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Organização

Yanet Aguilera
Vivian Berto
Rosangela Fachel

Que histórias desejamos contar?

Livro Eletrônico
1ª Edição

São Paulo
2019
Que História desejamos contar [recurso eletrônico] /
Organizadoras: Yanet Aguilera, Vivian Berto e Rosangela Fachel
São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2019.
ePub e PDF

ISBN 978-85-8201-018-1

1. Sociedade 2. Política 3. Guerrilhas 3. Inclusão social


4. Políticas sociais 5. Análise sociológica I. Aguilera, Yanet, org.

CDD – 791.43098

Ficha Catalográfica elaborada por Rejane do Desterro de Moura Alves CRB8 ª-6169

Fundação Memorial da América Latina


Av. Auro Soares de Moura Andrade,
664 - Barra Funda
CEP 01156001 - São Paulo - SP
Tel: (11)3823-4600
www.memorial.org.br
Que histórias desejamos contar?

Governador Secretário da Cultura


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Fundação Memorial da América Latina


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Diretor de Atividades Culturais

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Diretora do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina

Antônio Eduardo Colturato


Diretor Administrativo e Financeiro

Edição e-book
Eduardo Rascov
Editor

Ana Maitê Lanché


Arthur Moraes
Eduardo Rascov
Design e revisão

Rafael Richard Bezerra


Capa sobre foto de Hernán Reig

Índice

Apresentação Centro Brasileiro de Estudos da América Latina - pág. 9

Introdução Yanet Aguilera - pág. 10

Parte 1 Cinema, Arte e Modernidade


Capítulo 1 O som ao redor: arqueologia da verticalização moderna no Recife Ismail Xavier -
pág. 16

Capítulo 2 A Desidéria: Comédia urbana e condição feminina no Chile dos anos 1940 Fabián
Nuñez - pág. 27

Capítulo 3 Modernidad mexicana: cine y literatura en la transición de los años sessenta Javier
Ramirez - pág. 35

Capítulo 4 Música e som em três documentários brasileiros curtas-metragens, 1959 Luíza Bea-
triz Alvim - pág. 43

Capítulo 5 Rossellini nos trópicos Mariarosaria Fabris - pág. 54

Capítulo 6 Que histórias desejamos contar da América Latina? Yanet Aguilera - pág. 68

Parte 2 Cinema, Arte e Política

Capítulo 7 Aclamação e censura ao filme A Batalha de Argel no Uruguai, em 1968: o perigo do


‘cinema insurgente’ Mariana Villaça - pág. 74

Capítulo 8 Joana D’Arc: a verdade não está nos autos Bruno Konder Comparato - pág. 83

Capítulo 9 Apontamento sobre violência e audiovisual: estudo de sociologia e cinema Mauro


Rovai - pág. 93

Capítulo 10 O cinema como resistência à violência direcionada aos jovens negros na sociedade
brasileira Jacquelina Maria Imbrizi e Eduardo de Carvalho Martins - pág. 99

Capítulo 11 Arte em imanência ou da insensibilidade à sensibilidade: Postais para Charles Lyn-


ch Ciro Lubliner - pág. 112

Capítulo 12 A representação da guerriha no cinema argentino (1968-1971) Estevão Garcia -


pág. 122

Capítulo 13 O cinema de zumbi na América Latina: Luchadores e guerrilhas e outras formas de


resistência Lúcio Reis Filho e Alfredo Suppia - pág. 131

Capítulo 14 Estratégias de mobilização de ativismo a partir da retórica do excesso no audiovi-


sual Adil Giovanni Lepri - pág. 140

Capítulo 15 Para uma história do experimental no cinema brasileiro: momentos obscuros, desa-
fio crítico Rubens Machado Jr. - pág. 151

Capítulo 16 Tempo suspenso: a repressão sob o olhar superoitista brasileiro e mexicano Marina
da Costa Campos - pág. 209

Capítulo 17 Biopoder e Cinema: a pobreza como potência Vladimir Lacerda Santafé - pág.
220

Capítulo 18 Adélia Sampaio: trajetória e obra de uma pioneira Giovanna Picanço Consentini -
pág. 229

Parte 3 Documentário, Política e História

Capítulo 19 El Cine Documental y los Movimientos Sociales en México Aleksandra Ja-


blonska Zaborowska - pág. 246

Capítulo 20 Saberes y quehaceres: Documental interactivo Ana Teresa Arciniegas - pág. 259

Capítulo 21 Coreografia de la protesta y figuraciones del conflicto social en el documental bo-


liviano de la década del ochenta: de Las Banderas del Amanecer (Grupo Ukamau, 1983) a La
Marcha por la Vida (Alfredo Ovando e Roberto Alem, 1986) Maria Gabriela Aimaretti - pág.
265

Capítulo 22 Villas y cantegriles, la representación de los otros y una mirada sobre el cine social
Mariana Amieva - pág. 284

Capítulo 23 Mi Hermano Fidel: a emoção como estratégia no documentário político Marcelo


Priost - pág. 289

Capítulo 24 Uma análise de No Paiz das Amazonas: pasado e futuro vislumbrado num filme Sá-
vio Luís Stoco e Ricardo Agum - pág. 300

Capítulo 25 Convívios familiares inscritos em ambientes domésticos do cinema argentino pós-


-dictadura – Aristarain, Martel e Trapero Aline Vaz - pág. 310

Capítulo 26 Archivos y documentos del cine político de América Latina: consideraciones sobre
el devenir de las fuentes Mariano Mestman - pág. 321
Parte 4 Imagem e Conceitos, Arte e Cinema

Capítulo 27 Em busca do pai perdido Annateresa Fabris - pág. 333

Capítulo 28 Para além da sala escura: encontro entre cinema e escola a partir da criação de
imagens Marina Mayumi Bartalini e Wenceslao Machado de Oliveira Júnior. - pág. 342

Capítulo 29 Documentário; videoarte: do Brasil para o mundo, do mundo para o Brasil André
Hallak - pág. 355

Capítulo 30 (Trans)tornar (a)o tempo e (a)a imagem Danusa Depes Portas - pág. 366

Capítulo 31 Imagens retomadas: a experimentação no filme Nhande Iwy Ana Lúcia Ferraz -
pág. 373

Capítulo 32 Duas pedagogias ou o cinema como abertura para o outro Samuel Leal - pág. 385

Capítulo 33 Por uma subjetivação dos sons no mundo: análise sobre a estética sonora do Novo
Cine Argentino Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho - pág. 393

Capítulo 34 O sorriso barroco: ironia e melancolia em Júlio Bressane Fábio Camarneiro - pág.
404

Capítulo 35 O cinema do Entrelugar Angelita M. Bogado - pág. 413


Apresentação

O Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL), da Fundação Memorial da América La-
tina, tem a honra de lançar o livro eletrônico Que histórias desejamos contar?, organizado pelas professoras
Yanet Aguilera, Vivian Berto e Rosangela Fachel. A obra é um desdobramento da quarta edição do Colóquio de
Cinema e Arte da América Latina - que se realizou pela primeira vez fora do Brasil, na cidade do México, nas
dependências da Cinemateca Nacional daquele país - no âmbito do II Encuentro Internacional de Investigado-
res de Cine Mexicano e Iberoamericano, em 2016.
Vários autores se integraram ao projeto num segundo momento, resultando num tomo digital de quase
um milhão e meio de caracteres ou 230 mil palavras. Isso corresponde a mais de 800 páginas. Não é pouco.
São textos de 39 pesquisadores oriundos de importantes universidades, a maioria pública, e centros de pesquisa
da América Latina e da Península Ibérica, como USP, Unicamp, Unesp, Unifesp, UFF, UFRJ, PUC (RIO, SP,
Campinas), UFBA, UFEP, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, Universidad de Buenos Aires, Univer-
sidad de La Prata, Escola Superior de Cinema e Audiovisuais da Catalunha, Universidad Autonoma de Madrid,
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (Portugal), Universidad Politecnica de Valencia (Colômbia),
entre outras.
Tantas formações e pontos de vistas diferentes constroem um olhar instigante sobre a cinematografia
contemporânea da nossa região. A crítica filosófica, estética, sociológica, histórica e antropológica que trazem
estas páginas são uma lufada de ar fresco no ambiente carregado que nos coube viver e enfrentar. O Memorial
da
América Latina, por meio do seu CBEAL, sente-se feliz por editar e circular um livro que traz no título uma
interrogação e na capa uma mulher grávida. Em seu aniversário de 30 anos (1989 – 2019), o Memorial endossa
a pergunta Que histórias desejamos contar ou, para dizer em outras palavras, que futuro queremos construir.

Centro Brasileiro de Estudos da América Latina

9
Introdução

Yanet Aguilera

Que histórias desejamos contar? é o resultado de uma seleção de artigos que foram apresentados no IV
Colóquio de Cinema e Arte da América Latina. O questionamento sobre a nossa história, que está presente no
título, é o resultado da inquietação da maior parte dos ensaios sobre a maneira como pensamos, analisamos e
historiamos nosso cinema e arte. Acrescente-se que esta pergunta nos obriga a situar-nos e pensar de que lugar
estamos falando. Como acadêmicos somos levados a considerar o lastro teórico e crítico desenvolvido pela
academia e que, neste livro, se desdobrou em várias direções. Uma delas é a relação intrínseca que os estudos
universitários estabeleceram entre cinema arte e modernidade; outra, seria a ligação entre o cinema, a arte e a
política; a terceira trata da problemática do gênero documentário; e a última se desdobra em duas hermenêuticas:
aquela que privilegia a narrativa e o texto e outra, icônica, ligada às imagens e aos son. A esta problemática se
somam esforços de cunhar conceitos diversos para repensar a maneira de abordar o cinema e a arte. Os artigos
deste livro foram agrupados contemplando essas quatro trilhas e, embora elas não sejam as únicas, nos permitem
ter uma visão, ainda que parcial, bastante significativa de um panorama histórico daquilo que se está escrevendo
sobre nosso cinema.

1. Cinema, arte e modernidade


Pensar esta relação coloca de chofre a relação entre o campo e a cidade, dado que a modernidade cinemato-
gráfica se colocou como
uma superação do contexto rural “atrasado” do nosso subcontinente em direção a um espaço urbano “em desen-
volvimento”. Do ponto de vista dos estudos de cinema, esta oposição tem uma marca temporal clara que divide
o nosso cinema entre aquele que se fez na primeira metade do século XX e o que foi produzido depois. Esse
primeiro cinema, que vai até o fim da 2a Guerra Mundial, exaltava o mundo agreste e foi qualificado pela crítica
como conservador, produto de uma elite intelectual que seguia a tradição deixada pelo colonialismo.
Entre outros exemplos temos a análise de Som ao Redor, realizada por Ismail Xavier, na qual a relação entre
passado e presente se condensa naquela entre campo e cidade. É o caso também do criollismo (filho de espanhóis
nascidos na América) chileno citado por Fabian Nuñez, quando analisa a importância da comédia chilena para a
história de nosso cinema, que teria se voltado “para as camadas populares rurais, calcando-se na tradição herdada
dos tempos coloniais”. Outro exemplo é o estudo do cinema mexicano, desenvolvido por Javier Ramirez, que
pensa a modernidade a partir de um ímpeto acadêmico que teve como figura central Luís Buñuel e que se des-
dobrou em duas sendas diferentes: a de Carlos Fuentes e a de Juan Rulfo. Elas também podem ser resumidas no
embate entre o ambiente urbano e o campo. Ou ainda no artigo de Luíza Beatriz Alvim, que repercute esta ques-
tão ao destacar, na análise da trilha sonora de três documentário do Cinema Novo (considerado como o cinema
moderno), a figura do Gilberto Freyre e sua obra Casa Grande e Senzala, além da figura de Heitor Villa-Lobos.
Entretanto, aqui se delineia um horizonte inamovível e uma história um tanto incômodos: a ideia de que há
um fundo metafísico preenchido por uma modernidade a ser alcançada e que foi fraudada na história da América
Latina. Já é tempo de colocarmos na berlinda, de maneira clara, a própria noção de modernidade. É ela que ine-
xoravelmente nos coloca como subalternos, subdesenvolvidos ou atrasados. E não como povos subalternizados
que têm como principal luta o reconhecimento da internalização de um colonialismo que nos fez e ainda nos faz
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sentir-nos inferiores. Já é tempo também de problematizar o nosso pertencimento, inquestionável para muitos,
à dita “cultura ocidental”, que coloca a modernidade como ápice de um progresso histórico, mas nos recusa (nas
experiências vividas – nos países europeus muitos de nós da América Latina já tiveram a experiência de se senti-
rem ridicularizados quando nos reivindicamos ocidentais – e também nos textos, basta consultar Jacques Aumont,
Hans Belting, entre outros). É o momento de repensar-nos com todas as heranças que nos constituem, inclusive a
da própria “cultura ocidental”.
Uma via interessante para recolocar estes assuntos é aquela que se insinua no artigo de Mariarosaria Fabris.
Ao estudar a passagem de Roberto Rossellini pelo Brasil, Fabris propõe uma triangulação composta pelo “pai do
cinema moderno”, Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha, mediada pelas diversas maneiras como se trata o tema/
conceito da fome.

2. Cinema, arte e política


A relação entre cinema arte e política, neste livro, tem como fundo a reflexão dos períodos das ditaduras
da América Latina. Mariana Villaça os aborda pelo viés inesperado e muito importante do público: a recepção
favorável e a censura política que, em Uruguai, teve o filme Batalha de Argel, prenuncia o recrudescimento do
autoritarismo que culminaria com a ditadura e que, logo depois, provocaria a luta armada como uma das formas
de resistência. A temática da violência política é um tópico também presente no livro.
Bruno Comparato analisa o filme Joana D’Arc, de Bresson, para pensar as contingências jurídicas que per-
meiam as reavaliações das Comissões da Verdade das ditadura Latino-americanas. Mauro Rovai também discute
a violência por meio do filme Quem Matou Eloá?, destacando o acontecimento, a cobertura televisiva e o depoi-
mento dos entrevistados. A interrogação não remete a um thriller amoroso, mas à urgência da especificidade do
crime: aquele cometido contra a mulher. Um debate que precisa retirar este tipo de assassinato da esfera domés-
tica ou privada, onde também atua a violência. Outra abordagem que se debruça sobre a violência é a realizada
por Jacquelina Maria Imbrizi e Eduardo de Carvalho Martins. Este autores congregam política, cinema e racismo
se perguntando se o cinema é capaz de ser uma forma de resistência que se coloque contra ou que pelo menos
manifeste um tipo de mal-estar diante da situação da população negra, principalmente dos jovens, no Brasil. Uma
espécie de exorcismo das imagens de violências, como aquelas de linchamentos veiculadas na internet, é feita
pelo coletivo Garapa, como destaca Ciro Lubliner. A noção de recomposição ou deformação criadora permite
pensar a arte como uma potencia da repetição que através de pequenas variações nos leva a novos sentidos e sen-
sações, possibilitando leituras críticas reveladoras.
O conceito de guerrilha e experimentalismo é utilizado para pensar os grupos guerrilheiros do passado e uma
forma de ativismo do presente. Estevão Garcia analisa a representação da guerrilha das décadas de 1960 e 1970
no cinema argentino, fazendo uma comparação entre La Hora de los Hornos e Alianza para el Progresso, a fim
de entender o que está em disputa nesse jogo entre política e experimentalismo ou entre Cine Subterráneo e Cine
Liberación. Lúcio Reis Filho e Alfredo Suppia analisam o cinema Zumbi no Brasil, considerando-o como uma
espécie de guerrilha dos jovens realizadores para criticar e resistir à sociedade atual. Há outro tipo de militância
muito atual, quase guerrilheira, bastante inquietante e que é prerrogativa do audiovisual brasileiro feito para a
internet. Adil Giovanni Lepri analisa este tipo de trabalho destacando a retórica do excesso, a imaginação melo-
dramática e a noção de cinema de atrações que grupos conservadores, organizados em torno do impeachment de
Dilma Rousseff, usaram como estratégias a fim de conseguir engajar ou criar uma militância nas redes.
O cinema experimental, passando pela produção superoitista, é abordado por Rubens Machado em seus
desdobramentos estéticos e políticos. Uma pequena história sobre o experimental muito oportuna e fundamental
numa bibliografia escassa para uma produção tão importante como é o experimental. O artigo traz para o âmbito
cinematográfico um intercâmbio muito profícuo e pouco explorado como é o com as artes plásticas. Marina da
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Costa Campo trabalha a relação entre pesquisa histórica e análise fílmica, pensa igualmente a produção superoi-
tista, centrada no Brasil e no México da década de 1970, buscando aproximações que passam pelo experimenta-
lismo, a ironia, a metáfora e o discurso crítico, a fim de tratar os problemas latentes das transformações política,
culturais e sociais desta época de ditaduras e efervescência social.
Pensa-se também a política para além das manifestações históricas dos grupos e formas cinematográficas,
por meio de conceitos novos de muito interesse, como o de potência dos pobre e biopoder, desenvolvidos por
Vladimir Lacerda Santafé. Trabalhados na análise das cinematografias de Glauber Rocha e Pier Paolo Pasolini,
estes conceitos ampliam a forma de interpretar, além de repensar campos cognitivos como o da psicanálise e da
produção de subjetividade que compõem a base da composição social.
E, finalmente, política e visibilidade, classe e raça são trabalhados no artigo de Giovana Picanço Consentini
ao tratar da luta e estratégias pela sobrevivência da produtora e cineasta negra Adélia Sampaio. Realizado por
uma mulher negra, o longa-metragem Amor Maldito revela também os processos de uma micropolítica que exige
cada vez mais ser levada em consideração. Afinal, para um meio elitista como foi o cinema é muito significativo
que a “filha da empregada”, tal como se denomina Sampaio, chegue a direção do filme.

3. Documentário: um debate político e de gênero


É de extremo interesse os debates que aparecem nas reflexões atuais que se fazem sobre o documentário.
Aleksandra Jablonska Zaborowska coloca em questão a relação entre documentário, militância e experimentalismo.
Os documentários dos movimentos sociais mexicanos, analisados pela estudiosa, ao problematizar as duas
vertentes que foram as que dominaram a história do cinema documentário em América Latina, as substituem por
outras concepções mais adequadas às reivindicações políticas atuais. A primeira, a do “cinema compromisso”,
que se concebe como um instrumento de agitação cultural ou de militância política, vai ceder espaço a uma
classificação que remete estes filmes a uma “arte popular”. Entenda-se esta nova classificação como a defesa de
saberes que se contrapõem a um tipo bem tradicional de militância política, que neste caso se direciona a uma
defesa ambiental. Trata-se de um enfrentamento de cosmovisões diversas, a dos povos originários, que conside-
ram a natureza sagrada, e aquela cujos esquemas conceituais tentam vincular progresso e preservação. A segunda
vertente repensa a arte subversiva, pois não se subverte mais nem a linguagem fílmica nem a estrutura narrativa
“clássica” do cinema, tal como acontecia nos cinemas das vanguardas. Apesar disso, este cinema se reivindica
como político, já que responde a demandas políticas bem atuais e precisa, como o direito a autodeterminação dos
povos, a ausência de democracia, a reivindicação de justiça etc. Ana Teresa Arcienaga destaca os filmes docu-
mentais que, precisamente, divulgam estes saberes outros e que fazem parte do patrimônio cultural imaterial da
Colômbia e, portanto, da América Latina.

A relação entre documentário e memória é também pensada politicamente no artigo de Maria Gabriela
Aimaretti, na medida em que esta memória cinematográfica permite intervir política e culturalmente no processo
histórico da ditadura boliviana da década de 1980.

O debate sobre como analisamos e historiamos o nosso documentário é colocado por Mariana Amieva ao pro-
por uma análise deste cinema que escape da construção linear, que coloca os filmes num processo que privilegia
a influência entre cineastas. A estudiosa planteia uma relação complexa entre filmes e gênero, que passa especi-
ficamente pela relação com o cinema etnográfico, tendo o cuidado no uso dos esquemas teóricos/metodológicos
nessa maneira de abordá-los.

Nesta reavaliação do gênero documentário, também se busca uma ampliação de seu campo, introduzindo
materiais e interpretações que anteriormente eram ignoradas ou apareciam muito timidamente. É o caso de Mar-
celo Prioste, que analisa o filme de Santiago Álvarez, Mi Hermano Fidel, destacando seu teor propagandístico,
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que visa transformar Fidel Castro em herdeiro de José Marti. É também a direção que Sávio Luís Stoco toma ao
destacar os discursos comerciais e visuais do documentário No Paiz das Amazonas, de Silvino Santos.

Políticas impostas por governos repressivos desestruturam os espaços públicos, colocando o ambiente do-
méstico como alternativa de relacionamento. No levantamento do convívio familiar em algumas obras cineastas
do Nuevo Cine Argentino, que Aline Vaz fez em seu artigo, fica evidente que estes filmes apresentam a casa como
um lugar que num primeiro momento promete proteção para em seguida oprimir.

Por último, mas não menos importante, a republicação do artigo de Mariano Mestman, embora sem o ine-
ditismo dos outros ensaios, se torna fundamental, principalmente para uma maior divulgação entre o público
brasileiro, já que discute as fontes na historiografia do Novo Cinema Latino-americano para problematizar as
alterações de documentos originais.

4. Imagem, conceitos, arte e cinema


Hoje em dia se tornou irreversível o debate que, para além da narrativa e do texto, reivindica a independência
e importância da imagem e o som no cinema. Circunscritos aos estudos semióticos que limitavam a imagem e
sons ao signos, planos e sequências visuais e sonoros nos obrigam a repensá-los em processos descritivos e inter-
pretativos que diferem da maneira como fomos habituados na análise dos filmes e do próprio cinema. Na trilha
de repensar o cinema e a arte por meio de uma hermenêutica que contemple a imagem e o som, alguns estudiosos
retomam conceitos que colocam o filme num campo multidisciplinar próprio ao cinema, que foi considerado
como a junção de todas as artes.
Annateresa Fabris reflete sobre a relação entre fotografia, imagem e morte por meio do projeto artístico que
Mariela Sancari fez em torno da figura do pai morto. Processo alegórico em que a busca de alguém na multidão
manifesta uma tensão entre a homogeneidade e a heterogeneidade ou entre indivíduo e massa que está implícita
em uma arte/técnica como é a fotografia. É também a criação de imagens o ponto de partida de Marina Mayumi
Bartalini para pensar o encontro entre cinema e escola. A estudiosa propõe experienciar a escola cinematografica-
mente, colocando como “problema” a claridade deste espaço e sua relação com os vários dispositivos de criação
de imagens. André Hallak destaca a entrada da imagem em movimento ou cinematográfica nas galerias, já que ela
permeia as exposições de arte contemporâneas nos últimos anos. A associação cinema e artes visuais se impõe, de
modo que é necessário pensa-la num vaivém desestabilizador para as duas expressões.
A inflação das imagens na contemporaneidade é outro assunto que é trabalhado para além do apelo iconofóbi-
co que geralmente este assunto provoca. Danusa Depes Portas quer recompor e responder ao tempo e à imagem,
por meio do ensaio, teorizado não como uma categoria ou gênero, mas como um modo retórico e poético. O
propósito é arguir à memória inquieta das imagens os disparates da cultura visual e os desastres da história atual.
Finalmente, a imagem é pensada em outro regime cultural/conceitual que não aquele proposto pelo cinema e
pelo modo habitual de analisa-lo. Esta outra maneira de ver a imagem nos obriga a questionar a relação que se es-
tabeleceu com aquele outro, o objeto dos filmes. A imagem do outro problematiza a relação entre sujeito e objeto
que o conhecimento e a ciência ocidental tentaram imputar como sendo o de todo processo cognitivo. O ensaio
da cineasta Ana Lúcia Ferraz, ao falar de seu filme, Nhande Ywy, coloca as relações de alteridade em primeiro
plano, que se manifestam na articulação das imagens captadas por ela e aquelas gravadas pelos jovens guarani no
conflito da retomada das terras em Matogrosso do Sul. Imagens como visão onírica e uma lógica xamânica de-
terminam as ações com relação aos fazendeiros branco. Samuel Leal compara duas pedagogias das imagens, que
no filme Oi’ó: a luta dos meninos permite um contato intercultural, aquele da plateia e a dos meninos xavantes.
A respeito do som, o debate se complexifica porque se reivindica a autonomia sonora não apenas em relação
à narrativa, mas a da própria imagem. Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho destaca os filmes do Nuevo Cine
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Argetino que trabalham o som de forma autónoma e criativa, sem subordina-lo à significação imagética. A am-
biência sonora se torna um aspecto determinante da produção de sentido dos filmes.
Novos conceitos são cunhados ou apropriados para estudar o cinema na sua necessária interdisciplinaridade,
assim como para ir além das “caixinhas” ou categorias que o limitam. Fábio Camarneiro trabalha o conceito de
“sorriso barroco” para pensar o encontro entre a ironia e a melancolia, entre o cinema, literatura, música e dança
no cinema de Bressane. Angelita M. Bogado usa o conceito do “entrelugar” para pensar o cinema de Adirley
Queirós nos seus elementos fronteiriços do lembrar e esquecer e da ficção e do documentário.

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Parte 1

Cinema, Arte e Modernidade


1. O som ao redor: arqueologia da verticalização moderna no Recife
Ismail Xavier

A. O passado no presente

O som ao redor, de Kleber Mendonça (2012), pelos seus aspectos formais e temáticos, se caracteriza como
um ponto de convergência que permite, em retrospecto, nova articulação de um conjunto de filmes pernambuca-
nos da “retomada” que, em formas narrativas distintas, trabalhou motivos centrais aí presentes, como a relação
entre passado histórico e presente, tradição rural e modernização urbana, marcos balizadores de relações de classe
e de gênero.

Nesta lida com o cotejo entre o passado e o presente, há no filme de Kleber uma arqueologia que permite
observar as camadas de tempo que se acumulam no tecido social da grande cidade, evidenciando a sobrevivência
de relações de poder e formas de sociabilidade que outros filmes tematizaram colocando em foco personagens
que fazem um movimento da cidade grande para o interior, encontrando uma ordem social e relações de família
que os desafiam, marcando uma diferença de referenciais na condução da vida. Esta diferença vale como um
confronto entre distintos momentos históricos ativado por um conjunto de “motivos” narrativo-dramáticos que
incidem sobre a forma de trabalhar com gêneros do cinema.

Este vai e vem cidade-campo pode ser fruto de um incidente como no caso da incursão de uma adolescente
de classe média urbana no mundo do Outro de classe (numa passagem do urbano ao rural) que faz da travessia
por um território social desconhecido um romance de formação, como ocorre em Eles voltam, de Marcelo Nor-
dello (2011). Em Boa sorte meu amor, de Daniel Aragão (2013), seguimos o percurso de figura masculina que,
à procura de sua amada em função de sua misteriosa ausência, viaja do Recife para o interior e adentra a região
onde moram os pais dela, para então ver frustradas suas indagações num terreno marcado pela violência de uma
tradição patriarcal tal como vivida por uma família socialmente acanhada, o que, para o jovem urbano, ele próprio
herdeiro da Casa Grande, é um retorno ao locus de uma tradição moralista em sua versão ressentida, vinda dos
que estão fora da esfera do poder.1 Há os casos de um movimento contrário no qual o percurso de uma moça de
província é marcado pela complementaridade entre duas violências – a vivida no interior (exploração sexual na
esfera doméstica) e a vivida na grande cidade em que, migrante vulnerável, ela se torna mercadoria, como em
Deserto Feliz (2007), de Paulo Caldas, e Baixio das bestas (2006) , de Cláudio Assis . Árido movie (2006), de
Lírio Ferreira, traz outra variante com a figura do jovem âncora do noticiário da TV que vive na grande cidade e
recebe a notícia da morte do pai. Ele volta à cidade natal e enfrenta a pressão familiar para que assuma a tarefa
que lhe cabe segundo a lei da tradição: a vingança do pai assassinado.

Baile perfumado, de Paulo Caldas &Lírio Ferreira, cujo impacto em 1996 marcou o início desta constelação
de filmes, é um exemplo deste cotejo passado-presente tal como trabalhado no plano do próprio estilo, ao tratar
a experiência do cangaço numa chave que incorpora o espírito Mangue Beat, incluindo trilha sonora com a pre-
sença de Chico Science. O filme, em sua dimensão historiográfica, articula a homenagem ao pioneiro Benjamin
Abrahão, exibindo fragmentos de seu documentário dos anos 1930 que traz imagens de Lampião, Maria Bonita

1 O filme de Daniel Aragão é posterior ou simultâneo a O som ao redor, mas vale esta referência no painel que atesta a presen-
ça do motivo temático do “passado no presente” no cinema contemporâneo realizado em Pernambuco.

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e os cangaceiros, um material de arquivo que adquire uma feição pop ao ser acompanhado por uma sonoridade
moderna. A tradição popular do sertão encontra uma nova representação de seus maiores ícones, Lampião e Maria
Bonita, evidenciando o acesso dos cangaceiros a um circuito amplo de mercadorias que inclui perfumes e bebida
importada, um mundo de conexões que tem seu momento decisivo neste contato com o cinema. Este momento de
consagração ampliada que o filme de Abrahão lhes propiciou, mas, na contracorrente, mobilizou forte do pressão
do Governo Central na sua captura e morte.
Considerada esta constelação, O som ao redor assume uma posição estratégica neste processo, ao retrabalhar
este motivo do encontro entre o passado e o presente que o cinema pernambucano recente tem reiterado. Uma de
suas forças é justamente gerar um movimento retrospectivo inovador nesta conexão entre cidade e campo, pas-
sado e presente. Vale neste destaque ao filme de Kleber Mendonça a consistência de sua opção formal e do modo
como tais motivos recorrentes encontram nele sua expressão mais aguda, considerada a lida com a arqueologia
dos espaços da modernidade como acumulação de tempos históricos que se justapõem, convivendo de forma
singular em plena grande cidade. Nele, o paradigma patriarcal e as questões de classe não se articulam como re-
lação entre o urbano, como ícone do moderno, e o rural como locus do arcaico, uma vez que é no próprio seio da
grande cidade que se acentua, num ponto avançado da verticalização e da sociedade afluente, a presença hoje de
formas de poder e de relações de classe supostamente arcaicas. A experiência contemporânea recolhe aí os dados
de uma modernização truncada.

B. A crônica do bairro.

Kleber conduz de forma notável a encenação da vida de um bairro da alta classe média do Recife, de modo
a caracterizar esta permanência do passado, ou seja, a vigência de tradições patriarcais de mando na vida de um
bairro nobre do Recife. O filme compõe um painel de personagens e situações pela articulação de episódios que
se sucedem como fatias de um cotidiano que, no andamento sem pressa da crônica, tipifica com muita nitidez o
território esquadrinhado por uma notável mise-en-scène feita de deslizes que introduzem o insólito no cotidiano.
Antes de mergulhar neste mosaico e suas pequenas tramas, o filme traz na sua abertura – no momento dos
créditos – uma montagem de fotos de arquivo que traz uma série de imagens que evocam a história da zona rural
de Pernambuco, com imagens da Casa Grande e da Senzala, retratos da vida comum e dos festejos, de modo a
traçar um percurso de tensões que se faz mais nítido na parte final deste painel de fotos, quando há um movimento
em direção a momentos de confronto mais recentes, com destaque para as imagens referentes às lutas das ligas
camponesas em torno de 1960.
Composta esta moldura histórico-temática, mergulhamos na cena de uma manhã ensolarada num condomí-
nio. Seguimos uma menina de patins pela área da garagem do prédio e chegamos à área de lazer que está bem
animada, com meninos jogando bola ou na piscina. Tal momento com nítido sabor de feriado contrasta com o
forte ruído de uma maquineta a vibrar nas mãos de um operário que trabalha no espaço contíguo à área de lazer.
Temos aí um primeiro momento em que uma cena de tranqüila sociabilidade de moradores é tensionada por uma
presença que compõe uma dissonância. Este forte ruído só se dissolve quando planos de transição – o asfalto com
uma declaração de amor para ser lida da sacada de um apartamento, a vista de prédios da região, namorados que
se beijam num espaço murado entre edifícios - nos levam à imagem de uma ocorrência fortuita do dia a dia: um
carro se afasta da câmera em baixa velocidade e se dirige para a esquina que está no ponto de fuga; lá, encontra
outro vindo na transversal que também parece em ritmo de passeio e, de forma inusitada, os dois carros se cho-
cam. O que gerou o acidente? Um cochilo? O excesso de confiança na aparente pasmaceira à volta? Este choque,
nem bem consumado, é logo suprimido pelo corte seco que traz o mesmo plano desta rua à noite e a inscrição
“Primeira parte: Cães de guarda”. É assim anunciado o primeiro dos três atos desta “comédie dramatique” habi-

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tada pela fórmula “tudo em paz, porém há algo que, de repente, pode vir ao centro da cena”. Se vier, no entanto,
não se fará de todo visível, pois não será necessário. Este primeiro lance minimalista de choque inesperado pode
ser observado como a célula discreta de um tecido complexo que levará muito além suas formas de contaminação
do trivial cotidiano pelo insólito.

C. Cães de guarda.

A indicação do letreiro é seguida literalmente, pois advém de imediato o episódio que introduz a figura de Bia
e sua família de classe média em ascensão, mas que parece estar ainda por consolidar seu status sócio-econômico,
portanto menos remediada do que a maioria dos seus vizinhos. Nesta cena noturna, nós a encontramos insone,
exasperada com os latidos do cão no quintal do vizinho, uma versão literal do som ao redor que dá ensejo à comé-
dia alimentada pelos seus curiosos estratagemas em sua luta pelo silêncio que inclui jogar pela janela uma pílula
de sonífero para o cão ingerir, o que dá certo. Tem início a crônica familiar cujos episódios compõem um subplot
que pontua a progressão da narrativa central que envolve João, seu avô Francisco e sua família. A presença pe-
culiar de Bia ao longo do filme dá a nota de humor em lances inusitados, marcando um contraponto de idiossin-
crasia e leveza ao que de mais dramático ganhará realce na crônica do bairro. Personagem de destaque, ela tem
suas performances solo, como a masturbação com o sexo apoiado na quina da máquina de lavar roupa que vibra
com o motor ligado, ou seu esquema de disfarce quando fuma um baseado expirando a fumaça no cano de um
aspirador de pó para evitar que o cheiro se espalhe. E tem os variados lances da vida doméstica com seu marido
(este sempre em segundo plano), o casal de filhos que são seus parceiros no tempero do dia a dia e a empregada,
não excluída as visitas de um entregador de gás – e também de maconha - e de um professor de chinês que vem
dar aulas particulares para as crianças, numa medida de “atualização”, preparo para a vida futura, anseio que se
debate no cotidiano com o humor instável que solicita zonas de escape. A variedade de situações jocosas não ex-
clui momentos em que seu comportamento autoritário entra em sintonia com o dos vizinhos chiques quando no
trato da empregada no momento de insatisfação com qualquer deslize.

Do episódio de Bia com o cão de guarda, saltamos para a cena de João no seu apartamento com a namorada
Sofia. Deitados no sofá da sala, eles correm para o quarto quando ouvem a empregada que chega, mas esta ainda
os vê passar, sorrindo com ar maternal de quem faz parte da família há muito tempo; neste ambiente, é natural a
presença dos filhos dela, adultos que vêm para fazer um serviço ou outro, e há as netas que sentam no sofá para
assistir à TV. Cúmplice do jovem patrão, ela conhece as regras, sabe toda a história, como vemos na sua conversa
com João e Sofia na hora do café. Esta é a primeira observação sobre a relação entre quarto de empregada, área de
serviço e sala de visita, algo que veremos se reiterar nas cenas domésticas da família em suas várias propriedades,
seja neste apartamento de João, no do avô Francisco ou nos de seus tios. O avô é proprietário de muitos apar-
tamentos e de casas remanescentes do bairro que ainda não foram vendidas para empreiteiras que as colocarão
abaixo para seguir na marcha inexorável da verticalização. João é corretor que trabalha para o avô na negociação
das propriedades. Mais tarde veremos que Sofia havia herdado uma casa neste quarteirão na qual ela morou por
pouco tempo no passado, casa que foi vendida há alguns anos. Está agora de passagem e João, que sabe estar sua
antiga casa de novo à venda para abrigar uma nova torre, a leva para uma última visita. Ela comenta as mudanças
do bairro que avança em sua feição burguesa nouveau riche, com forte presença do seu Francisco, o Senhor de
Engenho já instalado na cidade e com eventuais retornos às suas terras.
No papo matinal com a empregada, vamos sendo informados das coordenadas familiares e estatuto do clã
neste território, até o momento em que a conversa muda de tom quando é trazida a informação de que o carro

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de Sofia teve o seu tocador de CDs roubado. Neste momento, João fala de deu primo Dinho que tem lá suas per-
versidades de moço rico de família poderosa: ele suspeita ter sido ele quem roubou o aparelho. Esta informação
é confirmada somente quando João conversa com os “flanelinhas” que estão lá na rua durante o dia, mas têm
ouvidos para o que circula. Ele vai ao apartamento do primo e o pressiona para devolver o objeto. Este incidente
que pontua a apresentação de João e seu mundo é um dos pequenos episódios que expõe o teor das relações entre
proprietários e prestadores informais de serviços que definem os pontos extremos de uma estratificação social
observada no território.
Na sucessão de imagens do bairro, há o momento em que a câmera se instala na cobertura de uma das torres
para seguir João em seu trabalho de corretor, nos trazendo a vista da massa vertical e seu efeito urbano catastró-
fico, somado à vista de uma favela, nas adjacências, e à de uma variedade de imóveis que incluem habitações
ainda menos imponentes que indicam as nítidas diferenças de classe e de poder de consumo que define os termos
do convívio no bairro.
João e seus movimentos funcionam como um mediador neste mapeamento e na apresentação das persona-
gens que compõem a sua família e de outras figuras que desenham o perfil dos que circulam pelo bairro, inclusi-
ve os interessados em comprar imóveis. Como parte dos episódios curiosos, na conversa com uma cliente para
quem ele mostra um apartamento ele inclui a referência de que houve ali o suicídio de ex-moradora, ao que ela
responde com a pergunta se isto não deve acarretar um desconto no preço do imóvel, numa passagem rápida para
o interesse em meio ao seu teatro de consternação pelo ocorrido.

Em foco a questão da segurança, a tônica é a privatização, nos prédios e na área pública, e o tom das relações
se torna mais tenso e cheio de reticências na medida em que o painel avança. E o momento em que entram em
cena Clodoaldo e seus dois amigos que compõem a equipe de guardas noturnos que vêm oferecer sua proteção
aos moradores é, sem dúvida, um dos pontos de inflexão na tonalidade da mise-en-scène. João visita um de seus
tios e comenta os últimos lances do primo Dinho, mas logo a conversa segue outros caminhos. Eles são interrom-
pidos pela chegada de Clodoaldo que toca a campaninha e é recebido pelos dois na frente da casa junto à pequena
cerca que a separa da rua onde fica o que está lá para vender seus serviços de segurança. Ele tem boa lábia e con-
duz bem a conversa com os proprietários, sendo às vezes digressivo, sempre com um misto de simpatia e ironia
em suas respostas. Depois de indagações e reticências, o tio de João termina por aceitar a proposta do pagamento
mensal. Quando o segurança se afasta, pai e filho se olham e seus gestos mantêm uma indagação que reforça o
senso de que nem tudo é tão simples, mas isto logo se dissolve e a vida continua.
Na conversa, menção enfática foi feita pelos donos da casa ao Seu Francisco e sua influência no bairro,
dado que Clodoaldo confirmou e, com um sorriso, disse estar já bem a par das regras do jogo local. A visita ao
avô de João tem logo lugar, com os seguranças entrando pela área do serviço do prédio em que ele mora e tendo
a conversa na cozinha, todos de pé. Há um reconhecimento mútuo da linguagem que trazem de outras paragens
e a visita responde bem aos desafios do dono da casa. Este deixa claro quem manda no bairro e é enfático na
ordem para que “não mexam com Dinho, ele é problema meu”. Mais para o final da conversa ele provoca um
dos parceiros de Clodoaldo com um comentário sobre a sua condição de caolho como eventual problema para a
função a ser assumida, recebendo como resposta a referência a Lampião, num embate com réplica e tréplica sem
subserviência. Seu Francisco sorri ao dizer “gostei deste cabra”, selando o código comum que os aproxima na
oposição de classe e função. Em suma, uma conversa feita de sorrisos, porém tensa. Os seguranças passam no
teste e saem de lá com a benção do manda chuva local. Podem começar seu trabalho como guardas noturnos na
área sob a tutela do Seu Francisco. Não demora, este telefona para o neto João que está na cobertura de um prédio
cumprindo sua tarefa de corretor. Lá em baixo, ao fundo, ganha destaque a imagem de uma favela incrustada no
bairro. João comenta algo do trabalho, mas o tom da conversa é de assuntos de família, havendo a promessa do

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neto de ir visitar o engenho.

D. Guardas noturnos.

A primeira cena do segundo ato se passa na casa de Bia, com a família à mesa em conversa que tem, ao lado
dos assuntos ligados à gerência da educação dos filhos, o comentário sobre Clodoaldo e sua forma de chegar bem
no momento em que teria havido uma dose maior de furtos no bairro, como se ele estivesse por trás do acontecido
para preparar o que de chantagem haveria em sua oferta de segurança para os moradores. Enfim, tudo em volta é
conspiração.
Já estamos em novo clima no andamento da trama depois de as primeiras cenas envolvendo a equipe de
Clodoaldo terem mudado a feição dos subentendidos, pois cada novo episódio passou a tencionar as relações.
Uma opção de estilo que vai ganhar maior ênfase no final explora o domínio do tempo esgarçado nas conversas
e também nos planos de transição com seus espaços vazios, um dispositivo que vem junto com a notável modu-
lação de silêncios e de “sons ao redor” que tonifica o reiterado “plano a mais” que insiste no momento em que a
cena parece estar terminada. O filme vai criando um clima de “estranho familiar” e de tensão que marca o painel,
até que no final venha à tona uma das tramas subjacentes que, quando emerge, é resolvida em direção inesperada.
A trama a passos lentos e as supostas digressões que dão andamento à crônica do bairro vão deslocando sua
tônica para compor uma imagem do território que, sem dispensar os lances de humor, assenta a sua arqueologia
na tensão entre as classes que, no presente, reproduzem formas de mando neocoloniais que marcam a sua perma-
nência ao longo do filme, desde a evocação trazida pelas fotos na abertura.
Um crescente mal estar se insinua, tanto pelos lances no espaço público, quanto pelos jogos de inveja que
temperam o consumismo, desde a cena em que Bia é vítima da agressão intempestiva de uma figura familiar que
mora no bairro quando esta se dá conta de que Bia fez a compra de um televisor de 24 polegadas, enquanto ela só
conseguiu comprar um mais modesto. Pequenos conflitos como este compõem a comédia que pode vir da reação
histérica movida pelo ressentimento, ou pode vir de um achaque arbitrário quando os seguranças, em plena luz
do dia, interpelam um passante na calçada como se fosse uma infração caminhar por ali. Quando ele expõe a sua
razão para estar ali, mobilizam walk-talkies e sondagens para confirmar a versão dada por ele na conversa, um
aparato fora de propósito e ridículo que alimenta um senso constante de ameaça, fonte de receita desta pequena
indústria do medo. Os que prestam serviço para os donos da rua precisam reforçar ações que revelam o quanto
a violência endêmica na cidade está ali na esquina, a qualquer hora e, dada a propalada ausência do Estado no
território, deve ser controlada pelos ricos num afã de autodefesa que se mostra uma versão menos explícita, mas
de natureza semelhante ao que hoje se define como a “cultura do condomínio” segundo Cristian Dunker. 2
No prédio onde mora, João participa de uma reunião de condomínio que exibe os ressentimentos e a arrogân-
cia dos comentários quando o tema é a possível dispensa do porteiro que fica na recepção à noite. Um morador
exibe com orgulho as imagens que seu filho, uma criança, captou do funcionário dormindo na recepção; outra
moradora indignada reclama do fato de sua revista Veja ter sido entregue sem o plástico. João traz argumentos
contra a dispensa, não recebendo apoio; na hora da decisão, o celular toca, ele atende e se retira sem participar
da votação. Não era importante, e sua tônica é sempre um sair pela tangente. O principal era ir ao encontro de
Sofia, corroborando sua postura de não se envolver até o fim com a questão social ali implicada, não obstante
sua simpatia pelo funcionário.
Colocada em pauta a questão da segurança, esta se expõe em O som ao redor como mais um aspecto da pro-

2 Ver Cristian Dunker, Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo, Boitempo,
2015.
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blemática de fundo que tem mobilizado cineastas que, guardadas as diferenças de estilo, exploram certos motivos
dramáticos, justapondo as camadas de tempo que se acumulam na experiência contemporânea de modernização
incompleta, marcada pelas permanências do mundo do “homem cordial”, de gentileza com os “seus” e mando-
nismo e violência com os “outros”, lembrando a formulação de Sérgio Buarque de Holanda. É um mundo que
trava a formação da cidadania, embaralhando o público e o privado, repondo a hegemonia de classe e as tradições
patriarcais de mando na vida da cidade.
Dentro desta privatização dos embates, Clodoaldo oferece um exemplo de ação mais incisiva que vem do
subalterno que usa de recursos táticos de confronto mais direto que, não obstante, incorporam uma franja de am-
bigüidade. Ele não se resume a assumir seu ponto de olhar e de escuta na rua, no seu estilo cheio de maneiras e da
fala daquele “que se supõe saber”. Num certo momento, parte para o desafio a Dinho com uma ligação anônima
feita do orelhão da rua em que, de forma ofensiva, o desqualifica pelos lances de cleptomania, e o ameaça de
modo enfático. Só poderia ser dele esta ligação ousada e, em resposta, o moço rico não demora em caminhar até o
abrigo dos guardas noturnos lá na rua para mostrar que sabe muito bem quem ligou para ele e devolver a ameaça
apoiada no seu poder vicário amparado na família. Sua fala, no entanto, não vai além de uma precária exibição do
orgulho e do preconceito de classe que só faz evidenciar sua insegurança e precariedade.
Escurece a tela, e a repetição do plano da rua vazia à noite traz nova ocorrência insólita, com um carro a dar
um cavalo-de-pau na esquina. Passamos ao letreiro “Guarda costas” que nos leva ao terceiro ato, quando João e
a namorada finalmente pagam a visita prometida ao avô que está lá no engenho.

E. Guarda costas

A ida ao engenho é ocasião para o descanso na rede da varanda, o almoço tranqüilo em que o avô não resiste
em perguntar quando será o casamento para testar o teor deste namoro. João não hesita e diz “vamos com cal-
ma”. Não é para tanto este caso que, como veremos, logo terá fim, no momento em que a namorada encerrar sua
temporada no bairro, embora haja sinais evidentes do envolvimento dele com ela. Mais tarde, na seqüência final
do filme, na grande festa de aniversário de uma das netas de Seu Francisco, João dirá meio sem graça ao primo
Dinho que tudo acabou entre ele e Sofia, pois “ela tinha outra história”.
A visita ao engenho se faz desse relaxamento e de uma visita guiada pelas ruínas ao redor, seja num depósito
com a sucata dos velhos equipamentos não mais em uso, seja nas ruínas de um cinema local que tinha fachada
imponente e ora é cenário de um passeio bem humorado como se das ruínas viesse o som de um filme de horror.
Em cena, vale a brincadeira de Sofia a assustar João nestas ruínas do cinema. Esta alusão jocosa ao horror ganha
uma rima no plano seguinte quando vemos os dois jovens e Seu Francisco a tomar um banho embaixo de forte
queda d’água, cena que no seu final destaca João a receber o jato de água tingido de vermelho, escancarado efeito
especial que flerta com o gênero e como que culmina a invasão do insólito no fluxo natural já presente em passa-
gens anteriores. Está preparado o clima da seqüência seguinte.
Desta imagem de João na cachoeira, tomando o banho de jato vermelho, com a boca aberta e o olhar dirigido
à câmera, saltamos para o apartamento no Recife onde o vemos sentado na cama, acordado, ao lado de Sofia que
dorme. Com ar de recém-desperto, está pensativo, de modo a induzir uma leitura da cachoeira em chave onírica.
Não demora e vemos a menina, filha da faxineira, que encostada na soleira da porta aberta olha para ele a sorrir e
alterando a atmosfera da cena antes que as nossas especulações sobre a cachoeira ganhem curso.

Esta forma de dissolver um impulso de ansiedade interpretativa terá mais adiante uma versão mais elaborada
na qual estranhamento e senso de ameaça ganharão maior espessura. Retornamos à casa de Bia em nova cena
noturna, desta vez para acompanhar a relação entre sua filha Fernanda que dorme enquanto imagens e ruídos
sugerem uma invasão das casas do bairro. Ela acorda e observa o movimento da janela do quarto. Esta passa-
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gem alude ao que poderia ser uma ação coletiva dos moradores de uma favela próxima. A cada plano, eles vão
se tornando mais numerosos na ocupação do terreno contíguo. A montagem alternada entre Fernanda e a cena ao
redor sugere, de início, um pesadelo seguido do despertar como experiência noturna de menina insegura que, ao
som cada vez mais forte dos ruídos, se dirige ao quarto dos pais e encontra a cama vazia. Quando ela volta ao seu
quarto um movimento de câmera centra foco no vazio, preparando o corte seco para uma nova imagem dela dor-
mindo. Tudo um sonho? É o que parece, mas a estranheza na montagem e o tom furtivo da observação renovam
um estilo que marcou o regime noturno das imagens e sons calibrado para manter vivo o senso de ameaça, uma
inquietação no ar.
Nestas passagens em que se cria este estranhamento trazido pelo recurso a “atrações” inseridas a fórceps
pela montagem, não temos um efeito dramático, uma vez que permanece ambíguo o estatuto deste tipo do even-
to-atração que termina por se dissolver sem deixar rastro. As ocorrências anteriores nesta direção foram muito
breves, mas tiveram seu papel de, aos poucos, fazer deslizar o que antes tinha um tom de crônica do cotidiano e de
escoamento do tempo para este clima mais insólito. Por exemplo, houve a passagem muito rápida de um menino
pelo corredor de uma casa do bairro no momento em que Clodoaldo, supondo estar ela vazia e tendo em mãos
a sua chave, está lá a transar com a empregada do Seu Francisco num quarto. Mais adiante, outro menino – ou
o mesmo? - foi visto pela insone Bia à distância, subindo no telhado do vizinho em plena noite, enquanto ouvi-
mos um ruído off vibratório, desagradável. Por duas vezes, o plano rápido e a distância não permitiram a clara
identificação da figura, mas houve ainda outra cena noturna em que um menino, parecendo ser este mesmo, foi
surpreendido na rua em cima de uma árvore pelos dois guardas noturnos da equipe de Clodoaldo. Sendo negro e
pobre, tornou-se a vítima escolhida para a agressão arbitrária, levando um soco no rosto para entender que “não
deve voltar aqui”.
O lance efetivo da trama que traz o “ponto de virada” no terceiro ato é a chegada do irmão de Clodoaldo
que, em cena anterior, o havia anunciado como vindo do Paraná e dissera aos amigos que eles dois tinham um
assunto a tratar. Ao chegar, o irmão salta da garupa da moto que o trouxe e veste o colete dos guardas noturnos.
Seu irmão o apresenta aos amigos. A cena desta chegada se passa durante o dia. Sendo rápida e vista à distância,
não ouvimos o diálogo, embora o início dela tenha sido acompanhado pela curiosa repetição do ruído off antes
ouvido na cena noturna de Bia a observar as casas vizinhas de sua sacada.
Logo saltamos para a noite da grande festa de aniversário de uma das netas de seu Francisco, seqüência
que faz convergir os diferentes focos de interesse trabalhados ao longo do filme. Há o núcleo que se organiza em
torno da família do patriarca que, uma vez reunida na casa de um dos seus filhos, compõe um autorretrato nos
variados diálogos envolvendo diferentes gerações e suas formas de sociabilidade. O clima ameno da festa não
exclui ironias a um estilo de vida e de formação dos jovens, agora ressaltado o seu contato com a ficção secretada
pela televisão. Bia e sua família não fazem parte deste círculo social, mas sua presença nesta seqüência final se dá,
novamente, pelo paralelismo em que ela conduz o pólo da comédia, um contraponto estratégico no momento em
que tudo chega à sua tensão máxima no mundo de Seu Francisco. Antes de cuidar da ciranda social no ambiente
da festa, o filme a havia acompanhado em sua compra de uma caixa de bombinhas de alto calibre para se divertir
com seus filhos.
Nesta noite, o avô da aniversariante tem pressa em resolver uma questão, e interrompe sua presença na festa
para atender a Clodoaldo que viera até ali atendendo a seu chamado. O encontro se dá junto à cerca de entrada, no
limite da rua, como na primeira conversa com o guarda noturno. A presença do deste dá um toque especial à cena
pela tensão permanente em seu semblante desde que é apresentado a Seu Francisco. Já observamos um ou outro
travo nas relações familiares ou entre as classes que compõem o painel do bairro onde não estiveram ausentes as
figuras do ressentimento. O irmão de Clodoaldo neste momento é quem recolhe essa carga, e sua presença vale

22
como promessa de algo de mais grave no horizonte.3
Seu Francisco de início reclama do fato de não ter sido atendido quando ligou várias vezes para Clodoaldo,
deixando recado. Sem demora, esclarece que precisa ter uma conversa com eles, definindo o encontro para dali a
pouco lá no seu apartamento. Eles se despedem e voltamos à festa.
Chegado o momento do encontro, os guardas noturnos voltam a entrar pela área de serviço, mas desta vez
a conversa se dá na sala onde o anfitrião os convida a sentar. Ao explicar os motivos deste chamado, o senhor de
engenho se refere a episódios violentos ocorridos em área de suas propriedades no campo, com destaque para
o assassinato de seu ex-capataz. Isto indica possível ameaça a ele próprio, dado que este crime se insere numa
engrenagem de vinganças, com toda certeza. Está explicado porque os convocou; quer que passem cuidar de sua
segurança pessoal, sendo os “guarda costas” anunciados no letreiro que abre este último ato do drama. Clodoal-
do se faz de desentendido e diz algo que supõe haver um convite para substituir o capataz morto, o que gera a
reação impaciente do patriarca que supõe seus interlocutores não estarem entendendo a situação, em verdade,
não se colocando no seu devido lugar de meros “guarda costas” que lhes é devido. Trazendo novo rumo à con-
versa, o irmão revela que eles dois estiveram com o capataz no dia em que a sua morte se deu. Clodoaldo respira
fundo. A tensão aumenta, pois se anuncia o momento em que veremos se definir o sentido das trocas de olhares,
informações indiretas e reticências. Em verdade, é Seu Francisco quem precisa entender melhor o que se passa,
e os irmãos lhe trazem à lembrança uma data que em princípio não diz nada ao patriarca, mas diz muito a eles.
Nesta data, foram mortos o pai e tio deles por ordem do senhor de engenho, “por causa de uma cerca”. Eles eram
crianças, mas se lembram muito bem. Conhecendo as regras do jogo, Seu Francisco se levanta enquanto os dois
se aproximam prontos para cobrar a dívida. Corte seco, e saltamos para a casa de Bia que está preparando suas
bombinhas para uma espetacular explosão em série, forte o suficiente para iluminar o ambiente e, dado importan-
te, para perturbar o cão do vizinho que faz seu protesto enquanto ela e as crianças tapam os ouvidos e se curvam
como quem precisa de proteção diante do show que eles mesmos promovem. No detonar das bombas, o especta-
dor ao final ouve um estampido diferente, mais forte, sinal de que os irmãos Nascimento liquidaram a fatura na
sala do Seu Francisco. Está cumprido o plano de vingança.

F. Epílogo.

Tendo instituído em seu território, na zona chique da grande cidade, um comportamento autoritário que
lembra as prerrogativas de seu mandonismo no sertão, Seu Francisco encarnou, numa certa medida, a presença
do passado no presente, regendo o encontro de camadas da história que encontram ali no bairro de Boa Viagem
uma superposição que, no entanto, ganha uma nova efetividade e o surpreende, pois significa a presença con-
creta, ao seu redor, do mundo do engenho que comparece aí para surpreendê-lo com esta vingança. Vale aí lei
que ele conhece muito bem mas que a ele retorna com todas as suas conseqüências na figura destes camponeses
imigrados para o bairro chique como efetiva presença do passado no presente, trazendo o desfecho de um plano
bem urdido. Ao mesmo tempo, se revela, neste último confronto, mais um encontro inesperado que vem retomar
um mote narrativo muito presente no cinema brasileiro contemporâneo. Tal mote foi tecido sem pressa ao longo
do filme e vem se ajustar ao que de intrigante se delineou nas maneiras e no fraseado de Clodoaldo, algo que
encontrou sua contraparte somente na iminência do desfecho, quando o ar sisudo do irmão como que anunciou
uma nova inflexão no enredo.

3 A presença de protagonistas marcados pelo ressentimento tem dado a tônica numa parcela razoável de filmes bra-
sileiros desde os anos 1990, dando ensejo a uma reflexão exposta, por exemplo, em meu texto “Figuras do ressentimento no cinema
brasileiro dos anos 90”, in Afrânio Catani, Fernão Ramos, José Gatti & Maria Dora Mourão (orgs), Estudos de Cinema 2000 Socine,
Porto Alegre, Editora Sulina, 2001), pp.78-98.

23
O essencial é que a rarefação, o escoamento do tempo, define a cadência do percurso marcado por premoni-
ções e momentos insólitos. Num momento em que finais abertos, com interrogações, já viraram quase que uma
norma de época, o gesto de Kleber é contracorrente, atando o prólogo e a última cena com este retorno do repri-
mido. A vingança dos irmãos vem consumar a permanência de uma ordem de relações do passado a se manifestar
em pleno centro urbano, por outro lado imerso na ordem do mercado que o próprio Seu Francisco, no plano da
gestão de seu capital, está muito bem inserido, . A vingança que se consuma não é um gesto político, muito menos
de superação das regras do jogo postas pela tradição. O lance corajoso traz um senso de justiça e vale como uma
vitória da astúcia do oprimido que traz simpatia, mas sua função maior é completar o círculo de reposição do
mundo arcaico de Seu Francisco, levando enfim às últimas conseqüências a incidência do passado no presente.
Estamos aqui na camada em geral submersa de uma peculiar sobreposição de ritmos na atual conjuntura
urbana, onde ainda se verifica a diferença, às vezes radical, entre o movimento acelerado da globalização e a per-
sistência de estratos de tempo locais, compondo um quadro em que o pólo mais espetacular, emblema efetivo da
época, é a vida das metrópoles em seu estágio avançado de crescimento (inchaço). Este, raras vezes planejado,
exibe seus efeitos nas variadas formas de convivência problemática entre os citadinos às voltas com um exaspe-
rante cotidiano, notadamente nas capitais dos Estados, dentro de um processo que, embora se insira num campo
transnacional de circulação, ainda dá lugar para experiências como esta que as personagens de O som ao redor
radicalizam.

No contexto da produção brasileira, o filme desloca a tônica do debate sobre a violência e as mazelas urba-
nas, em geral associadas à crise da família e focalizando uma juventude “sem pai” cuja condição social vivida
nas favelas induz à entrada no crime organizado, como acontece em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles
(2001), entre outros. Kleber devolve a questão da violência ao autoritarismo da tradição patriarcal, de modo que
não se trata apenas de culpar a urbanização selvagem porque dissolve a família, mas dar ênfase a outro ângulo
do problema: mostrar que ele está na tradição familiar dos de cima, que sobrevive, notadamente na relação com
o Outro de classe.
No início deste texto, comentei o quanto o cinema de Pernambuco, na sucessão destas gerações recentes,
vem compondo um conjunto que apresenta fortes conexões, algo não encontrado com a mesma força em outros
focos produtores. O filme de Kleber Mendonça Filho traz uma síntese em que o passado no presente, o paradigma
patriarcal e as questões de classe se articulam de modo a animar uma recapitulação do percurso desse cinema
no período da chamada retomada, assinalando suas constantes, tal como citei na abertura deste artigo. O som ao
redor tem esta notável capacidade de gerar um movimento retrospectivo, ou seja, “criar os seus precursores”, para
citar uma fórmula de Jorge Luis Borges que sobrepõe, à cronologia, uma ordem de relações em que o diálogo
entre as obras expõe de forma mais nítida uma configuração do campo quando surge aquela que, como ponto de
convergência, acumulação de motivos e espécie de síntese, consolida uma nova percepção do conjunto. O foco
recai naquele aspecto central do filme que destaca, de modo revelador, uma problemática que tem mobilizado
cineastas que, guardadas as diferenças de estilo, exploram o motivo temático da permanência do passado no
presente, pondo em cena as camadas de tempo que se acumulam na experiência contemporânea, esta mesma que
resulta de uma modernização incompleta marcada pelas permanências daquele mundo do “homem cordial” que
herdamos do Brasil colônia.

24
Referências bibliográficas

Barbosa, Marialva. (2006) Midias e usos do passado: o esquecimento e o futuro. Revista Galáxia, S. Paulo, n.
12, p. 13-26, dez. 2006.

Bresciani, Stella & Naxara, Márcia (0rgs.) (2001). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão
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Ismail Xavier - Possui graduação em comunicação social com habilitação em cinema (1970), mestrado e
doutorado em letras (teoria literária e literatura comparada, nos anos 1975 e 1980, ambos na USP, orientado por
Paulo Emilio Salles Gomes e Antonio Candido, respectivamente) e pós-doutorado em cinema studies na New
York University (1986). Professor da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de comunicação, com
ênfase em cinema, atuando principalmente nos seguintes temas: cinema, cinema brasileiro, cinema moderno e
contemporâneo, teoria e história do cinema, cinema e teatro, cinema e pintura, cinema e fotografia, cinema e

25
fotografia. Seu pensamento e análise do cinema brasileiro influencia o debate cultural contemporâneo. Publicou
os livros O olha e a cena, O cinema brasileiro moderno, O cinema no século, A experiência do cinema, Sertão
Mar: Glauber Rocha e a estética da fome, O olhar e a cena, entre outros. É membro do conselho consultivo da
Cinemateca Brasileira e conselheiro editorial das revistas Novos Estudos Cebrap e Literatura e Sociedade.

26
2. A Desideria: Comédia urbana e condição feminina no Chile dos anos 1940

Fabián Núñez

Santa Cruz Achurra (2011), ao estudar a representação do nacional-popular no cinema chileno dos anos
1940, década considerada áurea dessa cinematografia durante o período clássico, constata a diminuição de filmes
históricos, gênero comum na produção silenciosa, e o grande sucesso de comédias e melodramas com sequências
musicais, em cujos filmes podemos encontrar o protagonismo de personagens populares. Tais filmes abordam
tanto o ambiente rural quanto o urbano. Assim, a figura do popular presente nas telas é encarnada sob as duas
personas típicas da chilenidade: o huaso e o roto. No entanto, Santa Cruz Achurra identifica nessa produção uma
presença maior de filmes rurais do que urbanos, enquanto que a sociedade chilena, desde a década anterior, sofria
um forte êxodo rural em direção aos centros urbanos. Além disso, a década de 1940 é caracterizada pelo domínio
do Partido Radical, principal força política que condensou as aspirações de uma ascendente classe média. A
dissolução da república oligárquica e de seu modelo econômico agroexportador desde os anos 1920, agudizada
com o Crash da Bolsa de Nova York no final dessa década, não apenas pôs na cena política novos atores sociais,
como tornou evidente a amplos setores da sociedade chilena, dos mais variados matizes ideológicos, a necessidade
de reorganizar a economia nacional em outros moldes. Isso significa incentivos à industrialização em vias a uma
substituição de importações e a produção de mercadorias com alto valor agregado para a exportação - e, desse
modo, reequilibrar a balança comercial do país. Frente a tais desafios, tornou-se consensual uma presença maior do
Estado na economia. Nesse sentido, podemos afirmar que a chegada dos radicais ao poder central, em 1938, pela
Frente Popular, uma coalização de partidos de centro-esquerda, é a culminância de um processo iniciado desde
os anos 1920. E entre tais fatores, um forte discurso modernizador e industrializante, o que aparentemente entra
em contradição com a imagem de um país agrário e vinculado às suas tradições locais. Portanto, a constatação de
Santa Cruz Achurra aparenta indicar um descompasso entre a sociedade chilena e o seu cinema, já que nos anos
1940 vemos um país se modernizando sob a égide do Estado, enquanto que boa parte de sua produção fílmica
se voltava ao universo rural, incluindo os seus filmes de maior sucesso de bilheteria. Em suma, apesar do êxodo
rural e do importante papel da classe média urbana e do operariado como força política no país, o huaso teimava
em dar as suas caras nas telas.
No entanto, a constatação de Santa Cruz Achurra de maior volume de filmes rurais se coaduna com o
nacionalismo modernizador que caracterizou o âmbito cultural chileno da primeira metade do século passado.
Como frisa Peirano (2015:47), “o criollismo foi um movimento fundamentalmente de classe média, que coincidiu
com a crise da oligarquia chilena”. Trata-se de um movimento que buscou criar as bases da identidade nacional
chilena, ao consagrar as tradições e os hábitos das classes populares, sobretudo a camponesa. Assim, apesar dos
intelectuais criollistas exaltarem o ambiente rural, espaço tradicionalmente associado à oligarquia, eram autores
em sua expressa maioria dos extratos médios urbanos. Nesse sentido, não há um descompasso entre a sociedade
chilena e a sua produção fílmica, pois o elogio ao campo vai ao encontro da corrente criollista. Por sua vez,
como frisa Peirano, existe, sim, uma contradição na intelectualidade chilena da primeira metade do século XX
ao testemunharmos dois discursos sobrepostos e antitéticos: um discurso modernizante, que busca alçar o país
ao status de nação avançada, buscando criar uma imagem do Chile como um país radicalmente distinto de uma
“republiqueta das bananas”, com o intuito de se autopromover como um país civilizado com um povo ordeiro,
e o discurso criollista, de exaltação à tradição e à geografia local. Porém, podemos afirmar que tais discursos
não entram em contradição, pois como frisa Gutiérrez (2008), a exaltação do mestiço chileno encarnado sob

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a imagem do “roto patriota”, fruto do sangue entre os belicosos espanhóis e os índios araucanos, denota um
elogio ao papel do “povo” na formação e consolidação da Nação chilena, em especial, à sua ação nas Guerras
da Independência (1812-1826), contra a Confederação Peru-Boliviana (1836-1839) e do Pacífico (1879-1883).
Assim, o roto é caracterizado como um tipo popular, uma pessoa humilde, ingênua, bem-humorada e brincalhona,
mas que não se isenta ao ser chamado pelo dever, sendo capaz de atos de bravura, movido por sua índole altruísta.
Em suma, o elogio às camadas populares dialoga com a ideia desejada de o povo chileno ser “ordeiro”, apesar
de sua latinidade. É sob esse olhar glorioso que o roto foi literalmente monumentalizado, quando, em outubro
de 1888, é inaugurado o Monumento ao Roto Chileno, localizado na Praça Yungay, em Santiago. Em 1888, ano
da inauguração do monumento, é instituída a data de 20 de janeiro como o “Dia do Roto Chileno”, oficialmente
comemorado até hoje na referida praça com a deposição de flores por autoridades civis e militares.
Santa Cruz Achurra (2008) identifica nos filmes históricos do cinema silencioso chileno a presença dessa
face do roto. Portanto, é o roto patriota que é digno de estar presente nas telas nacionais, i.e, o personagem
popular que combate e morre anonimamente pelo país e não o roto alzado, “insolente e rebelde, que questiona
ou resiste (...), figura que na virada do século se associou à ação do agitador estrangeiro”. Por sua vez, Gutiérrez
(2008) chama a atenção de que o elogio ao roto por parte dos intelectuais no começo do século XX se refere a
um momento do passado, como um tipo popular em extinção, o que pressupõe que a classe trabalhadora chilena
perdeu (ou estava perdendo) o seu caráter singelo, bonachão, valoroso e ordeiro. Portanto, de ofensa a símbolo
nacional, a figura maltrapilha do roto chileno jamais foi uma unanimidade entre a intelligentsia nacional, pois um
tom pejorativo sempre o espreitava. Nesse sentido, é bastante diverso em relação à figura do huaso, considerado
sem controvérsias como um símbolo positivo de chilenidade. Isso se deve ao fato de que o criollismo se voltou
para as camadas populares rurais, calcando-se na tradição herdada dos tempos coloniais. Portanto, a contradição
apontada por Peirano se deve ao aspecto cosmopolita da modernidade que se choca com o caráter tradicionalista
do criollismo. Inclusive, Peirano interpreta como um dos pontos da crise da Chilefilms, essa contradição discursiva
presente em seu projeto de cinema.
Também podemos citar como um sintoma da dissolução da república oligárquica a criação de uma legislação
trabalhista no país, o que denota o papel dos movimentos sociais. Assim, nos anos 1920, vemos a promulgação
de tais leis, durante a presidência de Arturo Alessandri Palma, que finalmente ganha um ordenamento jurídico
com o Código de Trabalho decretado com força de lei em 1931, durante a ditadura do general Carlos Ibáñez del
Campo. No entanto, como afirmam os estudiosos, tal legislação não foi executada de modo pleno e satisfatório.
Por outro lado, é importante ressaltar que ambos mandatários citados, Alessandri e Ibáñez, são simplesmente as
duas principais figuras políticas chilenas da primeira metade do século XX, logo, associados à reorganização
socioeconômica do país provocada pela crise da república oligárquica. Apesar de ambiguidades ideológicas e, no
caso de Ibáñez, do caráter autoritário de seu governo, são mandatários que receberam apoio popular e, não por
acaso, são figuras que a historiografia associou ao fenômeno do populismo na América Latina.
Podemos também entender como um sintoma de transformação da sociedade chilena os direitos conquistadas
pelas mulheres. Desde fins do século XIX, podemos constatar a ação de grupos femininos em prol da conquista de
direitos para as cidadãs chilenas, sendo uma das primeiras conquistas importantes o direito ao ensino superior em
1877. No entanto, o sufrágio feminino no Chile se dará bem mais tarde e de modo gradual. Em 1934, conseguem
o direito ao voto para eleições municipais. Em seguida, passa a tramitar no Congresso Nacional um projeto de
lei para o sufrágio pleno feminino, apoiado por parlamentares de vários partidos, mas, no entanto, o projeto
não é aprovado em 1941 para surpresa geral. O que se postula é a apreensão por parte da classe política sobre o
comportamento do eleitorado feminino, que poderia desestruturar a frágil correlação de forças políticas, sobretudo
no período citado, o governo da Frente Popular. Como frisam López Varas e Gamboa Valenzuela (2015), é por
esse viés que podemos entender a negação ao sufrágio pleno feminino, uma vez que as eleitoras chilenas tendiam a
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posições políticas conservadoras. Aliás, a literatura sobre o tema chama a atenção para a relação entre o eleitorado
feminino e a vitória de Ibáñez del Campo nas eleições presidenciais de 1952, apoiando a sua campanha eleitoral
em um discurso moralista de crítica à classe política nacional. Trata-se das primeiras eleições presidenciais às
quais participaram as cidadãs chilenas, uma vez que o sufrágio pleno feminino é conquistado somente em 1949.
Assim, o Chile é o décimo-segundo país latino-americano a ter o voto feminino.
Portanto, se o Chile estava se modernizando, ainda que os aspectos autoritários do país permanecessem
bastante ativos, como pensar então a figura do roto nesse processo? Como analisa Salinas Campos (2006), o
roto presente na indústria cultural do Chile do começo do século XX (imprensa, teatro de revista, rádio, cinema)
deita raízes a uma vasta tradição satírica de tom social e político que existe na imprensa chilena desde o período
colonial, oriunda do universo picaresco tão fortemente entranhado no imaginário espanhol. Desse modo, essa
faceta do roto chileno é uma versão criolla do pícaro, devidamente (sub) urbanizado, sendo possível aproximá-lo
então das figuras do pelao mexicano e do golfo espanhol. No entanto, Santa Cruz Achurra interpreta a picardia do
roto dos filmes de José Bohr como “a imagem do popular subordinado, mas simpático, ainda que posto nos marcos
do urbano e do moderno, sem abandonar o fundamental da matriz identitária conservadora” (2011:139). No
entanto, o autor faz uma distinção entre as personagens interpretadas por Eugenio Retes, considerado o principal
ator cômico a encarnar o roto no cinema chileno, e Ana González, especialmente a sua personagem Desideria, de
origem teatral e, posteriormente, migrada para a rádio e o cinema. Assim, geralmente, o roto protagonizado por
Retes expressa o “popular subordinado”, enquanto que a personagem da empregada doméstica interpretada por
Ana González, a Desideria, expressa um discurso profundamente crítico.
Ana González é uma atriz de prestígio, com carreira no teatro, rádio, cinema e televisão. Autodidata,
é considerada uma “grande dama do teatro chileno”, ao ter-se iniciado profissionalmente no teatro popular e,
posteriormente, se incorporar ao chamado “teatro universitário”, que se inicia nos anos 1940, criado no governo
da Frente Popular. Começa a sua carreira em peças cômicas encenadas pelos chamados Conjuntos Obreros,
companhias de teatro formadas por trabalhadores e voltados para o público popular. Segundo Ruiz Vera (2002: 35-
36), a personagem Desideria é fruto da sensibilidade de sua criadora, a atriz Ana González, em relação às recentes
transformações ocorridas na sociedade chilena. Uma delas é a promulgação da Lei nº 4.054, em 1924, que cria
o primeiro mecanismo legal de seguro social dirigido aos trabalhadores, o que também incluía as empregadas
domésticas. Tanto que em seus diálogos, Desideria demandava aos seus patrões o recolhimento exigido pela lei.
Assim, Desideria surge nos palcos em monólogos cômicos, textos usados como “entreato”, quando a cortina
era baixada para as mudanças de cenário durante o espetáculo. Contratada para a companhia de teatro de revista
do dramaturgo Carlos Cariola, González começa a conhecer o êxito de sua personagem em 1939. Após uma
das sessões, o roteirista e produtor Gustavo Campaña convida Ana González a encarnar a personagem para um
programa que estava em vias de produção para a Rádio Pacífico. Inicialmente, o programa humorístico se intitula
La família Verdejo, mas depois muda o nome com o qual fica consagrado na história da radiofonia nacional: La
família chilena. E assim, Desideria emite a sua voz pela primeira vez em 1º de junho de 1940. Segundo Ruiz Vera
(2002: 38-39), Ana González havia feito uma exigência aos produtores do programa - que em sua estreia atrás do
microfone radial, ela estivesse, assim como nos palcos, caracterizada como Desideria. E o seu desejo foi atendido.
O sucesso da personagem é imediato, tanto que em 1941, Ana González retorna aos palcos para protagonizar
a revista Las locuras de la Desideria, escrita por Amadeo González e Roberto Retes. Segundo Peirano, é após
uma sessão dessa peça, que José Bohr convida Ana González a levar Desideria para as telas, o que de fato ocorre
em dois filmes, P’al otro lao (1942) e El relegado de Pichintún (1943). Ressaltamos que em La dama de las
camelias (José Bohr, 1947), apesar da personagem se chamar Desideria de los Ríos, não é a persona da empregada
doméstica que encontramos, mas uma atriz de teatro popular às voltas com uma produção cinematográfica, o que
encerra um teor biográfico entre a personagem e Ana González. Produção da Chilefilms, o filme La dama de las
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camelias pode ser entendido como uma autoparódia da empresa, o que é mais um motivo para interpretá-lo como
um dos filmes mais impressionantes da cinematografia chilena. No entanto, a estreia de Ana González no cinema
se dá antes do surgimento de Desideria. Trata-se de Entre gallos y medianoche (Eugenio De Liguoro, 1940),
adaptação da peça de Carlos Cariola, no qual González interpreta um papel secundário, mas que foi fundamental
nos rumos de sua carreira: a empregada doméstica Catita. Segundo Ruiz Vera (2002: 34), meses depois, Ana
González cria a Desideria nos palcos. Mas diferente de sua personagem interpretada no filme, a sua criação é
mordaz com os preconceitos de seus patrões.
Assim como a expressa maioria de suas colegas reais de profissão, a empregada doméstica Desideria migrou do
interior para a capital, mas de caipira boba e ingênua não tem nada. Desideria possui um ar de sabichona, trejeitos
de “boas maneiras”, de uma suposta “boa educação” que nunca teve, também expressa pelo uso de expressões
em Inglês e Francês, pondo-se em geral acima dos demais empregados da casa. Ou seja, vemos uma ironia
aos ares esnobes típicos da oligarquia chilena emulados por sua vez pela classe média arrivista. Nesse sentido,
também podemos entender a Desideria como uma brincadeira com o estereótipo do chileno em seu tom esnobe,
zeloso pela formalidade e pelos bons modos, o que não deixa de manifestar uma autoatribuída superioridade em
contraste com os seus vizinhos, os galego-italianizados argentinos e os cholos peruanos e bolivianos.
Também podemos aproximar o linguajar de Desideria com a chamada “cantinflada”, o linguajar verborrágico
de Cantinflas. Oriundo do teatro de variedades e dos espetáculos circenses, Mario Moreno, o Cantinflas, migra
para as telas com esse humor picaresco surgido nos arrabaldes de uma Cidade do México em plena expansão,
sob o ensejo do projeto modernizador do Estado pós-revolucionário mexicano. Como frisa Bragança (2003),
Cantinflas é um pelao, um peladito, personagem do folclore urbano mexicano, uma figura da periferia da Cidade
do México, socialmente excluído, de um falar grosseiro e popularesco. No entanto, assinala Bragança, “Cantinflas
apresenta um peladito mais cômico, mais burlesco, menos agressivo, mas não menos inquieto e incômodo”. Nesse
sentido, podemos abrir como chave de interpretação à figura de Desideria um tom crítico ao projeto modernizador
capitaneado por um Estado ilustrado, que almeja educar as massas – no caso chileno, associado ao governo da
Frente Popular do presidente Pedro Aguirre Cerda.4 Voltamos a repetir, é apenas por esse viés de leitura, pois a
forma de falar em si de Desideria nada tem a ver com a metralhadora verborrágica de Cantinflas.5
A personagem de Desideria nos faz lembrar a célebre personagem, também de origem radiofônica e
posteriormente migrada para o cinema, de Cándida, protagonizada pela atriz argentina Niní Marshall. Por isso,
entendemos que um estudo comparativo entre Desideria e Cándida, logo, entre González e Marshall, merece ser
realizado. Ou o caso da Índia María no cinema mexicano, interpretada por María Elena Velasco, um fenômeno
mais tardio, a partir dos anos 1970, uma personagem surgida na televisão que também migrará para as telas
grandes. Assim, como é promissor pensar em demais análises comparativas em relação a outras personagens
de empregadas domésticas no cinema latino-americano, como são os casos das personagens de empregadas
domésticas encarnadas por Dercy Gonçalves e Zezé Macedo nas chanchadas brasileiras.
Para finalizar, analisaremos o filme P’al otro lao (José Bohr, 1942).6 É uma coprodução chileno-argentina,

4 Sublinhamos que o lema da campanha presidencial de Aguirre Cerda era “Governar é educar”. Seu governo
ocorre de 1938 até a sua morte, ocorrida em 25 de novembro de 1941, sem concluir seu mandato. São convocadas novas
eleições, sendo eleito Juan Antonio Ríos, prosseguindo a permanência dos radicais no poder central. Ríos tampouco con-
clui o seu mandato presidencial, pois falece em 1946. Em novas eleições, é eleito Gabriel González Videla, o último dos
mandatários da hegemonia radical, que governa até 1952.
5 Segundo Kriger (2005: 86-87), citado por Mestman (2005: 24), o modo de falar de Catita, a célebre personagem
criada pela atriz argentina Niní Marshall, caracterizado pelo cocoliche (o linguajar oriundo da mistura do Castelhano com
dialetos italianos, forjado pelos imigrantes em Buenos Aires), traz para a tela setores sociais até então invisíveis, aproxi-
mando, desse modo, Catita a Cantinflas. No entanto, voltamos a repetir, entendemos a comicidade de Desideria como uma
sátira ao caráter pernóstico e arrogante do linguajar das elites e camadas médias chilenas.
6 Agradecemos a Mónica Villarroel, diretora da Cineteca Nacional de Chile, e, em especial, a Marcelo Morales, fun-
cionário da Cineteca e diretor e webmaster do site Cinechile - Enciclopedia del cine chileno, o acesso ao filme em questão.
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rodada nos Estúdios de La Plata e processada nos Laboratórios Alex, ambos em Buenos Aires.7 A trama se
inicia com Desideria, escutando no rádio, enquanto está na cozinha, uma promoção cujo prêmio é uma viagem
a Buenos Aires. No entanto, o sonho de Desideria em conhecer a capital argentina imediatamente ocorre, mas
de um modo inusitado. Os seus patrões, Sara (Sara Barrié) e o seu afilhado bon-vivant Jorge (Alberto Closas),
recebem um telegrama de Blás Pastrana, o tio rico de Jorge que vive na Argentina, solicitando a ida de ambos
para o outro lado dos Andes, e deixando bastante claro que a empregada Desideria deveria ir junto com eles.
Em terras rio-platenses, são recebidos pelo primo Silvio (Enrique Vico) e pela sua bela filha Mabel (Mabel
Urriola). Literalmente em seu leito de morte, o tio Blás, diante de Sara, Silvio e do tabelião Don Lorenzo, se diz
arrependido de seus erros do passado, tendo sido o maior de todos, o não reconhecimento de uma filha, fruto de
um “deslize” com uma criada. É claro que Desideria é a herdeira, mas como frisa o tabelião, há uma cláusula no
testamento: Desideria só deve tomar conhecimento de sua verdadeira origem quinze dias após a morte de Blás
e ela somente herdará a fortuna de 27 milhões de pesos argentinos se, no momento em que ela for comunicada,
Desideria estiver legalmente casada. Caso contrário, a fortuna irá para o Estado e Desideria terá direito apenas a
uma pensão mensal de 300 mil pesos argentinos.
Imediatamente, a empregada se torna alvo de planos “caça-fortunas”. O tabelião sugere a Silvio, que se
encontra com dificuldades financeiras, que se case com Desideria, mas Silvio crê ser difícil, pois o jovem primo
chileno Jorge está no páreo. Como competir contra a juventude? Ora, o tabelião esperto tem a resposta: empurre
a jovem Mabel para Jorge, deixando o caminho livre para Silvio conquistar Desideria. Caso se conclua o plano,
o tabelião receberia a sua parte, 10% da fortuna. Por sua vez, Mabel se mantém fiel a um namoradinho de
juventude, o primo Tito, que mora na fazenda da família. Há dez anos, ambos não se veem, trocando juras de
amor por correspondência. Em um determinado momento, ao invés de disputa, é proposta por Sara uma junção de
esforços: Jorge se casa com Desideria e a sua madrasta Sara se casa com Silvio, ficando assim “tudo em família”.
Para bagunçar mais o coreto, o primo Tito chega a Buenos Aires, vestido de gaucho (interpretado pelo ator
cômico argentino Tono Andreu). O encanto entre ele e Mabel se quebra e é imediato o interesse mútuo entre Tito e
Desideria – obviamente, o par cômico forma um casal. Porém, ocorre um quiproquó, estrutura cômica típica, pois
em um determinado momento, Mabel crê que Jorge está de fato interessado em Desideria, o que seria de agrado
à sua madrasta Sara. Mas o mal entendido é logo dissipado e os correspondentes casais ficam juntos em segredo
(Jorge e Mabel, Desideria e Tito e Sara e Silvio). No dia seguinte, todos têm um anúncio a fazer, mas Desideria
é surpreendida ao ser cumprimentada por sua patroa, que agora crê ser sua sogra. Imediatamente, Desideria acha
graça da situação e anuncia que seu marido é Tito, não Jorge. Desesperados, Silvio, Sara e o tabelião, crentes
que o laço matrimonial, realizado na noite anterior, tinha sido feito com Jorge, gritam para Desideria de que ela é
agora uma milionária, herdeira de 27 milhões de pesos. Atormentada, Desideria fica confusa... No entanto, tudo
se desvanece ao sabermos que toda a história não passa de um sonho. Assim, Desideria acorda na cozinha, cujo
sono tinha sido embalado pela voz do rádio.8

7 Frisamos que o filme tem dois títulos. A obra foi lançada na Argentina com o título 27 millones. A estreia chilena
ocorreu em Santiago, em 15 de dezembro de 1942, enquanto que a estreia argentina, ocorrida em Buenos Aires, foi em 8
de maio de 1947. Informações retiradas dos sites Cinechile e Cinenacional. Disponível em: <http://www.cinechile.cl/pelicu-
la-676> e <http://www.cinenacional.com/pelicula/27-millones>. Acesso em: 29 abril 2018.
8 Podemos interpretar o sonho de Desideria como uma crítica às promessas de ascensão social difundidas pela
indústria cultural? Em Hollywood es así (Jorge Délano, 1944), um dos filmes chilenos mais instigantes dos anos 1940, ao
lado do citado La dama de las camelias, a jovem María Contreras (María Maluenda), moradora da cidade de Los Andes,
ganha um concurso de rádio que lhe permite viajar aos Estados Unidos. Abandona o seu noivo (Pedro de la Barra), um
jovem médico que se opõe aos sonhos da moça de se tornar uma estrela de cinema. Após vários percalços na América
do Norte, volta ao Chile e aos braços de seu amado, convencida do quão ilusório é a vida em Hollywood. É possível uma
leitura de viés conservador ao filme, ao destinar à jovem artista o papel de esposa, mas também podemos interpretá-lo
como uma sagaz crítica aos papéis reservados aos latinos em Hollywood. Lembremos que o diretor Jorge Délano havia
passado pelos estúdios californianos no começo dos anos 1930, com o objetivo de estudar in loco a recente tecnologia do
cinema sonoro. Em relação a P’al otro lao, caso entendermos o sonho de Desideria como uma crítica à indústria cultural,
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Destacamos a transformação sofrida por Desideria ao longo do filme. Com o pretexto de deixá-la mais à
vontade na viagem, a sua patroa Sara junto com o primo argentino Silvio, dão um “banho de loja” à empregada.
Em uma sequência, sob a marca da música do início do filme, cuja letra versa sobre a dura vida de empregada
doméstica em sua labuta diária, vemos Desideria passar pelo cabeleireiro e pela manicure, preparando-a para a
agitada vida noturna de Buenos Aires. Transformada, Desideria exagera em seus trejeitos de madame, tornando-
se em alvo de galanteios tanto de Silvio quanto de Jorge. E, assim, todos vão a uma boate, situação dramática para
inserção de números musicais – uma das quais é uma apresentação da atriz e cantora Tita Merello.
Em suma, vemos uma comédia centrada numa herança deixada a uma pobretona e um troca-troca de casais. No
entanto, além do aspecto social, podemos afirmar que há também uma questão geracional, pois são justamente os
mais velhos (Silvio, Sara e o tabelião) os mais interessados no dinheiro, enquanto que em determinado momento
os ditames do coração falam mais alto entre os jovens (Jorge e Mabel e Desideria e Tito). Assim, é possível
afirmar que vemos marcas de uma estrutura clássica que deita raízes na comédia latina, nos textos de Plauto e
Terêncio, na qual é comum a presença de percalços de um jovem casal em confronto com os interesses egoístas
de um antagonista mais velho, que geralmente encarna uma ordem decadente.
No entanto, apesar do filme possuir um tom conservador em termos sociais, destacamos o temor que
abate Desideria no início da trama, antes das tribulações ocorridas na capital argentina: a súbita perda de desejo
pelo seu affair Arturo, posteriormente readquirido. Em suma, se no final das contas é destinado a Desideria um
companheiro de sua mesma classe social, impedindo-a, desse modo, a ascensão social mesmo que seja pelo
matrimônio - como, por exemplo, nas chanchadas Cala a boca, Etelvina (Eurides Ramos, 1958) e Minervina
vem aí! (Eurides Ramos, 1959), protagonizadas por Dercy Gonçalves, ou em Cándida millonaria (Luis Bayón
Herrera, 1941), estrelada por Niní Marshall, comédias nas quais a empregada doméstica muda de vida, pois um
ricaço se apaixona por ela -, Desideria conquista a felicidade pela via do desejo. Uma das gags do filme é que,
toda vez que Desideria está “interessada” por um homem, ela tem soluços. Ou seja, uma piada de forte tom erótico
– os espasmos em seu corpo -, que é apresentada logo no começo do filme, quando na cozinha, recebe Arturo com
as compras do armazém. Desideria reclama que não tem mais soluços quando está com ele. Inclusive Desideria
pede que Arturo a abrace bem forte, o que não surte nenhum efeito, o que a deixa desolada. Porém, quando está
em Buenos Aires, Desideria retoma os seus soluços. No final do filme, de volta à realidade - ou seja, ao Chile e à
sua condição de empregada -, Desideria encontra a felicidade, mas não pelo dinheiro, mas por ter recobrado a sua
capacidade de “ter soluços”. Assim, é instigante pensar como o tema da sexualidade feminina aparece em uma
comédia aparentemente tão singela. Em suma, precisamos assistir com mais apuro aos filmes latino-americanos
em seu período clássico. Ainda bem que, recentemente, estamos nos detendo com mais cuidado a esse período.

é curioso essa crítica ser feita justamente pela presença de uma estrela da rádio, i.e., Ana González - e a própria persona-
gem Desideria, um fenômeno radiofônico.
32
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Filmografia
P’al otro lao, José Bohr, Chile/Argentina, 1942.
El relegado de Pichintún, José Bohr, Chile,1943.
La dama de las camelias, José Boh, Chile, 1947.
Entre gallos y medianoche, Eugenio De Liguoro, Chile, 1940.
Hollywood es así ,Jorge Délano, Chile, 1944.
Cala a boca, Etelvina, Eurides Ramos, Brasil, 1958.
Minervina vem aí!, Eurides Ramos, Brasil, 1959.
Cándida millonaria, Luis Bayón Herrera, Argentina, 1941.

33
Fabián Nuñez - Professor do departamento de cinema e vídeo da Universidade Federal Fluminense
(UFF), onde também leciona no Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual (PPGCine). Sua
formação acadêmica foi inteiramente realizada na Universidade Federal Fluminense: bacharel em comunicação
social (habilitação em cinema), em 2000, mestre em comunicação, imagem e informação, em 2003, e doutor em
comunicação, em 2009. É membro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), fazendo parte
de sua direção durante a gestão 2012-2014. É pesquisador vinculado à PRALA (Plataforma de Reflexão sobre o
Audiovisual Latino-Americano), além de atuar no projeto de extensão Cineclube Sala Escura, focado na difusão
do cinema latino-americano.

34
3. Modernidad mexicana: cine y literatura en la transición de los años sesenta

Javier Ramirez

Con el final de la Guerra Mundial en 1945, terminan también algunas de las condiciones económicas que
favorecieron el desarrollo de la industria fílmica nacional en los años del conflicto. Lentamente, los países hege-
mónicos de la década anterior recuperan su ritmo de producción y, con ello, su peso en los mercados hispanoame-
ricanos. México conservará una inercia positiva por los siguientes años, pero a mediados de la década siguiente
la situación será de un franco estancamiento. Este proceso coincide con otro en sentido inverso: la economía
mexicana, impulsada por las condiciones de la guerra se desenvuelve con solidez y el crecimiento impacta en el
desarrollo general de la clase media urbana que se ve favorecida y alentada por el desarrollo económico.
Hacia finales de los años cincuenta este desarrollo se refleja en la presencia de la clase media urbana mediante
grandes proyectos habitacionales. El conjunto habitacional Nonoalco Tlatelolco, al norte de la ciudad de México,
se erige como el primer paso de la modernización de una ciudad que deseaba renunciar a su talante premoderno,
a su perfil rural y que, con ello, deseaba mostrarse como una urbe progresista, en órbita con las tendencias mun-
diales. Diseñada por el arquitecto Mario Pani, la unidad habitacional formaba parte de un proyecto más ambicioso
cuya finalidad era ir paulatinamente eliminando las zonas marginales que rodeaban el centro de la capital, para
ello se construyeron grandes edificios en los terrenos que habían pertenecido a la estación de ferrocarriles y que
ocupaban cientas de construcciones miserables. La inauguración, en 1964, incluía la ampliación de la Avenida de
la Reforma, desde el poniente de la ciudad hacia el Norte, que vinculaba a dos zonas altamente contrastantes en
cuanto al nivel de ingreso de sus habitantes. El evento sucedía justamente en los últimos meses del gobierno de
Adolfo López Mateos, un presidente cuyo periodo está marcado al mismo tiempo por un constante discurso de
modernización del país y por una fuerte represión a los sectores populares, cuyas reivindicaciones hacían notar
que el proceso modernizador de las últimas décadas había beneficiado de manera desigual a la población mexi-
cana.
Esta tensión era quizá el reflejo de otra existente entre tradición y modernidad, y que en el cine mexicano de la
época iba a encontrar un escenario privilegiado para mostrarse. Si bien la industria mexicana de la llamada “época
de oro” mostraba una gran afinidad al gobierno revolucionario y al discurso oficial, y las críticas que se mostra-
ban en la pantalla tenían más que ver con la existencia de agentes del pasado que impedían la transformación
nacional, muy pronto nuevos participantes de la industria del cine tomarían la voz para contradecir el proceso. La
llegada de Luis Buñuel hacia 1947, sería uno de estos puntos de inflexión.

1.
Pocos años atrás, y justamente en los terrenos en que se construiría la Unidad Habitacional de Tlatelolco,
Luis Buñuel filmaría Los olvidados, una reseña descarnada de la vida en aquel arrabal a través de las anécdotas
de un grupo de niños en condiciones de miseria. La cinta ponía a cuadro una visión muy alejada de la que el cine
nacional había proyectado, enfatizando la miseria moral de los personajes, subrayando la pobreza como causa de
la condición moral de los personajes y cuestionando algunas de las figuras que desde el cine mexicano anterior se
habían enaltecido, como el ciego bueno o la figura de la madre abnegada. En una escena de la cinta, el grupo de
jóvenes liderados por el “jaibo”, siguen al ciego Don Carmelo hacia un descampado donde lo atacan. La escena
transcurre justo en esos terrenos: al fondo, la estructura de una construcción atestigua los hechos mientras se

35
sintetiza, en esa imagen, la contradicción entre una ciudad que aspira a modernizarse y los lastres que enfrenta.
El estreno en México de Los olvidados en 1950, provocaría una reacción muy airada de diversos sectores de
la sociedad mexicana que veían denigrada la dignidad de la patria y amenazaban con expulsar del país a los auto-
res del agravio. La presencia de la cinta en el Festival de Cannes al año siguiente se convertiría en la oportunidad
de resarcir el daño, al proyectar la película en un medio diferente que con su juicio validaría su factura. El poeta
mexicano Octavio Paz, quien trabajaba en la embajada de México en París, tomó la causa como propia, aprove-
chó todos los contactos y medios posibles, hizo que fuera vista, imprimió y repartió volantes. El jurado otorgó el
premio de mejor director de ese año a Luis Buñuel y ese hecho significó un cambio importante en la percepción
que en el país se tenía de la propia película. Paz se encargó de la defensa de la cinta también en México y a la
distancia: hizo que don Fernando Benítez, director del suplemento cultural más importante de la época, publicara
varios textos al respecto y, a partir de ahí la cinta fue revalorada por el público mexicano. Octavio Paz defendía la
película y a su realizador pues consideraba que ella contenía el “desenlace” del surrealismo, pues lograba juntar al
relato tradicional “las imágenes irracionales que brotan de la mitad oscura del hombre”, y escribió: (Sheridan LL)

“Sorprende sobre todo el rigor con que Buñuel lleva hasta sus límites extremos sus primeras intuiciones. Por una parte,
Los olvidados representan un momento de madurez artística; por la otra, de mayor y más total desesperación: la puerta del
sueño parece cerrada para siempre; solo queda abierta la de la sangre. Sin renegar de la gran experiencia de su juventud,
pero consciente del cambio de los tiempos –que ha hecho más espesa esa realidad que denunciaba en sus primeras obras–,
Buñuel construye una película en la que la acción es precisa como un mecanismo, alucinante como un sueño, implacable
como la marcha silenciosa de la lava.” La cinefilia no es patriótica, Octavio Paz 1951

Este episodio significó el inicio de una relación fundamental entre el artista de origen aragonés y la intelec-
tualidad mexicana de la posguerra. Paz, quien era amigo cercano de los surrealistas, fue también una presencia
dominante en la cultura mexicana de aquella época. De tal forma que este acercamiento produjo otro entre el me-
dio cinematográfico y la intelectualidad del medio siglo. Así, en 1954 la Universidad Nacional de México, cuyo
departamento de difusión cultural estaba encabezado por otro poeta, Jaime García Terrés, comenzó un vínculo
con la cinematografía que continúa hasta la actualidad y que daría muchos frutos en los siguientes años. En un
contexto donde el cine se intelectualizaba y, bajo la influencia europea, se le comenzaba a considerar no sólo un
arte, sino incluso una forma de pensamiento, en la Facultad de Filosofía se propuso hablar con la mayor seriedad
posible del medio fílmico, mediante una serie de conferencias que fueron inauguradas nada menos que por el pro-
pio Buñuel quien, desde ese momento, va a ejercer un fuerte liderazgo moral en los jóvenes escritores y aspirantes
a cineasta que se agrupan en las aulas universitarias.

2.
La historia de la cultura en América Latina está marcada a lo largo del tiempo por una tensión constante entre
tradición y modernidad que se materializa en formas diferentes. Por ejemplo la tensión existente entre naciona-
lismo y universalismo que marcó muchos debates de la primera mitad del siglo XX. El medio mexicano de la
posguerra atestiguó la irrupción de una generación de jóvenes insertos en la vida cultural con el énfasis crítico
en el nacionalismo hegemónico desde la Revolución y en su proceso de anquilosamiento como retórica oficial.
Los discursos “revolucionarios” en el arte, particularmente en la plástica, pero con derivaciones diversas en otras
disciplinas, se veían cada vez con mayor desconfianza como formas válidas de expresión artística.
Así, cuando en 1956, se publicó el manifiesto de “La cortina del nopal”, los jóvenes pintores agrupados en
torno a José Luis Cuevas, proponían un enfrentamiento directo con la retórica de la pintura mural. Actitud que se
repetiría con el grupo Nueva Música de México y más adelante, con el cine. Ciertamente, la actitud crítica de la

36
intelectualidad tenía que partir de un distanciamiento con el modelo nacionalista y en ese sentido les venía muy
bien la figura de Buñuel, artista con un amplio reconocimiento en Europa, con una trayectoria ya muy importante
y cuyos criterios fílmicos, modos de producción y obsesiones temáticas estaban formados en un medio distinto
al doméstico. Una crítica de este tipo implicaba, en alguna medida, la aceptación de la imposibilidad de generar
un modelo nuevo sin tener el referente europeo, pero implicaba sobre todo la necesidad de asomarse a Europa
en contraste con el arte de la Revolución al que la nueva generación veía como anquilosado y como discurso de
un régimen que representaba el pasado. Ser moderno es una obsesión de esta generación, y el cine uno de sus
caminos.
Pero la llamada modernidad fílmica no fue nunca una forma de discurso que se opondría a otra, como el dis-
curso clásico hegemónico de las décadas anteriores por ejemplo. Era, es cierto, una actitud crítica hacia el modelo
anterior, pero que propone una diversidad de respuestas posibles; para el caso mexicano, los caminos aclaraban
muy bien el objeto de la crítica pero no unificaban la respuesta posible. Los jóvenes aspirantes a cineastas de fi-
nales de los años cincuenta tenían claro qué cine no querían hacer, el de los años anteriores en México, y gracias
a Buñuel ya sabían qué actitud sí querían adoptar y cuál cine querían desarrollar. Buñuel es la modernidad que
esa generación buscaba.
Sin embargo, el propio cineasta se veía a sí mismo como un artista alejado de una actitud en ese tenor, era
un creador individual, con una fuerte conciencia crítica y un claro objeto de su quehacer: denunciar la moral
burguesa, pero distante del movimiento propio del cine que se suele etiquetar como moderno, como militante
del surrealismo pertenecía directamente al movimiento vanguardista y desconfiaba tanto del modernismo fílmico
como del cine clásico en el que se inspiraba. Era, por ejemplo, un fuerte crítico del movimiento neorrealista en el
que veía el peso de un catolicismo irresuelto, la vanguardia italiana de la posguerra, militantes comunistas pero
también del catolicismo.9

3.
Para 1960 se reúnen una serie condiciones para proponer una renovación del cine mexicano, que se suman a
un fuerte retroceso en los ingresos de la industria que han caído por varios años consecutivos. La puntilla es un
intento de una ley de censura que acaba por amalgamar a diferentes sectores culturales que, en lo individual o en
grupo, querían rescatar al cine nacional mediante su “modernización”. Estas reuniones acabarían por conformar
un grupo de escritores y artistas de otras disciplinas que se denominaría ejemplarmente “Nuevo Cine”. Un año
más tarde publicarían una revista y un manifiesto en los que propondrán una serie de medidas concretas para
lograr la ansiada renovación y la superación de lo que denominaron “el deprimente estado del cine mexicano”.10
Dos personajes centrales en este movimiento que no llegan a firmar el manifiesto son el propio Buñuel,
quien participa en las reuniones preparatorias y con su presencia afirma en los jóvenes el potencial de cambio, y
el escritor Carlos Fuentes. Fuentes contaba con treinta y dos años y había cobrado una presencia incuestionable
incluso a nivel internacional a partir de la publicación en 1958 de La región más transparente del aire, novela
experimental, innovadora y muy arriesgada, que se erigía como la gran crónica de una ciudad de México que
había vivido un vertiginoso proceso de crecimiento. La novela fue un testimonio, como pocos, de las dialécticas
de la modernización y los procesos urbanos de la ciudad. Relato monumental, que ponía el acento en las tensio-
nes entre cambio y tradición, en las diferencias de clase que determinan el devenir de la ciudad y, para ello, en
las diferencias de los modos de expresión de los personajes. Las formas del habla son expuestas como formas de
pensar y actuar, de vivir y habitar la urbe.
9 Neorrealismo
10 José de la Colina, Rafael Corkidi, Salvador Elizondo, J. M. García Ascot, Emilio García Rier, J.L. González de León, Heriberto
Lafranchi, Carlos Monsiváis, Julio Pliego, Gabriel Ramírez, José María Sbert, Luis Vicens “Manifiesto del grupo nuevo cine”, Nuevo cine,
núm. 1 (Abril 1961): 3.
37
Fuentes tenía en su joven pero importante trayectoria una relación intensa con el cine, había ejercido la
crítica y en sus relatos incluía diversas referencias que daban cuenta de una cinefilia y de un gusto muy actuales
que incluían citas de Truffaut o de Antonioni. Pronto comenzaría a colaborar directamente como dialoguista y
adaptador también. Su novela Las buenas conciencias publicada en 1962, tenía la siguiente dedicatoria:

A LUIS BUÑUEL,
gran artista de nuestro tiempo,
gran destructor de las
conciencias tranquilas,
gran creador de la esperanza
humana.

Si Fuentes no fue participante directo de Nuevo Cine, sí era una voz presente en el mismo sector cultural, y
serían varios más los escritores de esa misma generación quienes harían el trabajo en la Revista, entre ellos Jomi
García Ascot, José de la Colina o Salvador Elizondo. Elizondo firmó el manifiesto en 1961 y en el primer número
de la revista publicó el artículo “Moral sexual y Moraleja en el cine mexicano”. En él, reafirma el diagnóstico de
que el mal de nuestro cine tiene que ver con una moral mal entendida manifestada en una distinción temática entre
dos polos: la mujer y la prostituta, frente a las cuales, el hombre “actuante” cavila en actitud dubitativa.
Unos números más adelante es Jomi García Ascot, el artista polifacético, poeta, cineasta y pintor, quien en
un ensayo muy notable desarrolla su crítica con el mismo punto de partida y llegada. Comienza citando al propio
Buñuel, quien en una entrevista afirmaba que “La misión del cine, como la de todo arte, es que después de haber
estado en contacto con la obra, el espectador tenga la noción de que no todo estaba tan bien en este mundo como
se quiere aparentar, de que, en definitiva, no estamos en el mejor de los mundos posibles.”11
A pesar de que el grupo se disuelve y, con él, la revista apenas un año más tarde, y aunque en términos de re-
novación de la producción de la época su aporte es diminuto, la contribución de Nuevo Cine tiene que ver con un
impulso reformador e institucional que propició la creación de archivos, escuelas, formas de crítica y estudio del
cine.12 Incluso, los miembros del grupo y, de forma más amplia el núcleo intelectual que conformaban, tiene que
ver en la incipiente producción que de diferentes maneras intenta la renovación de la industria en aquellos años.

4.
En 1965 tiene lugar en México el Primer Concurso de cine experimental, que propone poca experimentación
formal, si bien, en las propuestas se desarrolla un impulso de renovación temática y alguna innovación con la
forma narrativa , cuyo origen se puede ubicar en la literatura del medio siglo mexicano o en algunas asimilaciones
del trabajo de Alain Robbe Grillet o de otros integrantes de la vanguardia europea, realizadas por los jóvenes nar-
radores mexicanos; entre ellos ciertos descentramientos del sujeto de la narración en Tajimara (escrita por Juan
García Ponce) o en La sunamita (de Inés Arredondo), donde el relato es el lugar de una fuerte experimentación
que parte de la tematización de ciertos issues ausentes del cine anterior, pero que aterriza en la forma narrativa
propiamente. Ya de entrada se sugiere que la experimentación está dada por la ruptura con las formas anteriores
y en la disolución de las fronteras entre formas de la expresión artística.
En el concurso se da la irrupción de dos modelos de modernidad con un punto de partida y una conciencia
diferente y que, en cierta forma, se pueden sintetizar a partir de dos escritores: Carlos Fuentes y Rulfo. Ambos
participaron en el concurso de formas particulares: de Fuentes se adaptaron dos cuentos sin su participación ofi-

11 Jomi García Ascot, “Sobre el anticonformismo y el conformismo en el cine”, Nuevo cine, núm. 3 (Agosto 1961): 10.
12 Institucionalización
38
cial,13 mientras que Rulfo aportó unas líneas, por demás importantes, para la película triunfadora del certamen.
El contraste es notable. Fuentes representa en buena medida las inquietudes de una generación que está en pleno
asalto de las instituciones culturales que dominarán en las siguientes décadas, sus preocupaciones se aproximan
al existencialismo y sus propuestas abundan en el punto de vista subjetivo. Las dos elenas y Un alma pura son
dos relatos centrados en un problema generacional y en la irrupción de nuevos temas antes ajenos para el cine na-
cional, como el incesto o el cuestionamiento a la institución familiar. Las preguntas que a través de Gámez revela
Rulfo son de una naturaleza completamente social y propenden hacia la politización del cine.

5.
En el marco de este concurso, Ruben Gámez filma La fórmula secreta. Formado en el ámbito de la publicidad
y los noticieros, Gámez había incursionado en la realización con Magueyes en 1960, breve cortometraje realizado
para acompañar la exhibición de la película Viridiana, del mismo Luis Buñuel.14 Gámez afronta su cinta, estruc-
turándola con base en cuadros no narrativos que ponen en escena la disputa por la esencia de lo mexicano frente
a la pérdida de la identidad, acosada por la confrontación con el imperialismo norteamericano y sus productos
industriales –el subtítulo de la película es Coca-Cola en la sangre–. Las secuencias se basan mayormente en el
uso de material de registro directo y el cineasta construye su película en el montaje, ausente la narración, confor-
mando imágenes de gran fuerza ensambladas en una pugna constante, en un enfrentamiento de fuerte violencia.
Juan Rulfo escribió algunos textos que se leen en off en dos secuencias de la película, como aquella donde la tierra
yerma, completamente seca de una ladera que presumiblemente le han entregado a los campesinos es vista por
la cámara mientras la voz de Jaime Sabines lee: “Ustedes dirán que es pura necedad la mía, que es un desatino
lamentarse de la suerte, y cuantimás de esta tierra pasmada donde nos olvidó el destino. La verdad es que cuesta
trabajo aclimatarse al hambre”. La cámara panea y el campesino se desplaza para quedar nuevamente en cuadro;
la cámara vuelve a panear y el hombre, obstinadamente, insiste en seguir en el cuadro, en visibilizarse. Poesía
visual y textual confluyen en el espacio de la denuncia, en el punto de encuentro entre dos formas de retórica para
hacer funcionar un discurso complejo entre el cineasta y el escritor.
Rulfo remite a su propia literatura, a sus cuentos “Nos han dado la tierra” o a “Es que somos muy pobres”,
entre otros compilados en El llano en llamas y publicados una década atrás. Hay aquí un desplazamiento de la
preocupación meramente formal o del individualismo de las preguntas que atormentan a toda aquella generación,
fuertemente influidas por el existencialismo, hacia una cuestión eminentemente política: son las clases desplaza-
das, los perdedores de la Revolución, aquellos que según el pintor Tamayo sólo habían triunfado en los murales,15
quienes exigen ser visibilizados en la cinta de Gámez. Aquellos que, dice, “somos porfiados...”. Rulfo, y Gámez
con él, ponen el acento en la desigualdad y la injusticia que el aparato retórico oficial hacen callar, pero lo hacen a
través de una forma novedosa. Unos años antes, Rulfo había viajado al Valle del Mezquital, una región muy pobre
del centro de México, para contar, en complicidad con los cinefotógrafos Rafael Corkidi y Antonio Reynoso, El
despojo, una historia breve pero compleja, donde la tragedia se vuelve a presentar como ineludible, producto de
la desigualdad, y la forma es fuertemente innovadora, utilizando una serie de recursos que en la obra de Rulfo
son detectables como una ruptura con la linealidad y una fractura con las formas convencionales
de construir sentido.
13 Se trata de los cuentos Las dos Elenas y Un alma pura, pertenecientes al libro Cantar de ciegos, publicado en 1964. El primero
fue llevado a la pantalla por José Luis Ibáñez y presentado en el concurso como parte de la cinta Amor, amor, amor, que agrupaba otros
tres mediometrajes: La viuda, Lola de mi vida y La sunamita. Había dos filmes más que formaban parte de esta antología, pero que fueron
separados de ella debido a la larga duración del producto final, conformando así Los bienamados, adaptación de dos relatos literarios: Un
alma pura de Carlos Fuentes (dirigida por Juan Ibáñez) y Tajimara de Juan García Ponce.
14 En 1961, Viridiana se presentó el último día del Festival de Cannes, causando gran revuelo entre el jurado que, a pesar de ya
haber decidido qué cintas serían premiadas, volvió a reunirse para deliberar y otorgar la Palma de Oro a la película de Buñuel.
15 Tamayo
39
6.
Fuera de ese concurso, en 1967 Carlos Fuentes participó en uno de guión lanzado por el sindicato de trabaja-
dores de la industria cinematográfica. Entre los premios y las menciones que se otorgaron, solamente su propuesta
llegó a filmarse y llevó el título de Los caifanes. En la dirección de la cinta estuvo Juan Ibáñez, quien había he-
cho mancuerna con Fuentes en la adaptación de su cuento Un alma pura, que resultó en una película importante
dentro del primer concurso de cine experimental un año atrás, pues la colaboración entre artistas del teatro (como
Ibáñez), con la literatura (como Fuentes), más algunos artistas destacados en la industria mexicana del cine (como
Gabriel Figueroa), habían resultado en un nuevo repto.
Esta nueva colaboración no partía de una adaptación sino de una historia original que en buena medida sin-
tetizaba algunas de las preocupaciones temáticas del escritor, particularmente las expresadas en La región más
transparente del aire o en Aura, donde a partir de las diferencias en el habla de los personajes se hacía notar la
división de clases e, incluso, algunas formas tajantes de circunscribir la ciudad a ciertos guetos insalvables, a
reductos diferenciados por un fuerte contraste económico, racial y cultural.
Los caifanes pone el acento en estas diferencias al hacer coincidir de manera circunstancial y forzosa, a un
grupo de personajes pertenecientes a medios sociales marcadamente distintos. Por una noche, los rufianes de
barrio deben convivir con una pareja de la clase media alta e intelectual. Ellos no tienen ni nombre, pues sólo
se les conoce por sus apodos y, por tanto, pareciera que no tienen nada que perder, mientras que la pareja sí es
nombrada: Paloma y Jaime.
La convivencia comienza cuando la lluvia obliga a la pareja a guarecerse en un coche que parece abandonado,
en una circunstancia donde él ha intentado seducirla, pero ella lo ha rechazado por el deseo de intentar vivir una
aventura diferente a la sexual, exponer a ambos a un límite, pero sin imaginar cómo se darían los acontecimientos.
El vehículo resulta ser el de “los caifanes”, un grupo de mecánicos que vienen por una noche a divertirse con la
vida nocturna de la ciudad. Después de un breve enfrentamiento, el “capitán Gato”, líder del grupo, ofrece llevar-
los a donde puedan tomar un taxi, pero ante la imposibilidad de hacerlo, deben continuar juntos por toda la noche.
Desde el principio se establece una tensión sexual entre ambos bandos: Paloma se convierte de inmediato
en el objeto de las miradas lascivas de los caifanes, mientras Jaime intenta infructuosamente poner fin a la con-
vivencia. Ante la insistencia de ella, el grupo se dirige a un cabaret de barrio donde Paloma se relaciona con un
grupo de prostitutas que se maquillan en el baño y disfruta haciéndose pasar por una de ellas. El contraste de la
ropa, el maquillaje y los accesorios es ineludible y la comparación inevitable. Se subraya aún más cuando una de
ellas muestra su barbilla, torcida por una mala operación plástica que, según dicen sus compañeras, le costó una
fortuna.
Como en La región más transparente del aire, en esta cinta los modos de hablar marcan con claridad el lugar
que ocupa cada individuo en la sociedad, un lugar signado por una identidad que está determinada por una serie
de pertenencias: étnica, social, de clase o geográfica. Y ese modo de hablar es también el espacio desde donde se
pueden transgredir dichas pertenencias. “¡Vamos a hacer otra jalada!” es la frase con la cual Paloma induce a sus
compañeros a continuar la aventura y, al utilizar su lengua, traspone una frontera y se interna en el mundo de los
caifanes, en el territorio de ellos, los sin-nombre.
Al integrarse así, la pareja parece reconciliar sus mundos distantes. Pero la serie de eventos que suceden no
resuelven la tensión, por el contrario, la incrementan porque hay una diferencia estructural que no se puede sal-
var: el origen de la envidia es una diferencia mucho más profunda que no se puede cruzar sólo por la voluntad de
hacerlo. El deseo sexual acabará por resolver la historia de una manera distinta: casi al amanecer el grupo debe
dispersarse y Paloma terminará con uno de los caifanes en un segmento que no revela si entre ellos ocurrió algo
más que la convivencia, con lo cual la envidia que fluye de los caifanes hacia Jaime se invierte en unos celos
40
incontenibles en sentido contrario.
La película plantea así una situación diferente, reconoce que hay diferencias insalvables como componente
fundamental de la sociedad mexicana y que esas diferencias articulan formas de comportamiento y de inserción
en la vida social a todos los niveles. Hay, nuevamente, una propuesta que desde lo narrativo trata de articular re-
novación, pero en un entorno que es político. No en un sentido alegórico o de metáfora, sino de denuncia directa.
La cinta en lugar de subrayar el lugar de los anónimos, como lo hacía Gámez en La fórmula secreta, lo hace indi-
vidualizando a los personajes. Una tensión que se desarrolla al obligar a convivir a los diferentes en una situación
improbable, pero plausible que hace que los personajes se comporten de maneras específicas.
Convivencia que quizá marca también algo de lo que caracteriza al cine de la época. Como pocos momentos,
artistas de diferentes disciplinas habían convivido y una parte fundamental de la experimentación que se dio, tiene
que ver con el cruce de ciertas fronteras disciplinares entre territorios del arte, pero posibilitados por la conviven-
cia de una generación de artistas que encuentran en el cine un lugar de confluencia.

7.
Los artistas plásticos y los cineastas tendrían un nuevo espacio de intercambio, apenas unos meses después
del estreno de Los caifanes. En 1968, a pocos meses de la inauguración de la Olimpiada en México, estalla un
conflicto entre un sector de los estudiantes universitarios de México y el gobierno de la República. De esta coin-
cidencia derivan varias consecuencias: por una parte, el gobierno federal tiene una respuesta fuertemente violenta
pues deseaba que no se “contaminara” la competencia con el movimiento estudiantil, y por otro, es en el marco
de esos juegos que se organiza una “olimpiada cultural” de la que tomarán parte muchos de los mismos jóvenes
que participaban en el conflicto.
En ese entonces, en la plástica se enfrentaban aquellos que seguían los preceptos de la escuela mexicana de
pintura y sus detractores, agrupados como generación de la ruptura. Unos y otros se sintieron víctimas cuando el
Comité organizador de la Olimpiada Cultural lanzó una convocatoria para participar en el “Salón solar”, que se
llevaría a cabo en el Palacio de Bellas Artes de la capital del país. Por ello, organizaron de manera alterna “Obra
68”, evento que se inauguró en agosto de aquel año, cuando ya el conflicto estudiantil estaba en desarrollo, pero
sin ningún signo de protesta social. Sobre la marcha algunos de esos cuadros se intervinieron por sus propios
autores para incluir consignas en apoyo a los estudiantes. Las diferencias entre ambos sectores quedarían de lado,
más aún cuando en septiembre, y en el marco del conflicto, se unen para pintar las láminas con las que se protegía
la malograda estatua del presidente Miguel Alemán en la explanada de la rectoría.16 Tomada la Universidad, du-
rante algunos domingos se hicieron festivales culturales, y en ese marco se llevó a cabo la intervención: un grupo
de pintores se organizó, consiguió andamios (pues la superficie a pintar era muy alta), y estuvo decorando las
láminas durante varias jornadas, hasta que la entrada del ejército a la Ciudad Universitaria imposibilitó continuar
estos trabajos.
El joven cineasta Raúl Kamffer toma su cámara y registra lo sucedido en esas jornadas laborales. Con ese
material montaría Mural efímero, testimonio del acontecimiento, y testimonio también de la confluencia entre
plástica y cine, en el marco del conflicto. Las imágenes muestran el trabajo colaborativo entre los artistas, la
convivencia con otras experiencias durante aquellos días, para reflexionar finalmente, a través del montaje, de la
música y la narración, sobre los resultados fatales del movimiento estudiantil.
En ese mismo año los estudiantes de la escuela de cine de la Universidad se suman a la huelga, toman las
cámaras y el material disponible y salen a las calles. Durante aquellos meses registran las manifestaciones, la pre-
sencia policiaca, las asambleas y montan algunos comunicados para dar a conocer la situación, ante la cerrazón de
la mayoría de la prensa, que únicamente reproduce la retórica oficial. Tras la represión de octubre algunos de estos
16 Salon solar vs Obra 68.
41
muchachos son presos, además de que la vida universitaria tardará muchos meses en reanudarse. Al reabrirse la
escuela, una asamblea nombra a Leobardo López Aretche como el director encargado de ensamblar el material
y con ello se realiza El grito, un documental cuya importancia radica en ser testimonio del movimiento desde su
interior, uno de los primeros documentales políticos y primer largometraje producido por la escuela. Estructurado
en episodios, coincidentes con los meses del conflicto, es el episodio de octubre el momento medular de la pelí-
cula. En él, con el hilo de la narración en off de la periodista italiana Oriana Falacci, se reseña la masacre del día
dos de aquel año. El escenario es la Plaza de las Tres Culturas, corazón de la Unidad Habitacional Tlatelolco, sitio
donde se pretendió consumar un proyecto modernizador, donde se denunció su imposibilidad y donde, ahora,
se ejecuta su fracaso. La modernidad mexicana es una modernidad frustrada por la imposibilidad de erigir algo
nuevo mientras se ignoran los lastres del pasado, sin resolverlos, tratándolos de enterrar por la violencia. El cine
atestiguó el proceso de modernización, mientras vivía sus propios procesos de transformación.

Javier Ramirez - Licenciado en ciencias de la comunicación por la Facultad de Ciencias Políticas y So-
ciales, maestro y doctor en historia del arte por la Facultad de Filosofía de la UNAM. Autor de Ibargüengoitia va
al cine (Universidad de Guanajuato, 2013). Profesor de tiempo completo en la Escola Nacional de Estudios Supe-
riores, ENES, unidade Morelia ha impartido clases en la Facultad de Ciencias Políticas y Sociales de la UNAM,
el Centro de Capacitación Cinematográfica y el Centro de Estudios en Ciencias de la Comunicación entre otros.

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4. Música e som em três documentários brasileiros curta-metragens de 195917

Luíza Beatriz Alvim

Em três documentários curtas-metragens brasileiros do ano de 1959 – O mestre de Apipucos e O poeta


do Castelo, de Joaquim Pedro de Andrade, e Arraial do Cabo, de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro –,
observamos, como características sonoras comuns (algumas bastante presentes em curtas-metragens como um
todo da época): o uso de música preexistente ao longo de todo ou quase todo o filme, em especial, peças de Villa-
Lobos e Bach, voz over e pouco ou nenhum ruído.
Villa-Lobos foi o único compositor a ter participado da Semana de Arte Moderna de 1922 porque era
considerado de vanguarda. Suas obras, principalmente as que foram compostas após suas primeiras estadias em
Paris, tinham também características da estética nacionalista e foram bastante utilizadas nas trilhas musicais de
vários filmes do Cinema Novo, especialmente em Deus e o diabo na terra do Sol (Glauber Rochar, 1964), em que
funcionavam, tal qual observado por Irineu Guerrini Júnior (2009), como uma “alegoria da pátria”.

Analisamos, então, os elementos sonoros desses três curtas-metragens, levando em conta também suas relações
com o Cinema Novo brasileiro, de que são considerados precursores, além de aspectos que tais elementos e suas
associações com as imagens evocam sobre nacionalismos, modernismos, tradição e identidade brasileira.

1. O díptico de Joaquim Pedro de Andrade

Joaquim Pedro de Andrade foi uma figura essencial do Cinema Novo brasileiro. Em 1959, com a Saga Filmes
(produtora fundada por ele, Sérgio Montana e Gerson Tavares) e financiamento do Instituto Nacional do Livro,
filmou os curtas-metragens documentários O poeta do Castelo e O mestre de Apipucos. Na verdade, os dois foram
concebidos e realizados como um só, mas logo houve um desmembramento em partes separadas18 e foi a esse
formato que tivemos acesso para a nossa análise.
Havia uma conexão de base de Joaquim Pedro de Andrade com o modernismo e a cultura brasileira, representados
por essas personagens dos seus primeiros curtas, o poeta Manuel Bandeira e o sociólogo Gilberto Freyre. Joaquim
Pedro era filho de Rodrigo Mello Franco de Andrade, “guardião do tesouro modernista” (BENTES, 1996: 3),
fundador, junto com Mário de Andrade e Gustavo Capanema, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN). A casa da família era frequentada por figuras importantes do modernismo brasileiro, como o
próprio Manuel Bandeira, padrinho de crisma de Joaquim Pedro (BENTES, 1996). Gilberto Freyre também fazia
parte do círculo de amizades de seu pai, estando o nome de Rodrigo M. F. de Andrade num agradecimento, no
final do prefácio da primeira edição de Casa Grande & Senzala (ARAÚJO, 2013).
Quanto à forma geral dos documentários em si, observamos que os personagens são captados em atividades
de seu cotidiano. Diferentemente da voz over onisciente, bastante comum em documentários até então – no
17 Uma versão dessa pesquisa foi publicada na revista DOC-Online com o título “Música e som em três documentá-
rios brasileiros curta-metragem de 1959: nacionalismos, tradição, modernismos e identidade brasileira”
18 O desmembramento ocorreu por decisão do próprio diretor porque, segundo ele, os dois curtas-metragens juntos
proporcionavam um contraste não intencional entre a pobreza de Bandeira e a riqueza de Freyre (como veremos em nos-
sas análises), o que aborreceu Gilberto Freyre e o motivou à escrita do artigo Esnobe da riqueza na revista Cruzeiro, em
12 de março de 1960 (SILVA, 2016). Este artigo pode ser lido na íntegra em http://www.contracampo.com.br/85/artfreyre.
htm. Acesso 29 abril 2018.
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chamado “modo expositivo” de Bill Nichols (2005) –, são as vozes dos próprios documentados que narram um
texto produzido por eles, tal como foram solicitados pelo diretor: no caso de Gilberto Freyre, um texto narrando
o seu cotidiano e, no de Manuel Bandeira, constituído inteiramente por poemas do escritor. Tal procedimento de
Joaquim Pedro de dar voz aos retratados tem semelhanças com o que acontecia no chamado cinema-verdade do
cineasta francês Jean Rouch, que começava a se desenvolver no final dos anos 50 na França.
O poeta do castelo e O mestre de Apipucos foram gravados antes da chegada do Nagra 3 ao Brasil, portanto,
sem som direto, e seus elementos sonoros (em que se destacam a música e a voz over) foram colocados na pós-
produção. Mesmo assim, há uma preocupação de Joaquim Pedro em sonorizar O poeta do Castelo com ruídos
do cotidiano.
Em relação à música, ambos tiveram sua trilha musical escolhida por Zito Batista e Carlos Sussekind,
contam com uma peça de Villa-Lobos e uma de Bach, assim como os créditos dos dois estão ao som de parte da
Introdução da Suíte n.1, O Descobrimento do Brasil, de Villa-Lobos.
Essas características já nos revelam aspectos importantes quanto às indicações de pertencimento e questões
identitárias dos filmes. Os créditos, por exemplo, já tornam clara a filiação reivindicada mais tarde pelo Cinema
Novo à figura de Humberto Mauro, diretor do filme O descobrimento do Brasil (1937), cuja trilha musical foi
de responsabiidade de Villa-Lobos. O próprio caráter gráfico dos créditos remete a uma “estética modernista”,
com estilo semelhante ao do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (ARAÚJO, 2013). A relação com o
Modernismo também estará nos créditos de Arraial do Cabo, sobre gravuras de Oswaldo Goeldi.
Além disso, o fato de contarem tanto com uma peça de Villa-Lobos (Prelúdio/Modinha das Bachianas
Brasileiras n.1 no início do Poeta do Castelo e o Prelúdio n.2 para violão em O mestre de Apipucos) quanto
com uma de Bach (o Quinto Concerto de Brandenburgo BWV 1050, em O poeta do Castelo, e o Concerto para
violino e oboé em dó menor BWV 1060, em O mestre de Apicucos) também apontam para a relação entre o próprio
Villa-Lobos e o compositor barroco alemão19, evidente, por exemplo, na série Bachianas Brasileiras já no próprio
nome e presente, de forma geral, em diversas outras obras de Villa-Lobos.

1.1 O mestre de Apipucos

A banda sonora de O mestre de Apipucos é constituída inteiramente pela voz over de Gilberto Freyre e peças
musicais (tabela 1), uma se seguindo à outra, na totalidade do filme (o início de cada uma é geralmente indicado
por olhares do protagonista ou raccords de movimento), sem sonorização com ruídos.

Tempo Peça musical Imagem e voz over

0´46´´- 1´52´ Suíte n.1 Descobrimento Créditos iniciais


do Brasil de Villa-Lobos
Introdução
1 ´ 5 3 ´ ´ - Música de coro misto não Casarão. Passeio matinal no
2´22´´ identificada jardim.
2´22´´-3´22´´ Música orquestral não Passeio matinal no jardim
identificada

19 A própria obra de Bach só foi resgatada cem anos após sua morte pelo compositor romântico Felix Mendelssohn.
Nessa apropriação romântica do século XIX, Bach foi transformado numa figura central da autoconsciência nacional, num
gênio que sintetizava a identidade alemã.
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3 ´ 2 2 ´ ´ - Adagio do Concerto para Na biblioteca
4´32´´ violino e oboé em dó menor
BWV 1060, de Bach.
4 ´ 3 3 ´ ´ - Música orquestral não Toma café com a mulher.
5´43´´ identificada
5´48´´ - Sonata para violino n.1 em sol Vai para a porta da cozinha e olha
6´43´´ menor, Sicilliana de BACH- para fora. Plano seguinte: o mar
Segovia. e Gilberto Freyre na praia.
6 ´ 4 3 ´ ´ - Prelúdio n.2 para violão de Ele na cozinha observando o
8´13´´ Villa-Lobos trabalho da empregada ao fogão.
Ele próprio prepara uma bebida.
8 ´ 1 7 ´ ´ - Sesta na rede (terceira parte da Deitado na rede, com o gato.
9´01´´ Série Brasileira), de Alberto
Nepomuceno.
Tabela 1: Peças musicais em O mestre de Apipucos.

A segunda incursão musical começa com o primeiro plano do filme, o casarão de Apipucos onde vive Gilberto
Freyre. É uma peça de coro misto, que traz um significado religioso e, desta maneira, relaciona-se com a fala over
de Freyre, já sobre o trecho musical seguinte, que menciona “os meus vizinhos, os maristas, acordam cantando”.
Porém, ao mesmo tempo em que se configura uma função referencial da música, bastante comum no cinema
clássico (GORBMAN, 1987), assim como uma tentativa de simular uma música diegética, justificada no mundo
narrativo, por outro lado, o fato de ser o coro “misto” não condiz com o que se esperaria de uma congregação de
irmãos, em que tenderíamos a ouvir canto gregoriano em uníssono de vozes masculinas.
A emenda da música coral com a música orquestral seguinte se faz de maneira fluida tanto no som quanto na
imagem (com raccord de movimento, quando Gilberto Freyre abaixa uma folha em plano-detalhe com a bengala).
Não identificamos também essa música20, mas ela apresenta semelhanças com peças escritas para cinema em
sequências passadas no campo, com uso de instrumentos como o oboé. Mais uma vez, a música funciona de
maneira referencial ao local: o jardim.
Já a peça seguinte, o Adagio do Concerto para violino e oboé em dó menor BWV 1060 de Bach, confirma
o que tanto as imagens do filme quanto a narração de Gilberto Freyre denotam: o sociólogo como um grande
intelectual, possuidor de imenso tesouro cultural (pensando-se em Bach como representante da tradição cultural
ocidental), com a imagem de suas estantes e sua fala: “Os livros, espalhados por várias salas, chegam a 20 mil”.
O próximo trecho é uma música orquestral (também não identificada) de andamento rápido e com um caráter
alegre que combina com a felicidade do momento de convívio familiar cotidiano, quando Gilberto Freyre toma
café com sua mulher.21
No momento em que o sociólogo, à porta da cozinha, olha para fora, começa a Siciliana da Sonata para
violino n.1 de Bach em transcrição para violão de Andrés Segóvia. Há uma elipse, pois, no plano seguinte, vemos
o mar e o escritor na praia da Boa Viagem. Apesar da tonalidade maior (Si bemol maior) da
20 Entramos em contato com a família do diretor, mas não havia material de produção indicando essas peças. Tam-
bém não foi possível identificá-las mesmo com o uso de programas e aplicativos existentes para esse fim.
21 Essa sequência, em que aparece Manuel, o empregado, de libré, foi um dos motivos por que Gilberto Freyre e
sua mulher Magdalena não gostaram do filme, por estarem sendo apresentados como esnobes. Magdalena observou que
a sequência foi completamente encenada e irreal em relação aos verdadeiros hábitos da família (ARAÚJO, 2013).

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Siciliana, sentimos, no arranjo e sua interpretação, certa lentidão e gravidade, e, talvez por isso, uma melancolia
nas imagens de Gilberto Freyre na praia, sozinho. Tal melancolia está presente já nos primeiros quatro compassos
da música, mesmo antes dos compassos 5 e 6, em que ela vai para a tonalidade de sol menor..
Ainda ouvimos, portanto, esses últimos compassos quando vemos o escritor passando a mão na barriga: a
“deixa” para a indicação da fome e a volta para o ambiente da cozinha da casa. Na imagem do peixe sendo frito,
os últimos sons da Siciliana são emendados com os da Prelúdio n.2 para violão de Villa-Lobos.
Levando-se em conta essas duas últimas peças, ambas para violão, é importante considerar que Andrés
Segovia foi um dos grandes virtuoses do instrumento na Espanha, ao passo em que, no Brasil, o violão era
execrado no meio erudito do início do século XX por ser associado à marginalidade. Acabou se tornando um
símbolo de brasilidade e teve em Villa-Lobos um de seus maiores difusores e reabilitadores.
O Prelúdio n.2 tem como título “Homenagem ao homem capadócio” e há uma série de elementos que remetem
ao choro, como o caráter brejeiro (AMORIM 2007). No filme, a sua primeira parte, em que esses elementos estão
mais presentes, é ouvida duas vezes: primeiramente, sobre as imagens de Gilberto Freyre observando a cozinheira
no preparo do peixe; depois, quando ele mesmo prepara “uma batida de pitanga, maracujá e hortelã”, culinária e
bebida típicas locais.
A última peça é Sesta na rede, da Suíte Brasileira (1887 – 1897) de Alberto Nepomuceno. Seu título se
remete com função referencial ao que acontece na imagem: o escritor se balança em sua rede após o almoço,
na compainha de seu gato. O balançar da rede é evocado na música pelo naipe de cordas, havendo também
um balanço entre o V e o I grau. Além disso, Gilberto Freyre menciona, em seu comentário over, que ele se
deita numa “rede do Ceará”, tendo sido o compositor também cearense (Nepomuceno foi, na verdade, um dos
primeiros compositores brasileiros a escreverem obras em estética nacionalista).

O último plano mostra a capa do livro que Gilberto Freyre está lendo: Poesias, de Manuel Bandeira. Era o
gancho para o começo da parte sobre o poeta, antes do desmembramento dos dois curtas-metragens.

1.2 O poeta do Castelo

Na tabela 2, vemos o esquema das entradas musicais em Poeta do Castelo.

Tempo Peça musical Imagem e voz over

0 ´ 4 0 ´ ´ - Suíte n.1 “Descobrimento Créditos iniciais


1´17´´ do Brasil” de Villa-Lobos,
Introdução.
1´18´´ - 3´00 Prelúdio/Modinha (II) das Bandeira no beco do Castelo.
Bachianas Brasileiras n.1 de Prédios. Poema “Belo Belo”.
Villa-Lobos.
4 ´ 5 5 ´ ´ - Pavane para orquestra e flauta Bandeira à janela, depois na
6´22´´ op.50, de Gabriel Fauré biblioteca.
6´23´´- 8´ Affettuoso (II), do Quinto Bandeira no quarto.
Concerto de Brandenburgo BWV
1050 de Bach.

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8 ´ 0 0 ´ ´ - Allegro (III), do Quinto Concerto Bandeira levanta da cama e
8´52´´ de Brandenburgo BWV 1050 de começa a recitar “Passárgada”.
Bach
8´52´´ até fim Music for a Farce, Allegro (IV) , Bandeira na rua. Continua a
de Paul Bowles recitar “Passárgada”
Tabela 2: peças musicais em O poeta do Castelo

Embora os créditos de O poeta do Castelo tenham como trilha musical a mesma peça de Villa-Lobos (e os
mesmos grafismos) que em O mestre de Apipucos, é interessante que, aqui, a transição para o Prelúdio (Modinha)
das Bachianas n.1, também de Villa-Lobos, mal se faça notar, dando uma maior continuidade ao que se segue.
Em parte, tal sensação de continuidade pode ser explicada por ser uma peça do mesmo compositor, mas, além
disso, há características semelhantes de textura rítimicas, melódicas e de andamento.
Assim, depois dos créditos iniciais, enquanto ouvimos a progressão cromática ascendente do Prelúdio
(Modinha), vemos Manuel Bandeira caminhar da esquerda para a direita por um beco do Castelo até uma
mercearia, onde entrega uma garrafa vazia. O tema pungente e lírico em tom menor, a partir do compasso 14,
começa no plano próximo de Bandeira, logo após a sua tosse (cujo som não ouvimos) e corrobora o sentimento de
melancolia perante a finitude, indicada pela tosse e pela idade avançada do poeta. O plano seguinte, o chão cheio
de papeis e lixo, também se relaciona com uma sensação de decrepidude. Depois disso, vários planos dos prédios
vazios, destacando a sua arquitetura, imagens que reforçam ainda mais a melancolia e a solidão.
Esses sentimentos são propiciados mais ainda porque a música é o único elemento sonoro em todo esse início
do filme. É somente depois, no plano de Bandeira na mercearia recebendo a garrafa com leite, quando o poeta
olha para o céu como que buscando inspiração, que ouvimos os primeiros versos do poema Belo Belo: “Belo
belo minha bela/ Tenho tudo que não quero/ Não tenho nada que quero”. A beleza mencionada no verso inicial de
Bandeira contrasta com as imagens de lixo até aí e as seguintes, em que vemos o poeta caminhando por entre os
prédios num beco, ao passo em que o sentimento de frustração dos outros versos também está em sinergia com
essas imagens.
O corte do trecho do Prelúdio/Modinha de Villa-Lobos coincide com o término dessa sequência inicial e
o começo da seguinte, em que vemos Bandeira em seu apartamento. Diferentemente de O mestre de Apipucos,
temos, então, quase dois minutos sem música, só com os sons e as imagens do cotidiano de Bandeira, caracterizado
pela simplicidade e pela solidão, além de sua voz over recitando seu poema Testamento. O caráter cotidiano dessa
sequência é marcado por uma série de ações prosaicas, agora sonorizadas: Bandeira, de roupão, pega uma panela,
derrama o leite, acende um fósforo, sopra a boca do fogão para aumentar o fogo, coloca ali à panela, pega duas
fatias de pão no armário e as põe na torradeira, o leite ferve, as torradas ficam prontas, o poeta coloca o leite numa
xícara, põe sua refeição sobre a mesa e abre a janela. Como observa Flores (2015), essa exposição do cotidiano
está em consonância com a proposta do Cinema Novo de focar seus personagens na vida comum do dia-a-dia.
Embora essa proposta esteja evidente também no curta anterior, em O poeta do Castelo há uma aproximação
maior com o Neorrealismo italiano, como observa Araújo (2013), por conta do olhar afetuoso e demorado sobre
ações banais.
Flores (2015: 17, tradução nossa do espanhol) considera que essas duas primeiras sequências do filme
denotam a presença “do novo e do velho que caracterizariam a arte modernista representada por Bandeira: a
visita ao leiteiro (e não a um grande mercado), assim como o seu sopro para avivar o fogo se contrapõem ao
uso de aparelhos modernos como a torradeira”. Essa união do tradicional e do novo está também em muitas das
músicas escolhidas para o filme. É o caso da já citada peça de Villa-Lobos, compositor que, a grosso modo, faz

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uma releitura da tradição europeia representada por Bach (este, por sua vez, com duas obras no filme), conferindo
cores locais, assim como da peça que estará na sequência seguinte, a Pavana para orquestra e flauta op.50 de
Fauré22.
A Pavana começa ainda no plano de Bandeira à janela de sua cozinha. Uma panorâmica para a esquerda,
efetuada num tempo bastante condizente com o andamento lento da música, vai nos revelar outra janela da casa
do poeta, a de sua biblioteca, que ele abre a seguir. Vemos, então, Bandeira pegando um livro de uma estante
sobre a qual está seu próprio busto. A câmera faz várias panorâmicas da biblioteca, destacando grandes estantes
e armários plenos de livros e obras de arte. A Pavana de Fauré também corrobora o peso da tradição das imagens
do acervo cultural (universal, diríamos, embora não possamos ler os títulos) encarnado nos livros da biblioteca de
Bandeira, numa sequência que, em significado, aproxima-se da presente no curta sobre Gilberto Freyre.
A panorâmica que inicia a passagem da janela da cozinha à biblioteca, junto com a música de Fauré, marca
o momento de uma reconsideração por parte do espectador sobre a figura de Manuel Bandeira, assim como
aponta para a reencenação da própria trajetória de vida do poeta efetuada pelo curta-metragem. Ao chegarmos
à biblioteca, deixamos de ver um homem humilde e solitário, como o poeta da Lapa dos anos 30: não é mais o
poeta do beco, mas sim o artista reconhecido de 1959, é o Poeta do Castelo. Assim, nesse momento do filme “nos
damos conta de que o curta operou um largo recuo temporal” (PASCHOA, 2004: 152) até o poeta humilde do
beco, recuo no tempo que a panorâmica e a música de Fauré vão desfazer.
A sequência seguinte se passa no quarto de Bandeira (com um rápido plano de sua varanda) e tem como trilha
musical dois movimentos, Affettuoso (II) e Allegro (III), do famoso Quinto Concerto de Brandenburgo BWV
1050 de Bach. Também aqui a tradição cultural representada tanto pela música de Bach como por Bandeira é
destacada: vemos, inicialmente, o poeta do Castelo trabalhando em sua cama, ao lado de uma estante com livros,
ao som do Affettuoso de Bach, de andamento lento e melodia pungente.
Enquanto Bandeira está em sua cama com a máquina de datilografar no colo e ao som do Affetuoso, outro
som é ouvido, destacando um elemento da modernidade do século XX: o telefone. O poeta atende e dá uma
risada, que não ouvimos. Joaquim Pedro de Andrade (1966) conta ter sido a risada do poeta, tão ouvida quando
ele frequentava a sua casa, a motivadora dessa sequência. O diretor também explicita o caráter encenado dela e
atribui a não sincronização perfeita da campainha do telefone com a imagem a seu montador:

Às quartas-feiras, ele [Bandeira] vinha jantar com meu pai [...]. Vinha então aquela risada alegre que eu
quis pôr no filme e acabou resultando na única cena que o ator Manuel Bandeira teve dificuldade de fazer.
[...] Fizemos um ensaio. Manuel riu sem vontade. No segundo e terceiro ensaios o ator se irritava cada vez
mais, quando ria. Experimentamos então o estímulo real. Manuel telefonou a um amigo, Dante Milano, se
não me engano, para pedir que ele lhe telefonasse de volta. Mas o Dante não estava. Quando começamos a
procurar outro amigo, no caderninho de telefones do poeta, ele perdeu a paciência. Mandou rodar a câmera,
atendeu o telefone que não tinha tocado, perguntou quem estava falando e ao ouvir a risada imaginária deu
a risada, mais alegre e espontânea do que nunca. Guardo mágoa, até hoje, porque a campainha do telefone
continuou tocando, no filme, mesmo depois do poeta ter tirado o fone do gancho. A culpa foi do montador
Baldacconi, que num momento de mau humor resolveu me hostilizar dessa maneira insólita (ANDRADE,

1966: não paginado).

Pouco depois que Bandeira desliga o telefone, assim que desiste de continuar trabalhando (ele afasta a tábua
com máquina de datilografar) e se levanta para trocar de roupa, começa o Allegro de Bach. O andamento mais
rápido da música combina com a série de ações de Bandeira arrumando-se para sair de casa. O poeta confirma que
22 A pavana é uma dança europeia do período renascentista, com origem italiana ou espanhola. A Pavana op.50 de
Fauré representou uma reação a um cenário musical francês de final de século XIX dominado por compositores germâni-
cos, com um retorno ao que se considerava “nacional” francês.

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“irá embora” ao recitar os primeiros versos de seu famoso poema Passárgada: “Vou-me embora pra Pasárgada/
Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei/ Vou-me embora pra Pasárgada//
Vou-me embora pra Pasárgada/ Aqui eu não sou feliz/”.
Joaquim Pedro de Andrade (1966) conta que a alegria da risada era o elemento que, segundo o roteiro,
impulsionava o poeta para a ascensão a Passárgada no fim do filme. Mais do que ela, não sendo ouvido o som
da risada, Paschoa (2004: 153) observa que o ruído do telefone, “insistente, reproduz o chamado do mundo,
Passárgada e sua promessa de felicidade terrestre”.
A felicidade no filme é bem simples: o prazer de comprar um jornal, de encontrar um amigo na rua e de andar
pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, próximas ao seu apartamento. Sua voz over continua recitando o poema
Passárgada. É, porém, importante lembrarmos, como salientamos anteriormente, que Bandeira já aparece para o
espectador como um poeta reconhecido e não é à toa que o vemos passando em frente à Academia Brasileira de
Letras, de que fazia parte há quase 20 anos.
A peça musical que acompanha tudo isso desde a primeira imagem da sequência (os jornais e revistas da
banca) é o quarto movimento, Allegro, de Music for a Farce, peça de 1938 de Paul Bowles. O andamento rápido,
o caráter brejeiro dado em parte pelo ritmo e pelos timbres da clarineta e do trompete e os traços jazzísticos são
características comuns e costumeiramente associadas, no uso de música no cinema, a um ambiente urbano e à
modernidade.

2. Arraial do Cabo

Arraial do Cabo foi dirigido por Paulo Cezar Saraceni, produzido por Joaquim Pedro de Andrade e sua
montagem ficou a cargo de Mário Carneiro, o fotógrafo do filme. Foi Mário Carneiro quem colocou a trilha
musical do filme, feita quase que completamente com obras de violão de Villa-Lobos e, por conta desse grande
papel no resultado final, foi creditado também como diretor (SARACENI, 1993). Sobre a música, Saraceni conta:

Eu tinha pensado em colocar no filme as músicas que ouvíamos muito nos alto-falantes das ruas de
Arraial. Eram músicas de Lindomar Castilho, Jackson do Pandeiro, como aquela do fim do filme, chamada
“Aurora”23, no bar do Juca. Mas Mário me mostrou os exercícios para violão de Villa-Lobos, os choros de
Villa-Lobos, e como eram lindos! (SARACENI, 1993: 55).

O filme trata das mudanças ocasionadas entre pescadores da cidadezinha de Arraial do Cabo pela instalação
de uma fábrica de álcalis. Há um texto over, escrito por Claudio Mello e Souza e lido pelo ator Ítalo Rossi,
admirado por Saraceni justamente porque “não tem voz de narrador, nem é impostada” (SARACENI, 1993: 55),
como habitual nos documentários da época. O filme foi realizado sem som direto, embora se note uma fascinação
de Saraceni pelos ruídos locais.
Essa presença dos ruídos marca a anunciação da chegada do “progresso” com o caminhão (e seu som)
percorrendo as ruas que antes eram atravessadas somente por um cavalo, além das imagens a seguir da fábrica de
álcalis, seus ruídos e sons de bateria. Tudo isso é ouvido assim que a música da primeira sequência (o Prelúdio
n.1 de Villa-Lobos, tabela 3) se cala.

Tempo Peça musical Imagem e voz over

23 Parece se tratar da peça Aurora gravada por Nelson de Castro e Orquestra Tupã no disco Esquentou o baile, de
1959. Porém, não conseguimos o áudio dela para confirmar.

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0´- 1´03´´ Não identificada Créditos – imagens de Goeldi
1´03´´- 2´52´´ Prelúdio n.1 em mi menor Homens tomam café. Mulheres
para violão de Villa-Lobos carregam baldes de água. Barcos e
os pescadores. Mulheres em suas
atividades diárias.
3´43´´- 4´08´´ Estudo n.8 de Villa-Lobos, (Depois da menção à fábrica no
Introdução comentário) Os pescadores se
afastam para praias mais distantes.
5´55´´- 7´38´´ Prelúdio n.4 em mi menor Atividades dos pescadores
de Villa-Lobos
7´38´´- 8´48´´ Estudo n.1, Animé, de Atividades dos pescadores
Villa-Lobos, em mi menor
8´48´´- 11´17´´ Estudo n.11 em mi menor, Atividades dos pescadores
de Villa-Lobos, parte
Animato e Lento final.
11´17´´ - Sonata para violino n.1 em Atividades dos pescadores
12´23´´ sol menor, Sicilliana de
BACH- Segovia .
12´23´´-13´43´´ Estudo n.5, Andantino, em Atividades dos pescadores
Dó Maior, de Villa-Lobos
1 3 ´ 4 4 ´ ´ - Estudo n.8 em dó ♯ menor Atividades dos pescadores. Voz
15´11´´ de Villa-Lobos, parte depois over.
da introdução
15´19´´até fim Aurora, Nelson de Castro e Após pescador ligar o rádio no
Orquestra Tupã (?) bar. Homem discursa.
Tabela 3: peças musicais em Arraial do Cabo

Na primeira sequência, portanto, vemos atividades cotidianas tradicionais da comunidade de Arraial ao som
da música de Villa-Lobos. O Prelúdio 1 em mi menor tem o título de “Homenagem ao sertanejo brasileiro” e, no
filme, funciona como evocação saudosista daquele modo de vida “primitivo” (mesmo que sem deixar de expor
suas mazelas) em vias de desaparição pela chegada do progresso. No filme, ouvimos um pedaço da primeira parte
A do Prelúdio e a parte B seguinte. Na parte A, Villa-Lobos explora a região grave do violão (AMORIM, 2007) e
a tonalidade menor dá um sentido melancólico às imagens, que revelam a penúria daqueles habitantes: o desjejum
resumido a uma xícara de café numa casa de parede esburacada e a necessidade de se buscar água num poço e
carregá-la em latas na cabeça, os barcos em que os pescadores se lançam à batalha diária. Na parte B do prelúdio,
há a evocação de um ponteio de viola (AMORIM, 2007): e vemos principalmente as mulheres em sua atividade
diária de passar e costurar, assim como meninas dançando em roda.
Essa dualidade tradição (agora, associada a Villa-Lobos) X progresso (ruídos) continua com a breve incursão
da Introdução do Estudo n.8 de Villa-Lobos sobre as imagens dos pescadores e de um barco. Assim como a parte
A do Prelúdio 1, ela é construída no registro grave do violão e é bastante modulante, corroborando a necessidade
de mudança dos pescadores para lugares mais afastados, evocada pelo narrador. A seguir, voltamos a ouvir o som

50
de bateria e a ver as imagens da fábrica. Tal som permanece ainda sobre imagens do barco e dos pescadores, como
se indicasse uma batalha entre o antigo e o novo. Então, são ouvidos vários sons maquínicos, não necessariamente
sincrônicos com as imagens.
Até que, depois de sons de burburinho e vozes dos pescadores, começamos a ouvir o Prelúdio n.4 de Villa-
Lobos. Daí até quase o final do filme teremos um seguimento de estudos para violão de Villa-Lobos e a mesma
Siciliana de Bach na transcrição de Segovia, já utilizada em O mestre de Apipucos (tabela 3). Como relata
Amorim (2007), Villa-Lobos encontrou Segóvia pela primeira vez em Paris, em 1924, e esse contato fez com que
rasgueios e outros elementos típicos do violão espanhol fossem incorporados à escrita de alguns de seus estudos.
Observamos que, com a presença dessa peça, Arraial do Cabo também coloca em evidência a relação de Villa-
Lobos com Bach (passando por Segovia), como nos dois curtas-metragens de Joaquim Pedro. Por outro lado, a
predominância de peças de violão no documentário como um todo em associação às atividades cotidianas dos
habitantes de Arraial do Cabo corrobora o significado do violão como instrumento representativo da identidade
brasileira (embora, na verdade, fosse originalmente uma identidade mais urbana e carioca).
Analisamos, então, a grande sequência que começa com o Prelúdio n .4 a vai até os 15 minutos de filme.
Como os prelúdios 1 e 2 de Villa-Lobos, o Prelúdio n.4 também tem uma “homenagem” em seu título, agora ao
“índio brasileiro”. É ouvido desde o seu início, lento, e, como as peças anteriores, também no registro grave do
instrumento e em mi menor, sobre imagens do mar, dos pescadores preparando a rede e de um pescador fumando
e observando a paisagem. Vem a sua parte B, Animato, com arpejos muito rápidos e as imagens mostram os
pescadores com movimentos apenas um pouco mais rápidos que os das atividades anteriores, até que a parte A
modificada volta a imagens e gestos mais contemplativos. Alterna-se novamente com arpejos rápidos, agora do
Estudo n.1 de Villa-Lobos, também em mi menor, sobre imagens também com um pouco mais de movimento
(pescadores correndo, puxando seu barco, remando, mexendo nas redes e fazendo sinais da terra para os
companheiros no mar). A transição para a parte Animato do Estudo n.11 é bem fluida, até porque o trecho ouvido
também é mi menor. É a volta dos pescadores do mar, finalizada no Lento do estudo.
Depois dessas alternâncias “lento-rápido”, geralmente na tonalidade de mi menor, a emenda, exatamente na
nota si bemol, é com a Siciliana de Bach-Segóvia, no caso, com sua segunda parte, indo para o tom de sol menor,
até o começo da volta para a tonalidade maior principal. Aqui, diferentemente do que evoca o trecho em Si bemol
Maior no filme de Joaquim Pedro de Andrade, mesmo com a tonalidade menor, a Siciliana resvala uma leveza
condizente com a aparente “vitória” dos pescadores sobre a natureza, com imagens de muitos peixes nas redes,
homens sorrindo e crianças participando desse final de dia.
Ouvimos, a seguir, o Estudo n.5 em Dó maior com as imagens de grandes peixes em planos detalhe. O Estudo
n.5 é escrito a três vozes, sendo a sua voz central constituída por um ostinato, que dá um caráter de inexorabilidade
à prática tradicional da pescaria e à agonia dos peixes morrendo. Quando a voz superior vai para um registro mais
agudo, passamos a ver uma alternância de planos médios e próximos de pescadores conversando entre si. Com o
término da condução melódica no agudo, vemos imagens dos homens e crianças na praia ao fim do dia.
Junto com o Estudo n.8, (em sua parte mais melódica) temos a volta da voz over. Ela anuncia o processo
de salga dos peixes retirados do mar, que vemos nas imagens seguintes do documentário, iniciando-se com dois
planos de peixes sendo puxados.
O final do filme tem uma música de banda (provavelmente a Aurora mencionada por Saraceni), vinda do
rádio do bar onde se reúnem os pescadores. Ela destaca o caráter provinciano de Arraial do Cabo e evoca os bailes
comuns nas pequenas cidades brasileiras.

51
Conclusão

Observamos que a escolha do repertório preexistente para as trilhas musicais dos três documentários reforçam
a relação de Villa-Lobos com o compositor barroco alemão J.S. Bach, além de apontarem para questões discutidas
desde a Semana de Arte Moderna de 22: o nacionalismo e a relação da tradição e do moderno, aspectos também
presentes nas músicas de Nepomuceno e Fauré.
Tanto a música preexistente (especialmente de Villa-Lobos) quanto a ênfase no cotidiano dos desvalidos
(como em Arraial do Cabo) serão características do Cinema Novo brasileiro. A primeira foi um aspecto comum
nos filmes do cinema moderno do final dos anos 50 e nos anos 60.
Por outro lado, a predominância da música na banda sonora junto com a voz over revela as limitações
tecnológicas de orçamento desses três curtas-metragens. Mesmo assim, a voz over tem um emprego mais próximo
àquele encontrado em documentários modernos, seja com o uso da narração dos próprios personagens retratados,
seja pela voz pouco impostada do narrador em Arraial do Cabo e sua ausência em grande parte do documentário.

52
Referências bibliográficas

AMORIM, H. Heitor Villa-Lobos: uma revisão bibliográfica e considerações sobre a produção violonística.
Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

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Luíza Beatriz Alvim é doutora em comunicação e cultura pela UFRJ, com pesquisa (sanduíche) na Uni-
versidade Paris 3. Graduada em comunicação social (habilitações jornalismo e cinema) pela UFF. Foi profes-
sora substituta da Escola de Comunicação da UFRJ, está terminando novo doutorado em Música na UNIRIO e
faz também pós-doutorado em Música no PPGM-UFRJ. É uma dos coordenadores do Seminário Temático de
Teoria e Estética do Som no Audiovisual da SOCINE, é vice-coordenadora do GP Cinema da Intercom e orga-
nizadora da JISMA (Jornada Interdisciplinar de Som e Música no Audiovisual).

53
5. Rossellini nos trópicos24

Mariarosaria Fabris

Introdução

Se Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, 1944-45) chegou às nossas telas em dezembro de 1946, Roberto
Rossellini veio ao Brasil doze anos depois, quando foi cogitada a transposição cinematográfica de Geopolítica da
fome, de Josué de Castro. Uma primeira visita do cineasta italiano já havia sido anunciada em outubro de 1954
por Fernando de Barros, que o teria convidado para realizar um filme sobre os Muckers, tendo Sergio Amidei
como roteirista e Ingrid Bergman como intérprete principal (cf. CALHEIROS, 2003: 26).
A essa viagem de 1958, seguiram-se, salvo engano, mais duas: em 1965, para participar – ao lado de outros
grandes nomes da crítica e da produção cinematográficas, como Lotte H. Eisner, Henri Langlois, Louis Marco-
relles, Robert Benayon, Freddy Buache, Lino Micciché, Fritz Lang, Jean Rouch e Marco Bellocchio – do Festival
Internacional de Cinema, organizado no Rio de Janeiro por Moniz Viana e José Sanz (cf. SARACENI, 1993: 195;
ALEXANDRE, 2008: 158), ou seja, cinco anos depois do grande festival intitulado História do Cinema Italiano,
realizado pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e pela Cinemateca Brasileira de São
Paulo, cuja edição paulistana apresentou, na sessão de abertura no Cine Astor, De crápula a herói (Il generale
Della Rovere, 1959), de sua autoria25; e em 1968, como um dos representantes da UNESCO na Mesa-Redonda
sobre Pesquisa em Cinema e Televisão na América Latina, ocorrida, em São Paulo, de 24 a 28 de junho.
O presente texto pretende relembrar as duas passagens mais importantes do cineasta italiano entre nós e
ensaiar uma leitura do diálogo que com ele manteve Glauber Rocha, a partir das reflexões desenvolvidas em Re-
visão crítica do cinema brasileiro (1963) e em O século do cinema (1983).

1958

A primeira viagem de Rossellini ao nosso país revestiu-se de particular importância em termos de um inter-
câmbio cultural entre Itália e Brasil, ao criar expectativas quanto a um filme baseado na obra de Josué de Castro.
Considerado o pai do neorrealismo, não sem contestações, e o pai do cinema moderno, talvez com maior
unanimidade, Rossellini foi sempre uma figura polêmica, pois, como grande experimentador, buscou inúmeras
vezes novos caminhos.
Entre 1957 e 1958, ele havia visitado a Índia e dessa viagem resultaram o docudrama Índia, mãe terra (India
matri bhumi)26 e o documentário em dez episódio A Índia vista por Rossellini (L’India vista da Rossellini)27, os
quais deram início à virada talvez mais ousada da carreira do diretor, que passou a dedicar-se à produção de filmes
para a televisão, por ter visto nesse meio uma nova forma de atingir e educar o público, depois da falência do

24 As ideias contidas neste texto já foram parcialmente expostas em “Relendo Rossellini à luz de Rocha” (Olhar, São
Carlos, ano 7, n. 12-13, jan.-jul. e ago.-dez. 2005, p. 159-162) e em “Roberto Rossellini e Josué de Castro: um diálogo
truncado” (Anais do VI Seminário Nacional Cinema em Perspectiva, Curitiba, 2018, recurso eletrônico).
25 A edição carioca foi inaugurada com a projeção de O abismo de um sonho (Lo sceicco bianco, 1952), de Federico Fellini.
26 Lançado entre 1959 (na França) e 1960 (na Itália).
27 Apresentado pela RAI entre janeiro e março de 1959, sua versão francesa Fiz boa viagem (J’ai fait un bon voyage)
foi exibida pela ORTF entre janeiro e agosto daquele mesmo ano.

54
projeto pedagógico neorrealista.
Índia, mãe terra poderia ser considerado uma “tentativa de cinema enciclopédico geográfico”, segundo Adria-
no Aprà (2012, p. 128), uma tentativa que não será única, como explicitou este mesmo autor:

A enciclopédia geográfica deveria ter continuado, logo depois de Índia, mãe terra, com Geografia da fome
(Geografia della fame), uma adaptação do ensaio Geopolítica da fome (1951), de Josué de Castro, sociólo-
go e etnólogo brasileiro, que Rossellini havia lido provavelmente na versão italiana editada pela Leonardo
da Vinci de Bari, em 1954, com prefácio de Carlo Levi28; para este projeto, que tinha herdado de Cesare
Zavattini e Sergio Amidei, Rossellini foi ao Brasil em agosto de 1958, onde encontrou Castro29.

De fato, a convite de Josué de Castro, Samuel Wainer, Assis Chateaubriand e produtores brasileiros (cf. SA-
RACENI, 1993: 31; ROCHA, 2003: 30), o cineasta desembarcava no Rio de Janeiro, de onde prosseguiria para
Pernambuco, Bahia e São Paulo. Segundo Maria do Socorro Carvalho (2003: 28), além do trabalho de Josué de
Castro, Rossellini trazia em sua bagagem cultural “outras referências da sociologia brasileira, Euclides da Cunha,
Gilberto Freyre, [Alberto] Guerreiro Ramos e Nelson Carneiro” e, na viagem por nossas terras, “reuniu informa-
ções, estudos e imagens filmadas em 16mm como fontes de pesquisa para a preparação dos futuros filmes”.

O projeto sobre o mapeamento da fome em todos os continentes encontrou forte resistência, como recordou
Paulo César Saraceni (1993: 32-33):

Vi Rossellini falando para um público de surdos na ABI. O público não podia entender que ele quisesse
cantar a miséria brasileira [...]. Pensando, agora, no que senti quando Rossellini falava do Nordeste, acho
que ele pensava no seu filme Índia.

Com efeito, a imprensa local posicionou-se contra (MARGARIDO, 2014):

O Globo  perguntava o que vinha fazer o diretor no Brasil senão uma obra comunista para “mostrar ao
mundo que o país do futuro de Stefan Zweig é na verdade do presente, da miséria e da fome”. O Jornal do
Brasil conclamava o diretor a se entusiasmar por O Guarani, de Carlos Gomes, em vez de se interessar por
livro “de pouca repercussão”.

E Carlos Lacerda, por sua vez, desferiu seu ataque contra “uma burguesia progressista que concorda em
abrir para o comunismo as portas da sociedade”, tachando Josué de Castro de charlatão (MARGARIDO, 2014).
A associação com o comunismo é bem estranha, uma vez que o diretor italiano pregava ideias humanistas e não
esquerdistas. Como explica José Umbelino Brasil (MARGARIDO, 2014):

Não era uma visita propícia naquele momento em que o País queria se ver e ser visto como moderno [...].
Rossellini incomodava, ainda mais associado à obra de Castro, homem de esquerda, [que será] cassado pelo
golpe militar quando embaixador e obrigado a se exilar.

Embora ainda haja divergências quanto ao livro no qual se basearia o roteiro de Rossellini – Geopolítica da

28 O “Catalogo del Servizio Bibliotecario Nazionale” registra duas ocorrências para Geografia della fame: uma é a
citada por Aprà (e na ficha consta o título original, Geopolítica da fome, mas não o nome do tradutor); outra, publicada pela
mesma editora, no mesmo ano, da qual não consta o título original, mas aparecem os nomes de Donato Rasca, como
tradutor, e de Giuseppina Savalli, como revisora técnica, mas não o de um prefaciador. É provável que se trate da tradução
de Geografia da fome, pois não faria sentido a mesma editora lançar duas vezes o mesmo livro num ano.
29 Rodolfo Nanni, que residia na capital italiana naqueles anos, dá a entender que os dois já se conheciam e relata:
“Me lembro que o Rossellini ficou muito impressionado com o livro Geografia da Fome [...]. Ele e o Cesare Zavattini [...]
propuseram então ao Josué que fizessem um filme a partir do livro. [...] A ideia era fazer um filme que relatasse a fome não
só no Brasil, mas em todo o planeta, incluindo o sul da Itália e parte da Espanha. Eu ficaria com a parte brasileira” (BARILE,
2008). Não foi bem assim.
55
fome, como apontado por Aprà, ou Geografia da fome (1946), como repetido pela maior parte dos pesquisadores
brasileiros, confusão talvez causada pelo título do documentário, Geografia della fame –, o que importa salientar
é que deve ter sido o caráter enciclopédico da obra de Josué de Castro a atrair o cineasta, porque em consonância
com ideias sobre a função pedagógica do cinema, que ele havia ensaiado em Índia, mãe terra e que levará adiante
nos projetos televisivos, realizados ou não, nos quais seguirá “o método didático-informativo”, como ele mesmo
o denominou (ROSSELLINI2, 2011, p. 13). Por ocasião do lançamento de O Messias de Rossellini (Il Messia,
1975), o diretor explicava:

Há quatorze anos que, através do cinema e da televisão, tenho perseguido um só objetivo: a informação.


E digo precisamente a informação, não a didática, porque em minha opinião não é preciso ensinar, mas
limitar-se a fornecer dados brutos a fim de que cada um, em seguida, possa elaborar por si mesmo” (OLI-
VEIRA, 2016).

Nesse sentido, as pesquisas do médico nutricionista e geógrafo pernambucano correspondiam a suas ex-
pectativas. De fato, já em 1937, Josué de Castro, em colaboração com Cecília Meirelles, havia lançado um livro
para ensinar às crianças os princípios de uma boa alimentação: A festa das letras (cf. RAMOS, 2016: 416-429).
Coincidentemente, entre 1935 e 1941, Rossellini havia filmado seis curtas-metragens com esse propósito peda-
gógico, dentre os quais dois destinados mais a um público infantil: O peru prepotente (Il tacchino prepotente) e
Teresa, a travessa (La vispa Teresa), ambos de 1940 e tendo como tema o universo dos animais, o que permitiria
estabelecer um paralelo entre o realizador italiano e Humberto Mauro30.
Se ainda há discordância sobre a obra a ser filmada, ela também existe quando se trata de estabelecer como
Rossellini tomou conhecimento da obra de Josué de Castro. Enquanto José Umbelino Brasil “levanta a hipótese
de que Sergio Amidei [...] recomendou-lhe uma versão francesa” (MARGARIDO, 2014)31, o filho de Rossellini
afirmou, em 2014, ter sido ele, quando jovem, a indicar o livro ao pai, ao regressar de uma viagem ao Brasil,
aonde veio visitar parentes (MARGARIDO, 2014):

Quem me recomendou a leitura, assim como de Os sertões, foi Gilberto Freyre. Quando voltei, descobri
que havia uma tradução italiana. Meu pai então pensou em realizar iniciativa semelhante àquela na Índia.
Como Amidei era colaborador frequente, possivelmente tivessem conversado a respeito.

Só que, em 2007, Renzo Rossellini (2011: 122) havia escrito:

Provavelmente, já durante as tomadas de Era noite em Roma32, Sergio Amidei, que era roteirista desse
filme, contou ao meu pai sobre um ensaio do antropólogo brasileiro Josué de Castro, Geografia della fame
[Geografia da fome]. Terminado o filme, Rossellini foi tomado por um frenesi parecido com o de um apai-
xonado e partiu para o Brasil, com Amidei, para encontrar Josué de Castro em Recife e na Bahia.

Pesquisas veiculadas recentemente por Maria Carla Cassarini no alentado artigo “Il miraggio di un film
contro la fame nel mondo. Quasi un romanzo epistolare: protagonisti De Castro, Zavattini, Rossellini, Passeri e
varie case di produzione” (publicado pela revista Cabiria – studi di cinema, n. 181-182, dez. 2015-abr. 2016, p.
17-85)33 e no volume Miraggio di un film. Carteggio De Castro-Rossellini-Zavattini (Livorno:
30 Aproximação sugerida pela cineasta Beth Formaggini durante o 13º Cine Ceará (Fortaleza, 7-13 de maio de
2003), quando os curtas-metragens foram exibidos.
31 A publicação de Géographie de la faim: la faim au Brésil data de 1949 e a de Géopolitique de la faim, de 1952.
Ambas saíram pelas Éditions Ouvrières, de Paris.
32 É flagrante a confusão cronológica de Renzo Rossellini, pois Era noite em Roma (Era notte a Roma) é de 1960 e
a última colaboração entre seu pai e Amidei, antes da estada brasileira, data de 1954, quando da realização de O medo
(Angst / La paura).
33 Como ainda não tive acesso a estas publicações e estou me baseando em dados encontrados na internet, presu-

56
Edizioni Erasmo, 2017) mostraram, porém, que a ideia de uma realização inspirada em Geografia della fame
(Geopolítica da fome) foi do autor e do prolífico roteirista34. Como escreveu a autora no prefácio da obra (S.A.,
2017):

O filme que Josué de Castro e Cesare Zavattini decidem realizar, e que suscita o interesse do grande diretor
Roberto Rossellini, por sua vez arrastado pelo mesmo impulso solidário, cruza o horizonte da obra cinema-
tográfica para constituir-se numa intervenção concreta dentre as possíveis providências contra a fome no
mundo. Ao menos, nas intenções dos autores. Este acontecimento cine-humanitário, com poderia ser cha-
mado, articula-se em vários momentos, e merece ser acompanhado como um romance de aventura, tantas
são as reviravoltas que subvertem sua trama.

O projeto, no qual efetivamente esteve envolvido também Amidei, não se concretizou, mas a ideia acabará
dando origem ao roteiro de A extraordinária história de nossa alimentação (La straordinaria storia della nostra
alimentazione, c. 1964), o qual não saiu do papel, mas será aproveitado em A luta do homem por sua sobrevivên-
cia (La lotta dell’uomo per la sua sopravvivenza), título de duas séries televisivas filmadas de 1967 a 196935, para
as quais, segundo Roberto de Castro Neves (2012), o diretor italiano teria se inspirado não só em Geografia da
fome, mas também em O cavaleiro da esperança (1942). Informação talvez improcedente, talvez não, pois Renzo
Rossellini (2011: 122) afirmou que seu pai havia lido o livro de Jorge Amado, traduzido para o italiano sob o título
de Il cammino della speranza, em 195436. E, encadeando o novo projeto televisivo com a experiência brasileira,
explicou (ROSSELLINI1, 2011: 122):

Quando voltou a Roma, conversou muito comigo sobre o encontro com Josué de Castro, Jorge Amado,
Glauber Rocha e outros jovens cineastas brasileiros. Depois começou a escrever um longo roteiro para
uma série de TV intitulada La storia dell’alimentazione: eu me pus ao trabalho, e nós escrevemos a quatro
mãos a história do homem desde o seu aparecimento no planeta até os tempos modernos. Enquanto ele se
concentrou sobre a agricultura e a alimentação, tratei de outros aspectos, como os alquimistas, os metais, as
armas, Galileu, as viagens, a descoberta da América. Para poder integrar o meu trabalho, meu pai mudou o
título do projeto de Storia dell’alimentazione para La lotta dell’uomo per la sua sopravvivenza.

O problema da população mundial (A question of people ou, na versão italiana, La popolazione mondiale,
1974), documentário sobre as consequências da explosão demográfica no planeta, produzido pela UNESCO, foi
mais um fruto da enciclopédia geográfica almejada por Rossellini. O filme alterna depoimentos de especialistas
em demografia, com material de arquivos soviéticos e da NASA, com imagens captadas na Índia em 1957 e ou-
tras filmadas por ele e seus colaboradores na África e no Brasil, dentre as quais é provável que haja sequencias
rodadas em Pernambuco e na Bahia em 1958. No caso destas últimas filmagens, segundo Aprà (2012: 128), talvez
elas tenham sido realizadas tendo em vista outro projeto arquivado, A civilização dos conquistadores (La civiltà
dei conquistadores, c. 1970).
Em entrevista a O Semanário do Rio de Janeiro, em fins de agosto de 1958, ao ser indagado sobre projetos
futuros e se o roteiro de seu documentário se basearia em Geografia da fome, Rossellini respondeu (FINAMOUR,

mo que Passeri seja Giovanni Passeri, tradutor de autores brasileiros para o italiano (dentre os quais Jorge Amado) e autor
de Il pane dei carcamano: italiani senza Italia: parlano gli emigrati italiani di Rio de Janeiro, di San Paulo e delle fazendas
dell’interno del Brasile: i contadini di Petropolis e della fattoria di Pedrinhas: centinaia di dolorose odissee: miseria e speran-
za, publicado pela editora Parenti de Florença, em 1958. Essa enquete sobre a emigração italiana no Brasil foi prefaciada
por Amado e por Josué de Castro.
34 As pesquisas foram realizadas no Arquivo Cesare Zavattini (Biblioteca Panizzi de Régio da Emília) e no material
sobre o assunto reunido por Adriano Aprà, um dos maiores pesquisadores da obra de Rossellini.
35 As séries foram levadas ao ar entre 1970 e 1971, na Itália, e em 1972, na Espanha.
36 A tradução esteve a cargo do antropólogo Tullio Seppilli (Roma: Edizioni di Cultura Sociale).
57
1958):

Desejo realizar filmes em que haja uma revalorização do homem. Uma retomada de consciência. Nestes
últimos tempos, o homem foi completamente esquecido, como ser humano. Dirão que tenho um plano utó-
pico, ambicioso mesmo, mas pretendo fazer uma enorme indagação nos meus filmes documentários sobre
a condição do homem no mundo moderno. Enquanto a ciência e a técnica alcançaram um desenvolvimento
extraordinário[,] o homem foi totalmente abandonado. É preciso criar uma consciência em torno [d]a con-
dição do homem no mundo, sem o limite das fronteiras, é evidente.
[...] a magnífica obra de Josué de Castro será o primeiro capítulo de uma pesquisa sobre o gravíssimo
problema da fome no mundo. Disse o Presidente do Brasil, numa entrevista concedida aos jornais hoje[,]
que o mais grave problema da América Latina é o problema do subdesenvolvimento econômico. Assim,
penso eu, quando os homens dos governos apontam um fato que necessita ser resolvido[,] todos os que se
sentirem capazes de ajudar a esclarecer, a dar contorno ou evidência ao mesmo, deverão precipitar-se nesta
tarefa para estudar os diferentes ângulos dessa realidade e ajudar a dar soluções. Pretendo[,] como veem[,]
realizar uma documentação sincera, humildíssimo [sic], um estudo sério e profundo de diferentes proble-
mas sociais. O meu projeto é alcançar o mundo inteiro. Na América Latina começarei pelo Brasil, por ser a
pátria do autor de Geografia da fome. Depois farei na África, Europa, Ásia, etc.

Ao chegar em São Paulo, no dia 1º de setembro, a convite da Comissão Municipal de Cinema, ainda no ae-
roporto, onde foi recepcionado por artistas, dentre os quais Anselmo Duarte, Aurora Duarte, Lola Brah e Odete
Lara, o diretor, conforme noticiado pela Folha da Noite,

esclareceu que, a despeito dos boatos, não pretende fazer uma adaptação para o cinema do livro Geografia
da fome, de Josué de Castro.
Afirmou que a obra despertou sua sensibilidade e curiosidade e o estimulou a viajar para ver de perto como
vive o homem.
Disse que seu objetivo é “ver o mundo” e que essa experiência poderá dar origem a uma série de filmes.

Uma declaração algo sibilina, mas que, de certa forma já apontava para a não concretização do projeto.
De fato, também Josué de Castro passou a emitir desmentidos quanto à realização do filme. Na opinião de José
Umbelino Brasil (MARGARIDO, 2014), Rossellini recusou-se a assinar um contrato a pedido de Castro: “Ele
saiu da Itália sem um produtor, sem qualquer garantia de dinheiro para adquirir Geografia da Fome”. Versão que
não bate com a informação do interesse de produtoras pela ambiciosa empreitada, dentre as quais a Arco-Film de
Alfredo Bini.
Uma afirmação de Joel Pizzini, no entanto, faz supor que houve uma tentativa posterior, de novo frustrada,
quando do governo de Jânio Quadros, que se negou a apoiar o projeto: “Eles alegaram que Rossellini era um ci-
neasta superado e não poderia realizar uma película sobre o livro de Josué de Castro” (MELHADO, 2007, p. 29).
Fato corroborado por Arnaldo Carrilho, ao reportar que, segundo o presidente da República37, um tal filme seria
“detrimental à imagem do Brasil” (MELHADO, 2007, p. 29).
Em todo caso, o sonho de Castro se concretizou em parte com a realização de um curta-metragem (6 minu-
tos), baseado em sua obra de 1946 e que ele mesmo narrou, O drama das secas, de Rodolfo Nanni38. Com uma
pequena verba da Associação Mundial da Luta contra a Fome, fundada em Paris em 1957, da qual o intelectual
pernambucano era diretor, e contando com dois jipes do Departamento Nacional de Obras contra a Seca, a equipe
de Nanni adentrou o Agreste e o Sertão nordestinos, documentando também o sofrido êxodo para o Sul, provo-
cado pela grande seca de 1958. Nas palavras do realizador (NANNI, 2008): “Levamos uma câmera de 35mm e

37 Entre 1962 e 1964, Carrilho foi chefe da difusão cinematográfica no Itamaraty.


38 Lançado em 1959, o filme ganhou os prêmios Saci e o da Municipalidade de São Paulo. O Diário Carioca, (1º jul.),
atribuindo sua autoria a Rossellini, tachava a obra de propaganda comunista (MELO & NEVES, 2007, p. 175-177).

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algumas latas de negativo, prontos para registrar a miséria e a fome endêmica de toda uma população. Percorre-
mos uma grande parte dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba, num percurso de cerca de 4 mil quilômetros”.
As poucas imagens que sobraram de O drama das secas pontuam O retorno (2008), no qual o diretor voltou a
percorrer as mesmas regiões de cinquenta anos antes.
Voltando à viagem de Rossellini, em Pernambuco, ele visitou o sertão do Salgueiro, na companhia de Josué
de Castro, e, no Recife, onde permaneceu dois dias, fez uma visita a Gilberto Freire, na casa de Apipucos, onde
provou licor de pitanga39. Há indícios de que o cineasta pensou em levar para as telas Casa-grande & senzala
(1933), assim como o romance Capitães da areia (1937), de Jorge Amado. Quanto à intenção de transpor a obra
do sociólogo, ela foi relatada pelo próprio Freyre (1978), ao rememorar aquele encontro:

Tempos depois recebia eu um telegrama de São Paulo, de amigo comum: Rossellini queria fazer de Casa-
-grande & senzala um grande filme brasileiro. Épico e lírico, como me dissera em Apipucos. Louvor da
morenidade. Da metarracialidade. Era a mensagem do Brasil a um mundo dividido por ódios: inclusive os
animados por preconceitos de raça pura. [...]
Afinal, o que Rossellini desejava realizar, com esse filme que projetou, à base do livro Casa-grande & sen-
zala – [era] uma realidade, um fato, a revelação, para muitos, de um Brasil que muitos ignoravam existir e,
ao mesmo tempo, a expressão de um novo conceito de morenidade, de além-raça, de expressões de beleza
morena ou tropical de mulher [...].
O projeto de Rossellini era grandioso. Tanto quanto sei não encontrou apoio no Brasil. Gorou. Ainda verde,
secou. Murchou. Está tendo substitutos que evitam proclamar a prioridade que ele proclamaria.

Para Joel Pizzini (MELHADO, 2007: 29), o diretor italiano, conforme comentário de François Truffaut,
pretendia realizar um filme intitulado Brasília: “Ele sempre tentou filmar no Brasil, mas nunca conseguiu. Na
verdade, eu suponho que ele gostaria de filmar o projeto de Brasília como um amálgama de Jorge Amado, Josué
de Castro e Gilberto Freyre”.
Ciceroneado por Di Cavalcanti, Rossellini passou dois dias em Salvador, onde, numa entrevista40, mencio-
nou, dentre outras coisas, “seu planejado documentário colorido sobre o Brasil; por causa dele, esperava passar
alguns meses no país, e tal como o seu último filme, rodado na Índia, teria parte documental e parte de ficção”
(CARVALHO, 2003: 28).
Foi também em Salvador que se deu o encontro entre o consagrado cineasta e o jovem repórter de um periódi-
co carioca. No filme Di (1976), premiado no Festival de Cannes de 1977, do qual o diretor italiano foi presidente
do júri, Glauber Rocha registrou esse momento, confessando que ficou fascinado com o método de trabalho de
Rossellini, com a rapidez com que filmava, mergulhando numa realidade cultural que não era a dele:

O Di Cavalcanti eu conheci na Bahia no ano de 1958. Di Cavalcanti apareceu por lá com Roberto Ros-
sellini [...]. Daí que sendo repórter do Diário de Notícias da Bahia fui destacado para entrevistar o Roberto
Rossellini e lá conheci o Di Cavalcanti que me apresentou o próprio Roberto, com uma câmera de 16mm
saindo pelas ruas da Bahia filmando rapidamente lá, um sarcófago e outros batuques das ruínas portuguesas
barrocas da Bahia com uma rapidez impressionante. Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás ali eu saquei
realmente o negócio de ideia na cabeça e câmera na mão, quer dizer, o Rossellini realmente fazia com a câ-
mera de 16 o que Di Cavalcanti faria com o pincel; filmando um Cristo morto lá, sepultado dentro de uma
laje marmórea dentro do Santo Antônio Convento do Carmo, ali não sei direito aonde, pela
39 Nessa visita, o diretor foi escoltado pelo pintor Emiliano Di Cavalcanti (que havia conhecido no Rio de Janeiro,
onde lhe teria sido apresentado por Rodolfo Nanni) e pelo poeta Carlos Pena Filho, mas não por Josué de Castro, pois
“havia animosidade histórica entre ele e o autor de Casa Grande & Senzala”, segundo Paulo Cunha: “Visitas de estrangei-
ros, como ocorreu com Orson Welles no Ceará e no Recife, tinham traço provinciano e de legitimização [sic] de tradições
e personalidades, como o beija-mão a Freyre”. (MARGARIDO, 2014).

40 “Rossellini: documentário em cores focalizando o mundo da miséria”. Estado da Bahia, 27 ago. 1958.
59
Bahia zona norte, ali..., zona cristão... 41

1968

A julgar pelas notícias dos jornais, a última estada de Roberto Rossellini no Brasil não teve uma repercussão
muito positiva. O encontro patrocinado pela UNESCO, pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura
(vinculado ao órgão internacional), pelo Itamaraty e pela Escola de Comunicações Culturais da Universidade de
São Paulo, foi realizado dentro do prédio da faculdade paulistana, ocupado pelos alunos que pleiteavam uma re-
forma universitária. O congresso reuniu cerca de quarenta especialistas brasileiros e estrangeiros, com o objetivo
de “estabelecer o grau de evolução existente na América Latina no corpo da pesquisa em televisão e cinema”,
conforme reportou a Folha de S. Paulo, em 25 de junho de 1968. Além de Rossellini, participaram Enrico Ful-
chignoni (representante da UNESCO), Roberto Santos, Paulo Emílio Sales Gomes, Francisco Luís de Almeida
Sales, o filósofo francês Edgar Morin, bem como Alfredo Guevara Díaz, Hugo Alfaro e Luis Pico Estrada, dele-
gados de Cuba, do Uruguai e da Argentina, respectivamente; Glauber Rocha teria vindo só para se encontrar com
o cineasta italiano, segundo Ismail Xavier, na época um dos estudantes da instituição42. Nesse período, Rossellini,
em busca de novos caminhos expressivos, já tinha se afirmado como diretor televisivo, ao apresentar obras de
caráter didático e propagativo como A idade do ferro (L’età del ferro, 1964) e a famosíssima Absolutismo: a as-
censão de Luís XIV (La prise de pouvoir par Louis XIV / La presa di potere di Luigi XIV, 1966).
Dentre as várias exposições do congresso, a de Alfredo Guevara Díaz, foi a que mais interessou a plateia,
pois ele dissertou sobre “o começo do desenvolvimento cinematográfico numa sociedade socialista com poucos
recursos”, o que vinha ao encontro das reivindicações dos jovens grevistas, preocupados com a “crise brasileira,
evidenciada num regime ditatorial, na luta do governo contra os estudantes, na marginalização da nossa cultura,
sobre os trustes monopolizadores do mercado interno do cinema e da TV e na ação da censura terrorista”, como
escreviam num manifesto do Centro de Pesquisas e Estudos Cinematográficos. Fatos noticiados pela Folha de S.
Paulo em 26 e 25 de junho, respectivamente.
Simpatizante dos movimentos estudantis na França e nos Estados Unidos, o cineasta estava prestes a revolucio-
nar o currículo do Centro Sperimentale di Cinematografia, que presidiu entre 1969 e 1974. Nomeado comissário
extraordinário do CSC em 1968, ele modificou a estrutura dos cursos, promovendo “pesquisas interdisciplinares
sobre o sistema dos meios de comunicação de massa”, que visavam “à formação de uma espécie de ‘cineastas
globais’”, e, como bom autodidata, confiou aos estudantes “a autogestão dos programas de estudo” (AMICO,
2003).
Talvez por desconhecer nossa realidade, Rossellini teria se decepcionado e impacientado com seus interlo-
cutores, os quais, em troca insinuaram que ele estaria a serviço do imperialismo; segundo relato de Mário Chamie
(1976: 36), que se encontrou com ele na Casa de Vidro de Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi, o diretor italiano
teria afirmado:

Verdadeiramente incrível a falta de ideias dos jovens cineastas brasileiros. Estão desorientados. Perderam a noção do
Brasil e da América Latina. Repetem chavões e são incapazes de organizar um programa de luta. [...]
Ou se luta ou não se luta. E para lutar é preciso ter o domínio e a atualização das informações. Eles não encontra-
vam sequer a fórmula, o meio claro, de fazer uma moção que significasse um ponto de vista a ser ouvido, atendido e
respeitado. Perdiam-se numa linguagem ideológica velha, gasta, repetida e sem nenhuma eficácia diante dos verda-
deiros problemas políticos e sociais de hoje. O texto final da moção que devem ter encaminhado é uma recaída num
41 Locução de Glauber Rocha, extraída de Di.
42 Depoimento à autora em 2003.
60
blá-blá-blá vazio e de conveniência contra os alvos fáceis do imperialismo, ditadura, capital estrangeiro, etc. Não se
entendem e não percebem o que está se passando no mundo, especialmente com a juventude. Pelo visto, há muito
pouco a esperar do cinema brasileiro.
[...] Os jovens dos países subdesenvolvidos, por girarem em torno do centro “pão-e-guerra”, ameaçam desvirtuar e
distorcer o rumo e o impacto da transformação que a outra juventude está imprimindo no mundo. E vocês fazem sem
projeto e sem programa definido. É preciso ter a coragem de enxergar as situações novas.
[...] Na “mesa-redonda”, acima da disposição, estavam os chavões. E com chavões como podem os jovens libertar e
defender o cinema que eles são capazes de fazer? Que a juventude daqui, por isso, com todo o direito e o dever de vi-
verem os seus problemas de subdesenvolvimento, não desfigure a original ação revolucionária das outras juventudes.

Encontros

E, o entanto, foi e será com um olhar isento de velhos chavões partidário-marxistas que dois participantes
do congresso analisaram De crápula a herói. No artigo “Il Generale della Rovere”, publicado no Suplemento Li-
terário de O Estado de S. Paulo, em 13 de agosto de 1960, Paulo Emílio Sales Gomes (1981: 240-242), embora
lembrando que a obra retomava, em termos mais comerciais, “a linhagem de crônica inaugurada em Roma, città
aperta, Paisà e interrompida após Germania anno zero”, ressaltava que ela exprimia “a busca ansiosa de uma
verdade de vida, de uma autenticidade moral”, algo que, segundo ele, caracterizava a filmografia rosselliniana. Ao
salientar esse prolongamento meditativo na obra de Rossellini, o intelectual brasileiro, evitando entrar no mérito
das considerações da crítica italiana e francesa, nem sempre favorável, fazia uma leitura que ia além de questões
ideológicas. Glauber Rocha (2006: 213) também, ao contrário de parte da crítica italiana, a qual considerou o
heroísmo do protagonista uma falsificação histórica, em 1983, manifestará seu entusiasmo pelo filme, vendo na
transformação do crápula em herói uma exigência para se compreender que a tomada de consciência do persona-
gem não era de cunho ideológico, mas nascia do sofrimento e da solidão.
Nesse filme, Rossellini introduzia uma série de recursos de técnica e de estilo, base de sua linguagem televi-
siva: uma iluminação multifuncional, a exploração intensa das cenografias, um uso excessivo do travelling e do
zoom. Não foi só isso que entusiasmou o cineasta baiano, havia muito mais: esse “dirigir a câmera pela intuição
antes de amordaçá-la pela razão”, que fazia de Rossellini um “primitivo” como Humberto Mauro, esse “filmar
o ‘real no seu fluir’” (ROCHA, 2003: 50; ROCHA, 1983: 152), como se estivesse pronto desde sempre para ser
captado, focalizá-lo com um determinado olhar, despojá-lo da retórica, aproximar-se dele diretamente, sem re-
correr a mediações formais. Como dirá, anos mais tarde, Walter Lima Júnior (NAGIB, 2002: 416): “No momento
em que Rossellini tira a câmera do estúdio e mostra à vida na rua, ele redefine não somente uma estética cinema-
tográfica, mas também uma ética cinematográfica”.
Por isso, em Revisão crítica do cinema brasileiro, Glauber (2003: 149) arrolou Roberto Rossellini entre os
cineastas que realizaram um cinema-verdade, por essa capacidade, não de meramente registrar, mas de mergulhar
no real em toda sua complexidade e capturá-lo com sua câmera. E, em O século do cinema, explicava o que era
para ele (ROCHA, 1983: 152) o método de Rossellini:

Subverte a estética da ilusão pela estética da matéria.


Rossellini é o primeiro cineasta a descobrir a câmera como “instrumento de investigação e reflexão”. Seu
estilo de enquadramento, iluminação e seus tempos de montagem criaram, a partir de Roma, cidade aberta
(1945), um novo método de fazer cinema.

De fato, em Rossellini, ele admirava aqueles “movimentos de câmera [que] obedecem à realidade e não à
técnica”, aquela câmera a qual “às vezes, gira como louca quando o homem se encontra perdido”, o que lhe fez

61
concluir que “sua estética é sua ética” (ROCHA, 1983: 153-154). Para exemplificar, bastaria lembrar a sequência
de “Il miracolo” (“O milagre”), segundo episódio de L’amore (O amor, 1947-1948), em que Nannina é expulsa
do adro da igreja por outro mendigo da aldeia. A câmera que, em alguns planos, vai acompanhando a personagem
de Anna Magnani ao subir e ao descer a escadaria, já é a câmera na mão que, depois, caracterizará o cinema de
Glauber Rocha.
No diretor italiano, Glauber Rocha (1983: 154, 152) admirava ainda o constante interrogar-se, uma busca da
verdade ontológica do homem, o que o levou a afirmar que “Rossellini é a passagem além do real, sem transigir
com o real” ou “Rossellini é um místico antes de neorrealista”, no sentido que buscava uma resposta para as an-
gústias existenciais do homem.
Esse misticismo apontado por Glauber e que explode na tela com Stromboli (Stromboli, terra di Dio, 1949-
1950), presente já em realizações anteriores, traz de novo à baila a questão de um Rossellini existencialista, não
só porque, em seus filmes, o homem é o centro de sua atenção, mas porque sua existência adquire significado
quando ele se abre para um ser supremo, atingindo sua máxima realização. Por isso, a câmera rosselliniana se
demora em enquadramentos que, aparentemente, são tempos mortos, em que nada acontece. É como se o diretor
estivesse esperando por aqueles momentos epifânicos, por aquela revelação da presença do Criador no universo
que ele criou. O que faz parecer natural que, depois desse filme Rossellini realize Francisco, arauto de Deus
(Francesco giullare di Dio, 1950): esse homem, criatura entre outras criaturas, é o grande ensinamento tirado dos
escritos do santo de Assis.

Se, para Roberto Rossellini, a salvação da humanidade passa por essas questões existenciais, Glauber Rocha,
aparentemente, parece ter uma posição diferente, pois a urgência da luta o leva a buscar outras soluções, de cunho
mais ideológico.
Essa conjunção entre ideologia e questões existenciais, no entanto, já está presente em Glauber desde seus
primeiros filmes. Em artigo dedicado a A idade da terra, Ismail Xavier (1998: 180) ressaltou “o retorno da identi-
ficação do nacional com o campo da religião popular”. Se Glauber Rocha (2006: 256) apontará para um paralelo
entre Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo,
1964), evidenciando as “comuns identidades tribais, bárbaras”, a referência ao Cristo pasoliniano torna-se explí-
cita no monólogo final de A idade da terra na voz-over do próprio cineasta e num texto teórico (ROCHA, 2006:
285):

No meu último filme, A idade da terra (1978-1980), falo de Pasolini, digo que desejava fazer um filme
sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a
verdadeira versão de um Cristo Terceiro-Mundista que não teria nada a ver com o Cristo pasoliniano.

Para Glauber – como explicitou Ismail Xavier (2006: 26) – era

revolvendo os traços ancestrais que se prepara o imaginário da revolução, em particular, esta revolução que
deve emergir em consonância com o Cristo multiplicado, multiétnico da periferia e dos bolsões marginais
da ordem mundial, num movimento que condensa a força dos mitos populares na luta contra a razão bur-
guesa, a tecnocracia e a lei do Pai.

Sem desconhecer a importância dessas afirmações, surge uma questão: A idade da terra não poderia ser lido
também como uma retomada do diálogo de Glauber com o misticismo rosselliniano em suas implicações mais
profundas? Dessa forma torna-se possível a triangulação Rossellini-Glauber-Pasolini, a qual ganha consistência
ao se atentar para o fato de que, em Gaviões e passarinhos (Uccellacci e uccellini), o próprio diretor bolonhês
reconhece sua matriz rosselliniana, para superá-la.

62
Além disso, outra possível aproximação entre Glauber e Rossellini, poderia ser feita a partir do projeto tele-
visivo sobre a vida de Ciro da Pérsia, encomendado ao diretor brasileiro no período em que este viveu na Itália43.
Glauber deveria ter realizado o filme para a RAI, a mesma emissora para a qual Rossellini produziu a maioria de
suas obras de caráter didático. Para poder averiguar essa hipótese, no entanto, seria necessária uma investigação
aprofundada. Em todo caso, é interessante registrar a coincidência entre o título do filme de Glauber, A idade da
terra, e o título de realizações televisivas supervisionadas ou dirigidas por Rossellini: L’età del ferro e L’età di
Cosimo de’ Medici (1972), em que o termo età pode ser traduzido por idade ou por era.
Mais importante, porém, das questões acima expostas, quem sabe possa existir uma participação subjacente
de Rossellini, por mínima que seja, no traçado da linha que, saindo de Geografia da fome, de José de Castro,
passa pela tese “Estética da fome” (1965), de Glauber Rocha, para chegar a O profeta da fome (1970), de Maurice
Capovilla44 Mínima, porque a fome que, para Rossellini, era uma temática, a partir de Glauber se transforma, nas
palavras de Ismail Xavier (S.A., s.d.),

na própria forma do dizer, na própria textura das obras [...] passa a ser assumida como fator constituinte da
obra, elemento que informa a sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão, num estratagema capaz
de evitar a simples constatação (somos subdesenvolvidos) ou o mascaramento promovido pela imitação do
modelo imposto (que, ao avesso, diz de novo somos subdesenvolvidos).

Epílogo

Por enquanto, parece não ter sobrado muito mais das meteóricas passagens de Rossellini pelo Brasil. Sua
vinda em 1958 e seu encontro com Josué de Castro ainda continuam nebulosos, cheios de informações desencon-
tradas e rodeados de certo folclore. Se os textos de Maria Carla Cassarini estão esclarecendo os fatos na Itália,
tomara que a publicação do livro de José Umbelino Brasil, Geografia do filme – A viagem de Rossellini45, baseado
na troca de correspondência entre os dois, e a realização de Viaggio in Brasile tragam novos elementos em relação
ao nosso país. Em seu filme Paulo Caldas incluirá a visita do diretor ao Recife: “Queremos recuperar situações
como a ida dele ao mangue para conhecer os homens-caranguejo, capítulo emblemático do livro” Rossellini amou
a pensão de Dona Bombom (2007), do jornalista e escritor Cícero Belmar (MARGARIDO, 2014)46. O filme, ain-
da em processo de captação de financiamento internacional, ao mesclar ficção e trechos documentais, pretende
“iluminar o propósito maior da visita e da filmagem não realizada” (MARGARIDO, 2014).
O encontro entre Rossellini e o Brasil, no entanto, deve ter sido marcante, principalmente em 1958. Bastaria
rememorar a reverência com que o jovem repórter do Diário de Notícias o entrevistou, sendo “uma das poucas
vozes de boa acolhida”, segundo Renzo Rossellini (MARGARIDO, 2014); a trepidante curiosidade com que um
grupo de jovens cineastas brasileiros se dirigiu ao Hotel Leme Palace para solicitar e conseguir um bate-papo com
43 Informação dada por Maria do Rosário Caetano, por ocasião do painel cinematográfico Neorrealismo e Cinema Novo, realizado
no âmbito do já citado 13º Cine Ceará.
44 O “nexo identitário” entre Castro e Rocha foi estabelecido por Paula Siega (2009: 173): ”se Josué de Castro, de-
dicando Geografia da fome aos escritores e sociólogos da fome no Brasil, indicava a formação de uma tradição cultural
nacional em torno desta temática, Glauber com sua tese insere nesta tradição os cineastas, atrelando novamente o cine-
ma à literatura”. A conexão entre Glauber e Capovilla foi feita em texto introdutório a “A estética da fome” (S.A., s.d.): “A
influência maior do artigo de Glauber sobre O Profeta da Fome de Capovilla está aí resumida: em ambos, a cultura como
ordenação da realidade através de símbolos. No circo, antes lugar do limpo e do belo, agora também chegam a fome e a
dilaceração existencial e física daqueles corpos famintos, sujos e violentos – e aí não há como não fazer a analogia com
a frase mais famosa da Estética: ‘nossa cultura nasce da fome’”.
45 Pesquisa de pós-doutorado, cujos primeiros resultados têm sido apresentados em congressos, como o da SOCINE em 2012
(BRASIL, 2012).
46 É interessante lembrar que, tendo nascido no Bairro da Madalena, região nobre do Recife, mas próxima
ao mangue, Josué de Castro, em 1935, havia escrito o conto “O ciclo do caranguejo” e, ampliando essa temática,
em 1967, publicará o romance Homens e caranguejos (São Paulo: Brasiliense).
63
o diretor italiano, conforme relato de Cacá Diegues (2014); o impacto que nossa realidade lhe causou, de novo
nas palavras de seu filho – “Gostaria de lembrar o grande amor dele pelo País, a sua descoberta de uma região tão
carente como o Nordeste, o amor e a misericórdia por um gigante da cultura e beleza como é o Brasil” (MAR-
GARIDO, 2014); sua tentativa de apreender e aprender algo de uma cultura aparentemente tão diferente da sua.
Como anotou Diegues (2014): “O registro mais comovente dessa passagem de Rossellini pelo Rio de Janeiro está
numa foto de Luiz Carlos Barreto, tirada na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde o cineasta italiano se diverte
com meninos negros da antiga favela da Catacumba”47.

Diante da singela beleza dessa imagem desbotada pelo tempo, as palavras se calam.

47 Provavelmente a foto seja a reproduzida abaixo, extraída da p. 16 do n. 124 do periódico carioca O Semanário, 28
ago.-4 set. 1958, localizado por Annateresa Fabris, a quem agradeço.

64
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66
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XAVIER, Ismail. A idade da terra e sua visão mítica da decadência. Cinemais, Rio de Janeiro, n. 13, set.-out.
1998, p. 153-184.

XAVIER, Ismail. “Prefácio”. In: ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 9-31.

Mariarosaria Fabris – Professora aposentada do Departamento de Letras Modernas & Cinema, Rádio e
TV da Universidade de São Paulo (USP). Graduada em língua e literatura italiana pela USP, obteve os títulos
de mestra em língua e literatura italiana e doutora em artes (cinema) pela mesma instituição. Foi presidente da
Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Arte Visual (SOCINE).

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6. Que história queremos contar de América Latina

Yanet Aguilera

É consenso entre os estudiosos que ainda não possuímos uma historiografia sólida sobre o cinema da América
Latina. Tanto melhor, visto que, nas últimas décadas, as epistemologias e os métodos de diversas historiografias
consolidadas, que fundamentam várias histórias do cinema, estão sendo debatidas. Antes que esta área se firme
seria importante colocar em discussão que tipo de história desejamos contar sobre o nosso cinema.
Faço algumas considerações sobre o debate das historiografias ensaiando um dialogo com Jorge Cañizares
Esguerra (2011). Ele esboça a história de uma nova arte da leitura, no século XVIII, que se constituiu a partir da
experiência americana e que produziu imagens duradouras do Novo Mundo. É no século XVIII que se sistematiza
aquilo que se convencionou chamar de pensamento moderno. Nas aproximações que faço do debate historiográ-
fico com o cinema, me detive na noção de modernidade por dois motivos. Primeiro, porque ela é fundamento
inquestionável em quase todos os trabalhos sobre o cinema da América Latina. Segundo, porque é no conceito de
modernidade que se entrecruzam os fios da história e da crítica do cinema.
Para Cañizares, no século XVIII se constituem duas novas figuras no panorama intelectual, o viajante filósofo
e o compilador de relatos de viagem. As narrativas destes personagens iniciam a formação de um pensamento
moderno que depende diretamente de um novo tipo de leitura, resultado da avaliação das narrativas sobre o Novo
Mundo. Estes personagens atribuíam a suas histórias rigor científico, supostamente baseado em fatos que desa-
creditavam os relatos anteriores, em geral, considerados exagerados e contraditórios e que, não por acaso, usavam
fontes ameríndias. É uma nova maneira de julgar o valor das fontes históricas. No Renascimento, ainda segundo
Cañizares, a validação de uma narrativa passava por uma crítica externa que valorizava a classe da testemunha,
sua experiência direta e mais prolongada com os acontecimentos relatados, além de considerar os interesses na-
cionais do viajante, pois eles induziam o tipo de narrativa feita. No século XVIII, substitui-se este tipo de julga-
mento pela crítica interna que privilegiava a coerência dos relatos.
Ainda segundo Cañizares, George-Luis Leclerc Buffon, que aplicou formas internas de crítica às fontes
espanholas e ameríndias, concluiu que a paisagem sem cultivo e a falta de monumentos no México e no Peru
faziam com que as menções às altas densidades populacionais, tanto do Estado Asteca como Incaico, estivessem
erradas. Hoje sabemos que a Triple Aliança do México pré-colombiano tinha mais de 20 milhões de habitantes.
A partir de esse erro, colocado como constatação, Buffon concluiu que os americanos eram povos degenerados e
fracos, incluindo os filhos de europeus que nasceram na América. Charles Marie de La Condamine, um dos mais
respeitados viajantes filósofos, chegou à conclusão que todos os ameríndios eram insensíveis e estúpidos por
natureza, autorizando a Cornelius de Pauw, um leitor-filósofo dos relatos de viagens, a consolidar, por meio de
seus escritos, a visão de uma América degenerada. Cañizare ainda acrescenta que a literatura inglesa sobre suas
colônias não é diferente nesta infâmia.
Os organizadores das compilações, por sua vez, se apresentavam como “viajantes dotados de muitos olhos”,

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com a vantagem de aplicar uma “leitura rigorosa aos relatos reunidos, retirando incongruências e contradições”.
Hoje sabemos como essas “leituras críticas” são preconceituosas, e que seu pretenso rigor conceitual e a presun-
ção de que o lugar da leitura e da fala é feita por um espectador/leitor treinado e neutro é mera pretensão (Ferro,
1992). Nada que a crítica que se fez à história dos historiadores não nos tenha ensinado (Lefebvre, 1991). Sabe-
mos que o historiador quase sempre escolhe o conjunto de fontes e métodos utilizados pela função que exerce
e pelos objetivos propostos, que nunca são inocentes. Qualquer versão sobre os acontecimentos nunca é neutra,
sempre tem que lutar para poder se impor. As armas da batalha são, geralmente, as autovalorizações por diversos
meios, principalmente aquele dos próprios escritos. A novidade da nova arte da leitura do século XVIII é que a
autoafirmação é solapada por declarações de rigor e distanciamento. Acrescente-se a isso a erudição que aparece
nas citações de muitas fontes que são apresentadas como argumento de autoridade para validar a síntese proposta
pela compilação. Batalha para se impor e síntese de relatos selecionados são os dois elementos que constituem a
base desta nova arte da leitura.
Por que estas discussões históricas são importantes para pensar o cinema da América Latina? Primeiro, re-
percutem sobre um caso bem concreto, o debate sobre o Nuevo Cine Latino-americano. Nenhuma visão preten-
samente distanciada e neutra pode deslegitimar a maneira como o Cine Nuevo Latino-americano se difundiu e
se afirmou. Que os cineastas tenham sido críticos e difusores de seus filmes, e que os estudiosos tenham ecoado
essas pretensões não é diferente da maneira como a Nouvelle Vague ou Hollywood se impuseram. As revistas
Cinearte brasileira e os Cahiers du Cinéma são exemplos de como impor o cinema hollywoodiano no Brasil, e a
Nouvelle Vague, na Europa. Juntei as duas provocativamente. Segundo, “na análise cinematográfica, a vontade
de ciência é hoje um elemento determinante no encaminhamento de muitos trabalhos”, como constatou Ismail
Xavier (1977, p. 11 e 12). Como o método científico, embora questionado, ainda hoje é critério em muitos estu-
dos, pode-se dizer que somos continuadores da arte da leitura que se sistematizou no século XVIII. Além disso,
alguns panoramas que estamos começando a fazer de nosso cinema são muito semelhantes às compilações que
se faziam no século XVIII. Reivindicam um distanciamento com o objeto, fundamento do rigor pretendido pelo
historiador. Porém, os recortes são arbitrários tanto com relação aos filmes estudados como com as fontes utili-
zadas. Cita-se uma parte considerável de autores que estudaram o cinema de seus países, “esquecem-se” outras.
Como os compiladores do século XVIII, os panoramas têm a pretensão de superar os relatos citados pela síntese
elaborada que, no entanto, não faz jus aos trabalhos mencionados. As compilações sobre o Novo Mundo foram
best-sellers nos séculos XVII e XVIII. John Locke escreveu seu Ensaio sobre o Entendimento Humano influen-
ciado por estes relatos, a imagem da tabula rasa vem dai, segundo Cañizares. Ainda hoje são modelos para várias
políticas editoriais, reverberando na contemporaneidade a ligação entre história, crítica e modernidade48.
Como se processa a conexão entre estes três termos? Pode se faze-lo à maneira de Ismail Xavier (1994), um
bom exemplo do crítico historiador da América Latina, ou à maneira do historiador crítico europeu, como Antoine
de Baecque (2011).
Comecemos com o francês, apesar de ele ter escrito seu livro sete anos depois do brasileiro. Baecque de-
fende a história das formas como aquela que comporta a especificidade da crítica cinematográfica e as diversas
temporalidades da história. A crítica e a história modernas do cinema surgem no momento em que críticos dos
Cahiers du Cinéma passam a fazer uma leitura formal dos filmes. A 2a guerra mundial teria produzido um corte
traumático na história cinematográfica, mudando a maneira de ver e realizar os filmes. A análise não é mera visi-
bilidade formal, é a transferência para a forma cinematográfica do corte epistêmico traumático que a história teria
impresso na história do cinema. Assim, o cinema se supera a si mesmo e se transforma numa verdadeira arte ao

48 Afinal, como Marcos Antônio Valentim afirma que “a ampliação exorbitante da cosmologia científica na modernidade seria
acompanhada por uma drástica redução da ‘política cósmica’”. “A teoria da queda do céu, In http://climacom.mudancasclimaticas.net.
br/?p=4120#_ednref2

69
digerir os traumas da história por meio do processo formal. O único problema é que o cinema criador de formas
parece estar desaparecendo. Para os realizadores hoje, o passado formal cinematográfico é um self service, sim-
ples reservatório de motivos e de imagens, forma degradada e obtusa do maneirismo amaneirado. Baecque cita
Quem vai ficar com Mary, de Peter e John Farrelly, 1998, como exemplo desta desintegração e chega a sugerir
que o filme já não é mais cinema. O pós-cinema substitui “uma consciência autoral e cinéfila de prestígio pelo uso
iconoclasta” que corta com “o progressivo e constante enobrecimento cultural”. A alta cultura teve que se associar
com as pulsões corporais primitivas, porque eram a energia e a origem do cinema. Não se negam as pulsões, se
as domestica dentro de um quadro reconhecível. Esses filmes que se “fazem com uma mão só são o fim da mise-
-en-scène, já que organizam e arrebentam tudo”. Apesar da referência ao livro de Jean-Marie Goulemot, Baecque
não percebe que a crítica que a literatura pornográfica faz às pretensões da filosofia das luzes pode também ser
dirigida à história das formas cinematográficas. Haveria aqui uma ruptura na harmonia que a história das formas
estabeleceu entre história e crítica.
Quanto a Ismail, impossibilidade lógica (rigorosa, distante e neutra) não o impede de fazer coexistir a ruptura
crítica com a continuidade histórica. Ele aproxima dois personagens, o cineasta/crítico e o crítico/historiador:
“No Glauber Rocha de 1963, a tônica era a vontade de ruptura a par do balanço histórico; em Paulo Emílio o que
vale é um principio de continuidade, a par do reconhecimento das oposições e conflito”. Ismail não enxerga no
desejo de arrebentar com tudo, uma máxima do cinema marginal brasileiro, o fim do cinema. Ao contrário, de-
fende a iconoclastia poderosa deste cinema, que difere da dissolução citadora dos filmes dos Estados Unidos. Sei
que a aproximação que faço está baseada numa mera homonímia e que as atitudes e épocas são diferentes, mesmo
porque nos anos 1990 haverá um cinema na América Latina similar ao dos Estados Unidos, que poderia fazer
pensar no mencionado pós-cinema. Mas, como levar a sério a ideia de um pós-cinema, quando na América Latina
começam a pipocar novamente filmes instigantes, inclusive em lugares que não têm uma história cinematográfica
densa, como Paraguai, Peru e outros países? Além disso, quando Ismail Xavier ou alguém da América latina diz
“moderno” está falando de processos e relações diferentes aos dos europeus. São maneiras bem distintas de ver
e entender o cinema, a história e a crítica cinematográficas.
Mesmo que seja um conceito ambíguo ou cafona, como diz Jacques Aumont , a modernidade para o dito
“ocidente” sempre foi um critério de valor, embora haja algumas vozes discordantes – Bruno Latour e Jacques
Rancière , por exemplo. Os “verdadeiros ocidentais” teriam, portanto, uma modernidade própria – “nossa moder-
nidade (nós, habitantes dos países industrializados que temos luxo do pensamento estético - p. 14) –, como afirma
Aumont. Para os estudiosos europeus, há uma ligação direta entre cinema e modernidade. É por isso que um autor
brasileiro como Fernão Ramos escreve que moderno, mas moderno mesmo, é a Nouvelle Vague, o cinema que
teve densidade para olhar a si mesmo.
Embora desejada, a modernidade nunca foi um ponto pacífico para nós. Não precisamos esperar até a 2a Guer-
ra Mundial para vivenciar enormes traumas históricos. Aliás, quando os europeus invadem a América, no alvor
da modernidade, a experiência traumática deixa de ser exceção para fazer parte do cotidiano das populações do
continente. A ideia de progresso na América Latina é uma piada de mau gosto. Isto fica evidente no livro de Ismail
quando fala que a “relação de Glauber com o Brasil moderno se da sob o esquema da urbanização como morte”,
ou quando menciona como projeto do Brasil moderno a transamazônica de Iracema - uma transa amazônica,
(1973) de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, para ficarmos apenas em dois exemplos dos inúmeros que há no
cinema do Brasil (Xavier, 119 e 122). Não é diferente no resto da América Latina. O que nos une são experiências
traumáticas comuns ligadas ao advento da modernidade: a colonização e os sangrentos golpes de Estado.
Mas, dado que muitos de nossos filmes têm a densidade para olhar a si mesmos, poderíamos falar de um
cinema moderno latino-americano sem constrangimento?
Concluo que o aspecto problemático não concerne apenas ao meta-cinema, como é o caso de Jogo de cena,

70
de Eduardo Coutinho – o exemplo máximo de um voltar-se sobre si mesmo – mas ao próprio conceito de autor-
reflexão. As imagens autorreflexivas são as mais diversas e expressam valores bem diferentes. Por exemplo, O
caminhante, em sua monumentalidade, ou O pensador, em sua sublimidade trágica, são imagens poderosas que
têm densidade para olhar a si mesmas e representar a modernidade como um bem. Contudo, outra figura da auto-
-reflexividade, também forte, impõe-se, a de Narciso, que não vê nem escuta Eco, explicitando que esse voltar-se
sobre si mesmo instaura um processo de exclusão. Ou ainda, a terrível Medusa, que ao se olhar nos olhos se ful-
mina. Exclusão e morte são dois atributos importantes da autorreflexão. Assim, o processo autorreflexivo parece
carregar o espelho de Narciso. Viveiros de Castro, ao se referir ao pensamento dos Ameríndios, esses outros que
somos nós mesmos, fala de uma auto-reflexividade diferente, em que as dobras de si refletem uma imagem nossa
na qual não nos reconhecemos.
Se quisermos que a história de nosso cinema nos contemple e não nos ofenda, como sugere Cañizares, todo
cuidado é pouco com as categorias de pensamentos de que lançamos mão, assim como com as epistemologias que
fundamentarão as nossas narrativas.

71
Referências bibliográficas

AUMONT, Jacques. Moderno? Por que o Cinema se tornou a mais singular das arte? Campinas, Papirus, 2003.

BAECQUE, Antoine. L’Histoire Caméra. Paris, Cahiers du Cinéma, 2011.

CAÑIZARES, Esguerra, Jorge. Como escrever a história do novo Mundo – historias, epistemologias e identida-
des no mundo São Paulo, Edusp, 2011.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro, Editora 34, 2009.
2a Ed.

LEFEBVRE, G. La Naissance de l´historiographie moderne, Paris, Flammarion, 1971.

RANCIÈRE, Jacques. In Pensar o cinema: imagem, ética e filosofia. Org. Gerardo Yoel. São Paulo, Cosac Nayfi,
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O recado da mata”, prefácio. In KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce,
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XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfica: a opacidade e a transparência. São Paulo, Paz e Terra, 1977.

--------------------“Paulo Emílio e o estudo do cinema”. In Estudos Avançados, São Paulo, Revista USP, 1994.

-------------------- Cinema Moderno Brasileiro. São Paulo, Paz e Terra,


2001.

Yanet Aguilera - Professora de história do cinema do curso de história da arte da Universidade Federal
de São Paulo. Possui graduação em filosofia pela Universidade de São Paulo (1985), mestrado em filosofia
pela Universidade de São Paulo (1996) e doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo (2007). Atua
principalmente nos seguintes temas: cinema, estética, ética, artes plásticas e política.

72
Parte 2

Cinema, Arte e Política

73
7. Aclamação e censura ao filme A Batalha de Argel no Uruguai, em 1968: o
perigo do ‘cinema insurgente’

Mariana Villaça

Neste trabalho focamos a repercussão do filme A Batalha de Argel (Gillo Pontecorvo, 1965), em 1968, no
Uruguai, junto ao público, ao governo e à crítica de cinema49. Procuramos analisar historicamente esse episódio
específico – o impacto do filme de Pontecorvo no Uruguai – iluminando algumas questões políticas, sociais e
estéticas que afloraram na imprensa ao longo da repercussão de sua estreia e de sua censura.
O filme estreou na capital com grande sucesso e foi exibido para um amplo público, durante quatro semanas
consecutivas. O tema da Guerra da Argélia (1954-1962), por si, já despertava grande empatia das plateias lati-
no-americanas, uma vez que tratava de um exemplo dramático de resistência ao colonialismo: “a Argélia refletia
as principais lutas dos anos 50 e 60: direito dos povos à autodeterminação, independência política e econômica,
novas vias para se chegar ao socialismo” (ARAUJO, 2017, p. 403). Porém, no auge de sua temporada em Mon-
tevidéu, devido ao impacto que sua exibição surtia na plateia e à elogiosa repercussão na imprensa, o filme foi
proibido. Esse ato de censura, anterior ao golpe civil-militar de 1973, provocou grande comoção pública, em um
contexto de grande mobilização estudantil. A forte reação ao filme demonstrou a preocupação do governo em
refrear manifestações da cultura política de esquerda e do discurso revolucionário, latentes no circuito cultural
montevideano.
O filme, antes disso, chamara a atenção da crítica uruguaia principalmente pela forma não panfletária como
tratava o tema da revolução, ao abordar as lutas pela libertação da Argélia focando, cirurgicamente, tanto as estra-
tégias da esquerda como as táticas repressivas, sem edulcorar a representação de um lado ou de outro. Segundo
a análise de Marília Froment:

“O filme é riquíssimo nesse ponto, pois dispensa tanto atenção aos argelinos quanto aos franceses; ambos
são mostrados cometendo crimes, matando pessoas e se valendo de meios escusos. Um dos trechos mais
impressionantes do filme é a sequência em que três mulheres se disfarçam – cortam e tingem os cabelos,
se maquiam e se vestem para parecerem mulheres europeias – para driblarem a fiscalização na saída da
Casbah e explodirem alvos civis: um milk bar, uma cafeteria e o terminal da Air France. Nessa sequência é
possível identificar a grande virtude do filme; a violência dos argelinos não é romantizada e a cena de morte
dos franceses nas explosões é impressionante, pois consegue-se transpor o sofrimento das vítimas aos es-
pectadores. Essa cena, lírica e pungente, é embalada por um canto religioso de Bach, assim como a cena em
que os franceses explodem uma casa na Casbah. O emprego da música no filme não é acidental, atribuindo
a todas as vítimas a mesma dor e o mesmo tratamento emocional”.(FROMENT, 2013: 14)

De fato, Pontecorvo desnudava as implicações da violência desmedida, mostrava que havia franca disposição
ao sacrifício humano de ambos os lados e expunha as ambiguidades de uma relação colonialista, entre franceses
e argelinos, que pretendia enfatizar como dialética. O cineasta, em suas declarações sobre a obra, reforçava seu
“compromisso com a realidade”, sua formação marxista, defendendo o que chamava de “ditadura da verdade”50
49 Esse texto é um desdobramento da pesquisa que realizamos entre abril de 2015 e abril de 2017, com Auxílio Regular Fapesp,
intitulada “As edições Marcha e a constituição de um circuito cultural de resistência política frente o acirramento do autoritarismo no
Uruguai (1967-1974)”.
50 A edição mais recente do filme foi lançada no Brasil no formato de DVD duplo, que contém um documentário

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No filme, esta “ditadura da verdade” teria sido buscada mediante a impressão, proposital, de que a obra fosse
um documentário, repleto de cenas primorosamente reconstituídas, captadas “in loco”, filmadas não com atores,
mas com gente do povo51. Essa pretensão de ser fiel à realidade aparece nas declarações de Pontecorvo: “No
meu cinema, quando tive que escolher entre distanciar-me da realidade ou usar efeitos para ganhar popularidade
junto ao público, sempre renunciei a essas possibilidades e permaneci fiel à realidade” (Apud JANOTTI, 2013:
57). Contudo, o cineasta ao mesmo tempo, evidenciava em seu filme a inevitabilidade de se “tomar partido”, ao
mostrar determinadas hesitações e as opções da imprensa ao fazer a cobertura desse conflito. É o que nos mostra
a análise a seguir:

“Representado na tela como um grande estrategista e homem de razoável cultura, [o coronel] Mathieu sabe
que a vitória apenas em seus aspectos militares não bastaria para legitimar a (re)conquista de Argel. Eram
necessárias armas mais sutis, e o discurso dos mass media contribuiria enormemente para essa legitimidade.
Quando o coronel pede para os jornalistas: “Apenas escrevam e bem”, um pedido sutil de: “Escrevam bem
sobre nós, soldados!”, parece ecoar como um sussurro. O diálogo entre as duas forças, a imprensa e o poder
militar, se mostra de forma clara, mas também ambígua. Um certo respeito entre ambos, mas igualmente
uma certa intimidação. Quando o militar proclama que a entrevista de M’ Hidi terminou, pois teme que
“produza o efeito contrário”, novamente temos estabelecida uma tensa relação entre imprensa e poder. O
“espetáculo” da prisão do líder anticolonial, poderia tanto servir para um lado quanto ao outro do conflito.
Os dois personagens, o repressor e o rebelde, parecem ter a sagacidade de ver a importância que o apoio
dos grandes meios de comunicação poderia lhes render, o que contribuiria para a vitória de forma tão im-
portante quanto a conquistada pelas armas”. (OLIVEIRA, 2011: 526).

Esse premiado filme italo-argelino52, devemos lembrar, foi realizado a partir de um roteiro de Franco Solinas,
baseado nas memórias de Saadi Yacef (líder da Frente de Libertação Nacional que interpreta a si mesmo, no filme,
e contribui para essa produção), publicadas com o titulo Souvenirs de La Bataille D’Alger, (1962). Sobre o filme
e seu diretor é possível encontrar inúmeros estudos, de diversas naturezas53. Nosso objetivo neste breve texto,
conforme mencionado, é apenas focar o impacto de sua repercussão no Uruguai, onde foi premiado como o me-
lhor filme estrangeiro pela Asociación de Críticos Cinematograficos (ao lado do curta Me gustan los Estudiantes,
eleito o melhor filme nacional) e pela crítica do semanário Marcha54. Sua proposta respondia a certo incômodo
da crítica uruguaia com obras artísticas bem intencionadas, mas consideradas simplistas por aderirem a discursos
muito esquemáticos, incômodo que se expressava em diversas notas e resenhas sobre LP’s, peças teatrais e filmes,
publicadas em Marcha, em suas páginas destinadas à cena cultural. Nesse sentido, um colunista do periódico,
Raul Gadea elogiava, no filme, o fato de não fazer concessões a “facilidades retóricas” assumindo uma “sobrie-
dade neorrealista”. Segundo ele: “Por primera vez, quizás, el cine se concreta a mostrar al pueblo en lucha contra
sus opresores sin sentirse obligado a justificar esa lucha (...) Muchos cineastas futuros habrán de avanzar por el
desafiante camino que abre, hoy, La batalla de Argelia”55. Em termos formais, o uso de atores não profissionais
de 37 minutos onde vemos o cineasta falando desse conceito: Pontecorvo: a Ditadura da Verdade (Oliver Curtis, 1992)
51 Afirmou em entrevista: “Começamos com tantos problemas e achava que o único modo de ganhar o público com
esse filme tão diferente do que estava acostumado era com uma ditadura da verdade. Ou seja, dar a impressão de docu-
mentário, de noticiário. E isso embora fosse uma obra de ficção.” (Apud OLIVEIRA, 2011: 513). Há um denso debate que
envolve a noção de verdade no cinema, bem como as definições do que diferenciaria um documentário de um filme “de
ficção”. Porém não será possível abordar esses temas no presente trabalho em razão da amplitude dessa discussão.
52 “O filme venceu o Leão de Ouro no Festival Internacional de Veneza, o Grande Prêmio da Crítica Internacional e o
Prêmio de La Ville de Venise, em 1966. Além disso, foi indicado ao Oscar de melhor diretor, roteiro original e filme estran-
geiro”. (FROMENT, 2013, p. 32.)
53 Como se vê na Bibliografia, localizamos, para citarmos apenas a produção acadêmica nacional , trabalhos pro-
venientes do campo da História, do Cinema e do Direito.
54 “Marcha elige”.Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, pp. 26-28, 30.
55 GADEA, Raul “El cine como arma explosiva”. Marcha núm. 1428, 06 de diciembre de 1968, p. 25.
75
(com exceção do Coronel Mathieu, interpretado pelo ator francês Jean Martin), a linguagem ágil, que lembrava
uma reportagem televisiva densamente documentada, as locações no “cenário real” da Casbah, bairro árabe de
Argel, a trilha sonora impecável de Pontecorvo e Ennio Morricone eram atributos comumente elogiados pela
crítica. Hoje podemos dizer que, a exemplo do filme cubano Memórias do Subdsenvolvimento (Tomás Gutiérrez
Alea, 1968), produzido um pouco depois de A Batalha de Argel mas exibido no Uruguai nessa mesma época, a
obra de Pontecorvo era competente em traduzir a complexidade de muitas questões que envolviam a defesa da
revolução por meio de personagens sofisticados, abordando as tensões e diferenças de classe, sem sucumbir a
maniqueísmos, opção ideológica muito frequente em filmes politicamente engajados dos anos 1960.

Em 1968, no Uruguai, A Batalha de Argel estreou na capital cercado de grande expectativa, ao fazer parte
da programação extraordinária do Festival de Cinema de Marcha. Esse festival encontrava-se em sua 11ª edição,
e desde o ano anterior era predominantemente composto por uma mostra de filmes documentais considerados
“de combate”, dos quais eram exibidos apenas trechos (em geral, os mais dramáticos e contundentes, capazes de
despertar reações fervorosas na plateia) num único dia56. Para melhor compreendermos o papel que esse festival
passou a desempenhar a partir de 1967, vale destacarmos a opinião de um de seus realizadores, Hugo Alfaro, que
também era colunista da seção “Espectaculos” e administrador do semanário Marcha:

“En 1967 el Festival Cinematográfico de Marcha advierte la urgencia con que una tarea de conscientización
(...) debe empreenderse entre nosotros. (...) en aquella inolvidable madrugada de junio de 67 en el cine
Censa – la voz de Lena Horne [referência à trilha musical do curta Now, de Santiago Alvarez] recorriendo
electricamente la sala colmada – liquidamos unos cientos mitos del pasado y apostamos al porvernir”57.

Devido ao rápido esgotamento das entradas do festival, seus produtores decidiram fazer novas exibições,
substituindo alguns títulos ou acrescentando outros (caso de A Batalha de Argel, que não constava da programação
original)58; além de levar a programação a cidades do interior do país, em parceria com os cineclubes locais. Assim,
uma nota no semanário Marcha datada de 25 de outubro de 1968 anunciava, agradecendo o público “sensível e
fervoroso” que vinha prestigiando o festival, que “mientras los filmes de nuestro primer programa cumplen su
ciclo de exhibiciones en el Interior, uma segunda muestra del genero habrá de ofrecerse el domingo, 3/11 a las 10
de la mañana en la sala del Plaza” . Seguia-se o programa dessa sessão, na qual constavam os seguintes filmes:
o curta cubano El caso Arguedas (Santiago Alvarez), o documentário chinês sobre a Revolução Cultural: Mao,
un sol rojo; o já referido longa La Batalla de Argel; o documentário mexicano Cuarto Comunicado59, o alemão
Comando 52 (Walter Heynowski,1964) produzido na Alemanha Oriental, o venezuelano Pozo Muerto, (Carlos
Rebolledo, 1967) e, fechando a sessão, o curta uruguaio Me gustan los estudiantes (Mario Handler, 1968).
O ano de 1968 vinha sendo animador para o cinema uruguaio: além do êxito do Festival e da turnê que

56 Abordamos detalhadamente as edições de 1967 e 1968 no capítulo intitulado Os Festivais de Cinema de Mar-
cha e seu papel na constituição de um circuito cultural de resistência política (Uruguai, 1967 e 1968). In: MORETTIN,
Eduardo et al. (orgs) . Cinema e História: circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre: Editora Sulina,
2017, p. 275-304.
57 ALFARO, Hugo. “La larga marcha del Festival”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, p. 31.
58 Na programação original figuravam os seguintes filmes, dos quais eram exibidos trechos, em geral, projetados
em sequência: La sexta cara del Pentágono (Chris Marker, 1968), Laos, la guerra olvidada (Santiago Álvarez ,1967); Me
gustan los Estudiantes (Mario Handler, 1968), Nossa terra (Mario Marret, 1966); Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos,
1963); Ollas populares en Tucumán (Gerardo Vallejo 1967), El Paralelo 17: la guerra del pueblo (Joris Ivens 1968) e, por
fim, Now (Santiago Álvarez, 1965).
59 Não encontramos a data ou maiores referências sobre os documentários El caso Arguedas; Mao, un sol rojo e
Cuarto Comunicado . Acreditamos que os três sejam curta-metragens. O primeiro, supomos, talvez seja uma reportagem
feita para o Noticiero ICAIC Latinoamericano, uma vez que o “Arguedas” em questão era o ministro boliviano Antonio
Arguedas que havia enviado , em 1967, o diário de Che Guevara a Fidel Castro, na ocasião da morte do guerrilheiro.
76
estava sendo realizada pelo interior do país60, o periódico Marcha havia criado, com diversos colaboradores,
seu Departamento de Cine (embrião do Cineclube de Marcha que se converteria na Cinemateca del Tercero
Mundo, no ano seguinte). Deste departamento faziam parte, entre outros, o cineasta Mario Handler, o produtor
Walter Achugar e o crítico de cinema José Wainer, os três muito ativos na organização do Festival de Marcha e
empenhados em garantir a participação uruguaia em eventos internacionais, caso da Primera Muestra de Cine
Documental Latinoamericano em Mérida, na Venezuela, no qual compareceram, viabilizando a participação dos
documentários nacionais Elecciones (Mario Handler e Ugo Ulive, 1967) e Me gustan los Estudiantes (Mario
Handler, 1968), ambos ganhadores de menções especiais do júri, do qual José Wainer era integrante61.
Após o sucesso no Festival, A Batalha de Argel entrou em cartaz no Cine Trocadero, onde foi exibido, durante
quatro semanas consecutivas, para um amplo público, estimado entre 25.000 e 35.000 pessoas62. A plateia que
comparecia a essa grande sala de cinema reagia com muito entusiasmo à exibição da película, ovacionando ao
longo e ao final da projeção. O crítico José Wainer demonstrou sua surpresa, à época, ante um comportamento
que, até então, era pouco comum público uruguaio. “Contra una larga tradición de inhibiciones uruguayas, la
asistencia del film solía identificarse ruidosamente con sus episódios, a traves de expansivas ovaciones”63.
A calorosa recepção que envolveu o filme A Batalha de Argel remetia, inegavelmente, à capacidade mobilizadora
de algumas obras daquele período, fossem filmes, peças de teatro ou canções64. Havia grande adesão a todo tipo
de obra que defendesse a revolução e grande interação entre as diferentes linguagens artísticas na cena cultural
montevideana: músicos uruguaios identificados com o “nuevo canto” se envolveram fortemente com o Festival
de Marcha de 1968, a ponto de gravarem trilhas sonoras ou canções inspiradas em alguns filmes65.
No mês anterior à estreia do filme, havia ocorrido em Montevidéu vários eventos em homenagem a Che
Guevara, por ocasião do primeiro aniversário de sua morte. Muitos deles integraram a “Semana del Guerrillero
heróico” composta por peças (como Libertad, Libertad, que já havia se tornado um clássico do grupo teatral
El Galpón)66, recitais de poesia, o lançamento de um disco de Daniel Viglietti com canções dedicadas a Che
(Canciones para el hombre nuevo, 1968), diversas reportagens e homenagens na imprensa de esquerda, bem como
60 Há diversas notas publicadas nas edições dos meses de outubro, novembro e dezembro, que informam as cidades onde
ocorreriam exibições da programação do Festival de Marcha : Paysandú, San José, Durazno, Mercedes, Tacuarembó, Paso de los Toros
foram algumas delas, totalizando cerca de 20 localidades.
61 “Uruguayos en Mérida”. Marcha núm. 1418, 27 de septiembre de 1968, p. 27.WAINER, José. “Cine latinoamericano en Mérida,
Venezuela”. Marcha núm. 1419, 04 de octubre de 1968, p. 28.
62 Mariana Abreu afirma que “entre el 21 de noviembre y el 17 de diciembre de 1968 pasaron a verla por el cine
Trocadero 25.000 personas” . ABREU, Mariana. “Argel y otras batallas”, s/d. Disponivel em: http://zur.org.uy/content/ar-
gel-y-otras-batallas Acesso em 10 de julho de 2017. Já Eduardo Terra, em entrevista a Susana Vellegia, menciona 35.000
pessoas: “Tuvimos casos como el de la Batalla de Argel con unos 35.000 espectadores y no es el único caso en que ob-
tuvimos un êxito de público tan importante”. “Una cinemateca para el Tercer Mundo. Entrevista a Eduardo Terra” (1969) .
Cine Cubano, núm. 63-65 (Apud (VELLEGGIA, 2009: 404-406). Disponível em http://www.cinemateca.org.uy/Documentos.
Acesso em 10 de julho de 2017.
63 WAINER, José. ”Proiben La Batalla de Argelia. La estratégia del Coronel Mathieu.” Marcha núm. 1430, 20 de diciembre de
1968, p. 27.
64 Em um artigo sobre o II Festival Internacional da Canção, no Brasil , em outubro de 1968, celebrava-se a reper-
cussão da canção Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, que vinha sendo entoada por muitos nas
ruas, causando, inclusive, a prisão daqueles que cometiam essa ousadia. O tom da reportagem parece ilustrar o quanto
determinadas obras catalisavam esse impulso mobilizador (e o quanto eram desejadas). SELSER, Gregorio. “Brasil: los
militares contra uma canción. “ Marcha núm. 1421, 18 de octubre de 1968, pp. 18, 30. Esse aspecto da interação artís-
tica na cena montevideana abordamos em outros trabalhos, ao apresentarmos o circuito cultural de esquerda que se
constituiu, nessa época, na capital uruguaia. Cf: VILLAÇA, Mariana. O semanário Marcha, Carlos Quijano e a configura-
ção de um circuito cultural de resistência no Uruguai (anos 1960-70). Hydra - Revista Discente de História da Unifesp, v.
1, núm. 3, pp. 1-16, 2017.
65 Daniel Viglietti compôs Cruz de luz, inspirado no filme no filme Camilo Torres (Jean Pierre Sergeant e Bruno
Muel, 1965) , e Dahd Sfeir gravou Funeral de um lavrador (Chico Buarque /João Cabral de Melo Neto, 1965 ) e Carcará
(João do Vale / José Candido, 1965) , canções que faziam parte do espetáculo teatral Morte e vida Severina que estrea-
ra em novembro, em Montevidéu, cujos temas se conectavam ao do filme Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos,
1963), obra que integrou a programação do Festival. “Cine, música y opiniones comprometidas en el Festival de hoy”.
Marcha núm. 1426, 22 de noviembre de 1968, p. 27.
66 “Semana del guerrillero heroico”. Marcha núm. 1419, 04 de octubre de 1968, p. 23.
77
várias publicações no mercado editorial. Pairava, enfim, um clima de comoção e mobilização67. Este encontrava
eco na obra de Pontecorvo, uma vez que, apesar da crueza com que abordava a violência e as contradições de
ambos os lados, não deixava dúvidas quanto à celebração da vitória argelina. Ao final do filme, vemos o triunfo
da luta pela independência da Argélia, que ocorrera em 1962, com o povo portando bandeiras improvisadas e
festejando acaloradamente nas ruas.
Sabemos hoje que, se o filme atendeu ao fervor pela via armada que pairava na juventude uruguaia, tendo
sido utilizado para a compreensão de métodos e táticas “revolucionários” por grupos de esquerda, por outro,
também foi material valioso para que Estados repressores e seus respectivos serviços de inteligência, como o
argentino, nos anos 1970 estudassem as táticas de guerrilha e as melhores estratégias para seu desmantelamento.
(FROMENT, 2013) Segundo o crítico Rubens Ewald Filho: “Se o filme mostra como age a guerrilha, ele também
é muito preciso ao descrever como agem as forças anti-guerrilhas. É igualmente didático ao mostrar a teoria das
pirâmides, a comparação do movimento a uma tênia (se não eliminar a cabeça, voltará a germinar) e a técnica
do interrogatório em massa, selecionando e torturando as pessoas ao acaso, até encontrar suspeitos e chegar às
cabeças da organização clandestina”68. 
Diversos trabalhos atestam a importância da experiência rancesa na Argélia para a formação dos métodos
da Escola das América e a capacitação de militares sul-americanos69. Mencionam o uso do filme fcomo material
instrucional para a formação de agentes, demonstrando métodos eficazes, como a tortura, para obtenção de
informações. Sua repercussão, portanto, de algum modo manteve a dialética que marcara a construção da obra: o
filme encantou a juventude e serviu de inspiração e estudo dos grupos de esquerda, tanto quanto ao refinamento
da chamada “guerra anti-subversiva”, calcada no principio da identificação do inimigo interno, eixo da Doutrina
de Segurança Nacional.
A importância desse filme para a história do meio cinematográfico no Uruguai também reside no fato de
ter sido considerado por alguns críticos “o primeiro caso de censura política”, em um país que se orgulhava das
garantias existentes à liberdade de expressão, ainda mais considerando o contexto repressivo vivido por seus
vizinhos, Argentina, Brasil e Paraguai. O crítico uruguaio Manuel Martínez Carril afirmou ter sido esse filme a
“primeira vítima” da censura política, em tempos que ainda eram “más o menos democráticos”. Lembremos que
no Brasil, por exemplo, o filme já se encontrava proibido, sendo liberado apenas em 198270. Segundo Guillermo
Zapiola, o filme inaugurou esse tipo de censura em um cenário no qual imperava geralmente, o veto por questões
“morais”. Nesse sentido, outros casos se sucederam e também foram considerados subversivos, posteriormente,
no país, filmes como Estado de sitio (Costa-Gavras, 1972) e O poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972)71
. Independentemente de ter sido ou não o “primeiro” caso de censura oficial, o que nos parece improvável,
tendo em vista, inclusive, os muitos dissabores enfrentados pelos próprios cineastas uruguaios, a exemplo da
repercussão do filme Elecciones (Mario Handler e Ugo Ulive, 1967) que já exploramos em outra publicação,
interessa-nos aqui ressaltar o peso que é conferido ao fato e à denúncia do mesmo.
Em resposta às reações apaixonadas da plateia, como enfatizamos, o filme teve efetivamente sua exibição
67 O número 1420 de Marcha, de 11 de octubre de 1968, trazia, na primeira página, a manchete “A un año de la
muerte de Che” e, em seu corpo, várias notas e reportagens em sua homenagem.
68 EWALD Filho, Rubens. “A Batalha de Argel (1965)”. Disponível em: https://cinema.uol.com.br/resenha/tes-
te/1965/a-batalha-de-argel.jhtm . Acesso em 27 de julho de 2017.
69 JANOTTI, M. L. M. Op. Cit, pp. 47-82. Ver também: ROBIN, Maire Monique. “Como La Batalla de Argel enseñó a
torturar a los argentinos”. 8/02/2011. Disponível em: http://www.mdzol.com/nota/271904-como-la-batalla-de-argel-enseno-
-a-torturar-a-los-militares-argentinos/. Acesso em 10 de julho de 2017. FEBBRO, Eduardo. “La batalla de Argel en Baires.”
24/05/2001. Disponível em: http://memoriaviva5.blogspot.com.br/2008/12/la-batalla-de-argel-en-baires.html. Acesso em
31 de julho de 2017.
70 EWALD Filho, Rubens. “ A Batalha de Argel (1965)” . Disponível em: https://cinema.uol.com.br/resenha/tes-
te/1965/a-batalha-de-argel.jhtm. Acesso em 31 de julho de 2017.
71 ZAPIOLA, Guillermo. “Historias de cine, tijeras y prohibiciones”. s/d Disponivel em :
http://www.elpais.com.uy/divertite/teatro/historias-cine-tijeras-prohibiciones.html. Acesso em 31 de julho de 2017.

78
proibida pelo Ministério do Interior72. Essa atitude não era muito comum no meio cultural uruguaio, país
que até então vinha mantendo razoavelmente preservada a liberdade de expressão. Esse quadro se alterava
substancialmente com a promulgação, seis meses antes, das Medidas Prontas de Seguridad, em 13 de junho
de 1968, ato que se configurou como uma das marcas do autoritarismo do governo de Pacheco Areco. Tais
Medidas incluíram um pacote de ações de repressão a movimentos sociais, mobilizações estudantis, greves, além
de medidas econômicas recessivas como o congelamento de preços e salários. Invasões e “inspeções” policiais na
Universidade de la República, instituição antes respeitada em sua autonomia, foram atitudes inesperadas, recebidas
com indignação pela comunidade acadêmica e pela imprensa73. A proibição do filme de Pontecorvo, nesse clima,
mobilizou jornalistas, críticos de cinema, diretores de cineclubes, realizadores e políticos que saíram em defesa
da arte, da democracia, da cinefilia uruguaia e do direito à mobilização juvenil74. Associações diversas também
compartilharam sua indignação por meio de notas publicadas na seção de cartas do jornal, na semana seguinte
à proibição. Contra a censura se alegava que a medida era insólita, sem precedentes no Uruguai, contrariando a
tradição política de um país que sempre respeitara a liberdade de expressão. Destacava-se a qualidade da obra,
premiada e aclamada pela crítica e pelo público internacional, agora inacessível a muitos uruguaios75. Por fim, se
indagava, de forma muito direta, a verdadeira razão da proibição:

“Me queda alguna acerca de quales son los episódios determinantes de la prohibición. Serán realmente las escenas
relativas a los actos de acción directa o, más probablemente, las imágenes de las torturas que evocan procedimientos
similares de nuestros gloriosos torturadores? Más bien pienso que el gobierno prohibe la película por lo que significa
como exaltación de la solidariedad de um pueblo, de su espírito de lucha y de la fe inquebrantable de su liberación,
todo lo cual promovió la identificación de los espectadores en cada una de las exhibiciones efectuadas”.76

Somava-se a essa ferina indagação (acrescida da denúncia da vigência de tortura no país), uma informação,
que introduzia as notas de protesto, publicadas pelo jornal, face à informação de que gente da marinha, do
exército e da aviação havia assistido ao filme em uma sessão exclusiva e matinal, no sábado seguinte à proibição
da obra. É possível que tal sessão já tivesse a finalidade didática que anos depois se comprovou ter sido usual na
formação de agentes para o combate à subversão, aspecto que retomaremos adiante.
Algumas manifestações de repúdio à censura estatal ao filme, contudo, não se limitaram apenas às autoridades
responsáveis pela proibição: o cineasta Mario Handler, por exemplo, aproveitou a deixa para protestar contra
a “apatia” e a debilidade generalizadas do meio cinematográfico, procurando valorizar a nova geração, mais
combativa e engajada que a anterior, ainda que dentre os cineastas ditos “antigos”, alguns fossem militantes do
Partido Comunista, caso de Ferruccio Musitelli, que também assinava uma nota de repúdio à proibição do filme
nessa mesma reportagem. Segundo Handler, era preciso partir para a ação, o que incluía disposição para fazer
filmes realmente combativos:

“Nuestros puntos más débiles son los cineclubistas de Montevideo, los críticos de diários y una gran parte de los

realizadores. Creo que a los primeros hay que abandonarlos, pues es peder el tiempo luchar contra ellos, y no son

72 Sobre la prohibición de La Batalla de Argelia”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, p. 21.
73 “La UdelaR a la opinión pública”. Marcha núm. 1419, 04 de octubre de 1968, p. 17-18.
74 Rodolfo Tálice (diretor do ICUR – Instituto de Cinematografia de la Universidad de la República), os cineastas
Ferruccio Musitelli e Mário Handler, a atriz Lilian Olhagaray, o catedrático da Universidade de la República Prof. Pablo
Carlevaro, além do presidente da Câmara dos Deputados Luis Riñón Perret se manifestam no jornal. “Sobre la prohibición
de La Batalla de Argelia”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, p. 21.
75 São publicadas cartas da Federación Uruguaya de Teatros Independeintes, da Asociación de Críticos Cinemato-
gráficos del Uruguay, do Servicio Católico del Espectáculo. Marcha núm, 1431, 27 de diciembre de 1968, p. 3.
76 Nota de Pablo Carlevaro, “Titular de la cátedra de biofísica de la Facultad de Medicina”. “Sobre la prohibición de
La Batalla de Argelia”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, p. 21.
79
rescatables; los segundo tienen um porcentaje rescatable: a la reación a los golpes algunos responderán, pocos; en
cuanto a los realizadores, tenemos que incorporar gente nueva. Somos pocos, pero alcança com unos pocos más,
suficientemente creativos”77.

Vemos, portanto, que nesse episódio também esteve em pauta, além da reação às medidas autoritárias, certa
disputa por espaço no meio cinematográfico, que ecoava e compunha o debate político (e algo “geracional”)
entre a velha e a nova esquerda uruguaia (TRISTÁN, 2006). Em consonância com esse clamor pela renovação
do campo cinematográfico explícito no depoimento de Handler (campo esse onde, segundo ele, só caberiam os
“fortes”, ainda que “poucos”, em termos de número, mas verdadeiramente dispostos à luta), a capa da edição na
qual foi publicada essa crítica, no último número do ano de 1968, trazia, sintomaticamente, a seguinte chamada,
em letras garrafais: “1969: Resistir y Adelante”.
Segundo o crítico Manuel Martínez Carril, após toda essa grita no final de 1968, o filme voltou a ser exibido
no ano seguinte, 1969 (mesmo ano em que Marcha estimula a criação da Cinemateca del Tercer Mundo, reunindo
e exibindo de forma independente filmes politicamente engajados) e só foi proibido novamente em 1973, assim
permanecendo até o fim da ditadura78. As razões para que o governo voltasse atrás permanecem não desvendadas,
mas acreditamos que a repercussão tão negativa, nos órgãos de imprensa, dessa medida de censura a uma obra
estrangeira exerceu pressão considerável.
Finalizando, cabe destacar, em primeiro lugar, que os aspectos do filme ressaltados e valorizados pela crítica
uruguaia (em um jornal combativo como Marcha) nos permitem constatar que havia uma cobrança por maior
sofisticação estética e ideológica das obras engajadas, não se mostrando complacente com o discurso maniqueísta,
ainda que a “causa” defendida por este fosse nobre – a exemplo da temática das lutas anti-imperialistas, tão
cara a esse periódico. Em segundo lugar, acreditamos que esse episódio e outros que se sucederam no meio
cultural, até a ocorrência do golpe, em 1973, demonstraram uma inegável disposição dos uruguaios à resistência
à ditadura e à defesa da democracia. Tal disposição se comprova também na insistência dos cinéfilos e cineastas
em manterem-se fiéis ao cinema dito “insurgente”, bem como na perseverança da equipe de Marcha em manter
o jornal como tribuna e base para a oposição. Poderíamos lembrar, ainda, o engajamento de muitos (inclusive
dos militantes favoráveis à luta armada) na formação de uma frente partidária ampla para deter a ditadura, em
1971, apostando na via democrática para deter o já previsível golpe. Tais ações, a nosso ver, não evitaram a
repressão, mas influenciaram na definição dos moldes do regime civil-militar que precisou construir um discurso
que justificasse a violência, apostando na “teoria dos dois demônios”, não muito distante de algumas leituras, à
época, de A Batalha de Argel.

77 “Sobre la prohibición de La Batalla de Argelia”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, p. 21.
78 Mariana Abreu cita Manuel Martínez Carril, mencionando que o filme voltou em 1969, ao circuito, sem maiores
explicações, sendo proibido novamente entre 1973 e dezembro de 1984. ABREU, Mariana. “Argel y otras batallas”, s/d.
Disponivel em: http://zur.org.uy/content/argel-y-otras-batallas Acesso em 10 de julho de 2017.
80
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TRISTÁN, Eduardo. A la vuelta de la esquina. La izquierda revolucionaria uruguaya. 1955 – 1973. Montevideo:
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81
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latinoamericano en la encrucijada de la historia.Buenos Aires: Ed. Altamira, 2009.

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Golpe de Vista: Cinema e ditadura militar na América do Sul. São Paulo: Ed. Alameda, 2016, pp. 163-182.

___________. O semanário Marcha, Carlos Quijano e a configuração de um circuito cultural de resistência no


Uruguai (anos 1960-70). Hydra - Revista Discente de História da Unifesp, v. 1, núm. 3, 2017, pp. 1-16.

Ficha Técnica

La Battaglia di Algeri (Gillo Potecorvo, Itália/Argélia ,1965). P&B. Drama. Duração: 117’. Estúdios: Igor Film
e Casbah Film. Distribuição: Lumière. Roteiro: Franco Salinas e Gillo Pontecorvo. Produção: Antonio Musu e
Saadi Yacef. Música: Ennio Morricone e Gillo Pontecorvo. Fotografia: Marcello Gatti. Desenho de Produção:
Sergio Canevari. Figurino: Giovanni Axerio. Edição: Mario Morra e Mario Seandrei.

Mariana Villaça - Professora de história da América na Universidade Federal de São Paulo, onde coor-
dena o Laboratório de Pesquisas em História das Américas (LAPHA). Integra os grupos CNPq “Cinema latino-
-americano” e “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação”. É autora, entre outros livros,
de Cinema Cubano: Revolução e política cultural (Ed. Alameda) e Polifonia tropical (Ed. Humanitas). Pesquisa
atualmente a política cultural e o cinema uruguaios nos anos 1960 e 1970.

82
8. Joana d’Arc: a verdade não está nos autos

Bruno Konder Comparato

Elle n’en fonde pas moins sur l’échafaud le droit de la conscience,


l’autorité de la voix intérieure (MICHELET, 1974, p. 38)

“Joana d’Arc morreu em 30 de maio de 1431. Não teve sepultura e não temos nenhum retrato dela. Mas temos
algo melhor que um retrato: suas palavras perante os juízes de Rouen.” Com essas palavras na tela, inicia-se o
filme O Processo de Joana d’Arc, de Robert Bresson, lançado em 1962. O que o espectador passa então a assistir
é a distância entre as frases inspiradas com que Joana d’Arc responde aos seus juízes e a frieza das perguntas dos
seus interrogadores. O argumento deste texto é que o filme de Bresson sobre o martírio de Joana d’Arc permite
refletir sobre a impossibilidade de descrever os fatos da vida por meio do vocabulário jurídico dos tribunais, e
em última instância, de descrever a verdade por meio de palavras. A cada um a sua verdade, portanto, pois esta
depende da crença que cada um de nós atribui a determinados acontecimentos como constituindo a verdade.
Esta reflexão se inscreve no contexto das reavaliações sobre as ditaduras latino-americanas, nas quais os limites
impostos pelas contingências jurídicas à expressão da verdade nas comissões da verdade fazem com que esta seja
melhor expressa em filmes ou romances do que pela transcrição dos depoimentos recolhidos junto às vítimas e
aos seus algozes.
A própria história de Joana d’Arc ilustra o argumento, pois mesmo após cinco séculos e uma quantidade
considerável de trabalhos escritos sobre ela, ainda há muita incerteza sobre os fatos concretos da existência des-
ta jovem francesa que se tornou um símbolo de heroísmo e da resistência contra os invasores estrangeiros. Os
fatos que conhecemos sobre a vida de Joana d’Arc foram deformados pela lenda hagiográfica, apropriados pela
propaganda monárquica, reinterpretados posteriormente pelo patriotismo republicano, e capturados pela Igreja
Católica de forma tão sistemática que acabaram por adquirir um status de verdade histórica (MINOIS, 2010, p.
432) Joana d’Arc era analfabeta e, não sabendo nem ler nem escrever, não deixou nenhuma carta por meio da qual
pudéssemos conhecer o seu pensamento, mas temos algo melhor: a transcrição minuciosa dos interrogatórios a
que foi submetida.

As visões de Joana d’Arc

Para o historiador Joseph Calmette, Joana d’Arc constitui uma personagem extraordinária da história fran-
cesa, pois “foi a heroína que, falando em nome do Céu, projetou, sobre uma situação obscura e desesperada, a
luz da verdade salvadora, e, estendendo à França caída no grau mais baixo uma mão salvadora e forte, a ajudou a
subir a ladeira do abismo”. O papel da virgem de Orléans é ainda mais extraordinário que o de Saint Louis, como
era conhecido o rei Luís IX, cuja política toda, externa ou interna, foi ditada unicamente pela consciência cristã.

83
Com ela, o misticismo se torna a mola principal da história. Uma atmosfera de confusão, de equívocos e de misteriosos
enigmas mantém as consciências em suspense. Subitamente a luz brilha nas tenebras e dissipa as sombras. Duvida-se
da legitimidade de Carlos VII; o próprio Carlos VII duvida do seu nascimento: Joana faz com que as dúvidas parali-
santes se esvaneçam, pois ela garante, em nome dos santos e das santas que a enviam, a filiação e o direito do “gentil
delfim”; ela condena em nome do “Rei do Céu” a dominação inglesa sobre a França que se esconde atrás de uma
justificativa falsa; ela anuncia que os intrusos serão expulsos e eles de fato o são, quando tudo levava a prever humana-
mente a sua vitória final inelutável. Os seus contemporâneos, contendo o fôlego, acreditam estar diante de um milagre;
eles veem o sobrenatural em ação a dirigir repentina e abertamente diante dos seus olhos admirados os assuntos deste
mundo” (CALMETTE, 1950, p. 5-6).

Para poder avaliar adequadamente o significado dos episódios da história de Joana d’Arc, é preciso conhe-
cer o contexto no qual se deram os fatos da sua vida curta, mas aventurosa. Vida esta que só é compreensível no
contexto conturbado da França dos séculos XIV e XV. O pano de fundo é a série de conflitos que passaram para a
posteridade como a Guerra de Cem Anos. “Ao longo da Idade Média, um só, dentre os vizinhos da França, amea-
çou a sua existência e quase a conquistou: a Inglaterra. A mais longa das guerras medievais foi uma guerra entre
a França e a Inglaterra. Ela ficou conhecida como a Guerra de Cem Anos.” (CALMETTE, 1950, p. 10)
As desavenças começaram como um conflito dinástico em 1328 quando o rei Carlos IV o Belo morreu
sem descendentes homens, o que foi o estopim de uma guerra entre duas facções pela sucessão. Ao surgirem os
primeiros sintomas da loucura do rei da França Carlos VI, iniciou-se uma guerra civil entre os Armagnacs e os
Bourguignons em 1411. O futuro carrasco de Joana d’Arc, Pierre Cauchon, era uma autoridade universitária tor-
nada bispo alguns anos antes e, como todos os poderosos da universidade de Paris à época, optou pelo lado dos
Bourguignons e dos ingleses. Quando os líderes de ambos os lados, o duque de Orléans e João Sem Medo, foram
assassinados, o rei da Inglaterra Henrique V decidiu invadir o reino já dividido de Carlos VI. Em 1420, o tratado
de Troyes deserdou o delfim e futuro rei Carlos VII e designou como herdeiro de Carlos VI o rei da Inglaterra.
Com a morte de ambos em 1422, a coroa francesa foi atribuída ao jovem inglês Henrique VI, mas continuava a
ser reivindicada por Carlos VII. Ao invés de resolver os problemas, o tratado exacerbou o conflito que deixou de
ser uma guerra civil para se tornar uma guerra entre duas nações vizinhas.
Em 1429, a irrupção da jovem Joana d’Arc neste cenário mudou o curso da história. Ao liderar os soldados
franceses, ela derrotou as forças de Henrique VI, libertou a cidade de Orléans e levou o rei Carlos VII para ser
sagrado em Reims. Em 1430 Joana foi traída e feita prisioneira pelos ingleses em Compiègne. Julgada por crime
contra a fé, ela foi interrogada entre janeiro e maio de 1431 em Rouen. Após ser condenada por heresia, foi quei-
mada viva a 30 de maio de 1431. Segundo relatos, na mesma noite do crime o carrasco foi se confessar temendo
ir para o inferno, convencido que estava de ter queimado uma mulher santa (Pernoud, 1995, p. 13). Vinte e cinco
anos depois, o rei Carlos VII reabilitou Joana d’Arc com apoio do papa Calixto III. Iniciou-se, a partir deste
momento, a lenda da heroína de Orléans que passou a inspirar artistas, oradores, poetas, historiadores, cineastas.
Joana d’Arc foi imortalizada desde então em muitas obras da literatura, principalmente para o teatro. O escri-
tor católico Charles Péguy fez dela a figura central da sua obra, na qual ela representa a alma camponesa e piedosa
da França (Mystère de la Charité de Jeanne d’Arc). Dentre as mais conhecidas, podemos mencionar as peças
escritas por Shakespeare (Henry VI, 1596), Voltaire (La Pucelle d’Orléans), Schiller (Die Jungfrau von Orléans,
1801), George Bernard Shaw (Saint Joan, 1923), Jean Anouilh (L’Alouette, 1952) e Bertolt Brecht (Santa Joana
dos abatedouros, 1929).
Joana d’Arc também inspirou quase uma centena de filmes para o cinema ou a televisão, dentre os quais
se destacam Domrémy (1899), um curta metragem dos irmãos Lumière; Jeanne d’Arc (1899), também curta
metragem de Georges Méliès; Joan the Woman (1916), de Cecil B. De Mille, concebido como propaganda para
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convencer os americanos a apoiar a entrada do seu país na Grande Guerra ao lado dos aliados, todos ainda na
era do cinema mudo. Foram realizados também Joan of Arc (1948), de Victor Fleming, com Ingrid Bergman;
Giovanna d’Arco al rogo (1954), de Roberto Rossellini, também com Ingrid Bergman; Saint Joan (1957), de
Otto Preminger, com Jean Seberg, baseado na peça de teatro de George Bernard Shaw; e Procès de Jeanne d’Arc
(1962), de Robert Bresson, que inspirou este texto por colocar na boca de Florence Delay, a atriz que interpretou
Joana d’Arc, os diálogos transcritos no autos do processo de 1431. Contabilizam-se ainda 24 óperas, oratórios e
musicais inspirados na história de Joana d’Arc, dentre as quais se destacam Giovanna d’Arco (1845), de Verdi,
Jeanne d’Arc (1873–1877), de Gounod, e The Maid of Orleans (1878), de Tchaikovsky.
Que personagem é essa que inspirou tantos artistas? De acordo com Jules Michelet, o historiador da França
profunda, trata-se de:

Uma menina de doze anos, jovenzinha, portanto, que confunde a voz do seu coração com a voz do céu, concebe a ideia
estranha, improvável, absurda até, de executar o que os homens não souberam fazer: salvar o seu país. Ela acalenta
essa ideia por seis anos sem dizer nada a ninguém, nem mesmo a sua mãe ou a seu confessor. Sem nenhum apoio do
padre ou de parentes, ela caminha durante todo esse tempo sozinha junto com Deus na solidão do seu grande destino.
Ela espera ter dezoito anos quando, determinada, executa esse destino contra tudo e contra todos. Atravessa a França
destruída e abandonada à própria sorte, as estradas infestadas de bandidos; se impõe à corte de Carlos VII, se atira
à guerra; e em campos que ela nunca viu, trava combates sem que nada a intimide; ela se joga intrépida em meio às
espadas; sempre ferida, nunca desanimada, encoraja soldados experientes, arrasta todo um povo que se faz soldado
junto com ela, e ninguém ousa mais ter medo de nada. Tudo está salvo. A pobre menina, de carne pura e santa, com
seu corpo delicado e jovem, embotou o ferro, rompeu a espada inimiga, cobriu com seu seio o seio da França (MI-
CHELET, 1974, p. 38).

Para os que acham a história por demais fantasiosa, Michelet lembra que não era raro, naquela época, ver
mulheres pegarem em armas. Elas combatiam com frequência nos cercos de cidades. Este autor também sustenta
que a originalidade da história de Joana d’Arc não está nas suas visões, pois no século XV o excesso de sofrimen-
tos exaltava os espíritos, e muitos foram os que afirmavam conversar diretamente com Deus. É preciso levar em
conta a mentalidade mística, individual ou coletiva, daqueles tempos.

O processo de Joana d’Arc, do qual dispomos de todas as peças, nos esclarece sobre a convicção íntima da acusada.
Ele nos permite penetrar nas profundezas da sua consciência, conhecer seus pensamentos secretos; podemos dizer
mais ainda: escutar as vozes como ela as escutou. Estes documentos irrecusáveis, aos quais se acrescentam textos
narrativos ou diplomáticos, nos permitem perceber o ambiente místico e religioso dos seus contemporâneos. Para eles
só havia nesse drama duas hipóteses possíveis: inspiração celeste ou inspiração diabólica. Qualquer outra explicação
não era concebível nem foi concebida. Nem um homem, nem uma mulher daquele tempo podia enxergar as coisas sob
um outro ângulo (CALMETTE, 1950, p. 8-9).

O fundamental da história de Joana d’Arc está, portanto, no seu processo.

Os interrogatórios

Desde a sua aparição na cena pública no teatro de operações da Guerra de Cem Anos, Joana d’Arc foi sub-
metida a interrogatórios. Ao se apresentar na corte do rei Carlos VII, na cidade de Chinon, a 6 de março de 1429,
como enviada de Deus com missão de libertar Orléans, coroar o rei e expulsar os ingleses da França, uma das

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primeiras providências da corte foi encontrar meios de descobrir se era seguro confiar naquela jovem de origem
simples da qual ninguém tinha ouvido falar. Ela se dizia enviada de Deus e vestia roupas masculinas. “Não seria
ela um destes falsos profetas de que falam todos os predicadores: o Anticristo nascerá do diabo em tempos de
guerra, e quando a luxúria e o orgulho seduzirem todos os jovens, homens e mulheres, a se disfarçarem com suas
roupas?” indagava um contemporâneo que assinava como “um burguês de Paris” (THIELLAY, 1963, p. 177).
Assim, o período da vida de Joana d’Arc que conhecemos, por ter sido documentado e contado por seus contem-
porâneos poderia ser resumido como um longo teste no qual foi colocada à prova a verdade de sua convicção de
que ela se comunicava diretamente com os céus. Esse teste começou com o exame da sua virgindade, pois, uma
vez que as bruxas fornicavam com o demônio, e que este não poderia fazer pacto com uma virgem, era preciso
se assegurar que ela era de fato virgem. Foram designadas duas comissões de inquérito para esta finalidade que
comprovaram que ela era, de fato, virgem.
Joana d’Arc não hesitava em afirmar aos eclesiásticos encarregados pelo rei Carlos VII de interrogá-la na
cidade de Poitiers, antes do cerco de Orléans, a sua capacidade de comunicar diretamente com o céu e com as
suas visões, o que eles jamais poderiam compreender: “Mestres, há mais nos livros do Nosso Senhor do que nos
vossos. O Senhor Deus tem um livro no qual nenhum bispo jamais leu” (CALMETTE, 1950, p. 54).
O processo de Joana d’Arc é um combate em torno da verdade. Os juízes insistem para que ela jure dizer a
verdade. Ao que ela responde que a verdade dela é a verdade de Deus, que não corresponde com a verdade deles.
Os seus algozes estão decididos de antemão a condená-la por ela acreditar em outra verdade que não a deles. O
processo tem por única razão de ser justificar e legitimar a sua condenação e execução como herege. Após a sua
captura pelos ingleses, ela foi submetida a 6 interrogatórios públicos e 9 secretos.
No dia seguinte à sua captura diante da cidade de Compiègne, a 24 de maio de 1430, os doutores da universi-
dade de Paris solicitaram o comparecimento ao Tribunal da Inquisição de Joana d’Arc, “veementemente suspeita
de vários crimes cheirando à heresia” (DUBY, 1973, p. 20). O mecanismo estava pronto e funcionava desde
havia dois séculos: o Tribunal da Inquisição era atrelado ao poder episcopal em cada diocese com o objetivo
de desmascarar e confundir por todos os meios possíveis aqueles que se desviavam da crença e da disciplina da
Igreja. Qualquer contestação, ato de indisciplina, ou aparente não conformismo era interpretado como indício de
cumplicidade com o demônio (DUBY, 1973, p. 19). O processo de Joana d’Arc se desenrolou de 21 de fevereiro
a 30 de maio de 1431, na capela real do castelo de Rouen, sob o comando do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon,
assistido de 43 eclesiásticos. Frente a todo esse aparato de poder destinado a intimidá-la, Joana d’Arc manteve
uma postura firme e desafiadora. “São Miguel falava francês?, perguntou este doutor, com um forte sotaque do
Limousin. – Melhor que o seu, respondeu ela” (TREMOLET de VILLERS, 2016, p. 13).
O primeiro teste a que Joana d’Arc foi submetida, no seu interrogatório, foi o do juramento. Tratava-se
de uma rotina no Tribunal da Inquisição, com o objetivo de detectar os heréticos que se recusavam a jurar. Joa-
na d’Arc jura dizer a verdade, mas se reserva um jardim secreto, pois não se considera autorizada a revelar a
integralidade das suas visões e das vozes que ouvia. Trata-se de uma armadilha na qual ela cai, pois os juízes
pretendem condená-la justamente por ela se recusar a se enquadrar nas regras da Igreja. O que ela se obstina em
dissimular não seria justamente a parte maldita da sua consciência?
Como podemos perceber a partir dos diálogos do filme de Robert Bresson, reconstituídos a partir dos relató-
rios diários elaborados durante o julgamento e de trechos das falas traduzidos do processo e transcritos em outros
documentos, Joana d’Arc manteve-se firme e altiva diante dos questionamentos do juiz:

Bispo: Jure dizer a verdade.


Joana: Juro

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Bispo: Dito isto, nós, bispo, proibimos Joana de sair da prisão que lhe foi designada no castelo de Ruão.
Joana: Não aceito essa proibição.
Bispo: Você já tentou escapar antes, e várias vezes.
Joana: Como é direito de todo prisioneiro.
Joana: E se me pedir que diga alguma coisa que jurei não dizer, seria perjúrio, o que o senhor não poderia desejar.
Bispo: Deve dizer a verdade a seu juiz.
Joana: Tenha cuidado, ao se intitular meu juiz. Assume uma grande responsabilidade.
Bispo: Exigimos que preste juramento.
Joana: É preciso jurar duas vezes no tribunal?
Bispo: Quer fazer o favor de jurar pura e simplesmente?
Joana: Pode muito bem dispensar o juramento.
Bispo: Exigimos que jure dizer a verdade.
Joana: Direi a verdade, mas não direi tudo.
Bispo: Torna-se suspeita não querendo jurar dizer a verdade.
Joana: Não me fale mais nisso.
Bispo: Exigimos que jure clara e simplesmente.
Joana: Direi o que sei, mas nem tudo. Vim da parte de Deus e não tenho o que fazer aqui, e peço que me reenviem a Deus,
de quem vim.

Podemos considerar que, ao longo de todo o processo, trava-se uma disputa entre duas autoridades. De um
lado há a autoridade do Tribunal da Inquisição, personificada na figura do bispo Pierre Cauchon, e alinhada à
posição da Universidade de Paris identificada aos interesses ingleses que controlavam a parte norte do território
francês. Autoridade esta que era desafiada por Carlos VII que, graças aos feitos e à fama de Joana d’Arc, havia
recuperado a coroa e sido sagrado rei na cidade de Reims. O julgamento de Joana d’Arc se transformou num
julgamento político. Ao provar que se tratava de uma impostora, os seus adversários atacavam a legitimidade de
Carlos VII e abriam caminho para afastá-lo definitivamente do poder. Do outro lado há a autoridade pessoal de
Joana d’Arc, apoiada na sua consciência interior e na sua fé nas revelações que recebeu de Deus por meio das
visões. Ao insistir na preservação de uma esfera íntima dentro da qual os inquisidores não conseguem penetrar,
“direi a verdade, mas não direi tudo”, ela afirma a sua individualidade diante do poder avassalador dos que, no
seu ponto de vista, oprimem a França. Se de um lado há os bispos e os juízes da Inquisição, convencidos que
defendem os interesses da Igreja, do outro lado há Deus, São Miguel e os demais anjos, que ela interpreta como
defensores da verdadeira religião. Os primeiros se expressam com o vocabulário do direito e das leis, próprio
dos tribunais, enquanto que os segundos se expressam por meio de revelações, vozes, visões, e a linguagem dos
anjos, que só são compreensíveis para quem às souber interpretar. Os juízes e inquisidores exigem provas. Para
Joana d’Arc, basta a sua fé:
Bispo: Que prova nos dá de que recebeu essas revelações de Deus?
Joana: Creia-me se quiser. (...)
Jean Beaupère: Sempre fez o que as vozes mandavam?
Joana: Com todas as minhas forças, cumpri a ordem de Deus ditada pelas vozes, de acordo com minha compreensão.
Jean Lemaître: E contra a ordem e a vontade das vozes, nunca fez nada?
Joana: Sim, o salto da torre, em Beaurevoir. Mas quando elas me viram em perigo, salvaram-me a vida e impediram que eu
me matasse. Sempre me socorreram quando precisei. Sinal de que são bons espíritos.
Jean Lemaître: Tem outros sinais de que sejam bons espíritos?
Joana: São Miguel me assegurou disso antes que as vozes viessem.
Bispo: Em que trajes lhe apareceu São Miguel?
Joana: De suas roupas, nada sei.
Jean Lemaître: Estava nu?
Joana: Pensa que Deus não tem com que vesti-lo?
Jean Lemaître: Ele tinha cabelos?

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Joana: Por que os teria cortado?
Bispo: Como sabe que era São Miguel?
Joana: Por seu modo de falar, e por sua linguagem de anjo.
Bispo: Como sabe que era linguagem de anjo?
Joana: Acreditei logo. Tive vontade de acreditar.
Jean Lemaître: Se o demônio tomasse a forma de um anjo, como saberia se é um bom ou um mau anjo?
Joana: Na primeira vez, duvidei se era São Miguel.
Jean Lemaître: O que a fez reconhecê-lo nas outras vezes em que acreditou que era ele, depois da primeira?
Joana: Na primeira vez, eu era criança. Depois, ele me ensinou muitas coisas.
Jean Lemaître: O que lhe ensinou?
Joana: Uma boa parte do que ele me ensinou está nesse livro. (Indica o registro do notário)

Outra revelação surpreendente do depoimento de Joana d’Arc, tal qual se pode depreender do diálogo trans-
crito acima, é que a sua fé não anula o seu livre arbítrio, sintetizado na fórmula extraordinária “tive vontade de
acreditar”. Está em jogo aqui uma fé pessoal, que não se submete à autoridade de bispos, aos julgamentos, ao
Tribunal da Inquisição ou à própria Igreja enquanto instituição de poder.
A sua fé é tão grande que Joana d’Arc mantém as suas convicções, mesmo quando o inquisidor ameaça re-
correr à tortura:
Pierre Cauchon: Joana, eu lhe aviso e insisto que tem que dizer a verdade. Há no seu processo pontos numerosos e diversos
sobre os quais se recusou a responder ou respondeu de maneira mentirosa. Temos sobre isso informações seguras,
provas e presunções convincentes. Vamos ler e expor vários desses pontos. Se sobre essas questões não confessar
a verdade, será submetida à tortura. Veja os instrumentos de tortura que estão aqui já preparados. Bem à sua frente,
os carrascos só aguardam a nossa ordem e estão prontos para fazer o seu trabalho. Vamos torturá-la para trazê-la
de volta no caminho da verdade que desconhecia e para lhe assegurar assim a dupla salvação da sua alma e do seu
corpo, que foram expostos a graves perigos por suas invenções mentirosas.
Joana: Mesmo que me esquarteje e me arranque a alma do corpo, não mudarei o que disse. E se eu dissesse outra coisa,
depois diria sempre que o senhor forçou-me a dizê-la.

O interrogatório se baseia em fatos, no esclarecimento dos fatos, e não consegue atingir a consciência do
interrogado. Há um limite claro e perigoso de ser ultrapassado aí, pois o que atinge diretamente a intimidade e a
consciência dos interrogados é a tortura. Justamente por esta razão é que a tortura faz com que o torturado perca
sua crença na humanidade e na sua razão de ser no mundo do qual ele, de certa forma, deixa de fazer parte. Os
defensores da tortura como método de investigação, mesmo que usualmente condenem a consequência inevitável
do sofrimento que esta impõe às vítimas, afirmam tratar-se de uma forma eficiente de obter informações. O pro-
blema desta argumentação, contudo, é que a tentação é grande de passar da obtenção de informações para a con-
firmação de uma convicção dos interrogadores. Neste caso, como destaca Pierre Vidal-Naquet, que escreve sob o
impacto da descoberta pela sociedade francesa do uso da tortura em larga escala na guerra da Argélia, terminada
em 1962, o mesmo ano no qual Robert Bresson lançou o filme O processo de Joana d’Arc, a tortura se transfor-
ma num instrumento de poder, pois “o torturador reconhece na sua vítima um homem que ele pretende obrigar a
falar, mas a palavra da vítima deve ser apenas o que espera o carrasco. Este só pede à vítima que fale apenas para
lhe confiscar esta palavra. Nestas condições, a informação (...) é apenas um aspecto da política da tortura. (...)
Pela sua “confissão”, a vítima faz mais do que entregar uma “informação”, ela reconhece o seu carrasco como
mestre e dono da sua fala, isto é, da sua humanidade” (VIDAL-NAQUET, 1972, p. 12-13).
Se a questão principal era se livrar de uma rebelde incômoda e desafiadora, e se os seus julgadores estavam
prontos a empregar a tortura para obter dela uma confirmação das suas teses, o leitor pode muito bem estar a se
perguntar o porquê Joana d’Arc não foi simplesmente executada após um rápido simulacro de julgamento, e por-
que foram necessários quinze interrogatórios que mobilizaram uma centena de assessores cujas despesas tiveram
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que ser pagas pelo tesouro real (DUBY, 1973, p 25). Acontece que na Idade Média, até a tortura tinha os seus
limites e as suas regras, baseadas da lei da prova do direito romano, constituída a partir de três regras fundamen-
tais. Em primeiro lugar, uma corte só podia declarar culpado e condenar um acusado com base no depoimento
de ao menos duas testemunhas oculares do crime. Em segundo lugar, na ausência de duas testemunhas oculares
do crime, o acusado só podia ser condenado com base na sua própria confissão. Em terceiro lugar, evidências
circunstanciais não eram suficientes para levar a formação da culpa e consequente condenação do acusado. O
interrogatório sob tortura era permitido apenas quando da existência de meia prova contra o suspeito, que podia
consistir na existência de apenas uma testemunha ocular ou de evidências circunstanciais razoavelmente graves,
de acordo com critérios estabelecidos pelos juízes. Uma confissão obtida sob tortura não era admissível como
prova suficiente para condenar um suspeito, a não ser que já houvesse elementos de sobra para constituir meia
prova e se o interrogatório sob tortura permitisse elucidar detalhes do crime que só pudessem ser conhecidos
pelo seu autor (LANGBEIN, 2006). Daí a insistência dos algozes de Joana d’Arc em saber o que eram as vozes
que ela dizia ouvir e em conhecer os detalhes das suas visões. Mas Joana d’Arc se manteve firme e se recusou
firmemente a deixar que os juízes penetrassem na esfera da sua alma e da sua intimidade, o que poderia abalar a
sua verdade interior.

O estabelecimento da verdade

Trata-se, portanto, de fazer uma reflexão sobre o conceito de verdade, seu sentido e até a sua possibilidade.
Popularizou-se, nas últimas três décadas, o discurso em defesa do direito à verdade e à memória, situado no âm-
bito mais amplo do debate sobre a justiça de transição. Segundo a definição proposta por John Elster, a justiça de
transição “é constituída dos processos de julgamento, purgamento e reparação que se realizam após a transição de
um regime político para outro” (Elster, 2004: 1). Em contextos de transição de regimes autoritários para democra-
cias, estabelece-se uma disputa acirrada sobre o direito de narrar o que se passou. Se de um lado tem-se a narrativa
e o discurso oficial dos que deixaram o poder, mas nem por isso aceitam abandonar facilmente a sua interpretação
sobre os acontecimentos, do outro lado há o estabelecimento de uma nova explicação para os fatos que passa
a constituir a nova “verdade oficial”. Naturalmente, este processo não é simples e pode resultar num processo
polêmico e bastante doloroso que tem passado pela constituição de comissões da verdade encarregadas de dizer
claramente o que aconteceu. Sem esta etapa fundamental, a consolidação da democracia estará permanentemente
hipotecada, uma vez que as gerações futuras terão dificuldades em interpretar o passado e terão grandes chances
de incorrer nos mesmos erros que seus predecessores. “Reconstituir a verdade, e isto vale também para a revisão
das leis de anistia, consiste num diálogo entre várias gerações, entre as que viram os crimes acontecerem, que
puderam adivinhar as suas razões, os mecanismos, seu funcionamento, e as que, tendo nascido depois, não têm
como se lembrar” (COMPARATO, 2011, p. 18).
A expressão “Comissão da Verdade” é sugestiva, pois pressupõe que seja possível definir uma verdade única
que venha a se contrapor à verdade dos vencedores, das autoridades no poder, sejam elas os ditadores do passado
ou os democratas de hoje, que sempre estão sujeitos à tentação de estabelecer a verdade por decreto. É a “verdade
oficial”, aquela que é ensinada nas salas de aula e que está inscrita nos livros didáticos. É a verdade dos monu-
mentos oficiais, a que é constituída pelas leis e decisões judiciais e é reafirmada cotidianamente no diário oficial.
Quem a desafia corre o risco de ser processado pelo Estado. No tempo de Joana d’Arc aqueles que desafiavam a
verdade oficial eram acusados de heresia, hoje os que ousam questionar o discurso oficial são considerados como
agitadores e subversivos. Diante desta verdade totalizante, as comissões da verdade pretendem se constituir como
um processo de construção coletiva da verdade. O objetivo é alcançar uma segunda concepção de verdade, que se

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entende como uma verdade estabelecida coletivamente a partir de fatos, eventos, acontecimentos, e construída a
partir de vários pontos de vista. Aqui a verdade é o que se considera adequado e que pode ser alcançado a partir
de deliberações e acordos coletivos. Contudo, como adverte Allen Feldman, no seu estudo sobre a violência na
Irlanda do Norte, “o evento não é o que acontece, o evento é o que pode ser narrado” (FELDMAN, 1991, p. 14).
Assim, o estabelecimento da verdade não depende tanto dos fatos, mas de quem controla o discurso sobre os fatos
e tem a capacidade de influenciar a narrativa sobre os fatos.
O que a experiência de Joana d’Arc nos traz é uma terceira ideia de verdade, baseada na convicção pessoal,
que pertence à esfera do íntimo, da consciência. Uma verdade iniciática que só pode ser alcançada após um pro-
cesso de viagem interior. Nos relatos e obras literárias da Idade Média, segundo Jean Verdon,

“as viagens fazem parte da vida dos heróis, por ser sinônimo de aventuras e fama. Naquele contexto, deixar de viajar era o
mesmo que se recusar a assumir responsabilidades e desempenhar o papel esperado pela sociedade e, portanto, falhar no plano
moral. No limite, o caminho cheio de provações conduzia a Deus. Este é o sentido da busca do Santo Graal” (VERDON, 1998,
p. 21).

Este autor também explica que na Idade Média, viajar tinha um significado inteiramente diverso do atual, pois
era relacionado sobretudo com expedições militares e o cumprimento de obrigações religiosas. Os caminhos eram
difíceis e perigosos, viajar custava caro, e quando o trajeto percorrido era superior a 15 km, o viajante era obri-
gado a encontrar abrigo para passar a noite no meio da jornada, pois não havia possibilidade de voltar para casa
no mesmo dia. Os homens da Idade Média eram apegados aos seus vilarejos e às terras onde nasceram e viviam.
Os trabalhos, o lazer e a vida religiosa se circunscreviam numa área que não ultrapassava 5 km de distância em
média. Os que precisavam se deslocar para distâncias mais longas eram sobretudo soldados e padres. As florestas
dominavam ainda parte considerável dos territórios e tornavam os trajetos difíceis, incertos. Viajar era uma aven-
tura, pois os viajantes se perdiam com frequência e podiam ser atacados ao atravessar as florestas (VERDON,
1998, p. 9-14). Por mais que o périplo de Joana d’Arc nos impressione nos dias de hoje, ele só foi empreendido
para confirmar uma convicção adquirida numa viagem anterior, a experiência mística a que foi submetida pelas
vozes que a prepararam durante anos, ela e sua fé, pela qual adquiriu uma crença inabalável na verdade que lhe
foi desvendada pelo arcanjo São Miguel. Aqui a verdade é uma revelação e se aproxima do conceito de Alêtheia
dos gregos antigos, de acordo com o qual a verdade era concebida como o contrário do esquecimento. Trata-se,
portanto, de desvendar a verdade, tirar a venda que impede que a verdade seja vista e reconhecida como tal. Tudo
se passa como se a verdade existisse desde sempre, e só pudesse ser revelada aos iniciados, que merecem conhe-
cê-la.
Isto explica a força das convicções de Joana d’Arc nas suas visões, que a mantiveram firme mesmo diante das
mais terríveis provações e do seu último suplício, atitude esta que tanto impressionou os seus contemporâneos e
que mantém a sua memória viva até os dias de hoje pois, como lembra Michelet,

“a recompensa, ei-la. Traída, ultrajada por bárbaros, submetida à tentação por fariseus que tentam em vão
condená-la por suas palavras, ela resiste a tudo neste último combate, se supera acima das suas forças,
irrompe em palavras sublimes, que farão chorar eternamente... Abandonada por seu rei e por seu povo
que salvou, ela retorna pelo caminho cruel das chamas ao seio de Deus. Ela funda no cadafalso o direito
da consciência, a autoridade da voz interior. Nenhum ideal que o homem poderia ter jamais se aproximou
desta realidade. Não se trata aqui de um doutor, de um sábio escaldado pela vida, de um mártir convicto
das suas doutrinas, que por elas aceita a morte. Trata-se de uma moça, uma menina, cuja única força é o
coração” (MICHELET, 1974, p. 38).

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Referências bibliográficas

CALMETTE, Joseph. Jeanne d’Arc. Paris: Presses Universitaires de France, 1950 [1946].

COMPARATO, Bruno Konder. “O impacto dos processos de revisão das leis de anistia na qualidade da democra-
cia na América Latina.” In: O público e o privado, n. 18, Julho/Dezembro 2011, p. 15-30.

DUBY, Georges; Duby, Andrée. Les procès de Jeanne d’Arc. Paris: Gallimard, 1973.

DUROSELLE, Jean-Baptiste. Politique étrangère de la France – L’abîme – 1939-1944. Paris: Imprimerie Na-
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FELDMAN, Allen. Formations of Violence. Chicago: University of Chicago Press, 1991.

LANGBEIN, John H. Torture and the Law of Proof. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.

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MINOIS, Georges. La guerre de Cent Ans. Paris: Perrin, 2010.

PERNOUD, Régine. Réhabilitation de Jeanne d’Arc, reconquête de la France. Monaco: Éditions du Rocher,
1995.

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THIELLAY, Jean. Journal d’un bourgeois de Paris à la fin de la Guerre de Cent Ans, (1405-1449). Paris: Édi-
tions 10/18, 1963.

TREMOLET DE VILLERS, Jacques. Jeanne d’Arc, le procès de Rouen. Paris: Les Belles Lettres, 2016.

Jean Verdon. Voyager au Moyen Age. Paris : Perrin, 1998.

VIDAL-NAQUET, Pierre. La torture dans la République. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972.

Bruno Konder Comparato - Possui graduação em ciências sociais (FFLCH, 1998) e engenharia naval
(Poli, 1991), ambas na USP. Possui mestrado e doutorado em ciência política (2001 e 2006, ambos na USP).
Atualmente é professor no curso de ciências sociais da UNIFESP. Tem experiência na área de ciência política,
atuando principalmente nos seguintes temas: cidadania, direitos humanos, ouvidorias, segurança pública, polícia,
formas de controle do poder, movimentos sociais, movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST), demo-
91
cracia participativa e justiça de transição. É autor de um livro didático para o ensino de sociologia no ensino
médio.
9. Apontamentos sobre violência e audiovisual: Estudos de Sociologia e Cinema

Mauro L. Rovai

Prólogo

O objetivo desta apresentação é discutir o complexo jogo de espelhos que é instaurado pelo filme entre os
seguintes elementos: 1. Televisão e cotidiano, 2. Os programas televisivos e o próprio filme, 3. História de amor
e questão de gênero, 4. Crime de amor e crime hediondo. Em vista disso, não será possível neste texto explorar
a fundo cada um desses elementos na sua complexidade, mas, como apontamos, o jogo de espelhos por eles ins-
taurado no filme.
Sobre o uso da expressão jogo de espelhos, metáfora que serve como ponto de partida para a abordagem do
nosso problema, é importante mencionar que ela não deve ser entendida no registro, por exemplo, de Giacomo
Marramao (1994), que a utilizava para caracterizar a relação em que uma das partes assume a prerrogativa (o
que é próprio) do outro, mas no jogo de espelhos presente; por exemplo, em uma casa dos espelhos, como as que
existiam antigamente nos circos ou, para uma referência cinematográfica, como a da sequência no Magic mirror
maze que aparece no final de A dama de Shanghai. No filme de Welles, as imagens das personagens não eram
deformadas, mas multiplicadas pela disposição de espelhos, tomando toda a tela e reforçando a ideia de labirinto
(maze). Tal sequência, tomada como metáfora (uma vez que não temos espelhos e nem nos referimos à multi-
plicação de imagem de personagens específicas em Quem matou Eloá?), deve nos ajudar a explorar o aspecto
sociológico específico sobre o qual gostaríamos de nos debruçar neste texto, o da relação tecida na construção
do filme (a construção incluída), entre telespectadores, imprensa e poder público por meio de suas várias faces.
A hipótese central é que o título do filme, composto na sua forma interrogativa, embora o tempo todo dialogue
com a presença da morte e torne incerto quem foi o autor do crime, dirige a sua interrogação, na verdade, a qual
tipo de crime foi cometido. Em outros termos, como, partindo de um caso particular de amor, ciúme e morte, o
filme coloca em perspectiva a especificidade do crime e o seu caráter mais geral: um crime cometido contra a
mulher. As análises passarão rapidamente pela tripla abordagem sugerida pelo filme, a saber, a do acontecimento
(o sequestro e o assassinato), a da cobertura televisiva do acontecimento e a da presença de convidados e entre-
vistados, de modo a apontar como uma nova abordagem surge e persevera ao longo do filme, tornando-se decisiva
e dominante a partir dos 3 minutos finais.

O filme

Um ruído repetido que parece ser o de um motor acompanha as telas escuras nas quais despontam, além
dos patrocínios, o apoio cultural (da ECA) e a produção (Doctela). O ruído avança pela primeira sequência do
filme, um plano de céu aberto, azul com manchas plúmbeas, em que uma ave, logo a associaremos a um urubu,
sobrevoa um conjunto habitacional. O plano é móvel, aéreo e reproduz o ponto de vista de uma pessoa que olha
para o céu, o que sugere uma primeira acoplagem: a das aves com helicópteros. A associação é clichê, se pensa-
mos na metáfora que ela evoca, mas bastante eficaz, assim nos pareceu, como cartão de visitas, como para deixar
claro, desde o início, que se trata de um filme que lida com a morte e com os que se “alimentam” dela, ou ainda,
para sugerir uma atmosfera de mau agouro. Como veremos da abertura até as sequências do enterro, próximas
ao final, o par urubus-helicópteros acopla não apenas a presença da polícia e da imprensa (como telespectadores,

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aprendemos a identificar o helicóptero, chamado de “globocop”, como um veículo pilotado por militares e acom-
panhado por jornalistas de uma empresa de comunicação), mas também os (tel) espectadores, como se esses três
elementos compusessem três linhas de intensidade que, se em um primeiro momento, convergem para a ideia de
espetacularização da violência, ao final do filme escapam em outro sentido, não menos instigante, o de colocar a
ocorrência individualizada como o caso da menina Eloá sob uma perspectiva social mais ampla, a da violência
contra a mulher.
A qualidade desse acoplamento começa a ser construída e paulatinamente ajustada logo no início do filme,
com a inserção de trecho de um dos programas televisivos que cobre os eventos no qual acompanhamos o diálo-
go entre a apresentadora e Eloá, a menina sequestrada, durante o seu próprio sequestro. Veremos que o destaque
dado pelo filme não recai sobre a “imprensa” de modo geral, mas sobre a cobertura televisiva do evento por parte
de alguns programas de variedades, em particular o A tarde é sua, que é onde tem lugar a conversa telefônica –
como reforça os letreiros na base da tela: “Garota mantida refém fala ao vivo com Sonia Abrão!”.
A breve sequência nos permite supor não só a presença da polícia (ela ainda não apareceu até o momento),
mas também a existência de telespectadores, a audiência. Se é certo que no caso Eloá a cobertura da imprensa
foi posta em xeque, em Quem matou Eloá? O protagonismo parece ser o de programas como A tarde é sua (su-
cessor do A casa é sua) e Hoje em dia (exibidos no período da tarde e da manhã, respectivamente). Daí o aspecto
significativo que, na montagem, ganha a frase de um dos âncoras desses programas sobre o trabalho realizado:
“cobertura intensa, mas nunca sensacionalista”, caracterizada pela “Ética total”.
Uma série de cortes rápidos mostram planos de apresentadores de vários canais, sugerindo a escalada tem-
poral do sequestro e, em decorrência, o suspense em torno do desfecho vindouro. Entre esses blocos, planos do
céu aberto, agora com mais urubus. A associação entre tais aves, a cobertura televisiva, a polícia e telespectadores
encontra o seu plano no minuto 1 min 30 s, quando um parapeito repleto de pássaros (uma referência a Hitchco-
ck?), e, mais do que isso, às sequências de suspense do filme Os passáros, é seguido pela menção: “o brasileiro
não tirou os olhos da televisão”. Tal associação é arrematada mais adiante, ao final do filme, quando uma das
entrevistadas convidada pelo filme comenta acerca da presença de 40 mil pessoas no enterro da menina.
A presença da televisão, pois, é constante no filme, seja como dispositivo que ocupa espaço na casa das pes-
soas ou nos lugares que as pessoas frequentam (lanchonete, restaurante etc.), seja pela programação que veicula,
ocupando também o tempo das pessoas. A onipresença da tela na vida cotidiana mereceria atenção particular, o
que não será possível aqui, pois nos afastaria do filme. Mesmo assim, Quem matou Eloá? Permite-nos explorar
um pouco os programas de variedades ou aqueles que misturam notícia e entretenimento, pois a inserção das
sequências desses programas são recorrentes e fundamentais para que compreendamos as falas dos entrevistados
trazidos pela produção do filme para comentar o caso. Tais convidados falam acerca de vários temas - a atuação
da polícia, a relação polícia, TV e reféns, o papel mais geral da televisão, a violência contra a mulher etc, mas
o fazem, boa parte das vezes, a partir daqueles programas. O que nos coloca ante o primeiro jogo de espelhos.
Vejamos.
O modo como esses comentadores, convidados da produção do filme, são apresentados, lembremo-nos, uma
série de cortes em que várias pessoas de perfil, contra um fundo escuro, assistem a uma tela de televisão, traz
circunspecção à cena. Isso, no entanto, em grande medida, decorre do jogo que esses planos estabelecem com
a programação televisiva às quais tecem comentários. Notemos que não se trata do super-enquadramento – tela
dentro da tela –, cuja função plástica nos pareceu mínima, mas da utilização do fundo escuro, recurso que se
contrapõe a dois aspectos característicos desse tipo de programação. O primeiro é a decoração, uma vez que o
cenário desses programas, mormente colorido, remete-nos, em alguma medida, a uma sala de estar. O segundo,
o movimento, pois eles, os convidados do filme, estão sentados, ao passo que os apresentadores e as chamadas

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de reportagem estão sempre prestes a mudar de lugar ou de assunto. O fundo escuro, nesse sentido, mais do que
luto e circunspecção, serve para realçar, criticamente, o jogo de espelhos operado no filme, aquele entre os co-
mentadores selecionados pela produção do filme e os selecionados pela produção dos programas. Os convidados
de ambos os grupos, vale a pena sublinhar, têm algo a dizer – seja sobre o que aconteceu em Quem matou Eloá?
, seja acerca do que estava acontecendo à época, durante a cobertura ao vivo do sequestro com cárcere privado,
narrado como a desdita de um ex-casal de namorados. O jogo de espelhos não para aí, contudo.
O título Quem matou Eloá só aparece aos 2 min 09 s. Na primeira sequência após o título, uma repórter de
rua aparece mostrando o prédio em que estão sequestrador e reféns, um conjunto habitacional, cujo desenho e
localização nos remete a um tipo de moradia voltado para pessoas de baixa renda na cidade de Santo André79.
As câmeras, diferente do telefone usado pela polícia e pela imprensa, não têm acesso ao interior do apartamento,
mas têm acesso à porta e às janelas, concentrando nelas a atenção para pontuar os momentos agudos da trama. A
porta é por onde Nayara, a amiga de Eloá, retorna para o cativeiro a pedido da polícia. A janela, por sua vez, várias
vezes citada e mostrada (ficaríamos tentados a dizer que seria outra referência a Hitchcock), não apenas ficou as-
sociada ao drama vivido pelas reféns (a tomada icônica do caso, como vemos na ilustração do acontecimento que
consta na página da wikipedia, é uma imagem em que Eloá está à janela), mas era a abertura de onde a notícia po-
deria escapar. No seu texto Bridge and door, falando sobre a construção de caminhos entre dois lugares, Simmel
identifica na janela certa relação com os significados da ideia de porta, dado que aquela permite a ligação entre o
espaço interior e o mundo exterior. Mas se no caso da porta a direção é importante, pois entrar e sair implicam sig-
nificados distintos, na janela temos a primazia de apenas uma direção, do interior para o exterior. Olhando o modo
como portas e janelas aparecem no filme (montado a partir do material obtido dos programas televisivos), se é na
porta fechada que a tensão se aglutina (é por ela que as pessoas entram e saem, inclusive, de forma violenta, dado
que há invasão e arrombamento), a janela, por seu turno, parece ser a única passagem de mão dupla entre interior
e exterior: é para lá que as câmeras estão voltadas, é por ela que sequestrador e reféns olham para fora (SIMMEL,
2000, p. 73 – principalmente)80. Se a porta separava o interior do exterior (e era para onde as câmeras miravam no
quinto dia do sequestro), as janelas, por sua vez, aparecem seguidas vezes, seja para reenquadrar a cena sugerida,
mas nunca registrada, isto é, a cena que tinha lugar no interior do apartamento, seja como a fenda através da qual
quem estava dentro do apartamento nos “olhava”. Outro aspecto do jogo de espelhos. Mas há mais.
Fixemos nossa atenção no recorte feito pelo filme do programa A tarde é sua e o diálogo que este parece
entabular com o cotidiano da cidade. Não emitiremos juízo ou avançaremos quaisquer análises sobre a audiência
desses programas, mas chama atenção a maneira intrincada como a prevalência da esfera privada é construída e
mostrada, em virtude da montagem com os trechos do programa de televisão, em Quem matou Eloá?. Embora a
polícia, responsável pela segurança pública, estivesse lá e mantivesse organizado o espaço que circunda o conjun-
to habitacional (e pelo qual, podemos supor, circulavam, entre outros, moradores e não moradores e equipes de
imprensa), a dimensão mais geral do evento não é tematizada. A política inexiste na discussão desses programas.
O sintoma desse esvaziamento é justamente evidenciado no modo como o acontecimento é construído como
pertencente à esfera privada, talvez à íntima, um amor adolescente, recheado de brigas e crises de ciúmes. Tal
narrativa combina com a disposição dos cenários dos programas de TV, que remetem a uma “sala de estar”. Em
outros termos, um espaço doméstico.
Detenhamo-nos na decoração da sala de um desses programas e que aparece aos 8 min 50 s, cuja apresenta-
79 Trata-se da CDHU - Empresa do governo do Estado de São Paulo, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano
do Estado de São Paulo, que tem por finalidade, como informa na sua página online de apresentação, “executar programas habitacio-
nais em todo o território do Estado, voltados para o atendimento exclusivo da população de baixa renda - atende famílias com renda
na faixa de 1 a 10 salários mínimos”. Podemos ler na mesma página, e isso é importante destacar, que a empresa “também intervém no
desenvolvimento urbano das cidades, de acordo com as diretrizes da Secretaria da Habitação”. Para isso, ver http://www.cdhu.sp.gov.
br/a_empresa/apresentacao-cdhu.asp . Acesso em 29/03/2018.
80 Mesmo considerando que a comunicação ocorre pelo telefone e que há televisão no apartamento, é a janela a abertura entre o

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dora, anfitriã, conselheira de todas as tardes, conversou por telefone, ao vivo, com os envolvidos. Ela entra em
um ambiente decorado com um grande tapete de listras coloridas e um jogo de sofás. Mais além, um segundo
ambiente, para onde ela pode se deslocar, de parede vermelha e quadros no fundo à direita. À esquerda, uma
ampla janela por onde vemos os prédios de uma metrópole. A parede de tijolinho à vista, com pintura de branco
caiado descascado é o detalhe aconchegante de uma sala que, no meio de uma grande cidade, imagem codificada
pela concentração de edifícios que observamos pela janela do cenário, apresenta-se como alheia à violência e aos
crimes que noticia - que ocorrem nas ruas. Um cenário que remete a um ambiente privado que se dirige a outros
ambientes privados, os da sua audiência, como o dos apartamentos do jardim Santo André (ainda que estes não
contem com decoração tão cara). O que conta nesse jogo é o eixo em torno do qual a reprodução do ambiente
gira, uma vez que é referido e dirigido ao mundo interno, doméstico da audiência (mesmo nas lanchonetes). É
essa espécie de diálogo entre “salas de estar” que é arruinado pelo fundo escuro em Quem matou Eloá?, abertura
que permitirá ao filme, paulatinamente, incidir sua crítica contra a violência (tortura) física e psicológica come-
tida contra duas meninas (Eloá tem 15 anos, 7 a menos do que o ex-namorado), no interior de um apartamento,
violência esta que, como tal, deveria permanecer privada, no espaço privado, do interior da casa, na sombra – pois
como apontara Hannah Arendt, em A condição humana, “As palavras gregas e latinas que designam o interior da
casa, megaron e atrium, têm forte conotação de escuridão e treva” (ARENDT, 1998, p. 71)81. O fundo escuro no
filme, ao suprimir o caráter privado e doméstico associado à presença de uma tela de televisão, vai aos poucos
construindo o caminho que faz do crime de amor, que nunca teria deixado de ser privado, íntimo, um crime que
prenuncia uma discussão política, portanto, da esfera do público, por excelência. Diferente, pois, do que o ponto
de interrogação do título nos sugere pensar, o filme não se volta para quem matou, mas sobre o tipo de crime
cometido.

Considerações finais

Como vimos, é possível observar várias entradas para a análise sociológica em Quem matou Eloá: a do
acontecimento, a da cobertura televisiva do acontecimento, as falas a respeito do acontecido e da cobertura feita
à época pela televisão, a da discussão a respeito da ação da polícia militar durante o sequestro. Há outra, porém,
que é a do crime cometido - que é para onde o filme parece apontar em determinados momentos, mas para onde
só caminha definitivamente um pouco antes de terminar.
Para isso, é determinante o trabalho da montagem que começa a partir do minuto 20 min 10 s, quando vários
casos de assassinato, ou melhor, casos em que o homem mata a mulher pela qual está apaixonado, enamorado
ou com a qual mantém ou manteve relacionamento íntimo durante certo tempo, são aproximados, quase sobre-
postos, amplificando o volume de um crime que, visto como fait divers, separadamente de outros, encaixa-se
perfeitamente no que seria chamado de crime passional, aquele no qual uma das partes, movido pela torrente de
afetos que lhe transborda a alma, tira a vida da outra. Justapostos no filme, os planos que trazem a fala límpida
de noticiosos de vários telejornais de várias partes do país (notemos que não é mais o tom de voz dos programas
vespertinos que dominam tais sequências) narrando tais mortes ajudam a construir a ideia de que as mulheres são
assassinadas não por amor, mas após contínuo assédio. Essa construção dá ao Quem matou Eloá? outro sentido
para a sua interrogação, e era justamente o que gostaríamos de sublinhar: o de um crime que precisa ser discutido.
Os três minutos e meio da montagem final são determinantes para que o caso acontecido em Santo André

dentro e o fora.
81 Trata-se da nota número 78, referência que a autora retira da obra de Theodor Mommsen. No original, “The Greek and Latin
words for the interior of the house, megaron and atrium, have a Strong connotation of darkness and blackness”.
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saia do registro da fatalidade, da individualidade, da discussão sobre os limites do jornalismo, da atuação da PM,
e venha à luz como um problema que tem gênero. E se optamos por não mencionar o termo femicídio foi justa-
mente para realçar como o filme se aproxima e constrói a questão a partir do caso Eloá.
A morte da menina, em outubro de 2008, pode fazer par com aqueles sobre a atuação da imprensa e da po-
lícia, como mostram os casos recentes e rumorosos do sequestro do ônibus 174 (12 de junho de 2000), o caso
dos Nardoni (29 de março de 2008), bem como os mais antigos, como o da Escola de Base (março de 1994), e
o suicídio filmado pelo Aqui e agora em 5 de julho de 1993. A novidade em Quem matou Eloá?, no entanto, é a
construção de um crime sobre o qual é preciso falar. Daí a interrogação que, segundo nossa leitura, foi dirigida
ao crime (cometido contra uma menina que volta da escola e cresce em um bairro periférico). Daí a dimensão
pública dessa discussão, abrindo-a para o debate e retirando-a da sombra doméstica, também um dos lugares onde
a violência atua.

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Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. The human condition. 2a. edição. Chicago : University of Chicago Press, 1998.
MARRAMAO, Giacomo. Cielo e terra. Genealogia dela secolarizzazione. Roma-Bari: Laterza, 1994.
SIMMEL, Georg. Bridge and door. In Simmel on culture (ed. David Frisby and Mike Featherstone). London –
Thousand Oaks – Nova Delhi : Sage, 2000, pp. 170 – 174.

Referências da WEB

CDHU. Apresentação. http://www.cdhu.sp.gov.br/a_empresa/apresentacao-cdhu.asp . Acesso 29/03/2018.

Filme trabalhado

Quem matou Eloá? Direção Lívia Perez. Brasil, 2015, 24 min. son., color. Disponível em http://portacurtas.org.
br/filme/?name=quem_
matou_eloa. Acesso em 20/03/2018.

Filmes apenas citados

A dama de Shanghai. Orson Welles. EUA, 1947 (The lady from Shanghai).
Janela indiscreta. Alfred Hitchcock. EUA, 1954 (Rear window).
Os pássaros. Alfred Hitchcock. EUA, 1963 (The birds).

Mauro Rovai - Possui graduação em ciências sociais (1987), mestrado (1995) e doutorado em sociologia
(2001), todos pela Universidade de São Paulo (USP), e pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP - 2006), com estágio pós-doutoral no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia - ISCTE Lis-
boa (2006) e no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS - 2012), ambos com bolsa FAPESP. Durante
o mês de novembro de 2010 esteve na Universidad de Valencia, com bolsa da Fundación Carolina. Atualmente é
professor da Universidade Federal de São Paulo, no Departamento de Ciências Sociais (graduação e pós-gradu-
ação). Tem experiência na área de sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria social, cinema
e audiovisual (arte, técnica e política), literatura e “subjetividade” contemporânea.

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10. O cinema como resistência à violência direcionada aos jovens negros na
sociedade brasileira

Jaquelina Maria Imbrizi


Eduardo de Carvalho Martins

Introdução

Podemos afirmar que a violência contra o jovem, negro, de classe socioeconômica baixa e que mora nos
territórios apartados das grandes cidades é um dos maiores problemas na sociedade brasileira atual, refletindo
certo mal-estar na contemporaneidade. O cinema poderia ser uma forma de resistência a este tipo de violência e um
modo de manifestar esse mal-estar? O que as Intervenções Psicanalíticas Clínico-Políticas (ROSA, 2017) podem
contribuir para a análise dos discursos produzidos por narrativas cinematográficas que abordam a violência contra
o chamado PPP (preto, pobre e de periferia)? Este ensaio tem como objetivo problematizar tais questões a partir
da análise de dois filmes de diretores brasileiros: Bróder (JEFERSON DE, 2009) e Os 12 trabalhos (ELIAS,
2006). Os longas têm em comum a abordagem do cotidiano de jovens que vivem nas periferias e que sofrem
com a violação rotineira dos seus diretos sociais. As trajetórias destas personagens estão submetidas a iminentes
acontecimentos-ruptura, que podem acometer suas vidas, evidenciando tanto a falta de suportes sociais quanto
os sofrimentos sociopolíticos que vivenciam (ROSA, 2016). O método que será utilizado para a análise das
narrativas fílmicas dialoga com as relações entre Psicanálise e Política. A intenção é produzir intervenções que
articulam a dimensão da singularidade às condições políticas com vistas a localizar a implicação do sujeito com
seu desejo. Os conceitos que servem de referências são: responsabilidade social e moral (ROSA & CERRUTI,
2014; SCHUCMAN, 2014); humilhação social (GONÇALVES-FILHO, 1998); violência subjetiva, simbólica e
sistêmica (ZIZEK, 2015); e acontecimento-ruptura (CARRETEIRO, 2003). Aqui podemos assinalar ao menos
duas dimensões presentes neste ensaio, intimamente relacionadas ao compromisso ético, estético, social e político
de algumas produções cinematográficas que visam contribuir com as transformações das condições históricas,
econômicas e sociais da segregação social. A primeira dimensão diz respeito a angariar esforços de todos os
setores da sociedade para reduzir os índices de violência e erradicar as mortes de jovens negros, periféricos e de
classes subalternizadas, juntamente com os inúmeros sofrimentos causados por estas perdas. A segunda se refere
à importância de se problematizar e produzir visibilidade para o fato de que estas modalidades mais frequentes de
violência recaem incisivamente sobre a população em situação de vulnerabilidade social. A violência recai sobre
as vidas nuas (AGAMBEN, 2010), entendidas como vidas matáveis e consideradas como resto social que não
são contadas (RANCIÉRE, 2014), em decorrência da fé cega no progresso e no crescimento ilimitado da riqueza
própria ao modo de produção capitalista.

O filme de Ricardo Elias - Os Doze Trabalhos

O filme Os Doze Trabalhos (ELIAS, 2006) traça a trajetória de um jovem negro chamado Heracles (Sidney

99
Santiago), que ficou internado por dois anos na antiga Fundação Estadual pelo Bem-Estar do Menor (FEBEM),
em decorrência de um roubo de carro, e que é indicado para ocupar a vaga de motoboy na mesma empresa em que
trabalha seu primo Jonas (Flávio Bauraqui). O cotidiano destes motociclistas é apresentado no filme: condições
precárias de trabalho; risco de vida nos acidentes de trânsito nas ruas da grande cidade; humilhação social
(GONÇALVES-FILHO, 1998) sofrida por exercer função considerada menos qualificada; espera, por ordem de
chegada, pela atribuição de entregas e viagens cuja produtividade depende de certa pressão interna e externa para
executar a tarefa just in time etc.
A humilhação é definida por Gonçalves-Filho (1998:15) como “uma modalidade de angústia disparada
pelo enigma da desigualdade de classes”. Este sentimento é suscitado pelos olhares direcionados a: pessoas
que exercem função cujo salário não garante o mínimo para a sobrevivência do mês. Além de não suprir as
necessidades básicas de uma família ou até de não poder realizar o sonho de se casar com a namorada, há outros
fatores que produzem o sentimento de humilhação: a vestimenta que não se enquadra nos padrões dos prédios
de classe média alta onde as entregas são realizadas; a banalização da visibilidade dos acidentes de moto nas
grandes cidades, nas quais os transeuntes culpabilizam quem dirige a moto (“eles é que são uns loucos mesmo”),
sem considerar a desproporção explícita nos equipamentos de segurança entre os que dirigem a moto e os que
conduzem o carro.
O outro sofrimento social que ocorre pari passu com o de humilhação social e que acompanha estes
trabalhadores é o da falta de reconhecimento pelo resultado do trabalho: a rapidez da entrega. Assim, nos diversos
espaços públicos por onde o nosso herói precisa circular parece constituir-se um olhar de desprezo ou indiferença
a seu respeito. O filme transmite o clima misto de tensão, competitividade e desanuvio na sala onde os motoboys
aguardam ser chamados pela secretária responsável por distribuir os serviços. O clima descontraído entre os
entregadores, por meio das piadas acerca de suas condições de vida, parece diluir um pouco da angústia advinda
da percepção dos riscos constantes inerentes à profissão.
No filme, o nosso personagem enxerga o trabalho como uma possibilidade de mudar o seu destino: ele precisa
desenvolver doze tarefas no transcorrer do dia para conseguir o emprego. A humilhação social que Heracles
sofre vem de todos os lados: dos clientes da empresa, que não o vêm por detrás de sua função, dos colegas, que
fazem alusão ao fato de que ele foi internado em uma instituição para menores em conflito com a lei. A atmosfera
de constrangimento quando esse assunto vem à tona demonstra o quanto é difícil para este jovem reconstruir
sua vida em outras bases que não as das atividades criminosas. Em uma das cenas, Heracles, ao sair para o seu
primeiro dia de trabalho, encontra um amigo, que parece trabalhar no tráfico de drogas e que o intima a ir a um
determinado bar para garantir que não entregará o nome de seus antigos companheiros de crime para a polícia.
O roteiro da película não deixa de fazer alusões ao fato de que para a vida dos nossos jovens da periferia, negros
e de classe subalternizada – os PPPs (pretos, pobres e da periferia) – as opções são mínimas. As alternativas são:
ou se entregar à guerra no tráfico ou se submeter às condições precárias de emprego, como as de um motoboy,
um mal, por assim dizer, menor.
Os telespectadores podem sentir e compartilhar, por meio das expressões no rosto do ator, um clima de ameaça
que solapa os cenários. Uma sensação de estranhamento frente a tudo o que vive é o que o ator Sidney Santiago
consegue transmitir ao telespectador: frente à funcionária pública que se recusa a carimbar um documento e, com
isso, confirmar oficialmente que este foi entregue; diante o pedido da professora que solicita a Heracles levar
o seu gatinho na garupa da moto e entregar à filha – em uma freada brusca da moto o gato escapa da caixinha
e o motoboy teve que fazer estripulias para resgatá-lo; perante o motociclista que sofre um acidente e tem que
esperar a ambulância e que implora, com a perna machucada, a companhia da nossa personagem principal para
garantir minimamente que o atendimento da equipe de saúde ocorra a contento; ante o segurança trajado de terno,
também negro, que obedece ordens superiores e, assim, ocupa o posto de regulador das normas sociais e distribui
100
os lugares das pessoas de modo a obedecer à clássica característica brasileira de produzir desigualdade social em
detalhes inusitados, no caso, o acesso aos elevadores sociais e de serviço. Em uma das entregas do motoboy, o
elevador de serviço de um prédio está quebrado e o segurança diz que Heracles deverá subir mais de vinte andares
porque é proibido aos serviçais utilizar o elevador social. O nosso herói não apenas questiona o guarda como
dribla a situação e entra no elevador social do primeiro andar e consegue entregar o envelope em tempo hábil e
encarar a próxima tarefa. A ironia está na cena em que o entregador, depois de utilizar o elevador social, encara
o guarda, que fica impassível diante do fato de que pelo tempo transcorrido ele não poderia ter subido e descido
todos os lances da escada. A despeito de passar por todos estes “perrengues”, há mais um acidente no trânsito que
faz nosso herói parar na sua corrida contra o tempo: agora quem está sendo atendido no meio da rua é o seu primo
que morre no asfalto sob o olhar de Heracles. O que fazer? Nosso protagonista vai à empresa para avisar aos seus
colegas sobre a morte do primo. Depois dirige sua moto meio a esmo, estaciona perto de uma praia e caminha
lentamente em direção ao mar. Nos momentos finais do filme, a imagem de Heracles, de costas para a câmera
e de frente para o mar, vai se distanciando na tela e aos telespectadores resta desvendar o enigma que encerra a
narrativa: ele vai cometer suicídio? É só um banho de mar como parte do processo de elaboração da morte do
primo? Ou, trata-se de realizar o desejo, de morar em uma cidade no litoral?
De que mal-estar na contemporaneidade trata o filme de Ricardo Elias? O episódio da fuga do gato é uma
alegoria para a cadeia de opressões a que os sujeitos estão submetidos no capitalismo tardio: a professora sabe
do risco de perder o gato, a empresa reconhece o prejuízo caso perca a cliente, e Heracles percebe que pode
perder a oportunidade do emprego. Ao telespectador sensível às questões sociais resta um gosto amargo na
boca: a morte do primo, o único suporte afetivo do protagonista apresentado na película, é o acontecimento-
ruptura (CARRETEIRO, 2003) que emperra as chances de mudança de vida do jovem Heracles. Ele perde seu
único ponto de ancoragem (BROIDE; BROIDE, 2015) depois de enfrentar humilhações sociais e preconceitos
e, literalmente, parece morrer na praia no final do filme. A verdade foi desvelada: no capitalismo tardio, aos
jovens pobres e negros que moram nas periferias das grandes cidades – alijados do acesso às instituições sociais
de qualidade como as de educação, cultura, saúde –, está reservado um lugar específico na trama cultural e
econômica: o de resto social (ROSA, 2016). O cinema aqui exerce sua função estética e política: proporciona
visibilidade à fragilidade e à potência de um jovem negro frente às desigualdades e injustiças sociais.
Outro ponto emblemático na narrativa é o de que os pais da personagem não aparecem na tela, mas o
telespectador fica sabendo que ele não conheceu o pai e que a mãe trabalha como faxineira em casa de família.
Esta situação representa grande parte das brasileiras (in) visíveis, cujo cuidado dos filhos fica exclusivamente a
cargo das mulheres que, por sua vez, são mães e únicas provedoras do lar, mesmo recebendo salários exímios
em funções com pouco ou nenhum reconhecimento social. Há, portanto, uma reprodução da desigualdade social
no transcorrer de várias gerações em uma família, bem como a transmissão do sofrimento sociopolítico e de um
destino social calcado em uma vida de errância e certo desenraizamento na trajetória da personagem principal. O
ponto de ancoragem na vida de Heracles é o laço fraterno com o primo, que o ensinou a dirigir a moto, e que, por
ser mais velho e de outra geração, lança-lhe um olhar de acolhimento e confiança, transmitindo a ideia de que é
possível outro modo de viver. É nesse sentido que o cinema exerce sua contribuição para a transformação social,
ao inscrever uma crítica radical do modo de produção capitalista, ao fazer uma intervenção direta na cultura e ao
contribuir para desconstruir o discurso hegemônico que culpabiliza e patologiza o jovem em conflito com a lei
(ROSA, 2016).
A contribuição do filme “Os doze trabalhos” para a discussão sobre a resistência à violência simbólica
representada pelas imagens do negro em algumas produções cinematográficas pode ser localizada no fato de
que: o jovem protagonista negro tenta driblar todos os empecilhos que aparecem, se responsabilizando por suas
ações e com certo bom-humor tentando criar estratégias para enfrentar a violência sistêmica do capitalismo,
101
arraigada em uma sociedade hierarquizada, burocratizada e dividida em classes sociais. Para Zizek (2015), a
violência sistêmica é responsável pela ordenação estrutural do funcionamento muitas vezes catastrófico de nossos
sistemas políticos, sociais e econômicos. A reprodução da desigualdade econômica é um exemplo desta violência,
incentivada pelos mecanismos de acumulação do capital presente nas sociedades capitalistas. O autor critica as
visões que atribuem uma condição essencialmente exógena da violência no contexto de um sistema econômico
que, no núcleo de seu funcionamento, é estruturalmente violento e produtor de profundas desigualdades, como
se a violência fosse algo a ser erradicado sem levar em conta a necessidade de alteração das condições sociais e
econômicas que contribuem para a sua manutenção. A violação de direitos dos jovens periféricos é também um
exemplo deste tipo de crueldade estrutural no capitalismo. No filme, a maioria dos atores que trabalham como
motoboys é negra e, cada um à sua maneira, tenta encarar as agruras da vida criando dispositivos inusitados de
sobrevivência. A cena na qual um dos entregadores mostra a cicatriz na perna em decorrência de um acidente no
trânsito é bem importante para ilustrar esta questão, como também, as imagens que explicitam a diferença entre
os locais onde as pessoas almoçam. O machucado e a dor na perna revelam que é só com o corpo que é possível
se interpor à violência estrutural do capitalismo, no qual os homens são “livres” para venderem sua força de
trabalho, mesmo à custa de uma tarefa perigosa e sem sentido. A desigualdade social, por sua vez, é visibilizada
no tipo de comida e no espaço reservado aos serviçais: o rapaz vai buscar o almoço do chefe e da secretária em um
restaurante japonês, mas ele e seus colegas só podem almoçar um sanduíche ao lado de um carrinho de lanches
improvisado na calçada.
Cabe assinalar outro momento no filme Os Doze Trabalhos, no qual o diretor destaca cenas recorrentes
dos semáforos das grandes cidades brasileiras, onde os ambulantes tentam vender objetos para os motoristas
dentro dos carros parados no sinal vermelho. Como uma intervenção dentro do filme, estas pessoas comuns
são convidadas a falar e participar da película, como cenas de um documentário inserido no longa-metragem
de ficção, e um deles revela o seu sonho de ter um emprego com carteira assinada. A visibilidade para o fato de
que a população que sofre a violação de seus direitos sociais está diretamente vinculada à cor da pele, mora nos
bairros periféricos e localiza-se na classe pobre. Neste contexto, como não nos lembrar da frase de Heracles:
“Dependendo de onde você nasceu tua história já está escrita antes mesmo de ela começar” (ELIAS, 2006).

O genocídio contra o negro brasileiro: uma história apagada e silenciada

Abdias Nascimento (2017: 97) confirma a frase de Heracles apresentada na telona ao fazer referência ao
destino social articulado às condições de habitação na cidade do Rio de Janeiro na década de 1950: “(...) os negros
compõem menos da metade da população total da cidade, mas a proporção que ocupam nas favelas alcança mais
do dobro da cifra apresentada pelos brancos. Assim se caracteriza uma indiscutível segregação habitacional”.
Para o autor:

As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a realidade social do país. A
ideologia oficial ostensivamente apoia a discriminação econômica – para citar um exemplo – por motivo de
raça. Até 1950 a discriminação em empregos era uma prática corrente, sancionada pela lei consuetudinária.
Em geral os anúncios procurando empregos se publicavam com a explícita advertência: ‘não se aceitam
pessoas de cor’. Mesmo após a lei Afonso Arinos, de 1951, proibindo categoricamente a discriminação
racial, tudo continuou na mesma. (...) Com lei ou sem lei, a discriminação contra o negro permanece difusa,

mas ativa. (NASCIMENTO, 2017: 100)

102
Para Nascimento a insígnia “pessoas de cor” é substituída por “pessoas de boa aparência” nos anúncios
para ocupar cargos de trabalho com carteira assinada; deste modo, são o desemprego e os trabalhos menos
qualificados que estão reservados à população negra. Ribeiro (2017: 40), filósofa e ativista pelos direitos da
mulher negra brasileira, atualiza os dados da década de 1950 indicados por Abdias, apresentando a pesquisa
desenvolvida em 2016 pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, em parceria com o IPEA (Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas): “mulheres brancas ganham 30% a menos do que homens brancos. Homens
negros ganham menos do que mulheres brancas e mulheres negras ganham menos do que todos”. As mulheres
negras são “o maior contingente de pessoas desempregadas e no trabalho doméstico”. Para a autora: “Se não se
nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível”.
A importância das ideias e das lutas de Abdias Nascimento (1914-2011) está personificada em seu seminal
livro O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (2017: 93), no qual ele afirma o
apagamento das atrocidades cometidas contra a população negra na história da construção da nação brasileira.
Ele resgata a figura do ministro das finanças Rui Barbosa, no ato de 1899, que ordenou a incineração de todos
os documentos pertinentes à escravização, ao tráfico negreiro e aos africanos escravizados, dificultando hoje a
análise “da experiência africana e de seus descendentes no Brasil”.
Abdias Nascimento (2017), entre suas várias frentes de luta para tornar visível a opressão e o racismo em
território brasileiro, criou o Teatro Experimental do Negro (TEN), que tinha como objetivos: resgatar os valores da
cultura africana; construir uma pedagogia calcada na arte e cultura, de modo a desconstruir valores etnocentristas
vinculados à superioridade europeia, cristã, branca, latina e ocidental; colocar o negro como protagonista em
papéis que exigiam a qualidade dramática do intérprete e longe de estereótipos e caricaturas.
Esse movimento iniciado na década de 1940, no âmbito das artes cênicas na história brasileira, demorou
a se espraiar para o cinema. Mais de cinquenta anos depois, somente no final da década de 1990, é que diretores,
que se autorreferenciavam como afrodescendentes e que se sentiam pertencentes à cultura africana, encampam
a luta contra a violência simbólica por meio da instauração do debate sobre a imagem transmitida do negro nas
produções audiovisuais e, sobretudo, no cinema brasileiro (CARVALHO & DOMINGUES, 2017).

Os regimes de visibilidade reservados aos artistas negros nas produções audiovisuais

Carvalho (2005: 30) aponta a decupagem como técnica que produziu certa eugenia racial no cinema brasileiro,
nas décadas de 1920 e 1930, nas quais as imagens de negros e mestiços foram paulatinamente eliminadas. Era
o cinema reproduzindo os ideais de branqueamento da população brasileira. A dupla formada pelo ator negro
Grande Otelo e o ator branco Oscarito, ao mesmo tempo em que demonstrou o convívio harmonioso entre brancos
e negros na tela, apresentou nos bastidores certa disputa entre os dois atores, a ponto de Grande Otelo recusar-se
a ser sempre “escada nas cenas cômicas”.
Na década de 1950, dois filmes de Nelson Pereira dos Santos trouxeram a realidade da favela à tona, com seus
jogos de solidariedade para a sobrevivência e, em contraponto, mostrou uma classe média branca, individualista e
agarrada a seus privilégios. O diretor comenta o impacto do filme Rio, Zona Norte (1957) e afirma em entrevista:
“Pra direita era um filme que tinha muito negro, muito pobre, muita criança descalça. E o cinema não podia pintar
a realidade, tinha que fazer propaganda” (CARVALHO, 2005: 50).
Em 1960, os filmes do Movimento Cinema Novo, principalmente os de Glauber Rocha, foram marcados por
adeptos dos cultos afro brasileiros, quilombolas e sambistas: “Apostando numa noção de cultura nacional-popular
como resistência à cultura colonizada, os cineastas vinculados ao movimento viam o negro como metáfora de
povo – pobre, favelado e oprimido” (CARVALHO & DOMINGUES, 2017: 11).
103
Na década de 1970, a agenda das reivindicações do movimento negro incluía várias manifestações artísticas
e culturais, cuja bandeira era a de criação de modelos positivos de auto-representação da população negra
(CARVALHO & DOMINGUES, 2017).
É somente no final da década de 1990 que “(...) cineastas e atores negros se mobilizaram para reivindicar
novas formas de representação racial no cinema e na televisão” (CARVALHO, 2005: 94-95). No campo do
audiovisual cabe destacar os trabalhos de Joel Zito Araújo, que dirigiu o documentário A negação do Brasil,
lançado em 2000, cujo objetivo é o de analisar o tratamento estereotipado do negro nas produções audiovisuais
brasileiras no período de 1963 a 1997, principalmente nas telenovelas. Os resultados apresentados pelo diretor
se referem ao fato de que quase sempre os artistas negros eram chamados a desempenhar papéis subalternizados,
como o da empregada doméstica e alcoviteira, o jardineiro, motorista e operário subservientes, ou, em seu lado
oposto, a mulata bela, fogosa e sedutora e o malandro que leva a vida na flauta. Segundo Carvalho (2005: 95),
trata-se de “(...) um manifesto audiovisual sobre a necessidade de se construir representações democráticas do
Brasil”.
A problematização do tipo de visibilidade do negro no cinema brasileiro é um dos temas de interesse de
Jeferson De, que participou das mobilizações dos cineastas afrodescendentes na década de 1990. No ano 2000,
o diretor escreve e apresenta o manifesto Dogma Feijoada – Gênese do Cinema Negro Brasileiro. Jeferson
se inspirou no movimento Dogma 95, que visava um cinema mais realista e menos comercial, liderado pelos
diretores dinamarqueses Thomas Vinterberg e Lars Von Trier. Ele elencou regras para a construção do cinema
negro brasileiro, cujos mandamentos são: tanto o diretor quanto o protagonista devem ser negros; o filme deve ter
um orçamento exequível e se referir à cultura africana; o dualismo heróis e bandidos e os personagens caricatos
são proibidos; deve-se privilegiar o negro comum como brasileiro. Para Carvalho (2015: 97):

(...) só os mais atentos entenderam o tom provocativo de seu manifesto e o seu modo jocoso, chanchadesco
e simpático (tão brasileiro e nada europeu, enfim) de tratar de temas sérios. No melhor sentido tropicalista,
o Dogma Feijoada canibalizou o Dogma europeu e, de quebra, abriu a discussão sobre a possibilidade de
um cinema brasileiro feito por negros, sem o rancor e as queixas que caracterizam esses movimentos. De
forma direta, objetiva e rápida tentava criar uma agenda mínima para pensar um cinema negro brasileiro.

Jeferson De leva a sério os mandamentos que criou e já dirigiu e roteirizou vários curtas metragens premiados
em festivais nacionais e internacionais, como Carolina (2003), que tem como protagonista a escritora negra
Carolina Maria de Jesus (Zezé Mota), autora de Quarto de despejo: diário de uma favelada (JESUS, 2014). O
diretor lançou, em março de 2018, o filme “Correndo Atrás” – com elenco, direção e equipe de produção toda
formada por afrodescendentes (RFI, 2018) –, em Los Angeles, no Pan African Film Festival, a maior e mais
prestigiada mostra de arte e de cinema negro das Américas.

O filme de Jeferson De: Bróder

A produção cinematográfica de Jeferson De destacada neste ensaio é Bróder (2009), cujos protagonistas são
dois amigos negros e um branco: Jaiminho (Jonathan Haagensen) é jogador de futebol e tem situação econômica
mais confortável comparada à condição de vida de seus dois amigos; Pibe (Sílvio Guindanecu) mora com a
mulher e a filha e trabalha duro para pagar as contas da casa, já com a energia elétrica cortada; por último, vem
Macu (Caio Blat), que planeja um sequestro junto aos seus comparsas da vida no crime. A mãe de Macu (Cássia
Kiss) prepara uma festa de aniversário para o filho, como mote para o reencontro entre os amigos, mas ele é
104
assassinado no mesmo dia porque desiste no último instante de continuar com o plano de sequestrar o filho do
empresário de Jaiminho. Macu, como bom representante da língua portuguesa falada no Brasil, diz “eu sou mano
e não bróder” e demonstra que é possível uma escolha ética em meio a tanta violência e humilhação social. Ele
se recusa a participar do crime e se alegra ao saber que Jaiminho é escalado para compor a equipe da seleção de
futebol brasileira. Portanto, o cineasta Jeferson De propõe uma inversão dos estereótipos da nossa cultura em
seu filme, no qual é o homem branco, vivido pela personagem Macu, que está envolvido com o mundo do crime.
Uma cena emblemática do filme Bróder pode ser destacada quando os três amigos vão passear no carro
importado de Jaiminho, sendo que Macu é quem dirige e tem que parar o automóvel por conta de uma blitz policial:
todos são revistados menos Macu, que na percepção dos policiais estaria sofrendo um sequestro relâmpago. Na
abordagem dos homens da lei, há uma nítida discriminação entre os negros e o branco, pois os dois primeiros
são suspeitos por causa da cor de sua pele. Esta personagem de tez branca embaralha a distinção entre irmãos na
epiderme, tem uma boa relação com o padrasto (Airton Graça), que é negro, e é o único dos três que se envolveu
com atividades ilícitas.
De que mal-estar na contemporaneidade trata Bróder? Jeferson De aponta para a linha sutil de demarcação
de cor no Brasil e toca na ideia de responsabilidade moral daqueles que estão sendo beneficiados direta ou
indiretamente pelo racismo. Fica aqui a questão que não quer calar: a personagem Macu poderia ser considerada
responsável por seu privilégio de cor ao não sofrer a revista dos policiais?
Cabe ressaltar o fato de que se a personagem Macu é branca, a sua postura e reivindicação é a de se posicionar
como uma pessoa negra, pois tem muitas coisas em comum com seus amigos de infância, entre elas, a precariedade
de morar em um bairro periférico e as dificuldades financeiras de sua origem de classe social. É possível a um
homem branco se indignar e se posicionar contra a violação dos direitos sociais de um jovem negro? Pensamos
que sim, desde que o branco se reconheça como quem está ocupando o lugar de privilegiado por causa da cor de
sua pele, em detrimento de outras pessoas de tez negra; além disso, mais do que se reconhecer, é preciso também
se responsabilizar por ocupar este lugar.

O racismo como categoria relacional e a responsabilidade moral do homem branco

No filme de Jeferson De, a arte imita a vida e, assim, como afirma Munanga:

‘Dizem’ para nós que não há história do negro no Brasil, que não há cultura negra no Brasil. Há apenas uma
única história e uma única cultura resultante do sincretismo. Quem é negro no Brasil, um país mestiço e
sincrético? (...) Algo como se todos os gaúchos e descendentes de italianos nos estados do Sul do Brasil se
considerassem mestiços. Já a questão ‘quem é branco no Brasil?’ Pouco entra nesse debate. Pois bem, se os
intelectuais, jornalistas e políticos não sabem distinguir os negros dos demais brasileiros, evidencia-se que
os policiais ou zeladores dos prédios nunca tiveram dificuldade. (MUNANGA, 2017: 41)

Esta é uma questão polêmica que suscita debates acalorados sobre a diferença entre o que é abrir mão do
privilégio de raça e o que significa distribuição equitativa dos direitos sociais, como os de moradia, saúde, educação,
cultura e livre circulação pela cidade. Schucman (2014) afirma que há privilégios relacionados à cor de pele no
Brasil. Existe, por exemplo, o medo do branco de perder seu status diante das políticas públicas afirmativas, entre
elas, as cotas raciais para a admissão nas universidades públicas brasileiras, que podem trazer o fantasma de que
os brancos estão perdendo as vagas para os negros nos cursos gratuitos de graduação. A psicóloga social coloca

105
em questão a responsabilidade moral do branco diante de seus privilégios raciais e apresenta os resultados de
suas pesquisas, trazendo vários elementos da vida cotidiana presentes nas falas dos seus entrevistados - a opção
dos empregadores por contratarem pessoas brancas; as desigualdades dos negros frente ao acesso aos recursos
materiais e simbólicos produzidos historicamente pela humanidade –, apresentando reais desvantagens na disputa
às vagas universitárias e aos melhores postos de trabalho. Portanto, para a autora é preciso situar o racismo como
base para o entendimento da forma como se estrutura o poder nas sociedades.

Outra pergunta direcionada às pessoas entrevistadas sobre a possibilidade de abrirem mão de algum privilégio
de cor sempre vinha seguida de uma retomada do discurso da meritocracia. Dois dos entrevistados argumentaram
que o problema da desigualdade: “(...) é um problema de classe social que pode atingir a todos, e aí o discurso
do mérito de que todos somos iguais reaparece” (SCHUCMAN, 2014: 138). A autora identifica que este é um
discurso ambíguo e fragmentado: “A ambiguidade aparece como artifício fundamental para que os sujeitos
mantenham os privilégios, eximindo-se da responsabilidade moral”.
A autora conclui que o racismo é relacional e, assim, se a sociedade capitalista está cimentada na exploração da
força do trabalho e em relações competitivas entre seus integrantes, este tipo de preconceito pode aparecer como
“mecanismo para que os brancos se mantenham em posições de vantagens nesta competição” (SCHUCMAN,
2014, p. 145).
No Brasil a discussão sobre a responsabilidade moral do branco diante das desiguais oportunidades de
escolarização e emprego se torna mais complexa quando nos deparamos com os dados referentes aos direitos
à vida. Os dados estatísticos são explícitos: em 2016, o Mapa da Violência (WAISELFSZ, 2016) indicou que
estamos vivendo uma “guerra civil” generalizada, mas, sobretudo, um genocídio muito bem direcionado contra
um perfil econômico, etário e étnico-racial delimitado: “De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71
são negras. Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em
situação de guerra” (CERQUEIRA et. al., 2017: 30). Assis Filho, então chefe da Secretaria Nacional de Juventude
(SNJ), afirma no lançamento do mapa da violência que: “A violência tem cor, faixa etária e moradia”, referindo-se
à violência contra a população negra, jovem e periférica (ONU, 2017).
Estes dados nos ajudam a compreender outra forma perversa de manifestação de privilégio do homem branco,
que se refere ao fato de que ele é menos visado pelos policiais e tem se mantido vivo quando comparado aos altos
índices de mortalidade dos jovens negros.
Se o branco não tem culpa de estar em uma posição de privilégio, caberia aos homens brancos minimamente
a responsabilidade moral de desconstruir as verdades estabelecidas sobre a suposta democracia racial brasileira.
Ao enfrentar o nosso racismo estrutural nos deparamos com o fato de que ele é negado cotidianamente nas falas
e praticado rotineiramente. Schwarcz (2017: 115), ao analisar os dados da pesquisa realizada em 1988, em São
Paulo, indicando que 97% das pessoas disseram não ter preconceito e 98% afirmaram conhecer pessoas que eram
racistas, sendo estes parentes ou amigos muito próximos dos depoentes, chegou à seguinte conclusão: “todo
brasileiro se sente como uma ilha de democracia racial, cercada de racismo por todos os lados”. Ainda segundo
a autora:

Tudo indica que estamos diante de um tipo particular de racismo; um racismo silencioso e ambivalente
que se esconde por trás de uma suposta garantia de universalidade e da igualdade das leis, e que lança para
o terreno do privado, para o vizinho, para o outro o jogo da discriminação. Em uma sociedade marcada
historicamente pela desigualdade, pela larga vigência da escravidão, pelo paternalismo das relações e pelo
clientelismo, o racismo se afirma prioritariamente na intimidade ou na delação alheia (SCHWARCZ, 2017:
117).

106
É neste sentido que a psicanálise pode subsidiar as reflexões impressas neste artigo, pois se trata do
exercício de uma política da memória (SILVA, 2018), que resgate nosso passado escravocrata, descontrua os
ideais de democracia racial brasileira e escancare a associação entre desigualdades sociais e raciais. Quebrar com
o silenciamento e explicitar as ambivalências e fragmentações dos discursos parece ser uma tarefa cruel e não
menos importante no sentido de barrar a violência que se alastra em direção à população negra, jovem, periférica
e pobre.
Portanto, aos homens e mulheres de pele branca cabe um exercício de empatia e responsabilização no
sentido de produzir uma inflexão na direção de sua perspectiva de classe e cor de pele, de modo a se posicionar
no lugar do outro que sofre preconceito por conta de seu fenótipo, enfatizando o que há de comum entre eles. É o
exercício de nossa capacidade de identificação (BRAGA & ROSA, 2018) com o semelhante que nos possibilita
criar e manter relações horizontais no espaço comum, de modo a inventar diferentes significados para as nossas
ações. Não de modo a encobrir os laços ambivalentes que caracterizam em demasia a nossa humanidade, mas sim
de maneira a convivermos com o estranho e o familiar de nós mesmos, que se manifestam no encontro com as
diferenças. Trata-se de colocar em análise as implicações políticas de quem fala, como fala, e qual é sua posição
quando fala a favor das pessoas submetidas às consequências da segregação social, pois colocar-se na posição de
um negro, ainda que não o sendo, é importante para a luta por modos de organizar a sociedade que não segregue
e nem mate pessoas por causa da cor de sua pele e classe social. Trata-se, ainda assim, de uma posição política
no discurso que revele o fato de que não somos todos iguais, ao contrário disso, estamos apartados na cidade e
na vida. Esta constatação pode ser um passo no caminho para diminuir e, quem sabe, eliminar as situações que
produzem humilhação social e sofrimento sociopolítico.
Schwarcz (2017:113) afirma que a ideia de raça é uma construção social “e que nada na biologia ou na
genética das populações ampara a concepção de que a humanidade tenha traços que a distinga, dividindo-a em
espécies e subespécies”. Cabe assinalar a alusão de que todos nós fazemos parte da mesma raça, que é a humana,
e que quanto mais aumentar o número de pessoas interessadas em contribuir com a visibilidade das situações
opressivas e direcionadas a uma população específica, melhor para a causa e construção de uma sociedade justa.
Para a antropóloga, o que caracteriza o racismo à brasileira é que “o tema da cor acondiciona elementos
socioeconômicos, sociais e estéticos, e também elementos interpretativos, acusatórios e estéticos diacríticos”
(SCHWARCZ, 2017: 114). Ela parte do princípio de que, alinhada às ideias de Benedict Anderson, uma nação é
construída e inventada por pessoas inseridas em grupos sociais. Assim, se somos capazes de inventar uma cultura,
estamos também aptos para questionar “as condições pragmáticas por meio das quais as categorias de um sistema
classificatório são definidas e aplicadas”.
Carvalho (2005:101) também está alinhado com esta posição política no modo de pensar o racismo e ressalta
a capacidade inventiva dos realizadores brasileiros nas produções cinematográficas:

A luta anti-racista é um processo de vitórias e derrotas e, portanto, um acúmulo de experiências sobre as


quais outros negros, brancos, mestiços, homens e mulheres identificados com os valores da democracia e da
civilidade construíram suas demandas. Os realizadores negros que hoje pautam uma nova imagem do negro
e por extensão do Brasil, certamente trazem o acúmulo das reflexões precedentes e apontam para novas
formas de entendermos e transformarmos nossa realidade, o país e cada um de nós mesmos.

Considerações Finais

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Nos dois filmes aqui em foco foi possível demonstrar que os diretores fizeram uma opção política ao ofertarem
visibilidade para a violência contra os jovens negros e pobres e desconstruírem estereótipos vinculados à violência
simbólica – a forma como a imagem do negro foi representada historicamente em papéis subalternizados e em
posição de submissão frente aos brancos nas produções audiovisuais brasileiras. No roteiro dos dois filmes há
estranhamentos dos protagonistas frente às situações de opressão e humilhação que eles ativamente tentam burlar,
driblar e superar. Há a exibição das diversas desvantagens dos sujeitos negros em relação às pessoas brancas e,
assim, produz-se visibilidade à desigualdade racial brasileira. Portanto, nas duas produções cinematográficas os
diretores se posicionam com responsabilidade social ao explicitarem as incongruências entre as condições de
desigualdade social e os ideais que sustentam uma suposta democracia racial no Brasil.
Portanto, o cinema pode resistir à violência direcionada aos jovens negros, periféricos e pobres, ao oferecer
o direito dos negros: de serem protagonistas nas produções audiovisuais fora da linhagem das personagens
estereotipadas; de construírem uma narrativa sobre as violências sofridas (simbólicas, sistêmicas, estruturais;
subjetivas, físicas); de transmitirem os valores da cultura afrodescendente e de convidarem os espectadores das
películas a quebrarem com o silenciamento frente à segregação social e racial. A despeito disso, o cinema pode
suscitar indignação e estranhamento nos espectadores frente ao fato de que algumas vidas são mais matáveis que
outras.
Há que se assinalar também que as produções cinematográficas têm a potência de manifestar e simbolizar
o mal-estar contemporâneo. Em Os Doze Trabalhos há uma alegoria para a cadeia de opressões e humilhações
a que os sujeitos estão submetidos no capitalismo tardio, principalmente no episódio da fuga do gato. Há a
referência às tarefas sem sentido que devem ser cumpridas, como também, há a exibição dos privilégios do
branco frente às condições habitacionais, econômicas e de trabalho reservados ao homem negro. Em Bróder, há
alusão à linha de demarcação de cor no Brasil, que assinala a ideia de responsabilidade moral daqueles que estão
sendo beneficiados direta ou indiretamente pelo racismo. Portanto, os dois filmes tocam na questão polêmica dos
privilégios de cor, não de modo a reforçar um sentimento de culpa paralisante, mas de maneira a interpelar cada
um de nós sobre a nossa responsabilidade moral e social frente ao racismo estrutural brasileiro.

108
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Jacquelina Maria Imbrizi - Possui graduação em psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1988), mestrado e doutorado ( 1997, 2001, ambos na PUC-SP) nas áreas de educação, história,
política e sociedade; e pós-doutorado pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia: Psicologia
social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Política
(2013 - 2015). Professora associada da Universidade Federal de São Paulo - campus Baixada , onde desenvolve
atividades na graduação e nos programas de pós-graduação stricto sensu ensino em ciências da saúde (modalidade
profissional) e interdisciplinar em ciências da saúde (mestrado e doutorado acadêmicos). Membro do Laboratório
de Psicanálise, Sociedade e Política (USP) e do Laboratório de Psicanálise da Unifesp - campus Baixada Santista.
Tem experiência na área de psicologia, com ênfase em psicanálise e psicologia social, atuando principalmente
nos seguintes temas: arte, cultura e sociedade; mal-estar e violência; narrativa de história de vida e grupo como
dispositivo.
Eduardo de Carvalho Martins - Possui graduação em psicologia pela Universidade Federal de São Carlos
(2002), mestrado (2006) em ética e doutorado (2012) em epistemologia pela Universidade Federal de São Carlos.
É especialista em gestão pública pela Universidade Federal do Tocantins (2012), com enfoque em economia
solidária e formação de grupos auto gestionários. Possui especialização em psicologia clínica pela Faculdade de
Jaguariúna (2014), com atuação em clínica de orientação psicanalítica. Atualmente é professor-pesquisador da
Universidade Federal de São Carlos no curso de pós-graduação em coordenação pedagógica. Atua também como
psicólogo do curso de psicologia da Universidade Federal de São Paulo - campus Baixada Santista. É membro do
Laboratório de Psicanálise da Universidade Federal de São Paulo – campus Baixada Santista, estando vinculado
ao correspondente Grupo de Pesquisa CNPQ (Laboratório de Psicanálise UNIFESP/BS) com as seguintes linhas
de pesquisa: Narrativas, arte e regimes de visibilidade; psicanálise, cinema e produção de imagens. Participa
da coordenação dos programas e projetos de extensão universitária na UNIFESP/BS: Cinema, Subjetividade
e Sociedade: a sétima arte na produção de saberes (Coordenador); Escuta Clínico-Política e a criação de
dispositivos de cuidado (coordenador II); Teko-Porã: Direitos Humanos e Práticas de Paz (coordenador II). Atua
como membro do Conselho Consultivo do Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência de
São Vicente/SP. Trabalha com os seguintes temas: Educação popular, escuta clínico-política, cinema, psicologia
social, psicanálise, ética, direitos humanos, formação de grupos auto gestionários.

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11. Arte em imanência ou da insensibilidade à sensibilidade: Postais para
Charles Lynch

Ciro Lubliner

1. Arte em imanência: uma tipologia da recomposição

Esse texto se insere dentro de um trabalho mais amplo de pesquisa que tensiona descrever o processo pelo
qual se desenvolve uma parte da chamada “arte da recomposição”, ou seja, aquela que faz uso de materiais e
signos prévios (não necessária e originalmente dotados de viés artístico) para a criação e o rearranjo renovador de
sentidos e sensações no já antes dado.
Paira sobre os tempos atuais – pode-se dizer desde a entrada no século XXI – o fantasma de uma espécie de
crise generalizada na possibilidade de invenção do novo, proveniente de impressões que dizem que tudo já fora
criado, havendo certo esgotamento da criatividade e da originalidade, sendo que o que fazemos e faremos a partir
de agora será apenas recriar, reutilizar e reorganizar materiais preexistentes, como se fossemos reles emuladores
de vidas e experiências passadas.
Isso se manifesta, sobretudo e já há algumas décadas, na produção em comunicação, com destaque na
publicidade e no jornalismo. A partir da invenção, do desenvolvimento e da ocupação da internet, o fluxo de
informação é tão grande e cada vez mais instantâneo que seria impossível a cada instante nos depararmos com
efetivas novidades. Vemos então o reúso se apresentando como ferramenta essencial e ponto de inflexão dessa
crise. Atualmente, o que lemos e assistimos é quase sempre uma recombinação, uma replicação e uma colagem de
diversas fontes de texto, imagem e som (seja implícita, escamoteada apenas como “referência” ou explicitamente,
por meio da citação e do crédito direto).
Pretendemos assim, aqui, investigar como a arte lida com essa crise, tomando uma suposta aporia da invenção
e da originalidade através do conceito-motor de “recomposição”, local onde o fato de que “tudo já fora criado”
não é mais um impedimento, mas um impulso.
Dessa perspectiva, surge um primeiro paradoxo promovido pela recomposição: o fato de ela fazer emergir a
diferença através da repetição, alçando a novos voos algo já apresentado. A questão é que essa repetição nunca
será exatamente a mesma, uma reprodutora do Mesmo, uma retomada dos significados aderidos e fixos aos signos
apropriados, mas uma repetição diferenciadora com pequenas variações que fazem com que novos sentidos e
sensações ganhem corpo através da criação artística.
Acreditamos que, por conta da recomposição ser um processo de criação ainda relativamente recente, há certa
lacuna crítica perante as realizações artísticas provenientes do rearranjo. Apesar de já não ser difícil encontrar
fontes, artigos e ensaios sobre a recomposição (geralmente camuflada por inúmeras nomeações técnicas: remix,
colagem, sampleagem etc.), as análises que concernem suas produções se inserem demasiado em diagnósticos e
marcações históricas (posto que não havia até pouco tempo informações que remontassem a possíveis movimentos
originários da recomposição), e em constatações e observações pragmático-analíticas (o modo de fazer e o
funcionamento de uma técnica que se mantém no final das contas como que apartada do material que reconfigura,
privilegiando o esquema de causa e efeito interior à obra [a efetuação da técnica e os resultados obtidos], que se

112
encontra finalmente apenas na esfera da representação).
Portanto, se fazem necessárias ferramentas de avaliação crítica que não se atenham somente a inventários e
identificações, mas que proponham uma crítica também criadora. É nessa direção que se torna possível dizer que
o apontamento de uma tipologia pode auxiliar na ampliação de um panorama que nos fará pensar criticamente e
sem absolutizações a produção que faz uso de signos já dados.
Em uma primeira visada, constituiríamos uma tipologia da recomposição no século XXI por meio de uma
separação tripartite, sendo seus tipos formados pela recomposição formalista, pela recomposição contextual e
pela recomposição imanente.
Por conta aqui de nossa limitação, por ora nos ateremos a dizer somente da recomposição que acreditamos a
mais radical – a recomposição imanente –, renovadora simultânea tanto de sentidos quanto de sensações, geradora
de uma estética que pode ser denominada como uma “política da sensação” ou da “sensação como política”, pois
será crucial para ela a realização de uma obra que resida sempre em um contorno ético-estético.
O uso feito da palavra “imanente” deriva do conceito de “imanência”, evocado pelo pensamento de Gilles
Deleuze e Félix Guattari. Esses pensadores realizaram uma aproximação entre arte e filosofia na medida em que
para eles ambas se apresentam como atividades criadoras, sem com isso recair em um embaçamento de suas
fronteiras:

A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte, não é a mesma
maneira de povoá-lo; aqui constelação de universo ou afectos e perceptos, lá complexos de imanência ou
conceitos. A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos. Isto não impede que
as duas entidades passem frequentemente uma pela outra, num devir que as leva a ambas, numa intensidade
que as co-determina. (DELEUZE e GUATTARI, 1992: 88)

O tipo da recomposição imanente engendra uma criação artística que nos força a pensar, sem que a construção
estética seja relegada aos planos de inferioridade. É por isso que há nela tanto a renovação de sensações, quanto a
de sentidos. Isto quer dizer que a recomposição imanente fabrica o que é o mais próprio da arte, a constituição e o
trabalho de ordem marcadamente estético (jogar com traços, cores, gestos, imagens, sons etc.), mas que também
não se furta a apontar novos sentidos para os signos apropriados, liberando-os de seus significados habituais,
quase automáticos, estancados em sua condição de utilidade.
Entrando de modo mais afetivo na criação de recomposições imanentes, é possível perceber que sua realização
se processará através de três dimensões; locais onde a arte e o pensamento entram em conjunção, imprimindo saltos
e giros radicais – anteriormente impensados – nos materiais de que faz uso. Essas dimensões são compostas pela
apropriação, pela deformação, e pela conexão. Visualizando esses planos dimensionais procuramos como que
traçar um caminho, uma linha de produção ético-estética. Realizamos esses cortes transversais na recomposição
imanente simplesmente para buscar pensar cada camada ou dimensão do trajeto de (re)composição como espaço
dotado de elementos singulares.
Trataremos então de tentar enxergar pontos sensíveis e renovadores de sentido com o qual se relacionam a
obra Postais para Charles Lynch do Coletivo Garapa a partir da noção de recomposição imanente. Esse trabalho
tem como tema catalisador a onda de linchamentos que ocupou o Brasil durante parte do ano de 2014, disparados
por alguns eventos e notícias específicas veiculadas em jornais impressos, televisivos e em páginas da internet,
tendo reflexos diretos na sociedade. Retomando uma prática realizada no início do século XX nos EUA, onde
pessoas de diferentes regiões e estados trocavam, via correio, cartões-postais que estampavam o registro dos atos
de linchamentos naquele país, usuários passaram a compartilhar, por meio de vídeos amadores, uma série de
linchamentos ocorridos nas ruas do Brasil do século XXI.
113
No trabalho produzido pelo Coletivo, foram colhidos e catalogados esses vídeos publicados no YouTube
por usuários (geralmente de forma anônima) que continham registros de violência extrema praticada por grupos
contra indivíduos isolados que eram por aqueles julgados como culpados por supostos crimes ou roubos.
Esse material de coleta audiovisual foi todo reunido em um disco rígido do tipo LTO (do inglês Linear
Tape-Open), utilizado geralmente como um banco de dados que computadores pessoais e notebooks comuns
não abrem, não conseguindo acesso aos arquivos. Dos vídeos, foram retirados frames específicos que tiveram
seus códigos alterados pela injeção de frases de comentários de ódio postados por usuários-espectadores (essas
imagens são consideradas mesmo como fotografias82), gerando ruídos e defeitos nas imagens. Além disso, foram
escritas páginas de um roteiro que narram alguns dos eventos ocorridos nos vídeos coletados83.
Procuraremos, doravante, observar como essa obra responde – de que modo e por quais aspectos – a pergunta
que o próprio Coletivo lança: “como tornar sensível àquilo que parece nos encaminhar à insensibilidade?”
(GARAPA, 2016), balizada pelas dimensões da recomposição imanente.

2. Vórtice apropriador

O problema da cópia na arte é hoje um tema já muito discutido, principalmente por conta do desenvolvimento,
no século XX, cada vez mais restritivo e moral, dos chamados “direitos autorais”. A obra de arte como propriedade
surge para restringir e garantir o usufruto comercial para determinadas pessoas e/ou grupos empresariais. A questão
do plágio sempre foi um tabu e, de tempos em tempos, são descobertos, por exemplo, casos em que “impostores”
são convocados para realizar, sob encomenda, cópias fiéis de pintores renomados. Na entrada do século XXI, no
entanto, alguns movimentos foram tomados para renovar e ampliar as possibilidades dentro da relação da arte
com o reuso e o consumo, sem que fosse ferida alguma legislação e valorizando o compartilhamento84.
O exercício de copiar é recorrente e bastante realizado na arte contemporânea (talvez em toda a história da
arte), sobretudo nos casos onde o objetivo é o de transmitir e dotar alguém de uma habilidade técnica específica.
A criação baseada na cópia está ligada à reprodução de um modelo ideal, de uma mimese inexorável, ou seja,
da reprodução do Mesmo. Na arte, uma suposta tradição da noção de cópia esteve sempre inclusa no campo da
representação realista, da demonstração por parte do artista de uma habilidade técnica. No caso da recomposição
imanente, vemos que não se trata do mero ato de copiar, mas do gesto de apropriação.
A apropriação surge como termo próprio à arte já nas últimas décadas do século XX, sendo inclusive utilizado
na definição de uma “arte da apropriação”, notadamente nos EUA a partir da década de 1980, representada pelo
trabalho de artistas como Cindy Sherman, Richard Prince e outros (FOSTER, 2014: 140). Nela, a habilidade
técnica não deixa de existir, a maioria desses artistas se pautava em colagens, mas o foco de atenção não se
concentra mais em um virtuosismo, apoiando-se muito mais nos efeitos que obra pode alcançar, nos ecos de
reflexão e na relação com outros aspectos da vida que propõe. Na arte da recomposição, a noção de apropriação
tem papel fundamental, ganhando contornos bastante cruciais. É a partir dela que se tornam possíveis e da qual
partem reconfigurações de várias ordens.
Notamos, dessa maneira, que a cópia tem uma orientação que diz respeito ao exercício pedagógico, ligado à
utilidade e a obtenção de uma habilidade, enquanto que a apropriação nada tem a provar, a legitimar ou a dominar,
estando aberta a um livre uso. Apropriar-se na arte concerne ao discreto anúncio de um gesto por vir, de uma
82 Esse trabalho foi um dos contemplados, no ano de 2014, com o prêmio da Revista ZUM de fotografia do Instituto
Moreira Salles.
83 O livro pode ser acessado no seguinte endereço, o que facilitará o acompanhamento do texto: https://issuu.com/
fehlauer/docs/postais_para_charles_lynch.
84 Nessa direção surgiram, por exemplo, as licenças creative commons e a cultura open source.

114
sequência não linear. Quem se apropria, se apropria com um propósito distante da utilidade, pois se inscreve na
execução de uma obra onde não há teleologia, que não objetiva nada exatamente, a não ser a sua própria produção.
A ideia de apropriação na arte é o movimento que rompe com a transposição direta, com a tradução
literal, sempre em vista. Apropriar remete a uma ação necessariamente transgressora e criativa. É por isso que
acreditamos que, na recomposição imanente, ao se fazer uso de signos já dados, o que está em jogo não é a
cópia ou o ato de copiar, mas a apropriação. A apropriação se diferencia ainda da cópia porque não tem como
característica a manutenção hierárquica do modelo, pelo contrário, sua verve é sempre iconoclasta, já que ela não
visa preservar e enaltecer sua origem, mas romper com ela, desatar laços, distanciar-se. A recomposição imanente
não lida com cópias, não almeja se reportar ao modelo, seu ato de coleta está relacionado com a ruptura dessa
referência originária. O “tomar para si” da apropriação é força primal de recomposição: “fazer uso de”, sem que
nada seja transformado em utilitário.
O conceito de profanação do filósofo Giorgio Agamben parece se relacionar com a noção de apropriação
como constituinte de uma política da sensação na recomposição. Agamben define o profanar como um ato
que restitui o livre uso de algo que era anteriormente considerado sagrado, que pertenceria, portanto, apenas
ao reino dos deuses. Tornar profano seria então tornar possível a utilização de algo que antes era considerado
integralmente separado da vida. Nesse sentido, o que é sagrado se define como “o princípio através do qual se
criam obstáculos para a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição
da ficção” (AGAMBEN, 2007: 50). Na arte, o sagrado é justamente o que impede a circulação, veta e restringe
o uso. Assim como no ato de profanar, a apropriação na arte da recomposição está como que fissurando, abrindo
fendas no universo da propriedade e da sacralização da autoria e da originalidade, buscando constantemente
desviar de suas ferramentas de captação, sucção e absorção.
Aproximando e relacionando obras realizadas muitas vezes em tempos e contextos completamente diferentes,
a arte da recomposição se aproxima novamente da profanação, pois “profanar significa abrir a possibilidade de
uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (ibid.: 59). Um
outro dado da apropriação na recomposição que a alia ao da atividade da profanação diz respeito ao modo como
a arte nela se apresenta, para além do uso útil (domínio da cópia): “o uso a que o sagrado é devolvido é um uso
especial, que não coincide com o consumo utilitarista” (ibid.: 60).
Na esteira da profanação se encontra Postais para Charles Lynch, do Coletivo Garapa: ao se apropriar de
vídeos postados por usuários que contém imagens fortes de linchamentos ocorridos no Brasil contemporâneo, o
Coletivo não busca replicar e disseminar a barbárie exposta nas imagens (como é o caso dos próprios usuários
que, não sendo possuidores e registradores daquelas imagens que publicam, se tornam somente reles reprodutores,
divulgadores e/ou incentivadores de tais práticas – o fetiche, o mórbido prazer pela atrocidade, é apenas uma
ponta desse iceberg), nem simplesmente denunciar a violência e o ódio que atravessam a sociedade (isto parece
ser tarefa do jornalismo, que na verdade acabou por, ao contrário, unir-se, em parte, a vetores fascistas85), mas
colocá-la em xeque, problematizá-la, escancarando os absurdos e as atrocidades do humano, exorcizando “a
imagem por meio da repetição” (GARAPA, 2016).
Acionando uma engrenagem incessante, um vórtice de coleta e catalogação dessas imagens e áudios,
para a posterior reunião desse material no disco rígido LTO, o Coletivo catalisa um processo de apropriação
de mão dupla: se por um lado há a deformação e reinvenção dessas próprias imagens, há também o dado do
armazenamento, da criação de um inventário digital, como se aqueles vídeos agora ficassem trancafiados em
códigos, mas não completamente presos, funcionando como uma caixa de pandora que, quando aberta, libera e
joga diretamente em nossas faces a violência brutal de nossos – pretensos – semelhantes, como talvez no registro
de uma época que nunca chegou exatamente a passar (os postais trocados no início do século XX são agora os
85 Vide a exposição, no próprio livro do Coletivo, de uma figura como a jornalista Rachel Sheherazade.

115
vídeos compartilhados no XXI).

3. Deformação criadora

Outro movimento que é processado na recomposição imanente trata da ideia de deformação. Nas últimas
décadas, vemos surgir com bastante intensidade a valorização do defeito, da falha e da imperfeição na arte.
Apesar de ter seus ecos passados nas vanguardas artísticas do início do século XX (um exemplo direto, no caso da
música, é o do movimento futurista), essa perspectiva tomou, com o desenvolvimento das artes e das tecnologias
digitais, proporções ainda maiores, quase como se a relação entre arte e tecnologia passasse necessariamente pela
incorporação do erro.
Em estudos críticos e teóricos se passou mesmo a ser defendida a perspectiva de uma estética do erro,
composta por uma série de definições, tanto técnicas quanto nocionais. Essas definições foram concebidas não
só por teóricos provenientes da academia, mas por artistas que partiam de seu próprio repertório de trabalho e de
referências (como é o caso, por exemplo, de Kim Cascone e Ant Scott). Uma dessas noções ligadas ao erro no
digital é o de glitch art.
A arte glitch se tornou bastante difundida e praticada desde a entrada no século XXI, sendo definida como
“um resultado inesperado de um mau funcionamento, um erro, um defeito, uma falha” (GAZANA, 2013: 83).
Para além dos resultados empíricos que as falham podem acarretar – há toda uma classificação analítica no que se
refere a seus efeitos (a alteração de cores, a perda de informação em determinados trechos de imagens e sons etc.)
–, é inegável que algumas das questões que permeiam a produção artística no uso do glitch podem ultrapassar
significativamente o que está visível e/ou audível nas obras. Por esse ponto de vista, não se trata nunca somente
de representar o erro, mas de revelar o que pode ele nas imagens e nos sons, sua força de alcance de sentido e
sensação.
Em Postais para Charles Lynch, a estética do erro e o glitch se fazem presentes no processo adotado para a
captura das fotografias impressas no livro: palavras e frases de comentários de ódio que eram escritas por usuários
junto aos vídeos publicados na rede, foram incluídas nos códigos dos frames retirados desses mesmos vídeos, o
que resultou em falhas quando de sua reprodução gráfica. A manipulação do código digital da imagem, que nesse
caso é operada pelo código linguístico, expõe acidentes altamente deturpadores.
Esse processo de inclusão de informações que não são legíveis pela máquina, acaba por perfurar o útil,
pois embaça a plena visualidade, diferenciando radicalmente as imagens de suas fontes originais. Muitas vezes,
ao folhearmos digitalmente o livro do Coletivo, esquecemos que estamos diante de imagens que estão como
que desordenadas, desorientadas visualmente (não há mesmo naquelas fotografias uma definição realmente
controlada, já que o resultado obtido pelos artistas foi regido pelo acaso, pelo acidental), cometemos então como
que atos falhos, a esperar seus plenos carregamentos, com a impressão de que as imagens não estão com a nitidez
que possuem realmente, e como nada acontece, acabamos por atentar para o fato de que aquelas imagens são tal
como estão. A interferência na inteligibilidade é, portanto, caráter inegável nessa obra.
Ao pensar a obra do pintor Francis Bacon, Gilles Deleuze afirmou que suas pinturas (especificamente quando
dizendo da [re]leitura que o pintor fez do Papa Inocêncio X, de Diego Velázquez) não transformam figuras,
mas as deformam. Segundo o filósofo, Bacon não pintou o sentimento do horror, mas as forças invisíveis que
impelem o grito. Assim, não se tratava de uma transformação figural que pretendia expressar um sentimento, mas
da deflagração das forças que subjazem o grito, que acabam por deformar a figura, por sacudir as cabeças e os
corpos. A técnica se apresenta assim como uma ferramenta de captura de forças, e não como mera reprodutora
da Forma.
116
Por conta disso, pensamos que, na recomposição que nos provoca criticamente, não se trata nunca da
transformação de obras e coisas prévias para a (re)produção de algo, mas da deformação de materiais anteriores
para a renovação de sentidos e sensações. Escreve Deleuze (2007: 64): “Trata-se de duas categorias muito
diferentes. A transformação da forma pode ser abstrata ou dinâmica. Mas a deformação é sempre no corpo”. Não
à toa, os frames colhidos pelo Coletivo Garapa, em sua maioria, mostram corpos, vivos ou mortos, deformados
pelo erro digital: defeitos e acasos que emanam das forças invisíveis da violência. É importante marcar como nessa
conquista do erro há certamente algum rigor implicado, o exercício árduo de coleta e catalogação já é um indício
disso, mas que não se volta à perfeição do figural, para a virtuose empírica, mas para outras potencialidades da
imagem. É toda uma nova maneira de pensar e fazer arte que está em voga.
Temos a forte impressão de que, em seu trabalho, o Coletivo não buscou simplesmente transformar as
imagens provenientes da barbárie; expondo qualquer sentimento humanista que fosse como poderia ser no caso
da ideia de “indignação” (lembremos que os próprios grupos enraivecidos que praticam o linchamento justificam
sua atuação fazendo uso dessa palavra), mas deformações que problematizam questões profundas86 – na arte,
na história, na sociologia – escapando de interpretações maniqueístas e julgadoras (mais uma vez, o grupo que
lincha, cria um júri independente, que julga fora da lei oficial vigente). Tornar disforme, perder a nitidez, talvez
seja uma característica das forças que movem aqueles que decidem linchar.
É como se, ao incluir os comentários de ódio de usuários nos códigos dos frames selecionados em Postais
para Charles Lynch, corrompendo os dados de sua representação gráfica, aquelas imagens expusessem, por meio
de uma revolta muda, um jogo de espelhos que reflete a própria falência (e a falha na arte glitch é evidentemente
bem diferente dessa) e o mau funcionamento da civilização construída através dos tempos, em uma espécie
mesmo de sintomatologia da sociedade (o artista se aproxima do que disse Nietzsche quanto aos filósofos, que
para ele, deveriam ser como “médicos da civilização”):

Aquilo que, de outra forma, seria recebido passivamente – um vídeo, fotografia ou gravação musical –
agora tosse uma inesperada bolha de distorção digital. Seja ela intencional ou acidental, a falha (ou glitch)
tem a capacidade de desnudar as estruturas (eletrônicas, econômicas, políticas) que organizam e se impõem
ao mundo. E é natural que, na medida em que somos apresentados a uma infinita e amorfa coleção de
pacotes de dados, a poética, a estética e a ética voltem-se também para a discussão e a problematização
dessas estruturas. Na falha reside uma potência poética (e política) de atuação. (GARAPA, 2016)

4. Tecido conectivo

Constantemente, em textos críticos sobre as expressões da arte contemporânea é mencionado o caráter


híbrido de suas atuações, da capacidade de mistura entre diversas artes para a composição de obras que ficam
sempre em um espaço fronteiriço e de definição embaçada. Para a recomposição imanente, as marcações que
indicam a arte como dotada de hibridez podem ser pensadas como algo quase trivial, ou mesmo óbvio, pois
sua criação só é possível pela mescla, pela mistura de materiais provenientes de diferentes fontes. A invenção
via recomposição está inexoravelmente relacionada com a abertura de territórios sempre mestiços, desde sua
gênese, com a construção de moradas que são como zonas de indiscernibilidade. Nas profundezas de seus solos
encontramos substâncias variadas que podem chegar à superfície, dependendo da mediação dos processos que
são trazidos à tona pelos artistas.
Em Postais para Charles Lynch, essa concentração que pode ser identificada como um compósito de hibridez,
86 Indicamos aqui a leitura de dois textos constantes na bibliografia: o do próprio Coletivo Garapa, e o do crítico de
arte Moacir dos Anjos.
117
está no livro produzido, que é justamente a peça final do trabalho. Esse livro reúne, com posição de destaque,
as fotografias/imagens (os frames deformados) retiradas dos vídeos apropriados; um breve roteiro, resultado da
descrição de algumas das cenas assistidas nos vídeos; o disco rígido LTO, que contém todo o material audiovisual
coletado; e um índice, que classifica alfabeticamente os vídeos através de seus títulos. Essa reunião é indicada
como formadora de um livro de artista.
O livro de artista se apresenta como manifestação bastante profícua por ser um objeto de arte portador de
singularidades extraordinárias, sempre escapes a definições fechadas, e que carrega de modo elementar o aspecto
da hibridez, de mistura necessária, em sua constituição. Segundo Riva Castleman (apud SILVEIRA, 2001: 32):

O livro pode apresentar-se como livro-objeto, como livro de artista ou livro de artista artesanal; pode fazer
parte dos livros de bibliófilo ou manifestar-se como documento de performances, de trabalhos conceituais
ou experiências de land art; pode assumir a forma de livro ilustrado por artistas ou de livro-objeto, livro-
poema ou poema-livro, e outras denominações, as quais podem diferir a partir da concepção do referido
objeto.

Ademais, podemos ver em um teaser87 publicado pelo Coletivo Garapa como, seu livro, apesar de reunir e
se apoiar primordial e inicialmente em expressões, produções e compartilhamento digitais, foi confeccionado em
parte através de uma linha de montagem também manual, artesanal (a costura na borda das páginas explicita esse
aspecto).

A conexão de diversos materiais e códigos é o que preenche este corpo múltiplo que compõe o livro de artista
do projeto Postais para Charles Lynch. Ao contrário dos grupos agressores registrados nos vídeos publicados
e coletados, aqueles que se juntam para pretensamente punir algum indivíduo isolado e acossado, tomando a
feição amorfa e homogênea do ódio, a conexão e a multiplicidade na arte realiza um movimento de consonância
heterogênea, que potencializa as possibilidades artísticas, como em um prisma infinito de (re)invenção.
O fato das fotografias componentes do livro serem imagens/frames retirados de vídeos é algo a ser destacado,
já que esse movimento acarreta em uma espécie de decomposição, ou em um retorno não restritivo da imagem em
movimento à imagem estática – a percepção de que os vídeos são formados por inúmeras fotografias que passam
despercebidas diante de nossos olhos. Ao retirar deles células específicas, torna-se possível enxergar o que antes
talvez ficasse apenas subentendido ou subconsciente naquelas imagens.
O entrelaçar de diversos tecidos, não se dá apenas pelo caráter artístico, mas por vieses midiáticos (a mídia
“oficial” que chegou a veicular trechos de alguns desses vídeos em telejornais) e anônimos, aqueles alimentados
através da internet, ambos pautados, sem dúvida, na espetacularização da violência.
Além das fotografias que expõem figuras humanas, uma das imagens do livro é justamente a de frases e
palavras retiradas dos comentários dos vídeos e inseridas nos códigos de frames. Essa imagem, além de revelar
diretamente a feitura, o processo de criação que deságua no glitch, a inserção do defeito nas imagens, parece
também se aproximar da ideia de poesia visual, ampliando seu alcance até outra forma de expressão artística.
Na pluralização de atuação nos campos da arte, imprimido pelo livro de artista, também constam as páginas que
registram um suposto roteiro. Elas estampam a descrição de um dos vídeos coletados, nos moldes de um roteiro
cinematográfico ou televisivo. Mais uma vez, vemos uma imagem que borra qualquer tentativa de definição
estanque da obra produzida. Esse breve roteiro pode ser inclusive identificado e pensado de múltiplas maneiras:
seria ele a descrição das cenas de um documentário? O script de um programa de TV sensacionalista? O roteiro
de um filme de ficção a ser rodado? O próprio muro ilusório que teoricamente separa realidade e fabulação parece

87 https://vimeo.com/140832075.
118
nesse caso ser completamente apagado.
Essa escritura de uma encenação por vir, ou mesmo já encenada, nos lembra o livro do escritor Valêncio Xavier,
Remembranças da menina de rua morta nua. Nele, o autor escreve o livro pelo processamento de uma colagem
que inclui textos curtos, a descrição de um programa de TV, as notícias e fotografias de jornais impressos, e
algumas definições retiradas de dicionários e enciclopédias; composição geradora de um choque entre a realidade
e a ficção que confere um ganho e uma reconfiguração radical de sentido nos textos e imagens apropriadas,
similar ao ocorrido no trabalho do Coletivo Garapa.
O disco rígido LTO tem ainda uma posição bastante interessante nas conexões que preenchem o livro. Sua
potência reside no fato de ser uma mídia de difícil utilização, já que computadores e notebooks comuns, de uso
pessoal, não conseguem ter acesso aos arquivos ali reunidos. Esse armazenamento que tem o alcance de seus
arquivos restrito, funciona como uma espécie de baú enterrado para gerações futuras, se ligando com um caráter
arqueológico por vir. Pelo fato dos vídeos de linchamentos publicados serem arquivos muito voláteis – por
infringirem políticas e condições de uso do YouTube acabavam por ser rapidamente retirados do ar –, o disco
LTO se torna uma fonte guardiã de todo esse material, como se ele garantisse, ao mesmo tempo, o esquecimento
e a lembrança daquelas imagens e sons. Temos a impressão de que é importante que aquilo se mantenha como
que afastado, contido em resistentes gabinetes, mas que também seja de alguma forma possível o seu acesso, não
ignorando os lados obscuros que povoam o humano.
Finalmente, o índice que é anexado à obra, nos deixa a impressão de termos estado, sem saber, e durante todo
o tempo de folhear do livro, diante de um catálogo, que tem seu registro histórico garantido, expondo uma era
ainda por ser pensada.

5. Da insensibilidade à sensibilidade

Tentamos nesse texto, primeiramente, apontar para uma separação tipológica na arte da recomposição, de
modo a possibilitar a avaliação, e não o julgamento, de produções artísticas que se pautam na reconfiguração de
signos prévios, como em uma ética-estética que lança novos olhares críticos para parte da arte contemporânea.
Se, atualmente, convivemos cada vez mais com a ideia de que “tudo é um remix”88, a noção de recomposição
imanente procura dar pistas, sugerir rotas para o encaminhamento destas questões: se há algo de realmente fértil na
recomposição, o que então exprimiria suas potências? Como, sempre caso a caso, pensar seus desenvolvimentos
sem que se parta já de antemão com a ideia de que todo e qualquer recomposição vale a pena, de que toda obra
carrega em si intensidades renovadoras? Se hoje temos a impressão de que tudo já foi criado e inventado, de
que vivemos atravessados por fluxos incessantes e infinitos de informação (na maioria das vezes considerada
perdida ou bem pouco aproveitada) a recomposição imanente é um processo artístico que traça uma linha, que dá
consistência a um plano de composição nesse caos.
O relato dos componentes do Coletivo Garapa, ao dizer dos procedimentos que foram adotados para a
composição de Postais para Charles Lynch, indicam o exercício de pensar comparativamente as recriações que
estavam dispostas a operar. Nas palavras do ensaio escrito pelo Coletivo a partir de sua obra:

na nossa percepção, há um paralelo entre os vídeos de linchamentos publicados hoje no YouTube e os


postais que circularam nos Estados Unidos de um século atrás. Obviamente, há diferenças de contexto, mas
a comparação, mesmo que arbitrária, parece fazer sentido por três características comuns às duas narrativas:
compreendem uma forma popular e contemporânea de transmissão de informação (correio X internet);
utilizam uma linguagem visual realista apoiada no testemunho documental (fotografia X vídeo de celular);
88 Referência à série de documentários Everything is a Remix (2010-2012) de Kirby Ferguson.
119
estão permeados por um caráter moralizante, como se, por meio da transmissão, buscassem legitimar as
ações representadas. (GARAPA, 2016)

Nesse trecho observamos três pontos indicados pelo Coletivo Garapa que fazem com que a ideia de
recomposição se duplique, bifurque, pois além de se apropriarem, deformarem e conectarem os vídeos publicados,
o grupo ainda identificou a reaparição, a recriação, de uma prática ocorrida no passado realizada através dos
vídeos (os cartões-postais trocados nos EUA no início do século XX se tornaram os vídeos compartilhados no
Brasil no início do século XXI). Essa outra recomposição (que permeia a própria obra, e que pode ser inclusive
considerado como sua base), a partir do ato comparativo, e mesmo chamado de arbitrário (mas que poderia da
mesma forma ser nomeado como fortuito ou acidental), revela imagens que podem dar pistas para o ganho de
sentido e sensação imprimidas no próprio Postais para Charles Lynch.
Se essa recomposição de base, concentra-se em: a) os meios envolvidos no compartilhamento das imagens:
o correio e a internet, b) as técnicas de registro utilizadas em cada um dos momentos: a fotografia e o vídeo
de celular, e c) a reprodução do mesmo que atravessa o caráter moralizante; poderíamos arriscar dizer que a
recomposição imanente produzido pelo Coletivo gera outros três encontros: a) os meios envolvidos: a internet
e o livro de artista, b) as técnicas de registro utilizadas: o vídeo de celular e o processo de edição que produz o
glitch, e c) a reprodução da diferença que atravessa a problematização do caráter moralizante, tornado ético (o que
permeia aquelas atitudes? O que faz com que uma multidão aja daquele jeito? Quem são os envolvidos [agressor
e agredido]? O que faz as pessoas disseminarem este tipo de material? E por quê?).
Sob a luz desses aspectos, podemos afirmar que o trabalho Postais para Charles Lynch incide em três
quebras, rupturas renovadoras – através da arte da recomposição – que esmigalham e rompem irremediável e
definitivamente com: o caráter de utilidade da transmissão de informação (a ideia de para além do fetiche, aquelas
imagens necessitam ser replicadas); o registro puramente realista (a ideia de que as imagens devem ser as mais
“reais” e brutais possíveis, precisam “chocar”); e a propagação de um discurso moralizante (a ideia de que se deve
fazer justiça com as próprias mãos).
Parece ser então, dessa maneira, que o Coletivo Garapa torna sensível o que nos encaminharia à insensibilidade.

120
Referências bibliográficas

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DELEUZE, Gilles. Francis Bacon – Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.
DOS ANJOS, Moacir. A fúria contra o estranho. Disponível em: http://revistazum.com.br/colunistas/a-furia-
contra-o-estranho/. Acesso em: 18 dez. 2016.
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percurso-pela-barb%C3%A1rie-5dfb35cc3929#.2kddx2n1w. Acesso em: 6 out. 2016.
GAZANA, Cleber et al. “Glitch: estética contemporânea visual e sonora do erro”. In: Cultura Visual, n. 19,
julho/2013, Salvador: EDUFBA, p. 81-99.
SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2001.
XAVIER, Valêncio. Remembranças da menina de rua morta nua e outros livros. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.

Ciro Lubliner - Doutorando na linha de pesquisa tecnologias da comunicação e estéticas na Universidade


Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa na Univer-
sidade de São Paulo (USP) e graduado em imagem e som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
É cofundador e integrante do Coletivo Casa Vazia, atuante em ações culturais voltadas à produção de grupos de
estudo, cursos e eventos.

121
12. A representação da guerrilha no cinema argentino (1968-1971)

Estevão Garcia

No cinema argentino a guerrilha, a priori, será representada como fato concreto e não como alegoria ou me-
táfora. Dois filmes chave são La hora de los hornos (Fernando Solanas e Octavio Getino, 1966-1968) e Invasión
(Hugo Santiago, 1969). O primeiro será visto como uma influência fundamental para a emergência do cinema de
intervenção política e o segundo como precursor, junto com The Playes vs Ángeles caídos (Alberto Fischerman,
1968), do chamado Cine Subterráneo. Os dois filmes já foram comparados (Aguilar, 2009), (Oubiña, 2016) e
tornou-se frequente a interpretação dos finais de La hora de los hornos e de Invasión como a chegada da violên-
cia política na Argentina, seja sob a forma de uma exaltação à luta armada em um filme ou sob a forma de um
profético prenúncio no outro. Logo, a violência como única saída de salvação da pátria reuniria dois filmes com
propostas tão diferentes. Alianza para el progreso (Julio Ludueña, 1971), filme considerado pertencente ao Cine
Subterráneo e não um pioneiro a este como Invasión, se localizará em um outro lugar.

A violência política, perpetrada pelos guerrilheiros, não será mais vista como única saída até porque não há
nenhuma saída nítida a ser indicada. Ao contrário da defesa do Che como modelo em La hora de los hornos ou o
retrato heroico dos velhos guerreiros de Invasión, em Alianza para el progreso a guerrilha, como observaremos,
não será glorificada. Os guerrilheiros serão mostrados de maneira ambígua e não estarão imunes a críticas, apesar
de serem os únicos personagens que não são ridicularizados. Os guerrilheiros tampouco serão alegóricos como os
demais personagens. Em Alianza para el progreso, as forças políticas serão alegoricamente encarnadas por distin-
tas figuras e a alegoria se assume como o principal recurso. Notamos que mesmo em um filme alegórico como esse
a guerrilha conserva o seu aspecto representacional “concreto”, o que conectaria o filme de Ludueña a uma espécie
de “tradição” do cinema argentino moderno. Nela, estariam juntos os opostos representados pelo grupo Cine Li-
beración, de um lado, e pelo Cine Subterráneo, do outro. No entanto, apesar dessa convergência na representação
não metafórica da luta armada, o olhar sobre a guerrilha, sobre a política e sobretudo sobre a relação entre cinema e
política, os separará. A análise de Alianza para el progreso e sua comparação à La hora de los hornos, tendo como
eixo a representação da guerrilha, nos permitirá examinar os elementos que estão em jogo e em disputa entre um
certo cinema de vanguarda e o cinema militante.

Em Alianza para el progreso é possível detectar a presença de dois grupos de personagens: o dos poderosos e
o da resistência ao poder. No primeiro, está o Empresário que representa o capitalismo, o General que representa
o exército, USA, a esbelta loira que representa o imperialismo estadunidense, o Sindicalista que representa os
líderes sindicalistas e, no segundo, três guerrilheiros, dois homens e uma mulher, que fazem parte da resistência
armada. Poderíamos ainda citar dois personagens “isolados” e pendulares que, apesar de pertencerem a nenhum
desses grupos, circulam entre eles: o Artista “engajado” que se vende ao imperialismo e à burguesia e a mulher
com ímpetos de ascensão social que representa a classe média. É interessante salientar que tanto o imperialismo89
como a classe média são encarnados por mulheres.

Entre os dois personagens pendulares se nota uma maior atenção conferida ao Artista. Ao contrário da
Classe Média, que vende o seu corpo ao Empresário e a USA, o Artista apresenta uma ambiguidade em seu dis-
curso. Ele também se vende ao empresariado e ao imperialismo, ao aceitar ser contratado por estes, porém, as
89 Lembramos que um pouco antes, em Der leone have sept cabeças / O leão de sete cabeças (Glauber Rocha,
Brasil, Itália, França, 1970), o imperialismo havia sido representado por Marlene (Rada Rassimov), uma exuberante
loira. Certamente Ludueña não teve acesso ao filme de Glauber, o que comprova que ambos respondem a uma mesma
122
suas posturas artísticas estariam afinadas aos ideais revolucionários. Ele se promove como um artista da revolu-
ção, como um criador que luta através de sua arte. Defende a sua especificidade como artista e se enxerga como
um ser especial.

O Artista representa todos os artistas que falsamente se vendem como engajados. Não é por casualidade que
transita por quase todas as artes: é ao mesmo tempo compositor e cantor de protesto, romancista e artista plástico.
Compõe uma canção criticando a burguesia e clamando por mudanças sociais; escreve um romance cujo enredo
centra-se em um burguês desiludido com a sua classe social que se identifica com o povo; faz quadros em que
retrata os miseráveis e por fim elabora cartazes repletos de slogans políticos. É um vendido ao sistema e por isso,
certamente, é um dos personagens mais execráveis pelos olhos da enunciação narrativa. As suas palavras contra
o status quo seriam inofensivas uma vez que não proporcionam nenhum abalo. O sistema as permite e as con-
trola. Através do personagem do Artista, Alianza para el progreso afirma que a arte militante também pode ser
cooptada. Em seu manifesto Hacia un Tercer Cine, o Cine Liberación havia defendido que o sistema absorvia e
neutralizava a contracultura e a vanguarda.90
Assim como o Cine Liberación o personagem do Artista não se contenta em ser somente “comprometido”
ou apenas “vanguardista” do ponto de vista formal. Não é por acaso que se apresenta como Lucho Ruptura. Seu
nome é curioso porque acrescenta ao seu repetitivo discurso em prol da singularidade da arte e do trabalho artísti-
co a necessidade de romper com a arte estabelecida ou oficial. Não seria suficiente ser artista e sim ser um artista
de vanguarda em um sentido integral, tanto no campo estético como no político. Lucho Ruptura, portanto, pre-
tende situar-se nas duas vanguardas. É necessário lembrar que a não separação entre vanguarda estética e política
era reivindicada pelo Cine Liberación?91
No filme, o grupo dos guerrilheiros é o único conjunto de personagens visto de maneira mais ou menos
positiva. Na cena em que o grupo de poderosos está no descampado, as fotografias dos revoltosos são manu-
seadas. Descobrimos pela fala do General que os guerrilheiros são compostos por um padre, uma operária e um
estudante. O Empresário quando vê as fotografias comenta: “ainda nem soltaram o peito da mamãe e já querem
fazer a revolução”. Os guerrilheiros são, portanto, formados por distintos extratos da sociedade e são jovens. Nas
poucas cenas em que aparecem, estão sempre em ação. Para ser guerrilheiro não é necessário teorizar e sim agir.
A revolução se faz com ações. Eles apresentam treinamento militar, são eficientes na tarefa de não se tornarem
visíveis no meio dos escombros em que se escondem. Conseguiram destruir o radar enviado por USA. Em todas
as operações que resolveram empreender foram bem sucedidos. Capturam um soldado, tiram-lhe o uniforme e
o deixam amarrado. Posteriormente, em um estacionamento, conseguem sequestrar o Empresário. No processo
de captura, o guarda-costas tentou reagir, mas os guerrilheiros foram mais rápidos no gatilho e o mataram. Tudo
isso lhes confere um tratamento distinto do que foi dado ao General, ao Empresário, ao Artista e à Classe Média.
Enquanto os demais são ridículos, caricatos ou fracassados, os guerrilheiros são corajosos e sempre triunfam.

sintonia em enxergar o imperialismo como uma entidade sedutora, hipnotizadora, disfarçada de beleza e que é capaz
de despertar múltiplos desejos. Para incorporar essa entidade, na visão dos realizadores, nada melhor que uma linda
mulher loira. O cinema militante latino-americano também lançou mão do procedimento de associar a beleza feminina
e os instintos despertados por ela ao imperialismo ou a elementos a ele vinculados. Em La hora de los hornos serão
justamente as belas moças dançando na festa-happening do Di Tella que desencadearão a sequência de montagem em
que um grande número de imagens será utilizado para enfatizar o poder de sedução e encantamento do imperialismo
cultural. Entre essas imagens, veremos muitas de lindas modelos. Em Cómo, por qué y para qué se asenina a un gene-
ral (Santiago Álvarez, Cuba, 1971), a CIA é simbolizada, no inicio e no final, por imagens de mulheres nuas.
90 “A virulência, o inconformismo, a simples rebeldia, a insatisfação, são produtos agregados ao mercado de compra
e venda do capitalismo, objetos de consumo. Sobretudo em uma situação onde a burguesia necessita inclusive de uma
dose mais ou menos cotidiana de shock e elementos excitantes de violência controlada, ou seja, daquela violência que
sendo absorvida pelo sistema se reduz em estridência pura” (SOLANAS; GETINO, 1988:37).
91 Robert Stam, anos mais tarde, publica um artigo justamente intitulado The hour of the furnaces and two avant-gar-
des em que aponta que o grupo de Solanas e Getino foi bem sucedido em seu objetivo. Ver Stam, 1980-1981:7-9.
123
É possível perceber melhor a representação dada aos guerrilheiros na sequência do cativeiro do Empresário.
Os guerrilheiros estão tomando mate e escutam ópera no rádio. Preocupam-se com a saúde do prisioneiro, lhe
oferecem mate e depois queijo. Este, primeiro recusa e depois cede aceitando o alimento. Em seguida pergunta
se há algo para beber, como resposta, um dos guerrilheiros lhe oferece uma garrafa de Coca-Cola. Podemos ver
aí um comentário irônico que atesta a inconsistência entre teoria e práxis. Como podem ao mesmo tempo discur-
sar contra o imperialismo e tomar o seu refrigerante símbolo? Essa sugestão fica mais evidente pelo fato de que,
pouco antes de perguntar se tinha bebida, o Empresário lhes havia dito que eles nunca poderão derrotar USA. Os
guerrilheiros são criticados ao não perceberem nenhuma contradição entre bradar contra o imperialismo estadu-
nidense e tomar Coca-Cola. No entanto, a maior crítica do filme é dirigida ao Artista. A questão do conflito entre
propor uma arte politicamente revolucionária verdadeiramente a serviço da revolução e o próprio fazer prático da
revolução será colocada de maneira mais contundente na última aparição do Artista em Alianza para el progreso.
Nessa sequência, finalmente, haverá um contato direto entre o artista “comprometido” e os guerrilheiros.

A sequência se inicia com um travelling lateral descrevendo um cenário giratório. À medida que o cenário se
move, vemos os cartazes que nele estão pregados. São cartazes com perguntas que nos convidariam à reflexão. O
primeiro deles indaga “Como vão as suas coisas? O seu trabalho no escritório? Na fábrica. Você acredita que mor-
rerá feliz?”. Em seguida a câmera se desloca para um cartaz irônico que se encontra na parte mais alta: “América
Latina ano zero. Ninguém sofre nem chora. Tudo é melhor com Coca-Cola”. A câmera desce e se depara em outro
letreiro: “Romances em primeira pessoa? Não. Antes há muito que mudar”. Segue lateralmente e se detêm no
primeiro cartaz que tínhamos lido e nele fica por alguns segundos. O que poderia ter sido um ciclo logo se revela
uma falsa pista, pois o trajeto da câmera em torno dos letreiros continua. Do cartaz em que lemos “Nossa gloriosa
civilização progride: adota a bomba atômica em vez das câmaras de gás” o movimento de câmera nos leva para o
Artista que finaliza os dizeres de uma última placa. Enquanto tenta pregar a sua última obra no cenário, um casal
de guerrilheiros, armados, chegam. Eles olham para os cartazes e acham graça. O guerrilheiro interpela o Artista
sarcasticamente elogiando as frases. Lucho Ruptura os saúda e, como sempre, fala de si e de sua obra. Diz que a
sua estreia será hoje e que o seu espetáculo será grandioso, uma obra importante para se chegar à revolução. “Para
que revolução?”, pergunta a guerrilheira.
O Artista responde que é para a revolução que justifica a nossa luta. O guerrilheiro o interpela dizendo que
não é necessário se chegar à revolução porque a revolução já está acontecendo. E ainda diz que lhe trouxeram
algo que poderá evitar a sua espera pela revolução. Esse algo são as armas. Mais do que esperar a revolução
chegar através da produção de obras artísticas que custam tanto trabalho, esforço e que rendem tanto dinheiro,
é preciso fazer a revolução acontecer. A guerrilheira indica que eles precisam de alguém novo no grupo, já que
tiveram uma baixa. O guerrilheiro sublinha que essa é sua oportunidade de fazer algo real pela revolução. Os dois
tentam convencer o Artista a pegar em armas. Lucho tenta se esquivar do convite alegando que primeiro precisava
passar por um treinamento e que essa é a sua obra mais importante, já que lhe tirou muito tempo e que se trata
da consumação do seu estilo, que define como “o ápice do estruturalismo”. Segundo ele, primeiro está a obra e o
artista precisa de liberdade de decisão para criar. Enquanto escutávamos as suas desculpas em off, Classe Média
entra no teatro e se senta em uma das primeiras fileiras. Em seguida a câmera sai da Classe Média e retorna ao
Artista, que agora está sentado comendo um sanduíche. Não é casual que a fala fora de quadro de Lucho Ruptura
seja acompanhada visualmente pela entrada de Classe Média em cena, uma vez que ambos os personagens são
pendulares e compartilham elementos em comum. Os dois, com frequência, caem no ridículo e agora é a vez do
Artista ser ridicularizado.
O Artista come de maneira grotesca e fala de boca cheia. A sua maneira de comer, enquanto fala, deixa o seu
discurso ainda mais patético: “O artista tem que criar. O meu talento deve entrar para a História”. A guerrilheira

124
acredita que a melhor maneira de entrar para a História é através da luta e mais uma vez lhe oferece a arma e ele
novamente repete que o artista precisa de liberdade. O guerrilheiro contesta:

Em nome da liberdade convertida em democracia essa sociedade que você diz protestar em suas obras mais
importantes tem cometido os piores abusos. A democracia é um abuso. Não se dá conta, imbecil? A liber-
dade é outra coisa. É evitar que a democracia te exploda, seja a burguesia, o imperialismo ou a porcaria que
prefira. Mas você é um imbecil.

Lucho insiste: “Não, eu sou um revolucionário”. A guerrilheira intervém: “Não, você é um perfeccionista, um
pequeno perfeccionista. Quer que tudo mude um pouquinho para que os seus interesses melhorem, nada mais”.
Classe Média, na plateia, escuta tudo com atenção e aplaude. Lucho Ruptura se define como amigo dos guerri-
lheiros. Subitamente entram os soldados e começam a atirar. O Artista, em vez de se esconder, levanta os braços e
pede para os repressores não atirarem porque ele é um artista, comprometido, mas ainda assim um artista. Lucho
Ruptura então é morto pela ditadura.
A crença de Lucho Ruptura na excepcionalidade do artista era tamanha a ponto de acreditar que o simples
aviso de seu “status” para os militares o pouparia da morte. Para Lucho o artista era quase um imortal ou um
semideus. As suas preocupações políticas e sociais eram de fato acessórias porque, no fundo, em primeiro plano,
estava o elemento artístico e não a militância. Seria algo como um cineasta que se diz estar a serviço de uma
causa, quando na realidade coloca em primeiro lugar a sua condição de autor. Definir-se como um artista revo-
lucionário ou a serviço da revolução apresenta um valor de mercado, ele seria mais valorizado ou prestigiado
por conta dessa designação. Se autoproclamar revolucionário é portanto uma maneira de se autopromover, em
outras palavras, uma certeira estratégia de marketing. É importante salientar que o filme não apresenta um artista
engajado ingênuo ou bem intencionado que realmente acredita na arte como instrumento revolucionário. Ele o
apresenta como um oportunista.
Alianza para el progreso, mais que lançar suas farpas contra o artista militante, se dirige contra o falso artista
militante? Na verdade, Alianza para el progresso questiona a viabilidade de promover a revolução política atra-
vés da arte. Sendo provada a ineficácia de transformar a câmera em um fuzil ou de usar a câmera como se fosse
um fuzil, todo cinema militante seria falso. Afinal, a câmera não é um fuzil. O que está sendo posto em xeque é o
próprio cinema militante. Para o filme, o cineasta militante seria mais útil à revolução se substituísse a sua câmera
por um fuzil. A provocação ao Cine Liberación é bastante clara.
Em seu texto La ficción de la ficción es la realidad (1973), Ludueña defendeu a marginalização como alter-
nativa válida para superar o sistema. Permanecer fora do sistema seria então uma forma de vencê-lo. Mas, como
garantir que o filme não seja por ele cooptado? Pela recusa ao discurso do Artista, entendemos que Alianza para
el progreso rechaça ao mesmo tempo uma arte descompromissada com o mundo e uma arte militante. O cinema
militante e o cinema pelo cinema são igualmente dispensados. Que tipo de cinema, portanto, o filme de Ludueña
reivindica para si? Alianza para el progreso quer ser um filme político? Se a melhor maneira de relacionar cinema
e política não é segundo a fórmula do cinema militante, qual seria ela então? Se a concretização da revolução
política está no uso das armas e não do cinema, que revolução está reservada para o cinema fazer? Alianza para
el progreso se propõe a ser um outro cinema político, cuja dimensão política reside em sua própria existência.
Permanecer invisível ou inacessível talvez seja o preço para continuar situado fora do sistema. No entanto, existir
é preciso.

As mesmas forças negativas que Ludueña converte alegoricamente em personagens já haviam aparecido
anteriormente em La hora de los hornos: o imperialismo, a burguesia, os militares, a classe média e o intelectual.

125
A diferença é que no documentário o intelectual/ artista criticado é o “colonizado” e em Alianza para el progreso
é o intelectual/ artista militante. Outra diferença é que Ludueña inclui no polo negativo o sindicalismo [notada-
mente peronista] através do personagem do Sindicalista92, coisa que obviamente La hora de los hornos não faz.
No filme do grupo Cine Liberación, o polo positivo é ocupado pelo povo, sempre em praça pública e sempre na
zona urbana, em combate com as forças repressivas. O povo valorizado é o que está lutando, mesmo que ele ain-
da esteja no estágio do “espontaneismo”. O caminho proposto é que o povo saia desse estágio e ingresse na luta
armada, em outras palavras, que entre para a guerrilha. Em Alianza para el progreso, o polo “positivo” pertence
aos guerrilheiros, em suma, ao “povo” já engajado na guerrilha.

No manifesto Hacia un Tercer Cine, o cineasta revolucionário é frequentemente comparado ao guerrilheiro.


O próprio cinema que esse cineasta realiza é chamado de cine-guerrilha. O cineasta revolucionário, ao contrário
do cineasta comum, assumiria uma visão renovada do papel do realizador, do trabalho em equipe e dos equi-
pamentos utilizados. Ele seria autossuficiente na produção de seus filmes e se capacitaria para exercer todas as
funções técnicas, de modo que estará preparado para substituir qualquer companheiro. A sua câmera seria uma
inesgotável expropriadora de imagens-munições e o seu projetor uma arma capaz de disparar 24 fotogramas por
segundo. Temos no texto, como era comum no âmbito do cinema militante, a analogia entre equipamento cinema-
tográfico e armas de fogo. A equipe cinematográfica se assemelha a um grupo guerrilheiro por conta do extremo
cuidado que deve ter com os detalhes da realização e com a segurança dos envolvidos. Um imprevisto que no
cinema convencional seria normal, no cine-guerrilha pode acabar com um trabalho de meses, e um fracasso em
um cine-guerrilha, como na própria guerrilha, pode significar a perda de uma obra e a modificação de todos os
planos. A constante vigilância, desconfiança e mobilidade são fundamentais. O grupo Cine Liberación reforça a
comparação ao afirmar que o cineasta revolucionário trabalha “nas aparências pulando às vezes para o vazio e se
expondo ao fracasso como faz o guerrilheiro que transita por caminhos que ele mesmo abre com golpes de facão”
(Solanas; Getino,1988:50-51). Se o manifesto defende que nossa época é uma “época de obras em processo, in-
conclusas, desordenadas, violentas, feitas com uma câmera em uma mão e uma pedra na outra” (Solanas; Getino,
1988:51), podemos dizer que Alianza para el progreso concordaria com tudo se não fosse apenas por um detalhe:
o tipo de pedra. O filme de Ludueña vê com desconfiança o artista que se define como revolucionário ou que se
diz a serviço da revolução. Se em Hacia un Tercer Cine o cineasta é mais um profissional, assim como outros,
que a partir de sua especificidade se iguala em importância ao guerrilheiro na guerra cotidiana de libertação, em
Alianza para el progreso, quem deveria fazer a revolução política são os guerrilheiros. A sugestão, sublinhamos,
que o filme oferece ao “cineasta revolucionário” é que se ele quer mesmo fazer a revolução que encoste a câmera
e pegue uma metralhadora. Apesar de nutrir simpatia pelos guerrilheiros, Alianza para el progreso, ao contrário
de La hora de los hornos, não faz uma apologia da luta armada.

No filme do grupo Cine Liberación, a única saída que resta ao povo latino-americano para responder à
violência do neocolonialismo é a prática de uma violência maior, que somente a luta armada organizada poderá
fornecer. Dos 13 blocos narrativos que estruturam a primeira parte de La hora de los hornos três tem violência no
título: “A violência cotidiana”, “A violência política” e “A violência cultural”. O bloco 13, intitulado “A opção”,
oferece como solução para acabar com essas violências uma violência que as ultrapasse: a guerrilha. A imagem do
Che-Cristo morto é o modelo de altruísmo e autossacrifício a ser seguido. Sua figura traduz a premissa de que a
única opção do latino-americano é eleger, com a sua rebelião, a sua própria vida e a sua própria morte. A entrada
na luta pela libertação direciona o colonizado para um caminho heroico e o torna senhor de seu destino. A mor-

92 Desde a sua primeira aparição o personagem é associado a Timoteo Vandor [1923-1969], vulgo “Lobo”, importan-
te e influente líder sindicalista peronista assassinado enquanto trabalhava em seu escritório da Unión Obrera Metalúrgica.
A construção do Sindicalista, com revólver na cintura e vinculado diretamente ao poder, era uma cararicatura do líder sindi-

126
te, para ele, deixaria de ser a instância final e se converteria em um ato libertador e em uma conquista. A morte
seria o começo de uma nova vida e o começo do futuro. A voz over que surge nos primeiros instantes do longo
primeiro plano da face do Che-Cristo afirma que é justamente em sua rebelião que o latino-americano recupera
a sua existência.

No final de Alianza para el progreso, não vemos esse elemento trágico cristão. Em seu lugar reside o humor.
O embate final entre a força opressora e os guerrilheiros ocorre no espaço do teatro, o que já nos fornece um
tom de representação ou farsa. O confronto é construído em chave antirrealista, perspectiva que o diferencia do
tratamento dado à cena de tortura de um dos guerrilheiros. Tal diferença de tom reforça a interpretação de que os
guerrilheiros e a sua luta são vistos com alguma seriedade pela instância narrativa, o que lhes retira as cores do
ridículo nas quais os demais personagens são pintados. No embate, apesar de os guerrilheiros serem uma das par-
tes envolvidas, o que predomina é o inverossímil, o absurdo e a comicidade. A morte ridícula do Artista, logo no
início do tiroteio, indica o tom. O som da cena é completamente antinaturalista e a quantidade de tiros que escuta-
mos é bem maior do que o número de armas de fogo usado pelos personagens. Tampouco há sangue ou qualquer
indicio visual que comprove, realisticamente, a morte dos personagens atingidos. Se bem que a artificialidade do
som dos disparos, a ausência de sangue e de fumaça nas armas já haviam aparecido nas cenas de tiro anteriores,
aqui, essa despreocupação com a verossimilhança propicia um humor que não houve, por exemplo, na cena da
morte do Sindicalista ou do guarda-costas do Empresário.

O humor é realçado. A Classe Média está desesperada e apavorada no meio do fogo cruzado. O Artista levanta
os braços alegando ser artista e morre. No meio da batalha surge do nada o camponês, que pega a metralhadora
e ajuda os guerrilheiros. Este novo agente surge na luta contra o imperialismo. O camponês ajuda Classe Média,
que sem outra alternativa, se une aos rebeldes e também dispara contra os soldados. A câmera vai de um lado para
o outro tentando acompanhar os tiros. O General é atingido e morre. O tiroteio continua. Na cena seguinte, ao
som da marcha militar The Caissons Go Rolling, USA pateticamente foge de barco com um de seus capangas e
promete voltar. O camponês e a guerrilheira celebram a vitória. Ela lhe pede um filho com o objetivo de que a luta
se perpetue nas novas gerações. A marcha militar que escutávamos na banda sonora desaparece. Um jorro de lama
cai no rio e nele se mistura. Se procurarmos ver o destino que foi reservado aos personagens, constatamos que
no cômputo final o Sindicalista, o Empresário e o General foram castigados com a morte. Dos poderosos o único
que escapou com vida foi USA. Entre os personagens pendulares, o Artista mereceu a morte e a Classe Média
foi poupada. O oportunismo e o falso altruísmo parecem não ter remédio ao passo que a alienação e a ignorância
podem, através do desespero e do instinto de autopreservação, ser superados.
Alianza para el progreso, excetuando USA, acabou com os maus e proporcionou nova chance para os bons
ou para os equivocados. O único do polo “positivo” a ser morto foi o guerrilheiro torturado. A sua morte não foi
enaltecida, glorificada ou heroicizada. A morte heroica pela libertação, diferentemente de La hora de los hornos,
não é o modelo. O outro guerrilheiro, em sua fala, afirmou que não lhe interessa viver e que a sua preocupação
reside na continuidade da luta após a sua morte. Ele quer alguém que pegue a sua metralhadora e o substitua. A
guerrilheira também se preocupa com o prosseguimento da luta ao pedir um filho ao camponês. Mais importante
que a vida dos engajados na luta é a luta em si. Porém, se há voluntarismo e autossacrificio, como em toda luta
armada, o pragmatismo aparenta ser mais presente do que um sentido de libertação pela morte. Alianza para el
progreso parece não comprar esse discurso. A morte é uma punição para os maus e não chega a ser uma conquista

calista criador do lema “peronismo sem Perón”. Em uma outra cena o vínculo entre o personagem ficticio e o real torna-se
ainda mais nítido: o Sindicalista é assassinado em seu escritório da mesma forma que Lobo Vandor. Na cena, após ser
morto, o personagem subitamente se levanta e mostra para a câmera um cartaz com a pergunta “Quem matou o Lobo?”
Na época da realização do filme, e ainda hoje, os autores do crime não tiveram comprovado o delito, o que motivou a
pergunta do cartaz.
127
para os bons.
Alianza para el progreso não parece se articular integralmente em defesa da luta armada e da guerrilha
urbana. Há um distanciamento crítico ao mesmo tempo em que existe uma simpatia. O filme vê com bons olhos
o voluntarismo e o ímpeto altruísta, porém critica a ingenuidade dos jovens militantes. O romantismo revolu-
cionário ao mesmo tempo em que é digno ressoa como algo fora de lugar. Ao desromantizar o cinema militante,
o filme também desromantiza e vê, com certa desconfiança, a própria militância. Em todo caso, eles são os es-
peciais em um mundo podre e corrompido. O sexo entre a guerrilheira e o camponês no final reitera a diferença
entre as demais cenas de relações sexuais. Se nelas havia interesse financeiro e dominação, como no sexo entre
Classe Média e USA e entre Classe Média e Empresário, aqui, há o desejo de gerar um filho que possa crescer e
futuramente continuar a luta contra o imperialismo. Enquanto USA foge de barco, o coito se realiza celebrando a
comunhão e o desejo de liberdade.
No entanto, a resolução supostamente feliz resulta ilusória, pois enquanto o camponês e a guerrilheira iniciam
o projeto da concepção de uma nova vida a mancha escura é despejada na água. A guerra ainda não terminou.
USA ameaça voltar. A violência continuará. Nenhuma ordem foi transformada ou está em vias de ser transfor-
mada a curto ou longo prazo. Há uma suspensão. Não há um caminho reto, progressivo e linear que, através da
luta armada pela libertação, culminará com a revolução política, como vemos em La hora de los hornos. O que
encontramos aqui é um caminho tortuoso, caótico e labiríntico que talvez chegue próximo a uma ideia de trans-
formação mais ampla ou a lugar nenhum.

128
Referências bibliográficas

AGUILAR, Gonzalo. Episodios cosmopolistas en la cultura argentina, Santiago Arcos, Buenos Aires: Santia-
go Arcos, 2009.

GARCIA, Estevão. Belair e Cine Subterráneo: o cinema moderno pós-1968 no Brasil e na Argentina. Tese de
Doutorado. Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais. Escola de Comunicações e Artes, Universidade
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LUDUEÑA, Julio. La ficción de la ficción es la realidad. Hablemos de cine, n.65, Lima, 1973.

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Filmografia

La hora de los hornos, Fernando Solanas; Octavio Getino, Argentina, 1966-1968

The Players vs. Ángeles caídos, Alberto Fischerman, Argentina, 1968

Invasión, Hugo Santiago, Argentina, 1969

Alianza para el progreso, Julio Ludueña, Argentina, 1971

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SkbJoZ-F4QU

Estevão Garcia - Professor de cinema, realizador, crítico e pesquisador. Professor do curso técnico
integrado em produção de áudio e vídeo e do bacharelado em cinema e audiovisual do Instituto Federal de
Goiás (IFG). Foi Professor Visitante do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA), Foz do Iguaçu, Paraná, de 2012 a 2014. Foi Coordenador do projeto de extensão
da UNILA “Cineclube Cinelatino: imagens da América Latina a serem decifradas”. Dirigiu e roteirizou quatro
curtas-metragens. Doutorando em meios e processos audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA),

129
da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em estudos cinematográficos pela Universidade de Guadalajara,
Guadalajara, México. Graduado em cinema e audiovisual pelo Instituto de comunicação e Artes (IACS) da
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro.

130
13. O cinema de zumbi na América Latina: luchadores, guerrilha e outras
formas de resistência

Lúcio Reis Filho


Alfredo Suppia

Com o cinema nacional e latino-americano em evidência, cresce a oferta e a demanda por cursos de cinema
no país. Dentro ou fora do ambiente universitário, tem-se ampliado também a produção de curtas-metragens,
para muitos o primeiro passo rumo a uma carreira de cineasta. Esse aumento de produção tem sido estimulado,
entre outros fatores, pela maior acessibilidade a ferramentas para realização audiovisual, bem como a meios de
divulgação como a internet, via YouTube, Vimeo e congêneres. Uma câmera HDSLR93 mais um microcomputador
podem bastar para a realização de um bom filme ou vídeo. Munidos desses equipamentos, muitos jovens têm se
aventurado a realizar seu primeiro curta-metragem (SUPPIA, REIS-FILHO, 2012). Em meio a esse panorama,
um velho personagem renasce da tumba nos curtas-metragens latino-americanos: o zumbi.
Desde o começo do século XX, foi o cinema que deu maior dimensão ao zumbi. Inicialmente, nas décadas
de 1930 e 1940, sua representação recorreu ao folclore e à religiosidade tradicional (DENDLE, 2001: 3). Em O
Ressuscitado (The Ghoul, T. Hayes Hunter, 1933), produção britânica da Gaumont-British Picture Corporation,
foi associado aos mistérios da religião egípcia. Em Zumbi Branco (White Zombie, Victor Halperin, 1932) —
com Bela Lugosi revivendo os mortos para que estes trabalhassem em sua plantation —, e nas produções de
Val Lewton para a RKO, iniciadas com I walked with a Zombie (Jacques Tourneur, 1943), o zumbi é aquele da
religião afro-caribenha do vodu: cadáver reanimado por espíritos escravos, do qual o sacerdote se utiliza para o
seu benefício pessoal. Tais filmes evocaram a discriminação racial através da relação de domínio e submissão
entre o zumbi e seu mentor, relação esta construída pela óptica do cinema euramericano, “herdeiro e propagador
do discurso colonial hegemônico imperialista” (STAM, 2003, p. 34).
Consideramos o zumbi a personagem de ficção que mais diretamente evoca o tabu da morte, mais do que os
fantasmas ou os vampiros. Esse personagem ganhou mais nuances graças aos preconceitos de viajantes que, com
sua visão colonialista, descreveram o Haiti como local de sangrentos rituais de magia negra, orgias selvagens e
mortos reanimados. O que acabou sendo reforçado pela superstição nativa, sem falar na indústria de turismo e
estrutura de poder haitiana.
Nos anos de 1950 e 1960 houve um redirecionamento do conceito. Neste “estranho período de transição”
(DENDLE, 2001, p. 5), o zumbi começa a perder vínculos com a religião, e o termo (originário do quimbundo
nzumbi, que significa fantasma ou espectro) passa a definir criaturas distintas: invasores marcianos humanoides
(Zombies of the Stratosphere, Fred C. Brannon, 1952), seres subaquáticos (Zombies of Mora-Tau, Edward L.
Cahn, 1957), jovens de classe média sob o efeito de drogas hipnóticas (Teenage Zombies, Jerry Warren, 1959),
peixes mutantes radioativos (The Horror of Party Beach, Del Tenney, 1964) e androides cibernéticos (The Astro-
Zombies, Ted V. Mikels, 1968). Entretanto, a despeito dessa diversidade, certa coerência pode ser identificada
nesse pout-pourri conceitual. Em filmes como Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 from Outer Space, Ed Wood,
1959) e Invasores Invisíveis (Invisible Invaders, Edward L. Cahn, 1959), os zumbis fogem de qualquer concepção

93 DSLR é a sigla em inglês para digital single-lens reflex, que em uma tradução livre seria “câmera digital de reflexo
por uma lente”. HDSLR refere-se a câmeras desse tipo, porém capazes de filmar em alta definição (high definition), como
1080p ou 1080i.
131
de mente ou alma. Aspecto reconfortante para que ele pudesse ser tratado como “Outro”, animal ou escravo, e
fosse livremente trucidado sem ônus moral ou judicial ao homem branco (DENDLE, 2001, p. 4-5).
Na década de 1960, depois que Hollywood perdeu o interesse pelo subgênero dos zumbis, outros países
reconheceram o seu apelo. Epidemia dos Zumbis (The Plague of the Zombies, John Gilling, 1966), da britânica
Hammer Films, foi o primeiro a romper o tabu referente à exibição de cadáveres decompostos nas telas. Porém,
uma onda de filmes de zumbi teve início no México, antecipando a produção britânica. Muñecos infernales (Benito
Alazraki, 1960) “lançou um microgênero de terror zumbi ao longo dos anos 1960” (RUSSEL, 2010: 104)94. É
interessante observar que esse filme retorna ao solo haitiano. A história acompanha turistas amaldiçoados por um
sacerdote vodu após testemunharem uma cerimônia secreta. Eles não percebem o problema em que se meteram
até serem pegos, um por um, pelos “bonecos assassinos” do título, controlados por um feiticeiro (RUSSEL, 2010:
104). Em sua arguta investigação sobre “visões do lumpemproletariado” nos filmes latino-americanos de zumbi,
Mariano Paz observa que:

O zumbi se tornou tão pervasivo na cultura popular americana, particularmente durante as últimas décadas,
que é fácil esquecer que os zumbis na verdade se originaram nos mitos e no folclore latino-americano.
Embora os fundamentos religiosos e culturais dos zumbis possam ser buscados na cultura africana, é
no Haiti que relatos modernos acerca desses personagens foram pela primeira vez registrados em fontes
literárias e jornalísticas (PAZ, 2016: 229).

Paz refere-se a um revival mundial dos filmes de zumbi, sobretudo a partir dos anos 1990. Russel (2010:
104), por sua vez, localizando o lançamento de um “microgênero de terror zumbi ao longo dos anos 1960” no
México (2010: 104), salienta a série de filmes de zumbi estrelados pelo lutador mascarado Santo, personagem que
virou ícone pop do cinema mexicano durante os anos 1960. Santo, el enmascarado de plata, encarou um exército
de cadáveres reanimados em Zumbis, os Mortos Vivos (Santo contra los zombies, Benito Alazraki, 1961), Santo
el enmascarado de plata y Blue Demon contra los monstruos (Gilberto Martínez Solares, 1968), O mundo dos
mortos (El mundo de los muertos, Gilberto Martínez Solares, 1969) e Santo contra la magia negra (Alfredo B.
Crevenna, 1972). Entretanto, a origem dos filmes de lucha libre mexicanos em seu flerte com gêneros como o
horror, a ficção científica ou o policial está num filme de 1956, Ladrão de Cadáveres (Ladrón de Cadáveres), de
Fernando Méndez.
Outras produções mexicanas seguiram os passos do célebre Santo, como Dr. Satán y la magia negra (Rogelio
A. González, 1968), estrelada pelo mágico Dr. Satán (Joaquín Cordero). O personagem-título, quando não está
ocupado enfrentando o arqui-inimigo Black Magic (Noe Murayama), mostra-se um galanteador, saindo com
garotas-zumbi que usam minissaias e decotes provocativos. Em Blue Demon y Zovek en La invasión de los
muertos (René Cardona, 1971), Blue Demon, o colega de Santo, enfrenta mortos-vivos que sabem dirigir carros
e pilotar helicópteros. Por fim, em A Serpente do Terror (La muerte viviente, Juan Ibáñez e Jack Hill, 1968), um
Boris Karloff idoso e muito doente brinca com ritos vodu numa ilha do Pacífico Sul. “Dada a qualidade dúbia
dessas produções mexicanas, fica claro que a série de Santo foi provavelmente a maior contribuição do país para o
‘cinema morto-vivo’. Uma triste constatação, seja qual for a medida” (RUSSEL, 2010: 104). O preconceito e viés
estético ficam evidentes nas observações de Russel. Uma justificativa para esse “olhar de esgueio” ou reprovação
em relação aos filmes mexicanos de lucha libre, com zumbis ou não, está no fato de que, não bastasse se tratar de
produções apressadas e de baixo custo (eventualmente equivalentes às nossas chanchadas brasileiras), muitas das
fitas de luchadores foram acusadas de ratificar uma ideologia machista ou sexista, explícita ou subtextualmente.

94 Todas as traduções de autores estrangeiros para o português foram feitas livremente pelos autores do presente
artigo.

132
No contexto do cinema argentino, Luciano Saracino aponta que o país “não nutriu o cinema de gênero
naquelas décadas em que outros (...) o fizeram” (sobretudo Itália e Espanha), o que atribui a diversas razões: as
ditaduras, a falta de produtoras interessadas, o complexo de intelectualidade dos autores e a necessidade de contar
outro tipo de história (2009, p. 119). Saracino considera Extraña invasión (1965), de Emilio Vieyra, o primeiro
filme de zumbis argentino. Nele, as pessoas são convertidas em autômatos pela ação dos raios catódicos que saem
da televisão. Extraña invasión pode ter sido inspirado pelo norte-americano Os invasores de corpos (Invasion of
the body snatchers, Don Siegel, 1956). Em seguida viria La venganza del sexo (Emilio Vieyra, 1972), no qual um
zumbi manejado por um cientista louco sequestra jovens e a força a fazer sexo, roubando-lhes a força vital de que
necessita para conquistar o mundo. Fora esses exemplos, o zumbi apareceria bem pouco no cinema argentino.
Haveria “apenas uma aparição — ridícula, insípida e desnecessária — no indescritível Los matamonstruos en la
mansión del terror (Carlos Galettini, 1987)” (SARACINO, 2009: 120).

É importante observar que, no fim dos anos 1960, o zumbi caminhou em direção à periferia, servindo aos
propósitos do cinema independente em A noite dos mortos-vivos (Night of the living dead, 1968), do cineasta
norte-americano George Romero. Não exatamente um único zumbi, mas uma horda de mortos-vivos famintos de
carne humana. Esse filme seminal instituiu o que chamamos de “modelo romeriano” (REIS FILHO, 2012), posto
que retirou do personagem qualquer conotação religiosa, remodelando-o em um monstro canibal e apático que se
propaga de forma epidêmica (SUPPIA; REIS FILHO, 2011). Romero atrelou seus zumbis aos problemas sociais
contemporâneos e conferiu-lhes a função de crítica ao patriarcado capitalista. Dessa forma, não somente criou o
zumbi que conhecemos hoje, como produziu uma obra em essência contracultural, metáfora dos Estados Unidos
devorando a si próprios em tempos de crise interna e externa. A noite dos mortos-vivos teve impacto marcante na
cultura, e segue influenciando inúmeras produções até os dias de hoje, nas mais diversas mídias.
Nas últimas décadas, os filmes latino-americanos de zumbi seguem o “modelo romeriano”. Entretanto, a sua
influência maior estaria em Resident Evil (Biohazard, 1996), reapropriação mais moderna do zumbi romeriano
que empresta ao personagem uma semântica e/ou uma sintaxe da ficção científica. Desenvolvido pelo designer
gráfico Shinji Mikami para a companhia japonesa Capcom, com destino à plataforma Sony Playstation, essa
combinação de horror e aventura, com desenhos de Eiji Aonuma, tornou-se um dos videogames mais vendidos
da década de 1990. Seu enredo trata da epidemia desencadeada acidentalmente pela poderosa corporação
farmacêutica Umbrella, quando um vírus de laboratório foge ao controle transformando em zumbis os cidadãos
da ficcional cidade de Raccoon, no meio-Oeste americano. Resident Evil criou uma franquia e alçou o “modelo
romeriano” a nova etapa de desenvolvimento. Conforme explica Tania Krzywinska (2008), seu arco narrativo
combina os gêneros da ficção científica e do “survival horror”,95 ambos identificados em A Noite dos Mortos-
Vivos, acrescentando um estilo extra, a dimensão conspiratória da série televisiva Arquivo X (1993-2018). Segundo
Romero, os games dessa série “despertaram as pessoas para a ideia dos mortos-vivos, que estava dormente havia
um tempo” (ROMERO apud RUSSEL, 2010: 228). Destacamos que a influência de Resident Evil sobre os filmes
de zumbi foi marcante.
De acordo com Saracino, um exemplar significativo do cinema argentino de zumbis surgiria somente no fim
dos anos 1990. Dialogando com a cultura pop pós-Resident Evil, Plaga zombie (1997), da Farsa Producciones,
pode ser descrito como uma espécie de jogo no qual uma invasão extraterrestre desperta os mortos e um grupo de
heróis deve enfrentá-los. O filme teve ao menos duas sequências, também dirigidas por Pablo Parés e Hernán Sáez:
Praga zumbi: zona mutante (Plaga zombie: zona mutante, 2001) e Plaga Zombie: Zona Mutante: Revolución
Tóxica (2011). Contemporâneo aos dois primeiros, podemos mencionar Minha sogra é um zumbi (Mi suegra

95 Inspirados na ficção de horror, os games vinculados a esse subgênero enfocam na sobrevivência dos
personagens em ambientes que inspiram medo e terror.
133
es un zombie (2001), de Germán Favier, no qual os zumbis se limitam a algumas poucas aparições, apesar do
título. Ainda segundo Saracino, Un cazador de zombies (Gérman Magariños, 2008) ultrapassa todos os limites do
politicamente correto, e “coloca à prova o estômago dos espectadores com algumas das cenas mais gore jamais
vistas por aqui [na Argentina]. Vaticano, crianças e zumbis. Para paladares perturbados” (2009: 21).
Mas a invasão dos zumbis na Argentina não termina por aí. Saracino enfatiza que festivais de cinema
fantástico como o Buenos Aires Rojo Sangre96 abriram espaço para que muitos realizadores “pudessem mostrar
seus curtas diante de um público ávido pelo cinema nacional de zumbis”. O média-metragem Contagio (Mauricio
G. Fernández; Martin Shirkin, 2005) “é uma pequena pérola que narra o regresso de um grupo de amigos de uma
noite de festa, enquanto o mundo desmorona por uma epidemia de zumbis. Tudo acontece em Rosario (tanto nos
arredores quanto no campo)” (2009: 121). Rigor mortis (Marco Caorlin, 2006), um filme mais “amador” na óptica
de Saracino, narra o assédio zumbi a uma mansão e a sobrevivência do herói, cujas aventuras podem ser vistas na
continuação: Rigor mortis 2: a horda (2009), de rápida estreia e produção mais substancial. No que se refere aos
curtas-metragens argentinos, o autor considera Los living dead (César Barrangou; Max Schneider, 2007) o mais
interessante. Nessa animação argentina, uma jovem escapa de zumbis que querem degustá-la (2009: 121-22).
Mais recentemente, foi o cinema cubano que revisitou o tropo da “invasão zumbi” no engenhoso longa-
metragem de baixo orçamento João dos Mortos (Juan de los Muertos, 2012), de Alejandro Brugés. Para uma
análise mais detida do filme de Brugés, recomendamos o capítulo de Mariano Paz (2016). Segundo este autor,

O primeiro filme cubano de zumbi é também uma comédia, embora possa ser dito que ele é menos farsesco
e bizarro que a trilogia Plaga Zombie — [Juan de los Muertos] parece inclusive mais próximo, em termos
de efeitos visuais e design, dos filmes americanos de zumbi do que de seus equivalentes argentinos. A
história tem lugar numa Cuba contemporânea e segue a aventura de seu herói, Juan, junto com sua filha e
um grupo de amigos, os quais devem enfrentar uma epidemia zumbi na ilha caribenha (PAZ, 2016: 241-2).

No Brasil, personagens análogos aos zumbis já aparecem num filme da “fase psicodélica”, ou “fase de Paraty-
RJ”, do diretor Nelson Pereira dos Santos. No longa-metragem Quem é Beta? (1972) coprodução franco-brasileira
lançada fora do país com o título Pas de violence entre nous, apresenta um futuro hippie-pós-apocalíptico em
que o triângulo de protagonistas passa seu tempo abatendo a tiros uma infinidade de andarilhos supostamente
contaminados – os “contaminate”.
No panorama curta-metragista brasileiro, o zumbi também parece ter encontrado ambiente acolhedor nos
últimos anos. Segundo Lúcio Piedade (In: SUPPIA, 2010), a motivação dos realizadores brasileiros independentes
vem, sobretudo, da influência do cinema estrangeiro, com grande circulação no mercado de vídeo. É o caso do
pioneiro Petter Baiestorf e seu curta Zombio (1999). Histórias em quadrinhos e videogames como The House of
Dead e Resident Evil também acabam servindo como referências para a nova safra de filmes de zumbi brasileiros.
Dentre os vários exemplos, figuram também os curtas Crônicas de um zumbi adolescente (André ZP,
2002), a comédia de horror Minha esposa é um zumbi (Joel Caetano, 2006), além dos tecnicamente bem
elaborados Era dos mortos (Rodrigo Brandão, 2007) e Capital dos mortos (Tiago Belotti, 2007). Crônicas de
um zumbi adolescente (2002) narra a desventura do pobre Zeca, jovem que volta da sepultura como um cadáver
repugnante que tenta se reintegrar à sua rotina aparentemente banal. O tropo do zumbi serve aqui a um curioso
comentário sobre a adolescência brasileira, numa versão carinhosamente putrefeita de sucessos como a série
Confissões de Adolescente (1994/5), da TV Cultura. Coincidência ou não, Crônicas de um zumbi adolescente tem
como personagem principal um jovem típico representante do que se convencionou chamar de Geração Z (ou
simplesmente, em sua abreviação, Gen Z, também conhecida como iGeneration, Plurais ou Centennials). Trata-se
de uma controversa definição sociológica que se refere à geração de pessoas nascidas em 1988 até o ano de 2010.
96 Cf. http://rojosangre.quintadimension.com/2.0/

134
Alguns estudiosos apontam que as gerações Y e Z vêm sendo assombradas por um sentimento de insatisfação
e insegurança face à realidade e ao futuro da economia e da política. A geração Z é confrontada com uma
desigualdade social cada vez maior em todo o mundo, concentração de renda e encolhimento das classes médias,
conjunto de fatores globais que tem levado ao aumento dos níveis de estresse nas famílias (ver Turner, 2015). Em
resumo, desemprego e precariedade costumam angustiar os jovens das gerações Y e Z. O que nos leva a indagar
sobre a coincidência do apelo popular do zumbi entre o público da geração Z.
Minha esposa é um zumbi, curta-metragem de 24 minutos lançado em 2006, é o maior sucesso do cineasta
paulistano Joel Caetano e sua empresa, a Recurso Zero Produções. O filme venceu a categoria máxima do júri
popular da I Mostra do Curta-metragem Fantástico de Ilha Comprida, em 2006, e participou de mostras em São
Paulo, Porto Alegre e Goiás. Minha esposa é um zumbi conta a desventura de Tonho (Joel Caetano), um jovem
que, determinado a revigorar seu desempenho sexual, rouba de um laboratório um medicamento inventado por um
cientista. Inadvertidamente, sua esposa (Mariana Zani) ingere o remédio, que produz um terrível efeito colateral.
Tonho não vê opção além de adaptar sua vida cotidiana à nova realidade de sua parceira. Em depoimento sobre
seu curta, Joel Caetano explica que o filme foi escrito para ser trash (FERRARAZ, 2008: 177).
Em Era dos mortos, Rodrigo Brandão se utiliza da vocação metonímica do cinema para criar, na pequena
Santos Dumont, no estado de Minas Gerais, uma cidade-fantasma assombrada por zumbis. Trechos de telejornais
e imagens de arquivo, costuradas a fragmentos da cidadezinha, estabelecem o regime narrativo propício a uma
aventura apocalíptica numa localidade indeterminada. Guardadas as devidas proporções, o recurso assemelha-se
ao utilizado por filmes como Ensaio sobre a cegueira (2008), de Fernando Meirelles, no qual retalhos de São
Paulo, Montevidéu, Toronto etc., costuram uma cidade imaginária. Segundo o próprio Brandão (In: SUPPIA,
2010), o principal modelo da narrativa de Era dos mortos está na dinâmica de games como Doom (1993) ou
Resident Evil. Embora esse filme não tenha sido a estreia de Brandão no audiovisual, figura entre suas realizações
mais ambiciosas. A trilha sonora original, que vai de Ambient music a Metalcore, foi composta por AlienAqtor,
Disorder of Rage (DxOxRx), Flanicx e pelo próprio Brandão.
Outro exemplo de filme de zumbi brasileiro, desta vez em longa-metragem, é Mangue negro (2009), do
cineasta capixaba Rodrigo Aragão. Num mangue povoado por pessoas grotescas, um casal enfrenta uma horda de
zumbis que surge misteriosamente do lamaçal. O herói do filme é Luís da Machadinha (Walderrama dos Santos),
o qual defende apaixonadamente a frágil Raquel (Kika de Oliveira) do assédio zumbi. Pouco após os primeiros
ataques, descobrimos que a causa da “zumbificação” parece estar nas ostras que habitam o mangue. Mais do que
indigestão, as ostras degustadas transformam seus predadores humanos em mortos-vivos. O horror catalisado pelo
trabalho de maquiagem de Aragão confere a seu filme uma organicidade e repugnância comparáveis ao remake
de A Coisa (The Thing, 1982) dirigido por John Carpenter. A cena da luta em que o zumbi decapitado continua
atacando Luís, enquanto outro zumbi, sem mandíbula, assedia Raquel, lembra muito o cinema de Carpenter. A
mise-en-scène de Aragão é ágil e, potencializada pela montagem, provoca a angústia que se espera de todo filme
de horror. O mangue, esse cenário misterioso e inóspito, parece perfeito para o assédio zumbi. Mais do que isso, o
mangue se revela um personagem desse filme por ser ele próprio um zumbi, uma região morta, em decomposição,
num estado de putrefação irreversível, conforme se depreende da fala dos pescadores e de Dona Benedita (André
Lobo). Destacamos também o trabalho de fotografia de Rodrigo Aragão e a trilha sonora de Jaceguay Lins.
Parece que Rodrigo Aragão, além de diretor, fotógrafo e maquiador habilidoso, tem uma queda por histórias
de indigestão. Daí ter dirigido anteriormente outras aventuras de zumbi em curta-metragem, Peixe podre (2005)
e Peixe podre 2 (2006), nos quais a zumbificação resulta da ingestão de frutos do mar ou de água doce. Nos
filmes de zumbi de Aragão, especialmente Mangue negro, percebemos novamente a influência do cinema de
George Romero, numa curiosa transposição do típico zombie film norte-americano pós anos 60 para o contexto
do interior do Brasil, cenário de subdesenvolvimento explícito. Contudo, Mangue negro parece menos investido
135
de um viés alegórico ou de um subtexto político mais efetivo, conforme se verifica, por exemplo, em A Noite dos
Mortos-Vivos, de Romero, ou mesmo Candidato maldito (Homecoming), de Joe Dante, episódio da série para
TV americana Masters of horror (2005). O substrato político, no caso de Mangue Negro, cede lugar a um tênue
discurso ecológico no tropo do mangue morto-vivo, prenhe de criaturas malignas e sanguinolentas, supostamente
resultantes da poluição e interferência humana no ecossistema.

A despeito da influência do modelo romeriano e da cultura pop, uma parcela da produção brasileira de curtas-
metragens se volta para o folclore regional. A antiga lenda do “corpo seco”, morto-vivo maléfico que aterrorizava
diversas regiões do país, segundo relatos da tradição oral, tem sido recontada em adaptações audiovisuais
disponíveis na Web. O personagem aparece no episódio-piloto de Historietas Assombradas (para crianças
malcriadas) (2005), série concebida pelo animador e ilustrador Victor-Hugo Borges em animação stop-motion e
3D. Por sua vez, o curta Corpo Seco (2008), escrito por Sandro Doraciotto e dirigido por André Rebello, explora
os relatos orais sobre estranhas aparições no campo. Outro curta homônimo reinventa o mito: Corpo Seco (2013),
escrito e dirigido por Vinícius J. Santos, da produtora independente V Produções, de Jacareí, em São Paulo, retrata
o personagem como uma criatura que se agarra aos troncos das árvores, e que ataca os desavisados sugando todo
o seu sangue (REIS-FILHO, 2015: 265).

Considerações finais

No contexto de um cinema de difícil inserção comercial e mesmo sustentabilidade, o personagem do zumbi


parece servir perfeitamente aos propósitos de guerrilha de alguns jovens realizadores independentes brasileiros.
Um personagem impessoal, teleguiado, que prescinde de maquiagem ou caracterização sofisticada, de fácil
manipulação e inserção em qualquer cenário, e de grande afinidade em relação ao conteúdo de novas mídias
como o videogame ou a internet. Enfim, um personagem-coringa que oferece boa margem de manobra para os
impulsos iniciais de qualquer jovem realizador fã de cultura pop, cinema de gênero e vida digital. Não por acaso,
talvez toda uma geração Z, se é que esse rótulo faz sentido, identifica-se com narrativas envolvendo zumbis,
haja vista o sucesso internacional de séries como a norte-americana The Walking Dead (2010- 2018), narrativa
pós-apocalíptica desenvolvida por Frank Darabont baseada na série em quadrinhos de mesmo nome, de Robert
Kirkman, Tony Moore e Charlie Adlard.
Zumbi é pop. Zumbi é barato. Zumbi é descartável. Zumbi é explorado. Zumbi é latino-americano. É
oportuno que Mariano Paz observe alegorias ou visões do lumpemproletariado (em termos marxistas) a propósito
de sua análise de filmes de zumbi latino-americanos como a trilogia argentina Plaga Zombie e o longa cubano
Juan de los Muertos. Segundo Paz:

(…) é pertinente notar que tanto a trilogia Plaga Zombie como Juan de los Muertos vão além da expressão
de respectivas ansiedades e preocupações conjunturais que são relevantes apenas às sociedades nas quais os
filmes foram produzidos. De acordo com Todd Platts, zumbis poderiam não ter adentrado a cultura popular
americana não fosse pela ocupação militar americana do Haiti (1915-1934), a qual produziu descrições
jornalísticas xenofóbicas daquele país (2013: 549). Nesse sentido, a tradição do zumbi não é meramente
um empréstimo cultural do folclore haitiano, mas o resultado de uma intervenção política e imperialista
naquele país. (…) [O]s filmes aqui discutidos [notadamente a trilogia Plaga Zombie e o filme cubano Juan
de los Muertos] articulam uma crítica que se endereça às relações desiguais de poder entre os Estados
Unidos e o restante das Américas, bem como às continuadas tentativas de controle político, econômico e
militar que os EUA têm tradicionalmente tentado impor em toda a América Latina. (…) Oxalá um número

136
cada vez maior de filmes de zumbi latino-americanos venha a subverter, ainda mais, versões mainstream
do gênero, aprofundando o criticismo acerca das relações desequilibradas de poder na América Latina, não
apenas no nível nacional, mas também hemisférico (PAZ, 2016: 248-9).

Muito provavelmente, os filmes de zumbi continuarão a proliferar na vizinhança. E se você nunca assistiu
a um, prepare-se: chegará o dia em que algum filme desses ainda vai bater à sua porta, faminto pela sua carne.

137
Referências bibliográficas

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TURNER, Anthony. “Generation Z: Technology and Social Interest”. The Journal of Individual Psychology, vol.
71, n. 2, 2015, pp. 103-113.

Lúcio Reis Filho - Doutor em Comunicação (Cinema e Audiovisual) pela Universidade Anhembi, mestre
em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2012). Especialista em estudos clássicos pelo
Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília | Cátedra UNESCO Archai (UnB/UNESCO, 2013). Espe-
cialista em jornalismo científico pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual
de Campinas (LABJOR/UNICAMP, 2010). Licenciado em história pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG/FCCP, 2008). Foi Professor do curso de história da Universidade do Estado de Minas Gerais (Unidade

138
Acadêmica de Campanha/MG), entre 2012 e 2016, e Professor Assistente da disciplina teoria do cinema no cur-
so de bacharelado interdisciplinar em artes e design da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2011. É tutor
do curso de história EAD da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (CEAD/UNIRIO) desde 2013 e
professor do ensino básico (níveis fundamental e médio) desde 2009. É membro do grupo de pesquisa imagens
da morte: A morte e o morrer no mundo Ibero-Americano (na UNIRIO).

Alfredo Suppia é graduado em comunicação social - jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUC-Campinas, 1998), mestrado (2002) e doutorado (2007) em multimeios pela Universidade Esta-
dual de Campinas (Instituto de Artes, UNICAMP). Membro da Sociedade Brasileira para Estudos do Cinema e
do Audiovisual (SOCINE) desde 2001. Membro da Science Fiction Research Association (SFRA) desde 2007.
Autor dos livros: A Metrópole Replicante: Construindo um Diálogo entre Metropolis e Blade Runner (Juiz de
Fora: Ed. UFJF, 2011) e Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (São Paulo: Devir, 2013),
organizou os volumes Cinema(s) Independentes: Cartografias para um Fenômeno Audiovisual Global (Juiz de
Fora: Ed. UFJF, 2013) e Zelimir Zilnik e a Black Wave (São Paulo: Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universi-
tária da USP, 2014), este último pela coleção Cinusp.

139
14. Estratégias de mobilização de ativismo a partir da retórica do excesso no
audiovisual

Adil Giovanni Lepri

Introdução

O ativismo na internet tem se tornado uma importante dimensão na organização de causas e lutas relevantes
na sociedade brasileira como um todo. Apesar de seu advento não ter sido nas chamadas Jornadas de Junho de
2013, foi então que de certa forma tomou corpo o peso das redes sociais como ferramentas de mobilização e
debate político, se configurando como um espaço onde a ação política adquire traços particulares. Nesse sentido
o audiovisual tem se tornado uma faceta importante da forma de comunicação nos sites de redes sociais, como o
Facebook, e os avanços tecnológicos certamente tem um papel fundamental no que tange ao alcance do aparato
de captura de imagens e sons nas mãos de boa parte da sociedade. Mesmo que esse alcance não seja pleno e tão
amplo como possa se pensar, é possível tratar a câmera de filmagem como algo muito mais corriqueiro na vida
das pessoas a partir de sua instalação em cada vez mais aparelhos celulares.
Pierre Levy, em seu livro “Cibercultura” (1997), atenta para a questão da técnica, no seu sentido condicionante.

Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algumas possibilidades, que algumas opções
culturais ou sociais não poderiam ser pensadas a sério sem sua presença. Mas muitas possibilidades
são abertas, e nem todas serão aproveitadas. As mesmas técnicas podem integrar-se a conjuntos
culturais bastante diferentes. (LEVY, 1997, p. 24)

A técnica, então, é condicionante, mas não determinante (Ibidem), é preciso pensar a tecnologia como
ferramenta que possibilita mudanças sociais e saltos civilizatórios relevantes, mas não as gesta nem as protagoniza.
Levy levanta o exemplo do estribo no período histórico que precede o feudalismo e como este é um condicionante
para permitir que existissem os exércitos feudais que lutam grandes e longas batalhas em cima de seus cavalos.
Para o autor,

(...) sem o estribo, é difícil conceber como cavaleiros com armaduras ficariam sobre seus cavalos
de batalha e atacariam com a lança em riste... O estribo condiciona efetivamente toda a cavalaria e,
indiretamente, todo o feudalismo, mas não os determina. (Ibidem, p. 24)

Então, para pensar a questão do ativismo nos sites de redes sociais, sobretudo aquele que utiliza o audiovisual
como ferramenta discursiva e de mobilização, é importante pensar a técnica como condicionante para isso, mas
não determinante da forma como se organiza o meio de comunicação constituído. Ou seja, sem o celular que é
câmera, sem o site de rede social que aceita vídeos e sem ferramentas como a possibilidade de postagem direta de
vídeos em qualquer perfil no Facebook, não podemos pensar em uma paisagem audiovisual tão ampla composta
por vídeos de pessoas ordinárias compartilhando suas visões de mundo ao toque de um botão. No entanto, as
ferramentas não determinam o processo político que se segue.
É preciso então definir as coordenadas históricas nas quais se centra a análise pretendida aqui. Trata-se

140
do período em torno do pedido de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff que começa a se gestar
publicamente a partir de 2015, quando é formalizado, e se conclui na segunda metade de 2016 com o afastamento
definitivo da presidenta votado pelo senado federal. A reflexão acerca dos sentidos sócio-políticos deste processo
foge ao escopo deste artigo, porém parece importante uma contextualização do mesmo. Escolho por fazê-la
a partir do cientista político André Singer, que em seu artigo “Cutucando onças com varas curtas: o ensaio
desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)” (2015), defende que uma ampla
aliança se rompe e outra se forma entre as forças sociais brasileiras no período.

(...) o ensaio desenvolvimentista de Dilma teria, assim, seguido às pegadas da década de 1960. Na
partida, a burguesia industrial pede ofensiva estatal contra os interesses estabelecidos, pois depende
de política pública que a favoreça. Para isso, alia-se à classe trabalhadora. No segundo ato, os
industriais descobrem que, dado o passo inicial de apoiar o ativismo estatal, estão às voltas com um
poder que não controlam, o qual favorece os adversários de classe, até há pouco aliados. No terceiro
episódio, a burguesia industrial volta-se “contra seus próprios interesses”(Cardoso) para evitar o
que seria um mal maior: Estado demasiado forte e aliado aos trabalhadores. Une-se, então, ao bloco
rentista para interromper a experiência indesejada. Tal como em 1964, as camadas populares não
foram mobilizadas para defender o governo quando a burguesia o abandonou. Mais uma vez o
mecanismo burguês pendular ficou sem contrapartida dos trabalhadores. (SINGER, 2015, p. 66)

Para o autor, o rompimento da aliança histórica avalizada pelo lulismo entre a fração organizada da classe
trabalhadora e burguesia industrial então se rompe, ao passo que a burguesia especulativa e rentista vai trazer para
seu lado os setores produtivistas do país, na criação de um bloco histórico que vai jogar peso na deposição da
presidenta. Mas o que é importante notar é o elemento massivo que é ativado como sustentáculo fundamental deste
processo. Ainda que seja importante perceber o papel de entidades como a FIESP na defesa do impeachment, é
claro o papel desempenhado por uma massa que vai as ruas e precisa de uma narrativa coerente para aderir. Nesse
sentido os audiovisuais entram como índices relevantes para a construção de uma narrativa e de mobilização de
amplos setores das classes médias que vão as ruas.
A intenção deste artigo então, é a de pensar os audiovisuais feitos para a internet que carregam em si discursos
políticos em torno do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e como esses textos fílmicos trazem códigos do
melodrama e da imaginação melodramática, o excesso convertido em retórica. Para o pesquisador Peter Brooks
(1995), uma das principais facetas do melodrama, além do seu caráter excessivo é que “(...) melodrama não
só aplica, mas é centralmente sobre repetidas mistificações e recusas da mensagem e sobre a necessidade de
repetidas clarificações e reconhecimentos da mensagem.” (BROOKS, 1995, p. 28).
O melodrama, registro narrativo próprio da modernidade, pode então ser pensado como uma forma de contar
que restaura certezas, que, em tempos de crise e polarização se recondiciona. Neste artigo pretende-se investigar
alguns exemplos de audiovisuais que parecem retomar alguns códigos e registros mencionados. A opção por
analisar vídeos produzidos por personagens e movimentos mais identificados com valores conservadores e
favoráveis ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff se dá pela necessidade de compreender como e porque
se estabelece engajamento com esse tipo de audiovisual. Neste trabalho pretende-se analisar dois exemplos de
vídeos da página do Facebook e movimento Revoltados ONLINE e dois exemplos da jornalista e militante pelo
impeachment Joice Hasselman.

O audiovisual como instrumento político e o ódio como dimensão discursiva

141
É preciso identificar o audiovisual como importante ferramenta e instrumento de luta política e transmissão de
discursos e narrativas. As imagens em movimento têm potência, inclusive aquelas que retratam acontecimentos
factuais, como passeatas, acidentes, brigas, etc. A autora Jane Gaines analisa um certo gênero de filme documentário
que ela chama de “documentário radical”, aquele que deseja sobretudo produzir mobilização em torno de uma
determinada causa. Para a análise dos audiovisuais produzidos para a internet, portanto, é possível tomar alguns
apontamentos feitos em seus textos.

(...) o filme documentário que usa realismo para fins políticos tem um poder especial sobre o
mundo do qual é cópia por que deriva seu poder daquele mesmo mundo. (A cópia deriva seu poder
do original). O filme radical deriva seu poder (magicamente) dos eventos políticos que retrata.
(GAINES, 1999, p. 95)

Logo, é necessário compreender como a ilusão de realismo engendrada pelas imagens em movimento
é relevante para a construção de narrativas que desenvolvem uma série de certezas acerca de um assunto em
particular e, mais do que isso, podem produzir um engajamento no mundo das imagens. A autora, porém, segue
por dizer que “(...) só em conexão com momentos ou movimentos que filmes poderiam fazer uma contribuição
para a mudança social, e que neles mesmos, não tinham nenhum poder para afetar situações políticas”. (ibidem,
p. 85). Ou seja, Gaines trata os filmes – e neste caso podemos pensar o mesmo dos vídeos em questão – como
índices para a mudança de uma determinada situação política.
Nesse sentido é importante pensar como o caráter corpóreo desses filmes pode suscitar uma resposta similar
do espectador no mundo real. Trazer então o pensamento de Sergei Eisenstein é importante na medida em que
sua conceituação da Montagem de Atrações, ainda como um procedimento teatral, baliza boa parte da reflexão
posterior acerca da mobilização corpórea dos espectadores com relação ao que está sendo encenado, ou o que
está na tela.

Colocar o sensual de volta na teoria de estética política iria requerer reconceituação significativa.
Na teoria de mudança social e cinema de Eisenstein, os sentidos corpóreos direcionam o espectador,
o qual envolvimento não é estritamente intelectual – política não é exclusivamente uma questão da
cabeça mas pode também ser uma questão do coração. Relevante aqui, eu acho, é a observação de
Jaques Aumont que no vocabulário crítico de Eisenstein, “atração” era suplantada por “pathos”.
(ibidem, p. 88)

Com essa definição em mente é interessante trazer um conceito proposto por Gaines e que traz possibilidades
de análises relevantes para os objetos em questão.

O que eu estou chamando de mimetismo político tem a ver com a produção de afeto dentro e através
da imagética convencional da luta: corpos ensanguentados, multidões marchantes, polícia zangada.
Mas claramente tal imagética não terá ressonância sem política, a política que tem sido teorizada
como consciência, no marxismo como consciência de classe, o protótipo para consciência politizada

em lutas feministas, antirracistas, gays e lésbicas. (Ibidem, p. 91)

Também no que tange o melodrama é importante reiterar sua particular relação com o corpo, para Ben
Singer: “Crucial para um grande número de melodramas populares era o sensacionalismo, definido como uma
ênfase na ação, violência, emoções, visões incríveis, e espetáculos de perigo físico.” (SINGER, 2001: 48)

142
Retornando ao caráter excessivo do melodrama podemos trazer uma outra categoria que é importante para
a análise que é a do “cinema de atrações”, termo cunhado pelo pesquisador Tom Gunning, que seria “(...) uma
concepção que vê o cinema menos como uma forma de contar histórias do que como uma forma de apresentar
uma série de vistas para um público, fascinante por causa de seu poder ilusório e exotismo” (GUNNING, 2006:
64). Nesse sentido então, parece possível se trabalhar com a noção de audiovisual de atrações, trazendo o conceito
para os objetos em questão.
Para além do audiovisual como atração é preciso refletir sobre o excesso como retórica em vídeo, calcado nos
códigos do melodrama já apontados anteriormente: “O elemento essencial, talvez mais frequentemente associado
com melodrama é uma certa qualidade de ‘extenuação’ ou ‘exagero’ resumida pelo termo excesso.” (SINGER,
2001: 38-39). Retomando Peter Brooks, quando este analisa a retórica do melodrama no teatro, pode-se trazer
alguns apontamentos acerca do excesso como retórica, para o autor:

Retórica melodramática, como nossos exemplos acumulados suficientemente sugerem, tende na


direção do inflado e sentencioso. Suas figuras típicas são a hipérbole, antítese, e oximoro: estas
figuras, precisamente, que evidenciam a recusa de nuance e a insistência de se lidar em conceitos
puros e integrais. (BROOKS, 1995, p. 40)

Destaca-se então o aspecto monolítico da retórica do excesso, nos termos do autor. A dimensão da
obviedade está latente no discurso em questão, trazendo à tona a necessidade de restauração de certezas. Brooks
apresenta então sua hipótese com relação à retórica do melodrama, aqui historicamente situada no período pós-
revolucionário na França, como uma estratégia discursiva que vence as repressões.
Nós podemos agora avançar a hipótese que a retórica melodramática, e todo o empreendimento expressivo do
gênero, representa uma vitória sobre a repressão. Nós podemos conceber essa repressão como simultaneamente
social, psicológica, histórica, e convencional: o que não poderia ser dito em um estágio mais inicial, nem ainda
em um estado mais “nobre”, nem dentro dos códigos da sociedade. (Ibidem)
Nos casos em questão veremos, mais a frente, como se reconfigura esse aspecto de forma diversa na leitura
dos audiovisuais analisados.
Os discursos presentes nos vídeos a serem analisados têm, em grande medida, uma verve odiosa ou violenta.
A internet parece, por vezes, que é o terreno fértil para a gestação e reprodução de discursos de ódio, no entanto,
para a pesquisadora Raquel Recuero, as “(...) mídias sociais tem, em muitos aspectos, dado “superpoderes” para a
violência simbólica. As mídias sociais proveram um espaço chave para a reprodução de toda a sorte de discurso,
inclusive aqueles violentos” (RECUERO, 2015: 3). Logo, segundo a autora, podemos pensar no ódio como mais
uma dimensão discursiva amplificada, mas que chama a atenção pelo excesso. Carlos Alberto Carvalho aponta
para um norte similar, mas otimista quanto às características da internet e dos sites de redes sociais.

A internet, como terra de ninguém, pode ser, contraditoriamente, um promissor lócus para o exercício
da pluralidade, da democracia, da diversidade e do convívio na aceitação e pleno reconhecimento
das diferenças, mas também o oposto, terreno onde vicejam o ódio, o preconceito, o desrespeito às
leis e aos direitos humanos elementares. Construir coletivamente a primeira via é um desafio que se
impõe. (CARVALHO, 2016, p. 11)

Para Hannah Arendt a banalidade do Mal consiste no fato deste não ser radical, nem possuir “dimensão
demoníaca”, ele desafia o pensamento e a profundidade. (ARENDT, 2014). A reflexão da autora parece chegar a
uma importante realização. Por mais que pareça totalizante e radical, o mal enquanto discurso e prática política,
pode se imbricar por entre as frestas da sociedade tornando-se então, banal, e aí que reside sua ameaça.

143
As reflexões em torno do mal, do discurso de ódio e do excesso são fundamentais para pensar os audiovisuais
produzidos para a internet e sua organização discursiva, tanto em termos de conteúdo quanto de forma. A seguir
será feito um pequeno parênteses para pensar como as formas de mobilização política se adaptam no contexto das
redes sociais na internet.

Estratégias de mobilização online

O trabalho de Papacharissi (2008) sobre a esfera pública no contexto da internet e das redes sociais estabelece
um diálogo com a noção habermasiana do conceito e com o pensamento de Arendt (1981) sobre a questão
massiva. A autora sustenta que os espaços online não são imunes à comercialização,

No entanto eles se tornam adeptos em promover híbridos de interações públicas comerciais que
atendam a demandas de audiência e são simultaneamente mais viáveis dentro de um mercado
capitalista (PAPACHARISSI, 2008, p. 22)

Assim, a tensão entre público e privado é aparente. Nesse sentido, Arendt apontou uma reflexão ligada à
dificuldade da sociedade de massas de se sustentar.

O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange,
ou pelo menos não é este o fator fundamental: antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a
força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las (ARENDT, 1981, p. 62)

Com a qual Papacharissi dialoga ao dizer que:

É precisamente este “meio”, que, enquanto indivíduos agem civicamente a partir do locus da esfera
privada, é preenchido pela mídia online digital. Diferente da mídia digital offline, tecnologias online
possuem arquitetura “reflexiva”, responsiva às necessidades de múltiplas esferas públicas, que
estariam isoladas não fosse pelas capacidades conectivas da mídia online. (PAPACHARISSI, 2008,
p. 25)

A capacidade conectiva da mídia online então é uma característica fundamental no que tange o pensamento
da atuação dos indivíduos politicamente, não sendo possível pensar em uma esfera pública unificada, algo que
mesmo o conceito habermasiano já não dá conta. A dimensão de massa é comunicativa, no entanto, é central para
pensar o agir político nesse contexto.
A pesquisa de Christensen (2011) é importante ao chamar atenção para o chamado “slacktivism” ou “ativismo
de sofá”, que segundo o autor denota uma ação política que demanda o menor esforço, frequentemente realizada
pela internet, mas pode também tomar outras expressões: “(...) como usar mensagens políticas em várias formas
no próprio corpo ou veículo, grupos do Facebook, ou tomar parte em boicotes de curto-prazo como Dia de
Comprar Nada ou Hora do Planeta.” (CHRISTENSEN, 2011, p. 3). Esta forma de participação política encontra
144
críticas que sustentam que:

(...) o ativismo online é tipicamente nada mais que slacktivism, isto é, atividades que podem fazer
o indivíduo ativo se sentir bem, mas têm pouco impacto em decisões políticas e pode até distrair os
cidadãos de outras, mais efetivas, formas de engajamento. (idem, p. 6)

Assim, construindo uma forma de engajamento que é também, e por vezes principalmente, uma estratégia de
distinção, algo que agrega valor a um determinado indivíduo, através da divulgação de certas ações políticas no
espaço online. Ainda que certa “comodificação” do ativismo seja latente no contexto das redes sociais, Christensen
entende que ao contrário do que se defende em certas críticas ao “ativismo de sofá”,

(...) pesquisas mais recentes sugerem uma positiva – embora fraca – ligação entre ativismo online e
engajamento em participação política offline. Isso sugere que estar envolvido em atividades políticas
sem esforço não substitui formas tradicionais de participação, se muito, elas reforçam engajamento
offline. (Ibidem)

Aldé (2011), ao analisar diferentes perfis de internautas, vai comungar dessa opinião, apontando que há uma
definição diferente de ação política para o espaço online.

A experiência online, com suas práticas de interatividade e compartilhamento, audiência pessoal


e seletiva, propõe uma mudança na abrangência de escopo da política, que pode estar presente em
esferas mais microscópicas e cotidianas, próximas do indivíduo. Assim, reencaminhar um e-mail,
pertencer a um grupo público ou clicar em apoio a uma petição, por exemplo, representam para
várias pessoas tipos de atividade política. (ALDÉ, 2011, p. 386)

As redes sociais na internet não são o espaço exclusivo para a ocorrência do “ativismo de sofá” (CHRISTENSEN,
2011), embora sejam um local privilegiado para este tipo de atividade com o menor esforço, dado que o espaço
online traz a facilidade de ter as ações políticas “na ponta dos dedos”.
Em vista das particularidades do agir político relatado pelos autores aqui citados, é importante pensar o
lugar dos grupos organizados e figuras de autoridade – de relevância pelo menos no contexto histórico analisado
– como aqueles cujos vídeos foram analisados anteriormente.
Nos exemplos colocados para análise é clara a primazia do excesso e da atração como elementos não
só de mobilização sensorial dos corpos na tela, e da câmera como sua extensão, mas também pretendida no
corpo do espectador. A mimese política proposta por Gaines (1999) parece o objetivo não dito, mas mostrado
nos audiovisuais – seja com manifestações corpóreas positivas de mobilização política, como no exemplo de
Hasselman, ou negativas, de um corpo acuado, como no exemplo de Revoltados Online. Há uma intenção de
suscitar uma resposta corpórea em quem assiste, criar um pathos do fato que mobiliza os afetos e a ação política
do internauta, um “ativismo de sofá” que faça circular aquele vídeo em sua rede, mas também um sentimento
difuso de indignação que tenha a capacidade de produzir uma ação fora do espaço online, que, aliado aos discursos
noticiosos de grande parte da mídia tradicional tem a possibilidade de engendrar determinadas mobilizações.
O papel do audiovisual neste processo então parece importante, na medida em que não só se aproveita
145
das materialidades e tecnologias que estão postas nos sites de redes sociais, mas também de um conjunto de
características, talvez inconscientemente mobilizadas, próprias do melodrama e de uma retórica do excesso, que
ativa os afetos corpóreos na chave do “ativismo de sofá”. A seguir pretende-se construir uma breve análise de
alguns exemplos a partir da construção teórica detalhada até aqui.

Análise fílmica: Revoltados Online e Joice Hasselman

Serão analisados 2 vídeos postados pela página e movimento Revoltados ONLINE no Facebook, e 2 vídeos
postados pela jornalista Joice Hasselman em seu canal do Youtube. O primeiro vídeo de Hasselman trata-se de
um pequeno blog (vídeo blog) que noticia a chegada de uma carreata a Brasília para protestar contra o governo
de Dilma Rousseff, intitulado.
Concentração pelo #ForaDilma! – Joice Hasselmann – #Forapt (Joice Hasselman, 2015). No audiovisual
em questão a jornalista filma a si mesma com a câmera na mão um pouco mais alta que o rosto, em leve plongée
e fala sobre a chegada de alguns grupos sociais motorizados a Brasília para uma “grande manifestação” nas
palavras da mesma. A câmera virada para si mesmo denota a clara necessidade não de apenas documentar o
mundo, mas sim a própria presença neste mundo das imagens. Erly Vieira Jr. faz uma reflexão sobre o que seria
a “câmera-corpo” em determinado cinema contemporâneo sensorial, em que a objetiva estaria “(...) em estado
de “semiembriaguez”, a apreender sensorialmente a intensidade da experiência que captura, possibilitando uma
mediação pulsante junto ao espectador contemporâneo.” (VIEIRA JR., 2014: 1223), assumindo então um lugar
corpóreo, cabe então a essa câmera “(...) escoar por entre o transbordamento de afetos entre todos esses corpos
filmados e o próprio corpo do espectador (...)” (Ibidem). Para esta reflexão, no entanto, acreditamos que a câmera
olho da tradição soviética de Dziga Vertov dá lugar, neste caso, a outra espécie de “câmera corpo”, o dispositivo
como extensão do próprio corpo de quem filma, mas não como um corpo em si mesma. Ainda que não seja inédita
a manipulação da câmera de filmagem para ressaltar o corpo de quem opera, seja na ficção ou no documentário,
aqui acredito que possa se perceber certa transformação nesse expediente fílmico, principalmente com relação
ao celular e sua câmera frontal. Assim, valorizando a imagem de si mesmo, ressaltando não só os movimentos
corpóreos na operação da câmera, mas também sua imagem.

A câmera então se afeta junto com a afetação corpórea, é como se o aparato se tornasse a mímese política
que se pretende no espectador. As imagens tremidas, o ruído de vento, de buzinas e do ambiente são valorizados
como índices do mundo real para a construção de um espaço fílmico onde a presença de uma massa raivosa é
característica privilegiada, o vídeo torna-se atração pois apesar de definir uma clara narrativa verbal é acima
de tudo um “pathos do fato” (GAINES, 1999), ou seja, uma mostração de algum acontecimento que engendra
uma causa clara e um perigo presente, para a cinegrafista neste caso a causa é a derrubada do governo que traz
um perigo constante a sociedade brasileira. Aqui é possível retomar a reflexão do Brooks acerca da retórica do
excesso, quando este identifica nela uma reação à repressão.

Ainda em registro similar a este podemos trazer o exemplo do vídeo postado pela página Revoltados
ONLINE com o título Bando de safados! São machos quando estão em bando (Marcello Reis, 2015) que mostra
o dirigente do movimento, Marcello Reis, em meio a um grande número de filiados do Partido dos Trabalhadores
em um lobby de um hotel onde acontecia o congresso do partido. A presença do que se propõe ser pensado como

146
a “câmera corpo” é mais intensa aqui, no entanto o objeto principal do olhar da objetiva é o mundo ao redor do
cinegrafista, tal qual em Vertov. A câmera então se afeta na medida em que o corpo que a opera é afetado, sendo
esse processo o cerne do vídeo em si, que traz poucas palavras do personagem dirigente do movimento para a
câmera, acontecendo apenas no início do vídeo de forma breve. O caráter atracional deste vídeo é muito claro,
uma vista sensacional de uma multidão tornada turba, imagens tremidas são pressuposto estético de um vídeo que
parece conter algum grau de manipulação consciente da situação, senão do próprio dispositivo, trazendo inclusive
o aspecto próprio do melodrama do personagem que enfrente um grande perigo físico. A sensação é praticamente
o propósito exclusivo do vídeo, que tem na “câmera corpo” a articulação da mímese política pretendida no
espectador, que associado ao excesso presente nas imagens, nos gritos ao fim de “solta ele”, nas imagens quase
abstratas que são produzidas a partir do balanço violento da câmera e sons que são manipulados pelo próprio
corpo, na medida em que este cobre e descobre o microfone do celular que é usado para a filmagem, causando
uma verdadeira sensação de aprisionamento, de ataque selvagem.

Nesses exemplos, é importante também notar o caráter melodramático não só no excesso enquanto
chave discursiva e retórica, mas também na definição de certo “bem” contra um suposto “mal” que assola os
personagens, com a obviedade e repetição tão próprias do melodrama e no engajamento corpóreo não só com os
corpos presentes nas imagens, mas com os corpos do “mundo real”. A questão da técnica como condicionante é
fundamental também, na medida em que é necessário perceber que o celular com câmera condiciona este tipo de
audiovisual, mas não determina o caráter do conteúdo ou mesmo o processo político que é alvo de sustentação a
partir desses vídeos.

Conclusão

Neste artigo pretendeu-se analisar a forma como os audiovisuais produzidos para a internet e nos sites de
redes sociais trazem consigo um caráter atracional e códigos melodramáticos na construção de sua forma e de
sua retórica. A mimese política parece ser o objetivo desses vídeos que carregam um forte elemento de afeto
corpóreo, usando a categoria proposta aqui de “câmera corpo” como reprodução desta afetação para engendrar
um engajamento do espectador que funciona na chave do “ativismo de sofá”, trazendo diferentes formas de ação
política nos sites de redes sociais.

Mobilizando poucos recursos da gramática audiovisual em sua forma os vídeos causam respostas corpóreas
e engajam militância, mesmo que dê ocasião, para suas pautas e causas. A atração e o afeto provocam talvez
engajamentos menos racionais e mais do “coração”, como aponta Jane Gaines. É importante, portanto,
compreender esses audiovisuais e o que os faz dialogar com setores da sociedade para melhor compreender a
eficácia de determinados discursos no processo político como um todo.

147
Todos os exemplos citados são intocados em termos de pós-produção da imagem, de montagem, plano
sequência é regra para ambos e não há inserção de ruídos ou trilha sonora em nenhum exemplo. É como se
fosse o audiovisual de “cara limpa”, sem uma articulação clara de sua gramática para produzir algum efeito
determinado. Essa dimensão dos vídeos traz um caráter importante que é aquele de um realismo mais real que a
própria realidade, sem intervenções, contribuindo para a noção dos vídeos como testemunhos dos personagens.

Estes vídeos não constituem um amplo corpus de dados, e este artigo não pretende dar conta da totalidade da
paisagem audiovisual em torno do assunto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A tentativa é de pinçar
alguns exemplos dentre uma pesquisa exploratória mais ampla de um panorama audiovisual presente na internet,
propondo a hipótese de que esta estirpe de vídeos analisada neste artigo, ainda em caráter inicial, dirige uma
tendência relevante para o audiovisual político na internet. Pretendeu-se então investigar um certo tipo de caráter
atracional e alguma medida de aparecimento de códigos melodramáticos em um certo tipo de vídeo realizado por
movimentos e figuras mais identificados com pautas conservadoras para o país.

148
Referências bibliográficas

ALDÉ, Alessandra. “Cidadãos na rede: tipos de internautas e sua relação com a informação política
online” In: Contemporânea: comunicação e cultura - vol.09 – n.03 – setembro-dezembro, 2011.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1981.
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New Haven: Yale University Press, 1995.
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da intolerância”. In. Revista da Associação Nacional dos Programas de PósGraduação em Comunicação |
E-compós, Brasília, v.19, n.2, maio/ago. 2016
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by other means?” In: First Monday, Volume 16, Number 2 - 7 February 2011.
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Chadwick & Howard. The Routledge Handbook of Internet Politics, 2008
RECUERO, Raquel. “Social Media and Symbolic Violence” In Social Media + Society, AbrilJunho 2015,
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SINGER, Ben. Melodrama and modernity: early sensational cinema and its contexts. New York: Columbia
University Press, 2001
VIEIRA JR, Erly. “Por uma exploração sensorial e afetiva do real: esboços sobre a dimensão háptica do
cinema contemporâneo”. Revista FAMECOS, 2014, 21.3: 1219-1240.

Referências audiovisuais

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https://www.facebook.com/joicehasselmann/videos/977256662346523/> Acesso em 25/06/2017.
Bando de safados ! Só são machos quando estão em bando. Marcello Reis, 2015. <Disponível em: https://
youtu.be/-TkrmbUp8us> Acesso em 25/06/2017.

149
Adil Giovanni Lepri - É graduado em cinema e audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
e mestre em comunicação na mesma. Atualmente é doutorando no Programa de Pós Graduação em Cinema e
Audiovisual da UFF, onde estuda um assunto que vem bem a calhar, a saber, Compartilhamento do excesso: me-
lodrama e discurso político nos audiovisuais produzidos para a internet

150
15. A história da experimentação no cinema brasileiro: mitos de origem, mo-
mentos obscuros, desafio crítico

Rubens Machado Jr. 

I. Clássico, anticlássico e quase clássico 97

“Na universalidade tão admirada das obras clássicas está se per-


petuando, como norma e configuração, a universalidade funesta dos
mitos, o caráter inelutável do sortilégio.”

T. W. Adorno, 1969. 98

“A memória seria uma deselegância no meu sistema. Nada do que


ocorre a cada instante me vem apresentá-la, e no entanto, ela está lá.”

Paul Valéry, 1899. 99

Num país jovial e meio barroco como o nosso, a simples menção do termo clássico vive nos dando cócegas.
E, por vezes, alguma flagrante pretensão de exagero o acompanha. No entanto, acaba nos atraindo a necessária
positividade que ele nos promete. Iremos precisar dessa positividade para ordenar, fazer progredir, e afinal apre-
ciar a nossa (nem sempre) precária realidade. Não nos esqueceremos de procurar o que na bandeira nacional se
propõe (e continuaria faltando), ou seja: — Como chegar à Ordem e ao Progresso? Que significado podem ter?
Mais ainda: — Como usufruir, o que fazer do que já conquistamos?
O cinema brasileiro não escapa dessa realidade maior e dependerá também dos olhares contemporâneos que
pretendem sempre reordená-lo na história. A sorte dos filmes nacionais considerados clássicos vive assediada por
essa “providencial” instabilidade. Sintoma disso é a impressão de que este ou aquele clássico mais tradicional o
seria de fato mais por convenção do que por convicção.
Além de favorecer enrijecimentos, engessar, o consenso pode oprimir o que se tem ou se intui como diferen-
te. Quando tudo se pode dizer democraticamente e interessa ampliar a compreensão do que se discute, sobretudo
em quadro contemporâneo, entretanto herdeiro neoliberal de tradições autoritárias, há ocasiões em que a censura
97
Com leve modificação esta parte I foi publicada no folder “Clássico, Anticlássico e Quase Clássico: aspirações, invenções e tra-
dições do cinema brasileiro” in: Uma História do Cinema na Cinemateca Brasileira, Módulo 27. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 26 de
abril a 14 de junho de 2011.
98
Adorno, Theodor W. Teoria estetica. [1969] (tr. Enrico De Angelis) Turim: Einaudi (Piccola Biblioteca), 1977, p. 274 (tradução
nossa).
99
“La mémoire serait une inélégance dans mon système. Rien dans ce qui est à chaque instant ne la présente, et cependant, elle est.”
151
ocorre de fato por intermédio do “consenso”  100. Alguém lembrará da boutade abrupta de Nelson Rodrigues,
“toda unanimidade é burra”. Vamos combinar que estamos de acordo se o unânime em questão apoiar-se apenas
no chamado senso comum. Este último deve ser atacado continuamente pelo exame atencioso dos processos de
legitimação e dos critérios críticos exercitados; o que não é fácil. A nenhum filme brasileiro falta o vestígio da
afirmação, na medida em que qualquer um deles, já por sua simples existência, sobrepuja o isolamento e a miséria
do status quo mais encontradiço. E se há realização classicista em terreno meio arcaico, é certo que pesou o gesto
ancestral de Afirmação sobre a Natureza, que a atração circense tão bem materializava, muito antes do cinema.
As ideias vão mudando e os modos de pesquisar, muitos momentos relegados ou ignorados vão aflorar. Muito
se pode interrogar hoje em dia das velhas obras cinematográficas em virtude de novas concepções de mundo
deflagradas. Os verdadeiros clássicos vão resistindo ao tempo, e mesmo se renovando, arriscando ampliar o seu
espectro de sentidos. A especulação de cada novo momento é necessária para testar os critérios assentados e tra-
dicionais. As exigências práticas do presente repõem com novos moldes uma educação dos sentidos refeita, que
nos faz ver com novos olhos, provocando uma percepção diferente.
Por um lado já se tornaram senso comum, mesmo para quem não gosta de enxergar o filme brasileiro pelo
ângulo do autor, nomes como Nelson, Glauber, Joaquim Pedro, Leon, Cacá, Carlão, Anselmo, Lulu… Ou so-
brenomes como Medina, Mauro, Peixoto, Cavalcanti, Manga, Khouri, Person, Candeias, Saraceni, Sganzerla,
Bressane, Babenco, Mojica… De outro lado há os filmes. Fora de sua singular análise crítica resta, e floresce, a
mitologia do cinema; assim como na historiografia dos grandes criadores acabaria imperando o relato martiro-
lógico. Do modo como se dá o consenso nestes casos de pura ressonância da indústria cultural, convém destacar
o fato de que para além do chamado cinema clássico e de todo o classicismo aparentado à história da arte, tudo
pode virar “clássico”. Onde a indústria não consegue erigir seus modelos de comercialização mediante a intera-
ção sistemática do consumo, como falar de cinema clássico, senão como mimese estilística trazida dos maiores
centros fabricadores? Entre o conceito mais exigente e a vulgarização indiscriminada ou prepotente surge a crítica
tentando mediar o assunto.
Claro que este não é um problema exclusivo do Brasil, ou da periferia. Mas a diferença existe — e persiste na
história, tem estado aí para fazer contraponto, negar, glosar ou contrastar com as mais fortes potências emissoras.
Em toda parte o clássico tem convivido com o pseudoclássico, o quase clássico e o anticlássico. Como já disse
Giulio Carlo Argan, tentando dar conta da eclosão maneirista na história da arte, o termo anticlássico, naquilo
que parece designar, paradoxalmente, torna mais claro num átimo aquilo que sugere configurar, e mais denso de
conteúdos que o seu contrário 101. Glauber Rocha teria intuído o problema não só ao escrever a Estética da Fome
como ao chamar a cultura estadunidense de “neoclássica”; isto, claro, sem falar da sua reiterada simpatia pelo
barroco.
Cada diferente prática do cinema, se bem desenvolvida, vai sugerir a sua própria configuração clássica.
Porém, falar em clássicos de cada gênero cinematográfico de narrativa só é uma coisa cristalina e claramente
autorizada quando a indústria os institui. E o caráter intermitente ou precário da indústria do cinema no Brasil
arremessou a possibilidade de qualquer tipo de clássico para epicentros distintos dos cânones de gênero conven-
cionais do cinema. Nestes termos, a atual vaga tecnológica de amadorismo fértil e promissor não é exatamente
uma novidade desde que se começou a filmar por aqui. Estudiosos do país, como Paulo Prado ou Mário Pedrosa,
voltaram a apontar uma renitente inclinação romântica que nos custa muito endireitar. Seguindo o vaticínio de
Paul Valéry, de que toda a obra romântica já é clássica apenas mediante o seu êxito  102, resta-nos compreender
Valéry, Paul. Cahiers. Paris: Gallimard (Pléiade), 1973, I, p. 1211 (tradução nossa).
100
Cf.: Garcés, Marina. “El consenso es la censura”, Ciudad Princesa. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2018, pp. 31-35.
101
Argan, Giulio Carlo. Classico Anticlassico: Il Rinascimento da Brunelleschi a Bruegel. Milão: Feltrinelli, 1984, pp. VIII-IX (tradução nos-
sa).
102
Citado por Adorno, para quem “tal conceito de classicidade está tensionado ao máximo; é o único digno da crítica”, op. cit., p. 273
(tradução nossa).
152
o que de melhor aqui se construiu. Sucessos de crítica ou de público, êxitos frustrados por desvendar, êxitos do
futuro, ainda incompreendidos?
Decidimos sobre a grandeza de um filme pelo modo dele se ajeitar em nossa memória. Sua sobrevida fílmica
em nós depende dessa memorabilidade específica, sobretudo de sua inquietude e capacidade de convívio perante
a nossa experiência de vida enquanto algo que se insinua, que indaga, nos promete sentidos e se arraiga como se
persistisse interrogando algo do maior interesse. A reflexão acerca dos filmes, a sua promessa de nuançar, tarefa
da crítica imanente, vive nos propondo as balizas que nos faltam para pensar o cinema. Consubstanciadas pela
análise crítica, tais balizas servem de parâmetro mais seguro, nos elaboram noções e nos oferecem conceitos a
lançar mão, para recuperar na observação de outros filmes sucessivamente, constituindo esta seara chamada ci-
nema. Aí crescerão também outras produções audiovisuais assemelhadas, parecendo filme, para compararmos,
buscarmos suas diferenças, o seu singular. A experimentação crítica destas diferenças, logo saberemos, vem das
próprias obras singulares, que seriam por seu turno, e na sua origem, também elas experimentais. Ou não.


II. Passos e descompassos à margem 103

II.1. Humores

“Há essa luz também, luz que nos cega


com dois sóis que nos deixam sob as pálpebras
a sensação de estarmos enxergando;
e somos cegos da cegueira funda
que se esqueceu da noite de onde vimos
e que não vê a noite pra onde vamos.”

Jorge de Lima, 1952. 104

Ouvi de Rogério Sganzerla certa vez que: “O cinema brasileiro é o máximo, porque é o impossível.”
Lembrado como última vaga inventiva na história do cinema brasileiro, o chamado cinema marginal tem a sua
especificidade cinematográfica bastante complexa e merecedora de estudos. Continua, no entanto, atraente o seu
paralelo mais geral com outras manifestações, como o significado que teve para a música popular brasileira o des-
pontar do movimento tropicalista e o experimentalismo que o sucedeu, lá pela mesma ocasião histórica. De modo
análogo ao Tropicalismo, considera-se que depois daquela onda, apenas individualmente um ou outro nome se
destacaria talvez com radicalidade comparável; sempre porém pressupondo-se os passos ali dados.
Uma questão anterior, no entanto, se impõe, dificultando a observação desse paralelo: por que Cinema
Marginal, se o Cinema Novo antes dele (e também durante), sobretudo Glauber Rocha, é posto como paradigma
igualmente cotejável para com o Tropicalismo? Figuras decisivas como Caetano Veloso e Zé Celso Martinez
Corrêa têm lembrado de Terra em Transe (1967) como o momento em que se tornou possível o descortinar das
novas perspectivas. A cada nova década, por outro lado, dois marginais-expoentes como Rogério Sganzerla e
Júlio Bressane andaram revelando cada vez maior estranhamento com a designação Marginal, e claros indícios
103
Esta parte II foi publicada pela 1ª vez no catálogo Cinema Marginal e suas fronteiras: Filmes produzidos nas décadas de 60 e 70. (orgs.
E. Puppo & V. Haddad) São Paulo: CCBB, 2001, pp. 16-19; em versão retocada, Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política, v.8
nº15: Raízes e veredas do cinema brasileiro (orgs. Miguel Pereira & Gian Luigi de Rosa) Rio: PUC - Dep. de Comunicação Social,
2007, pp. 164-172. “Tempi e controtempi al margine”, Alle Radici del Cinema Brasiliano. Salerno: I.S.L.A., Oèdipus (Cine Latino 5,
dir. Marco Cipolloni, cura di Gian Luigi De Rosa), 2003, pp. 161-168.
104
Lima, Jorge de. “Subsolo e supersolo”, Canto II, XIV, Invenção de Orfeu. [1952] São Paulo: Círculo do livro, 1980, p. 112.

153
de simpatia pelo Cinema Novo, ao qual se viam ligados quando começaram.
Isto não quer dizer entretanto que alguém queira se esquecer do que entre marginais e cinemanovistas houve
de ruptura e de oposição, implícita ou declarada. O lado explícito tem documentos memoráveis, como a entre-
vista de Sganzerla e Helena Ignez n’O Pasquim. O implícito segue interessando enormemente à crítica pela sua
riqueza, densidade e controvérsia. Entre as inúmeras oposições, tomo como exemplo uma das que considero mais
significativas: o interesse dos marginais pelo humor e a consequente revalorização da Chanchada, que vinha em
desgraça desde os primeiros acordes cinemanovistas. É preciso recompor os passos deste desprestígio intelectual
da Chanchada, enrijecido nos anos 1960, para se poder ter uma ideia daquilo que então veio se desrecalcar. Isso
tem a ver com a noção de que a paródia dos chanchadeiros se submetia, prendendo-se ao modelo importado de
cultura e de cinema, sendo uma macaqueação dos gringos como alçada menor e tacanha da condição brasileira;
mais: ela seria um capítulo da subserviência espiritual colonizada.
A inversão de perspectivas parece ter-se operado na virada entre as décadas de 60 e 70, como se fosse mais
por influências indiretas do Tropicalismo do que por uma reavaliação de cineastas, críticos ou estudiosos — que
viria em seguida, em textos de Jean-Claude Bernardet e de João Luís Vieira, entre outros, a discutir os aspectos
especificamente críticos da paródia chanchadesca. O que não foi observado é o quanto o ponto de inflexão mais
contundente deveria recuar ao impacto causado em 1968 pelo primeiro longa-metragem de Sganzerla, O Bandido
da Luz Vermelha. Se a Chanchada construiu sua veia cômica em vivo diálogo com o samba, a marchinha carna-
valesca, o teatro popular dos esquetes nas casas noturnas, a jovem indústria fonográfica, o rádio e seus shows de
auditório, otimizando a velha “intermidialidade” da indústria cultural nascente na capital federal, o Cinema Mar-
ginal inventava como um de seus traços distintivos 105 um novo otimizar deste diálogo — agora ampliado pela vi-
vência dos media em tempos de modernização conservadora, a onda cultural pós-Golpe de 64, o vigente Febeapá
(Festival de Besteira que Assola o País) 106. O choque do novo, seu espalhafato, é aí convincente, creio, na medida
em que ele reconfigura a vida empírica do país num fato inédito, um não-empírico estético do empírico vivido 107,
que chega como forma inusitada e provocativa, cuja virulência está na fusão moderna de elementos da Chanchada
à perspectiva crítica perante o Brasil aberta pelo Cinema Novo. Talvez seja possível afirmar categoricamente que
foi a partir das sessões do Bandido que nunca mais se registraram descasos ou reprimendas intelectuais à Chan-
chada. E isto nos indica o alcance de certos filmes como texto crítico e historiográfico efetivo, já que percebido
por todos, ainda que não aflorado nos termos da racionalidade do debate público em curso: Eis um caso claro a se
estudar de re-escritura da história do cinema pelo impacto próprio de determinados filmes.
Complica o quadro se recordarmos que Glauber houvera já, antes disso, no Terra em Transe, introduzido com
muita felicidade num pequeno papel de senador parnasiano o comediante Modesto de Souza, figura indissociá-
vel da Chanchada, responsável pelo efeito sarcástico e a formidável catarse de certas boas cenas do filme. Deste
pequeno senador, pioneiro desbravador no até então sisudo e compenetrado Cinema Novo, até à homenagem que
selará a sua reconciliação com a Chanchada, Quando o Carnaval chegar (1972), de Cacá Diegues, gradativas
aproximações foram-se verificando, contado o passo seguro do Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade.
Isto porém não altera a percepção de maior simpatia dos marginais pela Chanchada, bem como a sua iniciativa
mais incisiva de resgate. É como se o Ciclo Marginal tomasse o gesto chanchadesco mais pelo cerne; por assim
dizer, pelo seu princípio ativo e não por suas decantações convencionadas de patrimônio afetivo. Um encontro

105
Machado Jr., Rubens. “Observação sobre O Anjo Nasceu”, Cine-Olho n°5/6, São Paulo: Kairós, 1979, pp. 52-53.
106
Ponte Preta, Stanislaw. FEBEAPÁ - 1, Primeiro Festival de Besteira que Assola o País. [1966] (il. Jaguar) 7ª ed. Rio: Sabiá, 1968, 168 p.
il.
107
“A arte fantástica, seja aquela romântica sejam os traços que dela se descobrem no maneirismo e no barroco, representam um
não-ente como ente. As invenções são modificações disso que empiricamente existe. O efeito é a apresentação de um não-em-
pírico como se fosse empírico. A origem empírica facilita o efeito.” Adorno, T. W. “Storia filosofica del nuovo”, op. cit., pp. 33-34
(tradução nossa). Bürger, Peter. “A obra de arte de vanguarda”, Teoria da vanguarda. [1974] (tr. José Pedro Antunes) São Paulo: Ubu,
2017, pp. 135-145.

154
sintético de potencialização da Chanchada entre ambas trajetórias, marginal-cinemanovista, se manifestará na
virulência crítica e performance carnavalesca da A$suntina das Amérikas (1976) e Videotrip (1984), de Luiz Ro-
semberg Filho.

II.2. Espontaneidades

“Mas
é limpinha”

F. Alvim, 2000.  108

“Oswald de Andrade — Pode-se atribuir ao capital estrangeiro essa face peri-


gosa do imperialismo, digna de um prognóstico de um professor ou especialista?
Caio Prado Júnior — Acho que assim retornamos aos problemas decorrentes da
adjetivação excessiva e das caracterizações morais. Nas observações feitas por
V. Exa. observei pelo menos quatro adjetivos.
O. A. — É a impressão que me causou a sua conferência.
C. P. J. — Obrigado. Mas, vamos ao que foi perguntado. Aliás, não sei bem em
que consistem as suas perguntas. Afirmei que o capital estrangeiro é prejudicial
ao Brasil. Devemos aceitá-lo — já que não temos outro recurso —, mas temos
que controlá-lo, por meio da legislação, impedindo que ele entre aqui para fazer
o que os seus possuidores bem desejarem. Agora eu vou perguntar: o meu amigo
Oswald de Andrade é contra ou a favor do capital estrangeiro. A única questão
que existe é essa?
O. A. — Penso que, dialeticamente, deve-se ser, ao mesmo tempo, contra e a
favor.
C. P. J. — Trata-se de uma dialética muito engraçada.
O. A. — Todas as dialéticas são engraçadas.”

Debate na conferência de Caio Prado Júnior,


“Capitais estrangeiros”, 1949. 109

Com Glauber ou sem Glauber, o importante é que o Ciclo Marginal a seu modo redime a Chanchada, in-
tegrando, desfigurando e recriando o humor que nela tinha livre circulação, mas repropondo-o em chave mais
corrosiva, numa simbiose moderna. O cinema marginal amplia a modernização que o Cinema Novo tinha colo-
cado em marcha, já com décadas de atraso em face das outras artes. Mário de Andrade, que costumava ver filmes
nacionais, embora com dificuldades de fazer-se acompanhar dos colegas modernistas, escreveu já em 1922 algo
de muito significativo na revista Klaxon 110, sobre Do Rio a São Paulo para casar de José Medina. Reconhecendo
méritos naquela comédia paulista hoje desaparecida, ele reprovava o trajar esportivo com que o pretendente de
origem popular se apresentava à família da noiva. “De quando em quando um gesto penosamente ridículo…
Num filme o que se pede é vida.” O modernista observava a propósito, que “acender fósforos no sapato não é
brasileiro” (...) “é preciso compreender os norte-americanos e não macaqueá-los”. Podemos lembrar que na mes-
108
Alvim, Francisco. “Mas”, Elefante. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 93.
109
“Debate: Caio Prado Júnior x Oswald de Andrade” [na conferência de 17/3/1949, de Caio sobre “Capitais estrangeiros”], praga:
revista de estudos marxistas, nº1 set. dez. 1996, São Paulo: Boitempo, pp. 93-94.
110
Andrade, Mário de. “Do Rio a São Paulo para casar”, Klaxon: Mensário de arte moderna n° 2, São Paulo, 15/6/1922, p. 16.
155
ma época, na França, foi pela crítica considerada importante no filme de Jean Renoir, Nana (1926), a “pesquisa
do gesto francês”, contra a maré alta da infiltração ianque (na verdade quase um tsunami). Vivida por Catherine
Hessling, companheira do cineasta e ex-modelo no atelier de seu pai, a sua Nana meio chaplinesca — mesclando
Mary Pickford e Theda Bara —, encena a ambição de ascender ao mundo do teatro aristocrático-burguês, mal-
grado a efusividade brejeira de pequena atriz circense. André Bazin está convicto de um Renoir nem tão realista,
ou mesmo vanguardista, quando nos anos 1920 o cineasta principia mais como um bom diretor de atores, do que
da mise en scène de fato, fazendo-se um pintor de corpos moventes mais para impressionista que expressionista,
estudando as gestualidades a partir dos quadros de seu pai, recentemente morto  111. Com a expansão das redes
exibidoras no entre-guerras e a crescente hegemonia do cinema estadunidense, a difusão de gestos e posturas ul-
trapassa em muito o âmbito dos artistas de cinema, alcançando largas plateias, populações inteiras, e, mesmo por
seu intermédio, em contágios da vida cotidiana.
Está desde cedo posto o processo de transposição e importação de formas cinematográficas, de que faz parte
de modo mais evidente a gestualidade. Evidente? Num país como o Brasil, em que desde o início o cinema era
realizado em boa parte por imigrantes, inclusive algumas vezes recém-chegados, este problema é ainda maior.
Imagine-se então o que seria o ciclo nacionalista dos anos 1910, realizado predominantemente por estrangeiros,
em que os temas eram retirados diretamente das páginas da História do Brasil e da ficção clássica no gênero,
como a de José de Alencar! Podemos ter boa ideia vendo O Caçador de Diamantes (1933), de Vittorio Capelaro,
imigrante italiano dos anos 1910 e cineasta representativo daquela produção inteiramente desaparecida. O filme,
único remanescente de sua trajetória, apesar do temporão de década e meia, ainda nos permite ver problemas
como os bandeirantes tirados da obra homônima de Olavo Bilac agindo como fidalgos em filme europeu do gê-
nero capa e espada. Num outro extremo, se tomarmos um dos filmes brasileiros mais professamente regionalistas,
João da Mata (1923) do dramaturgo campineiro Amilar Alves, embora nos intertítulos as falas caipiras tenham
sido trabalhadas com pesquisa e rigor filológico, e algum cuidado observa-se também na escolha dos cenários e
paisagens, temos a movimentação e os gestos dos atores restritos ao perfeitamente convencional dos clichês em
voga no filme de ação mundial ou ianque. Da mimética dos rostos ao jeito de brigar, dissipavam-se com eficácia
todas as cores locais de ambientação e figurino, bem como aquelas provindas da cartela, pelo “universal” dos
movimentos corporais, sua veemência visual. A inobservância dos gestos compõe dessa arte um padrão de forte
importação de formas cinematográficas entre nós, fazendo-se como característica central do nosso cinema mudo
um certo convencionalismo cosmopolita dos gestos. Resta saber até que ponto o gesto importado (assim como o
brasileiro das distintas origens e camadas locais da sociedade) não tinha também se disseminado nas ruas, pas-
sando, insipiente, a dado de realidade.
Em todo caso, o descompasso entre gestos artificiais e os espontâneos constitui o material responsável por um
mal-estar que, resistente na plateia, tornou-se típico do cinema brasileiro muito cedo. A dureza do gesto composto
causa espécie desde os primeiros decênios do filme brasileiro. A questão complementar seria saber se também
no teatro, no circo ou mesmo na “vida real” as coisas se passam tão diferentemente. Ora, o que me parece uma
qualidade maior da Chanchada seria exatamente a capacidade da sua fórmula paródica de abrigar semelhante
contradição nacional. O que antes, no período mudo brasileiro, já se notabilizava como desajuste enervante, vira
na Chanchada a matéria-prima. No que concerne a este embate entre forma cinematográfica e a realidade da ex-
periência vivida, a percepção deste descompasso como parte da realidade social vai tornar-se consciente e dar um
primeiro salto qualitativo importante somente então, a partir dos anos 1930, com a comédia e o amadurecimento
da paródia chanchadesca, e bem sobre aquilo que seria o mais gritante, e expressivo, do gesto controverso — a
gag. Para que se aquilate o teor da inventividade chanchadesca faltam investigações que pensem o fenômeno
111
Ver: Bazin, André. “Les films muets” [1958], Jean Renoir. Paris: Gérad Lebovici, 1989, pp. 17-22. Sesonske, Alexander. Jean Renoir:
The French Films, 1924-1939. Cambridge: Harvard University Press, 1980, pp. 19-37. Bertin, Célia. “Se faire un prénom”, Jean Renoir,
cinéaste. Paris: Gallimard, 1994, pp. 12-33.
156
paródico em simultâneo na música popular, literatura, circo, teatro etc. Ao acolher o descompasso entre o gesto
artificial e o corrente, o afetado e o simplório, o importado e o local, o pretensioso e o desarmado, a Chanchada
configura no plano da invenção de formas cinematográficas um primeiro e elementar gênero de entranhada ges-
tação brasileira.
A prova deste entranhamento pode ser buscada na sua permanência em produtos industriais que até hoje se in-
clinam para o cômico no cinema (a Pornochanchada dos anos 1970, por exemplo) e na televisão (novelas, séries,
programas humorísticos ou de auditório). A ressurreição permanente do personagem televisivo de Jorge Loredo,
o Zé Bonitinho, desde sua estreia em 1960, e como a principal atração de inúmeros programas, dá a medida do
vigor deste descompasso chanchadiano. Está lá o sempiterno galã norte-americano revestindo com a sua postura
sinatresca a maldisfarçada e coerentíssima índole subterrânea do macho sul-americano defasado, presunçoso e
anti-atlético. Caricatura genial do processo que tentamos descrever, Zé Bonitinho não por acaso figura em 02
ou 03 filmes do Ciclo Marginal, a começar do personagem-título de Sem essa Aranha (1970) de Sganzerla. Esse
Aranha apresenta-se como “o último capitalista brasileiro”, que estaria exilado no Paraguai, embora o filme seja
visivelmente rodado no Rio e ambientado na favela. Em dado momento ele, pensativo, deduz sobre os brasileiros,
absortamente pasmado: “Acho que o Diabo foi com a nossa cara.” Noutro momento, exausto e cambaleante como
se chegasse de uma maratona inglória, exclama em tom de denúncia: “Tudo está torto neste país!, a começar pelo
rancho do nosso presidente!”
Óbvio que esta importação é também intranacional. Como toda caricatura, o gesto controverso da Chanchada
concentra e precipita amplos processos vivenciados em costumes sociais que podem exprimir-se, na verdade,
em uma gama muito variada, sutil e nuançada de gestos. No horizonte, não temos só que lidar com a dimensão
cômica dos gestos, mas a dramática bem como todas aquelas relativas às infinitas direções estéticas possíveis.
Além de sua codificação contínua, ajustando e consolidando sentidos, o seu interesse maior está na margem
imprecisa do processo, na ambiguidade contida no fluir de cada movimento do corpo. Não só, é claro, pelo
que fazem mãos ou pernas, mas as expressões emanadas do rosto e de todo tipo de postura corporal, indo da
posição de sentido do soldado à mais complicada coreografia artística. E é preciso também levar em conta que a
linguagem do cinema vincula-se à gestualidade não apenas pelos corpos enquadrados, mas também pelos corpos
sugeridos nas falas, aqueles evocados pela trilha sonora e musical, aqueles pressupostos pelo tipo de posição e
movimento da câmera, de decupagem, ritmo da montagem etc. Toda a problemática dos hábitos e dos costumes
sociais se exprime nos gestos assim plasmados, e o gosto pela sua fatura controversa pode revelar tradições
culturais de grande persistência. No plano estético há muitas direções a indagar, e estilos a caracterizar, e para
não falarmos da dimensão contemporânea nomeadamente Gestual presente nas artes plásticas, vamos dar um
exemplo provocativo na frase do filósofo catalão Eugenio d’Ors: “Sempre que encontramos reunidas num só
gesto várias intenções contraditórias, o resultado estilístico pertence à categoria do Barroco.”  112 No plano ético
a implicação é grande, pois intrínseca. “O gesto abre a esfera do éthos como a esfera mais própria do homem”,
diria o filósofo italiano Giorgio Agamben 113. A raiz éthos, tanto no sentido de caráter como no de modo de vida
habitual, nos propõe uma vocação ethográfica do cinema, o qual exprime melhor que quaisquer outros meios a
variedade de modos de ser para o julgamento ético. Entretanto, como reza o refrão popular, o Brasil não conhece
o Brasil: investigações cuidadosas como a do antropólogo Luís da Câmara Cascudo, História dos nossos gestos
(1976)  114, continuam até hoje ignoradas; sobretudo pela análise fílmica, a crítica, o ensaísmo ou as pesquisas
acadêmicas em cinema e audiovisual.

112
Ors, Eugenio d’. “Derrota e triunfo da mulher” [1920], O Barroco. (tr. Luís Alves da Costa) Lisboa: Vega, s.d., p. 25.
113
Agamben, Giorgio. “Notes sur le geste”, Trafic n°1, Paris, POL, 1991, p. 35 (tradução nossa).
114
Cascudo, Luís da Câmara. História dos nossos gestos. São Paulo: Melhoramentos, 1976.

157
II.3. Engajamentos

“Não é que negava quem fossem os superiores,


pois com suficiente clareza indicava a quem se tratava de enaltecer e a quem
se tratava de humilhar,
mas quando agora nos púnhamos a rememorar a pedra talhada, os traços de
rosto dos deuses eram rígidos e frios, sua aparência resultava irreal em sua
grandeza e inacessibilidade, enquanto que os derrotados, em que pesem todas
suas deformações, conservavam sua aparência humana e estavam marcados
pelo temor e pelo sofrimento.”

Peter Weiss, 1975. 115

Já se observou que o brasileiro seria um povo jovial. Para uns isto soa de modo a proporcionar entusiasmo,
para outros, apreensão. Sem demérito de projetos civilizados, o entusiasmo mais ilustrado não terá dificuldades
de buscar em nossa memória já na Carta de Caminha, na primeira missa ou no imaginário dos primeiros conta-
tos a recepção calorosa dos indígenas aos europeus, brincando de imitar seus gestos solenes de conquistadores,
e outras espécies de arremedo primevo. A apreensão entretanto parece ter sempre a última palavra, devido sem
dúvida à contínua instabilidade verificada em nossos processos políticos e institucionais. Por essas e por outras
é que se poderia explicar a seriedade do intento cinematográfico da “pesquisa do homem brasileiro”, pela época
dos grandes estúdios dos anos 50. Os filmes produzidos por Alberto Cavalcanti, Caiçara (1950) de Adolfo Celi,
Terra é sempre terra (1951) de Tom Payne, e outros títulos da Vera Cruz caracterizam um retrocesso paradoxal no
caminho que apontávamos. Importam-se técnicas do film d’art, ou o que seria um “cinema de qualidade” europeu,
que estava para ser (ou já sendo) fustigado pelos críticos do pós-guerra, cinema aparatoso e pesadão contra o qual
começariam a se erigir as novas estéticas realistas. Técnicos, fotógrafos, diretores, são chamados da Europa à
guisa de seriedade industrial e artística. O paradoxo era a busca do autêntico, configurando um caso complicado
de kunstwollen (vontade artística) aprisionada pelo academicismo importado. É claro que tem algo aí que diz
respeito a uma animosidade cultural bem viva entre paulistas e cariocas, explicando em parte algum preconceito
para com as produções e o savoir faire desenvolvidos no Rio. Reimportamos em São Paulo, só que agora direta
e abruptamente, a forma, a técnica, o olhar, o artesão. Na luta travada entre forma cinematográfica e “realidade
brasileira” se reconstituiu então, com artifício requintado, uma regressão imperdoável que nem Mazzaropi pôde
salvar.
Se no 1° passo que descrevemos, com a comicidade da paródia a chanchada passa do macaquear ingênuo ao
macaquear irônico, e, para andarmos rápido, com o 2° passo — na verdade um passo em falso, ou uma torcida de
pé —, tivemos uma busca exageradamente séria, acadêmica, e não mais uma busca do descompasso, mas sim do
compasso brasileiro, da coisa autêntica, para a recuperação de um passo em falso seria preciso uma pisada mais
firme, que é o que acaba se dando na virada entre os anos 1950-60. Este novo 2° passo, ou já o 3° passo, como
queiram, abre caminho para o moderno cinema no Brasil, na verdade o inaugura, e se deve em boa parte a um ve-
tor realista que se dissemina entre as estéticas radicais do cinema mundial do período e, em particular, pelo modo
como ele foi-se realizando entre nós. Há todavia um interstício prolongado (e duradouro...) entre a instalação dos
estúdios e o Cinema Novo, no qual vai amadurecendo, em que pesem os entraves acadêmicos, a tal pesquisa do
homem brasileiro, com cineastas do vigor de um Lima Barreto ou Anselmo Duarte.
Os primeiros filmes de Roberto Santos e de Nelson Pereira dos Santos devem ser citados como os resultantes
115
Weiss, Peter. La Estética de la Resistencia. [1975] (trad. José Luis Sagüés) 2ª ed., Hondarribia (Espanha): Argitaletxe HIRU, 1998, p.
69 (tradução nossa).

158
iniciais mais empenhados nas novas inclinações realistas. Do pioneiro Aruanda (1960) de Linduarte Noronha, aos
documentários dos anos 60-70, período típico da câmera na mão e uma ideia na cabeça, encontramos filmes enga-
jados na abordagem das condições de vida do povo e muito penetrantes em seu universo, os quais virão traçando
um arco de experiências que reverberam com o alvorecer cinemanovista uma série de apropriações, antecipações
ou similitudes para com o Neorrealismo, o Cinema Verdade e a Nouvelle Vague. Tem sido insuficientemente re-
conhecida pela crítica uma forte vertente realista dos primeiros tempos do Cinema Novo: Ruy Guerra, Saraceni,
Joaquim Pedro, Leon, Jabor são autores que têm filmes mais ou menos exemplares do ponto de vista estilístico da
inclinação realista nessa época. Talvez aí, neste campo de provas, alguma espécie de pedagogia realista (?) — “re-
denção da realidade física” (Siegfried Kracauer) funcionando? — tivesse trazido consequências para a dialética
Mundo Filmado versus Forma Cinematográfica. Parece-me sedutora a hipótese de que foi este multifacetado sur-
to realista que forneceu material e fertilizou com as suas descobertas o terreno em que amadureceu esteticamente
o cinema brasileiro das décadas de 1960 e 70. Algo de análogo aos erros e acertos do cadinho de experiências que
foi o Neorrealismo italiano preparando as subsequentes sumidades artísticas na obra de Antonioni, Fellini, Vis-
conti, Pasolini etc. No Brasil o uso da câmera na mão desde os primeiros ventos do Cinema Verdade até as singu-
lares elaborações de Glauber, Sganzerla e Bressane sofreram uma evolução como forma cinematográfica que se
rebate forçosamente no âmbito da desenvoltura gestual da visada móvel, que neste ínterim muito progrediu, por
seu turno, em atinada “coreografia”, excedendo o que pelos novos cinemas internacionais seria mera premonição.
O engajamento cinemanovista, embora opondo-se à visão “industrial” vigente, reteve algo de sua seriedade?
Seriedade que já nos seus próprios criticados guiava a busca de um compasso próprio da cultura e do homem
brasileiro: buscas que implicavam ambas alternativas em recusas, por conseguinte, da Chanchada? Alberto Ca-
valcanti e Lima Barreto teriam tido nesta hipótese metas comparáveis às do Cinema Novo?, e o que os afastava
seriam sobretudo métodos e formação geracional (mentalidades, ideologias)? Creio que não, trata-se de seriedade
muito diferente, e a própria noção de engajamento as distancia. A forma cinemanovista, mais sensível à realidade,
com ela dialogante, pesquisava o seu estilo consubstanciado num compasso dialético que visava a apreensão dos
descompassos mais complexos e contraditórios da sociedade.
As formas alegóricas 116 elaboradas nesta trajetória não deixam de ser em boa parte, superlativamente, versões
históricas compassadas de descompassos sociais de seu tempo: históricas e historicizantes. Tentar ver o Brasil
de esguelha, com olhos brasileiros, o local pelos vieses locais, em consonância ainda que tardia com a revolução
modernista nacional e internacional, era antes de tudo baixar a bola ao nível do terreno, isto é, partir da cultura
tecnológica pobre e atrasada, lidar com os meios técnicos mais acessíveis. Alicerçar poéticas no imediatamente
existente, fazer render esteticamente rica a precariedade de recursos, em sua própria suficiência. Opondo-se a
Hollywood, a Estética da Fome (1965) criou um paradigma até hoje vivo, mesmo quando ignorada, em diferentes
situações mundiais; ainda que as oposições e polarizações sempre estivessem distribuídas pelo mundo, em dis-
seminação atualmente ainda maior — entretanto paradigma persistente enquanto houver violência no processo
colonizador imperialista. O atraso em combinação sub-reptícia, inadvertida, com o moderno, tal como veio posto
na equação bárbara da “revolução” conservadora de 1964, vai através deste cinema incorporar a própria barbárie
existente, na sua expressão problematizada socialmente em arte política, num renovável cinema novo permanente
desde aquele decênio. Estética faminta reverberando sentidos em barbárie-forma radicalizante, dado que histori-
camente concreta: barbárie convertida em tendencial pensamento estético emancipatório.
Do Cinema Novo para o Marginal pode ter sumido toda seriedade, mas não o engajamento, ao contrário do
que se alardeia. Ele pode sim ter mudado no sentido político, ético ou comportamental, mas no sentido estético
e sobretudo no poético ele se mantém de algum modo ainda mais resistente. O Ciclo Marginal na verdade não

116 Devemos a Ismail Xavier o mais substancial desta reflexão, em Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema
Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.

159
abre mão das possibilidades poéticas contidas na Estética da Fome, divergindo naquele momento do final dos
anos 1960 dos rumos cinemanovistas que passam a procurar os padrões mais convencionais do grande público
— Embrafilme, “Mercado é Cultura” etc. Mais do que não abrir mão, os marginais de certo modo radicalizam a
proposta do manifesto glauberiano de 1965. A postura anárquica e comportamental efetivamente os ajuda a levar
às últimas consequências certos desígnios contidos na Estética da Fome relativos à pesquisa de linguagem e à mo-
dernização no sentido ainda de 1922, fazendo-se incorporar à estética dos filmes a tal da “contribuição milionária
de todos os erros” da qual nos advertira Oswald de Andrade. O improviso e a precariedade, a simples “câmera
na mão”, como condição necessária para a perspectiva de indagação livre e aberta sobre a condição brasileira,
mantida assim “uma ideia na cabeça”, parecem ser as divisas resistentes dos marginais. Quando depois olhamos
ao redor e vemos o dito cinema da retomada ficando para trás no Brasil, tão dispendioso, pseudo-convencional,
acadêmico, pesadão 117, mesmo já em plenos anos 1990 do sucesso do cinema iraniano, dos independentes ame-
ricanos, do filme de periferia francês, do Dogma 95, nos perguntamos se o problema político-econômico, persis-
tente, não é também um problema de memória. A sintomática frase “No Brasil a realidade ultrapassa a ficção”
tornou-se um lugar comum que ouvimos de quando em quando sem que, do meu conhecimento, jamais alguém
mencione a autoria. Mais importante que isso, interessaria aqui saber em que ocasiões específicas ela tem sido
mais lembrada, pois o nosso cinema parece estar implicado.

III. História experimental do experimental 118

“Os arrojos sauvages precisam de crítica


tanto quanto a crítica de arrojos sauvages.”

Gustavo Dahl, 1963. 119

“O dominado só reage quando duvida,


a dúvida é a fonte da consciência. (...)
O único eterno subversivo do mundo é o artista. (...)
A revolução é permanente e deve duvidar sempre,
superando os estágios que os reacionários
determinam como ideais.”

Glauber Rocha, 1965. 120

Pensado com largueza, o cinema experimental no Brasil pode ser muita coisa. Para além do que já se expri-
miu em debate e ensaísmo, persistem repertórios intocados pela análise mais detida e interpretativa, mesmo que
cultuados num obscuro canto do panteão cinéfilo, na penumbra de efeitos mais ofuscantes dos holofotes. Por uma

117 Ver a respeito o nosso artigo: Machado Jr., Rubens; Moreira, Roberto, “Chegando junto”, Sinopse n° 2 ano I, São Paulo:
Cinusp, outubro 1999, pp. 2-5.
118
Uma versão reduzida das partes III a VI foi publicada como “História experimental do experimental — Apontamentos para uma
história das estéticas radicais no Brasil: o cinema experimental em suas origens” in: Hallak d’Angelo, Fernanda; Hallak d’Angelo,
Raquel. (orgs.) CineOP - 13ª Mostra de Cinema de Ouro Preto: preservação, história, educação. (catálogo) Belo Horizonte: Universo Produ-
ção; MinC, 2018, pp. 24-31.
119
Dahl, Gustavo. “Carta a Glauber Rocha (Paris, 10/X/63)” in: Rocha, Glauber. Cartas ao mundo. (org. Ivana Bentes) São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, p. 218.
120
Rocha, Glauber. “Alphaville” [1965], O Século do Cinema. Rio: Alhambra, 1985, p. 231.

160
exigência de método deveríamos de fato contemplar, ainda, repertórios menos conhecidos e frequentados, filmo-
grafias pouco lembradas, carentes de discussão, outras de mapeamento apenas começado ou prospecção recente.
Isto é, filmes sem crítica. Há neste rol fitas ignoradas mas também outras até consideradas “cult”, todas com
poucas linhas reflexivas, rara análise crítica. Há mesmo segmentos inteiros pouco vistos, ou por levantar, como o
experimentalismo superoitista, certos núcleos mais amadores, o vídeo militante etc. Até no caso dos cineastas que
mais provocaram estudos, e que mais enriqueceram o nosso debate histórico, sobrevive parcela grande de obras
impressionantes pouco analisadas e debatidas, mesmo quando muito citadas.
A história do cinema de vanguarda faz sempre parte da história do experimental embora nem todos os expe-
rimentais pertençam ao campo das vanguardas. Uma das qualidades diferenciadoras, como conceitos cotejáveis,
do experimental quanto à vanguarda é a abrangência maior do experimental, não só ao supor livre diálogo com
cada vanguarda, inclusive para delas recusar aspectos ou características, como também ao criar estéticas de suma
importância que ainda não se deram muito bem conta disso, seu caso claro nas obras mais intuitivas, concebidas
sem as predeterminações de um projeto manifestado, tão frequentes na história da arte, e por vezes de modo quase
naïf. E neste caso desafiam também a crítica, e mais ainda quando, para além da própria criação singular, evitam
ou se recusam a manifestar conjuntamente balizas projetuais, processuais e conceituais. Embora com antece-
dentes mundo afora a considerar, os primeiros trabalhos que começam a pensar historicamente o experimental
pertencem, em geral, ao pós-guerra, antecipados na Europa pelas reflexões de Brecht sobre teatro e literatura, a
partir de Zola. 121 Ora, ao contrário da história geral do cinema, o experimental não conta via de regra com uma re-
cepção crítica comparável, em padrões, regularidade, quantidade: há aqui e ali artigos de elogio, saudação, alguns
ensaios e estudos isolados num amplo painel fragmentário, de falhas predominantes, enormes vazios a ocupar. Os
casos de exceção se esboçam quando se propõem termos, denominações — como certas vanguardas quando an-
tecipam “chaves” provocando (ou resolvendo, apaziguando e reduzindo) inquietações críticas do espectador —,
ou aqueles em torno dos quais já se deu um debate específico gerando noções, nomenclaturas, conceitos.
Ao contrário das vanguardas, que podem (por que não?) ser vistos num mesmo rol, os experimentais em ge-
ral não manifestam sistemas projetuais em simultâneo, ou proposituras de intencionalidade, eles precisam muito
mais do trabalho a posteriori dos críticos. Diremos que o experimental é o cinema que mais desafia a História
da Crítica, corresponderia à sua face oculta: aquele que parece intuir as suas dificuldades e máculas — pontos
cegos nos quais possa ser surpreendida no contrapé uma crítica instituída, com seus critérios, preceitos, preocu-
pações e campanhas, a constituir, de par com o distinto público um quadro histórico determinado de expectativas
e percepções. Desse modo a história do experimental pode ser discutida como uma espécie de outro lado, o lado
reverso da história da crítica: postas em paralelo, ambas as histórias devem por vocação se desafiar reciprocamen-
te, se questionar e se compreender de modo mais rico. Ir além disso integrando dialeticamente os filmes como
possível parte da própria história da crítica. Explica-se assim até a inclinação antiacadêmica dos experimentais,
sua teimosa aversão à nomenclatura através das décadas, que inclui mesmo a de experimental, impostando uma
atávica inversão daquilo tudo que se aloja na expectativa imperante de crítica e público — e cuja obediência, do
ponto de vista poético (na etimologia do modo de criar), se contemplaria também na teoria da arte pela categoria
do academismo.
A recusa política sistemática dos modelos estéticos e convenções, a busca de rupturas em forma e con-
teúdo, se dá de maneira mais livre no cinema de artista, independente, amador, outsider, e nas suas modalidades
mais interessadas, fadadas ou condenadas ao criar do cinema de garagem, não-alinhado, marginal, inocente, re-
121 Kracauer, Siegfried. “Experimental Film”, Theory of film. Londres: Oxford University Press, 1960. Weiss, Peter. Cinéma d’avant-
garde. [1952-1955] Paris : L’Arche, 1989. Rocha, Plínio Süssekind. “Le Documentaire Expérimental et le Film d’Avant-garde”,
L’Âge du Cinéma, n° 6, Paris, 1952. Brecht, Bertolt. “O Teatro Experimental” [1939-1959], Teatro Dialético. (sel. intr. Luiz Carlos
Maciel) Rio: Civilização Brasileira, 1967. Zola, Émile. Le Roman expérimental. [1880] (pr. Aimé Guedj) Paris: Garnier-Flammarion,
1971.
161
belde, visionário, naïf, subterrâneo, anticapitalista, primitivo, diferente, cafajeste, negativo, revolucionário, mal-
dito — que, como vemos, na cultura cinematográfica se traduz em Nominalismo, em suma um glossário básico e
histórico do experimental. Sejam elas autodenominações ou designações à revelia, se constituirão nas variedades
empíricas do experimentalismo. E trarão cada uma delas um contexto próprio de existência no qual se traduzem.
Sua História demanda empenho de fôlego num país como o nosso, marcada pela tradição cordial do favor e do
favorecimento (que afeta também à crítica), e que congregou poucos movimentos ou manifestações coletivas de
repercussão — Cinema Novo, Marginal —, e tão repleto de casos ilhados — de Mário Peixoto a Carlos Adriano.
Para o crítico, a matéria singular com que trabalha demandaria do seu tratamento uma equivalente e jus-
ta singularidade, ou capacidade de singularização. Tomar o objeto em sua própria medida: sem forçar o ajuste
violento de categorias e interpretações pré-fabricadas, permitir-se experienciar a singularidade possível do filme
a solicitar aproximações ou métodos que se revelem concomitantemente singulares. A obra de um lado, tanto
quanto o espectador que critica, fazem parte do objeto 122 analisado, mas o núcleo decisivo não está em nenhum
dos dois polos, de fato reside na relação que se estabeleceu entre ambos. As análises singularizantes de obra são,
além de determinantes, insubstituíveis na história da arte, bem como nesta do cinema experimental. Elas possi-
bilitam, como se sabe, uma verdadeira releitura de seus momentos a partir do presente, se for realizada partindo
de uma experiência do analista integralmente empenhada em viver os sentidos que se exprimem e os conteúdos
mobilizados pela estruturação formal historicamente percebida. Assim é que se produzem os devidos conceitos,
tanto os novos quanto os reapropriados, especificados desde a sua migração. O crítico procura o singular da obra
a partir de sua experiência de fruição. Nessa perspectiva de análise, que pode ser chamada de crítica imanente,
os conceitos emergem solicitados por esta experiência, e se produzem na reverberação proporcionada pela obra
numa reflexão empenhada na busca de seus sentidos, ao contrário da prática mais corrente da crítica superficial,
viciada na prepotência aplicacionista de categorias prêt à porter — não por acaso de grife, conceitos de “boa
procedência”, com alto valor de troca no meio acadêmico ou no meio implicado, a par de um inopinado valor de
uso, e pouco verificável posto que serão sucedidos em poucos anos por outra vaga conceitual “inovadora”; prática
análoga aliás às empreitadas especulativas típicas do financeirismo e do empreendedor neoliberal.
O trabalho do historiador pressupõe a atividade dos críticos e analistas em debate, sobretudo quando face
à singularidade artística radical dos seus objetos. A utopia das análises realizadas em coletivo se dissipa triste-
mente junto com o declínio do cineclubismo radical depois dos anos 1970, quando completavam quatro ou cinco
décadas fecundas na formação de críticos e cineastas encharcados da experiência presencial manifestada num
espaço público hoje minguante. Rarefeito desde então, o hábito dos debates em público ou em cineclube sempre
ajudou a formar sucessivas gerações de críticos e cineastas, sobretudo depois do período entre guerras. Processos
análogos podem ser descritos em simultâneo na Itália ou pela Europa, o Novo Mundo e muitos países mundo
afora, incluindo-se o Brasil. Podemos mencionar na França o paradigma do Peuple et Culture, anos 1930, movi-
mento a partir do qual amadurece a geração de André Bazin e Chris Marker. Ali se configurou talvez um quadro
bem diverso do atual, em que nas nossas experiências individuais e coletivas de se assistir a um filme tornou-se
rara a discussão, a aberta interlocução penetrada de alteridade, de pontos de vista distintos, e isso até mesmo no
espaço universitário. Também nos cineclubes ou nos debates especialmente programados reduziu-se o interesse
pela análise crítica e o debate com o público, tal como ainda hoje, Século XXI, poucos decanos ainda conseguem
fazer, como na Cinémathèque française, um Jean Douchet; ou no Brasil um Jean-Claude Bernardet — que tem
declarado em entrevistas ter realizado entre os anos 50 e 60 uma formação basicamente no Cineclube Dom Vital,

122 Sobre a complexidade do objeto (estético e cinematográfico) na abordagem crítica, ver: Adorno, Theodor W. Teoria estética. [1969]
(tr. Artur Morão) 2ª ed. rev., Lisboa: Ed. 70, 2008. “O ensaio como forma” [1958], Notas de literatura I, (tr. Jorge de Almeida) São
Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2003. Aumont, Jacques. À quoi pensent les films. Paris : Séguier, 1996. “Meu caríssimo objeto:
reflexões sobre uma pedagogia das imagens em movimento” [1993] (tr. Luciana Artacho Penna), Imagens n°5, Campinas: Ed.
Unicamp, 1995.
162
em São Paulo, na prática sua “faculdade”; e manifesta crescente estranheza pelo estilo atual da fala acadêmica.
Nestas tradições do cineclubismo humanista, radicalmente democrático, não se trata apenas de “ensinar” a
ver um filme mas sobretudo de se saber informar, provocar e coordenar uma análise fílmica coletiva, composta
problematicamente de suas vozes discrepantes no público, alteridade presencial.  123 Com o duplo escopo de se
compor um quadro contraditório, irresolvido e inacabado de interpretações possíveis, e de escuta dialética da
pulsação de sentidos da fita por quem (e a quem) afinal o filme se destina: o público, seu derradeiro autor. E,
nesta experiência, sairmos todos da sessão atravessados por essa alteridade revelada, essa análise incompleta,
precária, em aberto, experiência cheia de interrogações e incertezas, mais problemática do que teriam sonhado os
realizadores. Aprendem todos: espectadores, organizadores, debatedores, cineclubistas, eventuais futuros críticos
e cineastas. Hoje o Cineclube vai aos poucos se convertendo, depois dos anos 1970, em circuito alternativo de
mera difusão e culto, ou consumo; chega a nome da sessão de sexta à noite na Rede SBT, programação de TV a
mais standard possível.
Uma história bem contada do cineclubismo nos faz falta, pois ela parece oferecer alguns parâmetros decli-
nantes e transmudados do que acontece na relação do cinema (e audiovisual) com os seus espectadores. Falta-nos
com isto algo do aspecto central do cinema como meio específico, o seu centro de gravidade, que seria a sua rela-
ção com o espaço público, noutras palavras, com o público e a crítica — seus virtuais e concretos espectadores. E
o cinema experimental ou de vanguarda é, em especial, sensível e depende completamente da vitalidade da esfera
pública para se instaurar, para continuar experimentando, testando e provocando no interior da sua dinâmica pú-
blica. Na atividade crítica em geral a sensibilidade na percepção do Outro, com o declínio do espaço público e
sua experiência dinamizadora, se viu substituída ultimamente por um outro espaço: em lugar de cidadãos somos
todos sob o neoliberalismo consumidores, e/ou empreendedores; em paralelo, os engajados foram não só saindo
de cena mas também cedendo lugar aos “lobistas de si próprios” 124.
Com o primado exclusivo do binômio produção & circulação parece que não temos mais agora tempo para
considerar a construção de análises críticas, de argumentações; aliás: — Com quem estamos falando mesmo?
“Não temos mais tempo hoje em dia para a crítica” é o que se ouve de idealizadores e defensores dos editais de
apoio à produção cinematográfica, mesmo ao priorizar sua amplitude e a abrangência, necessária, a setores caren-
tes da população, justificando assim a ausência de quaisquer previsões de foros de debate sobre as obras produzi-
das, enquanto só se preveem circuitos ou redes de difusão. E os cineclubes propriamente ditos, ou o improviso de
“cine-debates”, se encontram sem condições ou vocação para tanto, bem como a crítica instituída, voltada para o
mercado, ou algum dos raríssimos festivais que incluam efetivo debate crítico em suas programações. Na internet
a falta de uma instância mais concreta de decisão, com tempo e disposição de entendimento e livre organização
coletiva a respeito do que publicar, qualquer desabafo ou ataque de nervos sem qualquer argumentação podem
ser tomados por “crítica”. Assim é mais fácil: Se não temos que dar satisfações a ninguém para “rodar a baiana”,
por um lado atingimos um progresso ao praticar uma real liberdade de expressão e de construção de discurso,
antes negociada por exemplo com chefes ou colegas nas redações de jornal; por outro lado perdem-se as balizas
e horizontes de diálogo, argumentação com quem pensa diferente, coordenadas históricas próprias de um espaço
público democrático. A velha noção de linha editorial ou de público-alvo, embora sejam instrumentos de controle,
e via de regra violentos, tinham a vantagem de exigir do discurso crítico estratégias de forma escrita e de argu-
mentação, tanto com seu leitor quanto com seu editor. Lidar com quem pensa diferente era exercício intrínseco
à formulação do discurso desde a origem, esses Outros (ainda que só imaginados) penetrados em nossa fala são

123 No Brasil houve momentos de inflexão histórica registrados por exemplo nas páginas da revista Cine-Olho: “Chapa Deflagra-
ção: Carta Programa” (redação coletiva), e “Consciência cineclubista”, Cine-Olho n° 3, Rio: Cineclube do CAC, Centro de Artes
Cinematográficas, PUC-RJ, 1977. “Cine-Olho 4 - Editorial”, Cultural do DCE-USP: Caderno de textos, São Paulo, 1978. “Cinema e
Metrópole”, PÓS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP nº 17, São Paulo, 2005.
124 Roberto Schwarz, “Nunca fomos tão engajados” [1994], Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 1999.
163
algo que se dissipa na nova lógica das bolhas e seus algoritmos, segmentando os estilos de pensar e de estar no
mundo em alteridades isoladas entre si, e preocupantemente oniscientes, sectarizadas, incapazes de dialogar.
Estaríamos de fato prestes a aniquilar a figura do Outro no imaginário e mesmo nas próprias intuições com
que a crítica trabalha. E os processos de interlocução e diálogo sofrem com isto mutação nessa conformidade:
facilitam-se tiroteios verbais de torcida organizada invadindo o campo de jogo do debate inteligente, na ausência
da força que antes o espaço público conseguia catalisar de modo mais democrático. Desafios ao método se alas-
tram em diversas direções da atuação crítica: Sua renúncia ou ineficácia na descrição das experiências concretas,
subjetivadas, do filme. Sua insólita e difícil procura de argumentação crítica, sem espírito democrático, hipóte-
ses ou objetivos definidos, exigências ou agenciamentos efetivamente comparativos. Sua busca de insondáveis
lugares de fala em tempos de press release, e de assombrosa escuta da auto-interpretação dos realizadores como
irresistível canto da sereia para o crítico atual.
Em especial depois da arte conceitual, mas já originando-se nas vanguardas clássicas, o discurso do artista
ganha peso de convívio indissociável com a obra, a ela ofuscando ou propondo diálogo, integrando-se de modos
diversos; o que não abolirá a experiência do crítico face ao que se apresenta na situação, incluindo-se não só os
filmes de artista mas até mesmo o cinema de grande público. Tem sua importância ouvir o autor, seja ele o diretor,
roteirista, algum ator-autor, conjunto coletivo de realizadores ou participantes, mas sem erigi-los como a autori-
dade onisciente a que se vêm alçados em “debates com o público” ou matérias jornalísticas, eclipsando a figura do
crítico que, de mãos atadas, até de bom grado tem se rendido ao ritual. Ora, dentre todos os possíveis espectadores
dum filme, o seu diretor é quem estaria na pior situação para julga-lo.  125 Ao contrário do público ou do crítico,
para o diretor acumulam-se à experiência de cada momento da fita outras experiências sobrepostas e marcantes
de projeções anteriores, ainda na mesa de montagem e edição, escolhas feitas e decisões tomadas, diretrizes, in-
tenções perseguidas e prefigurações imaginadas desde o processo de criação das cenas, das primeiras concepções
anotadas até à roteirização. O fruir presente viria assombrado inextricavelmente pelo conceber pretérito. Com
isto a análise tem rareado em favor de um conluio dócil e afetivo para com o universo trazido pelo artista, viés
crescente desde o consumismo pós-moderno próprio da “modernização” neoliberal, lado a lado com a fremitosa
etiquetagem conceitual, chancelada pela academia, curadores e programadores de plantão. Desse modo conceitos
advindos de uma experiência estética direta face à obra são raros, em seu lugar predomina incerta promessa de
consumo lúdico e/ou pseudo conceitualizante.
Enquanto isso, na realidade que nos governa, vemos o reconhecimento e mesmo a consagração de dinâmicas
experimentais na pragmática sistêmica do capitalismo, com a especulação financeira, sua expansão neoliberal
contemporânea, interessada no advento da crise e desmanche de sua promessa democratizante  126. Isso coloca
uma questão para o cinema experimental em sua dimensão crítica, sua vocação negadora do status quo opressor
e das ideologias vigentes. Se na vanguarda dos processos de reprodução do capital todos se veem compelidos à
“experimentação” disseminada junto às leis de mercado (que, malgrado seja tradicional processo intrínseco ao
modo de produção capitalista, agora se exprime em prática cada vez mais legitimada e acintosamente preconiza-
da), ao cinema experimental não restará apenas se confundir com a lógica do sistema, sua reles mimese? Conde-
nado à caricatura do bom empreendedor da hora, o cineasta experimental não deveria seguir clamando por uma
radicalização artística libertária, isto é, avessa ao movimento avassalador da sociedade, seu pragmatismo mais
espoliador? Essa dificuldade recente só vem colocar em cheque, ainda mais, o criador experimental, além da já
complexa tarefa do historiador do experimental, impelindo-os para um confinamento exíguo de engajamentos

125 Devo esta ideia a Ismail Xavier.


126 Dardot, Pierre; Laval, Christian. “Gouverner par la crise”, Ce cauchemar qui n’en finit pas: Comment le néolibéralisme défait la démocratie.
Paris: La Découverte, 2016, pp. 25, 29-30. “Agora a experimentação se transformou em sistema e a crise se tornou a principal
alavanca do fortalecimento das políticas neoliberais. Do neoliberalismo, se pode assim dizer, para parafrasear Churchill, que todos
os obstáculos lhe propõem oportunidades”, pp. 32-33 (tradução nossa).
164
apaixonados ou ultracríticos.
Tarefa ingrata: Falar de filme indescritível, que ninguém viu, explicar sua singularidade! Desde sempre, de toda
maneira, tem sido um trabalho mais lento, necessariamente, e coletivo, não só entre contemporâneos, sincrônico,
como sobretudo diacrônico, desdobrando-se como pesquisa por sucessivas gerações históricas. Processo aliás
só retardado pelo bombardeio sem trégua das contínuas ondas conceituais de erudição fetichizante, ou dos
comentários interpretativos de retradicionalização frívola 127, promovidos pelo batalhão acadêmico. O contempo-
râneo se perde quando apenas conectado, imerso no atual: só poderá perceber-se, conceber-se, compreender-se
enquanto tal, quando em diálogo com o não contemporâneo 128, quando em face das tradições, e mediante elas. A
noção de crítica imanente seria em todo caso um dos recursos indispensáveis ao estudo analítico do cinema e da
arte como seu instrumento capital, mas é preciso compreendê-lo em seu próprio operar, desafiado e afiado pela
experiência estética concreta e singular. O assim chamado corpo a corpo com a obra tem sido evitado, protelado
ou tergiversado pelo pretenso ensaísmo crítico, mesmo quando percebido como necessário. A crítica enquanto
lidar dialético é difícil e arriscada, implica experiência imersa e distanciada, exigindo tanto subjetividade quanto
objetividade, como nos pareceu resumir esta explicação da escritora belga Suzanne Lilar, em 1967:

“Quem diz crítica subentende separação — que se nos lembramos da palavra, serviu de chave. Crítica, do grego krino,
o exemplo clássico sendo: separar o joio do trigo. Mas nada se tria sem se referir a nós mesmos, nossos valores, nossos
gostos. A crítica, assim, como ponto de partida, tomada de posição, se aparenta ao amor.” 129

Quero crer que a contracultura ativou em seu apogeu prévio à década de 1980 um legado particularmente
complexo, que pode convergir em processo histórico de sobrevida polêmica com engajamentos diversos. Opera
um desfavor duplo e contraditório à dimensão estética alienada das obras, ao aguçar a sua percepção crítica, e ao
permitir aflorar uma sensibilidade mais livre à sua plena experiência. Como teria dito o poeta Torquato Neto, em
1971: — “Se o espectador é um voyeur, o crítico é um tarado completo. E quem vê, já viu, critica.” 130
A antevisão mais complexa do dilema me pareceu dialeticamente compreendida num esforço crítico derra-
deiro de Theodor Adorno, em 1969:

“Uma tal dinâmica imanente é por assim dizer um elemento de ordem superior do que são as obras de arte. Se a expe-
riência estética se assemelha a alguma coisa é, então, à experiência sexual e, na verdade, à sua culminação. O modo
como nesta a imagem amada se modifica, como a petrificação se une com o que há de mais vivo é, por assim dizer, o
arquétipo encarnado da experiência estética. Mas as obras imanentemente dinâmicas não são apenas as obras indivi-

duais; também a sua relação recíproca é imanente.” 131

127 Simon, Iumna. “Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século”, Novos Estudos CEBRAP nº55, 1999. “Condenados à
tradição – o que fizeram com a poesia brasileira”, Piauí nº61, 2011.
128 Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história” in: Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. (tr. Wanda Nogueira Caldeira
Brant, Jeanne-Marie Gagnebin & Marcos Lutz Müller). São Paulo: Boitempo, 2005. Agamben, Giorgio. “O que é o contemporâ-
neo?”, O que é o contemporâneo?, e outros ensaios. (tr. Vinícius Nicastro Honesko) Chapecó, SC: Argos, 2009.
129 « Qui dit critique entend séparation — qu’on se souvienne du mot, il a servi de clef. Critique, du grec krino, l’exemple classique
étant: séparer le bon grain de l’ivraie. Mais on ne trie point sans se référer à soi-même, à ses valeurs, à ses goûts. Ainsi la critique
s’apparente-t-elle à l’amour qui est un parti pris. » Lilar, Suzanne. À propos de Sartre et de l’amour. [1967] Paris: Gallimard
(idées), 1984, p. 15 (tradução nossa).
130 Torquato Neto. “as travessuras de superoito” [geleia geral, Última Hora, Rio, 29/8/1971], Torquatália, v. 2, (org. Paulo Roberto
Pires) Rio: Rocco, 2004, p. 208.
131 Adorno, Theodor W. Teoria estética. [1969] (tr. Artur Morão) 2ª ed., Lisboa: Ed. 70, 2008, p. 267.
165
IV. Mito e empenho

“Mas mesmo aquilo que a gente não se lembra


de ter visto um dia, talvez se possa ver depois
por algum viés da lembrança.
Talvez dar órbita de hoje aos olhos daquele dia.
(...) pelo rabo de olho da lembrança.”

Chico Buarque, 1991. 132

A despeito de carecermos da crítica imanente ou da análise materialista que, desde os tempos de Diderot 133,
constituiu o discurso ensaístico sobre arte, lidamos no país com o paradoxo alvissareiro da contribuição milioná-
ria de toda a boa abordagem nefelibata, metafísica, ideológica, mitopoética, conceitualista etc. Sem tais substratos
sofreríamos ainda mais. Diferente do que intuímos hoje como cinéfilos, a história do cinema brasileiro andou por
muito tempo trabalhando com rarefeita experiência direta dos filmes — isso em contrapartida à acessibilidade via
redes, carece hoje de maior contato físico, corporal, com o espaço público e a alteridade no debate, mais comum
antes. A perda de cópias, sobretudo das primeiras décadas, seu acesso controverso até hoje, contatos de oitiva im-
pregnam a reflexão estética em nosso cinema de uma dimensão mítica a um só tempo rica e nociva. Do primeiro
cinema ao Limite (1931) de Mário Peixoto, dos velhos ciclos regionais do período mudo ao superoitismo dos anos
1970 134, mitos de origem ao longo da história do experimental brasileiro impõem a revisão do cinema silencioso,
assim como daquele que mais tarde instaria os parâmetros locais de “moderno” e “vanguarda”.
Paralela à inclinação da Nouvelle Vague por Jean Renoir como patrono, a escolha de Humberto Mauro por
Glauber Rocha e boa parte dos cinemanovistas, em detrimento de Mário Peixoto, sofrerá inversão no discurso
de, entre outros, Júlio Bressane. Este último, em sua crônica-manifesto “O Experimental no Cinema Nacional”
(1996), irá mesmo além, em seu itinerário de regresso às origens, embrenhando-se com o major Tomás Reis na
descoberta, pelas lentes sertanistas, de um frescor sorridente do gentio no fundo da mata. Acompanhando

“a expedição de Rondon ao Alto Xingu em 1923 (...) este operador cuidadoso filmou a Visão do Paraíso. São ima-
gens do Brasil mítico, filmado com lente plana, enquadramento organizado, closes únicos de índios e gente brasilei-
ra. Composições que combinam rigor e improviso, em planos de criaturas, selva e forças da natureza (...) Uma luz
apreendida com grande domínio técnico e originalidade, sendo que o negativo foi revelado nas águas da própria selva.
Imagens que deixarão sua marca duradoura em nossa cinematografia.” 135

Para Bressane, o “major Reis e Abraão Jacó formam um eixo de onde sai e por onde passa tudo que presta
132
Hollanda, Chico Buarque de. Estorvo. São Paulo: Companhia das letras, 1991, p. 77.
133 Lefèbvre, Henri. Diderot ou les Affirmations fondamentales du matérialisme. [1949] Paris: L’Arche, 1983. Ver os trabalhos de Jean-Louis
Leutrat: Diderot. Paris: Ed. Universitaires, 1967. “Uma relação de diversos andares: Cinema & História” (tr. Rubens Machado Jr.),
Imagens n°5, Campinas: Ed. Unicamp, 1995. E (com Suzanne Liandrat-Guigues) Penser le cinéma. Paris: Klincksieck, 2001.
134 Ver meus trabalhos a respeito: “Mário Peixoto” in: Miranda, L. F.; Ramos, F. P. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: SE-
NAC, 2000. Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. “Passos e descompassos à mar-
gem”, Alceu v.8 nº15, Rio: PUC, 2007. “A experimentação cinematográfica superoitista no Brasil” in: Amorim, L.; Falcone, F. T.
Cinema e memória. João Pessoa: Ed. UFPB, 2013. “Das vagas de experimentação desde o Tropicalismo: Cinema e Crítica” in: Ikeda,
M.; Lima, D. Cinema de garagem 2014. Rio: Wset Multimídia, 2014. “Cidade & Cinema, duas histórias a contrapelo nos anos 1970”
in: Machado, C. E. J.; Machado Jr., R.; Vedda, M. Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas. São Paulo: Edunesp, 2015.
“Agripina é Roma-Manhattan, um belo quase-filme de HO”, Ars v.15 nº30, São Paulo, PPGAV/ECA-USP, 2017. E (com Mari-
na da Costa Campos) “Protagonismos experimentais femininos no surto superoitista dos anos 1970” in: Holanda, K.; Tedesco, M.
C. Feminino e Plural. São Paulo: Papirus, 2017.
135
Bressane, Júlio. Alguns. Rio: Imago, 1996, p. 36.
166
no nosso cinema.” O mascate sírio Abraão, nos anos 30

“filmou o sertão, a caatinga, Lampião e seu grupo. São imagens perturbadoras. Com uma luz solarizada, estourada,
sem rígido controle, irregular, com uma câmera de corda na mão, brutalista, criou uma poderosa imagem-dejeto, bár-
bara, paradigmática em nosso cinema e em nossa cultura. Uma Imagem-Canudos... Deus e o Diabo na Terra do Sol
foi extraído destas cenas (...) Alude a estas imagens.” 136

Bressane recua ainda mais, às primeiras imagens colhidas em terras brasileiras, ainda do oceano, antes mes-
mo de pisá-las. Conta-nos que, tendo adquirido a câmera de filmar na França dois anos após sua invenção pelos
irmãos Lumière, os

“irmãos Segreto filmaram em 1898, do convés do paquette que os trazia da Europa, a entrada da Bahia da Guanabara
com seus fortes portugueses e megalitos lendários. Este material foi destruído. Mas podemos conjecturar que estas
imagens com a câmera em movimento (travelling) e oscilando, movimento natural do barco, foram um total experi-
mento cinematográfico. O experimental está, entre outros indicadores, pelo inusitado do lugar onde se encontrava a
câmera, pelo movimento e pela oscilação (pelo balanço, e isto era bossa nova), que certamente alterava a apreensão da
luz e da paisagem. (...) O registro habitual da tomada de câmera era fixo e sobre tripé, para a necessária imobilidade
da câmera na fixação e captação da luz. Não se faziam os registros de tomadas com a câmera em movimento e muito
menos oscilando… Os irmãos Lumière quando espalharam pelo mundo seus cinegrafistas pela primeira vez viram
tomadas feitas com a câmera em movimento. Eram os registros dos seus operadores, que de Veneza e da China envia-
ram imagens filmadas de dentro de gôndolas ou balsas. Nascia o travelling. Figura de sintaxe cinematográfica que se
tornaria a mais clássica do cinema moderno.” 137

Com efeito, podem reverberar nessas palavras a lembrança de travellings bastante posteriores, exuberantes
em suas distintas desenvolturas, por filmes como Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, Esse mundo é meu (1963),
de Sérgio Ricardo, O Desafio (1965), de Paulo Cezar Sarraceni, Terra em transe (1967), de Glauber, Os Deuses e
os Mortos (1970), de Ruy, Sem essa Aranha (1970), de Sganzerla, Cuidado Madame (1970), de Bressane —, assim

como viria repercutindo o principal lema da radicalidade moderna em nosso cinema, “Uma ideia na cabeça e uma
câmera na mão”. Se há um antes e um depois, alguma linha divisória clara separando como que dois hemisférios
artísticos ao longo de um século cinematográfico nacional, deve passar por perto deste momento decisivo, esses
oito anos entre Os Cafajestes e Cuidado Madame.
Em sua crônica, porém, Bressane dirige o olhar ao que antecede o seu próprio tempo; embora nele se engaje:

“Notamos aí nesse episódio dos irmãos Segreto (nascimento do cinema entre nós) que no cinema nacional no seu
nascedouro, na sua primeira configuração, no esboço de seu signo, existe já o elemento experimental. Este fio fino
transpassará todo o cinema brasileiro daí em diante e para sempre.” 138

A rica espiral imaginária da cogitação — que planos teriam sido estes, augurantes e inaugurantes daquilo
que o nosso cinema viria a procurar? —, se nos leva ao enlevo das ondas, ao sentimento flutuante da chegada ao
país, sua descoberta, confluindo com o moderno cancioneiro nacional, logrará mesmo a agenciar de uma nova
metafísica o conhecido simbolismo oceânico do sertão-mar cinemanovista, para além do sempre postulado e
reposto Descobrimento do país. Aproxima a ideia do inventar em cinema do inventar em geral no país; talvez do
próprio país o inventar-se. Fala de gente e lugares específicos solicitando a criação de miradas específicas, modos
136
Ibidem, pp. 38-39.
137
Ibidem, pp. 35-36.
138
Ibidem, p. 36.
167
correlatos da visão poética. Talvez o localismo, de que se falou já tão depreciativamente. O experimentalismo que
preside a interação entre forma e realidade filmada, deixando a segunda moldar a expressividade sintática da pri-
meira (que a devolve surpreendente), estaria na base das noções de moderno, exorbitando o pressuposto realista
de Bazin e Kracauer para uma poética latente ao longo da história experimental brasileira.

V. Limite

“Solução do ‘eu sofro’, por tudo e com tudo,


inquietação perene da alma presa que não se identifica,
que agoniza, que quer sempre!
Solução do imenso ‘inútil de cada um’!
Continuava a acompanhar, com dupla agudeza,
o espetáculo interno das sensações, e não o sentia.
Analisava-o com a segurança de um vidro interposto.”

Mário Peixoto, 1933. 139

A impressão que partilhamos é a de que Limite faria jus às mais elaboradas categorias conceituais em dispo-
nibilidade na literatura especializada, ou mesmo exigiria o esboço de algumas novas. Um maior revelar ou des-
velar crítico do seu “realismo poético” e do seu “ritmo” estariam a requerer tentativas ainda mais sedimentadas
na análise empenhada em campo estético diversificado, talvez com aportes e articulações comparativas que a sua
extrema singularidade no contexto específico de realização possa ter inibido. Um desafio que aí se encerra seria o
de lidar com o transcendente que ali se impõe, se cristaliza, se coagula, e nos põe à deriva da própria obra ao ana-
lisá-la — sem que consigamos discutir a produção desta deriva pela fita, pela experiência que dela temos. Como
dar conta de sua análise crítica sem tocar em sua beleza?, sem se perguntar sobre o seu disperso sublime, efeitos
de grande alcance, inopinados?, falar dos sentimentos estéticos que produz?, de sua expressão pela felicidade das
formas a eles correspondentes, tão encantadoras quanto a força irradiante da sua precária unidade?, buscar de sua
atmosfera o singular?
É filme de “cadência lenta, triste e fúnebre, às vezes majestosa” (Saulo Pereira de Mello), que se vê ordenado
com “coração de chumbo”, em tom de “fatalidade”. Um caminho promissor e no caso ainda pouco trilhado seria
a frequentação do universo literário de Mário Peixoto. Por exemplo, parece-nos um terreno fértil a filiação moder-
nista do seu livro de poesia Mundéu, publicado em 1931, mesmo ano de Limite. Mário de Andrade escrevia sobre
o livro que “se tem a impressão do jato violento, golfadas irreprimíveis. São poemas que nascem feitos, explosões
duma unidade às vezes excelente, em que o movimento plástico das noções e das imagens é incomparável den-
tro da nossa poesia contemporânea”  140. O poeta paulista parece estar falando também do Peixoto cineasta, que
desconhecia, ainda quando postula que sua poética se desenvolve em torno de um jogo entre “terra e mistério”.
#Deixa-nos alguma sugestão de que ingressamos num momento transitório do modernismo, entre sua primeira
onda e a segunda, atraída para o regional. Ainda acerca do outro Mário, Peixoto teria, muito jovem, dado passos
convergentes a cogitarmos, como quando revela desejos de conhecer o país nos seus lugares recônditos em certo
entrelaçamento de um conhecer-se a si próprio. No seu romance O inútil de cada um, publicado em 1933 e for-
necendo certas plataformas para investigar a coetânea obra cinematográfica, o personagem biograficamente mais

139
Peixoto, Mário. O inútil de cada um. [1933] 2ª ed., Rio: Sette Letras, 1996, p. 21.
140
Peixoto, Mário. Mundéu. (poemas) Rio: Typographia São Benedicto (ed. particular), 1931; 2a ed., Rio, Sette Letras, 1996, p. 10.
168
aproximável do seu autor vislumbrava planos de viagens-descoberta a remotos lugares do país 141.
Considere-se no entanto que para a avaliação de Limite a comunicabilidade entre meios de expressão di-
ferentes talvez se ofusque diante do impacto plástico e rítmico tão especificamente fílmico que sofremos. Sua
espantosa sintaxe formal, lânguida e esparramada, prefigurando magnificamente uma “tropical melancolia” tão
buscada mais tarde, talvez não encontre paralelos no país senão na fluidez lamentosa e interminável da música de
um Villa-Lobos, cujo infinito Choro N°11, com mais de uma hora de execução, é ainda contemporâneo do filme.
“Obra única” da filmografia, como se diz, não só de Peixoto, mas do país e do mundo, este verdadeiro “corpo
estranho” no cinema brasileiro da época, pareceria com efeito manter maior parentesco, ou mais seguro, com
o cinema europeu de vanguarda. Pode-se aproximá-lo das experiências francesas dos anos 1920 com o ritmo e
encenação (L’Herbier, Dulac, Epstein, Gance, Chomette, Deluc, Cavalcanti); talvez da contemplação da Natu-
reza em Flaherty; da cadência amorosamente lenta de Dovjenko. Mas algo nos diz que estes parentescos são tão
longínquos quanto o modo alla Antonioni com que se exprime a paralisia dos personagens através da captação
que a câmera faz do espaço.
Mário teria viajado pouco à Europa antes de realizar o filme. Estudou no Rio, onde foram seus colegas Oc-
távio de Faria, Plínio Süssekind Rocha e Cláudio Melo, os dois últimos fundadores em 1928 do Chaplin Club,
cineclube que editou a revista O Fã, e realizou discussões estéticas sobre cinema pioneiras no país. Sem ter
participado do grupo, mantendo porém nesta época maior contato com Octávio de Faria, não se sabe ao certo
quais das discussões em curso Mário teria acompanhado, neste período em que se dá muito provavelmente a sua
sedução pelo cinema. O maior estudioso do cineasta e exegeta erudito de Limite, Saulo Pereira de Mello 142, crê
ser possível que as discussões teóricas do clube chegassem até Peixoto, completando o que estava aprendendo
praticamente, acompanhando as filmagens de Humberto Mauro no Rio, filmes como Barro Humano (1929) e Lá-
bios sem Beijos (1930). Os debates que podemos ler na revista em torno de Murnau e seu Aurora (1927), sobre a

especificidade do cinema, as noções de ritmo, de continuidade e de movimento da câmera nos parecem bastante
relacionáveis a Limite.
No quadro que Bressane compõe do cinema nacional Limite ocupa lugar central, na medida em que funda
“uma nova mentalidade”. Argumenta que “já é, entre nós, arte alusiva, paródica ou de consciência do passado do
cinema. Já é cinema do cinema, ou seja, implica a criação e recriação da imagem no filme cinematográfico.” 143
Admirável aqui tal argumento, mais conhecido em geral na compreensão da Nouvelle Vague, primeira geração
que se forma já num cultivo mais sistematizado da história do cinema. sugiro para não perder de vista o sujeito
“tal argumento” Não deixa porém de nos falar de um traço próprio desse filme. E faz igualmente sentido ter então
nos observado mais do seu vínculo com a vanguarda francesa, quando para outros possam ampliar-se as refe-
rências, e ao próprio Peixoto não escapasse Eisenstein, cujas palavras imitou num falso artigo que fez publicar
elogiando seu único filme.
Em tudo o que Bressane encontra nesse elogio a Limite, é notável, poderíamos ir desdobrando uma poética
de seus próprios filmes; mas indicará em particular aspectos que ajudam a isolar e segregar nessa fita uma uni-
dade própria. “Limite radicaliza esta formulação de Gance: cinema é a música da luz.” Abstrairá que esse filme
“é um fotograma transparente, branco, onde a sombra é que organiza a imagem. A sombra é portanto a música.”
Parece-nos que a afirmação possui força interpretativa maior se a tomamos num sentido amplo e alusivo também
à temporalidade construída no filme, por assim dizer um tempo demarcado por sombras. Esse tempo construído
por demarcação de sombras traz ao filme uma historicidade expressivamente sombria, obscurecida. Com efeito,

141
Peixoto, Mário. O inútil de cada um, p. 27 et passim.
142
Limite. Rio: Rocco, 1996. Pode-se ler com interesse estudos como: Teixeira, Francisco Elinaldo. “Rebrilho do tempo intangível”,
O terceiro olho. São Paulo: Perspectiva, 2003. Roizman, Geraldo Blay. Mário Peixoto, um olhar fenomenológico. Mestrado IA-UNESP,
2003. Yamaji, Joel. Estudo sobre Limite de Mário Peixoto. Mestrado ECA-USP, 2007.
143
Bressane, J. op. cit., pp. 36-38.
169
a situação de que parte a narrativa, a pasmaceira extenuada dos três náufragos perdidos numa canoa ao largo, ao
abandono da bonança, vai se alternar entre essa estagnação e uma outra, pretérita, de momentos malparados de
suas próprias vidas. Cada um parece recordar desde aquele confinamento a céu aberto, descaminhos vividos, mo-
mentos prenhes da possível má sorte que os lançou no imponderável. Embora certa indeterminação entre os tem-
pos das sequências apenas sugiram o pertencimento ao passado, e algum disperso vínculo com a sorte presente,
esses tempos se opõem como espaços de tormentos ante a calmaria a que se relegaram. Há um espaço de conflitos
pretéritos se delineando face a um outro onde a sorte os lançou, passado de crises e traumas que esvanecem no
espaço presente, condenado ao nada, à pasmaceira dispersa como horizonte de danação.
Aquela evasão em bonança termina pela borrasca. Ao discrepar elas se engendram, desde que o filme se
inicia. Algo disto se prenunciaria nos belos e impressionantes closes dos navegantes, planos fixos que se desen-
rolam detidos próximo dos cabelos desgrenhados em ondas revoltas, discrepantes na tranquilidade do fundo que
lhes emoldura naquela difusa placidez da superfície marítima, ela também ondulante, apenas noutro diapasão.
Sutis discrepâncias abstraem e nos devolvem a atenção ao passado de procelas revertido de estagnações vividas e
vívidas, interligadas todas de uma coesão acabada e lacerante. Se em certos momentos o olhar se livra em volteios
e piruetas — no quase desértico vilarejo a água da bica verterá como dadivosa (travellings avant), aqueles sôfre-
gos passos dados em vão percurso (câmera persecutória), a contemplação abismada do alto de rochas costeiras
se inebriará na voragem da rara amplidão (rola ribanceira abaixo) — são exceções na atmosfera geral de inação,
reafirmando o mesmo princípio cosmológico dilacerante e delimitador de Limite.
Desde o começo um mesmíssimo tom perpassa o filme duma calmaria funesta, emoldurando a tudo; imerge-se
inteiro no agourento clima de bonança-e-borrasca, pressagiadas ambas desde o começo até ao arremate da fita, já
de início pelos galhos ressequidos, o negro esvoaçar dos urubus, ou no escorrido do letreiro “Limite” em lúgubre
fleuma, transpiração expressionista da grafia art déco. Tristes bananeiras abandonadas ao convívio de árvores
destocadas, terrenos semi-desbastados em poda incompleta, avistados de cancelas e caminhos trilhados por vidas
passantes, elas também ceifadas no perder-se das distâncias que não se cumprem e não podem mais se cumprir. Se
tudo vai convergindo e se condensa numa atmosfera singular, as ambiências se unem nessa liga precária demais,
precariedade esta que determina o próprio tom autônomo que prevalece em cada parte do filme quando esta tende
a se autocentrar. Como se as cenas nos indagassem um desolado “ir para onde?”
As histórias contadas se emparelham com o presente agônico, como naqueles dois pauzinhos nas mãos dis-
traídas do exausto náufrago, que se alternam sempre paralelos, em moto perpétuo. Nesta reflexão sobre o malpa-
rado — a sina imaginária da criatura cuja sorte se decidiu alhures —, subjaz um espaço remoto de intemperanças
pretéritas que se contempla do presente evasivo, sem ação. Há como que uma trégua de conflitos, estes apenas
rabiscados de quando em quando na lembrança dos personagens. Embora na origem da situação, o conflito nesta
cena brasileira que a poesia do cinema nos põe, queda sempre em enfrentamentos perdidos no passado, ele aqui se
dissipa e esvanece como combate contemporaneamente remoto — é causa originária, perdida no acontecimento
presente e como se, inarticulada, sucumbisse no espaço do atual.
Convertido em poesia fílmica, o peso de um espaço pretérito, de conflitos mal resolvidos em obscura filigra-
na, vivência patética desde a bonança do espaço presente, onde todos conflitos determinantes de então não mais
se apresentam, mas fazem suspirar uma sina irreversível, espaço de danação, algo disso se repetiria remotamente
contudo num itinerário duradouro de filmes que parecem aproximar-se de alguma essência problemática do país,
sua letargia. Além de tudo, o que ocorre no quadro histórico deste momento, com a Revolução de 1930, parece
responder a essa inação duradoura, que culturalmente prometia desdobramentos na linguagem emancipatória do
moderno percuciente desde a Semana de 1922, ou desde um alvorecer ruidoso do século (e da década de) 20.
Oswald de Andrade sentenciaria anos após que: “Se 1922 anunciava uma sintaxe para a liberdade criadora de nos-
sa gente, pode-se dizer que só 1930 e a revolução outubrista decidiram do aproveitamento e destino do modernis-
170
mo.” 144 Depois de “uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de 1920, que tinha
sido uma sementeira de grandes mudanças” 145, e em paralelo à crise de 1929, a promessa de garantias de que se
revestia a Revolução de 30, a alicerçar alentos dum novo porvir republicano, agora contra um atraso persistente
no país, porventura a favor de direito trabalhista, reprimindo tradição oligárquica, é bem verdade que tudo por in-
termédio de adventos inesperados e controversos golpismos antidemocráticos. Antonio Candido nos lembra que:

“De maneira geral a repercussão do movimento revolucionário de 1930 na cultura foi positiva. Comparada com a de
antes, a situação nova representou grande progresso, embora tenha sido pouco, em face do que se esperaria de uma
verdadeira revolução. (...) Uma das consequências foi o conceito de intelectual e artista como opositor, ou seja, que o

seu lugar é no lado oposto da ordem estabelecida”. 146

Talvez cinematograficamente esse negro espectro lívido de Limite nos trouxesse desse quadro histórico o
seu reverso, verdadeira negação daqueles progressos anunciados, sua margem de expectativas deixadas ao esque-
cimento, a ressaca da pujança positivista irrealizada em diferentes tempos e situações. Parece inverter o sopro de
mobilidade que faz devanearmos com silvos de locomotiva, essa letargia tenaz de Mangaratiba, gemido agônico
em contraponto extremo à vitalidade entranhada que poderia ecoar do Trenzinho Caipira (1930) de Villa-Lobos.
As esplêndidas paragens funestas às que nos conduz Limite, imagem negativa de seu tempo, podem nos sur-
preender enquanto inusitada falácia, peremptória e plúmbea, daquilo que haviam sido os “fermentos renovadores”
brandidos nos anos 1920 147. Elas, no entanto, são construção vigorosamente delicada e moderna. Nelas não se
impuseram o desfazer carretéis, o continuar da costura. Nem precisaríamos recordar as rodas de locomotiva em
angular plongée de justíssimo enquadre como se girassem paradas, a exemplo das polias da máquina de costu-
ra. Abstraídas (quem viajou, entre que lugares?), as rodas não levam a lugar nenhum, pulsam no meio do filme
reverberantes, embutidas como ideação paradoxal, panaceia entretanto para um mundo estagnado, inarticulado.
Estão ali autônomas em plano único, anguladas em tangência no retangular do quadro que, isolado sem qualquer
circunstância montada de nenhuma outra parte do trem, de trilhos ou estações de embarque, adeuses ou vagões.
Tais rodas são a destacada promessa de um deslocamento que seria antítese de tudo o que ocorre filme afora:
rodas que giram por si, articuladas em si, subtraídas do real mundo articulado, força de pura ideia, fantasia quimé-
rica, um emblema antitético daquele mundo em que se incrustaram. Mesmo em sua reaparição mais perto do final
tormentoso, plano variante com algum chão passando veloz, persiste como num eco distante algo deste emblema
falaz. Por isso a justeza do enquadramento autossuficiente, encaixado em motilidade ensimesmada, a sete chaves
ilhado na fita como dinâmica inacessível ao mundo caducado em imaginário de abandono e ausências, paralisia
e premonições.
A arte da câmera de Edgar Brasil compõe transfigurações expectantes do que se arruinou na vitalidade do
mundo. Intui presságios, acenos metonímicos, ordena resquícios de uma racionalidade cuja dinâmica sufocada se
estrangulou anonimamente: é dinamização que se enquadrou, entravou, desvirtuou, limitou e delimitou em todo
seu deslocamento possível. Vislumbra-se algo como a inércia do atraso paradoxalmente progredindo. Sintaxes do
limite entregues à metafísica do isolamento no mundo, circulação desarticulada, sentimento de morte, expiração.
Noutro enquadre justo, também câmera mergulhada, outra plongée, mesmo num espaço mais livre, um peixe
fora d’água tenta em vão o pouco que lhe resta pelas guelras aspirar. Seu olho vidrado ainda enxerga decerto;
pasmado, inútil. A suficiência do tempo disposto nesse plano nos controla a exasperação com alguma justeza que
144
Andrade, Oswald de. “O divisor das águas modernistas” [1937], Estética e política. (org. M. E. Boaventura) 2ª ed., São Paulo: Glo-
bo, 2011, p. 80.
145
Candido, Antonio. “A Revolução de 1930 e a cultura” [1980], A educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987, p. 182.
146
Cf.: Candido, A., ibidem, pp. 194-195.
147
Candido, A., ibidem, p. 185.
171
pulsa subjacente nas demais imagens. Noutra mais aberta, e tão travada quanto de saídas possíveis, outra justeza
atroz: uma das mulheres, ao voltar da feira, rumava desacorçoada por vielas, com longes de desalento emperran-
do as juntas, empaca petrificada na entrada da casa, entravada pela agourenta figura enrijecida do companheiro
inconsciente. De costas para nós, frente para ela estarrecida, sentado na escada, ele dorme dobrado sobre si, braço
preso ao corrimão como um espantalho soturno fazendo-se de cancela. Pareceria lhe atravancar não apenas os
degraus de acesso ao lar, ou seu percurso vacilante, mas sua vida inteira, sua alma, num arremate sem eira nem
beira daquele inteiro vilarejo ermo e despovoado.
Na memória que temos do filme a transcendência deste mesmo olhar feminino para com dado limite — o
limite como determinada e certa perda do ir-e-vir —, corresponde a tantos outros momentos, dispersos, que o seu
efeito se espargiu pelo todo, em “cadência lenta, triste e fúnebre, às vezes majestosa”. Tomando-se por enredada,
presa, essa visada buscou entretanto fluir, escapar, às vezes esforçou-se oscilante por cambalear até o alto da orla,
mas rola então abaixo com vertigem demasiada, face à amplidão do mar. Há nesta mortificada sensação de vora-
gem, mesmo como resquício, um agarrar-se à vida, ainda que sentindo a impossibilidade de viver. Seria aquilo
que agoniza, e que, misterioso, quer sempre. Se a plongée que encerra toda a parte inicial do filme naquele plano
fixo e vazio, a borda do barco seria o único limite pairando sólido, estático face à superfície extensa dessa indo-
lente ondulação oceânica, o seu imponderável mistério insinua o permanecer da morte, numa sombra que pulsa
vagarosa como amplidão sintética e opaca da escuridão profunda. É o que mais tarde devidamente nos exprime
o seu contre-plongée, sem dúvida o fotograma mais difundido do filme, no qual aquela mesma mulher olha para
baixo daquela beira de barca com gravidade alarmada, logo depois do ambíguo mergulho suicida do homem, sem
mais aflorar à superfície. De sua fronte lívida e descabelada se recortando como num sol contra o céu ofuscante,
olhos aterrados adivinham enxergar na escura profundidade marítima o que se irradiaria dum mesmo espectro
negro que a ela subjaz. A força desse belo cenho fitando petrificado em contra-mergulho culmina incontornável,
catártica e paradigmática como uma polaridade invertida, ao catalisar e nuclear no meio da fita a sua mortiça be-
leza que lateja, num oculto centro de gravidade.
Como na dramaticidade onírica, os espaços da vivência se transmudam em equívocos, condensações da
inquietação subjetiva. Enraizados no brejo, os tabuais vigorosos que vemos obstruem não só toda a corrida exas-
perada do rapaz com o coração na boca — eles impedem, coercivos, um livre deslocar-se pelo filme — contra o
vento do destino. Impedem, tal como as portas, cancelas, os inumeráveis cercadinhos de todo tipo, proliferantes
em Limite, o simples ir-e-vir livre e coroado de êxito num decantado “mundo aberto sem porteira”. Em oposição
à infinita abertura do presente oceânico, toda a memória dos personagens, seu passado de trânsitos pelo mundo,
carente de recessos prazerosos, na justa forma avessa de qualquer saudade, desdobra-se em quadros travados e
com movimento dramaticamente estrito, constrito de espaços superenquadrados e reenquadrados de trauma e
impasse, a exigir aspirações desesperadas de qualquer evasão, extravio, liberdade. Lida na manchete do jornal, a
fuga da prisão que repercute na deriva dos personagens, tem seu arremedo provado na fuga destrambelhada do
detento Carlitos, assistida em sala de cinema. Esse mundo delimitado, cercado, truncado e paralisante, que causa
vertigens quando ameaça expandir-se, estaria naquele mesmo momento, e talvez desde o velho influxo expres-
sionista, escorrendo numa contramão histórica. Configura bastante bem o contrário do espaço moderno doravante
imaginado pelas artes locais em seu olhar difuso  148, almejando larguezas, visão que se espalha, desinteressada
por sombras, perdendo-se nas distâncias da paisagem, colorações — luzes margeando euforias pela virtualidade
do ir-e-vir, prenhe de conquistas e promessas, proporcionadas pelo país que se descobria em seus regimes de
visibilidade próprios.
O que se afigura em passos pretéritos na história pessoal dos personagens, enquanto nível de transcendência
148 Apoiando-se principalmente na análise das paisagens de Guignard, Rodrigo Naves pensa matrizes da pintura brasileira avizinha-
das de um certo primitivismo enquanto radicalidade moderna da experiência estética que se desenvolveria, presa às condições
materiais locais. “O olhar difuso — Notas sobre a visualidade brasileira”, Gávea n°3, Rio: PUC RJ, junho 1986.

172
do passado, criaturas enquadradas desde o nível presente de marasmo agônico que lhes emoldura e compreende,
nestes dois níveis que se explicam tênues e incertos na sua separação obscura: — aí é que se desenvolve o teor
de tristeza da montagem de Peixoto. Se aquela amplidão difusa do presente só tem o seulimite certo nas bordas
da canoa, no reminiscente passado dos náufragos esse mesmo limite será inelutável paralisia de açodamento
sutil, atividade constritora. Como se sob um céu ímpio flutuássemos sobre profundezas de contornos por divi-
sar, indistinguíveis, entre placidez pasmada e alarmantes contra-mergulhos. Como se navegássemos sobre um
pretérito vívido mas insondável. Toda diferença formal de seus estatutos de espaço-tempo, de sua mise en scène
construída, irá configurar, no entanto, uma só cosmologia poética. Já chegando aos meados do decênio de 1950,
num dos primeiros textos críticos publicados sobre Limite, Peter Weiss sintetiza em análise lapidar que o filme
nos propõe “variações sobre o motivo dos ‘limites’ tratado sob uma forma complexa, contrapontística.”  149 No
âmbito dos verdadeiros conteúdos que entretanto se exprimem historicamente naquelas formas contrapontistas,
vislumbramos problemas de conformação local, generalizada em fortes tradições do país, e a busca abrupta de
diálogo entre impasses do presente e a memória individual das mais pertinentes experiências concretizadas — se
perguntariam nossos miseráveis personagens, como quiçá toda uma população: — que passado poderá nos salvar
no apuro presente?
O modo particular deste agenciamento dos pretéritos sentimentos dos três náufragos, entrelaçado à sombria
historicidade individual numa atmosfera singular de pasmaceira extenuada, pode possuir insuspeitas inervações
num público eivado de história congênere de marasmos. Vincula-se ainda tal atmosfera a um sentimento de per-
plexidade maior, dela diferindo contudo, energicamente, a pasmaceira dispersa pelo mundo; e também pelo bom
tanto como pelo mau filme brasileiro. Isto seria explicação razoável para o encanto com que recorria à palavra
Paulo Emílio Sales Gomes, analisando filmes em seus cursos de história do cinema brasileiro. Sempre com re-
serva de humor, pronunciava o termo pasmaceira ameaçando arregalar os olhos, à beira de possível gargalhada,
que também não eram raras aliás. Naturalmente se tratavam de pasmaceiras muito distintas conforme o filme
tratado. Mas podemos suspeitar em todo caso de uma mesma ligação remota e sorrateira de sensações cênicas em
perplexidade densa, um espesso agora que se demora inarticulado ao correlativo passado. A experiência histórica
pessoal inarticulável ao devido passado sugere pouco futuro; o que teimaria em resistente contraste com as gentis
cores sempiternas do país do futuro.
O presente radiante que se ofusca, regido pelas sombras esquecidas da tradição desatinada, do passado que
hesita e demora por se articular atinando seus sentidos num desígnio virtuoso qualquer: eis a profusão derramada,
obscura e singular que nos ilumina em Limite. Talvez Glauber tenha alguma razão em sua cega premonição con-
tra o filme. É também um experimento dado a pesadelo burguês. Mas que não traga qualquer alcance crítico ou
nenhum horizonte social? Ele gostou do filme e o redimiu ao vê-lo, quinze anos depois de detratá-lo como mito
lapidável em 1963 150. Assim como amou Villa-Lobos, reconheceu esta aguda invenção estética de peso universal
e local. No sonhar aflitivo, para além da ironia de nos colocarmos solidários para com quem sucumbia diante das
leis imperantes dos homens e do mundo, no pesadelo não se pode mais apossar-se de um mundo que acabou de
se apossar de nós.
O passado que se recalca nestas caducadas colorações do presente, já lívidas nos idos de 1931, vai distin-
tamente se revelar na persistência vizinha de uma identidade “desmemoriada” que vaga historicamente, encon-
trando poesia vicejante em vários persistentes momentos do cinema brasileiro. A começar dos mais recentes,
podemos lembrar a filigrana resistente do passado oligárquico em O som ao redor (2012), bem como o residual
desarranjo matrimonial em off como remoto leitmotiv de Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) —
memórias que se escondem à flor da pele custando demais a aflorar, siderando e cristalizando o mundo presente.
149 Weiss, Peter. « Peixoto : Limite », Cinéma d’avant-garde. [1952-1955] Paris : L’Arche, 1989, p. 83 (tradução nossa).

150 Rocha, Glauber. “Limite”, Folha de S. Paulo, 3/6/1978. “O Mito ‘Limite’”, Revisão crítica do cinema brasileiro. [1963] 2ª ed., São Paulo:

Cosac & Naify, 2003, pp. 56-67.


173
A quase inconsciente usurpação da terra, ou a desterritorialização pelo passado sem lei, tempos pretéritos que se
recalcaram e/ou se disseminaram inelutáveis, presentes com prolífica disparidade nos filmes Candinho de Can-
deias (1976) e Abílio Pereira de Almeida (1954); ou Vidas secas (1963), Deus e o diabo na terra do sol (1964),
O bandido da luz vermelha (1968), Macunaíma (1969). Ou o trauma da utopia político-amorosa golpeada e pror-
rogada indefinidamente em O Desafio (1965) e Terra em transe (1967). Neste último, recompondo em oscilação
pendular a reação ao mundo letárgico da tradição colonizada junto ao mundo da ação política e poética, Glauber
mimetiza cinematograficamente o conhecido motivo sartreano, “Não importa o que fizeram de nós e sim o que
fazemos disso”.

VI. Extravios como parte do percurso

“A catedral de São Paulo


Por Deus! que nunca se acaba
— Como minha alma.
É uma catedral horrível
Feita de pedras bonitas
— Como minha alma.
A catedral de São Paulo
Nasceu de uma necessidade
— Como minha alma.”

Mário de Andrade, s. d. 151

Antes de Limite, a história do cinema experimental e de vanguarda no país precisa recuar a determinadas
considerações. Por exemplo, em São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), os cavadores paulistanos Adalberto
Kemeny e Rodolpho Rex Lustig, migrantes húngaros, propõem um desvio brasileiro da “fórmula” vanguardista
alemã de Walther Ruttmann — em Berlim, sinfonia de uma cidade (1927), aqui exibido em 1928 —, dela se apro-
priando sem qualquer repercussão da ruptura, desespero ou libertação lá presentes. Embora nas contemporâneas
“sinfonias do entre guerras” mais conhecidas, como Somente as horas (1926) de Alberto Cavalcanti, O homem da
câmera (1929) de Dziga Vertov ou A propósito de Nice (1931) de Jean Vigo, estivessem presentes certo espírito de

contradição, ironia, engajamento às forças sociais progressistas ou excluídas, o filme de Ruttmann, vanguardista
como os demais, possui também uma disposição problematizadora da complexidade experiencial da cidade gran-
de 152. Muito ao contrário de qualquer vertigem criadora inaudita, patenteia-se aqui em São Paulo o “desplante”
de encontrarmos um discurso publicista conservador (ainda que nos moldes republicanos da época), entusiasmo
edificante, ideológico, coeso ao estilo institucional da cavação. Rebuscado na fotografia, a fita oscila em deriva-

151
Poema publicado em Lira paulistana, 1946, edição póstuma. “A catedral de São Paulo”, Obras completas de Mario de Andrade, v.
II-A: Poesias Completas. 5ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Martins, 1980, p. 292. Refere-se à Catedral da Sé, construída
inicialmente em 1589, terminada em 1616, na Praça da Sé, algumas vezes reconstruída, sua versão barroca foi concluída em 1764,
demolida em 1911. Projetada em 1912 pelo arquiteto alemão Maximilian Emil Hehl, a atual enorme igreja em estilo eclético,
ora chamado neogótico, ora neobarroco, com vários elementos de estilo distinto, começa a ser construída em 1913, inaugurada
somente em 1954, com as torres ainda inacabadas; no projeto original completo, só foi concluída em 2002.
152
Cf. meu artigo “Cinema alemão e sinfonias urbanas do entreguerras” in: Almeida, J.; Bader, W. Pensamento Alemão no Século XX, v.
III: Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

174
ções artesãs de um gosto art nouveau persistente desde o florescer da capital do café, de permeio com um olhar
acadêmico classicizante, então algo premonitório da espacialidade do art déco, que caracterizaria a paisagem
paulistana a partir da década de 1930. Ao mimetizar o art-nouveau “retilíneo” mais específico da tradição paulista
— desde seu início com a Vila Penteado 153 (1901) até sua duradoura popularização na movelaria do Liceu de Ar-
tes e Ofícios —, antes ordenador e geometrizante que organicista e “desvairado”, como se lobrigasse um desígnio
art déco ainda não presente na fisionomia da metrópole nos anos 1920, mas construída no filme com capricho, e
espacialidades truncadas por alguma composição rigorosa ou truculenta. Não deixa de ser um modo de ver-se o
filme alinhado ao gosto da elite cafeicultora pré-industrial desde o alvorecer do século, tradição porém voltada ao
futuro, espécie de vontade artística precoce, kunstwollen industrial um tanto avant la lettre. 154
A vocação de clareza que prevalece mesmo diante da remontagem de material aproveitado da prática an-
terior dos cineastas, seus documentais de cavação ao longo daquele decênio, vem no filme ordenar a cidade
desconjuntada, escolhendo visadas planiformes, enquadres frontais simetrizantes, perpendiculares à edificação,
eliminando assim irregularidades visuais ou discrepâncias de ocupação urbana encontradiças em proliferação,
que o amadorismo de pintores e fotógrafos de então registraram com impiedosa espontaneidade. Tal equilíbrio
ordenador do espaço confere ao filme de Kemeny & Lustig um classicismo particular em que o falseio constru-
tivo obedece a uma vontade verdadeira, e meta desejável num projeto hegemônico do capitalismo paulista. A
forma cinematográfica retoma forças locais e cosmopolitas do imemorial classicismo, que serviu também para
se pensar o cinema vocacionalmente clássico, grande ocupante do circuito mundial que se formava. Assim como
André Bazin descreveu a profundidade de campo e a linguagem do quadro centrífugo nas tomadas realistas da câ-
mera, reativando nas artes do espaço a História das formas tal como, por exemplo, Heinrich Wölfflin o fizera nos
Conceitos fundamentais da história da arte comparando o Barroco ao Clássico, David Bordwell não deixou de
se aproximar de semelhantes conceituações por seu turno para caracterizar o cinema clássico hollywoodiano. 155
O trabalho cinematograficamente formativista — ou aqui teríamos algum conceito de realista cabível? — dessa
visualidade paulistana de lastro parnasiano, otimização pré-moderna do moderno, possui méritos, porquê não
dizê-lo?, de criação artística, ainda que artesanal na sua acintosa oposição ao experimentalismo em que de fato se
inspira e decalca, configurando na sua fatura formal inopinada uma obra prima no gênero cinematográfico mais
praticado no país, o documental de cavação. Deslumbrou dessarte ao “príncipe dos poetas” Guilherme de Almei-
da, o escritor modernista mais popular da cidade, então cronista de cinema n’O Estado de S. Paulo, e devidamente
vacinado contra o cinema brasileiro em geral. 156
É importante lembrar a correlativa distância nessa época entre a gente de cinema e a do mundo da
literatura e das artes quanto ao ideário, mentalidade, origem social e de classe. Com os nossos cineastas, atores
ou cinegrafistas de migração estrangeira mais ou menos recente, sobretudo em São Paulo, verifica-se uma relação
um tanto lateral para com os modernistas de 1922, mesmo os de maior penetração popular como Menotti Del
Picchia ou Guilherme de Almeida. Entre os da 7ª Arte, temos a proximidade com o mundo do migrante atraído
pela cidade do trabalho, que então se delineava com a implantação da indústria paulista, suas entidades operárias

153 Conhecido monumento arquitetural paulistano, o palacete da Vila Penteado, na rua Maranhão, 88, em Higienópolis, assim chama-
da a maior mansão art nouveau do país, abrigou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo entre 1949
e 1968, e sedia hoje o seu curso de Pós Graduação. Motta, Flávio. “São Paulo e o art nouveau”, Habitat nº10, São Paulo, 1953.
154 Argan, Giulio Carlo. Storia dell’arte come storia della città. Roma: Riuniti, 1984. Damisch, Hubert. “Le texte mis à nu” in: Riegl, Aloïs.
Questions de style. Paris: Hazan, 1992. Riegl, A. Grammatica storica delle arti figurative. [1899] Bolonha: Cappelli, 1983. Wölfflin, Heinri-
ch. Prolégomènes à une psychologie de l’architecture. [1886] (tr. intr. Bruno Queysanne) Paris: Carré, 1996.
155
Bordwell, D.; Staiger, J.; Thompson, K. “Space in the Classical Film”, The Classical Hollywood Cinema. Londres: Routledge and Keg-
an Paul, 1985. Bazin, André. Qu’est-ce que le cinéma? 4 v. Paris : Éditions du Cerf, 1958-1962. Wölfflin, Heinrich. El arte clásico. [1899]
Madri: Alianza, 1982. Conceitos fundamentais da história da arte. [1914] São Paulo: Martins Fontes, 1984. É notável a proximidade as
descrições da arte barroca deste livro de Wölfflin com aquelas feitas décadas depois do espaço cinematográfico realista por Bazin,
que poderia conhece-lo no ambiente francês via André Malraux.
156
Machado Jr., R. São Paulo em movimento: a representação cinematográfica da metrópole nos anos 20. Mestrado, São Paulo: ECA-USP, 1989.
175
e cultura predominantemente europeia. E, entre os das artes e literatura locais, a relação maior com a educação
formal, as tradições culturais e a elite paulista. Ainda assim, um mesmo éthos hegemônico de queda pela ordena-
ção formal, descrita, por exemplo, na proliferação retilínea-geometrizante do art nouveau paulista, se manifesta
em cada uma das esferas, embora de modos diferentes nessa urbe cosmopolita “voltada para o futuro”. Há quem
neste trajeto de impulsos ordenadores pense em movimentos construtivos como o Concretismo. Daí o esforço
original da Sinfonia paulistana de recobrir amplamente tais desígnios na construção de sua cidade ordenada para
o trabalho, em seu caprichoso “parnasianismo” visual (como popularização eclética ou proto-neoclássica) impro-
visado a partir de uma experimentação local de anos que pode ser chamada de academismo classicizante. Até um
moderno entre os de maior radicalidade vanguardista, como Oswald de Andrade, intuía a relevância de polemizar
em torno destas vocações:

“Uma confusão que prejudica imenso a orientação dos bem-intencionados é essa que geralmente se faz entre clas-
sicismo e academismo. (...) É preciso, porém, que se concorde numa coisa: clássico é o que atinge a perfeição de
um momento humano e o universaliza (Fídias, o Dante, Nicolas Poussin, Machado de Assis). Academismo, não. É
cópia, imitação, é falta de personalidade e de força própria. (...) É, pois, o academismo, a imitação servil, a cópia sem
coragem, sem talento que forma os nossos destinos, faz as nossas reputações, cria as nossas glórias de praça pública.
(...) Queremos mal ao academismo porque ele é o sufocador de todas as aspirações joviais e de todas as iniciativas
possantes. Para vencê-lo destruímos. Daí o nosso galhardo salto de sarcasmo, de violência e de força.” 157

Se há um gênero cinematográfico consolidado no país, nesses três decênios inaugurais, é o do “natural”, o


registro documental por vezes sistematizado em cinejornal. Difícil negar a este filme em sua modalidade o posto
de obra máxima 158 do cinema silencioso brasileiro. Escrevendo a respeito dos documentais do nosso período
mudo, Paulo Emílio observou uma alternância básica entre seus dois inarredáveis motivos centrais, que chamou
de “Berço Esplêndido” e “Ritual do Poder”  159. De um lado, as mais recônditas e decantadas belezas naturais
do país, em paisagem exuberante, de outro, inaugurações de obra e solenidades oficiais focalizando em geral
ação dos mandatários de proa. Quando há, o estilo dos naturais não é nada realista, persegue a impostação mais
protocolar possível nos rituais cívicos, e nos confins míticos do torrão parece remontar ao paisagismo romântico
da pintura brasileira, busca um ideal de natureza intocada, mata virgem. Na bifurcação curiosa desta fórmula,
convenhamos, nada pode nos parecer mais antitético: — dois brasis tão distantes quanto imiscíveis, sem qualquer
entrelaçamento projetável em fita. Decorre dessa tradição um pouco da absurdidade de filmes bem posteriores,
como Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, ou Terceiro Milênio (1981), de Jorge Bodanzky, em que ex-
celsos mandantes políticos tradicionais como Porfírio Diaz (Paulo Autran) ou Evandro Carreira (ele mesmo) se
articulam com exuberância cênica à Natureza 160. Em todo caso a operação ideológica que encontramos na sinfo-
nia paulista passa pela súbita reordenação, em retórica “subida”, destas duas chaves numa só. Ou seja, o produto
da empreitada pública dos governantes surgiria, finalmente, enquanto paisagem de encher os olhos, com remates
de profusão entusiástica exuberante. Em lugar de Berço Esplêndido se desenharia essa Canaã ultra-urbana, tal
como imaginada por retóricas locais do Poder. A mudança de chave teria mesmo um impacto estético do novo e,
por seu turno, o efeito de um acontecimento inédito, em consonância à novidade da fisionomia cosmopolita que
157 Andrade, Oswald de. “O futurismo tem tendências clássicas” [1922], op. cit., pp. 32-34.

158
Schapiro, Meyer. “Style”, Æsthetics Today, Nova York: Meridian, 1961. Clark, Kenneth. What is a Masterpiece? Londres: Thames
and Hudson, 1979.
159
Gomes, Paulo Emilio Sales. “A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930)” [1974] in: Calil,
C. A.; Machado, M. T. Um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense, 1986.
160
O primeiro foi realizado no Rio e no Maranhão, o segundo no Amazonas. Tais personagens circundados pela natureza trazem
motivo especial para se pensar um diálogo com os filmes de Werner Herzog rodados na Amazônia, Aguirre, a Cólera dos Deu-
ses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972) e Fitzcarraldo (1982). V. meus trabalhos: “Antidote à l’exotisme : Troisieme Millenaire”, Infos
Brésil n° 80, Paris, avril 1993. Estudo sobre a organização do espaço em Terra em Transe. Doutorado, São Paulo, ECA-USP, 1997.

176
se descortinava. Aqui, a incapacidade criativa de copiar capricha; a ponto de nos sugerir algo como a sumidade
da cavação. Ou, noutro compasso, a vanguarda do atraso.
Essa inequívoca ponta de lança do cinema documental brasileiro não logrou contudo colher os louros da
glória, e por razões várias. Não se sabe de muitas exibições dessa sinfonia fora da cidade. E estava ademais na
contramão das contemporâneas reviravoltas políticas contra São Paulo que se sucediam no país a partir da crise
de 1929: as revoluções de 1930 e 1932, o Estado Novo. Nessa contracorrente, se visionário de fato foi como an-
tevisão cinematográfica de uma cidade que mal existia ainda, e então contemporâneo de um anseio verdadeiro 161,
subjacente aos efeitos ideológicos de cidadania brasileira e/ou paulistana que trazia, o “natural” paulista soçobrou
num desinteresse e esquecimento duradouros. Paulista demais, mesmo em que se pese a sua aspiração pátria de
ordem e progresso, tal como desenhada ao longo de sua métrica espaço-temporal, e culminada no arremate final
de aliterações formais num enquadre centralizado de círculos e losangos, chave de ouro parnasiana reverberando
o desenho final — único plano colorido do filme — do pendão pátrio que se desprega auriverde. Dentre os movi-
mentos literários transcorridos entre os séculos XIX e XX, o parnasianismo segundo Antonio Candido teria sido
o que mais fundas raízes deita em solo paulistano, persistindo até os anos 1960 em manifestações residuais. Sua
transposição em espacialidade cinematográfica explica um formativismo ordenado caprichosamente na tradição
paulistana desde o cinema silencioso — seu momento maior na sinfonia de Kemeny & Lustig — até ao cinema
dos estúdios no segundo pós-guerra  162. Ou até ao parnasianismo contemporâneo, como vem nos sugerir Jean-
-Claude Bernardet ao pensar o cinema brasileiro da Retomada 163. Antecipa também uma cidade ordenada para
o trabalho — que seria o sentido que melhor se exprime no filme, entre os esboços de unidade formal que nele
se desenham — , forjando a legenda consolidada nas décadas seguintes, ainda que o caráter ordeiro possa ser
questionado como formativismo ideológico. O Estado Novo, de par com os nazi-fascismos e stalinismos mundo
afora emergentes, não viriam galvanizar de alguma forma a vontade de ordem que já se engendrava ou percebia
antes? 164
Para nos aproximarmos da historicidade das formas cinematográficas — tarefa interdisciplinar e coletiva por
excelência — uma história da experimentação nos filmes brasileiros continua cada vez mais solicitando análises
fílmicas em perspectiva de crítica imanente, e tanto mais quanto se percebe ao longo das décadas a frequência
persistente de inversões sistemáticas de conteúdo se engajarem nas formas no novo. Para dar um só exemplo re-
cente, Ozualdo Candeias e o Cinema (2013) de Eugenio Puppo, ao usar técnicas de apropriação do filme de arqui-
vo para tratar do teor de invenção do cineasta marginal paulista, acaba por reduzi-lo praticamente ao cavador sis-
têmico mais convencional; num ponto que só Primo Carbonari comportaria. Tema aliás, que Puppo, noutro filme,
trabalhou bem melhor; mas era obra sobre o próprio Carbonari. O paradigma do cineasta cavador mais longevo e
extremado na aglutinação de todos os atributos mais característicos e malditos do métier, concentrados numa só
figura, proporciona um contraponto para o lado caprichoso de Kemeny & Lustig. Enquanto os magiares conse-
guiram sintetizar, alambicar, filtrar o que de mais artificioso legaram três decênios de cavação, o ítalo-brasileiro,
de 1929 a 1990 deu sobrevida dilatada ao que de pior se perpetrou na azáfama do ramo. Conferiu-lhe mesmo um
estilo de rouca grandiloquência, do qual nos anos 2000 só temos tido alguma pálida lembrança na propaganda

161
Theodor W. Adorno propõe que as ideologias possuem algo de verdadeiro e que deveríamos procura-lo na aspiração que se
esconde em sua base de apoio. Ver: “ Crítica cultural e sociedade” [1949] (tr. Augustin Wernet, Jorge de Almeida), Indústria cultural
e sociedade. 3ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 75-102.
162
Candido, Antonio. “A literatura na evolução de uma comunidade” [1965], Literatura e sociedade. 6ª ed., São Paulo: Nacional, 1980,
pp. 139-167. Para a apropriação cinematográfica paulistana do parnasianismo vejam-se meus trabalhos: São Paulo em movimento (op.
cit.). “São Paulo e o seu cinema: para uma história das manifestações cinematográficas paulistanas (1899-1954)” in: Porta, Paula.
(org.) História da Cidade de São Paulo, v. 2. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 456-505.
163
Bernardet, Jean-Claude. “Os argentinos dão um banho nos brasileiros”, Cinema, São Paulo, nº34, 2003, p. 37.
164
Este é o esforço impulsor do ensaio empreendido por Siegfried Kracauer na análise formal e histórica dos filmes, encontrando,
entre outras características, personagens formando um verdadeiro cortejo de tiranos, em De Caligari a Hitler: uma história psicológica
do cinema alemão. [1947] (tr. Tereza Ottoni) Rio: Jorge Zahar, 1988, 407 p. il.
177
eleitoral da TV. Foi na condição de um dos piores cavadores brasileiros, curiosamente exitoso na sobrevivência
de muitas décadas no mercado, que ganha notoriedade suficiente para merecer a conhecida convocação do provo-
cador Sganzerla no final dos anos 1960 quando dizia que o nosso melhor cinema precisava revisitar as tomadas
deste primevo incontornável de nossa tradição subdesenvolvida.
Tudo o que faz a nossa sinfonia paulistana figurar como um primeiro passo em falso, ou escorregão feio na
história do cinema experimental, não nos impede de tê-la como exemplo necessário de experimentação cinema-
tográfica relativamente exitosa no campo histórico do cinema documental brasileiro, que se desdobrará noutros
exemplos memoráveis de estética não-realista, ou formativista ao longo do século. Basta lembrar de documen-
tários ímpares e díspares como Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, Di-Glauber (1977) ou Maranhão 66, de
Glauber Rocha, e Aruanda (1959), de Linduarte Noronha.
Outro caso nessa vertente formativista seriam os documentários de Benedito Junqueira Duarte da São Paulo
cosmopolita dos anos 1930 aos 50, que para além das soluções acadêmicas e dos efeitos mais frequentados, prati-
ca um outro olhar interpretativo da cidade que, embora com distância de uma década ou mais, se pode contrapor
ao filme de Kemeny & Lustig pela sua postura mais moderna, procurando descobrir os novos ângulos inspirados
pelos espaços urbanos que registra. Alguns destes registros realizados para a Prefeitura de São Paulo foram in-
tegrados em filmes curtos e outros simplesmente mantidos em rolos separados com temática própria, mudando
seus títulos nos diferentes acervos e projeções desde então. Sobre alterações a posteriori lembramos que todos os
mais conhecidos filmes de Rogério Sganzerla foram por ele próprio remontados ao longo de sua vida, e com di-
ferenças notáveis entre as várias versões, a meu ver com mais pioras que melhoras. Os estudiosos e a crítica, que
se saiba, nunca mencionaram o problema. O superoitismo e outras práticas amadorísticas do cinema são pródigas
destas vicissitudes. O público é, em última instância, o verdadeiro autor de um filme, ao lado de seus paladinos
sem mandato, os críticos, cronistas e quem mais queira registrar em palavras o que se possa processar da sessão
experimentada. Muitas dessas palavras se registraram com uma lembrança muito distanciada desta experiência,
convertendo-se por vezes em debate e fortuna crítica, mesmo quando a sua memória mais forte venha já de tes-
temunhos outros, sem falar de muitos deles na prática referências jamais vistas, propriamente. Em sua primeira
sessão, em maio de 1931, Limite foi projetado ainda incompleto, demorando algum tempo para as projeções tidas
como versão definitiva, seguidas de tantas outras, desde os anos 1940-50 até hoje, definitivamente desfalcadas.165
Do conhecido “Mito Limite”, de Glauber Rocha, reduzido quase a falácia em sua Revisão crítica do cinema bra-
sileiro, aos diversos mitos de origem situados ao longo da história do cinema experimental brasileiro, se impõe
vigorosa reconsideração dos nossos filmes da primeira metade do Século XX, bem como daqueles que entre os
anos 1950 e 1970 constituíram os parâmetros locais de vanguarda e modernidade.

VII. Princípios glauberianos 166

“Romantismo.
Reação parnasiana.
Revolução Modernista.
Neo-romantismo.

165
Ver meu texto “Os filmes de B. J. Duarte” in: Porta, P. (org.) Op. cit., pp. 456-505. Sobre as várias versões de Limite, quase todas
incompletas, ver: Teixeira, F. E. “Vênus de Milo não-reconciliada”, op. cit., pp. 25-37.
166
Uma versão reduzida das partes VII a X foi publicada como “O Pátio e o cinema experimental no Brasil”, in: Castelo Branco,
Edwar. História, Cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009, pp. 11-24.

178
Reação Concretista.
Revolução do Cinema Novo.”

Glauber Rocha, 1980. 167

Há mais de meio século Glauber Rocha concluía, aos vinte anos de idade, em Salvador, O Pátio (1959), o
seu primeiro trabalho cinematográfico. É um filme estranho. E parece construído para ser estranhado. Traz aquele
claro desígnio da obra disposta de modo a ferir sensibilidades, no espírito que permitiu às vanguardas artísticas
abrigar de bom grado a palavra de ordem “épater la bourgeoisie”.
Cheia de arestas, a sua fluência é controversa. Seu tempo se espalha de maneira pouco linear, sofrendo sobres-
saltos de continuidade provocados pela incidência irregular de uma trilha musical autodenominada nos créditos
iniciais como “montagem sonora em música concreta”. A articulação agressiva do som agrava uma sequência de
imagens também pouco clara como encadeamento de ação. O pátio do título bem poderia ser este tablado de xa-
drez que aparece desde o começo, antes vazio, depois ocupado pelo casal, que ali chegaria de mãos dadas, depois
de alguns planos já tê-los antecipado ali. Este chegar dos já chegados, desdramatizado como sequenciamento de
ações, possui, entretanto, algumas coordenadas mínimas de desenvolvimento, até o momento final em que o casal
se retira subindo a escadaria ao fundo.
Dar conta do pouco que é narrado como ação dramática convencional requer uma descrição do que acontece
em seu lugar, ou do que não acontece, do que tem lugar como acontecimento.
O pátio é uma plataforma cercada de Natureza. Da vegetação próxima que a cerca, ao horizonte maríti-
mo que se abre, pródigo, vemos às vezes a transição de baías e, mais para o fim, pouca aglomeração urbana,
prédios, chaminés, fábricas ao longe. Circundado dessa predominante paisagem natural, o tabuleiro ocupa posto
privilegiado de mirante, sem que se interessem os seus ocupantes pela contemplação que ele nos proporciona.
Nada na verdade parece interessá-los muito. Seus olhares não se concentram muito em nada, parecem exte-
nuados com processo anterior, condições que os transcendem. Olhares que se desfocam, se largam como para se
avistar interiormente. Apenas no final, ameaçando romper com a pasmaceira a que seus corpos se entregam, ele,
reunindo algum alento, cambaleia numa direção dada, o que chama a atenção dela, que parece querer segui-lo.
Segue-se, porém, um plano próximo da folhagem de um antúrio sendo atingida pelo jato inequívoco do mijo mas-
culino. Tal choque prosaico vem interromper algo do que se criava numa condensação estagnada de atmosferas
acumuladas em tédio, tormento e abandono, de dois corpos largados e a si mesmos entregues, esvair de acúmulos
que prepara o desfecho final em que ela o segue na direção do fundo do pátio, onde aparece uma escadaria. Des-
calços, sobem a escada abandonando no local os calçados que aparecem num plano final, contraplano da vista do
horizonte.
Se há ação neste desfecho, no correr do filme é mais incerta qualquer ocorrência. Seus corpos prostrados ora
se procuram dificultosamente, arrastando-se pela esplanada, ora ensimesmam-se em expressão de desconsolo,
às vezes tédio ou numa espécie de entrega erótica do corpo ao repouso ensolarado. Por vezes, como na música,
incide algo doloroso, tormentoso, nascendo do desconsolo de suas expressões de corpo e de face. A montagem
intercede num dado momento com galhos ressequidos de árvores circunstantes contra o céu, contrapostos ao
esgar masculino crescentemente perturbado, dirigido aos céus. Noutros momentos, a harmonia da composição
entre geometria (ladrilhos ora em branco, ora em preto) e corpos (braços, face…) evolui para composições tensio-
nando retas e curvas, arquitetura, construção, versus corpos, organicidade. Neste conflito, enlevo obstruído pela
circunstância, arranjos ora prazerosos, ora enervantes, de um conluio vicioso homem-natureza, a poesia reside na
167
Rocha, Glauber. “Pape Lygya 80” [1980], Revolução do Cinema Novo. Rio: Alhambra, Embrafilme, 1981, p. 463.
179
quase estática coreografia a dois de um absoluto ensimesmar-se da relação com o mundo nos limites da relação
amorosa?
Em resumo, o casal entrega-se à modorra da esplanada, como a um tempo livre entediante, em metafísica da
estagnação viciosa, na qual o cenário natural se proporciona ao construído, como num berço esplêndido do Nada.
Como no tédio burguês, o nada é construído, é o espaço construído do tabuleiro alegorizando uma cultura
dominante (do cenário, da paisagem) e sem saída (exceto a volta ascendente à Natureza, já que a escada do fim
leva à selva escura, vegetação fechada), sem alterações advindas da sociedade ou do espaço público.
Esplanada é aqui alegoria de terreno construído para o domínio da natureza e da vida social. O mesmo ta-
buleiro quadriculado ressurge em Terra em Transe como espaço palaciano do colapso populista, é o Palácio do
Governo de Alecrim, cenário brechtiano da renúncia e da campanha de Vieira, estancieiro posto em liderança.
Espaço palaciano contraditório pois logradouro a céu aberto, como falsa praça Esplanada, termo empregado na
mesma época em Brasília por Lucio Costa e Oscar Niemayer, foi o mesmo nome que José de Alencar, no romance
O Guarani 168, usa para os românticos encontros de Ceci e Peri. Cenário romântico inspirado na plataforma-mi-
rante não das sedes de fazenda coloniais, como essa fantástica paliçada anti-índios do romance (proliferada em
décors atenuados cenograficamente na ópera de Carlos Gomes), mas nas fortificações portuguesas do litoral: pos-
to de comando, vigília e praça, única praça possível no mundo-colônia, mesmo em cerco hostil praça protegida
pela elevação murada.
O Pátio prefigura, antes de existir o Cinema Novo, uma vanguarda que ainda podia ser chamada de “experi-
mental” (ver letreiros iniciais do filme) — termo eclipsado nos anos 60, totalmente esquecido pelo novo sentido
social da vanguarda cinematográfica brasileira. Experimental associa-se, no ideário glauberiano, ao formalismo
inovador conformista, sem horizonte social, sem sentido revolucionário. O cineasta esquecerá por um tempo O
Pátio, ao mesmo tempo em que enquadraria nesta condenação Limite, de Mário Peixoto. Só em seus anos finais
de vida Glauber faria uma revisão deste juízo condenatório do “experimental”, abrangendo Limite, (O Pátio, de
tabela) e, sem dúvida o Cinema Marginal, ou “Udigrudi”, como mera invencionice conservadora e colonizada.
Pouco se estudou, infelizmente, na trilha desta guinada ideológica, o construtivismo 169 como faceta relevante
da poética de Glauber. Sua desconfiança na virada da década de 1950-1960 para com o concretismo — “coisa
de menino rico”, perguntava-se numa carta — marcaria aquele distanciar-se do experimentalismo supostamente
não-engajado. Sartreano convicto, isto não será aceitável. Afastamento contemporâneo daquele do movimento
Neoconcretista, importante sobretudo no campo das artes visuais e inspirado em Merleau-Ponty, Glauber retorna-
ria a esta vertente não tão evidentemente “engajada” com Câncer (1968), é sintomático, ao lado de Hélio Oiticica.
Entretanto não é possível reduzir O Pátio àquilo que Glauber condenava, para fora das muradas cinemano-
vistas. Há ali o mal-estar sartreano com o ostracismo do amor relegado à cultura de uma construção burguesa da
condição colonizada, em moderna torre de marfim. O tenso vácuo de O Pátio pode ser visto como um estridente
Entre quatro paredes 170 sem paredes, apenas contraído em paralisia coreográfica a um par amoroso encruando-se
sob céu aberto. Descalço e descamisado, o amor do casal fenece em seu berço esplêndido, porque ao tabuleiro ele
desceu, como a um inferno. Inferno do isolamento, na Esplanada da Fortaleza Colonial.

168
Alencar, José de. “I – Cenário”, O Guarani: Romance Brasileiro [1857] 13ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1965, p. 12 e seguintes.
169
Monzani, Josette (Alves de Souza Wagner). “O construtivismo de Glauber”, Folha de S. Paulo, 2/3/1986, Folhetim, pp. 8-10. Risé-
rio, Antonio. Avant-Garde na Bahia, Instituto Lina Bo Bardi e P. M. Bardi, 1995. E os trabalhos de Maria do Socorro Silva Carva-
lho: Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia dos anos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA (Coleção nordestina, 7),
1999. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: EDUFBA, 2003.
170
Sartre, Jean-Paul. Huis clos. [1944] Paris : Gallimard, 1947. A tradução de Guilherme de Almeida é de 1949. Na peça, que teve
desde 1950 inúmeras montagens no Brasil, baianas inclusive, um triângulo amoroso se inferniza; dela é muito lembrada a frase
pronunciada próxima ao desfecho (pelo personagem masculino, Garcin, um jornalista brasileiro, na montagem de Luiz Sérgio
Person nos anos 70 era Luís Linhares): — “O inferno... são os outros.”

180
VIII. Experimental e/ou de vanguarda 171

“SER e NÃO SER.


Da maior e melhor teatralidade.
Dos eternos enquanto perdurem.
Mas continuar sendo e permanecendo
ex-PERI-mental no corpo a corpo
dos paradoxos. Conflitos em transe.
(...) Lutas cotidianas além das
Redes Sociais e Enredos Palacianos.”

Jomard Muniz de Britto, 2014. 172

Há uma boa unanimidade no Brasil de que o seu maior inventor de formas cinematográficas tenha sido
Glauber Rocha. Se o seu primeiro filme, O Pátio, iniciado em 1957 e concluído em 1959, anunciava já em suas
primeiras cartelas “um filme experimental”, notamos que tal designação desaparece por completo ao longo de
seus passos seguintes e, de resto, pouco prestígio terá no léxico do Cinema Novo — ainda que noutros campos
como o das artes plásticas o termo seguisse reverberando novas acepções. Basta mencionar as reflexões de crí-
ticos e artistas como Mário Pedrosa ou Hélio Oiticica. No cinema o termo surge com alguma força somente nos
anos 70 173, com a repercussão gradativa do Cinema Marginal e dos festivais de Super-8, em que os filmes de
artista não eram raros.
Recapitulamos que nos mesmos créditos iniciais d’O Pátio vinha também uma cartela estampando “mon-
tagem sonora em música concreta”. Naquele momento o Concretismo, assim como as criações neoconstrutivas
que então surgiam, marcava as vanguardas literárias e artísticas do país. Isto inclui o jovem Glauber cujos artigos
e correspondência da época  174 são instrutivos para se perceber a revolução cinemanovista, a partir da qual irá
distanciar-se tanto de seu primeiro filme quanto da arte concreta, objeto de comentários cada vez mais irônicos,
“coisa de menino rico”. — Pode-se dizer que o grande abismo social que divide a sociedade brasileira traz as suas
consequências e marcas no plano da radicalização estética.
Poderíamos preferir ver nesta fortaleza doméstica no primeiro filme do cineasta baiano uma reflexão estética
sobre o matrimônio. Seriam perto de 1957-1959 as datas coincidentes de sua realização mas também da duração

171
Este texto da parte VIII, exceto os novos desenvolvimentos em torno do Pátio, teve acréscimos em relação à sua primeira pu-
blicação, em 2005, como “O cinema experimental no Brasil e o surto superoitista dos anos 70” in: Axt, G.; Schüler, F. (orgs.) 4Xs
Brasil: itinerários da cultura brasileira. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2005, pp. 217-231. Uma variação menor dele saiu no mesmo ano
em francês : « La faim et la forme : Expériences esthétiques contre réalité sociale ? », Cahiers du cinéma nº605. A parte IX, superoi-
tista, com poucas diferenças, serviu de introdução a Marginália 70, op. cit. E a parte X, integrou originalmente o catálogo Golpe de
64: amarga memória (org. Reinaldo Cardenuto Filho), São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2004.
172 Britto, Jomard Muniz de. “SER e NÃO SER”, Atentados Poéticos (publicação mensal por emails: ATENTADOS1, <atentadospoeti-
cos@yahoo.com.br>, 23/05/2014), Recife, maio 2014.
173
Pedrosa, Mário. “Arte Experimental e Museus” [1960], Política das Artes: Textos Escolhidos I. (org. Otília Arantes) São Paulo: Edusp,
1995. Oiticica, Hélio. “Experimentar o Experimental” [1972] in: Arte em Revista, ano 3, n°5. São Paulo: CEAC; Kairós, 1981.
Buongermino Netto, Raphael. (org.) Linguagens experimentais em São Paulo 1976. São Paulo: SMC, Idart (Departamento de Informa-
ção e Documentação Artísticas, Centro de Pesquisa em Arte Brasileira), 1980. Bittencourt, Francisco. “Dez anos de experimenta-
ção” [1980] in: Levy, Carlos Roberto Maciel (et al.) (orgs.) Revista Crítica de Arte nº4: Antologia da Crítica de Arte no Brasil. Rio:
Associação Brasileira de Críticos de Arte, 1981.
174
Brasil, José Umbelino. As críticas do jovem Glauber: Bahia 1956/1963. Tese, POSCOM-UFBA, Salvador, 2007, 202 f. Rebechi Jr.,
Arlindo. Glauber Rocha, ensaísta do Brasil. Tese em Literatura Brasileira, FFLCH-USP, São Paulo, 2011, 2 v., 578 f. Rocha, Glauber.
Cartas ao mundo. (org. Ivana Bentes) São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
181
do casamento do diretor com a sua atriz; os primeiros, aliás, tanto de Glauber quanto de Helena Ignez. Seria desse
modo possível antever algo incomum nos horizontes artísticos de então, trazer à discussão um claro e manifesto
diálogo biográfico do filme com a experiência vivida. Soaria como antecipação na linha arte-vida que, embora
em constante latência ao longo da obra glauberiana, alguma ancoragem na sua concreta experiência para além do
usual folclore mundano, aqui se revelaria especulação estética bastante avant la lettre. Até independente dessa
ressonância biográfica, obviamente redutora à primeira vista, ou mesmo enquanto interpretação crítica, lidando
no contexto de então com a reflexividade estética em causa, poderão na mise en scène de seus corpos e no tra-
balho expressivo dos atores se verem marcados por concepções existencialistas, atravessados por noções de arte
engajada. No âmbito poético da pura representação ficcional, a questão do convívio amoroso ou sua realização
no matrimônio implicam, como vimos, sentimentos de vínculo compromissado bastante atentos a significados
espessos que vão da experiência da náusea à da liberdade.
Controversos trânsitos entre as esferas estética e ética se exercitam e se pressupõem existencialmente, de
Kierkegaard a Sartre. Vale dizer, desde o nascimento do existencialismo em meados do século XIX até à sua
mais influente manifestação contemporânea, versão engajada, em forte diálogo com o marxismo no pós segunda
guerra mundial, e nesse final dos anos 1950. Para o filósofo dinamarquês, na Estética do matrimônio (1843), a
vinculação do amor à vida social (e vida religiosa, se relevante para os amorosos) é pensada como parte indis-
sociável na realização plena da experiência amorosa, solicitando a necessidade das ritualizações devidas a cada
esfera, ética e estética. Argumenta que se isolado da vida e das instituições sociais o amor acaba não se realizando
enquanto tal. Em resposta dialética às noções advindas de sua obra precedente, o Diário de um sedutor, isto pode
ser, por determinada oposição, compreendido como uma reflexão estética correlata à ética burguesa, ao criticar
a tradição aristocrática subjacente como enraizamento da noção castrense de conquista, triunfo militar, próxima
da figura do donjuanismo 175.
Já o compromisso amoroso no existencialismo engajado, mesmo quando sem clara associação a concepções
marxistas, busca se desembaralhar daquela determinação de opostos dialéticos, desconfia criticamente das com-
preensões tradicionais do amor como valoração fundamental, positiva, idealizada. Tenta superar a crítica estética
de traços aristocráticos ou burgueses pela aproximação da ideia de vida social compromissada à luta libertária e
emancipatória 176. Mas neste caminho talvez muitas vezes se misturasse ou se refundisse algo daquela polaridade
kierkegaardiana do amor que ora propõe a vivência radical do momento, por mais intempestiva ou extemporânea
que pareça, ora só consegue percebê-lo no seu desenvolvimento durante o tempo vivido. Em Terra em transe
(1967) Glauber concentrará sua ambiguidade em torno de duas vocações fundamentais de Paulo Martins (Jardel
Filho), a poesia e a política: o triunfo da Beleza e da Justiça, que repercute em protagonismos de Sílvia (Danuza
Leão) e Sara (Glauce Rocha).
Sartre tentava em 1960 aproximar Kierkegaard e Marx, estes contemporâneos antípodas havia um século.
Antípodas sob vários aspectos, a começar pelo estudo dos engendramentos de formação da consciência — no
primeiro pela ponderável imanência da vida interior se bem observada, no segundo pela determinação exterior
que transcende a interioridade, posta por relações materiais de sobrevivência estabelecidas com o mundo. É con-
temporânea d’O Pátio a gestação sartreana da Crítica da razão dialética, livro de 1960, cujo prefácio “Questão de
método”, publicado também separadamente, tornou-se um best-seller internacional de esquerda ao longo daquela
175
Veja-se, a respeito, a dialética entre os textos de Søren Kierkegaard, especialmente “Le journal du séducteur” e “La légimité
esthétique du mariage”, Ou bien... Ou bien... [1843] (tr. M. H. Guignot, F. & O. Prior) Paris: Gallimard, 1943. Adorno, Theodor W.
Kierkegaard: Construção do estético. [1933] (tr. Álvaro Valls) São Paulo: Ed. Unesp, 2010.
176
Sobre a questão do engajamento sartreano ver: Sartre, Jean-Paul. “Apresentação de ‘Les Temps Modernes’” [1944] (tr. Oto Araú-
jo Vale), praga nº8, ago. 1999, pp. 117-129. Que é a literatura? [1948] (tr. Carlos Felipe Moisés; pr. Arlette Elkaïm-Sartre) Petrópolis:
Vozes, 2015. Furacão sôbre Cuba. (apêndices de Rubem Braga e Fernando Sabino) 3ª ed., Rio: Editôra do Autor, 1960. Sartre no Bra-
sil: A Conferência de Araraquara; Filosofia Marxista e Ideologia Existencialista. [1960] (tr. Luiz Roberto Salinas Fortes) Rio: Paz e Terra;
São Paulo: Unesp, 1986. Para o debate da noção de engajamento em Sartre e Brecht: Adorno, T. W. “Engagement” [1962], Notas
de literatura. (tr. Celeste Aída Galeão) Rio: Tempo brasileiro, 1973, pp. 51-71.

182
década de 60; 177 muito embora o entrelaçar de leituras daqueles dois filósofos coetâneos se observe na história do
chamado marxismo ocidental desde o começo do século XX. A absurdidade do amor em Sartre parece recompor
e não obstante afastar-se da dialética kierkegaardiana, enfrentando de outro modo e a um só tempo aquele velho
problema da liberdade no jogo ambíguo entre a sedução (como romântico momento irrepetível, racionalizado
pelo avesso) e a apropriação (como experiência de plenitude construída na duração temporal). Sartre na ficção,
ensaio, dramaturgia 178, e mesmo biograficamente, tratou o amor de modo complexo e interrogativo. Preso a de-
sígnios do passado, aspirações de futuro, o convívio amoroso é experienciado como um problema em aberto, em
nada isento à realidade circunstante.
Tudo n’O Pátio afinal gira em torno de um vazio. Como num olho de furacão, há um relacional vazio que
parece se agenciar de tudo à sua volta. De fora para ali chegados, os amorosos acabam para fora voltando. Ensi-
mesmando-se no privado, ao espaço público se reconduziriam, dele se envolvendo como por ausência, falta de
sua remota dinâmica. Em sua estética do estático, em nada O Pátio recorda a soltura inquieta da câmera glaube-
riana já a partir de certos planos dos seus primeiros filmes, o Deus e o diabo na terra do sol (1964), ou mesmo de
Barravento (1962). Embora já esteja ali inteiro na primeira fita muito do seu olhar atacado, ferido pelo que filma,
tomado pelo espaço, afetado pelos corpos, todos confundidos em sua inédita separação. Mas sob esse aspecto de
um olhar estático, O Pátio se relaciona muito ao olhar dinâmico do Um dia na rampa (1955-1960), de Luiz Paulino
dos Santos, e podemos dizer que, em toda a sua enorme diferença tratam no fundo de um mesmo problema. Não
apenas por seus diretores-estreantes terem se invertido simultaneamente nas funções de produtor e de autor, um
no curta do outro. Para além de um mesmo e recíproco modo de produção, companheirismo, em suas criações
parecem partilhar um mesmo universo, como em duas faces de uma mesma moeda. Recordemos, é o mesmo par,
Paulino-Glauber, que criará Barravento. Neste sentido podemos considerar O Pátio (com Um dia na rampa) uma
película chave, muito singular, entre a vanguarda clássica e a moderna, ou contemporânea. Ademais de outras
películas de Glauber, podemos enxergar um diálogo com várias obras — anteriores (por exemplo Limite), e pos-
teriores do cinema brasileiro; talvez a produção cinemanovista toda, sobretudo pós-64, com O desafio.
Películas gêmeas, inadvertidamente uma pressupõe a outra. Gêmeas do mesmo esforço coletivo, mesmo
lugar e nova geração da metrópole, Um dia na rampa é uma pequena simbiose neorrealista surpreendente, enquanto
filme-sinfonia ultra-local, que experimenta a incessante ritmação da montagem no Centro de Salvador, na concor-
rida rampa do Mercado Modelo. Nada se paralisa nesta jornada de movimento na rampa, onde atracam os barcos
trazendo seu peixe e mercadorias para vender na feira tradicional do lugar. Descem da cidade alta compradores
aquinhoados e todo tipo de gente se encontra neste movimento em que o povo, sempre em gestualidade docu-
mental, executa coreografia incansável, com o protagonismo central do trabalhador. Pulsam gestos em profusão
diversa e coordenada com movimento de barcos, reflexos n’água de suas velas e mastros, risos e conversa, se-
parar peixes, o voltar do troco, todo um universo visível da faina urbana em um dia de atividade no seu vórtice
epicentral de encontros.
Misturam-se ao labor também descanso, gole de pinga, passeio e até namoro. Há entre ações passageiras,
perto do fim, o encontro de um casal negro no movimento contínuo do atracadouro, ele conduzindo em delicadeza
a moça familiarizada entre tábuas para o interior da embarcação. Como nessa ágil película os cortes da monta-
177
Sartre, Jean-Paul. Critique de la Raison Dialectique, tome I. Paris : Gallimard, 1960. “Questão de Método” [1960] (1966, tr. Bento
Prado Júnior) in: Os Pensadores XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 115-197.
178
Para dar ideia do impacto de Sartre na época, cito a escritora feminista belga Suzanne Lilar, sua contemporânea: “Jamais, talvez,
houve um filósofo com tanto peso sobre o seu tempo quanto Sartre. Chega a modificar a linguagem do homem das ruas (para
não falar no jargão existencialista de que se faz uso até nos meios mais opostos ao sartrismo). Jamais um pensamento chegou a
ferver, cegar, paralisar tanto como esse que não ganha sentido senão quando se proclama em sua clarividência e jovialidade. De-
pois de Sartre, certas questões resultam como que estremecidas por um impedimento. Não é raro ouvirmos afirmarem que depois
de O Ser e o Nada, uma defesa do amor não é mais sequer concebível. Sartre teria esvaziado a questão. Ora, se há algo de verda-
deiro nessa objeção é que desde Sartre não é mais possível defender o amor de maneira simplista: um total recolocar da questão é
indispensável.” Lilar, Suzanne. À propos de Sartre et de l’amour. [1967] Paris: Gallimard (idées), 1984, p. 85 (tradução nossa).
183
gem nunca tardam, vemos logo suceder ao plano anterior uma quilha de barco beijando o pneu acolchoado no
mourão do píer, numa espécie de brinde alusivo e pan-simpático, como noutros efeitos da prosódica montagem.
A felicidade celebrativa dessa faina feirante nada parece dever à cena popular constante na gravura local, música,
fotografia e literatura — Jorge Amado, Pierre Verger, Dorival Caymmi, Carybé. Assim como no trabalho destes
artistas e nos filmes de Alexandre Robatto ou do insipiente cinema baiano de então, vibra o interesse artístico pelo
que circula nos rituais da vida cotidiana mais popular, estetizações como que amorosas da vida pública em que
podem aflorar utopias sociais democráticas.
Não se distanciavam tanto os lugares em que Paulino e Glauber filmavam; meia hora a pé, beirando pela
face sul da cidade a orla da região central. Sob um mesmo horizonte soteropolitano da Baía de Todos os Santos
a vibrátil oscilação marítima do Um dia na rampa (voltado ao norte) viria contraposta ao olhar estático em terra
firme d’O Pátio (voltado ao sul). Como em oposição de contra-planos, pontos de vista em diálogo, visadas dialé-
ticas entre a dinâmica pública da pulsação popular e o poder ultrajovem de pulso retesado. Um filme voltado ao
rebuliço terreno das trocas cotidianas, outro voltado à incomensurabilidade oceânica de todas-e-nenhuma rota.
A sobrevivência comunitária desejável na metrópole, contra o desejo metropolitano privado de qualquer comu-
nidade, ambos em problemática reciprocidade. Na contracorrente da vanguarda desenvolvimentista, dois pontos
de fuga complementares, em pontos de vista quase indivisíveis: a transbordante vibração do encontro popular na
cidade baixa, e a vácua vigília imutável do impávido posto de mando na cidade alta — crença e descrença como
mazelas atávicas, sintomas de uma cultura cindida.
Contrasta em última instância n’O Pátio a presença daquela infinitude do mar com a finitude xadrez da es-
planada. Que significados poderá ter esta prostração toda, languidez triste — bem nessa plataforma de horizontes
privilegiados? Uma cadeira de ferro, sol, bananeiras, lajeado, oceano — o casal tem ao longo da película as suas
cabeças contracenando sobretudo com esta linha do horizonte, primordial separação de campos entre céu e infer-
no, pura atmosfera e contingências do estar no mundo, limitações entre mente e corpo. A atração das metrópoles
se dá necessariamente direcionada além-mar. E se realiza por rotas marítimas. Mesmo as elites viajavam por mar
desde a colônia até meados do século XX, fosse Lisboa, Londres, Nova York ou Rio de Janeiro. O posto de vigília
dos fortes no controle da entrada dos portos, baías ou foz de rios é também posto de mando, de controle e exercí-
cio do poder: a náusea dos jovens amorosos na esplanada se explicaria também pelo posto de mando a recusar?
Resquício de léguas e sesmarias, de proto-esplanada a solar insólito?, adeuses às armas, prosternação abdicante,
renúncias maiores?, gente bronzeada querendo ver o seu valor?
Saltando dali noutro tempo-espaço e contexto histórico, se absurdamente avançamos mais vinte anos, a pou-
cos quilômetros dali, do outro lado da cidade na aldeia de Arembepe, em laguna de águas cristalinas e quase am-
nióticas, face ao oceano, coqueiros, Céu sobre água (1978) de José Agrippino de Paula e Maria Esther Stockler,
Super-8 de grandiosa estesia hippie, radicalizaria os polos presentes n’O Pátio, sem tabuleiro algum e tombando
completamente em favor da plena imersão no regaço da Natureza reinante. É outro tipo de recusa, numa situação
de contracultura desenvolvida em duas décadas neste lapso de tempo histórico por novas gerações insubmissas ao
legado cultural e político do arco desenvolvimentista, e culminada pelos eventos de rebeldia em 1968.
Pensar o país em suas contradições sociais engendrando formas cinematográficas é a proposta fundamental
do Cinema Novo. Este engajamento é mantido mesmo com toda a crítica, oposição, repentismo e estridência dis-
persa das vagas seguintes, como o Cinema Marginal e o experimentalismo independente que vigora no Super-8, o
filme de artista e o cinema militante que se desdobra desde os tempos da ditadura. A cada uma destas vagas mais
se faz necessária a afirmação poética sempre lembrada de Maiakóvski — “Não há arte revolucionária sem forma
revolucionária.” Se a invenção formal é uma marca de nascença do Cinema Novo, que explicaria a sua oposição
ao CPC (Centro Popular de Cultura) no início dos 60, estes dois movimentos, porém, nunca abrirão mão, ambos,
de “falar ao povo”. Com o recrudescimento em 1968 da ditadura instalada em 1964, os primeiros adotariam com
184
a Embrafilme a bandeira “Mercado é Cultura”, e os segundos realizariam finalmente uma parte substancial da sua
proposta nacional popular nas telenovelas da Rede Globo.
Não é inútil relembrar ainda uma vez que Glauber dedica em 1963 um capítulo de seu livro Revisão crítica
do cinema brasileiro ao filme de Peixoto, “O Mito Limite” 179. Mesmo confessando não ter visto Limite, Glauber
vem detoná-lo como uma vivência interior “formalizada, socialmente mentirosa”, que só se valorizaria pelo idea-
lismo da arte pela arte. Temos aqui a impressão de que algo semelhante poderia ser dito também do seu Pátio,
que por sinal será esquecido no livro e mesmo ao longo de sua larga produção textual, incluindo depoimentos. Tal
denegação glauberiana se explica fundamentalmente pela sua busca de um sentido vanguardístico para o cinema,
demarcado por um horizonte social e político – a Revolução do Cinema Novo, título do seu principal livro.
Formalismo de fundo conservador, politicamente suspeito, imitação colonizada do primeiro mundo: todo
filme experimental até os anos 1970 faria imaginar algum tácito veredicto cinemanovista, injusto ou não. O desa-
juste ocasionado pelo empréstimo ou importação de modelos estéticos é no país processo corrente e mesmo abu-
sivo, além de provinciano; mas é também expressivo, até vibrante, quando feito com distanciamento mimético
ou liberdade de criação 180. No quadro ideológico posto pelo advento do Cinema Novo, o transplante de modelos
estilísticos, mesmo quando feito com ironia, é facilmente estigmatizado como pobreza espiritual ou imitação co-
lonizada do primeiro mundo; em geral com razão, diga-se. A dicção dos filmes, a sua forma, sem subserviências,
deveria desse modo ser criada mediante a realidade tematizada, por ela afetada e engendrada, mesmo que para em
contrapartida recusa-la ou ignora-la, falando porém sua mesma língua.
O entusiasmo pelo espaço físico e realidade local estão sem dúvida presentes em boa parte das mais radicais
invenções audiovisuais brasileiras, mas serão também responsáveis por um alto índice de espírito de contradição
encontrado nos filmes. O manifesto decisivo de Glauber, “Estética da Fome” (1965) solicita algo fundamental
mas até então pouco praticado, a sintonia entre as poéticas cinematográficas e as condições locais mais concretas
— o que inclui a precariedade das culturas técnicas. E a preocupação de Glauber com Limite procede, pois é pro-
vável que tenhamos ali de certo modo uma matriz fundadora desta interação exigida entre forma cinematográfica
e realidade local. Em 1973, Glauber escreve a “Estética do Sonho”, na qual ele amplia e repensa o manifesto de
1965. Isto mais adiante lhe permitirá, por justa causa, reivindicar-se o fundador do Cinema Marginal (ou “udigru-
di”, como ele pejorativamente o condenava antes) com Câncer (1968), e reabilitar Limite como genial, vendo-o
restaurado em 1978. Temos infelizmente pouca análise de inclinação mais crítica sobre esta fita. Estudos formi-
dáveis e refinados acabam aumentando o interesse pelo filme, mas repousam sobre a erudição de comentários
que, embora pertinentes o mais das vezes, parecem sobrevoar o filme; ou senão tenta-se buscar a sua dimensão
poética, naquele sentido etimológico que contempla o como se constrói das obras, e não a sua singular produção
de sentido. Este é aliás um problema central da historiografia do cinema experimental, e não só no Brasil: — há
carência de análise, ensaio crítico ou debate de alcance maior, e uma excessiva legitimação das intenções ou dos
projetos dos cineastas.
Não obstante isso pareça estar mudando ultimamente, o experimentalismo radical não conta com muitos
nomes no quadro contemporâneo. Ressalvada a aparição auspiciosa de Carlos Adriano nos anos 90, não raro
precisamos, mesmo iniciado o novo século, voltar aos ainda ativos que surgiram nos anos 60 ou 70, como Júlio
Bressane ou Arthur Omar. A descoberta recente de uma grande produção quase “clandestina” dos anos 1970 em
Super-8 obriga-nos a reconsiderar completamente este lugar-comum de que o cinema experimental brasileiro não
existe para além de meia dúzia de nomes hipotéticos salpicados ao longo do século. Há uma história a ser escrita.
Sua concentração na década de 70 e início dos 80 coincide com os estertores do regime militar, desde os seus mo-
mentos mais tenebrosos. Tanto a tensão da pesquisa estética feita em espaços forçosamente reclusos quanto um
179
Rocha, G. Op. cit., pp. 56-67.
180
Machado Jr., Rubens. “Passos e descompassos à margem” in: Cinema Marginal e suas fronteiras: Filmes produzidos nas décadas de 60 e
70, orgs. E. Puppo & V. Haddad, São Paulo: CCBB, 2001, pp. 16-19. Versão ampliada em: Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e
185
corpo a corpo irônico com o espaço público juntaram poetas, artistas plásticos e uma nova geração de cineastas
radicais 181. Seus filmes não podem ser confundidos com o Cinema Marginal nem com o Cinema Novo, mesmo
quando neles se inspiram: são uma terceira vaga, marcada pela busca da diferença. Ainda que pós-utópicos, os
superoitistas trazem uma clara aspiração politizante, e são em seus extremos de virulência a máxima repercussão
colhida pela Estética da Fome.

IX. Poetas, artistas, anarco-superoitistas 182

“decresça e
apareça”

Cacaso, 1975. 183

“A cada passo, a ironia que vai da parte ao todo, do frag-


mento à unidade, dos homens ao homem lança perguntas.
Perguntando, duvida; duvidando, busca uma resposta que
está dada por uma ironia cíclica, interminável porque cons-
tantemente renovadora.”

Jomard Muniz de Britto, 1964. 184

O que haveria de extraordinário ou polêmico em afirmar que os filmes experimentais brasileiros em sua
metade ou dois terços teriam sido realizados em Super-8? Poucos teriam meios para discordar ou concordar,
começando pela elasticidade do conceito de cinema experimental internacionalmente, maior ainda no caso bra-
sileiro. Uma das tradições que se renovam até hoje num tênue porém resistente circuito americano e europeu de
museus ou salas especializadas tem sido a convergência que em certos momentos transforma em quase sinônimas
as designações de “filme de artista” e “filme experimental”. Aqui, ao contrário, raras foram as ocasiões em que
isso se deu, embora a produção de artistas plásticos muito tenha se aproximado da pesquisa dos nossos cineastas
experimentais e vice-versa. Outro motivo que impossibilita a discussão do quadro experimental no país é a sua
grande produção em bitolas menores (também o 8 mm regular, bem como os primeiros formatos do vídeo), cuja
“irreprodutibilidade técnica” tornou a memória de suas poucas, fugidias e auráticas primeiras sessões constituí-
do não raro o único acesso às obras. Isto equivale a dizer que os filmes não têm sido mais vistos ou revistos por
qualquer público, e nem mesmo por pesquisadores, desde os anos 70, época de sua maior produção e difusão.
A multiplicidade e diversidade de proposições estéticas é uma das marcas distintivas da produção audiovi-
sual na década de 70, imposição, em parte, da segmentação fragmentária das experiências forçada pelo regime
Política, v.8 nº15: Raízes e veredas do cinema brasileiro, orgs. Miguel Pereira & Gian Luigi de Rosa. Rio: PUC, 2007, pp. 164-172.
181
Machado Jr., Rubens. Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001, 48 p. il.
182 Esta parte IX foi publicada originalmente no catálogo Marginália 70, op. cit.
183 Cacaso (Antônio Carlos de Brito), “Orgulho”, Beijo na boca [1975], Lero-lero. Rio: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.
131.
184 Britto, Jomard Muniz de. Contradições do homem brasileiro. Rio: Tempo brasileiro, 1964, p. 18.
186
político autoritário. Ao lado da vigorosa expansão da TV e do relativo sucesso da Embrafilme, houve uma proli-
feração de experimentalismos jamais vista, o mais das vezes segmentados e localizados, implicando microesferas
comunitárias como no caso de festivais intermitentes, mostras artísticas e de uma miríade de pequenos eventos.
Procurando os traços comuns mais interessantes destes acontecimentos, encontraremos sem dúvida no Super-8
um material dos mais representativos. Não há entretanto nenhum estudo ou levantamento panorâmico sobre a
produção nacional superoitista, exceto meia dúzia de livros ou teses sobre surtos regionais, em geral de pouca am-
bição crítica e deixando totalmente de lado os centros maiores como São Paulo e Rio. Mesmo sobre os filmes de
maior repercussão produzidos nesta bitola, pouquíssimas e breves linhas de caráter crítico foram escritas até hoje.
Na prospecção que fizemos a partir de 2000, de que um primeiro resultado foi a mostra Marginália 70 185, nos
dirigimos ao Super-8 experimental (categoria menos numerosa nos festivais, como a de animação, diante das pro-
líficas documentário e ficção) tentando abranger as suas diversas acepções. Na escolha para a mostra, entretanto,
adotamos critérios mais exigentes dentro de cada acepção encontrada, visando por um lado manter um quadro
minimamente significativo da pluralidade das propostas existentes, e por outro provocar uma compreensão maior
de algumas vertentes que nos pareceram mais ricas e atraentes. Neste sentido privilegiamos numericamente os
pautados de modo mais radical na pesquisa não só da linguagem como do processo específico de realização nesta
bitola — desde a concepção à exibição —, sintonizando as tradições artísticas de maior peso às novas posturas
estéticas, comportamentais e políticas então em curso. O partido adotado foi de compor um amplo espectro de
tendências, ainda que o nosso recorte obrigasse a deixar fora alguns aspectos relevantes do experimentalismo
mais ligados às convenções da ficção, documentário e animação. Mesmo porque o anticonvencionalismo radical
está na base de qualquer noção mais rigorosa de cinema experimental, tentando explorar as potencialidades do
cinema não utilizadas nas práticas sociais correntes.
Trata-se de um resgate que nos dará a ver um corpus formidável e em grande medida inédito do universo
audiovisual brasileiro. É bem verdade que este aspecto de terra incognita já tem-lhe dado por vezes uma aura de
coisa fabulosa (tanto quanto insondável) que poderá agora ser devidamente analisada, desvendada, desmitificada.
Além da proximidade verificável entre o experimentalismo de cineastas e de artistas plásticos, um outro paralelo
de grande pertinência contemplaria a jovem produção poética dos anos 70 e a chamada literatura de mimeógrafo.
Por exemplo, o mesmo traço localista revela-se explosiva numa verve telúrica irônica e estranha, pois menos ro-
mântica que realista, ou concreta (ou neoconcreta…); a mesma inflamação do aqui-agora levada às raias da cons-
ciência física dos corpos, do mundo e também do meio específico de expressão, em auto-reflexividades várias.
Foi pensando nisto que buscamos nesta mostra o maior diálogo possível entre as três partes — poetas, artistas
plásticos e a provocativa inquietude dos jovens cineastas. Esta tripla confluência talvez nos ajude a explicar tanto
cineasta em flor equiparando as falas dos seus filmes à melhor poesia marginal; artista a decupar e ritmar as suas
185
Veio a público em 2001 o levantamento que fiz da produção experimental realizada em Super-8, com o apoio logístico do Itaú
Cultural, que remasterizou cerca de 180 títulos, praticamente inacessíveis desde os anos 70. Consegui ver então mais de 450
filmes, dos 681 levantados, envolvendo-se 237 realizadores (um terço destes sendo artistas plásticos) de 21 cidades (Porto Alegre,
Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Campinas, Santos, Rio, Goiânia, Belo Horizonte, Governador Valadares, Vitória, Salvador,
Aracaju, Maceió, Recife, Caruaru, João Pessoa, Teresina, Fortaleza, São Luís e Manaus). Entre 2001 e 2003, uma seleção itinerante
da mostra feita em São Paulo, Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro, percorreu dezenas de cidades no país e no exte-
rior (na França, À vos marges, années 70, em 2003). A versão paulistana totalizava 125 filmes e as itinerantes variavam entre 42
e 24 filmes. Dentre as dezenas de realizadores resgatados — foram 78 na mostragem maior — figuram Jomard Muniz de Britto,
Edgard Navarro, Ivan Cardoso, José Agrippino de Paula, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Antonio Dias, Torquato Neto, Sérgio Péo,
Jorge Mourão, Rui Vezzaro, Mário Cravo Neto, Raymond Chauvin, Geneton Moraes Neto, Paulo Bruscky, Jairo Ferreira, Abrão
Berman, Carlos Porto, Leonardo Crescenti, Gabriel Borba, Marcello Nitsche, Claudio Tozzi, Nelson Leirner, Regina Vater, Anna
Maria Maiolino, Henrique Faulhaber, Giorgio Croce, Ragnar Lagerblad, Fernando Bélens, Pola Ribeiro, José Araripe Jr., Virgílio
de Carvalho Neto, Marcos Sergipe, Paulo Barata, Robinson Roberto, José Umberto Dias, Kátia Mesel, Donato Ferrari, Marcos
Bertoni, Isay Weinfeld, Marcio Kogan, Iole de Freitas, Ismênia Coaracy, Vivian Ostrovsky, Fernando Severo, Peter Lorenzo, Paulo
Rocha, Hassis, Júlio Plaza, Luiz Alphonsus, Artur Barrio, Carlos Vergara, Carlos Zilio, Maria do Carmo Secco, Daniel Santiago,
Ypiranga Filho, Amin Stepple, Ana Nossa, Berenice Toledo, Bernardo Caro, Marcos Craveiro, Getulio Gaudielei Grigoletto,
Henrique de Oliveira Jr., José Albino Gonçalves, Bertrand Lira, Torquato Joel, Chico Liberato, Firmino Holanda, Flávio de Souza,
Flávio Motta, Luciano Figueiredo, Óscar Ramos, Luiz Otávio Pimentel, Sérgio Giraud.

187
fitas melhor que muito cineasta de carreira; ou poeta convertido a bom praticante da plástica cinematográfica.
Na programação das sessões, em lugar de segregações temáticas ou estilísticas, tentamos manter um espírito
híbrido fiel à convivência daquela diversidade de posturas que foi emblemática dos maiores festivais do período,
caso da Jornada de Salvador ou do Grife em São Paulo. Espaços de respiração democrática, manifestações diver-
sificadas, contestação política, esculacho mais ou menos cifrado do status quo vigente. A graça e a jovialidade das
expressões mais espontâneas temperavam com o seu frescor a sisudez e conservadorismo artístico persistentes
— e, diga-se, mesmo dentro dos festivais. Em pleno regime autoritário, o isolamento exacerbado das gestações
criativas na verdade prepara o confronto súbito de mentalidades.
Um olhar mais atento perceberá, entretanto, para além do impacto comportamental, uma riqueza de pro-
posições estéticas que nos permitiria cogitar de atitudes e conceitos perfeitamente aplicáveis neste conjunto de
filmes e oriundos de diferentes esferas. Sem pensar em termos muito particulares, não faltaria ocasião para num
exame detido falarmos de filme estrutural, abstrato, independente, radical, marginal, de invenção, de intervenção,
diferente, não-alinhado, negacionista, anti-cinema, de found-footage, onírico, conceitual, minimalista, materia-
lista, prop-art, construtivo, pop, noturno, odara, puro, absoluto, livre, beat, visionário, odara, underground, pa-
ramétrico, concreto, neoconcreto e assim por diante. Se podemos apostar na pertinência destes termos genéricos
na futura análise dos filmes escolhidos, mais interessante seria tentar haurir nos próprios filmes conceitos mais
singulares. A riqueza das proposições anunciadas pelos realizadores eles mesmos já escancaravam várias pistas
possíveis: — cinema rudimentar, o cineviver, o quase-cinema, o vivencial, o primitivista, a antropofagia erótica, o
terrir, cinema ovo, cafajeste, a vanguarda acadêmica, o megalomaníaco neocinemanovíssimo, o cinema de salão,
o anarco-superoitismo...
Apesar da vocação tropicalista e pós-tropicalista de citar, dialogar ou incorporar o discurso dos diversos
meios de comunicação, uma característica entranhada na produção Super-8 em geral e que a distingue da realiza-
da em outras bitolas (até mesmo do chamado Cinema Marginal), é a sua oposição clara a tudo aquilo que tenha a
ver com a TV, sua antípoda máxima no período. Outro superoitismo curioso foi o de interação com a precariedade
do veículo, aderindo estudiosamente aos seus grãos, sua textura, às “aberrações” de sua facilidade de manuseio,
mobilidade e exposição automática, a desritualização contingente mas também voluntária de todo o processo de
produção. Nisto houve sem dúvida contribuição dos artistas plásticos, que aliás participavam com alguma fre-
quência dos festivais. Já a ligação imediatista ao cotidiano é irmã gêmea do que também fizeram os jovens poetas
do mimeógrafo. Esta consciência do meio de expressão, compreendida em sua precariedade, configura num certo
sentido a mais funda repercussão em nosso universo audiovisual da Estética da Fome, que foi escrita por Glauber
Rocha anos antes, em 1965, tornando-a talvez mais profética do que ele próprio gostaria. O recrudescimento das
malhas do poder forçaram o que já havia de significante e mesmo de fálico na legenda “uma ideia na cabeça e
uma câmara na mão”. A transformação sofrida no tema do fálico mostra-se, em seu sentido psicanalítico de or-
dem e de presença do pai, figurada numa realidade física ambiguamente evasiva ou senão coalhada de símbolos
e monumentalizações irônicas. Por suas características intrínsecas como meio e inserção social, o experimenta-
lismo superoitista implicou nas condições brasileiras dos anos 70 uma forte experiência de negação. Negação
dimensionada esteticamente em diversas direções, compreendida a cívica, da declaração contra um status quo
cultural e político, mas e também aquela comportamental, estigmatizada como desbunde, cheia porém de dife-
rentes matizes contraculturais.

188
X. Pólis e política 186

“se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaulle


não acreditem nesta única realidade
neste implacável colar de conchas de ar

se lhe derem os códigos os gestos as modas


não acreditem nesta enlatada realidade
nesta implacável aranha de invisíveis fios

se lhe derem a esperança o progresso a palavra


não acreditem na imposta realidade
na implacável engrenagem das hélices de vácuo

aprendam a olhar atrás do espelho


onde a história jamais penetra
a profunda história do não registrado
aprendam a procurar debaixo da pedra
a história do sangue evaporado
a história do anônimo desastre
aprendam a perguntar
por quem construir a cidade
por quem cunhou o dinheiro
por quem mastigou a pólvora do canhão
para que as sílabas das leis fossem cuspidas
sobre as cabeças desses condenados ao silêncio”

Afonso Henriques Neto, 1976. 187

“Estamos aqui reunidos para tentar.”

Edgard Navarro, 1977. 188

Politicamente suspeito, o cinema experimental ou de vanguarda no Brasil, como vimos, nas poucas
manifestações que provocou para além do Cinema Novo e Marginal, entre aproximadamente 1960 e 1974, tendeu
a ser pensado historicamente neste diapasão de formalismo de fundo conservador. Com o advento do Cinema
Novo, convém notar que é um tanto paradoxal que isto de certo modo continuasse acontecendo, embora com uma
nova visão do problema, ao destacar-se de uma ortodoxia da época. Desde então, conforme apontamos, persiste
um desinteresse sobre o teor político do chamado cinema experimental, que alcança mesmo os dias de hoje. A
produção dos anos 1970 em Super-8 obriga-nos a reconsiderar completamente este lugar-comum.
A especificidade política das realizações em Super-8 fundamenta-se nas suas condições técnicas de
realização e, claro, no desenvolvimento correspondente das suas proposições estéticas gestadas na atmosfera cul-
tural e contracultural da época, implicando suas características de espetacular ampliação unidimensional do con-
sumismo e crescente resistência política e comportamental. A produção experimental ou militante desvia o seu
186 Esta parte X foi publicada originalmente no catálogo Golpe de 64, op. cit. Algumas passagens incorporam contribuições do sáite e
catálogo do evento Marginália 70, op. cit., com a participação de uma plêiade de jovens pesquisadores, tal Cláudia Mesquita, Fábio
Diaz Camarneiro, Júlio Pessoa Nogueira, Leandro Saraiva, Newton Cannito e Tiago Mesquita.
187 Henriques Neto, Afonso. “Dos olhos do não” in: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) 26 poetas hoje. Rio: Labor, 1976, p. 90.
188 -Fala em off de Edgard Navarro na abertura de seu filme O Rei do Cagaço (Salvador, 1977, Super-8).
189
uso da destinação mercadológica, de oferecer com um pouco mais de custo uma alternativa à máquina fotográfica
ao pai de família para registrar viagens e aniversários e ao jovem de classe média brincar de cineasta. Precursor
do vídeo e das atuais câmeras digitais chegando até aos celulares, o Super-8 se difunde pelos anos 70 como téc-
nica acessível, num salto significativo em relação à utilização similar que se verificava desde os anos 1920 com
as pequeninas Pathé Baby, passando depois pelas bastante portáteis câmeras 16 mm de corda, até chegarmos às
“Regular-8”, que ainda usavam nos anos 60 a tecnologia 16 mm, sem as facilidades do automatismo introduzidas
com as Super-8. Antes destas últimas exigia-se do cineasta amador uma mínima cultura técnica para a manipu-
lação, por exemplo, dos ajustes de foco (facilitada nas “revolucionárias” Super-8 pela visão direta do foco no
visor reflex, tornado padrão), da medição de luz para a exposição (pela adoção da nova fotometria automática),
do acionamento frequente do motor mecânico por cordas (pelo motor elétrico alimentado por pilhas), da escolha
de objetivas (incorporação regular da zoom). E outras facilidades como o característico formato ergonômico da
pistola, ou a solução inovadora dos cartuchos que aposentaram os rolinhos, exigentes de cuidados de encaixe nas
roldanas internas, em resguardo absoluto das luzes do céu aberto, que podiam sempre fazer do simples carregar
da câmera a precoce “queimada de filme”.
Naturalmente esta maleabilidade eletrodoméstica do Super-8, embora capacitasse de imediato uma
legião de incautos, leigos ou curiosos dotados de um mínimo de intuição para a filmagem, não iria reverter-se
necessariamente em melhoria do resultado técnico. Antes pelo contrário. É certo que com os novos recursos se
eliminavam barbeiragens mais graves, de visibilidade elementar, mas de certo modo multiplicavam-se os peque-
nos titubeios de fatura próprios da captação inadvertida, como tremidos, desfoques momentâneos e todo tipo de
ingenuidade compositiva nos modos de enquadrar a imagem. Este rebaixamento do padrão técnico se dá mesmo
no melhor caso de habilidade ou cultura técnica do usuário, já que as características físicas da película e do equi-
pamento eram sensivelmente inferiores se comparados aos formatos e tecnologias profissionais. Por exemplo,
não só eventuais riscos ou sujeiras existentes na emulsão da película, assim como a sua própria granulação,
apareceriam amplificados na tela acabando por marcar presença, proporcionando uma textura final que sugere
com certa veemência ao espectador, a cada instante, tratar-se aquilo de um filme projetado. O uso consciente e
mesmo o uso expressivo desta miríade de “defeitos técnicos” típicos do Super-8 torna-se depressa muito rico no
plano estético, graças à sua incorporação à linguagem dos filmes, sobretudo por parte de artistas plásticos que,
na primeira metade dos anos 70 adotam o meio, chegando mesmo a inscrever os seus filmes, em geral, objetos
estranhíssimos, nos festivais que foram se proliferando ao longo da década.
De par com a facilitação técnica e sua apropriação estética mais aguda, o que distingue a atividade supe-
roitista é o caráter marginal de significativa parcela da produção, já no âmbito de sua concepção e feitura, bem
como no de sua difusão e recepção. Poucas ditaduras chegaram ao ponto de fazer um controle mais severo, como
na Espanha, desde o processo de revelação. No Brasil, durante os anos mais duros da repressão política e depois,
no período de abertura, contávamos com a férrea modernização conservadora que se instalava, galvanizando a
cultura, o que garantia ao precário amadorismo do Super-8 um contraponto dissonante e irônico, de que, aliás,
muito realizador se valeu com inteligência. Como para a “imprensa nanica”, os poetas de mimeógrafo, os grupos
teatrais mambembes, tratava-se de subverter as relações de produção da cultura. Como disse o poeta e cineasta
Sérgio Péo, “transformar o objeto de consumo em instrumento de produção”, “usar esse instrumento produzido
e distribuído visando o consumo doméstico das classes médias para criar um movimento”. Clamava de sua colu-
na-tribuna Geleia Geral o poeta tropicalista Torquato Neto nos tempos duros de 1971: “pegue uma câmera e saia
por aí, como é preciso agora (...) documente tudo o que pintar, guarde. Mostre. Isso é possível”. O Super-8 seria
enfim para quem quisesse, como se falava, o melhor modo de cair na real  189. A marginalidade
189 Péo, Sérgio. “O superoito como um instrumento de linguagem”, Revista de Cultura Vozes ano 72 vol. LXXII n°6, agosto 1978, pp.
31-34. Muito lido no início dos 70 em suas crônicas na imprensa carioca, Torquato Neto torna-se num curto tempo de atua-
190
estendia-se à exibição, buscando além da vitrine formidável dos festivais de Super-8, casas de amigo, espaços de
exibição alternativos ou provisórios, articulados, às vezes, aos movimentos sociais e cineclubes.
A década de 70 iniciou-se sob o peso da repressão em seu período mais extremado. Com a violência
do AI-5, desde o final de 1968 agrava-se a censura e a repressão, uma parte importante da produção artística,
passando ao largo da integração no mercado florescente e da negociação de subsídios estatais à “cultura nacio-
nal”, fazia sua apropriação da herança imediata, a tropicalista sobretudo, em formas de linguagem e de produção
que improvisavam caminhos, e definiam suas primeiras manifestações de resistência muito paulatinamente até
meados do decênio. Na segunda metade da década, com a abertura e a proliferação dos festivais, nota-se o cresci-
mento de uma franca politização dos realizadores, sensíveis às mudanças no âmbito do circuito possível e já exis-
tente, ainda que bem precário. Mas o Super-8 está desde o início nesta seara próxima à da poesia de mimeógrafo
e ao happening, como manifestações artísticas que, em seu modo mesmo de constituição, traziam elementos que
dificultavam sua absorção mercadológica ou burocrático-autoritária, driblando a indústria cultural, a Censura e o
regime repressor. Daí a sua diferenciação aguda para com a pornochanchada ou o filme de perfil cultural, assim
como as produções da Embrafilme. Isso não impede, entretanto, que mesmo no Super-8 houvesse quem, sob o
manto do “cinema é cinema, não importa a bitola”, sonhasse com a profissionalização. Não faltou quem tentasse
implementar salas comerciais, exibição televisiva, grandes festivais na trilha kitsch do fausto hollywoodiano,
como foi o caso do Grife em São Paulo, que organizava cursos eficazes e o mais estável e longevo dos festivais
de Super-8. O apagamento das especificidades ligadas à bitola, que por vezes traduzia-se no entendimento dos su-
peroitistas como simples aspirantes a cineasta profissional, era uma forma de apagar também a dimensão política,
tornada ponto cego, denegado. Na visão de seus opositores, como disse o realizador João Lanari sobre o Grife,
almejar “proporções industriais”, “vincular o Super-8 a esse jogo, é participar de maneira total de uma ideologia
reacionária” 190.
À subversão das relações de produção e circulação, correspondia uma subversão de linguagem,
expressa na diversidade das experiências superoitistas. Nos anos 70 já não havia, para além da oposição à
ditadura, mais ou menos surda, um eixo unificador muito análogo à “cultura popular” dos anos 60. Uma distinção
eloquente se daria entre “documentaristas” e “anarco-superoitistas”. E o experimentalismo com certeza não seria
exclusivo do “gênero” Experimental que se encontrava como classificação nos festivais, lado a lado com Ficção,
Documentário e Animação. Experimental pode ser uma categoria mas nunca um gênero. Tais classificações cos-
tumavam ser feitas pelos organizadores de eventos, não raro optando pelo “gênero” Experimental sempre que
tinham maiores dúvidas diante dos filmes recebidos; como na última resposta das questões de múltipla escolha
no vestibular: “nenhuma das alternativas anteriores”. Ora, todo filme experimental é um filme substancialmente
diferente e, por algum motivo, ou sob algum aspecto, um não-filme: busca fazer pensar no que de fato você estaria
vendo. Tinha sua razão portanto o pragmatismo classificatório dos organizadores dos festivais: qualquer dúvida,
“n. a. a.”, nenhuma das alternativas anteriores! Entre os documentaristas porém, dominava uma postura compará-
vel aos “folcloristas do 16 mm” que, num prolongamento das questões pré-tropicalistas, estavam interessados em
temas da cultura popular, o crítico de cinema e superoitista pernambucano Fernando Spencer sendo dentre eles
o maior exemplo. Já na virada para os anos 80, uma variante desta tendência surgiu em João Pessoa (até hoje em
funcionamento no Nudoc, da UFPB) a partir de um ateliê de cinema verdade ministrado pelo próprio Jean Rouch.
ção marginal o prosélito maior do superoitismo no país. Pouco antes do seu suicídio em 1972 realiza, em sua Teresina natal, O
Terror da Vermelha (1972), e atua em outros Super-8 cariocas incluindo o papel título de Nosferato no Brasil (1971), de Ivan
Cardoso. Caçoa do cinemão brasileiro do início da década em alto astral, incluindo inventivamente o Cinema Novo, ao qual chega
a chamar de Zdanovo, evocando o secretário da cultura de Stálin. Veja-se como descreve uma sessão de filmes do jovem Ivan, o
mais celebrado superoitista carioca, em: Torquatália, v.2. (org. Paulo Roberto Pires) Rio: Rocco, 2004, pp. 318-320. Ver ainda a fita
de Eduardo Ades & Marcus Fernando, Torquato Neto, todas as horas do fim (2018), que monta sua música às imagens de épo-
ca além de toda a sua filmografia, e faz jus à estética torquatiana deslocando magnificamente som e imagem ao recriar o popismo
irônico dos materiais.
190 João Lanari Bo, texto no folder da Mostra de Super-8, do Cineclube do CAC, Centro de Artes Cinematográficas, PUC-RJ, 1976.

191
Diferentes e em oposição aos documentaristas, estavam os autodenominados “anarco-superoitistas” (expressão
do recifense Amin Stepple) que consideravam que seu ato político intervinha com a busca libertária por novas
formas de linguagem.
Dedicada ao experimentalismo mais radical e a esses anarquistas cinematográficos organizei junto ao Itaú
Cultural em 2001 a mostra Marginália 70, que resgatou do esquecimento grande parte do experimentalismo
superoitista. Baseia-se sobretudo num grande levantamento que empreendi realizando a minha pesquisa sobre a
história do cinema experimental no país. Constantes na diversidade encontrada, emergem muitos traços que mos-
tram clara marca política dessa experimentação de linguagem. Isto não quer dizer que não tenham se proliferado
nesta bitola filmes despolitizados ou que, sem grande invenção formal, sejam politizados, engajados e mesmo de
cortante intervenção propagandística. De modo análogo se encontra em Super-8 muito filme de animação, docu-
mentário ou ficção perfeitamente convencional, e até bem conservador. Até mesmo entre os filmes catalogados
e premiados nos festivais dentro da categoria Experimental encontramos filmes cuja importância maior está na
comunicação com o público, impacto da mensagem, transgressão no plano dos conteúdos — e não da sua dife-
renciação ou experimentação formal. Poderíamos lembrar aqui a contundência de trabalhos de uma porção de
superoitistas, alguns deles bastante laureados, outros muito disseminados em circuitos alternativos ou de oposi-
ção. Para citar poucos realizadores, destacamos Celso Marconi em Recife, Pedro Aarão de Siqueira em Caruaru,
Claudinê Perina em Campinas. E, segundo depoimentos, também teríamos João Guilherme Barone Reis e Silva,
em Porto Alegre — lugar que veria nos anos 80 a proliferação de um surto de ficção moderna rodada em Super-8.
Também neste decênio de 80, Clovis Molinari Jr. pesquisou no Rio de Janeiro arquivos de filmes Super-8 em
grande parte registrando manifestações políticas daquela década. Já na capital paulista a ocorrência deste engaja-
mento “não-formalista” é das maiores, talvez mais complexa e heterogênea, mas podemos falar assim mesmo de
alguns filmes de Jorge Caron, Flávio Del Carlo, Otoniel Santos Pereira, Moysés Baumstein ou Francisco Conte.
Um princípio bastante recorrente na produção mais radical é a glosa ou o ataque aos monumentos culturais
dispostos no espaço público da cidade. Sempre que se comentam as históricas Jornadas de Salvador, maior evento
do cinema independente no país nos anos 70, reunindo democraticamente os diversos suportes, Pola Ribeiro gosta
de lembrar a fórmula que o seu grupo de superoitistas considerava lapidar: “Os filmes em 35 mm dedicam-se a
construir monumentos; os 16 mm lhes propõem questionamentos; e os Super-8 vêm para jogar merda nos monu-
mentos”. De fato, há algo desta espécie de pulsão antimonumental, num sentido mais abstrato e simbolicamente
abrangente, como traço distintivo e singular do experimentalismo superoitista em sua interação com o espaço da
vida cotidiana em geral e em particular com o espaço público. Falo de monumento aqui, consabido está, como
documento de civilização mas também de barbárie, no sentido pensado por Walter Benjamin  191. Performances
desmistificadoras ou iconoclastas se contracenam com estátuas e prédios importantes, instituídos ou não como
patrimônio histórico: ícones de uma ordem pública são abordados ou fustigados pelo que de impositivo e ina-
ceitável, sob o regime militar, consolidavam agora, mesmo que à revelia do que já exprimiram antes. Para usar
exemplos cariocas, no Explendor do Martírio (1974) de Sérgio Peo um ator agride uma estátua e é, de fato, preso
em cena; nos filmes de Maria do Carmo Secco, Memória (1975), Projeto /Processo /Progresso (1976), Zooló-
gico, Jardim (1976) vemos ostensiva inquietude ou hostilidade dirigidas à situação pública de convívio e sua

deterioração, buscando a memória afetiva e física da cidade; já Relax Místico (1977) de Giorgio Croce e Ragnar
Lagerblad propõe o eclipse que quaisquer monumentalidades diante do descalabro da cena pública captada nas
ruas, num irônico relaxamento iogue, em prática pop/zen de contemporização distanciada.
A desmonumentalização estava ligada a outra tendência bastante evidente em sua carga contestatória aos
padrões da arte estabelecida: a performance, ou o registro pela câmera de um ato performático
rompendo com o comportamento “respeitável” sugerido pela cultura cívica oficial. A performan-
191 Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história” in: Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, op. cit.

192
ce estava seguidamente ligada à contestação da ordem imposta ao espaço público, como na “observação-ação”
proposta por Péo, que quer “usar o espaço físico da rua reavaliando seu funcionamento e introduzindo novas
atitudes”. O Super-8 aproximava-se, nesses momentos, do happening teatral, da pichação e da momentaneidade
da poesia marginal, que se propunham transitórias, imediatas, mais ativas que representativas. Coerente com essa
espécie de ação fílmica direta, a política do corpo e da sexualidade adquiria centralidade nos filmes Super-8. “Era
uma coisa bem política, erótica e política”, segundo o filósofo e poeta Jomard Muniz de Britto, um dos protago-
nistas do tropicalismo no nordeste. Bissexualidade, travestis e desconstruções da imagem burguesa da mulher,
frequentavam a bitola Super-8. Muitos dos filmes têm algo de festa dionisíaca, versão cinematográfica do desbun-
de. Com a forte presença da contracultura nos anos 70, o diálogo do corpo que grita por libertação parece clamar
pela natureza, à qual o corpo deseja retornar. A fruição da relação imediata corpo-espaço, sob o signo da natureza,
como no curitibano Vitrines (1978) de Rui Vezzaro ou no soteropolitano Pó e Mandalas (1977) de Paulo Barata, é
outra das formas de contestação da ordem, ora se aproximando da “curtição” primitivista hippie, ora impostando
um olhar que desdenha ou estranha o advento sisudo da urbe.
Logo no começo da década, a presença do pop, do conceitual e do minimalismo nas artes plásticas nacionais,
e correntes herdeiras imediatas da sólida tradição concretista e neoconcretista, mesclam-se aos últimos gritos do
Cinema Novo e Marginal antes da integração no projeto embrafílmico do “Mercado é Cultura”. Hélio Oiticica,
Antonio Dias, Lygia Pape, Nelson Leirner, Marcello Nitszche e tantos outros artistas trouxeram contribuições
notáveis (desde então bastante esquecidas), construindo obras explosivamente concisas e definitivas. Noutra
modulação desta estética do grito, existem ainda os filmes que, numa certa continuação do cinema marginal,
exploravam a exasperação como forma de “expiar” a repressão, como vemos em certos filmes de Jorge Mourão.
Mas de modo geral, a experimentação superoitista inscreve-se no momento pós-tropicalista, onde a dimensão
política da arte fragmentou-se em experimentos quase sempre aliados a uma espontaneidade radical e ligados a
uma visceralidade existencial que buscava criar momentos de ruptura com a pesada ordem política e de mercado
do “milagre” conduzido pela ditadura militar. A consolidação da TV e do cinemão teriam raros contrapontos no
universo audiovisual, já que as recentes vibrações tropicalistas endossavam — mesmo com sua larga irrisão —
um convívio amistoso e fértil com a indústria cultural. E o Cinema Marginal não foge a esta regra, de maneira
geral. No pouco que a tematizou, apenas o Super-8 opõe-se diametralmente a tudo que tivesse relação ou se re-
ferisse ao universo da TV. Pelo trabalho diferente de sua própria linguagem e temática, desde o início dos anos
70, o experimentalismo superoitista foi no audiovisual brasileiro o polo mais vivo de negação ao que se fazia na
TV, a sua contraposição visceral.

XI. Para uma análise de Agripina é Roma-Manhattan, quase-filme de Oiticica 192

“A alma que não tem


objetivo estabelecido se perde, pois,
como se diz, estar em toda parte
é não estar em lugar nenhum.”

192 O texto da parte XI é versão expandida e modificada de três anteriores: “Agrippina é Roma-Manhattan, um quase-filme de Oiticica”
in: Oiticica: a pureza é um mito. (org. Cauê Alves) Itaú Cultural, São Paulo, abril 2010. “The Resonant Time of Hélio Oiticica Quasi-
-Film” in: Lerner, Jesse; Piazza, Luciano. (orgs.) Ism, Ism, Ism / Ismo, Ismo, Ismo: Experimental Cinema in Latin America. Oakland: Uni-
versity of California Press, 2017. “Agripina é Roma-Manhattan, um belo quase-filme de HO”, Ars vol. 15 nº30, São Paulo, PPGAV
& CAP/ECA-USP, 2017. Sua elaboração teve o apoio do Projeto coordenado pelo Los Angeles Filmforum - Getty Foundation,
“Experimental Media in Latin America”, PST: LA/LA, Pacific Standard Time: Latin America in Los Angeles (2014-2017).
193
Montaigne, 1592. 193

Não faz maior sentido entregar-se a discussões sobre ser ou não ser inacabada a realização de Hélio Oiti-
cica rodada na Wall Street de 1972, levando-se em conta o filme que temos visto desde 1992 em quase todas as
retrospectivas do artista mundo afora, como uma criação experimental concebida a partir da prática superoitista
brasileira daquele início dos anos 70. Consideramos nesta análise a relação do artista com determinada matriz de
experiência, contemplando um diálogo profícuo do filme não só com o cinema anterior de seu país, também sua
cultura, política, arte e literatura, reativadas desde o Século XIX.
Nosso horizonte aqui é o de favorecer trabalhos futuros, na direção sobretudo de análises comparativas
internacionais e brasileiras circunstanciando a importância desta experiência de um realizador em exílio artísti-
co — não apenas nos EUA ou em Nova Iorque mas em Manhattan — num quadro mais geral das manifestações
artísticas e audiovisuais, assim como na história do cinema. Muitos realizadores neste primeiro momento do surto
superoitista no Brasil da pior fase ditatorial praticavam bastante conscientemente a exibição em espaço privado,
casa de amigos, ateliês, galerias ou salas de projeção fora da programação institucional, de trechos de filme em
rolinhos alternados, ao acaso de um ritual espontâneo do encontro, da conversa: espaços cotidianos de resistência
ao status quo na medida do possível, ocupando as beiradas de um espaço quase-público. Alguns montaram e re-
montaram suas filmagens em versões diversas, usando às vezes rolos maiores que os 3 ou 4 minutos do rolinho,
a trilha sonora quase sempre improvisada no ambiente. Um filme da esfera de convívio de Hélio Oiticica, como
o Nosferato no Brasil (1971), de Ivan Cardoso, foi projetado em versões diversas quanto à sua duração e “trilha
sonora”. A ideia de filme acabado neste gênero específico de prática amadora, decerto variando muito caso a caso,
nos obriga a observar parâmetros técnicos, estéticos ou culturais implicados e propositalmente diferentes.
Em perspectiva de crítica imanente, ou seja, de tomar a obra em sua própria medida, a análise da fita procura-
ria sua singularidade artística proporcionada pela experiência estética que dela podemos ter. O desafio do analista
diante de filmes muito singulares é a dificuldade de praticar o ensaio, tentativas de aproximação também elas
devidamente singulares. É diferente da análise fílmica em geral, quando os padrões de gênero cinematográfico,
estilo, modo de produção e circulação, se condizem e permitem o êxito de métodos de procedimento analítico
semelhantes. Filmes radicalmente diferentes, experimentais, de vanguarda ou “de artista” supõem igualmente
uma análise comparativa diferente. Não tem sentido análise comparada sem prévia ou simultânea análise fílmica
das obras singulares, compreendidas em sua singularidade. A comparação aliás é instrumento poderoso na busca
da singularidade de experiências.
Acredito que a análise fílmica tem perdido terreno cada vez mais nas últimas décadas. E não só porque teria
se desviado da sua perspectiva mais crítica, se perdido de seu horizonte mais questionador, interrogando as dife-
rentes obras audiovisuais — mas ainda porque simplesmente começa a desaparecer. Ou ser substituída por outra
coisa que parece mas não é bem o que já se chamou de análise. Análises viraram ora abruptas “interpretações”,
ora “comentários” salpicados de pseudo-erudição, ora “análises” formais de estarrecedora aridez espiritual.
O motivo central dessa transformação me parece social, é histórico e merece estudo. Talvez acusando certa
fadiga de pensar a sério o filme pelo viés mais exigente, talvez o artístico mesmo, desde a vaga industrialista dos
anos 1980-1990, que poderia ser chamada de pós-moderna ou neoliberal, a resistente fórmula do cinema como
simbiose Arte & Indústria não parece mais nos afetar como dantes. O fato intrigante é que a crítica de arte, bem
como a de cinema, não conseguiu analisar obras com a mesma desenvoltura no Brasil desde a ditadura. Coteja-
mentos internacionais sugerem situações bastante comparáveis: da busca de sentido chegamos ao refinamento
193 -Montaigne, Michel de. “Sobre a ociosidade”, Os ensaios, 1, VIII. [1580-1592] (tr. Rosa Freire d’Aguiar) São Paulo: Companhia das
letras (Penguin Clássicos), 2010, p. 49.
194
do consumo, do julgamento circunstanciado fomos ao jogo apreciador, do nuançamento especulativo viemos à
categorização apaziguadora, da interrogação substantiva nos demos à afirmação convencionada, da subversão
nos ativemos à subvenção, do engajamento necessariamente coletivo nos empenhamos a lobistas de si próprio 194.
Comparando-se, hoje em geral no crítico de plantão, e no esforço ensaístico do pesquisador, mais encon-
tramos à guisa de análise poucas linhas de grande platitude e pouca ação crítica, mais comentários, e não raro
apoiados na palavra dos realizadores. O crescimento dos estudos universitários desde então carece de maior agu-
deza crítica ao tomar objetos que fogem do instrumental teórico de sua especialidade, seja cinema ou arte; o que
explicaria a parca fortuna crítica que encontramos de filmes de artista, ou de filmes experimentais. Recorre-se a
alguma teoria social ou filosofia, preferindo-se brandir conceitos prêt-à-porter, com valor de troca no meio acadê-
mico — em vez de analisar o que a obra ela mesma nos proporcionaria de experiência singular, e nos exige como
esforço interpretativo, construção conceitual a ela subordinada. Admira-nos ver hoje em dia o quanto nos textos
universitários brilham muito mais que as obras os conceitos; os quais deveriam aliás supostamente elucidá-las,
iluminá-las.
Sabemos que épocas de crise como a nossa requerem uma aflitiva busca de novos conceitos perante os fatos
inexplicados pelas armações conceituais caducadas. Entretanto, inextricável ao analista que é insensível à inten-
sidade singular da obra, por intermédio do positivismo da sua nova escritura fetichista e seus conceitos de grife,
as obras verdadeiras permanecem interrogando, como que arremedando e zombando remotamente a desfaçatez
do brilho pedante destas “aproximações críticas”. A experiência fruidora singular, como noção central do debate
estético, talvez viva um eclipse progressivo na escrita “ensaística” contemporânea. Lidamos hoje arrogantemente
com os filmes analisados, impondo-lhes a luz de conceitos genéricos que ofuscam sua força singular. Se são de
fato bons filmes teriam no fundo continuado, como continuam, insubmissos à presepada rotuladora dos acadê-
micos: as boas obras persistirão nos desafiando e aos nossos conceitos, dado que são vocacionalmente realizadas
para surpreendê-los em sua pretensão, a menos que sejam obras de simples ilustração do já conceituado, assim
tendendo ao academicismo artístico.
Há uma história a ser escrita sobre a adesão dos artistas brasileiros ao uso do cinema, com câmeras leves e
acessíveis, muito ao modo “amadorístico”, produções concentradas bem no período que corresponde ao agrava-
mento da ditadura militar depois do AI-5, em 1968. A tensão da pesquisa estética desse experimentalismo se dá
clara e forçosamente em espaço por vezes evasivo, outras vezes recluso, e, por fim, numa prática de corpo a corpo
com o espaço público, algo enviesada, irônica, características que parecem encontrar-se em filmes e vídeos de
diferentes poetas, artistas plásticos e uma geração nova de cineastas radicais.
Além da proximidade verificável entre a experimentação de cineastas e de artistas plásticos, um paralelo
pertinente contemplaria ainda o cotejo deste cinema com a jovem produção poética dos anos 1970, uma mesma
atração pelo aqui-e-agora vividos na circulação cotidiana, numa diversificada inclinação localista que se revela
ora cifrada e sutil, ora explosiva. Tanto romântica como realista, se recuamos mais (coisa rara na pesquisa críti-
ca), seu discurso fílmico-poético pode nos fazer pensar no romantismo de um remoto passado literário do país,
com mais de um século; e no realismo, implicar certas tradições regionalistas radicalizadas pelo nosso maior
arrojo moderno na música, mesmo no cinema. Ou, como já foi dito, na recente tradição poética e visual concre-
ta, neoconcreta, pop, tropicalista, contracultural… Poderiam (ou não) fazer em sua marginalidade setentista a
contrapartida mais ou menos consciente àqueles deslocamentos hegemônicos da modernização conservadora,
expressa agora a cores, em cada domicílio, na telinha da TV. Esta provocante confluência tripla de poetas, artistas
e a inquietude jovial empunhando câmeras reverbera e precipita um novo olhar, em comparável inchaço do pre-
sente, levando à raia da consciência física de corpos, espaço e também do meio próprio de expressão, inflamando
194 Rainer Rochlitz tenta refletir sobre este período de transformação histórica da crítica em Subversion et subvention: Art contemporain et ar-
gumentation esthétique. Paris : Gallimard, 1994. É instrutivo lermos em contraponto Roberto Schwarz, “Nunca fomos tão engajados”
[1994], op. cit.
195
auto-reflexividades.
As novas gerações de cineastas, sob a égide mais ou menos reconhecida do manifesto de Glauber Rocha, “Es-
tética da Fome” (1965), ou da palavra de ordem dos inícios do Cinema Novo, “Uma ideia na cabeça e uma câmara
na mão”, se derivariam na década de 1970 em seus primeiros Super-8 ou 16mm para padrões estéticos diferentes,
incluindo alguma voluntária informalidade. Enquanto já os artistas em seus filmes frequentemente surpreendiam
parecendo “profissionais”, seja pela consciência do domínio cênico das imagens, os enquadres da câmara, uso da
decupagem — porque não dizer, com inesperada facilidade frequentavam os efeitos de mise en scène ou da forma
fílmica. É o caso de quase todos os artistas ou poetas, Marcello Nitsche, Lygia Pape, Torquato Neto, Anna Maria
Maiolino, Nelson Leirner, Ismênia Coaracy, Jomard Muniz de Britto, Analívia Cordeiro. É verdade que de fato os
artistas se dividiam claramente nesta direção quando queriam; e, quando não, mimetizavam não o bom cinema,
mas ao contrário, uma informalidade bastante amadora: basta lembrar dos filmes de Artur Barrio. É claro que se
mimetizavam procedimentos do mais espontâneo amadorismo convencional mas com um controle formal dele;
por exemplo nota-se a conjugação dessa trivialidade amadorística com uma sensibilidade do timing cênico nada
banal, ou melhor, de uma banalidade um tanto especial. Veja-se o Super-8 Ritual (1971), ou o Abertura I (1972)
de Artur Barrio, câmara de Renô, que parece compor os movimentos espontâneos com grande exatidão ao filmar.
Em gestos alegres vem o próprio Barrio, uma coca-cola litro na mão é aberta e servida como champanhe, em per-
feita ambiguidade entre a comemoração frugalmente solene e o tom de uma aberta caçoada bêbada — o líquido
ferruginoso aspergido pelo gramado abaixo inocula alvuras de um monte de faixas de papel higiênico jogadas há
pouco como serpentinas (metáfora da película se expondo à luz fervilhante do evento?). Conviva da efeméride,
nosso olhar é convidado a brindar como se ali estivesse: obra de gestos fortuitos porém precisamente construídos.
A primeira vez que vi Agrippina é Roma-Manhattan (1972), de Hélio Oiticica (1937-1980), não sabia o que
estava vendo. Entrei ao acaso numa sessão e ele já estava passando, eram curtas do Cinema Marginal brasileiro
numa mostra no Jeu de Paume, Paris, em 1992. Só soube que filme era depois, revendo a sessão com o programa
em mãos. Isso tinha me deixado uns dias curioso com aquela lembrança, tanto por ignorar seu nome, ou do rea-
lizador, mas sobretudo pela evolução daquelas figuras meio fantasiadas pelas ruas de Nova York, indo de postura
tão rígida e estacada quanto os prédios ao redor, até à mais livre e solta, que a inquietude da câmera dispersou pelo
ar. Não sabia tampouco que estava diante da maior mostra jamais realizada sobre o Cinema Marginal, do qual eu
já era fã e bom conhecedor desde os anos 70, quando editava a revista Cine-Olho. Pude ver naquele panorama
de fitas raras, mesmo para um ex-cineclubista “especializado” como eu, vários filmes brasileiros inacessíveis, ou
ignorados, para sucessivas gerações, em consequência tanto do período repressivo, ditatorial (1964-1985), quan-
to do surto mercadológico próprio dos anos 1980; e claro, além da proverbial relação dificultosa do país com a
memória.
Mas fiquei algum tempo me perguntando o que seria aquilo que vi, aguardando os impressos semanais do
programa de filmes no quadro daquela que foi a primeira retrospectiva de um artista brasileiro no exterior, Hélio
Oiticica  195, sem suspeitar que fosse justamente o único filme dele, do qual se tinha incerta notícia. Foi talvez a
primeira projeção pública daquele ignoradíssimo Super-8 feito em Nova York havia vinte anos. Graças, segundo
Bressane, ao boicote internacional sistemático do Cinema Novo ao Marginal, liderado pelo “tenebroso xerife”
Glauber Rocha, a grande maioria das fitas dessa mostra parisiense igualmente nunca fora vista fora do país; boa
parte delas nem mesmo lá. A verdade é que, temerosos de confiar cópias únicas ao precário circuito alternativo
nacional, vários realizadores vieram a abrir exceção para o endereço da Place de la Concorde.
195 Além dos Parangolés, Metaesquemas, Ninhos e Cosmococas, instalações de slides do Quase-Cinema, programou-se uma imensa
mostra de Cinema Marginal, organizada pelos cineastas Neville d’Almeida e Júlio Bressane, sob o comando da curadora Catheri-
ne David, sem no entanto integrar seu catálogo: Hélio Oiticica. Paris: Galerie Nationale du Jeu de Paume, 1992. A pedido de dois
de seus poucos frequentadores, Denis Chevalier e Jean-Marc Manach, organizei um dossiê sobre a mostra: “Brésil: Les ombres
oubliées d’un cinéma inassouvi”, L’Armateur n°3, Paris, sep.-oct. 1992.

196
Uma vez que muitos brasileiros passaram pelos EUA nos anos 1970, o que eu buscava rememorando aquele
filme não-identificado era, talvez como tentaria algum perito, intuir meios para identificar o estilo daquela ignota
mise en scène, tão tensionada assim entre espontaneidade e rigor compositivo. Mas para quem conhece os filmes
do Ciclo Marginal, por exemplo Rogério Sganzerla, Neville d’Almeida, Luiz Rosemberg Filho, essa obra, mesmo
inesperada, não deixa muita dúvida sobre seu parentesco no plano do estilo ou atmosfera. A câmera é talvez um
pouco discrepante da soltura desenvolta dessa tradição, discrepa apenas naquilo que sugerirá estruturações maio-
res ou mais sistemáticas do olhar. Neste sentido particular de sistema, talvez só possa ser aproximada de certos
momentos do experimentalismo superoitista — Lygia Pape, Marcello Nitsche, Mario Cravo Neto, Ruy Vezzaro,
Paulo Bruscky — ou então antes, de Glauber Rocha e do Júlio Bressane de O anjo nasceu (1969), Cuidado Ma-
dame (1970) ou O Rei do Baralho (1973).

O que quero dizer aqui é que tive a impressão, com o olhar treinado de cinéfilo ou pretenso crítico, de que
aquilo poderia ser perfeitamente um curta do Neville, como do Bressane; ou algum inopinado superoitista metido
a besta. Tratava-se de um jeito de filmar conhecido, mise en scène manjada, embora de um especial frescor, e
estruturação bem curiosa, talvez aí a sua mais desafiadora singularidade. Com notável força mínima de evidência,
seu minimalismo muito particular, aquela espacialidade unitária de Agripina é Roma-Manhattan nos vai configurar
em três partes distintas, e cada uma com sua própria coordenada de tempo, um tríptico da onipresente prota-
gonista. Em apenas dezesseis minutos silenciosos desenvolve variantes derivadas do “Inferno de Wall Street”,
poema escrito cem anos antes por Sousândrade (1832-1902), poeta maranhense do qual Oiticica retira o motivo,
inscrito num de seus versos, “Agrippina é Roma-Manhattan”. Inferno de Wall Street é passagem famosa do poe-
ma romântico (tido ainda como pré-simbolista e proto-modernista) em que o Guesa Errante, ou Sem Lar, figura
lendária dos índios colombianos “muíscas” (dos quais origina-se também da lenda de Eldorado), menino raptado
e destinado à peregrinação e ao sacrifício em tributo a Bochica, o deus do sol, faz “um périplo transcontinental”,
como um Candide selvagem do Século XIX 196. Work in progress de Sousândrade, O Guesa foi escrito entre 1868
e 1902, tendo o poeta ele próprio peregrinado pelo seu país e o mundo, e vivido em Nova York durante a década
de 70, como aliás Oiticica, passado um século. Não há na fita propriamente um enredo em cada um dos três blocos
de ação, mas o pouco que acontece seria da ordem de uma imagem movente em tableaux dotados de uma só ação
em cada parte, e uma possível ação proposta para o conjunto do tríptico, esta sim, ainda mais enigmática que cada
uma das três. Oiticica recusava o rótulo de artista plástico, e podemos verificar o que se mobiliza de um conjunto
aberto de diferentes artes em cada obra. Tentaremos mostrar o quanto a parte do cinema participa vivamente de
Agripina, para além da mudez das diferentes críticas (arte, cinema, literatura etc.), já que até hoje nenhuma chegou
a ingressar no terreno da análise fílmica, permanecendo só no comentário simpático e/ou metafísico, sob a ale-
gação pouco sustentável de que se trataria de uma obra inconclusa — ao lado, diga-se, de um conjunto maior de
obras inconclusas analisadas. Sua presença incontornável em inúmeras mostras do artista nas últimas décadas —
projeção contínua em loopings, mais parecendo takes reunidos ao acaso — indica que a fita vem silenciosamente
aludindo a alguma gestação ignorada de sua estada nova-iorquina.
Figura unificadora destes míticos centros imperiais, a Agrippina histórica, mãe de Nero, tiranizadora de
tiranos, femme fatale em mais de um sentido, no 1º movimento desse tríptico circula como alma penada por uma
Roma transfigurada na paisagem neoclássica de Wall Street, como em visitação metafísica à Bolsa de Valores. No
2º movimento, Agrippina saltaria dos tempos romanos para os daquela Manhattan contemporânea. Se na 1ª parte
sua figura solene e algo funesta, em face daqueles paredões abissais, se deixava conduzir por um tipo latino de
discreto garbo (mero chofer, ou seria Sousândrade mesmo, em cicerone; talvez seu personagem, o Guesa?), na 2ª
196 -Ver: Sousândrade, Joaquim de. “Canto Décimo (1873-188...)”, O Guesa. (pref. Augusto de Campos) São Paulo: Annablume (Sêlo
Demônio Negro), 2009, pp. 202-288. “The Wall Street Inferno (from O Guesa Errante)” (trad. Robert E. Brown) in: Poems for the
millenium — The University of California Book of Romantic & Postromantic Poetry, vol. 3. Berkeley: University of California Press, 2009,
pp. 655-663.

197
parte ela circulará desnorteada. Vestida como a baliza que, em festejos públicos, guia o desfile pelas ruas à frente
da banda, aqui ao contrário, num desalento nada acrobático, extravia-se num mesmo ponto, vagueando pelo cru-
zamento — dir-se-ia que perdeu de vista os seguidores. Perdida, como se esperasse acasos nesse zanzar, um ir e
vir horizontal na calçada, pareceria mesmo fazer o trottoir na esquina da metrópole: seu corpo deixa o espectro
tirânico original para se deixar tiranizar pela interação de uma lógica, por assim dizer, desenhada na circulação
urbana ali designada.
Da anterior eminência tirânica à banalidade do trottoir, se translada a blonde de Roma a Manhattan. Estamos
ainda, em todo caso, no Império. No império americano sempre, se tomamos a encenação hierática do começo
como momento igualmente pop, num sentido ampliado para a indústria hollywoodiana, a blonde star de cinema,
“Vênus vulgar”, a mulher reificada como figura máxima dos mass media, o fator de sedução de que fala Haroldo
de Campos, então amigo e interlocutor de HO, ao versificar Marilyn Monroe no seu work in progress, já editado
em parte nos anos 60, Galáxias. O poeta concretista tomava a figura de Marilyn, igualmente de grande presença
no romance PanAmérica (1967) de José Agrippino de Paula, relato pop lembrado como precursor do Tropica-
lismo. Neste romance plástico de Agrippino — ressonância inevitável com o argumento de HO — um narrador
vive os EUA de Hollywood como se numa superação onírica do fetiche que acomete a população global; sinto-
mático, em obra coetânea e constelada não só a este trabalho de Haroldo como, também naquele mesmo ano, ao
lançamento de Terra em Transe, de Glauber Rocha, para não falarmos ainda, por outro viés, d’A sociedade do
espetáculo, de Guy Debord — obras de 1967 com as quais configuraria fortes relações de contraste substancial.
Marilyn mesmo possui aparições notáveis nas calçadas de Manhattan para além das saias alçadas no vento
soprado pelo respiradouro do metrô. Já em Páginas da vida (O. Henry’s Full House, 1952) ela faz uma ponta
brilhante como uma prostituta na esquina, recatadamente esfuziante ao acolher, como se a um grande conhecido,
a abordagem pretensiosa dum vagabundo (Charles Laughton), sob o olhar do guarda em patrulha. A figura metro-
politana mítica e mundana na tradição dramática ocidental de personagens-prostituta exprime o caráter daquela
vida subjugando-se à função de troca mercadológica em metáfora crítica da vida moderna. Vinte anos antes (não
seria vinte anos depois?) dessa Vênus Vulgar feita por Cristiny Nazareth, que encontramos na Wall Street de
1972, esta foi precedida por dois ou três anos pelas de Helena Ignez, que criou figuras bastante aproximáveis em
filmes de Rogério Sganzerla, Mulher de Todos (1969), e sobretudo Copacabana mon amour (1970). Nesse último,
a blonde-ícone do moderno cinema de vanguarda brasileiro faz uma profissional do trottoir em esquinas de
Copacabana. O ideal feminino nestas vênus de celulóide, entre o sublime e o vulgar, o mito e o real, o empostado
e o espontâneo, o ideal e o sensual, o transcendido e o mundano, de algum modo se faz presente nesta Agripina-
-Cristiny de Oiticica. Sua matriz mais próxima vem das “ivamps” de Ivan Cardoso, que desde Nosferato no Bra-
sil (1971) encarnavam essa dualidade de garotas da turminha do convívio carioca e pin-ups auráticas da ribalta 197,

que Hélio Oiticica relê por sua óptica de arte-vida.


Essa blonde Agripina-Cristiny do nosso filme-tríptico, na 3ª parte se eclipsará. Mesmo assim talvez ainda
nos guie, magnetize nosso olhar. É como se estivéssemos diante de um seu possível vislumbre seu, sem que a
vislumbrássemos no entanto? Sua tirania não mais precisaria corporificar-se, cedendo lugar a um jogo de dados,
porventura metafórico do circunstante espírito especulativo da Stock Exchange, atividade local, a potência finan-
ceira transfigurada em seu caráter essencial, nova síntese corporificada da tiranizadora de tiranos? Para tanto, a
paisagem vertical de Wall Street é trabalhada num entrecruzar totêmico que afirma uma nova ordem cosmológica
particular. As circunvoluções da câmera não deixam de se articular com a verticalidade monumental dos prédios
— o Flatiron Building raramente se afigurou tão fálico. Os dados são jogados a céu aberto, sobre chapas de aço
de algum canteiro de obras (subterrâneo quiçá, e como tal apenas alusão no mais típico pleinairisme urbanoide
superoitista) — no qual os jogadores não parecem exatamente trabalhadores. Com o aspecto de migrantes latinos,
197 Cf.: Machado Jr., Rubens; Campos, Marina da Costa. “Protagonismos experimentais femininos no surto superoitista dos anos

198
como boa parte da mão de obra nova-iorquina, mais parecem artistas que operários.
Modulam-se diferentemente o tom, o compasso e a temporalidade das três cenas. O timing da primeira cena
parece apresentar-nos os personagens tanto quanto a arquitetura de Manhattan. Erguem-se de dentro de um auto-
móvel, o condutor abre a porta, peremptório. Acompanhará Agripina, que pouco antes alinhava-se aos arranha-
-céus, percorridos de modo comparável aos corpos em movimentos panorâmicos verticais da câmera, enquadres
fechados erigindo uma distinção algo totêmica das figuras. Esse enxergar por verticais de corpo e edifícios vai
estabelecendo uma matriz de visibilidade importante ao longo do 1º Bloco, não indiferente para a apreciação dos
Blocos seguintes. Uma primeira consequência desse olhar seria certa distinção mais isolada dos personagens,
que resistiria também nos restantes Blocos. Há nesta sugestiva matriz um componente conjecturável, hipotético
de Nova York. Os primeiros movimentos do filme alternam-se em verticais entre Agripina e arranha-céus, co-
meçando pela igreja que fecha em arremate a perspectiva da rua da parede, Wall Street, pela torre neogótica da
Trinity Church, Catedral da Trindade, das igrejas mais antigas e ricas dos EUA, ponto culminante de Manhattan
até meados do Século XIX, aqui massa fuliginosa integrada à refulgente massa de concreto nova-iorquina. Esta
simbiose de torres modernas com a celeste vocação ascensional da torre gótica, o histórico arquétipo da arquitetu-
ra de elevação vertical, resquício aqui pontuado na paisagem quase como ruína ao pé dos arranha-céus, sementes
caducas de um porvir herético, topos que se dissemina em imaginário mais amplo de Nova York, perpassando o
cinema. Este topos metagótico de Manhattan retomou-se nas caricatas igrejinhas escuras e acanhadas junto aos
calcanhares dos sobrepujantes skyscrapers cenográficos, paisagem art déco do Metropolis (1926), de Fritz Lang,
que concebera sua ficção após visita à cidade.
Nos caminhos verticais do olhar pedestre, Hélio desenha o skyline abissal da metrópole, cujas ruas demar-
cam-se desde o alto por vertiginosas nesgas de céu, rasgadas em agudos triângulos invertidos, imprimindo recor-
tes de ofuscante grafismo, fazendo pender pontiagudas ao chão como estalagmites diáfanas, largos relâmpagos
paralisados. Irmanada ao abismo luminoso surge não mais seu inverso escuro, o contratipo da torre neogótica,
mas Agripina ereta, quase estática, percorrida pela câmera como um recorte de forma humana que responde aos
recortes e contra-recortes do monumental que espera integrar — a Wall Street que percorrerá entre abismada
e impávida, hierática. Compenetrada de alguma transcendência move-se, como entidade solene e majestática,
conduzindo-se por escadarias. A força gráfica da cenografia, calcada nas fachadas neoclássicas — em lugar de
palácios e panteões romanos, edificações bancárias assemelhadas — é construída pela câmera que percorre con-
junções de arquitraves e capitéis, severas vibrações no paralelismo horizontal de degraus, conjugados às ranhuras
verticais no fuste das colunas. Tais enquadres conduzem nosso olhar pela força tectônica das estruturas, afirma-
tivas duma ordem ancestral reativada. Não há como não lembrar alguma sugestão remota de figurino hollywoo-
diano, populares filmes históricos italianos, chanchada carioca ou desfile carnavalesco. Rediviva, um século
depois, Agripina é Roma-Manhattan. E algo mais: como corpos sem vida, ela e seu condutor figuram algo que
aquele Espaço Público dominado por atividade financeira parece secretamente almejar como se tais corpos fos-
sem mesmo as almas inusitadas porém legítimas deste mundo pétreo. O cavalheiro latino que a acompanha nada
tem dos Césares que ela encantou avassaladoramente. Nem de Nero, tirano-mor incendiário de Roma, que, além
de filho, foi seu projeto “demoníaco” de poder — e finalmente assassino matricida, criatura superando o criador,
sua Optima mater: “a melhor mãe”, como ele a chamava. Nem súdito nem senhor, esse acompanhante de Agripi-
na timbra aqui mais como um cândido inca, ou atual imigração contingente ao Gigante do Norte, conveniente e
discretíssimo migrante, novos guesas errantes restituídos desde o poema visionário.
As figuras aqui delineadas por Hélio, no que toca ao aspecto arte-vida, central em seu percurso, a imersão no
ambiente norte-americano, seus projetos recentes, o lugar do cinema entre eles, fazem-nos repensar a inscrição
deste filme num arco pouco linear, que Celso Favaretto expôs em cada fase desde o concretismo, o caminho que
1970” in: Holanda, Karla; Tedesco, Marina. (orgs.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017.
199
leva o artista da bidimensionalidade ao salto no espaço 198. Rodrigo Naves observa entretanto naquela espaciali-
zação crescente tendência progressiva à “intimidade do mundo ou do corpo” em “dinâmica formal introvertida”,
interiorização problemática dum “sensorialismo radical”, quando seus contemporâneos voltavam-se ao embate,
estranhamento com o espaço público  199; essa paradoxal “supressão de toda alteridade” referia-se, claro, ao HO
pré-NY. O crítico sugere-nos ainda compreender sua progressão arte-vida enquanto resposta histórica, mais de
viés político que estético 200.
No quadro de figuras do filme, seus atores-personagem implicam repercussão simbólica: Cristiny Nazareth 201
(Agripina) era uma das “ivamps” dos Super-8 de Ivan Cardoso, a série Quotidianas Kodak (Rio, 1970-1975), a
primeira presa de Nosferato no Brasil (1971), e logo primeira vampira, vítima-vitimadora em ritmo de “terrir”,
ironia de Ivan reativando a Chanchada carioca em tempo de trevas; o paraibano Antonio Dias (o jogador de
óculos), artista de projeção comparável à de Hélio, pioneiro do pop no Brasil e autor da série em Super-8 The
Illustration of Art – I-X (1970-1980); e Mario Montez (o outro jogador), nome artístico do porto-riquenho Rene
Rivera, criatura do underground local, mítico travestimento performático da homônima atriz dominicana atuante
em Hollywood, alcunhada “O Ciclone Caribenho” e “A Rainha do Technicolor” 202.
Sganzerla e Bressane, lembramos, assim como Neville, Miguel Rio Branco e Jorge Mourão, rodaram também
alguns títulos em NY nessa época 203; quando a barra pesou, não foi só para a esquerda radical, uma diáspora de
artistas aconteceu. Além do cenário nova-iorquino de Agripina algo da sua mise en scène, da fisionomia e ges-
tualidade presentes naquelas figuras que vemos, não destoa desse continuum formidável de situações que esses
poucos realizadores brasileiros legaram ao contemporâneo imaginário nacional. São ademais figuras de um es-
pectro latino carregado, a começar dos traços nordestinos, tanto do Cavalheiro que no início acompanha Agripina
(David Starfish seria mesmo o seu nome?), como no fim o Antonio Dias. A presença latina se potencializa com
Mario Montez perfazendo um leque de alteridades nova-iorquinas. Também opera uma simbiose da participa-
ção masculina-feminina da personagem título, espécie de síntese escancarada desabrochando atributos comple-
mentares dessas diversas aparições latinas. A este lado moreno se junta a sobranceira loura de Cristiny. Aliás, o
que fazem mesmo esses tipos tão marcados neste cenário nova-iorquino? Para cada bloco de ação mudam não
apenas os personagens presentes mas o estatuto da ação e os parâmetros da mise en scène. Estamos sempre em
Manhattan, a céu aberto, as ruas de Wall Street. A dupla latina Dias & Montez, o Artista e a Travesti, personagens
do último bloco, não aparecem antes. O mesmo acontece com o Cavalheiro latino do primeiro bloco, que não
ressurge. Cristiny, ao contrário, domina o primeiro e o segundo bloco, ausentando-se do último, deixando-o aos
artistas latinos. São todos tipos curiosos, dominam a cena sem manifestar qualquer curiosidade com o entorno,
com o qual não interagem, imbuídos de sua mínima atividade, parecem nada buscar do convívio dos poucos
circunstantes ou de seus eventuais afazeres. A exceção fica por conta da postura de Agripina no segundo bloco,
solitária e altiva, perambula por uma larga esquina sugerindo alguma disponibilidade, num ir e vir ligeiramente
sôfrego ao vento.
Tendo estudado cinema a sério na estada nova-iorquina, por esta mesma época Hélio andou dizendo que
198 A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
199 A forma difícil. São Paulo: Ática, 1996, pp. 243-246.
200 O vento e o moinho. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p. 208.
201 Produzirá e dirigirá nos EUA o filme A Visit to Eros Volusia (1980) sobre a célebre dançarina moderna e coreógrafa carioca,
presença morena que brilha em pontas nos filmes tardios de Rogério Sganzerla, retiradas dos originais filmados por Orson Welles
no Brasil.
202 Mario atuou em várias peças, performances e filmes do underground nova-iorquino realizados desde os anos 1960 por Andy
Warhol e Jack Smith. Maria estrelou fitas como Venus de la Selva (1941), La Salvaje Blanca (1943), La Reina Cobra (1944),
La Reina del Nilo (1945), Atlântida, O Continente Perdido (1949), La Donna del Corsario (1951), City of Violence
(1951).
203 Ver: Duarte, Theo Costa. “Lágrima-Pantera, a míssil: cinema Subterrânia”, Ars v.15 nº30, São Paulo, PPGAV/ECA-USP, 2017, pp.
181-205. Jaremtchuk, Dária Gorete. « Horizon de l’exode : l’insertion d’artiste brésilien à New York », Brésil(s). Sciences humaines et
sociales, nº5 – Le coup d’État militaire 50 ans après. Paris, mai 2014, pp. 33-53.

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as virtudes da montagem não lhe interessavam. Diremos no entanto que o seu tríptico articula-se por montagem.
Não tanto entre planos mas entre blocos. Há vínculo entre os três blocos de ação, se os rememoramos em seus ele-
mentos de unidade própria, delineando diálogo fundamental das sínteses formais de cada um: o sentido resultante
do tríptico muito se conjugaria de suas similitudes e diferenças. O modo pelo qual se evitam cortes e decupagem
em favor do plano longo, composto, articulado a movimentos de câmera, indicam afinidade não só com o supe-
roitismo experimental, mas o bazinismo extremado da produtora Belair de Bressane, Sganzerla e Helena Ignez,
o experimental e o moderno dos Marginais, como também há proximidades com boa parte dos cinemanovistas.
Em filmes de Bressane como O anjo nasceu (1969) e O Rei do Baralho (1973) se desenvolve uma sintaxe que foi
pensada numa primeira recepção como montagem não entre planos mas entre sequências (ou plano-sequências),
como se elas fossem concebidas para se associar enquanto cartas de um jogo de baralho, em liberdade paratática,
um pouco no sentido proposto por Theodor Adorno 204.
O Cinema Novo, epicentro estético no quadro da cinematografia brasileira, traz com desígnio vanguardista a
radicalidade do modernismo que havia transformado a literatura, música e artes plásticas desde 1922. O teatro e
a arquitetura modernizam-se duas ou três décadas depois, juntando-se em seguida a canção popular, com a bossa
nova, só depois o cinema, no início dos anos 1960. Por dois decênios pelo menos, fortes reverberações até hoje,
a invenção de formas cinematográficas no país liga-se ou confronta-se com este movimento, que teve na Estética
da Fome seu manifesto principal. Três ou quatro fases marcaram seu desenvolvimento estético, sua relação com
a sociedade: o Golpe de 64, seu recrudescimento repressivo no final de 1968, e a lenta abertura política a partir
de meados dos anos 1970. O pós-68 dos cinemanovistas cinde-se, tenta combinar duas tendências principais com
a proposta Mercado é Cultura, justificando o apoio à estatal Embrafilme, e Estética do Sonho (1971), em que
Glauber atualiza e tenta contemplar sobrevidas daquele radicalismo dentro das adversidades repressivas, exílio e
limites da via estatal, dialogando com o tropicalismo (Buñuel no México inicia para Glauber o cinema tropica-
lista), surrealismo (pensemos também no manifesto Breton-Trotski), contracultura e estéticas tardo-sessentistas.
O pós-68 cinemanovista fermenta ainda outra dissidência crítica, experimental e vanguardista, chamada depois
Cinema Marginal, confundido às vezes com o movimento tropicalista, seu estrondo artístico, musical e teatral
em eclosão simultânea. O superoitismo experimental começa em 1970 com boa participação de artistas plásticos,
chegando com vitalidade aos inícios da década seguinte, em multiplicidade estética dialogante com tradições
diversas, entretanto mais aproximável ao cinema marginal e às estéticas da fome e do sonho.
O singular em Agripina se constrói pelo timing entre corpos e espaço. No contraste entre a matriz vertical
dominante nos movimentos da câmera no 1º Bloco, e a horizontal do 2º Bloco, levando-nos de personagem hierá-
tico a mundano, do mítico ao ocasional, de espírito pétreo a presença carnal, da transcendência ao acaso, de Roma
a Manhattan. Nesse diferir, a ressonância do termo “bloco” com seu sentido próprio dos desfiles de Carnaval não
parece aqui destoar, se pensamos na liberdade ou na autonomia de funcionamento dos grupos de foliões entre
si. Cada Bloco de Agripina não configuraria exatamente uma síntese, embora algo de sintético traga, seria mais
uma qualidade do esquema. Mais que isso, um esquema problemático, espécie de metaesquema que se reinventa
distante do concretismo originário. Essa quase forma, em paradoxal coagulação de forma acabada, metaesque-
ma invertido, pós-neoconcreto, ao figurar as coisas do mundo, observáveis e constituídas no real, trabalha com
Blocos articulantes gerando outra unidade, apresentando relações dialéticas e processos de outro equilíbrio. O
tríptico reconfigura seus elementos levando-os “até ao seu oposto e induz o retorno à sua configuração inicial,
estabelecendo um ciclo sem fim” 205.
No caráter desse metaesquema construído em tableaux moventes se revelam apenas alusões a algo, não
204 Cf.: Adorno, T. W. “Parataxis – a lírica tardia de Hölderlin”, Notas de literatura. Rio: Tempo Brasileiro, 1973. pp. 73-122. Machado
Jr., R. “Observação sobre O anjo nasceu”, Cine-Olho n°5/6, São Paulo, 1979, pp. 52-53. Mesquita, Fernando. “A solidão lunar”,
ibidem, pp. 62-74.
205 Conduru, Roberto. “Metaesquema, metaforma, metaobra”, 17° Encontro Nacional da ANPAP, 2008, Florianópolis, p. 687.
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seu convencional desenvolver-se narrativo; um arremedo determinado da cena, não sua trama desenvolvida: só
interessará certo conjugar-se de um momento da ação, seu aceno de primeiro esboço, enredo que se telegrafa por
pinceladas iniciais. É algo que já se patenteava, embora distintamente, nas Quotidianas Kodak de Ivan Cardoso,
aliás uma constante rastreável em todo o superoitismo, porventura uma de suas características mais amadurecidas
e diáfanas — a arte do arremedo como alusão. Sua origem remonta à notória inclinação no cinema nacional ciente
de seus limites, o carioca em particular, a tendência ao pragmatismo e à irrisão, de que a Chanchada é desde os
anos 30 a principal inventora, como vimos; pelo menos até sua reinterpretação pel’O bandido da luz vermelha
(1968). Nessa tradição falar em arremedo supõe incorporar à elaboração artística mesmo o sentido mais pejorati-
vo, seja nos necessários filmecos de que falam Glauber e Sganzerla, feios e pobres mas ricos esteticamente; seja
pelo protominimalismo modernista do telegráfico e do telefonema de Oswald de Andrade; seja no viés identitário
da preguiça explorado sobretudo na literatura, em Macunaíma, na figura do caipira que lhe antecede e sobrevive.
O arremedo esquemático de Hélio mobilizaria com rigor construtivo um inventário de formas dispersas em larga
gestação histórica na cultura brasileira.
Modelos antigos imbricam-se na cidade moderna, a pólis grega e a civitas romana: conceito dinâmico de
cidade, a Roma mobilis expandiu-se almejando concórdia estratégica entre diferentes, que se pactuam na cidade
por um futuro, sem as matrizes étnicas da primeira, que faz pactuar pelo passado helênico  206. Esta NY de HO,
como moderna pólis romana, se baliza pela escritura de uma câmera. Assim como os desígnios expressos nos
corpos, digamos que as solicitações gestálticas presentes no espaço urbano implicam coordenadas gestuais do
nosso olhar, incorporadas no movimento da câmera, dotando o filme de coreografia própria. Principiamos pela
loquacidade visual das varreduras totêmicas, a verticalidade do olhar solicitada no 1º Bloco, em Roma — onde
originalmente verticalidades serviam para se horizontalizarem espirais narrativas, Coluna de Trajano. Impõe-se
depois, no 2º Bloco, o deslocamento horizontal do passeio público, liberdade do ir-e-vir em mesmo nível, fun-
dante da metrópole moderna, vertida aqui numa amarra quimérica de Manhattan. O acúmulo dos dois sistemas de
registro até aqui dominantes extrapola-se, diversifica-se reativamente no 3º Bloco, numa arrematada simbiose. A
verticalidade sucedida pela horizontalidade do olhar acumulou-se em filigrana num quase sinal-da-cruz, já con-
figurado em meio ao 2º Bloco, quando alternam-se por instantes a dominante horizontal por novas verticais que
religam-nos espacialmente à Manhattan específica. Forma mais sintética que as contrapostas antes, a novidade do
3º Bloco é um curvar-se combinado às matrizes anteriores propondo circulações da câmera em ciclos que descre-
vem o jogar de dados na chapa de aço enferrujada. De Roma a Manhattan sobrepunha-se em cruz um olhar es-
quematizado em prumos-planuras, aqui finalmente articulado a redondas circunvoluções. A mesma cruz que, com
o cristianismo, engoliu aquela Roma, forjou a aliança que trouxe urbi et orbi por dois mil anos a sua civitas — a
Roma mobilis consagrando a união da Igreja com o Império, ou se quisermos, o “Império do mais além” com o
“Império do mais aqui”, da Urbe com o Orbe 207. Introduzida na abertura pela Trinity Church a nova Agripina es-
tadunidense, baliza dela própria, suplantou a romana balizada na inicial verticalidade pós-gótica, depois alegoria
da baliza líder-guia solitária da orquestração coletiva. Sobreposta por um ir-e-vir moderno, agora esta Wall Street
romanhattaniana dos primeiros dois tableaux moventes se entrecruzariam com o terceiro, mas em ciclo infernal.
Em semelhante Roma ianque, como tirânica entidade antiga-contemporânea, essa Ultra-Agrippina não se
apresentará na cena final. Não é necessário que se apresente, foi suplantada em suas atribuições. Aliás, apresenta-
va-se já desterrada desde o 1º Bloco, espectro-do-além, ainda que viçosa assombração cinematográfica, figuração
transcendental, antes símbolo que alegoria; ou no 2º, quando cai na vida e, libertando-se, submerge na circulação
de quem se joga na metrópole, paradoxo do deslocar-se fazendo ponto, enjaulada na dissipação das ruas, antes

206 Ver: Cacciari, Massimo. A cidade. [2004] Amadora: Gustavo Gili, 2010, pp. 9-23.
207 “Roma es la ciudad donde Dios ha desposado la Iglesia con el Imperio, o si se quiere, el ‘Imperio del más allá’ con el ‘Imperio del
más acá’, la Urbe con el Orbe.” Ors, Eugenio d’. Mis ciudades. Madri: Libertarias, 1990, p. 130.

202
alegoria que símbolo — seu devir Agripina já tem algo de caduco a partir das aparições iniciais 208. Mas persiste
essa quintessência do imperialismo a que alude, e da colonização como seu jogo. Mesmo no desterro, parece em
busca do seu lugar. Persistirá ademais, no discurso autointerpretativo de Hélio, povoando seus textos e entrevistas
de atenção relativa ao local-universal, no seu modo de tratar, sempre com alguma “ambivalência crítica” 209, o que
o debate em curso, não só no Brasil, vinha contemplando na atualização da conjuntura geopolítica e da oposição
Periferia-Centro 210, imperialismo e condição colonizada. Aqui se faz por braços de nova população de trabalha-
dores ou artistas latinos de NY o jogo de dados como ritual imperioso — tirania transfigurada?
A caligrafia de Hélio descrevendo com a câmera-gesto a verticalidade do olhar articulada ao circular en-
volvente das ruas poderia lembrar o percurso do enxergar forasteiro, de quem chega à cidade grande e dá com a
altura dos arranha-céus em meio às atrações rasteiras dos transeuntes. A sensibilidade pedestre do provinciano
estatelado com essa imponência das alturas — que parecem incólumes ao torvelinho da circulação terrena — está
no clichê de incontáveis contre-plongées de arranha-céus. O caso popular de um caipira chegando a São Paulo,
no contraplano de Mazzaropi em close no Candinho (1953): o movimento de seus olhos girando em ansiedade
exorbitante face ao ruidoso tráfego e a altura que avulta naqueles prédios do Centro, como o do emblemático Ba-
nespa (flagrante emulação do Empire State Building). No 3º Bloco de Agripina, derivando dos blocos anteriores
a construção do olhar pelo ângulo-movimento da câmera se esquematizará num timing diferente. Em ciclo contí-
nuo, gestos circulares do nosso olhar indo de um a outro jogador, o reiterado giro trocando de corpos reproduz-se
indefinidamente, como se especulasse no jogo do capital financeiro ali sediado. As reiteradas horizontais do 2º
Bloco, nesse 3º resolvem-se no curso linear em círculo da câmera, multiplicado, descrevendo o gesto de lançar
dados; ele pareceria voltar por vezes em sentido inverso, proliferando, fazendo que lembremos um entrelaçado
de círculos perfazendo oitos deitados, sinal de infinito 211.
Articular tais círculos aos edifícios percorridos em sua alta extensão vertical traduz no filme determinado
localismo de Manhattan, “vanguarda da reprodução territorial” 212. Basta acompanhar a história, tanto antes como
depois do atentado às Torres Gêmeas 213. Traduzida artisticamente em livros como Bartleby, o escriturário: uma
história de Wall Street (1853), de Herman Melville, uma cultura urbana da edificação que o mundo financeiro
produziu, se já está anunciada em meados do século XIX, o arranha-céu propriamente dito só nascerá em Manha-
ttan por etapas, entre 1900-1910, corrida para o alto de que um primeiro arquétipo seria o Flatiron 214, desde então
emblemático de NY, no estilo Beaux-Arts, tardio neoclassicismo eclético refundindo influências gregas e roma-
nas com ideias renascentistas; contemporâneo do Theatro Municipal do Rio. No seu conhecido estudo de Nova
York, Rem Koolhaas nos explica que otimizando o custo do terreno numa área da cidade, para além do controle
do arquiteto, “o arranha-céu é o instrumento de uma nova forma de urbanismo incognoscível. Apesar de sua so-
lidez física, ele é o grande desestabilizador metropolitano: promete uma instabilidade programática perpétua”. 215
208 Desafio solicitado pela obra: futuros esforços aproximarem dela formulações de Walter Benjamin, como a imagem dialética, a
mônada e a alegoria, esta última em especial seguindo trilha aberta por Ismail Xavier: Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo,
tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
209 Oiticica, Hélio. “Brasil diarréia” [1973], Encontros. Rio: Azougue, 2009, pp.116-117.
210 Wallerstein, Immanuel. O Capitalismo histórico. [1983] São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27.
211 Nos créditos das Quotidianas Kodak, de Ivan Cardoso, um símbolo do oito deitado vem como “logomarca” especialmente cria-
da por Óscar Ramos, acumulando referência ao infinito e à liberdade do superoitismo.
212 Koolhaas, Rem. Nova York delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p.115.
213 As “Torres Gêmeas constituem uma metáfora perfeita. Elas apontavam para aspirações ilimitadas; anunciavam grandes feitos
tecnológicos; eram um luzeiro para o mundo.” Wallerstein, Immanuel. “Os Estados Unidos e o mundo: as Torres Gêmeas como
metáfora”, Estudos Avançados vol.16 n°46, São Paulo, IEA-USP, 2002, p.23.
214 “Em 1902, o edifício Flatiron é um modelo” do processo urbano em curso, por “sete anos ‘o edifício mais famoso do mundo’, ele
é o primeiro ícone” nesse ramo do “imóvel utópico”, em que a arte de construir é esta elevação brutal rumo ao céu “de qualquer
terreno que o incorporador consiga reunir”. Koolhaas, op.cit., p.112.
215 “A partir das demandas supostamente insaciáveis dos ‘negócios’ e do fato de que Manhattan é uma ilha (...) com rios de ambos os
lados proibindo uma expansão lateral”, é como se a cidade não tivesse escolha a não ser esse erigir-se inarredável rumo ao alto:
“apenas o arranha-céu oferece aos negócios os amplos espaços de um faroeste criado pelo homem, uma fronteira no céu.” Koo-
lhaas, op.cit., pp.109-111.
203
Com a multiplicação de círculos entrelaçados nesse 3º Bloco, ligados continuamente ao movimento vertical
que busca a massa fálica dos arranha-céus, produz-se embaixo a acumulação dos trajetos em roda descrevendo
os jogadores. Como esquema dessa caligrafia memorável do olhar desenhar-se-á cabalmente a completa genitália
masculina em riste. Outros registros rodados por Hélio na época, recentemente exibidos, confirmam seu interesse
pela figura do Flatiron. A pesquisa da silhueta por vários pontos-de-vista permite diferenciar o apuro desse ângulo
escolhido em Agripina, seu escorço delineando melhor a figura da ereção peniana sugere-nos determinada latência
simbólica freudiana do fálico enquanto signo, e reforça o que o circuito do olhar fílmico induzia em sua escritura.
Se há rigor compositivo nesta construção fálica filigranada, tratamos de um retour-à-l’ordre que pode ser critica-
do ou glosado como um desenlace despirocado sob a égide da piroca. O fálico como lei, princípio ordenador que
integra e comanda um universo dado, propõe uma cosmologia singular deste jogo a céu aberto, cosmos ungido de
enigmática significação política.
Mas o que, afinal, restaria de Agrippina ao cabo do filme? O que significaria aqui, e como dialogaria com
a personagem original? Que questões podem ser postas e que formulação requerem? Se esse esquema final se
aparenta ao que se insinuava nos anteriores do tríptico, é como se víssemos por olhos agrippinianos a ação de seus
sucessores? Sua presença tirânica viu-se incorporada na nova situação? Que tirania é essa que se deixa tiranizar,
depois se deixa substituir? Espécie de esquema decorrente dos dois Blocos anteriores, configurados como tese e
antítese desta conseguida síntese? Ou sua ausência final livra-nos por completo da forma tirânica, como se nos
libertasse de um jugo histórico por intermédio de um novo jogo especulativo? A irrupção do movimento circular
como invenção diante de uma tradição de verticais–horizontais não contraria o que nesta vinha se estabelecendo?
Conjugar à imponência da reta círculos derivantes sugere-nos, como nas metáforas reprodutoras (da vida, do
capital, do poder), uma reescrita da ordem tirânica em termos novos, de superação, emancipatórios — ou sim-
plesmente completam a compreensão de um único processo integrado, inescapável? A ruptura substancial entre
os Blocos de Roma e Manhattan contempla a Agripina que depois se transfigura numa segunda ruptura neste 3º
Bloco, negação da negação; superação da superação? Se no 1º Bloco Agripina é Roma e no 2º Manhattan, no
3º é ela mesma, uma Roma-Manhattan como pulverização, sublimação da tirania imperialista? Que significação
propor ao jogar dados, gesto arremate-arremedo: quê auguraria este Alea jacta est? 216 Inscrito no “Um lance de
dados jamais abolirá o acaso”, da escrita poética de Mallarmé, a ambiguidade atroz do jogo de dados em Wall
Street, entre o fazer artístico e o fazer financeiro pode contar com alguma significação política? Diante disso o
que fazer? O que mesmo é, neste quadro, o próprio fazer? E que sorte poderá ter a arte dos latino-americanos 217
nesse logradouro de men at work, chapa de aço na rua em obras, inesperado Magic Square? Praça pública pós-
-provincial ou metropolitana, pedestal de bolsas de valores cativos ou futuros alicerces escrotais virtualizando
libertações, criações novas? Até que ponto poderíamos ignorar as determinações projetuais “heliocêntricas”, au-
to-interpretações de Hélio, que ao não ter exibido a obra em vida reforçaria a assertiva de obra inacabada?

216 “Alea jacta est: O dado foi lançado; a sorte está lançada, Júlio César (Caius Julius Caesar), 100-44 A.C. Quando César, em
10/1/49 A.C., cruzou com seu exército o rio Rubicão, perto de Ravena (norte da Itália), teria proferido as palavras gregas “aner-
riphtho kybos”. Essa era, como narram seus biógrafos, uma frase comum para os adeptos dos jogos de azar. A referência escrita
mais antiga é encontrada num fragmento da comédia do poeta Menandro (c. 341-291 A.C.). Ao contrário da tradução do latim
“Alea jacta est”, o original grego não exprime nenhuma decisão, mas antes a disposição para uma façanha. Por isso se encontra
às vezes a expressão latina mais correta: “Alea jacta esto” (O dado deve ser lançado). Desde que nenhum general romano poderia
trazer um exército em solo italiano, o fato de César cruzar o Rubicão foi visto como um ataque e desencadeou uma guerra civil,
que César, no entanto, decidiu, um ano depois, com uma vitória sobre o seu rival Pompeu (106-48 A.C.).” Pöppelmann, Christa.
Dicionário de máximas e expressões em latim. [2008] tr. Ciro Mioranza, São Paulo: Escala, 2010, p. 12.
217 Posteriormente Hélio disse que a arte latino-americana poderia ser identificada em duas partes: “(a) a arte colonizada (na qual eu
incluo a assim chamada arte primitiva e o pseudo-expressionismo), uma diluição total de modelos europeus, com uma implicação
indígena, como a do artista regional; (b) a tentativa de estabelecer um tipo de experimentação que se relaciona com as tendências
da arquitetura e arte experimental de vanguarda, com perspectivas progressivas: ela coloca problemas e é mais ambiciosa (penso
em algumas experiências da arte mexicana, argentina e brasileira).” Oiticica, Hélio. “Entrevista para Journal” [1979], Encontros. Rio:
Azougue, 2009, p. 222.
204
Tal como vem sendo exibido o filme sugere sentidos históricos exigentes, dialoga com a vida e a obra do
artista; carrega reverberações que não podem calar diante da experiência que temos da obra, e da liberdade neces-
sária da crítica imanente. Agripina é insinuante em múltiplas direções. Tal imersão no universo estadunidense cor-
responde a um recalque histórico ao qual cinema, arte, cultura brasileira intensificavam atenções naqueles anos
de crispação conjuntural. Seria preciso aproximar desta linha de tensão o paulista José Agrippino de Paula, que
no romance PanAmérica (1967, capa de Antonio Dias) trazia, em curiosa narrativa pop, uma viagem pelo imagi-
nário mundano da indústria cultural estadunidense, como num desrecalque “onírico” da subjetividade encantada
por Hollywood; incorpore-se aqui a ambivalência sessentista da capitulação ao canto-da-sereia imperialista, no
livro subvertida em revelação estética. Seu romance anterior, Lugar público (1965), era sintomático da atração
pelo mergulho nas neuroses da vida urbana que se modernizava ruidosamente no país. Recalcava-se de fato nas
criações artísticas libertárias, justo pela modernização conservadora que trazia, uma nova cidade consumista,
sobretudo depois do Golpe de 64, já atravessada pelos media, tráfego, poluição. O Cinema Novo resistiu em
penetrar neste universo, assim como a nossa melhor música resistiu ao pop e ao rock. Caso contrário não explica-
mos a explosão musical do Tropicalismo, bem como a urbe convulsa do Cinema Marginal, ou a irônica filigrana
do espaço público no experimentalismo superoitista — dissonantes todos com a ordem posta, dando voz a certa
vivência descalibrada do Progresso 218.
Em seu experimento cosmopolita, em suas e ancoragens latino-americanas ou brasileiras, Agripina traz
algo de comparável a Glauber em seu terceiro-mundismo, seu filmar no desterro — Der leone have sept cabeças
(1970), realizado no Congo, e Claro! (1974), em Roma. Este último, tratando a cidade em que se expatriava,
especula num filme de anotações, como em diário do exílio, sobre o cenário contemporâneo do antigo Centro do
Império, perscrutando em sua ruína histórica alguma luz emancipatória para o enfrentamento dos reveses políti-
cos e tarefas do degredo. Seu filme mais próximo do manifesto que escrevera em 1971, Estética do Sonho, Claro!
conecta o período glauberiano do “Cinema Tricontinental” aos seus filmes posteriores. Uma sessão única com o
filme de Hélio nos atiçaria o sentimento dessa força comum de criações que parecem lidar em seu tempo, e de an-
gulações periféricas, com semelhante gravitação em torno dos polos de progresso, uma recalcada e (re)motivada
atração da metrópole. O contraponto paradigmático dessas manifestações na história do cinema teria que recuar
meio século, de encontro a Somente as horas (Rien que les heures, 1926), em que o brasileiro Alberto Cavalcanti
em Paris, reverte em vivência difícil a decantada aura da Cidade Luz, desmitificada junto à visão simultânea dos
excluídos, os párias da pulsação metropolitana. Nessa obra seminal do cinema de vanguarda, exprime-se “instin-
tivamente”, segundo Cavalcanti, a percepção decepcionada de um olhar migrante porventura inflacionado pela
promessa cosmopolita.
Tal simultaneísmo contraditório de Cavalcanti soará antípoda ao cosmopolitismo quimérico praticado no
seu país em contemporâneas chef d’oeuvres locais, como São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), de Adalberto
Kemeny e Rodolfo Rex Lustig 219, calcada na Berlim de Walther Ruttmann; ou Fragmentos da vida (1929), em que
José Medina adapta conto da Manhattan de O. Henry. Em estilos consolidados, lapidados na prática local, os parâ-
metros nova-iorquinos ou berlinenses do entreguerras são adotados sem reconhecimento algum do viés ilusório
desse gesto, mas com entusiasmo característico do humor eufórico. E o fervor desta idealidade metropolitana en-
gendra uma cidade que mal repara em seus aspectos mais específicos, sem o tempo de destilar qualquer vivência
de espaços mal inaugurados: urbe ideológica — revelando porém aspiração verdadeira. Metrópole essa que atraía

218 Ver meus textos: “Das vagas de experimentação desde o Tropicalismo: Cinema e Crítica” in: Ikeda, M.; Lima, D. (orgs.) Cinema
de garagem 2014. Rio: Wset, 2014, pp. 79-93. “As representações urbanas: Eclipses e desrecalques do Brasil urbano em filmes dos
anos 1960” in: Gabrielan, C.; Hallak, F.; Hallak, R. (orgs.) CineOP - 8ª Mostra de Cinema de Ouro Preto: cinema patrimônio. Belo Hori-
zonte: Universo, 2013, pp. 46-49.
219 Ver “Cinema alemão e sinfonias urbanas do entreguerras” in: Almeida, Jorge de; Bader, Wolfgang. (orgs.) Pensamento Alemão no
Século XX, vol. III: Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo: Cosac Naify; Goethe Institut, 2013.
205
desde os confins da Amazônia um Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), da literatura modernista de
Mário de Andrade; ou o caipira representado por Mazzaropi em Candinho, adaptado do Cândido de Voltaire por
Abílio Pereira de Almeida. A peregrinação desses anti-heróis brasileiros ganha um desenvolvimento multifaceta-
do no cinema, chegando à apoteótica romaria desmilinguida de Orgia, ou o homem que deu cria (1970), de João
Silvério Trevisan, e às raias do sublime nos filmes virulentos de Ozualdo Candeias como A Opção, ou as rosas da
estrada (1981), ZéZero (1974) e O Candinho (1976) — esse último homenageando Mazzaropi em glosa corroída.

Todos esses personagens sugados pela gravitação da metrópole, seu mito e economia, no caso São Paulo, mesmo
quando nela chegam, de fato, não chegam. O que dela esperam esvanece. É bem verdade que não os inspirou a
nenhum deles a mesma formação douta do antigo errante de Voltaire, ou de Sousândrade.
A aventura fracassada de uma Hollywood brasileira, que trouxe Cavalcanti ao Brasil como produtor na Vera
Cruz, veio gerar duas obras suas prospectivas de um folclore urbano paulistano, Simão, o caolho (1952) e Mulher
de verdade (1954), elogiadas por Sganzerla. Gerou também O canto do mar (1953), que têm, por sua vez, fonte

de inspiração na mesma história sua, de atração pela metrópole que sofre a mais distante província, para além do
horizonte do mar, no En Rade (1927), que filmou na França logo após Somente as horas. Semelhante argumento
sobre o mal-estar da vida periférica faminta de oportunidades, pode conectar estas películas à estreia de Glauber,
O Pátio (1959), seu casal de namorados prostrado em náusea diante do oceano. Desterrados no meio do nada,
numa bonança do fim do mundo, como em Limite (1931), de Mario Peixoto, se cotejam a outros tipos de párias,
os desterrados orbitários da metrópole, seja no abandono da distância insondável, ou morando em sua periferia,
mesmo em seu próprio centro. Juntamente ao discurso ideológico da Metrópole teremos sua ausência, sua nega-
ção, ou mesmo seu lado obscuro, as refutações diversas daquela sua mensagem de civilidade.
Entre as diversas promessas de sentido sugeridas por uma coesão possível das várias linhas de força que vejo
atravessarem a fita, amarrando-lhe determinada unidade, está algum cintilar reminiscente das lufadas de vento
nos cabelos e saia de Agripina. Não a romana, rediviva das catacumbas abissais entre skyscrapers descomunais,
claro: A Agripina contemporânea, aquela em busca dum séquito de que se desprendeu, porventura desgarrou-se
por avançar demais, e do qual parece esperar algum sinal, balizada em sua esquina ao pé do Flatiron, colossal
Ferro-de-Passar. É a Agripina-Baliza, que se disponibiliza enquanto tal, oferecida como baliza avulsa aos quiçá
remanescentes, aos ausentados circunstantes. Talvez por figurar ao centro do tríptico dum lugar que por sua vez
se recolhe neste atributo excelso de epicentro galvanizador do globo terrestre. Esta Agripina-Baliza difere nos
atributos da morta-viva romana que a precede; bem como daqueles atributos dxs sucessorxs, ensimesmadxs jo-
gadorxs dobradxs à lúdica repetição, entregues à sua lógica interna e alheixs às circunstâncias do espaço público
ele mesmo convertido às balizas simbólicas do capital na figura impávida e antipática do arranha-céu. O olhar da
câmera instaura e constitui balizas para a nossa visão, nossa percepção daquela ordenação cosmológica singular.
Estas balizas se constituem da interação dos corpos àquele espaço-dado. Os corpos em sua pulsação vital inte-
gram a mesma lógica oferecida pelo espaço-dado, sendo por ele como que açodados, mais do que possam regê-lo
ou comandá-lo, como certas sugestões originais. Pau mandado de uma ordem que a ultrapassa (ou a produz),
Agripina reina sobre reis, governa governantes, tiraniza tiranos. O capital financeiro desde 2008, e ao contrário
da crise de 1929, transformou a crise do capital em sistema de poder 220
Dos primeiros flertes longínquos da remota metrópole até a ressaca convulsa da violenta imersão em sua
dura realidade, um cataclismo urbano vai anunciar-se cada vez mais áspero a partir da década de 60. Eclodirá com
os marginais. Ao longo da década seguinte vai exprimir-se nos lugares públicos determinada cifra histórica da
opressão — tal como se distingue na produção independente ou no experimentalismo superoitista. Neste, desde o
220 Dardot, Pierre; Laval, Christian. Ce cauchemar qui n’en finit pas: Comment le néolibéralisme défait la démocratie. Paris: La Découverte, 2016,
pp. 25, 29-30. “Agora a experimentação se transformou em sistema e a crise se tornou a principal alavanca do fortalecimento das
políticas neoliberais. Do neoliberalismo, se pode assim dizer, para parafrasear Churchill, que todos os obstáculos lhe propõem oportunida-
des”, pp. 32-33.

206
momento da captação das imagens registram-se parâmetros sensíveis de motivação no acionamento da câmera e
comportamento de quem filma. Pode ser acompanhada ao longo da década sua evolução circunstanciada pelo que
seria mais empiricamente filmável nestas condições, sobretudo na apropriação dos espaços abertos, a descoberta
de seu teor cotidiano-existencial, público, político. Recorrente na produção mais radical, uma expressividade se
constrói em glosa, ironia ou ataque simbólico aos monumentos culturais dispostos no espaço urbano. Verificam-se
em provocações diversamente, da celebração crítica ao pesadelo poético, da execração distanciada à esculham-
bação ditirâmbica, em filminhos Super-8 como: Superfícies Habitáveis — Memorial 2 (São Paulo, 1974), Flávio
Motta & Marcello Nitsche; Esplendor do Martírio (Rio, 1974), Sérgio Péo; Relax Místico (Rio, 1977), Giorgio
Croce & Ragnar Lagerblad; O Palhaço Degolado (Recife, 1977), e Inventário de um feudalismo cultural (Recife,
1978), Jomard Muniz de Britto; Vitrines (Curitiba, 1978), Rui Vezzaro; Exposed (Salvador, 1978), Edgard Navar-
ro; Gato / Capoeira (Salvador, 1979), Mário Cravo Neto; Fabulário Tropical (Recife, 1979), e A esperança é um
animal nômade (Paris, 1980-1981), Geneton Moraes Neto; Amsterdã Erótica (Amsterdã, 1982), Paulo Bruscky 221.

A cidade que cintila nestes filmes risonhamente difíceis negaria algo de um espaço-tempo existente, lugares
de pseudo-cidadania, urbanidade administrada pela ditadura e meios de comunicação. Ampla gama de experi-
mentos começa a pipocar ironicamente na forma controversa de agit-props obscuros. Agripina é Roma-Manhattan
os antecipa, resume e ultrapassa. Fala provocativamente de um Novo Centro do Império com recursos mínimos,
pertinência visionária máxima, mobilizando passado, prefigurando futuro — reescreve a seu modo a Estética da
Fome, como se por intermédio da Estética do Sonho. De diferentes gerações de reflexão periférica sobre o centro,
seus personagens circunstanciados insinuam-se por tradições que atravessam o esforço “coletivo”, tenaz engaja-
mento de Hélio na ideia sartreana que ele contemplava reiteradamente a seu modo e carregava para um mundo
em latente irrupção. Sua obra parece elevar-se contudo para além do universo que a formou.

221 Ver a propósito meus trabalhos: Marginália 70, op. cit. “O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma histó-
ria”, op. cit. “A experimentação cinematográfica superoitista no Brasil”, op. cit.
207
Rubens Machado Jr. - Professor titular em análise e crítica audiovisual, no CTR/ECA-USP, departamento
de cinema, rádio e televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde leciona des-
de 1999. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP (1982), ensinou estética, história da arte e
da arquitetura na FAU-FEBASP, nos anos 1980. Mestrado (1989) e doutorado (1997) em artes-cinema pela ECA-
-USP. Foi pesquisador do Idart - Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo (1982-1992) e do Centro de
Estudos da Metrópole, CEM-CEBRAP (2002-2005). Estágio em doutorado nos anos 1990, no Dercav-Paris 3;
pós-doutor no IA-Unicamp (1998-1999). Além de cineclubista, editou e colaborou em revistas como Cine-Olho
(RJ-SP, 1975-1980), L’Armateur (Paris, 1992-1993), Infos Brésil (Paris, 1992-2007), Praga (SP, 1997-2000),
Sinopse (SP, 1999-2006), Significação (SP, 2006-2007), Rebeca (2012-2015). Conselheiro eleito em diversas
gestões da SOCINE, participa desde 1997 de seus encontros anuais, onde cria o seminário “Cinema como arte,
e vice-versa”. Desde 2011 lidera grupo de pesquisa CNPq, “História da experimentação no cinema e na crítica”.
Curador dos projetos “Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro”, Itaú Cultural (2001-2003), e
“Experimental Media in Latin America”, Los Angeles Filmforum/Getty Foundation (2014-2018). Vice-presiden-
te do Conselho de Orientação Artística (2009-2011) e membro do Conselho gestor (2012-2013) do MIS-SP.

208
16. Tempo suspenso: a repressão sob o olhar superoitista brasileiro e mexicano

Marina da Costa Campos

No Brasil, o ano de 1968 é um registro simbólico das consequências e das reações em vários âmbitos, dentre
eles: a instauração do Ato Institucional nº5, o AI-5; a consolidação do movimento tropicalista, e o lançamento de
Terra em Transe (Glauber Rocha, 1968). Transformações culturais, políticas e sociais também ocorriam no México
no mesmo período. Desde 1964, o país era governado por Gustavo Díaz Ordaz, candidato mais conservador
dentro Partido Revolucionário Institucional, PRI222. Seu governo foi marcado por políticas desenvolvimentistas e
por diversas contestações por parte de grupos sindicais, sociedade civil e do movimento estudantil, com grandes
confrontos com os policiais. A mais trágica dessas repressões ocorreu na Cidade do México, em 2 de outubro de
1968, quando mais de 300 pessoas foram mortas e milhares feridas. De acordo com Carl J. Mora, este é um ano
chave da história moderna do México, pois nele eclodiram tensões econômicas, políticas e sociais advindas dos
anos 1930 com o processo de modernização do país. Tais tensões também atingiram o campo cinematográfico. O
autor recorre ao diagnóstico do crítico de cinema mexicano Jorge Ayala Blanco:

O massacre de Tlatelolco deu maior senso de urgência para os cineastas que se posicionavam contra a
ordem estabelecida e, de acordo com Ayala Blanco, um forte cinema independente “surgiu nos calcanhares
da politização de um certo núcleo de classe média como consequência do movimento estudantil de 1968”.
(MORA, 1982:112)223

O movimento superoitista surge em meio a este contexto de transformações sociais e políticas e da formação
de um cinema independente. Segundo Álvaro Mantecón, em seu livro El cine super 8 en México 1970-1989
(2012), a difusão deste formato na sociedade mexicana foi rápida, em sua maior parte entre jovens de origem
urbana, apresentando traços semelhantes em sua forma e conteúdo e constituindo uma rede de sociabilidade, a
partir da circulação dessas produções por meio de cineclubes e festivais de cinema super8 (MANTECÓN, 2012:
18-21).

Destes traços comuns de produção, Álvaro Mantecón ressalta como características o uso da ironia como
um dos recursos para assinalar as contradições e excessos retóricos do regime de governo; crítica à cultura
hegemônica (cinema estrangeiro e da televisão) e à contracultura; e a preocupação de se fazer um cinema distinto
do cinema industrial – capaz de expressar as preocupações pessoais de um autor. No entanto, também reforça
que “seria um erro tentar encontrar nele [produções em super8] um corpus coerente e sistemático de ideias, mas
sim um conjunto de atitudes e formas de expressão elaboradas às margens da cultura dominante” (MANTECÓN,
2012: 23). Dentre essas produções, pode-se destacar La libertad es um hombre chiquito..., de Rafael Montero
(1973), Avándaro, de Alfredo Gurrola (1971), Ah verda? E Patria libre (1973), ambos de Sérgio Garcia, entre
outros.
222 O Partido Revolucionário Institucional é uma instituição social-democrata que surgiu em 1929, primeiramente com
o nome Partido Nacional Revolucionário. Esteve no poder durante 71 anos, até perder as eleições no ano 2000.
223 Tradução nossa: “The events of Tlatelolco gave a greater urgency to the antiestablishment cineasts and, according
to Ayala Blanco, a stronger independent cinema “arose on the heels of the politization of certain middle-class nuclei as a
consequence of the student movement of 1968”.
209
Assim como no México, a chegada do super8 no Brasil também foi marcada pela rápida difusão,
principalmente entre aspirantes às cineastas, artistas, músicos e poetas, configurando-se numa constelação de
produções heterogêneas, em grande parte assumindo um caráter experimental, mas com um perfil comum de
oposição a qualquer referência à televisão. De acordo com Rubens Machado, perpassava um forte senso de
negação:

Por suas características intrínsecas como meio e inserção social, o experimentalismo superoitista
implicou nas condições brasileiras dos anos 70 uma forte experiência de negação. Negação dimensionada
esteticamente em diversas direções, desde a cívica, de declaração contra um status quo cultural e político, até
aquela comportamental, estigmatizada como desbunde, porém cheia de diferentes matizes contraculturais.
(MACHADO, 2001: 9).

A formação deste pensamento de negação provinha, também, do espaço de circulação desses filmes: festivais,
galerias e cineclubes. Neles era possível ter acesso às produções, além da oportunidade de um compartilhamento
de ideias, conformando-se assim em espaços formativos de uma sensibilidade crítica cinematográfica. Tais
obras superoitistas trouxeram diversos temas pungentes, tais como a sexualidade, a contracultura, a crítica ao
governo ditatorial, a critica ao imperialismo norte-americano, às instituições e à sociedade de costumes. Curtas
como Mamãe, fiz um super8 nas calças (Carlos Zilio, 1974); Ora bombas ou a pequena história do pau Brasil
(Fernando Bélens, 1981); Funeral para uma década de brancas nuvens (Geneton Moraes, 1978), o Esplendor do
martírio (Sérgio Péo, 1974) entre várias outras constituem um grupo de filmes que tocaram, ora com ironia, ora
com sutileza tais questões em meio a grande censura e tortura.

A partir desta experiência de negação comportamental, cultural e política e da presença de um circuito


alternativo como espaço de projeção e formação é possível estabelecer aproximações entre o movimento e os
filmes de super8 do Brasil e México, a partir da compreensão das leituras que a produção de cada país faz das
questões vigentes de seu momento – no caso aqui a repressão, a contracultura, a sociedade, as artes e o cinema.
Para investigar tais leituras, optou-se aqui pela análise de dois filmes: Funeral para uma década de brancas
nuvens (Geneton Moraes Neto, 1979) e Mi casa de altos techos (David Celestinos, 1970).

Funeral para...: o riso como resistência.

“Este filme é desaconselhável para maiores de 20 anos”. Com este alerta, Funeral para uma década de
brancas nuvens (1979), de Geneton Moraes Neto224, faz sua primeira saudação ao público ao qual não se dirige.
Ao longo do filme, a narração ocupa um espaço por muitos anos silenciado. Lançado sob o contexto da abertura,
lenta, gradual e segura do regime militar, mesmo momento também captado por Exposed, o curta-metragem faz
das palavras seu instrumento maior de uma resposta-ataque aprisionada por anos. Palavras que acenam, mas que
também revisam a experiência de uma década em destroços. Ou do nada. A voz over é interpretada por outro
superoitista conterrâneo a Geneton, o pernambucano Jomard Muniz de Britto, e com sua impostação como quem
apresenta um espetáculo, nos convida para a contemplação de um funeral. Será o enterro da década de 1970 e
junto dela seus inesquecíveis personagens: os imperadores da desesperança, as patrulhas de gás lacrimogênio, os

224 Geneton Moraes Neto nasceu em Recife no ano de 1956 e conciliou a carreira de jornalista com a de cineasta. Faleceu no ano
de 2016.

210
senhores tristes do poder, os velhos irmãos de cabelos cortados, os batalhões de choque e o Tio Sam.
Recorrendo ao deboche, Funeral... Encarna o cogito criado por Oswald de Andrade: “esculhambo,
logo existo” – expressão ressaltada por José Celso Martinez como “utopia de um país futuro, negação do país
presente” (CORRÊA, 2017: 92). Neste sentido, o filme coloca a saudação como recurso irônico para criticar o
tempo presente e “tranquilizar” os homens e suas instituições quanto a um levante de oposição. Este recurso
irônico da provocação e a negação constante insere o filme (assim como os outros analisados nesta tese) dentro
da perspectiva radical e experimental do superoito de sua época, descrito por Rubens Machado como forte
experiência de negação (MACHADO, 2001: 9).
No caso da obra de Geneton, o alvo da negação não é apenas as figuras autoritárias, mas toda uma
década representada por brancas nuvens. Deste modo ele coloca a década de 1970 como inflexão, estruturando
o filme como uma reflexão sobre o vazio artístico, político e social deste tempo e também sobre o legado das
movimentações e irrupções da década de 1960. E este não é o único filme do cineasta sobre tal temática. Em 1981
produziu o curta, também em super-8, intitulado A esperança é um animal nômade. Filmado em Paris, o filme
traz semelhanças com Funeral em sua estética e estrutura: associações e dissociações entre imagem e áudio, mas
com uma forte preponderância da narração. Trata-se de uma abordagem irônica e melancólica sobre maio de
1968, percorrendo monumentos parisienses e retomando a memória da luta dos estudantes franceses e também
dos jovens brasileiros. Em um dos momentos, a narração entoa “nós já choramos muito, por todos que perderam
a batalha. Desde os hippies aos visigodos” e afirma “só o futuro é revolucionário”. O som de Se essa rua fosse
minha tocada em um fagote reforça o aspecto nostálgico que permeia toda a obra.
Os outros curtas em super-8 de Geneton mantêm esse fio comum de uma dialética entre melancolia
e o sarcasmo, embora tratem de outros assuntos. Navegar em terra firme (1980) brinca com os símbolos do
capitalismo e desenvolvimentismo: a coca-cola, o fusca da Volkswagen (ou Volksvagina, Volksviagem) e as
propagandas de televisão que persuadem para a compra, ao som de uma trilha variada e bem tropicalista de Gal
Costa e Caetano Veloso. O final, como uma referência a Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964)
traz um homem com uma rústica capa vermelha, bradando aos quatro ventos palavras de esperança e segue em
direção ao mar, para o seu suicídio. Já Fabulário Tropical (1979) trata de um percurso pelas ruas de Recife,
retomando traços da história brasileira de barbárie, questionando os monumentos e os pontos turísticos da cidade.
A narração, como sempre, é taxativa: “O Brasil é um país que sabe rir de si próprio”. E, em A flor do lácio é vadia
(1978), a crítica ao colonialismo no processo cultural brasileiro é o que move o curta, ancorado nas imagens
de ruínas e na dança sobre esses resquícios como forma de resistência. Mais uma vez a narração dá o tom da
questão: “O Brasil é um país que sente saudades do futuro”
Entre ruínas, cemitérios e símbolos do capital estrangeiro, elemento constante na filmografia de Geneton,
tem o ato de rir de si próprio como movimento inserido nesse pessimismo. Logo após abrir o filme com as
recomendações de exibição, uma tela branca com a imagem fixa de um homem segurando uma bandeira se
mostra ao público. Como uma sombra a figura é preta, assim como a flâmula. É um sinal que indica a década de
1970 e nada. Também é escura a tomada captada à noite de uma cidade, onde só é possível ver pequenos pontos
de luz. Sob a canção de Oração ao tempo, de Caetano Veloso, a narração over anuncia o funeral de uma década
do silêncio. Temos um corte sonoro com a marcha Pomp and circumstance march nº1, de Edward Elgar, que
transforma a expectativa de tranquilidade construída pela canção de Veloso para a expectativa de uma recepção
pomposa de convidados. É neste momento que o narrador saúda as figuras do regime militar. À medida que os
nomeia, em seus distintos e irreverentes nomes, podemos observar rapidamente a figura de um homem sentado.
Como se um vigilante averiguasse a presença de seu prisioneiro, a luz se apaga e acende lentamente.
Novamente uma quebra sonora traz a música Toque de rancho de Luiz Gonzaga e um novo contraponto
é feito. Enquanto a imagem nos mostra o jovem amarrado e sentado de costas para uma parede branca, a música
211
conta a história de um homem que deseja entrar para o exército. O jovem, de cabeça baixa, e a música fazem uma
referência irônica à tortura, multiplicada pelo uso do backprojection, que divide a tela ao meio repetindo a mesma
cena. Ainda nessa mesma temática da tortura e das prisões, exploram-se diversas imagens deste jovem e de uma
garota, diante uma parede branca, tomados de frente e de perfil, como se estivessem sendo fichados em uma
delegacia. A narração reforça a ideia com frases como: “Chamem as trombetas da ordem! Vocês conseguiram,
por enquanto”, “Boa noite, mestres da moral e cívica. Boa noite, loucos carcereiros sem rostos!” e “Durmam
sem medo de nossas garras”. Os jovens “enquadrados” olham em direção à câmera e seus olhares não são de
submissão, mas sim de afronta, de desobediência. Esta referência à prisão pode se dar tanto aos jovens militantes
ligados ao movimento estudantil e aos partidos como também aos hippies, que também sofreram com a repressão
às práticas contraculturais (COELHO, 2005: 42).
A próxima cena também destaca essa subversão ao trazer um cenário fora da cela e a mesma postura de
confrontação: o jovem, encostado em uma parede branca, olhando para a câmera, sob a trilha Eu sou terrível, de
Roberto Carlos – cantor cujas músicas são recorrentes em muitas obras superoitistas brasileiras. Símbolo de uma
juventude tida como “alienada”, o uso específico do trecho que diz “eu sou terrível, e é bom parar, de desse jeito,
me provocar, você não sabe, de onde eu venho, o que eu sou, e o que tenho, eu sou terrível...”, só colabora com
o deboche para com os militares e demais figuras de poder, no sentido de que atiça o tom desafiador recorrendo
a uma música que expressava uma rebeldia juvenil sem maiores pretensões – só que aqui a pretensão maior é
avacalhar.
Neste momento alternam-se as imagens do garoto com a de fotografias históricas de confronto entre
jovens e a polícia: a detenção de manifestantes e policiais se protegendo de ataques. Desta maneira, com a
imagem da garota se deitando próximo à câmera, o narrador anuncia que esta é uma década sem bandeiras, num
gesto que coloca em questão toda a trajetória dos movimentos de contestação dos anos 60: não restou nada deste
legado? Ao mesmo tempo em que deseja a paz celestial às figuras de poder e afirma a distância dos anos 60 e a
falha de seus profetas, a imagem da jovem sorrindo para a câmera não deixa de selar a dúvida sobre estas mesmas
bandeiras da década anterior e o adormecimento da juventude brasileira.
Um ponto interessante deste momento e repetido várias vezes ao longo do filme é o close nos olhos que
miram a câmera. A voz, que é ao mesmo tempo pessimista e irônica ao afirmar que um lado da batalha está
vencido, que a rebeldia fracassou, entra em choque com o caráter provocativo desses olhares para a câmera.
A garota sorri ou não se mostra abatida, o garoto tampouco. É como se por mais que o que caracterizasse os
anos 1970 fossem as ruínas (cotejando com os outros filmes de Geneton), ainda resta o riso, o deboche, logo
uma resistência. A trilha sonora deste momento também corrobora para esta dialética. A canção Chororô225, de
Gilberto Gil, faz uma brincadeira entre o choro de dor e o choro sem sentido e desta maneira encaixa-se no filme
também como uma provocação a essa mágoa abordada.
Temos, então, imagens símbolos dos anos 1960: o assassinato de John Kennedy, Che Guevara, o sucesso
dos Beatles, John Lennon, o líder do Partido Comunista Vietnamita Ho Chi Minh, Jimmy Hendrix, Roberto Carlos,
Grace Slick (vocalista do grupo de rock psicodélico Jefferson Airplane) Joan Baez, Glauber Rocha entre outros.
Também traz fotografias que são referências históricas daquele momento como as manifestações estudantis de
maio de 68, a ida do homem à Lua, o presidente Ronald Reagan, o livro Quarup, de Antônio Callado226. Foram
reduzidos a retratos de parede dos anos 1970 e com eles 1970 sonhos foram mortos: “vocês venceram, desta
vez”. Nesta parte fica demarcada a nostalgia de uma época cujos ideais não perseveraram – a repressão foi maior.
No entanto esta opressão vencer desta vez, se sugere uma possibilidade de retorno dos vencidos.
225 Canção pertencente ao disco Gilberto Gil: ao vivo, de 1978.
226 A inserção deste livro no filme remete a sua inserção em um movimento artístico de engajamento de parte dos intelectuais
para a construção de um país novo. De acordo com Celso Favaretto, dirigia-se a um público intelectualizado de classe média e com o
imperativo de falar sobre o Brasil. (FAVARETTO, 2007: 28-29)

212
O jovem das cenas anteriores agora aparece pichando um muro branco os seguintes dizeres: “a saudade
é uma jaula”. De certa maneira esta cena pode nos remeter a outro filme superoitista, intitulado Pixando (1980),
de Pola Ribeiro e Ana Nossa Bahia. Este curta baiano faz um elogio ao gesto “pichador”, através da montagem
de vários planos de muros e paredes pichadas sob uma trilha sonora caótica de diversas vozes. Tais inscrições,
de temáticas variadas, também comportam pichações contra o regime militar e sobre a liberação sexual – como,
por exemplo, o caso de uma parede azulejada com imagens de anjos e a inserção dos desenhos de órgãos sexuais
masculinos nestas figuras angelicais, numa ação “profana” de sexualização desses símbolos. Tanto em Pixando
como em Funeral..., o ato de inscrever nos muros atua também como uma forma de transgressão, uma forma de
lembrar ou chamar a atenção dos transeuntes para a existência de temas ou assuntos diversos esquecidos pela
população. No caso de Funeral..., esta lembrança ou este recado é um alerta para o presente e futuro: não ficar
preso às rememorações ou idealizações do passado. Novamente a narração atesta a necessidade de olhar para
frente: “e nossas mãos, vazias de bandeiras, vão reconstruir novas miragens. A esperança é o único dever”.
Enquanto closes de partes desta pichação nos são apresentados, a tomada de uma mão que entrega
um pedaço de pano a outra mão também integra esse jogo entre as imagens e a narração. Repetidamente essa
passagem do pano é explorada e pode ser entendida como uma passagem de bandeira de uma geração para outra,
uma transmissão de responsabilidade. Desta maneira o narrador começa a despedida das figuras de poder: O “boa
noite” para os imperadores da desesperança, para as patrulhas de gás lacrimogênio, para o velho Marx e para o
profeta das oliveiras.
Neste momento temos o plano-sequência da garota caminhando descalça por uma estrada de terra. A
câmera se posiciona fixa em um ponto atrás da jovem e registra seu distanciamento, seu caminhar determinado
para frente. Enquanto isso, o narrador afirma inúmeras vezes: “eu vos anuncio que nós não estamos plenamente
mortos”.
A imagem da estrada propicia a referência de muitos filmes produzidos nos anos 60 e 70, entre os do
Cinema Novo, Cinema de Invenção e até superoitistas: o final de Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha,
após o delírio de Paulo Martins ao receber os tiros e o travelling de ré que acompanha o caminhar da personagem
Sara; o caminhar de Antônio das Mortes na contramão de uma rodovia em O dragão da maldade contra o santo
guerreiro (1969), também de Glauber; o longo plano sequência final de O anjo nasceu (1969), de Júlio Bressane,
no qual o carro dirigido pelos bandidos interpretados por Milton Gonçalves e Hugo Carvana corre na estrada até
desaparecer de vista; e a corrida de uma mulher, pelo acostamento, em direção à câmera, durante quatro minutos
do filme em super-8 Como nossos pais? (1974), de Celso Marconi. Momentos recorrentes que trazem a teleologia
ou antiteleologia do progresso. Em Funeral..., este caminho para o progresso também é questionado, com uma
singularidade de que no meio desta caminhada, a garota para no meio do caminho e um fade out escurece a tela.
Seria este um momento de paralisia de qualquer tipo de ação?
O curta de Geneton finaliza com um close em um homem que faz a evocação de quatro mandamentos,
que na verdade são trechos de poemas diversos de Lawrence Ferlinghetti, poeta da geração beat:

Artigo primeiro: quando era maio no mundo, oh meu dileto aprendiz. Teu sonhador vagabundo incendiava
Paris.
Artigo segundo: sou largo, longo e profundo. Oh, meus irmãos juvenis. E meu coração moribundo foi réu
de todo juiz.
Artigo terceiro: atravessei a tormenta e grito: “Terra à vista!”. Sou tua tropa de choque, és meu melhor
sandinista. Meu ódio te alimenta, me armo com meu badoque, e miro os anos oitenta.
Artigo quarto: é impossível evitar o futuro!

213
Usando de novo a ferramenta da repetição, o homem brada diversas vezes a frase final “é impossível evitar
o futuro”. Futuro, palavra em constante referência em Funeral..., é colocada como último recurso, bandeira de
salvação. O curta, portanto, tem como tema não só as ilusões e desilusões dos anos 1960 e a paralisia dos anos
1970. É antes de tudo um filme sobre a experiência do tempo histórico.

Mi casa de altos techos: dilemas do engajamento

David Celestinos foi estudante da Academia de San Carlos nos anos 1960 e também estudou no Centro
Universitário de Estudios Cinematográficos, da Universidade Nacional Autônoma do México, entre os anos
de 1969-1971. Esta inserção no Centro Universitário propiciou o contato com outros estudantes de cinema
da época, como Sérgio Garcia e Alfredo Gurrola, formando uma rede de cineastas curiosos e instigados pelas
possibilidades de criação que o super-8 oferecia. A primeira incursão de Celestinos nesta bitola foi com o filme
Mi casa de altos techos (1970) que participou do Primer Concurso Nacional de Cine Independiente en 8mm,
organizado pelo Centro de Arte de las Musas, na Cidade do México no ano de 1970.
Depois desta película, David realizou outros trabalhos: Domingo siete, produção de 1971 em co-direção
com Alfredo Gurrola e Sérgio Garcia; Las hermanas e Tovar, ambas de 1971; e Absténganse curiosos, de 1974. A
exceção de Domingo siete, curta-metragem que aborda o dia de domingo na capital mexicana, a filmografia deste
cineasta tem como preocupações comuns a discussão sobre os rumos das artes e questão da liberdade sexual.
Las Hermanas trata da história de duas jovens mulheres que retomarão seus traumas infantis para explorar suas
sexualidades e Absténganse curiosos traz a história de um garoto que busca vencer seus medos e bloqueios
sexuais indo a um encontro de uma mulher publicado em anúncio de jornal.
Tovar já caminha pelo sentido das artes plásticas, ao documentar através de uma linguagem experimental
a vida do artista Raúl Tovar, pintor pop e colega de Celestinos. Por meio de um happening, coloca jovens com o
corpo pintado de preto e boca vermelha interagindo com frases icônicas da contracultura e do contexto juvenil da
época. Mi casa de altos techos segue esta temática das artes, mas com uma proposta distinta de pensar o impacto
do ano de 1968 na arte e o que se reverberou disso. A história concentra-se em dois estudantes da Academia de
San Carlos, entidade muito combativa nos anos 1960 e principalmente em suas manifestações sobre o massacre
de Tlatelolco, e que apresentam suas preocupações com os dilemas do pós-68, o próprio entendimento sobre
arte e os caminhos deste campo. Enquanto um volta-se para questões existenciais e foge para a natureza, o outro
percorre as ruas e espaços de pobreza indagando sobre uma consciência social da arte.
Assim como em Funeral para uma década de brancas nuvens, o narrador neste filme mexicano exerce
uma função especial de trazer as reflexões e questionamentos sobre o papel social da arte. Apesar de a narrativa
contar com dois personagens, a voz não é identificada com nenhum deles, constituindo um fluxo de pensamento
dos dois jovens ao mesmo tempo. Um veste-se de maneira mais formal e apresenta traços indígenas. O outro
tem um perfil hippie, de cabelos longos e barba grande. Os dois se encontram na porta da Academia e adentram
o espaço. Neste local, se sentem abrigados, se sentem seguros e livres. A câmera percorre todo o ambiente, nos
apresentando as telas, cavaletes, instrumentos de escultura, as abóbodas do teto e até os espaços sem luz. No
momento de encontro, no espaço exterior ouve-se a canção Hey Jude, dos Beatles, mas a partir do instante em
que os estudantes se encontram no interior da escola, a canção é substituída pela Ave Maria de Bach, executada
enquanto a ação se passa dentro da instituição.
No momento em que os dois personagens ocupam o mesmo espaço, o prédio da academia, um detalhe é
destacado pela câmera. Em um plano em que eles mexem com instrumentos do ateliê, uma forca feita de corda
aparece em segundo plano. Depois ela torna-se primeiro plano enquanto o jovem cabeludo brinca de colocar
214
uma espécie de um cilindro cortado no pescoço do amigo. À medida que os personagens caminham, a câmera se
detém na corda e percorre toda a sua extensão para o alto até deparar-se com o desenho de uma caveira.
O conflito do curta inicia-se com a saída dos jovens para a rua. O primeiro, de cabelo curto, caminha pelas
ruas da cidade, pela praça do Zócalo, anda por várias direções, sob a trilha de Get back, dos Beatles. Depois passa
a correr em uma estrada até chegar a uma região mais pobre, cercada por lixo e descaso. Neste ponto temos a
tomada de uma criança filmada à contraluz tentando unir as duas pontas de uma corda, sob a seguinte narração:

Tenho que atar e desatar. Tenho que atar meu presente com meu futuro. Minha determinação com o desejo.
A força de minha vontade com a esperança. Desatar o que unido estava esquecido. Perdido. Impedindo a
minha tranquila visão do horizonte. Meu rastro infantil. O voo dos pássaros. O cheiro das flores.

Até aqui ainda não fica muito claro o que está em questão. Há uma angústia do personagem em relação à
situação que o rodeia: a desigualdade social e o como ele enquanto artista se relaciona com isso. A contraposição
com as preocupações de seu amigo é que dá forma ao que o filme traz como indagação.
O outro jovem está na academia e suas aflições estão além dos problemas sociais. As questões existenciais
e a repressão política fazem mais a sua cabeça e fazem parte de seu projeto artístico. Sob a trilha de Réquiem, de
Mozart, a câmera percorre o ateliê e apresenta um espaço escuro, com cadeiras desarranjadas, pinturas abstratas
nas paredes e uma imagem de Che Guevara. Um close e podemos identificar as frases “se busca” e “2 de octubre”
– referência ao massacre estudantil.
A angústia da tomada de atitude e de que caminho tomar também assola o jovem de barba. A narração
traz as suas dúvidas: “O desejo ou a esperança. Minha angústia. A pena ou o protesto. O mundo que me rodeia e
me esmaga. Minha legítima aspiração truncada pelo ferro. Não sei, não sei. Sei?” Mas ao contrário do amigo, sua
opção não é o caminhar pela cidade ou o correr para longe. Deita-se sob uma marquise embaixo do sol, se enrola
entre lençóis a meditar – numa espécie de happening, se deleita em uma festa com outras pessoas de sua idade e
foge, com uma mulher para o meio da natureza – onde se sente livre para exercer a paz e o amor.
Aqui temos o conflito sobre as formas de reação aos acontecimentos de 1968 anos depois. É a experiência
do trauma e a reflexão de sua herança. Temos aqui o dilema entre a arte militante e arte contracultural. Ambas
se sentem em dúvida sobre os seus potenciais de realização. A balança não pesa para nenhum lado. Isso se dá
tanto pela narração – que continua a não assumir uma identidade, como da música utilizada para a conclusão
do percurso reflexivo de cada personagem: a canção Remember love, de Yoko Ono, que traz o amor como
instrumento para conhecer, para cantar, para viver.
Ao final, a corda atada pela criança se solta, seguida da imagem da parede com a pichação “destruição”.
Ambas as cenas ocorrem ao som de Give Peace a chance, de John Lennon. A voz over agora não fala de
dúvidas, mas convoca à luta. O jovem de cabelo curto aparece dentro da escola atrás de uma falsa janela amarela
balançando um pano branco com as mãos. A câmera foca um texto escrito em uma placa com os seguintes
dizeres: “uma sociedade onde existem explorados e exploradores, assassinos do povo, a luta pela nossa liberdade
é a tarefa fundamental até a vitória”. Enquanto isso, o narrador traz palavras de esperança:

Venceremos. Vencerei. Venceremos. Vencerei. Venceremos quem nos proibiu os caminhos. Quem colocou
o preço no bem-estar do homem, o encarceram, o humilham e ao amor mais puro o corrompem. Agora
caminharemos juntos. Um ao lado do outro, solidários. Estreitaremos as mãos para sempre. Derrotaremos
o canalha que cega as fontes, mutila o jovem caule e envenena o ar. O sangue derramado cem vezes
frutifica na voz. Na imagem do sorriso, nas ondas sonoras. Subiremos a costa onde canta a vida. Onde o
campo reverdece e as pombas liberadas levantam voo.

215
O filme tem seu final com o encontro dos dois jovens na porta da Academia de San Carlos e caminham
para o interior da escola, retomando o começo do filme. Como num ciclo, as questões que afligem ambos os
personagens são irresolúveis, estarão sempre presentes, em um movimento contínuo no qual a arte sempre se
debaterá. Portanto, Mi casa de altos techos traz uma questão pungente não só no México como no Brasil também
que é esta dicotomia entre a arte militante e uma arte mais “descompromissada” com as questões sociais – e nem
por isso mais alienada. Álvaro Mantecón vai mais profundo e levanta como nervura o debate sobre as formas
que a contracultura deveria assumir. Desta maneira destaca duas tendências: a defendida por Carlos Monsiváis e
a encabeçada por La onda, José Agustín, Parménides García Saldanha, Gustavo Sáinz entre outros nomes.
Para Monsiváis, a contracultura deveria examinar os pressupostos da moral sexual vigente e do sexismo
dominante, localizar e compartilhar os efeitos e alcances da inserção imperialista, internacionalizar as conquistas
da cultura nacional e democratizar a sua atividade crítica (MANTECÓN, in DEBROISE, 2007: 58). O autor
defendia uma contracultura própria sem assumir as formas norte-americanas nem inglesas. Já Agustín delimitava
que a contracultura conformada pela Onda caracterizava-se em manifestações culturais de numerosos jovens
mexicanos que haviam incorporado o pensamento hippie por meio da experiência do movimento estudantil.
Tratava-se de um movimento que agregava distintas classes e com diferentes células dentro de uma mesma
tendência (AGUSTIN, 2012: 83). Este filme, portanto, traz a tensão entre esses dois tipos de pensamento para
refletir os caminhos a serem tomados pós massacre e pós era de rebeliões.

Sobre potências e impotências

Mi casa de altos techos e Funeral para uma década de brancas nuvens são filmes distintos. Pela chave
da angústia e da dúvida, o super-8 mexicano discute o pós-68 e os caminhos da arte questionando se existe uma
melhor via de ação: política ou cultural. Já o curta brasileiro por meio da ironia e do deboche interroga o legado
de 68 e as ações políticas manifestadas pelos estudantes e por ícones da cultura pop. Esta reverberação dos
anos 60 nos anos 1970, o pós-golpe, pós-massacre, pós-maio de 1968 é o elemento em comum que une as duas
produções. A reflexão sobre o tempo presente e a ação no futuro permite as aproximações entre os dois filmes
aqui escolhidos.
O primeiro elemento que ambos se aportam é a narração. Ela está em comunhão com as imagens, mas
exerce esta função de despertar os incômodos da década 1970, levanta as contradições entre o que sobra dos
anos 1960 e o que se encaixa realmente com as demandas de seu tempo. Trazem os dilemas da ação militante e
da ação contracultural. Logo nos propõe pensar a própria presença do super-8 dentro deste embate. Outro ponto
comum dos dois curtas é o contraponto entre a música popular e a música estrangeira, ou entre o erudito e o
popular. Neste jogo com as canções, os dois filmes produzem sentidos que trabalham com a apropriação e crítica
do produto estrangeiro e do produto nacional (ou a falta dele). O terceiro ponto é a recorrência ao símbolo da
bandeira ou do pano. Ambas as produções trazem a simbologia da bandeira em seus distintos sentidos: rendição,
passar a responsabilidade para outra geração, de união entre bandeiras. Nenhum dos filmes defende uma postura
ou uma forma de ação, mas uma atitude coletiva de engajamento para o futuro.
Por fim, último elemento comum é justamente qual a noção de futuro presente nas duas obras. Ele assume
uma identidade de um dever e de um devir obrigatório. É o que pode ajudar a transformar o trauma do passado

216
em lembrança do que não pode ser repetido. Mesmo transmitindo superficialmente em alguns momentos a ideia
de impotência para a mudança, Didi-Huberman nos lembra o que esta impotência apontada pode revelar:

Quando um povo protagoniza um levante (ou mesmo para que esse povo se subleve), ele deve sempre
partir de uma situação total de impotência. O levante seria, então, o gesto pelo qual os sujeitos desprovidos
de poder manifestam – fazem surgir ou ressurgir – em si mesmos algo como uma potência fundamental
(DIDI-HUBERMAN, 2017: 311).

Esta possibilidade de potência pode ser uma chave de análise desses dois curtas que não tentam apaziguar
ou solucionar as questões que movem o momento – no caso a repressão, a sexualidade, a contracultura. Aqui,
consciente ou inconscientemente as obras transmitem angústias e contradições que transformam o tempo em um
espaço suspenso, cujo passado reverbera no presente (o presente guarda uma potência mobilizadora) ao mesmo
tempo em que o futuro é colocado única possibilidade.

217
Referências bibliográficas

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CORREA, José Celso M. O rei da vela: manifesto do Oficina. In: ANDRADE, Oswald. O rei da vela. São Paulo:
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Marina da Costa Campos - Doutoranda pelo programa de pós-graduação em meios e processos audiovi-
suais pela ECA/USP. É mestre em imagem e som pela UFSCar e formada em comunicação social - jornalismo
pela UFG. Integra o Conselho Editorial da Imagofagia - Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y
Audiovisual; e também integra o Conselho Editorial da Revista Movimento, periódico organizado pelos discentes
da pós-graduação da ECA/USP. Sua pesquisa é voltada para as aproximações entre o cinema super8 experimental

218
brasileiro e mexicano da década de 1970. Também atua na produção de mostras audiovisuais, dentre elas: Histó-
rias extraordinárias: cinema argentino contemporâneo (Caixa Cultural Rio de Janeiro, 2016). Integrante do Grupo
de Estudos de Cinema da América Latina e Vanguardas Artísticas (GECILAVA), e do Grupo História e Crítica do
Cinema Experimental, sob orientação do Profº.Drº Rubens Machado Jr.

219
17. Biopoder e cinema: a pobreza como potência

Vladimir Lacerda Santafé

Em nosso artigo, pretendemos analisar a potência dos pobres, conceito político cunhado por Antonio
Negri e Michel Hardt a partir das imagens de Glauber Rocha e Pier Paolo Pasolini, entre outros intercessores
literários. Primeiramente, percorreremos essas imagens e a emanação do conceito negri-hardtiano delimitando
a formação da subjetividade na modernidade dentro dos dispositivos de poder mapeados por Gilles Deleuze e
Félix Guattari em “O Anti-Édipo”, em seguida, estabeleceremos vínculos, heterogêneos, entre a multidão e a
pobreza, sempre com as imagens dos cineastas supracitados como forma de ampliar e reatualizar os conceitos e o
material imagético que os alimenta, “tal como acordes que preenchem uma sinfonia inacabada”. Entendemos que
a pobreza enquanto potência, isto é, uma força latente ou intensiva que agrega e compõe as imagens dos cineastas
e artistas que analisaremos, ocorre em processo de forclusion, conceito freudiano atualizado por Lacan227, que
indica o mecanismo que encontra-se na origem da psicose e consiste na rejeição de um significante fundamental
no universo simbólico do sujeito, por exemplo, o falo ou o pai. Ou seja, o sujeito o rejeita, segundo Freud, mas
sua força se exprime justamente nesta rejeição. Isso constitui, ainda, um elemento do ideológico no maquinário
do inconsciente ou na fabricação do sujeito? Baudry deve ser relançado nas “cismas da pós-modernidade”? Ou
trata-se de um dispositivo de poder aquém da ideologia? Um dispositivo transcendental... Entre o virtual e o atual,
o movimento dá-se e se efetua, se por ideologia entendermos a virtualidade de ideias que se realizam no espaço
e no tempo, então somos parte de sua composição, mas ao adentrarmos na “caverna do desconhecido” – nitimur
in vetitum228 - as ideias se misturam aos simulacros que as deformam e sua natureza torna-se impura. A partir
deste ponto, o que somos ou o que é já não nos interessa. Mas sim a presença unívoca e múltipla dos seres que
nos habitam.

Com a pobreza se dá o mesmo, pois ainda quando ela é rejeitada, seu poder simbólico está presente na
cena ou nas ideias e afetos que atravessam a imagem. Mais ainda, pretendemos, no artigo, ultrapassar a forclusion
em direção a um conceito que enxerga na psicose uma potência, na verdade, a única forma psíquica que pode
expressar a verdadeira potência da arte e da vida e a ultrapassagem da estrutura que a psicanálise fundamenta
enquanto “edifício mental” do sujeito: o Corpo sem Órgãos. Para nós, a pobreza é o CsO da imagem dos autores
que alimenta a nossa imaginação e os nossos interesses, ou seriam os nossos desejos? Além disso, como nos
lembra Deleuze e Guattari, o inconsciente é uma usina, uma fábrica que envolve produções e antiproduções,
sabotagens e controles, e não um teatro representativo. A psicanálise não compreendeu a esquizofrenia, tal como
o cinema ainda não compreende a fome.

A pobreza, isto é, a carne da multidão que produz a sociedade contemporânea, alicerçada no regime de
produção capitalista em sua roupagem imaterial ou cognitiva, é o CsO da imagem que resiste, e no discurso indireto
livre, onde o autor se exprime pelos seus personagens a partir de relações díspares, ela emerge como uma máquina
de guerra contra o Estado, pois sua forma é precária e flexível, intensiva e criadora, como as “hordas nômades”
que derrubaram os maiores impérios da civilização humana, dentre persas e romanos, ou a nova composição
social do trabalho no capitalismo contemporâneo. Mas essa imagem também é pulsional, pois ela mobiliza as

227 Lacan utiliza o termo forclusion para traduzir a palavra utilizada por Freud, Verwerfung.
228 “E nos lançamos no sentido do proibido”, Ovídio.
220
forças do inconsciente, e sua potência pode ser considerada, sob certo ponto de vista, morfogenética ou emergente
das novas forças do capital e seu regime tecnológico corresponde – o digital e a tecnologia informacional. Pois
atualmente, “parece não ser possível ‘fazer falar’ a fábrica, fruir a sua língua, assinalar nela uma margem de
liberdade, revivê-la. E é esse o verdadeiro problema” (PASOLINI, 1980, 80). É um delírio que expressa e organiza
nossa maneira de ver o mundo e de sermos vistos, ou seja, uma fábrica de sujeitos ou a produção biopolítica dos
indivíduos (dividuais) que compõem a multidão de vozes que traçam os contornos da nova terra.

“Todo delírio tem um conteúdo histórico-mundial, político, racial; arrasta e mistura raças, culturas,
continentes, reinos: o que se pergunta é se tão longa deriva seria tão somente um derivado de Édipo. A
ordem familiar se arrebenta, as famílias são recusadas, o filho, o pai, a mãe, a irmã (...) Será que os nomes
da história são derivados do nome do pai, e que as raças, as culturas, os continentes são substitutos do papai-
mamãe, dependências da genealogia edipiana? Será que a história tem o pai morto como significante?”.
(DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo, pgs. 123-124).

Édipo Rei: entre o forcluído e o desterritorializante.

A psicanálise elegeu o triângulo familiar papai-mamãe-Eu como a base da psique humana, mesmo
reconhecendo a existência de relações exoedipianas no psicótico e paraedipianas em outros povos não-europeus.
A normatividade do sujeito caminha com a resolução do complexo, e Freud anteviu a psicose como parte de
uma constelação que extrapola a relação pai-mãe, incluindo ao menos três gerações diferentes, é a constelação
dos avós. Finalmente, a distinção entre o imaginário e o simbólico estabelece uma estrutura, uma disposição de
lugares e funções, independente da variação cultural que constitui o sujeito, é o Édipo de estrutura (3+1), que
ultrapassa a triangulação familiar, mas opera todas as triangulações possíveis ao distribuir o lugar do desejo, do
seu objeto e da lei. É o Édipo estrutural, para além da formação normativa inicial pensada por Freud, que colmata
a impossibilidade de conjuração ou inexistência da constelação familiar edipiana entre os povos não-europeus e
no psicótico. A forclusion, por exemplo, amplia a influência do pai (lei) como constituinte da formação psicótica,
quando este rejeita um significante primordial na estruturação da castração e se desvia da norma, condição de
possibilidade para a normalidade “neurótica”, pois de acordo com o conceito lacaniano, independente da relação
familiar estabelecida, seja com a avó, a bisavó ou mesmo algum ancestral longínquo, a dinâmica estrutural
alicerçada no deslocamento funcional que a rejeição produz (3+1), asseguraria a triangulação pai-mãe-Eu na
psique do indivíduo, de maneira que o forcluído reapareceria no real na forma alucinatória ou como imagem
sonho, segundo Glauber.

O que o Édipo esmaga e recalca, segundo Deleuze e Guattari, seja em sua forma estrutural ou freudiana,
são as máquinas desejantes que não se deixam capturar pela constelação familiar edipiana. Pois o inconsciente,
segundo os autores, não é um teatro trágico da representação, mas uma usina, uma fábrica irrepresentável. Édipo
não passa de uma tragédia europeia encenada em três atos229. Como disse Jung a Freud, “se eu vir nos olhos
de um africano ou de um asiático a fagulha de Édipo, então estamos de acordo”. Não que a estrutura edipiana
não seja uma figura invariante, a formação psíquica não varia de acordo com a sociedade em que insere, como
pensava Malinowski, mas o inconsciente também não figura ou imagina, ele não é simbólico ou arquetípico, mas
maquínico, sua produção envolve agenciamentos sociais, políticos, históricos, monstros e delírios imperiais, o
inconsciente é o Real em si mesmo, e Édipo é apenas uma “estrutura”. As estruturas não determinam em última
instância o que somos ou deixamos de ser (forclusion), pois o mundo da experiência as corrói como a água a
pedra, a ferrugem a ponte. Não se pode dizer das estruturas que elas não existem, mas também não se pode dizer
da realidade que ela é estrutural. O conceito leibnizeano de mônada é exemplar neste sentido: antes de sermos
229 Referência à fase oral, anal e genital na configuração psíquica do indivíduo.
221
estruturados, somos um micromundo que se desdobra num macromundo, e o resultado deste dobra em constante
e imprevisível movimento, “lançados de volta ao mar”230, é o que nos forma. As estruturas não suportam a
variação das marés e a força das correntes marítimas, tal como a revolução, menos racional do que mágica, um
imprevisto das forças populares contra a razão dominadora.

Entre a máquina social e a máquina desejante há uma relação de recalcamento, onde a social reprime a
desejante. É assim com o desejo, que redobra sua força da repressão, mas não falta, ao contrário, excede e produz
– uma mais-valia do desejo. O inconsciente é o domínio das sínteses livres, das conexões sem fim, disjunções sem
exclusão, conjunções sem especificidades, dos objetos parciais e dos fluxos. Nele só há sínteses: síntese conectiva
(de produção), disjuntiva (de registro) e conjuntiva (de consumo). Com o Édipo soberano, tudo se perde, a
produção desejante é esmagada pela triangulação que determina o lugar e as funções do sujeito em torno da lei e
do objeto do desejo. A asserção do pai torna possível a cultura – o simbólico –, castrando o desejo pela natureza
(mãe), assim nos tornamos humanos.

Édipo é o veneno transcendente na psicanálise, a virada idealista, o lugar de onde a máquina desejante
transmuta-se em fantasma originário, outra brecha para papai-mamãe, o agente de antiprodução do desejo. Tal
como o capital em sua relação com o trabalho produtivo. Há expropriação e disciplinarização, mobilização das
forças em termos de utilidade e obediência, mas o desejo (revolução ou sabotagem) sempre escapa. Em suma, Édipo
é a normatividade europeia ocidental na psique humana, pois sem a ascensão e extensão do regime disciplinar e
das relações de produção capitalistas, a estrutura edipiana jamais se tornaria global. Édipo é filho do imperialismo
europeu, nós somos filhos do hibridismo neocolonial, hoje imperial, pré-edipiano, somos édipos famintos, a fome
é nossa nervura, a violência a nossa “janela para o mundo”, mas também um catalisador de desejos. “Assim,
somente uma cultura de fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais
nobre manifestação cultural da fome é a violência” (ROCHA, 2004, 66). Sempre houve um Édipo oculto sobre
as relações filiativas ancestrais, coagido ou conjurado pelos devires animais inumanos, mas mesmo nos regimes
despóticos onde o Estado (Urstaat) se fazia presente, o incesto se dava entre imperadores e imperatrizes, no seio
da aristocracia, e nunca como um dispositivo psíquico estruturante, um liame entre a natureza e a cultura. Na
cidade grega, por exemplo, onde se deu a tragédia de Édipo, não há como pensar a formação da psique humana
sem passar pelo nomos231 da polis, pelo diagrama de poder da cidade que ultrapassava as relações familiares.
Édipo desconhece as potências da terra, mas não o inconsciente, pelo contrário, ele é uma de suas emanações.
“A terra é um grande ser sensível, um planeta saturado de humanidade de um extremo ao outro, um planeta vivo
que se expressa de maneira balbuciante e gaguejante...” (MILLER, 1983, 94). O campo social em suas muitas
variações – culturas, povos, raças, continentes, reinos – é uma ponta dos movimentos infinitos da terra. Reduzir
o inconsciente e a história ao romance familiar é destituir do homem a sua cumplicidade com os “regozijos do
mundo”. Não somos e somos, nos diz Heráclito, mas com a terra somos muitos! Um logos que se alimenta da
guerra como princípio último da criação – e completa – “Se não sabe escutar, não sabe falar” (HERÁCLITO,
1996, 177). Mas o que não escutamos? O que Freud não escutou? As pulsões da terra – as máquinas desejantes.

“O professor Challenger, aquele que fez a Terra berrar como uma máquina dolorífera, nas condições
descritas por Conan Doyle, depois de misturar vários manuais de geologia e biologia, segundo seu humor
simiesco, fez conferência. Explicou que a Terra – a Desterritorializada, a Glaciária, a Molécula gigante – era
um corpo sem órgãos. Esse corpo sem órgãos era atravessado por matérias instáveis não-formadas, fluxos

230 Frase de Leibniz, antes de escrever o Tratado de Monadologia: “Eu sentia que estava num porto seguro, mas fui lançado de
volta ao mar”.
231 A democracia, na Grécia antiga, é o governo dos nomos, das “tribos” que constituem a cidade.

222
em todos os sentidos, intensidades livres ou singularidades nômades, partículas loucas ou transitórias”.
(DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Vol. 1, pg. 53).

Multidão e pobreza: uma questão de carne.

“Do outro lado do Monte Santo existe uma terra onde tudo é verde... Quem é pobre vai ficar rico do lado de
Deus e quem é rico vai ficar pobre nas ‘profundas’ do inferno!” (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha,
1964). O filme treme, emerge da miséria e da seca, da exploração dos coronéis do nordeste brasileiro, é a estória
de Manoel Vaqueiro (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) nas pelejas do sertão, na lutar por conservar-se
e aumentar sua potência de agir, seja no encontro com Sebastião, “homem santo” que reivindica a terra verde
“onde homem não pode ser escravo do homem” ou com Corisco, uma máquina de guerra contra a “república que
engorda matando pobre de fome” (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha, 1964). O misticismo é a arma
do povo contra a razão do Estado, por isso os personagens vivem em transe: – Rosa: “Você se lembra de mim?
– Manoel: Não me lembro de mais nada, nem da noite nem do dia...”. É Corisco: “... São Jorge me emprestou a
lança dele pra matar o gigante da maldade...” – Manoel: “Se vier a guerra luto contra mil soldados... O destino
é maior do que a morte” e Antônio (Maurício do Valle): “Um dia vai ter uma guerra maior nesse sertão, uma
guerra grande sem a cegueira de Deus e do Diabo... E pra que essa guerra comece logo, eu que já matei Sebastião,
vou matar Corisco”. Devir famélico contra a fome. O guerreiro é aquele que vive no meio, entre o lobo e o cão,
um anômalo que trai o pacto e rompe o liame. Corisco encarna o berro daqueles que não podem falar, é a força
incomensurável da revolta, nele não há espaço para conciliações, o que ele não entende, mata e tortura, a guerra
aflora em sua pele. Antônio é o mercenário que se corrói por dentro, mas sabe que é preciso precipitar as forças
do caos, por um lado, negocia com os padres e os coronéis, do outro, desterritorializa os poderes que animam a
miséria no sertão. Manoel é o pobre e suas linhas de fuga, mata e ora, sente remorso, vibra com a terra verde,
mas não sabe como alcançá-la, se é preciso matar inocentes, chora e se desespera. Rosa é a lucidez da angústia,
tem os olhos mirados no vazio da existência, só consegue enxergar o sertão e a impossibilidade de viver numa
terra árida dominada pelo latifúndio, mas quando Sebastião a marca com o sangue de uma criança, ela acorda e o
mata. Rosa age “sob premissas objetivas” e só se liberta da causalidade aparente entre os entes quando deseja o
homem que respira a guerra como sinal dos tempos e se entrega a ele ao som intempestivo das “Bachianas”232. No
duelo final, entre Corisco e Antônio, o primeiro, em transe evoca a mítica cristã que povoa a cultura nordestina,
desdobrando-a: “Eu José, com a espada de Abraão serei coberto, eu José, com o leite da Virgem Maria serei
borrifado, Eu José, com o sangue de Cristo serei batizado... Onde não me possam ver nem ferir nem matar,
nem o sangue do meu corpo tirar”. O cenário é desolador, os personagens caminham pelo deserto, sem rumo ou
direção, sujos e sem orientação, o sol escaldante fere a imagem, o violão solitário de Sérgio Ricardo inicia um
leve repente, as batidas mantêm um intervalo mais longo entre si, suavizando a passagem entre os acordes, mas a
música é dura: “Jurado em dez igrejas, sem santo padroeiro, Antônio das Mortes, matador de cangaceiro, matador,
matador, matador de cangaceiro...” (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha, 1964). É a gagueira da terra
que geme: “Procurou pelo sertão, todo mês de fevereiro, o dragão da maldade contra o santo guerreiro, procura
Antônio das Mortes, procura Antônio das Mortes...”. De repente uma troca de tiros e Antônio se desvia das balas
232 O intenso beijo de Rosa em Corisco, onde a câmera de Dib Luft gira até entontecer o espectador e captar o fulcro
da imagem. Câmera-olho do discurso indireto livre, a câmera que sente, como escreveu Pasolini. As Bachianas, música
de Villa Lobos.
223
de Corisco, o violão enlouquece, Manoel e Rosa não sabem o que fazer e se agacham nas poucas moitas que o
deserto oferece, Dada é ferida: “Se entrega Corisco, eu não me entrego não, eu não sou passarinho pra viver lá
na prisão, só me entrego na morte de parabelo na mão!”. Antônio: “Se entrega Corisco!”. – Corisco: “Ah, ah,
ah...”. Ele salta e rodopia como um animal, imita um carcará, a ave guerreira do sertão, Corisco de braços abertos
encara o inimigo de frente e berra: “Mais forte são os poderes do povo!”. Dada solta um grito inumano e estende
os braços para um último toque no corpo ainda vivo do amado. Fim. Não, Manoel e Rosa correm desesperados
pelo solo infértil, mas não alcançam a terra verde, é a câmera que encontra o mar. O filme de Glauber choca pela
beleza e pela crueldade das imagens. Mas não é só isso. A sua narrativa também se faz presente pela precariedade
da forma, pelo faux raccord e o discurso indireto livre dos personagens e do próprio sertão233. Ela é alquebrada,
tensa, violenta, exprime as relações de força pela poesia e pelo mergulho seco na miséria: os rostos da pobreza,
as cantigas e ladainhas, o caminhar trôpego das procissões, um neorrealismo em transe! Glauber, como vidente,
enxerga o despertar de uma nova sociedade, onde o capital já não condensa a força do operário nas amarras da
fábrica ou da escola234, moldando-os segundo normas que visavam extrair o máximo de produtividade no menor
espaço de tempo, extraindo sua mais-valia do tenso equilíbrio entre o salário dos trabalhadores e o lucro dos
patrões, com a garantia de um exército reserva de mão de obra que permitia ao capitalista, ao mesmo tempo,
manter sua lucratividade e o reinvestimento no maquinário produtivo a partir da circulação e do consumo de
mercadorias que não podiam ultrapassar a linha entre a superprodução e a escassez de produtos. Não, a sociedade
atual inclui tudo o que é vivo na produção – biopoder –, inclusive aqueles que estão apartados do processo
produtivo, é um capitalismo de superprodução que mercantiliza todas as dimensões e possibilidades do humano e
da natureza, onde “a reprodução da força de trabalho se dá, no essencial, fora da empresa” (ALTHUSSER, 1985,
56), e os pobres emergem como a nova face da libertação e da reinvenção produtiva do capital. “Vivemos em
transe, em busca do mar”.

No capitalismo fordista ou industrial, as lutas convergiam contra o regime disciplinar e sua ordem
discursiva, seus dispositivos e modos de visibilidade. Maio de 68 foi um dos momentos de irrupção dessa ordem,
o acontecimento que provocou o corte nos discursos e a destruição (simbólica e real) da maquinaria do poder,
como também da criação e incorporação de novas formas de luta e modos de vida. O movimento negro, feminista,
hippie, homossexual, os anormais emergem contra a ordem normativa – uma monstruosidade da carne! E ainda
que as mulheres, os negros ou os indígenas sejam maioria numa sociedade, eles fazem da política um devir
minoritário – são minorias – pois se opõe ao modelo dominante de subjetivação (homem branco, falante de uma
língua europeia, heterossexual, morador de uma metrópole...); o Homem ocidental está sempre presente na linha
(como negação ou afirmação do sujeito) e a cultura, a economia ou a política no mundo atual, como produção de
sentido235, tem nele o seu fim. “As raízes índias e negras do povo latino-americano (e não a classe média branca,
pastiche do colonizador europeu) devem ser compreendidas como a única força desenvolvida deste continente”
(ROCHA, 2004, 51) e sua mística é também sua libertação. Essas minorias se organizam de forma rizomática
e imanente, através de uma política menor, uma “língua estrangeira”, e recusam a hierarquia e a verticalidade

233 O faux raccord é uma técnica ou recurso narrativo utilizado pelo cinema novo e pela nouvelle vague, principalmente
nos filmes de Godard e Glauber, mas também nos filmes de Sganzerla, que funda com Ozualdo Candeias o cinema
marginal. A técnica consiste na descontinuidade entre um plano e outro, produzindo um efeito de “erro”, atestando a
autonomia entre as partes de um filme: a câmera, a narrativa e os personagens, a diegese e o extracampo. Ele contribui
com o discurso indireto livre, na medida em que estimula essa heterogeneidade entre as partes, livrando-as do fio narrativo,
ao possibilitar um cinema de poesia e não de prosa, segundo Pasolini.
234 O aparelho ideológico do Estado por excelência, segundo Althusser: “Afirmamos que o aparelho ideológico de
Estado que assumiu a posição dominante nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classe política e
ideológica contra o antigo aparelho ideológico do Estado dominante, é o aparelho ideológico escolar”, pg. 71.
235 O que nos remete à nossa discussão anterior que tratava do conjunto de significantes dominantes que constante-
mente são rebatidos na figura do pai (lei) como fim último da organização e produção de sentido na modernidade edipiana.
224
dos partidos e sindicatos tradicionais; são máquinas de guerra nômades contra o aparato estatal, operando por
desterritorializações e fluxos no campo social. “A recusa da disciplina e a experimentação de novas formas
produtivas como a contracultura acentuou o valor social da cooperação e da comunicação” (NEGRI E HARDT,
2006, 95), transformando o capitalismo e seu sistema de dominação.

Por um lado, o capital engloba toda a vida em seu processo de produção e reprodução social, gerindo
o corpo e a “alma” do indivíduo enquanto espécie, em sua dimensão biológica e cultural, onde um tipo de
poder pastoral organiza o que pode ou não sobreviver, o que é ou não criminalizável, maximizando suas forças
ao limite da utilidade e da gestão eficiente das multiplicidades controladas (biopoder); do outro, o poder da
multidão enquanto potência reorganiza a produção através de conexões díspares e singulares, “manejando o
tempo e construindo novas temporalidades” (NEGRI E HARDT, 2006, 495), retomando a expansão do capital,
da possibilidade de sua superação e da própria vida ao infinito das relações sociais, instaurando mundos possíveis
onde antes só havia o “deserto” (biopolítica). A multidão não é o povo, ela é aquilo que foge ao soberano, “os
cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, são a multidão contra o povo”236, logo, sua performance política
está além dos aparelhos de captura que nos vinculam ao corpo da soberania com suas duas cabeças: o rei déspota
dos liames e o sacerdote-jurista dos contratos, no capitalismo atual, enquanto tendência, o liame é efetivado
na espetacularização das imagens divulgadas pela publicidade, pelo cinema, pelas redes televisivas – religados
e transformados pelo digital e a internet -, e o contrato é estabelecido pela democracia representativa e sua
subordinação ao mercado financeiro e o tripé neoliberal que o sustenta como um axioma no corpus economicus
da terra (superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante).

A multidão é uma força centrífuga que se dissemina para além dos centros de poder, esvaziando-os
de sentido e potência, mas o Estado se apropria e captura essas forças, reelaborando-se a partir da exploração
econômica e da dominação política que exerce sobre elas, já o povo, como disse Glauber, “é o mito da burguesia,
(pois) a razão do povo se converte na razão da burguesia sobre o povo” (ROCHA, 2004, 250), e só uma ruptura
com o “racionalismo colonizador” (ROCHA, 2004, 250) é capaz de assegurar uma real autonomia das forças que
compõem o povo para além da soberania (multitudo). O Estado é o vazio que colmata e vampiriza para conservar-
se – é o fim da história, o sujo segredinho dos confessionários, a morte da terra. “O inimigo contemporâneo é
como o exército do faraó: persegue os fugitivos, massacra suas retaguardas, mas nunca consegue ultrapassá-los
ou confrontá-los” (VIRNO, 2008, 143), só precisamos demarcar o lugar e a posição do êxodo, pois a estética já
possuímos na pele, ela é o sonho que não se explica:

“Há que tocar, pela comunhão, o ponto vital da pobreza que é seu misticismo. Este misticismo é a única
linguagem que transcende ao esquema racional de opressão. (...) O irracionalismo liberador é a mais forte
arma do revolucionário. (...) E a revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais
irracional de todos os fenômenos que é a pobreza” (ROCHA, 2004: pg. 66).

A multidão organiza-se através do que Negri e Hardt chamam de “poder da carne”, um conjunto intensivo
de ações e virtualidades que unificam as diferentes partes do corpo social e político de forma autônoma e produtiva,
um corpo sem órgãos que recusa a unidade orgânica da soberania. O Estado caracteriza-se globalmente como um
sistema de apartheid, cujas linhas se desenham acima e abaixo das fronteiras nacionais, um regime de inclusão
hierárquica, onde os pobres espalhados pelo mundo, explorados econômica e politicamente pelo capital global,
ocupam as metrópoles “brancas” do capitalismo desenvolvido, incitando o pânico racial (com a figura do árabe ou
do africano como o terrorista em potencial) e a defesa da nação e do povo identitário (étnica e culturalmente) como
236 Citação de Hobbes.

225
fundamentos da nação (o “último refúgio dos canalhas”237): “É esta talvez a forma mais primária do biopoder: se,
como se costumava dizer, quantidade é poder, a reprodução de todas as populações deve ser controlada” (NEGRI
E HARDT, 2006, 217).

O conceito de classe, para os filósofos, assim como para Marx quando pensou o proletariado238, não se
refere apenas a um segmento social incluído e necessário à reprodução das condições de produção, a classe tem
um caráter tanto econômico quanto político, portanto, na sociedade atual, biopolítico, e, além disso, também
expressa as capacidades criativas dos explorados pelo sistema global do capital. É neste sentido que Negri e
Hardt incluem os pobres como centrais na concepção de classe enquanto multidão – uma multiplicidade que
atua em comum. “A fome latina não é apenas um sistema alarmante, mas o nervo de nossa sociedade. (...) nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (ROCHA,
2004, 65). A carne da multidão é informe, ela é puro potencial, e assim como a classe marxiana, ela não se baseia
unicamente em dados empíricos, mas principalmente em dados potenciais, não se pode dizer exatamente “o que é
a multidão”, mas persegue-se o que pode “vir a ser a multidão”; ela é uma partilha de singularidades em comum,
e a sua carne são as condições de possibilidade de sua própria formação. A produção comum sempre envolve um
excedente que não pode ser expropriado pelo capital ou capturado pelo corpo político da soberania global, mas
quando o é, gera um antagonismo que se transforma em revolta,
isto é, o antagonismo está ligado à riqueza, ao que excede. “As revoltas mobilizam o comum sob dois aspectos,
aumentando a intensidade de cada luta e estendendo-se a outras lutas” (NEGRI E HARDT, 2006, 276). O pobre,
a grande massa de trabalhadores e precariados239 incluídos nos circuitos da produção capitalista, dos zapatistas
aos negros dos guetos estadunidenses, dos favelados aos imigrantes africanos nas periferias d´Europa, produzem
esta riqueza potencial (em revolta) e, por conseguinte, excede os dispositivos de controle do poder, econômica
e politicamente240; em última análise, todos nós participamos da produção social, deixamos de ser proletários,
já não há fábricas suficientes para todos: “não somos indianos, somos os pobres, não somos africanos, somos os
pobres!”241. O capitalismo global só existe em função da gestão da miséria e da delimitação de hierarquias globais
na distribuição dos recursos. Enquanto classe, ou como “aquele que é desnudo pelo capital, só possuindo em suas
mãos o desejo de existir e criar”, o pobre encarna as condições ontológicas da resistência e da vida produtiva – a
carne da multidão.

“A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute psiquicamente de tal forma que
este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissão à razão que o explora

como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é
naturalmente mística. (...) A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime à bala”
(ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo, pg. 66).
237 Citação de Samuel Johnson.
238 Aquele que só detém sua prole e vende o seu trabalho (alienado pelas leis do mercado e pela exploração do ca-
pital) para o capitalista que detém os meios de produção e os aparelhos estatais repressivos e ideológicos, mas também
o sujeito histórico capaz de ultrapassar o sistema capitalista por meios revolucionários.
239 Termo usado por Negri e Hardt para contrapor e/ou redefinir o conceito de proletariado de Karl Marx em função
da reestruturação das relações da produção capitalista e do novo sujeito histórico que emerge com ela: a multidão de tra-
balhadores precarizados, o precariado.
240 A produção dos pobres pode ser vista não só na medicina tradicional dos indígenas ou nos estilos de vida e nas
músicas feitas nas periferias brasileiras, norte-americanas ou francesas, mas também em comunidades como a zapatista
que, ao defender um modo de vida autônomo e anticapitalista, também se insere na produção mundial mobilizando afetos
e paixões ao redor do mundo. Ou seja, o conceito de produção aqui desenvolvido está dentro e fora da produção para o
mercado e da reprodução social no capitalismo global. O modo de vida zapatista podendo ser ou não expropriado pelas
empresas, isso não nos interessa, o que interessa é que ele já está disseminado pelo mundo, nos movimentos sociais ou
como forma de expressão individual, excedendo em muito as fronteiras de Chiapas.
241 Lema de protestos na África do Sul.

226
Referências bibliográficas

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_____. De Volta – Abecedário biopolítico. MARQUES, C. In São Paulo/Rio de Janeiro: Record, 2006.
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VIRNO, Paolo. Virtuosismo e Revolução. Trad. de LEMOS, Paulo Andrade. In Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008.

Vladimir Lacerda Santafé - Doutor em comunicação e cultura pela UFRJ (2019), possui mestrado em
comunicação e cultura pela UFRJ (2011), graduação, bacharel e licenciatura em filosofia pela UERJ (2006) e
graduação em cinema pela UNESA (2001). Tem experiência na docência de filosofia e teoria da comunicação, na

227
educação básica e universitária, atuando principalmente nos seguintes temas: ética e política, filosofia da educação,
estética e teoria da imagem; como também na produção, roteiro e direção de vídeos, de ficção e documentários,
assim como na confecção de poemas e outros escritos. É autor de: Da biopolítica dos movimentos sociais à
batalha nas redes: vozes autônomas (Rizoma, 2014) e Poesia Ágora (Multifoco, 2014) e co-autor de Amanhã vai
ser Maior: O levante da multidão no ano que não terminou (Annablume, 2014) e Linguagem, Comunicação e
Cultura (RG Editora, 2013)

228
18. Adélia Sampaio: Trajetória e obra de uma pioneira

Giovanna Picanço Consentini

Adélia Ferreira Sampaio nasceu em 20 de dezembro de 1944 em Belo Horizonte, Mina Geral. Considerada
a primeira diretora negra a realizar um filme de longa-metragem no Brasil (CAVALCANTE, 2017; OLIVEIRA,
2016; SOUZA, 2013), Adélia é também uma das poucas que realizaram longas-metragens até os anos 1980,
antes da chamada retomada do cinema brasileiro, um período, a partir dos anos 1990, de bastante crescimento do
número de mulheres cineastas.

Ao longo de sua trajetória, a cineasta coleciona histórias de obstáculos e superações. Filha de empregada
doméstica e pai desconhecido, com seis anos de idade partiu para o Rio de Janeiro com sua mãe e a irmã Eliana.
No entanto, a mudança de cidade logo se tornou um problema para a família, principalmente para Adélia. Em
entrevista ao portal O Globo, em dezembro de 2017, ela contou que assim que chegou a cidade, ela e a irmã foram
matriculadas num colégio interno pela patroa de sua mãe. Sem conseguir se acostumar ao lugar, Adélia foi então
mandada para um asilo na cidade de Santa Luzia, em Minas Gerais. Assim, ficou separada de sua família por sete
anos. Segundo ela, por vontade da patroa e sem o consentimento de sua mãe, que além de tudo contraiu dívidas
com a empregadora (RISTOW, 2017).

De volta à capital fluminense, foi em uma sessão de Ivan, o terrível (Ivan Groznyy, Serguei Eisenstein,
1944), que viu seu interesse pelo cinema despertar pela primeira vez. Em entrevista concedida para minha pesquisa
de mestrado, em novembro de 2017, ela recordou daquele momento:

Voltando do asilo, já com 13 anos, entrava num cinema, o “Metrô Passeio”, pela primeira vez com minha
irmã Eliana, para assistir um filme russo: Ivan, o terrível. Ao terminar o filme eu, em total estado de graça,
disse a Eliana: “é o que eu quero fazer na minha vida”. Ela sorriu e disse: “[isso] não é para nosso bico!”.
(SAMPAIO, 2017)

A despeito do conselho da irmã, a paixão só aumentou e, aos poucos, moldou o sonho de Adélia. Eliana
Cobbett teve um papel significativo na relação de Adélia com o cinema ao longo de sua carreira. A irmã começou
no cinema em cargos administrativos e depois se consolidou como diretora de produção e, principalmente,
como diretora executiva. A trajetória de Eliana tem início na Tabajara Filmes, onde conheceu o cineasta William
Cobbett242, com quem, anos mais tarde, se casou. Eliana foi gerente dessa produtora e distribuidora, que funcionou
de 1955 a 1964 e tinha seu marido como sócio. A empresa era uma das responsáveis pela vinda de produções do
leste europeu para o Brasil, o que, juntamente com as inclinações políticas de seus donos, resultou em perseguições
a partir de 1964, com a instauração do regime militar. Dentre as poucas referências sobre a distribuidora, presente
nas pesquisas que cercam a cinematografia nacional, encontramos na dissertação de mestrado de Reinaldo
242 Natural de Ipanguaçu, no Rio Grande do Norte, William Cobbett foi diretor, roteirista e produtor. Trabalhou em
filmes como A Vida de Jesus Cristo (José Regattieri, 1971), Uma Tarde, Outra Tarde (William Cobbett, 1976) e Jesuíno
Brilhante – O Cangaceiro (1972) (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).
229
Carneduto mais informações. Segundo ele, a Tabajara Filmes:

surgiu com a finalidade de distribuir filmes, principalmente de esquerda, no circuito comercial e alternativo
de exibição. A empresa, responsável pela distribuição de O encouraçado Potenkin (Serguei Eisenstein,
1925) no Brasil, em 1963, foi co-produtora de Ganga Zumba (1963) e Canalha em crise (1963), primeiros
longas-metragens de Cacá Diegues e Miguel Borges, e chegou a ser invadida por militares, nos primeiros
anos do Regime Militar, em consequência de suas atividades políticas. (CARNEDUTO, 2008, p.87)

Depois que a Tabajara Filmes foi fechada, Eliana passou a gerenciar a distribuidora Difilm. Criada em
1965, por um grupo de onze cineastas243, muitos deles ligados ao Cinema Novo, a Difilm - Distribuidora de Filmes
Ltda., tinha como principal função fazer circular a produção de cinema nacional. Em 1968, Adélia Sampaio
também ingressou na distribuidora como telefonista, a convite da irmã. Nesse período, a Difilm investia seus
lucros em novas produções, e conseguiu montar uma rede nacional de distribuição, com cópias de 16mm que
podiam fazer os filmes circular em cineclubes e universidades (FIGUEIRÔA, 2004, p. 29). A própria Adélia
participou dessa movimentação, à medida que foi assumindo mais funções dentro da distribuidora. Na entrevista
à Filme Cultura de 1988, Adélia revelou como esse aprendizado acontecia na prática. Ela conta que costumava
ficar na empresa até depois de seu expediente como telefonista para acompanhar o trabalho com as cópias dos
filmes (FILME CULTURA, 1988: 93). Para Sampaio, o emprego na Difim foi uma porta de entrada para sua
carreira como cineasta. Muitos trabalhos, depois que ela deixou a distribuidora, vieram a partir de convites de
pessoas que conhecera na Difilm. Em seu depoimento sobre essa ocasião, Adélia recorda:

Trabalhei na Difilm como telefonista, depois como programadora das películas 16mm para cineclubes, que
na época eram muitos. Primeira chance quem me deu foi Marcos Farias, [que] me entregou a produção do
longa A Cartomante com Italla Nandi, Maurício do Valle, Ivan Cândido. Trabalhamos todos em regime
de cooperativa. [O filme tinha] a direção de Marcos Faria, roteiro de Miguel Borges, direção de fotografia
de Jéferson Silva. Depois participei de vários longas como continuísta, claquete e até maquiadora. Foram
experiências que guardo na memória. Tracei uma meta para chegar ao meu objetivo. Tudo sempre com a
cumplicidade de minha irmã. Ela criticava, mas não se furtava em ajudar. Fizemos, durante algum tempo,
uma dobradinha onde ela fazia a produção executiva e eu, direção de produção ou set. Foram muitos
trabalhos (SAMPAIO, 2017).

Essa experiência foi, para Adélia, uma das principais fontes de aprendizado, segundo explica:

Fui ser telefonista da Difilm porque eu, um dia, queria dirigir um filme. Fui para a Difilm porque achei que
ali eu poderia estar próxima de alguma coisa que eu queria muito, na medida em que tinha absoluta certeza
de que jamais eu iria conseguir ingressar numa faculdade, por uma questão econômica. Depois, porque eu
teria que fazer o segundo grau para fazer um vestibular e jamais teria condições de bancar uma faculdade.
Então achei que ali eu poderia, pelo menos, descobrir, pegar e sentir o que era uma película. (FILME
CULTURA, 1988: 92)

243 As fontes divergem sobre o quadro societário da Difilm. Segundo Zuleika Bueno (2000, p. 61), a empresa era
composta por: Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Glauber
Rocha, Leon Hirszman, Luís Carlos Barreto, Roberto Farias, Rivanides Faria, Roberto Santos e Rex Endsleigh. Enquanto
Luciano Fernandes (2008, p. 239) inclui entre os onze Marcos Faria, Walter Lima Júnior e Zelito Viana e exclui Nelson
Pereira dos Santos, Roberto Santos, e Rex Endsleigh.

230
O trecho acima evidencia a consciência de Adélia sobre os desafios impostos para fazer cinema, acentuados
por sua origem pobre, entendendo que as oportunidades não se dão de forma igualitária, ainda mais em seu
caso: mulher, negra e pobre. Além dos obstáculos comuns e do esforço triplo (raça, gênero, classe) vivido por
Adélia para alcançar espaço no meio cinematográfico, o período em que tanto ela quanto Eliana se encontravam
na Difilm foi conturbado na conjuntura nacional. O país situava-se em uma ditadura militar desde 1964, com
forte repressão aos movimentos sociais, práticas de torturas, censura a jornalistas e aos meios de comunicação,
entre outras suspensões de direitos, em uma situação agravada a partir de 13 de dezembro de 1968, pelo Ato
Institucional n. 5, AI-5. As consequências do regime atingiam a vida profissional e também pessoal de Adélia
Sampaio. Os acontecimentos pioraram em 1969, como relembra: “já com dois filhos, o pai dos meninos vai preso
e torturado. [...] Ficou preso por um ano e meio no CENIMAR. Eu me dividia entre filhos, Difilm e presídios”
(SAMPAIO, 2017).

Naquele momento, Sampaio chegou a ser considerada um risco para a Difilm e, segundo ela, foi Luiz
Carlos Barreto quem lhe ajudou a permanecer no emprego (SAMPAIO, 2007). Pedro Porfírio Sampaio, marido
de Adélia, na época, era jornalista do Correio da Manhã e militante de esquerda quando foi preso em 1969. Ele
foi acusado de integrar o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8)244 e levado ao Presídio da Ilha Grande.
Conhecido como “ilha das flores”, o lugar era palco de torturas e maus tratos e abrigava muitos presos políticos
do Rio de Janeiro (SÜSSEKIND, 2014). Pedro foi inocentado e solto dois anos depois, em 1971, e, desde então,
passou a denunciar os casos de tortura e outros horrores vividos por ele e muitos presos políticos durante o regime
militar. Nos anos em que ele esteve preso, Adélia frequentara o presídio, cujo acesso era realizado somente
através de barcas. De acordo com Elisabeth Süssekind:

A experiência dos visitantes de presos à penitenciária de Ilha Grande era iniciada por uma viagem. As
famílias deviam estar às 5h30 na Rodoviária Novo Rio, na cidade do Rio de Janeiro e chegavam as 7h30
em Mangaratiba, a 180 km de distância. De lá, tomavam uma barca que seguia por mar alto e que aportava
no cais da Vila do Abraão em aproximadamente duas horas. A barca tornou-se famosa, tinha o nome de
Tenente Loretti, e havia sido construída em 1911 e desde 1937 prestava serviços aos estabelecimentos e aos
visitantes da Ilha Grande (2014: 242).

Aquele momento, no entanto, não foi a primeira vez em que Adélia sofrera na mão dos militares. Grávida
de sete meses, em 1964, apanhou de um policial no centro do Rio de Janeiro, o que provocou a morte prematura
de seu primeiro filho, ainda na barriga. “Para mim foi terrível, tivemos que fazer uma certidão de nascimento e a
seguir a de óbito. Foi brabo. Éramos muito jovens” (SAMPAIO, 2017).

244 Foi um dos principais grupos de luta armada durante o período militar no Brasil. Formado por ex-membros do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e por estudantes universitários, o MR-8 ficou conhecido por empreender expropriações
em bancos e o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick.

231
2.2. As primeiras produções

Os anos na Difilm ajudaram Adélia Sampaio a estabelecer laços que, mais tarde, seriam fundamentais para
o seguimento de projetos pessoais. Em 1972, quando ela deixa a distribuidora, avança na carreira, trabalhando
inicialmente em várias frentes, como assistente de produção, continuísta e maquiadora. O aprendizado sobre
produção e direção também viera da experiência   adquirida   junto a Eliana e William Cobbet, que sempre
envolviam Adélia nos seus projetos. A partir de então, a produção começou a ser o forte de sua carreira. Logo
em seguida à fundação de sua própria produtora, a A. F. Produções Artísticas, já assinaria a produção executiva
de O segredo da rosa (1974), primeiro longa dirigido pela atriz Vanja Orico e tendo a A. F. Produções Artísticas
como uma das companhias produtoras. Depois da empreitada com Vanja Orico, Adélia trabalhou na direção
de produção dos seguintes filmes: A cartomante (Marcos Farias, 1974), O monstro de Santa Teresa (William
Cobbett, 1975), O seminarista (Geraldo Santos Pereira, 1976), O Coronel e o Lobisomen (Alcino Diniz, 1978) e
O Grande Palhaço (William Cobbett, 1980).

Paralelamente ao cinema, investiu também na produção de teatro. Entre esses trabalhos estão algumas
peças escritas pelo já ex-marido Pedro Porfírio, que seguiu a carreira de dramaturgo ao sair da prisão. Como
teatrólogo, Porfírio escreveu oito peças, dentre elas, o sucesso de bilheteria O bom burguês (1977), obra que
passou a constar nas listas de textos censurados pela ditadura (REIMÃO, 2014).

No final dos anos 1970, A.F. Produções Artísticas assina a produção de dois trabalhos, ainda pouco
estudados na cinematografia nacional, são eles: Ele, ela, quem? (1977), último filme dirigido por Luiz (Lulu)
de Barros, e Parceiros da aventura (1979), primeiro longa-metragem do fotógrafo José Medeiros. Ambos os
filmes conseguiram diferentes tipos de financiamentos para realização junto à Embrafilme. Quanto ao teor destes
encontros, Adélia relata:

Eu aprendi muito [sobre]  a coisa do ângulo com o José Medeiros, que é muito amigo meu. Em todo
momento que a gente estava junto - fizemos alguns filmes onde ele era diretor de fotografia -, nas folgas,
o nosso papo era em função de uma aula teórica e, ao mesmo tempo, prática. Como posicionar a câmera,
de que maneira explorar o ângulo para avaliar a estrutura do ator. E paralelamente a isso, lendo muitos
livros sobre cinema. [...] Eu aprendi muito também com o Lulu de Barros, pois o último filme dele fui eu
que respondi pelo financiamento junto à Embrafilme, e o Lulu é um cara que nunca fez copião na vida
dele. Ele montava no negativo. Ter podido acompanhar o Lulu durante dois meses dentro de uma sala
hermeticamente fechada, cortando negativo, sem ouvir o som, deu para descobrir uma outra magia, uma
segurança (FILME CULTURA, 1988: 90).

2.3. Os primeiros filmes

232
Depois desses trabalhos, Adélia Sampaio começou a dirigir seus primeiros filmes, curtas-metragens, no
final da década de 1970. Infelizmente são raras e insuficientes as informações encontradas sobre essas obras245.
Segundo a própria cineasta, as cópias de seus curtas foram depositadas na Cinemateca do MAM (Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro) e sumiram. Indagada sobre o posicionamento da instituição quanto ao material
perdido, ela explica: “nunca me deram nenhuma explicação. Houve uma época em que uns meninos de cinema
propuseram fazer uma varredura no MAM, mas o Sr. Hernani246 não autorizou.” (SAMPAIO, 2017)

O primeiro desses curtas, a ficção Denúncia Vazia (1980), é baseada em uma notícia de jornal. Um casal
de velhinhos aposentados recebe uma ordem de despejo (denúncia vazia) e, sem condições de pagar o aluguel,
resolve se suicidar deixando um bilhete para as autoridades. O filme foi protagonizado por Rodolfo Arena e
Catalina Bonaki247, atores do cinema e do teatro. Em entrevista, ela falou sobre a experiência que teve com os
primeiros curtas:

Meus curtas, quase todos, foram produzidos com pontas de película que sobravam. Como era amiga dos
assistentes de fotografia, eles sempre guardavam para mim. Envolvia num plástico, enrolava jornal, punha
na geladeira até ter o número de pontas suficiente para rodar. Foram curtas rodados em 1 por 1, não teria
como ser de outra forma. Em Denúncia vazia chamei Paulão, eterno assistente de câmera de Zé Medeiros,
para estrear comigo. Ou seja, dois negros no comando, tudo com a bênção e proteção de Zé Medeiros. Li
a notícia dos velhinhos que se suicidaram por não ter como alugar outro apartamento, escrevi uma breve
sinopse e fui atrás do ator premiado Rodolfo Arena para convidá-lo pro filme, com promessa de pagar no
mês seguinte. Ele topou. O doido é que ele não quis receber o cachê e disse “não esqueça menina, que eu fui
o primeiro”. Arena era uma das pessoas mais generosas. O orçamento minha irmã que fez. O equipamento
de câmera e luz, Roberto Machado nos emprestou e não cobrou. A equipe: os meus amigos que faziam em
torno de mim um ajuntamento. Cinema é a arte do coletivo. Tive o apoio total de Mario Falaschi248, que
conseguiu que Luiz Severiano Ribeiro lançasse o [primeiro] curta que ficou em cartaz pelo Brasil afora. Os
outros foram de ponta [de película] e com rendimentos do Denúncia Vazia. Vivi um bom tempo com grana
da lei do curta249. (SAMPAIO, 2017).

A estratégia deu bons resultados. No dia 26 de outubro de 1979, seu primeiro curta-metragem, Denúncia
Vazia, fazia parte da programação de dez cinemas no Rio de Janeiro, sendo eles: Leblon-1, Tijuca, Copacabana,
Capri, Palácio-2, Leblon-2, Rian, São Luiz, Tijuca-Palace e Santa Alice (JORNAL DO BRASIL, 1979: 8).

O segundo curta-metragem, a ficção de oito minutos chamada Adulto não brinca (1980), aborda a violência
e o universo infantil da Baixada Fluminense, como consta em breve sinopse: “A tradição da malhação do Judas
245 As informações técnicas referentes aos filmes foram obtidas na base de dados Filmografia Brasileira, da Cinema-
teca Brasileira e na concatenação de relatos da diretora. 
246 Hernani Heffner é conservador, professor e curador audiovisual. Coordena o setor de preservação da Cinemateca
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro desde 1996 (BLANK, 2016, p. 334).
247 A grafia do sobrenome da atriz difere em algumas publicações. Na ficha técnica de Denúncia vazia aparece como
Bonack (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).
248 Mario Falaschi foi um distribuidor ítalo-brasileiro, dono da Unida Filmes, uma das primeiras distribuidoras de filmes
brasileiros do circuito independente (MELO, 2008, p. 381).
249 Criada em 1975, a Lei do Curta-metragem,  base da “Lei do Curta” (base no artigo 13 da Lei Federal 6.281 de 9
de dezembro de 1975), determinava a obrigatoriedade de inclusão de curtas-metragens nacionais na programação das
salas de cinema brasileiras antes das sessões de filmes estrangeiros.
233
num subúrbio. O boneco é colocado na rua como um cadáver e um bando de crianças se vê às voltas com as
consequências dessa inovação”. O elenco do curta contava com o filho da própria cineasta, Vladimir Sampaio
(FILMOGRAFIA BRASILEIRA).

O terceiro trabalho, Agora um Deus Dança em Mim (1981), protagonizado pela sobrinha, Tatiana Cobbett,
é um documentário de sete minutos sobre as dificuldades enfrentadas por jovens bailarinos no Brasil, como falta
de perspectivas e espaços para se exibirem. Sampaio mais uma vez usa de sua rede de contatos para distribuir
o trabalho. “Com ajuda de meu amigo Mario Falaschi, o curta estreou com o filme ET e, claro, deu dinheiro”
(SAMPAIO, 2007). Já Na poeira das ruas (1982), seu quarto curta, se trata de um documentário de seis minutos
sobre a realidade das pessoas que moram nas ruas. Segundo a ficha técnica, o filme estabelece um “contraponto
entre o Rio de Janeiro e a cidade maravilhosa” (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).

Em entrevista às cineastas Juliana Gonçalves e Renata Martins, concedida em 2016, Sampaio admite que
seus três primeiros curtas foram rodados com a mesma equipe, tendo muitos de seus amigos próximos envolvidos
nos projetos (GONÇALVES; MARTINS, 2016). Tal prática era bastante comum nas produções cinematográficas
brasileiras, onde os profissionais costumavam participar da produção dos filmes dos colegas. Adélia criou laços de
amizades com pessoas que tinham bastante atuação no cinema nacional e teceu sua rede profissional: “consegui,
como diretora de produção, manter uma relação muito próxima com todos os diretores de longas com os quais
eu trabalhei, e aprendi muito com eles.” (FILME CULTURA, 1988: 90). É importante ressaltar que essa rede
profissional criada por Adélia pode ser estabelecida, primeiramente, através das relações familiares (a irmã e o
cunhado, como já foi mostrado acima), que tiveram papel importante ao longo de sua carreira e a ajudaram a
expandir suas conexões com outros profissionais. O caminho, desde os primeiros trabalhos “em família”, levou
Adélia Sampaio a ser responsável pela produção, roteiro e/ou direção de mais de 70 filmes, segundo Ferreira e
Souza (2017: 176).

2.4. O sonho de amor maldito

Com a bagagem adquirida de quase duas décadas de trabalho no cinema, juntamente com a da produção
dos curtas-metragens, Adélia partiu para a realização do seu primeiro longa-metragem. À Filme Cultura de 1988
ela contou como a ideia do filme surgiu:

O projeto nasceu a partir de recortes de jornais que o José Louzeiro tinha, porque é uma história verídica.
A gente reuniu os atores, sem nenhuma perspectiva de dinheiro objetiva para dirigir o trabalho, e o roteiro
fluiu através de várias reuniões que fizemos na casa do Louzeiro. Foram notícias de jornais, baseadas
num papo, e para espanto da gente deu manchete uma vez na Última Hora, a coisa tomou um cunho de

sensacionalismo. (FILME CULTURA, 1988: 89)

Assim como seu primeiro curta-metragem, Denúncia Vazia, Amor maldito nasceu baseado em uma

234
situação real, que ocorreu no bairro de Jacarepaguá. O julgamento, que aconteceu em 27 e 28 de junho de 1980,
foi noticiado por jornais de grande circulação no Rio de Janeiro. O jornal O Fluminense, inclusive estampou na
capa de sua edição do dia 27 uma foto da ré no tribunal com a manchete, “Júri do amor maldito”, em destaque.
A linguagem sensacionalista das reportagens inspirou o roteirista José Louzeiro, que já havia escrito e adaptado
Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1978), Pixote: a lei do mais fraco (1978), ambos sucessos dirigidos por
Hector Babenco. Escritor e roteirista, o maranhense José Louzeiro iniciou sua carreira no jornalismo, onde atuou
por cerca de vinte anos. Foi nesse período que conheceu Adélia Sampaio, no jornal Correio da Manhã, onde
Louzeiro e o ex-marido de Adélia trabalhavam. E a bagagem de todos os anos na imprensa carioca apareceu na
escrita de Louzeiro, que se especializou no estilo literário do romance-reportagem. Daí a afinidade pelo tema
abordado em Amor maldito. Para a elaboração final do roteiro, José Louzeiro contou com ajuda de toda a equipe.
À reportagem, veiculada meses antes da estreia do longa, em 27 de fevereiro de 1983, no jornal O Fluminense,
Adélia contou um pouco como foi aquele processo:

O desenvolvimento do meu argumento no roteiro definitivo levou cerca de um ano e foi feito de uma
maneira inédita a nível de Brasil: atores e técnicos participaram, juntamente com a diretora e o roteirista,
na elaboração do roteiro. Isso foi importante na medida em que cada ator deu sua própria visão do seu
personagem, o que os faz se entregar aos papéis com uma vontade fora do comum. (ALVES, 1983)

Assim que o roteiro de Amor maldito ficou pronto, em 1982, Adélia partiu para produzir o filme. No entanto,
o projeto quase não saiu do papel. O principal motivo, a falta de recursos, foi agravado pela não aprovação de
financiamento pela Embrafilme, o que levou a equipe a procurar outros meios para produzi-lo. Segundo Adélia:

A Embrafilme foi categórica em me dizer que esta temática era absurda, por isso não me daria financiamento.
O filme foi rodado em sistema de cooperativa, todos receberam apenas uma ajuda de custo e atores como
Emiliano Queiroz, Nildo Parente e Neusa Amaral abriram mão do pró-labore, ou seja, compraram a minha
briga (no meu caminho de cinema fiz grandes amigos e aliados). Tivemos uma ajuda financeira de uma
engenheira de Furnas, Edy Santos250, que apostou no projeto. (GONÇALVES, MARTINS, 2016).

Parte do financiamento para a realização do filme foi concedido por essa engenheira, que conheceu
Adélia quando esta dirigiu um espetáculo teatral com os funcionários de sua empresa. Entre as dificuldades e
a colaboração de amigos e parceiros, a diretora adotou um modelo de produção e o filme foi realizado em um
sistema cooperativa. Nas palavras de Adélia, o sistema significava que “todos teriam um percentual e receberiam
algum em espécie” (SAMPAIO, 2017).

O esquema já havia sido praticado por Sampaio e por outros produtores brasileiros, tanto no cinema
quanto no teatro e continua viabilizando produções até hoje. Na reportagem d’O Fluminense, podemos entender
um pouco mais desse processo nas palavras da cineasta:

Nós levamos um ano tentando levantar o dinheiro necessário para a realização do filme. Conseguimos 40%
do total com uma engenheira elétrica, Edir (sic) Gonçalves Lima da Silva, que não tinha nenhuma ligação

250 A grafia do nome e sobrenome da produtora varia em diversas publicações. Na ficha técnica de Amor maldito,
consta “Edy Lima” entre os produtores associados (FILMOGRAFIA BRASILEIRA). Nos créditos iniciais do filme, o nome
que aparece é “Hedy Lima”.
235
anterior com cinema. Os outros 60% foram conseguidos com os técnicos e com os atores. Esse sistema
cooperativista é o único caminho, a meu ver, para conseguir fazer um bom trabalho se você for estreante ou
não estiver a fim de entrar num esquemão (ALVES, 1983).

Para evitar depender do “esquemão”, Adélia explica como compôs o financiamento do filme: “O José
Medeiros botou algum dinheiro, o João Elias entrou com o laboratório, e a gente foi fazendo composições,
naturalmente uma colcha de retalhos, e consegui fazer o filme na época por 30 mil cruzeiros” (FILME CULTURA,
1988, p. 92). A iniciativa de Sampaio virou notícia no jornal Tribuna da imprensa, no dia 6 de maio de 1983:
“neste filme, pela primeira vez no cinema nacional, desde os produtores à camareira, receberão além do cachê,
previsto na tabela do sindicato, um percentual sobre os direitos de exibição, outra tacada desta vanguardista que
é Adélia Sampaio” (ASSIS ,1983).

2.5. Condições de produção

O esquema de produção adotado por Sampaio refletia os percalços da indústria cinematográfica nacional,
principalmente em relação aos cineastas iniciantes. Naquela época, a Empresa Brasileira de Filmes S/A
(Embrafilme), órgão estatal que distribuía e produzia filmes brasileiros, desempenhava um papel significativo na
conquista de mercado para os filmes nacionais. Criada em 1969 pelos militares, a Embrafilme era uma empresa
de economia mista, com 70% de capital da União, que tinha como objetivos principais a promoção e distribuição
de filmes no exterior. A partir de 1970 foram concedidos os primeiros financiamentos, com o foco inicial em
empresas e produtores. E, ao longo dessa década, o órgão encampou de modo direto as principais lutas do cinema
brasileiro, como o aumento da reserva de mercado para filmes nacionais, exibição obrigatória de curtas nacionais
antes dos longas estrangeiros e o recolhimento compulsório da renda dos filmes estrangeiros (AMANCIO, 2007).
Foi na gestão de Roberto Farias, entre 1974 e 1978, que vieram os financiamentos para diretores estreantes. Os
critérios para a seleção das obras financiadas tinham por base, além do roteiro, o currículo dos proponentes. Para
a Embrafilme, diretores estreantes eram aqueles que comprovassem uma das várias atividades profissionais a
seguir: Roteirista e ou/ argumentista, Diretor de fotografia, cenógrafo, assistente de direção, diretor de produção,
montador, ator, diretor de curta-metragem, portador de título de curso superior de cinema (AMANCIO, 1989,
s.p.).

Além de possuir os critérios adequados ao edital, Adélia Sampaio já havia construído uma longa carreira
no cinema. Sua produtora, a A. F. Produções Artísticas, já havia sido contemplada em dois editais para coprodução
junto à Embrafilme, com os longas-metragens Parceiros de aventura (José Medeiros, 1979) e Ele, ela, quem?
(Luiz de Barros, 1977). No parecer de aprovação do longa Ele, ela, quem?, podemos verificar uma preocupação
236
da Embrafilme quanto ao conteúdo das obras financiadas pelo órgão, principalmente quanto ao teor erótico.
Como consta abaixo:

Bom argumento e, apesar da aparência, não se pode considerar a sinopse como pornográfica. Pelo currículo
de Luiz de Barros percebe-se que ele sempre procurou fazer filmes de interesse do momento. E o assunto
desta sinopse é real e de fato uma coisa nova. (AMANCIO, 1989)

O “assunto real” indicado no parecer é o hermafroditismo e, para usar um termo de hoje, a transgeneridade.
O filme conta a história de Elvira, filha de um engenheiro viúvo que, por trabalhar na Transamazônica, deixa a
menina morando num internato só para moças no Rio de Janeiro. Lá, Elvira acaba se interessando por uma das
moças, sendo que ambas se sentem culpadas pelos seus desejos. Mais tarde, em uma visita médica descobre-se
que Elvira é hermafrodita e decide assumir o gênero masculino, a partir de então.

Quando Ele, ela, quem? Foi rodado, em 1977, o discurso oficial do regime militar valorizava a família,
a ideia de que a modernidade viria através da educação moral e cívica, e do trabalho árduo. De alguma forma,
a ditadura pressionava as produções para que fugissem desses valores, seja na censura direta, seja num
comportamento de autocensura praticado por muitos cineastas. Por isso, os avaliadores da Embrafilme estavam
acostumados a associar obras sobre relacionamentos lésbicos diretamente ao erotismo. No entanto, na filmografia
brasileira, nem sempre essa associação direta ao abjeto esteve implícita. Na dissertação À procura das origens
de um cinema queer brasileiro, Mateus Nagime (2016) encontra em Poeira de estrelas (Moacyr Fenelon, 1948)
uma das primeiras tensões românticas entre duas personagens mulheres em nossa cinematografia. O filme conta a
história da amizade de uma dupla de cantoras que se separa quando uma abandona o teatro para se casar com um
homem. Para Nagime, o longa retrata a sexualidade e fluidez de gênero de forma mais “direta”, vista a partir de
uma perspectiva queer. Em sua dissertação, Nagime explica essa leitura sobre Poeira das estrelas:

O queer, é importante lembrar, não necessariamente denota uma relação sexual, e pode mesmo deixar essa
questão em aberto. O queer diz respeito a personagens cujos desejos sexuais e românticos não obedecem
a normas pré-estabelecidas ou são mesmo desconhecidos por elas próprias. Podemos observar claramente
isto em Poeira de estrelas, seja supondo uma relação consumada ou platônica, seja por parte das duas ou
apenas por Sônia. (NAGIME, 2016: 93)

A leitura do queer que Nagine faz de Poeira... mostra um eficaz exemplo (ainda que um dos poucos) de
uma produção cinematográfica que expõe sexualidades não dominantes de maneira não condenatória. Esse tipo
de abordagem volta a aparecer mais tarde, a partir da década de 1970, quando a temática gay ganha espaço no
cinema, o número de filmes que abordam a homossexualidade aumenta. São 60 títulos catalogados na década de
1970 contra 12 da década anterior, segundo a pesquisa de Antônio Moreno. O pesquisador credita esse crescimento
ao aparecimento dos movimentos de liberação sexual, além de um certo fortalecimento da indústria nacional
promovido pela Embrafilme (MORENO, 1995). Na mesma década, aparecem também os filmes da chamada
Boca do Lixo, em que muitos deles abordavam o homossexualismo.

Situada no centro de São Paulo, a Boca do Lixo se destacou a partir do final dos anos 1960 com um

237
esquema de produção de baixo orçamento, que iria estabelecer um contraponto ao modelo de financiamento
estatal da Embrafilme. O sucesso de seus filmes estava relacionado, também, ao seu apelo sexual. Na época,
uma confluência de fatores econômicos e culturais proporcionou ao cinema brasileiro uma grande produção
de filmes eróticos, homogeneizados sob o rótulo de pornochanchadas, no qual alguns títulos provenientes da
Boca foram classificados. O termo, resultado das junções das palavras “pornô” com “chanchada”, foi cunhado
para ser pejorativo pelos críticos que viam os filmes como apelativos, grosseiros e vulgares. Alessandra Soares
Brandão e Ramayana Lira de Souza entendem que as pornochanchadas e os filmes eróticos mais “sérios” foram
uma resposta às transformações sociais que ocorreram na sociedade brasileira, que passava por uma verdadeira
revolução sexual (2017: 36).

Na visão de Jean-Claude Bernardet, mesmo que os filmes lidassem com assuntos como liberação feminina
e a liberdade sexual, eles o faziam de maneira conservadora. Para o crítico, as pornochanchadas funcionavam
como extensão da repressão sexual: “a alusão ao proibido sexual não tem nenhum efeito realmente libertador, já
que ele se dá num quadro de valores que alimentam a restrição (a família, o machismo, etc.)” (BERNARDET,
2009: 207). De todo modo, filmes classificados como pornochanchadas tinham grande público e se mantiveram
até a década de 1980, com um êxito que, junto com as leis de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais,
movimentava a indústria cinematográfica brasileira.

Além do sucesso, a complexidade das pornochanchadas se apresentava na composição de elementos


ideologicamente ambíguos. Por um lado, eram vistos como filmes despolitizados, amigos do regime e por outro,
contra a moral por falarem de traição, revolução sexual e conterem nudez. Nuno Cesar Abreu acrescenta que
os críticos consideravam esse apanhado de filmes como “fruto de um momento de forte repressão do poder à
produção cultural”, “feito para um povo sem contato com a realidade do país” (1996:76 apud CAVALCANTE,
2017: 152).

É nesse cenário que Amor maldito chegou ao cinema no dia 13 de agosto de 1984, com 8 sessões diárias
na sala Olido 1, localizada no centro de São Paulo. Sobre a estreia comercial do filme, Adélia contou para
Gonçalves e Martins:

Terminamos o filme e na hora da exibição nenhum dono de cinema queria o filme. Até
que o dono do Cine Paulista me propõe transvestir a divulgação da porta como se fosse
um filme pornô. Pensei, discuti com a galera e topamos. Deu certo (GONÇALVES,
MARTINS, 2016).

Alguns dias depois o crítico Leon Cakoff lamentou o que ele chama de “onda pornográfica” logo nas
primeiras linhas de sua resenha sobre Amor maldito:

Um filme de estreia bem intencionado em meio a um mercado conturbado e desmantelado pela onda
pornográfica - onda que nos chega atrasada como todas as outras - dá bem a ideia de fim de era. Não
há espaço para boas intenções. O produto intermediário entre a obra-prima e a concessão aos apelos de
erotismo também fica sem público, pois este deve estar bestificado após tantos anos de censura e sente-se

238
enganado diante de um filme que não dá vazão à sua fantasia e perversões. Ao contrário, Amor maldito, da
estreante Adélia Sampaio, busca explicação para tanta bestialidade que enreda a patética mitologia do sexo
descartável, de consumo. E, de quebra, oferece uma pequena antologia de sexo com sentimentos de culpa.
(FOLHA DE S.PAULO, 1984)

Alcilene Cavalcante relembra em como o momento vivido no cinema nacional influenciou a adoção de tal
subterfúgio: “essa estratégia de distribuição do filme apoiou-se no fato de a pornochanchada ter atravessado os
anos 1970 de maneira exitosa, alcançando o público popular, sendo ainda um gênero muito frequentado nos anos
1980” (CAVALCANTE, 2016: 144).

Mesmo com a promoção no cartaz, o longa permaneceu em cartaz em São Paulo por apenas duas semanas
antes de seguir para Brasília, onde circulou por mais três semanas, segundo Sampaio (FILME CULTURA, 1988:
92). No circuito carioca, a distribuição foi mais difícil que nos dois primeiros, segundo admitiu Sampaio: “viemos
para o Rio para tentar lançar e não conseguimos espaço” (FILME CULTURA, 1988: 92). O que explica a quase
inexistente menção ao filme na programação dos cinemas comerciais locais.

Apesar de tantas dificuldades, o sonho de infância de Adélia fora alcançado: Amor maldito conseguiu
ser finalizado, lançado e distribuído. É importante lembrar que o filme foi financiado de forma diferenciada dos
esquemas de produção comuns àquela época, via editais da Embrafilme ou, como na Boca do Lixo, se realizando
num esquema de cooperativa. Assim, o filme pagou suas dívidas e, como combinado, todos receberam sua parte,
segundo Sampaio (2017). Além disso, foi o único filme brasileiro naquele ano convidado para o San Francisco
International Lesbian and Gay Film Festival, nos Estados Unidos. Foi exibido lá no dia 22 de junho de 1984, um
pouco antes da estreia em circuito comercial brasileiro. Adélia relembra:

Fomos convidados para exibi-lo também no festival de cinema Gay de São Francisco, mas, para o filme
sair, tínhamos que conseguir uma passagem, pela Embrafilme. Foi punk. Entreguei toda a papelada e, para
minha surpresa, mandaram o filme Asa Branca, que não abordava sequer a temática. Mais uma vez, entendi
que ser pobre e preta no cinema dá nisso. (E ONLINE, 2016)

O caso descrito acima é mais um dos obstáculos enfrentados pela cineasta, que nunca deixou de apontar
as dificuldades para fazer cinema no país, mas também criou oportunidades para trabalhar seus filmes, mesmo
em uma área que, durante muito tempo, foi dominada por homens brancos de classe média e alta. Sem espaço,
reconhecimento ou dinheiro, a situação de Adélia somaria ainda a questão racial, que desde aquela época fazia
parte de seu discurso político. Alcilene Cavalcante encontrou em uma entrevista, na ocasião de lançamento de
Amor maldito, um relato que destaca a experiência de Sampaio: “No meu caso - constata sem rancor - tudo se
agrava, pois não tenho respaldo especial, nem ascendência que me recomende. E ainda por cima, sou criola”
(CAVALCANTE, 2017: 70).

A postura da cineasta quanto a tais questões não mudou com o passar dos anos. Em 2016, quando
perguntada sobre os preconceitos sofridos no ambiente profissional, ela afirmou: “cinema é, sem dúvida, uma
arte elitista, aí chega uma preta, filha de empregada doméstica e diz que vai chegar à direção, claro que foi

239
difícil!” (GONÇALVES, MARTINS, 2016). A trajetória de Adélia segue o mesmo caminho de dificuldades de
outras personagens pobres e negras brasileiras. E isso se estende também a exclusão dos cargos de comando do
audiovisual. Suas palavras resumem isso bem:

Toquei minha vida acreditando que seria capaz de realizar filmes e jamais, em tempo algum, desejei ser
vanguarda. A síntese era simples – uma jovem pobre negra com sonhos de se debruçar em uma janela
cinematográfica e, através dela, falar do que via, pensava e acreditava. (FILME CULTURA, 2018: 22)

Sua carreira no cinema tinha que driblar os limites das barreiras de classe social, racismo e machismo,
que continuam a marginalizar histórias de mulheres negras ainda hoje. Tão sintomático, que o segundo longa-
metragem brasileiro com direção solo de mulher negra a ser lançado comercialmente no país demorou 34 anos
para sair. Coube a diretora Camila de Moraes com o documentário O caso do homem errado (2018) quebrar essa
lacuna histórica (PINTO, 2018).

Novamente vale destacar, além do pioneirismo, o protagonismo de Adélia Sampaio no controle quase
total sobre a sua obra. Ainda na década de 1980, dirigiu o documentário, Fugindo do passado251 (1987), e em
2004, co-dirigiu o longa o filme AI-5 – O Dia que não existiu, com Paulo Markum, ambos tendo como tema a
ditadura militar brasileira. Além disso, em 1991 fez o curta documentário Scliar: A Persistência da Paisagem e na
mesma época em que trabalhou com teatro, onde permanece por oito anos como assistente de direção de Miguel
Falabella (SAMPAIO, 2017). Mesmo que as dificuldades fossem maiores para uma mulher, negra e pobre fazer
cinema, Adélia Sampaio concebeu, produziu e dirigiu seus filmes, ocupando um importante episódio da história
do cinema brasileiro que por muito tempo permanecera apagado.

251 Na Filmografia Brasileira, Um drink para tetéia e História banal constam como títulos alternativos
240
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Giovanna Picanço Consentini - Jornalista, pesquisadora de cinema e mestre na área de imagem e som pela
Universidade Federal de São Carlos, com a tese Intersecções entre gênero e gêneros cinematográficos em Amor
Maldito (1984), de Adélia Sampaio.

244
Parte 3

Documentário, Política e História

245
19. El cine documental y los movimientos sociales en México

Aleksandra Jablonska Zaborowska

Introducción

En México, el cine documental cobró mucha importancia a medida que, por una parte, los conflictos
sociales fueron escalando a partir de la implementación de las políticas neoliberales, y por la otra parte, los sec-
tores sociales que se declararon en resistencia frente a dichas políticas y emprendieron diversas actividades de
protesta, fueron excluidos de los medios de comunicación hegemónicos, así como de otros canales de diálogo
político significativo. Armand Mattelart acuñó el concepto de “excomunicación” para referirse a esta situación
(MATELLART citado por RYAN, H. E. ,2016)252. Las excomunicaciones en América Latina, como apunta Ryan,
H. E., han resultado de diversos factores relacionados que incluyen la pobreza, las inequidades persistentes, la
marginalización de grupos políticos, sociales y étnicos particulares, como legado tanto del colonialismo como del
autoritarismo, así como de una violenta supresión de la disidencia.
Otro factor que explica la explosión de las producciones documentales es el cambio tecnológico que aba-
rató enormemente los costos de la producción y el creciente compromiso de personas provenientes inicialmente
de las clases medias urbanas con las luchas de los grupos sociales silenciados e invisibilizados por los medios.
Ahora bien, el cine, y sobre todo el documental, suele conceptualizarse fundamentalmente como un medio de
difusión de contenidos. Dentro de esta categoría se distingue el cine de denuncia y el cine militante, que tuvie-
ron en América Latina claros objetivos políticos durante la década de los 60 y 70, particularmente. Dicho cine,
ampliamente estudiado, se diferencia claramente de las maneras y formas de hacerlo en la década de los 90. En
efecto, el documental de los últimos 30 años ya no es “el cine de compromiso”, ya no se concibe a sí mismo como
un instrumento de agitación cultural ni de militancia política Es más bien clasificado, por varios autores, como
perteneciente al arte popular.
El problema de esta denominación reside en la conjunción de los dos términos. Por un lado “arte” y por
el otro “lo popular”. Se trata de términos imprecisos, que en los años recientes han sido reformulados por varios
teóricos.
Ticio Escobar, después de cuestionar el concepto hegemónico del arte253, lo define como “el conjunto de
las expresiones a través de las cuales sectores subalternos movilizan el sentido social”, al tiempo que permiten
intensificar la comprensión de sí mismos y de la realidad y actuar como una posibilidad política de réplica” (ES-
COBAR, T. citado en GARCÍA, S. y P. BELÉN, 2016: 10). Así, arte popular, concepto esquivo y ambiguo, abarca
un amplio espacio social, en que caben lo mismo grafiti y pinturas murales, que performance y el cine. Hay que
subrayar su carácter cambiante, dinámico, en ocasiones efímero y también su capacidad de configurar identidades
cambiantes y dinámicas. (BELÉN, 2016: 17)
Paola Belén define lo popular como la apropiación y elaboración particular, por parte de la subalternidad,
de la cultura de una sociedad determinada. Por consiguiente, no es algo que pueda concebirse en forma esencia-
lista sino relacional, por su confrontación con el sector hegemónico a partir de apropiaciones y negociaciones. Por
252 El libro, tal como pude comprarlo como e-book, no tiene páginas marcadas.
253 El que está en los museos y galerías, el que no tiene otro objetivo que el de ser contemplado.
246
otra parte, no se trata un universo simbólico homogéneo sino de un conjunto de fragmentos construidos a partir
de concepciones del mundo vinculadas a las distintas esferas de vida de sus autores.
De este modo, argumenta Belén, refiriéndose a las teorizaciones de Ticio Escobar, el arte popular “se
constituye frente a lo dominante como algo diferente, alternativo, opuesto o subordinado” (BELÉN, 2016: 21)
Pero, al mismo tiempo, “integra un proyecto de construcción histórica, elabora simbólicamente las situaciones
de las que parte, intensifica la percepción y comprensión de lo real y actúa como un factor de autoafirmación
subjetiva y una posibilidad política de réplica”. En definitiva, el arte popular es “el conjunto de formas sensibles
comprometidas con las verdades del sector popular que las produce” (Ibidem).
Ahora bien, el cine que da cuenta de los movimientos sociales en México no necesariamente es “popular”
en su estructura y formas de financiación. Lo es, en tanto se presenta como alternativo al cine hegemónico, plan-
tea problemas desde la visión de la subalternidad, etc. Este es el caso de la película Istmeño, viento de rebeldía de
Aléssi Dell’Umbria y de Dios nunca muere de Roberto Olivares.

El movimiento de las comunidades del Istmo de Tehuantepec en contra de las empresas eólicas en el docu-
mental Istmeño, vientos de rebeldía.

En el contexto del creciente interés por el conflicto, Aléssi Del´Umbria, filmó Istmeño, viento de rebeldía,
documental que se estrenó en 2014. En enero de 2015 lo proyectó en el Congreso Nacional Indígena.
¿Cómo trata el conflicto en el Istmo de Tehuantepec la película? Tras una breve introducción en que
vemos a hombres y mujeres dialogando con algún tipo de autoridad, dos hombres con expresión mustia, que se
muestran molestos por la presencia de la cámara, y una rápida respuesta que informa a los hombres de que por
encima de su autoridad está la de la Asamblea Popular, que ya autorizó la filmación. Luego aparece el título del
filme y la dedicatoria: “en memoria de Héctor Regalado Jiménez, pescador de Juchitan asesinado el 21 de julio
de 2013 por los pistoleros de la empresa eólica Unión Fenosa”.
Una de las características del lenguaje audiovisual es precisamente ésta: puede introducirnos en el tema,
en el punto de vista con el que se va a tratarlo, muy rápidamente, con un lenguaje que no sólo puede sino debe ser
lo más conciso posible. Así que ya tenemos los elementos fundamentales para saber de qué va a tratar el filme: el
conflicto entre la población de la región, que se autogobierna mediante sus propias instituciones, entre las cuales
la asamblea, cuenta con mayor legitimidad y autoridad, y los representantes de algún nivel del gobierno, que
preferirían quedar “en lo oscurito” porque, en realidad, representan los intereses de las empresas trasnacionales.
Estas empresas enfrentan a la población local no sólo con contratos amañados, sino a través de la violencia extre-
ma, el asesinato de los activistas.
A partir de este momento los espectadores iremos conociendo las causas del conflicto en la voz de los
habitantes de la región. No habrá entrevistas a los otros actores: ni a las empresas, ni a los concesionarios, ni a los
gobiernos municipal, estatal o federal. A diferencia de los textos escritos que buscan, por lo general, presentar
una visión “balanceada” del problema (CRUZ, 2011; GONZÁLEZ- ÁVILA, 2006), el filme toma claramente el
partido por los afectados.
La película trabaja cuidadosamente con las imágenes. No sólo miramos a las personas en su contexto.
Miramos también la belleza de este entorno: los bosques, las praderas, las playas, las lagunas con su vida natural,
pájaros de diferentes especies, gatos que esperan los desechos que van a dejar en la orilla los pescadores.
El leitmotive visual del filme son los aerogeneradores. Aparecen filmados directamente en tomas que

247
permiten apreciar su cantidad, su densidad, su enorme altura y fuerza. Pero también aparecen como fondo de casi
todo: están atrás de los pueblos, atrás de las personas que marchan, como monstruos amenazantes que irrumpen
en el paisaje, que lo transforman y anulan.

La película trabaja principalmente con los sonidos naturales: el viento, los pájaros y otros animales, las
olas del mar, y con las voces humanas. No hay música extradiegética. Escuchamos sólo lo que tocan las bandas
y los conjuntos musicales y también la música que proviene de algún aparato reproductor, como la canción em-
blemática de Víctor Jara.
Los habitantes de la región cuentan los orígenes del proyecto eólico, tal como ellos lo han vivido. Expli-
can las razones de su inconformidad. Llama la atención una de ellas, que es muy importante: la preservación de
su cultura, de sus costumbres, de su identidad:
Nuestra población tenía ciertas particularidades, de comportamiento social, había más cohesión en el núcleo familiar, más cohe-
sión en la cuestión comunitaria. Pero desde que estos megaproyectos empezaron, comenzó a desbaratarse esta armonía. Ya hay
pleitos entre los mismos hermanos, entre compadres, amigos. Hay divisiones muy marcadas en muchas familias, que llegan a los
tribunales. Como los requisitos que teníamos, principalmente en las escuelas, en las calles, en los lugares públicos. O íbamos a
limpiar el río, y... todo eso se perdió. Nuestras asambleas eran muy concurridas, ahí se determinaban las acciones para el ejido,
pero ahora ya ni a la asamblea va nuestra gente, ya se perdió está cultura. Actualmente todo es pagado.

Otro hombre quiere plantar los árboles típicos del lugar (juanacaztle) alrededor del pueblo, para delimitar
lo propio, para marcar su propia identidad, para excluir a lo otro: “Queremos mandar este mensaje, que estamos
de un lado los que queremos la vida, y del otro los que están destruyendo la tierra”.
Para los Ikoots254 el mar es sagrado. Hay espacios específicos, simbólicos, donde se le depositan las ofren-
das y se hacen los rezos para que llueva, porque la mezcla del agua salada y agua dulce, aumenta la producción
de los peces y mariscos. Es un ritual ancestral y la población teme que la presencia de los aerogeneradores vaya
a perjudicarlo.
Otro motivo de la inconformidad es el despojo de las tierras comunales y ejidales, mediante supuestos con-
tratos. Uno de los entrevistados explica:
La ilegalidad del proceso radica en que desde 1978 prácticamente en Juchitán los bienes comunales quedaron acéfalos, es decir,
el que era el Comisariado de Bienes Comunales , la instancia político administrativa que regula las relaciones de tenencia en las
tierras comunales para el caso de Juchitán y sus anexos agrarios, el asesor de este Comisariado es desaparecido por el ejército,
en un contexto de un grave conflicto también por tierras, en este proceso de privatización en el que se confrontaban comuneros
y pequeños propietarios. Esos pequeños propietarios eran los más grandes latifundistas de Juchitán. Ellos se quedaron con la
mayor parte de los terrenos de riego. En este contexto, también a principio de los 70s, surge el movimiento de la Coalición Obre-
ro Campesina y Estudiantil del Istmo, la COCEI. Ahora ha teñido descomposición y se ha convertido en un nido de corruptos.

254 Nombre de una de las etnias que habita en la región. La otra son los Zapotecos.

248
Otro problema es la contaminación o destrucción de sus fuentes del trabajo. En la región hay un bosque de
palmares comunitario. Cualquiera podía ir a cortar ahí las palmas, que después de un cierto proceso se mandaban
a otras regiones. Ahora quieren privatizarlo, y como los comuneros se han opuesto a ello, alguien quemó una gran
extensión del bosque.

La contaminación del mar por los aceites que desechan los autogeneradores y el ruido que producen, matan
y ahuyentan los peces y mariscos. Para los pueblos de la zona, no es sólo un producto para la venta, sino también
para la alimentación propia, como lo atestiguan las imágenes de mujeres preparando el pescado para después
consumirlo con toda la familia.

Como lo muestra el filme, los inconformes recurren a un amplio repertorio de las acciones255. En primer
lugar, la celebración de las asambleas populares. Son el órgano de máxima autoridad en las comunidades. Ahí
se toman las decisiones y se acuerda no permitir la instalación de más generadores. En la película se muestran
varias reuniones, una de ellas es Asamblea Comunitaria de Colonia Álvaro Obregón. Puesto que el pueblo ha
sido agredido por la empresa Mareña Renovable y no reciben apoyo de la policía municipal, formaron una policía
comunitaria.
En segundo lugar, realizan las peregrinaciones a las capillas dedicadas a las actividades del lugar. Obser-
vamos una de ellas, en que la gente que porta cruces verdes adornadas con flores se dirige a la Capilla de Santa
Cruz, consagrada a los pescadores. Ya en el lugar, se encienden las velas, se reza, se canta y en la noche hay una
celebración con los fuegos artificiales.

En tercer lugar, los comuneros toman las carreteras y construyen barricadas, en las que a veces hay enfren-
tamientos. En una de las secuencias vemos por un lado a los policías formados con escudos, por el otro lado, a la
gente, tanto hombres como mujeres armados con palos, piedras y resorteras.

Son muy importantes las actividades informativas: los murales en que se representa gráficamente la incon-
formidad de los pueblos con la presencia de las empresas eólicas y información verbal con el uso de los altavoces
o a través de la radio comunitaria, por medio de la cual se transmite el siguiente mensaje:

Hay ya aproximadamente 698 aerogeneradores, se habla de que lo que quieren instalar en el Istmo de Tehuantepec es 5 mil aero-
generadores. Más bien da la impresión de que los políticos están actuando como empleados de las empresas trasnacionales. Da
la impresión que los diputados, los presidentes municipales, por el lenguaje que utilizan, están pagados por las ET.

Además de lo anterior, se emprenden acciones estrictamente legales. La gente conoce las leyes y sabe que
puede apelar a ellas. En una de las secuencias, un activista responde de este modo a los representantes del go-
bierno:
En términos de ley, porque a ustedes les gusta mucho referirse al marco constitucional. Si ustedes como autoridad, representante
popular, han tirado a la basura la voluntad del pueblo, el pueblo tiene derecho inalienable e imprescriptible. ¿Qué quiere decir
esto? En cualquier momento el pueblo puede cambiarlos, revocarlos y poner otra autoridad. Eso está consagrado en el 39 cons-
titucional. Queremos que ustedes sepan nuestra demanda, nuestro objetivo. Demanda única: no queremos en nuestras tierras,
en nuestras lagunas, ninguna de las empresas extranjeras, generadoras de energía limpia entre paréntesis. Queremos el respeto
irrestricto a nuestra autonomía, a nuestra autodeterminación.

255 Esta categoría analítica proviene de diversas teorías de los movimientos sociales, tal como ello ha sido expuesto, entre
otros, por Tamayo, S. (2016)
249
Las diversas actividades, permiten construir la unidad de los pueblos en resistencia contra las empresas. Aunque algunas perso-
nas cuentan sobre los conflictos interétnicos y hasta intrafamiliares, también hay una secuencia en que se aprecia el avance en la cons-
trucción de una estrategia común. Uno de los hombres explica:

los señores del gobierno pensaban que solo iban a platicar con los de Álvaro Obregón, pero se llevaron una sorpresa cuando
vieron a los compañeros de San Dionisio del Mar, de Guamuchil, de Santa Rosa, de Zapata y por supuesto los compañeros de
la defensa de la tierra, los compañeros de Radio Totopo , que todos intervinieron y fijaron la postura en relación a los proyectos
eólicos . Se les dio de plazo 4 días para que retiren su maquinaria, y hasta ahora no lo han hecho.

El discurso fílmico

Ahora bien, ¿qué tipo de discurso construye el filme? Ya hemos dicho que la película recoge solamente el
punto de vista de los afectados, por lo que difiere de los discursos presentes en los diversos medios: radio, tele-
visión y prensa. Es ahí donde se considera que la energía eólica es “limpia” y, en este sentido es “objetivamente”
mejor a la que se basa en los hidrocarburos. Por eso, aunque se refieran al conflicto entre el gobierno, las empresas
y los habitantes de la región, la atribuyen principalmente a un reparto desigual de los beneficios, en detrimento
de los intereses de la población local. En consecuencia, sugieren, en el mejor de los casos, corregir esta situación
buscando retribuir a las comunidades que rentan sus tierras de manera más justa.
El discurso que despliega el filme es diferente porque recoge no sólo las opiniones, sino los sentimientos
y las emociones de las comunidades afectadas. De este modo nos cuenta la historia de personas que piensan en
forma diferente. Para la mayoría de ellos el dinero que se les ofrece no es lo más importante: “Ya basta con la
prueba de que van a echar a perder el mar, van a contaminar las cosas, por eso nosotros no queremos dinero. Ellos
dicen que nosotros estamos peleando por dinero pero no es así. Nos acorralan para que nos tengan como borre-
guitos, a su manera”, explica una de las mujeres. Otros cuentan cómo se realiza el tequio256 en sus comunidades y
su importancia para la cohesión del pueblo. Varios de los entrevistados defienden la idea de la posesión de tierras
comunales o ejidales. Se oponen a su privatización.
Lo más importante es entonces su estrecha relación con la naturaleza. Diversas personas explican ante la
cámara cómo hay que tratar las lagunas, los peces, los camarones, qué se necesita para tener buenas cosechas,
para que el ganado esté bien. La naturaleza es sagrada. Se le dan las ofrendas, se les hacen los rezos. Esta relación
forma la parte más importante de su identidad.
Permitir la instalación de los parques eólicos es destruir la naturaleza y también al pueblo que convive con
ella. Es destruir sus costumbres, sus formas de producir, sus maneras de alimentarse.
Sólo algunos miembros de estos pueblos hablan en español. Muchos se expresan en las lenguas locales,
que en ocasiones se traducen mediante los subtítulos (al parecer en el caso del zapoteco) y en otras no (al parecer
en el caso de lengua Ikoot).
Frente a la agresión, los habitantes de la región expresan tres argumentos fundamentales: 1. el que fueron
engañados por las empresas y por los distintos niveles del gobierno, 2. El que van a resistir a partir de su derecho a
la autodeterminación y el conocimiento tanto de las leyes internacionales como nacionales, 3. El que van a luchar
hasta las últimas consecuencias en contra de la intromisión de las empresas y del gobierno.
Predomina la idea del engaño, en que participaron el gobierno estatal y federal, las empresas, los “coyotes”
reclutados en el propio pueblo, la COCEI y hasta las instituciones educativas como el Tecnológico. Un hombre
desarrolla un discurso complejo en que se entretejen las formas en que fueron engañados y por qué creen que las
256 El tequio es trabajo no remunerado que se realiza en beneficio de la comunidad.
250
empresas van a destruir su vida.
En 2004 llegaron los españoles buscando coyotes de la misma población para convencer a los dueños de terrenos para alquilarlo
por 100 pesos por hectárea anual para poder construir sus ventiladores. La gente, en un principio muy ilusionada por tanto dinero,
porque de casa en casa hablaron de que si se construye un su terreno, le iban a dar anualmente 12 mil pesos. Si se iban a construir
los ventiladores en su camino le iban a dar 7, 800 pesos por hectárea. Y árbol que tiren, iban a depositar 80 pesos por árbol. Iban
a pagarle metro por metro el terreno que iban a utilizar. Pero no le dieron contrato, fue puro compromiso hablado. Y cuando por
fin se les escapó uno de los contratos que tengo en mi poder el día de hoy, vi que las 16 cláusulas del contrato, todo era a favor de
la empresa. Entonces a entregárselo a la empresa, pierden el giro que tienen como agropecuario a industrial. Pasarían a régimen
de impuesto, cosa que no hacían. No hubo información de nada de parte de la empresa. Si ellos contaminan nuestras lagunas,
también nos van a dejar sin alimento. Un alimento limpio, sano. Es más limpio nuestro alimento que la energía limpia que ellos
quieren sacar de ahí, para contaminar el agua. No nos beneficia a los pescadores, sino a las autoridades. Por eso el conflicto. Si
perjudican la pesca, ya no va a haber jóvenes acá. No emigraremos a Estados Unidos todos, los que podamos trabajar todavía.

En segundo lugar, los colonos hablan de la resistencia. Es un discurso construido mediante las palabras, las
imágenes (marchas, toma de carreteras, asambleas permanentes, mantas, murales) y la música.

Pero también está presente el discurso sobre una nueva colonización. Es lo que plantean los murales (“La
Nueva Conquista”, “No al despojo de nuestro territorio en el Istmo de Tehuantepec, Oax”. Abajo del letrero están
pintadas las tres calaveras, al lado un conquistador, quien, en vez del sable trae un aerogenerador), las mantas
(“Concesión igual colonización”) y el discurso hablado.

La rebelión y la represión de la Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca y sus implicaciones en la vida
de las familias en Dios nunca muere

La represión al pueblo de Oaxaca que se levantó contra el repudiado gobernador Ulises Ruíz fue brutal.
El gobernador terminó su mandato tranquilamente y se restauró un orden aún más autoritario al que existía antes
del conflicto. De ahí que a los organismos de los derechos humanos les preocupara restaurar la verdad sobre las
víctimas civiles y exigir que se haga justicia. Para ello se creó La Comisión de Verdad de Oaxaca, que se compro-
metió a presentar un informe de su indagatoria a los 10 años de los acontecimientos sangrientos del 14 de junio
de 2006. De ahí fue surgiendo la idea de filmar un documental que acompañara dicho informe. Los autores del
filme estuvieron muy involucrados en los acontecimientos. Por un lado, Diego Osorno, periodista, presente en el
conflicto y, por el otro lado, Roberto Olivares, cineasta, integrante del colectivo Ojo de Agua Comunicación que
durante la rebelión popular adoptó el nombre de Mal de Ojo Tv y filmó los acontecimientos que tuvieron lugar
en ese tiempo.
Titularon el filme Dios nunca muere, tal como se llama el himno del estado, cuya música acompaña con
frecuencia las imágenes y da cuenta de su apropiación por parte del movimiento
Como en el caso de la película anteriormente analizada, el documental, que dura una hora y 20 minutos,
hizo una selección de temas a ser tratados. Se concentra en la represión por parte del Estado del movimiento po-
pular y para ello escoge a cuatro personajes para que narren lo que pasó con sus familias en 2006 y las consecuen-
cias que ha tenido ello en sus vidas, pasados los 9 años de aquellos hechos. Trabaja con una edición que vincula
constantemente el pasado con el presente, usando para ello diversos materiales de archivo: videos grabados por
Mal de Ojo Tv, por los periodistas y particulares, así como con las fotos. Desde un principio se instaura un punto
251
de vista y se somete todo el material visual, auditivo (música, voces y silencios) y escrito a dicha perspectiva: la
exigencia de la justicia y la reparación de los daños a los afectados.
Los antecedentes del conflicto apenas se enuncian mediante los subtítulos a pocos minutos de iniciado
el filme: “La chispa que encendió la insurrección del 2006 en Oaxaca fue un ataque realizado el 14 de junio al
plantón de los maestros. Organizaciones y ciudadanos de a pie se sumaron a las protestas masivas llegando a
desarticular durante un momento a los tres poderes de gobierno.”
Tras una breve secuencia de una marcha masiva, aparece otra explicación: “Como respuesta a la revuelta, el Es-
tado mexicano reprimió de manera desmedida a los opositores. Ejecuciones extrajudiciales, desapariciones, actos
de tortura, desplazamientos y otros delitos que constituyen violaciones graves a los derechos humanos.”
Casi inmediatamente después se anuncia que en el filme compartirán sus historias Florida, Juliana, Eme-
terio y Ramiro y que se trata de “cuatro de cientos de víctimas del conflicto del 2006 que siguen buscando la
justicia”.

La película inicia en la casa de Florida, la maestra de inglés de una secundaria que está desayunando con
sus dos hijas. En una de las paredes cuelga un retrato familiar, Florida y su marido, las dos hijas y un hijo. Inme-
diatamente después aborda un taxi. Con las imágenes de ella, en primer plano, se sincroniza un audio, que nos
permite comprender la situación:

Nuestro objetivo era manifestarnos contra el mal gobierno. Desde antes hubo injusticias, por eso inició el movimiento de 2006.
Durante el proceso hubo violación a los derechos humanos, hubo asesinatos, represión, detenciones, torturas. Durante nuestras
detenciones fuimos sometidos a todo tipo de torturas psicológicas y físicas y después sigue la impunidad. Todo esto nos obliga a
participar en este momento histórico. Invitamos a toda la sociedad, sobre todo las víctimas directas, a todos los que participaron
en este movimiento de 2006 para que acudan a partir de las 7 de la mañana al teatro Macedonia Alcalá donde se llevará a cabo la
sesión pública de la Comisión de la Verdad.

En la entrada al Teatro Macedonia Alcalá hay un grupo de personas. El padre Solalinde257 abre la sesión de
la Comisión de la Verdad. El teatro está lleno. La cámara se detiene en la figura de la periodista Carmen Ariste-
gui258 quien, muy seria, toma las notas. Declara Florida sobre el asesinato de su esposo, José Colmenares, durante
una marcha masiva. Pero fue él quien precisamente recibió el balazo. La familia sabe quién fue el autor intelectual
del crimen, pero a los 9 años no ha sido enjuiciado. Y remata:

Ellos siguen disfrutando del erario público y tendrán sus puestos en los años que siguen. Cuando hablamos de la reparación de
daños integral, todos piensan en forma monetaria, no es eso, es lo jurídico, es lo psicológico. Yo me pregunto quién nos va a
reparar nuestros corazones, quién va a reparar los corazones de nuestros hijos, de las madres, quien nos va a quitar los golpes.
Justicia, solo eso pedimos, no pedimos otra cosa. Yo sé que no pueden reparar todo el daño que nos han hecho, todas esas secuelas
que hemos sufrido.

Las imágenes del entierro y de las represiones policiacas se alternan con hermosos paisajes. Vemos cómo
avanza una puesta del sol, que se oculta tras las montañas. En el primer plano el viento mece unas plantas color
lila.
El segundo protagonista del filme, Emeterio Marino Cruz es presentado a través de su relación con el mar.
Las olas están chocando con la playa. En ellas se refleja la sombra de un hombre. En un momento más podemos
257 Sacerdote católico que se destacó por la defensa de los derechos humanos, sobre todo de los migrantes que atravie-
san el territorio mexicano con la esperanza de llegar a Estados Unidos.
258 Una de las más importantes y valientes periodistas de investigación en México. Ha recibido varios premios internacio-
nales.

252
ver sus pies y su bastón, que las olas apenas están rozando.

Mientras vemos el primer plano de perfil, su voz en off explica cómo se llama, de dónde es, a que se dedi-
caba (“yo era muy deportista. Yo jugaba básquet, nadaba, corría”). Agrega que participó en la lucha magisterial y
que a consecuencia de la agresión de los policías tuvo un traumatismo cráneo- encefálico.

Del mar y la playa, la cámara nos traslada a una vivienda muy humilde, con paredes construidas con cajas
de cartón. Una señora está bordando mientras escuchamos su voz en off: “Yo me llamo Juliana López Cruz, soy
de San Nicolas...tengo 7 hijos. Yo me vine a vivir acá a San Antonino y ya tiene mucho tiempo cuando conocí a
mi esposo… Casi no me gusta hablar mucho”. En efecto, no será ella quien cuente su historia, sino sus amigas y
vecinas.

Finalmente, en un paisaje urbano muy diferente, el de una ciudad del estado de Oregón, se nos presenta a
Ramiro, un biólogo de Tlacolula, Oaxaca, que tuvo que salir de México después de haber sido detenido en forma
arbitraria, torturado y liberado sin ninguna garantía judicial.

En el mismo orden en que fueron presentados, se irá mostrando la vida cotidiana de cada uno de ellos.
Florida sigue trabajando como maestra, visita con frecuencia el panteón con sus hijos para adornar la tumba de
su esposo, toda la familia mira fotos y videos del pasado cuando Juan estaba con ellos. La alegría y las risas que
acompañan la observación de los momentos del pasado, cesa cuando en el video aparece Juan. La familia perma-
nece en silencio, sus rostros reflejan la tristeza y una especie de desconcierto.
Emeterio se somete a los tratamientos médicos que requiere su condición, sale al mar en la lancha, participa
en las manifestaciones. Juliana borda, vende la comida en un mercado y recuerda a su esposo, cuya foto amplia-
da está dentro de un marco vistoso. Él era Arcadio Santiago Hernández, un hombre conocido y respetado, quien
había organizado la policía comunitaria. Fue acribillado durante uno de los rondines sin que él portara armas.
Ramiro hace varios viajes al bosque, sale para observar el comportamiento de las aves, que en meses de invierno
migran justamente a Oaxaca, juega con sus hijos, hace la vida familiar y es sometido a tratamientos psicológicos.

La película finaliza con el comunicado de prensa de la Comisión de la Verdad, que de nuevo lee el padre
Solalinde:

Consignación de la ejecución extrajudicial de Arcadio Fernández Santiago, septiembre 8 de 2015. Los


hechos consignados ocurrieron el 2 de octubre de 2006 en el parque conocido como la Rotonda de las
Azucenas. Mientras la policía Comunitaria realizaba rondines de vigilancia sin armas de fuego, fueron
atacados por personas a quienes se logró identificar como policías municipales que actuaron por órdenes
de su autoridad superior . Los acompañantes de las victimas señalan e identifican plenamente a los indicia-
dos de quienes reservamos la identidad para no entorpecer la acción de la justicia, actuaron en coautoría y
consumaron la ejecución extrajudicial en pleno ejercicio de sus funciones como autoridades municipales de
San Antonino Castillo Velasco. Este hecho se considera como ejecución extrajudicial por la participación
de agentes de Estado. Además de calificarse como un delito constituye una violación grave a los derechos
humanos. La causa de la muerte del Sr Arcadio Hernández ....

Mientras su voz es silenciada, volvemos al paisaje de la puesta del sol entre las montañas. Han pasado al-

253
gunas horas, semanas, meses o años: el sol está más abajo, las montañas se ven más negras.

La vida sigue. Vemos una nueva marcha en que se exige la libertad de los presos políticos. En ella participa
Emeterio quien explica: “yo nací en la política y viví en la política desde niño, porque yo era de la sierra. Luchan-
do por la defensa de pueblos indios, por sus costumbres, por su dignidad. Aunque estoy enfermo yo sigo luchando
en contra del sistema capitalista, que está hundiendo al país en la pobreza”.

La conclusión la redactan los autores del filme que cierra con un letrero:

La Comisión de la Verdad de Oaxaca solo pudo impulsar la consignación de siete funcionarios públicos involucrados en la eje-
cución extrajudicial de Arcadio Hernández Santiago. El 29 de febrero de 2016 concluyó sus labores entregando al gobierno un
informe de más de mil páginas en el que se detallan patrones, mecanismos, modos, operativos y nombres de ellos actores invo-
lucrados en diversos crímenes. Ninguna autoridad ha asumido el compromiso de otorgar la justicia pendiente; por el contrario,
persiste el intento de borrar la memoria de lo sucedido en 2006.

El discurso de la película

El discurso del filme está centrado en una serie de elementos clave. En primer lugar, muestra lo masivo
de la protesta. Constantemente se insertan videos y fotos de marchas y concentraciones que llenan el centro de
la ciudad y la nutrida participación tanto de los hombres como de las mujeres de todas las edades, vestidos con
trajes típicos o de manera ordinaria. Las imágenes dan la impresión de la unidad de los pueblos de Oaxaca, de lo
compartido de sus reclamos.

254
El segundo elemento son los motivos de la protesta, aunque éstos sólo se anuncian: el conflicto magiste-
rial, la corrupción gubernamental, la represión, las desapariciones, las torturas, las humillaciones, la llegada de
las empresas mineras. Algunas de ellas se expresan verbalmente, otras se aprecian en las pancartas que llevan los
inconformes, otras aparecen en las fotos de gente sometida, humillada, con huellas de tortura.

El filme muestra también las diversas formas de lucha, entre las cuales se destacan las marchas, los mí-
tines, las barricadas, la toma de las carreteras, la quema de los vehículos y la toma del palacio municipal para
sustituir un gobierno priista por otro popular. Es de suponer que los autores del filme disponían justamente de
este tipo de material.

El tema fundamental es la represión. Hay múltiples fotos y videos muy impresionantes y también nar-
raciones que dan cuenta de lo desproporcionado y selectivo de las acciones violentas perpetradas por la policía
federal y municipal. Aparece con mucha fuerza la búsqueda de los desaparecidos, algunos localizados después en
las diversas cárceles u hospitales, otros muertos, otros de los nunca se supo más.

Otro de los temas es, sin duda, la búsqueda de la justicia, puesto que las víctimas no quieren aceptar la
indemnización monetaria sino la consignación de los responsables. Y, desde luego, el tema de los cambios en la
vida de las víctimas. Emeterio, inválido, ya no puede trabajar ni dedicarse a los deportes favoritos. Juliana tiene
que hacerse cargo de 7 hijos, algunos de los cuales empiezan a trabajar a una edad temprana. Ramiro, condenado
a exilio reflexiona sobre lo difícil que es no poder volver al lugar del origen y la dificultad para educar a sus hijos
de acuerdo con los valores comunitarios y de acuerdo con su cultura de origen, mientras viven en una sociedad
individualista a la que los niños van adaptándose, incluido el uso cotidiano del inglés.

En México, no hay apoyo a las víctimas, como lo subraya Florida. Las amigas de Juliana opinan que ella
quedó muy traumada después del asesinato de su esposo, pero no pudo recibir ningún tratamiento por “la falta
de recursos”. Emeterio recibe un tratamiento médico básico que no le devuelve la vida: “cuando yo trabajé en
Pochutla, yo iba a traer pescado a Puerto Ángel diario. Los domingos pescaba bastante. Traía ostión, huevos de
tortuga. Pero me quitaron la vida” dice con dolor dibujado en el rostro.

Su esposa cuenta de cómo lo cuidaban en el hospital y del miedo que sentían. Llegó la gente del gobierno
y de la procuraduría para ofrecerles dinero, pero no lo aceptaron: “400 mil pesos que me iban a dar. Yo le dije
que no. Yo lo que quiero es justicia, dinero no. Y que salga sano, caminando, como cuando lo agarraron, porque
255
él estaba bien.”

Sólo Ramiro y su familia reciben un amplio apoyo psicológico y legal en los Estados Unidos. Una mujer
explica en buen español:

Entonces cuando nosotros acogimos a Ramiro y ofrecemos servicios de salud mental a su familia, yo le digo a Ramiro: usted
califica para asilo político porque lo que ha sucedido tiene un nombre y ese nombre es tortura y las personas que han sufrido
estas experiencias pueden solicitar refugio en un país de acogida. En este momento era el estado de Oregon y lo remitimos al
abogado Chris Anderson.

El abogado habla en español con dificultad y un fuerte acento:

Para mí el caso de Ramiro fue bastante impactante porque las cosas que sufrió fueron fuertes. Lo que me impactó era enterarme
más de la situación política de Oaxaca y como el gobierno de allá era tan corrupto, y como el gobierno manejaba estructuras
legales para cometer persecución. Por ejemplo, a Ramiro le pusieron cargos de portar armas reservadas para el militar, pero un
pretexto. No tenían bases legal, las evidencias maniobradas, toda una farsa.

¿Cómo definir esta película, hecha de fragmentos (fotos de archivo, videos, narraciones incompletas, huecos
en la historia), que se tensa en torno a las ideas del orden (de la narrativa) y el caos (de la sociedad retratada)? Hay
en ella algo del cine de denuncia. Pero hay también un claro afán de rescatar lo individual, lo concreto, lo preciso.
No obstante, atrás de las historias de cuatro individuos tenemos la imagen de una sociedad que después de una
larga lucha, fue doblegada, por fuerzas muy superiores, inalcanzables. Los intentos de dialogar con los policías,
de darle flores, de explicar que los objetivos del pueblo son los mismos que de los que los reprimen, fracasan. Los
policías reciben ordenes que deben acatar. Un gobernador corrupto, represor, incapaz de representar a su pueblo,
sale victorioso.

Conclusiones

En los dos casos analizados, los cineastas establecieron vínculos de solidaridad y simpatía con los movi-
mientos sociales. A cambio recibieron su confianza. De ahí que el resultado sea la versión de los excluidos, de los
más afectados, sobre los conflictos con las empresas privadas y con los distintos niveles de gobierno. En ningún
caso se habló con los líderes. Tal vez por eso no aparezcan en los filmes las mesas de negociación “de alto nivel”.
También por eso las películas dividan el periodo de la protesta y de confrontación en las diversas etapas, propias
de los movimientos sociales.

¿Cuáles serían sus principales aportaciones? Desde luego la difusión de las versiones de los participantes
directos, que no fueron exhibidas en los medios de comunicación masiva. Las películas, al no hablar de “tendencias
generales” sino de sujetos concretos y las situaciones vividas intensifican nuestra percepción y comprensión de
los acontecimientos. Enriquecen el discurso político con elementos emotivos, sentimientos y estados de ánimo de
los participantes. Generan una “perspectiva de observación”, vale decir una construcción significativa de lo real
desde el punto de vista de los movimientos populares. Como explica Estrada, su marco de interpretación no sólo
abarca las dimensiones cognitivas (la explicación de las causas de las distintas acciones del movimiento), sino
también las ético-políticas en torno a eventos y actores. (ESTRADA, 2016: 318).

256
Pero también contribuyen poderosamente a la autoafirmación de los pueblos en lucha, no sólo los que apa-
recen en la pantalla, sino otros, que libran sus propias batallas. Al ver como los otros confrontaron las situaciones
similares, pueden reafirmar su decisión de permanecer en el movimiento, no sólo por defender su propia cultura
y dignidad, sino también por comprender que sus problemas son más comunes de los que se podría pensar desde
su propia tierra. Eso le da una mayor legitimidad a la lucha, al desnudar el comportamiento de las empresas, el
gobierno y sus agentes.

De hecho, éste es uno de los propósitos de los cineastas. Mostar sus filmes en lugares que confrontan
problemas similares: la expropiación de tierras y recursos de las poblaciones originarias por parte de empresas
privadas, que llegan con todo el apoyo del gobierno federal, estatal y municipal. En lugar de defender a su propia
población, la reprimen.

Sin duda, las películas contribuyen a construir la memoria de las luchas populares. Son medios de con-
cientización, propaganda, de protesta, denuncia y crítica. Pertenecen al campo del arte político que desafía el or-
den social de dominación. Afirmamos que son arte porque emplean formas creativas, que permiten el surgimiento
de símbolos no perceptibles a quien no participa directamente en la lucha o quien la observa desde cerca.

Es un cine que vuelve al realismo, a la preocupación por la condición humana. No del cualquier ser hu-
mano sino de un subalterno que vive en un mundo gobernado por las fuerzas que escapan a su alcance, incluso a
su comprensión.

No es un arte subversivo en un sentido que le dábamos antes: no subvierte la estructura narrativa clásica
del cine259, tampoco el lenguaje fílmico, ni la estética, como lo hicieran los cines de las vanguardias. Sin embar-
go, es un cine político en un sentido distinto, a medida que responde a las presiones políticas, a la ausencia de
la democracia, de la justicia, del respeto por los derechos humanos. Como plantea Vogler (2016): “de cualquier
manera en cada caso el artista va más allá de lo que quisiera su “sistema” particular. Y este “ir más allá” es la
característica definitoria de todo arte subversivo”.

259 La estructura narrativa clásica es la que divide el relato en tres partes: inicio, desarrollo y fin.
257
Referências bibliográficas

BELÉN, Paola. “Un no lugar de la estética tradicional”, en: García, Silvia y Paola Belén, La representación de
lo indecible en el arte popular latinoamericano, Belén. Unidades Académicas: Facultad de Bellas Artes,
2016, pp. 15- 24.
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en: The Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, vol. 16, no.2.,2011, pp. 257- 277.
ESTRADA, Marco. El pueblo ensaya la revolución. La APPO y el sistema de dominación oaxaqueño, Ciudad
de México, El Colegio de México, 2016.
GARCÍA, Silvia. “Arte y política: el rostro de lo indecible”, en: GARCÍA, Silvia y Paola BELÉN , La representa-
ción de lo indecible en el arte popular latinoamericano, Belén. Unidades Académicas: Facultad de Bellas
Artes, 2016.
GONZÁLEZ-ÁVILA, M. E.. Potencial de aprovechamiento de la energía eólica para la generación de energía
eléctrica en zonas rurales de México. Interciencia, 31(4), 2006, pp. 240-245.
RYAN, H. E., Political Street Art:  Communication, culture and resistance in Latin America (Routledge Re-
search in Place, Space and Politics)  Hardcover,2016, disponible en: https://books.google.com.mx/
books?hl=es&lr=&id=XaSuDQAAQBAJ&oi=fnd&pg=PA1963&dq=Holly+Political+Street+Art&o-
ts=YURJZ6uVoU&sig=K52UpZA74bpBA1sJNw2VtPne2lE#v=onepage&q=Holly%20Political%20
Street%20Art&f=false
TAMAYO, S. Espacios y repertorios de la protesta, CONACYT, Red de Estudios sobre los Movimientos So-
ciales, UAM, Colofón., 2016.
VOGLER, Amos. El cine como arte subversivo, CDMX, Secretaría de Cultura, Ambulante, 2016.

Aleksandra Jablonska Zaborowska - Mexicana por naturalización, es doctora en historia del Arte. Trabaja
en la Universidad Pedagógica Nacional y en el Posgrado de Estudios Latinoamericanos y el de la Historia del
Arte, ambos de la Universidad Nacional Autónoma en México donde da seminarios de análisis del cine y dirige
las tesis de posgrado.

258
20. Saberes y quehaceres: documental interactivo

Ana Teresa Arciniegas

1. Introducción

El uso de las tecnologías de la información y la comunicación TIC en la difusión digital y documentación


del patrimonio cultural, sigue siendo una cuestión pendiente en Colombia. De ahí que resulte necesario el
desarrollo de estrategias audiovisuales que visibilicen los oficios tradicionales del oriente colombiano, como
parte de la divulgación del patrimonio cultural inmaterial.
Las tecnologías de la información permiten mostrar los relatos en distintas unidades formales y de sentido,
grabar la historia, aislar los elementos espaciales, convirtiendo el espacio y el tiempo en medios de desplazamiento,
otorgando al espectador la posibilidad de acción y toma de decisiones, potenciando su creatividad, invitando a
que el espectador participe activamente. Se contempló para el diseño de este hipermedia educativo el uso de
animaciones en dos dimensiones, documentales expositivos sobre cada uno de los oficios tradicionales, imágenes
fotográficas en 360º, digitalización de archivo, hipervínculos a reseñas históricas, time-lapse, entre otros recursos
del arte digital.
Los hipermedia audiovisuales se caracterizan por no tener un camino establecido por el autor, y
dejan al espectador la capacidad de elegir entre varias rutas posibles, en ocasiones no hay un comienzo
establecido y casi nunca se tiene un final. Los audiovisuales hipertextuales requieren de un lector activo, los
roles de emisor y receptor  pueden ser intercambiables, los contenidos pueden ser abiertos y dependientes de
las elecciones del usuario. En síntesis, en el esquema narrativo hipertextual nociones como centro,  margen y
secuencialidad  son sustituidas por la conceptos como multilinealidad, nodos, nexos y redes, que se asemejan a
las figuras rizomáticas planteadas por Deleuze & Guattari (1985).
En el proyecto de investigación se realizó el inventario de los saberes y quehaceres patrimoniales culturales
existentes en 2 municipios de Santander: Curití y Villanueva, ubicados en la zona del Cañón del Chicamocha, al
oriente de Colombia. La investigación dio como resultado el diseño y desarrollo de un hipermedia audiovisual
que muestra el oficio tradicional de la talla en piedra y el oficio artesanal del fique.
La vigencia de estos oficios a en la región evidencian la continuidad de los haceres y saberes ancestrales
que dan identidad regional a las comunidades. La permanencia de estos oficios promueve una relación entre el
pasado y el presente, lo que demuestra que el Patrimonio inmaterial de una comunidad es parte decisiva en el
desarrollo de la comunidad.

2. Objetivo

Realizar el inventario de los oficios, saberes y quehaceres patrimoniales culturales existentes en dos
municipios de la región de Santander, dando como resultado el diseño y desarrollo de una propuesta práctica,
un hipermedia educativo que promueve la difusión digital de dos tradiciones artesanales: la talla en piedra y la
confección de artesanías en fique. El dispositivo audiovisual intenta difundir digitalmente el patrimonio cultural
colombiano, empleando recursos del arte digital en su elaboración como narración no lineal, el uso de geo-
259
localización, banco multimedia de imágenes e hipervínculos, imágenes 360º, infografías, entre otros.

3. Metodología

La metodología empleada en el proyecto es cualitativa y se divide en dos fases. Se emplearon los métodos
de investigación cualitativa, marco teórico y muestreo, primero de manera inductiva y luego deductiva. Apelando
a la recopilación de información, paralelo a una vigilancia epistemológica constante. El proyecto se abordó de
manera secuencial en cada uno de los municipios, desde una perspectiva cuantitativa,
3.1 Primera etapa: ceñidos siempre a los estudios, la reglamentación y las políticas culturales de la
UNESCO y del Ministerio de Cultura de la República de Colombia para el análisis y la protección del patrimonio
cultural material e inmaterial, se elaboró una base de datos, identificación, inventario, evaluación, y registro
en cada uno de los oficios tradicionales. Para cada uno de los saberes ancestrales se realizó una revisión de
fuentes y estado del arte, se validó el inventario patrimonial y cultural existente, se realizó un trabajo de campo
documentación y evaluación.
3.2. Segunda etapa: diseño y realización del hipermedia educativo, para la comunicación y divulgación
de resultados obtenidos en la investigación. Esta etapa se subdivide en tres sub-etapas propias del quehacer
audiovisual: pre-producción (escritura del guion hipermedia y técnico, plan de producción y de grabación);
producción (rodaje en cada uno de los municipios; y post–producción (edición no lineal de video, programación,
diseño gráfico, colorización y sonorización. Luego se alojó el hipermedia en el servidor de la Web). Finalmente,
en una última etapa se establecieron las conclusiones de la investigación
Durante las dos etapas se tuvieron en cuenta la integración y participación de las comunidades en la identificación
del patrimonio local, así como la protección y conservación del patrimonio natural de la zona.

4. Descripción

Las narraciones audiovisuales están cambiando, el uso de internet, el empleo de nuevas tecnologías y
la oferta de productos audiovisuales en múltiples dispositivos han modificado la forma de realizar y exhibir
los audiovisuales. Como señala Scolari (2013) las nuevas formas de comunicación digital han hecho que las
narraciones audiovisuales evolucionen hasta relatos de base intertextual, red de textos, videos, audios, etc. En
consecuencia, en los proyectos transmedia el guion será algunas veces rizomático y los contenidos tendrán esa
dirección perpendicular que permitirá que los usuarios puedan moverse entre un video, una pista de audio, una
infografía, un hipervínculo, una galería fotográfica, una animación, y otras posibilidades. El guion en estos
proyectos será una escaleta no lineal que abarca los conceptos principales a abordar en el documental interactivo
que se resume en una especie de cartografía creativa.
El término Narraciones Transmedia fue acuñado por Henry Jenkins, profesor del MIT, en el 2003, en
la revista Review del Massachusetts Institute of Technology MIT, el transmedia, en su expresión más básica,
significa historias a través de medios. Al respecto Carlos Scolari (2013), específicamente sobre el documental
transmedia, argumenta que va más allá y lleva sus contenidos a otros medios y plataformas, buscando siempre
la complicidad. El documental transmedia necesariamente distribuye su contenido en diferentes plataformas
digitales.
La plataforma utilizada para exhibir los proyectos transmedia es Internet. Los audiovisuales alojados en la
Web son de consulta permanente y están a disposición del usuario sin restricción de tiempo. Internet proporciona
a los documentalistas herramientas propicias para la creación de proyectos que emplean narrativas no lineales.
260
Una de las consecuencias del cambio en el audiovisual contemporáneo es el rol que adquiere el espectador,
quien pasa de tener un rol pasivo a uno activo. El espectador ahora se vuelve más un usuario del que se requiere
una participación constante en las propuestas narrativas. Asimismo, el rol del realizador se modifica Giannetti
(2002) plantea que la conectividad, la hipertextualidad y la interactividad son modos que están vinculados a la
autoría descentralizada y a la participación colectiva.
En consecuencia, los proyectos transmedia se convierten en una herramienta eficaz en los procesos
educativos, porque además de ser una experiencia lúdica y entretenida, tiene una intención marcadamente
pedagógica y es ante todo una experiencia didáctica. Este tipo de formatos tienen la posibilidad de ser más
llamativos para las audiencias jóvenes, debido a que las nuevas generaciones precisan interactuar de manera
constante con contenidos, pues una única pantalla, les puede resultar en ocasiones aburrido.
Por otro lado, la producción en Colombia de audiovisuales transmedia, desde el año 2012, ha sido
creciente y hay un incipiente pero prolífico desarrollo tanto en las iniciativas de producción, como de exhibición
y de formación en el área. La mayoría de las obras no lineales tiene una característica común y es la intención
por preservar la memoria y salvaguardar el patrimonio del país, son pocos los audiovisuales transmedia que han
abordado temas patrimoniales. La mayoría de los esfuerzos se concentran en el documental de denuncia y son de
modalidad expositiva.
En este marco, surge el proyecto “Difusión digital de las manifestaciones asociadas a los saberes y
quehaceres culturales en Santander. Hipermedia educativo para la apropiación de los oficios tradicionales en
la región”, como una posibilidad a través del uso de las TIC para la promoción, protección y divulgación de los
oficios tradicionales patrimoniales, dirigida fundamentalmente a nueva audiencias.
La utilización de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) han establecido una forma
diferente de configurar los espacios del conocimiento, transformando las prácticas de la pedagogía, permitiendo
así conexiones transversales con el saber. El flujo de información, la incesante transformación de las tecnologías
de la comunicación y el acceso irrestricto al conocimiento se han convertido en una constante en los nuevos medios
de comunicación. A las implicaciones culturales de las nuevas tecnologías de la información y la comunicación
en la sociedad se les ha denominado con el término cibercultura Lévy (2007) y los estudios de esa nueva relación
que se establece con el saber, se han configurado desde diversas corrientes que van desde la cultura visual, las
implementaciones tecnológicas, hasta los métodos de aprendizaje en estas nuevas plataformas. La iniciativa
de relacionar las TIC con la difusión del patrimonio cultural responde a la necesidad de contar con medios de
comunicación y divulgación que promuevan la conservación y la puesta en valor del patrimonio cultural.
La relación entre lo patrimonial y lo tecnológico será esa conjunción de la naturaleza y de la cultura, de lo
salvaje y del artificio. La posible definición que ha propuesto Michel Maffesoli (2012) de la posmodernidad
como una sinergia de lo arcaico y del desarrollo tecnológico, será al unir lo arcaico con la tecnología que el
imaginario se renueva con la sensibilidad que todos compartimos. Es ahí también, donde entrará la memoria
colectiva, una memoria patrimonial, donde se condensan, como por sedimentaciones, todas las expresiones
micro o macroscópicas que se inscriben en una comunidad particular. El dispositivo propuesto de un hipermedia
audiovisual plantea una dicotomía entre el progreso y la memoria, una unión entre lo arcaico con lo tecnológico,
sin llegar a afirmar que la herencia cultural de una sociedad tenga que ser arcaica; al contrario no hay nada más
actual y más vivo en toda comunidad que la afirmación y la identidad con su herencia y su pasado. El acto de
la destrucción es contrario al video, porque las imágenes son inmortales, lo serial, lo fotográfico, la mortalidad
en la imagen, habla de la eternidad, de la perdurabilidad, el dispositivo audiovisual posibilita esa eternidad, esa
memoria. En este sentido, cobra aún más vigencia e importancia la utilización de los medios tecnológicos en la
preservación del Patrimonio Cultural.
Otro de los grandes retos los trabajos elaborados entorno a la digitalización patrimonial es el de llegar
261
a nuevos públicos, en ese sentido el uso de herramientas web 2.0, de recursos en línea y de los canales de
comunicación como las redes sociales posibilitan el contacto directo de personas que habitualmente están en
contacto permanente con las TIC y con un sector de la población relativamente joven que es el que está en
mayor contacto con ellas y en menor contacto con los temas relacionados al patrimonio. Supliendo así en parte
la necesidad de llegar a las nuevas generaciones, para que conozcan y otorguen valor a lo heredado. En ese
sentido el lenguaje empleado tanto por el multimedia, el hipermedia y en nuestro caso particular el documental
interactivo les es cercano y les resulta familiar. Los recursos digitales se convierten en un banco de herramientas
en línea para que los usuarios las utilicen a su conveniencia, los dispositivos hipermediales juegan así el rol de
mediador entre las personas y los contenidos patrimoniales.

5. Resultados

5.1 Material audiovisual de consulta permanente, de libre acceso para la comunidad académica que
promueve la salvaguarda y puesta en valor del patrimonio inmaterial. Material de consulta que permita formular
nuevas investigaciones. http://museo.unab.edu.co/app/saberes/

5.2 Ampliación de la distribución del hipermedia o transmedia, ampliando el número de beneficiarios


directos e indirectos que puedan acceder a él. Distribución en las alcaldías, casas de cultura, museos, bibliotecas,
universidades, colegios y en entes que estén relacionados con actividades culturales.

5.3 Apertura de portal web educativo de consulta de acceso libre en internet del hipermedia educativo
sobre los oficios tradicionales de Santander.

5.4 Consolidación de los productos hipermedia educativos como unidades de aprendizaje digitales que
promuevan el patrimonio cultural.

5.5 Los conceptos que se plantean desde el arte digital como transdisciplinariedad, simulación, interacción,
multiplicidad, hipertextualidad, virtualidad, entre otros, amplían la forma de entender la percepción digital. A
su vez el logro de la simulación y la interacción del arte digital está en la experimentación que posibilita el
acercamiento lúdico al conocimiento.
5.6 En Colombia los proyectos audiovisuales desde hace un tiempo han iniciado una nueva migración narrativa,
empleando otras ventanas de exhibición y distribución, estas propuestas están dirigidas a nuevos públicos y
audiencias, ávidos de relatos, de participación e interacción.

6. Conclusiones

La difusión digital del patrimonio regional contribuye a promover el desarrollo social, turístico y ambiental
de la zona de estudio. La difusión digital del patrimonio cultural es una forma de protegerlo, salvaguardarlo y
preservarlo. A su vez, la difusión mediante las tecnologías de la información y la comunicación, debe permitir el
acceso virtual del patrimonio a diferentes niveles: acceso a los profesionales interesados, a los especialistas, a los
investigadores y al público en general, promoviendo así una intención pedagógica en los productos audiovisuales.

262
Los saberes locales que hacen parte del patrimonio inmaterial lo constituyen una serie de conocimientos
y técnicas tradicionales relacionadas con el hábitat, esas tradiciones están asociadas a la fabricación de objetos
artesanales, son técnicas ancestrales, que continúan vigentes y que actualmente tiene una alta demanda, son
generadoras de empleo y dinamizadores de la economía local.
Ante las posibilidades que ofrecen el lenguaje de los nuevos medios de comunicación e información, la
educación y la difusión digital del patrimonio a través del audiovisual sigue siendo una cuestión pendiente. Los
audiovisuales realizados con fines educativos por su impacto y amplia divulgación se convierten en herramientas
de transmisión viable, pertinente y de alguna manera necesaria, frente al consumo global de productos visuales y
frente a la necesidad de conocer y proteger el patrimonio cultural.
Asimismo, los medios de comunicación permiten promover las tradiciones culturales posibilitando que
las comunidades puedan reconocer y valorar sus manifestaciones culturales inmateriales. En este sentido, son las
comunidades quienes lo resignifican, lo heredan y le otorgan valor.
Es justamente desde la universidad donde se hace posible crear los grupos interdisciplinarios que
desarrollen ideas y prototipos para llenar el vacío que hay en difusión digital del patrimonio cultural y propiciar
el puente entre el ámbito del patrimonio con la sociedad.

263
Referências bibliográficas

DELEUZE, G. (1985). Rizoma, Valencia, Pre- Textos, 2010

GIANNETTI, C. Estética Digital, Sintopía del arte, la ciencia y la tecnología. Barcelona: Associació de Cultura
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stronger and more compelling”. Technology Review. Massachusetts, 2003

LÉVY, P. Cibercultura. Barcelona: Ed. Anthropos, 2007

MAFFESOLI, M. El ritmo de la vida. Variaciones sobre el imaginario posmoderno. México: Siglo XXI Editores,
2012

SCOLARI, C. Narrativas Transmedia. Barcelona: DEUSTO, 2013.

Ana Teresa Arciniegas – Mestre pela Escola Superior de Cinema e Audiovisuais da Catalunha (estudou “do-
cumentário e sociedade”), doutora pela Universidade Politécnica de Valência (“arte, produção e investigação”),
ambas na Espanha, Arciniegas é atualmente professora da Universidade Autônoma de Bucarasmanga, na Colôm-
bia, onde também desenvolve a carreira de documentarista e pesquisadora.

264
21. Coreografías de la protesta y figuraciones del conflicto social
en el documental boliviano de la década del ochenta:
de Las banderas del amanecer (Grupo Ukamau, 1983) a
La marcha por la vida (Alfredo Ovando y Roberto Alem, 1986)

María Aimaretti

Levantar la cabeza

En el marco de una investigación mayor y en curso, este trabajo tiene por objetivo aproximarse a las formas
de representación que en el documental boliviano de la década del ochenta adquirieron la protesta y el conflicto
social en tanto que cajas de resonancia de complejos procesos socio-políticos que se vivieron desde el desmoro-
namiento de la dictadura de Hugo Bánzer en 1978 y el inicio de la transición democrática, hasta 1989.
En medio de un adverso contexto caracterizado por la inestabilidad política, el desorden institucional,
la violencia y la pauperización de la vida cotidiana de grandes sectores de la población —factores que transfor-
maron profundamente la fisonomía social del país–, la producción fílmica boliviana —ya de por sí exigua–, se
resintió, contándose apenas nueve largometrajes en toda la década.260 Sin embargo, paralelamente, se produjo un
singular fenómeno de recambio generacional y tecnológico: un grupo diverso de jóvenes se comprometió con
la producción de imágenes en movimiento utilizando como soporte el video, horizontalizando y molecularizan-
do la producción y la difusión, y procurando aportar a la reorganización del sector, conviviendo con prácticas
tradicionales y realizadores de vasta trayectoria como Jorge Sanjinés y Antonio Eguino. Abordamos el campo
audiovisual de la post-dictadura boliviana utilizando la imagen de “escena”, con la que aludimos al proceso di-
námico y conflictivo de configuración, desarrollo y dispersión de esa serie de experiencias en video que llevaron
adelante jóvenes paceñxs —entre quienes se encuentran Alfredo Ovando y Liliana De la Quintana (Nicobis) de
cuya obra hablaremos aquí. Jóvenes que convergieron en lo que se denominó el Movimiento de Nuevo Cine y
Video Boliviano (MNCVB).261
Estudiar el período es enfrentarse, simultáneamente, a la escasez y la abundancia. En esos años la escasez
fue el signo dominante de la vida social material, la cual se precarizó y vulneró en sus derechos más básicos, lo
que volvió aún más difícil de lo que ya era cualquier empresa de producción cultural y artística. Escasa también
es la producción historiográfica, puesto que ha sido un momento poco atendido y problematizado; y escasos son
los materiales audiovisuales conservados. Pero la década del ochenta también porta el signo de la abundancia:
abundancia de experiencias vividas, de relatos y memorias, y sobretodo de entusiasmo por la creación de imáge-
nes que sean testimonio revelador de un tiempo cargado de esperanza y búsquedas.
En esta oportunidad proponemos detenernos en el análisis comparado de un corpus audiovisual mixto
cuya preocupación central fue dar cuenta del conflicto social y la experiencia de lucha de los sectores populares.
Las banderas del amanecer (Grupo Ukamau, 1983), Lucho: vives en el pueblo (Nicobis, 1983), Movilización,

260 El celibato (José y Hugo Cuellar, 1981), El lago sagrado (Hugo Boero Rojo, 1981), Mi socio (Paolo Agazzi, 1982), Las banderas
del amanecer (Grupo Ukamau, 1984); Amargo mar (Antonio Eguino, 1984); Los hermanos Cartagena (Paolo Agazzi, 1985), Tinku, el
encuentro (Juan Miranda, 1985), La nación clandestina (Grupo Ukamau, 1989), Los igualitarios (Juan Miranda, 1989). El lago… y Las
banderas… son documentales, mas sólo el segundo abreva en la problemática socio-política.
261 Desarrollamos in extenso este tema en el capítulo “Volver a los ochenta: prácticas, experiencias y agrupamientos
en la ‘escena’ audiovisual paceña (Bolivia 1978-1989)”, presente en el libro coordinado por Mariano Véliz y Natalia Taccetta
Cine y transición democrática en América Latina, Buenos Aires: Editorial Prometeo. En prensa.
265
pan y libertad (Nicobis, 1983), Café con pan (Nicobis, 1986) y La marcha por la vida (Alfredo Ovando y Roberto
Alem, 1986) configuran relatos de memoria para un presente de disrupción y dislocación social y son la forma
—justa– que encuentran sus realizadores para intervenir política y culturalmente en el proceso histórico en curso.

De la efervescencia a la relocalización

La caída de la dictadura de Bánzer en 1978 no se tradujo en la más o menos mediata reconstitución de-
mocrática: aunque fervorosamente defendido por la mayoría de la población, el proceso transicional duró cuatro
largos y dolorosos años, por haber sido interrumpido por las fuerzas militares. En noviembre de 1979 Alberto
Natusch Busch provocó un golpe de Estado que duró quince días, seguido éste por un débil gobierno interino en-
cabezado por Lidia Gueiler. La economía continuó su proceso de crisis, pero la transición volvió a interrumpirse
el 17 de julio de 1980 cuando el Gral. Luis García Meza dio un nuevo golpe de Estado, que se prolongó hasta
agosto de 1981 en medio de la corrupción, el crecimiento del negocio de la cocaína y el contrabando. Luego de
temporales presidencias militares recién en septiembre de 1982, tras una huelga general, el proceso dictatorial
colapsó definitivamente y el líder de la UDP (Unión Democrática Popular) Hernán Siles Zuazo asumió como
mandatario. Este complejísimo período de encrucijadas sociales y políticas fue capturado por Jorge Sanjinés y
Beatriz Palacios en su único documental Las banderas del amanecer. Este largometraje en 35 mm. con el cual el
Grupo Ukamau retorna a Bolivia tras largos años de exilio, constituye nuestro punto de partida para observar las
coreografías de la protesta y las figuraciones del conflicto social.
Siles Zuazo gobernó entre 1982 y 1985 como referente principal de un frente progresista de izquierda que
muy pronto se dividió.262 Durante su mandato la inflación y el desempleo crecieron considerablemente provocan-
do el caos económico y la respuesta social a través de la eclosión de reclamos y huelgas —con fuertes presiones
de la COB (Central Obrera Boliviana). En este contexto de crisis global se fue creando un clima de demanda por
orden y cierta estigmatización de la izquierda a la que se observó con descrédito, y Siles se vio obligado a llamar
a elecciones anticipadas (Mesa, 1998).263 En resonancia con este segundo momento del período, aparecen los pri-
meros trabajos de la joven productora Nicobis, formada en 1981 por Alfredo Ovando y Liliana De La Quintana,
entre los que sobresalen Lucho: vives en el pueblo y el documental para televisión Movilización, pan y libertad,
videos que, acompañando el devenir de transformaciones histórico-políticas, problematizaron el pasado reciente
—la dictadura– y el presente de crisis.264
Los comicios de 1985 dieron la victoria —estrecha– a Bánzer frente a Paz Estenssoro, pero éste último
fue elegido por el Congreso como nuevo presidente. Con él se puso en marcha un plan neoliberal que incluyó la
reducción del aparato público y el fin de la economía estatizada, rompiendo con el modelo creado en 1952 —cuyo
centro era el Estado–, y debilitando severamente la potencia sindical (Romero Ballivián, 1995: 11, 35). La opo-
sición vio resentidos sus canales y mecanismos de acción, pues el oficialismo y su entonces aliado ADN (Acción
Democrática Nacionalista) cuyo líder era Bánzer, controlaban el parlamento, con lo que el presidente tuvo amplia
capacidad de maniobra para instalar las reformas económicas.

262 La UDP asoció al MNRI (Movimiento Nacionalista Revolucionario de Izquierda), el MIR (Movimiento de la Izquier-
da Revolucionario) y el PCB (Partido Comunista Boliviano), entre otros.
263 “Así maduró en la sociedad un sentimiento de disconformidad hacia el poder débil, se identificó a la izquierda
con el desorden y se rechazó las frecuentes huelgas que erosionaron las simpatías que despertaba la COB en diferentes
estratos sociales” (Romero Ballivián, 1995: 24).
264 Simultáneamente, en 1984 comienza a organizarse el MNCV, del que Nicobis —entre otros grupos e individuali-
dades– formará parte. Una plataforma de reunión, discusión y trabajo audiovisual colaborativo, integrada sobre todo por
jóvenes que se habían conocido en 1979 en el Taller de Cine de la Universidad Mayor de San Andrés (La Paz), y habían
seguido vinculados por afinidades generacionales y posicionamientos progresistas.

266
El decreto supremo 21060 cristalizó el plan político-económico e ideológico de Paz: bajo la justificación
del pragmatismo que exigía la crisis, su aplicación implicó el privilegio de un mercado abierto, despidos masi-
vos y la desarticulación y decrecimiento del proletariado minero y obrero. Al calor de este proceso en el que los
sectores populares vieron con estupefacción aceleradas y radicales transformaciones en su sistema de vida, se
producen Café con pan (Nicobis, 1986) y La marcha por la vida (Alfredo Ovando y Roberto Alem, 1986).
Teniendo en consideración las continuidades y diferencias entre estos momentos dentro de un mismo ciclo
histórico, así como también entre los trabajos audiovisuales mencionados; cabe destacar que la historia reciente y
el presente fueron núcleos temáticos preferidos. Sabiendo que las imágenes revelan y portan su época, la “cifran”
a través de una red de sentidos, es que queremos situar la mirada en esta recurrencia y advertir cómo se procesó,
simbólicamente, una época alterada por la violencia represiva, pero también por la desposesión económica y el
hambre. Imágenes-memoria, entonces, conjugadas en un tiempo presente donde la recuperación de la democracia
se tradujo no sólo como lucha por la libertad, sino también como lucha por el derecho a una Vida digna para todxs.

Especie y aspecto

La idea de que un gesto podría ser una frase, esta mirada, un largo discurso, es algo totalmente insoportable: eso significaría
que la imagen, las imágenes, los transeúntes, esta calle, este sollozo, este juez distraído, esta casucha destartalada, esta chica asustada,
constituyen la materia de otra historia diferente de la Historia, un contraanálisis de la sociedad. Marc Ferro, 1978: 246.

Resultado de prácticas sociales y significantes, insertos en un proceso más amplio de reivindicación y


reinvención de la vida democrática, los discursos visuales que analizaremos son eco y representación de asuntos
públicos y se producen y circulan en los territorios de la cultura —figuraciones/complejos simbólicos que abren
los conflictos de lo real (Richard, 1998; Amado, 2009)– y lo político —lógica antagónica por la definición de lo
social. Así lo testimonian las (conocidas) entrevistas y textos críticos de Jorge Sanjinés (1980), pero también los
(menos frecuentados) pronunciamientos de lxs jóvenes videastas. Véase por ejemplo el que figura en el Boletín
del Nuevo Cine y Video Boliviano al que Nicobis adhiriera como parte del Movimiento, donde se postula un
horizonte creativo compartido:

Producir materiales audiovisuales comprometidos con el proceso histórico presente, proceso en el cual los realizadores
sean partícipes (…) enfrentar y combatir las manifestaciones de la cultura hegemónica transnacional a través de una pro-
ducción crítica y permanente (…) que el trabajador de la imagen se convierta en creador y portavoz del proceso colectivo
de búsqueda de la identidad cultural, mediante el conocimiento crítico del medio socio-cultural en que vive (MNCVB,
1986: 3).

Así, en fricción con un contexto hostil y coercitivo, y luego decididamente desfavorable y confuso, para
lxs jóvenes de los ochenta el video significó la oportunidad de dar cobertura a sus inquietudes expresivas y preo-
cupaciones sociales utilizando el medio como un instrumento de integración con los sectores populares (De la
Quintana y Romero, 1988).
Como veremos, a través de sus documentales, jóvenes y expertos realizadores parecen preguntarse: ¿qué
rostros hoy interpelan al poder?, ¿qué cuerpos se manifiestan y con qué cualidad sensible lo hacen?, ¿qué coreo-
grafías de lo colectivo persisten y cómo se modulan, interrumpen o modifican a través del tiempo?
Inspirados en los planteos de Gonzalo Aguilar (2015, 2015b) proponemos utilizar tres figuras para recor-
rer y constelar el corpus documental: rostro, como catalizador de afectación, rostrificación del conflicto en la ima-
gen, cifra personal de acceso a la memoria y la historia; cuerpo, en tanto que resto y residuo de la violencia y la

267
desposesión; y coreografía, como dinámica colectiva de los muchos cuerpos ordenados bajo ciertas direcciones/
impulsos que organizan desplazamientos. 265
Aguilar ha señalado que en la filmografía latinoamericana militante, los cuerpos “perdían” el rostro:

(…) que se disolvía en las multitudes y en el espacio de la calle. No, entonces, el acercamiento y la individuación, sino
una operación sobre lo colectivo, sobre esos grupos que esperaban el significante “pueblo” otorgado tanto por el discurso
fílmico como por la acción política. Por eso el lugar por excelencia era la calle. Allí la cámara archivaba los cuerpos en
trance, atravesados por un grito o un caminar que nunca era individual. Los gestos no se concentraban en un solo rostro o
en un solo cuerpo, sino que se desplazaban de un cuerpo a otro, como una corriente eléctrica conducida por los cables no
visibles de la revolución, el pueblo y la liberación, y con movimientos coreográficos muy precisos, logrados en el encuen-
tro de las prácticas políticas con las cinematográficas (Aguilar, 2015: 143-144).

Mas, en los materiales que abordaremos se advierte no la disociación sino la concomitancia de rostro-
-cuerpo-coreografía en una simultaneidad tensa: sea apelando al registro directo, el testimonio o incluso la re-
creación ficcional, la tríada da forma y figura a la protesta y el conflicto social protagonizados por los sectores
populares bolivianos quienes encarnan acción política y sufrimiento, lo particular y lo colectivo. Justamente, se
produce la convergencia de dignidad/integridad humana y herida en singularidades re-unidas a una serie más
amplia: una comunidad de rostros situada histórica y políticamente. Retomando a Georges Didi-Huberman, po-
demos observar que el corpus trabaja:

(…) la especie con el aspecto, es decir, la repetición de los rasgos genéricos con la singularidad de los rasgos diferen-
ciales, todo ello en el contexto preciso de un espacio político dado (…) Entre la especie y el rostro se declina (…) lo que
podríamos llamar singular plural del aspecto humano en el espacio histórico donde este se despliega siempre de manera
diferente (…) un espacio preciso –un espacio que impone sus reglas de opresión o, al contrario, sus potencialidades de
desenclaustramiento- donde el aspecto se reúne con la especie y el cuerpo carnal con el cuerpo social (2014: 80).

Ante una esfera publica obturada o escamoteada, los audiovisuales retrataron coreografías colectivas de
disputa y ocupación del espacio, y expresiones de impugnación ética a un orden social que arrebataba o socavaba
la dignidad. Mas en el mismo movimiento de registro, también construyeron visualmente al pueblo boliviano en
sus formas de vulnerabilidad y precariedad: una presencia pública expuesta a su disolución o violentamiento; una
presencia social en situación de riesgo. Y sin dejar de enlazar la especie con el aspecto, pusieron ante los ojos la
revuelta como emoción colectiva y encarnación performática de una convicción de injusticia:

¿Quién se subleva en una revuelta? ¿Qué provoca que la gente se rebele? Se habla de un «estallido» de frustración o de
rabia y, sin embargo, estos momentos tan viscerales suponen el reconocimiento de que un grupo de personas ha llegado
al límite. Los seres humanos se rebelan cuando están indignados o cuando no pueden soportar más opresión, cuando,
en definitiva, se ha traspasado un límite y se les ha negado durante demasiado tiempo algo indispensable para vivir con
dignidad o libertad (…) Las revueltas siempre llegan tarde, incluso cuando intentan establecer un nuevo estado de cosas

(…) En esa acción social, ningún individuo actúa solo, pero tampoco surge un sujeto colectivo que niegue toda diferencia

265 Justamente, en relación a los desplazamientos colectivos y su simbología, y teniendo en cuenta la recurrencia de
la marcha en el corpus audiovisual, recuperemos la mirada de Silvia Rivera Cusicanqui, quien advierte: “Foucault decía
que el primer gesto de resistencia es levantar la cabeza (…) Hay también las acciones colectivas centradas en el cuerpo:
la caminata como práctica política, los recursos y puestas en escena de las movilizaciones, que hacen uso de la música,
la teatralidad, los mensajes kinestésicos (…) La caminata es una estrategia de larga data en los Andes, desde el viaje que
hizo el cacique Tomás Katari a pie (…), o los cortes de ruta coloniales en el altiplano durante la rebelión de Tupaq Katari.
Estos fenómenos históricos no siempre son reconocidos como parte del presente, son una memoria inconsciente que se
reedita en los bloqueos de caminos de 1979, 2000, 2003, en el “cerco a La Paz” reiterado en muchos momentos críticos de
la historia reciente. Hay en ellos una especie de memoria del cuerpo, el indio que llevamos adentro se levanta, nos baila,
nos impele a caminar, a asediar” (2015: 312).

268
individual. Una revuelta no brota de mi indignación o de la tuya. Los que se sublevan lo hacen juntos, reconociendo que
padecen como nadie debería hacerlo (Butler, 2016: 21).

¿Qué del rastro social, hay en los rostros que aparecen en los videos?, ¿qué estados de ánimo se convocan?
¿Con qué intensidad emerge en ellos el conflicto?, ¿qué atmósferas, tonalidades, afectaciones lo configuran?
¿Qué forma adquiere la dolorosa paradoja por la cual los cuerpos despojados del trabajo, vueltos forzosamente
improductivos, se vuelven —por medio de las imágenes– en cuerpos productivos para la reflexión, la memoria y
el disenso?

Ponerse de pie… con otrxs

El largometraje documental Las banderas del amanecer, fue estrenado en el Festival Internacional del Nuevo
Cine Latinoamericano de La Habana en 1983, y luego en Bolivia en marzo de 1984.266 A través de materiales de
archivo (fotos, diarios y programas radiales), entrevistas, testimonios y registros directos, el film fue el primero
en reponer de forma panorámica el pasado reciente de las dictaduras de Bánzer, Natusch Busch y García Meza,
así como el convulso presente transicional, recuperando incluso propaganda oficial a la que releyó en clave con-
tra-informativa yuxtaponiéndole otros documentos que refutaran los datos o la perspectiva hegemónica.
Varias son las dicotomías que configuran el antagonismo social: imperialismo yanki vs. trabajadores bo-
livianos (unidad obrera-minera-campesina), fascismo vs. democracia; hambre vs. Justicia. El pueblo boliviano
no sólo lucha contra el imperialismo y la dictadura, sino, y muy especialmente desde diciembre de 1979, contra
medidas económicas de precarización de la vida material. Los rostros y las voces —sobre todo femeninas–, ex-
presan de forma enardecida el dolor y la furia en fracciones semejantes; mientras sobre los cuerpos gravitan el
horror de la violencia represiva, la desaparición y la violencia económica.267
El film da cuenta cómo en mayo de 1982, reclamando la vigencia de las organizaciones e impugnando
los despidos, se organizó una huelga de hambre que Sanjinés y Palacios cubrieron desde adentro del recinto que
nucleaba a lxs manifestantes. El montaje articula el registro in situ de la llegada de nuevos huelguistas recibidos
en calurosa bienvenida e imágenes de los sectores populares empobrecidos —bajo la figura de féretros infantiles–
en clave de denuncia: esos cuerpos que, castigados por el sistema, deciden extremar su situación de precariedad,
encuentran allí un gesto político de resistencia y contestación.
Asimismo, la película insiste en mostrar marchas urbanas y rurales donde concurrían multitud de cuerpos
y rostros en desobediencia, sea al status quo dictatorial o a los gobiernos de transición. Estas verdaderas coreo-
grafías sonoras —al verse acompasadas por cánticos y consignas–, tienen dos variantes que merecen destacarse.
Por una parte, el registro directo de los cortes de ruta y bloqueos, tanto en su armado físico como en los modos
en que se resiste cualquier intentona de ruptura: aquí la coreografía de los muchos cuerpos opera abroquelándose,
interrumpiendo y deteniendo el paso del Otro (blanco). La contundencia verbal de lxs manifestantes se une a la
contundencia visual de sus miradas —sus rostros– que literalmente hacen retroceder —y convencen– al interlo-
cutor. Por otra parte, cobra especial significación la jornada de duelo por Luis Espinal, quien fuera secuestrado,
torturado y asesinado, como parte de un plan sistemático de exterminio —llamado “Plan de los cuchillos lar-
gos”– ideado por García Meza y su ministro del interior Luis Arce Gomez para provocar el miedo y el desorden

266 Hemos trabajado individualmente esta cinta en otro lugar (Aimaretti, 2017). Aquí apuntamos algunas ideas pen-
dientes.
267 Así, en medio de una asamblea campesina una mujer advierte sobre la presidenta interina Lidia Gueiler: “Aunque
es mujer, ha dictado medidas económicas del FMI (…) Dice que hay democracia, pero vemos que esta democracia es solo
para los ricos y los empresarios (…) Por eso no podemos permanecer callados”.
269
generalizado y justificar la intervención de las FF.AA. Aquí se despliega “otra forma” de coreografía popular: or-
denadamente, un cuerpo colectivo inconmensurable marcha afligido acompañando el féretro del jesuita, sin misa,
sin gestos eclesiásticos, ni protocolo. Allí se anudan el dolor por su martirio y la indignación frente a la impunidad
de sus asesinos; la herida por su desaparición y la cólera frente a la injusticia —“¡Asesinos al paredón!” se oye
gritar. Sobre el cuerpo de Lucho Espinal —como se lo conocía coloquialmente– gravita una memoria-testimonio
de lucha por la Vida: una que va de la huelga de hambre que tumbó a Bánzer en 1978 de la cual el jesuita formó
parte, al cortejo impugnador de la represión más multitudinario que se viera en La Paz; del cuerpo hambreado, al
cuerpo insepulto en un basural donde fue hallado; de las imágenes de la autopsia divulgadas por la prensa gráfica,
al duelo colectivo.
En el final del relato, la banda imagen expone una interminable caravana de hombres, mujeres y niños
en marcha y subiendo una colina: el tamaño del plano (general), la angulación (en picado) y la profundidad de
campo permiten advertir el dinamismo coreográfico de esos muchos que, estrechamente unidos, se abren paso
entre calles y caminos de polvo —un cautivante río humano. Simultáneamente, sirviéndose del énfasis que da la
música extradiegética, la clausura épica (y optimista) del film consagra la victoria a la potencia oposicional de los
sectores populares con un cartel que, sobreimpreso, asegura convencido: “No tiene fin un pueblo que está de pie”.
Formados en el Taller de Cine de la Universidad Mayor de San Andrés en 1979, continuadores de la línea
del documental de denuncia que cultivara en la TV boliviana Luis Espinal, los jóvenes esposos, Alfredo Ovando
y Liliana De La Quintana —Nicobis–, mantuvieron a lo largo de la década del ochenta cuatro líneas de trabajo: el
documental social y político; el etnográfico; el feminista y la exploración del universo infantil. 268 Perteneciente al
primer grupo, Lucho: vives en el pueblo, obtuvo el premio al mejor cortometraje en el Festival Cóndor de Plata en
su edición de 1983, escapando luego de todo control por parte de sus realizadores al ser ampliamente reapropiado
y divulgado.
No obstante, cabe recordar un episodio de censura que tuvo lugar a causa de la difusión televisiva del vi-
deo en agosto de 1987 —a cuatro años de su estreno. Por haberlo transmitido en Canal 7 —Empresa Nacional de
Televisión Boliviana, canal estatal, único de alcance nacional–, Elsa Antequera, directora de programación, fue
despedida, mientras Guillermo Aguirre, funcionario del canal, fue suspendido algunos días sin goce de haberes.269
Según el memorandum de despido, la justificación estaba en que el documental contenía “calificativos groseros”
contra quien en ese momento era el presidente —Paz Estenssoro– y porque mellaba “importantes corrientes polí-
ticas del país” —en alusión al MNR. A eso hay que añadir una tercera justificación que, obviamente, no figuraba
en el documento: la denuncia a la dictadura fascista de Bánzer, quien en esos años era jefe de ADN, segunda
mayoría en el Congreso Nacional y principal aliado del MNR:

¿”Mellar” a importantes corrientes políticas del país será recordar como lo hace el documental que “Bolivia soportó siete
años de dictadura fascista a partir de agosto de 1971. Los sindicatos y las organizaciones laborales fueron sometidos a
un receso obligatorio. La disolución de los partidos políticos… los campesinos fueron masacrados en Tolata, no existió
libertad de prensa… superan los 19.0000 bolivianos que fueron desterrados por no aceptar la implantación de la dictadura”?
¿Ser “grosero” con S.E. el señor Presidente de la República será recordar que éste a la cabeza del MNR “se prestó a servir
de soporte político a la dictadura”? (…) ¿Por qué resulta grosero constatar que existen hombres que no cambian su línea
de acuerdo a la época o a sus intereses? (S/D Editorial CIMCA, 1987: 1).

Aunque Antequera fue reincorporada a fuerza de las protestas del sector audiovisual, y se reinicio el

268 “Como documentalistas somos los seguidores de la línea de Espinal en la temática social y política”, señaló Ovan-
do en entrevista personal.
269 El video se pasó dentro del programa “El documental en Bolivia”, que se emitía de lunes a viernes a las 22 hs.
desde julio de 1987.
270
ciclo, hubo mayor control sobre la programación: así como años antes, en ese mismo canal, bajo la dictadura ban-
zerista, se había censurado a Espinal y sus programas de denuncia social; ahora, en democracia, se hacía lo propio
a propósito de un documental que volvía accesible al gran público de todo el país la memoria del pasado reciente.
Lucho vives en el pueblo es un video de 35 minutos que versa no sólo sobre la vida, vocación y la militan-
cia por los DD.HH. de Luis Espinal, sino que opera como reivindicación por el esclarecimiento de su asesinato
y como memoria de las prácticas de intervención política de los sectores populares y lxs trabajadores. Es, pues,
simultáneamente el homenaje a un hombre —exponiendo en su cuerpo vulnerado los efectos del orden represi-
vo–; y la ponderación del coraje del cuerpo social en su denuncia temprana y valiente sobre la impunidad política.
La investigación a cargo de Mirtha de Huici, y el guión de Liliana De la Quintana, se apoyan en textos que casi
inmediatamente después del asesinato reivindicaron la figura del religioso: Lucho Espinal: el grito de un pueblo
(1981), que de forma clandestina publicaron sin nombres de colaboradores ni fechas editoriales la Asamblea
Permanente por los Derechos Humanos de Bolivia y Alfonso Gumucio Dagron;270 y El cine boliviano según Luis
Espinal (1982) de Carlos Mesa.
El relato alterna materiales documentales —fotografías, recortes de periódicos, afiches, fotogramas de
películas y archivos–, testimonios, entrevistas, poemas y textos del sacerdote, y la ficcionalización del momento
de su secuestro y muerte. Dos son las voces over que llevan adelante la enunciación: una expositiva, explicativa
y omnisciente, que concentra la autoridad epistémica y ofrece un sentido global a la diversidad de materiales
dispuestos en el montaje; y otra poético-expresiva, que vuelve audible la palabra del propio Espinal al reponer
fragmentos de sus poemas, oraciones religiosas, textos sobre cine y editoriales radiales y periodísticos. Ambas
funcionan en consonancia: mientras la primera argumenta sobre cierto hecho o pasaje de la vida del religioso,
la segunda ofrece una tonalidad subjetiva y emotiva. Su alternancia y correspondencia —en tanto que principio
narrativo del documental– podría vincularse, justamente, con el perfil humano de su protagonista quien, como
señala un testigo, no separaba lo sagrado de lo profano, lo teológico de lo sociológico, el compromiso devocional
del compromiso con el pueblo.
El título es una declaración de principios y la interpelación vocativa al “espíritu” de Espinal: una asevera-
ción de continuidad vital entre un cuerpo individual y un cuerpo social. Ese pueblo que, como decía la inscripción
final de Las banderas… no tiene fin si está de pie, es en el seno del cual vive —aún– el protagonista. El título es
también una cita al propio jesuita quien tras la huelga de hambre reflexionó sobre su participación en un escrito
en el que dice: “Morir por un pueblo puede dar más carta de ciudadanía que nacer en él (…)” (Espinal en Medina,
1991: 10-11).
El punto de arranque del relato es la recreación ficcionalizada de las horas previas a su secuestro a través
de dos testimonios de vecinos que se escuchan en over. Así, el motivo de un cuerpo bajo control y vigilancia, la
inminencia de su captura y tortura, es central desde el comienzo del documental: y esto es así porque, justamente,
se busca comprender cómo y por qué ese cuerpo termina en el martirio. Lejos de la construcción visual de un
cuerpo-victima (inocente) o su sobre-exposición como cadáver, aquí se insiste en la conciencia y responsabilidad
política con que Espinal asumió su trayectoria vital comprometido, más aún, consustanciado con coreografías
colectivas.
Para dar cuenta de ese itinerario se traza una memoria cronológica advirtiendo sus múltiples perfiles/aris-
tas por mediación de fotografías —donde resalta la figura del protagonista– y voces-rostros que, aunque distintos,
configuran un coro armónico: en las palabras de Xavier Albó, Carlos Mesa y Domitila Chungara, re-aparece Es-
pinal hijo, sacerdote, comunicador, cinéfilo, crítico, periodista y militante.271 Construido mediante el paralelismo
270 Datos y publicación facilitados en conversación personal con la autora (2015) por Alfonso Gumucio Dagrón.
271 Resulta interesante cómo el testimonio de la huelga de hambre que refiere Domitila tiene apoyatura visual en foto-
gramas de la película que protagonizara en 1971 El coraje del pueblo (Grupo Ukamau) a manera de documentos/archivos,
y por qué no pensarlo, como homenaje intertextual al Grupo Ukamau.
271
entre el tema/problema que refiere el/la testigo y la resonancia en los versos, esas voces-rostros mantienen un
“diálogo” confirmatorio con la voz poética de Espinal. Idéntico procedimiento sucede con buena parte de la banda
imagen, la cual, a partir de los registros directos del presente suburbano de la ciudad, procura reponer aquello que
viera, inspirara e indignara al sacerdote, y que expresara en sus textos y hermosos tallados artesanales —a los
que la cámara dedica atención.272 De esta forma, se denuncia además la pervivencia de estructuras de explotación
y empobrecimiento que afectan, en especial, a niñas y niños, ayer y hoy. Justamente, uno de los momentos más
sensibles del video es aquel en el que, mientras la voz over enuncia un poema sobre la impotencia y el dolor por
los que cada día mueren, la banda imagen muestra un ritual funerario y entierro infantil.273
Para representar el pasado reciente dictatorial, cual ojo escrutador, la banda imagen explora detenida-
mente material de prensa mediante zooms-in, zooms-out, reencuadres y desplazamientos internos. Por ejemplo,
cuando da cuenta del golpe de Estado perpetrado por Bánzer utiliza la fotografía que reúne en un mismo balcón y
gesto regocijado, al militar, a Víctor Paz Estensoro (referente del MNR) y a Mario Gutiérrez (referente del partido
conservador Falange Socialista Boliviana), en lo que es una crítica directa a los dos primeros, ayer cómplices del
terrorismo, hoy (en su presente de estreno) aliados en el Parlamento para desestabilizar a Siles y acceder —nue-
vamente– al poder.274 La identificación y acusación a ciertos rostros se reitera en la secuencia de impugnación a
la impunidad de los asesinos de Espinal: aquí no hay fotografías, sino archivos visuales televisivos que el relato
dispone para señalar e incriminar tanto a los artífices de la muerte del sacerdote, como a sus cómplices políticos.
Para dar cuenta de la vulneración del cuerpo del jesuita, el documental opta por la recreación de una es-
cena de tortura a través de sombras y perfiles en negro, mientras la banda sonora se distorsiona notablemente.
Un rítmico montaje de imágenes de tanques, enfrentamientos callejeros, ambulancias, caídos, los rostros frag-
mentados de Arce Gomez (ministro del interior durante la dictadura de García Meza) y Garcia Meza, armas, una
esvástica, etc., condensa la memoria de y la denuncia al terrorismo de Estado. Mientras tanto, se oyen tambores,
sirenas, bombas y finalmente una ráfaga de disparos que remite a la balacera que remató al sacerdote —su cadá-
ver presentó 17 impactos.275 Y aquí, en este momento dramático, doloroso, el documental produce una interesante
torsión: Espinal se multiplica en muchos cuerpos y voces, se (con)funde con ellos y en ellos.
El relato privilegia entonces lo colectivo e incorpora los registros del multitudinario cortejo fúnebre —se-
mejantes a los de Las banderas…–: una abigarrada coreografía de cuerpos ocupa el espacio público, se traslada de
forma compacta, casi apiñada al cementerio, deposita el féretro en un nicho, lo llena de flores y no sólo llora sino
que corea ocupando la banda sonora con sus consignas: “¡Lucho has muerto, aún quedamos muchos!”, ¡”Que
mueran los paramilitares!, “¡Arce y el CIE, son los asesinos!” (el CIE era el Centro de Inteligencia del Ejército

272 Los tallados los realizaba con desechos de lata y madera que encontraba cerca del barrio en el que vivía, hacien-
do del desperdicio, belleza. Sin duda, en su iconografía de cuerpos humanos fragmentados, dolientes, pero aún rabiosos
y llenos de esperanza, anida otra forma de pronunciamiento ante la Vida y ante la muerte.
273 El ataúd infantil remite también a la obra del Grupo Ukamau y Jorge Sanjinés quien en prácticamente todas sus
películas hace aparecer este motivo como signo del siempre interrumpido futuro de los sectores populares bolivianos.
Cabe destacar que en varios momentos del documental, sea para aludir al orden represivo como al orden económico em-
pobrecedor —homologados–, se apelará a panorámicas de cementerios populares.
274 Para señalar la participación de otras estructuras de poder como la Iglesia, el documental apela a dibujos satíri-
cos que están en plena sintonía con pancartas y carteles difamatorios presentes en las movilizaciones populares, en los
que por ejemplo, se homologa a los represores con animales. Destaquemos también que en la secuencia que describe el
banzerato se explora material de archivo en el que se ven coreografías del terror: fotografías que cristalizan momentos de
detenciones masivas, y desplazamientos de hombres con los brazos en alto.
275 Más de diez años después, el grupo boliviano Teatro de los Andes, estrenó la obra “Las abarcas del tiempo”
(1995), donde re-aparece la figura de Espinal como modelo de coherencia ética y compromiso con la memoria. En la
escena que lo tiene por protagonista, el cuerpo del personaje da a ver los efectos de la violencia retroactivamente: Espinal
va interrumpiendo espasmódicamente el discurso verbal, estremeciéndose en forma diferida por los golpes que lo llevaron
a la muerte. Pero además de sus bolsillos el personaje va sacando proyectiles que deposita en distintos lugares del
espacio escénico, hasta que en cierto momento caen en cantidad de su saco y provocan un estrepitoso sonido que refiere
a la balacera que recibiera y que contrasta con la suavidad poética de su monólogo. Para un análisis completo de la obra
ver Aimaretti (2015).
272
donde era jefe Arce Gómez). 276
Este duelo, entonces, se transforma en denuncia y efervescencia colectiva, tal como se muestra en la
conmemoración del día del trabajador, donde la imagen y el nombre de Luis Espinal reverberan por doquier: son
un cuerpo y un rostro potentes, ejemplos de coherencia, que merecen ser reconocidos y re-cordados —hechos
presentes en el presente. Más aún, ese rostro que hemos visto pausadamente en fotografías familiares, de amigos,
de prensa y trabajo, se vuelve el rostro emblemático, público, de la lucha por la libertad y los DD.HH.: una (otra)
bandera de reivindicación enarbolada en nuevas coreografías, un agente de movilización social. De ahí que, en
el final del video, el montaje superponga el cántico popular “A continuar, a proseguir, la lucha de Luis Espinal”,
con la voz poética del sacerdote que dice: “Aceptamos con ilusión la lucha y la muerte, porque Tú nuestro Amor,
no mueres”.
En función de esclarecer y concientizar sobre una situación compleja sin dejar de conmover; en algunos
tramos del video la eficacia narrativa se ve resentida por el énfasis declamatorio de la voz over poética o la re-
dundancia de las escenas de ficcionalización. No obstante, el documental tiene el mérito de articular alrededor de
un cuerpo, un coro de rostros que singularizan una protesta colectiva, también retratada en sus coreografías de
resistencia.
Por su parte, Movilización, pan y libertad es un documental televisivo de 21 minutos que se realizó con el
apoyo de la COB, Costrateb Sindicato en TV, la Federación Sindical de Trabajadores Mineros de Bolivia y Canal
13 (universitario de la La Paz), y pertenece, también, a la primera línea de trabajo de Nicobis. El título emana
de la “voz” de los trabajadores inscrita en forma de reclamo en una pancarta a la que la cámara dedica varios se-
gundos hacia el final del video: “PAN-LIBERTAD SÍ /HAMBRE- GENOCIDIO NO”. El audiovisual comparte
las dicotomías más arriba mencionadas a propósito de Las banderas… las cuales dan forma al conflicto social,
pero a diferencia de aquel trabajo, al centrarse únicamente en el registro directo de dos concentraciones —una,
en una suerte de teatro al aire libre, y la otra en la emblemática Plaza San Francisco–, la pregnancia visual de las
dirigencias sindicales y su vínculo con las bases es más relevante.
“(…) es ya libre, ya libre este suelo/ ya cesó su servil condición/ (…)/ De la patria el alto nombre/ en
glorioso esplendor conservemos/ y en sus aras de nuevo juremos/ ¡Morir antes que esclavos vivir!”. Con estos
versos del Himno Nacional comienza el video: quien de pie y fervorosamente lo entona, es una multitud de tra-
bajadores, mineros y campesinos, hombres y mujeres reunidos en gigantesca asamblea. La cámara —ubicada
en el escenario– les capta en una larga panorámica que permite advertir su imponente dimensión, puesto que
además se encuentran ubicados en una especie de tribuna, dando la impresión de ser un verdadero tejido humano
—tupido, abigarrado, diría René Zavaleta Mercado– que reclama por su soberanía y libertad. Más que la fantasía
republicana, la apelación al himno que ese entretejido de cuerpos realiza, sirve para reactivar, reavivar el sueño
revolucionario —la utopía– de la independencia. La fuerza y el convencimiento de las voces son conmovedores,
y al bis del estribillo le siguen encendidas consignas que se reiterarán a lo largo del video: “¡Viva la dignidad del
pueblo boliviano! ¡Abajo el hambre! ¡Abajo la miseria! ¡Viva la libertad!”, y vítores a la COB y a la Federación
Minera, organización a la que el documental prestará especial atención con zooms-in mostrando en primer plano
a los trabajadores con sus característicos guardatojos. Si la idea de “pueblo” reaparece una y otra vez en cánticos,
carteles e intervenciones individuales —“Si este no es el pueblo, el pueblo dónde está”, se oye desde las columnas
que avanzan por las calles paceñas–, se insistirá igualmente en que el reclamo que encabeza un sector, la van-
guardia minera —por salario, congelación de precios, abastecimiento y libertad–, es representativo y extensivo a
todos los bolivianos.
Puesto que en este video se privilegia la puesta en visión de la magnitud y fuerza expresiva de la concen-
276 En esa coreografía del dolor, la cámara distingue, casi como un inconsciente visual o anticipación trágica, al líder
socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz, cuyo cuerpo permanece desaparecido desde el golpe de García Meza en julio de
1980.

273
tración popular, la coreografía colectiva tiene menos preponderancia que en el resto del corpus, y se halla acotada
en función de mostrar el desplazamiento de los muchos hacia dos recintos de reunión. Un río de manifestantes
inundan el espacio urbano gritando sus consignas a voz en cuello y con brazos en alto: un pueblo enardecido,
bullicioso, que denuncia las continuidades entre los regímenes dictatoriales y democráticos —”¡Mueran Bánzer,
Paz y Siles! ¡Muera la burguesía putrefacta!, ¡Rueda Peña al paredón!”, ¡(…) carajo, el pueblo está emputado!”.277
La cámara pasa —sin transiciones– de angulaciones en contrapicado, a planos medios a la altura de los ojos entre-
mezclándose con los manifestantes. En plaza San Francisco hay carteles, banderas, pasacalles y hasta una wipha-
la a las que la cámara dedica zooms-in y luego reubica en planos de conjunto mediante zooms-out. Ciertamente
parece abstraída y fascinada no sólo por la energía que emana de esos muchos cuerpos en movimiento, sino, más
aún, de esos muchos cuerpos re-unidos, concentrados no para duelar —como en Lucho…– o para bloquear —
como en Las Banderas…–, sino para asamblearse masivamente, aparecer en la esfera pública e “intercambiar”
con sus representantes a quienes en dichos actos, ciertamente, se ratifica en su liderazgo y se transfiere poder. De
ahí que los planos generales sean recurrentes, construyendo una dinámica de plano-contraplano entre oradores y
el pueblo congregado.278
En esa basculación líder-multitud, los rostros —capturados en detenidos primeros planos– se reservan, en
el primer evento, a dos oradores de base —un hombre y una mujer de las minas– que hablan desde el escenario; y
luego —de forma excepcional en todo el corpus– a figuras del comité ejecutivo nacional de la COB, que departen
en conferencia de prensa y más tarde en un balcón durante la segunda concentración. ¿Quién es el antagonista
del sujeto colectivo y de sus “rostros” (representantes)? En su intervención mas enfática la voz over advierte:
“El gobierno se niega a conversar con los trabajadores, porque teme la verdad. Teme ver rostros de trabajadores
en los que se ve el reflejo del hambre y la desesperación a los que sumió el gobierno de la UDP”.279 En efecto,
el adversario que aparece en absolutamente todos los discursos es el gobierno, más aún, el presidente, a quien
se caracteriza como “insensible”. Pero es necesario advertir que el flanco de ataque sobre el que arremeten los
primeros oradores y luego las dirigencias no es exactamente el mismo y remite, como es obvio, a su posición de
enunciación.
Desde su experiencia vital y enfatizando que ha viajado a La Paz no por paseo sino debido a la lucha, la
mujer interroga: “(…) desde estos micrófonos yo le pregunto al Dr. Hernán Siles, a sus ministros, y sobre todo
a los parlamentarios: ¿con qué conciencia ellos meten en su bolsillo tanto dinero, cuando el minero no tiene?
(…)”.280 Portando sus ropas de trabajo, el minero ratifica enérgico —aunque con la voz desgastada: “Estamos hoy
para decirle: ¡BASTA! Así como lo hemos hecho con los gobiernos militares (…) ¡El pueblo somos nosotros!”.
Al enfocarlo la cámara ha pasado, sin cortes, desde un plano medio lateral, hacia un contrapicado frontal que
recorta el busto parlante “sobre” una bandera tricolor que se encuentra colgada a sus espaldas, en una formidable
composición espontánea que enfatiza el carácter nacional y popular de ese sujeto, metonimia del cuerpo colectivo
281
Estos dos rostros soportan voces potentes y firmes que, sin diluir su singularidad y anclados en la experiencia

277 Mario Rueda Peña fue Ministro de Informaciones durante el gobierno de Siles Zuazo, y tuvo relaciones tensas
con la COB. En la primera concentración, un orador lo califica de mentiroso. Más adelante, en la segunda concentración,
un dirigente campesino, desde el balcón, desmentirá categóricamente que su sindicato, la Central Única de Trabajadores
Campesinos de Bolivia (CSTUCB), haya mantenido un arreglo salarial con el gobierno “fasistoide”, en alusión —probable-
mente– a los dichos que Rueda Peña habría divulgado, y que la COB calificó de “habladurías por detrás”.
278 Al respecto podríamos establecer una referencia intertextual con Revolución (1963), primer cortometraje indepen-
diente del Grupo Ukamau.
279 El subrayado es nuestro.
280 Luego continúa: “También quiero aclarar que las mujeres no estamos presentes con fines políticos. La política de
la mujer es la comida, en la mina, para darle fuerza al minero que entra a los socavones a horadar la tierra para sacar y
amasar las divisas que otros despilfarran”.
281 Nótese que el escenario de la primera concentración a la que aludimos se halla coronado por un pasacalle sin
texto, sólo con el dibujo de distintos mineros y el campamento, sobre el que la cámara hace un zoom-in. También hay es-
tandartes de federaciones sindicales y la bandera tricolor.

274
de carestía que comparten con sus pares-interlocutores, se refieren a asuntos públicos en la órbita de la justicia
social; y se distinguen, tanto de los rostros-voces reposados que hacen memoria del pasado en Lucho…., como de
los dolientes por la masacre y la violencia vividas en primera persona, vistos en Las banderas….
Mas hay que señalar que, seguramente debido a que es la misma Federación la que produce el documental,
los otros rostros que se privilegian pertenecen a la dirigencia mostrando, a su vez, dos tonalidades discursivas
divergentes, estratégicamente utilizadas según el objetivo político y el oyente al cual se dirijan: pausada para la
prensa, vehemente para la masa. Allí está, en plena conferencia de prensa, sentado y hablando sosegadamente
junto al histórico Juan Lechín, uno de los representantes del comité ejecutivo para comunicar la huelga general
indefinida y sus objetivos, llamando a todas las fuerzas políticas y los partidos a evitar el retorno fascista; el mis-
mo que luego sentenciará lapidariamente desde un balcón: “Hemos criado cuervos para que nos saquen los ojos”,
en alusión al gobierno udepista.282
Para el registro de la segunda concentración la cámara comparte el sitio físico de alocución de los referen-
tes sindicales —un balcón. Aquí el carácter de las intervenciones es de llana confrontación y arenga. Se caracteri-
za al gobierno de fascistoide e intérprete de la “Nueva Rosca” y el imperialismo, denunciando el vuelco negativo
y defraudadorio desde un gobierno popular, democrático y revolucionario al que se votó y en el que se creyó; a un
gobierno reaccionario; así como también se enfatiza la independencia de la COB respecto de cualquier partido.283
Pero lo que es más significativo en los discursos es la aserción exaltada de la debilidad del gobierno: “Rechaza-
mos las campañas de amedrentamiento y de terror implementadas por el actual gobierno de la UDP que lo único
que hacen, compañeros, es tenderle el camino amplio a la derecha. Porque en el momento en el que este gobierno
se caiga no será porque los trabajadores lo hemos pedido, será porque este gobierno es incapaz de mantenerse
en el poder”.284 Tras varios planos que insisten en el volumen cuantitativo de manifestantes, un violentísimo
zoom-out desde un núcleo hacia el conjunto, y el rápido movimiento de cámara en dirección al palco —casi como
si el camarógrafo hubiera sido tomado por sorpresa por el fervor del orador–, vemos a un dirigente enardecido
que grita en lo que es casi la clausura del video: “Si este gobierno no es capaz de resolver estos problemas de
supervivencia: ¿qué debe hacer?”. El contraplano muestra a la multitud que responde unánime: “¡Que se vaya!”.
Semejante a la placa de clausura narrativa de Las banderas…, la voz over final asevera sólida y conven-
cida: “La movilización no se detendrá, porque el pueblo está reclamando por sus derechos, a decir su verdad y a
alimentarse para producir. La clase trabajadora se enfrentará con aquellos que quieren destruirla con las balas o
con el hambre”.
Café con pan, también pertenece a la primera línea temática de Nicobis, y surgió hacia mediados de 1985
a partir de la necesidad del matrimonio de emprender un trabajo que se centrara en la crisis, pero recogiendo la
palabra de los protagonistas. A fines de ese año pudieron asistir al VII Festival de Cine Latinoamericano de La
Habana lo que redundó, por un lado en conocer de primera mano inspiradoras producciones del continente de
alta calidad visual y aguda mirada política; y por otro anoticiarse del concurso lanzado por el Instituto de Radio y
TV de Cuba en torno al problema de la deuda externa en América Latina. En marzo de 1986 comenzaron a hacer
reportajes: “Y sucedió un hecho especial: ya que los encuestados aceptaban responder, rápidamente se reunía un
grupo y se discutía la problemática mencionada y la posible causa de la misma. Unos, informados sobre la Deu-
da Externa, ampliaban sus conocimientos, mientras que otros desconocían el problema (…)” (De la Quintana,
1987: 37). Con el video listo, Nicobis se presentó al certámen y recibió en 1986 el primer premio en el Concurso
Internacional sobre la deuda externa (categoría programa de TV) y fue mención especial en el VIII Festival Inter-

282 En su intervención frente a la prensa, llama la atención la convocatoria no solo a la solidaridad, apoyo y moviliza-
ción de todas las fuerzas políticas democráticas sino también a los soldados y oficiales militares patriotas.
283 “Bajo ningún punto de vista vamos a admitir que tras nuestra movilización, algunos partidos con máscara de iz-
quierdistas, los partidos de la derecha, la reacción o el propio fascismo pretendan aprovecharse”, dice un orador.
284 El subrayado es nuestro.
275
nacional del Nuevo Cine Latinoamericano (categoría video-reportaje).
Café con pan es un documental de denuncia de 22 minutos que retrata el empobrecimiento de la vida coti-
diana y las estrategias de los sectores populares por subsistir con dignidad y solidaridad. De hecho el título emana
de uno de los propios entrevistados: “Café con pan…es lo único que podemos comer”. A través de testimonios y
breves encuestas en el espacio público y en ferias, y sin apelar a la voz over, el video muestra también el desgaste
de la articulación sindical: una “masacre blanca”, como advierte un minero. Aquí las coreografías de lo colectivo
son mucho menos masivas que en Las banderas…, Lucho…o Movilización, pan…: justamente, asistimos a los
primeros signos del deterioro de la vanguardia por excelencia del frente obrero boliviano y la atomización de los
sectores populares golpeados por la crisis.
El documental abre mostrando una pequeña caravana de niños y mujeres quienes reclaman a coro, en el
campamento minero Matilde, no grandes consignas reivindicatorias por el socialismo, la democracia, la libertad o
la Justicia, sino por su subsistencia: “¿Qué queremos? ¡Abastecimiento!. ¿Qué queremos? ¡Pan! ¿Qué queremos?
¡Salarios justos!”. Detenida esta acotada coreografía, y habiendo mostrado el interior de la pulpería absolutamen-
te vacío, la cámara se posa en los rostros y las voces que denuncian dramáticamente cómo la política económica
va enfermando y haciendo morir a niños y adultos. Tal como vimos en Las banderas… la preponderancia audio-
visual de las mujeres y su potencia expresiva resultan conmovedoras precisamente porque aunque dan cuenta
de la precarización de sus vidas, lo hacen con lucidez y rabia, oponiéndose y no sólo resistiendo un sistema de
explotación y desigualdad.
El relato pasa luego a una voz singular masculina unida ésta a un rostro tomado en primerísimo primer
plano, que luego se abre mediante un zoom out a su contexto de trabajo: mientras en off se explican las formas de
economía popular (trueque, intercambio), la banda imagen ilustra (y ratifica) con imágenes de registro directo,
insistiendo en la idea de una sobre-existencia de los cuerpos. Asociado a esto, el montaje expone tres tácticas de
conservación de la vida, y las acompaña por testimonios: la primera es la migración del campamento, caótica,
dolorosa y desesperada; la segunda, el remate en ferias callejeras de las pocas pertenencias que se tienen —zapa-
tos, un colchón, un mueble, un televisor–; la tercera, la venta ambulante, esto es, el cambio hacia la economía
informal. Nótese que todas son “soluciones” individuales, que subrayan el estado de desprotección de los sectores
populares: al despojo de las fuentes de trabajo, se le suma el desprendimiento que los propios sujetos realizan
sobre su escaso patrimonio y la separación progresiva del entramado de solidaridad y cuidado mutuo tejido en
las minas. La estrategia narrativa en este caso es, nuevamente, ilustrar con registros de observación directa la
experiencia que rostros desesperados y entristecidos narran a los documentalistas, rodeados no de una multitud
abigarrada y organizada, sino de grupos pequeños o medianos aleatoriamente congregados.
A fin de mostrar los cuerpos-en-trabajo la cámara se interna en el socavón, mientras otro testigo ofrece una
lúcida interpretación respecto de la situación socio-política: la precarización laboral y vital en los campamentos,
es una maniobra desde el poder para que los obreros se desmoralicen, atomicen y el movimiento minero quede
desarticulado. Pero el hambre y la indefensión afectan a todos los sectores populares y trabajadores a lo largo
y ancho del país. Por eso el relato completa el razonamiento incluyendo la experiencia campesina —“La clase
campesina trabaja a pérdida”, dice una mujer–, y el estado de la educación boliviana a la que cada vez menos
niños tienen acceso —“Los maestros tienen sueldos de hambre”. Con trabajos pésimamente remunerados, deplo-
rables condiciones laborales, mal alimentados, enfermos y con una instrucción precaria, el paisaje social resulta
desolador.285
Una secuencia resulta especialmente sensible al respecto. En la parroquia San Calixto funciona un co-
medor popular que por escaso dinero ofrece el almuerzo a cientos de desocupados, trabajadores informales y

285 Una entrevistada incluso llega a homologar el estado de deterioro social actual, con el momento previo a la revo-
lución de 1952.
276
obreros: la cámara se encarga de mostrar que en su enorme mayoría, son hombres quienes asisten. En un plano
secuencia de casi un minuto de duración y con cámara en mano, se recorre desde el comienzo hasta el final, la
larga fila de más de una cuadra de extensión: algunos varones se cubren el rostro, otros permanecen absortos o
mirando hacia el suelo. Éstos no son los cuerpos en espera tensa del bloqueo o los cuerpos re-unidos y concen-
trados de Movilización…, ni tampoco son éstas las ollas de la batalla popular que veíamos en Las banderas….
Son cuerpos detenidos, decaídos, aquietados, en sordina; cuerpos suspendidos, retirados del tiempo del trabajo
y separados del macro-cuerpo productivo, ahora coincidentes por otra coreografía de lo colectivo que es la de la
espera doblegada, apaciguada por el hambre.
En esos cuerpos en caída/excluídos del sistema y en esos rostros huidizos por la vergüenza, se exponen el
socavamiento de un atributo fundamental, la dignidad, 286 y la crisis de un imaginario de masculinidad. Si la vul-
nerabilidad de estos cuerpos trastoca aquella “invulnerabilidad imaginada”, propia de la narrativa dominante des-
de 1952 al caracterizar al proletariado varonil; eso deja traslucir, como revés de trama, la potencia de lo femenino.
Justamente, es una mujer la que denuncia con perspicacia: “¿Qué deuda estamos pagando? Esta deuda externa
va a tener que ser cancelada con la miseria del pueblo boliviano, con la ignorancia de los niños de Bolivia que no
pueden entrar en las escuelas (…) con el desempleo de cientos de trabajadores y el programa de relocalización”.
Café con pan devela entonces que la estrategia de desconfiguración del cuerpo colectivo, de sus coreo-
grafías del trabajo y de organización sindical, está en relación directa con la ejecución compulsiva —y en curso
alarmante– de un plan político-económico: de ahí que se señalen los signos incipientes de disgregación de aquella
masa que vimos en Las banderas… y Movilización…, y que reclamaba justicia en Lucho…. Funciona como un
grito desesperado de denuncia por los cuerpos precarizados, y en el paneo de rostros diversos expresa un contexto
de fuerte atomizacion social y de demandas.
Sin embargo, cabe destacar que en el final del video se muestra una forma de resistencia e insistencia por
parte de los sectores populares: un grupo de trabajadores se movilizan en camiones a la ciudad para ejercer pre-
sión, adelantando una táctica que veremos consumarse —aunque de forma trunca– en La marcha por la vida. En
el marco de los preparativos de ese viaje, Ovando y De la Quintana grabaron en una asamblea los últimos testi-
monios oídos en off, que enuncian expectantes: “Los mineros ya estamos calientes, con los nervios alterados (…)
Hemos tenido dirigentes en etapa de democracia que han florecido bastante, pero en etapa de crisis los dirigentes
y los partidos políticos se han perdido. Nosotros más bien llamamos a la reflexión a esos partidos políticos y a los
dirigentes de la Federación de la Central Obrera (…) que muevan el hilo para que nos atienda el gobierno de una
vez”; “Por más que nos retiremos de la minería (…) la pelea, la resistencia va a ser igual en cualquier lugar del
país”; “(…) Pero va a haber un punto en que va a reventar compañero…”.
La marcha por la vida fue co-dirigida entre Alfredo Ovando y Roberto Alem, quien era referente del Cen-
tro Walparrimachi y realizó una importante labor como videasta en Cochabamba. Ambos coincidieron en la idea
de producir un material sobre la movilización minera, y compartiendo las jornadas de trabajo decidieron aunar
esfuerzos y hacer una única película. Al igual que Café con pan, también se presentó en el VIII Festival de Cine
de la Habana.
En sus 24 minutos de duración muestra la resistencia de las organizaciones mineras frente al cierre de
las empresas estatales y el plan neoliberal. De cara al saqueamiento de las plantas (maquinarias, insumos) y el
empobrecimiento de sus trabajadores, el documental repone una coreografía de cuerpos en dos movimientos: uno
de avance y antagonismo, y otro de retroceso —en teoría– táctico. De forma cronológica, marcando fecha, hora
y kilómetro recorrido, el primero da cuenta del itinerario que miles de mineros realizaron desde sus bases hacia
La Paz: la cámara recorre la intimidad de la caravana, observa con delicadeza esos cuerpos mientras comen, con-
286 Ha sido especialmente inspirador para pensar esta y otras secuencias relativas a los cuerpos en caída del siste-
ma, la entrevista a León Rozitchner (2001). Agradezco el conocimiento de la misma a la Dra. Marcela Visconti.
277
versan, descansan o son aliviados para reanudar la lucha-en-marcha. El segundo movimiento —de retroceso–,
describe, no sin amargura o escepticismo, el repliegue de la vanguardia obrera tras el cerco militar.287
El video dialoga estrechamente con Movilización, pan… y Café con pan:288 justamente, frente a una reali-
dad empobrecida, la respuesta es salir a la ruta y marchar “como un solo hombre” —tal la fórmula habitualmente
utilizada para expresar unidad– rumbo a La Paz para interpelar al Estado, concientes de que el gobierno de turno
—“moviadenista”, en alusión a la alianza política entre el MNR y la ADN– viene saboteando la productividad y
la eficacia de las empresas nacionales, instando tanto al retiro voluntario como compulsivo de los mineros.
El tratamiento del conflicto se realiza por medio de registros directos y testimonios alusivos, a los que
se suma un recurso visual no utilizado anteriormente: planos fijos que, a la manera de postales-memoria del
presente, figuran el dramático estado de paralización de la empresa, el saqueo de los recursos y el desguace de
la COMIBOL (Corporación Minera de Bolivia) vuelta puro deshecho, fracaso de la modernidad industrial de la
Revolución de 1952 y elocuente signo de un fin de ciclo histórico. En efecto, estas vistas muestran los espacios
físicos caídos en desuso, oxidados, que expulsan cuerpos que, a su vez, caerán del sistema —como los de Café….
No obstante, en la última postal se advierte una línea de riel que semeja, precisamente, la ruta, el camino, estab-
leciendo una analogía visual entre la vía del trabajo derruida, y la vía del reclamo para reactivarla.289
El “diario” de la marcha comienza el 21 de agosto a las 12:30 hs: mientras la banda imagen muestra los
muchos cuerpos subidos a camiones con los brazos en alto, la banda sonora se satura de cánticos, consignas, bo-
cinazos, sirenas de ambulancia.290 Se percibe un estado de alerta y lucha activa, un volumen de cuerpos y sonidos
entusiastas, efervescentes que, conforme transcurra la cinta, irá creciendo. Apenas cuatro horas después, en la
localidad de Vinto, se produce el primer cruce con las fuerzas militares quienes impiden el paso de los manifes-
tantes con un vallado, aunque luego les dejan pasar. La banda sonora empalma la sirena de la ambulancia que
encabeza la fila de vehículos, con una guitarra cuyos acordes celebran una primera victoria y dan ánimo a los
manifestantes en uno de los pocos momentos donde los rostros sonríen a cámara mientras entonan una canción
popular que reza “Hemos venido de lejos, a exigir nuestros derechos (…) Aquí todos nos quedamos, desparra-
mando la brasa (…)”.
En efecto, la multitud en marcha se expande y extiende, al sumarse nuevos micros, camiones y hasta
un tren cargado de mineros, confluyendo todos en Oruro. Vemos cuerpos vibrantes, valientes, festivos y estre-
chamente identificados: el documental expone, por última vez, la fuerza expresiva y épica de estos cuerpos del
trabajo unidos en coreografías de organización y protesta. Entre vítores a la clase obrera, un orador lanza la
convocatoria que da título al film: “Tenemos que llegar hasta La Paz compañeros. No importa si es caminando,
en una gran marcha que simbolice nuestra lucha. Una marcha… una marcha compañeros, por la vida de los

287 Ovando relató, en entrevista personal, que por esos años hubo otra marcha importante de mineros que culminó
en La Paz, mas precisamente en el edificio de la Universidad Mayor de San Andrés en cuya terraza se “crucificaron” varios
trabajadores, en señal de protesta y reclamo desesperado, momentos que él mismo registró aunque sin terminar ninguna
película. En ese contexto realizó un ejercicio de comunicación y difusión muy singular: filmaba lo sucedido en La Paz y lue-
go lo difundía en las minas; allí recogía testimonios de los familiares de los mineros que habían visto los registros y volvía
a La Paz para mostrar a los mineros que se habían crucificado cómo sus comunidades y familias habían vivido, a través
del audiovisual, aquella experiencia. Un valioso fenómeno comunicativo y proceso socio-audiovisual.
288 De hecho, el último es del mismo año de realización.
289 Casi en el final de esa primera secuencia se destacan tres expresiones rabiosas enunciadas por mujeres: “(…) de
una vez que nos metan bala y que no nos maten de hambre”; “Vamos a salir con esas cacerolas vacías a hacer una ma-
nifestación a la ciudad de La Paz”; “Morir antes de pie que morir de hambre”. Llama la atención la apelación a este tipo de
fórmulas dramáticas y dicotómicas, que de alguna manera remiten al periodo ideológico anterior marcado por el horizonte
revolucionario. Ese tono beligerante está sintetizado también en un cartel que asegura “Vencer o morir”, o en las consignas
“Muera la ley tributaria”, “Muera la deuda externa”, “Con armas o sin armas el pueblo al poder”.
290 La marcha plantea cuatro objetivos: evitar el cierre de las minas, demandar un aumento salarial que cubra la ca-
nasta familiar; exigir la derogación de la ley tributaria ligada al no pago de la deuda externa, y la “expulsión de mercenarios
yankis”.

278
mineros”.291 Mientras tanto la banda imagen presenta, con idéntico procedimiento con el que se dio cuenta del
vaciamiento de la empresa estatal pero en sentido opuesto, contrapuntístico, diferentes representaciones murales
del mundo del trabajo: cuerpos mineros plenos, sólidos, de gran volumen y rasgos facetados, que traducen fuerza,
vitalidad, crispación y estallido.
El relato muestra la coreografía del caminar minero utilizando panorámicas y planos generales desde altu-
ra para percibir la magnitud de la columna; planos laterales con una angulación media, para aproximarse “como
uno más” a los manifestantes; y oblicuos en contrapicado en procura de enaltecer, exaltar la protesta y privilegiar
el detalle en los pies de los mineros y sus compañeras. Una de las primeras imágenes, por ejemplo, hace coincidir
el borde del encuadre con el ancho de la ruta, en angulación contrapicada, para advertir —en el marco de un vasto
y hermoso paisaje andino– el andar de la multitud que avanza hacia el espectador probando su potencia, su fuerza
como colectivo. A veces, en medio de la columna sobresale la bandera tricolor, evidenciando que efectivamente
lo que está en juego es el patrimonio, la base material del país y la soberanía nacional, mientras se oye: “¡Muera
el FMI!, ¡Muera el gobierno hambreador y entreguista!, ¡Abajo el cierre de las minas!, ¡Mueran los gringos in-
vasores!”.292
Tras dos días de caminata, la marcha llega a Lahuachaca, localidad que les recibe cálidamente en una
suerte de corredor de cuerpos que aplauden y vitorean. En banda imagen se encabalgan una serie de planos que,
casi a ras del suelo, detallan el aspecto de los pies desnudos de los caminantes —metonimia de sus cuerpos–:
pies que se exponen reposando, siendo curados o masajeados; pies vulnerados en su dignidad que sin embargo,
insisten… juntos. En efecto, los cuerpos manifestantes exudan el cansancio del trabajo, el hambre, la fatiga por
la marcha pero también el dolor por la indiferencia, tal como señala una voz off femenina que, inferimos, es de
Domitila Chugara: “La marcha mira, es bastante sacrificada, es bastante triste y lamentablemente el gobierno nos
hace doler el corazón. ¿Cómo es posible que a los obreros les han de quitar sus fuentes de trabajo? Este gobierno
está vendido completamente al FMI y por lo tanto le interesa muy poco”. Pero a pesar de todo, la coreografía de
los muchos cuerpos que delata el relato de Ovando y Alem —cuerpos puestos al límite de su fuerza como forma
de lucha–, por su misma contundencia y credibilidad, arrastra y aglutina a otros que se van adhiriendo, plegando
a la marcha, la cual engrosa su caudal humano.
El cenit del video se da en Calamarca, el 28 de agosto, en lo que es el km. 173 del itinerario: el presidente
democrático Víctor Paz Estenssoro ha declarado el estado de sitio y ha dispuesto que las FF.AA. tiendan un cerco
de bloqueo a los manifestantes. El sonido rítmico de las botas —en esa otra forma de marcha, ésta violenta, de
tropa– es el motivo sonoro de la inminencia de la fuerza represiva. Helicópteros y aviones amenazantes se suman
a un paisaje irritado, enrarecido, que ha puesto dos grupalidades antagónicas frente a frente. El relato muestra los
cuerpos intercambiables de los efectivos armados, cuerpos sin rostro, homogeneizados y disciplinados, subsumi-
dos —en tanto que grupo– en la autoridad de lo Mismo, lo Uno, o su rostro de tropa, en palabras de Didi-Huber-
man (2014: 62).
Al interior de las organizaciones se plantean entonces dos tácticas. Oídas en off, la primera es la que enun-
cian las dirigencias para no derramar sangre, e implica negociar el repliegue a las bases en orden; la segunda,
planteada por una mujer sostiene: “Si retornamos ¿a qué pues vamos a volver? Si allá en las minas ya no tenemos
nada. Ya no podemos aguantar más esta hambre, esta miseria. Hemos avanzado hasta aquí con tanto sacrificio que
no podemos volver. Necesitamos llegar hasta La Paz y hacer valer nuestros derechos. ¡Queremos que nos dejen
pasar! ¡Queremos el diálogo con el gobierno! PORQUE VOLVER ES PERDERLO TODO”. La primera posición
será la que prevalezca y lo entrevisto por la mujer, se cumplirá proféticamente.
291 El subrayado es nuestro.
292 Como sostuviera León Rozitchner (2001): “La concepción de Nación en tanto que territorio material que pertenece
a la colectividad de los hombres que habitan el país (…) es la concepción de soberanía. La soberanía son los cuerpos que
reivindican la materialidad sobre la cual se apoya la vida”. El subrayado es nuestro.

279
Alfredo Ovando, uno de los directores recordó: “Hay momentos muy intensos (…) ese retroceso, ese re-
torno cantado, buscándole una arista optimista a algo que era el desparramarse total del movimiento minero (…)
ha sido como la última imagen de ese magnífico movimiento minero (…)”.293 El documentalista pone en relación
ese supuesto optimismo expresado en los cantos y en uno de los testimonios finales, con el presente de la Bolivia
post 2005: “‘Nos vamos a ir por toda Bolivia y vamos a sembrar el ser revolucionario en todas partes’ [decía un
minero]… y en cierta forma ha pasado, muchos mineros se han ido a la zona cocalera y han estado sembrando
una nueva ideología, una nueva forma de ver el mundo”.294 El 30 de agosto, a casi 10 días de haber comenzado la
manifestación en Huanuni, los mineros se suben al ferrocarril y a los camiones para retornar a sus bases. Saludan
a cámara, se dan ánimo, hacen sonar sus bocinas, permanecen convencidos, cantan incluso: “Lucharemos (…)
con coraje y con tesón (…) Esta marcha por la vida, es la fuerza del valor (…) El minero boliviano, que muy
pronto volverá, ¡volverá!”.295

Memorias sensibles de los levantamientos

En estas páginas hemos propuesto una reflexión respecto del diálogo entre imágenes e historia a propósito
de algunas producciones documentales de la escena audiovisual de los ochenta donde se observa la recurrencia
temática del conflicto social y la figuración de distintos modos de aparición política de los sectores populares.
Procurando estar atentos a las significaciones que portan las imágenes en su apariencia y en su latencia, sea que
fueran involuntaria o deliberadamente configuradas, nos preguntamos: ¿qué formas de lo visible adquirió la cri-
sis, la rabia, el duelo, las resistencias y las re-existencias?, ¿de qué modos el documental boliviano fue testigo
y partícipe del conflicto, los levantamientos y las revueltas sociales de la década del ochenta?, ¿qué gestos de
insurrección fue capaz de capturar?
Frente a un paisaje histórico turbulento, un tiempo de precipitados cambios en las condiciones y formas
de producción del trabajo y la Vida cotidiana, lxs realizadores del corpus seleccionado quisieron intervenir en
su presente ofreciendo imágenes y voces que fueran cajas de resonancia de una sincronía estallada. Adoptando
un punto de vista solidario con los trabajadores —sin por ello arrogarse la autoridad de “hablar en su nombre”–,
mientras cartografiaban coreografías de lo colectivo, se abismaron en rostros singulares y se detuvieron en cuer-
pos que, aún dolientes, hambreados e incluso muertos, luchaban. Se hicieron eco de un orden social en disputa
y dramática reconfiguración: saturaron de conflicto las imágenes y las volvieron sitio polifónico de tensiones,
anudamientos y resonancias de sentidos, prácticas, sensibilidades y memorias respecto de la cultura material de
la época. De hecho, creemos que hay allí un proceso de contigüidad, continuidad y recursividad por el cual el
des-borde social invade las imágenes que, a su vez, se des-bordan hacia el universo que les da fundamento y las
circunda —o acecha–: crisis de la presencia social, presencia visual de la crisis (Grüner, 2017).
No obstante, si sólo en el documental de Sanjinés y Palacios la utopía revolucionaria está presente de un
modo claro y es enfática la confianza que se deposita en su construcción a mediano plazo; en el resto del corpus,
un orden social justo, digno, solidario y basado en la Verdad se encuentra progresivamente desplazado: es un
horizonte de esperanza al que se tiende en medio de un presente de angustia y desconcierto. De hecho, los títulos

293 El subrayado es nuestro.


294 Las palabras textuales del minero son: “Tal vez con sus fuerzas [en relación al gobierno] podrá echar a miles de
trabajadores de las minas, pero al hacerlo estará echando semillas de revolucionarios en este país, quienes germinarán
también a muchos revolucionarios para liberar definitivamente a Bolivia.
295 Sobre el retorno a las minas sin masacre, dice Rosario León: “(…) este regreso simbolizó mucho más que una
derrota: simbolizó el fin de su dimensión “mártir” (…) dejaban una categoría social para recuperar la vida (…) Con esta ac-
titud las acciones colectivas a continuación no tienen la magnitud de todas las anteriores (…) Se trata, de hoy en adelante,
de reivindicaciones basadas en la necesidad de ser, de defender lo posible, lo realizable, lo cotidiano” (1990: 157).

280
de las películas son elocuentes al respecto: de las banderas, al reclamo por el pan; de un nuevo amanecer a una
marcha que defienda la Vida; es decir de la metáfora o la alegoría, a la denuncia literal y conectada con la inme-
diatez del contexto.
Trenzando memorias trágicas del horror, la desaparición y la masacre; y crónicas enardecidas del colapso
y la persistencia obcecada de la Vida, los audiovisuales produjeron presencias que nosotros exploramos bajo las
figuras de rostro, cuerpo y coreografía. Rostros que, singulares en su aspecto, permanecían unidos a su especie.
Rostros atronadores, dramáticamente interpeladores en su materialidad visual-táctil y sobre todo sonora: rostros
que soportaban la voz, voces que eran sostén material de las palabras y la imaginación. Cuerpos re-puestos en su
dignidad y potencia al espacio de lo visible: cuerpos que, desobedeciendo el dualismo que disocia mente-afecto,
razón-bios, encarnaron prácticas políticas, enervaron convicciones. Cuerpos —también– cuya precariedad y doci-
lidad podía volverlos inertes, deshabitados o en pleno derrumbamiento. Rostros y cuerpos, no de “líderes-guías”
iluminados o heroicos sino, de “anónimos” trabajadores, mujeres populares y desocupados que formaban un
vasto y heterogéneo cuerpo colectivo de pertenencia y reconocimiento. De la unión de esos muchxs, emergieron
coreografías desbordantes y coreografías contenidas, retenidas: en las primeras horizontalidad, determinación,
direccionalidad consensuada; en las segundas apenas una línea de puntos, individualidades retraídas, suspensión
del movimiento, inercia. 296
En suma: entre la celebración por la conquista democrática y el desencanto, los documentales ofrecieron
imágenes de la efervescencia y la perplejidad, imágenes de un proceso de creciente descomposición social y
devastación del patrimonio nacional —más aún, de un proceso de pauperización de los cuerpos que sostenían
el patrimonio. En ese momento de caída de los cuerpos del mundo del trabajo y de reorganización del espacio
social, lo que parece configurarse a través de las imágenes, es una suerte de archivo sensible de la vida política y
la memoria social de una época: un archivo del/sobre el daño y la resistencia, el despojo y la protesta.

296 Resulta notable la ausencia de representación de los sectores medios y altos bolivianos —siquiera como opo-
nentes–: en los documentales no hay sitio para esos cuerpos y esas voces, así como tampoco para mostrar, de forma
comparada, la fase opulenta de la desigualdad social.
281
Referências bibliográficas

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Entrevista a Alfredo Ovando y Liliana de la Quintana: 6 de julio de 2015


Entrevista a Raquel Romero: 10 de julio de 2015.
Entrevista a Alfredo Ovando: 14 de julio 2015.

Maria Gabriela Aimaretti - Doctora en historia y teoría de las artes por la Universidad de Buenos Aires
(2015). Licenciada y profesora en artes combinadas, diploma de honor 2009. Fue becaria doctoral del CONICET
entre 2010 y 2014 y becaria postdoctoral entre 2015 y 2017. Actualmente es investigadora asistente por el mismo
organismo. Adscripta a la cátedra de Historia del Cine Latinoamericano y Argentino (2010-2012). Se desem-
peña como docente concursada en dicha materia desde 2013 a la actualidad. Docente invitada en seminarios de
maestría en la Facultad de Filosofía y Letras. Integrante del grupo de investigación CiyNE (2007-2014), e inves-
tigadora invitada en UNTREF (2011-2014). Miembro desde 2010 a 2016 del comité editorial de la Revista Cine
Documental. Actualmente participa del grupo de estudios “Arte, cultura y política en la Argentina reciente” coor-
dinado por Ana Longoni y Cora Gamarnik en el Instituto Gino Germani. Es miembro de la Asociación Argentina
de Estudios sobre Cine y Audiovisual y de la Red de Investigadores sobre Cine Latinoamericano. Ganadora del
primer premio en el concurso de ensayos sobre cine argentino “Domingo Di Núbila” (2016) auspiciado por el
INCAA y AsAECA. Es investigadora en los institutos Gino Germani y Artes del Espectáculo, ambos de la UBA.
Sus áreas de reflexión son, por un lado, las relaciones entre arte y política en América Latina, a propósito de las
representaciones de la violencia, la historia y la memoria -con un extenso trabajo de investigación sobre cine,
teatro y video boliviano-; y por otro, las vinculaciones entre cultura popular y cultura masiva en el cine argentino,
atendiendo especialmente a las figuraciones de lo femenino.

283
22. Villas y cantegriles, la representación de los otros y una mirada sobre el
cine social
Mariana Amieva

En este trabajo quiero hablar de una situación particular que se generó en el marco de la tercera edición
del Festival Internacional de Cine documental y experimental del Sodre en el año 1958.  En esta edición nos
encontramos con un festival plenamente consolidado en el que se presentaron 222 películas pertenecientes 39
delegaciones. Este evento que fue muy recordado por la visita de John Grierson y por el I congreso latinoamerica-
nos de cineastas independientes también tuvo otras particularidades que lo vuelvan interesante para entender las
características del cine documental de la época y sus vínculos con los cambios que se producen en la década del
60. Me voy a referir a dos producciones que participaron del festival y que están muy relacionadas entre sí.  La
primera es la muestra de fotodocumentales que llevó Fernando Birri a Montevideo, producción de los alumnos
del Instituto de Cinematografía de la Universidad Nacional del Litoral, de la que luego va a derivar en el filme
Tire die que se presentó en el mismo festival en 1960. Esta muestra de fotosdocumentales consistía en varios
conjuntos de fotografías acompañadas con textos que muchas veces se presentaban en primera persona, surgidos
de una “encuesta” realizadas por los alumnos de la carrera.  La exposición estaba dividida en diversos temas y el
conjunto de fotografías sobre los habitantes de una “villa miseria” y los niños que pedían dinero en el tren fue el
que género más interés.
La otra producción es la película Cantegriles dirigida por Alberto Miller. Esta película que registra los
rancheríos de Aparicio Saravia en las afueras de Montevideo tuvo mucha repercusión en el momento y recibió
el premio de la Universidad de la República en el concurso de Cine Nacional de ese año (ese fue el premio más
importante a los filmes nacionales), y fue reseñada con buenas críticas en forma unánime. La obra de Miller dura
poco más de 6 minutos y muestra en blanco y negro un registro de la vida cotidiana de los habitantes del cantegril
acompañado de una música compuesta por Enrique Almada que intenta no subrayar el sentido dramático de las
imágenes.
Estas dos producciones son significativas porque generan vínculos reconocidos y se toma como antece-
dentes del cine de intervención política en los 60, por la mayor parte de los textos académicos que tocan el tema
y por los propios realizadores vinculados a ese cine (ver por ejemplo la participación de Mario Handler en la
realización de la película, para eso ver el trabajo de Lacruz).
Tanto Birri como Miller, qué son contemporáneos, (Birri nace en 1925 y Miller en 1927) mantuvieron
carreras que si bien son muy dispares los ubicaron al margen de cualquier cine institucional.  
Está concordancia de temas en el año 58 nos obliga a pensar en el contexto en el que se producen estas
obras.  Otro de los puntos compartidos va a ser la relación que establecen con el ámbito universitario.  Cantegriles
recibe el premio de la Universidad, y la obra de Birri surge del ámbito universitario y va a ser la misma Udelar
el lugar que acoge su muestra en Montevideo. Este hecho nos comienza a llamar la atención sobre las relaciones
que se establecen con los espacios extras cinematográficos. Si bien la actividad se realiza en el marco del Festival
del Sodre, la exposición de Birri se exhibe en el Hall de la facultad de arquitectura de la Udelar. Esta muestra
no tuvo mucha cobertura en la prensa local y solamente el crítico Homero Alsina Thevenet le dedica un espacio
considerable en el diario El País. Este respaldo fue considerado suficiente para ser recogido por la prensa

284
en Argentina que se hace eco de esas palabras. El diario La Nación cita textualmente fragmentos de la reseña
de Alsina y el diario La Prensa comenta que la muestra género un importante interés. En los meses siguientes al
festival los fotodocumentales también se expusieron en el Cine Club del Uruguay como una práctica corriente de
los cineclubes uruguayos que solían difundir una selección de lo más significativo que ocurría en el festival.  Sin
embargo, lo que muestran esas fuentes contemporáneas, es que el interés que suscitaron los fotodocumentales se
concentraron en esos espacios extras cinematográficos a los que aludía. La nota de Alsina nos adelanta una posi-
ble visita de Grierson, que luego el propio Birri confirmará. Pero las palabras que sí quedaron documentadas son
las del decano de Arquitectura, dando por sentado que ese trabajo iba a generar interés en los estudiantes de su
carrera a los cuales los problemas de las barriadas precarias de los suburbios no les es ajena. A partir del cambio
en el plan de estudios a mediados de la década, los “aspectos sociales en la concepción actual de la arquitectura”
estaban presentes en la currícula que contaba con un seminario de investigación en el área de sociología dedicado
a estudiar el problema de las clases sociales y la vivienda.
En el primer número de la revista de la facultad de arquitectura encontramos gran cantidad de artículos
dedicados a esta temática dando cuenta del urgente interés que estos temas provocaban en el ámbito universita-
rio.  1958 resulta un año muy significativo para el Uruguay, año de crisis y de cambios políticos qué dejan atrás
por completo la ilusión de la suiza de América.  Desde mediados de la década la crisis del modelo económico
impactó fuertemente en los sectores populares provocando la exclusión de una importante parte de la población.
No es casual que ese mismo año se presentarán en el concurso de cine nacional organizado por el SODRE en
relación con el Festival, dos películas que registraban rancheríos empobrecidos en los márgenes urbanos.
Una de esas películas es Primera Misión a Polanco dirigida por Barindelli y Giordano.   Está recibe
una valoración muy negativa de parte de los jurados y de la crítica.   Si bien se rescata la importancia de un
tema doloroso, se reconoce que no cuenta con los elementos formales necesarios para reconocerla dentro de los
márgenes del cine.
Esos elementos se relacionan con las limitaciones qué plantea el propio Alsina con relación a la muestra de
Birri.  Hay una preocupación manifiesta por encontrar una narrativa cinematográfica que evite caer en una expo-
sición literal.  Algunos de estos planteos reaparecen en los comentarios de la película Tire Die cuando se presentó
en 1960, a la que acusaban de desprolija y poco estructurada.
Es interesante prestar atención a las palabras con las que se pondera a la película Cantegriles para entender
cuáles son los elementos que se valoran desde el campo del cine. Tanto en las críticas como las notas del jurado
aparecen las palabras objetividad, rigor, vigor o concisión.  Dentro de estas características el reconocimiento de
la objetividad es el elemento que destaca y con esto el hecho de que la película funcione como un fiel documento
de la realidad.

Frente a este reconocimiento unánime con el que fue recibida la película en 1958, llaman la atención los
comentarios que realiza el propio realizador muchos años después en una entrevista que le realizaron desde la
cinemateca uruguaya en 1991. Miller dice que recibió muchos cuestionamientos por esta película.  Comenta que
le cuestionan la falta de posicionamiento político y la ausencia de denuncias explícitas a los responsables de los
hechos que registra. Considero que esta preocupación de Miller da cuenta de un planteo extemporáneo y que de
haber sucedido debió pertenecer a voces que se encuentran afiliadas al cine de intervención política.

Creo que es necesario evitar la correlación entre estos temas ligados a las preocupaciones sociales, que
aparecen de forma recurrente en el cine documental que circula por estos espacios en la década de 1950 con los
tópicos recurrentes en el nuevo cine latinoamericano. En relación con esto creo que es necesario problematizar
en parte las referencias admitidas y los antecedentes reconocidos de este cine en momentos posteriores.  Son dos
285
los referentes más citados en los que se inscribe este cine:  Grierson y Zabattini y el neorrealismo de forma gene-
ral.  Alsina también ubica el antecedente de Paul Strand elemento interesante que emparenta estas producciones
con cierto aire de sinfonías urbanas y evoca pertinentes ecos297.

Más allá de estas influencias asumidas de forma explícita por Fernando Birri es necesario prestar atención a
los reparos que plantea Paulo Antonio Paranagua cuando analiza la influencia neorrealista en el cine latinoame-
ricano. Mariano Mestman también recalca esta naturaleza híbrida de este cine latinoamericano en estos períodos
de transición, que mantiene características tan diversas como las del propio cine italiano del período.  Volviendo
al festival del Sodre y tratando de prestar atención a los filmes más destacados en estos eventos encuentro más
interesante los cruces permanentes que se establecen entre estos dos objetos a los que me estoy refiriendo y otras
producciones que también se hacen cargo de la representación de diversos tópicos que aluden a problemáticas
sociales complejas.   Dialogan con está representaciones de rancheríos y sus habitantes vulnerables, películas
sobre Harlem, sobre el Brasil oprimido, sobre poblaciones indígenas a punto de desaparecer, sobre el trabajo de
diversos sectores populares, como por ejemplo los pescadores que filma Vitorio de Setta

La prédica neorrealista que tal vez resalte con más notoriedad es el imperativo moral con que se legitiman
estos trabajos. Pero esta ética de la forma no tiene sentidos unívocos. Es curiosa la referencia explícita de Manuel
Martínez carril a Tierra sin pan de Buñuel cuando habla de Cantegriles.  Encuentro particularmente pertinente la
apelación a Buñuel en esta obra, pero continuando con los itinerarios particulares que presenta el neorrelismo en
estos ámbitos, creo que Cantegriles más que remitirme a Las Hurdes me recuerda a Los olvidados. En esta nece-
sidad de anclar referencias más que encontrar una línea qué engarce elementos de forma lineal, me parece más
interesante plantear una relación compleja con el cine etnográfico que tuvo una particular importancia durante el
período y cuyas características desafían algunos sentidos comunes, tales como los que plantea Javier Campo en
su trabajo.

Creo que es necesario tomar con mucho cuidado los esquemas teórico-metodológicos con los que solemos
abordar el cine documental cuidándonos especialmente del uso de las modalidades qué desarrolló Bill Nichols a
partir de criterios evolutivos.  Cómo plantea Campo, este cine etnográfico resulta muy difícil de encuadrar y se ve
como extraño para un espectador contemporáneo. El mandato de la representación expresiva de la realidad, toma
caminos particulares en América Latina en una primera mirada donde destacan las formas híbridas.  Alberto
Miller se cuida especialmente de ser confundido con un sociólogo y en su mirada retrospectiva desde 1991 resalta
que su tarea no es opinar sobre un tema sino solamente registrar con su cámara, sin embargo, tanto su prédica
como su práctica se terminan asemejando al trabajo del etnógrafo y encontramos un papel que es similar al del
observador participante.  Es probable que esta sea una de las principales diferencias entre la obra de Miller y de
Birri.  En esta mirada de observador que se reconoce como objetivo en su intento de registrar la realidad sin in-
tervenir sobre ella. Miller mira a su objeto desde afuera sin disimular la distancia que establece. Este hecho no lo
afilia directamente al cine observacional y la situación nos recuerda las particularidades del cine documental del
período que está muy lejos de encuadrarse dentro de las características del cine expositivo.

Junto a la referencia explícita de Alsina a la obra de Strand, los ecos más próximos que encuentro en estas
obras son las sinfonías urbanas, o también una variedad de obras del cine danés o el sueco que causaron un fuerte
impacto el público uruguayo.  Miller estuvo formado en el ambiente cineclubista y no tuvo oportunidad de viajar
a las capitales europeas, así como Fernando Birri pudo acercarse a esas fuentes neorealistas de forma más direc-
ta.  Es probable que las películas que circularon por esos espacios cinéfilos hayan sido mucho menos canónicas
de lo que podemos imaginar.
297 (fotos pelis)

286
Es cierto que hay una clara delimitación técnica a la hora de darle voz de forma literal a los actores sociales
que protagonizan estas obras.  No sólo el sonido directo todavía era un recurso de difícil acceso para estos realiza-
dores, sino que la propia incorporación de la banda de sonido estaba restringida en la obra de Miller a una banda
de sonido magnética.  En las pocas referencias de Miller que nos quedan en estos momentos no deja planteado
como un problema la dificultad de registrar sonido directo. A Miller claramente le interesa más la imagen que la
voz, pero esto no ocurre con otras producciones contemporáneas en las cuales se plantea de forma manifiesta el
problema de cómo incorporar esas voces ausentes.  Cuando Birri realiza Tire die acude al recurso de doblar las
voces que se habían registrado por escrito durante la encuesta.  Este uso particular del doblaje se encuentra por
ejemplo en Vuelve Sebastiana de Jorge Ruiz. Aquí encontramos distintas alternativas en los usos de los medios
de producción en los que se manifiestan elementos mucho más significativos qué las afinidades por el uso de di-
ferentes tecnología, en las cuales encuentro que ninguna de las opciones elegidas tiene sentidos neutros.

El problema de la distancia con la que es mirado ese actor social vulnerable es uno de los puntos qué di-
ferencia la obra de Birri y de Miller.  Esto se hace notorio con la anécdota que cuenta este último a raíz de la
exhibición de su película ante los pobladores del rancherío.  Miller comenta que no hizo caso a las voces que le
aconsejaban no exhibir la película en el cantegril.  Esta exhibición terminó de forma conflictiva haciendo explí-
cito el hecho de que se encontraban frente a una obra que les era ajena. A los pocos minutos de comenzada la
película los pobladores comenzaron a hacer manifiesto su desagrado por las formas grotescas con las que se veían
representados. Encuentro que está mirada particular está presente al final de la película que comienza en ese tono
discreto tratando de equiparar ese otro mundo medio marginal a las actividades domésticas y productivas de los
sectores que si están incluidos.

Esa tensión vuelve explícito el lugar en el cual la película se posiciona.  Esta mirada claramente se ve desde
afuera y esta circunstancia es la principal diferencia con el cine político que irrumpe años más tarde.  El cuestio-
namiento más fuerte que puede realizarse desde esa otra vereda del cine es justamente la dificultad que reconoce
para ponerse en el lugar del otro, asumiendo esa voz y hablando en su nombre y no tanto la ausencia de una de-
nuncia social explícita que por otro lado deja entrever.  El propio nombre de cantegril como denominación de los
rancheríos suburbanos fue considerado por los propios habitantes como un mote que fue impuesto desde afuera
tal como plantea Bolaño a partir de entrevistas a antiguos pobladores.  Estos cantegriles mantienen cierto dejo
despectivo que su propia denominación le atribuye.

Es interesante encontrar cómo en estas dos producciones simultáneas qué quieren hacer visibles dentro del
espacio público un problema social que cobra carácter de urgente se habla cine con características y usos muy
diferentes.

287
Mariana Amieva - Profesora en historia, Universidad Nacional de la Plata, Argentina. Directora, revista
33 cines, Uruguay. Ex responsable de la gestión cultural, Fundación por la Paz Graciela Figueroa. Ex diseño y de-
sarrollo, taller virtual sobre audiovisual para niños CreaFan, Ceibal y Dirección del Cine y Audiovisual Nacional
(ICAU). Exintegrante, equipo técnico profesional, área de Investigación y Enseñanza, Comisión Provincial por
la Memoria, Buenos Aires, Argentina.Investigadora activa, nivel iniciación, área Humanidades, Sistema Nacional
de Investigadores (SNI).

288
23. MI HERMANO FIDEL: A emoção como estratégia no documentário
político

Marcelo Prioste

Uma romântica canção pop executada por um arranjo de cordas embala fotos em lenta fusão de um sujeito
com barba espessa que sorri timidamente, fumando charuto e trajando uniforme verde-oliva. Ele havia acabado
de auxiliar na recuperação da visão de um idoso que vivia numa pequena casinha branca em um lugarejo afastado,
próximo ao mar. O velho então agradece ao grande benfeitor local, que ele não havia reconhecido em virtude de
seus problemas de visão. Suas mãos tremem ao identificá-lo. Emoção? Por fim, ele o saúda: “E que tenha muita
felicidade e muita prosperidade e muita vida… que dure ao menos trezentos anos”.

Esta não é a descrição de mais um capítulo dos melodramas que abastecem os televisores latino-americanos
desde os anos 1950. Mas os instantes finais de Mi Hermano Fidel (Santiago Álvarez, 1977), cuja sinopse oficial
no material de divulgação298 do ICAIC diz tratar-se de uma produção sobre o testemunho de Salustiano Leyva
(1885-1981), senhor de 92 anos que teria sido a última pessoa viva a ter tido contato com os revolucionários que
iniciaram as lutas pela independência cubana, dentre eles Jose Martí e Máximo Gómez. O “entrevistador” do
idoso teria sido o próprio comandante Fidel Castro.

Segundo um breve artigo de Maio de 1977, assinado por Hector Hernandez Pardo no jornal oficial cubano,
o Granma, a ideia para o filme surgiu a partir de uma situação espontânea, pois Fidel visitaria a Playita para uma
entrevista que iria compor outro filme, sobre o XX aniversário do desembarque dos revolucionários, em 1957.
Porém, o líder cubano não queria ir embora “sin antes saludar a Salustiano Leyva”, e assim a equipe, coordenada
por Santiago Álvarez, não perdeu a oportunidade para registrar aquele encontro (ARAY, 1983: 213). Cerca de
cinco anos depois, em uma entrevista sobre a repercussão do filme, Santiago reitera esta espontaneidade das
circunstâncias, mas com outra versão, dizendo ter sido ele quem convenceu Fidel a ir conhecer a testemunha do
desembarque. Inclusive Santiago relembrava-se do diálogo que teve com Fidel naquele momento,

S.A.: Você sabe que bem perto também vive o filho da senhora que se encontrou com Martí e Gómez, há
uns poucos metros daqui?
FIDEL: Sim, você me disse que ele tinha sete anos, então.
S.A.: Agora tem noventa e tantos anos. Está velhinho. Chama-se Salustiano. Seria bom ver se…
FIDEL: Com grande prazer, quando passarmos por lá podemos cumprimentá-lo.299 (ARAY, 1983: 318,
tradução do autor).

Independente da vontade ter partido de Santiago ou do próprio Fidel, a iniciativa de conhecer o ancião de
298 Encarte que compõe a ANTOLOGIA DE SANTIAGO ÁLVAREZ, CORTOMETRAJES CLÁSICOS DE TEMAS URGENTES DE
SU ÉPOCA, vol. 1. Dvd, Havana: Icaic, 2009.
299 S.A.: ¿Usted sabe que aquí cerca también está el hijo de la señora con que se encontraron Martí y Gómez, a unos cuan-
tos metros de aquí?
FIDEL: Sí, me contaste que tenía siete años entonces.
S.A.: Tiene noventa y tantos años. Está viejito. Salustiano se llama. Sería bueno ver si…
FIDEL: Con muchísimo gusto cuando pasemos por allí podemos saludarlo (Mi Hermano Fidel, 1977).
289
forma tão espontânea, deixa de comportar esse aspecto na produção do filme. Principalmente pelo desfecho, com
a vinda de uma oftalmologista a partir de uma ordenação direta do Comandante, especialmente incumbida de
atender Salustiano, quase cego.

O documentário foi rodado nos arredores da Playita, um trecho rochoso da praia de Cajobabo, atual província
de Guantánamo, antiga Oriente. Foi ali que, em Abril de 1895, desembarcou o grupo revolucionário composto
por José Martí, Máximo Gómez, Francisco Borrero, Angel Guerra, Cesar Salas e Marcos del Rosario, que deu
início à luta efetiva pela independência do País, denominada pelo próprio Martí como “La guerra necessária”.
Isto é revelado pelo filme na forma de texto, logo nas primeiras cenas, com um zoom out que descortina uma
pequena praia abraçada por um rochedo. A câmera vai se movendo por ela suavemente, instalando uma sensação
de nostalgia para que a localização indicada na forma de texto sobreponha-se à paisagem,

…DOS HORAS DESPUÉS


DE DESEMBARCAR POR PLAYITAS
PROVÍNCIA DE QUANTÁNAMO,
EL 11 DE ABRIL DE 1895
JOSÉ MARTÍ Y MÁXIMO GÓMEZ
ENCONTRARON LA PRIMERA FAMILIA CUBANA:
… LOS LEYVA… (Mi Hermano Fidel, 1977).

A câmera então navega por um barco a remo, como uma espécie de reconstituição da chegada de Martí à
Playita, regada por um tema instrumental. É a balada Theme from Mahogany (Do You Know Where You’re Going
To)300, interpretada pela cantora Diana Ross, enquanto, ainda sob a forma textual, apresenta-se aquele que seria
o personagem principal que teria conhecido Jose Martí: “SALUSTIANO, QUE ENTÃO TINHA 11 AÑOS,
CONHECEU NESSA NOITE MARTÍ E GÓMEZ…!”.

Jose Martí (1853-1895), que passou a maior parte de sua vida no exílio, após ser preso aos 16 anos e depois
ser deportado para Espanha, formou-se em direito, filosofia e letras pela Universidade de Zaragoza e depois
viveu na França, Inglaterra, México, Venezuela e Guatemala. Estabelecendo-se em Nova Iorque, exerceu diversas
funções como jornalista e escritor, atuando como correspondente de jornais e até na função de cônsul de alguns
países da América do Sul, como Argentina, Uruguai e Paraguai. Sua deportação em 1871 pode ser considerada
como marco inicial no processo que culminaria com a independência oficial de Cuba. Como escritor, tradutor
e professor, Martí cooperou com vários grupos insurgentes, promoveu conferências e atuou intensamente pela
causa da independência durante o exílio. Em 1892 funda o Partido Revolucionário Cubano (PRC), que no seu
estatuto defendia explicitamente a independência do País e também da ilha próxima, Porto Rico. O PRC lançava
como base de ação a luta pela instalação de um regime democrático, de base nacionalista, rechaçando o modelo
de dominação colonial por toda a região.

Para pôr em marcha a grande empreitada revolucionária, Martí convidou o experiente general dominicano
Máximo Gómez (1836-1905), que já estava envolvido com a causa da independência, além do cubano Antonio
Maceo Grajales (1845-1896), também um veterano engajado na mesma luta que, por ter se destacado como líder
300 A canção Theme from Mahogany (Do You Know Where You’re Going To) foi tema principal do filme norteamericano
Mahogany, dirigido por Berry Gordy e estrelado pela cantora Diana Ross, em 1975. Produção cinematográfica da Motown, o
filme conta a história de uma jovem negra que sai de Chicago para alcançar o sucesso como designer de moda em Roma. A mú-
sica tema tornou-se mais conhecida do que o filme, sendo indicada ao Oscar e ficado em primeiro lugar na parada de sucessos
Billboard em 1976. Fonte: http://www.imdb.com.
290
militar negro em um país tão marcado pela escravidão, mais tarde seria reconhecido pela alcunha de El Titán de
Bronce.

Com, pelo menos, três anos de planejamento e levantamento de fundos, a insurreição foi colocada em
marcha mesmo com o revés ocorrido em 10 de Janeiro de 1895, dia em que três embarcações carregadas de
armamentos foram confiscadas pela Marinha dos Estados Unidos (MÁO JÚNIOR, 2007). Um episódio que
prejudicaria o movimento não apenas pelo impacto no seu material bélico, mas também pela perda do fator
surpresa, indispensável a este tipo de ação.

Assim, em 24 de Março de 1895, o movimento encabeçado por Jose Martí, pelo general Máximo Gómez
e por Antonio Maceo teve início, com uma série de levantes locais, principalmente nas províncias de Oriente
e Matanzas, reconhecidas como fortes redutos de resistência à dominação espanhola. Logo depois o general
Maceo desembarcaria com seus homens na região de Baracoa, ao norte da província Oriente (atual Guantánamo),
enquanto em 11 de Abril, Gómez, Martí e outros quatro revolucionários desembarcariam mais ao Sul. Em uma
das muitas cartas escritas ao seu amigo, o advogado e político mexicano Manuel Antonio Mercado y de la
Paz, Martí mencionou os percalços dessa chegada, particularmente difícil em função de sua saúde frágil e da
pouquíssima experiência militar:

Cheguei, com o general Máximo Gómez e mais quatro, em um barco no qual levei o remo de proa, sob o
temporal, a uma pedreira desconhecida de nossas praias; carreguei, quatorze dias a pé, por entre espinhos e
alturas, minha mochila e meu fuzil301 (MARTÍ, online).

Mesmo sem contar com o apoio dos latifundiários da região, por onde passavam iam arregimentando muitos
camponeses e fazendo recuar as forças espanholas. Todavia, numa dessas investidas, próximo à localidade de
Boca de Dos Ríos, em dia 19 de maio, ou seja, pouco mais de um mês após ter desembarcado na pedregosa
Playita e contrariando determinações do General Gómez, Martí incorpora-se à vanguarda das tropas e acaba
mortalmente ferido, aleijando, assim, os combatentes pela independência de sua principal liderança política.

No dia anterior Martí havia escrito sua última carta, também destinada a Manuel Mercado, que ficaria
famosa pela frase: “Viví en el monstruo, y le conozco las entrañas”, que pode ser lida como síntese de suas
motivações políticas pautadas por indícios de um interesse dos EUA em promover a anexação de Cuba, apoiada
por alguns setores da oligarquia cubana. Uma suspeita que, de certa maneira, se confirmaria mais tarde pela
adoção da Emenda Platt302 em 1901. Nesta mesma carta figura, conjuntamente ao prenúncio de um iminente
poder geopolítico dos EUA na região em substituição ao modelo colonial europeu, também aquilo típico naqueles
que ficam reconhecidos como mártires, a preconização de seu desfecho pessoal:

[…] já estou todos os dias em perigo de dar minha vida por meu país e por meu dever – uma vez que
assim entendo e tenho ânimo para realizá-lo – de impedir a tempo, com a independência de Cuba, que os
Estados Unidos se alastrem pelas Antilhas e caiam, com essa força a mais, sobre nossas terras de América303

301 “Llegué, con el General Máximo Gómez y cuatro más, en un bote, en que llevé el remo de proa bajo el temporal, a una
pedrera desconocida de nuestras playas; cargué, catorce días, a pie por espinas y alturas, mi morral y mi rifle”.
302 A Emenda Platt (1901-1934) foi um dispositivo legal incorporado à Constituição cubana após o fim do conflito com a Espa-
nha que autorizava os Estados Unidos a intervir militar, política ou economicamente, caso julgasse necessário, submetendo o país
aos moldes de um protetorado (STATEN, 2003).
303 […] ya estoy todos los días en peligro de dar mi vida por mi país, y por mi deber-puesto que lo entiendo y tengo ánimos con
que realizarlo-de impedir a tiempo con la independencia de Cuba que se extiendan por las Antillas los Estados Unidos y caigan,
291
(MARTÍ, online, tradução do autor).

Se, por um lado, sua morte precoce privou a sociedade cubana de ser conduzida por um dirigente político
que, presume-se, colocaria em prática os princípios de um projeto de modernidade que refutava a mimetização dos
modelos europeus de sociedade, por outra, seu fim trágico foi condição essencial na cristalização de seu pensamento,
na forma de uma idealização que resvala a utopia, no sentido de algo planificado, mas não confrontado com as
demandas da realidade. Muitas vezes desenvolvido por meio de textos que cotejam o ensaístico, o pensamento
Martiniano abriu brechas para diferentes leituras, sendo disputado pelas mais diversas correntes ideológicas, até
mesmo por algumas de posições antagônicas à total independência da ilha.

Mesmo que a Revolução de 1959 apresente-se como legítima herdeira das proposições do intelectual
revolucionário, a sua dissidência, principalmente a que ainda opera fora do País, particularmente em Miami,
também não deixa de se vincular ao ideário de Martí, essencialmente pelos seus pressupostos republicanos de
liberdade, igualdade, educação e cultura, dentro de uma perspectiva nacionalista independente. Não é à toa
que, em 1995, pelo menos 11 grupos anticastristas sediados na Flórida faziam alguma menção ao nome do
mártir na sua denominação (MORAIS, 2011: 171). Isto sem contar as emissoras de rádio clandestinas. Dentre
as regulamentadas, há a rádio e TV Martí, financiada pela Broadcasting Board of Governors (BBG), agência
do governo dos EUA, que desde 1983 com o rádio, e desde 1990 com a TV, transmite continuamente uma
programação de oposição ferrenha ao governo cubano.

Desta maneira, a Playita de Cajobabo tornaria-se o palco em que se almejaria entrecruzar a biografia do
revolucionário de 1895 com a do líder da revolução de 1959. Dois anos antes, Santiago Álvarez já havia tratado
desde tema, quando dirigiu El Primer Delegado (1975), um curta-metragem que também trazia o testemunho
de um senhor que, quando menino, havia conhecido Jose Martí. Porém, trata-se de um filme mais interessado
em justificar a relevância do Partido como agente determinante na preservação de uma frente nacional anti-
imperialista. Para dar conta deste intento, El Primer Delegado fez um arranjo narrativo que, como uma máquina
do tempo, ligaria o então PC dos anos 1970 ao Partido Revolucionário Cubano (PRC) do final do século XIX,
sendo capaz de “ressuscitar” seu fundador apenas para “preencher uma ficha de filiação” ao Partido Comunista
Cubano, cujo assento para o I Congresso, que ocorreria naquele ano, aparece identificado no filme.

Quanto a Fidel Castro, seu empenho nesta direção vem desde pelo menos 1953, quando, o então jovem
bacharel em direito, escreve A História me absolverá, texto em sua defesa, elaborado durante a prisão pela
tentativa de invasão do Quartel Moncada, em 26 de Julho. Acentuadamente influenciado pelas posições do autor
do ensaio Nuestra América, chega a acioná-lo como argumentação de defesa, declarando-o simbolicamente como
o mentor intelectual daquela operação malograda:

Impediram, da mesma forma que chegassem às minhas mãos os livros de Martí. Parece que a censura
da prisão os considerou demasiado subversivos. Ou será porque considerei Martí o autor intelectual
do 26 de Julho? Fui impedido, além disso, de trazer a este julgamento obras de consulta sobre qualquer
matéria. Não importa! Trago no coração os ensinamentos do Mestre e no pensamento as nobres ideias
de todos os homens que defenderam a liberdade dos povos (CASTRO RUZ, 2011: 17).

Estilisticamente, Mi Hermano Fidel vem carregado de um apelo emotivo, seja pela trama, em que um idoso

con esa fuerza más, sobre nuestras tierras de América.


292
cego dialoga com Fidel sem saber tratar-se do “comandante”, seja pela montagem dos planos finais, quando uma
fusão de closes em slow motion do “hermano” vão sendo embaladas pela parte instrumental da canção romântica
norte-americana mencionada. Esse período, os anos 1970, foi também aquele reconhecido por muitos autores por
um empobrecimento na linguagem documentária de Santiago Álvarez, quando “[…] a montagem dramática de
suas primeiras obras foi suplantada por longas tomadas e gravações com som sincrônico; muitos de seus filmes
se tornaram intermináveis e tendenciosos, sobretudo os longas, estáticos e tediosos resumos dos discursos de
Castro” (MRAZ, 2009: 449). Uma época marcada pela dependência econômica do bloco socialista e a consequente
acentuação do isolamento político internacional da Ilha. Assim, Mi Hermando Fidel é interpretado na outra
extremidade de um arco narrativo no qual se desenvolveu a figura do herói cubano, iniciada com a instauração do
governo revolucionário na década de 1960, mas agora como emergente de uma tentativa de reafirmação nacional
em um quadro de profundo esgarçamento daquele ambicioso projeto político.

Sobre este cenário dos anos 1970, o realizador Julio García Espinosa (1926-2016) aponta uma mudança
dentro do ICAIC na compreensão do que seria um filme político, uma vez que, na opinião do diretor cubano,
o público já tinha sua consciência política desenvolvida após os dez anos da Revolução e o momento histórico
passaria a ser outro, sendo assim,

O cinema cubano, pensamos, está entrando em uma nova fase de sua evolução. Não é fácil. Praticamente é
uma terra sem precedentes. Já não será suficiente a denúncia (nem tampouco é o plano estritamente político),
ou que o militante se emocione ao ver suas ideias representadas “belamente”304 (GARCÍA ESPINOSA et al,
1975: 119, tradução nossa).

Esta “nova fase”, em que se evitaria uma linguagem que “emocionasse” a militância, ficou marcada
nas produções dirigidas por Santiago Álvarez por um modo mais convencional de explorar as possibilidades
narrativas do documentário. É a fase lembrada pelos registros das viagens de Fidel Castro ao redor do mundo.
Suas visitas à África, aos países do bloco socialista, ao Vietnã e a URSS sendo documentadas por filmes como: Y
el cielo fue tomado por asalto (1973), Los cuatro puentes (1974), El octubre de todos (1977), Y la noche se hizo
arcoiris (1978) e El sol no se puede tapar con un dedo (1976). Além das produções que abordavam os processos
de independência no continente africano, como Maputo Meridiano Novo (1976) sobre Moçambique, e Luanda ya
no es de San Pablo (1976) sobre Angola.

Nesta fase, o que prevalecia no cinema de Álvarez eram especulações sobre a realidade por meio de uma
retórica mais previsível. Os inimigos já estavam devidamente identificados pelas produções de outrora, as mazelas
do terceiro mundo, as imposições do neocolonialismo e as ações imperialistas pela América Latina já haviam sido
distintamente mapeadas. O vigor da incitação declarada pela Mensagem à Tricontinental de Che Guevara ou
pela Primeira Conferência da OLAS, a Organización latinoamericana de Solidaridad em 1967, já haviam sido
explorados pelo cinema do cineasta cubano. Já se sabia quem era o vilão e o mocinho antes do filme começar. A
necessidade constante em demarcar um território, política e historicamente, o levaram a um certo esquematismo
que esvaziou seu lado mais audaz, flexionando sua ênfase retórica na direção das falas de Fidel Castro. Fato
inclusive reconhecido posteriormente em publicações editadas pelo próprio ICAIC305. Uma reorientação que já
304 El cine cubano pensamos, está entrando en esta nueva fase de su evolución. No es fácil. Prácticamente es un terreno
inédito. Ya no será suficiente la denuncia (como tampoco lo es el plano estrictamente político) o que el militante se emocio-
ne al ver sus ideas representadas “bellamente”.
305 No capítulo “Los ‘grises’ años 70 y las trampas del realismo” do livro Los Cien Caminos del Cine Cubano, editado pelo
ICAIC em 2010, os autores Marta Díaz e Joel del Río reconhecem a transformação no cinema de Álvarez na década de

293
começa a ocorrer em 1969, quando Santiago aponta os discursos do líder da Revolução como paradigma para
suas criações:

São meus melhores exemplos do que é um bom roteiro. Fidel se expressa como se utilizasse sequências
cinematográficas, estrutura imagens retrospectivas e perspectivas, faz uma montagem didática, dinâmica,

moderna e comunicativa de uma só vez (ÁLVAREZ, 1970: 39).

Estamos então diante de uma construção fílmica que se vai apegando cada vez mais ao raciocínio desenvolvido
pelo líder da Revolução. Santiago torna-se amplificador não mais dos ideais revolucionários, mas do pensamento
de Fidel Castro sobre onde estavam e como se chegar até estes ideais. Desta maneira, Mi Hermano Fidel carrega,
desde o título, uma ênfase na figura de Castro, e não no idoso Salustiano e seu testemunho, como consta na
sinopse de divulgação. Por meio de enquadramentos subjetivos, Álvarez faz o público olhar pelos olhos de
Salustiano para contemplar a figura de Fidel, e também o utiliza para estabelecer a conexão esperada, um vínculo
com o “apóstolo da independência” quando, ao final do curta-metragem se ouve Fidel perguntar: “Por que é que
o senhor diz que é irmão de Fidel?”. E ele então Salustiano responde: “Porque eu sou irmão do General Marti e
Fidel é irmão do General Martí também”… “Porque fez às vezes de Marti: socialista, comunista, e eu morro por
Fidel”. Após o exame oftálmico o idoso ajusta as novas lentes e entra a imagem de Fidel ainda com foco oscilante,
enfatizando tratar-se do olhar de Leyva “ganhando a visão”. “Mas, o senhor não o conhece?”, pergunta Fidel,
colocando-se em terceira pessoa e assim, mesmo como um chiste, assumindo-se no papel de um personagem,
como se nota no diálogo abaixo:

_Eu o vi uma vez

_Onde o viu?

_Lá embaixo, na praia.

_E ele é parecido com quem?

_Eu não me recordo bem com que ele se parece.

_Sabe que me confundem muitíssimo com ele.

_Bom, é parecido.

_Certo é parecido, é pela barba.

_Vou lhe propor uma coisa, olhe,

_Que o levem pra lá ou que lhe tragam um oftalmologista para cá para que lhe façam óculos para que
reconheça os amigos, percebe?

_Então somos hermanos e o senhor não me conhece.

_ O senhor é Fidel? (Mi Hermano Fidel, 1977).

1970: “El documentalismo de Santiago Álvarez transita desde la propaganda revolucionaria y antiimperialista, asentada en
recursos del cine experimental (Dziga Vertov, Joris Ivens, la vanguardia soviética) hacia el culto hagiográfico a la figura del
líder rebelde, amplios reportajes sobre discursos de Fidel, acerca de la lucha antiimperialista en naciones tercermundistas,
o sobre visitas del máximo líder cubano a diversos países. Documentales mayormente de entrevistas con sonido directo e
insertos de archivo, cada vez menos arriesgados en términos fonales y de diseño visual bien conservador fueron: ¿Cómo,
por qué y para qué se asesina un general? (1971); De América soy hijo y a ella me debo (1972); Y el cielo fue tomado por
asalto (1973); El tigre saltó y mató, pero morirá... morirá (1973); El primer delegado (1975); El octubre de todos (1977); Mi
hermano Fidel (1977)” (DÍAZ; RÍO, 2010: 43).
294
Dessa forma, um culto à imagem se impõe ao espectador distraído pelo olhar do idoso. Os planos subjetivos
são como uma sala de espelhos que convergem na direção de uma só imagem, como um subtexto para o público:
vocês é que estão cegos, precisam de óculos, olhem quem está diante de vocês, o legítimo herdeiro de Jose Martí!
E, se não fosse pelo título que entrega seus reais propósitos, Mi Hermando Fidel seria, para a audiência, uma
espécie de filme “cavalo de troia”, ou seja, no seu bojo, a figura em questão passa a ser a de Fidel, e não mais a
do cego Salustiano e seu testemunho. Em suma, Santiago Álvarez faz o público olhar pelos olhos de Salustiano
para contemplar a figura de Fidel.

O roteiro de Rebeca Chávez e Santiago Álvarez e, fundamentalmente, a montagem de Mirian Talavera,


criaram o reencontro posterior entre o idoso que agora enxerga Fidel. Um reencontro que ocorreu apenas dentro
do filme, feito por meio da edição, com cortes e som extra-diegético. Quando Salustiano recebe seus óculos Fidel
não estava mais presente, a oftalmologista só viria dias depois. Nesta sequência, percebe-se que não seria possível
que, imediatamente, a equipe oftálmica estivesse a postos e, mais ainda, que o líder cubano a esperasse. O tempo
foi suprimido pela montagem em favor de uma eficácia retórica. Também a voz de Leyva que deseja a ele “ao
menos trezentos anos” não pertence à diegese da cena, foi inserida para a constituição de sentido. A montagem
organizou o reencontro que, por sua vez, acomoda-se na cabeça do espectador como um ardil cinemático que
enlaça entrevistado, entrevistador e público.

Em Março de 1978, durante um debate na Filmoteca Nacional de Espanha – hoje Filmoteca de Cataluña,
na cidade de Barcelona, Álvarez foi indagado sobre a presença de um “culto à personalidade” e um excessivo
triunfalismo em suas obras. Sem relutar, mas também se emaranhando por certas contradições, o documentarista
assume que, sem dúvida: “Sim. Eu rendo culto a personalidade, não nego. Ao render culto a uma gente como
Simon Bolívar, Sucre, San Martin, Lenin, Fidel. Existe algo de errado nisso? O ruim é adorar pessoas que não o
merecem” (ÁLVAREZ apud ARAY: 269).

Logo, fazer uso do documentarismo estatal para fortalecer a figura de Fidel seria uma resposta natural aos
desgastes de um governo revolucionário que enfrentava os mais diversos entraves infraestruturais: derrotas no
campo econômico que inauguravam a década com os efeitos do bloqueio internacional que afetavam a consolidação
de uma política industrial, além de outras experiências malsucedidas, que acentuariam a dependência econômica
dos países do bloco socialista, principalmente da URSS. Uma conjuntura piorada pelo isolamento político
crescente, seja pela perda do apoio de parte da intelectualidade na Europa após a anuência de Fidel à invasão da
Tchecoslováquia em 1968 pelos países integrantes do Pacto de Varsóvia, seja devido às manifestações vindas
do espaço midiático conquistado pelos dissidentes exilados, como o escritor Guillermo Cabrera Infante, Carlos
Franqui e o cineasta Néstor Almendros, dentre tantos outros, além da escassa interlocução dentro da própria
América Latina, envolta pela onda ditatorial militar que grassava pela região.

Na economia, a década de 1970 começa com o estigma causado pelo fracasso ao não se alcançar a safra recorde
de 10 milhões de toneladas de açúcar, uma derrota que, além de comprometer severamente a produtividade
daquele ano, devido aos deslocamentos de mão de obra e a incorporação de outros campos de
cultivo e pasto para a produção da cana-de-açúcar, também afetou o ímpeto revolucionário, por
ter mobilizado todo país em torno de uma iniciativa malograda. Um noticiero exibido nos cinemas cubanos à
época, intitulado “Diez Millones”, demonstra bem o alcance simbólico deste insucesso econômico. Começando
295
com imagens de uma tempestade e Fidel Castro chegando a um estúdio de TV vestindo uma capa de chuva, o
cinejornal documenta a participação do comandante em um programa de TV voltado a explicar didaticamente
quais seriam os problemas que as chuvas estavam causando, e como eles poderiam prejudicar o alcance daquela
safra histórica. Chegando a dizer que “[…] seria uma vergonha incrível se nós ficarmos abaixo dos dez millhões”
e, ao final, empunhando a batuta utilizada na explanação, Fidel, como um maestro que conduz uma orquestra com
um mapa de Cuba ao fundo, termina com a frase: “año de los diez millones, ni una libra menos”.

No âmbito da política, a segunda metade da década foi de uma maior centralização de poder, com a promulgação
da nova Carta constitucional em 1976. Dentre outras deliberações que ajustavam o País aos fundamentos que
garantissem sua inserção na “comunidade socialista internacional”, conforme consta no 11º artigo (AYERBE,
2004: 76), a nova Constituição colocou o Partido Comunista no centro do poder executivo como “vanguarda
organizada marxista-leninista da classe operária”, agindo como “força dirigente da sociedade e do Estado”, para
a “construção do socialismo e o avanço em direção da sociedade comunista”, de acordo com o artigo 5º. Portanto,
isso fazia com que o Secretário-Geral do Partido, o Comandante em Chefe, oficialmente assumisse a cadeira da
Presidência.

Naquele mesmo evento em Barcelona no ano de 1978, Santiago também foi questionado se filmes como
Mi Hermano Fidel poderiam ser considerados atos verdadeiramente revolucionários. Ele então responde à
provocação de maneira evasiva com outra questão, dizendo que, no caso específico de Fidel, por ser alguém que
fez tanto por Cuba, pela América Latina e pelo mundo, não há nada de mais em admirá-lo: “Admirar alguém é
algo ruim?”. Este é um argumento que tanto pode se enquadrar numa esquiva retórica, como pode ser indício de
algo que mereça maior consideração. Uma vez que um cinema estatal produzido no interior de uma sociedade
civil, cujas linhas demarcatórias com o Estado estão muito borradas, em que o Estado é a sociedade e a sociedade
é o Estado, fazem com que um produto cultural estatal seja considerado um produto da própria sociedade. Um
filme feito nestas condições, na ótica de Santiago, se bastaria a si próprio, para legitimar-se como manifestação
popular, dado que seria fruto de uma relação orgânica que foi naturalizada no interior do processo político. E ele
chega a afirmar que este enlace teria o efeito de um “antítodo” à idolatria, dessa maneira:

[…] não há culto à personalidade em Cuba, os dirigentes não são endeusados, como se passou em outros
países, somente o que existe é uma correta direção entre o partido comunista, o governo e as pessoas306
(ÁLVAREZ apud ARAY, 1983: 272, tradução nossa).

Contudo, esta justificativa, amparada na premissa de uma harmonia social, não pareceu ter sido muito
convincente naquela ocasião, pois logo em seguida Santiago foi novamente provocado pela seguinte colocação:
“Há uma frase que eu não sei se entendi corretamente: Fidel é o povo cubano e o povo cubano é Fidel. Não te
parece um pouco místico? Como marxista, como pode ser?”(ALVAREZ apud ARAY, 1983: 272, tradução nossa).
Como resposta a esta questão, no intuito de proteger-se dos dilemas da política, o documentarista, que,
literalmente, trabalhou sob ataque aéreo como correspondente de guerra no sudeste asiático, retorna à segurança
de sua trincheira de realizador cinematográfico. Diz que todas estas discussões em torno do “culto à personalidade”
pertencem ao mundo da política e não ao do cinema: “Será que é porque eu não sou um marxista? Por que não
falamos de cinema, linguagem cinematográfica e, em seguida, em paralelo, ao mesmo tempo, falamos sobre essas
coisas?”307(ALVAREZ apud ARAY, 1983: 273, tradução nossa).
306 “[…]no existe culto a la personalidad en Cuba, que no están endiosados los dirigentes, como ha pasado en otros países,
sino que existe una correcta dirección en el partido comunista, en el gobierno y el pueblo”.
307 “Será porque no soy marxista ¿Por qué no hablamos de cine, de lenguaje de cine y después, paralelamente, simultá-

296
Continuando a entrevista, insiste-se junto ao diretor se não seria mais revolucionário transformar em cinema
as realizações do povo cubano e não apenas os feitos e as falas de Fidel, de maneira que o valor esteja na
admiração por todos os outros cubanos e não apenas de uma só pessoa. E então Santiago responde que, “De fato,
Fidel representa todos os cubanos. Quando estamos fazendo um filme sobre Fidel, estamos a fazer um filme sobre
Cuba”308 (ÁLVAREZ apud ARAY, 1983: 269, tradução nossa).

A arguição que condena o cinema de culto promovido por Santiago vai assediando-o até provocar uma
das declarações mais francas, porém menos ideológicas de toda a entrevista. Livrando-se do empenho por uma
reflexão mais apurada, mas carregada de um humor que, segundo aqueles que o conheceram na intimidade309 era
uma constante no seu cotidiano, Santiago diz: “É que eu amo tanto a Fidel. Uma vez disse a Fidel, isto é uma
piada, que se ele fosse mulher, eu o namoraria 310”(ÁLVAREZ apud ARAY, 1983: 269, tradução nossa).

Mas logo em seguida muda de tom, ao justificar suas escolhas com um dos elementos mais recorrentes em
sua obra, a emoção. Relata então um quadro de extrema comoção, quando, na Plaza de la Revolución em Havana,
milhares de pessoas choravam seus mortos em um ato de repúdio ao atentado que derrubou o avião da Companhia
Cubana de Aviación, vitimando 72 pessoas311, inclusive sua então mulher, Magaly Grave del Peralta. E diz que,
naquele momento, as palavras de Fidel serviram como consolo e aprofundaram sua admiração.

Portanto, Mi Hermano Fidel atende a duas facetas em relação à personagem Fidel Castro. De um lado, cria uma
conformação fílmica de louvor em torno da figura do dirigente e, por outro lado, mais pragmático, promove um
alinhamento com o legado histórico de Jose Martí, cuja reputação ultrapassa as fronteiras cubanas e se estende
até hoje como referencial no que diz respeito aos movimentos de independência e às relações internacionais pós-
coloniais na América Latina.

A intenção de revigorar a conexão entre lideranças, no caso a de 1959 com a de 1895, ficou explícita quando
Álvarez leva Fidel até o lugar onde Martí desembarcou e o faz ser contemplado pelos mesmos olhos que haviam
visto no passado o fomentador intelectual da luta pela independência. Só que Fidel vai além de Martí. Dentro da
perspectiva de um benfeitor, o líder cubano não vai apenas conversar, mas também auxiliar a família de Salustiano
Leyva. Algo que escapou a Martí pelas circunstâncias à época. Pois no seu diário não constam comentários sobre
a família que vivia então em Cayobabo. Martí relata apenas a difícil chegada, sem mencionar qualquer um dos
habitantes locais.

Enfim, no curso de seus poucos mais de 16 minutos, podemos examinar Mi Hermano Fidel pela metáfora
do manuseio de uma lente zoom por um cinegrafista, aproximando-se até focalizar seu objeto/imagem, este herói

neamente, hablamos de estas cosas?”.


308 “Efectivamente, Fidel representa a todos los cubanos. Cuando estamos haciendo la película sobre Fidel, estamos ha-
ciendo una película sobre Cuba”.
309 Em Abril de 2011, participando do II Panorama Latino-americano de cinema: filmes cubanos, promovido pelo depto. de
Cinema da FAAP, Sérgio Muniz, documentarista e produtor brasileiro, contou diversas passagens sobre esta verve humorística
do diretor cubano que não se apresentava como cineasta, mas como um mero “peliculero”.
310 “Es que yo amo mucho a Fidel. Una vez le dije a Fidel, esto es una anécdota, que si él hubiera do mujer, me hubiera
enamorado”.
311 Em 8 de Outubro de 1976, a aeronave DC-8 da Companhia Cubana de Aviación vindo de Guiana para Havana com esca-
la em Trinidad e Tobago, Barbados e Jamaica, explodiu em pleno vôo, matando 72 pessoas entre passageiros e tripulantes. Os
responsáveis foram os venezuelanos Hérnan R. Lozano e Freddy Lugo, que atuavam a mando de uma organização anticastrista
de Miami e foram condenados a 20 de prisão cada (MORAIS, 2011: 121-123).
297
em transformação. Inicialmente, a distância o desfoca e evoca momentos do passado, em que o filme refaz para
o espectador a chegada de Martí até a praia.

Em seguida o “foco” concentra-se na conversa com a testemunha ocular do episódio. Uma operação que
também cumpre a função de aproximar-se do mito, colocando-o como entrevistador e assim oferecendo uma
pequena fresta de sua intimidade. Os feitos heroicos foram deixados de lado, a representação de uma coletividade,
também. O que restou foi o indivíduo Fidel e o apego em construir seu carisma na tela. O diálogo com o idoso
funcionou para ele como uma “janela de humanização”, auxiliado pela filmagem aos moldes do cinema direto,
com a incerteza no instante da tomada somada à sua atuação improvisada de um visitante curioso, permitindo que
pequenos lampejos de subjetividade transpassassem por sua imagem pública e o enquadramento fechar-se ainda
mais, resume-se agora à imagem icônica de um retrato, a face do herói guerrilheiro que, isolado, contempla uma
indefinida paisagem marinha ao som de violas e violinos.

298
Referências bibliográficas

ÁLVAREZ, Santiago. “Santiago ÁLVAREZ habla de su cine”. In: Hablemos de cine, n. 54. Hacia um tercer cine,
cine cubano. Lima, 1970.
ARAY, Edmundo. Santiago Alvarez: cronista del tercer mundo. Caracas: Cinemateca Nacional, 1983.
CASTRO RUZ, Fidel. A História me absolverá. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
DÍAZ, Marta; RÍO, Joel del. Los Cien Caminos del Cine Cubano. Havana: Ediciones ICAIC, 2010.
GARCÍA ESPINOSA, Julio; ÁLVAREZ, Santiago; GUEVARA, Alfredo; ALEA, Tomás Gutiérrez; SOLÁS,
Humberto. Cine y Revolución en Cuba. Barcelona: Fontamara, 1975.
MÁO JÚNIOR, José Rodrigues. A revolução cubana e a questão nacional (1868-1963). São Paulo: Núcleo de
Estudos d’O Capital, 2007.
MARTÍ, Jose. Carta a Manuel Mercado. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/. Acessado em:
19/04/2018.
MORAIS, Fernando. Os últimos soldados da Guerra Fria. São Paulo: Cia das letras, 2011.

STATEN, Clifford L. The History of Cuba. Westport: Greenwood Press, 2003.

Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP, Mestre em Design, Especialista (lato sensu)
em Multimídia pela Universidade Anhembi Morumbi e Graduado em Comunicação Social (rádio e tv) pela
Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Professor universitário desde 1996, atualmente leciona na PUC-SP
(Multimeios, Jornalismo, Diálogos entre Filosofia, Cinema e Humanidades e Estéticas das Mídias). No doutorado
desenvolveu pesquisa sobre as formas narrativas do cinema documentário latino-americano com enfoque na
produção do cineasta cubano Santiago Álvarez Román (1919-1998).

Marcelo Prioste - Doutor em meios e processos audiovisuais pela ECA/USP, mestre em design, especialista
(lato sensu) em multimídia pela Universidade Anhembi Morumbi e graduado em comunicação social (rádio e tv)
pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Designer desde 1995 e professor universitário desde 1996.
Atualmente leciona na PUC-SP nos cursos multimeios, jornalismo, design e estéticas das mídias. Membro da
SOCINE - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, da ASAECA - Asociación Argentina de
Estudios sobre Cine y Audiovisual e um dos criadores da publicação dos pós-graduandos da ECA, a Revista
Movimento (www.revistamovimento.net). Atualmente é um dos coordenadores do Seminário Temático da
SOCINE, Audiovisual e América Latina: Estudos estético-historiográficos comparados.

299
24. UMA ANÁLISE DE NO PAIZ DAS AMAZONAS:
PASSADO E FUTURO VISLUMBRADOS EM FILME

Sávio Luís Stoco


Ricardo Agum

Apresentarei uma análise fílmica acerca do documentário No Paiz das Amazonas, de 1922. Busquei
compreendê-lo estética e historicamente, no seu contexto social e artístico de origem. Produzido pelo português
Silvino Santos, radicado em Manaus, este cinegrafista teve seus filmes financiados pela elite governamental e
econômica do Amazonas – sobretudo a firma J. G. Araújo312. Dessa maneira, compreendo a pertinência de um
aprofundamento metodológico em Cinema e História considerando o contexto para melhor entendimento da
narrativa.
Foi possível reconhecer a importância do cotejo com aspectos da economia e história desse estado, assim
como da empresa que em parte o financiou313, o produziu e o distribuiu. Também se mostrou significativo observar
a maneira como o filme toma como modelo a tradição visual (sobretudo a fotográfica) e discursiva desenvolvida
pela elite intelectual e governamental para elaborar uma representação cinematográfica sobre o Amazonas num
período que a economia da exploração da borracha já se encontrava em declínio.
Começamos mencionando que No paiz das Amazonas sugere vagamente uma narrativa baseada em uma
viagem fluvial pelos principais rios do estado do Amazonas (rio Madeira, Amazonas e Branco). Deve-se observar
que na versão restaurada em 1986314, na qual se baseou a revisão fílmica contida no DVD lançado em 2014,
no qual nos baseamos, não há um mapa explicativo, que oriente o espectador em relação aos caminhos que
estão sendo percorridos. Assim, a identificação das ‘calhas’ corresponde a um esforço de intelecção que não se
encontrava visualmente disponível para o público brasileiro de 1922. Parêntesis à parte, continuemos com nosso
mapeamento do filme.
Visualiza-se pelo roteiro de viagem deste filme uma cruz imaginária que parte de Manaus, desce o rio Ma-
deira, retorna para a capital, segue rumo a leste pelo Médio Amazonas, alude aos índios peruanos (oeste) aonde
se chega pelo rio Solimões, e finaliza adentrando a região que demonstrava para a época ser a esperança de explo-
ração econômica: o vale do Rio Branco, ao norte do estado amazonense (atual território de Roraima).
Em comparação com o roteiro do longa-metragem anterior de Silvino, Amazonas, maior rio do mundo
(c.1918-1920), que percorreu de leste a oeste o rio Amazonas, percebemos que o percurso cinematográfico foi
redimensionado. De uma maior amplitude regional englobando dois estados brasileiros, Pará e Amazonas e tam-
bém o Peru no primeiro, para o segundo, filme abordando somente o Amazonas. A partir desse redesenho, foram
explorados mais aprofundadamente os assuntos localizados no território amazonense.

312 Até 1925 o nome da firma era J. G. Araújo. A partir de 1925 muda para J. G. Araújo & Cia. Ltda. Cf. MELLO, 2010, p. 34
313 Além da empresa amazonense J. G. Araújo que financiou, produziu e lançou o filme sob sua chancela, é ne-
cessário considerar também que No paiz das Amazonas teve como financiador o governo brasileiro. Isso porque o filme
recebeu recursos para sua produção da Exposição Internacional do Centenário da Independência. O filme estava em fase
de produção quando o recurso veio. Cf. MORETTIN, 2011.
314 Restauro efetivado a partir da parceria firmada entre a Cinemateca Brasileira, Cinemateca do MAM e Cinemateca
Portuguesa. Colaboraram para esse trabalho tanto o diretor da Cinemateca do MAM Cosme Alves Netto como a professo-
ra aposentada da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Selda Vale da Costa. Cf. STOCO, Sávio. No paiz das Ama-
zonas (Silvino Santos, 1922, Brasil). Percurso de um marco do filme natural brasileiro até o mercado doméstico (2017).
300
Do ponto de vista da viagem realizada, percebe-se uma hierarquia conferida às regiões do Amazonas, dado
que começamos com a região de exploração econômica mais antiga do ponto de vista histórico (vale do Rio Ma-
deira), finalizando com aquela que era a promessa (vale do Rio Branco).
No paiz das Amazonas inicia propriamente com uma exaltação ao estado que será mostrado aos espectadores.
O texto de abertura, de autoria de Agesilau de Araújo315– filho de J. G. Araújo e segundo principal acionista da
firma de seu pai –, é bastante elucidativo neste sentido:

Tradicional desde as audazes cavaleiras, que emprestaram seu nome ao titulo deste filme, o Amazonas, em
toda a sua enorme extensão territorial muitas vezes superior a de tantos outros países, quase um continente,
afigura-se-nos como que um gigante adormecido e embalado em seu sôno pelo ritmo ruidoso de seus rios
sem conta, depositários de fartíssima variedade de peixes. Acalentado pelo gorgeio harmonioso e inces-
sante dos pássaros mais encantadores, habitantes irriquiétos de suas matas sombrias; acariciado por suave
brisa, respiração inebriante de suas florestas opulentas, preciosos tesouros da natureza.
E essas suas sérras, arcas dos mais valiosos e resplandecentes minerais, ai se erguem do sólo, como guardas-
-avançadas E parecem enfeitar-se magestósas, de luxuriante vegetação para saúdar num anseio pressuroso,
aqueles braços e capitais que amanhã hão-de desvendar-lhes os mistérios de sua incalculável riqueza316.

Em sua literatice particular, utilizando-se de termos poéticos e figuras de linguagem (“Acalentado pelo gorgeio har-
monioso”), o texto busca a beleza dos dizeres, capricha na retórica, diferindo do caráter do restante das cartelas de textos
que se seguirão. No geral, bem mais informativas e menos dados aos arroubos mencionados. O primeiro plano é de um ama-
nhecer, com as primeiras luzes do dia refletidas no espelho d’água. É uma vista ampla, limpa de quaisquer outros elementos
a distrair seu foco do efeito da emissão de luz e reflexo. Ela serve de fundo para a exibição do título do filme.
O texto deixa entendido que esse “paiz das Amazonas” trata-se exatamente do estado do Amazonas e não da região
amazônica inteira, apesar de no período colonial toda esta extensão ser conhecida por este termo317. Como o livro Le pays
des Amazones: L´Eldorado, les terres a caoutchouc (1885) do jornalista e propagandista Frederico José de Santa-Anna
Nery, o filme No paiz das Amazonas também assim delimita seu território particular e toma a liberdade de assim denominar
o Amazonas318.
Neste filme, elementos que aludem a uma tradição visual ou discursiva podem ser considerados em vários
momentos. Não espanta o fato de ter sido o filme que tenha entrado para o discurso oficial do Estado com mais
força. Como nenhum outro dos títulos remanescentes deste cineasta, é possível um estudo apontar tantas referên-
cias da tradição visual e discursiva.
Mas, voltemos ao texto de abertura de No paiz das Amazonas. Apesar de seu tom e discurso um tanto
empolado, como dizíamos, ele sintetiza elementos que serão tratados ao longo da narrativa. Antecipa a “enorme
extensão territorial” (“quase um continente”), que será percorrida e enfatizada pelas sugestões de viagem; “os
rios sem conta, depositários de fartíssima variedade de peixes”; os “pássaros mais encantadores”; as “matas som-
brias”; as “florestas opulentas”.
315 Agesilau Joaquim Gonçalves de Araújo (1893-1976) estudou no Colégio Campolide, em Lisboa, e no Institut Heller
(Rochard, Suíça) em 1914. Foi diretor da Associação Comercial do Amazonas em 1925; cônsul da Bélgica e presidente do
Consórcio dos Extratores de Essências Vegetais, em 1943 (HILTON, 1948).
316 Em todas as citações, optei por manter a escrita, de acordo com os documentos consultador.
317 Na Enciclopedia italiana e dizionario della conversazione: opera originale (vol I), de 1838, há um verbete suma-
riando a questão deste nome: “Amazônia ou País das Amazonas é o nome que os geógrafos antigos deram a um grande
distrito situado na América do Sul, porque o primeiro viajante que chegou naquela região achou ter encontrado as Amazo-
nas. A geografia moderna tem retificado o erro, e o pais das Amazonas não existe mais sob esta denominação, exceto em
alguns mapas antigos se chama uma parte do Brasil e do Peru com este nome”. Tradução nossa para o texto: “Amazzonia
o Paese dele amazzoni è il nome che gli antichi geografi diedero ad um gran distretto sutuatto dell’interno dell’America
meridionale, perché i primi viaggiotori che giunsero in quella contrada pretesero de avervi trovato um popolo do Amazzoni.
La geografia moderna há rettificato l’errore, ed il paese dele Amazzoni non existe piú sotto questa denominazione se non
in alcune carte antiche che simil nome danno ad uma parte del Brasile e del Perù”. (p.924).
318 Sobre Santa-Anna Nery, cf. CARNEIRO (2013).
301
E também deixa entrevermos o ponto de vista que irá operar no filme quando nos diz que essa natureza, na
qual ainda inclui serras que são “arcas dos mais valiosos e resplandecentes minerais” irão saudar “aqueles braços
e capitais que amanhã hão-de desvendar-lhes os mistérios de sua incalculável riqueza”319. Assim, também indica
o ponto de vista da empresa produtora J. G. Araújo ao apostar, como Santa-Anna Nery, suas fichas na ideia da
importância da “emigração fecunda” e no capital que os industriais e negociantes estrangeiros poderiam investir.

Não seria à toa que na primeira sequência, enfocando Manaus, tenhamos no panorama da orla da cidade
justamente centralizado o prédio fabril mais notável (Figura 1): a Cervejaria Amazonense com sua proeminente
altura de oito andares, com sua grande chaminé e caldeiras em funcionamento.
O objetivo parece não ser nomear e tematizar esta fábrica propriamente, mas apresentá-la como integrando
a vista idealizada desta capital – já que os intertítulos de fato não a denominam textualmente, como farão com
alguns outros prédios, embarcações, propriedades, organizações e comerciantes. No repertório iconográfico desta
empresa, percebemos uma semelhança de representação do prédio, sempre a enquadra-lo do mesmo ângulo e lado
a partir da vista da orla da cidade, assim também como no filme (Figuras 1-3).

319 Grifo meu.


302
Figuras 1-3. Na primeira imagem, vemos um frame do início da primeira sequência de No paiz das Amazonas,
de Silvino Santos com a Cervejaria Amazonense ao fundo. Na segunda imagem, uma aquarela publicitária do
artista francês Marcel Lebrun (1867-1920) que serviu de molde para produção de litogravura. E por último, uma
peça publicitária da mesma empresa – identificada na premiação na Exposição do Centenário de 1922.

Da Cervejaria Miranda Correa e sua chaminé somos conduzidos pelo filme ao porto flutuante com seus
trapiches e repletos de grandes embarcações internacionais – porque um menor é destinado a atender aos vapo-
res nacionais e regionais, dizem os intertítulos sem oferecer um plano sequer sobre as embarcações nacionais.
São eles também que nos informam que as águas do rio Negro sobem e descem ao longo do ano, águas que são
contidas pela grande muralha exibida, e que o cais é flutuante (roadway, de engenharia e administração inglesa)
para dar conta das variações. Este rio é tão profundo que, mesmo na vazante, qualquer transatlântico tem acesso,

303
como somos informados. E vemos o paquete inglês Hildebrand partindo, presença ilustre que denota a inserção
econômica internacional do Amazonas.
Um sentido de viagem preside a narrativa de No paiz das Amazonas, de seu início ao fim, se atentarmos para
os saltos de cada uma das nove grandes sequências para a sua seguinte. Isso ocorre se observarmos a corografia
deste território, ou seja, onde se localizam os seringais, vilas, cidades, lagos, rios percorridos e mencionados. E,
também, se não deixarmos escapar algumas furtivas imagens de meios de transporte presentes320, ora exibidas
visualmente, ora textualmente.
Mas se nos detivermos no interior destas mesmas sequências, observaremos quase nunca uma ação de via-
gem, ou de deslocamento em si, e sim um aprofundamento verticalizado em questões que exploram os temas
anunciados pelas cartelas de abertura das sequências (Manaus - As Pescas – A Borracha - O Fumo – A Castanha
– O Guaraná - A Balata - Baixo Rio Branco - Alto Rio Branco). Como sabemos, esse detalhamento decorre da
finalidade para a qual o documentário foi realizado: sua exibição na Exposição Internacional do Centenário da
Independência. Como seções de uma exposição o filme mostra episódios de trabalho relacionados aos principais
produtos extraídos da natureza amazônica, incluindo e destacando processamentos.
Volta e meia, raras e rápidas passagens promovem alguma descrição do ambiente ou de costumes populares
dos habitantes da região, tais como hábitos alimentares como veremos na sequência As pescas, adiante comen-
taremos.
A única sequência que não trabalha esta dimensão do trabalho é justamente a inicial, quando somos convi-
dados a visitar a capital amazonense. Esta sequência é dedicada a exibir os nem tão novos logradouros e prédios
públicos de Manaus (quase todos inaugurados há cerca de duas ou uma década).
Assim, temos a sensação de um passeio turístico321 a começar pelo trajeto: desembarque no principal por-
to68, única forma de chegar a Manaus naquele momento, e deslocamento pelas principais edificações do centro
da cidade. A sensação é a de folhear um álbum de fotografias69. O Álbum do Amazonas 1901-1902322, já comen-
tado, é certamente uma das fontes de inspiração, com os principais monumentos e prédios de estilos variados. E
lembramos que entre suas atividades, Silvino Santos trabalhou como fotógrafo, produzindo sob encomenda um
álbum fotográfico para a Peruvian Amazonian Company323.
No paiz das Amazonas se preocupa apenas com o que há de mais “notável” e “civilizado” nesta capital, re-
conhecida por romancistas e historiadores como a “cidade edificada pela borracha”324, ou “última fronteira”325 da
civilização, rio Amazonas adentro.
320 Minhas considerações se aproximam das feitas por Eduardo Morettin (2011).
321 A atividade turística inicia no século XIX com aumento dos meios de transporte e de comunicação de massa, mas
ainda atingindo um público restrito. Cf. AQUINO (2016).
322 Trata-se do álbum fotográfico mais emblemático, editado pelo proeminente fotógrafo português estabelecido em
Belém Felipe Augusto Fidanza (1847-1903). Cogita-se a autoria de algumas imagens ao alemão George Huebner (1863-
1935) que prestou serviços à casa Fidanza neste período. Outros álbuns significativos são álbum o The city of Manaos and
the country of rubber trees (1893) encomendado pelo Amazonas para a ocasião da Exposição Universal de 1893 (Feira
Mundial de Chicago), de autoria desconhecida; e o álbum O Estado do Amazonas (1899), do italiano Arturo Luciani (1861-
1936).
323 Recentemente publicado em fac-símile integralmente Album de Fotografias: Viaje de la Comisión Consular al Rio
Putumayo y Afluentes. Coordenadores Alberto Chirif, Manuel Cornejo Chapanu y Juan de la Serna Torroba. 2013.
324 Segundo Barbara Weinstein (1993, p.220), a ideia de Manaus como uma cidade edificada pela borracha não se
confunde com Belém, mesmo que esta também muito tenha se beneficiado da exploração da borracha. Isso porque a
capital paraense já se encontrava bem edificada anteriormente, e estabelecida como capital da Província do Grão-Pará
no período colonial. Neste sentido, Ana Maria Daou (2000) também explica: “A continuidade histórica entre a povoação de
Fortaleza de São José do Rio Negro, fundada no século XVII, e a capital da província do Amazonas não é imediata, caso
se busque na povoação o caráter urbano, a permanência dos prédios ou dos sinais das instituições do Império português
e, depois, do Império brasileiro. Nesse aspecto, a diferença entre Belém e Manaus é acentuada. Não é inusitado o fato de
que, mais do que Belém, Manaus seja considerada a “capital” da borracha, pois foi na ocasião do boom deste produto que
a cidade ganhou visibilidade, projetando-se internacionalmente como uma cidade moderna, dotada de sofisticados meios
de transporte e comunicação” (DAOU, 2000, p.33)
325 Ver Hemming (2009).
304
O traço mais marcante do filme é de fato uma estruturação destacando produtos extraídos da natureza
regional, no geral destinados à exportação internacional. Esta ideia fica patente quando observamos os títulos das
nove sequências, devidamente apresentadas em cartelas destacadas ao longo do filme: Manaus – As Pescas – A
Borracha – O Fumo – A Castanha – O Guaraná – A Balata – Baixo Rio Branco – Alto Rio Branco. Diga-se de
passagem, esses produtos nomeados pelos títulos das sequências são os mais reconhecidos e sedimentados nos
relatos de viagens desde o século XIX.
Ao iniciar, o filme evoca em texto os mitos amazônicos mais emblemáticos – as Amazonas e o Eldorado –, mas
a citação quase não passará de um protocolo que se seguiu, um chamariz, já que não ganharão desenvolvimento
nenhum deles ao longo do filme. Uma visão notadamente mais objetiva voltada à abordagem da economia da região
será, sim, o assunto. Dessa forma, a sequência inicial descreverá a infraestrutura urbana da capital amazonense.
Vemos focalizados os bens edificados da cidade (prédios públicos, avenidas, monumentos e pontes). Muitas
vistas coincidentes com as fotografias oficiais que circulavam amplamente estampadas em álbuns fotográficos
governamentais, livros, capas de jornais e cartões-postais fotográficos, produzidos desde o final do século XIX e
início do XX.
Certamente por conta do comissionamento conferido por esta antiga empresa sediada em Manaus podemos
afirmar que em No paiz das Amazonas, temos mais do que nos outros filmes analisados de Silvino Santos um vín-
culo visual direto com a tradição iconográfica (sobretudo fotográfica) gerada pela elite comercial e governamen-
tal no período de ápice econômico. Na elaboração de mensagens visuais afinadas com os desejos e necessidades
da elite amazonense, a fotografia antecedeu o cinema. Desta forma, este repertório confere ao filme toda uma
cartilha de temas e maneiras de representar, como veremos. O que nas mãos de um cineasta como Silvino Santos
é tomado como um referencial que será desenvolvido, e não como uma limitação.
Apesar de não iniciar por um produto em si, o filme apresenta a cidade onde os produtos apresentados em
seguida serão encaminhados e onde, em alguns casos, onde serão processados para depois serem embarcados,
destinados ao comércio exterior. A par disso, o moderno porto flutuante, sua engenharia e suas tecnologias de
transporte de mercadorias serão bem figurados. No restante do filme, outras localidades não são descritas e
exaltadas como Manaus. Pontos de produção localizados ao longo dos rios Madeira, Amazonas e Baixo Rio
Branco, quando muito serão apenas mencionados nos intertítulos, como locais em que se encontram os produtos
focalizados. Esses produtos naturais, sim, irão merecer uma aguda atenção fílmica, sendo exibidos em seu
ambiente natural, no processo de retirada das matas/rios, no processamento artesanal e transporte para Manaus.
Após a primeira sequência dedicada a Manaus, sua infraestrutura e embelezamentos, consideramos que
inicia uma segunda grande parte de No paiz das Amazonas na qual serão percorreremos o rio Madeira (direção
sul, com relação à capital), a região do Médio Amazonas (oeste) e o Baixo Rio Branco (norte).
Trata-se da maior parte do filme, englobando as sequências denominadas As Pescas, A Borracha, O Fumo,
A Castanha, O Guaraná e A Balata. Ela se articula com a primeira parte já que Manaus é o epicentro dessa pro-
dução; em quase todas estas sequências se menciona que os produtos seguem para a capital para de lá finalizarem
seu processamento e/ou de lá serem exportados. E como vimos se trata de uma área de longo e rico histórico de
exploração comercial, pelo menos desde a criação da província do Amazonas, em meados do século XIX.
Uma mudança nesta dinâmica acontecerá somente ao final quando se abordará a região do Alto Rio
Branco. É o momento em que o filme reserva para a apresentação da atividade pecuária e também para aludir, por
intertítulos, à potencialidade de exploração mineral (metais e pedras preciosas) vislumbrada para aquela região.
Nesse momento, as amplas vistas deste espaço geográfico, formado pelo lavrado (ou savana), serão exibidas.
Evidencia-se com a inclusão dessa paisagem especificamente um contraponto com os espaços até então vistos no
filme, formados, sobretudo por matas e vistas fluviais. Por não ser uma atividade tão tradicionalmente associada

305
à região amazônica – de certo por abastecer somente o mercado interno da capital e não se prestar à exportação –
podemos conjeturar que a pecuária326 não tenha sido nomeada em intertítulo como a borracha, o fumo, as pescas,
a castanha e o guaraná.
Desta maneira, o discurso cinematográfico que observamos se distancia das primeiras representações, que
valorizavam os produtos amazônicos como descobertas ou revelação ao mundo científico de espécies animais,
vegetais, de técnicas nativas, pelos escritores/cientistas viajantes geralmente estrangeiros, em tom de conquista
colonial.
Agora, no filme, percebemos esses produtos extraídos da natureza, esmiuçados em sua composição, modo
de preparo e destinação para que se reforce didaticamente o seu valor comercial já consolidado. O tom seria mais
de popularização do que de descoberta. Não se projeta para o futuro sua utilização; se mostra seu aceite corrente
no mercado, seja internacional, regional ou nacional327.
De certa maneira, o objetivo que reconhecemos é o da popularização de um conteúdo já exaustivamente
trabalhado no campo das representações, mas talvez não considerado popularizado o suficiente pela sociedade da
época328. Sabemos o quanto a divulgação pelo cinema certamente contribuía para que a popularização atingisse
outro nível.
Mas a região do Rio Branco foi desde os primeiros intertítulos do filme explicitamente exaltada como
esperança de salvação da economia, em declínio desde meados da década de 1910. Visão positiva que pode
estar associada ao fato de que é na década de 1920 que a firma J. G. Araújo consegue do governo do Amazonas
os títulos definitivos de terras ocupadas no vale do Rio Branco por antigos fazendeiros e que durante as duas
primeiras décadas do século XX haviam sido sistematicamente compradas dos pecuaristas endividados (FARAGE,
SANTILLI, 1992, p. 274).
Comentaremos agora as duas últimas sequências e talvez uma das principais razões de ser, tal qual enten-
demos, da empreitada cinematográfica da firma J. G. Araújo: dar visibilidade à região do Rio Branco, “aquela
Canaã”329 e onde se encontravam as “arcas dos mais valiosos e resplandecentes minerais” com “sua incalculável
riqueza”330. Trata-se de uma longa sequência de aproximadamente 21 minutos de duração.
Segundo relatos de época331, também eram as cachoeiras num certo ponto do rio Branco os maiores entraves
ao estreitamento comercial entre esta região ao norte do Amazonas e a capital Manaus. Dentre outras na proximi-

326 Nária Farage e Paulo Santili explicam o lento processo de implantação e sedimentação da pecuária na região, que
atendeu ao mercado interno, não se tornando assim uma indústria reconhecidamente relacionada àquela região, fora de
seus círculos sociais, como os outros produtos apresentados em No paiz das Amazonas: “Da experiência colonial, restara
na região uma forma incipiente de exploração econômica, representada pela pecuária. A implementação da pecuária, em
fins do século XVII, foi uma iniciativa oficial, visando integrar a região do Rio Branco ao mercado interno colonial e assim
torna-la um polo de atração e fixação de colonos”. Na década de 1880 proprietários particulares tomaram conta daquele
território, contabilizando 80 propriedades nas mãos de 32 proprietários. E nas duas primeiras décadas do XX a firma J. G.
Araújo e Cia. comprou a maior parte das propriedades dos proprietários endividados (FARAGE, SANTILLI, 1992:272-274).
327 Como exemplos, na sequência A Castanha, os intertítulos observam: “Em Manaós, a castanha uma vez vendida,
é baldeada para as alvarengas do comprador (...) Os embarques para os centros consumidores mais importantes, Ame-
rica do Norte e Inglaterra, carregam grandes vapores”. Na sequência As Pescas, “Semelhante ao bacalhau, o pirarucu é
um bom alimento, muito procurado pela população de toda a Planicie Amazônica. No estado do Amazonas ainda
existe em abundante quantidade”.
328 A este respeito Santa-Anna Nery (1979) se pronuncia em 1885: “Apesar das sociedades de Geografia que se
multiplicam; apesar de numerosos relatórios de viajantes que exploram o mundo; apesar de todos os progressos reali-
zados por uma certa literatura, muito instrutiva, aliás, que se propõe vulgarizar, por todos os meios, as maravilhas e as
curiosidades sem número contidas em nosso globo; apesar de coleções etnológicas propagadas por toda parte graças
aos processos fotográficos; apesar das frequentes exposições onde figuram exemplos variados e pitorescos das principais
raças de homens, falta ainda muito para que se chegue, na Europa, a um conhecimento verdadeiro e a noções precisas
no que toca os diferentes povos que vivem nas quatro partes do mundo”. (NERY, 1978, p.109).
329 O termo se encontra na última frase dos intertítulos de No rastro do Eldorado, de Silvino santos, cujo texto é cre-
ditado a Álvaro Maia, filme também distribuído pela J. G. Araújo e Cia. Ltda. (MAIA, 1925).
330 Termos localizados no texto de abertura de No paiz das Amazonas.
331 PEREIRA (1917)
306
dade, o principal obstáculo era a cachoeira de Caracaraí, em um ponto entre Boa Vista e a desembocadura no rio
Negro, principalmente durante a vazante do rio, que durava cerca de metade do ano. Os carregamentos deveriam,
na região, recorrer a um caminho por terra.
A importância econômica desta região residia na sua pecuária, que abastecia Manaus. Desta forma, enten-
de-se o porquê da sequência Baixo Rio Branco iniciar-se com o relato destes obstáculos naturais: “Novamente a
caminho rumo aos grandes campos (...), deparamos com as cachoeiras do Rio Branco, que estão acima de Cara-
caraí.”. Seguido por: “A corredeira dos Germanos é das mais arriscada. As canôas são puxadas à sirga, por fora
do canal”, “Célebre cachoeira do Bem-Querer, com três saltos, passagem perigosíssima” e “Lancha transpondo
as cachoeiras, na enchente”. Os planos aproximam-se do que veremos depois em No rastro do Eldorado, nas
tentativas de transposição dos obstáculos do rio Uraricuera, com içamentos de embarcações por numeroso grupo
de índios contratados pela expedição Rice, registrada pelo filme.
Em No paiz, após os obstáculos fluviais, chegamos aos “grandes campos”: “Lá em baixo, naquela vastís-
sima planície, estão situadas as fazendas do Rio Branco que comportam um rebanho de aproximadamente 200
mil cabeças de gado vacum, 15 mil de cavalar, e 4 mil de ovino. Nélas vamos assistir a todo o manejo do gado”.
A grande panorâmica é utilizada para ilustrar a presença das fazendas que comportam a expressiva pecuária.
O filme, apesar de se referir à promessa dos minerais, aborda tão somente a criação de bois e cavalos. A notícia
dos minerais fica como um dado a ser confirmado para o futuro daquela região, “mistério” que ainda havia de ser
desvendado.
Sem pretender esgotar as possibilidades de análise do filme nessa apresentação, concluímos compreendendo
que temos um filme que lança uma sofisticada compreensão histórica sobre a Amazônia ocidental brasileira, e ao
final argumentar junto a seu público sobre o potencial do futuro almejado e promissor. Um conteúdo forjado sob
o ponto de vista da elite econômica, programando-se, talvez, para a extensa circulação em ocasiões oficiais que
o filme perfez durante décadas.

307
Referências bibliográficas

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do Autor, 2016.
CARNEIRO, João Paulo Jeannine Andrade. O último propagandista do Império: o ‘barão’ de Santa-
Anna Nery (1848- 1901) e a divulgação do Brasil na Europa. Tese (Doutorado) - Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2013.
DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FARAGE, Nádia & SANTILLI, Paulo. “Estado de Sítio: territorialidade e identidade no vale do Rio
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Companhia das letras e Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
MAIA, Álvaro. Transcrição de intertítulos do filme No rastro do Eldorado [Prod.: J. G. Araújo e Cia.
Dir.: Silvino Santos, 1925, Brasil]. Rio de Janeiro. Acervo digitalizado Projeto Alex Viany.
MORETTIN, Eduardo. “Tradição e modernidade nos documentários de Silvino Santos”. In: PAIVA;
SCHVARZMAN. (org.). Viagem ao cinema silencioso do Brasil. RJ: Beco do Azougue, 2011.
NERY, Frederico José de Santa-Anna. O país das Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
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STOCO, Sávio. “No paiz das Amazonas (Silvino Santos, 1922, Brasil). Percurso de um marco do filme
natural brasileiro até o mercado doméstico”. Vivomatografias, v. 3, p. 161-184, 2017.

Sávio Luís Stoco - Doutor em meios e processos audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes-USP,
linha história, teoria e crítica. Mestre em artes visuais pelo Instituto de Artes-Unicamp (2014). Especialista em artes
visuais: Cultura e Criação (Senac). Cursou a especialização produção, direção e criação em cinema (Uninorte).
Licenciado em artes visuais. Graduado em comunicação social pela UFAM (2008). Integrante do grupo História
e Audiovisual (ECA-USP) e do Núcleo de Antropologia Visual (Ufam); em 2009 integrou curadoria da Mostra
Amazônica do Filme Etnográfico. Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2011, expondo individualmente na
galeria Funarte BH, Espaço Cultural Banco da Amazônia (PA) e Galeria da Ufam. Em 2010 ganhou a Bolsa
Funarte Reflexão Crítica em Mídias Digitais com o ensaio Híbridos - A Imagem Digital nas Artes Amazonenses.
Foi contemplado com a Bolsa Biblioteca Nacional/Funarte Circulação Literária com o projeto de arte-educação
Crítica do Audiovisual: Leituras Regionais (Manaus, Teresina, Brasília, Cuiabá e João Pessoa). Premiado no
Programa Rede Nacional Funarte de Artes Visuais, coordenou os Seminários 3x3: fotografia contemporânea
amazônica (Manaus, Boa Vista e Belém), cujo projeto resultou em livro coletânea com artistas e pesquisadores.
Conquistou o 12° Prêmio Marc Ferrez Funarte de Fotografia. Promoveu o projeto de arte-educação Caravana
Crítica do Cinema Amazônico (todas capitais do Norte) pelo programa Amazônia Cultural (MINC). Coordenou
revisão do filme No País das Amazonas, de Silvino Santos para DVD (Cinemateca Brasileira/Concultura-
Manaus). Desde 2008 integra do Coletivo Difusão (Manaus), grupo de artes integradas e mídias de Manaus com
o qual desenvolveu grande parte de sua produção videográfica, focada na pesquisa da imagem de arquivo e artes

308
em Manaus; ganhou dois prêmios no Amazonas Film Festival. Participou como artista selecionado do 31° Arte
Pará (curadoria Paulo Herkenhoff e Armando Queiroz). Membro da SOCINE - Sociedade Brasileira de Estudos
de Cinema e Audiovisual e da Associação Nacional de História (ANPUH).
Ricardo Agum - Possui doutorado em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (2013);
mestrado em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (2005) e graduação (Bacharel e Licenciatura)
em ciências sociais pela Universidade Federal Fluminense (2002/2003). Atualmente, é pesquisador visitante do
Instituto Leônidas e Maria Deane - FIOCRUZ AMAZÔNIA da Fundação Oswaldo Cruz. Professor colaborador
do mestrado em ciência política da Universidade Federal do Piauí. Tem experiência na área de Ciência Política e
Antropologia, com ênfase em políticas públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: Políticas públicas,
Amazônia, malária e antropologia visual.

309
25. Convívios Familiares Inscritos em Ambiente Domésticos do Cinema Argen-
tino Pós-Ditadura – Aristarain, Martel e Trapero

Aline Vaz

Introdução

A respeito do chamado Nuevo Cine Argentino (NCA) encontramos algumas aproximações e alguns conflitos
consonantes a denominação do cinema produzido a partir da década de 90 na Argentina. Para Jens Andermann
(2015) os realizadores desse NCA são tidos como cronistas neorrealistas, que abordam no cinema as dimensões
sociais e geográficas surgidas nas fendas neoliberais durante a década de 1990, período que segundo Andrea
Molfetta (2012: 179) é dominado por um clima de “apatia, depressão e decadência, do pessoal ao nacional, em
suma, falta de esperança”. Já César Maranghello (2005) descreve o Nuevo Cine Argentino considerando as pro-
duções realizadas nos anos 60, aproximando da produção de fim de século a designação El Último Nuevo Cine
Argentino.
Nós, iremos considerar o filme Histórias Breves (1995), como precursor do chamado Nuevo Cine Argentino,
que se constitui de uma coletânea de curtas-metragens dos diretores Adrián Caetano, Andrés Tambornino, Bruno
Stagnaro, Daniel Burman, Jorge Gaggero, Lucrecia Martel, Pablo Ramos, Paula Hernández, Sandra Gugliotta,
Tristán Gicovate, e Ulises Rosell, na época formandos da FUC - Fundación Universidad del Cine. Para Javier
Porta Fouz (2009), o filme emerge de um sentimento de urgência na renovação do cinema argentino, recebido
como o começo de algo novo, que deixava de lado uma “estética maximalista” – do excesso, da multiplicidade de
recursos – que até então via-se na tela do cinema nacional. O autor justifica a abertura do Nuevo Cine Argentino, a
partir deste filme, considerando que a obra representou a primeira leva de estudantes de cinema – já que a geração
anterior de cineastas era formada em cineclubes – percebendo-se já uma alteração em relação aos realizadores das
obras pertencentes ao NCA. Outra característica que possibilitou o destaque referente a coletânea de curtas-me-
tragens, foi a sua origem proveniente de um concurso realizado pelo INCAA - Instituto Nacional de Cine y Artes
Audiovisuales, além de sua filmagem em 35mm.
Histórias Breves é um representante do que viria a ser conhecido como Nuevo Cine Argentino, porém,
alguns cineastas já antecipavam o que seria considerado o novo movimento – eles vinham trabalhando contra a
tendência do excesso, da falta de controle sobre os próprios materiais e generalizações sobre a situação do país e
o ser argentino. Ou seja, haviam cineastas que valorizavam a redução dos elementos e a dominação dos recursos
utilizados, convencidos de que precisavam encontrar a própria voz no cinema nacional – a exemplo podemos citar
Rapado (1992), de Martin Rejtman, além da prolífica obra de Raúl Perrone, com pequenas histórias de contensão
estilística.
Considerando uma certa tendência da inscrição dos ambientes domésticos no NCA, buscando identificar
a recorrência das representações dos espaços internos, como marca autoral de cineastas, representativos para a
produção cinematográfica argentina, durante a década de 90 e início do século XXI, trazemos para o presente
estudo os seguintes realizadores: Adolfo Aristarain que, segundo Andermann (2015, p. 35), realiza películas for-
malmente complexas, na contramão do cinema argentino – cinema este que desde a metade dos anos 80, vinha
respondendo aos padrões de exibição e consumo cinematográficos, como forma de manter um modelo prévio de
produções medianas; Lucrecia Martel, realizadora do curta-metragem Rey Muerto, filme integrante da obra His-
310
tórias Breves (1995); e Pablo Trapero, citado pelo autor (2015, p. 116) como um dos jovens cineastas argentinos
mais prolíficos que reformulou as tradições do gênero de modo a apreender o presente social da nação.
Desse modo, o levantamento fílmico instigará a descrição da obra dos cineastas selecionados, Aristarain,
Martel e Trapero, buscando definir certas características que pressupomos existir em comum nas filmografias.
Para o devido estudo iremos realizar um recorte, identificando a recorrência ou não de uma unidade temática e
espacial, delimitando o que compreendemos por convívio familiar em ambientes domésticos, em longas-metra-
gens de ficção de produção argentina, excluindo do presente levantamento os filmes de curtas-metragens, filmes
de documentários e filmes de produções internacionais. Desse modo, analisaremos a recorrência de convívios
familiares – que poderão ser identificados como voluntários, impostos ou abortados – esses convívios poderão
ser transitórios e inferir experiências inerentes a Argentina pós-ditadura, inferências que serão apresentadas em
estudos posteriores a este levantamento que, incialmente, tem como objetivo selecionar e analisar brevemente as
filmografias de Aristarain, Martel e Trapero como potências narrativas de convívios familiares.

O cinema como abrigo familiar

Pensando que “é a partir de relações familiares, formais ou informais, que o indivíduo surge e se coloca no
mundo” (FISCHER, 2006: 13), observa-se que o carácter familiar332 do habitar, enquanto compreensão e apro-
priação do espaço (HEIDEGGER, 1979), pode ser considerado como uma concepção e uma expressão social,
compreendendo que “entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão
da cultura” (LACAN, 1985: 13), numa difusão hereditária psicológica e social. Portanto, este colocar-se no mun-
do parte de uma instituição, que é a família, estabelecendo um convívio que não se sustenta apenas pelo carác-
ter biológico, mas atrela-se a uma convivência social, que é estabelecida por regras e hierarquias – logo, saber
conviver em família é jogar com as regras da vida em sociedade que, por vezes, podem estimular a repressão e a
submissão – ou seja:

A noção de família, por um lado, parece estar necessária e estreitamente associada a sentidos que não só
contemplam, mas que priorizam e privilegiam uma orientação – repressiva e classificatória – de submissão,
de modelagem e de contenção de elementos, quer se traduzam eles por pessoas, coisas ou o que for. Esses
sentidos decorrem, como vimos, da própria etimologia do termo, que remete a escravos, servos, bens e
propriedades. As pessoas e as coisas, nesse contexto, encontram-se justapostas, atadas na mesma clausura,
como se tudo ali se organizasse, em princípio, sob a lógica paradoxal de uma certa “dinâmica paralisadora”
que operasse mais ou menos assim: submissão a parâmetros especificamente estabelecidos, modelagem
para o aperfeiçoamento de tal sujeição e contenção em posições e lugares determinados – para que seja
garantida a preservação e a continuidade desse processo de dominação (FISCHER, 2006: 22).

Nota-se que no cinema argentino pós-memória ditatorial, a representação fílmica de convívios familiares,
em ambientes domésticos, inscritos como lugares de clausura, não se constitui gratuito e nem carente de sentido,
pois a família tem por característica processos de dominação, que inserem sujeitos, como revela a autora, em uma
“dinâmica paralisadora”, uma imobilidade que podemos relacionar a uma realidade imposta a toda uma nação

332 A ideia do familiar é pensada como manifestações provenientes da instituição que, na concepção de Sigmund
Freud (1997), é constituída pelo pai, a mãe e os filhos, membros ligados por parentescos que habitam o mesmo lugar de
convivência.
311
argentina, enquanto submissas a um governo repressor333.
Estas convivências familiares compõem a apropriação do ambiente doméstico, a casa, em um espaço para-
doxal, de acolhimento (ancorado na visão de Gaston Bachelard, em A poética do espaço) e de dominação (cons-
truído por imagens de caráter militar, nos termos de Michel Foucault, nas obras Microfísica do poder e Vigiar e
Punir):

É fato, a palavra casa, outro exemplo de termo que frequentemente surge no interior das definições de fa-
mília, e cuja noção (assim como a de escravo e de servo) já está embutida na etimologia do termo família,
carrega fortes conotações de abrigo e proteção. Casa é lar. Juridicamente, em princípio, a intimidade do-
méstica é inviolável; doméstico vem do termo latino domus (casa), que por sua vez está ligado a dominus,
quer dizer senhor, chefe, soberano, proprietário: quem está no interior da casa, portanto, ou é senhor ou
está sob o domínio de um senhor (é, mais ou menos, algo assim como um de seus pertences) – e não se
invade impunemente um sítio que tem dono instituído (FISCHER, 2006: 23).

É notável que as relações familiares, agora especificando o ambiente de convívio, retoma uma “vertente
militarista, que para designar o que se entende por prisões, também é utilizada a expressão casa de detenção ou
casa de correção (...)” (FISCHER, 2006: 23). Considerando, então, que o termo casa é paradoxal, apresentamos
a seguinte classificação: áreas de convívios voluntários, em geral, constituído no espaço, tradicionalmente, reco-
nhecido como casa – lar –; áreas de convívios impostos, por exemplo, as convivências em prisões – que podem
ser físicas –, nas casas de detenções, em que o sujeito é condenado legalmente a permanecer enclausurado – ou
afetivas – em que o sujeito é aprisionado por redes de parentescos em lares, reconhecidos como convencionais;
e de convívios abortados, em que o sujeito é retirado do espaço que considera o seu lar, para criar novas redes de
afetos e construir – ou não – uma nova casa, como no caso de um exilado que precisa se refugiar em outro país.
Assim, iremos buscar localizar narrativas em que exista a predominância do que chamaremos de convívios
familiares desenvolvidos em espaços fílmicos, designados como ambientes domésticos, dentro da filmografia dos
três cineastas argentinos: Adolfo Aristarain, um veterano, que atravessou os diversos e difíceis períodos políticos
da Argentina, ultrapassando 4 décadas de realização cinematográfica; Lucrecia Martel, uma cineasta formada
pela FUC, integrante realizadora do filme marco do NCA (Histórias Breves); e Pablo Trapero, também, forma-
do pela FUC, que em 2015 foi o primeiro diretor sul-americano a receber o Chevalier de l’ordre des Arts et des
Lettres334, atribuído pelo Ministério da Cultura da França, além de ser o fundador da produtora Matanza Cine,
junto da esposa e atriz Martina Gusman – produzindo a sua própria filmografia, assim como de outros diretores
argentinos e latino-americanos, como os filmes de Albertina Carri, realizadora argentina que também apresenta
convívios familiares, inscritos em ambientes domésticos, por exemplo, em seus longas-metragens de ficção: La
Rabia (2008) e Géminis (2005).

Identificação de convívios familiares em filmografias do cinema argentino pós-ditadura

Adolfo Aristarain, Lucrecia Martel e Pablo Trapero são cineastas argentinos que participaram de momen-
tos importantes de transformações políticas e cinematográficas no país. Aristarain, nasceu em 1943, na cidade
333 A população argentina sofreu seis golpes de estado: em 1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1970. Os quatro primei-
ros estabeleceram ditaduras provisórias, enquanto os dois últimos impuseram ditaduras de tipo permanente, segundo o
modelo de estado burocrático-autoritário – direitos humanos foram violados e muitos argentinos foram dados como desa-
parecidos (famílias sofreram fraturas e violações).
334 Condecoração concedida pelo Ministério da Cultura da França, visando recompensar as pessoas que se distinguem pela sua
criação no domínio artístico ou literário ou, ainda, pela sua contribuição ao desenvolvimento das artes e das letras na França e no mundo.
312
de Buenos Aires, é conhecido como diretor, roteirista, produtor e ator. Apesar do cineasta ser de uma geração
anterior ao NCA considerado, aqui, na presente pesquisa, sua obra pode ser observada como precursora – indo de
encontro – ao que viria a ser produzido no cinema autoral da Argentina neoliberal como inferência de opressão
e submissão na instituição familiar, assolada por crises e marcas de violências sociais. Para o presente estudo
selecionamos as obras de Aristarain que se justapõem ao período pós-ditadura na Argentina, a partir da década de
90 – longas-metragens de ficção e de produção argentina – incluindo os seguintes filmes:
Un Lugar en el Mundo (1992) – a narrativa se inicia com o retorno migratório de Ernesto, visitando poten-
ciais lugares de memórias afetivas, lembrando do primeiro amor e da rotina em família, sempre marcada pelas
lutas da cooperativa organizada pelo seu pai – também professor da pequena escola da cidade – e os conflitos
diante da precariedade dos recursos de saúde que a mãe, médica, enfrenta em seu ofício diariamente – peronis-
tas, os pais fugiram dos militares para viver em Madri e no regresso ao interior da Argentina os enfrentamentos
ideológicos continuam.
La Ley de la Frontera (1995) – uma coprodução entre Argentina e Espanha, foi gravado no Parque Nacional
Peneda-Gerês, em Portugal; Ourense, Pontevedra e La Coruña, cidades da Espanha – narrando a história do nas-
cimento de dois meninos em ambos os lados da fronteira galego-português: João, prometido a vocação sacerdotal
e Xan, destinado a trabalhar duro como o pai. Vinte anos depois ambos decidem fugir de seus destinos e têm suas
vidas cruzadas na fronteira.

Martín (Hache) (1997) – o filme inscreve para a tela a relação familiar de um filho sem lar, que sem lugar
na casa da mãe, migra para a Espanha com o pai, porém, na nova casa é apenas um hóspede, cujo pai não é um
bom anfitrião.
Lugares Comunes (2002) – baseado no romance El renacimiento, de Lorenzo F. Aristarain, o filme narra
a história do professor de Letras, Fernando Robles, que aposentado contra a vontade (devido as alegações de
crise nacional), na companhia da esposa, Liliana, enfrentam problemas financeiros, visitam o filho que vive em
Madri – lugar onde viveram durante o exílio do regime militar – e no retorno à Buenos Aires precisam vender o
apartamento no bairro de Palermo, para que possam mudar-se para um sítio e iniciar a fabricação de perfumes.
Roma (2004) – Joaquín Goñez, é um escritor, que durante o processo criativo de seu livro autobiográfico,
realiza uma viagem por memórias afetivas, desde a sua infância e adolescência em família aos primeiros anos da
migração para a Espanha.
Na filmografia destacada de Adolfo Aristarain nota-se a recorrência de convívios familiares em ambientes
domésticos: organizamos o Gráfico 01 em que podemos visualizar que dos cinco filmes, produzidos na década
de 90 e anos 2000, quatro deles têm suas narrativas predominantesmente determinadas por convívios familiares,
desenvolvidos em espaços diegéticos, reconhecidos como ambientes domésticos – a Tabela 01 permite que visua-
lizemos, detalhadamente, a predominância de temática e espacialidade fílmica na obra de Aristarain.

GRÁFICO 01

313
FILMOGRAFIA DE FICÇÃO - ADOLFO
ARISTARAIN
5

0
Longa-Metragem de
Ficção

Convívios Familiares Outros Convívios


Espaços Domésticos Outros Espaços

TABELA 01

FILMOGRAFIA CONVÍVIOS FAMI- ESPAÇOS DOMÉS-


ADOLFO ARIS- LIARES TICOS
TARAIN (Predomínio narrati- (Predomínio narrati-
vo) vo)
Un Lugar en el
Mundo (1992) Sim. Sim.

La Ley de la Fron-
tera (1995) Não. Não.

Martín (Hache)
(1997) Sim. Sim.

Lugares Comunes
(2002) Sim. Sim.

Roma (2004)
Sim. Sim.
Nota-se que a convivência familiar voluntária se encontra presente em Un Lugar en el Mundo (1992), Lu-
gares Comunes (2002) e Roma (2004), sendo que estes convívios familiares são também abortados, por meio
da morte dos pais; e que a convivência imposta é compreendida em Martín (Hache) (1997), narrativa que após
o convívio abortado na casa da mãe, impõe ao filho a convivência na casa do pai que, também, será interrompi-
da – compreendendo, então, que estes convívios podem ser transitórios: por exemplo, quando a morte aborta o
convívio voluntário e quando a convivência abortada acarreta no convívio imposto.
Lucrecia Martel, nascida em 1966, na província de Salta, na Argentina, é descrita por Marcos Vieytes (2009)
como a cineasta de sua geração (NCA) que mais conta com recursos técnicos e dispõe deles para representar um

314
marco social sem que resulte em gratuito e carente de sentido. Sua produção de longas-metragens resulta nos
seguintes filmes:
La Ciénaga (2001) – ocorre numa cidade conhecida pelas extensões de terra que se alagam com as chuvas
repentinas e fortes, formando pântanos, armadilhas mortais para os animais da região. No povoado de Rey Muer-
to localiza-se o sítio La Mandrágora, onde são cultivados pimentões vermelhos. Na casa dos patrões, lugar onde
instaura-se uma família assolada pelo forte calor, que sufoca a todos, em um ambiente cinzento que prenuncia
temporais, o convívio é caótico e os corpos inertes.

La Niña Santa (2004) – narra o cotidiano de uma família que mora em um hotel, que hospeda um grupo de
médicos para um evento da área – a jovem adolescente sofre abusos sexuais de um dos profissionais da saúde,
que é flertado pela mãe da garota.
La Mujer sin Cabeza (2008) – o filme desencadeia-se por meio de um acidente na estrada em que a motorista
atropela um corpo. Sem prestar socorro, a mulher, vive com uma incerteza: era um humano ou um animal? O
retorno para casa é marcado por um estado traumático, enquanto a família segue a rotina.
Ao destacar a filmografia de Lucrecia Martel conclui-se que todos os longas-metragens têm a predominân-
cia de convívios familiares em ambientes domésticos, fraturados por tragédias – quedas, colisões e abusos. No
Gráfico 02 podemos confirmar a recorrência temática e espacial nos três filmes de longas-metragens da cineasta
– estes resultados apreendidos a respeito da produção de Martel, podem ser visualizados em detalhe na Tabela 02,
revelando a incidência narrativa.

GRÁFICO 02

FILMOGRAFIA DE FICÇÃO - LUCRECIA MARTEL


4
3
2
1
0
Longa-Metragem de
Ficção

Convívios Familiares Outros Convívios Espaços Domésticos Outros Espaços

TABELA 02

315
FILMOGRAFIA CONVÍVIOS FAMI- ESPAÇOS DOMÉSTI-
LUCRECIA MARTEL LIARES COS
(Predomínio narrati- (Predomínio narrativo)
vo)
La Ciénaga (2001)
Sim. Sim.
La Niña Santa (2004)
Sim. Sim.
La Mujer Sin Cabeza
(2008) Sim. Sim.

Compreende-se que todos os filmes de longas-metragens de Martel têm suas histórias desenvolvidas em áreas
de convívios familiares voluntários: em La Ciénaga (2001) os laços familiares constituem o convívio voluntário
(que poderá ser considerado também como um convívio imposto, dada a imobilidade atrelada aos laços de paren-
tescos); em La Mujer sin Cabeza (2008), após um acidente de estrada, a mulher, abatida pelo trauma e a dúvida
de uma morte, convive voluntariamente com a família, que automatizada pela ordem do cotidiano não percebe
sua angústia; e na película La Niña Santa (2004), a família faz do quarto de hotel um lar, em uma convivência
voluntária, num espaço de não-lugar335, que se ressignifica em morada.
Pablo Trapero nasceu em 1971, em San Justo na Argentina, iniciando sua carreira de cineasta durante a déca-
da de 90, que para Sergio Wolf (2009) constitui-se por um cinema pensado como um universo social, uma mostra
extraída de uma classe e setor da sociedade, incluindo os longas-metragens:
Mundo Grua (1999) – o filme carrega elementos biográficos do ator, que interpreta o protagonista Rulo,
ex-baixista de uma banda famosa no passado, que busca reincorporar-se no mundo do trabalho, enquanto expulsa
o filho de casa e inicia um romance.
El Bonaerense (2002) – o filme narra a história de Zapa, um chaveiro que é preso após arrombar um cofre a
mando do patrão. O tio consegue que ele seja inserido na corporação policial, um lado que pode ser tão corrupto
quanto dos civis.
Familia Rodante (2004) – on the road em um Chevrolet Viking, que se inicia após a avó ser convidada para
ser madrinha de casamento da sobrinha; ela faz questão da companhia de toda a família – o que irá desencadear
conflitos durante a viagem.
Nacido y Criado (2006) – o filme inicia-se num cenário harmonioso de uma jovem família de classe média,
até que um acidente na estrada transforma a narrativa: Santiago, o marido e pai, agora, sem a família, convive
com o trauma, trabalhando em um pequeno aeroporto de uma cidade isolada.
Leonera (2008) – o filme narra a história de Julia, que após a morte do companheiro é condenada à prisão;
grávida, ela é direcionada a uma ala de celas especiais para mães, que podem permanecer com seus filhos até que
completem quatro anos de idade.
Carancho (2010) – o filme tem Ricardo Darín como um advogado, cuja licença foi cassada e trabalha em
uma seguradora decadente dando golpes em casos de acidentes de trânsito. O filme foi considerado responsável
pela discussão de mudanças na legislação de seguros para acidentes automotivos no Congresso Argentino.
Elefante Blanco (2013) - na favela de Villa Virgen, periferia de Buenos Aires, os sacerdotes Julián e Nicolás,
335 Para Marc Augé (2007) os espaços de não-lugares são transitórios, onde o sujeito está de passagem, como os
hotéis e aeroportos.
316
na companhia da assistente social Luciana, trabalham entre a violência e a miséria, ajudando os menos favoreci-
dos, enquanto buscam recursos negados para a construção de um hospital – um projeto original do ano de 1937,
aprovado pelo Congresso Nacional, cuja construção foi interrompida por duas vezes: a primeira durante o Gover-
no Peron e a segunda vez na Revolução de 1955.
El Clan (2015) – trata-se de uma história real dos anos 80: a família Puccio sequestra e assassina vizinhos
do aristocrático bairro de San Isidro, em Buenos Aires, dividindo o ambiente doméstico de convívio familiar com
os reféns.
Na filmografia de Pablo Trapero são predominante os convívios familiares, notando-se no Gráfico 03 que
dos oito longas-metragens, selecionados para o devido levantamento, cinco filmes preponderam suas narrativas
em torno de convivências familiares em ambientes domésticos, sendo que apenas três filmes representam com
destaque as mazelas sociais em espaços públicos – o que é evidenciado na visualização dos dados disponíveis na
Tabela 03.

GRÁFICO 03

FILMOGRAFIA DE FICÇÃO - PABLO TRAPERO


6
5
4
3
2
1
0
Longa-Metragem de
Ficção

Convívios Familiares Outros Convívios


Espaços Domésticos Outros Espaços

TABELA 03

FILMOGRAFIA CONVÍVIOS FAMI- ESPAÇOS DOMÉS-


PABLO TRAPERO LIARES TICOS
(Predomínio narrati- (Predomínio narrati-
vo) vo)
Mundo Grua (1999)
Sim. Sim.

317
El Bonaerense (2002) Não.
(Mazelas Sociais) Não.
Familia Rodante (2004)
Sim. Sim.
Nacido y Criado (2006)
Sim. Sim.
Leonera (2008)
Sim. Sim.
Carancho (2010) Não.
(Mazelas Sociais) Não.
Elefante Blanco (2013)
Não. Não.
(Mazelas Sociais)
El Clan (2015)
Sim. Sim.
Compreende-se que os convívios familiares em ambientes domésticos, nos filmes de Pablo Trapero, são
abortados em Mundo Grua (1999), no convívio do pai com o filho, que muda-se para a casa da avó e, posterior-
mente, na migração do protagonista em busca de um novo emprego. Em Nacido e Criado (2006), em que con-
vívio familiar é abortado após um trágico acidente de trânsito, em que o pai da família se exila em uma pequena
cidade longe da realidade a qual pertencia. No filme El Clan (2015), em que a convivência é abortada por um dos
filhos que deixa a casa, por não concordar com as regras de submissões impostas no ambiente doméstico – lugar
que, além de morada, é cárcere para abrigar os sequestrados pelo pai –; o resultado da convivência familiar em
um espaço que é lar e cativeiro é a intervenção judiciária, que invade o ambiente da intimidade, para encontrar o
lugar do cativeiro, abortando a convivência doméstica da família criminosa. O convívio imposto pela avó se dá
no filme Familia Rodante (2004) – uma imposição afetiva que se dá durante uma viagem – ressignificando um
carro em uma casa provisória, que ao impor intimidade, desenvolve conflitos. Em Leonera (2008) a imposição
é realizada pelo sistema de leis, constituídas socialmente, que uma vez descumpridas aborta convívios afetivos,
impondo a clausura nas chamadas prisões físicas – onde Julia precisa ressignificar o convívio penitenciário em
sua nova casa, compartilhada com o filho, nascido em um lugar que se faz doméstico por imposição.
Desse modo, compreende-se que há uma predominância de convívios familiares em espaços fílmicos do-
mésticos, nas filmografias dos cineastas Adolfo Aristarain, Lucrecia Martel e Pablo Trapero, realizadores que
participam ativamente da produção pertencente ao fim e início de século na Argentina pós-ditadura. Torna-se
possível observar no Gráfico 04 que da seleção de dezesseis filmes, que totalizam as filmografias selecionadas
dos três cineastas em análise, doze filmes (75%) predominam narrativas de convívios familiares em ambientes
domésticos, sendo que apenas quatro filmes (25%) tratam de outras temáticas em espaços externos ao da casa,
porém sem excluir esses ambientes.

GRÁFICO 04

318
FILMOGRAFIA - ARISTARAIN / MARTEL / TRAPERO
15

10

0
Longa-Metragem

Dramas Familiares Outras Temáticas Espaços Domésticos Outros Espaços

Considerações finais

Não aleatoriamente o cenário da casa se configura no cinema de uma Argentina pós-ditadura que vivencia
crises permeadas pelo neoliberalismo da década de 90 – trata-se de um sintoma da sociedade que enfrentou seis
golpes políticos, um país que teve sua democracia ferida, familiares, amigos e vizinhos desaparecidos, argentinos
que convivem com uma memória pós-ditatorial, cicatriz de uma crise e uma violência que marca o cotidiano e
inscreve-se na arte. Nesse caso, a busca por lugares de proteção acarreta num esvaziamento do espaço público.
Privilegiado por uma estética da segurança, que recolhe os moradores para espaços privados, o lugar da morada
em um primeiro momento promete proteger, para em seguida oprimir (FISCHER, 2006). Estas características
entre público e privado são resultados de políticas públicas em governos repressivos.
Assim, a presente pesquisa teve como motivação o levantamento fílmico de cineastas selecionados, Adolfo
Aristarain, Lucrecia Martel e Pablo Trapero, possibilitando detectar os convívios familiares como predominantes
nas obras desses realizadores argentinos. Para que pudéssemos considerar a recorrência da inscrição dos am-
bientes domésticos nas obras selecionadas, produzidas durante o período permeado pelo Nuevo Cine Argentino,
tornou-se necessário contextualizar o que compreendemos por convívios familiares e por ambientes domésticos,
efetivando uma proposta de classificação de áreas de convívios voluntários, impostos ou abortados, que podem
ser identificados como convívios transitórios. Estes resultados e classificações, ainda a grosso modo, são perti-
nentes para que futuras pesquisas sejam desenvolvidas.

319
Referências bibliográficas

ANDERMANN, Jens. Nuevo cine argentino. Ciudad Autónoma de Bueno Aires: Paidós, 2015.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus Editora,
2007.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
FISCHER, Sandra. Clausura e compartilhamento: a família no cinema de Carlos Saura e de Pedro Almodóvar.
São Paulo: Annablume, 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
___________. Vigiar e punir. Pretrópolis: Vozes, 1998.
FOUZ, Javier Porta. “El minimalismo como camino del cine argentino nacido em los noventa”. In: PENA, J.
(Org.). Historias extraordinarias: nuevo cine argentino 1999-2008. Espanha: T&B Editores, 2009, p. 33-45.
MARANGHELLO, César. Breve historia del cine argentino. Barcelona: Laertes, 2005.
MOLFETTA, Andrea. “Cinema argentino: a representação reativada (1990-2007)”. In: Batista, M; Mascarello, F.
(Org.). Cinema mundial contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2012, p. 177-1992.
Doutoranda e Mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná. Pesquisadora no Grupo
de Pesquisa Desdobramentos Simbólicos do Espaço Urbano nas Narrativas Audiovisuais (GRUDES /PPGCom
UTP).

Aline Vaz - Doutoranda e mestra pelo programa de pós-graduação em comunicação e linguagens da Fa-
culdade de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Tuiuti do Paraná (FCSA-UTP). Especialista em cinema.
Graduada em Letras - Português/Inglês. Membro do Grupo de Pesquisa Desdobramentos Simbólicos do Espaço
Urbano em Narrativas Audiovisuais (GRUDES / PPGCOM - UTP). As atuais pesquisas tratam das potencialida-
des imagéticas que habitam as configurações de uma arquitetura doméstica que privilegia controles e repressões,
constituindo e preservando uma memória pós-ditatorial no Novo Cinema Argentino. Bolsista PROSUP/CAPES.
26. Archivos y documentos del cine político de América Latina

Consideraciones sobre el devenir de las fuentes

Mariano Mestman

La historia social, cultural del cine recurre todo el tiempo a textos, documentos gráficos o audiovisuales pre-
servados en archivos públicos o privados, y a los que cada vez más accedemos gracias a reediciones posteriores
en libros, revistas, journals, dvds o el acceso on line. En el caso del así llamado Nuevo Cine Latinoamericano de
las décadas de 1960/1970 varias reediciones han modificado las versiones originales de textos o films (segura-
mente también en otros casos, por supuesto). De este modo muchas veces se dificulta la recuperación y el análisis
de histórico de imaginarios o fundamentalmente aspectos de las sensibilidades en juego en los debates históricos
del cine político.

En este artículo se analizan algunos casos de alteración de documentos originales tanto en ediciones poste-
riores como en sus publicaciones en el mismo momento de su escritura. En la presentación previa que tuvo lugar
durante el 5to. Encuentro de Investigación sobre cine Chileno y Latinoamericano, en abril de 2015, me referí a
situaciones que involucran a figuras clave del período como el brasileño Glauber Rocha, los argentinos Fernan-
do Birri, Raymundo Gleyzer y Fernando Solanas, los cubanos Santiago Alvarez y Alfredo Guevara, entre otros.
Aquí se focaliza sólo en dos de esos casos, que permiten problematizar, discutir varios aspectos del trabajo con
las fuentes, complejizar las posibles precauciones a asumir de un caso al otro, y sugerir hipótesis o conjeturas
respecto de las modificaciones de que se trata. En primer lugar, la publicación de las palabras pronunciadas por
el cineasta detenido-desaparecido Raymundo Gleyzer cuando la presentación de su film Los traidores (1973) en
la edición de la Muestra del Nuevo Cine de Pesaro (Italia) de ese mismo año, donde había aludido al uso del cine
y video por parte del Ejército Revolucionario del Pueblo en la Argentina. En segundo lugar, una polémica carta
de 1971 del cineasta brasileño Glauber Rocha dirigida al director del ICAIC cubano, Alfredo Guevara, publicada
originalmente en la revista Cine Cubano. En ambos casos se trata de documentos significativos ya sea porque son
citados con frecuencia en la bibliografía reciente, por las posiciones o tensiones que expresan, o por las posibles
razones que explicarían su modificación posterior. De ahí el interés por revisarlos.336

336 Ambos casos fueron mencionados en la entrevista realizada por Mónica Villarroel al autor en: MERIDIONAL. Revista Chilena
de Estudios Latinoamericanos, Número 5 (Chile: octubre 2015), 77-102. Aquí se retoman y amplían.
Por otra parte, la presentación original durante el V Encuentro incluyó también otras alteraciones (en general de breves oraciones o
fragmentos) en reediciones posteriores de otros textos originales o películas, que a veces remiten a cuestiones de vínculos personales, de
relaciones políticas, de formatos de circulación comercial en el caso de los films o a más de una de ellas. Se trata de los siguientes textos:
1). “Cine y subdesarrollo”, escrito por Fernando Birri hacia 1966, modificado cuando su publicación en el libro Por un nuevo, nuevo cine
latinoamericano, 1956-1991 (Madrid, Cátedra-Filmoteca Española, 1996). 2) Las palabras de Santiago Alvarez durante la inauguración
de los debates del Festival de Cine Joven en la Cinemateca de Cuba, con motivo del XI Festival Mundial de la Juventud y los Estudiantes
(julio 1978), publicadas originalmente como parte del documento “El periodismo cinematográfico”, que suele fecharse en 1978 (Cine
Cubano, n.94, ps.59 y sgtes.), y las modificaciones que sufrió en sus críticas políticas cuando su reedición parcial en la misma revista
Cine Cubano años más tarde (número 140). 3). Películas del grupo argentino Cine Liberación filmadas entre 1968 y 1971: el caso de “La
hora de los hornos”, realizada en 1968 por Solanas y Getino, y modificada en el final de su primera parte cuando su estreno comercial
con el retorno del peronismo al gobierno en 1973; el caso de “El camino hacia la muerte del viejo Reales” (Gerardo Vallejo, 1968-1971) y
“Actualización política y doctrinaria para la toma del poder” (Cine Liberación, 1971) que circularon con modificaciones de diverso tipo
en versiones en videocassette durante la transición democrática a mediados de la década de 1980, y hasta inicios de la década de 1990.
d). También me referí a una situación en que me ví directamente involucrado, de traducción parcial al inglés de un documento del cine
político de los años 60s./70s. en la revista Third Text. Critical Perspectives on Contemporary Art & Culture n.108 (Londres: Routdledge,
2011), donde los editores, seguramente por equivocación, alteraron el orden de la traducción y algunas referencias claves, como la misma
autoría. En este último caso se trata de una situación parcialmente reparada.
321
Caso 1. De la radicalización política a la transición democrática

Uno de los aspectos que singulariza la trayectoria de Raymundo Gleyzer tiene que ver con el ímpetu militante
que caracterizó su actividad cinematográfica en la Argentina y con sus intervenciones también en América Latina
(en Brasil, Cuba y México, o sus proyectos para Chile y Bolivia, entre otros). Entre los numerosos documentos
y testimonios de amigos o conocidos que refieren anécdotas al respecto, se encuentra el recuerdo de Mrinal Sen.
Este destacado cineasta político de la India, mencionó en sus escritos cómo lo sorprendió la acción de Gleyzer
cuando lo conoció en el Foro Internacional de Cine Joven del Festival de Berlín, en junio de 1973. Le llamó la
atención verlo repartir panfletos en el cine principal: “¿Cómo era eso, luego de recorrer todo ese camino desde
Argentina, se dedicaba a distribuir folletos sobre los problemas del movimiento sindical en su país?”, se pregun-
taba Sen. Para luego afirmar: “Glazier (sic) confesó que el sindicalismo era su mayor pasión, y no la realización
cinematográfica. Más temprano o más tarde, dijo, querría dedicar todo su tiempo al movimiento sindical. Yo lo
entendí, lo admiré y pude ver porqué había hecho un largometraje llamado Los traidores (...)”337.

Las referencias a Gleyzer y su obra insisten cada vez más en ese compromiso, lo cual no va en desmedro, por
supuesto, de la dimensión propiamente “cinematográfica” de su obra; pero sí establece algún tipo de jerarquiza-
ción de valores (si pudiese llamarse así) que seguramente él mismo hubiera compartido. Aunque los testimonios
posteriores muchas veces resultan fundamentales al respecto, sabemos que otras fuentes son imprescindibles para
cotejar con más precisión esa historia; como los documentos del mismo momento de los hechos donde Gleyzer
se expresa, sean cartas, reportajes en medios o foros donde expone sus posiciones. Por ejemplo, sus palabras en
la edición de 1973 del Festival de Pesaro, en Italia, donde concurrió para exhibir Los traidores, y el director de
la Muestra, Lino Micciché lo recordaría en el mismo sentido que Mrinal Sen: “No había en él ningún narcisismo
subjetivo, ningún culto de sí mismo como autor. Era consciente de desarrollar un rol político y lo desarrollaba con
gran dignidad (...) En Pesaro participó en un debate sobre la Argentina, a propósito del film, no sobre el film”.338

Ahora bien, en los últimos años se han publicado muchos artículos sobre este cineasta y su grupo Cine de
la Base que recurren a diverso tipo de fuentes. Actualmente, Cynthia Sabat está terminando un libro en base al
principal archivo personal sobre Gleyzer que conserva Juana Sapire en Nueva York -esposa del cineasta hasta dos
o tres años antes de su desaparición y madre de su hijo. Hace quince años se publicó el libro más completo de
testimonios sobre la vida de Raymundo Gleyzer, a cargo de Fernando M. Peña y Carlos Vallina339. Y hasta donde
sabemos, la publicación con mayor cantidad de documentos sobre su trayectoria sigue siendo el libro que en un
notable esfuerzo le dedicó en 1985 la Cinemateca Uruguaya (dirigida por Manuel Martínez Carril). Se trata de
un temprano y justo homenaje durante la transición democrática, para el cual colaboraron varios de sus ex com-
pañeros y amigos en Cine de la Base como Jorge Denti y Nerio Barberis, quienes además escribieron el prólogo.

Entre los documentos que se reproducen en este libro, está la referida intervención de Gleyzer en setiembre
de 1973 en Pesaro340. La fuente original de donde proviene este documento no está citada en el libro de la Cine-
mateca Uruguaya, porque se trabajó con una fotocopia que no tenía la referencia de donde se publicó -como cons-
337 Mrinal Sen. Views on Cinema (Calcutta: Ed. Ishan, 1977).
338 Y aclara que obviamente se habló del film, que presentado como colectivo y de autor anónimo, “tenía signos autorales,
huellas de manos que no eran sólo ‘militantes’ y ‘políticas’ sino ‘artísticas’ y con un gran sentido del cine.” En: VVAA, Raymundo
Gleyzer. (Montevideo: Cinemateca Uruguaya, 1985), 46-47.
339 Fernando M. Peña y Carlos Vallina, El cine quema. Raymundo Gleyzer. (Buenos Aires: Ediciones De la Flor, 2000).
340 Una edición muy recordada de la Muestra de Pesaro (porque llegaron las trágicas noticias del golpe militar en Chile);
y una intervención (la de Gleyzer) importante porque es uno de los pocos testimonios en que se explaya sobre su idea de cómo
sistematizar un circuito de exhibición paralela, clandestina en barrios populares y sobre la organización interna de su grupo y
el trabajo en una fotonovela en base al guión de la película, como un modo de llegar a las bases obreras, entre otras cuestiones.
322
taté hace poco en el archivo de la Cinemateca en Montevideo, por gentileza de Eduardo Correa. Con su ayuda
pudimos dar con la revista original donde fueron publicadas esas palabras de Gleyzer. Se trata de una grabación
recogida por el crítico peruano Federico de Cárdenas en el mismo Festival, pero publicada (junto a otro testimo-
nio del cineasta) tres años más tarde, cuando su desaparición forzada, en 1a reconocida revista peruana Hablemos
de Cine (dirigida por Isaac León Frías: año XII, núm. 68, 1976).

Cuando este texto (la transcripción de sus palabras, editadas por de Cárednas en 1976) fue reeditado diez
años más tarde en el libro de Cinemateca Uruguaya (1985), se omitieron algunos párrafos (unas treinta líneas
de la edición original) que remiten al compromiso de Gleyzer con la organización guerrillera argentina Ejército
Revolucionario del Pueblo (ERP), que tenía secuestrados en los últimos días del gobierno militar del general
Agustín Lanusse al contralmirante Aleman y al comandante de Gendarmería Nassif. Lo que sigue subrayado es
lo quitado en la reedición en el libro de Cinemateca Uruguaya.
“… Todos los instrumentos son válidos, y este no es el único caso: está el video-tape, muy importante porque
casi todas las casas tienen TV y se puede pasar así cine militante o tapes de medios de organización de lucha muy
concretos. Es mucho menos detectable una persona con un tape que la que lleva un film o un proyector, incluso
se puede borrar en un instante, si amenaza llegar la policía.

Existe una organización militar en Argentina que utilizó el video tape en la cárcel del Pueblo: es el ERP que,
como todo el mundo sabe, tenía secuestrados al contralmirante Alemán (implicado en los sucesos de Trelew y sus
asesinatos) y al contralmirante Nassip de la gendarmería opresora de Córdoba. Esto ocurría en los últimos días
de la dictadura militar y era un medio de salvar la vida a los camaradas mantenidos en prisión. Estos compañeros
filmaron un tape con Alemán en la cárcel del Pueblo y que fue enviado a los distintos canales de TV. En el tape
se veía el juicio político al que se sometió a este personaje y hasta hubo un canal –luego muy sancionado– que
lo dio a publicidad como un acontecimiento periodístico muy importante. El gobierno lo cerró por una semana,
pero –aprovechando el diletantismo de los periodistas– mucha gente vio el juicio. Hasta hubo diarios que dijeron
que estaba mal filmado, pero lo importante –obviamente– fue el impacto político logrado. Y existen tapes con
instrucciones sobre cómo fabricar una barricada, una bomba Molotov, etc. Todo el mecanismo de la propaganda
es muy importante, todo lo que puede contribuir al desarrollo de la guerra popular en Argentina juega un rol que
no podemos descuidar.

Para terminar insisto en que debemos meternos en la cabeza que solos (…) somos incluso un elemento fácilmente
digerible por la burguesía”

“… Cuando sostenemos la posición de que el cine es un arma, muchos compañeros nos responden que la cáma-
ra no es un fusil, que esto es una confusión, etc. Ahora bien, está claro para nosotros que el cine es un arma de
contra-información, no un arma de tipo militar. Un instrumento de información para la Base. Todos ustedes han
visto los comunicados del ERP filmados. Su finalidad es difundir operaciones de tipo militar en la base, como en
el Comunicado N.2, en el que los mismos compañeros que asaltaron un banco explican cómo llevaron a cabo la
operación. Este es el valor otro del cine en este momento de la lucha (….)”

Lo subrayado, entonces, es la parte de las palabras de Gleyzer en Pesaro 1973 publicadas por Hablemos de
Cine (1976) pero omitidas en su reedición durante la transición democrática (1985).341
341 La nota de Federico de Cárdenas también incluye un testimonio de Gleyzer previo, cuando la exhibición de su largo docu-
mental México, la revolución congelada (1970) en otro Festival Internacional. También en este caso hay una omisión en la reedición
(aquí subrayada): “(…) Estas que parecen ideas difusas, forman parte de problemas que nos tocan personalmente y que actualmente
discutimos y desarrollamos en nuestro grupo: cómo quebrar el individualismo, cómo militar en una organización política (aunque no
sea la organización perfecta: en Argentina no existe el partido de los trabajadores y carecemos del instrumento necesario para llegar a la
toma del poder) que en un futuro logre la construcción del Partido y la construcción del Ejército Revolucionario Popular necesario para
323
Dos observaciones: Por un lado, no se trata de afirmar que los materiales del ERP a los que el cineasta hace
referencia (los videotapes, el Comunicado Cinematográfico número 2) hayan sido realizados directamente por
él. La ingeniosa idea de filmar los comunicados de las organizaciones político-militares, que hasta allí circulaban
sólo o fundamentalmente por escrito, seguramente le corresponde. Y en general suele reconocerse su autoría
(junto a otros) respecto de los Comunicados Cinematográficos del ERP filmados (aunque hablar aquí de autoría
no tiene mucho sentido en tanto se trata de una apuesta anónima y orgánica). Aun así, es probable que no haya
tenido la misma participación en la dirección de ambos, dadas sus diferentes composiciones. Y, hasta donde sé,
no tenemos referencia a su directa participación en el material con videotape. Pero hechas estas salvedades, las
palabras en Pesaro parecen evidenciar un vínculo más que estrecho con esa experiencia. Y un interés al respecto.

Por otro lado, es probable que las alusiones al videotape hayan estado motivadas por el ámbito en que tuvie-
ron lugar. Como se sabe, se trata de una tecnología reciente en ese momento con desarrollo entre los grupos del
cine de intervención (educativo, social, cultural, político) en Europa y Norteamérica, y de escaso alcance hasta
allí en América Latina y otras partes del denominado Tercer Mundo. Fundada en 1965 como un foro destacado
de las nuevas tendencias cinematográficas y su discusión crítica, la Muestra del Nuevo Cine de Pesaro se había
convertido desde 1968 en el principal encuentro internacional al que confluía el cine político latinoamericano (y
otros). En la edición de 1973 Raymundo Gleyzer exhibió Los traidores (refiriendo la autoría al grupo Cine de
la Base) y los Comunicados Cinematográficos del ERP (como de autor anónimo), en el marco de una sección
titulada Testimonios sobre la América Latina de los años 70s. Pero al mismo tiempo, esa edición del Festival in-
cluyó un importante evento titulado “L´altro video. Incontro sul videotape”, al cual la muestra dedicó uno de sus
reconocidos cuadernos informativos (el número 44) con reflexiones teóricas y experiencias prácticas en torno al
nuevo medio. Aunque las discusiones respecto del video tape en general –y en su uso social/político en particu-
lar– venían desarrollándose en Europa desde algunos años antes342, el cuaderno informativo de Pesaro señalaba
que el medio tenía su mayor desarrollo en Estados Unidos (Habría que agregar la experiencia canadiense, por su-
puesto, que estuvo presente en Pesaro a través del grupo Vidéographe de Montreal). En ese marco, aunque Gley-
zer no participó de este encuentro sino de la sección de cine político latinoamericano, no es extraño que el tema
estuviese presente en sus palabras. En cualquier caso, las referencias al video por parte del cineasta argentino,
como se vio, remiten sobre todo al uso instrumental del nuevo medio en el trabajo político en la línea del cine mi-
litante que venía desarrollando, sea en el registro o en la difusión de materiales en situaciones de clandestinidad.

Ahora bien, si actualmente nuestra principal fuente bibliográfica para acceder a las palabras de Gleyzer en
Pesaro sigue siendo el libro de Cinemateca Uruguaya (1985) porque reproduce el artículo de Hablemos de Cine
(1976) donde fueron recogidas, entonces durante mucho tiempo nos viene faltando algo de esa historia, algo que
Gleyzer priorizaba (su compromiso militante con la política, ya no sólo con el cine), que en cambio sí repone
la fuente “original”. Pero el problema es que no siempre se tiene acceso a esta última y muchas investigaciones
recurren a reediciones posteriores, como la de Cinemateca Uruguaya, que ya sea por tratarse de un libro dedicado
al cineasta desaparecido o por ser más reciente, resultan más accesibles.

La fotocopia de la nota de la revista Hablemos de Cine de donde se tomó las palabras de Gleyzer para su
reedición en este último libro343, tiene tachadas las partes que se quitaron (las subrayadas más arriba). Podría-
mos preguntarnos por las razones que motivaron esta suerte de “autocensura” (el término no es correcto, por
supuesto, pero tal vez pertinente en la medida en que la edición está a cargo de amigos o conocidos del cineasta
la toma del poder. Mientras tanto cada uno milita en la organización que cree más afín a sus ideas”.
342 Por ejemplo, también en Italia, el Convenio que le dedicó la Mostra Internazionale del Cinema Libero di Porretta Terme en su
edición de 1969: “Nuovi mezzi di comunicazione: le cine-video cassette”.
343 Se conserva en el Archivo de Cinemateca Uruguaya en Montevideo, en un sobre junto a otros materiales utilizados
para el libro.

324
que lo homenajean). Pienso que habría que leer las modificaciones al texto en el marco de la recuperación de la
figura de los “desaparecidos” (en definitiva se trata de un homenaje a Gleyzer) durante la transición democrática
de la década de 1980, de los modos en que fue denunciada la atrocidad de la desaparición, desde que ocurrió en
adelante. Me refiero a ese momento –que viene siendo muy revisitado en los últimos años– donde la figura de la
“víctima” ocupa un lugar destacado, asociada, por supuesto, a la denuncia de violación de los derechos humanos
que venía teniendo lugar desde la dictadura (o antes). Allí, en la transición, las narrativas revolucionarias de los
años sesentas cedían espacio a narrativas humanitarias de denuncia de las atrocidades cometidas por las dicta-
duras (los secuestros, las torturas, los asesinatos, etc.). Y los aspectos más militantes (en especial los asociados
a acciones guerrilleras, armadas) quedaban desplazados en muchos relatos344. Una recuperación distinta a la que
ocurriría desde mediados de la década de 1990 (poco antes o poco después) cuando la experiencia militante vol-
vería a ocupar el centro de la escena (ahora con otras características, por supuesto). De algún modo, en el contexto
previo de la transición –donde al mismo tiempo las cosas todavía no estaban tan claras, las tensiones perduraban
y las amenazas también, entre otros a miembros del grupo Cine de la Base, como Jorge Denti a propósito de
su film “Malvinas, historia de traiciones” (1984)–, el borramiento o siquiera el desplazamiento de los aspectos
guerrilleristas de la experiencia de Gleyzer resultaba acorde al momento histórico. Más que juzgar la decisión de
reeditar las palabras del cineasta desaparecido sin esas referencias –ya que es un proceso con decenas de matices
y excepciones, que implicaría una extensa discusión que trascienden estas páginas–, se trata de llamar la atención
en lo que refiere a nuestro trabajo historiográfico, puesto que el cine de Gleyzer es indisociable de su apuesta po-
lítica. Sin embargo, hasta donde sé, las palabras de Pesaro (uno de los testimonios donde Gleyzer más se explayó
sobre su obra y explicitó estas cuestiones) vienen siendo citadas mucho más de fuentes secundarias que omiten
esas referencias de radicalización que de su original transcripción en Hablemos de Cine.

Una vuelta de tuerca

Las palabras comentadas fueron expuestas por Gleyzer en Pesaro en el marco de una conferencia de prensa,
una charla o una mesa redonda donde también participaban otros realizadores. Más arriba, justo antes de una de
las tachaduras analizadas, se citó la siguiente frase: “… Cuando sostenemos la posición de que el cine es un arma,
muchos compañeros nos responden que la cámara no es un fusil, que esto es una confusión, etc. Ahora bien, está
claro para nosotros que el cine es un arma de contra-información, no un arma de tipo militar. Un instrumento de
información para la Base”.

Esta frase está presente en ambas fuentes (la nota de Hablemos de Cine y el libro de Cinemateca Uruguaya)

344 Entre los trabajos que se han referido a este desplazamiento y lo han estudiado en diversas facetas, véase: Crenzel, Emilio. La
historia política del Nunca Más. La memoria de las desapariciones en la Argentina, (Buenos Aires: Siglo XXI, 2008); Markarian, Va-
nia. “De la lógica revolucionaria a las razones humanitarias: Los exiliados uruguayos y las redes transnacionales de derechos humanos”,
en Cuadernos del CLAEH, número 89 (Montevideo: 2004); Oberti, Alejandra y Pittaluga, Roberto. Memorias en montaje. Escrituras
de la militancia y pensamientos sobre la historia. (Santa Fe: María Muratore Ediciones, 2012). Javier Campo (2014) ha recuperado los
estudios sobre narrativas revolucionarias y humanitarias en este período para analizar el documental político argentino, en su reciente
Tesis Doctoral: “Batallas estéticas reales. Tendencias formales y temáticas en el cine documental político argentino (1968-1989)”. En
otro sitio me referí al lugar que ocupó el testimonio subalterno en el cine latinoamericano en torno a 1968, entre la dominancia de las
narrativas revolucionarias y la incipiente emergencia en algunos países, hacia mediados de la década de 1970 o antes, de aquellas vincu-
ladas a la denuncia de las violaciones de derechos humanos. En: Mestman, Mariano (2013), “Las masas en la era del testimonio. Notas
sobre el cine del 68 en América Latina”; en: Mestman, M. y Varela, M., Masas, pueblo y multitud en cine y televisión. (Buenos Aires:
Eudeba, 2013), 179-215.
325
y atribuidas en ambos casos a Gleyzer (Recordemos que se trata de palabras o frases expresadas oralmente y
grabadas por periodistas o críticos, en este caso por el peruano Federico de Cárdenas y luego transcriptas en la
revista Hablemos de Cine). Sin embargo, hace unos años encontré otra fuente en los archivos de la Cinemateca
de Cuba-ICAIC que agrega más confusión al asunto. Se trata de una transcripción mecanografiada de un supuesto
“Encuentro de cineastas latinoamericanos con (la revista) Ombre Rosse”, realizado en el marco del festival, don-
de figuran las palabras de Gleyzer, ahora junto a las de otros participantes345. En ese documento mecanografiado,
además de estar las alusiones al ERP, la frase recién citada sobre el cine como “arma de contrainformación para
la base” está atribuida no a Glezyer (como ocurría en las otras dos fuentes comparadas), sino a Jorge Giannoni.346

Si bien se trata de una diferencia “menor”, limitada a la autoría de esta frase, resulta relevante a los efectos
de la discusión sobre el uso de las fuentes. El problema es que tal vez ninguna de las dos (ni la transcripción para
Hablemos de Cine, publicada, ni aquella para Ombre Rosse, inédita) podrían considerarse estrictamente fuentes
originales. Porque si en la comparación anterior quedaba claro que el libro de Cinemateca Uruguaya había repro-
ducido con alteraciones la nota previa de Hablemos de Cine, y constaban las tachaduras en la fotocopia utilizada;
en este caso, en cambio, se trata de dos “versiones” (desgrabaciones, transcripciones) de la misma exposición oral
de Gleyzer (y otros) en Pesaro.

Si tuviéramos las cintas grabadas, probablemente podríamos precisar a quien corresponde la frase en cues-
tión. Pero contamos sólo con ambas desgrabaciones. La transcripción que encontré en los archivos del ICAIC
en La Habana es explícita al atribuir la frase a Giannoni (y también es muy precisa en la descripción previa de la
escena en que fue grabada, que hace las veces de introducción). Sin embargo, nunca se publicó en Ombre Rosse,
y tampoco la recordaban ni su director, ni los participantes italianos con los que hablé en su momento. En cambio,
ante mi consulta reciente, Federico de Cárdenas tuvo la gentileza de volver sobre esa escena a pesar de los años
transcurridos y aseguró que fue muy cuidadoso en la transcripción y edición y que conocía perfectamente la voz
de Gleyzer. Al mismo tiempo, observó con razón que la frase es del todo coherente con el conjunto del discurso
que venía presentando este cineasta en esa instancia. El argumento de Federico de Cárdenas parece convincente.
Es decir, las dos desgrabaciones (la de Ombre Rosse, encontrada en el archivo del ICAIC, que no sabemos quién
la hizo; y la suya), son muy semejantes ya que son la transcripción de una fuente oral original. Sin embargo,
¿cómo saldar la diferencia de a quien cada una atribuye lo dicho?

Desde el punto de vista del acceso a las fuentes en nuestras investigaciones, este caso (me refiero a la com-
paración primera entre la publicación en la revista peruana y su reproducción en el libro uruguayo; lo señalado
luego es más confuso y menos relevante en cuanto alteración), refiere a la importancia del acceso a la publicación
original de los documentos, la realizada en el mismo momento en que fueron escritos o desgrabados (Por su-
puesto el acceso a las grabaciones o manuscritos sería ideal, pero en general más difícil). Con ello podríamos, en
principio, “controlar” las fuentes más recientes, las reediciones. Sin embargo, el segundo caso que se analizará a

345 La revista Ombre Rosse había tenido un protagonismo importante en el debate del cine político italiano del 68, y su
director, Goffredo Fofi había participado de las acaloradas discusiones en Pesaro 1968 (una edición que estuvo a punto de sus-
penderse, siguiendo el ejemplo de Cannes un mes antes, pero que finalmente se realizó autoconvertida en Asamblea) y había
redactado junto a otros los documentos en torno al cine asociados a las protestas del Movimento Studantesco en esa coyuntu-
ra.
346 Otro cineasta político argentino quien en ese momento compartía con Jorge Denti (y otros) el colectivo Cinema del
Terzo Mondo en Roma. Este grupo había realizado dos películas producidas por a Renzo Rossellini, un activo productor y
promotor del cine del Tercer Mundo en esos años desde su pequeña productora San Diego Cinematográfica. Jorge Giannoni,
aunque con menos obra que Gleyzer, tendría un rol activo en los vínculos entre el cine político latinoamericano y el africano; al punto
de protagonizar la organización de sendos encuentros en Argel y Buenos Aires que entre diciembre de 1973 y mayo de 1974 darían
conformación al Comité de Cine del Tercer Mundo, del cual fue representante por América Latina. En setiembre de 1973 se reencon-
traría con Gleyzer: viajarían juntos a la IV Conferencia de Países No Alineados realizada en Argel y luego participarían de la edición de
la muestra de Pesaro de ese año.
326
continuación permite mostrar que el asunto es más complejo de lo que parece; es decir, que no se trata sólo de ir
a las “primeras ediciones” en las que esos textos aparecieron o circularon en su momento, sino también de estar
siempre atentos respecto de todas las ediciones, las actuales y las de aquellos años.

Caso 2. Viña del Mar, 1969: Glauber Rocha, Fernando Solanas y Alfredo Guevara

El segundo caso se refiere al enojo del brasileño Glauber Rocha respecto de afirmaciones críticas del argen-
tino Pino Solanas sobre el movimiento del Cinema Novo, realizadas durante el Encuentro de Realizadores de
Viña del Mar de 1969. Hay un par de cartas de 1969 y 1971, de Rocha a Alfredo Guevara –entonces director del
ICAIC–, que fueron publicadas en el libro Cartas ao Mundo, de 1997, una compilación de la correspondencia del
cineasta brasileño a cargo de Ivana Bentes347. Cinco años después de esa edición en portugués, Alfredo Guevara
publicó una selección de su correspondencia con Glauber, donde incluyó la segunda de estas cartas.348

Me interesa en particular esa extensa carta escrita por Glauber estando enfermo en Chile, fechada en mayo
de 1971, de la cual encontré tres versiones que, aunque en términos generales dicen lo mismo, presentan algunas
modificaciones significativas entre sí. Se trata de las versiones correspondientes a cada uno de los dos libros men-
cionados –Cartas ao Mundo y la Correspondencia Guevara-Rocha–, y la hasta donde sabemos primera publica-
ción de la carta en el número 71/72 de la revista Cine Cubano –circa, fines de 1971/comienzos de 1972, páginas
1-11. Rocha había pedido de modo explícito que esa carta se difundiera en Cine Cubano, ya que allí confrontaba
con los ataques contra el Cinema Novo provenientes de sectores de las izquierdas brasileñas y latinoamericanas
desde comienzos de la década de 1960. Entre esos ataques incluía la crítica que, en su ausencia, Solanas le había
hecho en Viña del Mar 1969.

El cineasta brasileño reivindicaba en esa carta a Alfredo Guevara el carácter político –de respuesta revolucio-
naria contra la dictadura de su país– de varios films del Cinema Novo aparecidos en torno a 1964 y manifestaba su
enojo por el cuestionamiento de Solanas en aquel festival. En la versión de la carta publicada en Cartas ao Mundo,
en 1997 (ps. 403-404) hay varias líneas (subrayadas a continuación) que en cambio no figuran en las dos ediciones
cubanas de la misma carta:

“(...) Vi en varios lugares del mundo la conmoción de las plateas delante de Maioria absoluta349. Y nosotros tuvi-
mos la sabiduría de no hacer ningún manifiesto teórico, ninguna crítica moralista a otros cines, ninguna ‘palabra de
orden’ oportunista. Solamente presentamos ‘La estética de la violencia’350. Años después, en Viña del Mar, (no re-
cuerdo el año), fuimos sorprendidos por la acusación de Solanas: para él, y para un grupo de cineastas revoluciona-
rios urgidos, La hora de los hornos era el verdadero cine revolucionario y nosotros, los brasileños, que luchábamos
contra una dictadura implacable, estábamos ‘comprometidos con el sistema’. La hora de los hornos, alardeando
su novedad formal, incluía, irónicamente, un pedazo de Maioria absoluta, de Hirszman351. Nosotros no lanzamos

347 Glauber Rocha. Cartas ao mundo. (Sao Paulo: Compahia des Letras, 1997. Compilación a cargo de Ivana Bentes).
348 Alfredo Guevara. Un sueño compartido. Alfredo Guevara-Glauber Rocha. (Madrid: Iberautor y Festival del Nuevo Cine
Latinoamericano, 2002).
349 El film de León Hirzsman (1964).
350 Se refiere al manifiesto más conocido como “La estética del hambre”, producto de su intervención en el Columbianum de Gé-
nova, en 1965.
351 Se refiere a una de las llamadas “citas fílmicas” incluidas en el film argentino.

327
ningún manifiesto inventando el cine/verdad político, incluso – ni siquiera– después del éxito mundial de Maioria
absoluta o de Viramundo352. Nosotros, los cineastas del ‘cinema novo’, queríamos la unidad del cine latinoameri-
cano. Luego del ‘cine del tercer mundo’, inspirado en la Tricontinental del Che”.

Y unas líneas más abajo, insiste en su enojo, e incluye una comparación por lo menos singular:

“(...) Leí el discurso de Fidel en Gramma, donde se refiere al caso Padilla. Tiene razón. Los intelectuales son pro-
ducto de una concepción aristocrática-burguesa, heredada por el academicismo cultural del Partido Comunista.
Esta concepción genera privilegios, vedettes, concursos, premios, festivales y mentiras traicioneras como la de
Solanas contra el ‘cinema novo’ en el Festival de Viña del Mar”.

Aunque inmediatamente el conflicto parece “compensarse” con una expresión que aparenta no guardar rencor
o por lo menos aceptar cierta reconciliación:

“Solanas más tarde me confesó en Roma que había sido víctima de una intriga hecha por franceses y brasileños.
Creo en la honestidad de Solanas, me gusta La hora de los hornos, pero debo aclarar que él, como un cineasta
revolucionario, no tenía derecho a juzgar el ‘cinema novo’ basado en informes de otros ‘brasileños’ o ‘franceses’.
(...)”.

Ahora bien, los párrafos citados corresponden, como decíamos, a la versión de la carta publicada en portugués
en Cartas ao Mundo en 1997 –la traducción es mía. Y las oraciones subrayadas son las que no están en las dos
versiones cubanas en español (ni en la anterior de la revista Cine Cubano de 1971 ni en la posterior de la Correspon-
dencia Guevara-Rocha de 2002). En especial resulta de interés su ausencia en la versión publicada previamente en
la revista Cine Cubano, en el mismo momento en que fue escrita. Es importante aclarar que no se trata de la única
divergencia. Hay otras, en otras zonas de la carta, en general menores, entre las ediciones en español respecto de la
brasileña, y algunas también entre ambas versiones en español353. Pero a los efectos de la discusión sobre esa coyun-
tura de las relaciones del Nuevo Cine Latinoamericano, nos interesa la divergencia que aquí presentamos, porque a
diferencia del caso anterior referido a Gleyzer donde se modifica una primera publicación de sus palabras en una
reedición posterior, aquí es la primera publicación de la carta (la de Cine Cubano) la que omite los duros términos
con que Glauber se refiere a Solanas, que en cambio sí aparecen en una versión editada posteriormente, aunque
sospechamos original (la de Cartas ao Mundo).

Muchos elementos llevan a pensar que en la original traducción de la carta para Cine Cubano fueron cortadas
las frases más duras contra Solanas (subrayadas más arriba). Si bien en esa edición están las referencias explícitas
a las críticas contra el Cinema Novo en Viña del Mar 1969, resulta llamativa la ausencia completa del primer
párrafo citado (“Años después, en Viña del Mar..., fuimos sorprendidos por la acusación de Solanas...”), así como
del nombre de Solanas en el otro párrafo: “Esta concepción genera privilegios, vedettes ... y mentiras traicioneras
como la de Solanas contra el ‘cinema novo’...”354. Estas ausencias hacen que resulte incluso confusa la edición
de esta parte de la carta en la revista, dónde sólo aparece una breve mención al cineasta argentino: “Solanas más
tarde me confesó en Roma que había sido víctima de una intriga urdida por franceses y brasileños”. Porque esta
mención queda aislada, sin la referencia previa (a las acusaciones y “mentiras”) y por ende no se comprende bien
a qué refiere.

352 El film de Geraldo Sarno (1965).


353 En lo referido en particular a estos párrafos, por ejemplo, en la reedición en la Correspondencia Guevara-Rocha (2002) sí figu-
ra la mención al discurso de Fidel sobre el caso Padilla y la referencia al academicismo “cultural del Partido Comunista”, ausentes en la
versión de la revista Cine Cubano (1971).
354 En el párrafo reproducido en Cine Cubano dice: “Este concepto genera privilegios, vedettes, concursos, premios, festivales y
provocó intrigas contra el ´cinema novo´ en el Festival de Viña del Mar, 1969”.
328
Las diferencias de Rocha respecto de Solanas y su cine pueden observarse en ese mismo momento histórico
en otras fuentes: al pasar en cartas previas y posteriores, también publicadas en Cartas ao Mundo355; y de modo un
poco más argumentado en una famosa conferencia de Glauber de ese mismo año en Nueva York, luego conocida
como el Manifiesto “Estética del sueño”356. Pero justamente por ello, la pregunta que surge casi de inmediato es
por qué razón se cortó la carta enviada a Alfredo Guevara357. Desde mi punto de vista, no se trata de que los diri-
gentes cubanos adhiriesen más o menos a cada uno de estos dos referentes del llamado Nuevo Cine Latinoameri-
cano358. Es probable, en cambio, que en su permanente búsqueda de la unidad del mismo, la revista quisiese evitar
la publicación de las frases más duras de la carta que hubieran explicitado una pelea, o por lo menos una tensión
importante, entre dos promotores clave de ese cine en el mundo359. Por supuesto en esos años las diferencias – de
lenguaje, de políticas– entre ambos directores se leen en otras fuentes, como las mencionadas. Pero ninguna de
ellas da cuenta del énfasis en el enfrentamiento que se lee en las frases de esta carta de Glauber a Guevara. Al
cortarlas en la versión de Cine Cubano (1971) aquello que en la –aparentemente– “original” (aunque publicada
posteriormente: la reproducida en el libro de Ivana Bentes en 1997) es abierto conflicto, en esta versión de Cine
Cubano aparece sólo como una mención al pasar. Además, como se dijo, no se comprende bien ya que no puede
vincularse de modo directo a los párrafos que no están. Es decir, el contundente enojo, la polémica manifiesta
(que sí se lee en otros párrafos no eliminados), recubre un carácter más general o asociado a la izquierda brasi-
leña, pero ya no al fundador del grupo Cine Liberación argentino. Tampoco deberíamos descartar la posibilidad
de que haya sido el mismo Glauber –u otra persona con su autorización– quien modificara la primera versión de
la carta porque decidiese –sea por iniciativa propia o por sugerencia de otros– matizar las críticas. Pero también
en este caso se trataría de modificaciones que merecerían una lectura historiográfica más detenida.360
355 Una de 1969 también a Alfredo Guevara y otra de 1971 a Cacá Diegues. En esta última, Glauber se refiere al pasar a la carta
que ese mismo año había enviado a Guevara desde Chile –la que venimos citando. Y en referencia a la reconocida película Macunaíma
afirma que “era un suceso en tierras de documentalismo educativo (o solanismo legal y argentino)” (Cartas ao Mundo, p. 414). En la
carta de 1969 a Guevara -escrita en Roma inmediatamente después del encuentro de Viña del Mar-, Glauber agradece la intervención
del dirigente cubano en el evento por haber defendido al “cine brasileño” -se entiende al Cinema Novo- frente a ataques que atribuye a
Solanas. Hasta donde sabemos esta carta -a diferencia de la más extensa de 1971 comentada- no fue publicada en su momento en Cine
Cubano u otro sitio. Pero sí fue recuperada en la Correspondencia Guevara-Rocha publicada en 2002 (p.97). En este caso, la mención a
Solanas es sólo al pasar, pero también muy dura. La diferencia entre ambas versiones de la carta es menor aunque también significativa.
La breve frase en la versión en portugués (Cartas ao Mundo, p. 353-354) dice: “creo que Solanas hace mucha demagogia y sufre de vede-
tismo crónico; mal del subdesarrollo (... acho que o Solanas faz muita demagogia e sofre de vedetismo crónico; mal do subdesarrollo)”.
La traducción para la edición en español incluye la crítica aunque matizada por un aparente error de traducción: “creo que Solanas hizo
mucha demagogia sobre el vedetismo crónico, mal del subdesarrollo”. (Correspondencia Guevara-Rocha, 2002, p. 97).
356 En ese documento, reivindicando el lugar privilegiado del arte y el artista en el proceso revolucionario, el valor de su no subor-
dinación y de la revolución en lo cultural, Rocha diferenciaba ahora su propia obra respecto de La hora de los hornos. Allí distinguía tres
tipos de arte revolucionario: el útil al activismo político; el lanzado para la apertura de nuevas discusiones; el rechazado por la izquierda
e instrumentalizado por la derecha. Si en el segundo caso se refería a algunos films del Cinema Novo brasileño, incluidos los suyos, en el
primero ejemplificaba con el film de Solanas y Getino, “un típico panfleto de informaciones, agitación y polémica, utilizado actualmente
en varias partes del mundo por activistas políticos”, afirmaba.
357 Como dijimos en relación con la carta de 1971, no se trata sólo del corte de las críticas más duras a Solanas, sino también de la
explícita mención de Glauber a la honestidad de Solanas y a que le gustaba La hora de los hornos -que en la versión brasileña aparece
inmediatamente después de la frase que en la traducción cubana queda suelta, sin conexión, sobre que Solanas le confesó en Roma que
había sido víctima de una maniobra.
358 Más allá de una mayor o menor afinidad con cada uno y con sus respectivas obras –que probablemente existió a favor de Glau-
ber–, en general mantuvieron colaboración con ambos –con variantes a lo largo del período–, al mismo tiempo que las consideraciones
sobre sus películas de esa coyuntura –en especial La hora de los hornos y Antonio das Mortes– incluyen adhesiones a algunos aspectos
pero también críticas y distanciamientos respecto de otros. De hecho, en la misma carta –recordemos que estaba dedicada fundamental-
mente a confrontar no con Solanas sino con sectores de la izquierda brasileña–, Rocha rechaza dura y explícitamente un artículo publi-
cado en un número anterior de Cine Cubano sobre su obra, firmado por Pietro Domenico, que –afirma– “nace de informaciones falsas
ofrecidas por la Cinemateca de Río de Janeiro y por la Escuela de Comunicación de Sao Paulo”.
359 En especial considerando que hubo otras polémicas fuertes entre chilenos, argentinos, cubanos en Viña del Mar 1969,
que en algún momento amenazaron con dividir a los presentes en sesiones paralelas.
360 Al respecto, es importante considerar que en la versión de Cine Cubano (1971) hay otras frases intercaladas, agregadas que no
están en la versión de Cartas ao Mundo (1997), como si hubiesen sido sumadas en una revisión contemporánea de la escritura. Es decir,
faltan las críticas más duras a Solanas -entre otras cosas- pero hay otros párrafos que en cambio no están en la que hasta ahora supone-
mos como carta “original” –aunque publicada posteriormente–, la versión de Cartas ao Mundo. Por ejemplo, las 9 notas al final del texto
publicado en la revista, que parecen aclaraciones del propio Glauber. O el final a modo de manifiesto: “Abajo la dictadura imperialista.

329
El hecho de que la carta publicada en la misma coyuntura de la polémica fuese cortada por una razón o
por otra no resulta insignificante a la hora de interpretar esa historia. En otros lugares me referí a las tensiones
y polémicas que atravesaron las apuestas de los cineastas políticos latinoamericanos en los 60s./70s., sea en ese
Festival de Viña del Mar de 1969 o luego en un encuentro del cine político mundial realizado en Montreal en
1974, y donde se desató una encarnizada polémica entre el chileno Miguel Littín, el uruguayo Walter Achugar,
los argentinos Pino Solanas, Edgardo Pallero y Humberto Ríos, el cubano Julio García Espinosa y el director del
Festival de Pesaro, Lino Micciché (Mestman, 2001 y 2014, respectivamente). Esas y otras situaciones dan cuenta
de un panorama de posicionamientos más complejo de lo que en general la bibliografía nos permite ver.

Este segundo caso sobre la carta de Rocha, como se dijo, viene a complicar la cuestión del trabajo con las
fuentes. Porque ya no se trata de modificaciones posteriores –por ejemplo, desde los períodos de transición polí-
tica en Sudamérica– que muchas veces matizan la radicalidad de enfrentamientos de los años 60/70, como se vio
en el primer caso. En este segundo caso se trata de modificaciones en el mismo momento de escritura/difusión
de la carta y que por ello mismo nos obligan a indagar con mayor profundidad y avanzar en su interpretación de
modo más reflexivo. Porque si bien la carta aparentemente original pero publicada completa en 2007 (cuando
Ivana Bentes dio a conocer esa correspondencia) no deja dudas sobre el sentimiento de Rocha respecto de la in-
tervención de Solanas en Viña del Mar 1969, el hecho que esas líneas no se hubiesen publicado en la edición de
Cine Cubano de 1971 indica que no tuvieron publicidad, no fueron parte de la escena pública y el debate del cine
político latinoamericano en esa coyuntura.

Este tipo de escritura epistolar suele facilitar la emergencia de anécdotas, tensiones personales, nombres,
sentimientos encontrados que son más difíciles de hallar en Manifiestos u otras escrituras que al fijar posiciones
públicas muchas veces alcanzan una formalización “más cercana” a los discursos epocales. Por supuesto esta
última distinción debería considerarse sólo de modo tendencial; porque requiere de una comprobación empírica
en cada caso, que asimismo contemple las respectivas estrategias argumentativas361. En lo referido al período que
nos ocupa, muchas veces aquello que se dice en privado –en una carta, en conversaciones cotidianas– se omite o
se expresa de otro modo en público. Pero, al mismo tiempo, se trata de un momento en que las intervenciones po-
líticas, públicas de artistas e intelectuales –de vanguardias culturales, en sentido amplio–, en su afán de articular
arte/vida, cultura/política, también incluyen polémicas con “nombre y apellido” o que dejan traslucir un proceso
vívido. La cuestión sería cómo poder recuperarlo en nuestro trabajo historiográfico con las fuentes.

A la izquierda todo, a la derecha nada”. O la frase sobre el lenguaje del cine latinoamericano: “Debe ser épico, didáctico, materialista y
mágico”, que remite a otro manifiesto contemporáneo. Entre otras referencias presentes en la versión de Cine Cubano y ausentes en la de
Cartas ao Mundo.
361 De hecho, como se dijo, en este caso había una voluntad explícita de Glauber de hacer pública la carta; y en este sentido
puede considerarse como una intervención polémica, un documento más cerca de lo público que de lo privado. Pero al mismo tiempo,
insistamos, se omitieron algunas líneas más que relevantes en este sentido.

330
Referências bibliográficas
CAMPO, Javier. Batallas estéticas reales. Tendencias formales y temáticas en el cine documental político argen-
tino (1968-1989). Tesis doctoral inédita. Buenos Aires: Facultad de Ciencias Sociales, 2014.

CRENZEL, Emilio. La historia política del Nunca Más. La memoria de las desapariciones en la Argentina,
Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.

GUEVARA, Alfredo. Un sueño compartido. Alfredo Guevara-Glauber Rocha. Madrid: Iberautor y Festival del
Nuevo Cine Latinoamericano, 2002. ( Investigación y Edición: Luis Ernesto Flores)

MARKARIAN, Vania. “De la lógica revolucionaria a las razones humanitarias: Los exiliados uruguayos y las
redes transnacionales de derechos humanos”. En: Cuadernos del CLAEH, número 89. Montevideo: 2004.

MESTMAN, Mariano. “Postales del cine militante argentino en el mundo”. Revista Kilómetro 111, Ensayos sobre
cine, Buenos Aires: núm. 2, setiembre 2001; ps. 7-30.

METSMAN, Mariano. “Las masas en la era del testimonio. Notas sobre el cine del 68 en América Latina”. En:
Mestman, Mariano y Varela, Mirta, Masas, pueblo y multitud en cine y televisión. Buenos Aires: Eudeba, 2013;
ps. 179-215.

OBERTI, Alejandra y Pittaluga, Roberto. Memorias en montaje. Escrituras de la militancia y pensamientos sobre
la historia. Santa Fe: María Muratore Ediciones, 2012

PEÑA, Fernando M. y Vallina, Carlos. El cine quema. Raymundo Gleyzer. Buenos Aires: Ediciones De la Flor,
2000.

ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. Sao Paulo: Compahia des Letras, 1997. (Compilación a cargo de Ivana
Bentes)

SABAT, Cynthia y Sapire, Juana. Compañero Raymundo. Buenos Aires: en prensa (2015)

SEN, Mrinal. Views on Cinema. Calcutta: Editorial Ishan, 1977.

VVAA. Raymundo Gleyzer. Montevideo: Cinemateca Uruguaya, Serie Cinelibros, 1985.

Publicado originalmente en: Mónica Villarroel (coord.), Memorias y representaciones en el cine chileno y lati-
noamericano. Santiago de Chile, Ed.LOM-Cineteca Nacional, 2016; ps. 21-38.

Mariano Mestman - Es doctor por el Programa en historia del cine de la Facultad de Filosofía y Letras,
Universidad Autónoma de Madrid. Realizó investigaciones posdoctorales en la Universitá degli Studi di Roma
3. Es investigador del IIGG y del CONICET, Profesor de seminarios de la Facultad de Ciencias Sociales (UBA).
Dirige, codirige o participa como investigador responsable en proyectos PIP, PICT y UBACyT. Sus estudios
de historiografía cultural (artes visuales y cinematografía) fueron publicados en revistas especializadas y libros
colectivos del país y el exterior.

331
Parte 4

Imagem e Conceitos, Arte e Cinema


27. Em busca do pai perdido

Annateresa Fabris

“A menina Matsu lhe dizia que o quimono da senhora Fuyu era tumular. Devia ser pensado como santuá-
rio inteiro de uma pessoa querida. Era um túmulo de vento, talvez perfeito. Ainda que se assemelhasse a
brincar com os pássaros, era sagrado para o imaterial da senhora Fuyu. O espírito, aparentado e certamen-
te em visita, ali soprava também.”
Walter Hugo Mãe, Homens imprudentemente poéticos

Em maio de 2013, jornais de Buenos Aires publicam um anúncio bastante singular em virtude da disparidade
entre texto e imagem. Os dizeres: “Procuram-se homens entre 68 e 72 anos e de olhos claros, parecidos com o se-
nhor da foto, para participar de um projeto fotográfico. Interessados comunicar-se com o número 15 36097839 ou
apresentar-se na Praça Colombia (esquina Suárez e Brandsen/Barracas) de segunda a sexta entre 11 e 14 horas”
eram acompanhados do retrato de uma pessoa, que aparentava ter uns quarenta anos. O significado do anúncio,
que atrai um bom número de interessados, deve ser buscado na relação de sua autora, Mariela Sancari, com o
suicídio do pai Moisés, ocorrido em 1990. Como a própria fotógrafa lembra:

A disciplina da tanatologia considera que não ver o corpo morto de nossos seres queridos impede que acei-
temos sua morte. Contemplar o corpo inerte da pessoa falecida nos ajuda a superar uma das etapas mais
complexas do luto: a negação.
Minha irmã gêmea e eu não pudemos ver o corpo de nosso pai. Nunca soube se [foi] por ter sido um suicídio
ou por dogmas da religião judaica ou por ambos.
Não tê-lo visto fez-nos duvidar de sua morte de muitas maneiras. A sensação de que tudo foi um pesadelo
e a fantasia que ambas temos de que vamos encontrá-lo caminhando na rua ou sentado num café nos acom-
panhou todos esses anos (SANCARI1, s.d.).

Não ter visto o corpo do pai morto dificultou, sem dúvida, o trabalho de luto da fotógrafa e da irmã, se for
lembrado que este se articula em três etapas: 1 – incorporação: o sujeito procura colocar em seu corpo a figura
que perdeu, para tentar transformar-se no morto; 2 – introjeção: o sujeito tenta reter algo do objeto, marcando-se
com pequenos traços e imagens que pertenceram a ele. O objeto é retirado do mundo e colocado dentro de seu
psiquismo; 3 – identificação: o sujeito fica com um traço simbólico do objeto no seu eu (um gesto, uma forma
de olhar, de sentir, de sorrir). Visto por esse prisma, o trabalho de luto se realiza no jogo de “querer ser o objeto
para ter algo dele, como uma marca simbólica”. É quando ocorre a identificação que o sujeito pode desligar-se
do objeto perdido. Isso faz do eu uma espécie de cemitério de “marcas das coisas que perdemos”, de “resíduos
simbólicos das perdas que nos marcaram ao longo da existência” (BIRMAN, 2009: 117-119).

No caso das irmãs Sancari não ocorreu o fenômeno que Sigmund Freud (2011: 49) denominou “prova da
realidade”, isto é, a tomada de consciência de que “o objeto amado já não existe mais”, sendo necessário retirar
toda a libido de suas ligações com ele. Em algumas ocasiões ocorre uma oposição muito intensa a esse processo,
tendo como resultado “um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória
do desejo”. Se bem que não usando o jargão psicanalítico, a fotógrafa relata as etapas desse afastamento da rea-
lidade, marcado pela negação do sentimento de esvaziamento do mundo inerente à morte. Indícios de uma fuga
do “sentimento de vazio” (PERES, 2011: 111) podem ser encontrados nas várias fantasias criadas pelas gêmeas.
333
O pai, que continuava vivo e sujeito ao processo de envelhecimento, poderia ser visto de repente em algum lugar
da cidade, poderia ter constituído uma nova família, poderia ser um morador de rua... (SEYMOUR, 2015: s.p.).

Essas fantasias convocam, de imediato, três questões. Imaginar que o pai possa ter constituído outra família
ou ser um morador de rua traz um elemento adicional ao processo de negação da morte. Ao negar a morte do pai,
as duas irmãs não realizam a etapa da idealização, própria do trabalho de luto. Como assevera Freud (1982: 74),
“o respeito pelos mortos, [...], parece ser para nós um valor superior à verdade”; por isso, deixamos de lado toda
atitude crítica em relação a eles e perdoamos eventuais erros, já que “de mortuis nil nisi bene”362. Continuar a
imaginar Moisés vivo implica, por outro lado, considerar que ele realizou um deslocamento geográfico a partir de
1997, ano em que as gêmeas e a mãe se mudam para a Cidade do México.

A terceira questão diz respeito à ressurreição “imaginária” de Moisés por meio de fotografias de semelhan-
tes. Tal atitude coloca-se na contramão da discussão a respeito da identidade dos corpos dos que ressurgem. O
fato de viver em dois países de forte tradição católica pode ter confrontado Sancari, apesar de sua ascendência
judaica, com a ideia do “corpo glorioso”, ou seja, do corpo que, ao ressuscitar, regressa ao momento da perfeição,
que coincide com a idade de Cristo ao voltar do reino dos mortos e, logo, com a juventude (AGAMBEN, 2009:
130-132). Ao buscar nos retratos de desconhecidos o “hipotético presente” de seu pai, Sancari tenta “alcançar um
futuro impossível, paliado ou metamorfoseado por um presente artificial, baseado numa reconstrução imaginária
e metonímica de uma irrealidade convocada como presunção figurada”. O projeto íntimo, que norteia Moisés
(Moisés, 2014), parte do pressuposto de que é possível “visualizar o que não se viu”, tendo como resultado
imagens fictícias, transformadas num “espelho imaginário”. Este espelho reproduz “uma imagem inexistente no
presente”, cuja natureza não deixa de ser surpreendente, pois, de acordo com Marta Piñol (2016: s.p.), é muito
mais frequente “revisitar uma infância idealizada do que vagar na recriação fictícia da velhice de um ausente”.

Para realizar o possível retrato de Moisés aos setenta anos, a fotógrafa, que conta com a colaboração do
companheiro, instala um ateliê na praça em que brincava quando criança. Como mostra o pequeno vídeo Caçada
(Hunt, 2013), a busca de modelos não se resume à entrevista dos que estavam respondendo ao anúncio. A própria
fotógrafa sai no encalço de idosos que poderiam ter a mesma idade do pai e os registra com sua câmera. Nem
sempre a relação com os candidatos à modelo é fácil. Alguns não querem ser fotografados. Outros se mostram
desconfiados. Outros ainda não se interessam pelo projeto, mas se prestam ao jogo fotográfico em busca de uma
catarse particular, que consiste na narração meticulosa da própria história de vida (RESUCHE, 2014: s.p.). Du-
rante o processo, Sancari redige um diário de bordo, no qual registra suas impressões sobre os diferentes mode-
los. Horacio Lascano é apresentado como aquele que respondia mais de perto ao tipo de modelo buscado, sendo,
ademais, muito colaborativo. Por ser esquizofrênico, Carlos Cassan não conseguia memorizar a fala escrita pela
fotógrafa para constar do vídeo que estava sendo feito em paralelo às sessões fotográficas, sendo liberado para
dizer apenas o que lembrava ou qualquer coisa. Com Ramón Carlos Marino, a relação é mais conturbada. No
primeiro encontro, ele estava muito sujo, o que levou a fotógrafa a não solicitar que vestisse o abrigo do pai,
usado nos retratos de outros modelos. Mesmo estando mais limpo no segundo encontro, não pôde vestir o traje de
Moisés por ser mais gordo que ele. O diário de bordo mostra também os ensaios feitos com vários modelos para
averiguar se deviam ser fotografados com o suéter do pai ou com as próprias roupas.

Interessada em “buscar alguém na multidão” (RAPALLINI, 2015: s.p.), a fotógrafa recorre a um processo
tipológico. Colocados contra um fundo neutro, os modelos são fotografados quase sempre em três posturas: de
frente, de perfil e de costas. Nem todas as imagens tomadas são aproveitadas na obra final, como mostram a re-
362 A locução latina usada por Freud, menos usual que “de mortuis nihil nisi bonum”, pode ser traduzida por “dos mor-
tos só se diz o bem”, significando que eles devem ser respeitados, já que não podem se defender de eventuais críticas e
334
presentação de Cassan segurando uma vasilha com ovos, a interação furtiva de Sancari com Lascano e o retrato
frontal deste, que constavam do diário de bordo. Em algumas tomadas, os modelos são apresentados de maneira
menos convencional. É o caso da imagem de Chulman segurando firmemente a pasta contra o peito. E, sobretudo,
da foto em que Daniel Saccomanno penteia carinhosamente os cabelos da fotógrafa363, denotando a existência de
um laço afetivo, embora momentâneo, entre os dois. É provável que Saccomanno tenha sido o modelo com quem
ela se relacionou de maneira mais profunda, pois não deixa de ser significativa sua presença no fundo de duas
imagens que o apresentam olhando ensimesmado para a câmera: de costas para ele e encarando o observador.

O resultado do projeto é apresentado, principalmente, sob a forma de dípticos e trípticos, dando a ver a
existência de um desígnio preciso. O retrato hipotético do pai, que deveria levar Mariela a assumir a ideia de sua
morte, reanimando o mundo vazio por meio de uma máscara (BENJAMIN, 2011: 144), não poderia resolver-se
numa única imagem. Atenta à concepção moderna do díptico e do tríptico, que aponta para a proximidade de
imagens que se complementam, sugerindo tanto sequências quanto relações baseadas no significado, ela constrói
ações temporais, quase cinemáticas, em sua busca de diferentes possibilidades para a representação de momentos
do ser transitórios e fragmentários por sua própria natureza. O tríptico pode ser também constituído por três fo-
tografias do mesmo modelo, cuja apresentação não respeita a contiguidade espacial de maneira rigorosa, gerando
um intervalo perceptivo e psicológico. Nesse caso, o observador defronta-se com um vazio espacial, repleto, no
entanto, de uma forte carga introspectiva. Por outro lado, o formato escolhido permite-lhe enfatizar o caráter re-
tórico da pose e a encenação inerente a um projeto enraizado numa narrativa fictícia, que problematiza a ideia da
fotografia como “prova” de uma existência. Esse aspecto, porém, entra em colapso quando a fotógrafa opta por
isolar uma imagem do contexto. Nesse caso, a fotografia perde seu significado mais complexo e se converte no
simples “registro” de uma ação, já que o partido visual adotado é o documental.

É significativo que a fotógrafa defina o projeto como “uma espécie de performance”, além de afirmar que
“o casting acabou sendo toda a série” (RAPALLINI, 2015: s.p.), pois isso permite uma leitura mais complexa
de seu significado. Nesse sentido, não parece ser abusivo analisá-lo à luz de algumas considerações de Walter
Benjamin sobre o drama trágico. Moisés partilha com esse gênero teatral algumas características fundamentais.
É a descrição de um luto, ou antes, “um espetáculo pelo qual é possível dar satisfação ao luto” por meio de “uma
certa ostentação”. Suas imagens, do mesmo modo que os quadros teatrais, “são dispostas para serem vistas, e
ordenadas na sequência em que querem ser vistas”. Se o agasalho patchwork do pai falecido for considerado um
adereço teatral, será possível traçar outro paralelo entre a série fotográfica e o pensamento de Benjamin. Este de
fato, sublinha a presença determinante de um objeto – uma “coisa aparentemente morta” –, que “ganha poder
sobre as vidas humanas”. Inserido ativamente no espaço cênico, ele funciona como “a agulha de um sismógrafo
que anuncia as vibrações passionais” (BENJAMIN, 2011: 121, 136). Definido por Sancari “uma espécie de sapa-
tinho de Cinderela” (RAPALLINI, 2015: s.p.), o abrigo de Moisés vestido por alguns modelos estabelece um elo
simbólico e visual entre eles e o pai perdido, reavivando a ideia de uma busca incessante, na qual o objeto adquire
um papel evocador primordial.

O abrigo e alguns objetos do pai haviam estado no centro de uma série anterior, O cavalo de duas cabeças
(El caballo de dos cabezas, 2012), cujo ponto de partida havia sido igualmente sua morte:

A ausência tornou-se presença entre nós, fortaleceu um vínculo entre minha irmã e eu, dando lugar a um
complexo universo de significados e papéis, de lembranças e ideias confusas que acabaram por tecer um
universo cifrado entre a ficção e a realidade.
ataques.
363 Esta fotografia foi apresentada em São Paulo na mostra Confluências (Sesc Vila Mariana, 6 de abril-9 de julho de
2017).
335
Esta série de fotografias é parte de um projeto sobre essa relação com minha irmã. A viagem (tanto real
quanto metafórica), a fuga, a roupa e os objetos de família que trouxemos conosco aparecem, emolduram
e vestem um mesmo ser com dois olhares, que imaginam que se encontram com papai ao dobrar a esquina
(SANCARI2, s.d.).

Composta de duas partes, a série apresenta na primeira os objetos a que faz referência à fotógrafa, entre os
quais o isqueiro e a aliança do pai e um retrato das gêmeas pequenas com ele. A segunda parte é concebida como
uma performance, isto é, como uma encenação na qual se materializa uma ideia. Espécie de esculturas vivas, as
irmãs transformam o próprio corpo num instrumento a serviço da evocação de Moisés, cuja perda as havia deixa-
do “como suspensas no tempo” (SANCARI2, s.d.). Em muitas imagens, o casaco de Moisés atua como elemento
de ressignificação de um fantasma psicológico, possibilitando um processo de transferência e transformação, que
põe em crise o trauma vivido pelas gêmeas. É significativo que o conjunto se encerre com uma foto da “família
reconstituída” (um homem de costas vestindo o casaco e abraçando as garotas) e com a imagem de pêssegos ma-
duros, símbolos da imortalidade e de um novo nascimento (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991: 715).

A problemática da encenação caracteriza tanto O cavalo de duas cabeças quanto Moisés, que podem ser
analisados a partir do conceito de “isso foi representado” desenvolvido por François Soulages. De acordo com
o autor, o ato de fotografar implica a instituição de um teatro, dirigido por uma pessoa que “dá ordens, ordena,
introduz ordem naquela realidade que quer captar na fotografia”. O modelo, por seu lado, ao assumir uma pose,
participa de uma representação: oferece à câmara “um personagem, isto é, uma aparência, um jogo e uma imagem
que dá de si mesmo aos outros e, talvez, a si mesmo”. Uma observação de Soulages é particularmente interessan-
te, pois ajuda a esclarecer a atitude de Sancari. A fotografia é feita por um ser humano, “trabalhado e dominado
inconscientemente por modelos a serem reproduzidos ou evitados, por pulsões e desejos. Todo fotógrafo, pois,
queira ou não queira, é um diretor, o Deus de um instante. Toda fotografia é teatralizante” (SOULAGES, 2005:
71, 73, 77, 82).

Moisés cabe perfeitamente nessa teoria fotográfica, se forem lembrados os termos usados por Sancari para
definir a série: performance e casting. Isso demonstra que ela confere a si mesma o papel de diretora de uma en-
cenação, para a qual sua atuação (performance) é tão determinante quanto a dos modelos. “Deus de um instante”,
a fotógrafa assume uma atitude ambivalente perante o tempo. De um lado, o detém “para tornar o presente para
sempre o passado” (SOULAGES, 2005: 209). De outro, acaba por instaurar nele a contradição, já que a realiza-
ção da série leva-a, finalmente, a encarar a morte do pai e a tornar real o que, até então, lhe parecera irreal. Nesse
sentido, Moisés torna explícita a relação entre imagem técnica e morte, postulada por Roland Barthes. Não deixa
de ser significativo que o trâmite dessa proximidade seja localizado pelo escritor no teatro, pois este mantém uma
relação originária com o culto dos mortos. Em várias sociedades, cabia aos atores desempenhar o papel destes por
meio de uma caracterização que os designava “como um corpo ao mesmo tempo vivo e morto”. Por mais viva que
seja a fotografia baseia-se nessa mesma relação. Barthes concebe-a “como um teatro primitivo, como um Quadro
Vivo, a figura da face imóvel e pintada sob a qual vemos os mortos” (BARTHES, 2012: 36-37). O que são os
retratos de Moisés senão a figuração de rostos sob os quais se insinua a sombra da morte?

A encenação concebida por Sancari tem como princípio diretor a “ostentação repetível”. Seu palco não é um
lugar definido. É, ao contrário, um teatro ambulante, “um espaço interior do sentimento”, no qual se desenrola
uma cerimônia lutuosa (BENJAMIN, 2011: 122). Sem aspirar a uma totalidade fechada, Moisés desdobra-se em
diferentes formatos. Depois de um primeiro momento de confusão e perplexidade provocado pela sensação de ter
fracassado na busca do pai por meio dos retratos dos substitutos, a fotógrafa percebe a riqueza do material coleta-
do (SEYMOUR, 2015: s.p.; RESUCHE, 2014: s.p.), que organiza, a princípio, sob a forma de dípticos e trípticos.

336
A estes se seguem o livro Moisés (Moisés, 2015), que lhe granjeia uma grande notoriedade por sua concepção
inusitada, e a instalação Moisés/Paisagem (Moisés/Landscape, 2016).

Constituído de dois cadernos intercalados de 32 páginas cada um, o livro tem como eixo os temas da identi-
dade e da memória e sua relação espacial e temporal. O cruzamento das páginas a partir da esquerda e da direita
gera trípticos – ora cheios, ora caracterizados pela alternância de imagens e espaços em branco –, que remetem
inequivocamente à ausência de Moisés e à possibilidade de os retratos dos modelos evocarem sua presença. Sin-
tomaticamente, o livro inicia-se com o retrato do pai utilizado no anúncio. Este, porém, é apresentado de maneira
fragmentária e destituído dos olhos claros que, como notou oportunamente Marta Piñol (2016: s.p.), são o único
traço fisionômico partilhado por todos os modelos que participaram do projeto. Ao folhear o livro, o observador
não se depara com identidades definidas, mas, antes com uma identidade híbrida, formada pelos diversos rostos
dos idosos que se cruzam e se sobrepõem. Se é possível reconhecer Lascano, Da Silva, Pedro Hahn, o “vagabun-
do”, Chulman, Saccomanno, Rodolfo e Cassan, isso não significa que eles possam ser apreciados em sua singu-
laridade, pois o procedimento tipológico gera um único grande retrato de um Moisés possível.

Quase no final, surge uma apresentação singular, antecedida por um pedaço ampliado do anúncio: fragmentos
do rosto de um homem de cabelos grisalhos, aos quais se segue um tríptico do mesmo modelo que dá a ver uma
ação temporal. Vestindo uma camiseta branca, o homem aparece de olhos fechados e boca aberta, sorvendo o ar
ao redor e girando o pescoço para pôr a nuca em evidência364. Olga Yatsevich (2015: s.p.) detecta nesse conjunto a
solução da busca de Sancari, já que ele introduz no livro “um senso de leveza e liberdade, de alívio e ponto final”.
O livro termina com as imagens multiplicadas do anúncio e, mais uma vez, com o título, evidenciando uma ideia
circular, baseada num processo descontínuo e fragmentário como a memória. Essa sensação ganha reforço na
possibilidade de reconstituir o percurso visual às avessas, tendo como ponto final o título. O retrato fragmentado
de Moisés e a multiplicação do anúncio em que a imagem aparece integralmente constituem o cerne do livro, pois
apontam para uma expectativa e para a constatação de que a busca possibilitou articular uma narrativa alternativa
que, afinal, lhe permitiu assumir uma situação traumática.

O sucesso da publicação, que se esgotou em pouco tempo, leva a fotógrafa a propor “um comentário sar-
cástico sobre o ‘esgotado’ e o fato de o livro não estar mais disponível”. Num gesto de “autopirataria”, elabora
uma versão reprográfica do livro, que intitula Moisés is not dead (2016). Se seu objetivo é insistir “na ideia (ou
impossibilidade) de realizar uma fantasia por meio da fotografia” (SANCARI3, s.d.), há outras questões que po-
dem ser discutidas, tendo em vista a escolha do novo suporte técnico. Com seu gesto de “autopirataria”, Sancari
coloca em pauta a problemática da reprodução como produção, passível de gerar novos modos de circulação de
uma obra de arte. Pondo em xeque o conceito de direito autoral e fazendo da autoria uma prática não exclusiva, a
fotógrafa, a partir da cópia em xerox, realiza um vídeo, no qual desvela o processo de produção do livro (2017).
Além de convidar o público a elaborar sua própria obra, Moisés is not dead tem também implicações estéticas.
A natureza mecânica do processo reprográfico despersonaliza, de certo modo, as imagens, que perdem as cores
originais para converter-se num conjunto predominantemente cinzento, gerando um fluxo visual mais compacto.

Sancari atualiza, assim, duas possibilidades vislumbradas por Marshall MacLuhan em relação ao futuro do
livro na sociedade tecnológica. Graças ao uso das “policópias”, a fotógrafa propõe que cada observador se torne
um editor, construindo o próprio álbum de retratos da maneira mais livre possível. A realização de um vídeo di-
vulgado na internet amplia sua operação no tempo e no espaço, parecendo abolir a diferença entre o microscópico
e o macroscópico (MACLUHAN, 1976: 359-360), o subjetivo e o coletivo. Em novembro de 2014, ela havia
feito um vídeo em que mostrava a confecção do boneco de Moisés, mas este não tinha o mesmo objetivo didático
364 O tríptico foi apresentado na já citada exposição Confluências.
337
do dedicado a Moisés is not dead. O vídeo dava a ver os bastidores da elaboração da obra: as decisões tomadas,
as exclusões e os reposicionamentos das várias imagens. Em alguns momentos, comparece uma imagem de O
cavalo de duas cabeças – uma pilha de três banquetas e uma mesinha na qual estavam dispostas uma cuia de chi-
marrão, uma xícara e duas fotografias – descartada no produto final, pois quebraria o instigante jogo fisionômico
que acabou sendo seu traço distintivo. Outros elementos não utilizados no livro são um papel com motivos florais,
que deveria intercalar alguns retratos, e pequenos textos. O retrato xerográfico de Moisés, dobrado em quatro
partes, deveria ser usado, a princípio, de maneira integral.

A realização do livro acaba tendo repercussões nas modalidades de apresentação da série fotográfica. Além
de dípticos e trípticos, ela passa a contar também com frisos, nos quais as imagens são visualizadas numa linha
contínua. Nesta, fragmentos de rostos se insinuam ao lado ou por trás de retratos integrais, produzindo frestas
e um novo tipo de continuidade/descontinuidade, que não deixa de evocar a ideia de presenças fantasmásticas,
como demonstram obras apresentadas em duas mostras coletivas realizadas em 2015 (Museu de Fotografia Bu-
san, Coreia do Sul; Centro de Artes Alcobendas, Espanha).

A discrição da apresentação fotográfica é contrastada pelo excesso e pelo acúmulo que estão na base de Moi-
sés/Paisagem. Concebida como um questionamento dos “limites da representação”, como uma ressignificação
dos retratos “para criar uma paisagem poética” (SANCARI4, s.d.), a instalação é estruturada a partir de cópias
xerográficas, apresentadas de maneira inusitada e bastante fantasiosa. Apesar da disposição regular das imagens,
o conjunto é percorrido por uma tensão sutil entre geometria e informalidade e por um senso de crise da represen-
tação e de suspensão temporal. Embora sempre iguais, os retratos não parecem fixos em virtude de sua disposição
no espaço, que remete a sensações de fragmentação e indeterminação. A multiplicação infinita de imagens tem
ligações com a afirmação de Sancari de que Moisés representa a busca de alguém na multidão. A instalação pode
ser analisada como um jogo contínuo entre uma “fusão homogeneizadora” e uma “propensão à fuga para a he-
terogeneidade”, própria das relações entre indivíduo e massa. A fisionomia que, ao mesmo tempo, se destaca em
sua unicidade e se confunde com uma multidão de iguais, é passível de sugerir um antagonismo entre inclusão e
exclusão do heterogêneo, entre idêntico e não idêntico, entre massificação e individualização (SCHWARZ, 1986:
85-87). Afinal, Moisés Sancari parece estar em todo lugar. Embora único, diferente, ele é igual aos tantos indi-
víduos semelhantes que puderam envelhecer e que exibem uma fisionomia que ele poderia ter se estivesse vivo.

A reescritura incessante a que a fotógrafa sujeita as imagens da série pode ser colocada sob o signo da ale-
goria enquanto arte combinatória, feita de “formas sempre novas e surpreendentes”. A proximidade do conceito
benjaminiano está presente em outros aspectos de Moisés, a começar pela ideia de que a alegoria é um modo de
configuração da “historicidade biográfica do indivíduo”, captado em sua transitoriedade, em sua qualidade de
criatura temporal, cujo destino é “a produção do cadáver” (BENJAMIN, 2011: 177, 191, 195, 235). Também de
natureza alegórica é o procedimento adotado por Sancari, a qual constrói a série como um acúmulo de fragmen-
tos que adquirem um novo sentido ao serem reunidos entre si. A junção dos vários retratos de idosos numa série
alusiva ao pai morto é fruto de uma arbitrariedade profundamente subjetiva. Tomados individualmente, eles não
passariam de retratos alicerçados nas convenções do gênero. Reunidos em Moisés, eles adquirem o significado
que a alegorista Mariela quis lhes atribuir (BENJAMIN, 2011: 196). O fato de se prestarem a várias possibilida-
des de combinação acresce seu sentido alegórico. Eles não podem ser vistos como formas acabadas e fechadas,
pois se inscrevem na história e, logo, na transitoriedade e na impermanência.

As várias combinações propostas pela fotógrafa têm seu ponto de partida naqueles que Craig Owens (1984:
203) define os dois impulsos fundamentais da alegoria: a certeza do distanciamento do passado e o desejo de res-

338
gatá-lo para o presente. A alegoria é dotada da capacidade de salvar do esquecimento o que ameaça desaparecer;
funciona no intervalo entre um presente e um passado que, sem sua reinterpretação, seriam excluídos da história.
O significado de Moisés é arbitrário e contingente porque não reside num espaço-tempo específico. Ele pode ser
localizado tanto nas manifestações particulares (fotografia, livro, instalação) quanto no conjunto, mas isso não
significa que ele seja um todo orgânico, já que sua natureza é essencialmente fragmentária. E não poderia ser de
outra forma, haja vista que a fotógrafa, no final do processo, concebe a série como uma ficção, capaz de ajudar
“a ‘mostrar’ o armazém interminável do inconsciente, permitindo-nos representar nossos desejos e fantasias”
(SANCARI1, s.d.).

Por meio de uma imagem mental, Sancari não só toma consciência da morte de Moisés, como consegue
vê-lo numa dimensão mais complexa: ele não era apenas seu pai, mas um ser humano, possivelmente afetado por
uma doença mental, não percebida por ninguém (SEYMOUR, 2015: s.p.). A superação do luto por um processo
metafórico, que Marta Piñol (2016: s.p.) define metonímico em virtude do abrigo vestido por vários modelos,
pode ser resumida num relato de Adolfo Córdova (2014: s.p.):

No funeral de meu pai, Mariela disse-me que eu devia aproximar-me do ataúde, ver seu corpo. Lembro que
me olhava como se estivesse revelando algo muito importante, que não podia nomear, não podia dizer, mas
acossou meu corpo com os olhos, sacudiu-me docemente com os olhos, pedia-me com os olhos que con-
fiasse nela, eu devia parar e vê-lo. Eu não queria. Não pensava que fosse necessário. Queria lembrar meu
pai vivo. Mariela insistiu. Tomou-me pelo braço. Meu irmão aproximou-se. Os dois me levaram. Lá estava
ele. Sério. Bem morto. Morto pela primeira vez. Lembro-me de um vidro entre seu rosto e o meu, mas me
dizem que não havia nenhum vidro.
Ponho um vidro em minha lembrança.
Mariela fotografa-o.

Graças à realização de Moisés, Sancari pode assumir o luto, tomando consciência de ter sofrido uma perda
real, que instaurou um vazio em seu mundo afetivo, mas se mostra finalmente capaz de superar o primeiro mo-
vimento de negação. O pai revive através de um processo criativo, no qual o caráter documental da fotografia é
colocado a serviço da fantasia e da reinterpretação contínua que lhe permitem projetar uma imagem da terceira
idade terna e, ao mesmo tempo, atenta à decadência e à proximidade da morte. Outras considerações podem ser
feitas a partir dessa representação de uma velhice digna, longe dos modelos mistificadores propagados pela comu-
nicação de massa. Se for lembrado que a figura do velho simboliza o tempo que tudo destrói, a leitura alegórica da
série ganha uma nova dimensão, já que a alegoria no pensamento benjaminiano não só significa a morte como se
organiza através desta e de seu mecanismo de metamorfose do vivo em morto (ROUANET, 1984: 38-39).

A conclusão do trabalho de luto pode ser também detectada na afirmação de Sancari de que a realização
dos retratos e os momentos de “entendimento silencioso” com alguns dos modelos a ajudaram a encarar a pos-
sibilidade de ser mãe (SEYMOUR, 2015: s.p.). O desejo de maternidade parece responder à assertiva de Freud
(2011: 77-79) de que “a realidade traz à tona o seu veredicto de que o objeto não existe mais e o ego, por assim
dizer, indagado se quer compartilhar esse destino, deixa-se determinar pela soma de satisfações narcísicas dadas
pelo fato de estar vivo, e desfaz sua ligação com o objeto aniquilado”. Afirmar o desejo de ser mãe pode significar
a continuidade não só biológica, mas também simbólica de Moisés. Pode remeter também à tomada de consciên-
cia de que a morte não é necessariamente um fim, mas, antes de tudo, um processo cíclico, em cujo cerne está
engastada a possibilidade de um recomeço contínuo. É possivelmente este o significado da cópia xerográfica do
livro. Moisés is not dead porque seu legado pode prosseguir em outras vidas. Moisés is not dead porque faz parte
das lembranças de Mariela depois da despedida simbólica representada pelo projeto.

339
Referências bibliográficas

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la-sancari-moises>. Acesso: 24 jun. 2017.

340
Annateresa Fabris - Possui graduação em história (1969), mestrado e doutorado em artes (1977 e 1984),
sempre pela Universidade de São Paulo (1984), onde atualmente é professora titular da Escola de Comunicação
e Artes, ECA.. Tem experiência na área de artes, com ênfase em artes, teoria e história da arte contemporânea,
atuando principalmente nos seguintes temas: fotografia, surrealismo, pintura, Portinari e modernidade.

341
28. PARA ALÉM DA SALA ESCURA: ENCONTROS ENTRE CINEMA E
ESCOLA A PARTIR DA CRIAÇÃO DE IMAGENS

Marina Mayumi Bartalini


Wenceslao Machado Oliveira Jr.


A escola, assim como o cinema, é um lugar profícuo de experimentação e criação, portanto, é lá o lugar
que escolhemos para a acolhida de nosso projeto experimental de invenção de filmes.
Uma vez que a escola tem nuances variadas de claridades, buscaremos inventar maneiras de exibição que
levem em conta as especificidades do lugar-escola e assim, talvez, fazer funcionar um cinema para locais antes
inimagináveis, uma vez que todos locais passam a ser passíveis de receberem imagens projetadas.
Tradicionalmente a escola é o lugar da prevalência de narrativas únicas capturadas pelo discurso de
currículos pré-determinados pelo Estado por meio de livros didáticos, pelas regras já pré-estabelecidas e feitas sem
a participação de todas/os envolvidas/os na comunidade escolar. Queremos então atuar desde dentro dela, com
tudo o que ela já traz, agregando uma trajetória mais, no caso, o cinema, com todo seu potencial de aglutinação
de coletividades heterogêneas. Se a escola é o lugar por excelência da linguagem escrita, a linguagem audiovisual
ao ali adentrar com uma proposta experimental, poética e inacabada, pode fazer variar as formas de expressão,
maneiras de sentir e dizer para além da palavra e dos discursos já capturados pela instituição educativa.
Lidaremos com a obrigatoriedade de uma lei que decreta e define certos parâmetros para a entrada do cinema na
escola. A lei define o tempo mínimo de exibição para filmes na escola e também sua nacionalidade: devem ser
exibidos filmes nacionais.
A lei federal 13.006/14365, uma vez regulamentada, obrigará que todas as escolas brasileiras de Educação
Básica tenham minimamente duas horas de exibição de cinema nacional por mês como componente complementar,
integrado à proposta pedagógica da escola. Superficialmente, a lei se apoia em um discurso que busca na escola
uma maneira de difundir produções audiovisuais nacionais, formando espectadores, para assim, fomentar a
indústria cinematográfica do país.
Tomando como ponto de partida o debate já existente em grupos de pesquisa de todo o país que se debruçam sobre
as relações entre cinema e educação e que vêm investigando os possíveis atravessamentos da lei 13.006/14366
no cotidiano escolar, é que a presente investigação se propõe a entrar no combate por uma regulamentação
que entenda o cinema para além de seu consumo e contemplação. Aqui, buscamos resistir ao já instituído pela
determinação de leis que ditam na escola o que fazer com o cinema dentro dela.
Para tanto, a resistência se dá quando resolvemos entender a escola como o lugar da produção de um
cinema criado por quem ali habita, a partir da especificidade local, inventando possibilidades de criação de novos
mundos que poderão surgir nas imagens e sons que estamos criando coletivamente por meio de formação de
cinema para professoras/es e estudantes.
A aproximação da escola com o cinema e do cinema com a escola se dá no entendimento de que ambas
são arenas profícuas de experimentação capazes de criarem maneiras de habitar e inventar mundos. As imagens

365 A Lei 13.006/14 foi sancionada em 26 de junho de 2014. Ver em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/
l13006.htm
366 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13006.htm
342
e sons produzidos podem (ou não) fazer emergir novas formas de cinema, assim como instaurar percepções da
escola para além daquelas já instituídas por um modelo estatal.
Uma pergunta frequente dos envolvidos nesse recente processo é questionar com que recursos o cinema
entrará na escola. A lei não prevê um investimento público para adequar as escolas para que os filmes sejam
exibidos em sala escura. Tampouco se fala em suprir as necessidades técnicas como a aquisição de equipamentos
de filmagem e projeção.
Sendo assim, o cinema que propomos é produzido com o que estiver disponível. A perspectiva da falta
é uma das portas de entrada do cinema na escola. A ausência de equipamentos e espaço físico adequado para a
exibição de filmes, é tomada não como obstáculo, mas como um desafiante processo de inventividade. As câmeras
que produzem esse cinema comprometido com o lugar-escola, são acessíveis à uma grande parte da população:
as câmeras dos celulares (de qualquer tipo e tecnologia) podem ser manuseadas por qualquer uma/um que queria
aventurar-se na criação de novos filmes.
Em 2016, foi instituído no município de Campinas-SP, o “Programa Cinema & Educação – A Experiência
do Cinema na escola de Educação Básica Municipal”. O programa conta com a colaboração do grupo de pesquisa
ao qual a pesquisadora está vinculada, Laboratório de Estudos Audiovisuais – OLHO da Faculdade de Educação
da Unicamp, que se dedica, entre outras áreas de interesse científico e artístico, ao estudo da relação entre imagem
e escola. Em colaboração direta com o Programa acima referido, parte das pesquisadoras e pesquisadores desse
grupo, atua na formação de professoras, professores e estudantes de escolas da rede pública de Campinas.
A formação de professores por meio de oficinas de cinema em escolas da cidade, é o lugar onde se
dão os encontros e onde se propõe uma ideia de cinema como prática artística e social realizada por meio de
experimentações com câmeras através de inúmeros dispositivos de criação.
Se pensarmos que a maioria das escolas da rede pública do país não conta com sala de vídeo equipada e
adequada aos moldes do cinema comercial, a lei traria um problema para a escola que teria que construir uma sala
com iluminação adequada para a exibição de filmes.
Ao propormos a invenção de imagens para locais que não estão construídos para receberem projeções de
cinema – inverte-se o problema, criando assim uma questão para o cinema, o qual não terá respostas simples, já
que os ambientes escolares são atravessados por claridades naturais que passam por suas grandes janelas, portas
e portões e/ou pelo circuito de iluminação interna que conecta todas as salas de aula mantendo todas acesas
simultaneamente de dia e de noite.
A claridade bastante presente nos espaços escolares atua como o “problema” da presente investigação.
Um “problema” é aquilo que nos leva a pensar; nesse caso, pensar o cinema e seu encontro com a escola; a escola
e seu encontro com o cinema.
Através da observação atenciosa de aspectos locais, antes talvez despercebidos pelas/os que estão imersos
no cotidiano escolar, é que buscamos experimentar com as distintas claridades descobertas que têm potência de
fazer emergir trajetórias humanas e não-humanas presentes na escola. Pensar o não humano na escola é uma
maneira de colocar à vista aspectos que também a constituem para além das relações entre as pessoas que ali
habitam. A arquitetura escolar, as paisagens, as árvores, os brinquedos, as janelas, cortinas, o chão de terra, o
chão de concreto, as grades também nos constituem, já que tudo está naquele lugar que está o tempo todo em
negociação, em movimento contínuo e inacabado.
O conceito de lugar que nos ajuda a pensar nas possibilidades diversas de encontros entre distintas traje-
tórias está em sintonia com a perspectiva proposta pela geógrafa Doreen Massey (2013). A escola enquanto lugar
não é um ponto fixo no mapa e muito menos um refúgio, apartado do mundo, onde se dão experimentos artísticos.
A escola enquanto lugar aberto e inacabado, está sempre por fazer-se, por associar trajetórias heterogêneas e
constelar processos aqui e agora.
343
A possibilidade de fazer variar a imagem produzida em contexto escolar, tem sido experimentada em
paralelo com o entendimento da escola como um lugar atravessado por “pluralidades de trajetórias, uma simul-
taneidade de estórias-até-agora” (MASSEY, 2013: 33) e onde acontecem potencialmente encontros em diversos
níveis, aspectos e tempos. A autora explica que “trajetória” e “estória” são termos temporais e dentro de sua
proposta, utilizaremos seus conceitos para dar conta de expressar uma heterogeneidade de vetores que afetam a
escola quando lá estamos e como estar ali também nos afeta e reverberam em nossas pesquisas.
Lidamos com a impossibilidade de fixar o lugar-escola em definições que gerem algum tipo de represen-
tação acerca das mesmas. Diferentemente da maioria dos métodos científicos de pesquisa que fixam o lugar onde
se dão as questões a serem investigadas, para assim observa-lo desde fora e dizer sobre ele, o que buscamos é
perseguir algumas pistas, linhas que nos interessam no encontro entre cinema e escola a partir de nossas práticas
em oficinas engajadas na experimentação como maneira de não fechar-se em um processo que busque chegar
a um resultado final. Experimentar para nós, é sempre um verbo em uso no presente que acontece aqui e agora.

Aqui o que poderíamos chamar de representação não é mais um processo de fixação, mas de um elemento
em uma produção contínua, parte de toda ela, e ela própria, constantemente, em devir. Esta é uma posição
que rejeita uma estrita separação entre mundo e texto e que compreende a atividade científica como sendo
apenas isto – uma atividade, uma prática, um engajamento, inserido no mundo do qual é uma parte. Não
uma representação, mas experimentação. (MASSEY, 2013: 54)

A entrada das/os pesquisadoras/es na escola são apenas mais uma das trajetórias que atravessam a escola,
ao mesmo tempo em que as trajetórias escolares as/os atravessam e é aí que se dá a investigação acerca e adentro
daquele universo ao qual se habita. Escapamos de definir a escola a partir de uma ideia de lugar fixo para pensar-
mos que tudo ali é movente e por isso mesmo, tudo o que podemos falar sobre ela parte de impressões, sensações
e ideias do que ali acontece quando ali estamos num determinado período de tempo, já que a cada momento ela
é outra e outra e outra.
As trajetórias que ali se entrecruzam simultaneamente sempre a indicar um futuro aberto não se dão pela
via de planejamentos fechados e sistemáticos. Somente pode configurar-se como uma constelação de trajetórias
temporárias que duram enquanto determinado encontro faz sentido. O encontro entre pessoas, câmeras e locais
escolares, assim como as possíveis produções audiovisuais que possam vir a surgir, permitem a abertura para
conexões que acontecem “nesse lugar inter-relacional, onde sempre há conexões ainda por fazer, justaposições a
desabrochar em interação [...], relações que podem ou não serem realizadas”(MASSEY, 2013: 32).
Nossa participação no encontro do cinema com a escola é processual e, portanto, visa apenas promover
aberturas para conexões que se dão (ou não) na escola enquanto lugar de negociação que conforma uma coleção
de trajetórias que a configuram como lugar vivo, aberto, repleto de diferenças e heterogeneidades.
Oliveira Jr. (2016) nos anima a pensar na potencialidade da criação artística de imagens que trazem ao mundo
sensações disparadas pelo cotidiano e experimentadas “naquele lugar e não em outro” (OLIVEIRA JR., 2016:
73), intensificando assim nossa experiência com/nos lugares onde nos propomos a experimentar com o cinema.
Nesse sentido, Oliveira Jr. (2016) afirma que:

nesses encontros no espaço, o cinema vem inventando filmes que arrastam para si as pessoas e paisagens
encontradas, impondo a elas devires cinematográficos, devir-personagem, devir-cenário. Devires esses com
potência, mesmo que imperceptível, de provocar variações nas formações subjetivas e paisagísticas que
dali se desdobrarem (OLIVEIRA JR, 2016: 68)

Ao estabelecer um encontro entre duas multiplicidades, no caso, o cinema e o lugar-escola, se aposta na


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instabilidade de concepções pré-concebidas de personagem, cenário, roteiro, entre outras, já instituídas por um
“cinema maior” e assim, é possível diluir a fixidez de categorias cinematográficas convencionais. Entende-se
aqui, que os referenciais já instituídos do cinema tradicional podem ser negociados por aqueles que não fazem
parte desse universo, e por isso mesmo, têm mais potência para contagia-lo, propondo um cinema que provoque
o real para além das categorias de representação.
A possibilidade de invenção de outras visualidades que possam mostrar e inventar outras vivências
escolares possíveis, no sentido de criar mais versões para contar sobre ela como lugar de relações e interações,
dá-se por meio de uma maior e mais ampla aproximação com o campo da Arte. Os encontros intermediados por
um fazer que se baseia em experimentações artísticas audiovisuais, buscam afrouxar as fronteiras do campo
da educação e do cinema a fim de promover diálogos e produções de sentidos inusitados ainda a aflorar como
potência para a ampliação das margens em que temos pensado o encontro entre cinema e escola.
O cotidiano escolar é entendido, portanto, como o momento presente evidenciado pelos processos criativos
imbricados no encontro entre pessoas e coisas de trajetórias distintas que vêm à tona quando encaramos a escola
como lugar de experimentação. “Aqui” é onde as narrativas espaciais se encontram ou formam configurações,
conjunturas de trajetórias que têm suas próprias temporalidades. (...) O “aqui” é nada mais (e nada menos) do que
o nosso encontro e o que é feito dele”. (MASSEY, 2013: 201). Justamente por efetivar o encontro entre as imagens
sons considerando as afetações também do lugar onde se entra em contato com as produções, corroborando com
aquilo que Massey (2013) aponta em seu conceito de lugar: que as interações (im)previstas entre as trajetórias
heterogêneas que compõem um lugar promovem devires outros.
Aposta-se então, na arte como meio de conexão do que ainda não está relacionado nos lugares onde
atuamos que ao invés de serem localizações de coerência, tornam-se focos do encontro e do não-encontro do
previamente não-relacionado e assim essenciais para a geração do novo (MASSEY, 2013: 111).
No alargamento dos sentidos de cinema e espectador, busca-se produzir juntamente às/aos professoras/
es, assim como com as/os estudantes das escolas, imagens e sons que sofram e afetem o mundo para além dos
“sujeitos” que participam dos processos de criações audiovisuais. A afetação e os aprendizados dos “sujeitos”
se dão aqui, através das forças que emergem das imagens e sons capturados nas experimentações realizadas na
escola. Forças essas advindas da multiplicidade e negociação entre trajetórias copresentes no lugar-escola, sejam
elas humanas ou não humanas.

As claridades escolares como mobilizadoras da criação de imagens

O cinema entra na escola como mais uma trajetória dentre as múltiplas já existentes. Sem perder de vista que
talvez ele já esteja presente como possibilidade de, entre outras coisas, funcionar como ferramenta pedagógica de
auxílio às disciplinas escolares, queremos criar outras aproximações que retirem a imagem da função totalizante
de ilustrar e representar teorias e informações, para explora-la também a partir de outras potencialidades,
notadamente aquelas que a arte tem explorado com maior constância.
As claridades são mote criativo que desafiam a escuridão proposta pela arquitetura da sala de projeção
tradicional dos cinemas totalmente adaptada para gerar um tipo específico de recepção de filmes pelos consumidores/
espectadores que compram ingressos para terem direito à uma poltrona, sentarem-se e contemplarem seus filmes.
As produções cinematográficas de escala industrial, dedicadas ao consumo, criam filmes que atuam sobre
o espectador utilizando-se de alta tecnologia audiovisual de produção e pós-produção, para os conduzirem a
sentir emoções pré-estabelecidas. Se há alguma variação, certamente são restritas e pobres em possibilidades de

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escape do já convencionado.
Menotti (2012) preocupa-se em problematizar o tradicional consumo do cinema quando pasteurizado pela
arquitetura das salas de exibição e nos atenta para estreita relação entre consumo e a padronização das salas de
exibição e sua influência dessa relação na produção de filmes.

O cinema enquanto tal não surge com a criação do filme, mas com o seu consumo: a sua exploração
comercial. É em torno da exibição pública pagante que o meio floresce, produtores se separam de exibidores,
uma indústria se consolida, e autores se tornam livres para criar. (MENOTTI, 2012: 16)

Para o autor, o que acaba por reunir todas as técnicas de cinema num processo comum e padronizado,
seria uma forma de consumo apropriada para dar vazão à produção cinematográfica. A separação de funções
para a circulação de filmes que divide quem cria, quem produz, quem distribui e quem os exibe deu-se a partir
do momento em que instituiu-se um processo comum e padronizado para a produção de filmes. Toda a cadeia de
produção do cinema, está há mais de 100 anos, vinculada ao consumo de filmes e ao lucro das grandes produtoras
de cinema.
A diluição do contato entre as pessoas para tornar a sala de cinema um lugar asséptico e de isolamento
total entre os corpos restringe toda a experiência cinematográfica ao contato direto com a narrativa dos filmes que
requerem silêncio da plateia para possibilitar a compreensão de estórias lineares. que cada vez se tornava mais
complexa. Segundo Michaud (2014), :

a sala, construída segundo um único ponto de vista convergente, é ocupada por fileiras de assentos em
patamares, nos quais os espectadores se mantêm imóveis; por último, tal como uma encenação teatral, a
sessão de cinema tem começo e fim, e foi assim que, ao longo do século XX, o longa-metragem de ficção,
isto é, o cinema narrativo, permaneceu como a forma cinematográfica dominante. (MICHAUD, 2014: 23)

Os locais de exibição ocupam um lugar central nessa escala de consumo, já que é o local onde o espectador
paga as entradas para ter acesso à sala escura e encontrar-se com os filmes, “isso significa que a experiência
do espectador acaba sempre enquadrada em uma dinâmica sócio-cognitiva determinada comercialmente”
(MENOTTI, 2012: 16).
A resistência à mudanças imposta por uma cadeia mercadológica de cinema hoje se depara com a
impossibilidade de controlar o compartilhamento pirata via internet. Se antes o cinematógrafo tinha que ser
transportado com dificuldade por seu peso e tamanho, hoje a fisicalidade dos projetores e dos filmes são de outra
ordem: os grandes e pesados projetores das salas de cinema foram substituídos por projetores de teto; os pesados
rolos de películas inflamáveis, hoje são códigos binários de bytes que não tem peso. Podem ser carregados num
pendrive. Segundo Menotti (2012b) a transformação técnica dos aparatos cinematográficos e do próprio filme
digital, faz com que os meios de circulação de filmes se tornem autônomos e o que define a espectação não é mais
a sala de exibição escura e sim as condições do meio de circulação dos filmes.
Miranda (2016) chama de cinema de bolso os filmes carregados em pendrive que podem tanto funcionar
em salas de cinema, de vídeo, em casa, na escola. Nessa perspectiva, em que a circulação de filmes é facilitada
pelas novas mídias assim como a gravação de vídeos por meio da portabilidade de celulares que também cabem
nos bolsos, é que apostamos num cinema menor, que possa ser produzido e pós-produzido por aparelhos celulares
que possuem aplicativos de edição rápida. É pelos mesmos aparelhos que os filmes podem ser compartilhados e
vistos por um grande número de pessoas via internet.

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Como se dá a fruição de filmes feitos nas escolas e projetados nela mesma? Que locais da escola podem
entrar em variação para que se possa explorar sua qualidade enquanto devir-tela de cinema? O cinema aqui
proposto busca inverter a lógica do cinema comercial. Os espectadores podem ser ao mesmo tempo realizadores
e exibidores de seus próprios filmes que são feitos no âmbito de uma coletividade que não está vinculada à uma
cadeia de consumo de cinema.
Migliorin (2015) nos conta sobre o momento em que o cinema sai do escuro para entrar na escola arrastando
para dentro dela maneiras de ver, fazer e conversar sobre as próprias produções que ali surgem. Filmes estes que
arrastam para dentro de si a realidade da escola e ao regurgita-la, devolve novamente para ela outras imagens dela
mesma que só passam a existir quando passam pelas câmeras e são projetadas pelos que habitam aquele lugar.
Para tanto, afirma: “o cinema chega na escola, o que ele traz – com sua história, com os filmes, com o seu fazer
– é antes um modo de tornar o mundo pensável, que perturba o pensável do que não é cinema: nós mesmos, a
escola.” (MIGLIORIN, 2015:185)
A proposição de um outro cinema que desloque as funções específicas padronizadas pela indústria
cinematográfica toma os processos de criação, produção e exibição como partes constituintes de um mesmo
processo inventivo e experimental. Assim, há uma maior aproximação dessas produções com o espectador, que
entra em contato com cada parte do processo por meio do contato direto com aquelas/es que as produziram. Esse
contato se dá por meio de sua participação em cineclubes criados dentro das próprias escolas e mantidos por uma
comunidade de cinema.
O cinema, ao se adaptar às exigências físicas e técnicas da escola buscando práticas outras de exibição,
pode se desvincular das lógicas de consumo da grande indústria e portanto, “o primeiro aporte igualitário que o
cinema tem a nos dar está na forma como ele é essencialmente um lugar habitável por um qualquer, tanto como
espectador, como realizador.”(MIGLIORIN, 2015: 185)
Portanto, partimos do pressuposto de que não há um único local apropriado para a exibição das produções,
pois os locais entram em variação quando recebem filmes que necessariamente se recombinam com a luminosidade
ali presente. Assim, as produções de filmes criados a partir da possibilidade de projeção em numa variedade de
locais da escola, invertem a lógica apontada por Menotti ao afirmar que na grande indústria cinematográfica, o
filme nasce para a exibição em sala escura.
A sala escura tem sido a agenciadora de um tipo de cinema (Menotti, 2012), o qual vem sendo tensionado pela
expansão do cinema pelas galerias de arte e museus, entre outros locais onde o cinema tem aportado, ganhando ali
outras nuances, outras potências, outras imagens e sons. Gonçalves (2014) nos indica um breve panorama dessa
aproximação entre o campo das artes visuais e o cinema em que distintas linguagens artísticas se encontram para
darem forma à produções experimentais por meio de processos inventivos e experimentais:

Longe do domínio exclusivo deste ou daquele campo, portanto, desta ou daquela linguagem, essas obras
não cessam de produzir linhas de fuga, de propor variações, fissuras, de pensar novos arranjos na paisagem
(audiovisual e teórica) contemporânea. É a partir desse lugar inquietante, de fato, que elas criam um campo
de experimentações difusas, uma região aberta de possíveis que relança a hierarquia entre as artes, que
embaralha suas lógicas e lugares, reconfigurando os mais diversos aspectos da experiência (áudio)visual.
(GONÇALVES, 2014:10)

O encontro entre pessoas, câmera e lugar e as possíveis produções de imagens que possam vir a surgir,
permitem a abertura para novas conexões pautadas, reinvenção de imagens já existentes do cotidiano escolar que
poderão entrar em variação a partir de proposições experimentais que levem em conta o espaço físico escolar.
Sendo assim, uma das perguntas que nos orienta é “o que pode a escola e o cinema quando a sala não é

347
escura?” O desafio aqui proposto é gerar condições em que se possa criar e experimentar a produção e exibição
de imagens cinematográficas para serem exibidas para além da sala escura, de modo a instaurar, talvez, condições
mais ampliadas para o encontro entre cinema e escola ao tencionar a necessidade de um ambiente escuro para
que o cinema se realize como espectação. Aqui, seguimos Migliorin (2015) que assim como nós, aposta na escola
como o local onde o cinema pode ser expandido e reinventar-se:

Quando o cinema sai da sala, do escuro, do ingresso pago, ele se multiplica em formas e dispositivos
que as artes visuais estão constantemente renovando: múltiplas telas, projetores móveis, intervenções dos
espectadores nas imagens e nos sons, reorganizações do espaço e do tempo dos espectadores. Na escola,
temos mais um exemplo desse cinema expandido, mas, que se expande naquilo que o cinema inventou de
mais forte em sua história: formas de ver e inventar o mundo. (MIGLIORIN, 2015:185)

O cinema, pensado aqui como via de passagem para multiplicidades de sensações que possivelmente pos-
sam constituir filmes, pode adentrar à escola ampliando as potencialidades de outros cinemas que poderiam nela
aportar. Se como nos aponta Menotti, a sala de exibição acaba por determinar a produção e formas de espectação
dos filmes que engessam a experiência cinematográfica, queremos “pensar os filmes para além do filme; uma sala
de cinema para fora de suas paredes” (MENOTTI, 2012: 70). A escola parece ser um interessante lugar para que
o cinema pule o muro da sala de exibição e adentre outros territórios que possam faze-lo mutante e adaptável à
múltiplos locais para além dos já convencionais dentro mesmo da própria escola. Algumas escolas possuem a sala
de vídeo, com projetor e cadeiras escolares voltadas para a tela branca, reproduzindo assim, a lógica de exibição
convencional.
Ainda que existam similaridades entre a arquitetura da escola e do cinema quanto à aparente ideia de
domesticação dos corpos explicitada pelos locais adequados para que os mesmos se acomodem em cadeiras e
mantenham-se parados e em silêncio, apostamos na possibilidade de fazer funcionar um cinema na escola que
faça os corpos, as imagens e os sons, escaparem da caixa preta teatral do cinema, assim como da sala de aula, para
“passearem” e misturarem-se à arquitetura escolar que se coloca à disposição para receber possíveis projeções
inusitadas.
Trata-se de pensar numa lógica inversa à hegemônica ideia de produção cinematográfica atrelada ao con-
sumo, em que foca-se na multiplicidade de fruições possíveis para os filmes criados coletivamente para locais
que não necessariamente possuem isolamento acústico e de luzes que possam influenciar a projeção dos filmes.
Os filmes criados na escola terão que lidar com as especificidades físicas da mesma e são os aspectos inerentes à
tudo o que existe na escola, humanos ou não humanos que influenciarão sua produção.

Câmeras que registram/câmeras que criam

Na escola já existem diversas trajetórias de câmeras de vários tipos. Os celulares e câmeras digitais estão
bastante presentes nos contextos escolares. Imagens são registradas e compartilhadas todo o tempo por meio das
câmeras acopladas aos aparelhos telefônicos, assim como as vozes gravadas inúmeras vezes ao dia em forma de
mensagens enviadas por meio de aplicativos de comunicação. O uso cotidiano do celular é bastante comum tanto
por estudantes, como por professoras e professores.
Ao propormos outros usos das câmeras na escola, para além dos convencionais, as desviamos de sua fun-
ção de registro de eventos escolares e passamos a conhecer outras maneiras de filmar para que assim se tornem
ferramentas artísticas capazes de revelarem outras escolas que poderão ser descobertas pelo olho da câmera que

348
pelo seus enquadramentos, aproximação e distanciamentos com o zoom e seu poder de gravar para que possamos
ver quantas vezes queiramos as imagens que produzimos.
É pelo uso das mesmas câmeras que tiram selfies, que registram momentos para serem compartilhados
nas redes sociais que inserimos outras trajetórias para outros usos das câmeras de celulares que podem configurar
um novo cinema que ainda não sabemos bem qual é. Estamos todas/os descobrindo juntas/os através de nossas
próprias produções.

As imagens da arte não fornecem armas de combate. Contribuem para desenhar configurações novas do
visível, do dizível e do pensável e, por isso mesmo, uma paisagem nova do possível. Mas o fazem na
condição de não antecipar seu sentido, seu efeito. (RANCIÉRE, 2012:100)

O encontro da câmera com o mundo por meio de propostas experimentais para a criação de novas imagens
e sons podem produzir estranhamentos, incômodos, surpresas e assim dar passagem para que coisas dele mesmo
possam vir a surgir. As escolas públicas da cidade de Campinas, talvez possam ser lugares que extrapolem as
visões pré-concebidas que temos acerca dela e que vêm repentinamente à nossa cabeça quando pensamos nelas:
seus muros altos, alambrados, portões, concreto branco acinzentado das paredes, uniformes escolares...
Pode-se dizer que o que se “aprende” ou melhor, o que se “apreende” são coisas que já estão no mundo
e que são filmadas por meio de uma maneira de ver que não busca pontos de chegada que visem produções
anteriormente idealizadas por meio de roteiros escritos. Queremos ver o novo que ainda não conhecemos e que
talvez, o olho da câmera possa nos mostrar.

Quando o que se interpõe entre esse mundo e nós é uma câmera, o mundo, habitualmente, nos surpreende.
Produz-se um estranhamento, uma vivência quase virginal do olhar. Até o velho mundo parece novo, bem
mais novo. Essa experiência nos traz um saber, mas não um saber a ser ensinado, e sim a ser construído no
gesto de enquadrar e registrar esse olhar. (FRESQUET, 2013: 103)

O pulsar do botão que passa a gravar luzes refletidas em coisas do mundo que sempre estiveram lá mas
que talvez, antes fossem invisíveis ao olhar mais habitual, leva-nos a conhecer/reconhecer os locais cotidianos
que nunca estão fixos, já que todo o tempo é atravessado por trajetórias que ao se tornarem copresentes em de-
terminado contexto, nos fazem entender que somos apenas parte ou apenas uma das trajetórias que compõem os
lugares onde atuamos.
O que nos é comum e faz com que nos conectemos enquanto uma comunidade de cinema é o contato
com as câmeras para filmar coisas que ainda não sabemos quais são e depois exibi-las no cineclube em que há
a partilha daquilo que se produziu coletivamente e onde podemos contar sobre nossos processos e compartilhar
olhares sobre nossos filmes.
As câmeras com as quais lidamos são aquelas que hoje são mais acessíveis: aquelas que estão acopladas à
aparelhos celulares utilizadas como meio de registro de tudo o que vemos, vivemos e queremos compartilhar.
Isso é um ponto que nos aproxima do cinema e ao mesmo tempo nos distancia, já que o manejo com as mesmas
é corriqueiro e o ato de filmar, é um ato banalizado e automatizado.
O encontro da câmera com o mundo se dá pelo uso de dispositivos de criação que são propostas
experimentais de criação que podem produzir estranhamentos, incômodos, surpresas, ambiguidades que além de
fazerem emergir imagens e sons não roteirizáveis, dão passagem para que coisas do mundo escolar possam vir a
surgir. A utilização de dispositivos de criação audiovisual é tanto mais eficiente quanto ela abre possibilidades de
encontros entre corpos e objetos, criando efeitos que não podem ser sequer imaginados antes do dispositivo entrar

349
em ação. (MIGLIORIN, 2005: s/página)
O dispositivo é uma crise, um procedimento, uma regra a seguir. Ao fixar uma linha dura para um processo
de criação abrem-se caminhos que podem fazer surgir inúmeras linhas flexíveis e de fuga. O dispositivo seria
então “a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. Ele pressupõe duas linhas complementares:
uma de extremo controle, regras, limites, recortes: e outra de absoluta abertura”. (MIGLIORIN, 2015:79).
O trabalho com os dispositivos367 na escola acaba por criar desvios na imagem e sons que podem vir a
trazer maneiras de ver a escola e o cinema a partir de pontos de vistas inusitados, já que esse processo inventivo
permite que criemos deixando que nos atravessemos por aquilo que nos cerca, ao mesmo tempo que nos impede
de reproduzir clichês que nos dão o hábito da televisão e do cinema comerciais. O dispositivo, nesse sentido, atua
tanto como indicador de alguns gestos a serem realizados – linhas duras – quanto promovem rupturas e desvios
dos gestos habituais de uso das câmeras justamente ao estabelecer regras fixas para a captura das imagens, mas
deixando todas as demais decisões para o filmador – linhas flexíveis ou de fuga.
O dispositivo, nesse sentido, atua tanto como indicador de alguns gestos a serem realizados – linhas
duras – ao mesmo tempo que promovem rupturas e desvios dos gestos habituais de uso das câmeras, justamente
ao estabelecer regras fixas para a captura das imagens, mas deixando todas as demais decisões para o filmador –
linhas flexíveis ou de fuga.
Justamente ao criar um jogo entre restrição e liberdade, o trabalho com os dispositivos na escola acaba
por criar desvios nas imagem e sons que deles emergem. Elas podem vir a trazer maneiras de ver e ouvir a escola
a partir de pontos de vistas inusitados, uma vez que este processo inventivo insiste que criemos deixando-nos
atravessar por aquilo que nos cerca, ao mesmo tempo que nos impede de criar a partir somente dos clichês de
criação de imagens e sons que nos dão o hábito da televisão e do cinema comerciais.

O que pode a escola e o cinema quando a sala não é escura?

As oficinas de formação de cinema foram ministradas em duas escolas368 da rede municipal de educação
de Campinas - SP. Por meio da presença da pesquisadora em seu campo de ação, foram cartografadas as
produções audiovisuais geradas durante o encontro entre câmera, arquitetura da escola, professoras, professores,
direção, estudantes e claridades locais. Nossa chegada promoveu encontros, negociações e outras possibilidades
de cinema criadas a partir da proposição de dispositivos de criação.
A oficina Para além da sala escura acontece desde agosto de 2017. As oficinas buscam atentar para
as claridades da escola que não só abrem brechas para que a observemos pelo viés da arte (que nos faz ver o
inusitado, o incomum) como também provocar uma fissura nas maneiras convencionais de produzir/exibir filmes
na escola.
As oficinas consistem em provocar cada participante a inventar imagens que são posteriormente exibidas
em locais claros da escola por meio de projetores que ao circularem pelas áreas externas projetam vídeos produ-
zidos nas oficinas. A projeções experimentais são como intervenções no espaço escolar que vão se transformando
quando se hibridizam com as camadas de imagens projetadas sobre as superfícies de locais físicos da escola.
Todos os locais podem (ou não) entrar em devir-tela. Busca-se assim, estabelecer novas relações com o
cinema a partir de processos inventivos construídos coletivamente e também explorar possíveis locais que pos-
367 Esse trabalho já vem sendo desenvolvido pelo Projeto “Inventar com a diferença” desde 2014 e tem sido acrescido
por outros projetos e experimentações realizadas pelo Brasil afora, como ocorre nas variadas oficinas criadas e execu-
tados no âmbito do Programa “Cinema & Educação-A Experiência do Cinema na escola de Educação Básica Municipal”.
Cezar Migliorin (2015) nos conta sobre as experiências do Projeto já que é um de seus organizadores. Site do projeto:
https://www.inventarcomadiferenca.org/
368 Escola Municipal de Ensino Fundamental Sylvia Simões Magro e Centro de Educação Infantil Agostinho Pattaro,
350
sam instaurar novas práticas de exibição para as produções audiovisuais que se criam durante as
oficinas.
As escolas escolhidas como campo dessa pesquisa não contam com espaços adequados para a projeção de
filmes assim como são as salas de cinema convencionais: sala escura, cadeiras confortáveis, isolamento acústico,
tela grande de exibição e projetores de alta definição.
A necessidade de pensar o encontro entre cinema e escola em salas claras, traz uma diferenciação com o
cinema tradicional industrial de sala escura, e, ao mesmo tempo, cria um contexto de experimentação que toma a
escola em suas possibilidades e não como um lugar onde algo falta. Na escola não há situação ideal para o cinema
e é com isso que trabalhamos. É dessa situação aparentemente inadequada que extraímos potência e de onde
surgem novos questionamentos que nos dão pistas para a criação de novos dispositivos de criação de imagens.
A ideia de assumir a escola como um local claro advém da proposta de pensar num cinema possível
na escola, e não somente uma escola possível para o cinema. Dessa forma, trazemos um tensionamento para a
implementação da lei 13.006/14, apontando para o fato de que também o cinema deva se “adequar” à escola,
desviando assim uma via de mão única, tentando, na medida do possível, igualar forças e explorar potencialidades
desse encontro.
O planejamento da oficina Para além da sala escura, foi organizado a partir da abordagem com dispositivos
de criação de imagens e sons que mobilizassem o pensamento em torno do problema de pesquisa da presente
tese. Todos os dispositivos foram desenvolvidos para estimularem a criação para os locais claros da escola para
que se pudesse realizar intervenções com projeções em locais internos e externos para além da sala de projeção e
configurar ambientes/instalações com projeções com ênfase na ideia de videoinstalação.
O que pode a escola e o cinema quando a sala não é escura? é a pergunta que motiva a oficina e as
possíveis respostas vieram conforme íamos observando as nuances de claridade e escuridão de locais da escola
que são cotidianamente habitados pelas/os que ali trabalham/estudam. A existência de claridade na maioria
dos locais da escola desafia a exibição de produções audiovisuais, pois, quando instituída dentro da lógica do
cinema tradicional, depende do contraste com a escuridão. O ato de criação de imagens cinematográficas a serem
exibidas em locais para além da sala escura instauraram condições ampliadas que tencionaram a necessidade de
um ambiente escuro para que o cinema se realizasse como espectação.
Todas as produções nacionais selecionadas para inspirarem e provocarem a criação de novos filmes
tinham como eixo comum a relação entre luzes e sombras em diversos aspectos estéticos e técnicos da linguagem
cinematográfica.
Os filmes além de serem produzidos a partir da observação das luzes e sombras presentes no local onde se
desejasse filmar, também tinham que ser produzidos com a intenção de posteriormente, serem exibidos em locais
da escola que são naturalmente claros, já que as escolas não contam com sala de cinema totalmente escuras e é
essa falta que nos motivou a experimentar com projeções em diversas partes, internas e externas, para vermos
que imagens poderiam ser recombinadas com a superfície de determinados locais e formar outras mais a partir da
sobreposição de camadas. Essa maneira de pensar o cinema, propunha desvios na típica maneira de exibição de
cinema que conta com a permanência de um lugar fixo e escuro para exibição de filmes, no caso da escola, a tela
branca para projeções pendurada numa das paredes da sala de vídeo.
Os vídeos-provocação369 eram exibidos no início de cada encontro sem nenhuma informação prévia, para
que assim fossem contemplados em sua totalidade, sem interferência de discursos de qualquer natureza acerca
do que se via e se escutava. Cabia a cada integrante, após a exibição, fazer (ou não) comentários sobre o que
acabavam de ver. Muitas vezes esses atravessamentos só se faziam presentes nas novas imagens produzidas
ambas localizadas na cidade de Campinas - SP.
369 Refiro-me aos vídeos que vemos no início de cada oficina e que são os disparadores audiovisuais para as produ-
ções do dia. Optei por chamá-los assim para diferenciá-los dos vídeos que produzidos pelas/os participantes.
351
por elas/es, dispensando a necessidade de colocar em palavras o que foi visto e sentido pelo corpo como um
todo.
A oficina teve uma preocupação central quanto ao uso criativo da claridade enquanto desafio que se coloca
quando não temos uma sala de exibição convencional, assumindo desde o princípio que não ter uma sala de
cinema não é uma falta real, já que teríamos que criar um cinema nosso, para além do já existente e conhecido.
A seleção de vídeos (em sua maioria produzidos por artistas visuais) e filmes nacionais se pautavam na
adaptação ao problema proposto pelo dispositivo de criação que em sua maioria tinha o claro objetivo de “forçar”
as produções a funcionarem para serem exibidas em locais claros da escola, embora alguns trechos de filmes
fossem selecionados para apresentarem dispositivos mais voltados à linguagem cinematográfica, e outros, aos
elementos plásticos da imagens.
A exibição de vídeos e fragmentos de filmes facilita a diluição da narratividade linear dos filmes em
que as imagens e sons se apresentam em função de uma estória narrativa de começo, meio e fim, como estamos
habituados a ver nos filmes comerciais. Ao propormos a criação audiovisual pautada em seus elementos mais
formais e plásticos, surgiam outras visualidades mais abertas quanto à possibilidade de interpretação. Ao
escaparmos de ilustrar com imagens e sons um determinado enredo, roteiro, texto ou ideia foi possível que nos
ativéssemos mais especificamente aos elementos técnicos e estéticos daquilo que filmamos e assim deixarmos
para as/os espectadoras/es as sensações, interpretações possíveis para nossas produções.
O trabalho com fragmentos de filmes nacionais é uma escolha pedagógica do programa. A preocupação
com o tempo de cada oficina é um fator importante nesta escolha por conta do curto tempo de duração de cada
encontro (em torno de uma hora a duas horas). Trabalhar com fragmentos também faz com que nos detenhamos
com mais profundidade em determinados planos em que podemos explorar seus detalhes técnicos e estéticos.
Podemos observar com mais atenção certos aspectos que podem passar despercebidos quando vemos um filme
completo. No caso das oficinas Para além da sala escura os fragmentos de filmes e vídeos foram escolhidos
principalmente desde o ponto de vista técnico da iluminação, já que em nossa oficina temos duas preocupações
bastante marcadas por etapas diferentes: 1ª) produzir um filme que possa ser exibido em locais da escola para
além da sala escura; 2ª) projetar as produções em locais da escola para além da sala escura.
Os filmes exibidos durante a oficina foram mostrados em fragmentos de até três minutos. Após a exibição,
conversávamos abertamente acerca das sensações, incômodos e reflexões acerca das imagens vistas. Havia
sempre um momento em que tratávamos de “puxar” das imagens as linhas fortes de interesse para nossa questão
acerca dos locais escolares e suas distintas iluminações. As linhas observadas mais atentamente buscavam a
observação das nuances de cores, texturas e formas que “extraídas” do lugar-escola, passavam a formar parte de
novo conjunto imagens da/na escola e para a escola quando as projeções se tornaram parte de videoinstalações
envolvendo imagens, sons, corpos e claridades locais.
As projeções dos vídeos em locais inusitados da escola às vezes originavam outros vídeos mais, quando as
projeções eram filmadas por professoras/es. Esses novos vídeos nos mostraram uma infinita gama de possibilidades
de projeção que fazia com a escola toda entrasse em devir-tela para receber projeções que se recombinavam com
os distintos níveis de iluminação de cada local, já que o próprio projetor quando ligado, agregava luz ao ambiente,
fazendo com que a cada experimentação a escola se tornasse outra, e outra e outra, tanto pela diferenciação de
sua iluminação, quanto pelos novos desenhos formados pelos contornos das projeções que muitas vezes tinha
seu formato retangular transformado e tomavam a forma da superfície projetada criando possibilidades de fazer
a escola entrar em variação, produzindo novas percepções para aquelas/es que ali habitam e novas configurações
espaciais trazidas pelas intervenções com videoinstalações.

352
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Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Marina Mayumi Bartalini - Artista visual e professora de artes graduada em licenciatura e bacharelado em
educação artística. Mestre em educação pela Unicamp. Doutoranda no programa de pós-graduação da Faculdade
de Educação da Unicamp. Atuou como arte educadora no CEDAP: Centro de Educação e Assessoria Popular;
Progen: Projeto Gente Nova; Programa Mais Educação - Projeto Pintura na Fachada. Foi professora do curso
de audiovisuais na Escuela Libre de Constitución - Buenos Aires, Argentina. Atua principalmente nas seguintes
áreas de conhecimento e prática: Educação Não formal, Educação Libertária, Intervenção Urbana, Arte-educação,
vídeo-arte.
Wenceslao Machado Oliveira Junior - Possui graduação em geografia e doutorado em educação. Atualmente é
professor no departamento de educação, conhecimento, linguagem e arte e pesquisador do Laboratório de Estudos
Audiovisuais OLHO, ambos da Faculdade de Educação/Unicamp. Realizou o pós-doutorado As geografias
menores em obras em vídeo de três artistas contemporâneos, na Universidade do Minho/Portugal. Coordenou
a Rede Internacional Imagens, Geografias e Educação, entre 2010 e 2015, da qual participa atualmente junto ao
projeto As telas da escola: cinema e professores de geografia. Desde 2016 participa do projeto: Dispositivos de
criação e a experiência do cinema na escola de educação básica do município de Campinas e, em 2018, iniciou
em duas escolas dessa rede de ensino o projeto: Lugar-escola e cinema: afetos e metamorfoses mútuas - do espaço
às filmagens, das filmagens ao espaço.

354
29. Documentário; Videoarte – do Brasil para o mundo, do mundo para o
Brasil

André Hallak

Introdução

As relações entre as artes vão se estreitando continuamente na contemporaneidade. “Na verdade, torna-
se cada vez mais difícil identificar um espaço exclusivo de atuação de uma obra, a tal ponto os trabalhos hoje
são atravessados por diferentes práticas artísticas”. Os limites vão se tornando mais tênues e as interlocuções
mais constantes. Muitas vezes não é possível, nem pertinente, identificar a que campo da arte esta ou aquela
manifestação pertence. Cabem aos trabalhos analíticos refletir sobre influências e aberturas às quais a obra se
propõe, não mais enquadrar em tendências, estilos ou movimentos definidos.

A proposta deste trabalho é refletir acerca de uma interlocução em particular, entre o documentário e as
artes no Brasil, a partir da vídeo-arte.

Tanto a fotografia quanto o cinema demoraram para serem considerados como arte. Inicialmente estes
que hoje são chamados de artes mecânicas, eram consideradas apenas como “técnicas de reprodução e difusão”
(RANCIÈRE, 2005, p. 36). O cinema documentário adquiriu nobreza artística ainda mais tardiamente. Nobreza
esta “que lhe foi recusada em grande parte de sua história – muitas vezes pelos próprios documentaristas, que
queriam se afastar da ideia do cinema como arte ou diversão” (LINS, 2005). Esta recusa o fez reservar, durante
muito tempo, uma posição distante do cinema considerado artístico. Indo na contramão desta tendência histórica o
documentário contemporâneo, “mais do que o cinema de ficção” (LINS, 2005), incorpora e contamina diferentes
estéticas, além de transitar com desenvoltura pelas diversas artes. Documentaristas realizam obras que se utilizam
da estética e dos suportes vindos das artes e artistas se apropriam de dispositivos documentais na concepção de
suas obras.

Os trabalhos contemporâneos que traçam olhares artísticos sobre a realidade transitam por estes dois
campos com liberdade. Buscam a verdade, a realidade, sem a pretensão de encontrá-la ou de expressá-la, ou até
mesmo de representá-la. Apropriam-se de imagens da realidade, não para documentar, mas para sensibilizar. As
imagens são contemplativas e convidam a um contato sensível entre espectador e obra. Em muitos casos o autor
se afasta deixando a obra se auto-constituir diante dele e do espectador. Ele cria os dispositivos e se retira.

Para entender como este movimento conectou o documentário e a vídeo-arte no Brasil faremos um breve
histórico da relação entre documentário e artes, com ênfase em particular para os movimentos do Cinema Verdade
e Cinema Direto.

355
A tentativa de representação da realidade

Para alguns estudiosos, as raízes do documentário são anteriores à primeira projeção pública de imagens em
movimento, pelos irmãos Lumière, em 1895, considerada oficialmente como o início do cinema. Erik Barnouw370
considera que seus pioneiros são aqueles que, a partir de 1870, procuravam uma forma de documentar a realidade
em movimento: um cavalo correndo (Eadweard Muybridge) ou um pássaro voando (Étienne Jules Marey), Vênus
passando pelo sol (Pierre Jules César Jassen).
Dizer que o surgimento do documentário está, de certa forma, vinculado ao próprio surgimento do cinema
é inquestionável. Afinal as primeiras imagens em movimento, captadas por uma câmera, pelos irmãos Lumiére,
tratavam-se de registros documentais das atividades urbanas da época. Elas retratavam cenas cotidianas, tais como:
a chegada do trem na estação, a saída da fábrica no final do expediente, folhas das árvores sendo movimentadas
pelo vento. Os filmes não poderiam ainda ser consideradas filmes-documentários, pois no momento em que foram
produzidas não existia uma problematização e legitimação do gênero enquanto tal. Contudo, a importância deles
para a história do documentário é inquestionável, já que se configuram como o primeiro registro da realidade
projetado em movimento. Vários exploradores, inspirados pela busca dos irmãos Lumiére por retratar a época em
que viviam, começaram a registrar suas expedições a lugares desconhecidos. Estes filmes de viagem ainda não
tinham uma linguagem específica que os caracterizasse como documentário.
É a partir de Nanook of the North371 que o documentário começa a se consolidar enquanto gênero
cinematográfico. O gênero que se encontrava, até então, em estado embrionário veio a se desenvolver até o
formato alcançado por Robert Flaherty, no filme finalizado em 1922. Sua concepção partiu da decisão de Flaherty
de levar uma câmera para sua terceira expedição à Baía de Hudson (Canadá), com a finalidade de registrar e
ilustrar sua pesquisa sobre um grupo de esquimós, os Itvimutis. A produção se distingue dos filmes de viagem por
apresentar uma sintaxe própria e uma linha narrativa, inexistentes nos primeiros filmes. O filme de Flaherty marca
a passagem de documento para documentário (NICHOLS, Bill. 2001) pela adição da narrativa cinematográfica
ao registro da realidade. Diferentemente dos registros de viagem até então, Nanook contava a história de um
esquimó, mostrava especificidades de seu cotidiano, sua família, a pesca, através de cenas montadas de forma a
criar um personagem e uma vida narrada em torno dele.
Entretanto, foi com o escocês John Grierson, fundador da escola documentarista inglesa, que o gênero
começou a ser formalizado. No artigo First Principles of Documentary, publicado em 1932, Grierson lançou o
que seriam os primeiros princípios do documentário clássico. Ele dizia que:

Princípios fundamentais.(1) Nós acreditamos que a capacidade do cinema para movimentar-se, para
observar e selecionar da própria vida, pode ser explorada numa nova e vital forma de arte. Os filmes
dos estúdios ignoram amplamente essa possibilidade de abrir a tela para o mundo real. Eles fotografam
histórias encenadas sobre fundos artificiais. O documentário fotografaria a cena viva e a história viva. (2)
Nós acreditamos que o ator original (ou nativo) e a cena original (ou nativa) são melhores guias para uma
interpretação do mundo moderno nas telas.[...] (3) Nós acreditamos, portanto, que os materiais e histórias
tomados da matéria bruta podem ser melhores (mais reais no sentido filosófico) que o artigo encenado.[...]
O documentário pode alcançar uma intimidade com o conhecimento e efeito impossíveis para as falsidades
mecânicas do estúdio e a interpretação afetada do ator metropolitano. (GRIERSON, 1932, in FOWLER,
2002, p. 40)372
370 Autor de Documentary: a History of the non-fiction film.
371 Filme realizado por Robert Flaherty em 1922.
372 First Principles. (1) We believe that the cinema’s capacity for getting around, for observing and selecting from life itself, can
356
Dziga Vertov, outro importante documentarista da época, acreditava no desenvolvimento de uma “cine-
escritura” dos fatos. De acordo com ele, a vida deveria ser captada de improviso e o sentido do documentário
construído por meio da montagem. O homem com a câmera, filme de 1929, ilustra o estilo de filmagem
desenvolvido por Vertov, também conhecido como “cine-olho”.
Posteriormente, evoluções tecnológicas (como o desenvolvimento de equipamentos leves de filmagem e
o surgimento do som sincrônico no cinema) contribuíram para mudanças na concepção do documentário. Assim,
nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, a busca do registro espontâneo do real foi a marca forte das
produções do gênero. O documentário clássico passou então a ser questionado por novos grupos de realizadores
da França e dos EUA. O resultado foi o surgimento de dois movimentos que ficaram conhecidos como cinema
verdade, encabeçado pelos franceses Jean Rouch e Edgar Morin, e cinema direto, cujos principais representantes
são os americanos Robert Drew e Richard Leacock.
Ao longo da história, várias foram as tentativas de enquadrar as obras documentais em categorias específicas.
Entretanto definir documentário nunca foi uma tarefa fácil devida, sobretudo, à mobilidade e à versatilidade do
gênero. Bill Nichols acredita que:

O documentário como prática conceitual não ocupa território fixo. Ele mobiliza um inventário não finito
de técnicas, remete a um número não estabelecido de questões, e adota uma taxonomia de formas, estilos e
modos não completamente conhecidos. O termo documentário deve ser ele próprio construído da maneira
que o mundo que conhecemos e compartilhamos. A prática do filme documentário é o lugar da contestação
e da mudança. (NICHOLS, 1991, p. 12)373

Os documentários acompanham intimamente as mudanças ocorridas na sociedade, não apenas registrando-


as, mas também participando e sendo influenciados por elas. Em decorrência dessa proximidade com a “vida
real” e das suas constantes transformações, a estrutura e o “modo de pensar” do documentário também se alteram
constantemente. Isto impossibilita uma classificação objetiva, estável ou científica desse tipo de obra. No entanto
as tentativas de definição, e de oposição ao cinema de ficção levantaram questões relevantes para este e para
outros estudos sobre o gênero.
A primeira delas aconteceu em 1948, quando cineastas se reuniram no congresso da World Union of
Documentary para discutir sobre a nova forma de registro do real. O documentário foi qualificado na época como
um filme que trata dos fatos reais e visa a compreender os problemas de ordem econômica, cultural, ou referentes
às relações humanas. O conceito, que envolve a vinculação a compromissos sociais e que atribui a ele um caráter
didático e essencialmente informativo, é uma ideia que persiste ainda hoje entre espectadores e produtores, apesar
de ser menos difundida do que no passado. Acreditava-se que existiam assuntos específicos para serem tratados
em documentários que, nesse momento, não tinham a função de proporcionar prazer estético ao espectador, mas
principalmente de informá-lo sobre questões contextuais e históricas específicas. Além disso, o gênero deveria
diferenciar-se da ficção, marcando claramente sua oposição a ela.

be exploited in a new and vital art form. The studio films largely ignore this possibility of opening up the screen on the real world. They
photograph acted stories against artificial backgrounds. Documentary would photograph the living scene and the living story. (2) We
believe that the original (or native) actor, and the original (or native) scene, are better guides to a screen interpretation of the modern
world. […] (3) We believe that the materials and the stories thus taken from the raw can be finer (more real in the philosophic sense)
than the acted article. […] Add to this that documentary can achieve an intimacy of knowledge and effect impossible to the shim-sham
mechanics of the studio, and the lily-fingered interpretations of the metropolitan actor. – tradução nossa
373 “Documentary as a concept or practice occupies no fixed territory. It mobilizes no finite inventory of techniques, addresses no
set number of issues, and adopts no completely known taxonomy of forms, styles, or modes. The term documentary must itself be con-
structed in much the same manner as the world we know and share. Documentary film practice is the site of contestation and change.”
Tradução nossa.
357
Na tentativa de reconstruir o domínio do documentário – frequentemente questionado como linguagem e
como objeto estético, ao mesmo tempo em que sofria o abalo do seu domínio pela recorrente afirmação de que
“todo filme organiza-se como discurso” – Bill Nichols desenvolveu uma teoria que distingue documentário e
ficção. A distinção se dá segundo suas estratégias diferenciadas de produção de sentido, sem recair nas distinções
ingênuas do período anterior ao estruturalismo e à semiologia. Nichols, ao contrário dos demais “defensores” do
documentário, não nega as suas propriedades narrativas e representativas, tampouco o seu caráter de discurso e
artifício. O autor afirma que, ainda que através dos mesmos processos narrativos, a ficção oferece acesso a um
“mundo fictício” e o documentário oferece acesso a representações do “mundo histórico”, aquele no qual pessoas
nascem e morrem. Defendendo fazer-se necessário que sejam consideradas as diversas dificuldades intrínsecas a
todo processo de generalização sobre objetos estéticos, Nichols ainda afirma que o desenvolvimento das mesmas
propriedades da imagem tem funções e objetivos diferentes nos dois modelos. Na ficção, contribuem para conferir
verossimilhança à história narrada; no documentário, contribuem para conferir credibilidade e poder de persuasão
ao argumento (NICHOLS, 1991).
No entanto torna-se cada vez mais difícil separar o que é realidade e o que não é na própria vida, quiçá
no documentário. As pessoas, mesmo que inconscientemente, escolhem a maneira com que vão expressar o que
pretendem ser, que por sua vez, não pode ser totalmente separado do que elas são (GOFFMAN, 1992). A memória,
tanto coletiva quanto individual, mistura acontecimentos vividos com impressões atribuídas. A linguagem, por
sua vez, analisa e reconstrói os “fatos” narrados.

No cinema, não sei como aconteceu... temos a impressão de saber o que significam documentário e ficção;
na verdade, creio que os dois momentos são diferentes, e vejo um pouco em quê, mas a coisa não é tão
simples: em que momento o gesto de um operário é ficção, ou o gesto de uma mãe com seu filho, ou de uma
namorada com seu namorado, em que momento? (GODARD, 1989, p. 116)

Esta inquietação do cineasta Jean-Luc Godard é respaldada pelo histórico de diferenciações frustradas
entre os dois gêneros, somado ao complicador das representações na própria vida. A produção de um documentário
envolve momentos distintos de construção de uma realidade. A começar pela captação, na qual são escolhidos os
ângulos e os recortes do que será gravado pelo olho-câmera. Se existe um personagem, mais um complicador para
esta construção, agora somando à sua representação a relação com a câmera e com a equipe técnica.

A realidade existe independente de sua observação? O simples fato de uma pessoa saber que está sendo
observada em sua intimidade muda substancialmente o seu comportamento. A equipe de filmagem de um
documentário perturba o ambiente social de tal maneira que o filme não traduz o estado em que tal ambiente
se encontrava, mas sim um estado já perturbado pela equipe. (ACIOLI, 1997, p. 167)374

Na montagem o que foi captado é recombinado da maneira que mais convier para o filme, criando uma
narrativa outra, externa àquela do momento vivido e captado. Ainda há o roteiro, seja ele feito antes ou depois
da captação das imagens, que busca conduzir o filme na direção de uma compreensão lógica própria de seu
realizador.
Entretanto, o questionamento em relação à capacidade do filme documentário de representar o real já é
visível desde seus primórdios. Segundo Andréa França, desde o filme de Flaherty, Nanook of the North e de O
homem com a câmera de Diziga Vertov “que o pensamento e a reflexão sobre o campo do documentário não
pararam mais de se debater entre as noções de verdade e mentira, autenticidade e ficção, realidade e mise-en-
scène (cinema-olho, cinema do vivido, cinema-verdade, cinema-direto, etc.)” (FRANÇA, 2006).
374 ACIOLI, José de Lima. O princípio da incerteza e o realismo do documentário cinematográfico. 1997. p. 167.
358
O cinema direto e o cinema verdade

O cinema direto e o cinema verdade, movimentos já mencionados anteriormente, surgem justamente de


um questionamento da forma como se organizava a grande maioria dos documentários até então. Tidos como
clássicos, estes últimos eram caracterizados pela investigação de uma realidade objetiva, que se apresenta ao
espectador por meio da narração em off, acompanhada de imagens ilustrativas. Ou seja, a realidade é trazida em
forma de um argumento objetivo que, por sua vez, é explicitado pela narração e legitimado de forma indutiva pelas
imagens. De um modo geral apresentam uma grande coesão interna (ausência de brechas e quebras), característica
que os aproxima de uma tendência afirmativa à medida que os afasta da possibilidade de que seus argumentos
tornem-se temas de discussão. Geralmente evitam contradições, escondem o caráter de discurso e empregam o
modelo particular/geral – correspondente à exposição de depoimentos e ações de personagens como dados puros
e superficiais, que em seguida são generalizados e adequados pelo locutor ao argumento do documentário.
A impressão de objetividade proposta e induzida pelos documentários clássicos é levada ao extremo
nos filmes pertencentes ao cinema direto – movimento que reuniu um grupo de jovens realizadores e que
se desenvolveu principalmente na década de 60 nos EUA e na Inglaterra. Além de motivações discursivas e
conceituais, o cinema direto possui motivações tecnológicas, por se valer de recursos surgidos nessa época como:
câmeras mais compactas e dinâmicas e, principalmente, a possibilidade de captação de som direto.
Ao mesmo tempo em que corresponde à continuação da busca pelo real que fora iniciada pelo documentário
clássico, o cinema direto abandona a tendência a controlar as situações filmadas, inerentes ao documentário
clássico. Da-Rin descreve da seguinte maneira a estrutura básica do cinema direto:

O cinema direto procurou comunicar um sentido de acesso imediato ao mundo, situando o espectador na
posição de observador ideal; defendeu extremadamente a não intervenção; suprimiu o roteiro e minimizou a
direção; desenvolveu métodos de trabalho que transmitiam a impressão de invisibilidade da equipe técnica;
renunciou a qualquer forma de controle sobre os eventos que se passavam diante da câmera; privilegiou
o plano-sequência sincrônico; adotou uma montagem que enfatizava a duração da observação; evitou o
comentário, a música em off, os letreiros, as encenações e as entrevistas. (DA-RIN, 1995, p. 100)

A ênfase é a observação, “a vida observada pela câmera”. A montagem, que tende ao tempo real, busca
um objetivismo extremado e privilegia a autenticidade e a espontaneidade. Em relação ao documentário clássico,
o modo observacional de representação inaugura o discurso direto, em detrimento de letreiros e offs. Em uma
perspectiva teórica, o cinema direto afasta-se da função estética do cinema, em direção à busca de uma sensação
de presença física.
A transparência do documentário e a sua capacidade de apresentar o real sem nele intervir foram novamente
questionadas, mesmo sendo considerados todos os cuidados propostos pelo cinema direto. A escolha entre o que
mostrar ou não, a organização daquilo que é mostrado, a duração dessa exibição e a ordenação dos planos entre si
foram indicados como fortes e inevitáveis indícios de subjetividade nas imagens. Nesse instante surge o cinema
verdade – também na década de 60 e principalmente na França – que abandona a busca pela captação de uma
realidade pré-existente e independente do encontro entre documentarista e personagem ao assumir a subjetividade
inerente a qualquer representação. O documentarista do cinema verdade, relacionado ao modo interativo de
representação, abandona a utopia de uma reprodução especular do real e assume o seu papel mediador, em alguns
casos, de provocador. Da-Rin diz do cinema verdade:

359
[...] enfatizou a intervenção do cineasta, ao invés de procurar suprimi-la. A interação entre a equipe e
os atores sociais – pessoas convocadas a participar do filme – assume o primeiro plano, na forma de
interpelação, entrevista ou depoimento. A montagem articula a continuidade espaço-temporal deste
encontro e a continuidade dos pontos de vista em jogo. A subjetividade do cineasta e dos participantes da
filmagem é plenamente assumida. (DA-RIN, 1995, p. 100 e 101)

O cinema verdade caracteriza-se principalmente pela intenção de trazer à tona o caráter de artefato
das obras documentais, evidenciando o processo de manipulação ocorrido ao longo do desenvolvimento do
documentário. As entrevistas e os depoimentos assumem lugar de destaque, privilegiando a interação entre
equipe e entrevistados. Os representantes do cinema verdade, entre os quais os franceses Jean Rouch e Edgar
Morin, eliminavam o fosso entre um lado da câmera e outro – assim como existia no cinema direto – e propunham
circulação e trocas experienciais entre as duas partes.
Sendo assim, o cinema verdade mantém a verdade como objetivo, mas propõe outro modo de acesso a
ela: se no cinema direto a verdade preexiste e basta esperar que ela aconteça, o cinema verdade busca a realidade
emergente e eventual, que aparece no momento do encontro entre a câmera e o entrevistado, através de uma série
de estratégias e provocações. No cinema verdade, assim como no cinema direto, o argumento emerge da situação
captada.

Do Brasil para o mundo

Na década de 60 no Brasil, o documentário se utiliza das mudanças tecnológicas, privilegiando a voz do


“outro” como questão essencial para os cineastas (a entrevista é extremamente facilitada com a possibilidade do
som direto). Esses filmes eram realizados na sua maioria por diretores ligados ao Cinema Novo, que se encontrava
efervescente. No entanto, segundo Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, autoras de Filmar o real, os documentários
brasileiros deste período seguiam caminhos diferentes dos experimentados por outros movimentos.

Diferentemente de movimentos inovadores do documentário neste período – tais como o Cinema Verdade francês e
o cinema direto norte-americano, que aboliram a narração over descarnada, onisciente e onipresente, em favor de um
universo sonoro rico e variado –, a forma documental brasileira se deixa contaminar por procedimentos modernos de
interação e de observação, mas não se transforma efetivamente. (LINS e MESQUITA, 2008: 22)

A crescente utilização de entrevistas como meio de acesso à voz do “outro” não demonstrava efetivamente
um comprometimento com as questões colocadas ao documentário naquele período. Os filmes nacionais
continuavam se utilizando de concepções prontas. Os argumentos eram elaborados muitas vezes antes mesmo da
realização das entrevistas, que surgiam como elemento retórico para a afirmação de uma posição já estabelecida.
É também neste período que, segundo Arlindo Machado, “muitos artistas tentaram romper com os
esquemas estéticos e mercadológicos da pintura de cavalete, buscando materiais mais dinâmicos para dar forma
às suas ideias plásticas” (MACHADO, 2003: 14). A convergência entre um universo audiovisual com aparatos
mais acessíveis – entretanto ainda preso a premissas clássicas por seus realizadores – e uma comunidade de
artistas sedentos por novos meios e materiais para sua produção, culminou no surgimento efervescente de um
documentário critico em relação a sua própria linguagem. Essa critica se dava através do experimentalismo, que
voltava os olhares para o próprio gênero e sua capacidade de representar determinados problemas e questões
relacionadas à experiência popular.
Uma das aparições mais importantes para esse movimento contestador é Arthur Omar que, em 1972, lança
360
seu filme Congo, seguido do ensaio crítico O antidocumentário provisoriamente. Omar critica as boas intenções
dos documentaristas preocupados com as questões populares, explicita a distância entre eles e as motivações
sociais que expunham e explicita a falsidade de toda representação imagética.

O filme antidocumentário teria muito mais uma função de examinar a impossibilidade de se conhecer, do que tentar
fornecer um conhecimento novo. Ele é um filme que alude muito mais do que propõe. Não estou propondo uma nova
visão da congada, o Congo, objetivamente, não é o tema do filme, o tema é a tensão entre o conhecimento erudito e
uma prática popular que está colocada em outro nível de realidade e que em última instância não se comunica.

Eu quero questionar a estrutura do documentário como sendo produtor da satisfação do conhecimento, porque na
verdade você só vai ter a sensação de conhecer, quando aquele objeto estiver longe de ser apreendido. Eu não trato
desse objeto. Trato da maneira como esse objeto é tratado por um determinado discurso. Isso é o antidocumentário – é
quase um filme epistemológico.375

Poucos anos depois Glauber Rocha nos oferece Di/Galuber (1977). Um documentário narrado na primeira
pessoa, demonstrando a relação de afeto – mesmo à distância em muitos momentos – entre o diretor e o objeto
do filme, o pintor Di Cavalcanti que acabava de falecer. Glauber interfere durante o enterro do pintor, filma o
caixão e o corpo. Sua narração é frenética e apaixonada. Incomoda, mostra a viúva e a amante. Produz uma das
mais belas homenagens já realizadas no cinema, paradoxalmente banida das telas nacionais pela família do pintor.

Congo e Di/Glauber são filmes experimentais, reflexivos, ensaísticos; obras em que a intervenção dos cineastas é
central e explícita, realizadas a partir de um material audiovisual heterogêneo, e nas quais o que importa não são as
“coisas” propriamente, mas a relação que se pode estabelecer entre elas. (LINS e MESQUITA, 2008: 24)

Arthur Omar apresenta outra obra essencial, O som ou o tratado de harmonia (1984). O filme se apropria
de uma linguagem radicalmente experimental, própria do vídeo daquele período. Utilizando-se de ruídos,
entrevistas e imagens provocativas, Omar busca uma relação atípica com o espectador em torno da questão
sonora. Ele interfere, dá argumentos, descontextualiza imagens, insere intervenções sonoras durante as falas,
aumenta o volume da música, abre uma orelha humana para exibir como o documentário funciona.
A linguagem audiovisual está em voga. A partir de meados da década de 70 os primeiros aparelhos de
produção de vídeo, conhecidos como portapack chegam ao Brasil. O audiovisual passa a ser experimentado
não somente no cinema, mas também no vídeo. Os videoartistas começam a se alastrar pelo Brasil. A busca por
novos materiais encontra na linguagem eletrônica um meio mais acessível e maleável que o anterior equivalente
audiovisual, a película. Com um ambiente altamente favorável, é nos anos 80 e 90 que os documentários se
infiltram nas vídeo-artes com mais força, ou que as vídeo-artes dilaceraram o documentário com maior intensidade.
A diversidade das produções revela a diversidade das linguagens.
Do outro lado da sua casa (1985), vídeo-documentário de Marcelo Machado, Paulo Morelli e Renato
Barbieri (diretores ligados ao grupo Olhar Eletrônico) é uma importante referência dentro desse contexto. O
vídeo busca o “outro” marginalizado, excluído, pertencente a outra classe, como criticado por Omar em seus
antidocumentários. No entanto os realizadores se apropriam das convicções do cinema verdade de Jean Rouch
e Edgar Morin, tornando mais complexa a relação de distâncias entre documentaristas e objetos, e alavancando
discussões pertinentes tanto para o documentário e a vídeo-arte, quanto para as questões sociais que aborda.

Microfone explicito, Morelli, Barbieri e Machado vão para as ruas dispostos a dar voz aos “personagens” encontrados

375 Entrevista de ARTHUR OMAR para GUIOMAR RAMOS sobre o anti-documentário em


Congo (1972) e O Anno de 1798 (1975) - outubro de 93.
361
[...], os documentaristas da Olhar Eletrônico chegam a passar o microfone para Gilberto, um de seus personagens,
num esforço evidente de alçar seu “objeto” à condição de sujeito da experiência que o próprio vídeo propõe. O
procedimento, além de desvelar, reflexivamente, o set da entrevista, complexifica, expressivamente a representação
dos moradores de rua levada a cabo pelo vídeo – confrontando com “iguais” diferentes, Gilberto veste outros papéis,
e todos saem ampliados dos encontros. Assumindo e amplificando certa tendência minoritária no cinema documental
brasileiro a partir dos anos 60, Do outro lado de sua casa, ao incorporar a participação ativa de Gilberto, não supõe
uma realidade anterior e intocável, mas grava justamente a intervenção que o vídeo provoca e propõe entre aqueles
que retrata. (MESQUITA, 2003: 190)

A vídeo-arte abre caminho para a diversidade da produção. Ela é o espaço do hibridismo, das infiltrações. A
imagem eletrônica não é tão transparente quanto a cinematográfica ou fotográfica. O real no vídeo é traduzido por
linhas, ele é colocado na esfera do impulso, do manipulável digitalmente. É o campo dos grafismos, das edições
complexas, entrecortadas. Dos textos sobre as imagens, dos textos sem as imagens. Das descontextualizações,
reconstruções, ligações. A imagem eletrônica “pressupõe uma arte da relação, do sentido e não simplesmente do
olhar ou da ilusão” (MACHADO, 2003: 29).
Com as novas ferramentas surgem experiências de extrema importância tanto para o universo da arte,
como para o do documentário. Um trabalho consensualmente considerado como limítrofe é VT Preparado AC/JC
(1986). Realizado por Walter Silveira e Pedro Vieira (da TVDO, outro importante grupo da vídeo-arte brasileira)
o vídeo é uma homenagem ao músico do silêncio John Cage (JC) e do poeta das páginas em branco Augusto de
Campos (AC). As imagens, na sua maioria, não existem. Uma tela branca, com rápidos flashes de palavras, poucas,
e de fragmentos de imagens. Nestes fragmentos de imagens John Cage, que também aparece nos fragmentos
sonoros. Um registro criativo da presença do músico na Bienal de São Paulo naquele ano, relacionando sua obra
à de Augusto de Campos. Documentário? O vídeo da TVDO é motivado por um acontecimento real, utiliza-se de
imagens e sons captados do acontecimento, além de, na sua forma, na sua linguagem, se relacionar intrinsecamente
com objetos de sua pesquisa: os trabalhos de John Cage e Augusto de Campos. Portanto para este texto a resposta
é sim.
Nesse sentido, documentário também é Parabolic People (1991), de Sandra Kogut. Nova York, Dacar,
Tóquio, Moscou... Kogut implantou vídeo-cabines em diversas capitais do mundo abrindo a possibilidade para
que os transeuntes pudessem entrar e deixar sua mensagem, seja ela qual e como for. Na edição essas imagens
foram recortadas, recombinadas, fragmentadas, criando relações inesperadas através da combinação de janelas e
uso de grafismo. Como resultado uma série de vídeos que criam conexões diversas em contextos múltiplos.
São muitos os vídeos tidos como “artes”, ou as vídeo-artes, que se tencionam com o universo do
documentário. Esta relação entre a produção artística e a documental, muitas vezes ignorada pelos próprios
documentaristas e teóricos, subsidiou e enriqueceu a história do cinema e do vídeo, chegando a uma explosão de
trabalhos híbridos no Brasil desde o boom da vídeo-arte.
Os exemplos dessa relação na videografia brasileira são inúmeros. Caco de Souza e Kiko Goifman
produziram Tereza (1992). Uma complexa imersão no universo carcerário, através de um trabalho imagético
revelador. Goifman produziu posteriormente 33 (2004), outro documentário experimental que mostra a busca do
próprio autor pela sua mãe biológica. Na mesma linha, outro vídeo de Sandra Kogut, Um passaporte húngaro
(2003). Nesse trabalho a diretora mostra, com delicadeza, sua odisseia para conseguir um passaporte húngaro, já
que tem parentesco com aquele país.
Carlos Nader realizou diversos trabalhos documentais que tangem a vídeo-arte, e que circulam nos
ambientes das produções artísticas. Dentre eles O beijoqueiro (1992), Trovoada (1995), O fim da viagem (1996),

<http://www.museuvirtual.com.br/targets/galleries/targets/mvab/targets/arthuromar/targets/entrevistas/languages/portuguese/html/
sobreoantidocumentario.html> Acessado em 14/09/2009.
362
Carlos Nader (1997). As produções de Nader se caracterizam por um olhar particular, aprofundado – o autor
chegou a morar com alguns de seus personagens, como em O beijoqueiro e O fim da viagem – resultando num
trabalho experimental tanto na abordagem como na edição de seus vídeos.
Outro realizador essencial para a investigação entre o documentário o as artes visuais é Cao Guimarães.
Acidente, concebido em parceria com Pablo Lobato, é um filme disparado por um poema com o nome de 20
cidades mineiras, escolhidos aleatoriamente. O roteiro é o poema. Os documentaristas deveriam, então, ir àquelas
cidades e captar fragmentos cotidianos que, por algum motivo, mantinham uma relação fluida com seus nomes.
Outro trabalho de Guimarães, Andarilho, marca fortemente a infiltração no campo das artes visuais de maneira
que foi escolhido para abrir a Bienal de São Paulo em 2008. Sobre Cao Guimarães, e em especial sobre esses dois
trabalhos Esther Hamburger escreveu:

O movimento em direção ao documentário vem em busca da elaboração artística do acidente, do imprevisto, do


inusitado, daquilo que escapa às regras dos gêneros narrativos. Esse foco no inexplicável como elemento produtivo
que tece a sociabilidade cotidiana, esbarra nos grandes acidentes, matéria-prima por excelência do espetáculo visual.
Mas o movimento se dá justamente na direção de forjar abordagens que fujam das fórmulas convencionais. Longe dos
grandes eventos ou das personagens célebres, interessa a digressão sobre detalhes em geral invisíveis ou enredados
em uma série de outros elementos. (HAMBURGUER, 2007: 114)

Não poderia deixar de citar Rua de Mão Dupla, vídeo-instalação documental (posteriormente transformada
em vídeo single-channel) que exibe duplas de pessoas em diferentes monitores. Essas duplas trocaram de casa
por 24h munidas com uma câmera. O material é editado de maneira que vemos uma pessoa observando o “outro”
filmando sua casa e, depois, comentando sobre suas impressões.
Se já em Vertov ligações entre o documentário e as práticas modernistas se revelam, se no cinema direto e
no cinema verdade a estrutura clássica dos documentários é questionada e suas perspectivas ampliadas, é no vídeo
brasileiro que a tensão entre documentário e artes plásticas chega ao seu ápice para este estudo, apresentando-
se com toda sua complexidade e diversidade. Esses trabalhos citados aqui fugazmente demonstram a riqueza e
produtividade da efervescente conexão entre as artes visuais e o documentário no contexto brasileiro.

363
Referências bibliográficas

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André Hallak - Doutorando na ECO-UFRJ. Mestrado em artes pela EBA – UFMG. Sócio da produtora Trem
Chic, onde coordena a área de cinema e televisão. Recentemente dirigiu o documentário para televisão Travessia
de Olhares, produziu o documentário A Terceira Margem, lançado no DOK Leipzig (Alemanha) e vencedor do
prêmio da crítica no É Tudo Verdade 2017 e fotografou o documentário Improviso Ambulante. Foi professor da
graduação e pós na Escola Guignard – UEMG entre 2010 e 2015. É presidente da ONG Oficina de Imagens –
Comunicação e Educação. Recentemente ganhou o prêmio DocMontevideo dentro do CIneBH com o projeto de
documentário “Arquivo de Lava”. Em 2016 esteve presente no festival de San Sebastian (Espanha), Plataforma
Lab (Porto Alegre), MicSul (Colômbia), Dok Leipzig (Alemanha) e EAVE (São Paulo).

365
30. (TRANS)TORNAR (A)O TEMPO E (A)A IMAGEM

Danusa Depes Portas

Bahamas Hotel Club, 2018376

Vivemos em tempos de perguntas fortes e de respostas débeis. As perguntas fortes se dirigem a nossas
raízes, aos fundamentos que criam horizontes de possibilidades entre os quais é possível eleger. Por isso, são
perguntas que geram uma perplexidade especial. As respostas débeis são as que não conseguem reduzir essa
complexidade senão, ao contrário, podem aumenta-la. Nesse ensaio, busco identificar algumas das vias para
formular uma resposta forte a estas perguntas ou, pelo menos, uma resposta consciente de sua debilidade.
A epígrafe visual que abre o trabalho, imagem de autoria desconhecida que circulou nas redes sociais,
em 07 de abril de 2018, por ocasião da prisão do ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, além
de sintomática, explicita a operação conceitual evocada no enunciado que intitula esse ensaio. Parece-me
extremamente sugestiva a ideia de que estaríamos assistindo a um deslocamento molar e quase tectônico (em
que a relação com a visualidade e as imagens não é fator menor) do próprio significado e do que chamamos
conhecimento nas sociedades contemporâneas, marcado intensa e precisamente pelo processo de globalização e
o encontro resultante de uma multiplicidade de formações culturais diferenciadas. A tomada de partido a favor
de que o desenvolvimento desse processo se decante de maneira mais democrática possível – quer dizer, com o
menor grau de hegemonia e dominação de uma formação em exclusão de outra –, constitui a meu modo de ver o
grande desafio não só para as práticas de representação e produção de imagem e visibilidade, mas também para a
própria produção teórico-crítica que a confronta.
Um dos desafios pendentes para o campo dos Estudos Visuais que se encontram em desenvolvimento na
América Latina é a construção de um lugar de enunciação a partir do qual situar histórica e geopoliticamente
seus conhecimentos. Os processos de visualidade em nosso subcontinente propõem singularidades históricas,
culturais e epistêmicas que não foram abordadas em toda sua (devida) complexidade; quando muito nas
gramáticas transculturais da globalização e nos discursos interculturalistas da pós-colonialidade (LEON, 2010).
A colonialidade do ver é constitutiva da Modernidade e, em consequência, opera como um modelo heterárquico
de dominação, determinante para todas as instâncias da vida contemporânea (BARRIEDOS, 2010). Pergunto:
Que consequências supõem que a visualidade na América Latina seja pensada, ensinada e reproduzida sem uma
leitura crítica (e decolonial) dos processos de racionalização dos sujeitos e das subjetividades enquanto agentes
políticos?
Parece estratégico, a partir dessa interrogante, problematizar e criar distinções na textura do tempo. A
natureza heterócrona das culturas do mundo, incluindo suas incoerências e incomensurabilidades, somente pode
ser articulada fazendo menção a algum denominador comum. O sistema de tempo dominante é o instaurado durante
o período colonial. E é preciso notar que a espiral de sinônimos para referir-se ao momento atual – modernismo,

376 Em cena, uma prostituta nua, as fotos de um juiz (Sérgio Moro) e de uma ministra do STF (Carmem Lúcia) pen-
durada na fachada do Bahamas Hotel Club, prostíbulo de propriedade de Oscar Maroni, vestido de presidiário. Na plateia,
uma massa de homens comemoram a prisão de um ex-presidente.
366
pós-modernismo, pós-colonialismo, a contemporaneidade e o contemporâneo – revela uma confusão que rodeia
a sua ideia do tempo. As consequências filosóficas e psicológicas da negação das narrativas culturais herdadas
dos séculos XIX e XX – baseadas em noções cronológicas e ao mesmo tempo teleológicas do desenvolvimento
histórico – são atualmente mais claras do que nunca. O tempo persegue a produção cultural contemporânea de
uma forma nova e inquietante. Seja na História ou na Antropologia, na História da Arte ou nos Estudos Visuais,
o trabalho de interpretação se confronta com a necessidade de analisar o tempo de novo e reabilitar a pergunta
sobre o tempo que habitamos agora.
Os Estudos Visuais e a Crítica Cultural têm colocado na agenda a importância de considerar as imagens
no campo ampliado de produção, circulação, consumo, nas relações geopolíticas nas quais a assimetria cultural
em nível internacional é a norma. Para o estudo do visual, os rastros e as marcas da existência do tempo estão
nos artefatos. A muitos desses objetos – senão todos – foram atribuídos durante muito tempo uma presença
estética e ontológica que lhes impede de acomodar-se firmemente dentro dos sistemas epistemológicos. Eles
sugerem excessivamente algo totalmente compreensível, algo que a linguagem não pode capturar. Mesmo que
suas imagens sirvam como registros da hora e lugar de sua criação, também apelam para os sentidos e possuem
uma força afetiva que lhes permite atrair atenção nas localizações temporais e culturais muito distantes dos
horizontes nos quais foram criadas. Com o argumento de que as imagens chamam a atenção e requisitam uma
intepretação, vários pensadores recentes têm desenvolvido o conceito de anacronismo como forma de descrever
o processo de mediação que é produzido entre os artefatos, que solicitam uma resposta afetiva e, ao mesmo tempo,
embalam o desejo do historiador ou o crítico contemporâneo de gerar sentido: Georges Didi-Huberman, John
Goodman, Hubert Damish, Mieke Bal, Alexander Nagel, Christopher Wood, entre outros. A textura do passado
será entretecida, pois, considerando a recepção dos artefatos, sua fulguração, no presente. Que o tempo passado
se defina em termos de tempo presente é um lugar comum, no entanto é uma das mudanças de significado quando
levarmos em conta, o encontro anacrônico com outros horizontes históricos. Além disso, seguindo a Walter
Benjamin, podemos considerar que uma vez que a relação do passado com o presente é puramente temporal, a
do passado com a atualidade (Aktualität) é, ao contrário, de caráter dialético: não é de natureza temporal, mas de
natureza pictórica.
Um dos pontos centrais de tal visualidade crítica é o fato de que ao longo do século XX surge uma arte
na qual a questão da memória torna-se central, e isso justifica a arte hoje se apresentar como um enorme arquivo
do nosso presente. Uso a terminologia arquivo, concebida por Michel Foucault, como sistema que governa a
aparição de declarações, que estrutura expressões particulares de um período específico. Portanto, se um arquivo
estrutura os termos do dizível | do visível também limita o que pode ou não ser dito|visto em determinada época e
lugar. Com base nessa inflexão, proponho um vistazo em uma série de obras do artista belga radicado no México,
Francis Alÿs, sob a inscrição Políticas del ensayo, entre elas: filme-ensaio Reel/Unreel (2011) e um filme-ensaio
homônimo Politics of Rehearsal (2005). Alÿs nos apresenta na forma de seus artefatos culturais uma espécie de
atlas portátil da memória latino-americana.

O historiador da arte Aby Warburg e seu notável Der Bilderatlas Mnemosyne (1924) nos ensinou a ler a
totalidade a partir do detalhe. A partir e não no: o detalhe que atrai a atenção do leitor e o faz esquecer por um
momento que a totalidade da obra vale por esta, não porque a represente, mas porque instaura um novo ponto de
vista para pensa-la. A perspectiva que lanço sobre Políticas del ensayo, examina o dispositivo de Alÿs como um
teatro de operações, a partir do qual teço alguns comentários em dripping minimalista.

I. Tornar o tempo e a imagem.


367
Restituir, transformar o tempo e a imagem. Torna-se urgente (re)pensar o papel das imagens em uma
reformulação necessária de nossos ofícios. Minha pesquisa tem se dedicado a ensaiar alguns caminhos heurísticos
e metodológicos com o intuito de revelar como as imagens conhecem e produzem pensamento. Subscrevo, como
princípio, uma afirmação polêmica em Picture Theory (1994), a de que a interação entre imagens e textos seria
constitutiva da representação em si: todos os meios são meios mistos e todas as representações são heterogêneas;
não existem as artes puramente visuais ou verbais, ainda que o impulso de purificar os meios seja um dos gestos
utópicos mais importantes do modernismo (MITCHELL). As diferenças entre imagem e linguagem não são
questões meramente formais: na prática estão relacionadas com coisas como a diferença entre o eu (que fala) e o
outro (que é visto); entre o dizer e o mostrar; entre as palavras (escutadas, citadas, inscritas) e os objetos ou ações
(vistos, figurados, descritos); entre os canais sensoriais, as tradições de representação e os modos de experiência.
Podemos adotar a terminologia de Michel de Certeau (1986) e chamar a intensão de descrever estas experiências
de uma heterologia da representação377 acompanhando o deslocamento da imagem para o centro dos debates
sobre o papel da representação nas culturas contemporâneas.
Todavia, a início do século XX, em seu Bilderatlas Mnemosyne, Aby Warburg havia concebido um
modelo fantasmal para a história da arte que não era regida por ciclos de vida e morte, grandeza e decadência,
transmissões e influências, mas por Nachleben (sobrevivências): reaparições de formas e motivos, latências,
migrações e anacronismos que as constelações de imagens do atlas revelam na montagem. A História da Arte
nunca nasce – diz Warburg –, ela volta a começar, a cada vez, no presente.
Também a arte e as ficções da América Latina iluminam formas variadas da sobrevivência nas constelações
do atlas portátil de Alÿs, a exemplo do motivo visual disparador do seu filme-ensaio Reel| Unreel (2011).
Aproximando-se por ignorada afinidade a celebre verso de Wally Salmão que abre o seu poema Carta aberta
a John Ashbery (1995): “A memória é uma ilha de edição”. Restitui. Transforma. Desdobra. O sur-realismo,
borrado estrategicamente nas genealogias acadêmicas, mostra seus rastros ainda vivos na arte de hoje; textos e
imagens de tempos, espaços e tradições diversas dialogam arrazoada ou deliberadamente no horizonte ampliado
da errância; a história e as tragédias do passado se reescrevem com formas novas. São apenas alguns exemplos das
relações que o olhar abrasador do atlas torna visível nos intervalos. “Os pensamentos atravessam as fronteiras”,
escreveu Warburg, “livres de direitos alfandegários”. A história da arte da América Latina poderia recompor-se por
completo a partir do presente na grande cena de encontros da arte do mundo, atendendo nas sobrevivências mais
que os limites convencionais das nações, os continentes, as tradições culturais e as especificidades disciplinares.
A arte latino-americana tem encontrado formas instáveis capazes de multiplicar as conexões e a variedade
das conexões, dispondo coleções de objets trouvés minimamente díspares, tramando relações visíveis entre objetos
de ordens e espécies inconciliáveis, ou criando arquivos digitais de imagens apropriadas; ela tem concebido
heterotopias materiais e virtuais que funcionam como instâncias visíveis de convivência do diverso, teatros
sintéticos das diferenças, práticas portáteis que podem enraizar em qualquer parte. São modelos heurísticos que
revelam de maneira urgente a experiência dos condenados ao isolamento em esferas instransponíveis ou a uma
conectividade narcótica das redes da cultura da sucata.

II. Tornar ao tempo e à imagem.



Responder ao tempo e à imagem. Ao invés de definir as condições de possibilidade, considero os termos

377 Michel de Montaigne em Des Cannibales inventa o que Certeau chamou de heterologia, isto é, um discurso do
outro que é ao mesmo tempo discurso sobre o outro em que o outro fala.

368
de pensabilidade do ensaio. Em lugar de uma categoria ou gênero, gostaria de conceber o ensaio antes como um
modo, retórico ou poético, de (re)compor, de montar – de responder ao tempo e à imagem. Tento sondar a que
ponto o ensaio pode ser tomado como uma linguagem da experiência, como uma linguagem que modula de um
modo particular a relação entre experiência e pensamento, entre experiência e subjetividade, e entre experiência e
multiplicidade. Parto da hipótese de que a obra de Francis Alÿs constitui uma operação-ensaio no pensamento, na
escrita e na vida. A questão seria o modo como ele opera sobre o ensaio, para fazê-lo habitável e operativo. Alÿs
propõe em uma imaginação teórica: pensar o presente do ponto de vista de sua desrealização; pensar o sujeito, do
ponto de vista de sua transformação; pensar a crítica como um exercício de liberdade; transformar em problema
a relação entre escrita|tura e pensamento.
O ensaio não está fora do tempo, mas no tempo e, além disso, em um tempo consciente de sua fugacidade,
de sua caducidade, de sua finitude, de sua contingência. Trata-se, portanto, de dar forma a uma experiência do
presente no ensaio. O que interessa ao ensaísta-historiador e a história do presente: não a verdade de nosso pas-
sado, mas o passado de nossas verdades. Esta relação constitui-se com o presente na arqueologia, na genealogia:
a arqueologia de nosso conhecimento, a genealogia de nossas práticas. Trata-se de deslocar o presente, desnatu-
ralizar o presente, de estranhar o presente, de converter o presente não em tema, mas em problema, para dar-nos
conta de quanto artificial, arbitrário e produzido é o que nos parece dado.
Pensar o sujeito, esta primeira pessoa do singular que pensa, escreve e vive do ponto de vista de sua trans-
formação. O ensaio aparece com o eu, com o sujeito (ego cogito) em sua precariedade, em sua relatividade, em
sua contingencia. Daí, seguindo a Adorno, poderíamos chamar a coerção da identidade. Poderíamos dizer que
o ensaio parte de um dos princípios fundamentais do pensamento moderno: o sujeito como lugar e fundamento
da verdade. O ensaio pertence, sem dúvida, a esse sistema de pensamento que Foucault chama de pensamento
antropológico. A primeira não aparece necessariamente como tema, mas como um ponto de vista, um olhar, uma
posição discursiva, uma posição de pensante. Trata-se não de uma verdade subjetiva, mas a verdade da subjetivi-
dade. Não de medir o que há, mas de medir-se com o que há, de experimentar seus limites, de inventar seus meios.
Portanto, o ensaísta não só põe em questão o que somos, o que sabemos, o que pensamos, o que dizemos, o modo
como olhamos, como sentimos, como julgamos, mas, sobretudo, põe em jogo a si mesmo nesse questionamento.
Portanto, o ensaio é também olhar a existência do possível, ensaiar novas possibilidades de vida.
Pensar a crítica, o pensamento, como exercício de liberdade, como exercício mais afirmativo que nega-
tivo mais de exposição que de oposição. O ensaísta abre e ajusta uma distância. A pergunta é se essa distância
ainda pode ser chamada uma distância crítica ou uma distância reflexiva. O ensaio nasceu da crítica. Se o ensaio
é um gênero da crítica, logo será o gênero da crise, da crise de uma (certa) forma de pensar, de falar, de viver. A
experiência do presente faz deste presente mesmo um momento crítico. É nessa mutação que o ensaísta deseja
insertar-se. O ensaio e a escritura de um tempo inseguro e problemático, de um tempo à deriva, como dizia Mon-
taigne. Portanto, o ensaio floresce no final do Renascimento, quando termina a grande cultura medieval com base
teológica; também na Ilustração, quando o espírito crítico da Ilustração coincide com a crise das filosofias siste-
máticas do século XVII; também no século XIX, ao final das grandes construções do idealismo; e talvez agora,
no presente, com a crise da Modernidade. Desde sua origem, a forma ensaio mantém um traço de tentativa, de
uma escritura exposta ao risco. Não se trata, contudo, no ensaio, de cotejar a realidade com a ideia, mas cotejar
a experiência em relação com a verdade do poder e ao poder da verdade. Algo que, talvez, possamos chamar de
pensamento.
Converter em problema a relação entre escritura e pensamento. A escritura é um dos lugares do ensaio.
Não há dúvida de que certos modos de produção artística também são atravessados pela operação ensaio. No
ensaio moderno, precisamente por sua vontade de autoria, o estilo expressa, ao mesmo tempo, a experiência de
um sujeito e a construção de um mundo. O estilo é o homem, ou o autor, ou o sujeito. O estilo é a marca de uma
369
subjetividade na linguagem – e na verdade. Mas na obra de Francis Alÿs se trata de outra coisa. E aí o dizível|
visível aparece como o lugar do pensamento e como o enigma de um fosso reflexivo que se abre.
Em Alÿs, ensaiar seria uma experiência simultânea de inscrição e pensamento, uma experiência na qual se
decidiria o que nos é dado dizer e o que nos e dado pensar, enquanto que, no presente, na primeira pessoa. Assim que
pensar de outra forma requer uma inscrição em outras formas, e nossa vontade de outro pensamento é inseparável de
nossa vontade de outra língua.
As obras de Alÿs são reconhecidas por utilizar métodos poéticos e alegóricos para abordar diversas reali-
dades políticas e sociais de diferentes cidades do mundo, e realizar o registro dessas experiências em instalações,
livros, ensaios-fílmicos etcetera, como a célebre ação Cuando la fe mueve montañas, em que 500 voluntários
deslocaram 1 cm de areia para modificar a posição de uma duna nas imediações de Lima (Peru), nos tempos de
Fujimori e do Sendero Luminoso. Diz Alÿs: Sí, se puede hacer milagros! Me pregunto hasta qué punto la poesia
tiene relevância frente a estas tragédias humanas. Uma história mínima, simples, poética.

III. Transtornar o tempo e a imagem

Políticas del ensayo| Politics of Rehearsal é uma metáfora do encontro ambíguo da América Latina
com a Modernidade – incessantemente lasciva, e, no entanto, sempre dilatando o momento em que isso vai se
consumar. Marcado o limite inicial, gostaria de apontar duas condições de possibilidade que fundamentam tal
relação, que inquietam tempo e imagem,
A primeira condição de possibilidade refere-se à reformulação por parte da arte da função da imagem e do
imaginário, em consequência do desenvolvimento da sociedade de consumo e da produção industrial de objetos.
Na realidade o que muda é o estatuto dos signos, socialmente falando; de modo que a sociedade industrial gera
todo um novo código de signos que aludi concretamente o consumo. A arte pop e mais exatamente Andy Warhol é
quem pôde entender, em seu momento histórico, o valor deste universo de signos com que o receptor se depara. Isto
é, signos que se produzem e se distribuem massivamente; e uma codificação simbólica que ocorre graças à própria
sociedade industrial. O sentido do signo muda porque o signo não necessariamente se refere a uma realidade ou a
uma verdade. Refere-se a uma circulação, a um produto, a um desejo – mas não necessariamente a uma realidade.
Isso seria como uma primeira condição. O modo como circulam os signos faz com que evidentemente o sentido
| o valor da arte seja mais um fenômeno de comunicação ou de informação do que de experiência. Fato que seria
fundamental para entender como entra a filosofia e o pensamento analítico partícipe da própria pesquisa artística.
Entretanto, nas práticas contemporâneas de arte, a apropriação do poético tem uma relação estrita com
certos tipos de ações, onde o que se libera é uma espécie de afeto, de emoção, que é precismente no que ela
consiste – seu valor está justo em liberar essa emoção. Quer dizer, não é constituída para ser vista, nem para ser
consumida, nem para ser exibida. Nesse sentido, há uma poética em que a liberação de afeto funcionaria como
uma espécie de micropolítica de reconfiguração do espaço público.378 Práticas que se ajustam a essa relação
entre poética e política. Há poéticas (processos, ações e afetos) que o que fazem é interromper o espaço político
para reconfigurar (ao menos por um momento) uma situação vital. São momentos de produção de um campo de
intensidade.
A arte hoje não pode ser pensada fora do mundo da imagem. Fora dos meios massivos de comunicação.
Fora do mundo da circulação da informação. Penso que se não há como horizonte esse uso ideológico que a
indústria do entretenimento faz da imagem dificilmente pode-se entender como funciona a produção de arte no
momento contemporâneo. Portanto, a arte hoje quer ser institucionalizada pelo processo de produção, distribuição
378 Espaço Público não é só o espaço físico como a praça (a ágora). Mas também os meios de comunica-
370
e visibilidade. E é importante frisar que na atualidade é o museu e não a fábrica que produz a força material. O
problema então não é se si teria ou não que negociar com esses espaços, mas como são operadas as negociações
nesses espaços. Como o teatro de operações de Alÿs, parece-me que a tarefa da arte, a partir de um repertório
cultural, é a de intervir no espaço público (real, imaginário, simbólico – para usar a tríade lacaniana), buscando
os interstícios, lugares de cruzamento, que amplificam nossa experiência.
A segunda condição de possibilidade que gostaria de apontar é acerca de como uma multiplicidade de
confrontos e aberturas tanto de discursos como práticas artísticas e como práticas políticas tem relação com a
ampliação do lastro de perguntas sobre o poder. Simultaneamente, o que tem ocorrido é precisamente que todos
os territórios de distintos modelos de poder e a forma em que os sujeitos são associados, entrelaçados em relações
desiguais ou são instrumentalizados para determinados fins – aquilo que Foucault denominou as tecnologias
de poder. Tudo isso tem constituído um campo em que, praticamente, de maneira sistemática, os artistas têm
estado manejando; ou seja, fazendo visíveis as formas em que opera a sedução da mercadoria, que é o poder mais
significativo que experimentamos. Quer dizer: (1) as formas em que o poder de sedução do erotismo permeia a
visibilidade das figuras sociais; (2) a mesma maneira em que a sedução do aparato social opera e como este exerce
um estabelecimento de hierarquias; (3) e o problema da tecnologia geral de vigilância e controle de sujeitos.
Menciono então duas motivações que produziram um deslocamento da arte contemporânea para estabelecer
uma multiplicidade de precipitações para esse problema – onde a pergunta do poder esta sendo constantemente
atualizada. Por um lado, na discussão interna, que herdamos do conceitualismo, sobre as condições de incisões
culturais e de como opera a própria produção artística como um mecanismo de poder(es) e saber(es). O trabalho
então é uma força material (momentos de sensações e momentos de memória), objetos catalizadores não de um
pedaço de matéria, mas de processo de participação – facilitam um processo de sinergia social. Também, de uma
maneira muito significativa, ao acompanhar a crítica dos poderes que a emergência de determinados sujeitos tem
significado – isto que abarca a emergência das identidades divergentes (em termos de gênero e raça) –, como
também o poder muito significativo no âmbito cultural da estrutura de diferenciação geográfica e econômica (de
centro e periferia).379
Há uma maneira em que se pode pensar a situação da arte como uma politização da arte no sentido
de prover enfoques determinados de crítica e desmantelamento, ou de entrelaçamento e intervenção de uma
multiplicidade de estruturas de poder. O decisivo, entretanto, é que todas essas confrontações não assumem a
exterioridade do poder senão que, tanto os sujeitos que estão participando, como as próprias produções artísticas
mesmas, estão dentro das tramas do poder de alguma maneira, constituindo essa colonialidade do ver. Somente
aí – por dentro do dispositivo – parece possível disparar um questionamento. Em Politicas del ensayo, o que
faz Alÿs é renderizar a percepção da temporalidade, a partir da disjunção constitutiva da banda sonora (gravada
previamente com o depoimento do crítico mexicano Cualhtemoc Medina) e da banda visual (criando uma cena
onde diversas dimensões tempo|espaço operam dentro do quadro a partir de motivos visuais). Uma das discussões
que enfatiza Medina é a respeito desse caráter ensaístico do dispositivo de Alÿs (una oscilazón permanente y
eterno retrazo del fin), esse deter-se na medialidade (o que Giorgio Agamben chama de meio sem fim), a fim de
arguir sobre a legibilidade, metodológica e crítica, sobre a memoria inquieta das imagens, sobre os disparates da
cultura visual e os desastres da história, inclusive hoje por remontar poética e politicamente.

ção/internet (os intercâmbios virtuais à distância, mas que podem configurar redes em que se exerce o público).
379 O que Hal Foster denomina o giro etnográfico das artes contemporâneas. O que quer dizer isso? Ao assumir que
a posição ou o ponto de vista importa na produção de discurso, que o conhecimento está conjugado por interesses dos
responsáveis por sua articulação, ele defende que a cultura visual está arriscada a comprometer as concepções de história
tradicional. Quer dizer, Foster opõem assim a diacronia da sincronia, alegando que esta última ganha em detrimento da
primeira. Assumir a espacialidade da cultura, a multiplicidade de enfoques que a anima, parece algo incompatível com a
cronologia.
371
Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. Heterologies: Discourse on the Other. Minneapolis: University Minnesota Press, 1986.
FOSTER, Hal. O artista como etnógrafo. In: O retorno do real. São Paulo: Cosac & Naify, 2014. 
__________. “The Archive Without Museums”, in October 77, 1996.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
LA TRONKAL. Desenganche - visualidad y sonoridad outra. Quito: La Tronkal, 2010.

MITCHELL, W.J.T. Picture Theory. Essays on Verbal and Visual Representation. Chicago: University Chicago
Press, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa: Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo: Ediciones Trilce, 2010.

Danusa Depes Portas - Bacharel em língua e literatura brasileira (PUC-RJ, 2002). Mestre em estudos de
literatura (PUC-RJ, 2005). Doutora em literatura, cultura e contemporaneidade (PUC-Rio, 2015). Desenvolveu os
projetos: Imagem, Representação e Identidade Cultural na Literatura e nas Artes Brasileiras (CNPq, 1998 - 2001),
Imagens Contemporâneas (do Sublime), um estudo em torno da experiência estética (FAPERJ MSC 10, 2003-
2005), Imagens Mi(g)rantes (CNPq, 2010-2015). Integra o grupo de pesquisa (CNPq, 2003-atual) e A literatura
brasileira contemporânea e sua crítica ( 2015-atual). Diretora e roteirista na empresa Cena Tropical Comunicações
(1996 – 2000), Coordenadora do Núcleo de Cultura Visual do Programa Solidariedade: Integração Juventude e
Sociedade. Implementou uma proposta pedagógica na área de cultura visual e inclusão social, atendendo alunos
de escolas públicas e jovens das comunidades próximas ao bairro de Laranjeiras, na ONG Obra de Promoção
de Jovens (Stichting Porticus, Amsterdam e Instituto C&A de Desenvolvimento Social, 2005-2008) através de
projetos com fotografia: Educação do Olhar: Memória do Bairro (FotoRio, 2007), Cinema Retrato Mal-falado
(Festival do Rio, 2007), entre outros. Lecionou práticas de leitura e produção textual na mesma instituição (2006-
2007). Integrou o grupo de pesquisa Imagem/, coordenado pelo professor Maurício Lissovsky(ECO/UFRJ).

372
31. IMAGENS RETOMADAS: A EXPERIMENTAÇÃO NO FILME
NHANDE YWY

Ana Lúcia Ferraz

Em Nhande Ywy, a retomada entre os guarani nhandeva é apresentada não apenas como um retorno às
terras onde nasceram seus pais e foram enterrados seus avós, mas também como um retorno às práticas associadas
ao universo xamânico, às relações com a alimentação e com os modos de transmitir conhecimento às novas
gerações que estão relacionados ao território e caracterizam o ser guarani. A aldeia Potrero Guassú (situada no
município de Paranhos, MS, fronteira com o Paraguai) se organiza a partir do contexto da retomada de terras
ancestrais. A retomada é também de outras práticas que foram abandonadas durante as décadas de 70 a 90, quando
foram removidos pelo Estado para as Reservas Indígenas da região.

A vida guarani na fronteira é experimentada como o tempo de espera pela homologação da demarcação, o
que ocasiona conflitos quando os fazendeiros pagam pistoleiros para atacarem as aldeias. O território imaginado
pelos guarani é mais amplo que o de uma aldeia, são percursos de viagem entre aldeias, com lugares sagrados
e águas poderosas, cascatas, rios, lagos, águas que crescem e tomam a terra. Na concepção guarani, a agência
dos outros seres que habitam a terra deve ser observada, discutida, compreendida. Como Heléne Clastres (1978)
nos apresenta, os fenômenos naturais são manifestações dos ancestrais e guardam mensagens. No caso Mbya,
que ainda usam seus nomes tradicionais, os nomes dos homens são referências a tais ancestrais e designam
forças, poderes, que não distinguem agências humanas e não humanas. Os animais eram antigos humanos que se
negaram a deixar a terra e foram transformados por Nhanderu.

Um dos lugares sagrados guarani na fronteira era Itaipu, a pedra que soa. As cascatas eram visitadas como
lugar de força e havia inúmeras aldeias nas margens do Rio Paraná. O processo de construção da hidrelétrica,
que adotou o nome guarani, e o alagamento das margens do rio gerou, no fim dos anos 80, mais um processo de
desterritorialização de inúmeras parentelas que migram imediatamente para as aldeias situadas nos estados do
Paraná e Mato Grosso do Sul. A reserva Porto Lindo, situada no município de Japorã/MS, é uma das que recebeu
inúmeras famílias oriundas desse deslocamento380, e que, em consequência dessa sobre-população, organiza a
retomada da terra Ywy Katu, nos anos 2000. As retomadas são a ação das parentelas Guarani pela recuperação de
seus territórios dada a história da apropriação da terra incentivada pelas políticas desenvolvimentistas do Estado
brasileiro.

380 Segundo dados do Centro de Trabalho Indigenista. Arquivo Centro de Trabalho Indigenista/Oeste do Paraná.
Depoimentos dos índios Avá-Guarani coletados entre 2012 e 2013.

373
Nessa região, ao longo dos anos 90, as terras foram retomadas. Paraguassu, Jaguapiré, Piraquá, Sete
Cerros, foram os casos que deram o exemplo a duas famílias que juntas retomam os territórios da chamada aldeia
Potrero Guassu. Em 1971, os moradores destas terras foram levados à Reserva Indígena Pirajuí, criada nos anos
20 pelo SPI, retornando em 1998, ao chão que conhecem, onde semearam há gerações e enterraram os seus avós.

Ouvimos do cacique Elpídio Pires a história da visão de uma cidade ancestral submersa. Aqui, mito
e história se complementam. Diversas histórias estão presentes nesse relato: a história de invisibilização do
território guarani, resultado dos projetos de hegemonia e controle das fronteiras nacionais entre Brasil e Paraguai,
que incluí o alagamento das margens do rio Paraná – que marca a faixa de fronteira em todo o estado do Paraná,
de Foz do Iguaçu, onde se construiu entre o fim dos anos 70 e 1984 a Hidrelétrica de Itaipu – até o Mato Grosso
do Sul, que passa a se chamar assim no fim da guerra do Paraguai; e, a lógica do mito que relata a existência de
lugares onde vivem os ancestrais dos avá.

Frente à história de esbulho territorial, em que o encurtamento do território guarani é exponencial, os


Nhandeva buscam mensagens de seus ancestrais sobre como proceder, que fazer frente à situação em que a vida
do modo de ser guarani se faz complicada. Os fenômenos naturais – o frio prolongado, a geada, um vento forte, os
raios e os relâmpagos – são sinais dos ancestrais, os que vieram primeiro. Compreender essa semiótica da agência
de outras forças implica em mergulhar na metafísica guarani: os que vieram antes e se retiraram desse mundo
imperfeito enviam suas mensagens nos sonhos e nos sinais que se fazem ler na natureza.

Uma cosmopolítica dos sonhos (Glowczewski, 2015) se arma a partir de visões que organizam grupos de
parentesco. Para o mburuvixá Elpídio Pires, interlocutor de minha pesquisa, a imagem do avô morto, vista em
sonho, enterrado no antigo território, é o motor que faz cantar e dançar as palavras sábias dos antigos, nas ações
pela recuperação das terras já demarcadas, mas nunca homologadas pela presidência da república do Brasil. Ao
falar do sonho (?) Elpído relata:

“Eu tenho sonhos, várias vezes. Esses dias, eu tive um sonho e esse sonho pesou muito em mim. Eu
não falei para a minha esposa, para ninguém, o que eu sonhei. Esses dias eu estava sonhando com
o meu avô. O meu avô saía, estando lá (na terra onde ele nasceu). Eu sonhei, então a imagem dele
está comigo. Eu falei para a minha mãe: Eu vi hoje o meu avô; só que ele estava vestido em mim”.
(Cacique Elpídio Pires, em Potrero Guassú, agosto de 2016. grifo meu).

Pensar a especificidade de uma noção de imagem que é visão onírica, que revela que “a imagem dele está
comigo”, compreender o que é “ele estava vestido em mim”, implica afirmar que existe aqui uma concepção
específica de imagem. Para os guarani, o sonho tem um lugar de revelação de mensagens a serem interpretadas
e postas em ação nas relações hodiernas. Aexa ra’ú, hoje eu sonhei, dizem. A experiência onírica é fundamental
na iniciação xamânica, é nos sonhos que se aprendem os cantos. Mattos (2005) descreve a dimensão do orendu,
saber escutar nos sonhos, dimensão fundamental da aprendizagem; Refatti (2015), que estuda a aldeia Oco’y
localizada sobre as margens do Rio Paraná, em área alagada pela Usina de Itaipu, também o sublinha. Há uma
áudio-visualidade relacionada à revelação dos que vieram primeiro. Assim, a linguagem do cinema e o universo
do xamanismo compartilham a ideia de uma virtualidade da imagem que afeta e produz.

Os guarani concebem o sonho como o realmente visto, os rezadores são os especialistas em sonhar para

374
ver, são os que sonham as evidencias necessárias para pautar o fazer. “Os sonhos proféticos dos xamãs são cheios
de evidências visuais” (Kracke, 2009:70). “Os cognatos do termo ra’ú abrangem as noções de figura, por exemplo,
em oga ra’úva (a figura de uma casa); se alguém sonha com um peixe, pirá ra’úva. Ou, incluem também as ideias
de alma, espírito, ou força vital. O radical ra’úv indica também o fantasma ou espírito do morto”. Em guarani
antigo, a forma ra’ú (Kracke, 2009) envolve previsão, prognóstico.
O sonho verdadeiro (ou bom) produz a visão – quando o corpo voa, passeia. Para a alma passear é necessário
ter o corpo leve, acreditar. Os guaranis relacionam sonhos e narrativas míticas ao narrarem o passeio visionário da
alma. Nessa concepção, o sonho é real, portador de sinais que são recomendações para a vida concreta, cotidiana,
implica em agir ou não. Nimuendajú (1987) observou entre os apapocuva guarani a importância dos sonhos e sua
interferência na seleção do lugar para viver. “O sonhado deve ser cantado até o amanhecer, o que atrai os Guarani
para a casa do sonhador, quem sonha sabe e pode muito mais do que aquele que não sonha, o sonho é expressão
de poder” (Nimuendajú, 1987).
Os sonhos não só são prognósticos de acontecimentos como possibilitam ou evitam determinadas ações
cotidianas. Todos sonham e de alguma forma todos tem um pouco de xamã no sentido que Kracke (1990) dá ao
termo. Para o autor: “qualquer um que sonhe, dizem, tem um pouco de xamã: tem um pouco de pajé” (Kracke,
1990: 146, tradução nossa). Para ele, o sonho é um meio importante não só para captar a realidade, mas, sobretudo,
para atuar dentro dela (Kracke, 1990).
A lógica do mito tira o passado do lugar da memória, sem deixar de operar no campo da história. O tempo
dos primeiros é simultâneo e atua sobre o presente, determinando inclusive o campo das alianças. Mito e história
aqui não mais se opõem. Como no xamanismo, as relações de alteridade – não apenas como mundo do branco –
são centrais e organizam a vida, são lugares de perigo. A composição entre mito e história do contato revela como
a cosmologia é aberta e campo de operação de composições. Observo como os guaranis incorporam os dados
históricos ao mito, incorporando o outro em seu sistema de conhecimento. Além disso, pensar a diáspora Guarani
implica em associar o princípio cosmológico do caminhar (oguatá) ao processo histórico de desterritorizalização
organizado pelas entradas coloniais nas terras do Brasil Central em direção ao Paraguai.
As relações do xamanismo com as tecnologias de produção de imagem já foram apontadas e destacam o
interesse pelas técnicas do branco (Ferreira, 2009), como experiência visionária ou “pensando como as culturas
acessam a dimensão virtual da realidade” (Santos, 2013:58). No tempo do ritual, assumir a voz do outro: vocalizar
o inimigo, o ancestral, incorporar suas presenças. “O sonho não “serve à consciência numa relação de utilidade
como se pode deduzir (e como parece fazer Meliá). O sonho é o próprio caminho, a própria linha de fuga. Ele é o
eixo perceptivo para onde deve ser conduzida a consciência e não o inverso/contrário” (Mattos, 2005).
A partir dessa experiência de produção audiovisual, pensamos a imagem como campo das relações
de alteridade. As cosmologias ameríndias das terras baixas da América do Sul apontam uma força incrível de
resistência a séculos de expropriação. Elaborar as alianças potenciais é forma de devir outro; nessa concepção,
a aliança é o que define as condições intensivas do sistema. Cabe entender quais são as imagens produtivas,
realizadas em quais situações, a partir de quais relações, entre que diferenças intensivas.

Dominar a tecnologia do outro

Nessa investigação, o processo cinematográfico encontra a especificidade de uma noção de imagem


potente, criadora e polissêmica, armada a partir do universo conceitual próprio aos guarani. Primeiro, realizei
oficinas de vídeo nas aldeias da região durante quatro anos, momento em que pude observar a facilidade com que
os jovens aprendem a manejar a câmera de vídeo e o interesse que a nossa presença (e a dos equipamentos) gera

375
nas aldeias. Diferentes gerações se aproximavam atentas e disponíveis, os rezadores vinham para abrir e fechar
os trabalhos diariamente.

O jovem realizador Kiki Kaiowá, que acumula experiências como ator e realizador de cinema, participante
da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI), confronta os saberes do branco e os dos guarani.
Kiki Kaiowá, em Gradella (2015), diz, durante a realização das oficinas ministradas na aldeia Pirajuí/MS, em
2014:

1. “Tinha uma Luz e uma Cruz”. [Sentado em um colchonete, estende os dois braços para o alto]. Bem no
começo – fala com aquele tom que remete a algo distante –, o deus dos Juruá... – Faz um gesto em direção
a Pedro. O deus de vocês, pegou a luz. É por isso que vocês fizeram o computador, a câmera, o trator, o
cinema. O deus de vocês pegou a luz e assim que vocês fazem essas coisas, sabem mais que a gente como
fazer elas todas – aponta para o notebook, ao lado do seu colchonete.
2. O nosso deus pegou a cruz ele segurou a cruz – gesto firme de cerrar o punho, um dedo por vez, como
pegando a cruz no alto. Isso, faz a gente saber das rezas, saber muitas, saber dos cantos das rezas, das
historias – gestos largos enquanto fala, pontua com o dedo batendo no chão – as histórias.
3. A reza que o nosso deus ensinou era pra gente ir para a terra sem mal! Não para ficar aqui, assim, mas o
erro foi nosso, o erro foi nosso mesmo. Tinha que rezar todo mundo junto, na mesma hora, para ir, mas não
foi, não foi todo mundo, quatro, de nós mesmos, não rezaram, saíram, viraram de costas, assim foram fazer
outra coisa. É nosso erro mesmo, por isso a gente não foi, por isso a gente está aqui assim, por isso a gente

reza ainda, a gente sabe muito disso, e vocês de trator, avião, computador...” (Gradella, 2016).

O mito da origem comum que produz um desequilíbrio inicial devido à desigual distribuição das tecnologias
está presente nessa fala de Kiki. Essa concepção do erro dos que não estão unidos para irem juntos à terra sem mal,
me parece ser a versão Kaiowá do mito, não a escutei nunca entre os Mbya ou os Guarani Nhandeva da região.
Mas importante para o nosso argumento é notar como essa desigual distribuição das tecnologias é fundante das
diferenças postas em relação nas oficinas de vídeo. Trata-se, nesse espaço, de aprender o saber do outro, atividade
próxima da do xamã.

O saber do outro é também o de outras espécies, das ervas, e demais plantas que nos sabem curar. O saber
do xamã é o que domina este campo de conhecimentos. Constatei o fascínio pela tecnologia que passa pelo desejo
de incorporar o saber do karaí. O saber do branco deve ser conhecido, aprendido, apropriado.

A antropologia produzida sobre a Melanésia fez a discussão sobre a apropriação de linguagens e


instituições do mundo do branco pelos nativos, na literatura sobre os chamados cargo cults. No filme etnográfico
Trobriand Criquet (Kildea, 1974), o cineasta australiano, Gary Kildea, nos apresenta com riqueza de detalhes
o caso da apropriação do criquet britânico sob a cosmológica trobriandesa. Em A lei de Koriam e a morte que
governa (Koriam’s law and the dead who governs, Kildea, 2005), o autor nos mostra a apropriação do dinheiro e
da burocracia no culto dos ancestrais mortos e como se organiza, a partir dessas apropriações, toda uma estrutura
política territorial própria Kiwung.

Conheci o cacique Elpídio Pires na audiência da Comissão Nacional da Verdade em Dourados, na UFGD
e minha primeira impressão ao ouvi-lo foi marcada pela força de sua palavra. A palavra guarani, nh˜e’é, é ela
mesma a alma, que se manifesta ao falar. Seu Elpídio tem o dom da palavra, diz. Há que se compreender essa
376
afirmação no contexto do sistema cosmológico guarani e das relações de apropriações várias de noções sobretudo
do cristianismo disseminado na região há séculos por meio das Igrejas de diferentes denominações. Ele se altera
quando fala, seus discursos são tão potentes que chamaram a minha atenção desde a primeira vez que o ouvi falar
entre muitos outros.

A segunda vez que nos encontramos foi na oficina de vídeo que realizamos na aldeia Pirajuí, situada
no município de Paranhos/MS, na fronteira paraguaia. O cacique Elpídio, vizinho e ex-morador de Pirajuí,
acompanha os primeiros dias do FIDA, fórum de inclusão digital realizado pela ASCURI, associação de jovens
indígenas produtores de vídeo, sobretudo Guaranis, Kaiowás e Terena. Dirigido pelo cineasta boliviano Ivan
Molina, o encontro reunia jovens de diferentes aldeias da região do cone sul do Mato Grosso do Sul. Realizamos
aí uma série de vídeos, fruto do encontro entre pessoas de diferentes origens, falantes do guarani, em reflexão
sobre suas experiências comuns. Nessa ocasião, visito a casa de seu Elpídio, em Potrero Guassu, e gravamos uma
entrevista.

Anos depois, o Sr. Elpídio vem ao Rio de Janeiro, após sofrer um atentado em sua aldeia, na retomada
das terras chamadas Koenju (parte da área reconhecida pelo laudo do processo de demarcação da aldeia Potrero
Guassu). Em 2016, o encontrei de novo, no Laboratório do Filme Etnográfico da UFF, quando organizamos o
evento Ato-Palavra Guarani, ele nos diz:

4. Eu aprendo com vocês, tirando de vocês a experiência, assim foi a minha educação, o que me passou
meu pai. Como índio, eu sou selvagem, cada um tem que pegar a sabedoria, a experiência, a sabedoria do
branco. Eu tenho que conquistar o branco para eu poder andar. Eu tenho que conquistar o branco, eu tenho
que conquistar a autoridade. (Seu Elpídio, no Laboratório do Filme Etnográfico/UFF, 2015).

E, um ano depois, no momento das gravações de Nhande Ywy, em sua casa, ele retoma o tema: “Meu pai
me dizia: Tenho dois conhecimentos: o do Branco e o de, assim (gestualiza uma forma redonda com as mãos), o
de um analfabeto”. A definição pela falta (em alguém que não sabe escrever) indica já a hierarquização produzida
pelo processo em que o reconhecimento, pelo mundo do branco, dos saberes guaranis não se dá. Indica a falta de
categorias em seu repertório de nossa língua para nomear os saberes de seus antepassados, arandu seria o termo
em Guarani (que ele não utiliza). Conhecer o saber do analfabeto é o que nos falta. A história do despojo territorial
já conhecemos.

A imagem não imita o mundo, ela cria a possibilidade de ver diferentemente.

A ação política guarani que conduz as retomadas passa por esses diálogos com os mortos, os ancestrais,
que são pensados como nhande jara, nossos donos, os criadores do planeta, os que verdadeiramente detêm a força
de fim de mundo, esta que a história colonial não cessa de comprovar. O fim trágico, dos contos de fim de mundo
que Nimuendaju relata, está presente nas histórias que os guarani contam hoje. Sua potência trágica lhes dá
repertorio cultural para lidar com a situação de enclausuramento e conflito nas reservas ou de risco nas retomadas.
Essa cosmovisão trágica dá a força às narrativas de sua profunda relação constituinte com a terra.

377
O que se aprende gravando

Discuto aqui a experimentação realizada nos processos de filmagem e edição do filme Nhande Ywy/
Nosso Território, retomando as relações entre a concepção guarani de imagem e o processo fílmico, interrogando
as possibilidades do filme etnográfico no diálogo com outras ontologias. Temas de etnologia indígena estão
mesclados com os debates sobre reflexividade na produção antropológica do conhecimento em um processo de
pesquisa mediado pelo vídeo entre os guarani da fronteira paraguaia.

No campo realizado durante o mês de agosto de 2016, a presença da câmera era discutida e defendida pelo
cacique Elpídio, que introduziu a minha presença na aldeia, apresentando-me a todos os moradores, recomendando
que aprendessem a manejar a câmera, que isso seria útil a eles na luta pela terra e que dessem demonstrações da
cultura – decidi incorporar essas sequencias em que ele reflete sobre a importância da câmera e da imagem que
pode circular para fora, falar com o outro, na sequencia de abertura do filme. Os seus parentes de outras casas –
tios, primos, irmãos adultos, pais, sobrinhos – me olhavam descrentes.

No dia seguinte, aparece uma cobra verde saindo de dentro da árvore que faz sombra à casa do cacique
e de seus filhos homens. Mboy hovy, gritavam as crianças; seu Elpídio vem rápido, a cobra passeia pela árvore e
desaparece, sinal de poder. A cobra verde dizia algo. Depois, os jovens chegavam de várias casas e observavam
atentos a operação da câmera, idosos chegavam para oferecer seus depoimentos, disparou-se a produção da
chicha e as noites com seus cantos-dança; os ancestrais haviam sinalizado que, na guerra, a kunhã karaí (a mulher
branca) pode ser uma aliada.

Numa noite de visualização de fotos e vídeos produzidos na oficina, realizada dois anos antes na aldeia
Pirajuí, reserva vizinha, depois de verem três dos filmes realizados por seus amigos e conhecidos, os jovens de
Potrero começam a tirar os chips de seus celulares para mostrar as gravações que haviam feito no momento do
atentado a bala sofrido por seu Elpídio, no ano anterior. Os registros mostravam a retomada, momento em que
avançavam sobre a área já reconhecida pela Funai (e a presidência da república nunca demarcara), cuja ocupação
ainda não se efetivara porque o fazendeiro os ameaçava e ocupava a terra com homens armados. As imagens
de celular, captadas por um jovem de 13 anos, registram o tiroteio do ponto de vista dos meninos que estão na
retaguarda do conflito. A câmera totalmente incorporada se esconde atrás das árvores, rasteja pelo capim, comenta
o que passa no conflito armado. Essas imagens vibram diferentemente das outras em que eu opero a câmera.

De fato, esse olhar é outro. As imagens guaranis contrastam com as minhas por um olho mais incorporado,
que ao arrastar-se ou esconder-se, escapa aos tiros que ferem o senhor Elpídio, um ano e meio antes do momento
em que o meu olhar assume a câmera. Esse fragmento de imagem é feito por um pequeno soldado no front de
batalha, que, na sequência anterior, narra a “entrada” na terra, antecedida por quinze dias de reza. Para a retomada,
os Guarani se preparam com jeroky, os cantos-dança, mobilizando no encontro com o canto dos primeiros, a
missão de recuperar seu território ancestral.

378
O nhande reko (nosso modo de vida) se deu a ver, na produção da chicha, que deixaram filmar e que fiz de
forma didática. A orientação do cacique aos moradores da aldeia de performar a cultura para a câmera produziu
uma longa explicação sobre as interdições às mulheres e a ideia de pureza feminina, necessária para que a chicha
não estrague. Trata-se de uma bebida pura ou sagrada, a bebida que conduz as festas ou danças.

Filmar entre os guarani me ensinou a ser conduzida, num processo de aprendizagem em que um discurso
coletivo vai se constituindo, ao longo dos dias, a partir da relação dos nhandeva com esse olhar que veio de fora.
O dar-se a ver produz novas reuniões e alianças, performances coletivas, relações com os ancestrais, xamanismos;
mostrar-se exige organizar o repertório mobilizado na explicação cosmológica do conflito pela terra.

A montagem

Nhande Ywy abre com o cacique discutindo a presença da câmera na aldeia, argumentando como e por
que poderia interessar o vídeo. Optei por narrar a introdução da câmera que também pauta o tema do filme: a luta
guarani pela terra.

Meu intento de tematizar a imagem, resulta sempre numa relação com o tema da retomada. A visão do
sonho se relaciona à presença dos ancestrais no território (a ser) retomado. O invisível é referido, a visão do sonho
é contada pela longa história na roda de mate à noite. Da história das retomadas na região à visão do avô morto
“vestido” no cacique que narra o sonho, vamos da história à vitalidade da cosmologia.

No roteiro de edição de Nhande ywy então aparecem duas narrativas articuladas: a da luta pela terra
e a das agências presentes no grande território guarani, de ambos os lados da fronteira. Estas narrativas são
indissociáveis, no sentido em que o território guarani é repleto de outras presenças.

A longa sequencia da roda de terere em que o cacique Elpídio nos fala dos pohan – os remédios do mato,
articulando sua fitogeografia à experiência da colonização do branco e seus tratores e hospitais –, termina por
apresentar os nhande jara (nossos donos) e sua agência na provisão do que é necessário à vida nhandeva (da nossa
gente). A roda do mate/ka’a conduz o formato da conversa. Orendu, a escuta, é um caminho de aprendizado, o
respeito à palavra guarani e ao seu ritmo tensiona com o trabalho de montagem.

A espera pela tradução fina do guarani para a língua portuguesa, feita por Alberto Alvarez, que é outro
interlocutor da pesquisa, gerou um primeiro corte longo de duas horas e vinte minutos, ainda bastante linear.
Nessa primeira forma, apresenta-se com rigor como a aldeia se produziu para a câmera e como o diálogo foi
evoluindo ao longo do tempo de gravação e como a produção de performances foi conduzindo ao tema da luta
por Nhande Ywy.

379
No segundo corte – que dura cerca de meia hora –, um trabalho de seleção e de articulação temática,
apresenta as concepções dos guarani, que são as flores dessa terra. Da agência dos donos (nhande jara) à visão do
ancestral no sonho (“ele estava vestido em mim”), que dita que a luta é esta, a percepção da justeza das retomadas
se constrói.

Em Nhande Ywy o trabalho de som ainda é muito inicial e vai no sentido de criar comentários sonoros que
indiquem a presença dessas forças, dessincronizando o som do mbaracá, com inserts sobre algumas sequencias
importantes da narrativa. Esta dessincronização é montada na sequencia de entrar na terra (que está na abertura do
filme) e na da preparação da chicha; estas são buscas pelos espaços em que a cosmologia evidencia a metafísica
em ação que queremos dar a ver.

A edição dos cantos-dança, momento de comunicação com as mensagens dos “primeiros” – entoadas
pelos nhanderus que cantam às noites – , respeita o ritmo dos cantos-dança dos jovens, homens, mulheres e
crianças que duram toda a noite, numa dimensão de comunicação com essa esfera virtual do eterno que mobiliza
a presença dos “primeiros”, aqui, nesse agora. Os conselhos dos ancestrais são cantados, nos porahey nhandeva.
Busquei apresentar a sensação de aquecimento corporal que se experimenta com aceleração do pulso da música,
nos planos cortados a seco.

As imagens de celular gravadas em combate um ano antes são montadas na sequência do testemunho dos
meninos que participaram do evento e o narram. Esse insert pretende ser um ponto climático, sucedido pela fala
da irmã do cacique sobre a ausência dos bichos ou do direito ao alimento guarani nhandeva. A disputa pela beira
rio em Potrero/Koenju indica o que é essencial, uma aldeia guarani não se faz sem proximidade à água. Terra que
se disputa com o branco, que faz seus pastos, com poucas cabeças de gado. Os guaranis pescam nesses rios há
muito. Depois disso, o senhor Elpidio fecha o filme, apresentando a terra retomada e narrando os seus combates,
o que só lhes dá força.

Dos seguintes passos da pesquisa

Essa pesquisa continua para além desse primeiro filme Nhande Ywy/Nossa Terra; no projeto, o segundo
filme faz a viagem em que se pretende dar a ver o território (invisível porque não delimitado), revelando as
agências dos “primeiros” sobre o grande território Guarani. Nesse projeto, a busca é que a ontologia nhandeva se
apresente desde dentro.

Desde a região da tríplice fronteira, em Sete Quedas, moradas sagradas dos ancestrais com caminhos
secretos por baixo das quedas, até os refúgios, paradeiros pelas margens do Rio e a referência ao transporte
fluvial no momento do ciclo econômico do Mate, vários são os índices da caminhada nhandeva por essas terras de
fronteira. As águas mágicas no Paraguay, a Laguna San Antonio, que foi aldeia, os restos das missões jesuítas, que
duraram mais do lado paraguaio. Essas pistas pautam o trabalho porvir no reconhecimento do território sagrado,
380
com os guarani, desde a Serra de Mbaracaju (Maracaju), no MS, a Salto del Guairá, do outro lado do Paraná, isto
é, da fronteira. Apresentar a cosmopolítica da imagem guarani passa por reconhecer as presenças dos ancestrais
(espíritos, mortos e animais) nessa terra do início do mundo que é o Paraguai quando visto pelos olhos guarani.

O detalhamento do argumento deve incorporar um plano de produção a ser detalhado com os nhandeva,
na aldeia. A direção do trabalho se deixa conduzir, como na dança, pelo outro.

381
Referências bibliográficas

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Filmografia discutida

FERRAZ, Ana Lúcia. Nhande Ywy/Nosso território. Niterói, LAB/UFF, 2018.

Ana Lúcia Ferraz - Antropóloga e realizadora de filmes etnográficos, vem desenvolvendo metodologias de
diálogo etnográfico mediado pelo vídeo com grupos guarani. Estudou também grupos urbanos, favela, trabalho
e teatro. É professora do mestrado em antropologia visual da FLACSO-Equador e coordenadora do Laboratório
do Filme Etnográfico da UFF.

382
32. Duas pedagogias ou o cinema como abertura para o outro

Samuel Leal

Introdução

É notável na produção audiovisual xavante certo regime imagético pedagógico, que reflete em grande
medida a organização social desse grupo indígena. Tal pedagogia das imagens decorre de uma característica que
define tanto o modo dos Xavante se relacionarem com o conhecimento tradicional, como a maneira de atualiza-
ram as relações sociais internas e de fazer política com o não-indígena.
Refiro-me à grande importância dada aos elementos estéticos visuais e performáticos das cerimônias
rituais. O domínio desses detalhes, que determinam desde as formas dos ornamentos até a sequência geral das
cerimônias, é um pré-requisito, por exemplo, para a escolha do mestre do ritual, cargo de grande importância polí-
tica. A observação a tais sequências é também fundamental para a eficácia do ritual, que não atingirá seu objetivo
caso não seja bem executado. A própria noção de cultura xavante é definida em grande parte por esse conjunto de
práticas materiais e simbólicas.
Para o problema que nos interessa aqui, porém, o aspecto mais significativo dessa meticulosidade na
organização dos elementos visuais e materiais dos ritos é seu impacto na forma de fazer política para fora da
comunidade. Desde que os Xavante passaram a dominar a produção audiovisual, uma história que remonta ao
envolvimento com o Vídeo nas Aldeias (para a qual não há espaço aqui, mas amplamente conhecida), fazer filmes
tornou-se uma das modalidades mais importantes de política intercultural. Nesses filmes, os rituais são o tema por
excelência. Esse fato decorre do lugar central que a vida ritual possui na estrutura ritual xavante, por ser o lugar
de atualização das posições sociais.
Quando se trata de relação política por meio de imagens, os aspectos estéticos que caracterizam esses
rituais ganham grande importância. E quando falamos de peças audiovisuais que procurar afirmar a importância
política da identidade xavante no contexto nacional, aquela meticulosidade mencionada anteriormente acaba
conferindo esse regime pedagógico que atribuímos a certas imagens nos filmes xavantes.
É a partir desse contexto, de grande controle do processo de transposição da cultura em imagem, que
falarei do filme Oi’ó : a luta dos meninos (Caimi Waiassé, 2009). Meu objetivo é pensar como acontece o desdo-
bramento de dois regimes pedagógicos distintos, ligados a diferentes regimes da imagem.
Oi’ó é uma produção feita em parceria com a ONG Nossa Tribo, especializada em produções culturais
feitas em parceria com povos indígenas. As imagens foram gravadas na aldeia Etenhiritipá, na T.I. Pimentel
Barbosa, estado do MT, a cerca de 1200 km ao norte de Brasília. O material bruto é um registro feito pela própria
comunidade, sem a intenção inicial de produzir um filme, mas criar um arquivo de imagens para preservação da
memória do ritual. Posteriormente surgiu a ideia de buscar a ajuda da ONG, parceira da comunidade de outros
projetos, para montar um filme. O objetivo era divulgar para fora da aldeia às tradições locais, mais especifica-
mente o ritual que dá nome ao filme. A montagem do filme foi viabilizada por meio de um edital da Secretaria
Estadual de Cultura de São Paulo. O processo de edição foi feito na Universidade Metodista de São Paulo, sob a
direção de Caimi Waiassé e Jorge Protodi, outro morador de Etenhiritipá, com o auxílio de técnicos da universi-
dade.
Oi’ó é o nome de um ritual do qual participam os meninos pequenos, desde a primeira infância até a pré-
383
adolescência. A partir do momento em que podem ficar de pé e segurar um objeto com firmeza, um menino já está
habilitado a participar da cerimônia. Trata-se de uma luta em que as crianças se enfrentam com um talo da raiz
da planta que dá nome ao ritual.
O oi’ó se repete todos os anos, e marca toda a infância de um menino xavante. Ele é uma forma de prepa-
ração para a entrada no ciclo ritual de iniciação à vida adulta. A cada repetição um grupo de meninos participará
pela última vez, o que implica a perda dos seus nomes, a saída da casa da família e a ida para o hö, uma casa
especial construída fora do semiarco que forma a aldeia tradicional xavante, onde todos esses meninos viverão
juntos pelos próximos cinco anos.
A explicação do lugar do oi’ó no funcionamento do sistema etário é uma das preocupações centrais do
filme. Trata-se de uma característica da maneira xavante de se relacionar com o não-indígena, que chamam de
waradzú381. Toda produção cultural voltada para fora das aldeias é feita nesse contexto. Por isso, o objetivo inicial
desse, e outros filmes, é de apresentação de uma autoimagem.
A leitura que proponho é ressaltar como o pacto inicial com o espectador, baseado em uma pedagogia
rígida das imagens, se transforma quando o filme atinge seu clímax. Ao trazer o espectador para muito perto da
ação ritual, o filme rompe com os limites dessa primeira pedagogia e se abre para possibilidades expandidas de
contato intercultural, o que entendo ser uma segundo regime pedagógico no filme. Com isso, o espectador é pego
de surpresa e passa por um processo de desconstrução similar ao que acontece no ritual filmado. O que está em
jogo aqui são as expectativas do espectador quanto à alteridade que se apresenta. O encontro que ele espera não é
o que ele vive, e com isso o olhar se transforma com o filme, se abrindo para uma alteridade imprevista.

Segredo: primeira pedagogia

A escuridão é a primeira coisa que o filme mostra. Um barulho que não podemos identificar de imediato
acompanha o negro do quadro. Depois um foco de luz no centro do quadro permite entrever o movimento de algo
que não é possível identificar logo de cara, mas que parece ser a origem do som que já era ouvido. O foco de luz
oscila na escuridão e percebemos que se trata de mãos que esfregam os cabelos de uma criança.
Há um segredo que é guardado na escuridão e que a câmera se esforça por revelar. Esse segredo é revelado
aos pedaços, aos poucos. Os planos seguintes aos poucos vão alargando esse foco de luz que revela os corpos na
escuridão, sempre aos pedaços; são mãos que preparam esses corpos, pintam, amarram, esfregam, manipulam
tintas, cordas e pincéis, desenham padrões na pele e nos cabelos. Aos poucos percebemos também que estamos
em um ambiente masculino.

Diálogos são ouvidos e permitem deduzir mais do contexto: homens mais velhos parecem ensinar algo às
crianças. “Onde você vai bater?”, pergunta um adulto. “Aqui, aqui mesmo. Aqui embaixo”, responde o menino,
apontando para a própria costela. Alguns planos adiante um adulto comenta como a pintura do menino no quadro
está assustadora. Logo depois, ele diz a um segundo menino que o primeiro não o faça chorar. Esses diálogos
desvelam uma nova camada do segredo que o filme se propõe a revelar: essas crianças estão sendo preparadas
para um conflito, provavelmente físico, violento, que pode inclusive fazê-los chorar.
Finalmente surge o narrador: “Presta atenção. Essa raiz dói bastante. É uma tradição Xavante muito
antiga. Você vai sentir dor, mas não se concentre na dor”. A intenção da voz é menos explicar que aumentar a
expectativa, valorizar o mistério. Há um tom solene que compõe uma performance de abertura com o título que
381 Waradzú é a palavra utilizada pelos Xavante para se referir ao não-indígena. Trata-se de um termo que marca uma
oposição precisa entre formas culturais distintas, ao mesmo tempo aproximando os Xavante dos demais povos indígenas e
dando conta das complexas formas culturais que constituem a sociedade que os circunda. Embora seja traduzida geralmente
384
surge logo a seguir. Mesmo com o nome do filme enunciado, o espectador não sabe ainda onde está. A primeira
sequência quer criar uma expectativa a partir desses pequenos pedaços de informações, alimentando um certo
medo: que dor é essa que pode fazer os meninos chorarem? Porque é preciso resistir a ela? O que é essa raiz?
Qual sua relação com essa luta?
Os planos seguintes finalmente apresentam o tema do filme. A escuridão dá lugar à claridade. O ambiente
fechado se abre até o horizonte. As imagens introduzem o espaço em que vivem as pessoas filmadas, as plantas,
os animais, a serra. O narrador explica que se trata de um ritual e qual o seu lugar no sistema etário xavante. A úl-
tima imagem é de dois meninos em pé sobre uma grande pedra enquanto o plano se abre para mostrar a amplitude
do território. Com isso, a montagem sintetiza o que foi mostrado até aqui e dá o tom do que deve ser a narrativa:
mostrar a relação das pessoas com o lugar e como isso implica uma forma específica de viver.
Toda essa sequência inicial desenha um movimento que estará presente no filme de forma geral. Há um
convite para a proximidade do olhar, que busca o tempo todo entender o que é esse espaço, o qual é convidado
a habitar. Há uma organização da montagem que joga com as noções de segredo e intimidade de forma a fazer o
espectador se permitir ser afetado pelas imagens. Trata-se da enunciação do lugar de onde o filme quer falar e da
forma como se quer estabelecer o contato com o espectador.
Feito isso, a montagem se permite um certo afastamento, que ira funcionar como um dispositivo didático
que desvelará pouco a pouco os segredos enunciados na abertura. Passa a predominar uma narrativa que se ar-
ticula sobretudo nas entrevistas e na voz off do narrador. Tudo acontece sob a luz do dia, sempre ao alcance do
olhar. A operação agora é de sistematização e explicação. Há uma insistência recorrente por parte do narrador em
enfatizar uma função do ritual que o filme deseja deixar muito clara para o espectador: um dispositivo prescritivo
dos modos de ser e agir.
Trata-se de um discurso que se dirige, num primeiro momento, aos próprios meninos, e, portanto, o es-
tabelece uma conversa interna à comunidade. No entanto, o filme também se dirige ao público de fora da aldeia,
sejam outros indígenas, sejam os waradzú. Entre essas duas esferas o filme faz um jogo duplo: ao enunciar o que
se espera que um menino faça e seja no seu caminho para a vida adulta, também se enuncia o que se espera que
um Xavante seja de modo geral. Isso coloca em operação a pedagogia de uma identidade desejada, que estabelece
parâmetros de pertencimento e visibilidade para a cultura Xavante no mundo contemporâneo.
Esse jogo entre esferas local e global é uma característica do processo de performatização da identidade
étnica que Manuela Carneiro da Cunha descreve como a criação de um espaço de meta-narração da cultura em
“cultura” (2009:362). Trata-se de uma camada reflexiva das identidades onde acontecem as operações propria-
mente políticas na disputa pelos modos de visibilidade. A variação entre tais esferas no filme é sutil e se constrói,
sobretudo, na tensão entre as imagens e a voz do narrador: enquanto as primeiras ganham intensidade na medida
em que se deixam afetar pelo ritual, a segunda interrompe a todo momento essas pequenas irrupções de afetos, as
sistematizando em um fluxo informações coerentes. Aproximação e sistematização são os modos de fazer variar
essas esferas, falando respectivamente para dentro e para fora da comunidade.
Nesse sentido, aquela primeira pedagogia é o ponto de partida do filme para a criação desse espaço me-
ta-narrativo. Ela estabelece uma narrativa fílmica pensada como auto-etnografia, que se aproxima formalmente
das etnografias tradicionais, mas se pretende mais autêntica por falar de dentro da comunidade. O dispositivo que
se limita a transmitir informações mantém o espectador em uma zona de conforto que permite um olhar passivo.
É somente a partir do segundo terço que o filme começa a introduzir algumas perturbações nesse pacto inicial.
Tal movimento começa com a imagem de um velho que esfrega uma infusão de ervas nos corpos dos
meninos, dizendo ser para fortalecer o vigor e a resistência. Uma entrevista com um desses meninos oferece um

por “homem branco”, preferimos utilizá-la no idioma original para manter essa complexidade na definição da alteridade que a
tradução simplifica excessivamente.
385
contraponto à fala do velho, trazendo um detalhe que o adulto esconde: há formigas vivas misturadas às ervas.
Por outro lado, a sequência imediatamente posterior a essa entrevista mostra de novo o velho e os meninos em um
enquadramento um pouco mais aberto. A câmera busca uma composição que compreenda os dois corpos. Agora
podemos ver melhor o rosto do velho e com isso a relação entre os corpos em cena se complexifica. Por trás do
discurso duro, de um lado, e temeroso, do outro, há um afeto carinhoso na forma com que o velho fala às crianças
e nos sorrisos sutis que surgem nos rostos.
Esses detalhes carregam as imagens de uma certa intimidade, como se os segredos do filme já tivessem
sido suficientemente revelados. A montagem se aproxima do espectador, o faz sentir um pouco em casa. Para-
doxalmente, esse movimento de aproximação é também o início da desestabilização daquele lugar passivo do
olhar. O filme começa a funcionar em um operador de sentido diferente: saímos do segredo para entrar no regime
da proximidade. Tal passagem já estava enunciada na introdução, mas é somente a partir das cenas das lutas que
começa a desestabilização do dispositivo pedagógico baseado na voz impessoal do narrador.

Proximidade: segunda pedagogia

Uma voz off surge sobre um horizonte recortado pelo sol nascente: “Na noite anterior, nós dormimos
cedo. De madrugada, nossos pais nos preparam para a luta, que acontece antes do nascer do sol”. A claridade de
toda a primeira parte do filme dá lugar à penumbra que antecede a aurora. A sequência nos remete à abertura do
filme’. A luz é um pouco mais intensa a cada plano, que são sempre curtos e se sucedem rapidamente. Vemos a
composição do espaço da luta, uma roda formada pelos meninos, seus pais e tios. Subitamente o narrador enun-
cia: “A luta é muito importante. A maneira como o menino luta mostra se ele será bom guerreiro e caçador. É
lutando que eles se fortalecem”. Então as lutas começam.

Esses planos funcionam como uma transição entre regimes de imagem. O primeiro impacto para o olhar
é o retorno da escuridão, mas que dessa vez não quer esconder nada. Trata-se da aurora que se anuncia, que quer
revelar ao invés de ocultar. Outra mudança importante é o deslocamento da voz do narrador para os relatos em
off em primeira pessoa. Esses dois modos de fala oscilam, ora indicando uma experiência íntima e direta com o
ritual filmado, ora recuperando o tom esclarecedor do narrador da primeira parte. É como se houvesse dois narra-
dores que disputassem a predominância: de um lado o realizador indígena que quer falar com o público waradzú,
este espectador que busca no filme a imagem de uma alteridade; por outro lado, o morador da aldeia que de certa
forma revive suas próprias lutas passadas enquanto mostra seus filhos e sobrinhos se enfrentando. Este segundo
narrador irá pouco a pouco ocupar o espaço do primeiro.
Enquanto isso, os planos se sucedem rapidamente como se tivessem pressa para chegar ao momento
máximo da cerimônia. O regime da proximidade no filme se articula, sobretudo, em torno das cenas das lutas.
Nesse primeiro momento, a câmera guarda alguma distância dos lutadores enquanto as vozes off descrevem as
experiências individuais: “as pancadas são bastante doloridas”; “tem hora que a dor é insuportável”; “ficamos até
sem fôlego”. Em seguida o narrador vem generalizar o relato pessoal: “Os meninos aprendem a resistir à dor e a
superar o medo. Aprendem a respeitar os outros. Aprendem a seguir regras”.
Um segundo movimento de montagem aproxima ainda mais o espectador do ritual: são mostrados os
desafios entre os clãs, a definição das duplas que se enfrentam, as mães que riem e fazem comentários, planos
próximos dos rostos dos meninos e a câmera que pela primeira vez vai ao centro do círculo. As vozes cedem lugar
aos impactos dos golpes e aos gemidos dos meninos. O espectador começa a ter real dimensão da dor conforme
as lutas ganham intensidade. Uma vez mais o narrador retorna para repor o tom didático, mas suas intervenções
386
encontram cada vez menos espaço: não há mais o que ser explicado, as regras estão claras, a experiência do olhar
cada vez mais é direcionada para os afetos mobilizados nas lutas.
“A dor que nós sentimos, só nossa mãe sente igual”. Essa frase é dita por um entrevistado, cuja voz entra
em off sobre um plano das mães que assistem interessadas a luta, logo após um plano fechado sobre o rosto de um
menino que chora dolorosamente. Trata-se de uma voz que rompe radicalmente com o narrador. Ela fala desde
uma dimensão íntima com o acontecimento, propõe um contato menos mediado com a cultura que o filme quer
apresentar. Poderíamos objetar que há um conflito entre o apelo emocional da frase e a aparente tranquilidade das
mães nas imagens. Entendemos, no entanto, que essa frase funciona quase como uma armadilha para o especta-
dor, um dispositivo de identificação que surge no meio da desestabilização operada pela violência das imagens.
Trata-se de um falso porto seguro. Essa frase concretiza a mudança de regime de imagens, o filme passa a operar
definitivamente pela proximidade.
O combate seguinte é talvez o mais intenso enquanto experiência ritual. Embora não seja a mais violenta
nem a mais esperada, essa luta captura completamente os sentidos do espectador. A montagem alterna planos do
público e da luta. Fora do círculo, os rostos apreensivos das mães fazem eco à imersão completa de um menino
que reproduz os movimentos dos lutadores com os ombros, enquanto assiste compenetrado, seus colegas. Os pais
riem e incentivam seus filhos. Os gritos ganham volume e duração, inundam as imagens, mobilizam o olhar que
é levado pelos planos curtos e cortes secos, sem tempo para se deter em nada.
Mais que observar os lutadores, a montagem propõe que o espectador seja atravessado intensamente pelos
afetos do ritual. Olhos e ouvidos são inundados de estímulos. As relações entre pais e filhos, entre amigos que se
enfrentam, entre famílias que se provocam, tudo isso sobrecarrega o espectador. Este não encontra mais tempo
para processar as sensações e tem que sair da sua passividade inicial.
O longo encadeamento das lutas e a repetição dos planos e dos gestos favorecem uma disposição ambígua
do espectador em relação ao filme. Num primeiro momento, o espectador é convidado a se identificar com os
meninos. Isso acontece a partir da aproximação das experiências de cada um. O percurso de descoberta é comum
às duas narrativas, fílmica e ritual, que se sobrepõem. A eficácia do rito, baseada precisamente no aumento pro-
gressivo da tensão e da expectativa que devem explodir na violência das lutas, é duplicada na montagem como
condição de eficácia da experiência do olhar.
O espectador experimenta a trajetória de medo e descoberta que vivem os meninos, e chega no momen-
to das lutas disposto a identificar-se com eles. No entanto, a violência das lutas interrompe esse movimento. A
aparente intimidade com a qual o espectador era convidado a compartilha a narrativa com os meninos se torna
inviável. O choque com as imagens faz o espectador se retrair. Mesmo assim as lutas continuam e o olhar não tem
outra escolha que não se adaptar a elas.
A escalada de violência atinge sua intensidade máxima na última luta. São dois dos meninos mais velhos
que se confrontam. Não há mais a inocência ou a hesitação dos pequenos. A montagem faz o olhar circular ao
redor do combate enquanto a câmera sempre guarda alguma distância. Há alguma solenidade nesses planos que
privilegiam os corpos inteiros no quadro, como se o filme quisesse sintetizar nessa luta todas as que vieram antes.
A fotografia valoriza a luz avermelhada da aurora para criar um ambiente caloroso, o que resulta em uma imagem
menos crua e mais acolhedora.
Essa luz é um elemento importante que marca não só a fotografia, mas também a construção temporal no
filme. Se compararmos com as primeiras lutas, é evidente o efeito que o sol nascente tem de aumentar progres-
sivamente a visibilidade dos corpos. Esse curto intervalo de tempo em que a luz do sol é suave o suficiente para
iluminar sem fazer sombra é o espaço temporal em que o oi’ó efetivamente acontece. Trata-se de um momento de
transição entre dia e noite, mas que não é nenhum dos dois. Podemos dizer um espaço entre, que tem as proprie-

387
dades de cada período, mas que constitui uma temporalidade própria.
Trata-se de um momento liminar entre estados. A ideia de liminaridade é importante aqui, pois ela atra-
vessa tanto a experiência do espectador de cinema quanto do participante do ritual, na medida em que define
um estado marginal. Para o antropólogo Victor Turner, as performances sociais, como são os ritos de passagem,
tendem a ser sempre fenômenos liminares, marcados pela suspensão das normas e, portanto, pela perda de uma
condição anterior (1992:25). Um ritual de passagem como o oi’ó realiza exatamente essa operação de descons-
trução e reconstrução como transformação de identidade social.
A escolha desse momento do dia para realizar o ritual está diretamente ligada à condição para a qual esses
meninos estão sendo encaminhados. A luta é um dispositivo que os afasta pouco a pouco da infância ao mesmo
tempo os prepara para o período em que vivem no hö. Trata-se de uma fase de exceção, em que eles perdem as
famílias, os nomes e o direito de circular pelo pátio da aldeia. A escolha de um “momento liminar” do dia é uma
forma de reforçar essa passagem. O processo de transformação acontece entre a luz e a escuridão, o dia e a noite.
Com isso, ele não se filia a nenhuma dessas duas forças, mas se coloca entre elas. Com isso, a cerimônia encami-
nha os meninos também para um lugar entre estados, um lugar instável, efêmero e perigoso como a aurora.
Jean-Louis Comolli diz algo parecido sobre a experiência do espectador do cinema, o qual deve passar
por uma “perda iniciática” no olhar, o aceite de uma nova forma de ver, definido pelo olho monocular da câmera
e pela restrição do quadro, para que possa “melhor ver” (2008:140). A adesão condicional à experiência cine-
matográfica tem, nesse ponto, ressonância com a natureza liminar das performances rituais, no sentido em que
ambas implicam tanto uma ação reflexiva quanto a aceitação de condições específicas que garantem a eficácia
das experiências.
Nesse sentido, a montagem se vale dessa afinidade entre os dispositivos para montar um jogo de escalas
entre vida social, rito e filme, de forma que o lugar do espectador no filme é estabelecido e perturbado conforme
essas camadas se aproximam ou se afastam. Enquanto espectadores waradzú, somos colocados na posição de
uma criança que é também introduzida ao universo do ritual. Desde a sequência inicial, em que somos manti-
dos literalmente no escuro por algum tempo, até as longas cenas das lutas, o filme desloca propositadamente o
espectador para o universo dos meninos, seja nos entregando aos poucos as informações sobre o ritual, seja nos
colocando no centro dos acontecimentos.
Tal operação é fundamental para a eficiência da segunda pedagogia no filme. Ela é parte do jogo entre
afastamento e atração, predominante nas sequências das lutas, que num primeiro momento parece romper com
o pacto sugerido inicialmente. Toda a descrição cuidadosa da organização etária, as responsabilidades de cada
grupo, os cuidados com a iniciação dos jovens nas tradições, não pareciam encaminhar para a violência que ex-
plode nas lutas. Se o espectador esperava encontrar uma descrição sóbria de uma cultura que teria a intenção de
sistematizar a si mesma para sua fruição intelectual, tal expectativa não encontra mais apoio nenhum depois que
começam as lutas.
No entanto, o choque tem também sua função pedagógica. Entre os Xavante, a violência experimentada
neste e em outros rituais é condição para o aprendizado que eles carregam. Os meninos precisam passar pela dor
para adquirirem valores como coragem e disciplina. No filme, as cenas de luta têm essa função. Se o espectador
quer conhecer a cultura xavante, é preciso experimentar os afetos que o ritual propõe. Nesse sentido, o ritual
filmado, e o filme, por consequência, funcionam como um dispositivo de relação intercultural. É por isso que os
grandes planos da última luta tentam recuperar o espectador que havia sido afastado.
Esses corpos infantis que se agridem passam por uma desconstrução orientada pelo ritual, um progressivo en-
durecimento que os encaminham para a vida adulta. Ao acompanhá-los, o espectador também experimenta uma
desconstrução, que opera na sua concepção de uma alteridade buscada no início do filme. A auto-etnografia feita
pelo cineasta indígena, que se apresentaria mais autêntica que aquela feita pelos antropólogos, acabou tomando
388
um rumo inesperado. Ao compartilhar com os espectadores mais que informações, o cineasta os faz experimentar
a própria experiência ritual. Sendo assim, a violência das imagens transforma a identificação inicial em repulsa.
Passado o choque, o espectador que buscava o contato com a alteridade vai poder finalmente reencontrá-la. Mas
para isso, o filme precisará pôr em movimento um terceiro dispositivo para converter choque e repulsa em acei-
tação e compreensão da diferença cultural.
Comunidade: acolhimento e abertura

Se na primeira parte do filme permanecemos no âmbito das técnicas corporais a serem desenvolvidas
pelo indivíduo, no final a ênfase será mais na sua inserção no sistema etário. A decisão de manter nas legendas
os nomes de cada fase da vida no idioma xavante (watebrimi, ai’repudu e wapté) é sintomática dessa intenção.
Essa mudança é acompanhada pela volta da voz organizadora do narrador. A impressão para o especta-
dor é que a primeira pedagogia do filme predomina mais uma vez. As imagens, porém, não acompanham esse
movimento do som. Essa terceira parte do filme herda a intensidade das sequências das lutas, que, no entanto, se
expressa sobretudo a partir do jogo formal entre luz e sombra, como veremos adiante.
Mais uma vez voltamos aos planos interiores, em que corpos de crianças são pintados e enfeitados pelos
mais velhos. Desta vez já é dia, e a luz de fora ilumina a ação dentro da casa. Ainda que os planos se pareçam
com aqueles da sequência inicial, há uma diferença fundamental: não há mais segredos. As imagens se servem da
luminosidade para fazer ver o melhor possível os corpos no interior das casas. O espaço interno agora se mostra
aberto, acolhedor ao olhar, os gestos são visíveis, os corpos inteiros, os detalhes claros.
A amplitude da imagem excede o próprio espaço da cena, estabelecendo uma relação fundamental com
o fora da casa. Dois planos marcam essa abertura. O primeiro mostra desde fora da casa um velho pintando as
costas de um menino. Por estarem bem perto da porta, podem ser vistos quase que completamente. Mesmo assim
a câmera faz um movimento de zoom, fazendo o olhar penetrar na casa. O segundo é um plano de dentro da casa,
mostrando o pátio central da aldeia emoldurado pelo contorno da porta. A montagem sugere que se trata de um
plano subjetivo, mostrando o que um menino olha lá fora.
Essa relação estabelecida pela montagem tem sua razão de ser no ritual. Toda essa sequência final acom-
panhará a saída dos meninos das casas dos pais e o processo de entrada no hö, a casa dos solteiros onde viverão
em grupo durante os próximos cinco anos. Trata-se de um processo marcado por uma performance muito precisa
em que a geração imediatamente mais velha, os padrinhos da iniciação, buscam os meninos em suas casas, os
levam para o centro da aldeia, onde os colares de algodão que carregam no pescoço são retirados, e os mandam
para o hö.
O gesto de retirada dos colares e a mudança do local de residência são o núcleo performático que define
a passagem em questão, daí as escolhas da montagem. As imagens variam constantemente entre o interior das
casas e o pátio das aldeias. Os corpos estão sempre em movimento e a câmara acompanha as pessoas nos seus
trajetos entre esses espaços. O momento da retirada do colar é mostrado diversas vezes e tem sempre destaque.
A importância desse gesto é enfatizada pelo narrador: “No momento em que tiram os anéis de algodão, ninguém
pode mais chamá-los pelo nome”. Essa perda da identidade infantil é o objetivo do processo ritual narrado pelo
filme. O colar que recebem dos pais dentro da casa da família funciona como um suporte dessa identidade deixada
para trás. Ao sair pela porta de casa enquanto crianças pela última vez, os meninos se expõem ao espaço aberto
da aldeia, guiados pelos padrinhos.
A alternância constante entre interior e exterior cria uma nova dimensão da relação entre luz e sombra no
filme: o interior escuro da casa como o espaço seguro da infância, o exterior iluminado do pátio como as trans-
formações incertas da adolescência. A luz deixa de operar como dispositivo de esclarecimento para funcionar

389
como desestabilizador dos personagens. Se no início da sequência a quantidade de luz permitia a câmera revelar
o interior das casas, agora ela atinge tal intensidade que impede que a câmera mostre muito mais que a entrada
de cada casa.
Uma tensão na montagem começa a fica evidente: o filme oscila entre as duas pedagogias. Se por um lado
o narrador procura conduzir novamente o espectador em uma linha narrativa que encadeia informações, por outro
lado as imagens não cessam de produzir quebras e descontinuidades. Nesse jogo entre estabilidade e perturbação
começa a se desenhar aquele terceiro dispositivo que tentará recuperar o pacto com o espectador.
A construção do lugar dos padrinhos no ritual é central nessa operação, que ganha corpo a partir do mo-
vimento dissonante entre imagem e som. Nessas sequências, a câmera que acompanha os padrinhos se detém nas
soleiras, os meninos surgem da escuridão do interior para serem levados para fora. O pátio agora é o foco dos
acontecimentos. É o lugar onde a despersonalização dos meninos acontece. É a arena pública que retira esses in-
divíduos do âmbito familiar e privado e os sujeita às regras coletivas da aldeia. Os corpos atingem nesse momento
o grau máximo de desamparo.
Por outro lado, a presença dos padrinhos reconstitui o fio condutor para esses corpos expostos. São eles
que operarão a desterritorialização definitiva da infância e ensinarão os segredos da vida adulta. Quem traz es-
sas informações são o narrador e algumas entrevistas. Isso chama atenção para o funcionamento do som nessa
parte final, que também opera sob um regime diferente. No lugar dos sussurros ou da intensidade anteriores, a
articulação clara e segura das informações que querem ser entendidas. As vozes organizam os acontecimentos, os
localizam no sistema etário e no processo ritual (“os wapté vivem no hö por cinco anos”) e definem seus objetivos
e funções (“para aprender as tradições do povo Xavante”).
Imagem e som realizam, portanto, dois movimentos opostos. Por um lado, a explosão crescente da lumi-
nosidade das imagens nos conduz do mistério ao ofuscamento, do segredo à desorientação. A luz inunda o espaço
do quadro à medida que personagens e espectadores têm seus lugares progressivamente desestabilizados. Por ou-
tro lado, o som parte dos sussurros, explode nos gritos e reencontra a sua boa medida no final. A voz do narrador
procura reconstituir um novo território a partir da linha de fuga que as sequências de luta instauraram.
Essa dissonância, que impede que o pacto inicial com o filme seja refeito, é resultado da operação si-
multânea, nessa terceira parte, das duas pedagogias que constituem o filme. Isso produz um desconforto para o
espectador que ainda se esforça para reencontrar um novo lugar na experiência fílmica. Porém, o ritual, e por
consequência o filme, realiza uma passagem, e por isso é preciso reconduzir essas identidades desfeitas para um
novo estado.
O lamento cantado que irrompe perto do final do filme opera precisamente nesse sentido. Trata-se de um
choro ritual de uma senhora pela perda dos seus netos. Ele começa logo depois de uma entrevista, em um plano
que se movimenta para fora de uma casa, acompanhando um padrinho e dois meninos. A montagem multiplica
essa caminhada em muitas, que se repetem tanto na sucessão quanto na composição dos planos. No centro do
pátio os anéis são retirados uma última vez.
Este choro surge aqui como uma voz que não tem o tom sóbrio da voz do narrador. É uma voz feminina
que se opõe ao universo masculino do filme, remete a uma série de binarismos implícitos nas imagens e que mar-
cam profundamente os Xavante: masculino/feminino, público/privado, política/família, caça/coleta, pátio/casa.
No entanto, essa voz não sustenta tais divisões. Pelo contrário, na forma de um lamento ao mesmo tempo sincero
e ritualizado, intenso e calculado, esse choro embaralha o processo duplo de desconstrução e reconstrução em
operação.
Ele inaugura uma paisagem sonora completamente estranha ao filme até aqui e causa um estranhamen-
to que até então só tinha sido produzido pelas imagens das lutas. Porém, diferente daqueles gritos que apenas
desconstroem, o choro abre espaço também para o acolhimento. Ao mostrar o choro da mãe que perde os filhos,
390
mais uma vez o filme descreve uma relação passível de identificação para o espectador waradzú. Trata-se antes
de um dispositivo didático para capturar os afetos que uma generalização acerca dos sentimentos e relações nas
diferentes culturas. Ao quebrar o ritmo das informações que o narrador nos transmite sistematicamente, o choro
estabelece uma pausa onde os afetos podem se reorganizar, propõe um lugar seguro onde o espectador em desam-
paro pode se apoiar para seguir adiante.
Toda a sequência do choro se desenrola no espaço exterior, no pátio da aldeia. Essa escolha de montagem
está diretamente relacionada com tal disposição ao acolhimento. O pátio é lugar onde os meninos experimentam
seu grau de exposição e desconstrução máximos. Mas é ali também onde o espectador atinge seu momento de de-
samparo extremo. O pátio é o espaço em que o ritual é apresentado, onde acontece a quebra do pacto com o filme
por meio da violência das lutas, onde o espectador é deslocado do seu lugar inicial, onde uma certa concepção
da alteridade é desfeita. É no pátio que o olhar passa por sua “retirada do colar”, e onde ele permanece à deriva.
O choro abre um espaço comum a ser habitado por esses corpos e olhares despidos. Promove a supera-
ção do choque por meio do encontro entre o espectador transformado e a cultura que acaba por se apresentar de
uma forma imprevista. Com isso, passamos do jogo entre segredo e proximidade para a comunidade entre filme
e espectador, onde podem emergir aceitação e compreensão. Finalmente, as duas pedagogias encontram uma
síntese e percebemos que o filme não apenas expõe os meninos ao olhar do espectador waradzú: ele estabelece
um espaço em que algo em comum pode ser experimentado.
Mas tal dimensão comunitária não dura até o final. Após promover esse encontro, o filme recupera a
empreitada inicial. A última imagem antes de uma rápida entrevista com a senhora que chora é um plano geral
da aldeia, com o hö ao fundo e vários meninos e padrinhos se dirigindo a ele. Esse plano aponta para o processo
de formação por que passarão os meninos. Ele também introduz a sequência final, que se desenrola toda dentro
do hö, onde os meninos recebem suas primeiras lições. A partir daqui a necessidade de coerência com uma auto-
-imagem desejada pela comunidade se impõe. O filme termina repondo a circularidade que caracteriza a estrutura
social xavante: “Novos meninos vão aprender as regras do oi’ó. E quando os velhos decidirem que é tempo, a
luta começa outra vez.” Na última frase, o narrador reforça sua autoridade prescritiva, estabelecendo também a
relação temporal entre a tradição ancestral e a identidade contemporânea: “Os pais orientam. Os meninos lutam.
Essa é a antiga tradição.”
Assim como no ritual, o filme deve reencontrar uma ordem após a desconstrução. Para o espectador,
porém, o caminho de volta à normalidade não é tão certo. A segurança com que o narrador fecha o filme não
acolhe mais o espectador. O que resta são os afetos disparados pela trajetória sugerida pelo filme. Ao propor uma
experiência de contato intercultural, o filme prega uma peça no espectador e depois o deixa à deriva. O resultado
é que mais do que explicar, o filme afeta, e com isso o contato intercultural se abre para além do próprio filme.

391
Referências bibliográficas

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
CUNHA, Manuela Carneiro da. “’Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”.
In: Cultura com aspas, pp. 311-373. São Paulo: Cosac Naify, 2009
TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications,

Samuel Leal - doutorando em comunicação na UFF, tendo feito estágio-sanduíche na Université de Mon-
tréal. Bacharel (Unicamp) e mestre (UFRJ) em antropologia, trabalha com oficinas de produção audiovisual com
comunidades xavantes na T.I. Pimentel Barbosa - MT. Realizou com Leandro Parinai’a o curta-metragem Ondas
Curtas (2013), vencedor da X Mostra de Filme Etnográfico do Prêmio Pierre Verger 1992.

392
33. POR UMA SUBJETIVAÇÃO DOS SONS DO MUNDO: ANÁLISES
SOBRE A ESTÉTICA SONORA DO NUEVO CINE ARGENTINO

Roberta Ambrozio de
Azeredo Coutinho

Introdução

O Nuevo cine Argentino (NCA), seguindo uma tendência da cena cinematográfica da América Latina
dos anos 90 e 2000, alcançou reconhecida projeção internacional ao propor um cinema genuinamente Nacional,
antagônico à cena precedente que seguia o modelo hegemônico norte-americano pautado no sistema produtivo
comercial, na aposta em enredos extraordinários, e na narrativa clássica.
Opondo-se a esta perspectiva dominante, o tripé estrutural basilar proposto por este Nuevo cine consiste
em um fluxo de realização independente, na abordagem de temas sociais pontuados dentro de histórias mínimas,
particulares, e na predileção por uma narratividade de dimensão cotidiana e de leitura opaca (VERARDI, 2010;
AGUILAR, 2006). Neste sentido, tal confluência produtiva, temática e narrativa que aproxima as obras do NCA
encontra-se reificada nos estudos que se debruçam sobre este movimento, por outro lado, as abordagens que
propõem uma reflexão acerca de uma convergência formal o permeando são raras. Este quadro pode ser explicado
pelo fato do referido ciclo ser composto por uma rica diversidade de diretores com demarcadas propostas autorais.
Não obstante a esta proeminente heterogeneidade estética, ao analisarmos uma gama de filmes da nueva
onda é possível perceber certa aproximação de ordem estilística entre as concepções sonoras destas películas,
as quais apostam massivamente “(...) em um tratamento sofisticado das distintas camadas de som, onde tudo o
que se escuta faz parte deliberada da mise-en-scène” (CAMPERO, 2009: 33). Nestas produções, em mais um
movimento de transgressão à linguagem fílmica hegemônica, a riqueza acústica que permeia o cotidiano dos
personagens é explorada enquanto potência narrativa e estética em detrimento do desempenho de uma função
convencional utilitária de reforço às aspirações miméticas da dimensão visual.
Diante do exposto, este estudo busca compreender de que maneira os efeitos sonoros, enquanto
componentes da trilha de áudio que representam esses sons do mundo, promovem operações de sentido autônomas
e determinantes nos filmes do NCA? E, seguindo esta perspectiva, é possível apontar a existência de recorrências
estilísticas sonoras que aproximariam essas obras sob um ponto de vista estético? Com o objetivo de responder
tais questões, propomos uma investigação da estrutura narrativo-estilística de eventos sonoros mundanos
representados em filmes ícones do Nuevo cine.

O Nuevo Cine Argentino

Em um lapso de dez anos, 1966-1976, a Argentina sofreu dois golpes militares que influenciaram direta-
mente na eclosão de uma intensa crise mercadológica e criativa no setor cinematográfico que perdurou até mea-
dos da década de 90, momento de surgimento do NCA. A redemocratização definitiva do país a partir de 1983, sob
o comando do presidente Raúl Afonsín (1983-1989), demarca um breve período de prosperidade para o cinema

393
Argentino proporcionado tanto pelo fim da censura, e pelas revisões democráticas das legislações repressivas,
quanto pela volta de um investimento, ainda que módico, do setor público na produção nacional.
No entanto o caos econômico que assombrava o país, o qual se intensificou na virada da década de 90 com
o início do governo Neoliberal de Carlos Menem (1989-1999), estagnou novamente o setor cinematográfico. “A
crise que vinha experimentando a indústria cinematográfica aprofundou-se ainda mais (...). Em 1991 o número
de estreias locais se reduziu a dezesseis, enquanto que no ano seguinte foram lançadas dez películas argentinas
(...)” (VERARDI, 2010: 66).
Durante este período inicial de redemocratização até 1995, ano que, como veremos mais adiante no texto,
se convencionou na teoria como sendo o marco inicial do Nuevo cine Argentino, é apontada, de um modo geral,
uma espécie de estagnação criativa no setor cinematográfico tendo em vista a falta de experimentação narrativa
e estilística que permeavam os filmes (CAMPERO, 2009). No caso do cinema comercial isto é mais facilmente
previsto tendo em vista a sua propensão a reproduzir estruturas de linguagem de filmes lucrativos em termos de
bilheteria.
Contudo, a outra vertente, a da produção independente e autoral, de onde se espera uma maior inventivi-
dade, não trouxe contribuições significativas para o desenvolvimento de uma cinematografia genuína, seguindo,
primordialmente, certas convenções clássicas pautadas no ideal da transparência diegética, como a primazia do
roteiro e a construção de personagens estereotipados que automaticamente cativam a empatia do espectador, e
que por meio de seu discurso roteirizado nos guiam pela história à maneira que o filme quer (CAMPERO, 2009).
Em meio a este contexto de crise tanto financeira, quanto criativa, no setor cinematográfico Portenho,
surge uma produção que se propõe a subverter cada vertente desta estrutura inerte. Rapado (Rapado, Martín
Rejtman, 1992) vai de encontro ao esquema estético-narrativo – temático do cinema feito desde a redemocratiza-
ção, que tanto em sua vertente autoral-independente, quanto na vertente comercial, parecia reproduzir o modelo
hegemônico hollywoodiano.
O filme nos apresenta uma breve passagem na vida do adolescente Lucyo, que ao ter sua moto roubada
logo na primeira cena do filme, passa a caçar pelas ruas de Buenos Aires uma oportunidade de furtar qualquer
motocicleta alheia e assim não ficar no prejuízo. O personagem não é delinquente, nem, do contrário, jovem pro-
missor, mas sim um típico adolescente que vive um momento ocioso e infrutífero, revezando suas atividades entre
o vídeo game e alguns tragos de cigarro, tomado por uma aparente apatia em relação ao futuro.
Neste ímpeto de renovação de uma tradição cinematográfica desgastada e inexpressiva a obra pioneira do
estreante diretor, traz uma inovadora perspectiva temática – narrativa. No filme, os temas universais da narrativa
clássica dão lugar a uma proposta de leitura da realidade socioeconômica Nacional a partir da história “mínima”
de Lucyo. Observa-se uma espécie de individualização do “drama social” em detrimento de uma repetitiva re-
presentação estereotipada do coletivo construída a partir de histórias repletas de grandes acontecimentos, como
propunha o cinema do período da redemocratização, mesmo quando abordava uma temática de ordem social, o
que, inclusive, não era muito comum.
A construção narrativa também não segue os moldes clássicos, propondo uma diegese do agora que não
tem, portanto, a obrigatoriedade de ter começo e fim determinados, além de não se prender às amarras do tradicio-
nal esquema causa-efeito na articulação das ações. Dentro desta perspectiva, o filme desloca o centro da narrativa
do diálogo (o conteúdo proferido pelos personagens já não domina a decodificação da trama) em direção tanto à
composição minimalista da mise-en-scène, quanto ao despojamento da atuação, além de trazer personagens or-
dinários, nem heróis, nem vilões, cuja subjetividade, construída mais pelo viés da opacidade do que da empatia,
é de difícil acesso.
No âmbito da produção-exibição, o filme também inovou, uma vez que foi realizado de maneira inde-
pendente, sem qualquer aporte público ou privado, contando apenas com o bolso da equipe realizadora, além
394
do financiamento estrangeiro do Festival de Rotterdam, e circulando longe das salas comerciais em um circuito
alternativo de festivais internacionais, cineclubes e de alguns poucos Ciclos exibidores locais que abriam espaço
para a produção independente (VERARDI, 2010). É a partir desta proposta de reciclagem completa do cinema
Nacional que o filme em questão é convencionalmente considerado, nos âmbitos da crítica e da academia, como
o embrião do NCA.
No entanto, é com o filme Histórias Breves (Historias breves, 1995) que a ideia de um novo ciclo con-
temporâneo do cinema Portenho ganha força. Ademais, o projeto também simboliza o início de um período de
prosperidade para o âmbito cinematográfico após três décadas de forte recessão, tendo em vista que foi financiado
pelo órgão público INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales), o qual teve a verba multiplicada
com a promulgação da Ley del cine de 1994, criada com o intuito específico de regulamentar e subsidiar a ativi-
dade cinematográfica Nacional, impondo normas que visavam coletar aportes para alavancar a produtividade do
setor (BARRENHA, 2011).
Foi neste cenário frutífero que oito jovens cineastas, ao vencerem um concurso de roteiros produzido pelo
INCAA, tiveram seus curtas-metragens realizados e compilados na já citada coletânea Histórias Breves (His-
torias breves, 1995), a qual se destacou pela arrojada proposta de inovação completa da atividade e linguagem
cinematográfica. Tal ímpeto de transgressão ao cinema que vinha sendo feito é acolhido com entusiasmo pela
crítica especializada que passa a movimentar e a difundir a ideia de o início de um novo ciclo contemporâneo no
cinema Argentino (CAMPERO, 2009).
Os curtas da citada coletânea embora fossem bastante heterogêneos em termos estilísticos, pareciam com-
partilhar entre si aspectos temáticos e narrativos já presentes em Rapado (Rapado, Martín Rejtman, 1992), como
a predileção por assuntos sociais locais abordados a partir de enredos mínimos, narrativas abertas, personagens
comuns e enfraquecimento do discurso enquanto condutor narrativo em detrimento de um exercício estético mais
acurado.
Tal lógica de operação da linguagem fílmica passou a ser observável em várias outras produções entre
meados da década de 90 e início dos anos 2000, mais especificamente no fluxo de produção independente, uma
vez que os filmes produzidos e exibidos na esfera comercial, sobretudo sob o financiamento dos grandes con-
glomerados da comunicação, permaneciam, majoritariamente, replicando as fórmulas narrativas e estilísticas de
uma indústria hegemônica cujo principal objetivo não era o desenvolvimento da linguagem fílmica, mas sim o
retorno de bilheteria.
Nesse sentido, tal retomada criativa do cinema Argentino, foi bastante impulsionada pelo fortalecimento
dos canais de apoio a cena independente, a exemplo dos projetos encabeçados pelo INCAA. No entanto, trans-
formações no âmbito da exibição também foram determinantes para que esses novos filmes, convencionalmente
colocados à margem do circuito comercial, pudessem ser assistidos pelo grande público. Dentro desta perspec-
tiva, os festivais de cinema, nacionais e internacionais, foram de suma importância para que essas produções in-
dependentes, as quais rejeitavam tanto convenções de linguagem do cinema hegemônico, quanto sua perspectiva
primordialmente mercadológica, conquistassem espaço e visibilidade.
Foi neste contexto de circulação que ganharam notoriedade dois filmes os quais são considerados, por crí-
ticos e pesquisadores, como os responsáveis pela consolidação do NCA que já vinha se formando desde Rapado
e que já apresentou contornos mais firmes em Histórias Breves.

O Prêmio Especial do Jurado concedido à Pizza, birra, faso de Adrián Caetano e Bruno Stagnaro no Fes-
tival internacional de Cinema de Mar del Plata de 1997, e os prêmios de melhor diretor e melhor ator con-
quistados por Mundo Grúa, de Pablo Trapero, no Festival de Cinema Independente da cidade de Buenos
Aires, em 1999, somados ao interesse do público, contribuíram para consolidar e promover o nuevo cine

395
argentino. Desta maneira, e apesar do panorama de exibição gerar alguns obstáculos para a circulação dos
filmes do novo cinema, este conseguiu se introduzir no campo cultural da argentina dos anos 90 e lentamen-
te foi se afirmando como um dos fenômenos mais significativos da cena artística Nacional.
(VERARDI, 2010: p. 70-71).

Nesse sentido, as películas citadas por Verardi (2010) são emblemáticas para a consolidação do NCA en-
quanto movimento reconhecido, tanto pela crítica quanto pelo público, uma vez que reuniram as características
básicas de produção, linguagem e conteúdo das produções alinhadas com essa ideal de reestruturação e ressigni-
ficação da cinematografia Portenha , e as difunde no contexto cinematográfico Nacional e Internacional ao ven-
cerem categorias importantes em Festivais de grande porte, e, a partir daí, alcançarem uma circulação expressiva,
sobretudo, Mundo Grúa (Mundo Grua, Pablo Trapero, 1999) que atingiu uma média de 70 mil espectadores, um
número bastante significativo para uma produção independente.
Dessa maneira, o filme de Trapero levou ao conhecimento de muitos o tripé estrutural desta Nueva onda
do cinema Argentino: Foi realizado com um orçamento módico, só contanto com um financiamento tímido do
INCAA já na fase de finalização, aborda o tema do desemprego a partir da geografia íntima do personagem Rulo,
um Argentino de meia-idade comum que como tantos outros como ele vive as mazelas sociais geradas pela crise
de 90, e onde a narrativa solta segue o fluxo do cotidiano banal do protagonista.
A premiação de uma obra ícone para o Nuevo Cine Argentino na primeira edição do Buenos Aires Festival
Internacional de Cine Independente – BAFICI, sinaliza a importância do evento para a difusão e amadurecimen-
to desta cinematografia. Ao longo da era 2000 o BAFICI exibiu, a exemplo da mostra Lo nuevo de Lo nuevo da
edição de 2001, centenas de filmes que traziam as características narrativas e estéticas definidoras deste cinema
contemporâneo Nacional, funcionando como um compilador do movimento.

Dentro desta perspectiva, e, sobretudo, a partir do século XXI, para grande parte do âmbito da crítica,
bem como para o da academia, o Nuevo cine Argentino trata-se de um movimento consolidado, com notórias e
inegáveis especificidades logísticas, narrativas e temáticas. Nas esferas da realização e da exibição, aos já citados
apoio governamental materializado por meio do INCAA, e ao eficiente mecanismo de colaboração entre os reali-
zadores, podemos somar à coprodução com Fundações internacionais, ligadas aos principais festivais do mundo,
como uma importante base estrutural para o movimento.
No que diz respeito às recorrências narrativas e temáticas, problematizadas em momentos distintos deste
texto, complementamos nosso mapeamento a partir da perspectiva de Aguilar (2006).

Finais abertos, ausência de ênfase, ausência de alegorias, personagens mais ambíguos, aversão ao cinema
de tese, trajetória algo errática da narração, personagens zumbis imersos no que lhes passam, omissão de
dados nacionais contextuais, oposição à demanda identitária e à demanda política: todas estas decisões que,
em maior ou maior medida, se detectam nestes filmes, fazem a opacidade das histórias, que em vez de nos
entregar tudo digerido abrem o jogo da interpretação (AGUILAR, 2006: 27 apud BARRENHA, 2011: 35).

Em relação ao estilo dos filmes do NCA, a identificação de um paradigma já é um exercício mais nebuloso
e complexo tendo em vista as demarcadas propostas estilísticas singulares de realizadores ícones deste movimen-
to. Podemos citar alguns desses nomes que mesmo fazendo parte desta onda coletiva, são também identificados e
reconhecidos como diretores que operam um cinema demarcadamente autoral, são eles: Pablo Trapero, Lucrecia
Martel, Martin Rejtman, Adrian Caetano, Lisandro Alonso e Albertina Carri.
Embora esta heterogeneidade estética que distingue as produções do NCA, tão notória quanto à aproxima-

396
ção narrativo-temática problematizada nesta e em tantas outras pesquisas, seja igualmente admitida por críticos
e estudiosos, alguns pesquisadores, sobretudo, na última década, vêm identificando traços estilísticos recorren-
tes nas produções do NCA, tais como um maior esforço na composição de uma mise-en-scène que contemple
um realismo estético (BARRENHA, 2011), e a minuciosa construção sonora dos ambientes (AGUILAR, 2006;
CAMPERO, 2009).
Para o presente trabalho, interessa especificamente este último ponto, tendo em vista que nos propomos
aqui a problematizar uma possível aproximação estilística entre os filmes do Nuevo Cine Argentino a partir da
concepção das bandas sonoras. Dessa maneira, no próximo tópico nos debruçaremos sobre certas estratégias de
criação sônica que nos parecem recorrentes em distintos títulos deste ciclo.

Convergências Sonoras no NCA

Quando observamos as trilhas de áudio dos filmes do NCA é possível perceber que grande parte aposta na
quebra da rígida hierarquia que a narrativa clássica estabeleceu entre os componentes sonoros na criação acústica
dos filmes, onde os diálogos imperam, seguidos pela música e em último lugar, geralmente fadados a uma função
meramente figurativa, localizamos os efeitos sonoros. No contexto do Nuevo Cine Argentino esta regra não só é
desrespeitada, como é subvertida, de modo que os efeitos passam muitas vezes a assumir um papel primordial na
produção de sentido das sequências.
Dentro desta perspectiva, embora a maioria dos filmes traga uma quantidade significativa de diálogos, é
recorrente a quebra do Verbocentrismo (CHION, 2011) nestas produções, ou seja, as palavras pronunciadas já
não são o guia fundamental da narrativa como no cinema hegemônico, inclusive muitas vezes as falas dos per-
sonagens se misturam com o som ambiente, perdendo sua força discursiva em detrimento de uma exploração de
ordem estética da voz.
Por outro lado, as músicas são pouco utilizadas e quando aparecem, geralmente são diegéticas, se mistu-
rando à ruidagem espacial da sequência tal como acontece com as vozes, e anempáticas, quando são indiferentes
a dramaticidade das ações (CHION, 2011), em detrimento de sua clássica exploração extra-diegética e empática
que opera as canções como catalisadores afetivos do espectador, afinando assim nossas reações emocionais com
as intenções dramáticas do filme.
Ademais, é comum a ausência completa de diálogos e músicas em cenas-chave do enredo, o que abre
espaço para que os sons do mundo, captados no instante da cena ou recriados na pós-produção pela equipe de
efeitos sonoros, preencham perceptivelmente a composição acústica das sequências, sem serem encobertos pelas
vozes e canções, podendo, assim, assumir uma função ativa na construção diegética. Este formato de concepção
da banda de áudio amplia as possibilidades fruitivas do espectador que na ausência do amparo intelectual do
discurso, e sem o direcionamento emotivo da música, é invadido por uma gama de sensações engendradas pelos
efeitos sonoros que o envolvem na diegese de uma maneira mais livre e intuitiva.
A mudança de perspectiva em relação ao papel dos componentes audíveis no âmbito do nuevo cine é
sintoma de um quadro mais amplo de renovação da linguagem fílmica adotada pelo cinema anterior, a qual era
filiada à corrente clássica da escola Norte-Americana. Guiados pelo ideal da transparência e da verossimilhança na
construção do mundo diegético, grande parte dos filmes do período da redemocratização explorava o efeito sonoro
como um elemento secundário, fadado à missão de reforçar o caráter mimético da dimensão visual, limitando-se,
portanto, a compor a imagem. “(...) parecia haver certa condenação a um naturalismo que aprisionava os recursos
do som (...), impedindo-os de expandir o discurso a outros horizontes.” (BARRENHA, 2011: 38).

397
Dessa maneira, se na lógica da hegemônica narrativa clássica os eventos sonoros audíveis seriam apenas
aqueles narrativamente relevantes para o enredo, os quais, primordialmente, eram representados de maneira mi-
mética em relação a sua fonte visual, no contexto do NCA o que prevalece é um intenso detalhamento sônico, a
partir do qual os sons do mundo são minuciosamente articulados numa espécie de mise-en-scéne acústica, e onde
é bastante comum a subversão do estatuto da verossimilhança, já que muitas vezes as sonoridades são operadas
com finalidades que vão além do tradicional objetivo narrativo-estético de tornar as imagens mais críveis e vigo-
rosas.
De acordo com este raciocínio, para Aguilar (2006) as obras do Nuevo Cine compartilham uma concepção
sonora particular onde as dimensões visuais e sonoras se complementam expressivamente na construção fílmica.
“(...) todos esses filmes trabalham o som como uma matéria significante que tem uma relativa autonomia com
respeito à imagem, o que a dota de novas dimensões” (AGUILAR, 2006: 94). O que se busca neste formato de
criação audiovisual é a provocação interpretativa do espectador em detrimento do oferecimento de um conforto
perceptivo proporcionado por um conjunto som-imagem meramente figurativo, que permanece refém de uma
obviedade inexpressiva.
Tal maneira de se configurar o composto audiovisual, bastante recorrente nas produções do NCA, se afina
com a noção conceitual de hiper-realismo sonoro a qual problematiza as relações de sentido entre os eventos
acústicos e suas fontes emissoras imagéticas que se propõem em ir além da dominante conexão meramente
referencial entre sons e imagens no contexto da linguagem cinematográfica. “O hiper-realismo está em andamento
sempre que o som faz mais do que simplesmente corresponder ao que se vê na tela, causando ao invés disso
uma impressão para o espectador de que há, como diz Capeller, uma ‘hiperamplificação perceptiva do objeto’”
(COSTA, 2010: 101).
No contexto de criação do desenho de som, os eventos sonoros hiper-realistas resultam de um trabalho,
sobretudo, de pós-produção, o qual opera a potencialização da definição de um registro de áudio a partir da
manipulação de suas propriedades (frequência e amplitude). Na mesa de mixagem o efeito sonoro, seja aquele
captado pelo som direto, coletado de bancos de som ou criado em estúdios e softwares, pode ter a potência
aumentada em relação aos outros componentes audíveis presentes em uma cena, além de ser possível contrastar
a amplitude das pistas que o integram o que lhe confere um alto grau de resolução. Sua tonalidade também pode
ser alterada a partir da expansão de sua banda de frequências o que permite que várias nuances de agudos e graves
se façam presentes no instante da escuta.
Dentro desta perspectiva, potencializar a definição de um efeito sonoro significa amplificar sua pureza e
a sua exatidão na reprodução de detalhes a partir da manipulação criativa de sua faixa de frequência e potência,
o que faz com que o espectador tenha acesso a mais informações sobre o evento acústico representado do que
teria em uma situação de escuta natural. A alta-definição sônica, portanto, é a base do formato de representação
audiovisual hiper-realista que, se apropriando do fidedigno, busca o transgredir ao transformá-lo em um conjunto
som-imagem “[...] mais fiel à realidade do que a própria realidade” (CAPELLER, 2008: 66).
É fato que o uso de efeitos hiper-realistas não é exclusivo do ciclo do Nuevo cine Argentino, sendo
inclusive pensado originariamente na linguagem fílmica como uma tendência de criação sonora massificada no
cinema de gênero hollywoodiano (CAPPELER, 2008). No entanto, é possível apontarmos uma maneira peculiar
de apropriação desta estratégia de criação sônica nas produções do NCA que diverge da perspectiva norte-ame-
ricana. Tal divergência é um reflexo direto das também discrepantes proposições narrativo-estilísticas entre estes
âmbitos.
Esta forma de representação do real é explorada, sobretudo, no gênero fantástico e nos filmes de horror
e ação norte-americanos – sendo bastante incomum em outras categorias como o romance e o drama – enquanto
dispositivo que visa servir a uma demanda “hiper-real” da imagem a qual está inserida em um contexto diegético
398
quase sempre fantasioso e\ou extraordinário. Ou seja, aqui, a hiperamplificação perceptiva do conjunto audiovi-
sual não corresponde a uma ampliação das possibilidades interpretativas do filme, mas sim se dá pela chave da
criação de um ilusionismo exacerbado que corrobora o ponto de vista narrativo-estético espetacular da instância
fílmica.
Já no caso dos filmes do NCA a construção hiper-realista não é aplicada em sons “espetaculares”, até por-
que eles não fazem parte do contexto das narrativas cotidianas típicas do ciclo Argentino, mas sim na representa-
ção da massa sonora circundante que compõe estes universos diegéticos banais. Nesse sentido, o que se busca é
a transgressão do rígido estatuto da verossimilhança a partir do engendramento de significados múltiplos que vão
além do sentido mimético primário de uma composição audiovisual. Tal formato de representação hiper-realista
parece buscar o engendramento de um choque perceptivo no espectador como uma forma de envolvê-lo na die-
gese por meio de um engajamento afetivo e sensorial e não meramente racional.
Diante do exposto, no próximo tópico analisaremos cenas de alguns dos filmes pertencentes ao movimen-
to do Nuevo Cine Argentino nos quais é possível perceber a adoção de uma ou mais estratégias de criação sonora
mapeadas ao longo desta seção. Tal exercício analítico será feito com base nos conceitos ora problematizados,
pertencentes ao campo dos estudos do som.

Por uma subjetivação dos sons do mundo

A partir da problematização apresentada, pudemos refletir sobre como as produções do Nuevo Cine
Argentino, para além de uma já reconhecida confluência produtiva-temática-narrativa, apostam na criação de
trilhas que operam o som como um elemento tão determinante quanto a imagem ou o texto na produção de
sentido das películas. Ao retirarem os elementos sonoros de sua função convencional determinada pela linguagem
cinematográfica clássica, estes filmes parecem apostar na exploração da potencialidade imersiva\expressiva e
corpórea da matéria sonora.
Neste exercício de criação, as películas acabam recorrendo a certas estratégias de composição acústica e
de combinação audiovisual que culminam elementarmente em uma exploração dos sons do mundo para além da
simples referencialidade as suas fontes, tendo em vista que essas sonoridades evocam sentidos acerca do universo
diegético que estão além da do que a imagem nos mostra. Para tornar a problemática ora desenvolvida mais clara,
propomos a análise da composição sonora de seis filmes de diretores emblemáticos do NCA citados em momentos
anteriores do texto.
Em Rapado (Rapado, Martín Rejtman,1992), produção que, como vimos no início do texto, é considerada
como o ponta pé inicial do NCA, o ruído característico do motor das motocicletas é um elemento onipresente que
a todo tempo nos conecta com o drama vivido pelo protagonista. Sem sua moto inseparável, que foi roubada do
adolescente na sequência inicial do filme, Lucyo parece entregar-se ao ócio, perdendo o ímpeto de fazer qualquer
outra coisa. A certa altura do filme, na tentativa de abstrair o tédio, o personagem ao passar despretensiosamente
em frente a um salão de beleza resolve raspar o cabelo.
Em um close vemos as mãos do cabelereiro e o rosto desanimado de Lucyo. Nesta ação, o ruído da
máquina que é passada em sua cabeça é representado de maneira hiper-realista, uma vez que o som é intensamente
potente e grave, evocando a sonoridade de uma motocicleta. Tal representação acústica nos remete ao desejo do
adolescente de voltar a possuir tal veículo, além de demarcar uma virada na narrativa: Logo depois de sair do
salão, o personagem vê um indivíduo furtando uma moto que está estacionada na rua e a partir daí resolver a fazer
o mesmo para ter de volta o que lhe foi tirado.
Na ficção Mundo Grúa (Mundo Grúa, Pablo Trapero, 1999), “Rulo”, o protagonista, é um homem de
399
meia-idade, pouco estudo, e com uma saúde debilitada, que tem dificuldades em conseguir um trabalho. Quando
consegue por meio de um amigo um serviço de operador de “grúa”, grandes máquinas utilizadas na construção
civil, o personagem tem dificuldades em se adaptar e acaba sendo dispensado do emprego. Na cena em que
descobre que tem outro operário em seu lugar, Rulo, notoriamente descompassado pela notícia, decidi tomar
satisfações com o chefe.
Durante o seu trajeto do alto da construção até a sala da chefia, o personagem é rodeado pelos sons
maquinários onipresentes. Tais sonoridades são representadas com uma intensa acentuação das tonalidades
graves inerentes a ambiência acústica de uma obra. A força sinestésica das baixas frequências desses eventos
sonoros evoca no espectador as sensações de opressão e sufocamento que parecem invadir o protagonista. Os
ruídos hiper-realistas apontados estabelecem o clima da cena ao nos remeterem à situação de superioridade das
máquinas em relação à “Rulo”, que foi demitido por se mostrar incapaz de operá-las. Assim, tais eventos sônicos
remetem à inadequação dele àquele ambiente opressor e desumanizado.
No longa Bolívia (Bolivia, Adrián Caetano, 2001), observamos um completo caos sonoro onde tal
desarmonia acústica pontua a dramaticidade da vida sofrida dos imigrantes ilegais. Freddy é boliviano, recém-
chegado em Buenos Aires, onde passa a ser empregado no bar de Henrique, que também emprega a paraguaia
Rosa. Os estrangeiros trabalham em um ritmo desumano, por um salário miserável, enquanto são bombardeados
por piadas xenofóbicas.
O filme se passa quase todo dentro do bar, locação principal, cuja mise-en-scène é permeada por uma
incessante profusão de sons, onde a partir de uma construção acústica minuciosa ouvimos cada mínima sonoridade
de maneira bastante nítida. Tais sons ruidosos, apesar de não serem representados de maneira hiper-realista,
são frenéticos e onipresentes, uma vez que são produzidos pelo trabalho ininterrupto e estressante da dupla de
imigrantes. As falas incessantes que ecoam das conversas entre os clientes são em sua maioria ininteligíveis, de
modo que se transformam em um vozerio ruidoso que não se articula como discurso, mas sim como parte da
ambiência acústica, tal como o som ambiente.
Esta construção sonora caótica engendra um sentido de opressão, como se os personagens fossem reféns
daquela desgastante rotina auditiva. Ao entrarmos em contato com estes sons do entorno, somos convidados a
compartilhar da atmosfera de turbulência e inconstância que permeia o cotidiano dos estrangeiros que vivem à
margem. A morte de Freddy é a única cena silenciosa do filme, o que potencializa a carga dramática da sequência
que simboliza não apenas o fim de sua vida, mas, sobretudo, o fim da sua luta pela sobrevivência.
Em La Libertad (La Libertad, Lisandro Alonso, 2001) “Misael” é um lenhador que passa seus dias sozinho
imerso na floresta, totalmente integrado com aquele ambiente, onde vive cada pequena ação de sua rotina. No
filme, o qual se encontra em uma posição híbrida entre ficção e documentário, a narrativa se constrói a partir
da observação do cotidiano do lenhador solitário, e a quase ausência de diálogo e música confere destaque a
presença dos efeitos sonoros, os quais nesta película se propõem a representar a riqueza sonora que é possível ser
captada em um ambiente onde a acústica da natureza não disputa espaço com o caos sonoro urbano.
Nesse sentido, os sons produzidos pelo personagem, desde os mínimos (passos, respiração, deglutição,
etc.) até os mais impactantes, como os que soam do choque entre seu machado e os troncos/galhos das árvores,
se harmonizam com o sons onipresentes da floresta (sons de pássaro, de cigarras, do vento, trovões, chuva). Este
amálgama sônico intensamente minimalista parece se propor a revelar uma relação orgânica onde homem e meio
se influenciam mutuamente a todo tempo. Misael muda a paisagem, ao mesmo tempo em que é modificado por ela,
e essa relação de troca é a todo tempo evocada no campo perceptivo do espectador a partir dos arranjos acústicos
operados pela sobreposição destas distintas camadas de efeitos sonoros, responsáveis pela representação de cada
detalhe acústico da ambiência diegética.
A Raiva (La rabia, Albertina Carri, 2008) nos apresenta a relação conturbada entre duas famílias que
400
vivem em uma região isolada nos Pampas Argentinos. Quando os patriarcas se desentendem no início da trama,
proíbem a aproximação entre seus solitários filhos, a menina “Nati”, a qual sofre de uma estranha mudez (ela
não fala, mas grita muito), e o sensível adolescente “Ladeado” que vive em conflito com o pai. Mesmo diante da
proibição, os jovens continuam mantendo uma amizade às escondida e é num desses encontros secretos que o pai
do garoto os flagra e resolve castigá-lo com uma surra de sapato, cuja representação sonora domina a estrutura
narrativo-estética da ação.
A sequência é composta por uma minuciosa composição acústica do espaço, de modo que o espectador
tem acesso à escuta de sonoridades muito sutis, que na realidade tangível dificilmente seriam ouvidas com
tamanha nitidez, como as pisadas dos cachorros e das crianças na palha quando ainda estão brincando de correr
instantes antes do flagrante, e as quais não apenas figuram, mas de fato compõem a mise-en-scène da ação. Outra
construção que demonstra o aspecto expressivo da representação dos sons do mundo nesta cena é a colocação de
um efeito extra-diegético intensamente grave junto ao som ambiente do vento que ao ir crescendo em potência e
diminuindo em frequência ao longo da cena, tornando-se ainda mais grave, vai imprimindo uma forte atmosfera
de tensão à ação, preparando sensorialmente o espectador para a chegada violenta do pai de “Ladeado”.
Além disso, no momento da surra, o ruído das sapatadas é bastante destacado e seco, se fazendo presente
na nossa escuta, mesmo dividindo o espaço acústico com os gritos desesperados do garoto. Aqui a voz já não é
fala, mas sim é explorada enquanto mais uma camada do som ambiente. Nesse sentido, a sonoridade incessante
das pancadas em conjunto com os gritos, sobretudo na segunda parte da sequência, evoca as sensações de violência
e raiva que permeiam a relação entre pai e filho, funcionando nesse sentido como um prenúncio para o desfecho
violento da trama. Ao ocultar essa parte da sequência visualmente – ouvimos, mas não vemos a surra – o filme
confere um papel mais autônomo ao som, cuja força sensorial e expressiva é intensificada na ausência da imagem,
e o qual se propõe, nesta sequência, a nos conectar com as subjetividades codificadas na diegese mais pela chave
da intuição do que da evidência.
O enredo de A Menina Santa (La niña Santa, Lucrecia Martel, 2004) gira em torno de um platônico triângulo
amoroso entre Dr. Jano, Helena e sua filha Amália. Logo no início do filme, o médico, que está participando de
uma conferência no hotel administrado por Helena e seu irmão, molesta Amália ao encostar-se com malícia em
seu corpo durante uma apresentação musical que atrai uma pequena multidão para frente do hotel.
O ato de Jano desperta a libido da menina “santa”, que entende o ocorrido como um sinal divino e
passa a desejar e perseguir seu “algoz”. Esta reação é fruto do momento inquietante que a adolescente vive,
dividida entre o despertar da sexualidade e as aulas de catecismo. A partir deste acontecimento pontual a trama
se desenrola e passamos a acompanhar alguns dias atípicos na vida dos três personagens. Uma cena chave para o
desenvolvimento da narrativa é aquela onde o médico, que até então só tinha visto sua “vítima” na rua, a flagra o
observando na piscina do hotel e fica notoriamente assustado. Nesta ação a adolescente, mesmo camuflada atrás
de uma pilastra, chama a atenção de Jano ao emitir uma sonoridade representada de maneira hiper-realista.

Podemos dizer que o gesto sonoro ordinário realizado por Amália – a batida reiterada de um anel na
pilastra de ferro – propõe o alcance de um hiper-realismo, porque o sentido emanado por ele vai muito além do
que a dimensão visual revela. Vemos a garota “escondida”, mas sabemos a partir do som emitido que o que ela
quer de fato é ser vista, e mais, é pela potência sensorial desse som, enfatizada por sua alta-definição e por sua
reiteração excessiva, que acessamos intuitivamente o desejo pungente de Amália. Se até agora a menina apenas
cercava o médico de longe, é a partir deste momento, demarcado por essa sonoridade insistente, que ela passa a
o perseguir.
Na realidade tangível dificilmente alguém que estivesse naquele cenário, como Jano, ouviria com tamanha

401
definição um som tão sutil, ainda mais por se tratar de uma área aberta que recebe informações acústicas por todos
os lados. Portanto é a ênfase no tom agudo do ruído analisado que faz com que ele atinja de maneira bastante
nítida a audição do médico. Ainda que Jano não possa a ver nitidamente, Amália faz com que ele a escute, e, para
além disso, faz com que ele, e também nós espectadores, sintamos toda a sua intenção de se aproximar.

Considerações finais

Nas produções do NCA, os efeitos sonoros, tanto os emanados a partir interação dos personagens com o
meio, quanto àqueles provenientes do entorno circundante, sobretudo, quando concebidos de maneira hiper-rea-
lista, transcendem seu papel convencional de um reforço mimético a dimensão imagética e passam a engendrar
significações fundamentais acerca do universo ficcional que estão além de uma leitura tradicionalmente figurati-
va. Nesse sentido, estes componentes da trilha de áudio não se limitam a uma representação meramente mimética
dos sons do mundo, assumindo funções narrativas e estéticas determinantes na construção diegética em detrimen-
to de um papel primordialmente utilitário-figurativo.
Assim, em grande parte das películas do NCA, os efeitos sonoros se destacam tanto enquanto elementos
que constroem espaços e compõem acusticamente a mise-en-scène, como também conferem dramaticidade às
ações, ao proporem a revelação das subjetividades codificadas na diegese, evocam sensações ao criarem atmosfe-
ras e climas nas sequências, além de pontuarem momentos decisivos das tramas, oferecendo intuições narrativas e
estéticas ao espectador. Dentro desta perspectiva, a potência sonora que nos cerca, primordialmente desvaloriza-
da na realidade tangível enquanto elemento cultural e estético (SCHAFER, 2001; CHION, 2011), quando repre-
sentada neste movimento, passa a interferir de forma determinante no processo fruitivo do espectador, suscitando
significações que permaneceriam ocultas em uma composição audiovisual meramente redundante.

Ademais, a quebra ao padrão do Verbo-centrismo na criação dos diálogos, e um consequente uso da voz enquanto
evento acústico incorporado ao som ambiente e não enquanto discurso a ausência da fala-texto (CHION, 2001)
em momentos determinantes da trama, como também o uso módico de canções, além de serem opções de dese-
nho acústico que conferem um espaço maior e mais significativo para os efeitos sonoros na construção fílmica,
contribuindo assim para um rico detalhamento acústico, bem como para a criação de inovadoras composições
hiper-realista, também funcionam como recursos determinantes para a concepção estilística dos filmes. Ao nos
voltarmos para as sequências analisadas percebemos a recorrência dessas estratégias ora listadas, tendo em vista
que em nenhuma delas ouvimos canções ou palavras, mas sim um arranjo sônico composto apenas pelos sons do
mundo.
Diante do exposto, buscamos apontar neste artigo certas recorrências estilísticas sonoras que permeiam o
ciclo do Nuevo cine Argentino como uma forma de contribuir para a produção de conhecimento acerca deste im-
portante movimento do cinema contemporâneo. Assim, para além da já reconhecida convergência produtiva-te-
mática-narrativa, propomos aqui a problematização acerca de uma convergência também de ordem estética per-
meando a concepção sonora das produções pertencentes a este ciclo cinematográfico. Tal argumentação também
traz contribuições aos Estudos do Som, uma vez que se propõe a refletir de maneira mais específica e aprofundada
sobre os efeitos sonoros, componentes do filme usualmente ignorados pelo âmbito teórico.

402
Referências bibliográficas

AGUILAR, G. Otros mundos: Un ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2006.

BARRENHA, N. C. A experiência do cinema de Lucrecia Martel: Resíduos do tempo e sons à beira da piscina. 2011.
224 f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto de Artes da Unicamp, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas. 2011. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000837604>.
Acesso em: 25. Jan. 2017.

CAMPERO, A. Nuevo cine argentino. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento, 2009.

CAPELLER, I. “Raios e trovões: hiper-realismo e sound design no cinema contemporâneo”. In: Catálogo da
mostra e curso O Som no Cinema. Rio de Janeiro: Tela Brasilis/Caixa Cultural, pp. 65-70, 2008.

CHION, M. A Audiovisão. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.

COSTA, F M. “Pode o cinema contemporâneo representar o ambiente sonoro em que vivemos?” Logos Comuni-
cação e Audiovisual, v. 17, n. 1, 2010.

SCHAFER, R. M. A afinação do mundo. São Paulo: Unesp, 2001.

VERARDI, M. Nuevo cine argentino (1998-2008): formas de una época. 2010. Tese (Doutorado em História y
Teoría de las Artes) – Facultad de Filosofia y Letras, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2010.

Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho - Graduada em jornalismo (2006 – 2010) e especialista em estudos
cinematográficos (2012 – 2014) pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicamp – PE). Mestre pelo progra-
ma de pós-graduação em comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Participou de oficinas e
cursos técnicos de som cinematográfico, como de operação de Protools (2015) e de Criação\edição\mixagem de
Foleys (2016). Atualmente é doutoranda (2017 – 2021) no mesmo programa onde concluiu o mestrado e desen-
volve um estudo acerca do conceito de ruído em distintas áreas do conhecimento, como a acústica, a comunicação
e a antropologia, em diálogo com a conceituação deste elemento na linguagem cinematográfica.

403
34. O SORRISO BARROCO: IRONIA E MELANCOLIA EM JÚLIO
BRESSANE

Fabio Camarneiro

A cabeça pende apoiada sobre a mão fechada. O olhar é ao mesmo tempo penetrante, como se concentrado
em algo, e também um tanto perdido, destituído de um objetivo claro. A mão descansa enquanto segura um
compasso, talvez interrompida em meio a algum gesto. Próximo, um livro fechado serve de apoio ao outro braço
do anjo. Ao redor da figura sentada e pensativa, a seus pés, instrumentos de marcenaria. Acima, uma ampulheta,
uma balança, um sino e uma tabela com quatro linhas e quatro colunas, preenchidas por números – um “quadrado
mágico”, em que o resultado da soma de qualquer linha ou coluna ou diagonal é sempre o mesmo.
Ao fundo, ao longe, algumas construções – uma pequena cidade? – e, ao horizonte, o sol lança seus raios.
No céu, uma criatura alada, um tanto etérea e com rosto canino, nos apresenta o título da gravura, que surge em
uma placa: “Melencolia I” – ou “Melancolia I” (1514) – obra do alemão Albrecht Dürer.
Além de notar “a cabeça apoiada, a bolsa e as chaves, o punho cerrado, o rosto escuro”, uma análise –
retirada do livro Saturno y la melancolía – oferece uma interpretação possível dessa imagem:

a gravura de Dürer é o resultado de uma síntese de certas imagens alegóricas da melancolia e da arte,
cujos conteúdos imaginários, bem como seus significados expressivos, sem dúvida se modificaram. Daí a
probabilidade intrínseca de que os motivos característicos da gravura se expliquem ou como símbolos de
Saturno (ou a melancolia) ou como símbolos da geometria. (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1991:
310)

Neste trecho, a gravura de Dürer é entendida como “síntese de imagens alegóricas”, a gênese de um
entendimento, na tradição ocidental, que estabelece intercâmbios entre o sentimento melancólico e o (por vezes
angustiado) pensamento especulativo ou abstrato. Walter Benjamin, ao tratar do papel do tradutor, aproximou a
perplexidade do leitor ao sentimento produzido no observador de “Melancolia I”. A partir dessa ideia, Suzana
Kampff-Lages coloca Dürer e Benjamin lado a lado:

Como a gravura de Dürer, seu enigma liga-se a uma composição inédita de imagens extraídas da tradição
anterior (no caso de Benjamin, da tradição filosófica e literária e, dentro dela, da teoria da tradução,
anteriores a ele). (KAMPFF-LAGES, 2007: 220)

Assim como na gravura de Dürer e na obra de Benjamin, o cinema de Júlio Bressane opera com essa
“composição inédita de imagens extraídas da tradição anterior”. Um cinema erudito em que literatura, cinema,
música e artes plásticas amiúde aparecem em citações diretas ou alusões. Em várias dessas escolhas, notamos que
essa tradição ligada à melancolia ganha uma companheira: a ironia. Esse encontro (que revela um jeito bastante
brasileiro de lidar com a apropriação) aparece já no personagem Brás Cubas, do romance de Joaquim Maria
Machado de Assis (filmado por Bressane em 1985), que afirma ter escrito suas memórias póstumas com “a pena
da galhofa e a tinta da melancolia”. (ASSIS, 2014)

404
Ainda outra matriz para essas apropriações em chave irônica seria o samba, estilo musical muito usado
por Bressane em seus filmes e que dependeria, de acordo com o verso de Vinicius de Moraes, de “um bocado
de tristeza” para ser esteticamente bem-sucedido. A ironia do samba possui longa tradição, e citaremos apenas o
autor mais usado nos filmes de Bressane, Noel Rosa, cuja obra é marcada por letras repletas de humor, inversões,
situações inusitadas, trocadilhos etc.
Além dos exemplos acima, a melancolia está presente também em diferentes autores que pensaram a
identidade brasileira durante os anos 1920 e 1930. (SCLIAR, 2001) Assim, em Retrato do Brasil, Paulo Prado
coloca o sentimento (que o autor aproxima do spleen) na conta dos descobridores portugueses: “Numa terra radiosa
vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram”.
(PRADO, 2007) A obra elenca ainda as razões históricas da tristeza brasileira, elencadas nos títulos de seus quatro
capítulos: “a luxúria”, “a cobiça”, “a melancolia” e “o romantismo”. Ao citar nosso “erotismo exagerado”, Prado
se lembra do adágio latino: Post coitum animal triste est (depois do coito, o animal está triste). Esse julgamento
excessivamente negativo da luxúria rendeu uma das primeiras e mais notórias críticas ao livro, de autoria do poeta
Oswald de Andrade, que acusou Prado de ter desconsiderado as ideias psicanalíticas de inconsciente ou libido.
Segundo o autor do “Manifesto antropófago”, Retrato do Brasil seria “pré-freudiano”, e alinhar-se-ia a uma
“moral dos conventos inacianos”. (In: PRADO, 2007: 230)

Outros autores também lidaram a presença da melancolia como constituinte do brasileiro: em Casa-
grande & senzala, Gilberto Freyre lança mão da ideia das “três raças tristes”: “O português, já de si melancólico,
deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se fala: calado, desconfiado, quase um doente em
sua tristeza”. (apud SCLIAR, 2001) Já Vianna Moog atribuiria essa tristeza ao “mazombismo, à consciência
das raízes europeias e da dolorosa separação destas”. (SCLIAR, 2001) Lembremos ainda de Tristes trópicos, de
Claude Lévi-Strauss, para afirmarmos que a ideia da melancolia faz parte de uma das matrizes de pensamento da
cultura e da identidade brasileiras. Uma ideia de Brasil marcada em maior ou menor grau por uma negatividade,
que tornaria impossível a realização de um projeto de país civilizado (aos moldes europeus). A melancolia nasce
de um impasse aparentemente insolúvel, muito bem formulada em José Miguel Wisnik: “se o Brasil se moderniza,
deixa de ser Brasil; se permanece Brasil, não se moderniza”. (WISNIK, 2015: 65) Restaria assim uma certa
inexplicável tristeza – saudade de um tempo que nunca existiu – que podemos aproximar das ideias de Freud. O
fundador da psicanálise lembra que a melancolia é o luto patológico decorrente da perda de um objeto que, em
última análise, é o próprio eu. (FREUD, 2011) A partir dessa ideia, pensamos a melancolia brasileira como, ao
menos em parte, um desejo manifesto de ser um Outro.
Os cineastas brasileiros ligados ao Cinema Marginal, ao refletirem um momento histórico e político
de niilismo e desencantamento político (os anos imediatamente posteriores ao Ato Institucional nº 5, o AI-5),
exploraram a fundo a figura da negatividade. (RAMOS, 1986) Em, por exemplo, Horror Palace Hotel (Jairo
Ferreira, 1978), filmado durante o Festival de Cinema de Brasília e com participações e depoimentos de vários
cineastas, Rogério Sganzerla afirma que “o cinema brasileiro está tão ruim que só pode melhorar”. A frase do
cineasta de O bandido da luz vermelha realiza uma série de inversões: quanto pior o cinema brasileiro, mais
otimistas deveríamos estar; uma curva descendente pode significar uma ascendente (e vice-versa). Essa figura da
inversão é também típica da carnavalização, segundo o estudo de Mikhail Bakhtin sobre a obra de François Rabelais
(BAKHTIN, 1987). Compartilhando de elementos dessa tradição que lança mão da melancolia para entender o
país, Bressane trabalha em vários de seus filmes – especialmente a partir de Tabu (Júlio Bressane, 1982) – sobre
esse delicado equilíbrio entre a negatividade (a melancolia) e a ironia (a galhofa), como se um dependesse do
outro. Assim, o cineasta remonta a Machado de Assis mesmo quando não está diretamente utilizando a literatura
do autor como base para seus filmes. E lança mão também de outras influências, como a antropofagia de Oswald
405
de Andrade – que elaborou a forma do “poema-piada” – ou do tropicalismo, que operou inusitados choques entre
elementos díspares, como pode-se perceber nos versos de Torquato Neto, mais conhecidos na voz de Gilberto Gil:
“A alegria é a prova dos nove/ E a tristeza teu Porto Seguro/ Minha terra, onde o Sol é mais limpo/ Em Mangueira,
onde o Samba é mais puro”: encontro de elementos distintos, bem ao gosto da Tropicália: de um lado, Oswald (“A
alegria é a prova dos nove”) e, do outro, Gonçalves Dias (“Minha terra, onde o Sol é mais limpo”). Um encontro
também de dois sentimentos aparentemente antagônicos, alegria e tristeza, recuperados a partir de um jogo de
citações (como também, cada qual a sua maneira, fizeram Machado, Noel, Bressane).
Relembremos, de maneira bastante livre, algumas passagens do cinema de Bressane: o Rio de Janeiro de
ladeiras letárgicas que servem de cenário para as tiradas espirituosas de Oswald de Andrade (Colé) em Tabu; o
esqueleto na abertura de Brás Cubas (Júlio Bressane, 1985); o giro do Padre Vieira em Sermões: a história de
Antônio Vieira (Júlio Bressane, 1989); a solidão de um Mário Reis nu, que a capella canta “Rasguei a minha
fantasia” em O mandarim (Júlio Bressane, 1995). Em todos esses momentos, algo remete à melancolia (a lenta
passagem de tempo; a falta de sentido do movimento; os signos de morte) e, ao mesmo tempo, pelas citações que
esses momentos contêm – o Othon Bastos de Vieira ecoa o gesto de Corisco de Deus e o diabo na terra do sol
(Glauber Rocha, 1964) –, pelo inusitado das situações (o microfone que percorre-ausculta-grava o cadáver), pela
abordagem literal da letra da canção (o homem nu que canta ter “rasgado sua fantasia”) – temos sempre, ao fundo,
de maneira sutil, o eco de um riso, a presença da ironia.
Essa maneira de pensar a criação artística encontra, como vimos, ecos em Dürer e em Benjamin. Mais
uma vez Kampff-Lages, ao escrever sobre Benjamin e sua ideia de tradução e de leitura, esclarece que:

A cada nova interpretação pressente-se um acréscimo e uma falta, uma proximidade e uma distância entre o
texto e seus leitores. Esse movimento oscilante não só é correlato da alternância que se encontra no impulso
melancólico, mas constitui o modo especifico pelo qual a melancolia age na leitura (KAMPFF-LAGES,
2007: 220)

Mas, além de Benjamin, também Bressane pode ser vislumbrado no trecho acima. Seja no “movimento
oscilante” entre o filme e a tradição, movimento similar ao das ondas do mar (imagem muito recorrente em
Bressane): movimento interminável, eterno retorno, dialética sem síntese possível. Kampff-Lages identifica a
melancolia como ferramenta para a leitura dos fragmentos do passado. Não se trata apenas de uma tradução, mas
de uma posição subjetiva frente ao próprio repertório artístico, à própria constelação de referências que anima
os autores aqui em questão. Mas, no caso brasileiro, em um contexto específico e com essa “distância” podendo
também indicar uma dicotomia entre a matriz civilizada (de onde nos chega os “originais”) e suas “cópias”,
muitas vezes consideradas insuficientes ou mal ajambradas.

Ainda além, Benjamin identifica, em “Melancolia I”, o barroco:

Essa gravura antecipa sob vários aspectos o Barroco. Nela, o saber obtido pela ruminação e a ciência
obtida pela pesquisa se fundiram tão intimamente como no homem do Barroco. A Renascença investiga o
universo, e o Barroco, as bibliotecas. Sua meditação tem o livro como correlato. (BENJAMIN, 1984: 164)

Levando em conta a passagem acima, se o barroco realmente investiga as bibliotecas, o cinema de


Bressane não se encontra muito distante dessa mesma ideia ao investigar acervos fílmicos, literários, musicais ou
pictóricos. Daí a impressão de historicidade que atravessa toda a filmografia do realizador, com especial ênfase
em seus filmes realizados desde meados da década de 1970 e pelo menos até Cleópatra (Júlio Bressane, 2008).

406
Com isso, não queremos dizer que Bressane tenta dar conta de um momento histórico específico ou que seus
filmes tentam recuperar o passado da maneira mais convencional que o cinema se acostumou a fazer, o chamado
“filme de época”. Em Bressane, essa historicidade é algo mais profundo, como se cada palavra, cada gesto e cada
música, cada enquadramento e cada corte de cena fossem resultado de um acúmulo de referências. Resta então,
ao espectador, o exercício de desenrolar essa espécie de fio que nos leva dos elementos da forma fílmica a uma
espécie de história das formas. Cada imagem remetendo a outra e a outra, criando assim uma espécie de vertigem
cujo centro é a própria noção de História.
A frase de Benjamin sobre o barroco estabelece também um delicado encontro entre pares opostos: de
um lado, a ruminação (filosófica e abstrata) e, do outro, a pesquisa (científica e empírica). O livro como ponto de
equilíbrio possível entre esses dois polos. Em Bressane, esses dois polos poderiam ser também traduzidos como
erudição e experimentação, as duas bases de seu cinema. O livro (o filme) é também aqui ponto de equilíbrio entre
o erudito (a “ruminação”, segundo Benjamin) e o sensual (o empirismo), como se pode tantas vezes comprovar
em seu Filme de amor (Júlio Bressane, 2003).
Aqui, coloca-se um problema: como se apropriar de materiais da tradição sem cair em um saudosismo
próximo da sensibilidade do romantismo? Pensando sobre isso, Olgária Matos escreve sobre Walter Benjamin,
afirmando que o autor:

está atento ao aspecto arcaico, “de ideologia reacionária” no culto ao passado. Mas, ao contrário desse
retorno petrificado, considera que existe o “êxtase cultural” como forma legítima de conhecimento, um
acesso à dinâmica original das formações das culturas. (MATOS, 1989: 86)

Aos que ainda poderiam imaginá-los, Benjamin ou Bressane, como meros “cultores do passado”, temos a
resposta: na verdade, temos nesses autores um acesso à “dinâmica original das formações das culturas”. Um gosto
pelo passado que reconhece, ao mesmo tempo, a impossibilidade de se recuperá-lo e essa espécie de abismo que
separa o momento da leitura do da escrita. Porém, ambos parecem também reconhecer que esse mesmo abismo
seria condição necessária para uma verdadeira aventura criadora.
Ainda aproximando criação e melancolia, Susan Sontag defende que as obras do pensador alemão só
podem ser entendidas “desde que se compreenda até que ponto se baseia na teoria da melancolia”. (SONTAG,
1986: 86) E a psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl afirma que “o conceito de fatalidade melancólica começa
a ser pensado por Benjamin no início de sua produção intelectual (...) e vai até seus últimos escritos”. (KEHL,
2015: 260) Assim, se pudéssemos esboçar aqui uma certa genealogia, encontraríamos a ironia e a melancolia
associadas à determinadas práticas de leitura (e de releitura, e de tradução) de uma tradição cultural.
Kampff-Lages identifica em Benjamin elementos que podemos encontrar também no cinema de Bressane:
“um processo de violenta apropriação, que se constitui a partir de uma releitura conscientemente seletiva do
substrato literário passado e contemporâneo”. (KAMPFF-LAGES, 2007: 90) Assim, as referências do cineasta,
resultados de “violenta apropriação”, surgem sempre de maneira crítica e associadas, como pudemos ver nos
poucos exemplos acima, à ironia.
O encontro entre Saturno (a melancolia) e a geometria inaugura, na tradição pictórica ligada ao tema, uma
nova ideia: a melancolia como qualidade do espírito criativo. Portanto, criação artística e melancolia caminhariam
lado a lado.
O objeto colecionado readquire seu caráter de culto, de ritual. De onde a noção benjaminiana de “iluminação
profana”, onde o cotidiano e o mistério conjugam seus poderes, fazendo corpo com o mundo das imagens
(Bild). (MATOS, 1989: 92)

407
Cotidiano e mistério conjugados. Como em Filme de amor, que encena – em um banheiro – o nascimento
de Vênus a partir do quadro de Sandro Botticelli. No mesmo filme, sem nenhuma explicação prévia, as personagens
femininas voam pelo quarto do edifício decadente do subúrbio do Rio de Janeiro. Benjamin escreveu sobre o
movimento surrealismo:

De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só
devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê
o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. (BENJAMIN, 1987: 33)

As vanguardas francesas em geral e o surrealismo em particular são importantes para Bressane em distintos
momentos de sua carreira. Seja em Amor louco (Júlio Bressane, 1971), quando toma emprestado o título de um
livro de André Breton e faz alusão à famosa sequência do olho cortado em Um cão andaluz (Un Chien andalou,
Luis Buñuel, 1928); seja em Cinema inocente (Júlio Bressane, 1980), quando recupera o imaginário do cineasta
francês Marcel L’Herbier; seja em Filme de amor, quando cita as pinturas de Balthus ou recupera as primeiras
páginas de A história do olho, primeiro romance de Georges Bataille, em que a personagem central senta em um
pires cheio de leite. Se, como estratégia, tanto Benjamin quanto Bressane apropriam-se de fragmentos da tradição,
o cineasta carioca mistura a ironia brasileira com a matriz experimental do cinema e da literatura francesas do
entre-guerras. Um momento em que Jacques Lacan via o surrealismo como algo que “encontra lugar numa série
de emergências cujo selo comum imprime em nossa época sua marca: a de uma revelação das relações do homem
com a ordem simbólica”. (LACAN, 2003, p. 166)
Segundo Kampff-Lages, existiria no autor alemão uma “aplicação radical do conceito modernista de
antropofagia como estratégia particular de leitura da tradição”:

Trata-se de um processo de violenta apropriação, que se constitui a partir de uma releitura conscientemente
seletiva do substrato literário passado e contemporâneo. (LAGES, 2007: 90)

Assim, Benjamin seria talvez “o último dos pensadores modernos” a tomar a palavra em sua acepção
“pré-freudiana”, que articula “o melancólico à cultura e à criação artística”. (KEHL, 2015: 254) Concepção
fundada nas interpretações da gravura de Dürer. Mas Freud passa a usar esse significante “para inaugurar uma
nova explicação psicanalítica para a chamada ‘psicose maníaco-depressiva’ (Kraepelin)” (KEHL, 2015: 253)
Logo, “a aura romântica, tanto reflexiva quanto criativa, (mal) equilibrada na tensa fronteira entre o gênio e a
loucura – a aura dos antigos melancólicos – se perdeu”. (KEHL, 2015: 261)
Concordando com Susan Sontag, para quem as obras de Benjamin só podem ser entendidas “desde que se
compreenda até que ponto se baseia na teoria da melancolia” (SONTAG, 1986: 86), Maria Rita Kehl afirma que

o conceito de fatalidade melancólica começa a ser pensado por Benjamin no início de sua produção
intelectual, a propósito do teatro barroco; continua nas considerações sobre os obstáculos à poesia lírica
no século XIX e vai até seus últimos escritos, em que se discute com os historicistas sobre o conceito de
história. (KEHL, 2015, p. 260)

Para a psicanalista, a melancolia é central em Benjamin por ser “tributária de uma determinada maneira
de se interpretar a história”. (KEHL, 2015: 260) Bressane compartilha essa interpretação (barroca) da história. No
horizonte do cineasta, há o contato entre uma liberdade artística e uma liberalidade sexual que podemos encontrar
tanto na literatura erótica francesa quanto no maio de 1968. Uma utopia – “paraíso terrestre”, El Dorado. Nesse

408
sentido, a cidade do Rio de Janeiro surge como ruína, mas também como memória – de algo que jamais existiu.
A maneira de Bressane escapar a essas armadilhas da leitura (que poderiam consolidar uma posição
subalterna ou “subdesenvolvida”) é entender a tradição como ruína. Como se seus filmes realizassem uma
alternância que remete à história do Brasil e a sua identidade nacional, entre a euforia da terra prometida e a
constatação do fracasso iminente. Aprisionado a esse movimento – que, repetimos, não tem síntese possível, ou
seja, não nos leva a lugar nenhum – o realizador, filme a filme, retorna sempre aos mesmos temas, às mesmas
referências, mas sempre as recriando, conectando-as com novos materiais e assim abrindo novas cadeias de
significado. Para Bressane (como antes para Machado), o mito romântico da “originalidade” torna-se inviável (e
também, de certa maneira, sem sentido). Ou, em tom de galhofa, podemos também lembrar das polêmicas sobre
a autoria de alguns sambas durante a década de 1920, que levaram o compositor Sinhô – acusado de “ladrão” – a
declarar que “samba é que nem passarinho, de quem pegar primeiro”. (NETO, 2017) Esta mesma história é citada
em O mandarim, com o cantor e compositor Gilberto Gil interpretando o papel de Sinhô.
No trabalho de reapropriação de materiais distintos, tão ou mais importante que saber criar é saber como
tomar de empréstimo (como roubar) referências anteriores, deslocando-as de seus contextos originais e tornando-
as suas. A partir da ideia benjaminiana da “perda da aura”, Kampff-Lages pensa a gravura de Dürer como um
elogio à cópia. A autora escreve que “O trabalho do gravador não gera apenas uma obra, única, original; oferece
também a possibilidade de se ter, a partir de uma matriz, inúmeros originais, ou inúmeras cópias.” (LAGES,
2007: 45)
Em Bressane, a melancolia está associada às ideais desde sempre perdidos, a ambições nunca realizadas e
que, mesmo assim, sobrevivem no mito. Para o realizador, o filme Limite (Mário Peixoto, 1931) seria, assim, um
vislumbre do que o cinema brasileiro poderia ter sido (mas raramente foi) enquanto potência criativa e manancial
de invenção. Em seu texto sobre o filme de Peixoto, Bressane o coloca como fundador de uma tradição negativa,
que jamais houve:

Sobre os resíduos em Bressane, escreve Ismail Xavier:

O seu cinema coleta resíduos e nos devolve escombros à atenção renovada; mas a sua dialética do banal-
insólito, tão responsável pelo mal-estar de quem visita o seu imaginário, configura um mundo de danação
em movimento incessante. Há no seu trajeto uma inconclusão que interroga, desafia e nos sonega os indícios
de que seu termo final seja o Paraíso (no céu ou na terra). (XAVIER, 1979, p. 62)

“Inconclusão” que também Rubens Machado Jr. identificou em Bressane desde, pelo menos, o plano
que encerra O anjo nasceu. (MACHADO JR., ) O imaginário do cineasta configuraria esse “mundo de danação
em movimento incessante”, que jamais se aproxima de um termo, num movimento que acaba por retornar aos
mesmos motivos estéticos, às mesmas “obsessões”: a invenção cinematográfica (que aparece na relação com as
vanguardas francesas e com Limite); a experiência do corpo e do erotismo como possibilidade de síntese; a cidade
do Rio de Janeiro como memória de uma “terra prometida”; a ironia (herança de Machado de Assis e de Noel
Rosa), do samba...
A cidade – ao mesmo tempo “triste e alegre” – é o lugar onde sonha o cineasta. É a partir do Rio de Janeiro
que se elaboram suas relações com a história (com a ruína); a cidade como espaço do encontro e do desejo sexual.
A cidade como espaço privilegiado para o encontro, a descoberta. Outro amante das ruas foi Walter Benjamin.
Em suas memórias da infância passada em Berlim, o filósofo escreve sobre o “despertar do sexo”, quando o então
menino faltou a uma comemoração religiosa e “perdeu-se” na rua:

409
a primeira grande sensação de desejo, em que se misturavam a violação do dia santo e a obscenidade
da rua, que me fez entrever, pela primeira vez, os serviços que prestava aos instintos recém-despertados
(BENJAMIN, 1987, p. 89)

A rua presta serviços aos instintos recém-despertados. Fornece estímulos ao corpo e ao olhar; cria um
estado de atenção particular, muito associado à modernidade. É no ato de perder-se – atividade do flanêur – que
se operam encontros, aproximações inusitadas. Ou, às vezes, mal-entendidos:

Os mal-entendidos modificavam o mundo para mim. De modo bom, porém. Mostravam-me o caminho que
conduzia a seu âmago. Qualquer pretexto lhes convinha. (BENJAMIN, 1987, p. 98)

Os “duplos sentidos” em Bressane parecem operar como os “mal-entendidos” em Benjamin: também eles
modificariam o mundo (seus significados) ao deslocar significantes de suas cadeias originais. Assim, recolocam
em chave sempre nova (inventam) a relação com a realidade imediata ou com um acervo de referências.
Benjamin entende a melancolia (e o barroco) como uma espécie de meditação sobre a cultura. No Brasil,
vários criadores acrescentariam a essa receita a ironia e o humor. Dos filho da galhofa e da melancolia, temos
– além de Machado de Assis – Noel Rosa, Oswald de Andrade, os modernistas brasileiros dos anos 1920, e os
cineastas surgidos em finais dos anos 1960 e associados ao Cinema Marginal, especialmente Júlio Bressane e
Rogério Sganzerla. Suas obras tentam retrabalhar elementos da cultura brasileira (e europeia) a partir desse resgate
operado pela melancolia, mas sempre com humor e ironia. Assim, no caso do cinema de Bressane, teríamos o
aspecto barroco identificado por Benjamin. Barroco e galhofeiro.
Bressane parece pedir a seus espectadores um sorriso de cumplicidade, seja quando compartilhamos de
suas leituras e assim podemos melhor identificar os materiais originais de suas citações e melhor perceber o
complexo jogo estabelecido pelo cineasta. Seja para dividirmos a experiência da vertigem (essa imagem tão
barroca) que o cineasta cria a partir de uma erudição que insiste em se manifestar nos aspectos sensíveis do corpo:
na dança, no sexo etc. – como bem diz a expressão no texto de Olgária Matos, o que experimentamos nesses casos
são “êxtases culturais”.
Ao analisar um conto do alemão E. T. A. Hoffman, Jean Starobinski concebe que a melancolia, “efeito
de uma separação sofrida pela alma”, pode ser “curada pela ironia, que é distância e desarranjo ativamente
instaurados pelo espírito, com o auxílio da imaginação.” (STAROBINSKI, 2016: 301) Talvez o que Bressane
realize não seja exatamente uma cura, mas uma droga, um anestesiamento, um delírio. Ou, para citarmos o
exemplar título de um livro de José Miguel Wisnik sobre futebol, podemos pensar que, em Bressane, o binômio
ironia-melancolia operaria como um “veneno remédio”: o uso da galhofa serviria então para lidar com nosso
passado traumático (nossa identidade nacional que tão desesperadamente tenta associar-se à alegria, mas que
sempre, inelutavelmente, termina ligada à tristeza). Temos então o surgimento de um “sorriso barroco” – ao
mesmo tempo trágico e vertiginoso, erudito e irônico, triste e sensível – que o cinema de Bressane lança à plateia,
e que se configura como uma de suas marcas mais distintivas.

410
Referências bibliográficas

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das Letras, 2014.
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BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa.
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politica: ensaios sobre literatura e história da cultura. tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
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NETO, Lira. Uma história do samba: as origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema Marginal (1968-73): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense,
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XAVIER, Ismail. “O mal-estar na incivilização”. In: Cine-Olho, n. 5-6. São Paulo, pp. 54-57. jun./jul. 1979.

411
Fábio Camarneiro – Professor do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal do Espírito
Santo – UFES. Possui doutorado em meios e processos audiovisuais e mestrado em comunicação impressa e au-
diovisual, ambos pela ECA/USP. Foi assistente de direção e um dos idealizadores do documentário Assombração
urbana com Roberto Piva. Escreveu o roteiro de Curupira (melhor curta no Festival do Rio, 2005). Foi um dos
editores de texto do programa Lá e Cá (co-produção TV Cultura e RTP – Rádio e Televisão Portuguesa). Tem
textos publicados nos livros Montagem e Interpretação – Coleção Cinema e Psicanálise, vol. 4 (organização:
Christian Ingo Lenz Dunker; Ana Lucilia Rodrigues) e Os filmes que sonhamos” (organização: Frederico Ma-
chado). Escreveu crítica de cinema nos jornais “A Gazeta”, “Valor Econômico” e “Folha de S. Paulo” e no blog
“retrovisor” [http://camarneiro.blogspot.com.br/]. É redator da revista online “Cinética”.

412
35. O Cinema do Entrelugar

Angelita M. Bogado

Inicialmente propomos um retorno à crítica de Walter Benjamin sobre o fracasso da experiência (Erfahrung,
e o fim da arte de contar). A reflexão teórica foi evocada para impulsionar a análise dos filmes e ajudar a construir
o pensamento sobre o que vem a ser o cinema do entrelugar.
A teoria da narração de Benjamin, desde os escritos da década de 1930 (Experiência e pobreza, em 1933,
e o Narrador, em 1936) aponta para o declínio da experiência. Para estudiosos e teóricos da narração como
Márcio Seligmann-Silva (2005) e Jeanne Marie Gagnebin (2009, 2014), a transmissão das narrativas orais foram
severamente comprometida diante do horror e do genocídio praticados dentro dos muros de Auschwitz. Em
uma sociedade do pós-primeira guerra, os soldados voltavam emudecidos dos campos de batalha. A política do
“desaparecimento da história” adotada pelos nazistas foi uma estratégia “de querer tornar Auschwitz inimaginável”
(DIDI-HUBERMAN, 2012: 36). Confinamento, práticas de tortura, cadáveres em valas comuns, corpos sem
lápide, arquivos destruídos foram atos deliberados como forma de varrer os vestígios da história. Imagens foram
apagadas, palavras foram silenciadas.

Não há dúvida que os nazis acreditaram na possibilidade de tornar os judeus invisíveis, de tornar invisível
a sua própria destruição. Esforçaram-se tanto nesse sentido que muitos, entre as suas vítimas, pensaram o
mesmo, e muitos ainda hoje assim o pensam. (DIDI-HÜBERMAN, 2012: 38).

A ditadura militar no Brasil, implantada nos anos de 1960, trouxe para a nossa história uma destruição de
experiência similar. São bastante semelhantes as políticas de apagamento da história adotadas pelos nazistas e
pelos regimes militares de toda a América Latina. No entanto, as transformações no modo de narrar da tradição
oral não se impuseram apenas aos que sofreram o horror e a crueldade das políticas de genocídio. Quase um século
depois, no mundo contemporâneo – moderno, capitalista e conectado – continuamos inábeis em transformar
nossas vidas vividas em histórias para se contar e recontar.

Sabemos que para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a
pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente” (AGAMBEN,
2012: 21)

Trânsito, edifícios, filas, velocidade da informação, como encontrar pessoas, depois de um dia extenuante,
com habilidade de comunicar experiências? Desaprendemos a ver e a escutar. No cinema brasileiro foi Eduardo
Coutinho, benjaminiano confesso382, que valorizou, através de sua escuta atenta, a oralidade do homem comum
e transformou as experiências individuais de seus personagens em histórias partilháveis. Gagnebin ressalta que
382 Ao ser questionado pelos membros do corpo editorial do periódico Sexta-feira sobre seus autores de referência,
Eduardo Coutinho respondeu “No caso de O fio da memória e em outras coisas que eu fiz, tenho uma fascinação pelo
413
as reflexões de Benjamin não apontam apenas o declínio das narrativas orais, para a pesquisadora o texto “O
Narrador” traz também “a ideia de uma outra narração, uma narração das ruínas da narrativa, uma transmissão
entre os cacos de uma tradição de migalhas” (2009: 53). A valorização do testemunho, essa narração feita de
“ruínas”, “cacos” e “migalhas” abalou a historiografia tradicional:

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a
importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se
opõe a “Memória oficial” [...] (POLLAK, 1989: 04)

A memória subterrânea, assinalada por Michael Pollak, pode ser constituída pela lembrança dos excluídos
nos filmes de Adirley Queirós, A cidade é uma só? (2012) Branco sai, preto fica (2014).
Para o estudo do “cinema do entrelugar” visitamos também as ideias de Silviano Santiago sobre o que é
um “entre-lugar”. O pesquisador, na tentativa de pensar o intelectual brasileiro do século XX, encontra nas ideias
do tropicalismo e do modernismo inspiração para pensar um terceiro espaço identitário, o “entre-lugar” como
uma zona de convergência entre a cultura europeia e a nacional. A potência do termo, enquanto um espaço de
contato nos permite adotá-lo nos estudos de cinema justamente pelo seu caráter agregador. O entrelugar promove
o diálogo entre espaços dinâmicos e em trânsito, promovendo um elo entre elementos polarizados como: presença
e ausência, lembrar e esquecer, ficção e documentário. Uma memória do entrelugar procura apresentar uma
memória vivida, experenciada e encenada na linguagem fílmica que possibilita certa perenidade àquilo que é
fugidio, uma escrita que abriga e liberta, ao mesmo tempo, a cena do esquecimento. Cria-se assim, filmicamente,
uma memória do entrelugar, um espaço intermediário que afirma a origem rememorada da personagem ao mesmo
tempo em que marca uma diferença em relação a esta origem.

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo”, como ato insurgente, e não parte do
continuum do passado e do presente. Gera uma produção artística que não apenas retoma o passado – causa
social ou precedente estético –, mas o renova, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que, além
de inovar, interrompe a atuação do presente e torna-se parte da necessidade (e não da nostalgia) de viver.
(BHABHA, 2007: 27)


A produção do documentário brasileiro contemporâneo, seja ressignificando ou performando, negocia
permanentemente passado e presente na construção “do novo”. O cinema do entrelugar é um lugar de trânsito por
excelência, no qual experiências vividas são atravessadas pelo tempo da memória.
O documentário contemporâneo parece ser um (entre) lugar privilegiado, no qual os tempos históricos
e ficcionais se cruzam como forma não apenas de insurgir o novo, como prega Homi Bhabha, mas, sobretudo,
enquanto um espaço potente de abertura e pertencimento de uma dimensão referencial. O vasto campo de conexões
que o cinema do entrelugar promove possibilita um resgate da experiência (Erfahrung).
Neste estudo, observamos um processo transformador das experiências. Os narradores partem das memórias fixas,
de experiências vividas e imutáveis no passado (Erlebnis), para, por meio da forma de narrar do documentário –
seja através da montagem, da ficcionalização de personagens, ressignificando arquivos – tornarem-se experiências
partilháveis (Erfahrung) “dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já que a história continua, que está aberto
a novas propostas e ao fazer junto.” (GAGNEBIN, J.M., p.11, 1994)

Erfahrung é o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, prolonga-se e desdobra-se
Walter Benjamin e pela alegoria do anjo do Paul Klee sobre a ruína.”(COUTINHO, E. OHATA, M., 2013, p.226)
414
como uma viagem (Erfahrung provém do verbo fahren – viajar), sendo importante seu caráter coletivo de
transmissão, inclusive preexistente ao indivíduo. (PORTUGAL, 2012, p.197)

A Erfahrung, entendida por Benjamin como uma experiência em fluxo com o passado, amplia a dimensão
espaço-temporal da narrativa, libertando a memória historiográfica de sua rigidez cronológica e pretérita. No
documentário contemporâneo, a memória solicita a invenção, e assim seus narradores se relacionam com as
fraturas promovidas pelo passado perdido. Possibilitando o surgimento de novas imagens de um passado antes
visto como imutável e até mesmo esquecido.
Vidas vividas são remanejadas, contadas e recontadas, ou como prefere Ricoeur a “configuração” das
narrativas históricas que para ele são “operações narrativas elaboradas no interior mesmo da linguagem” são
“refiguradas”, ou seja, a experiência viva sofre uma transformação “sob o efeito da narração”. (GAGNEBIN,
2009: 172-173). Em A cidade é uma só?, observamos que a relação temporal de Dildu (personagem ficcional)
parece ser uma “refiguração” do tempo de Nancy (personagem histórica). Do entrecruzamento ficcional e
histórico o leitor pode construir uma nova apreensão da experiência humana. As ações de Dildu não se prendem,
como as de Nancy, a uma tradição histórica, ou seja, não se trata de uma experiência vivida que aponta para uma
imagem acabada e cristalizada do passado (Erlebnis). Sempre presenciamos Nancy sentada – quadro exemplar
da fixidez temporal da personagem. Já Dildu não procura reviver o passado, ao contrário, tenta construir uma
experiência em movência (Erfahrung), incorporando a invenção. A mobilidade social e histórica da personagem
é representada na mise en scène por sua movência no quadro, o vemos andando com frequência através das
cenas. Dildu não vive sob os escombros da história e muito menos se esconde em um presente desconectado do
vivido. Seu discurso e suas ações agem sobre os tempos – passado e presente – relacionando os dois, criando um
entrelugar na temporalidade.
Cineastas, conscientes de que o fato ocorrido escapa à imagem presente, valorizam o testemunho para
produzir uma nova experiência do vivido no presente da imagem. A impotência da imagem diante de um passado
que não volta, se converte em força diante da possibilidade de se reencenar os rastros da história. Adirley Queirós,
nos filmes A cidade é uma só? (2012) e Branco sai, preto fica (2014), criou espaços fílmicos de movência entre
o vivido e o imaginado, um exercício de deslocamento e multiplicação de si que mantém dinâmico o fluxo do
passado. O pesquisador André Brasil no artigo “A performance: entre o vivido e o imaginado” reflete sobre como
esses espaços se atravessam e se entrecruzam:

Notadamente, alguns filmes contemporâneos se criam, desde o início, em mão dupla: de um lado
ficcionalizam-se vidas mais ou menos ordinárias – em uma narrativa de caráter imanente, que levemente se
depreende do real sem roteirizá-lo em um gesto demasiado. De outro lado, produz-se algo como uma deriva
da ficção, provocada pela deriva da vida de seus personagens. Assim, nestas obras, a vida ordinária produz
ficção – produz imagens – e, em via inversa, se produz nas imagens, é produzida na e pela ficção. (BRASIL,
2014: 133)

A simultaneidade dos espaços entre vida vivida e vida imaginada, no cinema contemporâneo, acontece
tanto nos filmes indexados como ficção – Girimunho (Clarisse Campolina, Helvécio Marins Jr, 2011), Ela
volta na quinta (André Novais, 2014) – quanto nos filmes classificados como documentário – A paixão de JL
(Carlos Nader, 2014), Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015). São filmes que trazem personagens feitos dessa matéria
híbrida, estão sempre em movimento, atuando em um campo, mas sob o efeito estético de um outro campo. Os
personagens, Sartana e Marquim, de Branco sai, preto fica e a família de André Novais – pais, irmão, namorada
– em de Ela volta na quinta, estão sempre em um espaço de indeterminação entre o real (suas próprias vidas) e a
415
ficção (mundo roteirizado). A simultaneidade entre mundos (vivido e imaginado) é o habitat da performance “a
performance se encontra exatamente na passagem entre formas de vida e as formas da imagem, entre o vivido e
o imaginado (BRASIL, 2014: 134).

Cenas limiares

Ora, se as experiências não são transmitidas os processos históricos não se completam. Quando o
conhecimento não se acumula nossas experiências não envelhecem, e consequentemente, acabam sendo apagadas
ou esquecidas. Para que as histórias não sejam esfaceladas é preciso criar formas de transpor as lacunas para
viabilizar a transmissão das experiências.
O conceito de limiar (Schwelle) é descrito por Benjamin, em um fragmento de Passagens (Das Passagen-
Werk, Walter Benjamin, 2007), enquanto um espaço de transição, a proposição fornece uma importante reflexão
para percebermos como os cineastas operam, através da linguagem, formas de saltar entre tempos e espaços, tidos
a priori como fronteiriços, comunicando-os. Benjamin enfatiza “O limiar (Schwelle) deve ser rigorosamente
diferenciado da fronteira (Grenze)” (2007: 535). Limiar traz em si a ideia de fluxo, transição, movimento, o
vocábulo em alemão tem proximidade etimológica na palavra onda (Welle). Já o conceito de fronteira (Grenze),
segundo Gagnebin está ligado:

[...] a contextos jurídicos de delimitação territorial: entre a cidade e o campo, entre várias propriedades
fundiárias, ou ainda entre vários territórios nacionais [...] e que não pode ser transposta impunemente. Sua
transposição sem acordo prévio ou sem controle regrado significa uma transgressão, interpretada no mais das
vezes como agressão potencial. (GAGNEBIN, 2014: 35)

A Cidade é uma só? pode ser visto como uma grande tensão entre limiares e fronteiras, entre centro e
periferia. O filme mostra como a história e as políticas públicas governamentais da época excluíram as populações
indesejadas da nova capital do país. No filme Branco sai, preto fica, o tema da delimitação territorial é retomado,
e Adirley eleva o tom propondo sarcasticamente um futuro em que os moradores das cidades satélites precisarão
ter passaportes para cruzar a fronteira e entrar no Plano.
Para denunciar e tentar desconstruir a fronteira que promove a segregação de classes no planalto central,
Adirley desenha uma arquitetura fílmica feita no entrelugar. São planos limiares que apontam para uma zona de
contato, um lugar de passagem em que a periferia pode transbordar para o centro. O som é um dos principais
recursos utilizados pelo diretor para instaurar um espaço de movência entre lugares. A banda sonora e a banda
imagética muitas vezes estão em dissonância no mesmo plano, o que acaba por acrescentar ao som um valor
expressivo e comunicativo. A voz do locutor de rádio, exaltando a beleza de Brasília, sincronizada com a imagem
das ruas sem pavimentação, das cidades satélites, ou uma música clássica para embalar as imagens de uma
cidade sem nenhuma infraestrutura operam um campo associativo, em que planos-limiares, construídos de som e
imagem, promovem, ao mesmo tempo, um espaço de contato e de denúncia da separação.
Nos filmes de Adirley Queirós, a extensão dos limiares é valorizada, levando a um esgarçamento do tempo.
As pontes arquitetadas pelo cineasta na tentativa de restaurar alguma ligação entre os moradores de Ceilândia e o
território perdido, leva Dildu a vagar entre os espaços fronteiriços. Atravessando descampados a pé, voltando para
casa, depois do trabalho, de ônibus, lavando os corredores da escola em que trabalha, imagens que simbolizam
uma solidão, não há interação nem visibilidade de Dildu nesses espaços. Sempre na tentativa de criar inúmeras
maneiras de atravessar o limiar, o personagem parece andar em círculos, sem, contudo, realmente ultrapassar para

416
o lado desejado.
Preso nos limiares que constrói, vagando, sem alcançar o destino desejado, invisível para a cidade, Dildu
deixa no ar, no final do filme, um sentimento de desesperança, anunciando, para em algum momento na posteridade,
um encontro sombrio entre Brasília e o seu entorno. Como não consegue criar um limiar, de fato transponível,
Queirós no seu filme, Branco sai, preto fica, assume o território enquanto fronteira (Grenze) e amplia o domínio
da metáfora do limiar enquanto uma zona paralisante. Dois personagens, vítimas de uma ação policial racista e
reacionária – um tem um membro amputado e o outro fica preso em uma cadeira de rodas – reúnem um pequeno
grupo de pessoas para transgredir a fronteira, e assim acabar com o território opressor. Por fim, constrói-se uma
bomba sonora, feita de músicas populares – vista como lixo cultural pelos moradores de Brasília – como forma
de invadir e explodir o Plano piloto. A bomba metafórica de Queirós acaba por inscrever a própria narrativa
documental em uma zona limiar enquanto um lugar de articulação entre o lembrar e o fabular.
As cenas de Dildu, em A cidade é uma só?, lavando os corredores de uma escola apresentam-se como
limiares fílmicos que podem ser lidas de forma alegórica. Nessa cena não há diálogos. Fora de campo apenas
um burburinho de vozes dos alunos. Interessante perceber que o chão lavado, em absoluto silêncio por Dildu,
é vermelho. Vermelho, tal qual as ruas de terra de Ceilândia. Por mais que o chão do colégio possa ser lavado e
limpo (diferentemente de onde mora) ele sempre será vermelho (tal qual o chão de Ceilândia). O piso e sua matiz
vermelha apresentam-se como índice de unidade e cisão entre o centro e a periferia.
Em Branco sai, preto fica, Queirós idealizou a cenografia da locação – a casa com elevador e escadas
adaptadas para cadeirante, o equipamento e o material da rádio, o artefato da bomba sonora – trata-se do “habitus”
de Comolli, o espaço que atua no corpo enquanto um dispositivo desencadeador de cenas e depoimentos. A
história de Marquim da tropa (pessoa ordinária da vida real), enquanto sobrevivente de uma ação racista da polícia
no clube Quarentão, na cidade de Ceilândia, em março de 1986 durante um baile de black music, que o deixou
paraplégico, confunde-se com a interpretação do radialista Marquim (personagem ficcional) que junto com os
amigos preparam uma bomba sonora como forma de se vingarem da violência das políticas segregacionistas do
Estado.
A manipulação do tempo, do silêncio e dos enquadramentos são responsáveis pela atmosfera dos planos
em Branco sai, preto fica. Os planos longos de Marquim saindo do carro, montando sua cadeira de rodas, entrando
no elevador da sua residência com os diálogos em suspenso – na banda sonora ouve-se apenas o som ambiente
das máquinas responsáveis por sua locomoção – acentuam a dificuldade de mobilidade do personagem e a injusta
mutilação sofrida pelo confronto com os policiais no Quarentão.
Assim como em A Cidade é uma só?, a teatralidade em Branco sai, preto fica enlaça, em um só tempo,
vida vivida e imaginada. Ao empregar cenários, paisagens e a arquitetura da cidade como forma de influenciar
a performance dos personagens, Queirós cria inúmeras possibilidades de linguagem e leitura para discutir as
políticas públicas que afetam a vidas das populações periféricas.

Espaços de ausência em Branco sai, preto fica

Como são construídas (e podem ser lidas) as experiências entre o vivido e o imaginado sobre espaços
ausentes? Como espaços de ausência na obra acabam por determinar o modo de performar dos diretores e afetam
o modo de percepção dos espectadores?
Além de observarmos a importância dos espaços ausentes na construção e na interpretação da parte visível
das obras, as inquietudes trazidas por Jacques Rancière, em “Athusser: a cena do texto”, motivaram a reflexão
417
desta análise. Neste artigo, o filósofo francês examina os escritos de Louis Althusser, enquanto leitor de Karl
Marx, e encontra em seus textos “um modo de leitura onde a ausência se mostra a livro aberto na presença.
” (1995: 173). Podemos pensar sobre essa política da ausência não somente no campo da cena escrita, como
fez Rancière, mas também podemos experimentá-la no campo da cena fílmica. Sobre esse espaço vazio, onde
aparentemente o texto se cala, Rancière nos diz, “Como obra a continuar, vejo principalmente uma ausência de
obra a interrogar, ou antes, uma relação tensa, violenta, entre obra e ausência de obra.” (1995: 171). É visível
que as performances fílmicas, construídas sobre espaços ausentes, buscam dispositivos de apresentar gestos, em
cena, que interroguem, tensionem e consequentemente possibilitem às histórias um meio de sobreviver as obras.
Buscar na lacuna a presença que falta tem sido um expediente muito utilizado por cineastas contemporâneos
como forma de colocar em cena as histórias narradas. São performances sobre ausências, que se efetuam a partir
do que está fora da imagem ou de um resíduo de imagem. A impossibilidade de acessar uma presença plena do
visível em sua materialidade convida os diretores a performarem. (Re) Organizando os arquivos e suas lacunas,
os filmes encontram modos de aparição para o que, até então, estava ausente ou invisível para a história. A obra
de Rancière, nos coloca novamente na esteira das ideias de Benjamin acerca do conceito de história descrito em
suas teses. Ao olharmos para a história sob o signo da ruína, do fragmento, do resíduo, a relação entre ausência e
presença se impõe pela complementariedade dos contrários.

[…] eis, a um só tempo, um fato de linguagem e um fato de fato. Ou, em outros termos, para o perspectivismo,
o mundo é, simultaneamente e indissociavelmente, feito (artifício, ficção) e fato (real). Entre um e outro – a
ordem das aparências e a ordem das essências – está o corpo em performance. […]
No âmbito desta ontologia relacional, o critério valorativo de uma performance não passa mais pela verdade
– sua adequação ao mundo da referência ou da sua “autenticidade” –, mas pela efetividade de sua operação,
por sua produtividade, por sua eficácia. Performar é menos encenar, fantasiar um corpo ou mascarar um
rosto, do que produzi-los, reinventá-los. (BRASIL, 2014: 138-139)

No cinema do entrelugar fotografias, cartas, relatos, lugares, canções tornam-se um clarão para os
escombros da história. O caráter relacional entre presença e ausência, imanente ao fragmento histórico, cria um
ambiente fecundo para a performance (entre o vivido e o imaginado). É diante de espaços ausentes que o cinema
do entrelugar tem a possibilidade, através de limiares feitos entre a ficção e o fato, de transformar a invisibilidade
e o silêncio dos arquivos em imagens visíveis e audíveis.
Para falar de um cinema, no qual o corpo está em performance sobre espaços ausentes, vamos recolher
para análise algumas lacunas de obra de Adirley Queirós – Branco sai, preto fica.
Partiremos de uma particularidade da narrativa fílmica no modo de performar sobre as ausências. A
aparição das imagens, que constituem as personagens dessa narrativa, estão sob um regime: uma situação de crise.
No documentário Branco sai, preto fica, Queirós confronta crimes praticados contra as populações periféricas que
levaram as políticas segregacionistas entre Brasília e o seu entorno. O baile de black music é um índice narrativo
desta segregação. Fronteiras vigiadas, toques de recolher e a construção de uma bomba narram à possibilidade de
uma guerra iminente.
Para pensar em como as imagens (e suas ausências) constituem-se nos cenários de crise, vamos nos
aproximar do pensamento da analista e filósofa da imagem Marie-José Mondzain. Em seu livro Imagem, ícone,
economia, a pesquisadora irá buscar nas fontes bizantinas, período do conflito entre iconófilos e iconoclastas, as
bases para refletir sobre o pensamento contemporâneo da imagem.
Ao estudar esse período de guerra entre os que cultuavam e os queriam destruir as imagens religiosas,

418
Mondzain examinou a importância do conceito economia383 para se pensar a imagem enquanto uma relação
econômica de investimento e gasto. Economia, portanto, não se restringe a bens materiais, mas também inclui
os bens simbólicos. Além do uso rotineiro do termo economia para designar a administração de bens e serviços,
o termo foi empregado no período bizantino para referir-se “ao princípio fundador e unificador da encarnação
da imagem natural do Pai na pessoa do filho” (MONDZAIN, 2013: 34). Portanto, na perspectiva teológica,
economia é um conceito que remete a Deus enquanto um grande organizador e articulador do mundo que ao dar
visibilidade (filho), aquele que era invisível e inteligível (Pai) transforma a ordem do mundo baseando-se em uma
economia relacional entre ausência e presença. Segundo Mondzain, a questão posta pela igreja iconófila é […]
“de que modo a imagem natural e invisível assumiu a carne, e de que modo a carne de nossas imagens visíveis nos
reconduz a essa imagem invisível? ” (MONDZAIN, 2013: 108). A doutrina da economia das imagens, baseada
em um sistema relacional de visibilidades e invisibilidades pode ser aplicada a qualquer imagem.

A economia é a dimensão real, histórica e a dimensão temporal do olhar. Ela designa essa negociação
ininterrupta dos olhares entre o que está presente e o que está ausente. É dizer que só há vida dos signos
numa relação com a ausência e em uma separação da presença. (MONDZAIN, 2014: 4)

A performance sobre espaços ausentes constrói imagens em uma relação econômica, ou seja, em uma
negociação estética entre o ver e o não ver. Ao estudar essa política do gesto pautada entre saberes e não saberes,
Rancière destaca algumas linhas de Ler o capital de Althusser:

Na história da cultura humana, nossa época pode aparecer algum dia como marcada pela prova mais dramática
e mais laboriosa de todas, a descoberta e a aprendizagem do sentido dos gestos mais “simples” da existência:
ver, escutar, falar, ler – esses gestos que põe os homens em relação com suas obras e essas obras atravessadas
na garganta que são suas “ausências de obras.” (ALTHUSSER apud RANCIÈRE, 1995: 172)

Ler para poder ver, escutar para poder falar, são os “gestos simples” dos quais Althusser nos alertou para
que os homens sejam atravessados por suas obras, para Rancière esses são gestos que se desdobram em potência
diante de obras que encarnam ausências. Nesse sistema relacional, o cinema do entrelugar faz vir para frente
o que estava latente nos fragmentos e lacunas da história. As imagens aguardam o olhar espectatorial para se
tornarem realmente audíveis e visíveis, Mondzain irá chamar de “imagem” o modo de aparição frágil de uma
aparência que se constitui a olhares subjetivos, em uma subjetivação do olhar. A “imagem” é efetivamente, no
meu léxico, o que constitui o sujeito. “(MONDZAIN, 2014: 2-3). A “imagem” entre aspas é uma “imagem” por
vir, uma “imagem” a ser conceituada e não uma imagem objetificada; são imagens que permitem ao espectador
a identificação de si mesmo.
As lacunas de Adirley Queirós, em Branco sai, preto fica, atravessam o espectador de várias formas,
contudo, e nesse sentido, há uma cena exemplar no filme. Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), um homem
vindo do futuro, do ano de 2073, tem como objetivo encontrar provas de crimes praticados pelo estado contra as
populações periféricas de Brasília. Sua missão é encontrar Sartana, frequentador do Quarteirão nos anos 1970, que
durante um baile foi pisoteado por cavalos da polícia e teve sua perna esquerda amputada. Na busca por Sartana,
Cravalanças anda por espaços abandonados, construções em ruínas, casas empilhadas. O vemos revirando os
escombros do passado à procura de provas dos malfeitos do estado contra os negros e marginalizados, quando
então, em um galpão sombrio, cheio de ferros retorcidos, ele saca a sua arma (invisível), fica à espreita e começa
a atirar – o som dos disparos dá visibilidade a arma. Também não vemos contra quem Cravalanças está atirando,

383 A autora faz um estudo do conceito economia desde o campo semântico grego (Oikonomia) passando
419
até o momento em que ele se volta para o público, olhando diretamente para a lente da câmera e crava sua lança
no espectador. O tiro certeiro corporifica o público: eu, você, cada um que foi atingido por esse tiro, entra para a
história. Nossa ausência torna-se visível. O espectador se vê corresponsável por um passado desconectado do seu
presente e futuro. Difícil não pensar na tese do “anjo da história”384 de Benjamin. Cravalanças, assim como o anjo
da história, lança um olhar trágico sobre a humanidade:

[...] O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado, onde uma cadeia de
eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre
escombros e os arremessa a seus pés. (BENJAMIN apud LÖWY, 2005: 87)

A performance de Cravalanças aponta para o nosso medo de olhar os escombros da história. O Brasil
fechou os olhos para a escravidão, para o extermínio das populações indígenas, para a brutalidade da ditadura
militar. São histórias apagadas por políticas de estado que perpetuam a institucionalização da violência. Quando
o personagem de Adirley Queirós crava o olho no espectador, a história do outro deixa de ser a do outro e passa
a ser a história de todos nós.

Queirós explora a dimensão econômica da imagem – no sentido que Mondzain atribui ao termo – através
dos seus personagens mutilados. A imagem da perna amputada de Sartana e a imagem da condição de cadeirante
de Marquim negociam presente e passado, visibilidades e invisibilidades da história. Seus corpos mutilados
também fazem parte da performance relacional entre ausência e presença. Sartana carrega consigo a história viva
do que foi aquela noite na casa de shows do Quarteirão, onde foi vítima da truculência policial.

O fim do Quarteirão foi meio que assim, o fim da fase da minha vida, o fim de uma das minhas vidas, comecei
uma outra vida ali, foi um outro choque, sair do hospital foi um choque com a realidade, um choque com as
ruas onde a gente dançava, tudo em que eu passava, eu lembrava uma coisa [...] parece que a cidade toda era
parte da minha vida, parece que cortei aquilo ali tudo, era uma parte que eu tava perdendo, não tinha mais
o direito de tá ali naquela esquina, eu cheguei em casa e não queria mais sair de casa. (Sartana, Branco sai,
preto fica)

Uma perna amputada, uma cidade amputada, uma história amputada. O corpo de Sartana a partir da
invisibilidade da parte que lhe foi arrancada cria imagens visíveis de uma história que não deve ser apagada.

Os personagens Sartana e Marquim operam na construção das visibilidades históricas de forma distinta.
Sartana, em sua performance, desenha imagens da destruição de Brasília, antecipando o futuro sombrio. Marquim
atualiza as narrativas do passado por meio de sua rádio amadora. Através de suas contações, embaladas por
músicas do passado, revivemos as danças, os passos, as paqueras, os amigos, os djs do Quarteirão, mas sobretudo,
é através da narrativa de Marquim, logo na abertura do filme, que a história da invasão policial no baile é narrada
[...] “puta para um lado, viado para outro! Bora! Tá surdo negão? Branco lá fora, preto aqui dentro. Branco sai,
preto fica! ” O território do passado é explorado por Marquim no plano do audível (rádio) e Sartana profetiza o
futuro no plano do visível, através dos seus desenhos.

Assim como Sartana, o corpo de Marquim também carrega a marca da ausência. A ausência de mobilidade
territorial e social está expressa na sua condição de cadeirante. Queirós explora, através de planos longos e

por Platão e Aristóteles até a retomada do termo em contextos cristãos no período bizantino, no século IX.
384 Sobre “o anjo da história” confrontar a Tese IX de Walter Benjamin comentada por Michael Löwy (2005: 87)
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sem diálogos, a mobilidade comprometida de Marquim. Uma perna imobilizada. Uma cidade imobilizada. Uma
história imobilizada. A performance do corpo da personagem não permite que a história se cale sobre as fronteiras
erguidas entre o plano e as populações periféricas. O não encontro entre Brasília e o seu entorno está manifesto
em uma relação de ausência e presença na imagem. Através de limiares fílmicos, o cinema do entrelugar, em
permanente negociação entre o que está ausente e presente da cena, abrem um clarão para que histórias silenciadas
ou apagadas possam escoar e, assim, restabelecer o fluxo das narrativas, devolvendo aos sujeitos sentimentos de
pertencimento e visibilidade histórica.

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Angelita M. Bogado - Graduada em comunicação social (1997) e em letras português-alemão (2007), mes-
trado em estudos literários (2007), todos na Unesp, doutora em comunicação e cultura contemporâneas (UFBA).
Professora adjunta, atual coordenadora do curso de cinema e audiovisual, da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB). Desde 2009 ministra as disciplinas de linguagem e expressão cinematográfica I e II. Tem ex-
periência na área de narrativas com ênfase em análise fílmica. Atualmente, se dedica ao estudo do “entrelugar”
no cinema brasileiro contemporâneo, com a pesquisa intitulada Cinema do entrelugar: estética e experiência?.
Vinculada ao Grupo de Estudos em Experiência Estética: Comunicação e Arte (GEEECA - CNPq). Coordena a
Semana de Pesquisa e Extensão de Cinema e Audiovisual (UFRB).

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