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Uma leitura sobre a relação entre Hegel e Marx acerca da dialética

Lucas Pavani Goulart

Introdução

A relação entre Marx e Hegel constitui uma das questões mais controvertidas e
debatidas dentro do pensamento filosófico marxista. No seu interior, o tema da herança da
dialética hegeliana e seu papel na obra magna de Marx, O Capital, foi amplamente discutido e
levou a posições distintas. Ao longo do século XX observou-se, de um lado, um resgate do
estudo de Hegel por autores como György Lukács, Antonio Gramsci e Walter Benjamin
(Konder, 2017) e, antes deles, Lenin e, de outro, uma tentativa de afastar completamente o
marxismo de leituras hegelianas, posição representada pelos partidos comunistas oficiais, em
concordância com a visão desfavorável de Stalin em relação à pertinência de Hegel e da
dialética ao marxismo.
No Brasil, para além da absorção das mesmas posições advindas do marxismo
europeu, há uma outra tradição inaugurada por Benoit (1996 e 2003) e continuada por outros
como Antunes (2016) que sustenta, ao mesmo tempo, o reconhecimento da importância do
legado da dialética hegeliana n'O Capital de Marx, mas também uma originalidade e ruptura
da dialética de Marx em relação à Hegel.
Tendo isso em mente, este trabalho pretenderá expor, em primeiro lugar, os
argumentos fornecidos pelos autores supracitados representantes de tal interpretação a
respeito da relação Hegel-Marx no que diz respeito à dialética. Em seguida, pretende-se
apresentar algumas considerações de Hegel sobre sua filosofia em geral e sobre a dialética em
particular a fim de verificar, por fim, em que medida podemos relacioná-las ao
desenvolvimento d'O Capital de Marx.

Uma interpretação marxista da relação Hegel-Marx

Negar a influência de Hegel sobre Marx foi, no interior do marxismo, um instrumento


utilizado pelos partidos comunistas oficiais ao longo do século XX para minar uma
interpretação radical de Marx que questionasse o chamado socialismo real, dando lugar a uma
leitura de um Marx enrijecido e capaz de justificar regimes como o soviético. Stalin foi, sem
dúvidas, o maior representante e impulsionador de tal visão antipática em relação à herança
hegeliana, conforme afirma Konder (2017). Além disso, Stalin promoveu uma mistificação da
dialética, reduzida a quatro traços fundamentais:
Em seu trabalho Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico (1938);
Stálin sustentou que o método dialético não possuia propriamente três leis gerais
[como em Engels] e sim "quatro traços fundamentais", que eram: 1) a conexão
universal e interdependência dos fenômenos; 2) o movimento, a transformação e o
desenvolvimento; 3) a passagem de um estado qualitativo a outro; e 4) a luta dos
contrários como fonte interna do desenvolvimento. (KONDER, 2017, p. 72)

O resgate da dialética hegeliana se constituiu em uma forma de reanimação do


marxismo, armando-o criticamente contra interpretações reducionistas em pontos centrais do
debate com os teóricos do socialismo real, como a filosofia da história e o papel do Estado no
socialismo. A mobilização de Hegel, sobretudo de sua dialética, para a interpretação de Marx,
contudo, incorreu em novas simplificações, pois, por um lado, viu-se, como em Lukács, uma
continuidade absoluta de Marx em relação a Hegel e, por outro, há a famosa afirmação, ainda
repetida, de que Marx teria simplesmente invertido a dialética hegeliana, como se vê em
Konder (2017), que apesar de defender o papel crítico e revolucionário da dialética, incorre
nesse equívoco:
Boa parte da obscuridade de Hegel resultava do fato de ele ser idealista. Hegel
subordinava os movimentos da realidade material à lógica de um princípio que ele
chamava de Idéia Absoluta (...) No caminho aberto por Hegel, entretanto, surgiu
outro pensador alemão, Karl Marx (1818- 1883), materialista, que superou —-
dialeticamente — as posições de seu mestre. Marx escreveu que em Hegel a
dialética estava, por assim dizer, de cabeça para baixo; decidiu, então, colocá-la
sobre seus próprios pés. (KONDER, 2017, p. 27)

Essa visão superficial está, na maior parte das vezes, apoiada nas considerações de
Marx sobre a dialética escritas no Posfácio da segunda edição d'O Capital. Nesse texto, Marx
procura esclarecer acerca do método utilizado em seu livro:
A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que
ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais
de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a
fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. (MARX, 2015a, p.
129)
Como se vê, essa passagem dá respaldo para a simplificação a respeito da dialética
marxista em relação a Hegel. Contudo, para além da breve declaração de Marx sobre o tema,
é somente a partir de um exame detalhado d'O Capital que se pode chegar a uma
compreensão mais adequada da questão.
Nesse sentido, uma interpretação original é apresentada por Benoit (1996) com vistas
a rebater a dialética de Marx vista como uma simples inversão ou como uma herança da
lógica hegeliana. Para o autor, embora a dialética não tenha nascido com Hegel, este autor é
responsável pelo seu renascimento na modernidade e, ainda que reconheça o pioneirismo de
Platão sobre o tema, partindo "Da versão procliana da dialética, Hegel retomará um Platão
hipostaseado (construído a partir de uma leitura mística do diálogo Parmênides) e mesclado
com a tradição parmenideano-aristotélica." (BENOIT, 1996, p. 2). Com isso, para o autor, a
lógica hegeliana resultaria em uma união entre a dialética platônica e a onto-teologia
aristotélica, ligando equivocadamente o método de Platão à lógica aristotélica. Por outro lado,
diz Benoit, o principal mérito de Hegel foi o de retomar o método dialético da filosofia antiga
reabrindo a possibilidade de pensar a unidade entre o lógico e o histórico. Contudo, Hegel
teria dado maior peso ao lógico em relação ao histórico, de modo que o segundo derivaria do
primeiro.
Marx, ao contrário,
mostra que o desdobramento das contradições da forma mercadoria, valor de uso e
valor, trabalho concreto e trabalho abstrato, mercadoria e dinheiro, trabalho e
capital, o desdobramento das contradições históricas representadas logicamente, ou
seja, as contradições lógicas possuem como seu conteúdo essencial as contradições
históricas e, em última instância, todas as contradições históricas são redutíveis
conceitualmente às contradições da luta de classes. (BENOIT, 1996, p. 6)

Assim, Benoit mostra como em todo O Capital, cujo percurso se inicia pela forma
mais abstrata do capital - a mercadoria -, e só mediante um desenvolvimento lógico ulterior
chega às formas históricas da expropriação dos trabalhadores e da luta de classes, já estão,
desde o início, pressupostas tais contradições e condições históricas do desenvolvimento do
próprio capital.
É, por isso que, seguindo o próprio Marx (2015a, p. 129), deve-se distinguir seu modo
de investigação de seu modo de exposição, de modo que, após as extensas investigações do
autor a respeito do capitalismo, a dialética surge como o mais adequado modo de exposição
das contradições de cada categoria, pois corresponde exatamente à exposição imanente e não
apriorística de tais contradições. Isso se comprova já no parágrafo que abre O Capital: "A
riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma “enorme
coleção de mercadorias”, e a mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa
investigação começa, por isso, com a análise da mercadoria." (MARX, 2015a, p. 157). Ao
dizer que o modo de produção capitalista aparece como uma coleção de mercadorias, Marx
pretende começar a exposição de sua investigação sobre o capital por onde ele se mostra
evidente, isto é, nas próprias mercadorias. É a partir delas que Marx derivará, imanentemente,
contradições - como valor de uso e valor de troca que dão lugar, posteriormente, a valor de
uso e valor - até chegar de forma explícita no fundamento histórico do capital, a expropriação
da classe trabalhadora, mas que já está presente desde o início de sua obra. Nisso consiste,
portanto, a dialética de Marx n'O Capital ou, como afirma Benoit, "A dialética é o
instrumento metodológico que permite a Marx tentar superar a forma analítica da sua
pesquisa, ou seja, a dialética é o método através do qual Marx procura reconstruir a totalidade
viva do real." (BENOIT, 1996, p. 4).
É curioso notar como o próprio comentarista, posteriormente, irá admitir que a
dialética levada a cabo por Marx possui maior afinidade com a filosofia hegeliana, dizendo
que
Assim, no método dialético, avançar é um retroceder. Avançar é, como dizia Hegel,
um retroceder ao fundamento (Grund), ao originário (dem Ursprünglichen) e
verdadeiro, do qual depende o começo (Anfang) com o qual se começou e pelo qual
efetivamente foi produzido". O começo pressupõe assim o fim, fim que, na verdade,
é princípio, arché, fundamento originário. Por isso mesmo, em O capital, em certo
sentido ("para nós", para quem já conhece o percurso), desde o começo já se pode
pressupor o fim, princípio pressuposto que produz o começo. (BENOIT, 2003, pp.
21-22)

Portanto, se a luta de classes, originada pela expropriação da classe trabalhadora pela


classe burguesa, é o pressuposto histórico do capital, coube a Marx chegar a tal pressuposto, o
que corresponde exatamente à tarefa da filosofia defendida por Hegel como busca pelos
pressupostos. Cabe, então, examinar de modo mais detido considerações de Hegel sobre a
filosofia em geral e sobre a dialética em particular a fim de verificar o que foi dito até então
sobre a continuidade ou não de Marx em relação a Hegel.

O projeto filosófico e a dialética de Hegel


Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, obra em que Hegel apresenta seu sistema
filosófico da maturidade, o filósofo defende a sua visão de um filosofar livre de quaisquer
pressupostos. Nesse sentido, diferentemente de outras ciências, a filosofia não pode, segundo
Hegel, partir de princípios dados, mas deve justamente encontrá-los. Por essa razão, o objeto
da filosofia é o próprio pensar, entendido por Hegel não apenas como um atributo do ser
humano, mas como logos universal, isto é, a própria trama racional na qual a realidade está
envolvida.
Ocorre que, para Hegel, essa trama racional não é dada de forma imediata à
experiência humana, mas necessita de uma reflexão que vai da experiência à razão, caminho a
ser percorrido pela filosofia mediante a abstração das categorias dos objetos sensíveis e,
depois, a própria problematização de tais categorias. Para Hegel, o essencial da Coisa, da
verdade em sentido forte, não é obtido imediatamente, mas depende de um método que vai da
Coisa ao conceito. Daí a recusa de Hegel tanto ao saber imediato, segundo o qual não são
necessárias mediações para chegar à verdade, como ao pensamento finito de Kant, para o qual
não podemos chegar às coisas-em-si em vista das limitações de nossa razão. Essa posição
hegeliana é explicitada pelo próprio autor, ao afirmar que
o pensar, segundo o conteúdo, só é verdadeiro na medida em que está absorto na
Coisa, e segundo a forma não é um ser ou agir particular do sujeito, mas
precisamente consiste em que a consciência se comporte como Eu abstrato, como
liberta de toda a particularidade, de propriedades e estados outros etc. (HEGEL,
1977, p. 77)

Nessa passagem, Hegel coloca uma necessidade ao pensar absorto na Coisa que é a da
abstração do sujeito. Isso porque, para Hegel, o sujeito pensante, que produz a reflexão, só
pode chegar à objetividade se consegue livrar-se de sua contingência e pensa em sua
universalidade. Ou seja, Hegel não propõe uma anulação do indivíduo, o que anularia a
própria reflexão, mas uma abstração da individualidade para que, a partir dela, a
universalidade possa ser pensada. Segundo Hegel, o universal consiste no que é propriamente
essencial e verdadeiro, na regra que não está dada à consciência, mas depende da reflexão e,
por isso, "não se ouve nem se vê; mas é somente para o espírito" (HEGEL, 1977, p. 75).
A dialética, entendida por Hegel como um dos momentos formais da lógica, é
apresentada no §81 da Enciclopédia como "o próprio suprassumir-se de tais determinações
finitas e seu ultrapassar para suas opostas" (HEGEL, 1977, p. 162). As determinações finitas
das quais Hegel fala são aquelas produzidas pelo entendimento - primeiro momento formal da
lógica - que, embora seja um pensamento abstrato, é finito, pois incorre em contradições
insolúveis em vista de seus dualismos unilaterais. A suprassunção de tais determinações feita
pela dialética se dá exatamente por esta ser um método idêntico ao conteúdo, isto é, um
pensamento imanente à Coisa. Em razão disso, o método dialético não é uma ferramenta
aplicada externamente, um método formal, mas o método explicitado pelo próprio conteúdo,
isto é, o conteúdo explicitado de forma imanente. Donde a afirmação de Hegel de que "A
dialética, ao contrário, é esse ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a limitação das
determinações do entendimento é exposta como ela é, isto é, como sua negação." (HEGEL,
1977, p. 163).
A superação dos dualismos faz com que as categorias não possam ser pensadas de
forma unilateral, uma vez que, para Hegel, os dualismos são uma forma muito simples de
categorizar as coisas, para Hegel, cada categoria determina a sua oposta. Por várias ocasiões,
Hegel trabalha a problematização das categorias de forma dialética, e no próprio parágrafo em
questão há uma passagem há um exemplo disso:
Diz-se, assim, por exemplo: o homem é mortal, e considera-se então o morrer como
algo que tem sua razão-de-ser apenas nas circunstâncias exteriores; e, conforme esse
modo de considerar, são duas propriedades particulares do homem: ser vivo e
também ser mortal. Mas a verdadeira compreensão é esta: que a vida como tal traz
em si o gérmen da morte, e que em geral o finito se contradiz em si mesmo, e por
isso se suprassume. (HEGEL 1977, p. 163)

Fica claro como Hegel defende que pensar a categoria de morte unilateralmente leva
por si mesmo a uma contradição que só se dissolve ao ser pensada junto ao seu contrário, isso
é, a categoria de vida. Assim, no sistema filosófico hegeliano, cada categoria possui relação
intrínseca (sistemática) em relação à outra - vida e morte, causa e efeito, identidade e
diferença, finito e infinito, dentre outras. Compreender as categorias deste modo consiste,
portanto, em sua dialética.
De acordo com Hegel, a dialética produz como resultado um terceiro momento lógico,
o momento especulativo ou positivamente racional, apresentado no §82 da Enciclopédia. O
produto racional da dialética consiste em
algo pensado — também abstrato —, é ao mesmo tempo algo concreto, porque não é
unidade simples, formal, mas unidade de determinações diferentes. Por isso a
filosofia em geral nada tem a ver, absolutamente, com simples abstrações ou
pensamentos formais, mas somente com pensamentos concretos. (HEGEL, 1977, p.
167)

De fato, o momento racional só se dá ao final do trabalho filosófico de pensamento


imanente que recusa a imediatez das abstrações simples dos métodos formais e só ocorre pela
abstração do sujeito, que se torna suporte do pensamento. Nas palavras de Hegel, o "provar
significa em filosofia o mesmo que mostrar como o objeto se faz — por si mesmo e de si
mesmo — o que ele é." (HEGEL, 1977, p. 169). Trata-se, portanto, do caminho da
experiência ao conceito por meio da reflexão imanente do conteúdo da experiência que eleva-
se à universalidade.
Tendo essa exposição em mente, é importante notar como a acusação a Hegel de um
idealismo absoluto feita por grande parte do marxismo - acusação que o próprio Marx não
endossava - é injustificada. Criou-se, em certa medida, uma caricatura da filosofia hegeliana
como um sistema de pensamento que se move pela negação da materialidade e, sendo o
marxismo uma filosofia assumidamente materialista, caberia somente então negar ou, no
melhor dos casos, "inverter" Hegel. Como se viu, para Hegel, o caminho a ser percorrido pela
filosofia parte exatamente da experiência, do empírico e, se quisermos, da materialidade. O
pensamento, do qual o sujeito é apenas suporte, não é elaborado e aplicado externamente à
realidade, mas já está presente nelas - daí Hegel afirmar que todo racional é efetivo. Segundo
Hegel, portanto, "nada há no pensamento que antes não tenha estado no sentido, na
experiência" (HEGEL, 1977, p. 48).
A peculiaridade da filosofia para é, precisamente, um mergulho na imanência a fim de
encontrar e explicitar a trama racional, o universal, presente na experiência. Por isso, Hegel
não admite seu filosofar como a derivação de um princípio, mas sim como "uma regressão a
princípios mais profundos" (HEGEL, 1977, p. 24) que só ocorre em proximidade à
experiência. Conforme já apontado, Benoit (2003) chama atenção para o avançar como um
retroceder ao fundamento originário no método dialético, noção extraída de Hegel por Marx.

Marx com Hegel e além de Hegel


Se, portanto, para Hegel a filosofia consiste no conhecimento das leis diante da
desordem do contingente (HEGEL, 1977, p. 46), pode-se dizer que, em O Capital, Marx fez
juz a essa ideia de filosofia ao desvendar as leis do modo de produção capitalista diante dos
fenômenos e, dialeticamente, tratou de expô-las de modo que a necessidade de tais leis
derivassem de um desenvolvimento lógico - mas cujos fundamentos históricos já estão
pressupostos, após sua investigação - e não da mera derivação de um princípio. Por isso,
conforme já apontado, O Capital inicia-se da mercadoria, unidade fenomênica mais elementar
do capital.
Sendo assim, por um lado, temos em Hegel
uma nova noção de conceito através do desenvolvimento de uma nova noção de
forma lógica, que não mais é limitada e dependente de um conteúdo externo dela,
porque é uma forma absoluta, ou seja, uma forma capaz de gerar o seu próprio
conteúdo através do desenvolvimento da sua dialética imanente. Neste sentido, em
vez de se servir de um pensamento para compreender a objetividade que está diante
de nós, devemos seguir o desenvolvimento interno de um pensamento que é objetivo
na medida em que articula conceitualmente a estrutura interna da própria
objetividade. (BORDIGNON, 2017, p. 333)

Em certo sentido, o desenvolvimento d'O Capital se mostra precisamente como o


desenvolvimento interno de um pensamento que apreende a estrutura interna da objetividade
do capital, desenvolvimento este que, por isso mesmo, é dialético no seu resultado, isto é, na
exposição do resultado de tal investigação.
Pode-se dizer, assim, que Marx compreendeu, com Hegel, a necessidade de um
pensamento imanente à filosofia que não deduz a totalidade de um princípio posto e, por isso,
inseriu-se na trama racional das relações capitalistas para determiná-la. Daí a necessidade de
Marx estudar afundo a transição do feudalismo europeu para o capitalismo, além de debruçar-
se sobre a economia política de Adam Smith, David Ricardo e outros a fim de mostrar a
unilateralidade de tais autores que não regressaram aos princípios mais profundos do capital,
quais sejam, os da luta de classes e, por isso, não puderam encontrar suas leis necessárias.
O desenvolvimento d'O Capital como uma regressão a tais princípios encontra
exatamente a luta de classes nos capítulos finais, a expropriação violenta dos trabalhadores
promovida pela burguesia, tornando-os uma classe livre, por um lado, da servidão feudal,
mas, por outro, ausente de quaisquer meios de produção, forcando-a a vender sua força de
trabalho. Como afirma nos Grundrisse,
O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto,
unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como
processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o
ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição
e da representação. (MARX, 2015b, pp. 77-78)

Conforme estamos afirmando, não espanta notar a semelhança de tal afirmação de


Marx com o que foi dito sobre Hegel, como fica explícito na seguinte passagem:
Poder-se-ia levantar quanto a isso a questão: por que, sendo assim, se começa pelo
não-verdadeiro, e não logo pelo verdadeiro? A isso serve por resposta que a verdade,
justamente como tal, tem de verificar-se-, verificação que aqui, no interior do lógico,
consiste em que o conceito se mostre como o que é mediatizado por si mesmo e
consigo mesmo, e por isso, ao mesmo tempo, como o verdadeiramente imediato.
(HEGEL, 1977, p. 169)

É só após o desenvolvimento imanente que vai da mercadoria – não-verdadeira – à


luta de classes – verdadeira – que Marx se permite então vislumbrar o socialismo, pois este
não é postulado como um dever ser a priori, sua necessidade é extraída da própria análise
imanente do capitalismo em sua autodeterminação. Nesse último sentido, pode-se dizer que
Marx vai além de Hegel, pois encontra na realidade a necessidade de sua transformação, o que
não significa que haja uma obrigatoriedade de sua ocorrência ou do modo com ocorrerá, ao
contrário dos que supõem uma teleologia em Marx. O princípio encontrado por Marx não é
um princípio geral responsável por reger toda a história, mas um princípio que fundamenta
um novo período específico da história. Isso posto, é a partir das contradições imanentes às
categorias do capital que Marx encontra a necessidade da revolução, ou seja, "em Marx o
processo contraditório das categorias dirige-se inevitável e necessariamente na direção do
futuro, na direção do ponto de rompimento e desestruturação total do sistema – na direção da
crise geral e total do sistema". (ANTUNES, 2016, p. 68).

Conclusão
Este trabalho procurou evidenciar uma certa interpretação, seguindo, principalmente,
Benoit (1996 e 2003), da relação entre Hegel e Marx no que diz respeito à dialética. Nesse
sentido, viu-se como a dialética em Marx constitui um modo de exposição n'O Capital de suas
investigações sobre esse modo de produção. Em seguida, foram apontadas algumas
observações sobre o projeto filosófico hegeliano e sua noção de dialética, podendo, em
seguida, promover uma comparação mais clara entre Hegel e Marx.
Com isso, não se quer fornecer uma interpretação definitiva do extenso debate acerca
da herança hegeliana em Marx, mas, em outro sentido, apontar para a maior complexidade do
tema frente a leituras simplistas que buscam repetir a fórmula da "inversão" de Hegel por
Marx ou simplesmente negar a influência do primeiro sobre o segundo. Viu-se, portanto,
como é possível encontrar profundas influências e semelhanças da dialética hegeliana no
projeto de Marx para O Capital, mas, ao mesmo tempo, como Marx não se reduz a isso ao
extrair a necessidade da superação revolucionária a partir de suas investigações.

Referências bibliográficas
ANTUNES, Jadir. Notas (provisórias) sobre a relação Marx-Hegel. 2016.
BENOIT, Hector. Da lógica com um grande “L” à lógica de O Capital. Marxismo e Ciências
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BENOIT, Hector. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista, v. 3, p. 14-
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BORDIGNON, Michela. Lógica formal, transcendental e especulativa. Revista Filosófica de
Coimbra, v. 26, n. 52, p. 311-338, 2017.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas. Edicoes Loyola,
1977.
KONDER, Leandro. O que é dialética. Brasiliense, 2017.
MARX, Karl. O Capital-Livro 1: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de
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