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BIODIVERSIDADE EM SISTEMAS DE
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: O CASO
DO PROBUC NO ESTADO DO AMAZONAS
Daniel Carneiro Costa
Universidade Federal do Amazonas | Manaus – AM – Brasil
RESUMO
Nas últimas décadas, o monitoramento participativo tem sido apontado como um instrumento crescentemente importante para
a consolidação da gestão de áreas protegidas. No estado do Amazonas, a criação, em 2005, do Programa de Monitoramento da
Biodiversidade e do Uso de Recursos Naturais de Unidades de Conservação (ProBUC) representou um importante passo para a
efetividade do monitoramento participativo das unidades estaduais de conservação (UC estaduais). Apresentamos, sinteticamente,
os resultados de uma avaliação qualitativa do funcionamento deste programa, identificando suas contribuições e limitações para
a vida das comunidades locais. Iniciamos com uma revisão da literatura sobre as principais razões do surgimento dos programas
de monitoramento participativo e chegamos às observações dos atores sociais gestores, especialistas e comunitários, envolvidos
na construção do ProBUC, por meio de entrevistas. Constatamos que o programa contribuiu para a conscientização ambiental
e produziu dados sobre a biodiversidade, embora não se tenha verificado o subsídio à gestão das unidades de conservação.
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1 Esse componente não foi implementado nas UC visitadas durante a pesquisa de dissertação de mestrado, nem
naquelas em que o programa foi, posteriormente, efetivado.
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2 A realização das entrevistas em campo foi possível graças ao financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
do Amazonas (FAPEAM), por meio do projeto “Sustentabilidade socioeconômica e ambiental do programa de monitoramento
da biodiversidade e do uso de recursos naturais em unidades de conservação do Amazonas”. Esse financiamento garantiu a
logística necessária para os deslocamentos até as unidades de conservação onde vigorava o programa. A pesquisa foi registrada
no Comitê de Ética sob o número 23250113.2.0000.5020.
sentido, pode-se afirmar que houve influência é fundamental para que os programas funcionem
técnica na indicação dos monitores, sob a alegação com legitimidade (Lawrence et al. 2007:329). No
da relevância da escolha de pessoas adequadas às caso do ProBUC, não tivemos condições de avaliar
necessidades de cada trabalho para que o programa com maior profundidade se as negociações que
obtivesse resultados consistentes. resultaram nos componentes aprovados também
Por sua vez, os especialistas alegaram que pelos comunitários refletiram, da maneira mais
não houve divergências significativas quanto fidedigna possível, os interesses dessas populações
aos procedimentos adotados pelos técnicos do locais. No máximo, como mencionado, soubemos
programa para incluir a participação comunitária. que os componentes aprovados não encontraram
Para eles, tal como para os gestores, efetivou-se objeções das comunidades, assim como sua
o cumprimento das formalidades que conferiram indicação foi baseada em particularidades
caráter participativo ao processo, o que garantiu apontadas pelos planos de manejo das unidades
a incorporação dos interesses comunitários tanto de conservação em que o programa se efetivaria.
para a escolha dos monitores como para a seleção Em relação ao financiamento do programa,
dos componentes. gestores e especialistas confirmaram a dependência
O cumprimento formal da participação que o ProBUC mantinha em relação a repasses
comunitária em um programa de monitoramento, da fundação norte-americana Moore, o que
todavia, não é suficiente para garantir que os corroborou a deficiência crônica consistente
interesses de todas as partes envolvidas estejam no vínculo que programas de monitoramento
corretamente atendidos. A esse respeito, Evans participativo de diversas partes do mundo
& Guariguata (2008:10) apontam a existência de possuem no que concerne a recursos externos
uma divisão de grupos de interesse na construção (Whitelaw et al. 2003:412). Essa situação é mais
desse tipo de programa: de um lado, estariam crítica quando se trata de programas situados em
as populações locais, que detêm uma forma países periféricos ou em desenvolvimento, onde a
direta de uso dos recursos ou das espécies, em limitação orçamentária acentuada e permanente
conformidade com seu modo de vida; de outro, torna o funcionamento deles mais dependente
os pesquisadores, os governos e as organizações de agências internacionais e de organizações não
não governamentais, geralmente imbuídos de governamentais (Danielsen et al. 2007:566).
interesses protecionistas, mais do que o primeiro O ProBUC não fugia à regra dos programas com
grupo de interesse. Esse segundo grupo traz dependência financeira externa e que sofrem com a
recursos financeiros e técnicos essenciais para a instabilidade dessa condição. Tanto gestores quanto
institucionalização dos programas; já os usuários especialistas reconheceram que essa dependência
da biodiversidade são essenciais para a constituição tinha um reflexo direto na rotina das atividades.
de um monitoramento efetivamente democrático. As renovações contratuais eram períodos em que
Por essa razão, a negociação permanente de o programa ficava paralisado, sem recursos, com
prioridades provenientes dos grupos de interesse sérios problemas de continuidade. Associado a
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isso, havia elevada rotatividade da equipe técnica. o que corresponderia à razão primordial desta
Normalmente, os técnicos ocupavam cargos iniciativa. Nesse sentido, os especialistas foram
comissionados, com permanência incerta, pois mais críticos ao afirmarem que faltou do próprio
a mudança na direção da secretaria de meio governo estadual uma política ambiental que
ambiente significava alteração também desses conferisse ao monitoramento participativo uma
membros do ProBUC. E tais alterações, muitas função estratégica para alimentar e subsidiar a
vezes bruscas, implicavam a dissolução de laços de gestão das unidades de conservação, através do
confiança e de afetividade criados entre a equipe uso sistemático dos dados apurados pela monitoria
técnica e os próprios comunitários, que acabavam comunitária.
se desanimando com sua participação no ProBUC, Essa problemática do retorno de dados como
além de serem obrigados a aguardar o retorno das benefícios não é, certamente, específica do ProBUC,
atividades por tempo incerto, como testemunhado pois Garcia & Lescuyer (2008:1304) utilizam a
em algumas entrevistas. ideia de “relação disfuncional” para descrever o
Como terceira limitação relevante destacada desencontro entre a produção participativa de
pelos gestores e especialistas entrevistados, dados e o aproveitamento deles na gestão da área
devemos assinalar que o ProBUC não cumpriu a protegida. É necessário enfatizar, do mesmo modo,
principal tarefa de oferecer dados que auxiliem na que também há exemplos de aproveitamento do
gestão das áreas protegidas. No entanto, gestores retorno dos dados coletados pelos programas
e especialistas defenderam que o programa, na de monitoramento, por intermédio de políticas
prática, contribuiu para valorizar conhecimentos públicas que ajustaram regras de uso e legislações
tradicionais por meio da monitoria, discutindo sobre a biodiversidade monitorada, como as
a importância da conservação e recolhendo experiências verificadas nos Estados Unidos e
dados para a gerência do programa, além de ter nas Filipinas (Andrianadransana et al. 2005:2760;
subsidiado pesquisas acadêmicas. Danielsen et al. 2007:569).
Como ressaltado pelos próprios gestores, os
dados foram expostos em reuniões comunitárias, 3.2. A CONSISTÊNCIA DO PROBUC NA
para que fossem socializados ao máximo entre PERSPECTIVA DOS COMUNITÁRIOS
as pessoas locais. Também ficaram disponíveis Nas entrevistas realizadas com os comunitários,
em um banco de informações localizado no entre os principais pontos positivos sobre a
CEUC, sendo utilizados por pesquisadores para existência do ProBUC, foram destacadas a
projetos específicos, mediante formalização. melhoria do conhecimento sobre biodiversidade,
Mas essas informações não serviram como base os recursos naturais e o seu uso (19,5%) e a ajuda
para a elaboração de políticas que pudessem financeira oferecida aos monitores (15,9%). A
aperfeiçoar a gestão das unidades de conservação, primeira vantagem demonstra o reforço ambiental
como para a criação de planos de manejo e para representado pelo programa. Os moradores locais
a revisão de zonas de proteção da biodiversidade, informaram que, desde a criação da área protegida,
são comuns cursos e oficinas que trabalham a valorizar os recursos naturais (14,5%). Como foi
perspectiva da conscientização ambiental. Assim, uma seleção de voluntários, no ato da candidatura,
o ProBUC aparece como mais uma oportunidade os comunitários realmente não sabiam se haveria
para que eles conheçam a importância do uso ajuda de custo, algo que lhes foi revelado apenas
controlado de espécies e de recursos naturais no após os resultados da aprovação, durante a oficina
interior da UC em que vivem. de capacitação. No momento desta pesquisa, a
A esse respeito, é interessante sublinhar ajuda de custo, equivalente a diárias de trabalho,
que Garcia & Lescuyer (2008:2) demarcam consistia nos seguintes valores: R$ 25,00 por
que a metodologia participativa presume uma dia de monitoramento, sendo que os de fauna
aproximação entre comunidades e estruturas e de jacaré, por serem considerados os de maior
do poder estatal, na tentativa de descentralizar periculosidade, chegavam a R$ 35,00. Como, em
a tomada de decisões na “gestão sustentável”. média, a atividade do monitoramento ocupava
Ela funciona como um ensejo para que os os colaboradores uma vez a cada quinzena, eles
próprios usuários da biodiversidade, com base chegavam a receber, de modo bimestral, entre R$
no conhecimento produzido e difundido pelo 100,00 e R$ 140,00 por este trabalho. Ademais, na
monitoramento, revejam suas práticas, com o RDS Uacari, os monitores de quelônios recebiam
fito de adaptá-las a condições de menor impacto. um rancho mensal referente a R$ 300,00. Estes
Essa sensibilização ambiental comunitária, valores foram considerados importantes, uma
contraditoriamente, não deixa de ser impositiva, vez que a renda mensal da população era baixa,
porque “subjuga [as] práticas locais às novas sendo, em média, de R$ 770,91 por domicílio. No
restrições ecológicas” (Andrianadransana et al. entanto, a retribuição financeira foi avaliada como
2005:2758). Por essa razão, a criação de regras para insuficiente por alguns dos monitores (17,20%).
o uso da biodiversidade precisa estar vinculada Os riscos oferecidos e o tempo empregado
às organizações comunitárias. Para Ghate & para a monitoria apareceram como motivos
Nagendra (2005:511), ações coletivas voltadas para justificar a necessidade de melhorias no
para a regulação do acesso e da utilização da valor concedido. Justamente em decorrência da
biodiversidade devem ser frutos de um processo dedicação ao programa, cerca de 50% dos monitores
de convencimento, fundamentado nas regras entrevistados afirmaram que não executariam mais
definidas pelos próprios comunitários usuários, o trabalho sem recompensa financeira.
não em ideias simplesmente impostas por agentes Entretanto, algumas pessoas declararam
externos. que, mesmo sem qualquer remuneração,
Quanto ao segundo ponto positivo do ProBUC, permaneceriam na função, pela satisfação de
cabe frisar que, entre as razões para aceitar a conhecer a biodiversidade (18,2%) e por considerá-
monitoria, as duas principais respostas dividiram- la um trabalho útil à comunidade (27,30%). Deve
se entre vontade de conhecer melhor a reserva e ser feita menção especial aos colaboradores que já
seus recursos naturais (21,8%) e sensibilidade para realizavam o monitoramento de quelônios antes
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