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O debate recorrente sobre o fim do trabalho com o desemprego tecnológico

Article  in  Revista de Economia Política · March 2023


DOI: 10.1590/0101-31572023-3371

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Maria de Lourdes Rollemberg Mollo Rafael de Acypreste


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Revista de Economia Política, vol. 43, nº 1, pp. 78-95, janeiro-março/2023

O debate recorrente sobre o fim do trabalho


com o desemprego tecnológico
The recurring debate about the end of labor with
technological unemployment

MARIA DE LOURDES ROLLEMBERG MOLLO*


RAFAEL ACYPRESTE**

RESUMO: O artigo analisa uma questão recorrente sobre a perda de centralidade do


trabalho com as inovações tecnológicas e o trabalho imaterial, tanto do ponto de vista
teórico quanto empírico. Teoricamente discute a centralidade do trabalho tanto com relação
à teoria do valor-trabalho como forma de dominação social no capitalismo, quanto no que
se refere aos limites do desemprego tecnológico neste modo de produção. Empiricamente
o artigo apresenta dados mundiais e da economia brasileira sobre as principais causas do
desemprego, comparando-as com o desemprego tecnológico.
PALAVRAS-CHAVE: Centralidade do trabalho; trabalho imaterial; desemprego tecnológico.

ABSTRACT: The article analyses a recurrent question about the loss of centrality of labor
with technological innovations and immaterial labor, both from a theoretical and empirical
point of view. Theoretically, the centrality of labor is discussed both in relation to the theory
of labor value as a form of social domination in capitalism, and in relation to the limits of
technological unemployment in this mode of production. Empirically, the article presents
world and Brazilian economic data on the main causes of unemployment, comparing them
with technological unemployment.
KEYWORDS: Centrality of labor; immaterial labor; technological unemployment.
JEL Classification: B51; J23; Z13.

INTRODUÇÃO

Não é novo o debate sobre o desemprego provocado pelas inovações tecnoló-


gicas. Ricardo já discutia o problema ao tratar da maquinaria e da tese da com-

*Professora do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil. E-mail:


mlmollo@unb.br; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4303-6914.
** Doutorando de Economia Política do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Bra-
sília/DF, Brasil. E-mail: rafaeldeacyprestemr@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8607-2184.
Submetido: 11/Agosto/2021; Aprovado: 26/Janeiro/2022.

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penorcid.org/sação, que foi objeto de menção do próprio Marx (Ricardo, 1977;
Marx, 1971, p. 502 e seguintes). Ricardo e Marx, por sua vez, foram objeto de
críticas de autores neoclássicos, como Wicksell (1977), que introduziu novas ques-
tões, ao separar a acumulação de capital do progresso tecnológico, com o intuito
de atribuir a este último, e não à acumulação de capital, o desemprego (Acypres-
te e Mollo, 2021).
O objetivo deste artigo, ao entrar neste debate, é discutir o assunto em três níveis,
dois teóricos e um empírico. Teoricamente, do ponto de vista marxista, é possível
discutir o assunto no que se refere à teoria do valor-trabalho e quanto ao desem-
prego tecnológico.
A ideia de fim do trabalho vem sendo sustentada por argumentações relacio-
nadas de que o trabalho é basicamente imaterial e deixa, por isso, de ser conside-
rado produtivo. Há também teses acerca do fim da centralidade do trabalho no
capitalismo. A ideia de que o trabalho é basicamente imaterial e deixa de ser
considerado trabalho produtivo ou criador de valor é justificada, por Gorz (1982),
com o aumento proporcional da produção de serviços, e com a informatização,
que faria com que o trabalho perdesse sua preponderância material. Como bem
resumem Carcanholo e Medeiros (2012), a eliminação da centralidade do trabalho
no capitalismo é defendida por autores como Habermas (1992), para quem a re-
volução microeletrônica teria deslocado o trabalho como principal produtor de
riquezas, a ciência passando a ser considerada a principal força produtiva. Teses
semelhantes são defendidas por Hardt e Negri (2001), para quem o trabalho ima-
terial envolve mais do que trabalho, mas comunicação, cooperação e produção e
reprodução de afetos.
A segunda argumentação, relacionada ao valor-trabalho, se refere à impossibi-
lidade de mensuração do valor pelo tempo de trabalho, uma vez que não é possível
separar as atividades em tempos do relógio, quando ele é imaterial, envolvendo
cooperação, subjetividades e realização de tarefas fora do controle do capital etc.
(Prado e Pinto, 2014).
Do ponto de vista marxista, cumpre analisar e mostrar como estas alegações
não têm fundamento teórico, a persistir o modo de produção capitalista.
No que se refere ao desemprego tecnológico, ele foi tratado pelo próprio Marx
no seu tempo, investigando os processos de trabalho da sua época e mostrando,
quanto a isso, como o processo, por um lado, era inerente ao funcionamento do
capitalismo e à reprodução do capital e, ao mesmo tempo, encontrava limites na
própria necessidade desta reprodução, o que dá origem a forças contrabalançado-
ras. Este é o objeto da seção 2, para mostrar que mudam as formas de trabalho,
todas em benefício do capital, mas a valorização do capital, seu objetivo primor-
dial, não pode ocorrer sem a venda da força de trabalho.
Do ponto de vista empírico, e constatando desta forma a pertinência das con-
clusões tiradas na primeira parte, traremos à discussão uma literatura recente, mos-
trando que, se o desemprego cresce e reforça as discussões de fim de trabalho, o
desenvolvimento tecnológico não vem se apresentando como o principal motivo
do desemprego nos dias atuais, nem nos países desenvolvidos nem no Brasil. Quais-

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quer que sejam os progressos, reconhecidamente significativos, das inovações tec-
nológicas poupadoras de mão de obra, nega-se a ideia de fim do trabalho substituído
por inovações, ou perda de sua centralidade no capitalismo, dando razão a Marx
quando analisa a inerência desse processo, bem como das suas contratendências.
Ao final do artigo, por meio de considerações finais, retornaremos à questão do
que define e do que mantém o modo de produção capitalista vivo, requerendo
muito mais para sua superação.

1 O TRABALHO E O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

A análise feita por Marx do capitalismo começa com a mercadoria, e assim ele
destaca como fundamental a característica mercantil deste modo de produção. A
segunda característica é a de ser produtor de mais-valia ou mais-valor, por meio da
exploração do trabalho alheio. Diz ele a este respeito:

O processo de produção como unidade dos processos de trabalho e


de formação de valor, é processo de produção de mercadorias; como uni-
dade dos processos de trabalho e de valorização, ele é processo de pro-
dução capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias. (Marx,
2013, p. 201)1.

1.1 O caráter mercantil do capitalismo


A análise de qualquer modo de produção, entendido como modo de organização
da sociedade para garantir a existência humana, precisa partir da análise do pro-
cesso de trabalho concreto, produtor de valores de uso. Este processo de trabalho
é “apropriação do elemento natural para a satisfação das necessidades humanas
[...], perpétua condição natural da vida humana” (Marx, 2013, p. 192). Mas este
tipo de trabalho concreto, que produz valor de uso, ao ser analisado, não define
um modo de produção específico. É preciso ir mais a fundo, de forma a entender a
organização social dos seres humanos ao produzir sua existência.
O processo de trabalho analisado por Marx no capitalismo é o que produz
mercadorias, porque a mercadoria é a “forma elementar” (Marx, 2013, p. 97) da
riqueza no capitalismo. Na produção de mercadorias, porém, como destaca Bone-
feld (2010, p. 263), o trabalhador ou trabalhadora “tem que produzir valor de uso
para outros – ‘valores de uso sociais’”. Assim, trata-se de uma especificidade do
capitalismo que precisa ser entendida como historicamente diferente, específica e
determinada.

1 Observe-se, aqui, a ideia de que a produção de mercadorias é um traço característico do capitalismo, e


não um modo de produção anterior. Não por acaso, a primeira frase do Capital é “a riqueza das sociedades
onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’” (Marx,
2013, p. 97).

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Ao buscar entender o processo de organização da produção de mercadorias
Marx constata que os processos de trabalho são privados, aparentemente indepen-
dentes uns dos outros e, no entanto, eles são regidos por uma divisão do trabalho
que é social, já que as mercadorias são produzidas para os outros. A solução des-
ta contradição ligada ao trabalho, chamada “privado-social”, se faz pela venda dos
produtos do trabalho contra dinheiro que, neste sentido, torna-se o validador social
dos trabalhos privados.
A venda contra dinheiro, por um determinado valor, transforma o trabalho
concreto em trabalho abstrato, aquele que “gera o valor das mercadorias” (Marx,
2013, p. 104). Este é o trabalho decisivo na produção de mercadorias, porque é a
substância do valor, princípio de organização da sociedade, no sentido de que lhe
impõe sua finalidade e suas restrições e exigências.
Sobre o trabalho abstrato, Marx (2013, p. 123) diz que “somente no interior de sua
troca os produtos adquirem uma objetividade de valor socialmente igual, separada de
sua objetividade de uso, sensivelmente distinta.” E o valor é, então, uma forma social
historicamente específica de riqueza e relação social (Postone, 2003, p. 124).
As vendas e compras são a forma pela qual a divisão do trabalho vai se fazendo de
forma complexa por meio do dinheiro e isso permite que a sociedade funcione apesar
da mencionada contradição, ao invés de ser o caos. É neste sentido que o valor, e o
dinheiro como seu representante, funcione como princípio de organização do funcio-
namento da sociedade, organização que não elimina os conflitos nem a própria con-
tradição, mas permite movimentá-la de forma a garantir tal funcionamento.
O valor tem então um conteúdo qualitativo, uma substância, o trabalho abstra-
to. Mas tem também um conteúdo quantitativo, o trabalho socialmente necessário.
Este define-se como aquele produzido nas condições sociais de produção, que só
aparecem quando as mercadorias se confrontam umas com as outras nas compras
e vendas. Assim, o valor se explicita “post festum”, por meio do dinheiro, um ‘ter-
ceiro” relativamente às mercadorias, que cumpre o papel de equivalente geral (Marx,
2011, p. 119).
Tal como no caso do trabalho abstrato e do trabalho socialmente necessário,
para Marx, “as diferentes proporções em que os diferentes tipos de trabalhos são
reduzidos a trabalho simples, como sua unidade de medida, são determinadas por
meio de um processo social que ocorre pelas costas dos produtores e lhes parecem,
assim, ter sido legadas pela tradição” (2013, p. 103). Ou seja, o processo de compras
e vendas, é onde se explicita o caráter social do valor e do dinheiro como equiva-
lente geral. A este respeito, Marx diz que as mercadorias “possuem objetividade de
valor apenas na medida em que são expressões da mesma unidade social, do tra-
balho humano, pois sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é
evidente que ela só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias” (2013,
p. 105).
Neste processo de compra e venda contra dinheiro, trabalho concreto é trans-
formado em trabalho abstrato, trabalho individual é transformado em trabalho
socialmente necessário, trabalho complexo é transformado em múltiplo de trabalhos
simples e trabalho privado é transformado em trabalho validado socialmente. Assim,

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funciona a lei do valor, no capitalismo, lei que define sua organização social, prin-
cípio de dominação da sociedade.
O papel social do trabalho no capitalismo é, sem sombra de dúvida, determi-
nante e específico. É isso que leva Postone a dizer que

laboring activities are social by virtue of the matrix of overt social


relations in which they are embedded […] various labor gain their so-
cial character through these social relations [...] Relations in precapitalist
formations can be described as personal, overtly social and qualitatively
particular [...] In capitalism, labor itself constitutes a social mediation in
lieu of a matrix of relations (Postone, 2003, p. 150-151).

Sem trabalho abstrato, portanto, não é possível conceber o capitalismo, em


vista do seu caráter produtor de mercadorias. Mais que isso, os trabalhos concretos
perdem validade social se não forem transformados em trabalho abstrato pela
venda.
Segundo Postone (2003, p. 21), que por sua vez se refere a Marx nos Grundris-
se, os indivíduos são regulados por abstrações, ao invés de dependerem uns dos
outros de forma direta, no capitalismo, devido ao seu caráter produtor de merca-
dorias. Trata-se de uma forma objetiva de dominação, relações sociais que dominam
os indivíduos.
O trabalho imaterial, tanto quanto o material, é trabalho concreto, produtor
de valor de uso e, uma vez vendido, é trabalho abstrato criador de valor. Como
chamam atenção Carcanholo e Medeiros (2012, p. 187), trata-se de trabalho “que
produz coisas intangíveis, mas ‘concretas”, ou de trabalho concreto produzindo
coisas intangíveis. Enquanto a venda for a regra, como é no capitalismo, seja na
produção imaterial ou material, o valor e o trabalho abstrato criador de valor não
desaparecem como modo de dominação social.

1.2 O caráter produtor de mais-valor do capitalismo


Para Marx, a generalização da produção de mercadorias se completa com a
transformação da força de trabalho, a capacidade humana de trabalho, em merca-
doria. Numa sociedade mercantil onde todos são compradores para garantir sua
existência, é preciso vender para conseguir comprar. O trabalhador é despossuído
dos meios de produção, que são de propriedade privada do capitalista. Não tem,
por isso, como produzir para então vender e poder comprar o necessário à sua
existência. É a ausência de posse dos meios de produção – como existia, por exem-
plo, no feudalismo – e a impossibilidade de acesso a eles, em vista da propriedade
privada dos mesmos, pelo capitalista, que impõe a necessidade do trabalhador
vender sua força de trabalho, transformando-a em mercadoria. Assim, não é pos-
sível pensar a venda da força de trabalho sem pensar o valor como norma social
de dominação.
Esta transformação da força de trabalho em mercadoria permite o aparecimen-
to do mais-valor, de onde saem o lucro, a renda e os juros. Como qualquer merca-

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doria, a força de trabalho tem um valor de uso, uma utilidade, aquilo que a torna
desejável para compra, pelo capitalista. Seu valor de uso é gerar um valor maior do
que o seu próprio, a mais-valia. Seu valor de troca é o custo de (re)produção do
trabalhador e sua família, porque este é o tempo de trabalho socialmente necessá-
rio para a produção da força de trabalho, enquanto mercadoria. Sem mercadoria,
não faz sentido o valor, sem mercadoria força de trabalho, não há como explicar a
mais-valia. Assim, sem a venda da força de trabalho não há geração de valor exce-
dente ou valor produzido pelo trabalhador e apropriado pelo capitalista, não ha-
vendo, portanto, valorização do capital.
Dito de outra maneira, o valor da força de trabalho é dado pelo tempo de tra-
balho socialmente necessário à sua produção, ou à reprodução do trabalhador e
sua família. Sem venda da força de trabalho livre, não há como garantir a vida dos
trabalhadores no capitalismo. A mercadoria força de trabalho é especial porque
gera um valor maior do que o seu próprio valor.
A diferença entre o valor da força de trabalho como mercadoria e o valor das
mercadorias produzidas por ela dá o mais-valor. Daí por que, para Marx, “o mais-
-valor resulta apenas de um excedente quantitativo de trabalho, da duração prolon-
gada do mesmo processo de trabalho” (Marx, 2013, p. 201). Isso porque se o
processo de produzir valor “não ultrapassa o ponto em que o valor da força de
trabalho pago pelo capital é substituído por um novo equivalente, ele é simples-
mente um processo de formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, ele se torna
processo de valorização” (2013, p. 200).
Chama-se a atenção para a dificuldade de medir estes trabalhos – separando
tempo de trabalho necessário de tempo de trabalho excedente, quando se trata de
produção imaterial, ou afirma-se que o “trabalho que transmite e produz simbo-
lizações de várias espécies como parte do trabalho social gerado na esfera econô-
mica da sociedade, resiste a ser medido e avaliado pelo tempo mecânico, pelo
tempo do relógio, de um modo significativo para a própria produção capitalista”
(Prado e Pinto, 2012, p. 62-63). São estas dificuldades, tal como percebidas por
alguns autores, que os leva a discutir a centralidade do trabalho nos tempos atuais,
e concluir pelo fim do trabalho como modo de dominação social. Mas é exatamen-
te no Capital, e nos Grundrisse, que Marx diz, e de forma muito clara, que a cons-
tituição do valor das mercadorias só se completa na venda, porque só na venda é
que se explicitam as condições médias sociais de produção. Diz, também, muito
claramente, nos Grundrisse, que

[...] a transformação da mercadoria em valor de troca [...] expressa


sua relação de permutabilidade com todas as outras mercadorias. Essa
comparação, que é efetuada na cabeça de um só golpe, é realizada, na
efetividade, somente em um determinado âmbito, determinado pela ne-
cessidade e somente gradualmente. [...] Portanto, para realizar a merca-
doria de um golpe em valor de troca e lhe conferir eficiência universal de
valor de troca, não é suficiente a troca por uma mercadoria particular. A
mercadoria deve ser trocada por uma terceira coisa que, por sua vez, não

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seja ela mesma uma mercadoria particular, mas o símbolo da mercadoria
como mercadoria, o próprio valor de troca da mercadoria; portanto, que
então represente, digamos, o tempo de trabalho como tal, digamos um
pedaço de papel ou de couro que represente uma parte alíquota do tem-
po de trabalho” (Marx, 2011 p. 93-94).

Diz ainda que

Por conseguinte, não obstante o dinheiro [seja] apenas o valor de


troca destacado da substância das mercadorias e deva sua origem apenas
à tendência desse valor de troca de se pôr de modo puro, a mercadoria
não pode ser imediatamente transformada em dinheiro; i.e., o certificado
autêntico do quantum de tempo de trabalho nela realizado não pode ser
utilizado como o seu preço no mundo dos valores de troca (Marx, 2011,
p. 107-108).

E completa adiante, dizendo mais claramente ainda que “o caráter social da


produção só é posto post festum, pela ascensão dos produtos a valores de troca e
pela troca desses valores de troca” (Marx, 2011, p. 119). Assim, não é preciso
calcular a priori, no processo de trabalho imaterial, como se determinam as horas
de trabalho necessário, excedente ou total que formarão o valor das mercadorias.
Fica claro aqui que, se o cômputo de horas de trabalho necessário e de trabalho
excedente para determinação de valores individuais, permite-nos entender de onde
sai a mais-valia, ele não se faz no processo de trabalho imediato, seja trabalho
material ou imaterial, mas só se explicita no confronto das mercadorias umas com
as outras, no momento da venda.
A este respeito, Marx insiste tanto nos Grundrisse, como nas frases anteriores,
quanto no Capital. Observe-se, quanto ao segundo, as frases abaixo:

Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de


trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O con-
junto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total. Como os
produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do
trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados
aparecem apenas no âmbito dessa troca (Marx, 2013, vol. 1, p. 122).
[...] os trabalhos privados, são constantemente reduzidos à sua me-
dida socialmente proporcional, porque, nas relações de troca contingen-
tes e sempre oscilantes de seus produtos, o tempo de trabalho socialmen-
te necessário à sua produção se impõe com a força de uma lei natural
reguladora [...] (Marx, 2013, vol. 1, p. 124).

Assim, quaisquer que sejam os tipos de trabalho, materiais ou imateriais, en-


quanto vigorar o valor como forma de dominação social, os valores-trabalho das
mercadorias serão determinados de forma final enquanto médias estabelecidas “nas

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relações sempre oscilantes” que vigoram a circulação. Para estes, contribuem os
valores individuais gerados nos vários processos de produção.
Enquanto mercadoria, a força de trabalho, já vimos anteriormente, também tem
seu valor determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à (re)produ-
ção do trabalhador e sua família. Também nesse caso, o valor só se determinará de
forma final na venda, onde se explicitarão as condições sociais médias, embora
para esta média tenham contribuído os processos individuais de produção.
Estas observações mostram, portanto, que não há problema se o trabalho ima-
terial não mostra claramente, ao ser realizado, quanto é tempo de trabalho neces-
sário e tempo de trabalho excedente. Também o executor individual de trabalho
material não conhece quanto realizará em valor com seu trabalho ou quanto tra-
balho concreto conseguirá tornar-se abstrato pela venda. Basta saber que a venda
da força de trabalho por quem o executa, quaisquer que sejam as condições con-
cretas do processo de trabalho, implicam a entrega de produto de valor excedente,
apropriado pelo capitalista comprador.
Como afirma Pasquinelli (2019, p. 45), “any technology influences the metrics
of abstract labour”. Mas isso não impede que, de forma generalizada, o trabalho
abstrato se objetive na relação de valor uma vez confrontadas as mercadorias e que
continue como princípio objetivo segundo o qual as abstrações regulam os indiví-
duos no capitalismo.
Este tipo de argumentação explica por que, para Marx, o salário não precisa ser
medido em horas de trabalho, mas pode ser medido por peça produzida. Como ele
próprio diz, “o salário por peça não passa de uma forma a que se converte o salá-
rio por tempo, do mesmo modo que o salário por tempo é a forma a que se con-
verte o valor ou o preço da força de trabalho” (Marx, 1975, p. 636). Trata-se
também de uma mudança de forma a situação em que o valor da força de trabalho
passa para o trabalhador quando ele não é empregado ou quando não assina um
contrato de trabalho com o capitalista. O emprego foi eliminado, mas não o tra-
balho (Fontes, 2017). Mas continuou sendo necessário, ao trabalhar, que o traba-
lhador vendesse a sua capacidade de trabalho para ter acesso a meios de produção
e para valorizar o valor (Fontes, 2017), ou para valorizar o capital, objetivo fun-
damental quando o modo de produção é o capitalista (Saad-Filho, 2001). No caso
de uma plataforma digital, por exemplo, que nada mais é do que um meio de
produção de propriedade privada do capitalista, acessá-la requer pagar uma taxa,
é o mais-valor gerado pelo trabalhador e apropriado pelo capitalista.
O lucro, como sabemos, é o objetivo do modo de produção capitalista, o que
permite a reprodução do capitalista como classe e que, aplicado no processo de
acumulação do capital permite a sua reprodução ampliada. Assim, sem mais-valia,
de onde sai o lucro, não é possível pensar em capitalismo. Sem trabalho socialmen-
te necessário para produzir o valor, e sem trabalho excedente para produzir mais-
-valia, também não temos capitalismo. Sem valor como forma de dominação social,
não há por que a força de trabalho se transformar em mercadoria cujo valor, o
salário, é o tempo de trabalho socialmente necessário à (re)produção do trabalha-
dor e sua família e cujo valor de uso é gerar valor excedente.

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Assim, o fim do trabalho ou sua perda de centralidade só se explicaria num
modo de produção alternativo. Este, porém não parece ser o caso, a julgar pela
tendência cada vez maior de mercantilização da vida no capitalismo, com parcela
cada vez maior da população precisando vender sua capacidade de trabalho contra
um salário e/ou vender sua força de trabalho pagando para acessar plataformas ou
meios de produção alheios para viver.

1.3 As inovações poupadoras de trabalho


Para Marx, como o objetivo do capitalismo é o lucro, há uma pressão inerente
ao sistema para ampliar a acumulação de capital, empregando mais trabalhadores.
Essa pressão, porém, na inexistência de inovações tecnológicas, leva a aumento de
salários que ameaçam o próprio lucro. Isso o conduz a afirmar que “o mecanismo
da produção capitalista vela para que o aumento absoluto de capital não seja
acompanhado de um aumento correspondente da demanda geral de trabalho” (Marx,
2013, p. 467). Daí a razão inerente no capitalismo para desenvolver inovações
tecnológicas que não buscam folgar o trabalhador, mas ampliar sua produtividade
e, assim fazendo, produzem inovações poupadoras de mão de obra.
O próprio Marx, no “Fragmento das Máquinas”, estimula as discussões anterio-
res, ao afirmar que “o valor objetivado na maquinaria aparece [...] como uma pres-
suposição em vista da qual a força valorizadora da potência do trabalho individual
desaparece como infinitamente pequena” (Marx, 1980 b, p. 186). Vai ainda mais
longe ao afirmar que “o saber aparece na maquinaria como qualquer coisa estran-
geira, externa ao trabalhador e o trabalho vivo aparece subsumido, como trabalho
objetivado agindo forma autônoma. [...] o operário aparece como supérfluo” (Marx,
1980 b, p. 187). E ainda: “à medida que se desenvolve a grande indústria, a criação
de riqueza real depende menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho
empregado” (Marx, 1980 b, p. 192-193) e mais da aplicação da ciência à produção.
Conclui então dizendo que “o roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual re-
pousa a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparada àquela desen-
volvida de forma nova, criada pela própria grande indústria” (Marx, 1980 b, p. 193).
Teríamos então, a prolongar-se esta tendência “o colapso da produção repousando
sobre o valor de troca”. Ou seja, ainda que este processo se desenvolva, enquanto
durar o capitalismo, o processo de eliminação do trabalho não pode se completar.
É esse desenvolvimento de inovações que produz o chamado exército industrial
de reserva, uma massa permanente, embora flutuante, de trabalhadores desempre-
gados, que serve ao capital ao impedir crescimento explosivo dos salários e disci-
plinar os trabalhadores no processo de exploração. Mas esta tendência a expulsar
trabalhadores tem limites dentro do modo de produção capitalista. Não é possível
gerar lucro sem a compra da força de trabalho que, paga pelo seu valor, produz um
valor maior, do qual sai o lucro, necessário à valorização do capital. O movimento
do capital é contraditório, expulsando trabalhadores, mas deles necessitando para
sua existência e reprodução.
Os processos de trabalho se modificam ao longo da história do capitalismo

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para maximizar lucro, buscando controlar os trabalhadores, discipliná-los, redu-
zindo a parte que paga a força de trabalho e aumentando a mais-valia. O processo
de controle, expulsão e de utilização e (re)utilização da força de trabalho evolui. O
tempo do cronômetro é substituído por outros tipos de controles do processo de
trabalho. Assim é que, após o fordismo e o taylorismo, tivemos a especialização
flexível, e hoje o trabalho em casa por meios digitais. Se o cronômetro intensificava
o trabalho nos primeiros, o trabalhador polivalente também vê seu tempo morto
de trabalho reduzido nos segundos e o pagamento por resultado nos últimos. A
coerção econômica é a mesma quando o trabalhador precisa assinar um contrato
de trabalho ou empregar-se ou quando precisa pagar uma plataforma digital para
prestar um serviço de transporte ou de entrega, ou de qualquer serviço. Mais que
isso, como observam Dardot e Laval (2016), a tônica neoliberal faz os trabalhado-
res funcionarem como empresários de si mesmos. Buscam formar- se, especializar-
-se e preparar- se com afinco para serem contratados. A isso Dardot e Laval chamam
“subsunção subjetiva do trabalho ao capital”.
A “uberização” do trabalho, por sua vez, ao exigir que o trabalhador trabalhe
12 horas ao invés de 8, parece fazê-lo porque o condutor é empresário de si mesmo.
Mas, na verdade, ele precisa destas 12 horas porque o pagamento de uma taxa de
25% sobre o obtido, não permite a manutenção de si e da família e, por isso, não
completa o custo de (re)produção da força de trabalho que determina seu valor em
termos médios sociais. A plataforma digital – meio de produção típico do capita-
lismo atual – não pode ser acessada pelo trabalhador a não ser pagando os 25%
de taxa, medida do mais-valor que é extraído pelo proprietário. Se o dono da
plataforma não é o único proprietário porque foi financiada por investidores, estes
são os proprietários do meio de produção que, ao submeter os trabalhadores ao
seu jugo, transformaram-na em capital, valor que se valoriza pela exploração da
força de trabalho alheia.
Os trabalhadores que sobram com inovações tecnológicas vão ser reempregados,
embora precariamente, em setores como o de serviços. A terceirização e o desen-
volvimento do trabalho em casa garantem o aumento da exploração não apenas
nos países menos desenvolvidos, mas também nos mais desenvolvidos (Harvey,
1992). Desde o lançamento da 1ª edição do seu livro reagindo a Gorz, em 1995,
que Antunes (2015) chama atenção para a intensificação da subproletarização,
fragmentação e complexificação da “classe-que-vive-do-trabalho”, com suas con-
sequências nefastas em termos de precarização e intensificação do trabalho e para
a perda de organização e poder dos sindicatos, outra forma de aumento do contro-
le do capital sobre o trabalho.
Como menciona Fontes (2017, p. 52), tanto a terceirização de forma genérica,
quanto o trabalho por peças e o trabalho a domicílio são formas de submissão do
trabalho ao capital, “para além do emprego”. Trata-se de uma forma diferente de
exploração do trabalho, mantendo a força de trabalho como mercadoria e o valor
como forma de dominação social.
Menciona-se o aumento do tempo livre proporcionado pelas novas tecnologias
como forma de visualizar mudanças importantes. Este aumento, por um lado, vem

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ocorrendo desde a primeira revolução industrial, quando a jornada de trabalho
alcançava até 16 horas. A redução observada hoje, fruto da luta de classes, não
mudou o modo de produção. Tais mudanças vão por vezes na direção de reduzir a
exploração, por pressão da luta de classes, mas também de aumentar, como parece
ser o caso das plataformas digitais e das chamadas cooperativas de trabalho e dos
programas integrados de fornecimento de insumos à agroindústria, que fazem os
trabalhadores arcarem com parte dos custos e do risco da produção, reduzindo os
custos para o capitalista e exigindo que os trabalhadores trabalhem mais para re-
produzir sua força de trabalho.
Mesmo que a grande indústria tenha evoluído e mesmo que tenhamos agora algo
como a pós-grande indústria, enquanto houver capital a ser valorizado e reproduzi-
do, não há como eliminar a força de trabalho. E não é suficiente, dentro do capita-
lismo, prover renda básica para todos os trabalhadores. É preciso que parte do tra-
balho esteja empregado, de forma que parte do seu produto seja apropriado sem
pagamento. Também é necessário que os desempregados sejam suficientemente des-
possuídos e desprotegidos para que a venda da força de trabalho não seja interrom-
pida, porque o lucro sai da exploração e não da divisão dos vários tipos de trabalho.
O capitalismo se modifica o tempo inteiro, sempre com o objetivo maior de
maximizar lucro, para o que é preciso comandar o processo de trabalho. Se, para
isso, foi necessário inicialmente migrar do trabalho doméstico para a indústria,
para controlar o ritmo de trabalho, isso não impede que a terceirização e o novo
trabalho doméstico sejam usados para reduzir salários e direitos trabalhistas, am-
pliando o mais-valor de outra forma. Também não impede que os ditos empresários
de si mesmo precisem trabalhar mais para responder às demandas do capital. O
controle no horário e nos gestos na fábrica, são substituídos pela perda de direitos
e o controle do tempo máximo a trabalhar para prover a existência, sempre garan-
tindo o percentual a ser pago aos proprietários das plataformas e demais meios de
produção digitais. A precarização do trabalho, seja em sistemas domésticos de
produção como os fornecedores de peças, ainda hoje revisitados2, seja no sistema
de tecnologia avançada como os das plataformas digitais, o objetivo é sempre o
mesmo: explorar o trabalhador para dele extrair excedente em valor criado e con-
trolar o trabalhador, disciplinando-o na direção de servir à valorização do capital.
Tal controle pode ser coercitivo ou pode vir sob a forma de convencimento de sua
posição como empresário de si mesmo. Em qualquer caso, isso não faz mais do que
refletir a dominação do capital, sua necessidade de valorizar-se.

2 EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS

Vários são os trabalhos que, direta ou indiretamente criticam de forma empíri-


ca a ideia de fim do trabalho como consequência das inovações tecnológicas. Entre

2 Veja-se o filme “Quando o Carnaval Chegar” (2019), dirigido por Marcelo Gomes.

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os mais recentes destacamos, em primeiro lugar, o de Aaron Benanav (2019, p. 15)
que, analisando o declínio da demanda de trabalho, chega à conclusão de que ele
“não se deve a um salto sem precedentes da inovação tecnológica, mas das mudan-
ças tecnológicas em ambiente de estagnação econômica”. Benanav destaca que, ao
contrário de algumas análises, a produtividade do trabalho, medida como produto
real por hora de trabalho no setor industrial foi menor em 2017 do que em 2010.
Acrescenta que devido à desindustrialização no mundo todo,

[...] é inacreditável o grau de declínio ou mesmo estagnação no


crescimento do produto manufatureiro, visível em escala mundial, que
explica por que o crescimento da produtividade industrial parece ao pri-
meiro olhar estar avançando, apesar de que é de fato menor do que an-
tes. Mais e mais é produzido com menos trabalhadores, como advogam
os teóricos da automação, mas não porque a mudança tecnológica está
aumentando as taxas de crescimento da produtividade. Ao contrário, o
crescimento da produtividade no setor manufatureiro parece hoje em dia
rápido somente poque a escala do crescimento do produto contra a qual
este crescimento é medido está encolhendo (Benanav, 2019, p. 25).

A ideia é a de que, a desindustrialização, cuja origem é o excesso de capacidade


de bens industriais, levou às quedas de emprego neste setor. Completa dizendo que
não houve mudança significativa da demanda do setor industrial para o de serviços,
porque o produto como um todo expandiu-se menos. O autor chama ainda atenção
para o fato de que, ao invés de uma massa de desempregados, o que se viu foi um
crescimento do subemprego e retirada de direitos, já que as ocupações que se ex-
pandiram no setor de serviços foram, em regra, mais precárias e com mais baixos
salários. Ou seja, para os países desenvolvidos do G7 e alguns países dos Brics
analisados por Benanav, o que melhor explica o desemprego é a queda da deman-
da e não as inovações tecnológicas.
Outros trabalhos como os de Mason (2020) e Bastani (2019), mencionados por
Pitts e Dinerstein (2020), também indicam o declínio do crescimento da produtivi-
dade, negando ao desemprego tecnológico o lugar de destaque ao analisar o de-
semprego global. O primeiro menciona que a inovação tecnológica afetou o cres-
cimento econômico de menos de 0,2% na primeira década do milênio, enquanto
o segundo reconhece, segundo Pitts e Dimerstein, que a evidência sugere que o grau
de automação no Reino Unido desacelerou nas décadas recentes devido à queda
acentuada dos salários reais. Investimento em tecnologia poupadora de mão de
obra não interessa em tais situações, seja porque a mão de obra é barata, seja por-
que, com baixos salários, as produções aumentadas com tais tecnológias podem
exceder as necessidades solváveis.
No Brasil, trabalho de tese em andamento de Rafael Acypreste, analisou as
causas da geração de ocupações no Brasil, por meio de matrizes de insumo-produ-
to. Em Acypreste (2022), por meio de decomposição estrutural do emprego foram
analisados os períodos 2000-2005 e 2010-2015, que eram os únicos períodos para

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os quais há matrizes insumo-produto oficiais compatíveis entre si a partir de 2000.
Neste estudo, já se percebia que, a não ser no caso da agricultura, que apresenta
perda de ocupações por incorporação de inovações e aumento da produtividade
do trabalho, nos demais setores e para os dois períodos foram mudanças na de-
manda que explicaram principalmente as variações de emprego.
Prosseguindo os estudos e com vistas a investigar um período mais longo e rea-
lizar uma análise mais abrangente, foram analisadas as matrizes estimadas por
Alves-Passoni e Freitas (2020) a preços correntes e as elaboradas por Alves-Passo-
ni (2019) a preços do ano anterior . Tais matrizes foram estimadas utilizando como
base a metodologia desenvolvida por Grijó e Bêrni (2006) e a aplicação do método
RAS (Miller e Blair, 2009). Para a decomposição estrutural do emprego, foram
analisados os períodos 2000-2005, 2005-2010, 2010-2015 e 2015-2018.
Na deflação dos preços utilizou-se processo ligeiramente modificado em com-
paração ao apresentado originalmente em Acypreste (2022), que não resolvia o
problema da aditividade, mas apenas controlava para os preços relativos. Adotaram-
se duas etapas complementares apresentada em Alves-Passoni (2019). Em primeiro
lugar, deflacionou-se as informações da matriz insumo-produto “célula a célula”,
para capturar as variações de preços relativos entre todos os produtos e setores.
Nesse momento, o controle de preços relativos permite que a análise seja feita sobre
a variação das “unidades de volume” dos itens (Alves-Passoni, 2019). Em segundo
lugar, a aditividade foi alcançada deflacionando-se toda a matriz pelo deflator do
valor bruto de produção total encadeado ano a ano. Assim, todos os dados estarão
na forma de preços constantes de um determinado ano-base (Alves-Passoni, 2019;
Balk e Reich, 2008; Reich, 2008).
Diante disso, uma alteração algébrica para o modelo apresentado na equação
(5) em Acypreste (2022) foi feita:

!! = ! − !
!!
! (1)
!!
em que !! =é a! produção
− ! ! total das atividades em unidades de volume (preços
!!
relativos constantes),
!! = ! − ! ! é a “matriz inversa de Leontief” (Miller e Blair, 2009;

Ricardo-Schuschny, 2005) ponderada pelos preços relativos da produção total se-


!!
!! = Por
torial. ! − fi
!m, ! é o vetor de demanda final total agora ponderado pelos preços
relativos da produção setorial total. Com essa representação, são acomodadas as
variações dos preços relativos referentes às aditividades das matrizes insumo-pro-
duto bem como o processo de perda de valor da moeda como unidade de conta
(Alves-Passoni, 2019; Balk e Reich, 2008; Reich, 2008).
Para a apresentação nos gráficos subsequentes, onde estão os resultados da
evolução da geração de ocupações, foram usadas abreviações dos setores explici-
tados na Tabela 1.

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Tabela 1

Setores Abreviatura
Agropecuária Agro
Indústrias extrativas Ind Extr
Indústrias de transformação Ind Transf
Eletr. e gás, água, esgoto e gestão de resíduos Eletr
Construção Constr
Comércio Comercio
Transporte, armazenagem e correio Transp
Informação e comunicação Info
Ativ. financeiras, de seguros e serviços relacionados Financ
Atividades imobiliárias Imobi
Outras atividades de serviços Otrs Serv
Adm., defesa, saúde e educação púb. e seguridade social Adm pub
Fonte: Acypreste (2022).

Como é possível verificar na Figura 1, os períodos de baixo crescimento (2000-


-2005; 2010-2015; 2015-2018) mostram a agricultura como o único setor com
perda de empregos significativa por inovações tecnológicas poupadoras de mão de
obra, em que mais de 13,4 milhões de ocupações foram reduzidas no período por
essa razão e que foram apenas parcialmente compensados por aumentos de deman-
da, gerando um resultado líquido de 3,3 milhões de empregos reduzidos entre 2000
e 2018. No último período, em bem menor proporção, o setor de indústria de
transformação perdeu pouco mais de 250 mil empregos por inovações relacionadas
à produtividade do trabalho. No período de crescimento mais elevado (2005-2010),
vários setores passam a perder empregos com inovações tecnológicas poupadoras
de mão de obra. Mas só a agricultura, nos segundo e terceiro período, e a indústria
de transformação, no terceiro período, não conseguem compensar a queda de em-
prego por inovação tecnológica com geração de ocupações por aumento de deman-
da. Isso mostra que a variação da demanda é muito mais importante do que a va-
riação da produtividade do trabalho para explicar o desemprego. Além disso, em
períodos de baixo crescimento, os setores de outros serviços, comércio e construção
civil e indústria de transformação com menor destaque se destacam com geração de
empregos, mostrando involução tecnológica ou queda da produtividade do trabalho.
Como sabemos, estes setores de serviços são, em regra, os de condições de tra-
balho mais precárias. Assim, em países diferentes, por meio de metodologias dis-
tintas e em diversos períodos mais recentes analisados, a perda de empregos por
inovações tecnológicas ou automação não parece ser uma causa importante. Aliás,
a mera observação da data do livro de Gorz (1982) que deu origem a uma das
muitas ondas de preocupações com o fim do trabalho, e da primeira edição do livro
de Antunes (1995) criticando-o mostra que temos aí quase meio século sem que
essa ideia de fim de trabalho se confirme.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A incompreensão do que define o capitalismo, em particular, do papel do valor-


-trabalho como modo de dominação social que gere este modo de produção, bem
como de seu caráter gerador de lucro por meio de trabalho não pago é o que ex-
plica as afirmações de fim do trabalho ou da centralidade do trabalho no capitalis-
mo, em função do seu caráter informatizado/digitalizado.
Diferentes tipos de argumentos permitem verificar tal incompreensão. Observe-
-se, em primeiro lugar, Fuchs (2015, p. 27), que embora afirme que não nega a
teoria do valor trabalho de Marx afirma também que “quanto mais tempo um
usuário passa no Facebook, mais dados de perfil, pesquisa, comunicação, compor-
tamento e conteúdo ela gera, que são oferecidos como mercadoria aos clientes de
publicidade. Quanto mais tempo um usuário passa online, mais anúncios direcio-
nados podem ser apresentados a ele”. Ora, as mercadorias não são, no capitalismo,
produzidas por trabalho gratuito, nem oferecidas gratuitamente, seja aos clientes
de publicidade seja aos proprietários do Facebook que as vendem. O que resta
nesta teoria do valor trabalho?
Sua incompreensão deve-se a uma definição de trabalho produtivo inadequada.
Ao invés de, como Marx, defini-lo como o trabalho que gera mais-valia, para o que
é preciso comprar a mercadoria força de trabalho contra um salário inferior ao
valor do que ele produz, de onde sai o lucro, define-a como o trabalho que produz
valor de uso, ou mais-valia ou contribui para a formação de mais-valia, neste últi-
mo caso retribuição pecuniária.
Outra incompreensão se refere aos indivíduos se valendo de plataformas para
se transformarem em empresários de si mesmos. Ora, estão muito mais próximos
de trabalhadores que se transformam em pessoa jurídica para agradar ao patrão,
que não lhe paga os salários indiretos e alguns outros direitos trabalhistas. Isso
ocorre em vista da sujeição às regras da plataforma e à entrega de boa parte do
obtido com seu trabalho ao proprietário dela, que é o meio de produção principal
a ser utilizado pelo trabalhador. Em qualquer caso, a entrega de parte do produto
do seu trabalho está indo para o proprietário dos meios de produção o que valori-
za o capital deste último.
O trabalho concreto, produtor de valores de uso não acabou nem acabará por-
que é comum a todas as sociedades, pois é condição de “apropriação do elemento
natural para a satisfação de necessidades humanas, condição universal do metabo-
lismo entre homem e natureza, perpétua condição natural da vida humana” (Marx,
2013, p. 192), mesmo que seja imaterial ou enormemente facilitado e complexifi-
cado com o desenvolvimento das tecnologias.
O trabalho abstrato, criador de valor, não acabou no capitalismo, uma vez que
ainda vivemos a partir de compras do que precisamos para existir, e vendemos
mercadorias para comprá-las. Imensa é a parcela da população que precisa vender
sua capacidade de trabalho ou força de trabalho pelo tempo de trabalho social-
mente necessário à sua produção, que é inferior ao tempo de trabalho total. Tal

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dinâmica ocorre no capitalismo porque é preciso produzir mais para pagar pelo
acesso aos meios de produção de propriedade privada.
O cálculo do trabalho necessário para (re)produzir a força de trabalho (salário),
e do trabalho excedente (mais-valia), não é definido a priori em cada processo de
trabalho ou para cada mercadoria. É preciso que as mercadorias em geral, e a
força de trabalho em particular, se confrontem com as condições sociais de produ-
ção nos mercados e contra o dinheiro, após sua produção (post festum), de forma
a que se explicitem as mídias sociais em torno das quais preços e salários de mer-
cado flutuarão (com desvios dados por ofertas e procuras).
Não há como negar a grande proporção de trabalhadores assalariados nem a
submissão à lógica do valor trabalho, razão pela qual não é possível admitir que
deixamos de contar com o modo de produção capitalista. Acabar com ele é funda-
mental, mas para isso não basta inovar tecnologicamente. Não será simplesmente
pelo progresso tecnológico que o trabalho deixará de ser fundamental ou que se
conseguirá derrubar o capitalismo. A palavra de ordem continua sendo: “Traba-
lhadores do mundo, uni-vos”.

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