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CRÍTICA

marxista

RESENHAS
Últimos escritos
econômicos:
anotações
de 1879-1882
KARL MARX
São Paulo: Boitempo, 2020. 148p.

Jorge Grespan*1

Como todos os textos de Marx, os dois manuscritos que compõem o livro


Últimos escritos econômicos possuem um valor inestimável. As “Glosas marginais
ao tratado de economia política de Adolph Wagner” foram redigidas entre o final
de 1879 e o final de 1880, e as “Notas sobre a reforma de 1861 e o que daí se
desdobrou na Rússia”, entre o final de 1881 e 1882. Embora tratem de economia,
são dois textos bastante diferentes, tanto no assunto quanto na forma, revelando
exemplarmente a variedade de interesses intelectuais e práticos de Marx em seus
últimos anos de vida. O primeiro é composto por anotações que respondem aos
equívocos cometidos pelo professor de economia alemão Adolph Wagner (1835-
1917) em seu livro Doutrina geral ou teórica da economia nacional, de 1876,
ao explicar o conceito de valor de Marx. A resposta de Marx possui um caráter
eminentemente teórico que demonstra, mais uma vez, a notável capacidade do
autor em analisar e criticar ponto a ponto uma obra com a qual polemiza. O se-
gundo texto consiste em um conjunto de informações coletadas por Marx sobre a
situação do campesinato russo depois da abolição da servidão da gleba em 1861.
As tensões sociais crescentes na Rússia e a situação de miséria a que a abolição
levou os antigos servos aparecem em uma coleção de fatos e dados quantitativos
compilados por Marx a partir de documentos lidos no original russo.

* Professor titular do Departamento de História na FFLCH/USP. E-mail: grespan@usp.br

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Embora também estudasse, na mesma época, antropologia, cálculo diferen-
cial, química e agronomia, Marx não havia abandonado o projeto de completar
os volumes restantes de O capital, e a leitura crítica do livro de Adolph Wagner
deve ter servido de estímulo na empreitada que, afinal, não pôde ser concluída.
Wagner formava, com seus colegas Gustav Schmoller (1838-1917), Lujo Brentano
(1844-1931) e Albert Schäffle (1831-1903), o grupo de economistas conhecido
como “socialistas de cátedra”. Seu programa estava fundado em uma crítica do
utilitarismo estrito da economia anglo-saxã e na proposta de uma ciência eco-
nômica aberta a questões jurídicas e institucionais, aberta sobretudo a cooperar
com a política social que Otto von Bismarck começava a implantar no novo
Império Alemão na década de 1870. Para esclarecer o tipo de “socialismo” do
grupo, Wagner criticou em seu livro as ideias de outros autores de quem queria
se distinguir, entre os quais Marx. Contudo, em seu empenho por demonstrar a
superioridade do “socialismo” bismarckiano, Wagner reconstituiu os conceitos
de Marx de modo simplificado e errôneo, como era de prever. Esse foi o contex-
to que suscitou a redação das “Glosas”, nas quais Marx, pacientemente, retoma
e corrige as confusões propositais de Wagner, como a do valor de troca com o
valor, ou do valor com o custo de produção. Ao desfazer essas confusões, Marx
esclarece pontos cruciais de sua teoria do valor, fazendo das “Glosas” um texto
de leitura obrigatória.
Mais do que esclarecer suas próprias ideias, contudo, Marx flagra e critica, in
statu nascendi, um momento decisivo da teoria econômica. A ambiguidade que
ele registra no emprego que Wagner e seus colegas fazem da palavra “valor”, por
exemplo, decorre de um deslize intencional do âmbito econômico para o moral
e o jurídico, evidente, de maneira similar, na definição de “bem” como utilidade
pública que deve ser protegida pela lei e pelo Estado. Por isso, os teóricos alemães
e austríacos do fim do século XIX passaram a basear o valor econômico apenas
na utilidade do “bem”, concebida no sentido amplo de patrimônio social, mas que
era considerada o fundamento universal das trocas igualmente por economistas
anglo-saxões como William Jevons (1835-1882). A fusão daquilo que Marx
distinguia como valor de uso e valor e a consequente formulação do conceito de
valor-utilidade em contraposição ao conceito de valor-trabalho constituiu a pedra
fundamental da nova matriz teórica que se autodenominou, desde o fim do século
XIX, “economics”. Assim, em sua resposta a Wagner, Marx acaba por refutar
todo esse movimento teórico que predomina no mainstream econômico até hoje.
No entanto, Marx deixa claro que jamais abandonou o conceito de valor de
uso para se dedicar apenas à análise do conceito de valor. As “Glosas” retomam
a discussão antropológica iniciada trinta anos antes na Ideologia alemã, agora no
contexto da leitura que Marx fazia da obra de Lewis Morgan (1818-1881), escla-
recendo que o valor de uso é um conceito fundamental para entender também o
sistema capitalista. Essa questão é importante porque constitui objeto de muitas
críticas dirigidas a Marx, como as do antropólogo Marshall Sahlins, citado na

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apresentação das “Glosas” feita por Sávio Cavalcante. Cavalcante introduz bem
o leitor no texto de Marx, mas não deveria ceder a Sahlins na questão do valor
de uso, como faz aparentemente em pelo menos duas passagens, nas páginas
15 e 21; cito esta última aqui: “Marx, de fato, relega à ‘merceologia’ o estudo
da ordem classificatória” dos valores de uso. No entanto, o valor de uso não é
“relegado à merceologia” para abrir caminho à análise do valor. Ao contrário, no
próprio texto das “Glosas”, Marx responde à acusação de Wagner de que ele teria
“afastado totalmente da ciência o valor de uso” (p.57), lembrando que, na forma
de dinheiro, o valor de uma mercadoria “se apresenta no valor de uso de outra”, e
que a mais-valia supõe “um valor de uso específico, o da força de trabalho” (p.60-
61). Levando o raciocínio mais adiante, é possível afirmar que, se o valor de uso
não se mantivesse sempre ao lado do valor como seu oposto, não seria possível
para Marx definir a mercadoria como uma forma social contraditória e as formas
mais complexas do dinheiro e do capital como desdobramentos dessa contradição
inicial. O valor de uso permanece como uma forma constitutiva em todos os três
livros de O capital e, como “necessidade não só do estômago, mas da fantasia”,
contempla, sim, a dimensão simbólica reclamada por Sahlins e outros críticos.
Depois dessa discussão teórica, o segundo texto que compõe os Últimos escri-
tos econômicos tem um caráter muito distinto. Como observa Hyury Pinheiro na
apresentação do texto, é provável que Marx fosse utilizar a série de fatos e dados
aqui computados, além de outros tantos que vinha colecionando há anos, para
escrever um trabalho sobre a Rússia, pois percebia a importância crescente das
agitações sociais nesse país e seu potencial revolucionário. De fato, Marx constata
em suas “Notas” que, em vez dos servos emancipados, os verdadeiros beneficiários
da abolição de 1861 foram a aristocracia e o Estado, que valorizaram suas terras
e aumentaram os impostos coletados sobre a renda dos novos proprietários. A
miséria resultante para a maioria da população russa se manifestava em reações
violentas como o assassinato do tsar Alexandre II em 1881, poucos meses antes
da redação das “Notas”, e vinha chamando a atenção de Marx desde o começo
da década de 1870.
É importante destacar o empenho de Pinheiro na tradução desse texto e na
elaboração de explicações detalhadas de nomes, termos e fatos citados por Marx,
facilitando o entendimento do leitor não familiarizado com os temas russos. O
mesmo vale para o texto das “Glosas” e seu contexto alemão. A edição do livro
também é cuidadosa e diligente, o que transparece, por exemplo, na transcrição
das palavras grafadas no alfabeto cirílico, tal como no manuscrito de Marx, ou
ainda na transcrição das notas da edição alemã Marx-Engels Werke e da edição
inglesa da Marx-Engels Collected Works. Por isso tudo, o leitor pode estar certo
de ter em mãos um excelente material de estudo e reflexão.

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