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Bruna Amato
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
'10.37885/220709519
RESUMO
Violência e Gênero: análises, perspectivas e desafios - ISBN 978-65-5360-163-5 - Vol. 1 - Ano 2022 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.org
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que ocorreram em escolas públicas do Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente; em
outros países, como Canadá e principalmente Estados Unidos, foram noticiados massacres
como o de Isla Vista, ocorrido em 2014 na Universidade da Califórnia e o ataque de Toronto,
no ano de 2018 (um atropelamento em via pública). Somados, somente esses quatro mas-
sacres, deixaram 34 pessoas mortas e dezenas de feridas. O que esses acontecimentos
guardam em comum são o fato de terem sido mobilizados, articulados e organizados por/em
organizações masculinistas, que englobam um conjunto de pessoas e grupos, principalmente
jovens brancos cisheterossexuais, que pregam ódio contra as mulheres e outras minorias
políticas e encontram legitimidade para seus discursos e ações nesses espaços online.
Seus discursos envolvem, de maneira geral, a culpabilização das mulheres por suas
próprias frustrações sexuais e sociais, por meio de teorias de um suposto privilégio feminino,
que relegaria os homens a posições subalternas e os prejudicaria no acesso a direitos. Como
organização fundamentada na misoginia, eles se articulam majoritariamente pela internet,
em fóruns (chans)1 onde é possível encontrar desde informações sobre como aproximar-se
de mulheres, manipulá-las e violentá-las ao planejamento e incentivo de massacres, tais
como os citados anteriormente. Os grupos masculinistas têm se constituído, nesse sentido,
como um dos antros de produção de discursos de ódio, não apenas devido à violência ex-
pressa na linguagem e em suas práticas, mas por participarem da manutenção, direta ou
indiretamente, de narrativas de extrema-direita, produzindo um referencial subjetivo e de
identificação no contexto de uma sociedade capitalista neoliberal.
1 Abreviação da palavra channel que traduzida significa canal. Chans, portanto, são canais online, fóruns anônimos, localizados na
deep web, por onde a comunicação acontece em mensagens de texto e imagens.
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O’Donnell (2021), ao se debruçar sobre as narrativas de um desses grupos, os incels,
pontua que a identificação entre homens se ancora tanto na ideia da heterossexualidade
como indicativo do dever ser-homem, quanto da virgindade. Esta última se relaciona com a
experiência de uma masculinidade frustrada que, ao posicioná-los abaixo na hierarquia entre
homens, é usada para justificar a própria opressão e culpabilizar as mulheres. Segundo a
autora, a impossibilidade de performar ou incorporar esse ideal imaginado se baseia em uma
noção misógina de que os homens teriam direito natural ao sexo e, portanto, aos corpos das
mulheres enquanto meio de sua concretização. Não à toa, nesses meios são comumente
compartilhadas táticas para se aproximar de mulheres, que se baseiam no menosprezo
como forma de fragilizá-las, conhecidas como NEG, até sugestões de incitação ao estupro,
incluído aqui o estupro corretivo direcionado a mulheres lésbicas.
É importante ressaltar que, apesar de os masculinistas se organizarem de formas
distintas e se movimentarem principalmente por meio do anonimato e em níveis distintos
da internet (dos mais aos menos acessíveis diretamente por usuários comuns), as ideias
contidas em seus discursos, pensamentos e expressões não ficam restritos a um espaço
online. O ódio contra as mulheres e outras minorias políticas ganham força e terreno no
corpo social como um todo, atravessando indivíduos, instituições, políticas públicas, gover-
nos e nos debates públicos. Aparece, por exemplo, nos discursos que sugerem que a luta
por direitos de determinados movimentos (LGBT+, feministas, antirracistas, entre outros)
seriam, na verdade, privilégios concedidos a esses mesmos grupos, pela ruptura que suas
existências acabam produzindo nos pilares hegemônicos da cisheteronorma, da branquitude
e da corponormatividade.
À medida que movimentos sociais, na luta por reconhecimento, garantia de direitos,
representação e participação política, evidenciam as lógicas dominantes que produzem as
desigualdades sociais, passam a criar outras narrativas e disputas por ideais societários.
Essa desestabilização, por sua vez, ressurge no imaginário social como uma espécie de
ameaça aos modos de vida e existência tidos como naturais. O lugar social do homem
branco, cisgênero e heterossexual e a noção de realidade produzida por esses parâmetros
é, então, colocada em cheque. Segundo a perspectiva foucaultiana, podemos entender que
cada contexto histórico, político e social se apresenta como uma correlação de forças, em
que a disputa de narrativas evidencia os saberes e práticas instituídas e fazem questionar
um determinado regime de verdade (FOUCAULT, 2012).
Nessa direção, a intensidade das frustrações e processos de auto-depreciação e au-
to-ódio experienciados na lógica masculinista têm como fundo não apenas a corrida pela
masculinidade hegemônica e a afirmação de seu lugar na sociedade, mas o posiciona-
mento das mulheres como O inimigo que deve ser combatido. Em seus discursos, parece
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se apregoar a volta de uma época, um tempo em que as relações sociais garantissem seu
lugar natural, por meio de arranjos ou qualquer outro dispositivo que permita um certo lugar
de posse sobre as mulheres. Ainda que isso soe como um pensamento ultrapassado ligado
a um grupo específico de homens e remeta a algo distante, compartilhado no submundo
da internet, essa lógica faz parte dos mesmos modos de subjetivação que configuram, por
exemplo, as motivações em muitos dos casos de feminicídio no país e no mundo. Nesse
sentido, não só o Brasil ocupa o 5º lugar de feminicídios globalmente (WAISELFISZ, 2015),
em um ranking de 83 países analisados, como muitos desses assassinatos ocorrem em
circunstâncias nas quais os homens não aceitam qualquer outro contexto que desestabilize
suas formas de poder sobre a mulher: término de relacionamento, separação/divórcio, início
de outras relações, entre outros. Um levantamento do Ministério Público de São Paulo sobre
a caracterização dos feminicídios aponta que, em 45% dos casos, há o inconformismo com
a separação/rompimento da relação e, em 30% deles, aparecem os ciúmes, sentimentos de
posse ou machismo como fatores determinantes (MINISTÉRIO PÚBLICO, 2018).
Poderíamos dizer que os homens que se identificam com o movimento masculinista
se veem como vítimas de um mundo cuja ordem natural das coisas está subvertida. A cul-
pabilização atribuída às mulheres e às lutas feministas diz muito mais da impossibilidade de
se sentirem parte de um projeto de domínio sobre esses corpos do que simplesmente uma
experiência de inabilidade social e rejeição sexual. Para Kelly e Aunspach (2020), ao mesmo
tempo em que os masculinistas incels falham no sentido de incorporar em suas vivências
uma masculinidade hegemônica, seus discursos estão estritamente ligados às ideias de do-
minação sexual e racial encontradas nas lógicas supremacistas da extrema-direita. O lugar
social da vitimização opera como pano de fundo para justificar as fantasias e práticas de
violência misóginas e racistas, “ao naturalizar o desejo sexual masculino como uma forma
de autovalorização da identidade branca, do autodomínio e do senso de direito, enquanto
encaram homens negros e não-brancos como uma ameaça sexual” (p. 150, tradução nossa).
O ódio gerado funciona como motor para incentivar o combate a tudo o que está aí,
com base na ideia de que a sociedade falhou para com esses homens e não mais sustenta
sua possibilidade de dominação. Nesse entendimento, qualquer afirmação de diferença que
coloque em xeque os valores supostamente naturais reivindicados por eles e produza um
desequilíbrio nas relações de poder, aciona e mobiliza afetos de ressentimento sobre um
mundo que não mais existe, mas para o qual se deseja retornar.
A similaridade desse pensamento com as premissas fascistas e de extrema-direita
não é mera coincidência, posto que a atuação das tecnologias de governamentalidade dão
forma a diferentes expressões do fascismo. Um dos pilares discursivos do atual governo - a
defesa da família - expressa, em nosso contexto, a busca também por uma noção de núcleo
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familiar com determinados valores, que supõe a união entre um tipo de homem e um tipo de
mulher e situam suas funções específicas nessa relação. Nessa concepção, há a tentativa
de retorno para algo que se supõe ameaçado, profetizando o enfrentamento a todas as for-
ças que abalam a tradicional família brasileira. Esse discurso, vale lembrar, ganhou força
no contexto da ditadura militar no Brasil, expressa à época pela Marcha da Família com
Deus pela Liberdade, uma resposta conservadora diante da retórica do perigo comunista
que assolava o país. O ideal familiar expressa, portanto, um território cisheterossexual que
precisa ser defendido e, nos dias atuais, produz no imaginário coletivo a rivalização e o ódio
direcionado à população LGBT+ como desestruturadora desse lugar.
Para compreender como esses pensamentos e sentimentos são mobilizados na cons-
tituição dos discursos de ódio, é importante levar em conta que a produção do fascismo e
as vias pelas quais se expressa se atualizam no contexto do funcionamento capitalista, por
meio da lógica neoliberal. Deleuze e Guattari (2010) vão trabalhar, em sua obra, que cada
contexto histórico, social e político cria e fornece condições para que os fluxos desejantes se
liguem a determinadas máquinas agenciadoras no corpo social. O desejo, nessa perspectiva,
opera como criador de realidade, modificando, fazendo arranjos, (des)estruturando-a e, assim,
produzindo modos de vida. Essa produção, por sua vez, acontece por meio de agenciamen-
tos que vão produzir circuitos específicos por onde o desejo circula, se molda e se articula.
Ao fazer essa discussão, Hur (2020) aponta como a máquina neoliberal, própria do
capitalismo contemporâneo, funciona por um diagrama do maior rendimento. Em um sis-
tema no qual se reivindica a ideia da experiência de uma suposta liberdade (a liberdade
do indivíduo), o desejo não opera nem em circuitos completamente fechados de captura,
tampouco circula de forma livre, constituindo-se de modo a estar sempre em um processo
de hiperprodução, expandindo suas conexões a qualquer custo, literalmente. Dessa manei-
ra, configura-se como uma máquina paradoxal em seu próprio funcionamento: onde tudo é
direcionado a se produzir cada vez mais (dinheiro, trabalho, felicidade, etc), o mais nunca
é atingido, gerando um esgotamento dos fluxos desejantes.
É nesse processo de esgotamento perpétuo e de uma crise da subjetividade capitalista
que, segundo o autor, o desejo pode se conectar a outro agenciamento: o neofascista. Nesse
caso, a condição posta pela lógica neoliberal mantém o desejo pela lógica da hiperprodução,
mas aciona também, pela promessa não atendida, uma forma de ressentimento, que pode
se desdobrar e colocar em seu centro a aversão e reatividade ao outro, à diferença:
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ameaça. As segmentarizações, os racismos de diversas espécies, tornaram-se
os marcadores das diferenças, os indicadores das alteridades que devem ser
atacadas, ou seja, os bode-expiatórios da governamentalidade neofascista
(HUR, 2020, p. 192).
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“Grava aí, grava aí, que eu sou estuprador, eu sou estuprador agora…olha, jamais ia estu-
prar você que você não merece (...)’’ - fala proferida à deputada Maria do Rosário durante
entrevista da RedeTV!, em 2003, enquanto ocupava o cargo também de deputado, feito que
repetiu em 2014 no plenário da Câmara (JORNALISMO TV CULTURA, 2014). Ou quando,
ao declarar seu voto a favor do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016,
saudou seu ídolo coronel Ustra - “o pavor de Dilma Rousseff” (ESTADÃO, 2019) -, chefe
do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna
(Doi-Codi), órgão de repressão da ditadura militar brasileira responsável, sob seu comando,
por 1 tortura a cada 60 horas e cerca de 1 morte por mês (MEMÓRIAS DA DITADURA,
s.d.). As declarações são muitas, passando por atribuir o fato de ter uma filha em meio a
quatro filhos homens como fraquejada, pelas insinuações de apelo sexual a jornalistas mu-
lheres, até os sucessivos deboches sobre as investigações do assassinato da vereadora
Marielle Franco.
Muitas dessas manifestações, ao serem publicizadas, têm sido abordadas no campo
do polêmico, posicionando-as na esfera do absurdo, como algo que beira o limite do (ir)real,
do que seria ou não aceitável de ser verbalizado. Contudo, mais do que um tipo de retóri-
ca, a polêmica não tem espaço para troca, para contrapor diferentes posições ou mesmo
conflitos. Qualquer que seja a perspectiva que produz algo de diferença em relação ao que
está sendo colocado é por princípio anulada pois,
Ainda que não haja consenso sobre sua definição, podemos dizer que os discursos de
ódio constituem formas discriminatórias contra determinados grupos e indivíduos pertencentes
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a estes; porém, mais do que isso, carregam a marca da incitação ao ódio, à violência, ao
desprezo e toda sorte de hostilidade. Quanto aos seus alvos, sugere-se que “especialmente
no tocante aos grupos atingidos pelo discurso do ódio, de fato, o discurso invariavelmente
é direcionado a sujeitos e grupos em condições de vulnerabilidade” (SCHÄFER; LEIVAS;
SANTOS, 2015, p. 147).
A Artigo 19 (s.d.), organização não-governamental atuante na defesa da liberdade de
comunicação e expressão na perspectiva dos Direitos Humanos, elenca alguns critérios
para caracterizar esses discursos: 1) a gravidade e profundidade da ofensa proferida; 2)
intencionalidade na incitação do ódio; 3) o conteúdo e a forma dos discursos; 4) extensão;
5) probabilidade de risco ou dano decorrente da incitação de ódio; 6) a iminência e 7) o
contexto em que são proferidos. Apesar de existirem acordos, tratados e jurisprudência
internacionais no combate aos discursos de ódio, no Brasil não há legislação específica
que trate das definições e efeitos dessa problemática, contando, todavia, com elementos
da própria Constituição Federal (BRASIL, 1988) e tentativas de criar amparo jurídico para
discriminação de grupos sociais específicos. Como exemplo mais recente, em 2019, tive-
mos a criminalização da transfobia e homofobia seguindo a aplicação da Lei do Racismo,
resultante da decisão do Supremo Tribunal Federal. Um ano antes, foi sancionada também
a chamada Lei Lola, que legisla sobre a competência da Polícia Federal na investigação de
crimes de ódio contra as mulheres no âmbito da internet (BRASIL, 2018).
Esse cenário se torna mais crítico à medida que acompanhamos como a internet veio
a se tornar um dos meios de principal incitação e difusão desses discursos, sabendo que
seus efeitos não se restringem, porém, ao que se entende por esfera online. A divisão das
dimensões online/real ou virtual/material, como espaços separados, pode nos levar a uma
compreensão errônea não só da realidade da violência estimulada, mas do risco em reduzir
as possibilidades e os efeitos produzidos por esses discursos. Em uma análise simplista,
pode-se inferir que os xingamentos, as humilhações, formas de desprezo e ameaças em-
preendidas só se tornam um problema real quando há passagem ao ato, ou seja, quando
essas formas discursivas de um ódio direcionado se concretizam em ações, que podem
abranger de uma exposição pública a um atentado ou massacre mobilizados por tais dis-
cursos, como no caso dos grupos masculinistas.
Butler (2021), em sua obra sobre discursos de ódio no contexto estadunidense na
década de 90, problematiza de que formas a linguagem pode ferir e quais são as rupturas e
resistências possíveis de serem criadas diante do endereçamento do ódio. Um dos questio-
namentos feitos pela autora diz respeito à ideia de ameaça expressa nesses discursos. Ela
afirma que a ameaça, como linguagem, não só pressupõe ou antecipa a ideia de um ato que
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pode vir a acontecer, mas constitui ela mesma um ato corporal, à medida que performatiza
as possibilidades da ação, das quais depende para suscitar seu efeito.
Dessa maneira, entendemos que, ao pensar as relações entre violência e linguagem, é
preciso levar em conta que o discurso diz também de uma instância material, que corporifica
o ódio não apenas como seu efeito ou resultado, mas como a própria base mobilizadora do
desejo de aniquilação compõe determinados modos de subjetivação: dos fóruns masculinistas
onde são proferidas e conjecturadas diversos tipos de ameaça a existência de mulheres às
redes sociais em que se trocam mensagens ameaçadoras por meio de ataques pessoais e
reações a determinados posicionamentos, experiências e visões de mundo. Se podemos
dizer que nem toda fala ou mensagem advinda, por exemplo, de um ou mais usuários se
torna efetivamente e de imediato aquilo que ameaça, não podemos ignorar que os enunciados
que a sustentam funcionam como pontos de ebulição de um processo que cria condições
de medo constante e que efetiva sua ameaça pela ideia de que, a qualquer momento, esta
pode irromper em determinada ação.
Os discursos de ódio canalizados fundamentalmente para as mulheres, como ocorre
no masculinismo, também aparecem, no âmbito do bolsonarismo, fazendo referência a ou-
tras minorias políticas, como pessoas negras, LGBT+ e com deficiência. Os pilares de uma
certa masculinidade - viril, cisheterossexual, militarizada - precisam ser fincados, no intuito
de erguer sua soberania, não apenas no ódio misógino em seu sentido estrito, mas na hie-
rarquização das diferenças e na atribuição de características tidas como inferiores a corpos
dissidentes. Uma das consequências possíveis de serem constatadas nesse contexto é a
violência pregada diretamente contra esses grupos, muitas das quais exercidas por meio
das redes sociais, mas também sentidas em outros espaços, como os públicos, familiares
e institucionais.
Quando falamos em bolsonarismo, não nos referimos única e exclusivamente ao próprio
Bolsonaro, mas a uma cultura de ódio mobilizada a partir das premissas, anseios e valores
que sua figura representa e aos quais confere legitimidade. Para ficarmos em um exemplo,
a pesquisa Violência contra LGBTs+ no período eleitoral e pós-eleitoral da Ong Gênero e
Número (BULGARELLI; FONTGALAND, 2019) mostra que 51% das pessoas LGBT+ con-
sultadas afirmaram ter sofrido violência relacionada a sua orientação sexual e/ou identidade
de gênero durante o período das eleições de 2018, que ocorreram majoritariamente nas
ruas/em espaços públicos, seguido de locais de comércio/serviço público e no ambiente
familiar. Chama a atenção o fato de que 86% das pessoas sinalizaram ter sido alvo dessas
violências por pessoas desconhecidas, e 44% pontuaram que a autoria da violência partiu
de integrantes de partido ou grupo político.
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Em especial os primeiros anos do atual governo foram marcados por diversos discursos
que assentaram a proposta antipolítica de gênero, ordenando-se em torno de um esface-
lamento da agenda de direitos humanos, que Cunha (2020, p. 57) define como “o conjunto
de atuações, discursos e opiniões elaborados num campo político que têm por escopo
deslegitimar pautas de coletivos e movimentos articulados em torno ao gênero e conferir às
discussões fomentadas um caráter de impertinência ou insolência”. A ênfase na chamada
ideologia de gênero, que coloca sob esse termo tudo aquilo que é contrário aos valores
conservadores, cria a noção de um território que precisa ser combatido e/ou do qual se faz
necessário expurgar certos elementos que não lhe são naturalmente pertencentes. Essa
arma discursiva procura, portanto, estabelecer os limites dos corpos e dos modos de vida
que podem ou não ter lugar na sociedade, determinando as fronteiras não apenas da inteli-
gibilidade social, mas criando um campo do que deve ser moralmente desejável. O apelo à
ideia de ideologia faz referência a algo iminentemente perigoso, que está sempre à espreita
porém de forma dissimulada. Contudo, como afirma Cunha (2020), essa operação oculta
ela mesma a posição dos pensamentos, valores e ideias dominantes como um conjunto
próprio de ideologias que, por se imbricarem com a norma, assumem um caráter universal/
natural. Nesse sentido, a própria produção do que se constroi como realidade não escapa
às relações de poder, constituindo “uma prerrogativa enormemente poderosa no mundo
social, uma maneira mediante a qual o poder se dissimula como ontologia” (BUTLER, 2006,
p. 48, tradução nossa).
A manifestação pública dos discursos de ódio, tanto por políticos que se elegeram pela
promessa de combate aos mesmos grupos sociais, bem como por seus apoiadores diretos
e indiretos, tem banalizado as violências proferidas e utilizado da equiparação de suas
falas a uma forma da liberdade de se expressar. O direito pela liberdade de expressão, em
nosso país, faz alusão a uma luta decorrente de duas décadas de ditadura aqui vividas, na
qual os pensamentos e práticas contrários ao regime eram censurados previamente e/ou
combatidos por perseguição e tentativa de aniquilação das pessoas opositoras. Contudo, a
expressão dos atuais movimentos de extrema-direita no Brasil e no mundo recorre ao direito
às liberdades individuais, subvertendo a perspectiva dos direitos humanos pelo uso de sua
própria lógica. O limiar entre discurso de ódio e a liberdade de expressão, nesse sentido,
confere novas fronteiras no entendimento da violência, pois coloca a liberdade - por conse-
quência, irrestrita - como valor central da sociedade, não importando a qual custo ela venha
a ser exercida. Sustenta-se, dessa forma, uma apropriação individualizante sobre viver o
pacto social, sugerindo a possibilidade de que tais discursos possam ser investidos como
um conflito de ideias, posicionamentos e visões de mundo.
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As forças sociais e políticas que criam condições para a fomentação dos discursos de
ódio em diversos níveis, especialmente em reação às minorias e aos novos territórios sociais
que se constituem a partir de suas lutas e conquistas, têm na masculinidade hegemônica
e em sua manifestação por meio da violência um elemento centralizador de identificação e
referencial subjetivo. Oliveira e Silva (2018) trabalham a noção de masculinidade predatória
para indicar uma identidade construída pela oposição às minorias, que engloba diferentes
classes sociais e contextos geopolíticos e pela qual se afirma a necessidade de re(esta-
belecer) a ordem e o poder pela sujeição de outros grupos. Com base na obra de Sayak
(2010, apud OLIVEIRA; SILVA, 2018, p. 4), as autoras afirmam que esse ideal se torna
“essencial para manutenção da necropolítica e do necropoder por ser altamente baseada
em condutas de violência contra si e contra minorias como parte da construção identitária
de si mesmo”. Nessa perspectiva há, portanto, uma retomada de ideais colonizatórios que
se voltam contra as mulheres e a tudo que é compreendido como feminino, criando pânico
em torno das ditas pautas morais e se aproveitando - ao mesmo tempo que instigando - da
sensação generalizada de insegurança e da instabilidade social e econômica próprias do
neoliberalismo e das crises de um sistema econômico que aprofunda as desigualdades
sociais (OLIVEIRA; SILVA, 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que a Psicologia, afinal, tem a ver com isso? Como campo de produção de saberes
e de práticas em uma perspectiva ético-política, não é possível pensar o discurso de ódio
como manifestação estritamente individual - típico de uma racionalidade liberal - tampouco
encarar o combate a seus efeitos apenas sob uma premissa legal e jurídica. Suas diferentes
manifestações contemporâneas nos apontam, sobretudo, para os modos de subjetivação no
contexto capitalista neoliberal e as formas que o desejo pode ser modulado, atualizando-se
em expressões neofascistas.
Os pensamentos que sustentam os discursos masculinistas, por exemplo, constituem
um embate e fomento direto e explícito do ódio, mas isso não faz deles uma espécie de
grupo isolado, e sim uma das expressões máximas das relações sociais que produzem co-
tidianamente a violência de gênero. Nesse sentido, podemos dizer que a cisheteronorma,
como um regime político e econômico, se alia a um ideal de masculinidade que se forja
pela violência e pela subjugação de minorias, mantém e produz condições para que esses
discursos circulem, se perpetuem e se produzam sempre sob diferentes facetas. Essa mas-
culinidade - hegemônica e predatória - é, então, acionada como elemento de convergência
desse ódio e de um senso de identificação, suscitando ataques a mulheres, pessoas LGBT+
e também a masculinidades outras.
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Kelly e Aunspach (2020, p. 27, tradução nossa) afirmam que “o discurso masculinista
(incel) é um microcosmo de uma narrativa maior sobre a vitimização do homem branco que
é parte integrante da política da era Trump”. O é, também, da era Bolsonaro. Ao mesmo
tempo, se deslocarmos o questionamento de quem detém o poder? para como o poder é
exercido?, passamos a entender melhor sua dimensão e possibilidade de ser agido e efe-
tuado por uma rede de capilaridade, que envolve diversos sujeitos, relações de saber-poder,
normas e instituições. Na rede de elementos que produz e sustenta os discursos de ódio, o
masculinismo e o bolsonarismo se cruzam, se articulam e amplificam um ao outro.
Vimos que os discursos e práticas neofascistas não decorrem somente de um go-
verno específico, mas se articulam e se evidenciam por meio deste, em um processo de
retroalimentação. Ainda que, enquanto instância máxima do poder representativo, não pos-
samos determinar até onde vão seus efeitos na sociedade, é certo que contribuiu para a
naturalização dos discursos de ódio. Não só legitimou, como investiu incessantemente na
formação subjetiva dos inimigos a serem combatidos e em um projeto societário movido pelo
desejo de aniquilação dos que não pertencem a ele. Se os discursos de ódio se constituem
como tal justamente porque seus efeitos de violência incidem coletivamente sobre grupos
sociais já vulnerabilizados, pode-se levar em conta como um de seus efeitos a fragilização
da saúde mental das pessoas e/ou grupos alvos de suas manifestações. Dessa maneira,
cabe à psicologia considerar como esses discursos sustentam práticas cotidianas, relações
sociais e lógicas institucionais, determinando assim as condições de vida e possibilidades
de existência para quem sofre seus efeitos reiteradamente.
Compreender ainda os processos de subjetivação que operam por meio da hiperpro-
dução capitalista e do esgotamento social nos ajudam a pensar os modos de ser, pensar,
desejar e agir que são estimulados e naturalizados na sociedade, e por meio de quais afetos
estes são mobilizados. Os discursos de ódio preocupam não apenas pelos efeitos sobre os
sujeitos aos quais são direcionadas diferentes formas de violência, mas porque, no fim das
contas, escancaram o ideal de nação e sociedade que os sustentam.
Agradecimentos
REFERÊNCIAS
1. ARONOVICH, Lola. O masculinismo como ele é. In: Lola Aronovich. Escreva Lola
Escreva. Ceará, 10 maio 2012. Disponível em: https://escrevalolaescreva.blogspot.
com/2012/05/o-masculinismo-como-ele-e.html. Acesso em: 26 jul. 2022.
Violência e Gênero: análises, perspectivas e desafios - ISBN 978-65-5360-163-5 - Vol. 1 - Ano 2022 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.org
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https://docplayer.com.br/16571832-Panorama-sobre-discurso-de-odio-nobrasil.html.
Acesso em: 26 jul. 2022.
7. BUTLER, Judith. Discurso de ódio: uma política do performativo. São Paulo: Editora
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10. DONOVAN, Jack. The way of men. Milwaukie: Editora Dissonant Hum, 2012.
11. DONOVAN, Jack. Becoming a barbarian. Milwaukie: Editora Dissonant Hum, 2016.
13. FOUCAULT, Michel. Polêmica, Política e Problematizações. In: MOTTA, Manoel Barros.
Ditos e Escritos V: Ética, Sexualidade e Política. Rio de Janeiro: Forense Universi-
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14. FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV: estratégia, poder-saber. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2012.
Violência e Gênero: análises, perspectivas e desafios - ISBN 978-65-5360-163-5 - Vol. 1 - Ano 2022 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.org
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Violência e Gênero: análises, perspectivas e desafios - ISBN 978-65-5360-163-5 - Vol. 1 - Ano 2022 - Editora Científica Digital - www.editoracientifica.org
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