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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho
de 2019

ABUSO, DESEJO E MORALIDADE: narrativas


contemporâneas sobre sofrimento nas relações amorosas1
ABUSE, DESIRE AND MORALITY: contemporary
narratives about suffering in loving relationships

Amanda Santos2
Nicole Sanchotene3

Resumo: Este artigo se propõe investigar o conceito de relacionamento abusivo presente na


mídia, pensando a sua centralidade no movimento feminista recente. Nesse
contexto, a acusação de abuso emocional nas relações afetivas se configura como
uma importante pauta política. Acreditamos que os testemunhos de relacionamento
abusivo estão atrelados à subjetividade da vítima e à cultura terapêutica, cuja
singularidade histórica será discutida como modo de situar as condições de
possibilidade que levaram à ascensão destas narrativas. Se hoje o gênero
testemunhal manifesta-se como narrativa autobiográfica predominante, sugerimos
que a confissão moderna ocupava este lugar antes, e representava uma forma
distinta de articular experiência amorosa e moralidade. Por fim, problematizamos
os desdobramentos políticos desta nova retórica como forma de contribuir aos
debates feministas, questionando em que medida o discurso sobre relações
abusivas confere às mulheres autonomia em suas relações íntimas.

Palavras-Chave: Relacionamento abusivo. Testemunho. Feminismo.

Abstract: This paper intends to investigate the concept of abusive relationships present in the
media, placing its centrality in the recent feminist movement. In this context,
blaming emotional abuse inside affective relationships constitutes an important
political agenda. We believe that testimonies of abusive relationships are linked to
the victim’s subjectivity and to the therapeutic culture, which will be discussed as a
manner of situating the conditions leading to the rise of such narratives. Nowadays,
the testimony manifests itself as a hegemonic autobiographical narrative. Thus, we
suggest that the modern confession occupied this space previously, and represented
a distinct way of articulating love experience and morality. Finally, aiming to
contributing to the feminist debates, we discussed what may be the political
consequences of this new rhetoric. We question to what extent this discourse about
abusive relationships confers autonomy to women in the intimate relations.

Keywords: Abusive relationship. Testimony. Feminism.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cultura do XXVIII Encontro Anual da Compós,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019.
2
Doutoranda do PPGCOM – ECO/UFRJ. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Bolsista CNPq. E-
mail: amandassantos94@gmail.com.
3
Doutoranda do PPGCOM – ECO/UFRJ. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Bolsista CAPES. E-
mail: freire.nicole@gmail.com.

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1. Introdução
Entre campanhas nas redes sociais e protestos nas ruas, as várias formas de
mobilização das mulheres se tornaram uma das grandes forças políticas entre os anos de 2014
e 2018 no Brasil (FIG. 1). Além da popular Marcha das Vadias, que ocorre desde 2011 em
várias cidades brasileiras, assistimos diversos protestos de caráter feminista nos últimos anos:
em 2015 e 2017 ocorreram grandes passeatas contra o então deputado Eduardo Cunha e a
PEC 181, que pretendia dificultar o acesso ao aborto legal; em 2016, uma marcha reuniu duas
mil mulheres na cidade do Rio de Janeiro contra a cultura do estupro; e, finalmente, em 2018,
mulheres foram às ruas em diversas cidades do país contra a candidatura à presidência de Jair
Bolsonaro no movimento que ficou conhecido como #EleNão. Na internet, quatro campanhas
obtiveram grande adesão na luta contra o machismo: “Eu Não Mereço Ser Estuprada” (março
de 2014); “Meu Primeiro Assédio” (outubro de 2015), “Eu Vivi Um Relacionamento
Abusivo” (abril de 2016) e “Mexeu com Uma, Mexeu com Todas” (abril de 2017).

FIGURA 1 - Capa da edição 909 da Revista Época (novembro de 2015)


FONTE: https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/primavera-das-mulheres.html

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Diversas autoras afirmam que o feminismo passou por um processo de backlash desde
a década de 1980 (FALUDI, 2006; MCROBBIE, 2006): quando não descartado
completamente, o movimento passou a ser considerado algo superado e desnecessário, uma
vez que a igualdade já teria sido alcançada pelas mulheres. Esse cenário mudou nos últimos
cinco anos, ao menos entre determinadas camadas mais jovens e privilegiadas da população
brasileira: cada vez mais mulheres “descobrem-se” feministas (FIG. 2) e abraçam o rótulo
sem ressalvas. Genericamente, não nos parece impreciso afirmar que as violências de gênero
sofridas no interior da experiência sexual e amorosa figuraram como principais pautas desta
“nova onda feminista”. Temas como assédio, estupro e relacionamentos abusivos surgiram
com força nos meios de comunicação, mobilizando milhares de brasileiras a compartilharem
nas redes relatos autobiográficos sobre suas próprias vivências.

FIGURA 2. Capa do livro “Você já é feminista! Abra este livro e descubra o porquê”, publicado em 2016 pela
jornalista Nana Queiroz.
FONTE: http://w w w .dominiopop.com/5-livros-feministas-para-voce-ler-agora/

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A proliferação dessas narrativas na mídia revela a emergência de uma forma inédita


de dar sentido aos sofrimentos que, como este artigo pretende argumentar, faz parte da
produção da subjetividade contemporânea da vítima. Estes relatos testemunhais, que
participam da retórica política recente, são por vezes permeados por conceitos retirados dos
glossários terapêuticos e manuais de autoajuda. No entanto, esse não é necessariamente um
fenômeno novo: a segunda onda feminista, ainda na década de 1960, é notoriamente
conhecida por ter problematizado a esfera privada e o ambiente doméstico como espaços de
realização feminina – e foi fortemente influenciada pelos saberes da psicologia psicanalítica
(MOSKOWITZ, 2001). De lá pra cá, no entanto, a psicanálise vem perdendo sua posição de
destaque na forma como os indivíduos lidam com o seu sofrimento. Os discursos terapêuticos
que emergiram desde então ajudaram a reconfigurar o espaço social da experiência afetiva,
colocando a figura da vítima traumatizada como protagonista do movimento feminista
contemporâneo.
Para estabelecer a singularidade histórica dessas narrativas recentes, recorreremos a
relatos dados por mulheres sobre seu sofrimento nas relações amorosas no passado, buscando
apontar quais dilemas morais elas encontravam e de que forma os narravam. Em seguida,
discutiremos como paulatinamente as relações amorosas foram consideradas um perigo à
saúde dos indivíduos, e a vida íntima passou a ser associada à repressão, à violência familiar
e ao abuso emocional (FUREDI, 2004). Por fim, escolhemos a popularização de notícias e
testemunhos sobre relacionamentos abusivos como objeto de reflexão para pensar o nexo
entre experiência, sofrimento e moralidade nos dias de hoje.
É preciso, enfim, frisar que o nosso objetivo não será questionar a veracidade dos
relatos compartilhados, mas analisar quais deslocamentos morais e de sentido ocorridos no
interior da cultura ocidental forneceram as condições de possibilidade para a elaboração
desses testemunhos. Mais ainda, em um esforço de autocrítica e de contribuição ao debate,
esperamos ser capazes de empreender uma análise que assinale quais armadilhas podem estar
presentes nessa forma de construir as relações pessoais íntimas.

2. Cartas a um psicanalista: a confissão e o desejo feminino


Em 1986, o psicanalista Eduardo Mascarenhas publicava o livro A Costela de Adão:
cartas a um psicanalista, uma coletânea de correspondências recebidas pelo autor durante o
período no qual manteve colunas em diversos periódicos, como os jornais Última Hora e O

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Dia e as revistas Cláudia e Contigo. Eduardo Mascarenhas ficou conhecido na década de


1980 por popularizar a linguagem da psicanálise e por participar de programas de televisão,
como o TV Mulher, da Rede Globo. Como o título do livro nos alerta, as cartas recebidas por
Eduardo eram escritas em sua maioria pelo público feminino, que narrava suas angústias em
busca de aconselhamento. Essas angústias derivavam do fato de que naquele momento as
mulheres buscavam atender demandas antagônicas: de um lado, permaneciam os ideais
conservadores relacionados à família e à sexualidade; de outro, o discurso da liberação sexual
ganhava força na classe média brasileira – esse movimento duplo fica evidente pela presença
dessas discussões nos meios de comunicação.
O tema da virgindade e do recato sexual, por exemplo, aparece em diversas cartas. As
autoras, cujas identidades permanecem sempre em sigilo, narram uma relação conflituosa
entre seus desejos e as regras morais que marcavam aquele contexto. Uma delas afirma:
“Continuo virgem, seguindo a criação que recebi. Claro que não me mantive toda pura por
esse tempo, mas fiz apenas a metade do que eu tinha direito” (MASCARENHAS, 1986, p.
31). A necessidade de manter-se casta deveria prevalecer sobre as tentações carnais, e a
relação que as mulheres estabeleciam com a própria sexualidade era da ordem da repressão.
Outra autora deixa claro seu remorso ao narrar situações nas quais se entregou ao desejo
pelos rapazes com quem se envolveu: “Eu, antes tão cheia de valores, de repente me porto
como uma gata no cio”. Ao relatar o caso que manteve com um rapaz, ela diz ter feito um
“esforço sobre-humano” para dizer não a ele. Deste modo, o que se nota é a presença de um
desejo feminino sendo coibido, ou ao menos comedido, tendo como objetivo principal a boa
reputação perante a sociedade e aos homens que as mulheres pretendiam conquistar:

Ele não insistiu, embora já me olhasse de modo diferente. [...] Ele não voltou a me
telefonar. Acho que teria me ligado se eu não tivesse me mostrado tão sedenta de
sexo. Ele é do tipo que não aprova essas coisas. Do mesmo modo, 99% dos homens
querem que a gente diga não a eles, que se comporte como donzela casta e
desprovida de desejos. Só assim é que se interessam verdadeiramente. Sei que, se
tivéssemos feito amor, eu teria perdido todo o respeito dele. Mas acho que estraguei
tudo com a demonstração do meu desejo (Ibidem, p. 37).

A exigência de reprimir o próprio desejo e manter imaculada certa imagem de pureza,


resguardo e honra, resultava nas mulheres profundo sofrimento: “Vou vivendo acovardada,
rindo por fora e chorando por dentro, obediente ao cotidiano e às mentiras de um puritanismo
do século passado que me foi ensinado” (Ibidem, p. 41). Mas, quando resistir à tentação já
não é mais possível, é perceptível o sentimento de culpa nessas mulheres por terem se

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desviado da conduta moral esperada, manifestado no temor das consequências de suas ações:
“Tudo o que fizemos até agora foi conscientemente e com amor, mas tenho medo de não
estar agindo certo. [...] Tenho medo de que, no futuro, essas pequenas situações prejudiquem
nosso casamento” (Ibidem, p. 40).
Em suas respostas, Mascarenhas procura provocar em suas “pacientes” uma postura
de desprendimento em relação às crenças dentro das quais elas se encontram prisioneiras:
“Não tenho dúvidas de que boa parte dos homens e das mulheres é constituída por meros
papagaios dos valores sociais dominantes, meros bonecos programados para repetirem as
coisas que lhes foram ensinadas pela família e pela escola” (Ibidem, p. 38). Ao questionar as
regras morais da cultura, ele convida suas interlocutoras a repensarem suas vidas.
Contemplando a possibilidade de um futuro diferente, elas deixariam de ser “bonecos
programados” para experimentar de forma mais livre o seu próprio desejo. Ele responde:

‘Sou ou não sou donzela? Seguro ou não seguro a mão dele? Troco ou não troco
caricias? É hora de aproximar mais intensamente os corpos ou ainda é cedo?’ –
essas não são as verdadeiras questões. [...] Muitas donzelas acabaram virando poços
de rancor e ódio. Muitas ‘gatas no cio’, como você chama, construíram belas
famílias, e viveram emocionantes amores (Ibidem, p. 39).

Além da inquietação com a sexualidade, outro tema se destaca pelas recorrentes


queixas nas cartas: o relacionamento infeliz e o temor da separação. Uma das mulheres
escreve a ele lamentando-se pelo casamento com um homem agressivo e possessivo, mas em
seguida revela: “A verdade é que estou perdida. Não sei se amo meu marido ou se tenho
medo dele. Não sei definir meus sentimentos, mas se ele sai e demora, fico em pânico, louca
que ele volte” (Ibidem, p. 162). Outra ainda afirma: “Não recebo dele um gesto de carinho, só
de humilhação. [...] Gostaria que o senhor procurasse me ajudar, mas sem falar em separação.
Sou covarde e temo o mundo lá fora” (Ibidem, p. 70).
Em outra carta, uma jovem casada com um homem quinze anos mais velho reclama da
sua rotina de dona de casa e declara haver dias em que experimenta “uma vontade louca de
mudar de vida”. Conta, insatisfeita, que ela e seu marido fazem sexo apenas uma vez por
semana: “Vou confessar uma coisa: às vezes sinto desejo de ir para a cama com outros
homens. Tenho apenas 25 anos e não estou satisfeita com o casamento. Sou indecisa e às
vezes não sei direito o que quero da vida. Preciso da sua orientação” (Ibidem, p. 69).
Revelando seus tormentos e desejos mais íntimos, elas esperam obter ajuda e
direcionamento nos conselhos de Mascarenhas, considerado um especialista em matéria de

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relacionamentos. A figura do psicanalista enquanto autoridade epistêmica capaz de dar


sentido ao sofrimento e aliviar a culpa mostra-se crucial nessa dinâmica. Essas
correspondências ao perito reencenam, portanto, o ritual terapêutico da confissão clínica
moderna. Primeiramente, um ritual secreto (ainda que neste caso tenham sido levadas ao
espaço público, as cartas permanecem anônimas), que “se desenrola numa relação de poder”
(FOUCAULT, 1988, p. 61). Pois o psicanalista não é apenas o interlocutor, mas a autoridade
capaz de interpretar o que lhe foi revelado, desvelando os verdadeiros desejos da paciente e,
por fim, recomendando uma mudança de comportamento.
Diante desses relatos, embora não censure os protestos e as mágoas, Mascarenhas se
recusa a apontar culpados: “Não estou entre aqueles que acham que as mulheres são
santinhas e os homens seres grosseiros e violentos. [...] Não posso saber que parcela de
responsabilidade cabe a você e a seu marido” (MASCARENHAS, 1986, p. 139). Apesar de
reconhecer e condenar a gravidade das agressões masculinas, ele ressalta que a mulher pode
ser tão violenta quanto o homem, “apenas exerce essa violência de forma oblíqua, indireta e
sorrateira, recorrendo a mil formas de violência passiva” (Ibidem, p. 207), como queixas
constantes, apatia e frigidez, que o autor classifica como “tortura erótica”.
De acordo com o psicanalista, se o relacionamento amoroso já não traz mais felicidade,
cabe ao indivíduo assumir uma postura de agência diante de sua vida, seja repensando suas
próprias atitudes dentro da relação ou tomando a decisão de pôr um fim ao seu
descontentamento, o que significaria optar por sua independência ao invés da segurança de
uma relação tradicional. Na visão do autor, recorrer à posição de vítima é uma solução fácil à
pessoa amargurada:

Será que você tem medo de administrar sua própria liberdade, seus próprios
impulsos, e por isso coloca a seu lado um policial que a impede de fazê-lo? [...]
Num nível mais profundo, não estaria você, com anos de antecedência, preparando
uma futura posição de vítima? Essa posição não deixa de apresentar várias
comodidades. Sendo vítima, a pessoa pode ir à forra, realizando seus impulsos
legitimada pelo rancor e pelos maus-tratos a que foi submetida. Agora, o fato de
você se agarrar a um homem que a deixa entediada e deprimida me leva a crer que
você tem medo de colocar à prova sua verdadeira capacidade de se fazer amar. [...]
Cuidado com as armadilhas que está preparando para si mesma. (Ibidem, p. 65)

Nessa última frase, fica evidente que o conflito fundamental é psíquico, entre o desejo
sexual reprimido e a regra social conservadora, a vontade de mudar de vida e o medo das
consequências. O poder terapêutico da confissão se exerce na medida em que estabelece um
“mecanismo de saber, de saber dos indivíduos, mas também de saber dos indivíduos sobre

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eles próprios e em relação a eles próprios” (FOUCAULT, 2014, p. 70). Assim, esta forma de
discurso autobiográfico é capaz de provocar no indivíduo uma inquietação com relação ao
seu próprio desejo; em última instância, faz com que localize em si mesmo e nas suas crenças
a causa de seu sofrimento. Uma narrativa que o coloca como sujeito de sua própria história e
confere a ele a responsabilidade de questionar as suas verdades e de transformar a própria
vida.

3. A cultura do abuso: o credo terapêutico pós-psicanálise


Um dos aspectos que marcam a passagem da modernidade ao contemporâneo é uma
mudança na relação causal que se estabelece entre desejo e sofrimento. Quando a psicanálise
organizava o discurso terapêutico dominante, o sofrimento feminino nas relações amorosas
era explicado pela dificuldade de a mulher desejar o seu próprio desejo por acreditar na regra
moral. Desde meados do século XX, porém, a virgindade perdeu seu status central na
experiência da sexualidade e o divórcio deixou de ser um tabu para se tornar uma prática
corriqueira. Do mesmo modo, a autonomia e o bem-estar individual se consolidaram como
valores maiores das sociedades contemporâneas ocidentais. Se até a Modernidade as ações
dos indivíduos eram orientadas por uma série de recomendações de controle dos impulsos e
de obediência a uma extensa lista de “não deverás” (RIEFF, 1990, p. 29), hoje se observa
uma busca pela felicidade que se pauta pela primazia da satisfação das aspirações e desejos
individuais. Hoje, “a palavra de ordem é: liberte-se dos fantasmas da autoridade castradora,
da prisão de memórias traumáticas e da mutiladora preocupação em satisfazer metas e
expectativas alheias ao self autêntico” (FREIRE FILHO, 2013, p. 48).
Nessas sociedades onde a felicidade individual é com tanto fervor enfatizada, parece
paradoxal que as narrativas de vítimas venham conquistando tamanha atenção e espaço nos
meios de comunicação. Diversos autores, entretanto, já argumentaram que na cultura
terapêutica – na qual a felicidade “se torna uma finalidade a ser assumida por cada indivíduo”
(VAZ, 2010, p. 136) – o sofrimento será experimentado como algo da ordem de uma
“injustiça social” (BIRMAN, 2010). E, uma vez que este sofrimento é contingente, deverá ser
explicado pela ação imoral de um agente externo.
Como resultado dessa obsessão com o bem-estar subjetivo dos indivíduos, perdura em
nossa cultura um meticuloso cuidado com os perigos que eventualmente possam representar
uma ameaça à saúde psíquica dos seres humanos. Um dos desdobramentos desse cuidado é

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que “muitas experiências, que até aqui haviam sido interpretadas como etapas normais da
vida, foram redefinidas como prejudiciais às emoções individuais” (FUREDI, 2004, p. 5). A
ideia de que eventos trágicos e dolorosos deixam rastros na mente que são vistos como
“cicatrizes” passa a ser universalmente aceita. A vitimização passa a estar associada a
experiências cada vez mais triviais (FUREDI, 2013, p. 56). Este alargamento do conceito,
associado à expectativa de empatia com a vítima, penetrou o espaço moral das sociedades
contemporâneas. Mas como este processo foi responsável por reorganizar a vida afetiva dos
indivíduos e alterar drasticamente suas experiências sexuais e amorosas?
Uma das possíveis respostas para essa pergunta começa pela gradual invalidação da
vida privada como um espaço de felicidade e realização. Essa crise coloca em xeque um ideal
burguês de família conjugal constituída pela afinidade que se estabelecera a partir do século
XVII. Naquele momento, o que se observava era “uma idealização crescente do casamento
baseado no afeto, do verdadeiro companheirismo entre marido e mulher” e ao mesmo tempo
“a exigência de privacidade” para a família (TAYLOR, 2013, p. 375-377). A vida privada se
contrapunha à esfera pública, considerada opressiva e hostil: “para se movimentar nesse
universo de fora, era imprescindível o uso de máscaras protetoras, enquanto os reinos da
autenticidade e da verdade encontravam-se dentro de casa e dentro de si” (SIBILIA, 2008, p.
101). Eventualmente, este nexo entre a intimidade da vida familiar e a realização das
aspirações individuais foi sendo não apenas desmantelado, mas essencialmente subvertido.
Antes idealizadas como um “abrigo do mundo cruel”, a vida privada agora é amplamente
retratada como um local de violência, risco e abuso emocional:

A imaginação terapêutica contemporânea é assombrada pela crença de que danos às


emoções são sistematicamente infligidos no indivíduo dentro da família e durante o
curso das relações interpessoais cotidianas. Consequentemente, a cultura terapêutica
carrega um forte sentimento de inquietação relativo à esfera privada. Por vezes, esta
inquietação se transforma em hostilidade diante do mundo informal da vida privada
(FUREDI, 2004, p. 66).

Por outro lado, o que caracteriza as relações íntimas contemporâneas é cada vez mais a
sua efemeridade – a liberdade que os parceiros desfrutam de encerrar o relacionamento a
qualquer momento caso deixe de corresponder às suas aspirações e expectativas. Os
relacionamentos atuais são organizados sob a égide da flexibilidade. A moralidade que rege
essa experiência amorosa consiste em afirmar a independência mútua e a simetria no interior

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das relações, ao invés de exigir que se respeite, por exemplo, as normas de monogamia ou de
conduta sexual decente (ILLOUZ, 2012, p. 60).
Nesse processo, as relações deixam de ser regidas por critérios externos e passam a
depender somente de si mesmas, ou seja, da vontade dos indivíduos envolvidos na equação
em manter a relação (GIDDENS, 2002, p. 88). Quando as relações se tornam efêmeras, elas
passam a ser objeto constante de negociação. Mesmo na existência de intimidade amorosa,
persiste a necessidade de impor limites claros entre os indivíduos e determinar
minuciosamente aquilo que é permitido, respeitando a individualidade dos envolvidos. As
normas que governavam a vida íntima se tornam mais ambíguas e incertas, promovendo
novas angústias nos indivíduos. Com isso, a vida afetiva passa a ser vista como “algo que
necessita de manejo e controle”, regulada “nos moldes de um ideal de saúde” (ILLOUZ,
2011, p. 91).
Assim, as relações contemporâneas são, por um lado, marcadas pela instabilidade; por
outro, pela exigência de autonomia e autenticidade. Nelas, a possibilidade de o indivíduo agir
contra sua vontade em nome da manutenção da relação, ou seja, procurando apenas satisfazer
o desejo do outro, vai sendo reduzida. Dessa forma, aquilo que poderia ser interpretado como
um esforço legítimo em manter um relacionamento se torna sintoma de uma relação abusiva:

Nossa era é caracterizada por esta obsessão peculiar com o abuso, ou com as
violações contra o indivíduo. A expansão dos riscos [...] corre em paralelo com a
amplificação do abuso. Desde os anos 1980, a representação dos indivíduos foi
transformada pela normalização da experiência de abuso. Alegações de que o abuso
é frequente, e que a maior parte das pessoas é afetada por ele, são hoje amplamente
aceitas. Estas alegações são bem sucedidas numa atmosfera moral em que a
percepção do aumento da violência ajuda a criar um consenso de que todos são
potencialmente vítimas ou agressores. (FUREDI, 2002, p. 73)

O fim de toda relação amorosa costuma ser experimentada como um momento de


profunda angústia e desapontamento – mas esse desapontamento pode ser ainda maior em
uma cultura que localiza nos indivíduos exclusivamente a responsabilidade por fazer seus
relacionamentos “funcionarem”. O conceito de relacionamento abusivo fornece alívio na
medida em que faz com que terminar o relacionamento passe a ser símbolo não da
incapacidade do indivíduo de conservar a relação, mas da força interior e da coragem da
vítima de colocar um basta em uma situação de violência, dentro de uma narrativa de
superação: “colocar-se no lugar do manipulado é uma maneira de se eximir da
responsabilidade” (BOSCO, 2017, p. 180).

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Além disso, ter sido uma vítima de relação abusiva pode explicar diversas formas de
mal-estar no presente. O conceito de autoestima fornece o nexo entre a experiência de abuso
no passado e o sofrimento no presente. Segundo essa retórica terapêutica, relacionamentos
tóxicos ou abusivos são condenados pelos graves danos que acarretam à autoestima dos
indivíduos, e recuperá-la torna-se sinal de bravura e autenticidade. A baixa autoestima é
considerada, ao mesmo tempo, causa e consequência dos relacionamentos abusivos: “níveis
escassos de autoestima restringiriam [...] a capacidade dos indivíduos controlarem a própria
vida. Inseguras e vulneráveis, as pessoas com a autoestima debilitada [...] estariam mais
suscetíveis a adotar condutas displicentes, hábitos degradantes ou autodestrutivos” (FREIRE
FILHO, 2013, p. 44). O conceito de autoestima desponta, assim, como uma das categorias
culturais mais amplamente acionadas na forma como indivíduos lidam com as adversidades,
justificam suas conquistas e aconselham uns aos outros. Seu imenso poder explanatório
elucida por que obter uma autoestima elevada se tornou um objetivo principal nas práticas
terapêuticas recentes: “o cuidado com a autoestima é prescrito como o remédio mais eficaz
contra a dependência afetiva” (Ibidem, p. 59).
Por trás deste imaginário composto por riscos e abusos está uma concepção dos seres
humanos como extremamente vulneráveis diante de desapontamentos, dificuldades cotidianas
e experiências desagradáveis, como a rejeição ou o fracasso. Ao invés de indivíduos
autônomos e livres, esse discurso produz sujeitos impotentes e cativos de suas experiências
de sofrimento, as quais cada vez mais recebem o atributo da imprescritibilidade. Há hoje
certa noção de trauma segundo a qual, de todas as possíveis consequências de um evento, o
impacto psicológico emerge como a mais evidente, duradora e irreversível (FASSIN;
RECHTMAN, 2009, p. 2). Portanto, a expectativa atual é que toda experiência negativa ou
estressante pode causar no indivíduo consequências emocionais ou danos psicológicos que
perduram, como cicatrizes invisíveis que o impedem de viver normalmente. Dentro desse
novo discurso terapêutico, ao invés de se inquietar quanto ao seu próprio desejo, como
conhecê-lo e experimentá-lo, o indivíduo é levado a se inquietar quanto à natureza do desejo
do outro, questionando que perigos esse desejo impõe à sua autonomia.
Neste contexto, a experiência sexual feminina passa a estar associada tipicamente à
vitimização e à passividade, enquanto o desejo sexual masculino é associado à agressividade
(GREGORI, 1993). As temáticas de assédio, abuso sexual e estupro marcam esse momento.
O que impede a mulher de se realizar sexualmente não é mais seu próprio desejo reprimido e

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angustiado, mas uma experiência traumática em seu passado ou a mera ameaça de violência
que supostamente paira sobre todas as relações heterossexuais.

4. Relacionamento abusivo e os testemunhos de vítima na mídia hoje


Nos quatro últimos anos, a temática dos relacionamentos abusivos se tornou recorrente
na mídia brasileira. A título de exemplo: uma pesquisa rápida no Google pelo termo
“relacionamento abusivo” entre os anos de 2010 e 2014 irá retornar aproximadamente 16 mil
resultados no Brasil. Entre 2015 e 2019, a mesma pesquisa resultará em mais de 100 mil
resultados no país. No mesmo período, duas campanhas online4 ganharam repercussão nas
redes sociais com o intuito de mobilizar vítimas a compartilharem relatos autobiográficos
sobre suas relações abusivas. Mas o fenômeno não se restringe à internet: o programa
Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo, dedicou seis edições para debater o tema
entre 2015 e 2018. Desde o início do programa (em junho de 2012) até julho de 2015,
relacionamento abusivo nunca havia sido pauta5. Em 2017, a novela O Outro Lado do
Paraíso, também na Globo, retratou um relacionamento violento entre os protagonistas da
trama.
Parece pertinente afirmar que houve um aumento expressivo no interesse pela temática
dos relacionamentos abusivos nos últimos anos no país, refletido na proliferação de discursos
envolvendo o assunto nos meios de comunicação. A relevância da questão enquanto pauta
social se evidencia no modo como a maior emissora de televisão do país o aborda,
explorando o debate em diferentes formatos e veículos. Além de novelas e programas de
auditório, jornais regionais também exploram o tema, com base em falas de especialistas e de
pessoas que narram a própria experiência de relacionamento abusivo. Alguns exemplos de
matérias jornalísticas mostram uma abordagem pedagógica, cuja proposta parece ser a de
educar a audiência: “Especialista orienta como identificar um relacionamento abusivo”6,
“Saiba como identificar e superar um relacionamento abusivo”7, “Mulheres sobreviventes da

4
Os relatos estão disponíveis em: https://twitter.com/hashtag/EuViviUmRelacionamentoAbusivo e
https://twitter.com/hashtag/ERelacionamentoAbusivoQuando. Acesso em 13 fev. 2019.
5
Edições de 06 ago. 2015, 31 out. 2016, 11 abr. 2017, 17 abr. 2017, 06 jul. 2017 e 08 mar. 2018. Disponível
em: http://gshow.globo.com/programas/encontro-com-fatima-bernardes/. Acesso em 13 fev. 2019.
6
“Especialista orienta como identificar um relacionamento abusivo”. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/6910107/. Bom Dia Santa Catarina. Acesso em 13 de fevereiro de 2019.
7
“Saiba como identificar e superar um relacionamento abusivo”. GRTV 1ª edição. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/7075864/. Acesso em 13 fev. 2019.

12
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violência dão lição de como identificar relacionamentos abusivos”8. Em outras, a


proximidade da violência é um alerta a quem assiste à programação: “Três de cada cinco
mulheres já foram vítimas de relacionamentos abusivos”9; “Mulher fala sobre a dificuldade
de reconhecer e conseguir sair de relacionamentos abusivos”10.
Publicado em fevereiro de 2015 pela youtuber Julia Tolezano em seu canal Jout Jout
Prazer, quando o debate sobre os relacionamentos abusivos começava a despontar na mídia,
o vídeo “Não tira o batom vermelho” possui hoje mais de 3,5 milhões de visualizações11. No
vídeo, ela explica: “eu resolvi fazer um vídeo sobre relacionamentos abusivos porque é uma
coisa muito recorrente, mas geralmente você não sabe que você tá num relacionamento
abusivo. Uma parte de você sabe, mas você meio que não sabe ao mesmo tempo”. Esta
afirmativa – de que a vítima de relacionamento abusivo com frequência não se reconhece
como tal – se repete em vários textos sobre relações abusivas. Uma colunista da revista
Capricho, por exemplo, afirma que as mulheres sofrem de uma cegueira temporária que as
incapacita de perceber comportamentos abusivos:

Não sou formada em medicina nem graduada em Grey’s Anatomy ou House, mas
existe um termo médico chamado cegueira temporária (ou cegueira fugaz). Ela
pode ser causada por fatores externos, como mau uso de smartphones ou produtos
químicos, e por fatores internos, como problemas cardíacos ou psicológicos. [...] Ao
negarmos apoio às vítimas de relacionamentos abusivos, negamos também ajuda a
uma pessoa que está temporariamente cega. [...] Outras só se dão conta da sua
realidade após alguém abrir seus olhos.12

No blog da ONG Não me Kahlo, a incerteza da mulher sobre estar ou não em um


relacionamento abusivo é o bastante para a classificação: “Se você se identifica com os
relatos que lê e a dúvida vem te incomodando, é bastante provável que a resposta seja sim.
Afinal, um relacionamento não deveria fazer você se sentir desconfortável a ponto de
desconfiar que ele seja abusivo”. Ainda de acordo com a publicação, imersas nas relações
tóxicas, as vítimas podem levar “meses ou até anos para perceber que passaram por uma

8
“Mulheres sobreviventes da violência dão lição de como identificar relacionamentos abusivos”. Boa Noite
Paraná. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/6945304/. Acesso em 13 fev. 2019.
9
“Três de cada cinco mulheres já foram vítimas de relacionamentos abusivos”. Fantástico. Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/6252064/. Acesso em 13 fev. 2019.
10
“Mulher fala sobre a dificuldade de reconhecer e conseguir sair de relacionamentos abusivos”. Bahia Meio
Dia. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5824963/. Acesso em 13 fev. 2019.
11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I-3ocjJTPHg. Acesso em 14 fev. 2019.
12
“O papel da amiga diante de um relacionamento abusivo”. Capricho. Disponível em:
https://capricho.abril.com.br/vida-real/relacionamentos-abusivos-loucura-e-cegueira-temporaria-da-vitima/.
Acesso em 08 dez. 2018.

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experiência abusiva”13. Desse modo, as relações abusivas são construídas como um problema
social ao mesmo tempo grave e invisível, afetando uma grande quantidade de mulheres sem
que elas sequer desconfiem disso, como uma epidemia silenciosa. Uma vez difundida, essa
crença facilita a identificação da audiência com os testemunhos de relacionamento abusivo:
cada indivíduo é levado a se questionar se ele próprio não seria também uma vítima.
Ainda segundo a publicação, uma vez que as mulheres não são capazes de identificar as
violações sofridas, “é muito importante que se conheça de forma mais ‘objetiva’ as
características de um relacionamento abusivo e que se mantenha em mente que, apesar de
existirem diferentes tipos de abuso, muitas vezes eles se misturam”. A postura de
desconfiança quanto à natureza das relações se acentua pelo fato de haver a compreensão de
que práticas machistas abusivas estão naturalizadas em nossa cultura: parte do argumento é
de que certos comportamentos abusivos, como sentir ciúmes, são “romantizados” como modo
de mascarar e normalizar o controle masculino sobre o corpo feminino. Ainda segundo esse
argumento, a violência se manifesta de formas sutis que a vítima nem sempre é capaz de
reconhecer e por isso são recorrentes as matérias trazendo depoimentos reais, questionários e
listas de sintomas, com o objetivo de permitir que a audiência aprenda a identificar uma
relação violenta e, por vezes, se reconhecer também como uma vítima. Alguns textos trazem
títulos como “Você pode estar em um relacionamento abusivo (mesmo que ele não bata em
você)”14 e “15 sinais que ajudam a definir um relacionamento abusivo”15. As listas
apresentam critérios subjetivos como “As ações dele fazem você se sentir estranha ou
questionar se o que aconteceu foi normal” ou “Ele não reage bem a suas conquistas e às
coisas boas que acontecem na sua vida”.
Eva Illouz sugere que o feminismo e a terapia participaram como agentes da
racionalização das relações íntimas, em que “os sentimentos podem ser desligados do sujeito
para controle e esclarecimento”, tornando os relacionamentos “passíveis de
despersonalização, ou propensos a serem esvaziados de sua particularidade e avaliados de
acordo com critérios abstratos” (ILLOUZ, 2011, p. 55) – o que seria, afinal, um

13
“Mas... Isso também é abuso?”. Não Me Kahlo. Disponível em: https://www.naomekahlo.com/mas-isso-
tambem-e-abuso/. Acesso em 14 fev. 2019.
14
“Você pode estar em um relacionamento abusivo (mesmo que ele não bata em você)”. Huffpost Brasil.
Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2016/08/21/voce-pode-estar-em-um-relacionamento-abusivo-
mesmo-que-ele-nao_a_21687641/. Acesso em 20 out. 2018.
15
“15 sinais que ajudam a definir um relacionamento abusivo”. Buzzfeed. Disponível em:
https://www.buzzfeed.com/florapaul/sinais-de-um-relacionamento-abusivo. Acesso em 20 out. 2018.

14
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“relacionamento saudável”? Nesta gramática da vida íntima, “os sentimentos tornam-se


objetos a serem observados e manipulados” (Ibidem, p. 51). E, ao veicularem relatos de
vítimas que superaram relacionamentos abusivos, os meios de comunicação atuam como
espaço de socialização do psíquico na atribuição de forma e significado às dificuldades da
vida privada (EHRENBERG, 2010, p. 112). Assim, a mídia exerce um papel fundamental na
construção do conceito de relacionamento abusivo por operar dos seguintes modos: em
primeiro lugar, na elaboração e difusão de uma pedagogia das relações amorosas, que passam
por um processo de racionalização e de moralização a partir de receitas prontas e listas com
tópicos do que configuraria um relacionamento fora do escopo do “saudável”. Atrelado a
isso, ao mesmo tempo em que objetifica as interações, permite uma fácil identificação da
audiência com essas narrativas, uma vez que os critérios que estabelecem a classificação de
abuso são abstratos, subjetivos – e paradoxalmente, devem ser aplicados de forma inflexível,
sanando qualquer dúvida da potencial vítima.
Nas redes sociais ou nos programas jornalísticos, nesse processo de construir, descrever
e popularizar a classificação de relacionamento abusivo, mais importante do que a fala de
especialistas são os relatos daquelas que viveram a experiência em primeira mão. É através
da narrativa testemunhal do sofrimento e da superação que se busca que outras mulheres se
identifiquem com a experiência e se afirmem enquanto vítimas de abuso. Isso porque, por
implicar uma relação horizontal entre narrador e audiência, o testemunho é uma instituição da
sociedade “que tem a ver com um laço social de confiança” (SARLO, 2007, p. 51). Essas
narrativas em primeira pessoa possuem um impacto poderoso por trazerem histórias de vida
verdadeiras: “os diversos meios de comunicação atuais reconhecem e exploram o forte apelo
implícito no fato de que aquilo que se diz e se mostra é um testemunho realmente vivenciado
por alguém. A ancoragem na vida real torna-se irresistível” (SIBILIA, 2008, p. 203). Nossa
cultura está embebida pela noção de que a experiência é a fonte do mais autêntico tipo de
verdade (ARFUCH, 2010, p. 118).
Somados, o lugar de autoridade e verdade concedido ao sofredor e o interesse social
pelo trauma e pelo sofrimento psicológico fizeram do testemunho de vítima uma narrativa
com ampla aderência, consolidando-o como forma de discurso autobiográfico com função
terapêutica predominante nos últimos anos, substituindo a confissão clínica. O triunfo do
gênero testemunhal representa “a virada para fora” do sujeito confessional, uma vez que os
conflitos que residiam no seu interior e o constituíam agora são considerados exteriores ao

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self (RADSTONE, 2006, p. 176). A insistente demanda pela revelação pública das
experiências de sofrimento e de nossas emoções (FUREDI, 2004, p. 42), sob o pretexto de
que falar abertamente sobre nossos sentimentos é parte essencial no processo de cura e
libertação (ILLOUZ, 2003, p. 161), garante uma conjuntura favorável à produção dessas
narrativas autobiográficas.
Além disso, narrar publicamente a experiência de abuso seria positivo por ajudar outras
vítimas a se reconhecerem como tal. Em junho de 2017, um testemunho de relacionamento
abusivo viralizou na internet, obtendo mais de 100 mil curtidas e 40 mil compartilhamentos
no Facebook. A autora do relato explica sua decisão de ir a público: “Pensei muito sobre se
deveria escrever sobre a minha vida ou não e decidi que sim. Decido que devo colocar para
fora o que tanto me atormentava e decido, de alguma forma, ajudar mulheres que passam
pelo o que passei”16.
Relatar publicamente sua experiência a fim de gerar identificação em outros indivíduos
que são potencialmente vítimas vislumbra a produção de novas narrativas de si e, portanto, de
novas subjetividades. Partindo do pressuposto que cada cultura conta com formas singulares
de dar sentido ao sofrimento humano que funcionam por meio de códigos de sentido
compartilhados pela comunidade, o conceito de relacionamento abusivo parece se manifestar
como uma forma inédita de estabelecer um nexo entre sofrimento, experiência amorosa e
moralidade por meio da terapêutica. Portanto, este conceito, atrelado à noção de vítima, é
crucial no processo de produção da subjetividade contemporânea.
De forma mais específica, pode-se afirmar que as experiências de alguém dependem,
ao menos parcialmente, dos sentidos e descrições que este indivíduo atribui a elas. Toda
experiência é mediada e enquadrada pelos discursos disponíveis em uma cultura e pelas
normas e valores imbuídos nela. Assim, construir uma narrativa autobiográfica é sempre um
trabalho de enquadramento de experiências. A memória nunca é “pura”, ela não é “uma
reconstituição do passado, mas sempre uma reconstrução feita a partir do presente, ancorada
nas categorias de pensamento e de linguagem daqueles que lembram” (LERNER, 2013, p.
196). O modo como narramos nossa história e classificamos nossas experiências depende dos
sentidos disponíveis para nós no momento em que se constrói a narrativa. Aplicadas

16
Post disponível em: https://www.facebook.com/nane.mastrodomenico/posts/10212923336459404. Acesso em
16 fev. 2019.

16
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retrospectivamente, novas descrições mudam a maneira como explicamos quem nós somos e
como nos tornamos (HACKING, 1999, p. 162).
Graças à sua larga definição, e por reiterar a preocupação contemporânea com a saúde
mental e com a baixa autoestima, o conceito de abuso é de fácil identificação. Quando em
posse de conceitos expandidos de violência, cada indivíduo pode reinterpretar a sua trajetória
de vida, fazendo com que as suas antigas relações afetivas sejam reelaboradas a partir desse
enquadramento do sofrimento psíquico causado pelo outro imoral: “um determinado quadro
explicativo é transmitido a pessoas consternadas e infelizes, que então o usam para reordenar
ou reorganizar a concepção de seus próprios passados” (HACKING, 1995, p. 88). Desse
modo, a vítima também passa a explicar diversos mal-estares pela noção de que um
relacionamento abusivo é uma experiência traumática: “antigos problemas são
reconfigurados e novos são descobertos, quando a vida é feita inteligível em termos das
linguagens e julgamentos das disciplinas ‘psicológicas’” (MILLER; ROSE, 2012, p. 173).
Quando novas descrições se tornam disponíveis, e entram em circulação através dos
meios de comunicação, por exemplo, então passam a existir concretamente novas
possibilidades de experiências que não existiam antes e que, portanto, não poderiam ter sido
experimentadas até aquele momento. Isso significa que quando uma vítima reinterpreta suas
relações passadas, descrevendo-as segundo novos conceitos (como através da noção de abuso
psicológico), ela não está “descobrindo a verdade” sobre aquilo que aconteceu: ela está
transformando fundamentalmente a sua experiência (HACKING, 1999).
Assim, os testemunhos de vítimas de relacionamentos abusivos podem ser vistos não
como a descoberta de uma verdade antes desconhecida, mas como uma maneira de
reenquadrar as experiências após um término de relacionamento doloroso que provêm ao
indivíduo uma nova narrativa. Esta nova narrativa possui três vantagens imediatas: primeiro,
ela fornece um lugar de responsabilização exterior pelo sofrimento, ou seja, um “agente
culpado”, ao qual será possível direcionar estes sentimentos negativos e aliviar a dor. Quando
acreditamos que fomos vítimas de indivíduos que nos prejudicaram, esperamos que esses
indivíduos sejam cruéis e imorais, e afirmamos nossa identidade e inocência na distância
desses agressores. Em segundo lugar, ao construir para si uma narrativa de relação abusiva
em seu passado, o indivíduo se torna uma vítima corajosa e autêntica, digna de admiração, e
o fim da relação amorosa deixa de ser um momento de fracasso ou rejeição para se tornar

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uma experiência de superação e liberdade. E, por fim, pela noção de trauma, a experiência de
abuso passa a explicar outras dificuldades psicológicas no presente:

Houve muitos 'acaba e volta' até que um dia – a gota d'água veio quando ele estava
em uma festa e não atendia o telefone – eu criei forças, vi que era muito melhor do
que isso, levantei a cabeça e acabei sem nem olhar para atrás. Ele ainda correu atrás
de mim durante algum tempo, mas eu passei a ME amar acima de tudo, e vi que não
queria aquilo pra minha vida. Ainda há cicatrizes, como problemas de autoestima e
insegurança: superar isso é um trabalho diário.17

5. Considerações finais
Se a discussão sobre violência doméstica no Brasil ganhou força com a Lei Maria da
Penha em 2006, os testemunhos de experiências de relacionamento abusivo foram alicerces
da luta feminista somente nos últimos cinco anos. Seria possível dizer que houve,
repentinamente, uma explosão de casos de relacionamentos abusivos? As práticas dos casais
passaram a ser mais agressivas na contemporaneidade? Talvez o modo como tentamos pensar
essa discussão nos leve a crer que, na verdade, são as condições de possibilidade que foram
modificadas de tal modo que este discurso pôde só agora ser constituído, apropriado e
difundido. A análise dessa transformação histórica fornece ferramentas que nos ajudam a pôr
em evidência as marcas do nosso tempo. Nem sempre os conflitos afetivos foram
interpretados pela ótica da violência, e o fato de já ter sido pensado de modo diferente nos
permite colocar a nossa cultura em questão.
As cartas do livro de Eduardo Mascarenhas nos revelam uma forma distinta de dar
sentido ao sofrimento nas relações amorosas desta que está presente nos testemunhos de
relacionamento abusivo. Naquele contexto, a angústia das mulheres era explicada como
resultado do conflito entre seus desejos e as regras morais, e a figura do psicanalista era
fundamental no processo de questionamento das próprias crenças e de transformação de si.
Os conflitos sexuais e morais eram, assim, geridos no espaço privado através do perdão
religioso ou pela análise clínica. Hoje, por outro lado, os testemunhos que narram as
experiências de relacionamentos abusivos levam esses conflitos para o espaço público e
apontam apenas para o questionamento do desejo do outro, que surge como agressivo e
inibidor da autonomia e da liberdade da mulher, por sua vez colocada no lugar de inocência e
fragilidade. Assim, enquanto na Modernidade a psicanálise buscava desvelar o desejo e as

17
“19 mulheres contam como foi sair de relacionamentos abusivos”. Buzzfeed. 24 jul. 2017. Disponível em:
https://www.buzzfeed.com/br/susanacristalli/historias-reais-de-relacionamentos-abusivos-e-como-foi. Acesso
em 16 fev. 2019.

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armadilhas do inconsciente, no contemporâneo o espaço público torna-se arena de acusação


da imoralidade dos parceiros algozes, e a única armadilha possível é a do risco de abuso e
violação da autonomia nas relações afetivas.
A princípio, as narrativas sobre relacionamentos abusivos se organizam em torno da
defesa da autonomia feminina nas relações amorosas como questão primordial. É a proteção
da mulher, de seus desejos e de sua liberdade, que está em jogo nesta forma de discurso sobre
a violência psicológica e suas manifestações na vida íntima. No entanto, o que percebemos é
que essas narrativas têm colaborado para produzir, pelo contrário, uma representação das
mulheres como vítimas indefesas, aprisionadas em relacionamentos violentos, sem qualquer
agência ou poder de escolha, incapazes de resistir diante da manipulação masculina,
despojadas de autonomia: “Denúncias de ‘manipulação psicológica’, de ‘relacionamentos
abusivos’ e de ‘assédio moral’ [...] são consequência da perspectiva segundo a qual a mulher
não tem autonomia, é constitutivamente uma vítima que ‘demanda proteção’” (BOSCO,
2017, p. 17).
Por trás dessas narrativas, ao invés da afirmação da mulher como sujeito autônomo e
emancipado, capaz de dar consentimento e também de resistir à imposição da vontade do
outro, está a premissa de que as mulheres não possuem a mesma força emocional e
psicológica nem o mesmo domínio de si que os homens possuem (KIPNIS, 2017, p. 8).
Mulheres seriam mais facilmente manipuladas, mais suscetíveis à sugestão, menos capazes
de se defender – psicologicamente mais frágeis e vulneráveis. Ao invés de afirmarem a
autonomia feminina, essas narrativas partem do pressuposto de que as vítimas não possuem
consciência sobre a sua situação, de que são desprovidas da capacidade de decidirem por
conta própria quando terminar ou não uma relação amorosa – o que confere a essa retórica
um caráter pedagógico que beira o paternalismo.
Estes discursos produzem uma dualidade do tipo algoz e vítima como maneira de
interpretar as relações amorosas no contemporâneo – e a mulher, necessariamente, está na
posição de passividade e vulnerabilidade. Portanto, um dos aspectos problemáticos dessas
narrativas é o modo como elas constroem os desejos masculino e feminino. Na descrição das
relações amorosas em que ocorre violência, tipicamente, “os homens humilham e agridem, as
mulheres têm medo, vergonha e se sentem culpadas. Os homens agem, as mulheres sentem.”
(GREGORI, 1993, p. 145). E, se para fazer um debate político democrático, “é preciso haver
algum tipo de vínculo em comum entre as partes em conflito, para que elas não tratem seus

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oponentes como inimigos que devem ser erradicados” (MOUFFE, 2015, p. 18), esses relatos
parecem levar à supressão do outro por conta de sua imoralidade. Desse modo, tornar o
campo da experiência amorosa como palco de uma luta unilateral entre vítimas e agressores
leva a uma moralização do íntimo e do privado e a uma aproximação à retórica punitivista.
A narrativa de acusação, justamente por ser moralizadora, também suprime outras
formas de se pensar as relações por uma perspectiva que dê conta da linguagem como
múltipla. O discurso que denuncia a imoralidade do outro, apenas, não dá abertura a
interpretação de que sujeitos diferentes podem falar uma multiciplicidade de línguas na
dimensão do afeto. Do mesmo modo, a narrativa acusatória inibe qualquer possibilidade de
interpretação que coloque em jogo alguma dimensão de questionamento daquele que relata a
experiência traumática, pois parte do pressuposto da inocência da vítima.
Ora, se a luta feminista tem como um dos pressupostos o empoderamento feminino e
a denúncia de comportamentos paternalistas masculinos dentro das relações, em que medida
esse projeto é de fato efetivo, uma vez que pressupõe que suas vítimas são incapazes de
perceber suas próprias realidades? O questionamento não diz respeito a uma deslegitimação
das denúncias de agressão ou do movimento feminista em suas mais diversas vertentes, mas
de buscar formas de fazer política que nos levem a uma perspectiva que não tenha em seu
cerne o punitivismo como única alternativa. A discussão diz mais sobre como pensar o
político sem que ele esteja unicamente imbricado ao íntimo e individual, mas que seja capaz,
coletivamente, de suscitar modificação estrutural, transformação social e, principalmente, de
conferir às mulheres a posição de agentes de nossa própria história.

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