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A significação em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”: uma leitura

a partir da ontognoseologia marxiana.

Vinicius Barbosa de Araújo1

RESUMO
O texto propõe uma leitura do cap. VII de Marxismo e Filosofia da Linguagem,
focalizando algumas das categorias aí apresentadas – como tema, significado e
orientação apreciativa –, a partir da postura ontológica e epistemológica de Marx
consignada, sobretudo, no texto “Introdução de 1857 aos ‘Grundrisse der Kritik der
politischen Ökonomiei’”, no qual Marx apropria-se criticamente das categorias do
pensamento hegeliano, como concreto, abstrato, totalidade, intuição, representação e
conceito. Para tanto, fez-se necessário também abordar outras categorias captadas por
Volochínov, especialmente as presentes nos caps. V e VI de Marxismo e Filosofia da
Linguagem, como enunciação, interação verbal e língua. Ainda, aproxima-se a crítica de
Volochínov ao objetivismo abstrato das noções marxianas de fetichismo e reificação,
propostas a partir da interpretação de Marx das categorias hegelianas de externação
(“Entäusserung”) e estranhamento (“Entfremdung”).
PALAVRAS-CHAVE: Significação; Enunciado; Interação verbal; Método marxiano;
Dialética.

ABSTRACT
This paper proposes an interpretation of Marxism and Philosophy of Language’s
chapter VII, focusing on some categories it presents – such as theme, signification and
evaluative orientation –, based on Marx’s ontological and epistemological perspective
registered mainly in the text known as ‘Introduction of 1857 to Grundrisse der Kritik
der politischen Ökonomiei’, in wich Marx critically appropriates Hegelian thought‘s
categories, such as concrete, abstract, totality, observation, conception and concept. It
was necessary, therefore, to broach some others categories captured for Voloshinov too,
specially those ones on Marxism and Philosophy of Language’s chapters V and VI,
such as utterance, verbal interaction and language. Also, it was tried to approximate
Voloshinov’s critique to abstract objectivism to Marxian notions of fetishism and
reification, both based on Marx’s interpretation on the Hegelian’s categories known as
estrangement (‘Entfremdung’) and alienation (‘Entäusserung’).
KEYWORDS: Meaning; Utterance; Verbal interaction; Marxian method; Dialetics.

1
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e
mestrando do programa de pós-graduação em Direito da mesma instituição. Franca – SP – Brasil. 14409-
160 – viniciusbarbosadearaujo@gmail.com
Introdução
No Círculo de Bakhtin, Volochínov foi provavelmente o que mais se aproximou
do marxismo e de sua profusão na incipiente União Soviética da década de 1920. Seu
livro, posteriormente atribuído a Bakhtin2, Marxismo e Filosofia da Linguagem é
resultado de um caldeirão profícuo de influências: linguística soviética, neokantismo,
psicologia da gestalt, fenomenologia, marxismo3 etc. Apesar da patente aproximação
com o marxismo intentada por membros do Círculo, grande parte do espólio teórico de
Marx permanecia inédita e era grande a disputa em torno do seu sentido e abrangência,
o que levou um dos seus mais atilados exegetas a afirmar que “em matéria de marxismo,
a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método.” (LUKÁCS, 2003, p. 64).
Dessarte, neste texto se propõe a tarefa de realizar uma leitura sobre a questão da
significação, como apresentada principalmente no cap. VII de Marxismo e Filosofia da
Linguagem, a partir da noção de método cunhada por Marx e exposta de modo mais
explícito no texto conhecido como “Introdução de 1857 aos ‘Grundrisse der Kritik der
politischen Ökonomiei’”.

1. O Método em Marx
A bem da verdade, diga-se que não há em Marx uma proposta metodológica
formalizada, sendo o texto que doravante se abordará – a Introdução de 1857 – sua
exposição mais explícita4. Isso não se deve propriamente a uma deficiência de Marx,
mas a uma postura teórica que valoriza uma abordagem ontológica e a ela subordina a
possibilidade de uma epistemologia, de forma semelhante à que procedeu Hegel5.

2
Sobre as questões da autoria e da disputa em torno dos textos produzidos pelos membros do que veio a
ser chamado de “Círculo de Bakhtin”, consulte-se Brandist (2002). Aqui, assume-se a posição defendida
pelo referido autor: Volochínov é de fato autor dos textos que assina, como “Discurso na Vida, Discurso
na Arte”, “Freudismo: um esboço crítico” e “Marxismo e Filosofia da Linguagem”.
3
Segundo Brandist (2002, p. 53-54, tradução nossa), “a questão do marxismo nesses trabalhos [do
Círculo] está vinculada a essa prática [de pesquisa e referência em notas de rodapé], uma vez que em cada
caso são apresentados argumentos sobre a relevância dos tópicos considerados para o marxismo e sobre a
contribuição que o marxismo tem a trazer para eles. Nesse sentido, os autores estão tentando construir
uma ponte entre a filosofia idealista da cultura e o marxismo e, como uma extensão disso, uma ponte
entre a liderança política e a intelectualidade tradicional à qual pertenciam. Isso está de pleno acordo com
a associação de Voloshinov e Medvedev com o Instituto para o Estudo Comparado de Literatura e
Línguas do Oeste e do Leste (ILIaZV), um dos principais centros de ‘companheiros de estrada, estudiosos
esquerdistas (incluindo marxistas e bolchevistas)’.”
4
Esse texto de Marx, descoberto em 1902, foi publicado pela primeira vez por Kaustky em 1903 na
revista “Die Neue Zeit”.
5
O pensamento de Hegel apresenta um pronunciado veio ontológico, sendo a Lógica sua forma mais
abstrata. Se existe uma epistemologia em Hegel, ela está subordinada às considerações ontológicas que
Advirta-se que, ao falar-se em ontologia, não se está referindo a um tipo de construção
filosófica que busca apreender essências imanentes e a-históricas, mas a uma forma de
reflexão sobre o ser em geral da realidade no seu processo de vir-a-ser ou, na
determinação aqui mais pertinente, na construção da sociabilidade pela própria
sociedade humana em sua práxis quotidiana6. Outrossim, o objeto de estudos da vida de
Marx foi bastante específico – a saber, as condições de formação, reprodução e
dissolução da sociedade civil burguesa (“Bürgerliche Gesellschaft”) emergida na
Europa Ocidental com a derrocada do Feudalismo –, o que, todavia, não impede que se
parta de suas concepções ontológica e epistemológica para abordar outros objetos, desde
que se respeite a especificidade categorial de cada novo objeto. Assim, para Marx, no
conhecimento de um objeto particular:

Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a
pressuposição prévia e efetiva [...]. No entanto, graças a uma
observação mais atenta, tomamos conhecimento de que isso é falso. A
população é uma abstração, se desprezamos, por exemplo, as classes
que a compõem. [...] Assim, se começássemos pela população,
teríamos uma representação caótica do todo, e através de uma
determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a
conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos
a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as
mais simples. Chegados a esse ponto, teríamos de voltar a fazer a
viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta
vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma
rica totalidade de determinações e relações diversas. [...] O concreto é
concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade
do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo
de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja
o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da
intuição e da representação. (MARX, 1982, p. 14).

desenvolve desde a Lógica e pode-se vislumbrá-la principalmente na parte de seu sistema a que chamou
Psicologia do Espírito. Segundo sua definição (HEGEL, 2011, p. 210 et seq.), a Psicologia se ocupa da
capacidade cognitiva humana na elaboração da intuição e da representação em conceitos subjetivos, sem
levar em conta a relação da consciência com o mundo, tarefa da Fenomenologia do Espírito, e da alma
com a natureza, tarefa da Antropologia do Espírito, ambas, Fenomenologia e Antropologia, também
partes constituintes de seu sistema, mais precisamente daquilo a que designou como Espírito subjetivo. O
Espírito subjetivo, por sua vez, é parte da Filosofia do Espírito, que, junto à Lógica e à Filosofia da
Natureza, compõe o edifício do sistema filosófico hegeliano. As noções de intuição, representação e
conceito são, como se verá, imprescindíveis para a elaboração epistemológica marxiana e passíveis de
serem associadas à problemática da significação, conforme exposta por Volochínov.
6
A referência depreciativa a “objeto ontológico” realizada por Volochínov ao final do cap. VII de
Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN, 2009, p. 141) toma por base justamente a concepção de
ontologia que aqui se evita.
Esse excerto contém uma síntese do pensamento metodológico marxiano e nele
converge uma miríade de conceitos e categorias do pensamento hegeliano que é preciso
explicitar, lembrando-se, entretanto, de que cada categoria remete às demais numa
mútua implicação lógica. Comece-se por elucidar a ideia de universais, central ao
pensamento hegeliano, uma vez que Hegel considera serem os universais, na forma de
essências, o fundamento de que decorre toda a realidade efetiva. Na tradição filosófica,
os universais tradicionalmente foram encarados como noções genéricas a que se
chegava por abstração, isto é, mediante a operação mental de, a partir de uma
multiplicidade de indivíduos, separar-lhes traços ou qualidades comuns (como a cor
azul a partir dos diversos objetos azuis e em oposição aos objetos não azuis)7. Essa
mesma tradição filosófica, desde Platão, considerou os universais como entidades
abstratas e os opôs às ideias de particular, considerado concreto. É apenas com Hegel
que se passa a considerar que os universais possam ser abstratos ou concretos. Em
Hegel, os abstratos são finitos e imediatos, ou seja, algo não posto em relação com o
todo ou com outro ser; algo não desenvolvido e não considerado em relação com outras
coisas ou com um sujeito que o perscruta, algo não refletido naquilo que não é ele: em
suma, algo em si8.
Desse modo, um universal pode ser abstrato se não é considerado em sua relação
com as coisas particulares por meio das quais existe e as quais precede logicamente. Um
universal abstrato é aquele que não se explicita ou realiza, em seu desenvolvimento, nas
coisas particulares e singulares, um universal apartado do modo como se realiza na
finitude e como vem a ganhar existência. Os singulares e os particulares também são
abstratos em sua finitude e especificidade, porque ou se referem a indivíduos ou a
formas pouco genéricas que abarcam poucos indivíduos: apenas no conceito
desenvolvido como universal concreto os singulares e particulares se integram ao
concreto, sendo tal processo justamente o modo como o universal se desenvolve para, a
partir da reflexão nos particulares e singulares, isto é, por meio da sua negatividade9, ser

7
A abstração pode ser definida como uma operação mental de análise consistente na captação de
determinações comuns a muitos indivíduos, isto é, captação daquilo que é para eles um atributo comum e,
por isso, vem a constituir uma forma ou categoria. Tais formas ou categorias podem ser particulares
contingentes ou universais imanentes.
8
Assim Hegel (1968, p. 108) se expressa: “encuanto algo existe em sí, se halla sustraído al ser-outro y al
ser-para-outro”.
9
A categoria do negativo é imprescindível ao pensamento hegeliano, perpassando todo seu edifício
filosófico, e consiste na relação do que é com o que não é, relação base da identidade concreta, sendo a
para eles (para outros) e poder ser para si, tornando-se concreto. Ademais, registre-se,
para Hegel o Ser é processualidade, motivo por que considera estar todo o conjunto da
realidade sujeito à historicidade, ao devir. E o devir adviria da contradição primária
entre o Ser e o Nada – discussão inicial da Doutrina do Ser10.
Essa problemática, por sua vez, remete a um dos pontos cruciais da Lógica
hegeliana, o da dialética entre essência, existência e efetividade – aspecto central da
Doutrina da Essência. De modo lacônico, quase caricatural, é possível descrever essa
relação do seguinte modo: as essências são os universais de que toda a realidade decorre
por necessidade lógica; ao se refletirem em formas particulares e em indivíduos
existentes – um movimento de negatividade e externação (“Entäusserung”) –, os
universais passam de abstratos a concretos, pois explicitam as particularidades contidas
em sua genericidade e, assim, criam as mediações ou conexões por meio do que podem
aparecer na existência e para a consciência; esse movimento de explicitação e reflexão
da essência a faz aparecer na existência por meio dos seres singulares e, com isso, a
totalidade do ser – a realidade – se torna efetiva, porque mediada e determinada
(especificada em singulares existentes). Logo, a realidade (efetividade) é um plano
ontológico mais concreto que a existência, pois é o conjunto total do Ser, tanto dos seres
abstratos e não aparentes quanto dos concretos e aparentes, isto é, conjunto do interno e
do externo, ou da essência e do fenômeno, os quais, considerados fora de sua relação,
são abstratos.

contradição daí surgida o motor da dinâmica do real. Assim, nesse sentido, exprime-se Hegel (1968, p.
383) na Grande Lógica: “sin embargo, también para la reflexión extrínseca es muy simple considerar que
ante todo lo positivo no es un idéntico inmediato, sino que por un lado es un opuesto frente a lo negativo,
que tiene significado sólo en esta relación, de modo que lo negativo mismo se halla en su concepto; por
otro lado, empero, que lo positivo es en sí mismo la negación que se refiere a sí misma del puro ser-
puesto o sea de lo negativo, y por ende es él mismo la absoluta negación en sí. —De la misma manera,
lo negativo, que está frente a lo positivo, tiene sentido sólo en esta relación con este otro de él;
lo contiene, pues, en su concepto. Pero lo negativo tiene, aún sin referencia a lo positivo, una
subsistencia propia; es idéntico consigo mismo; pero así es él mismo lo que tendría que ser lo
positivo.” Ainda, agora no âmbito do Prefácio à Fenomenologia do Espírito (HEGEL, 1992, p. 40), isto
é, no considerar da relação entre um Eu consciente e uma substância externa ao Eu, é pertinente atentar-se
para o trabalho do negativo: “a desigualdade que se estabelece na consciência entre o Eu e a substância –
que é seu objeto – é a diferença entre eles, o negativo em geral. Pode considerar-se como falha dos dois,
mas é sua alma, ou seja, é o que os move. Foi por isso que alguns dos antigos conceberam o vazio como o
motor. De fato, o que conceberam foi o motor como o negativo, mas ainda não o negativo como o Si. Ora,
se esse negativo aparece primeiro como desigualdade do Eu em relação ao objeto, é do mesmo modo
desigualdade da substância consigo mesma. O que parece ocorrer fora dela – ser uma atividade dirigida
contra ela – é o seu próprio agir; e ela se mostra [assim] ser essencialmente sujeito.”
10
A esse respeito, conferir Ciencia de la Logica (HEGEL, 1968, p. 77 et seq.).
Ainda, para Hegel, existir é aparecer, movimento de reflexão a partir de um
fundamento essencial em que os seres colocam-se em relação com a alma por meio da
intuição sensível e com a consciência no fenômeno por meio da representação11. Assim,
somente os singulares existem, porque aparecem, conquanto os particulares e
universais, embora não apareçam imediatamente na existência, sejam tão reais e
objetivos quanto os singulares12. É devido a tal postura que Hegel muitas vezes é
caracterizado como “idealista objetivo” (LUKÁCS, 1970; 1979).
As noções de concreto e abstrato com que Marx trabalha são idênticas às de
Hegel: para ambos, é abstrato o ser carente de mediações (imediato) e indeterminado; é
concreto o ser rico em mediações (mediado) e, por isso, determinado13. Todavia, Marx
entende de modo diferente a relação entre universais, particulares e singulares. É certo
que a intenção de Marx de “elaborar concisamente, em um breve escrito, aquilo que
havia de racional na obra de Hegel” (MARX apud LUKÁCS, 1968, p. 74) nunca se
concretizou. Entretanto, a Introdução de 1857 contém diversos elementos que permitem

11
Esclarecedor a esse respeito é o seguinte excerto: “la existencia es la inmediación del ser, en la cual la
esencia se ha reestablecido de nuevo. Esta inmediación es en sí la reflexión de la esencia en sí. […] La
existencia es esta inmediación reflejada por cuanto en ella misma es la absoluta negatividad. […] Por
consiguiente, la apariencia es ante todo la esencia en su existencia; la esencia se halla de modo inmediato
en ella. […] Hay solamente apariencia en el sentido de que la existencia como tal es sólo algo puesto, no
un ser existente en sí e por sí. Lo que constituye su esencialidad es lo siguiente: el tener en sí misma la
negatividad de la reflexión, la naturaleza de la esencia. No se trata de una reflexión extraña, extrínseca, a
la que pertenezca la esencia u que por medio de su comparación con la existencia, explique a esta como
apariencia. Sino que, tal como se ha demostrado, esta esencia de la de la existencia, es decir, el ser
apariencia, es la propia verdad de la existencia. La reflexión, por cuyo medio ella representa esto, le
pertenece como propia”. (HEGEL, 1968, p. 439).
12
Hegel apresenta uma postura filosófica, herdada por Marx, que o aproxima da posição do chamado
realismo, que na disputa dos universais, típica da Escolástica Medieval, sustentava, em oposição ao
chamado nominalismo, que os universais, como categorias genéricas, têm natureza ontológica (são reais e
objetivos) e não simplesmente linguístico-gramatical ou psicológica. A disputa dos universais se forma
em torno das divergências de leitura do Órganon de Aristóteles, especialmente o chamado Tratado das
Categorias.
13
Um dos diversos exemplos do modo como Hegel caracteriza o “concreto” se encontra neste longo
excerto: “a acção, enquanto totalidade dos momentos, é, pois, essencialmente o que denominamos em
geral o concreto; [...]o concreto é algo de uno, a saber, o em-si e também um outro, a saber, a actividade
do expor de tal concreto. [...] O desdobramento deixa aparecer somente este interno originário, expõe o
concreto já aí contido, que pelo desenvolvimento vem a ser para si mesmo, se constrange a este ser-para-
si. O concreto é em si diverso, mas primeiramente só em si, segundo a disposição, a capacidade, a
possibilidade; o diverso está ainda na unidade, não foi ainda posto como diferente. É em si diverso e, no
entanto, simples; contradiz-se em-si. Graças a tal contradição, constrange-se para a dualidade, para a
diversidade; ab-roga, pois, a unidade para fazer justiça aos diferentes [...] O diferente vem deste modo ao
ser determinado, à existência. Mas igualmente se faz justiça à unidade, pois o diferente, que é posto, de
novo se ab-roga. Deve retornar à unidade; com efeito, a verdade do diverso é ser num só. E só mediante
este pensamento a unidade é verdadeiramente concreta.” (HEGEL, 2006, p. 92-94). O trecho remete à
assertiva de Marx: “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, unidade do
diverso.” (MARX, 1982, p. 14).
acercar-se dessa questão em Marx14 e da sua apropriação crítica15 da dialética hegeliana,
embora não se possa negar que a questão seria extremamente clarificada pela consulta a
outros textos marxianos. Contudo, enveredar por tais textos extrapolaria
demasiadamente os propósitos deste artigo. Concentrando-se na Introdução de 1857,
parece plausível concluir que, para Marx, os particulares e os universais são formas
relacionais dos singulares a que se chega apenas pela abstração. Assim, para Marx, a
realidade não decorreria dos universais abstratos, pois essa passagem do abstrato ao
concreto seria apenas “a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do
concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o
processo de gênese do próprio concreto.” (MARX, 1982, p. 14). Esse excerto, que segue
com asseverar que essa confusão é a causa da ilusão mistificadora de Hegel, permite
considerar que, para Marx, os indivíduos singulares, concretos em sua realidade efetiva
de mediação com a totalidade dos seres, são o fundamento ontológico do particular e do
universal, que apenas por meio desses singulares podem existir.
A dialética entre essência e existência (fenômeno, aparência) também é
apropriada por Marx, como não deixa mentir sua célebre afirmação de que “toda ciência
seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem
imediatamente.” (MARX, 1985, p. 271). É por isso que, em Marx, os universais
essentes não são absolutamente imanentes, pois são produto das condições históricas da
existência das individualidades singulares e aparentes. Por isso conclui:

Até as categorias mais abstratas – precisamente por causa de sua


abstração –, apesar de sua validade para todas as épocas, são, contudo,
na determinidade dessa abstração, igualmente produto de condições
históricas, e não possuem plena validez senão para essas condições e
dentro dos limites destas. (MARX, 1982, p. 17).

14
O enfrentamento da questão do “Particular à Luz do Materialismo Dialético” é debatido por Lukács no
cap. IV de sua “Introdução a uma Estética Marxista” (1968), e a “Introdução de 1857” de Marx constitui
o arrimo da reflexão do filósofo húngaro. Não se pode olvidar de que a questão do particular também é
debatida no cap. 12, “La Categoría de La Particularidad”, da Estática de Lukács (1967).
15
Marx possui uma ideia própria sobre crítica, de modo que distingue a crítica dogmática da crítica
filosófica, propondo-se a realizar a última: “[a] crítica dogmática [...] luta contra seu objeto [...] a crítica
verdadeiramente filosófica [...] não indica somente as contradições existentes; ela esclarece essas
contradições, compreende sua gênese, sua necessidade. Ela as apreende em seu significado específico.”
(MARX, 2005, p. 108). Considera-se que sua aproximação de Hegel se dá pela via da crítica filosófica,
especialmente nestes três textos– a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (cadernos de 1843), os
Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) e a Introdução de 1857 aos Grundrisse –, registros patentes
da apropriação da dialética hegeliana por Marx.
Logo, mesmo as categorias gerais, transhistóricas e universais (plano da
essência) são para Marx produto das condições históricas particulares da existência dos
sujeitos singulares, o que leva a duas conclusões: (a) se apenas se fixa nessas
determinações ou categorias universais, perde-se de vista a marcha histórica, o devir da
realidade, pois a história decorre justamente da contingência e das particularidades
vívidas e mutáveis do ser social; (b) se as categorias são formas da existência e a
existência está sujeita ao devir, as categorias também estão e, portanto, as categorias
têm validade apenas na medida em que os entes singulares a que correspondem ainda
existem. Assim, se em Hegel é a razão que aparece como sujeito da história, em Marx é
a sociedade em sua práxis quotidiana quem produz o devir histórico, de forma que
mesmo as categorias abstratas são produto do agir humano16. Por isso, para Marx, “as
categorias exprimem [...] formas de modos de ser, determinações da existência.”
(MARX, 1982, p. 18). Assim se manifesta no materialismo de Marx a herança de Hegel
como “idealista objetivo”, pois as categorias – sejam mais particulares e contingentes,
sejam mais universais e imanentes –, como produtos históricos sujeitos ao devir, são
objetivas17.
Com base no exposto, é possível afirmar que, para Marx, conhecer é captar as
essências dos seres que se dão à experiência do sujeito cognoscente e compreender
como tais essências se manifestam na existência como seres determinados que aparecem
para a consciência. É como consideração ontológica, portanto, que no primeiro excerto
citado de Marx o real e o concreto aparecem como pressuposição “prévia e efetiva”:
pressupõe-se, na perspectiva epistemológica marxiana, a realidade como uma totalidade
16
É nesse sentido que se deve entender a firmação de Marx na IV das Teses sobre Feuerbach: “a essência
do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua realidade, ela é o conjunto das
relações sociais.” (MARX; ENGELS, 2001, p. 101), o que leva a considerar que, embora não seja a
realidade histórico-social, com suas categorias correspondentes, um reflexo dos desejos e vontades
humanos, é ainda, todavia, produto da ação humana. Daí também a célebre afirmação de Marx (2011, p.
25) logo ao início de O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “os homens fazem a sua própria história;
contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias
sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.”
17
Grande exemplo disso seria exatamente a relação entre valor de uso, valor de troca e valor, conforme
trabalhado no primeiro capítulo de O Capital: o valor apenas existe em função de relações sociais
mediadas por objetos portadores de valor de uso, não possui existência senão em mediação com esses
objetos e sujeitos; contudo, nem por isso o valor é menos real do que os sujeitos ou os objetos em que está
encarnado, e tanto é assim que sua dinâmica própria se manifesta na existência concreta. O valor,
enquanto categoria, seria assim tão real e objetivo quanto qualquer mercadoria certa e determinada a que
correspondesse. Sem esse fundamento ontológico, teria sido impossível a Marx compreender e explicar
fenômenos e dinâmicas sociais como a produção do valor, a extração de mais-valor, as crises do
capitalismo etc.
concreta. Para Lukács (2003, p. 105), “a categoria da totalidade, o domínio universal e
determinante do todo sobre as partes, constitui a essência do método que Marx recebeu
de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente
nova."
A totalidade consiste na consideração segundo a qual a realidade é um complexo
dinâmico composto de múltiplos elementos e das formas de interação entre eles, de
modo que cada elemento da totalidade real apresenta-se também como uma complexa
totalidade particular, como formas de interação sintetizadas em individualidades
concretas e existentes. Logo, a totalidade é mais ampla e complexa do que a simples
soma dos seus componentes. Todavia, o conhecimento da totalidade não é o
conhecimento cabal e completo – total – do conjunto da realidade, não há qualquer
pretensão desse tipo na obra marxiana: o conhecimento da totalidade, como
pressuposição ontológica à epistemologia, apenas orienta o pensamento a não
considerar os objetos como isolados e imutáveis num limbo, mas como parcelas do ser
sujeitos à dinâmica padecente do devir, uma vez que, devido à concreticidade de cada
objeto real, pode-se sempre intentar um nível de análise mais ou menos abrangente
(sempre é possível incluir ou desconsiderar um nível de análise ou aspecto)18.
A noção de totalidade pressupõe a de sistema, mas dela se diferencia
substantivamente, pois enquanto num sistema seus elementos e as formas de interação
entre eles são consideradas fixas (qualquer alteração do sistema funda um novo sistema
com lógica interna própria), na totalidade há a sujeição à dinâmica própria do ser, de
modo que, devido à sua própria dinâmica intrínseca, devido à força do negativo, não
apenas os elementos da totalidade padecem, como também as formas de interação entre
eles, dando lugar a novos elementos e formas de interação19 (KOSIK, 2002, p. 41 et
seq.). Assim, se o sistema é uma noção própria da lógica formal, a totalidade, como
categoria referente ao ser da realidade, apenas se coaduna com uma lógica de tipo
18
Não seria por isso que Volochínov (BAKHTIN, 2009, p.134) considera que “o tema da enunciação é na
essência irredutível a análise.”?
19
Pode-se cogitar se a crítica do “objetivismo abstrato” empreendida por Volochínov não se aproxima,
nesse sentido, da perspectiva epistemológica marxiana, como permitem pensar as diversas conclusões
consignadas ao final do cap. VI de “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, como: “1. A língua como
sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir
a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa abstração não dá conta de maneira adequada da
realidade concreta da língua. 2. A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza
através da interação verbal social dos locutores. 3. [...] As leis da evolução da língua são essencialmente
leis sociológicas. [...] 5. A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social” (BAKHTIN, 2009,
p. 131-132)
dialética, a qual além de refutar a clivagem entre forma e substância, ainda se apresenta
fundada na historicidade, no devir, na processualidade (LEFÉBVRE, 1991, p. 22). A
realidade é uma totalidade concreta por ser determinada, isto é, por se configurar como
um todo pleno de mediações entre suas partes constituintes, estas mesmas dotadas de
complexidade. Em suma, a realidade é um complexo de complexos, uma “rica
totalidade de determinações e relações diversas.” (MARX, 1982, p. 14).
Todavia, essa riqueza de determinações e relações não se dá ao sujeito
cognoscente de modo imediato, pois mesmo aquilo que em-si é concreto não aparece
imediatamente assim na relação com a consciência. Na verdade, na relação imediata, o
concreto aparece à consciência como algo abstrato, porque indeterminado e
indiferenciado, como um todo amorfo. Apenas se consegue aproximar idealmente da
concreticidade do objeto real, superando a representação caótica e abstrata do todo que
o compõe, com decompô-lo, por meio da abstração, nas suas formas mais simples e
genéricas, nos seus elementos determinantes (tanto os substanciais, aparentes e
sensíveis, quanto os formais, essenciais e não sensíveis) e, tendo chegado a esse ponto,
retornando para captar a concatenação dessas determinações abstratas na estruturação
tanto do objeto particular sob exame, por si só uma totalidade, quanto da totalidade real
a qual esse objeto integra. A esses dois movimentos, o de abstração e captação do
abstrato e o de reorganização do abstrato para reproduzi-lo como “concreto pensado”
Marx designa, respectivamente, como movimento ascendente e descendente. Em suma,
para Marx, “o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a
maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo
como concreto pensado.” (MARX, 1982, p. 14). Logo, “a totalidade concreta, como
totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, é de fato um produto do
pensar, do conceber; [...] da elaboração da intuição e da representação em conceitos.”
(MARX, 1982, p. 15)20. Essa é, em resumo, a perspectiva ontognoseológica que
orientou Marx em sua elaboração teórica.

20
Alerte-se novamente: intuição, representação e conceito são categorias colhidas da Psicologia do
Espírito hegeliana e retrabalhadas por Marx em sua proposta epistemológica. Interessante notar que Karel
Kosik (2002. P. 13), logo em uma das primeiras frases de Dialética do Concreto, adverte que “o
pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa.”. Pode-se ler o que Hegel
entende por representação no §3º da Enciclopédia das Ciências Filosóficas: “determinidades do
sentimento, da intuição, do desejo, da vontade etc.” (HEGEL, 1997, p. 42). Quanto a conceito, bom
exemplo se encontra na mesma obra nos §§ 84 e 213. Pode-se dizer, contudo, que a diferença entre
representação e conceito está relacionada ao grau de concreção. A representação é a imagem mental não
2. O problema da produção do significado na interação verbal: uma leitura a
partir da ontognoseologia marxiana
Exposta laconicamente a epistemologia marxiana e a orientação ontológica que
tem por base, doravante se vai concentrar, a partir delas, na leitura do problema da
significação, considerado por Volochínov (BAKHTIN, 2009, p. 133) “um dos mais
difíceis da linguística.” Volochínov enfrenta essa questão e acaba por captar toda uma
série de categorias próprias da linguagem, isto é, categorias do sistema da língua21 em
seu uso social – diálogo. Apesar da diversidade de pontos de convergência passíveis de
se apontar entre a postura ontológica e epistemológica marxiana e a obra de
Volochínov, vai-se concentrar apenas em alguns dos pontos, não todos, do cap. VII de
Marxismo e Filosofia da Linguagem.
Primeiramente, da leitura do capítulo, depara-se com o uso frequente de
“enunciado”, que parece representar para o pensamento do Círculo de Bakhtin uma
unidade de comunicação. O enunciado, portanto, não é simples mensagem ou texto –
uma articulação frasal a partir dos eixos paradigmático e sintagmático da língua ou do
código, como para teóricos a exemplo de Hjelmslev (2006)22 –, mas uma unidade
formada por elementos complexos e inserida num contexto dialógico e, portanto,
concreto. Daí a conclusão de Volochínov ao final do cap. VI: “a estrutura da
enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação como tal só se torna

desenvolvida, abstrata, ainda em-si, isto é, uma imagem mental que ainda não considera as relações do
seu objeto (referente) real com os outros elementos da realidade e que desconhece a forma dessas
relações. Como já dito, algo abstrato não é algo necessariamente mental, pois se se considera
imediatamente, fora de suas conexões em uma totalidade, uma coisa qualquer, tanto a coisa aparece como
algo abstrato (isto é, isolado de suas conexões com a realidade) quanto a imagem mental dela ignora essas
conexões reais e é também, por sua vez, abstrata. A imagem mental como representação é mais simples e
imediata que a imagem mental como conceito, pois apreende os seres a que se refere isolados do mundo,
isto é, abstratamente. No conceito, segundo o pensamento dialético, estão representados os entes
individuais da realidade bem como as suas relações e qualidades surgidas dessas relações (ou, numa
perspectiva idealista, como a de Hegel, o universal desenvolvido em seu reflexo nos particulares e
singulares). O conceito é, assim, mais concreto do que a representação, porque nele estão consideradas as
várias mediações e conexões dos entes representados (sejam indivíduos singulares sejam os universais e
os particulares abstratos que por meio dos primeiros ganham existência e aparência). No conceito se
consideram as múltiplas determinações concretas (plenas de mediação) que compõe uma realidade e lhe
dão certa unidade enquanto totalidade.
21
Vai-se referir, ao longo do texto, especialmente à língua, como principal dos sistemas de significação
utilizados na comunicação do ser social, mas se poderia, em atenção a uma perspectiva semiótica,
considerar outros sistemas.
22
Por mais que se reconheça em Hjelmslev um grande teórico e o mérito de ter dado, como não o fora
antes, real consequência à proposta de Semiologia de Saussure (2000, p. 23), sua abordagem da
linguagem considera, sobretudo, a formação dos sistemas de significação, não a relação dialógica,
comunicacional, entre indivíduos por meio do uso desses sistemas.
efetiva entre falantes.” (BAKHTIN, 2009, p. 132). Para a enunciação, um ato
socialmente direcionado, o locutor se vale de um repertório de signos determinado pelo
horizonte sócio-histórico de sua comunidade linguística (tendo dela recebido tal
repertório). A enunciação é direcionada pelo locutor a um interlocutor – que, numa
extrapolação, pode ser considerado a comunidade linguística como um todo23 – a fim de
com ele interagir da forma mais eficaz à finalidade pretendida ante o contexto imediato
em que se encontram. Logo, se a enunciação e seu produto, o enunciado, apenas são
efetivos entre falantes – e tal efetividade repousa na concretude do ato de fala –, são
forma particular de interação entre sujeitos ou consciências em situação determinada e
existente: são diálogo.
Como unidade dialógica, a enunciação é um complexo relacional dotado de
elementos e propriedades. Uma das propriedades do enunciado com que Volochínov se
deparou é o tema: “um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma
propriedade que pertence a cada enunciação como um todo. Vamos chamar o sentido da
enunciação completa o seu tema.” (BAKHTIN, 2009, p. 132). O enunciado e a
enunciação são, portanto, uma unidade, um todo ou uma totalidade particular no
conjunto da linguagem humana; esta, a linguagem, por sua vez, uma totalidade
complexa e particular, componente do conjunto categorial que forma o ser social.
Evidentemente, é necessário perscrutar os atributos ou categorias dos enunciados em
geral para verificar se comportam essa caracterização como totalidade, isto é, se além de
suas características específicas apresentam também as características gerais próprias da
noção de totalidade, conforme exposto, o que só será viável à frente, pois isso exige, na
esteira de Marx, abstração e reorganização do abstrato como “concreto pensado”.
Por ora, concentre-se no tema do enunciado, que é “concreto, tão concreto como
o instante histórico ao qual pertence.” (BAKHTIN, 2009, p. 134). Para Marx, “o
concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do
diverso.” (1982, p. 14). Note-se: Marx utiliza a noção de “unidade”, a qual prefere em

23
“A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não
haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual
pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor:
variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na
hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido,
etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no
sentido próprio nem no figurado. [...] O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório
social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas
motivações, apreciações, etc.” (BAKHTIN, 2009, p. 116-117).
detrimento da de “identidade”. Hegel também critica a noção de identidade típica da
lógica formal, pois “a abstração é o pôr dessa identidade formal, a transformação de
algo, que é em si concreto, nessa forma da simplicidade.” (HEGEL, 2005, p.227). Isto é,
no pensamento dialético, aquilo que é, apenas o é em sua diferenciação com o entorno
com que se encontra mediado. O tema é também, enquanto algo concreto, uma unidade
do diverso, uma síntese de múltiplas determinações, pois “o tema da enunciação é
determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as
formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos
elementos não verbais da situação.” (BAKHTIN, 2009, p. 133). Para a configuração da
enunciação converge o entorno da totalidade mais ampla a qual integra, entorno que
compõe o seu tema. A unidade da enunciação e de seu tema, como situação singular e
não reiterável no plano da existência – e do fenômeno, ao se levar em conta os
partícipes do diálogo –, só é realmente compreensível à luz da perspectiva de totalidade
como pressuposição ontológica e orientação epistemológica. Cada enunciação é singular
– individual –, pois é a síntese de um todo múltiplo, formal e substancial, que se
apresenta como tema da enunciação.

O tema deve ser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base
para definir a enunciação. O tema da enunciação é na verdade, assim
como a enunciação, individual e não reiterável. O tema se apresenta
como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à
enunciação. (BAKHTIN, 2009, p. 133).

Deparar-se com um enunciado gera uma atitude responsiva no receptor, atitude


que levará à compreensão do primeiro pelo segundo – a problemática da compreensão
será ainda referida, sendo também abordada por Volochínov –; entretanto, a
compreensão teórica do enunciado como objeto cognoscível exigiria, na perspectiva
marxiana, não apenas a formulação de uma metalinguagem24, mas também a captação

24
É evidente que Marx não trata a atividade teórica como a elaboração de uma metalinguagem, mas é
plenamente compatível com sua postura ontológica e epistemológica assim conceber. Como já referido, a
atividade teórica, para Marx, é a elaboração da intuição e da representação em conceito, e essas são
categorias do Espírito Subjetivo hegeliano, isto é, da capacidade cognitiva humana. A teoria, como
“concreto pensado”, conceituação construída a partir da totalidade real e de suas categorias objetivas, é
expressa em texto, logo é a elaboração de uma linguagem que, referida a entes objetivos – uns singulares
sensíveis e existentes, outros particulares ou universais reais e não sensíveis –, busca representá-los de
maneira fiel. Daí se pode afirmar, inclusive, que a teoria para Marx, a exemplo do pensamento moderno e
contrariamente à grande maioria do pensamento pós-moderno, está em um nível referencial, isto é, não é
dos referentes objetivos dessa metalinguagem, isto é, das categorias e atributos do
enunciado e seu tema – operação necessária, como visto, para a passagem do nível da
representação ao nível do conceito. Tudo leva a crer que Volochínov segue nesse
intento, pois ele mesmo admite que “se nos limitássemos ao caráter não reiterável e
historicamente único de cada enunciação concreta, estaríamos sendo medíocres
dialéticos”: Volochínov sabe que é necessário alcançar racionalmente o aspecto abstrato
e formal comum a muitas enunciações, aspecto a que chamou significação, composta
pelos “elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são
repetidos.” (BAKHTIN, 2009, p. 134). Assim, a partir de muitos enunciados, por
abstração, é possível atingir esse aspecto formal comum a todos eles, o significado.
Como ente abstrato, o significado é uma particularidade de uma série de enunciações
não reiteráveis (singulares). Portanto, embora seja mais genérico do que uma
enunciação concreta e determinada, o significado não é genérico a ponto de abarcar
todas as enunciações ou formas de expressão da linguagem ou mesmo de uma língua
particular.

Naturalmente, esses elementos [do significado] são abstratos:


fundados sob uma convenção, eles não têm existência concreta
independente, o que não os impede de formar uma parte inalienável,
indispensável, da enunciação. O tema da enunciação é na essência
irredutível a análise. A significação da enunciação, ao contrário, pode
ser analisada em um conjunto de significações ligadas aos elementos
linguísticos que a compõe. O tema da enunciação: “Que horas são?”,
tomado em ligação indissolúvel com a situação histórica concreta, não
pode ser segmentado. A significação da enunciação: “Que horas são”
é idêntica em todas as instâncias históricas em que é pronunciada; ela
se compõe das significações de todas as palavras que fazem parte dela,
das formas de suas relações morfológicas e sintáticas, da entoação
interrogativa, etc. (BAKHTIN, 2009, p. 134).

O significado não possui existência independente da enunciação e a enunciação


não é possível sem o significado: está-se diante de uma unidade dialética entre forma e
substância. Parece possível, então, falar-se sobre uma dialética de significação e tema,
assim como se fala sobre uma dialética de parte e todo ou dialética de forma e
substância. Isso, pois “é impossível traçar uma fronteira mecânica absoluta entre a

simples narrativa autorreferente, mas aponta para uma realidade concebida como independente do sujeito
e da observação do sujeito, ainda que a observação do sujeito, enquanto práxis, influa na realidade
observada.
significação e o tema. [Isto é] não há tema sem significação, e vice-versa” (BAKHTIN,
2009, p. 134). A significação possui um caráter particular, porque, além de referir-se a
um determinado conjunto de enunciações únicas e reiteráveis, “pertence a um elemento
ou conjunto de elementos na sua relação com o todo. É claro que se abstrairmos por
completo essa relação com o todo (isto é, com a enunciação), perderemos a
significação.” (BAKHTIN, 2009, p. 136).
Se se admite o enunciado como um todo e como uma unidade, sua entificação
depende tanto dos elementos substanciais e sensíveis (os locutores em diálogo, o canal
de expressão, o aspecto material dos signos etc.) quanto dos formais e nãos sensíveis (o
significado e as formas sintáticas e morfológicas da língua etc.). Por mais que se possa
abordar teoricamente os elementos materiais que compõem a enunciação – por exemplo,
o aspecto físico da produção e da percepção dos sons da fala humana, objeto da fonética
–, aqui mais interessa concentrar-se em seus aspectos formais, como o significado, que,
por sua vez, compõe-se das “formas de suas relações morfológicas e sintáticas”, e isso
leva à conclusão de que o significado não é a última categoria possível de ser atingida
por meio da abstração: prosseguindo com a atividade mental de abstração – isto é,
reunindo os aspectos comuns a diversos significados e desconsiderando a diversidade –
podem-se encontrar as formas fonológicas, semânticas, sintáticas e morfológicas da
língua25, e uma abordagem teórica de veio dialético não pode furtar-se a perscrutar a
estrutura e dinâmica dessas formas abstratas, mas apenas para elevar-se do abstrato ao
concreto, reencontrando as vivas manifestações da linguagem humana.
Se o particular, conforme pensa Lukács, “representa [...] a expressão lógica das
categorias de mediação entre os homens singulares e a sociedade” (1968, p. 93), isto é,
se o particular é uma categoria de mediação entre o singular (indivíduos vivos, situações
concretas) e o universal (aspectos mais formais da sociabilidade humana refletidos nas
parcelas da existência), o significado é uma categoria particular no conjunto da

25
Esse exercício de abstração poderia prosseguir até se encontrar – quem sabe? – algo próximo aos níveis
da Hierarquia de Chomsky. Não se ignora que Chomsky, em sua “Linguística Cartesiana” (1972), tenha
utilizado o método dedutivo, típico do racionalismo, e as contribuições dadas pela Matemática sobre a
Teoria dos Conjuntos para abordar a capacidade linguística humana. Também não se ignora que em
outros dos seus trabalhos, que desembocam em sua Gramática Gerativa, haja um alto nível de
formalização que se assemelhe ao da Matemática. Contudo, por que não se poderia chegar a resultados
semelhantes, sem desconsiderar o todo vivo da linguagem, por meio de uma ontognoseologia dialética? A
dialética não se furta a um exame formal, o exame formal lhe é imprescindível – basta lembrar o edifício
lógico construído por Hegel na “Grande Lógica” (1968), talvez um dos textos mais complexos e ricos do
pensamento ocidental.
linguagem por realizar um modo de mediação entre as situações concretas e temáticas
dos atos de comunicação (em que se produzem os enunciados pelos falantes) e as
formas abstratas da língua, bem como entre os indivíduos em diálogo e a totalidade da
vida social. De modo sintético, o significado é uma categoria particular por realizar a
mediação entre os falantes e a língua. Assim, admite-se que outras formas particulares
de mediação entre a língua e os enunciados produzidos pelos falantes podem ser
captadas na atividade teórica, como, por exemplo, os gêneros do discurso, assim
definidos por Bakhtin (2006, p. 262): “evidentemente, cada enunciado particular é
individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.”
E não há qualquer óbice acerca dessa relativa estabilidade para se pensarem os
gêneros do discurso ou a significação como categorias particulares, uma vez que o
pensamento dialético é a reflexão sobre a própria dialética do ser, isto é, sobre sua
estrutura, processualidade e padecimento. Em Marx, o particular, como forma abstrata
referida a singulares existentes, é padecente, pois, como visto, até as categorias mais
abstratas, como “formas de modos de ser”, são produtos das condições históricas da
existência, e a existência está sujeita ao devir. Ademais, deve-se admitir a possibilidade
de diversas categorias particulares passíveis de serem flagradas, por meio da abstração,
a partir da concreticidade do enunciado. Se o enunciado e seu tema são concretos, são-
no como “síntese de múltiplas determinações”, de múltiplas categorias.
Ainda focalizando os aspectos formais da linguagem, outra reflexão passível de
se empreender é sobre a universalidade da língua em relação a diversas dessas
categorias captadas a partir do enunciado. Em que sentido se pode conceber a língua
como universal em relação a enunciações singulares e a categorias particulares como o
significado e os gêneros do discurso? Assim como não há enunciado e tema sem
significação e vice-versa, não há a possibilidade de haver enunciação e suas categorias
particulares, como gênero e significação, sem a língua. Até aqui não há nada de novo,
pois mesmo um estruturalista, como Barthes, lembrando Merleau-Ponty, admite haver
uma “dialética de língua e fala.”26. Para a construção de uma perspectiva eminentemente
dialética, importa extrair outras consequências dessa relação língua/fala ou

26
“Língua e Fala: cada um desses dois termos só tira evidentemente sua definição plena do processo
dialético que une um ao outro: não há língua sem fala e não há fala fora da língua; é nessa troca que se
situa a verdadeira práxis linguística.” (BARTHES, 2007, p. 19).
código/mensagem: deve-se captar as mediações entre essas instâncias e sua conexão
com a totalidade da existência social, da sociedade em sua práxis historicamente
situada. Destarte, há de se compreender a língua como universal, porque ela representa
um conjunto mais abstrato de categorias do que as significações e os gêneros, isto é,
pela confrontação entre os possíveis tipos de gênero ou entre os possíveis tipos de
significação vislumbram-se, pela abstração, certos elementos também relativamente
estáveis, como as formas de relação sintática ou morfológica27. Assim, a língua, em
relação a certas categorias mais específicas e particulares, é um universal, porque se
chega às suas categorias a partir da abstração de elementos já formais28.
É evidente que ao se considerar o conjunto das línguas humanas, qualquer língua
específica deve ser considerada um conjunto particular de formas e relações, assim
como, ao se considerar os sistemas que servem à linguagem – tenha-se em mente que na
clássica formulação de Saussure a Semiologia é uma ciência dos sistemas de signos no
geral e a língua “é apenas o principal desses sistemas” (SAUSSURE, 2000, p. 24) –, a
noção de língua também deve se considerada como algo particular. Entretanto,
conforme lembra Lukács em relação à dialética materialista marxiana:

De uma similar análise concreta, surge sempre e por toda a parte a


relativização dialética do universal e do particular; em determinadas
situações concretas eles se convertem um no outro, em determinadas
situações concretas o universal se especifica, em determinada relação
ele se torna particular, mas pode também ocorrer que o universal se
dilate e anule a particularidade, ou que um anterior particular se
desenvolva até a universalidade ou vice-versa. Marx considera como
importante tarefa da ciência estudar e descrever, de um modo
historicamente concreto, sem preconceitos esquemáticos e com
exatidão, estas relações e suas transformações. (1968, p. 92).

27
Por exemplo, é bastante aceita a ideia de que no português haja dez classes morfológicas: substantivo,
verbo, adjetivo, advérbio, pronome, artigo, numeral, preposição, conjunção e interjeição; do mesmo
modo, concebe-se haver um número finito de relações sintáticas entre palavras e entre orações (fala-se em
complemento nominal, verbo transitivo, oração subordinada adverbial condicional reduzida de particípio
etc.). O mesmo se pode pensar ao número finito de fonemas de uma língua, que possibilitam, não
obstante, a formação de uma combinação infinita. Pensa-se que, na esteira de Saussure, grande
contribuição foi dada por Hjelmslev (2006) ao abordar de forma sistemática a formação das unidades dos
eixos da expressão e do conteúdo da língua, processo que se dá ao projetar-se sobre o contínuo de
substância desses dois eixos uma forma. Ainda recordando Hjelmslev, é necessário citar sua distinção
entre signos e figuras, de modo que é possível flagrar, nos primeiros, uma função semiótica ou sígnica e,
nos segundos, não.
28
Por exemplo, as noções de notação e conotação – tão caras a teóricos como Hjelmslev e consideradas
insatisfatórias por Volochínov – são compreensíveis a partir do modo como nas mensagens elaboradas a
partir de um código se dá a relação de significação.
Logo, uma língua é universal na sua relação com o conjunto de significados
abstratos e enunciações concretas que a realizam na existência histórico-social de seus
falantes, mas figura como particular na relação com outros elementos da linguagem.
Conforme exposto, Marx herda de Hegel a postura de considerar os universais e os
particulares, conquanto formais e abstratos, como entes objetivos. Se a língua pode ser
considerada uma categoria universal, é pertinente questionar se é compatível com o
pensamento de Volochínov considerá-la uma entificação, uma estrutura social objetiva,
apesar de seu caráter abstrato e formal, bem como também o significado. No exame do
objetivismo abstrato, Volochínov sintetiza as principais posições teóricas da linguística
saussuriana em uma série de pontos, como “a língua é um sistema estável, imutável, de
formas linguísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual
e peremptória para esta.” (BAKHITIN, 2009, p. 85). Depreende-se, pela caracterização
de Volochínov sobre o enunciado e a interação verbal, que ele considera, assim como
Saussure, ser a língua uma instituição social29; entretanto, não a considera como uma
estrutura objetiva independente do uso que dela fazem os falantes nas suas enunciações
e na compreensão dos enunciados, e esse parece ser o ponto de vista defendido na
primeira parte do cap. V de Marxismo e Filosofia da Linguagem30. Se o significado,
aqui caracterizado como categoria particular, é por Volochínov considerado algo
objetivo, apesar de abstrato31, não há igualmente óbice a que se considere a língua como
uma entificação objetiva, abstrata e formal cuja realidade tem como esteio ontológico
necessário os sujeitos concretos em diálogo; todavia, Volochínov não vê a língua como
um todo monolítico frente ao qual os sujeitos falantes são impotentes, pois sua realidade
é a interação verbal.

29
Para Saussure, a língua “é, ao mesmo tempo, uma produto social da faculdade de linguagem e um
conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade
nos indivíduos. [...] A língua [...] é um todo por si e um princípio de classificação. Desde que lhe demos o
primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se
presta a nenhuma outra classificação.” (SAUSSURE, 2000, p. 17).
30
“Assim, de um ponto de vista objetivo, o sistema sincrônico não corresponde a nenhum momento
efetivo do processo de evolução da língua. [...] Todo sistema de normas sociais encontra-se numa posição
análoga; somente existe relacionado à consciência subjetiva dos indivíduos que participam da
coletividade regida por essas normas. [...] Segue-se, então, que essa relação entre a consciência subjetiva
e a língua como sistema objetivo de normas incontestáveis seja desprovida de qualquer objetividade?
Não, evidentemente. Compreendida corretamente, essa relação pode ser considerada um fato objetivo.”
(BAKHTIN, 2009, p. 94, grifo do autor).
31
“A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do
interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um
determinado complexo sonoro” (BAKHTIN, 2009, p. 137, grifo do autor).
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica
isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo
fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação
ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade
fundamental da língua. (BAKHTIN, 2009, p127).

Uma posição como essa segue no mesmo diapasão de Marx, que considera que
os particulares e universais essentes decorrem das singularidades existentes, e não o
contrário, como propunha Hegel, e por isso, apesar de sua objetividade, as categorias
sociais abstratas apenas são reais na medida em que a sociedade a que se referem ainda
existe. Assim, é dos enunciados singulares emitidos nas condições de existência
concreta dos falantes que decorre a língua, os enunciados são o fulcro ontológico que
sustenta a realidade da língua como entificação objetiva. Ademais, cogita-se se uma
posição como a de Saussure não poderia ser criticada a partir da clivagem entre
externação (“Entäusserung”) e estranhamento (“Entfremdung”) realizada por Marx, a
partir principalmente da leitura crítica do conceito de trabalho na Fenomenologia do
Espírito de Hegel (1992, p. 126 et seq.), nos Manuscritos Econômico-Filosóficos: o
estranhamento decorre do não reconhecimento do produto pelos produtores, de modo
que os produtos aparecem aos produtores como uma determinação externa, e não como
resultado de sua própria atividade ontocriativa (práxis)32. A caracterização de
estranhamento e exteriorização é realizada por Marx no contexto do debate sobre os
limites colocados para a efetivação da humanidade, como construtora de sua própria
sociabilidade, e particularmente do trabalhador sob as condições histórico-concretas de
existência na sociedade civil burguesa (“Bürgerliche Gesellschaft”). Entretanto, parece
possível extrapolar tal análise e deparar-se com as categorias estranhamento e
exteriorização em outros objetos ou relações, como nas relações entre falantes e língua:
a fala, por exemplo, pode ser caracterizada como modo particular de exteriorização, de
práxis – a fala como práxis linguística; o estranhamento, por sua vez, pode ser flagrado

32
No excerto, as inserções de palavras entre colchetes são da própria tradução: “na determinação de que o
trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como [com] um objeto estranho estão todas essas
consequências. Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta
trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (femd) que ele cria
diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador]
pertence a si próprio.” (MARX, 2004, p. 81).
como a aparência de que “a língua é um sistema estável, imutável, de formas
linguísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e
peremptória para esta” (BAKHITIN, 2009, p. 85), justamente a postura teórica atribuída
ao objetivismo abstrato por Volochínov em sua crítica.
Outras categorias captadas por Marx no seu projeto intelectual de crítica da
Economia Política talvez compareçam também na relação entre falantes e língua, como,
por exemplo, o fetichismo e a reificação, que são aspectos da categoria estranhamento.
O fetichismo33 é o aspecto objetivo do estranhamento, manifestando-se como fenômeno
social em que as entificações produzidas (objetivadas) pelos sujeitos lhes aparecem
como dotadas de atributos próprios que prescindem de sua intervenção, como se algo
que é uma relação entre sujeitos (falantes) fosse uma relação entre coisas (signos): na
relação entre falantes e língua, o fetichismo toma a forma da aparência de que as
características do sistema formal da língua decorrem apenas das relações sintagmáticas
e paradigmáticas de elementos abstratos, como as significações, e não da relação entre
interlocutores em situação, mediatizados tanto pela situação temática quanto pelas
próprias formas abstratas da língua como instituição social34. A reificação35 é o aspecto
subjetivo do estranhamento e assume a forma de uma situação de impotência do sujeito

33
Marx caracteriza classicamente o fetichismo da mercadoria na seção 4 do capítulo I de O Capital, após
discorrer sobre a relação entre trabalho concreto e trabalho abstrato como produtores de valor de uso e
valor de troca, respectivamente, o que possibilita ao valor destacar-se e expressar-se no equivalente geral
de troca (forma dinheiro): “O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas
dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas” (MARX, 1983, p.
71).
34
Em seu Tratado de Semiótica General, Eco (2000, p. 25), ao analisar a relação entre os fenômenos de
significação (dados pela correlação, estabelecida por um código, entre unidades de uma estrutura ou plano
de conteúdo e unidades de uma estrutura ou plano de expressão) e de comunicação (dependentes de uma
resposta interpretativa por parte do destinatário de uma mensagem), defende a seguinte posição: “por
tanto, un sistema de significación es una construcción semiótica autónoma que posee modalidades de
existencia totalmente abstractas, independientes de cualquier posible acto de comunicación que las
actualice. En cambio (excepto en el caso de los procesos simp0les de estimulación), cualquier proceso de
comunicación entre seres humanos […] presupone un sistema de significación como condición propia
necesaria”. Considera-se que essa posição é plenamente compatível com a posição de Volochínov e a
posição aqui defendida: apesar de ser abstrato, o sistema da língua necessita de atualização por meio do
uso, isto é, por meio da interação verbal, e são as enunciações que vão, ao longo de complexos processos,
ocasionando as mudanças no sistema da língua e mesmo outras variações, como a formação de dialetos,
socieletos, variantes linguísticas etc. Assim, embora realmente o processo de comunicação pressuponha a
formação e uso de um sistema de significação, todo sistema de significação, como construto cultural,
forma-se diante da necessidade de comunicação humana como meio de atendimento dessa necessidade e
subsiste apenas tendo como fulcro ontológico a sociedade que o cria e utiliza.
35
A reificação é, pois, a objetificação da consciência do sujeito, de tal modo que “o homem é confrontado
com sua própria atividade [...] como algo objetivo, independente dele e que o domina por leis próprias,
que lhes são estranhas. E isso ocorre tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o subjetivo” (LUKÁCS,
2003, p. 199).
frente aos construtos sócio-históricos, como se ele apenas pudesse reiterar suas formas e
jamais alterá-las: na relação entre falantes e língua, a reificação é a aparente impotência
do sujeito frente à rígida estrutura da língua, conquanto a possibilidade de realidade da
língua repouse na interação verbal entre indivíduos sócio-historicamente situados
produzindo enunciados em situações temáticas concretas. Em tais aspectos, a
perspectiva marxiana parece se mostrar bastante compatível com o tom da crítica
empreendida por Volochínov ao objetivismo abstrato, e a síntese realizada por ele do
pensamento de Saussure em diversos aspectos lembra essas três categorias marxianas há
pouco abordadas36:

1. Nas formas linguísticas, o fator normativo e estável prevalece sobre


o caráter mutável. 2. O abstrato prevalece sobe o concreto. 3. O
sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica. 4. As formas
dos elementos prevalecem sobre as do conjunto. 5. A reificação do
elemento linguístico isolado substitui a dinâmica da fala. 6.
Univocidade da palavra mais do que polissemia e plurivalências vivas.
7. Representação da linguagem como um produto acabado, que se
transmite de geração a geração. 8. Incapacidade de compreender o
processo gerativo interno da língua. (BAKHTIN, 2009, p. 107).

Após essa necessária digressão, há de debruçar novamente sobre a possibilidade


de se captar a dialética de universal-particular-singular, calcada numa perspectiva de
totalidade, nas relações de diversas categorias flagradas por Volochínov ao estudar o
problema da significação. Assim, tem de se discutir a variabilidade da significação e sua
dependência em relação ao tema, pois, como particular, apenas por meio do tema pode a
significação aparecer no plano da existência e ser reconhecida por falantes em uma série
de enunciações. Em certo momento, Volochínov afirma que “a significação é um
aparato técnico para a realização do tema.” (BAKHTIN, 2009, p. 134), mas tal
caracterização parece mais uma metáfora com finalidades explicativas ou a
caracterização dessa categoria aos olhos do falante quotidiano de dada língua, pois a
significação, em sua unidade com a situação temática da enunciação, não é algo criado
pelo cientista com uma finalidade prática – possibilitar o uso da língua –, mas uma
categoria própria do contato dialógico entre dois sujeitos sociais mediatizados pelas

36
O quão justo foi Volochínov em sua crítica a Saussure, o eminente pai da linguística moderna, é
certamente tema que suscita vivos e necessários debates. Todavia, examinar essa questão se encontra
muito para além das intenções deste texto e das possibilidades de seu autor.
suas condições imediatas e mediatas de existência e pelas enunciações que produzem:
por isso “o tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir.” (BAKHTIN,
2009, p. 134). Se Volochínov pensasse a significação simplesmente como mero “aparato
técnico”, trairia não apenas seu intento dialético, mas também e ainda mais seu intento
científico: fica claro, pela caracterização que faz da enunciação, que a significação é
uma forma presente em todas as enunciações e, portanto, é um aspecto abstrato
característico da capacidade comunicativa humana. É por isso que Volochínov
considera que “é impossível designar a significação de uma palavra isolada [...] sem
fazer dela o elemento de um tema, isto é, sem construir uma enunciação.” (BAKHTIN,
2009, p. 134).
Mas, compreendidas categorias como tema e significação, vem a pergunta: como
se dá a relação entre elas? Como uma palavra significa um referente ou um significado
qualquer numa situação temática? Volochínov lembra as elucubrações de Nicolau Marr
sobre a paleontologia linguística e a palavra onisignificante, concluindo que,
justamente, “a multiplicidade de significações é o índice que faz de uma palavra uma
palavra.” (BAKHTIN, 2009, p. 135). Logo, ao aparato material do signo – a que
Saussure chamou significante – é possível associar uma série de significados, o que
depende, contudo, da situação concreta de interação verbal, pois “o tema absorve,
dissolve em si a significação, não lhe deixando a possibilidade de estabilizar-se e
consolidar-se.” (BAKHTIN, 2009, p. 135).
A descrição que Volochínov faz sobre “a maneira mais correta de formular a
inter-relação do tema e da significação” (BAKHTIN, 2009, p. 136) também pode ser lida
a partir do método em Marx. Como dito, uma perspectiva dialética não se furta a um
exame formal, mas Marx o vê apenas como um momento da atividade teórica, que deve
consistir na passagem do abstrato ao concreto. Marx considera ser necessário e possível
realizar dois movimentos a partir da abstração analítica: um ascendente, que vai do
concreto dado imediata e fenomenicamente à consciência numa representação caótica às
suas categorias abstratas; outro descendente, que vai das categorias abstratas ao
“concreto pensado”, atingido pela elaboração da intuição e da representação em
conceitos. Assim como Marx, Volochínov também admite a possibilidade de duas
direções no exame da relação entre tema e significação:
O tema constitui o estágio superior real da capacidade linguística de
significar. De fato, apenas o tema significa de maneira determinada. A
significação é o estágio inferior da capacidade de significar. A
significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um
potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema
concreto. A investigação da significação de um ou outro elemento
linguístico pode, segundo a definição que demos, orientar-se para duas
direções: para o estágio superior, o tema; nesse caso, tratar-se-ia da
investigação da significação contextual de uma dada palavra nas
condições de uma enunciação concreta. Ou então ela pode tender para
o estágio inferior, o da significação: nesse caso, será a investigação da
significação da palavra no sistema da língua, ou em outros termos a
investigação da palavra dicionarizada. (BAKHTIN, 2009, p. 136).

Parece lícito ler, nesse excerto, “inferior” e “superior” como “abstrato” e


“concreto”, uma vez que se referem à significação e ao tema, respectivamente.
Volochínov admite, portanto, duas direções da investigação do processo de significação,
um que se dá rumo à universalidade abstrata e outro que tenta captar a totalidade
concreta e viva do enunciado. Logo, para a compreensão da totalidade do enunciado,
como síntese de muitas determinações, há de se esquadrinhar a relação entre as
entificações abstratas e concretas que nele convergem: a interação entre os elementos
formais da língua e da significação e os elementos componentes da existência histórico-
social de locutor e ouvinte, o que tornará enunciação e enunciado concretamente
determinados, especificados. Para Volochínov, o estudo das relações entre tema e
significação é o caminho mais profícuo para a investigação, caminho que superaria o de
se conceber certa significação como central ou de maior valor em relação a outras
significações possíveis para uma mesma mensagem, pois distinções como as operadas
entre denotação e conotação ou entre sentido central e lateral da palavra não explicariam
a complexidade do tema, irredutível a quaisquer dessas categorias formais e
convencionais.
Por ora, vai-se abordar outros aspectos da significação elencados por
Volochínov, como o problema da compreensão, que, ao contrário do que supõem os
teóricos ligados a uma perspectiva monológica – tanto subjetivismo individualista
quanto objetivismo abstrato estariam eivados deste vício –, não é passiva: a
compreensão realizada por um ouvinte em relação a dado enunciado seria ativa. Se,
conforme propugna Volochínov, o tema é uma reação da consciência em devir ao ser
em devir:
Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a evolução
não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo
evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se
em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto
correspondente. (BAKHTIN, 2009, p. 136-137).

À parte outras diversas considerações que se poderia realizar sobre a


compreensão, concentre-se apenas na dinâmica entre significação e tema para o ouvinte:
Volochínov assevera ser possível a compreensão apenas pela relação que o ouvinte
realiza entre o significado da enunciação e a situação temática de comunicação. Assim,
ao presenciar um enunciado, a consciência do ouvinte não apenas responderia com a
atividade de relacionar o significado ao tema, mas com “opor à palavra do locutor uma
contrapalavra”, de modo que “cada um dos elementos significativos isoláveis de uma
enunciação e a enunciação toda são transferidos nas nossas mentes para um outro
contexto, ativo e responsivo.” (BAKHTIN, 2009, p. 137)37. Daí concluir-se que dada
significação não pode ser considerada como propriedade inalienável de dada palavra,
pois um mesmo conjunto frasal pode prestar-se a diferentes significados ao relacionar-
se a diferentes temas. Logo, o essencial para a compreensão do significado é a interação
verbal, pois “a significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como
também na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor
produzido através do material de um determinado complexo sonoro” (BAKHTIN, 2009,
p. 137).
Outra categoria apresentada por Volochínov que atestaria a mobilidade do
significado e a insuficiência de abordagens formais sobre a problemática do significado
(como conotação e denotação) seria o acento apreciativo. Assim, cada enunciação, além
de tema e significação, seria dotada de acento apreciativo, outra categoria relacionada à
fala viva na enunciação, de modo que “sem acento apreciativo, não há palavra”. Na
enunciação, a categoria do acento apreciativo se manifesta por meio da entoação
expressiva.

37
No tratamento da questão da compreensão se nota grande influência da Psicologia da Gestalt,
principalmente na abordagem realizada por Wolfgang Köhler (1887-1967). Além da Gestalt, é notória a
influência de outras diversas corrente de pensamento no chamado Círculo de Bakhtin, como o
Neokantismo, a Fenomenologia, a “Filosofia da Vida” (“Lebensphilosophie”) etc. Para se acercar desse
caldeirão de influências teóricas, pode-se consultar Brandist (2002), principalmente os caps. I a III.
É evidente que, em relação a uma enunciação produzida por meio da fala, as
enunciações registradas em texto grafado apresentam possibilidades bastante diminutas
de entoação. E não se deve esquecer de que uma mensagem registrada em texto grafado
– trate-se de texto verbal ou não verbal – é também uma enunciação e de que na leitura
também se deflagra um diálogo, tanto por que o escritor produz o texto numa situação
temática histórico-concreta direcionado a certo auditório, composto por seu horizonte
histórico-social, quanto por que o leitor apenas pode compreender o texto de maneira
responsiva38. Contudo, mesmo a entoação “não traduz adequadamente o valor
apreciativo; esse serve antes de mais nada para orientar a escolha e a distribuição dos
elementos mais carregados de sentido da enunciação” (BAKHTIN, 2009, p 140). O valor
apreciativo, a orientação apreciativa de uma enunciação é um traço ineliminável, pois
constitui a reação do locutor ao seu contexto imediato e mediato, é um traço sem o que
não há possibilidade de enunciação, e é apenas na enunciação que a apreciação
valorativa se manifesta, pois que não pode ser captada no sistema abstrato da língua.
Volochínov atribui à apreciação valorativa um papel importantíssimo, o da variabilidade
e mudança da significação. “A mudança de significação é sempre, no final das contas,
uma reavaliação: o deslocamento de uma palavra determinada de um contexto
apreciativo para outro” (BAKHTIN, 2009, p. 140-141). Esse deslocamento se dá pela
necessidade de se adaptar as palavras a novos contextos e situações, decorrentes do
próprio devir da vida social em seus diversos aspectos. Talvez seja até mesmo possível
abordar-se a questão das variantes linguísticas a partir da variabilidade do signo
ocasionada pelo acento apreciativo, pois as variantes seriam certa cristalização
decorrente da mudança de contexto das palavras realizada por grupos identitários ou
setores sociais, alguns até mesmo pretendendo a criação de uma variante própria, como
certos grupos profissionais.
Com categorias como “tema” e “apreciação valorativa” fica patente a conexão
entre a linguagem e o mundo histórico-social em que ela se dá. Tal problemática pode

38
“A enunciação monológica já é uma abstração, embora seja uma abstração do tipo ‘natural’. Toda
enunciação monológica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um elemento inalienável da
comunicação verbal. Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma
coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos e fala. Toda inscrição prolonga
aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão,
antecipa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ou da literatura ou da vida política.
Uma inscrição, como toda enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para
uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do
processo ideológico do qual ela é parte integrante” (BAKHTIN, 2009, p. 101).
ser enriquecida pela contribuição de Marx e, uma vez que Volochínov apresenta tal tese,
parece pertinente trabalhar laconicamente a temática. Está-se diante de um dos
problemas mais polêmicos do marxismo: a natureza da relação entre a infraestrutura
econômica, designada por Marx em referência a Hegel como sociedade civil, e outras
categorias sociais, como a linguagem e a língua. Primeiramente, é necessário pontuar
como Volochínov concebe tal relação:

É justamente para compreender a evolução histórica do tema e das


significações que o compõe que é indispensável levar em conta a
apreciação social. A evolução semântica na língua é sempre ligada à
evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e a
evolução do horizonte apreciativo – no sentido da totalidade de tudo
que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo – é
inteiramente determinada pela expansão da infra-estrutura econômica.
À medida que a base econômica se expande, ela promove uma real
expansão no escopo de existência que é acessível, compreensível e
vital para o homem. (BAKHTIN, 2009, p. 141).

A tese da determinação das superestruturas pela infraestrutura é apresentada de


forma bastante sintética por Marx no Prefácio de 1859 a Para a Crítica da Economia
Política39. A pergunta vital é: o que Marx entende por “determinação”? Há de recordar
a natureza da relação entre os integrantes do Círculo de Bakhtin e o marxismo soviético
conforme descrita por Bandist (2000, p. 53-54), porém foi um contato que não apenas
evitou dogmatismos como realizou uma leitura extremamente eclética. O marxismo
soviético, criticado por autores do marxismo ocidental de modo ferrenho em diversas
oportunidades40, teve em Bukharin uma figura quase típica. Seu livro, Materialismo
Histórico: um manual popular de sociologia marxista, foi muito influente na URSS

39
“Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado,
não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado
desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de
vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de “sociedade civil” (bürgerliche Gesellschaft)
[...] a anatomia da sociedade burguesa (bürgerliche Gesellschaft) deve ser procurada na Economia
Política. [...] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias
e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada
de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e
política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida
material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual”. (MARX, 1982, p. 25).
40
Diversos autores que realizaram tal empreendimento seriam dignos de lembrança, mas apenas se citem
alguns poucos nomes, como Rosa Luxemburgo, Karl Korsch, Georg Lukács, Theodor Adorno, Herbert
Marcuse e Henri Lefebvre.
durante a década de 1920 e nele se encontram teses que foram repetidas à exaustão por
membros do burocratizado Komintern. Contudo, conforme lembra Brandist:

A obra de Bukarin não incluía qualquer exposição sistemática da


dialética, exatamente o cerne da teoria filosófica marxista; a dialética
foi substituída por uma teoria do equilíbrio dinâmico dos elementos
sociais impulsionado por uma causa externa: o desenvolvimento
tecnológico. Isso levou o teórico e comunista alemão Karl Korsch a
protestar que ali “o fluído metodológico da dialética de Marx congela-
se em certo número de interconexões causais do fenômeno histórico
em diferentes áreas da sociedade – em outros termos, torna-se algo
que seria mais bem descrita como uma sociologia sistemática geral.”
(BRANDIST, 2000, p. 54-55).

O cap. II de Marxismo e Filosofia da Linguagem inicia justamente com


esclarecer “por que razão é inadmissível aplicar a categoria da causalidade mecanicista
à ciência da ideologia” (BAKHTIN, 2009, p. 21). Isso leva à necessidade de se
responder a pergunta já proposta: o que Marx entende por “determinação”? A ideia mais
corrente de “determinação” nas ciências sociais traz justamente a noção de uma relação
de causalidade: “se A é, B será”, “AB”, ou “se temos certa infraestrutura, teremos
certas superestruturas”. Esse não é o sentido da palavra utilizado por Marx. A
determinação, para Marx, tem o sentido hegeliano de ser determinado, concreto,
contextualizado em uma totalidade à qual pertence41; logo, não tem o sentido de relação
de causalidade, mas de relação de primazia ontológica: “B não pode existir sem que A
exista, mas ao B passar a existir estabelece uma relação de mútua implicância com A”.
Nas palavras de Lukács, no capítulo dedicado exclusivamente a Marx em sua Ontologia
do Ser Social:

41
Sobre a noção de “determinação” (no original, “Bestimmung”) no pensamento hegeliano, herdada por
Marx, é pertinente consultar, entre outros, o seguinte excerto da Enciclopédia das Ciências Filosóficas
Vol. I de Hegel (2005, p. 187): “a base de toda determinidade é a negação (‘omnis determitatio est
negatio’, como diz Espinoza). O opinar, carente-de-pensamento, considera as coisas determinadas
somente positivas, e as sustenta sob a forma do ser. [...] De resto, na confusão aqui mencionada – do ser-
aí enquanto ser determinado, com o ser abstrato – de correto [o fato de] que no ser-aí, com certeza, o
momento da negação só está contido, por assim dizer, como embrulhado; o qual momento da negação só
então no ser-para-si se produz livremente, e conquista seu direito. Além do que, se considerarmos agora o
ser-aí como determinidade essente, teremos nele o que se entende por realidade.” Assim, ao longo da
discussão em torno do ser-aí, Hegel clareia a distinção que traça entre o ser (“Sein”) e o ser-aí (“Dasein”)
com base na determinação deste em relação àquele por força da negação e da contradição. Assim, a
determinação é o objeto de especificação e diferenciação do ser em uma totalidade no seu processo de vir-
a-ser.
Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria
com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira
pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente
impossível. É algo semelhante à tese central de todo materialismo,
segundo a qual o ser tem prioridade ontológica com relação à
consciência (1979a, p. 40).

Destarte, as diversas ordens da existência social (produção, circulação,


distribuição, consumo, mídia, religião, Estado, direito, moral, produção artística etc.)
guardam entre si relativa independência decorrente de sua especificidade, embora só se
desenvolvam nas relações de umas com as outras. As ordens sociais, contudo, limitam o
desenvolvimento umas das outras e quando Marx assume a primazia ontológica da
produção sobre qualquer outra forma da sociabilidade, está a pensar nisto: qualquer
forma de sociabilidade pressupõe homens vivos, ou seja, homens que atendem às suas
necessidades no intercâmbio com a natureza por meio do trabalho, por meio da
produção. Por isso se afirma ser o trabalho a categoria fundante do ser social, pois é o
trabalho que permite o intercâmbio com a natureza42.
Ao Volochínov não admitir a simples causalidade, parece plausível pensar-se
que o modo como resolve no cap. II de Marxismo e Filosofia da Linguagem a relação
entre infraestrutura e superestruturas seja, na verdade e contrariamente ao que
comumente se afirma, extremamente compatível com o pensamento de Marx, pois a
determinação se dá no sentido de que a existência histórico-social, produto da
sociabilidade humana com todos seus construtos culturais, é o referente dos signos e das
significações criados pelos interlocutores no ato de interação verbal. Assim como não
há interação verbal sem interlocutores, não há signo ou processo de significação sem
referente. É apenas nesse sentido que se pode compreender a afirmação de que “a
situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e,
por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN,

42
“O processo de trabalho [...] é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação
do natural para satisfazer necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a
Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independentemente de qualquer forma
dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais” (MARX, O Capital, 1983, p.
153).
2009, p. 117): determinam a enunciação, porque a contextualizam na totalidade em que
ela se dá, especificam seu tema e viabilizam sua significação e acento apreciativo.
Com precisar essa relação entre o enunciado e os contextos sociais imediato e
mediato chega-se finalmente à questão derradeira: pode ser o enunciado caracterizado
como totalidade? Como exposto, a totalidade é uma noção ontológica que pressupõe a
de sistema e pode orientar uma perspectiva epistemológica. A totalidade consiste na
consideração de que a realidade e diversos de seus elementos configuram uma estrutura
complexa e dinâmica em que, devido à sua própria estrutura e dinâmica, seus elementos
e as formas de relação entre eles padecem, dando lugar a novos elementos e formas de
relação. Evidentemente, as enunciações, por não serem reiteráveis, são individuais e,
portanto, singularidades; entretanto, a enunciação é um todo em que convergem não
apenas as singularidades e particularidades dos interlocutores (entre elas, o acento
valorativo e a entonação) e do contexto social imediato e mediato (o tema da
enunciação), mas também suas categorias abstratas (como a significação e a língua).
Ademais, é devido à interação entre esses elementos que se torna possível o processo de
significação, bem como sua variabilidade. Se o acento valorativo, tão próximo às
condições de existência concreta dos interlocutores, realiza a reavaliação dos elementos
linguísticos responsáveis pela mudança de significação, isso só é possível pela interação
entre esses diversos elementos e categorias que tencionam para o interior e para o
exterior da enunciação em sua conexão com o todo vivo da existência social da
comunidade linguística. E a partir da leitura empreendida exsurge com reforçado vigor a
conclusão magistral de Volochínov ao final do cap. VII:

A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em


transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por
isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é
absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para
retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma
estabilidade e uma identidade igualmente provisórias (BAKHTIN,
2009, p. 141).

3. Análise do discurso como análise da totalidade da significação e elevação do


abstrato ao concreto
Referências
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