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NOTA HISTORICA
de Carlos Ervedosa
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NOTA HISTÓRICA
NOTA HISTÓRICA
Era, porém, Aljredo Trony personagem política
juiz de Direito em Benguela e curador dos serviçais
de pouco agrado do governo, que resolve, por isso,
em Luanda. Tendo aqui adquirido larga notoriedade
anular a eleição e transferilo para Lourenço Marques.
pelo brilhantismo da sua inteligência e cultura, pelos
Alfredo Trony demite-se imediatamente das suas fun-
seus sentimentos humanitários combatendo a escra-
ções públicas e monta banca de advogado em Luanda.
vatura e defendendo os indígenas, autor do regula- Anuncia então que fixava indefinidamente a sua resi-
mento da lei que declarou definitivamente extinto o
dência em Luanda, declaração que torna pública no
estado de escravidão, foi, por estes títulos e pelos do
seu Jornal de Loanda. E assim sucedeu até ao dia
seu amor e interesse pelas coisas angolanas, eleito
em que a morte o surpreendeu às quatro horas da
deputado por Angola.» ?
tarde do dia 25 de Julho de 1904, em sua casa, à
Foi por uma extraordinária maioria dos votan-
Caiçada de Santo António, contando 59 anos de idade.
tes que, em 1878, o Dr. Alfredo Trony se viu eleito
«Se como advogado era distinto, profissional-
deputado às cortes por esta colónia. O Boletim Ofi- mente honrado e zeloso na defesa dos interesses dos
cial da época publicava na integra o ofício dirigido
seus constituintes, como político foi homem do seu
pelo presidente da assembleia do apuramento eleito-
tempo, que não evitava conflitos pessoais e políticos,
ral ao governador-geral e do qual transcrevemos as
nem campanhas jornalísticas, e conservou-se naque-
significativas passagens:
les e nestas com aprumo moral e intelectual.» *
«(...) Felicito a província pela escolha do seu
Presidente da Associação Comercial e da Câmara
advogado perante o parlamento e perante os poderes
Municipal por alguns anos, «suas faculdades. boas de
públicos (...) Creio firmemente que o seu proceder,
cidadão e de advogado se reafirmavam em extremos
como deputado, será tal que, nas futuras eleições,
de simpatia e generosidade, que fizeram dele habi-
será o escolhido, e reeleito, por então já se terem
tante muito popular de Luanda e geralmente querido
colhido os resultados da sua inteligência e sensata
de europeus e africanos em toda a província de An-
iniciativa, filha do perfeito conhecimento que tem
gola»s, concluíia o historiador do jornalismo angolano
das colónias, da sua robusta inteligência, da sua
Júlio de Castro Lopo.
actividade, da variadissima leitura que possui e atu-
rado estudo que faz.»*
CARLOS ERVEDOSA
(in Roteiro da Literatura Angolana)
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pés dos gingamba que carregam uma machila, ao irmão e a ela. Que todos comeram, mas
ou pelos gritos estridentes das molecas da a mama soluçava tristemente queixas senti-
vizinhança que apregoam ruidosas bonzo das, iguais às que ouvira quando aconteceu
— ni
massa — ia temá, temá, temá; então a morte do soba. Parecia um tambi.
— ao ver
na casa fronteira o vulto da pequena vende- Que depois disto o irmão da mama a
deira, destacando na sombra do corredor pela puxara pela mão, arrastando-a para fora do
luz avermelhada da candeia de azeite cercado da cubata. E ela seguiu-o muda e
de
palma —, tem uma vaga recordação de outros inconsciente, mas voltando-se, viu a mama
tempos passados numas terras muito longe, com as mãos na cabeça chorando bem triste.
de onde a trouxeram quando era pequena. Andara dois dias, ao fim dos quais chegou
Lembra-se de uma mulher a quem cha- a uma libata onde morava o tio que a levava.
mava mama, enfezada e triste, mas resignada, Pelas conversas que ouviu no caminho, soube
que a levava pela mão para as sementeiras, e que o tio tinha sido condenado no juramento,
que à noite cantava na cubata, amamentando e para pagar o crime a fora buscar à mama,
outro filho mais pequeno, enquanto ela comia pela lei da terra que obriga os sobrinhos a
massa e fijá cozido. pagar os quituxi dos tios.
Lembra-se mais, que um dia se abeirou Depois entregaram-na a um preto grande,
da mãe um preto que era seu irmão, e, depois falando muito, isto diante do soba, que estava
de muito falarem, ele foi deitar-se e adorme- rodeado de homens velhos, debaixo de uma
ceu; € a mama tomou-a então nos braços silen- grande árvore no meio do largo da libata.
ciosa, deixando cair uma lágrima bem quente Recordou-se que lhe tinham amarrado a
sobre o seu rosto. Que ela olhava espantada
cinta com uma corda feita de casca de um
tudo aquilo, mas que por fim adormecera. pau, que sobe pelas árvores grandes e as
Quando saiu o Sol, abanaram-na docemente, cobre, como as cordas que viu no navio em
e ela deparou com a mama, que tinha uma que a levaram mais tarde para Luanda.
galinha na mão que acabara de matar. Cozi- Ainda tem presentes os brutais sofrimen-
nhou-a no fogo, e com o nfungi apresentou-a
tos todas as noites durante a jornada, e os
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Que o muari inquirindo disto, mandara
grandes dentes brancos que lhe mostrava o castigar a preta, e logo que chegou pelo mar
seu dono quando ela chorava e gemia. uma canoa muito grande com umas coisas
Passados muitos dias chegara a uma libata muito brancas estendidas nuns paus lembran-
estranha, onde as casas, todas brancas, eram do as asas de uns pássaros enormes que
muito diferentes das que havia na sua terra, vinham ao rio da sua terra quando começa-
e estavam à borda do mar. vam as chuvas, metera a preta na tal canoa,
Que entrara numa delas onde havia muita e ela ficara sendo a mucama do senhor.
peça de fazenda, e missangas penduradas, e
fora mostrada a um homem em mangas de
camisa, e que a esteve a apalpar e tinha o
ventre muito inchado e um olhar igual ao
reflexo metálico das chapas de cobre que tra-
ziam os pretos de Lunda, que passavam na
sua terra,
Que este homem falou muito com o tio,
e lhe deu muitos panos e um espelho: e que
o tio a deixara ali, e voltara para a terra.
Que a mandaram lavar, e desmanchar-lhe
o lindo penteado seguro pelo ngunde e tacula
que lhe fizera a mama, tirando-lhe as missan-
gas e os búzios e todos os enfeites. Que lhe
vestiram uns panos bonitos, e que.uma preta
que estava em casa e servia ao senhor à mesa,
olhava para ela, iracunda, e a ameaçava com
o olhar, confirmado pelo que lhe dizia às
escondidas, de lhe fazer feitiço.
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— É melhor, é — disse o vizinho com com- não lhe estivera a fazer cócegas, e a Chica
padecimentos hipócritas. — Tu és doente, e em corridinhas, com o pano seguro só num
aquilo não valeu nada. Talvez até nem che- ombro, a fingir-se zangada, batendo-lhe com
gassem a fazer mal. a mão e dizendo catu — ambul
cahomesi —
-— Isso não, que eu vi muito bem... ngamburiami — cambo sonhi —, mas em gran-
— Pois sim, mas no fim de contas nós des gargalhadas? Oh! se tinha visto.
estamos velhos. E depois — fez com uma fin- E depois a Chica não fugiu para a cama-
gida resignação canalha — tudo é o mesmo. rinha e o Serra não foi atrás dela, e fechou-se
Olha, a que eu lá tenho, que tem fama de ter a porta, e lá estiveram um bom bocado, saindo
muito juízo, e sabes que esteve em casa da o Serra primeiro, muito comprometido, e mui-
D. Luísa a aprender, quem sabe o que fará? to corado, olhando desconfiado em volta, e
— Não — disse o patrão com mágoa —, a depois ela, como se não tivesse havido nada,
tua Chica é boa rapariga, todos o dizem. não veio ralhar com uma severidade digna
— Pois sim, eu também disse aquilo só por com a moleca que estava no pátio a brincar
falar. Que, deixa-me dizer-te, coitadinha dela com o preto da loja?! Tal e qual.
se mo fizesse! Mas, meu amigo, eu não como E nessa rápida lembrança que acompa-
miolo de enxergão, não tenho a tua boa fé, nhou o tal olhar, murmurou:
a mim niguém me faz o ninho atrás da orelha. — Que burro!
E Nga Ndreza ao ouvir isto dardejou-lhe Dois dias depois Nga Ndreza já corria
um olhar pelo buraco da fechadura que, se 0 pela varanda e à noite o patrão dormiu muito
vizinho o visse, não falaria tanto. melhor com a fomentação no baço e o con-
Porque ela mais que uma vez pela janela chego da travesseira debaixo do fígado.
do beco tinha surpreendido a Chica na varan- *
da, em brincadeiras com o caixeiro, o Serra, x %
que o vizinho queria fazer sócio —e quando
foi ao Bengo dar balanço à loja que lá tinha, Mas Nga Ndreza andava triste, não tinha
entregue a um degredado, uma vez o Serra filh—o.
As amigas, muito invejosas, diga-se
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a verdade, diziam que talvez fosse dela, mas um canto, tirou um junco e, zás, zás, zás, nas
que era mau —que os brancos não se pren- suas costas roliças e luzidias. — Caíram-lhe os
diam bem, senão quando tinham filhos, que panos de cima, e mesmo assim, com as mãos
precisava ter um. Lembraram-lhe promessas cruzadas no seio, fugiu para a varanda.
a Nossa Senhora de Muxima, ou que fizesse O patrão deixou-a, e nessa noite dormiu numa
feitiços, e fê-los. cama de campanha que estava ao pé da sala
Havia uns dias que o muari, quando en- onde jogavam às vezes.
trava na camarinha, começava a cheirar, a Era a cama onde costumava dormir o juiz
cheirar, fazendo desagradáveis trejeitos — um grande sono, até vir a canja, quando ia
cheirava-lhe mal. Que seria o gato, ou o cão, lá à-batota, e o limpavam logo ao princípio.
e corria os cantos da casa, mas nada. Nga No dia seguinte veio o mestre Pedro, col-
Ndreza estendia a sua esteira ao pé da cama, choeiro, e fez novo colchão. Nga Ndreza esteve
e ficava muito quieta fingindo dormir. muito séria; não comeu, nesse dia nem no
Uma noite o muari disse que havia de outro.
saber a causa do mau cheiro. Chamou 8 Enfim as coisas compuseram-se.. Tinha
moleques, o da mesa que era o Muhongo, e o chegado novo sortimento ao patrão, e ele
da loja, e fê-los revistar tudo. Estava deses- mandou-a chamar uma noite à loja depois de
perado, eis que o Muhongó começou a desfazer fechadas as portas da rua e ali lhe fez esco-
a cama e a mexer no colchão. lher um pano da costa, umas peças de chita
Nga Ndreza entrou a resmonear, mas O e um fio de corais, daqueles grandes que
moleque continuava procurando, até que, custam a macunha tato ni tato ni kipaca—
achando um buraco no colchão pela parte de cada bago, bagos muito grandes. Então ela
baixo, e metendo a mão, tirou uns pés, uns contou-lhe tudo, com certas reservas todavia.
ossos e uma cabeça de galo com a sua crista — Disse-lhe ele que se não importasse, que
e penas. se morresse não havia de ficar sem nada.
Nga Ndreza ficou atrapalhada; o patrão
olhou para ela, não disse mais nada: foi a
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+
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vidados estavam à espera, uns
passeando na O cumprimento, feito em voz baixa e como-
varanda, por ser mais arejada
e não se poder vida, foi interrompido nas frases mais com-
parar lá dentro com o cheiro
dos panos pretos, passivas pelo Mendonça, que disse brusca-
outros à porta da rua. Falavam sobre várias mente que o negócio se demorava, e ele ainda
coisas.
não tinha jantado.
Perguntavam uns, quanto seria
a fortuna — Nem eu — ajuntou o Guimarães tirando
do falecido, outros contavam
de que ano ele o relógio —, e são cinco horas e meia, se sou-
era, e diziam que ELA, a mor
te, lhes estava besse tinha jantado primeiro. Para que horas
rastejando a eles pela porta.
isto deita.. — .?
fez, com umas demoras na
Depois falavam na preta, na N ga
Muturi; fala, indicativas do muito que pensava ter de
e diziam que o legado que o velhot
e lhe dei- esperar.
Xara valia os seus dois contos
de réis fortes — Porque se espe
— perguntou
ra? o juiz.
fora a casa.
— Ora, porque há-de ser? Pelo padre —
— É uma desgra — acu
ça diu um bastante disse outro. — Não cantam senão quando têm
económico —, algum desses
filhos da terra cheia a barriga. :
amiga-se com ela e dá-lhe cab
o de tudo. Nisto sentiu-se a bulha de passos apres-
= Ela não é má — disse o juiz
ao delegado, sados pela escada, mas miúdos pelo constran-
que tinham chegado e estava
m todos sérios gimento das batinas, e entrava o pároco com
dentro das suas casacas pret
as. a face congestionada pela caminhada sobre
—'Ora adeus— acudiu o delegado —, é o jantar comido à pressa e mal mastigado.
um diabo gordo e mais nada. Vinham dois sacristas, um com o hissope e
— Não é tanto assi — fez
m o juiz. outro com a cruz.
O testamenteiro, que andava a
labutar lá Entraram na sala guarnecida de negro
por dentro com as coisas do ent
erro, mal soube nos alizares das portas, e o padre começou
(trazia uma demanda) que est
avam o juiz e a rezar os responsos. Um rapaz mulato com
o delegado, foi logo, apressado
, cumprimentá- um paletó muito ruço e com a gola levantada
-los com muita afabilidade e
subserviência. e presa por um alfinete, querendo encobrir a
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falta de camisa, começou a distribuir velas Entretanto o caixão saía, agitado pelos
de um tabuleiro aos convidados. passos desencontrados a princípio dos que o
O sacrista, com a batina esfiampada na levavam. À volta do corredor para a escada
barra e uma bota toda torta e muito ruça, ia havendo catástrofe. O escriturário da Junta
onde sobressaía a calça toda roída atrás, ofe- instintivamente segurou com as duas mãos a
receu o hissope ao pároco, que depois das argola, e o parceiro tirou apressado o lenço
rezas aspergiu beatificamente o caixão com para estofar a sua argola, que era de corda
uns sacudimentos graves do braço direito. muito fina e magoava-lhe os dedos.
A um lado da casa ouviam-se as respirações Quando saiu a porta da rua sentiu-se o
tristes das amigas de Nga Muturi, prontas a pumpum do bombo da música, que começou
desencadear o choro do costume. uma marcha muito sentida e seguiu o sai-
Quando o padre com um gesto beato, e mento. Um dos que levavam o caixão da
os olhos meio cerrados, mostrou ter concluído, parte da cabeça disse para o companheiro a
o testamenteiro convidou três negociantes e meia voz:
o escriturário da Junta (que — Não há trancas.
se pelava por
consideração, e sempre era bom estar com E logo o director do enterro começou a
eles, pensava o testamenteiro) para as argolas chamar o Cassabalo e o Burica que levavam
do caixão. O juiz levou a chave. O delegado, as trancas, e eles, do grande mar de machilas
que não estava para maçadas, tinha ficado que afogava o enterro, surdiram segurando
umas tungas forradas de negro com espirais
de propósito escondido atrás de um grupo,
para de galão amarelo, que passaram por baixo do
não ser visto.
caixão, e com o Feliciano e o Baxi carrega-
Quando se deu o primeiro impulso ao cai-
ram-no até à igreja do Carmo.
xão e prorrompeu o choro das mulheres, viu-se
No adro estavam outros convidados, mas
Nga Muturi assomar a uma porta em grandes
já jantados, de palito na boca e fumando.
berros e exclamações, mas duas amigas segu-
Houve as encomendações costumadas e
raram-na logo e levaram-na para dentro. saiu o cadáver acompanhado pelos irmãos da
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Ordem. Terceira, a que o finado pertenci
a, até da Junta, que tratava com a tal rapariga dos
ao limite sabido. Alguns dos convidados
safa- apalpões do escriturário.
ram-se logo pela calçada. do Carmo,
outros O vizinho, o testamenteiro, disse que sim,
foram ficando atrás com as machilas
de olho, que se fizesse a esteira, mas que não fizessem
e quando não lhes pareceu muito escândalo,
meteram-se muita bulha, e sobretudo que não deixassem
nelas. As mulheres gritando e entrar toda a gente— e sublinhava com a vôz
chorando lágrimas que não as estorvavam de
retribuir as olhadelas dos que passavam a palavra.
, fo- A Chica veio também, mas demorou-se
ram até ao cemitério, ali foi o caixão desc
ido pouco.
a uma cova bem funda, com o raque-ra
que Aos oito dias houve a missa mandada dizer
das cordas de mateba, por onde escorreg
ava. pelo testamenteiro, que convidou todas as
Houve trabalho para tirar o chapéu do que
tratou pessoas das relações de seu falecido e chorado
do enterro, que caiu na cova quando
teve que acudir a um dos pretos, que não amigo, dizia o anúncio. Foi publicado no Bo-
podia segurar a corda. Enfim o homem lá letim Oficial, com uma grande tarja preta
ficou, e as mulheres voltaram para ao pé da e um anjo a chorar abraçado a uma cruz.
Nga Tudo muito bonito—contou um rapaz que
Muturi, para o óbito.
tinha suas vistas na Nga Muturi, e encarecia
%* as pompas do óbito.
* * Nga Muturi estava na missa, muito grave,
com os competentes panos de zuarte azul-
O choro foi grande, mas interrompeu-se
algumas vezes para comerem. Entretanto, “escuro, O seu pano preto e um gorro, segundo
às o costume; estavam todas as amigas e muita
seis da tarde, ao cantar do galo e às seis
da mais gente. Estavam também muitos brancos,
manhã redobrava. Havia uma velha que avi-
sava as outras para chorarem. Havia agua amigos do testamenteiro, e alguns emprega-
r- dos. Não faltou o juiz. Tinha-lhe custado
dente e uma botija de genebra Focking, marc
a muito a levantar-se, mas era da terra do
escolhida por conselho de um rapaz amanuens
e falecido, e parecia mal se não fosse.
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reira e dele tirara o nome estropiado. A ri-
Nga Muturi afligiu-se muito quando uma canza de bordão, novinha em folha, era esfre-
amiga, com assomos de indignação hipócrita, gada com toda a arte por uma velha já sem
lho referiu, valha a verdade muito acrescen- dentes, mas ainda muito amiga de brinca-
tando. Esteve muito tempo a falar, dizendo deira. Fora das melhores para a brinca-
que ela não era negra, nem tinha os costumes deira, nos seus tempos.
das que diziam isto, e repetia isto muitas — Se a vissem —dizia o velho Torres,
vezes, fitando a amiga. Esta, que não podia com umas saudades lúbricas de outrora.
perder as relações de Nga Muturi, atalhou Dançaram toda a tarde e toda a noite.
logo— que aquilo tudo era inveja por ela Houve muita concorrência. O vizinho deu um
estar rica. bezerro, e um garrafão de vinho. Nga Muturi
Via-se embaraçada para vender a roupa, teve mais outros presentes. Ainda gastou
mas por conselho do testamenteiro entregou-a muito dinheiro.
ao Serra que ia para Casengo à colheita, e Muito nfungi e carne guisada. Houve qui-
lhe dizia que ali se trocava tudo a café muito toto, aguardente e genebra. Como sabia que
bem, que era um negócio da China. iam brancos, tinha duas garrafas de vinho
Quem não ficou contente com a incum- do Porto marca Triumpho de Bacho. O San-
bência quando a soube foi a Chica. tanáã, guarda da alfândega, que era quem lhe
&
escrevia as cartás para Casengo, para o Serra,
* x
por causa da roupa, foi de opinião que com-
prasse do Maria Olaudina, isso é que era vinho,
Aproximava-se o aniversário do óbito. Já que era a melhor marca. Qué o Triumpho de
se falava nas missas, e todos diziam que se- Bacho vinha todo falsificado. O primeiro que
riam de estrondo. E foram faladas com efeito. veio, esse sim. Mas Nga Muturi, como o vizi-
A gaêta era das melhores, e o batuque nho do defunto falecido só tinha desta marca,
tinha vindo do Bengo. Havia dois tocadores não o quis escandalizar, comprando em outra
que se revezavam. Quem tocava o batuque parte.
era o Felela, que tinha sido moleque do Fer-
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As missas continuaram.
Haviam de durar oito dias, nada menos,
dizia Nga Muturi, e muito melhor que as dos
Mártires, pelo irmão que tinha sido capelão
cantor, porque as dele, cuja memória inda
estava fresca, se haviam durado oito dias, fora
à custa dos convidados, que todas as noites
tinham de concorrer com a gua espórtula. As
de. Nga. Muturi — essas não, seriam à sua
custa unicamente, que não precisava de subs-
crições.
Ao quarto dia, porém, sentiu-se incomo-
dada, um mal-estar esquisito, estranho. — As
amigas notaram-lhe a face demudada. Ela
dizia que era cansaço, mas os oito dias seriam
cheios.
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briga, porque sentia isto e aquilo, com umas
Não foram, porque a tristeza da dona da
reticências duvidosas, a ponto de Ngana Teve
casa dava um tom sombrio à festa,
olhar muito fito para ela e dizer:
Enfim passaram os oito dias e as rapa-
— Já sei, já sei. — E levou-a para um canto
rigas começaram a pensar e lembrar-se de que
da farmácia ao pé da porta que deita para a
missas estavam à bica. Falava-se nas de escada, e ali fez perguntas em voz baixa a
D. Luísa pelo marido; nas do José Bento pela
Nga Muturi, às quais ela respondia com os
mãe, e não faltavam as raparigas com den-
guices aos homens com quem tratavam para
olhos no chão, por monossílabos, espálmando
a mão sobre os panos, como querendo acer-
alcançar dinheiro para novos panos. tá-los.
Ngúna Teve concluiú em voz alta:
— Está bom, está bom. Vai-te embora,
rapariga, é manda cá úmá garrafa para tê
arranjar o gomoso.
Ao nono dia depois das missas, N ga Mu- E quando ela se retirava, envergonhada,
turi, que não se sentia melhor, arranjou-se
ele da porta, com a sua bengalã de gâncho
conforme pôde, e foi à botica do Teves. Era
a bater pancadinhas na soleira, disse-lhe de
de manhã. Chegou mesmo quando ele saía da
longe:
machila; que ó-trouxera das caieiras, que tinha
— Olha os banhos, hem, com malvas.
ido ver cedo, 'como costume.
Ngana Teve; como ela o cumprimentou,
começou logo “com o seu palavriado do costu-
me, perguntando-lhe o que tinha, quando As
casava, dando-lhe muitos conselhos, que ti- Je Ver
vesse juízo, que se não deixasse comer.
Nga Muturi nunca mais pôde ver o Serra.
Nga Muturi, coberta com o seu pano preto,
Lembrou-se até de lhe fazer feitiço, mas aban-
eos olhos baixos, começou com meias palavras
donou o projecto com um longo suspiro.
a queixar-se de um mal, que lhe parecia lom-
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* %
% *
Daí em diante, Nga Muturi nunca mais
tornou a dançar nos batuques. É um riso ouvir ainda o Sola ourives con-
Hoje está uma mulher dos seus trinta e tar a história do grilhão. Quando está, na loja
seis anos pouco mais ou menos (nunca pôde com amigos e que passa Nga Muturi é certo
tirar certidão de idade) muito séria é por- que a conta: que não é possível imaginar-se
tando-se bem. Goza de uma certa considera- uma cara mais pândega que a de Nga Muturi
ção nas famílias da terra e quando vai visitá- quando ele lhe deu o temível desengano.
-las fazem-lhe sempre o prato à mesa, a man- — Olhem, rapazes, o caso foi assim. Eu
dam-lho logo. Ela também é sempre pronta estava aqui onde estou, Nga Muturi ali onde
em acudir a todos os casos tristes ou alegres. está o Silva, e o Taveira pouco mais ou menos
Está muito bem, desconta às vezes os reci- onde está o Torres. Ela deu-me o grilhão para
bos aos amanuenses com um juro que brada dizer quanto valia. Eu olhei, pesei-o, mas
aos céus, empresta sobre penhores, não só às parecia-me história aquela bisarma de ouro.
amigas, mas até a pessoas graúdas. — Que o «Nada, vamos a experimentá-lo». Nem foi
diga o escrivão Teixeira, que lhe empenhou preciso tocá-lo. Com a lima, ze 2e ze, 26 2€ 2e,
lá o relógio e a corrente, uma peça famosa, ora, apareceu logo o latão. Dobrei-o em par-
presente do tutor Brandão, por ter feito uma tes de palmo e meio cada uma, e voltando-me
mangonha no inventário do casal, cujos meno- muito sério para o Taveira:
res ficaram a pedir. «— O Taveira, por quanto vendes tu uma
Contudo não gostava de emprestar a bran- corrente de papagaio?»
cos desde que o Juda Abimelech lhe empe- « Cinco — disse
macutas» ele. — «Por-
nhara sete varas de grilhão de ouro, que afi- queres?»
é?
nal era latão galvanizado. Que o que lhe valeu E «— Não» — E pus-me a contar as dobras,
a ele foi morrer, senão ia parar à cadeia. eram nove. Depois levantei a cabeça e disse-
-Jhe: «— Vale nove correntes de papagaio.»
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MA
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”
— Sim senhor; ainda mais. GLOSSÁRIO
Saiu. No outro dia voltou, e pagou reli-
giosamente tudo.
Nunca mais tornou a encarregar ninguém
de lhe pagar a décima.
+ *
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Ambul'home. Não bula, homem.
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Quicuanga. Bolo feito de mandioca fermentada. Tambi. Óbito. Há sempre a imolação de um ani-
Quinda. Cesto ide palha. mal, que é comido no meio do choro continuado:
Quindumba. O cabelo muito levantado adiante um boi, um carneiro ou cabra; os pobres fazem o
e cortado de forma que figura um diadema. seu tambi matando uma galinha.
Quitanda. Lugar onde, largo ou rua, as mulheres
pretas vendem algodões, chitas, pratos, etc. «Volta de conta» [pág. 57]. São assim chamadas
Quitoto. Uma espécie de cerveja feita de milho. pulseiras ide contas de ouro, coralihã; córais, etc.
Quituxi. Crime, crimes. Quando qualquer é levado
diante do soba e se sujeita à prova do juramento, A pessoa que empresta dinheiro sobre penhores tem
se é infeliz ou se o ganga (sacerdote) está comprado o direito de as usar, fora o juro que recebe, uns
pela parte contrária, é condenado em tantas peças 300 por cento.
de fazenda ou cabeças de gado. Se não tem com que
pagar é escravizado, mas tem direito a dar um sobri-
nho ou sobrinha, filho de irmã, a qual se sujeita ao
pagamento. Quando lhe tiram a criança, e às vezes
já mulher, consideraa a mãe como morta e faz o
seu tambi (óbito).
É depois apresentada a escrava ao soba, que
- julga se vale a condenação; se não, vai buscar outra
sobrinha. As vezes é uma família escravizada por
esta forma, e vem logo ser oferecida a resgate ao
litoral ou ao primeiro concelho.