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Coleção

HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA

Coordenação
Eliana de Freitas Dutra

François Hartog

Crer em história

TRADUÇÃO

Camila Dias

autêntica
Copyright O 2013 Flammarion, Paris
Copyright O 2017 Autêntica Editora

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia
xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

COORDENADORA DA COLEÇÃO HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA PROJETO GRÁFICO


Eliana de Freitas Dutra Diogo Droschi
EDITORA RESPONSÁVEL CAPA
Rejane Dias Alberto Bittencourt (Sobre obra de Anselm Kiefer.
NNE ASSISTENTE Foto: Cubo Branco [George Darrell))
Cecília Martins DIAGRAMAÇÃO
RIVRAO DA MADUCAO Larissa Carvalho Mazzoni
Vera Chacham
REVISÃO
Lúcia Assumpção

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hartog, François
Crer em história / François Hartog ; tradução Camila Dias. - 1. ed. -- Belo
Horizonte : Autêntica Editora, 2017. -- (Coleção História & Historiografia)

Título original: Croire en 'histoire


Bibliografia.

ISBN 978-85-513-0026-8

1. História - Filosofia 2. Historicidade 3. Historiografia |. Título. II. Série.

17-02878 CDD-901

Índices para catálogo sistemático:


1. História : Filosofia 901

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INTRODUÇÃO

Ainda cremos em História?

Eu que fui a bela Clio, tão adulada. Como eu triunfava no


tempo dos meus jovens feitos. Depois veio a idade [...].
Então eu tento me enganar. Eu me dedico a trabalhos [...]
Eu, a história, engano o tempo.

Ainda cremos em História? E o que significa hoje responder sim


ou não a essa questão? Esta é a pergunta inicial desta investigação e
desta reflexão. Acreditamos em História como se acreditou a partir
do século XIX: com a mesma força e a mesma fé? Quando ela se
tornou uma evidência, quando começamos a praticá-la metodica-
mente, com a ambição de alçá-la à posição de ciência, no modelo
das ciências da natureza. Quando a literatura se apossou vivamente
dela, quando o romance assumiu por tarefa escrever esse mundo
novo atravessado pela História. Adquirindo então consciência do seu
poder, encontramo-nos acometidos pela sua força de condução, até
reconhecer nela uma figura nova do destino. Seu avanço suscitou
a reverência, sua capacidade de triturar países e vidas causou pavor.
No final dos anos 1940, Mircea Eliade chegou a denunciar o que
ele nomeava o “terror da História”. Durante todo um tempo, con-
fiou-se em seu tribunal, ela foi convocada em inumeráveis campos
de batalha, em seu nome se justificaram ou se condenaram políticas
as mais opostas. Quantos discursos, líricos ou realistas, ela inspirou?

! PÉGUY, 1992, p. 998.


CRER EM HISTÓRIA

Quantas obras rastrearam seus segredos (livros de história, romances


históricos, romances)? Quantos tratados filosóficos buscaram desco-
brir suas leis ou denunciar suas pseudoleis? Quantas Clio, pintadas ou
esculpidas, mais ou menos pensativas, vieram tronar nos edifícios?
Em seu Grande Dicionário (Grand Dictionnaire), publicado entre
1866 e 1876, Pierre Larousse fazia-se seu ardente profeta:

O movimento histórico, inaugurado no século XVII por Bos-


suet, prosseguido no XVIII por Vico, Herder, Condorcet, e
desenvolvido por tantos espíritos remarcáveis do nosso século
XIX, não pode deixar de se acentuar ainda mais num futuro
próximo. Hoje, a história se tornou, por assim dizer, uma
religião universal. Ela substitui em todas as almas as crenças
destruídas e abaladas; ela se tornou o lar e a crítica das ciências
morais, cujas ausências ela supre. O direito, a política e a filoso-
fia lhe emprestam suas luzes. Ela está destinada a se tornar, em
meio à civilização moderna, o que a teologia foi na Idade Média
e na Antiguidade, a rainha e moderadora das consciências.

Eis aí uma vigorosa profissão de fé, a qual muitas outras, aqui e


além na Europa, nos mesmos anos, poderiam ecoar; ainda que Pierre
Larousse fosse longe demais, reconhecendo na História um estatuto
equivalente ao que havia precedentemente ocupado a teologia como
discurso criador de sentido das sociedades então religiosas. Trata-se
aí do crer em, como cremos em Deus, no mais alto grau da crença.”
Em um grau inferior, existe o crer na: crer na História, crer que
existe uma história ou história em ação de uma maneira ou de outra.
Postula-se que a contingência não é tudo e que se pode apreender
uma certa ordem no que se manifesta ou se produz, e se estima que
vale a pena relatar, tanto quanto se pode, o que se passou, para se
lembrar, para se servir dela. Esboçar um quadro ou fornecer uma visão

LAROUSSE, 1866-1876, p. 301 (verbete Histoire).


[E

Minha proposição não é de modo algum percorrer a via aberta por Karl Lówith
tab

em seu livro, publicado em 1949, Histoire et Salut [História e Salvação], com seu
subtítulo perfeitamente explícito, Les Présupposés théologiques de la philosophie de
Phistoire [Os pressupostos teológicos da filosofia da história] (2002). Tampouco
seguir o debate que ele suscitou sobre a “secularização” (cf MONOD, 2002).

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AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

sinóptica, para a instrução ou para o prazer (ou os dois) de um leitor,


é possível e mesmo útil. Tal era já, no século II antes da nossa era, a
ambição de Políbio na introdução de sua história universal. Fornecer
uma visão de conjunto que mostrasse o que acabava de se passar: a
conquista tão rápida do Mediterrâneo por Roma. Desta crença de
segundo escalão (que pode muito bem se confundir com a primeira
na História providencial), existiram diferentes modelos. Entre os mo-
dernos, os mais deterministas acreditaram nas causas e nas leis, outros
recorreram a invariantes antropológicas, procuraram forças profundas,
atualizaram as regularidades e construíram séries, buscando identificar
a mudança através daquilo que pouco e imperceptivelmente mudava.
Desconfiados dessa pesada aparelhagem, outros jamais deixaram de
acreditar nos atores, nas ações e nas contingências: o acontecimento
é seu elemento, o grande homem, seu sujeito.
Mas voltemos, um instante ainda, a Larousse. E, para mensu-
rar o radicalismo do seu discurso, transportemo-nos a um século
antes, em 1751, quando d' Alembert redigia o Discurso Preliminar da
Enciclopédia (Discours préliminaire de P Encyclopédie), a futura Bíblia das
Luzes. Que lugar era reconhecido à História no preâmbulo desse
grande dicionário racional dos saberes?

A História, na medida em que ela se refere a Deus, contém ou


a revelação ou a tradição, e se divide, sob esses dois pontos de
vista, em história sagrada e em história eclesiástica. A história
do homem tem por objeto, ou suas ações, ou conhecimentos;
e ela é por consequência civil ou literária, quer dizer, divide-se
entre as grandes nações e os grandes gênios, entre os reis e os
homens de Letras, entre os conquistadores e os filósofos. En-
fim, a história da natureza é aquela das inumeráveis produções
que se observam, e forma uma quantidade de especialidades
quase igual ao número dessas diversas produções. Entre essas
diferentes especialidades, deve-se colocar com distinção a
história das artes, que não é nada mais do que a história dos
usos que os homens fizeram das produções da natureza, para
satisfazer às suas necessidades ou à sua curiosidade.

Estamos longe ainda, como se pode ver, da História processo,


dirigida pelo progresso. Não há, para d'Alembert, uma História,

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CRER EM HISTÓRIA

mas histórias: aquela que se refere a Deus, aquela (civil ou literá-


ria) que tem o homem por objeto, a história da natureza e, enfim,
uma história das Artes. Para a história do homem e de suas ações,
d'Alembert acrescentava estas precisões:

Não nos basta viver com nossos contemporâneos, e domi-


ná-los. Animados pela curiosidade e pelo amor próprio, e
procurando com uma avidez natural abraçar simultanea-
mente o passado, o presente e o futuro, nós desejamos, ao
mesmo tempo, viver com aqueles que nos seguirão e ter
vivido com aqueles que nos precederam. Daí a origem e
o estudo da História, que nos unindo aos séculos passados
pelo espetáculo de seus vícios e de suas virtudes, de seus co-
nhecimentos e de seus erros, transmite os nossos aos séculos
futuros. É aí que se aprende a estimar os homens senão pelo
bem que eles fazem, e não pelo aparato imponente que os
cerca: os Soberanos, esses homens suficientemente infelizes
para que tudo conspire a lhes esconder a verdade, podem
eles mesmos se julgar previamente a esse tribunal íntegro e
terrível; o testemunho que oferece a História àqueles seus
predecessores que se lhes assemelham é a imagem do que a
posteridade dirá deles.

Dessa forma, ele reafirmava as virtudes do modelo da historia


magistra vitae, insistindo no seu papel de união entre passado e pre-
sente, mas também entre presente e futuro: a História nos une aos
séculos passados e transmite o que nós somos aos séculos futuros.
Sua função tradicional de espelho ou tribunal, para os príncipes,
antes de tudo, era igualmente lembrada. Olhando-se nesse espelho,
o soberano pode reconhecer de antemão como a posteridade o verá
e, portanto, agir de acordo.
Impressionante é, pois, o caminho percorrido entre d'Alembert
e Larousse, num século em cujo curso a História emergiu como a
força dominante e conceito central (Grundbegriff) ou ainda regulador
do mundo moderno. Reinhart Koselleck retraçou seu surgimento
e seguiu o seu desdobramento na Alemanha desde o final do século
XVIII. Ela se torna um singular coletivo (a História), sujeito dela
mesma, intermediária entre o passado e futuro. Por transferência de

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AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

sacralidade, aplicam-se-lhe epítetos divinos (poder, justiça, sabedo-


ria) e, sobretudo, tornamo-nos responsáveis diante dela.* Novalis
aparece como um testemunho principal dessa transformação quando
lança esses preceitos aforísticos em seus rascunhos: “O tempo é o
mais certo dos historiadores”, “A história engendra a si mesma”;
ou, ainda mais impressionante, essa observação segundo a qual não
existe história “senão apenas quando se observa o encadeamento
secreto do que foi e do que será e que se aprende a compor a his-
tória a partir da esperança e da lembrança”.º
Já se encontram aí, de
fato, os componentes do conceito moderno de história: o tempo
como ator e agente, assim como a distância, que se cava, entre o
campo de experiência (a lembrança) e o horizonte de expectativa (a
esperança), lá onde justamente se engendra, por assim dizer, o novo
tempo histórico. Donde a constatação de Schopenhauer, em 1819:
“É somente pela história que um povo se torna completamente
consciente de seu ser”.º Antes de chegar, em 1845, às formulações
de Marx e Engels na Ideologia alemã: “Nós conhecemos apenas uma
ciência, a ciência da história”. E aos dois compadres cabe acrescen-
tar, para que ninguém se iluda, que até aquele dia os alemães jamais
haviam tido “um historiador”! Perdidos no idealismo, eles foram
incapazes de dar à história sua base materialista. Quando se pensa
no que era então a história na Alemanha, a provocação era de peso!
Voltando para o lado francês, aquele que, no início do século XX,
pode encerrar esse breve panorama da tomada do poder pela história
é Charles Péguy. Deplorando a meio século de intervalo justamente
aquilo de que se felicitava Pierre Larousse, Péguy é, de fato, o autor
que, entre o caso Dreyfus e sua morte no campo de batalha em 1914,
mais escreveu sobre a história e contra a história — aquela, pelo menos,
que então triunfava na Sorbonne e a qual encarnava, aos seus olhos,
esse trio infernal que reunia Emest Lavisse, Charles-Victor Langlois e

* KOSELLECK, 1997, p. 93-94.


* KOSELLECK, 1997, p. 48 (para as duas primeiras citações); KOSELLECK, 1990,
p. 310 (para a terceira).
º KOSELLECK, 1997a, p. 72.
7 KOSELLECK, 1997a, p. 67.
CRER EM HISTÓRIA

Charles Seignobos, os mestres da história metódica que ele perseguiu


em sua vingança e em seus sarcasmos. Polemista temível, por certo,
Péguy é também o pensador que não cessou de refletir sobre o con-
ceito moderno de história, quer dizer, esta Clio, a dos modernos, na
qual ele havia reconhecido “a mestra do seu mundo”. Não mais sob
os traços da velha história magistra vitae, fornecedora de exemplos a
imitar ou a evitar, mas sob aqueles de uma imperiosa magistra mundi,
da qual eles se proclamavam os zelosos servidores.” Contra o Renan
de O futuro da ciência (L'Avenir de la science), que é, para ele, a própria
encarnação do moderno, escrevia: “Uma humanidade tornada Deus
pela total infinidade de seu conhecimento, pela amplitude infinita
de sua memória total, esta ideia está por toda parte em Renan; ela
foi realmente o viático, a consolação, a esperança, o ardor secreto,
o fogo interior, a eucaristia laica de toda uma geração, de toda uma
leva de historiadores, da geração que no domínio da história inau-
gurava justamente o mundo moderno”? O ideal de exaustividade,
proclamado por essa leva de historiadores, modesto em aparência, é,
na realidade, hiperbólico, pois eles não ambicionam, no fundo, nada
menos do que duplicar ou refazer a criação. A ponto de o historiador
moderno se fazer “semi-inconscientemente, semicomplascentemente,
ele mesmo um Deus”.!º

Crer e fazer
Quem faz a história? A questão não é anódina, pois, da res-
posta que se lhe dá, decorrem, como veremos, maneiras diferentes
de crer em história.
Desde a Bíblia, o deus de Israel é o único mestre da história.
Crer em história é reconhecer que ela é feita das intervenções dele,
diretas ou indiretas, uma vez que se reconhece que ele faz com que

* Péguy voltou, em vários textos, ao que ele chama “a situação posta à história nos
tempos modernos”. Entre eles, De la situation faite à Phistoire et à la sociologie dans
les temps modemes (1906), também Zangiwill (1904), Clio, Dialogue de Phistoire et de
V"âme paienne (1913).
º PÉGUY, 1992, I; 1987; 1904, p. 1416.
10 PÉGUY, 1904, p. 1401.
AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

até mesmo os inimigos de Israel sirvam à realização de seus desíg-


nios. Assim, Ciro, o rei dos Persas, que tomou Babilônia e permitiu
o retorno dos hebreus, pode ser designado como “o ungido do
Senhor”, na medida em que ele foi, sem o saber e sem o querer,
seu instrumento. Todo o esforço de Bossuet, em seu Discurso sobre
a história universal (Discours sur Phistoire universelle), tenderá ainda a
fazer compreender ao delfim que é preciso lembrar ao mesmo tempo
que “esse longo encadeamento de causas particulares, que fazem e
desfazem os impérios, depende das ordens secretas da Providência”,
e que aqueles que governam fazem sempre outra coisa diferente do
que acreditam fazer. É por isso também que “tudo é surpreendente
quando se olha apenas as causas específicas, e, no entanto, tudo
avança numa sequência estabelecida”. Dois séculos mais tarde,
Hegel retoma a questão e reformula a resposta, nomeando a distância
entre o particular (a ação individual) e o geral (o desdobramento da
Ideia de) “astúcia da razão”;? porém, tudo mudou, pois a História
se tornou ela mesma a verdadeira doutrina da salvação.'*
Assim, segundo essas perspectivas (e a despeito de suas dife-
renças), o homem contribui para o fazer história: uma história que
por certo lhe escapa, mas que não por isso precisa menos de seu
concurso para se realizar. E, no fundo, quanto mais ele sabe disso,
melhor ele a faz, pois assim está devidamente advertido de seus limi-
tes e de suas ignorâncias. A essa primeira resposta, acrescenta-se uma
segunda e de sentido contrário, aquela que, desde o Renascimento,
pelo menos, reconhece cada vez mais o indivíduo como actor de si
mesmo e de suas obras: autor e ator de si — ambição que conduz
à visão de uma história feita pelos grandes homens, dos quais, na

" Isaías, 45, I. Ver também 44, 28: assim disse Javé: “Eu, que digo a Ciro: meu pastor
que cumprirá minha vontade / e dizendo de Jerusalém: será edificada / e do templo:
será fundado”.
2 BOSSUET, 1966, p. 427-428.
à HEGEL, 1963, p. 37.
“ Em vários de seus livros, Marcel Gauchet reconheceu e analisou a “condição his-
tórica” do homem moderno, mais recentemente nos três volumes de L'Avênement
de la démocratie (2007-2010).
CRER EM HISTÓRIA

época moderna, Napoleão será o caso exemplar, incessantemente


escrutado, quer ele venha a confirmar, contrariar ou nuançar essa
convicção alojada no coração do projeto moderno. E é assim que
chegamos à fórmula do historiador alemão Heinrich von Treitschke,
qualificada por Fernand Braudel de unilateral e de orgulhosa: “Os
homens fazem a história”.'* Precisando que “os homens fazem sua
própria história”, mas em condições que eles não escolheram, Marx
unia, no fundo, as duas abordagens, enfatizando claramente o fazer.'é
Da mesma maneira, Jean Jaurês situou sua História socialista da Re-
volução francesa (Histoire socialiste de la Révolution française) sob a dupla
invocação de Marx e de Plutarco.
Por breve que seja, esse panorama basta para marcar o nexo que
existiu entre crer e fazer: crer em história e crer que se faz história."
O fazer é uma modalidade do crer. E quanto mais se faz ou mais se
crê que se faz, mais se crerá em história. O inverso, de resto, não é
verdade: crer que não se faz história, ou pouco, ou apesar de si e sem
saber o que se faz realmente, não destrói por isso a crença em histó-
ria — que se a nomeie antes, então, como desígnios da Providência,
destino, marcha acelerada do progresso, avanço da decadência ou
surgimento da Revolução. Pois essa última foi a figura mais forte da
crença moderna em História até se tornar, durante algum tempo, o
seu nome e seu conceito: a História, quer dizer, a Revolução. Ela
pôde ser concebida seja como esse telos que chegará na sua hora e
que dificilmente se pode apressar, seja como a ocasião (kairos), tanto
para aproveitar quanto para ser provocada por uma vanguarda, de
“forçar” o tempo. Ela é sequência lógica ou ação direta, dependendo
se for marxista ou leninista. No segundo caso, a parte reconhecida ao
fazer, à ação direta (de uma elite), é evidentemente maior.
Em Guerra e paz, Tolstói expôs e explorou ao máximo a dis-
junção entre o crer e o fazer, voltando, 50 anos depois dos fatos, à

5 BRAUDEL, 1969, p. 21. “São os indivíduos, os homens que fazem a história,


homens como Lutero, Frederico o Grande e Bismarck”, martela Treitschke. “Esta
grande e heroica verdade será sempre justa”.
'º MARX, 1994, p. 437.
“ Sobre o caráter exequível da história, ver a esclarecedora perspectiva de Christophe
Bouton, “Ce sont les hommes qui font Vhistoire. Sens et limites de la faisabilité
de Vhistoire” (cf. BOUTON; BEGOUT, 2011, p. 255-269).

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AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

campanha da Rússia. Napoleão crê que ele faz a história, quando


na verdade não é assim; na melhor das hipóteses, ele atua no “seu
papel fictício de chefe supremo”.'* Koutouzov sabe que ele não a
faz e não tem a pretensão de fazê-la, mas sabe, contra a opinião de
seus próprios generais, que não cessam de deplorar sua senilidade,
que a batalha de Borodino é de fato uma vitória russa e que, para
completar, é indubitável que os franceses, em debandada geral, foram
fortemente vencidos. Em primeiro lugar, por eles mesmos. Por que
o príncipe André é um dos raros a lhe depositar confiança? Porque
Koutouzov, por sua “falta de personalidade”, tem a “capacidade de
contemplar os acontecimentos com toda a serenidade”. “Ele com-
preende que existe algo mais forte, mais poderoso que sua vontade
pessoal, a saber, o curso inelutável dos acontecimentos”. Uma vez a
Rússia liberta, Koutouzov, que encarnava a guerra popular, não tem
mais nada a realizar. “Não lhe restava senão morrer. E ele morreu”.?
Tolstói estima que a história é um assunto muito sério para
ser deixado aos estados-maiores, aos supostos grandes homens e aos
historiadores. Aos planos de uns e às narrativas dos outros, escapa
totalmente o que efetivamente se passa no campo de batalha. A
história não deixa por isso de existir, pois ela é “a vida inconscien-
te, geral, gregária da humanidade”.* Ela é regida, afinal de contas,
pela “lei da fatalidade”, à qual se acrescenta “esta lei psicológica que
estimula o homem que realiza o ato menos livre a imaginar, mais
tarde, toda uma série de deduções que lhe permitem demonstrar a
si mesmo que é livre”.2 O epílogo do romance é uma meditação
sobre os impasses da história moderna, enredada que ela está entre o
indivíduo histórico percebido tanto como “produto de seu tempo”
quanto criador dos acontecimentos.”

is TOLSTÓI, 1952, p. 1024,


1º TOLSTÓI, 1952, p. 973.
2» TOLSTÓI, 1952, p. 1448.
2“ TOLSTÓI, 1952, p. 792.
2 TOLSTÓI, 1952, p. 1620.
3 TOLSTÓI, 1952, p. 1563.
CRER EM HISTÓRIA

Meio século depois, Oswald Spengler, que pertence à geração


de 1918 (como Paul Valéry e Amold Toynbee),* retoma a questão,
mas no terreno da filosofia da história. A decadência do Ocidente, sua
obra mais famosa, foi publicada em julho de 1918, mesmo que, pre-
cisão sua, o título já estivesse estabelecido desde 1912. O sucesso foi
considerável, primeiro na Alemanha, mas não somente. Spengler crê
em história? Seguramente, e todo o desafio da sua reflexão é extrair
a sua “lógica”. Não pelo prazer intelectual de colocar em ordem o
passado da humanidade, mas para tentar, “pela primeira vez”, orgu-
lha-se, uma “predeterminação da história”. Seu livro pretende-se,
de fato, uma “filosofia do destino”. Ele se abre sobre uma questão
urgente que os europeus se colocavam, sob diferentes formas, naqueles
anos de crescente inquietação. Onde está então a cultura ocidental
e o que há diante dela? Para responder, ele empreende um longo
desvio que visa estabelecer uma morfologia da história universal, co-
locando a nu sua “estrutura orgânica”, que é a mesma sempre e em
toda parte. Pois, como tudo o que é vivo, as culturas, que devem ser
vistas como mônadas, crescem, florescem e declinam. A essa última
fase, inevitável, Spengler chama “civilização”. Independentes umas
das outras, as culturas sempre percorreram esse ciclo. A esse ponto,
é necessário, diz ele, introduzir um instrumento de comparação, a
saber, a analogia, que é “o meio de compreender as formas vivas”.
A partir de então, combinando visão orgânica e analogia, Spen-
gler pode estabelecer amplos sincronismos entre culturas diferentes
e reconhecer, assim, “épocas políticas contemporâneas” umas das
outras. Assim vai do período 1800-2000 da cultura ocidental e da
passagem do período helenístico ao período romano. Alexandre e
Napoleão representam as figuras iniciadoras. Existe, para Spengler,
“simultaneidade” dos dois períodos, em função do que para ele é a
“lógica do tempo”: uma simultaneidade não estritamente cronoló-
gica, mas morfológica. A evolução do Ocidente tem, portanto, seu

* MARROU, 1954, p. 14.


3 SPENGLER, 1948, p. 15.
2 SPENGLER, 1948, p. 16.
AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

correspondente perfeito na Antiguidade.” Ainda que se considerando


atento ao “devir”, invocando a morfologia, cujo conceito ele em-
presta de Goethe, Spengler é conduzido a uma destemporalização
do tempo da história moderna, ou é, na verdade, guiado por uma
rejeição ao regime moderno de historicidade, ou seja, dessa maneira
de apreender o tempo como aberto ao futuro e levado pelo progresso.
O que sugere essa primeira analogia, ao mesmo tempo a mais
imediata e a mais importante, entre a Antiguidade e o momento
presente? Ela permite responder à questão, certamente a que se co-
locavam prioritariamente os leitores que, no verão de 1918, precipi-
taram-se sobre esse grosso livro pouco digesto: “Onde estamos? E o
que nos espera?”. Ao que Spengler responde essencialmente: “Não há
o que temer, o momento atual já aconteceu várias vezes no passado”.
Portanto, nem esperança insensata nem tentação apocalíptica. Pois o
presente é uma “época civilizada”, e não “cultivada”. Sendo a civili-
zação a fase de decadência de uma cultura, isso impõe limites ao que
se pode conceber e empreender: “Nós temos que contar com os fatos
duros e severos de uma vida tardia”. E chega à sua conclusão: “Eu
considero minha doutrina como uma graça para as gerações futuras,
pois ela lhes mostra o que é possível, e portanto necessário, e o que
não pertence às possibilidades do tempo”. Ela é a filosofia verídica
da época. Essa história-destino está bem longe da história vista pelo
conceito moderno de história, mas ela se pretende autoridade, ainda
mais absoluta, pois tudo tem o seu lugar predeterminado na biografia
desse grande organismo que é a história universal. O possível é, pois,
também necessário; melhor conhecê-lo e mais vale consenti-lo. Essa
realidade, podemos, se realmente o quisermos, nomeá-la do nome
equívoco, diz ele, de liberdade. Nenhuma surpresa, portanto, se
ao final de seus dois espessos volumes, Spengler não tenha nada de
melhor a propor do que uma forma (elucidada de outra maneira,
mas não renovada) da antiga posição estoica, citando Sêneca: “O
destino conduz pela mão quem lhe obedece, leva à força quem lhe
resiste” (ducunt volentem fata, nolentem trahunt).

” SPENGLER, 1948, p. 38.


* SPENGLER, 1948, p. 52.
CRER EM HISTÓRIA

Fazer a história, fazer história, escrever a história


Quando Chateaubriand, recapitulando o que foram suas di-
ferentes carreiras, nota: “Eu fiz história e eu a podia escrever”, ele
quer dizer: eu desempenhei um papel político, “eu assinei tratados e
protocolos”, eu fiz a história e estou, portanto, na posição de escre-
vê-la. Hoje, a expressão: “Eu faço história” quer dizer banalmente
“Eu me tornei historiador”: eu aprendi história em meus estudos,
concursos e diplomas me conferiram uma credencial, e minha pro-
fissão é fazer história sobre tal ou tal período ou de tal ou tal tipo.
Entre o sentido de ontem e o de hoje, houve todo o movimento de
institucionalização e profissionalização das disciplinas, no qual a his-
tória desempenhou um papel de destaque. Mas, atualmente, aquele
que faz história não tem a mínima pretensão de fazer a história. Ao
contrário, ele renunciou às lições e às previsões, ele não aconselha,
não julga, ele busca, como disse e repetiu, simplesmente conhecer
e compreender. Ao serviço da história, entendida como ciência do
passado, ele não pretende ser, sustentou Fustel de Coulanges, mais
do que um “escavador de textos”. Que este ideal, insustentável,
não tenha de fato se sustentado não é o que importa aqui.
O que indica essa nova definição do fazer história em relação
ao crer? Cremos ainda que se pode fazê-la? Por quem e como? Não
surpreende que as respostas sejam diferentes. Alguns historiadores
se dedicaram a mostrar que sim, outros que não, ou bem pouco.
Sem surpresas, reencontra-se a grande divisão entre os defensores
dos grandes homens e os partidários dos movimentos coletivos e das
forças profundas e, entre os dois, todas as posições intermediárias.
Para simplificar, existe de um lado a história política, diplomática,
aquela que Paul Valéry criticava e que se praticava na Academia;
e, de outro, aquela que nos anos 1930 procurava se impor, uma
história econômica e social, aquela que, a partir dos anos 1950,
tornar-se-á com Fernand Braudel a história de longa duração, e
mesmo da muito longa duração e sobre a qual os homens tiveram,
afinal, pouco controle. Essa história “pesada”, que vai da economia

» HARTOG, 2001, p. 152-155.

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AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

às civilizações, passando pelas instituições e arquiteturas sociais, não


deve intervir, precisa Braudel, somente como um “pano de fundo”,
diante do qual evoluem “indivíduos excepcionais em torno dos
quais o historiador se demora com complacência”.*
De todo modo, essas dúvidas sobre o caráter exequível da histó-
ria não implicam em nenhum questionamento da crença no poder e
na presença da história. Talvez ela tenha até conhecido nesses anos,
entre 1950 e 1975, uma nova idade de ouro? Como se, quanto mais
crescesse a dúvida sobre nossas aptidões em fazer a história como
atores (tendo em conta o meio século precedente), mais o fazer
história ganhava em capacidade de explicação e em legitimidade, na
universidade assim como entre o grande público. Menos a história
era imediatamente inteligível, mais o acontecimento não passava de
uma superfície, e mais era preciso, de fato, ir buscar profundamente
as boas explicações. Por sua mediação especialista, o historiador
estava à altura de tornar visíveis as boas razões para crer em história
ou na história, fazendo espelhar a alteridade do passado. Em uma
história que certamente não era mais mestra da vida, nem mesmo
a mestra do mundo moderno, mas que, a exemplo da vida e tão
evidente quanto ela, era o movimento profundo das sociedades e o
seu meio natural. Ao historiador, homem dos arquivos e das séries,
cabia apreendê-la em suas estruturas e suas complexidades, em seus
vagares e sobressaltos, em suas rupturas e persistências, em vista de
compreender as injunções. De fato, o momento do estruturalismo
correspondeu aos grandes anos do fazer história, com seus muitos
mal-entendidos.
Alguns, particularmente, acentuando o verbo “fazer”, puderam
então crer ou fazer crer que o historiador, fazendo história, fazia
a história, no sentido de que ele a fabricava. Não mais, portanto,
como outrora, no sentido do grande homem que faz a história,
ou mesmo do historiógrafo colocando-se no lugar do príncipe,
mas em um sentido de “fazer” ao mesmo tempo novo e muito
antigo: o de forjar, fabricar, criar. Se escrever é fazer, escrevendo
o historiador também faz. Convinha então tomar a medida do que

* BRAUDEL, 1969, p. 23.

21
CRER EM HISTÓRIA

escrever história queria dizer, e foi ao que se dedicou Michel de


Certeau.” “Fazer” pôde, assim, reencontrar o sentido do verbo
grego poiein (fazer no sentido de forjar). Quando, na sua Poética,
Aristóteles opunha o poeta trágico que “fabrica” um muthus, uma
narrativa, ao historiador que deve se contentar em dizer o que se
passou, ele fazia da ação de “fazer” um discriminante entre os dois.”
Um “faz”, outro “diz”. Mas desde o instante em que questionamos
essa divisão demasiado simples, em que nos interrogamos sobre o
que se espera do “dizer o que se passou”, do ato de colocá-lo em
palavras e de lhe dar uma forma, abre-se a possibilidade de outras
poéticas da história.
Existiram várias, até aquela, pós-moderna, da qual o historiador
norte-americano Hayden White se tornou o epônimo logo depois
da publicação, em 1973, de seu livro, renomado e discutido, Meta-
história” Mas, conferindo um sentido forte ao fazer como poiein,
perscrutando sempre mais a história como escrita, corria-se o risco
de queimar ou de suprimir a fronteira entre narrativa de ficção e
narrativa sobre o real. Pois sobre o real ou o referente, não ine-
xistente, mas inatingível, não se podia finalmente pronunciar-se.
Colocava-se então entre parênteses a crença habitual em história.
Contra a história positivista, a história ciência, e também bem
burguesa, era preciso empreender um trabalho prévio de desmiti-
ficação. Não para demolir a história, para contestar que ela pudesse
trazer o mínimo conhecimento, mas para fazê-la passar para o lado
certo, o da literatura e da arte. Para Roland Barthes, “somente”
o estruturalismo, porque ele estava “consciente, num alto grau, da
natureza linguística das obras humanas, podia recolocar o problema
do estatuto linguístico da ciência”. Essa posição epistemológica
podia muito bem ir de par com uma fé em uma história futura,

* DE CERTEAU, 1975. Note-se que ele, contudo, nunca sustentou, nem mesmo
deu a entender que a história não era mais do que um jogo de escrita.
* Ver infra, Capítulo 2, p. 110-111.
º WHITE, 1973.
* WHITE, 1978, p. 23.
* BARTHES, [1967] 1984, p. 20.

22
AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

abrindo um horizonte revolucionário. O trabalho de desmitificar


os escritos burgueses podia até ser visto como uma contribuição a
esse advento.
Resta uma última questão, a do sentido da história. Crer em
história implica em crer que ela tem um sentido? Evidentemente,
não. A perda de sentido a torna mais obscura, mais ameaçadora,
mas não menos presente. Na Europa, o sentido da história não
resistiu aos desafios e aos crimes do século XX — que se entenda
por sentido, significado, realização, ou simplesmente direção — e,
com ele, deteriorou-se a noção de história universal que o primeiro
século XIX havia elevado a tão alto grau. Sentido da história, mas
também sentido do homem ou da cultura. Basta nomear Heidegger,
Freud ou Valéry. Da guerra de 1914, com seus milhões de mortos,
suas imensas e intermináveis batalhas, suas ruínas e convulsões que
se seguiram, surgiram seu durável e multiforme questionamento,
mas também reafirmações brutais, seguras de si e imensamente
mortíferas. As consequências da Segunda Guerra Mundial, mais
exatamente o que se seguiu (com todo o trabalho de memória que
se pôs em movimento), levaram ao limite as interrogações sobre a
Sinnlosigkeit da história: sua ausência fundamental de sentido ou a
perda de todo o sentido.” Quanto à “ilusão” comunista, sobre a
qual François Furet interrogou-se apaixonadamente, ela terminou
com a queda da União Soviética (URSS). “Ela era, por excelência,
o investimento psicológico total na história, para realizar a salvação
da humanidade e a salvação do homem”.*
Se a história jamais teve ou não tem mais sentido, pode-se fa-
zê-la ou crer que se a faz? Sim, desde que se admita que existe uma
distância entre o que se acredita fazer e o que se faz efetivamente,
que o resultado possa até ser o contrário daquele que se esperava
etc. Enfim, o desaparecimento da Providência, a astúcia da razão, de
uma figura ou outra do destino não modifica radicalmente as coisas.
Há, dia após dia, decisões a tomar e ações a empreender, projetos

* KOSELLECK, 1997b, p. 319-334.


” FURET, 2012, p. 42. Sobre o crer e o fazer crer comunista, cf. Desanti (1982, p.
31-45).

23
CRER EM HISTÓRIA

louváveis ou menos louváveis a conduzir, cujos efeitos temos difi-


culdade de avaliar, e menos ainda, os efeitos dos efeitos. Os efeitos
perversos ou os efeitos-dominó tornaram-se o cotidiano de nossos
noticiários nesses anos de crise. Quanto ao fazer história, ele pode
se acomodar tanto à crença como à descrença em um sentido da
história. O historiador não precisa se pronunciar. De todo modo,
permanece o trabalho de identificar as regularidades, apreender
as continuidades ou atualizar as fendas, as roturas; de enfatizar, de
acordo com os momentos, uma história mais atenta às séries e à
continuidade ou mais interessada pelas rupturas e o descontínuo; de
privilegiar os modelos socioeconômicos ou a abordagem biográfica;
e de colocar e recolocar, de novo e de novo, a questão da mudança
na história e em história.

A história hoje: de Clio a Mnemosine


Diríamos, ainda hoje, que a história é a “mestra” do nosso
mundo ou a “rainha das consciências”? A profecia de Larousse não
está muito na moda, e não ocorreria a ninguém, nem mesmo ao
historiador mais entusiasta, a ideia de lhe atribuir um lugar análogo
ao da teologia, quando, nos seus melhores dias, ela fornecia seus
princípios de inteligibilidade a sociedades ainda religiosas. A inteli-
gibilidade do mundo atual, supondo que se acredite nela, mobiliza
outros quadros de referência. Imaginemos, por um instante, um
Paul Valéry escrevendo hoje Olhares sobre o mundo atual (Regards sur
le monde actuel); que paisagem ele faria surgir, em seu esforço “de
perceber apenas as circunstâncias as mais simples e as mais gerais,
que fossem ao mesmo tempo circunstâncias novas “28 Um ataque
sistemático contra a história como “o produto mais perigoso que
a química do intelecto elaborou”? seria tão inusitado quanto um
alerta contra os perigos de se deixar “seduzir pela História”. Não,
lhe diríamos, já faz tempo que não estamos mais nesse ponto!

38 VALÉRY, 1960, p. 923.


9 VALÉRY, 1960, p. 35.

24
AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

Lembro-me, aqui, dessa frase de Michel de Certeau, traduzindo


a experiência dos místicos do século XVII, que ele estudava: “Uma
tradição se afasta: ela se cala em passado”.* Eis uma outra maneira de
formular a questão em torno da qual gravita este livro. A história, essa
na qual o século XIX acreditou, essa que se instalou como o poder
reitor e a reserva de sentido ou de não-sentido, está se afastando de
nós e se calando em um passado, em uma noção ultrapassada, caduca.
É provável que o imperioso conceito, tal como Koselleck o discerniu,
tenha perdido bastante de sua aura. A sacralidade, o futuro, a história
como ação, e mesmo como singular coletivo, são-lhe todas caracterís-
ticas constitutivas, cuja evidência foi corroída ou desintegrada. Com
o fim do século XX, a história parece ter passado de toda poderosa
a impotente. Por certo, seus altares são frequentados, mas seus servi-
dores, muitos pelo mundo, dão às vezes a impressão de ter pedido a
fé, de realizar os gestos e pronunciar as palavras, de fazer seu trabalho
conscienciosamente, até mesmo com paixão, multiplicando os obje-
tos de história. Tudo é história e podemos fazer as histórias de tudo.
Mas o que quer dizer que tudo é história? Evitamos colocar muitas
questões. Aliás, ninguém pergunta. Não dizia Péguy, zombando, que
um historiador “que permanecesse preso a uma meditação sobre a
situação posta à história não faria avançar essa história. |...) De uma
maneira geral, mais vale que um historiador comece por fazer história,
sem se demorar tanto tempo”?* A ideia continua atual.
Quem lhe lançou o golpe mais rude foi a progressiva transforma-
ção de nossas relações com o tempo, do futuro em direção ao presente:
a oclusão do futuro e essa ascensão de um presente onipresente, que
eu nomeei presentismo.*” Com esse paradoxo, apontado por Marcel
Gauchet: o futuro desaparece do horizonte, ao passo que nossa capa-
cidade de produzi-lo “multiplicou-se” como nunca. Mais ainda do
que imprevisível, ele se tornou “infigurável”. “Ele é o desconhecido
em direção ao qual nos dirigimos numa velocidade acelerada e com

*“ DE CERTEAU, 1982, p. 41.


“ PÉGUY, 1988, II, p. 494.
* HARTOSG, 2012.

25
CRER EM HISTÓRIA

meios sempre maiores, sem que nos seja solicitado refletir sobre isso.
Pois não é simplesmente que ele não tenha mais feição identificável,
é que ele não representa mais um polo de identificação coletiva re-
metendo a uma responsabilidade assumida em comum”.*
Ora, a história, aquela do conceito moderno de história, era
estruturalmente futurista. Pois ela era uma maneira de designar a
articulação de duas categorias do passado e do futuro, o nome mo-
derno da sua sempre enigmática relação. Ela era conceito de ação e
implicava a previsão. Em nossas sociedades, a ascensão da memória,
ao longo dos anos 1980, foi um forte indício desses deslocamentos.
À Clio sucedeu sua mãe, Mnemosine: Memória, a mãe das musas. A
“vaga memornialista” pouco a pouco invadiu, recobriu o terreno da
história. Ao menos foi assim que se buscou dar conta do que estava
acontecendo: passa-se da história à memória, pois a memória trans-
forma a história, antes que a história busque recuperar o controle,
apresentando-se como história da memória. Ao longo desses anos,
a memória tornou-se a noção cardinal de nossos discursos públicos
e privados, como também o termo mais abrangente. A literatura
apropriou-se dela de maneira cada vez mais insistente. Para não citar
mais do que um exemplo, a obra inteira de Jorge Semprun, falecido
em 2011, situa-se sob o signo da memória, “o ferro em brasa da me-
mória”.* Fala-se, doravante, mais voluntária ou espontaneamente de
memória do que de história; as mídias e os políticos pôem-se a fazer
grande uso dela; empreendem-se políticas memoriais, votam-se as
leis ditas memoriais; reivindica-se o direito à memória e se faz valer
esse direito, nos magistrados e parlamentos, o dever de memória.
Notemos, desde já, que o avanço da judicialização de nossas
sociedades e a ascensão da memória andam de par. Assim como o

8 GAUCHET, 2005, p. 39.


“É justamente o título do volume publicado em 2012, pela coleção Quarto, da
Gallimard, Le Fer rouge de la mémoire, reunindo cinco romances e varia publicados
por Semprún entre 1963 e 2001. A expressão “ferro em brasa da memória” é do
próprio Semprún: ela foi tirada da Autobiographie de Federico Sanchez: “Que assim
seja, eu continuarei a desvelar esse passado, a atualizar suas feridas purulentas, para
cauterizar com o ferro em brasa da memória”.

26
AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

constatava o velho Aristóteles, na sua Retórica, o discurso judiciário


reporta-se ao passado, enquanto o discurso deliberativo, aquele que
se pronuncia em uma assembleia, reporta-se ao futuro, e o terceiro
gênero, o discurso panegírico, inscreve-se no presente.” A justiça
e a memória têm a ver com o passado e são, uma e outra, maneiras
de convocar o passado no presente. A justiça ordinária tem absoluta
necessidade da memória, mas muito menos da história. Ela não faz
história. Mas lhe acontece de fazer a história.
É possível que o sinal mais evidente do questionamento da
crença em História, aquela do conceito moderno de história, tenha
se manifestado, desde 1945, com o tribunal de Nuremberg? Aí,
pela primeira vez, os vencedores, de fato, tomaram a decisão de
Julgar a História,* destituindo-a ao mesmo tempo de sua função de
tribunal do mundo. Pela definição do crime contra a humanidade,
que introduz no direito a temporalidade inédita do imprescritível, a
velha Clio de Péguy torna-se passível de ser julgada. Eis então que
ela tem contas a prestar, hoje e amanhã ainda — o que Péguy não
podia imaginar: ela não pode se contentar em “enganar” o tempo.
Pois aqueles que a fazem são menos responsáveis diante dela do
que se tornam responsáveis por ela: do que fizeram, de seus crimes.
Uma tal transformação não podia deixar de ressoar, pouco a pouco,
sobre o fazer história em si. Se o historiador não pode ser tomado
por diretamente responsável pela história, do que ele pode ser res-
ponsável? Ele deve se aproximar do juiz? Fazer, às vezes, função de
juiz de instrução, depor em tribunal, transformar-se em especialista?
Ou então, dir-se-á, reencontrando a antiga expressão de Dionísio de
Halicarnasso, de que a história é uma “filosofia a partir de exemplos”:
uma filosofia moral ilustrada?” Da mesma maneira que vimos se
desenvolver, nos anos 1980, a noção de vicarious witness, aquele que
é uma testemunha não direta, mas de segundo grau, delegada ou
substituta, o historiador se torna, ele também, uma testemunha de

º Ver infra, Capítulo 2, p. 111-112.


* GARAPON, 2008b, p. 10. Depois de Nuremberg, houve o de Tóquio, os tribunais
penais pela ex-Iuguslávia, o de Ruanda e, enfim, a Corte Penal Internacional em 1998.
” HARTOG, 1999, p. 21.

27
CRER EM HISTÓRIA

testemunha ou, de maneira mais ampla, um porta-voz daqueles aos


quais ele se dirige? Em todo caso, terá sido necessário mais de meio
século para que se desdobrassem todas as transformações trazidas
por Nuremberg e para que nossas sociedades se dessem conta disso.

Este livro, como todos os meus livros, não surgiu do nada. Ele
prolonga um trabalho precedente, Evidência da história: o que os histo-
riadores veem,* que, partindo da Antiguidade, terminava justamente
no recente questionamento dessa “evidência” que havia, com o ple-
no desdobramento do conceito moderno de História, conquistado a
disciplina. Ele se apoia também sobre vários de meus textos recentes,
que buscaram melhor apreender, por diferentes meios, nossa con-
juntura e as interrogações que ela suscita. Retomado, transformado,
aumentado, esse primeiro estado do questionário desempenha seu
papel no livro tal como ele pouco a pouco se organizou. Mas logo
percebi que havia um ganho cognitivo em associar a problemática
da evidência aquela, de outra forma ainda mais ampla, da crença.
Pois a História, com um H maiúsculo precisamente, foi um grande,
senão o grande objeto de crença da época moderna. Ela teve seus
crentes, seus devotos e seus mártires, seus heréticos e seus traidores.
Quatro capítulos, separados por um intermédio, interrogam,
portanto, o conceito moderno de história. Sob o título “A ascensão
das dúvidas”, o primeiro capítulo analisa a conjuntura contempo-
ranea: ascensão do presente, avanço da memória, guinada de uma
História que julga a uma história julgada. Retomando de Ricceur a
expressão “inquietante estranheza da história”, o segundo capítulo,
um pouco mais técnico talvez, reabre o debate, ainda próximo,
sobre história, retórica e poética. Ou ainda, em torno do linguistic
turn, sobre as fronteiras entre história e ficção. Ele coloca os desafios
“em dia” por meio das intervenções de dois protagonistas impor-
tantes, Paul Ricoeur e Carlo Ginzburg, concentrando-se sobre seus
usos respectivos de Aristóteles: a Poética para o primeiro, a Retórica
para o segundo. Essa passagem por Aristóteles, frequentemente
retomada ao longo do tempo, coloca, no fundo, a questão muito

* HAR TOS, 2011. Título original: Evidence de Phistoire: ce que voient les historiens (2005).

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AINDA CREMOS EM HISTÓRIAS

antiga da história como gênero: ela é ou não um gênero à parte?


Ela tem, então, um lugar próprio? Na literatura ou fora dela? Essa
questão recorrente foi resolvida — pensou-se, definitivamente — com
a emergência, depois o triunfo, do conceito moderno de História,
que devia fazer enfim abordar a disciplina nos limites austeros, mas
seguros, da ciência. Mas o que acontece desde que esse conceito,
que se acreditou inabalável, perde sua eficácia? Quando a descrença,
senão a incredulidade, vem a se instalar?
Apresentando três alegorias da História, um intermédio amplia
o argumento. Essa rápida projeção, uma incursão no mundo da arte,
descobre outras paisagens e ilumina outras maneiras de representar e
de colocar em questão o conceito de história. A aproximação de três
imagens (a glória de Napoleão representada por Veron-Bellecourt
e os dois Anjos da História — o de Benjamin-Klee e o de Anselm
Kiefer) torna visível a trajetória do conceito moderno de história
entre o início do século XIX e o fim do século XX.
Os dois últimos capítulos prosseguem a interrogação, partindo
de mais longe, a montante no tempo. Eles se prestam a serem lidos
como um todo, explorando o que chamei de “os dois lados”: o dos
escritores e o dos historiadores. O lado dos historiadores entre o
século XIX e o XX, naturalmente. Mas escrutar o conceito mo-
derno de História e as crenças que ele suscitou deixando de lado
o romance seria mais do que insatisfatório. Existem, portanto, dois
lados e, ninguém desconvirá, o caminho traçado pelos romancistas
contou mais em nossas sociedades do que o trabalho dos historia-
dores. Mas o ponto que me importa aqui, o único sobre o qual
eu quis chamar a atenção, é o de seus tratamentos respectivos do
tempo. O que fazem, uns e outros, com o tempo novo, o tempo
que marcha e acelera? Embarcam voluntariamente, ou não, no
trem do tempo; buscam descer dele? Em resumo, como se posi-
cionam em relação ao regime moderno de historicidade? Se todos
o reconhecem e se, de algum modo, se dão conta, os romancistas,
pareceu-me, são os mais “interessados” pelas suas falhas, pelas
discordâncias das temporalidades. Por aquilo que se pode chamar,
com Koselleck, a simultaneidade do não-simultâneo. Quanto aos
historiadores, pelo menos num primeiro momento, eles são mais

29
CRER EM HISTÓRIA

mobilizados pelo futurismo do regime moderno de historicidade,


por essa inteligibilidade que vem do futuro e que ilumina o passado.
O lado dos escritores nos levará de Balzac a Cormac McCarthy.
O dos historiadores, passando rapidamente pelo século XIX, bem
conhecido e sobre o qual eu já tive a oportunidade de escrever em
vários momentos, concentrar-se-á sobre os avatares ou as crises do
regime moderno de historicidade do fim do século XIX até hoje,
e nos seus efeitos sobre o conceito moderno de história. Dúvidas,
incertezas, reformulações (ampliação do questionário, nova história,
outra história, micro-história, história conectada, história global...):
tais serão algumas das atitudes e das proposições observadas.
Entre o nome, o conceito e as práticas da história, há evidente-
mente trocas e circulações. Não é evidente que os questionários e as
maneiras de fazer não repercutam sobre o conceito, mas tampouco
que o conceito não balize o campo das práticas possíveis ou admitidas.
Quanto ao nome, desde que Heródoto o introduziu, ele comporta,
tão bem quanto mal, toda essa carga. Aí está sua tarefa histórica!
Quanto ao historiador, a ele compete colocar um pouco de ordem
na carga, fazer a triagem entre o que ainda pode servir e o que parece
fora de uso. E, se ele tem a sorte de estar no lugar certo no momento
certo, ele pode enriquecer o conceito, mudar a ordem das camadas
sucessivas das quais ele é o resultado, e até mesmo acrescentar uma.
A palavra então, tal como a velha Clio de Péguy, pode prosseguir
a estrada, com sua cesta bem amarrada às costas. Por algum tempo.

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autêntica
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