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CARTA DE INTENÇÃO AO PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM

ARTES DA CENA

O curso de Direção Teatral da UFRJ, no qual obtive graduação, me ofereceu


ferramentas para pensar a relação fundamental arte-política e acredito que esta seja
minha maior conquista intelectual enquanto artista: ser capaz de colocar o objeto
artístico em perspectiva e manter o interesse na filosofia que envolve seu ato e processo
de criação, seu discurso artístico e sua reverberação no corpo social.

Acredito que o projeto de pesquisa para o Mestrado do PPGAC que apresento tenha
todas as suas características em consonância com os interesses do curso, em especial seu
caráter multidisciplinar, ancorado na filosofia (política, semiótica), na dramaturgia
física, na História, inteiramente baseado na relação entre teoria e prática do discurso
cênico.

Tendo sido estudante do curso de graduação, e ainda tendo minha formação do ensino
fundamental e médio no Colégio de Aplicação da UFRJ, eu não saberia dizer se a
linguagem que desejo desenvolver enquanto pesquisadora se encaixa à UFRJ ou se foi a
própria instituição que gerou em mim essa linguagem. Em todo caso, sinto que falo a
mesma língua da instituição, e que meus anseios acadêmicos se fundam a seus trilhos
intelectuais, em especial ao PPGAC.

Dentro do programa opto pela Linha 2 - Experimentações da cena: processos de


criação pois meu projeto de pesquisa é sustentado por uma experimentação prática de
composição coreográfica que produzirá um objeto artístico, teatral. A articulação entre
teoria e prática é vital, fundadora, da realização deste projeto de pesquisa, à medida que
o objeto artístico será composto e lido através do discurso teórico que o ampara, assim
como a teoria estudada será observada através da pratica física.

Os docentes Adriana Schneider e Gilson Motta estão apontados como possíveis


orientadores deste projeto. Opto em primeiro lugar pela docente Adriana por reconhecer
sua atuação intelectual, dentro e fora da academia, sempre em direção à uma crítica da
articulação entre arte e sociedade – a arte como ferramenta, abertura de campo de debate
e principalmente, a objetividade da produção artística em seus sentidos políticos
imanentes: quem discursa, onde discursa, qual a estrutura politica dentro da sala de
trabalho, qual a constelação social que o próprio objeto artístico propõe.
Além disso, a professora atua no meio teatral vinculada à coletivos e a produções
dramatúrgicas coletivas, autorais, o que me interessa imensamente enquanto pratica de
criação coletiva de discurso e suas mediações.

Em segundo lugar aponto o docente Gilson Motta como possibilidade de orientação. Na


trajetória acadêmica e artística deste docente me interessa sua relação com a Filosofia, -
sendo Doutor em Filosofia pela UFRJ- apontando uma evidência de interesse na
articulação entre artes do corpo e filosofia. Reafirmando essa evidência, o docente
desenvolve pesquisas no campo da performance e das práticas físicas e psicofísicas, o
que é de grande interesse para meu projeto de pesquisa. Acredito que esse docente possa
me ajudar a expandir imensamente meu conhecimento a respeito da psicofisicalidade,
sua teoria e suas possíveis abordagens no campo acadêmico.
Projeto de Dissertação de Mestrado

INCORPORAÇÕES

Um estudo sobre a transmissibilidade do gesto a partir dos conceitos de cópia,


sobrevivência e citação na dramaturgia física contemporânea

O projeto tem como objetivo discutir teoria e prática da elaboração coreográfica a partir do
conceito de citação e transmissibilidade do gesto, exposto por Isabelle Launay em seu
artigo A elaboração da memória na dança contemporânea e a arte da citação. Proponho
que o conceito seja discutido a partir de estudos de caso de duas obras coreográficas
contemporâneas, assim como através da elaboração prática de um objeto artístico criado em
diálogo com as fotografias do livro “Um Olhar Sobre o Brasil, a fotografia na construção da
identidade da nação” de Boris Kossoy.

Nas palavras de Launay, “existem múltiplas formas de se trabalhar a memória de um gesto


para que uma experiência corporal se conte, se transforme, se estabilize, se contamine e se
dissemine, conscientemente ou não.” (Launay, 2009). Assim, a autora cria uma trama
conceitual ao alinhavar gestualidade, memória, experiência e discurso a entorno do ato da
reencarnação de gestos do passado assim como a implicação filosófica e política deste ato.

Trata-se, portanto, de uma investigação a respeito do poder de refeitura do gesto (Lepecki


Panorama de Dança 2013), os caminhos de sua sobrevivência, as implicações políticas
contidas na ação de refazer gestos, movimentos e posturas, compreendendo a citação como
uma forma de inconsciente histórico que atravessa a história [da dança] e permite a volta
intempestiva de gestos passados sob múltiplas formas (Launay, 2009).

Deste ponto de vista, o gesto, é em si uma entidade de alteridade e, ao ser capturado, ele
revela e promove estados psicofísicos: a relação ao peso, à gravidade, já contém um
humor, um projeto sobre o mundo (Godard, 1995). Pode assim o gesto, a partir de algum
processo de transmissibilidade, incorporar-se, manifestar-se através de um corpo que
também o transforma e age sobre ele.

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Para Mario Machado, a (re)encarnação agencia possibilidades de registro apresentadas
pela recriação e reativação [das obras de dança]. A reencarnação funda a ação de
registro (...) colocando em diálogos diferentes temporalidades e contextos, relacionando-os
e modificando-os. (Machado, 2012.) Ou seja, ao copiar, ou, ao refazer, compreende-se o
gesto enquanto documento histórico. Ele ganha assim um status de permanência enquanto
hieróglifo, escrita social.

Em diálogo com as idéias apresentadas por Launay, articulo, para a criação da cama
conceitual desta pesquisa, o que André Lepecki vem discutir em seu texto Coreopolitica e
Coreopolícia, publicado na revista ILHA (2011). Neste artigo, Lepecki observa alguns
conceitos a respeito da relação entre arte e política para então mergulhar na dimensão
materialista entre política e coreografia.

Vale citar o trecho a seguir: Pode-se dizer assim que, para além daqueles traços que
partilharia com a política (...), a dança operaria também como uma epistemologia ativa da
política em contexto. Andrew Hewitt, no seu livro Social Choreography (2005), leva até o
limite esse elo teórico-epistemológico-político-coreográfico, quando redefine o próprio
conceito de ‘coreografia’ ao enfatizar que a relação dança–política requer um modelo
analítico que entende essa relação como essencialmente não metafórica e profundamente
materialista. (Lepecki 2011)

A cópia do gesto, a citação do corpo (do outro), a criação de um inventario de gestos


capturados: seria esse procedimento um dispositivo de incorporação da política vigente?
Seria um dispositivo capaz de promover “um plano de composição entre corpo e chão
chamado história”? (Lepecki 2011)

Questões como as seguintes cruzam esta pesquisa: O que se estabelece, esteticamente,


quando se entende o campo da fisicalidade e seu vocabulário enquanto um plano de
imanência das forças políticas, históricas e sociais? No que competiria, portanto, enquanto
teoria da psicofisicalidade, uma criação coreográfica baseada na citação dos gestos dos
outros, compreendidos como unidades vocabulares de um imenso repertorio físico social e
histórico? Quais conteúdos psicofísicos são reencarnamos ao empreendermos a refeitura de
um gesto, de um corpo? Qual a relação de imanência entre o gesto e seu o contexto

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histórico? Quais processos de rememoração e de esquecimento estão contidos no ato do
refazer um corpo? E, além disso, como se dá a maquinaria de produção de sentido para
quem observa um corpo e um gesto citados, reencarnados, retirados de seu contexto
primeiro?

Como método de abordagem dos processos e conceitos acima citados, observar o uso
contemporâneo dos dispositivos de transmissibilidade de fisicalidades e gestos: um
sobrevoo sobre as poéticas coreográficas contemporâneas que dialogam com a citação
enquanto metodologia de criação. De antemão, interessam-me duas obras específicas, de
duas artistas brasileiras atuais. São elas Eleonora Fabião e seu programa performativo
“Saudades do Brasil”, e a artista Dani Lima e sua obra coreográfica intitulada 100 Gestos.

Sobre a obra 100 Gestos Dani Lima escreve :

“Partindo da proposta de mapear os movimentos corporais emblemáticos que construíram


o século XX , 100 gestos se desenvolveu como um inventário onírico das memórias
inscritas nos corpos dos bailarinos(...).100 gestos almeja dar visibilidade à dança, às
atitudes e aos comportamentos que nos marcaram nos últimos 100 anos enquanto gestos
transformadores das formas de ser e atuar no mundo, em mão dupla com o contexto
histórico e social de cada época.” (https://www.ciadanilima.com.br/)

Há, neste trabalho, uma pesquisa sobre os possíveis métodos de transmissibilidade do


gesto, e principalmente, os resultados psicofísicos e dramatúrgicos originados por essa
investigação.

Olhemos agora a segunda obra apontada:

Em “Saudades do Brasil”, de Eleonora Fabião, os conceitos de cópia e citação aparecem de


maneira mais clara. O desvio, o processo de esquecimento do contexto, o corpo enquanto
decalque de seu contexto social, histórico e geográfico. O gesto do corpo enquanto
sobrevivência de uma narrativa – uma narrativa apagada. Segue a descrição do programa
performático: “Ação Fortalezense #2: Saudades do Brasil”, 2009, no chão, abrir o livro
Saudades do Brasil, de Claude Lévi-Strauss – registro de viagem com séries de fotos dos
índios nambikwaras (estado de Mato Grosso, década de 1930).No chão, deitar-me como
os fotografados e dar tempo ao tempo. Bienal Internacional de Dança do Ceará de Par em
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Par, Fortaleza.” (https://www.premiopipa.com/pag/artistas/eleonora-fabiao/)

Nesta ação, Eleonora está citando o corpo fotografado. Cópia (da fisicalidade), citação (ao
extrair do corpo seu contexto) e o original (a fotografia) se deitam, lado a lado, para outros
observem. O resto é dar “tempo ao tempo”.

Ao que se refere a artista quando, na descrição de seu programa performativo, sugere dar
“tempo ao tempo”? O tempo da observação que perfura a história e pode, então, perceber a
encarnação do corpo do passado, citado e portanto, materialmente presente enquanto gesto,
presença e discurso? O tempo de se perceber a dobra que a refeitura do gesto causa no
tempo cronológico?

Pretendo, durante minha pesquisa de mestrado, ser capaz de analisar, dispondo de mais
ferramentas, as ações acima apresentadas. Entrevistar as artistas, pesquisar suas
metodologias, estudar os registros das obras assim como suas reverberações, serão etapas
dos meus procedimentos de pesquisa.

A segunda parte do projeto de pesquisa diz respeito à faceta prática da investigação a


respeito dos temas acima descritos. Trata-se da investigação da citação enquanto
dispositivo de criação coreográfica e dramatúrgica. O objeto que auxiliará o estudo,
como suporte para tal investigação, será o livro “Um olhar sobre o Brasil, a fotografia na
construção da identidade da nação”. Trata-se de uma compilação de fotografias recolhidas
em todo território nacional desde 1803 a 2003, nos mais diversos contextos e territórios
geográficos, organizadas cronologicamente, oferecendo uma narrativa imagética sobre a
história do Brasil.

Interessam-se os corpos que vamos encontrar nas fotografias deste livro, suas formas,
gestualidades, posturas. Interessa destacar estes corpos de seus contextos, e ao mesmo
tempo, olhá-los através de seus contextos – citá-los. A extração completa do contexto da
realidade primeira da fotografia e a relação disto com a força do gesto, enquanto
vocabulário, unidade autônoma de informação. Os corpos registrados nas fotografias
desta obra serão os “originais” das alteridades citadas no processo de criação deste
inventário de gestos, como um armário de roupas.

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Trago o trecho abaixo, retirado da tese Fotografia e memória: a criação de passados, de
Rogério Luiz Silva de Oliveira (Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade, UESB) para ilustrar um pouco as questões que me interessam e que são
relativas à natureza da fotografia e sua relação com o passado, a memória e a ficção:

Cito aqui a atenção que Boris Kossoy dá ao que chama de desmontagem do signo
fotográfico. Isso se dá a partir de uma análise iconográfica, por meio da qual se busca
fazer uma verdadeira arqueologia do documento. Uma análise que seria possível a partir
de duas linhas distintas e multidisciplinares de análise, a fim de decodificar informações
explícitas e implícitas do documento fotográfico. Na primeira delas, sugere-se fazer uma
reconstituição do processo que originou a fotografia. Determina-se os elementos que
contribuíram para a sua materialização, seus elementos constitutivos, como o assunto,
fotógrafo e tecnologia. Considera-se, para tanto, a época e o lugar. Na segunda linha,
propõe-se uma recuperação do inventário de informações codificadas na imagem
fotográfica. Parte-se para uma minuciosa identificação dos detalhes icônicos que
compõem seu conteúdo. Nessa perspectiva teórica apontada por Kossoy, será levado em
consideração que o documento fotográfico é uma representação a partir do real.
Representação onde está registrado um aspecto selecionado de um real, organizado
cultural, técnica e esteticamente, portanto ideologicamente. Cabe notar, no entanto, que
esta não é a representação do real. (Rogério Luiz Silva de Oliveira, 2011)

O trecho acima aponta pra uma mão dupla de olhares: aquele que destaca a fotografia de
seu contexto e a observa enquanto uma lâmina de signos, e aquele que busca remontar o
contexto da captura fotográfica para então, sob essa luz, ler a lâmina de signos. Este me
parece ser justamente o mecanismo de citação enquanto ação de linguagem: criar um
deslizar entre signo e contexto, abrindo espaço para leituras, usos e insurgências do
sentido, e ao mesmo tempo, promovendo um vetor de observação para o contexto. Dessa
forma, uma citação poderia também funcionar como um hiperlink.

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Um exemplo excepcional deste deslizar entre gesto (signo documentado) e contexto
(histórico) é o videoclipe This is America, de concepção de Childish Gambino (Donald
Glover), coreografia de Sherrie Silver e direção de Hiro Murai.
Nesta obra, a coreografia criada por Sherrie é uma colagem de posturas e gestos de ícones
que dialogam com a cultura negra, o racismo e a luta antirracista através da história dos
Estado Unidos.

A primeira dupla de imagens mostra a citação física de Gambino ao personagem Tio


Rucks, internamente racista, que repetidamente proclama seu amor à raça branca e se
identifica como caucasiano alegando que sofre de vitiligo reverso.

Na dupla de fotos acima, Gambino está fisicamente citando Richard Pryor nesta exata
fotografia. Pryor foi comediante, ator, cantor e escritor estadunidense que abordou o
racismo e a violência contra negros em seus textos humorísticos.

Estes são apenas dois exemplos da citação física como dispositivo de criação coreográfica
nesta obra icônica, expressando sua potência em alinhavar gesto, memória, experiência e
discurso.

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O videoclipe tem a duração de 4 minutos, e a repetição destes e de mais inúmeros gestos
citações produz um estado físico espasmódico no interprete. Seria este estado físico,
produzido pela repetição dos gestos que vem de contextos de violência e combate ligado
luta antirracista norte-americana, uma expressão psicofísica do corpo negro em sua situação
social e histórica nos Estados Unidos da América?

Segundo Kossoy: Por tais razões servem as imagens e os arquivos. Para que possamos
fazer essas e outras descobertas; para que possamos preservar a lembrança de certos
momentos e das pessoas que nos são caras; para que nossa imagem não se apague; para
que não percamos as referências do nosso passado, dos nossos valores, da nossa história,
dos nossos sonhos; para que possamos preservar as imagens dos desaparecidos e
torturados; para que tenhamos provas que fatos hediondos ocorreram, para que não nos
esqueçamos (KOSSOY, 2002, p. 130)

Repetir para que não nos esqueçamos, repetir o gesto, o corpo, para que, através de sua
reencarnação, possamos ouvir sua história, para que sua psicofisicalidade se faça
novamente viva e, portanto, agente no mundo.

Ou seja, investigar, ainda nas palavras de Lepecki: “(...) a capacidade imanente da dança
de teorizar o contexto social onde emerge, de o interpelar e de revelar as linhas de força
que distribuem as possibilidades (energéticas, políticas) de mobilização, de participação,
de ativação, bem como de passividade, [que] traria para essa arte uma particular força
crítica” (2011)

Seria a pratica da citação destes corpos um dispositivo para a criação de uma epistemologia
ativa da política em contexto (Lepecki, 2011), como ética de habitação do solo social e
histórico da cidade? Há, aí, uma potência de escavação historio-social do corpo enquanto
narrativa? Estaríamos criando uma topocoreopolitica, lendo e ao mesmo tempo
reescrevendo o chão, reinscrevendo-se no chão, por via do chão, (...) que deixe o chão
galgar o corpo, determinar os seus gestos, reorientando assim todo o movimento (...)?
(Lepecki, 2011)

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OBJETIVOS

 Objetivo geral - Discutir a relação entre o gesto, memória social, memória


muscular, subjetividade coletiva e a política envolvida nos atos de refeitura de
gestos, tendo como pressuposto o conceito de topocoreopolitica, de André Lepecki,
e a pesquisa entorno da cópia e da citação do gesto de Isabelle Launay, a partir do
desenvolvimento de uma elaboração coreográfica metodologicamente baseada na
cópia e citação dos corpos encontrados nas fotografias compiladas por Boris Kossoy
no livro Um Olhar sobre o Brasil - a fotografia na construção da imagem da nação
e do estudos de caso de obras contemporâneas de performance e dança, sendo elas o
programa performativo “Saudades do Brasil”, de Eleonora Fabião, e “100 Gestos”
de Dani Lima.

Objetivos específicos:

. Aprofundar a discussão sobre a transmissibilidade do gesto, através do tempo, a partir dos


conceitos que Isabelle Launay oferece no artigo A elaboração da memória na dança
contemporânea e a arte da citação (2013) e outros conteúdos e autores que discutam este
tema.
. Discutir a Fotografia enquanto registro, memória, ficção e narrativa

.Pesquisar conceitos, aplicações e práticas dos trabalhos de Psicofisicalidade

.Investigar procedimentos de composição de dramaturgia física e coreográfica a partir do


conceito de citação

. Realizar dois estudos de caso, analisando as obras “Saudades do Brasil” de Eleonora


Fabião e “100 Gestos” de Dani Lima.

. Realizar entrevistas com as artistas Eleonora Fabião e Dani Lima, buscando seus olhares a
respeito da pratica da citação enquanto método e discurso político

. Elaborar um objeto coreográfico a partir do conceito de citação e das fotografias contidas


no livro do Boris Kossoy “Um olhar sobre o Brasil, a fotografia na construção da
identidade da nação.”

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. Investigar a fotografia como fonte de citação corporal

JUSTIFICATIVA

Modernizar o passado É uma evolução musical (...) Viva Zapata! Viva Sandino! Viva
Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.

(Chico Science e Nação Zumbi, Monólogo ao pé do Ouvido)

Ao citar um acontecimento passado colocamos em perspectiva o presente. Entendemos este


presente como matéria maleável, que se molda e remolda em dialética com a política que
empreendemos, e que é moldado por nossa coreografia cotidiana, nossas repetições.

Repetir, por sua vez, é um dispositivo de criação de estados psicofísicos – produz a


qualidade sensível pela qual se experimenta o presente e como se prospecta o futuro, e,
portanto, o produz. Talvez, uma boa estratégia, de fato, para trabalhar a materialidade do
presente com mais consciência e potência seja mesmo repetir, repetir, até ficar diferente.
(BAUSH, Pina).

O movimento ficar diferente, a postura, o gesto, o ponto de vista. A possibilidade do futuro


ser, em sua verdade histórica, diferente do passado. A possibilidade para que o presente
possa ter a potência de transmutar os traumas físicos incorporados. É o elo materialista
entre memória, história, corpo e repetição que este projeto apresenta como pesquisa
primeira, e por acreditar que ao habitar o presente com qualidade e consciência pode-se
alterar sua plasticidade, e que será apenas através do corpo e da arte que se dará o processo
de cura social que buscamos.

As passagens que cito abaixo, da multiartista e pesquisadora Grada Kilomba, vem


apresentar essa “corporificação” do trauma:

A necessidade de transferir a experiência psicológica do racismo para o corpo expressa a


ideia de trauma no sentido de uma experiência indizível, um evento desumanizante, para o

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qual não se tem palavras adequadas ou símbolos que correspondam. (...)pode ser vista
como

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uma forma de proteção do eu ao empurrar a dor para fora (somatização). A experiência do
racismo, por ser tão hedionda, não pode, de fato, ser compreendida cognitivamente e a ela
ser atribuído um sentido. Em vez disso, "ela permanece não processada e é sentida no
corpo" (Kapla, 1999, p.147). A agonia do racismo é, portanto, expressa através de
sensações corporais expelida para o exterior e inscrita no corpo. A linguagem do trauma é,
nesse sentido, física, gráfica e visual, articulando o efeito incompreensível da dor.
(Kilomba, Grada. Memórias da Plantação, 1968, p 161)

Ao unir o acontecimento social ao psiquismo do trauma, Grada não deixa dúvidas sobre a
função do corpo enquanto aparato das forças políticas vigentes e também campo de
trabalho terapêutico.

Convocar a arte para trabalhar a História enquanto matéria ancorada no corpo é, para mim,
uma porta para lidar com questões estruturais da política colonial que recobre nossa nação.
O Brasil, um país de conteúdo trágico, vive todos os dias sua herança colonial escravocrata:
Um Racismo cotidiano não apenas como a reencarnação de um passado colonial, mas
também como uma realidade traumática que tem sido negligenciada. (Kilomba, Grada.
Memórias da Plantação, 1968, p 38)

Ao presente, portanto, cabe atacar com a astúcia da arte, para que esta sirva em sua
potência à elaboração do passado e à construção do futuro, entendendo um “conceito de
presente que não é passagem, mas no qual o tempo se fixou e parou. Esse conceito é
precisamente aquele que define o presente no qual ele escreve história para si.”
(BENJAMIN, Walter. O anjo da História).

Proponho este projeto de mestrado à academia, berço das diferenças, para que ela possa
sustentar esse passo ao encontro de uma dinâmica artística política e terapêutica : A ideia
de que se tem de escrever, quase como uma obrigação moral, incorpora a crença de que a
história pode ser interrompida, apropriada e transformada através da pratica artística e
literária. (Kilomba, Grada. Memórias da Plantação, 1968, p 38)

METODOLOGIA

Para descrever a metodologia que pretendo adotar, necessito organizá-la em módulos. que

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muitas vezes irão se sobrepor na cronologia do processo.

De maneira sucinta, a metodologia se alicerçará em 3 trabalhos principais que estarão


sempre interferindo uns nos outros. São eles: seleção dos conceitos, temas, autoras (es)
fundamentais para o apoio da discussão teórica que proponho, utilização destes conceitos e
temas fundamentais como ferramentas para a análise dos estudos de caso que proponho,
utilização destes conceitos e temas fundamentais como ferramentas para a análise do
objeto-obra “Um Olhar sobre o Brasil, a fotografia na construção da identidade da nação” e
por fim, a utilização destes conceitos e temas fundamentais como ferramentas para a
análise do processo de criação do objeto coreográfico, sendo este o modulo prático da
pesquisa. Desenvolvo com mais detalhes cada módulo, a seguir:

1 – Pesquisa teórica

Neste primeiro momento pretendo expandir minha rede de conceitos a partir dos conteúdos
teóricos que já fundamentam este projeto de pesquisa, criando um corpo teórico e
conceitual mais robusto, capaz de sustentar os passos que se seguem. São temas a serem
investigados: Fotografia e Memória, Fotografia e ficção, Cópia, citação e transmissibilidade
do Gesto na dança contemporânea, Gesto e política, Estados Psicofísico, Memoria
Muscular, Memoria na Neurociência, Memoria e História enquanto tecido político,
Memoria enquanto ficção, Procedimentos da Criação coreográfica contemporânea e
dispositivos de criação na dramaturgia física. Alguns teóricos já presentes na pesquisa são:
Isabelle Launay, André Lepecki, Eleonora Fabião, Boris Korroy, Franz Fanon, Grada
Kilomba, Jerome Bell, Walter Benjamin, Bergson, Brecht, Dani Lima e Jacques Ranciére.

2 – Estudos de casos e entrevistas com artistas

No momento 2 da pesquisa, pretendo definir quais trabalhos coreográficos irei analisar


como estudo de caso. Atualmente, como apresentado na introdução deste projeto, tenho
interesse em estudar o programa performativo “Saudades do Brasil” de Eleonora Fabião, e
“100 gestos” de Dani Lima. Destacarei nessas obras como entendo onde nelas operam o
conceito de citação e transmissibilidade, investigarei os métodos de criação usados em suas
construções, e buscarei realizar entrevistas com ambas as artistas. Nestas entrevistas, além
de ouvi-las a respeito de seus processos criativos, colocarei os conceitos de citação e

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transmissibilidade, de Isabelle Launay, como um dos temas a serem discutidos no encontro.
Pretendo registrar em vídeo ou áudio o conteúdo das entrevistas e posteriormente
transcreve-los para que possam ser usados na escrita da dissertação.

3 – Análise do livro “Um olhar sobre o Brasil, a fotografia na construção da identidade da


nação”, de Boris Kossoy

Neste terceiro momento terei como foco o estudo do livro de Boris Kossoy acima citado.
Farei uma decupagem das impressões acerca das fotografias contidas na obra, realizarei
uma seleção das fotografias a serem trabalhadas na fase da pesquisa física.

Buscarei analisar em que sentido o autor entende a função da fotografia na criação da


identidade nacional e como essa interpretação se comunica com minha pesquisa acerca da
transmissibilidade do gesto através do tempo, e com o conceito de citação (deslizamento
entre signo e contexto).

Buscarei elaborar textualmente as impressões e elementos oferecidos pelas fotografias,


assim como apresentar o contexto de sua primeira realidade, se esta informação estiver
oferecida em arquivo.

4 – Pesquisa física

No momento 4 iniciarei o trabalho físico: o encontro entre corpos – o meu e o das


fotografias. É possível que pesquisadores colaboradores possam se unir à pesquisa física
caso tenham interesse, habilitando assim que eu enquanto pesquisadora possa também ter o
olhar de observadora do processo. Nesse momento farei a elaboração pratica da criação
coreográfica, produção de registro fotográfico e videográfico, trabalharei na elaboração
teórica sobre a pesquisa pratica e buscarei desenvolver a escrita sobre o processo criativo
em concomitância com seu andamento.

Aprofundarei na escrita a respeito dos estados psicofísicos e como esse tema estará sendo
elaborado na pratica coreográfica, assim como nos temas de corpo-memória anteriormente
citados.

Em dado momento, quando a coreografia estiver desenhada, haverá o compartilhamento do

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resultado com o público, seguida da coleta de impressões que será por mim transcrita.

5 – Conclusão da dissertação de mestrado

A última parte será destinada a arrematar a escrita total da dissertação como corpo único.
Capítulos e sub capítulo serão desenvolvidos, porém, concomitantemente aos módulos
enumerados acima.

EVIDÊNCIAS DE INTERESSE PARA O PROGRAMA

Encontro, no Programa de Pós Graduação em Artes da Cena da UFRJ, uma consonante


com o com meu projeto de pesquisa por sua característica híbrida, que fricciona teoria e
pratica, arte e política, e a possibilidade de expandir a pesquisa do corpo cênico através do
enfoque materialista da arte.

As elocubrações a respeito da imanência dos signos do corpo e de sua expressão, e estes


como deflagradores de uma experiência social e histórica concretas, orientaram minha
pesquisa de conclusão de curso na graduação em Direção Teatral da UFRJ em 2012. Este
assunto, evidentemente, foi sendo gerado em mim como interesse a partir da bibliografia e
das diretrizes intelectuais oferecidas pela própria instituição. Reconheço, portanto, meu
projeto de pesquisa para o mestrado aqui exposto como pertencente à linguagem acadêmica
da UFRJ, por ter sido, em grande parte, criado por esta.

Por partilhar da linguagem acadêmica da UFRJ, e mais precisamente, do escopo conceitual


do departamento de artes cênicas, entendo que o desenvolvimento de minha pesquisa nesta
instituição se manifeste como um trabalho continuado, no sentido de seguir os trilhos
conceituais teóricos e práticos já estabelecidos. Acredito que este caráter de continuidade
possa representar um ganho para ambas as partes ao trabalhar na consolidação de uma
linguagem de acadêmica.

Observo que meu projeto de pesquisa se encaixa à linha Experimentações da Cena pela
intenção primeira em discutir através da prática, colocando o processo de experimentação
como objeto a ser dissecado sob primas filosóficos, políticos, metodológicos.

Dentre os docentes desta linha de pesquisa, interessa-me, como orientadora, a professora

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Adriana Schneider, primeiramente por sua atuação no campo da antropologia e estudos
culturais, localizando o fazer teatral no interior de uma discussão sobre a cultura e a
política. A atuação da docente como artista teatral sempre vinculada a coletivos e a sua
atenção especial à processos de construção dramatúrgica são também fatores que me fazem
acreditar na potência desta orientação. Acredito que a orientação desta professora possa
expandir os limites da pesquisa aqui proposta, assim como que este projeto possa contribuir
para a pesquisa continuada da docente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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. Coreopolítica coropolícia. In revista Ilha nº1, 2011.

Seminário Documentos Movimento. Panorama de Dança 2013.

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Ana Teixeira. In Dança: Revista do Programa de Pós Graduação em Dança. n°1, 2013

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984

MACHADO, Neto. Reencarnação, o corpo como registro vivo em dança. Salvador:


Universidade Federal da Bahia. Programa de pós graduação em Artes Cênica da UFBA 2012

Duvivier, ISABELLA. TOURINHO, Ligia (orgs). O projeto Bricolage Manifesto do


Invisível. Rio de Janeiro 2014

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São Paulo: Perspectiva, 2011

KASTRUP, Virginia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: Pistas do


método da cartografia: pesquisa/intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre:
Sulina, 2009

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imagem da nação. São Paulo: editora Fundación Mapfre e Editora Objetiva 2012

GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990

RACIERE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Ed WMF Martins Fontes, 2012

FLORENCIO, Thiago. Bazar ao Atá: por uma deriva etnográfica, Rio de Janeiro

GODARD, Hubert. Gesto e percepção in La danse au Xxeme siecle, 1995- Paris

SANCHES, Licia Maria Morais. A dramaturgia da memoria no teatro-dança – São Paulo


2010

KILOMBA, GRADA – Memórias da plantação -Episódios de racismo cotidiano - 1, ed. -


Rio de Janeiro Cobogó, 2019.

OLIVEIRA, Rogério Luiz Silva - Fotografia e memória: a criação de passados - UESB


Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, 2011

SALVADOR, Rafael de Castro, GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres. Os conceitos de


realidade de Kossoy à prática fotográfica XIII Congresso de Ciências da
Comunicação na Região Sudeste – São Paulo –2008.

SITES:

(https://www.premiopipa.com/pag/artistas/eleonora-fabiao/)

(https://www.ciadanilima.com.br/)

MURAI, Hiro – Entrevista em:


https://variety.com/2018/tv/features/atlanta-season-2-finale-this-is-america-hiro-murai-dir
ector-interview-1202806049/

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- Gesto
- Repetição e dramaturgia
-Dramaturgias insuergentes
- A performatividade e o racismo
- Djamila Ribeito
- o pensamento negro radical
-Leda Maria – Tempo expiralado
- Na quebra – a estetica na tridiçao
- Silvio de Almeida
-Branco pode falar de Preto?

EVENTOS:
ABRACE –
ANDA (ASSICIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA) – DE 11 A 15 DE NOVEMBRO – BRASILIA
INSCREVER O TRABALHO

ANALISE DA OBRA – SAUDADES DO BRASIL – PENSANDO REPETICAO, MEMORIA, DRAMAGURGIA, BRASILIDADE


ORGSNIZAR A PRIMEIRA PARTE DO TEXTO NESSE FINAL, INSCRIÇÃO ATÉ 25 JUN
MAIS OU MENOS 3 LAUDAS DE CORPO DE TEXTO

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