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Territórios e emoções: como as territorialidades do tráfico de

drogas interferem no cotidiano de jovens num bairro de


periferia da zona sul de Porto Alegre
Ane Briscke1

Resumo
Com esta pesquisa pretendo compreender em que medida as territorialidades
do tráfico de drogas interferem no cotidiano de moradores de uma região
localizada num bairro periférico na zona sul de Porto Alegre, conhecida como
Grande Cruzeiro, em especial, dos jovens que lá residem. Busco encarar o
território como uma categoria sócio espacial, que regra vidas e trajetos, que
traz impedimentos tanto no "ir e vir" dos jovens moradores do bairro, quanto
acesso a políticas públicas, serviços básicos e aparelhos urbanos. A pesquisa
tem base antropológica e tem cunho etnográfico, como principal marco teórico
traz os conceitos da antropóloga Veena Das, que traz luz sobre os “eventos
críticos” e sobre o testemunho de violência que afeta não só o cotidiano, mas
marca as sociabilidades e transforma os sujeitos que presenciam
constantemente cenas de violência, nesse caso a oriunda da guerra do e ao
tráfico de drogas. Para além de uma análise do território, a pesquisa busca
entender os efeitos que viver em uma área de conflitos constantes trazem para
os jovens e as suas relações entre si, e com demais pessoas de seu convívio,
como familiares, educadores, entre outros

Palavras chave: Territórios, emoções, antropologia, juventudes, violência.

Apresentando conceitos e contextualizando o campo:


O estudo do cotidiano em suas mais diversas esferas tem sido usado
pela Antropologia como importante ferramenta de análise e entendimento dos
mais diferentes contextos sociais. Umas das expoentes autoras desde trabalho
é a antropóloga indiana Veena Das, que desde os anos 80 tem estudado
vítimas de violência, a autora vincula agência2 e cotidiano, e analisa as marcas

1
Email para contato: anebriscke@gmail.com; Mestranda em Ciências Sociais – PUCRS;
PROSUC/CAPES
2
No texto Poder e Projetos: reflexões sobre a agência, Sherry Ortner faz uma reflexão
sobre a agência e o empoderamento dos indivíduos em meio a arranjos culturais que a
autora chama de jogos sérios. A agência, segundo ela, é uma característica universal
dos grupos tratando de um conceito individualista, posto que os atores sociais não são
livres, mas estão sempre articulando suas ações e intenções frente as estruturas
sociais no seu entorno. Os sujeitos, dentro de redes de relações sociais, teriam mais
ou menos agência, de acordo com as suas intencionalidades e as complexas relações
que experiências traumáticas podem deixar e como elas se fazem presentes no
dia a dia das vítimas. Segundo a autora “a agência não está no heróico e no
extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no preparo diário da alimentação,
na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e cultivo persistente das
relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam a criação de
um discurso de reparação” (DAS, 2014, p.11). além destas categorias, a autora
da metáfora do “conhecimento envenenado”, que é fruto da experiência com a
violência, que coopera para mostrar como as vítimas atuam sobre essas
experiências.
Este texto é fruto de diversas reflexões que pude fazer ao longo de
minha pesquisa de campo para o desenvolvimento da dissertação de
mestrado. Como professora e tendo minha vida profissional e escolhas éticas
vinculadas ao trabalho com juventudes me debrucei sobre os temas referentes
as vidas destes jovens, por forças externas a mim e outras nem tanto, o vínculo
sempre se deu com jovens moradores de zonas periféricas das grandes
metrópoles, os interlocutores desta pesquisa e de outras que venho
desenvolvendo como estudante de ciências sociais são meninos e meninas
negros, oriundos de camadas populares, filhos e filhas de famílias de
trabalhadores braçais, como empregadas domésticas, serventes de construção
civil, trabalhadores informais, biscates, entre outros. Não encaro a juventude
como etapa de transição e um vir a ser, nem como apenas faixa etária, mas
como uma importante etapa da vida em que há sujeitos culturais, atores sociais
que tem culturas e ideias próprias, além de papel ativo na sociedade da qual
fazem parte.
O último censo realizado pelo IBGE em 2010 mostra que um quarto da
população brasileira é composta por jovens, o que corresponde a mais de 51
milhões de pessoas que estão na faixa etária entre 15 e 29 anos. São muitos
indivíduos para que ignoremos o que pensam e como lidam com as mais
diversas questões de suas vidas e do cotidiano. O lócus desta pesquisa, como
já foi dito, é a Grande Cruzeiro, um bairro não oficial de Porto Alegre, que é

de poder e solidariedade em que estão envolvidos (Agência, dominação e resistência,


PADILHA, 2013).
conhecido como um complexo de vilas, sendo o mais populoso da capital
gaúcha, compreendendo mais de 40 vilas, a maior parte delas irregulares. Não
há limites geográficos concretos ou ruas e pontos de referência que precisem
seu início e fim, mas entende-se que a chamada grande Cruzeiro está situada
entre os bairros Santa Tereza e Medianeira. A região representa 4,64% da
população do município, com densidade demográfica de 9.590,62 habitantes
por 14 km². A taxa de analfabetismo é de 4,13%, e o rendimento médio dos
responsáveis por domicílio é de 3,83 salários mínimos3. Segundo a Secretaria
Municipal de Urbanização (SMURB) a região contava em 2015 com uma
população de cerca de 65 mil habitantes e quase metade dessa população, em
torno de 25.967 é de crianças e jovens4 de zero a dezenove anos. Situada
numa área de preservação paisagística, segundo o Plano Diretor de Porto
Alegre, a grande Cruzeiro nunca teve um plano de urbanização e
regularização, sendo sempre ocupada de maneira irregular.
Por se dar num contexto urbano, a pesquisa dialoga com autores e
autoras que tem tradição na Antropologia da/na cidade, a Antropologia das
emoções, que vem se consolidando ao longo dos últimos vinte anos como área
independente de conhecimento, entra nesta reflexão por que valoriza a
cotidianidade e o ordinário das relações e contextos observados, e se fez
importante ferramenta para análise das questões subjetivas que se mostraram
presentes ao longo da pesquisa
A cidade tem sido objeto importe de estudo para as Ciências Sociais, e
tem-se nela um importante lócus para observação de diversos fenômenos
sociais, justamente por sua existência produzir fenômenos que pertencem
exclusivamente a ela. “Escrever sobre acidade é debruçar-se sobre o cotidiano
das pessoas e da vida ordinária dos indivíduos” (KOURY, 2008, p.7), segundo
Simmel a vida na metrópole produz novas formas de sociabilidade (SIMMEL,
1902), entre estes diversos modos de ser e estar nas grandes cidades, esta
pesquisa se detém a analisar especificamente como se configuram estas
formas de sociabilidade entre jovens num contexto urbano e periférico
3
Fonte:https://www.fee.rs.gov.br/wp-content/uploads/2017/02/20170209relatorio-analise
socioecon0mica-da-cidade-de-porto-alegre-12017.pdf (Consultado em 21/06/2018)
4
Fonte:http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/historia_dos_bairro
s_de_porto_alegra.pdf (Consultado em 21/06/2018)
contemporâneo, numa realidade marcada pela guerra do e ao tráfico de
drogas, onde se dão constantes conflitos armados entre policiais e traficantes e
estes jovens precisam buscar estratégias e modos de enfrentar o dia a dia
nesta realidade. Valendo-me do conceito de Veena Das de “evento crítico5”
busco relacionar os efeitos da violência, do extra-ordinário ao ordinário na vida
de jovens moradores da Grande Cruzeiro.
O presente artigo é fruto de uma reflexão paralela a que tem sido feita
para a pesquisa que está sendo desenvolvida para a dissertação de mestrado,
e que busca compreender como as territorialidades do tráfico de drogas
marcam as sociabilidades dos jovens sob a ótica da antropologia das emoções,
além da antropologia da cotidianidade desenvolvida por Veena Das. Ao longo
de um ano de pesquisa etnográfica, pude conviver com jovens de 14 a 18
anos, atendidos por um CCFV6 da região, a mesma em que anteriormente
havia sido educadora social, isso facilitou muito a entrada em campo e a
relação com os jovens, sendo sempre tida como “sora” ao longo desta jornada
etnográfica. Durante este período participei das atividades dentro do centro,
visitei as casas dos jovens e pude caminhar com eles e elas pela região, além
de ouvir confidências, desabafos, dividir angustias e momentos de lazer. A
proposta, do texto, por ser apresentado em um grupo de trabalho, é antes de
mais nada dividir experiências e articulações que foram possíveis aliando o
trabalho de pesquisa e o trabalho que havia sido feito durante minha atuação
como profissional, tentando mostrar as potencialidades desta aliança.

O “evento crítico”
Em 2015 pude conhecer a Cruzeiro enquanto trabalhadora da educação
social, durante um ano trabalhei com jovens entre 12 e 14 anos, pude conhecer
a realidade do território e as particularidades de se viver ali. Em 2017, já no
mestrado, voltei ao bairro já não mais como educadora, mas sim, como

5
Evento Crítico é entendido pela autora como um evento de violência que muda a forma de
enxergar a realidade do indivíduo que a sofre. A experiência da violência traz consigo a
capacidade de mudar imaginários, sociabilidades e entendimentos da realidade, este evento pode
ser identificado no tempo e no espaço, além de ter poder para alterar as subjetividades, pode
transformar também as relações sociais.
6
Centro de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
pesquisadora atenta as narrativas juvenis a cerca do cotidiano num espaço de
constante violência.
Para maior compreensão da proposta do que se pretende o texto,
ilustrarei um acontecimento na região que trouxe diversos desdobramentos na
vida dos jovens e de todos que frequentam a Cruzeiro. No segundo semestre
de 2015 dois importantes chefes do tráfico de drogas da região foram presos
numa grande operação policial, a ação externa trouxe acontecimentos que
creio, não terem sido previstos pelos agentes do estado, o espaço vazio que
essas lideranças deixaram acabou sendo o estopim de uma série de conflitos
pela tomada dos pontos de venda deixados pelos líderes encarcerados.
Facções que já atuavam há muito tempo na região num primeiro momento
brigavam entre si, até que com a chegada de uma facção predominante em
outras regiões de Porto Alegre, mas que até então não atuava na Grande
Cruzeiro, a dos “bala na cara”, fez com que surgisse na Cruzeiro uma nova
facção chamada “anti-bala” agravando o conflito. O que no início era uma
disputa por pontos de venda de drogas, transformou-se, no que os jovens
chamam de “guerra”. A disputa passou a ser pelo território inteiro, alguns
queriam o impedimento de novos atores no contexto do comércio de drogas e
outros estavam lutando para adentrar o território e explorar as potencialidades
de um ponto de vendas estratégico.
Durante o período que se estendeu por cerca de dois meses o número
de tiroteios aumentou muito, via-se constantemente jovens meninos circulando
com grandes armas pelas ruas, além de estarem sempre na entrada de becos
e vielas do bairro. Todos os dias a região era sobrevoada por um helicóptero
da polícia, com homens com armas apontadas para baixo. A tensão era
constante, e os toques de recolher se faziam rotina. Um grande número de
pessoas envolvidas com o tráfico foram assassinadas, ônibus que faziam o
transporte público na região foram queimados e impedidos de circular, afetando
diretamente a rotina de todos que trabalhavam e moravam na região, sendo
jovens, adultos e crianças.
Considero este momento como um “evento crítico” (DAS, 1995), que
marcou a maneira de circular pelo bairro, mudou os horários e rotinas dos
moradores, e principalmente, marcou as subjetividades dos atores sociais da
região. Sobre os “eventos críticos” pode se descrever ainda como fatos
propensos a desatar uma cadeia de relações sociais conflituosas que se auto
reproduzem em marcas de violência. Observa também os efeitos do silencio,
do trauma, e da permanência da memória – para ao fim demonstrar como a
violência é um aspecto do cotidiano e não um fato isolado na vida de uma
pessoa. A autora também aborda o conceito de margens, e segundo ela, o
fundamental na utilização deste conceito é desmitificar a ideia de que nas
margens do Estado haveria um enfraquecimento do poder, uma ausência de
controle, demonstrando exatamente o contrário: “dichos márgenes son
supuestos necesarios del estado, de la misma forma que la excepción es a la
regla” (DAS; POOLE, 2004, p. 3 apubd ).

Narrativas do cotidiano:
O fazer da antropologia das emoções é justamente colocar em xeque
ideias essencialistas e universais que, muitas vezes, temos dos nossos
sentimentos e dos sentimentos das outras pessoas. Pensando que as emoções
são construídas socialmente e que "os sentimentos são tributários das relações
sociais e do contexto cultural em que emergem" (REZENDE, COELHO, 2010 p.
11), tem-se a intenção neste breve texto de problematizar a construção da
identidade e as formas de sociabilidade7 entre os jovens interlocutores desta
pesquisa e como já foi dito, a influência do contexto violento nesta construção
identitária. Usando a categoria de “vítima”, como sendo usada pelos jovens
como algo para referir-se ao Outro e nunca a eles mesmos, trago excertos de
falas e postagens em uma rede social que indicam a forma de lidar com essa
categoria e de como se colocar como morador de um bairro periférico e
violento. Nesse esforço de pontuar o caráter social das emoções ou, ainda, que
as “experiências emocionais são, a um só tempo, subjetivas e sociais”
((REZENDE, COELHO, 2010 p. 74).
A categoria “vítima” passou a ser usada como chave de leitura para a
análise por se fazer presente constantemente nas narrativas dos jovens. Eles e
7
O conceito de sociabilidade usando neste texto é do autor George Simmel, segundo ele a
sociabilidade (...) é a forma pela qual os indivíduos constituem uma unidade no intuito de
satisfazer seus interesses, onde forma e conteúdo são na experiência concreta processos
indissociáveis (Simmel, 2006, p. 65).
elas a usavam para referirem-se a pessoas que não tinham “a maldade”,
segundo eles, de viver numa vila, ou não sabiam identificar zonas perigosas ou
situações suscetíveis a assaltos, por exemplo. A vítima era sempre alguém de
fora do território, alguém distante. Em muitos momentos, a vitima era eu
mesma, que com frequência me assustava ao ouvir qualquer som que
lembrasse o de um tiro.
Alguns comportamentos dos jovens embaralham e complexificam as
categorias convencionais que temos para pensar a violência e se constituem
num modelo para complexificarmos as definições de agência. A insistência em
não se colocar dentro de uma ideia de “vítimas”, como muitos podem pensar
que são os jovens negros que são e moradores de um bairro periférico, ou de
pessoas que sofrem por viverem em um contexto de constante violência mostra
de alguma forma essas complexidades.
Os jovens dentro da Cruzeiro são enxergados frequentemente como
vítimas, ou como suspeitos, dependendo de por quem estão sendo
observados. Pelos agentes de políticas públicas ou da assistência social,
segundo eles são vistos como algo frágil, a ser protegido e tutelado, já pela
polícia, são sempre parados, revistados, quando não agredidos, por serem
jovens “da vila”. Neste texto me valho das falas de três jovens8: Wesley, 16
anos, negro, estudante do primeiro ano do ensino médio, Larissa e Roberto,
ambos de 15 anos, negros e estudantes do nono ano do ensino fundamental,
ao longo trabalho de campo foram estes que demonstraram maior interesse em
conversar comigo e contar suas histórias. Todos os jovens frequentam este
Centro de Fortalecimento de Vínculos no contra turno escolar, e lá realizam
diversas oficinas, além de ter acompanhamento e reforço escolar, nenhum
deles tem qualquer tipo de relação com o tráfico de drogas, a não ser
indiretamente, tendo, por exemplo, um familiar que faz parte de alguma facção.
Em nenhum momento apliquei um questionário ou fiz uma entrevista
formal, no trabalho etnográfico, as ferramentas mais valiosas são o tempo e a
presença constante, devido a isso, acredito que pude levantar informações
suficientes com o que os jovens se dispuseram a dividir comigo. Numa das

8
Os nomes usados neste texto são fictícios e foram escolhidos pelos jovens.
muitas tarde que passamos juntos, falando do cotidiano e das complexidades
que se colocavam diante, por exemplo, de um toque de recolher, fiz uma
pergunta que veio a ser a guia do desenvolvimento deste texto. Aos três
jovens que estavam, ao meu lado perguntei: Como é ser jovem na periferia?

“A gente não pode falar nada que já querem chamar a polícia”.


(Wesley)

Wesley foi o mais contundente em sua resposta, mostrando o que já


havia mencionado da constante suspeita pela qual os jovens passam. Não é
preciso citar os altos índices de mortalidade dos jovens negros nas periferias
de todo Brasil, a regionalização da pobreza e das mortes se faz presença
constante e os reflexos disso são sentidos pelos jovens e refletem em suas
narrativas.

“Sora, é só saberem que a gente é da Cruzeiro que ficam


querendo saber de tragédia, parece que tem tragédia escrito na
nossa testa”. (Roberto)

Outra questão sabida é que as representações da periferia são


majoritariamente negativas, retratando comumente apenas os conflitos
decorrentes do tráfico, assassinatos e ações policiais. Há uma carência de
representações positivas da periferia, essa fala de Roberto, de alguma forma
elucida isso. Os jovens interlocutores desta pesquisa, negam a imagem de
relacionada exclusivamente a tragédia, e a não vinculação com a categoria
vítima também é uma forma de mostrar essa negação. Roberto, nesta fala, não
afirma que apenas quer falar de outros assuntos que não os trágicos, mas que
não se reconhece nesse discurso.

“Vocês que não são daqui não podem ouvir um barulho de tiro
que já se atiram no chão, tem tudo umas cara de vítima”.
(Larissa)

Na fala de Larissa, nota-se uma certa jocosidade, um tom irônico sobre o


que seriam as vitimas e o como esperam que se comportem. A vítima é alguém
que se abateria com um som de tiro, ou ameaça de conflito, já ela não, ela vive
lá, e mesmo adotando rotinas em que demonstra prezar por sua segurança,
não se comportará como uma vítima.
Ainda constando com as narrativas de Larissa, selecionei postagens de
uma rede social, na qual ela também se vale da jocosidade para relatar
momentos relacionados ao território onde vive.

Figura 1

Figura 2
Figura 3

Em nenhum momento os jovens interlocutores desta pesquisa


assumiram abertamente sentirem medo, por exemplo, algumas falas deram a
ideia de que havia impedimentos sobre assuntos relativos as facções, jamais
me falaram nomes de pessoas que faziam parte de facções, apontaram
localidades de pontos de venda de drogas, até mesmo falar sobre os pontos de
venda de drogas era vetado, e em tom de brincadeira disseram “a gente não
diz nada porque senão morre né, Sora”. Nestas postagens, Larissa mostra em
tom irônico na Figura 1 como se prepara para dormir num dia de conflito entre
facções, sabendo que haveria troca de tiros a noite tem sua rotina de certo
modo transformada pelo conflito. Rindo, mas marcando que não há
necessariamente uma felicidade neste gesto.
Na Figura 2, percebe-se uma realidade que não é exclusiva da Cruzeiro,
mas de todo e todas que vivem numa grande metrópole, no caso
especificamente desta localidade, o risco não é de assalto como é recorrente
em outras regiões da cidade, é de morte. Mais uma vez vê-se a interferência da
violência nas ações dos indivíduos.
Na Figura 3, vemos mais um demonstrativo do que foi falado
anteriormente com a fala de Roberto, de uma associação da periferia a algo
ruim ou perigoso, neste sentido, algo a ser evitado. O contexto da postagem da
Figura 3, se dá quando a menina ao circular pela cidade com amigas se vê
conversando com outros jovens e quando interpelada sobre seu local de
residência tem uma reação hostil.
Mesmo tendo reagido com bom humor a situação, vê-se imagens de
corações partidos na postagem, não acredito que seja um determinante, como
já foi dito anteriormente, o tom de ironia e jocosidade é notado, e faz parte do
modo de expressar-se de Larissa, mas dentro de um mundo de caracteres que
podem ser usados como ferramentas vemos estes, que nos sugerem que a
ironia pode ter sido usada para tornar a situação mais “fácil” e haja certa
insatisfação com a representação que se faz de sua comunidade.
Viver num lugar que tem características como as da Cruzeiro faz com
que os jovens passem constantemente por situações de ruptura abrupta da
rotina, isso afeta as emoções e faz com que busquem estratégias para
enfrentar tais situações e para lidarem com o que estes acontecimentos
causam em suas subjetividades. Para as Ciências Sociais falar da
subjetividade e preocupar-se com as emoções não é uma novidade, desde os
trabalhos Durkheim, Marx e Weber, conhecidos como pais das ciências sociais,
nota-se uma preocupação por parte dos autores de pensar as consequências
subjetivas dos grandes acontecimentos sociais nos indivíduos.

Considerações Finais
Muitos trabalhos recentes acerca da violência sugerem que, quando se
contempla a violência, atinge-se uma espécie de limite da capacidade de
representar emoções, nos breves excertos demonstrados aqui, pode-se notar
que talvez não haja uma dificuldade em manifestar e representar possíveis
emoções, mas um novo sentido na apresentação das mesmas, acredito que
tem-se aqui uma percepção diferente dos sentidos atribuídos a diferentes
sentimentos e formas de narra-los. Há uma negativa por parte dos jovens de
usar palavras que se referem a medo, e melindres, em contra partida há ironia,
brincadeira. Acredito que a escolha pelas formas de narrativas que foram
usadas demonstram uma agência por parte dos jovens, uma forma de se
colocarem no mundo, negando o discurso de vítimas e referindo-se ao seu
cotidiano por meio destas formas narrativas dotadas uma certa leveza, se
comparado ao horror de uma guerra.
Nos textos de Veena Das, a autora se vale da metáfora já citada de
“conhecimento envenenado”, quando perguntadas sobre as experiências de
violência pela qual passaram, suas interlocutoras se referiam as essas
experiências como um veneno que bebiam sós, guardavam dentro de si, havia
um silenciamento em relação às vivências e os relatos eram permeados por
muitas metáforas. As interlocutoras de Das relatavam que esse veneno em
diversos momentos se manifestava no dia-dia, e mudava percepções sobre
seus modos de viver. A relação que faço nesta breve reflexão é com o tom
irônico dos jovens para contarem suas próprias histórias, não há manifestações
de dor e sofrimento, não há relatos de medo, há uma brincadeira, uma
mudança de sentido das histórias, tornando para quem a escuta por vezes até
engraçada, como viu-se com as postagem de Larissa. Neste contexto, pode-se
fazer a relação até mesmo com a “maldade” que os jovens dizem que as
“vítimas” não têm, e eles e elas por viverem num contexto de guerra possuem.
Sendo assim, valer-se de diferentes formas de contar suas próprias rotinas é
uma forma de enfrentar a realidade e tornando-a menos negativa.

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