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XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho
de 2019
Amanda Santos2
Nicole Sanchotene3
Abstract: This paper intends to investigate the concept of abusive relationships present in the
media, placing its centrality in the recent feminist movement. In this context,
blaming emotional abuse inside affective relationships constitutes an important
political agenda. We believe that testimonies of abusive relationships are linked to
the victim’s subjectivity and to the therapeutic culture, which will be discussed as a
manner of situating the conditions leading to the rise of such narratives. Nowadays,
the testimony manifests itself as a hegemonic autobiographical narrative. Thus, we
suggest that the modern confession occupied this space previously, and represented
a distinct way of articulating love experience and morality. Finally, aiming to
contributing to the feminist debates, we discussed what may be the political
consequences of this new rhetoric. We question to what extent this discourse about
abusive relationships confers autonomy to women in the intimate relations.
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cultura do XXVIII Encontro Anual da Compós,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019.
2
Doutoranda do PPGCOM – ECO/UFRJ. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Bolsista CNPq. E-
mail: amandassantos94@gmail.com.
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Doutoranda do PPGCOM – ECO/UFRJ. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Bolsista CAPES. E-
mail: freire.nicole@gmail.com.
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1. Introdução
Entre campanhas nas redes sociais e protestos nas ruas, as várias formas de
mobilização das mulheres se tornaram uma das grandes forças políticas entre os anos de 2014
e 2018 no Brasil (FIG. 1). Além da popular Marcha das Vadias, que ocorre desde 2011 em
várias cidades brasileiras, assistimos diversos protestos de caráter feminista nos últimos anos:
em 2015 e 2017 ocorreram grandes passeatas contra o então deputado Eduardo Cunha e a
PEC 181, que pretendia dificultar o acesso ao aborto legal; em 2016, uma marcha reuniu duas
mil mulheres na cidade do Rio de Janeiro contra a cultura do estupro; e, finalmente, em 2018,
mulheres foram às ruas em diversas cidades do país contra a candidatura à presidência de Jair
Bolsonaro no movimento que ficou conhecido como #EleNão. Na internet, quatro campanhas
obtiveram grande adesão na luta contra o machismo: “Eu Não Mereço Ser Estuprada” (março
de 2014); “Meu Primeiro Assédio” (outubro de 2015), “Eu Vivi Um Relacionamento
Abusivo” (abril de 2016) e “Mexeu com Uma, Mexeu com Todas” (abril de 2017).
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Diversas autoras afirmam que o feminismo passou por um processo de backlash desde
a década de 1980 (FALUDI, 2006; MCROBBIE, 2006): quando não descartado
completamente, o movimento passou a ser considerado algo superado e desnecessário, uma
vez que a igualdade já teria sido alcançada pelas mulheres. Esse cenário mudou nos últimos
cinco anos, ao menos entre determinadas camadas mais jovens e privilegiadas da população
brasileira: cada vez mais mulheres “descobrem-se” feministas (FIG. 2) e abraçam o rótulo
sem ressalvas. Genericamente, não nos parece impreciso afirmar que as violências de gênero
sofridas no interior da experiência sexual e amorosa figuraram como principais pautas desta
“nova onda feminista”. Temas como assédio, estupro e relacionamentos abusivos surgiram
com força nos meios de comunicação, mobilizando milhares de brasileiras a compartilharem
nas redes relatos autobiográficos sobre suas próprias vivências.
FIGURA 2. Capa do livro “Você já é feminista! Abra este livro e descubra o porquê”, publicado em 2016 pela
jornalista Nana Queiroz.
FONTE: http://w w w .dominiopop.com/5-livros-feministas-para-voce-ler-agora/
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Ele não insistiu, embora já me olhasse de modo diferente. [...] Ele não voltou a me
telefonar. Acho que teria me ligado se eu não tivesse me mostrado tão sedenta de
sexo. Ele é do tipo que não aprova essas coisas. Do mesmo modo, 99% dos homens
querem que a gente diga não a eles, que se comporte como donzela casta e
desprovida de desejos. Só assim é que se interessam verdadeiramente. Sei que, se
tivéssemos feito amor, eu teria perdido todo o respeito dele. Mas acho que estraguei
tudo com a demonstração do meu desejo (Ibidem, p. 37).
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desviado da conduta moral esperada, manifestado no temor das consequências de suas ações:
“Tudo o que fizemos até agora foi conscientemente e com amor, mas tenho medo de não
estar agindo certo. [...] Tenho medo de que, no futuro, essas pequenas situações prejudiquem
nosso casamento” (Ibidem, p. 40).
Em suas respostas, Mascarenhas procura provocar em suas “pacientes” uma postura
de desprendimento em relação às crenças dentro das quais elas se encontram prisioneiras:
“Não tenho dúvidas de que boa parte dos homens e das mulheres é constituída por meros
papagaios dos valores sociais dominantes, meros bonecos programados para repetirem as
coisas que lhes foram ensinadas pela família e pela escola” (Ibidem, p. 38). Ao questionar as
regras morais da cultura, ele convida suas interlocutoras a repensarem suas vidas.
Contemplando a possibilidade de um futuro diferente, elas deixariam de ser “bonecos
programados” para experimentar de forma mais livre o seu próprio desejo. Ele responde:
‘Sou ou não sou donzela? Seguro ou não seguro a mão dele? Troco ou não troco
caricias? É hora de aproximar mais intensamente os corpos ou ainda é cedo?’ –
essas não são as verdadeiras questões. [...] Muitas donzelas acabaram virando poços
de rancor e ódio. Muitas ‘gatas no cio’, como você chama, construíram belas
famílias, e viveram emocionantes amores (Ibidem, p. 39).
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Será que você tem medo de administrar sua própria liberdade, seus próprios
impulsos, e por isso coloca a seu lado um policial que a impede de fazê-lo? [...]
Num nível mais profundo, não estaria você, com anos de antecedência, preparando
uma futura posição de vítima? Essa posição não deixa de apresentar várias
comodidades. Sendo vítima, a pessoa pode ir à forra, realizando seus impulsos
legitimada pelo rancor e pelos maus-tratos a que foi submetida. Agora, o fato de
você se agarrar a um homem que a deixa entediada e deprimida me leva a crer que
você tem medo de colocar à prova sua verdadeira capacidade de se fazer amar. [...]
Cuidado com as armadilhas que está preparando para si mesma. (Ibidem, p. 65)
Nessa última frase, fica evidente que o conflito fundamental é psíquico, entre o desejo
sexual reprimido e a regra social conservadora, a vontade de mudar de vida e o medo das
consequências. O poder terapêutico da confissão se exerce na medida em que estabelece um
“mecanismo de saber, de saber dos indivíduos, mas também de saber dos indivíduos sobre
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eles próprios e em relação a eles próprios” (FOUCAULT, 2014, p. 70). Assim, esta forma de
discurso autobiográfico é capaz de provocar no indivíduo uma inquietação com relação ao
seu próprio desejo; em última instância, faz com que localize em si mesmo e nas suas crenças
a causa de seu sofrimento. Uma narrativa que o coloca como sujeito de sua própria história e
confere a ele a responsabilidade de questionar as suas verdades e de transformar a própria
vida.
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que “muitas experiências, que até aqui haviam sido interpretadas como etapas normais da
vida, foram redefinidas como prejudiciais às emoções individuais” (FUREDI, 2004, p. 5). A
ideia de que eventos trágicos e dolorosos deixam rastros na mente que são vistos como
“cicatrizes” passa a ser universalmente aceita. A vitimização passa a estar associada a
experiências cada vez mais triviais (FUREDI, 2013, p. 56). Este alargamento do conceito,
associado à expectativa de empatia com a vítima, penetrou o espaço moral das sociedades
contemporâneas. Mas como este processo foi responsável por reorganizar a vida afetiva dos
indivíduos e alterar drasticamente suas experiências sexuais e amorosas?
Uma das possíveis respostas para essa pergunta começa pela gradual invalidação da
vida privada como um espaço de felicidade e realização. Essa crise coloca em xeque um ideal
burguês de família conjugal constituída pela afinidade que se estabelecera a partir do século
XVII. Naquele momento, o que se observava era “uma idealização crescente do casamento
baseado no afeto, do verdadeiro companheirismo entre marido e mulher” e ao mesmo tempo
“a exigência de privacidade” para a família (TAYLOR, 2013, p. 375-377). A vida privada se
contrapunha à esfera pública, considerada opressiva e hostil: “para se movimentar nesse
universo de fora, era imprescindível o uso de máscaras protetoras, enquanto os reinos da
autenticidade e da verdade encontravam-se dentro de casa e dentro de si” (SIBILIA, 2008, p.
101). Eventualmente, este nexo entre a intimidade da vida familiar e a realização das
aspirações individuais foi sendo não apenas desmantelado, mas essencialmente subvertido.
Antes idealizadas como um “abrigo do mundo cruel”, a vida privada agora é amplamente
retratada como um local de violência, risco e abuso emocional:
Por outro lado, o que caracteriza as relações íntimas contemporâneas é cada vez mais a
sua efemeridade – a liberdade que os parceiros desfrutam de encerrar o relacionamento a
qualquer momento caso deixe de corresponder às suas aspirações e expectativas. Os
relacionamentos atuais são organizados sob a égide da flexibilidade. A moralidade que rege
essa experiência amorosa consiste em afirmar a independência mútua e a simetria no interior
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das relações, ao invés de exigir que se respeite, por exemplo, as normas de monogamia ou de
conduta sexual decente (ILLOUZ, 2012, p. 60).
Nesse processo, as relações deixam de ser regidas por critérios externos e passam a
depender somente de si mesmas, ou seja, da vontade dos indivíduos envolvidos na equação
em manter a relação (GIDDENS, 2002, p. 88). Quando as relações se tornam efêmeras, elas
passam a ser objeto constante de negociação. Mesmo na existência de intimidade amorosa,
persiste a necessidade de impor limites claros entre os indivíduos e determinar
minuciosamente aquilo que é permitido, respeitando a individualidade dos envolvidos. As
normas que governavam a vida íntima se tornam mais ambíguas e incertas, promovendo
novas angústias nos indivíduos. Com isso, a vida afetiva passa a ser vista como “algo que
necessita de manejo e controle”, regulada “nos moldes de um ideal de saúde” (ILLOUZ,
2011, p. 91).
Assim, as relações contemporâneas são, por um lado, marcadas pela instabilidade; por
outro, pela exigência de autonomia e autenticidade. Nelas, a possibilidade de o indivíduo agir
contra sua vontade em nome da manutenção da relação, ou seja, procurando apenas satisfazer
o desejo do outro, vai sendo reduzida. Dessa forma, aquilo que poderia ser interpretado como
um esforço legítimo em manter um relacionamento se torna sintoma de uma relação abusiva:
Nossa era é caracterizada por esta obsessão peculiar com o abuso, ou com as
violações contra o indivíduo. A expansão dos riscos [...] corre em paralelo com a
amplificação do abuso. Desde os anos 1980, a representação dos indivíduos foi
transformada pela normalização da experiência de abuso. Alegações de que o abuso
é frequente, e que a maior parte das pessoas é afetada por ele, são hoje amplamente
aceitas. Estas alegações são bem sucedidas numa atmosfera moral em que a
percepção do aumento da violência ajuda a criar um consenso de que todos são
potencialmente vítimas ou agressores. (FUREDI, 2002, p. 73)
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Além disso, ter sido uma vítima de relação abusiva pode explicar diversas formas de
mal-estar no presente. O conceito de autoestima fornece o nexo entre a experiência de abuso
no passado e o sofrimento no presente. Segundo essa retórica terapêutica, relacionamentos
tóxicos ou abusivos são condenados pelos graves danos que acarretam à autoestima dos
indivíduos, e recuperá-la torna-se sinal de bravura e autenticidade. A baixa autoestima é
considerada, ao mesmo tempo, causa e consequência dos relacionamentos abusivos: “níveis
escassos de autoestima restringiriam [...] a capacidade dos indivíduos controlarem a própria
vida. Inseguras e vulneráveis, as pessoas com a autoestima debilitada [...] estariam mais
suscetíveis a adotar condutas displicentes, hábitos degradantes ou autodestrutivos” (FREIRE
FILHO, 2013, p. 44). O conceito de autoestima desponta, assim, como uma das categorias
culturais mais amplamente acionadas na forma como indivíduos lidam com as adversidades,
justificam suas conquistas e aconselham uns aos outros. Seu imenso poder explanatório
elucida por que obter uma autoestima elevada se tornou um objetivo principal nas práticas
terapêuticas recentes: “o cuidado com a autoestima é prescrito como o remédio mais eficaz
contra a dependência afetiva” (Ibidem, p. 59).
Por trás deste imaginário composto por riscos e abusos está uma concepção dos seres
humanos como extremamente vulneráveis diante de desapontamentos, dificuldades cotidianas
e experiências desagradáveis, como a rejeição ou o fracasso. Ao invés de indivíduos
autônomos e livres, esse discurso produz sujeitos impotentes e cativos de suas experiências
de sofrimento, as quais cada vez mais recebem o atributo da imprescritibilidade. Há hoje
certa noção de trauma segundo a qual, de todas as possíveis consequências de um evento, o
impacto psicológico emerge como a mais evidente, duradora e irreversível (FASSIN;
RECHTMAN, 2009, p. 2). Portanto, a expectativa atual é que toda experiência negativa ou
estressante pode causar no indivíduo consequências emocionais ou danos psicológicos que
perduram, como cicatrizes invisíveis que o impedem de viver normalmente. Dentro desse
novo discurso terapêutico, ao invés de se inquietar quanto ao seu próprio desejo, como
conhecê-lo e experimentá-lo, o indivíduo é levado a se inquietar quanto à natureza do desejo
do outro, questionando que perigos esse desejo impõe à sua autonomia.
Neste contexto, a experiência sexual feminina passa a estar associada tipicamente à
vitimização e à passividade, enquanto o desejo sexual masculino é associado à agressividade
(GREGORI, 1993). As temáticas de assédio, abuso sexual e estupro marcam esse momento.
O que impede a mulher de se realizar sexualmente não é mais seu próprio desejo reprimido e
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angustiado, mas uma experiência traumática em seu passado ou a mera ameaça de violência
que supostamente paira sobre todas as relações heterossexuais.
4
Os relatos estão disponíveis em: https://twitter.com/hashtag/EuViviUmRelacionamentoAbusivo e
https://twitter.com/hashtag/ERelacionamentoAbusivoQuando. Acesso em 13 fev. 2019.
5
Edições de 06 ago. 2015, 31 out. 2016, 11 abr. 2017, 17 abr. 2017, 06 jul. 2017 e 08 mar. 2018. Disponível
em: http://gshow.globo.com/programas/encontro-com-fatima-bernardes/. Acesso em 13 fev. 2019.
6
“Especialista orienta como identificar um relacionamento abusivo”. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/6910107/. Bom Dia Santa Catarina. Acesso em 13 de fevereiro de 2019.
7
“Saiba como identificar e superar um relacionamento abusivo”. GRTV 1ª edição. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/7075864/. Acesso em 13 fev. 2019.
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Não sou formada em medicina nem graduada em Grey’s Anatomy ou House, mas
existe um termo médico chamado cegueira temporária (ou cegueira fugaz). Ela
pode ser causada por fatores externos, como mau uso de smartphones ou produtos
químicos, e por fatores internos, como problemas cardíacos ou psicológicos. [...] Ao
negarmos apoio às vítimas de relacionamentos abusivos, negamos também ajuda a
uma pessoa que está temporariamente cega. [...] Outras só se dão conta da sua
realidade após alguém abrir seus olhos.12
8
“Mulheres sobreviventes da violência dão lição de como identificar relacionamentos abusivos”. Boa Noite
Paraná. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/6945304/. Acesso em 13 fev. 2019.
9
“Três de cada cinco mulheres já foram vítimas de relacionamentos abusivos”. Fantástico. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/6252064/. Acesso em 13 fev. 2019.
10
“Mulher fala sobre a dificuldade de reconhecer e conseguir sair de relacionamentos abusivos”. Bahia Meio
Dia. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5824963/. Acesso em 13 fev. 2019.
11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I-3ocjJTPHg. Acesso em 14 fev. 2019.
12
“O papel da amiga diante de um relacionamento abusivo”. Capricho. Disponível em:
https://capricho.abril.com.br/vida-real/relacionamentos-abusivos-loucura-e-cegueira-temporaria-da-vitima/.
Acesso em 08 dez. 2018.
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experiência abusiva”13. Desse modo, as relações abusivas são construídas como um problema
social ao mesmo tempo grave e invisível, afetando uma grande quantidade de mulheres sem
que elas sequer desconfiem disso, como uma epidemia silenciosa. Uma vez difundida, essa
crença facilita a identificação da audiência com os testemunhos de relacionamento abusivo:
cada indivíduo é levado a se questionar se ele próprio não seria também uma vítima.
Ainda segundo a publicação, uma vez que as mulheres não são capazes de identificar as
violações sofridas, “é muito importante que se conheça de forma mais ‘objetiva’ as
características de um relacionamento abusivo e que se mantenha em mente que, apesar de
existirem diferentes tipos de abuso, muitas vezes eles se misturam”. A postura de
desconfiança quanto à natureza das relações se acentua pelo fato de haver a compreensão de
que práticas machistas abusivas estão naturalizadas em nossa cultura: parte do argumento é
de que certos comportamentos abusivos, como sentir ciúmes, são “romantizados” como modo
de mascarar e normalizar o controle masculino sobre o corpo feminino. Ainda segundo esse
argumento, a violência se manifesta de formas sutis que a vítima nem sempre é capaz de
reconhecer e por isso são recorrentes as matérias trazendo depoimentos reais, questionários e
listas de sintomas, com o objetivo de permitir que a audiência aprenda a identificar uma
relação violenta e, por vezes, se reconhecer também como uma vítima. Alguns textos trazem
títulos como “Você pode estar em um relacionamento abusivo (mesmo que ele não bata em
você)”14 e “15 sinais que ajudam a definir um relacionamento abusivo”15. As listas
apresentam critérios subjetivos como “As ações dele fazem você se sentir estranha ou
questionar se o que aconteceu foi normal” ou “Ele não reage bem a suas conquistas e às
coisas boas que acontecem na sua vida”.
Eva Illouz sugere que o feminismo e a terapia participaram como agentes da
racionalização das relações íntimas, em que “os sentimentos podem ser desligados do sujeito
para controle e esclarecimento”, tornando os relacionamentos “passíveis de
despersonalização, ou propensos a serem esvaziados de sua particularidade e avaliados de
acordo com critérios abstratos” (ILLOUZ, 2011, p. 55) – o que seria, afinal, um
13
“Mas... Isso também é abuso?”. Não Me Kahlo. Disponível em: https://www.naomekahlo.com/mas-isso-
tambem-e-abuso/. Acesso em 14 fev. 2019.
14
“Você pode estar em um relacionamento abusivo (mesmo que ele não bata em você)”. Huffpost Brasil.
Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2016/08/21/voce-pode-estar-em-um-relacionamento-abusivo-
mesmo-que-ele-nao_a_21687641/. Acesso em 20 out. 2018.
15
“15 sinais que ajudam a definir um relacionamento abusivo”. Buzzfeed. Disponível em:
https://www.buzzfeed.com/florapaul/sinais-de-um-relacionamento-abusivo. Acesso em 20 out. 2018.
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self (RADSTONE, 2006, p. 176). A insistente demanda pela revelação pública das
experiências de sofrimento e de nossas emoções (FUREDI, 2004, p. 42), sob o pretexto de
que falar abertamente sobre nossos sentimentos é parte essencial no processo de cura e
libertação (ILLOUZ, 2003, p. 161), garante uma conjuntura favorável à produção dessas
narrativas autobiográficas.
Além disso, narrar publicamente a experiência de abuso seria positivo por ajudar outras
vítimas a se reconhecerem como tal. Em junho de 2017, um testemunho de relacionamento
abusivo viralizou na internet, obtendo mais de 100 mil curtidas e 40 mil compartilhamentos
no Facebook. A autora do relato explica sua decisão de ir a público: “Pensei muito sobre se
deveria escrever sobre a minha vida ou não e decidi que sim. Decido que devo colocar para
fora o que tanto me atormentava e decido, de alguma forma, ajudar mulheres que passam
pelo o que passei”16.
Relatar publicamente sua experiência a fim de gerar identificação em outros indivíduos
que são potencialmente vítimas vislumbra a produção de novas narrativas de si e, portanto, de
novas subjetividades. Partindo do pressuposto que cada cultura conta com formas singulares
de dar sentido ao sofrimento humano que funcionam por meio de códigos de sentido
compartilhados pela comunidade, o conceito de relacionamento abusivo parece se manifestar
como uma forma inédita de estabelecer um nexo entre sofrimento, experiência amorosa e
moralidade por meio da terapêutica. Portanto, este conceito, atrelado à noção de vítima, é
crucial no processo de produção da subjetividade contemporânea.
De forma mais específica, pode-se afirmar que as experiências de alguém dependem,
ao menos parcialmente, dos sentidos e descrições que este indivíduo atribui a elas. Toda
experiência é mediada e enquadrada pelos discursos disponíveis em uma cultura e pelas
normas e valores imbuídos nela. Assim, construir uma narrativa autobiográfica é sempre um
trabalho de enquadramento de experiências. A memória nunca é “pura”, ela não é “uma
reconstituição do passado, mas sempre uma reconstrução feita a partir do presente, ancorada
nas categorias de pensamento e de linguagem daqueles que lembram” (LERNER, 2013, p.
196). O modo como narramos nossa história e classificamos nossas experiências depende dos
sentidos disponíveis para nós no momento em que se constrói a narrativa. Aplicadas
16
Post disponível em: https://www.facebook.com/nane.mastrodomenico/posts/10212923336459404. Acesso em
16 fev. 2019.
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retrospectivamente, novas descrições mudam a maneira como explicamos quem nós somos e
como nos tornamos (HACKING, 1999, p. 162).
Graças à sua larga definição, e por reiterar a preocupação contemporânea com a saúde
mental e com a baixa autoestima, o conceito de abuso é de fácil identificação. Quando em
posse de conceitos expandidos de violência, cada indivíduo pode reinterpretar a sua trajetória
de vida, fazendo com que as suas antigas relações afetivas sejam reelaboradas a partir desse
enquadramento do sofrimento psíquico causado pelo outro imoral: “um determinado quadro
explicativo é transmitido a pessoas consternadas e infelizes, que então o usam para reordenar
ou reorganizar a concepção de seus próprios passados” (HACKING, 1995, p. 88). Desse
modo, a vítima também passa a explicar diversos mal-estares pela noção de que um
relacionamento abusivo é uma experiência traumática: “antigos problemas são
reconfigurados e novos são descobertos, quando a vida é feita inteligível em termos das
linguagens e julgamentos das disciplinas ‘psicológicas’” (MILLER; ROSE, 2012, p. 173).
Quando novas descrições se tornam disponíveis, e entram em circulação através dos
meios de comunicação, por exemplo, então passam a existir concretamente novas
possibilidades de experiências que não existiam antes e que, portanto, não poderiam ter sido
experimentadas até aquele momento. Isso significa que quando uma vítima reinterpreta suas
relações passadas, descrevendo-as segundo novos conceitos (como através da noção de abuso
psicológico), ela não está “descobrindo a verdade” sobre aquilo que aconteceu: ela está
transformando fundamentalmente a sua experiência (HACKING, 1999).
Assim, os testemunhos de vítimas de relacionamentos abusivos podem ser vistos não
como a descoberta de uma verdade antes desconhecida, mas como uma maneira de
reenquadrar as experiências após um término de relacionamento doloroso que provêm ao
indivíduo uma nova narrativa. Esta nova narrativa possui três vantagens imediatas: primeiro,
ela fornece um lugar de responsabilização exterior pelo sofrimento, ou seja, um “agente
culpado”, ao qual será possível direcionar estes sentimentos negativos e aliviar a dor. Quando
acreditamos que fomos vítimas de indivíduos que nos prejudicaram, esperamos que esses
indivíduos sejam cruéis e imorais, e afirmamos nossa identidade e inocência na distância
desses agressores. Em segundo lugar, ao construir para si uma narrativa de relação abusiva
em seu passado, o indivíduo se torna uma vítima corajosa e autêntica, digna de admiração, e
o fim da relação amorosa deixa de ser um momento de fracasso ou rejeição para se tornar
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uma experiência de superação e liberdade. E, por fim, pela noção de trauma, a experiência de
abuso passa a explicar outras dificuldades psicológicas no presente:
Houve muitos 'acaba e volta' até que um dia – a gota d'água veio quando ele estava
em uma festa e não atendia o telefone – eu criei forças, vi que era muito melhor do
que isso, levantei a cabeça e acabei sem nem olhar para atrás. Ele ainda correu atrás
de mim durante algum tempo, mas eu passei a ME amar acima de tudo, e vi que não
queria aquilo pra minha vida. Ainda há cicatrizes, como problemas de autoestima e
insegurança: superar isso é um trabalho diário.17
5. Considerações finais
Se a discussão sobre violência doméstica no Brasil ganhou força com a Lei Maria da
Penha em 2006, os testemunhos de experiências de relacionamento abusivo foram alicerces
da luta feminista somente nos últimos cinco anos. Seria possível dizer que houve,
repentinamente, uma explosão de casos de relacionamentos abusivos? As práticas dos casais
passaram a ser mais agressivas na contemporaneidade? Talvez o modo como tentamos pensar
essa discussão nos leve a crer que, na verdade, são as condições de possibilidade que foram
modificadas de tal modo que este discurso pôde só agora ser constituído, apropriado e
difundido. A análise dessa transformação histórica fornece ferramentas que nos ajudam a pôr
em evidência as marcas do nosso tempo. Nem sempre os conflitos afetivos foram
interpretados pela ótica da violência, e o fato de já ter sido pensado de modo diferente nos
permite colocar a nossa cultura em questão.
As cartas do livro de Eduardo Mascarenhas nos revelam uma forma distinta de dar
sentido ao sofrimento nas relações amorosas desta que está presente nos testemunhos de
relacionamento abusivo. Naquele contexto, a angústia das mulheres era explicada como
resultado do conflito entre seus desejos e as regras morais, e a figura do psicanalista era
fundamental no processo de questionamento das próprias crenças e de transformação de si.
Os conflitos sexuais e morais eram, assim, geridos no espaço privado através do perdão
religioso ou pela análise clínica. Hoje, por outro lado, os testemunhos que narram as
experiências de relacionamentos abusivos levam esses conflitos para o espaço público e
apontam apenas para o questionamento do desejo do outro, que surge como agressivo e
inibidor da autonomia e da liberdade da mulher, por sua vez colocada no lugar de inocência e
fragilidade. Assim, enquanto na Modernidade a psicanálise buscava desvelar o desejo e as
17
“19 mulheres contam como foi sair de relacionamentos abusivos”. Buzzfeed. 24 jul. 2017. Disponível em:
https://www.buzzfeed.com/br/susanacristalli/historias-reais-de-relacionamentos-abusivos-e-como-foi. Acesso
em 16 fev. 2019.
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oponentes como inimigos que devem ser erradicados” (MOUFFE, 2015, p. 18), esses relatos
parecem levar à supressão do outro por conta de sua imoralidade. Desse modo, tornar o
campo da experiência amorosa como palco de uma luta unilateral entre vítimas e agressores
leva a uma moralização do íntimo e do privado e a uma aproximação à retórica punitivista.
A narrativa de acusação, justamente por ser moralizadora, também suprime outras
formas de se pensar as relações por uma perspectiva que dê conta da linguagem como
múltipla. O discurso que denuncia a imoralidade do outro, apenas, não dá abertura a
interpretação de que sujeitos diferentes podem falar uma multiciplicidade de línguas na
dimensão do afeto. Do mesmo modo, a narrativa acusatória inibe qualquer possibilidade de
interpretação que coloque em jogo alguma dimensão de questionamento daquele que relata a
experiência traumática, pois parte do pressuposto da inocência da vítima.
Ora, se a luta feminista tem como um dos pressupostos o empoderamento feminino e
a denúncia de comportamentos paternalistas masculinos dentro das relações, em que medida
esse projeto é de fato efetivo, uma vez que pressupõe que suas vítimas são incapazes de
perceber suas próprias realidades? O questionamento não diz respeito a uma deslegitimação
das denúncias de agressão ou do movimento feminista em suas mais diversas vertentes, mas
de buscar formas de fazer política que nos levem a uma perspectiva que não tenha em seu
cerne o punitivismo como única alternativa. A discussão diz mais sobre como pensar o
político sem que ele esteja unicamente imbricado ao íntimo e individual, mas que seja capaz,
coletivamente, de suscitar modificação estrutural, transformação social e, principalmente, de
conferir às mulheres a posição de agentes de nossa própria história.
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