de nosso trabalho, nos dedicaremos a dois
estereótipos pertinentes e recorrentes em se tratando do violão e sua história: o
primeiro relacionado ao boêmio, vagabundo, errante, subversivo, livre, amante
da bebida e frequentador das ruas e botecos; e o segundo, marcado pelo
arquétipo de Don Juan e o exercício da libertinagem, da sedução e da conquista.
Além dos estereótipos que serão apresentados, abordaremos o mitológico
sedutor e sua relação com o violão ou a guitarra. Em termos literários, é
importante perceber que:

[...] entre nós Don Juan se comporta como o herói da busca


desesperada do amor ideal. Esta interpretação, ao lado de outra que
mostra a legendária personagem com sua guitarra, em serenatas de
sedução e gozo, encontra-se, superlativamente, em nossa poesia –
que é onde mais se concentra, em número de autores e em importância
94

temática, o mais representativo tratamento do mito em nossa literatura.


(ARAÚJO, 2005, p. 249).

Pelo caráter sedutor e corruptor de lares, a figura donjuanesca se


sobrepõe à imagem do violonista que, com seu instrumento, encanta – nas noites
de lua, em serenata – as mulheres resguardadas por suas janelas. Esses
atributos, interseções ou pontos comuns, em muitos momentos, se fundem e se
mesclam de tal forma que se torna impossível, estabelecer limites ou descolar o
conquistador do violonista.
Por fim, abordaremos o impacto do sedutor na vida e na perspectiva
femininas, apresentando não só o aspecto da violação, da desonra e da relação
entre corpo e violão, como traçando um paralelo com a importância da mulher
no processo de ressignificação do instrumento.

3.1 “Já passei noites inteiras/ no furor das bebedeiras...”19

A associação do violão ao boêmio, ao cigano e ao vagabundo pouco afeito


ao trabalho, inclinado aos vícios e dedicado ao ócio durante o dia, e ao canto
sob a luz da lua, fez com que instrumento e instrumentista fossem perseguidos
pelo caráter subversivo e transgressor da atividade, como nos conta as
Memórias de um Sargento de Milícias:

Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não gozava de


grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de
capote sobre os ombros e viola a tiracolo, caminhando em busca de
súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente “venha cá; onde
vai?”, o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com
certeza não escapava por outro meio de alguns dias de cadeia, ou pelo
menos da Casa da Guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio
às costas, como conseqüência necessária. (ALMEIDA, 2011, p. 12).

“O tipo perfeito dos capadócios”, geralmente pertencente às classes mais


baixas, tinha como riqueza o instrumento e a vida livre, aberta à fruição e ao
prazer nas ruas, nas tabernas, vagando pelas noites, de festa em festa, até o
amanhecer:

Gozava reputação de homem muito divertido, e não havia festa de


qualquer gênero para a qual não fosse convidado. Em satisfazer a

19 Versos do lundu Recordações, de Catullo da Paixão Cearense (1908, p. 39).


95

esses convites gastava todo o seu tempo. Ordinariamente amanhecia


numa súcia que começara na véspera, uns anos, por exemplo; ao sair
daí ia para um jantar de batizado; à noite tinha uma ceia de casamento.
A fama que tinha de homem divertido, e que lhe proporcionava tão
belos meios de passar o tempo, devia-a a certas habilidades, e
principalmente a uma na qual não tinha rival. Tocava viola e cantava
muito bem modinhas, dançava o fado com grande perfeição, falava
língua de negro, e nela cantava admiravelmente, fingia-se aleijado de
qualquer parte do corpo com muita naturalidade, arremedava
perfeitamente a fala dos meninos da roça, sabia milhares de
adivinhações, e finalmente, — eis aqui o seu mais raro talento, — sabia
com rara perfeição fazer uma variedade infinita de caretas que
ninguém era capaz de imitar. (ALMEIDA, 2011).

Para Gilberto Freyre (2013), o tipo teria sua origem nos “imigrantes
portugueses e italianos”, que de

tão numerosos nos meados do século XIX, sobretudo nas cidades,


tornaram-se, assim, grandes procriadores de mulatos. Esses mulatos
foram os de vida mais difícil, os que, muitas vezes, se esterilizaram em
capadócios, tocadores de violão, valentões de bairro, capangas de
chefes políticos, malandros de beira de cais[...] (FREYRE, 2013).

Da prosa à poesia, do contexto brasileiro ao espelho na Itália, o “Ato de


uma comédia não escrita”, intitulada Boêmios, de Álvares de Azevedo, nos
transporta para uma cena no século XVI, na qual, em “uma rua escura e deserta.
Alta noite”, “Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Níni entra tocando
guitarra. Dão 5 horas”. É envolto nesse contexto que se desenrola o diálogo entre
as personagens deixando evidentes as características que já aparecem
prenunciadas tanto pela indicação no subtítulo em referência ao gênero teatral
da comédia que, se pensarmos na perspectiva Aristotélica, imita os homens
inferiores com o intuito de satirizar seu comportamento, quanto pelas
características sarcásticas que marcam a segunda parte do livro a Lira dos
Vinte Anos (AZEVEDO, 2009), em que o poema está inserido.
Enquanto Níni, com sua guitarra, está ligado ao fazer poético, (“Os poetas
passados e futuros/ Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro/Tenho um grande
poema./ Hei de escrevê-lo,/ É certa a glória minha!”) (AZEVEDO, 2009, p. 137),
o “devasso” Puff (termo que, em inglês, significa ofegar, sopro, baforada) possui
traços próximos à obra shakespeariana. Essa aproximação pode ser verificada
no próprio prefácio da obra, no qual encontramos as seguintes indicações: “por
um espírito de contradição, quando os homens se veem inundados de páginas
96

amorosas preferem um conto de Bocaccio, uma caricatura de Rabelais, uma


cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare (...)”.20
Essa mesma observação pode ser encontrada nos estudos de Décio de
Almeida Prado (1996) e Vítor Alevato do Amaral (2006). De acordo com o
primeiro, "Puff, em primeiro grau, é uma personagem virtual de Shakespeare”,
aparecendo apenas citado no drama histórico Henrique IV, como Puff of Barson,
e “em segundo grau, uma personagem real, do próprio Álvares de Azevedo". Já
para o segundo, “a ligação entre as obras se mostra mais prolífica quando se
aproximam Puff e Sir John Falstaff (e relevante a semelhança dos nomes,
terminados nas fricativas "ff"), ou as duplas Puff-Nini e Sir John Falstaff-Príncipe
Harry”, pares análogos pela “inclinação para a bebida”, a forma prática de
“levarem a vida”, e a relação de “oposição entre seus participantes”. (AMARAL,
2006, p. 55).
Ao se encontrarem “na treva desta rua”, os boêmios de Álvares de
Azevedo nos fornecem importantes traços dos estereótipos que permearão a
imagem e a história da guitarra (ou violão), envolvendo o ócio, a bebida e a
libertinagem. No diálogo inicial, Puff é indagado por Níni:

Estás enamorado?
E deitado na pedra acaso esperas
O abrir de uma janela? Estás cioso
E co’a botelha em vez de durindana
Aguardas o rival?
(AZEVEDO, 2009, p. 136).

Ora, se, por um lado, temos uma perspectiva romantizada da serenata e


seus elementos constitutivos, por outro, esses versos não só indicam a presença
da prática, como trazem feições menos idealizadas para o que poderia ser o
encontro amoroso, incluindo a expectativa do acesso à dama pelo “abrir” da
janela e a manutenção das convicções cavalheirescas. Isso se dá porque, além
de substituir a espada pela garrafa, o boêmio Puff encontra-se na rua por razões
menos elevadas, pois saído de uma taverna – onde entrou ainda ao anoitecer
(“era já lusco-fusco”) e assistiu “a um pagode” –, descansa agora na calçada,
abandonado ao agradável ócio:

20 Grifo nosso.
97

Ceei à farta
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras...
Faço o quilo... ao repouso me abandono.
Como o Papa Alexandre ou como um Turco,
Me entrego ao far niente e bem a gosto
Descanso na calçada imaginando.
(AZEVEDO, 2009, p. 136).

Tendo como ponto de encontro das personagens o espaço da rua e


durante a alta madrugada, é importante observar que a sonoridade que circula e
ambienta o ócio boêmio é a da guitarra tocada por Níni. Além de circular com
seu instrumento, essa personagem também se dedica ao fazer poético (“Tenho
um grande poema./ Hei de escrevê-lo”) (AZEVEDO, 2009, p. 137), podendo
encontrar na bebida uma inspiração, conforme esclarece Puff:

A ideia é boa:
Toma dez bebedeiras — são dez cantos.
Quanto a mim tenho fé que a poesia
Dorme dentro do vinho. Os bons poetas
Para ser imortais beberam muito.
(AZEVEDO, 2009, p. 137).

Entre o ócio e a bebida, a construção da figura do vadio envolve a entrega


aos vícios, aos prazeres (“Tu bem o sabes:/ Toda a fragilidade vem da carne” -
AZEVEDO, 2009, p. 138), e às conquistas amorosas que, a despeito das
convenções sociais, obedecem a seus impulsos e estratégias de sedução –
mesmo que se valendo da poesia de outrem:

Puff
Dá-me aqui tua mão. Sabes, amigo?
Passei ontem o dia de namoro;
Minhas paixões voltei à nova esposa
Do velho Conde que ali mora em frente.
Estou adiantado nos amores.
A cozinheira, outrora minha amante,
Meus passos guia, meus suspiros leva.
Mas preciso com pressa de um soneto.
Prometes-me fazê-lo?
(AZEVEDO, 2009, p. 140).

O boêmio, apesar de ter, em geral, uma origem pobre e uma situação


financeira precária, coloca-se como um tipo de rei: senhor de uma vida sem
regras e limites; livre para usufruir o espaço dos bares e das ruas nas noites de
lua; conquistador de corações femininos; e devoto da garrafa de bebida (que
“beija”, como beijaria a mulher amada), e da preguiça. Essas características
98

ficam evidentes no poema – quase prosa – que estamos analisando, como no


trecho em que Níni pede à Puff que escute os versos feitos:

Níni
Ouve agora o poema...
Puff
Espera um pouco.
A taverna do canto não se fecha.
Está aberta. Compra uma garrafa...
Bom vinho... tu bem sabes! Tenho a goela
Fidalga como um rei. Não tenho dúvida:
Mentiu a minha mãe quando contou-me
Que nasci de um prosaico matrimônio
Eu filho de escrivão!... Para criar-me
Era — senão um Rei — preciso um Bispo!
Níni
(Vai à taverna e volta).
Eis aqui uma bela empada fria,
Uma garrafa e copo.
Puff
(Quebrando o copo).
O Demo o leve!
Eu sou como Diógenes. Só quero
Aquilo sem o que viver não posso.
Deitado nesta laje, preguiçoso,
Olhando a lua, beijo esta garrafa,
E o mundo para mim é como um sonho.
Creio até que teu ventre desmedido
Como escura caverna vai abrir-se,
Mostrando-me no seio iluminado
Panoramas de harém, Sultanas lindas
E longas prateleiras de bom vinho!
(AZEVEDO, 2009, p. 147).

Do boêmio Níni passemos à “Nini formosa”, musa inspiradora do


“Recitativo da Meia Hora de Cinismo”, de Castro Alves (ALVES, 2005, p. 227).
Com o título de Canção do Boêmio, essa “Comédia de Costumes Acadêmicos”
foi musicada pelo compositor, pianista, regente paulista Emilio do Lago (1937-
1971), conforme explica nota de Afrânio Peixoto, citada por José de Paula
Ramos Júnior., em Espumas flutuantes, de Castro Alves:

Esqueceu Castro Alves de dizer que a Meia Hora de Cinismo era de


França Júnior (Joaquim José da), 1838-1890, escrita em 1861, quando
o autor estudava em São Paulo, e, muitas vezes, aí representada. Ao
tempo do nosso Poeta era do repertório de Eugênia Câmara, no Teatro
São José. Este recitativo para o qual o Professor Emílio do Lago
escreveu a música (poesia e música impressas no Rio, em 1868)
ajuntou-se à graça da comédia de França Júnior. (ALVES, 2005, p.
289).
99

Alinhado ao estado de angústia e tristeza já anunciado pelo uso do termo


“cinismo” no subtítulo (que, de acordo com José de Paula Ramos Júnior, “deve
ser entendido como o era na época de Castro Alves, no Brasil, como sinônimo
de tédio – o spleen –, o “mal do século”) (ALVES, 2005, p. 289), o poema cria
imagens soturnas e uma atmosfera moldada pelo tenebroso da rua deserta, em
meio à noite e à espessa garoa, em que o silêncio é somente rompido pelo latido
dos “cães vadios” – elemento que, assim como na peça Quem tem farelos?,
analisada anteriormente, torna a cena mais tangível:

Que noite fria! Na deserta rua


Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.
(ALVES, 2005, p. 227).

A seguir, na segunda estrofe, temos tanto a presença do sujeito lírico,


indicado pelo uso do pronome possessivo em primeira pessoa, quanto da mulher
amada, que, mesmo ausente, tem seu nome chamado – “Nini”, apelido
“carinhoso que, segundo Afrânio Peixoto, o poeta atribui a Eugênia Câmara”
(ALVES, 2005, p. 289) – e torna-se sua interlocutora. Ela representa a partida, e
ele a espera:

Nini formosa! por que assim fugiste?


Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vós?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.
(ALVES, 2005, p. 227).

A cena poética se desenrola em movimento espacial de aproximação, em


que o deslocamento de foco nos conduz da amplidão e imprecisão da rua até o
espaço interno da casa, passando pela sala, até chegar ao quarto da amada. No
entanto, contrariamente ao exposto até o momento, essa musa não está
resguardada: enquanto sua ausência nos revela autonomia, a presença da figura
masculina em seu quarto nos fala de transgressão. É no território da mulher que
o sujeito lírico se move e revela a expectativa da espera (como o andar com
“passos largos” e fumar um cigarro); e é dele, afinal, “tudo no quarto” fala ao eu
lírico, que, em projeção espelhada, o desejo e ansiedade do encontro
transparecem:
100

A passos largos eu percorro a sala


Fumo um cigarro, que filei na escola...
Tudo no quarto de Nini me fala
Embalde fumo... tudo aqui me amola.

Diz-me o relógio cinicando a um canto


"Onde está ela que não veio ainda?"
Diz-me a poltrona "por que tardas tanto?
Quero aquecer-te rapariga linda."
(ALVES, 2005, p. 227-229).

Ao invés da donzela branca e pura, a “rapariga linda” reúne em sua figura


tanto a ternura e a delicadeza idílica vislumbrada em sua face, quanto o delírio
e a sensualidade em seu corpo, afinal, possui “um ditirambo” “no teu seio
quente”. Ela é, ao mesmo tempo, um “anjo louro” – conforme veremos mais à
frente –, como uma festa de prazeres dionisíacos. Nessa estrofe, impregnada de
uma tonalidade mais sensual, o poema explora os sentidos sensoriais, criando
imagens sonoras e táteis. As sonoras são percebidas nas referências aos
estalidos da vela e à “canção” (que, neste contexto, não é romântica, mas sim
abrasadora), como ao “ditirambo” (“hino em honra de Baco”); já as imagens táteis
estão relacionadas à percepção de calor, produzidas pela vela e pelos termos
“ardente” e “quente”. Vejamos os versos:

Em vão a luz da crepitante vela


De Hugo clareia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo— no teu seio quente...
(ALVES, 2005, p. 229).

Nas estrofes seguintes, após apontar, de maneira irônica, suas


contravenções (“Violei à noite o domicílio, ó crime!/ Onde dormia uma nação...
de aranhas...”), e contrapor o frio, metáfora do desencontro amoroso, à paixão
que inflama seu peito, o sujeito lírico, parodiando a passagem bíblica 21 dirige-se
ao leitor e o desafia: “Vós todos, todos, que dormis em casa,/ Dizei se há dor,
que se compare à minha!..”. Esse sofrimento, no entanto, só encontrará alívio no
sorriso da amada; e o calor desejado, no “teu olhar ardente”:

Pego o compêndio... inspiração sublime


P'ra adormecer... inquietações tamanhas...

21Refere-se aqui ao versículo do livro das “Lamentações”: “Ó vós todos, que passais pelo
caminho: olhai e julgai se existe dor igual à dor que me atormenta, a mim que o Senhor feriu no
dia de sua ardente cólera” (LAMENTAÇÕES 1:12).
101

Violei à noite o domicílio, ó crime!


Onde dormia uma nação... de aranhas...

Morrer de frio quando o peito é brasa...


Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa,
Dizei se há dor, que se compare à minha!.. .

Nini! o horror deste sofrer pungente


Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.
(ALVES, 2005, p. 229).

Se, a princípio, temos o momento da espera e o homem devoto, a partir


da nona estrofe outros aspectos vão se delineando, tornando possível a
identificação não só dos motivos que levaram à partida da mulher amada, como,
simultaneamente, deixando transparecer as características que marcam a
composição do sujeito lírico:

Deus do Boêmio!... São da mesma raça


As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro...

E tu fugiste, pressentindo o inverno.


Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno
Mesmo eu tomara a primavera a prêmio...

No entanto ainda do Xerez fogoso


Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...
(ALVES, 2005, p. 229-230).

Assim como as andorinhas, que migram para evitar o inverno, Nini


também parte prevendo o fim da juventude, metaforizada pela “primavera” que
“passa”, e a escassez de dinheiro (“se já nos campos não há flores de ouro”).
Essa situação financeira precária é ainda reforçada pela referência ao “mensal
inverno” que, conforme esclarece José de Paula Ramos Júnior, seria uma alusão
do poeta “à dificuldade de vencer cada mês com o dinheiro minguado, escasso
como as coisas no inverno” (ALVES, 2005, p. 290). Ao expor as razões que
justificam a fuga da mulher amada, o sujeito lírico acaba por revelar sua carência
de recursos materiais e sua condição de boêmio, tanto pelo “viver”, quanto pela
divindade a qual invoca e a ela se dirige no começo dos versos, o “Deus do
Boêmio!”.
102

Se, por um lado, o sujeito denota sua condição de pobreza, por outro, ele
apresenta seus tesouros (“Que minas!”): “duas garrafas” de xerez e o violão. É
importante observar que esses dois elementos funcionam de maneira
complementar, figurando juntos em termos de preciosidades, ao mesmo tempo
em que apresentam características, a princípio, opostas, pois, enquanto o vinho,
tipicamente espanhol, é “fogoso”, o violão guarda saudades e “inspirações
divinas”. Nessa espécie de união entre o profano e o sagrado, o instintivo e o
sublime, a bebida e o instrumento tornam-se confidentes e companheiros
indissociáveis da figura do boêmio, participando de maneira determinante em
sua constituição estereotipada.
Além dessa simbiose, o violão no contexto poético revela-se como um
sujeito ou uma entidade viva que se mantém no presente, pelo uso do tempo
verbal escolhido (“guarda no seio”), mas também carrega consigo uma conexão
com o passado (“o violão saudoso”). Ele tanto sabe de tempos imemoriais,
quanto conserva e protege em seu bojo o elã sublime e intangível das
“inspirações divinas”.
Além de integrar as riquezas do boêmio, o violão pertence a esse sujeito
lírico que é também um jovem estudante, conforme podemos inferir não só pelas
atitudes relacionadas ao ambiente escolar (o cigarro que “filei na escola”, “pego
o compêndio”, e “meu coração é triste/ como um calouro quando leva ponto”),
como já sugerido pelo próprio subtítulo do poema “Comédia de costumes
acadêmicos”. Observa-se que, historicamente, o violão circulou e se popularizou
nas mãos de estudantes, principalmente a partir da implementação da Academia
de Direito de São Paulo, em 1827, mesmo local onde Castro Alves viria a dar
continuidade a seus estudos, em 1868. Sobre a importância da criação dessas
instituições para o desenvolvimento urbano, cultural, e para a própria história do
instrumento, Bartoloni (2015) explica que:

A presença desses estudantes na cidade foi importante para o violão,


pois estes realizavam várias serenatas pelas ruas de São Paulo.
Formavam conjuntos musicais e alguns chegavam a apresentar
verdadeiros concertos, geralmente em praças como no largo São
Gonçalo (atual Praça da Sé), onde famílias inteiras ficavam ouvindo
enquanto passeavam ou se sentavam nas escadarias da Sé.
(BARTOLONI, 2015, p. 48).
103

Apropriando-se dos espaços da cidade e circulando por eles, o canto


desse boêmio é envolto de tristeza, solidão e espera:

Se tu viesses... de meus lábios tristes


Rompera o canto... Que esperança inglória...
Ela esqueceu o que jurar lhe vistes
Ó Paulicéia, ó Ponte-grande', ó Glória!...
(ALVES, 2005, p. 230).

A utilização das reticências nesses versos causa um efeito de expectativa


e suspensão pelo desfecho, que, após uma indicação de cesura, se dá,
surpreendentemente, com o regresso da amada. De uma maneira panorâmica,
o poema constrói o reencontro amoroso pelo desenrolar da história, como uma
canção que atinge o repouso, pois a chegada da musa proporciona ao sujeito
lírico o alívio e satisfação desejada (“Ei-la afinal comigo....”). Na última estrofe do
poema, entre reticências e exclamações, o uso – e a subversão – de elementos
religiosos (pecado, castigo, martírio cruz) atribuem à figura feminina poderes e
forças divinas, pois a chegada de Nini é capaz de não só iluminar a escuridão
(“Foram-se as trevas... fabricou-se a luz..”),22 como redimir este boêmio pecador:

Batem!... que vejo! Ei-la afinal comigo...


Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços... do martírio a cruz!...
(ALVES, 2005, p. 230).

Essa ligação com o pecado não está apenas relacionada ao modo de vida
do boêmio, mas também às violações contra a moral e os bons costumes que o
envolvimento da população com as canções profanas poderia provocar. Tal era
a preocupação da Igreja que, por incitar aos desvios e à promiscuidade, a
Inquisição, entre os séculos XV e XVIII, passou a incluir as letras e o gênero
vocal, acompanhado pela viola, na categoria dos “pecados das orelhas”
(TINHORÃO, 1998).
Se, nesse período, a habilidade instrumental era uma atividade atribuída
ao próprio Demônio (TINHORÃO, 1998), em Portugal, a viola se populariza nas
mãos de sujeitos “postos à margem da estrutura econômico-social como ganha-
dinheiros, ou eventuais vadios”, que tinham como entretenimento a

22Rememorando a passagem bíblica “Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita. Deus viu
que a luz era boa, e separou a luz das trevas” (GÊNESIS 1:2-4).
104

“singularidade do canto a sol com acompanhamento individual, ao som de sua


viola.” (TINHORÃO, 1998, p. 19). Tamanha era a popularidade do instrumento
que, conforme as crônicas de um monge francês, foram encontradas dez mil
guitarras portuguesas (violas simplificadas com quatro ordens) no campo de luta,
após perdida a batalha de Alcácer Quibir (na África, em 1578). Apesar do número
exagerado, é notável tanto a difusão do instrumento quanto o perfil de seus
executantes “posto que a base das tropas era formada pela massa dos pobres
e mais gente situada à margem da vida econômica organizada das cidades
(incluindo-se alguns tipos de condenados)” (TINHORÃO, 1998, p. 30).
Sem tentar remontar à história do violão, mas sim traçar alguns pontos de
referência, temos no Brasil, durante o século XVII, inúmeros músicos amadores,
vadios e boêmios que circulavam pelas cidades envolvidos em cantorias, cujo
nome que mais se destaca é o do poeta e tocador de viola Gregório de Matos.
No século seguinte, ao lado da popularização do lundu, o padre mulato
Domingos Caldas Barbosa (1739-1800) se torna o principal divulgador da
modinha tanto no território brasileiro, quanto em Portugal.
Já em fins do século XIX e início do século XX, o violão circula pelos mais
variados espaços através do lundu popular dos palhaços de circo e do teatro
vandevillesco (ou teatro de variedades), das apresentações em cinemas, da
prática nos cortiços e terreiros, e da criação de um repertório solista, o que inclui
sua aceitação nas salas de concerto a partir, sobretudo, da segunda metade do
século XIX.
Na prática seresteira, a maior parte dos músicos que saía à noite em
cantoria desconhecia a escrita musical, e por isso estes tinham o costume de
tocar de ouvido ou improvisar arranjos, apresentando grande diversidade de
gêneros musicais, como lundus, maxixes, valsas, cantigas, sempre
acompanhados de seus instrumentos e um “frasco” de bebida, conforme
descreve Luiz Edmundo:

Quando a cidade adormece, por ermas ruas e revéis caminhos, andam


grupos de seresteiros a cantar. Em grupos numerosos, lá vão eles
ferindo violões, cavaquinhos, bandurras e bandolins, os chapéus
desabados no sobrolho, nos bolsos dos paletós, frascos da ‘branca’ ou
de vinhaça. Andam léguas e léguas, assim a tocar, a cantar, até que
venha a luz do dia. (EDMUNDO 1957, p. 27 apud TABORDA, 2004, p.
126).
105

Além dos cantores, esses pequenos grupos instrumentais, compostos por


flauta (ou instrumento de sopro), violão e cavaquinho – formação que viria a
constituir o tradicional terno de choro –, seriam estigmatizados e combatidos:

A prática da seresta à luz do luar tão peculiar da paisagem carioca, não


sairia impune à repressão; apesar de encantamento e poesia se
revelarem ferramentas peculiares da atividade do seresteiro, não
podemos deixar de observar que a imagem dos instrumentistas
envolvidos na plangente cantoria é bastante identificada ao tipo do
capadócio, violonista, amante da branquinha [...]. (TABORDA, 2004, p.
126).

Preocupado com essas associações negativas e intentando divulgar e


defender o violão e a modinha, o compositor Catulo da Paixão Cearense (1863-
1946) propõe então a criação e a diferenciação na denominação dos
instrumentistas. Sobre esse processo, Taborda (2004) explica que,

buscando preservar e resguardar seu ofício de trovador da possível


identificação com a música dos boêmios de esquina, sai a campo e
inventa a figura do serenateiro. O grupo de tocadores e seresteiros do
qual o poeta fazia parte, compunha-se de “funcionários públicos,
homens com família constituída, de reputação ilibada, e muitos deles
com diplomas do Instituto Nacional de Música. Para distingui-los dos
capadócios, o poeta chamava-os ‘serenateiros’ e não seresteiros,
apelido que deixava aos trovadores vadios sem categoria social
definida. (TABORDA, 2004, p. 126).

Apesar desses esforços, a imagem do boêmio – e sua carga simbólica –


perpassa culturas e tempos, como pode ser notado pelos versos do paraguaio
Agustín Barrios (1885-1944). Sendo considerado um dos primeiros concertistas
a fazer recitais no Brasil, no começo do século XX, esse violonista e compositor
tem seu poema, inspirado no estereótipo e datado de 1922, publicado pela
revista paulista Violão e mestres n. 1, em 1964a. Nele, Barrios nos apresenta
um boêmio “errante”, “peregrino”, irmão dos “trovadores medievais”, e
significativamente metaforizado pelo catavento, que se move aos “impulsos do
destino”:
106

Figura 9 – Poema “Bohemio”

Fonte: BARRIOS, 1964, p. 17.

A associação entre a boemia e o violão marca tão profundamente a


história do instrumento que seria necessário, durante o século XX, um longo e
complexo processo de ressignificação:

O abraço do carioca ao violão, a amizade fiel de seresteiros que pela


madrugada entoavam modinhas, lundus, cançonetas, o afago de
malandros, capoeiras, boêmios arrastaram o instrumento às esquinas,
aos becos, às estalagens, enfim, aos redutos de pobreza. Essa
associação foi determinante para a construção do discurso que
simbolicamente relacionou o violão como o veículo próprio para a
manifestação musical dos setores marginais da sociedade.
(TABORDA, 2011, p. 82).
107

Como não nos cabe, pelo menos por hora, uma discussão mais
aprofundada sobre essas questões, vamos retornar a nossas análises através
do poema “Vagabundo” de Álvares de Azevedo. Nesse poema (terceiro de
“Spleen” e Charutos), o sujeito lírico vai aos poucos se apresentando em
primeira pessoa, e, assim como o boêmio de Castro Alves, também fuma seu
cigarro, é pobre e tem em seu instrumento – a viola – um tesouro. É preciso
observar, entretanto, alguns importantes detalhes de sua autodescrição:

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,


Fumando meu cigarro vaporoso,
Nas noites de verão namoro estrelas,
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso...

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;


Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas...
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva


Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando, à noite, na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.
(AZEVEDO, 2009, p. 164).

O primeiro ponto a ser analisado trata da dicotomia presente na


configuração do sujeito. Se, por um lado, apresenta-se desprovido de recursos
financeiros e ocupando uma posição de mendicância (“Sou pobre, sou
mendigo”), por outro, mostra-se também como um indivíduo feliz (“sou ditoso”),
autoconfiante e satisfeito com a vida que leva (“Não invejo ninguém, nem ouço
a raiva”) – posição que, diante dos “reflexos do baile fascinante”, expõe a fratura
social e o sentimento de exclusão.
Essa aparente dualidade, estampada em sua figura maltrapilha (“Ando
roto, sem bolsos, nem dinheiro”), é ainda aumentada ao colocar em questão
padrões e valores sociais dominantes, uma vez que sua riqueza não está nos
bens materiais, mas sim em seus sentimentos, afinal, “quem vive de amor não
tem pobreza”.
Esses versos também nos revelam que o pinho desempenha não só uma
importante função e riqueza, pois é no instrumento – e através dele – que o
sujeito canta o amor, como nos coloca adiante de uma representação dual, mas
aglutinadora. Ora, se o verso “canto à lua de noite serenatas” pode nos
transportar a certa imagem romantizada, conectada ao trovador medieval de
108

origem nobre – discutida na seção anterior –, o contexto poético nos expõe outra
face de uma mesma moeda: a do boêmio, pobre e errante. Junto a essa figura
que acomoda tanto o enlevo amoroso quanto a vadiagem, temos a viola e, por
extensão, o violão ou a guitarra. Esses instrumentos (a)parecem irmanados por
seu uso (no acompanhamento da voz), seu caráter de confidente, sua prática e
a capacidade de recriar – e nos remeter – à sonoridade e à atmosfera seresteira.
É claro que aqui não se trata de cobrar do poeta uma precisão terminológica,
mas compreender que, apesar das diferenças, certas associações musicais e
simbólicas aproximam ou equiparam a percepção desses instrumentos na
construção cultural brasileira.
O termo “boêmio” possui uma estreita e profunda associação ao cigano,
já assumido no primeiro verso do poema (“Eu durmo e vivo ao sol como um
cigano”), pois se refere, originalmente, aos povos nômades habitantes da região
da Bohemia, na República Tcheca. Se, por um lado, atuam como sinônimos, por
outro, a palavra “boêmio” adquire, com o tempo, tanto um sentido pejorativo
relacionado ao indivíduo de vida desregrada, quanto se aproxima do hedonista,
caracterizado pela busca incessante de prazer e liberdade.
Condensando em sua figura todas essas características, o cigano, boêmio
e vagabundo – que dá título ao poema – se delineia como a véspera do malandro
brasileiro. A construção desse anti-herói que, com seu “jeitinho”, subverte a
moral e os costumes sociais, ganha ares de elogio, aderindo à sua máscara, em
um jogo de antítese e paradoxos, as marcas do estereótipo – tão presente e
conhecido em nossa cultura – dedicado ao ócio e ao repouso durante o dia, e a
“vagamundear” nas noites de lua, namorando “as estrelas”.
Dando prosseguimento à análise do poema, as próximas estrofes nos
revelam mais um traço que compõe a personalidade do boêmio: a sedução e a
conquista. Para esse eu lírico, “garboso” e “rapaz”, a felicidade amorosa não está
na fidelidade ou no sentimento idealizado, mas, sim, no contato físico e na
habilidade de cativar vários amores, envolvendo tanto a criada “abrasada de
amor” quanto a doce donzela. Essas características se ligam à figura de Don
Juan, que veremos mais detalhadamente na próxima subseção, mas que já nos
109

é rememorada pela própria epígrafe do poema, citada do Don Juan Byroniano


“Eat, drink, and love; what can the rest avail us?”23:

Namoro e sou feliz nos meus amores,


Sou garboso e rapaz... Uma criada
Abrasada de amor por um soneto,
Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismando


Na donzela que ali defronte mora...
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora...
(AZEVEDO, 2009, p. 164).

Em seguida, é preciso perceber as questões que envolvem a relação do


eu lírico com o lugar que ocupa e ao qual pertence. Contrariamente à pobreza
financeira explicitada, esse sujeito se vê como um rei, tendo por palácio as ruas
da cidade, adornadas com os versos que escreve nas paredes e muros; e por
trono, os degraus das igrejas. É por esse espaço que ele transita com segurança
e propriedade (“Passeio a gosto e durmo sem temores”), estabelecendo uma
percepção de casa ou lar que, por ser seu, permite uma vivência não conforme
as regras sociais, mas, sim, seguindo o instinto e os ritmos de sua natureza
(“Como as aves do céu e as flores puras/ Abro meu peito ao sol e durmo à lua”).
Esse trovador, músico, poeta e vagabundo tem seu pertencimento e
identidade marcados pela errância24 e por um profundo desejo – e exercício –
de liberdade. Ao tomar por pátria “o vento que respiro”, o sujeito expõe a falta de
raízes e da capacidade de se fixar. Ele é “veleta”, como o “Bohemio” de Barrios.
Sua mãe é a “lua macilenta”, e, por isso, obedece aos ciclos e às metamorfoses.
Não sabemos quem é seu pai, mas sua mãe nos traz os simbolismos das fases,
das transformações e crescimento – ele é filho da lua branca:

23 “Comer, beber e amar; o que mais é útil para nós?”. Tradução nossa.
24 A errância não implica em “passividade como contrário de atividade”, revelando-se como
potência criadora e geradora de sentido, conforme explica Silvina Rodrigues Lopes (2015): “no
abandono abdica-se daquilo que, como uma certa ideia de trágico, concebe tudo como sendo
afinal determinado por forças que, ao darem-se a reconhecer, expõem a subjugação dos
humanos à sorte ditada e à assunção da falta que decorria do desconhecimento do ditado.
Essa abdicação supõe a vigilância, o não-consentimento na destruição, inclusive a que é
produzida pela primazia do conhecimento para dele retirar regras do viver-em-comum.
Entendemos como errância o movimento de existir que se não deixa fixar a leis, regras,
lógicas, modelos. Ele mantém os textos e as ideias intrínsecamente em alerta, cuida da sua
indecifrabilidade ao dedicar-se à decifração, que nunca se separa da preocupação do agir”.
(LOPES, 2015, p. 202).
110

Tenho por meu palácio as longas ruas,


Passeio a gosto e durmo sem temores...
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,


Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,


De painéis a carvão adorno a rua...
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.
(AZEVEDO, 2009, p. 164-165).

Depois de acrescentar mais alguns componentes à figura do capadócio


“juanesco”, como a preguiça e a relação com a bebida, temos o uso, não muito
comum, de termo estrangeiro, para reafirmar a condição de miserável do boêmio:
lazzaroni. Assim eram chamados os que pertenciam à camada social mais baixa
de Nápoles, caracterizados pela miséria, indolência e sujeira. Outra tensão
também presente – e recorrente – nessa construção arquetípica envolve a
convivência entre a religiosidade e a vida profana:

Sinto-me um coração de lazzaroni,


Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!
(AZEVEDO, 2009, p. 165).

Nesse ponto, o paradoxo criado entre a doutrina religiosa e a vida “vadia”


é, em parte, afrouxado pela capacidade de o sujeito de transitar, mediar e
acomodar universos singulares – e por vezes – opostos. A falta de crença no
pecado e na santidade coloca-o em um sutil ponto de equilíbrio entre Ariel e
Caliban; não sendo nem bem, nem mal, mas, talvez, um pouco de cada um. Ao
recorrer à Nossa Senhora e, ao mesmo tempo, afirmar sua identidade mandrião
(“sou vadio”) ele escapa aos limites impostos pelos dogmas religiosos e códigos
sociais, para se colocar e viver à margem. É claro que, para acompanhá-lo, o
sujeito deseja uma musa não idealizada, mas sua semelhante, capaz de,
também, sintetizar a indolência e o componente devocional:

Ora, se por aí alguma bela


Bem dourada e amante da preguiça,
Quiser a nívea mão unir à minha
111

Há de achar-me na Sé, domingo, à missa.


(AZEVEDO, 2009, p. 165).

É importante observar, em um último aspecto, que, tecido de retalhos


multicoloridos, o “coração arlequinal” desse “Vagabundo”, de Álvares de
Azevedo, não só reúne aspectos, a princípio, contraditórios, como defende a fala
e o estilo de vida do marginalizado, mesmo diante dos discursos predominantes,
das noções de riqueza e pobreza, do sucesso e fracasso, e das conotações
negativas que o permeiam.
Separados por uma distância temporal de mais de cem anos, o poema
“Seis Ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho”, de Manoel de Barros, publicado
no livro O Guardador de Águas, em 1989 (BARROS, 2015a), nos mostra a
corriqueira – e ainda persistente – ligação do violão com o ócio e com os
estigmas que envolvem o instrumento e seu uso. Porém, essa aparente
inutilidade – do artista e da arte – pode se revelar, paradoxalmente, como
potência:

Seu França não presta pra nada


Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.
(BARROS, 1989).

A expressão “não presta pra nada”, que abre o poema e define “Seu
França”, tanto ganha destaque pela insistência e retorno em um verso composto
apenas por ela, quanto funciona como reiteração da ideia. Ora, se, pelo
dicionário, o verbo “prestar” significa “ser útil ou apropriado (para); ter préstimo”;
ele também expressa o senso comum relacionado a um juízo de valor (“ser
bom”). Com isso, ao declarar a negativa e afirmar que a personagem “Só [presta]
pra tocar violão”, o poema nos coloca, por um lado, diante do discurso da
“inutilidade” do artista e do estigma que o acompanha. Por outro, é justamente
essa condição de não se prestar a ser útil para nada ou para ninguém que reside
uma das potências da arte e do artista.
112

Assim como o “Vagabundo”, de Álvares de Azevedo – dedicado às artes


(poesia, pintura, música) e ao deleite de uma vida livre –, “Seu França”, também
não deseja “ser alguém” na vida. Ao invés de se enquadrar à rotina do trabalho
e priorizar o sucesso profissional, ele revela “que precisa de não ser ninguém
toda vida”. Com isso, entram em xeque as convenções e as imposições sociais
de se ter uma boa carreira, posição e um trabalho valoroso, uma vez que a
necessidade desse sujeito lírico caminha na direção oposta: ele se exime dessas
obrigações e assume o paradoxo de “ser o nada desenvolvido”.25
Ao dar voz a coisas imanentes ou aprendidas sozinho, como indica o
título, o poema expõe o senso comum e o conflito, ainda atual, entre a efetividade
e afetividade, ou seja, dos meios de produção e consumo de bens, dos trabalhos
tidos como importantes para o progresso da sociedade em contraposição ao
ofício do músico, mais especificamente, do violonista. Assim, por não seguir uma
carreira convencional ou almejada pela maioria, o artista – e aqui, o poeta amplia
a perspectiva do instrumentista a toda classe artística – cumpre uma espécie de
antidestino, originado “nesse ato suicida” de ir contra o imposto pelas normas e
padrões sociais. É nessa espécie de morte e da adesão ao tido como inútil que
o indivíduo se reconhece e legitima sua existência e sua potência: “Todas as
coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus. / Senhor, eu tenho orgulho
do imprestável!” (BARROS, 2010, p. 342).
Nessas discussões que envolvem o ócio, a vagabundagem e a boemia, é
importante observar, por fim, que, se, por um lado, os poemas analisados
reforçam determinados estereótipos, por outro, o aproximam da capacidade
mediadora do violão. Capaz de transitar entre os mais variados espaços, tempos
e ambientes, o instrumento permeia importantes processos culturais e sociais,
desafia proibições e estigmas, percorrendo as ruas e salas de concerto, o morro
e o asfalto, apropriando-se e participando da criação de gêneros musicais e das
mais diversas manifestações artísticas nacionais. Democrático e aglutinador, o
violão permanece presente no imaginário e na sonoridade brasileira.

25 Sobre a potência da impotência na relação entre o homem comum e a criação artístico-


literária Menezes (2008) explica que “o homem comum existe em trânsito, em devir. É
linguagem enquanto vida produzida pelo desejo. Seu objetivo é desafiar os limites impostos
pelos dispositivos disciplinares. Isso pode ocorrer a partir do não agir, do direito que se dá a
não responder afirmativamente aos imperativos da modernidade. Não pertence a uma classe
ou grupo. Não se prende ao destino, expõe-se ao acaso”. (MENEZES, 2008, p. 77).
113

No entanto, antes de prosseguirmos com o estudo das relações entre


instrumento e a construção simbólica e identitária de nossa cultura, vejamos,
mais detidamente, outra esfera que compõe – além da ligação com a bebida, o
ócio, a noite, e as ruas – a figura do boêmio: a sedução.

3.2 “Não lhe ouças, filha, o canto merencóreo!/ Fecha a janela e foge, que
esse canto/ Vem da guitarra de D. Juan Tenório!”26

Don Juan é, certamente, uma das figuras mais conhecidas no âmbito


ocidental, apresentando-se sob diversas formas, épocas e meios, numa extensa
e variada produção cientifica, como a psicanálise, e artística, envolvendo obras
musicais, literárias, audiovisuais e cinematográficas. Aparecendo originalmente
na peça El burlador de Sevilla y Convidado de Piedra (1630), do religioso
espanhol Tirso de Molina (1579-1648), a personagem ganha força e
configuração mítica:

El burlador de Sevilla responde a las características de un texto


fundacional de la literatura occidental, tanto por el acierto al captar en
un carácter literario rasgos y pulsiones de la mente y la biología
humana cuanto por la influencia que ejerce posteriormente en diversos
géneros y literaturas nacionales. (HERAS, 2017, p. 812).

Embora a obra teatral, ambientada no século XIV, tenha sido elaborada a


partir de diversas fontes (como crônicas, lendas e relatos folclóricos) e se
constitua como uma crítica – à sociedade da época, à nobreza e à igreja –, a
imagem donjuanesca, cristalizada no imaginário popular, direciona-se ao
sedutor-burlador. Esse sujeito, obediente a seus desejos e compulsões, é
incapaz de amar e de se prender a uma única mulher:

Criado pela pena de Tirso de Molina há quatro séculos, Don Juan


Tenório ganhou cidadania multinacional e, a cada lugar por onde se
move, aprofunda-se sua psicologia, acrescentando, relativamente ao
original espanhol, novos e renovados elementos simbólicos e de
interpretação do fenômeno amoroso, do homem devotado à conquista
e posse da mulher. É ponto pacífico que a personagem
fundamentalmente de época – o ardente, iconoclasta, lascivo,
desabusado e burlador Don Juan – tem uma matriz espanhola e mais
precisamente sevilhana. Longe de acalentar ideais, de submeter-se a
códigos éticos, ou de escravizar-se aos sentimentos do amor e da
lealdade, o Don Juan primitivo, mitificado como filho dileto da dúvida

26 Versos do poema “Ária noturna”, de Raimundo Correia (1961. p. 131).


114

mística, paradoxal em seu desapego às coisas divinas e aos estatutos


de honra, irresistível às mulheres, gozando-as e abandonando-as
sucessivamente, este pertence à Espanha de Tirso. Mas o mito
transcende a criação e a personagem passa-se a outras culturas, de
que recebe múltipla conformação, variando seu plasma de acordo com
o influxo de cada criador, cada modelo ou estilo de época. (ARAÚJO,
2005, p. 121).

Da figura mítica é preciso reconhecê-la e aceitá-la com suas facetas,


realidades e formas. Ela tanto engendra determinados valores e heranças,
quanto se adapta, atualiza, se transforma ao longo do tempo, da cultura e dos
contextos que a envolvem. Assim, se, por um lado, na primeira metade do século
XIX, há uma profunda identificação com a imagem de Don Juan devido à
valorização de figuras capazes de irem além da vida cotidiana, pela “busca
ininterrupta e ilimitada do mais” (reflexo, de certa maneira, da ganância da
acumulação capitalista”), por outro, ela habita o presente contínuo, o tempo
mítico.

Daí poder recompor-se em vários modelos, guardando um sentido


essencial: a busca, a conquista, a sedução e posse da mulher; e,
paralelamente, a imperfeição amorosa, a fragmentação do amor. A
solidez do mito não advém de sua estática, mas do interesse humano
que reconhecidamente desperta. Não se conforma num modelo único,
mas verticaliza-se em diversos moldes oriundos da sensibilidade de
artistas e da natureza popular. (ARAÚJO, 2005, p. 125).

Produto da sociedade, e nela projetado, o eterno sedutor tem as marcas


do primordial, representando e expressando os modelos comportamentais, como
é característico das figuras míticas. Porém, sua individualidade se expande
como representação coletiva, constantemente em construção, modificação e
apropriação, permeando tempos e culturas, por “contener una visión eterna,
semejante a la desprendida por un sueño que emerge de la profundidad de la
mente colectiva” (HERAS, 2017, p. 813).
Do mito individual para seu reflexo no coletivo, Don Juan representa uma
mescla entre o bem e o mal, resultando assim em uma ambiguidade identitária
que, ao mesmo tempo em que aproxima, também repele. Como crítica social, El
burlador expõe as fraturas, os vícios e as máscaras da esfera que representa, a
nobreza. Direciona questionamentos tanto aos valores e ao do decoro do
comportamento de cavalheiros e damas, quanto à denúncia da impunidade, da
hipocrisia e da corrupção dos princípios cavalheirescos.
115

Pelo caráter burlador, ao ludibriar tanto as mulheres, quanto os homens,


Don Juan subverte o significado do termo, passando, assim, do engano à
zombaria. Ele atua no horizonte da mentira e se diverte com o resultado de suas
trapaças:

[...] El Burlador de Sevilla, responde pela dimensão das seduções de


Don Juan, na medida em que ele opera com os dois sentidos do verbo
burlar e de seu substantivo correspondente. Segundo o dicionário
Señas, esse verbo pode significar tanto “enganar ou mentir” como “pôr
em ridículo uma pessoa ou coisa ao rir da mesma ou aplicar-lhe uma
brincadeira de mau gosto. (MAURO, 2014, p. 14).

Excessivo e imprudente, tem seu prazer também em ridicularizar suas


presas, vivendo em uma espécie de sequência de farsas ou engodos, em que
cada burla o conduz à outra – até ser punido e condenado ao inferno (“la última
de la cuales cambia al agente, ya que convierte al burlador en burlado y, acto
seguido, se procede a su castigo ejemplarizante”). (HERAS, 2017, p. 820).
Don Juan habita o abismo e o risco, levando à perversão do corpo e da
alma, à subversão e à transgressão dos limites por seu erotismo literário. Guiado
pela natureza instintiva, ele é marcado pela urgência de suas pulsões. Don Juan
fareja suas presas, exerce seu domínio e poder ao não adiar seus desejos.
Vivendo de extremos, ele cumpre seu destino e obedece ao que há de narcisista
e dionisíaco em sua personalidade. No entanto, ele se equilibra entre prazer e
sofrimento, pois, mesmo com toda sua liberdade e transgressão, ele é também
escravo de si mesmo, prisioneiro de seu apetite e necessidades, obedecendo
cegamente às leis ditadas por seu corpo/vontade.
Se “ser é, essencialmente, lutar pelo prazer” (MARCUSE, 1968, p. 118),
Don Juan o faz de maneira desmedida. Almejando o prazer sem limites, o
sedutor quer realizar seu desejo e também superar os obstáculos à sua
realização. Egoísta e ególatra, como ser erótico, ele é potência, mas também
subversão do sublime, danação e engano.
Nessa constante e incessante busca, temos outra faceta de seu ser
revelada: a da falta. Isso se dá pois o desejo é “igualmente a frequência da
lacuna. Desejamos o que (porque) não temos. [...] Desejo, portanto, é a energia
da libido, ímpeto e pulsão existenciais cravejados da persona do incontentado,
operativo no vácuo.” (ARAÚJO, 2005, p. 91).
116

Don Juan é marcado pela incapacidade de comprometimento afetivo,


permanecendo, com isso, no exercício de busca contínua, em que cada
conquista reforça também sua impossibilidade de amar e sua própria impotência
de se sentir realizado.
Já que “a vida é em sua essência um excesso” (BATAILLE, 1987, p. 80),
o polígamo, mais do que as mulheres que cativa, ama a sedução, seus rituais e
desafios. No entanto, depois de conquistada, a mulher perde o interesse para
ele. Nesse ciclo, o sedutor procura aplacar sua ânsia amorosa, mas não se sacia,
permanecendo, assim, em um movimento sempre renovado, porém nunca
satisfeito.

Sedução, do latim seducere, significa, na expansão semântica, afastar-


se do caminho. Ou seja, quem seduz, distancia-se do objeto seduzido,
violando a norma de equilíbrio do desejo. Também, social e
eticamente, a sedução baixa a mímesis contemplativa ao horizonte das
margens. Don Juan ambienta-se e extrapola o espaço da profanação.
Antes de amar o corpo da mulher, na vertente dos líricos e amorosos
cristãos, anseia por devorá-lo. Entre o complexo da tentação
(mascarada, hipócrita etc.) e a realização plena do desejo (re)vigorado,
Don Juan não hesita: cumpre seu destino de pecado. A imagem
depreciativo-desagregadora da mulher, plantada no imaginário cultural
desde tempos imemoriais, favoreceu a eclosão desse modelo de
sedutor. (ARAÚJO, 2005, p. 98).

Por herdar e representar a libertinagem, sua figura mitológica assimila o


libertarismo das ideias e a errância de seu modo de vida. Solitário – por viver à
margem, fora dos limites e obediente a seu desejo erótico –, ele é volátil,
passageiro e efêmero como o vento (uma de suas mais marcantes e recorrentes
metáforas). Como tal, se iguala aos homens fatais que “disseminam em volta a
maldição que pesa sobre seus destinos, arrastam como um vendaval quem tem
a desgraça de topar com eles [...]; destroem a si mesmos e destroem as infelizes
mulheres que caem na sua órbita.” (PRAZ, 1996, p. 87).
Araújo (2005), em seu trabalho Do penhor à pena: estudos do mito de
Don Juan, desdobramentos e equivalências, reconhece que Don Juan, para
seduzir as mulheres, apresenta seis poderosos atributos “fornecidos pelo Diabo
ou pela natureza: inteligência, orgulho, valor, capacidade genital, amoralidade e
desejo por todas as mulheres” (ARAÚJO, 2005, p. 119). Escorregadio, marginal,
alheio à moralidade, o modelo deve conservar, praticar e dominar esses
117

atributos, e, por suas habilidades, despertar o interesse e enredar a mulher, “seja


ela virgem, casada ou freira”:

Enganá-las significa, na verdade, enganar também à sociedade, à


família, ao marido, ao mundo constituído que, malgré lui, raramente
deixa de aplaudir o donjuanismo. Mais para o negativo que para o
positivo, mais para o destruidor que para o que constrói, Don Juan tem,
no entanto, ratificadas pelas mulheres suas qualidades de conquista e
posse, na medida em que aciona superiormente sobre elas a
inteligência como elemento persuasivo eminentemente diabólico. Tal
inteligência é dos predicados mais tópicos no donjuanismo e se pode
verificar com o herói erradio e aventureiro de Lord Byron, com o Don
Juan de Molière ou com a fina argúcia do Don Juan de Pushkin. O
proveito de uma oportunidade, o oportunismo ágil e sutil nunca pode
ser ação de imbecis. Só os inteligentes demonstram a capacidade de
sitiar uma fortaleza, domá-la e possuí-la. A inteligência de Don Juan é
brilhante, justamente por seu dom inato de agradar, reconhecível em
situações que se operam até no relacionamento com outros homens.
Aberta e comunicativa, essa inteligência nunca se perde em banais
constituições humanas, mas alia-se a uma imponderável simpatia
pessoal, firmada em dotes de afabilidade, carisma, gestos e ademanes
que derrotam a resistência feminina mais recalcitrante. (ARAÚJO,
2005, p. 120).

Se, por um lado, “Don Juan pune as mulheres, em razão da leviandade


destas em suas entregas corporais, totalmente absorvido pela vertigem
numérica, a aritmética ou geometria cumulativa de corpos por seduzir e
abandonar” (ARAÚJO, 2005, p. 94), por outro, a figura feminina representaria
uma possibilidade de remissão:

Já que a mulher tem uma representação mítica de espaço/lugar da


ambivalência, ou da maldade herdada da curiosidade de Eva, Don
Juan servir-lhe-ia como uma espécie de vingador amoral, no sentido
de restabelecer um caráter purgativo ao desequilíbrio por ela
instaurado. A ela antagonista, Don Juan não aceita a presença da
mulher senão para burlá-la. Seu instrumento de gozo, ao enganá-la
estaria cumprindo uma eliminação programática da Outra. (ARAÚJO,
2005, p. 99).

Don Juan quebra a sacralidade da mulher (estabelecida pelo código


cortês ibérico), e a consequência de suas burlas atinge tanto o feminino, quanto
o universo masculino. A honra, como um atributo de reconhecimento coletivo e
público, se constitui como “traços de comportamento socialmente considerados
virtuosos” (RIBEIRO, 2007, p. 27) e a responsabilidade de seu zelo recai sobre
a mulher, uma vez que “passou a ser a portadora da honra dos homens da
família, especialmente o pai e o marido.” (RIBEIRO, 2007, p. 27). A desonra
feminina significa também a humilhação masculina, uma vez que há uma ideia
118

de “la doble burla, pues siempre que se deshonra una mujer las consecuencias
se amplían al universo masculino.” (HERAS, 2017, p. 821). Nesse sentido,
conforme considera Mauro (2014, p. 28) “a sedução para ele é uma forma de
humilhação através do engano, e cada vítima, uma espécie de degrau em sua
escalada rumo àquela fama que ninguém mais pode alcançar”.
Se, nas palavras do sedutor “Sevilla a veces me llama El Burlador, y el
mayor gusto que en mí puede haber es burlar una mujer y dejarla sin honor”
(MOLINA, 1977, p. 64), a desonra feminina vai além do efeito simbólico e das
consequências sociais, implicando também a quebra da personalidade e da
integridade da mulher, a partir da violação. Como “o domínio do erotismo é o
domínio da violência, o domínio da violação” (BATAILLE, 1987, p.16), Don Juan
representa o poder, a destruição e o prazer em seu gesto violador, tanto da
mulher, quanto dos costumes.
Sem consciência moral, o sedutor mantém as mulheres enredadas, em
um jogo perigoso e permanecente entre abismo e exaltação, no qual, ao mesmo
tempo em que sentem enobrecidas por se sentirem desejadas, acabam
arruinadas, depois de conquistadas:

Pero ¿con qué clase de fuerza seduce Don Juan? Es la energía del
deseo, la energía del deseo sensual. Él desea en cada mujer toda la
femineidad, y en eso está la fuerza sensualmente idealizadora con la
que puede de un golpe embellecer y conquistar su presa. El reflejo de
esta gigantesca pasión embellece y engrandece lo deseado, lo
enciende y aumenta su belleza con su reflejo. (KIERKGAARD, 1967
apud MAURO, 2014, p. 73).

Ao estudar sobre o mito donjuanesco, Araújo (2005) o considera como


“arlequinal, metamórfico, condenado à busca do eterno feminino, à errância
mítica” e aponta sua trajetória de desejo e transgressão:

Porque a essência epifânica do Sedutor é operar no horizonte da


transgressão, da absoluta diferença e errância, de uma auto-gnose que
se supre de elementos intermitentes de desvio da norma (moral ou
social) sem autolimitar-se, sem repetir-se, sem anular-se pela exaustão
ou pelo desfalecimento. Don Juan é, pois, a potência erótica da
violência e da vingança inconsciente, eros sem fantasia sublimadora,
despojado de tempo, renúncia ou memória, movido apenas por
obsessão e perversão, sem ambiguidades e sem achados afetivos. O
Don Juan original é plenamente sujeito, protagonista ativo das paixões
que desencadeia, armando-se de liames trágicos, violadores,
transgressivos, que terminam por sepultá-lo a partir dos próprios
mecanismos que ele semeou em seu percurso existencial. (ARAÚJO,
2005, p. 95).
119

No entanto, como música, Don Juan é mais do que som. Ele é também
sua potência e força, pois “esta es su idealidad, y de ella puedo yo alegrarme
tranquilamente porque la música no me lo representa como persona o individuo,
sino como poder” (KIERKGAARD, 1967 apud MAURO, 2014, p. 74). Nessa
construção, a associação do sedutor à guitarra ocorre, primeiro, pela
equivalência em termos de origem (a região espanhola da Andaluzia), segundo,
pelos efeitos encantatórios e o poder de sedução de ambos, e, por fim, os
diversos registros envolvendo a presença do violão nas mãos do sedutor.
A partir da apresentação desses elementos, passamos do amor
idealizado aos desejos carnais, conforme nos direciona agora a poesia de Castro
Alves, para, em seguida, apresentarmos o canto do sedutor, acompanhado de
sua guitarra, na poética de Álvares de Azevedo.
Com figuras díspares, mas que têm em si significativos elementos
convergentes, Castro Alves, no poema “Os três amores”, reúne e sintetiza tanto
a figura do trovador, quanto a evocação donjuanesca, para apresentar suas
conquistas amorosas:

Os Três Amores
I
Minh'alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes. ..
– Tu és Eleonora...
II
Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta.
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
– E tu és Julieta...
III
Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és – Júlia, a Espanhola!...
(ALVES, 2005, p. 97-98).
120

Pode-se notar que o sujeito lírico traça não só um inventário das musas
que compõem “Os três amores”, título do poema, como também, – e ao mesmo
tempo –, revela as muitas máscaras usadas pela persona lírica para a conquista
amorosa. Além do jogo de sedução, o poema nos permite uma percepção mais
ampla da dimensão amorosa, na qual o movimento de deslocamento do etéreo
para o físico, a cada estrofe, nos sugere três diferentes modos ou formas de
amor.
Desse modo, o poeta constrói um eu lírico que se apresenta como sujeito
amoroso ao nos remeter a figuras literárias carregadas de significados. Assim,
ao declarar na primeira estrofe “Sou Tasso!...”, o poeta estaria tanto se referindo
ao poeta italiano Torquato Tasso (1544-1595), quanto se reportando ao poema
O lamento de Tasso (1817), do influente escritor britânico Lord Byron.
Conforme José de Paula Ramos Júnior, Tasso, poeta de “grande prestígio
em seu tempo”,

foi cortesão na corte de Ferrara, onde se apaixonou pela princesa


Eleonora. Foi vítima de sério desequilíbrio mental, chegando a ser
preso por isso. Segundo a lenda que se formou, a loucura teria sido
causada pelo amor impossível que sentia pela princesa. (ALVES, 2005,
p. 258).

Além dessas obras, a vida do poeta italiano renascentista serviu de base


para o drama poético, em cinco atos, do escritor alemão Johann Wolfgang von
Goethe, intitulado Torquato Tasso (1790), que inspirou, posteriormente, a
composição operística homônima, de Gaetano Donizetti e a criação do poema
musical Tasso: lamento e triunfo (1849), de Franz Liszt.
O sujeito lírico, na segunda estrofe do poema, veste-se de Romeu,
trazendo não só a personagem de Shakespeare, da tragédia Romeu e Julieta
(1597), como evocando o “símbolo do amante perfeito”, segundo Ramos Júnior
(ALVES, 2005, p. 258). Ao anunciar “Sou teu Romeu...”, o sujeito se despe da
liberdade para revelar o pertencimento, marcado pelo acréscimo do pronome
possessivo em segunda pessoa “teu”. Essa característica é ainda reforçada e
prolongada pela apresentação devocional que acompanha o anúncio no mesmo
verso: “Sou teu Romeu...Teu lânguido poeta!...”. É neste momento que há uma
aproximação dos corpos, pois o “pálido amante vaporoso” rouba de sua amada
“um casto beijo à luz da lua...”.
121

No entanto, é somente na terceira e última estrofe que o contato físico se


adensa, conforme veremos mais adiante neste texto. Por hora, ressaltamos que
os versos delineiam uma tonalidade mais sensual “na volúpia das noites
andaluzas”, no “sangue ardente”, chegando à menção direta à figura do mítico
sedutor: “Sou D. Juan!...”. Sua presença não vem acrescida de descrição. O
sedutor se dirige tanto às donzelas que o conhecem e sabem de seus encantos,
quanto deixa ao leitor a possibilidade de imaginá-lo.
A relação com o célebre poema byroniano se dá, conforme parece
consenso entre os estudiosos, a partir da indicação da presença feminina, “pois
é com este nome – a espanhola Júlia – que o Don Juan de Byron faz sua primeira
conquista.” (ARAÚJO, 2005, p. 291). Mauro (2014) acrescenta que:

é claramente perceptível mais uma alusão ao Don Juan, de Byron,


mais especificamente ao Canto I, pela referência aos encontros furtivos
entre o herói homônimo e Dona Júlia. Tal referência fica evidente nos
três últimos versos desta estrofe, não só através da citação do nome
de Júlia, mas também pela reconstrução da figura da mulher no leito,
carregada de sensualidade, através da insinuação da nudez feminina.
(MAURO, 2014, p.122).

Em meio a essas trilhas intertextuais, as musas que compõem os três


amores do poema, além de estabelecerem correspondência com as figuras
masculinas apresentadas, acompanham o desdobrar do sentimento amoroso.
Eleonora, variante do nome grego Helena, partilha com esta seus significados e
sua ligação com a simbologia do sol, “a reluzente”, “a resplandecente”, guiando
com seu “lume” os caminhos do poeta. Já Julieta divide com Júlia sua
significação, sendo a primeira o diminutivo da segunda e reconhecida por ser,
de acordo com José de Paula Ramos Júnior, “símbolo da amante perfeita”, uma
vez que “Romeu e Julieta são possuídos por um amor puro e verdadeiro, capaz
dos maiores sacrifícios” (ALVES, 2005, p. 258). Júlia, “a filha de Júpiter”, “jovem”,
também é “aquela que brilha”, “transmite luz”, “a brilhante”.
Além dessas simbologias solares, as duas primeiras musas estão
relacionadas a aspectos da natureza, cabendo, à primeira, a primavera e seus
perfumes, e, à segunda, a rosa predileta. No entanto, à última, cabe uma peça
de roupa: “a mantilha”. Para Mário de Andrade, “Castro Alves ama a diversas
donas, canta-as com uma sinceridade de amor que não é só gozo sensual não.
122

Todos os seus amores são amores eternos. Canta e, sem querer, prega uma
pansexualidade reconhecida e aceita” (ANDRADE, 1972, p. 130-131).
Ao povoar os pensamentos do poeta em diferentes distâncias,
aparecendo tanto em seus sonhos (como a segunda musa, “sonho-te às vezes
virgem... seminua...”) (ALVES, 2005, p. 97), quanto ao alcance do toque (como
a última, “Sobre o leito do amor teu seio brilha...”) (ALVES, 2005, p. 98), uma
dupla significação se estabelece, pois ao mesmo tempo em que seduz, o eu lírico
é também o seduzido. Conforme nos aponta Senna (1998):

A atitude diante da mulher em Espumas Flutuantes oscila entre dois


polos: ora é sacralizada, idealizada como a virgem inalcançável, ora é
dessacralizada, como objeto a ser (e sendo) possuído. A segunda
atitude é a mais frequente [...]. Estas duas atitudes são representadas
de maneira gradativa pelo poema “Os Três Amores”. (SENNA, 1998,
p. 225).

Nessa direção, Mauro (2014) detalha:

Tal poema divide-se em três estrofes que expressam três momentos


distintos do amor. Na primeira estrofe, o sujeito lírico encarna o poeta
Tasso, símbolo do amor impossível pela sempre distante Eleonora; na
segunda, a alusão a Romeu diz respeito a um amor mais próximo,
dotado de uma sensualidade que se intensifica na última estrofe, na
qual a presença de Don Juan evoca o amor sexual. (MAURO, 2014, p.
122).

Esse desdobramento do sentimento amoroso é reforçado também por


José de Paula Ramos Júnior, em seu tópico “A síndrome de D. Juan” (ALVES,
2005, p. 20), no qual identifica características arquetípicas presentes na – e a
partir da – construção poética:

O poema desenha três modos de amar, apresentados em gradação


que vai do modelo platônico ao arquétipo mais sensual, passando por
um estágio intermediário. O primeiro tem como parâmetro o amor
impossível do poeta Torquato Tasso pela princesa Eleonora na corte
de Ferrara. Trata-se do amor distância, que se contenta na mera
contemplação ou imaginação da amada. O segundo se delineia a partir
do ilustre modelo shakespeariano de Romeu e Julieta. É um amor
receoso, ainda casto, mas que arrisca um beijo furtivo. O terceiro é
decalcado no poema D. Juan, de Byron, em que o herói é iniciado na
arte do sexo pela jovem e fogosa Júlia, casada com um homem mais
velho. Trata-se do amor em que não há barreiras interpostas entre os
corpos que se atarem para a celebração do prazer erótico. (ALVES,
2005, p. 21-22).
123

Ao longo da análise do poema “Os três amores”, podemos encontrar


também uma metáfora ou espelhamento do percurso que temos realizado no
decorrer deste trabalho. Essa aproximação nos é possível, pois a cada estrofe
encontramos figuras e práticas que temos abordado até aqui, em especial, o
“louco bardo” (o poeta ou trovador); a cena do balcão; e agora, o sedutor com
sua viola.
Esse Don Juan, presente na terceira estrofe do poema, aparece envolto
em elementos que adensam a atmosfera de desejo e, na qual a viola, por
metáfora, marca o ponto máximo do contato físico. Vejamos o trecho:

Na volúpia das noites andaluzas


O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és – Júlia, a Espanhola!...
(ALVES, 2005, p. 97-98).

Nessas mudanças caleidoscópicas ou camaleônicas do sujeito, cada


estrofe traça um movimento de aproximação com o corpo evidenciado pelo
desenho alma → coração → sangue (ardente) → veias, passando, com isso, das
aspirações sublimes das duas primeiras estrofes para o desejo sexual na
terceira. Há também uma diferença de luminosidade, criada pelo efeito de
escurecimento do trajeto “primavera” → “luz da lua” → “noites andaluzas”. Nessa
diluição dos limites diurnos, a noite se apresenta como o tempo e o espaço
propícios para concretização amorosa.
É nesse ambiente noturno que a sensualidade e a “volúpia”, que
caracterizam a última estrofe, vêm pontuadas por referências a elementos
hispânicos, não só pelo mito donjuanesco (originário de Sevilha – capital da
Andaluzia – e local de sua atuação), como pelo instrumento que o acompanha –
o violão (que também tem suas origens ligadas à região). Lembramos aqui que,
relevando-se as especificidades musicológicas em função das poéticas, a viola
se iguala em termos de sinônimo e significação à guitarra e ao violão.
Detendo-nos ainda na terceira estrofe, o sujeito lírico ao afirmar “Sou D.
Juan!...”, dirige-se, em seguida, a suas várias e muitas conquistas amorosas,
reforçadas pelo uso plural: “Donzelas amorosas”/ “Vós conheceis-me os trenos
na viola!”. Nesse verso, José de Paula Ramos Júnior (ALVES, 2005, p. 259)
124

entende “trenos” “como acordes plangentes”, porém essa percepção pode ser
contestada, primeiro, porque não é possível inferir se o toque realizado no
instrumento se trata de acordes ou melodias, ou seja, não é possível precisar se
esse Don Juan dá-se a conhecer pela produção harmônica ou ponteada de seus
sons. Segundo, porque apesar de, pelo dicionário Aulete, “treno” (2018) significar
“lamentação, canto enternecido e com gemidos”, a sua realização pela viola
pode adquirir uma conotação erotizada, representando não só o ato sexual,
como o corpo feminino. Estamos dizendo, com isso, que o verso revela mais do
que também sugere Mauro (2014):

Ao encarnar a figura de Don Juan, o eu lírico não se dirige apenas para


Júlia, mas também às várias donzelas amorosas, todas seduzidas por
ele, conforme denota a expressão “vós conheceis-me os trenos na
viola!”, que revela, metaforicamente, o grau máximo da intimidade
alcançada entre ele e as mulheres amadas. (MAURO, 2014, p. 122).

Mais especificamente, além da realização sexual sugerida pelo verso, a


viola pode representar o corpo feminino tanto em uma perspectiva mais ampla,
– afinal as donzelas sabem e conhecem as habilidades do sedutor –, quanto o
toque na região íntima – como em Gregório de Matos, em Anica, que sem os
véus românticos e pondo-lhe “a viola em cacos”: “já que fui tão desgraçado,/que
buli co'a escaravelha,/ e toquei sobre o buraco” (MATOS, 1992). Com isso, o
instrumento se revela não só no acompanhamento da conquista amorosa, mas
se abre a dimensões relacionadas à metáfora do sexo e à representação do
feminino. Pelo olhar da donzela, a mulher sabe de Don Juan, não só pelo canto
de seu instrumento, quanto pelo que ele viola e propicia na intensidade e
concretude do contato amoroso.
Esse trecho também traz à tona outra importante característica
donjuanesca: a necessidade da singularidade. Como Don Juan rejeita a ideia de
igualdade, ele almeja ser lembrado pelas “donzelas amorosas”, e constituir seu
ser e o que dele se conhece, como o amante inesquecível.
No entanto, dentre todas as mulheres que seduz, é ao desfazer a
“mantilha” de Júlia que o eu lírico se rende. Nas duas primeiras estrofes ele
segue; depois sonha, mas rouba – o beijo da amada –; e na terceira, morre, ao
soltar o véu de sua musa. Destaca-se que a “mantilha” é um acessório de origem
espanhola que teria como função “servir de abrigo”. Passado tradicionalmente
125

de mãe para filha, era usado pelas mulheres no cotidiano e em “fiestas”, como
eventos religiosos, touradas, e dança flamenca. O adereço, além de emoldurar
o rosto, também servia para cobri-lo à noite. Assim, ao desfazer a mantilha, o
sujeito lírico não só revela o que esconde o manto, quanto desvela o que encobre
o sentimento romântico: o desejo (“Sobre o leito do amor teu seio brilha.../ Eu
morro, se desfaço-te a mantilha...) (ALVES, 2005, p. 98).
A força dessa figura feminina, fica marcada principalmente no último verso
desse poema, uma vez que, de maneira diferente da apresentação das damas
anteriores (“– Tu és Eleonora...” e “– E tu és Julieta...”), sua existência é
definitiva: “Tu és”, e aí sim, o travessão a anuncia “– Júlia, a Espanhola!...”. Além
da inspiração na personagem do Don Juan byroniano, o uso do artigo definido e
da designação a deslocam de uma imagem mais ampla para torná-la palpável e
única: “a Espanhola”.
A pontuação também imprime marcas importantes na construção poética,
pois o uso recorrente de reticências causa um efeito de continuidade, e permite
um tempo para a criação imagética do leitor, para que possa imaginar a cena,
completar o seu desenho, e perceber as imagens ora românticas (“Roubo-te um
casto beijo à luz da lua...”) (ALVES, 2005, p. 97), ora sensuais (“Sonho-te às
vezes virgem... seminua...” e “Sobre o leito do amor teu seio brilha...”) (ALVES,
2005, p. 97). Também o uso de exclamação reforça a afirmação do eu “Sou D.
Juan!... Donzelas amorosas,/ Vós conheceis-me os trenos na viola!” (ALVES,
2005, p. 97).
Apesar de Castro Alves não ter dedicado nenhum poema exclusivamente
ao mito – apenas uma obra teatral inacabada D. Juan ou a Prole dos Saturnos
(1869) –, o donjuanismo perpassa diversos de seus poemas, trazendo não só
imagens que permanecem no imaginário coletivo, quanto o amor como forma de
liberdade e resistência: “ao poeta estava reservada a missão de violar a paz dos
lares brasileiros com a mensagem de que o amor deve ser gozado em plenitude
e liberdade, sem restrições, limitações, deformações” (HADDAD apud MAURO,
2014, p. 105).
Ao transportar e acomodar a voluptuosidade das “noites andaluzas”, para
a brasileira, permanece a universalidade e a atemporalidade do mito. Para
Araújo:
126

Menos erudito que o de Álvares de Azevedo, o mito de Don Juan


versado por Castro Alves alcança maior base popular e se impregna
no substrato sentimental do nosso povo, que melhor entende e
fundamenta o fenômeno amoroso de maneira direta e emocionalmente
lúdica. Sedutor o homem, sedutor o poeta, se tomarmos ambos como
conquistadores de mulheres, catálises de paixões. (ARAÚJO, 2005, p.
292).

Passemos agora a voz ao sedutor, para ouvirmos seu canto com sua
guitarra:

III

A canção de Don Juan

“Ó faces morenas! ó lábios de flor!


Ouvi-me a guitarra que trina louçã,
Eu trago meu peito, meus beijos de amor
Ó lábios de flor,
Eu sou Don Juan!

“Nas brisas da noite, no frouxo luar,


Nos beijos do vento, na fresca manhã
Dizei-me: não vistes, num sonho passar,
Ao frouxo luar,
Febril Don Juan?

“Acordem, acordem, ó minhas donzelas,


A brisa nas águas lateja de afã!
Meus lábios têm fogo e as noites são belas
Ó minhas donzelas,
Eu sou Don Juan!

“Ai! nunca sentistes o amor d’espanhol!


Nos lábios mimosos de flor de romã
Os beijos que queimam no fogo do sol!
Eu sou o espanhol:
Eu sou Don Juan!

“Que amor, que sonhos no febril passado!


Que tantas ilusões no amor ardente!
E que pálidas faces de donzela
Que por mim desmaiaram docemente!

“Eu era o vendaval que às flores puras


Do amor nas manhãs o lábio abria!
Se murchei-as depois... é que espedaça
As flores da montanha a ventania!
“E tão belas, meu Deus! as níveas pérolas
Mergulhei-as no lodo uma por uma,
De meus sonhos de amor nada me resta!
Em negras ondas só vermelha escuma!

“Anjos que desflorei! que desmaiados


Na torrente lancei do lupanar!
Crianças que dormiam no meu peito
E acordaram da mágoa ao soluçar!
127

“E não tremem as folhas no sussurro,


E as almas não palpitam-se de afã,
Quando entre a chuva rebuçado passa
Saciado de beijos Don Juan?”
(AZEVEDO, 2009, p. 232-233).

Essa canção integra o poema “Sombra de Don Juan”,27 no qual a


estrutura, dividida em seis partes, estabelece uma alternância de vozes entre o
sujeito lírico e o canto do lendário sedutor (segmentos III e V).
Conforme sugere o título, o poema é permeado não só pelo vulto de Don
Juan, mas pelo que a sombra é capaz de infundir, revelando um reflexo ou
desdobramento da personalidade do sujeito lírico na figura mítica. Na primeira
parte do poema (I), o eu lírico, ao invocar Don Juan (“Ergue-te libertino”; “Acorda,
Don Juan!”) para que “num riso... à vida brindarei zombando/ e dormirei contigo”
(AZEVEDO, 2009, p. 231), deixa transparecer que, enquanto o sedutor desperta
ou revive, o sujeito deseja a morte ou sono “contigo”, em um ato emblemático de
fusão, cumplicidade e reconhecimento, ora pela relação mestre-discípulo, ora
pela identificação ou projeção do eu. Ultrapassando o onírico, o aniquilamento
do sujeito e o contexto das sombras já aparecem sugeridos pela epígrafe de
abertura – “A dream that was not at all a dream” (AZEVEDO, 2009, p. 230) –,
extraída do ultrarromântico Byron, em seu poema “Darkness”.
Em seguida (II), a figura mítica renasce – como uma sombra ou vulto –
“zombando do passado” e trazendo consigo um bandolim (“Cantava: ao peito o
bandolim saudoso”. É importante observar que esse encontro se dá em um
cenário sombrio, em que a noite e o cemitério conferem substância ao fantasma
e propiciam a irrupção do eu, tanto o sujeito, quanto a projeção de sua sombra.
Na parte III do poema é o mito quem canta não acompanhado por um
bandolim, conforme preconiza o sujeito lírico, mas por sua guitarra. Nessa
canção, Don Juan relembra suas conquistas, seu poder de seduzir e
(des)enganar as donzelas, e também a descrença e dificuldade de se prender a
um amor. Entre a noite, o luar, os sonhos e os amores, a canção adquire um tom
triste e elegíaco.
No entanto, esse caráter (“Assim nos lábios e nas cordas meigas/ do
palpitante bandolim a mágoa/ gemia como o vento...”) (AZEVEDO, 2009, p. 234)

27 O poema “Sombra de D. Juan”, da terceira parte de Lira dos Vinte Anos (compatível com a
primeira).
128

é quebrado, no segmento IV, pela intervenção do sujeito lírico que confere uma
tonalidade sarcástica a essa transição entre a primeira e a segunda parte da
canção – como nos versos “Mas depois no silêncio uma risada/ Convulsiva
arquejou... rompeu as cordas/ Das ternas assonias” (AZEVEDO, 2009, 234) (...)
“Rompeu-as e sem dó... e noutras fibras/ Corria os dedos descuidoso e frio/
Salpicando-as d’escárnio...” (AZEVEDO, 2009, p. 234). Para Mauro (2014, p.
102), “essa modulação de tons dissonantes se coaduna à binomia azevediana,
ao alternar uma visão idealizada a outra descrente, na qual o riso serviria de
invólucro a um profundo sofrimento”.
No quinto trecho, temos a segunda parte da canção, também entre aspas
e, novamente, na voz de Don Juan. Nela o sedutor enumera as várias amadas
que teve (“Que o diga a sultana, a violenta espanhola,/ A loira alemã/ E grega
louçã...”) (AZEVEDO, 2009, p. 234) e reclama a eternidade do mito. No entanto,
Mauro (2014, p.102) considera que “essa passagem reverbera, de certo modo,
a primeira estrofe do Canto I do Don Juan, de Byron, na qual o narrador, em
resposta à profusão de falsos e efêmeros heróis no século XIX, decide recorrer
ao ‘nosso velho amigo’, Don Juan.”
É preciso também perceber que ele não é passageiro, como as “modas
de um dia”, mas eterno, pertencente à dimensão do mítico. Sua sombra vive e
permanece, atravessando culturas e tempos (“Porém quem diria/ Que é moda
de um dia,/ Que é velho Don Juan?!”) (AZEVEDO, 2009, p. 234). Álvarez de
Azevedo, no prefácio da Lira dos vinte anos, descreve esse comportamento, e
nos aproxima de uma síntese do poema de Castro Alves – quase uma glosa
desse mote:

Amanhã numa taverna poderás achar Romeu com a criada da


estalagem, verás D. Juan com Julietas, Hamlet ou Fausto sob a casaca
de um dandy. É que esses tipos são velhos e eternos como o sol. E a
humanidade que os estuda desde os primeiros tempos ainda não
entende esses míseros, cuja desgraça é não entender [...] (AZEVEDO,
2006, p. 47).

O poema se encerra com uma longa reticências que marca não só o


retorno à voz do sujeito lírico no próximo segmento, como sugere a continuidade
da cantiga e a voz do sedutor, reverberando-as em indomável e “longa canção”.
De acordo com Mauro (2014):
129

Homem sublime e noturno, o célebre sedutor converte-se em uma


meta a ser alcançada pelo sujeito lírico na tentativa de compreender
seu próprio vazio, desencadeado pelo desejo de transcendência
esvaecido em meio à noite por perseguir um ideal que
permanentemente lhe escapa. (MAURO, 2014, p. 102).

Na última parte (VI), o desfecho se dá em apenas uma estrofe, na qual o


eu lírico nos conta que Don Juan silencia, como o vento:

VI

Era longa a canção... Cantou; e o vento


Nos ciprestes com ele esmorecia!
Pendeu a fronte, os lábios
Emudeceram... como cala o vento
Do trópico na podre calmaria...
Cismava Don Juan.
(AZEVEDO, 2009, p. 235).

Se, ao longo do poema, percebemos o sedutor também como um duplo


do sujeito lírico, na Canção de Don Juan (III), o eu cede a voz ao conquistador
que se dirige às mulheres amadas – e por que não também ao leitor – para que
escutem sua “guitarra que trina louçã”. Essa canção que fala tanto de encantos
e conquistas, quanto de desilusões e dissabores, pode ser dividida em duas
seções: a primeira, estruturada com 4 estrofes de 5 versos, sendo os dois últimos
mais curtos e terminados com referências diretas a Don Juan (“Eu sou Don
Juan!”) – reiteração que funciona não só como uma afirmação de sua presença
e personalidade, mas como um refrão –; e a segunda, com 5 estrofes de 4 versos
mais longos. Torna-se importante ressaltar que, apesar de não nos
aprofundarmos na parte IV do poema, esta pode ser entendida como uma
continuidade da canção, devido ao aumento progressivo na quantidade de
versos – chegando à sextilha – e à referência direta, insistente como na primeira
seção, ao sedutor (“Se é velho Don Juan!”).
Vejamos mais detidamente o que canta Don Juan em sua guitarra:

III

A canção de Don Juan

“Ó faces morenas! ó lábios de flor!


Ouvi-me a guitarra que trina louçã,
Eu trago meu peito, meus beijos de amor
Ó lábios de flor,
Eu sou Don Juan!
130

“Nas brisas da noite, no frouxo luar,


Nos beijos do vento, na fresca manhã
Dizei-me: não vistes, num sonho passar,
Ao frouxo luar,
Febril Don Juan?

“Acordem, acordem, ó minhas donzelas,


A brisa nas águas lateja de afã!
Meus lábios têm fogo e as noites são belas
Ó minhas donzelas,
Eu sou Don Juan!

“Ai! nunca sentistes o amor d’espanhol!


Nos lábios mimosos de flor de romã
Os beijos que queimam no fogo do sol!
Eu sou o espanhol:
Eu sou Don Juan!
(AZEVEDO, 2009, p. 232-233, grifo nosso).

Nessa primeira seção do poema, temos o anúncio do sedutor envolto por


associações ao ardor, à excitação sexual, ao masculino solar, ao corpo (“Eu
trago meu peito”; “Meus lábios têm fogo”), ao contato pelo beijo (“Meus beijos de
amor”; “Os beijos que queimam no fogo do sol!”), à singularidade (“o amor
d’espanhol!”) e à pertença (“Eu sou o espanhol:/ Eu sou Don Juan!”).
Posteriormente, saberemos das dimensões oníricas (“meus sonhos de amor”;
“Que amor, que sonhos no febril passado!”), da descrença que tange sua figura
(“Que tantas ilusões no amor ardente!”) e dos efeitos e consequências de sua
errância, pois tal como o vento, passa, mas é “forte e tempestuoso” (“Eu era o
vendaval”).
Essas características conectam o sedutor de Álvares de Azevedo à
origem do mito, que, como podemos ver no poema, sabia-se que era espanhol,
porém Mauro (2014), em seu trabalho Entre a descrença e a sedução:
releituras do mito de Don Juan em Álvares de Azevedo e em Castro Alves,
explica que “não há certeza se o poeta paulista teve contato com a versão
original, atribuída a Tirso de Molina, pois não foram encontradas referências
diretas nem a trechos da obra, nem ao autor” (MAURO, 2014, p. 80). No entanto,
é preciso observar que o conflito entre o ideal e o real instaurado no Romantismo
permeiam a apropriação do mito pelo autor, conforme destaca Araújo (2005):

A contribuição de Álvares de Azevedo é, provavelmente, a mais


significativa para o entendimento da presença de Don Juan em nossa
poesia. Espírito de reflexão, voltado para a erudição e a poética,
intimamente influenciado pelo spleen perverso, esse poeta paulista,
tão cedo arrebatado à vida pelo mal do século, pode ser apontado
131

como o mais original dentre os poetas que se ocuparam tematicamente


da figura do sedutor de mulheres. Sob uma ótica romântica, byroniana
e satânica, que alcança até mesmo o que uma leitura psicanalítica
poderia interpretar como a incapacidade congênita de amar, Álvares
de Azevedo vislumbrou no donjuanismo uma forma de aprofundar sua
cosmovisão crítica e estrutural da realidade romântica. (ARAÚJO,
2005, p. 290).

É claro que a incompatibilidade entre o amor idealizado e a realização


sexual que marca a obra do autor28 – e impede uma vivência amorosa plena –,
também demonstram um conflito entre a manutenção dos bons costumes e a
tentativa de libertação dos rigores e imposições sociais, em que a figura de Don
Juan torna-se representativa por sua força transgressora, principalmente “dentro
do contexto de transição do patriarcalismo para o individualismo moderno”.
Mauro (2014) destaca que:

Ao encarnar um misto de ser angélico e demoníaco no século XIX, o


personagem de Don Juan reflete, em certo sentido, a cisão
experimentada pelo indivíduo romântico em virtude da ruptura com a
autoridade e com as crenças. Segundo Octavio Paz, “La muerte de
Dios abre las puertas de la contingencia y la sinrazón. La respuesta es
doble: la ironía, el humor, la paradoja intelectual; también la angustia,
la paradoja poética, la imagen”.
Residiria aí mais um fator responsável pelo interesse de Azevedo pelo
mito, uma vez que a duplicidade permeia tanto a estrutura de sua obra
como a construção de seu sujeito lírico e de seus personagens entre o
grotesco e o sublime, aproximando-se intencionalmente dos
postulados de Victor Hugo em seu Prefácio a Cromwell. (MAURO,
2014, p. 78-79).

Ao assumir um tom melancólico, a segunda seção da canção deixa nítido


o sentimento de descrença e perda do ideal, não pela falta do contato físico, mas
pela busca incessante:

Que amor, que sonhos no febril passado!


Que tantas ilusões no amor ardente!
E que pálidas faces de donzela
Que por mim desmaiaram docemente!

“Eu era o vendaval que às flores puras


Do amor nas manhãs o lábio abria!
Se murchei-as depois... é que espedaça
As flores da montanha a ventania!
(AZEVEDO, 2009, p. 233).

28 Essa binomia já aparece prefaciada na Lira dos Vinte Anos.


132

Mauro (2014) salienta, ainda, que constatadas as ilusões adiante da


realidade, restam ao sedutor a frustração, o isolamento e o sentimento de vazio
pela impossibilidade da vivência plena do amor, apesar da permanente busca e
das conquistas realizadas. Para ele,

[...] em Álvares de Azevedo a vivência física do amor é responsável


tanto por restringir a ascensão ao ideal, como pode ser sintomática da
constatação da ausência desse ideal. Prisioneiro dos apelos do mundo
sensível, o personagem de Don Juan também vive em certa medida
esse conflito, já que, em boa parte das releituras românticas, ele
direciona seus anseios a um ideal inexistente, ainda que tenha êxito
em suas variadas conquistas. (MAURO, 2014, p.87).

Seguem-se a esses sentimentos o remorso e a ruína das mulheres que a


ele se entregaram:

“E tão belas, meu Deus! as níveas pérolas


Mergulhei-as no lodo uma por uma,
De meus sonhos de amor nada me resta!
Em negras ondas só vermelha escuma!

“Anjos que desflorei! que desmaiados


Na torrente lancei do lupanar!
Crianças que dormiam no meu peito
E acordaram da mágoa ao soluçar!
(AZEVEDO, 2009, p. 233).

Se, por um lado, a mulher condensa a pureza e delicadeza da flor evocada


por seus lábios (“ó lábios de flor! ó minhas donzelas”; “Nos lábios mimosos de
flor de romã”), a raridade das “níveas pérolas” e a inocência dos “anjos” e das
“crianças”, por outro, suas faces – que de morenas passam a pálidas (“Ó faces
morenas!”; “E que pálidas faces de donzela”) – denunciam a degradação a que
foram sujeitadas. Lançadas ao choro e à perdição, as donzelas violadas pelo
sedutor não só têm sua honra abalada, como a elas cabe o destino imposto pelas
normas sociais de seu tempo. Em um contexto no qual o infortúnio feminino
atinge também o masculino – afinal pais, irmãos, maridos também se sentem
afrontados pelo sedutor – a divisão entre as mulheres tidas como de “boa família”
e as de “lupanar” mostra-se profundamente acentuada.
Nos meandros da conquista, o poema termina com uma interrogação que
dialoga com o questionamento dos versos finais da segunda estrofe (“Dizei-me:
não vistes, num sonho passar,/ Ao frouxo luar,/ Febril Don Juan?”), pois agora,
saciado o desejo, o sedutor passa escondido e disfarçado:
133

E não tremem as folhas no sussurro,


E as almas não palpitam-se de afã,
Quando entre a chuva rebuçado passa
Saciado de beijos Don Juan?”
(AZEVEDO, 2009, p. 233).

São criadas, no poema, imagens carregadas de erotismo e sensualidade,


nas quais a natureza se apresenta como metáfora e retórica amorosa. Ao
anunciar “Acordem, acordem, ó minhas donzelas!/ A brisa nas águas lateja de
afã!/ Meus lábios têm fogo, e as noites são belas” (AZEVEDO, 2009, p. 232), o
verbo “latejar” metaforiza o desejo e o ato sexual, pela aproximação ou extensão
da natureza à mulher. Já nos versos “Ai! nunca sentistes o amor d’espanhol!/
Nos lábios mimosos de flor de romã” (AZEVEDO, 2009, p. 232), Don Juan traz
a donzela, ainda intocada, pois a genital feminina aparece aqui representada
pela romã. O fruto, além de ser considerado símbolo de fertilidade ligado à Hera
e Afrodite, “na Ásia, a imagem da romã aberta serve à expressão dos desejos –
quando não designa expressamente a vulva” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2017, p. 787).
A perda da virgindade também encontra feições metafóricas na natureza,
uma vez que os versos “Eu era o vendaval que às flores puras/ Do amor nas
manhãs o lábio abria!" (AZEVEDO, 2009, p. 233) associam o “lábio” ao verbo
abrir, insinuam a correspondência das donzelas às “flores puras”, e metaforizam
o sedutor no “vendaval”.
É importante observar a frequente e reiterada associação do conquistador
ao vento, não só na canção que estamos analisando, como em todo o poema.
Seja em termos comparativos (“Pendeu a fronte – os lábios / Emudeceram como
cala o vento”) (AZEVEDO, 2009, p. 233) ou com o intuito de evidenciar a força
de sedução (“Eu era o vendaval que às flores puras”) (AZEVEDO, 2009, p. 233)
e seu poder de destruição, mantém-se a característica da errância, da
incapacidade de se fixar ou ser contido; aquele que passa, mas deixa seu rastro.
Esse é um ponto marcante que permeia as figuras que temos discutido ao longo
deste trabalho, já que, acompanhados de seu instrumento, o trovador, o tropeiro,
o vadio e, agora, o sedutor com sua guitarra passam, assim como vento.
Além de o instrumento acompanhar a canção e o caminhar, é por meio
dele que o sujeito se expressa. Ao solicitar “Ouvi-me a guitarra que trina louçã”
(AZEVEDO, 2009, p. 232), o sedutor confidencia a seu instrumento – e por meio
134

dele – sua história e suas conquistas, seus amores passados, e também a


descrença que o abate. O instrumento é, portanto, não só seu companheiro e
confidente, mas também seu meio de expressão. É preciso lembrar que isso se
estende a seu duplo, ou seja, temos, à sombra, a voz do eu lírico.
O canto gentil e elegante da guitarra aparece nas mãos do espanhol,
porém é o bandolim o instrumento anunciado pelo sujeito nas partes que
intercalam a canção, em versos como “Cantava: ao peito o bandolim saudoso”
(AZEVEDO, 2009, p. 232) e “Do palpitante bandolim a mágoa/ Gemia como o
vento.” (AZEVEDO, 2009, p. 234).
Na presença dos dois instrumentos em momentos específicos do poema,
somos levados a levantar alguns questionamentos: Seus usos se dariam por
escolhas poéticas? A guitarra e o bandolim atuariam como sinônimos, apesar
das distâncias entre as trajetórias históricas e a própria estrutura dos
instrumentos? Ou ainda mais, a guitarra funcionaria como uma referência ao mito
espanhol, enquanto o bandolim representaria uma espécie de aculturação,
marcando a fala brasileira do eu lírico? De fato, é impossível precisar essa
resposta, e não nos cabe aqui estabelecer esses limites. No entanto, é preciso
apontar e reconhecer que ambos os instrumentos se igualam na importante
função de acompanhar, confidenciar e revelar.
Seguindo a tradição da libertinagem, ao mesmo tempo que “no amor,
basta uma noite para fazer de um homem, um Deus” (Propércio), há também a
incompletude, exposta pela busca incessante pela realização do desejo e pela
mulher, sem, no entanto, levar o sedutor ao conhecimento do gênero feminino:
“Perguntai ao libertino que venceu o orgulho de cem virgens, e que passou
outras tantas noites no leito de cem devassas, perguntai a D. Juan, a Hamlet ou
ao Fausto o que é a mulher, e nenhum saberá dizer. [...].” (AZEVEDO, 2006, p.
47).
Como “a realidade do mito alimenta-se de sua variedade”, na cultura
brasileira ele se apresenta ainda sob várias formas, “num panteão de crispações
eróticas, a um tempo particular e aberto a novos coloridos” (ARAÚJO, 2005, p.
124). Acompanhado pelo violão ou pela viola, a figura lendária vaga em longas
noites de lua e serenata, em busca do amor e das musas resguardadas pelas
janelas, fundindo-se ao seresteiro, ao boêmio, viciado em mulheres, jogos e
bebidas e, também, ao popular malandro.
135

O sedutor – e seu irresistível poder – se perpetua no imaginário coletivo,


manifestando-se tanto pelo viés artístico e literário, quanto nas práticas,
contextos e épocas, como nos conta o violonista e palhaço Dudu das Neves:

Não me agasto de ser crioulo;


Não tenho mau resultado,
Crioulo sendo dengoso,
Traz as mulatas de canto chorado...
Fui a certo casamento...
Puxei ciência no violão,
Diz a noiva, pra madrinha:
– Este crioulo é a minha perdição.
Estou encantada,
Admirada,
Como ele tem...
Os dedos leves...
Diga-me ao menos
Como se chama?
– Sou o crioulo
Dudu das Neves.
(NEVES apud ABREU, 2004, p. 164).

Essa imagem sedutora do sujeito que toca o violão não se restringe ao


verso. Na prosa, o conquistador Nô, de Riacho doce, seduzia as moças, quando
“pegava no violão e ficava ali no terreiro da casa, cantando modas” (REGO,
1980, p. 79):

Os seus companheiros falavam de sua sorte para as mulheres. Em


cada parte aparecia uma que o pegava, que o queria com unhas e
dentes. Não amava. Quando o seu canto falava do amor, falava
mentindo, falava sem que as palavras viessem do fundo da alma. E
todos gostavam, todos pensavam que ele estivesse sofrendo, que
tivesse o seu amor distante. Uma amada morrendo de saudade. A sua
voz era uma força de fato. O canto de gajeiro, sim, que era seu, de
suas entranhas, de sua carne, de sua alma. (REGO, 1980, p. 127).

A doce voz “penetrava na carne com poderes do diabo” e lambia, “se


enroscando” aos pés de Edna, fazendo-a vibrar e estremecer, pois “o violão
crescia, e o canto que ele acompanhava era doce. Um canto de quem implorava
amor, de quem queria amar. Uma voz de homem sedento rogando, chorando...”
(REGO, 1980, p. 119).
Na esteira do binômio sedução-desonra, o “consumado ‘modinhoso’”
Cassi Jones, do romance Clara dos Anjos, “encanta e seduz as damas com o
seu irresistível violão” (BARRETO, 1990, p. 23). Sem trabalho, mas com um fraco
pelo dinheiro, o conquistador se dedicava a “uma atividade sexual levada ao
136

extremo” (BARRETO, 1990, p. 37) e ao violão, esse poderoso instrumento de


sedução:

Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de
amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o
certo é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade,
relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de
muito maior número de senhoras casadas. (BARRETO, 1990, p. 23).

Cassi Jones colecionava amores, escolhendo bem as suas “vítimas” ao


traçar “planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos scrocs
de outras naturezas”, das quais “quase sempre, o violão e a modinha eram seus
cúmplices”. Sucumbindo às estratégias do conquistador, a “pobre, meiga,
simples, modesta, boa dona-de-casa” (BARRETO, 1990, p.137) Clara Anjos é
lançada à labéu, afinal, “que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante
de todos, com aquela nódoa indelével na vida?” (BARRETO, 1990, p.147):

Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa queda; ela se
lembrava de poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope
para a desgraça... Em começo, a primeira impressão simpática, os
gemidos do violão, os seus repinicados, seguidos dos requebros dos
olhares do tocador, que os exagerava e punha neles não sei que
chama estranha, doce e, ao mesmo tempo, quente. Impressionara-se
muito com isso, tão preparada já estava para os efeitos do instrumento.
(BARRETO, 1990, p. 137).

Traçando um percurso semelhante, o gaúcho de Um Certo Capitão


Rodrigo caracterizava-se pelo “lenço vermelho”, a espada, o violão e o gosto
pelos vícios, a bebida, o cigarro, o jogo e as mulheres. Avesso ao casamento e
à igreja, esse sujeito que “não teme a Deus nem ao diabo” se gabava por suas
habilidades para a conquista, repetindo “aos amigos íntimos”, o ditado “mulher
que vai uma vez comigo pra cama vai sempre” (VERISSIMO, 1998, p. 69).
Embora Rodrigo se case com Bibiana, que, encantada por ele, “suportaria
tudo, se sujeitaria a todos os rebaixamentos contanto que ele não fosse embora”,
para ela restava “essa sensação de pecado, essa impressão esquisita de que
Rodrigo não era seu marido e de que ela não passava duma ‘china de soldado’
não a abandonou nunca durante toda a lua de mel, principalmente quando ela
se via frente a frente com o pai.” (VERISSIMO, 1998, p. 130).
Por esse Don Juan, assimilado pela cultura brasileira, podemos perceber
a atmosfera imagética relacionada ao luar, à noite, às janelas e aos balcões, e
137

sonora, pelo seresteiro acompanhado por seu violão e sua “voz diabólica que
assombra as acordadas e desperta as dormidas” (ARAÚJO, 2005, p. 313). É
sobre esses corações roubados, violações, corpos e força feminina que vamos
nos debruçar agora.

3.3 “Que dama é aquela que vai sorrindo,/ Mas verga o torso como um
chorão?”29

O sujeito donjuanesco com seu “violão impudico”, combatido e


desprezado, influi no universo feminino, despertando desejos, mas também
provocando dores e desilusões. Da mulher apaixonada e resguardada pelos
limites físicos e patriarcais, passamos à imagem da figura feminina deflorada. De
rosa em botão à flor despedaçada, a mulher que escuta e se rende ao sedutor
(a seu chamado e aos seus sons de seu violão), entregando-se, portanto, a essa
figura donjuanesca, expõe a fratura da violação e do abandono. No entanto, além
de percorreremos o que é lhe roubado, abordaremos também, nesta subseção,
a associação do violão às formas femininas e a importância das concertistas
mulheres para os processos de ressignificação do violão. Vamos partir da poesia
de Cecília Meireles:

O violão e o vilão

Havia a viola da vila.


A viola e o violão.
Do vilão era a viola.
E da Olivia o violão.

O violão da Olívia dava


vida a vila, a vila dela.
O violão duvidava
da vida, da viola e dela.

Não vive Olívia na vila.


Na vila nem na viola.
O vilão levou-lhe a vida,
levando o violão dela.

No vale, a vila de Olívia


vela a vida
no seu violão vivida
e por um vilão levada.

Versos do poema “D. João d’amor” de Domingos do Nascimento (NASCIMENTO apud


29

ARAÚJO, 2005, p. 314).


138

Vida de Olívia – levada


por um vilão violento.
Violeta violada
pela viola do vento.
(MEIRELES, 1990).

Neste poema, a viola e o violão desempenham um papel fundamental,


tanto pelo jogo, quanto pelas analogias que suscitam. Para compreendê-lo,
apresentaremos, inicialmente, uma breve contextualização da obra para, em
seguida, apontarmos questões relacionadas à musicalidade, à construção das
representações e ao desafio fonético e interpretativo. Por fim, trataremos do
violão nas mãos e na escrita feminina.
O primeiro ponto a ser observado é o poema integrar um livro infantil
intitulado Ou Isto ou aquilo – última obra da autora publicada no ano de sua
morte, em 1964. A contribuição para a Literatura Infantil da poetisa, folclorista e
escritora Cecília Meireles inclui, além do livro citado, os contos Giroflé, Giroflá,
ensaios sobre Problemas de Literatura Infantil, e estudos publicados em
periódicos sobre problemas do ensino e estudos de folclore voltados para o
público infantil. Cecília Meireles não só exerceu o magistério primário, como foi
responsável pela criação da primeira biblioteca infantil no Brasil. Sobre a
produção literária para a infância, a educadora, estudiosa e poetisa considera:

Evidentemente, tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em


delimitar o que se considera como especialmente do âmbito infantil.
São as crianças, na verdade, que o delimitam, com sua preferência.
Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se
escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas lêem
com utilidade e prazer. Não haveria pois, uma Literatura Infantil a priori,
mas a posteriori. (MEIRELES, 1984, p. 20).

E acrescenta:

É que não se pode pensar numa infância a começar logo com


gramática e retórica: narrativas orais cercam a criança da Antigüidade,
como as de hoje. Mitos, fábulas, lendas, teogonias, aventuras, poesia,
teatro, festas populares, jogos, representações várias... tudo isso
ocupa, no passado, o lugar que hoje concedemos ao livro infantil.
Quase se lamenta menos a criança de outrora, sem leituras
especializadas, que a de hoje, sem os contadores de histórias e os
espetáculos de então... (MEIRELES, 1984, p. 55).

A escrita de um adulto sobre – e para o universo infantil – carece de


aproximação e identificação com o mundo da criança, feita através de um olhar
139

impressionista, do poder sugestivo e da interseção existente entre a criação


poética e o universo da infância. Conforme observa Azevedo Filho, “é a fase das
perguntas embaraçosas, do monólogo a dois, da fabulação, das comparações
imprevisíveis, [...] das metáforas surpreendentes e do sonho, transfigurado na
visão subjetiva da realidade” (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 172). Porém, além de
escrever para as "cabecinhas boas que sofrem e resistem" (YUNES, 1976, p.
103), a pergunta que fica é: os poemas de Cecília Meireles são só para crianças?
Para Azevedo Filho, o livro Ou Isto ou Aquilo permite várias leituras, pois,
além de tratar de “poemas para a infância, que adulto lê enternecido, numa
edição de original apresentação gráfica” (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 170),
abarca também múltiplas interpretações, já que, “em linguagem poética
necessariamente plurilinear, os poemas comportam sempre mais de uma
interpretação. Servem para a criança e trazem mensagem poética para o adulto.”
(AZEVEDO FILHO, 1970, p. 173).
Também contestando a especificidade da recepção da obra, Carlos
Drummond de Andrade, em uma crônica publicada no jornal Correio da Manhã,
em 10 de julho de 1964, declara: “crianças, apenas? Tenho para mim que adultos
se encantaram com este livro novo que não é para eles”. E conclui, “encontro do
pequeno com a poesia: sorte dos garotos que toparem com essa caixa de
surpresas. [...] Não sei se passo o livrinho ao pessoal miúdo da minha roda ou
se fico com ele para mim” (ANDRADE, 1964, p. 6).
Vejamos agora como se articulam essas duas esferas, a da criança e a
do adulto, na compreensão do poema. Assim, como em outros textos da autora,
“O violão e o vilão” se caracteriza pelo uso de vocabulário simples e corrente,
valendo-se de palavras curtas e ritmo fluente, próximos à dinâmica e ao
ambiente infantil.
Em temos fonéticos, a musicalidade se destaca. Elementos, como o ritmo
breve e recorrente, os períodos curtos, o uso de aliterações, assonâncias, rimas,
a estrutura ou forma poética, e a criação de um jogo fonético (com suas
acentuações, marcações silábicas e reiteração de fonemas) funcionam muitas
vezes como ecos típicos da “linguagem infantil quase sempre repetitiva.” Para
Bordini:
140

De um lado, tem-se a rima infantil, que transita espontaneamente entre


os pequenos, de geração em geração, por intermédio das amas nas
famílias da plebe; de outro, os escritores vestem-se de pedagogos para
ensinar condutas dentro das convenções poéticas que empregam para
adultos. (BORDINI, 1991, p .9-10).

No entanto, se a linguagem menos complexa facilita e aproxima o poema


das crianças, ao mesmo tempo revela um caráter pedagógico por sua função
didática, principalmente no desenvolvimento e na alfabetização infantil. A
recorrência e a exploração do fonema [v] representa um desafio para a
linguagem, funcionando como um exercício fonético, como os trava-línguas, por
sua constante repetição, conforme o Quadro 1 – no qual, ao lado das palavras,
apresentamos o número de incidências:

Quadro 2 - A exploração do fonema [v] no poema “O violão e o vilão”


Va Ve Vi Vo
Dava Vive Viola 6 Levou-lhe
Duvidava Vela Violão 6
Levando Vento Vilão 4
Vale Olivia 5
Levada 2 Vida 4
Vila 6
Havia
Duvidava
Vive
Vivida
Violento
Violeta
Violada
Fonte: Elaborado pela autora desta tese.

Esse jogo fonético tem sua marcação rítmica e melódica baseada nos
fonemas que constituem uma das palavras título “Violão”. O termo, ao mesmo
tempo que condensa, dele também decorrem – ao tirarmos a vogal [o] –, tanto a
viola, quanto o vilão, ou seja, temos: viola(o) e vi(o)lão. Com essas variações,
são explorados os sons harmônicos que marcam o relevo sonoro do poema e
estabelecem o jogo fonético e semântico, conforme o que veremos mais adiante.
Com isso, é o violão que imprime o impulso rítmico-temático do poema, a textura
sonora e de sentido e, em última instância, vincula o poema ao leitor.
É preciso observar que, além do [v], também os fonemas relacionados ao
[d] (como “da”, “de”, “do”, aparecendo em palavras como “dela”, “vida”, “levada”,
“duvidava”, “violada”, nas duas primeiras estrofes) e ao [n] (“no”, “na”, “nem”, nas
141

estrofes seguintes), estabelecem mais que um exercício de linguagem: marcam


um deslocamento das referências internas para as externas. Em outras palavras,
saímos da noção de pertencimento ou do que é “seu” (“Do vilão era a viola./ E
da Olívia o violão”; “O violão da Olívia dava/vida a vila, a vila dela.”; “O violão
duvidava (duvidava)/ da vida, da viola e dela. Da/da/dela)”; para o espaço ou
local (“Não vive Olívia na vila. (não/na)/ Na vila nem na viola. (na/nem/na)”; “No
vale, a vila de Olívia/ vela a vida/ no seu violão vivida”).
De uma maneira ampla, o jogo estabelecido por essas reduplicações de
fonemas e o trabalho articulatório gerado assemelham ou aproximam o poema
ao trava-línguas:

Quando a criança atinge a fase de adestramento da linguagem verbal,


em que mecanismos de articulação podem apresentar-lhe dificuldades,
baralhando-lhe os atos comunicativos por defeitos de prolação, a
poesia infantil lhe proporciona verdadeiros delírios lúdicos de
sonoridade desafiadora: os trava-línguas. (BORDINI, 1991, p. 24-25).

Sua importância envolve também a experiência corporal e vivência


prática, na qual “a despreocupação com o sentido, explicável no caso do bebê,
mas intrigante nos trava-línguas e certas modinhas, poderia ser entendida como
a porta de entrada para o mundo da linguagem, através da corporeidade do
significante” (BORDINI, 1991, p. 25). Esse é um aspecto fundamental para
Cecília Meireles, tanto pelo que ela poderia oferecer como princípio educativo
quanto por sua importância na tradição popular e folclórica.
Se, para as crianças, cria-se um território conhecido, repleto de jogos,
brincadeiras, trava-línguas, para o adulto, o poema traz à memória os desafios
e a identificação ao tempo da infância:

Nem todos terão aberto livros na sua infância. Mas quem não terá
ouvido uma lenda, uma fábula, um provérbio, uma adivinhação? Quem
não terá brincado com uma canção que um dia lhe aparecerá noutro
idioma? Quem não terá pensado e agido em função de exemplos que
são os mesmos de outros povos, de outras eras, provenientes de um
esforço análogo do homem para adaptar-se à sua condição na terra?
(MEIRELES, 1984. p. 79).

No poema, além do aspecto fonético, é possível identificar, no âmbito


morfológico, o uso dos verbos no presente, “justamente o tempo das crianças”
(YUNES, 1976, p. 110), pois é a forma que, geralmente, entendem e empregam
(“Não vive Olívia na vila”, e “vela a vida”), como também o pretérito imperfeito
142

(havia, era, dava), dando a sensação de duração, um passado impreciso e não


limitado no tempo.
Há ainda um verbo no pretérito perfeito, marcando a ação concluída da
violação e da perda, afinal o violão “levou-lhe a vida”; o gerúndio, reforçando a
continuidade do gesto; e a presença do particípio com função adjetival,
mantendo a conexão ao passado (duvidava, vivida, levada, violada).
O uso da terceira pessoa do singular e dos tempos verbais parecem
contar uma história, como um conto de fadas ou um tipo de “era-uma-vez”, no
qual a criança-Ieitora acompanha seu fluxo próximo ao contado, mas diverso do
sujeito, ou seja, consciente do experenciado, mas mantendo sua alteridade.
Além da conexão fabular, a sonoridade – especialmente importante para
a criança – tem no poema um delicioso desenrolar, repleto de rimas internas e
externas, efeito de ecos, se desembrulhando a cada palavra e cada verso, como
reverberação da anterior. Girando em torno da viola e do violão, a sonoridade
marcada pelas repetições, aliterações e acentos criam ritmos hipnóticos.
Com isso, a poetisa vai além e faz da poesia, música. Sem exageros ou
rebuscamentos, a linguagem simples, construída de forma fluida, vem imbuída
de musicalidade e do princípio da organicidade, considerado por Bordini (1991)
como sendo a:

distribuição espacial necessária das palavras no verso, ordenada pelo


ritmo e pelos sentidos que o tema impõe, bem como sua escolha pela
lei da economia artística, que elege o vocábulo melhor equipado para
produzir a carga semântica procurada” (BORDINI, 1991, p.16).

Com isso, a forma interfere na recepção,

Porque condensa múltiplos sentidos num espaço gráfico mínimo, o


poema exige do seu leitor um olhar mais atento à página, uma ativa
mobilização do conteúdo intelectual e afetivo preexistente ao contato,
um ajustamento contínuo de emoções e desejos, juízos e avaliações,
à medida que a leitura progride. Isso ocorre com a mesma força de
demanda quanto à poesia infantil esteticamente válida. (BORDINI,
1991, p. 31-32).

Esse é um aspecto interessante, pois a escolha de Cecília é pela quadra


– estrutura relacionada à lírica trovadoresca medieval e às canções de amigo e
de amor –, ao mesmo tempo, perpetuando um modo de se falar sobre o mesmo
tema, o amor e seus percalços, mas trazendo traços de violências e perdas.
143

Além de música, o poema é também jogo. Se, semanticamente, o livro Ou


Isto ou aquilo baseia-se na "escolha" e na "tensão entre opostos", conforme
sugere o título da obra, o mesmo se dá na dimensão do poema. Assim temos
nesse poema-jogo os seguintes polos ou eixos fundamentais: o violão versus a
viola e a Olívia versus o vilão. De acordo com Yunes (1976),

A temática do jogo não é privilégio da infância, mas é comum que se


dê mais constantemente entre crianças, seja como forma de adaptação
lenta ao mundo seja como forma de fuga da realidade que pouco a
pouco começa a causar-lhes problemas. Isto se faz ainda mais
evidente quando analisamos o jogo entre adultos. Vejamos: o adulto,
cansado do trabalho, de suas tarefas, busca o jogo como um espaço
mágico, uma área fora da realidade dura que vive todos os dias. No
jogo, inclusive, as leis e as regras são diferentes, das leis e regras do
mundo. (YUNES, 1976, p. 113).

Porém, por trás da brincadeira, temos um movimento pendular, como uma


gangorra que nos desloca entre os instrumentos, os sujeitos e a vivência (do
violão que, ao mesmo tempo, lhe dava vida, mas também duvidava “da vida, da
viola e dela”). Essa oscilação já se anuncia no título do poema que, se, por um
lado, traz a marca da infância, pela impressão do jogo ou do fabular, por outro,
contrapõe o violão não à viola, mas sim ao vilão. Nessa troca de palavras, em
que o violão remete à Olivia e a representa, e a seu antagonista, o vilão, temos
o jogo estabelecido já no título, pela referência cruzada:

Figura 10 - Jogo e correspondência entre as figuras literárias e os instrumentos


no poema “O violão e o vilão”

Violão – Olívia

Viola – vilão

Elaborada pela autora desta tese.

Outro ponto importante a ser notado, trata-se de a figura masculina não


ter nome próprio ou identificação, adotando – ou se revelando – apenas pela
designação de vilão. É claro que, mesmo sem a identidade revelada, permanece
seu simbolismo. Apesar de Bordini (1991) considerar que, na poesia infantil “o
144

nome próprio, via de regra, imita fraquezas infantis ou serve de pretexto para
aliterações” (BORDINI, 1991, p. 64), é preciso perceber no poema que o nome
de Olívia, vai além do intuito fonético, assumindo a identidade da mulher, sem
máscaras ou disfarces, expondo, na história-poesia, suas incertezas, desilusões
e dores pela violação sofrida.
No campo das oposições, construído pelo jogo vocabular do discurso,
identificamos importantes contraposições referentes – e pertencentes – a cada
sujeito:

Quadro 3 - Paralelo e contraposição entre as figuras literárias do poema “O


violão e o vilão”
Olívia Vilão

Violão Viola

Vila Vila

Dar Levar

Violeta Violento

Fonte: Elaborado pela autora desta tese.

Além desses elementos, há também um conflito entre o feminino e o


masculino, não só na esfera semântica ou interpretativa do poema, mas também
pelas relações entre Olívia, representada pelo substantivo masculino violão, e o
vilão, associado à viola, nome feminino.
No processo de construção de sentido, a primeira estrofe do poema “O
violão e o vilão” dá início à história que será contada, apresentando tanto o local,
quanto os sujeitos e seus instrumentos correspondentes:

Havia a viola da vila.


A viola e o violão.
Do vilão era a viola.
E da Olivia o violão.
(MEIRELES, 1990).

Apesar de os substantivos serem de natureza concreta, é possível


enxergar neles outras compreensões, nas quais a viola pode significar tanto o
instrumento quanto ocupar o lugar de verbo. Por esse viés, o ato de violar,
atribuído ao vilão, requer do violão um sentido também mais amplo e mais
145

profundo, adquirindo um significado que pode incluir tanto o do corpo e o


coração, quanto a alma feminina. Se, por um lado, o violão dava vida à vila e à
Olívia, por outro, ele também hesitava e duvidava “da vida, da viola e dela”, como
um sinal ou o instinto feminino já pressentindo o destino a que a mulher seria
lançada:

O violão da Olívia dava


vida à vila, à vila dela.
O violão duvidava
da vida, da viola e dela.
(MEIRELES, 1990).

Nessas duas primeiras estrofes, os verbos utilizados estão no passado,


porém, nas estrofes seguintes, a autora faz uso do tempo presente (vive)
acompanhado do advérbio de negação para marcar um tipo de aniquilamento
simbólico – reforçado pelo verbo “velar”, que não só significa olhar, dar atenção,
zelar, como também está associado à morte –, e revelar a razão: “o vilão levou-
lhe a vida,/levando o violão”.

Não vive Olívia na vila.


Na vila nem na viola.
O vilão levou-lhe a vida,
levando o violão dela.

No vale, a vila de Olivia


vela a vida
no seu violão vivida
e por um vilão levada.
(MEIRELES, 1990).

Apesar de o violão estar nas mãos de uma mulher – situação pouco


comum, conforme temos observado através do escopo deste trabalho –, é por
meio dele que a figura feminina aparece representada. Não é possível datar ou
precisar as origens da relação do instrumento (com seus contornos e maneiras
de tocar) ao corpo feminino, porém, é perceptível e significativa a presença
dessa associação no imaginário coletivo. O intrínseco e insistente vínculo do
violão às formas femininas parece ainda se perpetuar em nossa cultura.
Dando prosseguimento à análise do poema, na última estrofe temos o
desfecho da história, tensionado pela quebra da reiteração dos fonemas, já
comentados anteriormente ([v], [d], [n]), na presença da consoante [t], nas
palavras “violento” e “vento”:
146

Vida de Olívia – levada


por um vilão violento.
Violeta violada
pela viola do vento.
(MEIRELES, 1990).

Diferente dos aspectos apresentados por Bordini (1991), podemos


perceber que, além de modificar o fluxo da leitura e a acentuação do texto
poético, os termos adjetivam, metaforizam e qualificam a violência dos atos do
vilão. Ele se associa ao vento que passa, mas é tanto “dispersão”, quanto
“furacão”. Sobre a violação do corpo e da vida de Olívia, Guimarães (2006)
ressalta:

Nesse jogo ambíguo entre viola (instrumento musical) e viola (do verbo
violar) reside o aspecto dramática da existência de Olívia. A vida lhe é
tirada, roubada. Olívia torna-se Violeta violada. A música (vida) de seu
violão não mais se apresenta, não mais existe. Mas essa perda de
Olívia já havia sido anunciada: O violão duvidava da vida. A
possibilidade de tocar livremente (e tocar também nos dois sentidos, o
que se refere ao corpo e à música) já se apresentava como uma
impossibilidade para o violão de Olívia. (GUIMARÃES, 2006, p. 175).

Em relação à mulher, além da metáfora e da simbologia da flor, pela


“violeta violada” e o contexto que envolve o poema, podemos inferir sua relação
com o cravelhal da viola e o costume de “esculpir uma figura feminina, ou então
uma flor – a violeta (do latim viola) –, na parte superior do cravelhal das violas
de cordas friccionadas. Tal fato levou alguns musicólogos à suposição de que a
flor tivesse dado nome à família desses instrumentos.” (TABORDA, 2011, p. 26).
No âmbito do espaço-tempo, o poema de Cecília Meireles tem as pegadas
do fabuloso, porém seu caminho se traça em um jogo de planos ou locais. A
“vila” que perpassa o poema pode ser tanto um espaço rural, quanto urbano,
uma vez que se trata de um lugar “mais afastado do centro” ou um “alinhamento
de residências que forma uma rua particular, geralmente sem saída pelos
fundos, e cuja entrada se abre para uma via pública; avenida” (VILA, 2018). Além
de lugar pequeno, pela construção poética, a vila é também alma, coração e vida
(“Não vive Olívia na vila. /Na vila nem na viola”; “a vila de Olívia/ vela a vida”)
(MEIRELES, 1990).
Já o termo “vale” (2018) abarca múltiplos significados envolvendo tanto a
localização caracterizada por “depressão ou planície entre montes ou no sopé
de um monte”, “várzea ou planícies à beira de um rio” (VALE, 2018), quanto um
147

sentido mais erotizados, pois, “em Portugal, o termo designa o espaço entre as
bochechas do ânus ou do seio” (VALE, 2018), gerando, com isso, outro
entendimento dos versos “No vale, a vila de Olívia/ vela a vida”. Usado apenas
uma vez e nesse momento do texto, o termo é também verbo: imperativo da
terceira pessoa do singular de “valar” (“abrir em valas”). Originalmente, o verbete
está associado a “adeus”, significando “dar ou dizer o derradeiro, o extremo ou
o último vale”; “despedir-se pela última vez; fazer as últimas despedidas
(principalmente quem está para morrer)”.
Nessa multiplicidade de significados evocados pelo poema, permanece a
busca pelo não-dito, ou ainda, pelo que está entre(as)linhas. É preciso tocar o
que se vê além da palavra, através da vivência poética, ficando a cargo de cada
leitor a criação de um universo projetado e imaginado, acionando “conteúdos
anímicos, dados da memória e operações intelectuais, afetivas e volitivas, sem
muita consciência do sujeito em relação a tal processo” (BORDINI, 1991, p. 35).
Ainda nos resta, no entanto, uma importante pergunta sobre o material
analisado: de um tema tão árduo, mesmo para o mundo dos adultos, o que
desejaria esse poema em um livro para crianças? Ou seja, o que ainda está por
trás do jogo e da música que ele engendra?
Se “a criança deseja também a verdade, além do jogo” (BORDINI, 1991,
p. 8), em “O violão e o vilão”, não se pode ignorar a experiência da perda, apenas
fazê-la tolerável. Ao suportar a dor da vivência, da desilusão e do roubo, sem,
contudo, apresentar soluções apaziguadoras, resta apenas à mulher, a violação
e o abandono.
É importante observar que, como em um conto de fadas, não é a criança
que, empiricamente, sofre, e sim, a terceira pessoa, a menina que vivia na vila e
se chamava Olívia. Nesse espelhamento, da função fabular de preparação para
mundo, o poder imaginativo, a perda sofrida pode ser ressignificada. A dor vem
das mãos do vilão que, sem possuir nome ou identidade, apenas sua designação
e função, consegue acessar o imaginário infantil. Além desse aspecto, o uso do
adjetivo “violento” acompanhando o termo “vilão” permite estabelecer e
identificar a que tipo de antagonista se trata.30

30 Como em Cecília Meireles, Guimarães Rosa também nos remete a um “vilão violento” e
violador: “Porque a voz era a do vilão Ipanemão, cruel como brasa mandada, matador de
148

Na metalinguagem da poetisa estamos conectados aos sentimentos


coletivos e universais, marcados pelo deleite do jogo, como também pelo
desencanto. De acordo com Yunes (1976), há o prazer do jogo, mas também a
dor, polaridade que perpassa todos os poemas de Ou Isto ou Aquilo. Como
adultos, há um tom nostálgico, um lamento pela pureza e pela infância esquecida
com a chegada da idade adulta; como crianças, a preparação para a perda da
inocência e para as dores da vida. Em ambas perspectivas, permanece a
transitoriedade, essa característica que perpassa a obra da autora: “A noção ou
sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha
personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenho feito, em Literatura,
Jornalismo, Educação e mesmo Folclore.” (MEIRELES, 1993, p. 80).
Bordini (1991) reforça:

A partir desse pressuposto de que a linguagem poética se origina de


uma visão inocente, que se historiciza e se arma da atitude crítica,
admite-se que a infância tenha o direito de falar a palavra poética,
mesmo estando destituída da bagagem de vivências linguísticas,
estéticas e existenciais que possibilitam “esse momento tão importante
do pensamento e da expressão humana onde desabrocha a poesia”,
na qual se revela “o acabamento de uma perfeição, a lucidez, a
eloquência, no melhor sentido”. (BORDINI, 1991, p. 55).

A polaridade de Ou isto ou aquilo expõe as oposições e as escolhas que


enfrentamos durante a vida representadas pelo conflito entre a Olivia e o vilão,
o violão e a viola. Nessa conjuntura, a diferença entre os instrumentos é
fundamental para o jogo, não podendo ser tomados, portanto, como sinônimos,
já que, sem a diferença entre eles, não se estabelece o desafio, a antítese e a
violência implícita nesse processo.
Se, por um lado, o violão pertence à Olívia, por outro, a viola está
relacionada ao vilão e, como tal, ele é vento, impetuoso e devastador, que passa,
como as figuras e os simbolismos que temos analisado até aqui. Entre deleite e
dor, o violão é música silenciada e ausência no corpo da “violeta violada”, como
reforça o relato autobiográfico da autora: “Minha infância de menina sozinha deu-
me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim:

homens, violador de mulheres, incontido e impune como o rol dos flagelos.” (ROSA, 2009, p.
87).
149

silêncio e solidão. Essa foi sempre a área da minha vida” (MEIRELES apud
GOUVEIA, 2002, p. 304).
O último ponto a ser observado é o violão nas mãos e na voz feminina.
Além do violão de Olívia, seu instrumento e corpo, por forma e associação,
Cecília Meireles, ao se expressar pelas artes plásticas, também coloca o alaúde
acompanhando a mulher, conforme a Figura 11:

Figura 11 - “Desenho da mulher com alaúde”

Fonte: MEIRELES, 2001.

Apesar de Brito (2016, p. 26) explicar que “no desenho se evidencia o


gosto estético da autora por símbolos que lembram o conteúdo musical da arte,
por meio de uma estética da musicalidade” e da “melancolia”, é importante
ressaltar a iniciativa da escritora ao, não só, desenhar um alaúde (instrumento
pouco conhecido e popular no contexto brasileiro), como também, – e
principalmente –, colocá-lo nas mãos de uma mulher.
Além da ilustração do violão relacionado a uma mulher no poema
abordado e de a autoria ser feminina, há registros de que a poetisa também se
dedicava ao instrumento: “Eis, por fim, o seu retrato, conforme a página dos
“Arquivos Implacáveis”, de José Condé, publicada em O Cruzeiro, do Rio de
150

Janeiro, em 31 de dezembro de 1955: [...] – Estuda canto, violão, violino e, às


vezes, desenha.” (CONDÉ, 1955 apud AZEVEDO, 2019, p. 34).
Dos poucos poemas criados por escritoras brasileiras e nos quais o violão
aparece retratado, além de Cecília Meireles, também Adélia Prado (1995) o
coloca em mãos femininas, como no poema “Porfia” que, em meio à ousadia de
questionar “A mulher pode vinte orgasmos?”, não só revela seu desejo “Quero
amor, o fino amor”, como seu sofrimento, semelhante à Nossa Senhora, “Só
suporto sete dores” (PRADO, 1995). E assume: “Mais uma fico distraída, tocando
meu violão” (PRADO, 1995).
Se, na poesia, a voz feminina ainda requer espaço e reconhecimento, o
mesmo não ocorre em relação às associações diretas entre o instrumento e as
formas físicas da mulher. Esse lugar comum, estereotipado e metafórico,
atravessa tempos e os mais variados meios, falas e expressões.
Além das sugestões metafóricas do corpo da mulher e dos efeitos
causados pelo toque masculino – no violão e na mulher – observadas nos
poemas, a temática também serviu de inspiração ao carioca Vinícius de Moraes.
O músico, diplomata e “poetinha brasileiro” descreve “Uma Mulher Chamada
Guitarra” na coletânea intitulada Para Viver um Grande Amor (1962):31

Uma mulher chamada guitarra

Um dia, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão,


era "a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou
espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam un
mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é,
melhor, a pura verdade dos fatos.

O violão é não só a música (com todas as suas possibilidades


orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os
instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina - viola,
violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo - o único que representa a
mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado,
ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada mas
sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a
quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de
caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há
mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres- contrabaixo.

Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o


violão oferece; como negam-se a se deixar cantar preferindo tornar-se
objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato
dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes

31A coletânea engloba, além das crônicas escritas pelo autor carioca para o jornal Última Hora
(entre 1959 e 1962), os poemas escritos em Paris, em 1957.
151

como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas


mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter
carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de
maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições
pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar
obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.

Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não


encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais
estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a
guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as
vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de
la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em
sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um
violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles
instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa
peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um
Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um
João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do
Esqueleto.

Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo
o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso
abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes
se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos
corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas...
Até na maneira de ser tocado - contra o peito - lembra a mulher que se
aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece
suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no
mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela
não poderá ser nunca totalmente sua.

Ponha-se num céu alto uma Lua tranquila. Pede ela um contrabaixo?
Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um
Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seu
tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis)
uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei: um violão. Pois
dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o
violão é capaz de ouvir e de entender a Lua. (MORAES, 1962, p. 7-8).

Na relação com o feminino e no desejo “pelas mulheres-violão, que um


homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela
passar horas de maravilhoso isolamento” (MORAES, 1962, p. 7), violão e mulher
se fundem. Este ponto de contato, apesar de lírico, revela a objetificação da
figura feminina, tanto pelo imperativo masculino, quanto pela associação entre
as formas – “o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena;
de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas”
(MORAES, 1962, p. 7). A unificação entre a mulher e o instrumento também
acontece pelo toque (“até na maneira de ser tocado – contra o peito – lembra a
mulher que se aninha nos braços do seu amado”) (MORAES, 1962, p. 8) e pelo
152

sentimento que desperta – “parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome
toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do
contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.” (MORAES, 1962, p. 8).
Já na equiparação entre guitarra e violão, o texto percorre importantes
violonistas da música erudita (“nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um
Sanz de la Mazza”) e da esfera popular (“de um Bonfá, de um Baden Powell”),
revelando sua capacidade de perpassar fronteiras ao acomodar os mais
variados gêneros musicais (tanto “a pungência” quanto “a bossa peculiares”), e
ser praticado pelas mais modestas ou habilidosas mãos. Ao violão também cabe
a singularidade “de ouvir e de entender a Lua”, cantar o amor e induzir “ao
maravilhoso abandono!” (MORAES, 1962, p. 7-8)
Essa relação da mulher brasileira com a ideia de corpo-violão também
aparece na canção do compositor e poeta carioca Paulo César Pinheiro (1949):

Violão

Um dia eu vi numa estrada


Um arvoredo caído
Não era um tronco qualquer.
Era madeira de pinho
E um artesão esculpia
O corpo de uma mulher
Depois eu vi
Pela noite
O artesão nos caminhos
Colhendo raios de lua
Fazia cordas de prata
Que, se esticadas, vibravam
O corpo da mulher nua
E o artesão, finalmente,
Nesta mulher de madeira,
Botou o seu coração
E lhe apertou contra o peito
E deu-lhe nome bonito
E assim nasceu o violão.
(COSTA; PINHEIRO, 1993).

Além da imagem do instrumento originado do “corpo esculpido de uma


mulher”, a canção ainda desenha a bela cena da mulher nua vibrando com “as
cordas de prata” feitas pelos “raios de luar”. Nesse traçado, o violão surge pelas
mãos do artesão e, ganhando coração e nome – reconhecido pelo poder da
linguagem – desenha seu percurso de nascimento: árvore → mulher → violão.
Tal é o efeito da associação entre o corpo feminino e o violão que esta
aparece também em periódicos especializados para o instrumento, como na
153

revista Violão e Mestre. Nela, paralelamente ao número significativo e


importante de relatos, entrevistas e divulgação de concertos feitos por mulheres
violonistas, encontramos textos que propagam, de forma reiterada, não só a
associação do violão às formas corporais femininas, como a adjetivação
emprestada da esfera considera como pertencente à mulher. Mais propriamente
voltada à ideia e à imagem da musa recatada, descrita – mulher e violão – pela
delicadeza, “doçura”, o “caráter íntimo”, a “energia suave”, e a “incomparável
ternura” da “frágil caixa”:

Figura 12 - Como nasce um violão

Fonte: REVISTA VIOLÃO E MESTRE N. 2, 1964b, p. 7.

Já na trajetória do instrumento, se, por um lado, os cordofones dedilhados


estiveram presentes nas mãos e no cotidiano das mulheres, principalmente no
acompanhamento das canções de amor, por outro, o caminho se mostra sinuoso
e impreciso, marcado pela falta de registros e pela polarização entre o violão
(relacionado com a vadiagem e boemia) e o piano, instrumento associado à “alta
cultura” e às “prendas” necessárias e pertencentes ao universo feminino.
Enquanto o violão traçava seu caminho – com versatilidade e força
democrática – entre as camadas mais populares, na música erudita, o
instrumento passaria por importantes e complicados processos para sua
aceitação na esfera erudita. Nessas primeiras décadas do século XX, o violão
esteve presente de maneira decisiva no acompanhando dos variados gêneros,
154

como as serestas, o choro e o samba, porém sua aceitação nas salas de


concerto dava passos ainda hesitantes, conforme relata o Jornal do
Commercio, em 7 de maio de 1916, ao afirmar que “tem sido um esforço vão o
que se desenvolve neste sentido” (JORNAL DO COMMERCIO, 1916 apud
TABORDA, 2004, p. 63).
Sobre o conjunto de fatores que atuaria para a composição desse quadro,
é preciso considerar a acentuada cisão entre música erudita e popular, seguida
da profunda segregação simbólica e sociocultural que marcaram o violão das
ruas e bares, e os estigmas a ele associados. Esses aspectos fizeram com que
“debalde os cultivadores desse instrumento” intentassem “fazê-lo ascender aos
círculos onde a arte paira”, mesmo “quando algum virtuosi quer dele tirar efeitos
mais elevados na arte dos sons, jamais consegue o objetivo desejado, ou mesmo
resultado seriamente apreciado” (JORNAL DO COMMERCIO, 1916 apud
TABORDA, 2004, p. 63).
A cena violonística começaria a ser modificada – tanto em termos de
função (incorporando também sua faceta como solista), quanto das significações
que acompanhavam o instrumento – por meio da contribuição e do pioneirismo,
ainda que discreto, de alguns violonistas brasileiros, e da vinda de concertistas,
principalmente do paraguaio Augustín Barrios (1885-1944) e da espanhola
Josefina Robledo (1892-1972). Esse processo fica claro em uma crítica do jornal
O Estado de São Paulo (1917 apud ANTUNES, 2002, p. 43) ao documentar
que “(...) modernamente [o violão], começa a reabilitar os seus créditos, já
interessa os círculos artísticos e documenta nos grandes salões as suas
qualidades de instrumento aristocrático”.
Além de ressaltar a “envergadura” do violonista espanhol Tárrega e
elogiar um recital de Barrios, o artigo ressalta a importância de Robledo não só
pela apresentação de obras canônicas (“os grandes clássicos”) de Chopin,
Schumann, Beethoven e Bach, como pela habilidade técnica. Esse virtuosismo
aparece metaforizado na descrição dos arpejos da peça “La Mariposa”, “que
Robledo só com a mão direita, os seus cinco dedos em constante movimento,
dando-nos a fina ressonância de um bater de asas nalgum pombal distante.” (O
ESTADO DE SÃO PAULO, 1917 apud ANTUNES, 2002, p. 43).
Nesse decurso de ressignificação e aceitação do violão no contexto da
música erudita – envolvendo a ampliação do repertório solista, a criação de
155

arranjos e transcrições de obras consagradas, a divulgação técnica e a


realização de apresentações em salas de concerto (principalmente no Rio de
Janeiro e em São Paulo) –, a violonista espanhola também corroborou para a
equidade do instrumento no panorama musical.

É preciso insistir neste ponto: o instrumento da sra. Robledo não se


parece em coisa nenhuma com o violão popular, das serenatas e
troças, dos bailaricos e ‘assustados’. Para todas as coisas deste
mundo se estabelecem uma hierarquia e não há um só recanto da vida
onde se não possa encontrá-la. No que respeita ao mundo musical
bastará dizer que o ‘virtuosismo’ achou no violão uma alma e
conseguiu elevá-la ao nível em que se acham hoje as dos mais
aristocráticos instrumentos. E de como o domínio absoluto desse
instrumento é tanto ou mais difícil que o do piano, violino ou violoncelo,
di-lo eloqüentemente o limitadíssimo número dos seus executantes. (O
ESTADO DE SÃO PAULO, 1917 apud ANTUNES, 2002, p. 46).

É claro que, por esse relato, tornam-se nítidos também os preconceitos


que ainda permaneciam arraigados ao instrumento. Porém, além da prática
solista,

o violão, nas mãos de quem sabe dedilhar as suas cordas com alma,
sentimento e maestria, deixa de ser um instrumento subalterno, perde
a qualidade de simples acompanhador de modinhas e apresenta-se
transfigurado, falando à nossa sensibilidade e às nossas emoções. [...]
(JORNAL DO COMMERCIO, 1917 apud TABORDA, 2004, p. 68).

A figura feminina de Robledo causaria certo impacto no meio e no


imaginário masculino, conforme aparece na crítica abaixo, repleta de tonalidades
poéticas e românticas:

Mãos de fada, sim, que só mesmo de fada podem ser as mãos que
seguram a fragilidade daquele violão magnífico e lhe vão ao fundo
d’alma, e lhe arrancam uma sonoridade feita de luz de luar, e fazem
que essa sonoridade se espelhe pelo ambiente, perfumando-o de uma
suavíssima poesia, e penetre no coração de quem à escuta, elevando-
o numa dulcíssima carícia. Está-se a ver que a artista que tanto alcança
é uma artista perfeita. E Josefina Robledo o é, pela técnica vertiginosa,
que lhe permite dominar, em absoluto esse instrumento que é um dos
mais difíceis que existem. (O REBATE, 1918 apud PORTO;
NOGUEIRA, 2007, p. 7).

Nessa perspectiva, o violão nas mãos de uma mulher vem envolto pelo
encanto fabular, da lua e do coração, da doçura e da delicadeza, provavelmente
contribuindo, ou pelo menos, deslocando os significados tão associados ao
masculino, desde sua utilização para seduzir e corromper as musas nas
156

serenatas até os próprios ambientes frequentados – tidos como inadequados à


presença feminina –, como ruas, bares e botecos.
Robledo – que foi aluna do compositor e violonista Francisco Tárrega
(1852- 1909), considerado o fundador da escola moderna de violão – morou no
Brasil e seu trabalho como educadora modificou não só a perspectiva e a
formação dos violonistas brasileiros, como também ampliou as possibilidades
musicais e técnicas da época, “prodigalizando sábios ensinamentos às moças
da alta sociedade e rapazes de real mérito”. Através dela “o violão se infiltrou
nas altas camadas sociais de São Paulo e é cultivado com enorme carinho.”
(PISTORESI et al., 1929, p. 24).
Do “ingrato” instrumento de “noctâmbulos e serenatistas” (do início do
século XX) ao seu cultivo “com enorme carinho” também pelas moças de “boa
família”, o violão movimentaria o ambiente carioca no final dos anos 20. Isso
ocorreria através das jovens senhoritas da sociedade que, dedicadas ao estudo
do instrumento, cantavam e tocavam – também em apresentações públicas –
um repertório de canções brasileiras. Essa atitude revelava não só a retomada
do “regionalismo” como “o envolvimento dessas mulheres refletia a legítima
aspiração à cidadania, e sobretudo os sentimentos e inovações abrigado pela
“vida moderna” (TABORDA, 2011 p. 157). Taborda (2011), em seu livro Violão
e Identidade Nacional, explica que:

Em fins dos anos 1920, surgiu uma novidade no ambiente violonístico


carioca que ecoou nas principais capitais brasileiras: jovens senhoritas
da sociedade dedicaram-se ao instrumento, levando para o público um
repertório de canções típicas brasileiras. Consagrado ainda pela
fundação de clubes e sociedades para a prática do violão, o movimento
viria englobar a união de duas tendências que marcaram fortemente o
modernismo brasileiro; por um lado representava a retomada da linha
regionalista e nacionalista refletida na criteriosa seleção do repertório;
por outro, consagrava a manifestação de cosmopolitismo simbolizada
pela presença de mulheres jovens, bonitas e independentes.
(TABORDA, 2011, p. 154).

Em um tópico destinado e intitulado “As jovens senhoritas”, a autora


aponta a prevalência do canto acompanhado ao violão, sendo executado através
de arranjos mais simples (como os elaborados por Quincas Laranjeira, “que fez
um trabalho contínuo de transcrição e arranjos para grande número de canções
típicas – repertório que publicou no suplemento dominical “O que é nosso” e,
posteriormente, na revista O Violão.”) (TABORDA, 2011, p. 157). Embora essas
157

especificidades caracterizem o repertório e a prática da época, a atividade


violonística representaria, ainda conforme Taborda (2011), uma inovação e uma
ousadia para época, posto que, nesse período, caberia às mulheres a formação
professoral e as tarefas do lar:

Neste contexto, aprender violão significava mais que estudar música,


era uma tomada de atitude. Apresentá-lo em audições públicas, lançar-
se além dos domínios doméstico e até, possivelmente, abraçar uma
profissão significava mais ainda: uma afronta, um desafio. (TABORDA,
2011, p. 156).

Apesar das indicações da autora, é preciso observar que a irradiação dos


instrumentos de cordas dedilhadas no contexto feminino seria datado de um
período bem anterior, marcando desde o início do século XIX, não um movimento
de autonomia e transgressão, mas sim, a reiteração dos papeis sociais
conferidos às mulheres. Por esse viés, o violão estaria entre as "prendas"
requeridas, e através da qual seria possível sobressair-se cultural e socialmente,
sobretudo nos espaços chancelados para o convívio (como os saraus). A par de
raras exceções, como Josefina Robledo (que era estrangeira), Nair de Teffé32 e
Maristela Kubitschek,33 a maioria absoluta dessas mulheres encerrava a carreira
musical com o matrimônio (como a violonista Paquita Baylina).34
O grande número de mulheres que se dedicavam ao violão também
aparece registrado em uma foto na qual também estão presentes o compositor
Waldemar Henrique e os violonistas Antonio Rebello (1902-1965) e Isaías Savio
(1900-1977):

32 Nair de Teffé – a primeira-dama, casada com o presidente Hermes da Fonseca – além de


estudar violão, manteve certo convívio com compositores populares, como Catulo da Paixão
Cearense.
33 Maristela Kubitschek, filha do então Presidente da República Juscelino Kubitschek, foi aluna

do violonista Dilermando Reis.


34 Paquita Baylina, musicista gaúcha, estudou com o cego Levino Albano da Conceição, porém

interrompeu suas atividades musicais ao se casar, em 1923.


158

Figura 13 - Foto ilustrativa das mulheres violonistas

Fonte: ALFONSO, 2009, p. 71.


Nota: Alunas de violão. Na foto também estão o violonista Isaias Savio (1900-1977), Antonio
Rebello (1902-1965) e o compositor Waldemar Henrique.

Já a revista Violão e Mestres n. 5, publicada em 1966, comenta o


sucesso de um conjunto musical formado apenas por mulheres denominado “As
princesas do violão” e coordenado pela professora Julieta Corrêa Antunes:

Figura 14 - “As princesas em noite de gala”

Fonte: VIOLÃO E MESTRES Nº 5, 1966, p. 23.

É fundamental destacar, ao se tratar da mulher no cenário violonístico, a


recorrente associação entre o violão e o canto. Essa imagem cristalizada fica
explícita na exposição do trabalho da professora Julieta, que, além de achar “que
o violão foi feito para a mulher e desde cedo se dedicou a ele”, também “faz parte
159

dos que acreditam que saber acompanhar o canto é disciplina essencial na


formação de bom violonista.” (ANTUNES, 1966, p. 22).
Mesmo diante da predominância da voz masculina, a presença feminina
– apesar do silenciamento imposto – se manifesta nos variados espaços que
ocupa, seja como inspiração, tema, objeto de conquista e desejo, ou mesmo na
interlocução e recepção do gesto. De enaltecida à seduzida, a escrita da mulher
coloca o violão nas mãos de Sílvia, nos desejos da “moça em sua cama”, na
tristeza e desencanto de Olívia, revelando um discurso que muitas vezes escapa
à fragilidade e às expectativas estereotipadas, como as mais relevantes
intérpretes da história do instrumento.
Com isso, além das vozes “mais características do violão” – “aquelas que
lhe dão o acento de melancolia e ternura íntimas, seu encanto de instrumento
incomparável para as horas de solidão e sossego” – o violão se expressa na
escrita da mulher e no imaginário de seu corpo. O fato é que “o violão deu sempre
o que falar. Nas críticas de jornais, nos concertos, na literatura. Envolveu a
paixão dos que o defenderam, atraindo a mesma paixão daqueles que o
atacaram.” (TABORDA, 2004, p. 118).
Permanecendo transgressor, marginal e resistente, o violão também vai
(en)cantar o país, com seus sons de brasilidade.
160

4 SONS E CONTORNOS DE BRASILIDADE

A análise dos poemas envolvendo o violão e os cordofones dedilhados


nos permitiu a identificação de determinadas características que, por sua
recorrência, foram agrupados sob a ótica de três eixos temáticos, explanados ao
longo desta tese. Com isso, passamos do violão como acompanhador da prática
seresteira, nas mãos do trovador; para o boêmio e o sedutor, associado à figura
Don Juan; e chegamos finalmente, à terceira e última parte, envolvendo a
relação do instrumento com as manifestações populares e consideradas como
nacionais.
Nesta seção, abordaremos algumas temáticas referentes ao nacionalismo
e que se entrecruzam com a história da viola e do violão, especialmente o
regionalismo e o sentido de brasilidade adquiridos pelos instrumentos. É preciso
levar em conta que, na transição do século XIX para o XX, a viola já teria sua
associação fixada às características regionais e o violão ao ambiente suburbano,
porém, apesar de elucidados os emaranhados terminológicos, os processos de
transição para essa configuração envolveria tensões e imbricadas relações de
mescla cultural, social e musical ao longo do período. É claro que as discussões
sobre identidade e nacionalismo, principalmente em se tratando de definições e
processos de formação, envolvem questões amplas e complexas, entretanto
nosso intuito não é o de nos aprofundarmos nessas discussões e, sim, traçarmos
uma costura dialógica entre o revelado pelas análises e os pontos mais
relevantes para a pesquisa, que possam contribuir, contrapor e elucidar nosso
objeto de estudo.
Iniciada na Europa, a partir do século XVIII, a ideia de nação e
nacionalismo é fortalecida pela literatura romântica do século XIX e se avulta no
contexto brasileiro durante o século XX.35 Nesse processo, é importante
observar que a busca por uma identidade nacional conjugaria questões de
originalidade, autenticidade e reconhecimento “na sua especificidade e na sua
alteridade”. Isso ocorreria através de “duas faces principais: uma geral e outra

35No Brasil, como a tradição da nacionalidade, expressa, sobretudo, pela expressão “caráter
nacional”, era muito forte, tendo sido reforçada, inclusive, no grande movimento de vanguarda
que foi o modernismo, começou-se a se falar de identidade nacional. (FIGUEIREDO,
NORONHA, 2012, p. 195).
161

particular, uma influenciada pelo momento europeu e outra pelo meio nacional”
(ROMERO, 1902, p. 10). Nesse dialogismo, seria necessária a interiorização,
por seus integrantes, dessa “alma nacional” que lhes foi ensinada. Em relação
aos Estados, já estabelecidos, caberia respeitar essa nação” em um processo
de "duplo reconhecimento interno e externo”, “vital tanto para a existência efetiva
da nova nação, quanto para, posteriormente, sua sobrevivência.” (FIGUEIREDO,
2012, p. 193).
Com base na “ideia de que só é nacional o que é popular”, pois “na
conservação daquilo que é nosso, se construiria o discurso em torno da
identidade nacional” (TABORDA, 2011), o violão se apresenta como um dos
elementos arraigados à cultura brasileira e, por isso, promove um identificação
praticamente imediata. Para além do senso comum que envolve o instrumento,
podemos pensar que sua ligação aos gêneros populares e amplitude
democrática imprimem e evocam, na obra artística, traços de brasilidade. Já a
viola estabelece uma relação com a natureza, com as tradições e com um
passado originário, conectando-se com o sentido regional que integra o todo
nacional.
Assim, o caráter regionalista não cinde a concepção de unidade e
nacionalidade, mas, antes, o contrário, dele participa:

[...] o regionalismo, de certa forma, se inclui no movimento nacionalista,


podendo-se inferir, ainda, que todo posicionamento regionalista, seja
no campo artístico-cultural ou político-social, reflete uma consciência
orgulhosa dos valores locais, e uma vontade de vê-los afirmados e
reconhecidos no âmbito nacional. (DINIZ; COELHO, 2012, p. 417)

Ao mesmo tempo que “o regionalismo é um conjunto de retalhos que arma


o todo nacional” (COUTINHO, 1969, p. 222), sua composição remete ao
passado, à tradição e aos redutos que, mais do que divisões geográficas,
tornam-se reconhecidos pelas características e regiões culturais. Assim,
“estando a dimensão nacionalista sempre em primeiro plano”, as
particularidades encontraram representações não só através dos espaços e
suas peculiaridades, como o sertanismo – “o sertão designa, de um modo geral,
em todo o Brasil, as regiões interioranas, de população relativamente escassa,
onde vigoram costumes e padrões culturais ainda rústicos” (DINIZ; COELHO,
2012, p.419) –, como também “através de tipos regionalmente configurados”,
162

como “o gaúcho, o vaqueiro cearense”, entre outros. (DINIZ; COELHO, 2012,


p.421).
Com isso, nesse eixo temático, apresentaremos, inicialmente, a viola e
sua relação com sons, imagens e cores locais. Em seguida, abordaremos o
violão como metáfora da pátria e expressão da “alma nacional”. Por fim,
apresentaremos uma síntese dos perfis que tocam o instrumento, os ambientes
que frequentam e os sentimentos que revelam.
Vamos agora dedilhar a viola, afinal, “o meu pinho é de primeira/ Não ‘faio’
os dedo nos traço”.36

4.1 “Quando a viola acorda na choça o sertanejo”37

O regionalismo, além de incluir “toda obra de arte” que “tem por pano de
fundo alguma região particular ou parece germinar intimamente desse fundo”,
trata, mais especificamente, da matéria carregada não só “de uma essência local
decorrente primeiramente do seu fundo natural – clima, topografia, flor, fauna,
etc.”, como também das “maneiras peculiares da sociedade humana
estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra”
(COUTINHO, 1955, v. 2, p. 146-147).

Os artistas que fazem seus trabalhos inspirando-se nas tradições, no


homem do campo, sempre colocam muito de si em suas obras. Vão
criando um mundo em cima do personagem, alimentado por seus
causos, modo de andar, alguma frase solta, um olhar, uma música
cantada, uma paisagem. (COUTINHO, 1955, p. 147).

Acompanhando o sertanejo, o caipira, matuto ou o caboclo, a viola


frequenta o ambiente da roça, da choça, das regiões interioranas e rurais do
país. O sujeito dedicado à lida do campo e dos animais representa o homem
forte e simples, porém marginalizado, em função das mudanças nas estruturas
econômicas (como os investimentos na criação de gado e no mercado urbano
de carne).

36 Trecho da canção Promessa de Violeiro, de Raul Torres e Celino Levestem (2018).


37 Verso do poema “O vidente”, do livro Os escravos (ALVES, 2019b).
163

Neste contexto, o instrumento se conecta com a “tradição do homem do


campo, pois a vida do sertanejo38 escorre melodiosa pelo bojo da viola. (FREIRE,
2003, p. 79). Pelos sons do instrumento somos lançados ao ambiente da roça,
uma vez que, através de seu ponteado, “mesmo quem nunca viveu no interior”,
tem uma lembrança de umas férias na fazenda, do cheiro de cavalo ou mesmo
de histórias de um avô que morava na roça (FREIRE, 2003, p. 92).
O caráter regionalista que a viola carrega, empresta e confere ao
conteúdo poético é, ao mesmo tempo, reforçado pelos elementos e contextos
que a envolvem e da qual participa. No poema de Álvares de Azevedo, “Na
minha terra”, dividido e numerado em três partes,39 o instrumento está cercado
pela atmosfera da natureza interiorana:

Na minha terra

Laisse-toi donc aimer! Oh! l’amour c’est la vie!


C’est tout ce qu’on regrette et tout ce qu’on envie,
Quand on voit sa jeunesse au couchant décliner!

La beauté c’est le front, l’amour c’est la couronne:


Laisse-toi couronner!
(V. HUGO)

Amo o vento da noite sussurrante


A tremer nos pinheiros
E a cantiga do pobre caminhante
No rancho dos tropeiros;

E os monótonos sons de uma viola


No tardio verão,
E a estrada que além se desenrola
No véu da escuridão;

A restinga d’areia onde rebenta


O oceano a bramir,
Onde a lua na praia macilenta (pálido/magro/cadavérico)
Vem pálida luzir;

E a névoa e flores e o doce ar cheiroso


Do amanhecer na serra,
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu de minha terra;

E o longo vale de florinhas cheio


E a névoa que desceu,

38 “O sertanejo é antes de tudo um forte... de dia! Porque de noite morre de medo do escuro e
corre para trás de sua mulher, que tem um contato mais intenso com Deus.” (FREIRE, 2003, p.
83).
39 Optamos por citar a primeira parte do poema pela referência direta à viola.
164

Como véu de donzela em branco seio,


As estrelas do céu.
(AZEVEDO, 2009, p. 41).

Com epígrafe de Victor Hugo já conectando e convidando o leitor ao


sentimento amoroso (“Deixe-se amar! Oh! O amor é a vida!”),40 o poema
apresenta-se repleto de imagens da natureza e sonoridades que evocam o
ambiente interiorano e rural. Dentre os elementos aos quais o eu lírico dedica
sua devoção, está a “cantiga do pobre caminhante” e “os monótonos sons de
uma viola” que, presentes no ambiente do rancho e nas mãos dos tropeiros,
mostram-se embutidos na paisagem, compondo a atmosfera bucólica e
evidenciando a efemeridade do sujeito errante.
Ao mesmo tempo em que a viola confere nuances regionais à cena
poética, o instrumento participa de certa identificação e de uma ideia de
nacionalismo e pertencimento. Devido ao título que a abarca, é possível inferir
que a viola tanto caracteriza, como está incluída, no reconhecimento de um
território (terra é lugar em que se nasceu e em que se vive: território, país, região)
que lhe é próprio (marcado pelo uso do pronome possessivo “minha”). Com isso,
a viola seria “da” e “na minha terra”.
O poema em primeira pessoa do presente traça um movimento temporal
da noite para o amanhecer e explora o sensorial, através de uma cena que
enquadra diferentes momentos e sentidos, como a escuta, a visão e o olfato.
Utilizando-se da partícula “e” como conectivo e forma de reiteração para
a apresentação dos elementos amados, o poema se encerra com uma estrofe
repleta de plasticidade, imagens e metáforas em torno do céu, da névoa e do
“véu de donzela”:

E o longo vale de florinhas cheio


E a névoa que desceu,
Como véu de donzela em branco seio,
As estrelas do céu.
(AZEVEDO, 2009, p. 41).

De maneira semelhante a Álvares de Azevedo, em Castro Alves, a viola


também frequenta ambientes rurais, com ares de saudade e de memória, mesmo
em poemas com traços revolucionários, como é o caso de “Adeus, meu canto”.

40 Tradução nossa. “Laisse-toi donc aimer! Oh! l'amour c'est la vie!”


165

Integrando o livro Os escravos, publicado postumamente, em 1884, o poema é


composto por três partes numeradas e faz referência à viola em sua segunda
seção:41

Adeus, meu canto

II

Eu sei que ao longe na praça,


Ferve a onda popular,
Que às vezes é pelourinho,
Mas poucas vezes — altar.
Que zombam do bardo atento,
Curvo aos murmúrios do vento
Nas florestas do existir,
Que babam fel e ironia
Sobre o ovo da utopia
Que guarda a ave do porvir.
(ALVES, 2019b).

Nessa primeira estrofe é possível perceber tanto o tom abolicionista que


cerca a construção poética, quanto o contexto em que o movimento é gestado,
efervescendo, no espaço da praça – “A praça, a praça é do povo/ Como o céu é
do condor” (ALVES, 1919a) – o desejo, até então utópico, de um amanhã liberto.
Na defesa dos ideais republicanos e na incessante luta pela abolição da
escravatura, caberia ao poeta a missão de estar “atento” junto ao povo, ser seu
guia e seu canto. Para o eu lírico – e também para o “Poeta dos Escravos” –
seria preciso romper o silêncio imposto à voz do negro, em meio à opressão, o
esquecimento e a camuflagem dos preconceitos e domínio das elites. O Brasil,
como último país do mundo a abolir a escravidão, carregava – arrastado – esses
vestígios e fantasmas:

Sombra – que o século arrasta,


Negra, torcida, a seus pés;
Tronco enraizado no inferno,
Que se arqueia escuro, eterno,
Das idades através.
(ALVES, 2019b).

O tema da escravidão não só perpassa o livro Os Escravos como


encontra ecos e desdobramentos, conforme explica Costa (2006):

41 Devido à extensão do poema, transcreveremos apenas alguns fragmentos.


166

Castro Alves pautava-se no projeto literário do seu tempo, não poupava


denúncias ao Império e celebrava em suas poesias os escravos, tema
que só ganharia maior espaço em 1870, com Coelho Neto, Olavo Bilac,
Artur Azevedo, dentre outros; e somente em meados dos anos 80 o
abolicionismo tomaria formato de um grande movimento popular e
urbano. (COSTA, 2006, p. 188).

No poema, se, por um lado, o canto acontece no presente (expresso por


verbos como “sei” e “ferve”) marcando a atualidade da luta e do contexto, por
outro, o eu lírico caminha para a exaltação da terra, do belo, da natureza
brasileira em versos que convidam a “Sim! cantar o campo, as selvas,/ As tardes,
a sombra, a luz”, “Ouvir o vento que geme,/ Sentir a folha que treme”, e “Passar
nos antros bravios/ Por onde o jaguar passou” (ALVES, 2019b).
Essa fratura entre a dura realidade vivida e a beleza de sua terra ganha
traços de passado na sétima estrofe, pois, além do sino que “chora triste”, a viola
evoca os sentimentos de saudosismo e nostalgia. É importante pontuar que o
instrumento aparece cercado pelos elementos que, de maneira recorrente, o
envolvem, como a fogueira, a cantoria à noite, o ambiente bucólico (cercado de
natureza), as mulheres – e aqui o plural merece destaque – e “a linda serrana”
(com seu canto de “mole tirana”). A viola, nesse contexto, serve de expressão,
mas também de amparo ao sertanejo, pois é o instrumento que lhe serve de
refúgio e lenitivo:

Já também amei as flores,


As mulheres, o arrebol,
E o sino que chora triste,
Ao morno calor do sol.
Ouvi saudoso a viola,
Que ao sertanejo consola,
Junto à fogueira do lar,
Amei a linda serrana,
Cantando a mole tirana,
Pelas noites de luar!
(ALVES, 2019b).

Ao utilizar nessa estrofe o pretérito perfeito (“amei”), o eu lírico retoma o


passado como uma referência de identificação com a terra que, em meio às
feições oníricas e nacionalistas, aparece conjugada, em tons de denúncia e
crítica, com o presente de sofrimento e luta – aspecto que representa uma cisão
com os cânones românticos. Dessa forma, saímos do ambiente saudoso e
enaltecido da natureza, da viola e do sertanejo, para o presente modificado.
Nada é mais o mesmo. Resta o canto de saudade diante das contingências da
167

cidade, do regime e do trabalho. Nesse ponto, a ideia de trabalho se contrapõe


ao elogio da vagabundagem, abordada anteriormente, pois “Soa a ideia, soa o
malho,/ O ciclope do trabalho” [...] "Braços! voltai-vos pra terra,/ Frontes voltai-
vos pros céus!" (ALVES, 2019b).
O poeta que tem “a verdade por farol” deve ocupar seu lugar e cumprir a
função de iluminar e conduzir a “nau da civilização”. Ao bardo não é possível
fugir de seu destino, pois escapar ao seu mister representaria uma traição,
conforme adverte o eu lírico ao afirmar “Oh! maldição ao poeta/ Que foge – falso
profeta –/ Nos dias de provação! “(ALVES, 2019b).
O poema termina com a invocação de um canto que é de libertação e de
“porvir”: “canto do futuro é o seu canto. Não chora o negro, ele o levanta”
(AMADO, 2010, p. 167). Aproximando-se do condor, que enxerga a grandes
distâncias, e também da figura do descobridor, o eu lírico anuncia e clama “–
"Meu canto, voa,/ Terra ao longe! terra à proa!.../ Vejo a terra do porvir!” (ALVES,
2019).
Com influências do pensamento liberal do final do século XIX e
comprometido com combate ao sistema escravagista, o poema “Adeus, meu
canto!” carrega um sentido simbólico reforçado também por seu título. Se a voz
é de partida, ela é também de “amor e criação”. Se revela dor e sofrimento,
também fala de pertencimento, origem, esperança e luta. Condensados no título,
o caminho revolucionário a ser trilhado abre-se a outros significados, pois “canto”
é tanto lugar, quanto voz. No poema, o canto-lugar/canto-terra já não é mais o
mesmo, pois está em transformação direcionada ao futuro almejado – igualitário
e liberto. Porém, para isso, é necessário o “adeus”, despedida que funciona não
só como temática desse canto-canção-voz (“É a hora da partida...”), como
também imprimi uma noção de território, pois, apesar de estar em sua terra, esse
não é mais seu lugar, é preciso um novo descobrimento (“Terra ao longe”).
Amado (2010) nos fornece uma síntese da clareza, da força e da tensão
desse canto:

Seu herói é o negro. Canta-o desde a África [...] e o acompanha passo


a passo na sua nova terra, mais bela talvez, mais desgraçada com
certeza. Canta-o em todos os momentos: na tragédia de nascer
escravo e ser arrancado aos braços da mãe, na antítese da sua vida
com a vida do senhor, na sua impossibilidade de amar e de ser amado,
na sua velhice insultada e sem lar, na morte e também fugido na selva,
bandido negro, pronto para a vingança. E não canta apenas. Maldiz
168

aquele que o escraviza, o vende e o compra, que o desonra e avilta.


Maldiz o poeta que foge ao seu destino de cantador do povo. Maldiz o
sacerdote que é um sustentáculo do senhor. Seu canto é completo,
profundo e poderoso, estremeceu a escravidão nas suas raízes,
levantou o povo (AMADO, 2010, p. 143-144).

Ao passarmos da lírica amorosa – apresentada na primeira parte deste


trabalho – para as feições condoreiras do poeta, é possível perceber que a viola
ocupa um lugar de identificação com o nacional pelos sentimentos de
pertencimento evocados, ao mesmo tempo em que, por suas associações e
caraterísticas ligadas ao regional, seu canto está ligado à figura do sertanejo, ao
matuto. Essa observação é relevante, pois, apesar da ampla circulação do
instrumento no acompanhamento de canções e da existência de relatos de
escravos tocando viola no século XIX, o que vemos através do poema é o reforço
das caraterísticas regionais do instrumento, e, é claro, seu duplo, ao conferir
tonalidades nacionalistas e regionalistas ao poema.
Se, por um lado, estão atribuídas à viola a atmosfera rural e interiorana,
por outro, essa mesma característica determinaria certo aprisionamento e
afastamento das cidades por sua associação à cultura mais baixa, às expressões
musicais ou folclóricas ou à margem, no século XIX. Essa dualidade fica explícita
em uma crônica de França Júnior, conforme comenta Sandroni (2001):

[...] já nos anos 1880, a propósito de um tocador de viola que se


produzia em concerto na capital federal: “o cenário da viola é a senzala,
o rancho do tropeiro, a casinha de sapé, o alpendre da venda, e o
terreiro da fazenda em noite de festa”, isto é, o cenário da gente pobre
do interior do país. Daí a surpresa em vê-la, a viola, no palco de um
teatro, diante de um público urbano; mas a aparente incongruência se
explica pela mudança de repertório: “não vinha (a viola) ali acompanhar
um fado, ser cúmplice de um cateretê, ou requebra-se dengosa nos
sapateados de um voluptuoso samba. A sua missão era outra: alcançar
foros de cidade!” (SANDRONI, 2001, p. 87).

A contraposição simbólica vem, segundo Nogueira (2009), de tempos


anteriores à chegada do instrumento no Brasil, representando já em Portugal um
dos “males” e riscos aos costumes, normas e valores sociais:

[...] aos males que por causa das violas se sentem por todo o Reino; e
pelas gentes que delas se serviam para, tocando e cantando, mais
facilmente escalarem as casas e roubarem os homens de suas
fazendas, e dormirem com suas mulheres, filhas ou criadas, que, ‘como
ouvem tanger da viola’, vão-lhes desfechar as portas. (OLIVEIRA,
1966, p. 127, apud NOGUEIRA, 2008, p. 207).
169

Por tal perigo, o sujeito que “[...] fosse pego nas ruas com ‘viola’ após 9h
da noite e que, ficando comprovado que não fosse para festa ou casamento,
deveria ser detido, ter sua ‘viola’, armas e roupas confiscadas.” (BUDASZ, 2001,
apud CASTRO, 2007, p. 20)
Retomando brevemente a trajetória do instrumento, vimos anteriormente
que a viola apresenta significativas e amplas configurações em relação à
estrutura, tamanho, afinação, número de cordas, variando conforme práticas
sociais e culturais, localidade, uso, região, grupo social e período histórico em
que está inserida:

No Brasil, as tradições musicais de origem portuguesa foram-se


alterando conforme a realidade de cada região e os diferentes níveis
de interação com culturas distintas, principalmente a negra e a
indígena. Dessa mescla de culturas, surgiram outros instrumentos de
cordas ligados a manifestações populares, notadamente a viola-de-
cocho e, mais raras, a viola de buriti, a de cabaça e a de bambu
(CORRÊA, 2002, p. 55).

O termo viola geralmente vem acompanhado de complemento que a


caracterize, sendo mais comumente conhecida, no contexto brasileiro, a viola
caipira (o mesmo que viola de arame), definida pelo Dicionário Grove de
Música (1994) como:

Instrumento folclórico brasileiro, semelhante ao violão, mas de menor


tamanho, com cinco ou seis pares (“ordens”) de cordas metálicas
dedilhadas, com afinação variável. Originária de Portugal, onde é
conhecida em certas regiões como “viola de arame”, a viola é
característica da música sertaneja brasileira; também chamada
popularmente de “pinho”. (VIOLA, 1994, p. 996).

Vinda de Portugal, pelas mãos dos jesuítas,42 a viola participou da


“formação do bom cristão”, como recurso de catequese e aculturação dos
gentios, “enxergados pela metrópole portuguesa como [...]” “aquele outro
estranho, raro, singular, no qual o divino e o diabólico se alternavam” (GARCIA,
2013, p. 11).

42“É interessante notar que, ao introduzir a viola na catequese de forma sistemática, os


jesuítas transmitiram rudimentos da técnica de execução, assim como da técnica de confecção;
ainda vivo no Brasil atual, há um tipo de viola rústica – a viola de cocho – tipo de instrumento
de madeira não envernizada, dotado de cordas de tripa (atualmente já de nylon), usado no
acompanhamento dos cururus, dos siriris e dos cateretês, gêneros originados da catequese.”
(TABORDA, 2002, p. 143).
170

No século XVI, o instrumento se propaga pelas mãos dos portugueses


para as regiões colonizadas, atuando como acompanhador da voz nos diversos
gêneros, práticas e festividades populares. No século seguinte, a viola feita de
cabaça pelo poeta Gregório de Matos Guerra não só participa do espaço de
crítica e boêmia, como escancara o processo de adaptação e incorporação do
instrumento ao contexto brasileiro.
Nas profundas transformações da viola ao longo da história e sua
ramificação pelo território brasileiro, além de acompanhar a popularidade das
modinhas e lundus de Domingos Caldas Barbosa, no século XVIII (tanto no Brasil
quanto em Portugal), há registros de sua construção, produção e venda em Vila
Rica – conforme inventário de Domingos Ferreira (1709-1771). Há também
indicações de sua execução, como a registrada na pintura Tangedor de viola –
feita em teto residencial de Diamantina (MG) e exposta no Museu Regional de
São João del-Rei (MG).

Figura 15 - Pintura “Tangedor de viola”

Fonte: MUSEU REGIONAL DE SÃO JOÃO DEL REI, 2018.

Com a propagação das variantes locais43 e a popularização do


instrumento (tocado também pelos escravos africanos, conforme registros em
periódicos do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Minas Gerais), a

43Como as violas de Queluz, produzidas a partir das violas toeiras (de Portugal), no final do
século XIX e início do século XX, na cidade de Queluz (atual Conselheiro Lafaiete).
171

viola permanece atrelada à função de acompanhadora das canções populares,


principalmente ligadas à tradição oral.
Se, nesses fins do século XIX e começo do século seguinte, a distinção
entre a viola (considerada elemento regional) e o violão (assimilado e
incorporado ao ambiente urbano) fica ainda mais acentuada, há, no entanto, uma
perspectiva impulsionada pelo movimento modernista brasileiro de valorização
das manifestações à margem das elites e centros dominantes. Tendo como um
marco a Exposição Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos
(1908),44 no Rio de Janeiro, com seus estandes com produtos típicos de todos
os estados brasileiros, o componente pitoresco passa a ser reconhecido e
apreciado já nas primeiras décadas do século XX. Além desse “ponto de partida
para o interesse dos cariocas pelos exotismos rurais”, o sucesso e a
popularidade, em 1914, da obra Caboca di Caxangá, composta por Catulo da
Paixão Cearense e João Pernambuco, inspiraria a formação de um conjunto
musical denominado Grupo de Caxangá,45 do qual participariam importantes
nomes como Donga, Pixinguinha, Caninha e Quincas Laranjeiras. Além de
adotarem codinomes sertanejos e usarem vestimentas inspiradas no bando do
cangaceiro Antônio Silviano, “seus integrantes saíam no carnaval tocando em
ritmo de choro não só toadas sertanejas, como Cabocla de Caxangá, mas
também gêneros urbanos compostos pelo grupo” (NAVES, 1998, p. 11).
A preservação e divulgação dos gêneros afeitos ao rural envolvia não só
os variados espaços da cidade (incluindo o teatro de revista e o circo), como
também apresentava “gêneros regionalistas então em moda, como desafios
sertanejos, cateretês, canções sertanejas etc.” (NAVES, 1998, p. 14). Em
convivência com os ideais modernos e os gêneros musicais urbanos, como o
samba e o choro, a tendência regionalista aparece refletida na caricatura do

44 Somando-se a isso: “Almirante cita as conferências proferidas por Afonso Arinos, em 1915,
sobre temas folclóricos, no Teatro Municipal de São Paulo, a apresentação de autos e danças
dramáticas tradicionais. O autor também menciona as pesquisas folclóricas promovidas por
Villa-Lobos, que passou a viajar pelo Nordeste, e por João Pernambuco, que, financiado por
Arnaldo Guinle, andou por vários lugares à cata de material.” (NAVES, 1998, p. 15).
45 A repercussão foi tanta que impulsionou a criação de outros grupos musicais do gênero:

“Esse gosto pelo sertanejo teria continuidade na década de 20, dando o tom para a maioria dos
conjuntos musicais que se constituíram no período, como Os Oito Batutas, o Flor do Tempo e o
Bando de Tangarás. Os Oito Batutas apresentavam um repertório constituído de maxixes,
lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques, cateretês etc.” (NAVES, 1998, p. 15).
172

homem rural, na figura do jeca tatu, criada por Monteiro Lobato, e os sentimentos
do caboclo migrante e simples – mas forte –, cantado na Tristeza do Jeca:

É certo, por exemplo, que o samba e a marcha tenderam a consagrar


a cidade, ou alguns de seus redutos, assim como incorporaram em sua
linguagem temas associados à modernização ou ao cotidiano das
grandes cidades. Mas foram divulgados pela mídia junto com outros
gêneros – emergentes ou não – de formato rural, ou sertanejo, como é
o caso do estilo roceiro da região Centro-Sul denominado “moda de
viola”, que apareceu nos anos 30 e teve bastante repercussão. Esse
estilo, na verdade, já é prenunciado desde que a toada Tristeza do
Jeca, composta por Angelino de Oliveira em 1926, alcança grande
repercussão na cidade e introduz a forma de apresentação das duplas
caipiras. (NAVES, 1998, p. 13).

Mais que um desvio às tendências modernizantes e urbanas, o


provinciano, nos anos 20 e 30, participa do processo de ampliação pela
incorporação – e não substituição – de um repertório musical. Ele transita e opera
na polifonia das expressões culturais. Naves (1998) explica que,

[...] além da criação de linguagens musicais condizentes com a babel


que se configura no Rio de Janeiro nos anos 20 e 30, seria apressado
afirmar que um gosto urbano se teria tornado hegemônico no período,
substituindo inteiramente, por exemplo, um tipo de sensibilidade
provinciana e afeita ao rural. Também seria difícil imaginar que uma
linguagem “moderna” prevaleceria completamente sobre formas
“antigas”, ou que o sublime cederia de vez terreno para uma
interlocução inteiramente voltada para o coloquial (NAVES, 1998, p.
14).

Nesse processo, a alternância, a mobilidade e a coexistência das


linguagens caminham não em direção à homogeneidade cultural – como poderia
intentar o movimento modernista na busca ou construção de uma identidade
brasileira –, mas, sim, ao fortalecimento das diferenças, combinações e
cruzamentos.

Uma das maneiras, por exemplo, de os músicos populares se


pautarem pelo registro do sublime é recorrer a uma dicção provinciana,
pouco afeita à incorporação das linguagens modernizadas da
metrópole. Promove-se, nesse caso, a própria sublimação dos
elementos não corrompidos pelo processo civilizador que se desenrola
nas grandes cidades. De certa forma, quando desenvolvem esse estilo
ruralizado, eles se mostram afinados com a estética musical do
modernismo, muito embora os populares já esboçassem esse gesto
negador da vida urbana desde o início do século. De acordo com a
historiografia sobre o assunto, os músicos populares teriam
encontrado, a partir desse momento, um campo propício para o
desenvolvimento de temas folclóricos, a começar pelas reformas feitas
173

por Catulo da Paixão Cearense na modinha, adaptando-a “ao gosto


pelo exótico nacional.” (NAVES, 1998, p. 13).

Nesses processos de mediação e circulação, a viola frequentou tanto o


ambiente das elites, quanto as manifestações culturais da população mais pobre,
em mãos, majoritariamente, masculinas. Apesar de marcadamente regional, o
instrumento também acompanhou serenatas, trovas, jograis e danças no
contexto urbano, como nos conta Mário de Andrade:

Minha viola bonita,


Bonita viola minha,
Cresci, cresceste comigo
Nas Arábias.

Minha viola namorada,


Namorada viola minha,
Cantei, cantaste comigo
Em Granada.

Minha viola ferida,


Ferida viola minha,
O amor fugiu para leste
Na borrasca.

Minha viola quebrada,


Raiva, anseios, lutas, vida,
Miséria, tudo passou-se
Em São Paulo.
(ANDRADE, 1966, p. 281).

Este poema, que abre o livro Lira Paulistana, escrito em 1944 e publicado
postumamente, em 1947, apresenta não só importantes – e porque não dizer
deliberadas – caraterísticas musicais, como elege a viola o instrumento de seu
cantar e o mote de sua construção poética. As referências musicais se
desdobram em reflexos, espelhos e recortes que fazem do poema uma
interessante fonte de articulação entre as esferas musicais e literárias, por meio
da exploração de recursos sonoros e simbólicos presentes tanto no texto, quanto
nas referências extratextuais que o permeiam, conforme observaremos ao longo
desta análise.
Os vinte e nove poemas que compõem o livro estão conservados em
manuscrito e seu processo criativo, bem como a tensão que dele participa,
principalmente entre o individual e o coletivo, são comentados pelo autor em
carta à poetisa e amiga Henriqueta Lisboa, datada de 3 de agosto de 1944:
174

Agora veja Henriqueta: Alguns desses poemas são de “reações


pessoais”, como você diz, outros são do que você chama e toda a
gente “poesia social”. Mas todos são absolutamente individualistas,
isso não há dúvida. São “meus”. Pra esclarecer, eu acho que não se
deve chamar de poesia ‘social’ a que tem preocupações com a
coletividade. Porque toda poesia, toda obra de arte é “social”, porque,
mesmo se preocupando exclusivamente com as reações pessoais do
artista interessa à coletividade. Muito embora não cante, não se
interesse pela coletividade. O que em geral andamos por aí chamando
poesia social, é poema de circunstância, é arte de combate. Veja bem
como esta simples mudança de nome esclarece as coisas e determina
as posições. (ANDRADE, 1944, apud SOUZA, 2010, p. 290-291).

Essa declaração também deixa entrever o caráter híbrido e múltiplo em


que se equilibra tanto a busca de Mário de Andrade na construção de sua obra,
quanto em relação à tentativa de construção de uma identidade nacional. O
movimento por vezes oscilatório, por vezes aglutinador, mantém-se nos
entremeios das polarizações e ambiguidades entre o eu e o outro, entre a
pluralidade e a individualidade, entre o nacional e o estrangeiro, o popular e
erudito, revelando “um processo irregular e heterogêneo de modernização, que
não nos permite atingir a modernidade (MAJOR NETO, 2006, p. 23).
Entre o “nosso” e o “novo”, o processo de construção da identidade
brasileira envolve a complexidade e a diversidade cultural e social, com suas
particularidades, tensões e conflitos, ao mesmo tempo em que deixa
transparecer sua perda ou impossibilidade de sua determinação. Para Major
Neto (2006),

o trabalho do escritor modernista em busca de uma síntese linguística


nacional mostra pelo avesso a impossibilidade de realização do projeto
de revelação da identidade nacional, uma vez que a ideia de nação é
fortemente ideológica. (MAJOR NETO, 2006, p. 65).

O analista compreende, ainda, que a consciência de classe, que passa


necessariamente pela consciência de si mesmo, emperra qualquer visão positiva
do processo de formação nacional e coloca a cisão individual e coletiva no centro
do discurso poético. (MAJOR NETO, 2006, p. 65).
Além das profundas transformações na estrutura das cidades e nos
modos de vida decorrentes da urbanização nas primeiras décadas do século XX,
o país entra, a partir dos 1930, no regime ditatorial da Era Vargas. Ao lado dos
impactos e influências que essas mudanças imprimiram no projeto literário do
autor, é notória sua utópica busca pela construção de uma identidade brasileira,
175

cujo cerne estaria nas expressões folclóricas nacionais. Os estudiosos do poeta,


como Nunes, consideram que:

no período pós-1924 era no primitivismo, nos elementos tradicionais


do folclore nacional, que Mário procurava redescobrir o seu país, ir ao
encontro da essência social e cultural de seu povo, familiarizando-se
com uma porção esquecida, ou mesmo rejeitada, ante as discussões
literárias. (NUNES, 2006, p. 30).

Por esse processo, a presença da viola no poema, como elemento central,


traria um caráter nacional – como representação do interior rural brasileiro e
“genuíno” –, em associação com a projeção da “moda de viola” e das tendências
regionalistas vigentes nos grandes centros.
No poema, o instrumento recebe adjetivações antagônicas, em um
primeiro olhar – Viola Bonita, Namorada X Viola Ferida, Quebrada. Porém essa
aparente oposição também traça um percurso que se estende à representação
amorosa, envolvendo o encontro e a fratura, a partir do seguinte caminho:
deslumbramento → aproximação/realização → golpe → ruptura:

Figura 16 - A viola e a representação amorosa no poema “Minha viola bonita”

Viola Bonita Namorada Ferida Quebrada

Desgosto/
Coração Encanto Encontro
desilução
Ruptura

Fonte: Elaborada pela autora desta tese.

Transparece, com isso, que o instrumento tanto é capaz de acolher e


aglutinar caraterísticas por vezes opostas, quanto atuar como metáfora, espelho
e representação do sujeito e do sentimento amoroso.
Além do que paira ao redor da viola, a dualidade estabelecida pelo jogo
de contrários também se manifesta pelos lugares citados no poema – “Arábias,
Granada” X “São Paulo”. Em um gesto semelhante ao anterior, torna-se
perceptível não só a oposição gerada, mas também a direção criada através da
176

movimentação pelos espaços: Cresceu nas Arábias → Cantou em Granada →


Fugiu na borrasca ("O amor fugiu para leste”) → “tudo passou-se em São Paulo”.
É preciso, no entanto, ainda destacar que esse percurso vai ao encontro
da própria trajetória do instrumento:

Figura 17 - Paralelo entre os espaços criados pelo poema “Minha viola bonita”
e a trajetória do instrumento

Arábias Granada São Paulo

• "Cresceu, • "Cantou, cantaste • Onde "tudo


crecesce comigo" comigo" passou-se"
• Ligação com as • Andaluzia- Berço • "Raiva, anseios,
origens do violão do violão lutas, vida"
• Conexão com o
Cante Jondo

Fonte: Elaborada pela autora desta tese

Por essa perspectiva, o poema traz à tona as origens do instrumento, pois


conforme uma hipótese bastante difundida, o violão e a viola seriam derivados
do Alaúde Árabe, o ud (ou “Oud”) e da Guitarra Mourisca, cuja chegada à
Península Ibérica se deve às invasões mulçumanas ocorridas no século VIII. Se
o instrumento surge e cresce nas “Arábias”, é em Granada que ele canta alto,
forte e profundo – com o cante jondo, as expressões do flamenco, o repertório
clássico, o desenvolvimento técnico e os imbricados processos de sua
configuração estrutural –, alcançando uma projeção e popularização definitiva e
sem igual.
Como o poema está sob a égide da Lira Paulistana, o título do livro nos
remete à outra hipótese originária, uma vez que lira, viola e violão se aproximam
em termos metafóricos e pertencem à mesma classificação de cordofones,46 os
do “tipo do alaúde e da lira”. Segundo outra hipótese, o violão teria sua origem

46A viola e o violão, conforme comentamos no início deste trabalho, pertencem à classe dos
cordofones (1994) definidos, conforme o Dicionário Grove de Música, “[...] como aqueles
instrumentos que produzem som por meio da vibração de suas cordas; vibração essa, causada
quando ‘dedilhados, pinçados, percutidos ou tangidos com arco’”. Por suas especificidades,
são classificados em três grupos de instrumentos: os do “tipo da cítara”, como o piano; “tipo do
alaúde e da lira”, entre eles, o violão, a viola-de-cocho, e o alaúde; e, por fim, os instrumentos
do “tipo da harpa”.
177

na Khetara Grega e da Cítara romana (ou Fidícula), que nos séculos XIII e XIV,
se transformaria na Guitarra Latina, conforme descreve Pujol:

Os seus braços dispostos da forma da lira foram se unindo, formando


uma caixa de ressonância, a qual foi acrescentado um braço de três
cravelhas e três cordas, e a esse braço foram feitas divisões
transversais (trastes) para que se pudesse obter de uma mesma corda
a ser tocado na posição horizontal, com o que ficam estabelecidas as
principais características do Violão. (PUJOL, 1932).

A lira (2018), “antigo instrumento de cordas, em forma de U”, é também


definida pelo dicionário como “a viola dos cantadores”, o que reforça seu sentido
metafórico e sua intrínseca relação com a viola e o violão, como acontece tantas
vezes na obra de Catulo ou nos poetas românticos. O termo também poderia ser
pensando aqui como uma referência do autor a Álvares de Azevedo, em sua Lira
dos vinte anos, e ao qual Mário de Andrade dedica o ensaio Amor e medo,
publicado em 1943.
É importante observar, no entanto, que o instrumento escolhido para
representar o cantar é a viola, e não o alaúde ou a lira. É por meio – e por estar
de posse – do instrumento que o sujeito poético (em 1ª pessoa, marcada pela
conjugação verbal e utilização dos pronomes possessivo “minha” e oblíquo
“comigo”) confere às duas primeiras estrofes conjecturas originárias e
características líricas e oníricas. Porém, esse caráter começa a se modificar a
partir da terceira estrofe que, além de estabelecer uma transição, também expõe
a tensão: a mudança não é pacífica, pois acontece na “borrasca”. O amor e os
sentimentos anteriormente evocados foram despedaçados no temporal.
Da visão – ou história – fugidia, somos arremessados à experiência
palpável e mais próxima do real. Quebra-se o ritmo formal para trazer “a cidade
arlequinal” que está “sempre fundida ao seu ser” – conforme Telê Ancona Lopez
(1984) – e onde, no poema, “tudo passou-se”.
Em termos sonoros e musicais, Mário de Andrade desenha no poema um
movimento que suscita um efeito pendular criado pela repetição invertida dos
termos nos dois primeiros versos – correspondendo a um efeito de arco de frase,
ou um arpejo que vai e volta – e de crescendo no terceiro verso:

Minha viola bonita,


Bonita viola minha,
Cresci, cresceste comigo
Nas Arábias.
178

Minha viola namorada,


Namorada viola minha,
Cantei, cantaste comigo
Em Granada.
(ANDRADE, 1966, p. 281).

Esse efeito pode ser entendido também como reversão, ou seja, “a


transformação pela qual a última nota de um contorno musical é usada como
início de outro, seguida pela penúltima como a segunda, e assim por diante, até
atingir a primeira” (PIVA, 1990, p. 87). Em relação à esfera poética, a repetição
de palavras na mesma frase não só enfatiza determinadas cenas, como se
configura como “dobre”:

Repetição vocabular simétrica, podendo a palavra repetida estar no


início, no interior ou no final do verso. A disposição escolhida para a
primeira estrofe tem de ser a mesma em todas as estrofes ou, embora
a repetição tenha que ocorrer em todas as estrofes, a palavra repetida
pode ser diferente de estrofe para estrofe. (OLIVEIRA, 2009, p. 166).

Além das imagens em espelho geradas pela repetição dos termos, há


também algumas reiterações fonéticas provocadas pelas assonâncias
produzidas pelos fonemas vocálicos ([e], [i], [a], [e]) e as aliterações ([cr], [c], [t]),
presentes no terceiro verso das estrofes.
Desconstruindo as poucos o desenho formal criado, porém sem perder
seu fio condutor, a terceira estrofe representa o momento de passagem, em que
mantendo a estrutura e o movimento inicial (Minha viola bonita / Bonita viola
minha; Minha viola namorada / Namorada viola minha; Minha viola ferida / Ferida
viola minha) (ANDRADE, 1966, p. 351), estabelece uma mudança caracterizada
tanto pela ausência do gesto de crescendo no terceiro verso, quanto pela
introdução do adjetivo opositor – em relação aos apresentados anteriormente.
Ela dissolve os lugares evocados e prepara a chegada do espaço concreto
revelado na última estrofe.

Minha viola ferida,


Ferida viola minha,
O amor fugiu para leste
Na borrasca.

Minha viola quebrada,


Raiva, anseios, lutas, vida,
Miséria, tudo passou-se
Em São Paulo.
(ANDRADE, 1966, p. 351).
179

O poema se encerra com a diluição quase completa do gesto cíclico


recorrente, permanecendo, apenas, a base ou impulso inicial (“Minha viola
quebrada”), e criando, com isso, um desacelerado ou uma agógica musical de
rallentando até o fim. Além desse efeito, o entrecortado de termos do segundo
verso (“Raiva, anseios, lutas, vida”) denota os reflexos do estado interior e
anímico do sujeito. Assim como a cidade de São Paulo, o eu lírico também revela
e se compõe tanto de suas fraturas, rupturas e faltas, como de horizonte, desejos
e possibilidades. As palavras que parecem baralhadas e fragmentadas no verso
criam e revelam as imagens captadas, como flashes urbanos, fotos de instantes,
que transitam do imaginado para o concreto e refletem o interior do sujeito.
“Raiva, anseios, lutas, vida, miséria” abarcam e ultrapassam o espaço da cidade,
em um movimento de identificação e exposição dos sentimentos internos. “Tudo
passou-se” dentro e fora do sujeito, confidenciado e revelado pela – e na – viola.
Pelo profundo conhecimento sobre música e constante trabalho de
pesquisa realizado pelo poeta, é possível inferir a aplicação ou o uso consciente
tanto dos recursos sonoros, musicais e expressivos em sua criação literária,
quanto das remissões a elementos extratextuais. Além das regiões das Arábias
e de Granada possibilitarem conexões com a própria trajetória do instrumento,
os dois locais possuem também uma profunda relação com o trovadorismo por
sua importância para o desenvolvimento da prática. Apontando as aproximações
do poema ao jogral galego, em especial à cantiga de amigo, de Martin Codax
(meados do século XIII e início do XIV), Oliveira (2009) explica que:

O primeiro ponto de contato que aproxima o poema de Mário de


Andrade da poética de Codax é a presença de um vocativo iniciando o
verso da primeira estrofe “Minha viola bonita”, similar ao verso inicial
da cantiga III do jogral viguês “Mia irmana fremosa”. Codax repete o
vocativo nas duas estrofes iniciais, acompanhado do mesmo adjetivo,
enquanto o poeta brasileiro produz, em cada estrofe, uma alteração,
responsável pela mudança temática e que permite a construção de
uma narrativa poética. A utilização de recursos medievais, na poesia
de Andrade, assume uma função bem mais ampla do que uma simples
renovação, tanto técnica quanto temática. (OLIVEIRA, 2009, p. 129).

Essa correspondência fica ainda mais clara nas palavras de Mário de


Andrade ao comentar sobre o processo de criação do livro:

Assim mesmo, uma semana faz, deu a louca, fiz uma série de
poesiazinhas, umas quinze, curtas, que não sei como chamo: Poemas
Paulistanos, Cuíca Paulistana, Lira Paulistana, tem de ser um nome
180

assim, porque são poemas de São Paulo. Ou melhor: poemas urbanos.


[...] A história da invenção desses poemas é engraçada, embora seja
mesmo um feito meu. Em 1936, lendo um livro de Paul Radin, Primitive
Man as Philosopher fiquei impressionado com uns cantos maoris que
achei nele. Dias depois li na Revista Lusitana umas poesias do jogral
Martim Codax, galego, não me lembro mais se dos séc. XII ou XIII.
Achei lindo, veio a idéia (sempre falsa mas acatável em poesia) de
fazer uns poemas naquele espírito e renovando aquelas técnicas.
Peguei uns caderninhos de fazer versos, tomei nota de tudo e datei.
(ANDRADE apud MANFIO, 1987, p. 34).

A referência direta e recorrente à viola coloca o instrumento tanto como o


fio condutor quanto eixo do poema e de suas articulações. Junto dela, o eu lírico
sabe e expõe sua identidade, sua história, seus conflitos e quebras. Por ela, o
autor articula musicalidade, sonoridade, passado e presente, e estabelece a
permanência, em meio às mudanças na forma e na estrutura poética. E é por
meio dela que chegamos não só ao trovador, como também ao sertanejo.
Mário de Andrade (1972), ao abordar, pesquisar e recolher (através das
viagens empreendidas) as manifestações folclóricas do interior do país, defende
seu uso – com base num tratamento artístico – na criação de obras com um
caráter “genuinamente” brasileiro. Ora, se são consideradas como depositárias
do cerne autóctone, então a presença da viola no poema traria feições e
tonalidades identitárias e nacionalistas. Esse é um ponto importante, pois, ao se
referir à “Minha viola quebrada”, o autor cria não só uma representação da fratura
(no ser, na cidade e no andamento do poema), como traça uma sequência de
ligações extratextuais – em um labirinto espelhado – que, em ecos e reflexos,
ressoam no verso, canção do próprio autor Mário de Andrade – intitulada Viola
quebrada – e na embolada de Catulo que a inspirou. Vejamos a letra da canção:

Viola Quebrada

Quando da brisa no açoite a frô da noite se acurvou


Fui s'incontrá co'a a Maroca, meu amor
Eu tive n'arma um choque duro
Quando ao muro já no escuro
Meu olhar andou buscando a cara dela e não achou

Minha viola gemeu


Meu coração estremeceu
Minha viola quebrou
Teu coração me deixou

Minha Maroca resolveu pra gosto seu me abandonar


Porque o fadista nunca sabe trabaiá
Isso é besteira que das frô
Que bria e chera a noite inteira
181

Vem dispois as fruta que dá gosto de saborear

Minha viola gemeu


Meu coração estremeceu
Minha viola quebrou
Teu coração me deixou

Pru causa dela eu sou rapaz muito capaz de trabaiá


Os dias inteiro e as noite inteira capinar
Eu sei carpir porque minh'arma tá arada e loteada
Capinada co'as foiçada dessa luz do teu oiá.
(ANDRADE, 1926).

Essa modinha composta, em 1926, por Mário de Andrade e harmonizada


por H. Villa-Lobos, versa sobre o desencontro amoroso contado pela linguagem
e o modo de falar do interior. Além dos termos e expressões do cotidiano, da
oralidade e simplicidade do caipira, a representação do sofrimento da separação
e da atmosfera provinciana se dá também, em nível musical, pelo uso de
apogiaturas47 e glissandos48, provavelmente remetendo ou emulando o “jeito” de
cantar do sertanejo, carregado de um “portamento arrastado da voz” – “cujas
vibrações não atingem os graus da escala” – e umas formas de “entoar”, tão
“originais, características e dum encanto extraordinário”:

Nosso timbre vocal possui um caracter passível de se aperfeiçoar. No


canto nordestino tem um despropósito de elementos, de maneiras de
entoar e de articular, susceptíveis de desenvolvimento artístico.
Sobretudo o ligado peculiar (também aparecendo na voz dos violeiros
do centro) dum glissando tão preguiça que cheguei um tempo a
imaginar que os nordestinos empregavam o quarto-de-tom. Pode-se
dizer que empregam sim. (ANDRADE, 1972, p. 56-57).

Se a “Viola Quebrada” nos lança aos rincões do Brasil, ela também nos
conduz a Catulo, conforme explica Mário de Andrade, em carta enviada ao poeta
Manuel Bandeira, em 1926:

Sobre a Maroca... Você quer escutar uma confidência só mesmo pra


você? Pois isso é o pasticho mais indecentemente plagiado que tem.
No que aliás não tenho a culpa porque toda a gente sabe que não sou
compositor. A Maroca foi friamente feita assim: peguei no ritmo
melódico de Cabocla do Caxangá e mudei as notas por brincadeira me
vestindo. Tenho muito costume de sobre um modelo rítmico qualquer

47 "Uma 'nota apoiada', normalmente um grau conjunto acima (menos frequentemente abaixo)
da nota principal. Costuma criar uma dissonância na harmonia e resolve-se por grau conjunto
sobre a nota principal, no tempo fraco seguinte." (APOGIATURAS. 1994, p. 35).
48 Ornamento que consiste no ato de “deslizar” de uma nota à outra: “efeito produzido pela

rápida passagem dos dedos (em instrumentos de cordas ou teclado) ou do ar (em instrumentos
de sopro como o trombone de vara) por uma série de notas consecutivas ou pela escala
musical completa.” (GLISSANDO, 2019).
182

inventar sons diferentes pra me dar uma ocupação sonora quando me


visto. Assim saiu a Maroca que por acaso saindo bonita registrei e fiz
versos pra. Só o refrão não é pastichado da rítmica melódica da obra
de Catulo [da Paixão Cearense]. E a linha que inventei tem dois dos
tais torneios melódicos que especifiquei na Bucólica, coisa que aliás só
verifiquei agora pois nunca tinha ainda matutado nisso. Aliás o refrão
não tem nada de propriamente brasileiro com aquele tremido
sentimental. (ANDRADE apud MORAES, 2001, p. 309).

A toada Caboca di Caxangá (1912), de música, virou – como vimos


anteriormente – inspiração para um conjunto musical e sucesso carnavalesco,
participando e contribuindo para a moda regionalista sertaneja do começo do
século. É preciso observar, por outro lado, certa tendência ao semieruditismo
principalmente em relação a Catulo, como apontado por Mário de Andrade no
final da carta, e que, conforme Tatit (1996, p. 32), resultava em uma “linguagem
empolada e [em] melodias que lembram árias europeias do século XIX, ainda
que simplificadas e reduzidas no tamanho”.
A tentativa de afastamento da linguagem coloquial e cotidiana, em prol do
requinte, do preciosismo vocabular e do uso de palavras raras, colocariam Catulo
como “nosso maior poeta somente enquanto foi “caboclo”, pois “Líder do
movimento sertanista na música, o “Vítor Hugo do sertão”, o “Lamartine das
serenatas”, epítetos que ele mesmo se dá”, o “poetastro modinheiro
semiparnasiano” revela a “postura paternalista europeizante da elite brasileira
diante da arte popular e interiorana (NAVES, 1998, p. 16).
Obviamente, essa estética permitia a Catulo transitar entre as diferentes
camadas e estratos sociais e garantir sua aceitação tanto nos meios e espaços
populares, quantos nas salas de concerto e nas casas das elites. Apresentamos
abaixo, a letra de sua “Caboca”:

Caboca di Caxangá

Laurindo Punga, Chico Dunga, Zé Vicente


Essa gente tão valente
Do sertão de Jatobá
E o danado do afamado Zeca Lima
Tudo chora numa prima
E tudo quer te traquejá
Caboca di Caxangá
Minha caboca, vem cá
Queria ver se essa gente também sente
Tanto amor como eu senti
Quando eu te vi em Cariri
Atravessava um regato no Patau
E escutava lá no mato
183

O canto triste do urutau


Caboca, demônio mau
Sou triste como o urutau
Há muito tempo lá nas moita da taquara
Junto ao monte das crivara
Eu não te vejo tu passá
Todo os dia iate a beca da noite
Eu te canto uma toada
Lá debaixo do indaiá
Vem cá, caboca, vem cá
Rainha di Caxangá
Na noite santa do Natal na encruzilhada
Eu te esperei e descontei
Inté o romper da manhã
Quando eu saia do arfará o sol nascia
E lá na vota já se ouvia
Pipiando a acauã
Caboca, toda a manhã
Som triste de acauã
(CEARENSE, 1913).

Sobre a viola ainda cabe citar que o instrumento também seria


encordoado por Carlos Drummond de Andrade em sua Viola de Bolso,
publicada em 1952, pelo Serviço de documentação do Ministério da Cultura –
órgão onde o poeta trabalhou desde os anos 30 –, integrando a coleção dos
Cadernos de Cultura. No ano de 1955, a viola passa a circular outra vez em
sua segunda edição, intitulada Viola de bolso novamente encordoada.
As tonalidades locais também aparecem em relação ao violão, como no
poema “Argumento”, de Adélia Prado. Nele, temos um misto de regionalismo e
senso comum que conjuga violão e futebol como elementos nacionais, evocando
no leitor – pela identificação à cena –, a prática do instrumento no contexto
interiorano:

Argumento

Tenho três namorados.


Um na Europa que é um boneco de gelo,
outro na cidade vendo futebol no rádio
e o terceiro tocando violão na roça.
Todos mamíferos, sangue vermelho e ossos friáveis.
Um deles cuspiu no chão, o que escolhi para casar.
Mesmo tendo feito o que fez, só ele me perdoará.
(PRADO, 2015).

Com a fala peculiar da autora e a habilidade de transformar o cotidiano


em assunto de poesia, “Argumento” começa com a exposição dos três amores
da mulher, número que aliás, relembra a trindade religiosa. Ao apresentar cada
184

um deles, pelo que os caracteriza e os singulariza, ficam expostas,


simultaneamente, as referências identitárias reiteradas pelo hábito e pelo senso
comum. Assim, reforçando e concedendo acesso ao leitor – pela identificação
que promovem –, temos os seguintes paralelos entre o pretendente e as relações
que suscitam: “Um na Europa”, associado ao “boneco de gelo”, sugerindo tanto
o temperamento europeu e a distância geográfica, quanto o costume tradicional
(nas regiões frias do hemisfério norte) da construção de bonecos de neve; “outro
na cidade”, realizando uma prática comum e bastante difundida entre os
brasileiros de “ver” o futebol através do rádio, acentuando não só o componente
urbano, como a mescla de sentidos que descrevem o hábito; já “o terceiro” é
retratado no contexto do interior do país (“na roça” ) “tocando violão”.
Essa ligação à matéria popular perpassa o poema ao recorrer à natureza
da oralidade – pelo reaproveitamento da fala popular – e ao trazer referências a
costumes e práticas embutidas no cotidiano do homem brasileiro. Em entrevista
à revista Cult (2010), a autora explica que:

A.P. – O cotidiano é minha matéria-prima, pedreira onde garimpo não


só o ouro, mas a própria pedra. Se a poesia é experiência? Sim. Doutro
modo não seria a linguagem que a torna “a linguagem por excelência”.
E para mim é a experiência no mesmo sentido da experiência religiosa.
Ambas pedem o especialíssimo verbo poético que lhe constitui a
própria carne. (PRADO apud FERRAZ, 2010, p. 45).

Além do prosaico, o poema demonstra e reforça duas paixões que


integram a identidade e alteridade diante do olhar estrangeiro: o futebol e o
violão. A esses dois elementos, Zanon (2006) acrescenta o café e ressalta a
importância do instrumento, em meio à sua “trajetória tortuosa”, para a
construção cultural, simbólica e identitária do país:

Como o café e o futebol, o violão está indissociavelmente ligado a uma


visão sociocultural do Brasil, e nossa identidade musical é impensável
sem a sua presença. E não é para menos. Instrumentos da família do
violão foram já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese, e José
Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de cantigas urbanas
entoadas a solo por aqueles inícios do século XVI revelam em comum
o acompanhamento ao som de viola”. Dessa forma, desde o primeiro
encontro que define nossa identidade cultural, o violão está presente.
(ZANON, 2006).

No poema, o violão aparece relacionado e imerso no contexto da “roça”,


deixando transparecer o caráter e a atmosfera regionalista que, em uma
185

perspectiva espelhada, mostra-nos a permanência e a cristalização dessa


imagem e associação entre o instrumento e o ambiente interiorano. Essa
observação se torna pertinente, pois o livro A duração do dia, em que o poema
está inserido, foi publicado já em pleno século XXI, em 2010. De um modo geral,
a premiada obra contém, conforme declaração da escritora ao jornal O Estado
de S. Paulo, “poemas muito novos e outros que foram extraídos de material
antigo, que em seu tempo não estavam resolvidos como poema, mas agora
encontraram a sua forma" (PRADO apud UBIRATAN BRASIL, 2011).
Dando prosseguimento à nossa análise, apesar das diferenças e
peculiaridades entre os três namorados, o que os unifica é a efemeridade,
revelada pela substância perecível, a noção da finitude e a humanidade, pois
são “todos mamíferos, sangue vermelho e ossos friáveis”49 (PRADO, 1995). Se,
por um lado temos os aspectos que particularizam e também os que aproximam
os pretendentes, por outro, a surpresa do poema está na escolha feminina – “Um
deles cuspiu no chão, o que escolhi para casar”50 (PRADO, 1995). Há nesse
verso três importantes dimensões a serem observadas. A primeira refere-se à
atitude do eleito que, apesar de comum – mesmo que grosseira em alguns
contextos brasileiros –, é também transgressora pela indiferença a normas ou
etiquetas sociais e afirmadora de masculinidade.
A segunda envolve o tratamento dado à vivência amorosa pelo viés do
cotidiano e da naturalidade, percebendo o amor, com seus encontros, escolhas
e imperfeições, sem limitações ou imposições hierárquicas, conforme destaca
Alves (2014):

A ausência de hierarquia (também no sentido de não eleição de temas


eternos, sublimes) constitui-se num traço marcante de seu estilo que
se configura a partir não só das experiências pessoais, domésticas da
poetisa, mas também de uma tradição que busca o simples, a poesia
nas coisas. (ALVES, 2014, p. 132).

A terceira, e talvez a mais surpreendente, trata tanto do poder de escolha


feminino – a mulher em sua condição e direito de selecionar com quem deseja
se casar –, quanto do que sustenta e estabelece essa opção. No poema, “o

49 Poema “Argumento”, do livro A duração do dia.


50 Poema “Argumento”, do livro A duração do dia.
186

macho que escolhi” é eleito não pelos “predicados”, mas, sim, pelo que revela
de humano e imperfeito.
Há, na surpresa dessa seleção, alegria e liberdade, pois nela é possível
reconhecermos nossos reflexos – enquanto seres falhos e inexatos – e
encontrarmos um relaxamento das expectativas, em especial sobre a relação
amorosa. A autora promove, nesse trecho, uma quebra da inocência e da visão
romantizada do amor, passando a uma experiência mais real e concreta do
matrimônio. Com isso, ela descortina a fantasia, desconstruindo o amor
idealizado e deixando exposto o prazer de escancarar e assumir o encoberto e
imperfeito, principalmente em meio às regulações dos costumes sociais,
culturais e religiosos – como os que entrecruzam a própria trajetória biográfica
da autora.
O poema conclui com o eu lírico tirando os véus da musa perfeita e
revelando, com tons de humor e certa ironia, que, “mesmo tendo feito o que fez,
só ele me perdoará”. Ao seguir, nos desenhos costurados pelo poema, vamos
completando o mosaico pela luz de seus vitrais, até chegar a esse último verso
que permite compreender o sentido do todo. É como se o eu lírico nos contasse
uma história que, após seguir as pistas deixadas, encontramos nos versos finais,
com surpresa e perplexidade, a justificativa e o convencimento de toda a
argumentação – “raciocínio que se pretende baseado em fatos e em relações
lógicas a partir deles” (ARGUMENTO, 2018).
A dissonância entre os cinco primeiros versos, em que são apresentados
os namorados, e os dois últimos, com os critérios inusitados da escolha, fica
refletida também na forma poética. Ao associar os pretendentes a elementos
cotidianos e populares, a autora escapa dos recursos mais tradicionais pela
utilização do verso livre, mantendo, no entanto, a rima nos versos de intuito mais
transgressor – terminados com os verbos casar e perdoar. Esse jogo cruzado
reforça a surpresa, a tensão e as contradições presentes no percurso
argumentativo e inerente ao indivíduo.
Nesse poema, com tons de prosa, a conversa com o leitor se estreita e se
torna mais íntima não só pela aderência ao familiar e à oralidade da linguagem,
mas também pela mescla de recursos, em “uma sintaxe que não costuma
privilegiar repetições rítmicas, mas sequências e continuidades.” É interessante
perceber que “quando isto ocorre, o poema não deixa de ser lírico, não perde
187

sua natureza de condensar a visão de um eu que revela elementos universais”


(ALVES, 2014, p. 135). Desfeita as formalidades, a construção poética nos
aproxima pelo que confessa.
Além do caráter narrativo e o efeito vitral que perpassam o “Argumento”,
a temática amorosa ganha contornos mais concretos, reconfigurando a vida e o
sacramento da união matrimonial, permitindo a ousadia da escolha e
subvertendo as cobranças e convenções (pré)estabelecidas. Vamos ao profundo
do ser no cotidiano, no espaço do lar, na memória e na liberdade que aproxima,
mas desconcerta o leitor pelo inusitado do argumento e o afastamento das
expectativas românticas. Ao não replicar costumes e idealizações, o poema
parte da realidade, da experiência concreta e do imperfeito para mostrar a
vivência de ser mulher, com sua capacidade de reinventar as relações, assumir
suas ousadias e romper com as obrigações socais. Esse eu lírico nos coloca
diante da mulher liberta da hipocrisia, do silêncio e das formalidades esperadas
para o casamento.

4.1.1 “Eu pego a minha viola/ E nas moda dou um repasso”51

Apesar da proximidade e, muitas vezes, equivalência entre a viola e o


violão, as impressões regionalistas são marcadas principalmente pela primeira.
Na prosa o instrumento participa de A parasita azul, de Machado de Assis, como
elemento regional diante do europeu:

Um dos tropeiros sacou a viola e começou a gargantear uma cantiga,


que a qualquer outro encantaria pela rude singeleza dos versos e da
toada, mas que ao filho do comendador apenas fez lembrar com
tristeza as volatas da Ópera. Lembrou-lhe mais; lembrou-lhe uma noite
em que a bel amoscovita, molemente sentada num camarote dos
Italianos, deixava de ouvir as ternuras do tenor, para contemplá-lo de
longe, cheirando um raminho de violetas. (ASSIS, 2018, p. 205).

Em O sertanejo, de José de Alencar, “no terreiro dos agregados”, também


“trilavam os sons cristalinos da viola”:

Uma voz cheia cantava com sentimento as primeiras estâncias do Boi


Espácio, trova de algum bardo sertanejo daquele tempo, já então muito
propalada por toda a ribeira do São Francisco, e ainda há poucos anos
tão popular nos sertões do Ceará. (ALENCAR, 2018).

51 Versos da canção “Promessa de Violeiro”, de Raul Torres e Celino Levestem (1982).


188

Integrando a paisagem, temos ainda a viola mágica do feiticeiro Caicãe


na rapsódia Macunaíma (ANDRADE, 2017), e o violeiro de Grande Sertão
Veredas, ao qual Riobaldo se junta: “só com o violeiro somei. A zangarra
daquela viola. Por não querer meu pensamento somente em Diadorim, forcejei.”
(ROSA, 2015).
Nesses pontos de contato entre a viola e a cultura popular, Manoel de
Barros nos propõe:

VI. Desarticulados para a viola de cocho

Compadre Amaro: – Vai chuvê, irimão


Compadre Ventura: – Pruquê, irimão ?
Compadre Amaro: – Saracura ta cantando
Compadre Ventura: – Ué, saracura é Deusi?
– se fosse imbusi, sim...

NETO BOTELHO, in Psicologia das mulatas do Catete,


O Vaqueiro metafísico e outras estórias demais

– Cumpadre antão
me responda: quem coaxa
exerce alguma raiz?

– Sapo, cumpadre, enraíza-se


em estrumes de anta

– E lagartixa,
que no muro anda
come o quê?

– Come a lagartixa,
o musgo que o muro.
Senão.

– E martelo
grama de Castela, móbile
estrela, bridão
lua e cambão
vulva e pilão, Elisa
valise, nurse
pulvis e aldabras, que são?
– Palabras.

– E máquina
de dor
é de vapor? brincar
de amarelinha
tem amarelos?
As porteiras do mundo
Varas têm?
– Têm conformes.
– E o que grota
greta
189

lapa e lura são?


– São aonde o lobo
o coelho
e o erótico

– Cumpadre, e longe
é um lugar nenhum
ou tem sitiante?
– Só se porém.

– E agora vancê confirme: pardal


é o esperto? roupa
até usa
dos espantalhos?

– É esperto, cumpadre
não cai
do galho.
(BARROS, 1999, p. 49-53).

Esse poema do cuiabano Manoel de Barros (1916) faz parte do livro


Gramática Expositiva do Chão, publicado pela primeira vez em 1966.
Considerado um dos textos germinais do estilo “barreano” e marcando a
segunda fase do escritor, a obra reúne elementos, por vezes, díspares e,
aparentemente, desconexos, colhidos de variadas linguagens estéticas que
exigem do leitor um olhar atento, aberto ao novo e à peculiaridade da fala
poética.
Em um mosaico colorido, o livro apresenta não só a justaposição, a
colagem e a referência a elementos extratextuais e interdiscursivos, como
também articula lembranças (reais ou inventadas, da infância e da vida adulta)
e elementos do cotidiano, da natureza e das coisas inúteis, criando uma dicção
própria e o desdobramento em diferentes instâncias espaciais:

Geograficamente, “Gramática Expositiva do Chão” também possibilita


pensar um “espaço” (aqui “desespaço”) triplamente imaginário ou
imaginativo: (1) um espaço humano produzido como mistura radical
entre “coisas” mortas e vivas, entre coisas, bichos, vegetais e gentes,
entre materialidade e imaterialidade, desconcertando qualquer
preponderância antropocêntrica ou física; (2) um “espaço humano”
dilacerado, espedaçado e fragmentado (material e imaterialmente),
expondo que toda geografia se dá como processo sempre a partir de
conexões instáveis, perturbadoras e, por isso mesmo, inacessíveis
para uma compreensão fechada, imóvel e acabada; e (3) um “espaço
subjetivo” que pode ser dado por perdas irreparáveis, insuperáveis e
insuportáveis, vividas cotidianamente em relações sempre instáveis
porque construídas em nexos materiais e imateriais frágeis, em
pedaços. (GOETTERT, 2012, p. 179).
190

Sem representar uma incongruência ao caráter inovador e em muitos


sentidos, moderno e peculiar do autor, o poema “Desarticulados para viola de
cocho” nos traz uma aproximação à vida no interior e às tonalidades locais. Sexta
e última seção do livro, o texto é constituído de quatorze grupos de versos que
revelam a conversa entre dois “cumpadres”, marcada pelo tom da adivinha e da
popular prática do improviso à viola, na qual se estabelece um jogo de sete
perguntas e suas respectivas respostas.
A marca regional está impressa ao longo de todo o poema, como na
espécie de epígrafe que abre o texto e já nos apresenta a matiz e a estrutura
formal do que virá, prenunciando o ambiente e o desenrolar poético. Nos versos,
em diálogo, supostamente recolhidos de Neto Botelho, (apud BARROS, 1999, p.
49-53), na obra Psicologia das mulatas do Catete, o vaqueiro metafísico e
outras estórias demais (conforme indicação de referência bibliográfica ao final
da estrofe), temos o deslocamento – e o descolamento – de um texto ao outro,
na qual sua incorporação a outro conteúdo provoca uma nova aderência. Nesse
processo, novos significados são criados, assumidos – ou preparados –
conforme com sua incorporação: “Assim, na poesia, a epígrafe passa a constituir
parte integrante do corpo do poema. A epígrafe muitas vezes é tão ficcional
quanto o próprio poema, como no caso das “falsas epígrafes” encontradas em
Barros [...].” (PÉRES, 2012, p. 133).
Debalde as suposições que giram em torno da citação – do autor e da
obra – que abre o poema, a retirada e a inclusão da fala de dois caipiras apontam
para valorização da figura do vaqueiro, do indivíduo simples, conhecedor do
misticismo e da natureza, com seus ciclos e regras, em contraposição à figura
do homem capitalista, submetido – e subjugado – aos valores, às normas e aos
costumes das sociedades urbanas. O sujeito à margem subverte e escapa aos
preceitos da gramática, pois seu saber vem da fala, da raiz e da cultura popular.
Sem a vigência da norma culta e das regulações impostas ao indivíduo que vive
nas cidades, o registro do homem do campo expõe a simplicidade e a sabedoria
da linguagem construída pela tradição da oralidade:

Surge aqui, enquanto material poético, um tipo de saber enraizado na


cultura transmitida oralmente, pela via popular, porém retrabalhada e
alçada em nível artístico, na medida em que não apenas reproduz o
diálogo entre dois caipiras, mas embute nessa fala alguns elementos
que servem de arcabouço teórico para o fazer da poesia de Manoel de
191

Barros, além de conter, no ato duplo da pergunta e da resposta,


centelhas que iluminam um projeto estético em consonância com a arte
moderna. (DALATE, 1997, p. 11).

Ao remeter ao registro da fala das personagens, podemos perceber um


discurso submerso que, ao puxarmos a linha do novelo, somos arremessados a
uma sabedoria decantada, latente, depositada, não pelo apreendido, mas pelo
vivenciado. O que estamos querendo dizer aqui é que o jogo de vozes reforça a
importância e o caráter da experiência daquilo que é vivido ou já se encontra
arraigado, através do qual se pode prever o futuro, por uma manifestação que
acontece no presente, representada, no texto, pelo canto dos pássaros. É por
meio da figura do pássaro – e do conhecimento de seu canto – que a chegada
da chuva é anunciada: para Amaro o sinal vem da saracura, já para Ventura pelo
“imbusi”. Apesar de a leitura da natureza ser feita de forma diferente, afinal cada
um dos “compadres” extrai dela sua própria percepção, ambos se igualam e se
identificam pelo entendimento dos fluxos provindo do contato contínuo e diário
com o meio. É importante observar que esse conhecimento distinto, no entanto,
não implica a recusa ou anulação do outro, pois se, de acordo com Amaro “vai
chuvê” porque “saracura tá cantando”, a aparente contestação a essa crença
feita pelo compadre Ventura – “Ué, saracura é Deusi?” –, vem acompanhada de
surpresa e da quebra de expectativa: “se fosse imbusi, sim…” (BARROS, 1999,
p. 51). Nesse cenário em que cabem todas as vozes e crenças, é interessante
notar que a figura do pássaro – tão recorrente na obra de Manoel de Barros –
traça certa costura no tecido poético, pois ela tanto abre o poema (com a
“saracura” e o imbusi) como o arremata, ao terminar com o pardal (“– E agora
vancê confirme: pardal/é o esperto?”) (BARROS, 1999, p. 51).
O diálogo encenado entre iguais – revelado pelo tratamento cortês e a
referência aos termos “irimão” e “compadre” – apresenta não só cada enunciado
nominado repetidamente (acompanhado pelo uso do travessão indicando as
duas vozes), como também a singularidade – ou peculiaridade – do modo de
falar típico do ambiente rural. A representação dessa linguagem expõe dois
importantes aspectos: o primeiro, referente à escrita do poeta que, afastado da
lírica da Geração de 45, ao qual pertence cronologicamente, incorpora

algumas das principais conquistas da fase heroica do modernismo


brasileiro, principalmente com relação ao projeto estético, centrado na
192

renovação dos meios expressionais e consequente ruptura da


linguagem tradicional, incorporando o coloquialismo, a condensação, a
surpresa verbal e o humor. (DALATE, 1997, p. 3).

O segundo trata, como veremos mais adiante, dos aspectos regionais e


das variedades linguísticas vivenciadas e absorvidas pelo poeta em sua infância
no Centro-Oeste brasileiro, fazendo disso “escola no aprendizado de errar a
língua, com o propósito de urdir um universo imagético próprio, de tal forma que
o sentido se arme na própria linguagem que o constrói” (DALATE, 1997).
Por esse viés, o poeta se aproxima da escrita de Guimarães Rosa que,
resguardadas as diferenças, ambos vão além da incorporação do material
regional e da mimetização da linguagem e de expressões populares para a
valorização da linguagem, buscando sua reinvenção e a criação imagética. Nas
palavras de Barros, em entrevista:

Uma vez falei com o Rosa na Divisão de Fronteiras do Itamaraty onde


ele trabalhava. Conversamos sobre o nosso desgosto pelo mesmal na
escrita. Ele disse: ‘Eu fujo do mesmal pela renovação sintática. E você
foge por imagens. Se alguém enxerga semelhança entre nós é porque
trazemos para escritura nosso ‘caipirismo’. Fiquei inflado de voar.
(BARROS, 2005, p. 12).

Dando prosseguimento à análise do poema, além da epígrafe, o caráter


interiorano fica nítido na exposição da natureza, com suas formas, seres e cores
(sapo, estrumes de anta, lagartixa, musgo, estrela, lua, grota, lapa) e também
pela relação do homem com o espaço, evidenciado na apresentação dos
elementos que fazem parte do cotidiano do vaqueiro (brindão, cambão, aldraba,
pilão, porteiras, sitiante, espantalhos). A oralidade e a peculiaridade da fala
popular não só perpassa todo o poema, reforçando esse certo “caipirismo” pelo
emprego dos vocábulos "cumpadre" ("compadre"), "antão" (então), "vancê" (de
"vossa mercê") e "aldabras" ("aldraba"), como evoca a imagem e sonoridade que
lhes são próprias, pois “a musicalidade existente na fala do caipira, ou sertanejo,
carrega dentro de si toda a história do lugar. Muitas vezes não conseguimos
entender o que eles dizem, parecendo trata-se de outra língua” (FREIRE, 2003,
p. 71).
Esses elementos nos colocam no interior rural do país, porém a referência
pantaneira se dá por dois fatores principais não necessariamente hierárquicos –
sendo o primeiro, pela viola-de-cocho (instrumento que se integra à paisagem e
193

caracteriza as manifestações regionais), e o segundo, pela conexão do poeta


com o centro-oeste brasileiro, local de seu nascimento (“Nasci na beira do rio
Cuiabá”) e de suas vivências, de sua infância e do ofício poético:

Poesia não é um fenômeno de paisagem, é um fenômeno de


linguagem. Eu sou filho do Pantanal, nascido no Pantanal, gosto do
Pantanal, tenho amor pelo Pantanal, fui criado no Pantanal [...]. Mas
eu sou um poeta da palavra, e ninguém quer entender isso, pouca
gente quer entender isso, que eu não sou poeta da paisagem, poeta
ecológico, que quero fazer folclore, não quero expressar costumes, não
sou historiador... Eu sou poeta, poeta é um ser que inventa, eu invento
o meu Pantanal... (SÓ DEZ POR CENTO, 2008).52

Essa escrita atrelada ao contexto revela, no poema, o tempo de “agora”


que simultaneamente registra o presente, como uma fotografia, mas também se
desvela imemorial ao conectar-se com o que não se pode datar. Pelo momento
recriado, essa cena enunciativa poderia se passar em qualquer instante ou
tempo histórico, em um espaço “[...] de estórias-até-agora” (MASSEY, 2008, p.
29).
O diálogo entre os dois “cumpadres” mantém um tom de adivinhação, em
que pergunta e resposta lembram a prática do improviso e do desafio à viola,
engendrando tanto o exercício da imprevisibilidade e da criatividade, quanto da
disputa entre os cantadores.53 Afora a referência extratextual, o desafio perpassa
todo o poema, imprimindo o jogo de vozes do diálogo – desde a epígrafe –, a
adivinha (“o que é, o que é”), o jogo sonoro (pelas paronímias, rimas e
trocadilhos), a astúcia das palavras (cultas e populares) e a variabilidade de
distância (perto-longe). Vejamos agora cada um desses desafios.
A estrutura já apresentada na epígrafe permanece ao longo de todo
poema, desdobrando-se em um jogo de sete perguntas e suas respectivas
respostas travadas na conversa entre os dois personagens que se tratam por
“cumpadres” – alcunha que marca a transição e atualização do conhecimento
registrado em livro (e citado no início do poema) para o momento da fala. A

52Do filme Só dez por cento é mentira: a desbiografia oficial de Manoel de Barros, 2008.
53“Vem de longe o cantar poético ao desafio: do canto amebeu da Antiguidade grega, das
disputas dos jograis da Idade Média, das diversas culturas espalhadas pelo mundo em todas
as épocas. Há até notícia de improviso poético entre indígenas brasileiros, praticado antes
mesmo da ocupação europeia. No Nordeste brasileiro, mas especificamente nos sertões,
despontaram poetas cuja tradição os mandava pegar o pandeiro, a rabeca ou a viola e sair de
fazenda e fazendo pelejando com os colegas, em disputa versificada inteligente.” (AMORIM,
2003, p. 108).
194

construção da cena enunciativa – e também da enigmática disputa dialógica –


tem seu início no uso de verbo no imperativo afirmativo seguido de dois pontos
(“– Cumpadre antão/ me responda:”) (BARROS, 1999, p. 51) e também sua
finalização, ao repetir na última pergunta, o mesmo procedimento (“– E agora
vancê confirme”) (BARROS, 1999, p. 53).
É importante perceber tanto o jogo estabelecido pelas paronímias (“anta/
anda”, “musgo/muro”, “grota/greta”), quanto a alternância entre os termos
referentes à esfera popular e a introdução de palavras carregadas de certa
erudição. Essa inserção no discurso cria tensão e gera o deslocamento do
ambiente do vaqueiro (ou do sujeito pantaneiro), quebrando as expectativas e
jogando com as personagens – e também com o leitor –, pela estranheza a todo
o contexto construído. Consideremos o trecho:

– E martelo
grama de Castela, móbile
estrela, bridão
lua e cambão
vulva e pilão, Elisa
valise, nurse
pulvis e aldabras, que são?
– Palabras.
(BARROS, 1999, p. 51).

Além do modo de falar regional, nessa estrofe são apontados os


vocábulos que pertencem à realidade e ao cotidiano do vaqueiro, como bridão
(“freio de cavalgadura”), cambão (“aparelho com que se unem duas juntas de
bois à mesma carroça ou a um instrumento agrário”, “pau comprido com um
gancho ou uma lata amarrados à ponta, para apanhar frutas em árvores muito
altas”, “pau, que se pendura ao pescoço do animal, para que não se afaste muito
nem penetre em roças ou cerrados”, “junta de bois”), e “aldabras” – aldrabas –
(“perneiras de couro usadas pelos sertanejos”). No entanto, ao lado dessas
palavras, figuram termos dissonantes ao contexto – poético e pantaneiro –, por
sua identificação erudita, como "móbile", "vulva", "valise", "nurse" e "pulvis" (do
latim “pó, poeira, terra”, presente na conhecida referência bíblica “memento,
homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris” que significa “Lembra-te, homem,
que és pó e em pó te tornarás”). Com isso, esse vocabulário “trai”
deliberadamente a simplicidade da fala do vaqueiro e a construção retórica e
imagética criada pelo poema.
195

Nesse trecho ficam evidentes também o jogo de rimas internas e


trocadilhos54 – “bridão, cambão, pilão”; “Castela, estrela”; “Elisa, valise, nurse”;
“vulva, valise, pulvis”; “aldabras, palabras” (e mais à frente em “grota e greta” e
“lapa e lura”) – que produzem significativos efeitos sonoros pela exploração dos
fonemas. Ao combinar no mesmo verso “estrela, bridão”, assim como “lua e
cambão”, a sonoridade se desloca da abertura da vogal “a” para o fechado e
nasalado dos substantivos terminado em “ão”. Apesar desse efeito permanecer
no trecho seguinte (“vulva e pilão, Elisa”) é a partir dele que o escuro da vogal
“u” é reforçado, ao mesmo tempo, em que se tem a articulação das consoantes
fricativas e a explosão das oclusivas, em especial [v], [p] e [s] – “valise,
nurse/pulvis e aldabras, que são?/ – Palabras”). É importante também observar
que a combinação dessas palavras na estrofe engendra uma variação rítmica
que se desloca, em termos musicais, entre o binário e ternário, gerando um fluxo
sinuoso e convidativo pelo saborear das palavras com suas mudanças rítmicas
e sonoras.
A variação de ritmo também pode ser sentida ao longo do poema nas
pausas maiores ou menores entre as perguntas e as respostas. Há, em termos
formais, um adensamento da velocidade das respostas, principalmente nas
questões mais herméticas em que as soluções integram as estrofes, e também
no tamanho, sendo, em geral, mais curtas e diretas nesses mesmos momentos.
Em relação às adivinhas, a quarta pergunta é marcada por três
interrogações na mesma estrofe, criando um efeito acumulativo e marcando o
caráter tensivo da questão:

– E máquina
de dor
é de vapor? brincar
de amarelinha
tem amarelos?
As porteiras do mundo
Varas têm?
– Têm conformes.
(BARROS, 1999, p. 52).

54“De tal modo o cantador de viola diversificou as possibilidades do jogo de palavras, rima e
metro, que hoje é possível reunir tranquilamente, conforme a pesquisadora Verônica Moreira,
72 a 74 gêneros poéticos de cantoria – dos quais cerca de cinquenta em uso, de que se valem
os cantadores para expor, em versos, ideia e metáfora”. (AMORIM, 2003, p. 112).
196

Nesse trecho, a referência à “máquina” – elemento que também aparece


em outras obras de Barros – se opõe à natureza e permite uma remissão tanto
ao motor a vapor (que, funcionando sob alta pressão e temperatura, serve de
metáfora à dor), como também ao quadro surrealista “A máquina de chilrear”
(1922), do pintor Paul Klee. Já a referência à amarelinha nos traz não só a
brincadeira infantil (que exige o equilíbrio e a habilidade de se pisar dentro das
linhas), como também o simbolismo a ela relacionado, pois, pelo percurso
traçado (entre o céu e o inferno em cada ponta do jogo), tem-se a representação
da passagem ou trajetória do homem pela vida. Entre a “máquina de dor”, as
linhas da amarelinha e as varas da cancela, o eu lírico aponta que tudo tem seus
“conformes”, ou seja, “seus poréns”, suas “restrições (de acordo com as
circunstâncias)” e “exceções, ou aspectos negativos, que exigem cautela”.
Na estrofe seguinte, sem vírgulas e contando apenas com as pausas da
versificação, temos:

– E o que grota
greta
lapa e lura são?
– São aonde o lobo
o coelho
e o erótico.
(BARROS, 1999, p. 52).

A sonoridade produzida tanto em grota (2018)55 quanto em greta,56 em


que o timbre fica mais fechado pelas vogais e o impedimento do ar pela língua
na emissão do [r] vibrante, como em lapa (2018)57 e em lura (2018),58 termos
que passam, respectivamente, da vogal [a] para o encoberto do [u], reforçam o
valor conotativo e metafórico que se estende da natureza para o “erótico”,
revelando o que habita “dentro”.
Já, na sexta pergunta, o enigma envolve o longe, a vastidão, a noção de
infinidade e a imensidão – que pode ser a pantaneira. É interessante perceber
que, ao longo do poema, as perguntas percorrem distâncias, marcadas pelo
percurso raiz → mundo → lugar nenhum (elementos presentes,
respectivamente, na primeira, quarta e sexta questões):

55 “Abertura em montanha provocada pelas chuvas”, “terreno entre duas montanhas”


56 “Abertura estreita ou rachadura”; “fenda; fresta”
57 “Grande pedra ou laje que pode servir de abrigo; gruta”
58 “Buraco em que vivem ou se escondem coelhos e outros animais; toca”
197

– Cumpadre, e longe
é um lugar nenhum
ou tem sitiante?
– Só se porém.
(BARROS, 1999, p. 52-53).

O diálogo, continuamente reiterado pelo uso da partícula “e”, chega ao fim


com a última charada que também incita o leitor pelo uso do “vancê”:

– E agora vancê confirme: pardal


é o esperto? roupa
até usa
dos espantalhos?

– É esperto, cumpadre
não cai
do galho.
(BARROS, 1999, p. 53).

É ampla a simbologia do pardal, relacionado com o divino, a inteligência,


e sabedoria, a liberdade, e também mensageiro e sinal de boa ou má sorte, o
fato é que ele já não se assusta ou se afugenta, como seria o esperado pelo
simulacro da presença humana da figura do espantalho, ele se mistura. Na
concordância entre os dois “compadres” sobre a esperteza do pássaro, há
também na resposta – bem-humorada59 – uma alusão ao dito popular “macaco
velho não pisa (com as variantes “pula”, “trepa”) em galho seco”.
Após percorremos o poema, apontando e discutindo tanto a estrutura e
os elementos da cena poética quanto as relações de intertextualidade com a
cultura popular, chegamos ao título. Ao anunciar “Desarticulados para a viola de
cocho”, a denominação acaba por determinar a forma poética, ao mesmo tempo
em que prepara e instiga o leitor pelos elementos que estão nele conjugados.
A expressão “desarticulados” envolve o prefixo “des”, responsável por
exprimir a noção de “negação, a ideia contrária à do radical”; ou “a mesma ideia
do radical mas em estado ou modo contrário”. Apesar dos significados diversos,
conforme a classe à qual se liga, o efeito interpretativo de negação e reversão
são, em geral, possíveis:

59 “A primazia pela simplicidade temática que reveste sua poesia, sob a forma de uma
linguagem que se manifesta em tom coloquial e é permeada pelo humor, aproxima-o do
Modernismo de 22, sobretudo pela força da raiz primitiva encontrada na obra oswaldiana. Por
outro lado, a sintaxe justaposta de seus versos, que se afigura geometricamente, bem como a
sobreposição das imagens que dela emergem, remete à expressão cubista de Picasso; o
ilogismo, em resistência ao racionalismo, associa-se, por sua vez, à estética surrealista, na
busca pela extrapolação das fronteiras do real”. (ALMEIDA, 2011.).
198

Se se combina com um verbo, seu sentido é de reversão de um


processo; se se combina com adjetivo, seu sentido é de um tipo de
negação. De fato, desleal significa algo como ‘sem lealdade’, mas
desfazer não significa ‘sem (não) fazer’. Podemos, portanto, hipotetizar
que des- exemplifica um caso de homonímia de prefixos e que, por
isso, deve haver (pelo menos) duas entradas para ele no dicionário de
morfemas do português. Cada uma das entradas terá suas
propriedades de seleção: des, que significa reversão, seleciona
verbos; des, que significa negação, seleciona adjetivos. (SILVA;
MIOTO, 2009, p. 17).

Já a palavra “articulado” (2019) tem, pelo dicionário, as seguintes


definições: “que apresenta articulação ou articulações; “ligado de forma lógica,
coerente; pronunciado de forma clara e distinta; que se expressa com clareza”,
desdobrando-se como sinônimo de pessoa hábil e inteligente. No jogo de
adivinhação que estrutura o poema, cabem aos violeiros (des)articulados
escapar ao lugar comum e à repetição, promovendo o desafio das perguntas e
o manejo das respostas, todas permeadas pelo contexto pantaneiro, mas
repletas de surpresa e invenção.
É importante perceber que a presença da viola é decisiva, pois, apesar de
aparecer somente no título, é ela que determina a forma do poema e a natureza
do desafio entre os cantadores, o improviso. Ao dedicar os versos para a viola,
temos uma adaptação da prática musical à esfera literária, recriando o recurso,
o efeito, a sonoridade, a função e o caráter. Sabemos, com isso, que o poema é
destinado à viola. Devido à especificação do nome composto, viola-de-cocho,
apresentamos em seguida um panorama com as características dessa variante
regional do instrumento.
Fruto da colonização portuguesa na região centro-oeste do Brasil, a viola-
de-cocho é um instrumento produzido de maneira exclusivamente artesanal e
possui, em média, cerca de 70 cm de comprimento, 25 cm de largura, 10 cm de
altura na caixa de ressonância, e tampo totalmente fechado, ou com uma
pequena abertura circular (de 0,5 a 1 cm de diâmetro). Considerado patrimônio
nacional – registrado no Livro dos Registros dos Saberes60 do patrimônio
imaterial brasileiro, em dezembro de 2004 –, a viola:

60O Livro de Registro dos Saberes, onde estão inscritos os bens culturais imateriais, foi criado
pelo Iphan para receber os registros de bens que reúnem conhecimentos e modos de fazer
enraizados no cotidiano das comunidades.
199

é parte de uma realidade ecosociocultural construída historicamente


pelos sucessivos grupos sociais que vêm ocupando os atuais estados
do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em suas relações de troca com
o meio natural e com a sociedade envolvente. (IPHAN, 2009, p. 82).

Seu nome se deve ao processo de escavação em um tronco de árvore ou


uma tora de madeira inteiriça para a construção da caixa de ressonância, mesma
técnica usada para a feitura do recipiente – ou cocho – destinado à alimentação
do gado nas fazendas. Nesse cocho, já em formato de viola, são colocados o
tampo e os outros componentes de sua estrutura, como o cavalete, espelho,
rastilho e cravelhas.
Segundo os antigos artesãos, a viola teria sido construída por um caboclo
que, sem condições para obter um violão, tentou reproduzi-lo “escavando uma
tora de madeira, exatamente como fazia cochos para dar de comer aos animais.”
(IPHAN, 2009, p. 44). Reforçando essa versão, Anjos Filho (2002) aponta que a
viola-de-cocho seria uma adaptação das violas de mão e da guitarra portuguesa
– pelas semelhanças em relação às “proporções físicas e o cravelhame inclinado
para trás” (GARCIA, 2013, p. 17) – feita “a partir do uso de materiais e referências
disponíveis no local à época: o cocho, a cola de poca de peixe e linhas feitas
partir das fibras de uma palmeira conhecida como tucum” (IPHAN, 2009, p. 44).
O pesquisador explica que,

segundo o conhecimento popular, a origem da viola-de-cocho em Mato


Grosso se deu quando um artesão, fabricante de canoas, colher de
pau, gamelas e outros utensílios de madeira, residente na beira do Rio
Cuiabá, certo dia viu uma embarcação atracar próximo à sua casa.
(ANJOS FILHO, 1993, p. 67).

Em seguida, “[...] um homem a princípio identificado como sendo de


‘origem paraguaia’ [...] que chegara à procura de trabalho, trazia consigo um
curioso instrumento de cordas que ‘principiou a bater’, assim que pisou em terra
firme.” (ANJOS FILHO, 1993, p. 21). Com a partida do viajante e a
impossibilidade de ouvir e ver o instrumento novamente, o artesão buscou recriá-
lo com os materiais disponíveis em sua região:

Constatou que por perto de sua moradia havia uma certa madeira
macia e leve com a qual muitas vezes construía cochos para dar de
comer aos animais. Num gesto de profunda criação, após consultar os
índices referenciais à sua volta, construiu com ferramentas rústicas um
cocho de madeira macia com formato semelhante ao ícone
anteriormente visto e memorizado. Deu então a este cocho macio o
200

formato de uma viola (também parecida com o formato de uma cabaça


ou porongo cortado em sentido longitudinal, muito comum nesta
região). Com uma lâmina da raiz da figueira confeccionou um tampo
fino que fixou sobre o cocho recém construído com uma cola feita a
partir da poca de peixe, macerada e cozida juntamente com uma folha
de bananeira. Transformou, assim, o seu cocho primitivo em perfeita
caixa de ressonância, faltando-lhe apenas as cordas para que pudesse
vibra... (ANJOS FILHO, 1993, p. 67- 68).

Para encordoá-la, o artesão utilizou a fibra de Tucum – comumente usada


na confecção de linhas de pesca – e “não houve quem não perguntasse ao moço,
pelo caminho, que instrumento era aquele semelhante a uma viola. E o artesão,
em sua simplicidade, logo foi dizendo: “Viola”... Mas, viola? Que viola? Viola
“dum cotcho?...” (ANJOS FILHO, 2002, p. 68).
Já a pesquisadora Julieta Andrade (1981), ao realizar um estudo histórico
sobre o instrumento, identifica, em termos originários, a relação da viola-de-
cocho aos alaúdes curtos61 iranianos do século 7 a.C. Essa relação de
descendência se daria pela similaridade do instrumento ao alaúde curto vindo do
Irã e difundido na Europa, entre os séculos V e VII. Essa aproximação se daria
por “[...] a) o comprimento do braço; b) a quantidade e o material das cordas; c)
o fato de serem cordas simples; d) cravelhal tombado fortemente e cravelhas
posteriores; e) o detalhe de ser um alaúde cavado, inteiriço.” (ANDRADE, 1981,
p. 74).
Há também traços espanhóis no processo de transformação do
instrumento, pois os alaúdes encontrados na região hispânica apresentam
características semelhantes à viola-de-cocho:

[...] a) o tamanho mínimo ou ausência total de orifício acústico,


ocorrente em cordófones ibéricos, do século X e XII; b) a nomenclatura
das diversas partes do cocho; c) iluminaturas, desenhos constantes de
Cancioneiros em obras espanholas da época, mostrando instrumentos
muito semelhantes. (ANDRADE, 1981, p. 74).

No Brasil, apesar da ausência de documentos com descrições sobre a


viola, há registros fotográficos, feitos por Schmidt, de um instrumento
praticamente idêntico à viola de cocho atual, “usado pelos índios Guatós,
habitantes da região do pantanal próximo a Corumbá, área que atualmente
integra o estado de Mato Grosso do Sul.” (BARROS, 1998, p. 53.

61Conforme observa a autora, a “família de alaúdes” é dividida em “[...] curtos, médios e


compridos”, conforme as suas proporções (ANDRADE, 1981, p. 49).
201

Dando sustentação harmônica principalmente ao Cururu – e também ao


siriri pantaneiro –, a viola-de-cocho teria chegado à região, conforme aponta
alguns estudiosos, por meio dos bandeirantes, pois:

embora os documentos e a tradição oral não autorizem o


estabelecimento de uma relação genética entre cocho paulista e viola-
de-cocho mato-grossense, o processo de construção e o uso do
instrumento no cururu podem ser mais do que simples coincidências.
(IPHAN, 2009, p. 44).

Em meio a essas diversas perspectivas, Leidiane Garcia (2013) sintetiza:

Independentemente da pesquisa de suas possíveis origens, ou mesmo


de tratar-se de uma adaptação de antigos alaúdes iranianos (Andrade,
1981), de violas portuguesas (ANJOS FILHO, 2002) ou de cochos
paulistas (Araújo, 1949), o certo é que foi no pantanal e nas cabeceiras
do rio Cuiabá que esse instrumento veio a assumir um lugar relevante
na elaboração das identidades culturais locais. (IPHAN, 2009, p.
44).

A construção do instrumento também recorre ao regional, uma vez que os


materiais usados pertencem ao ecossistema da região, como as madeiras
utilizadas para construção do corpo do instrumento, preferencialmente a
ximbuva, o sarã-de-leite e o cedro. Por seu “modo de fazer” perpassar a cultura
e obedecer aos costumes locais, o corte da madeira deve ser feito da maneira
correta “senão, como diz seu Manoel Severino, “a madeira dá vento”, ou seja,
trinca e dá fissura”, sendo realizado na lua minguante, a fim de evitar que a
madeira seja atacada pelo caruncho (um tipo de cupim):

Eu acredito muito na lua, porque a gente já tinha aquele hábito na


folia... dia... quando é minguante, cheia, crescente. Eu acredito que a
lua boa pra tirar madeira é a minguante, mas vi que na minguante tudo
diminui, desde o som da viola diminui. Agora, na cheia, tá tudo
grande... todo mundo de olho na lua cheia. Se tirar na cheia corre o
risco de perder a madeira ou ela bichar bastante (Manoel Severino, 76
anos, Cuiabá, 2008). (IPHAN, 2009, p. 36).

Após o corte, o tempo de secagem e entalhe da madeira não pode ser


muito prolongado “pois, segundo Alcides Ribeiro, em dois ou três dias de sol ‘a
madeira fica muxiba e nem facão quer cortar mais’, pois ela vai endurecendo.”
(IPHAN, 2009, p. 38).
Para os outros componentes da viola (o espelho, cravelhas e pestanas)
utilizam-se, geralmente, madeiras como cedro, mogno e aroeira. Já para o
202

tampo, prefere-se a raiz de figueira e a teca (madeira asiática usada na


carpintaria e na construção naval), que, totalmente fechado – sem o furo – não
só evita o abrigo de animais peçonhentos, como serve para guardar mistérios:
“Damião de Almeida, de Rosário Oeste, diz que o povo fala que “a viola, que é
tampada aqui, [que] não tem buraco, tem mistério” (IPHAN, 2009, p. 37).
Para a colagem das partes utiliza-se o sumo da batata “sumbaré” ou, na
falta desta, um grude feito à base da vesícula natatória dos peixes – a “poca”:

Cola, olha, antigamente tem uma erva, que chama sumbaré. Aí corta
ela e já coloca em cima de uma madeira e aí vai amaciando, virando,
virando, virando, até amaciar. Antigamente, era na base do sumbaré,
ou poca de pintado. Hoje, no presente, é a coisa mais fácil. Você pega
aquela cola que criança cola papel... Tá aqui, tá colado (João Gonçalo,
72 anos, Nossa Senhora de Livramento, 2003). (IPHAN, 2009, p. 22).

A viola-de-cocho possui dois ou três pontos – trastes – preparados com


fios de algodão, revestidos com cera de abelha (mandaguari ou manduri). Para
as cinco ordens de cordas62 utilizadas na viola, utilizava-se o fio de tucum
(atualmente substituído pela linha de pesca ou a corda de náilon) ou a tripa de
animais (“preferencialmente o bugio, o ouriço-cacheiro, o quatá, o macaco prego,
a irara, a porca magra, mas também o caxinguelê ou caxinganga e o quati)”
(IPHAN, 2009, p. 39):

Para a preparação das cordas, é preciso limpar, esticar e torcer as


tripas do animal. Depois, para adquirir resistência, elas são curtidas em
urina ou no sistema do fumeiro: durante três dias, a tripa é colocada
sobre uma fogueira de madeira verde, que produz muita fumaça; em
seguida, é retirada e esfregada até que fique bem lisa e com espessura
uniforme. (IPHAN, 2009, p. 39).

Algumas violas possuem adornos com temas pantaneiros e enfeites


relacionados à devoção religiosa:

As violas podem ser decoradas, desenhadas a fogo e pintadas, ou


mantidas na madeira crua, envernizadas ou não. As fitas coloridas
amarradas no cabo indicam o número de rodas de cururu em que a
viola foi tocada em homenagem a algum santo – que possui, cada qual,
sua cor particular. (IPHAN, 2009, p. 82).

62A quantidade de cordas varia entre 4 e 5; “pode apresentar-se com cinco cordas simples
(quatro de tripa de animal e uma de aço) ou com quatro cordas singelas e mais um par de
cordas afinadas em oitava na terceira ordem.”
203

A afinação da viola é feita apenas de ouvido, e, por isso, “ao final da


cantoria de determinado cururueiro dentro de uma roda, é comum ocorrer uma
sessão de conferência da afinação das violas, sendo rotineiro também que, ao
longo do tempo da cantoria, a afinação vá subindo aos poucos” (IPHAN, 2009,
p. 23). Esse procedimento aparece retratado em uma animada dança do cururu,
durante a festa da Imaculada Conceição, em fins de 1900:

Assim foi indo, cada vez mais animadamente, até a madrugada, sendo
apenas interrompido o movimento, de vez em quando, para se afinar
os instrumentos de corda e dar aguardente aos cantores, o que lhes
emprestava novas forças. (SCHMIDT, 1942, p. 11, apud IPHAN, 2009,
p. 41).

Sobre os tipos de toque, a viola pode ser ponteada (correspondente ao


ataque sucessivo das notas e à função solista) ou, mais comumente, rasgueada
– equivalendo ao acompanhamento típico com “ritmo conhecido na região do rio
Paraguai e muito comum nos bailes mato-grossenses” (IPHAN, 2009, p. 25) e
também na “música caipira”:

Frequentemente os violeiros referem-se aos sotaques rio-abaixo63 e


rio-acima ou à viola-rio-baixana e viola rio-acima, referências a dois
trechos do rio Cuiabá: da cidade de Cuiabá, descendo-se em direção
ao Pantanal, o rio é navegável; na direção contrária, o rio tem
corredeiras que impedem a navegação. Entretanto, quando as
expressões são usadas no contexto do cururu e da viola-de-cocho, o
ponto de referência passa a ser o município de Rosário Oeste. De
Rosário para baixo, incluindo Cuiabá, a viola é tocada em andamento
mais vivo. De Rosário para cima (região de Nobres, Alto Paraguai,
Diamantino), é tocada mais lentamente, e, em consequência, o cururu
tem também andamento mais moderado. As diferenças de andamento
são acompanhadas por maneiras diferentes de dançar o siriri. (IPHAN,
2009, p. 25).

Os variados tipos de toques conferem ao instrumento um timbre bastante


singular e característico, conforme observa Julieta de Andrade: “No caso da

63 A respeito do “sotaque Rio Abaixo”, além de toque e afinação, ele está relacionado à uma
lenda local ou “causo” do Diabo que, descendo o rio, tocava sua viola para encantar as moças
e levá-las rio abaixo. É preciso acrescentar que esses feitiços e pactos povoam o imaginário e
pairam ao redor do violeiro: “A gente não sabe explicar direitinho, só com as palavras, por que
o som da viola leva a gente para a roça, por que os violeiros dizem que o sertão mora dentro
do bojo da viola, ou por que o grande instrumentista tem de fazer pacto com o diabo. É assim
porque alguém contou, porque a explicação nasceu da tentativa de entender os fenômenos da
natureza. Ora, tem violeiro que sapateia na parede, tem outro que larga a viola em cima da
mesa e ela toca sozinha... Está cheio de receita para se fazer o pacto com o tinhoso. Então, a
senhora pode afirmar que o capeta não existe?” (FREIRE, 2003, p. 93). Em “Sarapalha” – do
livro Sagarana de Guimarães Rosa (2017), o diabo, violeiro sedutor, aparece viajando o Rio
Pará dentro de sua violinha.
204

viola-de-cocho, quando as cordas são golpeadas com força, soma-se, ao som


musical emitido, um leve ruído fricativo que integra a sonoridade do instrumento,
individualizando-lhe o timbre” (ANDRADE, 1981, p. 32). Esse é um aspecto
importante, pois esse timbre também se reflete na produção poética, espelhando
tanto o Matogrosso e a viola-de-cocho, quanto trazendo elementos de seu
contexto cultural, geográfico e sonoro para a poesia.
Por ser feita de maneira artesanal, visando a pequenos grupos de
comércio local, mestre de dança ligados ao siriri e ao cururu, a construção da
viola de cocho vem impregnada da memória cultural, da tradição e de uma
herança, muitas vezes familiar, carregada de individualidade, da digital ou da
marca pessoal do artesão que o define e o diferencia.
Indispensável em diversas manifestações populares e festas católicas
tradicionais, a viola destaca-se “como instrumento integrante do complexo
musical, coreográfico e poético do cururu64 e do siriri.65 Conforme comentamos
anteriormente:

A viola-de-cocho desempenha papel central na sustentação harmônica


do canto no cururu e no siriri, como também na dança de São Gonçalo,
no boi-a-serra e no rasqueado, sendo que cada um desses gêneros
possui peculiaridades quanto à música, à poética e à dança. [...] As
cantorias têm lugar no domínio doméstico, mas principalmente nas
rodas de cururu e siriri que acontecem em festividades locais, como
dias santos, casamentos e aniversários, bem como naquelas
organizadas como pagamento de promessas. [...] As rodas de cantoria
de cururu alternam momentos distintos que se ordenam em uma
sequência determinada. No primeiro deles observam-se as trovas
compostas na forma versos + toadas. Os versos e toadas são
específicos e dizem respeito a cada um dos momentos da celebração.
(IPHAN, 2009, p. 47).

64 O Cururu, praticado por homens, vem “da mesma cepa das loas, das louvações, pequenas
representações, com ou sem bailado, vivas nos fins do séc. XVIII e que passaram a significar
apenas a louvação-poesia, com a intercorrência do desafio em versos improvisados, elemento
português e não ameríndio ou africano” (CASCUDO, 1984, p. 263 apud ANJOS FILHO, 2002,
85-86). Além do caráter circular da dança e dos passos semelhantes ao praticado nos rituais
indígenas, os pequenos saltos dados estariam relacionados não à imitação do sapo (cururu),
mas à Dança de São Gonçalo (GARCIA, 2013).
65 O siriri é dançado por mulheres e seu nome teria surgido a partir de três possibilidades: “do

ruído causado por cupins alados; de uma dança infantil ou, pode ter sido originado de uma
espécie de passarinho que possui mesmo nome.” (ANJOS FILHO, 2002, p. 86). Nesses ritmos
tradicionais, além da viola de cocho, estão presentes - conforme suas peculiaridades -
instrumentos percussivos construídos também de maneira artesanal, como o ganzá, o tamboril
ou mocho (uma espécie de bumbo ou alfaia), e, também, o adufe ou adulfo (um tipo de
pandeiro artesanal).
205

As trovas criadas na prática do cururu são compostas pelos próprios


participantes, ou pelos pais e avós, perpetuando-se assim a memória cultural
local. É importante ressaltar que, além da temática estar relacionada ao
cotidiano, aos santos, ao amor ou à natureza, elas acontecem, como em
“Desarticulados para viola de cocho”, em forma de desafio e a duas vozes:

São especialmente apreciadas as trovas de letra ou de escritura, que


abordam temas bíblicos e tratam da vida dos santos, momento nos
quais a cantoria se dá sob forma de desafio, e os cururueiros podem
demonstrar todo o seu conhecimento sobre o tema. Para iniciar a roda,
as trovas são puxadas pela primeira voz e complementadas pela
segunda, em intervalos musicais de terça. São cantadas três ou quatro
trovas, logo seguidas do baixão, que finaliza cada uma dessas sessões
de cantoria de um determinado cururueiro. Trata-se de um acorde
maior formado pela entrada sucessiva de vozes, em que se destaca a
terça do acorde uma oitava acima da nota fundamental. Já as rimas
das trovas podem ser feitas seguindo diversas terminações: em ão, em
ado, em ar e assim por diante. As trovas vão sendo tiradas e
prosseguem com a passagem da cantoria de um para outro cururueiro
dentro do círculo formado. (IPHAN, 2009, p. 48).

É justamente por essas marcas que a viola-de-cocho canta em Manoel de


Barros, conferindo, através da poesia, identificação e singularidade. Se, para o
poeta, o que escreve “resulta de [seus] armazenamentos ancestrais e de [seus]
envolvimentos com a vida”, seu gesto artístico traz a beleza, a voz, a
simplicidade e as marcas do sujeito à margem e dos espaços que figuram fora
dos grandes centros: “[...] uma região não é na sua origem, uma realidade
natural, mas uma divisão do mundo social estabelecida por um ato de vontade”
(BONIATTI apud SANTOS, 2006, p. 72).
O som da viola-de-cocho também serve de metáfora para “palavra” em
seu estado inicial, cuja busca serve de mote para um poema metalinguístico de
Barros. Passemos agora do “desarticulado” para a despalavra:

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida


para o canto - desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.
(BARROS, 1998, p. 53).
206

A obra na qual o poema se insere, intitulada Retrato do artista quando


coisa,66 foi publicada em 1998 e divide-se em duas partes, sendo a primeira,
homônima ao título do livro, e a segunda, denominada “Biografia do Orvalho”.
Nesse livro, Manoel de Barros mantém o caráter inventivo de sua escrita,
subvertendo as normas gramaticais em favor da liberdade poética, criando novas
palavras, explorando o verso livre e construindo semânticas, permeadas pelo
vivido em sua infância no Centro-Oeste brasileiro, conforme comentamos
anteriormente.
O poema que estamos analisando encerra a primeira parte da obra e
consiste não só no trabalho metalinguístico da palavra, deslocando sua
interpretação convencional para a aquisição de novos sentidos, uma vez que,
para o poeta, “tenho de laspear verbo por verbo até alcançar o meu aspro”,
(BARROS, 1998, p. 21). como também na exploração do sentido conotativo,
intentando criar nova imagens e "envesgar" o idioma até chegar à "despalavra".
Ao manejar a linguagem,67 novos termos surgem da prefixação,
principalmente pelo uso da partícula “des-”, relacionado à oposição, negação ou
remissão, como vimos em “desarticulado” e agora em relação à “despalavra”; e
do processo de sufixação “-mente”, como na palavra “antesmente” no último
verso. Mais do que justaposições, esses neologismos – “pois é nos desvios que
encontra as melhores/surpresas e os ariticuns maduros” (BARROS, 2015b) –
marcam a escrita do poeta que prefere “fazer vadiagem com letras” (BARROS,
1998, p. 51), explorar a língua. Segundo o poeta, ele estudou a língua “com força
para poder errá-la ao dente" e cumprir seu desejo de:

Pegar certas palavras já muito usadas, como as velhas prostitutas,


decaídas, sujas de sangue e esterco – pegar essas palavras e arrumá-
las num poema, de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las,
assim, da morte por clichê. Não tenho outro gozo maior do que

66 Os elementos da natureza, a temática telúrica, a fuga de lugares-comuns ou recorrentes e o


tratamento peculiar da linguagem matizam o livro Retrato do Artista quando Coisa, título que
parodia o romance “Retrato do Artista quando Jovem” do escritor irlandês James Joyce, escrito
em 1926, ano de nascimento de Barros.
67 “Guiado pelo o que denomina como vanguarda primitiva (pela concomitante influência das

vanguardas europeias e do modernismo brasileiro), o poeta pantaneiro bebe da fonte da arte


primitiva e erudita, situando sua obra em meio aos dois polos culturais de forma. Daí já se pode
presumir o nascimento de uma poesia que tende a exprimir e a reverberar grandes tensões.
Nessa compreensão, o escritor contemporâneo recupera como principais referências Padre
Antônio Viera, Rimbaud e Oswald de Andrade, de onde “deriva sua poesia, e põe à deriva a
língua pelo que aprendeu: do primeiro, o tortuoso da frase; do segundo, o tortuoso do ser; do
terceiro, o tortuoso da fala.” (MÜLLER, 2008, p. 1).
207

descobrir para algumas palavras relações dissuetas e até anômalas.


(entrevista a José Otávio Guizzo, transcrita no livro Gramática
expositiva do chão) (BARROS, 1996, 51).

É essa intensa busca pela palavra que serve de mote para o poema,
porém não se trata de qualquer palavra e, sim, a (des)palavra que se desdobra
em imagem e origem, em ausência e presença. Essa intenção já fica nítida nos
primeiros versos pelo estado de espera anunciado pelo eu lírico, seguido de dois
pontos. Esses estabelecem uma relação explicativa com a qual se dá o
desenvolvimento da construção poética – “Agora só espero a despalavra: a
palavra nascida” (BARROS, 1998, p. 53). A palavra que nasce – e aqui o termo
nascido tanto reforça o chiado do [s], presente também ao longo do poema,
quanto aprofunda o valor semântico do termo pela sonoridade produzida e pelo
ar que sai apertado na emissão – se conecta não com o caráter comunicativo da
linguagem, mas sim, com o estado primitivo e imagético.
Sem pronúncia, sem escrita, “ágrafa”, a palavra feita “para o canto – desde
os pássaros”, permanece latente no tempo presente (característica reforçada
pela conjugação verbal utilizado e pelo advérbio “agora”). O eu lírico, ao anunciar
seu estado/ato de espera e desejo – "é preciso entrar em estado de palavra"
(BARROS, 1998, p. 35) – deixa presumir, em contrapartida, a existência da
mácula na linguagem e a necessidade de superá-la.
Para o autor, seria preciso limpar, descascar a pele da palavra até chegar
à despalavra implica, nesse processo de transformação de estado, um
rompimento com o sentido convencional:

Palavras

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a


linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma
palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava
sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele
lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de
debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a
sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar
se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta.
Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram
as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para
terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que
desestruturaram a linguagem. E não eu. Palavras. (BARROS, 2015a,
p. 57).
208

Nesse deslocamento, a despalavra apresenta todas as possibilidades,


pois ela ainda não tem divisas, “não tem margens a palavra”. E é por não ter
fronteiras – “com/a ordem natural das coisas./ As palavras continuam com Só as
palavras não foram castigadas os seus deslimites” (BARROS, 1998, p. 77) – que
novos sentidos são criados com as figuras de linguagem, como nos versos:

Quero o som que ainda não deu liga.


Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
(BARROS, 1998, p. 53).

Há, nesse trecho, uma mistura de sentidos e percepções, pois o eu lírico


anseia por um som ainda não amalgamado, líquido, que evidencia “um aroma
ainda cego”. Ao reunir olfato e visão, o poema traça um percurso figurativo de
sentidos e sinestesias – procedimento recorrente na poesia de Barros e sobre o
qual o autor declara:

Aprendi com as crianças, por primeiro, que a mistura dos sentidos dá


poesia. Ouvi meu filho certo dia: ‘Pai, eu escutei a cor de um
passarinho’. Outra vez, por ler o Correio Braziliense [sic.], encontrei lá
esta joia falada por uma menina de 7 anos: ‘Borboleta é uma cor que
voa’. Veio Rimbaud e consagrou: ‘Je finis par trouver sacré le désordre
de mon esprit’. Pois a desordem das palavras em poesia não é
sagração? (BARROS, 2005a, p. 14, entrevista a Ana Cecilia Martins).

Especificamente sobre o “som gotejante das violas-de-cocho”, duas


observações são fundamentais: a primeira é que o verbo gotejar ao adjetivar o
som da viola evoca tanto o efeito visual lacrimoso – que pode servir de metáfora
ao sentimento amoroso associado ao instrumento –, quanto sonoro, pelo
arpejado go-te-jan-te do nota a nota da viola. O segundo ponto refere-se à nota
explicativa a que somos arremetidos na leitura da própria poesia:

Nota¹: estão registrados nas anotações antropológicas do mestre


Roquete-Pinto os sons gotejantes da viola de cocho. A expressão é
conhecida entre os índios guatós da beira do Cracará. A viola de cocho
é levianinha e só tem quatro cordas feitas de tripa de bugio. É com ela
que se acompanha o cururu, dança de origem indígena, disseminada
entre os ribeirinhos do Cuiabá e do rio Paraguaio. (BARROS, 1998, p.
53).

Essa observação não só reforça o que já apresentamos anteriormente


sobre a viola, como explicita o caráter regionalista do instrumento, e a natureza
telúrica do poema. A utilização e apropriação da viola pelas tribos indígenas que
209

viviam na região – como “[...] os Paiaguá, que ocupavam toda a extensão do rio
Paraguai (Guató- canoeiros e Guaná)” (SIGRIST, 2008, p. 48) – se deu com a
chegada dos jesuítas, na absorção de suas tradições, crenças e aparato musical,
e sua propagação pelas expedições portuguesas e ciclos migratórios em busca
de ouro no Centro-Oeste brasileiro.
Independente das questões e incertezas que cercam a origem do
instrumento e suas ramificações pelo Brasil, já que são raros os relatos e não
existem documentos oficiais – conforme apontado na análise anterior –, o
instrumento também está relacionado ao primordial, pois, segundo alguns
tocadores mais antigos, a viola-de-cocho teria dado origem aos demais
cordofones:

Agora vô dizê para mecê


Primeira viola que existiu no mundo,
Bem entendido, aqui do nosso lado,
Ai, de dizê o nome até ôço
Pois ela chamava cocho [...]
(LIMA,68 1961 apud ANDRADE, 1981, p. 69-70).

Dos doze versos que compõem o poema há um afunilamento em direção


ao sétimo verso e depois um movimento de expansão até o final. Além de sugerir
uma divisão, o verso “Até antes do murmúrio” (BARROS, 1998, p. 53) é também
o mais escuro em termos de sonoridade, devido à recorrência da vogal [u]. Isso
gera o que, em música equivaleria, a um movimento de dinâmica diminuendo até
esse ponto, e depois um crescendo para o final.
Além de “a palavra” que se repete ao longo do poema, a reiteração do
tema é feita através da recorrência – “[...] Repetir, repetir até ficar diferente”
(BARROS, 2010, p. 300), como uma variação musical – dos termos “quero o”,
nos primeiros versos, e “que”, nos versos abaixo:

Que fosse nem um risco de voz.


Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
(BARROS, 1998, p. 53).

Essa aparente oposição entre a referência à “cintilância” e aos “escuros”


forma, no entanto, uma imagem poética reconciliadora, em que, pela força e

68LIMA, Rossini Tavares. Folclore de São Paulo - Melodia e Ritmo. São Paulo: Editora
Ricordi, 1961. p. 13-14.
210

beleza do desenho criado, torna-se possível a diluição dos contrários. Em


seguida, temos um caráter suspensivo, pois “a palavra incapaz de ocupar o lugar
de uma” (BARROS, 1998, p. 53), conclui somente no verso seguinte,
condensado, expressivo e marcado por apenas uma palavra: “imagem”.
Esse termo é fundamental na obra de Manoel de Barros, pois perpassa o
seu caminho e sua produção poética:

[...] Eu teria 13 anos.


De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
(BARROS, 2015a, p. 47).

Ao explorar o território do imagético e deslocar o lugar comum das


palavras, o autor faz da metáfora e da mistura de sentidos a sinestesia, um
“desenho verbal”, no qual o “ver de ouvir” (re)cria o mundo para alcançar a
“despalavra”:

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra. Daqui vem


que todas as coisas podem ter qualidades humanas. Daqui vem que
todas as coisas podem ter qualidade… …de pássaros. Daqui vem que
todas as pedras podem ter qualidades de sapo. Daqui vem que todos
os poetas podem ter qualidades de árvore. Daqui vem que os poetas
podem arborizar os pássaros. Daqui vem que todos os poetas podem
humanizar as águas. Daqui vem que os poetas devem aumentar o
mundo com as suas metáforas. Que os poetas podem ser pré-coisas,
pré-vermes, podem ser pré-musgos. Daqui vem que os poetas podem
compreender o mundo sem conceitos. Que os poetas podem refazer o
mundo por imagens, por eflúvios, por afeto. (BARROS, 2015a, p. 23).

Além desse (re)encontro com a imagem e a despalavra, revela-se um


espaço de retomada do primitivo, em que, na tentativa de despir o signo de seus
dos sentidos já fixados,69 há um esforço em recuperar sua força primordial:

69 Os mecanismos geradores da estética primitiva e erudita se fundem, combinam-se e se


complementam desse modo, criando o plano substancial de sua complexa poesia, que aspira
pela autonomia da palavra, em detrimento do discurso automatizado que a envolve. Para
alcançar essa emancipação do lugar-comum, o poeta empreende um exercício de resgate ao
211

Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não


caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um
gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao
criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de
ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me
levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as
narrativas dos antropólogos. (BARROS, 2015a).

O poema se encerra com um movimento espelhado do primeiro verso


(“Agora só espero a despalavra: a palavra”) no último (“O antesmente verbal: a
despalavra mesmo") (BARROS, 1998, p. 53). Além do retorno ao originário, pelo
“antesmente verbal”, que retoma o intertexto bíblico “no princípio era o Verbo, e
o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1), e o poético (“No
descomeço era o verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo./ O delírio do
verbo estava no começo”) (BARROS, 2015b), o sujeito lírico reafirma e reitera,
na conclusão do poema, sua espera e sua busca: “a despalavra mesmo”.
A viola, ao chegar pelas mãos dos jesuítas, adentra o país se misturando
à natureza e a seu povo, percorrendo rios, ponteando as regiões, fazendo
“causo” virar música, nas mãos de negros, índios e sertanejos. Instrumento,
indispensável, tanto nas festas religiosas, quanto nas profanas, a viola segue,
ao longo do tempo, tipificando as manifestações, toques, ponteados, no
acompanhando, principalmente, das práticas ligadas à tradição oral:

Toque de viola é um tipo de música instrumental que costuma tratar da


natureza e traz sempre um causa por detrás. Conta-se a história e
depois mostra-se como se transformou em música. É assim com a
corrida do sapo e o veado, da inhuma caprichosa, do voo do papagaio,
entre outras. A arte de transformar causo em música é muito especial,
por isso acredito que quem quer aprender viola tem de morar no sertão
e encostar em um violeiro local. Para executar esses toques, só
ouvindo as explicações do sertanejo, olhar junto com ele os
movimentos da natureza, para depois transformá-la em música.
(FREIRE, 2003, p. 77).

Aculturada e plenamente absorvida pela cultura brasileira, a viola traça


seu percurso em profunda relação com o rancho, o rio, as serras, o roçado,
cantando o sertanejo, o tropeiro e a cabocla, em suas “modas sentidas”, de amor
e de dor. Ao perpassar o poético, o som da viola evoca e nos remete ao regional,
atravessando o tom lírico do romantismo; os ideais modernistas, em Mário de

estado primitivo e original da palavra. Os recursos que utiliza em sua poesia ampliam, de fato,
as possibilidades de forma e expressão da palavra, que se estendem aos diferentes níveis da
construção estética. (ALMEIDA, 2011).
212

Andrade, desde os anos de 1920; e a experimentação da palavra e da


linguagem, em Manoel de Barros, em 1960 e 1998. Entre lirismo, estranhamento
e encantamento, a viola desperta, nos – e com – os poemas, o “ver” da paisagem
e atmosfera interiorana e o “ouvir” de seus sons bucólicos e caracterizantes,
criando uma imagem que ultrapassa o dizer.
Vamos agora descansar a viola e pegar o violão.

4.2 “Ah, esse bojo perfeito”70

Enquanto a viola se estabelece como um instrumento marcadamente


afeito ao ambiente interiorano e rural, o violão adquire associações não só
essencialmente urbanas, como também passa a ser reconhecido como elemento
de identificação nacional. É claro que esses contornos se delineiam por
imbricados processos e permanentes negociações entre a cultura brasileira e os
aspectos históricos e sociais que a permeiam. Para pisar nesse terreno –
complexo e irregular –, é preciso reconhecer a convivência das variadas
manifestações musicais e as diferentes orientações que se articulavam nas
primeiras décadas do século XX.
Os ideais tão caros ao movimento modernista, envolvendo a busca por
uma dicção brasileira, a absorção de traços e cores que caracterizariam e
uniriam a nação visando tanto à utópica construção de uma identidade, quanto
à atualização estética, esbarrariam na complexa multiplicidade e a
heterogeneidade das expressões populares. Percebidas como depositárias do
estado bruto e originário do componente nacional, o folclore e as manifestações
populares serviriam de base para esse ideal de nação.
Nesse processo,

A construção de uma identidade nacional passa, assim, por uma série


de mediações que permitem a invenção do que é comumente chamado
de “alma nacional”, ou seja, parâmetros simbólicos que funcionam
como “provas” da existência desse Estado, e que determinam sua
originalidade: uma língua comum, uma história cujas raízes sejam as
mais longínquas possíveis, um panteão de heróis que encarnem as
virtudes nacionais, um folclore, uma natureza particular, uma bandeira
e outros símbolos oficiais ou populares. Os integrantes de cada
comunidade são convidados a neles se reconhecer e a eles aderir.
(FIGUEIREDO, 2012, p. 192).

70 Verso da canção “Cordas de Aço”, de Cartola (2018).


213

Ganhando status de “alto-falante da alma nacional”, o violão das


tradicionais serenatas, nas quais “os violeiros soltavam as vozes para reafirmar
juras de amor a suas amadas e a boemia era prática frequente”, revela-se como
“um instrumento intimamente ligado à identidade cultural brasileira” por “ser o
instrumento da música popular por excelência” (COSTA, 2006, p. 181).
Nas heterogeneidades e hibridismos de que é feita a cultura brasileira,
Mário de Andrade, além de condensar o estrangeiro e o autóctone na figura
literária do “tupi tangendo um alaúde”, analisado na primeira parte deste trabalho,
coloca o violão no contexto do mulato, em Cambuci.
No poema intitulado “Noturno”, de Mário de Andrade, o violão figura em
meio aos ritmos, imagens, aromas e sons de São Paulo. Entre as “luzes do
Cambuci pelas noites de crime...”/ “Calor!... E as nuvens baixas muito grossas”,
além dos “bondes” que gingam “como um fogo de artifício”,/ “sapateando nos
trilhos”, “cuspindo um orifício na treva cor de cal...” e o grito de um vendedor
ambulante, provavelmente um imigrante italiano, “– Batat’assat’ô furnn!...”
(ANDRADE, 1966, p. 44), o instrumento aparece na quinta estrofe
acompanhando a citação de uma conhecida canção:

Um mulato cor de ouro,


com uma cabeleira feita de alianças polidas...
Violão! “Quando eu morrer...” Um cheiro pesado de baunilhas
oscila, tomba e rola no chão...
Ondula no ar a nostalgia das Baías...
(ANDRADE, 1966, p. 83).

O primeiro ponto a ser observado nesse trecho é a atmosfera noturna


relacionada ao violão, tanto pela construção poética que o envolve quanto pela
abertura semântica trazida pelo título, uma vez que noturno é também um tipo
de composição musical que evoca ou tem sua inspiração na noite. Em seguida,
é preciso destacar que a referência ao “Violão!”, acompanhada da menção ao
verso “Quando eu morrer...”,71 confere ao poema características oriundas da
tradição e do reconhecimento popular. Provinda de uma ladainha do mestre de
Capoeira Besouro do Mangagá (1895-1924), em um época em que a prática
ainda era proibida e perseguida, o verso “Quando eu morrer me enterre na
Lapinha, / quando eu morrer me enterre na Lapinha,/ calça, culote, paletó,

71Esse verso também aparece em Lira Paulistana (ANDRADE, 1966, p. 300-301), abrindo um
poema que homenageia São Paulo e a estrutura musical do “Bumba meu boi”.
214

almofadinha”, foi posteriormente colhido pelo violonista Baden Powell72 em uma


roda de samba da Bahia e incorporado à canção “Lapinha”, de sua autoria e de
Paulo César Pinheiro. Já em Mário de Andrade, o verso não só traz a marca da
oralidade e do popular ao poema, como evoca no leitor uma lembrança sonora
e musical que se desdobra em identificação e pertencimento, pois carrega
elementos que apenas os que já conhecem seriam capazes de reconhecer e
rememorar como elemento de sua cultura.
Além do violão “cantar” a atmosfera da noite e o verso popular de
capoeira, ele está inserido no espaço das ruas – as “travessas” – do Cambuci,
local que era caminho dos tropeiros em direção a Santos, região de
trabalhadores imigrantes, em especial italianos e sírio-libaneses, e “bairro da
marginalidade, onde se localizava a cadeia pública”. Ao instrumento também
estão associadas a figura do “mulato” e a “nostalgia das Baías”.
Ao percorremos o trajeto pontuado por Mário de Andrade, temos o violão
conectado aos aspectos relacionados à margem, pois ao instrumento cabe – e
representa – o encoberto da noite, o bairro de marginalidade, o mulato,73 o canto
popular (da capoeira tão perseguida) e a nostalgia. Em meio à mistura sensual
e sinestésica criada pelo efeito poético, não é só “Um cheiro pesado de
baunilhas” que “oscila, tomba e rola no chão...” “Ondula no ar” (ANDRADE, 1966,
p.44), mas também o som do violão. O uso desses verbos desenha a produção
sonora do instrumento que, a partir do som emitido, a nota produzida decai rumo
à extinção.
Por fim, esse violão popular, mulato e citadino está retratado na
efervescência do contexto paulista dos anos 20. Esse período é marcado pelo
auge da modernização da cidade e pelas profundas e intensas transformações
culturais impulsionadas pela Semana de Arte Moderna, realizada em 1922,
mesmo ano de publicação de Paulicéia Desvairada, livro em que o poema está
inserido. Ao representar o espaço o urbano, com sua carga real e simbólicas, e
buscar a atualização da poética brasileira – tanto temática, quanto formal, o

72 Depoimento de Baden Powell a Fernando Faro para o programa “Ensaio”, da TV Cultura, em


1973. (POWEL, 2013).
73 E também o negro, como o Orfeu de Vinícius de Moraes (1954). Inspirado no mito grego, a

peça Orfeu da Conceição tematiza, em seus três atos, o sambista do morro, negro e
galanteador. É ele quem, empunha, ao invés de uma lira, o “mágico”, mas também
“demoníaco” violão.
215

autor, em carta a Augusto Meyer, em maio de 1928, descreve a maneira frenética


e alucinada (assim como o ritmo da cidade paulista) do processo de feitura da
obra: “(...) escrevi numa folha: Pauliceia desvairada e principiei escrevendo
frases e poesias num estado palavra que quando recordo ele me parece que o
desvairado era mesmo eu.” (ANDRADE, 1928 apud FERNANDES, 1968, p. 51).
No entanto, passado o impulso inicial, apenas o poema “Noturno” foi
agregado depois, inspirado em uma experiência vivenciada pelo poeta, conforme
relata:

Nunca mais que pude acrescentar, voltada a calma, mais um poema


pro livro. Bem que pretendi diante de ideias que me pareciam
interessantes surgidas. Ia escrever e não podia mais. Só o “Noturno”
que está na Pauliceia, foi escrito no janeiro seguinte. Influência duma
noite pasmosa de ardor sexual procurando uma mulherzinha no bairro
do Cambuci. Depois corrigi e recorrigi, o livro quase que ficou
irreconhecível. Os próprios amigos notaram isso. Agora note: no meio
do calor, da loucura com que escrevia, me lembro muito bem que de
vez em quando me brotavam vontades, imediatamente conscientes de,
por exemplo, machucar os que iriam fatalmente não me compreender.
Então escrevia de propósito coisas incompreensíveis pros outros,
fatalmente incompreensíveis, voluntariamente incompreensíveis, e tão,
que eu mesmo só chegava no momento (e até agora) a perceber nelas
um sentido absolutamente vago, como que uma ressonância de ideias
ou de sentimentos, e não eles propriamente. E essas coisas, deixei
ficar conscientemente quando polia o livro. (ANDRADE, 1928 apud
FERNANDES, 1968, p. 51-52).

As marcas de brasilidade perpassam também o sujeito, pela cor da pele


e situação à margem, que gosta de violão, “mar e sereno”, em Cecília Meireles.
Da autora, o instrumento aparece no nono poema do livro Morena, Pena de
Amor, escrito em 1939 e publicado pela primeira vez em 1973. Nessa obra, a
escrita musical de Cecilia Meireles se revela tanto pela inspiração no ritmo e
“musicalidade das quadras populares açorianas” (MELLO, 2012, p. 384) quanto
pela profunda ligação ao lied e à canção – continuamente reiterada em sua lírica,
seja para expressar suas dores (“Todos dizem que têm penas,/ Mas nem sempre
cantam bem./ Para sofrer – só morenas./ Para cantar – mais ninguém”
(MEIRELES, 1976, p. 12), seja para cantar suas alegrias (“Morena de qualidade,/
morena de condição,/ invento a felicidade/ dizendo sempre a verdade/ mas
dentro de uma canção” (MEIRELES, 1976, p. 14). É importante observar que o
título do livro “alude à gente morena, como “Buda, Jesus e Maomé”, gente “que
viveu de fé e morreu de pena” (MELLO, 2012, p. 384). Vejamos o que o poema
nos conta sobre o “moreno” e suas afeições:
216

Quem nasceu mesmo moreno,


Moreno de vocação
Gosta de mar e sereno,
De estrela e de violão.

Poderá gostar de alguém,


Porém
Nunca deixa a solidão.
(MEIRELES, 1976, p. 7).

O primeiro ponto a ser abordado nesta análise refere-se ao sujeito, pois o


pronome indefinido que abre o poema – “quem” – vai ganhando contornos mais
precisos não só pelo que o caracteriza – e unifica –, como também pelo que o
difere. No estudo A memória dos Açores na escrita de Cecília Meireles, Mello
explica que “Morenos são os povos do Oriente, próximo e distante, referência
que ratifica a influência da avó” (MELLO, 2012, p. 384). No entanto, o termo
“moreno” traz consigo a síntese simbólica de uma das perspectivas correntes
sobre a formação do povo brasileiro vista sob a ótica do cruzamento de três
importantes tradições culturais. A figura do mulato aparece historicamente
permeada por tensões, estigmas e lutas, porém sua associação à composição
do caráter nacional fez parte do contexto modernista, como o retratado também
por Mário de Andrade – e citado no tópico anterior.74 É claro que essa é uma
discussão profunda e que escaparia ao escopo de nosso trabalho, porém é
pertinente notar a prática e a relação do violão ao universo do mulato ou crioulo
tanto na poesia, quanto na própria história do instrumento.
No poema, a condição de moreno escancara a alteridade pela diferença
em relação a “gente de outros matizes” (MEIRELES, 1976, p. 7), ao mesmo
tempo em que atua como força unificadora – pelo espelhamento e
reconhecimento – de tudo aquilo que aprecia. Porém, não basta apenas sua
origem, é preciso vocação (2018) (“inclinação ou talento especial para o
exercício de certa profissão ou atividade”) e predestinação ao “mar”, ao “sereno”,
à “estrela” e ao “violão”. Esses elementos reforçam os aspectos que temos
apontados ao longo do trabalho, cristalizando e expondo a ligação do
instrumento ao ambiente noturno – semântica reforçada pelo efeito fônico da
contraposição entre as vogais [a] e [o] nos pares mar-sereno, estrela-violão –, à

74“Um mulato cor de ouro,/ com uma cabeleira feita de alianças polidas..., ou ainda em “Foi o
sol que por todo o sítio imenso do Brasil/ Andou marcando de moreno os brasileiros”.
(ANDRADE, 1966, p. 83).
217

solidão e ao sujeito “moreno” (termo reiterado ao longo do poema) que não só


caracteriza o indivíduo ou grupo fora dos padrões dominantes e europeus, como
afirma aquele que resiste, transita e vive à margem.
Ao mesmo tempo que sabemos com nitidez os elementos aos quais o
sujeito se devota, nos três últimos versos do poema fica evidente, de forma
translúcida, a fratura do ser. Nesse segundo ponto de nossa análise, é preciso
observar que o “moreno” possui “competência para” ou “está apto para” incluir
“alguém” em seu gostar, pois a vivência amorosa aparece como uma
possibilidade futura, sinalizada pelo uso do verbo “poderá”. Entretanto, essa
expectativa se concretiza apenas parcialmente, uma vez que vem acompanhada
da conjunção de oposição ou restrição – única palavra que compõe o penúltimo
verso – “porém”. Essa quebra no fluxo poético gera suspensão e reforça a
caraterística de solidão – tanto do sujeito, quanto do estereótipo – apresentada
na conclusão do poema. Assim, se, por um lado, o “moreno” está apto a gostar
de alguém, por outro, ele “nunca” abandona a condição de estar só. Afinal, o
sujeito à margem é solitário. Por não se fixar, também está só em sua errância,
encoberto pela noite, e impossibilitado de ligar-se a coisas, lugares, pessoas e
amores.
Em termos sonoros, a recorrência do fonema [-ão] permite traçar o
seguinte percurso associativo direto e ressoante: vocação → violão → solidão.
Além da importância semântica e do efeito sonoro criado por esse desenho, é
importante ressaltar, por fim, que o deslocamento temporal gerado pelos verbos
“nascer” (passado) → “gostar” (presente) → “poder” (futuro) → “deixar”
(presente) marcam o reiterado movimento de retorno ao presente, atualizando o
tipo “moreno” e suas escolhas, gostos e limitações. Assim, reconhecidos e
unificados tanto pelos elementos de seu gostar, como também por suas
descontinuidades, o ser “moreno” cumpre um destino – com certa melancolia e
solidão –, uma vocação, um chamamento, pois é de sua índole e natureza (como
já dito em Manoel de Barros (2015a), “o artista tem origem nesse ato suicida”).
De fato, tocar violão é um ato solitário, íntimo.
Inspirado no violão, Mário de Andrade compõe o poema “A adivinha”,
datado de janeiro de 1928 e publicado na obra Remate dos Males, em 1930.
Entre a poética intimista e variada do livro – tecnicamente voltada para os
recursos desenvolvidos nos anos 20 –, o poema integra o “Marco da Viração”
218

(quarto ciclo dos cinco que estruturam a obra), revelando, como o próprio nome
indica, “o marco que define o tom de toda a poesia posterior a ele” (PAULA,
2006, p. 131).
A “Adivinha” – termo que intitula o poema – é definida pelo Dicionário
Houaiss da língua portuguesa (2011, p. 84), como uma “brincadeira popular em
que os participantes apresentam enigmas simples para serem solucionados
pelos parceiros do jogo”. Diferente do mito e da profecia, a adivinhação
pressupõe, de um lado, o interrogador (detentor do conhecimento) e, de outro, o
aspirante ao saber ou à comprovação deste:

Na Adivinha, o homem já não está em relação com o universo: há um


homem que interroga outro homem e de modo tal que a pergunta
obriga o outro a um saber. Um dos dois possui o saber, é a pessoa que
sabe, o sábio; um interlocutor o enfrenta e é levado, pela pergunta, a
pôr em jogo suas forças, seus recursos e sua vida, para chegar a
possuir também o saber e apresentar-se ao outro como sábio.
(JOLLES, 1976, p. 111).

Nesse diálogo e desafio – ou demonstração – de poder, é preciso um


pacto entre os envolvidos:

[...] o interrogador é quem sabe, é quem se encontra no lugar do saber.


Por outro lado, o adivinhador mostra, ao adivinhar, que é um igual do
seu interrogador, que está em igualdade de sabedoria. O fato de se
propor uma adivinha é, pois, em primeiro lugar, um ato pelo qual se
põe à prova o adivinhador, um exame dessa igualdade. (JOLLES,
1976, p. 115).

Vejamos agora, paulatinamente, o jogo enigmático e poético de Mário de


Andrade:

A adivinha

Que é que é?
Ele possui uma alma e um corpo feito o nosso
E vai percorrendo o caminho de todos.
Foi piá, quis bem a mãe, quis bem a casa dele,
E afinal uma feita quis bem a cidade e foi homem.
Então gostou da intrepidez das ruas normativas
E cantou o orgulho do homem no indivíduo.
Pôs a boca no mundo, imaginou que era um,
E era apenas mais um o cantor gastador.
Pôs a boca no mundo e cantou todo o dia,
Porém a voz se fatigou talqualmente os vulcões
E não ficou mais que o instrumento.
(ANDRADE, 1966, p. 200).
219

O poema-adivinha inicia-se não só propondo ao leitor o desafio pelo “Que


é que é?”, como também propondo a presença de um sujeito indeterminado e
um objeto desconhecido na cena poética. No entanto, ao longo do poema, esses
contornos vagos vão adquirindo traços mais precisos.
Inicialmente, ao assegurar que “ele possui uma alma e um corpo feito o
nosso”, temos o objeto da adivinha transformado em sujeito e presentificado pelo
tempo verbal utilizado – efeito reforçado pelo contraste com os demais verbos
no tempo passado. Em seguida, há uma corrente de crescimento que se
desenha de criança a adulto (foi piá → quis bem a mãe → a casa dele → a cidade
→ foi homem). Esse recurso também se amplia pelo movimento de expansão e
democratização do instrumento, pois “vai percorrendo o caminho de todos”,
ganha a rua (gostando de sua “intrepidez”), até chegar ao ponto máximo de
cantar o “orgulho do homem no indivíduo”. Nesse ápice, seu canto é alto,
contínuo e reiterado, uma vez que “pôs a boca no mundo” “e cantou todo o dia”.
Desse vértice, inicia-se uma direção de declive, apontada pela constatação de
que, pensando-se único, dissolve-se no comum. Finalmente, sua “voz se
fatigou”. Porém, apesar de exaurido, permanece como “os vulcões” –
adormecido, mas carregado de “perigo iminente” por poder emergir a qualquer
momento e lançar à superfície seu potencial e substância “imprevisível e
explosiva”.
Desnudo de sua “alma e corpo”, “não ficou mais que o instrumento”, por
isso, a segunda estrofe inicia-se com o completo esvaziamento (“Ser o bojo vazio
do violão...”). Nesse trecho, o eu lírico reitera o enigma, acrescentando
prolongamento à pergunta pelo uso das reticências, e traz à tona os elementos
da história do violão, percorrendo tanto o processo de inserção do instrumento
no ambiente urbano, sua propagação pelo país por meio dos tropeiros,
ressaltando sua importância no espaço das ruas, até chegar à sua afirmação e
reconhecimento, como se pode ver por meio dos versos destacados:

Ser o bojo vazio do violão...


A noite igualada separa a vida do universo,
É o momento em que as coisas todas são resumos
E pelas esquinas dos bairros se engrandecem os violões.
Que é que é?...
É um instrumento de música oscilando num soco de pedra.
De pedra sangrenta do Itacolumi.
Careceu que pela entrada da cidade lerdamente,
220

Ao aboio alto dos homens e dos animais,


Viessem os séculos montando bois castrados,
Pra que o violão fosse afinal violão.
O vento afina e desafina as cordas,
A chuva tantana na taboa do pinho,
Remexe a dança com lambança,
Cada sujeito que passa tira um ponteio só dele...
Tudo ponteios, tudo sons sem resultado,
Reboam ressoam na caixa de todos,
Sem cantos, sem palavras... A voz do homem se acabou.
(ANDRADE, 1966, p. 200-201, grifos nossos).

Nessa segunda estrofe, o vento nos traz, em metáfora, os caminhos


sinuosos percorridos pelo instrumento. Já o exercício da musicalidade fica
evidente tanto no verso “a chuva tantana na taboa do pinho”, que perfaz, no ritmo
imposto pelo som consonantal [t] e a sonoridade nasalada do [ão], o efeito e os
sons dos pingos de chuva caindo na madeira, quanto à articulação fônica
provocada pelo trecho “remexe a dança com lambança” criando movimento,
evocando o caráter dançante e reforçando o sentido semântico do verso.
Entre “berevas...”, “pensamentos”, “taperas e palácios...”, o poema segue
e apresenta a resolução da adivinha na estrofe que marca a metade do poema:
“Que é que é! É o violão”. Entretanto, ele ainda é “um ponteio sem voz”/
“trepadeirando até agarrar lá em riba”, verso que nos remete tanto ao sentido de
silenciamento ao qual o instrumento foi submetido em sua história, como ao
“ponteio”, vocabulário violonístico que evoca uma forma de tanger, “dedilhar ou
tocar”. Rememora, ainda, as violas de caixas pequenas, denominadas
"ponteios", em singularidade e liderança, pois o termo significa também “ir ou
estar na frente ou na ponta”.
É por essa característica que o instrumento ganha traços de “prenúncio,
indício, sinal”, “mensagem”, por sua associação à palavra “anúncio”, repisada
insistentemente no texto poético. Ao lado dos muitos sons de [s] que perpassam
a estrofe, a ressonância promovida pela continuidade sonora do ditongo [-ao] do
verso “e o pinho reboa ressoa se estrala em só anúncio!” (reiterando e ecoando
os ponteios que “Reboam ressoam na caixa de todos”), temos um efeito de
continuidade e fluidez reverberante que repercute até “estralar”. Ao rachar
produzindo ruído, o violão lateja, palpita e pulsa, manifestando-se com
intensidade e estrondo”. O que antes permanecia calado, agora prenuncia e se
faz conhecer:
221

Sobre o mar cinzento relumeia céu de estrela,


Sobre a Terra girada ao impulso dos passos populares,
Que nem chagas as cidades, que nem chagas...
São berevas. Não! são pensamentos! maravilhas orgulhosas!
São berevas... Taperas e palácios...
E a febre... As águas mornas do Paraíba...
As águas novas do Missuri-Mississipi...
O Reno com vilegiaturas e castelos medievais...
Vamos pra Caxambu! pra Karlsbad!
Vamos ver Mussolini! Vamos ver os escravos!
Vamos ver se Leningrado não mudou de nome, gente!

Que é que é! É o violão. Um ponteio sem voz


Trepadeirando até agarrar lá em riba
Nos espeques firmes das estrelas do céu.
Nos ares as luzes torcendo cruzando,
Sempre dança, tudo maxixe impossível,
As luzes fazem traçados em emboladas de luz.
São anúncios. Todas as luzes são anúncios.
Todas as ideias e paixões é tudo anúncio! Tudo só anúncio, só
anúncio no mundo!
E o pinho reboa ressoa se estrala em só anúncio!
(ANDRADE, 1966, p. 201, grifos nossos).

Da relação com a dança “com lambança”, “sempre dança, tudo maxixe


impossível”, a quinta estrofe desenvolve uma sequência de perguntas
permeadas por importantes expressões musicais relacionadas diretamente ao
violão e também a aspectos mais amplos do campo musical:

Uma bruta duma dança rag remexe a Terra?


Um pensamento fundo rasga um lapo na caixa do pinho?
Porém que é que é! Será choro? Será seresta de festa?
Será que é pensamento mesmo? será piá? Serapião? Será violão!
Que é que é balanceado no soco de pedra
O instrumento saracoteando anúncios de harmonias?
Os críticos analisarão todas as harmonias,
Os pensamentos conceberão sistemas e tonalidades,
Será possível tirar uma regra e a regra viverá setenta-e-um anos...
Mas que é que é o violão que existe e existirá
Além da regra e a regra não diz nada e o violão vê na regra só
anúncio!...
(ANDRADE, 1966, p. 201-202, grifos nossos).

É importante observar, ainda nessa estrofe, que a sequência “será piá?


Serapião? Será violão!” revela mais do que a rima e o eco produzido pela
repetição do ditongo [-ão]. Há no uso dessa sonoridade uma tensão crescente à
medida que as perguntas se desenvolvem até a chegada da conclusão
exclamativa – “será violão!”. Além dessa direção, o verso cria um efeito
caleidoscópico, no qual o termo “piá” nos traz a generalidade expressa por poder
se referir a qualquer menino, ao mesmo tempo que convoca a noção de
222

mestiçagem, por sua relação etimológica com a figura do menino indígena ou


mestiço de índio com branco. Referencia, também, a qualquer menor, não
branco, que trabalha como peão de estância, reforçando o efeito e a semântica
da pergunta seguinte: “Serapião?”.
Outra palavra que nos chama a atenção no trecho acima é a alusão à
“regra” (2018), pois, além de integrar o âmbito instrumental relacionado à
afinação e ao tamanho do braço e da escala de determinadas violas (como a
regra-inteira (2018), “viola de 12 cordas dedilháveis, na linguagem dos
cantadores”, o termo significa também norma ou lei, regulação de procedimentos
pelos costumes. Nesse ponto é preciso ressaltar a importância do violão como
instrumento de resistência e transgressão, pois “o violão que existe e existirá” à
margem da regra, rompendo as normas e costumes impostos, desafiando as
imposições e estigmas, em um processo “além da regra e a regra não diz nada
e o violão vê na regra só anúncio!...” (ANDRADE, 1966, p. 202).
O poema prossegue falando das “cordas” (2018) e mantendo o jogo duplo
de significados se referindo tanto às do instrumento – “fio de tripa, seda, náilon,
aço que produz som quando dedilhado, friccionado, percutido” (ANDRADE,
1966, p. 202) – quanto às correntes históricas, culturais, sociais e religiosas que
o amarram, limitam e aprisionam. Não sem espanto e admiração torna-se
explícita a necessidade libertária, mesmo diante dos esforços de emudecimento.
Com isso, é preciso deixá-lo cantar todos os gêneros e manifestações, do interior
ao carnaval, “da luna sertaneja à “geometria praciana”, e encontrar novamente
as “palavras arcaicas”, sua conexão com a origem, a “despalavra”.

Êh, cordas, cordas, cordas metálicas feitas de século,


Se quebrem logo! Cordas, o violão não pode mais saber o que são
cordas,
Não sabe porque soa tanto e a caixa de ressonância
Vibra com tudo, mesmo com o frescor sentimental da luna
sertaneja...
Êh, cordas do violão, por que não viram homem outra vez?
Deixem que ele cante a geometria praciana,
E o Carnaval, e a Flor de Amor, e Mamãe com Papai!
Deixem que ele possa achar de novo as palavras arcaicas!
Mas o violão é mais imenso que as palavras
E não as compreende mais.
(ANDRADE, 1966, p. 202, grifos nossos).

“No bojo do violão” ressoa tudo o que ultrapassa os limites da linguagem.


Já “no bordão! gentes, bem no bordão!” estão expressos os graves do
223

instrumento que carregam e orientam as baixarias típicas do choro, os


contracantos das serestas, e a marcação rítmica do samba. Se, por um lado, “é
tudo um som sem sins!...” deixando em evidência os percalços e a desaprovação
do instrumento em sua trajetória no contexto cultural brasileiro – ou seja, sua
dificuldade em ser ouvido e aceito –, por outro, cria-se um arpejo musical pela
emissão sucessiva do “som-sem-sins”, seguido de frases fundamentalmente
sonoras, rítmicas e reiteradas, conforme destacamos. O violão transformado em
sons, com sua presença descrita e materializada no traçado poético:

Que significa até a palavra “Deus”?


... alguma coisa mais desejada...
Mais bem puxada, mais bem dançada,
Além do mundo e do pensamento...
Catira leve e jongo lento,
Pra que não basta noite de dança...
Êxtase de interminável festança,
Que a insuficiência do amor não abre
Na flor humana duma palavra...
Ele ressoa no bojo do violão! no bordão! gentes, bem no bordão!
Mas o violão não sabe não! ninguém não sabe!
É tudo um som sem sins!... Platariviux! gentes, platariviux!...
Que é que é! Que é que é!...
(ANDRADE, 1966, p. 202, grifos nossos).

Apesar de desfeito o enigma, a última estrofe mostra um retorno à


atmosfera suspensiva e misteriosa que envolve tanto o poema, quanto o violão:

E a tristeza iluminada, vasta, instrumental,


Ácida inquietação, maravilhando, turtuveando,
Recai sobre a adivinha.
(ANDRADE, 1966, p. 202).

Nesses versos de caráter polifônico,75 em que as palavras ressoam e


criam uma sensação de sobreposição, “formando, não mais melodias, mas
harmonias” (ANDRADE, 1966, p. 23), a adivinha descortina o violão com sua
“ácida inquietação” e seu caminho imenso, mas, também, turtuveado. O poema

75 Mário de Andrade explica que a polifonia é uma “conquista da poesia modernizante” (1966,
p. 273) significando, “em sentido translato”, “a união artística simultânea de duas ou mais
melodias cujos efeitos passageiros de embates de sons concorrem para um efeito total final
(1966, p. 268). Para o escritor, “a poética está muito mais atrasada que a música. Esta
abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para
enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados
do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que
melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento
inteligível.” (ANDRADE, 1966, p. 22).
224

nos traz o violão da modinha e do lundu, da seresta e do choro, dos baixos que
cantam no bordão, do suporte harmônico da canção e do samba. O violão do
terreiro, das ruas, palhoças, dos discos e dos rádios, cujo “reflexo mais imediato
do acolhimento do pinho pelas classes inferiores” corroborou para a
“consagração da identidade entre violão e vadiagem” (TABORDA, 2004, p. 171).
Atado pelos preconceitos e estigmas, “o violão tornou-se símbolo de
inferioridade social e de cultura”, principalmente em relação à pianolatria,
conforme relata Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos:

O mesmo verificou-se com o violão, vencido de tal modo pelo piano


inglês de cauda que se tornou vergonhosa sua presença em casa de
gente que se considerasse ilustre pela raça e nobre pela classe.
Também o violão tornou-se símbolo de inferioridade social e de cultura,
arrastando na sua degradação a modinha. Violão e modinha desceram
das mãos, das bocas e das salas dos brancos, dos nobres, dos ricos
para se refugiarem nas palhoças dos negros e dos pardos, e nas mãos
dos capadócios, dos cafajestes, dos capoeiras, ao lado das rudes
vasilhas de barro, das redes de fio de algodão, dos santos de cajá, das
rendas e dos bicos da terra. (FREYRE, 2013).

Essa suposta inferioridade está expressa, inclusive, na imprensa:

Acompanhando uma canção sentimental ou dedilhando um fado


corrido, a guitarra e o violão jamais lograrão alcançar a perfeição
sonhada pelos seus cultores apaixonados. As regiões da música
clássica não lhe são propícias, as suas cordas não se dão muito bem
nos ambientes de arte propriamente dita. (JORNAL DO COMMERCIO,
1916 apud CASTAGNA; ANTUNES, 1994, p. 38).

Se “tocar violão terá sido atividade de capadócio, capoeira e vadio”


(TABORDA, 2004, p. 121), o processo de aceitação do instrumento não seria
simples ou sem tensões. Nele estão envolvidos uma complexa combinação de
fatores, incluindo a vinda de importantes concertistas, o desenvolvimento do
ensino do instrumento no país, a criação de repertório, a exploração das
possibilidades do instrumento, o reconhecimento de sua função não só como
acompanhador, mas também como solista, e os processos de ressignificação
simbólica ocorridos principalmente ao longo do século XX. Pela profundidade e
amplitude do assunto, não nos cabe seu aprofundamento neste trabalho, porém
é preciso observar, em especial, a polaridade não-excludente na qual o violão
se equilibra entre vadiagem e brasilidade, conforme se vê no texto de Taborda
(2007):
225

Se a identificação do violão aos chorões e conjuntos populares deu


origem a um imaginário em que o instrumento relacionava-se
depreciativamente a setores marginais da sociedade, o timbre do
violão e o ambiente sonoro por ele criado tornaram-se,
igualmente, um símbolo emblemático da nacionalidade (a ponto
de ter sido distinguido o baixo melódico, associado ao registro
grave do instrumento, como uma das características distintivas
da música do Brasil). (TABORDA, 2007, p. 8, grifo nosso).

O olhar sobre o violão como definidor de certa identidade nacional


também fica evidente em um artigo de Manuel Bandeira, intitulado “Literatura de
Violão”, para a revista Ariel, em 1924, ilustrado com o Violão de Pablo Picasso:

Para nós brasileiros o violão tinha que ser o instrumento nacional,


racial. Se a modinha é a expressão lírica do nosso povo, o violão é o
timbre instrumental a que ela melhor se casa. No interior, e sobretudo
nos sertões do Nordeste, há três coisas cuja ressonância comove
misteriosamente, como se fossem elas as vozes da própria paisagem:
o grito da araponga, o aboio dos vaqueiros e o descante dos violões.
Desgraçadamente entre nós o violão foi até aqui cultivado de uma
maneira desleixada. É verdade que a sua técnica é ingratíssima e o
tempo perdido em adquirir nele um mecanismo sofrível será bem mais
compensador aplicado a outro instrumento de repertório mais rico -- e
mais nobre. O desleixo em todo o caso era excessivo. Desconhecia-se
por completo o dedilhado da mão direita. Basta dizer que se reservava
o polegar para os bordões, o índice para o sol, o médio para o si e o
anular para a prima. E esse dedilhado de harpejo era pau para toda
obra. Havia dedilhados mais extraordinários. Lembro-me de ter ouvido
no sertão do Ceará a um cego que só se servia do index. Quando
tocava, dava a impressão de estar escrevendo nas cordas do violão.
Só com esse dedo Zé Cego pintava o bode... O que não faria ele se
conhecesse a verdadeira técnica do instrumento?
Houve também, até bem pouco, uma certa prevenção contra o violão
por carregar a fama de instrumento refece, alcoviteiro e cúmplice da
gandaia em noitadas de sedução. Era, tipicamente, o instrumento
mauvais sujet. Ele foi, porém, reabilitado pela visita que recebemos de
dois estrangeiros, os quais vieram revelar aos nossos amadores todos
os recursos e a verdadeira escola dos grandes virtuoses de Espanha.
Refiro-me a Agostinho Barrios e Josefina Robledo.
Mas o repertório? [...] o repertório do violão é, além do próprio, todo o
repertório do alaúde. O alaúde é um instrumento cuja caixa é parecida
com a do bandolim, um pouco maior, braço alongado, e tem o mesmo
número de cordas, afinadas da mesma maneira que as do violão. O
timbre é também o mesmo, ligeiramente mais tênue. [...]
Os nossos tocadores de violão compuseram peças de caráter brasileiro
interessantíssimas. Correm, porém, de oitiva. Tais são os maxixes de
Arthiodoro da Costa, João Pernambuco, Quincas Laranjeiras e outros
de igual valor.
Villa-Lobos [...], que está agora em Paris, [...] tocou violão quando
rapazola. E compôs muita coisa que está guardada a sete chaves... E
não sei se não as atirou todas ao mar... Ele não gosta que se fale nisso.
Preconceito muito pouco moderno e muito pouco nacional [...]
(BANDEIRA, 1924, p. 463-468).
226

Outra publicação que reforça e exprime a convergência do violão em


símbolo de nacionalidade, pode ser encontrada no editorial “O que é nosso”,76
publicado em 19 de setembro de 1926. A coluna destaca a força do instrumento
e de seu canto, apontando para sua importância simbólica e representativa na
cultura brasileira:

Cantemos! Pois. Revivamos a modinha nacional; o que é nosso, muito


nosso, o que podemos ter orgulho da nossa alma – a fala dos nossos
corações … O violão! O alto-falante da alma nacional. Nenhum outro
instrumento sabe exprimir tão bem os nossos cantares plangentes e
alegres. […]. Somos um país que não presta nenhum culto ao passado.
O que é nosso não presta; o que vem de fora por qualquer outra via,
de vaporou de aeroplano, em regra achamos excelente, superior.
Injustiça! (CORREIO DA MANHÃ, 1926, p. 9).

O que a imprensa registra reverbera na literatura de Lima Barreto.


Policarpo Quaresma e seu sentimento patriótico faz o violão de Ricardo Coração
dos Outros transformar-se em porta-voz da nacionalidade, da alma e das
expressões brasileiras. O instrumento ganhando, inclusive, revistas
especializadas, como o surgimento de O Violão, em 1928, o rádio e a canção
cívica, como veremos no próximo tópico.

4.2.1 “O violão! O alto-falante da alma nacional”77

A forma convexa ou arredondada do bojo do violão é capaz de guardar


em seu “espaço interior”, a “parte mais íntima e essencial” (“o âmago”, “o cerne”,
“o ventre”): do vazio de Mário Andrade (1966, p. 200) – “Ser o bojo vazio do
violão... –, à melancolia cantada por Noel Rosa” (“Ah! Este bojo perfeito/ Que
trago junto ao meu peito”), o bojo também carrega a pátria em Guilherme de
Almeida (1982, p. 92) – “É de uma pátria que eu tenho/ no bojo do meu violão”.
A “Canção do expedicionário”, escrita pelo Príncipe dos Poetas, foi
posteriormente musicada, alcançando grande divulgação como canção, tanto
em solenidades militares, quanto registrada em disco e propagada pelo rádio, na

76 A coluna, seguindo a tendência regionalista, foi publicada no jornal Correio da Manhã e teve
sua repercussão ainda mais ampliada com a realização do concurso “O que é nosso – Grande
concurso carnavalesco de sambas e maxixes”, realizado em fevereiro de 1927. (CORREIO DA
MANHÃ, 1927, p. 12).
77 Trecho da coluna “O que é nosso”, do editorial Correio da manhã, 19 de setembro de 1926,

na página 9.
227

Era Vargas. Esse período, marcado por profundas transformações na estrutura


social brasileira, intentou a unificação da nação e o apagamento das diferenças
e tensões “através da imposição da ‘única e verdadeira’ causa que deveria
importar aos brasileiros: o próprio Brasil” (LANA, 2006, p. 109). Para isso, é
notável “a sobrevida do culto à imagem de Vargas, a fixação do samba como
gênero musical popular nacional e o desenvolvimento da adoração dos símbolos
nacionais” (LANA, 2006, p. 109).
Analisemos agora como o violão e sua simbologia alcançam e se refletem
na canção cívica orientada pelos ideais nacionalistas:

Canção do expedicionário

Você sabe de onde eu venho?


Venho do morro, do engenho,
das selvas, dos cafezais,
da boa terra do coco
da choupana onde um é pouco,
dois é bom, três é demais.

Venho das praias sedosas,


das montanhas alterosas,
do pampa, do seringal,
das margens crespas dos rios,
dos verdes mares bravios,
de minha terra natal.

Por mais terras que eu percorra,


não permita Deus que eu morra
sem que eu volte para lá
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:

Nossa Vitória final,


que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil!

Eu venho da minha terra,


da casa branca da serra
e do luar do sertão;
venho da minha Maria
cujo nome principia
na palma da minha mão.

Braços mornos de Moema,


lábios de mel de Iracema
estendidos para mim!
Ó minha terra querida
da Senhora Aparecida
e do Senhor do Bonfim!
228

Você sabe de onde eu venho?


É de uma pátria que eu tenho
no bojo do meu violão;
que de viver em meu peito
foi até tomando um jeito
de um enorme coração.

Deixei lá atrás meu terreiro


meu limão meu limoeiro,
meu pé de jacarandá,
minha casa pequenina
lá no alto da colina
onde canta o sabiá.

Venho de além desse monte


que ainda azula no horizonte,
onde o nosso amor nasceu;
do rancho que tinha ao lado
um coqueiro que, coitado,
de saudade já morreu.

Venho do verde mais belo,


Do mais dourado amarelo,
Do azul mais cheio de luz,
Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Fazendo o sinal da Cruz !

Por mais terras que eu percorra,


Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:

Nossa vitória final,


Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.
(ALMEIDA,1982, p. 91).

Essa marcha cívica feita para um certame realizado na Rádio Tupy


paulistana, em 1944,78 visava “escolher uma canção em homenagem aos
brasileiros que combateriam na Itália”, durante a Segunda Guerra Mundial. Os

78 Nesse mesmo ano Oswald de Andrade publica o poema “Cântico dos cânticos para flauta e
violão” dedicado à Maria Antonieta D’Alkmin. Escrito em 1942, e publicado em junho de 1944
como suplemento da Revista Acadêmica, com ilustrações de Lasar Segall, o longo poema
composto por quinze fragmentos marca a última fase da produção poética do autor,
constituindo-se como “um raro exemplo de fusão, de integração poética funcional do eu lírico
com o eu coletivo ou participante.(...) É um poema dedicado à celebração da mulher amada —
poema do amor total, conquistado ao cabo de andanças e lutas, na maturidade da prática da
vida — e também um poema de defesa intransigente e obstinada desse amor, contra tudo e
contra todos, convenções ou pessoas, que a ele se opunham” (CAMPO, 2017).
229

versos do poeta Guilherme de Almeida,79 “mais do que palavras de incitamento


à luta”, tinham o intuito de levar às “terras estranhas um retrato lírico e
sentimental de nossa terra.” (FOLHA DA MANHÃ, 1944).
Sobre a criação do poema, Guilherme de Almeida relata na coluna que
mantinha no jornal O Estado de São Paulo – em ocasião de inauguração do
Monumento Nacional aos mortos da Segunda Guerra Mundial:

[...] Era já a madrugada de 8 de março de 1944 quando escrevi a última


sextilha da "Canção do Expedicionário". [...] Apenas uma rapsódia.
Mapa lírico do Brasil: fragmentos de canções do povo, com que o
"pracinha" - o novo, desconhecido soldado dos Exércitos Aliados -
havia de apresentar-se a gentes outras, terras de outrem, dizendo:
Você sabe de onde eu venho ? [...] Isso cantaram os "pracinhas" lá
longe, no estrangeiro. Isso, na Guerra, foi eco ao longo dos seus
passos. Canto e eco que por lá o então emudeceram à flor dos lábios
e sob os pés de um punhado deles; e que hoje, no instante em que
quatrocentas e sessenta e seis urnas funerárias baixam à perenidade
de um monumento votivo erigido frente ao mar que os levou, vivazes,
e sob o céu que os trouxe, inermes, não podem deixar de
emocionantemente acordar e repercutir aqui, paralelos a este meu
imperceptível "Eco ao longo dos passos". (ALMEIDA, 1960).

Esse poema lírico foi musicado pelo maestro e compositor paulista


Spartaco Rossi, seguindo as orientações “da música erudita nacionalista
brasileira presentes em textos de Mário de Andrade” (PEREIRA; ALAMBERT
JÚNIOR, 2009, p. 38), tornando-se, posteriormente, não só parte de cerimônias
oficias e repertório de bandas militares e coros orfeônicos, como sucesso popular
enquanto canção gravada e divulgada em disco – na voz de importantes nomes,
dentre os quais podemos destacar o timbre marcante de Francisco Alves (ou
Chico Viola).80

79 “Guilherme de Almeida, autor que compôs a poesia de mais de uma dezena de hinos, teve
carreira e posicionamentos multifacetários. Há muito ainda o que descobrir sobre este
advogado/professor participante da Semana de 22 e muito chegado aos verde-amarelos, cuja
poesia é marcada por tradição, formalismo e “paulistanismo”. Funcionário público toda a vida,
secretário do Interventor Fernando Costa, foi radialista, roteirista e crítico de cinema, e co-
proprietário dos jornais Folha da Noite e Folha da Manhã (1942-1945), no qual trabalhou
Mário de Andrade.” (PEREIRA, 2007, p. 5).
80 “O cantor realizou a gravação original da obra, acompanhado de orquestra e coro, optando

“por interpretá-la como um rapsodo moderno faria, valorizando o texto. A primeira estrofe foi
declamada, e não cantada, terminando a seção bem antes da banda. Ao fazê-lo, por um lado,
rendeu graças ao poeta”. Por outra, saudou o compositor, trouxe seus colegas músicos para o
primeiro plano e evidenciou o arranjo.” Sobre a intencionalidade das escolhas interpretativas,
Fulano ressalta que “a troca de figuras rítmicas, outro recurso seu, respondeu a duas
necessidades. A primeira resposta possibilitou pequenas correções de prosódia feitas às
incongruências da composição e à acomodação das novas sextilhas ao se integrarem na
melodia padrão. A segunda possibilitou que ensaiasse um novo gênero, uma “marcha marcial
230

A “Canção do Expedicionário” apresenta, conforme disse o próprio poeta


que a compôs, um “mapa lírico” do Brasil traçado com referências à riqueza
natural do país e às características que representam e marcam suas diversas
regiões, como morro, engenho, cafezais, seringal, pampa, serra, e sertão. Além
da paisagem remontada, evocam-se ou criam-se ideias de sentimentos pátrios
que envolvem a religiosidade, os ditos populares e a referência imagética à
bandeira do Brasil pela alusão a suas cores.
É fundamental observar ainda que, ao se referir à construção poética
como “apenas uma rapsódia”, Guilherme de Almeida não só revela a
condensação de “fragmentos de canções”, como o uso do termo nos permite
expandir e transitar por seus sentidos semânticos. A rapsódia, originalmente,
está relacionada à epopeia grega, sendo definida como “trecho de poema épico
cantado por um rapsodo”. Ao transpormos para o poema essa relação com a
transmissão oral de um passado mitológico, é possível perceber a “Canção do
Expedicionário” sob o viés de sua ligação com o povo brasileiro e a consolidação
de uma ideia – construída – de nação, evocando seu espaço, crenças, símbolos
e referências, tanto literárias, quanto musicais.
Sendo a rapsódia considerada também como “trecho de uma composição
poética”, é preciso ressaltar que o autor utiliza diversas menções às obras
literárias consideradas nacionalistas. Faz alusão ao poema épico Caramuru
(pela referência à Moema) de Frei José de Santa Rita Durão, ao romance
Iracema, de José de Alencar (“verdes mares bravios da minha terra natal”); e à
“Canção do Exílio”, poema de Gonçalves Dias (“onde canta o sabiá”/ “Não
permita Deus que eu Morra/ sem que volte para lá”).
O último aspecto a ser abordado trata dos “fragmentos de canções do
povo” que permeiam a “Canção do expedicionário”, remetendo-nos à criação
rapsódica como “composição musical, formada de cantos tradicionais ou
populares de um país” (RAPSÓDIA, 2019). Ao trazer para o poema os versos
conhecidos e populares do repertório musical e literário brasileiro, cria-se um
espaço de reconhecimento, tanto em relação às obras citadas, quanto ao leitor
que, pelo território da memória, reconhece a canção e a ela se identifica,

brasileira”: o jeito de cantar do solista Francisco Alves foi quase o do sambista Chico Viola.”
(PEREIRA, 2009, p. 49).
231

enquanto sonoridade amalgamada à sua história, o que pode despertar o


sentimento de pertencimento a uma nação.
Sobre as obras musicais escolhidas e citadas, a “Canção do
expedicionário” reúne “em suas estrofes melodias de todos os pontos do Brasil”
que,

coordenados à moda de “rapsódia” uniram-se memórias da tradição,


de acordo com o nacionalismo vigente; no entanto, muitas das canções
incorporadas eram chamadas, pelos teóricos da época, de
popularescas, ou não folclóricas e/ou voltadas para o mercado
consumidor. (PEREIRA, 2007, p. 6)

Inspirada – em relação à forma, métrica e mote inicial – na famosa canção


“Casinha da colina”, de Luiz Peixoto e Pedro de Sá Pereira, gravada nos anos
20,81 é possível também reconhecer no poema trechos das canções “Casa de
caboclo”, de Luiz Peixoto e Hekel Tavares. Essa tradicional modinha de Miguel
Emílio Pestana e versos de Guimarães Passos tem sido considerada “ao mesmo
tempo do repertório dos seresteiros de rua como das mais graciosas senhoritas
nos elegantes saraus, já em desuso" (ALMIRANTE, 1950) (O Pessoal da Velha
Guarda, 14-12-1950). Na composição de Guilherme de Almeida ecoam, ainda,
“Luar do sertão”, toada de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco;
“Seresta”, de Orestes Barbosa e Francisco Alves; “Maria”, samba de Ary Barroso
e Luiz Peixoto; e as cantigas populares “Meu limão meu limoeiro” e “Casinha
pequenina”.
Além dessa junção de obras de vários gêneros, a maioria
fundamentalmente acompanhadas pelo violão na prática popular, o instrumento
aparece na sétima estrofe a partir da reiteração da pergunta-motivo que dá
impulso à criação poética:

Você sabe de onde eu venho?


É de uma pátria que eu tenho
no bojo do meu violão;
que de viver em meu peito
foi até tomando um jeito
de um enorme coração.
(ALMEIDA, 1982, p. 92).

81“Você sabe de onde eu venho?/ Duma casinha que tenho/ Fica dentro de um pomar/ É uma
casa pequeninha,/ Lá no alto da colina,/ De onde se ouve ao longe o mar” (CELESTINO, 2018).
232

Nessa estrofe, além de rememorar a canção “Meu companheiro”,82 temos


a resposta em relação à origem, revelada pelo eu lírico na simbiose entre pátria
→ violão → coração. Nessa tríade formada, ficam expostas as ligações
primordiais e os sentimentos afetuosos de pertencimento, cabendo ao
instrumento carregar em seu bojo não só a representação do indivíduo, como de
sua condição patrícia.
Nos versos seguintes, o eu lírico relata o que deixou “lá atrás”:

Deixei lá atrás meu terreiro


meu limão meu limoeiro, meu pé de jacarandá,
minha casa pequenina
lá no alto da colina
onde canta o sabiá.
(ALMEIDA, 1982, p. 92).

Além de se referir aos motivos populares presentes em “Meu limão, meu


limoeiro” e a “Casinha pequenina”83 (canção inclusive gravada pelo violonista
Canhoto e seu Regional), a estrofe relembra a “Casinha da Colina”, já comentada
anteriormente, e também – como possibilidade – o ponto de malandro “Lá no alto
da colina”, cantado na umbanda ao Zé Pelintra e ao povo da malandragem.84
Esse é um aspecto importante para nossa análise, pois, ao declarar
“deixei lá atrás meu terreiro” e todas as canções citadas, o poema cívico revela
o desejo de confinar ao passado não só o espaço religioso e marginal, como
também as práticas e referências musicais fundamentais:

Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade


negra, os bailes na frente da casa (já que ali se executavam músicas e
danças mais conhecidas, mais ‘respeitáveis’), os sambas (onde atuava
a elite negra da ginga e do sapateado) nos fundos; também nos fundos,
a batucada — terreno próprio dos negros mais velhos, onde se fazia
presente o elemento religioso — bem protegida por seus ‘biombos’
culturais da sala de visitas (noutras casas, poderia deixar de haver tais
‘biombos’: era o alvará policial puro e simples). (SODRÉ, 1998, p. 15).

Agora o violão – e o sujeito – dos terreiros, precisaria partir rumo a novas


conquistas mais alinhadas aos ideais políticos do período. Nesse ponto, o

82 “Meu companheiro dileto violão/ és meu afeto, és minha consolação/ de tanto roçar meu
peito/ tens hoje o timbre perfeito/ da voz do meu coração” (KBOING, 2018).
83 “Tu não te lembras da casinha pequenina,/ Onde o nosso amor nasceu?/ Tinha um coqueiro

do lado,/ Que coitado de saudades já morreu” (LETRAS, 2018).


84 Vocês estão vendo aquela casa pequenina/ Lá no alto da colina, que eu mandei fazer/ É lá

que malandro mora/ otário não tem moradia” (PONTOS DE UMBANDA, 2019).
233

instrumento – suavizadas suas relações com a vadiagem e boemia – participaria,


como vimos, de um poema com propósitos militares e institucionais, revelando
tanto sua intrínseca ligação com a cultura brasileira, como também seu caráter
transgressor, que, depois de tão perseguido, frequentou também o ambiente
militar.
Se, por um lado, o violão tem em sua constituição a capacidade de resistir,
transitar e aglutinar as diversas expressões populares, por outro, é nele – e por
ele – que essas manifestações ganham voz. Porta-voz e alto falante da pátria
em seu bojo, o instrumento compõe essa “tradição inventada” na articulação
entre orientações nacionalistas, motivos e canções populares, e elementos
literários que, através do poema-canção, chega tanto à FEB,85 quanto às massas
pela popularização da canção em discos e rádios, retornando, assim, ao povo,
ao seu – também – espaço.
“O atestado de timbre instrumental mais tipicamente brasileiro”
(TABORDA, 2011, p. 168) fica evidente no poema ao trazer o violão carregando
em seu bojo – sonora e simbolicamente – a pátria, e revelando tanto sua força e
a capacidade de acomodar a cultura popular, quanto o acesso à memória
coletiva de seu povo, ao evocar e recriar, no terreno da lembrança, o repertório
cancioneiro.
É claro que, ao transformar a “Canção do Expedicionário” em sucesso de
rádio, cria-se uma aproximação dos ouvintes com a comunicação direta com as
massas, funcionando assim, como meio de controle em prol dos ideais políticos,
do viés ufanista e da (re)invenção da nação, do próprio violão, e também do
samba. Ao tratar a música como fator disciplinador das massas, reguladora dos
comportamentos, o Estado novo estabelece novos rumos, nos quais “a música
contribuiria para reverter a rica e perigosa desordem do ‘país novo’” (WISNIK,
1983, p. 174):

[...] o interesse oficial pelo samba e pelas coisas brasileiras era mais
do que explicito. O aparelho governamental da Era Vargas esteve
muito envolvido com o progresso da nacionalização do samba, desde
o morro à exposição nacional. [...] A vitória do samba era também a

85“Após sua adoção generalizada (esquerdas, hinários, celebrações oficiais) a “Canção do


expedicionário” foi assumida pelas Forças Armadas como sua, que descartou sua própria
produção. Incorporada às cerimônias marciais à maneira de uma tradição inventada, ela lhes
confere todas as qualidades referidas ao passado da FEB e reafirma periodicamente o caráter
nacional dos militares quando do ritual da bandeira.” (PEREIRA, 2009, p. 52).
234

vitória de um projeto de nacionalização e modernização da sociedade


brasileira. O Brasil saiu do Estado Novo com o elogio (pelo menos em
ideologia) da mestiçagem nacional, a Companhia Siderúrgica
Nacional, o Conselho Nacional de Petróleo, partidos políticos
nacionais, um ritmo nacional. Na música popular, o Brasil tem sido,
desde então, o Reino do Samba. (VIANNA, 2007, p. 126-127).

Porém, concomitante à música praticada nos redutos boêmios, o samba


desenvolveria, a partir dos anos 30, um viés patriótico marcado pelas letras
ufanistas e arranjos orquestrais grandiloquentes do samba-exaltação ou samba-
cívico:86

Ao desenvolver o gênero samba-cívico, Ari Barroso revela uma espécie


de comprometimento, no plano cultural, com os ideais nacionalistas e
unificadores do Estado Novo, que instauram uma atmosfera de
gravidade e reverência para com um passado mítico e grandioso,
assim como enaltecem o meio natural exuberante. Já os músicos
populares que se orientam pela vida cotidiana, com suas paixões, seus
reveses e seus imponderáveis, tendem a adotar uma linguagem
musical simples e fragmentária. (NAVES, 1998, p. 168).

Se, por um lado, o “trinômio ufanismo-nacionalismo-trabalhismo”


intentava esse Brasil glorioso “do mulato inzoneiro” devoto ao trabalho, com
“mãos calejadas” de trabalhar “cantando, feliz”, por outro, a imagem do “trovador”
“à merencória luz da lua” conviveria com a malandragem e as expressões
musicais praticadas nos redutos, bairros, e regiões – aquelas que precisariam
ser deixadas “lá atrás”.87
É na esteira da sensibilidade ufanista e do samba-cívico que o estribilho
expõe uma mudança no tom do poema em análise. Nesse trecho com versos
bélicos e espírito patriótico, além da alusão à marcha “O V da vitória” de

86 Aquarela do Brasil é, sem dúvida, o modelo mais conhecido e difundido de samba-exaltação.


A linguagem triunfalista aparece inclusive em um relato do próprio Ari Barroso sobre o
processo de composição da obra, em 1939, revelando que, movido por “sentimento patriótico
inarredável” sentiu, “então, iluminar-me uma ideia: a de libertar o samba das tragédias da vida,
do sensualismo das paixões incompreendidas, do cenário sensual já tão explorado. Fui
sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência da nossa terra, “gigante pela própria natureza”.
Revivi, com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vibrantes,
aliás. Foi um clangor de emoções. [...] De dentro de minh'alma, extravasara um samba que eu
há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a
grandeza, a exuberância da terra promissora, da gente boa, laboriosa e pacífica, povo que ama
a terra em que nasceu.” (BARROSO apud CABRAL, s.d., p. 179).
87 “Nem bem caiu a ditadura, no entanto, e em dezembro de 1945 saía o samba de Almeidinha,

grande sucesso no carnaval do ano seguinte; “Eu trabalhei como um louco / Até fiz calo na
mão / O meu patrão ficou rico / E eu pobre sem um tostão / Foi por isso que agora / Eu mudei
de opinião / Trabalhar, eu não, eu não / Trabalhar, eu não, eu não / Trabalhar, eu não, eu não”
(WISNIK, 1983, p. 185).
235

Lamartine Babo (1942), a musicalidade do refrão é marcada pela recorrência


aliterante dos sons em [s] e [v]. É importante observar, em especial, que a
reiteração da consoante [v] não só estabelece um ritmo sonoro, como nos remete
à “vitória” almejada, ao “violão” que carrega e representa a pátria enaltecida, e
também ao presidente Vargas como exaltação, pois “basta observar, no Rio de
Janeiro, as colunas em forma de V que sustentam a Fundação Getúlio Vargas
ou as diversas canções que aludem às iniciais de seu nome [...]”. (PEREIRA,
2007, p. 6-7).
Na articulação híbrida dos materiais usados na construção poética, a
“Canção do Expedicionário” “ao converter o Brasil e a guerra em espetáculos
musicais” não só atenuou as “quinas da realidade e facilitou-se sua aceitação”,
como “ao tratar os conceitos de um grupo como o desejo de todos, permitiu-se
que a ideologia realizasse a sua intervenção fundamental” (PEREIRA;
ALAMBERT JÚNIOR, 2009, p. 37). O sucesso da canção em solo brasileiro –
tanto nas solenidades da FEB, quanto sua popularização em discos – não
alcançou, entretanto, a mesma força e amplitude no exterior. A recepção da
canção pelos soldados na guerra foi limitada, provavelmente em razão do
desconhecimento88 da obra ou mesmo pela dificuldade de execução.
Com o retorno das tropas e o contato com a canção, surge uma paródia
estruturada como resposta ao mote da inicial do poema. Por ela, são reveladas
duas importantes dimensões: a primeira, relacionada aos hibridismos que
formam a cultura brasileira e expressam a capacidade de mediação e trânsito
entre os mais diversos espaços e condições socioculturais desse “bacharel sem
dinheiro” que vem “das farras baratas”, “do cordão das gafieiras”, “dos braços
das mulatas”, “das crioulas bagageiras”, do malandro que vem “do “truque”, “do
boteco”, “do samba”, capaz de ser “da farra e do trabalho”, “do quartel e da
prisão, “da “oficina” e da “zona”.
Esse sujeito aglutinador e arlequinal, no entanto, não vem da “Pátria
Amada” e, com isso, revela uma segunda instância de observação:

Oriundos de uma situação de exclusão e pobreza, os veteranos


relatam em versos que vão do irônico ao melancólico suas quatro

88“Os diversos embarques dos combatentes e suas chegadas à Itália ocorreram entre julho de
1944 e fevereiro de 1945. O disco com a “Canção do expedicionário” só foi lançado em
outubro. Ou seja, se algum exemplar chegou por lá entre novembro e maio de 1945, não foi a
tempo de ser ensinado à tropa.” (PEREIRA, 2009, p. 51).
236

mortes: a social (antes e depois da Itália); a corporativa (desrespeito


militar à FEB); a moral (ser considerado um traidor, um quinta-coluna
infame); e a concreta, ocorrida no front para muitos (Se por acaso eu
voltar). (PEREIRA, 2009, p. 55).

Essa paródia, no entanto, não anula ou enfraquece a consolidação do


violão na cultura brasileira, pois tanto o instrumento fez parte das campanhas,
acompanhando as canções em voga, quanto se popularizou com o sucesso da
canção nas rádios. Nas relações inter e extratextuais, a “Canção do
expedicionário” realiza mais do que uma aproximação com o leitor, pois cria um
espaço de acesso e unificação entre os sujeitos através da memória coletiva e
da identificação de elementos literários, musicais e simbólicos pertencentes à
cultura brasileira. Estabelecendo conexões que perpassam o reconhecimento e
pertencimento, o poema, funde e transforma o “eu” em “nós”:

O poeta, por meio de sua obra, arquitetou um país que resolvera seus
problemas seculares pela união da música popular (uma pátria que eu
tenho no bojo do meu violão) com o sentimento (que de viver em meu
peito foi até tomando jeito deum enorme coração). O Brasil emergente
(o Eu) demonstrava essa nova condição a outras gentes (o Você)
expondo, lado a lado, atraso e modernização, campo e cidade, cultura
de elite e popular. (PEREIRA; ALAMBERT JÚNIOR, 2009, p. 37).

Assim, esse violão capaz de aglutinar os diversos gêneros musicais,


penetrar os espaços, as salas de concerto e as ruas, o morro e o ambiente militar,
populariza-se através do rádio e de sua circulação nas mãos de trabalhadores,
mas também dos tidos capadócios. Como representação da sonoridade e da
expressão brasileira, sua plangência “dava um quê de balbucio, de queixume
dorido da pátria criança ainda, ainda na sua formação…” (BARRETO, 1993, p.
79).

4.3 “Um violão que desacata”89

Entre adorado e combatido, o violão torna-se matéria de poesia, antes de


símbolo do coração pátrio, nas imagens e sonoridades engendradas pelo poema
“Violões que choram”, do poeta catarinense João Cruz e Sousa (1861-1898).
Publicado, postumamente no livro Faróis, o poema é composto por 36 estrofes,

89Verso da canção “Minha Palhoça”, do cantor e compositor carioca Álvaro Nunes, conhecido
por J. Cascata. (PERES, 2019).
237

em que a musicalidade das palavras constrói um corpo poético repleto de “tipos”


sociais, elementos musicais, atmosferas, cores e timbres que evocam o violão e
sua capacidade expressiva. O instrumento ecoa e ressoa por toda a matéria
poética, revelando o lamento dos excluídos e marginalizados, mas também a
sua força. Os violões não só choram, como também cantam as dores e os
amores do sujeito fragmentado, gritam as tensões e os conflitos daqueles que
vivem à margem, e desvelam seus desejos nos contornos sinuosos e sensuais
dos sons, que "vão dilacerando e deliciando" os ouvintes.
Como síntese de nosso trabalho, através do poema, temos não só o
percurso do instrumento e suas origens, como também a forma como se
relaciona com nossa cultura, deixando entrever os sentimentos que expressam
e os sujeitos que o tocam. Figuras sugestivas de um Brasil mestiço, marginal e
marginalizado, sofrido, silenciado, mas fervilhante, e que tem nos violões sua
força, persistência e poder de fala.
Envolto por uma atmosfera de mistério, sombras e escuridão – cuja
matéria fônica reforça a semântica –, o poema explora a potência do símbolo,
como é próprio da estética literária em que está inserido, criando uma
transfiguração do mundo real para os estados internos, do objeto para o
imaterial, em um processo de espelhamento, no qual, ao ultrapassar a matéria,
chega ao indivíduo. Ao vermos no instrumento – e através dele – as angústias
do sujeito, “Cruz e Souza, que se vê dilacerado entre matéria e espírito, dará à
palavra a tarefa de reproduzir a sua própria tensão e acabará acusando os limites
expressionais do verbo humano” (BOSI, 2006, p. 270).
Além de criar uma correspondência entre esses dois planos, envolvendo
o concreto e os estados da alma, no poema são construídas imagens poéticas e
sonoras que representam o violão e guiam o leitor por seus sons, sentimentos,
ambientes, contradições e sujeitos que marcaram sua trajetória. Esse efeito
expressivo se dá pelo poder sugestivo da linguagem e pela musicalidade das
palavras que (re)criam timbres e características violonísticas por meio da
articulação e reiteração de fonemas, combinações rítmicas e vocálicas, e da
aproximação entre campos sensoriais diversos.
Ao explorar o objeto e tudo o que ele suscita, são utilizadas tanto as
metáforas que personificam o violão, quanto a exploração sonora das aliterações
a assonâncias. Sobre a insistente repetição consonantal, destaca-se a
238

recorrência principalmente dos fonemas [v] e [s], associados ao sopro e aos


ruídos específicos, conforme comenta Martins (2008):

[...] adaptando a explicação dada por Morier para o vocábulo francês


siffle ao nosso assobio, podemos dizer que as noções de ruído agudo,
de produção de sopro e de nota aguda encontradas no significado,
correspondem à consoante de ruído agudo [s], ao fonema produtor de
sopro [v], e à vogal de nota aguda [i] do significante. (MARTINS, 2008,
p. 47).

Esse aspecto corrobora a temática do poema, inserindo nele e evocando


no leitor os timbres que se aproximam da produção sonora dos violões,
imprimindo não só os ruídos provocados pelo ataque das unhas nas cordas,
como lembrando o choro dos sofrimentos amorosos confidenciados e revelados
pelos sons dos violões.
Em relação às assonâncias, há o predomínio das vogais média-alta
arredondada [o] e alta [u], trazendo o escuro e o encoberto da noite e dos
estigmas, dos sujeitos que permanecem nas penumbras, das serestas e festas
proibidas, e dos contornos de sensualidade e sexualidade que povoam o
imaginário relacionado ao violão. Bosi (1977) explica que,

os defensores do simbolismo orgânico acreditam que uma vogal grave,


fechada, velar e posterior, como o /u/, deva integrar signos que
evoquem objeto igualmente fechados e escuros; daí, por analogia,
sentimentos de angústia e experiências negativas, como a doença, a
sujidade, a tristeza e a morte. (BOSI, 1977, p. 46).

Esse efeito, criado pela repetição das vogais, também nos traz o som
redondo dos graves do violão, permitindo tanto a recordação de seu timbre
quanto nos remetendo às curvas que estruturam e caracterizam o formato do
instrumento.
Na profunda relação e correspondência entre a produção sonora e o
sentido do poema, ecoam nos versos – por vezes diferentes, por vezes em seu
interior –, a força simbólica do violão. Sua sonoridade se propaga, desdobra-se
e se prolonga através da prosódia, das reiterações e dos aspectos que unificam
música e poesia. No poema, o violão não aparece apenas representado, ele se
faz ouvir. Vejamos, paulatinamente, como atuam esses recursos e evocações.
O poema se inicia com a interjeição “Ah!” já anunciando os sentimentos
de dor e tristeza, mas também exprimindo certa admiração. O choro apresentado
239

no título já é desenvolvido na primeira estrofe pelas referências aos “soluços”,


às “bocas murmurejantes” e aos “choros ao vento”. O uso de reticências no
segundo verso, não só reforça a imagem dos lamentos e lágrimas lançados “ao
vento...”, como sugere uma continuidade que toca os “tristes perfis” – no verso
seguinte – e também o leitor. Assim, os choros são levados e propagados pelo
vento.
Além dos sons dos violões e seus cantos de nostalgia, tristeza e lamento,
temos, nessa primeira estrofe, os traços iniciais dos sujeitos que os tocam. Ainda
que de maneira imprecisa, pois são “tristes perfis, os mais vagos contornos”,
esse esboço começa a nos revelar, em meio à atmosfera noturna, os indivíduos
que sofrem e vivem à margem. De suas “bocas murmurejantes” – lamento
reforçado pelo som arredondado e fechado da vogal [u] e pelo efeito sussurrado
da palavra – à boca dos violões, sua abertura redonda no tampo. Assim, os sons
produzidos e os sentimentos retratados misturam também os sentidos – auditivo
(“plangente”) e tátil (“mornos”) – no instrumento que aparenta estar adormecido,
mas que, como os vulcões, não estão mortos e nem frios, permanecem tépidos
e latentes:

Ah! Plangentes violões dormentes, mornos,


soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Nas estrofes seguintes, o tempo da noite aparece reiterado e envolto pelo


desconhecido, pela imprecisão (“noites de além, remotas”) e pelo isolamento. O
sujeito lírico em primeira pessoa fica exposto pelo uso do pronome “eu” e do
tempo verbal utilizado (“recordo”), construindo, assim, um registro não só com
características testemunhais, mas também impregnado de memória. Nessa
recordação, além da noite, ficam nítidos o espaço da rua deserta, o luar, recriado
pelo efeito visual da “luz da lua”, e o sentimento de saudade que permeia os
“violões chorosos”. Nesse ponto é preciso observar tanto a reincidência desses
aspectos espaciais, temporais e sentimentais que acompanham o violão, como
o caráter persistente do instrumento, pois, apesar de dormente, guarda algo que
pulsa, palpita e anseia. Suas cordas permanecem vivas:
240

Noites de além, remotas, que eu recordo,


noites da solidão, noites remotas
que nos azuis da Fantasia bordo,
vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua,


anseio dos momentos mais saudosos,
quando lá choram na deserta rua
as cordas vivas dos violões chorosos.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Da saudade à melancolia, a quarta estrofe reforça o impacto dos “sons


dos violões” no momento em que as suas “cordas gemem”, provocando
contínuas ondas de dor e prazer. Essa mescla de sentimentos opostos e
permanentes fica evidenciada pelo uso acumulativo de verbos no gerúndio
(“soluçando”, “dilacerando e deliciando”, “rasgando”), que provocam a sensação
tanto de continuidade quanto de aceleração no discurso ou um acelerando, em
termos musicais. É interessante notar também que o uso do verbo “rasgando”
relembra o toque “rasgueado” do violão, muito utilizado na música flamenca e
cujo ataque simultâneo dos dedos da mão direita produz uma sonoridade aberta,
ruidosa e explosiva:

Quando os sons dos violões vão soluçando,


quando os sons dos violões nas cordas gemem,
e vão dilacerando e deliciando,
rasgando as almas que nas sombras tremem.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Nas próximas estrofes, além da referência à harmonia – elemento da


esfera musical – há um enfoque no corpo do violonista e em suas habilidades
técnicas na referência aos “dedos nervosos e ágeis”. Nesse trecho persiste
também o efeito da estrofe anterior, pois reitera a relação ato-consequência dos
sons “que pungem, que laceram, que percorrem” e geram um “mundo de
dolências”, “gemidos, prantos”. Ligado pelo uso das reticências e do conectivo
“e”, o trecho abaixo, expressa os sentimentos de dor, choro, angústia, mágoas,
amarguras e melancolia. Esses sentimentos que se propagam “noturnamente” e
os sons taciturnos, monótonos e tristes dos violões são evocados pelo uso
constante do fonema [s]:

Harmonias que pungem, que laceram,


dedos nervosos e ágeis que percorrem
cordas e um mundo de dolências geram,
gemidos, prantos, que no espaço morrem...
241

E sons soturnos, suspiradas mágoas,


mágoas amargas e melancolias,
no sussurro monótono das águas,
noturnamente, entre ramagens frias.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

A sétima estrofe, certamente a mais conhecida do poema, desenvolve


uma sequência de imagens e efeitos sonoros que perpassam e se transpõem
para todo o poema, explorando a musicalidade e a articulação sonora
principalmente dos sons consonantais [v], [z], [l] e dos fonemas vocálicos [o] e
[e].
Os versos dessa estrofe não só começam com o fonema [v], como quase
todas as palavras que o compõem também utilizam essa mesma articulação
labiodental, reforçando o efeito e a imagem da vibração das cordas do violão.
Além das aliterações e assonâncias, temos também a repetição da palavra
“vozes” que nos direciona tanto à produção sonora do violão e à sua voz como
resistência, quanto à emissão vocal de quem o toca, dedicando canções às
amadas e musas desejadas.
Na mistura entre tato e audição, além da sinestesia presente em
“veludosas vozes”, a adjetivação também recorre a um tipo de som característico
do timbre violonístico relacionado a som aveludado e doce. No entanto, ao se
referir também às “volúpias” e “febril agitação de um pulso”, os versos ganham
uma conotação de sensualidade – metaforizando a maciez da pele da mulher,
seus desejos e o prazer sexual – e refazem a imagem e a associação do violão
ao corpo feminino.

Vozes veladas, veludosas vozes


volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Se o violão é capaz de receber, acomodar e reverberar a totalidade ou o


conjunto de todas as coisas, fatos, ou sentimentos – afinal, nele “tudo” cabe e
“ecoa” –, ele também se desdobra em metáfora do corpo. Repleta de
sensualidade e desejo, a estrofe abaixo utiliza as propriedades sonoras do violão
para se desdobrar em experiência corporal que, por senso comum e contexto de
época, estaria associada à figura feminina. Ao toque do violonista, o som – e a
242

mulher –, “vibra e se contorce no ar”, pois, de prazer e gozo, o corpo convulso,


“clama e voa”, “febril”:

Tudo nas cordas dos violões ecoa


e vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
sob a febril agitação de um pulso.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Em seguida, são atribuídos aos violões encadeamentos de dor, morte e


isolamento (“degredo atroz, funério”) – representando não só o destino, como a
natureza do sujeito vagante, desolado e partido, como “ilhas de degredo”. Em
meio aos sons etéreos, enevoados e obscuros, o violão é o refúgio e a voz
dessas “almas que se abismaram no mistério”, o instrumento dos “inquietos” e
perdidos – “navios a vagar à flor de espumas”:

Que esses violões nevoentos e tristonhos


são ilhas de degredo atroz, funéreo,
para onde vão, fatigadas do sonho,
almas que se abismaram no mistério.

Sons perdidos, nostálgicos, secretos,


finas, diluídas, vaporosas brumas,
longo desolamento dos inquietos
navios a vagar à flor de espumas.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

A interjeição “oh!”, que abre a próxima estrofe, não só anuncia o desejo e


a languidez – reiterada no mesmo verso –, como marca também uma mudança
de tom no poema, deixando-o mais claro e articulando as polarizações e
ambiguidades que perpassam a trajetória do instrumento. Entre lamúrias,
queixas e “gritos felinos de ciúmes”, o violão pungente, penetrante e “acre” é
também veículo de “encantos” e “graça”. Em mãos vadias e maltrapilhas,
acontece “um concerto de lágrimas sonoras!”, no qual chora – sonoramente – o
violão e os sujeitos que o tocam:

Oh! Languidez, languidez infinita,


nebulosas de sons e de queixumes,
vibrado coração de ânsia esquisita
e de gritos felinos de ciúmes!

Que encantos acres nos vadios rotos


quando em toscos violões, por lentas horas,
vibram, com a graça virgem dos garotos,
um concerto de lágrimas sonoras!
(CRUZ E SOUSA, 1993).
243

Partindo para uma atmosfera mítica e fabular, o som do violão aparece


delineado entre flores, lua cheia, “estrela mágicas”, “lagos encantados”, imerso
no romântico movimento florescer-adormecer e na dimensão imemorial do
“silencio astral” e da “imensidade”. O canto para o luar – e sob sua luz – revela
a saudade, a solidão e a transitoriedade da vida representada pelas “pálidas
ninfeias” (flores que simbolizam os ciclos de vida e morte, a divindade e a vida
após a morte). A referência aos “trêmulos” traz não só um componente da esfera
violonística – pois trata-se de um recurso instrumental que consiste em tocar
determinada nota ininterrupta e rapidamente, dando a sensação de continuidade
e propagação sonora –, mas também o recria pela própria musicalidade do
poema no verso “palpitando no espaço, ondula, ondeia”.90

Quando uma voz, em trêmulos, incerta,


palpitando no espaço, ondula, ondeia,
e o canto sobe para a flor deserta
soturna e singular da lua cheia.

Quando as estrelas mágicas florescem,


e no silêncio astral da Imensidade
por lagos encantados adormecem
as pálidas ninféias da Saudade!
(CRUZ E SOUSA, 1993).

O convívio das tensões e dos opostos se amplia nos próximos versos,


evidenciando o violão que acalenta com pungências e “lacerações”, na “graça
ideal”, mas também tristes de seus sons. Se, por um lado, o instrumento carrega
um lado sombrio e voluptuoso, por outro, adquire significados angelicais,
abraçando o sujeito com “asas brancas de clemência” e tornando-se espaço de
perdão, bondade e brandura. Dos violões que choram, gemem e vibram,
chegamos agora à sua fala precisa e enfática, marcada pelo uso da exclamação:
“as harmonias dos violões que falam!”. Em seus graves, não só lânguidos, doces
e sensuais, como tristes, abatidos e extenuados, o violão reverbera – no poema
e no leitor – na continuidade das reticências:

Como me embala toda essa pungência,


essas lacerações como me embalam,
como abrem asas brancas de clemência
as harmonias dos violões que falam!

90Esse recurso possibilita um efeito semelhante ao construído por Mário de Andrade, conforme
vimos no trecho “reboa, ressoa”, do poema “A adivinha”.
244

Que graça ideal, amargamente triste,


nos lânguidos bordões plangendo passa...
Quanta melancolia de anjo existe
nas visões melodiosas dessa graça.
(CRUZ E SOUSA, 1992).

Dos aspectos melódicos (horizontais) e harmônicos (verticais), citados


nos versos acima, chegamos aos rítmicos, caracterizado como “trêmulos e
indecisos ...”. Essa adjetivação, que se estende também ao estado emocional do
eu lírico, se refere não só à produção sonora do violão, mas também à
representação metafórica das oscilações pendulares que acompanham a
trajetória do instrumento. É entre passos titubeantes e ambíguos que o violão
caminha, suscitando afetos ambíguos, circulando pelos extremos dos espaços
sociais e aglutinando preconceitos e elogios. Ao transitar entre os limiares, o
violão evoca o primordial e a eternidade do sentimento, na convivência – nem
sempre pacífica – entre o sagrado e o profano.
Em uma profusão de sentimentos e gestos (lágrimas, risos, mágoas), o
instrumento é céu, e também inferno – reiterado pela repetição que aumenta e
aprofunda. Nos versos que se seguem, a linguagem representa esses contrastes
na aglomeração e de um efeito de aceleração na exposição dos elementos. No
violão – e através dele – cabem todos os sentimentos, paradoxos e posições:

Que céu, que inferno, que profundo inferno,


que outros, que azuis, que lágrimas, que risos,
quanto magoado sentimento eterno
nesses ritmos trêmulos e indecisos...
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Nas dualidades que expõe, o poema evidencia a relação conflituosa entre


o violão e a religiosidade, pois se, por um lado, seus sons representam o
celestial, por outro, o instrumento é retratado como meio de sedução e pecado.
Ao penetrar a clausura religiosa – e também a social e a cultural –, o violão passa
a representar uma ameaça à castidade e à pureza feminina, por acender o
desejo dilacerador e a ânsia mortificada de “monjas belas” – e também das
moças de família – aprisionada em “celas” ( e, evidentemente, por extensão, nos
espaços do lar e no cerceamento patriarcal).
Como vimos, historicamente o violão esteve ligado à figura do Diabo, do
boêmio e do arquétipo donjuanesco, representando um desafio e transgressão
às normas religiosas, sociais e culturais pelo aspecto violador – da casa, da
245

mulher e dos costumes. A figura feminina, atraída pelos sons do instrumento e


pelo canto e habilidades do violonista, sucumbe e é lançada ao vendaval e à
lama da desonra. O violão, como meio de sedução e conquista, ao mesmo tempo
em que encanta, corrompe e arrasta para a degradação todas as mulheres que
se encantam (incluindo as castas ou resguardas, e as mais “plebeias”). Além do
advérbio “quanto”, enfatizando a ideia de quantidade numerosa, a utilização
sequencial de verbos no gerúndio (vagando, vegetando, morrendo, proliferando)
parece manter a continuidade da situação, como um “moto perpétuo”. Restam
as dores – físicas, morais e existenciais – e as almas dilaceradas que, como
vultos, arrastam as “agonias aspérrimas e agudas”. A sonoridade provocada
pelas consoantes constritivas [s] e [r] acentua o sentido semântico do trecho, e
desvelam as sombras que se avolumam, silenciosas e espectrais, em um cortejo
impregnado de morte:

Que anelos sexuais de monjas belas


nas ciliciadas carnes tentadoras,
vagando no recôndito das celas,
por entre as ânsias dilaceradoras...

Quanta plebéia castidade obscura


vegetando e morrendo sobre a lama,
proliferando sobre a lama impura,
como em perpétuos turbilhões de chama.

Que procissão sinistra de caveiras,


de espectros, pelas sombras mortas, mudas...
Que montanhas de dor, que cordilheiras
de agonias aspérrimas e agudas.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Retornando a uma tonalidade mais escura e sombria, o poema segue


retirando os véus que encobrem e enlutam, mas também revelam a condição
errante e solitária relacionada ao instrumento e a quem o toca. A viuvez, a
cegueira e a velhice indicam a unificação pela falta, pela carência dos sujeitos
que vivem à margem, esquecidos pela sociedade. Destinados a “vendavais”,
“chuvas”, claustros e tristezas profundas, aqueles que saem “do próprio domicílio
ou do país de origem, por imposição legal ou voluntária”, são condenados ao
degredo, isolados ou apartados do convívio social, deteriorando até à morte.
Esses aspectos podem ser transpostos ao violão, pois o instrumentista vaga
solitário carregando consigo – e no bojo de seu instrumento – os segredos e um
conhecimento antigo, primordial. Esses sujeitos, muitas vezes em precariedade
246

e mendicância,91 vivem à margem. Não são vistos, nem reconhecidos.


Demoram-se fixados na eternidade e na solidão:

Véus neblinosos, longos véus de viúvas


enclausuradas nos ferais desterros,
errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
sob abóbadas lúgubres de enterros;

velhinhas quedas e velhinhos quedos,


Sepulcros, segredos
cegas, cegos, velhinhas e velhinhos,
sepulcros vivos de senis segredos,
eternamente a caminhar sozinhos;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

O caminho cercado de morte e nulidade tem sua continuidade no uso do


conectivo [e], que, além de ligar os versos e estrofes, atua como um legato
musical:

e na expressão de quem se vai sorrindo,


com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
e um lenço preto o queixo comprimindo,
passam todos os lívidos defuntos...
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Dos “dedos nervosos e ágeis” à mão que, contraída e arrebatada, domina


o instrumento, são produzidos sons não só de pungências e afetos, como
também de sombras, ironias, noctambulações e debilidades:

E como que há histéricos espasmos


na mão que esses violões agita, largos...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
e de sonambulismos e letargos.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Além da alusão aos componentes musicais harmonia-melodia-ritmo, ao


corpo do violonista, às caraterísticas sonoras do instrumento, às oscilações entre
a beleza e a degradação, volúpias e encantos, ao espaço da rua e ao tempo da
noite, a estrofe seguinte traz a origem do violão e remonta seus tempos áureos
em terras europeias. Vindo do além-mar, o violão carrega seu passado
grandioso, porém chega ao Brasil pelas mãos de condenados, pois, ao se referir

91 Como os cegos que viviam em Portugal, andando pelas ruas, tabernas e feiras, vendendo
folhetos, tocando viola e cantando em busca de ajuda e dinheiro.
247

às galés, temos não só a referência às embarcações, como aos prisioneiros


destinados a cumprir pena de trabalhos forçados:

Fantasmas de galés de anos profundos


na prisão celular atormentados,
sentindo nos violões os velhos mundos
da lembrança fiel de áureos passados;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Na estrofe seguinte, ao anunciar “eu vi”, o sujeito lírico revela sua posição
de testemunha, reiterando as associações do instrumento à errância e ao
sofrimento, e dando prosseguimento à descrição dos perfis de quem o toca – e,
por extensão, aos espaços que frequenta. Perpassados pela imagem da
serpente e do inferno, entre tabernas e prostíbulos, entregues aos vícios, os
tísicos – mas maviosos – revelam a fragilidade humana:

meigos perfis de tísicos dolentes


que eu vi dentre os violões errar gemendo,
prostituídos de outrora, nas serpentes
dos vícios infernais desfalecendo;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Observa-se que os “tipos” relacionados ao violão são retratados pelo que


possuem de desalinho e de imperfeito. Cercado pela imagem da lua e do beijo,
o violão ocupa um lugar de confidente, oferecendo consolo e alívio para o sujeito
despedaçado. É nele – e através de suas “queixas” – que as dores e desilusões
são confortadas:

tipos intonsos, esgrouviados, tortos,


das luas tardas sob o beijo níveo,
para os enterros dos seus sonhos mortos
nas queixas dos violões buscando alívio;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Em seguida, o poema se torna ainda mais denso, acelerado e profundo,


ao traçar os contornos dos corpos desses sujeitos descritos como abatidos,
sofridos, machucados, degenerados, e, marcadamente, derrotados. Essas
dolorosas representações do sujeito – e também do violão – perpassam tempos
(“toda a geração”), culturas e etnias (“todos os sangues”):

corpos frágeis, quebrados, doloridos,


frouxos, dormentes, adormidos, langues
248

na degenerecênscia dos vencidos


de toda a geração, todos os sangues;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Esboçados os corpos, o poema passa a enumerar, passo-a-passo, os


agentes e as características de quem está ligado ao violão. Os perfis, antes
vagos, começam a ganhar contornos ainda mais precisos e, com eles, as
associações e a própria trajetória do instrumento aparecem espelhadas.
Primeiro, com os fortes marinheiros resistentes às tormentas e à morte.
Em seguida, com os soldados de todas as regiões que, marcados por “fundas
cicatrizes”, buscam nos violões não só os sons, mas também os “aromas” e os
estados de felicidade e pureza. O instrumento, capaz de misturar os sentidos –
tato, audição e olfato – e os sentimentos, enfrenta, com suas profundas marcas
e máculas, as intempéries do percurso. Também ele, com “poder extremo”,
sobrevive ao (mau) tempo, aos preconceitos e exclusões:

marinheiros que o mar tornou mais fortes,


como que feitos de um poder extremo
para vencer a convulsão das mortes,
dos tempos o temporal supremo;

veteranos de todas as campanhas,


enrugados por fundas cicatrizes,
procuram nos violões horas estranhas,
vagos aromas, cândidos, felizes.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Dos diletantes do violão temos também os boêmios, dedicados à bebida


e à vagabundagem. Esses proscritos, vistos por tudo que há de miserável,
sinistro e terrível, escapam às doutrinas cristãs, para seguir os próprios
preceitos, encontrando, no violão, seu símbolo de devoção:

Ébrios antigos, vagabundos velhos,


torvos despojos da miséria humana,
êm nos violões secretos Evangelhos,
toda a Bíblia fatal da dor insana.
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Os palhaços – que, como o já comentado Dudu das Neves, tocavam e cantavam


nos teatros de entremezes – e os libertinos (sujos, desonrados, fatigados)
escondem-se atrás de máscaras e meneios – escorregadios e luxuriosos – com
a intenção de seduzir e ludibriar:
249

Enxovalhados, tábidos palhaços


de carapuças, máscaras e gestos
lentos e lassos, lúbricos, devassos,
lembrando a florescência dos incestos;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Das mãos dos marinheiros, soldados, boêmios, devassos e toda a sorte


de excluídos e marginalizados, o violão chega aos condenados. Como eles, o
instrumento resiste às perseguições e aos cárceres, porém, tiradas as máscaras,
seus perfis desvelam as caricaturas tristes, solitárias e insignificantes dos
esquecidos:

todas as ironias suspirantes


que ondulam no ridículo das vidas,
caricaturas tétricas e errantes
dos malditos, dos réus, dos suicidas;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Além da reiteração do advérbio “toda(s)”, abarcando a integralidade e a


amplitude do instrumento nas camadas sociais e tipologias dos sujeitos
(predominantemente masculinos), o poema retoma as perturbações sensoriais
e emocionais que o violão provoca, especialmente na figura feminina. É
fundamental perceber, no trecho abaixo, a presença de dois aspectos
recorrentes nas associações entre o violão e a mulher: o primeiro trata tanto dos
estados de confusão e enredamento a que são lançadas – nos emaranhados do
caminho labiríntico e dos sentimentos de enleio –, quanto de adoecimento, pela
referência às condições patológicas que lhes acometem (como o transtorno
psíquico da “nevrose” e pela palidez evidente pela “clorose” que afeta as
mulheres jovens durante suas perturbações menstruais). O segundo traz, à
superfície, o conflito entre a pureza atribuída à mulher (vista como virgem
arrebatada por “anseios românticos”) e o desejo físico – que “lhes lacera os
seios” – guardado. Nos “ocasos do Amor”, é possível entrever não só o
sentimento idealizado (marcado pela grafia do termo em letra maiúscula), como
também a “decadência” e a “ruína” que esse poente significa – e desencadeia –
pela potência do desejo:

toda essa labiríntica nevrose


das virgens nos românticos enleios;
os ocasos do Amor, toda a clorose
que ocultamente lhes lacera os seios;
(CRUZ E SOUSA, 1993).
250

Somando-se ao enlevo e aos anseios femininos, o poema expõe a


sensualidade de formas e movimentos. Entre “requebros”, “ondas lascivas” e
“convulsivas”, permanece a imagem de sensualidade e volúpia (“langue”, “mole”,
“morna”) dos corpos – mulher e violão –, que estremecem ao toque do
instrumentista. Esses desenhos sinuosos são entremeados por referências
musicais, como a música popular, o canto monótono da “melopeia” e o gênero
musical e dançante da valsa:

toda a mórbida música plebeia


de requebros de faunos e ondas lascivas;
a langue, mole e morna melopeia
das valsas alanceadas, convulsivas;
(CRUZ E SOUSA, 1993).

O poema encerra abarcando a totalidade marcada pelo “grotesco” –


ridículo, estapafúrdio ou caricato – e pelo que escapa ao harmonioso por ser
“descomunal”, “desmedido” e desigual. A expressão vocal e a imagem de dor e
sofrimento representadas pelos “ais” e “contorções de açoite” expõem o flagelo
da população negra. A chibata que corta os corpos e as almas revelam as feridos
e destroços da escravidão, em gritos e gemidos, que também são de violência,
opressão, exclusão, racismo e perseguição. O efeito de dor é ampliado no
poema tanto pela voz do próprio poeta, negro e filho de escravos, quanto pelo
choro dos violões:

tudo isso, num grotesco desconforme,


em ais de dor, em contorsões de açoites,
revive nos violões, acorda e dorme
através do luar das meias noites!
(CRUZ E SOUSA, 1993).

Com orgulho e sofrimento, o violão revela e “revive” todos os indivíduos à


margem, os excluídos, e a gama de “tipos” que fizeram do violão – e com ele –
sua voz e seu percurso de luta, errância e cumplicidade. O violão confidencia,
guarda e revela, tornando-se não só o fiel companheiro e dedicado ouvinte, como
também a expressão dos sentimentos de quem o toca. Por meio da adjetivação,
das imagens criadas pelas metáforas (e outras figuras de linguagem), e das
características que lhes são atribuídas, o violão é personificado. Mais do que um
objeto ou meio, o instrumento adquire contornos de sujeito. Sendo ele, ao
251

mesmo tempo, singular (e particular, como cada indivíduo), e geral, – amplo e


simbólico –, por tudo que que abarca e pelo uso reiterado do plural (“violões”).
O violão, por sua capacidade de transitar e acomodar sentimentos e
polarizações, volúpias e afetos, ressoa tanto pela metalinguagem, quanto pela
sonoridade que perpassa todo o poema. Desde o título – em que “chorar” se
refere não só à trajetória do violão e aos sujeitos que o tocam, como à descrição
de sua produção sonora –, o som do instrumento se propaga através das
aliterações, assonâncias e mudanças vocálicas, emulando os ruídos de suas
cordas e evocando ambientes, pessoas, características e expressões musicais
com as quais se relaciona.
Nesse poema – que é também síntese do que discutimos ao longo deste
trabalho – percebemos o violão que “acorda e dorme”, presentificado e
atualizado pelo tempo verbal, percorrendo os mistérios da noite e das almas, no
– e “através” – do luar, atravessando e resistindo a tempo e espaços.
Inesgotáveis, os violões seguem plangendo e não se pode silenciá-los. Nas
palavras de Lorca: “Empieza el llanto/ de la guitarra./ Es inútil/ callarla./ Es
imposible/ callarla”92 (LORCA, 1964).

92Poema “La Guitarra”, Federico Garcia Lorca publicado na revista VIOLÃO E MESTRES Nº2 ,
1964, p. 45.
252

5 “ANDA CÁ, MEU VIOLÃO, EU QUERO AGORA, AFINAR-TE”93

Ao tomar “esta caixa misteriosa” – tanto a poética, quanto a violonística –


foi possível descobrir alguns dos “segredos” que perpassam o traçado entre a
literatura e música, em especial, a compreensão dos significados da presença
do violão na poesia brasileira. Com surpresa e desafio, encontramos uma
extensa produção poética que envolve o instrumento, da qual optamos por
apresentar apenas uma amostragem devido aos limites do trabalho e à
profundidade das questões. Isso, no entanto, ao contrário de representar um
esvaziamento, nos permitiu identificar três importantes eixos temáticos,
significativos e pronunciados que, apesar de apresentados separadamente por
critérios de organização e exposição, são intercambiáveis, por vezes mesclando
aspetos ou entrecruzando elementos. Assim, temos o primeiro, relacionado ao
amor idealizado e à cena seresteira; o segundo, envolvendo tanto o contexto da
vadiagem e da indolência, quanto da atração que o instrumento e o
instrumentista despertam; e o terceiro, relacionado às características,
espelhamentos e associações entre o violão e a cultura brasileira.
Esses eixos, surgidos com base na pesquisa e localização das fontes, na
análise dos poemas, na organização do material e na seleção da amostragem,
foram estruturados em diálogo com o conteúdo de revistas especializadas para
violão; letras de canções populares e poemas que inspiraram o repertório
brasileiro para violão e voz; obras teatrais; e aspectos históricos, culturais e
sociais que constituíram a trajetória do instrumento. Nesse percurso, as
sonoridades, atmosferas, tonalidades, figuras literárias, cenas, e sentimentos
evocados pelos poemas aparecem entremeados por elementos contextuais e
musicológicos que nos permitiram apontar as tensões, estabelecer discussões e
explicitar os perfis encontrados.
Ao estabelecer o diálogo entre música e literatura, buscamos não só
compreender como o violão participa da construção poética – modificando
ambientes, criando imagens e sons, transitando por espaços, e aproximando o
leitor do texto através da identificação que suscita –, como verificar a hipótese
de que, apesar das ressignificações sofridas pelo instrumento, o texto poético

93 Verso do poema “Ao violão”, de Catullo da Paixão Cearense (1908).


253

perpetua uma imagem ligada à sua função de acompanhador dos gêneros


populares.
No primeiro eixo temático deste trabalho, intitulado O AMOR SONHADO
E A MOLDURA SERESTEIRA, traçamos um panorama sobre a experiência da
seresta e a ligação com o trovadorismo ibérico, abordando, inicialmente, o violão
como forma de anúncio para a chegada do trovador e o despertar da donzela.
Em seguida, focalizamos a figura do trovador e do menestrel apaixonado e
devoto, apresentando também sua voz, na análise de poemas cujos títulos se
referem à expressão musical da canção e suas variantes (cantiga e moda).
Preocupamo-nos, por fim, em expor a perspectiva da mulher que, apesar das
restrições e imposições sociais, religiosas e morais, encontra subterfúgios e
força expressiva, tanto em termos autorais pelos poemas escritos por mulheres
quanto pelo conteúdo dos textos selecionados para este estudo.
De acordo com as análises realizadas, na serenata que convida a musa,
e também o leitor, o violão não só prenuncia a chegada do homem apaixonado,
como revela seus sentimentos. Nesse contexto, o instrumento expressa o
chamado para o encontro amoroso e provoca a agitação física e emocional em
quem o toca e o escuta. Realizada ao relento, sob a luz da lua, no tempo da noite
e da aurora, a serenata acontece tanto nos espaços urbanos, com os violões
pelas esquinas e lajedos, quanto no contexto rural, em meio à natureza,
acompanhada principalmente pela viola.
O instrumento, ao expressar o amor platônico, romântico e cortês através
da poesia, evoca a carga simbólica e musical que permeia a prática seresteira,
acessando lembranças e criando imagens e encantamentos pela conexão com
o mítico e o fabular. No diálogo com as tradições trovadorescas, percebemos a
mulher como mote e destinatária, enquanto ao homem cabe a posição de devoto
e vassalo. Assim, temos a musa pura, adormecida e, geralmente, associada à
flor em botão, e o trovador-seresteiro que, vagando pelas noites, vivifica a
relação com a boemia e a vadiagem. Nesse elogio ao amor, o sistema complexo
formado predestinação-proibição é evidenciado pela distância geográfica, física
e social, entre a musa na sacada, resguardada pela casa e pelos costumes, e o
homem apaixonado, acompanhado por seu instrumento e os estigmas que
carregam.
254

Se, por um lado, através dos poemas sob o designo de canção, cantiga,
e moda, temos o tom amoroso, sentimental e romântico desse trovador – como,
aliás, é próprio das canções na esfera musical –, por outro, a voz feminina revela
o desejo libertário, transgressor e aberto à experiência amorosa. Distante da
musa resguardada e das obrigações sociais impostas ou esperadas, a mulher
prefere, mesmo que por meio de estratagemas, cuidar de si e ser cortejada,
escolhendo como pretendentes aqueles dedicados ao pinho.
Em seguida, transitamos do amor idealizado ao elogio da vagabundagem,
percorrendo os estigmas que marcaram a trajetória do instrumento. No eixo
BOEMIA, ÓCIO E SEDUÇÃO discutimos as associações entre o violão e o
capadócio, com sua inclinação aos vícios, à indolência e à vida noturna; e
anunciamos o sedutor, filiado à mitológica figura de Don Juan que, tendo no
violão um de seus meios de conquista, passa a representar um perigo à honra,
à moral e aos considerados bons costumes. Sem os sentidos românticos e
duradouros do amor, observamos os impactos do sedutor na figura feminina,
revelando a mulher desiludida, violada e desonrada.
Instrumento de malandros e boêmios, ciganos e capoeiras, o violão
acompanha o sujeito que vive à margem, que foge às convenções e obrigações
sociais. Além das recorrentes referências aos vícios, à vida desregrada e à
indolência, os poemas nos trouxeram a fruição artística e expressiva pela
liberdade que esse modo de vida propicia. Assim, se por um lado, o violonista e
seu instrumento adquiriram sentidos estigmatizados, por outro, evidenciaram
valores que escapam aos esperados pela sociedade. Na convivência dessas
ramificações, por vezes opostas, o instrumento também se equilibra entre amado
e odiado por sua capacidade de encantar, mas também de levar à desonra e ao
abandono.
Pelo acervo poético que constituímos no processo de pesquisa, pudemos
notar que os poemas nos quais o violão integra a figura do sedutor com
características donjuanescas apresentaram uma mudança nas cores e nos tons.
Enquanto no primeiro eixo temático prevaleceu a ideia de amor como
idealização, valor e enlevo, nesse segundo, os poemas se apresentaram com
uma escrita mais lânguida e ardente, suscitando imagens mais sugestivas tanto
da concretização do encontro amoroso e do ato sexual, quanto em relação à
figura feminina que, de pura e angelical, passou a ganhar contornos mais
255

sensuais e voluptuosos. Nessas descrições, além do instrumento representar as


formas do corpo feminino, as diversas referências a seus recursos sonoros,
estruturais e técnicos atuaram como metáforas do toque masculino. Assim, a
imagem criada é a do homem que, ao tocar ou ferir o violão, o faz, por extensão
simbólica, como toque no corpo feminino.
Se, por um lado, violão e mulher podem ser percebidos de maneira
unificada, por outro, o instrumento funcionaria como um veículo de sedução. É
nele, e através dele, que o sedutor encanta as amantes desejadas e confidencia
seus sentimentos e conquistas. No entanto, como os amores são passageiros,
o ato de se entregar ao insaciável conquistador implica a perda e a violação da
honra feminina, da esperança e, muitas vezes, do respeito. Essa imagem do
defloramento ou da perda da virgindade e seus impactos na dignidade e na vida
da mulher apareceram nos poemas geralmente associadas ao vendaval, à
tormenta e à lama. Nesse contexto, a viola, além de se referir ao instrumento,
adquiriu também o sentido de verbo.
Companheiro de boêmios, capadócios e sedutores, o violão foi, por muito
tempo, rejeitado e combatido nos altos círculos sociais, familiares e artísticos por
representar uma ameaça às normas, aos costumes, à religiosidade e à pureza
feminina. Apesar de, ainda hoje, pairarem os resquícios dessas associações, a
valorização das práticas populares, a criação e consolidação de um repertório
musical solista e camerístico, a diluição das fronteiras entre o erudito e o popular,
a incorporação do instrumento nas instituições formais de ensino e a presença
feminina na trajetória do violão estão entre os fatores que contribuíram para os
processos de ressignificação do instrumento.
É importante observar que essa discussão foi possível, embora tenhamos
encontrado uma quantidade menor de poemas que nos remetessem a esse eixo
temático. Além desse dado, não identificamos referências diretas ao malandro.
Apesar da ausência de registros no escopo poético, e da grande força e
importância social e cultural de sua figura, foi possível perceber apenas suas
pegadas, sugeridas pelas características híbridas entre o menestrel e o sedutor-
burlador. Trata-se de uma observação desafiadora, cabendo discussões futuras
mais aprofundadas, porém, a princípio, poderíamos supor que o assunto não
inspiraria, como matéria, a produção poética ou mesmo que ele assumiria outras
formas, encontrando vazão na prosa (como os vários títulos narrativos que
256

abordam a relação entre o violão e a malandragem). Outra possibilidade seria


ainda a de sua absorção e expressão por outros meios, como na música popular,
em que a figura do malandro – elogiada, mas também combatida – revela não
só suas dimensões em termos temáticos, quanto composicionais e
interpretativos ao dar voz ao morro e às culturas suburbanas.
No último eixo temático, SONS E CONTORNOS DE BRASILIDADE,
percorremos as relações entre o violão e os processos de identificação nacional.
Além do componente regional da viola e a conexão com o primordial,
apresentamos também a ligação do violão às expressões identitárias nacionais,
aglutinando manifestações musicais e transitando entre os diversos espaços e
camadas sociais. Por fim, descrevemos e conferimos voz aos sujeitos que
fizeram parte da história do instrumento, destacando a capacidade de expressão
dos sentimentos através do violão e sua condição de resistência e propagação
na cultura brasileira.
Sobre o componente regional, identificamos que, junto à viola, temos
referências à linguagem, ao modo de vida rural e ao sujeito relacionado ao
caboclo sertanejo, forte, mas simples. Acompanhando o vaqueiro, o tropeiro, o
homem do sertão, excluído e errante, a viola traz não só o ambiente da roça – o
luar, a fogueira e a sonoridade chorosa de seu ponteado –, como por meio dela
se estabelece uma conexão com as origens e um passado primordial. Essa
ligação tanto se dá pelo componente histórico (uma vez que as violas chegaram
ao Brasil trazidas pelos portugueses e, portanto, estão em nossa cultura desde
a descoberta do país), como recompõe o vínculo entre o homem e a natureza,
expressando também o que não pode ser dito pela linguagem.
No bojo do violão observamos que tanto cabem o autóctone e o
estrangeiro, quanto o arcaico e o novo. Por essa capacidade de acomodar as
influências, principalmente as europeias, e também as manifestações folclóricas
e as expressões musicais brasileiras, como a seresta, o choro, a modinha e o
samba, o violão mostra sua força democrática e aglutinadora. Nesse retrato do
instrumento no campo poético, apesar de não termos identificado registros
quanto à sua faceta como solista e recitalista, foi possível reconhecer as fortes
marcas de sua incorporação nas práticas populares. Essa característica ficou
evidenciada nos poemas tanto nas associações do violão aos gêneros musicais
brasileiros, quanto por acompanhar o sujeito à margem, dando timbre e voz aos
257

excluídos. Seja cantando o amor sonhado ou a boemia, frequentando os terreiros


e as ruas ou as festas de altas classes, o violão faz parte do povo e fala através
dele, por suas mãos. E assim, como na música, sua incorporação, ao fazer
artístico literário, confere brasilidade, memória e pertencimento à poesia.
No decorrer deste estudo, além da figura trovadoresca e da perspectiva
estereotipada relacionada à boemia e à vagabundagem, identificamos que o
instrumento suscita dois importantes arquétipos: o primeiro, relacionado ao amor
juvenil que, tendo em Romeu e Julieta sua principal representação, foi observado
principalmente na composição da cena seresteira. Sugerido ou citado
literalmente, o casal que experimenta o amor proibido, secreto e predestinado
apareceu refletido na imagem do homem no sereno, acompanhado por seu
violão e cantando para a amada pura, resguardada pela sacada ou janela da
casa. Se, por um lado, essa associação arquetípica revela a ligação do
instrumento à expressão do amor ideal e romântico, por outro, ficam expostos
os empecilhos e preconceitos sociais e culturais a ele relacionado, uma vez que
o violonista não era considerado um bom pretendente por sua suposta ligação
com a boemia e a vagabundagem. Diante da pureza do amor cantado e
desejado, essas intolerâncias e preconceitos ficam ainda mais acentuados. Com
isso, os poemas nos revelaram não só uma imagem poética romantizada do
instrumento, mas também a convivência com os estigmas que, de fato, fizeram
parte de sua história.
O segundo arquétipo evoca a libido e a volúpia representadas pela figura
mitológica de Don Juan. Circulando no ambiente noturno, sob o luar, o violão
acompanha o sujeito camaleônico, que veste máscaras para conquistar e
manipular a mulher desejada e, em geral, comprometida. Ao colecionar amores,
de todos os tipos e classes, o sedutor leva a figura feminina ao abandono e à
desonra pelo caráter violador, fugaz e insaciável de suas relações.
Junto ao sujeito dedicado à libertinagem, ao instinto e ao hedonismo, as
imagens poéticas sugeridas pelos poemas aparecem mais carregadas de
sensualidade, sexualidade e desejo, nas quais o violão atua como um veículo de
sedução (ao potencializar a conquista), e como meio de expressão, pois é
através dele que o enamorado revela seus muitos amores e anseios. Pelo
caráter livre, transgressor, e também violador do corpo, da honra e dos bons
costumes, o violão e quem o toca foram considerados um perigo e uma ameaça
258

às normas sociais e religiosas. Sendo combatido por sua força sedutora e suas
associações ao pecado e ao Diabo, o violão, como uma extensão do sujeito,
deixa entrever não só a potência de seus sons, como também o efeito que causa
nas mulheres. Ele encanta, mas também se transforma em representação de
seus corpos.
Esses arquétipos e figuras estereotipadas não pertencem exclusivamente
ao sexo masculino, porém os poemas demonstraram que a figura feminina
aparece, em geral, como interlocutora e/ou inspiração para a manifestação
poética e musical. Do material pesquisado, tornou-se notável a quantidade
significativamente menor tanto de poemas escritos por mulheres, quanto da
abordagem da figura feminina tocando o instrumento. Esse é um aspecto
importante, pois, apesar da presença da mulher no ofício trovadoresco e do
sucesso alcançado pelo violão entre as jovens senhoritas na década de 20 e nas
mãos de concertistas mulheres, essas atuações raramente apareceram
retratadas nos poemas. Assim, se, por um lado, a escassez revela a importância
dos registros apresentados pela voz ativa e inquieta, por outro, a ausência de
registros nos mostra um silenciamento e um confinamento das expectativas e
restrições à liberdade e expressividade femininas.
No campo das imagens, mais do que o aspecto visual, percebemos
através dos poemas a capacidade de criar representações, acessando
conteúdos emocionais, percepções sensoriais, lembranças e evocações de
sonoridades, espaços, contextos, figuras, ambientes, dentre tantas outras
características suscitadas. O jogo de palavras, a musicalidade, a semântica, os
processos metafóricos, a exploração das sonoridades e dos recursos fonéticos
nos conduziram a imagens que envolvem o violão em suas diferentes facetas,
seja acompanhando a seresta ou encantando as musas, seja adquirindo um
sentido de pátria. De maneira concomitante, o instrumento participou da
construção das cenas poéticas, ao mesmo tempo que sua representação nos
revela a recorrência dessas manifestações em nossa cultura.
Com isso, o poeta, ao utilizar a palavra “violão”, pensa em seu significado
que, ao lermos, somos conduzidos à reconstrução, de maneira instintiva ou
criada, do esboço dessa imagem. Incompletos, mas carregados de sentidos,
lembranças e evocações sinestésicas, vemos o violão e suas cenas sob a ótica
259

das experiências pessoais e também conforme o contexto sociocultural em que


instrumento e indivíduo estão inseridos.
Nesse processo, o violão encontra ecos em cada leitor através dos
sentidos adquiridos a partir do diálogo entre a historicidade e a percepção
daquele que entra em contato com o texto literário. Quando nos perguntamos o
que o violão simboliza, encontramos nos poemas duas associações centrais: o
sentido de pátria e a relação com o corpo. Sobre a primeira representação, além
do componente regional e originário, a simbologia do violão se encaminha para
a metáfora da pátria. Mas, afinal o que ele carrega em seu bojo? O violão se
aproxima da mestiçagem dos povos e de suas expressões, como os gêneros
musicais que acomoda (samba, choro, seresta, por exemplo); da capacidade
mediadora por transitar entre o morro e o asfalto, as ruas e as salas de concerto,
o espaço rural e o urbano; da capacidade de aculturar ou abrasileirar os
elementos estrangeiros (como árabes, espanhóis, e europeus); produzir e
executar um repertorio de música popular e erudita brasileira, solista e camerista,
nas mais variadas mãos, conferindo voz aos excluídos ou o alento para os que
amam. “Quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel
Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-
com-Fome, da Favela do Esqueleto” (MORAES, 1962, p. 7-8), o violão está em
quase todas as casas brasileiras. Há, ainda, a equiparação da forma do
instrumento ao corpo, tanto do violonista que, sobre um viés romantizado, deixa
de ser sua extensão para se tornar o próprio sujeito; quanto da mulher que, pela
associação entre as formas femininas e o violão, assume uma conotação mais
sensual e sexualizada no discurso.
Das variedades de cordofones incluídas em nossas análises (guitarra,
alaúde, viola e violão), observamos a ausência de referências à vihuela.
Constamos também que a guitarra assumiu um sentido mais genérico para
instrumentos de cordas dedilhadas, enquanto o alaúde tanto se aproximou de
sua origem árabe e medieval, quanto foi utilizado para representar o elemento
estrangeiro no contexto do modernismo brasileiro. Já em relação à viola e ao
violão notamos que, ora atuam como sinônimos, ora aparecem com suas
diferenciações históricas, reforçando o caráter regional da primeira e a prática
urbana do segundo.
260

Outros importantes aspectos identificados no decorrer deste estudo foram


as polarizações que permeiam a construção cultural coletiva em torno do violão.
Nos poemas, as dualidades ficaram expostas nos movimentos pendulares entre
a figura romântica do trovador e o impetuoso sedutor; a caraterística afetuosa (e
delicada) associada ao violão e o caráter fogoso (ou ardente) de seus toques; a
docilidade e a aspereza de seus sons; as dimensões do amor ideal e do desejo
físico; a indolência e as inspirações enlevadas; e o conflito entre o sagrado e o
profano, o sublime e o mundano, os santos e o diabo, a luz e as trevas, as
doutrinas e os vícios. Essas características revelam a capacidade de convivência
e aglutinação de aspectos, a princípio, conflituosos, mas que são abraçados e
expressos pelo instrumento. Apesar das ambiguidades associadas ao violão e
do impacto subversivo que geram às ordens sociais, culturais e religiosas, não
aparecem, entretanto, a manifestação e o registro poético da expressão solista
do instrumento – embalde esta tenha se consolidado ao longo de sua história.
É importante notar que os elementos encontrados nas análises abrangem
não só um extenso período temporal que incluem transformações literárias e
processos de ressignificação fundamentais ao violão, como também uma
vastidão em termos geográficos, uma vez que abordarmos autores de várias
partes do país, como Sudeste, Sul e Nordeste. Essa ampla linha espacial e
temporal nos permite inferir a abrangência e os impactos dos eixos temáticos,
tanto como forma de registro do violão, quanto em relação à recepção das obras
– e da maneira como o instrumento é por elas retratado – em nossa cultura.
Nas diversas formas de interseção entre literatura e música, notamos,
além das referências a diversos componentes da esfera musical, o uso de efeitos
sonoros e da musicalidade das palavras reforçando a semântica dos versos.
Nesse traçado, a construção poética suscitou elementos como agógica, forma,
melodia, ritmo, timbre e andamento, bem como estabeleceu conexões com
gêneros musicais, como a rapsódia, o noturno e, principalmente, a canção.
Conectada com a trova e cantiga medieval (de amor e de amigo), a canção
sentimental conferiu ao texto características e tonalidades relacionadas à
modinha, acompanhada pelo violão, e à viola da canção regional.
Envolvendo o violão, em especial, percebemos tanto a alusão direta à
elementos de sua constituição estrutural (como as cordas primas, os bordões, a
boca) e toques (como rasgueado e ponteado), quanto a emulação da produção
261

sonora do instrumento nos efeitos de eco, paronímias, mudanças vocálicas,


aliterações e assonâncias. É preciso ressaltar também as intenções timbrísticas
que nos remetem ao som redondo e prolongado do violão, principalmente pelos
fonemas [em] e [om], e os ruídos e asperezas que relembram os ataques das
unhas nas cordas, produzidos pela repetição dos sons consonantais [s], [t], [x] e
[v].
Por meio da linguagem, vimos a capacidade melodiosa e harmônica do
violão desenhada nos contornos e sentidos poéticos, ao mesmo tempo em que
sua presença e seus sons não só expressam, como evocam sentimentos,
ambientes, figuras e práticas musicais. O violão, em sua multiplicidade
expressiva, traz ao leitor lembranças sonoras e imagéticas, despertando
emoções, criando cenas e se presentificando a cada leitura.
Ao pesquisarmos o violão na poesia brasileira, confirmamos nossa
hipótese de que o texto poético expõe e cristaliza uma imagem do instrumento
ligada à sua função de acompanhador dos gêneros populares. Pela ausência de
referências à prática solista e pelas constantes descrições no acompanhamento
musical, esses aspectos nos mostram tanto um certo descompasso entre o
alcance dessas duas atividades, quanto a força do instrumento na cultura
popular brasileira. Indo além, este estudo também possibilitou a identificação do
tipo ou gênero musical ao qual o instrumento se liga, prevalecendo, dentre todas
manifestações de que participa, o acompanhamento da voz e o caráter
sentimental das canções (e suas variantes, como a modinha, a cantiga, e a
moda).
É preciso ainda pontuar alguns traços que perpassam todo o grande
conjunto poético estudado e os eixos abordados, revelando certas caraterísticas
que não se descolam do violão, apenas se apresentam sob formas
caleidoscópicas. Dentre esses pontos-chave estão o ambiente externo do
relento, da noite e do luar a que o instrumento está ligado; o caráter transgressor
e subversivo a ele associado; a capacidade de aglutinar e acomodar sentimentos
e expressões – musicais e pessoais; o equilíbrio no fio da navalha marcado pela
oscilação e condensação entre as diversas polaridades; o tempo da memória,
mas também a atualidade do violão; e sua obstinada persistência.
Apesar das diferenças entre figuras literárias carregadas de significados
– como o trovador, o seresteiro, o tropeiro, o sedutor e o vagabundo –, esses
262

sujeitos estão atrelados às características da marginalidade, da errância, da


solidão e do sentimento de cumplicidade que unifica violonista e violão. No
exercício contínuo de passar “os dias soluçando com meu pinho, carpindo a
minha dor, sozinho”94 (AZEVEDO; CASCATA, 2018), percebemos o violão não
só como confidente, capaz de guardar os sentimentos, mas também de revelá-
los. O instrumento é memória, mas também meio de expressão, ele compreende
e consola a dor e a solidão de quem o toca. Tal é o grau de simbiose entre o
sujeito e o instrumento que este se torna mais que um bem precioso e singular
carregado de lembranças, vozes, musicalidades e afetos: ele se personifica.
Esse processo que transparece nos poemas – e em nossa escrita – se justifica
não só pelos sentidos metafóricos que adquire, mas também pelo fato de os
cordofones dedilhados serem os únicos instrumentos que têm sua sonoridade
produzida sem o uso de nenhum outro artefato (como o arco), apenas do contato
direto com o corpo e as duas mãos do instrumentista.
Conforme comentamos anteriormente, através desse retrato poético do
violão foi possível confirmar a hipótese de que a construção poética perpetua
uma imagem do instrumento ligada à sua função de acompanhador dos gêneros
populares, principalmente a canção (não só a regional, como a realizada nos
centros urbanos). Embora o violão tenha passado por importantes processos de
ressignificação, envolvendo tanto a criação e a legitimação de um repertório
solista, quanto a conquista de outros espaços (como as salas de concerto),
notamos a cristalização, ainda que tensiva, de determinados estereótipos,
arquétipos e associações simbólicas já bastante arraigados à sua trajetória.
Nossas análises também possibilitaram a (re)leitura de importantes obras
poéticas da literatura brasileira, nas quais o violão atua não apenas como
elemento figurativo, mas determinante para a própria construção textual,
modificando ambientes, caracterizando personagens, criando imagens e sons,
mediando espaços e aproximando o leitor do texto através das identificações
que suscita.
Com ele, e dele, se faz poesia. Porém, longe de fixarmos sentidos rígidos
ou esgotarmos o assunto, reconhecemos a historicidade e a multiplicidade
maleável das significações. Dessa forma, esperamos ter contribuído tanto para

94Versos da valsa “Lábios que beijei”, de autoria de Leonel Azevedo e J. Cascata, gravada por
Orlando Silva, em 1937.
263

a compreensão dos textos poéticos e para a trajetória das formas de


apresentação do instrumento, quanto para a ampliação das articulações entre
violão e literatura.
No exercício da interdisciplinaridade, desejamos que este trabalho possa
se desdobrar em futuros aportes para os campos literários e musicais, seguindo
na tarefa de descobrir alguns dos segredos “desde o fundo dessa caixa
misteriosa”, que colocada “bem junto ao coração”, “abraçado a ela passei muitas
luas à beira de uma fonte”.95

95Tradução nossa. Versos do poema “Profession de Fé”: “desde el fondo de la caja


misteriosa”, (...) “y poniéndola bien junto al corazón, abrazado a ella pasé muchas lunas”.
(BARRIOS, 2016).
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