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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

RELAÇÕES DE GÊNERO E TELENOVELAS: UM ESTUDO DE


CASO COM ABORDAGEM DE NEOMEDIEVALISMO
GENDER RELATIONS AND SOAP OPERAS: A CASE STUDY WITH A
NEOMEDIEVALISM APPROACH

Carolina Gual da Silva1


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
carolgual@gmail.com

Resumo: O presente artigo discute a Abstract: This article discusses the


importância de se refletir sobre as relações importance of considering gender relations
de gênero nos estudos sobre in studies of neomedievalism. Using
neomedievalismo. Partindo de definições complimentary definitions of
complementares de neomedievalsimo e da neomedievalism and assuming the
relevância dos estudos de gênero para a relevance of gender studies for History as a
história como um todo e para o período whole and for the medieval period more
medieval mais especificamente, o objetivo specifically, the goal is to demonstrate how
é demonstrar como o neomedievalismo age neomedievalism acts in Brazil and how
no Brasil e como as relações de gênero são gender relations are indissociably linked to
parte indissociável dessa ação a partir de these actions through a case study. In order
um estudo de caso. Para isso fazemos uma to do this, we will analyze some aspects of
análise de alguns aspectos de uma a medievally inspired soap opera broadcast
telenovela de inspiração medieval by Globo TV network to reach the
veiculada pela Rede Globo de televisão para specifically “Brazilian” elements of these
chegarmos aos elementos especificamente uses of a perception of what is medieval in
brasileiros desses usos de uma percepção dialogue with social and cultural Brazilian
do que seria medieval em diálogo com as realities in the present.
realidades sociais e culturais brasileiras do Keywords: Gender Relations; Soap Operas;
presente. Neomedievalism.
Palavras-chave: Relações de gênero;
Telenovelas; Neomedievalismo.

Introdução
O neomedivalismo está presente em produções artísticas e culturais
brasileiras de diversas maneiras. O termo neomedievalismo ainda não encontra
consenso entre pesquisadores, com definições variadas e disputas por vezes

1Carolina Gual da Silva é professora adjunta de História Medieval na Universidade Federal


Rural do Rio de Janeiro, pesquisadora do LEME (Laboratório de Estudos Medievais) e do
Linhas (Núcleo de estudos sobre narrativas e medievalismos). Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-6534-0389

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acirradas entre aqueles que defendem a manutenção do termo “medievalismo”,


mais consolidado enquanto campo de pesquisa, ou a adoção de “neomediavalismo”.
2 No Brasil os estudos na área são bastante recentes e ainda estão muito associados
a análises de objetos não-brasileiros ou de elementos de usos e abusos políticos da
Idade Média.
Procurando dialogar com essas diferentes tendências e áreas, minha
proposta é trabalhar aqui com duas definições de neomedievalismo que considero
complementares e tratar do lugar da categoria gênero dentro dos estudos de
neomedievalismo. Além disso, procurando avançar no terreno das produções
“nacionais”, proponho-me a analisar um produto cultural tipicamente brasileiro, a
telenovela. A partir de uma leitura das relações de gênero, vou explorar alguns
aspectos da novela Deus Salve o Rei, de 2018, para mostrar como o
neomedievalismo age dentro do contexto brasileiro. Nesse sentido, sigo a
recomendação de KellyAnn Fitzpatrick a partir da qual devemos nos preocupar
menos com o que o neomedievalismo é e nos concentrar mais em entender o que ele
faz e por que ele faz isso. 3
Cabe, aqui, uma ressalva: o universo de uma telenovela é demasiadamente
amplo e complexo para ser incluído em sua totalidade. No escopo de um artigo seria
impossível trabalhar com a totalidade dos capítulos, os subenredos e os
personagens dos diferentes núcleos que constituem o universo narrativo típico das
telenovelas brasileiras. Assim, optei por uma visão de conjunto centrando nas
personagens principais e nos capítulos iniciais da novela que apresentaram os
modelos de gênero ao telespectador. É um primeiro passo nesse tipo de análise que
merece ser mais explorada e que pode indicar alguns caminhos a serem
aprofundados mais adiante.

2 Não cabe aqui entrar nas minúcias desse debate, até porque o presente dossiê certamente
apresentará muitas outras discussões sobre o tema. Para quem quiser se aprofundar nas
leituras teóricas (que não são o escopo principal desse artigo), há vários textos que tratam
da questão. Ver, por exemplo, o dossiê sobre Neomedievalismo publicado na Revista
Antíteses (vol. 13, n. 25, 2020). Ver também FITZPATRICK, KellyAnn. The academy and the
making of Neomedievalism. In: ______. Neomedievalism, Popular Culture, and the Academy:
From Tolkien to Game of Thrones. Cambridge: Boydell & Brewer, 2019
3 Ibidem, p. 29.

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Gênero: uma categoria útil de análise neomedieval


Em 1986, Joan W. Scott publicou o artigo que se transformaria na referência
para todos os estudos históricos de gênero dali em diante. Em “Gender: a useful
category of historical analysis”, a autora defendeu a importância de pensarmos
gênero como uma categoria analítica para que assim pudéssemos interrogar sobre
como o gênero funcionava nas relações sociais e como ele dava sentido à
organização e percepção do conhecimento histórico. 4 Assim, ela afirma que gênero
nos oferece uma maneira de decodificar sentidos e entender conexões complexas
entre as diversas formas de interação humana. Mais importante ainda, ele está
imbricado nas relações de poder sendo “(…) um campo primário no interior do qual,
ou por meio do qual, o poder é articulado.”. 5
Parafraseio aqui o título do artigo de Scott para afirmar que, para além de
uma categoria útil para a análise histórica como um todo, a categoria merece e
precisa ser trazida para as discussões sobre o neomedievalismo. Partindo do
princípio, já defendido pela própria Scott, de que as relações de gênero têm uma
participação recorrente nas significações de poder, particularmente na cultura
judaico-cristão e também islâmica ao longo da história, não há como escaparmos de
uma análise de como essas relações também surgem nos processos de
reapropriação, reconstrução e criação da Idade Média.
Narrativas sobre mulheres e gênero ajudaram na criação da própria ideia de
“Idade Média”. Segundo Bennet e Karras, já desde o período que convencionamos
chamar de Renascimento (seja no século XIV na Itália ou no XVI no norte da Europa),
circulavam histórias que procuravam mostrar o passado obscuro do período
precedente associando-o a costumes de gênero vistos como “bárbaros”, tais como o
direito de o senhor tirar a virgindade das servas na noite de casamento ou a ideia de
que os cruzados colocavam cintos de castidade em suas esposas. Todos esses mitos
foram repetidos ao longo dos séculos levando o imaginário popular a tomá-los como
verdadeiros, principalmente a partir de produções como o filme “Coração Valente”,

4 SCOTT, Joan W. Gender: a useful category of historical analysis. American Historical Review,

vol. 91, n. 5, 1986, p. 1053-1075. Todas as traduções de textos foram feitas por mim.
5 Ibidem, p. 1070.

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que se utiliza do mote do direito à primeira noite como motivação para as ações de
William Wallace. Bennet e Karras, então, afirmam:

Na primeira modernidade europeia, essas histórias fizeram o que


comparações interculturais de mulheres e gênero frequentemente
fazem: elevaram uma civilização e denigriram outra. Não à toa, as
primeiras histórias sobre o ‘direito da primeira noite’ foram
colocadas não só no passado medieval, mas também nos espaços
selvagens da Escócia e Irlanda, ou que a história da papisa Joana foi
alegremente repetida por críticos protestantes do catolicismo.
Essas primeiras histórias falam mais sobre a criação interpretativa
de uma “Idade Média” difamada do que sobre as mulheres e os
gêneros medievais em si. Quando os intelectuais europeus
definiram o passado dividido em três partes, antigo, medieval,
moderno, histórias sobre mulheres e gênero permaneceram como
poderosos determinantes do “medieval”.6

Sabemos o quanto essas criações de gênero sobre a Idade Média atualmente


têm, inclusive, sido utilizadas no contexto de apropriação política e extremista do
período medieval. Amy Kaufman e Paul Sturtevant, por exemplo, demonstram como
autores da extrema direita baseiam-se em uma concepção complementar dos sexos
na qual “homens e mulheres possuem, supostamente, papeis naturais que
sustentam uns aos outros”. 7 Assim, modelos como o do cavaleiro cortês e da donzela
são mobilizados para definir papeis rígidos de gênero, cujo ideal “medieval” deveria
ser reproduzido na atualidade de forma a garantir o retorno a uma sociedade
idealizada – que jamais existiu, diga-se de passagem – que estaria em ruínas no
presente devido à confusão entre os papeis de gênero. Eles citam o editor de um
jornal neonazista, Andrew Aglin, que em 2015 afirmou: “Minha posição sobre as
mulheres, muito explicitamente, é que elas deveriam, no mundo moderno,
permanecer no exato papel que tinham durante o período medieval e eu não estou
disposto a evitar ou negociar nesse assunto. Mulheres devem ser honradas,

6 BENNET, Judith; KARRAS, Ruth. Women, Gender, and Medieval Historians. In: BENNET,
Judith; KARRAS, Ruth (Eds). The Oxford Handbook of Women and Gender in Medieval Europe.
Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 3-4.
7 KAUFMAN, Amy S.; STURTEVANT, Paul. The Devil’s Historian: how modern extremists abuse

the medieval past. Toronto: University of Toronto Press, 2020, p. 107.

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estimadas e cuidadas, mas elas não devem possuir ‘direitos’”. 8


Essa percepção sobre o lugar ou o papel das mulheres na Idade Média é
obviamente equivocada. Não porque não existisse misoginia ou desigualdade entre
os gêneros no período medieval – temos bem consciência de que essas são também
facetas das relações de gênero na Idade Média, mas também em vários outros
tempos históricos passados e presentes – mas porque as possibilidades de atuação
das mulheres eram muito variadas, os papeis de gênero eram por vezes fluidos e as
relações estabelecidas entre os gêneros eram bastante complexas.
A historiografia medieval feminista, desde os anos 1970, empenhou-se em
uma série de novas abordagens teóricas, metodológicas e documentais que
revolucionaram o campo dos estudos medievais. Como diz Madeline Caviness, o
feminismo como forma de interrogar o passado “(…) revelou uma nova Europa pré-
moderna bastante diferente do ‘mundo medieval’ que as ideologias coloniais
inventaram nos séculos XIX e XX.” 9 Assim, esse “mundo medieval” apresenta-se
como um questionador dos modelos de gênero que estão enraizados na sociedade
moderna. Segundo Caviness:

Vários aspectos da Idade Média emergiram e desestabilizaram até


mesmo as noções pós-modernas de organização de sexo/gênero.
As identidades são mais diversas do que agora – é possível dizer
que apenas aqueles que eram empurrados para a vida de casado e
para a parentalidade foram totalmente construídos como feminino
e masculino. Senhores e senhoras eram mais distintos uns dos
outros em aspectos performáticos como vestimenta e atividades do
que os homens e mulheres das classes inferiores, que
frequentemente compartilhavam o trabalho uns dos outros. Em
muitas posições dentro da mesma cultura existiam os castrados, as
virgens, os castos, as prostitutas, os monges, as freiras, os padres
vestidos de seda e renda, os indigentes seminus e os leprosos cujas
identidades de gênero não podem ser enumeradas e que
desnaturalizam os rótulos de heterossexual/homossexual. 10

Essa associação íntima, portanto, entre as caracterizações de papeis de

8 Ibidem, p. 108.
9 CAVINESS, Madeline H. Feminism, gender studies, and medieval studies. Diogenes. n. 225,
2010, p. 31.
10 Ibidem, p. 39.

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gênero na contemporaneidade e na própria percepção sobre o que seria a Idade


Média agem de forma central nas apropriações de um passado medieval. Defendo,
portanto, que as discussões sobre gênero sejam incluídas de forma mais veemente
nas reflexões sobre o neomedievalismo. Alguns trabalhos têm sido feitos nesse
sentido, particularmente pensando na análise de filmes e séries – caso dos papeis
femininos em Game of Thrones, por exemplo. 11 No entanto, é preciso definir o que
estamos entendendo por “neomedievalsimo” e qual a sua associação com as
questões de gênero. Partirei aqui de duas abordagens diferentes, mas que acredito
serem complementares para a utilização do gênero como uma categoria de análise
do neomedievalismo.

Neomedievalismo: compreensões possíveis


KellyAnn Fitzpatrick, em sua obra Neomedievalism, Popular Culture, and the
Academy: From Tolkien to Game of Thrones define neomedievalismo como “os
produtos de um processo contínuo para reavaliar o que pode ser feito com a Idade
Média em um presente em constante movimento”. 12 Assim, ela dedica um capítulo
inteiro à análise das construções de gênero em produções cinematográficas como A
Bela Adormecida (1959), Beowulf (2007) e Malévola (2014). Fitzpatrick diferencia o
que ela chama de uma “forma mais tradicional de medievalismo” do que seria o
neomedievalismo. O primeiro é o que ele enxerga em A Bela Adormecida, onde há
uma reimaginação da Idade Média que “imita artefatos medievais e os traduz para
novas formas, mas não faz nenhuma alegação de deslocar o que ele considera como
a Idade Média autêntica que toma como modelo;”. 13 Em outras palavras, esse
medievalismo tradicional continua pressupondo a existência de uma “idade média
real” que serve como elemento inspirador acima de tudo.

11 Para alguns dos trabalhos mais recentes sobre as questões de gênero tanto na mídia,
quanto em diversas formas de entretenimento, ver, por exemplo, a série de artigos
publicados no The Public Medievalist sob a rubrica “Gender, sexism, and the Middle Ages”.
Disponível em: < https://www.publicmedievalist.com/gsma-toc/> . Acesso em 30 de maio
2021.
12 FITZPATRICK, KellyAnn. Neomedievalism, Popular Culture, and the Academy: From Tolkien

to Game of Thrones. Cambridge: Boydell & Brewer, 2019, p. 28.


13 Ibidem, p. 99-100.

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Já o neomediavalismo, segundo Fitzpatrick, subverte qualquer compromisso


com uma realidade histórica e seria a melhor maneira de caracterizar os processos
de criação tanto de Beowulf quanto de Malévola. No primeiro caso, porque o filme
perturba a própria possibilidade de uma Idade Média autêntica ao “rejeitar qualquer
reivindicação de fidelidade às fontes e sugerir a possibilidade de várias alternativas
para a existência de um passado medieval autêntico”. 14 Malévola, por sua vez,
utiliza-se de impulsos revisionistas para criar “um espaço neomedieval onde
códigos patriarcais de meados do século XX podem ser reescritos como uma
realidade imaginada (…)”. Fitzpatrick, portanto, reforça o “(…) o potencial do
neomedievalismo como meio de aproveitar percepções da Idade Média para
transformar séculos do chamado pensamento ‘Pós-Iluminista’ em um instrumento
para o discurso pós-feminista.”. 15 Portanto, uma leitura neomedievalista permite a
reinterpretação do mundo presente à luz de uma percepção que não precisa estar
ancorada no conhecimento dito “real” – ou acadêmico – da Idade Média.
Nessa leitura sobre neomedievalismo, portanto, temos uma categoria útil
principalmente para pensarmos o lugar da indústria do entretenimento em sua
relação com o passado imaginado e suas reações ao contexto social e político atual.
Malevóla é um claro exemplo de mobilização de uma percepção medieval do público
em geral, mas que atua no sentido contrário do que, por exemplo, os extremistas
fazem em relação aos papeis femininos na sociedade. Essa Idade Média imaginada
torna-se lugar potencial da contestação dos valores do nosso próprio tempo e
atende aos anseios de um público influenciado por décadas do movimento feminista
e dos mais recentes movimentos como o “Me too”. 16 As relações de gênero, portanto,
encontram-se em posição de destaque nas leituras neomedievais.
A segunda proposta de definição/abordagem sobre o neomedievalismo que

14 Ibidem, p. 100.
15 Ibidem, p. 102.
16 Mee too foi um movimento, criado em 2017 nas redes sociais, para denunciar os abusos

aos quais mulheres foram sujeitas, inicialmente dentro da própria indústria


cinematográfica, mas que rapidamente espalhou para todas as demais áreas da sociedade
tornando-se uma das hashtags de denúncia mais utilizadas. Influenciou – e continua
influenciando – uma série de políticas e medidas sociais em diversos lugares do mundo.

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utilizamos aqui é a proposta por Nadia Altschul e Lukas Grzybowski que, ao


refletiram sobre o caso específico brasileiro e, de forma mais ampla, do chamado
“sul global”, advogam o uso do termo para tratar desses contextos nos quais as
formas do neomedieval surgem “(…) no seu sentido de apropriação a-histórica: não
ressurgimento de tempos acabados, mas mobilizações politicamente motivadas com
pouco ou nenhum interesse na autenticidade de um passado histórico.”. 17 Essa
definição não se distancia totalmente da de Fitzpatrick, que também trata da
desconexão com qualquer autenticidade do passado – no caso da versão
cinematográfica de Beowulf, por exemplo –, mas acrescenta o elemento importante
da necessidade de um pensamento decolonial também para pensarmos sobre os
medievalismos ou neomedievalismos. Assim, acreditam que esse é o termo mais
adequado para o Brasil, “(…) para examinar as invenções e os reaproveitamentos de
elementos daquilo que em nossos próprios espaços e trajetórias têm sido associado
ao “medieval”.”. 18
As duas compreensões de neomedievalismo que apresentei aqui
complementam-se para pensarmos as questões de gênero e suas relações tanto com
a Idade Média dos estudos medievais quanto do neomedievalismo. 19 A partir delas,
podemos pensar os estudos feministas, sobre os quais falei acima, como sendo eles
próprios uma forma de neomedievalismo. Não no sentido de afastamento da
autenticidade – o que não ocorre –, mas no sentido de pensar em uma recriação do
conhecimento da Idade Média – pautado em documentação e pesquisa científica,
que fique claro – que atende aos anseios e necessidades do presente e de uma nova
concepção de gênero que disputa lugar principalmente com as leituras extremistas
da atualidade.
Assim, aproximamo-nos de uma leitura também decolonial (Caviness já

17 ALTSCHUL, Nadia. Politics of temporalization: medievalism and orientalism in nineteenth-

century South America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2020 apud


ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Em busca de dragões: a Idade Média no
Brasil. Antíteses, Londrina, v. 13, n. 25, 2020, p. 29-30.
18 Ibidem, p. 31.
19 Uso aqui o termo “estudos medievais” como referência àqueles estudos dedicados às

análises de documentação e eventos do período e não às apropriações e usos da Idade Média


no pós-medieval.

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lembrava desse aspecto da historiografia feminista), que se conecta com a proposta


de Altschul e Grzybowski, particularmente para pensarmos os casos brasileiros. O
neomedievalismo nos permite pensar fora dos quadros euro-centrados nos quais o
medievalismo foi criado para avançar uma leitura – incluindo da questão de gênero
– que leva em consideração as dinâmicas locais das recriações e reimaginações da
Idade Média.
Se a perspectiva neomedieval para tratar das relações de gênero em filmes,
séries e até games tem sido utilizada em trabalhos de estrangeiros (ainda que nem
todos se identifiquem pelo termo neomedieval) ou sobre produções estrangeiras
(Game of Thrones, obras da Disney em geral, entre outras), quase nada ainda foi feito
em relação ao tema gênero na reflexão da produção brasileira. Aqui entramos, então,
na análise que proponho a partir de um gênero (sem trocadilhos) considerado como
tipicamente brasileiro e suas formas de neomedievalismo: a telenovela.

Uma telenovela brasileira “medieval”


A telenovela não é uma criação brasileira. Esses chamados melodramas
surgem no final dos anos 1950 nos Estado Unidos, como produtos culturais
intimamente associados às mulheres. Essa associação levou ao interesse das
feministas em estudar o campo, abrindo espaço para os television studies nos anos
1980. 20 No Brasil, o gênero foi introduzido nos anos 1960 e consolidou-se na década
de 1970. A telenovela no Brasil “(…) conquistou reconhecimento público como
produto artístico e cultural e ganhou visibilidade como agente central do debate
sobre a cultura brasileira e a identidade do país”. 21 Assim a telenovela brasileira
desenvolveu-se também com sua própria identidade e linguagem, diferente do
modelo das soap operas americanas e de outras formas de telenovela como a

20 Para um panorama geral sobre o papel dos estudos feministas na inauguração dos
television studies, ver MEIRELLES, Clara Fernandes. Telenovela e relações de gênero na
crítica brasileira. Intercom. Anais do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,
2008, p. 1-16. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/>.
Acesso em 01 de maio 2021.
21 LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação.

Comunicação e Educação. São Paulo, n. 26, 2003, p. 18.

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mexicana, por exemplo. Permanecendo como um gênero eminentemente feminino


– ainda que o público masculino seja também significativo – a telenovela traz um
espaço de grande relevância para a construção das relações de gênero e suas
percepções na sociedade. Elas atuam simultaneamente como reflexo de
comportamentos, padrões e modelos de gênero na sociedade, mas também como
criadoras desses modelos a serem imitados ou seguidos pelo público. 22
As primeiras telenovelas brasileiras tendiam a reproduzir temas ou histórias
estrangeiras. Por exemplo, algumas das primeiras tramas exibidas pela TV Tupi
eram adaptações de novelas latino-americanas (argentinas, cubanas e mexicanas),
com inspiração radiofônica. A partir do final dos anos 1960 e início dos anos 1970,
a telenovela brasileira transformou-se e adquiriu um formato particular, deixando
de lado os chamados dramalhões para se inspirar em histórias sobre a realidade e o
cotidiano, num processo que ficou conhecido como a nacionalização do gênero. 23

Isso, claro, não significa dizer que todas as histórias se passavam em terras
brasileiras. Embora a grande maioria das telenovelas passassem a representar
regiões específicas do Brasil (com muita ênfase na cidade do Rio de Janeiro), houve
também tramas localizadas em diferentes países ou terras fictícias. No entanto,
mesmo quando eram feitas leituras “internacionalizadas” (como nos casos de
novelas como “O Clone”, de 2002, que teve parte das filmagens no Marrocos e tratava
do universo muçulmano, e “Caminho das Índias”, de 2009, com parte da história
acontecendo na Índia), era sempre com um viés brasileiro, incorporando questões
da própria sociedade brasileira e fazendo leituras e adaptações das terras
estrangeiras a partir de um olhar por vezes fantasioso, por vezes estereotipado. 24 E

22 Sigo, aqui, a percepção de Gabrielle Spiegel e interpreto a telenovela como um texto


literário que ao mesmo tempo “espelha e gera realidades sociais, são constituídos por e
constituem formações discursivas e sociais que podem sustentar, resistir, contestar ou
procurar transformar dependendo do caso em questão”. SPIEGEL, Gabrielle. History,
historicism, and the social logic of the text in the Middle Ages. Speculum. Vol. 65, 1990, p. 77.
23 Para mais detalhes sobre a história e trajetória das telenovelas brasileiras, ver MARQUES,

Darciele Paula; LISBÔA FILHO, Flavi Ferreira. A telenovela brasileira: percursos e história
de um subgênero ficcional. Revista Brasileira de História da Mídia. vol. 1, n. 2, 2012, p. 73-
81. Para uma análise mais aprofundada sobre as novelas, ver DA TÁVOLA, Artur. A
telenovela brasileira: história análise e conteúdo. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1996.
24 É interessante notar como os elementos culturais “estrangeiros” foram prontamente

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assim chegamos à telenovela “medieval”. 25


Em outubro de 2017, a Rede Globo de Televisão, principal rede televisiva do
Brasil, anunciou a produção de sua próxima novela das 19 horas, intitulada “Deus
salve o Rei”. A telenovela foi descrita, segundo o autor Daniel Adjafre, como “(…)
uma trama medieval que tem como ponto de partida dois príncipes que não querem
o trono.”. 26 A chamada “trama medieval” não tem, de fato, uma historicidade
concreta: temporalmente não há menção a datas e geograficamente tratam-se de
dois reinos fictícios, Montemor e Artena. A chamada “medievalidade”27 da história
aparece na ambientação, com as escolhas de figurinos, cenografia e trilha sonora e
nas referências a um imaginário de batalhas, príncipes, princesas, reinos, bruxas e
afins.
A história gira em torno das disputas entre os dois reinos, que viveram em
paz por muitos anos, mas que, devido às consequências de escolhas (principalmente
em relação a alianças e relacionamentos), voltam a entrar em conflito. Montemor
possui riquezas em minérios e Artena possui água. São os acordos entre os dois e
suas eventuais quebras que atuam, num primeiro momento, como fio condutor da
história. O núcleo central é composto pela dualidade entre o príncipe Afonso, criado
desde criança para assumir o trono, e seu irmão Rodolfo, o bon vivant que não quer
saber dos assuntos de política. Outra dualidade é colocada entre as principais
personagens femininas, Amália, uma jovem plebeia doce e sonhadora, e Catarina, a
princesa ambiciosa, fria e cruel. Voltaremos a essas personagens mais adiante.

adotados pelo público brasileiro em termos de uso de palavras e elementos de moda que
traziam essas leituras mistificadas do exótico e do outro. A análise de “O Orientalismo” de
Edward Said é bastante pertinente para os usos e apropriações que essas novelas fazem
sobre um imaginário dito oriental, mas isso é tema para ser discutido em outro artigo.
25 Em 2017, a Rede Record também produziu uma novela de inspiração medieval chamada

“Belaventura”, com uma leitura mais ao estilo conto de fadas. Devido ao domínio da Rede
Globo em termos de audiência, optamos por analisar “Deus salve o Rei” como um exemplo
de maior impacto.
26 Declaração feita ao site GShow em matéria sobre a estreia da novela. Disponível em:

<https://gshow.globo.com/novelas/deus-salve-o-rei/noticia/deus-salve-o-rei-conheca-a-
historia-da-nova-novela-das-7.ghtml>. Acesso em: 29 de maio de 2021.
27 Uso o termo “medievalidade” aqui para indicar aquilo que um público de não-especialistas

imaginaria ser ou esperaria identificar como sendo pertencente ou característico da Idade


Média.

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A produção foi classificada como um dos maiores investimentos já feitos pela


emissora. Segundo reportagens, nunca foram utilizados tantos efeitos visuais ou
uma equipe tão grande. A ideia original era enviar os atores para filmagens no
exterior, mas os altos custos levaram à decisão de criar uma cidade cenográfica e
apenas mandar uma equipe de filmagem para captar as cenas de castelos, florestas
e demais ambientações na Europa. 28 As tecnologias utilizadas foram de ponta:

Para o projeto, a Globo está usando técnicas avançadas, como


captura de movimentos com mais de 50 câmeras, que trazem
agilidade e precisão para as animações, e gruas computadorizadas
capazes de reproduzir movimentos repetitivos com alta precisão. A
equipe também desenvolveu internamente um sistema de scanner
facial, que permitiu capturar e trabalhar o rosto dos atores, criando
um modelo de alta resolução para aplicação nas cenas reais de uma
produção de mais de 100 capítulos, com exibição diária, seis dias
por semana. Além disso, estão sendo utilizados personagens
digitais, que inauguram uma biblioteca de elenco e figuração virtual
que podem ser usados em outras produções. Para ambientar a
série, foram captadas imagens em oito países: Espanha, França,
Nova Zelândia, Inglaterra, Islândia, Irlanda do Norte e Escócia. Uma
pequena equipe viajou por 32 dias e fez quatro mil imagens – tanto
stock shots quanto elementos para implementação em 3D. 29

A produtora de arte, Nininha de Médicis, menciona, entre as dificuldades da


produção, o fato de que “Fazer uma novela medieval é um grande desafio, porque a
gente tem pouco material de pesquisa”. 30 A quantidade de publicações
especializadas e de pesquisa desenvolvida sobre o período medieval tanto no
exterior quanto no próprio Brasil faz a declaração parecer curiosa para
historiadores, particularmente para medievalistas. No entanto, ela indica ainda o
quanto a percepção de que a Idade Média é um período pouco conhecido e sem

28 Disponível em https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/deus-salve-o-rei-tem-
maior-equipe-de-efeitos-visuais-da-historia-das-novelas-18140. Acesso em 20 de maio
2021.
29 “Globo estreia novela medieval e aposta em efeitos visuais”. Release oficial do Site de

Imprensa. Disponível em: https://imprensa.globo.com/programas/deus-salve-o-


rei/textos/globo-estreia-novela-medieval-e-aposta-em-efeitos-visuais/. Acesso em 20 de
maio 2021.
30 Disponível em: <https://gshow.globo.com/novelas/deus-salve-o-rei/noticia/deus-salve-

o-rei-conheca-detalhes-do-trabalho-de-direcao-de-arte-da-novela.ghtml>. Acesso em: 20


de maio de 2021.

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documentação disponível perdura. Também serve como possível justificativa para


liberdades tomadas pelos autores na condução da trama e que a afastam de uma
leitura historicamente embasada.
Devido ao momento em que foi lançada, a comparação com produções
internacionais como Game of Thrones e Vikings era inevitável. Game of Thrones
encontrava-se em sua penúltima temporada com expectativas para a oitava e última.
Vikings, por sua vez, estava em sua quinta temporada, que também seria a
penúltima. Ambas eram sucesso de público e indicavam o fascínio e sucesso que
essas produções neomedievais exerciam no mundo inteiro. Não era de se espantar
que houvesse o interesse em aproveitar o sucesso das temáticas para inseri-las no
contexto da telenovela brasileira.
No entanto, “Deus Salve o Rei” não trazia alguns dos principais elementos
que caracterizaram e tanto contribuíram para o sucesso dessas séries, como as cenas
de violência e sexo e tampouco as mesmas tensões psicológicas e dramáticas das
inspirações estrangeiras. Isso se explica, em parte, pela própria linguagem da
telenovela, que difere em muito daquela das séries de televisão. Além disso, o
público-alvo e o horário de transmissão (às 19h, horário em que tipicamente
famílias acompanham as tramas em conjunto, muitas vezes à mesa do jantar) não
permitiam cenas explícitas ou fortes como as que se tornaram famosas nas séries.
A própria Rede Globo negou qualquer intensão em fazer uma “Game of
Thrones brasileira”. Entretanto, a fonte de inspiração não podia ser negada. O jornal
O Estado de São Paulo fez, inclusive, uma matéria intitulada “Estaria a Globo
tentando fazer uma novela parecida com ‘Game of Thrones’?”. 31 A matéria trazia
imagens dos principais personagens apresentados nas divulgações oficiais e os
comparava aos personagens da série internacional. Assim, o príncipe Afonso foi
comparado a Jon Snow, a princesa Catarina a Cersei Lanister, Amália, futura rainha,
a Sansa Stark e Lucrécia a Melissandre. As comparações diziam respeito, em parte,
às semelhanças entre as personalidades e/ou funções dos personagens em cada

31 Disponível em <https://emais.estadao.com.br/noticias/tv,estaria-a-globo-tentando-
fazer-uma-novela-parecida-com-game-of-thrones,70002051723>. Acesso em 20 de maio
de 2021.

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trama, mas, principalmente, à estética adotada pelos criadores da telenovela


brasileira que claramente se inspiraram no modelo estrangeiro. A própria abertura
da novela, com imagens de construções tidas como medievais, efeitos de escuridão
e sombra, movimentação da câmera sobrevoando as imagens reproduzidas em
computação gráfica também evocava uma familiaridade para todos aqueles que
conheciam a abertura de Game of Thrones.
Independentemente das conexões com as séries internacionais, o que nos
interessa aqui é pensar como Deus Salve o Rei se caracteriza como um exemplo de
neomedievalismo e como as relações de gênero são colocadas na novela brasileira.
Embora no release a novela seja apresentada como uma história que parte de dois
príncipes, é entre as personagens femininas que as tramas mais importantes se
desenrolam, garantindo a elas o papel de verdadeiras protagonistas da história.
Deus Salve o Rei apoia-se no topos do par binário mocinha/vilã, que é bastante
comum, não só na dramaturgia brasileira, mas como topos religioso (Eva x Maria,
por exemplo, nas leituras teológicas medievais) ou literário. Quase sempre essa
dualidade se expressa em questão de sexualidade, com a mocinha sendo retratada
como boa e amorosa e a vilã como ambiciosa, cruel e quase sempre sedutora. 32
A mocinha de Deus Salve o rei é Amália, a plebeia sorridente, trabalhadora,
dedicada à família, romântica. A vilã é Catarina, princesa e herdeira do reino de
Artena, fria, calculista, ambiciosa e sedutora. A oposição entre elas é demonstrada
inclusive pelas vestimentas e estilos de penteados. Catarina usa decotes profundos
que acentuam uma natureza mais sexual – ainda que ela aja quase sempre com frieza
– e cabelos presos que demonstram uma rigidez de caráter. Amália, por sua vez, além
das vestes mais simples num primeiro momento – lembrando que ela é uma plebeia
que trabalha no mercado de rua 33 – tem seus longos cabelos ruivos soltos, dando-
lhe ao mesmo tempo jovialidade e um ar mais doce e acessível. A novela, assim,
trabalha dentro de estereótipos de gênero feminino que não estão relacionados

32 Sobre esses papeis e esses binarismos, ver COSTA, Cristiane. Eu compro essa mulher:
romance e consumo nas telenovelas brasileiras e mexicanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2000.
33 Ela acabará por se tornar rainha através do casamento com Afonso, então seu figurino

será transformado.

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necessariamente a uma percepção medieval, mas que são prontamente


reconhecíveis para o público brasileiro, tanto pela recorrência do topos em outras
novelas, quanto por muitos modelos comportamentais imaginados na própria
sociedade. 34
Mas a novela não se limita a apresentar esses estereótipos tradicionais, afinal
de contas estamos em meados do século XXI e, como diz Meirelles, “A mulher jovem
de classe média (…) já não se identifica tanto com a heroína passiva, predestinada a
ser feliz”. 35 Temos, também, a figura da rainha, avó dos príncipes de Montemor e
que comanda o reino sozinha desde a morte do marido. Aparece, então, a imagem
feminina de sabedoria na idade, de sensatez e bondade no trato com o povo. No
entanto, mais do que uma rainha medieval, o público brasileiro a identifica
rapidamente com um político da atualidade – ainda que seja um político utópico em
termos de preocupação com o povo. Na sua primeira aparição na novela, a rainha
Crisélia surge diante do povo para inaugurar uma obra (pública): um aqueduto que
deverá resolver todos os problemas de água do reino. Ela faz um discurso que
poderia estar facilmente na boca de qualquer personagem público dos dias atuais. A
percepção do “medieval” é dada pela caracterização e ambientação das cenografias
(estamos, de fato, em um mundo entendido como medieval) e pelo uso do
imperativo na segunda pessoa do plural (“Contemplai e orgulhai-vos”). Crisélia,
então, funciona como uma espécie versão utópica do ideal de governante. O fato de
ser mulher traz à tona um elemento de possível identificação de gerações atuais com
o potencial do exercício do poder. Entretanto, ao colocar essa mulher na Idade
Média, temos a clara impressão de que ela só é possível exatamente por estar num
tempo que não é o nosso. A Idade Média é utilizada aqui como questionamento ou

34 Sobre como o próprio público feminino enxerga esses modelos de gênero e se reconhece
ou não neles e como julgam as personagens, ver RONSINI, Veneza Mayora et al. Os sentidos
das telenovelas nas trajetórias sociais de mulheres da classe dominante. Compós: atas do
XXV Encontro Anual de Compós. Junho 2016, Disponível em: < https://www.e-
compos.org.br/e-compos/article/view/1292>. Acesso em 20 de maio 2021.
35 MEIRELLES, Clara Fernandes. Telenovela e relações de gênero na crítica brasileira.

Intercom. Anais do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2008, p. 11.


Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/>. Acesso em 01 de
maio 2021.

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até mesmo crítica do nosso próprio tempo. 36


Outra “atualização” da Idade Média através dos papeis de gênero vem a partir
de certas falas que poderíamos chamar de feministas vindas de Amália. A bela
plebeia vende caldos no mercado de rua. Ela tem um namorado, Virgílio, que aparece
como o típico homem ciumento, modelo muitas vezes visto como ideal de “cuidado”
na cultura brasileira. Com falas que beiram o assédio, Virgílio insinua que Amália
não precisava estar trabalhando, pois ele poderia cuidar dela. Além disso, prossegue
o típico namorado ciumento e levemente possessivo, se ela não ficasse na barraca
teria mais tempo para “os dois”. Amália responde a isso reafirmando a importância
do trabalho, tanto por ela gostar do que faz, quanto por ela poder ajudar a família
financeiramente. Ela chega a praticamente comparar o casamento a uma relação
patronal ao dizer “Eu tenho o meu trabalho porque não quero patrão”. Quando
Virgílio diz que não será patrão e sim marido, ela pergunta: “E qual é a diferença?”.
37 Em outros momentos ela retoma a argumentação, falando da importância em ter
o próprio dinheiro. Apresenta-se, então, como uma mulher independente, com seu
próprio trabalho e fonte de rende, afastando-se do modelo da esposa/mãe
sustentada pelo marido. Mais uma vez, o apelo a um público mais jovem parece estar
por trás da construção da personagem.
Amália, portanto, apresenta-se como uma representante feminista em meio
a uma ambientação medieval. Mais uma vez o jogo de temporalidades que acontece
é significativo. A cena desenvolve-se no mercado de rua, que é “medievalizado” pela
presença de músicos menestréis. 38 E embora a cenografia remeta a uma vila
medieval, a evocação das feiras livres brasileiras está também presente na
caracterização. Opera-se, assim, um movimento que é ao mesmo tempo de

36 Segundo Altschul e Grzybowski essa é exatamente uma das características do


neomedievalismo brasileiro. ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Em busca
de dragões: a Idade Média no Brasil. Antíteses, Londrina, v. 13, n. 25,
37 Todas as falas aqui foram transcritas por mim a partir dos episódios da novela disponíveis

em plataforma de streaming da Globo Play.


38 A trilha sonora da novela, aliás, teve composições inéditas, utilizou composições

propriamente medievais e outras que são exemplos típicos de medievalismo para


ambientar a trama.

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distanciamento temporal, mas também de familiaridade para o público. 39 Dessa


forma, o discurso feminista de Amália não surge como deslocado ou anacrônico, mas
sim como estando em perfeita sintonia com as expectativas do público –
principalmente mais jovem e de status social mais elevado – em relação às atitudes
de uma mulher.
Esse suposto feminismo de Amália, no entanto, é sobrepujado pela
insistência na caracterização de uma personagem feminina que, para ser a mocinha,
precisa ser também romântica. Amália, apesar do que diz a Virgílio, sonha com o
chamado “verdadeiro amor”. Sonha em encontrar um grande amor que a arrebatará
e, assim, viver “feliz para sempre”. Seu irmão a alerta para a impossibilidade de um
príncipe encantado surgir em sua vida – uma ironia, já que ela vai acabar se casando
exatamente com um príncipe. Assim, as relações de gênero retornam para seu lugar
"correto”, com a expectativa do público por um final de conto de fadas. Percebemos,
então as tensões que existem, no seio da sociedade brasileira, entre a aceitação das
transformações dos modelos de gênero e a necessidade de se manter os papeis
tradicionalmente aceitos. É a Idade Média atuando como potencializadora de uma
série de conflitos e preocupações da contemporaneidade brasileira.
A oposição a Amália, na figura de Catarina, trabalha com outros tipos de
estereótipos de gênero. Catarina recebe os avanços de um marquês que lhe compõe
canções de amor e admiração. Sua reação é de desdém, quase repulsa. Ela rejeita
qualquer possibilidade de romantismo, não pensa em um casamento por amor. Pelo
contrário. Sua rejeição ao marquês diz respeito principalmente ao fato de que ele
não tem status adequado para ela, que é uma princesa. Ela deveria se casar ao menos
com um duque. Logo, Catarina enxerga o casamento com um meio de ascensão social
e política, o que não a coloca muito distante de mulheres medievais que também
percebiam as potenciais vantagens de um casamento adequado. 40 Seu pai está

39 Podemos pensar, também, em termos de sobreposição de diferentes temporalidades ou


de diferentes “estratos de tempo” com a contemporaneidade do não contemporâneo, como
propõe Reinhart Koselleck, Estratos do Tempo. Estudos sobre História. RJ: Contraponto/Ed.
PUC Rio, 2014.
40 Tratei um pouco desse tema de como as mulheres enxergavam o casamento como

possibilidade de ascensão social através de uma interpretação da literatura cortês em:

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planejando seu casamento arranjado. A construção da personagem como vilã faz


com que um fato que normalmente seria visto como negativo – o casamento sem
amor –, seja transformado em falha dela. A rejeição dela aos planos do pai não é
retratada por um viés de “direitos femininos” ou de crítica a uma estrutura
patriarcal, como no caso de Amália, mas como sinal de que ela é excessivamente
ambiciosa e sem coração. Está armado o cenário para a composição de uma megera
manipuladora que fará tudo a seu alcance em nome do poder. Recorre-se, assim, à
imagem da mulher má, construção de gênero muito comum e que integra ainda de
forma muito concreta o imaginário social brasileiro – e também de outros países.
Os efeitos das construções dessas personagens talvez não tenham sido os
esperados num primeiro momento pelos autores. Ao longo da trama, os comentários
de redes sociais mostraram que o público acabou por ter uma clara preferência pela
personagem de Catarina. Uma reportagem identificou-a como a “vilã amada” em
oposição à “mocinha odiada”. As manifestações dos telespectadores nas redes
indicaram que houve sofrimento com o destino cruel reservado à Catarina no último
capítulo e uma grande rejeição à personagem de Amália, caracterizada como sonsa
e hipócrita. 41 Isso prova que o público tem um efeito ativo sobre as telenovelas,
tanto como inspirador das tramas, como quanto crítico dos rumos que elas podem
tomar. Não há passividade na absorção dos conteúdos, exatamente por isso essa
forma de entretenimento é tão interessante para analisarmos expectativas de
comportamentos sociais e, mais especificamente, de gênero.
Somos levados, então, a faz refletir sobre como os papeis de gênero têm sido
repensados e questionados na sociedade brasileira com suas inconstâncias, conflitos

SILVA, Carolina Gual da. Até que a morte os separe: o casamento cristão na Idade Média. São
Leopoldo: Oikos, 2019, p. 69-74.
41 “Deus Salve o Rei: vilã amada e mocinha odiada; veja como foi o último capítulo”. GZH TV,

julho 2018. Disponível em: < https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-


lazer/tv/noticia/2018/07/deus-salve-o-rei-vila-amada-e-mocinha-odiada-veja-como-foi-
o-ultimo-capitulo-cjk8x84qi02kr01qc1s3eeyt2.html>. Acesso em 20 de maio 2021. É
importante ressaltar também que as atrizes que desempenham os papeis têm forte impacto
sobre as reações do público. Em um contexto em que Bruna Marquezine, a atriz que
interpreta Catarina, tinha grande apelo popular, é também de se esperar que sua
personagem atraísse maior simpatia, numa clara confusão/associação que o público tende
a fazer entre atriz/personagem.

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e transformações. A telenovela aparece no centro dessas múltiplas interpretações


de gênero, utilizando-se de modelos que por vezes caem no binarismo
estereotipado, mas que em outros momentos avança para a possibilidade de
atuações que rompem com os formatos tradicionais. Tanto a composição das
personagens centrais analisadas aqui, quanto as interações que o público estabelece
com elas são testemunhos dessa complexidade das questões de gênero. O fato de
que isso se passa na simultaneidade do presente e da Idade Média recriada, confirma
a possibilidade de interpretarmos Deus Salve o Rei como um exemplo de
neomedievalismo.

O neomedievalismo de Deus Salve o Rei


Deus Salve o Rei pode, então, ser classificada como um exemplo de
neomedievalismo brasileiro. Segundo os próprios autores e produtores, houve um
trabalho de pesquisa para compor os elementos medievais: confecção de armas e
objetos, desenho de figurinos, criação da cidade cenográfica, imagens filmadas de
cidades e medievais reais (como no caso do reino de Montemor que é representado
pela Ponte Nova, na cidade de Ronda, na Espanha). 42 Nesse sentido, nos
distanciamos um pouco da definição de neomedievalismo de KellyAnn Fitzpatrick
que rejeita as reivindicações de fidelidade ou autenticidade.
Entretanto, a telenovela trabalha dentro de uma lógica de deslocamento
temporal, ao passar para o público a sensação de familiaridade quando temos a clara
impressão de que toda aquela história poderia estar acontecendo no Rio de Janeiro.
Há, inclusive, tomadas aéreas de paisagens, com ênfase em um morro que em muito
lembram as clássicas tomadas da Baía de Guanabara, tão comuns nas novelas
cariocas. Assim, estamos diante de um uso do medieval que serve a propósitos
narrativos, sociais, culturais e, por que não, políticos do presente. Ao deslocar a ação
para a Idade Média, certos comportamentos são autorizados, outros funcionam
como crítica ao nosso próprio tempo, enquanto outros servem também para

42 Cabe ressaltar, também, a confusão entre castelos “medievais” e “renascentistas”, uma vez

que o castelo usado para representar Artena possui jardins formais e estilo arquitetônico
tipicamente renascentista.

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reforçar nossa percepção de que vivemos em um tempo mais “evoluído” (por


exemplo, não temos mais casamentos arranjados. Ou temos?). 43 Aqui fica claro,
então, porque Deus Salve o Rei pode ser lida como um exemplo de neomedievalismo,
seguindo as propostas de Altschul e Grzybowski: temos uma apropriação a-histórica
que manifesta, além de uma mobilização para fins diversos (políticos, mas também
outros), uma leitura marcadamente “brasileira” daquilo que se associa ao dito
medieval.
Ao criar essa sensação nos espectadores de que estão diante de um mundo
passado, que corresponde às suas expectativas sobre o passado, mas que ao mesmo
tempo se assemelha ao presente, a Idade Média atemporal de Deus Salve o Rei tem
liberdade para criar um novo passado, à luz dos anseios da sociedade brasileira.
Utiliza-se de uma linguagem brasileira, tanto nas aproximações quanto nos
afastamentos. Reinventa um conjunto de papeis femininos localizados num passado
incerto, mas também relacionados às nossas próprias condições de vida. Influencia
e é influenciada pelas relações de gênero imaginadas no seio, principalmente, de
uma classe média brasileira. A Idade Média serve de pretexto para a crítica e
também para o reforço de nossa própria sociedade. A Idade Média é ressignificada
e recriada e passa a ser aquilo que a novela apresenta como sendo. Em grande parte,
isso é feito pelas relações de gênero ali apresentadas, reforçando, assim a
importância de refletirmos sobre a categoria gênero em nossas análises sobre o
neomedievalismo.
Há ainda muitos aspectos possíveis de serem explorados. Deus Salve o Rei,
por exemplo, tem um total de 174 capítulos com uma série de subenredos e
inúmeros personagens que podem – e devem – ser compreendidos a partir das
construções de gênero. Além disso, outros produtos de entretenimento brasileiros
merecem ser interpretados a partir de uma leitura neomedieval (limito-me aqui ao
caso da outra novela “medieval” citada mais acima, Belaventura, mas há outros

43 Ver, a respeito disso, a discussão sobre a noção de temporalização e os efeitos dessa


leitura da Idade Média e da contemporaneidade nas percepções de uma ideia de
“modernidade”: ALTSCHUL, Nadia R. Politics of Temporalization: Medievalism and
Orientalism in Nineteenth-Century South America. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 2020.

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exemplos a serem explorados) e ao mesmo tempo de gênero, levando a uma melhor


compreensão sobre como essas construções influenciam simultaneamente nossa
percepção histórica e nossa atuação/construção no e do presente. Procurei apontar
aqui, num estudo de caso específico, as potencialidades da análise de gênero e
também a riqueza e relevância das telenovelas que se apropriam de percepções de
Idade Média. Espero que outros medievalistas se sintam encorajados a explorar
esses caminhos.

Artigo recebido em 30/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

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