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RESENHA

BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores C; VAGGIONE, Juan Marco.


Gênero, neoconservadorismo e democracia.
São Paulo: Editora Boitempo, 2020, (222 págs.).

Narrativas neoconservadoras
e políticas antidemocráticas
CAMILA CAROLINA HILDEBRAND GALETTI*
ADALBERTO FERDNANDO INOCÊNCIO**

caminho para que atores políticos de


extrema-direita se consolidassem, bem
como qual é o contexto que define os
embates entre os movimentos sociais
versus movimentos conservadores. Para
cumprir tais objetivos, direcionam o
foco desta discussão às relações de
gênero, enfatizando o papel da religião,
dos direitos e do que tem sido entendido
como democracia nesse emaranhado. A
compreensão de quais pilares têm
consolidado o neoconservadorismo é de
extrema relevância, pois a partir deste
se estabelece uma lógica normativa e
disciplinadora interiorizada pelos
sujeitos contemporâneos, resultando,
assim, em um modelo de governança e
cidadania (Biroli et al., p. 26).
A tônica que entremeia os três textos é a
de que não é possível abordar a
Publicado em língua portuguesa, ascensão do neoconservadorismo sem
Gênero, neoconservadorismo e relacioná-lo com o neoliberalismo.
democracia (2020), das/o autoras/o As/os autoras/es argumentam que a
Flávia Biroli, Maria das Dores Machado racionalidade neoliberal preparou o
e Juan Marco Vaggione, aborda o atual terreno para mobilizar e legitimar forças
contexto político em nível internacional, ferozmente antidemocráticas na
mas centraliza a América Latina como segunda década do século XXI, o que
foco da coletânea. Na obra, Biroli et al. proporcionou ataques no que tange a lei,
questionam sobre o que houve de cultura, a política e as subjetividades
novidade na ascensão de movimentos dos indivíduos (Brown, 2019), processo
conservadores que pavimentaram o ao qual eles designaram de iliberalismo

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para se referir à desagenda de inclinação e doutrinadora, daí sua defesa ao
progressista que culminou nas últimas “apartidarismo”.
décadas.
Nesta cartografia, as instituições sociais
Um dos principais efeitos religião e direito coadunam-se como
proporcionados pelo neoliberalismo se fios condutores na garantia da
concentra no aumento das moralidade e hierarquia da família
desigualdades sociais e nas patriarcal cristã (BIROLI et al., p.118,
inseguranças, o que oportunizou o 2020). O direito evidencia-se como
crescimento do populismo atrelado à arena de estratégias voltadas à
extrema-direita. Afetos são mobilizados manutenção do conservadorismo moral.
para que haja aderência das pessoas aos A exemplo, no Brasil, a atuação de
discursos moralizantes, impulsionando diversas deputadas federais do Partido
nos indivíduos sentimentos de perigo, Social Liberal (PSL), como a deputada
principalmente no que tange à família Chris Tonietto (RJ), advogada, católica,
nuclear como instituição social. Um dos que utiliza suas redes sociais para fazer
aspectos mais importantes da aliança lives rezando o terço e propõe diversas
entre neoliberais e conservadores – o discussões denunciando a ‘cultura da
que engendra o neoconservadorismo – é morte’ ao se referir à descriminalização
que eles convergem em uma narrativa do aborto. Na ocasião, a deputada
da crise, a qual tem como locus a utilizou da terminologia jurídica para
família (Biroli, et al., p. 26). validar suas críticas ao aborto, tendo
como pano de fundo sua fé.
A família nuclear, cristã e
heteronormativa, se posiciona no centro Sobre esse aspecto, Juan Vaggione
do modelo de sociedade defendida pela dedica o primeiro capítulo do livro
agenda neoconservadora. O argumento Gênero, Neoconservadorismo e
dos conservadores é de que seu núcleo é democracia, a pensar de que modo, na
responsabilizado por rearticular uma América Latina, os atores e as
suposta ordem moral que se encontra instituições religiosas utilizam do
em crise. Na prática, podem-se direito como plataforma na defesa de
vislumbrar na América Latina seu próprio sistema de crenças. Com
movimentos que personificam tal isso, o autor chama a atenção para o
agenda conservadora. A exemplo, Con fato de que os direitos humanos se
mi hijos no te metas (“Não se meta com tornaram um campo para a batalha
meus filhos”), movimentação que moral e política e, por parte de políticos
aconteceu em diversos países da cristãos, há um esforço constante em
América Latina, como Argentina, ampliar três pontos centrais: 1) a
Bolívia, Paraguai e Peru em meados de cidadanização do feto, que seria a
2018. As reivindicações de tal grupo investida de buscar ampliar o
permeiam o que, no Brasil, se reconhecimento formal do embrião
assemelharia com as do movimento como pessoa humana; 2) a
Escola Sem Partido (ESP), e sua agenda renaturalização da família, essa torna-se
voltada ao combate da “Ideologia de responsável por todas as vivências dos
gênero” nos sistemas de ensino. Em sua filhos, a base no que tange o ensino, a
retórica, ambos os movimentos acusam educação sexual e etc. e 3) a ampliação
as instâncias educativas de estarem da liberdade religiosa e da consciência,
orientadas com base ideológica marxista a qual busca ressignificar o contexto

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dos debates sobre a sexualidade, a primeiras pensadoras feministas
família e a reprodução, tendo como fio marxistas a desenvolver uma teoria ou
condutor a religião cristã (p. 75). perspectiva de ‘sistemas mundo’ sobre a
reprodução social (FRASER, JAEGGI,
No terceiro capítulo, intitulado Gênero,
p. 48, 2020).
“valores familiares” e democracia,
Flávia Biroli evidencia a importância de Vogel (1983) propunha uma inovação
se compreender os padrões do na teoria de gênero e também nos
neoconservadorismo quando amparados debates marxistas que pode ser
na religião, tendo como foco o modo formulado da seguinte forma: o lugar da
pelo qual atores religiosos mulher como sujeito subalternizado na
conservadores católicos e evangélicos sociedade à época se deve à divisão
têm feito avançar suas pautas e sexual do trabalho, no entanto, a origem
encontrado guarita para a reação ao desta divisão não é uma condição a-
gênero nos espaços institucionais em histórica, responde necessariamente à
diversos países (Biroli et al., p. 136). lógica que funda o trabalho sob a
Nesse emaranhado, a defesa da família sociedade capitalista. Com a obra de
tornou-se uma salvaguarda para Marx (O Capital), a autora buscou
justificar o direito às restrições e entender de que modo se funda essa
naturalização das desigualdades. divisão do trabalho na sociedade
contemporânea e argumenta que a força
Nesta discussão de ascensão
de trabalho tem uma condição especial
neoconservadora, o aspecto da
no caso das mulheres, que foram as
reprodução é indispensável para o
primeiras responsáveis pela produção da
entendimento de como tem se
força de trabalho, uma vez que
pavimentado as fases do capitalismo no
asseguraram a reprodução biológica,
decorrer das décadas, tendo arraigado à
geracional e social. Com isso, a teoria
lógica patriarcal e colonial em todas
da reprodução social tem sido resgatada
elas, de maneiras distintas. Nas palavras
para se pensar como o neoliberalismo
de Fraser e Jaeggi, o trabalho
tem (re)organizado as relações entre os
reprodutivo pode ser compreendido
indivíduos em consonância com o
como toda forma de prover, cuidar ou
patriarcado.
interagir que produzem e mantêm os
laços sociais, ou seja, todas as As investidas de autoras mulheres
atividades constroem como seres referidas até aqui têm contribuído para
sociais, formando seu habitus (Ibidem, que, nas últimas décadas, movimentos
p.46). Ao analisar o trabalho feministas pudessem questionar a
reprodutivo, Silvia Federici (2018) entra constituição do trabalho reprodutivo
em consonância com Fraser e Jaeggi ao como função eminentemente feminina,
afirmar que este não só aumenta nossa o que fez aumentar as tensões da vida
exploração, como também reproduz familiar, que passou a cobrar novas
simplesmente o nosso papel de diversas formas de organização da reprodução
formas e, principalmente, pode ser social. Com o avanço das agendas
considerado como o pilar de sustentação feministas vislumbra-se, também, uma
do sistema capitalista, junto a outras reação conservadora, que passa a
formas de trabalho não remunerado propagar o ideário neoliberal como
(p.50). Nesta discussão, ressaltam que capaz de ressignificação da categoria
Maria Mies e Lisa Vogel foram as mulher. Conservadora, pois tal reação

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está alinhada a um ideário patriarcal que abolir a hierarquia social e sim
tem como efeitos práticos um diversifica-la, empoderando as mulheres
esvaziamento das reivindicações e lutas talentosas, negros, minorias sociais para
políticas, reproduzindo, por sua vez, que alcancem o topo. Com isso, fica
políticas antigênero e antifeministas. evidente que o neoliberalismo não é
apenas uma política econômica, mas
Percebemos que há dois movimentos
também um projeto político que busca
apontados tanto na obra de Biroli et al.,
alcançar hegemonia ao montar um
(2020) no que diz respeito à realidade
bloco histórico (Ibidem. p.221)
latino-americana, bem como na de
Fraser e Jaeggi (2020) sobre o atual Por fim, podemos afirmar que em
contexto norte-americano, no que diz ambos livros discutidos aqui, se
respeito à atuação do neoliberalismo. propõem a tentar desvelar como a
Ambas autoras demonstram que de um economia política molda a
lado há uma movimentação bem subjetividade, num cenário de pós-
consolidada de encerramento do diálogo financeirização e crise, baseado em
e radicalismo, por parte de seus atores e lógicas mercantis de empreendimento
atrizes, sobre tudo que está relacionado equacionado com a moralidade, com o
à agenda feminista, direitos humanos e fortalecimento de uma ideologia
movimentos sociais de forma geral. Por familista e com política antigênero.
outro lado, há o que Fraser intitula de Sendo assim, as lentes teórico-
neoliberalismo progressista, que não metodológicas propostas por Biroli et
encerra o diálogo com os movimentos al. (2020), nos permitem pensar em
sociais, mas sim se apropria de algumas possíveis saídas para a ascensão da
pautas e forma uma nova dinâmica de política antidemocrática na América
subjetivação política. Essa que não visa Latina, bem como o papel da religião
emancipar os indivíduos, mas sim atrelada com o Estado e com o âmbito
inserir alguns deles na lógica capitalista. jurídico, tornando-se pilares da
extrema-direita.
Ao focar excessivamente na livre
escolha, o neoliberalismo progressista Já Fraser e Jaeggi (2020) demonstram o
torna-se palatável e passa a mobilizar a quanto a crise do capitalismo
categoria do poder e da autonomia, financeirizado tem muito a ver com a
como se esse estivesse ao alcance de ecologia, a democracia, a reprodução
todas/os. Nessa lógica, as mulheres social e a organização do trabalho
internalizam as divisões sociais e as remunerado (p.225), e de que maneira a
hierarquias de poder por meio de extrema-direita tem mobilizado o
técnicas cotidianas de gênero, a tal neoconservadorismo e o neoliberalismo
ponto que se tornam parte de suas como supostas respostas à crise em
subjetividades. Cria-se a crença que as evidência. No entanto, apesar de não
mulheres possuem o controle completo apresentarem respostas e alternativas
de suas vidas, que elas podem se tornar concretas, tais obras nos dão condições
o que elas quiserem, empreendedoras, para pensar de forma rica, eloquente e
livres, empoderadas e, mesmo assim, elaborada a atual conjuntura e o
vão dar conta da dupla ou tripla jornada neoconservadorismo, o que torna a sua
de trabalho. Fraser e Jaeggi (2020) leitura necessária, gerando mais
afirmam que o objetivo do inquietações sobre um tema que a obra
neoliberalismo progressista não é o de está longe de ter esgotado.

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Referências FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo
em debate: uma conversa na teoria crítica.
BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores
São Paulo, Editora Boitempo, 2020.
C; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero,
neoconservadorismo e democracia. São Paulo, VOGEL, L. Marxism and the Oppression of
Editora Boitempo, 2020. Women: Toward a Unitary Theory. New
Brunswick/New Jersey: Rutgers University
BROWN, Wendy. Nas ruínas do
Press, 1983.
neoliberalismo: a ascensão da política
antidemocrática no ocidente. São Paulo.
Editora Politéia, 2019.
Recebido em 2021-04-31
FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Publicado em 2021-07-01
Revolução: trabalho doméstico, reprodução e
luta feminista. São Paulo: Elefante, 2018.

*
CAMILA CAROLINA HILDEBRAND GALETTI é doutoranda em Sociologia pelo
Programa de Pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: cchgaletti@gmail.com

**
ADALBERTO FERDNANDO INOCÊNCIO é Doutor em Ensino de Ciências pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor colaborador na Universidade Estadual de Maringá
(UEM). E-mail: afinocencio88@gmail.com

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