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A TRIDIMENSIONALIDADE DA LINGUAGEM E O CONTEXTO SOVIÉTICO:

METODOLOGIA VERBIVOCOVISUAL

José Antonio Rodrigues Luciano


Orientadora: Luciane de Paula
Bolsa: Capes

Resumo: Resultado de desdobramento do trabalho Mestrado, no qual pensamos a concepção


tridimensional da linguagem verbivocovisual na filosofia da linguagem bakhtiniana, nesta
pesquisa, propomos refletir acerca da sua materialização a partir de três obras de três
diferentes semioses, a saber, o quadro Composição VIII (1923), de Wassily Kandinsky; o
poema “De V internacional” (1922), de Vladimir Maiakóvski; e a Quarta Sinfonia (1936), de
Chostakóvich. O objetivo é compreender como as dimensões verbivocovisuais da linguagem,
identificadas e estudadas anteriormente por nós na filosofia da linguagem proposta pelo
Círculo “Bakhtin, Medviédev e Volóchinov” (VAUTHIER, 2010), manifestam-se no ato
enunciativo a partir de sua materialidade sígnica, bem como propor encaminhamentos
teórico-metodológicos para procedimentos analíticos pautados em referida concepção de
linguagem formulada pelo Círculo no interior de suas obras. Com isso, ao refletirmos teórica
e analiticamente a partir dos escritos bakhtinianos e do corpus selecionado, evidencia-se que
tal investigação acerca da linguagem trata-se de uma preocupação explicitada também nas
produções artísticas, principalmente, dos anos 20 e 30 na União Soviética. Para tanto, o
trabalho será desenvolvido a partir do viés bakhtiniano, partindo método dialético-dialógico
(PAULA et alii, 2011), e sua pertinência consiste pela proposição de uma nova abordagem
nas pesquisas bakhtinianas no Brasil, bem como a ampliação as possibilidades
teórico-metodológicas nesta perspectiva para análises de enunciados verbivocovisuais
contemporâneos.
INTRODUÇÃO

Em nosso trabalho de Mestrado (LUCIANO, 2021), buscamos desenvolver as bases


teóricas acerca da concepção da tridimensionalidade verbivocovisual da linguagem presente
nas obras do Círculo de “B.M.V.” (VAUTHIER, 2010), partindo, sobretudo, dos textos
Estética da Criação Verbal (2011 [1975]), de Bakhtin, Método Formal nos Estudos Literários
(2012 [1928]), de Medviédev, e Marxismo e Filosofia da Linguagem (2017 [1929]), de
Volóchinov. Para isso, apoiamos em três aspectos fundamentais para nossa proposta: 1)
contexto histórico, em que procuramos apresentar um panorama das condições socioculturais
e políticas da União Soviética, desde o final do século XIX até o início da segunda metade do
século XX, os membros que constituíam o coletivo pensante bakhtiniano, a própria ideia de
círculo (krug), as pesquisas e experimentos com a linguagem, os diálogos estabelecidos pelos
pensadores russos e a(s) recepção(ões) do pensamento do Círculo no Ocidente; 2) a noção de
linguagem ao longo do tempo a partir de autores e movimentos com os quais o Círculo
estabeleceu algum tipo de relação em seus textos; e, por fim, 3) os escritos do autores do
Círculo, nos quais tivemos o intuito de demonstrar como os estudiosos russo mobilizam o
conceito de linguagem a partir dos fatores anteriores. Como limites de atuação, tivemos
constante em nosso horizonte os campos da Filosofia, da Linguística e das artes –
entrecruzamento em que o Círculo “B.M.V.” se situa - para balizar a abordagem do nosso
estudo. Desse modo, então, é que pudemos evidenciar tal concepção de linguagem presente na
filosofia da linguagem bakhtiniana.
Contudo, ao definir teoricamente as bases para a concepção de tridimensionalidade
verbicovocovisual da linguagem no cerne do pensamento desses autores russos, uma segunda
questão nos é colocada: qual(is) a(s) implicação(ões) de tal formulação teórica para os
procedimentos analíticos de enunciados? Qual(is) o(s) encaminhamento(s), as “etapas” de
análises? Em outros termos: como operamos metodologicamente em nossas pesquisas a partir
desse conceito de linguagem evidenciado teoricamente nas obras bakhtinianas?
Juntamente a essa pergunta, está também o questionamento “como se dá a
manifestação tridimensional da linguagem, ou seja, de que modo as dimensões
verbivocovisuais da linguagem aparecem em enunciados aparentemente constituídos por uma
única materialidade (verbal, visual ou sonora – romance, pintura ou concerto). Esse tema nos
parece ser mais secundário em relação ao anterior, uma vez que nos surgiu já em nosso
trabalho precedente e que procuramos respondê-lo em algumas oportunidades (LUCIANO,
2021; PAULA, LUCIANO, 2020b, 2020d). Ainda assim, retomá-lo-emos para melhor
evidenciá-lo, de modo que sejam essas – a metodologia de análise e a manifestação
tridimensional da linguagem – as duas questões a serem respondidas em nosso estudo atual.
É desse desdobramento – explicitado de forma sintética – que a nossa tese emerge.
Nesse sentido, em nosso projeto de Doutorado, propomo-nos compreender as manifestações
das dimensões verbivocovisuais da linguagem nas materialidades enunciativas e as
possibilidades metodológicas no tratamento analítico dessas potencialidades constitutivas do
ato. Desse modo, centrar-nos-emos em três diferentes materiais sígnicos: o poema “De V
internacional” (1922), de Vladimir Maiakóvski; o quadro Composição VIII (1923), de Wassily
Kandinsky; e a Quarta Sinfonia (1936), de Dmitri Chostakóvich1, que compõem o corpus
desta investigação. A partir do estudo desses três objetos, temos o intuito de verificar: a) a
manifestação das dimensões verbivocovisuais que constituem a linguagem em sua
concretude; b) como essas dimensões organizam-se, articulam-se e interrelacionam-se, de
acordo com cada material semiótico, em seu potencial valorativo para a produção de sentido
no ato enunciativo; c) a relação dos enunciados estéticos supracitados com a proposição
filosófica formulada pelo Círculo acerca da linguagem, compreendendo ambas as produções
(teórica e estéticas) inseridas em um contexto maior de reflexão em torno da linguagem na
União Soviética durante o século XX; e d) os encaminhamentos para uma metodologia nos
estudos bakhtinianos na abordagem discursiva.
A escolha dos referidos enunciados estéticos para compor nosso objeto de pesquisa
está vinculada à proposta de analisar como a tridimensionalidade da linguagem
verbivocovisual se manifesta no ato enunciativo, conforme apresentado em nossos trabalhos
anteriores, e obedece a critérios teórico-metodológicos que estabelecemos na relação com os
nossos objetivos. Os aspectos que determinaram a seleção do corpus são: a) três artistas
russos contemporâneos aos membros do Círculo; b) autores-criadores que fossem
representantes de suas respectivas linguagens ao mesmo tempo em que pensam a interrelação
entre elas. Esses dois primeiros critérios nos permitem escolher um artista para cada
materialidade da linguagem (verbal, sonora e visual), bem como nos concedem a
possibilidade de demonstrar como a concepção de linguagem formulada pelo Círculo B.M.V.
está inserida em um contexto de reflexão maior na União Soviética acerca da linguagem, feita
tanto por teóricos como por artistas, segundo nos aponta Chklóvski (apud

1
Cabe-nos ressaltar que, em função da vasta produção dos artistas, a delimitação do corpus encontra-se em
andamento, podendo ser alterada conforme a necessidade da pesquisa.
SCHNAIDERMAN, 1971, p. 14). Por conseguinte, delimitamos os nomes do poeta
Maiakóvski, do pintor Kandinsky e do musicista Chostakóvich.
Para o desenvolvimento do trabalho, do ponto de vista da fundamentação teórica e
metodológica, por um lado, calcamo-nos no método sociológico, assim como propõe tanto
Bakhtin (2011) quanto Medviédev (2012) e Volóchinov (2017; 2019) para alicerçar nossa
pesquisa, no qual os pensadores russos consideram a relação eu-outro em contínuo
movimento, de modo dialético-dialógico, pois retoma e repensa o movimento proposto por
Marx:

O que importa é o movimento, tanto para o Círculo de Bakhtin quanto para


Marx.. [...] as relações tese (afirmação), anti-tese (negação da afirmação) e
síntese (negação da negação, logo, uma nova afirmação, distinta da primeira)
considerando esta última como uma superação do embate travado nas duas
anteriores; enquanto que, para o Círculo, o movimento é dialógico (ou
dialético-dialógico) porque, apesar de considerar o movimento dialético
(com todos os seus elementos: tese, anti-tese e síntese), não admite a síntese
como superação, mas como continuação do diálogo travado anteriormente,
uma vez que modifica aparentes extremos, ao considerá-los e movimentá-los
(a negação da negação é vista como nova afirmação, não totalmente distinta,
mas também não homônima à primeira. Ninguém tem razão e nada é
superado. Relativiza-se os pontos de vista, que se modificam no jogo
dialético-dialógico), logo, a convivência dos opostos tese e anti-tese, que
digladiam no discurso por meios das vozes sociais, é o centro da cena, ou
seja, a relação eu/outro. (PAULA L, FIGUEIREDO, PAULA S, 2011, p
13-14)

Desse ponto de vista, um sujeito-enunciado não interage apenas dialeticamente com


outro sujeito-enunciado (tese, anti-tese e síntese, conforme propõe Marx e Hegel), mas
também dialogicamente, pois não há síntese ou superação, a síntese passar a ser uma nova
tese, à qual será respondida, em um movimento inconcluso e em espiral, no qual os
sujeitos-enunciados se modificam e se renovam a cada interação.
Ao olharmos para o corpus sob esse viés, entendemo-lo na interação com outros
enunciados anteriores e posteriores a ele, os quais são trazidos para discussão por meio do
cotejo. Em outros termos, tanto a pintura, quanto o poema e a sinfonia são aqui estudados na
relação entre si e com outras produções artísticas ou correntes teóricas (o que inclui a filosofia
da linguagem bakhtiniana) pertencentes ao contexto da União Soviética ou a tradições as
quais se filiam. Ademais, há de se considerar tais objetos estéticos em constante relação arte e
vida. Do mesmo modo, as etapas de desenvolvimento de trabalho também não são estanques e
são executadas simultaneamente na relação com os demais processos da pesquisa.
Por outro lado, além dos conceitos já utilizados no Mestrado, a saber, sujeito,
enunciado, diálogo, acrescentaremos a noção de gêneros discursivos, a qual estabelecerá e
evidenciará a relação entre a linguagem e sua tridimensionalidade verbivocovisual com o
entendimento de materialidade enunciativa, calcada na ideia de enunciado/ato, pois, conforme
temos nos esforçado a elucidar, há uma distinção (ainda que só possam ser entendidas na
relação) entre a concepção de linguagem e enunciado na filosofia bakhtiniana, que, muitas
vezes, não é considerada ou é pouco clara em nosso campo. O conceito de sujeito, sobretudo
ligado à ideia de consciência, permitir-nos-á compreender a posição exata do indivíduo no elo
com o signo e o mundo exterior, isto é, perceber como a materialização da existência passa
efetivamente pela participação ativa do sujeito, enquanto ser psíquico (vida interior), na
relação com o outro (vida exterior) por meio da linguagem, de modo que a construção
enunciativa só pode ser entendida nesse jogo interior e exterior. Daí, então, a necessidade de
se pensar também essa noção associada aos conceitos de enunciado (que nos remete à
estrutura social no qual o ser está inserido), de diálogo (no intuito de compreender o processo
de constituição da vida na relação, constantemente de forma dinâmica e ininterrupta, e de
maneira mais ampla do que “apenas” como relação eu-outro) e de gêneros discursivos (em
que poderemos apreender o papel do material semiótico nesse jogo).
´É claro que, segundo propõe o método utilizado em nosso trabalho, não nos
limitaremos a tais concepções acima mencionadas, visto que uma só pode ser compreendida
em conexão com as demais, todavia, por uma impossibilidade em tratar de todas com afinco e
por questão de delimitação, nos dedicaremos com afinco nessas quatros noções, incorporando
em um segundo momento também os conceitos de forma composicional e forma
arquitetônica.
Desse modo, a pesquisa se propõe colaborar com a área ao ampliar as possibilidades
teóricas e metodológicas de análises de enunciados de configurações materiais as mais
diversas. Para isso, refletimos a respeito da pertinência da teoria bakhtiniana como
fundamentação teórico-analítico-metodológica para a abordagem de estudos de enunciados
contemporâneos (semiotizados com ênfase no vocal, no visual ou na síncrese entre as
dimensões verbal, vocal e visual), com outras possibilidades de organização da estrutura
social.
Ademais, esta proposta busca contribuir para a promoção de uma Educação de
Qualidade, em consonância com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da
Agenda 2030 da ONU. Assim, a reflexão sobre a linguagem enquanto constitutiva do ser, das
relações humanas e da sociedade que empreendemos em nosso trabalho visa proporcionar aos
alunos conhecimentos e habilidades necessárias acerca da linguagem como ato discursivo, de
maneira que sejam capazes de utilizá-la como instrumento discursivo na transformação social
para a consolidação de “direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de
paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição
da cultura” (ODS 4.7).
Em relação à estrutura para a preparação e construção de nossa tese, desenvolveremos
a investigação alicerçada nos três pilares imprescindíveis para nós, os quais serviram de base
durante a dissertação, a saber: a) contexto histórico; b) as perspectivas com as quais
dialogaram os artistas e pensadores russos; c) as obras bakhtinianas, bem como as de
Maiakóvski, Kandinsky e Chostakóvich (o que inclui também os textos teóricos desses
autores). Contudo, diferentemente do trabalho anterior, agora, temos como pretensão o
aprofundamento do cenário apresentado até o momento, de modo que nos centraremos,
principalmente, no período da década de 20 ao início dos anos 30, época em que tanto o
coletivo pensante bakhtiniano quanto os artistas que compõem o corpus desenvolveram os
seus trabalhos principais Ademais, as discussões realizadas se voltaram para os campos da
filosofia, linguística e das artes (especificamente pintura, música e literatura), nos quais se
situam os intelectuais russos abordados em nosso trabalho2. Acrescentamos, ainda, a esses
dois pontos o fato de que a reflexão feita será direcionada também para a natureza
metodológica das produções dessa fase, além do caráter teórico que vem sendo apresentado
em nossas pesquisas.
Nesse sentido, a partir da contextualização buscamos demonstrar como nos primeiros
anos do século XX na União Soviética (chegando ao seu ápice nas décadas de 20 e 30) havia
uma espécie de movimento geral entre artistas e estudiosos da linguagem no qual tinha como
um dos princípios de investigação do signo a relação entre os diferentes materiais sígnicos.
Em outras palavras, os intelectuais russos que se debruçaram sobre a linguagem assim o
faziam por meio da correlação entre as linguagens visuais, verbais e sonoras, de modo a
destacar suas aproximações e diferenças. Dessa forma, observamos uma premissa nos
principais estudos da linguagem na União Soviética no início do século XX. Com isso,
quando nos deparamos com os trabalhos do Círculo, Maiakóvski, Kandinsky e Chostakóvich
inseridos nesse quadro geral em torno do signo, percebemos que não se tratam de propostas
isoladas, mas, ao contrário, que convergem em certa medida com o modus operandi do

2
É evidente, claro, que, de acordo com o método explanado aqui, a depender da circunstância e em favor dos
objetivos de pesquisa, relacionaremos as questões tratadas com outros períodos e com outras áreas. O que
pretendemos destacar é que nos deteremos com mais atenção dispensada para a delimitação realizada na tese.
período. Cabe-nos ressaltar, em tempo, o termo “certa medida”, pois não temos o propósito de
homogeneizar a visão sobre essa época e dizer, com isso, que os trabalhos eram “iguais” ou
não possuíam diferenças entre si. Certamente, segundo é possível constatar, cada
pensador/círculos – e incluímos nessa categoria os artistas – desenvolvia suas formulações
partindo de distintas visões teóricas, algumas com ênfase em uma abordagem mais
cognitiva/psicológica, outras sob o viés marxista ou formalista, dentre outras. Contudo, o que
temos podido constatar é que havia uma unidade no fazer (método) desses estudos, a qual era
pensar as linguagens em relação umas com as outras.
Essa primeira ideia nos conduz, por sua vez, ao nosso segundo eixo: o diálogo entre as
pesquisas soviéticas com os trabalhos dos autores estudos por nós. Aqui, pretendemos tratar a
maneira como os trabalhos dos estudiosos da linguagem destacados no contexto contribuíram
um com os outros para elaborar suas construções conceituais, seja por meio da convergência
ou divergência teórica. Assim, teremos condições de estabelecer as aproximações e
distanciamento dos trabalhos desse período e compreender como colaboraram tanto para a
concepção de linguagem delimitada pelo Círculo, Maiakóvski, Kandinsky e Chostakóvich
quanto para o percurso metodológico na abordagem do problema do signo. Tal exame nos
permitirá identificar possíveis ocorrências de processos metodológicos que poderão auxiliar
em nossa proposição a respeito de análises verbivocovisuais.
Por fim, no terceiro vértice, apoiar-nos-emos nos textos teóricos do Círculo, bem como
dos artistas que compõem nosso corpus, a fim de encontrarmos encaminhamos metodológicos
que possibilitem a proposição de uma metodologia e análise tridimensional de enunciados
feita a partir das obras estéticas selecionadas.
Após uma extensa – e necessária – situacionalização do percurso de pesquisa e os
direcionamentos a serem tomados. Nesse texto, faremos um recorte de nosso trabalho, a fim
de apresentarmos dois pontos em específico que temos nos dedicados e desenvolvidos até o
presente momento: 1) o contexto histórico; e 2) a questão musical no Círculo. Para tanto,
organizamos a escrita da seguinte maneira, para tratar a respeito da contextualização
retomaremos algumas ideias principais que temos apresentado ao decorrer de nossos estudos e
acrescentaremos descobertas recentes pertencentes a essa nova etapa de pesquisa.

A reflexão sobre a linguagem na União Soviética: interrelações semióticas

Inicialmente, para recuperação das ideias centrais acerca do contexto soviético de


pesquisas e reflexão em torno da linguagem, destacamos dois trabalhos nossos que se
voltaram a essa temática (PAULA; LUCIANO, 2020a, 2020c), além da dissertação. O
primeiro aspecto a se destacar é a forte intersecção entre as artes, que se encontrava, no início
dos anos 20, em seu momento de maior potencialidade expressiva, conforme podemos
constatar nas palavras de Schnaiderman:

a interpenetração das artes encontra então seu momento privilegiado. A


relação dos poetas cubo-futuristas russos com a pintura3 e o cinema; a
preocupação dos próprios simbolistas, sobretudo Andréi Biéli, com a
problemática do signo; as experiências teatrais de Meyerhold, Taírov,
Vakhtangov e outros, que ampliaram o campo de ação do teatro, visto na
totalidade dos elementos visuais e sonoros, enquanto a própria semiótica do
teatro já era iniciada com os trabalhos de P. Bogatirév; os projetos
arrojadíssimos de Tátlin, em que a escultura e a arquitetura se fundiam e
criavam-se conjuntos giratórios emissores de sons; as experiências gráficas
de El Lissitski, que elevavam a tipografia à condição de arte maior; enfim,
são realizações e mais realizações, todas no sentido de expressar uma das
aspirações máximas do século: arte, ciência e técnica, fundidas numa
totalidade e oferecidas ao homem para uso cotidiano. (2010, p. 18-19, grifos
nossos)

Soma-se, ainda, a esses exemplos também as produções de Mikhail Mikhaylovich


Ivanov (1849 – 1927), que foi crítico musical com trabalhos relacionando literatura e música
como Púchkin em música; a atuação de roteirista feita pelos teóricos da literatura Víctor
Chklóvski e Óssip Brik; Boris Eikhenbaum, outro formalista russo, escreveu Literature e
Cinema em 1926 e, em 1927 editou um compilado de estudos sobre cinema com o título The
Poetics of Cinema, publicado em Leningrado; a transição de Eisenstein do teatro para o
cinema e seu interesse pela sinestesia; as próprias produções do citado El Lissitski que
buscava não apenas a elevação da tipografia como arte maior mas também a integração da
palavra e imagem; A. Krutchônikh com seus notáveis experimentos em relação à poesia
visual, o representante por excelência da záum, ou também denominada poesia transmental; as
fotomontagens de Rodtchenko. Os artistas que constituem nosso corpus se inserem nesse
conjunto de propostas: o compositor Chostakóvitch fez, durante o período de censura,
diversas trilhas para o cinema, era também influenciado pela a poesia de Anna Akhmátova; o
pintor Kandinsky era igualmente poeta e músico, produziu a série de quadros Composição em
que estabelece relação entre som e imagem; e Maiakóvski atuava como diretor, cenógrafo,
ator em produções teatrais, participou de trabalhos de Meyerhold, colaborou com projetos
estéticos em parceria com o cineasta Dziga-Viertov e com Ródtchenko, bem como sua intensa

3
Salientamos a íntima comunhão entre poesia e artes plásticas como uma característica acentuada nos principais
movimentos do começo do século XX.
relação com a poesia visual, sendo um dos principais representantes do Simbolismo e do
Cubo-Futurismo (SCHNAIDERMAN, 1971; 1997; 2010). Inclusive, a figura de Maiakóvski
parece-nos ser o melhor exemplo de integração de linguagens ao realizar atividades em
diferentes campos e em colaboração com diversos artistas.
De fato, trata-se de um amplo quadro de efervescente produção intelectual com vistas
à interrelação das linguagens, momento em que estavam inseridos o coletivo pensante
bakhtiniano, Maiakóvski, Chostakóvitch e Kandinsky, os quais participavam de forma ativa
da construção do espírito da época. A situação geral dos trabalhos na linguística, por exemplo,
como afirmou Ivanova (2011), também seguia essa tendência e havia uma intensa pesquisa
neste período e que vinha desde final do século XIX e começo do XX, tendo seu auge nos
anos 20. A linguística soviética buscou novidades em diferentes campos de criação do teatro a
belas-artes, passando pela música e literatura, com o intuito de criar objetos, materiais e
caminhos e metodologias. No entanto, segundo podemos notar, tal processo não se restringiu
a esse campo, mas caracteriza um modo de reflexão em torno da linguagem em todas as áreas,
com finalidade pensar a vida e suas relações éticas.
Esse movimento nas pesquisas soviéticas teve como elemento catalisador leituras que
contribuíram para a agitação e renovação cultural, a título de ilustração, destacam-se as obras
de Karl Marx e Friedrich Engels, Nietzsche, Baudelaire, Richard Wagner e Da Vinci (BRAIT;
CAMPOS, 2009). Cabe-nos apontar que consistem em autores os quais também apontavam
para a potencialidade expressiva da linguagem na relação entre os signos, conforme o fez o
músico alemão ao formular o conceito de drama musical, em que concebe os aspectos
dramático, literário e musical como um conjunto unitário na constituição da ópera ou como o
pensador italiano ao refletir sobre a unidade do homem em seus múltiplos trabalhos como poeta,
escultor, músico, arquiteto, anatomista, segundo postulava o próprio mundo renascentista.
A cena verbivocovisual exposta acima pode ser ainda evidenciada uma vez mais a
partir de registros fotográficos desse período, em que encontramos alguns dos artistas
supracitados, entre outros conhecidos na época. Ademais, as imagens abaixo intensificam os
três pontos levados por nós, a saber, a intersecção de linguagem; a colaboração entre artistas
de diferentes campos das artes; e a figura de Maiakóvski como um personagem que
unificavam as vertentes em torna do signo.
Figura 1 - De pé: Maiakóvski e Ródtchenko; sentados: Chostakóvitch e Meyerhold. No
ensaio para a peça O percevejo, de Maiakóvski. Aleksei Temerin, 1929.

Fonte: Página Literatura Russa (Facebook)


Figura 2 - Vladimir Maiakóvski com um grupo de estudantes da Escola de Pintura, Escultura
e Arquitetura (1912)

Fonte: The History of Russia in Photographs (Multimedia Art Museum, Moscow) 4

4
Disponível em: https://russiainphoto.ru acesso 13 de abril 2022.
Figura 3 - Vladimir Maiakóvski com amigos e conhecido no workshop de Nikolai Kulbin.
Sentado: Nikolai Kulbin5, Olga Rozanova6, Arthur Lourié 7, Wassily Kamensky8; em pé:
Maiakóvski, segurando o retrato de Georgy Yakulov 9 (1915)

Fonte: The History of Russia in Photographs (Multimedia Art Museum, Moscow)

5
Pintor futurista russo, músico e teórico.
6
Artista visual ligada ao Suprematismo e ao Cubo-Futurismo.
7
Músico.
8
Poeta futurista.
9
Pintor, artista gráfico, decorador, cenógrafo e teórico da arte.
Figura 4 – Diretor de teatro Vsevolod Meyerhold, compositor Sergei Prokofiev e o pintor
Alexander Tyshler em foto durante os ensaios da ópera Semyon Kotko, de Prokofiev (1939)

Fonte: Pinterest10

A efervescência cultural da época registrada nos exemplos acima por meio de imagens
e relato de pesquisadores marca também a presença de uma recorrente entre os intelectuais
desse período, denominada de “Terceiro Renascimento”11 (BRANDIST, 2002; MEDVIEDEV;
MEDVIEDEVA; SHEPERD, 2015), que dominaria o país no início dos anos 20. Esse
pensamento vinha desde o começo do século e foi idealizado por F. F. Zelinski e reelaborado
pelas visões dos simbolistas I. F. Annenski e V. I. Ivanov. A forma como se referiam à Vitebsk
comprova isso, pois esta cidade foi o terreno profícuo para o desenvolvimento dela. E é sobre
essa temática que pretendemos nos voltar agora a partir do trabalho de White e Peters (2017).
Sendo um lugar de refúgio da fome e da guerra num primeiro momento para diversos
intelectuais, Vitebsk tornou-se uma cidade de atmosfera criativa a densa, com muitas
atividades culturais de cunho vanguardista e uma notável variedade de princípios de
criatividade. Nela, encontravam-se, no início dos anos 20, coletivos, como Os Campeões da
Nova Arte (UNOVIS), escola de Kazemir Malevich, e o começo da formação do Círculo
“B.M.V.”, além da presença de artistas como Marc Chagall e Lissitski.

10
Disponível em: https://www.pinterest.ru/pin/427067977166644403/ acesso 13 de abril de 2022.
11
A ideia consiste na compreensão de um relato cíclico da história em que o crescimento, declínio e
renascimento da cultura se repetem. Tornou-se uma nova forma de eslavofilismo, com defensores argumentando
que o primeiro Renascimento havia sido italiano e o segundo alemão, o terceiro seria eslavo.
Desse modo, o Círculo não se limitou à filosofia acadêmica, mas se envolveu
inteiramente com a vida cultural da cidade. Medviédev assumiu o cargo de reitor da
Universidade Proletária de Vitebsk, o qual serviu como equivalente de prefeito de Vitebsk por
um tempo, bem como se tornou editor do jornal cultural da cidade, Iskusstvo (Arte), no qual
ele e Volóchinov contribuíram com artigos. Bakhtin realizou palestras sobre Nietzsche,
ensinou literatura no Instituto Pedagógico e História, e Filosofia da música no Conservatório.
De acordo com White e Peters (2017), esse fato leva estudiosos e pesquisadores do
Círculo a, pelo menos, questionarem a possibilidade de encontro entre os coletivos. Haynes
(2013) afirma que tanto Chagall quanto Malevitch não chegaram a conhecer o Círculo,
enquanto Shakskikh (2007), Katsnelson (2006), e Hirschkop (1999) apontam para uma
aproximação. No entanto, não há registros que possam encerrar a questão, seja para um lado
ou para outro. Nesse sentido, compartilhamos com a posição dos pesquisadores de que,
independente de haver tido ou não uma troca física, é evidente – e isso é possível observar
pelos textos dos intelectuais – um compartilhamento de ideias entre o coletivo pensante
bakhtiniano e a vanguarda russa, sobretudo o interesse pela relação arte e vida.
Nesse período, havia a preocupação entre esses intelectuais viventes em Vitebsk de
examinar uma posição filosófica sobre criatividade e compreensão da responsabilidade
estética no contexto ideológico da vida, isto é, a função social da obra de arte. É dessa época,
por exemplo, o manifesto suprematista de Malevitch e o texto “O autor e o herói na atividade
estética”, de Bakhtin.
Sob a liderança de Chagall, a Escola de Arte do Povo direcionou-se para uma teoria da
arte consonante aos princípios contemporâneos, embora menos radical que Malevitch. Foi
aqui que o gênero agitprop12 se firmou como meio de disseminação de ideias políticas. A
escola de Chagall tinha como cerne em seu trabalho os objetivos democráticos de levar arte
para as massas através da educação e exposição de arte na experiência cotidiana. Com isso, o
coletivo vanguardista oferecia instrução a camponeses e ao povo, jovens e velhos, sem
barreiras à participação. Ao fazê-lo, o sujeito foi assim formado por meio de uma relação
genuína com a vida cotidiana, o que, inevitavelmente, levou a uma abertura para a
coexistência de visões de mundo de mundo ou, em termos bakhtinianos, para a presença de
uma plurivocalidade discursiva. Tal posicionamento converge com o Círculo, ao retomarmos
a ideia de que todo ato, neste caso estético, vive fundamentalmente na fronteira dialógica da

12
Abreviação de Departamento de Agitação e Propaganda. Termo aplicado aos meios de comunicação populares
que tinha como função a promoção e disseminação dos ideais soviéticos.
vida e que abstraído dela, perde a alma, torna-se vazia, desintegra-se e morre (BAKHTIN,
2015)
A esse respeito, de maneira semelhante, mas com sua particularidade estilística e do
material semiótico, Maiakóvski busca estabelecer a relação arte e vida em seu projeto estético.
Em seus manifestos artísticos “Cartas sobre o futurismo” e “Nosso trabalho vocabular”, de
1922 e 1923, respectivamente, constatamos a procura do poeta russo pela derrubada dessa
barreira entre a função comunicativa da linguagem, a função da poesia e da prosa. Não há
mais distinção de temas, imagens e objetivos entres esses discursos. Os futuristas trabalham
“com a organização dos sons da língua, a polifonia do ritmo, a simplificação das construções
vocabulares, a precisão da expressividade lingüística, a elaboração de novos processos
temáticos” (MAIAKÓVSKI, 1971 [1923], p. 222), com a finalidade de melhor abordar os
fatos da atualidade. A arte, nas palavras de Maiakóvski (1971 [1924], p. 114), devia “ligar-se
estreitamente com a vida (como função intensiva desta). Fundir-se com ela ou perecer”.
Essa proposta de estudo estabelecida pelos intelectuais era uma forma de fazer a arte
penetrar na vida e esta na arte, de modo a construir novas possibilidades de apreensão das
experiências sociais que se constituíam naquele momento por meio da experimentação da e
com a linguagem. Nesse sentido, concordamos com a afirmação de White e Peters (2017, p.
926) a respeito dos acontecimentos em Vitebsk:

É por esta razão, nesta interseção crucial de Vitebsk, que nos demoramos –
entre uma coincidência dialógica do Círculo de Bakhtin e o movimento de
vanguarda neste momento histórico em que, embora mais tarde sufocado na
sociedade totalitária russa, esse coletivo criativo começou importantes
discussões filosóficas que iriam influenciar o mundo mais amplo de
maneiras profundas13.

Sem dúvida, diante dos apontamentos acima, a cidade de Vitebsk tornou-se um local
crucial para o intercâmbio de ideias e disciplinas em meio aos acontecimentos na União
Soviética. De maneira mais especial para a base da relação entre coletivo pensante
bakhtiniano e as vanguardas russas emergentes daquele momento, as quais contribuíram
fortemente para o desenvolvimento das ideias soviéticas no período dos anos 20. Elas
possibilitaram uma espécie de mistura fortuita de personalidades e práticas que foram
combustíveis para as energias criativas. Para o Círculo, especificamente, as trocas tidas

13
No original: It is for this reason, at this pivotal Vitebsk intersection, that we linger—between a dialogic
coinciding of the Bakhtin Circle and the Avant-Garde movement at this historical moment where, while later to
be stifled in totalitarian Russian society, this creative collective began important philosophical discussions that
were to influence the wider world in profound ways.
durante a estadia na cidade foram tão frutíferas que, neste momento, é quando os estudiosos
do Círculo “elaboraram as linhas mestras do que realizaram em Leningrado” (GRILLO, 2012,
p. 21). Linhas estas que, segundo Brandist, consistiam no desenvolvimento de uma filosofia
da linguagem e da significação em geral, com particular referência ao material literário, posto
que a vida se constitui tridimensionalmente e só possível apreendê-la e concretizá-la por meio
das, nas e pelas linguagens verbal, visual e verbal.
Além disso, outro ponto pertinente para a nossa discussão é demonstrar como o
procedimento metodológico de reflexão se aproxima na formulação teórica dos autores. Para
isso, do mesmo modo que mostramos a convergência entre o Círculo e Maiakóvski acerca da
relação arte e vida e construção de um método que alie a análise formal e sociológica da obra
de arte (PAULA; LUCIANO, 2020c), neste momento estabeleceremos brevemente a relação
entre as ideia de Kandinsky e do coletivo pensante bakhtiniano acerca da manifestação e
interdependência dos signos.
Kandinsky pode ser visto como um multi-intelectual, uma vez que, durante sua
carreira, dedicou-se à música, à poética e à pintura, ainda que seja reconhecido quase
exclusivamente por esta última. Além disso, o pintor russo lecionou em Bauhaus entre os anos
de 1922 e 1933 (ano de fechamento pelos nazistas), escola de vanguarda que tinha como uma
de suas propostas a combinação entre a pintura, arquitetura, música, teatro e outras artes. Eis
que encontramos, aqui, as primeiras convergências que nos indicam para uma compreensão
interrelacional da linguagem.
Tal posição de Kandinsky e do Círculo se manifestará desde a abordagem que cada
autor14 desenvolverá em suas produções teóricas. O primeiro, ao analisar o movimento de
interiorização do homem na arte, debruça-se sobre o procedimento na literatura, na música e
na pintura, de maneira a compreender como ocorre em cada materialidade semiótica a partir
de suas especificidades técnicas. Por exemplo, em Maeterlinck, a palavra poética é
determinada na alma pela entonação em que é pronunciada, gerando uma complexa vibração
interior. Na música, isso ocorre por meio de leitmotiv puramente musical, no caso das obras
de Wagner. E na pintura aparece com as manifestações impressionistas, na quais tendem para
o abstrato (KANDINSKY, 1996).
Ao estudar as categorias de espaço e tempo, Bakhtin (2011) utiliza o mesmo recurso
tomado pelo pintor russo. O filósofo aponta o nível de abstração que há na categoria espacial,

14
Em relação ao Círculo de Bakhtin, compreendemos uma única autoria realizada coletivamente. Por isso,
referência ao grupo como “um autor”.
sendo plenamente realizada nas artes visuais devido ao material externo e menos concretizada
na música, que se manifesta mais plenamente na forma temporal do material externo.
Todavia, a aproximação efetiva entre Kandinsky e o Círculo B.M.V no que se refere a
uma concepção interrelacional da linguagem se dá explicitamente no entendimento da geral
da arte, e da linguagem, expostas por cada autor em seus textos. Assim encontramos em Do
espiritual da arte, do pintor, e em “O Problema do texto” do filósofo:

Cada arte, ao se profundar, fecha-se em si mesma e separa-se. Mas


compara-se às outras artes, e a identidade de suas tendências profundas as
leva de volta à unidade. Somos levadas assim a constatar que cada arte
possui suas forças próprias. Nenhuma das forças de outra arte poderá tomar
seu lugar. Desse modo se chegará, enfim, à união das forças de todas as
artes. (KANDINSKY, 1996, p. 59, grifos nossos)

Todo sistema de signos (isto é, qualquer língua), por mais que sua convenção
se apoie em uma coletividade estreita, em princípio sempre pode ser
codificada, isto é, traduzido para outros sistemas de signos (outras
linguagens); consequentemente, existe uma lógica geral dos sistemas de
signos, uma potencial linguagem das linguagens única (que, evidentemente,
nunca pode vir a ser uma linguagem única concreta, uma das linguagens).
(BAKHTIN, 2011, p. 311, grifos nossos)

Nos excertos acima, observamos não apenas a possibilidade de uma unidade geral das
linguagens, mas também a independência de cada material semiótico, sem viabilidade de que
um seja capaz de substituir o outro, visto que cada materialidade - com seus meios, formas e
princípios - expressa diferentes aspectos da realidade interior e exterior do homem e juntas
constituem a existência do ser e do mundo. A linguagem encontra-se sua unidade no sujeito,
por meio dela ele ganha existência, assim como, o signo só passa a ter concretude ao ser
in-corporado pelo homem na busca pela expressão de si e da realidade que o circunda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Certamente, os apontamentos feitos ao longo deste trabalho requerem e merecem


maior aprofundamento sobre o tema, que pretendemos realizar no decorrer do nosso projeto
de Doutorado, como um eixo complementar. Contudo, algumas apreciações são já nos
permitida:
A primeira, e talvez a mais evidente, refere-se à abertura para a possibilidade de
investigação teórica acerca da relação entre as ideias de Kandinsky e as do Círculo de
Bakhtin, sobretudo vista inserida dentro de um contexto maior de pesquisa na União
Soviética, entre artistas e cientistas da linguagem (papéis que, muitas vezes, se confundiam
em um único sujeito).
Em segundo lugar, é possível notarmos aparente recorrência metodológica nos estudos
desenvolvimentos no regime soviético na época em questão. Trata-se da acentuação, enquanto
método consciente e sistemático de pesquisa, de procedimentos comparativos entre as
artes/linguagens no estudo das categorias conceituais do signo. Isso nos fica evidente não
apenas reincidência que mostramos nos dois pensamentos apresentados e relacionados, mas
nas palavras de Kandinsky (1996), em que afirma não basta apenas comparar os
procedimentos entre as diferentes artes, é preciso “ajustar-se aos princípios de uma e de outra.
Uma arte deve aprender de outra arte o emprego de seus meios, inclusive os mais particulares,
e aplicar depois, segundo seus próprios princípios, os que são dela e somente dela” (p. 58),
sem esquecer-se que cada meio corresponde à particularidade de cada linguagem. Ainda
segundo o pintor, é em função disso, a busca por ritmo na pintura. Ademais, essa prática
aparece também nos trabalhos de Fortunatov (2010) que vai pensar a ritmo na prosa literária
na relação com arquitetura, na música e nas artes plásticas. Uspênski (2010), de modo
semelhante, reflete sobre os elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte, em
especial, na literatura e na pintura. O que nos parece, aqui, é que tal método, ao possibilitar
compreender as aproximações e particularidades de cada arte/linguagem, também permitiu
realizar as inovações e experimentações de/com linguagem na Rússia soviética. Observação
que converge com os dizeres de Kandinsky no prefácio à segunda edição de sua obra Ponto,
linha e plano (1970, p. 23), ao expor que o desenvolvimento analítico e sintético “afectou não
só a pintura mas também as outras artes ao mesmo tempo que as ciências ‘positivas’ e
‘humanas’”.
Por fim, uma última constatação, volta-se para o entendimento de uma noção de
linguagem interrelacional, tridimensional, que permeia os estudos desse período, em que as
dimensões verbal, sonora e visual estão constantemente no horizonte dos intelectuais russos.
É claro que a abordagem e enfoque na realização dessa prática são os mais diversos possíveis,
o que resultam em conclusões distintas em certa medida, por exemplo, Kandinsky o faz a
partir do viés subjetivo, pois buscava a emancipação da arte (posição semelhante à dos
Formalistas Russos), em resposta às tendências materialistas da época, que objetivavam ser o
objeto estético imitação direta da realidade. Ao contrário, o Círculo B.M.V formula suas
reflexões sob o viés do sociologismo, considerando a linguagem um objeto imanentemente
social, em oposição às correntes formais. Todavia, o que nos parece passível de constatação é
a compreensão de uma unidade geral da linguagem, a qual abrange as dimensões
verbivocovisuais, presente nas pesquisas na União Soviética.

REFERÊNCIAS

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