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ARTHUR DAPIEVE

O ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 80


“O futuro da música brasileira está no
rock”, proclamou entre incréus o homem do
disco André Midani no final dos 70, com o cré-
dito de ex-militante do backstage da bossa
nova que bancou o sucessor tropicalismo a
despeito das baixas vendagens iniciais de seus
ícones. “O rock deu uma blitz na MPB”, tro-
cadilhou mais adiante um deles, Gilberto Gil.
Na década de 80, uma virada de mesa radical
interrompeu a chamada linha evolutiva da
MPB, que o roqueiro-com-cara-de-bandido
Raul Seixas já havia contestado em versos. “A
única linha que eu conheço é a de empinar uma
bandeira”, mangava ele no repente pré-rap As
aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor.
Retomando a princípio alicerces da Jovem
Guarda (os Titãs começaram com o sufixo “do
Té Iê 16”) e de uma fase de transição progressi-
va — a da última formação dos Mutantes,
mais o Terço, Som Nosso de Cada Dia e o
Vímana, de onde sairiam Lobão, Lulu Santos
e Ritchie — o BRock cresceu, apareceu e ama-
dureceu no espaço de uma década. Em bem
mais que os 15 minutos de holofotes profetiza-
dos por Andy Warhol, o movimento que final-
mente instalou Brasília no mapa pop, tradu-
ziu para o país do carnaval punks, new waves,
góticos e pós-modernos em geral num aggior-
namento voraz que bagunçou o coreto dos
contentes antecedentes.
Ex-baterista de grupos punks amadores,
formado na PUC-Rio, o carioca Arthur Da-
pieve nasceu em 1963, é jornalista de O Glo-
bo e monitorou este movimento musical tam-
bém no Jornal do Brasil e na revista Veja. Ele
retoma o fio da meada do BRock a partir dos
tempos heróicos de Cely Campello para de-
sembocar numa inversão do dogma bíbli-
co: a seminal Blitz nasce de uma costela do
grupo que acompanhava a cantora Marina no
Teatro Ipanema. O baterista, um grandalhão
desengonçado apelidado Lobão, sugeriu o no-
me porque os músicos tomavam muita geral
da polícia. Mas, antes do estouro da Blitz, Lo-
bão já estava fora. Só que não se contentou
em entrar para a história como um anônimo
Peter Best, o baterista beatle que dançou an-
tes da hora.
16/3/2 13
E

=. 12
1
Digitized by the Internet Archive |
in 2022 with funding from
Kahle/Austin Foundation

https://archive.org/details/brockorockbrasil0000dapi
Coleção Ouvido Musical

Arthur Dapieve

BERGER
O ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 380

Com o novo posfácio à 2º edição


Renato Russo: o outro fim da década

editoralB34
EDITORA 34

Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34:com.br

Copyright O Editora 34 Ltda., 1995


BRock: o rock brasileiro dos anos 80 O Arthur Dapieve, 1995
Renato Russo: o outro fim da década O Arthur Dapieve, 1996

A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO


INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:


Bracher & Malta Produção Gráfica
Revisão e índice remissivo:
Leny Cordeiro
Créditos das fotografias:
AE / Reprodução (pgs 12, 57, 183); Agência O Globo / RE (pg. 39); André
Barcinski / AJB (pg. 140); Arquivo Pessoal Roberto Frejat (pg. 70); Carlos Rosa / AJB
(bg. 48); Cesar Diniz /AE (pg. 204); José Carlos Brasil
/AJB (pg. 97); Manchete (pg. 17);
Marcelo Carnaval / AJB (pg. 104); Marco Antônio Teixeira / AJB (pgs. 147, 154); Mau-
rício Valladares (pg. 81); Renato dos Anjos / Folha Imagem (pg. 90); Reprodução (pgs.
100, 166); Rogério Reis / AJB (pg. 33); Rui Mendes (pg. 116); Sérgio Berezouski / Abril
Imagens (pg. 26); Sérgio Zalis /AJB (pg. 128); Tomáz Neto / Agência O Globo (pg. 161).

1º Edição - 1995; 2º Edição - 1996; 3º Edição - 2000 (2º Reimpressão - 2005)

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Dapreve, Arthur
D222b BRock: o rock brasileiro dos anos 80 / Arthur Dapieve. —
Rio de Janeiro : Ed, 34, 1995
224 p. (Coleção Ouvido Musical)

ISBN 85-7326-008-4

Inclus discografia

|. Grupos de rock - Brasil. 2. Rock - Brasil - História e crítica


E Titulo. IL Título: O rock brasileiro dos anos 80, IIL Série.

CDD - 784,5400981
95-1954 CDU - 784.4(81)
Para Iza e Marianna

Meus mais sinceros agradecimentos a Arnaldo Antunes, Carmela


Forsin, Edgard Scandurra, Evandro Mesquita, Gisele Porto, Herbert
Vianna, Humberto Gessinger, Lobão, Lulu Santos, Paula Toller, Paulo
Ricardo Medeiros, Rafael Borges, Renato Russo, Ritchie, Roberto Frejat,
Roger Rocha Moreira, Tárik de Souza, Tom Leão e aos departamentos
de imprensa das gravadoras BMG-Ariola, PolyGram, Sony e Warner.
BRock
O ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 80

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DRIVE —— BENTRENDANIA A DRASILUIRA acerto tios ria mio ei adia e meia
10. LEGIÃO URBANA == BRASÍLIA ET VORDIS rolo nota nai cidoams SÉ «vp E

quis ENGENHEIROS DO HAWAII — OS ESTRANGEIROS .......cccceersersersecsenso


E DOES nELERE— A SEGUNDONA qua uma feia emo eae dead ex toa pisa

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Posrácio — RENATO RUSSO: O OUTRO FIM DA DECADA .osécessunasanaaonamas

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Prólogo
VERÃO DE 1982

Há alguma coisa estranha no ar deste circo e não é o cheiro de maconha.


Esta lona foi erguida aqui, na Praia do Arpoador, algumas semanas
atrás, em janeiro. Fizeram uma passeata por Ipanema para anunciar sua
chegada e deram-lhe o nome de Circo Voador. Para cá convergiram pen-
cas de grupos de teatro amador, alguns artistas consagrados, todos os
maluquetes da cidade e muitos, muitos curiosos, atraídos pela música e
interessados em se refrescar nessas tardes-noites quentes de verão. Aqui
têm rolado umas coisas bem bacanas.
Lá dentro, nesse momento, se apresenta um grupo de rock, é, deve
ser isso, um grupo de rock, embora não haja cabeludos se masturbando
com guitarras. Este aqui, aliás, tem até duas garotas cantando, meio esga-
niçadas mas bastante gostosas. Tem também guitarra (discreta), baixo,
teclados e bateria. Ei, não é aquele baterista grandalhão que tocava com
a Marina? No microfone, um ator, como é mesmo o nome dele? Aquele
do Asdrúbal. O show, diga-se de passagem, é superteatralizado, mais
parece vários esquetes musicais alinhavados. Será mesmo um grupo de
rock? Canta-se em português, as letras não falam no diabo e sim em ba-
tatas fritas. Não, deve ser mesmo algum novo grupo de teatro. Olha só
como o ator e as meninas ficam fazendo caras e bocas e batendo papo.
(Rock no Brasil é coisa para iniciados, a ser procurado num ou nou-
tro barzinho com jeitão de speakeasy de Chicago anos 30 e de Clube do
Bolinha anos 70. Neles, ouvem-se versões para músicas dos Beatles e dos
Rolling Stones — Satisfaction é de lei — mais um ou outro rock em por-
tuguês, roquenrol, letras ruins, atos de resistência. Pelo visto, nunca sai-
remos nem disso, nem das metáforas da música popular cevada sob a
censura da ditadura militar, nem da discotheque importada.)
O show, ou a peça, termina. Foi legal e a bandinha ganha os aplau-
sos do público, cento e poucas pessoas, por aí, o circo não estava muito
cheio hoje. No caminho para casa, o refrão de uma das musiquinhas fica
martelando na cabeça, Ô coisa mais pegajosa. Você não soube me amar,
você não soube me amar, você não soube me amar. Chegando no quar-
to, o negócio é lavar a cabeça com um disco de rock de verdade. Humm,

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
que tal pôr no picape “Master of reality”? Não, não, melhor sacar da
estante “Never mind the bollocks — Here's the Sex Pistols” e escutar Johny
Rotten rir da nossa cara: “No future, no futuure, no futuuure for you...”
Joãozinho Podre está certo.
Melhor virar na cama e dormir.
Mas aí, no meio do sonho, aparece alguém dizendo “você não sou-
be me amar”.

10 Arthur Dapieve
l.
MAUS ANTECEDENTES

“Roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”, cantou Rita Lee.


Mas os maus antecedentes do gênero no país não têm — ou melhor, não
tinham — nenhuma ligação com aparências ou crimes. Será que mesmo
a mais zelosa das mães conseguiria enxergar algum perigo em Celly Cam-
pello ou Roberto Carlos? Até os anos 80, a marginalidade do BRock era
outra. Nem em seu moménto de maior sucesso popular, a Jovem Guar-
da, ele conseguiria deixar de ser tratado, por quase todos, inclusive por
alguns de seus cultores, como uma febre passageira, que logo os glóbulos
verde-e-amarelos se encarregariam de expulsar do corpo da música bra-
sileira, devolvendo-lhe assim sua sanidade. Estrangeiro numa nação de
estrangeiros, o rock penou quase três décadas até conseguir, de fato e de
direito, a cidadania brasileira.
Este mulato americano desembarcou aqui através do mesmo veícu-
lo que o conduziria ao estrelato em sua terra natal: o filme “The blackboard
jungle”, dirigido por Richard Brooks em 1955. Sua trilha sonora utiliza-
va uma música que o conjunto Bill Haley and His Comets gravara um ano
antes, “Rock around the clock”. No Brasil, a fita foi batizada de “Sementes
da violência” e fez tanto sucesso que, logo, Nora Ney (uma cantora da
dor-de-cotovelo!) estava dando sua versão, no original, para a música-
tema. “The blackboard jungle/ Sementes da violência” trazia o professor
Glenn Ford às voltas com uma turma rebelde numa escola de Nova York.
Aqui e alhures, o entusiasmo com esse confronto que sinalizava a emer-
gência da cultura teenager ocasionou quebra-quebras nos cinemas, o que,
convenhamos, não era mesmo um bom cartão de visita.
No ano seguinte, outro filme, “No balanço das horas” (“Rock around
the clock”, de Fred F. Sears), um musical, reforçava a dose com perfor-
mances de Bill Haley and His Comets, Little Richards e The Platers, en-
tre outros. Nada mais natural que o sucesso do novo ritmo gerasse algo
mais do que versões no Brasil. Assim, em 1957, apareceria o primeiro rock
made in Brazil. “Rock and roll em Copacabana”, de Miguel Gustavo,
interpretada pelo vozeirão de Cauby Peixoto, um dos mitos da Rádio
Nacional, bastião do que se entendia por música brasileira na época (MPB

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BRock —
A segunda leva do rock brasileiro: em 1965, na TV Record,
Roberto Carlos estrela o programa “Jovem Guarda”
é uma sigla sessentista). Pouco a pouco, aliás, as rádios foram acordando
para o mulatinho americano. No final da década de 50, até mesmo a
Nacional de São Paulo reservava um espaço para o rock “nº roll e demais
excentricidades: o programa “Ritmos para a juventude”, apresentado por
Antônio Aguillar. Outro proto-DJ, Carlos Imperial, pilotava “Clube do
rock” (na Tupi) e “Os brotos comandam” (na Guanabara).
As gravadoras vinham atrás dos cinemas e das rádios. A Odeon des-
cobriu em Taubaté os irmãos Campello, Sérgio e Célia. Batizou-os artis-
ticamente de Tony e Celly e os pôs para gravar, em inglês, um compacto.
Tony ficou com “Forgive me” no lado A e Celly, então com 16 anos, com
“Handful boy”, no B. Ambas as composições eram de Mário Genari Fi-
lho, diretor da companhia. Concorrendo com os dos astros americanos,
o compacto dos Campello tomou uma sova nas lojas. O fracasso liberou
a dupla para cantar em português mesmo. Nasciam ali os primeiros as-
tros do rock brasileiro. Tony emplacou “Boogie do bebê” e “Pertinho do
mar”. Celly, “Banho de Lua”, “Lacinho cor-de-rosa” e, estouro dos es-
touros, “Estúpido cupido”, que daria título a uma nostálgica novela es-
crita por Mário Prata para a TV Globo em 1976/77.
Na cola dos irmãos de Taubaté, novos ídolos — ídolos jovens —
se formavam da noite para o dia, inflados pelos programas de rádio e
de TV (os próprios Campello apresentavam um destes últimos, “Crush
em Hi-Fi”, na Record de São Paulo). O “rei do rock” Sérgio Murilo,
o “Elvis brasileiro”, Ed Wilson, Demetrius e Ronaldo Cordovil, isto é,
Ronnie Cord, ocupavam o panteão da “juventude transviada”
que, no final das contas, era pra lá de bem-comportada. Aos 20 anos,
em 1962, Celly Campello abdicou do estrelato para se casar e ter filhos.
Quando tentou retomar a vida artística, sete anos depois, deu com os
burros n'água. Por quê? Porque sua geração fora substituída por uma
outra, menos influenciada pelo rock *n” roll americano do que pelo seu
primo inglês.
Naturalmente, a segunda leva do rock brasileiro foi gestada dentro
da primeira. Além dos astros solo, o sucesso dos Campello foi espalhan-
do pelo país uma constelação de grupelhos, quase todos com nomes em
inglês — The Fevers, The Pops, Renato & Seus Blue Caps, The Clevers
(mais tarde Os Incríveis), The Sputniks. Este último, formado em torno
da turma da Rua do Matoso, na Tijuca, Zona Norte do Rio, trazia em
suas fileiras dois nomes seminais, Erasmo (mais tarde Carlos) Esteves e
Sebastião (mais tarde Tim) Maia. Um amigo dos dois, um rapaz de Ca-
choeiro do Itapemirim (ES) que perdera a perna numa linha de trem e

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BRock —
tentara, sem sucesso, a vida como cantor de bossa nova, estava fadado a
se tornar o novo rei do rock nativo. Roberto Carlos Braga, claro.
No mesmo ano em que Celly Campello saía da história para entrar
na cozinha, 1962, Roberto experimentava pela primeira vez o gosto da
fama com “Splish splash”. A partir daí, ele e seu parceiro Erasmo alinha-
riam sucessos como “Calhambeque”
(63) e “Festa de arromba” (64). A
bola estava quicando na área. Quando, em 1965, os clubes de futebol
proibiram a transmissão direta de suas partidas nas tardes de domingo,
o proprietário da TV Record, Paulo Machado de Carvalho, ex-dirigente
da CBD, ocupou o horário vago com a “Jovem Guarda”, um programa
de auditório estrelado por Roberto, Erasmo, Wanderléa Salim, Renato &
Seus Blue Caps, Martinha, Golden Boys e companhia. Nessa época, o rock
era conhecido como iê-iê-1ê por conta de “She loves you” (“yeah, yeah,
yeah...”), que os Beatles gravaram em 63.
A Jovem Guarda avançava em relação à geração dos Campello tan-
to musical quanto tematicamente. As músicas não eram mais mero suporte
para os vocais; para desespero dos puristas, a guitarra ocupava cada vez
mais agressivamente o seu espaço. Às letras iam um pouco além da inge-
nuidade brega dos “banhos de lua” e “biquínis de bolinhas amarelinhas”;
ou seja, estavam mais próximas da realidade do Brasil urbano ao falar
de carrões e festanças. No amplo panorama da música brasileira, contu-
do, o rock ainda era ouvido como um artigo importado e supérfluo. Mes-
mo dentro da Record, dois outros programas gozavam de maior prestí-
gio de crítica: “O fino da bossa” (nova) e “Bossaudade”. “Jovem Guar-
da” era apenas a doença infantil da nossa música. Duraria até que aque-
la turma amadurecesse. E assim foi. O ano, 1968.
Antes mesmo que Roberto, Erasmo e Wanderléia desocupassem as
tardes de domingo, a terceira leva do rock brasileiro botara suas man-
guinhas de fora, e o fez, surpreendentemente, aliada de tal forma à (ago-
ra sim) MPB que, durante certo tempo, não dava para dizer quem era o
quê. Era tudo Tropicalismo. Se a Jovem Guarda era o reflexo dos Beatles
fase 1ê-18-16, a Tropicália era o reflexo dos Beatles fase “Revolver” (1966)
em diante. Assim, no 3º Festival de Música Popular Brasileira, promovi-
do pela Record (sempre ela!) em 1967, o cantor-compositor baiano Gil-
berto Gil apresentou seu “Domingo no parque” acompanhado por um
novo grupo, Os Mutantes, que apesar de ter sido batizado por um dos
expoentes da Jovem Guarda, Ronnie Von — o primeiro desafeto históri-
co de Roberto Carlos, o Rei, enciumado do Pequeno Príncipe —, arrisca-
va novas direções.

es Arthur Dapieve
Paralelamente à Jovem Guarda e ao Tropicalismo, o mainstream da
MPB continuava dando as cartas. Fosse através da vetusta Bossa Nova
de João Gilberto, Tom Jobim e Carlos Lyra. Fosse através da música “dos
festivais” de Chico Buarque, Elis Regina e Jair Rodrigues. Fosse, ainda,
através das canções de protesto — absolutamente necessárias num país
cada vez mais sufocado pelo regime militar — de Geraldo Vandré. Nesse
contexto, o rock era considerado duplamente, na forma e no conteúdo,
vassalo do imperialismo ianque. Já não era nem visto com a benevolên-
cia de outrora, benevolência do tipo que se usa ao lidar com crianças e/
ou débeis mentais. O rock, até que enfim, começava a ser visto como
perigoso (rock inofensivo é uma contradição em termos).
Curiosamente, quem primeiro viu o rock como inimigo não foram
os generais, mas os universitários. Num mundo estreitado pelo maniqueís-
mo esquerda/direita, não havia lugar para uma música que desse conta
da complexidade do Brasil: quem não estava engajado em canções de
protesto ou pesquisas “de raiz” estava alienado, estava jogando contra.
Gil e Caetano Veloso à frente, o Tropicalismo foi agrupando poetas (Ca-
pinam e Torquato Neto), outros músicos (Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão
e Os Mutantes) e um maestro (Rogério Duprat) afinados tanto com a
guitarra elétrica quanto com o berimbau. Foram exatamente esses nomes
que posaram na capa do LP-manifesto “Tropicália ou Panis et circencis”
(1968). Mesmo que nele a linguagem predominante não fosse o rock —
havia samba e bolero —, a postura grupal era roqueira, sem dúvida.
Na noite de 15 de setembro daquele ano, Caetano romperia defini-
tivamente com a esquerda universitária. A platéia “politizada” presente
à eliminatória paulista do 3º Festival Internacional da Canção, promovi-
da pela TV Globo no Tuca (Teatro da Universidade Católica), vaiou im-
piedosamente a música “É proibido proibir”, que o baiano apresentava
junto com os Mutantes, embora a letra coletasse pichações feitas nos muros
parisienses durante o célebre maio dos protestos estudantis contra o ge-
neral-presidente Charles De Gaulle. “Vocês não estão entendendo nada,
nada”, lamentou Caetano ao microfone. Os militares brasileiros, no en-
tanto, já estavam começando a entender o componente subversivo do
Tropicalismo.
Quando Gil e Caetano foram presos no dia de Natal de 68, o movi-
mento se desintegrou. Foi cada qual para o seu lado, manter vivo O espi-
rito da coisa. Quem era da MPB nela se mimetizou. Quem era do rock
(ou seja, os Mutantes) foi expandir consciências entre Os alienados. Os
e
Mutantes eram Rita Lee Jones e dois irmãos Dias Baptista, Arnaldo

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Sérgio. Trabalhando nos bastidores do grupo havia outro Dias Baptista,
Cláudio, misto de luthier e técnico de eletrônica, responsável pelos ins-
trumentos e pela aparelhagem do grupo. Deixando de ser mero apoio para
os papas tropicalistas, eles haviam gravado seu primeiro LP naquele mesmo
agitado 1968. O disco, intitulado simplesmente “Os Mutantes”, prova-
va que um grupo de rock apaixonado pelos Beatles pós-“Revolver” po-
dia assimilar a linha evolutiva da MPB — Gil & Caetano (“Panis et cir-
censis”) ou o suingado jovem-guardista Jorge Ben (“Minha menina”), por
exemplo — sem deixar de ser roqueiro. Ou seja: pulava um galho além
na árvore genealógica do BRock.
No ano seguinte, “Mutantes” potencializava o sucesso da fórmula
rock + MPB = escracho através de músicas como “2001” (parceria do trio
com Tom Zé, música viajante-espacial aberta por uma dupla sertaneja),
“Banho de Lua” (aquela mesma versão de Fred Jorge popularizada por
Celly Campello dez anos antes) e “Caminhante noturno”, entre outras.
Ainda em 1969, os Mutantes se tornavam uma família — Rita e Arnaldo
se casaram — agregaram novos membros — o baixista Arnolpho Lima
Filho, o Liminha, que viria a ser o produtor-mor do rock brasileiro nos
anos 80, e o baterista Ronaldo Leme, o Dinho — e deram espaço para a
mulher da casa gravar seu primeiro disco solo — “Build up”, produzido
por Arnaldo.
Os três discos gravados por Rita-Arnaldo-Sérgio-Liminha-Dinho, “A
divina comédia ou Ando meio desligado” (1970), “Jardim elétrico” (1971)
e “Mutantes e seus cometas no país do Baurets” (1972), confirmariam o
grupo como primeiro de rock brasileiro no sentido exato da expressão.
Músicas como “Meu refrigerador não funciona”, “It's very nice pra xuxu”,
“Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock and
roll? e “Balada do louco” imediatamente se tornariam clássicos do bra-
ailian way of rock 'nº roll, modelos perseguidos por dezenas de novos
grupos nativos. No futuro, o extemporâneo som dos Mutantes se torna-
ria cult até no exterior, fascinando gente como Jello Biafra, líder da ban-
da punk americana Dead Kennedys.
Em 1972, afastada dos rumos progressivóides tomados pelo traba-
lho dos Mutantes, Rita Lee gravou seu segundo disco solo (“Hoje é o
primeiro dia do resto de sua vida”, bandeiroso, não 2), se separou de
Arnaldo e formou o Tutti Frutti, junto com Lucia Turnbull, Lee Marcucci
e Luiz Sérgio Carlini. Com o tempo, no entanto, sua carreira se afastaria
do bom e velho rock *n” roll. Rita perdeu, portanto, a chance de ser a
matriarca da geração 80 (quando surgiu, tudo o que esta não queria era

16
Arthur Dapieve
Os Mutantes: num galho além na árvore genealógica do BRock
“Mania de você” ou “Lança-perfume”). Da Rita solo, contudo, ficaram
clássicos do rock setentista, como “Mamãe natureza”, “Ovelha negra”e
“Arrombou a festa”.
Sem Rita, os quatro remanescentes dos Mutantes ainda gravaram,
em 1973, o álbum “O A e o Z”, que afundava ainda mais no excesso de
pretensão que já dera as caras em “No país do Baurets” — mas isso O
ouvinte só constataria quando o disco finalmente foi lançado, em CD, 19
anos depois. Pouco após a gravação de “O A eo Z” foi a vez de outro
sócio-fundador, Arnaldo, pedir o boné. Fora dos Mutantes, enfrentando
crises depressivas que resultariam numa tentativa de suicídio, a 1º de janei-
ro de 1982, ele só gravaria mais quatro discos: o genial e sombrio “Loki?”
(1974), “Faremos uma noitada excelente...” (1978, mas só lançado em
1987, gravado ao vivo, à frente da banda Patrulha do Espaço), o pungente
“Singin” alone” (1982) e “Disco Voador” (1987). Uma lástima.
Sérgio Dias persisitiu com o nome Mutantes. Manteve Liminha e
recrutou o tecladista Túlio Mourão e o baterista Rui Motta. Com eles
gravou “Tudo foi feito pelo sol” (1974). Dessa segunda formação, man-
teve Rui, trocou Túlio por Luciano Alves e Liminha por Paul Castro. Com
eles gravou “Mutantes ao vivo” (1976). Ambos os discos muito, muito
chatos, sufocados pelo egocentrismo dos virtuoses e congelados pelo amor
a Yes, Emerson, Lake & Palmer e quejandos. Os Mutantes de Sérgio ain-
da experimentaram uma fase carioca, suportada pelo baixista Antônio
Pedro Fortuna (futuro Blitz) e encorajada pelo tiete e também guitarrista
Lulu Santos. Mais tarde, na década de 80, o guitar hero foi se masturbar
artisticamente nos Estados Unidos, eventualmente caindo de pau no que
considerava a precariedade técnica do BRock.
No final da década de 60, siderados pelos Mutantes, outros grupos
se formaram com o intuito de dar ao rock brasileiro o status de arte. De
todos, o mais insistente foi o Terço que, aos trancos e barrancos, mas
sempre gravitando em torno do guitarrista Sérgio Hinds, sobrevive até
hoje. O auge de sua carreira progressiva, entretanto, aconteceu em 1975,
com o lançamento de seu terceiro LP, “Criaturas da noite”. O submundo
dos filhos do Pink Floyd congregava ainda A Bolha (antigo The Bubbles
nos salões de baile), Veludo, Som Nosso de Cada Dia, Bixo da Seda, Bar-
ca do Sol, Moto Perpétuo, Peso e Vímana, entre outros. Seria deste últi-
mo, do qual faziam parte Lulu Santos, Lobão e Ritchie, que a rigor nas-
ceria o rock brasileiro dos anos 80. Nada a ver com o trabalho do grupo:
como seus colegas de geração, o Vímana pouco se interessava por letras
ou por alcançar o grande público. Numa época em que mesmo um disco

18 Arthur Dapieve
dos Rolling Stones não vendia mais de cinco mil cópias no Brasil, qual-
quer teatrinho lotado bastava para manter acesa a chama. Ainda não seria
da fornada Mutantes/demais progressivos que o BRock iria vingar.
No entanto, por baixo do glacê esotérico dos teclados, o rock “n” roll
ainda pulsava. E o patriarca do BRock sairia do lugar mais improvável:
da Bahia, terra de Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano, Gil e folclo-
rismos mil. Vizinho do consulado americano em 1957, ano de “Semen-
tes da violência”, o moleque soteropolitano Raul Seixas descobriu Bill
Haley e Elvis Presley. Dois anos depois formou uma banda de baile, The
Panthers, que, mais tarde, já como Os Panteras, se tornaria a locomotiva
da Jovem Guarda baiana. Em 1967, Raul desceu a ladeira do Pelourinho
e foi parar no Rio de Janeiro, onde, no ano seguinte, gravou seu primeiro
LP, “Raulzito e Os panteras”. O fracasso o levou à produção. O silêncio
nos estúdios só seria quebrado em 1971, com um disco esquisitíssimo,
“Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta sessão das 10”, dividi-
do com Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e Edy Star, disco que termina-
va com uma descarga de privada (cinco anos depois os Sex Pistols encer-
rariam “Never mind the bollocks”com um peido, gerando igual como-
ção). “Sociedade...” logo desapareceu. Raul não.
Em 1972, ele classificou duas músicas no 7º Festival Internacional
da Canção: “Eu sou eu, Nicuri é o diabo” e “Let me sing, let me sing”.
Durante um dos ensaios, no Maracanãzinho, um recém-aterissado tiete
inglês dos Mutantes, Richard David Court, ou simplesmente Ritchie, as-
sistiu à performance de Raul e pensou estar delirando com algum ácido.
A partir deste FIC, Raul se tornaria um ponto de referência, tanto para
aqueles que insistiam em fazer rock *n” roll no Brasil quanto para aqueles
que insistiam em ouvir no ritmo as trombetas do apocalipse musical lo-
cal. Raul fazia rock “n” roll temperado por seu sotaque nordestino, com
os pés na Terra e não em algum outro planetóide, menos hermético em
seu misticismo do que os grupos progressivos.
No ano seguinte, Raul lançou seu primeiro LP à vera, “Krig-ha, Ban-
dolo”, que trazia “Ouro de tolo”, “Metamorfose ambulante”, “Al Ca-
pone” e “Mosca na sopa” — o bastante para emparelhá-lo a “Loki?”,
de Arnaldo Baptista, na disputa pelo título de melhor disco do proto-
BRock. Tomando como parceiro o mago Paulo Coelho, o roqueiro baiano
embicou rumo à Sociedade Alternativa e saiu colecionando hits como
“Gita” (1974), “Tente outra vez” (1975), “Eu nasci há 10 mil anos atrás”
(1976) e “O dia em que a Terra parou” (1977). Veio uma fase de fiascos,
problemas mentais e de saúde — e Raul só voltou às paradas com “Ca-

O Rock Brasileiro dos Anos 80 19


BRock —
rimbador maluco” (1983). Mas as drogas e as bebidas foram cobrando
seu quinhão e quando, no final da década, Raul se tornou parceiro de seu
conterrâneo/clone vocal/discípulo Marcelo Nova (líder do então dissol-
vido grupo punk Camisa de Vênus) o clima já era de revival em vida. O
disco “A panela do diabo”, de 1989, flagrava o pai do BRock debilitado.
A turnê de lançamento do LP o enfraqueceu ainda mais — freak shows
talvez fosse a expressão mais adequada. Sua morte, a 21 de agosto, não
chegou a ser uma surpresa. Mas a tristeza não foi menor.
Durante os anos 70, além de Raul Seixas, alguns grupos tiraram um
som marginal à tendência progressiva dominante. O mais bem-sucedido
— apesar de ter durado somente dois anos e uns quebrados — foi o Se-
cos & Molhados de Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo.
Entre 1971 e 1974 eles hipnotizaram o país çom o folk de “O vira”, “San-
gue latino”, “El rey”, “As andorinhas” (sobre poema de Cassiano Ricardo)
e “Rosa de Hiroshima” (idem Vinicius de Moraes). O grupo vendeu es-
petaculares 700 mil cópias de seu primeiro LP, “Secos & Molhados”
(1973), quase bisou o feito com o segundo (1974) e fez, no Maracanãzinho,
uma apoteótica apresentação para 25 mil pessoas (registrada num inau-
dível disco lançado somente em 1980). A beleza, leveza e relativa simpli-
cidade dos arranjos, aliadas ao impacto da figura andrógina de Ney Ma-
togrosso, fizeram do grupo uma coqueluche nacional, digna do “Fantás-
tico”. Os Secos & Molhados quase estabeleceram de vez a fatia rock dentro
do panorama brasileiro. Talvez tivessem conseguido se tivessem sobrevi-
vido mais tempo. Mas desacertos monetários entre Gerson e Ney de um
lado e João e seu pai João Apolinário (também letrista) do outro elimi-
naram esse futuro do rol dos possíveis. Desfeito o grupo, Ney virou astro
da MPB e os outros, apesar de periódicas tentativas de repor o bloco na
rua, ficaram nas glórias do passado.
Formado em 1968 e inspirado pelo rhythm “nº blues à la Rolling
Stones, o paulistano Made in Brazil do guitarrista Oswaldo Vecchione
sobreviveu a fracassos comerciais e ao entra-e-sai de integrantes fazendo
LPs integros, — com o “Made in Braxnil? (1971); “Jack, o estripador”
(1977) e “Minha vida é rock “nº roll” (1981). Também de São Paulo e
também enfrentando alta rotatividade em sua formação, o Joelho de Porco
existiu/não existiu a partir de 1972 numa linha teatral e caricatural já
anunciada no lado À de seu primeiro compacto: “Se você vai de xaxado,
eu vou de rock “nº roll”. Como integrantes o Joelho teve, entre outros,
Tico Terpins, Billy Bond, Zé Rodrix e o baterista Roberto Gurgel, o Juba,
que viria a ser o substituto de Lobão na Blitz.

20 Arthur Dapieve
No final dos anos 70, o BRock era aguardado como se aguarda um
messias. Bastava um grupo acima da média, melhorzinho, pôr a cabeça pra
fora que logo os roqueiros brasileiros saíam em peregrinação, levando-lhe
ouro, incenso e mirra. Duas bandas foram responsáveis por rebates falsos:
quando apareceram foram saudadas com um “até que enfim o rock brasi-
leiro deu as caras”. A primeira foi A Cor do Som, na verdade um subproduto
dos Novos Baianos velhos de guerra. Armando Macedo (guitarra), Eduardo
de Carvalho (o Dadi, baixo), Maurício de Carvalho (o Mu, teclados), Gusta-
vo Schroeter (bateria) e Ari Dias (percussão) cruzavam em seus currículos
rock, chorinho e ritmos afro-baianos. Essa mestiçagem era saborosa, como
atesta o primeiro LP, “A Cor do Som”, de 1978. Apadrinhado por Moraes
Moreira, o quinteto chegou ao Festival de Montreux, onde gravou ao vivo
seu segundo disco. Música instrumental brasileira de primeira linha.
A pressão para que eles passassem a cantar — e, consequentemente,
a vender mais discos — foi tamanha que já no terceiro LP a vaca ia pro
brejo. Com a mídia marcando por pressão, “Frutificar” era uma super-
produção maquiada e artificial, sem o viço dos dois primeiros trabalhos.
Verdade que fez um baita sucesso, puxado pelas faixas “Beleza pura” (de
Caetano) e “Abri a porta” (de Gil e Dominguinhos). Mas se tornara ma-
cumba para turista. Em 1980, o álbum “Transe total” radicalizava essa
opção preferencial pelo dinheiro em faixas como “Palco”, de Gil. Daí em
diante, com discos cada vez mais fracos e com a saída de Armandinho
(substituído por Victor Biglione, que depois cedeu o lugar a Perinho San-
tana), A Cor do Som se arrastou até meados da década de 80. Acabou e
ensaiou uma volta em 1994,
A outra banda a dar um rebate falso foi a mineira 14-Bis. Seu pri-
meiro LP, “14-Bis”, de 1979, era tão bom que muita gente boa viu em
Flávio Venturini (teclado e voz), Cláudio Venturini (guitarra e voz), Sér-
gio Magrão (baixo), Vermelho (teclados) e Heli Rodrigues (bateria) a
renascença para a vida eterna do rock brasileiro. “A música do 14-Bis é
aquela que eu e você queríamos ter ouvido em 71/72, lembra? (...). Ago-
ra, oito anos depois, essa música é real, palpável e foi melhorada, decan-
tada, polida. Uma espera que, mesmo doída e angustiante, valema pena”,
escrevia o jornalista José Emílio Rondeau na revista “SomTrês” de de-
zembro de 79. Realmente o disco era entusiasmante. “Perdido em Abbey
Road”, “Natural”, Cinema de faroeste” e “Canção da América” (de Mil-
ton Nascimento e Fernando Brandt) eram bons augúrios.
O segundo disco, entretanto, era de preocupar. Uma ou outra faixa

(como “Bola de meia, bola de gude”) mantinha o astral mas, no todo,

80 pi
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
fórmula parecia exaurida e aqueles vocais assexuados, tudo, menos rock.
O terceiro,” Espelho das águas”, de 1981, desfazia de vez as ilusões dos
mais otimistas — mas este, ao menos, saiu quando o BRock já botava as
manguinhas de fora. O 14-Bis atravessou a década mas se tornou apenas
uma facção à esquerda do Clube de Esquina. Nada mais. Com essa árvo-
re genealógica não dava para se esperar a consolidação artística e comer-
cial do rock brasileiro. Desse tronco jamais sairiam novos galhos. Curio-
samente seria o equivalente nativo ao movimento punk que transforma-
ria o BRock em establishment. Uma dessas ironias da História. Graças a
Deus ela tem senso de humor.

ua Arthur Dapieve
ah
PINTA UM CLIMA

O roqueiro que abria o “Jornal do Disco”encartado na revista “Som-


Três” de janeiro de 1980 tinha vontade de dar um tiro na cabeça. Sob o
título “O time que as gravadoras escalaram”, estavam lá dez nomes nos
quais as ditas cujas apostavam suas fichas para o primeiro ano da década.
Eram eles: Oswaldo Montenegro (indicado pela Warner), Grupo Paranga
(Bandeirantes), Gilliard (RGE), Gilson (Top Tape), Zé Ramalho (CBS)
Olívia Byington (Som Livre), Paulo André Barata (Continental), Diana
Pequeno (RCA), Djavan (EMI) e Ângela Rô Rô (PolyGram). Como se não
só o punk, mas também o rock “nº roll, a beatlemania, o heavy metal e o
progressivo nunca tivessem acontecido. Era um panorama desalentador.
De toda essa “seleção”, somente a exagerada Rô Rô, blueseira carioca,
lésbica assumida em altos brados, tinha algum parentesco com aquele tal
de rock “nº roll. Todos os outros eram, de uma forma ou de outra, vassalos
da encastelada MPB, quase nenhum — o tempo iria se encarregar de pro-
var isso — talentoso o bastante para vingar.
Felizmente, aposta de gravadora nunca foi sinônimo de qualidade ou
mesmo de sucesso. A arte sempre viveu do inesperado. O movimento punk
que o diga. Mesmo cinco anos atrasado, o rock brasileiro que mostrou a cara
no início dos anos 80 e firmou os pés no cenário musical no decorrer da
década era filho direto do verão inglês de 1976, o famoso verão punk, aquele
no qual os Sex Pistols deram uma cusparada certeira no olho do establishment
roqueiro e começaram tudo de novo. Mesmo que preferisse formas menos
agressivas, ou até mesmo “reacionárias”, como O heavy metal e o progres-
sivo, este BRock devia tudo, corpo e alma, ao lema punk “do-it-yourself”,
faça-você-mesmo. Tal como o rock lá fora, a MPB se aburguesara, autocom-
placente e autofágica — estéril. Sustentar esse gênero hipertrofiado saía caro
para as gravadoras — mas isso elas só iriam perceber quando lhes fosse esfre-
gado na cara. O disco do tronco principal da MPB tinha um intérprete caro,
mú-
que cantava um repertório caro (em direitos autorais) sustentado por
sicos e produtores caros, sem falar em eventuais participações especiais ou
gravações no exterior. E, apesar de todo esse aparato, nem vendia muito.
Trinta ou quarenta mil cópias eram comemoradas efusivamente.

80 23
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
A despeito desse quadro de crise comercial e criativa, a MPB entrou
a década se autocelebrando, como era do seu feitio, em festivais promo-
vidos por redes de TV. Após quatro eliminatórias, o MPB-80, da Globo
e da Associação Brasileira de Produtores de Disco, lotou o Maracanãzinho
na noite de 23 de agosto de 1980 com 23 mil pessoas que viram Oswaldo
Montenegro ganhar o primeiro lugar cantando “Agonia”, composição de
Mongol (nome da música e do autor não podiam ser mais sugestivos). Em
segundo lugar ficou Amelinha, com “Foi Deus que fez você” (de Luiz
Ramalho) e em terceiro, Raimundo Sodré, com “A massa” (dele e de
Antônio Jorge Portugal). Suspeitava-se de que Amelinha cantava um plágio
do fado “Foi Deus” e tinha-se certeza de que Raimundo lembrava um
pouco demais o jovem Gilberto Gil. Mas ninguém se preocupou muito
com isso, nem com a consagração de Montenegro, que, no ano anterior,
pegara um terceiro lugar no festival da Tupi, com “Bandolins”, de longe
a favorita do público.
Entre as 20 finalistas do MPB-80, somente uma, “Nostradamus”, de
Eduardo Dusek, era vagamente roqueira, não no som, mas na postura.
Dusek entrava no palco de calção, casaca e asinhas de anjo para cantar
ao piano uma hilariante balada apocalíptica que atingia seu clímax na es-
trofe “O dia ficou noite/ O sol foi pro além/ Eu preciso de alguém/ Vou
até a cozinha/ Encontro Carlota/ A cozinheira/ Morta!/ Diante do meu
pé, Zé!/ Eu falei, eu gritei/ Eu implorei:/ Levanta!/ Me serve um café/ Que
o mundo acabou”. Em novembro e dezembro daquele ano, Dusek gra-
varia seu primeiro LP pela PolyGram, o divertidíssimo “Olhar brasilei-
o”, que, no entanto, não escapava ao inchaço da MPB. “Nostradamus”,
por exemplo, reunia o autor, 25 músicos e uma orquestra de cordas.
O festival MPB-81 não foi muito diferente. Lucinha Lins, sob vaias, .
ganhou com “Purpurina” (de Jerônimo Jardim). Guilherme Arantes, sob
aplausos, ficou em segundo com sua “Planeta água”. E Almir Guineto,
em terceiro, com sua “Mordomia”. Na noite de 11 de setembro de 1981,
também passaram pelo palco do Maracanãzinho, entre outros, Arrigo
Barnabé, Walter Franco, Kleiton & Kledir, Oswaldo Montenegro (como
compositor de “Estrelas”, defendida por José Alexandre) e Oswaldo Mon-
tenegro (como violonista de “Atalhos”, de Mongol). Entretanto, dessa vez
o roqueiro brasileiro tinha por quem torcer. Em vão, é verdade, mas tor-
cer. Pelos performáticos Gang 90 & As Absurdettes, Júlio Barroso à frente,
e sua niú-uêive “Perdidos na selva”
Júlio Barroso era um jornalista carioca fissurado por música em ge-
ral. Em meados dos anos 70, ele editara a revista “Música do Planeta

24 Arthur Dapieve
Terra”, que tinha entre seus colaboradores Caetano Veloso e Gilberto Gil.
No final da década, Júlio estava, como Lulu Santos e Paulo Ricardo Me-
deiros, colaborando com a “SomTrês”. Em artigos avulsos e em sua co-
luna “Toda taba ateia som”, ele chamava a atenção para a sofisticação
da música eletrônica e para a vitalidade da música negra, sobretudo o
reggae, e se fascinava com a new wave anglo-americana. De Nova York,
vinha seu aviso no “Jornal do Disco” de fevereiro de 81: “Não existe nada
de novo, existe tudo sendo feito de maneira nova, velhos riffs renascidos
através da paixão criativa dos que vivem o tempo de agora, apaixonada-
mente. Nós sabemos que não existe nenhuma onda nova, new wave. Mas
uma onda permanente. Mente mutante.”
De volta ao Brasil, encorajado pelo amigo Nelson Motta, e decidido
a pegar a História nas mãos, Júlio agendou uma performance, “Perdidos
na selva”, na casa onde trabalhava como disc-jóquei, a Paulicéia Desvai-
rada. Deu tão certo que ele, sua irmã Denise (a Lonita Renaux), Herman
Torres, a holandesa Alice Gwendolyn (a Alice Pink Punk) e Maria Elisa
Capparelli Pinheiro (a May East), ou seja a Gang 90 & As Absurdettes,
decidiram levar a idéia adiante. Se apresentaram na Lira Paulistana, em
São Paulo, e no Morro da Urca, no Rio. E no MPB-81. O Brasil, contu-
do, ainda não estava preparádo para a década de 80 e Júlio Barroso vol-
tou para Nova York. No tempo em que esteve lá, uma banda muito pa-
recida com a Gang 90, a Blitz, conseguiu furar o bloqueio anti-roqueiro
e estourar de Norte a Sul.
Novamente no Brasil, Júlio se animou a retomar o projeto com pra-
ticamente o mesmo time, incluindo e Alice Gwendolyn, sua paixão, e
Taciana Barros, sua mulher. Dessa vez, com as gravadoras à cata da
“nova Blitz”, ele conseguiu um contrato com a RCA, pela qual gravou
o LP “Essa tal de Gang 90 & As Absurdettes”, lançado em 1983. À in-
clusão da faixa “Nosso louco amor” na trilha da quase homônima no--
vela da Globo, “Louco Amor”, deu ao grupo seu maior sucesso comer-
cial: um compacto com quase 100 mil cópias vendidas. Os problemas de
Júlio com bebidas e drogas, entretanto, acabaram desembocando numa
tragédia. Na noite de 6 de julho de 1984, aos 30 anos, ele caiu (nesse
caso, um acesso de vômito causado pelo processo de desintoxicação o
teria levado direto da cama rente à janela para o vazio) ou pulou (nesse
caso, jamais se saberá exatamente o porquê, nunca se sabe) do seu apar-
tamento no 11º andar de um edifício na Rua Conselheiro Brotero, no
bairro paulistano de Santa Cecília. No dia seguinte a Gang 90 & As
Absurdettes tinha um show marcado na boate gay Val Improviso.

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


Perdidos na Selva: a Gang 90 & As Absurdettes de Júlio Barroso
De 1985 a 1987, Taciana tentou levar a Gang 90 — agora sem As
Absurdettes — adiante. Lançou dois discos, “Rosas & tigres” (pela Som
Livre, em 85) e “Pedra 90” (pela Continental, em 87), mas não deu mui-
to certo. Difícil com Júlio, impossível sem ele. Em 1991, o cantor-com-
positor ganhou um livro póstumo, “A vida sexual do selvagem”, organi-
zado por sua irmã Denise (morta pela Aids tempos depois). A partir daí,
Júlio Barroso passou a se reconhecido, com justiça, como o primeiro vi-
sionário do BRock, aquele que captou a “onda permanente” lá fora e a
aculturou aqui dentro. Um mito de verdade.
Se Júlio Barroso subverteu a cena em grande estilo — participando
de um festival da todo-poderosa MPB promovido pela todo-poderosa Rede
Globo — antes de a frase “eu e minha gata, rolando na relva” ser pro-
nunciada pela primeira vez, outros brasileiros comiam o sistema pelas
beiradas, ou melhor, pela periferia. Aqui o movimento punk primeiro re-
percutiu no segmento social no qual nascera na Inglaterra: no proletaria-
do. Já em 1977 jovens operários da periferia de São Paulo, lugares como
Freguesia do Ó e Vila Carolina, começaram a se identificar com a revol-
ta anarco-politizada dos Sex Pistols e do Clash. E, como as palavras de
ordem eram do-it-yourself mesmo, logo começaram a surgir as primeiras
bandas punk brasileiras, que atendiam por Al-5 ou Condutores de Ca-
dáver. Os punks se reuniam num salão conhecido como Templo do Rock,
na Zona Leste da cidade. As frequentes brigas geradas por um ou outro
dançarino mais exaltado (já sendo o próprio pogo, a dança punk, bas-
tante parecida com uma briga em si), as roupas (jaquetas militares, cami-
setas rasgadas, coturnos) e os cortes de cabelo agressivos deram a eles a
fama de violentos e a eterna vigilância da PM.
O que era literalmente marginal saltou aos olhos da imprensa bur-
guesa com a realização do 1º Festival Punk de São Paulo nos dias 27 e 28
de novembro de 1982, no Sesc-Pompéia, festival também conhecido como
“O Começo do Fim do Mundo”. No total, cerca de três mil pessoas de-
ram as caras para assistir a shows de bandas como Olho Seco, Ulster,
Cólera, Extermínio, Anarkoólatras e Inocentes (que viria a ser o produto
mais bem acabado do seu meio), ver vídeos dos companheiros ingleses e
prestigiar o lançamento de “O que é punk”, livro do assessor informal
de imprensa do movimento, o jornalista Antônio Bivar, editado dentro
da coleção Primeiros Passos, da Brasiliense.
A boa divulgação obtida pelos colegas paulistas animou os punks
cariocas. Em 26 de março de 1983, o Circo Voador abrigava a 1º Noite
Punk do Rio de Janeiro. De São Paulo vieram Inocentes, Cólera, Psycoze

80 27
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
e Ratos de Porão. Dos subúrbios, Coquetel Molotov, Eutanásia e Descarga
Suburbana. Da Zona Sul, a participação especial de um jovem trio new
wave simpatizante, Os Paralamas do Sucesso, encorpado por membros
de outra banda praiana, o Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens. A noi-
te foi um sucesso de público e de crítica. A partir dela, o grande público
descobriu que também no Rio o movimento punk era um fenômeno da
periferia, que se manifestava basicamente em dois pontos da cidade: uma
pista de skate em Campo Grande, na Zona Oeste, e uma gafieira, a Dan-
cing Méier (onde uma tabuleta anunciava a Dancy Méier), que, um do-
mingo por mês, reunia uma centena de punks ao som de bandas locais.
Na Zona Sul, os points era barzinhos, como o Western Club, no
Humaitá, o Let it Be, em Copacabana, e o Emoções Baratas, em Botafogo.
Neles, no começo dos anos 80, ouvia-se o elo perdido entre o rock que
rolara antes e o rock que rolaria depois. Pegue-se um grupo como o Aci-
dente, por exemplo. Já a partir do nome artístico de seu líder — o tecladista
Paulo Malária — podia-se farejar ares punk. Músicas com títulos como
“Assassinato de Trotsky” ou “A sua mãe morreu” pareciam confirmar
essa filiação. E, nos shows, Malária, botafoguense doente, ameaçava quei-
mar uma camisa do Flamengo, no que sempre era teatralmeénte impedido
por algum outro membro da banda. Mas, se a atitude era punk-debochada,
a música repisava a mesma trajetória do rock brasileiro até então, mistu-
rando um pouquinho de hard rock, outro tanto de progressivo, pitadas
de country e blues.
Contudo, quando o Acidente conseguiu lançar seu primeiro LP in-
dependente, “Guerra civil”, no final de 1981, a mídia não deixou passar
em branco. Escrevendo sobre o disco na “SomTrês”de janeiro de 82, a
jornalista Ana Maria Bahiana imaginava o que passava pela cabeça dos
integrantes do grupo: “Olha, foda-se a MPB, nós gostamos mesmo é de
rock *n” roll, nós só ouvimos rock'n'roll a vida toda, então é isso que nós
sabemos e queremos fazer (...) a gente tá é puto da vida com o jeito que
as coisas estão, com a hipocrisia, com a safadeza, com as empulhações e
tá é louco para falar uma porrada de coisas a respeito, desse modo aí que
a gente gosta”.
Essa “ideologia” adivinhada por Bahiana valia não só para o Aci-
dente (que, outros quatro discos independentes lançados, está vivo até
hoje como uma banda de rock... progressivo!) como também para os con-
temporâneos dele naqueles míticos barzinhos. Valia para bluesmen como
Zé da Gaita (“O suburbano”) e Celso Blues Boy (“Aumenta que isso aí
é rock “and” roll”). Valia para um grupo new wave inglês como o The

Arthur Dapieve
Way, de Jonno Sullivan (“I don't care”). Valia para um grupo de hard
rock assetentado como o Sangue da Cidade, do guitarrista Di Castro e
do vocalista Sérgio Vid Vidal (“Brilhar a minha estrela”). Valia para um
grupo funky como o Brilho da Cidade posteriormente Brylho, de Arnaldo
Brandão (“Noite do prazer”). Valia para um grupo de rock progressivo
como o Bacarmarte, de Mário Neto (“Último entardecer”). Valia, ain-
da, para um velho/novo conjunto rockabilly como o João Penca & Seus
Miquinhos Amestrados.
Velho porque nasceu em 1972, no playground do edifício Jacumã,
no Leblon. Nele, os irmãos Marcelo e Cláudio Knudsen reuniam adoles-
centes igualmente fissurados por rock das décadas de 50 e 60 para infin-
dáveis ensaios de uma banda primeiro batizada de Zoo, depois de Anos
60 e, por fim, de João Penca & Seus Miquinhos Amestrados. Sua princi-
pal diversão era fazer versões infiéis e esculhambadas de velhas canções.
“Ring around your neck”, por exemplo, deu em “A louca do Humaitá”.
Mas entre 1975 e 1976 o vestibular e o rock progressivo acabaram com
a festa. Novo porque os amigos se reagruparam no final dos anos 70, re-
forçados por um cantor e guitarrista goiano chamado Leo Jaime. Leo co-
meçou a compor para e com os Miquinhos — Marcelo Knudsen (nome
artístico, Bob Gallo), Cláudio Knudsen (Nebuloso Cláudio, The Killer),
Leandro Verdeal, Guilherme Ricardo (Hullygully), Sérgio Abreu (Selva-
gem Big Abreu), Luís Carlos Avelar (Avelar Love), Mauricio Rosa Fer-
nandes (Del Rosa) e Sérgio Naidin (Mimi Erótico) — terminando por se
tornar um deles em 1981.
Em janeiro de 1982, após um show no Morro da Urca, o noneto
gomalinado foi procurado no camarim por Eduardo Dusek, bêbado, com
uma proposta de trabalho em comum. Sóbrio, dias depois Dusek não
conseguia se lembrar de nada, mas Leo Jaime tanto fez que lhe refrescou
a memória. Assim, o primeiro disco dos Miquinhos foi o segundo de Du-
sek, “Cantando no banheiro”, que estourou “Rock da cachorra”, de Leo
Jaime e do célebre apelo “troque o seu cachorro por uma criança pobre”.
No ano seguinte, o goiano partiu para a carreira solo, gravando pela CBS
o LP “Phoda C”, com a premonitória “Aids” (“Não vai adiantar botar
bandaids”). Foi a primeira defecção dos Miquinhos, muitas por opção de
vida, uma por morte (Cláudio, The Killer, por escapamento de gás, en-
quanto tomava banho). No final, sobraram três Miquinhos para contar
a história: Bob Gallo, Selvagem Big Abreu e Avelar Love.
Suas várias formações gravaram discos hilariantes, como “Os maiores
sucessos de João Penca & Seus Miquinhos Amestrados” (83) — que des-

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


tacava “Telma, eu não sou gay ”, versão para “Tell me once again” —,
“Okay, my gay” (86) e “Além da alienação” (88). Em sua carreira solo,
Leo Jaime seguiu mais ou menos a mesma linha de roquenrôu mela-cue-
ca através de músicas como “Nada mudou” ou de sua versão para “Tutti
frutti”. De quebra, investiu em sua porção ator em filmes como “Rock
estrela”, de Lael Rodrigues, e “As sete vampiras”, de Ivan Cardoso.
Em São Paulo, o início dos anos 80 foi mais punk, pós-punk, new
wave e tecnopop do que no Rio de Janeiro. Além da Gang 90 & As Absur-
dettes, a cidade acompanhava a trajetória de grupos como o Verminose
(futuro Magazine), os Voluntários da Pátria, os Agentss, o Azul 29 e o
Kahocomego semi); Às vezes, a nova geração cruzava com a velha
guarda, como no festival-em-um-dia Os Heróis do Rock, realizado no
Ginásio do Palmeiras em 2.6 de dezembro de 1981. Nele, o veterano Made
mn Brazil dividia a platéia de mil pessoas com Gang 90 e Verminose, en-
tre outros. Ombro a ombro no palco, velhos e novos expunham seus anos-
luz de distância estética sem preconceitos.
À frente do Verminose/Magazine, Antônio Carlos Seneforte, o Kid
Vinil, “o rei do Brasil”, vendeu 80 mil compactos de “Eu sou boy” e 50
mil compactos de “Tic-tic” com uma new-wavezinha bem-humorada e
crítica. Em 1983, lançou o LP “Magazine” pela WEA, mas não foi muito
além disso — e se tornou dublê de crítico de rock. Os cultuadéssimos
Voluntários da Pátria existiram entre 82 e 85, com quatro formações que
englobaram meia São Paulo. À que gravou o seu único LP, “Voluntários
da Pátria”, pela Baratos Afins, em 1984, era Marcos Nasi Valadão (vo-
cal), Miguel Barrela e Giuseppe Frippi (guitarras), Ricardo Gaspa Gas-
parini (baixo) e Thomas Pappon (bateria). Nasi e Gaspa também faziam
parte do Ira. Os voluntários tiveram dois underhits, “Cadê o socialismo?”e
“Verdades e mentiras”, ambos censurados, e suas duas guitarras, entre o
King Crimson e os Talking Heads, fizeram escola.
Agentss e Azul 29 puxavam mais para o tecnopop. No primeiro, o
mesmo Miguel Barela dos Voluntários dividia as texturas de “Agentss”
(82) e o “Professor digital” (83) com o guitarrista Eduardo Amarante e o
tecladista Kodiak Bachine. No segundo, um quarteto, a viagem de “Me-
trópole” ou “Olhar” não era muito diferente. Enquanto isso, o mod-punk
Ira abrigava o melhor exemplo daqueles tempos de promiscuidade musi-
cal que permitiam/obrigavam um músico a se dividir entre duas ou mais
bandas diferentes. Se Nasi e Gaspa atuavam como Voluntários, o guitar-
rista Edgard Scandurra chegou a acumular cinco “empregos”: Ira, Ultra-
je a Rigor, Cabine C, Smack e Mercenárias (neste, como baterista!)

Arthur Dapieve
Todas as bandas perambulavam mais ou menos pelo mesmo circui-
to, que ia do Lira Paulistana, teatro-sede da música alternativa da cida-
de, morada de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Premeditando o Bre-
que e Rumo, até a butique artesanal Kaos Brasilis, da artista plástica Marta
Oliveira, passando por barzinhos como Calabar, Pierrô Lunar e Pub Vi-
tória. Quando as coisas realmente começaram a acontecer e os bares se
tornaram pequenos, vieram as danceterias, muitas: Madame Satã, Car-
bono 14, Rose Bom-Bom, Napalm, Rádio Clube. No Rio, fora os bares,
o point do novo rock brasileiro era o lendário Circo Voador.
Concebido por Perfeito Fortuna, Márcio Calvão e Maurício Sette e
abençoado pela primeira-dama do Estado do Rio, dona Zoé Chagas Frei-
tas, o Circo Voador era um audacioso misto de centro cultural e comuni-
tário, aberto a todas as formas de manifestações artísticas e educacionais.
A lona pousou na Praia do Arpoador em 15 de janeiro de 1982 e de lá foi
despejada exatamente três meses depois. Esse curto período de tempo, no
entanto, foi o bastante para chacoalhar a cena carioca com apresentações
de astros da MPB, como Chico Buarque e Caetano Veloso, e de novos grupos
de rock, como Blitz, Barão Vermelho e Brylho — para não falar em trupes
teatrais como Banduendes Por Acaso Estrelados, Manhas & Manias e Tá
na Rua, todos filhos espirituais do mitológico Asdrúbal Trouxe o Trom-
bone, do qual Perfeito Fortuna fizera parte.
Bem no meio daqueles três meses, às 6h do dia 1º de março de 1982,
entrava no ar a mais poderosa aliada do Circo Voador: a rádio Fluminense
FM bolada pelos jornalistas Luiz Antônio Mello e Samuel Wainer Filho,
roqueira até a medula. Através de seus fracos sinais os felizes ouvintes
tiveram o privilégio de escutar fitas demo de grupos iniciantes chamados
Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Plebe Rude, Biquíni Cavadão. De
quebra, o fotógrafo e DJ Maurício Valladares, pilotando o programa
“Rock alive”, apresentava as últimas novidades do rock estrangeiro, como
Echo & The Bunnymen, The Cure e The Smiths. Formava-se um públi-
co, enfim. E o rock afinal se nacionalizava, tornando-se BRock. O rock é
nosso — poderia ser este o slogan.
A tabelinha entre Circo Voador e Fluminense FM funcionava à per-
feição. Dentro do projeto “Rock voador”, organizado por Maria Juçá, o
espectador assistia na Lapa (onde o Circo se instalou em 23 de outubro de
82) a shows de bandas que só tocavam na emissora de Niterói. É, na pro-
sob o
gramação desta, o ouvinte escutava bandas que só se apresentavam
desse casa-
lona. Em janeiro de 83, via WEA, aterrissava nas lojas o filho
mento sem sogra ou tédio, o desigual LP “Rock voador”, compilação de

80 31
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
fitas autoproduzidas postas no ar pela Fluminense. Nela estavam faixas do
Sangue da Cidade (“Brilhar a minha estrela” e “Feito louco”), do Kid Abelha
e Os Abóboras Selvagens (“Distração” e “Vida de cão é chato pra cachor-
ro”), de Celso Blues Boy (“Brilho da noite” e “Caminhando”), do Papel
de Mil (“Numa noite qualquer” e “Novo amor”), de Malu Vianna (“Saio
do ar” e “Vê se me esquece”) e de Maurício Mello & Companhia Mágica
(“Grão de poeira” e “Tenho que viver”). Escrevendo sobre o disco no nú-
mero 3 da revista “Pipoca Moderna”, Ana Maria Bahiana, após fazer al-
gumas ressalvas, encorajava a turma: “ Vão em frente, meninos — pelo
menos vocês têm a idade de sua platéia, e isso já é muito, muito, muito nos
dias de hoje”.
Além do eixo Circo/Fluminense, a afirmação do BRock passou tam-
bém pela presença de pessoas-chave nos meios de comunicação. No jor-
nal “O Globo” e na revista “Pipoca Moderna”, Ana Maria Bahiana. No
“Jornal do Brasil”, Jamari França. Na revista “SomT'rês” e na rádio Excel-
sior FM, de São Paulo, Maurício Kubrusly. É claro que a relação entre
artistas e jornalistas nem sempre foi — e nem poderia ser — muito amis-
tosa. O crítico Pepe Escobar, por exemplo, quase apanhou de Nasi, do
Ira, por conta do artigo “Desventuras do rock paulistano”, publicado na
“Folha de S. Paulo” de 28 de outubro de 1984. Nele, a partir de uma carta
na qual Guilherme Isnard, do grupo Zero, denunciava a existência de uma
panelinha que não tolerava forasteiros, Pepe afirmava que “o rock pau-
lista se debate em guetos, e neles permanece”. No dia seguinte, represen-
tantes de 12 bandas locais foram à redação da “Folha” para, nas pala-
vras de Marcus Mocef, programador da boate Val Improviso, “desau-
torizar o Pepe Escobar a escrever sobre elas”. No meio da discussão, Nasi
quase agrediu o crítico, sendo contido pelos companheiros. Um triste
episódio de fascismo corporativista. Mas felizmente agressões de parte a
parte eram exceções, não regras. E o BRock foi pra frente.
Pra frente, pro Sul e pro Centro-Oeste. Do mesmo modo que Rio de
Janeiro e São Paulo fermentavam uma forte cena roqueira no início dos
anos 80, Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte também cultivavam as
suas. Na capital federal, a principal influência vinha do movimento punk
e de seus subprodutos. Nos bares do Centro Comercial Gilberto Salomão
e nas salas de ensaio do Brasília Rádio Center, gestava-se, sem conheci-
mento do que se passava no resto do país, um rock politizado e agressi-
vo. As bandas atendiam por nomes como Aborto Elétrico (que daria no
Legião Urbana e no Capital Inicial) ou Blitz 64 (que contava com Gutje
Woorthmann, futuro Plebe Rude, e Loro Jones, futuro Capital).

Qobo Arthur Dapieve


Circo Voador: na praia do Arpoador por apenas três meses,
o templo carioca do novo rock brasileiro
Em Porto Alegre, os points do início de década eram bares como o
Rockett 88 e o Ocidente e a danceteria B-52ºs. Por eles circulavam ban-
das cuja principal influência era, tal como em São Paulo e em Brasília, o
movimento punk. Seus nomes, Atahualpa & Os Panques, Os Replicantes,
Prisão de Ventre, Urubu Rei, Fluxo. Por ironia, a melhor e mais bem-su-
cedida banda gaúcha, os Engenheiros do Hawaii, que só se formaria na
metade dos anos 80, viria a ser visceralmente antipunk, pró-folk e pró-
progressivo. Em Belo Horizonte, mesmo sob o peso psicológico do Clu-
be da Esquina e seus sócios auto-indulgentes, a cena não era nada dife-
rente. Bares e bandas pós-punk. Raiz de quase tudo, o grupo poético-
performático Cemflores, de onde sairiam membros da Divergência Socia-
lista (Marcelo Dolabella), Sfiha Elétrica (Gato Jair, mais tarde mentor
intelectual do Último Número) e Sexo Explícito (Rubinho). À direita, o
sexteto Serpente, com teclados e metais. À esquerda, o Revolta Urbana,
punks do subúrbio Cabana do Pai Tomás.
Neste clima pintaria o BRock.

34 Arthur Dapieve
E
VÍMANA
O DISCO VOADOR

Se alguém estivesse esperando a chegada de um rock brasileiro dos


anos 80, a atitude mais óbvia era ficar de olho em Rita Lee e nos irmãos
Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, ou seja, nos ex-Mutantes. Se esse alguém
existisse teria tomado uma baita bola nas costas. O BRock chegaria sim,
mas não como um desdobramento natural do melhor grupo dos anos 70.
Chegaria pelas mãos e vozes de três membros de uma banda infinitamente
menor: Ritchie, Lulu Santos e Lobão, respectivamente vocalista-flautis-
ta, guitarrista e baterista do Vímana.
Isoladamente, os três fizeram jus ao nome de seu antigo grupo. “Ví-
mana”, em sânscrito, designa a carruagem de fogo pela qual os deuses
desciam à Terra. Um disco voador, diria Erich Von Daniken. E foi meio
como astronautas que eles levaram o rock de uma década a outra.

Na verdade, o Vímana se formara à sombra dos Mutantes. Desde o


final dos anos 60, o trio paulista era o ponto de referência de quem quer
que sonhasse tocar rock à brasileira. Grupos e grupelhos pipocavam no
microuniverso roqueiro do início dos anos 70. De alguns deles sairiam os
músicos que iriam formar o Vímana em 1974. O guitarrista Luís Maurí-
cio “Lulu” Pragana dos Santos e o baixista Fernando Gama tocaram no
Veludo Elétrico, grupo fisssurado pelos Rolling Stones. O tecladista Luiz
Paulo Simas e o baterista Candinho vieram do Módulo 1000, bem mais
pesado, influenciado pelo Black Sabbath. A idéia do quarteto era envere-
dar numa trip simultaneamente esotérica e tecnológica — na onda dos
Mutantes fase carioca, na qual quem dava as cartas, solitário, era o guitar
hero Sérgio Dias, de quem Lulu era tiete. O quarteto inicial era rico em planos
e pobre em realizações. Faltava alguma coisa. Um vocalista talvez. Um
vocalista-flautista inglês, melhor ainda. Richard David Court, o Ritchie,
era o toque setentista que faltava, um símbolo de status ambulante.
Eilho de militar tal como Lulu, Ritchie nascera em Beckenham, con-
, em
dado de Kent, Sul da Inglaterra, mesma cidade de Peter Frampton
1952. Era um globe-trotter em virtude do trabalho do par. Passara os dois

dos Anos 80 ai
BRock — O Rock Brasileiro
primeiros anos de vida no Quênia, começara a cantar numa igreja na Ále-
manha, morara ainda na Dinamarca, na Itália e no Iêmen do Sul. Em 1971,
Ritchie era um dos 27 membros do grupo Everyone Involved, formado
com o objetivo específico de protestar contra um projeto urbanístico que
previa a construção de um viaduto sobre Piccadily Circus, em Londres.
O som era pop-folk e o grupo chegou a gravar um LP, chamado “Either/
or” (com um lado “either”e um lado “or”, como pedia o espírito da épo-
ca). Durante as gravações deste disco, Ritchie conheceu três brasileiros,
amigos do guitarrista Mile Klein: Lúcia Turnbull, Rita Lee e Arnolpho
Lima, o Liminha baixista dos Mutantes. Um brasileiro leva a outro e logo
Ritchie estava namorando uma carioca.
Ritchie ficou com os Mutantes na cabeça. Foi na casa de sua na-
morada carioca, na Lagoa, que ele, qual um deus-astronauta (imagine,
um roqueiro inglês!), aterrissou em setembro de 1972. No mesmo dia em
que os Mutantes estavam passando o som de “Mande um abraço para
a velha” num ensaio geral do 7º Festival Internacional da Canção. Mal
chegou, Ritchie estava aboletado numa cadeira do Maracanãzinho va-
z1o para ver os seus novos ídolos quando uma visão surrealista o tomou.
Um sujeito esquisito sobe ao palco e começa a cantar em inglês, com um
sotaque mais esquisito ainda, uma música chamada “Let me sing, let me
sing”. Raul Seixas.
Aquela cena teve o efeito de uma revelação e Ritchie resolveu ficar
no Brasil. Mas uma semana depois, o namoro com a carioca estava ter-
minado e, sem ter onde ficar, o inglês não teve outra opção senão ir para
São Paulo com a trupe dos Mutantes. Lá formou o lisérgico Escaladácida
com Fábio Gasparini, Sérgio Kaffa e Azael Rodrigues. A banda quase
gravou para a Continental mas acabou antes disso, no final de 1973. Ca-
sado (até hoje, diga-se de passagem) com a carioca Leda Zucarelli, ele
voltou para o Rio, onde trocou aulas de inglês por aulas de flautas com
Paulo Moura e acabou entrando para a Barca do Sol tocando este instru-
mento. Soprar para Ritchie era pouco, mas sua pretensão de cantar es-
barrava em seu forte sotaque, incompatível com a proposta nacionalista
da banda, calcada no chorinho progressivo. Decepcionado, ele desbandou.
No entanto, não ficou sem banda por muito tempo. Logo Lulu e Luiz Paulo
Simas estavam batendo na sua porta. “Ainda bem que você saiu daquela
merda”, disse Lulu, que havia conhecido Ritchie quando este ainda era
membro do Escaladácida, durante o show que marcou a volta do grupo
A Bolha, no ano anterior, no Colégio Zacarias, no Catete. “Você quer tocar
com a gente 2?

36 Arthur Dapieve
Mais ou menos na mesma época, o baterista original do Vímana,
Candinho, estava saindo do grupo por razões esotéricas. Contratados para
tocar na peça “À feiticeira”, de Marília Pêra, Lulu, Simas, Gama e Ritchie
faziam audições no Teatro Casa Grande quando de repente entra em cena
um garoto alto, narigudo e cabeludo berrando que queria era tocar vio-
lão clássico. Quem o arrastava para a audição era o presidente do grê-
mio do Colégio São Vicente, Inácio Machado. Foi no colégio que aquele
garoto de 17 anos ganhara o apelido que detestava: Lobão. Empurrado
para as baquetas, ele começou a tocar furiosamente. Um samba. “Pare-
cia a Mangueira entrando no palco”, lembra Ritchie. “Acho que ele es-
tava querendo nos agredir.” Mas foi contratado.
João Luís Woerdenbag, o Lobão, era mesmo um sujeito impressio-
nante. Filho de um mecânico holandês, 1,88 metro de altura, epiléptico,
tocava bateria desde os 5 anos, um pouco como terapia contra sua dis-
ritmia. “A bateria era minha chupeta, minha droga, minha vida ”, diz
Lobão. Mesmo assim, por influência do virtuosismo do amigo guitarris-
ta Luís Augusto Barros — que tocaria nos primórdios da Blitz e nos Ro-
naldos — Lobão se sentiu atraído pelo violão clássico, por Guerra Peixe
e por Villa-Lobos, deixando a bateria de lado por dois anos. Era nesta
fase em que ele estava quando assumiu as baquetas do Vímana.
Cristalizada sua formação, o Vímana pôde se dedicar ao som que não
entraria para a História: o grupo lançou apenas um compacto, “Zebra”,
pela Som Livre. Existe, no entanto, uma fita gravada em 24 canais no Estúdio
Level, em Botafogo, por um técnico americano, Don Louis, e pelo produ-
tor Guto Graça Mello. Todos os membros da banda rezam para que este
LP permaneça para sempre inédito. Por quê? Porque o trabalho do Vímana
era muito datado: músicas de vinte e tantos minutos, auto-indulgentes,
rococós de tão complicadas e pretensiosas. Tais características nasciam jus-
tamente da excelência dos músicos. Lulu era um discípulo aplicado de Sérgio
Dias, com a vantagem de ser um progressivo menos linha-dura e mais an-
tenado com o som dos negros. Simas possuía um conhecimento técnico
mastodôntico, praticado num dos raros sintetizadores existentes no Rio
de Janeiro daquela época. Gama tinha uma queda pelo rebuscado chori-
nho (ele e Lobão chegaram a formar um duo paralelo dedicado ao gênero,
o Duo Deno). Ritchie aprendera a cantar através de composições de Schubert
e Britten. Lobão tinha um boa base erudita e tocava como um possuído.
Em comum, um certo know-how tecnológico herdado dos Mutantes.
O Vímana arrastava um séquito através de shows no Museu de Arte
Moderna, no Teatro Tereza Rachel, no da Galeria (o equipamento era tão

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80 99)SN


pesado que praticamente prendia o grupo ao Rio). Em 1977, com o cul-
to consolidado em torno do quinteto, aparece no Rio o multitecladista
suíço Patrick Moraz, recém-saído nada mais nada menos do que do ido-
latrado Yes, com quem gravara o LP “Relayer”. Moraz decide transfor-
mar o Vímana em sua banda de apoio, com vistas a uma turnê pela Eu-
ropa. Para os cariocas, aí incluído o inglês Ritchie, a sensação era a mes-
ma de quem ganha sozinho na Loteria Esportiva. Os extenuantes ensaios,
entretanto, não levaram a lugar nenhum, a não ser à fragmentação da
banda. O suíço começou a ter atritos com Lulu Santos. Fez a cabeça dos
outros quatro e o expulsou com a inacreditável desculpa de que o guitar-
rista não sabia tocar direito. O aluguel do Vímana por Moraz prossegui-
ria até 1978. Neste ano, a sociedade e a banda se dissolveram por uma
razão anedótica: Lobão estava comendo a mulher de Moraz. Este saiu de
fininho e voltou para a Europa, onde entrou para o Moody Blues.
O Vímana não deixou saudades.

Ritchie voltou a dar aulas de inglês para viver. Trabalhou no Berlitz .


e ensinou que “the book is on the table” para Gal Costa, entre outros. Mas
não ficou muito tempo longe da música. Gravou uma fita demo com ou-
tro inglês casado com brasileira, o baterista Jim Capaldi, ex-Traffic, em
1979. No ano seguinte, recebeu um telefonema de Londres. Era Capaldi,
convidando-o a co-produzir seu disco solo “Let the thunder cry”, baseado
na demo gravada no Rio. Ritchie foi para a Inglaterra e encontrou um estúdio
cheio de feras: o baterista Andy Newmark, o saxofonista Mel Collins, o
percussionista Reebop Kwaku-Baah e ainda outro baterista, Simon Kirke,
do Free. Todos ouvindo respeitosamente os palpites de Ritchie. Foi bom
para o ego. E, mais tarde, em seu terceiro LP solo, o ex-Vímana gravaria
uma das músicas do disco de Capaldi, “Favela music”.
De volta ao Brasil, Ritchie ganhou um tecladinho Casio da mulher e
passou a construir um repertório junto com o poeta Bernardo Vilhena, o
mesmo que inseria letras nas complicadas composições do Vímana. Em,
pouco tempo, o inglês estava com 15 canções prontas. Inácio Machado, o
sujeito que enfiou Lobão no Vímana, bancou a gravação de uma demo li-
teralmente nos porões da Warner. Da sessão que registrou “Vôo de coração”e
“Baby, meu bem” participaram, entre outros, Liminha, Mayrton Bahia,
Lobão, Zé Luiz (o saxofonista que tocou nos primórdios da Blitz, que àquela
altura, final de 1982, já havia lançado suas “ Aventuras”) e um terceiro inglês
casado com brasileira, Steve Hackett, ex-Genesis, hiperguitarrista. Um luxo.

Arthur Dapieve
Vímana: o grupo de Lulu Santos, Lobão e Ritchie fez, de 1974 à 1978,
um som que não entrou para a história
No dia seguinte, Ritchie estava na sala vazia do presidente da Warner,
André Midani, copiando “Vôo de coração” e “Baby, meu bem” em fitas
cassete quando entrou na sala o produtor Fernando Adour. Este fica en-
tusiasmado com o que ouve e praticamente implora a Ritchie que o dei-
xe levar uma cópia para a CBS, então à procura de uma nova Blitz. Ritchie
reluta mas aceita, desde, é claro, que Adour devolvesse a fita no dia se-
guinte. Nem precisou esperar tanto. No mesmo dia, Cláudio Condé, da
CBS, lhe telefona, interessado. Duas audições às quais comparece super-
produzido — roupas de couro, óculos escuros, topete — e Ritchie está
contratado. À gravadora a princípio quer que ele regrave “Vôo do cora-
ção” em 24 canais — o que, no final das contas, sacrificaria a guitarra de
Hackett — mas Ritchie decide gravar outra canção de seu repertório. Uma
pepita pop chamada “Menina veneno”.
De parte a parte não houve arrependimento. Lançada em compacto
em fevereiro de 1983, a música estourou primeiro no Nordeste. À onda
Ritchie veio descendo, veio descendo, e, para o lançamento do LP, em
junho, a CBS preparou uma vasta campanha publicitária baseada num
concurso: qual era o nome do cantor de “A vida tem dessas coisas”? Houve
até quem respondesse “Hitler” mas isso não importava, importava era que
o compacto de “Menina veneno” vendera 500 mil cópias — um absur-
do, ontem como hoje — e o LP, “Vôo de coração”, mais 700 mil. Marca
alcançada graças a uma fileira de hits natos, como as três supracitadas e
mais “Pelo telefone” e “Casanova”, esta incluída na trilha de uma nove-
la da Rede Globo, “Champagne”. O sucesso foi tamanho que durante um
bom tempo ninguém aguentava mais ouvir Ritchie ou ouvir falar nele.
Roberto Carlos, por exemplo. Três anos depois, Tim Maia diria,
numa entrevista à revista “Isto É”: “O Roberto Carlos puxou o tapete
do Ritchie na CBS”. Verdade ou mentira, naquele 1983, o LP do Rei ven-
deu menos do que o de Ritchie, que, de quebra, ainda levou um Troféu
Imprensa, concedido por Sílvio Santos e quase privativo do rival. Evidente
que tal prêmio tem pouquíssima importância. Mas numa categoria em que
a TVS não tinha parti pris era uma boa aferição de gosto médio. Derru-
bado pelo Rei, queimado pela superexposição ou simplesmente menos ins-
pirado, o fato é que Ritchie — ou ao menos suas vendagens — nunca mais
foi o mesmo. Sobretudo porque, logo no primeiro disco, estabelecera uma
marca difícil de ser superada, que diminuiria a grandeza de qualquer fei-
to futuro.
Seu segundo LP, “E a vida continua”, lançado em 1984, vendeu 100
mil cópias — um número excelente, mas considerado um fracasso diante

Arthur Dapieve
do megassucesso de seu antecessor. Ritchie foi ousado em “E a vida con-
tinua?: em vez do tecnopopzinho de “Vôo de coração”, preferiu, por exem-
plo, arriscar um samba-canção acústico, “Gisela”. Mas, como não esta-
va rasgando dinheiro, o inglês tivera o cuidado de escorar o novo traba-
lho em mais um hit irresistível, “A mulher invisível”. No ano seguinte veio
o terceiro disco pela CBS, o fraco “Circular”. Vendo as vendagens esta-
cionarem pouco abaixo das 100 mil cópias — ainda assim uma ótima mar-
ca — e se sentindo abandonado pela casa de Roberto Carlos, Ritchie pe-
diu para sair, mesmo tendo, por contrato, outro disco a gravar. A CBS
aceitou com tanta facilidade que alguma coisa coçou atrás da orelha do
cantor-compositor. À pulga não saiu de lá até hoje.
Mal saiu da CBS Ritchie já estava de contrato assinado com a Po-
lyGram. Não tinha nem repertório, mas tinha contrato assinado. Uma
música serviu de garantia: “Transas”, parceria do empresário do inglês,
Paulinho Lima, com o tecladista Nico Rezende. Mariozinho Rocha —
produtor de “As aventuras da Blitz” na EMI-Odeon e que agora, em no-
vembro de 1986, estava na gravadora da Barra da Tijuca — gostou da
música e conseguiu incluí-la na trilha de outra novela da Rede Globo,
“Roda de fogo”. O compacto com “Transas” logo logo estava rondan-
do as 100 mil cópias vendidas. O LP que se seguiu, “Loucura & mági-
ca”, lançado em junho de 1987, contudo, não passou das 25 mil. Mes-
mo com a maré baixa e estigmatizado como “o cantor das empregadas
domésticas”, Ritchie ainda era um grande nome, capaz de segurar três
noites no horário alternativo do prestigioso Canecão, nos dias 22, 23 e
24 de julho, na terceira semana do primeiro festival Alternativa Nativa.
Antes dele subiram ao palco um ex-companheiro de Vímana, Lobão, e o
grupo Plebe Rude; depois, o Ira!, Evandro Mesquita (em carreira solo, pois
a Blitz se desfizera no ano anterior) e os Heróis da Resistência (do ex-Kid
Abelha Leoni).
Ao mesmo tempo lutando contra e lucrando com — os shows rechea-
dos por antigos sucessos nunca deixaram de lotar — o karma popularesco
de “Menina veneno”, Ritchie caiu na tentação de fazer um disco sozinho.
O resultado, “Pra ficar contigo”, de 1988, foi gélido, no qual o seu ta-
lento maior, lapidar cançonetas pop descartáveis até as raias da eterni-
dade, era soterrado por camadas de teclados e por um crescente fascínio
pela tecnologia. O público fugiu horrorizado e o disco só vendeu 13 mil
cópias. Ritchie ficou dois anos longe dos estúdios, digerindo o fiasco. Mas
quando novamente pôs seu bloco na rua, em maio de 1990, descobriu que
era fi-
pior, muito pior do que ficar estigmatizado por um megassucesso

80 41
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
car marcado por uma sucessão de pequenos fracassos. Seu sexto disco,
“Sexto sentido”, concebido junto ao tecladista William Forghieri, ex-Gang-
90 e Blitz, atraiu apenas seis mil compradores. Uma injustiça com um
trabalho, que trazia ao menos duas boas músicas, “Eu e meu rádio” e
“Obsessão”, esta no clima jazzy que Ritchie cultivaria num projeto pa-
ralelo, o grupo Ritz Café.
Ritchie só voltaria a gravar em 1993, com a banda all-star à meia-
bomba Tigres de Bengala, que formou com Forghieri, Vinicius Cantuária,
Cláudio Zoli, Dadi e Mu (os dois últimos ex-Cor do Som). À auto-ironia
do nome nunca deixou dúvidas quanto ao sucesso da empreitada.

Com sua expulsão do Vímana em 1977, Lulu Santos se viu sem ter
onde dormir. Bem no clima riponga dos anos 70, o grupo funcionava meio
como uma comunidade. No olho da rua, Lulu reencontrou Antônio Pe-
dro Fortuna, velho conhecido e baixista da fase carioca dos Mutantes. Foi
morar na sala do apartamento deste, no Leblon. Lulu e Antônio Pedro
compartilhavam interesse pela música negra de Farth, Wind & Fire, Quin-
cy Jones e do então preto Michael Jackson. Em 1978, os dois, mais o per-
cussionista Reginaldo Francisco e o baterista Hélber Bedaque, formaram
o efêmero Unziotros, que fazia um pop-rock levinho, funky. Pouco de-
pois um reencontro com o mais genial dos Mutantes, Arnaldo Baptista,
os mergulharia nas sombras dark. Mas não por muito tempo. Logo Lulu
estava casado com a jornalista Scarlet Moon de Chevalier e fazendo uma
dupla guitarra-baixo, à la Brothers Johnson, com Antônio Pedro. De que-
bra escrevia — muito bem, diga-se de passagem — sobre música na re-
vista “SomTrês”e produzia trilhas sonoras para novelas da Rede Globo.
A de “Água Viva”, por exemplo, foi selecionada por ele.
Dentro desse quadro, estável até demais, o assassinato de John Lennon
por Mark Chapman, a 8 de dezembro de 1980, foi crucial para a carreira
musical de Lulu. Ele pegou sua guitarra e fez um rockinho urgente, cheio
de sentimento, que ganharia letra do jornalista Nelson Motta: “Tesouros
da juventude”. Gravou uma demo da qual participou o baterista Jim Ca-
paldi, do Traffic. A fita foi submetida à direção artística da Warner, então
a cargo de Léo Neto, amigo de Nelson Motta. A gravadora se interessou
eo produtor Liminha — ex-baterista dos Mutantes, sempre eles — deixou
um recado convidativo na casa de Lulu. Este se sentiu nas nuvens.
Num período de seis meses de 1981, Lulu gravou três bem-sucedi-
dos compactos: “Tesouros da juventude”, “Areias escaldantes” e “De

42 Arthur Dapieve
leve”. Com este vasto repertório, ele excursionou como um louco pela
periferia do Rio, fazendo até quatro shows em playback por dia, merca-
do conquistado graças a constantes aparições no programa de TV do
Chacrinha. Dentro do esquema do Velho Guerreiro — uma espécie de
permuta marota entre aparições na T'V e participações em shows Brasil
afora —, certa vez Lulu foi “cedido” pela Warner para um espetáculo do
Mineirinho, em Belo Horizonte, junto com duas outras estrelas do cast
jovem da gravadora: Marcelo Costa Santos (estourado com “Abre cora-
ção”) e José Alexandre (idem com “Estrelas”, composição de Oswaldo
Montenegro). Recepcionados no aeroporto pelo divulgador da Warner
em BH, os três encararam juntos o trajeto de carro até o centro da cida-
de. No caminho, o mineiro primeiro se desmanchou em elogios para Mar-
celo. Depois se lambuzou de tanto babar os ovos de José Alexandre. So-
bre Lulu, nada. Quilômetros adiante este se encheu de coragem e perguntou
timidamente como seu trabalho estava indo ali em Minas. O divulgador
foi brusco: “Ah, aqui não tem programa de rock não...”.
Influenciado pelo Police, Lulu, sem ter sequer gravado um LP, já havia
consolidado uma imagem roqueira, ou melhor, new wave. Foi como papa
dessa nova onda que participou de uma curiosíssima “Noite New Wave”,
no bar Caribe, em São Conrado, naquele mesmo 1981, em novembro. Par-
ticipou também — e foi mal — do festival MPB-Shell 81 com “Areias escal-
dantes”. E, por conta do sucesso de “De leve”, versão da versão de Rita
Lee para “Get back”, de Lennon & McCartney, quase foi obrigado a gra-
var pela Warner um primeiro LP só de versões. Sua recusa por pouco não
resultou numa rescisão de contrato. Mas o excelente “Tempos modernos”,
de 1982, mostrou à gravadora que Lulu estava certo em bater o pé. Além
dos três compactos, o disco trazia “De repente Califórnia” (tema do fil-
me “Menino do Rio”), “Tudo com você”, “Palestina” e “Scarlet Moon”,
homenagem a quem lhe dera a base emocional para o estrelato. Em ou-
tras palavras: “Tempos Modernos” só tinha sucessos. Vendeu respeitá-
veis 56 mil cópias, 12 mil de estalo.
Liminha, o produtor do disco, fez a cabeça de Lulu na direção de um
artesanato pop. Deu-lhe um livrinho americano que ensinava a fabricar
hits. Misturando a fórmula do sucesso à sua memória musical e a seu
próprio talento, Lulu chegou ao segundo LP, “O ritmo do momento”, de
1983, mais seguro de si, mais regular em termos de composição, melhor.
O disco continha um clássico instantâneo, “Como uma onda no mar”, e
mais duas faixas certeiras, “Adivinha o quê” e “Um certo alguém”. Pop
perfeito, melodioso, aderente aos tímpanos.

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 43


BRock
Superexposto na mídia, atormentado pelas pressões do sucesso de “O
ritmo do momento”, que vendera 90 mil cópias, Lulu chegou ao terceiro
disco, “Tudo azul”, de 1984, ainda com fôlego para mais uma bela trin-
ca de composições: a faixa-título, “O último romântico” e “Certas co1-
sas”. A fama acabou subindo à sua cabeça. E Lulu acabou se tornando o
tipo de sujeito talhado para a mídia amar a odiar. O individualismo, o
egocentrismo e o polemismo dessa época coincidiram com uma fase de
farto consumo de cocaína. Dentro desse espírito, Lulu dispensou Liminha
e autoproduziu “Normal”, de 1985, gravando todos os baixos, fazendo
de tudo, virando noites. O disco era agressivamente roqueiro e flagrava
um artista asfixiado por seu próprio ego. À relativa fraca vendagem pio-
rou tudo. Numa encruzilhada, Lulu saiu da Warner.
De mala e cuia na RCA-Ariola, resolvidas suas contradições inter-
nas, O cantor-guitarrista fez aquele que considera seu melhor disco, “Lulu”,
de 1986. Nele, o artista reencontrava seu caminho natural, o pop-rock.
Nele, estavam duas canções fundamentais para se entender Lulu Santos:
a épica “Casa” e a visionária “Condição”, mix de tendências do hard rock
ao rap. Numa prova de sintonia entre o seu feeling e os anseios do públi-
co, “Lulu” virou o seu disco de linha mais bem-sucedido comercialmen-
te até “Eu e Memê, Memê e eu”, de 1995 — vendeu 200 mil cópias. O
sucesso foi tamanho que se estendeu 1987 adentro. Duas músicas entra-
ram em trilhas de novelas, “Condição” em “Corpo Santo”, da Rede Man-
chete, e “Um pro outro” em “Brega & Chique”, da Rede Globo. Deze-
nas e dezenas de shows pelo país — shows de verdade, não em playback,
Maracanãzinho hiperlotado, uma invejável fieira de hits.
Lançado em 1988, “Toda forma de amor”, sucede a “Lulu” com toda
dignidade. Trouxe um outro hit nato “A cura”. “Existirá/ Em todo por-
to tremulará/ À velha bandeira da vida/ Acenderá/ Todo o farol ilumina-
rá/ Uma ponta de esperança”, cantava Lulu, comovente. Foi a música mais
tocada nas FMs brasileiras naquele ano. Mas o mais importante era o início
de sua guinada em direção à MPB. Faixas como “Cobra criada”, meio
xote, meio reggae, alargavam a trilha pressentida pela esquisita “Ny po-
poya y papa”, do LP “Normal”. Havia ainda uma música cantada num
dialeto nigeriano, “Ton ton”, parceria do baixista Arthur Maia com Rido
Bayone. Por esta época, aliás, a banda que acompanhava Lulu reunia fe-
ras como Maia, Pedro Gil e Marcelo Costa (bateria), Nico Rezende (te-
clado), Leo Gandelman (sax) e Paul de Castro (guitarra).
O show que divulgou “Toda forma de amor” por 29 cidades brasi-
leiras e pela suíça Montreux, atraindo um total de 450 mil espectadores,

44 Arthur Dapieve
era tão bom que gerou um disco ao vivo, “Amor à arte”, gravado em 26,
27 e 28 de agosto de 88 no nababesco Olympia, em São Paulo. Ao con-
trário do que se poderia imaginar, não se tratava de uma dessas antolo-
gias ao vivo. Até porque um ano antes a Warner lançara a antologia de
estúdio “O último romântico”, que vendeu quase 400 mil exemplares.
Lulu, assim, selecionou um repertório meio já-ouvi meio inédito. Estavam
lá os hits “Um certo alguém” e “Toda forma de amor”, mas também,
estavam lá as inéditas “Lei da selva” e “Lá vem o sol”. Aquela era uma
piscadela para a nova música afro-baiana, esta, uma versão para a beatle
“Here comes the sun”, de George Harrison. Futuro e passado.
De “Amor à arte” constava ainda uma música — com letra de Nel-
son Motta — que escancarava o tédio que Lulu sentia diante do BRock.
“Dinossauros do rock” cantava: “Os legionários do rock/ Perdem a tri-
lha na areia/... / Os funcionários do rock/ Batem o ponto na fama/ Deitando
em cama de prego/ Pra esperar o Nirvana”. O Nirvana budista e não o
americano, bem entendido: nessa época, Kurt Cobain era apenas mais um
maluquete de Aberdeen, perto de Seattle. Ao mesmo tempo, a turnê in-
cluía uma música que mostrava o fascínio de Lulu por uma certa MPB:
“Brumário”, inspirada em Jorge Ben. “Ele é pra mim o que Chuck Berry
é pra Keith Richards”, me dizia Lulu em entrevista publicada no “Jornal
do Brasil” de 7 de janeiro de 1989. “Brumário”seria a faixa de abertura
do disco seguinte, “Popsambalanço e outras levadas”. Nas palavras de
Lulu, esse trabalho era uma declaração de “amor à possibilidade de mo-
dulação entre a estrutura pop internacional e a música brasileira”.
A recepção a “Popsambalanço”, no entanto, foi péssima por parte
da mídia (a revista “Veja” o considerou “o pior disco do rock nacional”)
e morna por parte do público (o disco vendeu cerca de 70 mil cópias, menos
da metade de “Amor à arte”). O curioso é que, neste disco, Lulu estava
empreendendo uma redescoberta que todo o resto do país só faria qua-
tro anos depois: a de Jorge Ben. Em 1993, mesmo a “Veja” dedicaria uma
capa ao velho suingueiro carioca. Ironias da vida. Em 89, deprimido com
a recepção a “Popsambalanço”, no qual apostara todas as suas fichas
premonitórias, Lulu decidiu que seu próximo disco seria “meta-Lulu San-
tos”, seria uma volta ao Lulu das cançonetas de grande sucesso. “Ho-
nolulu”, de 1990, era bem isso. Tinha (mais) um daqueles hits instantá-
neos, o autocorrosivo “Papo cabeça”, e mais uma penca de faixas fáceis.
O LP foi lançado em grande estilo, a 7 de outubro, na Praça da Apoteo-
se, com Lulu abrindo para... Eric Clapton. Neste show, como nos que fizera
no Rock in Rio (tocando em noites que incluíam Rod Stewart e Queen),

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 45


BRock
em 85, e no primeiro Hollywood Rock (idem com Supertramp), em 88,
Lulu exercitava seu carisma diante de grandes espaços e multidões. “A
gente tem que segurar o público, chamar a atenção, se dar, pegar pelo
pescoço. Não podemos nos dar o direito de sermos blasés como os caras
do Primeiro Mundo”, explicava na entrevista supracitada. Lulu sempre
foi nosso maior entertainer.
de
eM St x

O fim do Vímana em 78 não deixou Lobão na rua da amargura.


Como baterista free lancer, ele alugou seus baquetas a Marina — por quem
esteve apaixonado —, Luiz Melodia, Walter Franco, Gang 90 & As Absur-
dettes, Lulu Santos, Ritchie, Blitz. Lobão tinha o dom da onipresença.
Cortara o cabelo bem curto, à moda punk, ainda nos tempos do grupo
progressivo. Amava Elvis Costello acima de todas as coisas.
Foi dentro do espírito do-it-yourself que, no verão de 1981, Lobão
entrou num estúdio de oito canais, o Tok, no Rio, para, com uma grande
ajuda de seus muitos amigos, gravar aquele que seria seu primeiro LP solo.
Tocaram e cantaram em “Cena de cinema”: Marina, Lulu, Ritchie, An-
tônio Pedro, William Forghieri, Ricardo Barreto, Zé Luiz, Marcelo Susse-
kind. Era uma produção independente, armada pelo próprio Lobão e pelo
poeta-letrista Bernardo Vilhena. O baterista nunca sequer ouvira sua voz
gravada, mas ali era o frontman. As sessões subverteram completamente
os procedimentos de praxe, que registram primeiro a bateria. Em “Cena
de cinema?” ela foi gravada por último. Lobão se sentou à banqueta e fez
a parte das baquetas de enfiada, dez músicas em apenas meia hora.
O disco era excelente. Trazia (hoje) clássicos do BRock, como a fai-
xa-título, “Amor de retrovisor” e “O homem baile” (inspirada no gui-
tarrista Ricardo Barreto, como Lobão, músico da banda de Marina). Por
falta de gravadora, no entanto, permaneceu inédito por um bom tempo
— e quase permaneceu assim para sempre. O sucesso da Blitz — que o
baterista fundara junto com Barreto e Evandro Mesquita — ameaçou jogar
para escanteio um dos melhores, senão o melhor, discos da década de 80.
Lobão resistiu às pressões para ser apenas mais um membro da banda.
E, em pleno estouro, pediu o boné. Vem daí sua fama de maluco: ele es-
tava literalmente rasgando dinheiro.
Na verdade, a explicação para tal gesto aparentemente tresloucado
era racionalíssima: Lobão estava se sentindo sem espaço criativo dentro
da Blitz. Embora parte do material de “Cena de cinema” fosse tocado nos
shows da banda, os outros integrantes (sobretudo Evandro) não o que-

46 Arthur Dapieve
riam no disco “As aventuras da Blitz”. Lobão gravou o LP mas não assi-
nou contrato. Deu uma banana para os ex-companheiros, pegou a “Isto
E? da última semana de outubro de 1982 — que trazia a banda, ele in-
clusive, na capa —, botou debaixo do braço e foi vender sua fita na RCA.
Assim, três meses depois de “As aventuras da Blitz” ter saído pela EMI-
Odeon, “Cena de cinema” foi lançado pela gravadora rival. E, em 11 de
dezembro, Lobão já estava divulgando seu disco com um show no Circo
Voador. Parecia um happy end. Parecia.
Certo dia, o produtor Guto Graça Mello pediu uma cópia do disco
para Lobão, pois tencionava incluir uma de suas faixas na trilha de algu-
ma novela da Rede Globo — um passaporte visado para o sucesso comer-
cial. O agora cantor-guitarrista-baterista foi até a RCA pedir a tal cópia.
Mas arrumou uma briga e ganhou não uma cópia de “Cena de cinema”,
e sim uma geladeira de quase um ano. Parecia que Lobão estava conde-
nado a apodrecer dentro dela. Parecia.
Pois foi a diretoria que o congelara que caiu inteira. Lobão riu por
último, renegociou seu contrato e virou banda: Lobão e os Ronaldos —
Ronaldo era um personagem fictício, invenção do velho amigo guitarris-
ta Guto Barros. Além de Lobão e Guto, a banda era composta por Alice
“Pink Punk” Gwendolyn (voz e teclados, holandesa, ex-Absurdette, en-
tão mulher do ex-Vímana), Odeid Pomerancblum (baixo) e Baster Bar-
ros (bateria, irmão de Guto). Os cinco gravaram o LP “Ronaldo foi pra
guerra” em 1984. Era um disco entre a new wave e o tecnopop, delicio-
so, com uma trinca de composições espetaculares: “Corações psicodé-
licos” (de Lobão, Júlio Barroso e Bernardo Vilhena), “Tô à toa Tókio”(dele
com Alice) e “Me chama” (só dele). Esta última virou um clássico depois
de também ter sido gravada por Marina. “Chove lá fora/ E aqui.../ Tá tanto
frio/ Me dá vontade de saber/ Aonde está você/ Me telefona/ Me chama/
Me chama/ Me chama”, implorava a letra, pura fossa oitentista.
Todavia, uma música genial ficou de fora (e permanece inédita até
hoje): “Bang the boeing”, de Lobão e Tavinho Paes, em inglês, sobre a
derrubada de um jato da Korean Airlines por caças soviéticos — 269 ci-
vis mortos. O arranjo destacava os etéreos vocais de Alice, era ao mesmo
tempo irado e fantasmagórico e deixou a platéia de quatro quando Lobão
e os Ronaldos tocaram na casa noturna Danceteria, em Nova York, na-
quele mesmo ano de 84. Não muito tempo depois foi a vez de o quinteto
cair para quatro. “Alice foi aliciada para ser o Ritchie de saias”, lembra
Lobão. Segundo ele, o casamento de Guto com uma junkie mais velha pôs
mais tijolo no muro: a mulher literalmente babava, tremia, baixava a moral

47
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80
Lobão: o cantor-baterista-guitarrista trocou a Blitz por uma vida bandida
do grupo. Até um dia em que Baster e Odeid instaram Lobão, após um
show em Caxambu (MG), a dar um toque em Guto. Lobão tomou todas
pra tomar coragem e disse ao amigo que a tal fazia mal ao grupo, que era
melhor não trazê-la mais etc. etc. Guto agradeceu a sinceridade do toque.
Mas os outros dois acharam que Lobão fora por demais insensível. Dias
depois o frontman foi expulso da própria banda por Odeid. Motivo: era
junkie demais! Ronaldo foi pras cucuias.
Lobão, por sua vez, trocou Alice por Danielle Daumerie, se aproxi-
mou de Cazuza (na época já fora do Barão Vermelho) nas noites do Bai-
xo Leblon e estreou no cinema, fazendo o papel do detetive Médio Moura
no filme “Areias escaldantes”, de Francisco de Paula. Se 1985 foi um ano
passado meio na toca, 1986 foi um ano de superexposição. Logo no dia
30 de janeiro Lobão foi preso em casa, com pequenas quantidades de
maconha e cocaína, na hora em que chegava dos estúdios da RCA, onde
estava gravando o disco cujo nome provisório era “Bobagens do submundo
do Purgatório”. Não era a primeira prisão de sua vida, mas ele foi liberado
cinco horas depois. Sua sina marginal, contudo, estava apenas começando.
De nome mudado para “O rock errou”, o disco foi para as lojas em
março e imediatamente estourou a faixa “Revanche” (apesar do descré-
dito da gravadora, que objetava “mas em pleno Plano Cruzado você vai
fazer música de protesto?!”). Na capa, mais polêmica: Lobão vestido de
padre, crucifixo na mão, ao lado de Danielle nua, (des)jcoberta por um
véu. Feito sob o impacto da morte de Júlio Barroso, o LP resultou raivo-
so, anárquico, deprimido. Para isso em muito contribuíram os muitos
aditivos químicos empregados em sua elaboração: cocaína, ácido, heroí-
na. Além de “Revanche”, o disco trazia a premonitória faixa-título, “Baby
lonest”, “Noite e dia”, “Canos silenciosos” e “A voz da razão”(que ti-
nha participação especial da cantora Elza Soares) — só musicão. Segu-
rando a onda do Lobão cantor-guitarrista, três feras: Torcuato Mariano
(guitarra), João Batista (baixo) e Jurim Moreira (bateria). Nos palcos, “O
rock errou” foi lançado numa temporada de duas semanas no horário
alternativo do Canecão, em meados de julho. As vendas foram boas: quase
100 mil LPs.
Firme em seu processo de aproximação com a música brasileira —
exposto até no trocadilho do título “O rock errou” —, Lobão desfilou
tocando tamborim pela Mangueira no Carnaval de 1987. Quase ao mes-
mo tempo iniciava a gestação de um novo disco, que deveria se chamar
“Da natureza dos lobos”, nome de uma composição sua e de Bernardo
Vilhena. A prisão no início do ano anterior, no entanto, estava longe de

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 49


BRock
ser um caso encerrado. Em fevereiro de 87, Lobão foi preso no Aeropor-
to Internacional do Rio ao voltar de Florianópolis com 1 grama de cocaína
na bagagem. No mês seguinte, nova prisão, pelo mesmo motivo, em Ipa-
nema. Foi condenado a um ano. Mas sua hilaridade diante da sentença
do juiz Paulo Panza, da Vara Criminal da Ilha do Governador, acabou
lhe tirando o benefício da sursis. Assim, no dia 20 de maio, Lobão foi
encarcerado, primeiro na Polinter e depois no Ponto Zero.
O disco novo trocou de nome — para um mais apropriado, “Vida
bandida” — e foi completado por intermédio de vários habeas corpus. A
convivência com o submundo nos 32 dias que passou preso naquele ano
aguçaram sua sensibilidade social. Na cela da Polinter consagrada na
expressão “alô galera da 11”, Lobão dividiu o boi (buraco no chão a tí-
tulo de privada) com, entre outros, os chefes do tráfico de Manguinhos,
Gilmar Negão, e do Morro Santa Marta, Zacarias, ambos membros do
famigerado Comando Vermelho. Lá, respeitou e se fez respeitar pelos tra-
ficantes. Tanto que, tempos depois, ao subir o Morro da Mangueira, foi
recebido com uma salva de tiros ritmados: o soldado de vigia o reconhe-
ceu e gritou “vidaaa, vida, vida, vidaaa bandidaaa rá-tá-tá-tá...”
Poucos dias depois de sair do Ponto Zero, Lobão estreava, em 2 de
julho, o show de lançamento de “Vida bandida”, abrindo o primeiro fes-
tival Alternativa Nativa, no Canecão. Foi um show antológico. Lobão
começava os trabalhos levando um sambão sozinho na bateria. Pulava para
a frente do palco, repassando sucessos como “Cena de cinema”, “Re-
vanche”, “Me chama”, “Mal nenhum? e “Décadence avec élégance”. Do
disco novo vieram o country-chorinho “Chorando no campo”, “Rádio
blá”, “Da natureza dos lobos” e a emocionante “Vida louca vida” (“Vida
breve/ Já que eu não posso te levar/ Quero que você me leve”, versos que,
mais tarde, em outro contexto, imortalizariam a interpretação de Cazuza).
No tom sóciopolitizado do espetáculo, chegava a hora em que Lobão
dedilhava o “Hino Nacional” à guitarra, para delírio nacionalista da pla-
téia. No entanto, por sua “fama de anarquista e perturbador da ordem”,
ele tinha que se apressar a explicar para evitar possíveis mal-entendidos:
“Não toquei essa música por achincalhe”. Todo mundo entendeu. E o LP
“Vida bandida” se tornou seu maior sucesso comercial, vendendo quase
300 mil cópias.
A fama advinda da prisão — tamanha que havia quem achasse que
era tudo pose, tudo marketing de rebeldia — e da qualidade de “Vida
bandida”, contudo, também fizeram de Lobão o catalisador de coisas
desagradáveis. “Eu era o Exu, o doidão de plantão”, revê o próprio, que

50 Arthur Dapieve
crê piamente que essa marginalização não passava de uma tentativa de
enquadrá-lo de alguma forma ao sistema. Quando, depois de um show
para oito mil enlouquecidos santistas, cuja vibração chegou a rachar o
prédio, um fã se acercou e declarou “Lobão, eu tomo pico por sua cau-
sa”, ele deu um providencial peraí e passou a tomar mais cuidado.
“Cuidado!”, seu disco seguinte, de 1988, não alargou a brecha na
mídia aberta por “Vida bandida”. Gravado e mixado em apenas um mês,
julho, o LP saiu meio experimental meio frouxo, sem a veia pop e a coe-
são roqueira dos anteriores. À essa altura, o flerte com o samba e os con-
tatos no Morro da Mangueira introduziram outro compositor no seu rol
de parceiros, Ivo Meirelles — nas ótimas “Cuidado!” e “É tudo pose”
(ambas também com Vilhena) e na fraca “Síndrome de brega” (do trio e
mais Danielle). No mais, uma boa faixa de protesto, “O eleito”, e outras
facilmente esquecíveis, como a constrangedora “Tara tara”.
Mas logo essa bola-na-trave artística ficaria em segundo plano por
força de mais problemas legais. Em 23 de novembro, aquela prisão de
fevereiro de 87 no aeroporto do Rio, com 1 grama de cocaína, acabou
rendendo uma condenação a nove meses em regime semi-aberto, isto é,
rua de dia e cela de noite. Lobão não quis pagar para ver. Aproveitou que
estava em Caxias (RS), cruzou a fronteira em Uruguaiana-Passo de los
Libres, seguiu para Buenos Aires e de lá para Los Angeles, para esperar a
prescrição do crime, prescrição que viria em 24 de maio do ano seguinte.
Enquanto isso, gravaria novo disco, “Sob o sol de Parador”, produzido
por Liminha. Os dois se estranharam de tal forma que hoje Lobão consi-
dera o trabalho malogrado. Apesar disso, dele saiu um hit. “Essa noite,
não” (dos versos “a maior expressão da angústia/ Pode ser a depressão/
Algo que você pressente/ Indefinível/ Mas não tente se matar/ Pelo me-
nos essa noite, não”). Havia ainda “Azul e amarelo”, parceria post mortem
de Cartola com a dupla Lobão-Cazuza, e “Sexy sua”, composição do
Mutante-mor, Arnaldo Baptista. No mais...No mais, Lobão tem razão.
Ao voltar ao Brasil, em 5 de junho de 1989, alguns policiais ainda
tentaram encarcerá-lo usando um velho mandado de prisão adulterado.
Não conseguiram, Lobão foi solto no mesmo dia. “Sob o sol de Parador”
chegou às lojas no mês seguinte, sem grande repercussão. Repercussão
maior teve o crime eleitoral praticado na tarde de 17 de dezembro no pro-
grama “Domingão do Faustão”, na Rede Globo. Horas antes de se en-
cerrar a votação do segundo turno da eleição presidencial (no qual Fer-
nando Collor de Mello, do PRN, bateria Luís Inácio Lula da Silva, do PT,
por 53% a 47%), Lobão e banda entraram no palco para fazer boca-de-

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80 Si


urna eletrônica. Usavam camisetas e badges do PT e Lobão discursou a
favor de Lula, cabalando votos no oeste do Brasil, onde a diferença de
fuso horário “esticava” a votação. Como o programa era ao vivo, a emis-
sora de televisão teve de engolir este sapo. “Olha que os homens vão tirar
a Globo do ar...”, alertava, preocupado e irônico, o apresentador Fausto
Silva, encorajador do BRock desde os tempos do programa “Perdidos na
noite”. Obviamente os homens não tiraram a Globo do ar. Lobão, entre-
tanto, ganhou uma bela geladeira da emissora do Jardim Botânico.
Pouco mais de um mês depois, Lobão foi à forra de sua insatisfação
com “Sob o sol de Parador” gravando seu sétimo disco, ao vivo, durante
os shows paulista (a 20 de janeiro de 1990) e carioca (seis dias depois)
do segundo festival Hollywood Rock. Ambos os shows foram espetacu-
lares. Uma pesquisa publicada pela “Folha de S. Paulo” no dia 22 mos-
trava que o público paulistano considerara Lobão a melhor atração do
festival, que contava com, entre outros, Bob Dylan, Bon Jovi e Gilberto
Gil — 96% dos 306 entrevistados acharam seu show “ótimo/bom”. No
Rio, a recepção não foi diferente. O crítico Jamari França escrevia no
“Jornal do Brasil” do dia 28 que “o show de Lobão foi (...) delírio do início
ao fim, com uma enfiada de hits que todo mundo cantou junto, com ra-
Fraser ceçõesto
“Vivo”, o disco, foi lançado no começo de setembro — depois de
Lobão enfrentar duas barras, a morte de Cazuza (a 7 de julho) e a sepa-
ração amigável de Danielle, com quem teve uma filha, Júlia. O registro
feito quase nove meses antes, no entanto, era puro alto astral. Trazia duas
músicas com a participação da bateria da Mangueira nas faixas “Cuida-
do!” e “Vida bandida”. Era um greatest hits ao vivo: “Vida louca vida”,
“Décadende avec élégance”, “Revanche”, “Me chama”. No palco, sua
força não estava sujeita às interferências de gravadoras ou produtores. No
palco, Lobão era o rei da selva.

bo
Da]
Arthur Dapieve
4.
BEBLRZ
O FALSO ÓBVIO

No verão 80/81, o Asdrúbal Trouxe o Trombone estava dividindo


o Teatro Ipanema com Marina. À trupe ocupava o horário alternativo com
“Aquela coisa toda” e a cantora-compositora, o nobre, com seu show.
Entre um espetáculo e outro rolava um crossover: os músicos chegavam
mais cedo para assistir à peça e os atores ficavam até mais tarde para assistir
à passagem de som. Com os instrumentos dando sopa por ali, o ator
Evandro Mesquita aproveitava para levar um som com o guitarrista Ri-
cardo Barreto, primo de Regina Casé, atriz do Asdrúbal. Dessas jam ses-
sions também participava o baterista de Marina, Lobão. Talvez aquilo não
desse em nada.
Mas certo dia Evandro encontrou Cristina Magalhães na praia. Ela
era modelo e relações-públicas do bar que o dono da grife Company,
Mauro Taubman, abrira em São Conrado, o Caribe. O local estava abri-
gando showzinhos e Cristina perguntou a Evandro se ele tinha uma ban-
da. Garotão esperto, 30 anos de praia, Evandro não titubeou: disse que
sim, tinha uma banda — o que era apenas uma meia-verdade. O ator saiu
atrás da rapaziada que levava o som no Teatro Ipanema. Evandro, Barreto,
Lobão, Guto Barros (guitarra), Zé Luiz (sax) e Junno Homrich (baixo).
O sexteto ensaiou cinco dias e, na noite de 21 de fevereiro de 1981, es-
treou no bar Caribe.
No dia seguinte, a Praia de Ipanema não tinha outro assunto: o bairro
tinha uma banda de rock performático.

O nome Blitz foi sugerido por Lobão. Como os músicos tomavam


muita geral da polícia, os outros concordaram que o nome tinha tudo a
ver. E já no primeiro show a banda entrou no palco escuro portando lan-
ternas e dando uma geral na platéia. Os membros da Blitz haviam chega-
do até ali com uma boa bagagem. Reprovado no vestibular para Comu-
nicação, Evandro atuara em, entre outras peças, “Hoje é dia dagocls
“A China é azul” e “Trate-me leão”, esta já com o Asdrúbal. Barreto, antes
de tocar com Marina, formara pencas de grupos efêmeros em Floria-

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80 Da)5)


nópolis, São Paulo e no Rio. Ex-Vímana, Lobão estava em todos os luga-
res ao mesmo tempo: Blitz, Marina, Lulu, Ritchie e Gang 90. Os outros
eram excelentes músicos da banda da cantora.
E até por isso a formação da Blitz dos primórdios — isto é, sem as
vocalistas que acabaram se tornando uma de suas marcas — estava su-
jeita a idas e vindas. Na segunda apresentação da banda, por exemplo,
no Morro da Urca, quem estava no baixo era Arnaldo Brandão. À frente
do palco, as duas guitarras e o sax faziam as vezes de um naipe de me-
tais. Naquele tempo, o som da Blitz era muito mais agressivo do que o
que seria registrado em disco.
Certa noite, tocando na discoteca Papagaio, então conhecida como
Papagay, por causa de seu público, a Blitz não foi bem entendida. A pla-
téia vaiou os esquetes teatrais feitos pelo grupo Banduendes Por Acaso
Estrelados. Definitivamente, aquela não era a praia da banda. A sua praia
viria a ser a do Arpoador, onde o Circo Voador armaria sua lona em 15
de janeiro de 1982. Para lá convergiram o Asdrúbal, o Banduendes, o
Brylho (banda de Arnaldo Brandão), o Barão Vermelho e, óbvio, a Blitz.
Foi lá que Patrícia Travassos — então mulher de Evandro, também atriz
do Asdrúbal e co-responsável pela porção cênica da banda— notou que
os instrumentos estavam abafando os vocais. Foi dela a idéia de incorpo-
rar duas vocalistas à Blitz. Barreto convocou sua namorada, a atriz Már-
cia Bulcão, que, por sua vez, sugeriu o nome de uma amiga, a bailarina
Fernanda Abreu.
Por esta época, a formação estava se cristalizando: Evandro, Barreto,
Lobão, as duas meninas, o baixista Antônio Pedro Fortuna (que tocara
com os Mutantes fase carioca e com Lulu Santos) e o tecladista paulista
William Forghieri (ex-Gang 90). Foi esta a Blitz que, depois de uma au-
dição, conseguiu um contrato para gravar pela EMI-Odeon. Um contrato
mixuruca, é verdade, mas melhor do que permanecer para sempre como
a queridinha do underground. O septeto queria mais, muito mais. E con-
seguiria a partir do sucesso de seu primeiro compacto, “Você não soube
me amar”, que mesmo comercializado sem um lado B vendeu 100 mil có-
pias em três meses.
Lançada em julho de 82, “Você não soube me amar” era bem mais
antiga: havia sido composta para uma peça do Banduendes, “A incrível
história de Nemias Demutcha”. A música era tudo aquilo que as rádios
não tocavam na época: linguagem coloquial, urbana, um pop muito bem-
feito, mais falado que cantado. Mais de dez anos depois, muitos de seus
versos estão incorporados ao modo de falar carioca.

54 Arthur Dapieve
— Sabe essas noites em que você sai caminhando sozinho,
de madrugada, com a mão no bolso... Na rua! / E você fica
pensando naquela menina, você fica torcendo e querendo que
ela estivesse... Na sua! / Aí finalmente você encontra o broto,
que felicidade!/ Que felicidade, que felicidade, que felicidade! /
Você convida ela pra sentar! — Muito obrigada.! — Garçom,
uma cerveja!/ — Só tem chope/ — Desce dois, desce mais!/ Amor,
pede uma porção de batata frita?) — Ok, você venceu, batata
frita. Aí, blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá,blá, / E ti-ti-ti, ti-ti-ti,
ti-ti-ti/ Você diz pra ela: / Tá tudo muito bom, bom, tá tudo muito
bem, bem. Mas realmente (falado à moda do Chacrinha), mas
realmente eu preferia que você estivesse... Nua!

Pronto. Estava descoberta a pólvora. Ou, como diz Lobão, o falso


óbvio. “Você não soube me amar” virou uma coqueluche. Era ouvida em
todas as rádios, em todos os lugares, a qualquer hora do dia ou da noite.
O estouro da canção levou a EMI-Odeon a renegociar o contrato da Blitz,
temendo perder sua galinha dos discos de ouro para outra gravadora, e
deu liberdade para que Evandro, Barreto & Cia, ainda em estúdio, fizes-
sem o que lhes desse na veneta. Parecia um sonho.
Nem todo mundo, no entanto, estava tão satisfeito com o sucesso
da banda. No “Pasquim” de 23 de setembro de 1982, o cartunista Angeli
assinava um artiguete intitulado “Arrigo Barnabé, Grupo Blitz e chu-
padelas em geral”. Tal título não deixa dúvidas: seu autor acreditava pia-
mente que os cariocas haviam roubado uma idéia genial e original do
compositor londrinense radicado em São Paulo. Para Angeli, ““Você não
soube me amar” (...) expõe como ponto criativo uma das coisas — ape-
nas uma — que o Arrigo inventou, ou seja: coralzinho feminino dialogando
com o cantor de voz rasgada num tom quase falado e com um forte to-
que de ironia e humor”. Como se Arrigo Barnabé algum dia tivesse in-
ventado alguma coisa que Frank Zappa não tivesse inventado 15 anos
antes. Como se houvesse algum ponto de contato entre a chatice pseudo-
intelectual do paraná-paulistano e a graça pseudo-idiota da Blitz.
Pois bem. Os cães ladram e a caravana passa. Em 26 de setembro de
1982 era lançado o LP “As aventuras da Blitz”. Angeli, Arrigo e sua pato-
tinha devem ter se sentido ainda mais lesados. O disco estava cheio de
coralzinho feminino dialogando com cantor de voz rasgada num tom quase
falado e com um forte toque de ironia e humor: “De manhã (Aventuras
submarinas)”, “Vai, vai love” e “Mais uma de amor (Geme geme)”. Por

O Rock Brasileiro dos Anos 80 55


BRock —
razões diversas das da tchurma paulistana a Censura Federal também se
sentiu incomodada pela Blitz e vetou duas músicas, “Ela quer morar co-
migo na Lua” (simplesmente por causa do verso “ela diz que eu ando
bundando”) e “Cruel, cruel esquizofrenético blues” (esta por conta de um
“peru” ambíguo e um “puta qui pariu” sem margem de dúvidas). Para
expor a violência da tesoura, o produtor Mariozinho Rocha decidiu manter
as duas faixas — arranhadas, portanto inaudíveis — no disco, o que es-
tragou muitas e muitas agulhas. As duas músicas só sairiam — perfeitas
— num compacto em maio de 83.
“As aventuras da Blitz” vendeu 100 mil cópias mais rápido do que
chope e batata frita num sábado à noite. À crítica também se empolgou.
No número 2 da revista especializada “Pipoca Moderna”, novembro/dezem-
bro de 82, o crítico-músico Paulo Ricardo Medeiros — que anos depois
comandaria o furacão RPM — resenhava o LP a partir de uma cópia em
fita cassete e, depois de se derreter em elogios, concluía e assinava embaixo:
“Meus parabéns. Vocês são os pais de um lindo LP levadíssimo. Vou sair por
aí com a mão no bolso, o fone no ouvido, e quem sabe levar uma Blitz. É”,
Nem tudo eram flores, claro. Mas o golpe mais duro para a Blitz,
no entanto, partiria de suas próprias entranhas. Um ano antes de “As aven-
turas da Blitz” ser lançado, o baterista Lobão gravara um LP independente,
“Cena de cinema”, ainda inédito aquela altura do campeonato. Parte do
material deste disco aparecia nos encores dos shows da banda: “Cena de
cinema”, a música, “Love pras dez”, “O homem-baile?. Lobão queria
regravá-la no disco da Blitz, com Evandro nos vocais. Mas com “Você
não soube me amar” na estratosfera, ninguém lhe deu muita atenção. Se-
gundo Lobão, Evandro teria inclusive usado um argumento ridículo: “Nós
somos os Beatles brasileiros. Eu sou o John Lennon, o Barreto é o Paul
McCartney e se tu quiser pode ser o George Harrison”. Por outro lado,
havia pressões para que a fita de “Cena de cinema”, o disco, fosse sim-
plesmente picotada, num espírito de um-por-todos-todos-por-um perver-
tido. Havia ainda quem achasse que tal produção independente teria mais
chances de ser prensada se seu autor fosse membro da Blitz e contratado
da EMI-Odeon. Sócio-fundador da banda, se sentindo excluído do pro-
cesso criativo e, ao mesmo tempo, confiando no seu taco solo, Lobão
hesitava em assinar contrato com a gravadora junto com os outros.
No final de outubro, Evandro ligou para Lobão com outro argumento:
a Blitz seria capa da revista “Isto É”. Lobão, que nunca se dera bem com
Evandro, viu alia chance de consumar um gran finale. Disse que sim, não
só Iria participar da sessão de fotos como, depois dela, assinaria afinal o

56 Arthur Dapieve
As Aventuras da Blitz: um fenômeno de mídia
como o país ainda não havia conhecido
contrato. À primeira parte ele cumpriu, com um sorriso sonso, registrado
na edição com data de capa de 27 de outubro de 1982. A segunda... Encerra-
da a sessão, Lobão virou-se para os outros e disse: “Vocês são uns babacas.
Não vou assinar porra nenhuma, vou é vender minha fita.” Diante do assom-
bro geral, o baterista ainda fez das suas profecias epilépticas: “Olha, piada
só se conta uma vez. Vocês vão gravar o primeiro disco, o segundo vai vir
assim e o terceiro vai ser o fim. E do jeito que vocês vão, eu não vou me
espantar nada se no próximo Natal vocês descerem de helicóptero no Mara-
canã junto com Papai Noel.” Previsão ou não, não deu outra. No dia 27 de
novembro, a Blitz estava recepcionando o bom velhinho no maior do mundo.
Para o lugar de Lobão foi convocado o segundo paulista da banda,
Roberto Gurgel, o Juba. Foi com ele às baquetas que a Blitz abriu sua pri-
meira temporada digna desse nome em 12 de janeiro de 1983, no Roxy
Roller, na Lagoa. De quarta a domingo, Evandro & Cia sentiram na pró-
pria pele a quantas andava sua popularidade. Além do horário “adulto”
das 21h, eles tiveram de fazer vesperais infanto-juvenis às 15h. Na estréia,
o grande sucesso — maior que “Você não soube me amar” — foi o semi-
strip-tease feito por Marcinha e Fernandinha por trás de uma tela, para
colocar os biquínis apropriados à versão de “Ana Maria” (aquela do “biqui-
ni de bolinha amarelinho, tão pequinininho que cabia na palma da mão”).
No final do espetáculo, Mariozinho Rocha subiu ao palco e entregou à
banda um disco de ouro (pelas 100 mil cópias vendidas do LP “As aven-
turas da Blitz”) e outro de platina (pelas 250 mil do compacto “Você não
soube me amar”).
Originalmente, o LP deveria ter trazido as letras das canções dentro
de um gibi. Só que problemas de direitos autorais impediram que a revista
chegasse às lojas junto com o disco. Este trazia um vale-brinde para que,
assim que fosse possível, o consumidor pudesse voltar à loja e trocá-lo pela
revista. O gibi “As aventuras da Blitz” pôde ser distribuído somente a partir
de 27 de janeiro, quatro meses depois de o disco ter sido lançado.
Em São Paulo, a Blitz continuava tendo uma recepção esquisita. Os
shows realizados no Palácio das Convenções do Anhembi em 18 e 19 de
março foram detonados pelo mesmo Pepe Escobar que, seis meses antes,
ao criticar “As aventuras da Blitz”, se rendera aos encantos da moçada
sob o título “O doce e contagiante sabor da liberdade”. “O efeito geral
(do show) corresponde ao de uma salada mista sem tempero deglutida em
um rodízio do Grupo Sérgio”, escrevia Pepe na “Folha de S. Paulo” do
dia 21. “É absolutamente irrelevante comentar o que se passa no palco
durante o show — a medida certa de sua irrelevância”.

58 Arthur Dapieve
Saindo em maio, o compacto com as duas músicas censuradas aca-
bou servindo de batedor para o segundo LP da Blitz, “Radioatividade”,
lançado com um festão no pátio da EMI-Odeon, na Rua Mena Barreto,
em Botafogo, a 10 de setembro de 1983. Na verdade, boa parte do mate-
rial de “Radioatividade” já existia na época de “As aventuras da Blitz”.
Trocando em miúdos: pode-se dizer, com uma ponta de maldade, que a
banda fez um disco de sobras. Só que as sobras ainda batiam um bolão.
Senão ouçamos. Montado como um programa de rádio, “Radioativida-
de,” trazia um hit nato, “Weekend” (dos versos de batismo “blitz, docu-
mentos!/ Ué, só temos instrumentos”); “A dois passos do paraíso” (cujo
título, tal como a frase “Ok, você venceu”, também foi incorporado ao
linguajar popular); “Apocalipse não” e “Betty frígida” (a de outro bor-
dão, “Calma, Betty, calma”). A qualidade pop dessas faixas, entre outras
menos tocadas, justificava a presença, na boca-livre de lançamento do
disco, de gente tão distinta quanto Caetano Veloso e Paulo César Lima,
o Caju tricampeão do mundo.
Por essa época, a Blitz conhecia o Brasil de cabo a rabo, era um fe-
nômeno de mídia como o país ainda não havia conhecido. Esta pressão
não chegava a comprometer a espontaneidade essencial da banda — até
porque, temerosa de fazer desandar tão bem-sucedida maionese, a gra-
vadora não palpitava em coisa alguma — mas começava a atritar as rela-
ções dentro dela. A máquina andava porque ainda existiam muitos espa-
ços, reais e simbólicos, por serem conquistados. Um deles era o Canecão,
mais tradicional palco de sua cidade natal, marco no currículo de qual-
quer artista, mesmo (e principalmente) daqueles vindos do underground.
A Blitz só foi pôr os pés lá em 11 de abril de 1984.
E pôs os pés em grande estilo, revolvendo mais que nunca suas raí-
zes teatrais. As 19 músicas do roteiro — espalhadas por hora e meia de
show — eram pontuadas por cacos e por esquetes do grupo Banduendes
Por Acaso Estrelados. Na direção, Patrícia Travassos. Em “Ana Maria
(Biquíni de bolinha amarelinha tão pequenininho)”, por exemplo, os ban-
duendes entravam fantasiados de surfistas, carregando um fálico cachor-
rão-quente. Para encerrar, “Você não soube me amar”, claro. O sucesso
da temporada gerou um desdobramento de mais duas semanas. Com di-
reito a matinês, naturalmente. Ao final do último show, a 3 de junho, o
balanço: 18 espetáculos, público total de cerca de 54 mil pessoas.
Um dos grandes hits da temporada foi “A verdadeira história de Adão
e Eva”, parceria de Evandro e Barreto com o poeta Chacal incluída no
LP “Plunct Plact Zuuum II”, gravado em fevereiro. “O paraíso é pouco/

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Eu quero um broto/ Pra poder conversar”, implorava Adão a Deus. E, mais
adiante, Eva fazia uma daquelas piadas de duplo sentido que deixava a
gurizada em êxtase; “Adão, segure sua cobra/ Que tô com maçã de sobra
pra dar”. Também participavam de “Plunct Plact Zuuum II” o Barão
Vermelho, Raul Seixas e Marília Pêra, entre outros.
Conquistado o Canecão, a Blitz queria mais. Queria a Praça da Apo-
teose e a Rede Globo, embrulhadas para presente. Como parte de um
especial de TV, a banda chegou ao palco montado no final do Sambó-
dromo às 18h30m de um sábado, 7 de julho. “É um prazer apoteótico
tocar para vocês”, saudou Evandro no início dos trabalhos. “Vocês” eram
cerca de 30 mil pessoas, a maioria crianças. “Vocês” poderiam ter sido
mais, não fosse a ameaça de chuva e um derrame de ingressos falsos. O
que se viu foi o mesmo espetáculo apresentado no Canecão, devidamen-
te ampliado. Em vez de uma bola, uma dúzia de bolas eram jogadas para
a platéia durante “Biquíni de bolinha...”, por exemplo. O especial para a
Globo foi ao ar em 12 de setembro, com o nome de “Blitz contra o gênio
do mal”. Na época, achava-se que o próximo passo seria um filme.
Três dias depois, a Blitz estava de volta à Praça da Apoteose, desta
vez dividindo o palco com o Barão Vermelho, as orquestras sinfônicas
Brasileira e do Teatro Municipal e o coro deste, sob a regência do maes-
tro Isaac Karabtchevsky, dentro do “Projeto Aquarius”, promovido pelo
“O Globo” e pela Sul América Seguros. Na platéia, mais dezenas de mi-
lhares de pessoas.
O terceiro disco estava a caminho. Assim como a segunda profecia
de Lobão... “Tava virando um emprego”, recorda Evandro. “Tava perdendo
um frescor, uma energia de subir no palco e superar as deficiências”. Gra-
vado sob este clima, o disco ainda começou a ser falado antes de ser lan-
çado por culpa de uma coincidência infeliz: a semelhança entre os refrões
de “Egotrip” e de “Eu me amo”, música do grupo paulista Ultraje a Rigor
lançada em compacto em outubro. À letra de Evandro e Patrícia Travassos
dizia “eu me amo, eu me adoro, eu não consigo viver sem mim”. À de Roger
Rocha Moreira, “eu me amo, eu me amo, eu não consigo viver sem mim”.
Como o Ultraje pôs seu bloco na rua antes, a música da Blitz, mesmo fa-
zendo parte da pré-histórica peça “A incrível história de Nemias Demutcha”
(que também gerara “Você não soube me amar”), teve seu refrão mudado
para “eu te amo, eu me adoro, eu não consigo te ver sem mim”.
“Blitz 3” foi lançado em dezembro de 84. A preocupação com a
embalagem já fazia antever a fraqueza do conteúdo: o disco saiu com três
capas idênticas em tudo menos nas cores, havia uma vermelha, uma ama-

60 Arthur Dapieve
rela e uma branca; trazia ainda um encarte com as letras e outro com uma
cartela de fotos — tudo concebido pelo estúdio A Bela Arte, de Gringo
Cardia e Luiz Stein. Além de “Egotrip”, só se salvava outra faixa, “Dali
de Salvador”, uma gostosa levada afro-jamaico-baiana assinada por Evan-
dro e pelo baixista Antônio Pedro.
Um mês antes de “Blitz 3” ser lançado, possivelmente antevendo a
má recepção em São Paulo, Evandro dizia em entrevista à revista “Roll”:
“Eu adoro SP, mas lá falta um certo jogo de cintura. Tem assim uma tor-
cida fortíssima pró-Arrigo, mas o Arrigo não quer fazer o Chacrinha, tá
contente com essse público universitário, de elite, essa galera que nunca
deve ter escutado Frank Zappa. Fu acho o Arrigo genial dez minutos, meia
hora eu acho insuportável”. Boa.
O que levantou o astral da Blitz foram os dois shows no Rock in Rio,
O primeiro como terceira atração do domingo 13 de janeiro de 1985 (de-
pois de Paralamas do Sucesso e Lulu Santos, antes de Nina Hagen, Go-
Go's e Rod Stewart), o segundo como quarta atração do outro domingo,
o de encerramento (depois de Erasmo Carlos, Barão Vermelho e Gilber-
to Gil, antes de Nina Hagen, B-52ºs e Yes). O primeiro espetáculo esteve
a dois passos do precipício. Tudo começava com um ataque do trio de
metais (os convidados especiais Leo Gandelman, Bidinho e Sérgio Trom-
bone). Só que por conta de problemas de som ninguém se entendia no
palco. Evandro começou a entrar em pânico, pensando num possível boi-
cote às atrações brasileiras. Antônio Pedro chegou perto dele e dissse “vai
que pra TV tá legal, vai que pra TV tá legal”. Evandro quase estapeou
um técnico de som estrangeiro que entrara pra trocar o microfone de
Fernandinha. Mas, de repente, fez-se o som, restabeleceu-se a calma e
ganhou-se a platéia. O segundo espetáculo foi tranquilo e igualmente bom.
Mais que nunca o perigo que a Blitz estava enfrentando era o da
superexposição. A Mesbla lançou uma grife Blitz, a Rio Gráfica Editora
lançou o “Álbum de figurinhas da Blitz” e até o Instituto Brasileiro do
Café lançou uma campanha de aumento do consumo calcada no sucesso
da Blitz entre os jovens. Com o slogan “Café, eu te amo, eu te adoro, eu
não consigo te ver sem mim”, a banda protagonizava um anúncio de TV
em preto-e-branco no qual o café servia de estimulante para uma festa
desanimada. Cafeína ou cocaína?
Depois do Rock in Rio, a Blitz voltou a se apresentar em sua cidade
natal a partir de 13 de junho, numa temporada superproduzida no Ca-
necão. Letras B,L,I,T e Z que se mexiam na fachada da cervejaria, 380
refletores e cinco canhões de luz, 38 canais de som, 5.000 watts de po-

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80 61


tência real, o diabo. Três semanas de sucesso, que serviram ainda de aque-
cimento para uma viagem ao outro mundo, o comunista.
A Blitz foi convidada a fazer parte da delegação brasileira junto ao
12º Encontro Mundial da Juventude Democrática, a ser realizado entre 27
de julho e 3 de agosto em Moscou. Entre os 120 brasileiros da delegação
estavam também José Sarney Filho, Aécio Neves, Fagner, Joyce e Gon-
zaguinha. O vôo da Aeroflot saía de Buenos Aires. Lá chegando, a banda
descobriu que teria de enfrentar 20 horas de viagem dividindo o avião com
militantes internacionalistas de toda a América do Sul. A cada minuto al-
guém se levantava e bradava um no pasarán qualquer sob aplausos gerais.
Bem, quase gerais. Evandro se lembra de ter pensado: “Vai ser foda...”
A estada na então capital soviética, no entanto, não teve nada de
chata. O principal show da Blitz em Moscou ocorreu dentro do evento
“Rock pela paz”, no ginásio do Dínamo, ao meio-dia da segunda-feira
29 de julho. No programa, entre outros, também estavam um grupo ale-
mão, o Pudiz, e um local, o Zimilhani. À princípio, o público de cerca de
três mil pessoas recebeu Evandro, Barreto, Marcinha, Fernandinha, An-
tônio Pedro William e Juba friamente. Nem podia ser diferente. Afinal,
50% da graça da banda estava nas letras. Mas pouco a pouco a per-
formance teatralizada em músicas com “Betty frígida” e “Weekend” foi
arrebatando os soviéticos. Tanto que, ao final, depois de um encore com
“A dois passos do paraíso” e “Egotrip”, o ginásio veio abaixo em aplau-
sos e aos gritos de “maladzi” (bravo).
Depois, a Blitz foi fazer um show na rua de um distante subúrbio
moscovita. Encontrou uma aparelhagem furreca e uma platéia de senho-
ras e crianças condecoradas. Quando alguns marinheiros ensaiaram dan-
çar, a segurança os reprimiu, para revolta de Evandro. Ele chamou o in-
térprete e exigiu que a dança fosse liberada: “Nossa música é feita para
dançar mesmo, ainda mais na rua”. A polícia estranhou mas cedeu. Houve
ainda um terceiro show, num teatro, com o resto da delegação brasileira.
Nada particularmente memorável.
Internamente, o relacionamento entre os membros da banda estava
se esgarçando sob o peso do intenso ritmo de trabalho. Era consenso ser
preciso dar um tempo. Tanto que o próximo LP já tinha título escolhido:
“O último da Blitz”. Enquanto as gravações, marcadas para começar em
10 de março de 1986, não vinham, o septeto continuava se arrastando
pela estrada. Uma desgastante excursão de dois shows e dez dias na Ar-
gentina serviu de estopim para a saída de outro sócio-fundador da ban-
da: Ricardo Barreto. Foi embora junto com sua mulher Márcia Bulcão.

Arthur Dapieve
O racha aconteceu em 3 de março, uma semana antes de a Blitz entrar
em estúdio para gravar aquele que teria sido seu derradeiro disco, e che-
gou à imprensa quatro dias depois. Na sexta-feira, 7 de março, Jamari
França noticiava a defecção em sua coluna “Rock clips”, no “Jornal do
Brasil”. Nela, Barreto culpava o Cometa de Halley e Evandro, a pressão
do estrelato: “Não acho que a Blitz deu errado, deu certo, tem um currí-
culo super-respeitado, como nenhuma banda com disco de ouro, disco de
platina. Cumpriu-se um ciclo. É uma coisa que me deixa abalado mas,
ao mesmo tempo, me deixa superaliviado. O show business é desgastante
pra caralho, a onda competitiva é muito incentivada, o assédio é grande,
e quem plantou tijolo vai colher parede, mas quem plantou na boa vai
colher na boa e continuar na onda”. Durante alguns dias estudaram-se
alternativas ao puro e simples fim da Blitz — como, por exemplo, a con-
tratação de um novo guitarrista — mas no fim admitiu-se o óbvio: a banda
dera o que tinha que dar.
A segunda profecia de Lobão se cumprira.

O resto da década não sorriu para os ex-membros da Blitz.


Evandro Mesquita arcou quase sozinho com os prejuízos causados
pela superexposição da banda. Até porque, mal a Blitz acabara, entrou
no ar o anúncio de Pepsi-Cola gravado por ele e Tina Turner no início de
86, em Los Angeles. Seu primeiro disco solo, “Evandro”, marcado para
sair no dia 25 de outubro, enfrentou problemas com a Censura e só foi
lançado no começo do ano seguinte. A tesoura implicou com as faixas
“Acorda Pascoal”, “Sinfonia de sapo, balé de vaga-lume” e “Greve”. Mais
black que os trabalhos da Blitz, “Evandro” não emplacou, assim como
também não decolaram nem o disco seguinte, “Planos aéreos” (88), e nem
o terceiro, “Procedimento normal” (89, este já pela PolyGram).
Safo que só, Evandro recorreu a seus outros talentos, de ator e ro-
teirista. Como ator, trabalhou na novela “Top model”. Como roteirista,
fez parte da equipe de criação do seriado “Armação ilimitada” e escre-
veu “O inútil”, filme de Mauro Farias que só chegaria às telas em 93, com
o título “Não quero falar sobre isso agora”.
Ricardo Barreto retomou um velho projeto paralelo, a Banda Nova,
que virou Prisioneiros do Funk, que virou Pristoneiros do Ar e lançou seu

único disco em janeiro de 87. No disco, “Andréia andróide” e “Playboy
tentaram ressuscitar o caminho performático da Blitz. Em vão. Tanto que
ele e Marcinha se enfurnaram em seu sítio em Nova Friburgo pelo resto

80 63
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
da década. Muito de vez em quando os dois desceram a serra com uma
banda country, a Appaloosa. Com o tempo, Marcinha acabou retoman-
do sua carreira de atriz.
Fernandinha, a princípio, voltou para as sapatilhas. Mas lá pelo fi-
nal dos anos 80 já estava envolvida no trabalho de dance music que a
tornaria a mais bem-sucedida ex-Blitz. Tanto assim que ela foi a única que
não quis abdicar de sua carreira solo em favor da reunião ensaiada por
Evandro, Barreto, Marcinha, Antônio Pedro, Billy e Juba na metade de
1994, que resultou num disco ao vivo.

64 Arthur Dapieve
e
BARÃO VERMELHO
VMULGO ROCK NE ROLL

Foia providência. Não a divina. Mas a Feira da Providência. A de 1981.


A banda fora formada com um objetivo específico: tocar na 21º Feira da
Providência, a ser realizada, nos dias 5,6, 7 e 8 de novembro, no Riocentro,
pavilhão de exposições entre a Barra da Tijuca e Jacarepaguá. O quinteto
ensaiou duas semanas para chegar lá na ponta dos cascos. Chegou. Cheio
de disposição. Mas a organização da feira se esqueceu de providenciar um
PA. Sem amplificação, neca de show, neca de rock “n” roll.
Tinha tudo para ser uma broxada histórica. Destinada a ser regis-
trada apenas numa matéria de jornal anunciando o que não houve. “A
barraca da Hungria incluiu em sua programação a exibição de nove mú-
sicos que tocarão melodias ciganas. O Conjunto Barão Vermelho fará
diversos shows especiais”, anunciava o jornal “O Globo” ao pé do quin-
to parágrafo da reportagem sobre a inauguração da feira, a 5 de novem-
bro de 1981, pelo cardeal Dom Eugênio Salles. Tinha tudo para ser uma
broxada. Felizmente não for.
Os cinco garotos estavam tão entusiasmados que decidiram levar o
“Conjunto Barão Vermelho” adiante.

O Barão Vermelho começou a se formar, como tantos outros gru-


pos, mundo afora, a partir do encontro de dois colegas de escola. O tecla-
dista Maurício Carvalho de Barros, 17 anos, e o baterista Flávio Augusto
Goffi Marquesini, 19 anos, colegas do Imaculada Conceição, estavam
ensaiando na garagem da casa dos pais de Maurício, no Rio Comprido.
Entre encontros e desencontros com guitarristas e baixistas, os dois fa-
ziam sobretudo covers de Rolling Stones, e Led Zeppelin, para desespero
da vizinhança. O guitarrista Roberto Frejat, morador do Flamengo, 19
anos, chegou até a garagem indicado por um colega de aulas de guitarra.
Na época, quase todo mundo estava interessado em fusion, e Frejat tinha
uma pegada roqueira, mais adequada ao som de Maurício e Guto. O
baixista André Palmeira Cunha, 16 anos, foi visto e recrutado num festi-
val de colégio. Faltava um vocalista.

80 ÉS
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Os quatro membros do Barão Vermelho — nome tirado das tirinhas
de Snoopy e Charlie Brown — testaram inclusive um cantor e guitarrista
goiano, chamado Leo Jaime, mas foram reprovados por ele. Motivo: peso
demais. Leo, no entanto, se lembrou de um conhecido que estava fazen-
do o mesmo curso de teatro que ele, o curso de Perfeito Fortuna, que meses
depois estaria armando a lona do Circo Voador no Arpoador. Leo ainda
avisou que o tal era filho de João Araújo. “Quem é João Araújo?”, se
entreolharam os quatro. Só mais tarde, depois que Agenor Miranda Araújo
Neto, 23 anos, já havia se incorporado à banda, é que se tocaram de que
o pai do novo vocalista era diretor da gravadora Som Livre.
Cazuza, este o apelido de Agenor, caiu bem no Barão Vermelho: logo
no primeiro ensaio embarcou na viagem do grupo. “Pirou”, lembraria Frejat,
14 anos depois. Embora cevado no berço de ouro da MPB, convivendo com
artistas desde cedo, Cazuza tinha um instinto — muito mais que técnica,
que era quase nenhuma — bluesy, adequado a uma banda de rock *n” roll
que tocava alto demais. Mas somente depois do episódio da Feira da Provi-
dência ele se sentiu à vontade o bastante para mostrar suas próprias letras
ao grupo. Nasceria aí a dupla Cazuza & Frejat, o mais próximo de Jagger
& Richards que o rock brasileiro jamais chegou. Feitos um para o outro.
O grupo ensaiava todo dia. Todos nele haviam decidido fazer da
música, senão o seu ganha-pão, o seu viver. Essa disposição, aliás, fez Frejat
largar outro projeto: uma banda instrumental não jazzística que manti-
nha com, entre outros, George Israel, futuro saxofonista do Kid Abelha
& Os Abóboras Selvagens. Esses ensaios, no entanto, não chegaram a
desaguar caudalosamente no circuito de bares, como era habitual na época:
o Barão Vermelho continuava tocando muito, muito alto. Tão alto que
nunca tocou no lendário Western, por exemplo. No máximo, no Caribe,
em São Conrado, ou no Le Petit Galerie, em Ipanema. Por outro lado, o
volume de som do grupo segurava bem a peteca em shows ao ar livre.
Houve um memorável, no Quebra-Mar da Barra. Patrocinadora do evento,
a Prefeitura marcou o show para o cair da tarde mas não providenciou
nenhuma iluminação. Tinha tudo para ser mais uma broxada ao estilo
da Feira da Providência. Só que a rapaziada presente estava tão fissurada
para ouvir um pouco de rock “n” roll que iluminou o palco com os faróis
de seus carros. Bonito.
Depois de esgotados todos os espaços para shows disponíveis, que a
bem da verdade não eram tantos assim, o Barão passou a desejar tocar no
badalado Morro da Urca. Nem que fosse para abrir a noite para alguém.
Uma fita demo foi gravada num horário ocioso dos estúdios da Som Li-

66 Arthur Dapieve
vre, num gravador de rolo de Cazuza. Dessa fita já constava praticamente
todo o repertório do que viria a ser o primeiro LP: pequenos flashes urba-
nos como “Billy Negão”, “Ponto fraco” e “Certo dia na cidade”. A demo
foi mandada para o produtor do Morro, Léo Neto, que não quis dar fal-
sas esperanças aos garotos; bandas de abertura eram incomuns ali, só ia
dar pé se eles conhecessem algum artista. Cazuza conhecia artistas às pen-
cas. E a funkeira Sandra de Sá estava prestes a tocar lá em cima. Foi assim
que o Barão Vermelho foi vaiado — e achou ótimo. O público de Sandra,
funkeiros da Zona Norte, achava o grupo pesado demais. Entre uma mú-
sica e outra, dava pra ouvir os gritos de “acaba com esse barulho!”
Enquanto isso, a fita caíra na mão do produtor Ezequiel Neves, por
acaso da Som Livre. Quase cinguentão, Ezequiel, também conhecido com
Zeca Jagger em função de sua adoração pelos Rolling Stones, era um cri-
tico de música frustrado, cansado de receber dezenas de discos por mês,
que largara as pretinhas para se dedicar a farejar e produzir talentos. De
certa forma, era uma pena. Ezequiel era o crítico brasileiro que melhor
encarnara o espírito do rock"n'roll, escrachado, exagerado, adjetivado. Isso
numa função da qual sempre foi cobrada uma inalcançável objetividade.
Zeca era subjetivo paca. Daí ter-se enamorado do Barão Vermelho.
De posse da fita, convenceu seu colega Guto Graça de Mello que eles
tinham nitroglicerina pura nas mãos. Duro foi convencer o diretor da
gravadora, João Araújo, pai de Cazuza. Araújo não queria passar por
nepotista. “Imagina o que vão dizer? Que estou gravando meu próprio
filho. Não”, objetava. Graça Mello foi persistente. E ganhou a parada com
uma ameça premonitória. “Pior vai ser se seu filho estourar em outra
gravadora, aí vão dizer “viram, o Araújo não sabe nem o valor do que tem
na própria casa” ”, argumentou. Araújo finalmente cedeu. Com uma con-
dição: “Não me envolva nisso, por favor”.
Seu pedido foi atendido. Ezequiel meteu o Barão Vermelho no estú-
dio por dois finais de semana seguidos, totalizando 48 horas de grava-
ção. As sessões, por sinal, foram uma festa. Quase literalmente. Multi-
dões compareciam ao estúdio da Som Livre para externar como estavam
felizes com o fato de o Barão estar gravando seu primeiro LP. Era simpá-
tico mas atrapalhava o já não muito bom andamento dos trabalhos. De-
sacostumada à decupação sonora dos estúdios, a banda teve de gravar
primeiro as bases para só então Cazuza botar os vocais nas faixas. Este,
muito doido, teve sérios problemas com os andamentos, ora entrava muito
lento, ora muito rápido. Mas entre mortos e feridos salvaram-se todos.
Inclusive o disco. Se os membros do Barão não entendiam muito de gra-

80 67
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
vação, de mixagem então eram perfeitos ignorantes. Guto Graça Mello
mixou as 10 faixas sozinho.
“Barão Vermelho”, o disco, foi lançado em 27 de setembro de 1982,.
um dia depois de “As aventuras da Blitz”. O disco de Cazuza, Frejat,
Maurício, Dé e Guto era mal gravado à beça, mas tinha qualidades aos
montes. À maior: espontaneidade. Num gênero tão vulnerável ao po-
seurismo quanto o rock, “Barão Vermelho” é comovente. São cinco jo-
vens aproximando sua música de seus companheiros de faixa etária. Coisa
que a Blitz, por exemplo, formada por músicos mais experientes, não fazia.
O Barão foi o primeiro porta-voz de sua geração e, neste sentido, a pri-
meira banda do BRock, o rock brasileiro que chegou (em grande estilo)
ao disco na década de 80.
“Barão Vermelho”, o disco, era quase aquela fita demo que foi pa-
rar nas mãos de Ezequiel Neves transposta para o vinil. Estavam lá “Billy
Negão”, “Ponto Fraco”, “Certo dia na cidade” e mais “Posando de star”,
“Down em mim, “Conto -de fadas”, “Rockm geral Pora Br
lhetinho azul” e aquela que, com o passar do tempo, se tornaria o clássi-
co do disco, “Todo amor que houver nessa vida”. Na letra, Cazuza já dizia
ao que viera: “Ser teu pão, ser tua comida. Todo amor que houver nessa
vida/ E algum trocado pra dar garantia/ E ser artista/ No nosso convívio/
Pelo inferno e céu/ De todo dia/ Pra poesia que a gente não vive/ Trans-
formar o tédio/ Em melodia ”.
No número 1 da revista “Pipoca Moderna”, de outubro de 82, o
crítico Antônio Carlos Miguel testemunhava acerca de “Barão Vermelho”,
o disco: “Ao contrário da maioria dos jovens cantores e compositores
atuais, o Barão Vermelho não se perde num papo pseudo-ecológico, al-
tos astrais e outras baboseiras pra boi dormir. Eles parecem ter chegado
para incomodar o sono de muita gente”. O primeiro disco, a despeito do
sucesso de crítica, não estourou de imediato nos ouvidos do grande pú-
blico. Mas logo logo seria item de colecionador.
“Barão Vermelho 2”, de 1983, chegou cercado de expectativas. Ao
menos por parte do grupo. Os rapazes já estavam mais seguros de si no
estúdio, sabiam lapidar sua energia bruta, tiveram um produtor (Andy
Mills, ao lado do fiel Ezequiel) que sabia captar melhor a mensagem do
seu rock “nº roll. Tinha tudo pra dar certo. Não deu. Não de imediato. A
Som Livre decidiu trabalhar a faixa “Menina mimada”. Não deu certo.
As rádios davam a resposta-padrão-para-rock na época: “ Isso não é co-
mercial.” Precisou a MPB assinar embaixo para que o Barão começasse
a ganhar o merecido respeito.

68 Arthur Dapieve
Primeiro foi Caetano Veloso. Durante o show de lançamento do seu
LP “Uns”, no Canecão, ele cantou “Todo amor que houver nessa vida”,
para espanto do casal João e Lucinha Araújo e para gáudio de seu filho
único, Cazuza, os três presentes na platéia. Não contente em interpretar
a música, Caetano elogiou Cazuza e desancou as rádios que não tocavam
Barão. Na verdade, os elogios do baiano também corresponderam a uma
proposta de paz. Na véspera, num bar do Baixo Leblon, um enciumado
Cazuza jogou uma mesa pra o alto ao ver Caetano se desmanchando para
seu namorado. Os elogios, no entanto, eram sinceros.
Pouco tempo depois foi Ney Matogrosso. O cantor foi à casa de
Cazuza atrás de “Pro dia nascer feliz”, do segundo disco, que o Barão
estava tentando emplacar como música de trabalho depois da fracassada
“Menina mimada”. Cazuza concordou, Ney gravou e “Pro dia nascer
feliz” estourou, provando que, sim, o Barão Vermelho podia ser um su-
cesso comercial. A Som Livre, que estava prestes a dispensar a banda, foi
pega de surpresa e teve de lançar um compacto da música na versão ori-
ginal do Barão, que estouraria nas rádios ainda mais alto do que a de Ney.
Afinal o reconhecimento.
O ano seguinte, 1984, foi o ano da vitória. A banda foi convidada a
participar da trilha sonora e de algumas cenas do filme “Bete Balanço”,
do diretor paulista Lael Rodrigues. O enredo — uma roqueira (interpre-
tada pela atriz Débora Bloch) briga por seu lugar ao sol — pegava bem o
espírito da época. Foi um sucesso. Mais de 1,4 milhão de espectadores
acorreram aos cinemas, muitos atraídos pela música-tema, do Barão. À
letra era emblemática: “Quem vem com tudo não cansa/ Bete Balanço,
meu amor/ Me avise quando for a hora”. (Lael tentou repetir a dose com
“Rock estrela”, de 1985, com a canja de Leo Jaime, e com “Rádio Pira-
ta”, de 1987, com Marina. Não teve o mesmo sucesso. Morreu de septi-
cemia decorrente de uma pancreatite aguda em 8 de fevereiro de 1989,
aos 37 anos.)
Precedido pelo estouro de “Pro dia nascer feliz” e “Bete Balanço”, o
terceiro disco, “Maior abandonado”, consolidou a imagem do rock bra-
sileiro na mídia. Barão Vermelho, Blitz e Paralamas do Sucesso, entre
outros, já tinham carreiras consolidadas, respeito, atenção, afeto. O afe-
to pelo Barão — e pelo rock brasileiro em geral — pôde ser medido no
Anhembi, em São Paulo, a 30 de agosto de 84, quando a banda partici-
pou do Festival Bete Balanço de Rock, que reuniu ao vivo a trilha sonora
do filme de Lael Rodrigues (além de Cazuza, Frejat & Cia, tocaram Lobão
e na
& Os Ronaldos, Titãs, Celso Blues Boy, Brylho e Metralhatxeca);

80 69
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Barão Vermelho: o início, com Cazuza, de uma banda que sempre tocou muito alto
Praça da Apoteose, no Rio, a 15 de setembro, durante um rock-concerto
do Projeto Aquarius, que juntou Barão, Blitz, o tecladista Luciano Alves,
as orquestras sinfônicas Brasileira e do Teatro Municipal e o coro deste,
tudo sob a regência do maestro Isaac Karabitchevsky. O BRock já era,
então, um respeitável aglutinador de massas.
Isso saltaria aos olhos — não só do país, mas de todo o mundo —
alguns meses depois, em janeiro de 1985, com a realização do Rock in
Rio. Nele, o Barão Vermelho se apresentou duas vezes, no dia 15, dia da
eleição de Tancredo Neves, no miolo de uma noite que incluía Kid Abe-
lha, Eduardo Dusek, Scorpions e AC/DC; e no dia 20, o do encerramen-
to do festival, abrindo para Gilberto Gil, Blitz, Nina Hagen, B-52ºs e Yes.
Na primeira noite, o hard rock nativo do grupo segurou a onda que Paula
Toller e Dusek não conseguiram: pacificar a fúria dos headbangers que
praticamente sitiavam o palco. Foi reconfortante descobrir que, mesmo
após três anos de lapidação, o Barão continuava tocando muito, muito
alto. Na derradeira e chuvosa noite, o grupo subiu ao palco depois da
apresentação não-programada de Erasmo Carlos — que escaldado pelo
tumulto do dia de abertura, evitara os metaleiros da noite anterior — e
não bisou a qualidade e o vigor do primeiro show. Falta de desafio tal-
vez: a platéia da despedida do festival aplaudiria qualquer coisa, do cléc
de uma fratura exposta a Milton Nascimento.
O Rock in Rio deslanchou muitas excursões Brasil afora. Estas ex-
cursões, por sua vez, deslancharam, ou melhor, intensificaram um pro-
cesso de desgaste pessoal entre Cazuza — o filho único desacostumado a
dividir coisas, ainda mais o sucesso — e o resto do grupo. No final de julho,
após uma série de desentendimentos, um encontro na porta da Som Li-
vre, selou o racha: Cazuza embarcaria em sua carreira solo e o grupo
continuaria seu próprio caminho. “Há dois meses vinha pensando em
tomar esta decisão, porque queria ter um trabalho mais autoral, mais de
intérprete, e em grupo as decisões sempre são democráticas, tomadas por
todos”, dizia Cazuza a Beatriz Coelho Silva, nº “O Globo” de 30 de ju-
lho. Por estes dias, o cantor estava na casa da mãe, se recuperando de uma
virose. Dias depois, estava internado no Hospital São Lucas. Era a Aids
que o mataria cinco anos depois começando a se manifestar.

A saída de Cazuza abortou o que seria o quarto disco do Barão Ver-


melho. Apesar das crescentes desavenças, das bebedeiras do cantor durante
os ensaios, o material já estava pronto. O tal encontro na porta da grava-

Brasileiro dos Anos 80 Fi


BRock — O Rock
dora se deu justamente quando o grupo estava indo aprovar o orçamento
do álbum. Parte das composições foi parar em “Exagerado”, o primeiro
disco solo de Cazuza, que seria lançado em novembro de 1985: “Boa vida”,
“Só as mães são felizes” e “Rock da descerebração”, as três últimas do lado
B, parcerias de Jagger & Richards, isto é, de Cazuza & Frejat.
Frejat, Dé, Guto e Maurício não tiveram dúvidas sobre a sobrevivên-
cia do grupo, só não sabiam quem assumiria os vocais. Nos ensaios, to-
dos passaram pelo microfone. À escolha recaiu sobre Frejat. Ele era o co-
autor de quase todas as músicas e o seu timbre de voz lembrava o de
Cazuza. Quando “Torre de Babel”, primeira música gravada com Frejat
no vocal, para um especial da TV Globo, “A era dos Halley”, estourou
nas rádios, muita gente se assustou com a semelhança. Até a divisão silá-
bica era a mesma! Mas, as contrário do que os maldosos apregoavam,
Frejat não imitava o jeito de Cazuza cantar: o jeito de Cazuza cantar é
que nascera no processo de composição da dupla — era Frejat que fazia
os poemas de Cazuza caberem nas músicas.
Mas, para o Barão, o importante é que “Torre de Babel” saíra pouco
antes do LP “Exagerado”. A música equivalia a uma declaração de “ou-
çam, estamos vivos”. Foi um importante momento de afirmação. E abriu
caminho para, agora sim, o quarto disco do grupo, “Declare guerra”, lan-
çado no final de abril de 1986, pela mesma Som Livre. Embora o título do
disco pudesse fazer supor uma animosidade contra o ex-vocalista, o que
se ouvia era justamente o contrário: Cazuza estava lá, em parceria com Frejat
(“Um dia na vida”), com Frejat, Guto e Denise Barroso (“Maioridade”) e
com Frejat e Clarice Lispector (“Que o Deus venha”, um blues sentido, lindo,
lindo). Na verdade, o Barão estava era mandando um recado aos ex-puxa-
sacos: “Declare guerra aos que fingem te amar (...) Chega de passar a mão
na cabeça/ De quem te sacaneia”. Em entrevista a Jamari França, no “Jor-
nal do Brasil” de 28 de agosto, Frejat dedicava a música “às pessoas que
achávamos que gostavam da gente e, descobrimos, estavam ao lado do
sucesso que a gente tinha na época ou então eram amigas do Cazuza.”
Apesar da qualidade de “Declare guerra”, o álbum não aconteceu.
Além da inexistência de divulgação — dado que acabaria tirando o Ba-
rão da Som Livre —, o LP vinha com sérios problemas de prensagem. A
excursão que se seguiu apenas confirmou ao grupo o abandono ao qual
a gravadora o relegara. Ao mesmo tempo, fez Frejat, Maurício, Dé e Guto
confiarem no seu taco e picarem sua mula em direção à WEA. O fiel pro-
dutor Ezequiel Neves foi junto. Na estréia na nova gravadora, eles fize-
ram logo o melhor disco de sua carreira.

72 Arthur Dapieve
Se “Declare guerra” era um exagero explícito de guitarras e vísceras,
este primeiro disco pela WEA, “Rock” n geral”, era uma beleza de conten-
ção, cheio de sutilezas, mais leve e arejado, arejado por baladas, blues, funks.
Nele, o brilho maior estava em duas parcerias extragrupais de Frejat: “Me
acalmo, me desespero”, com o guitarrista Sérgio Serra (então no Ultraje a
Rigor) e “Quem me olha só”, com o vocalista Arnaldo Antunes (então nos
Titãs). À primeira terminava com uma estrofe perfeita, “o amor sombreia
as trevas/ Clareia até cegar/ É um lar que não abriga/ O crime perfeito de
dois assassinos”. À segunda começava com outra no mesmo nível: “Já reguei
quase todas as plantas/ Já chorei sobre todo o jardim/ Elas gostam da chu-
va que molha/ Elas pensam que o sol é ruim/ Quando o sol nos meus olhos
brilhava/ Por amar minha flor tanto assim/ Fui feliz sem saber que secava/
A rosa e trazia seu fim”. Com sua seção de metais, “Quem me olha só”
está para a carreira do Barão assim como “I got the blues”está para a dos
Rolling Stones: pouco lembrada, mas absolutamente genial.
“Rock” n geral” chegou às lojas em 15 de maio de 1987, um ano e
um mês depois de “Declare guerra”. Período de tempo insuficiente para
arrefecer a revolta do Barão contra sua antiga gravadora. A geladeira à
qual o quarto LP — o primeiro sem Cazuza — fora confinado ainda en-
furecia o grupo. “Odiamos a Som Livre por causa disso”, me dizia Guto
em entrevista publicada no “Jornal do Brasil”. Para Frejat, “a experiên-
cia foi marcante pelo lado podre da indústria fonográfica”. À única cara
livrada era a de Guto Graça Mello, “digníssimo”.
Em fevereiro de 1988, o Barão sofreria sua segunda defecção. Tal
como Cazuza, o tecladista Mauricio Barros saía em busca de seu lugar
ao solo (encontrado fugazmente com o grupo Buana 4 e o hit televisivo
“Só quero sereia”) Frejat, Guto-e Dé, então, incorporam à trupe o
guitarrista Fernando Magalhães e o percussionista Peninha, que já havi-
am participado de algumas faixas de “Rock” n geral”. No entanto, em vez
da sutileza deste, o som do agora (novamente) quinteto reencontraria suas
raízes hard-roqueiras. Mais uma vez o Barão mostrava que tocava mui-
to, muito alto.
Em disco, o resultado dessa reorientação foi “Carnaval” — consi-
derado por Frejat o melhor trabalho do grupo. Se a sofisticação do álbum
anterior espantara um pouco os antigos fas, a crueza do disco lançado em
agosto de 88, com o show de inauguração da danceteria paulistana Da-
maXoc, atraiu novos seguidores, roqueiros até a medula. O disco está
carregado de riffs, fissurado pela seção rítmica. O seu grande sucesso foi
“Pense e dance”, parceria dos três barões originais. Empurrada por Guto

80 3
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
e Peninha, ela traz um verso lapidar: “A felicidade é um estado imaginá-
rio”. O resto de “Carnaval” segue por aí, simples e direto. “Se o rock fica
só cerebral, fica insuportável”, me dizia Frejat em entrevista publicada no
“Jornal do Brasil”de 11 de agosto. “Sutileza não tem vez pro grande
público. Ele só entende o que arrebenta”.
Na excursão de lançamento do disco, Frejat viu sua tese confirmada
com o aumento do público do Barão em São Paulo, em Minas Gerais e
no Sul. Nada mais justo que a gravação de um disco ao vivo fosse feita
no lugar onde este carnaval começara: no DamaXoc, nos dias 1º,2 e 3
de junho de 1989. “Barão ao vivo” flagrava este momento pesado — no
bom sentido — através da releitura de sucessos como “Bete Balanço”, “Pro
dia nascer feliz” e “Satisfaction”, dos Rolling Stones.
A dialética barulho/sutileza se manifestaria novamente no caminho
que conduziu ao oitavo disco. Saturados do peso de seus próprios instru-
mentos, Frejat e Fernando Magalhães (que até então, tal como Peninha,
ainda aparecia como convidado especial nos discos do grupo) decidiram
redescobrir o violão e, nesse processo, revitalizar a porção canção do
Barão, valorizando as (desde sempre) belas melodias.
Essa fase de transição foi vista nos palcos do segundo Hollywood
Rock, realizado no Rio e em São Paulo em janeiro de 1990. Tocando na
Praça da Apoteose no dia 26, Frejat, Dé, Guto, Fernando e Peninha enfi-
leiraram 12 sucessos num ritmo vertiginoso, mas encontraram uma bre-
cha para “Eclipse oculto”, de Caetano Veloso. Tudo correu às mil mara-
vilhas. No entanto, na crítica do show, publicada no “Jornal do Brasil”
do dia 28, Jamari França parecia pressentir algo ao (a)notar que Dé fora
“o único a comprometer a performance do Barão com seu comportamento
de menino mimado”.
Pois é. Dé estava prestes a deixar o grupo. O baixista pretendia gra-
var duas de suas composições no próximo álbum de estúdio: “Empada e
birita” (parceria com Cazuza) e “Alice” (com Sérgio Britto, dos Titãs). Frejat
e Guto foram contra. Dé até hoje diz que saiu por vontade própria. Frejat,
que ele foi convidado a se retirar. De qualquer forma, o baixo foi assu-
mido por Dadi, ex-Cor do Som. Ele gravou o disco no estúdio Nas Nu-
vens entre abril e maio. E a saída de Dé do Barão só foi divulgada em 12
de maio, com os trabalhos quase encerrados. Sozinho, Dé foi tentar a sorte
no Telefone Gol, junto com os guitarrista Sérgio Serra e Nani e com o ba-
terista Kadu.
O disco gravado por Dadi & Cia., “Na calada da noite”, acabou sen-
do engolfado pela morte de Cazuza, na manhã de 7 de julho. As preocupa-

74 Arthur Dapieve
ções estéticas, a opção pelo acústico acabaram meio eclipsadas por uma
música que acabou se tornando um réquiem pelo ex-vocalista, “O poeta
está vivo”, de Frejat com Dulce Quental. Um baladão sentido cuja letra
diz: “O poeta não morreu/ Foi ao inferno e voltou/ Conheceu os jardins
do Eden/ E nos contou”.

Sair do Barão Vermelho não era, a despeito do que o próprio Cazuza


podia declarar, somente um mimo de filho único a querer tudo para si.
Era também uma necessidade de se reencontrar com sua formação musi-
cal. Os outros quatro barões originais, mais jovens, eram roqueiros por
excelência (embora Frejat tivesse paixão pelo blues). Cazuza não. Ele era
roqueiro entre outras coisas. Para o cantor da língua presa a vida não era
só sexo, drogas & rock “n” roll. Era também sexo, drogas e dor-de-coto-
velo, sexo, drogas & samba-canção. Mais do que espaço pessoal, o rock
linha-dura do Barão não lhe dava era espaço estético. Sua grande influência
musical não era Mick Jagger mas Lupicínio Rodrigues.
Seu primeiro disco solo, “Exagerado”, produzido por Nico Rezende
e por Ezequiel Neves (que conseguiu se dividir entre as duas faces do
mesmo Barão Vermelho original), chegou às lojas, via Som Livre, no dia
18 de novembro de 1985. Embora trouxesse material herdado dos seus
tempos de rock grupal, tinha pé e meio no mainstream da MPB, a come-
çar pela faixa-título, escrita com Leoni, do Kid Abelha, sob a inspiração
de Ezequiel, o exagerado em pessoa. “Paixão cruel, desenfreada/ Te tra-
go mil rosas roubadas/ Pra desculpar minhas mentiras/ Minhas mancadas”,
rasga-se a letra. Curiosa mas compreensivelmente, o grande público as-
sociou O exagero ao Intérprete e não ao muso.
Fora “Exagerado”, o disco tem ao menos mais quatro obras-primas:
“Medieval” (parceria de Cazuza com o guitarrista Rogério Meanda), “Mal
nenhum” (com Lobão), “Codinome Beija-flor” (com Ezequiel e Arias) e
“Só as mães são felizes” (com Frejat). Esta última teve sua execução pú-
blica proibida pela Censura Federal por conta de “michês” “putas” e
complexo de Édipo explícito (“[ Você] Nem quis comer a sua mãe” era o
penúltimo verso). Cinco obras-primas tornavam O primeiro trabalho solo
de Cazuza melhor do que qualquer disco do Barão Vermelho até então,
com ou sem o próprio. Nada mal. O céu era o limite.
Gravado em 1986, o segundo LP solo, “Só se for a dois”, foi sair
somente em março do ano seguinte. E pela PolyGram: a Som Livre dis-
solvera seu elenco. O disco não é tão bom quanto “Exagerado”. Duas

dos Anos 80 AS
BRock — O Rock Brasileiro
músicas são excepcionais: “O nosso amor a gente inventa (Estória româán-
tica)”, parceria com Meanda e com o tecladista João Rebouças, e “Soli-
dão que nada”, com o baixista Nilo Romero e o saxofonista George Is-
rael. No todo, o disco dá a impressão de que Cazuza ainda estava ajus-
tando seu novo tom, mais para a MPB do que para o rock.
Dois meses depois, em maio, um diagnóstico reuniu as doenças que
volta e meia continuavam a incomodar Cazuza sob um só e sinistro nome:
Aids. Em outubro e novembro, ele passou sua primeira temporada no
inferno, internado num hospital em Boston, nos Estados Unidos. Quase
morreu. E voltou de lá com a paixão pela vida decuplicada. Apesar da
boataria em torno de sua doença, Cazuza não daria o braço a torcer por
dois anos, tempo que levou para admitir publicamente que era um soro-
positivo. Ele considerava a doença parte de sua vida particular. E, nesta,
não admitia interferências, tanto que nunca — a não ser quando já esta-
va fraco demais — parou de fazer sexo com quem quer que lhe apeteces-
se, fosse qual fosse o sexo. O trabalho se tornou sua trincheira contra a
morte. Arte longa, vida breve, essas coisas.
A partir daí, Cazuza foi mais fundo do que jamais fora em seu tra-
balho. “Só as mães são felizes” estava destinada a se tornar mera canção
de ninar. Seu terceiro disco, “Ideologia”, lançado em abril de 1988, era,
já a partir do seu título, uma declaração de princípios. A faixa-título, que
abria o disco, escancarava logo: “Meus heróis morreram de overdose/
Meus inimigos estão no poder/ Ideologia/ Eu quero uma pra viver/ O meu
prazer/ Agora é risco de vida/ Meu sex and drugs não tem nenhum rock
“in” roll ?. À segunda música, “Boas novas”, seguia no mesmo pique con-
fessional, fazendo referências veladas ao período de internação em Boston:
“Senhoras e senhores/ Trago boas novas/ Eu vi a cara da morte/ E ela estava
viva”. E, embora “Ideologia” contasse com outras faixas fortes, como “Um
trem para as estrelas” (tema não incluído no filme homônimo de Cacá
Diegues, no qual Cazuza fazia uma ponta), “Blues da piedade” e “Faz parte
do meu show”, aquela que estava destinada a transcender o disco, a trans-
cender até a vida, era “Brasil”.
Composta por Cazuza, Israel e Romero, a música se tornou o hino
oficioso de um país sem ética. A letra era um queixume só: “Não me con-
vidaram/ Pra essa festa pobre (...)/ Não me elegeram/ Chefe de nada (...)/
Não me sortearam a garota do Fantástico/ Não me subornaram (...)”. E
se a canção pedia raivosamente que a nação mostrasse sua cara, não ter-
minava sem uma declaração de amor belíssima: “Grande pátria desim-
portante/ Em nenhum instante/ Eu vou te trair”. Gravada também por Gal

76 Arthur Dapieve
Costa para a abertura de uma novela das oito da Globo, “Vale tudo”, de
Gilberto Braga, “Brasil” deu a Cazuza um respeitado status de guru. Ape-
sar de sua atualidade, a música foi feita muito antes da doença (e a con-
sequente revisão de valores) se manifestar. “Eu já andava grilado comi-
go, me achando repetitivo, preso nos mesmos temas”, dizia Cazuza numa
entrevista a José Castello, publicada no “Jornal do Brasil” de 24 de abril.
“Não foi a doença que detonou esta crise, talvez tenha sido a crise que
detonou a doença”.
Apesar dela, Cazuza levou “Ideologia” aos palcos a partir de agos-
to. O show era comovente, mas havia um componente mórbido na reu-
nião de tanta gente em torno daquele cantor magérrimo vestido de bran-
co, um clima de “vá ver antes que acabe”. O espetáculo era um best of,
mas abria com uma música que Cazuza nunca havia cantado, “Vida lou-
ca vida”, de Lobão e Bernardo Vilhena. Cantados por Cazuza, os versos
“vida louca vida/ Vida breve/ Já que eu não posso te levar/ Quero que você
me leve” ganhavam outra dimensão: sabia-se, naquele instante, que a
história estava se fazendo diante dos olhos de cada espectador. Mais adian-
te, “O tempo não pára”, parceria de Cazuza com Arnaldo Brandão, fa-
zia pensar numa “Brasil, parte 2”. “Te chamam de ladrão, de bicha, ma-
conheiro/ Transformam um país inteiro num puteiro/ Pois assim se ga-
nha mais dinheiro”, denunciava a estrofe final. A música daria título ao
disco gravado ao vivo no Canecão, no Rio, nas noites de 14,15 e 16 de
outubro de 1988.
O tempo não pára mesmo. E Cazuza não tinha muito tempo de so-
bra. Em fevereiro de 89, o que era para ser mais um check-up se tornou
mais uma temporada em Boston. Na volta, foi internado na Clínica São
Vicente, de onde só saía para gravar o álbum duplo “Burguesia” (cujo
título original era “A volta do barão”) ou em ocasiões especiais, como a
comemoração de seu 31º aniversário (no dia 4 de abril) e a entrega do
Prêmio Sharp (à qual compareceu de cadeira de rodas para levar as esta-
tuetas de melhor disco, música e especial de melhor música, “Brasil”).
Gravado em condições desesperadoras, por vezes numa maca, “Burgue-
sia” chegou às lojas no dia 21 de agosto. Era difícil lidar com aquele tra-
balho: ele era fruto de uma enorme vontade de viver, ou melhor, de trans-
cender a vida através da arte, mas, por outro lado, era artisticamente in-
consistente. Era até cruel notar o que faltava ao disco era justamente vi-
gor, pois não poderia ser de outro jeito.
Na “Folha de S. Paulo” de 13 de agosto, o crítico André Forastieri
encarava o problema. “Existem duas maneiras básicas de se julgar o novo

O Rock Brasileiro dos Anos 80 77


BRock —
LP de Cazuza”, escrevia ele. “Uma é levar em consideração que ele está
com Aids e suas dificuldades para gravar o disco (...). Isso seria condes-
cendente e indigno, como seria encher a bola de qualquer disco de Ray
Charles por ele ser cego. Outra, mais honesta e, pela reação à matéria sobre
Cazuza publicada na “Veja”, alguns meses atrás, mais arriscada, é criticar
o trabalho de Cazuza com se faria com um disco de qualquer outra pes-
soa ou do próprio Cazuza, anos atrás”. Escusado dizer que Forastieri
cravou a segunda opção. À reportagem da revista “Veja” à qual ele faz
referência chocou pelas fotos — que expunham a degenerescência física
do cantor — mas, sobretudo, pelo texto que, fazendo futurologia de gos-
to duvidoso, previa que Cazuza jamais se igualaria a Noel Rosa, também
morto precocemente.
Se a letra de “Burguesia” era constrangedora (“A burguesia fede/ À
burguesia quer ficar rica/ E enquanto houver burguesia/ Não vai haver
poesia”), a de “Cobaias de Deus”, parceria com Ângela Rô Rô, era co-
movente (“Me sinto cobaia, um rato enorme [...] Meu pai e minha mãe,
eu estou com medo/ Porque eles vão deixar a sorte me levar “). E a últi-
ma faixa do álbum duplo, “Quando eu estiver cantando”, explicava o
disco inteiro num simples verso: “Porque o meu canto é o que me man-
tém vivo”.
Cazuza ainda viveria quase um ano, mesmo sem saúde para cantar,
experimentando tratamentos aqui e ali, anda uma terceira vez internado
em Boston. Se Lou Reed falava em “crescimento em público”, Cazuza
viveu uma digníssima morte em público. E parou de respirar às 8h30m
de 7 de julho de 1990, no apartamento dos seus pais, em Ipanema. Foi
enterrado na tarde daquele mesmo dia, enquanto cerca de 500 amigos e
fãs cantavam trechos de “Pro dia nascer feliz” e “Ideologia”. Frejat, Guto,
Dé, Maurício e Ezequiel Neves, companheiros de Barão Vermelho, segu-
ravam as alças de seu caixão.

78 Arthur Dapieve
6.
PARALAMAS DO SUCESSO
ALAGADOS, TRENCHTOWN, FAVELA DA MARÉ

Todos os professores do Bahiense do Centro sabiam: aquela era a pior


turma do cursinho pré-vestibular. Sabiam, também, que boa parte da culpa
era daqueles três filhinhos de papai que ficavam zoneando e batucando
no fundo da sala. Dois deles tinham acabado de chegar de Brasília; um
era filho de militar da Aeronáutica; outro, de diplomata do Itamarati. O
terceiro era do Rio mesmo, o que em nada melhorava sua situação: era
um doido varrido que, em horas ainda mais vagas do que as perdidas em
aulas de Química, Literatura ou Gramática, bancava o baterista tocando
bongôs e fundo de gaiola de passarinho. Para tentar controlar a situação
era preciso expulsar aquele trio de sala. Não seria nem a primeira nem a
última vez. Então, quem sabe, talvez fosse possível trabalhar e estudar em
paz. Os baderneiros que fossem para Copacabana, incomodar os vizinhos
da vovozinha.

Em Brasília, o filho de militar (Herbert Vianna) e o filho de diplo-


mata (Bi Ribeiro) eram apenas bons conhecidos, dois entre os tantos que,
com o tempo, montariam bandas que atenderiam por Legião Urbana, Plebe
Rude, Capital Inicial. Herbert era um dos raros e felizes possuidores de
uma guitarra “de verdade”, uma Fender importada do Japão. No entan-
to, tomava aulas de violão bossa-novista. Bi, por sua vez, não tinha ne-
nhum pendor musical especial, apenas gostava muito de reggae.
Quando a família Vianna se mudou para o Rio, em 1978, Herbert,
então com 16 anos, se perdeu longe da patota das superquadras, longe
do intercâmbio de informações e discos com gente como Renato Russo,
André Mueller, Fê Lemos. Odiou a cidade maravilhosa e se trancou em
seu quarto, passando a se dedicar furiosamente à guitarra. Quando Bi veio
para o Rio, no ano seguinte, Herbert insistiu para que ele comprasse um
baixo — se Sid Vicious podia tocá-lo, por que não Bi? Faltava um bate-
rista ao duo, que, entretanto, gravava fitas caseiras pra lá de experimen-
tais. O das baquetas surgiu tempos depois, na figura de Vital Dias, cole-
ga de cursinho pré-vestibular no Bahiense. Nos fins de semana o trio en-

80 79
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
saiava no apartamento de Ondina de Amorim Nóbrega, avó de Bi, no
Posto 6, em Copacabana. A tradicional briga-com-os-vizinhos-que-recla-
mam-do-barulho-e-acabam-chamando-a-polícia, experimentada por todo
e qualquer grupo de rock do planeta, acabou gerando uma das primeiras
músicas do ainda não-batizado trio: “Vovó Ondina” (“É gente fina/ Vovó
Ondina/ São trinta soldados contra uma vovó”). Com o ingresso de Her-
bert, Bi e Vital na faculdade, os ensaios foram se espaçando e o grupo se
desmilingiúindo. Passado o primeiro ano de aprendizado superior, 1980,
os três se reaproximaram. Herbert já estava cheio de Arquitetura, Bi, de
Biologia. Foi com este espírito que os agora autonomeados Paralamas do
Sucesso — nome escolhido no meio de uma lista de outros nomes igual-
mente insólitos, como Os Cadeirinhas e As Plantinhas da Mãe — se ins-
creveram no festival da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde
estudava Bi, em meados de 1981.
O grupo levou bomba no festival: suas três músicas inscritas — en-
tre elas “Vital e sua moto” — receberam nota mínima numa escala de O
a 100. Mesmo desclassificados, os Paralamas conseguiram a chance de
tocar no intervalo. Só que, chegada a hora, cadê o Vital? Um amigo de Bi
sugere como regra-três um estudante de Zootecnica, João Barone. Treze
anos depois, Herbert ainda se lembra de seu espanto diante do baterista:
“Pouco antes de entrar no palco olhei pra ele, tímido, na dele com aque-
las mãos enormes, parecendo cachos de bananas. Mas ele subiu e tocou
muitíssimo bem, arrebentou.” Naquele momento, tanto pelo forfait de
Vital quanto pela excelência de Barone, ficou claro para os outros dois
que a batata do velho colega de Bahiense estava assando. À amizade é que
segurou a barra por mais algum tempo.
O show no intervalo do festival de 81 rendeu uma espécie de bis lon-
gínguo. No dia 17 de setembro de 1982, os Paralamas estavam de volta
à Rural: Herbert, Bi, Vital... E Barone. Para tocar no barzinho local por
quatro horas. À idéia era fazer um diplomático revezamento de baterista.
Vital tocou as duas primeiras músicas. Barone, as duas seguintes. E Vi-
tal... Nem voltou ao palco. Sentiu o clima, a qualidade da concorrência e
sumiu. Acabou virando o Pete Best paralâmico, meio história, meio mito.
Hoje, Vital tem uma banda de thrash metal chamada Sadom. Além de,
por conta de “Vital e sua moto”, ter lugar de honra no panteão do BRock.
No final de novembro, Herbert, Bi e Barone tocaram pela primeira
vez no Western. Por essa época, seu repertório incluía, além de “Vital”,
“Vovó Ondina” e “Patrulha noturna”, coisas com “Rodei”
(na escola)
“Química”
(do velho amigo de Brasília, Renato Russo) e “Encruzilhada

80 Arthur Dapieve
UA

do 1º contrato, em 1983
Paralamas do Sucesso: Herbert, Bi e Barone na assinatura
agrícola-industrial”, músicas que caíam como um óculos para uma ban-
da que parecia reunir os três primeiros alunos da classe — o que não es-
tava longe da verdade. O sucesso foi tamanho que os Paralamas pude-
ram alugar os oito canais do Tok Studios, em Botafogo, para gravar sua
primeira fita demo. Dela constavam “Vital e sua moto”, “Patrulha no-
turna”, “Encruzilhada agrícola-industrial” e “Solidariedade não” (que
seria censurada por esculhambar o golpe militar liderado por Jaruzelwski
na Polônia). Nessa altura dos acontecimentos, Herbert já superara a he-
sitação inicial em assumir os vocais — a banda experimentara alguns
vocalistas — e era o frontman.
As três músicas não censuradas foram enviadas para a Fluminense
FM e encontraram abrigo na programação graças, sobretudo, à força dada
pelo fotógrafo e DJ Maurício Valladares. Quando, no primeiro dia de
1983, os Paralamas voltaram ao Western, o casarão arrebentou de tanta
gente. No mês seguinte, eles estavam abrindo para Lulu Santos no Circo
Voador. E, em 26 de março, compareceram à “Primeira Noite Punk do
Rio de Janeiro”, realizada no mesmo local. Presente na platéia, Ana Maria
Bahiana registrava, no “Globo” do dia 29, que a noite fora aberta pelos
“Paralamas do Sucesso, um trio new wave simpatizante dos punks”. Para
explicar sua presença no meio de bandas como Os Inocentes, Lixomania,
Cólera e Descarga Suburbana, Herbert tomou o microfone: “Não somos
punks, mas apoiamos o movimento. Sempre emprestamos nossa aparelha-
gem ao Coquetel Molotov e estamos aqui para homenagear vocês”. Bahia-
na registrava ainda os apupos e o repertório: “My way” (Frank Sinatra
revisto por Sid Vicious, dos Sex Pistols), “Police & Thieves”(Lee Perry e
Junior Murvin revistos pelo Clash) e “Veraneio vascaína” (“de dois punks
de Brasília”, 1. é, Renato Russo e Flávio Lemos). Bahiana registrava, por
fim, a má recepção aos membros do Kid Abelha & os Abóboras Selva-
gens, chamados ao palco por Herbert para dar um gás nos vocais.
O alarido em torno dos Paralamas do Sucesso atraiu três gravado-
ras, ávidas por descobrir uma nova Blitz. Herbert, Bi e Barone recusaram
as propostas da Warner (escaldados pelos problemas lá enfrentados pe-
los amigos do Kid Abelha) e da PolyGram; aceitaram a da EMI-Odeon,
justo a casa de Evandro Mesquita e Cia. Com o tempo, os Paralamas abri-
ram as portas da gravadora da Rua Mena Barreto para os “conterrâne-
os” Legião Urbana e Plebe Rude. Em abril, eles assinaram contrato. E em
junho saía o primeiro compacto, com “Vital e sua moto” no lado A e “Pa-
trulha noturna” no B. O disquinho vendeu razoáveis 11 mil cópias, que
não espelharam a maciça execução de “Vital” nas rádios.

82 Arthur Dapieve
Antes do final do ano estavam com o primeiro LP, “Cinema mudo”,
nas ruas, e estavam tocando na casa noturna Danceteria, em Nova York.
O disco, contudo, estava longe de ser o dos seus sonhos. “A gente se
fodeu”, lembra Herbert. Motivo: a direção artística de Miguel Plopschi,
que recheou o disco de guitarras-base e teclados, maculando a pureza
minimalista da banda. Na distância entre as concepções e as concessões,
o cantor-guitarrista enxerga um produto “musicalmente embaraçoso”.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. “Cinema mudo” registrava o proto-
repertório dos Paralamas (“Vital”, “Patrulha”, “Vovó”, “Química”, “Vo-
lúpia”, “Encruzilhada”) e trazia uma fresca parceria da dupla Herbert-
Barone com Renato Russo (“O que eu não disse”, que, no disco, ganhou
a participação da slide guitar de Lulu Santos). Bem ou mal, “Cinema
mudo” hoje faz parte do acervo sentimental do BRock.
Traumatizados com o que consideraram a diluição de suas informa-
ções de reggae pela overprodução orientada por Plopschi e executada por
Marcelo Sussekind, experiente guitarrista na época membro do grupo
Herva Doce, os Paralamas decidiram explicitar ainda mais suas influên-
cias no seu segundo disco, “O passo do Lui”, lançado em agosto de 1984.
O Lui em questão — Luiz Antônio Alves na certidão de nascimento —
era um velho amigo da banda, exímio dançarino de ska, artista plástico e
músico performático. Ao pô-lo no título e na capa do LP, Herbert, Bi e
Barone estavam publicamente pagando tributo às two-tone bands ingle-
sas, principalmente Madness e The Beat, que amavam acima de todas as
coisas, exceto, talvez, o new wave reggae do Police.
Com o mesmo produtor, Sussekind, menos assíduo no estúdio do que
durante as sessões de “Cinema mudo”, o trio conseguiu concluir um LP
mais à sua feição. De cara, o disco estourou o hit “Óculos”, que, hi-
perexecutado, quase folcloriza Herbert como o quatrolhos de plantão. O
refrão era irresistível: “Por que você não olha pra mim?/ Me diz o que é
que tenho de mal/ Por que você não olha pra mim?/ Por trás destas lentes
tem um caral legal”. Mas tirando “Óculos” e “Assaltaram a gramática”(de
Lulu Santos e Waly Salomão), o disco não era assim tão pra cima, mes-
mo que a porção instrumental fosse uma festa só — como, por exemplo,
em “Ska”. Quase todas as letras (“Me liga”, “Mensagem de amor”, “Meu
erro”, “Fui eu”) eram dor-de-cotovelo da melhor qualidade. “Romance
ideal”, então, era Masoch puro: “Ela é só uma menina e eu deixando que
ela faça/ O que bem quiser de mim/.../ Se eu queria enlouquecer/ Este é o
romance ideal”. O sofrimento era tanto que por muito tempo Herbert
acreditou que só conseguia compor na infelicidade.

O Rock Brasileiro dos Anos 80 83


BRock —
Se até ali os Paralamas tocavam em lugares pequenos, para 300 ou
400 pessoas, a partir de “O passo de Lui” o sucesso aumentou de pro-
porção, geometricamente. E, de tal forma, que depois de um show gra-
tuito dentro das “Sextas Musicais” do BarraShopping, show que atraiu
cerca de cinco mil garotos, num dia de semana e para um local distante,
show que deflagrou um quebra-quebra e uma guerra de sorvetes, Herbert
achou que os PdS haviam se transformado nos Beatles. Parte desse entu-
siasmo juvenil se devia ao nível alcançado pelo trio em suas apresenta-
ções ao vivo, nível burilado durante os 120 espetáculos realizados pelo
Brasil no ano de 84. Quando o Rock in Rio chegou, em janeiro de 1985,
a banda não tinha mais o que temer no palco.
Em vez de partir para a superprodução — caminho seguido por, en-
tre outras bandas, Blitz e Kid Abelha —, o trio preferiu enfrentar deze-
nas de milhares de pessoas de cara limpa, apenas na companhia de três
irônicas palmeirinhas cenográficas. A estratégia deu certo. Por duas ve-
zes,a 13 e a 16 de janeiro, os Paralamas saíram do palco aclamados pelo
público da Cidade do Rock armada em Jacarepaguá. No primeiro show,
na hora de tocar “Inútil”, do Ultraje a Rigor, Herbert declarou: “Há três
anos este espetáculo seria impossível. Hoje esse sonho é real graças aos
grupos brasileiros que divulgaram o rock. Nós dedicamos este show a
Lobão e os Ronaldos, Ultraje a Rigor, Titãs e Magazine”. Foi ovacionado.
Outro show memorável, ou melhor, outros dois shows memoráveis
aconteceram no Gigantinho, em Porto Alegre, numa mesma noite, 15 de
junho, um sábado. Os Paralamas fizeram duas sessões, uma às 20h30m,
outra duas horas depois, para 17 mil pessoas cada. Para se ter uma idéia
da dimensão da proeza, o recorde anterior pertencia a Roberto Carlos:
15 mil pessoas numa noite. Naquele sábado memorável, a banda ainda
recebeu seu primeiro Disco de Ouro, pelas 100 mil cópias vendidas de “O
passo de Lui”, lançado quase um ano antes.
Foi no Sul também que, meses depois, Barone sofreu um acidente de
carro que o deixou no estaleiro por um bom tempo. Temporariamente
de volta à época em que faziam uma dupla sem baterista — mas agora
tendo bateria eletrônica e gravador de quatro canais para brincar —, Her-
bert e Bi voltaram a se trancar no quarto de Vovó Ondina. Certo dia, um
tio de Bi que colecionava discos lhes introduziu à música africana. Na
mesma noite, Herbert compôs o riff primordial de “Alagados”. Compôs
e escondeu, porque achou que era “samba demais”. No entanto, a curio-
sidade de ver a reação de outras pessoas falou mais alto e o cantor-gui-
tarrista, cheio de dedos, armou uma “audição” para Bi e para o amigo

84 Arthur Dapieve
ator Alexandre Régis. Ao contrário do que Herbert esperava, a recepção
foi calorosa. Estava definida a música que puxaria o terceiro LP dos Para-
lamas do Sucesso.
Enquanto gravava este disco — a se chamar “Selvagem?” — Herbert
se viu no meio de um barraco histórico. Na terceira noite do projeto “Cida-
de Live Concert”, 23 de fevereiro de 1986, uma confusão generalizada
no palco armado no Estádio de Remo da Lagoa envolveu Leo Jaime, Leoni
e Paula Toller (os dois do Kid Abelha) e Herbert. Leo não apresentou Leoni
como seu parceiro na música “Fórmula do amor”. Leoni partiu para cima
de Leo. A mulher de Leoni, a modelo Fabiana Kherlakian, começou a
discutir com Paula, que a agrediu. Leoni tentou defender Fabiana mas le-
vou um pandeirada de Paula. Herbert, namorado de Paula, se meteu na
briga. E a coisa ficou mais ou menos nisso. Ferido, só o Kid Abelha: Leoni
saiu da banda e formou os Heróis da Resistência. O escândalo, no entan-
to, reverberou por muito tempo. Um baita mico.
Antes do lançamento de “Selvagem?”, com Barone já totalmente
recuperado da fratura na perna, os Paralamas fizeram sua primeira incur-
são aquela que, no decorrer dos anos, se tornaria sua pátria adotiva, a
Argentina. No começo de março, o trio tocou em Córdoba, no festival
Chateau Rock, e em Buenos Aires, na danceteria Paradis. Antes do final
do ano, em novembro, com “Selvagem?” já editado lá, eles voltariam para
tocar no estádio do Obras Sanitárias, em Buenos Aires, dividindo a noite
com o grupo local Sumo. “O convite à sensualidade e a densa calma do
reggae jamaicano, acentuada pela paixão tribal das percussões africanas,
explodem nos Paralamas ao lado de letras vivas e de uma expressiva ca-
pacidade para desenvolver-se no aspecto sonoro dos anos 80 e isto foi o
que entendeu claramente um público alegre como poucos”, derramou-se
o jornalista Carlo Polimeni no “Clarín” de 19 de novembro.
No Brasil, “Selvagem?” também foi recebido com fogos de artifícios,
virando parâmetro como “o futuro do rock”. O que dava essa autorida-
de moral? Bem, um hit nato, “Alagados”, que vingou dentro da própria
EMI-Odeon, que pretendia fazer de “A dama e o vagabundo” a música
de trabalho. Nessa faixa manifestava-se, além da influência das sonori-
dades africanas, a crescente consciência social daqueles três filhinhos de
papai: “Alagados, Trenchtown, Favela da Maré/ À esperança não vem do
mar/ Nem das antenas de TV/ A arte de viver da fé/ Só não se sabe fé em
quê”. “Alagados” à parte, O disco continha um hilário toast, “Melô do
Marinheiro”, uma letra de Gilberto Gil musicada pelo trio, “A novida-
de”, e uma apaixonada versão para Tim Maia, “Você”, Os receios da

80 85
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
gravadora ante o desempenho comercial de “Selvagem?” logo se mostra-
ram ridiculamente infundados. Quando, na noite de 30 de julho de 86,
uma quarta-feira, os Paralamas subiram ao palco do Canecão para lan-
çar oficialmente o disco, este já batera a casa de 300 mil cópias vendidas
— um mês e meio depois de ter chegado as lojas.
A mestiçagem de “Selvagem?” deu o empurrãozinho que faltava para
a banda deslanchar uma carreira internacional como nenhuma outra bra-
sileira jamais tivera. Além da Argentina, a virada 86/87 levou os Paralamas
à Espanha, ao Paraguai, ao Uruguai, a Portugal, ao Chile, à França e à
Suíça, sempre com boa receptividade. No Festival de Montreux gravaram,
a 4 de julho de 1987, seu primeiro álbum ao vivo, intitulado simplesmente
“D” — sendo “D”, a quarta letra do alfabeto, correspondendo ao quar-
to disco. Além dos incontornáveis hits, o LP incluía duas músicas inédi-
tas no vinil: “Será que vai chover?” (do próprio Herbert) e “Charles anjo
45” (de Jorge Ben). “D” foi o primeiro disco a contar com um quarto
paralama, o tecladista João “Fera” Gonçalves. Por esta época, a banda
estava sentindo a necessidade de agregar novos músicos para expandir seu
espectro sonoro. É a época, também, em que os PdS começam a traba-
lhar com uma seção de metais. Em “D?”, no entanto, o solitário metal em
“ska” é o sax de George Israel, do Kid Abelha.
O ano de 87 fechou com a exibição, em horário nobre, pelo SBT, do
especial “V, o vídeo”, produzido pela Antevê, com roteiro e direção de
Sandra Kogut e Roberto Berliner. Levado ao ar no dia 28 de dezembro,
“V? era uma tentativa da emissora de Sílvio Santos de passar uma ima-
gem mais sofisticada. No Brasil, tradicionalmente, especial musical de fim
de ano é coisa para Roberto Carlos, Xuxa & Cia. O documentário, que
pouco depois seria lançado como home video, misturava entrevistas, clips
(de “Alagados” e “A novidade”, este gravado na barca Rio-Niterói) e cenas
de shows, inclusive o de Montreux.
Se 1987 fechou bem, 1988 abriu melhor ainda. Logo no dia 3 de
janeiro os Paralamas estavam de volta a Buenos Aires, para abrir o show
de Tina Turner no estádio do River Plate, o Monumental de Nunez. Her-
bert, Bi e Barone dividiram com a ex-senhora Ike o entusiasmo dos pro-
tenhos. Quatro dias depois, o trio já estava na Praça da Apoteose, no Rio,
abrindo a segunda noite do primeiro Hollywood Rock para o UB40 (ou-
tra de suas grandes influências) e o Simple Minds. Depois de lavar a alma
da platéia por uma hora, com sua saraivada de sucessos, Herbert ainda
voltou ao palco no final da apresentação do UB40, convocado pelo gui-
tarrista Robin Campbell para dividir os vocais de “Sing our own song”.

86 Arthur Dapieve
Em fevereiro, os três paralamas oficiais, mais João Fera, Matos (trom-
bone), Humberto Araújo (sax) e Don Harris (trompete), se enfurnaram
nos estúdios da EMI para gravar seu quinto LP, “Bora Bora”. No mês
seguinte, lá estava o trio mixando o disco no estúdio Townhouse, em
Londres, tendo nas salas contíguas Eric Clapton, Freddie Mercury e Boy
George. Um luxo, mas nem tudo foram flores. Uma safra defeituosa de
fitas Ampex quase põe todo o trabalho Tâmisa abaixo. Foi preciso um
milagre para que o reggae pesado “O beco” pudesse ser lançado a tempo
de fazer sucesso e atrair as atenções para o álbum que vinha atrás.
“Bora Bora” chegou às lojas no dia 27 de maio. Um disco maníaco-
depressivo. O lado A era uma festa polirrítmica, com “O beco”, o afro-
instrumental “Bundalelê”, o baião-forró-reggae-funk “Um a um?” (de
Edgar Ferreira) e o toast drogas-não “Don't give me that” (parceria de
Herbert e Bi com o DJ jamaicano Peter Metro). O lado B era uma fossa
abissal, com “Uns dias” (“Fu chorava de amor/ E não porque sofria/ Mas
você chegou, já era dia/ E não tava sozinha/ Eu tive fora uns dias/ Eu te
odiei uns dias/ Eu quis te matar”, se rasgava aquela que até hoje é a mú-
sica favorita de Herbert Vianna), “Quase um segundo” (“Às vezes te odeio
por quase um segundo/ Depois te amo mais”, declarava a balada, com o
piano do roqueiro argentino Charly Garcia ao fundo) e “O fundo do co-
ração” (“Nada me espanta/Sou quase feliz/ Eu sempre pergunto/ Você nun-
ca diz/ Se é assim o amor/ Sempre por um triz”). Este lado era tão escan-
carado que, pouco depois do lançamento de “Bora Bora”, quando os
Paralamas encontraram Cazuza num aeroporto, o intérprete de “Exage-
rado”se agarrou a seu amigo Herbert dizendo: “Este lado B é meu! Você
roubou!” O motivo de tamanha dor-de-cotovelo em público? O fim do
casamento de Herbert com Paula Toller. “Teve época em que eu perdi o
rumo. Hoje eu tenho distanciamento para falar a respeito dela”, me ad-
mitia Herbert em entrevista publicada no “Jornal do Brasil” de 25 de maio.
Essa dor conferiu a “Bora Bora” as cicatrizes da maturidade. As le-
tras nunca haviam sido tão boas. O instrumental estava no ponto. Cinco
dias antes de o disco chegar às lojas, os PdS fizeram um show para convi-
dados na casa noturna Aeroanta, em São Paulo. Enquanto a chuva eo frio
providenciavam o melhor clima possível para a infelicidade do album, no
palco, o trio (e sua banda de apoio) esticou as seis músicas programadas
para um espetáculo completo, de uma hora de duração. Ali, cada um mos-
trou ser senhor de seu instrumento — sendo que Barone comprovou ser O
melhor baterista do rock brasileiro. O concerto na noite de encerramento
no Mara-
do terceiro e último festival Alternativa Nativa, em 17 de julho,

80 87
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
canãzinho, e uma temporada de duas semanas no Canecão, a partir de 18
de agosto, expuseram esse estado-da-arte ao grande público.
Mais de um ano, bem aproveitado em excursões, separou o parto de
“Bora Bora” das gravações do disco seguinte, “Big bang”. Foi um ano
importante para mudar o astral do principal letrista dos Paralamas. O que
“Bora Bora” tinha de introvertido e chuvoso, “Big bang” tinha de extro-
vertido e ensolarado. Até o show de apresentação do sexto LP para con-
vidados refletiu essa troca de estações. Em vez de São Paulo, Rio. Em vez
de frio, calor. Em vez da Aeroanta, a Fundição Progresso. Foi lá que, a
20 de novembro de 1989, Herbert mostrou que dera a volta por cima,
misturando, nas letras, o coletivismo de “Selvagem?” com o individua-
lismo de “Bora Bora”.
Coletivismo em “Perplexo”: “Fim da censura, do dinheiro, muda
nome, corta zero/ Entra na fila de outra fila pra pagar/ Quero entender,
quero entender, quero entender/ Tudo o que eu posso e o que não pos-
so”. Individualismo em “Lanterna dos afogados”: “Quando está escuro/
E ninguém te ouve/ Quando chega a noite/ E você pode chorar/ Há uma
luz no túnel/ Dos desesperados/ Há um cais de porto/ Pra quem precisa
chegar”. Entre estes dois hits de “Big bang”, faixas que só nos faziam
chamar os Paralamas do Sucesso de grupo de rock por força do hábito
ou falta de melhor expressão. O disco englobava ska-instrumental (“Vul-
cão dub”), sambinha bossa-novista (“Nebulosa do amor”), musica afro-
progressiva (“Esqueça o que te disseram sobre o amor”) e alguma coisa
irrotulável, rap-repentes no meio do caminho entre o Nordeste e a Jamaica
(“Rabicho do cachorro rabugento” e “Cachorro na feira”). A rigor, so-
mente a linda “Lanterna dos afogados” poderia ser considerada pop-rock;
o resto era uma saudável mixórdia de gêneros.
Em janeiro de 1990, os Paralamas voltavam pra casa, isto é, para a
estrada. Sucesso aqui e alhures, como sempre. E a sensação de que, com
dez anos de carreira, já era possível dar uma parada nos estúdios e olhar
para trás. Daí, “ Arquivo”. Lançado no final do ano, o disco encarava a
nova década com uma inédita (“Caleidoscópio”, que anos antes Herbert
dera para Dulce Quental gravar), uma “versão 90” para “Vital e sua moto”
e uma faixa remixada (“Cinema mudo”), fora os maiores sucessos anun-
ciados na capa: “Óculos”, “Meu erro”, “Alasados”, “Olbeco" erezétcs
Um passado irretocável preparando o terreno para discos cada vez mais
ousados, trabalhos solo e até uma compilação em espanhol. Herbert ain-
da iria se orgulhar de seu sotaque argentino.

88 Arthur Dapieve
Na
TITÃS
UM POR OITO (OU NOVE), NOVE (OU OITO) POR UM

As coisas eram mais ou menos assim na virada dos anos 70 para os


80. Marcelo Fromer, Tony Bellotto e Branco Mello eram o Trio Mamão.
Depois se juntaram a mais quatro músicos e formaram a banda Maldade.
Nando Reis e Paulo Miklos faziam parte do Sossega Leão. Nando Reis
também tocou com os Camarões. Paulo Miklos também tocou com o Bom
Quixote. Paulo Miklos e Arnaldo Antunes faziam parte de Aguilar & Banda
Performática. Branco Melo, Ciro Pessoa e Charles Gavin eram os Jetsons.
Charles Gavin também tocou com o Ira. Charles Gavin tocou ainda com
o Zero Hora, o Zona Franca e a Santa Gang. Charles Gavin também to-
cou no Cabine C, de Ciro Pessoa. André Jung quase tocou com o Aura.
André Jung fez parte dos Perplexos. Marcelo Fromer, Branco Mello, Pau-
lo Miklos e Arnaldo Antunes eram alunos do Colégio Equipe. Sérgio Britto
não tocava com ninguém. Deu pra entender?

São Paulo tremia na virada dos anos 70 para os 80. O epicentro, se


epicentro houvesse, bem podia ser o Teatro da Lira Paulistana, na verdade
um misto de porão escuro e galpão preto localizado embaixo da Rua Teodoro
Sampaio. Para lá havia convergido a música alternativa da cidade, Arrigo
Barnabé & Banda Sabor de Veneno, Itamar Assumpção & Banda Isca de
Polícia, Premeditando o Breque, Língua de Trapo, Rumo. Lá, projetos como
o “Virada paulista” e o “Boca no trombone” incentivavam O aparecimen-
to de novos artistas e grupos. Lá, diante de 30 pessoas, estreou, em agosto
de 1982, uma banda chamada Titãs do Iê-lê. Um octeto formado por Marcelo
Fromer, Tony Bellotto, Branco Mello, Nando Reis, Paulo Miklos, Arnaldo
Antunes, Ciro Pessoa e Sérgio Britto. Dificilmente eles seriam — ou gosta-
riam de ser — chamados de grupo de rock. “Tinha muita coisa diferente
acontecendo”, lembra Arnaldo Antunes, treze anos depois. “Nunca vi o rock
nacional como um movimento. Sempre vi como uma possibilidade de coi-
sas diferentes se manifestarem na área que a gente chama de rock *n” roll.”
Essas “coisas diferentes” eram a própria origem dos membros dos Titãs
do Iê-Jê. Os Beatles e a Tropicália eram informações comuns. À partir delas

80 89
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
No cabelereiro: os Titãs do Iê-lê, anda com André Jung na bateria
é que cada um atirava numa direção. O Trio Mamão, por exemplo, fazia
uma MPB esquisitíssima, se apresentava com roupas cobertas por lante-
joulas, decorava o palco com araras. No repertório, músicas como “ Alcinos”
e “Rainha pretinha da voz africana”, uma homenagem a Clementina de
Jesus. O Sossega Leão era um bando de gente chegada a afro-latinidades.
A Aguilar & Banda Performática era isso, um mix de música e teatro, com
longos textos musicados e performances alegres porém herméticas. Os Per-
plexos eram um grupo de jazz. Por cima de todos, um verniz sóciocultu-
ral-econômico. Arnaldo era filho de um professor e pianista; Sérgio, do polí-
tico Almino Afonso. Arnaldo estudava Linguística; Sérgio, Filosofia. Ambos
na USP.
Em 1981, um projeto aproximou vários dos futuros Titãs: o “Fita
das musas”, no qual cada um gravava uma música em homenagem à sua
dita cuja. Participaram da brincadeira, entre outros, Arnaldo, Paulo, Mar-
celo, Branco, Tony, Sérgio, Ciro e o carioca Fausto Fawcett. À fita che-
gou a ter lançamento “comercial” no bar Terceiro Mundo. À partir des-
sa festa um projeto foi chamando outro e os Titãs começaram a tocar
juntos. Bem, tocar era força de expressão: embora todos tivessem algu-
ma formação musical, na prática eles aprenderam com o grupo. Nesses
primórdios, inclusive, alguns ainda tocavam instrumentos diferentes da-
queles nos quais se tornariam conhecidos. Paulo era o baixista e Nando,
o baterista. “Lembro que na época foi meio assim: “Quem vai tocar O
quê?”, dizia Paulo na revista “Bizz”de novembro de 89.
Foi um conhecido dele que acabou assumindo a bateria às vesperas
de uma apresentação no Sesc Pompéia, em outubro de 82: 0 pernambucano
André Jung. Foi como um noneto que os Titãs do Ie-lê fizeram a ronda
na noite paulistana. Napalm, Pub Vitória, Madame Sata, um circuito que
ainda se tornaria mitológico. Passaram dois anos nessa vida, trabalhan-
do um repertório que alternava composições próprias — todos no grupo
compunham — e releituras por vezes insólitas — de Lennon & McCartney,
Roberto Carlos, Tim Maia, Odair José, Noel Rosa. Covers nunca feitos,
entretanto, com a intenção de ironizar ou parodiar a versão original.
Assim, conviviam músicas de títulos estranhos, como “Dinheiro é
para gastar com a família”, “Lilian, a suja”, “Bichos escrotos”, “Ment-
na moderna”, “Pule”, “Sonifera ilha”, e versões ainda mais estranhas,
como “Balada para John & Yoko”, “Marvin” (para o reggae “Patches”,
de Dunbar & Jonhson) e “Querem meu sangue” (para outro reggae, E Qlat=
híbrido
harder they come”, de Jimmy Cliff). No meio do caminho, um
de original e versão, “Go back”, poema do falecido tropicalista Torquato

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Neto musicado por Sérgio Britto. Os shows foram colocando cada músi-
ca e cada músico em seu lugar. Na guitarra, Marcelo e Tony. No baixo,
Paulo e Nando. Nos teclados, Sérgio. Na bateria, André. Nas vozes, Ar-
naldo, Branco e Ciro, com o reforço de Paulo, Nandoe Sérgio.
Colocar essa gente toda em cima do palco não era tarefa fácil. Pri-
meiro porque os palcos das muitas casas noturnas não primavam pela
grandeza. Segundo porque ou era preciso organizar aquela suruba de re-
vezamento de vocalistas e instrumentistas ou desistir de qualquer forma
de organização. Com a sequência de shows foi-se chegando a uma impres-
sionante harmonia na desarmonia. Ou vice-versa. Se, na prática, era im-
possível reduzir nove cabeças a um denominador comum, na teoria dava
mais ou menos para explicar. “No início, nós pretendíamos seguir a li-
nha do iê-iê, que já era uma outra leitura do 1ê-1ê-18. Mas com o tempo
fomos incorporando vários outros ritmos, como o funk, a discoteca etc.
sempre com o objetivo de fazer show-baile, música para dançar”, decla-
tava Ciro Pessoa ao “Jornal da Tarde” de 31 de março de 1988, a pro-
pósito de uma curta temporada dos Titãs (à época já sem o “do 18-16”)
no Centro Cultural São Paulo. Nela, entraram também “Pierr6”, de Gil-
berto de Carvalho, e “O feio”, de Getúlio Cortez.
Mais adiante, em 23 de junho, os Titãs participaram, junto com o
Ira e Kid Vinil & O Magazine, de uma “festa new wave” no Sesc Pom-
péia. Lá dentro, uma galera de terninho e óculos retrô-modernosos se
esbaldou até depois das quatro da manhã, dançando ao som de “Babi
índio” (de Branco e Ciro), “Núcleo-base” (de Edgard Scandurra) e “Eu
sou boy” (de Antônio Carlos Seneforte, o Kid Vinil). Presentes à festa, os
punks ficaram relativamente quietos, perto do palco, como penetras bem-
comportados. O evento ganhou a capa da “Ilustrada” de dois dias depois.
Nela, Marcos Santilli, dono da Memória, firma promotora do baile, dei-
tava regra: “(A new wave é) uma espécie de reciclagem dos valores da
década de 50, produzindo música que envolve a sugestão de mais criati-
vidade que talento (...) o punk puxa para o mau gosto, a hostilidade. O
new wave é mais comportado e menos pobre”.
E os Titãs com todo esse besteirol? Nada. Um desavisado que bai-
xasse num de seus show encontraria uma banda entre o pop e o reggae,
com coreografias cuidadosamente desencontradas e agressivas. A perfor-
mance do noneto — que por esta época estava voltando a ser um simples
octeto, com a saída de Ciro Pessoa, que foi se dedicar somente ao Cabine
C — atraiu a atenção das TVs antes das gravadoras. Ele, assim, se tor-
nou assíduo frequentador dos programas do Chacrinha, do Bolinha, do

Arthur Dapieve
Barros de Alencar, do Raul Gil, da Hebe Camargo. A estranheza que
aqueles doidos causavam nesses templos da cafonália apenas aumentava
a distância que os separava do mainstream da já então fervilhante cena
roqueira brasileira. Os Titãs eram marginais entre os marginais. New
brega, dizia-se.
Eles gravaram várias fitas demo, enviadas a produtores e gravado-
ras. No entanto, como a cautela ainda imperava no mercado — sobretu-
do diante de um trabalho tão irrotulável, tão não-segmentado quanto o
deles —, o máximo que conseguiram a princípio foram convites para par-
ticipar de coletâneas pau-de-sebo, aqueles balões de ensaio prensados em
vinil. Todos estes convites foram recusados: os oito concordavam que a
gravação de apenas uma música de seu extenso repertório perigava redu-
zir-lhes a uma de suas muitas faces, ou seja, perigava pespegar-lhes um
rótulo. E isso eles não queriam de jeito nenhum. Portanto, um LP, e não
somente uma faixa numa coletânea ou um compacto, era uma questão
de honra para o grupo.
A história só desempacou quando uma das fitas demo caiu nos ou-
vidos do olheiro da Warner em São Paulo, Pena Schmidt. Levada ao pre-
sidente da gravadora, André Midanui, ela serviu de passaporte para o con-
trato. Conceitualmente, os Titãs fizeram valer sua condição sine qua non:
partir direto para um LP. Mas, na prática, as condições, se não foram in-
digentes, deixaram muito a desejar. Havia um bom produtor, o próprio
Peninha, mas havia um grupo sem experiência de estúdio enfiado num
estúdio sem experiência de grupo, o Áudio Patrulha, usado para a grava-
ção de jingles. Onze músicas foram selecionadas para dar conta de todas
as estéticas que conviviam dentro das oito cabeças.
“Titas”, o LP, abria com “Sonífera ilha”, já um quase hit com seu
nonsense arábico (“Não posso mais viver assim ao seu ladinho/ Por isso
colo meu ouvido no radinho/ De pilha/ Pra te sintonizar/ Sozinha numa
ilha”). Registrava os covers “Marvin”, “Querem meu sangue” e « Bala-
da para John & Yoko”. Da própria lavra, duas músicas chamavam a aten-
caos Pula? (“Ô nenê, você nasceu ontem/ Com os dias contados”), uma
celebração do suicídio; e “Demais” (“Mahatma Gandhi, Krishna, Deus/
Mas só você pode me salvar agora”), uma balada neobrega que tempos
antes fora impiedosamente vaiada no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
Embora dez anos depois “Titãs” continue uma delícia, na época o resul-
tado final decepcionou o grupo. “Ficou muito distante do que os Titãs
faziam ao vivo. Ficamos deprimidos quando ouvimos”, declararia Tony
à “Bizz”de novembro de 89. “A bateria soava como dois gravetos”, geme

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


Arnaldo Antunes. “Mas eu tenho uma lembrança saudável de “Sonífera
ilha”, acho que ela inseria um grau de novidade no contexto da época”.
O LP foi lançado em meados de agosto de 1984, quando a idade
média dos Titãs era de 23 anos. Primeiro, com dois shows no Morro da
Urca, nos dias 17 e 18, sexta e sábado. Vaias à parte, o Rio resistia ao
trabalho do grupo. Talvez porque Marcelo, Tony, Arnaldo, Branco, Paulo,
Nando, Sérgio e André fossem um fenômeno paulistano demais, muito
distante do Ultraje a Rigor, a banda conterrânea já assimilada nacional-
mente. Na verdade, os Titãs eram mais populares na periferia do Rio, por
conta dos inúmeros playbacks feitos como pagamento pelas aparições no
“Cassino do Chacrinha”. À conquista do balneário só se daria quase três
anos depois. Na cidade natal, felizmente, o panorama era outro e o gru-
po tinha um público consolidado. Lá, “Titãs” foi oficialmente lançado
na danceteria Tífon, a 22 de agosto de 84.
À excursão nacional que se seguiu serviu para espalhar a anarquia
musical de Porto Alegre ao Recife (num comício da campanha de Tancredo
Neves à presidência). No palco, o tribalismo instintivo foi quase imper-
ceptivelmente substituído pelo tribalismo coreografado — com a ajuda
da professora de dança e expressão corporal Sílvia Bittencourt. O disco
não teve uma grande vendagem (ficou pouco abaixo das 50 mil cópias)
até porque, no afã de capitalizar o sucesso de “Soniífera ilha”, a Warner,
para desgosto dos Titãs, lançou um compacto com a música. De qualquer
maneira, 1984 saiu de cena com um saldo muito positivo, engrossado pela
participação numa das mensagens de fim de ano da Rede Globo. Na vés-
pera do Natal, contudo, houve um troca-troca nas baquetas: depois de
flertar com RPM, Charles Gavin, do Ira, foi parar nos Titãs; e André Jung,
por puro acaso, assumiu a bateria do Ira.
1985 começou com o grupo exercitando, ao vivo, em locais como o
Rádio Clube e o Latitude 3.001, o repertório para o segundo disco, a se
chamar “Televisão”. Muito justo. Afinal, fora ela a maior responsável pela
divulgação do trabalho dos Titãs. Dessa vez, entre março e abril, o octeto
gravou num estúdio de verdade, o Transamérica, em São Paulo, com a
produção de Lulu Santos, a direção artística de Liminha e a produção
executiva de Pena Schmidt. Além disso, estavam todos mais senhores de
si e de seus instrumentos. Entretanto, nem tudo foi um mar de rosas. A
gravação e a mixagem foram feitas meio às pressas, entre conflitos de Lulu
com a gravadora e com alguns dos Titãs. Nando Reis, por exemplo, ja-
mais o perdoará por ter comparado seu baixo a um cavaquinho. Seja como
for, no final das contas, “Televisão” vendeu quase o dobro de “Titas” e

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contou com uma pós-produção mais esmerada, que incluía um release para
imprensa assinado pelo poeta Waly Salomão.
Disco conceitual organizado para emular um giro pelo dial, “Tele-
visão” foi lançado com um show no Pool Music Hall, nos dias 27 e 28
de junho. Foi bem recebido pela crítica (Marco Augusto Gonçalves, na
“Folha”, escreveu que o grupo passara no teste do segundo disco; Jamari
França, no “Jornal do Brasil” saudou o disco como um “passo adiante”
no rock brasileiro), mas poderia ter sido ainda mais badalado se, no co-
meço do mês seguinte, não tivesse sido atropelado pelo primeiro LP do
Ultraje a Rigor, “Nós vamos invadir sua praia”. Porque “Televisão” era
muito superior a “Titãs”. A começar pela programática faixa-título, que
homenageava o comediante Ronald Golias através de um de seus bordões:
“Ó Cride, fala pra mãe/ Que tudo que a antena captar meu coração cap-
tura/ Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!”
Seguia-se outra obra-prima, “Insensível”, meio reggae, meio pop, com
um refrãozinho irresistível. E mais outra, “Pavimentação”, um funk urba-
nóide. E mais outra, “Dona Nenê”, um rockinho futurista de surpreen-
dentes tons sombrios. E mais “Não vou me adaptar” e mais “ Autonomia”
e mais “Massacre”. Esta, uma composição de Sérgio e Marcelo gritada
por Sérgio, Arnaldo, Paulo e Branco em 1m40s, era, talvez, a mais fiel
reprodução em disco do peso que os Titãs tinham no palco e apontava
para o caminho que a sua carreira seguiria no futuro (mas isso o ouvinte
só viria a descobrir no ano e no disco seguinte...). Sua letra caoticamente
poliglota era: “Massacre!/ Massacre de uomo!/ Matança!/ Matança de
donna!/ Eu vi, eu vi, eu vi/ En jornal nacionale!/ El Duce!/ El Duce en Itá-
lia/ El Fúhrer!/ El Fúhrer en Germânia!/ Brazil, Brazil, Brazil,/ Aldeia
Globale!” Um hardcore apátrida e genial.
No meio do caminho dos Titãs estavam 158 miligramas de heroína.
Na madrugada de 13 de novembro de 1985, Tony Bellotto foi preso com
30 miligramas da droga quando o táxi que o transportava foi parado por
uma viatura da PM na Avenida Paulista, perto do Parque Trianon. Leva-
do para o 4º Distrito Policial, na Consolação, o guitarrista confessou ter
recebido o papelote de Arnaldo Antunes. Este, por sua vez, foi preso pouco
depois em seu apartamento na Paulista, com 128 miligramas de heroína.
Na manhã seguinte, Tony pagou uma fiança e foi solto, Arnaldo não: a
quantidade da droga encontrada sem seu poder caracterizava tráfico de
entorpecentes, crime inafiançável. Durante 26 dias a defesa tentou des-
qualificar Arnaldo como traficante, pedindo que ele fosse submetido a
exames médicos que comprovariam seu vício. Por duas vezes, o vocalista

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


compareceu a audiências algemado e sob éscolta. À estratégia não deu
certo, mas afinal Arnaldo foi solto por ser primário, ter bons anteceden-
tes, residência fixa e profissão definida, a 9 de dezembro. (Ele e Tony res-
ponderam a seus processos em liberdade; no dia 27 de maio de 1986 o
vocalista foi condenado a três anos por tráfico e o guitarrista, a seis me-
ses, por porte de droga; as sentenças foram confirmadas em 3 de novem-
bro, mas ambos cumpriram suas penas em liberdade.) O episódio dividi-
ria a história do grupo em dois.
Num primeiro momento pensou-se que os Titãs não sobreviveriam
à prisão de Arnaldo e Tony. Afinal, não havia eufemismo que disfarçasse
o fato de que este delatara aquele. Além disso, a repercussão na agenda
da banda logo se fez sentir: 13 shows foram cancelados. Apesar de tudo,
o octeto saiu dessa mais forte do que nunca, nietzschianamente. No dia
18 de dezembro ele já estava dividindo o palco do Canecão, no Rio com
Ritchie, Alceu Valença e Guilherme Arantes, numa festa promovida pela
98 FM. A recepção foi lastimável, mas nada teve a ver com a prisão: é
que os Titãs simplesmente não tocavam na emissora. De qualquer forma,
serviu para mostrar que o show não iria parar. Dois dias depois, lá esta-
vam eles no alto do Morro da Urca, em ação, apresentando uma música
escrita por Charles Gavin como desabafo contra a prisão dos amigos, “A
lei que eu não queria” (que depois teria seu nome mudado para “Estado
violência”). Paulo Miklos cantava a letra com raiva, como convinha;
“Estado violência/ Deixe-me querer/ Estado violência/ Deixe-me pensar/
Estado violência/ Deixe-me sentir/ Estado violência/ Deixe-me em paz”.
Todo mundo entendeu a mensagem.
A3 de janeiro de 1986, a “Página jovem” do “Caderno B “ do “Jornal
do Brasil” trazia um artigo de Arnaldo, artigo intitulado “Consertos no
casco do barco/ Quem? MimQuem? “ Nele, lia-se, entre outras coisas, “eu
devo ser um pouco bandido, se tanta gente me vê com esse olho. Eu devo
ser um pouco bandido, um pouco louco, um pouco coitado, um pouco
perigoso, artista, otário (...) Agradecimento profundo a quem viu a mi-
nha pessoa, em vez de ver a invasão de uma droga perigosa no mercado
nacional, ou o mito da necessidade de transgressão do artista, ou a figu-
ra do roqueiro como marginal, ou o código penal, ou o que quer que fos-
se”. Era Arnaldo tentando se livrar de todo de qualquer estigma, prós e
contras, criados por sua prisão.
Mas o episódio teve, a médio prazo, um efeito colateral nocivo à auto-
imagem da banda. Os spots da prisão deram a impressão, à mídia e ao
grande público, de que Arnaldo era o Titã-mor, o líder, a cabeça. E ele

96 Arthur Dapieve
Polícia: Arnaldo Antunes passou 26 dias preso, em 1985
não era nada disso. Ou melhor: talvez até fosse, mas jamais, em tempo
algum, se assumiria enquanto tal. Como todos compunham e quase to-
dos cantavam, os Titãs sempre abominaram a figura do porta-voz. Eram
até chatos nessa anarquia, nesse democratismo, nesse espírito de um por
oito, oito por um. Mesmo indesejada pelo próprio, a suposta liderança
de Arnaldo com o tempo foi incomodando alguns outros membros do
grupo (de tal forma que, quando ele saiu em carreira solo, em dezembro
de 1992, veio à tona seu apelido de “Tabacow”, usado por alguns ex-
colegas para se vingar de suas supostas puxadas de tapete).
Em abril de 86, Os Titãs se enfiaram no estúdio Nas Nuvens, no Rio,
atrás de uma identidade. “Nos dois primeiros discos era como se a gente
estivesse tateando”, avalia Arnaldo. “A gente não queria soar como vá-
rias bandas diferentes no mesmo disco. À gente tinha que ter uma cara”.
Com a produção de Liminha, Peninha e Vítor Farias, o terceiro LP foi
tomando uma feição duplamente mais pesada do que os anteriores: nas
letras e nas músicas. “O clima do disco tinha uma revolta contra o episó-
dio da prisão”, lembra Arnaldo. Além de “Estado violência”, outra fai-
xa, Policia”, de Tony Bellotro; fazia relerência diretasalele: “Dizem que
ela existe pra ajudar/ Dizem que ela existe pra proteger/ Eu sei-que ela pode
te parar/ Eu sei que ela pode te prender/ Polícia para quem precisa/ Poli-
cia para quem precisa de polícia”, cuspia Sérgio nos vocais principais. As
duas acabaram arrastando outras de igual virulência. “Foi o disco em que
a gente mais se preocupou em ter uma unidade de conceito, em falar das
instituições”, explica Arnaldo. Assim, lá estavam verbetes de um dicio-
nário igongelastas “Tereja” “Família”, “Porrada”, “Dívidas”;
O clima geral do disco — intitulado “Cabeça dinossauro”, nome
também da faixa de abertura, cujo instrumental foi adaptado de uma
cerimônia indígena para afastar maus espíritos — estimulou os Titãs a
gravar uma de suas mais antigas músicas, “Bichos escrotos”, velho sucesso
nas noitadas punk no Napalm. O refrão era catártico: “Oncinha pinta-
da,/ Zebrinha listrada,/ Coelhinho peludo,/ Vão se foder!/ Porque aqui na
face da Terra. Só bicho escroto é que vai ter!” Evidentemente a Censura
Federal proibiu a radiodifusão e a execução pública da música, o que,
aquela altura do campeonato, só serviria como atestado de qualidade. Em
pouco tempo, aliás, as emissoras de rádio estariam levando ao ar versões
editadas sem o palavrão.
“Cabeça dinossauro” chegou às lojas na última semana de junho de
86. E imediatamente todos perceberam estar diante de uma obra ímpar,
de uma obra-prima. No disco, todos os instrumentos funcionavam como

98 Arthur Dapieve
instrumentos de percussão; e a música brasileira nunca tivera letras tão
diretas. Do mesmo modo que “Massacre” era a única faixa de “Televi-
são” a anunciar o porvir, “Família” era a única faixa de “Cabeça di-
nossauro” a guardar algum parentesco com o anteriormente ouvido em
disco. O resto era uma porradaria sem limites. “Parece que os Titãs de-
ram um guinada a partir de “Cabeça dinossauro”, mas na cabeça da gente
sempre foi a mesma coisa, um amadurecimento natural”, diz Arnaldo.
“Nossa postura de palco sempre foi mais pesada”.
O lançamento oficial de “Cabeça dinossauro” se deu nos dias 23 e
24 de agosto, no Projeto SP, em São Paulo, e no dia 19 de setembro, no
Morro da Urca, no Rio, com direito a uma esticada, no dia 21, na dance-
teria Manhattan, em Jacarepaguá. Se em disco os Titãs haviam optado
por sua face mais hardcore — diminuindo a influência de pop, reggae, funk
e MPB em suas músicas —, no palco a mudança foi equivalente. Seu show
foi descarnado, potencializou sua violência e se transformou numa expe-
riência avassaladora, com aqueles oito caras berrando suas mensagens sem
nenhum aceno populista à platéia. Esta, por sua vez, transformou o LP
no maior sucesso comercial da carreira do grupo, comprando mais de 380
mil cópias. (No final de 1989, quando o “JB” elegeu os 20 melhores discos
da década, dez nacionais e dez estrangeiros, “Cabeça dinossauro” ganhou
19 votos em 30 possíveis, em um colégio eleitoral que incluía jornalistas
e artistas, tornando-se assim “o melhor disco brasileiro dos anos 80”).
Apesar disso, o Rio de Janeiro ainda era uma indecifrável esfinge para
os Titãs. Se o público carioca os estranhava, eles também estranhavam o
público carioca. A desconfiança recíproca só passou quando, no começo
de 1987, instigado por seu novo empresário, Manoel Poladian, o grupo
decidiu tocar numa segunda e numa terça, dias 2 e 3 de fevereiro, no tra-
dicional Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes. O sucesso foi tama-
nho que, a despeito de algumas cadeiras quebradas, programou-se logo
depois um bis para um sábado, 14 de março. Dessa vez, enquanto a ban-
da passava o som, o teatro foi invadido por uma horda de fãs que, em
seu entusiasmo, destruiu centenas de poltronas. À partir dali é que os Titas
passaram a reconhecer seu público no Rio.
“Cabeça dinossauro” nem esfriara ainda e, no começo de outubro,
as rádios já começavam a tocar “Lugar nenhum”, faixa do quarto LP do
grupo, “Jesus não tem dentes no país dos banguelas”. Este parecia uma
continuação natural do disco anterior. Mas, no entender dos Titãs, não
era. “ “Jesus” tinha muitas novidades em relação a “Cabeça”, tinha o dado
eletrônico, a bateria eletrônica, a programação”, explica Arnaldo. Ele,

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Titãs: com o baterista Charles Gavin (à esq.) e Arnaldo (que sairia em 1992)
Branco, Paulo, Sérgio, Nando, Tony, Marcelo e Charles pintaram e bor-
daram dentro do estúdio Nas Nuvens, com o produtor Liminha se tor-
nando, na prática, um novo Tita, tal seu entrosamento com a banda. “Jesus
não tem dentes no país dos banguelas” expandia os horizontes do claus-
trofóbico “Cabeça dinossauro”. Mas a sofisticação dos arranjos e das
letras não implicou a diluição da agressividade grupal.
O disco saiu às ruas no dia 23 de novembro de 87 puxado por “Lu-
gar nenhum”: “Não sou de São Paulo, não sou japonês/ Não sou cario-
ca, não sou português/ Não sou de Brasília, não sou do Brasil./ Nenhu-
ma pátria me pariu”. Nele, os mais de 250 mil compradores descobriram
outras obras-primas: “Desordem”, “Corações e mentes” (ambas canta-
das por Sérgio Britto), “Diversão” (por Paulo Miklos), “Comida” (por
Arnaldo Antunes) e “Nome aos bois” (por Nando Reis). “Comida” se
tornou tão popular que acabou se tornando slogan de manifestações es-
tudantis, como já acontecera com “Polícia”. Tratava-se de uma neocanção
de protesto, sem o culto à miséria que caracterizava as antigas: “A gente
não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”, dizia um tre-
cho. Já “Nome aos bois”, cujo primeiro nome foi “Garrastazu”, fazia uma
brilhante lista de fascistas em geral, a começar pelo próprio ex-presiden-
te, passando por Ronaldo Bôscoli (o nome que deu origem à série), Pi-
nochet, Gil Gomes, Adolf Hitler, Khomeini, Reagan e (Mark) Chapman,
o assassino de John Lennon. Nenhum latim gasto à toa.
No release distribuído à imprensa, o poeta Paulo Leminski dava uma
preciosa chave para entender o disco: “No “Cabeça dinossauro”, vocês
demoliram com os cinco pilares da ordem social, a polícia, o Estado, a
Igreja, a família e o capitalismo selvagem. Agora chegou a hora de vocês
começarem a demolir as coisas de dentro. (...) Os Titãs é o que restou do
rock, suas letras são o que restou de um país falido, um vice-pais, vice-
governado, vice-feliz, vice-versa”. A crítica (mais uma vez) caiu de qua-
tro. “ Jesus não tem dentes no país dos banguelas” pode sem nenhum favor
ser considerado o melhor disco produzido no Brasil em 1987”, afirmava
Luiz Carlos Mansur no “JB” de 14 de novembro.
Em vez de showzinho em teatros e danceterias, “Jesus” foi apresen-
tado ao público nas grandes arenas do primeiro festival Hollywood Rock:
Mo-
a Praça da Apoteose, no Rio, a 6 de janeiro de 1988, e o estádio do
rumbi, em São Paulo, seis dias depois, em noites abertas pelo conterrâneo
Ira! é fechados pelos anglo-americanos Pretenders. Tanto numa cidade
quanto na outra, os Titãs engoliram a concorrência. No Rio, isso ficou
ainda mais evidente diante das caóticas apresentações do Ira! (em briga

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
com a Mills & Niemeyer, empresa promotora do festival) e dos Pretenders
(sua líder, Chrissie Hynde, entrou em conflito com as câmeras da Rede
Globo que a filmavam). Perfeitamente concentrados e ensaiados, com
Liminha empunhando uma terceira guitarra, os Titãs realizaram um show
state-of-the-art, eleito pelo “JB” o melhor de todo o festival e considera-
do pela “Folha” um “novo marco para o rock brasileiro”.
Por essa época, o octeto/noneto paulista era sinônimo de estádios
cheios. A revista “IstoÉ” de 6 de abril falava em “titâmania” numa re-
portagem de Apoenan Rodrigues que reveleva que até o secretário de
Segurança Pública do Estado de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho,
apreciava, via dois filhos, o trabalho do grupo. “Eles abordam uma for-
ma saudável de crítica”, dizia o futuro governador. Tanta popularidade
levava o empresário Manoel Poladian a agendar mais apresentações do
que as aconselháveis. Os Titãs viviam numa roda-viva de Projeto SP,
Anhembi, Canecão, Maracanãzinho. “Fazíamos mais shows do que que-
ríamos”, admite Arnaldo. “Ao mesmo tempo, era legal, tinha público para
isso. E a gente era uma banda grande. Show era uma fonte de renda. Po-
díamos parar no máximo um mês”.
Naturalmente o próximo passo seria gravar um disco ao-vivo. Só que,
em vez de fazê-lo num delirante ginásio brasileiro, os Titãs e a Warner
preferiram o frio palco do Festival de Montreux, na Suíça, para o qual o
grupo havia sido convidado justo pelos apoteóticos shows no Hollywood
Rock, presenciados por Claude Nobs. Nada de “noite vrasileira”, entre-
tanto. Os Titãs tocaram na “noite roqueira”, junto com o inglês TºPau e
o americano 10.000 Maniacs. A gravadora queria que o disco trouxesse
material inédito, mas o grupo preferiu rearranjar velhas músicas para
mostrar que “Cabeça dinossauro” não fora um corte epistemológico em
sua trajetória. Por isso, o set list do show de 8 de julho incluía “Marvin”,
“Go back” (do primeiro disco), “Pavimentação”, “Não vou me adaptar”
e “Massacre” (de “Televisão”), totalmente diferentes das gravações ori-
ginais. Claro, lá estavam “Polícia”, “Lugar nenhum” e outras composi-
ções pós-“Dinossauros”. Diante de um público indiferente e com apenas
15 minutos para passar o som, os Titãs fizeram um milagre: o disco, apro-
priadamente batizado de “Go back”, saiu íntegro, graças, em parte, à pre-
dominância do ritmo sobre a melodia e a harmonia. Como eu escrevia
no “JB?” de 12 de outubro, “os Titãs são uma sessão rítmica”. Daí a uni-
versalidade do seu som.
“Go back” vendeu mais de 320 mil cópias, números que, somados aos
de “Cabeça” e aos de “Jesus”, davam à banda cacife até para gravar uma

102 Arthur Dapieve


piada. Isto é, a banda Vestidos de Espaço — na verdade, os Titãs mais
Liminha e os convidados especiais Paula Toller e Jorge Mautner, que apro-
veitaram horários do Nas Nuvens para gravar duas marchinhas porno-
carnavalescas, “Pipi popô” e “Marcha de demo”. Nem todo mundo riu
da piada e um jovem malufista da juventude do PDS paulista pediu que as
músicas fossem censuradas. Não foram e 1988 terminou assim, risonho.
Mais excursões e, de julho a setembro de 1989, lá estavam os oito
(ou nove) de novo enfurnados no Nas Nuvens, gravado o sexto disco, “Ô
blésq blom”. Se os três discos anteriores fechavam com o rock, este no-
vamente abria o leque numa espécie de pós-Tropicalismo. As pistas eram
claras. O release era de Caetano Veloso. As vinhetas de abertura e de
encerramento foram gravadas na Praia da Boa Viagem, em Recife, por
uma dupla de cantadores locais, Mauro & Quitéria. Cantando atrás de
trocados, em inglês, italiano, espanhol e grego fake, eles achavam estar
fazendo rock. “O rock é muito acreditado, é só o que o povo pede e cor-
re atrás”, dizia Mauro a Letícia Lins no “JB” de 31 de outubro. “O povo
até grita na praia, vem cá, rei do rock”, completava Quitéria.
Através deles, os Titãs pretendiam dizer algo como “o que eles fa-
zem é rock, tudo é rock, logo nada é rock”. Uma idéia bem próxima da
panbreguice dos primórdios. Mesmo sem ser tão bom quanto os discos
anteriores, “Ô blésq blom ” dava para o gasto do fim de década. Das dez
músicas, sem contar as duas vinhetas de Mauro & Quitéria, duas eram
perfeitas: “Flores” (de Charles, Tony, Paulo e Sérgio) e “O pulso” (de Ar-
naldo, Marcelo, Tony). A primeira era um popinho sombrio: “A dor vai
curar essas lástimas/ O soro tem gosto de lágrimas/ As flores têm cheiro
de morte/ A dor vai fechar esses cortes/ Flores/ Flores/ As flores de plásti-
co não morrem”. A segunda, apenas sombria, uma espécie de “Nome aos
bois” patológica, uma enumeração de doenças (“hérnia, pediculose, té-
tano...”) intercalada a coisas doentias (“...hipocrisia”). Em “O Globo”
de 18 de outubro, Tom Leão anotava que “mesmo abandonando a bati-
da punk/hardcore dos últimos discos, o grupo continua soando primiti-
vo, no minimalismo e crueza das palavras e sons, mas contemporâneo nos
arranjos e concepções”. O disco vendeu respeitabilíssimas 230 mil cópi-
as e a sua promoção fez com que o ano de 1990 fosse gasto em excursões
tora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Afinal, dentro de seu ciclo de sístoles
e diástoles, os Titãs estavam saindo do gueto urbano para dar uma olha-
da no resto do país.

dos Anos 80 103


BRock — O Rock Brasileiro
Inútil: o Ultraje, de Roger, gravou a perfeita tradução da Campanha das Diretas
o
ULTRAJE A RIGOR
AGENTE PROVOCADOR

“Olha, ao vivo os caras não tocam tanto não, eles até erram”, di-
ziam um para o outro os amigos Roger Rocha Moreira e Leonardo Galasso
enquanto assistiam a velhos vídeos dos seus idolatrados Beatles. Era o do-
it-yourselfem ação, animando a dupla a formar uma banda de covers para
tocar sobretudo músicas de Lennon & McCartney & Harrison & Starr
na noite paulistana. Essa banda na qual os únicos membros fixos eram
Roger nos vocais e na guitarra e Leonardo, mais conhecido como Leospa,
na bateria, inclusive já se chamara autocriticamente The Littles e The
Shitles. Aos poucos, porém, fora nascendo um repertório próprio entre
uma versão e outra. Agora, abril de 1983, depois de suar por bares e fes-
tinhas durante um ano e meio, batizada de Ultraje a Rigor por um mal-
entendido, a banda finalmente está fazendo seu primeiro show só com
composições próprias. No palco do Teatro da Lira Paulistana, dentro do
projeto “Boca no trombone”, Roger, Leospa, o guitarrista Edgard Scan-
durra e o baixista Maurício Rodrigues abrem a noite para o grupo Es-
quadrilha da Fumaça. Entre outras dez músicas eles tocam “Inútil” e
“Mim quer tocar”. Ao final da apresentação, o produtor Pena Schmidt,
da Warner, entra nos bastidores berrando “comprei, comprei”. Sotto voce,
Peninha diz a Roger que a gravadora está mais interessada nele, Roger, e
que há jogo para uma carreira solo. Roger recusa. Rock *n” roll é coisa
para um bando de machos.

Amigos desde 1975, Roger e Leospa já não eram exatamente garo-


tos quando, seis anos depois, resolveram montar sua bandinha beatle-
maníaca. Roger estava com 25 e Leospa, com 26. Sua sorte foi que as
coisas, quando afinal aconteceram, aconteceram rápido. Pois até então
elas haviam se arrastado no mesmo ritmo do rock brasileiro...
Roger desde criança sentiu que seu destino era a música. Testes voca-
cionais realizados na adolescência ratificaram tal sentimento. Mas o pai,
que lhe negara uma guitarra e lhe dera uma flauta, o empurrou na direção
de uma carreira “respeitável”. Assim, Roger fez três anos de Arquitetura

Brasileiro dos Anos 80 105


BRock — O Rock
na Universidade Mackenzie. Largou o curso em 1977, sendo considerado
“um inútil” pelo pai. Enquanto isso, Leospa foi até o fim e se diplomou
arquiteto. Em 1979, os dois amigos foram para São Francisco, nos Esta-
dos Unidos, onde trabalharam como entregadores de pizza e faxineiros.
Lá também compuseram sua primeira música, “Mauro Bundinha”, tão-
somente para sacanear um conhecido, Mauro Freitas Saldanha. Na volta,
um ano e meio depois, eles encontraram uma cena mais encorajadora. Daí
a decisão de montar uma banda: The Littles, The Shitles, Shitheads, Pimenta-
do-Reino, Fim da Picada — embriões do futuro Ultraje a Rigor.
Numa festa realizada em 1º de maio de 1982, Roger e Leospa dis-
cutiam o nome Ultraje. Ambos achavam que o nome se prestava mais a
uma banda punk, o que não era o seu caso. Scandurra estava passando
por perto e, no meio da balbúrdia, não entendeu direito: “Traje? Que traje?
Traje a rigor?” Os outros dois gostaram da idéia. Ultraje a Rigor, bom
nome, tudo a ver com a irreverência do quarteto. Bom exemplo dela foi
dado dois meses depois, a 2 de julho, quando, para comemorar a vitória
do Brasil sobre a Argentina por 3 a 1, pela Copa da Espanha, o Ultraje a
Rigor enfiou a portenha “La cumparsita” no meio de seu set no Pierrô
Lunar, bar do qual se tornara uma espécie de grupo-residente.-Nesta época,
o quarteto era completado por Sílvio “Bate-estaca”, baixista atraído por
um anúncio publicado no jornal “Primeira Mão”.
Edgard Scandurra, por sua vez, fora apresentado a Roger e Leospa
por um amigo comum, o baterista Victor Leite (ex-Muzak, hoje nos De-
votos de Nossa Senhora Aparecida, do VJ Luiz Thunderbird). O guitar-
rista era um autodidata extraordinariamente talentoso, misto de punk e
mod que conseguia se dividir entre o Ultraje a Rigor e meia dúzia de ou-
tros grupos, inclusive o Ira. Foi Scandurra quem deu um banho de mo-
dernidade na dupla, mostrando-lhe as maravilhas do punk rock e da new
wave. Esses movimentos fizeram Roger e Leospa redescobrirem a pólvo-
ra beatle. “A gente não gostava daquilo que tocava no rádio, basicamen-
te MPB”, recorda Roger, quatorze anos depois. Em setembro de 82, Síl-
vio foi substituído no baixo por Maurício Rodrigues, colega de Scandurra
numa demo do Tra.
Na falta de gravadores ou rádios interessadas no rock paulista — o
carioca já estava começando a aparecer graças à Blitz —, o Ultraje a Ri-
gor foi pegando pique em lugares como Carbono-14, Hong-Kong e Rose
Bom-Bom. O cachê era decidido em reuniões na sede de um sindicato
informal: a casa do guitarrista Marcelo Fromer, dos Titãs do Iê-Jê. O sen-
timento de que um movimento estava em andamento era reforçado pela

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tática de canjas, citações e covers recíprocos. Fora dos palcos, muros eram
pichados e uma música ou outra era colocada, via fita demo, aqui e ali
nas rádios, como no programa do jornalista Maurício Kubrusly na Excel-
stor FM. Quando a Lira Paulistana, ponto de encontro da vanguarda lo-
cal, abriu o projeto “Boca no trombone” atrás de novos valores, todo e
qualquer grupinho da cidade correu para se inscrever. O Ultraje a Rigor
foi um dos felizes classificados.
O contrato conseguido com a Warner graças à temporada de 11 a
17 de abril de 83 no Lira Paulistana rendeu um compacto, com “Inútil”
e “Mim quer tocar”, lançado em novembro daquele ano. “Inútil” nasce-
ra debaixo do chuveiro. Roger cantarolava uma frase qualquer, algo como
“Why don't you”, enquanto tomava banho. Por associação sonora, en-
tre uma esfregada e outra, “Why don't you” foi dar no “inútil” que mar-
cava sua vida. Foi juntar a isso o mau português — “A gente somos...”
— de um pedreiro que trabalhava com Leospa para o Ultraje a Rigor ter
nas mãos o hit single da Campanha das Diretas. Os versos “A gente não
sabemos escolher presidente/ À gente não sabemos tomar conta da gen-
te/ Inútil/ A gente somos inútil” era a mais perfeita tradução daquele país
que pelejava para tomar seu destino nas mãos. “A gente foi importante
socialmente”, protesta Roger diante da segregação do Ultraje, pela mídia,
no canto dos “engraçadinhos”.
Tanto foi importante socialmente que o presidente do PMDB, depu-
tado Ulysses Guimarães, se encarregou de divulgar o trabalho do grupo.
Irritado com declarações do porta-voz do general-presidente João Figuei-
redo, Carlos Átila, de que o comício pelas diretas em Curitiba só serviria
para desestabilizar o processo sucessório, Ulysses prometeu mandar-lhe o
compacto com “Inútil” de presente. “Ele que repita isso, que toque O dis-
co e fique ouvindo”, declarou o político em 13 de janeiro de 1984. Era a
glória. Ou quase. Em maio, o disquinho já havia vendido razoáveis 30 mil
cópias. O tão sonhado LP, contudo demoraria mais de um ano para sair.
Nesse meio tempo, ao pressionar o presidente da Warner, André Mi-
dani, Roger deu a entender que, se não gravasse logo um LP, o Ultraje
poderia pedir rescisão de contrato. Midani não se fez de rogado: “Bem, se
vocês querem, tudo bem, eu libero vocês”. Roger gelou: “Não é bem as-
sim...” Teve de se contentar com outro compacto, “Eu me amo/ Rebelde
sem causa”, lançado em outubro de 84. Dessa vez, O trabalho foi divulga-
do de outra forma. Uma das músicas do terceiro LP da Blitz, “Egotrip”,
tinha um refrão quase igual ao de “Eu me amo”. À letra de Roger dizia
“eu me amo, eu me amo, eu não consigo viver sem mim”. A de Evandro

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Mesquita e Patrícia Travassos, “eu me amo, eu me adoro, eu não consigo
viver sem mim”. Como “Blitz 3” só foi lançado em dezembro os cariocas
tiveram de mudar sua letra para “eu te amo, eu me adoro, eu não consigo
te ver sem mim”. Pura coincidência. Mas curiosa o bastante para dar mais
um gás na carreira do semidesconhecido grupo paulista. “Foi bom pra
gente”, admite Roger. “Isso acontece. O artista é uma antena. Eu mesmo
tenho uma música que nunca lancei, com refrão “Eu uso óculos...”
Roger, por sinal, sempre levou jeito para parabólica. Criticando ante-
cipadamente o compacto (!) na “Folha de S. Paulo” de 12 de agosto, Pepe
Escobar, que o considerou “uma versão brasileira do Madness”, escre-
via: “A letra (de “Eu me amo”) revela um sentimento legítimo na garota-
da pensante deste país”. E mais adiante: “(Rebelde sem causa) toca na veia
do problema de quase todo adolescente brasileiro, que termina adotan-
do uma atitude passiva, conformista e de hedonismo barato frente a tudo
porque em casa está tudo arrumadinho e os papais são “liberados” ”. Neste
compacto, o guitarrista já era Carlos Castello Branco, o Carlinhos, ex-
aluno de mitológico Lenny Gordin. Scandurra deixara a banda em janei-
ro. Com o estouro do BRock e o consequente aumento de trabalho, tor-
nara-se impossível se desdobrar em cinco bandas diferentes— e ele, mui
acertadamente, concentrou-se na sua banda de coração, o Ira, à época
ainda seno 6
“IR,
(9

À irreverência de suas letras e de sua performance de palco ajudou o


Ultraje a Rigor a se lançar na brecha aberta pelo rock carioca: Roger,
Leospa, Maurício e Carlinhos eram paulistas mas tinham um senso de
humor nacional. De tal forma que ninguém estranhou quando os Para-
lamas do Sucesso tocaram “Inútil” no seu primeiro show no Rock in Rio,
a 13 de janeiro de 1985. E olhe que o Ultraje era uma banda de apenas
dois compactos... Como “paulistas tipo exportação”, os quatro iniciaram
o ano fazendo quase tantos shows no Rio quanto em São Paulo. Parque
Lage, Noites Cariocas, Circo Voador e Mistura Fina foram alguns dos
locais que assistiram ao escracho do grupo antes da gravação, em abril,
nos Estúdios Nas Nuvens, no Rio, do primeiro LP, cujo título não pode-
ria ser mais apropriado: “Nós vamos invadir sua praia”.
O repertório do disco, entretanto, foi escolhido pelo público paulis-
tano através de uma votação realizada no Rádio Clube. Lá, aliás, foi gra-
vada ao vivo a faixa “Independente Futebol Clube” em 6 de abril. Pro-
duzido por Pena Schmidt e pelo onipresente Liminha, “Nós vamos inva-
dir sua praia” buscava um triplo sentido em seu título: o de tocar no Rio,
o mais Óbvio; o de gozar com o preconceito da elite carioca, chocada com

108 Arthur Dapieve


as hordas de suburbanos que as linhas de ônibus Norte-Sul idealizadas
pelo então governador Leonel Brizola despejavam na orla da cidade a cada
fim de semana ensolarado; e o de servir de metáfora para a emergência
da barulhenta maioria jovem nos cenários político e cultural.
Afinal lançado no dia 4 de julho, o LP não frustrou a enorme expec-
tativa que o cercava. Trazia os quatro hits anteriormente prensados nos
dois compactos, os geniais “Inútil”, “Mim quer tocar”, “Eu me amo” e
“Rebelde sem causa”. Trazia as hínicas “Nós vamos invadir sua praia” e
“Independente Futebol Clube”. Trazia mais três sucessos natos, “Ciúme”,
“Marylou” (cuja radiofusão foi proibida pela Censura Federal por tratar
de uma galinha dadivosa) e “Zoraide”. Trazia apenas duas faixas fracas,
“Jesse go” e “Se você sabia”. Uma ótima proporção de nove boas músi-
cas para apenas duas ruins. De todas, uma música em particular concen-
trava todas as virtudes do Ultraje a Rigor, isto é, bom humor, o “efeito
antena” e a urgência roqueira: a new wave, ou melhor, niú-nêivi “Ciú-
me”, introduzida por uma guitarrinha safada que, passados dez anos,
continua irresistível. A letra de Roger captava a angústia do jovem que
queria “levar uma vida moderninha” mas que continuava se mordendo
de ciúmes de sua menininha. Uma grande verdade contada como uma
piada. Uma provocação típica do Ultraje a Rigor.
Com um mês de vida nas lojas, “Nós vamos invadir sua praia” so-
mava 45mil cópias vendidas (chegaria a decuplicar esta marca) e estava com
as nove músicas boas tocando em todas as rádios brasileiras, sobretudo nos
horários em que os ouvintes votavam. Logo o Ultraje a Rigor praticamen-
te monopolizava a mídia. O repórter José Roberto de Alencar contava como
era um dia na vida de Roger na “Folha” de 4 de agosto. Okky de Souza o
entrevistava nas prestigiosas * páginas amarelas” da revista “Veja” de 14

de agosto. E Wilson Coutinho passava “quatro dias com um fenômeno”


no “Jornal do Brasil” de 4 de setembro. Logo, também, a boca que beija-
va se tornava a boca que escarrava. A revista “Bizz” de janeiro de 1986
dizia que a música “L"aventurier”, que O grupo francês Indochine lançara
em 82, era “praticamente idêntica” a “Rebelde sem causa”, de 84, e per-
guntava “plágio ou coincidência?”.
Cientes do malefício que a superexposição poderia causar à carreira
do grupo, Roger, Leospa, Maurício e Carlinhos decidiram tirar férias du-
rante a maior parte de 86. Não sem antes passarem pela temporada de praxe
eo
no Canecão. Durante dois fins de semana de janeiro, o dos dias 3,4e 5
dos dias 10,11 e 12, no horário das 19h que já consagrara a Blitz, o Ultraje
a Rigor foi delirantemente assistido por um público infanto-juvenil, que

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
cantava de cor e salteado hits como “Marylou” e “Inútil”, sem se intimidar
com a pré-histórica e pouco conhecida “O chiclete”, de Edgard Scandurra
(“O chiclete que você mastiga não é igual ao meu”, repetir 300 vezes).
Na época, o Ultraje tentou inventar uma Calçadada Fama diante da
cervejaria de Botafogo, a ser inaugurada, obviamente, por seus próprios
membros. “Pô, a gente é uns merda, acabamo de fazer uma banda e tudo
o que a gente faz junta gente que acha engraçado”, Roger se lembra de ter
pensado diante da trupe de jornalistas presente à palhaçada. Naquele mesmo
janeiro, a Sears lançou dois kits Ultraje a Rigor: o mais caro incluía um LP
“Nós vamos invadir sua praia”, uma camiseta, um button, um broche em
forma de guitarra, um adesivo, uma agenda, uma caneta e um chaveiro; o
mais barato tinha só o LP, a camiseta, o botton e o broche. Começava-se
a sentir um cheirinho de filme queimado.
Não era só a mídia que andava vigiando os passos do Ultraje a Ri-
gor. Em 5 de março de 86, Maurício foi preso em seu apartamento no
Brooklyn, em São Paulo, com 25 gramas de maconha. O baixista alegou
que trouxera a droga dos Estados Unidos “para experimentar”. “Sou
viciado apenas em rock “n” roll”, declarou no Departamento Estadual de
Investigações Criminais. Na ocasião, Roger, Leospa e Carlinhos ainda
estavam no exterior, comprando equipamentos que seriam apreendidos
pela Alfândega. Os quatro entraram novamente no Nas Nuvens em ou-
tubro, para preparar o LP que teria a responsabilidade de suceder a “Nós
vamos invadir sua praia”.
Ainda no começo dos trabalhos, depois de ter gravado as faixas “Pri-
sioneiro” e “A festa”, Carlinhos deixou a banda para ir estudar no afa-
mado Guitar Institute of Technology, em Los Angeles. Foi substituído,
sem maiores traumas, pelo carioca Sérgio Serra, que já emprestara sua
guitarra ao Barão Vermelho, a Leo Jaime e ao João Penca & Seus Miqui-
nhos Amestrados. O LP, intitulado “Sexo!!”, foi culdadosamente gestado
até o final do ano. Dele faziam parte duas músicas das antigas, “Ponto
de ônibus” e a quase-instrumental “Will Robinson e seus robots” (esta co-
assinada por Scandurra). No mais, como o nome do disco sutilmente in-
sinuava, o alvo prioritário estava na faixa-título, em “Eu gosto de mu-
lher”, em “Dênis, o que você quer ser quando crescer?” e em “Pelado”.
“Sempre tivemos o espírito jocoso das marchinhas de carnaval”, justifi-
ca Roger.
“Sexo!!?, o disco, chegou às lojas no dia 25 de março de 1987 e
quebrou o tabu do segundo disco: fez quase tanto sucesso quanto o pri-
meiro. Antes mesmo de o LP chegar às lojas, “Eu gosto de mulher” já

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entupia a programação das rádios. Nela, sobre uma base rock “n” roll, a
letra ironizava o deslumbramento do mundo artístico com o gay way of
life. “Nem quero que você me leve a mal/ Eu sei que hoje em dia isso nem
é normal/ Eu sou assim meio atrasadão/ Conservador, reacionário e ca-
retão/ Pra que ser diferente/ Se eu fico sem mulher eu fico até doente”,
cantava Roger. Óbvio que a praga do politicamente correto, latente na
época, considerou a música machista e homofóbica. Roger se defendia a
Rosângela Petta no “JB” de 6 de abril: “Nós queremos apenas dizer que
achamos mais divertido transa de homem com mulher. Até pouco tem-
po, a gente tinha que explicar porque era heterossexual, dizer pro gay que
não havia nada contra, sabe como é, mas que a escolha pessoal era essa e
todo aquele papo. Enquanto o gay dizia que era gay, ninguém pedia ex-
plicação e todo mundo achava lindo.” Outra grande verdade contada
como uma piada, da mesma forma que “Rebelde sem causa”, “Ciúme”...
Com o estouro do BRock, o clima de união dos primeiros tempos
havia ido para as cucuias. “O RPM entrou com um esquema muito pesa-
do, que começou a concorrência, o espírito de competição, e que destruiu
o movimento”, conta Roger. Na época, ele se viu envolvido na agulhagem.
“Adoro o RPM. Mas quando o Paulo Ricardo surgiu falavam que ele era
o novo Roger. Agora, eu é que sou o novo Paulo Ricardo”, declarava à
“Folha” de 30 de janeiro. Neste cenário de pouca-farinha-meu-pirão-pri-
meiro, resultado do débácle do Plano Cruzado lançado pelo presidente
José Sarney no ano anterior, era preciso inventar novas estratégias de
venda. E o Ultraje foi, novamente, buscar inspiração nos Beatles.
Assim como John, Paul, George & Ringo tocaram no telhado da
gravadora Apple, conforme registrado no filme “Let it be”, Roger, Leospa,
Maurício e Serginho foram para a marquise do Shopping Top Center, na
esquina da Avenida Paulista com a Rua Joaquim Eugênio de Lima, em
São Paulo, para lançar “Sexo!!”. Foi tudo cuidadosamente planejado. O
dia 19 de março: o prefeito Jânio Quadros estava fora da cidade. O ho-
rário do show, entre 12h e 13h05m: horário de almoço nos escritórios
da região e saída dos alunos do cursinho Objetivo. O repertório, todos
os velhos sucessos e as principais faixas do novo disco, sendo que “Eu gosto
de mulher” foi repetida três vezes: a Rede Globo estava gravando um clip
para o “Fantástico”. O resultado do show-surpresa foi um pandemônio.
“Com o trânsito desviado, acabamos prejudicando os seis ou sete hospi-
tais da área”, admite Roger.
«“Sexo!!” foi bem-recebido pela crítica. No “JB” de 7 de abril, Luiz
muito em
Carlos Mansur escrevia que “o novo LP do Ultraje não avança

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
relação ao disco anterior — mas no caso deles isso é positivo. Numa época
em que virou moda expelir para o mundo denúncias e crises existenciais,
é Ótimo reencontrar-se com a irreverência às vezes infantil, às vezes anár-
quica do Ultraje. O resultado é desigual, mas vale a pena”. No “Estadão”
do dia seguinte, Luís Antônio Giron concordava que “o Ultraje não quer
evoluir com seus companheiros de rock nacional — e aí reside a marca
do grupo (...) faz o gênero primal (...) prefere teimar no humor e no rock
“nº roll”. Nas lojas, Roger, Leospa, Maurício e Serginho também passa-
ram no teste do segundo disco: “Sexo!!” acumulou vendas de mais de 320
mil cópias, três quartos das de “Nós vamos invadir sua praia”. Uma boa
performance.
A excursão para promover “Sexo!!” começou pelo Palácio das Con-
venções do Anhembi, em São Paulo, a 8 de maio de 87, e alcançou o
Canecão, no Rio de Janeiro, a 9 de junho. No meio do caminho, entre-
tanto, houve um incidente lamentável: o comerciário Edmilson Noguei-
ra, de 22 anos, foi morto com uma facada por um menor conhecido como
Neguinho durante o show que o Ultraje dava para 12 mil pessoas no
Ginásio Plácido Rocha, em Araçatuba, no interior de São Paulo, no final
de maio. Obviamente, o grupo foi isento de qualquer responsabilidade,
mas ficou pelo ar a explicação policialesca de que tudo fora coisa de “jo-
vens drogados”.
O grande incidente da turnê, no entanto, ainda estava por vir. No
dia 1ºde setembro, depois do show no Ginásio Silveirão, em Chapecó,
Santa Catarina, o grupo retornou ao Hotel Bertaso, o melhor da cidade,
perseguido pela habitual horda de trietes. A recepção barrou todas e o
quarteto foi jantar em seus quartos. Pouco depois, um porteiro bateu à
porta de Roger com quatro meninas que queriam conhecê-lo. Embora
estivesse exausto e faminto, Roger aceitou conversar com elas. Chegou a
comida, mas as quatro foram ficando, ficando, madrugada adentro. Ante
os apelos de Roger (“Olha, vocês são menores, vão acabar complicando
minha vida...”), três delas afinal foram embora. Ficou apenas uma, de 15
anos. À justiça demorou mais de quatro anos para aceitar que nada acon-
tecera naquela noite. Até lá...
Cinco dias depois, uma carta precatória alcançou o Ultraje a Rigor
na cidade paranaense de Maringá, intimando Roger a prestar depoimen-
to. À primeira acusação feita por Ana Maria Stinghen, mãe da menina,
falava em “estupro”. Não foi constatada nenhuma violência. Abriu-se um
segundo processo, desta vez por “sedução”. Constatou-se que o hímen
estava intacto. Abriu-se um terceiro processo, desta vez por “corrupção

Lia Arthur Dapieve


de menores ?. À suposta vítima depôs a favor de Roger. Mesmo provan-
do que focinho de porco não era tomada — e sempre protestando ino-
cência, clamando estar sendo o alvo de uma tentativa de estelionato —,
ficou pairando sobre sua cabeça a vergonhosa pecha de “estuprador”. A
ironia é que a menina de Chapecó até hoje lhe manda cartões de aniver-
sário a cada 12 de setembro.
Em janeiro de 1988, contudo, lá estava o grupo participando do
primeiro festival Hollywood Rock. No show de São Paulo, problemas.
Uma chuva torrencial desabou sobre o estádio do Morumbi e, por causa
dela, muita gente chegou a tempo de ver apenas as duas atrações interna-
cionais da noite, Simply Red e Duran Duran. Parte da culpa por este show
a meia-bomba foi da Rádio Jovem Pan. Tempos antes, Roger a acusara
de receber “jabás” das gravadoras, sendo processado por injúria, difama-
ção e calúnia. O processo não deu em nada. Mas, no dia da apresentação
no campo do São Paulo, a emissora foi à forra, tranquilizando seus ou-
vintes com informes do tipo “não se preocupem com a chuva, essa noite
o Hollywood Rock vai começar mais tarde, só com shows do Simply Red
e do Duran Duran”. Em contrapartida, na Praça da Apoteose, no Rio, o
Ultraje tocou descontraído: Roger fez um strip-tease parcial durante a
música “Pelado”, ficando só de sunga, e encartou o verso “eu não estu-
pro mulher” no meio de “Eu gosto de mulher”.
Depois do festival, 1988 adentro, mal se ouviu falar do grupo até que
ele entrasse novamente no estúdio Nas Nuvens, a 3 de outubro, para gravar
o terceiro LP, batizado de “Crescendo”. Sem a expectativa que cercara
seus dois predecessores, mas acusando todos os golpes que o Ultraje so-
frera desde os tempos do Pierrô Lunar, o disco embicou numa direção mais
pesada e raivosa. O primeiro sintoma disso veio a público no dia 5 de janei-
ro de 1989, quando as rádios receberam da Warner um mix promocional
com duas versões para uma mesma música. A “versão família” intitulava-
se “Filha daquilo...”; a “versão sociedade”, “Filha da puta”. Oficialmente,
a Censura acabara pouco tempo antes e, cautelosas, quase todas as emis-
soras optaram pela “versão família”, editada sem os palavrões. À idéia
era essa mesmo, provocar. “Ah, é? Acabou a Censura? Qual delas aca-
bou e qual não? Já prevíamos que algumas pessoas iriam se autocensurar.
Queríamos causar estranheza”, me dizia Roger no “TB” do dia seguinte.
A letra era um primor de Ultraje a Rigor. A horas tantas, Roger meio
que se explicava: ““Cês me desculpem o palavrão/ Eu bem que tentei evi-
tar/ Mas não achei outra definição/ Que pudesse explicar/ Com tanta cla-
reza/ Aquilo tudo que a gente sente/ À terra é uma beleza/ O que estraga é

Brasileiro dos Anos 80 ILE)


BRock — O Rock
essa gente/ Filha da puta/ É tudo filho da puta”. Mais direto e certeiro,
impossível. E, de quebra, uma bela peça de marketing para promover o LP
que vinha atrás. Por sinal, seguindo a mesma trilha do show de “Sexo!!?
na Avenida Paulista, “Crescendo” teve um show-surpresa. Na tarde de um
domingão, 15 de janeiro, o Ultraje a Rigor percorreu a orla carioca do Leme
ao Leblon encarapitado em cima de um trio elétrico. Atrás dele, milhares
de banhistas vibravam com “marchinhas jocosas” como “Marylou”?, “Eu
gosto de mulher”, “Filha da puta” e... “Mamãe eu quero”.
“Crescendo”, o disco, já chegou às lojas no final de fevereiro com
um disco de ouro, 100 mil cópias vendidas (chegaria a mais de 234 mil),
mas despertou menos entusiasmo de público e de crítica do que os ou-
tros dois. Era menos comercial, decerto, mas era também menos inspira-
do. “Filha da puta” era perfeita, “Volta comigo” era esperta, “O chicle-
te” era necessário, mas o resto... Havia um monte de vinhetas-besteirol,
como “Secretários eletrônicos”, “Maquininha”, “Ricota”
(de Edgard Scan-
durra), “Ice bucket”, “Os cães ladram (mas não mordem) e a caravana
passa”. Uma faixa, no entanto, transcendia o LP: “Crescendo IH — A
missão (Santa inocência)”, um longo e declamado acerto de contas com
a depressão pós-“Sexo!!”, que, além do caso Chapecó, incluía a apreen-
são, pela Alfândega, de instrumentos importados.
Nela, Roger crescia em público. “(...) Eu fui acusado, por uma viga-
rista,/ De ser corruptor de menores em Chapecó/ E a mãe dessa menor,
vejam só/ Me pediu um automóvel pra retirar a acusação/ E como sou
inocente eu disse não/ Porque também não sou corruptor de maiores (...)
Fui estuprado sem vaselina/ Pela mãe de uma menina em Santa Catarina”.
“Ali eu via que não dava pra eu continuar adolescente”, explica Roger.
Para ele, a inspiração começou a ir embora em “Crescendo” porque, por
“preguiça ou caráter”, sua velocidade de composição não saciava a vo-
racidade da indústria fonográfica. “Não percebi que eu tinha que fazer
dez músicas boas por disco”, diz. “Isso me revolta até hoje”. O repertó-
rio de “Nós vamos invadir sua praia” e de “Sexo!!” viera no seu tempo
lógico, a maior parte dele fora escrita antes mesmo de o Ultraje gravar
seu primeiro compacto.
Na época do lançamento de “Crescendo”, aliás, o grupo já preten-
dia pôr na praça um disco com os covers que marcaram sua pré-história,
“Por que Ultraje a Rigor?”. Parte do material, inclusive, estava pronti-
nho, gravado, mas André Midani era contra o projeto. Cederia apenas
um ano depois. Aquela altura do campeonato, terceiro LP nas ruas, o UI-
traje se sentia tão à vontade no Rio de Janeiro que a tradicional turnê

114 Arthur Dapieve


promocional começou pelo Canecão, em 5 de abril. Na estréia, uma cer-
vejaria quase vazia assistiu a hora e meia de um show furioso, cheio de
riffs rascantes, às raias do punk metal. No “JB” de dois dias depois, eu
anotava que “no palco, os Ultrajes lembram os Ramones, com sua rude
mistura de débil-mentalidade e genialidade”. Uma baita performance,
enérgica, sincera e simpática.
À excursão seguiu ginásios do Brasil afora, mas sem a mesma reper-
cussão de outrora. Em julho, Maurício largou o baixo, sendo substituído
por Andria Busic. Este, por sua vez, foi substituído no mês seguinte por
Osvaldo Fagnani, ex-Premeditando o Breque. Em dezembro, o grupo
botou o último acorde em “Por que Ultraje a Rigor?”. O disco foi lança-
do na última semana de março de 1990, tendo uma recepção morna, tra-
duzida em pouco mais de 50 mil cópias vendidas. No cardápio, além de
covers como “I wanna be your man” (de Lennon & McCartney) e “Vem
quente que eu estou fervendo” (de Carlos Imperial e Eduardo Araújo), a
primeira música do Ultraje, “Mauro Bundinha”, atualizada por uma es-
trofe. Um trabalho honesto em seu culto a Chubby Checker, Beach Boys,
Roberto & Erasmo, Isley Brothers, Del Shannon.
Covers, entra-e-sai de integrantes, estaria o Ultraje a Rigor voltan-
do no tempo? Estaria o Ultraje a Rigor fechando o ciclo? Estaria o Ultra-
je a Rigor acabando? O tempo, só ele, mostraria que não.

dos Anos 80 as:


BRock — O Rock Brasileiro
RPM: uma superprodução como o BRock jamais viu
ou
RPM
BEATLEMANIA À BRASILEIRA

Paulo Ricardo Medeiros, de 20 anos, está sozinho em Londres. Com


um violão e alguns songbooks ele está, como virá a dizer doze anos de-
pois, buscando sua “lenda pessoal, no Caminho de Santiago”. No Brasil,
PRM deixou alguns projetos de banda de rock e alguns bicos na crítica
especializada. Trouxe consigo uma crise: a desconfortável sensação de ser
músico e crítico frustado. Na capital inglesa ele está quebrando um blo-
queio: o de não saber compor, só escrever letras. Na Meca pop ele está
encontrando, no contato com a cena tecno de Duran Duran e Eurythmics,
a resposta para suas preces. Ao voltar de Londres, após seis meses de exí-
lio auto-imposto, mais ou menos os mesmos seis meses que separaram o
estouro da Blitz do estouro de Ritchie, Paulo Ricardo está certo de que é
possível fundir Vangelis e The Police.

Filho de militar, o carioca Paulo Ricardo Oliveira Nery de Medeiros


na juventude experimentou a errância de quartel em quartel. Quando
chegou a São Paulo aos 14 anos, em 1977, vindo de Brasília, ele já tinha
uma “banda primitiva” no currículo. No entanto, só dois anos depois,
ao fazer um curso de verão na UnB, foi que a opção de vida pela música
se impôs dentro de sua cabeça. Na volta a São Paulo, conheceu o tecladista
Luiz Schiavon no ensaio de uma banda que este mantinha com um ami-
go comum, o baterista Paulo Valenza. No ensaio, houve uma discussão
entre os que achavam que as letras deviam ser em inglês e os que preferiam
o português. Mesmo sendo um forasteiro, PRM se manifestou e votou a
favor das letras em português. O voto o aproximou de Schiavon, estudante
de piano clássico desde 5 anos de idade (estava com 21).
Paulo Ricardo escrevia, cantava, tocava um pouco de baixo e gosta-
va de rock pesado. Schiavon compunha, tocava muito qualquer coisa com
teclas e prezava os clássicos que estudara no conservatório Mario de An-
drade. PRM largou a idéia de voltar para Brasília e, cruzando influências
e preferências, ele e Schiavon chegaram a um denominador comum: for-
maram um grupo de rock progressivo. “Era o pior momento histórico

Brasileiro dos Anos 80 HZ


BRock — O Rock
possível para se começar uma banda de rock progressivo”, admite Paulo
Ricardo. O Aura durou cerca de um ano e meio. Deixou apenas uma fita
demo com três músicas — duas delas instrumentais — gravadas em oito
canais. O som era pretensioso e vagamente calcado no fusion da banda
americana Weather Report. Shows, nem pensar.
Em 1980, Paulo Ricardo decidiu sair do quartinho e ir pegar cancha
na noite paulistana, que, aquela época, sob o impacto da New Wave, co-
meçava a tolerar uma microcena roqueira. Ele formou um quarteto de
covers, capaz de tocar de Deep Purple a Sá & Guarabira numa só noite.
Fissurado por Vangelis, Schiavon estava fora dessa banda, mas o guitar-
rista Guto Marialva, que séculos depois acompanharia PRM em sua car-
reira solo, estava dentro. Graças a um contato feito pelo crítico Ezequiel
Neves, por muito pouco esse quarteto não assinou contrato com a Con-
tinental. Foi o próprio Paulo Ricardo que, insatisfeito com os rumos do
trabalho, roeu a corda. E caiu em depressão.
Estudante de Comunicação na ECA da USP, Paulo Ricardo escrevia
sobre música no jornal “Canja” desde os 17 anos. Ser crítico de rock lhe
dava a compreensão das engrenagens do showbiz, discos, ingressos e ainda
pagava o aluguel no final do mês. De quebra, ele era praticamente o úni-
co crítico daquela faixa etária, o que garantia um certo apito quanto às
novidades no setor. Na época em que entrou em crise, PRM colaborava
com a revista “Som'Três”. Além das resenhas publicadas nas edições nor-
mais, ele escreveu alguns bioposters: Kiss, Black Sabbath, Led Zeppelin,
Queen (nos quais se revelava por inteiro sua atração pelo rock pesado) e
Rolling Stones (este em duas partes). Paulo Ricardo — que às vezes se
assinava de Medeiros — também fez frilas para o jornal “Música” e a
revista “Pipoca Moderna”.
Quando decidiu vender tudo e ir para Londres, no segundo semes-
tre de 1982, PRM continuou colaborando com a “SomTrês”, assinando
a coluna “Via aérea”. Nela, registrou-se o descobrimento da cena tecnopop
que, no retorno ao Brasil, daria no RPM. Trocando cartas com Schiavon,
Paulo Ricardo descobriu também que o amigo desistira de ser o Vangelis
de Pinheiros e já admitia um uso mais funcional, mais rock “nº roll, para
os teclados. No reencontro em São Paulo, no começo de 1983, os dois
decidiram formar um duo, nos moldes do Eurythmics. Ensaiando no quar-
to de Schiavon, na casa dos pais deste, o duo gravou uma fita demo que
incluía composições que Paulo Ricardo havia rascunhado na capital in-
glesa, como “Revoluções por minuto”, “Olhar 43” e “A cruz e a espa-
da”. O trabalho chegou a ser submetido à CBS, que recusou por considerá-

118 Arthur Dapieve


lo “fora do padrão FM”. Isso apesar de o estouro da vez, Ritchie, que fazia
um tecnopop baixos teores, pertencer ao seu próprio cast.
Para não cair no erro do Aura, morto sem ver as luzes da noite, Pau-
lo Ricardo e Schiavon resolveram agregar novos componentes ao RPM
— abreviatura de revoluções por minuto — e cair na vida. O tecladista
convocou o guitarrista Fernando Deluqui, que tocava com a ex-Absurdette
Mae East. Para a bateria foi recrutado Moreno Júnior, de apenas 15 anos.
Muitos ensaios e lá estava o quarteto estreando, em maio de 1984, na
inauguração do cineclube Zoom Cósmico, na Vila Madalena. Depois o
RPM percorreu todo o circuito paulistano de danceterias: Madame Satã,
Raio Laser, Clash, Tífon, o diabo. Logo o passe do grupo estava sendo
disputado a tapa pela CBS e a EMI-Odeon.
Paulo Ricardo e Schiavon não guardaram rancores pela dispensa do
ano anterior: assinaram com a CBS em novembro. Com gravações para
valer à vista, o “muito verde” Moreno Júnior foi dispensado. Para seu lugar
foi chamado Charles Gavin, do Ira! Depois de um mês de ensaios com o
RPM, no entanto, Gavin foi convidado a substituir André Jung nos Titãs
e, aconselhado por Edgar Scandurra, aceitou. Às vésperas de entrar em
estúdio, PRM, Schiavon e Delugui se viram sem baterista. “A gente pen-
sou “baterista é tudo filho da puta, não vai ter baterista porra nenhuma”?,
lembra Paulo Ricardo. Assim, o primeiro compacto, com “Louras gela-
das” no lado A e “Revoluções por minuto” no lado B, foi gravado com
uma bateria eletrônica. Se os Sisters of Mercy tinha Doctor Avalanche nas
“baquetas”, por que o RPM não podia ter?
Lançado em janeiro de 1985, o compacto conseguiu aparecer no meio
da enxurrada de novas bandas de rock despejadas nas lojas pelas grava-
doras. Ao mesmo tempo em que saía no disquinho, “Louras geladas”?
também era lançada no pau-de-sebo “Rock wave”, que além do RPM,
de Leo Jaime e do Sempre Livre, trazia faixas dos esquecíveis Telex, Dr.
Silvana, Twins, Grafite e Bom Bom, entre outros ainda menos votados.
Composta para ser um hit, “Louras geladas” cumpria sua missão com
brilhantismo. Era um bem-humorado rock deprê à la Classix Nouveaux,
com um baixo de dar taquicardia. “Na madrugada, na mesa do bar/ Louras
geladas vêm me consolar/ Qualquer mulher é sempre assim/ Vocês são
todas iguais/ Nos enlouquecem então se esquecem? E já não querem mais”,
concluía o narrador.
A premeditação deste sucesso de público e crítica nunca foi negada.
Em 20 de setembro de 1986, no auge do sucesso, Paulo Ricardo dizia a
Maurício Stycer no “Jornal do Brasil”: “Me dá muito prazer — e era mais

O Rock Brasileiro dos Anos 80 119


BRock —
importante para o resto do trabalho, naquele momento — ter uma músi-
ca para cima, legal, que facilitasse a nossa penetração, do que ficar bata-
lhando sutilezas para iniciados. Estou sendo mais íntegro quando estou
fazendo um sucesso popular do que se estivesse up-to-date”. A música fez
tanto sucesso, nas FMs e nas danceterias, que mereceu o primeiro remix
promocional da história do mercado fonográfico brasileiro. O disco tra-
zia a versão original (de 2m58s), a re-mix (bolada pelos DJs paulistas
Julinho Mazzei, Grego e Iraí Campos, com 5m26s) e a dub-mix (instru-
mental, com a mesma duração da re-mix). Este três-em-um chegou às
rádios quase ao mesmo tempo que o primeiro LP, “Revoluções Por Mi-
nuto”, em junho de 85.
Com “Louras geladas” de abre-alas, “Revoluções por minuto” tam-
bém estava fadado ao estouro. Embora sua capa trouxesse uma foto pin-
tada do trio Paulo Ricardo-Schiavon-Deluqui, o RPM do primeiro álbum
já era de novo um quarteto. Desde janeiro o baterista Paulo Antônio P.A.
Pagni estava tocando com a banda, mas somente no decorrer das grava-
ções — e com a capa já pronta — ele foi oficializado membro. Antes de
ser convidado por Schiavon, Pagni tocava em seis bandas diferentes (in-
clusive a Parife, do irmão de Arrigo, Paulo Barnabé), dava aulas e pilota-
va a mesa de som de seu próprio estúdio, o Planeta Gulis.
Antes de “Revoluções...” sair às ruas, o RPM já estava engajado no
trabalho de divulgação do LP. Mesmo com o porre de “Louras geladas”,
nem todas as batalhas dessa guerra foram ganhas. Uma dessas derrotas,
em particular, virou folclore e referência obrigatória na hora de se medir
o megassucesso do grupo. Na tempestuosa noite de 3 de maio de 85, 103
gatos pingados se deram o trabalho de subir o Morro da Urca, no Rio,
para assistir ao show do quarteto. Desses 103, apenas 16 eram pagantes.
Entretanto, para sorte do RPM, os 87 restantes eram os chamados for-
madores de opinião: jornalistas, radialistas, pessoal de gravadoras e ou-
tros músicos. Foi lá mesmo que o cantor Ney Matogrosso viu o show,
gostou e deu a dica ao empresário Manoel Poladian, que passou a traba-
lhar com o grupo e pediu ao próprio Ney que dirigisse o novo espetáculo
do RPM. Linhas tortas, essas coisas.
“Revoluções por minuto” tinha dois lados bem distintos. O primei-
ro era ensolarado, “cheio de ganchos”, segundo Paulo Ricardo; o segun-
do era sombrio, mais elaborado e político. No A, além de “Louras gela-
das”, destacam-se a emblemática “Rádio pirata” (“Disputar em cada fre-
quência/ Um espaço nosso nessa decadência/ Canções de guerra, quem sabe
canções do mar/ Canções de amor ao que vai vingar”), épico neopro-

120 Arthur Dapieve


gressivo; outro hit descarado, “Olhar 43”, perfeitamente pop; e “A cruz
e a espada”, uma baladinha chorosa, com uma clarineta (de Roberto Sion)
de arrepiar. No B, além de “Revoluções por minuto”, ponto para a linda
“Juvenília” (“E um pedaço do meu coração é teu/ Destroçado com as
mãos/ Pelas mãos de Deus”). O público estava de joelhos e a crítica, de
maneira geral, torcia a favor — quando nada por um certo esprit de corps.
“Ao lado do pop-shake do João Penca e Seus Miquinhos Amestrados, da
fúria hard-billy do Magazine, do promissor Biquíni Cavadão e da trip-
sensual do Metrô, o RPM aparece como uma das grandes esperanças de
nosso cenário pleno de artifícios e golpes de mídia”, proclamava Fernan-
do Naporano, entre erros e acertos, na “Folha de S. Paulo” de 25 de ju-
nho. Napô, por sinal, tinha sua própria banda, a Maria Angélica Não
Mora Mais Aqui.
Com o tempo, “Revoluções por minuto” chegaria a 600 mil cópias
vendidas. Mas para atingir essa marca era preciso levar o produto até o
público consumidor. Com a visão empresarial de Poladian e a direção
artística de Matogrosso, o RPM saiu a campo para promover seu primeiro
álbum com uma superprodução como o BRock jamais viu, antes ou de-
pois. Laser, gelo seco, dois ônibus, duas carretas, equipamentos sofisti-
cados, uma baita aparelhagem. “Eu gosto de som”, explica Paulo Ricardo.
“Nunca vou conseguir ser low-tech”. A campanha, isto é, a excursão do
show “Rádio pirata”, começou pelo Teatro Bandeirantes, em São Paulo,
a 16 de setembro de 85. Até 6 de dezembro do ano seguinte a turnê conta-
bilizaria 270 espetáculos por todo o país, com uma assistência estimada
em dois milhões de pessoas — 103 nem em ensaio.
No início da turnê, contudo, o sucesso crescia na proporção inversa
do aplauso da crítica. Escrevendo sobre o show do Teatro Bandeirantes
na revista “Bizz” de novembro de 85, José Augusto Lemos concedia: “ An-
tes mesmo da banda pisar no palco, o show já era um divisor de águas na
história da música brasileira”. Mas logo em seguida anotava que o “show
sucumbiu a todos os possíveis efeitos colaterais a que está arriscada uma
“superprodução” ”, comparando-o desfavoravelmente ao realizado em
junho na danceteria Pool. Certamente a banda perdera parte da esponta-
neidade na passagem do inverno. No entanto, conforme “Rádio pirata”
rasgava o Brasil, a espontaneidade foi substituída por um similar razoá-
vel, a automação do hiperprofissionalismo. De qualquer forma, o gran-
de, imenso público estava se lixando para essa sutileza.
No último dia de outubro, a turnê chegava ao Teatro do Hotel Na-
cional, no Rio. Entre raios laser e nuvens de fumaça, ali já era possível

80 121
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
antever o BRock como establishment. Paulo Ricardo havia se libertado
de qualquer resquício de timidez; era, sob a batuta de Ney Matogrosso,
um bem-acabado shorwman. Schiavon respondia pela maior parte da massa
sonora produzida pelo grupo; seus toques nos teclados tinham a beleza
de um iceberg. Deluqui ficava quieto, atento aos melhores momentos para
encaixar sua guitarra. E P.A. sentava a mão. Trocando em miúdos: o RPM
se tornara um improvável mix de rock pesado, rock progressivo e pós-punk.
Cada tribo podia escolher uma faceta para cultuar. Mesmo os MPBófilos:
no meio do roteiro, que repassava todas as 11 faixas de “Revoluções por
minuto” e apresentava duas inéditas (“Alvorada voraz” e a instrumental
“Naja”), surgiam “London, London”, de Caetano Veloso, e “Flores as-
trais”, de João Ricardo e João Apolinário, filho e pai, hit dos Secos &
Molhados do qual Ney fizera parte.
Em algum ponto da turnê “Rádio pirata” o culto fugiu ao controle.
O RPM — e mui particularmente PRM — se tornou o xodó nacional. O
pajé Sapaim, que tentava salvar a vida do envenenado biólogo Augusto
Ruschi, ganhou de presente uma fita cassete de “Revoluções por minu-
to” e declarou à imprensa: “Eu pedi a eles porque gostei muito”. Caeta-
no Veloso, por sua vez, elogiou publicamente os “ombros lindos” de Paulo
Ricardo. Pronto. Parecia que todas as filhas da pátria, e muitos filhos
também, estavam dispostas a deitar no berço esplêndido do vocalista. As
pilhas de calcinhas, bilhetinhos e flores que cobriam os palcos após cada
show do RPM eram sintomas dessa tara. Ou beatlemania à brasileira,
chame como quiser.
No começo de 1986 começou a circular pelas rádios uma versão
pirata, ao vivo, de “London, London”. Rapidamente a música se tornou
a mais pedida de todas as AMs e FMs do Brasil. A CBS decidiu capitali-
zar esse sucesso inesperado e tomou uma decisão ousada e, como tal, dis-
cutível: fazer do segundo disco do RPM um disco ao vivo. Gravado nos
dias 26 e 27 de maio no Palácio das Convenções do Anhembi, “Rádio
pirata — Ao vivo” chegou as lojas com um disco de platina: 250 mil có-
pias vendidas. O LP rearranjava cinco músicas de “Revoluções por mi-
nuto” (a própria, “A cruz e a espada”, “Olhar 43”, “Estação no infer-
no” e “Rádio pirata”) e registrava as duas inéditas (“Alvorada voraz” e
“Naja”) e as duas versões (“London, London” e “Flores astrais”). Dis-
cute-se até hoje se aquele ao vivo significou ou não a queima do filme do
RPM. “O melhor seria um maxi-single, com as inéditas e as versões, mas
os lojistas foram contra”, conta Paulo Ricardo. Certo ou errado, “Rádio
pirata” vendeu 2.200.000 cópias, recorde absoluto no Brasil.

9;
bo ud Arthur Dapieve
Um pouco antes e um pouco depois das gravações no Anhembi, o
grupo deu outra demonstração de força no Rio de Janeiro. Lotou o Mara-
canazinho por dois fins de semana, 9 e 10 de maio e 7 e 8 de junho. No
total, 42 mil cariocas viram os shows, proporcionando cenas de histeria
só equiparadas às provocadas pela seleção masculina de vôlei, campeã
olímpica em Barcelona, em 1992. Em agosto, o RPM ganhou da “Som-
Três” um daqueles posters que Paulo Ricardo escrevia apenas quatro anos
antes — só que, dessa vez, não havia uma bio bem-informada e escrita,
apenas fotos e dois parágrafos de babação de ovos. De quebra, o grupo
ainda apareceu tocando “Olhar 43” no filme “Rock estrela”, de Lael Ro-
drigues. Era impossível escapar.
À concentração dos spots sobre Paulo Ricardo, no entanto, estava
começando a rachar a bandá. Três dias antes de “Rádio pirata — Ao vivo”
ser lançado, o “JB” de 25 de julho publicava uma reportagem intitulada
“24 horas na vida do RPM”. Nela, Maurício Stycer acompanhava do
backstage um show em Araraquara, desde a saída de São Paulo, às 3h30m.
Havia pequenos perfis d' “As mulheres” do grupo (Moyra Linch, de Paulo
Ricardo; Marisa Gilfoni, de Schiavon; e Lília Lopes, de Deluqui), dº “A
babá” (o secretário Aguiberto Santos) e d” “A banda” (Schiavon, Deluqui
e P.A.). O grosso da reportagem descrevia a viagem, o show e os bastido-
res. No hall do Hotel Eldorado, na saída para a apresentação no Ginásio
Castelo Branco, um flagrante de desentendimento. Schiavon berra com
Aguiberto: “Te falei para você só me chamar quando o cara já estiver aqui
embaixo!” Ali, naquela frase, os fãs tomaram consciência de que o so-
nho poderia acabar de uma hora para outra.
Nas internas, a banda consumia cocaína em doses cavalares, o que
só adicionava mais onipotência e egocentrismo à embriaguez do superes-
trelato. “A gente tinha muito dinheiro”, recorda Paulo Ricardo. “Não
vendemos a mãe para comprar pó. Cheguei a cronometrar. De três mi-
nutos e meio em três minutos e meio nós cheirávamos uma lagartixa do
tamanho de um palmo do Emil Rached, permanentemente esticada” (com
2,23 metros de altura, o campineiro Emil Rached integrou a seleção bra-
sileira de basquete e contracenou com Os Trapalhões no cinema e na TV).
Em sua gentileza, P.A. era capaz de apresentar cocaina para qualquer um
com quem simpatizasse, incluindo porteiros e motoristas de táxi. As re-
lações dentro da banda estavam cada vez mais tensas, travando a criati-
vidade. Nem as batalhas de extintor de incêndio pelos corredores dos hotéis
descontraíam o ambiente ou afastavam a sensação de isolamento. “A gente
já não era... gente normal”, confessa o vocalista-baixista.

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 123


BRock
No mundo-lá-fora a paparicação continuava. Paulo Ricardo tirou
fotos nu junto à modelo Luiza Brunet. O RPM participou do programa
“Chico & Caetano” de 15 de agosto (na ocasião, PRM e Caê fizeram um
dueto em “London, London”). O grupo reuniu 40 mil pessoas na Praça
da Apoteose, em 27 de setembro, na despedida da turnê “Rádio pirata”
do Rio. Fazia-se tanto dinheiro que o RPM podia se dar o luxo de recusar
US$ 400 mil por um contrato com os jeans Vitasay com o singelo argumen-
to de que não usava jeans(!). Nem tudo foram flores astrais nesse perío-
do. Na manhã de 23 de outubro de 86 Paulo Ricardo foi preso no Aero-
porto Internacional do Rio de Janeiro com 16 gramas de maconha. Em
função dos “serviços culturais prestados à nação” ele foi absolvido no dia
23 de abril do ano seguinte — na mesma sessão em que Lobão pegou um
ano de cana por posse de cocaína.
O show não podia parar. No mesmo dia da prisão, Paulo Ricardo
pegou um jatinho e se juntou aos demais membros do RPM para um show
em Londrina, no Paraná. Na virada de 1986 para 1987, o grupo estava
diversificando seus investimentos. Lançou um home video com o show “Rá-
dio pirata”, criou o selo Revoluções Discos e gravou um mix com Milton
Nascimento. No lado A, “Feito nós” (letra de Paulo Ricardo e música de
Bituca), e no B, “Homo sapiens” (letra de Bituca e música de Paulo Ricar-
do). Para arejar, entre 23 e 26 de julho de 87, o RPM fez show no Peru,
que comprou 50 mil cópias de “Rádio pirata”. Mas nem todas as aplica-
ções renderam o esperado: o primeiro e único LP lançado pelo Revolu-
ções Discos foi “Fóstoros de Oxford”, do grupo paulista Cabine C, lide-
rado pelo ex-titã Ciro Pessoa — que acabou na justiça pedindo liberação
do contrato. Outro projeto sequer saiu da fase de pré-produção: um lon-
ga-metragem de ficção, a ser dirigido por Bruno Barreto e estrelado pelo
quarteto, que viveria nas telas as aventuras romântico-policiais propos-
tas pelo roteiro de Sérgio Resende, Marcelo Rubens Paiva e Paulo Ricardo.
Pior, na última semana de agosto, uma nota assinada por Paulo Ricar-
do e Luiz Schiavon e endereçada à CBS anunciava o fim do RPM. A ex-
plicação oficial insinuava divergências artísticas, mas o principal motivo
do racha era outro. Os fundadores do grupo vinham travando há algum
tempo uma briga com Deluqui e P.A. em torno dos direitos autorais. Paulo
Ricardo e Schiavon assinavam quase todas as músicas sozinhos. As exce-
ções eram “Sob a luz do sol”, deles e do guitarrista, e “Alvorada voraz”,
deles e do baterista. Sendo assim, sobrava pouco dinheiro de direitos au-
torais para os “novatos”, que estavam ganhando cerca de 1/4 do que
ganhavam os outros dois. Sem perspectivas de maior participação na com-

124 Arthur Dapieve


posição — e nos lucros —, Delugui e P.A. pediram o boné. Paulo Ricardo
e Schiavon, que também já não se davam muito bem, não conseguiram
retomar o duo original, conforme declararam. E o RPM acabou mesmo.
Pela primeira vez.
Evidentemente, a CBS não estava disposta a ver sua galinha dos ovos
de ouro ir pro brejo assim tão cedo, tendo gravado apenas dois LPs. Com
um contrato de cinco anos em vigor, a gravadora pressionou os quatro
erre-pê-emes para que eles reunissem seus trapinhos e retomassem o tra-
balho. Muito a contragosto, antes do fim do ano Paulo Ricardo, Luiz
Schiavon, Fernando Deluqui e Paulo Antônio Pagni se reencontraram no
estúdio Sigla, em São Paulo. A barra — inclusive no que se refere a con-
sumo de cocaína — estava tão pesada que o redivivo RPM teve de se iso-
lar com um miniestúdio de oito canais numa casa de Búzios, no litoral
do Estado do Rio, para conseguir chegar a algum lugar. Lá, o pó foi proi-
bido. “Mas ninguém falou sobre maconha, ácido e pinga...”, diverte-se
Paulo Ricardo sete anos depois. “RPM”, o disco, só terminou de ser gra-
vado (e mixado) no Light House, em Los Angeles.
No avião para L.A., P.A. começou a passar mal, muito mal. Eram
os excessos se manifestando na forma de uma crise de pancreatite. O
baterista passou cinco dias internado no famoso hospital Cedars-Sinar,
com a diária de US$ 2 mil paga pela CBS. Depois disso, muita água mi-
neral. Pó, nem aquele que se espana dos móveis. Era isso ou a morte. Com
P.A. recuperado, no Light House, foi acrescentada, por exemplo, a per-
cussão de Paulinho da Costa (em várias faixas) e o naipe de metais e os
backing vocals de “Partners”. Duas semanas de trabalho na Califórnia.
Lançado na primeira semana de abril de 1988, “RPM”, também
conhecido como “Quatro coiotes”, dividia politicamente a assinatura das
composições, principal causa do racha entre “fundadores” e “novatos”.
A dupla Paulo Ricardo/Schiavon só assinava uma das dez faixas, “*Quar-
to poder”. Todas as outras tinham o crédito ou de Deluqui ou P.A. — às
vezes dos dois, caso de “Um caso de amor assim...” e “Sete mares” (deles
com PRM) e de “O teu futuro espelha essa grandeza...” (assinada a oito
mãos!). Havia dinheiro de direitos autorais para todo mundo.
Musicalmente, “RPM” era um disco esquisito, mais pesado e menos
pop de que os dois anteriores. Tinha um hit mais ou menos óbvio, “Dália
negra” (“Enquanto espero/ Enquanto ela quer/ Meus olhos comem essa
mulher”). Tinha Bezerra da Silva participando de um insólito funk (“O teu
futuro espelha esssa grandeza...”). Tinha um revival progressivo, “Quar-
to poder”. Tinha neopsicodelismo em inglês, “Show it to me”. Ou seja:

80 |to An
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
o grupo atirava em todas as direções para ver se acertava em alguma. Era
uma tentativa agoniada de manter a coesão através da reedição do velho
megassucesso. Mas, embora os números divulgados na época falassem em
até 300 mil cópias vendidas, o fato é que “RPM?” vendeu pouco mais que
a metade, 170 mil. Uma boa vendagem. Mas, em termos de RPM, um re-
tumbante fracasso.
A excursão de lançamento de “RPM” começou no dia 20 de agos-
to, com uma apresentação no mesmo Palácio das Convenções do Anhem-
bi que servira de “estúdio” para a gravação de “Rádio pirata — Ao
vivo”, dois anos antes. Na direção, em vez de Ney Matogrosso, Dênis
Carvalho. Essa não era a única mudança no time que havia vencido até
então. Paulo Ricardo se separara de Moyra, com quem tivera uma filha,
Paola Victoria, no ano anterior, e se casara com a modelo Luciana Ven-
dramini. E, pouco antes de embarcar para uma miniturnê americana, com
shows em Nova York (no S.0.B.), Newark e Boston, de 17 a 25 de se-
tembro, o RPM se separou de Manoel Poladian, e se juntou à Miils &
Niemeyer.
Na volta ao Brasil, o grupo mudou o nome da turnê de “RPM?” para
“Partners” e voltou à estrada. No dia 27 de outubro, estreava uma tem-
porada no Canecão, no Rio. O show era morno. Seus pontos altos eram
os velhos hits (“Louras geladas”, “Olhar 43”, “London, London”) e a
antológica interpretação de Paulo Ricardo para “Autonomia”, de Car-
tola, que gravara para o disco-tributo “Bate outra vez...”. Seus pontos
baixos eram a apatia com que eram tocadas as novas canções e a parti-
cipação de Milton Nascimento lendo a letra de “Feito nós”. No todo,
faltava o tesão que caracterizava a excursão anterior — pareciam qua-
tro funcionários públicos no palco. “Era meio um remendo, não mais o
RPM”, avalia Paulo Ricardo.
O remendo não resistiu muito tempo. O RPM se dissolveu após rea-
lizar três shows de despedida, de 23 a 25 de fevereiro de 1989, na dance-
teria paulistana DamaXoc. As razões oficiais eram mais ou menos as
mesmas das da primeira separação. “Todos nós somos compositores”,
dizia Schiavon a Roberto Comodo, no “JB” de 23 de fevereiro. “E não
dava mais para colocar todas as nossas músicas num único disco, mistu-
rando estilos que seriam incompatíveis com o do antigo RPM”. O tecla-
dista imaginava uma interrupção de um ou dois anos na carreira do gru-
po, mas, com os partners transformados em enemies, o RPM, ou ao me-
nos aquele RPM, acabou mesmo. Pela segunda vez.

126 Arthur Dapieve


À separação era uma pedra tão cantada que, ao mesmo tempo em
que a anunciavam, os quatro divulgavam seus novos caminhos. Paulo
Ricardo e Fernando Deluqui se juntaram a Guilherme Canais (tecladista,
guitarrista e técnico de som) e Ivan Busic (baterista) para gravar o primeiro
“trabalho solo” do primeiro, “Paulo Ricardo” (lançado ainda em 89). Luiz
Schiavon montou um grupo de nove músicos, o Projeto S, que gravou um
LP com o mesmo nome, lançado em 1990. P.A. embarcou num trio com
o guitarrista Ewerton Waldman e o baixista Nadinho Feliciano; não che-
gou a gravar. O disco de PRM e Deluqui puxava mais para o jazz e o blues,
ou seja, era tudo o que os fãs não esperavam de dois ex-RPMs. Vendeu
tão pouco que a CBS sequer registra os números. Schiavon, com seu neo-
tecnoprogressivo, conseguiu ainda menos.

80 2
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Legião Urbana: uma relação de amor & ódio com Brasília
10.
LEGIÃO URBANA
BRASÍLIA ET ORBIS

Era solitário ser punk naqueles dancin” days. O broche da banda certa
poderia significar o início de uma grande amizade. Era uma noite tedio-
sa, como tantas outras em Brasília. Renato Manfredini Jr., de 18 anos,
estava no Taverna, na SQS 103, um ponto de encontro para aqueles poucos
que, como ele, preferiam os Ramones aos Bee Gees. Eis que entra no bar
um clone de Sid Vicious, alto, louro, roupas rasgadas. O metrônomo de
Renato bateu mais rápido. “Hello, do you like Sex Pistols?”, arriscou o
jovem professor da Cultura Inglesa, que sabia estar diante de um aluno
da Escola Americana. À resposta afirmativa desembocou numa amizade
instantânea. O nome do gringo era André Pretorius. Ele era filho de em-
baixador sul-africano, era a ovelha negra da família, era punk e tocava
guitarra. Renato tocava baixo. Arrumar um baterista foi fácil. Renato co-
nhecia um, Felipe Lemos, fã de Iggy Pop e dos Stooges com quem dispu-
tava os “Melody Makers” que chegavam à biblioteca da Cultura. Juntos
sob o nome de Aborto Elétrico, os três ainda iriam errar dezenas de vezes
o 1-2-3-4-! na entrada de “Now I wanna sniff some glue”, dos Ramones.

Renato Manfredini Jr. — mais tarde Renato Russo — era um bra-


siliense típico. Nasceu no Rio de Janeiro, no mesmo ano da inauguração
da capital sonhada por Juscelino Kubitschek, 1960. Era filho mais velho
de um economista do Banco do Brasil e de uma professora de inglês. Aos
5 anos começou a aprender piano. Aos 7, foi morar com a família nos
Estados Unidos. Dois anos depois, os Manfredini voltaram ao Brasil para
residir em Curitiba. Quando Júnior tinha 11 anos, seu Renato se transfe-
riu para Brasília. Aluno do Colégio Marista, Renatinho passou dos 15 anos
aos 17 anos entrevado em casa, vítima de uma doença que praticamente
dissolveu a cartilagem que liga o fêmur esquerdo à bacia — ele acabou
tendo de colocar um pino de platina e ganhando o apelido de “Homem
de Seis Milhões de Dólares”.
É mais ou menos nessa época, 1977, que um professor escocês, cha-
mado lain, recém-chegado de uma viagem às ilhas, fala de uns tais Sex

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 2h,


BRock
Pistols ao adolescente tarado por música que ainda estava naquela de
escutar Led Zeppelin e Pink Floyd. Pouco tempo depois, uma coletânea
organizada por Ezequiel Neves para a revista “Pop” pôs pela primeira vez
seus tímpanos em contato com Sex Pistols, Ramones, Richard Hell and
The Voidoids, o punk rock, enfim. Para Renato, a atitude do-it-yourself
tinha tudo a ver com um país que começava a explorar a abertura políti-
ca do general Ernesto Geisel.
Com o movimento punk, Renato se encontrou na Colina, uma mini-
quadra dentro da Universidade de Brasília, na qual moravam os profes-
sores e onde uma pequena turma se reunia para ensaiar e trocar fitas e
informações. Dessa turma faziam parte, entre outros, Herbert Vianna, que
depois de se mudar para o Rio e estourar com os Paralamas do Sucesso
apadrinharia outras bandas da capital na gravadora EMI-Odeon, e André
Mueller, que durante o tempo em que morou com o pai professor na In-
glaterra abasteceu os amigos que ficaram com discos e fitas e que, mais
tarde, tocaria baixo no Plebe Rude.
Nesse contexto, o Aborto Elétrico formado por Renato, Pretorius e
Fê corria o risco de ser apenas mais uma banda, disputando espaço com
Blitz 64, XXX, Vigaristas de Istambul, Diamante Cor-de-Rosa, Angra 2,
Dado e o Reino Animal. O Trio fazia um rock singelo, pesado e rápido
(para a época), influenciado por Stooges, MCS e Sex Pistols. À primeira
letra de Renato, “Geração Coca-Cola”, era um verdadeiro cartão de vi-
sitas: “Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Nós
somos o futuro da nação/ Geração Coca-Cola”. Nem as rimas em “ão”
enfraqueciam seus propósitos roqueiro-anarquistas.
Num período de poucos shows e nenhuma gravação, dois fatos in-
terferiram na vida do Aborto Elétrico: a morte do idolatrado Sid Vicious,
a 2 de fevereiro de 1979 — a partir daí o grupo se aproximou da cold
wave de Joy Division e The Cure — e a ausência temporária de Pretorious
— prestando serviço militar na África do Sul. O grupo era então um quar-
teto, com o irmão de Fê, Flávio, assumindo o baixo para deixar Renato
livre para cantar. O substituto natural de Pretorius seria Iko Ouro Preto,
irmão de um riponga tardio chamado Dinho, caso o guitarrista-fotógra-
fo não tivesse stage fright, pânico de palco.
Embora o Aborto Elétrico nunca tenha gravado, boa parte de seu
repertório ficou registrado nos discos das duas bandas dele nascidas, Le-
gião Urbana (“Geração Coca-Cola”, “Que país é este”, “Conexão ama-
zônica”, “Tédio |com um T bem grande pra você]) e Capital Inicial (“Mú-
sica urbana”, “Veraneio vascaína”, “Fátima”). Fazem parte da porção iné-

130 Arthur Dapieve


dita “Anjos mortos” (uma homenagem a Sid Vicious), “Verde e amare-
lo”, “Ficção científica” e “Helicópteros no céu”. Quando uma briga en-
tre Renato e Fê acabou com o Aborto, na virada de 1981 para 1982, 0
então estudante de Jornalismo na UnB se tornou o famigerado Trovador
Solitário. Qual um Bob Dylan do Planalto, Renato abria os shows das ou-
tras bandas da turma da Colina cantando ao violão músicas como “Eduar-
do e Mônica”, “Eu sei” e “Química”.
Renato então já Russo — uma referência aos pensadores Jean-Jacques
Rousseau e Bertrand Russell e ao pintor Henri Rousseau — não ficou
muito tempo sozinho. Em 1983, sob a emoção do lançamento do primeiro
compacto dos amigos Paralamas do Sucesso, ele alugou uma sala no edi-
fício Brasília Rádio Center para tocar um novo projeto com o baterista
Marcelo Bonfá. A eles se juntaram o tecladista Paulo Paulista e o guitar-
rista Eduardo Paraná. Este, no entanto, tinha um defeito grave para uma
banda que, embora quisesse distância da zoeira, ainda estava imbuída do
espírito punk: Paraná solava demais. “E nós éramos contra”, lembra Re-
nato. Iko o substituiu, mas, mais uma vez, seu stage fright roeu a corda,
às vesperas de um importante show agendado no auditório da Associa-
ção Brasileira de Odontologia. Dado Villa-Lobos, ex-Dado e o Reino
Animal e sobrinho-neto do compositor Heitor Villa-Lobos, foi convoca-
do às pressas para segurar a guitarra que mal sabia tocar. Aprendeu nove
músicas em três dias e fez o show. Foi como um trio — Renato, Bonfá e
Dado — que se cristalizou a formação do Legião Urbana.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, os Paralamas do Sucesso se encarre-
gavam de fazer propaganda de seus “conterrâneos”. No seu primeiro LP,
“Cinema mudo”, os PdS gravaram “Química” e “O que eu não disse”,
parceria de Renato com Herbert e Barone. De quebra, tocavam “Ainda é
cedo” e “Veraneio vascaína” em seus shows. Mas antes mesmo de o disco
sair o Legião descobriu que havia vida roqueira fora de Brasília: tocou
no Napalm (em São Paulo) e no Circo Voador (no Rio). No dia do show
carioca, 23 de julho de 83, tanto o “JB” quanto o “Globo” destacavam,
em termos altamente elogiosos, que aquela seria a primeira apresentação
na cidade de dois dos mais badalados grupos do Distrito Federal, o Legião
e o Capital Inicial (de Fê e Flávio Lemos com o vocalista Dinho Ouro Preto
e o guitarrista Loro Jones). No Circo, eles abriram para Lobão e os Ronal-
dos. Ao mesmo tempo uma fita demo do Legião — com “Geração Coca-
Cola” e “Ainda é cedo” — começava a tocar na Rádio Fluminense FM.
Só no ano seguinte, entretanto, é que O grupo conseguiu se acertar
com a EMLOdeon. Primeiro, porque a gravadora que já detinha o passe

80 131
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
dos Paralamas resistia em ter em seu cast outro trio-de-Brasília-com-um-
cantor-que-usa-óculos. Segundo, porque a fita que caíra nas mãos de novo
diretor artístico da casa, Jorge Davidson, fora a fita errada, isto é, uma
fita que Renato gravara em sua fase de Trovador Solitário — assim, por
algum tempo, a EMI queria transformá-los num grupo country, imagine
só. E, terceiro, porque demorou-se a chegar a um consenso sobre quem
seria o produtor ideal para o disco que deveria se chamar “Revolução por
minuto” — o escolhido acabou sendo o jornalista José Emílio Rondeau.
Entre marchas e contramarchas, o Legião Urbana se tornou um quar-
teto, agregando o baixista Renato Rocha, vulgo Billy, vulgo Negrete, um
velho conhecido, da facção hardcore da turma de Brasília. Ele entrou na
banda tanto porque Renato desejava se dedicar a outros afazeres, como
cantar mais solto e empresariar, quanto porque Renato precisava ao menos
temporariamente de um substituto no baixo. Durante uma crise depres-
siva ele cortara os pulsos mais para chamar a atenção do que para se matar.
Estava, portanto, convalescendo de ferimentos que tiravam alguns movi-
mentos das mãos.
Sem nenhum compacto precursor, o LP “Legião Urbana”, foi lan-
çado em janeiro de 1985, às vésperas do Rock in Rio. Foi abafado pelo
megaevento: saiu do forno direto para um limbo de cerca de seis meses.
Passado este período, o público foi descobrindo, a despeito até de uma
certa má vontade da gravadora em divulgar seu próprio produto, que aque-
le quarteto de Brasília não era um aproveitador do sucesso dos Paralamas.
O disco começou a tocar nas rádios, quase faixa a faixa, e a vender, ven-
der muito mais, dez vezes mais do que as cinco mil cópias previstas timi-
damente pelo EMI-Odeon.
A primeira faixa a estourar foi “Será”. Nela, sobre a base carne-de-
pescoço que contrastava com os sininhos do glockenspiel (também conhe-
cido como carrilhão, uma espécie de xilofone com chapas de metal), ou-
via-se um anti (pelo contéudo) épico (pela forma de cantar): “Será só ima-
ginação?/ Será que nada vai acontecer?/ Será que é tudo isso em vão?/ Será
que vamos conseguir vencer?” Depois, em rápida sucessão, ocuparam o
primeiro lugar do hit parade das AMs e FMs “Geração Coca-Cola”, “Ain-
da é cedo” (uma torturada canção de amor), “Teorema” (cuja primeira
estrofe, iniciada por “Não vá embora/ Fique um pouco mais/ Ninguém
sabe fazer/ O que você me faz”, fora escrita a propósito de sexo oral), “Sol-
dados” (uma marcha à la U2 que a gravadora não queria no disco) e, um
pouco mais adiante, “Por enquanto” (a última do lado B, que terminava
com os conceituais versos “estamos indo de volta/ Pra casa”).

132 Arthur Dapieve


O Legião Urbana, ao contrário do que se podia pensar, não estava
se recolhendo a Brasília: o sucesso fez o grupo se transferir para o Rio,
sede da gravadora e da Rede Globo (lá Chacrinha gostou de “Será” por-
que a voz de Renato lhe fazia lembrar a de Jerry Adriani). Em agosto de
85, Renato estava de volta à casa dos avós, onde passara parte de sua
infância, no bairro de Bananal, na Ilha do Governador, a dezenas de qui-
lômetros da mítica Zona Sul. No Rio, o Legião tocou em praticamente
todos os palcos disponíveis: Let it Be, Manhattan, Metrópolis, Mistura
Fina, Mamute, Mamão com Açúcar, Morro da Urca (“O circuito do M”,
como era conhecido).
O período de hibernação de “Legião Urbana” fez com que “Dois”
fosse lançado quando as músicas do primeiro disco ainda estavam tocando
nas rádios. E, quando o segundo chegou às lojas, na virada de julho para
agosto, o LP do qual a EMI-Odeon esperava vender cinco mil cópias já
estava se aproximando das cem mil. Dessa vez, a gravadora pressionou
para que fosse gravado o material que já estava pronto na época das ses-
sões de “Legião Urbana”. Renato, Bonfá, Dado e Negrete, entretanto,
estavam em outra. Produzidos por Mayrton Bahia, eles evitaram bisar a
politização punk do primeiro trabalho e partiram para um lirismo pós-
punk, cheio de violões e teclados.
“Dois” começava exatamente onde “Legião Urbana” terminava. O
dial de um rádio era girado, passava por “Será” entre chiados e ia “pe-
gar” “Daniel na cova dos leões”, cujo parente mais próximo no disco
anterior era justo a última faixa, “Por enquanto”. “ Aquele gosto amar-
go do teu corpo/ Ficou na minha boca por mais tempo/ De amargo e en-
tão salgado ficou doce,/ Assim que o teu cheiro forte e lento/ Fez casa nos
meus braços e ainda leve/ E forte e cego e tenso fez saber/ Que ainda era
muito e muito pouco”, abria o disco, deixando clara a intenção de privi-
legiar a esfera pessoal em detrimento da pública.
Seguiam-se, entre outras, “Acrilic on canvas”, doloridíssima e pre-
tensiosa (“Era a gente tentando fazer rock inglês da Factory”, avalia Re-
nato, nove anos depois); a “Eduardo e Mônica” velha de guerra; “Tem-
uma
po perdido”, criada nas mesmas fontes dos Smiths; e “Andrea Doria”,
canção de despedida (“Quero ter alguém com quem conversar/ Alguém
as
que depois não use o que eu disse/ Contra mim”). No lado B estavam
músicas mais parecida com “Legião Urbana”: “Metrópole”, “Fábrica” e
paródia
“Índios”. Esta, na verdade, havia sido concebida para ser uma
a ima-
de Xuxa, um tema para o “Clube da Criança Junkie” que povoava
da mocência. Em
ginação de Renato. Acabou virando um épico da perda

80 133
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
“Dois”, tanto as letras de Renato quanto o instrumental de Bonfá, Dado
e Negrete amadureceram audivelmente. Ao mesmo tempo, com o melhor
domínio do estúdio, havia até fitas ao contrário em “Acrilic on canvas”
e “Plantas embaixo do aquário”, à moda Beatle. |
Ao vivo, “Dois” foi lançado com uma temporada de duas semanas
no Noites Cariocas, no alto do Morro da Urca. À primeira foi relativa-
mente bem de público e rendeu uma faixa para o álbum duplo “Música
p/ acampamentos”, que seria lançado somente seis anos depois: “Ainda
é cedo”, registrada em 23 de agosto. À segunda semana foi fraca de bi-
lheteria. Era possível assistir ao show com os cotovelos apoiados no pal-
co — não havia grade de isolamento — e ler a set list presa ao chão com
fita crepe. Atrás uma galerinha pogava. Mais atrás um grande vazio na
pista. E, por fim, alguns gatos pingados nas arquibancadas. Uma trangui-
lidade, minutos-luz à frente dos grandes estádios lotados.
À impressão que se tinha é que, mais elaborado que “Legião Urba-
na” e ainda tendo de enfrentar a concorrência dos hits deste, “Dois” en-
frentaria um período de hibernação maior do que o do antecessor até ser
reconhecido — se é que um dia o fosse. Felizmente para a banda essa
desconfortável impressão não durou nem um mês. Logo o Legião estava
com uma temporada sold out no prestigioso Canecão. No palco, Renato
dançava como um oligofrênico enfurecido, Dado só faltava tocar de cos-
tas para o público de tanta timidez, Negrete parecia uma esfinge de éba-
no, paradão no canto dele, e Bonfá vibrava sozinho lá atrás, embora às
vezes tivesse seus momentos de Charlie Watts entediado.
Breve “Dois” havia batido a casa das 800 mil cópias vendidas e quase
todas suas músicas tocavam nas rádios, sendo que “Eduardo e Mônica”
virou coqueluche nacional. O céu, ou melhor, a Europa parecia o limite.
Cogitou-se uma excursão conjunta dos brasilienses Legião, Capital, Ple-
be e Detrito Federal em outubro/novembro por Bruxelas e Berlim, com
outras possíveis escalas em Londres, Lisboa, Porto, Barcelona, Madrid,
Hamburgo e Amsterdam — mas não só essa viagem nunca decolou como
Renato Russo & Cia. nunca saíram do país. Nem tudo era euforia, po-
rém. Num longo e pueril poema publicado no número 1 da revista “Re-
flexo” em outubro, poema intitulado “Scorpio rising”, o letrista do Le-
gião escrevia: “Você não sabe aproveitar a vida/ E talvez essa seja uma
de/ Suas maiores virtudes/ Não há dúvida”.
Excursões, só pelo Brasil, e muitas, para saciar todo o público jovem
que comprou “Dois” e fez de Renato seu porta-voz, sempre clamando por
ética, fosse na política fosse no amor. Durante essas excursões o letrista

134 Arthur Dapieve


começou a experimentar alguns paradoxos do showbiz, os mesmos para-
doxos que, oito anos depois, matariam um garoto chamado Kurt Cobain.
“Quando você faz sucesso com uma banda de rock *n” roll, você tem de
conviver justamente com as pessoas de quem queria fugir ao fundar uma
banda de rock “nº roll”, se lamentava numa entrevista publicada no “JB”
de 22 de setembro de 1987. Nela, Renato constatava uma “empatia tro-
cada”: o boyzinho que ia aos shows cantar “A dança” (dos versos “tra-
tando as meninas/ Como se fossem lixo”) voltava para casa e embolachava
a namorada. Nesse sentido, um show no ginásio poliesportivo de Brasi-
lia, o Nilson Nelson, em dezembro de 86, que terminou com um menina
morta e outras 20 pessoas feridas, fez soar um alarme no Legião Urbana.
O alarme acabou dando numa crise: no meio dos trabalhos de gra-
vação do terceiro disco, a banda decidiu suspender tudo ao notar que
estava fazendo um parto prematuro e a fórceps. “Prefiro passar três anos
sem lançar disco do que colocar em jogo tudo o que fizemos até agora. É
uma linha muito frágil. A pressa passa, mas a porcaria fica”, me dizia
Renato na supracitada entrevista. “A sanidade mental é mais importan-
te”. Daí uma pausa para reflexão. Que cada integrante do Legião apro-
veitou para sonhar de acordo com seus pendores: Dado pensou em fazer
prova para o Instituto Rio Branco, Bonfá pensou em ir pegar onda na
Austrália e Negrete ficou na dele, como sempre.
A pressão da EMI-Odeon foi enorme, naturalmente. Mas a banda
acabou encontrando uma solução que pacificava a gravadora sem que
fossem feitas concessões artísticas. Assim, em apenas duas semanas de
outubro, Renato, Dado, Bonfá e Negrete voltaram ao estúdio para gra-
var uma antologia de velhas músicas, inéditas em vinil. Na segunda se-
mana de dezembro de 87, como se fosse um presente de Natal para os
fãs, chegava às lojas “Que país é este 1978/1987”. O disco trazia três
músicas ainda da época do Abordo Elétrico — a faixa-título, “Conexão
amazônica” e “Tédio (com um T bem grande pra você)” —, duas da fase
Trovador Solitário — “Eu sei” e “Química” —, uma dos primórdios do
Legião — “ Depois do começo” — e duas fresquinhas — “Angra dos Reis”
e “Mais do mesmo” (que inicialmente daria título à coletânea).
A grande vedete do disco, no entanto, foi a mais improvável de to-
das: “Faroeste caboclo”, uma música de pouco mais de nove minutos de
duração, que sozinha consumiu quase a metade de tempo de gravação de
“Que país é este”. Escrita em 1979, na época do Aborto, sua quilométrica
letra — 159 versos! — narrava paixão e morte de um certo João de San-
to Cristo, misto de traficante e homem santo (uma espécie de Brasil per-

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80 pa4) Rs


sonificado). Esta saga começava como música sertaneja, passava pelo
reggae e terminava no punk rock. Se Bob Dylan fosse brasileiro, “Hur-
ricane” seria “Faroeste caboclo”. |
No dia 24 de janeiro de 1988, depois de passar quase dois anos sem
se apresentar no Rio, o Legião Urbana encerrou o segundo festival Alter-
nativa Nativa (que também contou, nas duas noites anteriores, com Lobão
e Leo Jaime/Kid Abelha), sendo aclamado por mais de 20 mil pessoas no
Maracanãzinho. O tempo regularmentar começou com “Que país é este”
e terminou com “Teorema”; no bis, “Angra dos Reis” e novamente, “Que
país é este”. Entre as músicas, declarações sóciopolíticas (do gênero “exija
eleição! É só com a gente votando que a gente pode mudar alguma coi-
sa”) que apenas aumentavam a aura de messianismo que já envolvia Re-
nato. No todo, um concerto excepcional, mas com um inquietante travo
de “The wall” no modo como a massa se deixava manipular.
O sucesso da excursão de lançamento de “Que país é este” animou
o Legião a voltar a se apresentar em sua cidade natal, coisa que não fazia
desde o fatídico show de dezembro de 86. Assim, em seguida a duas da-
tas no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, 10 e 11 de junho, foi pro-
gramado para o dia 18 um baita concerto no estádio de futebol Mané
Garrincha, em Brasília. Na capital paulista, uma noite calma foi sucedi-
da por outra acidentada — uma garrafa de cerveja por pouco não atinge
a cabeça de Bonfá e encerra o espetáculo antes do previsto. No ano ante-
rior, um sapato atingira Renato em Belém.
Esperava-se muito do show de Brasília. E o muito veio, mas não da
maneira desejada. A produção local, da firma Agora Eles, não foi capaz
de aquilatar a relação de amor & ódio que unia o Legião a Brasília. Mon-
tou um pífio esquema de segurança e um palco baixíssimo, quase na al-
tura do gramado. Resultado: os tumultos ocorridos diante do palco aca-
baram atingindo a banda, seja na forma de bombinhas, seja na pessoa de
um doente mental que, patética mas perigosamente, se agarrou ao pesco-
ço de Renato. Por essas e por outras, o quarteto desistiu de continuar to-
cando e saiu de cena, o que apenas agitou ainda mais a platéia de cerca
de 50 mil pessoas. À batalha campal que se seguiu, envolvendo a polícia
montada e bombas de gás lacrimogêneo, degringolou num quebra-que-
bra pela cidade e deixou um saldo de 60 pessoas detidas, 385 atendidas
pelo serviço médico e 64 ônibus depredados.
Embora ônibus já tivessem sido depredados antes do show, quem
levou a culpa pela arruaça foi a banda. Um relatório entregue pela admi-
nistração do estádio ao então governador José Aparecido dizia que Re-

136 Arthur Dapieve


nato incitara a juventude local e que, “com menos de uma hora de show,
passou a agredir a cidade e os presentes”. Embora isso fosse apenas uma
meia verdade, o Legião perdeu multidões de fãs em Brasília e teve de pas-
sar um tempão tentando se defender. “Nós tocamos por uma hora e meia
e não por apenas meia hora como disseram, e separaram algumas frases
do contexto”, lembrava Renato ao “Jornal do Brasil” do dia 21. “Temos
tudo gravado em fita cassete e filmado em 16mm pelo Jodele Larcher”.
Exibido pela Rede Globo, o material do videomaker ajudou a segurar a
barra da banda, que estava sendo empurrada para o cadafalso.
A Altamont cabocla de Brasília foi um turning point na carreira do
Legião Urbana do mesmo modo que o concerto da Califórnia foi para a
dos Rolling Stones. À excursão de “Que país é este” prosseguiu, com tran-
quilos e seguros shows no Mineirinho (no dia 25) e no Maracanãzinho
(nos dias 14 e 15 de julho, abrindo o terceiro festival Alternativa Nati-
va), mas alguma coisa, um quê de inocência talvez, se perdeu na estrada.
“Não dava pra fingir que éramos amigos do público e tocar num palco
de um metro de altura”, recorda Renato sete anos depois, justificando o
caminho da hiperprofissionalização, que tornou o Legião presença rara
nos sempre precários palcos do país.
Artisticamente, o trauma do Mané Garrincha foi a gota d'água num
velho processo, que pouco a pouco já vinha tirando a banda da agressiva
esfera pública e a colocando no lirismo da vida privada. Mais amor e
menos protesto. Mais violões e menos guitarras. Mais Jesus-Buda-Lao-
Tsé e menos Bakunin. Pessoalmente, as tensões dentro do próprio Legião
se tornaram insuportáveis. Renato, em particular, entrou numa fase difí-
cil. Se por um lado ele ganhou um filho, Giuliano, nascido em março de
1989, fruto de uma noitada com uma tiete, por outro perdeu-se numa vida
junkie, movida a heroína. Ao mesmo tempo, no meio das gravações do
quarto álbum, Negrete deixou a banda — de quem já estava muito afas-
tado em seu autismo — sobretudo por causa dos frequentes atritos com
Bonfá. Baixo e bateria nunca se entenderam muito bem.
Com a saída de Negrete — tão gratuita quanto sua entrada — o trio
original decidiu regravar tudo o que o quarteto já gravara, num ato de
vingança algo infantil. O surpreendente é que um trabalho gestado em meio
a tantas turbulências fossse tão sereno quanto se mostrou “As quatro es-
tações”. O disco já chegou às lojas, em novembro de 89, com 450 mil
cópias vendidas — com o tempo atingiria O dobro, tornando-se o mais
vendido do Legião Urbana. O sucesso de um álbum que o grupo planeja-
ra como um fracasso, como um drible nas expectativas de fãs e críticos,

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


acabou desanuviando o ambiente por trás dos alto-falantes. A excursão
de lançamento do disco serviu para unir Renato, Bonfá e Dado de uma
forma como eles jamais haviam sido unidos. “O Legião era maior que a
gente, não éramos amigos”, explica Renato.
Saindo da idade das trevas inaugurada pelo quebrá-pau em Brasília,
Renato fez do lançamento de “As quatro estações” um momento de auto-
revelação. A letra de “Meninos e meninas” não podia ser mais explícita.
E bonita. “Eu gosto de meninos e meninas/ Vai ver que é assim mesmo e
vai ser assim pra sempre/ Vai ficando complicado e ao mesmo tempo di-
ferente”, declarava. Escrita em 85, “Feedback song for a dying friend”
abordava a Aids e foi gravada tendo Cazuza em mente. “Era importante
como artista eu me posicionar sobre isso. Sejamos honestos. Há uma re-
lação homossexual na música. Estou nos grupos de risco. Só não sou
hemofílico. Não quero ser o mártir da causa gay. O preconceito vem do
desconhecimento, do medo”, expunha-se corajosamente num quarto do
hotel Caesar Park, no Rio, deixando em pânico a assessoria de imprensa
da EMI-Odeon, que acompanhava a entrevista de divulgação de “As qua-
tro estações” no final de outubro de 89.
Ao mesmo tempo, o letrista do Legião Urbana expunha também sua
porção família, na faixa “Pais e filhos” (“Você me diz que seus pais não
entendem/ Mas você não entende seus pais/ Você culpa seus pais por tudo/
E isso é absurdo/ São crianças como você/ O que você vai ser/ Quando
você crescer? “) e na entrevista, publicada no “JB” de 4 de novembro: “Eles
(seus pais) sempre me deram força e olha que eu sou uma pessoa difícil...
Não sou exatamente normal, bebo muito, faço rock “nº roll, sou pansexual.
E eles me respeitam numa boa”. O álbum ainda tinha grandes momen-
tos em “Quando o sol bater na janela do teu quarto”, “Monte Castelo”,
“Maurício”e “Se fiquei esperando meu amor passar”, além da faixa de
abertura, “Há tempos”, que começava com versos antológicos: “Parece
cocaína/ Mas é só tristeza/ Talvez tua cidade”.
Mesmo recorrendo a Camões e fazendo referência aos “Coríntios”e
ao “Tao-te-King”, o Legião Urbana continuou atraindo multidões entu-
siasmadas na turnê “As quatro estações” que iniciou pelo Brasil em abril
de 1990. Naquele mês, o ginásio poliesportivo de Poços de Caldas, em
Minas Gerais, foi palco de um quebra-quebra promovido pelo público
inconformado com as más condições físicas de Renato. Mais adiante, no
dia 7 de julho, o dia em que Cazuza morreu, o grupo fez um show para
60 mil histéricas pessoas no Jockey Club do Rio. “Todos do Legião gos-
tariam de dedicar o show ao Cazuza”, anunciou Renato ao microfone.

138 Arthur Dapieve


Quase ao final do espetáculo, o vocalista citou versos de “Faz parte do
meu show” e “Blues da piedade” na introdução de “Soldados”. No en-
tanto, apesar do sentimento de luto na Gávea, a baderna disse presente
tão logo se esgotou o tempo regulamentar, com turminhas posicionadas
em frente ao palco fazendo guerra com a areia das raias. Ainda assim a
banda voltou para o bis. Depois dele, nos bastidores, um Renato trau-
matizado por tantos incidentes berrava “não vim dar um show para ani-
mais!” Amor & ódio, parte mil.

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Engenheiros do Hawaii: o BRock que veio de Porto Alegre
ao,
ENGENHEIROS DO HAWAII
OS ESTRANGEIROS

Sexta-feira, 11 de janeiro de 1985. No palco do Rock in Rio. Erasmo


Carlos, segunda atração da primeira noite de festival, era hostilizado pe-
los headbangers à espera do Whitesnake e do Iron Maiden. A milhas e
milhas e milhas dali, três porto-alegrenses se preparavam para seu primeiro
show diante de uma televisão. Os colegas da Faculdade de Arquitetura
receberam aquele trio meio performático entusiasticamente. No repertó-
rio dos Engenheiros do Hawaii — este o nome do trio — apenas duas
composições próprias, muitos jingles e até “Lady Laura”, de Roberto
Carlos. “É muito mole!”, entusiasmou-se o guitarrista Humberto Gessin-
ger, diante do sucesso. “Três ensaios e a gente arrasou!”
Na semana seguinte, deslumbrados com sua própria esperteza, Ges-
singer, o baixista Marcelo Pitz e o baterista Carlos Maltz decidiram en-
carar seu segundo show, na Faculdade de Medicina, abrindo para uma
banda “local”. Além de não contarem com a boa vontade da platéia, os
Engenheiros ainda cometeram uma gafe horrorosa: diante dos muitos ju-
deus presentes, Maltz decidiu homenagear sua próprias raízes usando
uma camiseta com a estrela de Davi estampada, Gessinger, por sua vez,
entrou no palco com uma camiseta que trazia estampada... a cruz suás-
tica. Pano rápido.

Antes desses shows, Gessinger e Maltz conviveram durante seis me-


ses, praticamente sem se falar, no escritório-escola da Faculdade de Arqui-
tetura. Certo dia, diante da proximidade de uma festa estudantil os dois se
descobriram — Gessinger apresentou cerca de 30 letras, inclusive a de “Toda
forma de poder”, a Maltz — e arrebanharam o colega Pitz. Se batizaram
como Engenheiros do Hawaii — expressão aparentada a peladeiros de fim
de semana — e fizeram os tais três ensaios. Simples assim. Dois shows depois
estava inventado, de quebra, um circuito universitário porto-alegrense, pa-
ralelo ao circuito de barzinhos como Rockett 88 e o Ocidente.
Nessa época, Gessinger tinha 20 anos, Maltz; 22, e Pitz, 21. Sua
educação musical formal era quase nenhuma. Gessinger, por exemplo,

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80
nunca teve aulas de guitarra. Teve apenas um mês de aula de bandolim.
Fascinado pelo instrumento, embora na verdade tivesse em mente tocar
cavaquinho, ele formou um grupo dechorinho adolescente com, entre
outros, Ricardo Horn, que mais de dez anos depois viria a ser guitarrista
dos Engenheiros do Hawaii. “Eram quatro alemão tocando chorinho,
bicho, era a coisa mais horrorosa que tinha”, lembra Gessinger. Aos 14
anos, ele, que só conseguia tirar músicas de Chico Buarque no violão,
ganhou sua primeira guitarra. Ligou a dita cuja, ficou traumatizado com
sua própria inabilidade, escondeu-a debaixo da cama e, tempos depois a
deu de presente. Reencontro, só na faculdade, ao pedir uma emprestada
para formar os Engenheiros.
Juntos, Gessinger, Maltz e Pitz eram olhados de soslaio pela cena
roqueira de Porto Alegre. Numa cidade onde ser punk e odiar a MPB era
a regra, os três flertavam com a MPG, Música Popular Gaúcha, cujos por
assim dizer expoentes eram Nelson Coelho de Castro, o grupo Musical
Saracura e, sobretudo, Nei Lisboa. O cantor-compositor já tinha, em 1985,
oito anos de carreira regional. Já lançara dois LPs, o independente “Para
viajar no cosmos não precisa gasolina” (83), que fora produzido a partir
da venda de bônus entre amigos, e “Noves fora” (85), pelo pequeno selo
gaúcho Acit. Para se ter uma idéia do irônico universo poético desse ca-
x1ense do Sul, à época com 28 anos, basta dizer que ele se inspirou numa
doença venérea que pegou para compor a música “Mônica tricomônica”.
A Censura Federal a proibiu, mas a Secretaria Estadual de Saúde a ado-
tou numa campanha preventiva.
Não que Gessinger & Cia não se entusiasmassem pelo do-it-yourself
punk. A diferença estava em que, ao descobrir o lema, o guitarrista pen-
sou: “Oba, serei o Steve Howe!” Rock progressivo definitivamente não
era uma boa referência para as outras bandas locais. Estas, por sinal, se
apegavam ao mundinho de Porto Alegre de uma maneira que os Enge-
nheiros consideravam incestuosa. Assim, ao mesmo tempo em que estou-
rou uma fita demo na Rádio Ipanema da capital gaúcha, o trio passou a
excursionar furiosamente pelo interior do estado. A estrada deu cancha
aos Engenheiros, cancha que por vias tortas os levaria a dar o pulo do
gato menos de um ano depois de sua formação.
Em setembro de 85, o gerente de projetos especiais da gravadora
RCA, Tadeu Valério, esteve em Porto Alegre para assistir ao 1º Festival
de Rock Sulino. Voltou de lá com a idéia de fazer uma coletânea de ban-
das gaúchas, um pau-de-sebo regional para ver no que ia dar. Os selecio-
nados foram Replicantes, TNT, De Falla, Garotos da Rua e Taranatiriça.

142 Arthur Dapieve


Mas, para sorte dos Engenheiros, os membros da Taranatiriça já estavam
voando alto demais ao redor de seus próprios umbigos: achavam que uma
coletânea era pouco para eles, queriam um disco inteiro. Foi assim que
Gessinger, Maltz & Pitz gravaram “Sopa de letrinhas” e “Segurança” no
mesmo disco em que os Replicantes compareciam com a ótima “Surfista
calhorda” e o TNT com a infame “Estou na mão”.
O LP “Rock Grande do Sul” foi lançado em janeiro de 1986 e pro-
porcionou aos Engenheiros a oportunidade de gravar seu primeiro clip,
para “Sopa de letrinhas”. Filmado no que sobrou do Hotel Majestic, em
Porto Alegre, ele acabou indo parar na MTV americana. Tempos depois,
quando o guitarrista Robertinho de Recife encontrou Gessinger e disse
ter visto o clip nos Estados Unidos, o gaúcho ficou com a leve impressão
de estar sendo sacaneado. Não estava.
Por esta época, o nome dos Engenheiros do Hawaii já estava se tor-
nando familiar ao público do eixão Rio-São Paulo, assim como seu som.
Havia quem os chamasse de “Paralamas gaúchos”, o que os irritava so-
bremaneira. À comparação, no entanto, não era de todo despropositada.
Tal como os Paralamas do Sucesso, os Engenheiros do Hawaii eram um
trio. E, apesar da admiração de Gessinger e Maltz por Pink Floyd e Rush,
Pitz flertava com a new wave e com o reggae. Sendo ele o baixista, ele-
mento de ligação da banda, essa influência pesava muito no todo. Em
outras palavras: em 1985/86, os Engenheiros eram muito mais “moder-
nos” do que seriam no futuro, em 1995, por exemplo.
Se “Sopa de letrinhas” e “Segurança” estavam circulando pelas rá-
dios do Sudeste, era hora de a banda vir atrás, mostrar sua cara. À pri-
meira investida do trio ao norte do Rio Grande do Sul foi em São Paulo.
Fizeram três shows em danceterias. O primeiro no dia 18 de março, uma
terça-feira, na Rose Bom-Bom; o segundo, no dia seguinte, na Madame
Satã; e o terceiro na sexta-feira 21, novamente na Rose Bom-Bom. À tem-
porada paulista seguiu abril adentro não com shows, mas com as grava-
ções do primeiro LP, “Longe demais das capitais”, título que virou prati-
camente um bordão na hora de se falar do grupo.
Lançado na segunda semana de novembro de 86, o disco era impres-
sionantemente bem resolvido para um disco de estréia de uma banda tão
nova. O público endossou sua qualidade ao comprar mais de 50 mil có-
pias em menos de um mês. Evidente que as precursoras “Sopa de letrinhas”
e “Segurança” estavam nele — ao lado de outras pequenas obras-primas,
como a faixa-título, “Todo mundo é uma ilha” e a niilista “Fé nenhuma”
(“Não levo fé nenhuma em nada/ Mas ninguém tem O direito de me achar

O Rock Brasileiro dos Anos 80 143


BRock —
reacionário/ Eu desconfio do teu jeito revolucionário”, dizia a letra) —
mas a música que mais marcaria a imagem pública angustiada dos En-
genheiros era “Toda forma de poder”. Tanto que a Rede Globo rejeitou
seu clip, que contava com a participação do ator gaúcho Paulo César
Pereio, por considerar a música “triste demais”. Na letra, Gessinger de-
nunciava que “Fidel e Pinochet tiram sarro de você” e que “o fascismo é
fascinante/ Deixa a gente ignorante e fascinada” marcando a música com
um refrão forte, facilmente memorizável: “Toda forma de poder/ É uma
forma de morrer por nada/ Toda forma de conduta/ Se transforma numa
luta armada”.
O lançamento do disco propiciou aos Engenheiros sua primeira tem-
porada carioca, de quarta, 17 de dezembro, a domingo, no Teatro Ipa-
nema. No hall do teatro dois monitores exibiam cenas de shows da ban-
da, de Porto Alegre e sua cena e os clips de “Sopa de letrinhas” e “Toda
forma de poder”. Foi uma apresentação de garagem, séria, tímida, sem
recursos extramusicais. Duas canjas deram força ao trio. Uma do con-
terrâneo Nei Lisboa (em “Carecas da Jamaica”, de sua autoria e que da-
ria nome ao seu terceiro LP, o primeiro por uma grande gravadora, a EMI-
Odeon), outra do carioca Bruno Gouveia, vocalista do Biquíni Cavadão
(em “Todo mundo é uma ilha”). No todo, o show foi um belo cartão de
visitas, apesar dos muitos problemas de som.
O sucesso trouxe os Engenheiros de volta ao Rio apenas três meses
depois, com a desagradável incumbência de estrelar a última noite de vida
da danceteria Metrópolis, em São Conrado, a 24 de março de 1987. As
boas vendagens de “Longe demais das capitais” (70% dela no Rio Gran-
de do Sul) empurravam o grupo de volta aos estúdios, mas não sem um
pequeno contratempo, a saída de Marcelo Pitz. Gessinger assumiu o bai-
xo sem maiores problemas (era para fazer a base que ele queria tocar
cavaquinho em sua adolescência), mas era preciso arrumar um guitarris-
ta. Um encontro casual entre Maltz e o conterrâneo Augusto Licks du-
rante o primeiro show do grupo inglês Echo and The Bunnymen no Ca-
necão, a 19 de maio, resolveu o problema. Licks, mais velho, 31 anos, havia
tocado com meio mundo sulista, principalmente com Nei Lisboa. Era
guitarrista de aluguel, competente, meio frio, mas fundamental para a
guinada sonora do segundo LP.
Gessinger, Maltz e Licks gravaram em julho o disco “A revolta dos
dândis”, título retirado de um capítulo do livro “O homem revoltado”,
do filosófo franco-argelino Albert Camus. O lançamento se deu em 8 de
novembro de 87, com os Engenheiros fechando o festival de apresenta-

144 Arthur Dapieve


ção do selo Plug, da RCA, criado para abrigar o novo rock brasileiro.
Realizado em horário alternativo (Elba Ramalho ocupava o nobre), o fes-
tival reuniu gente boa, como Hanoi-Hanoi, Nenhum de Nós e Hojerizah,
e picaretas, como Aliados e Garotos da Rua, no Canecão.
“A revolta dos dândis” era ao mesmo tempo mais antigo e mais ousa-
do do que “Longe demais das capitais”. Mais antigo porque o guitar hero
Licks arrastava os outros dois para levadas mais rebuscadas, uma espé-
cie de hard rock progressivo — muito mais afim, aliás, ao gosto pessoal
de Gessinger e Maltz. O disco era quase anticomercial com suas longas
músicas e suas letras encucadas, proto-existencialistas. A faixa que pu-
xou o disco foi “Infinita highway”, de mais de seis minutos de duração
em arranjo climático, com (des)acelerações precisas e versos cortantes,
como “eu posso estar completamente enganado/ Posso estar correndo pro
lado errado/ Mas a dúvida é o preço da pureza/ É inútil ter certeza”.
O disco trazia duas outras faixas que praticamente viraram hino da
juventude-é-uma-banda-numa-propaganda-de-refrigerantissss, “Terra de
gigantes” (que incluía esse verso) e “Além dos outdoors” (do verso “por
mais que a gente cante, o silêncio é sempre maior”). E, mesmo quando
dava uma piscadela ao samba, como na música “Filmes de guerra, can-
ções de amor”, o rock dos Engenheiros era de branco, sem inflexões ne-
gras, dir-se-ia ariano não fosse Maltz judeu. As letras de Gessinger, por
sua vez, cristalizavam um estilo aforismático, cheio de aliterações, fun-
cional, onde a métrica é importante para segurar o tempo. Em relação aos
temas, os Engenheiros sempre bateram na mesma tecla, a do sentimento
de estranheza de netos de imigrantes diante de sua própria terra. Uma certa
náusea sartriana.
Apesar dos dois bons discos, os Engenheiros ainda não haviam sido
admitidos na primeira divisão do BRock. Ainda eram uma banda colo-
cada para abrir noites para um grupo audivelmente inferior como o Ca-
pital Inicial. Foi o que aconteceu no terceiro festival Alternativa Nativa
realizado no Maracanãzinho entre 14 e 17 de julho de 1988. O Legião
Urbana tocou sozinho nas duas primeiras noites e os Paralamas idem na
última. Mas Gessinger, Maltz e Licks tiveram que abrir para a banda de
Dinho Ouro-Preto na noite de sábado, 16. Eles ficaram ao mesmo tempo
perto, abaixo e acima do Capital. O show dos Engenheiros foi uma espé-
cie de rito de passagem entre a garagem e as grandes arenas. Nem o tro-
peço literal que Gessinger deu no palco ainda na primeira música, “Lon-
ge demais das capitais”, quebrando seu baixo, fez o trio perder o rebola-
do diante das 20 mil pessoas que lotavam o estádio. A partir daí, os En-

O Rock Brasileiro dos Anos 80 145


BRock —
genheiros encheriam estádios Brasil afora — sobretudo o Gigantinho de
sua cidade natal, lotado sucessivas vezes.
Na época, no entanto, a banda não tinha ainda a exata noção de seu
sucesso. Gessinger e Maltz pretendiam terminar a faculdade de Arquite-
tura e comemoravam a inexistência de fã-clubes dos Erigenheiros. “Nin-
guém vai se matar por um cara que troca de instrumento”, me dizia O
primeiro em entrevista publicada no “Jornal do Brasil” daquele 16 de ju-
lho. “Se criarem um pedestal pra gente, a gente chuta o pedestal”, radi-
calizava Maltz. Mas daí em diante a highway para o estrelato não tinha
mais volta. Eles correriam os riscos.
Naquele mesmo mês de julho, os Engenheiros estavam gravando seu
terceiro LP, “Ouça o que eu digo, não ouça ninguém”. O disco chegou
às lojas na segunda-feira 5 de dezembro. Nele, os Engenheiros corriam
um risco pelo qual seriam execrados a partir de então por parte da críti-
ca: o risco da auto-referência. À introdução da nova “A verdade a ver na-
vios”, por exemplo, era quase idêntica à velha “Terra de gigantes”. Mais
ou menos como “Todo mundo é uma ilha”, do primeiro disco, virou um
verso de “Terra de gigantes”, do segundo, e como “Filmes de guerra, can-
ções de amor” daria nome ao oitavo disco, gravado ao vivo na Sala Cecií-
haiMemelles; ma LaparcariocaFem 1995
“Ouça o que eu digo, não ouça niguém” era um disco maduro o
bastante para essa auto-referência. Também era bonito pra burro. Fosse
no desespero da “Cidade em chamas”, fosse no progressivismo de “Va-
riações sobre um mesmo tema”, uma suíte em três partes com uma estro-
fe primorosa: “Eu tenho os meus problemas/ Você tem os seus/ Variações
de um mesmo tema/ Ateus procurando Deus”. Na estradeira “Sob o ta-
pete” também havia um belo achado poético: “Havia um romance/ Ao
alcance da mão/ Mas o cigarro apagou/ E me ensinou o macete/ De es-
conder as cinzas/ Sob o tapete”.
A “Variações sobre a mesma tour”, realizada para divulgar o disco
entre janeiro e setembro de 1989, levou os Engenheiros a fazer 84 shows
por todo o Brasil. Três deles, os dos dias 7,8 e 9 de julho, no Canecão,
serviriam para registrar nove faixas que entrariam no disco ao vivo que
seria lançado em outubro daquele ano. Mais ou menos na mesma época,
o trio estava se mudando de Porto Alegre para o Rio. À turnê seria con-
cluída longe demais das capitais brasileiras. Em Moscou.
Os Engenheiros foram convidados para tocar na então capital sovi-
ética e na então Leningrado (São Petersburgo) em agosto. A BMG (ex-
RCA) havia mandado material de todo o seu cast para a gravadora esta-

146 Arthur Dapieve


— o 3º LP dos Engenheiros
20

Gessinger: “Ouça o que eu digo, não ouça ninguém”


tal Melodia, os soviéticos se entusiasmaram com os Engenheiros e fize-
ram o convite. Simples assim. Gessinger, Maltz e Licks mandaram tradu-
zir “Terra de gigantes” e “A revolta dos dândis I” para o russo e embar-
caram num vôo Rio-Copenhague-Moscou no dia 29 de setembro, para
fazer dez shows, cinco em cada cidade.
Em Moscou, os Engenheiros do Hawaii ficaram hospedados no com-
plexo de hotéis Smailov — quatro blocos de 28 andares cada construídos
para a Olimpíada de 1980. Os shows foram no teatro de 1.500 lugares
do próprio complexo, com a banda local Ciorni Cafe (Café Preto) abrin-
do os trabalhos. A organização soviética garantia que todos os ingressos
haviam sido vendidos, o que só aumentava a tensão da estréia (“Sem nin-
guém para segurar a nossa mão, pela primeira vez diante de quem nunca
tinha lido a bula”, lembra Gessinger seis anos depois). Mas a banda to-
mou uma ducha de água gelada quando entrou no palco: na platéia esta-
va apenas uma dúzia de curiosos. À organização, porém, não mentira: na
velha USSR, o fato de as cooperativas comprarem todos os ingressos não
significava que eles seriam realmente utilizados. Felizmente para os En-
genheiros, as outras quatro noites realmente lotaram — uma delas só com
militares. Os shows em Leningrado foram cancelados e o trio voltou im-
pressionado com a cena roqueira local, quase toda calcada em bandas de
heavy metal farofa, como a Ciorni Cafe. “Mais intenso que o tráfico de
drogas é o tráfico do LP do Paul McCartney”, lembrava Licks no “Jor-
nal do Brasil” de 25 de outubro. A volta coincidiu com o lançamento de
“Alívio imediato”, o disco gravado na Canecão em julho. Como quase
todo disco ao vivo, este tinha um caráter antológico, registrando músi-
cas como “Toda forma de poder”, “Infinita highway” e “Terra de gigan-
tes”. Mas abrindo o disco estavam duas inéditas, gravadas em estúdio: a
faixa-título e “Nau à deriva”. “Alívio imediato” se destacava no disco:
uma balada sentida, das melhores músicas do grupo. Na letra, as mesmas
angústias de sempre: “Há espaço pra todos/ Há um imenso vazio/ Nesse
espelho quebrado/ Por alguém que partiu”.
Mesmo na condição de astros pop — Gessinger é o principal alvo
de suspiros de nove entre dez adolescentes brasileiras —, os Engenheiros
nunca se superexpuseram. Sobretudo porque, deliberadamente, sempre
preservaram sua vida pessoal, nunca fizeram parte de qualquer patotinha,
sempre foram low profile. Essa introversão, combinada com a facilidade
com que suas canções colam nos ouvidos do grande público, atraíram a
ira de parte da mídia: os Engenheiros são aquele grupo que muita gente
adora odiar. Sorte deles.

148 Arthur Dapieve


1
A SEGUNDONA

Ninguém no Brasil gosta de cair para a Segunda Divisão. Por isso, a


mmesgotável criatividade de nossos dirigentes esportivos nos legou um vasto
lote de eufemismos usados para não ferir suscetibilidades: Série B, Gru-
po 1A, Divisão de Acesso, Chave A, o diabo. Também o BRock tem muito
claramente uma Segunda Divisão. Não dá para ignorar sua existência, seja
nivelando-a por cima, seja por baixo. Cabe aqui o nome Segundona. Ele
não ignora a diferença entre certas bandas e aquelas, maiores, que mere-
cem capítulo à parte. O aumentativo “-ona” registra de imediato sua força,
E, por fim, não deixa de ser carinhoso. Nossa Segundona agrupa bandas
que tiveram o prestígio da crítica mas nunca foram grandes vendedoras,
caso do Ira!; e bandas que tiveram boas vendas mas nunca caíram no gosto
da crítica, caso do Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens. Completam a
divisão Capital Inicial, Camisa de Vênus, Inocentes, Biquíni Cavadão,
Plebe Rude e Nenhum de Nós. Sem esses oito, o rock brasileiro dos anos
80 teria sido sensivelmente mais pobre.

IRA!

Em meados da década de 60, o garoto Edgard Scandurra gostava de


peruar os eventuais shows que ocorriam no bar de seu pai, na Vila Ma-
riana, em São Paulo. Em 1967, aos 5 anos, ganhou seu primeiro violão,
que aprendeu a tocar sozinho. Não demorou muito e o menino canhoto
arrebentava numa guitarra elétrica. No final da década de 70, Edgard
estava fascinado pelo punk rock de Sex Pistols, Clash e, sobretudo, The
Jam, com seu irado resgate do movimento mod (abreviatura de modernists,
nome usado por bem-vestidos rebeldes ingleses do início dos anos 60, The
Who à frente). Atrás de similares nacionais, ele ia assistir a shows punk e
trocar informações na periferia da cidade. Logo, Edgard e um amigo bar-
xista, Dino, estavam tocando numa banda chamada Subúrbio, punk sem
deixar de tocar Jimi Hendrix e Led Zeppelin.
Nessa época, Edgard estudava de manhã no Colégio Brasílio Macha-
do, na Vila Mariana, onde volta e meia topava com um sujeito esquisito,

Brasileiro dos Anos 80 149


BRock — O Rock
cujo apelido era Nasi, aluno do turno da tarde. Mesmo sem conhecê-lo,
o guitarrista sentia simpatia por seu modo de se vestir, entre o punk e o
mod. Acabaram ficando amigos. Assim, a participação do Subúrbio no
Festival Interno do Colégio Objetivo, o Fico, naquele ano de 79, contou
com um novo vocalista, Marcos Valadão, vulgo Nasi. Nesta época, o
grupo tocava “Pobre paulista ”, um libelo anti-racista. “Não quero ver
mais essa gente feia/ Não quero ver mais os ignorantes/ Eu quero ver gente
da minha terra/ Eu quero ver gente do meu sangue”, ironizava a letra de
Edgard. Pouco depois, em 1980, ele foi convocado pelo Exército, servin-
do no 2º Batalhão de Guarda de São Paulo por dois anos. Da vivência no
quartel extrairia “N.B. (Núcleo-base)”: “Eu tentei fugir/ Não queria me
alistar/ Eu quero lutar/ Mas não com essa farda”.
Em 1981, Nasi convidou o ainda recruta Edgard para um show na
PUC. Nascia ali o Ira, nome inspirado no grupo terrorista IRA, o Irish
Republican Army, Exército Republicano Irlandês. Mais punk impossível.
Completavam a formação o baixista Dino e o baterista Charles Gavin.
Nesse mesmo ano, o quarteto já estava abrindo para a Gang 90 de Júlio
Barroso no Pub Vitória. Mas outros dois anos maníaco-depressivos se
passariam antes do próximo passo. Maníacos por conta da agitada cena
paulistana. Depressivos por conta da sensação de isolamento do resto do
país, onde o rock carioca começava a dar as cartas. Esses dias de luta
pareceriam ter acabado quando o produtor Pena Schmidt os conduziu à
Warner. Ledo engano. Sim, lá, em 1983, o Ira gravou seu primeiro com-
pacto, com “Gritos na multidão” e “Pobre paulista”. Não, a gravadora
não moveu uma palha no sentido de distribui-lo e divulgá-lo.
Somente em março de 1985, depois de trocar Dino por Ricardo Gas-
parini, o Gaspa, e Charles por André Jung, ex-Titãs, o Ira!, então já com
ponto de exclamação, voltaria a entrar num estúdio. O Nas Nuvens, no
Rio. Lá, após uma gestação de apenas nove dias para gravação e mixagem
de 11 faixas, nasceria o primeiro LP do grupo, o afiado “Mudança de
comportamento”. Além de “N.B. (Núcleo-base)”, o disco destacava “Nin-
guém precisa da guerra” e “Ninguém entende um mod”. Apesar de ain-
da não contar com a mobilização da Warner — Edgard se sentia numa
banda independente dentro de uma multinacional —, o LP vendeu herói-
cas 20 mil cópias (chegaria às 50 mil com o passar dos anos).
No ano seguinte, gozando de maior pretígio dentro e fora da grava-
dora, o Ira! voltou ao Nas Nuvens para gravar o segundo LP, “Vivendo
e não aprendendo”. Apesar dos atritos conceituais com o produtor Limi-
nha — no final das contas, também assinaram a produção Pena Schmidt,

150 Arthur Dapieve


Vítor Farias, o português Paulo Junqueiro e o próprio grupo — o disco
lançado em setembro era uma obra-prima. Trazia “Envelheço na cidade”,
“Dias de luta”, “Vitrine viva” e, afinal, “Gritos na multidão” e “Pobre
paulista”, estas gravadas ao vivo na danceteria Broadway, em São Pau-
lo. Quando a lindíssima “Flores em você”, emoldurada por um quarteto
de cordas, entrou na trilha sonora da novela “O outro”, da Rede Globo,
o LP já ultrapassara a marca das 100 mil cópias vendidas (chegaria às 165
mil cópias). Foi a lua-de-mel da banda com a mídia: Edgard — mereci-
damente —, eleito melhor guitarrista do BRock pela revista “Bizz”, apa-
rições no “Fantástico” e no “Globo de Ouro”.
Um caso de amor assim estava fadado a terminar em briga. No auge
da fama, escalado para a abrir o primeiro festival Hollywood Rock, em
6 de janeiro de 1988, na Praça da Apoteose, no Rio, o Ira! deu um baita
vexame e quase apanhou da imprensa que sempre o mimoseara. Duas
razões para o fiasco: o grupo já entrou no palco nervoso porque quando
chegou ao Rio encontrou o Nas Nuvens, onde deveria ensaiar, ocupado
pelos Titãs, meninas dos olhos do desafeto Liminha; e o retorno de som
estava péssimo. Para arrematar a catástrofe, os amplificadores foram des-
ligados antes que o Ira! pudesse tocar “Pobre paulista”, tradicional en-
cerramento de seus shows. Edgard quebrou sua guitarra e o grupo, mui-
to puto da vida, devastou o camarim.
Felizmente, quatro meses depois, o Ira! emergiu do episódio ainda
mais forte, com o álbum “Psicoacústica”, gravado entre novembro de 87
e janeiro de 88 no disputado Nas Nuvens — mas com a produção de Paulo
Junqueiro. Já a partir da capa — uma espécie de estereograma verde e
magenta, complementado por óculos de papel com “lentes” coloridas —
dava para notar que o grupo estava com moral dentro da Warner. Trata-
va-se de um disco conceitual, rico em referências (sendo o filme udigrudi
“O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla, a principal delas) e
em filigranas de gravação (de tal forma que só a audição com fones de
ouvido dava conta de toda sua complexidade), com um instrumental capri-
chado. Entre as oito longas faixas havia balada western (“Rubro Zorro”),
rock “nº mod (“Manhãs de domingo”), hard rock (“Farto de rock *n” roll”)
e rap-de-roda (“Advogado do diabo”). Sendo um trabalho anticomercial,
“difícil”, “Psicoacústica” não vendeu nem um terço de seu antecessor,
“Vivendo e não aprendendo”. Azar dos consumidores.
No caminho para o quarto LP do Ira!, Edgard sentiu necessidade de
gravar um disco solo. Literalmente. Em “Amigos invisíveis” (89) ele to-
cava tudo: guitarras, violão, baixo, órgão, sintetizadores, violino, bate-

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BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
ria e percussão. O homem das mil e uma bandas — Ira!, Ultraje a Rigor,
Mercenárias, Smack, Cabine C, Gang 90 pós-Júlio Barroso — se revela-
va o verdadeiro homem dos sete instrumentos. Só Taciana Barros, viúva
de Júlio, participava ao piano de uma faixa, “Abraços e brigas”. “Ami-
gos invisíveis” era admirável. Tinha uma nova versão para a pré-históri-
ca “Gritos na multidão”, um sentido cover para “Our love was”, do ído-
lo Pete Townshend, e uma faixa dedicada a seu filho, “Bem-vindo Daniel”,
entre outras pérolas.
Na verdade, “Amigos invisíveis” era tão bom que se refletiu — ne-
gativamente — no quarto LP do Ira!, “Clandestino”, gravado pouco de-
pois de seu lançamento. Se, mesmo registrado em sessões separadas, o
instrumental de Edgard, Gaspa e Jung continuava o fino, o mesmo não
se podia dizer das constrangedoras letras (Edgard parecia ter queimado
todos os seus cartuchos no trabalho solo) e dos instáveis vocais de Nasi
(o ponto fraco do quarteto). Ainda assim, apesar de todos esse desen-
contros, o disco alcançava bons momentos em “Melissa”, “Nasci em 62”,
“Cabeças quentes” e “Consciência limpa”. Entretanto, fiel ao seu título
passou quase clandestino pelo mercado: vendeu pouco mais da metade
de “Psicoacústica”. Trinta mil cópias e olhe lá.
Foi desse jeito, meio por baixo, que o Ira! passou da Eos de 80
para a de 90. À barra esteve tão pesada que tudo esteve a ponto de aca-
bar. O próprio Edgard pensou seriamente em sair da banda. Contudo, das
trevas se fez a luz e ele, inspirado por uma nova paixão, recomeçou a com-
por furiosamente, a compor até três músicas por dia. O resultado desse
furor, “Meninos da Rua Paulo”, produzido por Pena Schmidt e Geraldo
D'Arbilly, lançado em meados de 1991, deixou muito a desejar — letras
tatibitati, arranjos pouco inspirados. Porém, internamente, o LP reanimou
a banda, agastada pelo confronto entre “ Amigos invisíveis” e “Clandes-
tino”. Sintoma de ambas as coisas, a má safra e a boa-fé, era o entusias-
mo com que Nasi, Edgard, Gaspa e Jung se entregavam à versão de Raul
Seixas para “Lucy in the sky with diamonds”, de Lennon & McCartney,
“Você ainda pode sonhar”, a melhor faixa do disco. Emblemático.

KID ABELHA & OS ABÓBORAS SELVAGENS

1976. Sex Pistols, The Clash & Cia. barbarizavam na Inglaterra. Mas
no Brasil ainda imperava o rock progressivo. Entre as dezenas de grupos
nativos fissurados por Yes, Emerson, Lake & Palmer & Cia. estava o
carioca Chrisma, do qual faziam parte o baixista Carlos Leoni e o bate-

EA Arthur Dapieve
rista Carlos Beni. Em outra praia, a do blues, o saxofonista George Israel
mantinha uma banda instrumental com o guitarrista Roberto Frejat. Não
havia futuro, apenas amadores. Entretanto, cinco anos depois, em 1981,
por mera coincidência, dois desses garotos estavam estudando na PUC.
Leoni fazia Letras. George, Engenharia. O interesse pela música os apro-
ximou nos pilotis. Leoni convocou o velho amigo Beni e logo o trio esta-
va ensaiando. Certo dia, uma aluna do curso de Desenho Industrial, cha-
mada Paula Toller, apareceu para assistir a um dos ensaios. Ela se arris-
cou a cantarolar, aprovou e foi agregada à banda. Completavam o time
o guitarrista Beto Martins e o tecladista Richard Owens, americano, “con-
vidado especial”.
Em 1982, mesmo um grupo que não tivesse a menor pretensão de se
profissionalizar, como o supralistado sexteto, tinha nas mãos a faca e o
queijo para levar a brincadeira adiante. A faca e o queijo atendiam, res-
pectivamente, por Circo Voador e Rádio Fluminense FM. À turma de
Leoni e George conseguiu, de graça, seis horas de um estúdio de oito ca-
nais, propriedade de uns padres, para gravar e mixar sua primeira fita
demo. O repertório — cançonetas new wave como “Distração” e “Vida
de cão é chato pra cachorro” — estava bem ensaiado, de tanto ser toca-
do em festinhas em condomínios de São Conrado e da Barra da Tijuca.
Gravada e mixada a fita, era hora de levá-la à Flu-FM. Se ela fosse
aprovada e entrasse na programação da emissora — e as chances de isso
acontecer eram enormes —, tocar no Circo Voador era questão de dias.
Bem, a demo foi aprovada com louvor, mas, para que suas músicas fos-
sem ao ar, era preciso batizar a banda. Não que não se tivesse pensado nisso,
só não se chegara a nenhuma conclusão. Ali, na hora H, o portador da fita,
Beni, sem ter o que dizer, meteu a mão no bolso, achou a listinha dos pos-
síveis nomes, cruzou os dedos e mandou o primeiro: Kid Abelha & Os
Abóboras Selvagens. Pronto, a viagem não tinha mais volta.
Portanto, em 13 de novembro de 1982, o projeto “Rock Voador”,
do Circo, testemunhava a estréia do Kid Abelha & Os Abóboras Selva-
gens, abrindo a noite de sábado para Zé da Gaita e Jards Macalé. O gru-
po ainda não tinha nem fama bastante nem repertório suficiente para
,
sustentar um show sozinho. Menos de um mês depois, a 5 de dezembro
do Clube
lá estavam Paula, Leoni, Beni, George, Beto e Richard no salão
festa-sh ow de lançamen to do
Monte Líbano, na Lagoa, fazendo parte da
LP “Still life”, dos Rolling Stones, promovida pela EMI-Odeon. Na oca-
sião, além do próprio repertório, o Kid entoou um cover de “Let's spend
the night together”, de Jagger & Richards.

dos Anos 80 ES* So)


BRock — O Rock Brasileiro
Kid Abelha: Paula Toller, a única figura feminina de proa no BRock
Na virada do ano, o KA&AS ainda voltou ao Circo, desta vez abrindo
para Eduardo Dusek. E foi graças à lona voadora da Lapa que o sexteto
chegou à WEA. O veículo foi o pau-de-sebo “Rock Voador”, LP engen-
drado pela tabelinha Circo-Flu-FM e dividido entre Kid Abelha, Sangue
da Cidade, Papel de Mil, Celso Blues Boy, Malu Vianna e Maurício Mello
& Companhia Mágica. No disco, lançado com um concerto na Praia do
Pepino, em 20 de janeiro de 1983, o grupo colocou as já consagradas —
no underground carioca — “Distração” e “Vida de cão é chato pra ca-
chorro”. Essas duas, por sua vez, abriram caminho para o primeiro com-
pacto, com “Pintura íntima” e “Por que não eu?”, que escapou do gueto
roqueiro e tomou as rádios comerciais de todo o país. Um sucesso estron-
doso, que deu ao Kid o primeiro compacto de ouro — por mais de 100
mil cópias vendidas — do BRock.
“Pintura íntima” ocupou praticamente todo o ano de 83, levando o
Kid Abelha a fazer até três shows em playback por noite na periferia do
Rio e a começar a se apresentar na fechada noite paulistana, no Pub Vitória,
por exemplo. No começo de 1984, outro compacto, puxado pela bonita
balada “Como eu quero”, deu ao grupo disquinho de ouro e abriu caminho
para o primeiro LP. Produzido pelo onipresente Liminha, “Seu espião” nem
parecia trabalho de estréia — estava mais para antologia. Lançado no final
de maio, o disco arrebanhava “Pintura íntima”, “Como eu quero”, a robótica
“Fixação”, a pseudocândida “Alice (Não me escreva aquela carta de amor)”,
a entediada “Nada tanto assim” (“Fu tenho pressa/ E tanta coisa me inte-
ressa/ Mas nada tanto assim”). Como resultado dessa reunião de pop hits
natos, “Seu espião” vendeu quase 150 mil cópias. Nada mal para a época.
“Seu espião” já trazia a “formação clássica” do Kid Abelha & Os
Abóboras Selvagens: Paula, Leoni, George e o guitarrista Bruno Fortunato,
estudante de História na PUC. Beni se tornou produtor, Richard se res-
tringiu à advocacia e Beto foi tocar sua vida em vez de guitarra. De sexteto
a quarteto. E foi como quarteto que o grupo encarou seu maior desafio
até então: abrir a quinta noite do monumental Rock in Rio, de 15 de ja-
neiro de 1985, para Eduardo Dusek, Barão Vermelho, Scorpions e AC/
DC. Os metaleiros da pláteia não perdoaram aquela banda certinha, com
uma menina bonitinha nos vocais, e tacaram até a mãe no palco. Teria
sido traumático se, três dias depois, o KA&AS não tivesse ido à forra, re-
laxado e feliz, abrindo para Dusek, Lulu Santos, Go-Go's, B-52ºs e Queen.
De qualquer forma, a partir do incidente da primeira noite e do contato
com o hiperprofissionalismo das bandas estrangeiras, o Kid viu que era
hora de crescer e pensar grande.

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 1655


BRock
“Educação sentimental”, o LP de 85, mostrava o grupo tentando ir
além de “fazer amor de madrugada/ Amor com jeito de virada” ou de “tira
essa bermuda/ Que eu quero você sério” e soar mais maduro. E conseguindo.
Dois anos de estrada deram cancha ao quarteto. Isso era audível na ele-
gante “Lágrimas e chuva” e na esperta “Fórmula do amor”, parceria de
Leoni e Leo Jaime que anteriormente o Kid gravara num disco do goiano.
Foi esta música, no entanto, que ocasionou a saída do baixista da banda.
Durante o Cidade Livre Concert promovido pelo FM no Estádio de Remo
da Lagoa, a 23 de fevereiro de 1986, Leo não apresentou Leoni como seu
parceiro na hora de cantar “Fórmula do amor”, Leoni não gostou, Paula
tomou a defesa de Leo, a modelo Fabiana Kherlakian tomou a defesa do
namorado Leoni, Herbert Vianna tomou a defesa da namorada Paula, voou
um pandeiro e, no final da bafafá, Leoni estava fora do Kid Abelha. Então
eram três...Paula, George e Bruno.
A saída de Leoni demorou a ser assimilada. E nem poderia ser diferente.
Ele era o principal compositor e letrista do Kid Abelha, um artesão pop como
poucos, capaz de embaralhar tolice e eternidade. Leoni era tão bom e tão
importante que, diante do racha, a WEA apostou todas as suas fichas no
baixista e em seu novo grupo, os Heróis da Resistência, no qual ele conti-
nuou dando provas de talento (como em “Silêncio”, faixa de “Religio”, de
1988, segundo disco dos HR). Paula e George investiram numa parceria que
tornasse possível a sobrevivência do Kid, a despeito da saída de Leoni e das
mágoas com a gravadora. Não era fácil. E o ano de 1986 foi gasto em excur-
sões pelo Brasil, uma forma de ganhar tempo. Em 17 de setembro, Paula,
George, Bruno, Cláudio Infante (bateria, à época considerado membro oficial
do KA&AS), Cláudia Niemeyer (baixo), Marcelo Lima (teclados e vocais),
Don Harris (trompete e vocais) e Júlio Gamarra (percussão) registraram em
16 canais, no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, o que viria
a ser “Ao vivo”. Lançado no começo do ano seguinte, o LP trazia o reper-
tório que era de se esperar — “Como eu quero”, “Pintura íntima”, “Edu-
cação sentimental II”, “Os outros” — e “Nada por mim” — parceria de Paula
e Herbert Vianna anteriormente gravada por Marina.
Ainda em 1987 veio “Tomate”, um disco travado, fruto de 700 ho-
ras de estúdio. À faixa-título, de Paula e George, se inspirava no texto “O
tomate”, do poeta e crítico de arte Murilo Mendes. “Leão” e “No meio
da rua” não chegavam nem aos pés das velhas canções. Mas uma música,
a belíssima “ Amanhã é 23”, indicava que dias melhores viriam para a par-
ceria entre a vocalista e o saxofonista. “Esse teu ar de tristeza/ Alimenta a
minha dor/ Essa pose de princesa/ De onde foi que você tirou?”, cantava

156 Arthur Dapieve


Paula, a dignidade pop em pessoa. Se “Educação sentimental” tinha ven-
dido mais de 200 mil cópias, “Tomate”, na prática o primeiro disco sem
Leoni, nem chegara às 100 mil cópias. Mas os tempos eram outros — a
euforia com o Plano Cruzado do ano anterior havia arrefecido — e o im-
portante era que o Kid Abelha continuava no ar.
E, no palco, o trio estava cada vez mais seguro. No segundo festival
Alternativa Nativa, realizado no Maracanãzinho em janeiro de 1988,0 Kid
Abelha dividiu a noite do sábado 23 com Leo Jaime diante de 20 mil pes-
soas e não tremeu nas bases. Pelo contrário. Apresentou um espetáculo bem
produzido, com Paula Toller, cabelos recém-platinados, trocando incessan-
temente de roupa. De quebra, a platéia — e os leitores dos jornais de se-
gunda-feira — se deliciou com uma involuntária citação de Marilyn Monroe:
a certa altura do show, um ventilador levantou a saia da vocalista acima
do previsto, revelando sua calcinha. Os fotógrafos não perdoaram seu gine-
cológico agachamento com as pernas abertas.
O LP seguinte, “Kid”, lançado em 1989, fazia jus à batalha do Kid
Abelha (agora sem os Abóboras Selvagens) para manter seu lugar ao sol.
Segundo o crítico Ezequiel Neves, o disco era o “Sgt. Pepper's” do gru-
po. Exagerado, como de hábito. Mas “Kid” era perfeitamente pop: des-
pretensioso e refinado. A essa altura do campeonato, a dupla Paula &
George funcionava a todo vapor. E Paula, voz mais grave e encorpada pelo
correr dos anos, cantava como nunca. No LP, produzido pelo baixista Nilo
Romero, outro ex-aluno da PUC, “Todo meu ouro”, “Agora sei”, “Cantar
em inglês”, “Dizer não é dizer sim” e “De quem é o poder” (esta com letra
de Cazuza) davam conta do recado. E faziam as vendas de “Kid” serem
ligeiramente superiores às do anterior “Tomate”.
A consolidação da carreira de uma banda pop pode ser medida através
da vendagem de seus discos. As do Kid Abelha apontavam para essa con-
solidação na virada de década. “Tomate”, “Kid”, a coletânea “Greatest
hits 80's” (90), “Tudo é permitido” (91) e “Iê Iê 18” (93) e o balanço semi-
acústico ao vivo “Meio desligado” (94) ficaram em torno das 100 mil
cópias vendidas, um pouco mais, um pouco menos. Anos 90 adentro, a
única figura feminina de proa no BRock, Paula Toller, e seus companheiros
de jornada George Israel e Bruno Fortunato continuaram acertando a mão
em pérolas como “No seu lugar” e “Grand” Hotel”. Esta, aliás, ganhou
um videoclip chiguérrimo, filmado em Veneza, Itália, pelo marido de
Paula, o cineasta Lui Farias, de “Com licença, eu vou à luta” (86), que
ao contrário do que possa parecer, não é um documentário sobre a car-
reira do Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens.

[5
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80
CAPITAL INICIAL

Assim como a Legião Urbana, o Capital Inicial nasceu da dissolu-


ção do seminal Aborto Elétrico, na virada de 1981 para 1982. Ex-mem-
bros da antiga banda de Renato Russo, os irmãos Felipe (bateria) e Flá-
vio (baixo) Lemos se juntaram a um ex-integrante da Blitz 64, Loro Jones
(guitarrista), e a um hippie tardio, Dinho Ouro Preto (voz), e deram pros-
seguimento à saga pós-punk de Brasília. O quarteto herdou algumas mú-
sicas do repertório do Aborto Elétrico: “Música urbana” (dos irmãos
Lemos, Renato Russo e o guitarrista sul-africano André Pretorius), “Fá-
tima” e “Veraneio vascaína” (ambas de Flávio e Renato). Também her-
dou parte de sua lenda, partilhada com o Legião Urbana. Talvez por isso,
no começo de suas carreiras, os dois grupos pareciam o Batman e o Robin
do Planalto Central — eram inseparáveis. No Rio de Janeiro, por exem-
plo, ambos deram as caras pela primeira vez na noite de 23 de julho de
1983, abrindo para Lobão no Circo Voador. Os padrinhos da descida de
Legião e Capital ao litoral eram os irmãos Herbert e Hermano Vianna.
O primeiro através da propaganda das músicas de Brasília feita por seu
grupo carioca, Os Paralamas do Sucesso, que tocava “Química” e “Ve-
raneio vascaína”, entre outras; o segundo, através de uma reportagem
esclarecedora na revista “Mixtura Moderna”, a sucessora da “Pipoca Mo-
derna” da jornalista Ana Maria Bahiana.
Ao contrário de Paralamas, Legião e Plebe Rude, o Capital Inicial
não encontrou abrigo fonográfico na EMI-Odeon. Primeiro tentou a sorte
no pau-de-sebo “Os intocáveis”, lançado pela CBS em abril de 1985. Nesse
LP, além de “Descendo o Rio Nilo”, dos irmãos Lemos, Loro e Dinho, a
única outra faixa digna de nota era “Heróis”, dos paulistas do Zero. O
resto — bandas como Omar & os Cianos ou THC — despontava para a
lata de lixo da história do BRock. Mas nem assim o Capital conseguiu se
destacar a ponto de ganhar a chance de fazer um disco próprio. Somente
no ano seguinte, e através de outra gravadora, a PolyGram, o grupo che-
garia ao merecido LP de estréia, “Capital Inicial”.
O trabalho era mais que auspicioso. Além das canções do tempo de
Aborto Elétrico, entre as quais se destacava o arranjo épico-apocalíptico
para “Fátima” (“Vocês esperam uma intervenção divina/ Mas não sabem
que o tempo agora está contra vocês...”, iniciava a letra, uma das obras-
primas de Renato Russo), o Capital apresentava outros clássicos brasi-
lienses, como “Psicopata”, “No cinema” e “Leve desespero”. Mesmo
quando os arranjos do tecladista Bozo Barretti incluíam uma seção de

158 Arthur Dapieve


metais, como em “Música urbana” e “Gritos”, a coesão da base Loro-
Flávio-Felipe não se perdia em torno dos vocais angustiados de Dinho.
Este enchia versos como “eu só queria me divertir/ As paredes me impe-
dem/ Ja estou vendo TV como companhia” ou “você fala, você fala/ Eu
simulo interesse/ Eu tenho mil estratégias/ De médio alcance/Só preciso
de você quando eu me sinto indefeso”, de um sentimento fronteiriço, en-
tre o tédio e o desespero — uma energia vagamente psicótica.
No ano seguinte, com o Capital Inicial transformado em quinteto pela
oficialização de Bozo Barretti como membro, veio “Independência”, um
segundo LP que, apesar de alguns bons momentos, não dava sequência ao
disco de estréia. A empolgante faixa-título e a velha-de-guerra “Descendo
o Rio Nilo” seguravam as pontas, mas o resto apontava para uma disper-
são pop-populista que atingia o fundo do poço na bisonha “Vem bater no
meu tambor (Rotina positiva)” e na demagógica “Autoridades”. O pior
era que o vocal de Dinho se acomodara num tom grandiloguente e se es-
corara num bordão — algo como “wa-pap-bara-wa-pap-bara-uoo0ou”—
para levantar platéias. Pois, embora “Independência” tenha vendido me-
tade das 200 mil cópias de “Capital Inicial”, o período foi de muitas ex-
cursões a partir de São Paulo, onde o grupo se radicara.
Pouco depois de lançar “Independência”, o Capital abriu para o ex-
Police Sting e seu combo jazzístico no Maracanã lotado, a 20 de novembro.
Dadas as características do show, aquecer a platéia de um estádio lotado,
o quinteto se saiu bastante bem com sua overdose de teclados e seus “wa-
pap-bara-wa-pap-bara-uooous”. Se, entretanto, o show fosse o principal e
a arena, menor, Dinho, Bozo, Loro, Flávio e Felipe pisavam na bola. Foi assim
no sábado 16 de julho de 1988, quando, dentro do terceiro festival Alter-
nativa Nativa, o Capital foi precedido no palco do Maracanãzinho pelos
Engenheiros do Hawaii. Na comparação com o trio gaúcho, então na ponta
dos cascos com suas “Infinitas highways”, os brasilienses ficaram longe,
apesar de terem levantado as arquibancadas com hits como “Música urba-
na”, “Prova”, “Psicopata”, “Fátima” e “Independência”. O problemas era
que os arranjos as tornavam todas muito, muito parecidas entre si.
Lançado em dezembro daquele ano, o crucial terceiro LP, “Você não
precisa entender”, patinava num comercialismo atroz. Nem o resgate de
uma velha música do Aborto Elétrico (“Ficção científica”, um Renato Russo
menor) nem uma boa balada (“Fogo”, de Dinho e Bozo) mantinham a peteca
no ar. As outras faixas — “Pedra na mão”, “Rita”, “A portas fechadas”,
“Movimento” — se perdiam entre sopros plastificados, funk de proveta e
tecnopopices várias. Uma lástima. Que se escancarava enquanto pasta de

O Rock Brasileiro dos Anos 80 159


BRock —
dentes em dois versos de “O céu”: “Você não precisa entender/ Só precisa
b)

me levar”. O público não caiu nessa — e as vendas do disco não passaram


das 50 mil cópias. |
O relativo fracasso de “Você não precisa entender” fez o Capital
Inicial perceber que estava dando com os burros n'água: estava perden-
do sua identidade punk-roqueira sem conseguir ganhar mais fãs. Assim,
o quarto LP, “Todos os lados”, de 1990, restabelecia o primado das gui-
tarras com uma mãozinha do carioca Alvin L., ex-Rapazes de Vida Fácil,
co-autor dos dois sucessos do disco, a faixa-título e “Belos e malditos”.
O lançamento oficial de “Todos os lados” se deu dentro do segundo fes-
tival Hollywood Rock, a 27 de janeiro de 1990, na Praça da Apoteose,
no Rio. Como sintoma de todo o terreno que o Capital perdera em dois
anos, a ordem das apresentações o fazia abrir para os Engenheiros do
Hawaii — com ambos abrindo para Marillion e Bon Jovi.
Apesar da volta aos trilhos, a decadência já era irreversível. “Todos
os lados” ultrapassou por pouco a marca das 30 mil cópias vendidas e o
quinto LP, “Eletricidade” de 1991, mal chegou às 20 mil. À crise — agra-
vada por uma apresentação patética no Rock in Rio II, no Maracanã, a
26 de janeiro — desembocou, sucessivamente, na eleição de um bode expia-
tório (o tecladista Bozo), na saída de Dinho (que formou nova banda, a
Vertigo) e na convocação, por Loro, Flávio e Felipe, de um novo vocalista
(Murilo Lima), com quem gravaram o sexto LP, o honesto e independente
“Rua 47” (1994). De volta à estaca zero:”

CAMISA DE VÊNUS

À primeira vista, havia tantas possibilidades de um grupo de punk


rock surgir na Bahia quanto de um bloco de afoxé ser formado na Irlan-
da, ou seja, uma em um bilhão. Mas a Bahia não era somente a terra de
todos os santos, Dorival Caymmi, João Gilberto, Gilberto Gil e Caetano
Veloso — era também a terra do endiabrado pai do BRock, Raul Seixas.
E foi cultuando Raul, Sex Pistols, Clash, Buzzcocks e demais bandas punk
britânicas que, liderados por um locutor da Aratu FM, Marcelo Nova,
Karl Hummel e Gustavo Mullen (guitarras), Robério Santana (baixo) e
Aldo Machado (bateria) formaram o Camisa de Vênus no final de 1980.
Não deu nem para esquentar. No ano seguinte, Hummel foi passar uma
temporada na Europa e, insatisfeitos com os candidatos à vaga, os ou-
tros quatro preferiram deixar o grupo hibernando, à espera do regresso
do guitarrista. Assim, o Camisa só caiu realmente na vida em março de

160 Arthur Dapieve


Camisa de Vênus: um grupo de punk rock bahiano
1982, ao mesmo tempo que a primeira onda do BRock no Rio de Janeiro
e em São Paulo.
Com cinco meses de atividade, o quinteto conseguiu dividir Salva-
dor em amigos e inimigos. Amigos: os fãs que lotavam todos os seus shows
(certa vez, durante uma apresentação no Teatro Vila Velha, um deles subiu
ao palco com um poster de Pepeu Gomes e, punk que era, começou a cuspir
em cima). Inimigos: a casta MPB aliada aos setores mais conservadores
da cidade (o jornal “A Tarde”, por exemplo, queria que a censura cas-
trasse o próprio nome Camisa de Vênus e “Ejaculação precoce”, título
de seu espetáculo). A polêmica, como sói acontecer, serviu apenas para
promover o grupo. Aproveitando o embalo, Nova & Cia. gravaram pelo
selo Fermata um compacto com o hit soteropolitano “Meu primo Zé”
(“Queria ser como ele é...º).
Bem-recebido pelas rádios do Sudeste Maravilha, o irreverente “Meu
primo Zé” atraiu a atenção de uma gravadora maior, a Soma, um selo
da Sigla, isto é, da Som Livre. Através dela, o grupo gravou seu primeiro
LP, “Camisa de Vênus”, e apareceu até no programa de TV de Flávio Ca-
valcante. O disco foi primeiramente lançado em Salvador, com um show
apoteótico no Circo Relâmpago, em 15 de outubro de 1983. Em vez de
se inspirar em qualquer tipo de baianice, “Camisa de Vênus” citava, as-
sumidamente ou não, músicas do Jam, dos Buzzcocks, dos Undertones,
dos Stiff Little Fingers. Entre as faixas estavam “Passatempo” (versão de
Nova e Múllen para “That's entertainment”, de Paul Weller), “Negue”
(clássico de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos), “Bete morreu”,
“O adventista” (dos aterradores versos “não vai haver amor/ Neste mundo
nunca mais?) e, claro, “Meu primo Zé”. Um discaço. À gravadora, con-
tudo, foi procurar sarna para se coçar e começou a implicar com o nome
da banda. Esta, por sua vez, preferiu cair fora e dar um tempo só fazen-
do shows.
Foram dois anos de estrada, ao fim dos quais, em 1985, o Camisa
de Vênus assinou contrato com a RGE. Logo depois saíam “Camisa de
Vênus”, reeditado, e “Batalhão de estranhos”, fresquinho. O segundo LP
do grupo pouco avançava em relação ao primeiro — e isso era um méri-
to. Nova, Hummel, Millen, Robério e Aldo não estavam nem um pouco
preocupados em “se sofisticar”. O máximo de verniz que seu punk rock
à baiana tolerava era um tecladinho aqui ou um saxinho (do mítico Ma-
nito, dos Incríveis) ali. No mais era o velho sarcasmo exposto em “Eu não
matei Joana D'Arc”, “Cidade fantasma”, “Ladrão de branco” e na re-
leitura de “Gotham City”, de Macalé e Capinam.

162 Arthur Dapieve


O rock que o Camisa de Vênus fazia era popular sem ser populista
ou popularesco. Os dois primeiros discos se tornaram de ouro facilmen-
te. No terceiro, a banda decidiu flagrar sua força bruta ao vivo. Gravado
na Caiçara Music Hall, em Santos, a 8 de março de 1986, “Viva” não
ganhou maquiagem ou remixagem — foi prensado nu e cru no vinil, igual-
zinho à apresentação do grupo. Nela, o quinteto detonava sem piedade
“Eu não matei Joana D'Arc”, “Solução final”, “Bete morreu”, “O adven-
tista” e “My way” (que Sid Vicious transformara num hino punk no fil-
me “The great rock *n” roll swindle”), entre outras. O grande sucesso do
LP, no entanto, foi “Sílvia”, que ganhou da platéia santista um inesque-
cível coro de “ piranha!”. Foi o público do CV, aliás, que inventou um
dos mais populares gritos de guerra dos estádios brasileiros, “o bota pra
foder!” (por sinal, este, ou melhor, “Bota pra f...”, seria o título escolhi-
do para a coletânea póstuma lançada pela WEA em 1990).
No meio de 86, o Camisa de Vênus trocou a RGE pela WEA e antes
do final do ano botou na rua mais um disco de estúdio, o ambicioso “Cor-
rendo o risco”. Duas faixas saltavam aos ouvidos: a longa (7m50s) “A
ferro e fogo”, um épico marítimo adornado por uma orquestra; e “Ouro
de tolo”, versão para o clássico de Raul Seixas. As duas como que bali-
zavam o LP. Entre uma e outra havia espaço para a crônica pré-Golpe de
1964 (“Simca Chambord”), para um chupada em “Gimme shelter”, dos
Stones (“Só o fim”), e para a safadeza habitual (“Mão católica”). Tinha
valido a pena correr o risco. Mais de 200 mil consumidores atestavam.
No ano seguinte, já com a separação na alma, o grupo foi ainda mais
ousado. Gravou um álbum duplo, “Duplo sentido”. Nos lados À e € vi-
nha o Camisa de praxe: “O país do futuro” (“Nós vamos outra vez pro fundo
do buraco/ Você não tem vergonha, e eu não tenho saco”), “ Após calipso”,
“O suicídio — parte II ”. No lado B, uma faceta menos elétrica: “Deusa
de minha cama”, “Me dê uma chance”. E no D, só covers: para “Enigma”
(de Adelino Moreira), “Farinha do desprezo” (Macalé/Capinam), “The
hammer song” (Alex Harvey), “Aluga-se” (Raul Seixas/Cláudio Roberto)
e “Canalha” (Walter Franco). Apesar da auto-indulgência, o álbum ven-
deu 40 mil cópias, isto é, 80 mil LPs. Um ótimo desempenho.
Marcelo Nova nem deixou o defunto Camisa Vênus esfriar. Manteve
Gustavo Miillen na guitarra, arrebanhou João Chaves (teclados), Nadinho
Feliciano (baixo) e James Muller (bateria), e formou a banda À Enverga-
dura Moral. “Marcelo Nova & A Envergadura Moral”, o disco de 1988,
era uma continuação natural do CV. Com direito à participação de Genival
Lacerda em sua música “A gente é sem-vergonha”. Glória maior, só no ano

80 163
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
seguinte, quando Nova assinou um LP, “A panela do diabo”, junto com seu
ídolo Raul Seixas. Seria o último disco de Raul, morto a 21 de agosto de 1989.
Há quem diga que os estafantes shows de divulgação do trabalho apressa-
ram a morte do pai do BRock. É provável. Mas o disco ainda registra — em
parcerias com Nova — as derradeiras fagulhas do seu gênio em “Pastor João
e a igreja invisível” e “Carpinteiro do universo”. Raul — e Nova — pode
descansar em paz. O Camisa de Vênus não. Ele botou a cabeça para fora
da sepultura em meados de 1995.

INOCENTES

Vila Carolina, Zona Norte, São Paulo. Terra de punks. Lá, no iní-
cio de 1981, três ex-integrantes dos pioneiros Condutores de Cadáver, o
baixista Clemente, o guitarrista Callegari e o baterista Marcelino se jun-
taram ao vocalista Mauricinho para formar um grupo cuja trajetória se
confunde com a própria história do movimento punk brasileiro. Desde
então, os Inocentes — este o seu nome, tirado de uma poema de Clemen-
te — se mantêm na ativa, sobrevivendo às crises e ao entra-e-sai de seus
membros. Firme mesmo, de 81 até hoje, só o vocalista, compositor, bai-
xista e guitarrista Clemente Tadeu Nascimento.
Os Inocentes estrearam no primeiro minifestival Grito Suburbano, que
reuniu outras bandas punk, como Olho Seco, Lixomania, Anarkoólatras,
M-19 e Mack, em meados daquele mesmo ano de 1981, no Café-Teatro
Deixa Falar, na Avenida Santo Amaro. Vários outros Gritos Suburbanos
aconteceram, em locais diferentes, alguns deles com a presença da polícia.
A qualidade dos trabalhos apresentados estimulou a única loja ligada ao
movimento na cidade, a Punk Rock Discos, nas Grandes Galerias da Ave-
nida São João, a lançar uma coletânea em 45rpm, “Grito suburbano”. Dela
deveriam participar Inocentes, Olho Seco, Cólera, M-19 e Anarkoólatras,
mas a instabilidade de suas formações tirou as duas últimas da jogada. Melhor
para as outras, que puderam registrar quatro faixas cada. As dos Inocen-
tes foram “Pânico em S.P.”, “Garotos do subúrbio”, “Medo de morrer” e
“Morte nuclear”. Todas pesadas, rápidas, urgentes. À primeira, uma obra-
prima: “Mas o que eles não sabiam/ Aliás, o que ninguém sabia/ Era o que
estava acontecendo/ O que realmente acontecia”. A música podia ser en-
tendida como referência à própria emergência do movimento punk paulista.
No show de lançamento de “Grito suburbano”, em abril de 1982, os
Inocentes se apresentaram como um trio: Mauricinho fora expulso e Cle-
mente assumira também os vocais. Por essa época, a mídia burguesa já

164 Arthur Dapieve


começava a farejar os punks. Na Rádio Excelsior FM dirigida por Mau-
rício Kubrusly, o programa “Rock Sanduíche” — apresentado por Kid Vinil,
da banda pára-punk Verminose — divulgava músicas e informações so-
bre o movimento. Enquanto isso, o jornal “O Estado de S. Paulo” publi-
cava uma série de reportagens intitulada “Geração abandonada”, que apre-
sentava os punks como delingientes juvenis. Revoltado, Clemente man-
dou uma carta de protesto. Através dela, a produtora de vídeo Olhar Ele-
trônico contactou o líder dos Inocentes, interessada em documentar a rea-
lidade da periferia. O excelente vídeo de 45 minutos daí resultante acabou
ganhando o nome de uma música do grupo, “Garotos do subúrbio”, aquela
que apelava “você não pode desistir de viver”.
Pouco depois, novamente como um quarteto — Ariel, ex-Restos de
Nada e Desequilíbrio, assumira os vocais —, os Inocentes esbarraram com
um simpatizante do movimento, o jornalista Antônio Bivar, na Punk Rock
Discos. À partir desse encontro, Bivar escreveu e publicou, na revista
“Gallery Around”, uma reportagem sobre o grupo e seus pares. Dela
constava um manifesto punk redigido por Clemente, que concluía: “Es-
tamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para pintar de
negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Ge-
raldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer”. A reportagem,
por sua vez, gerou o convite para uma apresentação no Gallery, clube privê
de grà-finos. Obviamente, os Inocentes foram expulsos da casa noturna.
O passo seguinte foi a organização, por Bivar e Callegari (também
editor do fanzine “SP Punk”), do 1º Festival Punk de São Paulo, conheci-
do ainda como “O Começo do Fim do Mundo”, no Sesc-Pompéia, em 27
e 28 de novembro de 82. Nele, se apresentaram os Inocentes e outras 19
bandas, foram exibidos vídeos das companheiras inglesas e foi lançado o
livro “O que é punk”, de Bivar. Gravados precariamente num tape deck,
os shows resultaram no disco, com o nome apocalíptico do festival, para
o qual o grupo de Clemente contribuiu com uma faixa, “Salvem El Salva-
dor”. Em 26 de março do ano seguinte, os Inocentes pegaram a Via Dutra
e foram participar de um evento parecido, a 1º Noite Punk do Rio de Ja-
neiro, no Circo Voador, na Lapa. Pouco depois, eles lançavam seu primei-
ro compacto, “Miséria e fome”, duplo, independente, em 45rpm, que, além
da faixa-título, trazia “Calado”, “Aprendi a odiar” e “Morte nuclear”. Em
1984, duas delas, “Miséria e fome “ e “Aprendi a odiar”, seriam incluídas
numa coletânea alemã da Weird System, “Life is a joke”. Contudo, nesse
meio tempo, muita coisa tinha acontecido: Ariel saíra da banda, ela volta-
ra a ser um trio, acabara, Clemente se tornara vocalista da banda skinhead

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80 165


smnspe

Clemente e os Inocentes: uma banda punk na história do BRock


Neuróticos, esta também se dissolvera — e os Inocentes se reuniram. Des-
sa vez, como um quinteto: Clemente, Marcelino, os irmãos Antônio Tonhão
(voz) e André Parlato (baixo) e Ronaldo dos Passos (guitarra). Quinteto
que não realizou nenhum show.
O entra-e-sai da banda continuou através dos anos de 84 e 85, com
diversas formações dos Inocentes — inclusive uma com Paulo Barnabé,
irmão de Arrigo, no baixo — se apresentando em projetos como “Bole-
tim de Ocorrência”, da Lira Paulistana, e o “Reincidência”, do Centro
Cultural São Paulo, sem falar em danceterias como Carbono-14 e Napalm.
Em 1986, o então baterista Tonhão conheceu o vocalista Branco Mello,
dos Titãs, que levou uma fita demo dos Inocentes até André Midani, pre-
sidente da WEA. Em março, com produção de Branco e de Pena Schmidt,
o grupo, isto é, Clemente e Tonhão, mais Ronaldo e André se revezando
no baixo, entrou no estúdio Mosh para dele emergir com um magnífico
mini-LP de seis faixas, “Pânico em S.P.”. Dele faziam parte “Ele disse não”
(“Ele próprio fechou suas portas/ Ele próprio se proibiu”) e “El Salvador”
(antiga “Salvem El Salvador”). O disco conseguiu simultaneamente tirar
uma polaróide da força bruta dos Inocentes e de sua sofisticação musical
— duas qualidades não necessariamente incompatíveis.
No ano seguinte, Os Inocentes levaram essa sofisticação furiosa ainda
mais longe em seu primeiro LP solo, “Adeus carne”, lançado pela mes-
ma WEA. Nele, o grupo se dava o luxo de musicar um poema do russo
Vladimir Maiakóvski, “Eu”, e gravar um samba de Mauricio Tapajós e
Paulo César Pinheiro, “Pesadelo”. O disco abria com um verdadeiro hino,
“Pátria amada” (“... de quem é você afinal?/ É do povo nas ruas? Ou do
Congresso Nacional?”) e fechava com um insólito punk-pagode instru-
mental, “Adeus carne”. Outro disco antológico.
O terceiro trabalho dos Inocentes para a WEA só sairia na metade
de 1988. Ao contrário do leque aberto de “Adeus carne”, produzido por
Pena Schmidt e por Geraldo D"Arbilly, “Inocentes” ganhou do produtor
Roberto Frejat, do Barão Vermelho, uma concepção mais fechada, roquei-
ra e direta. O despojamento já começava na capa do LP: nela, Clemente,
Tonhão, Ronaldo e André posavam nus, exceto pelas tarjas estratégicas,
algemas, meias e tênis. Lá dentro, finalmente o grupo registrava uma de
suas mais antigas músicas, “Garotos do subúrbio”, além da excepcional
“A face de Deus” (uma baladona que dizia “Eu vi a face de Deus picha-
da num muro. Eu vi/ Eu vi o menino Jesus abandonado numa esquina/
Francisco de Assis passando cocaína”), de “O homem que bebia demais”
(um vigoroso rockabbily) e de “A lei do cão” (punkabbily). “Inocentes”

O Rock Brasileiro dos Anos 80 167


BRock —
não era tão bom quanto os dois discos anteriores, mas mantinha as le-
tras desesperadas e o instrumental honesto.
A gravadora, entretanto, não estava muito preocupada com isso.
Preocupava-se, isso sim, que os discos dos Inocentes vendessem em mé-
dia 20 mil cópias, insuficientes para segurar a barra depois do boom do
BRock. Assim, Clemente e companhia começaram a década de 90 como
haviam começado a de 80: com a cara e a coragem. O que, no caso de-
les, bastava para se manterem na ativa, fazendo shows e, eventualmen-
te, lançando novos trabalhos, como o tumultuado — na produção — e
tranquilo — no resultado — “Estilhaços” (1992) e o esporrento “Sub-
terrâneos” (1994, este pelo selo Eldorado). De qualquer forma, ainda que
tivessem se perdido na vida, os Inocentes seriam fundamentais para a
compreensão da história do BRock por dois motivos: eles foram a úni-
ca banda genuinamente punk a transcender seu berço e seu líder, Cle-
mente, foi o único negro a ter voz ativa no/num meio de brancos — os
outros, como Renato Rocha, do Legião Urbana, por exemplo, foram
meros coadjuvantes.

PLEBE RUDE

Tal como Legião Urbana e Capital Inicial, o Plebe Rude foi gestado
na Brasília da abertura política, no início dos anos 80, filho do tédio e da
revolta. Nenhum de seus membros nasceu no Distrito Federal: o vocalista
e guitarrista Philippe Seabra nasceu em outra capital, Washington D.C.,
EUA, de onde veio para o Brasil com 10 anos; o outro vocalista e guitar-
rista, Jander Ameba Bilaphra, era mineiro; o baixista André X Mueller,
paranaense; o baterista Gutje Woorthmann, carioca. Em Brasília, um fi-
cou amigo do outro, e este do outro, e este outro de mais um. Os quatro,
no entanto, ensaiaram suas primeiras bandas separadamente, sendo a mais
bem-acabada delas a Blitz 64, da qual fizeram parte Gutje e o guitarrista
Loro Jones, futuro Capital Inicial.
O Plebe Rude se formou quase ao mesmo tempo em que, com o fim
do Aborto Elétrico e da Blitz 64, se formaram Legião e Capital, em mea-
dos de 1981. Mais precisamente a 7 de julho de 1981. Nesta data, Philippe,
André e Gutje fizeram sua primeira música, “Pressão social” (“Há uma
espada sobre minha cabeça/ É uma pressão social que não quer que eu
me esqueça/ Que tenho que estudar, que tenho que trabalhar”, pueril mas
sincero). Antes disso, André fora de fundamental importância na forma-
ção da própria cena brasiliense: era ele quem mandava as últimas novi-

168 Arthur Dapieve


dades da Inglaterra (onde passou uma temporada com o pai professor) e,
de volta ao Brasil, era ele quem armava a barraquinha que vendia vinho
nas festas organizadas pela turma. Jander, por seu turno, era da facção
hardcore dessa talentosa galera de Brasília e entrou para o grupo três meses
depois de sua formação.
Embora cada um dos quatros plebeus tivesse predileção por uma
subtendência diferente do movimento punk, seus gostos musicais se en-
contravam no culto à maior banda de rock *n” roll de todos os tempos,
isto é, ao Clash de Joe Strummer e Mick Jones. (Tempos depois, já esta-
belecido como Plebe Rude, o quarteto viria a se apresentar ao vivo sob
outra identidade, a de Clash City Rockers, uma superbanda cover dedi-
cada exclusivamente ao repertório do supergrupo inglês, como os Sex
Pistols, punk de primeira hora, verão de 1976). Do Clash, o Plebe herda-
ria seu próprio esquema de jogo — dois vocalistas-guitarristas de regis-
tros inteiramente distintos, a se cruzar sobre uma poderosa cozinha — e
o gosto pelas letras de conteúdo político — gosto este compartilhado por
seus companheiros de geração e luta, Legião e Capital.
Dentro do espírito de mutirão que unia os grupos brasilienses, o Plebe
Rude saiu da cidade pela primeira vez junto com o Legião Urbana, quan-
do contava um ano de idade, para ir tocar num festival de rock em Patos
de Minas. A contundência política de canções como “Vote em branco” (do
PR) e “Que país é este” (do LU) assustou a polícia local, que os deteve em
busca de explicações. Afinal, estava-se às vésperas de uma eleição e aquelas
mensagens eram claramente subversivas. Philippe e Jander, por exemplo,
cantavam “imagine uma eleição em que ninguém fosse eleito/ Imagine a
cara do prefeito/ Vamos lá, cara/ Seja franco/ Use o poder do seu voto/
Vote em branco”. Anarquia no DF.
Nessa época, o repertório do Plebe Rude já incluía “48? (“Cinco dias
pra trabalhar/ Só dois dias pra descansar/ 48 horas não chegam!?”) e “Con-
sumo” (“Comprei de tudo/ À prestação/ O SPC/ E o meu caixão”), músi-
cas que só seriam gravadas num então inimaginável segundo disco. E, não
contente em fazer neomúsica de protesto, o grupo ampliava seu horizon-
te fazendo um filme, o média “Ascensão e queda de quatro rudes plebeus”,
dirigido por Gutje e ganhador do prêmio de melhor filme experimental
do 1º Festival de Cinema Super-8 de Brasília. Disco que é bom, o Plebe
só gravaria depois de três anos de cult-shows na sua cidade natal, no Rio
de Janeiro e em São Paulo.
O padrinho desse primeiro disco foi o brasiliense temporário Herbert
Vianna — que já abrira as porta da EMI-Odeon para o Legião Urbana.

Brasileiro dos Anos 80 169


BRock — O Rock
Herbert recomendou a contratação do Plebe Rude e produziu o mini-LP
“O concreto já rachou”. Apesar de ter apenas sete faixas este disco é sé-
rio candidato ao título de melhor disco da história do BRock. Outros BRo-
queiros deram uma mãozinha: Renato Russo assinou parte do release para
a imprensa, Fernanda Abreu (da Blitz) fez backing vocal em “Sexo e Ka-
ratê”, George Israel (do Kid Abelha) tocou sax. O Plebe, por sua vez, des-
carregava toda a energia acumulada desde 1981: guitarras se costuran-
do, baixo e bateria ombro a ombro, duas vozes dialogando disco afora
— a de Jander, grave e ameaçadora, a de Philippe, aguda e desesperada.
Uma porrada inesquecível.
Lançado oficialmente com duas apresentações no Noites Cariocas,
a 14e 15 de fevereiro de 1986, “O concreto já rachou” abria com a som-
bria “Até quando esperar” (“... A plebe ajoelhar esperando a ajuda de
Deus”), emendava com a tensa “Proteção” (“Tropas de choque/ PMs arma-
dos/ Mantêm o povo no seu lugar”) e fechava o lado A com a paranóica
“Johnny vai à guerra (outra vez)” (“Festa cheia de soldados/ Que insis-
tem em batalhar/ Por ausentes generais”). O lado B pegava mais leve atra-
vés da irônica “Minha renda” (“Eles trocam minhas letras, mudam a har-
monia/ Mas no compacto tá escrito que a música é minha/-Já sei o que
fazer pra ganhar muita grana/ Vou mudar meu nome para Herbert Vianna”,
sendo esse último verso gritado pelo próprio) e da doida e antiga “Sexo e
karatê”. Mas logo partia para o pito antidrogas pesadas de “Seu jogo”
(“Você não morreu mas está sem vida/.../ E o culpado é você”) e para o
claustrofóbico cartão-postal de “Brasília” (“Brasília tem centros comer-
ciais/ Muitos porteiros / E pessoas normais”).
Um ano e cinco meses depois, com a banda já transplantada para o
Rio, o Plebe Rude subiu ao palco do Canecão para, dentro do primeiro
festival Alternativa Nativa, lançar o segundo disco, “Nunca fomos tão
brasileiros”, também produzido por Herbert Vianna. Na noite de estréia
— foram cinco apresentações, de 15 a 19 de julho de 1987 —, nem o péssi-
mo som conseguiu diminuir a potência do quarteto, expresso em músicas
com “A ida” e “Bravo mundo novo”. Show/LP tinham caráter claramente
antológico, pois coletavam faixas compostas em 82 (“48” e “Consumo”),
83 (“Não tema”), 84 (“Censura” e “Códigos”), 85 (“Nova era tecno” e
“Nunca fomos tão brasileiros”) e 86 (“Bravo mundo novo”). Somente “A
ida”, “Nada” e “Mentiras por enquanto” eram fresquinhas, de 87.
Essa verdadeira antologia mantinha o nível do disco lá em cima. Não
havia músicas ruins — embora as melhores estivessem no mini-LP de es-
tréia — e “A ida”, que contava com uma orquestra de cordas arranjadas

17240 Arthur Dapieve


e regidas por Jacques Morelenbaum, era decididamente bela. O grande
auê do trabalho, contudo, ficou por conta de “Censura”, cuja radiodifu-
são foi kafkianamente proibida pela Censura Federal. A letra fazia refe-
rência ao corte de uma cena do filme “Rio Babilônia”, de Neville D'Al-
meida, na qual Jardel Filho contracenava com um travesti: “Unidade re-
pressora oficial/.../ Contra nossa arte está a censura/ Abaixo a cultura, viva
a ditadura/ Jardel com travesti, censor com bisturi/ Corta toda música que
vocês não vão ouvir”. Caso de premonição estudada.
Depois da desova de repertório antigo em “O concreto já rachou” e
“Nunca fomos brasileiros”, o Plebe Rude se viu diante do desafio de, pela
primeira vez, começar os trabalhos do zero, ou quase isso. Philippe, Jander,
André e Gutje passaram nove meses no estúdio. Saíram de lá em novem-
bro de 1988, com um LP de instrumental maduro e letras imaturas, inti-
tulado simplesmente “Plebe Rude”. Se a habilidade técnica lhes permitia
abrir seu leque punk em direção a outras praias (inclusive flertes com baião,
cantiga, repente, samba), a inspiração poética tirara folga. Se “Repente”
era inteligente passeio polirrítmico pelo Brasil, a ecológica “A serra” era
constrangedora. “Todos reclamando/ Só quero conscientizar/ Madeira
acabando/ Até quando esperar”, dizia a letra de Gutje. Letra boa mesmo,
só a de “Longe”, de André, na qual um soturno Jander cantava “os nati-
vos, eles gostam de mim/ É como se eu fosse uma espécie de Deus/ Mas
se um dia minha magia falhar/ Eles voltam a ser ateus”. Além da certeza
desses desencontros, “Plebe Rude” deixava a impressão de que a produ-
ção de Herbert Vianna fazia falta — no seu lugar estavam os no names
Renato Luiz, Armando Telles e Roberto Reis.
A crítica se dividiu e o público encolheu. Se “O concreto já rachou”
vendera 250 mil cópias dois anos antes, “Plebe Rude” não chegou às 40
mil. Honestos que só, os rudes plebeus entraram em crise. Jander come-
çou a privilegiar sua banda alternativa, cuja nome, Dentes Kentes, fazia
uma brincadeira com o de seus idolatrados Dead Kennedys. Nela, o voca-
lista-guitarrista pulava para a bateria e tocava com Renato Rocha (do
Legião Urbana, baixo), Feijão (Scola de Scândalos, guitarra) e Fred (voz).
Um pouco mais tarde, Jander e Renato se recolheriam a uma comunida-
de rural no interior do Estado do Rio. Oficialmente, o Plebe Rude volta-
va a ser o trio original. Mas não por muito tempo. Gutje reativou sua
porção audiovisual e abriu uma produtora de vídeo. Diante dessa diáspora
o grupo chegou a ser dado como desaparecido no começo dos anos 90.
Philippe sumiu e André se ocupou de sua loja de discos com Dado Villa-
Lobos, a Rock It!, no Rio, e de seu programa de rádio com o jornalista

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 ai


BRock
Tom Leão, o “HellRadio”, na Fluminense FM. Entretanto, quando tudo
parecia morto e sepultado, Philippe e André retomaram o Plebe Rude em
1993, gravando o LP “Mais raiva do que medo”, pela independente Na-
tasha, e fazendo uma série de shows. O disco trazia uma versão para
“Clampdown”, do Clash, chamada “Mundo real”, e uma ou outra boa
nova, como “Mais tempo que dinheiro” e “Quando a música terminar”.
Mas a fagulha tinha ido embora e o trabalho não teve maior repercus-
são. Desanimado, Philippe foi morar nos EUA em 1994. Será o fim ?

BIQUÍNI CAVADÃO

Corre a lenda de que os versos “sabe esses dias em que horas dizem
nada?/ E você nem troca o pijama, preferia estar na cama/ O dia, a mo-
notonia tomou conta de mim/ É o tédio, cortando os meus programas,
esperando meu fim” foram rabiscados num caderno escolar durante uma
aula de Física no Colégio São Vicente, nas Laranjeiras, Zona Sul do Rio,
em algum dia de 1983. Estudando no mesmo lugar onde anos antes estu-
dara Lobão, encorajados pelo sucesso dele, da Blitz, dos Paralamas do
Sucesso e do Barão Vermelho, os colegas Bruno Gouvêia, Miguel Flores
da Cunha, André da Luz e Álvaro Lopes começaram a tocar juntos até
que o vestibular os separasse. Mas o vestibular não os separou. Com Bruno
cantando, Miguel tocando teclados, André, baixo, e Álvaro, bateria, o
quarteto continuou ensaiando e tocando em festinhas, descompromis-
sadamente, amadoristicamente, até o dia de 1984 em que encontrou e foi
adotado por Carlos Bem, ex-baterista do Kid Abelha, e Herbert Vianna,
guitarrista dos Paralamas do Sucesso. Foi Herbert quem batizou-o de Bi-
quíni Cavadão. Foi Beni quem produziu a primeira fita demo, com “Té-
dio” e “No mundo da Lua”, encaminhada, como era de praxe naquele
tempo, à Fluminense FM. Antes do fim do ano, a niueive “Tédio”, valo-
rizada pelo inexpressivo vocal de Bruno, já era um hit carioca. Em vias
de se tornar nacional: rapidamente a PolyGram ofereceu um contrato ao
BC. Nem o lançamento do primeiro compacto, no início de 1985, afas-
tou os boatos de que o grupo não existia, era apenas uma invenção de
Beni e de Herbert, que ainda dava uma força tocando guitarra.
Mas logo logo o Biquíni Cavadão era, se não respeitado, ao menos
tolerado, tolerado como a mais adolescente manifestação do BRock. Bru-
no, Miguel, André, Álvaro e Carlos Coelho — o guitarrista que entrou
na banda depois do estouro de “Tédio” — levariam muito tempo para se
livrar da imagem de colegiais, de CDFs, de nerds. Verdade que no come-

Arthur Dapieve
ço essa imagem simplesmente não os incomodava. Até por corresponder
à realidade. Para o bem e para o mal, “Tédio” retratava perfeitamente
seu título. A mais animadinha “No mundo da Lua”, idem, através de
versos como “não quero mais ouvir/ À minha mãe reclamar/ Quando eu
entrar no banheiro/ Ligar o chuveiro, mas não me molhar”. Já “Inseguro
de vida” escorregava para o pueril: “ É normal que num fim de semana;
Ao viajar, muita gente morra/ Entre as ferragens de um fusca/ Sem que
ninguém socorra” e daí pra baixo. De qualquer forma, os cinco teriam
tempo de amadurecer um pouco mais em todos os sentidos até chegarem
ao primeiro LP, lançado pela PolyGram com produção de Carlos Boni.
“Cidades em torrente”, o disco, foi oficialmente apresentado ao pú-
blico em 15 de março de 1986, com um show no Morro da Urca. Além
dos hit singles “Tédio” e “No mundo da Lua”, o LP dava algumas mos-
tras de amadurecimento. Fosse na ousadia das três vinhetas instrumen-
tais, “Teu barato”, “O drama IJ” (ambas de Miguel) e “A grade surda”
(de Coelho). Fosse numa ou noutra letra, como “Múmias” (“Mas não
somos desse imundo de cidades em torrente,/ De pessoas em corrente”),
que contava com a participação de Renato Russo, do Legião Urbana, nos
vocais. De resto, entre altos e baixos, o Biquíni Cavadão continuava var-
rendo o universo adolescente: serviço militar (“Reco”), sexo (“Hotel”),
“Timidez” e ainda uma vez, tédio (“Domingo”). O bastante para o en-
quadramento em categorias como “tecnobregas” ou “darks”. O razoa-
velmente bom “Cidades em torrente” vendeu razoavelmente bem (cerca
de 60 mil cópias) mas não bastou para fazer a mídia — sobretudo a pau-
lista — levar o BC a sério.
O ano de 1987 foi quase todo gasto em shows no Rio, excursões pelo
interior e depuração de repertório com vistas ao segundo LP. No final de
janeiro uma temporada no Teatro Ipanema já mostrava algumas músi-
cas que fariam parte do novo disco: “Ida e volta”, “Catedral”, “1/47, A
dramática “Ida e volta” logo caiu no gosto de público. “Não sei mais o
que fazer/ A noite acabou/ As luzes já vão acender/ E com elas solidão”,
cantava Bruno sobre uma boa base de Coelho, André (mais conhecido
como Sheik), Miguel e Álvaro (mais conhecido como Birita). A letra, à
primeira lida, era apenas um “Tédio” mais elaborado, mas, se se prestas-
se atenção, se tornava um lamento acerca das contradições existenciais
do show business (“E eu não sei se o que vivi foi ilusão/ Ou teve mesmo
importância/ Acho que não me deram atenção”).
Apesar do sucesso de “Ida e volta”, o segundo LP, “A era da incer-
teza”, lançado no final de novembro, teve uma fria recepção. Uma baita

Brasileiro dos Anos 80 748)


BRock — O Rock
injustiça. De um disco para o outro, o BC dera um impressionante salto
qualitativo, nas letras e no instrumental. A composição caótica-coletiva
do grupo pariu belezas como “;Tormenta!”, “Um corpo sem alma? e, aci-
ma de todas as outras, “Inocências”. Esta, meio espanholada, era um brado
de resistência: “Nessa estrada já fui pra todo lado / Tive quase tudo e por
ser quase tive nada/ Rodando na ciranda que separa o joio e o trigo/ Eu
vou dançando,/ Vou lembrando do primeiro prazer de se estar vivo”. À
indiferença diante de “A era da incerteza” é ainda mais revoltante quan-
do se sabe, como hoje, que o Biquíni Cavadão nunca faria outro disco tão
bom. Roqueiro, baladeiro e erudito (!) na medida.
Esnobado pela crítica — a revista “Bizz”, por exemplo, o arrasou em
apenas 10 linhas — e desconhecido pelo público — menos comercial que
“Cidades em torrente”, “A era da incerteza” não comoveu os programa-
dores das rádios —, o disco vendeu pouco menos de 50 mil cópias. O re-
lativo fracasso resultou em mais um ano sem registros em vinil. O tercei-
ro LP, “Zé”, só seria lançado oficialmente a 27 de julho de 1989, com
um show no palco predileto da banda, o do Teatro Ipanema. Como os
dois antecessores gravado via PolyGram com a produção de Beni, “Zé”
fazia um novo esforço na direção da maturidade, mas não contava nem
com o fator surpresa de um nem com a inspiração de outro.
Ainda assim “Zé” era de uma honestidade a toda prova. A come-
çar pela faixa de abertura, “Bem-vindo ao mundo adulto”, uma espécie
de mea culpa numa levada tecnofunk. “Você agora é que vem com esse
papo/ “Está tudo um tédio, eu não tenho um programa”/ Rima tudo com
remédio, depois ganha uma grana”, espezinhava a letra para arrematar
com um alento: “Ainda te acho sincero”. No todo, “Zé” pretendia rea-
firmar os membros do Biquíni Cavadão como sujeitos normais, desses
com quem a gente estuda no colégio. Musicalmente, embora centrasse
fogo no pop-rock habitual, o disco arriscava um “Samba de branco” —
na verdade uma boa mistureba com rock e funk — e um countryzinho,
“Meus dois amores”, a saber, uma mulher e uma égua. Existencialmen-
te, havia uma crise em “Zé”, crise melhor expressa em dois versos da
faixa “Teoria”: “Eu quero explicar a todos o que sinto/ Mas pareço acre-
ditar que o tempo todo estou mentindo”. Apesar ou justo por causa dessa
crise, o LP se fechava com uma letra menos pessimista, “Direto pro in-
ferno”, que dizia, meio que tentando se convencer, que “nem todos os
meus dias são tristes”.
“Zé” vendeu ainda menos do que “A era da incerteza”, meras 25 mil
cópias, mas foi fundamental para fazer com que, na virada da década de

174 Arthur Dapieve


80 para a de 90, o Biquíni ganhasse confiança no próprio taco, através
da exposição pública de seus dilemas e mazelas. Dentro de seu ciclo fono-
gráfico de ano-sim ano-não, outro ano, o de 1990, se passaria sem novo
lançamento. “Descivilização”, lançado em novembro de 1991, começa-
va remetendo ao disco anterior: a primeira faixa, também primeira a to-
car nas rádios, tinha dois anos de idade e se chamava “Zé-ninguém”. Nela,
Bruno, Coelho, Miguel, Sheik e Birita faziam uma fanfarra para o homem
comum: “Eu não sou ministro!/ Eu não sou magnata!/ Eu sou do povo,
eu sou um zé-ninguém/ Aqui embaixo, as leis são diferentes!”. Entre po-
pices, baladas, bossa-nova e dance music, a faixa fadada a explodir em
todo o país era “Vento, ventania” (“Agora que eu estou solto na vida,
me leve para qualquer lugar,/ Me leve, mas não me faça voltar!”).
Mesmo tendo se tornado o maior sucesso de vendas do grupo, al-
cançando a marca das 70 mil cópias, “Descivilização” não significou a
renovação do seu contrato com a PolyGram. Assim se passaram os anos
de 1992 e 1993 — quando, solto na vida, o quinteto tocou a 22 de janei-
ro na Praça da Apoteose, abrindo o Hollywood Rock seguido por De Falla,
Alice in Chains e Red Hot Chili Peppers — sem disco novo no mercado.
Somente em 1994 o Biquíni Cavadão (e seu inseparável produtor Carlos
Beni) encontrou pouso na Sony, antiga CBS, lançando “Agora” em agosto.
Apesar da energia represada durante três anos passados longe dos estú-
dios e da ambição conceitual do disco, as melhores músicas não eram do
grupo: “Chove chuva”, de Jorge Ben, já apresentada com êxito no show
do Hollywood Rock; e “Admirável gado novo”, de Zé Ramalho. Pois é.
Dois covers não fazem um verão.

NENHUM DE NÓS

Último dos grupos gaúchos a amarrar seu cavalo no obelisco do


Sudeste, o trio Nenhum de Nós foi também aquele que fez a mais origi-
nal mistura entre a música de seu estado natal e o pop-rock do resto do
país. Thedy Corrêa (voz e baixo), Carlos Stein (guitarra) e Sady Homrich
(bateria) perderam o primeiro bonde da história, a coletânea “Rock grande
do sul”, que revelou ao Brasil Engenheiros do Hawan, Replicantes, De
Falla, Garotos da Rua e TNT via RCA, mas não se fizeram de rogados:
mandaram uma fita demo para o produtor do disco, Tadeu Valério, e
acabaram contratados pelo selo Plug. Isso em 1987, apenas um ano de-
pois de os três amigos de infância terem decidido levar a música a sério.
Até então, do seu currículo constava uma brincadeira de pátio de colé-

80 ZS
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
gio: em 7 de setembro de 1978, os três misturaram o “Hino Nacional? a
“Roda viva”, de Chico Buarque, num ato de rebeldia adolescente.
O primeiro LP, produzido pelo trio e por Reinaldo B. Brito, chegou
às lojas em meados de 87. Nada aconteceu. O Nenhum de Nós permane-
ceu tão desconhecido quanto antes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas
duas participações especiais ajudavam a localizar o trabalho de Thedy,
Stein e Homrich no leque da música gaúcha: Vítor Ramil, irmão de Kleiton
& Kledir, recitava versos pelo telefone na faixa “Frio” e Edu K., do De
Falla, urrava na faixa “Adeus”. Era isso: o NN estava entre a tradição
regionalista e o movimento punk de bombachas. No disco, que levava
somente o nome do grupo, algumas músicas chamavam a atenção. À tris-
tonha “Camila, Camila”, que, embora tivesse a intenção declarada de
expor na primeira pessoa o drama de mulher espancada pelo marido, foi
interpretada até como o diário de um travesti de 17 anos. “O marinheiro
que perdeu as graças do mar”, inspirada no livro homônimo do japonês
Yukio Mishima. A niilista “Homens caixa”, que parecia uma versão ro-
queira para a novela “Bartleby”, de Herman Melville, ao dizer “eu não
faço nada/ Eu não posso fazer nada/ Veja bem: não há nada/ Que eu pos-
sa fazer”. À despeito da qualidade de “Nenhum de Nós”, nada aconte-
ceu. Não de imediato.
Quando a banda chegou ao Rio para participar, no horário alterna-
tivo do Canecão, a 6 de novembro, do festival do selo Plug, era uma ilus-
tre desconhecida. Tocou sua meia hora, entre o show do carioca Black
Future e o do brasiliense Obina Shok, e, ainda então, nada aconteceu. O
ano acabou e nada. O seguinte, 1988, já ia pela metade e nada. Subita-
mente, quando o disco parecia destinada à lata de lixo da história do
BRock — por melhor que seja, um disco só existe se alguém o escuta,
quanto mais alguéns melhor —, os programadores das rádios descobri-
ram o lirismo desesperado de “Camila, Camila”. Da noite para o dia, a
música, velha de mais de ano em vinil, se transformou num hit. Todo
mundo que ligou um rádio durante 15 minutos no Brasil de 1988 escu-
tou os versos “a lembrança do silêncio daquelas tardes/ A vergonha do
espelho naquelas marcas/ Havia algo de insano naqueles olhos, olhos
insanos/ Os olhos que passavam o dia a me vigiar, a me vigiar”. O suces-
so temporão de “Camila, Camila” trouxe o trio de volta ao Sudeste, para
uma série de shows em pequenos espaços. No Rio, o NN fez uma tempo-
rada no Teatro Ipanema, no começo de novembro. O set list atestava o
momento de transição: coletava algumas músicas do primeiro disco (“Peo-
ple are”, “O que Clark Kent não viu” e, óbvio, “Camila, Camila”) e an-

176 Arthur Dapieve


tecipava algumas do segundo (“Eu caminhava”, “Afastado”), sem falar
em covers afetuosos para “Tô à toa Tókio”, de Lobão, “Shades”, de Iggy
Pop, e “Starman”, de David Bowie.
Foi esta versão para “Starman”, cantada em português como “O
astronauta de mármore”, que apressou a chegada do segundo LP, “Car-
dume?. Os fãs de Bowie ficaram tiriricas da vida com a tradução livre da
letra original. Em vez de “there's a starman walking in the sky/ He'd like
to come and meet us/ But he thinks he'd blow our minds” (há um homem
das estrelas andando no céu/ Ele gostaria de vir nos encontrar/ Mas ele
acha que nos enlouqueceria), por exemplo, Thedy cantava “sempre estar
lá/ E ver ele voltar/ Não era mais o mesmo/ Mas estava em seu lugar”.
Fosse como fosse, “O astronauta de mármore” aterrissou nas rádios na
cola de “Camila, Camila”, como se ambas pertencessem ao mesmo dis-
co. Esse embaralhamento causado pela hibernação de “Nenhum de Nós”
fez com que “Cardume”, lançado em março de 1989, capitalizasse mui-
to do sucesso de seu predecessor. Assim, o primeiro LP vendeu pouco mais
de 30 mil cópias; o segundo, mais de 210 mil.
Qualitativamente, “Cardume” era tão bom quanto “Nenhum de
Nós”. Se se abstraísse a tola letra de “O astronauta de mármore”, a
música permanecia a mesma. No entanto, o disco tinha vários outros hits
em potencial. O nebuloso épico “Eu caminhava”, por exemplo (“Eu ca-
minhava/ E fingia que conhecia as pessoas/ E fingia que gostava de al-
guém/ E fingia que o tempo passava”). Ou a misantrópica “Afastado”
(“Decidido a ficar só”). Ou ainda a imóvel “Sobre as mãos” (“Seu pei-
to pulsava nervoso/ Enquanto ela batia na porta”). E, na faixa “Fuga”,
havia uma participação que apontava na direção folk-nativista que o NN
tomaria a partir dali: Renato Borghetti, o Borghettinho, e seu acordeão
(ou gaita, como preferem os gaúchos). O curioso, no caso do grupo, é
que essa valorização das raízes não entrava em conflito com a sua alma
punk — em 88, por exemplo, ele havia firmado um “Manifesto de san-
gue”, junto com Replicantes e De Falla, que pregava a tomada do po-
der do BRock pelos gaúchos. Igualmente curioso é que, embora o seu
trabalho estivesse mais próximo do dos Engenheiros do Hawan, o Ne-
nhum de Nós os odiava com o mesmo ardor de seus companheiros de
manifesto.
O terceiro disco, “Estrafio”, lançado em setembro de 1990, propu-
nha para a nova década algo similar ao que o R.E.M. fizera nos EUA: a
reviravolta do rock sobre suas próprias entranhas. Para início de conver-
sa, O grupo se tornou um quarteto, com a entrada do violonista Veco

80 16747
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
Marques, ex-acompanhante de Borghettinho. Depois, a gaita gaúcha se
fazia presente em cinco das 11 faixas do LP, através da participação do
respeitado Luís Carlos Borges. E, de quebra, a música “Sobre o tempo”
foi incluída na trilha de uma novela da Rede Globo, “Barriga de Aluguel”,
por causa de versos como “os homens criam os seus filhos/ Verdadeiros
ou adotivos/ Criam coisas que não deviam conceber”. Apesar dessa co-
lher de chá televisiva, “Estrano” vendeu menos que 1/5 de “Cardume”.
Considerável parte desse refluxo comercial podia ser debitada à pró-
pria estranheza do disco, muito acústico, bastante melancólico. Dentro
desse clima, a presença de uma cruza do rock com o tango, “Algo que
não se pode tocar”, não chegava a surpreender. E os títulos de outras faixas
já diziam muito sobre sentimentos e imagens predominantes: “Deserto”,
“As mulheres que eu rasguei”, “Mentira”, “O espelho do cego” (uma
homenagem ao escritor argentino Jorge Luis Borges). Trocando em miú-
dos, “Estrafo” é o disco mais gaúcho da história do BRock, o ápice de
uma carreira meridional e original.
O ano de 1991 começou para o Nenhum de Nós com a morna apre-
sentação no Rock in Rio II, no Maracanã, dividindo a noite de 26 de ja-
neiro com Capital Inicial, Information Society, Debbie Gibson, A-Ha,
Paulo Ricardo e Happy Mondays (eta noite doida...). Honra maior foi ter
“Camila, Camila” cantada por Cazuza incluída no disco póstumo “Por
aí...”, lançado em abril. Trabalho novo do quarteto só em 1992, com o
lançamento do álbum “Nenhum de Nós” em junho. Nele, Thedy, Veco,
Stein e Homrich arquivaram gaitas e bombachas, tiveram uma recaída
setentista e se admitiram um pouco mais pop. Como nas melhores faixas,
“Ao meu redor”, “Jornais” e “Tudo que aconteceu”, sem falar na regra-
vação de um velho sucesso dos Secos & Molhados, “Sangue latino”. Um
cover coerente. Em 1994, o Nenhum de Nós gravou, “Acústico e ao Vivo”,
no Teatro São Pedro, em Porto Alegre, uma espécie de best of recoberto
de melancolia e regionalismo. Um belíssimo disco, que passou quase des-
percebido, exceto pelo clip de “Diga a ela”, de alta rotação na MTV.

178 Arthur Dapieve


13:
AS DIVISÕES DE BASE

Hojerizah, Picassos Falsos, Black Future, Detrito Federal, Coke Luxe,


Ethiopia, Kongo, Obina Shok, Marciano Sodomita, Scola de Scândalos,
Eterno Grito, Mercenárias, Arte no Escuro, Azul Limão, Distúrbio Social,
OVNI, De Falla, Cólera, Tokyo, Zero, Saara Saara, Água Brava, Grafi-
te, Tonton Macoute, Urge, W3, Ph7, INT, Garotos da Rua, Cascavelettes,
Aliados, Os Fantasmas da Guerra, Muzak, Tarsila, Cruela Cruel, Crime,
Embaixada de Vênus, Golpe de Estado, Nau, Cabeça de Praia, Garotos
do Gueto, 14º andar, Replicantes, Metrô, Nós da Garganta, Garotos Po-
dres, Egotrip, X-Rated, Habeaz Corpuz, Eminência Parda, Venham a Mim
as Criancinhas, Finis Africae, Do Mundo Nada Se Leva, Trauma, Maria
Angélica Não Mora Mais Aqui, Anéis de Ana, Compartimento Surpre-
sa, Simpatia Pelo Demônio, Harry, Dorsal Atlântica, Sempre Livre, Hanoi-
Hanoi, Inimigos do Rei, Violeta de Outono, Uns & Outros, Bruhahá Ba-
bélico, Lagoa 66, Patrulha 666, Okotô, Arcano, Conexão Japeri, As Pri-
meiras Damas, Banda 365, Paulo Patife Band, Carne Viva, Basculantes,
Banda 69, Mel da Terra, Pôr do Sol, Metrópolis, 25 Segundos Depois,
Kali, Garotas do Centro, Eletrodomésticos, Neon, UPI, Inimigos do Rei,
Milionários da Cobertura, Joe Euthanázia, Neuzinha Brizola, Rapazes de
Vida Fácil, Absyntho, Herva Doce, Stress, Fellini, Os Mesmos, C-47, THC,
Omar & Os Cianos, Auschwitz, Furor Uterino, Ratos de Porão, Akira S
& As Garotas Que Erraram, Artigo 171, Tânia Cristal & Os Diamantes,
Marca Registrada, Patrulha do Espaço, Metalmorfose, Cinema À Dois,
Gueto, Truke, Xoq, Tan Tan Clube, Dr. Silvana, Twins, Valete 17, Mixto
Quente, Mathildas, Kaddish, Justa Causa, Vzyadoq Moe, Abalo Cínico.
A lista não tem fim.

Se é verdade que a História é escrita pelos grandes nomes, desses que


merecem um capítulo à parte, ou quase isso, também é verdade que sem
a multidão de soldados, muitos deles desconhecidos, nunca teríamos saí-
do do lugar. Legião Urbana e RPM podiam vender milhões de discos e
estar em todas as bocas — mas o pulso do BRock era mantido por deze-

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80 179


nas, centenas de bandas que brotavam do Rio Grande do Sul ao Pará,
batalhando duro para gravar um mero compacto, uma faixa num pau-
de-sebo ou, menos que isso, uma fita demo. Às vezes com apenas uma única
música bem sacada ou até simplesmente com um nome bem bolado, es-
sas bandas faziam a figuração da cena roqueira brasileira dos anos 80,
mostrando que sim, era possível aclimatar o rock ao país, cantá-lo em por-
tuguês e se Deus ou Diabo quisessem, viver dele. Eram elas — seu núme-
ro, seu entusiasmo e, menos raro do que se pensa, seu talento — que nos
davam a impressão de que ALGO estava acontecendo.
No Rio, a cena roqueira descendeu diretamente da cena blueseira,
de tal forma que, na noite dos tempos, se tornou impossível distinguir onde
começava uma e acabava a outra. Ambas nasceram ao redor de peque-
nos bares. O primeiro e mais famoso da cena blueseira carioca foi o Appa-
loosa, na Rua Barata Ribeiro 49, a uma esquina do bas-fond da Avenida
Prado Júnior, em Copacabana. Um de seus donos era o baterista Geral-
do D'Arbilly, ex-Peso e futuro Blue Rondo a la Turk, new wave britâni-
ca com dois pezinhos no Brasil (o outro era o baixista Kito Poncioni). Entre
os frequentadores, dois bluesmen que iriam cruzar seus destinos com o
do BRock, Antônio José Laforgue, o Zé da Gaita, e Celso Ricardo Furta-
do de Carvalho, o Celso Blues Boy.
Na fronteira entre o blues e o rhythm “nº blues, Zé incendiava o
Western ao som de covers dos Rolling Stones e de suas próprias compo-
sições, básicas e urbanas. Duas delas, “O suburbano” e “Meu sonho”,
mereceram um compacto da EMI-Odeon. Mas, apesar do prestígio entre
os roqueiros, ele nunca saiu do underground. Celso foi além. Quando
gravou seu primeiro LP solo, “Som na guitarra”, em 1984, já contava
quinze anos de carreira, durante os quais ganhou o apelido/homenagem
a B.B. King de Luís Carlos Sá, o Sá da dupla pé-na-terra com Guarabira.
Gravou mais cinco, “Marginal blues” (86), “Celso Blues Boy 3” (87),
“Blues forever” (88), “Quando a noite cai” (89), e “Vivo” (91), tornan-
do clássicas suas “Brilho da noite” — em parceria com Geraldo D' Arbilly
— “Aumenta que isso aí é rock and roll”, “Blues motel”, “Fumando na
escuridão” e “Tempos difíceis”. Blues-rock virtuosamente tocado.
Na fronteira entre o pioneirismo e a empulhação caça-níqueis, um
grupo formado por veteranos do rock setentista se misturou à primeira
onda do BRock. O Herva Doce de Marcelo Sussekind (guitarra) e Renato
Ladeira (teclados), dois ex-A Bolha, Paul de Castro (guitarra), ex-Mutantes
e ex-Veludo, Sérgio Della Mônica (bateria) e Roberto Lly (baixo) fez su-
cesso com uma versão, “Erva venenosa”, e outras músicas gaiatas, como

180 Arthur Dapieve


“Ganhei um avião” e “Volta meu bem”, mas nunca mostrou maior con-
sistência. Gravou três LPs, trocou de baterista várias vezes, virou quarte-
to e teve o grande momento de sua carreira ao abrir para o Kiss, no Mara-
canã, a 18 de junho de 1983. Competência técnica nunca foi sinônimo
de bom rock tn” roll. Embora também não seja incompatível com ele.
Como se viu no caso de outro ex-Bolha, Arnaldo Brandão, que, de-
pois de levar seu baixo no Brylho e na Blitz fase Lobão, continuou sua
trajetória funky com o Hanoi-Hanoi. Foram quatro discos, “Hanoi-Ha-
now (86); Fanzine (88), “O ser eonada “ (90) e “Coração geiger” (92),
sendo o primeiro, que vendeu somente 30 mil cópias, uma pequena jóia
pop, com faixas como “Blá-blá-blá...Eu te amo” e “Totalmente demais”,
esta popularizada por um de seus ex-patrões, Caetano Veloso. Através de
suas parcerias com o poeta Tavinho Paes, Arnaldo pegou bem o espírito
do aqui (o Rio) e do agora (os anos 80/90).
Entretanto, não era preciso ser veterano ou virtuose para pegar o
bonde na primeira parada. Um bom nome ajudava. Rapazes de Vida Fácil,
por exemplo. Com o ex-punk Alvin L. à frente, eles começaram a bater
perna no começo da década passada, fazendo uma linha pop-wave. Não
deu muito certo — gravaram um compacto meio mais ou menos, com
“Adriana na piscina” e “Má reputação”, em 1983 — mas com o tempo
viraram ponto de referência. No final dos anos 80, Alvin formou o gru-
po Brasil Palace para investir em bossa nova eletrificada. Também não
deu muito certo. Mas uma das músicas do seu repertório, “Stromboli”,
acabou indo parar em “O chamado”, álbum de 1993 da cantora-com-
positora Marina Lima. Bom sinal de que Alvin fincara o pé como letrista
e compositor. Antes Marina gravara sua “Não sei dançar” e ele passara
a colaborar com o Capital Inicial (“Todos os lados”, de 1990, é dele com
Dinho Ouro Preto, Bozo Barreti e Marcelo Sussekind). Mas Alvin não se
contentava apenas com o trabalho nos bastidores. E adentrou os anos 90
a bordo dos provocantes Sex Beatles, da música “Quero você e seu na-
morado também” e dos álbuns “ Automobília” (1994) e “Sex Beatles II”
(1995), produzidos por Dado Villa-Lobos.
Embora não possa ser considerada uma BRoqueira, quando nada
porque já co-estrelava o especial musical “Mulher 80”, levado ao ar pela
Rede Globo em 1979, Marina Lima sempre trocou figurinhas com a ra-
paziada. Foi a partir do encontro dos músicos de sua banda com os ato-
res do Asdrúbal Trouxe o Trombone, no Teatro Ipanema, no verão 80/
81, que surgiu a Blitz, lembra? Através da década, a morena mais roqueira
na atitude — chegou a ser chamada de “nossa Chryssie Hynde” — do que

O Rock Brasileiro dos Anos 80 181


BRock —
na música — um atalho pop da linha evolutiva da MPB — foi gravando
Renato Russo (“Ainda é cedo”, com Iko Ouro Preto, Dado Villa-Lobos
e Marcelo Bonfá), Lobão (“Me chama” e “Noite e dia”, esta com Júlio
Barroso), Cazuza (“Preciso dizer que te amo”, com Dé e Bebel Gilberto),
Herbert Vianna (“Dois elefantes” e “Nada por mim”, esta com Paula
Toller). Não uma BRoqueira, mas uma bela e importante simpatizante.
Papel parecido foi desempenhado, mais tarde, por Marisa Monte. Seu
principal canal de comunicação com o BRock foram os Titãs. Já em seu
primeiro disco, o “cool-eclético” “Marisa Monte” (1989), ela gravava
“Comida” (de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto). O se-
gundo, “Mais” (1991), trazia “Ainda lembro”, “Tudo pela metade” e
“Mustapha” (parcerias de Marisa com seu então namorado Nando Reis),
“Beija eu” (dela, Arnaldo Antunes e Arto Lindsay), “Volte para o seu lar”
(de Arnaldo), “Eu não sou da sua rua” (de Arnaldo e Branco Mello) e “Di-
ariamente” (de Nando Reis). O terceiro, “Verde anil amarelo cor-de-rosa
e carvão” (1994), tinha “O céu” e “Enquanto isso” (dela e de Nando),
“Na estrada” (dos dois mais Carlinhos Brown), “De mais ninguém” e
“Bem leve” (dela e de Arnaldo), “Ao meu redor” (de Nando) e “Alta noite”
(de Arnaldo). Com tudo isso, Marisa Monte se tornou quase uma titã-
honorária, chegando a fazer apresentações junto com o grupo.
As duas melhores bandas das divisões de base cariocas, Hojerizah e
Picassos Falsos, tiveram trajetórias gêmeas. Formaram-se na mesma época,
levaram o mesmo tempo para definir um estilo, foram contratadas pelo
mesmo selo (o Plug, da RCA), lançaram seus primeiros discos ao mesmo
tempo (julho de 1987), lançaram seus segundos discos ao mesmo tempo
(outubro de 1988), foram dispensadas pela gravadora ao mesmo tempo
e se desfizeram pouco depois. De quebra, em vida, fizeram dezenas de
shows em dobradinha. Uma espécie de Cosme & Damião da cena local.
Até chegarem ao primeiro LP, “Hojerizah”, Flávio Murrah (guitar-
ra e composições), Tony Platão (voz), Marcelo Larrosa (baixo) e Álvaro
Albuquerque (bateria) passaram cinco anos e cem canções procurando uma
identidade. Fizeram rock básico, stoniano, caíram no pós-punk e viaja-
ram em músicas neopsicodélicas de 15 minutos. Chegaram a uma síntese
de tudo isso na lindíssima “Pros que estão em casa”, em “Tempestade em
Viena”, “Setembro” e “A lei” (as duas últimas do segundo LP, “Pele”),
canções que destacavam o vocal operístico de Platão e as palhetadas pre-
cisas de Murrah, cruza demente de Jimmy Page e Johnny Marr, um dos
maiores guitarristas de todo o BRock, bem como seu letrista mais hermé-
tico. De tal forma que um poema do simbolista francês Jean-Arthur Rim-

182 Arthur Dapieve


base
Hojerizah: uma das melhores bandas das divisões de
baud traduzido por Lêdo Ivo (“Canção da torre mais alta”) não soou des-
locado entre as faixas do segundo álbum.
Até chegarem ao primeiro LP, “Picassos Falsos”, Humberto Effe (voz
e composições), Luiz Gustavo Corsi (guitarra), Zé Henrique (baixo) e
Abílio Azambuja (bateria) passaram mais ou menos pelo mesmo proces-
so de depuração estilística. Na estréia em disco optaram por um rock si-
multaneamente funky e deprê, que, pelas ondas da Fluminense FM, con-
sagrou “Quadrinhos”. No segundo trabalho, “Supercarioca”, com Luiz
Henrique Romagnolli no baixo, eles abrasileiraram seu som, citando Noel
Rosa (com “Último desejo” inserida em “Marlene”, sombrio samba) sem
deixar de citar Jimi Hendrix (com “Third stone from the sun” plantada
em “Bolero”). Como convidado especial, Paul de Castro, ex-Veludo, Mu-
tantes, e Herva Doce, tocando violino em “Versões”.
(Hojerizah e Picassos Falsos se embaralharam de tal forma que, já
na década de 90, o cantor de um, Tony Platão, uniu forças ao guitarrista
do outro, Gustavo Corsi, numa linha soul music.)
Enraizado num dos points dos anos 80 — a folclórica casa noturna
Crepúsculo de Cubatão, aberta no final de 1984 por, entre outros sóci-
os, o assaltante inglês Ronald Biggs —, o sexteto Kongo surpreendeu ao
partir para o ensolarado ska e deixar as trevas góticas de lado. O único
disco de Edinho Milesi (voz, guitarra, sócio número 1 do Crepúsculo e
futuro DJ), seu irmão Nelson Cerqueira (voz e guitarra), Bombom (bai-
xo), Arnaldo Neto (bateria), Marília Figueirêdo (sax alto) e Niltinho (sax
tenor), o mini-LP “King Kongo”, de seis faixas produzidas pro Bi Ribei-
ro, baixista dos Paralamas do Sucesso, teve “Babilônia” e “Dr. de tudo”
bem executadas pela alternativa Flu-FM em 1987.
Na linha experimental, os cariocas, ou, para ser mais exato, uma
ínfima parte deles, podiam contar com o Black Future de Márcio Satanésio
Bandeira (voz e percussão) e Carlos Antônio Tantão (teclados), que agre-
gavam e desagregavam membros a torto e a direito. Assim, em janeiro de
1985, mês do primeiro Rock in Rio, uma apresentação performática do
BF no bar Let It Be incluía o baixista Renato Rocha, do Legião Urbana,
um trompetista extraviado dos B-52ºs e Luiz Antônio Alvez, o Lui, nos
vocais. (Enquanto o grupo executava seu subsucesso “Eu sou o Rio”, um
rock-samba-exaltação, um espectador gritava revoltado “é isso a vanguar-
da 21?) Assim, em maio de 1988, seu único LP, “Eu sou o Rio”, ia para
as lojas com a guitarra de Edinho Milesi, o baixo de Olmar Jr., a produ-
ção de Thomas Pappon, ex-Voluntários da Pátria e então Fellini, e a par-
ticipação, entre outros, de Edgard Scandurra (Ira!) e Paulo Miklos (Titãs).

184 Arthur Dapieve


Títulos de algumas faixas: “No nights”, “Sinfonia para um morto”, “Te-
atro do horror”, “Cartas do absurdo”.
O primeiro LP do grupo Uns & Outros, “Nós normais”, de 1987, é
outra bela peça de coleção, sobretudo pela depressiva “Dois gumes” e pela
instrumental “O homem descalço sobre a lâmina”. Infelizmente, depois
dele o vocalista Marcelo Hayena & Cia se perderam de tão empenhados
que estavam em perseguir Renato Russo & Cia. Pareciam o Legião Ur-
bana mas não eram o Legião Urbana. Três ou quatro hit singles também
são fundamentais para se entender a riqueza da cena carioca durante a
década de 80. O pop “Eu sou free” (84) das meninas do Sempre Livre,
Dulce Quental nos vocais. O rap “Kátia Flávia” (87) de Fausto Fawcett
e Os Robôs Eféêmeros. O funk “Manuel” (88) de Ed Motta & Conexão
Japeri. A teatral e bem-humorada “Uma barata chamada Kafka” (89) dos
Inimigos do Rei liderados por Paulinho Moska.
Depois que passaram aqueles (poucos) dias do Sempre Livre, Dulce
Quental se manteve à tona, mas em posição crítica em relação ao BRock.
Seu primeiro disco solo, “Délica” (85), virou estandarte de uma certa new
bossa. O segundo, o lindíssimo “Voz azul” (87), já a partir do título bus-
cava um sentimento bluesy. E o atingia em faixas como “Não atirem no
pianista” e “Essa gravação se autodestruirá em 5 seg.”. O terceiro, “Dulce
Quental” (88), não 1a adiante. Mas se o anterior trazia “Caleidoscópio”,
de Herbert Vianna, este tinha “Onde mora o amor”, de Roberto Frejat e
Arnaldo Antunes, “Terra de gigantes”, de Humberto Gessinger, e “A ino-
cência do prazer”, de Cazuza e George Israel. Na década de 90, Dulce saiu
de cena e se tornou parceira de Roberto Frejat em músicas como “Pedra,
flor e espinho” (do álbum de 92 do Barão Vermelho, “Supermercados da
vida”) e “Guarda essa canção” (do álbum de 94, “Carne crua”).
No comecinho dos anos 80, Fausto Fawcett agitava o Departamen-
to de Comunicação Social da PUC carioca com suas “radionovelas”, que
podiam se inspirar, por exemplo, em “Eu, Christiane F., 13 anos, droga-
da e prostituída...”. Seu primeiro LP, “Fausto Fawcett e Os Robôs Efê-
meros”, de 87, apenas amplificava, na forma de rap, seu trabalho na uni-
versidade. Os gritos de “calcinha!” que popularizaram “Kátia Flávia”
abriram espaço para um gênero que, anos depois, teria em outro aluno
de Comunicação da PUC, Gabriel o Pensador, seu grande expoente. Con-
tudo, o segundo LP de Fausto, “Império dos sentidos”, de 89, não alcan-
çou a mesma repercussão. Mas ele não se queixou. Voltou para seu habi-
tat natural, às margens do sistema, fazendo shows erótico-multimídia,
como “Santa Clara Poltergeist” (que revelou a desfrutável Regininha) e

dos Anos 80 185


BRock — O Rock Brasileiro
“Básico Instinto” (que, com sua nova banda, Falange Moulin Rouge, vi-
rou disco em 93).
Sobrinho do soulman tijucano Tim Maia, Ed Motta fez a ponte en-
tre este gênero — fortemente enraizado na Zona Norte e nos subúrbios
do Rio — e o BRock à frente do grupo Conexão Japeri. O primeiro dis-
co, que destacava “Manuel” e “Vamos dançar”, foi um estouro. Ed, en-
tretanto, não se acomodou. Largou o Conexão Japeri e gravou um álbum
conceitual, “Um contrato com Deus” (90), com vinhetas que incluíam “Bye
bye bird” (de Sonny Boy Williamson) e “Goodnight Irene” (de Leadbelly
e John Lomax). O sucesso não se repetiu. Ed, entretanto, não voltou atrás.
Radicalizou. Enamorou-se do jazz e lançou “Entre e ouça” (92). O su-
cesso, mais uma vez, não chegou. Desiludido com as baixas vendagens
deste disco e de “Ed Motta ao vivo” (93), o vozeirão se auto-impôs um
exílio nova-iorquino em meados de 1994. Voltou de lá apaixonado pela
MPB no ano seguinte.
Se no Rio a transição entre o nada e o ALGO foi feita por blueseiros
e veteranos, em São Paulo foram os punks o motor da história. Um gru-
po como o Ratos de Porão, por exemplo, foi formado por ativistas de pri-
meira hora, daqueles que se reuniam na loja Punk Rock Discos, numa
galeria da Avenida São João, e na estação São Bento do metrô. O Ratos
começou gravando pelo selo independente Ataque Frontal, de Redson,
vocalista do Cólera. Ratos e Cólera inclusive dividiram um disco ao vivo,
em 85. Caracterizado, como seus pares punk, pela alta rotatividade de seus
integrantes, o Ratos foi encontrar o seu destino nas cordas vocais de um
“novato”, João Gordo, que entrou para o grupo na metade da década.
Sob o peso e o carisma de Gordo, o seu som foi se modificando: saiu do
punk “de raiz” inicial, passou pelo hardcore e se firmou como um dos
expoentes mundiais (!) do crossover com o heavy metal. Discos como
“Anarkophobia”, de 90, ganharam o mercado externo. E, no Brasil, João
Gordo se tornou maior que o grupo na mídia burguesa. Sua falta de pa-
pas na língua lhe valeu até uma cobiçada entrevista nas “páginas amare-
las” da revista “Veja”.
Nascidas em berço punk, as Mercenárias — Rosália (voz), Ana (gui-
tarra), Sandra (baixo) e Edgard Scandurra (bateria!) — foram aos pou-
cos rompendo o cordão umbilical. A tentativa de “se sofisticar”, entre-
tanto, esbarrou na sua própria indigência técnica. O resultado foi que seu
LP de 88 era honesto porém inaudível. A atração exercida pelo movimento
punk era tamanha na cena paulista que até a alta burguesia tirou uma
casquinha através do grupo de butique Tokyo, cujo vocalista era o oxi-

186 Arthur Dapieve


genado Supla, clone de Billy Idol, filho da sexóloga Martha Suplicy e do
político do PT Eduardo Matarazzo Suplicy. Uma piada.
Mesmo gente que trocaria de calçada para não cruzar com um punk
abraçava sua filha bem-comportada, a new wave. Era o caso da banda
Metrô, formada em 1984 por cinco filhos de franceses. Tendo como front-
woman a modelo Virginie Boutaud, bonita que só, foi relativamente fá-
cil emplacar, com menos de um ano de vida, dois hits nas rádios, “Beat
acelerado” e “Tudo pode mudar”, popzinho bem-feito e bem marketeado
pela CBS, não mais que isso. Tanto que, quando o primeiro LP, “Olhar”,
foi lançado, em abril de 1985, a fórmula já estava esgotada. Tempos de-
pois, com o fim do Metrô, Virginie tentou uma carreira solo que também
não foi adiante. Seu baterista, Danny, acabou famoso por protagonizar
o anúncio de roupa que consagrou o bordão “bonita camisa, Fernan-
dinho!”. Isso é que é punk de butique.
Longe da estética do Metrô, o verdadeiro underground paulista era
composto por vanguardistas sem ranço, como o Fellini, e neopsicodélicos
floydianos, como o Violeta de Outono. Thomas Pappon (guitarras) e
Cadão Volpato (voz e gaita) levaram o Fellini aos trancos e barrancos
durante toda a década de 80, juntando e separando, juntando e separan-
do e, no intervalo entre uma junção e uma separação, gravando descon-
certantes discos pelo selo Baratos Afins. Seu mix de tecnologia caseira,
rock e ritmos brasileiros, exposto nos LPs “O adeus de Fellini” (84), “Felli-
ni só vive duas vezes” (86) e “3 lugares diferentes” (88), chegou a cha-
mar a atenção do mitológico DJ inglês John Peel. Uma música como “La
Paz song”, do terceiro disco, por exemplo, conseguia a façanha de ser
visceralmente anticomercial e pop por excelência, dessas de grudar no
ouvido seculum seculorum.
Batalhando em bandas como Lux, AMT-1, Ultimato, Zero e Fraga-
ta desde 1981, Fabio Golfetti (voz e guitarra), Angelo Pastorello (baixo)
e Cláudio Souza (bateria) formaram o Violeta de Outono em agosto de
85 para cultuar o Pink Floyd fase Barrett em longas levadas. Em vez de
soarem extemporâneos no meio de grupos pós-punk, eles revelavam a
contemporaneidade dos velhos bruxos psicodélicos. Seu primeiro LP, “Vio-
leta de Outono”, de 87, trazia uma atualíssima versão de “Tomorrow
never knows”, de Lennon & McCartney, para fechar um trabalho con-
templativo, de plácida melancolia destilada em faixas como “Outono” ou
“Dia eterno”. Transformado em quarteto com a entrada de R.H. Jackson,
ex-Nomenclatura, na programação eletrônica, o VO do segundo LP, “Em
toda parte”, de 89, fazia a ponte entre Pink Floyd e Echo & The Bunnymen

Brasileiro dos Anos 80 187


BRock — O Rock
(em “Outra manhã”) e The Cure (na instrumental “Rinoceronte na mon-
tanha de geléia”) desembocar na São Paulo quase anos 90.
O Zero do qual Fabio Golfetti e Cláudio Souza fizeram parte por seis
meses de 1984 chegou a ser um octeto com dois saxes e duas baterias,
porém logo se cristalizou num quiteto em torno do ex-Voluntários da
Pátria Guilherme Isnard, autor de canções entre o romantismo e a depres-
são, calçadas por sintetizadores gelados. Seu primeiro disco, o mini-LP
“Passos no escuro”, de 1986, destacou a faixa “Agora eu sei”, na qual
Isnard dividia os vocais com Paulo Ricardo Medeiros, à época um Midas
pop. O new romantic inglês Classix Nouveux não faria melhor. Mas o
Zero não cumpriu as promessas da estréia no LP “Tigres”, de 1987, e deu
com os burros n'água ao abrir para Tina Turner no Maracanã, a 16 de
janeiro de 1988 — não teve camarim próprio nem som decente e foi mais
vaiado que aplaudido após cinco indecifráveis músicas.
À crítica teve um papel muito importante no rock paulista da déca-
da de 80. Não só criticando, mas, sobretudo, criando. Júlio Barroso, Paulo
Ricardo e Thomas Pappon eram críticos-músicos. Fernando Naporano
tinha a banda Maria Angélica Não Mora Mais Aqui. O gaúcho Jimi Joe
deixara para trás a Atahualpa & Os Panques. Alex Antunes, da revista
“Bizz”, militava na debochada Akira S & As Garotas que Erraram sob o
nome de Pedreira (Akira S era José Akira Tsumimoto e quando, depois
de dois LPs gravados pelo Baratos Afins em meados da década, Ana Ruth
e Corina foram embora, a banda acabou por falta de garotas que erras-
sem). Outro crítico, José Augusto Chance Lemos, também era dublê de
produtor. Foi ele, por exemplo, quem produziu em 1988 o primeiro e único
disco de um grupo industrialista sorocabano, o Vzyadoq Moe. O LP “O
ápice”, lançado pelo selo independente Wop Bop, era um esquisitíssimo
encontro de Augusto dos Anjos com Friedrich Nietzsche, de sambão (“Não
há morte”) com fanfarras eletrônicas (“Junto ao céu “).
Fora da Via Dutra, a maior movimentação estava em Brasília. Lá,
as bandas das divisões de base se beneficiavam do espírito de equipe, da
relativa homogeneidade estética e de muitos lugares para tocar. No co-
meço da década serviam de palco para o nascente “rock de Brasília” o
teatro da Escola Parque, o auditório do Colégio La Salle, o ginásio do
Minas-Brasília Tênis Clube, o Centro Comercial Gilberto Salomão e ba-
res como o Cave e o Rola Pedras. Nem todos eram bem-vindos nesses
locais. Como, por exemplo, Paulo Cascão, líder da banda punk Detrito
Federal. Entretanto, o DF conseguiu conviver com grupos menos radicais
— o Finis Africae, o Scola de Scândalos e o Elite Sofisticada — na coletã-

188 Arthur Dapieve


nea “Rumores”, produção do selo independente Sebo do Disco. Mais
tarde, em 1987, o Detrito Federal gravaria um LP, “Vítimas do milagre”,
por uma multi, a PolyGram, e com produção de um titã, Charles Gavin.
Na capa do disco, a logomarca do DF: um sujeito lendo jornal sentado
com as calças arriadas na “taça” do Senado Federal. Público e privada.
Pouco depois de “Rumores”, em 1986, o Finis Africae gravou um
mimi-l P em 45 rpm pelo mesmo Sebo do Disco. Como as grandes gravado-
ras estavam doidinhas atrás da “próxima sensação de Brasília”, capaz de
seguir os passos de Legião Urbana, Plebe Rude e Capital Inicial, um ano
depois Eduardo de Moraes (voz), José Flores (guitarra), Neto Pavanelli
(baixo e teclados) e Ronaldo Caldas (bateria)já estavam contratados pela
EMI-Odeon, que vendeu 60 mil cópias do LP “Armadilha”. O quarteto
fazia a linha do romantismo melancólico — dark, como se dizia na época
— em músicas como “Van Gogh”, “Deus ateu”, “Máquinas” e “Mentiras”.
Formado em março de 1984, o Scola de Scândalos tirava um som
parecido. Dele faziam parte, entre outros, Marielle do Roccio (voz) e
Bernardo Mueller (voz, irmão do baixista André X Mueller, do Plebe
Rude), ambos curitibanos. Formado um pouco depois, em abril de 1985,
o Arte no Escuro era outro a explorar as cavernas da alma. Nele cantava
Luiz Antônio Alves, pois é, o Lui. Em fevereiro de 1986, quase simulta-
neamente, Lui foi para o Rio atrás de uma paixão (Renato Russo) e Ma-
rielle brigou com o resto do Scola. Assim, o Arte no Escuro ganhou uma
vocalista e um diferencial no rock brasiliense.
Afastado dessas relações incestuosas, o Obina Shok preferiu pegar
o sol da juju music. O octeto incluía um senegalês (o tecladista Jean Pierre
Senghor, neto do ex-presidente Leopold Senghor), um gabonês (o guitar-
rista Roger Kedy) e um surinamês (o baterista Winston Lackin). O ritmo
era delicioso, leve e cristalino, como atesta o primeiro LP, “Obina Shok”
(86), da insinuante “Lambarine”. A sedução exercida por aqueles estra-
nhos no ninho rock-politizado da capital federal foi tamanha e tão ime-
diata que Gilberto Gil já dava o ar de sua graça nesse auspicioso disco de
estréia. Infelizmente, o grupo meio que se reformulou no caminho para o
segundo LP, “Sallé”, lançado um ano e meio depois. Virou um sexteto
— incluindo a filha de Gilberto, Nara Gil — e, pior, muito pior, agregou
uma trinca de metais, que o transformou num frankenstein, parte King
Sunny Adé, parte Banda Black Rio e parte Spyro Gyra. Afrofunkfusion.
Em Porto Alegre, a barra era mais pesada. As duas principais ban-
das da “terceirona” local, os Replicantes e o De Falla, levavam o punk
até as últimas consequências para chocar a conservadora sociedade gaú-

Brasileiro dos Anos 80 189


BRock — O Rock
cha. Vander Wildner e Cláudio Heinz (vozes e guitarras), Herón Heinz
(baixo) e Carlos Gerbase (bateria), ou seja, Os Replicantes, firmaram um
culto em Porto Alegre colocando duas músicas, “Nicotina” e “Princípio
do nada”, na programação da Rádio Ipanema FM, a Fluminense de bom-
bachas, nos idos de 1984. No ano seguinte, dividiram o pau-de-sebo “Rock
grande do sul” com De Falla, TNT, Garotos da Rua e Engenheiros do
Hawaii. Suas duas faixas no disco eram “Surfista calhorda” e “A verda-
deira corrida espacial”. A boa receptividade à primeira abriu caminho para
um LP, “O futuro é vórtex “ (86). A censurada “Adúltera” (dos singelos
versos “você, mulher solteira, só pensa em se casar/ Ter um pênis só pra
si e constituir um lar/ De dia lava louça e de noite quer trepar/ Mas seu
homem está cansado de tanto trabalhar”) puxou o segundo LP, “Histó-
rias de sexo e violência”, em 87. O título dizia tudo.
Os Replicantes já tinham um nome a zelar e o De Falla ainda se cha-
mava Fluxo em meados de 84. O vocalista e guitarrista Edu K e a bate-
rista Biba Meira só foram se assumir como De Falla em agosto do ano
seguinte. Eles gravaram “Você me disse” e “Instinto sexual” para “Rock
grande do sul”, quase se separaram e, com Castor Daudt na outra gui-
tarra e Flávio Santos no baixo, chegaram ao primeiro LP em 87. Com Edu
K usando peruca e maiô para cantar músicas chamadas “Autista” e “So-
domia”, logo os shows do De Falla se tornaram um must fora de Porto
Alegre. No Rio, por exemplo, o grupo fez apresentações memoráveis no
Crepúsculo de Cubatão. Pouco a pouco, entretanto, o punk escrachado
em português cedia espaço ao hardcore em inglês. Seu segundo disco, “It's
fuckin borin to death” (88), flagrava essa metamorfose. Naturalmente, o
tempo transformou a transgressão em precária normalidade. E nem a capa
do terceiro LP — um colagem de fotos pornô — resgataria o choque dos
primórdios.
Fora Replicantes, De Falla e outras bandas de inspiração punk, a cena
porto-alegrense tinha muito rhythm 'nº blues (Garotos da Rua, de “Não
é você”) e muito rock “nº roll básico (TNT, de “Estou na mão”), sem no
entanto, um mínimo de qualidade. Assim como os demais participantes
de “Rock grande do sul”, Garotos da Rua e TNT tiveram LPs lançados
pelo selo Plug, da RCA, também participando do seu festival pau-de-sebo,
realizado entre 4 e 8 de novembro de 1987, com três grupos se apresen-
tando no horário alternativo do Canecão por noite. Em microshows de,
em média, cinco músicas, esses gaúchos tiveram seus 30 minutos de fama
nacional. E nem precisavam de mais. Na verdade, bastava-lhes a fama
regional, sustentada por shows no auditório Araújo Vianna — cinco mil

190 Arthur Dapieve


lugares ao ar livre — e no bar Rockett 88 e pela agitação promovida pelo
Vórtex, misto de selo, espaço cultural, estúdio de ensaios, bar e loja que
colocava no mercado local fitas de Cascavelletes e Júlio Reny & A Ban-
da Expresso do Oriente, entre muitos outros.
Foi todo esse povo, cantando rock em português, que viabilizou o
BRock, deu-lhe vida, qualidade e credibilidade. Contudo, no universo
paralelo do heavy metal, tramava-se o “fim” do rock brasileiro dos anos
80. Uma banda como a paraense Stress, fazendo heavy metal na língua
nativa, estava fadada a se tornar um celacanto. Não que letras em inglês
fossem privilégio de headbangers. O quarteto tecno-santista Harry, por
exemplo. Seu trabalho, sombrio, marcial, baseado em sintetizadores, se
expressava em inglês primeiro por opção estética e depois por almejar o
mercado externo. Seu LP de 1988, o bestificante “Fairy tales”, prometia
o mundo. Não passou da promessa. Mas foi uma experiência interessan-
tíssima, marcante.
Seis anos antes, em 1982, os irmãos Carlos (voz e guitarra) e Cláu-
dio (baixo) Lopes haviam formado o primeiro grupo de speed/thrash ca-
rioca, o Dorsal Atlântica. A princípio, os Lopes gritavam “Antes do fim”
(86) e “Dividir e conquistar” (88). Mas logo saía a versão em inglês des-
te último disco, “Divide and conquer”. Daí para a frente, o Dorsal abra-
çou definitivamente a língua de William Shakespeare e de Dave Mustaine.
Marco: a ópera-metal “Searching for the light” (89), ambientada num Rio
de Janeiro futurista e totalitário, de boa performance no exterior. Nin-
guém, entretanto, faria mais sucesso no resto do planeta do que o grupo
de outros dois irmãos, mineiros, Max (voz e guitarra) e Igor (bateria)
Cavalera, o Sepultura.
Desde a fundação do grupo, em 1984, os Cavalera sempre sentiram
que a saída para sua música era mesmo o aeroporto. Acabaram quase tão
populares lá fora quanto Tom Jobim. Só que, em vez de refinamento
melódico-harmônico, seu passaporte foi uma porradaria dos infernos, riffs
ensurdecedores, letras em inglês inaudíveis, cuspidas, arrotadas. Seus discos
— “Morbid visions” (86), “Schizophrenia” (87), “Beneath the remains”
(89), “Chaos A.D.” (93) — desencadearam um culto tão violento, cele-
brado em incessantes excursões, lotadas por hordas de fãs e paparicadas
pela crítica especializada, que o Sepultura foi morar em Phoenix, Arizona.
O artista tem que ir aonde seu povo está.

191
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80
14.
18: DE JUNHO DE 1988

Há alguma coisa estranha no ar deste estádio e não é o cheirinho-


da-loló.
O Legião Urbana não se apresenta aqui em Brasília desde dezembro
de 1986 porque um tumulto ocorrido durante show no Ginásio de Espor-
tes deixou uma menina morta. Agora, com o grupo consagrado nacional-
mente, a expectativa é que o concerto no Estádio Mané Garrinha marque
o feliz reencontro da capital federal com seus filhos pródigos, Renato Russo,
Dado Villa-Lobos, Renato Rocha e Marcelo Bonfá.
Nem todos são tão otimistas.
— Estamos aqui nessa cidade horrível. Divirta-se... Enquanto pode
— avisa o guitarrista Dado, meio brincando meio falando sério, no lobby
do hotel St. Paul, na manhã ensolarada deste sábado.
De tarde, a passagem de som no estádio começa a materializar o
pressentimento de Dado. O grupo e a equipe técnica têm de entrar e sair
de lá escondidos no fundo de Kombis, para evitar o assédio estranhamente
agressivo da multidão que já se forma.
Nem isso tira o bom humor de um sonolento Renato Russo.
— Parece o Bon Jovi! — delicia-se o vocalista diante da dimensão da
coisa. Até aquela hora, mais de 35 mil ingressos já haviam sido vendidos.
De noite, a chegada ao Mané Garrincha se dá sob uma barra ainda
mais pesada que a da tarde. Filas gigantescas seperteiam em torno do
estádio. Os carros que chegam são recebidos aos pontapés e cusparadas.
Depois de vender um total de 41 mil ingressos, a produção se vê forçada
a abrir os portões para tentar evitar um tumulto ainda maior.
Ninguém sabe quantas pessoas estão na platéia.
Um pouco por isso, um pouco pelo mau hábito, um pouco pela ne-
cessidade do diabético Dado tomar uma injeção de insulina, o início do
show atrasa. Nada melhor para piorar a situação.
Previstos para as 21h30m, os primeiros e estremecedores acordes de
“Que país é este” só se fazem ouvir mais de uma hora depois, às 22h35m.
A multidão ruge de contentamento. A banda emenda com “Eu sei” e
“Quase sem querer”. Parece estar tudo sob controle. Se não estivesse, a

192 Arthur Dapieve


vaca iria para o brejo rapidinho. Até porque a separação entre palco e
gramado era apenas simbólica. Algumas cercas de metal, que qualquer
débil mental poderia pular sem esforço.
É o que acontece no meio da quarta música, “Conexão amazônica”,
dedicada por Renato à “capital brasileira do consumo de drogas”.
Renato mal acaba de contar a historinha de um certo Clube da Crian-
ça Junkie, uma escadinha de vícios que, no final, deixa um morto e outro
“assim” (e Renato imita um desequilibrado). A digressão cai na “Satis-
faction” velha guerra. E eis que um doente mental manco, perfeita en-
carnação do Clube da Criança Junkie, sobe ao palco sabe Deus como, pula
nas costas do vocalista, agarra sua garganta, golpeia-o com um canudo
de papel. O instinto de sobrevivência faz Renato bater com o microfone
na cabeça do invasor, extraindo dela uns ruídos ocos. Seria cômico. Mas
estava perto de ser trágico. Eta cidadezinha esquisita.
A segurança — encabeçada pelo tiete conhecido como Sérgio KGB
— arrasta o doido para os bastidores. Mas nada pode fazer contra a chu-
va de objetos e bombinhas tipo cabeça-de-negro que começa a cair sobre
o palco. Nem “Faroeste caboclo”, “Tempo perdido” e “Será”, cada uma
mais bonita que a outra, conseguem acalmar o público. À essa altura,
Renato já está pra lá de nervoso e tenta apagar o incêndio com gasolina.
— Isso é coisa de garoto que não consegue arrumar namorada e fica
se masturbando no banheiro. É legal, tá todo mundo se matando aqui na
frente. É por isso que a gente só volta aqui de ano e meio em ano e meio.
Não vão atingir a maioridade ? — apela.
Nada adianta. E Renato percebe que se enganou à tarde. Que Bon
Jovi que nada, a noite era de Rolling Stones. Em Altamont. E cita “Gimme
shelter” no meio da confusão:
— Ob, a storm is threat'ning my very life today (“Oh, hoje uma tem-
pestade ameaça minha própria vida”).
Fim de papo. Como a baderna continua, a banda sai do palco às 23h
40m. É a senha para o apocalipse. O pau come no gramado. À polícia entra
em ação. Cavalarianos irrompem em campo. Cães policiais são atiçados
contra a multidão. Mais bombas explodem. A lona usada para cobrir o
gramado pega fogo. Pessoas são pisoteadas. Um salve-se quem puder.
Nos camarins, o baterista Marcelo e o baixista Rocha — este nor-
malmente esfingético — choram.
Sair dali é outra operação de guerra. No caminho de volta ao hotel,
dá para ver que o tumulto se espalha pela cidade e chega até à Rodoviá-
ria. No lobby do St. Paul, o boato mais ameaçador diz que a turba avan-

80 193
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
ça até ali, para ajustar contas com seus (ex)ídolos. Pelo sim pelo não, todos
se refugiam em seus quartos. Mas naturalmente ninguém consegue dor-
mir. Pouco a pouco, então, uma reunião informal toma forma num dos
quartos. Primeiro, chega o staffdaEMI-Odeon. Depois, alguns jornalis-
tas. Por fim, Renato Russo. A mil.
Ele anda para lá:
— Parecia Altamont e eu parecia o Mick Jagger cantando “Gimme
shelter”!
Ele anda para cá:
— Essa cidade deixa as pessoas malucas. Tinha um boyzinho que pe-
gava o carro e ficava dando voltas em torno de uma mastro em frente a
um bar no Gilberto Salomão. Um dia, ele perdeu a direção e invadiu o
bar. Uma merda.
Ele anda para lá:
— Aconteceram coisas terríveis aqui em Brasília, só que ninguém sabe.
Muita gente morreu na construção da cidade. Mas, para ocultar os cadá-
veres, os candangos que morriam eram misturados com concreto. Deve
haver candango morto aqui!
Enquanto isso, lá embaixo, no estacionamento de terra vermelha
barida, um boyzinho em seu carro brinca de dar cavalos-de-pau.

194 Arthur Dapieve


1Sg
OS ANOS 90 COMEÇARAM A 7 DE JULHO

E por que não a 1º de janeiro? Porque o espírito de uma década não


obedece ao calendário, seus sinais e símbolos podem se esparramar um
pouco pra lá, um pouco pra cá. Com a história do BRock não foi dife-
rente. Seis meses e sete dias depois da virada oficial dos anos 80 para os
anos 90 morreu Cazuza, seu grande mito. Não há mito sem carisma. Mas
também não há mito feito apenas de carisma. Mesmo um mito precisa
apresentar serviço, algumas características objetivas que justifiquem sua
mitificação, que o sustentem historicamente. E Cazuza reunia todos os
principais traços do roqueiro brasileiro da década de 80, os traços que
definiriam o próprio movimento — embora, passados cinco anos da morte
de Cazuza, nem todos os seus membros se reconheçam como membros
de um movimento, aqui chamado ufanisticamente de BRock.
O que era então esse tal de BRock personificado em Agenor de Mi-
randa Araújo Neto? Era o reflexo retardado no Brasil menos da música
do que da atitude do movimento punk anglo-americano: do-it-yourself,
faça-você-mesmo, ainda que não saiba tocar, ainda que não saiba can-
tar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasileiro, curado da
purple-haze psicodélica-progressiva dos anos 70, livre de letras metafóri-
cas e do instrumental state-of-the-art, falando em português claro de coi-
sas comuns ao pessoal de sua própria geração: amor, ética, sexo, políti-
ca, polaróides urbanos, dores de crescimento e maturação — mensagens
transmitidas pelas brechas do processo de redemocratização. “Era um rock
mais viril, de letras mais contundentes”, resume Edgard Scandurra, um
dos principais agentes dessa história toda.
Esse BRock era música feita por jovens homens brancos de classe
média alta para seus pares. Exceções que confirmam a regra de admissão
neste Clube do Bolinha Branco e Remediado: Paula Toller, mulher; e
Clemente, negro e proletário. Os outros eram filhos de empresários (como
Cazuza), políticos (Roberto Frejat, Sérgio Britto), militares (Lulu Santos,
Herbert Vianna, Paulo Ricardo Medeiros), funcionários públicos (Rena-
to Russo), diplomatas (Bi Ribeiro), professores universitários (Arnaldo
Antunes, André Mueller). A elite sofisticada. Bem-informada sobre os ru-

dos Anos 80 195


BRock — O Rock Brasileiro
mos do rock lá fora e inconformada com os descaminhos da música aqui
dentro. Sem conseguir se reconhecer nem em Gil nem em Caetano, nem
em Chico e nem mesmo na “roqueira” Rita Lee. “Era um corte proposi-
tal em relação à MPB, era a valorização da juventude nos anos 80”, diz
Renato Russo. i
Os verbos estão no passado, mas os sujeitos não. Assim, como os ex-
Vímana Lulu, Ritchie e Lobão, todas as bandas de Primeira Divisão es-
tão em atividade (aí incluídas Blitz e RPM, reanimadas em algum ponto
da primeira metade da década de 90). E das oito da Segundona, sete con-
tinuam na luta (a exceção é o Plebe Rude). Com o tempo, mesmo sem dei-
xarem de ser fundamentalmente roqueiras, todas foram sendo assimila-
das pela e como música brasileira. Eis aí outra conquista do BRock: ter
tirado o gênero mulatinho americano do gueto e obtido sua naturaliza-
ção. À essa altura do campeonato, com o Legião Urbana, por exemplo,
já contando treze anos de carreira profissional, a discussão sobre se o que
o grupo faz é ou não música brasileira foi historicamente ultrapassada.
“O Legião hoje virou MPB”, constata o mesmo Renato Russo que no
começo dos anos 80 pregava um corte epistemológico na linha evolutiva
da música feita no país. À conquista do BRock acabou beneficiando a
posteridade. Hoje não passa pela cabeça de ninguém discutir se os minei-
ros do Sepultura — que cantam thrash metal em inglês e moram em Phoe-
nix, Arizona, EUA — fazem música ou ao menos rock brasileiro. A ques-
tão simplesmente não se coloca.
A trajetória pós-1990 das principais bandas de BRock registra a mão
dupla dessa assimilação: se a MPB passou a tolerar a existência de um rock
genuinamente brasileiro, este, por sua vez, passou a incorporar quanti-
dades cada vez maiores de informações vindas de sua antiga inimiga figa-
dal. Veja-se, para início de conversa, o caso do Barão Vermelho. Desde
que a década virou e Cazuza morreu, não necessariamente nesta ordem,
o grupo gravou mais dois álbuns, “Supermercados da vida” (1992) e
“Carne crua” (1994). Fascinado pelo acústico, o primeiro destacou fai-
xas como “Pedra flor e espinho” e “Flores do mal”, mistura de Charles
Baudelaire e Augusto dos Anjos embelezada pela sanfona de Sivuca. O
segundo, ao contrário, baniu os violões e voltou à eletricidade, moldura
para parcerias de Frejat com Raul Seixas (no samba-nordestino “Pergunte
ao tio José”) e com Luiz Melodia (no rock-aguerrido “Não me fuja pelas
mãos”). Cazuza teve um disco póstumo, “Por aí...”, lançado em 1991.
Entre as 11 faixas, “Não há perdão para o chato” (parceria sua com o
casal Arnaldo Antunes e Zaba Moreau) e versões para “Cavalos calados”

196 Arthur Dapieve


(Raul Seixas), “Camila, Camila” (Nenhum de Nós) e “Summertime” (Ger-
shwin/Heyward), cacos de um universo em contínua expansão.
A incursão dos Paralamas de Sucesso fora dos limites do BRock foi
ainda mais profunda, facilitada pelo velho flerte com ritmos afro-cari-
benhos. O trio gravou três álbuns desde a virada 80/90: “Os grãos” (1991),
“Severino” (1994) e o ao vivo “Vamo batê lata” (1995, que incluiu um
CD com quatro músicas inéditas de bônus, entre elas a polêmica “Luís
Inácio/300 picaretas”), além do primeiro disco solo de Herbert Vianna,
“E batumaré” (1992). Foram, pela ordem cronológica, um desencontro,
uma pausa introspectiva, uma reunião e uma celebração. Sendo que o ou-
vinte desavisado passou batido por essas tensões internas. Em “Os grãos”,
Herbert chegou a fazer questão de levar um crédito de co-produção —
sob o pseudônimo de Teabag V., ao lado de Liminha e de Carlos Savalla
— pela trabalheira que o alheamento de Bi e de Barone lhe deu. No en-
tanto, o disco soou inteirinho, no portunhol de “Trac trac” (versão ori-
ginal do argentino Fito Paez), na timbalada de “Carro velho” ou na se-
ção de cordas de “Vai valer”. Por oposição, em seu disco caseiro Herbert
burilou o minimalismo de “The scientist writes a letter” e “A primeira
neve”. O trio, então, deu uma cambalhota e se reencontrou em “Severino”,
trabalho ousado e francamente anticomercial — com exceção da balada
“O amor dorme”, mesmo assim meio esquisita. Segurança para ousar, Os
Paralamas extraíram de sua mui bem-sucedida carreira paralela na Amé-
rica Latina — sobretudo na Argentina — e da admiração do ex-guitar-
rista do Queen, Brian May, com quem fizeram uma desafiadora e instru-
tiva excursão pela Europa.
Já os Titãs voltaram nos próprios passos. Eles nunca admitiram a
existência de uma oposição BRock x MPB e, em seu último disco da déca-
da de 80, “Ô blésq blom”, haviam se reaberto ao Brasil, depois da claus-
trofobia de “Cabeça dinossauro” e “Jesus não tem dentes no país dos ban-
guelas”. Em “Tudo ao mesmo tempo agora”, de 1991, eles brincaram com
uma escatologia quase pueril em versos como “amor, eu quero te ver ca-
gar” (“Isso para mim é perfume”) ou “sata de mim como um peido” (“Saia
de mim”). Esse choque fisiológico — exposto Já na capa, uma montagem
com as transparências de anatomia da Enciclopédia Barsa — vinha cerca-
do por guitarras viscerais, hardcore. Arnaldo Antunes saiu da banda no
final de 1992, partindo para uma carreira solo que encontraria sua primeira
expressão fonográfica no disco-livro-vídeo-show “Nomes” (1994), um pro-
jeto multimídia que sintetizaria seu trabalho como músico e como pocta,
e em “Ninguém” (1995). Os sete titãs restantes não chegaram a acusar O

80 197
BRock — O Rock Brasileiro dos Anos
golpe. Talvez porque não houvesse golpe algum a acusar. Em “Titanoma-
quia”, de 1993, eles foram produzidos pelo americano Jack Endino, de
Seattle, que chegara a trabalhar com o Nirvana. Nas suas mãos, os Titãs
se deixaram transformar numa banda de rock pesado, mais uma, embora
as letras mantivessem as preocupações de praxe, expressas em títulos como
“Taxidermia”, “Nem sempre se pode ser deus” e “Será que é isso o que eu
necessito?”. Eles logo perceberam do que necessitavam para respirar: de
um disco solo para cada um, sem prejuízo da unidade e da sobrevivência
do grupo. Lançaram bons trabalhos Paulo Miklos, Nando Reis e, com a
banda alternativa Kleiderman, Sérgio Britto e Branco Mello. Tony Bellotto
preferiu se exercitar no romance policial, com “Bellini e a esfinge” (1995).
As outras duas bandas mais importantes de São Paulo, Ultraje a Ri-
gor e RPM, se mantiveram na ativa graças à persistência e ao talento de
seus líderes, Roger Rocha Moreira e Paulo Ricardo Medeiros, respecti-
vamente. À alta rotatividade das funções de guitarrista e de baixista do
Ultraje acabou contaminando a de baterista, tirando da banda o sócio-
fundador Leospa. Roger se cercou de entusiasmados músicos mais jovens
e tocou a bola adiante em dois discos, a coletânea “O mundo encantado
do Ultraje a Rigor” (1992) e O Ui se O primeiro apresentava uma
faixa inédita, “Vamos virar japonês”, que contava com a participação da
dupla sertaneja Tonico & Tinoco, e meia dúzia de remixadas. O segun-
do, um hilariante sarro no thrash metal cantado em inglês, “Fuck the
world”, e uma alfinetada no esquemão das gravadoras, “Política”. Tudo
simples e divertido como sempre. E, mesmo fora das rádios, o Ultraje
continuou fazendo a vida em shows pelo interior do país. “Acho que se
eu conseguir durar mais uns dez anos eu vou ser um clássico”, se auto-
ironiza Roger. Seu bom humor, aliás, facilitou em muito a aceitação de
seu rock “nº roll como genuinamente brasileiro.
O sisudo RPM entrou a década tecnicamente morto. Foi a apoteótica
apresentação de Paulo Ricardo no Rock in Rio IH, no Maracanã, na ma-
drugada chuvosa de 26 para 27 de janeiro de 1991, que ressuscitou o
grupo. Às vésperas de lançar um (bom) segundo disco solo, “Psico trópi-
co”, o vocalista-baixista sentiu ali que a mística do RPM ainda não se apa-
gara. Como outro ex-membro do grupo, o guitarrista Fernando Deluqui,
estava por perto, como seu acompanhante, Paulo Ricardo não titubeou.
Retomou os trabalhos como Paulo Ricardo & RPM e foi à luta. Antes
do final do ano gravou uma versão para “Gitã”, de Raul Seixas (antes,
em “Psico trópico”, registrara “How could | know”, do pai do BRock).
Mas no caminho de volta havia uma troca de gravadora — Sony por

198 Arthur Dapieve


PolyGram — e só em 1993 saiu um novo álbum do grupo, “RPM”. Nele,
o darkismo de outrora foi substituído por um peso hendrix-zeppiano,
como na orientalizada “Gênese”.
Quem mais lançou discos na década de 90 foi quem mais vendeu discos
na década de 80: o Legião Urbana. Em 1991, veio o difícil “V”, um desses
trabalhos que o tempo ajuda a melhorar. Ele abria com “Love song”, na
verdade uma cantiga de amor portuguesa do século XII, e fechava com
“Come share my life”, do folclore americano. No meio, entre outras fai-
xas, tinha uma com mais de 11 minutos de duração (“Metal contra as
nuvens”): a, nas palavras de Renato Russo, “melhor música sobre drogas
em português” (“A montanha mágica”); e um trecho do célebre canône
de Pachelbel (na introdução de “O teatro dos vampiros”). No ano seguin-
te, saiu um álbum duplo ao vivo, “Música p/ acampamentos”, que coleta-
va faixas entre 1984 (e não 1985, conforme desinformava a contracapa)
e 1992: além de sucessos como “Faroeste caboclo” e “Ainda é cedo” ,a rara
“A canção do senhor da guerra” e covers para “Gimme shelter”, dos Rolling
Stones, e “On the way home”, de Neil Young. Em 1993, surgiu o fácil “O
descobrimento do Brasil”, fácil no sentido de acessível, de pop, de efeito
imediato. Mas sem “facilidades”. O seu grande hit foi a amarga “Perfei-
ção”. “Vamos celebrar a estupidez humana”, este era apenas o primeiro
verso... Nos dois discos de estúdio, um amadurecimento que levava a le-
tras mais e mais elaboradas e a um instrumental mais e mais seguro (segu-
ro o bastante para trocar as guitarradas furiosas dos primórdios por bucó-
licos bandolins). No conjunto, uma obra profundamente brasileira e eru-
ditamente cosmopolita. Essa aparente contradição se tornaria ainda mais
saliente no álbum solo que Renato Russo lançou em 1994: parte dos royalties
da venda foram doados à Ação da Cidadania Contra a Miséria e pela Vida,
coordenada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, o encarte trazia
uma lista de entidades gays, o título era “The Stonewall celebration concert”
e o repertório, composto somente por covers em inglês — de “Say it isn't
so”, de Irving Berlin, a “Cherish”, de Madonna e Pat Leonard.
Na década de 90, os prolíficos Engenheiros do Hawaii também lan-
caram três discos, dois de estúdio, “Várias variáveis” (1991) e “Gessinger,
Licks e Maltz” (1992), e um ao vivo, “Filmes de guerra, canções de amor”
(1993). Os dois de estúdio mal se diferenciavam entre si e, pior, repetiam
truques poéticos e melódicos dos álbuns dos anos 80. O ao vivo, entretan-
to, reabriu os horizontes da banda. Duas músicas inéditas, “Realidade vir-
tual” e “Às vezes nunca”, foram registradas em estúdio. As outras dez —
inclusive duas outras inéditas, “Mapas do acaso” e “Quanto vale a vida?”

dos Anos 80 199


BRock — O Rock Brasileiro
— foram gravadas na Sala Cecília Meirelles, no Rio de Janeiro, com a parti-
cipação da Orquestra Sinfônica Brasileira sob a regência de Wagner Tiso.
A opção por releituras acústicas deu um novo alento aos velhos sucessos
(“ Além dos outdoors”, “Alívio imediato”) e revelou belezas insuspeitadas
no material mais novo (“ Ando só”, “Muros & grades”). No final de 93, o
guitarrista Augusto Licks saiu da banda em litígio, tentando até registrar
como dele o nome Engenheiros do Hawaii. Rendeu algum bate-boca entre
advogados, não mais que isso. Ânimos serenados, em fevereiro de 1994, o
vocalista-baixista Humberto Gessinger convocou um velho amigo de Colégio
Anchieta, Ricardo Horn, para recompor o trio ao lado do baterista Carlos
Maltz. E Fernando Deluqui, do RPM, também passou a dar suas guitarradas
junto aos gaúchos. Em 1995, o grupo, agora um quinteto, com Horn, Deluqui
e Paolo Casarim (teclados / gaita), lançou “Simples de coração”.
Dois ex-membros do Vímana e BRoqueiros de primeira hora, Lulu
Santos e Lobão, foram mais fundo do que qualquer grupo na mestiçagem
com outras formas de música brasileira. Lulu lançou dois discos comple-
tamente distintos, o infeliz “Mondo cane” (1992) e o feliz “Assim cami-
nha a humanidade” (1994). O primeiro refletia dolorosamente sua sepa-
ração (temporária) da mulher Scarlet Moon. Bom retrato disso era a bo-
nita balada “Apenas mais uma de amor” (“Eu gosto tanto de você! Que
até prefiro esconder/ Deixo assim ficar/ Subentendido”). O segundo namo-
rava a dance music sem se divorciar do rock e de outros ritmos nativos.
Excelente exemplo desse total crossover: “Hey hey, my my (Into the black)”,
da fase ferrugem-nunca-dorme de Neil Young, tocada como samba-bos-
sa. O grande achado de Lulu, entretanto, foi o álbum “Eu e Memê, Memê
e eu” (1995), parceria com o DJ e produtor Marcelo Mansur, o Memê.
Alguns remixes de velhos sucessos, alguns covers (para “Se você pensa”,
de Roberto e Erasmo, por exemplo) e algumas faixas inéditas logo vende-
ram 500 mil cópias do CD. Lobão, por seu turno, gravou apenas um disco
depois de 1990, o conturbado “O inferno é fogo” (1991). Ficou sem gra-
vadora, radicalizou sua crítica ao rock *n” roll, passou a se apresentar so-
zinho ao violão (no show “Brasilis erectus”) e a escrever crônicas no jor-
nal “O Dia”. Só voltou ao disco em 1995, com “Nostalgia da Moderni-
dade”, quase MPB. Fora os grandes protagonistas, uma filha do BRock tam-
bém se criou nos anos 90: Fernanda Abreu, ex-vocalista da Blitz. Cantora
monocórdia — mas craque no marketing pessoal e paparicada por ami-
gos talentosos —, ela transformou três discos chatos, “SLA radical dance
disco club” (1990), “SLA — Be sample” (1992) e “Da lata” (1995) em ma-
nifestos pela reabilitação da disco music. Bem ou mal, a herdeira da Blitz.

200 Arthur Dapieve


Outro aspecto importante a considerar na trajetória do BRock é seu
relacionamento com a conjuntura político-econômica brasileira. Ponto
pacífico: ele não teria sido possível sem o processo de redemocratização
conduzido, aos trancos e barrancos, pelo governos dos generais Ernesto
Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985) e exigido nas ruas pelas
multidões que empolgaram a campanha das Diretas-Já (1984). Teria sido
impossível fazer um rock (in)decente, cantado em português, sob violen-
ta censura. Por outro lado, o uso forçado do cachimbo deixara a boca da
MPB torta. Quando a vigilância foi abrandada, ele teve dificuldades de
se livrar de seus antigos artifícios de sobrevivência — linguagem rebus-
cada, metáforas impenetráveis, primado do subentendido — e falar olhan-
do nos olhos de novos públicos, sobretudo o jovem urbano. Nesse senti-
do, a MPB desempenhou aqui o papel de vilão que lá fora pertencera ao
rock progressivo. “A MPB não supria as necessidades da minha geração,
a geração da Abertura”, confirma Herbert Vianna, filho de militar. “É
claro que isso era um fenômeno classe média.”
Sendo um fenômeno classe média, o BRock precisava de uma ponte
para alcançar o povão. Essa ponte surgiu na figura de um plano econô-
mico, o Cruzado, anunciado pelo presidente civil José Sarney (1985-1990)
numa reunião ministerial em 28 de fevereiro de 1986. Tal plano preten-
dia brecar a inflação, que fechara o ano anterior em 233%. Suas princi-
pais medidas — congelamento geral dos preços, gatilho salarial caso a in-
flação atingisse 20%, reajuste de 16% do salário mínimo, abono geral de
8%, deflação das dívidas contraídas em cruzeiros — abriram as portas
da sociedade de consumo a cerca de 20 milhões de brasileiros que sobre-
viviam com um salário-mínimo ou menos. Essa gente saiu comprando,
comprando e comprando, inclusive discos. Foi um ano de grandes ven-
dagens: “Selvagem?”, dos Paralamas, logo atingiu a marca de 300 mil
cópias; “Dois”, do Legião Urbana, chegou às 800 mil; e, campeão dos
campeões, “Rádio Pirata — Ao vivo”, do RPM, comoveu mais de dois
milhões de consumidores. Naturalmente, na cola desses números as gra-
vadoras despejaram nas lojas dezenas de outras bandas. Nunca foi tão fácil.
O tempo se encarregaria de: primeiro, tirar OS produtos das pratelei-
ras, consagrar a cobrança de ágio e reavivar a inflação, ou seja, fazer des-
moronar o Plano Cruzado; e, segundo, separar o joio do trigo no BRock,
redimensionando o fenômeno. Assim como muita gente confundiu mui-
ta quantidade com muita qualidade, muita gente confundiu pouca quan-
tidade com pouca qualidade. Uns e outros se enganaram redondamente.
As principais bandas do movimento não eram melhores ou piores em

Brasileiro dos Anos 80 201


BRock — O Rock
função de suas vendas. Além disso, elas vendiam bem antes e venderiam
bem depois — apenas venderam estupidamente enquanto durou a eufo-
ria do Cruzado. De qualquer forma, o plano foi o pulo do gato na trans-
formação do rock num gênero realmente popular no Brasil.
Quando Fernando Collor assumiu a presidência, em 1990, houve uma
significativa mudança nas relações entre música e política. Com ele, su-
biram ao poder 35 milhões de eleitores conservadores, na maioria do in-
terior do país. Collor à frente, eles externaram seu apreço pela chorosa
música sertaneja de duplas como Leandro & Leonardo, Chitãozinho &
Xororó, Zezé di Camargo & Luciano. Concessionária de serviços públi-
cos, a mídia foi atrás. E, mais do que nunca, o BRock — urbano, de es-
querda, conjunturalmente pró-Lula — se tornou a oposição, o inimigo a
ser combatido. Ele foi sacado da mídia, substituído pelas duplas sertane-
jas. Os insossos Leandro & Leonardo chegaram a ter um programa em
horário nobre da Rede Globo. “O governo Collor tirou nossos espaços
na mídia”, diz Lulu Santos, pensando em vitrines fechadas, como o “Globo
de Ouro”.
Com a República de Alagoas, o BRock perdeu o espaço conquista-
do sobretudo a partir dos dez dias do primeiro Rock in Rio, entre 11 e
20 de janeiro de 1985. O sucesso do festival, que atraiu 1.380.000 espec-
tadores à Cidade do Rock, em Jacarepaguá, fez saltar aos olhos de indústria
& comércio uma fatia de mercado até então ignorada: a fatia jovem.
“Houve uma confluência de interesses entre criadores, público e mídia,
nem armação, nem coisa marginalizada”, reflete Arnaldo Antunes. Essa
confluência gerou outros festivais, o Alternativa Nativa, o Hollywood
Rock, cada um puxando para uma praia mais ou menos nacionalista. O
Rock in Rio foi importante, também, como um choque de profissionalismo
nas bandas brasileiras. “Depois do Rock in Rio, a agente se profissio-
nalizou na marra”, lembra Paula Toller. “Vi que tínhamos mesmo que
ter um séquito para resolver as coisas para a gente”. Como resultado dis-
so, a médio prazo as platéias dos grandes festivais mistos estariam vendo
bandas brasileiras fazendo melhores shows do que as bandas estrangei-
ras. À sedimentação da cultura jovem, do mercado fonográfico e da infra-
estrutura tecnológica facilitou a vida dos ciclos posteriores, aí incluídos
o sertanejo e o da música baiana. Entretanto, a própria natureza do rock
feito no Brasil mudou. E muito.
Delimitado o BRock como o rock brasileiro surgido nos anos 80, hoje
no discreto vigor da maturidade, quais as perspectivas para seu descendente
direto, o rock brasileiro dos anos 90? Algumas bandas, mesmo que nem

Arthur Dapieve
sempre assumam suas influências, cortam a bola levantada por Paralamas
e Titãs, entre outros. É o caso de Skank, Chico Science & Nação Zumbi,
Raimundos e Tubarões Voadores, que cantam em português e agregam
partículas rítmicas brasileiras a seus trabalhos. No entanto, a maioria das
novas bandas retrocedeu, em todos os sentidos. O principal passo atrás
foi reempossar o inglês como língua oficial do rock. A má digestão da tor-
rente de informações despejadas pela MTV — instalada no país desde 1990
— e o sonho de uma vitoriosa carreira no exterior — como as de Sepul-
tura e Viper — levaram grupos como Second Come, Anarchy Solid Sound,
Pin Ups, Beach Lizards, Dash e Killing Chainsaw, alguns deles bastante
interessantes, a renunciar à liberdade conquistada por Cazuza, Renato Rus-
so, Arnaldo Antunes & Cia, se conformando com o culto no gueto. (É
verdade, também, que é mais fácil disfarçar letras ruins em inglês do que
em português, assim como é mais fácil esconder indigência técnica atrás
de grandes amplificadores, mas isso já é outra história...).
O absurdo dessa opção-desculpa pelo inglês foi bem sintetizado pelo
Ultraje a Rigor em “Fuck the world” — cuja letra se resume a isso. “O
rock acertou por cantar em português e ir à luta e errou por começar a
acreditar que era grande coisa”, diagnostica Roger. “Não saio de casa para
ver uma banda cantando em inglês”, diz Paulo Ricardo, resumindo o
drama desse exílio auto-imposto e interno. “Alguém acha que o Okotô
um dia vai estourar?” Para piorar a situação, o fim da Fluminense FM —
transformada num mera repetidora da paulista Jovem Pan a partir de 1º
de outubro de 1994 — tirou, mais do que uma vitrine histórica, uma ban-
deira do rock brasileiro. O nosso rock retrocedeu. “Temos praticamente
que reconquistar tudo”, desanima-se Roger. “ Temos os mesmos entra-
ves do começo, os mesmos inimigos”, anima-se O nietzschiano Lobão. O
que não nos mata nos torna mais fortes.

dos Anos 80 203


BRock — O Rock Brasileiro
Renato Russo: com sua morte, o BRock perde não apenas sua mais potente voz,
mas também o seu mais potente cérebro.
Posfácio
RENATO RUSSO: O OUTRO FIM DA DÉCADA

Com a morte de Renato Russo, por complicações decorrentes da Aids,


na madrugada de 11 de outubro de 1996, a década de 80, a década que viu
nascer e de certa forma conteve o BRock se encerrou novamente, tal como
o fizera a 7 de julho de 1990. Parodiando o agridoce Woody Allen: Cazuza
morreu, Renato Russo também e ninguém está se sentindo muito bem.
Entretanto, já no prelo, uma segunda edição de um livro sobre o rock
brasileiro dos anos 80 não poderia nem ignorar a morte de um de seus três
maiores poetas-letristas — sendo os outros dois o também finado Cazuza
e o irrequieto ex-Titã Arnaldo Antunes — nem passar um atestado de opor-
tunismo reescrevendo uma linha sequer dessa história. Essa história, aliás,
é que, como história em eterno progresso, se reescreve diariamente, com
novos fatos, discos e shows de bandas e artistas BRoqueiros com certeza,
como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso e Lulu Santos, e de suas crias,
como Skank, Chico Science e Tantra.
A fim de não se sonegar do leitor uma morte tão importante e sen-
tida, portanto, optou-se por reproduzir aqui três textos que escrevi recen-
temente sobre Renato Russo e o Legião Urbana, tal e qual foram publi-
cados em “O Globo”, jornal no qual trabalho, textos com toda a emo-
ção, a imperfeição e a despretensão à posteridade que caracterizam o tra-
balho da imprensa diária.
O primeiro, “Chuvas e trovoadas”, foi publicado na minha coluna
sabática, menos de duas semanas antes da morte de Renato, comentando
o CD “A tempestade”, o oitavo do Legião Urbana. O segundo, “O cére-
bro mais potente do BRock”, foi publicado no dia seguinte ao de sua morte,
como parte de um caderno especial que “O Globo” lhe dedicou; é o mais
frio dos três textos dada a necessidade de localizar minimamente o leitor
do jornal na vida & obra de Renato. O terceiro, “Z ou Força sempre”, toi
publicado oito dias depois de sua morte, também na minha coluna; é o mais
emocionado deles, um acerto de contas com uma geração Coca-Cola.

Arthur Dapieve
Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1996

— O Rock Brasileiro dos Anos 80 205


BRock
CHUNMASETROVOADAS

Ao ouvir pela primeira vez “A tempestade”, novo CD do Legião


Urbana, fiquei em dúvida se o melhor lugar para a resenha seria a “Dis-
colândia” mesmo ou o “Prosa & Verso”. Até porque, pensei, já no for-
mato da capa, de papel, dupla, com o libreto com as letras e a ficha téc-
nica no meio, se sugeria que estávamos com um livro de poesia nos de-
dos. Depois, repetidas audições me mostraram que ele era um disco mes-
mo. E dos bons.
Ao menos desde “V?”, de 1991, os discos do Legião Urbana — Re-
nato Russo (voz), Dado Villa-Lobos (guitarra) e Marcelo Bonfá (bateria)
— à primeira audição parecem ser recitais de poesia ao quais se adicio-
nou um fundo musical. Com o tempo, entretanto, a gente vai perceben-
do a delicadeza do traçado instrumental, o apelo das melodias. Há pou-
quíssimos riffs de guitarra, por exemplo, ao menos há pouquíssimos riffs
de guitarra da escola Keith Richards. Os climas ficam mais para o etéreo
Durutti Column, do anoréxico Vini Reilly, guitarrista de Morrissey no
primeiro disco solo (“Viva hate”) do vocalista e letrista dos Smiths. Es-
tes, por sinal, continuam sendo um dos paralelos externos ao Legião Ur-
bana. Discutir a precedência do ovo ou da galinha a essa altura da história
do BRock soa ocioso. Até mesmo porque o tema dessa coluna é menos o
Legião Urbana — letra & música e mais Renato Russo —
poesia.
Assim como seus mais talentosos companheiros de ofício e geração
— Arnaldo Antunes e Cazuza —, Renato embaralha a fronteira entre os
letristas e os poetas. O faz de tal modo, com tamanha habilidade e pro-
fundidade, que hoje talvez sua obra faça por merecer mais exegetas do
que críticos de rock. Sua escrita se sofisticou e posteriormente tornou a
se simplificar desde 1978, quando ele pegou a longa estrada do rock “nº
roll via Aborto Elétrico; se sofisticou e tornou a se simplificar mas nunca
perdeu a densidade. Uma estrela que se expande e se contrai mas man-
tém a mesma massa.
Há quem diga que as mais recentes letras/poesias de Renato se pue-
rilizaram, confundindo sua falsa simplicidade formal e sua falsa simpli-
cidade temática com simploriedade. Mas escrever singelas canções de amor
é um velho projeto de quase dez anos. Numa entrevista publicada no
“Jornal do Brasil”, em 22 de setembro de 1987, quase um ano antes,
portanto, da célebre baderna no show no Estádio Mané Garrincha, em
Brasília, baderna que mudaria o rumo da carreira do Legião Urbana, ele

206 Arthur Dapieve


me dizia que acreditava no amor, mas que queria incluir a frase “eu te
amo” numa letra sem cair na banalidade, sem que as pessoas a conside-
rassem “uma letra dos Menudos”.
À areia escorreu pela ampulheta, Renato viu a multidão se voltando
contra ele, teve medo do poder messiânico do rock “n” roll, assumiu sua
condição de viciado em drogas e homossexual, e afinal teve a coragem
de botar a frase “eu te amo”, e variantes, em muitas e muitas canções.
Na verdade — independente do sexo, hetero ou homo, dos amantes —
ele constatou a mesma solidão do discurso do apaixonado constatada pelo
sociólogo francês Roland Barthes — outro homossexual — no livro “Frag-
mentos de um discurso amoroso”, oferecido em solidariedade a amantes
de todos os gêneros. À coincidência da opção sexual de Barthes e Renato
não é uma coincidência: o mundo moderno parece estar nos dizendo o
tempo todo que “amor é coisa de viado”. Não, não é mesmo. Não só.
Numa espécie de epígrafe a seu próprio livro, Barthes escrevia que
“o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Este discurso talvez
seja falado por milhares de pessoas (quem sabe?), mas não é sustentado
por ninguém; foi completamente abandonado pelas linguagens circun-
vizinhas; ou ignorado, depreciado, ironizado por elas, excluído não so-
mente do poder, mas também de seus mecanismos (ciências, conhecimen-
tos, artes)”. Esta também poderia ser a epígrafe do futuro “Renato Rus-
so: poesia completa”. A de “A tempestade” é igualmente significativa: “O
Brasil é uma/ República federativa/ Cheia de árvores/ E gente dizendo
adeus” (Oswald de Andrade).
No momento, depois de dois belíssimos discos solo, o anglófono “The
Stonewall celebration concert” e o italianófono “Equilíbrio distante”,
Renato Russo vive trancado em casa com síndrome do pânico, dizem uns,
com Aids, dizem outros. Estes certamente ganharam pano para mangas
com o verso “hoje fiquei com febre a tarde inteira” (de “A Via Láctea”,
primeiro hit de “A tempestade”. Talvez pensando neles, oito faixas adiante
no CD, Renato rebate o doentio clichê: “Digam o que disserem/ O mal
do século é a solidão” (“Esperando por mim”).
O amor de “A tempestade” naturalmente está sujeito a chuvas e tro-
voadas, a um coração partido causando um suicídio automóvel (“Dezes-
seis”), à falta de um homem ali (“ Leila”, no único momento bem-humo-
rado do disco), a palavras mordazes acolá (“Quando você voltar”). Tal-
vez até por isso, por baixo de sua aparente singeleza, Renato Russo cra-
ve a unha suja na ferida, hetero ou homossexual, neste caso não impor-
ta, trocam-se apenas os pronomes.

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


Afinal, quem um dia não viveu “L'avventura”? “Triste coisa é que-
rer bem/ A quem não sabe perdoar/ Acho que sempre lhe amarei/ Só que
não lhe quero mais/ Não é desejo, nem é saudade/ Sinceramente nem é
verdade/ E eu sei por que você fugiu/ Mas não consigo entender”. Ou “Lon-
ge do meu lado”? “Quero respeito e sempre ter alguém/ Que me entenda
e sempre fique a meu lado/ Mas não, não quero estar apaixonado”. Ou
“Soul Parsifal”? “Vê que a minha força é quase santa/ Como foi santo o
meu penar/ Pecado é provocar desejo/ E depois renunciar”. Ou ainda “O
livro dos dias”? “Todos se afastam quando o mundo está errado/ Quan-
do o que temos é um catálogo de erros/ Quando precisamos de carinho,
força e cuidado”. Este alguém que não viveu isso que atire a primeira pedra.

19/9/96 in O Globo, “Segundo Caderno”

O CÉREBRO MAIS POTENTE DO BROCK

No final de agosto de 1986 ainda era possível se assistir a um show


do Legião Urbana com os cotovelos sobre o palco do Noites Cariocas. A
banda estava na segunda semana de lançamento do álbum “Dois” no
morro da Urca e podia-se saber qual seria a música seguinte no espetá-
culo simplesmente lendo o set list preso com fita crepe aos pés de Renato
Russo. Atrás da fila do gargarejo, alguns punks pogavam em paz. Mas
em breve o disco teria vendido 800 mil cópias e grades de isolamento te-
riam de ser postas entre o palco e a platéia.
Noutra noite fria, a de 18 de junho de 1988, entretanto, as grades
postas entre o gramado do Estádio Mané Garrincha, em Brasília, e o
baixíssimo palco sobre o qual a Legião Urbana se apresentava não conti-
veram o perigoso amálgama de amor & ódio de cerca de 50 mil pessoas.
Renato se enfureceu com as brigas à sua frente, um doente mental subiu
no palco e agarrou-o pelo pescoço, o show foi encerrado antes do previs-
to e logo estourou um baita tumulto, um faroeste caboclo com direito a
cavalaria da PM e a bombas de gás lacrimogêneo. Saldo: 60 pessoas de-
tidas, 385 atendidas pelo serviço médico e 64 ônibus depredados. O gru-
po, Renato, sobretudo, foi acusado de incitamento à baderna.

208 Arthur Dapieve


Estes dois shows — separados por menos de dois anos — sintetizam
todos os paradoxos de Renato Russo, da Legião Urbana, do BRock e do
rock internacional, Kurt Cobain que o diga. “Quando você faz sucesso
com uma banda de rock tn” roll, você tem de conviver justamente com as
pessoas de quem você queria fugir ao fundar uma banda de rock “nº roll”,
me dizia Renato em entrevista de setembro de 1987, meio do caminho
entre o morro da Urca e o Planalto Central. Nessa época, o maior letrista
da história do rock brasileiro já anunciava a intenção de escorregar da
esfera pública — expressa em músicas com “Que país é este”, sobre cor-
rupção — para a esfera privada — expressa em músicas com “Meninos e
meninas”, sobre bissexualismo. Sua intenção, depois da santa ira punk
do início da carreira, era incluir o verso “eu te amo” numa canção sem
cair na banalidade. Conseguiu. E com louvor.
Até então cultor de medalhões como Led Zeppelin e Pink Floyd, o
baixista Renato Russo descobriu o punk rock em 1977, aos 17 anos,
quando outro professor da Cultura Inglesa, um escocês chamado lain,
voltou da Grã-Bretanha falando de uns tais Sex Pistols. No ano seguinte,
junto a André Pretorius, guitarrista filho do embaixador sul-africano no
Brasil, e Felipe Lemos, baterista, Renato fundou o Aborto Elétrico, em-
brião tanto da Legião Urbana (de Renato) quanto do Capital Inicial (de
Felipe), junto com o Plebe Rude, a santíssima trindade do rico rock bra-
siliense dos anos 80.
O Aborto Elétrico — rápido e barulhento, fortemente influenciado
pelos Stooges e pelos Sex Pistols — sofreu com o entra-e-sai de integran-
tes e nunca chegou a um disco próprio. Contudo, algumas de suas can-
ções foram posteriormente gravadas pela Legião (como “Geração coca-
cola” e “Conexão amazônica”) e pelo Capital (“Veraneio vascaína” e “Fá-
tima”). Quando o Aborto Elétrico se desfez, na virada de 1981 para 1982,
Renato, então estudante de jornalismo na UnB, se transformou em fa-
migerado Trovador Solitário, que, sozinho ao violão, interpretava com-
posições próprias, como “Eduardo e Mônica” e “Química”. Curiosamente
foi uma fita dessa fase que chegou aos ouvidos do então diretor artístico
da EMI, Jorge Davidson, que durante algum tempo julgou ter nas mãos
um grupo folk.
Engano desfeito e contrato fechado, em parte graças à propaganda
de seus velhos conhecidos Paralamas do Sucesso, já no cast da EMI, a
Legião partiu para o primeiro LP já como um trio — Renato (voz e bai-
xo), Dado Villa-Lobos (guitarra) e Marcelo Bonfá (bateria) — e no meio
do caminho se tornou um quarteto — com a entrada de Renato Rocha

dos Anos 80 209


BRock — O Rock Brasileiro
(baixo). Por quê? Porque Renato Russo queria ficar mais livre para can-
tar e porque ferimento nos pulsos, causados por uma tentativa de suicí-
dio, lhe haviam tirado parte dos movimentos das mãos. “Legião Urba-
na”, o disco, produzido pelo jornalista José Emílio Rondeau, foi lançado
às vésperas do primeiro Rock in Rio, em janeiro de 1985, e hibernou por
seis meses, quando finalmente começou a tocar nas rádios quase faixa a
faixa. Quando “Dois” chegou às lojas, um ano e meio depois, as músicas
de seu antecessor ainda estavam no ar.
E desde então tem sido assim: faixas de um álbum se emendando com
faixas do álbum anterior nos corações & mentes dos brasileiros — mes-
mo com dois anos separando cada álbum. As de “Dois” se emendando
com as de “Que país é este — 1978/1987”, as deste com as de “As qua-
tro estações” (1989), as deste com as de “V? (1991), as deste com as de
“Descobrimento do Brasil” (1993). Centenas de milhares de cópias ven-
didas de cada um deles.
Qual o segredo desse sucesso? Tanto nas Noites Cariocas quanto no
Mané Garrincha, Renato Russo parecia estar cantando não para meia
dúzia de gatos pingados, não para uma turba de milhares, mas para um
único ouvinte. Suas letras eram universais porque eram profundamente
pessoais. Tanto ao falar de política quanto ao falar de amor, uma única
linha norteava sua poética: a busca da ética perdida. No recém-lançado
álbum “A Tempestade”, Renato clamava “não façamos do amor algo
desonesto” do mesmo modo que denunciava “nas favelas, no Senado,
ec

sujeira pra todo lado” em “Que país é este” de 1978. Ponto de encontro
do macro com o micro? “Faroeste caboclo”, de 1979, 159 versos narrando
paixão & morte do traficante de drogas & homem santo João de Santo
Cristo, 159 versos espraiados por mais de nove minutos de música, 159
versos vaiados impiedosamente pelos punks do Morro da Urca em 1983
e decorados por qualquer criança de 5 anos quando afinal saíram em disco
e entraram nas rádios, em 1987.
Em sua carreira solo, como intérprete, e não autor, Renato Russo fez
questão de evitar qualquer paralelo ou antagonismo com a Legião Urba-
na gravando canções em inglês (“The Stonewall celebration concert”, de
1994, que transformava até a tola “Cherish”, de Madonna & Pat Leonard,
numa obra-prima) e em italiano (“ Equilíbrio distante”, de 1995, que trans-
formava até a progressiva “Dolcissima Maria”, do grupo Premiata For-
neria Marconi, numa música pop). Como intérprete, ainda, Renato fez uma
arrepiante participação no mais recente disco solo do ex-RPM Paulo Ricardo
Medeiros, “Rock popular brasileiro”, na faixa “A cruz e a espada”.

210 Arthur Dapieve


Com a morte de Renato Russo, o BRock perde não apenas sua mais
potente voz, mas também o seu mais potente cérebro.

12/10/96 in O Globo, “Caderno Especial”

£ OU BORÇA-SEMPRE

Não houve cortejo fúnebre. Já não há corpo. Mas diante da morte de


Renato Russo me senti, me sinto, como o jovem grego que aguarda o cor-
tejo fúnebre de Z, o personagem-título do livro de Vassilis Vassilikos pos-
teriormente filmado por Costa-Gavras. “O caixão da nossa adolescência”,
pensava ele diante do hospital. Ok, aos 19 anos, eu já não era tão adoles-
cente assim em 1983, quando ouvie vio Legião Urbana pela primeira vez.
Mas para alguns fatos da vida — amor e morte, por exemplo, temas
recorrentes na obra de Renato Russo e seus colegas instrumentistas Dado
Villa-Lobos, Renato Rocha e Marcelo Bonfá — sempre somos e sempre
seremos adolescentes. Talvez viesse daí a constante preocupação do letrista-
poeta em ser inteligível as crianças e aos jovens. À sensação de estar diante
do “caixão de nossa adolescência” só me bateu na manha seguinte à sua
morte, só me abateu no sábado. Na sexta-feira, a adrenalina de um texto
a digitar amorteceu o baque, exceto num momento. Voltando de casa,
onde havia ido buscar material de pesquisa, o rádio do carro do jornal,
sintonizado na Tupi FM, creio eu, tocava a serena “Quando o sol bater
na janela do teu quarto”, dos versos budistas “tudo é dor/ E toda dor/
Vem do desejo/ De não sentirmos dor”, e me tomou uma baita melanco-
lia, logo soterrada por uma tela de computador em branco.
Na manhã seguinte, acordei com os olhos rasos d'água, cantarolan-
do de cabo a rabo “Eu sei”, dos sábios versos “sexo verbal não faz meu
estilo/ Palavras são erros e os erros são seus/ Não quero lembrar que eu
erro também”. Uma visita ao São João Batista com uma dúzia de rosas
brancas — minha mãe estaria completando 65 anos se estivesse viva —
apenas aumentou a tristeza, providencialmente logo soterrada por uma
feijoada e muitas cervejas. Afinal, ora bolas, contabilizávamos os repór-
teres da área musical aqui do jornal na sexta-feira, conhecíamos e respei-

O Rock Brasileiro dos Anos 80 hi


BRock —
távamos o cara há ao menos 13 anos. Teria tomado um porre de Cointreau
em copo de requeijão se ainda tivesse fígado para isso.
De qualquer forma, a tristeza foi tamanha, e sei que ela não vai sair
daqui durante alguns meses, escaldado pelas tristezas com as mortes de
Kurt Cobain e Ayrton Senna em 1994, a tristeza foi tamanha, dizia, que
fiquei me perguntando porque eu não a sentira na mesma intensidade
quando morreu Cazuza, seis anos atrás. Pensei no seguinte, e o fato de
ter pensado não justifica nem explica coisa nenhuma, nunca: pensei que
há três geniais letristas-poetas na história do BRock, o rock brasileiro dos
anos 80. Cazuza, Renato Russo e Arnaldo Antunes. Cazuza era o cora-
ção em estado bruto. Arnaldo é o cérebro no que tem de melhor. Renato
estava entre os dois, coração e cérebro num papo dialético, num aris-
totélico, virtuoso e sintético meio-termo, era um Pascal, místico e mate-
mático, duplamente atormentado, ao escrever e cantar “E quem um dia
irá dizer/ Que existe razão/ Nas coisas feitas pelo coração?/ E quem irá
dizer/ Que não existe razão?” (versos de “Eduardo e Mônica”).
Algo como um filósofo eremita, que cada vez menos se arriscava fora
da sua caverna em shows sempre a um passo da catástrofe ou um passo
catástrofe adentro. Lembrem-se de sua Brasília “natal”, em 1986, uma
menina morta após uma briga no Ginásio Nilson Nelson, e em 1988, 385
atendidos pelo serviço médico do Estádio Mané Garrincha, depois de um
quebra-pau do público com a banda e com a PM.
Todo adolescente, tenha 13 ou 32 anos, é meio um filósofo eremita,
emparedado por espinhas, timidez, “Playboys” ensebadas, discos de rock
“in” roll e, no caso específico de Renato, a coleção “Os Pensadores” e a
“Enciclopédia Britânica”. Ele era o paradoxal porta-voz desses eremitas
compulsórios, o santo que quebrara o voto de silêncio. Dizia o que não
devia nunca ser dito por ninguém, ou, por outra, dizia aquilo que não po-
deríamos ou não conseguiríamos dizer.
Dizia o que não poderíamos ou não conseguiríamos dizer sobre o
Brasil: “Vamos celebrar a fome/ Não ter a quem ouvir/ Não ter a quem
amar/ Vamos alimentar o que é maldade/ Vamos machucar um coração/
Vamos celebrar nossa bandeira/ Nosso passado de absurdos gloriosos/
Tudo o que é gratuito e feio/ Tudo o que é normal/ Vamos cantar juntos
o hino nacional? (“Perfeição”).
Dizia o que não poderíamos ou não conseguiríamos dizer sobre a vida
& a morte: “Quando a tristeza é sempre o ponto de partida/ Quando tudo
é solidão/ É preciso acreditar num novo dia/ Na nossa grande geração
perdida/ Nos meninos e meninas/ Nos trevos de quatro folhas/ A escuri-

Arthur Dapieve
dão ainda é pior que essa luz cinza/ Mas estamos vivos ainda/ E quem sabe
um dia/ Eu escrevo uma canção pra você” (“Natália”).
Dizia o que não poderíamos ou não conseguiríamos dizer sobre o
amor: “Já me acostumei com a tua voz/ Com teu rosto e teu olhar/ Me
partiram em dois/ E procuro agora o que é minha metade/ Quando não
estás aqui/ Sinto falta de mim mesmo/ E sinto falta de meu corpo junto
ao teu” (“Sete cidades”, de seu melhor disco, “As quatro estações”, 1989).
De certa forma, todas as canções de Renato Russo eram canções
políticas, de certa forma todas as suas canções eram canções de amor.
Contudo, entre a lembrança de dezenas de versos doloridos, a frase
mais dolorida dos últimos oito dias é da autoria de dona Maria do Carmo
Manfredini, mãe de Renato. Perguntada pela repórter Daniela Name so-
bre se acreditava se seu filho tinha sido feliz, ela respondeu: “É duro di-
zer isso, mas tenho certeza que não.” Brrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr.
O título desta coluna, “Z”, é a pichação para zei, “ele vive” em gre-
go, e “Força sempre” era a frase que precedia o autógrafo de Renato Russo.

19/10/96 in O Globo, “Segundo Caderno”

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


DISCOGRAFIA SELECIONADA

Segue-se uma lista de 50 discos, entre compactos, EPs, LPs e CDs, que dão uma boa
idéia do que foi o BRock. A lista segue em ordem na qual os grupos são mencionados no
decorrer do livro, informando título, autor, gravadora, ano e tipo de disco. Se determina-
do item foi relançado em CD, manteve-se o ano do original e anotou-se LP/CD.

“Essa tal Gang 90 & As Absurdettes”, RCA, “Rádio Pirata — Ao vivo”, RPM, CBS, 1986, LP/
SSL PA CD.
“Guerra civil”, Acidente, independente, 1982, LP. “Dois”, Legião Urbana, EMI, 1986, LP/CD.
“Cantando no banheiro”, Eduardo Dusek e “Que país é este — 1978/1987”, Legião Urbana,
João Penca & Seus Miquinhos Amestrados, EMI, 1987, LP/CD.
PolyGram, 1982, LP. “As quatro estações”, Legião Urbana, EMI,
“Magazine”, WEA, 1983, LP. 1989, LP/CD.
“Voluntários da Pátria”, Baratos Afins, 1984, LP. “Longe demais das capitais”, Engenheiros do
“Rock voador”, coletânea, WEA, 1983, LP. Hawaii, RCA, 1986, LP.
“Vôo de coração”, Ritchie, CBS, 1983, LP. “A revolta dos dândis”, Engenheiros do
“Tempos modernos”, Lulu Santos, WEA, 1982, Elawaim, ROA, 1987 EP
ERA: “Vivendo e não aprendendo”, Ira!, WEA, 1987, LP.
“Tudo azul”, Lulu Santos, RCA, 1984, LP. “Greatest hits 80's”, Kid Abelha, antologia,
“Lulu”, Lulu Santos, RCA, 1986, LP. WEA, 1990, LP/CD.
“Cena de cinema”, Lobão, RCA, 1982, LP/CD. “Capital Inicial”, PolyGram, 1986, LP.
“O rock errou”, Lobão, RCA, 1986, LP. “Viva”, Camisa de Vênus, ao vivo, RGE, 1986,
“Todas as aventuras da Blitz”, antologia, EMI, ICI
SAO CD, “O começo do fim do mundo”, coletânea, ao
“Os 2 primeiros”, Barão Vermelho, Cast, vivo, Sesc, 1982, LP.
1994, CD. “Pânico em S.P.”?, Inocentes, WEA, 1986, EP.
“Rock” n geral”, Barão Vermelho, WEA, 1987, “O concreto já rachou”, Plebe Rude, EMI, 1986,
ERG: ER:
“Exagerado”, Cazuza, Som Livre, 1985, LP. “Cidades em torrente”, Biquini Cavadão,
“O tempo não pára”, Cazuza, ao vivo, PolyGram, 1986, LP.
PolyGram, 1988, LP. “Nenhum de Nós”, RCA, 1987, LP.
“O passo do Lui”, Paralamas do Sucesso, EMI, “Hojerizah”, RCA, 1987, LP.
1984, LP. “Supercarioca”, Picassos Falsos, RCA, 1988, LP.
“Selvagem?”, Paralamas do Sucesso, EMI, 1986, “Eu sou o Rio”, Black Future, RCA, 1988, LP.
ERG “3 lugares diferentes”, Fellini, Baratos Afins,
“Bora Bora”, Paralamas do Sucesso, EMI, 1988, 1988, LP.
IDEREIDA “Violeta de Outono”, RCA, 1987, LP/CD.
“Televisão”, Titas, WEA, 1985, LB/CD: “O futuro é vórtex”, Replicantes, RCA, 1986, LP.
“Cabeça dinossauro”, Titãs, WEA, 1986, LP/CD. “It's fuckim borin to death”, De Falla, RCA,
“Jesus não tem dentes no país do banguelas”, 1988, LP.
Titas, WEA, 1987, LP/CD. “Vítimas do milagre”, Detrito Federal,
“Nós vamos invadir sua praia”. Ultraje a Rigor, PolyGram, 1987, LP.
WEA, 1985. LP. “Passos no escuro”, Zero, EMI, 1986, EP.
“Revoluções por minuto”, RPM, CBS, 1985, LP. “Fairy tales”, Harry, Wop Bop, 1988, LP.

Arthur Dapieve
ÍNDICE REMISSIVO

A-Ha, 178 Araújo, João, 66-7 Banduendes Por Acaso


Aborto Elétrico, 32, 129, Araújo, Lucinha, 69 Estrelados, 31, 54
SOM ESS ISS TOA Arcano, 179 Barata, Paulo André, 23
TOS 06 209 Ariel, 165 Baratos Afins, 30, 187-8,
Abreu, Fernanda, 54, 170, Armação ilimitada, 63 206
200 Armandinho, 21 Barão Vermelho, 31, 49,
Abreu, Sérgio. Ver Arte no Escuro, 179, 189 54, 60-1, 65-9, 71-2,
Selvagem Big Abreu ins ateroy ZA LO TS 7 20)S)
Absyntho, 179 As quatro estações, 137-8 Barca do Sol, 18, 36
ACIDI ISS Asdrúbal Trouxe o Barnabé, Arrigo, 24, 31,
Acidente, 28 Trombone, 31, 53, 181 te
Adriani, Jerry, 133 Assumpção, Itamar, 31, 89 Barnabé, Paulo, 120, 167
Agentss, 30 Atahualpa & Os Panques, Barone, João, 80, 82-7,
Aguillar & Banda 34, 188 lo 127
Performática, 89, 91 Aura, 89, 118, 137 Barrela, Miguel, 30
Aguilar, Antônio, 13 Auschwitz, 179 Barreto, Bruno, 124
Akira S. & As Garotas Avelar Love, 29 Barreto, Ricardo, 46, 53,
Que Erraram, 179 Avelar, Luís Carlos. Ver 62-3
Albuquerque, Álvaro, 182 Avelar Love Barretti, Bozo, 158-9
Aliados, 145, 179 Azambuja, Abílio, 184 Barros, Baster, 47
Alternativa Nativa, 41, 50, Azul 29, 30 Barros, Guto, 47, 49,53
SE 1367 146, 157%, Azul Limão, 179 Barros, Maurício Carvalho
SO Zi 202 de, 65
Alves, Luciano, 18, 71 Desa az TON AL, Barros, Taciana, 25, 152
Alvin L., 160, 181 184 Barroso, Júlio, 24
Amarante, Eduardo, 30 Bachine, Kodiak, 30 Basculantes, 179
Amelinha, 24 Bahia, Mayrton, 38, 133 Bate-estaca, Sílvio, 106
Anarkoólatras, 27, 164 Bahiana, Ana Maria, 28, Barista, João, 49
Anéis de Ana, 179 3 OL SO Batucada, Miriam, 19
Angel, 55 Balanço das horas, No. Bayone, Rido, 44
Angra 2, 130 Ver Rock around the 3each Boys, 115
Antunes, Arnaldo, 73, 89, clock Beat, The, 83
OASIS 2 SS, Banda 69, 179 3eatles, The, 9, 14, 16, 56,

195-7, 202-3, 205-6, Banda 365, 179 fera tenso MO je A, Algo

Ene! Banda Nova. Ver Bedaque, Hélber, 42


Arantes, Guilherme, 24, Prisioneiros do Ar Bee Gees, 129
96 Bandeira, Márcio. Ver Bellotto, Tony, 89, 91-6,
Satanésio OR TOM MOBO
Araújo Neto, Agenor
Miranda. Ver Cazuza Bandido da luz vermelha, Ben, Jorge, 16, 45, 86, 175
Araújo, Humberto, 87 (O ES

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


Beni, Carlos, 153, 172, Britto, Sérgio, 89, 92, 101, Carlos Antônio. Ver
TAS 182, 19 12%) Tantão
Berliner, Roberto, 86 Brizola, Leonel, 109 Carne Viva, 179
Berry, Chuck, 45 Brizola, Neuzinha, 179 Cartola SiS
Bete Balanço, 69, 74 Brooks, Richard, 11 Carvalho, Celso Ricardo
Bezerra da Silva, 125 Brown, Carlinhos, 182 Furtado de Carvalho.
Biafra, Jello, 16 Bruhahá Babélico, 179 Ver Celso Blues Boy
Bidinho, 61 Brylho, 29, 31, 142, 176 Carvalho, Eduardo de. Ver
Biglione, Victor, 21 Buarque, Chico, 15, 31, Dadi
Bilaphra, Jander Ameba, 142, 176 Carvalho, Gilberto de, 92
168 Bubbles, The. Ver A Bolha Carvalho, Maurício de.
Bill Haley and His Bulcão, Márcia, 54, 62 Ver Mu
Comets, 11 Busic, Andria, 115 Carvalho, Paulo Machado
Biquíni Cavadão, 31, 144, Byington, Olívia, 23 de, 14
149, 172-5 Cascavelettes, 179
lehieiai, 7a, ÍL7ÊS) GA o Casé, Regina, 53
Bivar, Antônio, 27, 165 Cabana do Pai Tomás, 34 Castello Branco, Carlos.
Bixo da Seda, 18 Gabeçalde Pratas Ver Carlinhos
Black Future, 176, 179, Cabeça dinossauro, 98-9, Castro, Nelson Coelho de,
184 On dt 142
Black Sabbath, 35, 118 Cabine C, 30, 89, 92, 124, Castro, Paul de, 29, 44,
Blitz io O SS SEOs 152 180, 184
40-2, 46-7, 53-6, 38- Callegari, 164-5 Castro, Raul, 18
64, 68-9, 71, 82, 84, Calvão, Márcio, 31 Caymmi, Dorival, 19, 160
NO GESTAO a Camisa de Vênus, 20, 149, Cazuza, 49-52, 65-78, 87,
181, 196, 200 160, 162-4 MESSI 17 e
Blitz 64, 32, 130, 158, 168 Campbell, Robin, 86 185, 195-6, 203, 205-6,
Blues Boy, Celso, 28, 32, Campello, Celly, 11, 13-4 DAL)
69! USSAISO Campello, Célia. Ver Celly Cena de cinema, 46-7, 50,
Bolha, A, 18, 36, 180-1 Campello 56
Bom Quixote, 89 Campello, Sérgio. Ver Cerqueira, Nelson, 184
Bombom, 184 Tony Campello Chacal, 59
Bond, Billy, 20 Campello, Tony, 13 Chagas Freitas, Zoê, 3]
Bonfá, Marcelo, 131, 182, Canais, Guilherme, 127 Chaves, João, 163
192206, 209/21 Candinho, 35, 37 Checker, Chubby, 115
Bora Bora, 87-8 Cantando no banheiro, 29 Chrisma, 152
Borges, Luís Carlos, 178 Cantuária, Vinícius, 42 Cidades em torrente, 173-
Borghetti, Renato. Ver Capaldi, Jim, 38, 42 4
Borghettinho Capinam, 15, 162-3 Cinema a Dois, 179
Borghettinho, 177-8 Capital Inteial, 32, 79, Circo Voador 2 27/ Bi
Bossaudade, 14 1320-1145 149/58 47, 34, 66, 82, 93, 108,
Braga, Roberto Carlos. 160, 168, 178, 181, ISA USS ISS OS
Ver Roberto Carlos 189, 209 Clapton, Eric, 45, 87
Brandão, Arnaldo, 29, 54, Cardia, Gringo, 61 Clash 2 So mnoaos
RS Cardoso, Ivan, 30 152 GO GS a
Brandt, Fernando, 21 Carlinhos, 108-10 Clemente, 164-5, 167-8,
Brilho da Cidade. Ver Carlini, Luiz Sérgio, 16 195
Brylho

Arthur Dapieve
Clevers, The. Ver Os Del Shannon, 115 Eletrodomésticos, 179
Incríveis Deluqui, Fernando, 119, Elis Regina, 15
Cobain, Kurt, 45, 135, BS TA, MS OO, Embaixada de Vênus, 179
e) OR: Demetrius, 13 Emerson, Lake & Palmer,
Coelho, Carlos, 172 Dentes Kentes, 171 SS)
Coelho, Paulo, 19 Descarga Suburbana, 28, Eminência Parda, 179
Coke Luxe, 179 82 Engenheiros do Hawai,
Collins, Mel, 38 Detrito Federal, 134, 179, 34, 141-3, 148, 159-60,
Compartimento Surpresa, 188-9 175, 177, 190, 1992200
(TAS, Devotos de Nossa Senhora Envergadura Moral, À,
concreto já rachou, O, Aparecida, 106 163
170-1 Décimo-quarto Andar, Erasmo Carlos, 61, 71,
Condutores de Cadáver, 179 141
27, 164 Diamante Cor-de-Rosa, Escaladácida, 36
Conexão Japeri, 179, 185- 130 Escobar, Pepe, 32, 58, 108
6 Dias Baptista, Arnaldo, Esteves, Erasmo. Ver
Conrad, Gerson, 20 MSL e A Erasmo Carlos
Coquetel Molotov, 28, 82 Dias Baptista, Cláudio, 16 Eterno Grito, 179
Cor do Som, À, 21, 42, 74 Dias Baptista, Sérgio, 18, Ethiopia, 179
Cordovil, Ronaldo. Ver SS Eu sou o Rio, 184
Ronnie Cord Dias, Aridi Eurythmics, 117-8
Corrêa, Thedy, 175 Dias, Vital, 79 Eutanásia, 28
Corsi, Luiz Gustavo, 184 Dinho, 16, 130-1, 145, Exagerado, 72, 75, 67,
Cortez, Getúlio, 92 158-60, 181 ES
Costa, Gal, 15, 38, 76 Dino, 149-50 Extermínio, 27
Costa, Marcelo, 43-4 Distrito Federal, 131, 168
Costello, Elvis, 46 Distúrbio Social, 179 Fagnani, Osvaldo, 115
Court, Richard David. Ver Divergência Socialista, 34 Fairy tales, 191
Ritchie Djavan, 23 Falange Moulin Rouge,
Cólera, 27.82. 1164, 179; Do Mundo Nada Se Leva, 186
186 TS) Fantasmas da Guerra, Os,
Crime, 179 Dois, 133-4, 201 TAS:
Cunha, André Palmeira. Dollabela, Marcelo, 34 Farias, Lui, 175
Ver Dé Dominguinhos, 21 Farias, Vítor, 98, 151
Cunha, Miguel Flores da, Dorsal Atlântica, 179, 191 Fausto Fawcett & Os
Ilizà Dr. Silvana, 119, 179 Robós Efêémeros, 185
Cure, The, 31, 130, 188 Duprat, Rogério, 15 Fawcett, Fausto, 91, 185
Duran Duran, 115, 107 Feijão, 17]
Dadi, 21, 42, 74 Dusek, Eduardo, 24, 29, Feliciano, Nadinho, 127,
Dado e o Reino Animal, Ato also 163

130-1 Dylan, Bob, 92 Bi, 136 Fellini, 179, 184, 187


Daumerie, Danielle, 49 Fevers, The, 13

Davidson, Jorge, 132, 209 Earth, Wind & Fire, 42 Figueiredo, Marília, 184
De Falla, 142, 175-7, 179, East, Mãe; 019 Fim da Picada, 106
189-90 Echo & The Bunnymen, Finis Africae, 179, 188-9
Dead Kennedys, 16, 171 SER Fleury Filho, Luiz
Deep Purple, 118 Effe, Humberto, 184 Antônio, 102

Del Rosa, 29 Egotrip, 179

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


Floyd, Pink, 18, 130, 143, Genesis, 38 Herva Doce, 83, 179-80,
187 George, Boy, 87 184
Fluxo, 34, 190 Gessinger, Humberto, 141, Hinds, Sérgio, 18
Ford, Glenn, 11 185, 200 Hojerizah, 145, 179, 182,
Forghieri, William, 42, 46, Gibson, Debbie, 178 184
54 Gil, Gilberto, 14-6, 19,21, Homrich, Júnior, 53
Fortuna, Antônio Pedro, 24-5, 44, 52,61,71, Homrich, Sady, 175
18, 42, 54 85, 29. NOM Elo UMos Horn, Ricardo, 142, 200
Fortuna, Perfeito, 31, 66 196 Hullygully, 29
Fortunato, Bruno, 155, Gil, Pedro, 44 Hummel, Karl, 160
ESA Gilliard, 23 Hynde, Chrissie, 102
Franco, Walter, 24, 46, Gilson, 23
163 Giron, Luís Antônio, 112 Iggy Pop, 129
Eranças Jamari 92092769; Go-Go's, 61, 155 Imperial, Carlos, 13, 115
DR AROS Golden Boys, 14 Incríveis, Os, 13, 162
Fred, 171 Golias, Ronald, 95 Indochine, 109
Frejat, Roberto, 65, 153, Golpe de Estado, 179 Infante, Cláudio, 156
167 SS ISS Gonçalves, João Fera, 86 Information Society, 178
Frippi, Giuseppe, 30 Gordin, Lenny, 108 Inimigos do Rei, 179, 185
Fromer, Marcelo, 89, 106, Gouvêia, Bruno, 172 Inocentes, 2/7692, 1491
182 Graça Mello, Guto, 37, 164-5, 167-8
Furor Uterino, 179 47,68, 73 [rats 032 Ass TODA
futuro é vórtex, O, 190 Grafite, 119, 179 94, 101, 106, 108, 119,
Greatest hits 80's, 157 149-52, 184
Gabriel o Pensador, 185 Grupo Paranga, 23 Iron Maiden, 141
Gaita, Zé da, 28, 153, 180 Guerra civil, 28 Isley Brothers, 115
Galasso, Leonardo. Ver Gueto, 179 Isnard, Guilherme, 32, 188
Leospa Guilherme Ricardo. Ver Israel, George, 66, 76, 86,
Gallo, Bob, 29 Hullygully LS Ta IETAD, IR
Gama, Fernando, 35 Guimarães, Ulysses, 107 It's fuckimn borim to death,
Gandelman, Leo, 44, 61 Guineto, Almir, 24 190
Gang 90 & As Gurgel, Roberto. Ver Juba
Absurdettes, 24-5, 30, Gwendolyn, Alice. Ver Jackson, Michael, 42
46 Alice Pink Punk Jam, The, 149, 162
Garcia, Charly, 87 Jesus não tem dentes no
Garotas do Centro, 17 Habeaz Corpuz, 179 pais do banguelas, 99,
Garotos da Rua, 142, 145, Hackert, Steve, 38 QUES A
7/3 TETAS ISO) Hagen, Nina, 61, 71 Jesus, Clementina de, 91
Garotos do Gueto, 179 Hanoi-Hanoi, 145, 179, Jetsons, 89
Garotos Podres, 179 [81 João Gilberto, 15, 19, 160
Gaspa, 30, 150 Happy Mondays, 178 João Penca & Seus
Gasparim, Fábio, 36 Harris, Don, 87, 156 Miquinhos Amestrados,
Gasparini, Ricardo. Ver Harrison, George, 45, 56 29: 110
Gaspa lrolgticiaça HZ SH João Ricardo, 20, 122
Gato Jair, 34 Harry, Wop Bop, 188 Joãozinho Podre, 10
Gavin, Charles, 89, 94, 96, Hayena, Marcelo, 185 Jobim, Tom, 15, 191
USO US QTSO Heróis da Resistência, 41, Joe Euthanázia, 179
Genari Filho, Mário, 13 89, 156 Joelho de Porco, 20

218 Arthur Dapieve


Jones, Loro; '32, 131158; Ledo Narais Macedo, Armando, 21
168 Led Zeppelin, 65, 118, Machado, Aldo, 160
Jones, Quincy, 42 130, 149, 209 Machado, Inácio, 37-8
Jones, Rita Lee. Ver Rita ee) Rita, INPIANSEO: 35-6) Madame Satã, 31, 91,
Lee 43, 196 119, 143
José Alexandre, 24, 43 Legião Urbana, 31-2, 79, Made in Brazil, 20, 30
Jovem Guarda, 11, 14-5, 82, 130-8, 145, 158, Madness, 83, 108
ES) To Sor a iz gos Magalhães, Cristina, 53
Jovi, Bon; S2 ends 184-5, 189, 192, 196, Magalhães, Fernando, 73-
Joy Division, 130 SS QUE OS 4
Juba, 20, 58, 62, 64 Leite, Victor, 106 Magazine, 30
Jung, André, 89, 91,94, Leme, Ronaldo. Ver Dinho Magazine, O, 30, 84, 92,
SEO, Leminski, Paulo, 101 al
Justa Causa, 179 Lemos, Fe, 79, 209 Magrão, Sérgio, 21
Júnior, Moreno, 119 Lemos, Flávio, 82, 131 Maia, Arthur, 44
Lennon & McCartney, 43, Maia, Sebastião. Ver Tim
K., Edu, 176 CMOS SSIS Maia
Kaddish, 179 Peofatme SIS: Maira, im, 40 65, 915
Kadu, 74 156-7 186
Kaffa, Sérgio, 36 Leoni, 41, 75, 85, 152-3, Malária, Paulo, 28
Kali, 179 155-7 Maltz, Carlos, 141, 200
Karabitchevsky, Isaac, 71 Licks, Augusto, 144, 200 Manfredimi, Jr., Renato.
Kid Abelha & Os Lima Filho, Arnolpho. Ver Ver Renato Russo
Abóboras Selvagens, Liminha Manhãs & Manias, 31
28, 66, 149, 152-3, Lima, Paulinho, 41 Manito, 162
TS A Liminha, 16, 18, 36, 38, Mansur, Luiz Carlos, 101,
Kid Vinil, 30, 92, 165 ADIA So Sal o UOL it
King Crimson, 30 MES
OEL LS TSM Marca Registrada, 179
Kirk, Simon, 38 Lindsay, Arto, 182 Marcelino, 164, 167
Kiss, 118, 181 Lins, Lucinha, 24 Marciano Sodomita, 179
Klein, Mile, 36 Lisboa, Nei, 142, 144 Maria Angélica Não Mora
Kleiton & Kledir, 24, 176 Little Richards, 11 Mais FAqui ZA
Knudsen, Cláudio. Ver Litrles, The, 105-6 188
Nebuloso Cláudio, The Lixomania, 82, 164 Marialva, Guto, 118
Killer Lly, Roberto, 180 Mariano, Torcuato, 49
Knudsen, Marcelo. Ver Lobão, 18, 20, 35, 37-8, Marillion, 160
Bob Gallo Alo 46-71. 49-56, 918, 601 Marina, 9, 46, 47, 534,
Kogut, Sandra, 86 CON RA SOR 69, 156, 181

Kongo, 179, 184 SS BZ 7 USED Marquesini, Flávio


Kubrusly, Maurício, 32, 196, 200, 203-4 Augusto Goffi. Ver
NOGANOS Lobão e Os Ronaldos, 69 Guto

Kwaku-Baah, Reebop, 36 Longe demais das capitais, Marr, Johnny, 182


143-5 Martinha, 14
Lacerda, Genival, 163 Lopes, Álvaro. Ver Birita Martins, Beto, 153
Ladeira, Renato, 180 Lulu, 35, 44 Mathildas, 179
Luz, André da. Ver Sheik Matogrosso, Ney, 20, 69,
Lagoa 66, 179
182 Lyra, Carlos, 15 DOI 126
Larrosa, Marcelo,
Matos, 87
Leão, 156

Brasileiro dos Anos 80 Po io)


BRock — O Rock
Mauricinho, 164 Moraes, Vinicius de, 20 Newmark, Andy, 38
Maurício Mello & Moraz, Patrick, 38 Ney, Nora, 11
Companhia Mágica, 32 Moreira, Jurim, 49 Niemeyer, Cláudia, 156
Mautner, Jorge, 103 Moska, Paulinho, 185 Niltinho, 184
MC5, 130 Mota Perpétuo, 18 Noya, Marcelo, 20, 160,
Meanda, Rogério, 75 Motta, Nelson, 25, 42, 45 163
Medeiros, Paulo Ricardo Motta, Rui, 18 Novo amor, 32
Oliveira Nery de. Ver Moura, Paulo, 36 Novos Baianos, 21
Paulo Ricardo Mourão, Túlio, 18 Nóbrega, Ondina de
Medeiros, Paulo Ricardo. Mu, 21, 42 Amorim, 80
Ver Paulo Ricardo Mueller, André, 79, 130, Nós da Garganta, 179
Mel da Terra, 179 ISS Nós vamos invadir sua
Mello, Branco, 89, 167, Murrah, Flávio, 182 prata, 25 OSSOS
182, 198 Musical Saracura, 142 114
Mello, Luiz Antônio, 31 Mutantes, Os, 14-6, 18-9,
Melodia, Luiz, 46, 196 35-7, 42, 54, 180, 184 Obina Shok, 176, 179,
Mendes, Murilo, 156 Muzak, 106, 179 189
Mercenarias, 50 US2 179] Mullen, Gustavo, 160, 163 Okotô, 179, 203
186 Muller, James, 163 Olho Seco, 27, 164
Mercury, Freddie, 87 Omar & Os Cianos, 179
Mesmos, Os, 179 Naidin, Sérgio. Ver Mimi Ouro Preto, Iko, 130, 182
Mesquita, Evandro, 41, Erótico OVNI, 179
46, 53, 63, 82, 107 Nani, 74 Owens, Richard, 153
Metalmorfose, 179 Naporano, Fernando, 121,
Metro, Peter, 87 188 Paes, Tavinho, 47, 181
Metrópolis, 133, 144, 179 Nas Nuvens, 74, 98, 101, Page, Jimmy, 182
Metrô, 121, 179, 187 (OS O, 1LIMOE TiLS Pagni, Paulo Antônio P.A.,
Midani, André, 40, 93, 150-1 120
107, 114, 167 Nascimento, Clemente Paiva, Marcelo Rubens,
Miguel Gustavo, 11 Tadeu. Ver Clemente 124
Miguel, Antônio Carlos, Nascimento, Milton, 21, Pandeiro, Jackson do, 87
68 71, 124, 126 Panteras, Os, 119
Miklos, Paulo, 89, 96, Nasi 50 82/15 02152 Panthers, The. Ver Os
101, 184, 198 Nau, 148, 179 Panteras
Milesi, Edinho, 184 Za ebuloso Cláudio, The Papel de Mil, 32, 155
Milionários da Cobertura, Killer, 29 Pappon, Thomas, 30, 184,
ILZAS; Negrete, 132:5, 137, 209; 187-8
Mimi Erótico, 29 Bl Paralamas do Sucesso, 28,
Mixto Quente, 179 Nenhum de Nós, 145, BIG CO NS OMS BA
Módulo 1000, 35 149º 1175=8, 197 88, 108, 130-1, 143,
Mongol, 24 Nenhum de Nós 158, 172, 184, 205,
Mônica, Sérgio Della, 180 Neon, 179 209
Monte, Marisa, 182 Neto, Arnaldo, 184 Paraná, Eduardo, 131
Montenegro, Oswaldo, 23, Neto, Mário, 29 Parlato, André, 167
24, 43 Neuróticos, 167 passo do Lui, O, 83
Moody Blues, 38 Neves, Ezequiel, 67-8,) 72, Passos no escuro, 188
Moon, Scarlet, 42, 43, 200 Do tora NL ILSNDD, LOST Passos, Ronaldo dos, 167
Moraes Moreira, 21 Neves, Tancredo, 71, 94 Patife, 120, 179

220 Arthur Dapieve


Patrulha 666, 179 Pretorius, André, 129, Revoluções por minuto,
Patrulha do Espaço, 18, 158, 209 118-22
il7S) Primeiras Damas, As, 179 Rezende, Nico, 41, 44, 75
Paulo Patife Band, 179 Prisão de Ventre, 34 Ribeiro, Bi, 79, 184, 195
Paulo Ricardo, 25, 56, Prisioneiros do Ar, 63 Ricardo, Cassiano, 20
A ASAS Prisioneiros do Funk. Ver Richard Hell and The
SS LS, DB, 2100, Prisioneiros do Ar Voidoids, 130
Pânico em S.P., 164, 167 PsycoZes ZA Richards, Keith, 45, 206
Peixoto, Cauby, 11 Ritchie, 18-9, 35-8, 40-2,
Pena Schmidt, 93-4, 105, Quatorze-Bis, 21-2 A SA oe LTA, MIS
108150, 1527 1167 Que país é este — 1978/ 196
Peninha, 73-4, 93, 98, 105 ST NO, 1357, 169. Roberto Carlos, 11, 14,
Pequeno, Diana, 23 192 40-1, 84, 86, 91, 141
Peso, 18, 180 Queen; 45 MISS ASS 19% Rocha Moreira, Roger, 60,
Pessoa, Ciro, 89, 92, 124 Quental, Dulce, 74, 88, 105-14, 189, 198, 203
Pêra, Marília, 37, 60 185 Rocha, Mariozinho, 41,
ici 176; 56, 58
Picassos Falsos, 179, 182, Rádio Pirata — ÀÃo vivo, Rocha, Renato. Ver
184 201 Negrete
Pimenta-do-Reino, 106 Raio Laser, 119 Rock voador, 31, 153, 155
Pinheiro, Maria Elisa Ramalho, Elba, 145 rock errou, O, 49
Capparell. Ver Mae Ramalho, Luiz, 24 Rodrigues, Azael, 36
East Ramalho, Zé, 23, 175 Rodrigues, Heli, 21
Pink Floyd, 18, 130, 143, Ramil, Vítor, 176 Rodrigues, Jair, 15
187, 209 Ramones, 115, 129-30 Rodrigues, Lael, 30, 69,
Pink Punk, Alice, 25 Rapazes de Vida Fácil, 123
Pitz, Marcelo, 141, 144 160, 179, 186 Rodrigues, Lupicínio, 75
Platão, Tony, 182, 184 Ratos de Porão, 28, 179, Rodrigues, Mauricio, 105-
Platers, The, 11 186 6
Plebe Rude, 31-2, 41, 79, Rebouças, João, 76 Rodrix, Zé, 20
82 130 149 158) 166- Reed, Lou, 78 Rolling Stones, 9, 19-20,
VM e SH OE, Reginaldo Francisco, 42 35, 65, 67, 734, 118,
Plopschi, Miguel, 83 Reis, Nando, 89, 94, 101, LS US re, 1173,
199
Poladian, Manoel, 99, 182, 198
102, 120, 126 Reis, Roberto, 171 Romero, Nilo, 76, 157
Police, The, 43, 82-3, 117, Renato & Seus Blue Caps, Rondeau, José Emílio, 21,
ES? 13-4 LSD AO)
Rosa Fernandes, Mauricio.
Pomerancblum, Odeid, 47 Renato Luiz, 171
Pops, The, 13 Renaux, Lonita, 25 Ver Del Rosa
Replicantes, Os, 34, 142- Rotten, Jonny, 10
Portugal, Antônio Jorge,
all 1 ZA, AGA Re Rousseau, Henm, 131
24
Pôr do Sol, 179 90 Rousseau, Jean-Jacques,
13 Resende, Sérgio, 124 131
Prata, Mário,
Premeditando o Breque, Restos de Nada, 165 Ró Rô, Ângela, 23
SL SE TIS Revolta Urbana, 34 RPM, 56, 94, 111, 117-
revolta dos dândis, A, 144- 27. 179, 196, 198-201
Presley, Elvis, 19
5, 148 Rubinho, 34
Pretenders, 101-2
Rumo, 31, 89, 189

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


Russell, Bertrand, 131 Seixas, Raul, 19-20, 36, Sullivan, Jonno, 29
Russo, Renato, 7, 9, 80, 60, 152, 160, 163-4, Supercarioca, 184
SDS BA SS] 196-8 Sussekind, Marcelo, 46,
AO ES 2 Selvagem Big Abreu, 29 83, 180-1
59 9 Ao SS Selvagem?, 85-6, 88, 201
203, 205-213 Sementes da violência.Ver Talking Heads, 30
The blackboard jungle Tan Tan Clube, 179
Saara ata Ina? Sem pele os Tantão, 184
Sá & Guarabira, 118 185 antas
Sadom, 80 Seneforte, Antônio Carlos. Taranatiriça, 142-3
Saldanha, Mauro Freitas, Ver Kid Vinil ars ia Zo
106 Serpente, 34 Taubman, Mauro, 53
Salim, Wanderléa. Ver Serra, Sérgio, 73-4, 110 Naima Rúas Si
Wanderléa Sette, Maurício, 31 Tânia Cristal & Os
Salles, Dom Eugênio, 65 Ses Disto!s MORA Diamantes, 179
Salomão, Waly, 83, 95 82, 129-30, 149, 152, Telefone Gol, 74
Sampaio, Sérgio, 19 160, 169, 209 Televisão, 94-5, 99, 102
Sangue da Cidade, 29, 32, Sexo Explícito, 34 Telles, Armando, 171
55 Sérgio Murilo, 13 tempo não pára, O, 77
Sangue da Cidade Sfiha Elétrica, 34 Tempos modernos, 43
Santa Gang, 89 Sganzerla, Rogério, 151 ilierco MS
Santana, Perinho, 21 Sheik, 173, 175 Terpins, Tico, 20
Santana, Robério, 160 Shitheads, 106 O SS O
Santos, Luís Maurício Shitles, the, 105-6 Thunderbird, Luiz, 106
Pragana dos. Ver Lulu Silva, Fausto, 52 Titas, 69, 73-4, 84, 89, 91-
Santos Simas, Luiz Paulo, 35-6 6, 98-9, 101-3, 106,
Santos, Lulu, 18, 25, 35, Simpatia pelo Demônio, US SOR MG, Mi
38, 42, 44-6, 54,61, IEA; 184, 197-8, 203-4
82-3, 94, 155, 195, Simple Minds, 86 Tífon, 94, 119
200/2025205 Simply Red, 113 MANO labios TS 1 7ASA
Santos, Marcelo Costa, 43 Sion, Roberto, 121 190
Sarney, José, 62, 111, 201 Sisters of Mercy, 119 Tokyo, 179, 186
Satanésio, 184 Skank, 205 Toller, Paula, 71, 85, 87,
Sá, Sandra de, 67 Smack, 30, 152 POSSAS
Scandurra, Edgard, 30, 92, Smiths, The, 31, 133, 206 955 202
105-6, 110, 114, 149, Soares, Elza, 49 Tom Zé, 15-6
184, 186, 195 Sodré, Raimundo, 24 Tonhão, Antônio, 167
Schiavon, Luiz, 117, 124- Som Nosso de Cada Dia, Tonton Macoute, 179
Se 7 I8 Torquato Neto, 15, 91
Schroeter, Gustavo, 21 Sossega Leão, 89,91 Torres, Herman, 25
Science, Chico, 205 Sputniks, The, 13 Townshend, Pete, 152
Scola de Scândalos, 171, Star, Edy, 19 Traffic, 38, 42.
179. 188-9 Stein, Carlos, 175 Trauma, 179
Scorpions, 71, 155 Stein, Luiz, 61 Travassos, Patrícia, 54,
Seabra, Philippe, 168 Stewart, Rod, 45, 61 59-60, 108
Sears, Fred F., 11 Stooges, 129-30, 209 Trio Mamão, 89, 91
Secos & Molhados, 20, Stress, 179 91 Trombone, Sérgio, 61
122 1178 Subúrbio, 149-50 Tropicalismo, 14-5, 103

Arthur Dapieve
Tropicália. Ver Vicious, Sid, 79, 82, 129- Zé Luiz, 38, 46, 53
Tropicalismo BUPNICS, Zoh, Cláudio, 42
Truke, 179 Vidal, Sérgio Vid, 29 Zona Franca, 89
Tudo azul, 44 Vigaristas de Istambul, VELO AS)
Turnbull, Lúcia, 36 130
Turner, Tina, 63, 86, 188 Vilhena, Bernardo, 38, 46-
Tuta Frutti, 16 7, 49,77
Twins, 119, 179 Villa-Lobos, Dado, 131,
AL Ui SM MOS,
UR La ON 2
Ulster, 27 Vinte e cinco Segundos
Último Número, 34 Depois, 179
Ultraje a Rigor, 30, 60, 73, Violeta de Outono, 179,
84, 94-5, 105-15, 152, 187
198, 203-4 Vivendo e não
Uns & Outros, 179, 185 aprendendo, 150, 151
UBE Za Vímana, 18, 35-8, 41-72,
Urge, 179 46-7, 54, 196, 200
Urubu Rei, 34 Vítimas do milagre, 189
Voluntários da Pátria, 30,
Valadão, Marcos. Ver 184, 188
Nasi Von, Ronnie, 14
Valença, Alceu, 96 Vôo de coração, 38, 40-1
Valenza, Paulo, 117 Vzyadoq Moe, 188
Valete 17, 179
Valladares, Maurício, 31, WAS. 1079
82 Wainer Filho, Samuel, 31
Vandré, Geraldo, 15, 165 Waldman, Ewerton, 127
Vangelis, 117-8 Wanderléa, 14
Veloso, Caetano, 15-6, 19, Way, The, 29
PS a POLO Ao Weather Report, 118
103, 122, 124, 160, Whitesnake, 141
St 196 Wilson, Ed, 13
Veludo, 180, 184 Woerdenbag, João Luis.
Veludo Elétrico, 18, 35 Ver Lobão
Venham a Mim as Woorthmann, Gute, 32,
Criancinhas, 179 168
Venturini, Cláudio, 21
Venturini, Flávio, 21 Xo-rated, 179
Verdeal, Leandro, 29 Xog, 179
Vermelho, 21 6074 SÃO)
Verminose. Ver Magazine
Vestidos de Espaço, 103 es IB: 861, 7, 52
Vianna, Herbert, 79, 87,
130, 156, 169-72, 182, Zappa, Frank, 55,61
185, 195, 197, 201 Zero, 32, 199, 179; M87/=8
Vianna, Hermano, 158 Zero Hora, 89
Vianna, Malu, 32, 155 Zé Henrique, 184

BRock — O Rock Brasileiro dos Anos 80


EstE LIVRO FOI COMPOSTO EM SABON PELA
BracHER & MALTA, COM FOTOLITOS DO Bu-
REAU 34 E IMPRESSO PELA BARTIRA GRÁFICA
E EDITORA EM PAPEL ALTA PRINT 90 G/M?
DA Cia. SUZANO DE ParEL E CELULOSE PARA
À EbrTORA 34, EM DEZEMBRO DE 2005,
O Barão Vermelho — que projetaria o
poeta mártir do setor, Cazuza, abatido pela
praga de fim de século — foi formado para
uma prosaica edição da Feira da Providência.
A bordo do estranho Passo do Lui, os Pa-
ralamas estabeleceram a ponte entre a new
wave e o reggae de branco do Police. Grupetos
como o Trio Mamão, a banda Maldade, os
Camarões e o sacudido afro-caribenho Sossega
Leão geram os gigantescos Titãs, ainda mais
decisivos após o gargalo carcerário que ante-
cedeu Cabeça dinossauro. O hino anárquico
Inútil, do Ultraje a Rigor, foi entoado até pelo
“Senhor Diretas”, o venerando político Ulisses
Guimarães. O Legião Urbana brota de um
Aborto Elétrico no concreto rachado de Bra-
sília e confirma o título arrastando multi-
dões. O RPM do ex-crítico Paulo Ricardo Me-
deiros, o PRM, deixa o rei Roberto na poeira
com seus 2 milhões e 200 mil discos vendidos
de Rádio Pirata, mas a banda se desintegra no
pó. Os Engenheiros do Hawaii vem de muito
longe das capitais para domar a infinita high-
way do sucesso.
Professor de jornalismo e cinema na PUC
entre 1986 e 1988, Arthur Dapieve reconstitui
estes trajetos e lança luzes sobre as catacumbas
do processo a partir de extensas entrevistas
exclusivas. Sexo, drogas e obviamente BRock
— um termo criado por ele na imprensa para
designar o amadurecimento de uma linguagem
nativa para o idioma de Chuck Berry — mo-
vimentam o livro no texto enxuto e preciso do
autor. Dapieve vê o apocalipse ao vivo num
show do Legião em Brasília, compartilha dos
dribles estéticos de Lulu Santos, da solidão de
Clemente, dos Inocentes (único negro de proa
no movimento) e de Paula Toller — raro cé-
rebro feminino num clube de Bolinhas. Além
disso, põe o BRock na peneira, traça seu inven-
tário e prognostica-lhe o futuro anunciado,
através de ídolos consolidados e epígonos.

Tárik de Souza
O que era então esse tal de BRock? Era o reflexo retardado no
Brasil menos da música do que da atitude do movimento punk anglo-
americano: do-it-yourself, ainda que não saiba tocar, ainda que não
saiba cantar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasi-
leiro, (...) falando em português claro de coisas comuns ao pessoal
de sua própria geração: amor, ética, sexo, política, polaróides ur-
banos, dores de crescimento e maturação — mensagens transmiti-
das pelas brechas do processo de redemocratização. “Era um corte
proposital em relação à MPB, era a valorização da juventude nos
anos 80”, diz Renato Russo.
Arthur Dapieve

“O rock deu uma blitz na MPB”, trocadilhou Gilberto Gil. Na


década de 80, uma virada de mesa radical interrompeu a chamada
linha evolutiva da MPB. O BRock cresceu, apareceu e amadureceu
no espaço de uma década. Em bem mais que os 15 minutos de holo-
fotes profetizados por Andy Warhol, o movimento que instalou
Brasília no mapa pop, traduziu para o país do carnaval punks, new
waves, góticos e pós-modernos num aggiornamento voraz que ba-
gunçou o coreto dos contentes antecedentes.
Tárik de Souza

Coleção Ouvido Musical -820


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