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CRÍTICA

O método da marxista

DOCUMENTO
economia política.
Karl Marx
Apresentação de João
Quartim de Moraes e
tradução de Fausto
Castilho

Apresentação
Poucos textos de Marx ocupam posição tão singular em sua obra quanto
“O método da economia política”, terceiro dos quatro tópicos da “Introdução à
crítica da economia política” (Einleitung zur Kritik der Politischen Ökonomie),
conhecida mais simplesmente por Introdução de 1857, o mais notável, ao lado
do estudo sobre as “Formas que precederam a produção capitalista”, dos escritos
incluídos nos Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, conjunto de ma-
nuscritos econômicos redigidos por Marx em Londres durante o biênio 1857-58
e publicados pela primeira vez em Moscou em 1939.
A singularidade do texto que apresentamos no original, acompanhado da sólida
e elegante tradução preparada por Fausto Castilho em 1996, está em que é a mais
longa, densa e sistemática discussão sobre o método na obra de Marx. Ele também
tratou do tema no Posfácio à 2a edição alemã de O capital,1 mas principalmente
para comentar resenhas sobre a 1a edição. Cita uma longa passagem de uma de-
las, publicada no Correio Europeu de São Petersburgo, em que o autor expõe o
que chama o método efetivo (wirkliche) de O capital. Ora, nota Marx, o que essa
exposição, “acertada” e “benevolente”, descreve é o “método dialético”. Mas, por
mais pertinente que tivesse sido a caracterização de seu método pelo resenhista
russo, ele julgou útil consagrar à questão os cinco parágrafos restantes do Posfá-
cio, principalmente para esclarecer as relações entre sua dialética e a hegeliana.

1 Datado de Londres, 24 de janeiro de 1873.

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Declara primeiro que seu método “é a antítese” do hegeliano, mas, defendendo
Hegel contra os que pretenderam enterrar-lhe a obra, enuncia o célebre tema da
inversão materialista da dialética, que separa o núcleo racional do envoltório
místico. É evidente a importância desse Posfácio para o debate sobre a postura de
Marx perante a dialética e a herança hegeliana, porém é no texto sobre o método
da economia política que ele mostra como seu método funciona.
Para os que já estão convencidos da importância de beber na fonte o legado
teórico de Marx, a decisão de apresentar, ao lado de uma tradução confiável, o texto
original do “método da economia política” não carece de justificações. Mas essa
edição bilíngue não se dirige apenas ao pequeno grupo de marxistas brasileiros
que conhecem razoavelmente o alemão. Ela talvez interesse mais ainda aos que só
conseguem entender a frase original amparando-se numa tradução. Uns e outros
tirarão proveito da possibilidade de comparar o texto traduzido com o texto escrito
por Marx. Mesmo porque o que torna intelectualmente confiável uma tradução é
a avaliação daqueles que estão preparados para efetuar essa comparação.
Em 1974, a Abril Cultural publicou Manuscritos econômico-filosóficos e
outros textos escolhidos de Karl Marx (volume XXXV da coleção Os Pensado-
res). J. A. Giannotti, que escolheu os textos, incluiu no volume, sob o título geral
de Para a crítica da economia política, não somente o livro que leva esse nome
(também conhecido por Contribuição à crítica da economia política), composto
entre agosto de 1858 e janeiro de 1859, mas ainda a Introdução de 1857. Embora
não seja arbitrário, já que efetivamente o projeto de Marx ao redigir a Introdução
era colocá-la na abertura da obra maior que seria a Crítica da economia política, o
procedimento não é feliz. Oferece ao leitor uma introdução que, além de terminar
abruptamente, não apresenta continuidade com o livro que ela deveria introduzir.
Tanto é assim que no prefácio de Para a crítica da economia política, datado de
janeiro de 1859, Marx se refere, em quatro linhas, à “Introdução geral” de 1857,
explicando que decidira deixá-la de lado porque “toda antecipação perturbaria os
resultados ainda por provar”.2 Esta decisão reflete sobretudo a tensão intelectual
e as dificuldades materiais daqueles anos de gestação de sua obra fundamental.3

2 Na edição da Abril, cf. p.134.


3 O marxólogo Ruy Fausto descobriu um sentido profundo na não inclusão da Introdução de 1857
do texto da Crítica. Segundo ele, ao perceber o risco de que a introdução fosse interpretada como
“simplesmente[...] positiva”, Marx “decidiu finalmente eliminá-la”. Vimos que não é essa a razão
que o próprio Marx alega. Mas R. Fausto pontifica: “A anti-introdução acaba assim por devorar a si
mesma: não há apresentação fora da apresentação”. (Cf. R. Fausto. Marx: logique et politique. Paris:
Publisud, 1986. p.95, nota 58). Descontada a metáfora autofágica, sobra, além da impertinência,
um curioso paradoxo. Se fosse lícito descartar tão tranquilamente todos os escritos que Marx não
publicou, não deveríamos, por exemplo, perder tempo com muitos outros escritos notáveis, como a
Ideologia alemã, que ele abandonou, com a modéstia de sua imensa estatura intelectual, “à crítica
roedora das ratazanas”. Empenhado na inglória tarefa de suprimir o que as ratazanas não corroeram,
o audaz marxólogo apresenta outra razão para rejeitar aquele notável texto: Marx nele emprega
várias vezes o termo “determinado”. A implicância terminológica de R. Fausto é espicaçada pelo fato

104 • Crítica Marxista, n.30, p.103-125, 2010.

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Sabemos, com efeito, que a própria elaboração de Para a crítica foi interrompida,
por força de dura e longa enfermidade, após a entrega ao editor do primeiro volume,
que contém os dois primeiros capítulos do Livro I (intitulado “Sobre o capital”),
que acabou sendo o único. Não é mera cláusula retórica a célebre comparação
entre o limiar da ciência e a porta do inferno que encerra o prefácio de Para a
crítica. Só dez anos depois da redação da Introdução seria publicado, em 1867,
o primeiro volume de O capital. Esses dez anos correspondem, pois, ao período
mais decisivo da produção teórica de Marx.
Como Fausto Castilho explica na nota que abre sua tradução, ele a empreen-
deu com o objetivo de oferecer um texto confiável aos que iriam acompanhar sua
exposição. Sua sólida cultura filosófica e, em especial, seu denso conhecimento
da obra de Hegel conferiram à exposição, que marcou o início das atividades do
Cemarx, uma notável qualidade acadêmica e um excelente estímulo ao sempre
aberto debate sobre a conexão hegelianismo/marxismo.
Vale, enfim, assinalar que, além das traduções já referidas (além das de Fausto
Castilho e da Abril), o Arquivo Marxista na Internet apresenta uma versão portu-
guesa da “Introdução à crítica da economia política”. É um trabalho útil, mas com
muitos defeitos, que vão da mera falta de cuidado na revisão até simplificações
que banalizam a dimensão filosófica do texto de Marx.4

João Quartim de Moraes, janeiro de 2010

de que Althusser (de quem ele não gosta) e seu epígono Balibar recorrem à “repetição compulsiva
do termo ‘determinado’[...]”, que lhes permite “dar a ilusão de um setzen” (isto é, de um “pôr”, no
sentido ontologicamente forte), revelando, assim, “a exasperação do teórico diante da armadilha
que lhe estende a linguagem, armadilha da qual, por razões que remontam ao coração mesmo de
seu ideal de ciência, ele é impotente para escapar”. Novamente esquece que não só na Introdução
de 1857, mas em outros textos, Marx também manifestou a mesma compulsão. O que certamente
não podemos, ou melhor, já que o papel suporta todas as possibilidades, não devemos, é jogar
nas costas de Althusser um pretenso “tique” que está presente no próprio Marx. Cf. p.92, nota 53.
Cf. também p.93-4.
4 Assim, por exemplo, escrevem “consistência” em vez de “consciência” filosófica. Mero lapso, sem
dúvida, mas é preciso prestar atenção no que publicamos. Mas traduzir Voraussetzung, categoria
fundamental da filosofia clássica alemã (= pressuposição), por “ponto de partida” (que em alemão
se diz Ausgangspunkt) é um erro puro e simples.

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Ao considerar a economia política de um dado país, começamos por sua po-
pulação, sua divisão em classes, distribuída pela cidade, campo e mar; os diversos
ramos da produção, a exportação e a importação, a produção anual e o consumo
anual, os preços das mercadorias etc.
É que parece correto começar pelo real e pelo concreto, pela pressuposição
efetivamente real e, assim, em economia, por exemplo, pela população: funda-
mento e sujeito do ato todo da produção social (die Grundlage und das Subjekt
des ganzen gesellschaftlichen Produktionsakts). A uma consideração mais precisa,
contudo, isto se revela falso. A população, por exemplo, se omito as classes que
a constituem, é uma mera abstração. Estas últimas, por sua vez, são uma expres-
são vazia se não conheço os elementos sobre que repousam, a saber, o trabalho
assalariado, o capital etc. E esses pressupõem a troca, a divisão do trabalho, os
preços etc., de sorte que o capital, por exemplo, nada é, sem o valor, o dinheiro,
o preço etc. Se começasse pela população, haveria de início uma representação
(Vorstellung) caótica do todo, e só através de determinação mais precisa (durch
nähere Bestimmung) eu chegaria analiticamente (analytisch), cada vez mais, a
conceitos (Begriffe) mais simples. Partindo do concreto representado (von dem
vorgestellten Konkreten), chegaria a abstratos sempre mais tênues, até alcançar,
por fim, as determinações mais simples (die einfachsten Bestimmumgen). Dali,
a viagem recomeçaria pelo caminho de volta, até que reencontrasse finalmente a
população, não já como a representação caótica de um todo (eines Ganzen), e sim
como uma rica totalidade de muitas determinações e relações (als einer reichen
Totalität von vielen Bestimmungen und Beziehungen). O primeiro caminho é (...)

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(...) aquele que a Economia percorreu em sua gênese histórica. Exemplo: os eco-
nomistas do século XVII que sempre começam por um todo vivo (dem lebendigen
Ganzen) – população, nação, Estado, vários estados etc. –, mas sempre terminam
por algumas relações gerais, abstratas, determinantes (einige bestimmende abstrakte,
allgemeine Beziehungen) – divisão do trabalho, dinheiro, valor etc. – que eles des-
cobriram por análise. Tão logo esses aspectos individuais isolados (diese einzelnen
Momente) achavam-se mais ou menos abstraídos e fixados, os sistemas econômicos
começavam a elevar-se (aufsteigen) a partir dos elementos simples – o trabalho, a
divisão do trabalho, as necessidades (Bedürfnis), o valor de troca, até o Estado, o
intercâmbio entre as nações e o mercado mundial. É manifesto que este último cami-
nho é o método cientificamente correto.
O concreto é concreto por ser uma concentração (Zusammenfassung = concentra-
ção, síntese) de muitas determinações, logo, uma unidade do múltiplo. Eis a razão por
que aparece no pensamento (im Denken) como processo de concentração (síntese),
como um resultado e não como um ponto de partida, embora ele seja o ponto de partida
efetivamente real e, assim, também, o ponto de partida da intuição e da representação
(der Ausgangspunkt der Anschauung und der Vorstellung).
No primeiro caminho, toda a representação se desvanece em determinação abstrata,
ao passo que, no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do con-
creto no plano (im Weg) do pensamento. Foi o que levou Hegel a extraviar-se na ilusão
de conceber o real (das Reale) como resultado de um pensamento que, em si mesmo
se concentra, em si se aprofunda e por si se move (das Reale als Resultat des sich in
sich zusammenfassenden, in sich vertiefenden und aus sich selbst sich bewegenden
Denkens zu fassen), enquanto o método de se elevar do abstrato ao concreto é apenas
a maneira de o pensamento apropriar-se do concreto e o reproduzir como concreto
espiritual (als ein geistig Konkretes), mas de maneira nenhuma se trata do processo
da gênese (der Entstehungsprozeß) do próprio concreto. Por exemplo, a categoria
econômica mais simples, digamos o valor de troca: ele já pressupõe a população, uma
população que produz sob relações determinadas; pressupõe igualmente certa espécie
de família ou de comuna ou de Estado etc. Ele jamais pode existir a não ser como
uma relação abstrata, unilateral de um todo vivo, concreto, já dado. E, sem embargo,
como categoria (als Kategorie), o valor de troca tem, ao contrário, uma existência
antediluviana. Por isso, para a consciência – e isto determina a consciência filosófica
–, para a consciência, só o pensamento conceitual é o homem efetivamente real e
somente o mundo conceituado possui, como tal, efetiva realidade. De sorte que, para
a consciência, o movimento das categorias (die Bewegung der Kategorien) assume
a aparência de um ato efetivamente real de produção – recebendo de fora apenas um
empurrão, aliás, deplorável –, cujo resultado é o Mundo. Isto é correto – trata-se,
porém, novamente de uma tautologia –, mas correto somente na medida em que a
totalidade concreta é tomada como totalidade pensada, como um concreto pensado,
in fact, como um produto do pensamento, do conceito. De modo algum, porém, como
produto de um pensamento alheio à intuição e à representação ou que se lhes sobrepo-
nha, como produto de um conceito que, pensando, a si mesmo se gera (ein Produkt...
des... denkenden sich selbst gebärenden Begriffs), mas como produto da elaboração
conceitual da intuição e da representação (der Verarbeitung von Anschauung und
Vorstellung in Begriffe). O todo, tal como ele na cabeça (...)

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(...) aparece – um todo de pensamento –, é o produto de uma cabeça pensan-
te, que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível e que difere dos
modos de apropriação do mundo que são o artístico, o religioso ou o do espírito
prático. Enquanto a cabeça procede de modo somente especulativo, isto é, teo-
ricamente, o sujeito real (das reale Subjekt), tanto antes como depois, subsiste,
em sua independência, fora dela. Assim, no método teórico também, é preciso
que o sujeito, a Sociedade (das Subjekt, die Gesellschaft), esteja sempre presente
enquanto pressuposição.
Mas, acaso essas categorias simples não têm também uma existência inde-
pendente, seja histórica, seja natural, anterior à existência das mais concretas?
Ça dépend. Por exemplo, Hegel começa de modo correto a Filosofia do Direito
(die Rechtsphilosophie) pela posse, que é a relação juridicamente mais simples
de um sujeito de direito (als der einfachsten rechtlichen Beziehung des Subjekts),
embora não haja posse antes da família e das relações de domínio e servidão, muito
mais concretas do que ela. Seria, assim, correto dizer, pelo contrário, que existem
famílias, grupos tribais que ainda só possuem e não têm propriedade. No que
se refere à propriedade, a categoria mais simples aparece, então, como relação
entre comunidades simples de famílias ou de tribos. Na sociedade superior, ela
aparece como a relação mais simples de uma organização mais desenvolvida. O
substrato mais concreto, cuja relação é a posse, está, porém, sempre pressuposto.
Podemos nos representar um indivíduo silvícola isolado que possui. Mas a posse,
no caso, não seria uma relação jurídica. É incorreto dizer que a posse desenvolve-
-se historicamente até a família, quando, ao contrário, ela sempre pressupõe esta
“categoria jurídica mais concreta”. Continua, no entanto, a ser sempre uma verdade
que as categorias simples são uma expressão de relações sob as quais o concreto
não desenvolvido pode realizar-se, sem ainda ter posto (ohne noch... gesetzt zu
haben) a relação mais multilateral (die vielseitigere Beziehung oder Verhältnis),
que é expressa espiritualmente (geistig) na categoria mais concreta, ao passo que
o concreto mais desenvolvido conserva a mesma categoria como uma relação
subordinada. O dinheiro pode existir e existiu historicamente, antes de existirem
o capital, os bancos, o trabalho assalariado etc. Por esse lado, é também lícito
dizer que a categoria mais simples pode exprimir relações dominantes de um todo
não desenvolvido ou relações subordinadas de um todo mais desenvolvido que já
existiam historicamente antes de esse todo se desenvolver por esse lado expresso
numa categoria mais concreta. Em tal medida, a marcha do pensamento abstrato,
ao se elevar do mais simples ao complexo (zum Kombinierten), corresponderia
ao processo histórico efetivamente real.

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Por outro lado, pode-se dizer que há formas de sociedade muito desenvolvidas
e que são, no entanto, historicamente imaturas (historisch unreifere), como o Peru,
por exemplo, onde ocorrem formas superiores de economia – cooperação, divisão
do trabalho etc. –, mas onde não há nenhuma forma de dinheiro. Nas comunidades
eslavas, do mesmo modo, o dinheiro e a troca por ele condicionada não aparecem ou
aparecem pouco dentro de cada comunidade isoladamente, e sim em suas fronteiras,
nas relações de uma comunidade com as outras, de sorte que é falsa, em geral, a
tese que faz da troca no interior da comunidade individual, o elemento que origina-
riamente a constitui (das ursprünglich konstituierende Element). Ao contrário, ela
surge inicialmente na relação entre as comunidades diversas antes que entre seus
membros, no interior de uma única e mesma comunidade. E mais: embora o dinheiro
exerça desde muito cedo um papel multilateral, na Antiguidade ele só tem o papel de
elemento dominante em nações unilateralmente determinadas, a saber, nas nações
comerciantes. E, mesmo na parte mais adiantada (gebildetsten) da Antiguidade,
entre os gregos e os romanos, o seu pleno desenvolvimento – um pressuposto da
moderna sociedade burguesa – só se manifesta no período de sua desagregação.
Assim, essa categoria totalmente simples, no que diz respeito à sua intensidade,
não aparece historicamente, mas nos estádios mais desenvolvidos da sociedade.
De modo nenhum, porém, ela atravessa facilmente todas as relações econômicas,
e o exemplo é ainda o Império Romano que, mesmo depois de alcançar seu maior
desenvolvimento, continua a ter no imposto in natura e na prestação in natura o
seu fundamento. O dinheiro propriamente dito só se desenvolve completamente no
exército e nunca se apoderou da totalidade do trabalho. Embora a categoria mais
simples possa ter existido historicamente antes da mais concreta, em seu pleno
desenvolvimento intensivo e extensivo, ela pode pertencer precisamente a uma
forma de sociedade complexa (kombinierten), enquanto a categoria mais concreta
se havia desenvolvido plenamente em uma forma de sociedade pouco desenvolvida.
O trabalho parece ser uma categoria de todo simples; além disso, sua represen-
tação, na universalidade do trabalho como tal (als Arbeit überhaupt), é, também
ela, antiquíssima. Entretanto, concebido economicamente nessa simplicidade, o
“trabalho” é uma categoria tão moderna quanto as relações que produzem essa
abstração simples. Por exemplo, o sistema monetário ainda põe a riqueza, de modo
inteiramente objetivo (ganz objektiv), como coisa fora de si (als Sache außer sich),
no dinheiro. Em face desse ponto de vista, há um grande progresso na transposição
da fonte da riqueza do objeto para a atividade subjetiva (aus dem Gegenstand in
die subjektive Tätigkeit), feita pelo sistema comercial ou manufatureiro, se bem
que uma atividade ainda sempre concebida como limitada a fazer dinheiro. A
esse sistema, o fisiocrático opõe uma forma determinada de trabalho – a agri-
cultura – como criadora de riqueza, deixando, assim, o objeto de ser um disfarce
do dinheiro, para se tornar produto enquanto tal (Produkt überhaupt), como (...)

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(...) resultado geral do trabalho. Esse produto, dados os limites dessa atividade,
é ainda sempre um produto determinado da Natureza: produto agrícola, produto
da terra par excellence.
Houve um imenso progresso, quando Adam Smith afastou todo determinismo
(Bestimmtheit) da atividade criadora da riqueza: o trabalho pura e simplesmente
e não já o manufatureiro ou o comercial ou o agrícola, mas tanto um quanto o
outro. Paralela a essa universalidade da atividade criadora da riqueza aparece
agora também a universalidade do objeto da riqueza, determinado como produto
como tal ou, de igual modo, como trabalho enquanto tal, só que trabalho passado,
trabalho objetivado (aber als vergangne, vergegenständlichte Arbeit). Um pas-
so difícil e importante, pois o próprio Adam Smith às vezes regride ao sistema
fisiocrático, como se o que foi encontrado fosse apenas a expressão abstrata da
relação mais simples e mais antiga em que os homens sempre ingressam enquanto
produtores, qualquer que seja a forma de sociedade. Isto é, de um lado, correto,
de outro, não. A indiferença em relação a uma espécie determinada de trabalho
pressupõe a existência efetiva de uma totalidade muito desenvolvida de espécies
de trabalho, onde já nenhuma delas predomina sobre todas as outras. Assim, as
abstrações mais gerais só surgem como tais no desenvolvimento concreto mais
rico, onde o que é comum a muitos aparece como comum a todos. Desaparece,
então, a possibilidade de se pensar em uma forma particular. Por outro lado, essa
abstração do trabalho como tal não é apenas o resultado espiritual de uma totali-
dade concreta de trabalhos. A indiferença em relação a uma forma determinada
de trabalho corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam
facilmente de um trabalho a outro, tornando-se-lhes fortuita e, portanto, indiferente
a espécie determinada de trabalho.
O trabalho, aqui, não está somente na categoria, tornou-se uma realidade
efetiva como meio de criação da riqueza em geral e deixou de ser uma determi-
nação vinculada ao que os indivíduos têm de peculiar. Estado de coisas que se
encontra mais desenvolvido, na mais moderna forma de existência das sociedades
burguesas, nos Estados Unidos. Apenas ali, a abstração da categoria “trabalho”,
“trabalho em geral”, trabalho sans phrase, ponto de partida da economia moderna,
torna-se praticamente verdadeira. Assim, a abstração mais simples – que a Eco-
nomia moderna coloca acima de todas e que exprime uma relação antiquíssima,
válida para todas as formas de sociedade – somente se manifesta, porém, nessa
abstração praticamente verdadeira, como categoria da mais moderna sociedade.
Dir-se-ia que o que se manifesta nos Estados Unidos como um produto histórico
– a indiferença em relação ao trabalho determinado – aparece, por exemplo, entre
os russos, como uma disposição (...)

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(...) natural. Só que há uma diferença dos diabos entre, de um lado, bárbaros
dispostos a aceitar que os empreguem em tudo e, do outro, civilizados que em tudo
se empregam por si mesmos. Essa indiferença dos russos diante da determinabili-
dade do trabalho corresponde, na prática, à sua tradicional sujeição a um trabalho
totalmente determinado, de onde só são retirados por uma influência externa.
O exemplo do trabalho mostra, de modo convincente, que, embora possuam
validade em todas as épocas – em virtude justamente de sua abstração –, mesmo
as categorias mais abstratas, na determinidade de sua abstração, são um produto
de relações históricas e só possuem plena validade (ihre Vollgültigkeit) para tais
relações e no seu interior.
A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais desenvolvida
e a mais múltipla (mannigfaltigste). As categorias que exprimem suas relações
e a compreensão de sua articulação garantem, ao mesmo tempo, uma percepção
que penetra na estrutura e nas relações de produção de todas as formas de socie-
dade desaparecidas, com cujas ruínas e cujos elementos a sociedade burguesa
foi edificada e que nela em parte subsistem, como restos invictos, meros sinais
que se desenvolveram para constituir significações completas etc. A anatomia do
homem é uma chave para a do macaco. Os indícios que, nas espécies animais
inferiores, apontam para o que é superior a elas, só podem ser entendidos quando
a própria espécie superior já é conhecida. Assim, a economia burguesa fornece a
chave da Antiguidade etc. Mas, de maneira nenhuma, à maneira dos economistas,
que cancelam todas as diferenças históricas e em todas as formas de sociedade
enxergam a forma burguesa. Pode-se entender o tributo, o dízimo, quando se
conhece a renda fundiária. Mas não há que identificar uns com os outros. Além
disso, a sociedade burguesa, ela mesma, não é senão uma forma antagônica de
desenvolvimento, as relações de formas de sociedade anteriores com frequên-
cia nela se encontram, ou já de todo estioladas ou mesmo travestidas, caso da
propriedade comunal (Gemeindeeigentum), por exemplo. Por isso, se é verdade
que as categorias da Economia burguesa possuem uma validade para todas as
outras formas de sociedade, trata-se de uma verdade que deve ser aceita só cum
grano salis. Elas podem conter as outras formas ou desenvolvidas ou estioladas
ou caricaturadas etc., mas sempre segundo uma diferença essencial. O chamado
desenvolvimento histórico repousa em geral sobre o fato de que a última forma
considera as formas passadas como degraus que a ela conduzem. E, sendo raro e
só sob condições bem determinadas que ela seja capaz de criticar-se a si mesma
(da sie [...], fähig ist, sich selbst zu kritisieren) – não falamos naturalmente dos
períodos históricos que a si (...)

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(...) mesmos se consideram épocas de decadência – sua percepção é sempre
unilateral. A religião cristã só foi capaz de contribuir para uma compreensão ob-
jetiva das mitologias anteriores quando terminou, em certo grau, por assim dizer,
dynamei (potencialmente) sua autocrítica (ihre Selbstkritik). De igual maneira, a
Economia (Ökonomie) burguesa só chegou a compreender a feudal, a antiga, a
oriental assim que se iniciou a autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em
que a Economia burguesa não mitologizou (mythologisierend), identificando-se
com o passado, sua crítica das sociedades anteriores – nomeadamente da feudal,
contra a qual ainda tinha de lutar diretamente – foi comparável à crítica do cris-
tianismo ao paganismo ou mesmo do protestantismo ao catolicismo.
Do mesmo modo que em toda ciência histórica ou social, em geral também
no que se refere à marcha das categorias econômicas, é preciso ter presente e de
modo firme que o sujeito, a saber, a moderna sociedade burguesa, é dado tanto
na realidade efetiva como na cabeça; que as categorias são, assim, formas de
existir, determinações de existência (Daseinsformen, Existenzbestimmungen), e
com frequência só exprimem aspectos particulares e isolados (einzelne Seiten)
dessa sociedade determinada, desse sujeito (dieser bestimmten Gesellschaft, dieses
Subjekts); e que, também do ponto de vista científico, de maneira nenhuma ela
só começa no momento em que se trata dela como tal. É preciso ter isto presente,
porque põe de imediato em nossas mãos o que há de decisivo na divisão da matéria.
Por exemplo, nada parece mais natural do que começar pela renda fundiária, pela
propriedade do solo, dada a sua ligação com a terra, fonte de toda produção e de
toda existência e, pois, com a primeira forma de produção de todas as sociedades
que, de alguma maneira, tornaram-se estáveis – a agricultura. Entretanto, nada seria
mais falso. Em todas as formas de sociedade há uma determinada produção que
designa a posição respectiva e a influência de todas as outras e de suas relações. É
como que uma iluminação geral a banhar todas as cores, modificando-as em sua
particularidade, um éter particular determinando o peso específico de toda existên-
cia que ganhe relevo. Por exemplo, entre os povos pastores (os meros caçadores e
pescadores ficam fora do ponto em que principia o desenvolvimento), ocorre certa
forma esporádica de agricultura e a propriedade fundiária é por ela determinada: ela
é comum e conserva mais ou menos essa forma, dependendo de que esses povos
mantenham mais ou menos a sua tradição, por exemplo, a propriedade comunal
dos eslavos. Entre povos de agricultura firmemente assentada – o assentamento
já constitui uma fase de grande importância – onde ela predomina, como entre os
antigos e os feudais, a própria indústria, sua organização e as formas respectivas
de propriedade têm, mais ou menos, o caráter de propriedade (...)

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(...) fundiária. A indústria depende totalmente da agricultura, como entre os
romanos antigos, ou imita nas cidades e nas relações urbanas a organização do
campo, como na Idade Média. Na Idade Média, o próprio capital – na medida em
que não é puro capital em dinheiro – como instrumento do artesanato tradicional
etc., possui caráter de propriedade fundiária. Na sociedade burguesa ocorre o in-
verso: cada vez mais a agricultura se torna mero ramo da indústria e é dominada
inteiramente pelo capital. O mesmo com a renda fundiária: em todas as formas
em que a renda fundiária domina, predomina ainda a relação com a natureza, e
onde o capital domina, prevalece o elemento social e historicamente criado. Sem
o capital, a renda fundiária não pode ser compreendida, ao passo que, sem ela, o
capital pode sê-lo muito bem. O capital é a força que tudo domina na sociedade
burguesa. Deve constituir tanto o ponto de partida como o de chegada e sua expo-
sição deve ser desenvolvida antes da propriedade fundiária. Após a consideração
particular de um e outra, é preciso considerar a relação recíproca de ambos.
Seria, além de impossível, falso ordenar as categorias econômicas na sucessão
em que foram historicamente determinantes. Sua ordem é antes determinada pela
relação que elas mantêm entre si, na sociedade burguesa moderna, precisamente
o inverso do que parece ser a sua ordem natural ou a correspondente sucessão do
desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que se estabelece historicamen-
te entre as relações econômicas na sucessão das diversas formas de sociedade e
menos ainda da sua ordem “na ideia” (Proudhon) (uma representação confusa do
movimento histórico), e sim de sua articulação no interior da sociedade burguesa
moderna.
A pureza (a determinidade abstrata) (abstrakte Bestimmtheit) com que os
povos comerciantes – fenícios, cartagineses – surgem no Mundo Antigo ocorre,
também ela, mediante (durch) o predomínio (das Vorherrschen) dos povos agri-
cultores. Como capital comercial ou capital em dinheiro, o capital manifesta-se
precisamente nessa abstração, onde ele ainda não é o elemento dominante da
sociedade. Os lombardos, os judeus, ocupam a mesma situação diante das socie-
dades agrícolas medievais.
É mais um exemplo da situação diversa que as mesmas categorias assumem
em etapas diversas da sociedade (Gesellschaftsstufen): uma das últimas formas
da sociedade burguesa, a forma das sociedades por ações ( joint-stock-companies)
aparece, no entanto, também (...)

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O método da economia política
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(...) no início da sociedade burguesa, nas grandes companhias comerciais,
privilegiadas e monopolistas.
O próprio conceito de riqueza nacional só lentamente penetra na ciência econô-
mica do século XVII – representação que subsiste, em parte, entre os economistas
do século XVIII –; a riqueza é produzida meramente para o Estado e seu poderio
(Macht) é proporcional a ela. Era a fórmula, ainda inconscientemente hipócrita,
em que se anunciava que a própria riqueza e sua produção são a meta dos Estados
modernos, considerados exclusivamente como meios de produzir riqueza.
É manifesto que a matéria deve ser dividida como segue: 1. As determinações
gerais abstratas que convêm, por isso, mais ou menos, a todas as formas de socie-
dade, porém no sentido exposto anteriormente. 2. As categorias constitutivas da
articulação interna da sociedade burguesa, sobre as quais as classes fundamentais
repousam. O capital, o trabalho assalariado, a propriedade fundiária. Suas relações
recíprocas. A cidade e o campo. As três grandes classes sociais. O intercâmbio
entre elas. A circulação. O crédito (privado). 3. A concentração da sociedade bur-
guesa na forma do Estado. Considerado na sua relação consigo próprio. As classes
“improdutivas”. O imposto. A dívida do Estado. O crédito público. A população.
As colônias. A emigração. 4. A relação internacional de produção. A divisão
internacional do trabalho. A troca internacional. A exportação e a importação. O
curso do câmbio. 5. O mercado mundial e as crises.

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