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REFLEXO E REFRAÇÃO NO/DO SER QUIXOTESCO: UMA ANÁLISE

VERBIVOCOVISUAL DA CANÇÃO “DOM QUIXOTE”, ENGENHEIROS DO


HAWAII

Clara Moreira Molinari


José Antonio Rodrigues Luciano

1. Introdução

Já se vão mais de quatrocentos anos desde que o livro Dom Quixote de la Mancha,
escrito pelo autor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), fora publicado pela primeira
vez. Desde então, a trajetória do fidalgo espanhol que, após demasiadas leituras de novelas
de cavalaria, sai em busca de aventuras e batalhas, tem sido contada e reproduzida tantas
vezes que são inúmeras suas releituras.
No que concerne ao contexto brasileiro, entre 1955 e 1956, o pintor Candido
Portinari (1903-1962), desenhou uma série de vinte e duas gravuras a lápis baseadas na
obra Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes (1547-1616). No ano de 1972, o
poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), a convite de Gastão de Holanda,
escreveu poemas referentes aos desenhos feitos por Portinari, que culminaram no
lançamento do livro D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond, publicado em 1973.
Na esfera musical, temos pelo menos três famosas canções de artistas brasileiros
com o título da obra cervantina: a da banda de rock formada durante o Tropicalismo, Os
Mutantes1, lançada em 1969; a de Milton Nascimento, em 1989 e, a canção que será
analisada no presente artigo, da banda Engenheiros do Hawaii, lançada em 2001.
Em comum, as diversas interpretações sob o tema do ethos quixotesco, apresentam
questionamentos relacionados aos mais universais desejos e inquietações do homem e
remontam a um ser que, em seu devaneio, exterioriza sua fragilidade frente tanto ao mundo
prosaico, quanto ao seu próprio mundo fantasioso e repleto de utopias.
É objetivo deste artigo, apresentar uma análise da canção Dom Quixote, de
Engenheiros do Hawaii, e a sua relação interdiscursiva com a obra literária de Miguel de
Cervantes. Nossa fundamentação teórica se posiciona na contribuição analítica dos estudos
bakhtinianos, bem como nos subsequentes desenvolvimentos desta teoria. É nossa
1
A banda sobreviveu ao fim da Tropicália e serviu como transição para o que viria a ser o rock brasileiro dos
anos 1970 e 1980, que será abordado na próxima seção.
proposta, a partir desta concepção teórico-metodológica, estabelecer reflexões sobre o
conceito de verbivocovisualidade, tal qual proposto por Paula. Finalizamos nosso artigo
com uma reflexão sobre a ressignificação dada por Humberto Gessinger no personagem de
Cervantes, sendo a letra da canção a representação de alguém que “rema contra a corrente”
e persiste mesmo em tempos de “causas perdidas”.

2. Surfando karmas & DNA - as primeiras ondas hawaianas

Com a abertura política e a redemocratização do país, os anos 80 se consolidou


como o período em que o rock surgiu com maior efervescência no Brasil. Foi diante de um
cenário marcado pela transição política, que configurava o fim do regime militar e a
mobilização pelas eleições diretas, que bandas de rock começaram a ganhar maior
popularidade, das quais podemos citar Titãs, Kid Abelha, RPM, Paralamas do Sucesso,
Legião Urbana e, a banda que faz parte do recorte destinado ao nosso corpus, Engenheiros
do Hawaii. Inclusive, o grupo nasceu a partir de um festival realizado durante a grave de
estudantes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o que denota o estilo crítico que
será um dos destaques da banda. Humberto Gessinger, Carlos Maltz e Marcelo Pitz,
estudantes de Arquitetura, se reuniram à convite do movimento estudantil para tocar ao
algumas canções, porém, houve grande repercussão entre o público, de modo a ir para
além do campus e os músicos começarem a receber convites para tocar em casas de show
de Porto Alegre.
Assim, os Engenheiros do Hawaii iniciam sua trajetória em 1984, no Rio Grande
do Sul, com Carlos Maltz na bateria, Marcelo Pitz no contrabaixo e Humberto Gessinger
como vocalista e guitarrista. Destes, apenas Gessinger permaneceu até o fim da banda em
2008. No entanto, apesar da banda ter sofrido diversas mudanças de integrantes, a
inquietação em relação a questões políticas, filosóficas e sociais se fez presente ao longo
de toda sua história, como parte de um estilo autoral, que podemos denominar estilo
“gessingeriano”, pois, embora o vocalista não seja o único a compor as canções, sua
assinatura está presente, se não em todas, na maioria do repertório musical, além dele ser o
único integrante do começo ao fim da banda. Com isso, o estilo gessingeriano, que permeia
o estilo da banda, nas letras das canções aborda temas profundos com uma combinação de
conteúdo e forma poéticos, esbanjando figuras de linguagem, referências literárias e
filosóficas, interdiscursos e uma postura reflexiva em relação ao seu tempo.
Por exemplo, dentre as referências, podemos citar a canção Exército de um homem
só, em que há a referência ao livro homônimo, do escritor gaúcho Moacyr Scliar; em A
revolta de Dândis, o título foi retirado de um dos capítulos da obra de Albert Camus; o
verso “a dúvida é o preço da pureza” presente em Infinita Highway faz parte do livro O
Muro, do filósofo francês Jean Paul Sartre. Além das referências a Nietzsche na canção
Humano demais (livro Demasiado Humano) e nos versos de Problemas sempre existiram,
na qual diz “Não foram os deuses, nem foi a morte de Deus” (célebre frase do filósofo
alemão “Deus está morto!”), a Manuel Bandeira em “O último poema” (mesmo nome do
poema de Bandeira) e, claro, a Cervantes, na canção “Dom Quixote”, tomada como corpus
aqui.
É inegável que os jovens desta época, filhos da ditadura de 64, viram neste estilo
musical uma oportunidade de expressarem seu descontentamento diante do cenário politico
e social, dando ao rock uma voz de protesto suscitada pelos acontecimentos históricos. Em
algumas literaturas, esse rock brasileiro também é conhecido sob a alcunha de BRock 2, que
significa “o rock é nosso”.
Pensar no contexto histórico em que Engenheiros do Hawaii emergiu é crucial para
a construção dos discursos que tomam forma na letra das canções. A consciência política
se manifestava fortemente na juventude que, ao pensar o mundo através da arte, aqui
especificamente na canção, produzia discursos marcados na história e como parte
constitutiva dela.
A canção que será aqui analisada, Dom Quixote, faz parte do último álbum do
grupo lançado em estúdio e com músicas inéditas, intitulado Dançando no campo minado
e lançado em 2003. Muito embora a banda tenha se iniciado nos anos 80, é necessário levar
em conta que o disco em questão só é produzido no início do século XXI e é, portanto,
outro momento da banda, agora composta por Paulinho Galvão na guitarra, Bernardo
Fonseca no baixo, Gláucio Ayala na bateria e, como em formações anteriores, Humberto
nos vocais e guitarra. Assim, o enunciado (canção) surge diante de uma nova materialidade
histórica e, consequentemente, outras condições de produção se manifestam na forma em
que o discurso é materializado.

2
DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora 34,1995
Ao associarmos a letra da canção à sua historicidade, isto é, início dos anos 2000,
época em que a música Dom Quixote foi gravada, os Engenheiros já era uma das raras
bandas de rock que sobreviveram com o mesmo entusiasmo dos anos 80. Outras vertentes
do rock surgiam, como o emocore, caracterizado por suas letras e melodias simplistas, mas
que conquistou grande parte do público jovem do período. Assim, cada vez mais o Brock
se distanciava de seus discursos politizados, trazendo consigo outra marca sócio-histórico-
ideológica dos sujeitos que as enunciavam.
A poesia, a liricidade e a complexidade sonora das canções eram dispensáveis para
a nova concepção de rock que se produzia e, por isso, parecia mesmo que o rock era uma
“causa perdida”, mas uma causa a qual Gessinger lutaria.

3. Filosofia da linguagem bakhtiniana e verbivocovisualidade

Para a análise da canção, fundamentar-nos-emos na filosofia da linguagem


bakhtiniana, a qual toma o discurso como enunciado concreto, constituído de ideologia,
construído na relação eu-outro e fixado no solo social, conforme podemos observar no
excerto seguinte, presente na obra O Método Formal nos Estudos Literários

Cada produto ideológico e todo seu “significado ideal” não estão na alma,
nem no mundo interior e nem no mundo isolado das ideias e dos sentidos
puros, mas no material ideológico disponível e objetivo, na palavra, no
som, no gesto, na combinação das massas, das linhas, das cores, dos
corpos vivos, e assim por diante. Cada produto ideológico (ideologema) é
parte da realidade social e material que circunda o homem, é um
momento do horizonte ideológico materializado. Não importa o que a
palavra signifique, ela, antes de mais nada, está materialmente presente
como palavra falada, escrita, impressa, sussurrada no ouvido, pensada no
discurso interior, isto é, ela é sempre parte objetiva e presente do meio
social do homem. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 50, grifos nossos)

Assim, não há sentido - linguagem - fora das relações sociais, isto é, fora das
relações dialógicas entre duas consciências, em um tempo e espaço específicos. Por esse
motivo, o Círculo fundamenta-se no materialismo histórico proposto por Marx, pois, é o
modo que toda a produção material de uma sociedade é realizada, constitui o vetor
determinante de organização social e de representações intelectuais de uma época em que
compõe a infraestrutura e estabelece outra, superestrutura, a ideologia hegemônica.
Essa determinação, por sua vez, de acordo com o Círculo, ocorre pela materialidade
linguagem, na enunciação do sujeito concreto situado social e historicamente. É a palavra o
termômetro de maior sensibilidade de mudança social. Ela está repleta de significados
historicamente construídos pela interação verbal. Com isso, todo “signo é ideológico”.
Pois referir-se à ideologia é, em essência, pensar em sentido. Assim, o que é ideológico
tem significado e alude a algo que está fora de si, logo, o que é ideológico é um signo
(VOLÓCHINOV, 2017).
Tal afirmação é possível porquanto, como o próprio autor indica, “o domínio do
ideológico coincide com o domínio dos signos; são mutuamente correspondentes” (idem,
p. 22). Desse modo, as interações verbais entre os sujeitos vinculam-se intrinsecamente às
condições sociais determinadas e conforme as menores alterações deste meio, os
indivíduos reagem a ela. É em consequência disso que as formas da língua também se
alteram. Ou seja, as relações se alteram e afetam as interações verbais que, por sua vez,
também se mudam no nível do quadro social, delas alteram as formas dos atos de fala que,
por fim, incidem nas formas da língua.
É em virtude desse processo que, de acordo com os pensadores russos, pode-se
considerar que quaisquer fenômenos, os quais operam como signo ideológico, encarnam
em uma dada materialidade de variadas dimensões (som, cor, massa física, o próprio corpo
em relação ao mundo, etc), isso faz com que a realidade do signo se torne totalmente
objetiva e passível de um estudo que seja metodologicamente unitário e objetivo (Ibidem).
A partir de tal perspectiva, partimos da concepção de linguagem para o Círculo e a
qual entendemos de forma tridimensional composta pelas dimensões verbal, vocal/sonora e
visual, que Paula denomina, metaforicamente, verbivocovisual. Embora os intelectuais
russos não tenham utilizado os termos “tridimensionalidade” e “verbivocovisualidade”, tal
apropriação, que advém de James Joyce e da Poesia Concreta, faz-se pertinente, pois
encontramos nos escritos bakhtinianos passagens que convergem com a proposta
apresentada. Por exemplo, a noção de uma linguagem das linguagens presente no ensaio
“O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”, no qual
diz o texto:

Todo sistema de signos (isto é, qualquer língua), por mais que sua
convenção se apoie em uma coletividade estreita, em princípio
sempre pode ser codificada, isto é, traduzido para outros sistemas
de signos (outras linguagens); consequentemente, existe uma lógica
geral dos sistemas de signos, uma potencial linguagem das
linguagens única (que, evidentemente, nunca pode vir a ser uma
linguagem única concreta, uma das linguagens). (BAKHTIN, 2011,
p. 311)

Em seguida, o filósofo russo prossegue dizendo que é inegável, porquanto, por trás
de cada texto tem o sistema de linguagem. Ademais, os indícios de tal linguagem
tridimensional são reforçados ao depararmo-nos com os conceitos-chaves da teoria do
Círculo, a saber, podemos citar: entonação, voz, imagem externa, arquitetônica, polifonia,
dramaticidade, acento, máscara, imagem de autor, entre outras.
Essa construção e delimitação da concepção de linguagem foi possível graças a
formação heterogênea do Círculo, que contava com a participação de poetas, escultor,
musicistas, biólogo, filósofo, físicos, jornalistas e matemáticos. Além disso, o grupo estava
em constante diálogo com as correntes teóricas e artísticas de sua época (simbolismo,
futurismo, Formalismo etc).
É dessa maneira que compreendemos a verbivocovisualidade como um sistema de
linguagem em que há a articulação entre as dimensões verbal, vocal e visual, as quais se
organizam em seu potencial valorativo, revestindo todo e qualquer enunciado,
independente da materialidade, e a qual pode explicitar uma ou todas as dimensões,
conforme o projeto discursivo do sujeito, mas sem perder o vínculo à regra geral do
entrelaçamento indissociável tridimensional da linguagem.
Com isso, neste trabalho, partimos da concepção de linguagem para o enunciado
cancioneiro “Dom Quixote”, que consideramos como gênero secundário, pois é
relativamente mais organizado e desenvolvido, assim, incorporando e reelaborando dado
gênero primário, formado nas condições de comunicação discursiva imediata (BAKHTIN,
2011). Podemos, dizer, então, que a canção nasce da esfera do cotidiano (a vida), é
reelaborada, vai para a esfera artística e retorna para vida. A canção, como todo gênero
discursivo, é duplamente orientada. Isso acontece conforme notamos no ensaio “Discurso
na vida, discurso na arte”. Nele, Bakhtin-Voloshinov (s/d) mostram a constituição de um
enunciado, tanto na vida quanto na arte, feita pelo conteúdo, o autor e o ouvinte, assim

todos esses fatores são os pontos de contato entre as forças sociais


da realidade extra-artística e a arte verbal. Graças precisamente a
esta espécie de estrutura intrinsecamente social que a criação
artística possui, que ela é aberta em todos os lados à influência dos
outros domínios da vida. Outras esferas ideológicas, incluindo
principalmente a ordem sócio-política e a economia, têm efeito
determinativo na arte verbal não meramente de fora, mas do ângulo
direto de seus elementos estruturais intrínsecos. E, inversamente, a
interação artística de autor, ouvinte e herói pode exercer sua
influência em outros domínios de intercâmbio social. (p. 17)

Por conseguinte, calcados nessas concepções bakhtinianas de linguagem,


enunciado, vida e arte; para a análise, utilizamos também o método dialético-dialógico,
denominado por Paula et al (2011) a respeito dos trabalhos do Círculo. Pois, os autores
russos, ao se fundamentarem na dialética (tese – anti-tese – síntese) proposta por Marx, não
consideram a síntese como uma superação, mas uma continuação no/do diálogo, de modo
que esta síntese torna-se uma nova tese que retomará todo o movimento, que é inconcluso.
Por isso, ao analisarmos a canção “Dom Quixote”, fazemos na relação com outros
enunciados que estejam em diálogo com ela, seja anterior ou posteriormente, bem como
consideramos no movimento entre a vida e a arte, em como a canção é alterada pela vida,
ao passo que também modifica-a ao ser enunciada nos diversos contextos e produzindo
novos sentidos, de modo a compreender o que foi e o que é ser Dom Quixote –
personagem este que só aparece no título da canção e tem a letra e o instrumental como
predicado – na contemporaneidade, refletindo e refratando valorações sociais.

4. Análise da canção

A canção começa com uma oposição semântico-valorativa, “muito prazer, meu


nome otário”, a qual revela a ironia do sujeito que se apresenta como “otário”, mas que, ao
mesmo tempo, tem “prazer” em sê-lo. Esta contradição vai continuar ao longo da estrofe
(bem como por toda canção), por meio de metáforas, imagens e conjunções. Vejamos:

“Muito prazer, meu nome é otário


Vindo de outros tempos mas sempre no horário
Peixe fora d'água, borboletas no aquário
Muito prazer, meu nome é otário
Na ponta dos cascos e fora do páreo
Puro sangue, puxando carroça” (grifos nossos)

Neste trecho, podemos observar que a divergência mostrada pelo sujeito que se
sente um “peixe fora d’água”, “borboletas no aquário” ou “puro sangue, puxando carroça”
evidencia um herói em desacordo com o mundo que o cerca e, justamente, ter esse
desajuste é que é considerado um otário ou o que, atualmente, chamamos de fazer “papel
de trouxa”. Inclusive, isso é reforçado nas rimas, pois nos quatro primeiros versos rimam,
enquanto nos dois últimos há uma divergência e destoam das anteriores.
Desse modo, então, temos um eu que vive em embate com o mundo, este tenta lhe
impor padrões que desprezam e mesmo tornam inúteis as competências e os valores
portados por esse sujeito da canção, crenças essas que são importantes e essenciais à vida.
Assim, novamente, faz com que um peixe, feito para nadar, esteja fora da água, uma
borboleta que deveria voar, mas que está no aquário ou, por fim, um animal de raça, “puro”
de grande potencial, que é usado para trabalho pesado e, em tese, ignora sua “grandeza”.
O desprezo por princípios essenciais ao ser humano e à vida é destacado na estrofe
seguinte da canção e que evidenciam a inversão de valores feita por um sistema social,
criticado pelo herói da canção. Nesse sentido, vemos o processo de reificação do ser
humano em contraposição ao enaltecimento do pragmatismo, superficialidade e bens
materiais. Por exemplo, nos versos “Um prazer cada vez mais raro / Aerodinâmica num
tanque de guerra / Vaidades que a terra um dia de comer”. Aqui, os conhecimentos
científicos são usados para as superficialidades, pois a aerodinâmica, que é investida em
tanque de guerra, instrumento destruição e morte, e o qual será deteriorado com o tempo,
poderia ser usada para melhorar as condições de vida, como, por exemplo, ajudar no
conforto de espaços ao ar livre, criar microclimas urbanos e reduzir os efeitos da poluição
urbana.
Tal explicitação de inversão de valores continua a ser demonstrada nos versos
seguintes, nos quais temos às referências às relações de poder, em que nem sempre o que
possui mais importância é o que prevalece. Assim, encontramos “’Às’ de espadas fora do
baralho / Grandes negócios, pequenos empresários”, isto é, o espadilha, considerado o
valor mais alto em muitos jogos de carta, é descartado, é posto para fora do jogo, tal como
o sujeito e seus valores diante da lógica sistêmica, pois, antes mesmo dos empresários, da
“pessoa”, vêm os grandes negócios, representando o dinheiro, o lucro exacerbado e o
poderio econômico, de modo que não interessa a pessoa crescer culturalmente, mas que
seus negócios tenham sucesso. Na atual conjuntura, por exemplo, podemos citar o
empreendimento das Lojas Havan, o qual tem 127 lojas em todo Brasil, com grandes
movimentações financeiras, geração de lucro, ao passo que o dono, Luciano Hang
(conhecido como “Véio da Havan”), é um ser medíocre, sonega impostos e incita ao ódio,
o que revela bem a grandiosidade dos negócios em contrapartida da pequenez dos
empresários, que, muitas vezes, só sabem pensar em números, cifras.
Diante de uma estrutura social desumano, então, na qual valores humanistas são
taxados como utópicos e ultrapassados, é que o sujeito da canção se posiciona e retoma os
versos iniciais, “Muito prazer, me chama de otário”, pois é “Por amor às causas perdidas”.
Posição esta manifestada explicitamente no refrão:

“Tudo bem, até pode ser


Que os dragões sejam moinhos de vento
Tudo bem, seja o que for
Seja por amor às causas perdidas
Por amor às causas perdidas

Tudo bem... até pode ser


Que os dragões sejam moinhos de vento
Muito prazer... ao seu dispor
Se for por amor às causas perdidas
Por amor às causas perdidas”

Assim, o herói da canção põe-se em embate. Aqui, o sujeito recusa-se a se submeter


às imposições de valores do sistema social, o qual coisifica o ser humano enquanto exalta o
capital, mesmo que para isso o bem-estar social seja eliminado ou que questões como
Direitos Humanos, preservação do Meio Ambiente, educação, pensamento crítico-
reflexivo, ética, igualdade social sejam consideradas causas perdidas ou “coisas
comunistas”, conforme afirma o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
No plano musical, propriamente dito, encontramos o embate entre as duas vozes
sociais que aparecem no verbal, sobretudo ao considerarmos os instrumentos de cordas
(violinos, viola, violoncelo, violão e baixo) representando a voz “eu” e a percussão
(bateria) a voz social do sistema. Assim, na primeira parte da canção, antes de chegar no
refrão, temos as duas vozes caminhando ao encontro um da outra, o baixo sobe a escala (do
grave para o agudo) em notas de um tempo e no quarto tempo “cai” para o grave, caída que
coincide com a tônica da bateria, como se derrubasse para o grave, recomeçando, assim, a
contagem, caminhada do sujeito quixotesco. Esse mesmo movimento é realizado,
inclusive, pelo piano, que aparece mais evidente no momento em que se entoa a primeira
estrofe. Por sua vez, a bateria com batidas mais curtas e rápidas e com a tônica no quarto
tempo também reproduz uma sonoridade de relógio de fábrica, enquanto as cordas fazem a
melodia com notas mais longas, a bateria acelera ao fundo. Tal como a vida, enquanto
tentamos parar, respirar, o sistema contrapõe-se com trabalho, cobranças, boletos, nos quer
mais produtivos, sem tempo para pausas, reflexões, afetos... Em uma palavra, sem tempo
para humanidade, porque “Time is Money”.
Ao chegar no refrão, temos uma virada de bateria e uma consequente mudança na
marcação das batidas. Agora, não mais notas curtas e rápidas, mas notas de um tempo e
meio tempo, de modo a ficarem mais incisivas, como se fossem “marteladas”. Em
oposição, o violão faz dedilhados com som mais agudos (uma variação da introdução), o
que marca novamente o embate entre o eu e o social. É a luta de Dom Quixote contra os
dragões/moinhos de vento. Isso fica mais claro no solo a seguir. O quarteto de cordas
(violinos, viola e violoncelo) realiza uma dinâmica musical com notas longas, quase
contínua, subindo na escala e em movimento crescendo3, ao passo que as “marteladas” da
bateria prosseguem, entrecortando as cordas, até o momento em que aquele movimento de
notas longas e contínuas é interrompido mesmo e passa a ser mais curto e “seco”, como se
fosse tentativa de investidas, mas que esbarra em algo. E é justamente isso que acontece,
no exato momento das batidas da bateria é como se impedissem as cordas de prosseguirem.
Para melhor ilustrarmos essa construção, recorremo-nos ao trecho do livro de Cervantes,
em que Dom Quixote se lança contra os Gigantes (moinhos de vento):

E dizendo isto, encomendando-se de todo o coração à sua senhora


Dulcinéia, pedindo-lhe que, em tamanho transe o socorresse, bem
coberto da sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o
galope do Rocinante, e se aviou contra o primeiro moinho que
estava diante, e dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu
com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando
desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando
miseravelmente pelo campo fora. (CERVANTES, 2005, p. 53)

As cordas, então, representam o galope e a investida de Dom Quixote, que para e é


impedido pelos moinhos de ventos, na canção, representados pela bateria e suas batidas
firmes.
Por fim, após retomar o refrão, em seguida, temos um solo que finaliza a canção.
Nessa passagem, há, novamente, a simulação de embate entre o sujeito e o mundo. Dessa
vez, constrói-se uma cena musical, na qual se trava uma batalha. As arcadas do quarteto de
cordas são golpes, os quais são respondidos contra-atacados pelas batidas da bateria. Ou
seja, a alternância entre a tônica das cordas e a tônica da bateria, em contraponto à

3
Recurso musical que indica o aumento gradual da intensidade
primeira, revela-nos o embate entre o herói cancioneiro e os dragões/moinhos de vento,
que representam, para nós, duas vozes sociais distintas. E, neste enunciado, prevalece a
primeira, pois, as últimas notas a ressoarem, quase fracas, são das cordas, o que a posição
axiológica do autor-criador, Humberto Gessinger e Paulinho Galvão, nessa disputa.

5. Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter

A partir das construções verbivocovisuais da canção Dom Quixote, então, é


possível compreendermos que ser quixotesco na contemporaneidade é um fator positivo (é
um prazer) neste enunciado. Pois, nele, trata-se de ser resistência à desumanização imposta
por um sistema socioeconômico que visa apenas à produção de bens, geração de lucros, o
consumismo, descarte e exclui quem pense ou se posicione de forma diferente. Assim,
ainda que amor, a fraternidade, a justiça social, entre outros valores humanistas sejam
causas consideradas perdidas e utópicas, vale à pena lutar por elas até o fim, torna-se um
ato de (r)existência, a qual prevalecerá e será última nota a ressoar.
Nesse sentido, ao trazer a figura do Quixote para a contemporaneidade por meio da
canção, observamos certo deslocamento feito por Gessinger e os Engenheiros do Hawaii
na valoração da figura quixotesca. Se no contexto de Cervantes, o herói era considerado
uma personalidade negativa por ser lunático, louco e idealista; na canção, o teor idealista
tampouco mudou, pelo contrário, ser Dom Quixote é ser bobo, otário ou, na atualização
discursiva, é “fazer papel de trouxa” para os outros, contudo, diante da realidade social
posta, isso se torna positivo, pois ser otário é acreditar e lutar pelo que há de mais humano
(afetos, ética, igualdade social).
Desse modo, quando comparamos a figura de Dom Quixote em Cervantes e a
releitura feita na canção, se as características do herói são as mesmas, a significação dada
por cada autor em seus respectivos contextos é totalmente distinta, de maneira a considerar
no enunciado seu tom, pois na construção e compreensão do sentido

O que importa é o tom, separado dos elementos fônicos e


semânticos da palavra (e de outros signos). Estes determinam a
complexa tonalidade da nossa consciência, tonalidade que serve de
contexto axiológico-emocional na nossa interpretação (plena e
centrada nos sentidos) do texto que lemos (ou ouvimos), bem como
em uma forma complexa e no processo de criação (de geração) do
texto. (BAKHTIN, 2011, p. 403-404)
Para isso, o autor-criador dispõe dos mais diversos signos, de modo a refletir e a
refratar dada realidade ao percebê-la de uma perspectiva específica (VOLÓCHINOV,
2017). Dessarte, cada representação feita - seja por Portinari, por Drummond, Milton
Nascimento ou Mutantes – será um novo enunciado, ainda que seja o “mesmo” Dom
Quixote, pois terá um tom que o difere das demais produções, trazendo outras
significações, valorações e sentidos, tornando-se único na cadeia da comunicação
discursiva. No enunciado cancioneiro, Humberto Gessinger e Paulinho Galvão, faz por
meio de construções imagéticas, com uso de metáforas (“peixe fora d’água, borboletas no
aquário”), imagens (“aerodinâmica num tanque de guerra”), recursos sonoros (rimas,
instrumentos) e verbais (oposição semântica).
Por sua vez, tal construção artística confirma, bem como mostra pertinente os
apontamentos feitos pelo Círculo para uma tridimensionalidade da linguagem, denominada
extemporaneamente por Paula verbivocovisual, que reveste todo e qualquer enunciado,
ainda que, por exemplo, nesse caso seja construído, do ponto de vista material, pelas
dimensões verbal e sonora. Porquanto, elas criam um cenário discursivo no plano
psicológico do ouvinte, de forma que podemos visualizá-lo em nossa consciência, sem nos
soar diferente ou abstrata.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail / Valentin Voloshinov. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Editora Hucitec, 1988.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Edição digital, 2005.
eBooksBrasil.com.
DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
GALVÃO, Paulinho; GESSINGER, Humberto. Dom Quixote. Intérprete: Engenheiros do
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MEDVIÉDEV, Pável. O Método Formal nos Estudos Literários. São Paulo: Contexto,
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NASCIMENTO, Milton. Don Quixote. Intérprete: Milton Nascimento. In: Miltons. CBS,
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PAULA, L. de. Verbivocovisualidade: uma abordagem bakhtiniana tridimensional da
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PAULA, L. de. O verbivocovisual de animação: a valoração do “amor verdadeiro” Disney


– uma análise de Frozen. In: FERNANDES JR., A.; STAFUZZA, G. B. (Orgs.).
Discursividades Contemporâneas – política, corpo, diálogo. Série Estudos da Linguagem.
Campinas: Mercado das Letras, 2017, p. 287-314.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora 34,
2017.

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