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Resumo
Com esta pesquisa pretendo compreender em que medida as territorialidades
do tráfico de drogas interferem no cotidiano de moradores de uma região
localizada num bairro periférico na zona sul de Porto Alegre, conhecida como
Grande Cruzeiro, em especial, dos jovens que lá residem. Busco encarar o
território como uma categoria sócio espacial, que regra vidas e trajetos, que
traz impedimentos tanto no "ir e vir" dos jovens moradores do bairro, quanto
acesso a políticas públicas, serviços básicos e aparelhos urbanos. A pesquisa
tem base antropológica e tem cunho etnográfico, como principal marco teórico
traz os conceitos da antropóloga Veena Das, que traz luz sobre os “eventos
críticos” e sobre o testemunho de violência que afeta não só o cotidiano, mas
marca as sociabilidades e transforma os sujeitos que presenciam
constantemente cenas de violência, nesse caso a oriunda da guerra do e ao
tráfico de drogas. Para além de uma análise do território, a pesquisa busca
entender os efeitos que viver em uma área de conflitos constantes trazem para
os jovens e as suas relações entre si, e com demais pessoas de seu convívio,
como familiares, educadores, entre outros
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Email para contato: anebriscke@gmail.com; Mestranda em Ciências Sociais – PUCRS;
PROSUC/CAPES
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No texto Poder e Projetos: reflexões sobre a agência, Sherry Ortner faz uma reflexão
sobre a agência e o empoderamento dos indivíduos em meio a arranjos culturais que a
autora chama de jogos sérios. A agência, segundo ela, é uma característica universal
dos grupos tratando de um conceito individualista, posto que os atores sociais não são
livres, mas estão sempre articulando suas ações e intenções frente as estruturas
sociais no seu entorno. Os sujeitos, dentro de redes de relações sociais, teriam mais
ou menos agência, de acordo com as suas intencionalidades e as complexas relações
que experiências traumáticas podem deixar e como elas se fazem presentes no
dia a dia das vítimas. Segundo a autora “a agência não está no heróico e no
extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no preparo diário da alimentação,
na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e cultivo persistente das
relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam a criação de
um discurso de reparação” (DAS, 2014, p.11). além destas categorias, a autora
da metáfora do “conhecimento envenenado”, que é fruto da experiência com a
violência, que coopera para mostrar como as vítimas atuam sobre essas
experiências.
Este texto é fruto de diversas reflexões que pude fazer ao longo de
minha pesquisa de campo para o desenvolvimento da dissertação de
mestrado. Como professora e tendo minha vida profissional e escolhas éticas
vinculadas ao trabalho com juventudes me debrucei sobre os temas referentes
as vidas destes jovens, por forças externas a mim e outras nem tanto, o vínculo
sempre se deu com jovens moradores de zonas periféricas das grandes
metrópoles, os interlocutores desta pesquisa e de outras que venho
desenvolvendo como estudante de ciências sociais são meninos e meninas
negros, oriundos de camadas populares, filhos e filhas de famílias de
trabalhadores braçais, como empregadas domésticas, serventes de construção
civil, trabalhadores informais, biscates, entre outros. Não encaro a juventude
como etapa de transição e um vir a ser, nem como apenas faixa etária, mas
como uma importante etapa da vida em que há sujeitos culturais, atores sociais
que tem culturas e ideias próprias, além de papel ativo na sociedade da qual
fazem parte.
O último censo realizado pelo IBGE em 2010 mostra que um quarto da
população brasileira é composta por jovens, o que corresponde a mais de 51
milhões de pessoas que estão na faixa etária entre 15 e 29 anos. São muitos
indivíduos para que ignoremos o que pensam e como lidam com as mais
diversas questões de suas vidas e do cotidiano. O lócus desta pesquisa, como
já foi dito, é a Grande Cruzeiro, um bairro não oficial de Porto Alegre, que é
O “evento crítico”
Em 2015 pude conhecer a Cruzeiro enquanto trabalhadora da educação
social, durante um ano trabalhei com jovens entre 12 e 14 anos, pude conhecer
a realidade do território e as particularidades de se viver ali. Em 2017, já no
mestrado, voltei ao bairro já não mais como educadora, mas sim, como
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Evento Crítico é entendido pela autora como um evento de violência que muda a forma de
enxergar a realidade do indivíduo que a sofre. A experiência da violência traz consigo a
capacidade de mudar imaginários, sociabilidades e entendimentos da realidade, este evento pode
ser identificado no tempo e no espaço, além de ter poder para alterar as subjetividades, pode
transformar também as relações sociais.
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Centro de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
pesquisadora atenta as narrativas juvenis a cerca do cotidiano num espaço de
constante violência.
Para maior compreensão da proposta do que se pretende o texto,
ilustrarei um acontecimento na região que trouxe diversos desdobramentos na
vida dos jovens e de todos que frequentam a Cruzeiro. No segundo semestre
de 2015 dois importantes chefes do tráfico de drogas da região foram presos
numa grande operação policial, a ação externa trouxe acontecimentos que
creio, não terem sido previstos pelos agentes do estado, o espaço vazio que
essas lideranças deixaram acabou sendo o estopim de uma série de conflitos
pela tomada dos pontos de venda deixados pelos líderes encarcerados.
Facções que já atuavam há muito tempo na região num primeiro momento
brigavam entre si, até que com a chegada de uma facção predominante em
outras regiões de Porto Alegre, mas que até então não atuava na Grande
Cruzeiro, a dos “bala na cara”, fez com que surgisse na Cruzeiro uma nova
facção chamada “anti-bala” agravando o conflito. O que no início era uma
disputa por pontos de venda de drogas, transformou-se, no que os jovens
chamam de “guerra”. A disputa passou a ser pelo território inteiro, alguns
queriam o impedimento de novos atores no contexto do comércio de drogas e
outros estavam lutando para adentrar o território e explorar as potencialidades
de um ponto de vendas estratégico.
Durante o período que se estendeu por cerca de dois meses o número
de tiroteios aumentou muito, via-se constantemente jovens meninos circulando
com grandes armas pelas ruas, além de estarem sempre na entrada de becos
e vielas do bairro. Todos os dias a região era sobrevoada por um helicóptero
da polícia, com homens com armas apontadas para baixo. A tensão era
constante, e os toques de recolher se faziam rotina. Um grande número de
pessoas envolvidas com o tráfico foram assassinadas, ônibus que faziam o
transporte público na região foram queimados e impedidos de circular, afetando
diretamente a rotina de todos que trabalhavam e moravam na região, sendo
jovens, adultos e crianças.
Considero este momento como um “evento crítico” (DAS, 1995), que
marcou a maneira de circular pelo bairro, mudou os horários e rotinas dos
moradores, e principalmente, marcou as subjetividades dos atores sociais da
região. Sobre os “eventos críticos” pode se descrever ainda como fatos
propensos a desatar uma cadeia de relações sociais conflituosas que se auto
reproduzem em marcas de violência. Observa também os efeitos do silencio,
do trauma, e da permanência da memória – para ao fim demonstrar como a
violência é um aspecto do cotidiano e não um fato isolado na vida de uma
pessoa. A autora também aborda o conceito de margens, e segundo ela, o
fundamental na utilização deste conceito é desmitificar a ideia de que nas
margens do Estado haveria um enfraquecimento do poder, uma ausência de
controle, demonstrando exatamente o contrário: “dichos márgenes son
supuestos necesarios del estado, de la misma forma que la excepción es a la
regla” (DAS; POOLE, 2004, p. 3 apubd ).
Narrativas do cotidiano:
O fazer da antropologia das emoções é justamente colocar em xeque
ideias essencialistas e universais que, muitas vezes, temos dos nossos
sentimentos e dos sentimentos das outras pessoas. Pensando que as emoções
são construídas socialmente e que "os sentimentos são tributários das relações
sociais e do contexto cultural em que emergem" (REZENDE, COELHO, 2010 p.
11), tem-se a intenção neste breve texto de problematizar a construção da
identidade e as formas de sociabilidade7 entre os jovens interlocutores desta
pesquisa e como já foi dito, a influência do contexto violento nesta construção
identitária. Usando a categoria de “vítima”, como sendo usada pelos jovens
como algo para referir-se ao Outro e nunca a eles mesmos, trago excertos de
falas e postagens em uma rede social que indicam a forma de lidar com essa
categoria e de como se colocar como morador de um bairro periférico e
violento. Nesse esforço de pontuar o caráter social das emoções ou, ainda, que
as “experiências emocionais são, a um só tempo, subjetivas e sociais”
((REZENDE, COELHO, 2010 p. 74).
A categoria “vítima” passou a ser usada como chave de leitura para a
análise por se fazer presente constantemente nas narrativas dos jovens. Eles e
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O conceito de sociabilidade usando neste texto é do autor George Simmel, segundo ele a
sociabilidade (...) é a forma pela qual os indivíduos constituem uma unidade no intuito de
satisfazer seus interesses, onde forma e conteúdo são na experiência concreta processos
indissociáveis (Simmel, 2006, p. 65).
elas a usavam para referirem-se a pessoas que não tinham “a maldade”,
segundo eles, de viver numa vila, ou não sabiam identificar zonas perigosas ou
situações suscetíveis a assaltos, por exemplo. A vítima era sempre alguém de
fora do território, alguém distante. Em muitos momentos, a vitima era eu
mesma, que com frequência me assustava ao ouvir qualquer som que
lembrasse o de um tiro.
Alguns comportamentos dos jovens embaralham e complexificam as
categorias convencionais que temos para pensar a violência e se constituem
num modelo para complexificarmos as definições de agência. A insistência em
não se colocar dentro de uma ideia de “vítimas”, como muitos podem pensar
que são os jovens negros que são e moradores de um bairro periférico, ou de
pessoas que sofrem por viverem em um contexto de constante violência mostra
de alguma forma essas complexidades.
Os jovens dentro da Cruzeiro são enxergados frequentemente como
vítimas, ou como suspeitos, dependendo de por quem estão sendo
observados. Pelos agentes de políticas públicas ou da assistência social,
segundo eles são vistos como algo frágil, a ser protegido e tutelado, já pela
polícia, são sempre parados, revistados, quando não agredidos, por serem
jovens “da vila”. Neste texto me valho das falas de três jovens8: Wesley, 16
anos, negro, estudante do primeiro ano do ensino médio, Larissa e Roberto,
ambos de 15 anos, negros e estudantes do nono ano do ensino fundamental,
ao longo trabalho de campo foram estes que demonstraram maior interesse em
conversar comigo e contar suas histórias. Todos os jovens frequentam este
Centro de Fortalecimento de Vínculos no contra turno escolar, e lá realizam
diversas oficinas, além de ter acompanhamento e reforço escolar, nenhum
deles tem qualquer tipo de relação com o tráfico de drogas, a não ser
indiretamente, tendo, por exemplo, um familiar que faz parte de alguma facção.
Em nenhum momento apliquei um questionário ou fiz uma entrevista
formal, no trabalho etnográfico, as ferramentas mais valiosas são o tempo e a
presença constante, devido a isso, acredito que pude levantar informações
suficientes com o que os jovens se dispuseram a dividir comigo. Numa das
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Os nomes usados neste texto são fictícios e foram escolhidos pelos jovens.
muitas tarde que passamos juntos, falando do cotidiano e das complexidades
que se colocavam diante, por exemplo, de um toque de recolher, fiz uma
pergunta que veio a ser a guia do desenvolvimento deste texto. Aos três
jovens que estavam, ao meu lado perguntei: Como é ser jovem na periferia?
“Vocês que não são daqui não podem ouvir um barulho de tiro
que já se atiram no chão, tem tudo umas cara de vítima”.
(Larissa)
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Considerações Finais
Muitos trabalhos recentes acerca da violência sugerem que, quando se
contempla a violência, atinge-se uma espécie de limite da capacidade de
representar emoções, nos breves excertos demonstrados aqui, pode-se notar
que talvez não haja uma dificuldade em manifestar e representar possíveis
emoções, mas um novo sentido na apresentação das mesmas, acredito que
tem-se aqui uma percepção diferente dos sentidos atribuídos a diferentes
sentimentos e formas de narra-los. Há uma negativa por parte dos jovens de
usar palavras que se referem a medo, e melindres, em contra partida há ironia,
brincadeira. Acredito que a escolha pelas formas de narrativas que foram
usadas demonstram uma agência por parte dos jovens, uma forma de se
colocarem no mundo, negando o discurso de vítimas e referindo-se ao seu
cotidiano por meio destas formas narrativas dotadas uma certa leveza, se
comparado ao horror de uma guerra.
Nos textos de Veena Das, a autora se vale da metáfora já citada de
“conhecimento envenenado”, quando perguntadas sobre as experiências de
violência pela qual passaram, suas interlocutoras se referiam as essas
experiências como um veneno que bebiam sós, guardavam dentro de si, havia
um silenciamento em relação às vivências e os relatos eram permeados por
muitas metáforas. As interlocutoras de Das relatavam que esse veneno em
diversos momentos se manifestava no dia-dia, e mudava percepções sobre
seus modos de viver. A relação que faço nesta breve reflexão é com o tom
irônico dos jovens para contarem suas próprias histórias, não há manifestações
de dor e sofrimento, não há relatos de medo, há uma brincadeira, uma
mudança de sentido das histórias, tornando para quem a escuta por vezes até
engraçada, como viu-se com as postagem de Larissa. Neste contexto, pode-se
fazer a relação até mesmo com a “maldade” que os jovens dizem que as
“vítimas” não têm, e eles e elas por viverem num contexto de guerra possuem.
Sendo assim, valer-se de diferentes formas de contar suas próprias rotinas é
uma forma de enfrentar a realidade e tornando-a menos negativa.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos. Sobre a ética pós-moderna. Trad.
Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
DAS, Veena & POOLE, Deborah (Eds,). Anthropology in the Margins of the
State. New Mexico, School of American Research Press, 2004.
DAS, Veena. Ordinary Ethics: The Perils and Pleasures of Everyday Life. 2014.
____. Trauma y testimonio. In: ORTEGA, F. (ed.). Veena Das: Sujetos del dolor,
agentes de dignidade. Bogotá, Universidad Nacional de Colombia, Facultad de
Ciencias Humanas, Ponticia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2008.