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ARTES DA CENA
Acredito que o projeto de pesquisa para o Mestrado do PPGAC que apresento tenha
todas as suas características em consonância com os interesses do curso, em especial seu
caráter multidisciplinar, ancorado na filosofia (política, semiótica), na dramaturgia
física, na História, inteiramente baseado na relação entre teoria e prática do discurso
cênico.
Tendo sido estudante do curso de graduação, e ainda tendo minha formação do ensino
fundamental e médio no Colégio de Aplicação da UFRJ, eu não saberia dizer se a
linguagem que desejo desenvolver enquanto pesquisadora se encaixa à UFRJ ou se foi a
própria instituição que gerou em mim essa linguagem. Em todo caso, sinto que falo a
mesma língua da instituição, e que meus anseios acadêmicos se fundam a seus trilhos
intelectuais, em especial ao PPGAC.
INCORPORAÇÕES
O projeto tem como objetivo discutir teoria e prática da elaboração coreográfica a partir do
conceito de citação e transmissibilidade do gesto, exposto por Isabelle Launay em seu
artigo A elaboração da memória na dança contemporânea e a arte da citação. Proponho
que o conceito seja discutido a partir de estudos de caso de duas obras coreográficas
contemporâneas, assim como através da elaboração prática de um objeto artístico criado em
diálogo com as fotografias do livro “Um Olhar Sobre o Brasil, a fotografia na construção da
identidade da nação” de Boris Kossoy.
Deste ponto de vista, o gesto, é em si uma entidade de alteridade e, ao ser capturado, ele
revela e promove estados psicofísicos: a relação ao peso, à gravidade, já contém um
humor, um projeto sobre o mundo (Godard, 1995). Pode assim o gesto, a partir de algum
processo de transmissibilidade, incorporar-se, manifestar-se através de um corpo que
também o transforma e age sobre ele.
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Para Mario Machado, a (re)encarnação agencia possibilidades de registro apresentadas
pela recriação e reativação [das obras de dança]. A reencarnação funda a ação de
registro (...) colocando em diálogos diferentes temporalidades e contextos, relacionando-os
e modificando-os. (Machado, 2012.) Ou seja, ao copiar, ou, ao refazer, compreende-se o
gesto enquanto documento histórico. Ele ganha assim um status de permanência enquanto
hieróglifo, escrita social.
Em diálogo com as idéias apresentadas por Launay, articulo, para a criação da cama
conceitual desta pesquisa, o que André Lepecki vem discutir em seu texto Coreopolitica e
Coreopolícia, publicado na revista ILHA (2011). Neste artigo, Lepecki observa alguns
conceitos a respeito da relação entre arte e política para então mergulhar na dimensão
materialista entre política e coreografia.
Vale citar o trecho a seguir: Pode-se dizer assim que, para além daqueles traços que
partilharia com a política (...), a dança operaria também como uma epistemologia ativa da
política em contexto. Andrew Hewitt, no seu livro Social Choreography (2005), leva até o
limite esse elo teórico-epistemológico-político-coreográfico, quando redefine o próprio
conceito de ‘coreografia’ ao enfatizar que a relação dança–política requer um modelo
analítico que entende essa relação como essencialmente não metafórica e profundamente
materialista. (Lepecki 2011)
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histórico? Quais processos de rememoração e de esquecimento estão contidos no ato do
refazer um corpo? E, além disso, como se dá a maquinaria de produção de sentido para
quem observa um corpo e um gesto citados, reencarnados, retirados de seu contexto
primeiro?
Como método de abordagem dos processos e conceitos acima citados, observar o uso
contemporâneo dos dispositivos de transmissibilidade de fisicalidades e gestos: um
sobrevoo sobre as poéticas coreográficas contemporâneas que dialogam com a citação
enquanto metodologia de criação. De antemão, interessam-me duas obras específicas, de
duas artistas brasileiras atuais. São elas Eleonora Fabião e seu programa performativo
“Saudades do Brasil”, e a artista Dani Lima e sua obra coreográfica intitulada 100 Gestos.
Nesta ação, Eleonora está citando o corpo fotografado. Cópia (da fisicalidade), citação (ao
extrair do corpo seu contexto) e o original (a fotografia) se deitam, lado a lado, para outros
observem. O resto é dar “tempo ao tempo”.
Ao que se refere a artista quando, na descrição de seu programa performativo, sugere dar
“tempo ao tempo”? O tempo da observação que perfura a história e pode, então, perceber a
encarnação do corpo do passado, citado e portanto, materialmente presente enquanto gesto,
presença e discurso? O tempo de se perceber a dobra que a refeitura do gesto causa no
tempo cronológico?
Pretendo, durante minha pesquisa de mestrado, ser capaz de analisar, dispondo de mais
ferramentas, as ações acima apresentadas. Entrevistar as artistas, pesquisar suas
metodologias, estudar os registros das obras assim como suas reverberações, serão etapas
dos meus procedimentos de pesquisa.
Interessam-se os corpos que vamos encontrar nas fotografias deste livro, suas formas,
gestualidades, posturas. Interessa destacar estes corpos de seus contextos, e ao mesmo
tempo, olhá-los através de seus contextos – citá-los. A extração completa do contexto da
realidade primeira da fotografia e a relação disto com a força do gesto, enquanto
vocabulário, unidade autônoma de informação. Os corpos registrados nas fotografias
desta obra serão os “originais” das alteridades citadas no processo de criação deste
inventário de gestos, como um armário de roupas.
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Trago o trecho abaixo, retirado da tese Fotografia e memória: a criação de passados, de
Rogério Luiz Silva de Oliveira (Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade, UESB) para ilustrar um pouco as questões que me interessam e que são
relativas à natureza da fotografia e sua relação com o passado, a memória e a ficção:
Cito aqui a atenção que Boris Kossoy dá ao que chama de desmontagem do signo
fotográfico. Isso se dá a partir de uma análise iconográfica, por meio da qual se busca
fazer uma verdadeira arqueologia do documento. Uma análise que seria possível a partir
de duas linhas distintas e multidisciplinares de análise, a fim de decodificar informações
explícitas e implícitas do documento fotográfico. Na primeira delas, sugere-se fazer uma
reconstituição do processo que originou a fotografia. Determina-se os elementos que
contribuíram para a sua materialização, seus elementos constitutivos, como o assunto,
fotógrafo e tecnologia. Considera-se, para tanto, a época e o lugar. Na segunda linha,
propõe-se uma recuperação do inventário de informações codificadas na imagem
fotográfica. Parte-se para uma minuciosa identificação dos detalhes icônicos que
compõem seu conteúdo. Nessa perspectiva teórica apontada por Kossoy, será levado em
consideração que o documento fotográfico é uma representação a partir do real.
Representação onde está registrado um aspecto selecionado de um real, organizado
cultural, técnica e esteticamente, portanto ideologicamente. Cabe notar, no entanto, que
esta não é a representação do real. (Rogério Luiz Silva de Oliveira, 2011)
O trecho acima aponta pra uma mão dupla de olhares: aquele que destaca a fotografia de
seu contexto e a observa enquanto uma lâmina de signos, e aquele que busca remontar o
contexto da captura fotográfica para então, sob essa luz, ler a lâmina de signos. Este me
parece ser justamente o mecanismo de citação enquanto ação de linguagem: criar um
deslizar entre signo e contexto, abrindo espaço para leituras, usos e insurgências do
sentido, e ao mesmo tempo, promovendo um vetor de observação para o contexto. Dessa
forma, uma citação poderia também funcionar como um hiperlink.
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Um exemplo excepcional deste deslizar entre gesto (signo documentado) e contexto
(histórico) é o videoclipe This is America, de concepção de Childish Gambino (Donald
Glover), coreografia de Sherrie Silver e direção de Hiro Murai.
Nesta obra, a coreografia criada por Sherrie é uma colagem de posturas e gestos de ícones
que dialogam com a cultura negra, o racismo e a luta antirracista através da história dos
Estado Unidos.
Na dupla de fotos acima, Gambino está fisicamente citando Richard Pryor nesta exata
fotografia. Pryor foi comediante, ator, cantor e escritor estadunidense que abordou o
racismo e a violência contra negros em seus textos humorísticos.
Estes são apenas dois exemplos da citação física como dispositivo de criação coreográfica
nesta obra icônica, expressando sua potência em alinhavar gesto, memória, experiência e
discurso.
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O videoclipe tem a duração de 4 minutos, e a repetição destes e de mais inúmeros gestos
citações produz um estado físico espasmódico no interprete. Seria este estado físico,
produzido pela repetição dos gestos que vem de contextos de violência e combate ligado
luta antirracista norte-americana, uma expressão psicofísica do corpo negro em sua situação
social e histórica nos Estados Unidos da América?
Segundo Kossoy: Por tais razões servem as imagens e os arquivos. Para que possamos
fazer essas e outras descobertas; para que possamos preservar a lembrança de certos
momentos e das pessoas que nos são caras; para que nossa imagem não se apague; para
que não percamos as referências do nosso passado, dos nossos valores, da nossa história,
dos nossos sonhos; para que possamos preservar as imagens dos desaparecidos e
torturados; para que tenhamos provas que fatos hediondos ocorreram, para que não nos
esqueçamos (KOSSOY, 2002, p. 130)
Repetir para que não nos esqueçamos, repetir o gesto, o corpo, para que, através de sua
reencarnação, possamos ouvir sua história, para que sua psicofisicalidade se faça
novamente viva e, portanto, agente no mundo.
Ou seja, investigar, ainda nas palavras de Lepecki: “(...) a capacidade imanente da dança
de teorizar o contexto social onde emerge, de o interpelar e de revelar as linhas de força
que distribuem as possibilidades (energéticas, políticas) de mobilização, de participação,
de ativação, bem como de passividade, [que] traria para essa arte uma particular força
crítica” (2011)
Seria a pratica da citação destes corpos um dispositivo para a criação de uma epistemologia
ativa da política em contexto (Lepecki, 2011), como ética de habitação do solo social e
histórico da cidade? Há, aí, uma potência de escavação historio-social do corpo enquanto
narrativa? Estaríamos criando uma topocoreopolitica, lendo e ao mesmo tempo
reescrevendo o chão, reinscrevendo-se no chão, por via do chão, (...) que deixe o chão
galgar o corpo, determinar os seus gestos, reorientando assim todo o movimento (...)?
(Lepecki, 2011)
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OBJETIVOS
Objetivos específicos:
. Realizar entrevistas com as artistas Eleonora Fabião e Dani Lima, buscando seus olhares a
respeito da pratica da citação enquanto método e discurso político
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. Investigar a fotografia como fonte de citação corporal
JUSTIFICATIVA
Modernizar o passado É uma evolução musical (...) Viva Zapata! Viva Sandino! Viva
Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.
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qual não se tem palavras adequadas ou símbolos que correspondam. (...)pode ser vista
como
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uma forma de proteção do eu ao empurrar a dor para fora (somatização). A experiência do
racismo, por ser tão hedionda, não pode, de fato, ser compreendida cognitivamente e a ela
ser atribuído um sentido. Em vez disso, "ela permanece não processada e é sentida no
corpo" (Kapla, 1999, p.147). A agonia do racismo é, portanto, expressa através de
sensações corporais expelida para o exterior e inscrita no corpo. A linguagem do trauma é,
nesse sentido, física, gráfica e visual, articulando o efeito incompreensível da dor.
(Kilomba, Grada. Memórias da Plantação, 1968, p 161)
Ao unir o acontecimento social ao psiquismo do trauma, Grada não deixa dúvidas sobre a
função do corpo enquanto aparato das forças políticas vigentes e também campo de
trabalho terapêutico.
Convocar a arte para trabalhar a História enquanto matéria ancorada no corpo é, para mim,
uma porta para lidar com questões estruturais da política colonial que recobre nossa nação.
O Brasil, um país de conteúdo trágico, vive todos os dias sua herança colonial escravocrata:
Um Racismo cotidiano não apenas como a reencarnação de um passado colonial, mas
também como uma realidade traumática que tem sido negligenciada. (Kilomba, Grada.
Memórias da Plantação, 1968, p 38)
Ao presente, portanto, cabe atacar com a astúcia da arte, para que esta sirva em sua
potência à elaboração do passado e à construção do futuro, entendendo um “conceito de
presente que não é passagem, mas no qual o tempo se fixou e parou. Esse conceito é
precisamente aquele que define o presente no qual ele escreve história para si.”
(BENJAMIN, Walter. O anjo da História).
Proponho este projeto de mestrado à academia, berço das diferenças, para que ela possa
sustentar esse passo ao encontro de uma dinâmica artística política e terapêutica : A ideia
de que se tem de escrever, quase como uma obrigação moral, incorpora a crença de que a
história pode ser interrompida, apropriada e transformada através da pratica artística e
literária. (Kilomba, Grada. Memórias da Plantação, 1968, p 38)
METODOLOGIA
Para descrever a metodologia que pretendo adotar, necessito organizá-la em módulos. que
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muitas vezes irão se sobrepor na cronologia do processo.
1 – Pesquisa teórica
Neste primeiro momento pretendo expandir minha rede de conceitos a partir dos conteúdos
teóricos que já fundamentam este projeto de pesquisa, criando um corpo teórico e
conceitual mais robusto, capaz de sustentar os passos que se seguem. São temas a serem
investigados: Fotografia e Memória, Fotografia e ficção, Cópia, citação e transmissibilidade
do Gesto na dança contemporânea, Gesto e política, Estados Psicofísico, Memoria
Muscular, Memoria na Neurociência, Memoria e História enquanto tecido político,
Memoria enquanto ficção, Procedimentos da Criação coreográfica contemporânea e
dispositivos de criação na dramaturgia física. Alguns teóricos já presentes na pesquisa são:
Isabelle Launay, André Lepecki, Eleonora Fabião, Boris Korroy, Franz Fanon, Grada
Kilomba, Jerome Bell, Walter Benjamin, Bergson, Brecht, Dani Lima e Jacques Ranciére.
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transmissibilidade, de Isabelle Launay, como um dos temas a serem discutidos no encontro.
Pretendo registrar em vídeo ou áudio o conteúdo das entrevistas e posteriormente
transcreve-los para que possam ser usados na escrita da dissertação.
Neste terceiro momento terei como foco o estudo do livro de Boris Kossoy acima citado.
Farei uma decupagem das impressões acerca das fotografias contidas na obra, realizarei
uma seleção das fotografias a serem trabalhadas na fase da pesquisa física.
4 – Pesquisa física
Aprofundarei na escrita a respeito dos estados psicofísicos e como esse tema estará sendo
elaborado na pratica coreográfica, assim como nos temas de corpo-memória anteriormente
citados.
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resultado com o público, seguida da coleta de impressões que será por mim transcrita.
A última parte será destinada a arrematar a escrita total da dissertação como corpo único.
Capítulos e sub capítulo serão desenvolvidos, porém, concomitantemente aos módulos
enumerados acima.
Observo que meu projeto de pesquisa se encaixa à linha Experimentações da Cena pela
intenção primeira em discutir através da prática, colocando o processo de experimentação
como objeto a ser dissecado sob primas filosóficos, políticos, metodológicos.
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Adriana Schneider, primeiramente por sua atuação no campo da antropologia e estudos
culturais, localizando o fazer teatral no interior de uma discussão sobre a cultura e a
política. A atuação da docente como artista teatral sempre vinculada a coletivos e a sua
atenção especial à processos de construção dramatúrgica são também fatores que me fazem
acreditar na potência desta orientação. Acredito que a orientação desta professora possa
expandir os limites da pesquisa aqui proposta, assim como que este projeto possa contribuir
para a pesquisa continuada da docente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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KOSSOY, Boris. MORITZ, Lilia. Um Olhar sobre o Brasil- a fotografia na construção da
imagem da nação. São Paulo: editora Fundación Mapfre e Editora Objetiva 2012
RACIERE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Ed WMF Martins Fontes, 2012
FLORENCIO, Thiago. Bazar ao Atá: por uma deriva etnográfica, Rio de Janeiro
SITES:
(https://www.premiopipa.com/pag/artistas/eleonora-fabiao/)
(https://www.ciadanilima.com.br/)
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- Gesto
- Repetição e dramaturgia
-Dramaturgias insuergentes
- A performatividade e o racismo
- Djamila Ribeito
- o pensamento negro radical
-Leda Maria – Tempo expiralado
- Na quebra – a estetica na tridiçao
- Silvio de Almeida
-Branco pode falar de Preto?
EVENTOS:
ABRACE –
ANDA (ASSICIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA) – DE 11 A 15 DE NOVEMBRO – BRASILIA
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