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Ruy 

Fausto
Dialética  marxista,  dialética  hegeliana:  a  produção  capitalista  como
circulação  simples.  1ª  edição,  Paz  e  Terra/Brasiliense,  São  Paulo­
SP, 1997.
RESENHAS Hector  Benoit  (Professor  do  Departamento  de  Filosofia,  Unicamp.)

Como  fizera  nos  dois  volumes  de postos  são  postos  exatamente  como  e
Marx:  Lógica  e  política,  investigações enquanto  aparência.  Nesta  primeira  se­
para  uma  reconstituição  da  dialética ção  de  O  Capital,  portanto,  se  faz  exata­
(1983  e  1987),  neste  novo  livro,  de  ma­ mente  a  teoria  do  fundamento  enquanto
neira  tão  paciente  quanto  naquelas  obras, fundamento  aparente.  Toda  a  dificulda­
prossegue  Ruy  Fausto  a  sua  herme­ de  dialética,  mostra  o  autor,  está  justa­
nêutica  da  obra  de  Marx  à  luz  da  Lógica mente  em  compreender  que  o  fundamen­
de  Hegel.  Em  Lógica  e  política,  o  autor to  é  afirmado  a  partir  de  um  “juízo  de
estudara  sob  luz  hegeliana  diversas reflexão”,  isto  é,  um  juízo  que  poderia
questões  relativas  à  obra  de  Marx,  como ser  enunciado  da  seguinte  forma:  “o  fun­
o humanismo, o “althusserismo”, a noção damento  posto  é...  aparência”.  Sendo  as­
de  trabalho  abstrato,  a  circulação  de sim,  o  fundamento(sujeito)  se  reflete  no
mercadorias,  a  concepção  marxista  da predicado  (a  aparência),  o  sujeito  não
história,  as  noções  de  pressuposição  e permanece  estável,  isto  é,  temos  um
posição,  as  classes  e  o  Estado.  Agora, “juízo  de  reflexão”  e  não  um  “juízo  do
nesta  nova  obra,  Dialética  marxista, sujeito”. Ressalte­se, Fausto utiliza o sig­
dialética  hegeliana:  A  produção  capi­ no  “...”  para  exprimir  exatamente  a  “re­
talista  como  circulação  simples,  as  aná­ flexão”  em  um  juízo.  Neste  tipo  de  juízo
lises  de  Fausto  são  mais  localizadas  e o  sujeito  se  reflete  no  predicado  estando
obedecem  a  maior  unidade:  como  apon­ assim  apenas  pressuposto.  Seria  o  caso
ta  o  próprio  título  do  livro,  trata­se  de do  fundamento  na  I  seção  de  O  Capital.
estabelecer  os  pontos  exatos  de  contato Foi  também  utilizando  o  mesmo  juízo
entre  a  dialética  hegeliana  e  a  dialética de  reflexão  que  Fausto  já  dissolvera
de Marx na primeira seção de  O Capital. dialeticamente,  em  Lógica  e  política  I
    No  primeiro  capítulo,  “Fundamento (cap. 1), o falso (e inocente) dilema entre
e  aparência”,  o  autor  estuda  uma  certa humanismo  ou  negação  do  humanismo
dificuldade  que  existiria  na  seção  I  de  O em  Marx:  em  todos  os  juízos  que  fizer­
Capital.  Se  a  circulação  simples  tratada mos sobre o homem antes do fim da “pré­
nesta  seção  representa  a  aparência  do história”,  explicara  ele,  o  homem  é  um
sistema,  como  é  possível  logicamente sujeito  que  se  reflete  no  predicado  e  o
apresentar  como  postos,  já  nesta  altura predicado  ao  invés  de  revelar  a  essência
do  desenvolvimento  da  obra,  os  elemen­ do  sujeito  homem  apenas  anuncia  outro
tos  valor  e  trabalho  que  parecem  perten­ que  o  próprio  homem.
cer  aos  fundamentos  do  sistema  e  não  à   No segundo capítulo do livro, Fausto
aparência  dele?  Na  verdade,  mostra estuda  a  questão  de  matéria  e  forma  na
Fausto  que,  nesta  seção  os  fundamentos seção  I  de  O  Capital.  Procura  explicar

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como  a  dualidade  matéria/forma  se  arti­ Hegel],  e  outra,  em  que  a  constituição
cula com as noções de substância, de su­ está inscrita numa base material [ou seja,
jeito  e  com  a  dualidade  conteúdo/forma. Marx]”  (p.  47).  E  acrescenta  o  autor,  na
Mais  uma  vez,  fará  aproximações  com mesma  página,  que  talvez  aí,  nesta  dife­
Hegel.  Sustenta  que  essas  dialéticas  da rença,  se  encontrem  os  subsídios  para
obra de Marx correspondem mais de per­ uma  definição  possível  do  materialismo
to  à  dialética  do  fundamento  absoluto de  Marx.  Nesse  sentido  lembra  Fausto
na  lógica  da  essência  de  Hegel.  A texto  dos  Grundrisse  em  que  Marx  afir­
dialética da forma e da essência (primeiro ma ser necessário “corrigir a maneira ide­
item  de  O  fundamento  absoluto  na  lógi­ alista da apresentação, que produz a apa­
ca  hegeliana)  corresponde,  segundo rência  de  que  se  trata  só  de  determina­
Fausto,  à  passagem  do  valor  de  troca  ao ções  conceituais  e  da  dialética  desses
valor  e,  na  seqüência,  à  constituição  da conceitos.  Sobretudo”,  escreve  ainda
substância  como  trabalho  abstrato.  O  se­ Marx,  “a  fórmula:  o  produto  (ou  a  ativi­
gundo  item  em  O  fundamento  absoluto dade)  se  torna  mercadoria;  a  mercadoria
de  Hegel  (“Forma  e  matéria”)  corres­ valor de troca; o valor de troca dinheiro”
ponde  à  dialética  em  Marx  da  forma  do (cit.  por  R.  F.,  p.  47).  Como  comenta
valor  e  do  dinheiro,  e  o  terceiro  item Fausto,  o  sentido  dessa  autocrítica  é  que
(“Forma  e  conteúdo”)  corresponde  ao a  sucessão  das  determinações  estão  ins­
fluxo  do  próprio  capital,  ainda  que  este critas numa matéria anterior e que a cons­
em  Marx  seria  mais  analógico  com  a tituição  de  um  conteúdo  formal  seria  fei­
passagem  ao  conceito,  ou  seja,  já  o ta  na  dialética  marxista  “sobre  o  fundo  e
processo  de  transição  para  o  livro  III  na na  base  da  supressão  de  um  conteúdo
Ciência  da  Lógica  de  Hegel. pressuposto”.  No  exemplo  estudado,  a
    No  entanto,  apesar  destas  múltiplas dialética  da  forma  do  valor,  ocorreria  a
analogias,  já  neste  segundo  capítulo,  o “supressão”  do  conteúdo  da  finalidade
autor  apresenta  também  algumas  “dife­ ligada  ao  valor  de  uso  (cf.  p.  48).
renças  essenciais”  entre  Hegel  e  Marx.     Quanto  a  esta  “diferença”  entre  a
Na  dialética  hegeliana,  segundo  Fausto, dialética de Hegel e de Marx, cabem aqui
haveria uma constituição da matéria e do algumas  observações.  Inquestionável
conteúdo,  o  movimento  de  apresentação parece ser que a dialética em Marx e suas
hegeliano  seria  assim  “um  processo  de categorias formais sempre se desenvolvem
constituição  sobre  o  fundo  do  nada”  (p. sobre uma base material pressuposta, base
47),  enquanto  que  em  Marx,  matéria  e esta  que  conforme  vai  sendo  suprimida
conteúdo  material  são  pressupostos,  isto enquanto  pressuposta  vai  recebendo
é,  estariam  presentes  como  presença­au­ “vida”  (trata­se  de  encontrar  “a  vida  da
sente  desde  o  início.  Como  escreve matéria”,  dizia  Marx  em  célebre  prefácio
Fausto:  “Fica  a  diferença  entre  uma de O Capital), até que em certo momento
dialética  em  que  todas  as  determinações da  exposição  esta  base  se  mostra  como
são  constituídas  pelo  processo  [ou  seja histórica. 1  No  entanto,  no  Hegel  da

1.  Escreve  Marx  no  prefácio  da  segunda  edição:  “das  Leben  des  Stoffs...”.;  cabe  recordar  que
em  termos  do  desenvolvimento  filosófico  interno  ao  idealismo  alemão,  a  passagem  da  dialética
da  vida  orgânica  ou  natural  à  dialética  da  vida  do  espírito  enquanto  esta  vida  é  história  marca
exatamente  a  passagem  de  Schelling  a  Hegel.

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Fenomenologia  do  espírito  temos  um     Pode­se  no  entanto  argumentar,  com
processo  bastante  analógico...  Cabe  re­ razão,  que  Ruy  Fausto,  em  suas  analogi­
cordar que em termos do desenvolvimen­ as  entre  Hegel  e  Marx,  não  se  refere  à
to filosófico interno ao idealismo alemão, Fenomenologia...,  mas  sim,  à  Ciência  da
a  passagem  da  dialética  da  vida  orgânica Lógica  e  seria  somente  esta  obra,  graças
ou natural à dialética da vida do espírito, justamente  ao  seu  grau  maior  de  abstra­
enquanto  esta  vida  é  entendida  como ção,  que  permitiria  relações  pertinentes
história,  marca  exatamente  a  passagem com  a  dialética  de  O  Capital.2  Ora, em
de  Schelling  a  Hegel.  Assim,  na  Feno­ sentido  contrário,  ainda  que  rapidamen­
menologia..., as diversas figuras da cons­ te,  podemos  lembrar  as  relações  cerradas
ciência  (certeza  sensível,  percepção, que  existem  entre  a  Fenomenologia  e  a
entendimento...)  e  suas  dialéticas  nada Ciência  da  Lógica.  Quando  Hegel  pro­
mais  são  do  que  abstrações  do  todo  que jetou  escrever  a  primeira  obra,  como  se
precede  seus  momentos  isolados,  e  a  to­ sabe, 3   pensava  inicialmente  apresentar
talidade  deste  devir,  como  afirma  Hegel uma  parte  do  seu  sistema  que  consistiria
nas  últimas  linhas  da  Fenomenologia..., em  uma  introdução  seguida  pela  sua  ló­
por  um  lado,  em  sua  forma  contingente, gica  e  sua  metafísica,  no  decurso  da  re­
é  a  própria  história;  por  outro  lado,  en­ dação  a  “introdução  ao  sistema”  trans­
quanto  organização  conceitual,  a  totali­ forma­se  na  Fenomenologia  do  espírito,
dade  deste  devir  é  a  ciência  do  saber  fe­ que  passa  a  ser  designada  como  “a  pri­
nomenal;  finalmente,  a  unidade  destes meira  parte  do  sistema  da  Ciência”.  Ain­
(história  e  ciência),  por  sua  vez,  é da  que  a  relação  teórica  definitiva  entre
novamente história, porém a história ele­ a Fenomenologia... e a Ciência da Lógica
vada acima da contingência, isto é, como permaneça  discutível(para  o  próprio
diz  Hegel,  “a  recoleção  e  o  calvário  do Hegel), é possível dizer, em vários senti­
espírito  absoluto”.  A  história  portanto, dos, que a Fenomenologia... prepara a Ci­
ainda  que  concebida  de  forma  idealista, ência  da  Lógica,  sendo  assim,  em  certo
é  também  uma  base  “material”  (“matéria sentido, o substrato “material” da ciência
inteligível”,  como  dizia  Aristóteles  na especulativa.  Realmente,  ao  término  da
Metafísica)  pressuposta  em  toda  a Fenomenologia..., quando supera­se a os­
dialética  das  experiências  teoréticas  da cilação  entre  a  verdade  objetiva  externa
Fenomenologia...  Não  se  diluiria  assim, e a certeza subjetiva que seria sem verda­
em  parte,  essa  suposta  diferença  entre  a de,  suprime­se  a  diferença  entre  a  forma
dialética  hegeliana  e  dialética  marxista objetiva  da  verdade  e  a  verdade  do  Eu
apontada  por  Ruy  Fausto? que  sabe,  atinge­se  o  saber  absoluto  que

2. Como observa Bento Prado (em perspicaz prefácio que acompanha o livro de Ruy Fausto), se
Paulo  Arantes  escolheu  o  Hegel  da  Fenomenologia...,  Ruy  escolheu  o  Hegel  da  Ciência  da
Lógica:  “Aparentemente  um  escolheu  o  Hegel  da  Ciência  da  lógica,  enquanto  outro  ficou  com
o da Fenomenologia do espírito. No fundo, a questão em pauta parece ser (também) a seguinte:
para devolver significação à dialética, será necessário restaurar seu “momento racional­positivo”,
recorrendo  à  artilharia  pesada  da  lógica?”  (p.  22).

3.  Cf.  J.  Hoffmeister,  in  introdução  à  Phänomenologie  des  Geistes,  edição  Lasson/Hoffmeister,
S.W.,  II,  1937,  p.  XXXI;  também  J.  Hyppolite,  Genèse  et  structure  de  la  Phénomenologie  de
l'esprit  de  Hegel,  Aubier­Montaigne,  Paris,  1946,  p.  56.

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justamente  é  o  resultado  da  Feno­ passado,  mas  o  ser  passado  intemporal
menologia...,  resultado  que  permite  a (zeitlos)”.5  Para Hegel, assim, a lógica da
transição  para  o  saber  puramente  espe­ essência  não  parte  do  nada  como  ausên­
culativo,  a  ciência  pura  liberta  de  toda cia,  mas  sim,  do  que  era  ser,  isto  é,  o
contingência,  a  lógica  dialética,  domínio passado do ser (a história do seu processo
propriamente  da  ciência  suprema,  região de  determinações),  ou  o  ser  superado  e
que  Platão  chamara  nóesis,  território  an­ suprimido  em  sua  temporalidade  contin­
hypotético  no  qual  ocorreu  a  anairésis gente. Como se vê, na lógica da essência,
(supressão  ou  superação,  Aufhebung  )  de mais  uma  vez,  também  aparece  um
todas as hypo­teses anteriores. Parece­nos “substrato  material”  a  partir  do  qual
assim  bastante  discutível  sustentar  que  a ocorre  o  processo  dialético.  A  diferença
dialética  hegeliana  se  diferenciaria entre  a  lógica  hegeliana  e  a  marxista
daquela  de  Marx  pela  inexistência  na talvez  deveria  ser  assim  procurada,  não
primeira  de  uma  base  “material”.  Sobre­ tanto na denúncia da suposta inexistência
tudo, se entendermos esta base “material” do substrato material em Hegel, mas sim,
enquanto  o  que  está  sub­posto  (a  hy­ muito mais, na determinação da diferença
potese  na  dialética  platônica)  ou  en­ de  conteúdo  deste  substrato  “material”.
quanto  o  substrato  (a  ousia  enquanto Enquanto  em  Hegel  a  essência,  o  pas­
hypokeimenon  em  Aristóteles),  ou  ainda sado  do  ser,  a  história,  são  determinados
a  potência  ou  dynamis  (aristotélica), 4 a  partir  da  história  política,  cultural,  reli­
todos  estes  diversos  sentidos  de giosa,  filosófica,  “superestrutural”,  em
“substrato  material”  e  de  “pressuposto” Marx,  ao  contrário,  a  superestrutura  não
predominantes  na  lógica  hegeliana tem  propriamente  história,  os  processos
constituem uma “matéria” a partir da qual superestruturais,  o  desenvolvimento  das
se desenvolve o devir das categorias. Não idéias,  das  categorias  e  assim  da  própria
acompanhamos  Fausto,  particularmente, lógica  dialética  (ser,  não­ser,  devir...),
quando  na  sua  argumentação  (para possuem como substrato material as con­
ressaltar  a  suposta  diferença  entre  Hegel tradições  da  história  (ou  pré­história)  da
e  Marx)  afirma  que  a  lógica  da  essência humanidade que, até os nossos dias, para
em  Hegel  se  desenvolve  “sobre  o  fundo Marx,  são  as  contradições  da  história  da
do  nada”  (p.  47)  ,  ainda  que  em  seguida luta  de  classes.  Este  é  o  conteúdo  do
relativize  “de  um  nada  que  é  nada­do­ substrato  material  da  lógica  dialética
ser” (ibidem). Ora, como o próprio Hegel marxista  que  diferencia  radicalmente
comenta no começo da lógica da essência Marx  de  Hegel  e  de  todo  o  pensamento
(e  aqui,  sem  dúvida,  recordando  Aristó­ burgues  e  reformista.
teles),  a  essência  (Wesen)  foi  conservada   As leituras acadêmicas, mesmo aque­
na forma verbal do passado do verbo ser, las  rigorosas  como  a  de  Ruy  Fausto,  no
isto  é,  em  alemão  gewesen,  e  acrescenta, entanto,  separando  e  recortando  analiti­
“com  efeito,  a  essência  (Wesen)  é  o  ser camente  a  obra  de  Marx  anulam  o  movi­

4.  Hypótese,  hypokéimenon  e  dynamis  são  noções  convergentes  da  filosofia  grega  clássica  e
estão  presentes  no  sentido  do  substrato  e  pressuposto  hegeliano.

5. Ciência da lógica, in S. W., IV, edição Glockner, 1965, p. 481. Observe­se que em Aristóteles
a essência é expressa pela célebre locução “o que era ser” (tó tí en êinai), traduzida em latim por
“quod quid erat  esse” .

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mento  dialético  deste  conteúdo  (a  luta  de para  uma  teoria  do  Estado  capitalista”.
classes)  que,  do  Manifesto...  a  O  Capital, Esta  sugestão  de  Ruy  Fausto,  completar  a
dos  anos  da  Liga  Comunista  à  Primeira apresentação  da  obra  de  Marx  com  uma
Internacional,  para  Marx,  aparece  como teoria  do  Estado,  parece  ser  necessária,
posto  historicamente  e  sempre  pressupos­ para  ele,  pois,  somente  quando  o  direito
to  teoricamente,  desde  o  início,  em  todas do  Estado  estivesse  posto  seria  plena­
as  abstrações  e  exposições  teóricas  de mente  justificada  a  transgressão  do
Marx. No caso de Ruy Fausto, neste livro, contrato,  e  assim,  estariam  também
esta  leitura  acadêmica  (não­marxista)  de justificados  os  textos  histórico­políticos
Marx,  fica  bastante  clara  no  capítulo  4. com  as  classes  em  luta  enquanto  postas.
Ali  Fausto  descreve  (p.  74­75)  a  dialética     Ora,  na  verdade,  assim  como  o  De­
da apresentação dos agentes em O Capital. zoito  Brumário...  foi  publicado  em  1852
Primeiramente,  os  agentes  são  postos e  não  pode  esperar  a  apresentação  nem
enquanto  pólos  homogêneos  que  trocam do  livro  I  de  O  Capital  nem  do  capítulo
mercadorias  na  relação  jurídica  do  con­ 52 para colocar como posta a luta de clas­
trato.  Permanecem  assim  durante  o  mo­ ses,  durante  a  própria  exposição  interna
mento da circulação simples. No momento de  O  Capital,  as  classes  sociais  e  a  luta
da  produção  capitalista  enquanto  produ­ de classes não esperam o capítulo 52 para
ção  capitalista  os  agentes  são  indivíduos se  manifestarem.  Como  na  Fenomeno­
heterogêneos  em  inércia,  representando  a logia  do  espírito,  no  modo  de  exposição
primeira negação do contrato. No momen­ em  O  Capital  (ainda  que,  mais  uma  vez,
to  da  produção  capitalista  apresentada com  outro  conteúdo  histórico),  ocorrem
como reprodução, os  agentes  são  suportes constantes  “adiantamentos”  realizados
sociais  do  capital  e  assim  classes  sociais, pela instância “para nós” do percurso. Na
porém  classes  em  inércia  e,  diz  Fausto, instância  do  “para  nós”  se  conhece
somente  pressupostas,  apesar  de  ocorrer antecipadamente  o  percurso  de  supressão
aqui  a  segunda  negação  do  contrato da  aparência  e  os  momentos  que  na
também  não  existe  aqui  ainda  luta  de instância  da  “consciência  mergulhada  na
classes.  Finalmente,  no  capítulo  52  do aparência”  são  ainda  apenas  pressu­
livro  III  de  O  Capital,  os  agentes  serão postos,  na  instância  do  “para  nós”
classes  postas,  mas  também  ainda  em aparecem  como  já  postos.  Assim  como
inércia,  e  portanto  continuaria  inexistindo do ponto de vista do “para nós” em Hegel
a luta de classes. Onde está então, segundo (que  coincide  com  o  saber  absoluto)  se
Ruy  Fausto,  a  luta  de  classes  em  Marx? sabe, desde o começo, a pobreza abstrata
Somente  “para  além  d’O  Capital,  tem­se da  certeza  sensível,  assim  também  em
classes  em  luta,  o  que  significa Marx,  do  ponto  de  vista  do  “para  nós”
transgressão  do  contrato”  (p.  76).  Como (que  aqui  coincidiria  com  a  vanguarda
se  vê,  para  Fausto,  a  luta  de  classes histórica  da  classe  operária  européia  que
transcende  o  conteúdo  de  O  Capital.  Este já  de  fato  havia  participado  da  luta  de
“além”  são  os  textos  histórico­políticos classes  desde  pelo  menos  1830),  se  sabe,
de  Marx,  como  O  Dezoito  Brumário  de desde  o  começo  de  O  Capital,  que  só
Luís Bonaparte e Guerra civil em França. aparentemente  alguém  vai  ao  mercado
Observa  ainda  em  nota  (p.  76,  nota  75) capitalista  enquanto  indivíduo  homo­
que entre o capítulo 52 de O Capital e os gêneo;  na  verdade,  as  classes  sociais  e  a
textos  histórico­políticos  “haveria  lugar luta de classes estão postas historicamen­

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te  sob  a  aparência  dos  indivíduos  homo­ da  da  classe  operária. 7  A  dialética  em
gêneos,  como  mostrará  sobretudo  o  ca­ Marx  é  assim  crítica  e  revolucionária,
pítulo  XXIV,  descrevendo  a  acumulação como  ele  próprio  afirmou.8  A  supressão
primitiva.  No  entanto,  já  no  capítulo  I da aparência em O Capital é assim teoria
ocorrem  “antecipações”  postas  pela  van­ da  revolução  e  a  própria  maneira  de  ex­
guarda  do  “para  nós”  que  anuncia  não posição  (die  Darstellungsweise),  com  o
somente  a  luta  de  classes  como  também seu  desdobramento  em  níveis  de  cons­
a supressão das classes e o próprio socia­ ciência,  como  perceberão  Lenin  e
lismo.  Como  escreve  já  no  capítulo  I Trotski,  expressam  uma  teoria  do
Marx:  “Imaginemos  finalmente,  para  va­ partido  e  do  programa  revolucionários.
riar,  uma  associação  de  homens  livres, Mas,  esta  certamente  seria  uma  visão
que  trabalham  com  meios  de  produção “marxista”  que  Fausto  não  aceitaria,
comunais  e  despendem  suas  múltiplas pois,  parece  ler  Marx,  conscientemente,
forças  individuais  de  trabalho  conscien­ de  fora  do  marxismo.
temente  como  uma  força  de  trabalho  so­   Se, por um lado, esta visão externa o
cial”.  E  após  descrever  uma  sociedade conduz  a  separar  analiticamente  a  obra
consciente  das  suas  relações  de  produ­ de  Marx  (talvez,  contra  parte  de  Marx),
ção  e  planejada  socialmente,  ao  fim  do por outro lado, esta mesma visão externa
mesmo  parágrafo,  escreve  Marx:  “As  re­ o leva a descrever e esclarecer com preci­
lações  sociais  dos  homens  com  seus  tra­ são  inigualável  certos  processos  da
balhos  e  com  seus  produtos  do  trabalho dialética  da  aparência  que  caracterizam
ficam  aqui  transparentemente  simples exatamente  a  circulação  simples.  Isto
(durchsichtig  einfach)  tanto  na  produ­ ocorre  na  dialética  da  forma  do  valor
ção  como  na  distribuição”6 . Muitas ou­ (descrita  no  capítulo  3)  e  na  dialética  do
tras  antecipações  similares  aparecem  no dinheiro  (capítulo  5).  Também  a  partir
decorrer  do  livro  I.  Lembremos  do  capí­ desta  posição  contemplativa  do  “enten­
tulo  VIII,  cujos  itens  5,  6  e  7  tratam  sob dimento”,  Fausto  descreve,  em  apêndice
aspectos  diferentes  a  “luta  (der  Kampf) deste livro, as diferenças entre a dialética
pela  jornada  normal  de  trabalho”,  mas de  Marx  e  as  análises  de  Lévi­Strauss  e
esta  dualidade  entre  o  “para  nós”  e  a Weber, advertindo sobre os riscos concei­
“consciência  mergulhada”  nada  mais  é tuais  que  existem  em  certos  ecletismos
do  que  a  oposição  contraditória  entre  a teóricos,  em  geral,  inconscientes.  Nesse
aparência e a essência do ser no modo de sentido, mesmo aqueles que permanecem
produção  capitalista,  oposição  esta,  ela no  interior  do  “marxismo”,  adquirindo  a
própria,  expressão  da  luta  de  classes,  a paciência  do  conceito,  muito  podem  e
luta  entre  a  economia  burguesa  e  a  sua devem  aprender  com  esta  nova  obra  de
crítica,  a  economia  política  da  vanguar­ Ruy  Fausto.

6. MEW, 23, p. 92­3; edição Abril, p. 75.

7.  Nesse  sentido,  escreve  Marx  in  Manifesto  inaugural  da  Associação  Internacional  dos
Trabalhadores,  referindo­se  à  luta  pela  limitação  da  jornada  de  trabalho:  “Pela  primeira  vez,  a
economia  política  da  burguesia  foi  derrotada  em  plena  luz  do  dia  pela  economia  política  da
classe  trabalhadora  (politischen  Ökonomie  der  Arbeiterklasse).”  (MEW,  16,  p.  9).

8. MEW, 23, p. 28.

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BENOIT, Hector. Resenha de: FAUSTO, Ruy. Dialética marxista, dialética hegeliana: a
produção capitalista como circulação simples. São Paulo: Paz e Terra/Brasiliense, 1ª.
edição, 1997. Crítica Marxista, São Paulo, Xamã, v.1, n.7, 1998, p.133-138.

Palavras-chave: Dialética marxista; Dialética hegeliana; Produção capitalista; Circulação


simples.

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